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Fórum Justiça
Criola
Defensoria Pública do Rio de Janeiro
REVISÃO
Vinícius Alves Barreto da Silva
Juanita Cuéllar Benavides
Ana Miria dos Santos Carvalho Carinhanha
Laysi da Silva Zacarias
PROJETO
Adriana Silva de Britto
Ana Miria dos Santos Carvalho Carinhanha
Élida Lauris
Livia Casseres
Lúcia Maria Xavier de Castro
Rosane Maria Reis Lavigne
Vinícius Alves Barreto da Silva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Catalogação na fonte: Ana Virginia Ferreira Carmo (CRB 8/10251)
Vários autores.
ISBN: 978-65-992442-2-3
CDU: 34:323.14
8 Quem somos
9 Apresentação
8
Apresentação
O Fórum Justiça, CRIOLA e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
(DPRJ) apresentam a publicação Racismo Institucional e o Sistema de Justiça,
uma coletânea de artigos que reúne um conjunto de reflexões sobre as dife-
rentes manifestações de práticas racistas nas instituições. A coletânea é
o resultado dos debates realizados na I Jornada Nacional sobre Racismo
Institucional e Sistema de Justiça, em março de 2018.
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que a chance de um branco ser solto é maior do que de um negro. Quanto aos
relatos de pessoas que sofreram agressão ou tortura, a maioria desses relatos
foi feito por negros. Em relação ao aborto, a maioria das mulheres processadas
é negra[1]. Mais recentemente, um estudo sobre falhas no reconhecimento
fotográfico de pessoas acusadas do cometimento de crimes mostrou que 81%
delas eram negras. Ao final, todas foram absolvidas, porém a maioria perma-
neceu presa durante o processo. Outra pesquisa também mostrou os vieses
existentes na abordagem policial ao voltar o olhar aos acusados por crimes do
Estatuto do Desarmamento. Além de 75% das pessoas acusadas serem negras,
são também maioria quando essa abordagem ocorre por atitude suspeita.
[1] Ver o artigo de Carolina Haber “Racismo institucional e sistema de justiça com foco no sistema
criminal” nesta coletânea. As pesquisas realizadas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ)
podem ser consultadas em: https://www.defensoria.rj.def.br/Documento/Institucional-pesquisas.
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Nos últimos anos, a DPRJ tem se comprometido com ações concretas em prol
da democratização racial do quadro de defensoras e defensores públicos, com
o lançamento do edital de XXVII Concurso à Carreira da Defensoria Pública,
implementado pelo Conselho Superior, que ampliou o percentual de cotas
e reconfigurou o modelo do concurso. Além disso, destaca-se a criação da
Coordenação de Promoção da Equidade Racial, por meio da Resolução DPGE
n. ̊ 1055 de agosto de 2020 e o lançamento do 1o Censo étnico-racial da DPRJ,
com o objetivo de produzir um diagnóstico das relações raciais e, a partir
disso, planejar políticas eficazes para um ambiente de maior diversidade e
mais democrático racialmente.
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Gravação do evento:
Boa leitura!
Fórum Justiça
CRIOLA
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Sob os Despojos da História: Territórios Negros Tradicionais
desde a Ditadura Militar no Brasil
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Aline Caldeira Lopes[1]
O presente artigo propõe-se a apresentar parte da tese de mesmo título desen-
volvida pela autora no Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) entre os anos de 2013 e
2017, sob a orientação do professor José María Gómez. A pesquisa aborda o
tema dos conflitos sócio jurídicos em territórios negros tradicionais situados
em áreas militares no Brasil desde a década de 1970. Trata-se da análise e
compreensão de documentos e relatos que narram parte do cotidiano de
violência em áreas que são, contemporaneamente, reconhecidas como terri-
tórios remanescentes de quilombos. Buscou-se, naquela ocasião, compreender os
processos de dominação e de resistência desde o período da ditadura militar,
a partir da experiência empírica de Ilha da Marambaia (RJ) em diálogo com
documentos relativos ao território de Rio dos Macacos (BA). No âmbito deste
artigo, no entanto, será apresentada uma dimensão da análise documental
do conflito social situado na Ilha da Marambaia, a partir do contexto trazido
para reflexão.
[1] Possui doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2017),
mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2010) e gradu-
ação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Foi ganhadora do segundo
lugar do Prêmio CBCISS (2008) e do primeiro lugar do Prêmio de Pesquisa Jurídica da OAB/RJ
(2013). Tem experiência na docência no ensino superior e na advocacia.
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para a análise dos desdobramentos das disputas territoriais na Marambaia,
pontuadas pela forma e pela linguagem dos direitos. O TAC passou a definir
os limites da ocupação da Marinha do Brasil e da comunidade quilombola,
bem como as regras de convivência entre ambos nos espaços comuns e na
Marambaia como um todo.
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Procura-se articular historicamente o conjunto de formas de violência e opres-
são no espaço agrário brasileiro em meio à ditadura empresarial-militar no
Brasil com a reflexão sobre possibilidades de reparação às populações, indiví-
duos, comunidades e movimentos sociais atingidos. Em especial, pretende-se
estreitar o diálogo com as conclusões da Comissão Camponesa da Verdade
(CCV)[2] que se instaurou no país, bem como com os demais relatórios sobre
a perseguição do regime a trabalhadores, sobre a identificação de espaços
de memória da ditadura militar e sobre a criminalização de movimentos
de cultura negra (RELATÓRIO DA COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE, 2014;
GÓMEZ 2018; THULA, 2015).
[2] Segundo Leonilde Medeiros: “A ideia de elaborar o relatório surgiu em 2012 durante o
Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Flo-
restas, evento que reuniu, em Brasília, representantes de quarenta organizações camponesas e
indígenas e movimentos ligados à luta pela terra e por territórios. Na declaração final (item 11),
consta a resolução de ‘lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte
e desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus fami-
liares, com a criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e justiça para
incidir nos trabalhos da Comissão [Nacional da Verdade], visando à inclusão de todos afetados
pela repressão’[1]. Além de buscar contribuir para a CNV, o trabalho adquiriu tamanho fôlego
que optamos pela elaboração de um relatório próprio”. Site do Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Disponível em:
http://r1.ufrrj.br/cpda/blog/2015/01/21/relatorio-da-comissao-camponesa-da-verdade-esta-dispo-
nivel-para-download/. Acesso em 08 de janeiro de 2018.
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Forças Armadas e comunidade remanescente de quilombos, mas também do
período de exceção no país inaugurado com o golpe de 1964.
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assumir a administração da Ilha. Em 1982 foi demitido da função que exercia
na geração de energia para a Marambaia, tendo sido acometido de grave com-
prometimento à sua saúde. Como ocupava uma das residências funcionais,
cedidas pela Marinha do Brasil aos servidores, sua demissão coincidiu com
a sua expulsão e de sua família da Ilha da Marambaia.
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Dos porões da ditadura para os porões dos Tribunais de
Justiça
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Nota-se a tentativa de resolução extrajudicial do conflito trabalhista no qual
se via envolvido. Caberia uma investigação acerca das articulações entre
Hermenegildo e seu advogado, no entanto, o limitado escopo da presente
pesquisa não permitiu que a mesma fosse realizada por ora.
[3] Segundo o documento, tal fato pôde ser comprovado pelo Ministério do Trabalho – Delegacia
Rio de Janeiro, Av. Antônio Carlos, Térreo, setor de Contas e Inspetoria. b
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No dia 19 de março de 1982 foram enviados dois ofícios ao CADIM por meio
do representante legal de Hermenegildo. O primeiro reitera os pedidos feitos
em documento anterior, em especial pela formalização da rescisão de seu
contrato de trabalho, com a devida baixa da carteira profissional; o preenchi-
mento dos impressos instituídos pela previdência para habilitar a liberação
do pecúlio e a liberação das verbas rescisórias. Além disso, anexa a procuração
anteriormente solicitada.
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Importante destacar que as trocas de ofícios entre o Comando Militar da Ilha
da Marambaia e o advogado de Hermenegildo ocorreram antes do ingresso
do mesmo na Justiça do Trabalho para pleitear os direitos que acreditava que
lhe cabiam. O tom da resposta, no entanto, expressa preocupação quanto à
legalidade dos procedimentos adotados pelo Comando Militar e é possível
supor que tal preocupação estivesse embasada em atitudes arbitrárias e
violentas perpetradas no cotidiano da convivência entre militares e “civis”
na Ilha da Marambaia.
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posteriormente aos meses de ferreiro e março, ficando a este Centro a única
alternativa de recolhê-lo à Diretoria de Finanças da Marinha.
Atenciosamente
É possível que as trocas de ofícios acima, das quais é possível notar um texto
ofensivo, especialmente por parte do Comando Militar, tenha tido importante
expressão nos autos arquivados.
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seu advogado em relação ao comparecimento do idoso na sede do Comando
Militar da Ilha da Marambaia e a motivação para tal receio pode ter partido
dessa memória de instauração de procedimentos arbitrários pelo Comando
Militar. É possível ainda deduzir que o diálogo extrajudicial não teve como
consequência a pacificação do conflito, pelo contrário.
Cumpria ele, em média 12 horas de serviço, com 1 hora de almoço por dia,
de segunda a segunda, sem repousos semanais, em regime de revezamento
semanal de turno, sem jamais ter recebido as horas extras trabalhadas
com o adicional de 25%. O obreiro jamais recebeu pelos repousos sema-
nais trabalhados de forma ininterrupta, o adicional de 100%, assim como
as horas noturnas trabalhadas, também de maneira ininterrupta, com o
adicional de 50%. A demissão do Autor, foi feita ao arrepio da Lei, em vio-
lação à legislação do trabalhador ESTÁVEL, pelo preposto do Reclamado, 1°
Ten. Almiro Dantas de Assis, que além de nada pagar ao Obreiro, naquela
ocasião, tornou-se uma barreira intransponível para que o Autor pudesse
solucionar de forma amigável a questão do recebimento de suas verbas
trabalhistas, Doc. J, não restando outro caminho, senão o Judiciário (p. 2).
(grifos no original).
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adicional de 25% e horas extras noturnas com adicional de 50%; f) repousos
semanais trabalhados, com o adicional de 100%; g) reflexos das horas extras
nos repousos, férias e 13° salário; h) juros e correção monetária.
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Ainda que formalmente, de acordo com a teoria da ação no processo civil,
quanto à decisão do Magistrado em incluir a União Federal e não o CADIM
no polo passivo da ação, é preciso reconhecer a motivação do advogado de
Hermenegildo em incluir o segundo e não a primeira na posição de ré.
Mais que uma preocupação com a correção do valor dos custos da ação judicial,
a impugnação do valor representa, em especial no caso em que se questiona
o baixo valor atribuído, uma forma de inviabilizar o acesso à justiça de liti-
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gantes que não possuem condições financeiras para arcar com altos custos
pela judicialização de duas demandas, como é de se supor que fosse o caso
de Hermenegildo.
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sentido, é tido como processo de condução de conflitos regidos por regras
universais, abstratas e impessoais e na medida do convencimento desse
caráter é que se exerce seu poder, simbólico por excelência (BOURDIEU, 1997).
Consta ainda um ofício (n° 0652) enviado pela Diretoria do Pessoal Civil da
Marinha no dia 6 de abril de 1983. De acordo com o documento, o fundamento
do pedido formulado por Hermenegildo ,
se baseia numa suposta demissão sem justa causa, fato esse inverídico
conforme comprovado por documentos incontáveis ora apensos, anexos
D e E, restando, assim, insubsistentes todas as suas pretensões e até mesmo
caracterizada a deslealdade e má-fé com os que o mesmo ingressa em Juízo
contra a União, em flagrante ofensa aos deveres impostos às partes que
recorrem ao Poder Judiciário, conforme prescrito na lei processual civil,
artigo 14, inciso II (p. 66).
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Iniciou-se, portanto, a fase de contestação das afirmações trazidas por
Hermenegildo e de produção de provas contrárias, um embate de versões.
Os procuradores da República são profissionais jurídicos concursados (servi-
dores públicos) incumbidos da defesa jurídica da União. Esta defesa deve ser
realizada de maneira apartada de suas convicções pessoais sobre o desenrolar
de conflitos jurídicos específicos. Além disso, tais profissionais não trabalham
diretamente nos órgãos públicos que se envolvem em conflitos trabalhistas,
por exemplo, atuam por meio de pareceres produzidos por profissionais dos
mesmos, como é o caso do consultor jurídico da Marinha, responsável pelo
oferecimento do material probatório, a maioria deles produzidos de maneira
unilateral pelo Comando Militar.
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Tanto o documento acima, apresentado pelo Comando Militar, quanto a
réplica de Hermenegildo, apontam para uma relação de trabalho precária,
extenuante e tensa entre Hermenegildo e seu empregador. Os indícios de
graves problemas de saúde (a julgar pelo longo período de afastamento),
que culminou em sua demissão, bem como os indícios de não correspon-
dência entre os ganhos do autor da ação e seu contracheque apontam para
a compreensão da forma como se davam as relações de trabalho na Ilha da
Marambaia durante a ditadura empresarial militar.
Que o documento de fls. 80, vem corroborar que o RECLAMANTE foi DEMITIDO
pelo próprio signatário e preposto da RECLAMADA, 1 Ten, ALMIRO DANTAS
DE ASSIS, em violação frontal à legislação consolidada, vez que somente no
dia 14 de junho de 1982 é que foi publicada a portaria n° 0704, CONFORME
SE DEPREENDE CRISTALINAMENE PELA LEITURA DO DOCUMENTO DE FLS.
N° 34 dos presentes Autos, seja, somente no dia 14 de junho de 1982 é que
o Reclamante teve oficialmente decretada sua DEMISSÃO, com a vacância
do cargo que exercia na RECLAMADA. E tanto é verdade, que é a própria
Reclamada quem confessa, através dos documentos juntados, a IRREGULAR
DEMISSÃO do Obreiro, pela sua CONDIÇÃO DE EMPREGADO ESTÁVEL. (p. 96).
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Pela análise dos livros de registro das escalas a partir de 1979, observa-se
que durante cerca de 2 anos o Rte. trabalhou somente com mais dois ope-
radores, em regime de rodízio, no período das 05:00 às 17:00hs gozando
uma folga semanal de 24:00 horas, sendo certo que, com muita frequência,
cumpria a carga semanal de 60 horas correspondentes à jornada de 12:00hs,
durante 5 dias consecutivos, incluindo domingos e feriados, dada a natu-
reza eminentemente imprescindível dos serviços por ele prestados (p. 123).
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Jornadas de trabalho extenuantes, procedimentos arbitrários, omissão de
informações, são elementos que contrastam com a paisagem tropical quase
intocada da Marambaia. Além disso, atualizam e sedimentam o processo his-
tórico de resistência dos descendentes dos trabalhadores escravizados que
seguem lutando pelo direito à manutenção dos seus modos de vida.
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Em peça datada de 24 de maio de 1985, a União Federal protocolou Recurso
Ordinário com o objetivo de reformar a sentença favorável a Hermenegildo na
primeira instância de julgamento. Os autos foram remetidos para o Tribunal
de Segunda Instância em 16 de outubro de 1985. O fundamento de seu pedido
foi basicamente os argumentos trazidos oralmente pela própria União Federal
na primeira audiência e as informações prestadas pelo CADIM sobre sua rela-
ção de trabalho com Hermenegildo. Além disso, afirma que o depoimento das
testemunhas confirmou existir revezamento de turno e de turma, bem como
que havia uma folga semanal pactuada entre os próprios trabalhadores. As
referidas testemunhas eram servidores da União Federal na Marambaia e
membros da Marinha do Brasil; no entanto, isso não foi questionado no pro-
cesso. Não foi mencionado o conteúdo do laudo pericial pela União (p. 180).
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Inclusive o fato de desconhecerem –os profissionais do campo jurídico– os
mecanismos pelos quais produzem e reproduzem tais relações constitui a
própria força do campo de poder, que possui na dimensão simbólica seu
maior trunfo. Sobre esse aspecto, Pierre Bourdieu afirma, sobre o poder sim-
bólico que é, “com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (2007, p. 8).
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prevista em lei. A perícia determinada por ordem do Juízo confirma esse
fato, como se vê às fls. 124 dos autos.
10. As férias são devidas. A Reclamada não provou a concessão das mesmas
no período não atingido pela prescrição.
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com recurso ordinário, impedindo a execução da primeira decisão. Em 1990,
cinco anos depois, o parecer do Ministério Público Federal foi recebido e em
1992 o julgamento se deu efetivamente, no dia 8 de setembro. O mesmo foi
concluído de acordo com a seguinte ementa:
ACÓRDÃO
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Após o julgamento do recurso da União Federal e sua reforma para manter
parte da condenação julgada em primeira instância, não houve mais ques-
tionamento à sentença. O processo iniciou então uma fase posterior à do
julgamento do mérito, a fase de execução da sentença, na qual (em tese) não
há mais espaço para a discussão do mérito da decisão, apenas para a forma
do pagamento ao autor.
Após a regularização, foi dado seguimento ao processo para que fosse deter-
minada a quantia a ser paga pela União Federal ao reclamante, posto que
a sentença de mérito apenas julgou seu direito a receber parte das verbas
requeridas. Após a nomeação do perito e o pagamento de seus honorários,
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inclusive pelo reclamante, que não foi beneficiado pela gratuidade de justiça,
houve a apresentação do laudo pericial, datado de 15 de março de 2004, bem
como a solicitação de documento imprescindível.
Após o laudo, a União Federal foi intimada pelo Juiz para fornecer a docu-
mentação requerida. Em uma petição protocolada em 2 de junho de 2004,
a União anexa um ofício da Advocacia Geral da União com o seguinte teor:
Senhor,
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vez a Diretoria do Pessoal Civil da Marinha, assinada pela Superintendente
do Pessoal Civil, Dulce Maria de Souza Santos Rosa. Na ocasião é juntada nova
planilha, identificada como “Posicionamento no Plano de Classificação de
Cargos da Lei n° 5.645/1970” referente a Hermenegildo Pedro Inocêncio, que,
no entanto, não atende às exigências periciais para a realização da liquidação
da sentença. Tal petição é datada de 19 de abril de 2005 (p. 376).
Por fim, a juíza federal Daniella Rocha Santos Ferreira de Souza Motta soli-
cita à União, no dia 27 de setembro de 2005, que apresente “os horários de
entrada e saída do Sr. HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO, em 5 (cinco) dias,
impreterivelmente, sob pena de ser procedida a perícia na forma das horas
trabalhadas alegadas na inicial(...)” (grifos no original).
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atinentes ao ex- Servidor Civil 78.5089.91 HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO”
(p. 439, grifos no original).
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dezembro de 2013, foi produzido o resumo dos cálculos atualizados até 12/2013
e convertidos para a moeda corrente, o real. O valor final, correspondente ao
pagamento que deverá ser realizado para o autor da ação é de R$ 3.303,67 (três
mil, trezentos e três reais e sessenta e sete centavos).
Em anexo, apresentou uma nova planilha de cálculos, cujo valor total somava
R$ 48.335,40, sendo que R$ 14.500,62 deveria ser pago a título de honorários
advocatícios (30%) e R$ 33.834,78 o total líquido devido ao autor (p. 525).
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A despeito de ter sido produzido com esse objetivo, o processo judicial permitiu
o levantamento de informações sobre jornadas de trabalho extenuantes em
ambientes insalubres, cumpridas por uma pessoa já idosa. Os fatos descrevem
uma importante dimensão da dinâmica de rápido crescimento econômico
atrelado a relações de trabalho precárias e degradantes, características do
período em análise, em que pese se tratar de uma relação de trabalho que não
está direcionada para a produção econômica propriamente dita.
Além disso, é possível refletir ainda sobre o fato de que a forma como tal
relação de trabalho foi estabelecida não fugiu por completo da forma da lei,
que emprestou legitimidade ao modo como foram estabelecidas as regram
que regeriam o cotidiano de trabalho de Hermenegildo. Isso porque havia
contrato de trabalho escrito, salário pré-estabelecido, dentre outras forma-
lidades exigidas pelas normas vigentes. No entanto, tais formalidades não
impediram que a relação estabelecida remetesse aos tempos históricos nos
quais as práticas trabalhistas não eram contempladas pela regulamentação
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). E isso num contexto em que a
própria União Federal era a empregadora.
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o questionamento de sua relação de trabalho aos dois anos anteriores ao seu
ingresso no Judiciário, independentemente da data de rompimento de seu
contrato[4]. No caso de Hermenegildo, que contava com mais de dez anos de
trabalho para a Marinha do Brasil, foi impedido de requerer o ressarcimento
da totalidade do período trabalhado devido à referida norma.
[4] Trata-se do extinto artigo 11 da CLT, cuja redação afirmava que “Não havendo disposição
especial em contrário nesta Consolidação, prescreve em dois anos o direito de pleitear a repara-
ção de qualquer ato infringente de dispositivo nela contido”. O dispositivo foi revogado em 1998
e atualmente o prazo prescricional inicia sua contagem após o término da relação de trabalho.
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De maneira geral, no processo judicial, o tempo é um elemento situado acima
do campo das regulamentações normativas e do ativismo judicial. Ele se
apresenta como uma dimensão quase fluida no campo dos embates entre
argumentações conflitantes. No entanto, pode incidir de forma decisiva na
configuração final da designação dos direitos discutidos.
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Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organizador e tradutor: BAR-
RENTO, João. . Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
DECCA, Edgar de. 1930: O Silêncio dos Vencidos. Brasiliense: São Paulo,
1988
Processo judicial
BRASIL. Justiça Federal do Rio de Janeiro. Reclamação Trabalhista n°
0492120-33.1900.4.02.5101.
45
Racismo Institucional e Sistema de Justiça com Foco no Sis-
tema Criminal
46
Carolina Dzimidas Haber[5]
1. Introdução
Nesse sentido, a diretoria tem buscado, nas pesquisas realizadas até o momento,
apresentar dados que evidenciem o funcionamento do sistema de justiça
criminal, dentre os quais acaba se destacando a questão racial.
[6] Resolução DPGE nº 880, de 16 de maio de 2017, que dispõe sobre o funcionamento da Diretoria
de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
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2. O perfil dos réus nas audiências de custódia
[7] O art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992,
dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz
ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada
em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo”. Diante
dessa previsão, o Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Tribunal de Justiça de SP e
o Ministério da Justiça, entre outras entidades, iniciou um projeto para garantir que presos em
flagrante sejam apresentados a um juiz num prazo máximo de 24 horas, tendo como referência
o art. 306, §1º do Código de Processo Penal, que menciona esse prazo para apreciação do auto
de prisão em flagrante pelo juiz. Atualmente, as audiências de custódia ocorrem em todo país,
nas justiças estadual e federal.
[8] Ver, sobre os dados coletados, os relatórios produzidos pela Defensoria Pública do Rio de
Janeiro (2018b, 2018c), disponíveis em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/53f2bf4a-
c82541d3a0aa8bc6c6243c3e.pdf e http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c2f0263c194e-
4f67a218c75cfc9cf67e.pdf, acesso em 10/08/2018.
48
índice de soltura por semestre, que variou, nos dois primeiros anos de reali-
zação dessas audiências, entre 34% e 48% (figura 1).
Outro dado que merece destaque e pode contribuir com o debate sobre o
racismo institucional do sistema de justiça está relacionado aos casos em
que há relatos de agressões por ocasião da prisão, voltados, em sua maioria,
aos réus negros (figura 4).
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3. As sentenças judiciais de tráfico de drogas
[10] De acordo com os dados do DEPEN/MJ, entre dezembro de 2006 e dezembro de 2012, a
população carcerária cumprindo pena por tráfico de drogas aumentou de 65.494 para 138.598,
ou seja, 112%, enquanto a população carcerária total cresceu 88% (de 291.403 para 548.003).
[11] A pesquisa (DPERJ, 2018d) é fruto de um convênio celebrado entre o Fundo Nacional
Antidrogas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e está disponível para consulta
em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf,
acesso em 06/06/2018.
[12] O art. 33 dispõe sobre as condutas de “importar, exportar, remeter, preparar, produzir,
fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” e o art. 35 sobre
a conduta de “associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou
não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e 34”.
54
art. 35 é de três anos), inviabilizando a aplicação do benefício da redução da
pena previsto no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006[13].
A maioria dos réus não tem antecedentes criminais (77,36%), nem condena-
ções em juízo (73,85%) e foram abordados sozinhos (50,39%), em flagrantes
decorrentes de operações regulares da polícia (57%), em lugar dito conhecido
pela venda de drogas (42,41%), portando consigo uma única espécie de droga
(48,04%).
Apesar de a pesquisa não ter se debruçado sobre o perfil social dos réus que
são condenados pelos crimes da Lei nº 11.343/2006, pois o foco foi a leitura
de sentenças, e a colheita desse tipo de informação demandaria a consulta
ao inquérito policial, foi possível identificar, quando se observa o mapa de
segregação racial do Rio de Janeiro (NEXO JORNAL, 2015), que a maioria das
sentenças da capital foi proferida em comarcas localizadas nas unidades
prisionais e nos bairros da zona norte do Rio de Janeiro, onde se concentra a
população preta e parda da cidade. A zona sul, com apenas 5,26% de ocorrên-
cia das sentenças, tem uma população majoritariamente branca (figura 6).
[13] Art. 33, §4º. Nos delitos definidos no caput e no §1º deste artigo, as penas poderão ser redu-
zidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se
dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
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3.1 – FIGURA 5:
Não Sim
Justificativas para o
Total
concurso
Nº % Nº %
Fonte: DPERJ (2018d), Pesquisa sobre sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região
metropolitana do Rio de Janeiro.
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4. As mulheres criminalizadas por aborto
[14] A pesquisa (DPERJ, 2018e) foi publicada na revista Entre a morte e a prisão: quem são as
mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro, disponível em http://www.
defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c70b9c7926f145c1ab4cfa7807d4f52b.pdf, acesso em 10/08/2018.
58
por medo de ser descoberta, realizando o procedimento com a gravidez já
em estágio avançado, sofrendo de forma mais drástica os efeitos do proce-
dimento de interrupção da gestação. Notou-se também que muitas abortam
no banheiro do hospital e são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros que
deveriam auxiliá-las a entender o que ocorreu com elas.
Quanto aos aspectos sociais, extrai-se dos dados da pesquisa que 60% das
mulheres são negras e 40% são brancas. No campo da escolaridade, cinco têm
o 1º grau (completo ou incompleto), duas, o 2º grau (completo ou incompleto),
uma é analfabeta, uma tem o 3º grau e em 11 casos não foi possível obter
essa informação.
O tempo de gestação varia muito, mas apenas três mulheres indicaram ges-
tação abaixo de 12 semanas ou 3 meses (16,6% dos casos com informação).
Já 12 mulheres indicaram gestação entre 16 e 25 semanas, duas entre 26 e
28 semanas e uma mulher estaria em estado avançado de gravidez, com 38
semanas (83,3% dos casos com informação).
O perfil da mulher que vai até uma clínica particular realizar o procedimento
de interrupção da gravidez é diferente do perfil da mulher que se vale de outros
métodos, como a ingestão de medicamentos e chás abortivos, especialmente
no que diz respeito ao tempo de gravidez. Em todos os casos que se tem infor-
mação, a gestação estava abaixo de 12 semanas, o que indica que a mulher que
pode pagar pelo procedimento consegue tomar a decisão com mais rapidez.
59
Há uma prevalência de mulheres com melhor escolaridade dos que as do
Grupo 1, já que aqui 75% das mulheres cursaram até o 2º grau, enquanto no
Grupo 1 esta porcentagem é de apenas 22%.
As mulheres que tomam remédios e chás abortivos não sabem qual vai ser o
efeito dessas substâncias no seu corpo, arriscando a própria vida, com doses
erradas e efeitos colaterais, além de demorarem a buscar ajuda quando o
aborto está acontecendo, sofrendo sozinhas com o processo de expulsão do feto.
60
4.1 – FIGURA 7:
Grupo 1 Grupo 2
20 mulheres 22 mulheres
Em 83,3% dos casos o aborto foi Em 100% dos casos o aborto foi
realizado a partir de 16 sema- realizado antes de 12 semanas
nas de gestação de gestação
Fonte: DPERJ (2018e), Pesquisa sobre o perfil das mulheres processadas por aborto no Rio de
Janeiro.
61
Referências
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Apresenta-
ção: A Defensoria em Dados: pesquisas realizadas pela Defensoria Pú-
blica do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018a.
62
Racismo Institucional: Desafios e Perspectivas na Imple-
mentação de Políticas Antirracistas na FAETEC
63
Lilian do Carmo de Oliveira Cunha[15]
Introdução
Eu nunca tive certeza do que preencher nos formulários que tinham o campo
“cor”. Branca eu sabia que não era, mas ao olhar para a minha pele, ela não era
preta e também não era parda. Como é ser pardo? Pardo não é cor de papel?
Eu sou morena “oras”! Mas esta opção não aparecia nos formulários. E aí me
restava ficar com “o meio termo”: a opção parda. Também me recordo que
quando meus pais iam me matricular ou renovar matrícula na escola, havia
um campo destinado ao preenchimento da religião. Lembro que eles sempre
preenchiam que eram católicos, mas não frequentavam a Igreja Católica e
nem seguiam os preceitos desta religião, embora eu e minha irmã tenhamos
sido batizadas e feito primeira comunhão. Na adolescência, entendi que
meus pais eram “macumbeiros”, mas era muito agressivo aos ouvidos dos
outros dizer isso e por isso sempre se diziam católicos e talvez também por
isso colocaram a mim e a minha irmã para seguir os preceitos desta ordem
religiosa. Depois da minha primeira comunhão eu não mais frequentei a
igreja, a não ser para batizados e casamentos de familiares. O local que eu
frequentava semanalmente era o terreiro de umbanda, local este que frequen-
tei desde o ventre. Mas eu não era macumbeira, tinha vergonha disso, então
comecei a dizer que era espírita, pois parecia mais leve para a minha boca e
para os ouvidos dos outros. Muitas vezes eu dizia para meus amigos que iria
a uma festa ou na casa de algum parente, para não dizer que iria ao terreiro.
E assim os anos foram passando, mascarando a religião que até então era só
a dos meus pais, mas era o pé no chão e a batida do atabaque e das palmas
que faziam vibrar meu coração. Para Silvério (2002, p.223) “as discordâncias
sobre o modo de categorizar os morenos no sistema brasileiro podem des-
64
vendar a dimensão política da nossa classificação racial”. E foi no intuito de
compreender a dimensão política de ser negro no Brasil que mergulhei na
busca de inúmeras respostas que não tinha...ou melhor, que ainda não tenho!
65
de democracia racial ter sido desvelada como um mito. Se entendermos que
estas hierarquias foram construídas para designar superioridade econômica,
social e cultural sobre os negros, consubstanciada por uma política estatal,
percebemos que desconstruir estas é condição emergencial para a efetivação
de uma sociedade verdadeiramente democrática.
66
uma gestão e a órgãos governamentais, de que maneira combate este racismo
institucional? Será que a existência de políticas antirracistas modifica por
si só as relações raciais nos espaços escolares? Podemos afirmar que basta
que leis sejam promulgadas para que as questões concernentes ao racismo
sejam sanadas? Uma imposição legal traz mudanças efetivas nas práticas?
67
na forma individual o racismo manifesta-se por meio de atos discrimi-
natórios cometidos por indivíduos contra outros indivíduos; podendo
atingir níveis extremos de violência, como agressões, destruição de bens
ou propriedades e assassinatos (GOMES N. L., 2005. p. 52).
Já a forma institucional
68
legislação vigente. Fato este que, como já mencionado anteriormente, confere
ao indivíduo o insucesso e/ou não concretização das leis na prática, havendo
necessidade de avanço e aprofundamento destas afirmações. Evidenciadas as
questões acima, a pesquisa visou contribuir para novas explanações sobre o
racismo institucional e políticas públicas antirracistas no contexto escolar.
69
Entender esta estrutura econômica contribui para a identificação da dimensão
cultural da desigualdade racial brasileira, onde o poder do Estado influenciou
a estruturação de um sistema discriminatório, determinando um modelo de
racismo no país. Nesse sentido, foram desenvolvidos no Brasil alguns “padrões
básicos da desigualdade racial” (ANDREWS, 1998, p. 47) relacionados com a sua
história nas esferas econômica, social e política. Ou seja, “as políticas e ações
empreendidas pelas instituições do Estado (corpos legislativos, entidades
executivas, tribunais) ou instituições ligadas ao Estado (partidos políticos, a
Igreja, os sindicatos) tiveram impactos importantes sobre as relações raciais no
Brasil” (ANDREWS, 1998, p.46). Se forja então uma ideologia racista (ANDREWS,
1998, p. 262) por trás de uma aparente democracia racial existente, ideologia
esta que define quem ocupa os lugares sociais, agregando um “estereótipo
antinegros” (ibidem) com raízes tão profundas que ele se mantém nos dias
atuais. “Os negros são vistos como criminosos, preguiçosos, estúpidos, irres-
ponsáveis, promíscuos, mal cheirosos, a essência do outro que contamina a
sociedade” (ANDREWS, 1998, p. 263). Neste contexto, Andrews apresenta uma
intrigante reflexão: se a imagem negativa do negro inclui como característica
ser preguiçoso, por que a eles é conferido o trabalho braçal? O autor atribui a
não oportunidade de ascensão destes à concentração da expansão econômica
do Estado, uma vez que estes empregos eram e ainda são mal remunerados.
O fato central da vida de classe média no Brasil é que ela representa uma fuga
do mundo do trabalho braçal, do mundo do povo, degradado e associado à
pobreza. Por isso, os empregos de colarinho branco carregam consigo benefí-
cios psicológicos que complementam e às vezes até excedem seus benefícios
financeiros; e a competição para conseguir e se manter nesses trabalhos é
correspondentemente intensa. Aqueles que competem pelo status do colarinho
branco usam todos os recursos de que dispõem: educação, ligações pessoais
e familiares, boa aparência e status racial (ANDREWS, 1998, p.265).
70
por Freyre e a dissociação raça e classe feita por Fernandes, fundamentando
a ideia de que o racismo é uma estrutura ideológica, um sistema organiza-
cional institucionalizado. Em linhas gerais, as diferenças raciais, culturais e
econômicas existentes no Brasil são resultantes de uma construção histórica
que, embora tenham sido reconfiguradas com o passar dos anos, se mantém
como parte da representação social. Corroborando com o pensamento de
Hasenbalg e Andrews, Silvério (2002, p.222) afirma que a discriminação racial
teve uma configuração institucional, tendo o Estado legitimado historica-
mente o racismo institucional.
Ressalto, mais uma vez, que o racismo institucional no Brasil é pouco debatido,
resultando também na ínfima produção bibliográfica sobre a temática, prin-
cipalmente no tocante ao reflexo deste nas instituições escolares. Contudo,
penso que a análise da pesquisa realizada trouxe contribuições para o debate,
bem como a exposição de exemplos na prática descritos pelos colaboradores
desta investigação, os professores entrevistados, auxiliando para uma melhor
compreensão do conceito em tela.
71
Perspectivas da implementação de políticas públicas antir-
racistas na Faetec
72
Em 2008, o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passou
a vigorar com outra redação, a partir da promulgação da Lei 11.645:
II – negros;
73
tares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou
incapacitados em razão do serviço.
I- 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;
II- 20% (vinte por cento) para negros; e III - 5% (cinco por
cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor,
integrantes de minorias étnicas, filhos de policiais civis, militares, bombei-
ros militares e de inspetores de segurança e administração penitenciária,
mortos em razão do serviço.
74
Conforme exposto na estrutura institucional da Faetec, tendo em vista a exis-
tência do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e das Faculdades
de Educação Tecnológica, esta lei também passa a incidir sobre a Fundação.
Cabe destacar que o artigo 3º da lei supracitada estabelece a constituição de
uma comissão permanente de avaliação com vistas ao acompanhamento dos
alunos cotistas. Esta deliberação não foi cumprida no tocante ao nível superior.
75
Étnico-Raciais, História e Cultura afro-brasileira e Políticas de Ação Afir-
mativa no âmbito da Rede FAETEC;
I – 20% (vinte por cento) para estudantes carentes que cursaram integral-
mente o ensino fundamental na rede pública de ensino;
76
II – 20% (vinte por cento) para estudantes negros, pardos e índios.
77
Um grupo de professores vinha fazendo isso individualmente e iam se
agrupando na medida em que sabiam que havia outro grupo de professores
abordando a discussão (...) Eu já era membro da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros, então fora da Faetec já estava pleno esse debate e
quando começou esse movimento, eu me integrei a ele. (Professor Alexandre).
Quem fez ali fez no espaço reduzido da sala de aula. E com certeza só tinha
espaço em maio e em novembro. Outros professores falavam alguma coisa
em função do 13 de maio e do 20 de novembro, mas era aquele mural com a
imagem do escravo, rompimento de grilhão, as mesmas imagens do tempo
em que fui alfabetizada. (Professora Ana Diogo).
O professor Aderaldo faz uma análise mais aprofundada ao falar sobre ini-
ciativas institucionais:
A partir desta análise, esbarramos com outro objetivo proposto pela pesquisa,
que foi compreender a trajetória da implementação de políticas públicas
antirracistas na instituição. Com base nos documentos apresentados enquanto
políticas públicas da e para a Faetec e nos dados apresentados pelos docentes,
constatamos aqui que a Faetec não possui um histórico de enfrentamento
antirracista autônomo. Sua trajetória de implementação de políticas de ação
78
afirmativa esteve vinculada por determinações legais de instâncias superio-
res, ou seja, do Governo Federal e Estadual, bem como à ação individual de
professores militantes que, engajados com o combate ao racismo por um
posicionamento político, permearam as suas práticas, envolvendo também
outros colegas que de alguma maneira achavam a discussão importante,
mas não sabiam por onde começar a desenvolvê-la. As entrevistas também
apontaram que, mesmo após a Faetec ter que adotar estratégias antirracistas
por força de lei, elas ainda não caracterizavam uma perspectiva institucional,
tendo forma ainda de ação personificada. “As iniciativas eram individuali-
zadas. Mesmo assim, após a Lei, as ações passam a ser institucionais, mas na
perspectiva dos indivíduos. Ainda não é uma política institucional. Não é
uma perspectiva institucional efetiva”. (Professora Selma).
79
na inércia da criação de programas e políticas antirracistas voltados para
a educação, é responsável pela manutenção do racismo institucional nesta
esfera. Do mesmo modo, se as instituições educacionais também não se
fizerem ativas no enfrentamento às diferenças étnico-raciais e culturais que
fazem parte do cotidiano da escola, sendo esta parte da estrutura social, elas
também estarão corroborando com a perpetuação do racismo.
80
Os desafios para a implementação das políticas públicas percebidas a partir
da trajetória da Faetec possibilitam demonstrar em quais aspectos o racismo
institucional se mantém nas estruturas educacionais. Retomando uma questão
colocada nos tópicos introdutórios deste trabalho, a respeito da afirmação
de que não é por falta de políticas que o cenário das relações raciais não se
efetivou em termos concretos, a partir das contribuições dadas pelos docentes
que se dispuseram a participar desta pesquisa, notamos que também não é
por falta de esforço, de práticas pedagógicas ou de propostas de ação que o
enfrentamento ao racismo não se torna efetivo. Existe um interesse de cunho
ideológico para que este sistema se mantenha e, desta forma, para que os pri-
vilégios e o poder social continuem sobre a população branca. Em cada esfera
social o racismo institucional opera de uma maneira, mas como quer que se
apresente, se não houver também um esforço institucional para combatê-lo,
o antirracismo será um eterno processo de luta solitária, solidária e militante.
81
Referências
AGUIAR, Márcio Mucedula. “Raça” e desigualdade: as diversas interpre-
tações sobre o papel da raça na construção da desigualdade social no
Brasil. Tempo da Ciência (15) 29, p. 115-133. UFGD, 2008.
82
COSTA, Sérgio. A construção sociológica da raça no Brasil. Estudos
Afro-Asiáticos, Ano 24, nº1, p. 35-61. Rio de J a n e i -
ro, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
d=S0101546X2002000100003&script=sci_arttext Acesso em janeiro de
2016.
83
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
2ed. Tradução de Patrick Burglin. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de
Janeiro: IUPERJ, 2005.
LIMA, Fabiana Ferreira de; KLEIN, Gudrun; FARIAS, Úrsula Pinto Lima de.
A formação docente promove uma educação antirracista? Reflexões
sobre aqueles “que se educam entre si”. Em: CUNHA, Lilian do Carmo
de Oliveira; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; LEMOS, Roma Gonçalves (or-
gs.).1ªed. Rio de Janeiro, Editora Selo Novo, 2016.
LINS, Mônica Regina Ferreira; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Por uma
desobediência epistêmica: sobre lutas e diretrizes curriculares antirra-
cistas. Revista da ABPN, v. 06, n 13, p. 365-386, mar –
jun, 2014. Disponível em: http://www.academia.edu/7511227/
POR_UMA_DESOBEDI%C3%8ANCIA_EPIST%C3%8
AMICA_SOBRE_LUTAS_E_DIRETRIZES_CURRICULARES_ANTIRRACIS-
TAS Acesso em dezembro de 2016.
84
d=S0101546X2000000200006&script=sci_abstract&tlng= PT Acesso em
fevereiro de 2016.
85
PEREIRA, A. M. Para além do racismo e do antirracismo: a produção
de uma cultura de consciência negra na sociedade brasileira. Itajaí:
Casa Aberta Editora, 2012.
86
A Manutenção do “Tráfico” contra Mulheres Negras: A Análi-
se da Readaptação da Escravização do Século XIX à “Guerra
às Drogas” do Século XXI
87
Lorraine Carvalho Silva[16]
Introdução
88
e ao Estado por meio do direito penal. Não à toa, ao longo dos anos de 1830 e
1940, vigeram três códigos penais e somente um código civil, sendo este de 1916.
89
se reproduzem. Neste primeiro capítulo, serão expostos dados com recorte
de gênero, raça e classe como delineamento do sistema carcerário imposto
às mulheres negras.
É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, in-
forma a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe
é vivida. Precisamos refletir bastante para perceber as intersecções entre
raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem
relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir
a primazia de uma categoria sobre as outras (DAVIS, 2011).
[17] Os dados consultados no site do STF juntados ao processo Habeas Corpus nº 143.641
divergem dos números apresentados pelo levantamento divulgado em 08 dez. 2017. Não se
pode afirmar se tal divergência se dá por dados não inseridos no INFOPEN, por omissão de
alguns estabelecimentos prisionais que, entretanto, teriam divulgado seus dados ao Depen
como resposta ao Ofício judicial.
90
latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu
impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria
hierarquia de gênero em nossas sociedades (CARNEIRO, 2011).
A pesquisa Tecer Justiça traz que, da população que compõe o estudo, “41,6% das
mulheres e 27,9% dos homens declararam ganhos de até um salário mínimo
e 33,8% das mulheres e 42,2% dos homens, entre um e três salários mínimos”
(INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA et al., 2012. p. 34), expondo a seleção,
pela justiça criminal, de um perfil com grande vulnerabilidade econômica.
91
ou pardas tampouco exerciam essas atividades. Este levantamento ainda
aponta que:
92
A situação de vulnerabilidade que enfrenta a mulher negra é notoriamente
mais acentuada se comparada aos demais grupos sociais. A influência nega-
tiva da desigualdade econômica em conjunto com as opressões do racismo e
do machismo compõem os requisitos criminalizantes do sistema de justiça
criminal, os quais serão ainda reproduzidos como controle dentro do sistema
penitenciário.
93
em presídios mistos ou masculinos, portanto, não elimina as violações a direi-
tos inerentes à mulher pela evidente inadequação das estruturas prisionais.
94
cárcere é uma ferramenta de controle que detém pessoas pré-determinadas,
mulheres negras pobres e jovens, impondo a elas situações de repressão e
opressão quando institucionalizadas. Nas palavras de Angela Davis:
95
Brasil. O período de 1700 a 1810 é a época de maior fluxo de tráfico negreiro,
sendo estimado um total de 1.891.400 de pessoas escravizadas (GELEDÉS –
INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2012). Com a proclamação da independência
do Brasil, em 1822, iniciam-se movimentos abolicionistas pelo progresso do
país e, em 1888, é promulgada a Lei que decretou a abolição da escravização.
Ana Luiza Flauzina, em sua dissertação “Corpo Negro Caído no Chão: o sis-
tema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro” (2006), apresenta os
desenvolvimentos articulados entre regimes políticos e controles contra a
população negra. Com base em Nilo Batista, aponta que os sistemas penais
brasileiros podem ser divididos em quatro momentos: colonial-mercantilista,
período de 1500 a 1822, que compreende o contexto relacional casa-grande/
senzala onde são concebidas as gradações do sistema penal; imperial-escra-
vista, momento em que se intensifica a repressão contra a resistência dos
quilombos, período em que foram implementadas legislações de violência
sobre os corpos negros ao mesmo tempo em que se formaram movimentos
abolicionistas contrários ao regime escravagista; republicano-positivista,
período em que se intensificam esforços para a manutenção da submissão e
inferioridade da população negra recém-liberta; e o período atual neoliberal,
em que a violência contra corpos negros permanece institucionalizada e se
manifestando também por meio do sistema prisional.
96
ainda que não fossem reconhecidos como sujeitos de direito civil, tendo em
vista que a Constituição do Império de 1824 previa como cidadão brasileiro
os nascidos no Brasil se libertos e, ainda assim, não possuíam direito a voto,
como os considerados criminosos.
Nos anos de 1850, foram promulgadas duas leis com finalidades bem demar-
cadas. A Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, estabelecia medidas de repres-
são ao tráfico negreiro em complemento à Lei de 7 de novembro de 1831, que
já previa multas aos que traficassem pessoas da África ao Brasil e penas de
extradição aos próprios escravizados. Ambas as Leis de combate ao tráfico
negreiro foram inofensivas ao propósito, sobretudo porque ainda não havia
interesse na mudança do regime servil. Segundo Ana Flauzina, “é por meio
desse tipo de mecanismo que não visa libertar aos poucos, mas, ao contrário,
aprisionar um pouco mais, que as elites brancas ganham o tempo necessário
para construir o novo caráter racial do país” (2006. p. 63).
97
As ações estatais deste período iniciam passos duvidosos quanto à pró-
pria liberdade da população negra escravizada no país e, ao mesmo tempo,
criam condições de privilégio e acesso aos estrangeiros imigrantes. Wlamyra
Albuquerque, ao apresentar dois casos de deportação de pessoas negras
livres a serem julgados pela comissão de justiça do Conselho do Estado, um
de 1866 e outro de 1877, conclui que “cada um dos casos foi analisado em
períodos distintos, mas sob o mesmo princípio: ‘pessoas de cor não podiam
imigrar para o Brasil’, fossem livres ou libertas, todas deveriam ser deportadas”
(ALBUQUERQUE, 2009. p. 66).
Outra previsão desta mesma Lei era a possibilidade do filho da mulher escra-
vizada se remir da servidão mediante prévia indenização pecuniária paga
pela criança ou por terceiro, sendo que o “senhor” deveria acordar com o valor
para viabilizar o negócio.
Indiscutível, pela análise desta Lei, que não havia qualquer propensão do
Estado em inserir a população negra escravizada na sociedade, ao menos,
não sem garantir um benefício ao “senhor”. E quando se fala em um legítimo
movimento a favor da liberdade dessa população, exalta-se a resistência das
pessoas escravizadas no exercício da quilombagem.
98
concretizou como uma forma efetiva de desgaste ao regime de exploração
escravagista. A repressão contra essas manifestações de resistência se intensi-
ficou ao longo dos anos e, com a abolição em 1888, essas relações de controle
contra o corpo negro que escapa às regras preestabelecidas como aceitáveis
socialmente se adaptam a novos domínios. Nas palavras dele:
99
2.2. Criminalização racializada e o acorrentamento por alge-
mas
100
como ocorreu com a cultura afro-brasileira, por meio da criminalização da
capoeira. À prática de “fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade
e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem” previa-se a
pena de dois a seis meses de prisão celular, sendo que o artigo 403 aplicava a
pena no grau máximo de três anos aos que reincidissem na conduta.
Ressalta-se que é a partir do século XIX que a estrutura das prisões se modi-
fica e garantem-se os muros como forma de viabilizar a segregação e a invi-
sibilidade dos que nela estão inseridos (CHIES, 2017, p. 409). Os muros e o
distanciamento dos centros urbanos concretizam a exclusão das pessoas
destinadas àquele local.
[18] “Estereótipos são construções ideológicas que servem a propósitos específicos, sendo que
eles têm a função de referendar concepções de mundo que encobrem as relações de poder
101
sendo esses alimentados por um racismo particularmente brasileiro, o mito
da democracia racial.
No final dos anos 1890 e início dos anos 1900, é com a miscigenação e a raça
que a elite intelectual se preocupa. Contra a população negra, as legislações
já estavam encaminhadas ao controle penal, e a repressão policial contra a
recém-conquista da liberdade se junta aos estudos científicos de raça.
existentes dentro de uma determinada comunidade política” - MOREIRA, Adilson José. O que é
discriminação?. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando, 2017. p. 42.
102
institucional dessas opressões, é preciso compreender que a mulher negra,
historicamente, esteve envolvida com tais incursões, seja pelos estereótipos
que lhe são impostos, seja pelas opressões sofridas.
Circulando pelo espaço público antes e com muito mais intensidade do que
as mulheres brancas, as negras teriam de ser controladas de perto nesse
ambiente, que, paradoxalmente, não lhes era próprio pela sua condição
feminina. Ou seja, o processo de desumanização imposto às mulheres
negras pelo racismo solapa as possibilidades de se reconhecer nesse seg-
mento os atributos típicos da feminilidade, o que abre espaço para que à
pena privada que lhes é imposta somem-se também as marcas da pública.
(FLAUZINA, 2006. p. 132).
O argumento sustentado pelo mito da democracia racial faz com que todo
o panorama racista e sexista seja resumido à classe. Entretanto, a análise da
construção legislativa, que se inicia ainda no período escravocrata, torna indu-
bitáveis as ações estatais de manutenção da inferioridade da raça negra pela
negação do racismo. A ordem de ações do Estado não deixa dúvidas quanto ao
objetivo final. A população negra nunca teve reconhecida sua humanidade,
mas usufrui da que foi conquistada por meio de muita luta e resistência.
103
então, aprisionavam homens e mulheres negras, não só demonstra as rea-
daptações da postura estatal para benefício de um grupo dominante, como
também afirma que o apagamento das histórias se dá pelo conto de uma
única história, considerada geral.
Dados do INFOPEN Mulheres mostram que 62% das mulheres estão presas por
tráfico de drogas e associação ao tráfico no Brasil, indicando que 3 em cada 5
mulheres estão em privação de liberdade por crimes relacionados a drogas
(INFOPEN, 2017), um número extremamente elevado se considerarmos que
os demais 38% correspondem a todos os demais crimes previstos no orde-
namento jurídico, dentre eles, quadrilha ou bando, roubo, furto, homicídio,
infanticídio, aborto, desarmamento, latrocínio, receptação.
104
acordo com o INFOPEN Mulheres de 2017, é possível afirmar que a criminali-
zação por tráfico de drogas incide prioritariamente sobre corpos femininos
negros.
105
subsistência, nem domicílio certo onde habite. Todas essas circunstâncias
estão sempre presentes no depoimento do condutor. (ROORDA, 2017. p. 278).
De acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal vigente, uma das
motivações para a decretação da prisão preventiva contra alguém é a “garantia
da ordem pública”. A análise de 334 processos envolvendo pessoas escraviza-
das do Livro de Entrada e Saída da Cadeia de Pelotas, entre os anos de 1862 a
1878, demonstrou que:
Uma das fundamentações mais comuns para se aprisionar uma pessoa acu-
sada da prática de um crime no Brasil, sendo hoje esse contingente de 45%
entre mulheres, é um argumento presente desde o século XIX. A população
atingida é a mesma do período imperial-escravista, somente que a ferramenta
de controle passou do “senhor” no âmbito privado para a polícia no âmbito
público, e a punição deixou de ser por açoites e passou para o cárcere.
106
Com tal panorama não se anulam as conquistas do povo negro, que resiste
desde que o primeiro navio negreiro desembarcou em terras nacionais. O
que se busca demonstrar é que o controle social e quem se tenta excluir são
os mesmos atores do século XVI, que foram libertos no século XIX e que são
aprisionados por uma guerra declarada unilateralmente no século XXI. E tudo
engendrado por um mito que omite a existência do elemento que justifica a
construção do domínio, o racismo. E quando se especifica as mulheres negras,
não só o racismo, mas o patriarcalismo e o classismo.
Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas.
Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito
de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre
as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação,
onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem
para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você.
(LORDE, 2015).
Conclusão
107
negra. Intensificam-se os estudos de teorias raciais que resultam no mito da
democracia racial em conjunto com os incentivos públicos à imigração de
pessoas não-africanas e asiáticas.
Posto este cenário, na década de 30, por influência dos Estados Unidos da
América, iniciou-se um compromisso global de “guerra às drogas”, sendo
estabelecido como perigo a figura do “traficante”. No Brasil, com relação às
mulheres privadas de liberdade, evidencia-se que 62% respondem por crimes
da Lei de Drogas, aprisionadas com pouca quantidade, sem variedade, muitas
vezes exercendo serviços de “mula” no comércio ilegal, ou seja, mão-de-obra
descartável.
O último capítulo concentrou seu relato em apontar que não há meras coin-
cidências no modus operandi das estruturas do processo e da prova para a
possibilidade do encarceramento. Como demonstrado, tanto a suficiência
de provas restritas nas palavras das autoridades policiais responsáveis pela
criminalização primária como a manutenção da “ordem pública” como fun-
damento para a prisão preventiva pelo Judiciário já eram responsáveis por
justificar prisões no século XIX.
A história do Brasil foi muito camuflada por uma “história geral” e não é levada
em consideração para o entendimento de mecanismos que, hoje, mantêm
opressões racistas e patriarcais. Não há como entender o presente sem ana-
lisar o passado e a luta contra as condições que colocam a mulher negra em
último lugar na hierarquia econômico social. Essas imposições baseiam-se
na construção inferiorizante e desumana, sendo a “guerra às drogas” só mais
uma ferramenta.
108
Referências
1. Artigos
AGENCIA BRASIL. Mulheres negras são maioria entre jovens que não
trabalham nem estudam. 2012. Disponível em: <http://www.ebc.com.
br/2012/11/mulheres-negras-sao-maioria-entre-jovens-que-nao-traba-
lham-nem-estudam>. Acesso em 25 jul. 2018.
CHIES, Luiz Antônio Bogo. Séculos XIX e XXI: prisão e segregação racial
em Pelotas (RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol 135. ano
25. p. 377-416. São Paulo: Ed. RT, set. 2017.
109
de Brasília, 2006. Dissertação (mestrado em Direito). 145f.
110
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. Infográfico Mulheres e o
Tráfico de Drogas. 2015. Disponível em: <http://ittc.org.br/wp-content/
uploads/2015/08/infografico-mulheres-e-trafico-de-drogas.pdf>. Aces-
so em: 10 jul. 2018.
2. Legislação
BRASIL. Constituição Política do Imperio do Brazil, de 25 de marzo de
1824. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao24.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.
111
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de
fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.
112
-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>.
Acesso em: 09 jul. 2018.
3. Livros
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e
cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DAVIS, Angela. Are Prisions Obsolete? New York: Seven Stories Press,
2003.
113
Direitos Humanos, Refúgio e Relações Raciais: Reflexões so-
bre o Mito da Proteção no Brasil
114
Lumena Aleluia[19]
Amana Mattos[20]
Introdução
“Meu marido falou pra deixar pra lá, ficamos com medo…ainda não temos a
legalidade no Brasil” (NZINGA, 2015)[21]. A referida fala é de uma mulher congo-
lesa, solicitante de refúgio no Brasil, residindo no Rio de Janeiro. O conteúdo
da fala corresponde a uma entrevista realizada ao longo das suas experiên-
cias de acesso aos serviços públicos de saúde no Rio de Janeiro. Foi diante de
tais experiências e relatos que podemos entender de perto os entraves que
se relacionam às estruturas complexas delimitadas pelos cenários políticos
e institucionais do tema Refugiados no Brasil, percursos que têm produzido
distintos itinerários de produção subjetiva em território nacional ao recebe-
rem o status de mulher africana refugiada em território brasileiro. Nzinga
vivenciou por um significativo tempo sequelas emocionais e físicas em sua
saúde sexual/reprodutiva, intimamente associadas à experiência de violência
institucional sofrida em uma maternidade pública no Rio de Janeiro. A fala
acima de Nzinga foi a resposta dada quando foi apresentada à possibilidade
de denunciar a violência sofrida pelo profissional.
[19] Mestra pelo Programa de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Integrante do DEGENERA – Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: luma.aleluia@gmail.com
115
discussão ter se fortalecido nos diferentes setores de governo e da sociedade
civil, fazendo emergir diferentes implicações por parte destes grupos ao
abordar tal assunto. No bojo destas temáticas transversais, vemos surgir
uma forte discussão sobre a garantia dos Direitos Humanos, especialmente
no tocante aos condicionantes das violações – concebendo estes enquanto
um conjunto de aspectos presentes em praticamente todas as dimensões
das relações sociais que permeiam os processos de deslocamento forçado.
A história dos fluxos migratórios para o Brasil revela que a presença negra
sempre foi permeada por influências políticas, outrora com o tráfico negreiro
e, no cenário atual, com o crescente fluxo de pessoas com status de refugiados
para o Brasil. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
em parceria com a Caritas - Centro de Referência para Refugiados de São Paulo,
contabilizou os seguintes dados em 2017: ao todo, foram 72 nacionalidades a
solicitar refúgio no país, tendo como principais motivações e nacionalidades
pessoas advindas de Angola — com o Governo MPLA desde 1979 se assentou a
perseguição política, repressão e truculência do poder público; Síria — por conta
da guerra civil instaurada há seis anos, participações de radicais e conflitos
entre os jihadistas, frente Nusra e curdos na região norte do país; República
Democrática do Congo — vivencia uma ditadura instaurada pelo governo
de Joseph Kabila desde 2011 e conflitos entre etnias na região Kivu do norte,
violências de gênero e sexual; Guiné-Conacri — por conta da opressão étnica
e disputas de poder entre os Malinké e os Peuh; Nigéria — diante da presença
do Boko Haram e de outros grupos insurgentes, emergiram conflitos entre
116
cristãos e muçulmanos, bem como criminalização da homossexualidade e
conflitos étnicos; e Mauritânia — perseguições relacionadas ao racismo. Em
2017, no que tange ao recorte de gênero, 33% foram mulheres e 67% foram
homens, a maior parte tem entre 20 e 39 anos. Já no que se refere à escolaridade,
37% têm o ensino médio e 22% ensino superior. O principal acesso se deu via
aeroporto de Guarulhos-SP, com 84%; estrada, principalmente Roraima, 9%;
e marítimo, via Porto de Santos, 2 % (ACNUR, 2017).
117
disseminação da imagem do Brasil enquanto paraíso racial, dando-lhe uma
roupagem científica, bem como defendendo o Brasil como um país mestiço,
onde se convive bem entre as três raças (GUIMARÃES, 2012). Nota-se, portanto,
o fortalecimento da compreensão mestiça da cultura brasileira, intimamente
associada à negação do racismo no Brasil. A miscigenação passa a ser vista
como sinônimo de tolerância entre as raças que resultaria numa cultura
homogênea, apesar de resultante de povos tão diversos (SCHWARCZ, 2012).
Muito por conta desses resquícios, o Brasil tem ganhado notoriedade pelo
ACNUR, agência especializada da ONU criada com o intuito de se responsabi-
lizar pela gestão de soluções lidas como duradouras ou temporárias – como
a instalação em campos de concentração, repatriamento, reassentamento e
integração local. Assim, tem sido projetado internacionalmente como um
país de referência para o acolhimento aos refugiados sobretudo frente ao seu
caráter exemplar de avançada legislação e ações que intentam a integração
local dos solicitantes de refúgio em contexto nacional.
118
proteção e integração de refugiados e da arrecadação de recursos. A agência
atua diretamente com os órgãos do governo, bem como a partir de parcerias
com o setor privado e organizações da sociedade civil que trabalham em
territórios estratégicos do Brasil realizando ações de cunho assistencial e
acompanhamento jurídico. De modo a programar ações no país frente ao
contingente de demandas acerca dos (as) refugiados (as), foi aprovada a lei
9474/97[22] que determina os mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados. Tais documentos têm sido utilizados como justificativas para
discursos de elogio por parte dos agentes institucionais do refúgio (FACUNDO,
2014), localizando tanto as políticas de governo, como também conteúdos
relacionados ao histórico da nação brasileira, comumente evidenciada pelo
seu caráter multicultural, a partir de um passado receptivo aos imigrantes e
estrangeiros, enaltecendo com veemência o lado humanitário do povo bra-
sileiro enquanto parte de um Estado-nação.
[22] Consta que refugiado (a) é toda pessoa que devido a fundado temor de perseguição por
motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de
seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; ou que
devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL, 1997)
119
Já no que tange ao cenário das relações de gênero, segundo dados do Mapa
da Violência, o país ocupa, desde 2013, o 5º lugar no ranking de homicídios
femininos entre 83 países. O Mapa da Violência revelou que diariamente são
registrados aproximadamente 13 feminicídios em território nacional, o que
levou ao movimento feminista a reivindicar o termo feminicídio como cons-
tructo político para demarcar a taxa de mortalidade de mulheres no Brasil.
Tal barbárie se agrava quando nos damos conta das suas intersecções. No que
tange à população LGBT, o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou um aumento de
30% nos homicídios de LGBTs em 2017 em relação ao ano anterior. Segundo
a pesquisa, a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida vítima da
“LGBTfobia”, dando status ao Brasil de país onde mais se mata pessoas LGBTs.
Diante desses dados apresentados, cabe questionar: como é possível considerar
o Brasil um país que oferece segurança a pessoas solicitantes de proteção por
fundado temor de perseguição, frente às questões de raça, gênero e sexualidade?
120
Ao estudar a subjetividade, coloca-se de forma indivisível a relação entre
indivíduo e sociedade como momentos da constituição do sujeito, rom-
pendo com dicotomias muito presentes no pensamento psicológico, como
social e individual, interno e externo, consciente e inconsciente, cognitivo
e afetivo (MOTTA; URT, 2009, p. 626).
Hall (2014) nos ajuda a compreender que a formação de uma cultura nacio-
nal está diretamente associada ao ideal de padronização do funcionamento
social dos sujeitos, passando pela unificação de signos como a língua nacional,
chegando à homogeneização da cultura através dos processos educativos,
bem como a partir dos meios de comunicação. Portanto, a construção de uma
identidade nacional perpassa por uma série de mediações que permitem a
invenção do que é comumente disseminado como “alma nacional”, ou seja,
recursos simbólicos que funcionam como “provas” da existência dessa iden-
tidade unificada.
121
Ao passo de uma contextualização histórica dos mecanismos estatais frente
à gestão de corpos em deslocamento, faz-se necessário aprofundarmos e
levantarmos questionamentos acerca do quanto as produções decorrentes das
experiências dos refugiados têm se tornado interessantes sob o ponto de vista
das agendas econômicas e políticas. Por exemplo, no que tange à produção
discursiva acerca da crise dos refugiados no Brasil, faz-se necessário salientar
que, quando comparamos a outros territórios, o fluxo de deslocamento para
o território brasileiro se torna insignificante, ao contrário do que acontece
no Oriente Médio e no Norte da África.[24] Logo, cabe questionar: quais são os
fatores que têm ancorado a ideia de vivenciarmos um problema dos refugia-
dos no Brasil? Quem está ganhando com a produção dessas narrativas? Sobre
isto, faz-se necessário destacar a importância que tem sido dada à produção
lucrativa de dados a respeito das experiências da população refugiada, sobre-
tudo, no que se refere aos pontos apresentados por Facundo em sua tese sobre
refugiados colombianos:
[24] Fonte: Instituto Igarapé em parceria com o Create Lab (Laboratório de Comunidade,
Robótica, Educação e Empoderamento Tecnológico), da Universidade Carnegie Mellon, nos
Estados Unidos, que indica de quais países os refugiados estão saindo e para quais estão indo.
122
tornado interessantes sob o ponto de vista das agendas econômicas e polí-
ticas, as quais envolvem muitos outros elementos, que estão para além dos
discursos constantemente disseminados de cunho humanitário, solidário e
assistencial. Uma das críticas apontadas pela autora questiona a relação que é
instituída entre a produção de dados estatísticos por agências especializadas
que intentam traduzir em números e categorias uma determinada realidade
social, a exemplo do sistema ONU que possui o controle e domínio exclusivo
acerca da produção dos dados sobre as experiências de refúgio.
123
consequências impactantes para as mulheres congolesas, que obviamente
envolvem distintas violências, como também distintas repercussões, dentre
elas o deslocamento forçado de seus territórios em busca de novos projetos
de vida. Mas os atos de violação sobre o corpo das mulheres congolesas,
aspecto que tem sido destacado, é uma realidade complexa que transcende
um indicador estatístico e estático dos fatos.
124
sendo constantemente descritas em narrativas que acionam dimensões da
exploração de sua sexualidade.
125
um status de atraso. Em contrapartida, quanto mais símbolos de referência
europeia estivessem presentes na cultura brasileira, mais próximos estaríamos
do modelo de progresso socioeconômico e desenvolvimento civilizatório a ser
seguido. Desse modo, o Estado brasileiro se dedicou politicamente a apagar
o que chamavam de “mancha negra”[25] da escravidão, pois esta representava
as marcas de um país atrasado. Com esses elementos em mente, podemos
destacar que as experiências de deslocamento migratório para o Brasil, pri-
meiramente, no que tange à diáspora, foram justificadas perante a oferta
de salvação da alma de pessoas africanas (caráter sagrado) velando a via de
sustentação econômica a partir da utilização da mão de obra escravizada,
ou seja, os “interesses econômicos da coroa portuguesa confundia-se com a
expansão do catolicismo” (VASCONCELOS, 2015, p. 40).
[25] A miscigenação produzia naturalmente uma população mais clara, em razão de dois fatores:
primeiro, o branco era biologicamente superior ao negro; segundo, as pessoas tendiam a procurar
parceiros mais claros para se casar. A união de casais mistos desencadearia o surgimento de uma
população mestiça, sempre disposta a tornar-se mais branca, tanto cultural como fisicamente.
Essa teoria foi exposta por João Batista de Lacerda (1846-1915), médico, antropólogo e diretor do
Museu Nacional. Ele foi o único delegado latino-americano que participou, em julho de 1911, do
I Congresso Universal de Raças, em Londres (DOMINGUES, 2003, p. 255).
126
Assim, o país do futebol e da Copa dos Refugiados segue sendo um país sem
distinção de cor, raça, sexo ou religião aos olhos do universo institucional
do refúgio. Chama atenção a contradição aguda entre este cenário social e
os posicionamentos por parte dos porta-vozes de temas relacionados aos
refugiados sobre a proteção que o Brasil lhes pode oferecer, visto os contextos
violentos e arbitrários dos quais estas pessoas estão fugindo. O Brasil é eviden-
ciado como um país com caráter de acolhimento e proteção para as vítimas
da violência sexual e de gênero, sendo um dos países mais bem ficcionados
em mitos democráticos e repercutindo internacionalmente a imagem de um
Brasil homogêneo, um exemplo a ser seguido para solucionar os problemas,
dentre eles os raciais e de gênero que afligem outros países— um laboratório
de convivência pacífica (FACUNDO, 2014).
processo do caldeamento racial e, por outro lado, estes europeus deviam integrar-se como
forma de abrasileiramento cultural. O imaginário nacionalista obsessivamente apegado a um
sentido étnico de formação nacional ajudou a criar não só outras formas de exclusão por graus
de assimilação, como reafirmou os preceitos racialistas de desqualificação dos nativos da Ásia e
da África que, no início da república, estavam consignados em lei, depois revogada. A construção
simbólica da individualidade nacional, portanto, ajudou a produzir os preceitos de exclusão que
marcaram a política imigratória no Brasil (SEYFERTH,1997).
127
pesquisadores das temáticas que compõem o eixo de fluxos migratórios para
o Brasil. Trata-se de elucidar os marcos civilizatórios que contribuíram com a
construção da imagem do Brasil como um país a la Gilberto Freire, democrá-
tico culturalmente. Contrapor o entendimento ingênuo que para alguns têm
servido de justificativa para limitar os avanços de políticas que evidenciem
as estruturas discriminatórias que estão por detrás dos deslocamentos for-
çados de corpos negros. Criticar os mecanismos que advogam a manutenção
desnecessária de uma produção de sofrimento psíquico sistematicamente
silenciada, fruto de formas equivocadas e excludentes de organização social.
Nesse sentindo, os fluxos migratórios contemporâneos de corpos negros se
relacionam diretamente com a produção de novos lugares de reflexão no
âmbito da produção subjetiva frente às relações de raça e gênero no Brasil.
Em Crítica da razão negra, Adchile Mbembe (2014) escreve que a raça esteve
no decorrer dos séculos precedentes na origem de inúmeras catástrofes,
tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis
crimes e massacres. Já Fanon (2008) evidencia as múltiplas jornadas que as
pessoas negras são convocadas a elaborar ao longo de suas vidas. A primeira
delas perpassa pelo reconhecimento dos signos racistas que estruturam a
sua subjetividade.
128
subjetividade, tanto individual quanto social. Referenciando González Rey ao
propor uma análise que coloque ambos os campos em perspectiva, “busca-se
uma reflexão que abranja o tema em sua complexidade, entendendo-o como
um campo de significação heurística ao permitir um diálogo permanente
com todos os níveis constitutivos da realidade social e dos sujeitos imersos
nesse contexto” (SANTOS; MOTA; SILVA, 2013, p. 703).
Nesse sentindo, como muitas histórias as quais têm sido contadas sob um
olhar embranquecido daqueles que sempre tiveram o seu ponto de vista legi-
timado, o tema do refúgio no Brasil não escapa à regra. Diante desses silêncios
imprimidos compulsoriamente ao longo da história, falas como “Você pode
substituir Mulheres Negras como objetos de estudo por Mulheres Negras contando
suas próprias histórias” — Giovana Xavier, ou “Mulher negra precisa dizer nome
e sobrenome, senão o racismo coloca o nome que quiser” – Lélia Gonzalez, nos
convocam a indagar ao longo desse texto: quais repercussões mulheres negras
de descendência africana têm experenciado diante do status de refugiada?
Ao migrar de território, seus corpos se deslocaram de lugares e quais outros
lugares se fez necessário produzir? Como tem sido para mulheres negras não
nacionais com status de refugiadas se relacionar com as estruturas racistas
e sexistas impressas no marco civilizatório brasileiro?
129
as organizações. Mas a ideia de democracia racial persiste e constantemente
é propagada.
130
estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias
que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são cons-
truídas (HALL, 2014, p. 31).
131
refugiados no Brasil. Também é necessário debater as intersecções relaciona-
das aos critérios das relações raciais e de gênero, de modo a conjecturarmos
conexões mais aprofundadas no que tange às experiências de produção da
subjetividade no âmbito dos fluxos migratórios. Isso é importante para pro-
duzir novos discursos sobre os elementos sociais que atravessam o cotidiano
das experiências de migração de determinados grupos sociais, considerando
que o sofrimento derivado disto repercute diretamente na construção da
subjetividade – construto de considerável relevância no campo de análise
dos efeitos psicossociais.
132
Referências
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS
(ACNUR). Cartilha para refugiados no Brasil: direitos e deveres, docu-
mentação, soluções duradouras e contatos úteis. (sem data)
SANTOS N., L., MOTA, A., & SILVA M. V. A dimensão subjetiva da subci-
dadania: Considerações sobre a desigualdade social brasileira. Psicol.
Cienc. Prof., Brasília, v. 33, 2013.
133
_______. Assimilação dos imigrantes no Brasil: Inconstâncias de um con-
ceito problemático. São Paulo: Revista Travessia, v. 36, p. 44-50, 2000.
134
Violência contra a Mulher Negra: Racismo Institucional e
Sistema de Justiça
135
Maria Sylvia Aparecida de Oliveira[27]
[29] Neste relatório o termo utilizado é “homicídio”, pois a lei de feminicídio só foi sancionada
em 09 de março de 2015 - Alterando o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de
homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos
crimes hediondos.
136
c. Por esse motivo, nos últimos anos, o índice de vitimização da população
negra cresceu de forma drástica (WAISELFISZ, 2015, p. 29).
O dossiê também denuncia que o Brasil não possui programas voltados para
o enfrentamento e a proteção da violência contra mulheres negras, apesar
de ser signatário de vários pactos internacionais que pugnam pela atuação
do Estado no efetivo combate à violência contra as mulheres.
137
Para além das convenções internacionais acima mencionadas, em se tratando
de violência contra as mulheres negras, é necessário lembrar que o Brasil
adotou uma das primeiras convenções que trata especificamente do enfrenta-
mento à discriminação racial, sendo signatário da 1a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificando-a
através do Decreto 65.810, de 08 de dezembro de 1969, que tem por objetivos
eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e
prevenir e combater doutrinas e práticas racistas.
O item III do Plano de Ação de Durban, que trata das Medidas de Prevenção,
Educação e Proteção Visando a Erradicação do Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata nos Âmbitos Nacional, Regional
e Internacional, em seu inciso nº 62 informa textualmente que os Estados
signatários da mencionada Convenção devem tomar
138
Todavia, diante de tudo o que até aqui foi exposto, podemos verificar que em
relação ao contexto de incorporação da questão raça e da discriminação racial
muito pouco foi feito se comparado aos compromissos assumidos em Viena
e Beijing, em termos de incorporação de gênero (CRENSHAW, 2002, p. 173).
Racismo institucional
139
ação e da omissão do Estado que fecha os olhos para as microviolências[30]
cotidianas, fruto da atuação individual de seus agentes, produzindo e repro-
duzindo a hierarquia racial.
Nas palavras de Sales Jr., citado no texto racismo institucional: uma aborda-
gem conceitual:
[30] A Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que essa pratica de minimizar
as agressões raciais cotidianas: “tem como efeito a discriminação indireta na medida em que
impede o reconhecimento do direito de um cidadão negro de não ser discriminado e o gozo
e o exercício do direito desse mesmo cidadão de aceder à justiça para ver reparada a violação.
Demais disso, tal prática causa um impacto negativo para a população afro-descendente de
maneira geral.” (CIDH, 2006)
140
A questão é que existe uma imensa dificuldade das instituições em incorporar
a raça às questões de gênero em razão do racismo estrutural e institucional que
refletem todo um histórico de desumanização, os quais foram descritos neste
artigo e, também, a invisibilização das mulheres negras. Vale dizer, apesar da
suposta universalidade da norma jurídica no caso da Lei Maria da Penha, em
que pese estabelecer que “toda mulher, independentemente de classe, raça,
etnia (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, existe
um abismo entre as ideias concebidas para a implementação das práticas e
rotinas de enfrentamento à violência e a efetiva execução destas práticas no
que diz respeito às diferentes especificidades e necessidades entre mulheres
negras e mulheres não negras.
[31] A violência contra as mulheres tornou-se, na última década, um dos problemas públicos
de maior visibilidade social e política no país. Esse processo acompanha um movimento global
de reconhecimento dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência. Organizações
femininas brasileiras, juntamente com atores estatais, conquistaram a aprovação da Lei Maria da
Penha, que previu mudanças estruturais na forma como o Estado lida com a violência doméstica.
Diante desse novo quadro, o presente estudo destina-se a analisar a especialização dos referidos
serviços especializados, considerando as premissas da transversalidade das políticas públicas, da
intersetorialidade e da capilaridade previstas pelo Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher.
141
Vitimiza-se hoje seletivamente. Além disso, as brancas, muitas vezes, são
melhores (sic) atendidas, enquanto negras são deixadas de lado. Há toda
uma estrutura de segregação e seletividade da violência. As taxas de violên-
cia contra brancas tendem a baixa enquanto para contra negras tendem
a aumentar, o que aumenta também o fosso de proteção que existe entre
brancos e negros na própria Justiça.
Neste sentido, é preciso que o Estado brasileiro assuma que, para coibir e pre-
venir a violência doméstica e ser bem sucedido no enfrentamento à violência
contra a mulher, é preciso lutar por uma educação que aborde as relações de
gênero. Contudo, para que possa coibir a violência contra as mulheres negras, é
142
necessário mais. Para as mulheres negras é absolutamente necessário discutir
as relações raciais numa sociedade que ainda guarda resquícios do sistema
escravocrata e não enxerga essa parcela da população como seres humanos,
não as enxerga como pessoas.
Considerações finais
143
Referências
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA– IPEA; FÓRUM BRA-
SILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA– FBSP Atlas da Violência 2018. Rio
de Janeiro, junho de 2018, Disponível em:
http: //www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&-
view=article&id=33410&Itemid=432, acesso em 01 de jul de 2018.
https://enciclopediajuridica.pucsp.br/pdfs/racismo_58ec762192828.pdf,
acesso em 20/04/2018.
144
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS-CIDH. Relató-
rio n. 66/06 - caso 12.001. 21 de Outubro de 2006, disponível em:
http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Aces-
so 28 de junho de 2018.
https://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-69_Con-
vencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf, acesso
em 28 de junho de 2018.
http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm, acesso
em 28 de junho de 2018.
145
wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo-Institucional-uma-
-abordagem-conceitual.pdf, acesso em 03 de abr. de 2018.
146
“Quando o terreiro vai à delegacia”. Racismo, intolerância
religiosa e sistema judiciário em Belém, Pará, Amazônia
147
Marilu Márcia Campelo[32]
Zélia Amador de Deus[33]
Viemos de uma terra sagrada onde o alá é quem cobre as nossas cabeças
e Oxalá é o guardião da paz, mesmo assim fazem guerra e racismo com
a nossa gente. Não podemos colocar um turbante ou um gobi, uma saia
rodada nem um gunny que somos taxados de macumbeiros, feiticeiros e
adoradores do diabo. Em que universo estamos? Que universo é este onde
os direitos de exercer a Fé nos é negado. Como se estabelece um Estado de
direito sem direitos? Esta é a pergunta que não quer calar. (CONSEP-PA,
2017, p. 1 e 2)
148
Foram perseguidas pela Igreja Católica por quatro séculos, pelo Estado repu-
blicano (sobretudo na primeira metade do século XX) quando este se valeu
de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene men-
tal; foram perseguidos pelas elites sociais e intelectuais que desprezaram e
admiraram estas religiões através de jornais, textos literários, artes plásticas
e música, justamente “pelo exotismo que estas religiões representam para
elas” (SILVA, 2007, p. 9-27).
A partir de 1970 este quadro começa a mudar, quando essas religiões conquis-
tam uma relativa legitimidade nos centros urbanos, resultado da associação
entre os movimentos de renovação cultural e de conscientização política
engendrada pela aliança entre artistas, políticos, profissionais liberais, classe
média, pesquisadores e movimento negro. Porém novos inimigos e novas armas
adentraram esse campo obrigando os terreiros, pensados como comunidades,
a reelaborarem suas estratégias de sobrevivência e inserção na sociedade
mais ampla (MORAIS, 2012).
149
Ora reivindicam uma origem de tradições variadas – o sincretismo – tais como
africana, europeia e indígena; ora buscam uma origem negra e africana[34].
Chamada outrora de feitiçarias, passaram a cultos e, na segunda metade
do século XX, ganharam o status de religiões afro-brasileiras e, finalmente,
religiões de matriz africana respeitadas como religiões tradicionais, fruto de
ações e políticas públicas para os povos de terreiro (CAMPELO, 2009).
A transmissão do saber passa dos mais velhos para os mais novos e acontece
quando os primeiros reconhecem nestes últimos a capacidade e os consideram
socialmente identificados com as normas fundamentais do grupo, podendo,
desta forma, ser portadores e transmissores do saber e de axé. O conhecimento
“vem com tempo”, dizem os mais antigos. Assim, através de um processo len-
tamente adquirido, o saber do novo iniciado vai sendo incorporado ao seu
conhecimento e sua experiência (COSSARD-BINOM, apud BARROS, 1999).
[34] Geograficamente podemos dizer que o Candomblé (com suas variações internas como
keto, angola e jeje) e a Umbanda (também com suas variações) são conhecidas e praticadas em
todo o país, seguidos hoje pela disseminação do Culto de Ifá (trazido por cubanos e nigerianos no
final do século XX). Outras denominações estão circunscritas ao processo histórico de ocupação
da região onde se desenvolveram. São elas o Tambor de Mina, a Mina Nagô (e suas variações), o
Terecô, as Linhas de Cura (Pajelança) e Encantarias, a Barquinha (que já é um sincretismo com
o Santo Daime), o Xangô, o Toré, o Catimbó, a Jurema, o Xambá, o Candomblé de Caboclo, o
Candomblé de Egum, o Omolocô, o Jarê, o Batuque e a Quimbanda.
150
O mundo afro-religioso, segundo Pessoa de Barros, (1999, p.39) é um mundo de
sons, de textos falados ou cantados, bem como de gestos e expressões corporais
associados a objetos-símbolos que transmitem um conjunto de significados
determinados pela sua inserção em diferentes ritos. Ele reproduz a memória
e a dinâmica do grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comuni-
dade através da dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também
nas histórias contadas pelos mais velhos como modelos paradigmáticos.
Cumpre também ressaltar, que não há pleno exercício desta garantia, sem
que haja a colaboração dos cidadãos, e de forma mais relevante, do Estado,
como entidade zeladora da liberdade religiosa, devendo esta instituição, da
qual emanam todos os regramentos sociais, por meio de leis e da prestação
jurisdicional, propiciar um ambiente laico, sem o uso do poder estatal para
o favorecimento desta ou daquela entidade religiosa (MOYA, 2015).
151
terreiros se tornaram corriqueiras e são vistas nas delegacias como simples
brigas de vizinhos, o que leva à subnotificação do tema?
Ela está expressa em atitudes e palavras. Ela pode ser sutil e está no cotidiano
sem envolver violência física, como por exemplo: no transporte público, na
rejeição à roupa branca nas sextas-feiras (dia sagrado para a grande maio-
ria dos afro-religiosos); no uso de um colar ritual no pescoço no transporte
público, quando a pessoa se benze ou se levanta por não querer ficar sentada
ao lado; na criança que hostilizada na escola por ser da religião ou por seus
pais serem praticantes, ser chamada de filha do diabo; na rejeição ao ensino
da história da África e dos africanos na educação básica, ou então, chamando
as oferendas públicas de lixo. “Tais atitudes se observadas e interpretadas a
partir dos que a praticam, revelam inabilidades, preconceitos e uma indis-
posição em relação ao reconhecimento e o respeito às diferenças ou crenças
religiosas do outro”, afirma José Geraldo da Rocha (2011, p. 2).
152
Eu tava pagando a minha obrigação de ano, quando a gente foi entregar
um presente nas águas, depois que terminou a entrega dos presentes, três
guardas vieram abordar a gente que estávamos jogando lixo nas águas da
baía do Guajará, tratou a gente super mal, por mais que a gente estava tra-
jando roupas da nossa religião, falamos pra eles que era que a gente estava
fazendo lá que era o caso que era o presente das águas, eles disseram que era
lixo e não deixaram a gente terminar o que a gente estava fazendo, acabou
tendo uma discussão entre os mais velhos que estavam com a gente e eles.
Eu digo é assim, a falta de importância que é a religião da gente porque
se o povo pode fazer aquele círio fluvial e jogarem aquele mundo de lixo,
porque jogam copos descartáveis, jogam sacola, jogam um monte de coisa,
todo barco que passa deixa o seu sujo lá na água, não é verdade? Se os evan-
gélicos fazem essas passeatas que também deixam a rua imunda, por que
a gente não pode fazer hein? Por que só pra gente que era lixo? Só o que a
gente faz que é lixo e das outras religiões não é lixo? A gente foi entregar a....
porque sempre tem a última oferenda que é o Urupim... que vai comida, vai
flores, vai grãos, vai um monte de coisa pra dentro das águas, que a gente
acaba entregando pra dentro das águas e foi isso que eles consideraram
como lixo, e não tinha nada lá que fosse lixo, tudo ia ser comido por peixe,
tudo ia servir depois pra própria natureza, que até o alguidar que a gente
levou trouxemos de volta, não ficou lá. Então se mais pessoas tivessem a
iniciativa que foi tomada de ir dar parte dos guarda tudo, eu acho que até
que dava um avanço nessa coisa toda, mas não, o pessoal deixa passar, ainda
se trancam ainda (Tata Kitauange, CONSEP-PA, 2017, pg. 21 e 22).
Em 2008, portanto, dez anos atrás, Ari Pedro Oro e Daniel Bem (2008) já chama-
vam a atenção para as contradições que havia entre o estatuto jurídico que
assegura a liberdade religiosa, associada à liberdade de expressão, à liberdade
de consciência e às representações construídas sobre as religiões de matriz
africana na sociedade brasileira.
153
de indivíduos e de instituições outras da sociedade inclusiva, revelam que
aqui e alhures ainda vigora uma mentalidade distorcida acerca daquelas
religiões, apesar das legislações que reconhecem a isonomia entre todas
as religiões, constituindo-se isso, porém, numa face do mesmo preconceito
e racismo votado (sic) ao negro (Avancini, 2008, p. 139), malgrado os pactos
internacionais em favor dos Direitos Humanos e de respeito às diversidades
étnicas e às minorias sociais (ORO; BEM, 2008, p. 315).
[35] Desde 2014, o NEAB Grupo de Estudos Afro-Amazônicos e o Grupo de Pesquisa Roda de
Axé vêm acompanhando também o crescente número de denúncias envolvendo os terreiros em
Belém e na Região Metropolitana da cidade através de um Projeto de Extensão chamado Axé
e Tambor. Neste ano de 2018 pretende-se dar continuidade ao mesmo, mapeando o racismo e
a intolerância religiosa em Belém e Região Metropolitana. Nossas metas visam acompanhar as
ações do GT de Matriz Africana no Conselho de Segurança Pública – CONSEP-PA, bem como
mapear e registrar os casos de violência que os terreiros e as práticas culturais de matriz africana
vêm sofrendo na cidade.
154
PROTEÇÃO DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA CONTRA OS “GLADIADORES
DO ALTAR” , E OUTRAS QUESTÕES RELATIVAS À DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA.
Essa representação dos povos tradicionais de matriz africana da zona
metropolitana de Belém foi arquivada por falta de provas em dezembro de
2015, pela Dra Melina Tostes, que à época respondia pela PRDC/PGR/MPF-PA,
com os argumentos de que os registros eram feitos em outros estados da
federação e que não haviam indícios de que haveriam ameaças contra au-
toridades, lideranças ou mesmo contra os territórios e as territorialidades
de povos tradicionais de matriz africana no Pará.
Coincidência ou não, foi a partir de abril do mesmo ano de 2015 é que uma
série de assassinatos de lideranças e autoridades tradicionais começou a ser
percebida e visibilizada pelas comunidades, e a partir dessa percepção se
formou o MOVIMENTO ATITUDE AFRO, que buscava o diálogo com o poder
público para a salvaguarda e proteção das tradições de matriz africana na
zona metropolitana de Belém. (CONSEP-PA, 2017, p.6-8)
155
Metropolitana de Belém, e a solicitação ao CONSEP se deu depois de acionar
o MPF e de termos nossa solicitação negada, da tentativa de diálogo com
a PMB que resulta em agressão sofrida por pessoas de outras religiões, e
de denunciar essa agressão sofrida na manifestação do aniversário de
Belém ao MPE, é que recorremos ao CONSEP-PA em busca de diálogos que
pudessem resultar em políticas públicas para a garantia de direitos dos
Povos Tradicionais de Matriz Africana.
(...)
156
grupos de dança, de capoeira e de música, provocando matérias em jornais,
emissoras de rádio e emissoras de televisão com várias manifestações, in-
clusive em redes sociais, alertando para o genocídio do povo negro e para
o etnocídio das tradições de matriz africana no estado do Pará. (CONSEP,
2017. Grifos nossos).
157
158
Os dados do Disque 100 apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011
e dezembro de 2015, a maioria registrados nos Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade
Religiosa e Direitos Humanos (CEPLIR), criado em 2012, registrou 1.014 casos
entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões
de matrizes africanas, 7,7% contra evangélicos, 3,8% contra católicos, 3,8%
contra judeus e sem religião e 3,8% de ataques contra a liberdade religiosa
de forma geral.
Em 2016, 759 denúncias foram feitas pelo serviço telefônico, frente a 556 em
2015. Do total, 9,75% eram relacionadas à umbanda, 9,09% ao candomblé e
4,35% a outras religiões de matriz africana.
São muitos casos: lei do silêncio, uso do jogo religioso de acusação entre bruxos
e feiticeiros, ação de traficantes que se dizem evangélicos, e um pequeno, mas
já sentido êxodo dos terreiros, cujos sacerdotes têm mais poder aquisitivo,
para áreas mais afastadas dos centros urbanos repetindo um movimento
do final do século XIX e início do século XX. O descaso de autoridades e a ina-
bilidade de delegados e investigadores para conduzirem o caso quando este
se torna um boletim de ocorrência, entre outros casos, levaram à criação de
um grupo de trabalho dentro da Secretaria de Segurança Pública que pudesse
responder por estas agressões aos afro-religiosos e à população negra em
geral. O grupo de trabalho tem por finalidade investigar a violência contra
a matriz africana e projetar políticas públicas de segurança e proteção aos
cultos afro-brasileiros no Estado do Pará.
A intolerância religiosa pode e deve ser considerada uma violação dos direitos
humanos e seus praticantes são criminosos, não importando de se tratar de
cidadãos ou pessoas que estejam representando órgãos públicos. Do ponto de
vista da origem, a intolerância religiosa está relacionada ao próprio sistema
de crenças de indivíduos; na incapacidade de compreender crenças e práticas
religiosas diferentes das suas, e, consequentemente, admitir o direito dessas
crenças existirem (SILVA Jr, 2009). A intolerância religiosa é, portanto, um novo
racismo, e muitas comunidades e grupos que foram perseguidos por séculos
159
por causa da cor da sua pele são perseguidos agora por causa de sua religião
e por um processo de demonização a tudo que se refere a afro e africano. Ao
assumir o caráter racial, a intolerância religiosa configura mais uma face do
racismo à brasileira que resiste ao processo de democratização:
1. Então, assim, eu saí ... eu já sabia que eles eram, tipo, eles tinham co-
ragem de ... de meter o pé na minha porta e matar lá dentro. Então, eu
realmente não ... eu não pres ... não ... não prestei nenhuma queixa, não
bati nenhum B.O. por conta disso, por medo mesmo, entendeu? Ah ...
eu preferi mesmo botar placa de venda, vendi e saí correndo de lá. Mas,
assim, quero deixar aqui a minha contribuição relacionado ao racismo
religioso, e pedir, assim, a gente pede com que esses depoimento sejam
fundamentais, porque, isso sim, isso faz com que a nossa dignidade,
a nossa estima enquanto cidadão, enquanto pessoas que lutam pelo
um direito, direito do humano, direito à dignidade, que a gente o
tempo todo vai tá ... ah ... a gente sabe que a gente é amparado pela a
... pela Constituição, mas ... eh ... o Estado é laico, mas essa “laiticidade”
(sic) nunca ... nunca existiu. E aqui, através desses depoimentos, ah ...
eu quero que realmente fique bem claro que o racismo religioso, ele
é capaz de fazer com que as nossas casas seje (sic) queimada, que as
nossas casas sejem (sic) apedrejada, e que ... e que de alguma forma a
comunidade ou ... ou o entorno da onde a gente mora e essas igrejas
que perseguem a gente fazem com que, eh ... chegue o ponto até de ...
de assassinar, né. (sic) (Baba Oba Ytan, CONSEP-PA, 2017, p. 23-28).
160
sociais que a casa faz, o senhor sabe né que a ACYOMI tem os traba-
lhos sociais com a comunidade em torno, eles foram pra cima ‘larga a
menina, larga a menina’ ela chegou tão abalada em casa, tão abalada!
Ela tem 26 anos, e nunca mais ela quis vestir a roupa pra ir pra rua, ela
ficou apavorada. Outro foi um filho de 15 anos, estava de axó também,
foi ao mercado e foi seguido por dois homens falando dizendo aque-
las palavras de... de... sei lá, de deus de diabo, daquelas coisas que eles
falam esculhambando. Graças a Olorum eles não agrediram. A partir
disso nós continuamos porque nós somos um povo de resistência, eu
faço conversa com eles, nós não vamos desistir, nós não vamos e não
temos nem porquê não é? Deixar de usar nossas roupas, de mostrar
nossas contas, de mostrar nossa tradição, então a gente continua indo
mas ninguém sai mais do que de três, só sai três, não sai nem de dois,
só sai de três, no supermercado, na feira, e assim nós fazemos e eu
fico pensando, há quantos anos também nós estamos ali no bairro
da Terra Firme: há muitos anos, década e conhecidos ACYOMI já tem
quinze anos que faz trabalhos e ainda acontece isso conosco. (...) Tudo
bem, a polícia fez o trabalho dela, isso eu não posso negar. Eles foram,
eles tavam começando a formar uma igreja eles foram lá, mandaram
o que manda né pra eles, as intimações, eu soube que eles receberam,
porque a mãe de um veio pedir pra retirar queixa porque era vizinha
há tanto tempo, eu disse a ela que se eles me considerassem, a senhora
não tinha permitido, não consideraram, não respeitaram, eu sempre
respeitei vocês não respeitaram eu não vou retirar, apesar de ser uma
vizinha de mais de vinte e cinco anos também, mas eu conversei com
ela e mostrei pra ela, enfim, até hoje estou esperando. E os rapazes, os
outros fugiram, porque, com essa história descobriram que um estava
inclusive fugido do presídio, o outro era um ex-traficante, usuário, sei lá
essas história, também tinha problema aí fugiram. (...) Teve é....tiveram
dois ou três pais que sofreram casos até piores do que o meu, como um
que foi invadido ele foi a primeira, foi a segunda e desistiu, por conta
dessa morosidade, disso tudo que eu relatei no meu caso, acaba que
161
eles desistem antes porque eles não acreditam que vai haver justiça,
esse é o pior! É esse o maior entrave, esse é o gargalo, a justiça não dá
resposta pra gente, não dá retorno. Então quando a gente fala muitas
das vezes, que eu coloquei nome, eu dizia onde era a delegacia, que
nós tínhamos uma especializada, e eu falava, o que eu escutava era
isso: ‘Mas a senhora acha que isso dá certo? A senhora acha que eles
vão fazer alguma coisa por nós?’ É total falta de crédito na justiça, pra
retorno pra nós. É isso, pai. E infelizmente a verdade é essa, nós não
temos retorno, é bater na caixa vazia, sabe, é um horror isso... (...) (Mãe
Nalva de Oxum, CONSEP-PA, 2017, p.28-34).
162
e de fato foi terrível porque eu me senti acuada dentro da minha casa.
Eu na verdade eu já fui denunciar quando a casa foi apedrejada mas
eu não quis naquela época em oitenta e cinco, o que que aconteceu,
a polícia veio pra manter a ordem, eu não sei se na verdade a pessoa
que foi comigo, o filho de santo, ele tinha algum conhecido dentro
da polícia que teve a sensibilidade ou se nós com uma produção dos
nossos deuses, a gente teve naquele momento uma sensibilidade do
policial que veio reparar ou cuidar pra vim manter a ordem para que
nosso ritual seguisse, mas assim, aquele fato, um homem, um senhor
que se diz que trabalhava no IBAMA, e viu um membro da casa que ele
vinha com um passarinho que ela achou, botou numa caixa e trouxe
pra gente cuidar ela estava, ainda não estava nem com pena, não tava
empenado, então não custava a gente cuidar, que isso cai das nossas
árvores passarinho, a gente cuida depois solta, que a nossa tradição é
de cuidar, então assim o senhor do IBAMA ligou pra polícia, ameaçou,
gritou, disse que eu era matadora, que aquilo ia ser mais um pássaro
que eu ia matar e na verdade não foi isso que aconteceu, eu mostrei
que era um pássaro desse da noite ou um arancuã, um pássaro que
tava por aí procurando as penas dele, ainda era criança e a gente ia
cuidar, e aí isso foi, além de estar acuada na minha casa, a minha
pressão ficou alta, me senti invadida pela polícia, com vergonha dos
meus vizinhos porque esse homem fez tanta intolerância na porta do
terreiro que eu tive que chamar um membro da casa pra me socorrer,
mas isso aí se você for na polícia dar parte, eles dizem, ah, isso é briga
de vizinho, eles nunca vinculam como intolerância, como desrespeito,
como qualquer coisa que vá a pessoa ser punida, pelo menos a pedir
desculpa – ôh, vizinha me perdoe, eu desconheço as suas tradições,
por isso que eu agi... – Nem isso! (...) Muitas vezes eu já fui perseguida
pelos meus vizinhos, por eles ligarem pro meio ambiente ou por algum
outro fato, que eles se sente incomodados com a nossa ritualística, ou
liga pra polícia, essa casa nossa, ela já foi apedrejada com pessoas fe-
rida, eu acho por exemplo que uma das piores violências, preconceito,
163
racismo, intolerância, desrespeito pelas nossas tradições é quando
o meu vizinho me diz, olha a senhora tá incomodando, por que a
senhora não compra um terreno, uma casa, lá pra longe, pro interior
e vai embora daqui de perto da gente, pra mim é uma intolerância ...
(Mametu Nangetu, CONSEP-PA, 2017, p.45-50)
[36] A Rádio Exu, emissora sediada em Belém, no Pará, e transmitida pela web, tem populações
negras como protagonistas de suas produções. Acesso: radioexu.com
164
são exigido o pagamento de uma taxa de realização de festas e shows
por parte da polícia administrativa (DPA). (CONSEP-PA, 2017, , p. 54-55).
165
a fazer um termo de Desistência no dia 13 de julho de 2017 e no termo
se comprometeria a: “proteger suas velas e diminuir a quantidade de
incenso utilizado na defumação para não prejudicar o vizinho e nem
sua comunidade”. Ressaltamos que Mãe Patrícia estava acompanhada
de advogados, mas estes não atentaram aos fatos descritos por ela no
T.C.O em Outeiro. Após esses fatos, alguns componentes do G.T de matriz
africana quando souberam do ocorrido conversaram com Mãe Patrícia e
resolveram juntos com a Ouvidoria do SIEDS encaminhá-la novamente
a Delegacia especializada e ali conversaram com a Delegada Hildenê
e desta reunião foi deliberado que Mãe Patrícia não desistiria de sua
denúncia. E assim no dia 01 de agosto de 2017 prestou declarações em
IPL por portaria 00042.2017.1000036-5 e relatou novamente os fatos que
haviam sido relatados no TCO em Outeiro e ainda outras perseguições
por parte do vizinho ‘L.R”. (CONSEP-PA, 2017, p.56-59)
166
5. Pai César Pajé, Distrito de Icoaraci, Belém. Pajé Cesar (Júlio Cesar da
Silva Oliveira) informou em sua ocorrência que pratica pajelança e que
no dia 04 de outubro de 2017, por volta de 01 e 30hs sofreu agressões
verbais e teve seu terreiro depredado por parte de familiares, que são
evangélicos (sobrinhos e irmã). Que sua casa foi toda depredada, inclu-
sive todo seu patrimônio de caráter sagrado e cultural. Ainda informou
que estes crimes não foram registrados na delegacia de Icoaraci, pelo
fato do delegado de plantão se negar e que após procurar apoio junto
aos movimentos em defesa de Direitos Humanos e combate ao racis-
mo religioso conseguiu fazer um registro na delegacia especializada
(DCCDH-DIOE) no dia 05 de outubro, no entanto informa que a pessoa
responsável pelo registro (não soube dizer se era a delegada ou escrivã)
teve muita resistência em registrar os fatos conforme ele narrava e o
B.O.P não informa totalmente os fatos vivenciados por ele. O Pajé Cesar
atualmente se encontra escondido e acolhido por pessoas da sociedade
civil, pois ao tentar retornar para sua casa foi alertado por pessoas
próximas de que havia duas pessoas (motoqueiros) em frente a sua
casa perguntando por ele e que os vizinhos desconfiavam ser mata-
dores. A Situação não é improvável visto que os familiares agressores
ainda lhe afirmaram que iriam lhe matar. Pajé Cesar se escondeu em
outra casa e foi recolhido do local de perigo por uma equipe da polícia
Civil, em contato constante com a Corregedoria e Ouvidoria o mesmo
relata uma sensação constante de insegurança, pois estas agressões e
ameaças já foram registradas mais de cinco vezes e nada ocorreu com
seus agressores. (CONSEP-PA, 2017, p. 60-61).
167
Srs e Sras Guardiões, nossos amados Exus e Bombogiras, que nada têm
daquelas aberrações por aí afora reproduzidas. Houve um tempo em
que eu tentei esclarecer alguns pontos sobre o que não é Exu, mas a
intolerância e o deboche me levaram ao caminho contrário, o famoso
botão do foda-se. Hoje o nosso trabalho estava marcado para 20h, e
algumas pessoas que chegaram aproximadamente nessa hora foram
intimidadas, injuriadas e ameaçadas por um grupo (inicialmente
formado por 3 pessoas) com bíblias embaixo do braço. Carros foram
cercados e banhados com óleo ungido e incontáveis discursos de ódio
foram proferidos. Tentamos prosseguir, mas as provocações chegaram
em um nível tão absurdo e o discurso de ódio foi tão assustador que
chamamos a polícia. Antes da chegada da viatura várias pessoas fo-
ram ameaçadas, inclusive de morte. Temos vídeos, fotos e dezenas de
testemunhas. As pessoas envolvidas foram encaminhadas à delegacia.
Nós, que chegamos após as viaturas, seríamos ouvidos após o grupo
que nos ameaçou, mas para nossa surpresa, enquanto aguardávamos
na sala de registro, o delegado da Seccional da Cidade Nova liberou
o indivíduo que proferiu a ameaça de morte sem sequer anotar os
seus dados ou adotar qualquer procedimento. Ao questionarmos
sobre essa atitude, tentaram nos coagir e impedir o nosso acesso aos
locais de tomada de depoimentos de uma das vítimas, mesmo sendo
declarado que estávamos atuando como advogados. Chegamos na
delegacia aproximadamente às 21h e saímos quase 02 da manhã. Em
todo esse tempo, a única coisa que conseguimos fazer foi registrar
2 boletins de ocorrência. Saímos de lá indignados e frustrados por
tudo o que passamos e por um indivíduo que não brincou em serviço
ao proferir ameaças. Enquanto ainda estava na delegacia soube que
o Diário Online já tinha publicado uma matéria sobre o ocorrido, e
alguns comentários demonstram o que já estamos sentindo na pele
há algum tempo: estamos em um tempo de ódio e perseguição sem
precedentes. Estamos no nosso local atual há mais de 10 anos e nunca
tivemos nenhum tipo de problema. Os carros ficam estacionados no
168
nosso pátio, dividido e organizado com uma transportadora que há ao
lado, com quem também jamais tivemos qualquer tipo de problema.
Nossa Casa é fechada e do lado de fora não é possível ouvir qualquer
barulho, inclusive alguns vizinhos que frequentam nosso terreiro são
provas disso. Eu fico me perguntando que deus é esse que transtorna
e torna as pessoas violentas e intolerantes? Que religião é essa funda-
mentada em perseguição, ódio e desrespeito? Que aparato público é esse
que também não adota qualquer atitude de prevenção e/ou repressão?
Bem, se não pudermos ser respeitados pelo simples fato de ser essa a
atitude mais pacífica e justa, então o seremos pela movimentação de
nossos direitos. Não silenciarão os nossos tambores. Nossos corações
seguirão compassados com eles” (CONSEP-PA, 2017, p.66-67).
Nos casos dos boletins de ocorrência com vítimas fatais, nenhum deles cita
tratar-se de sacerdote, e em todas as situações foi omitida a informação de
que a vítima era sacerdote/ sacerdotisa e que professava uma religião de
matriz africana. Essa informação só passa a ser publicizada quando o fato
é destacado pela imprensa, ou quando é conhecido de alguém que informa
pelas redes sociais. Deve-se considerar também que em alguns casos a própria
família da vítima não quer a divulgação religiosa, levantando a hipótese de
que haja muitos mais casos dos que já foram levantados.
169
e desqualificou as queixas dos reclamantes para sugerir que registrassem as
ocorrências como meras ameaças, sem considerar que essas ameaças ocorrem
por motivação de identidade étnico-racial das tradições de matriz africana:
No caso de Pai Jaime de Oyá, a própria vítima relatou pela rede social de
whatsapp que quando o mesmo foi recebido na DCCDH para relatar a
invasão aos Terreiros, e registrar que os membros da casa haviam sido
amarrados, roubados seus pertences e torturados, a escrivã lhe havia dito
que a delegada iria primeiro ver se se tratava de intolerância religiosa, e
que a mesma havia lhe perguntado se ele teria registros em vídeos para
comprovar que o que estava dizendo.
Táta Kinamboji afirma que o acompanhou na segunda vez que Pai Jaime
foi à delegacia de combate a crimes discriminatórios, e que durante o re-
gistro do depoimento de Pai Jaime, havia um policial que a todo momento
intervia tentando desviar a configuração do crime. Ele diz que se recorda
do momento em que esse policial teve acesso a outros registros de ocor-
rência que envolvia uma das pessoas identificadas pela vítima, e ouviu o
mesmo comentar algo como: “mas essa senhora já denunciou um pastor
170
de igreja evangélica, portanto não é uma questão de intolerância religiosa”.
(CONSEP-PA, 2017, p, 74)
Essa indisposição para a escuta e para o registro dos casos da violência sofrida
aparece nos relatos de Babá Oba Ytan, que não foi à delegacia fazer a denún-
cia, pois, para ele: “mesmo que eu ... que eu fizesse um B.O., né, um boletim
de ocorrência, eu acredito que essas ameaças não iam parar”. E, também, no
relato de Tata Kitauanje, quando ele diz que:
de três em três meses praticamente eles manda chamar a gente lá, a gente
depõe tudo de novo, fala tudo que aconteceu e acaba não dando em nada
porque eles só fazem escutar, a gente assina, chamam de novo, a gente
assina e não sai disso...toda vez o que aconteceu, aconteceu a gente tem de
depor, aí da outra vez o advogado não estava, aí acabou não tendo (CON-
SEP-PA,2017, p. 75 e 76).
Ou mesmo Mãe Nalva, que venceu a parte da delegacia, mas encontrou difi-
culdades para a continuidade do processo, quando ela conta que:
Botei processo, botei na polícia, fui pra delegacia especializada que nós
temos, a delegada foi excepcional pediu as testemunhas, fiz tudo como a
justiça manda. Esse caso foi três vezes pra promotoria e todas a três vezes
voltou o processo para a delegacia, a delegada me chamava, a primeira vez
volta o processo, a segunda vez eu disse ‘o que que a senhora me diz ago-
ra?’ ela ‘não vamos ter paciência, eu digo ‘não se preocupe eu vou ter toda
paciência do mundo’, aí ela: ‘mas não desista’, ‘a senhora pode ter certeza
de que eu não vou desistir, eu já disse a ela que isso é racismo, aí ela disse
‘não, Mãe Nalva, não é não, isso é porque é assim mesmo’, eu digo: ‘tá bom!’.
Aí volta, aí a terceira vez, volta tudo de novo, as mesmas testemunhas, (...)
Conclusão, meu pai: Três vezes voltou, o promotor não aceitava, eu não sei
como é que diz isso, mas eu sei que voltava pra refazer, e da terceira, eu
não sei nem quantos anos tem isso, até hoje estou aguardando resposta
do Ministério Público (CONSEP-PA, 2017, p.76).
171
A verdade é que o racismo institucional, aliado ao racismo religioso, é um dos
fatores que tem afastado comunidades de terreiros em busca da garantia de
seus direitos. Por tudo isso, o enfrentamento ao racismo é uma tarefa que cabe
a todos: indivíduos, instituições, comunidades e sociedade de maneira geral.
172
Referências
BARROS, J.F.P. O banquete do rei ... Olubajé: uma introdução a música
sacra afro-brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, INTERCON, 1999.
173
SANTOS, I. A. A. dos. Direitos humanos e as práticas de racismo. Edi-
ções Câmara, 2013.
174
Racismo Institucional: da Perpetuação da Discriminação Ra-
cial, às Formas de Enfrentamento do Grupo de Trabalho de
Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco[1]
175
Marinete Cabral Cavalcanti da Silva[37]
Guilhermina D’arc Carneiro do Nascimento[38]
I – Introdução[39]
[37] Graduada em Serviço social pelo Centro Universitário Estácio do Recife (2017.2), Pós-gra-
duanda em Direito Social e Políticas Públicas pela Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE
(início em 03/2018).
[38] Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
- UFRPE , especialização em Direitos Humanos e mestrado em Antropologia ambos pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco- UFPE. Desenvolveu ações na Secretaria de Direitos Humanos
e Políticas sobre Drogas da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Tem experiência na área
de pesquisa social acerca de temas como religião, relações raciais e política de drogas. Possui
quinze anos de experiencia em ensino superior (graduação e pós graduação) nos cursos de
Direito, Psicologia e Serviço Social.
[39] O presente estudo é parte da monografia produzida para a graduação em Serviço Social,
que teve como objetivo analisar de que maneira as ações realizadas pelo Grupo de Trabalho de
Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco contribuíram para o enfrentamento
do racismo institucional nos anos de 2003 a 2004 e 2015 a 2016.
176
O responsável por essa exclusão é denominado racismo institucional, mais
um, senão o pior aspecto do racismo, pois é através do racismo institucional
que a população negra é destituída de seus direitos fundamentais e de sua
emancipação social, o que deveria ser assegurado pelo Estado brasileiro. Essa
problemática reverbera no não-atendimento ou na precarização dos serviços
prestados à população negra nas áreas da saúde, da educação, habitação, lazer,
cultura, dentre todas as áreas que organizam e integram a vida em sociedade,
o que finda por gerar desigualdades raciais. O racismo institucional ainda
é o principal motivo da ínfima representatividade da população negra nos
espaços de poder e nos postos de comando da sociedade brasileira.
177
2003 a 2004 e 2015 a 2016. Os objetivos específicos foram construídos de
maneira que pudessem possibilitar a resposta da pergunta-problema. Nesse
sentido, foram formuladas as seguintes questões: verificar que condicionantes
geraram a necessidade da criação do grupo, compreender de que forma se
estabelece o processo do racismo institucional, identificar os desafios do GT
na busca pelo enfrentamento do racismo institucional, além de compreender
qual a importância da implantação de um grupo de trabalho em instituições
públicas e privadas que visem enfrentar o racismo institucional.
O motivo do recorte dos anos de 2003 a 2004 e 2015 a 2016 deve-se ao fato de
a pesquisadora acreditar ser necessário fazer um comparativo das ações do
Grupo de Trabalho nos referidos anos, buscando verificar se houve o declínio
do racismo institucional na instituição.
178
podem e devem evoluir para a proposição de ações que venham a realizar o
enfrentamento ao racismo institucional.
II – Desenvolvimento
[40] Quem estuda sobre etnias, culturas e características gerais dos povos e grupos sociais
primitivos ou contemporâneos. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/etn%C3%B3logo/
179
A afirmação do autor nos leva a enxergar o racismo como um fenômeno de
amplitude densa e com raízes bem mais profundas e resistentes do que se
imagina. A partir dessa afirmação, pode-se concluir que, se o racismo advém
de um tempo bem mais antigo, seu enfrentamento torna-se ainda mais
complexo, pois se vê o sistema racial como algo inerente à própria história
da humanidade.
180
Os indicadores sociais traduzem quantitativamente a realidade inerente à
população negra brasileira e evidencia o abismo sociorracial existente no
país. No sistema jurídico, por exemplo, esfera responsável por disciplinar o
convívio em sociedade, o racismo deveria ser veementemente combatido e
penalizado. Contudo, é a partir desse sistema que o racismo se institucionaliza
e é legitimado através do não-dito racista e de um discurso não-intencional
como afirma Sales Júnior (2006), a partir do fetichismo linguístico configu-
rado pelo mito da democracia racial. Isso acontece frequentemente com os
casos denunciados à Justiça, onde os réus quando do julgamento, justificam
suas agressões racistas com o pretexto de não ter a intenção de ofender as
vítimas, mesmo quando o processo indica a total intencionalidade desses
réus em inferiorizar e humilhar cidadãos negros. Esse processo preenchido
por ambiguidades, ainda segundo Sales Júnior (2006), dificulta a punibilidade
dos casos de racismo e finda por legitimar a dita cordialidade das relações
raciais e o mito da democracia racial, e de maneira preponderante, a Justiça
brasileira não penaliza aqueles que cometem o crime de racismo.
181
atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre
coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação
de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais
instituições e organizações. (CRI, 2006, p. 22 apud WERNECK, 2013, p. 11).
Trata-se ainda, de acordo com Noguera (2016), de uma disputa por espaços de
poder no campo social, político, econômico e cultural, imposta pelos europeus
na colonização do Brasil e que se sustenta ainda nos dias atuais através da
concepção de que a população que detém o direito de ocupar esses espaços
é a branca, além de ser difundida e legitimada a noção de que a população
branca possui superioridade em relação à população negra, no que se refere
aos padrões de beleza e de inteligência. Portanto, a ocupação de pessoas
negras em espaços e posições de poder, historicamente predeterminados
a pessoas brancas, causa um estranhamento aos cidadãos, justamente por
conta da racialização da sociedade brasileira. A ideologia racista propagada
pela elite brasileira é tão consistente por conta de sua estrutura organizada
historicamente que influencia a todos na sociedade, inclusive aos próprios
negros, o que reverbera muitas vezes em um discurso racista aos seus iguais,
conforme avalia Freire (1987). Afinal, é o discurso ideológico da elite quem
organiza e determina as relações de uma sociedade (MARX; ENGELS, 2008, p. 40).
182
2. O racismo institucional em números e suas consequên-
cias para a população negra nos campos da educação, saúde,
empregabilidade, segurança e sistema de Justiça
183
compreende-se que a saúde é resultado de uma diversidade de aspectos
relacionados à qualidade de vida, incluindo padrões apropriados de ali-
mentação, habitação e saneamento, bem como oportunidades de educação
ao longo da vida, estilos de vida adotados, acesso à assistência à saúde,
entre outros determinantes. (PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE, 2013, p. 24).
184
Em se tratando de empregabilidade, de acordo com dados do estudo Retrato
das desigualdades de gênero e raça, realizado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA a partir de 2004, no ano de 2009 a taxa de desem-
prego atingiu o índice de 6,6% entre os homens negros. Já entre as mulheres
negras chegou a 12,5%. Entre as mulheres brancas o desemprego foi de 9,2%,
enquanto que entre os homens brancos foi de 5,3%. (IPEA, 2011, p. 27).
185
sofrendo um “genocídio simbólico” por parte da segurança pública do país, que
rotineiramente extermina membros dessa população, como foi declarado pelo
relator da CPI o Senador Lindbergh Farias. De acordo com o relatório final da
Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Assassinato de Jovens - CPIADJ[42],
instaurada em 06 de maio de 2015 e finalizada em 14 de março de 2016, a cada
23 minutos um jovem negro é assassinado no país. São 23.100 jovens negros
com idade entre 15 a 29 anos por mês tendo suas vidas ceifadas brutalmente,
resultado da ação, mas principalmente da inação do Estado brasileiro, tendo
em vista que essa problemática resulta da discriminação racial sofrida pelos
jovens negros por parte das polícias militares que agem em nome do poder
público, além de resultar também da falta de políticas públicas adequadas a
este grupo específico. (FARIAS, 2016).
[42] A Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens - CPIADJ foi criada pelo
requerimento 115 de 2015 de autoria da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA) com o intuito de inves-
tigar os assassinatos de jovens no Brasil, suas causas e os principais responsáveis pela violência
cometida contra esses jovens.
186
enquanto houver a disseminação dessa ideia, as consequências do racismo
para a população negra serão devastadoras e continuarão prejudicando esse
grupo específico.
De acordo com Silva (2012, p. 7) “Iniciando com um Projeto de Lei (PL) apre-
sentado em 2000, a proposta de um estatuto para a população negra no Brasil
percorreu uma década de avanços, retrocessos, consensos e resistência, cir-
cunscrita de muita polêmica”.
187
a necessidade de avançar além dessa conquista, na busca pela efetivação da
igualdade racial no país.
188
outra negra, historicamente excluída e oprimida. Tal comunidade faria
sentido se, ao promover a igualdade racial, garantisse como princípio de
justiça que os membros de ambos os grupos raciais não experimentassem
qualquer forma de exclusão e se beneficiassem das oportunidades em to-
dos os campos da vida social, econômica e cultural. Mas, ao se estabelecer
essa nova concepção de sociedade, na qual seus cidadãos terão a marca de
uma ou outra “raça” (uma vez que o Estatuto concebe apenas duas raças) –
conferida por traços fenotípicos e consolidada por registros civis, censos
escolares, documentos e sistemas de informação –, estará se instaurando
uma ordem com cenários óbvios de injustiça. (GRIN, 2014, p. 143)
189
mente. Levou os cidadãos a refletirem sobre a discriminação racial e sobre
o racismo, e essa questão o torna um instrumento primordial na luta pela
igualdade racial no Brasil, além de o mesmo levar o Estado brasileiro a propor,
planejar e efetivar políticas de ações afirmativas em resposta às demandas
da população negra, como de fato vem acontecendo a partir de sua promul-
gação. E, em conformidade com a afirmação de Silva (2012), vale ressaltar que:
190
processo faz parte da organização das sociedades capitalistas que se utilizam
da “Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação
aos atores sociais [...]” (SENNETT, 1986, apud CASTELLS, 1999, p. 24).
191
partir das demandas da população. Portanto, afirmamos que a existência de
instrumentos como o Estatuto da Igualdade Racial e a prática de ações por
parte do Estado que colaborem para o enfrentamento à discriminação racial
em uma sociedade cujo racismo se faz presente desde sua construção é de
suma importância para a efetivação da democracia plena.
192
do conceito de racismo institucional (MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO,
[ca. 2017b]).
193
revelado insuficientes para propiciar a mudança pretendida no trato da ques-
tão, à medida que a implementação das leis tem encontrado grande resistência”,
seja no âmbito educacional, com a não-implementação ou a implementação
de forma ineficiente das leis 10.639/03 e 11645/08 “que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”
(BRASIL, 2008), seja no âmbito da saúde, onde comportamentos racistas por
parte dos profissionais interferem no atendimento, no diagnóstico e no tra-
tamento médico da população negra. Interferem também na implementação
de políticas de saúde adequadas e voltadas para indivíduos negros afetados
por determinadas doenças que os atingem em maior proporção devido à
genética, como é o caso da anemia falciforme, doenças adquiridas derivadas
de condições socioeconômicas desfavoráveis, de evolução agravada ou de
tratamento dificultado ou por condições fisiológicas alteradas por condições
socioeconômicas. (SISTEMA NAÇÕES UNIDAS, 2001, p. 5-6).
Conforme Moraes (2014) esse racismo, embasado pelo ainda existente mito
da democracia racial, impossibilita a implementação de ações e de políticas
públicas efetivas, que atendam a toda a população negra.
194
afirmação, aparentemente óbvia, encontra um (infelizmente) vasto nú-
mero de barreiras para que o enfrentamento da discriminação racial seja
satisfatório. Uma delas é o desconhecimento, dentro das instituições, das
leis antirracismo: além de serem, em grande parte, recentes, elas também
passam pelo filtro da resistência, esta calcada, nunca é demais lembrar, na
falácia de nossa democracia racial. (MORAES, 2014, p. 34-35)
195
Além disso, é preciso que o Estado brasileiro, em suas várias instâncias, cons-
trua uma rede de trabalho de enfrentamento ao racismo e à discriminação
racial que não se atenha à comunidade acadêmica, ou apenas às instituições
governamentais. O combate ao racismo institucional deve atingir também o
âmbito privado e, sobretudo, os cidadãos comuns, principalmente os cidadãos
negros que cotidianamente são destituídos de seus direitos fundamentais
a partir do racismo, mas que se calam diante de quem o pratica, ora por des-
conhecer que o racismo é uma violação dos direitos humanos, que é crime
e passível de punição, ora por vergonha, ora por desacreditar na punição do
crime, o que de fato ocorre no Brasil cotidianamente (LOPES, 2014).
Entende-se que a criação de uma rede de trabalho com esse objetivo obviamente
venha a enfrentar múltiplos desafios, pois essa ação vai contra os interesses
da estrutura da sociedade capitalista brasileira, que desde sua formação fora
embasada por um ideário racista cujo objetivo era o de explorar a força de
trabalho dos negros através da escravização; uma sociedade controlada por
homens, brancos, heterossexuais e que não pretendem abrir mão de seus
privilégios em detrimento de qualquer outra população, sobretudo a negra.
III – Conclusão
196
importante mecanismo de enfrentamento ao racismo institucional. Todavia,
o GT não tem condições de realizar uma transformação tão grandiosa, tendo
em vista que o racismo é imanente à sociedade brasileira e permeia todos
os espaços que a compõe. As atividades realizadas pelo grupo são de grande
relevância para o enfrentamento à discriminação racial, porém, modificar essa
realidade não é trabalho para uma única instituição e a curto prazo. Trata-se
de algo complexo que engloba a participação de toda a sociedade. De toda
forma, houve uma transformação na conduta dos membros e funcionários
da Instituição com relação ao racismo institucional, o que colabora para o
seu enfrentamento.
197
a reflexão dos cidadãos sobre os malefícios do racismo. É também dever do
Estado respeitar, além de valorizar a cultura negra e tudo o que ela envolve,
buscando o empoderamento de cidadãos negros através da implementação
de políticas de ações afirmativas nos diversos campos da sociedade.
198
Referências
ALBUQUERQUE, Wlamyra R de; FILHO, Wálter Fraga. Uma história
do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais. Bra-
sília: Fundação Cultural Palmares, 2006. 320 p. Disponível em: <http://
www.ebah.com.br/content/ABAAABXM0AE/a-historia-negro-no-brasil>.
Acesso em 06 de mar. 2017.
199
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temá-
tica “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: 2008. Dispo-
nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/
l11645.htm>. Acesso em 17 de out. 2017.
200
GRIN, Monica. “Raça” Debate Público no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad
X: FAPERJ, 2010. 203 p.
KAMEL, Ali. Não somos racistas: Uma reação aos que querem nos
transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
143 p.
LOPES, Raíssa. Racistas não vão para a cadeia. 2014. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/node/28809/>. Acesso em 18 de nov.
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201
MATURANA, Márcio. As novas cores da (des)igualdade racial. Sena-
do Notícias. Brasília: 2015. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/
noticias/materias/2015/08/04/as-novas-cores-da-des-igualdade-racial>.
Acesso em 22 de set. 2017.
202
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94074.pdf> Acesso
em 14 de set. 2017.
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 21. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
95 p.
203
SANTOS, Cleito Pereira dos; BRAGA, Lisandro; MAESTRI, Mário; VIANA,
Nildo. Capitalismo e Questão Racial. 1. ed. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007
84 p. Disponível em: <http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uplo-
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to-Pereira1.pdf>. Acesso em 28 de jul. 2017.
204
Implantação da variável raça/cor na secretaria municipal de
saúde do Rio de Janeiro
205
Monique Miranda
Louise Silva- SMS-Rio
Introdução
206
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação.”
207
O racismo no Brasil é um fenômeno complexo, que se reafirma cotidianamente
pela linguagem comum, sustentado pela tradição e cultura. Influencia a vida, o
funcionamento das instituições e as relações entre as pessoas, constituindo-se
em uma programação social que a todos afeta. Uma especificidade brasileira
é o racismo velado, exercido através da elaboração de estratégias individuais
e coletivas menos evidentes de discriminação racial, porém muito danosas.
Esta modalidade provoca uma sensação de impotência diante de uma situação
não explícita de discriminação e se equiparada à vivida pela agressão física. O
racismo, o preconceito, a discriminação e a intolerância ferem, desequilibram
e podem até matar (LOPES, 2007).
A Classificação de Raça/Cor
208
da celebração dos 300 anos de Zumbi de Palmares, criou o Grupo de Trabalho
Interministerial de Valorização da População Negra em 1996. Dentre as ações
estabelecidas relativas à saúde, destacam-se: a introdução do quesito cor no
SIM e SINASC e a elaboração da Resolução 196/96, que ao regular a pesquisa em
seres humanos inseriu o recorte étnico-racial. A criação da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, vinculada à
Presidência da República, intensifica a implementação de políticas públicas
no combate às desigualdades raciais (Brasil, 2007). No Sistema Nacional de
Agravos Notificáveis (SINAN), o quesito cor foi incorporado somente em 2002. O
padrão de morbidade e mortalidade destes sistemas de informação apresenta
diferenças de riscos e vulnerabilidade entre brancos, pretos e pardos, sendo
sistematicamente mais desfavorável para a população negra.
Lopes (2007) considera que a informação do quesito cor faz parte do rol de
informações necessárias para mapear as vulnerabilidades e desigualdades
na população, sendo que a produção e a disseminação de dados desagregados
por cor permitirão monitorar e avaliar o impacto de políticas e ações junto
aos diferentes segmentos populacionais.
209
da Saúde) em parceria com a ONG Criola, do II Seminário de Promoção de
Saúde – Equidade em Saúde da População Negra, com a participação de cerca
de 300 pessoas entre profissionais, gestores, profissionais de saúde, ativistas
do movimento negro e de mulheres negras, representantes da sociedade
civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras.
O Seminário teve como objetivo geral sensibilizar profissionais e gestores da
saúde e definir estratégias de implantação PNSPN na cidade do Rio de Janeiro.
Dentre diversas estratégias elencadas duas foram primordiais:
210
A metodologia inovadora utilizada nas oficinas denominadas “Qual é a sua
cor?” possibilitou o debate sobre o contexto histórico e político que fomen-
tou o racismo no Brasil e seus impactos sobre a saúde da população negra.
Utilizamos dinâmicas de grupo que facilitaram a reflexão e discussão sobre
a identidade étnico-racial dos profissionais e o relato de vivências pessoais
de preconceito e discriminação. As oficinas demonstraram ser uma poderosa
ferramenta para a capacitação dos profissionais de saúde no preenchimento
do quesito raça/cor no atendimento aos usuários e na reflexão do racismo
enquanto determinante social da saúde.
211
materna é uma tragédia evitável em 92% dos casos (BATISTA, 2016). A morta-
lidade materna se refere às mortes de mulheres em idade fértil (10 a 49 anos
de idade), ocorridas durante a gravidez, parto ou puerpério.
Considerações Finais
212
Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado
uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/
cor, ainda é incipiente e descontínua sua utilização na análise, planejamento
e tomada de decisões nas políticas e ações de saúde, assim como no inves-
timento de recursos. É necessário também que sejam divulgados e disponi-
bilizados de forma ampla e sistemática os dados epidemiológicos por raça/
cor junto à sociedade civil e a população em geral, devendo ser engendrados
esforços para que a temática saúde da população negra seja transversal a
todos os programas e ações de saúde das diversas áreas técnicas da SMS-Rio.
E da mesma forma ser capilarizada junto às unidades de saúde de toda a
rede assistencial da Prefeitura Rio, devendo desta forma ser respeitados os
marcos legais relativos à saúde da população negra e ao combate ao racismo.
213
Referências
BATISTA L. E ; RATTNER D.; KALCKMANN S.; OLIVEIRA M.; Humanização
na atenção à saúde e as desigualdades raciais: uma proposta de inter-
venção. Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.689-702, 2016.
214
215
216
217
218
ANEXO 5
Indígena 1 0.4 0 0 0 0
219
Anexos:
220
Allyne Andrade e Silva[43]
Apresentação
221
Para fins desse ensaio, serão identificadas como sendo da estrutura do sistema
de justiça brasileiro: O Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública,
a Procuradoria da República, a Advocacia Geral da União, as polícias, os advo-
gados, isto é, os operadores de direito. Abaixo será explicado brevemente a
função de cada uma dessas instituições.
[44] Direitos difusos são direitos comuns a um grupo de pessoas não determináveis e que ape-
nas se encontram unidas em razão de uma situação de fato. Por exemplo, o direito de todos os
cidadãos de não serem expostos à propaganda enganosa e abusiva veiculada pela televisão ou o
Direito pretensão a um meio ambiente sadio e preservado para as presentes e futuras gerações.
Os direitos coletivos são direitos comuns a grupo determinável de pessoas, como uma entidade
associativa – um sindicato de trabalhadoras domésticas, por exemplo - ou aquelas que possuem
uma relação jurídica base estabelecida com a parte contrária, como um grupo de compradores
de apartamentos de uma mesma imobiliária.
222
Continuando na tarefa de definição dos órgãos do sistema de justiça, temos
ainda a Advocacia Pública. A Advocacia-Geral da União (art. 131, CF) é a ins-
tituição que representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-
-lhe, ainda, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder
Executivo. Há ainda as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (art.
132, CF) com as mesmas atribuições de representação e assessoramento nas
suas respectivas esferas federativas. Em alguns municípios também existem
Procuradorias com a mesma função, mas não há disposição constitucional
acerca das mesmas[45]. Há ainda os advogados da administração pública direta
e indireta, também sendo denominados Advogados Públicos. Por fim, temos
os defensores públicos responsáveis pela orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
nos dizeres constitucionais. A Defensoria Pública se organiza em Defensoria
Pública da União e dos Estados.
223
Federal, Polícia Rodoviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos
de Bombeiros Militares.
224
de diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro no ensino
de História (Art. 242). (JACCOUD, 2009, p.27-29).
Assim sendo, a Constituição Federal pode ser entendida como marco jurídico
no que tange à garantia de Direitos e ao combate ao racismo como política de
Estado no Brasil[46] (JACCOUD ET ALLI, 2009, p. 271). Além disso, ela reconhece
uma dimensão material da igualdade e da liberdade, não se restringido ao
entendimento desses direitos de acordo com a visão liberal dos direitos fun-
damentais, uma vez que prevê diversas medidas positivas para a consecução
desses direitos.
225
da iniciativa – a Década Internacional dos Afrodescendentes, com foco na
inclusão racial[48].
Esse arcabouço jurídico demonstra que está entre um dos objetivos do Estado
brasileiro e, portanto, dos seus poderes constituídos a busca pela igualdade
racial, pelo combate à discriminação racial. Assim sendo está também entre os
objetivos do Judiciário e, em sentido mais amplo, do sistema de justiça acima
definido, o combate à desigualdade racial. Entretanto, o que se tem visto é um
sistema de justiça que, ao contrário, vem reforçando a desigualdade. Abaixo,
falaremos mais sobre o tema.
De acordo com Guimarães (2004), pode ser afirmado que a reprodução das
desigualdades raciais se articula com três diferentes processos: na formação e
atribuição de carismas, algo que não se limita apenas ao racial, mas que atinge
praticamente todas as formas de identidade social; no processo político de
organização e representação de interesses na esfera pública; e terceiro, na
criação de constrangimentos institucionais que funcionam como verdadeiros
mecanismos de retroalimentação.
226
Esses constrangimentos institucionais podem também ser identificados com
o conceito de racismo institucional[49]. Embora teoricamente neutros, as regras
e fazeres institucionais diariamente constroem e rearticulam a desigualdade,
seja pela falta de visibilidade de diferentes formas de vida, seja pela construção
de empatia com diferentes identidades, seja pela falta de representatividade
ou pelos constrangimentos burocráticos que engendra.
Estão disponíveis alguns dados e atos que demonstram que o sistema de justiça
tem sido uma dessas instituições que tem funcionado como um sistema eficaz
de manutenção e reprodução do racismo, tanto por suas regras pretensamente
neutras de ingresso na carreira, quanto pelos ritos e costumes para o acesso
à justiça que sistematicamente exclui uma parcela da população ou, ainda,
pela negligência e ineficácia diante de níveis de violência racial exacerbado.
227
jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes
violentas no país. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10%
dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios.
228
e esse índice tende a crescer, conforme as pesquisas voltadas ao tema. 40% dos
presos no Brasil são presos provisórios, isto é, pessoas que ainda não foram
julgadas e nem condenadas.
-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgados.ghtml
229
Assim como as vítimas desse sistema têm cor e classe, têm cor as pessoas
que o dirigem. Sobre a composição da carreira, o processo seletivo adotado,
pretensamente neutro – os concursos públicos – vem sistematicamente
produzindo o resultado perverso de favorecer um mesmo perfil de candida-
tos que, em geral, são aqueles que não pertencem e nunca pertenceram aos
grupos sociais excluídos e marginalizados. Há relatos públicos de perguntas
preconceituosas feitas a candidatos no momento da entrevista oral[53]. A
magistratura brasileira é composta majoritariamente por homens. Segundo
os números preliminares do Censo dos Magistrados, realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça, 64% dos magistrados são do sexo masculino. Eles che-
gam a representar 82% dos ministros dos tribunais superiores. Em relação
à composição étnico-racial da carreira, juízes, desembargadores e ministros
declararam ser brancos em 84,5% dos casos. Apenas 14% se consideram par-
dos, 1,4% pretos e 0,1%, indígenas. O censo teve participação de 60% (170,7
mil) dos servidores do Judiciário e de 64% dos juízes (10,7 mil).
230
Vale dizer que, recentemente, tanto o CNJ quanto o CNMP tiveram papel impor-
tante na adoção de ações afirmativas[55], que eram constantemente cobradas
pelos movimentos sociais negros brasileiros protagonistas na adoção desse
tipo de medida no Brasil. Por se tratar, entretanto, de medidas ainda recentes[56],
pode-se dizer que o sistema de justiça é composto e pensado institucionalmente
por um grupo muito específico de pessoas: homens brancos, heterossexuais,
cristãos e casados, como numa atualização de critérios de participação dos
“homens bons” do Brasil Império.
[55] De acordo com Joaquim Barbosa (2001), as ações afirmativas são como políticas públicas
e/ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à
neutralização dos efeitos da discriminação. Elas podem ser relacionadas à discriminação racial,
de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Ver em BARBOSA, Joaquim.
Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.
[56] As cotas na magistratura foram estabelecidas em 2015 pela Resolução CNJ n. 203, com
reserva de 20% das vagas para candidatos negros, com o objetivo de reduzir a desigualdade de
oportunidades para a população afrodescendente na Justiça brasileira. O Plenário do Conselho
Nacional do Ministério Público (CNMP) aprovou, no dia 13 de junho, por maioria, duas propostas
de resolução que instituem, respectivamente, reserva aos negros de 20% das vagas nos concursos
públicos para provimento de cargos efetivos no CNMP e de ingresso nas carreiras do Ministério
Público brasileiro.
231
instituições tanto do ponto de vista da composição de seus membros quanto
do ponto de vista do seu ideário de justiça e seus reflexos no serviço que essa
instituição entrega, isto é, da garantia de direito aos cidadãos.
Nesse sentido, é preciso que esse sistema de justiça opere na criação e legiti-
mação de um sistema de crenças e valores, direitos e obrigações em relação à
cidadania (JELIN e HERSHBERG, 1996). Essa unidade de valores é especialmente
importante num país que se habituou à desigualdade social (e racial) de tal
forma que naturalizou a existência de indivíduos como membros do grupo
dos subcidadãos, isto é, a existência de “ralé que não detêm e não merece
reconhecimento social e político” (SOUZA, 2003, p.47).
232
Referências
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e Justiça penal: réus
brancos e negros em perspectiva comparativa. Revista Estudos His-
tóricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 283-300, dez. 1996. ISSN 2178-1494.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/
view/2034>. Acesso em: 17 Set. 2018.
233
JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric. Human Rights and the construc-
tion of democracy. Em: JELIN, Elizabeth HERSHBERG, Eric (Org). Cons-
tructing Democracy: Human Rights, Citizenship and Society in Latin
America.Westview Press, 1996.
234
Diálogos com o “Realismo Marginal” e a Crítica à Branquida-
de: Por que a Dogmática Processual Penal “não vê” o Racismo
Institucional da Gestão Policial nas Cidades Brasileiras?
235
Evandro Piza Duarte[57]
1. Introdução
236
o discurso da dogmática processual e penal e, ao mesmo tempo, de denunciar
o papel dos juristas na reprodução dessa violência. Quase sempre voltamos
nossos olhos para a denúncia da violência praticada por um policial, mas não
para a violência dos juristas. Aquela violência, registrada em cenas absurdas,
somente pode existir porque há este outro tipo de violência, aparentemente
silenciosa. Os juristas estão aí, na sua grande maioria, para validá-la por
inúmeras estratégias.
Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocínio
escolhi um exemplo insuspeito de defesa dos Direitos Humanos e da pró-
pria racionalidade jurídica como possibilidade, Eugênio Raúl Zaffaroni que
propôs, há três décadas, uma resposta teórica, no plano da dogmática penal,
à violência racista do sistema penal na América Latina. Dialogo, portanto,
com uma posição à qual me filio e com um autor pelo qual tenho profundo
respeito. Estou empenhado em demonstrar como as perspectivas críticas
sobre a branquidade teriam sido um elemento importante para avançar em
alguns dos limites de sua proposta e como esses limites coincidem com parte
da percepção dos juristas que torna o racismo institucional invisível para a
dogmática (penal e processual).
237
racializados são convertidos em estruturas de raciocínio no aprendizado da
dogmática penal (o que chamo do uso do “exemplo” e do “caso”). Dialogo com
o conceito de revolução de paradigmas e de crise da ciência de Thomas Kuhn
para constatar a importância, novamente, da racialização das instituições que
sustenta um modelo de percepção jurídica sobre o racismo institucional das
práticas de gestão policial nas cidades brasileiras.
238
condição de sujeitos aos negros (como vítimas e como intelectuais). Trata-se
da manutenção, pela Academia, dos “privilégios da branquitude”, reprodu-
tora da mesma lógica de marginalização que estrutura o genocídio negro.
Prando (2017) aborda o campo da Criminologia Crítica a partir da influência
da branquidade, propondo a existência de “dois efeitos da lógica e métodos
brancos na produção do conhecimento do campo”: “Tratam em seus estudos
da categoria raça e não das relações raciais e invisibilizam a norma branca
que escreve, pesquisa e produz seus resultados no campo” (2017, p. 10).
Nesse contexto, Dora Lucia de Lima Bertúlio (1989) escreveu o primeiro tra-
balho acadêmico na área do direito, “Direito e relações raciais: uma introdução
crítica ao racismo”, relacionando sistema penal e racismo institucional, ini-
ciando a crítica dos usos da ideologia da democracia racial pelos juristas
brasileiros como forma de negar as demandas por reconhecimento das pes-
soas negras que são vítimas de atos de racismo. Sua obra, no entanto, reunia,
num momento em que sequer a teoria crítica da raça havia se organizado
no cenário americano, elementos da crítica marxista e liberal para passar em
revista as estruturas normativas constitucional e penal brasileiras, denun-
ciando os elementos racializados da cultura jurídica nacional. Seu trabalho
inspirou intelectuais e juristas negros e dissidentes. Porém, restou isolado
pelo poder acadêmico da branquidade. Somente as mudanças institucionais,
provocadas pelas lutas sociais por ações afirmativas, foi capaz de provocar
algumas fraturas nos espaços de visibilidade acadêmica e, sobretudo, novos
espaços de diálogo acadêmico. O silêncio dos juristas foi um tema central de
suas pesquisas. Um silêncio que, às vezes, é cuidadosamente articulado para
produzir efeitos de poder.
No âmbito de uma publicação relevante como esta, destaco que minha posição
crítica em relação à branquidade não se situa no plano dos prazeres da crítica
teórica e das honrarias acadêmicas. Como aprendi com a trajetória de vida
dessa intelectual pioneira, a crítica à branquidade não é um jogo de efeitos de
verdade e representação, mas uma luta cotidiana de resistência para produzir
novos arranjos nas relações de poder. Por tal razão, insisto na necessidade de
239
tematizar como a formação tradicional acadêmica da branquidade provoca
os efeitos concretos de violência sobre os corpos negros.[58]
Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocí-
nio, escolhi um jus-filósofo e criminólogo que tematizou em seus escritos o
racismo. Eugenio Raul Zaffaroni, Em busca das Penas Perdidas, em seu realismo
marginal, propôs uma alternativa à cultura jurídica penalista. Seu diagnós-
tico reconhecia o impacto do colonialismo (genocídio e racismo) do sistema
penal. Disso resultariam a hipertrofia das funções policiais normalizadoras, a
subsidiariedade do encarceramento nos processos de violência institucional,
a presença de práticas e discursos subterrâneos, acobertados por uma cultura
jurídica legalista e formalista incapazes de lidar com elementos empíricos
da realidade do sistema penal (ZAFFARONI, 1991).
240
consistentes com os recursos efetivamente existentes. A lei nunca será para
todos, porque o sistema penal se funda em mecanismos de reprodução da
desigualdade (ZAFFARONI , 1991).
241
internamente em nível de contradição com o próprio sistema, a fim de
obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização
operativa desses princípios (ZAFFARONI, 1991, p. 235).
242
comporta distinções e privilégios (sociais, raciais e de gênero). Para alguns a
normalização consiste em fechar os olhos e viver no mundo do direito. Para
outros a normalização consiste em ter seus corpos e suas vidas apropriadas
pelas práticas cotidianas de violência. Para alguns é o silêncio sobre o mundo,
para outros é o silêncio imposto pelo mundo.
243
como teoria racial, foi pensado em hierarquias internas ao grupo racial e
externas em relação ao demais grupos. (DUARTE et. al, 2016, p. 01).
244
suas propostas na sociedade e, desde esse ponto de vista, as sensibilidades
também são vistas como universais, mesmo quando trazem as experiências
situadas de um intelectual branco.
Entretanto, como disse acima, esses limites não são capazes de descartar a
profunda relevância de suas reflexões, a possibilidade de que elas sejam des-
locadas para novas dimensões e o fato de que suas propostas constituem uma
agenda política teórica e prática relevante. Raúl Zaffaroni foi contundente ao
reconhecer quatro elementos da relação do Judiciário com o processo genocida
na América Latina: a) que o discurso dos órgãos dos sistemas penais era um
“discurso underground” para “comprometidos”, reprodutor do velho discurso
racista-biologista; que era o discurso racista do século XIX, convertido em um
saber para iniciados e em fragmentos que compunham o imaginário dos juris-
tas em sua dimensão prática; b) que esse discurso era na verdade o discurso
político usado pelas elites locais para justificar sua posição de hegemonia (o
que nos lembra que ele permeia as diversas dimensões de interpretação do
direito, administrativo e constitucional); c) que o judiciário mantinha com
o aparato policial uma relação marcada por aquele imaginário racista, pois
eles são compostos por grupos distintamente racializados (uma maioria
branca e outra negra); d) por fim, que nos meios universitários, repetem-se os
discursos teóricos centrais (gerados para racionalizar um exercício de poder
dos órgãos de nossa região marginal) e, de outro, o discurso dos órgãos dos
sistemas penais degrada-se em um “discurso underground” para “comprome-
tidos”, expressando publicamente um saber discursivamente contraditório e
confuso, ao qual o autor designa de “atitude”. (ZAFFARONI, 1991, p. 79)
245
nais ou acessar as imagens de violência policial, de matanças nos cárceres,
da condição de indignidade humana de todas as práticas penais. Ao mesmo
tempo, apontou dois elementos centrais para compreender a continuidade
de um sistema penal que, de fato, está deslegitimado: o papel da mídia e o
papel da formação jurídica, vinculando-os aos mecanismos de reprodução
do colonialismo (ZAFFARONI, 1991).
Todavia, considero essa resposta insuficiente. Por que nós vivemos numa
cultura jurídica cega aos fatos mais elementares da vida social? Num diálogo
mais direto com esta coletânea: por que os juristas não tematizam a vida das
pessoas negras e os problemas advindos do racismo institucional?
Bertúlio (1989), Duarte (1997), Flauzina (2008) e Goes (2016) têm insistido que
a hierarquia racial e a produção do genocídio do povo negro são a chave
explicativa da diferenciação entre os discursos de proteção e de violência no
âmbito do direito. Zaffaroni (1991) tentou descrever as diversas “camadas” de
discursos que integram nosso sistema (discursos fragmentados, discursos
subterrâneos, discursos teoricamente degradados).
[61] Entrei no curso de direito em 1989 e comecei minhas atividades de professor em 1995.
246
social. Acho que isso faz sentido por razões distintas, pois o grupo branco e os
intelectuais negros isolados, com algumas exceções, fugiam da posição racial
no debate. Para os estudantes negros, falar de pobreza era buscar, muitas vezes,
uma experiência pessoal, mas também uma forma de alcançar um ponto de
vista universal, de falar incluindo a sensibilidade suposta do outro, de tema-
tizar a desigualdade sem implicar-se pessoalmente em dimensões subjetivas,
resultantes de experiências dolorosas. Para o grupo de estudantes brancos,
“não falar” é um lugar confortável para quem tem privilégios ou que pretende
esconder uma marca de origem naquele local privilegiado. A propósito, certa
vez entrevistei um advogado negro que havia sido reprovado três vezes na
prova oral em concurso para juiz. Ao ser perguntado se tinha sofrido racismo,
apresentou alguns atos de discriminação ao longo de sua vida. Porém, no
momento em que o tema das provas orais apareceu, sua negativa tomou a
forma de uma contrariedade profunda, inclusive, corporal: “Se eu achar que
foi racismo, daí não posso mais fazer a prova, desisto, entende?”
247
as dimensões públicas de um problema são transformadas rapidamente
numa dimensão pessoal e privada, em tom acusatório, ainda que o discurso
genérico não contenha uma acusação. Essa assunção do problema como culpa
pessoal não ocorre comumente nos espaços em que discutimos desigualdade
de renda ou uma inadequação sistêmica, aqui todos os privilégios raciais são
ocultados. A estratégia de crítica aos discursos que denunciam a existência
de desigualdades econômicas não é tomada como um problema de ofensa
pessoal. Há uma dimensão moral e subjetiva do debate sobre o racismo que
atinge as dimensões da sensibilidade e das experiências negadas no cotidiano,
um interdito importante.
Esse interdito, porém, não pode ser explicado por opções de estratégias dis-
cursivas desses estudantes. A ciência normal, em sua colonialidade, estrutu-
rou uma ideologia, a Democracia Racial (MOURA, 1998), que propõe retratar
(e resolver) as “relações entre as raças” como questões da vida privada. Casa
Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal (CG&S), publicado em 1933, foi a interpretação mais conhecida desse
ethos brasileiro que, de fato, era uma das facetas “conciliadoras” do discurso
das elites coloniais. Situou a identidade nacional na continuidade da herança
portuguesa do patriarcalismo e na plasticidade racial que estaria presente nos
engenhos de açúcar do período colonial. O problema racial era o “problema
negro”, ou seja, da presença do contingente negro na sociedade brasileira que
era identificado como a marca do atraso. A solução brasileira teria nascido
da miscibilidade dos portugueses, de sua capacidade de se misturarem, bio-
logicamente e culturalmente, fazendo “bom uso” das heranças africanas e
indígenas. Todavia, a bondade da solução da “valorização” de Freyre somente
faz sentido num contexto em que o direito de desconsiderar a participação
africana no plano cultural e material e de subordinar e excluir do plano dos
direitos pessoas negras estrutura o espaço público e, especialmente, a academia.
Ou seja, num ambiente racista, onde se prega a eliminação e a desvaloriazação
absoluta das pessoas negras, Freyre soa como inovador e bondoso.
248
Ademais, Freyre pensa em “relações entre as raças” como entidades biológico/
culturais ao invés de “relações raciais”, onde a dimensão do poder é central à
própria ideia de construção da percepção da “raça” (constructo social). Todavia,
a sua maior “virtude” acadêmica, que permitiu sua hegemonia acadêmica
na branquidade, foi não atacar as dimensões institucionais e estruturais
do racismo brasileiro. Ao invés disso, a obra de Freyre reconciliou os descen-
dentes dos senhores de escravos com o seu passado e, ao mesmo tempo, foi
utilizada como uma estratégia de silenciamento dos intelectuais negros. Ela
pretendeu colocar uma pá de cal sobre outras narrativas da violência colonial,
transformando a violência numa dimensão relacional entre o branco sádico
e o negro masoquista, e fez das vítimas do escravismo peças silenciosas da
construção de uma sociedade (BERTÚLIO 1989). A circularidade do argumento
da “democracia racial” é importante: “Se não há racismo no Brasil, porque
nossa sociedade não é racista, as denúncias dos intelectuais negros não
fazem sentido”. No espaço público, falar de racismo é incentivar o conflito e,
portanto, romper a unidade nacional. Essa ideologia garante o isolamento
da academia diante das demandas das pessoas negras. Todavia, a produção
de sentido dessa estratégia somente existe quando se consegue fechar bem
os olhos e os ouvidos, impedir o acesso e as vozes de intelectuais negros na
academia (ou contra ela) (DUARTE, 2011).
249
deslize e ao uso estratégico da democracia racial somente pode existir num
ambiente em que os brancos falam de si e para si, dominam a esfera pública
e, portanto, onde predomina, literalmente, a “opinião do homem branco
heterossexual médio”.
250
globais; 3. A branquidade é um lócus de elaboração de uma gama de práticas
e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou
denominadas como nacionais ou ‘normativas’, em vez de especificamente
raciais; 4. A branquidade é comumente redenominada ou deslocada dentro
das denominações étnicas ou de classe; 5. Muitas vezes, a inclusão na cate-
goria ‘branco’ é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e luga-
res, alguns tipos de branquidade são marcadores de fronteiras da própria
categoria; 6. Como lugar de privilégio, a branquidade não é absoluta, mas
atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação
relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial,
mas o modulam ou modificam; 7. A branquidade é produto da história
e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem
significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos.
Nessas condições, os significados da branquidade têm camadas complexas
e variam localmente e entre os locais; além disso, seus significados podem
parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis; 8. O caráter relacional e
socialmente construído da branquidade não significa, convém enfatizar,
que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e
discursivos. (FRANKENBERG, 2004, p. 312–313)
251
da dogmática “refinada” não tem utilidade para o trivial, mas apenas para a
exceção estrangeira. Esse olhar da cópia busca no real a repetição do que está
lá fora, mas desde que isso não estabeleça um confronto com a dimensão
prática e cotidiana.
O debate proposto por Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas, nas quais
as mudanças de paradigmas são considerados como episódios de desenvol-
vimento não cumulativos, em que um paradigma mais antigo é substituído
por um novo, incompatível com o anterior, tem sido central na criminologia
crítica para pensar os debates acadêmicos sobre o modo como pensamos a
punição e os sujeitos envolvidos em sua dinâmica social. Nesse sentido, o
autor propôs pensar o termo paradigma em dois sentidos complementares:
a) “toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos
membros de uma comunidade determinada;” b) “um tipo de elemento dessa
constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como
modelo ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para
[62] O argumento da comparação com as universidades estrangeiras tem sido defendido por
Carvalho (2003; 2006) e também foi constatado em minhas poucas experiências de internacio-
nalização.
252
a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (KUHN, 1996, p.
218). Logo, se o paradigma indicava as crenças de fundo, essas crenças eram
traduzidas no “quebra-cabeças” que orientavam a ação intelectual. As crenças
de fundo e, por assim dizer, as dimensões práticas dessas crenças, de modo
circular, definiam a própria comunidade científica. Ou seja: “Um paradigma é
aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma
comunidade científica, consiste em homens que partilham um paradigma”
(KUHN, 1996, p. 219).
Daí seu conceito de “revolução científica” para denominar “os episódios extraor-
dinários nos quais ocorrem essa alteração de compromissos profissionais.
As revoluções científicas são complementos desintegradores da tradição à
qual a atividade da ciência normal está ligada” (1996, p. 25.). Por sua vez, a
ciência normal “significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais
realizações científicas. Essas realizações são reconhecidas durante algum
tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando
os fundamentos para sua prática posterior” (1996, p.29).
“De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as
revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também
seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade cientí-
253
fica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente
na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anterior-
mente dirigida pelo paradigma. Tanto no desenvolvimento político como
no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar
à crise, é um pré-requisito para a revolução” (KUHN, 1996, p. 126).
Alessandro Baratta (1989; 1990; 1997) e Vera Regina Pereira Andrade (1995; 1997),
no âmbito da crítica criminológica, ao abordarem o tema, apresentaram as
transformações na ciência relativas ao esgotamento das perguntas centrais do
paradigma etiológico e o desenvolvimento do paradigma da reação social. Ao
mesmo tempo, demonstraram como o paradigma etiológico não tinha uma
sustentação meramente interna, pois ele era responsável pela consolidação
de uma ideologia mais ampla “a Ideologia da Defesa Social”. Logo, no sistema
penal os “saberes penais” eram elementos da prática interna dos juristas (a
comunidade científica) e, no mesmo passo, da reprodução ideológica do
sistema que passava pela formação acadêmica (as universidades) e, ainda,
pelo acoplamento do sistema à reprodução ideológica social (especialmente
pela mídia).
254
si a árdua tarefa de iniciarem seus textos num duplo movimento: há ensaios
de se valer das experiências de outros países ou de criar novos marcos gerais à
força da urgência que, em sua urgência, vive na precariedade. A precariedade
do lugar institucional acadêmico é, de fato, uma posição determinante para
aqueles que habitam a precariedade produzida e reproduzida nos poderes
da branquidade que domina e molda as instituições.
Habitar entre as fronteiras, todavia, pode ser uma virtude (COLLINS, 2016).
Valho-me do exemplo de Thula Pires, que avança na possibilidade de uma
outra perspectiva criminológica em “pretuguês”, utilizando-se dos textos de
Lélia Gonzalez, outra intelectual negra excluída dos espaços acadêmicos da
branquidade:
255
cas dos profissionais de uma ciência serão sempre revistas de modo racional.
Porém, isso seria verdadeiro em todos os contextos?
256
as sensibilidades articulam-se com as crenças e as soluções. Obviamente, não
descarto a importância das ideologias como a ideologia da defesa social e o
punitivismo. Porém, o objetivo é compreender a articulação da produção do
silêncio e da decisão no “quebra-cabeças” dos juristas vinculados à operati-
vidade do sistema penal.
257
pobres. O exemplo é o caso do náufrago que durante dias sem comer chega
em terra e invade a casa na praia, mas não é a mãe negra que furta leite em
pó ou fraldas para sua filha. Nessa tradição, o exemplo fala de um real imagi-
nado para não falar do real que está por toda parte, ao redor da sala de aula
(PONTE CARVALHO, DUARTE, 2018; DUARTE, 2017; DUARTE, KALKMANN, 2018;
DUARTE, QUEIROZ, COSTA, 2016).
No ensino de tradição inglesa, o caso tem dois usos bem conhecidos. O caso
de estudo empírico e o caso jurídico. O caso jurídico parece seguir o sentido
oposto, parte do inusitado da realidade e, ao ser estudado, fornece uma nova
dimensão não reconhecida dos casos anteriores. Ele alarga o sentido, pois
há um novo olhar sobre o real (DWORKIN, 2007). O caso tem sua relevância
construída pelo poder de decisão de uma corte formada por aqueles mesmos
senhores do exemplo. No caso, a sensibilidade que alarga o olhar, o restringe ao
mesmo tempo. A Suprema Corte Americana, ao longo de sua história, decidiu
inúmeras vezes sobre casos nos quais o racismo era o tema central, sem jamais
tocar no assunto e, quando o fez, construiu o belo conceito de diversidade
das instituições sem questionar o próprio poder da branquidade (WARE, 2007)
resultante do colonialismo e da escravidão (DUARTE, QUEIROZ, 2017).
Por sua vez, o caso de estudo empírico nos leva ao poder acadêmico que, assim
como o poder jurídico, se organiza em bases semelhantes. Os conceitos de
interesse e de visão de mundo têm servido para demonstrar como os estudos
empíricos e as rupturas no campo correspondem a influências externas e
a mudanças institucionais que transformam as pautas de pesquisa acadê-
mica. Porém, a ideia de prova empírica exerce um outro poder fundamental,
semelhante ao do precedente, pois quem se propõe inovar em algo no campo
científico tem a seu desfavor o acúmulo histórico da ciência branca colonial
europeia. A prova empírica encontra sua validação na capacidade de se rela-
cionar a outras provas e, assim, de modo encadeado, falar mais do mesmo e
para os mesmos que dominam as linhas de pesquisa e os estudos anteriores.
258
Quando se considera a crise da dogmática (ANDRADE, 2007)[64] processual penal,
percebe-se que ela somente não é mais evidente porque uma de suas estruturas
centrais de legitimação é a própria definição do âmbito de abrangência de
suas contradições internas. A leitura de obras introdutórias de processo penal,
inclusive algumas do espectro crítico, demonstra que o esforço discursivo do
campo está em organizar conceitos, percepções, recomendações práticas, etc.
a partir do reconhecimento da necessidade de provocar um equilíbrio entre
o direito de punir estatal e o direito de liberdade dos indivíduos. Desde esse
ponto de partida, ora se agrupam os que pretendem, de modo mais truculento
ou mais envernizado, defender a supremacia da necessidade da punição
(interesse da sociedade, da coletividade, público etc.) ora aqueles que apon-
tam para a necessidade de estruturar a punição racionalmente, produzindo,
neste caso, conceitos que garantam os direitos fundamentais dos acusados.
Na sua aparente contradição, disputam o campo dentro dessas fronteiras
onde ressurge o poder de punir, legitimado por suas funções de segurança,
quer da sociedade, quer dos indivíduos (ou de outras abstrações que lhe sejam
correspondentes). Mas como poderia ser diferente? Em ambos os polos está a
representação do Estado como monopólio legítimo da violência, cumprindo
o seu papel de conter a violência social e tornando legítimo, mediante o res-
peito aos procedimentos, o próprio uso da violência.
[64] Como argumenta Vera Andrade: “A Dogmática Penal é um dos desdobramentos discipli-
nares da Dogmática Jurídica (que deita raízes na Escola histórica, como Dogmática do Direito
privado) e, como tal, é o modelo de Ciência do Direito Penal que se consolidou desde finais do
século XIX na Europa ocidental (especialmente desde Alemanha e Itália) e se transnacionalizou,
sendo posteriormente recebido em outros Estados da Europa continental (Espanha, Portugal,
Grécia, Holanda...) e da América Latina (Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela...) e assu-
mindo então o estatuto de um paradigma, com uma marcada vigência histórica no centro e na
periferia da modernidade – o que aponta para um potencial universalista do paradigma que lhe
permite funcionar contextualizadamente e fora do lugar de origem. No Brasil é recepcionado
pela comunidade de penalistas desde as primeiras décadas do século XX, por influência princi-
palmente de Arturo Rocco e Vincenzo Manzini, e, por consequência, do Código Penal italiano de
1930, influenciando o Código Penal brasileiro de 1940”. (ANDRADE, 2007).
259
A racionalidade dessa dogmática processual penal, portanto, é sustentada pelo
mito do Estado de Direito que, como mito, não é debatido em sua historicidade
concreta, mas produz efeitos de verdade, ao ser tomado como realidade. Que
Estado de Direito é esse forjado a partir da guerra colonial contra sociedades
inteiras, instrumento de escravização, de desumanização de sujeitos, de apos-
samento de corpos, de expropriação de terras, de aniquilamento e apropriação
de culturas? Que Estado de Direito é esse, desde sempre, apropriado privada-
mente por elites econômicas racializadas que reproduzem seus privilégios
(da branquidade e da colonialidade) tanto na composição das instituições
quanto no monopólio do discurso sobre o passado e o presente das disputas
sociais por direitos? (DUARTE, QUEIROZ, COSTA, 2016; FLAUZINA, 2008; DUARTE,
2002; CARVALHO, DUARTE, 2017; FRANKLIN, 2017; NOVAES, 2017; SANTOS, 2016;
DUARTE, SCOTTI, CARVALHO NETO, 2015; FREITAS, 2016; CALAZANS et al, 2016).
[65] Alessandro Baratta afirma: “Um esforço conjunto de fantasia da parte dos juristas e de
imaginação coletiva possibilitaria emancipar a cultura da política da cultura do penal. Esse
esforço deve visar uma releitura radical de todas as necessidades e de todas as emergências,
através do sistema dos direitos fundamentais e da arquitetura normativa da Constituição. Não se
trata simplesmente de desenhar o direito penal da Constituição, mas sim de redefinir a política
segundo o desenho constitucional, como política de realização dos direitos” (BARATTA, 1997).
Nesse sentido, vejam-se: (ROSA, 2014; CARVALHO, 2004.)
260
Como tem deixado evidenciado o “realismo marginal” e a “crítica à branqui-
dade” a Luta pelo Direito não deveria ser intuitiva. E ideologicamente nunca é
(IHERING,2009).[66] A hegemonia cultural[67] presente na definição dos problemas
com os quais a dogmática processual penal deve se ocupar aproxima, mais
do que distancia, os dois extremos em disputa pela definição do “equilíbrio”.
A composição das universidades, das revistas especializadas, dos congressos,
dos espaços de “reprodução ideológica do sistema” (BARATA, 1990, p. 34) inclui
um treinamento para a defesa e para a crítica do sistema. Não significa que a
defesa de um ponto de vista punitivista e de outro garantista sejam idênticos.
Não o são, com certeza. Todavia, há muito a dizer sobre o silêncio em relação a
formas cotidianas de violência. Não é por acaso que no campo da dogmática
processual penal as ficções jurídicas são tão fantasiosas quanto ambivalentes.
Num dia o excelentíssimo Ministro da Corte Constitucional acorda garantista
para, ao final do dia, sonhar-se punitivista. De fato, faltam adjetivações para o
caráter delirante de muitos dos esquemas mentais utilizados. De igual modo,
novas percepções sobre a realidade e tentativas de redefinição das fronteiras
são rapidamente reapropriadas em modas acadêmicas, do garantismo ao
garantismo de escritório (ANDRADE, 2007), do abolicionismo ao denuncismo
acadêmico de redes, da crítica radical ao auditório radicalmente constituído
pela audiência socialmente privilegiada, etc.
[66] Veja-se o caráter privatista e elitista que ela comumente recebe a partir da obra de Ihering
(2009).
[67] Uso o conceito de hegemonia a partir Gramsci, que significa a preponderância da persu-
asão sobre a coerção na construção das relações interativas entre indivíduos. Como argumenta
Carlos Nelson Coutinho: “Gramsci articula explicitamente a hegemonia com a obtenção do
consenso, distinguindo assim da coerção enquanto meio de determinar a ação dos homens”.
(COUTINHO, 1989, 67-68).
261
dentes sem respostas técnicas, sem diagnóstico. No mesmo passo, os grandes
debates da dogmática processual situam-se em problemas que constituem
violações fundamentais graves, mas que, quase sempre, não se dirigem aos
graves problemas cotidianos para a população. O que dizer da doutrina
(garantista) da exclusão da prova ilícita que pouco ou nada diz sobre o direito
mais elementar do cidadão de estar no espaço público? Fala-se em violação
da intimidade nas interceptações telefônicas, mas nada sobre o baculejo, o
tapa na cara, o desce e encosta todo mundo na parede (WANDERLEY, 2017).
O que dizer da doutrina (garantista), que se ergue contra a possibilidade
do uso do inquérito policial como elemento de prova, mas silencia sobre as
investigações realizadas diuturnamente pelas polícias militares? Fala-se do
inquérito como se a violência hoje nas periferias se situasse nas delegacias,
fechando os olhos ao fato de que os bairros da periferia se transformam em
zonas de guerra nas quais repressão, juízo e execução estão num contínuo
de violência, ali na cara dura. Fala-se em liberdade de expressão enquanto as
polícias transformam as periferias em áreas de exceção, nas quais se impõe
toques de recolher, estratégias de intimidação e repressão (como o aumento
das revistas, prisões, presença ostensiva e criminalizadora) quando há mani-
festações populares (como bailes, casamentos, festas etc.) (REIS, 2001; AVELAR,
2016; BATISTA, 2009).
262
uma culpa, por parte de um poder que não se submete às regras jurídicas,
mas tão somente busca validar a posteriori suas opções de controle social. O
inquérito não começa nas delegacias, começa nas ruas, na gestão racializada
dos espaços na cidade.
[68] Bourdieu define habitus como um: “sistema de disposições socialmente constituídas que,
enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador
do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”. (BOURDIEU,
263
realidade. A ladainha silenciosa é sempre a mesma. O juiz padrão olha atencio-
samente os papéis e copia atenciosamente seus arquivos de jurisprudência,
tem horror ao que está ali na rua, diante do Fórum. Não precisa fazer força
para ser inquisidor. Seu papel é mais simples, precisa apenas dizer para si e
para o mundo que não há inquisição alguma matando pessoas todos os dias.
O irretocável trabalho das polícias é a face dinâmica das mãos sempre limpas
dos juízes. Diante do aparato policial que entrega os corpos e os discursos de
culpabilidade, as delegacias e os inquéritos apagam as manchas de sangue,
formalizando os discursos, e o sistema judicial valida a “fraude processual”.
2007, 191).
264
5. Considerações Finais
A proposta desse texto foi refletir sobre a violência contida no discurso jurí-
dico quando ele trata uma parte importante da realidade social: a gestão
policial nas cidades e a gestão do sistema carcerário. Tentei demonstrar como
os limites “jurídicos” para tratar desse problema não são jurídicos, mas do
modo como a branquidade impacta os arranjos institucionais, define pautas
políticas, formas de aprendizado e subjetividades.
265
ou desonestos para dentro das corporações. Logo, há uma imunização dos
espaços da branquidade que correspondem, justamente, aos locais de maior
prestígio, capital social e econômico, bem como maior poder institucional de
gerenciamento do sistema de segurança e para alterar os padrões coletivos
de comportamento (DUARTE & FREITAS, 2018).
Porém, o mais relevante nesse cenário é o modo como o Poder Judiciário segue
se apresentando com as “mãos limpas” diante do genocídio, quando, de fato,
suas mãos estão sujas de sangue.
266
Referências Bibliográficas
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controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997.
AVELAR, Laís da Silva. “O pacto pela vida, aqui, é o pacto pela morte”:
o controle racializado das Bases Comunitárias de Segurança pelas nar-
rativas de jovens do Grande Nordeste de Amaralina. Dissertação. Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito Humanos e Cidadania da Univer-
sidade de Brasília, 2016.
267
_____. Por una teoría materialista de la criminalidad y del control so-
cial. Estudos penales y criminológicos. Espanha: Universidade de San-
tiago de Compostela, 1989.
268
Disponível em: http://www.soudapaz.org/upload/pdf/textocanoppc.pdf.
Acesso em 24 de março de 2017.
269
COLLINS, Patrícia. Aprendendo com a outsider within: a significação
sociológica do pensamento feminista negro. Em: Revista Sociedade e
Estado, p. 99-127, Volume 31, Número 1, Janeiro/Abril, 2016.
270
Ministério da Justiça (SENASP), 2014, v. 5, p. 81-120.
271
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
272
-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2017.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Trad. João de. Vasconcelos.
São Paulo: Martin Claret, 2009.
MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi L. de. & SWENSSON Jr., Walter Cruz.
Contra os Inimigos da Ordem. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
273
minológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 135, p. 541-562, 2017.
274
América Latina: um estudo a partir do julgamento do caso Norín Catri-
mán y otros vs. Chile pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Trabalho de conclusão de curso em Direito na Universidade de Brasília,
2015.
275
Racismo e Sistema de Justiça: Um Debate sobre o Modelo de
Controle das Polícias no Brasil
276
Racismo e Sistema de Justiça: Um Debate sobre o Modelo de
Controle das Polícias no Brasil[69]
Neste ensaio pretendo refletir sobre o papel das polícias, e, de modo particu-
lar, sobre as relações entre as polícias e a população negra no Brasil. Ao lado
de sublinhar as características da abordagem policial, gostaria de provocar
um alargamento da questão, destacando a dimensão violenta que estrutura
a sociedade brasileira e ressaltando a autorização social para práticas de
autoritarismo contra grupos sociais vulneráveis e historicamente excluídos.
[70] Felipe da Silva Freitas, doutorando e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Univer-
sidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual
de Feira de Santana.
277
Tomando emprestadas as palavras de Marilena Chauí podemos dizer que há
uma série de mecanismos jurídicos, ideológicos e culturais que impedem
a tematização da violência praticada pelo Estado e que apenas evidencia
aquela violência auto designada como do campo da delinquência, do desvio
e da criminalidade:
A violência não é percebida ali mesmo onde se origina, mas tematizada como
um acontecimento, um episódio, uma chacina, um massacre ou um caso de
execução específica e pontual. As abordagens usuais sobre a questão da vio-
lência no Brasil muitas vezes deixam de considerar sua dimensão estrutural
e privilegiam suas expressões episódicas e conjunturais.
Por outro lado, também é oportuno destacar que esta autorização pública se
dá por meio de inúmeras vozes que legitimam o Terror de Estado e, no âmbito
da segurança pública, recrutam homens (como policiais e como não policiais)
para matarem e morrerem numa guerra totalmente vocacionada a eliminar
negros(as). Uma guerra sabidamente incapaz de produzir segurança e uma
guerra destinada a eliminar pessoas, grupos e comunidades.
278
Vale ressaltar que as dinâmicas internas das polícias no Brasil são marcadas
por péssimas condições de trabalho e por formas assimétricas de organização
dos fluxos de funcionamento das corporações. Em pesquisa realizada em 2009
por Silvia Ramos, Marcos Rolim e Luiz Eduardo,[71] demonstra-se a reprovação
desse modelo militarizado até mesmo pelos próprios profissionais de segu-
rança pública (SOARES; ROLIM; RAMOS, 2009) que em sua maioria declaram
que não é adequada a vinculação da Polícia Militar ao Exército.
[71] Trata-se de levantamento realizado através 65 mil questionários, respondidos nos meses de
abril e maio de 2009, por policiais civis (4.720), militares (40.502), federais (215) e rodoviários federais
(333), peritos não ligados à polícia civil (360), bombeiros militares (5.957), agentes penitenciários
(4.312) e guardas civis municipais (7.731). Os questionários foram aplicados por meio virtual, para
o que se recorreu à Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP).
279
situações de desrespeito aos seus direitos trabalhistas (DURANTE; OLIVEIRA
JUNIOR, 2013, p. 142 - 143).
280
O “currículo oculto” e o “saber das ruas” são parcialmente validados nas
interações entre Aparato Policial e o Sistema de Justiça Criminal. De um
lado, a lei aparece como suficientemente “aberta” em suas hipóteses para
criar o espaço de “discricionariedade” do policial, de outro, a cultura jurídica
é suficientemente formalista para negar a possibilidade de observar os
padrões cotidianos de violência. Por fim, haverá aqueles casos em que os
juízes e tribunais “descobrem”, “surpresos”, a violência dos agentes policiais.
Esse modelo de “convivência” entre “padrões jurídicos” ambíguos (liberais e
autoritários) decorre de uma historicidade concreta do controle social em
que o racismo institucional é um elemento central das políticas públicas
empreendidas pelo Estado. A convivência entre escravidão e instituições
liberais durante quase um século propõe tal explicação (DUARTE et al., 2014).
281
Os mandatos de busca e apreensão coletivos[72], a condenação apenas com base
no depoimento da autoridade policial[73] e a entrada franqueada em domicílio
sem mandado judicial[74] são algumas das muitas manifestações judiciais que
alargam o mandato policial e ampliam o campo da discricionariedade com
que atuam estes profissionais. E, logicamente, não estou falando aqui que
tais standarts jurídicos operam do mesmo modo, estou dizendo que é a raça
que regula a aplicação ou não destes institutos!
[72] Trata-se de mandados de busca e apreensão “genéricos” expedidos sem a devida explicitação
da limitação do domicílio ao qual se refere, mas à designação genérica de uma região ou conjunto
de casas de uma determinada comunidade. A medida passou a ser bastante reivindicada pelas
autoridades policiais em operações realizadas no âmbito da intervenção federal na segurança
pública do Rio de Janeiro iniciada em fevereiro de 2018. A este respeito ver: (YAROCHEWSKY, 2018)
[73] Tal prática é recorrente no sistema de justiça brasileiro e, mesmo não encontrando amparo
no texto Constitucional, segue sendo aplicada, sobretudo em casos de apreensão em flagrante
com acusação de tráfico de drogas. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo,
encontra-se a Súmula 70 que versa sobre a admissibilidade de condenação criminal com base
exclusivamente em depoimentos policiais. A respeito do tema, ver: (CARVALHO; WEIGERT, 2018)
[74] Cuida da prática de entrada forçada em domicílio sem mandado judicial nos casos em
que verificadas fundadas razões que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante
delito. O expediente fora analisado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extra-
ordinário (RE) 603616/2015, quando ficou fixado que a validade do ato ficará condicionada à
apresentação de razões, a posteriori, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. A decisão do Supremo não mitigou
as sérias controvérsias sobre o tema e persiste entre os especialistas razoáveis questionamentos
à constitucionalidade das referidas operações.
282
e dos olhos piedosos da classe média – elimine quem tem que eliminar. O
que regula o policial que será ou não reprovado em sua ação não é “o que ele
faz”, mas “onde” e “contra quem” ele atua.
A questão que entra no jogo é que não é possível falar em controle da ação
policial ou de enfrentamento à violência policial se continuarmos operando
com os mesmos aparatos conhecidos: formação em direitos humanos, for-
talecimento das corregedorias de polícia ou das promotorias de controle
externo. Sem dúvida, estas instâncias e estratégias são fundamentais; no
entanto, qualquer mudança real e permanente só é possível se pensarmos
em alterações de natureza estrutural (desmilitarização, redefinição do man-
dato, delimitação da cadeia de comando e de responsabilidades) e isso só
pode ser efetivamente feito se arrolarmos a raça como elemento central na
compreensão e nos encaminhamentos do debate.
A raça é base do sistema de controle penal no Brasil. Foi o racismo que moldou
as instâncias de segurança pública e de justiça criminal; portanto, só a luta
negra é capaz de desmontar este esquema de poder e morte[75].
[75] Há uma ampla literatura sobre o tema no Brasil. Apenas a título de exemplo citamos:
(BERTULIO, 1989; DUARTE, 1998; FLAUZINA, 2018; FREITAS, 2016; PIRES, 2017)
283
apontar o direito como “fim” e não como “meio” das nossas batalhas cotidia-
nas?; c) como conferir à questão racial centralidade na compreensão e no
encaminhamento dos problemas do controle da polícia e da administração
dos conflitos na vida das cidades?
284
no entanto, é preciso convocar os vários atores institucionais que criam, legi-
timam e reproduzem esta barbárie. O Presidente que autoriza intervenção, o
professor de Direito que segue ensinando a dogmática cadavérica da segurança
jurídica, a Juíza que debocha das vítimas e difama quem foi assassinada, o
Promotor que pede prisão provisória sem o requisito legal, o defensor que
deixa de atender a vítima de violência ou que desacredita da mãe desesperada.
Todos são igualmente responsáveis pela violência policial e se beneficiam do
Poder Branco assentado em pilhas de corpos negros malcheirosos.
285
Referências
BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais - Uma in-
trodução crítica ao Racismo, Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal de Santa Catarina,1989.
286
FREITAS, Felipe da Silva. A violência real e as ciladas do punitivismo: re-
flexões sobre atividade policial e a Lei n13.142, de 6 de julho de 2015. Em:
FREITAS, Felipe da Silva; FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro (Eds.). Discur-
sos Negros: legislação penal, políticas criminal e racismo. 1a ed. Brasília:
Brado Negro, 2015. p. 12–43.
RAMALHO NETO, Jaime P. Farda & cor: um estudo racial nas patentes
da polícia militar da Bahia. Afro-Ásia, n. 45, p. 67–94, 2012.
287
Racismo Institucional na Administração Pública Direta e
Indireta: uma afronta à Constituição Federal Brasileira
288
Francineide Marques da Conceição Santos[76]
289
direito constitucional de não apenas respeitar, mas fazer respeitar a lei maior,
utilizando-se dos mecanismos processuais previstos no texto constitucional,
qual seja, habeas corpus, habeas data e ação popular, incluindo-se o mandado
de segurança em tudo harmonizado com o due process of law, ou princípio
do devido processo legal.
[77] Agentes pertencentes aos quadros de empregados concursados das Empresas Públicas,
Sociedade de Economia Mista e Fundações Públicas.
290
do parlamento, constituído, majoritariamente, por grupos econômicos
beneficiários da indústria do medo. (REIS, 2005, p. 231).
Temos, com Sueli Carneiro e Michel Foucault (2002), que “o racismo é indis-
pensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a
vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde
que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT apud
CARNEIRO, 2005, p. 75) (grifos de agora).
291
lastreados por um projeto de Estado contaminado pelo racismo e machismo,
como foi recentemente publicizado na fala de Marielle Franco, vereadora do
Rio de Janeiro, executada juntamente com o seu motorista Anderson Gomes.
Essas são perguntas desafiadoras que nos fazem refletir sobre a sociedade
onde estamos vivendo e as raízes históricas de opressões que cumulam com a
perda da vida de centenas de milhares de pessoas negras. As tristes estatísticas
292
mostram que é a população negra que mais morre violentamente, vítimas do
feminicídio, de homicídios e por falta de assistência médica e atendimento
nas unidades de saúde. São as pessoas negras que mais morrem por tiros
de arma de fogo, são as mulheres negras as principais vítimas de estupros e
todos os tipos de violência recaem sobe os corpos negros.
São os corpos negros que as instituições racistas querem eliminar, pois o Atlas
da Violência (2017) mostra que a “cada 100 pessoas assassinadas no Brasil,
71 são negras.”[79] São os espoliadores da força de trabalho alheia: o racista, o
capitalista irresponsável e o machista que se servem da própria torpeza para
desrespeitar as pessoas negras, as sexualidades dissonantes, as culturas, as
religiões, as tradições que não sejam as hegemônicas, que são projetadas e
impostas pelas forças colonizadoras. São sempre essas forças colonizadoras
que querem dilapidar o patrimônio, subtrair vidas e derramar o sangue
negro. A luta social é árdua, intensa, triste quando se sabe que diariamente[80],
“São 63 por dia. Um a cada 23 minutos... A cada 23 minutos um jovem negro é
assassinado no Brasil”.
293
“abortadas pelos pais”, milhares de nascituros cujo “pai”, “o irresponsável”,
não comparece às suas obrigações paternas, causando insegurança social;
assim como o Estado abandona a sua população quando deixa de prover a
segurança pública.
294
Temos, ainda hoje, uma imensa dificuldade de lidar com temas raciais.
É impressionante, por exemplo, que o tema da biopolítica tenha se po-
pularizado nos últimos vinte anos e, não obstante, que obliteremos ou
ignoremos o debate iniciado por Foucault sobre o papel fundamental
do racismo de Estado para a constituição da biopolítica e na difusão do
biopoder (2017, p. 141).
É esse biopoder que trata de exaurir a saúde negra, de adoecer, de fazer desa-
parecer corpos negros, como se fossemos objetos descartáveis. Temos negada
a nossa dignidade. Até hoje se perpetua o pensamento colonizador que alia o
racismo a um machismo institucional causando-nos opressões interseccionais:
são as mulheres que têm seus direitos violados nessas situações. “Elas
são as principais vítimas. São tratadas como mães de traficantes, como
traficantes, como mães de presos, criminosas em potencial.” É um estigma
alimentado pelo racismo persistente e entranhado no Brasil. Nessa en-
grenagem, a seletividade penal da Justiça e da área de segurança pública
precisa ser considerada.
295
racista e sexista, como nos informam as estatísticas oficiais que estampam
o racismo de Estado, agindo contra mulheres negras, como denunciam as
organizações de mulheres, a exemplo do noticiado no site da Agência Pagu[81]
296
percebê-las como inseridas na temática aqui discutida acerca do racismo e
outras discriminações dentro da administração direta e indireta, ou seja,
pelo Estado brasileiro.
A narrativa daquele cotidiano corporativo que nos foi trazida pelo diretor,
Pola Ribeiro, me instigou a pensar se aqueles fatos foram intencionalmente
ali retratados como uma maneira de se dar visibilidade às discriminações e,
a partir daí, implantar ações para superar essas ocorrências com o mapea-
mento e o tratamento que possibilitem a (re)educação das pessoas. De outro
lado, observei que as cenas já fazem parte de um imaginário que não apenas
aceita, mas também reproduz, banaliza, naturaliza, faz “piada” com as situações
discriminatórias de racismo, homofobia, dentre outras que são vivenciadas
cotidianamente.
297
coloca em crise a crença da sociedade brasileira como democracia racial
exemplar para o mundo e desconstrói a mestiçagem como estratégia de
inclusão social e de alcance do desenvolvimento e do progresso nacional.
(CARDOSO, 2010, p. 227) (grifo nosso)
São braços de uma mesma raiz, árvore cujos galhos se tocam e se sustentam: o
machismo, o capitalismo, o racismo, a gordofobia, a lesbofobia, a homofobia,
os preconceitos de origem, classe, nível de escolaridade, a misoginia, a trans-
fobia e todas as opressões existem de forma clivada e, uma vez entrelaçadas,
pisoteiam as liberdades individuais e coletivas. Essas opressões se apresentam
em blocos coesos, andam juntas, mas nem por isso são sempre fáceis de serem
detectadas, pois se apresentam muitas vezes em faces variadas. Daí a impor-
tância de se pensar meios para combater essas situações discriminatórias
dentro e fora das escolas, casas, órgãos públicos, empresas. As violências são
muitas vezes silenciosas – como se estivesse tudo bem –, o crime é feito na
surdina, são olhares furtivos, “piadinhas” quase inaudíveis, risinhos, omissões,
sobrecargas de trabalho, oposição de obstáculos à ascensão profissional ou
até mesmo à simples realização do trabalho.
298
Por isso mesmo, metodologicamente, as narrativas biográficas são fontes
representativas do desafio aqui proposto: problematizar, em ambientes
corporativos, a ocorrência de casos que se amoldam às condutas e compor-
tamentos que tipificam o crime de racismo. Esse comportamento insidioso
não atua sozinho: faz-se acompanhar de outras discriminações, a exemplo
da gordofobia, da falta de equidade de gênero e das homo e transfobias.
Vários meios são empregados como instrumentos para a prática desse “crime
de racismo”, além dos tiros de arma de fogo: uso de expressões pejorati-
vas, emprego de palavras que desestabilizam a saúde emocional, discursos
embutidos nas “piadas” e “brincadeiras” que servem para escamotear a real
intencionalidade de discriminar, diminuir, infernizar, adoecer e, por fim,
expulsar a vítima do ambiente que o racismo considera não ser “apropriado
a certos tipos de gente”, como podemos ver na fala da personagem racista
do filme em comento, que se refere ao “escurinho do café” como pessoa “que
não sabe o seu lugar”.
A presença desses corpos “que não sabem o seu lugar”, como diz a persona-
gem racista do filme, apenas é tolerável quando estão a serviço do bem-estar
e da geração de lucros ao racismo. Apenas são “permitidos” em situações de
subalternidade, limpando-lhes as suas sujeiras, cuidando das suas crianças
sem salários à altura, lavando as roupas que vestem e que se apresentam tão
garbosos em seus colarinhos brancos (à custa do trabalho mal remunerado
de uma passadeira, certamente, uma mulher negra). Porque são geralmente
espoliadores da força de trabalho alheia, o racismo, o capitalismo e o machismo
se servem da própria torpeza. Desrespeitam as pessoas negras, as mulheres,
as sexualidades dissidentes, as profissionais do sexo, as pessoas aprisionadas,
as religiões de matrizes afro-indígenas, mas se servem, quando lhes convém,
de todas essas identidades excluídas.
Se lembrarmos mais uma vez Kabenguele Munanga quando nos diz que vive-
mos em uma “sociedade colonizada” (2008, p. 10) em que se foi implantado o
mito da democracia racial – que adota parâmetros colonialistas para explicar
uma “sociedade colonizada” que viveria “feliz da vida em um país de pardos,
299
mestiços como exemplo de miscigenação que deu certo” – damos conta de
que esse olhar “esquece”, “ignora”, “invisibiliza”, “apaga” a história brasileira
de que “pardos”, “essa linda mestiçagem”, são fruto de ações criminosas. São
fruto de milhares de estupros de mulheres negras e índias feitos pelos homens
colonizadores. Embora tenha sido descrita pela ótica do colonizador como
uma “coisa maravilhosa, um exemplo de harmonia entre raças”, sabe-se bem
que essa prática criminosa e irresponsável deu origem à existência histórica
de milhares de crianças abandonadas, “abortadas pelo pai”, pois não compa-
recem às suas obrigações patenas no provimento de condições dignas de vida.
300
no horário ela sempre achava uma picuinha, uma piadinha pra fazer,
uma implicância pra fazer.. ela... [...] “Maria tomou o café todo, a gordinha
comeu tudo” ficava sempre fazendo esse tipo de piadas, está acabando com
tudo e ficava sempre com aquele tipo de piada...e aquilo me machucava,
me incomodava não pelo fato de eu ser gordinha, mas pelo fato dela me
acusar de roubar comida por ser gorda, ela dizia, eu nunca roubei nada e
eu não precisava roubar comida, eu nunca precisei roubar comida se eu
sou gorda é porque tenho dinheiro para comprar um bocado de comida
e... era no ambiente de trabalho porque se fosse em ambiente que ela não
fosse minha chefe, se ela não fosse minha superior na hierarquia eu poderia
responder, [...] por ela ser uma chefe, uma superior, eu não podia responder
de uma maneira grosseira, eu tentava falar, mas ela não me permitia e
saia dando risada, ela não permitia ela me fazia chacota ela fazia piada,
ela me fazia de piada [...] ela me puxava pelo braço pra falar alguma coisa
para fazer piada, para que as outras pessoas rissem, e os outros não riam.
Ela sempre buscava uma picuinha pra contar que eu era gorda. (grifo nosso)
301
fazendeiros, latifundiários, “autoridades” que, para a manutenção dos seus
status, para o exercício desses “poderes” cuja “podridão” vem sendo diutur-
namente mostrada pelas mídias, podem agir, se comportar como se fossem
seres “acima do bem e do mal” e estivessem acima da dignidade das pessoas.
O racismo institucional, a gordofobia, a homofobia, que são propagados pelos
prepostos, massacram as suas vítimas, tirando-lhe a paz, o sossego. As vítimas
são estigmatizadas, tratadas com desrespeito com o fito de lhes desacreditar
a imagem, afetar-lhe a dignidade humana, de ferir o amor-próprio como se
pode constatar do trecho abaixo, em que Maria R., por ser gorda, é “acusada”
de roubar comida e se sente “acuada, constrangida”:
Houve outra pessoa que fazia piada comigo, piada comigo nesse mesmo
ambiente de trabalho, que o papel higiênico acabava eram várias pessoas
que usavam o banheiro. O banheiro era um só. A funcionária, a pessoa que
ia ao banheiro que via a quantidade que diminuía do papel higiênico...ela
questionava, “Maria foi ao banheiro, [...] está acabando o papel higiênico todo
302
[...]”...eram piadas bem pejorativas, do gasto do papel higiênico, e que eu
mais uma vez fui motivo de piadas. [...] Naquele momento eu precisava ser
reconhecida. Até porque eu atendia 6 telefones, atendia superintendentes
de todo o país, nunca houve queixa, reclamação, de um mal atendimento,
de algo que foi ineficaz, o meu trabalho estava ocultado por ser gorda. Isso
era irrelevante naquele momento, O fato de ser gorda não me impedia de
chegar no horário, realizar nenhuma das minhas funções. (grifo nosso)
303
Ocorreu que quando finalmente fui promovida, a supervisora me massa-
crava com o aumento de volume de serviços. Ela passava para mim o dobro!
O dobro do que passava para outros funcionários e o dobro do serviço que
repassava para a outra funcionária loura que estava no mesmo patamar
que eu naquele setor. Eu não tinha percebido. Sempre trabalhei tanto e
nunca, de verdade, nunca me preocupava qual a quantidade de serviços
fora passada para as demais pessoas. Eu chegava, pegava meus papeis, via
os trabalhos que tinha para ser feito e começava a fazer. Ficava exausta,
mas nunca reclamava diretamente por isso porque eu achava que o serviço
estava sendo distribuído por igual. Ledo engano! Eu estava extenuada. Eu
não conseguia fazer mais nada a não ser trabalhar. Eu não tinha energia. Eu
sempre fiz cursos, sempre fiz atividades físicas, mas ali naquelas condições
eu não conseguia. Certo dia, a funcionária que distribuía o serviço disse
para mim: está demais, viu? Por que essa quantidade tão grande para a
senhora? Eu falei não...está difícil para todos nós. Ela respondeu: a senhora
não está vendo...está vindo o dobro para a senhora! Ela está jogando duro,
sem pena! Eu mesma já estou com raiva disso. Então, né, Eu fui perguntar
aos outros colegas e realmente: a chefe passava o dobro do serviço para
mim! E, realmente, ela tinha um candidato (homem branco) para ocupar
a vaga que eu passara a ocupar. Foi horrível. Fiquei um bagaço com aquilo
tudo. Já andava tão cansada de tanto serviço e ainda aquilo. Fiquei acabada
com aquela situação. [...] Eu não tive reação, exceto vergonha daquilo tudo.
Depois ela saiu rindo e foi sentar na mesa dela. (grifo nosso).
304
Houve uma outra funcionária também que... em outro setor que fazia
também muita piada era uma constante, [...] eu fiquei em um nível de
stress elevadíssimo.... tinha outros tipos de perseguição, além do fato de
eu ser gorda, dizendo que eu ficava horas dentro do banheiro porque eu
sempre andei muito bem maquiada, recebia elogios por minha maquia-
gem impecável! por isso nunca retocava maquiagem no banheiro. [...]eu
fiquei depois que eu sai nessa paranoia mesmo em casa eu ia no banheiro
rápido cronometrando eu fazia xixi 1:06 seg, eu sabia dizer os horários, eu
decorava os dias e os horários que eu fiz xixi, eu lembro que numa sexta
feira dia 07 de agosto 2015, eu fiz xixi às 05:20, eu decorava, eu sabia quantos
xixi eu fazia por dia, eu fiquei paranoica, eu tinha que dar satisfação do
meu xixi, eu comecei a pesquisar de quantas vezes é normal fazer xixi. Eu
fazia xixi três dias. Eu fiquei paranóica. [...]. Eu descobri essa doença pra-
ticamente quando eu saí porque eu tive uma crise de nervoso de stress, o
médico desconfiou que tinha alguma coisa errada com a minha coluna e
a ressonância detectou na lombar. (grifo nosso).
Outra coisa: ela não lhe elogia, mesmo com resultados positivos. Mas pra
outras pessoas ela elogia e escreve: “Parabéns!”. Eu vejo. Eu perguntei: por
que será? A funcionária respondeu: acho que é porque ela ficou com raiva
porque o candidato dela perdeu a vaga pra senhora, ou porque a senhora é
boa demais, mesmo! Consegue fazer esse trabalho todo e ela nunca vê!? E por
que o da outra funcionária que ela gosta ela vê e fala bem alto com o elogio
pra todo mundo ouvir?! Isso é discriminação com a senhora. (grifo nosso)
305
eu estava entrando na agência ao lado dessa funcionária, eu e essa fun-
cionaria do meu lado, e o cliente veio: minha gerente, veio falar comigo e
aí eu falei, não sou a gerente, é ela. E ela falou: Sou eu. Por que você acha
que essa gorda é a gerente? Então eu fiquei ... o que tem a ver gorda com ser
gerente?... gerente não pode ser gorda?.... (risadas) mas é isso. Como existia
uma questão de hierarquia eu deixei ela e fui fazer o meu trabalho. Claro,
sempre informando à empresa tudo o que estava ocorrendo comigo. Em
todos os momentos comigo. Eu sempre notificava à empresa esses tipos
de situações que não eram adequadas. (grifo nosso)
Alice F., mulher negra, relata que possuía, “há muito tempo”, os requisitos
para ascensão profissional, mas mesmo tendo surgido várias oportunidades,
nunca era promovida.
306
Mentes colonializadas gerando padrão de injustiças, negando direitos, obsta-
culizam o acesso à ascensão profissional contaminando o ambiente de traba-
lho com doenças decorrentes das suas ações e omissões, como relata Alice F:
307
a ser acintoso! Ele chamava as pessoas em tom alto. Eu ouvia e todas as
pessoas ouviam, mas a mim...ele nunca chamou. Nunca. Trabalhávamos
juntos, no mesmo setor. Eu só posso admitir que era pela minha cor. Tam-
bém pode ser porque sou lésbica. Nunca espalhei, também nunca neguei.
E eu já tinha ouvido algumas vezes, ele fazer tipo piadinhas baixinho com
uma colega que era lésbica. Era covarde. Na frente era educado, parecia
gentil, mas quando abaixava a cabeça...fazia troças com as pessoas. Era
sarcástico e falava piadinhas racistas e homofóbicas. Eu ouvia porque
estava silêncio e muitas vezes só tinha eu e ele trabalhando no setor.
Talvez fizesse de propósito para que eu ouvisse mesmo...não sei direito.
Algumas vezes foi injusto comigo, mas sempre relatava situações em que
ele próprio sofrera injustiça por parte de um chefe. Também ocorreu de
outras 2 colegas negras virem para este setor.... era vergonhoso... ele tam-
bém nunca as chamava. Só chamava uma outra do setor contíguo que era
negra (mas o cabelo era alisado. Como dizia outra funcionária do setor: ela
pensava que era branca) e era mesmo nível salarial dele, mesmo patamar
hierárquico que esse gerente. Pelo menos eu nunca vi, exceto quando não
tinha jeito, era tipo aniversário de alguém que aí a gente era chamada e
eu, por respeito a quem estava aniversariando, ia. Não por ele ter chamado,
mas geralmente quem estava organizando a confraternização. Veja... eu
não tinha qualquer interesse em almoçar com ele, mas aquilo era uma
discriminação explícita. Não apenas para mim, mas também para as outras
colegas negras que estavam trabalhando ali, né? (grifo nosso)
Esse poderio sente-se como se fossem “reis’ e “rainhas”, mas de uma estirpe
tirana, que maltrata a sua própria aldeia, como podemos ver a insídia que
nos narra Maria B. e as outras narrativas quando nos falam sobre os assédios
sofridos. A situação de maior vulnerabilidade social das vítimas, identidades
que estão “fora da caixinha”, do padrão heteroeurobranconormatizado parece
atiçar as agressões que não se contentam em espezinhar a autoestima, o
amor próprio das vítimas, colocando obstáculos à ascensão profissional,
como narra Aline F:
308
E o pior... nomeavam pessoas que sequer tinham os requisitos que eu já
tinha. Eles colocavam requisitos e eu tinha todos! Todos! Tinha experiência,
tinha títulos, tinha expertise, tinha boas relações no ambiente de trabalho,
todos, inclusive os mais experientes do setor, reconheciam a qualidade do
meu trabalho e a própria gerência também, mas era só de boca porque no
papel não me nomeavam. Quando eu perguntava respondiam...na próxima.
E a próxima vaga chegava e novamente... nada! (grifo nosso)
As ofensas nem sempre parecem ter uma razão lógica, exceto quando se
analisam esses comportamentos como parte de um conjunto que rejeita as
populações excluídas dos lugares de mando, poder, gerência, direção, como
nos faz ver a narrativa de Alice F.
309
Conclusão
310
de viver em paz que cada ser possui. Ações/omissões que geram transtornos
mentais, como a depressão, que foram abertamente mencionados em mais
de uma narrativa.
311
O racismo é crime[82] de alto potencial ofensivo e, por isso mesmo, a sua prática
poderá ser objeto de investigação pelas autoridades policiais e pelo Ministério
Público, mesmo que não haja a denúncia dos fatos. Por ser imprescritível, poderá
ser apurado a qualquer tempo. Basta que as autoridades tenham conhecimento
para que tenham a obrigação funcional de deflagrar a investigação policial
e a ação criminal no intuito de responsabilizar as pessoas responsáveis para
que respondam criminalmente pelos atos racistas.
[82] Racismo é crime previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XVLII). O crime de
racismo foi disciplinado pela Lei Federal nº 7.716/1989, com a redação dada pela Lei Federal nº
9.459/19997), que em seu artigo nº 20 o tipifica (diz quais condutas podem ser crime de racismo)
e, também, diz qual é a pena a ser aplicada nos casos em que se praticar o crime de racismo
(Pena de Reclusão – 1 a 3 anos).
312
Entende-se aqui que é possível uma educação corporativa que leve ao respeito à
autonomia enquanto elemento primordial do ser humano se nesses ambientes
forem criadas “culturas corporativas” de valorização das construções históri-
cas, sociais, econômicas e psicológicas de cada pessoa. Essas discriminações
podem ser definitivamente elididas dos ambientes de trabalho, evitando que
as entidades da Administração Indireta e a pessoa responsável venham a ser
penalizados pela infração prevista no art. 20 da Lei Federal nº 7716/89 com
a redação que foi dada pela Lei Federal nº 9459/1997 - que dispõem sobre os
crimes de racismo e da Injúria Racial, conforme previsto no crime, tipo penal
do art. 140, § 3º do Código Penal; bem assim no Estatuto da Igualdade Racial,
Lei 12. 288/2010, art. 1º e seguintes, tudo no intuito de transformar a realidade
vivenciada dentro dessas corporações.
Devemos, também, lembrar que pesquisas têm demonstrado que “60% dos
negros dizem ter sofrido racismo no trabalho”[84], percentual que poderá ser
bastante elevado se entendermos que 92% (noventa e dois por cento) das pes-
soas negras afirmam que há racismo na contratação para as empresas, como
nos aponta essa mesma pesquisa. Ora, se o índice do racismo é elevado quando
da contratação, então, logicamente, será também elevado com aquelas pessoas
negras que conseguirem ultrapassar essa barreira de ingresso às empresas.
Mas, dado o alto índice de indicação de racismo nessa contratação, o fato de
ter conseguido entrar não significa que as relações raciais venham ocorrer
da maneira prevista nas normas internas e externas. Além do prejuízo civil,
há, também, prejuízo econômico/financeiro, pois ao deixar de ingressar no
emprego, perdem a oportunidade de ganhar valores salariais mais altos e de
adquirir bens e mobilidade na pirâmide social. São profissionais que têm as
suas carreiras corporativas usurpadas por ditames racistas, discriminatórios,
adotados por chefias e gerencias. As ações e omissões discriminatórias são
determinantes para a presença nos ambientes corporativos de pessoas que
[84] https://www.geledes.org.br/60-dos-negros-dizem-ter-sofrido-racismo-no-trabalho-apon-
ta-pesquisa/
313
estejam inseridas nessas comunidades excluídas, mas as práticas criminosas
são noticiadas:
Ainda se pode ver que esses comportamentos excludentes dentro das insti-
tuições e empresas vão desencadear doenças e prejuízos psíquicos, físicos
e psicológicos às vítimas desse racismo sistêmico, dessas discriminações
em função do corpo, da aparência física que se dá dentro das corporações
empresariais.
[85] http://www.fenae.org.br/portal/rj/informacoes/noticias-apcef/cresce-o-assedio-moral-den-
tro-da-caixa-economica-federal-1.htm
314
Das narrativas de Maria R, Alice F e das outras aqui trazidas emergem situa-
ções que são corroboradas, repudiadas pelas notícias de condenação dessas
entidades da administração indireta nos Tribunais brasileiros:
[89] Além das clássicas produções sobre o racismo e as suas implicações psicossociais de
Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Lélia Gonzalez, Maria Lúcia da Silva, Virgínia
Bicudo, podemos saber mais com Gênero, raça, desigualdades e políticas de ação afirmativa
no ensino superior, Artigo de Pesquisa de Paula Cristina Barreto; A legitimação do intelectual
negro no meio acadêmico brasileiro: negação de inferioridade, confronto ou assimilação
intelectual? de Ari Lima.
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Referências
BAIRROS, Luiza – Entrevista. Não podemos ficar indiferentes ao fato
de que os negros morrem mais cedo quando comparados a qual-
quer outro grupo social. 2011. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
desafios/index.php?option=com_content&id=2675:catid=28&Itemid=23.
Acesso em 11/07/2017.
BRASIL. Lei Federal nº 7716/89 com a redação que foi dada pela Lei
Federal nº 9459/1997 - que dispõem sobre os crimes de racismo e da
Injúria Racial, conforme previsto no crime, tipo penal do art. 140, § 3º do
Código Penal.
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NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Entrevista a Cláudia Cisiane Benetti,
Simone Freitas Gallina e Elisete Tomazetti Em: Refilo–Revista Digital
de Ensino de Filosofia. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/
refilo/article/view/31362/17240. Acesso em 02/03/2018.
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