Você está na página 1de 317

ORGANIZAÇÃO

Fórum Justiça
Criola
Defensoria Pública do Rio de Janeiro

REVISÃO
Vinícius Alves Barreto da Silva
Juanita Cuéllar Benavides
Ana Miria dos Santos Carvalho Carinhanha
Laysi da Silva Zacarias

PROJETO
Adriana Silva de Britto
Ana Miria dos Santos Carvalho Carinhanha
Élida Lauris
Livia Casseres
Lúcia Maria Xavier de Castro
Rosane Maria Reis Lavigne
Vinícius Alves Barreto da Silva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Catalogação na fonte: Ana Virginia Ferreira Carmo (CRB 8/10251)

F745 Fórum Justiça. Coletânea Racismo institucional e o sistema de


justiça [livro eletrônico]. / Fórum Justiça.Vinícius Alves Barreto
da Silva; Juanita Cuéllar Benavides; Ana Miria dos Santos Carva-
lho Carinhanha; Laysi da Silva Zacarias (revisão); André Victor
(projeto gráfico); .1.ed. Rio de Janeiro: Fórum Justiça – , 2021.

317f.; Livro digital;

Vários autores.

ISBN: 978-65-992442-2-3

1.Sistema de Justiça. 2.Racismo Institucional. 3. Combate ao


racismo. 4. Defensoria pública I. Título.

CDU: 34:323.14
8 Quem somos

9 Apresentação

13 Sob os Despojos da História:


Territórios Negros Tradicionais
desde a Ditadura Militar no Brasil
Aline Caldeira Lopes

46 Racismo Institucional e Sistema


de Justiça com Foco no Sistema
Criminal
Carolina Dzimidas Haber

63 Racismo Institucional: Desafios e


Perspectivas na Implementação de
Políticas Antirracistas na FAETEC
Lilian do Carmo de Oliveira Cunha
87 A Manutenção do “Tráfico” contra
Mulheres Negras: A Análise da
Readaptação da Escravização do
Século XIX à “Guerra às Drogas” do
Século XXI
Lorraine Carvalho Silva

114 Direitos Humanos, Refúgio e


Relações Raciais: Reflexões sobre o
Mito da Proteção no Brasil
Lumena Aleluia
Amana Mattos

135 Violência contra a Mulher Negra:


Racismo Institucional e Sistema de
Justiça
Maria Sylvia Aparecida de Oliveira
147 “Quando o terreiro vai à delegacia”.
Racismo, intolerância religiosa e
sistema judiciário em Belém, Pará,
Amazônia
Marilu Márcia Campelo
Zélia Amador de Deus

175 Racismo Institucional: da


Perpetuação da Discriminação
Racial, às Formas de Enfrentamento
do Grupo de Trabalho de Combate
ao Racismo do Ministério Público de
Pernambuco
Marinete Cabral Cavalcanti da Silva
Guilhermina D’arc Carneiro do Nascimento

205 Implantação da variável raça/cor na


secretaria municipal de saúde do
Rio de Janeiro
Monique Miranda
Louise Silva- SMS-Rio
220 Por um Sistema de Justiça
Democrático e Antirracista
Allyne Andrade e Silva

235 Diálogos com o “Realismo


Marginal” e a Crítica à Branquidade:
Por que a Dogmática Processual
Penal “não vê” o Racismo
Institucional da Gestão Policial nas
Cidades Brasileiras?
Evandro Piza Duarte

276 Racismo e Sistema de Justiça: Um


Debate sobre o Modelo de Controle
das Polícias no Brasil
Felipe da Silva Freitas

288 Racismo Institucional na


Administração Pública Direta
e Indireta: uma afronta à
Constituição Federal Brasileira
Francineide Marques da Conceição Santos
Quem somos
Criola é uma organização da sociedade civil, fundada e conduzida por mulheres
negras desde o ano de 1992. Criada para enfrentar o racismo patriarcal, que
ainda gera graves violações dos direitos das mulheres negras, além da grave
desigualdade racial. Tem como missão atuar para a erradicação do racismo
patriarcal cisheteronormativo, contribuindo com a instrumentalização de
mulheres negras - jovens e adultas, cis e trans e com a ação política - para a
garantia dos direitos, da democracia, da justiça e pelo Bem Viver.

Siga as nossas redes  http://criola.org.br/


O Fórum Justiça (FJ) constitui-se em uma livre iniciativa proveniente de um
grupo de Defensoras(es) Públicas(os) fluminenses, em parceria com a Associação
Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e o Grupo de Pesquisa Direitos
Humanos, Poder Judiciário e Sociedade (DHPJS), vinculado à Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Como constru-
ção coletiva de espaço, assenta-se em um tripé: agentes do sistema de justiça
(Estado), setor acadêmico e organizações e movimentos sociais. Projeta-se em
distintas regiões do país, agregando sujeitos interessados em discutir política
judicial e elaborar ações estratégicas para a democratização do sistema de
justiça.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro é uma instituição pública


cuja função é oferecer, de forma integral e gratuita, assistência e orientação
jurídica aos cidadãos que não possuem condições financeiras de pagar as
despesas destes serviços. Além disso, promove a defesa dos direitos humanos,
direitos individuais e coletivos e de grupos em situação vulnerável. A assis-
tência jurídica gratuita aos vulneráveis é um direito e garantia fundamental
de cidadania previsto no artigo 5º, LXXIV da Constituição da República. 

8
Apresentação
O Fórum Justiça, CRIOLA e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
(DPRJ) apresentam a publicação Racismo Institucional e o Sistema de Justiça,
uma coletânea de artigos que reúne um conjunto de reflexões sobre as dife-
rentes manifestações de práticas racistas nas instituições. A coletânea é
o resultado dos debates realizados na I Jornada Nacional sobre Racismo
Institucional e Sistema de Justiça, em março de 2018.

A I Jornada é resultado dos esforços das organizações proponentes em traçar


estratégias de enfrentamento do Racismo Institucional no Sistema de Justiça,
partindo da compreensão do fenômeno, através de encontros com especia-
listas, pesquisa sobre o sistema de justiça nas dinâmicas de reprodução e
enfrentamento ao racismo institucional; bem como na articulação de estudos
e práticas de enfrentamento ao racismo institucional.

O evento esteve marcado pelo assassinato de Marielle Franco em março daquele


ano, um crime ainda não solucionado e doloroso que simboliza, como foi
muitas vezes dito no seminário, a repetição da tragédia que recai sobre as
mulheres negras que lutam por justiça. Nesse contexto, o debate reuniu um
público diverso, formado por pesquisadoras/es, defensoras/es públicas/os,
ativistas e organizações parceiras que durante dois dias reviraram o tema do
racismo institucional no Brasil, em particular no sistema de justiça.

A Jornada permitiu aprofundar os resultados de estudos, pesquisas e experiên-


cias de intervenções profissionais e políticas no processo de enfrentamento
do racismo institucionalizado no sistema de justiça. A composição dessas
instituições revela as desigualdades da sociedade brasileira e a necessidade de
promover o ingresso sistemático de pessoas negras em seus quadros. Os dados
obtidos nas pesquisas realizadas pela DPRJ e apresentadas durante o evento
sobre o perfil das pessoas submetidas a audiências de custódia, mostram que
a proporção de pessoas negras é muito maior do que a de pessoas brancas;

9
que a chance de um branco ser solto é maior do que de um negro. Quanto aos
relatos de pessoas que sofreram agressão ou tortura, a maioria desses relatos
foi feito por negros. Em relação ao aborto, a maioria das mulheres processadas
é negra[1]. Mais recentemente, um estudo sobre falhas no reconhecimento
fotográfico de pessoas acusadas do cometimento de crimes mostrou que 81%
delas eram negras. Ao final, todas foram absolvidas, porém a maioria perma-
neceu presa durante o processo. Outra pesquisa também mostrou os vieses
existentes na abordagem policial ao voltar o olhar aos acusados por crimes do
Estatuto do Desarmamento. Além de 75% das pessoas acusadas serem negras,
são também maioria quando essa abordagem ocorre por atitude suspeita.

Sabemos que os casos de racismo poucas vezes são notificados. Quando


isso acontece, poucas vezes são investigados e denunciados como crimes de
racismo. O trâmite até a sentença é ainda mais raro. Por meio dessas e outras
formas, o sistema de justiça vem negando o acesso à justiça para as populações
negras. Um dos eixos de contorno dessa situação está associado ao ensino
jurídico e à necessidade urgente de promover o debate sobre racismo nas
instituições acadêmicas para a construção de um senso comum que paute a
centralidade da questão racial. Infelizmente, o ensino jurídico ainda segue
baseado numa epistemologia colonial que reproduz a hierarquia racial da
sociedade brasileira.

De acordo com o Dossiê Crimes Raciais (2020) lançado pelo Instituto de


Segurança Pública (ISP) da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio
de Janeiro, em 2019 foram registrados 1706 crimes raciais, a maioria deles
tipificados como injúria e preconceito racial. No entanto, de acordo com o
levantamento realizado pelo Tribunal de Justiça (TJ) do Rio de Janeiro, a maioria
dos casos não foram concluídos. Outros estudos demonstraram que somente
70% dos casos conseguiram ganho de causa para os réus (Laeser, 2017).

[1]  Ver o artigo de Carolina Haber “Racismo institucional e sistema de justiça com foco no sistema
criminal” nesta coletânea. As pesquisas realizadas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ)
podem ser consultadas em: https://www.defensoria.rj.def.br/Documento/Institucional-pesquisas.

10
Nos últimos anos, a DPRJ tem se comprometido com ações concretas em prol
da democratização racial do quadro de defensoras e defensores públicos, com
o lançamento do edital de XXVII Concurso à Carreira da Defensoria Pública,
implementado pelo Conselho Superior, que ampliou o percentual de cotas
e reconfigurou o modelo do concurso. Além disso, destaca-se a criação da
Coordenação de Promoção da Equidade Racial, por meio da Resolução DPGE
n. ̊ 1055 de agosto de 2020 e o lançamento do 1o Censo étnico-racial da DPRJ,
com o objetivo de produzir um diagnóstico das relações raciais e, a partir
disso, planejar políticas eficazes para um ambiente de maior diversidade e
mais democrático racialmente.

Os 13 artigos contidos nesta coletânea, alguns dos quais foram apresentados


durante a I Jornada, visam contribuir com essa reflexão. Eles versam sobre
diversas temáticas, como os conflitos sociojurídicos e os territórios negros
na ditadura militar; a questão racial e o sistema de justiça criminal; o
discurso jurídico na gestão policial nas cidades; a importância das
pesquisas interdis-ciplinares para revelar a dimensão do racismo
institucional; a implementa-ção de políticas públicas para o
enfrentamento ao racismo nas instituições escolares; o encarceramento
das mulheres e a guerra às drogas; o refúgio e as relações raciais; racismo
institucional e violência contra as mulheres negras; ensino jurídico e raça;
racismo, intolerância religiosa e o judiciário; o enfren-tamento ao racismo
no Ministério Público de Pernambuco; a implantação da variável raça/cor
na secretaria de saúde do Rio de Janeiro; o sistema de justiça brasileiro e
seu papel na manutenção da desigualdade racial; as rela-ções entre o
discurso jurídico e o racismo institucional no Brasil; as relações entre as
polícias e a população negra no Brasil; e o racismo institucional na
administração pública.

As informações completas sobre a I Jornada podem ser consultadas nos


seguintes links:

Programação completa: http://www.forumjustica.com.br/wp-content/


uploads/2018/03/Programa----o-COMPLETA.pdf

11
Gravação do evento:

22 de março de 2018: https://youtu.be/6hDiJAKaI3o

23 de março de 2018: https://youtu.be/DUW5ujlvBI0

Fotos do evento: https://flic.kr/s/aHsmf5W6Dx

Esperamos que esta publicação estimule o debate e o enfrentamento do


racismo institucional na construção de um sistema de justiça integrador.

Boa leitura!

Fórum Justiça

CRIOLA

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

12
Sob os Despojos da História: Territórios Negros Tradicionais
desde a Ditadura Militar no Brasil

13
Aline Caldeira Lopes[1]
O presente artigo propõe-se a apresentar parte da tese de mesmo título desen-
volvida pela autora no Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) entre os anos de 2013 e
2017, sob a orientação do professor José María Gómez. A pesquisa aborda o
tema dos conflitos sócio jurídicos em territórios negros tradicionais situados
em áreas militares no Brasil desde a década de 1970. Trata-se da análise e
compreensão de documentos e relatos que narram parte do cotidiano de
violência em áreas que são, contemporaneamente, reconhecidas como terri-
tórios remanescentes de quilombos. Buscou-se, naquela ocasião, compreender os
processos de dominação e de resistência desde o período da ditadura militar,
a partir da experiência empírica de Ilha da Marambaia (RJ) em diálogo com
documentos relativos ao território de Rio dos Macacos (BA). No âmbito deste
artigo, no entanto, será apresentada uma dimensão da análise documental
do conflito social situado na Ilha da Marambaia, a partir do contexto trazido
para reflexão.

O território quilombola da Ilha da Marambaia está situado na ponta da


Restinga da Marambaia, na baía de Sepetiba, litoral sul do estado do Rio de
Janeiro, município de Mangaratiba. Parte da restinga – a ponta da restinga,
na verdade – é propriedade da União Federal (desde 1905), administrada pela
Marinha do Brasil e considerada de interesse militar.

Atualmente a Marambaia é titulada e registrada como território remanescente de


quilombo (2014), fruto das negociações por meio de um Termo de Ajustamento
de Conduta (TAC) mediado pelo Ministério Público Federal (MPF). A com-
preensão do contexto social, jurídico e político inaugurado pela Assembleia
Nacional Constituinte e pela Constituição Federal de 1988 pode contribuir

[1]  Possui doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2017),
mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2010) e gradu-
ação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Foi ganhadora do segundo
lugar do Prêmio CBCISS (2008) e do primeiro lugar do Prêmio de Pesquisa Jurídica da OAB/RJ
(2013). Tem experiência na docência no ensino superior e na advocacia.

14
para a análise dos desdobramentos das disputas territoriais na Marambaia,
pontuadas pela forma e pela linguagem dos direitos. O TAC passou a definir
os limites da ocupação da Marinha do Brasil e da comunidade quilombola,
bem como as regras de convivência entre ambos nos espaços comuns e na
Marambaia como um todo.

Assim como o território de Rio dos Macacos, a construção do presente objeto


de pesquisa emergiu da visibilidade das lutas cotidianas de resistência atual
em processos de disputas territoriais e por regras de convívio com o próprio
Estado brasileiro. Dois territórios negros tradicionais que, na contemporanei-
dade articulam-se em torno da efetividade da legislação de reconhecimento
de comunidades remanescentes de quilombos no país e que estão, ambos, situados
em áreas militares administradas pela Marinha do Brasil. Além disso, chamam
a atenção pelo fato de terem sido surpreendidas com a presença das Forças
Armadas no mesmo ano: 1971.

É importante destacar que a pesquisa se insere na perspectiva da construção e


reconstrução da história dos vencidos (DECCA, 1988 e BENJAMIN, 2013). Trata-se
de uma abordagem que procura realizar uma leitura da história a contrapelo,
fazendo emergir os fragmentos históricos que irão permitir releituras e novas
compreensões do passado a partir do ponto de vista de trabalhadores, cam-
poneses, quilombolas, mulheres, escravizados, sem-terra, indígenas.

As noções e ideias hegemônicas acerca da ocupação militar das áreas pes-


quisadas, fomentadas no âmbito do próprio Estado, associam tal ocupação
ao processo histórico de desenvolvimento do Estado capitalista por meio
da consolidação de modernas estruturas de guerra. A contribuição com o
processo de reconstrução da memória coletiva dos grupos e de articulação
de documentos históricos que possam descrever parte da dinâmica estatal
no campo brasileiro durante a década de 1970 contrapõe-se às narrativas
hegemônicas, construídas sobre títulos de propriedade que tornam invisíveis
as ocupações negras tradicionais dos espaços agrários.

15
Procura-se articular historicamente o conjunto de formas de violência e opres-
são no espaço agrário brasileiro em meio à ditadura empresarial-militar no
Brasil com a reflexão sobre possibilidades de reparação às populações, indiví-
duos, comunidades e movimentos sociais atingidos. Em especial, pretende-se
estreitar o diálogo com as conclusões da Comissão Camponesa da Verdade
(CCV)[2] que se instaurou no país, bem como com os demais relatórios sobre
a perseguição do regime a trabalhadores, sobre a identificação de espaços
de memória da ditadura militar e sobre a criminalização de movimentos
de cultura negra (RELATÓRIO DA COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE, 2014;
GÓMEZ 2018; THULA, 2015).

A metodologia parte da compreensão da necessidade de realização da análise


científica a partir da articulação dialética entre a observação da realidade
social, do cotidiano e da concretude das relações sociais com a reflexão teórica.

Em pesquisa anterior (LOPES, 2010), na qual optou-se por abordar o conflito


sócio jurídico na Ilha da Marambaia, houve o levantamento e análise de uma
série de processos judiciais com início a partir da década de 1990. Naquela
ocasião, cujo recorte temporal limitou-se a um período situado entre as
décadas de 1990 e 2000, alguns indícios já apontavam para a importância do
período pretérito na Ilha, em especial do período da ditadura militar, para
compreensão não somente do conflito sócio jurídico na Marambaia, entre

[2]  Segundo Leonilde Medeiros: “A ideia de elaborar o relatório surgiu em 2012 durante o
Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Flo-
restas, evento que reuniu, em Brasília, representantes de quarenta organizações camponesas e
indígenas e movimentos ligados à luta pela terra e por territórios. Na declaração final (item 11),
consta a resolução de ‘lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte
e desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus fami-
liares, com a criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e justiça para
incidir nos trabalhos da Comissão [Nacional da Verdade], visando à inclusão de todos afetados
pela repressão’[1]. Além de buscar contribuir para a CNV, o trabalho adquiriu tamanho fôlego
que optamos pela elaboração de um relatório próprio”. Site do Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Disponível em:
http://r1.ufrrj.br/cpda/blog/2015/01/21/relatorio-da-comissao-camponesa-da-verdade-esta-dispo-
nivel-para-download/. Acesso em 08 de janeiro de 2018.

16
Forças Armadas e comunidade remanescente de quilombos, mas também do
período de exceção no país inaugurado com o golpe de 1964.

Parte dos processos judiciais analisados em pesquisa anterior tratavam de


ações de reintegração de posse ajuizadas pela União Federal em face dos mora-
dores da comunidade a partir de 1994. Em meio ao processo de resistência dos
moradores, convertidos em réus, os mesmos realizaram amplo levantamento
documental de material apto para a comprovação da posse histórica que o
grupo e os réus, individualmente, exerciam no território em disputa.

É o caso do processo n° 980013150, que tramitou na Justiça Federal do Rio de


Janeiro, a partir de 1998, em face de Eugênia Eugênio Barcellos. No conjunto
da documentação anexada para a sua defesa consta o Ministerial n° 485, pro-
cedente do Ministério da Marinha e direcionado ao Comando de Operações
Navais da Ilha da Marambaia, em 17 de maio de 1972.

O conteúdo do documento foi descrito e analisado na tese da autora e remete


aos procedimentos para a tentativa de conclusão da transição da Marambaia
de um populoso território, espaço de existência e modos de vida tradicionais da
comunidade local, para uma área de uso exclusivamente da Marinha do Brasil.

Além do referido documento, a pesquisa anterior teve acesso a outros frag-


mentos do passado que apontavam para indícios de que os conflitos ter-
ritoriais na Marambaia remontavam a um período anterior ao estudado.
Em meio à análise do Relatório Técnico Antropológico de Identificação e
Reconhecimento da Comunidade Remanescente de Quilombos da Ilha da
Marambaia (RTID), houve a menção às tentativas de expulsão da Ilha da
Marambaia de um antigo servidor civil do Centro de Adestramento Militar da
Ilha da Marambaia (CADIM). O servidor em questão era Hermenegildo Pedro
Inocêncio, pai de Beatriz Maria Inocêncio, uma das rés nas referidas ações
judiciais de reintegração de posse ajuizadas pela União Federal em face dos
moradores e analisada na dissertação.

Hermenegildo Pedro Inocêncio foi servidor da Escola de Pesca Darcy Vargas e


em 1971 foi incorporado como servidor civil da Marinha do Brasil, após esta

17
assumir a administração da Ilha. Em 1982 foi demitido da função que exercia
na geração de energia para a Marambaia, tendo sido acometido de grave com-
prometimento à sua saúde. Como ocupava uma das residências funcionais,
cedidas pela Marinha do Brasil aos servidores, sua demissão coincidiu com
a sua expulsão e de sua família da Ilha da Marambaia.

O RTID fazia menção, portanto, a medidas judiciais encampadas por


Hermenegildo naquela ocasião, especialmente a um Habeas Corpus impetrado
em face do Comandante do CADIM na ocasião.

Um dos caminhos da pesquisa, portanto, foi o acesso a essa documentação


para a reconstrução histórica dos modos como as formas de resistência e
dominação da Ilha da Marambaia se conformaram durante o regime ditatorial
militar, bem como para a compreensão da sociogênese do conflito territorial
contemporâneo.

A partir da pesquisa no site da Justiça Federal do Rio de Janeiro, incluindo


como chave de busca o nome de Hermenegildo Pedro Inocêncio, chegou-se
à informação de duas ações judiciais relacionadas ao caso em questão: a
reclamação trabalhista número 0492120-33.1900.4.02.5101, em tramitação
na 12° vara federal da Justiça Federal do Rio de Janeiro, cujo autor é o espólio
de Hermenegildo Pedro Inocêncio e ré a União Federal e o Habeas Corpus de
autoria de Hermenegildo Pedro Inocêncio, impetrado em face do Comandante
do CADIM, com baixa em 1983 e trâmite também na 12° vara federal, sob a
numeração 0519911-74.1900.4.02.5101. Constatou-se ainda que a primeira
ação –a reclamação trabalhista– ainda estava em trâmite, já a segunda –o
Habeas Corpus– havia sido arquivada.

A partir dessa documentação (a reclamação trabalhista), iniciou-se o processo


de elaboração e estruturação da presente pesquisa de reconstrução de parte
da história de existência e resistência da comunidade tradicional da Ilha
da Marambaia em meio a um dos períodos de maior truculência do Estado
Brasileiro, qual seja, a ditadura militar de 1964 a 1985 no Brasil.

18
Dos porões da ditadura para os porões dos Tribunais de
Justiça

Os autos que serão analisados aqui podem ser considerados um momento,


um fragmento, portanto, de um processo histórico de tempo longo no qual a
Marinha do Brasil e o Estado brasileiro procuraram tornar a Ilha da Marambaia
um espaço de uso exclusivo das Forças Armadas. Tal processo, no entanto, não
se apresenta sem resistências, e a estratégia de luta na arena jurídica na qual
se lançam os moradores da Ilha, exemplifica a afirmação.

É possível compreender, a partir da leitura da reclamação trabalhista ajuizada


por Hermenegildo Pedro Inocêncio, que sua demissão dos quadros de servi-
dores da Marinha do Brasil se deu sem quaisquer esclarecimentos ao mesmo,
quanto menos o cumprimento de obrigações trabalhistas decorrentes do ato
unilateral da administração pública.

Em 2 de fevereiro de 1982, Hermenegildo Pedro Inocêncio, por seu represen-


tante, o advogado Fernando Luiz Bonorino Nobre, enviou uma comunicação
ao Capitão de Mar e Guerra Edson Freitas da Cunha, então comandante do
Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (CADIM) requerendo:

a formalização da rescisão do contrato de trabalho, com a devida baixa


na carteira profissional; o preenchimento dos impressos instituídos pela
Previdência Social objetivando habilitar a liberação do pecúlio (no caso,
contribuições feitas pelo segurado ao sistema previdenciário após a con-
cessão do benefício da aposentadoria por tempo de serviço), referidos im-
pressos já em poder do demitido; e liberação das verbas a que faz jus (p. 6).

No documento, ele narra que foi empregado do CADIM a partir da extinção da


Escola de Pesca da Fundação Cristo Redentor. O mesmo trabalhava no regime
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), no período de 1 de outubro de
1948 até 31 de dezembro de 1981. Afirma ainda que sua demissão se deu de
maneira verbal, ato sob a supervisão do 1° Tenente de prenome Almiro.

19
Nota-se a tentativa de resolução extrajudicial do conflito trabalhista no qual
se via envolvido. Caberia uma investigação acerca das articulações entre
Hermenegildo e seu advogado, no entanto, o limitado escopo da presente
pesquisa não permitiu que a mesma fosse realizada por ora.

Segundo o trabalhador, embora estivesse em vias de completar 73 anos de


idade no dia 12 de abril, não havia recebido, até o momento do envio da
referida comunicação, os direitos resultantes de sua demissão, tais como
férias proporcionais e vencidas e aviso prévio, a indenização em dobro por
ser empregado estável, dentre outros, com destaque para o recebimento das
diferenças salariais, por ter sido prejudicado pelo congelamento e aviltamento
de seu salário[3].

É preciso que se analisem as correspondências trocadas entre o representante


legal de Hermenegildo e o Comando Militar do CADIM em conjunto com as
informações trazidas no RTID a partir de memória e depoimento dos morado-
res, bem como com a existência de um Habeas Corpus – que não foi disponibi-
lizado até a conclusão desta pesquisa – impetrado por Hermenegildo contra
o mesmo Comando Militar. Isso porque o RTID descreve formas de violência
psicológica e mecanismos de impedimento da sobrevivência da família em
questão por meio do corte de água, limitação no direito de entrada pela barca
da Marinha, dentre outras formas de intimidação descritas anteriormente.

Em relação à comunicação enviada pelo advogado de Hermenegildo, o


Comando Militar respondeu formalmente à mesma. Em 8 de março de 1982,
o 1° Tenente Almiro Dantas de Assis envia o ofício PB/11 CA-Q-26-001 do
Ministério da Marinha, pedindo ao trabalhador que apresentasse cópia da
procuração de seu advogado e ainda que “sua presença está sendo aguardada
na Divisão de Saúde deste Centro, fins complementar/os [sic] dados exigidos
pela Diretoria do Pessoal Civil da Marinha” (p. 7). Na prática, não respondeu
aos questionamentos colocados na correspondência enviada.

[3]  Segundo o documento, tal fato pôde ser comprovado pelo Ministério do Trabalho – Delegacia
Rio de Janeiro, Av. Antônio Carlos, Térreo, setor de Contas e Inspetoria. b

20
No dia 19 de março de 1982 foram enviados dois ofícios ao CADIM por meio
do representante legal de Hermenegildo. O primeiro reitera os pedidos feitos
em documento anterior, em especial pela formalização da rescisão de seu
contrato de trabalho, com a devida baixa da carteira profissional; o preenchi-
mento dos impressos instituídos pela previdência para habilitar a liberação
do pecúlio e a liberação das verbas rescisórias. Além disso, anexa a procuração
anteriormente solicitada.

No segundo ofício enviado ao CADIM, foi solicitado esclarecimento acerca


da requisição da presença de Hermenegildo à sede da referida Organização
Militar. O texto expressa estranheza pelo referido procedimento não estar
previsto nas normas da Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT:

Queira por obséquio mandar informar o motivo pelo qual a presença do


Sr. Hermenegildo Pedro Inocêncio, cujo contrato de trabalho foi rescindi-
do por essa Organização Militar dia 31.12.1981, está sendo aguardada na
Divisão de Saúde desse Centro de Adestramento.

Deriva o pedido do fato de, à luz da Consolidação das Leis Trabalhistas,


C.L.T, não termos compreendido o propósito da medida.

Se existir, no entretanto [sic], dentro da Diretoria do Pessoal Civil desse


Ministério ou no próprio DASO, algum mecanismo que esteja – conforme
acreditamos – na cogitação dessa Administração tendo em vista minorar
a aflitiva situação em que se encontra o demitido; vale dizer qualquer
disposição ou caminho que possa o amparar, estaremos, evidentemente,
de pleno acordo em atender.

Gostaríamos, igualmente, de deixar bem claro que ao propormos e distri-


buirmos a ação no Judiciário Federal, pretendemos basicamente resguar-
dar os direitos do Peticionário e, eventualmente, sucessores, daí porque a
urgência no trato.

Finalmente registramos a nossa firme disposição de dialogar, existindo


sempre um canal aberto, da nossa parte, para este fim. (p. 9).

21
Importante destacar que as trocas de ofícios entre o Comando Militar da Ilha
da Marambaia e o advogado de Hermenegildo ocorreram antes do ingresso
do mesmo na Justiça do Trabalho para pleitear os direitos que acreditava que
lhe cabiam. O tom da resposta, no entanto, expressa preocupação quanto à
legalidade dos procedimentos adotados pelo Comando Militar e é possível
supor que tal preocupação estivesse embasada em atitudes arbitrárias e
violentas perpetradas no cotidiano da convivência entre militares e “civis”
na Ilha da Marambaia.

Cabe destaque para o ano de 1982, quando foram trocadas as correspondên-


cias. Nacionalmente, o Brasil vivia o início de um processo de abertura do
regime militar para um regime de democracia burguesa periférica. A forma
como esse processo político mais geral se expressava na Marambaia deve ser
analisada a partir de uma dinâmica diferenciada. É de se supor que o controle
e a coerção das formas de vida em uma área diretamente administrada pelas
Forças Armadas e com o objetivo de servir a fins militares, considerada “área
de segurança nacional”, portanto, fossem observados de modo mais direto e
com menos mediações.

O CADIM enviou a resposta ao ofício enviado pelo advogado de Hermengildo


no dia 10 de abril de 1982. Cabe transcrever o conteúdo integral da comuni-
cação enviada:

Em atenção a sua carta, datada de 19 de março do corrente ano, informo


que a presença do Sr. HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO à Divisão de Saúde
deste Centro, se faz necessária para que o mesmo se submeta a inspeção
de saúde, fins complementar a documentação exigida pela Diretoria do
Pessoal Civil da Marinha, para que a mesma possa emitir a Portaria de
dispensa do citado Sr. Quanto antes esta formalidade for atendida, mais
rápido será resolvido este impasse.

A situação do Sr. HERMENEGILDO não é tão aflitiva assim, tendo em vista


que recusou-se [sic] a receber o pagamento relativo ao mês de janeiro e

22
posteriormente aos meses de ferreiro e março, ficando a este Centro a única
alternativa de recolhê-lo à Diretoria de Finanças da Marinha.

Peço ao Senhor que a partir do presente momento, se dirija única e exclu-


sivamente ao Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia, para tratar
de qualquer outro assunto relativo ao seu Outorgante ou qualquer outro
assunto, pois, não mantenho com o Senhor relações de amizade nem
comerciais.

Atenciosamente

Almiro Dantas de Assis 1° Tem. (A-FN), Encarregado do Pessoal (grifos no


original. p. 10).

Um indício importante sobre a dinâmica tensa nas referidas relações é a


existência de um Habeas Corpus de autoria de Hermenegildo em face do
Comandante do Centro de Adestramento Militar da Ilha da Marambaia, que
se encontra arquivado desde 1983 na Justiça Federal do Rio de Janeiro, e por
este motivo não foi possível, até o momento, consultá-lo.

É possível que as trocas de ofícios acima, das quais é possível notar um texto
ofensivo, especialmente por parte do Comando Militar, tenha tido importante
expressão nos autos arquivados.

Outro destaque é feito para o fato de que, na comunicação descrita acima,


Hermenegildo esteja representado por um advogado. Este fato, por si só, pode
ter representado um freio a medidas arbitrárias e violentas por parte do
Comando Militar, em que pese não ter coibido as rusgas nos diálogos.

Um importante aspecto das análises realizadas em trabalho anterior (LOPES,


2010) sobre o campo de pesquisa, com relação à análise das ações de rein-
tegração de posse na década de 1990, foi a utilização dos Inquéritos Penais
Militares (IPMs) como mecanismo de intimidação e de perpetuação de violên-
cias físicas e simbólicas, legitimadas pela forma jurídica de uma investigação
em âmbito administrativo, como mencionado anteriormente. É possível per-
ceber, portanto, indícios de que havia receio por parte de Hermenegildo e de

23
seu advogado em relação ao comparecimento do idoso na sede do Comando
Militar da Ilha da Marambaia e a motivação para tal receio pode ter partido
dessa memória de instauração de procedimentos arbitrários pelo Comando
Militar. É possível ainda deduzir que o diálogo extrajudicial não teve como
consequência a pacificação do conflito, pelo contrário.

No dia 25 de outubro de 1982 Hermenegildo Pedro Inocêncio ingressou com


uma Reclamação Trabalhista contra o CADIM, vinculado ao Ministério da
Marinha e estabelecido na Ilha da Marambaia, município de Mangaratiba,
representado por seu advogado, Altamiro Gonçalves Silva.

O autor relata que foi admitido em 1 de outubro de 1948 e foi dispensado no


dia 31 de dezembro de 1981. De acordo com a petição inicial:

Cumpria ele, em média 12 horas de serviço, com 1 hora de almoço por dia,
de segunda a segunda, sem repousos semanais, em regime de revezamento
semanal de turno, sem jamais ter recebido as horas extras trabalhadas
com o adicional de 25%. O obreiro jamais recebeu pelos repousos sema-
nais trabalhados de forma ininterrupta, o adicional de 100%, assim como
as horas noturnas trabalhadas, também de maneira ininterrupta, com o
adicional de 50%. A demissão do Autor, foi feita ao arrepio da Lei, em vio-
lação à legislação do trabalhador ESTÁVEL, pelo preposto do Reclamado, 1°
Ten. Almiro Dantas de Assis, que além de nada pagar ao Obreiro, naquela
ocasião, tornou-se uma barreira intransponível para que o Autor pudesse
solucionar de forma amigável a questão do recebimento de suas verbas
trabalhistas, Doc. J, não restando outro caminho, senão o Judiciário (p. 2).
(grifos no original).

A partir disso, Hermenegildo requer perante o Poder Judiciário, os seguintes


direitos: a) indenização relativa ao período trabalhado pela dobra, sobre
o salário real, com o acréscimo de 30% relativo ao grau de periculosidade,
mais a integração média das horas extras diurnas, noturnas e dos repousos
trabalhados; b) aviso prévio e décimo terceiro salário; c) quinquênios; d) grati-
ficações natalinas de todo o período pela dobra; e) horas extras normais com

24
adicional de 25% e horas extras noturnas com adicional de 50%; f) repousos
semanais trabalhados, com o adicional de 100%; g) reflexos das horas extras
nos repousos, férias e 13° salário; h) juros e correção monetária.

A judicialização do conflito aponta para uma importante alteração na dinâ-


mica das relações de poder na Marambaia, aponta para o questionamento,
por parte dos moradores, das relações até então estabelecidas. Além disso, o
indício de violações dos direitos trabalhistas indica o modo como se davam
até então tais relações.

É importante ressaltar que não se tratava de uma relação de trabalho que


envolvia duas partes privadas, não se tratava de empregador privado, mas
da União Federal, por meio das Forças Armadas. Hermenegildo, portanto, era
servidor público. Este é um ponto importante para as reflexões sobre relações
de poder no campo em meio à ditadura empresarial militar.

Como já mencionado, a pesquisa coordenada por Leonilde Sérvolo de Medeiros,


no âmbito da Comissão Camponesa da Verdade, ressaltou a importância
dos conflitos trabalhistas como fonte de análise do cotidiano de violência
no campo em meio à ditadura, especialmente por se tratar de um campo de
pesquisa no qual o acesso às fontes escritas não é numeroso (2014).

Além disso, no campo, a resistência ao processo de rebaixamento de direitos


observado durante a ditadura militar teve na judicialização de demandas
trabalhistas um espaço de manutenção e conquista de alguns direitos. Isso
levando-se em consideração a desigualdade entre as condições de vida dos
trabalhadores no campo e na cidade que se acumulou naquele período.

Retomando os autos processuais, a primeira audiência foi realizada no dia


12 de abril de 1983. Estiveram presentes Hermenegildo e um procurador da
República que se manifestou para que fosse incluída a União Federal como
reclamada nos autos do processo e não o CADIM, como foi feito. O pedido foi
aceito pelo Juiz e a primeira audiência limitou-se a retificar o polo passivo
da ação e a determinar a realização de novas citações. Ou seja, a substituir o
CADIM pela União Federal na posição de ré.

25
Ainda que formalmente, de acordo com a teoria da ação no processo civil,
quanto à decisão do Magistrado em incluir a União Federal e não o CADIM
no polo passivo da ação, é preciso reconhecer a motivação do advogado de
Hermenegildo em incluir o segundo e não a primeira na posição de ré.

Isso de seu pelo modo como se constituíram as relações sociais na Ilha ao


longo do período a partir do qual a Marinha do Brasil se instalou no local em
meio ao regime ditatorial no Brasil. Uma das características do mesmo foi
a expansão das competências das Forças Armadas brasileiras para funções
que iam além daquelas circunscritas à defesa militar do país. Ao contrário,
representou a expansão das competências das Forças Armadas para funções
de investigação, contratação, administração, dentre outras, em substituição
aos governos civis precedentes.

Na Ilha da Marambaia esse quadro se apresentava de maneira ainda mais


contundente e a Marinha do Brasil assumia a função de empregadora dos
funcionários civis remanescentes da Escola de Pesca Darcy Vargas, dentre
eles Hermenegildo.

A segunda audiência foi realizada no dia 15 de agosto de 1983, estando pre-


sentes Hermenegildo, representado pelo advogado Altamir Gonçalves Silva,
e o representante da União Federal, procurador da República Carlos Roberto
Siqueira Castro. Esta não concordou com os pedidos formulados na petição
inicial.

Inicialmente a União Federal impugnou o valor da causa, argumentando que,


pelo conteúdo dos pedidos formulados, o valor atribuído (cinquenta mil cru-
zeiros) não representaria o real valor econômico da ação, devendo ser alterado
pelo valor sugerido de um milhão de cruzeiros. De acordo com o pedido da
União Federal, a alteração no valor da causa deveria ser acompanhada pelo
pagamento complementar das custas da ação pelo autor.

Mais que uma preocupação com a correção do valor dos custos da ação judicial,
a impugnação do valor representa, em especial no caso em que se questiona
o baixo valor atribuído, uma forma de inviabilizar o acesso à justiça de liti-

26
gantes que não possuem condições financeiras para arcar com altos custos
pela judicialização de duas demandas, como é de se supor que fosse o caso
de Hermenegildo.

Ainda preliminarmente, a União Federal requereu a declaração da prescrição


(art. 11 CLT) relativa às parcelas vencidas anteriormente ao biênio prescricional.
Quanto ao mérito, afirma que descabe inteiramente a reclamação. Isso porque
o reclamante não comprovou a prestação de serviços extraordinários nem o
trabalho noturno. Afirma ainda que o repouso remunerado foi pago junta-
mente com o salário mensal. Além disso, afirma que é indevido o adicional
de periculosidade, uma vez que o reclamado não mantinha contato direto
com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado (139, CLT).

Quanto ao pagamento pelo trabalho prestado em condições perigosas, o


procurador da República afirma:

É de ver-se ainda, que, de acordo com o art. 3°, do Decreto-lei n° 389/68, os


efeitos pecuniários de trabalho prestado em condições perigosas, só são
devidos a contar do ajuizamento da reclamação. Ora, como na data da pro-
positura da ação (1982), já estava extinto o contrato de trabalho, segundo
afirma o próprio reclamante, na data de 31.12.81, nada lhe é devido. Com
efeito, recebeu o reclamante tudo quanto lhe era devido, sendo certo que o
mesmo já era aposentado pela Previdência Social, tendo passado a prestar
serviços à Marinha no ano de 1969. Por essa razão, faz jus apenas a receber
o pecúlio da previdência social, nos termos do art. 5°, §5°, c/c com o art. 51
da CLT, digo, da Consolidação das Leis da Previdência Social, baixada pelo
Decreto n° 77.077/76, isto em virtude da sua aposentadoria definitiva e
compulsória, na forma do art. 101, item II, da Constituição Federal c/c o
art. 37, §3° da citada Consolidação Previdenciária (p. 22).

Uma das características da judicialização dos conflitos, neste caso do con-


flito trabalhista envolvendo Hermenegildo e o Comando Militar da Ilha da
Marambaia, é a sua aparente tradução na forma de conflitos neutros, con-
duzidos por meio exclusivo da técnica processual. O processo judicial, nesse

27
sentido, é tido como processo de condução de conflitos regidos por regras
universais, abstratas e impessoais e na medida do convencimento desse
caráter é que se exerce seu poder, simbólico por excelência (BOURDIEU, 1997).

Em 16 de maio de 1983 foi apresentado um parecer jurídico assinado pelo


consultor jurídico da Marinha, Jorge Leovegildo Lopes, a pedido do procurador
da República no Estado do Rio de Janeiro, Carlos Roberto de Siqueira Castro,
procurador este habilitado para a defesa jurídica da União Federal na recla-
mação trabalhista aqui descrita.

De acordo com o conteúdo do documento, o CADIM informa que Hermenegildo,


portador da matrícula 7.850.899, servidor regido pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), “fora admitido aos seus serviços como OPERADOR DE GERADOR,
exercendo suas funções em regime de turno, de forma que as horas do exercício
do seu ofício NÃO excediam à jornada normal de trabalho” (p. 31).

O parecer afirma ainda que Hermenegildo recebeu todos os seus direitos


trabalhistas, inclusive os 13° salários, bem como gozou férias anuais até ser
afastado de suas funções por possuir mais de 70 anos de idade. Além disso,
afirmou que o mesmo foi informado sobre a possibilidade de percepção do
pecúlio no INAMPS por já ser aposentado pela Previdência Social desde 22 de
abril de 1969. Como comprovação dos dados relatados no parecer jurídico, a
União Federal anexou cópias do contracheque de Hermenegildo.

Consta ainda um ofício (n° 0652) enviado pela Diretoria do Pessoal Civil da
Marinha no dia 6 de abril de 1983. De acordo com o documento, o fundamento
do pedido formulado por Hermenegildo ,

se baseia numa suposta demissão sem justa causa, fato esse inverídico
conforme comprovado por documentos incontáveis ora apensos, anexos
D e E, restando, assim, insubsistentes todas as suas pretensões e até mesmo
caracterizada a deslealdade e má-fé com os que o mesmo ingressa em Juízo
contra a União, em flagrante ofensa aos deveres impostos às partes que
recorrem ao Poder Judiciário, conforme prescrito na lei processual civil,
artigo 14, inciso II (p. 66).

28
Iniciou-se, portanto, a fase de contestação das afirmações trazidas por
Hermenegildo e de produção de provas contrárias, um embate de versões.
Os procuradores da República são profissionais jurídicos concursados (servi-
dores públicos) incumbidos da defesa jurídica da União. Esta defesa deve ser
realizada de maneira apartada de suas convicções pessoais sobre o desenrolar
de conflitos jurídicos específicos. Além disso, tais profissionais não trabalham
diretamente nos órgãos públicos que se envolvem em conflitos trabalhistas,
por exemplo, atuam por meio de pareceres produzidos por profissionais dos
mesmos, como é o caso do consultor jurídico da Marinha, responsável pelo
oferecimento do material probatório, a maioria deles produzidos de maneira
unilateral pelo Comando Militar.

Consta ainda em anexo uma ficha individual de Hermenegildo, preenchida


em 29 de outubro de 1981, perante o CADIM/Ministério da Marinha. Nela
consta a informação de que:

em 31/12/1981, o Funcionário em lide foi afastado do serviço definitiva-


mente* por contar com mais de setenta (70) anos de idade, de acordo com
as normas em vigor, sendo o referido afastamento participado a DPCVM,
através do ofício 0001/82, do CADIM.

*DEFINITIVAMENTE – porque a mais ou menos 6 meses o referido funcio-


nário não vinha exercendo suas funções por motivo de saúde, estando em
tratamento pelo INAMPS, não solicitou Licença para Tratamento de Saúde,
sendo afastado temporariamente por Ordem Verbal. (p. 69).

Em réplica, a peça apresentada por Hermenegildo afirma que:

Os documentos acostados à peça de Contestação não espelham a verdade


dos fatos alegados na Inicial, seja, os RECIBOS DE SALÁRIOS não refletem os
verdadeiros ganhos do Autor, vez que jamais recebeu horas extras, férias,
repousos, adicionais de periculosidade e de insalubridade, quinquênios,
gratificações natalinas, oras noturnas e muito menos a indenização em
dobro, por ocasião de sua INJUSTA DEMISSÃO. (p. 96).

29
Tanto o documento acima, apresentado pelo Comando Militar, quanto a
réplica de Hermenegildo, apontam para uma relação de trabalho precária,
extenuante e tensa entre Hermenegildo e seu empregador. Os indícios de
graves problemas de saúde (a julgar pelo longo período de afastamento),
que culminou em sua demissão, bem como os indícios de não correspon-
dência entre os ganhos do autor da ação e seu contracheque apontam para
a compreensão da forma como se davam as relações de trabalho na Ilha da
Marambaia durante a ditadura empresarial militar.

Hermenegildo afirma ainda que a União Federal não comprovou o pagamento


dos 13° salários, férias e aviso prévio. Além disso, o advogado de Hermenegildo
utiliza-se da própria documentação apresentada pela Marinha para corrobo-
rar sua afirmação de que Hermenegildo foi demitido de maneira irregular
pelo preposto da mesma:

Que o documento de fls. 80, vem corroborar que o RECLAMANTE foi DEMITIDO
pelo próprio signatário e preposto da RECLAMADA, 1 Ten, ALMIRO DANTAS
DE ASSIS, em violação frontal à legislação consolidada, vez que somente no
dia 14 de junho de 1982 é que foi publicada a portaria n° 0704, CONFORME
SE DEPREENDE CRISTALINAMENE PELA LEITURA DO DOCUMENTO DE FLS.
N° 34 dos presentes Autos, seja, somente no dia 14 de junho de 1982 é que
o Reclamante teve oficialmente decretada sua DEMISSÃO, com a vacância
do cargo que exercia na RECLAMADA. E tanto é verdade, que é a própria
Reclamada quem confessa, através dos documentos juntados, a IRREGULAR
DEMISSÃO do Obreiro, pela sua CONDIÇÃO DE EMPREGADO ESTÁVEL. (p. 96).

O documento de fls. 80, mencionado acima, tem a data de 31/03/1982 inserida


no canto esquerdo a caneta. O processo seguiu para a elaboração do conjunto
de provas a corroborar as afirmações das partes em litígio. Em 19 de outubro
de 1983 foi deferida prova pericial médica. O laudo pericial, elaborado no dia
26 de setembro de 1984, concluiu que:

30
Pela análise dos livros de registro das escalas a partir de 1979, observa-se
que durante cerca de 2 anos o Rte. trabalhou somente com mais dois ope-
radores, em regime de rodízio, no período das 05:00 às 17:00hs gozando
uma folga semanal de 24:00 horas, sendo certo que, com muita frequência,
cumpria a carga semanal de 60 horas correspondentes à jornada de 12:00hs,
durante 5 dias consecutivos, incluindo domingos e feriados, dada a natu-
reza eminentemente imprescindível dos serviços por ele prestados (p. 123).

Ainda de acordo com o laudo pericial:

Lotado na Unidade dos Geradores, o Rte. continuou exercendo para o CA-


DIM suas atividades de manutenção e operação dos equipamentos diesel
elétricos, em regime de trabalho diário e contínuo cumprindo escala
de revezamento com uma folga semanal de 24 horas, sendo certo que, o
reduzido número de operadores, que inicialmente foi escalado, obrigava
frequentemente o Rte. a alongar sua jornada de trabalho por mais quatro
horas diárias, que correspondiam a uma carga, por semana, de 60 horas.
Assim, permaneceu morando na casa n° 08 da vila residencial da Ilha da
Marambaia e prestando seus serviços na Unidade de Geradores até 01-05-81
quando entrou em gozo de Auxílio Doença para tratamento de Cardiopatia
Hipertensiva Isquêmica que o obrigou a se afastar do serviço até 31-12-81
data em que foi dispensado do CADIM, pelo então Encarregado do Pessoal
Civil 1° Tenente Fuzileiro Naval Almiro Dantes de Assis, sob o fundamento
de ter atingido a idade limite, e sem tê-lo submetido previamente ao exame
médico conforme determina o Estatuto do Pessoal Civil da União, embora
desse fato tenha dado ciência do Rte. posteriormente, em 08-03-82 (fls. 07).
(p. 124)

Tecnicamente, o laudo pericial pode ser considerado a peça mais comprome-


tida com o real desenrolar dos fatos posto que o profissional perito não está
incumbido da defesa de quaisquer das partes. Ao mesmo tempo, ele traz de
forma mais clara um conjunto de informações que auxiliam na reconstrução
do cotidiano da Ilha da Marambaia, em especial da relação entre os moradores
já residentes no local antes da “chegada da Marinha” e a própria.

31
Jornadas de trabalho extenuantes, procedimentos arbitrários, omissão de
informações, são elementos que contrastam com a paisagem tropical quase
intocada da Marambaia. Além disso, atualizam e sedimentam o processo his-
tórico de resistência dos descendentes dos trabalhadores escravizados que
seguem lutando pelo direito à manutenção dos seus modos de vida.

Ainda de acordo com o laudo, Hermenegildo foi submetido a meio ambiente


nocivo e insalubre durante sua jornada de trabalho, com exposição a ruído
vibratório excessivo, sem jamais ter recebido qualquer adicional de insalubri-
dade. Como conclusão do laudo, “o Perito sugere a conversão da Aposentadoria
por Tempo de Serviço em Aposentadoria Especial pelo INPS, retroagindo a
data da caracterização do direito do Rte.” (p. 128).

Passada a fase de produção de provas e debates entre as partes, houve a decisão


judicial e a sentença foi juntada aos autos no dia 8 de maio de 1985. De acordo
com a mesma, a reclamação trabalhista foi concluída da seguinte forma:

ISTO POSTO, julgo PROCEDENTE EM PARTE a reclamatória, (....) na forma


da fundamentação supra, a pagar ao reclamante, (...) mediante perícia,
indenização, pelo segundo contrato de trabalho, aviso prévio, gratifica-
ção natalina, férias, horas extras diurnas e noturnas, aos percentuais de
25% e 20% respectivamente, assim também adicional de insalubridade e
feriados trabalhados, sendo o salário-base devidamente integrado pelos
sobre-salários, tudo, respeitando a prescrição bienal retroativa, a contar do
ajuizamento da reclamatória; acresçam-se juros da mora e correção mone-
tária (art. 883, da C.L.T, e Decreto-Lei n°75/66); custas, ex vi legis, indevidas,
sendo o reclamante reembolsado pelo quantum àquele título adiantado,
honorários advocatícios, desprocedem, ut Súmula n° 11, do TST. (p. 174)

A sentença, portanto, corrobora parte dos argumentos trazidos por


Hermenegildo e confirmados pelo laudo pericial e aponta para o fato de
que a defesa da União Federal, senão protocolar, não se baseou na realidade
dos fatos, ainda que em termos de processo judicial não se possa falar em
“verdade real”, tão somente na verdade passível de ser confirmada nos autos.

32
Em peça datada de 24 de maio de 1985, a União Federal protocolou Recurso
Ordinário com o objetivo de reformar a sentença favorável a Hermenegildo na
primeira instância de julgamento. Os autos foram remetidos para o Tribunal
de Segunda Instância em 16 de outubro de 1985. O fundamento de seu pedido
foi basicamente os argumentos trazidos oralmente pela própria União Federal
na primeira audiência e as informações prestadas pelo CADIM sobre sua rela-
ção de trabalho com Hermenegildo. Além disso, afirma que o depoimento das
testemunhas confirmou existir revezamento de turno e de turma, bem como
que havia uma folga semanal pactuada entre os próprios trabalhadores. As
referidas testemunhas eram servidores da União Federal na Marambaia e
membros da Marinha do Brasil; no entanto, isso não foi questionado no pro-
cesso. Não foi mencionado o conteúdo do laudo pericial pela União (p. 180).

É interessante notar como, nesse momento, as regras de processamento


do conflito a partir do processo judicial, por meio da forma jurídica e dos
mecanismos de abstração do mesmo, atuam para reproduzir uma dinâmica
de exploração do trabalho a partir da negação de direitos conquistados por
meio de lutas históricas, como jornadas de trabalho compatíveis com a saúde
do trabalhador e os demais direitos que se colocam em jogo nesta ação.

Ainda que a ideologia hegemônica apresente o campo do direito e das nor-


mas jurídicas como um campo separado do campo da política propriamente
dito, isso não afasta o fato do mesmo assumir, majoritariamente, o projeto
político expresso pelas classes e frações de classes sociais que dominam os
espaços políticos e que se apresentam, historicamente, como os autores e
protagonistas dos projetos vencedores de sociedade.

Nesse sentido, a despeito da ignorância dos profissionais do campo jurídico


quanto às relações de poder e dominação que perpassam a dinâmica de pro-
dução e reprodução do saber jurídico, isso não afasta o fato de reproduzirem
essas mesmas relações e um dos objetivos deste artigo é o de realizar uma
reflexão que procure desvelar tais aspectos.

33
Inclusive o fato de desconhecerem –os profissionais do campo jurídico– os
mecanismos pelos quais produzem e reproduzem tais relações constitui a
própria força do campo de poder, que possui na dimensão simbólica seu
maior trunfo. Sobre esse aspecto, Pierre Bourdieu afirma, sobre o poder sim-
bólico que é, “com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (2007, p. 8).

É possível afirmar que, no campo de pesquisa, a força e eficácia desse poder


simbólico é exercido, de maneira geral, pelo decurso do tempo. E é importante
que se proponha uma reflexão a partir daí. A dinâmica de questionamento
das decisões judiciais a partir de recursos, pareceres e sessões de julgamento
é própria da forma como se estabelecem as relações de poder no campo
jurídico. Desse modo, interpreta-se o recurso da União Federal em relação
à sentença de primeira instância não como um ataque deliberado ao autor
da ação, mas como modus operandi, habitus (BOURDIEU, 2007), portanto, que
permeia o processamento dos conflitos sociais por meio do processo judicial.
Procedimento que está de acordo com as regras abstratas, impessoais, de
atuação no campo jurídico e que, portanto, poderia ser perpetrado indepen-
dentemente do sujeito individual que se apresentasse eventualmente no
papel de advogado ou advogada da União Federal.

Em parecer, o Ministério Público Federal manifestou-se pela reforma parcial


da sentença, com base nos seguintes argumentos:

4. O eminente julgador reconheceu a prescrição das parcelas anteriores a


25.10.80, nos termos do art. 11 da CLT.

5. Considerando esse fato, os recibos de fls. 46, 58 e 64 comprovam o paga-


mento do 13° salário nos anos de 1980,

6. Assim, improcede o pedido quanto a essa parcela.

7. São devidas as horas extras concedidas pela r. sentença. O depoimento


das testemunhas comprovou que o Reclamante trabalhava pelo sistema
de revezamento, ultrapassando a jornada de 40 (quarenta) horas semanais

34
prevista em lei. A perícia determinada por ordem do Juízo confirma esse
fato, como se vê às fls. 124 dos autos.

8. Também procede o pedido de indenização: o Reclamante não era optante


pelo FGTS e contava com mais de 10 (dez) anos de serviço na data da rescisão
do seu contrato de trabalho.

9. Não prospera o pedido de aviso prévio. A Reclamada não demitiu o Recla-


mante sem justa causa, como afirmado na inicial. A rescisão do contrato
de trabalho resultou de causa alheia à sua vontade, mais especificamente
do fato legal, qual seja, o Reclamante atingir a idade-limite de 70 (setenta)
anos. Assim, improcede o pedido quanto a essa parcela.

10. As férias são devidas. A Reclamada não provou a concessão das mesmas
no período não atingido pela prescrição.

11. Por fim, o adicional de insalubridade. O Reclamante pleiteou na inicial


a condenação da Reclamada a lhe pagar o adicional de periculosidade, por
entender que em razão da função que exercia, estava sujeito a explosões e
queimaduras. Não pediu adicional de insalubridade. Assim, é nula a sen-
tença na parte em que condenou a Reclamada ao pagamento dessa parcela.

12. Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pelo provimento


parcial do recurso, na forma exposta acima. (p. 188).

O parecer do Ministério Público Federal foi recebido no dia 24 de setembro de


1990, quando foi encaminhado para a mesa do Ministro Julgador, na praxe
judiciária, entrou na “conclusão”. Em 15 de abril de 1992 houve publicação no
Diário da Justiça, seção II, às fls. 9478/482 para a inclusão dos autos na pauta
de julgamento do dia 5 de Maio de 1992.

É possível observar que, a partir desse momento, a dinâmica de processamento


da ação judicial, a partir dos trâmites judiciais previamente estabelecidos pela
legislação processual assume a forma, de fato, de mecanismo de negação de
direitos. A reclamação trabalhista ajuizada em 1982 foi julgada procedente
em primeira instância no ano de 1985, ano em que a União Federal ingressou

35
com recurso ordinário, impedindo a execução da primeira decisão. Em 1990,
cinco anos depois, o parecer do Ministério Público Federal foi recebido e em
1992 o julgamento se deu efetivamente, no dia 8 de setembro. O mesmo foi
concluído de acordo com a seguinte ementa:

PROCESSUAL TRABALHISTA. RESILIÇÃO COMPULSÓRIA. INDENIZAÇÃO INCABÍ-


VEL. DISPENSA. INOCORRÊNCIA. DESFAZIMENTO DO CONTRATO LABORAL POR
IMPLEMENTO DE IDADE. OCORRÊNCIA. HORAS EXTRAS COM SEUS REFLEXOS.
DEVIDAS. 13° SALÁRIO. INDEVIDO. MM. JUÍZO A QUO CONCEDEU ADICIONAL
DE INSALUBRIDADE NO LUGAR DE PERICULOSIDADE. INEXISTENCIA DE
NULIDADE. RECURSO, EM PARTE, PROVIDO.

A insalubridade não deixa de se constituir fator de perigo e, no caso dos


autos, comprovadamente afetou a saúde do Recorrido, causando-lhe di-
versas sequelas, anotadas pela perícia.

Em processo trabalhista não se pode exigir excessivo rigor técnico na for-


mulação do pedido, máxime quando a vantagem vindicada final equivale
à concedida, notadamente, no que toca ao seu valor.

A periculosidade é fator de possível ou provável dano e a insalubridade,


mais que a periculosidade, é certa e concreta;

ACÓRDÃO

Vistos e relatados os autos em que são partes as acima indicadas:

Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional da 2° Região, por maioria,


dar parcial provimento ao Recurso, na forma do Relatório e Voto do Sr.
Desembargador Federal Relator, constantes dos autos e que ficam fazendo
parte integrante do presente julgado.

A partir deste ponto da ação, cabe atentar-se para as datas de processamento


das formalidades processuais, o tempo do processo, portanto, e seu descom-
passo com o tempo da vida. No caso de Hermenegildo, tal descompasso se
deu da maneira mais cruel, posto que, como será descrito posteriormente, o
autor da reclamação trabalhista faleceu no ano de 1987.

36
Após o julgamento do recurso da União Federal e sua reforma para manter
parte da condenação julgada em primeira instância, não houve mais ques-
tionamento à sentença. O processo iniciou então uma fase posterior à do
julgamento do mérito, a fase de execução da sentença, na qual (em tese) não
há mais espaço para a discussão do mérito da decisão, apenas para a forma
do pagamento ao autor.

Em 20 de fevereiro de 1995 a União Federal ingressou com uma petição reque-


rendo que fosse nomeado um perito para o encaminhamento da liquidação
da sentença. Ao mesmo tempo, questiona o modo como o autor fundamenta
seu pedido.

Em 9 de março de 1995 o juiz federal Reis Friede, concordando com a União


Federal, nomeou perícia para a liquidação da sentença. Data do dia 20 de abril
de 1995 uma petição da União Federal requerendo a suspensão do processo
e informando que o autor da ação faleceu no dia 5 de julho de 1987, fato que
não foi informado nos autos. No atestado de óbito consta que Hermenegildo
Pedro Inocêncio era de cor parda, residia no município de Itaguaí e faleceu
aos 78 anos de idade de infarto agudo do miocárdio. O sepultamento foi rea-
lizado no cemitério de Marambaia (p. 258).

Após a informação, foram apresentados documentos para a substituição do


reclamante pelo seu espólio, representado por Altermira Inocêncio Nobre. Isso
não sem antes um ir e vir de papéis e documentações, com o questionamento
pela União Federal de ausência de documentos faltantes e pedido de regula-
ridade pelo juiz. Somente em 30 de junho de 2000 foi publicado o despacho
de regularização da sucessão processual, dando seguimento à liquidação da
sentença para o pagamento pela União Federal dos valores devidos ao espólio
de Hermenegildo Pedro Inocêncio.

Após a regularização, foi dado seguimento ao processo para que fosse deter-
minada a quantia a ser paga pela União Federal ao reclamante, posto que
a sentença de mérito apenas julgou seu direito a receber parte das verbas
requeridas. Após a nomeação do perito e o pagamento de seus honorários,

37
inclusive pelo reclamante, que não foi beneficiado pela gratuidade de justiça,
houve a apresentação do laudo pericial, datado de 15 de março de 2004, bem
como a solicitação de documento imprescindível.

Após o laudo, a União Federal foi intimada pelo Juiz para fornecer a docu-
mentação requerida. Em uma petição protocolada em 2 de junho de 2004,
a União anexa um ofício da Advocacia Geral da União com o seguinte teor:

Senhor,

A Advocacia-Geral da União, por seu Órgão de atuação abaixo assinado,


requer o cumprimento da manifestação judicial anexa, destacando o
ofício recebido do CENTRO DE ADESTRAMENTO DA ILHA DA MARAMBAIA,
no sentido de que nunca houve, lá, alguém com o nome do autor. (p. 357).

O ofício da Advocacia Geral da União reproduzia, na verdade, o conteúdo de


uma comunicação enviada à mesma pelo Capitão de Mar-e-Guerra, então
comandante do Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (CADIM), Wilson
Luiz de Lima Neves. No documento foi informado o seguinte: “conforme meu
ofício n° 143, de 06 de maio de 2004 e, após rigorosa verificação em nossos
arquivos, esta OM não possui informações sobre parcelas trabalhistas, atinentes
ao ex-servidor Civil 78.5089.91 HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO” (p. 366).

A representação do autor da ação informa, em outubro de 2004, após solicitada,


a respeito das informações acima prestadas, que “a negativa da União Federal
à solicitação do Sr. Perito formulada às fls. 352, importa da [sic] seguimento na
liquidação por arbitramento nos moldes da r. sentença liquidanda (...)” (p. 371).

Dando seguimento à ação, em fevereiro de 2005, a juíza federal Daniela Milanez


emite despacho solicitando novamente “à UNIÃO FEDERAL para fornecer os
elementos para os cálculos, conforme sentença de fls. 174/175 e acórdão de
fls. 194/195”.

A União solicita novo prazo, de 20 dias, para o cumprimento do despacho, ao


qual a União Federal responde com a juntada de nova comunicação entre a
Advocacia Geral da União e uma comunicação com a Marinha do Brasil, desta

38
vez a Diretoria do Pessoal Civil da Marinha, assinada pela Superintendente
do Pessoal Civil, Dulce Maria de Souza Santos Rosa. Na ocasião é juntada nova
planilha, identificada como “Posicionamento no Plano de Classificação de
Cargos da Lei n° 5.645/1970” referente a Hermenegildo Pedro Inocêncio, que,
no entanto, não atende às exigências periciais para a realização da liquidação
da sentença. Tal petição é datada de 19 de abril de 2005 (p. 376).

Em 10 de maio de 2005 a Justiça Federal emite novo despacho, solicitando


que a União Federal cumpra a exigência de juntada dos registros de entrada e
saída do funcionário no período entre outubro de 1980 até dezembro de 1981,
fazendo referência à solicitação anterior, de fls. 363, datada de 26 de março de
2004. Para tanto, é concedido novo prazo de 5 dias, desta vez “improrrogáveis”
(p. 384).

A União anexa nova petição, com o retorno de ofício enviado à Consultoria


Jurídica da Marinha do Brasil com a solicitação de cópia das “folhas de
registro de entrada e saída, constando os horários de entrada e saída do
Sr. HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO (...), no período de outubro de 1980
até dezembro de 1981 em nível mensal. (...) Inexistindo tais documentos,
solicitamos fornecer outros documentos necessários à elaboração de laudo
pericial” (p. 387).

Por fim, a juíza federal Daniella Rocha Santos Ferreira de Souza Motta soli-
cita à União, no dia 27 de setembro de 2005, que apresente “os horários de
entrada e saída do Sr. HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO, em 5 (cinco) dias,
impreterivelmente, sob pena de ser procedida a perícia na forma das horas
trabalhadas alegadas na inicial(...)” (grifos no original).

Esta decisão judicial teve como consequência a interposição, pela União


Federal, de um recurso ao Tribunal Regional Federal da 2° Região (TRF-2) em
novembro de 2005, mais especificamente um agravo de instrumento.

Em paralelo ao recurso, novo ofício ao Centro de Adestramento da Ilha da


Marambaia foi expedido, com novo retorno informando não possuir “quaisquer
informações ou documentos necessários para elaboração de laudo pericial,

39
atinentes ao ex- Servidor Civil 78.5089.91 HERMENEGILDO PEDRO INOCÊNCIO”
(p. 439, grifos no original).

O processo permaneceu então à espera do julgamento do referido recurso


pelo Tribunal. Em 23 de maio de 2007 consta a informação de que o Agravo
de Instrumento ainda não havia sido julgado. A informação se repete em 9 de
novembro de 2007, 8 de fevereiro de 2010, 6 de setembro de 2010, 16 de março
de 2011, 15 de dezembro de 2011.

Em sessão de 18 de setembro de 2012 foi realizado o julgamento e a 4° Turma


Especializada negou, por unanimidade, o provimento ao agravo (p. 500). Consta
ainda a informação, no relatório realizado pelo desembargador Luiz Antonio
Soares, de que os autos do agravo de instrumento “foram extraviados e foi
feita a devida restauração”. (p. 503).

Em 3 de julho de 2013 o processo foi retomado na primeira instância de jul-


gamento, para dar seguimento à liquidação da sentença. Foi realizado novo
pedido da documentação necessária à União Federal e novo prazo, de dez dias,
para o cumprimento do mesmo, “sob pena de ser procedida a perícia na forma
das horas trabalhadas alegadas na inicial. (...) Decorrido o prazo, intime-se o
Perito para indicar data, hora e local para a realização da perícia, com prazo
não inferior a 30 (trinta) dias, necessários à ciência das partes interessadas,
ciente de que deverá apresentar o laudo no prazo de 20 (vinte) dias, contados
a partir do início da perícia” (p. 509).

Após o prazo, em 5 de agosto de 2013, a União Federal apresentou petição


com os cálculos do Departamento de Cálculos e Perícias da Advocacia Geral
da União, informando que nada tem a opor ao valor executado no montante
total de Cr$ 289.676,10, representados em valores históricos na moeda da
época própria (Dez/1981) (p. 512).

Mediante tal petição, bem como a manifestação da representação do recla-


mante com o pedido de remessa dos autos ao Contador Judicial, mediante a
concordância da União Federal, após duas décadas, com a planilha de cálculo
apresentada pelo autor em 1994 (p. 515), o pedido foi concedido e em 12 de

40
dezembro de 2013, foi produzido o resumo dos cálculos atualizados até 12/2013
e convertidos para a moeda corrente, o real. O valor final, correspondente ao
pagamento que deverá ser realizado para o autor da ação é de R$ 3.303,67 (três
mil, trezentos e três reais e sessenta e sete centavos).

Em 13 de janeiro de 2014 o representante do autor impugna os cálculos ela-


borados pela Contadoria Judicial, argumentando que,

todavia, o Contador Judicial laborou em equívoco na atualização monetária


dos ditos cálculos, porquanto, tão somente procedeu a correção do valor
final de Cr$ 289.676,10 datado de 01/12/1981, olvidando-se, entretanto, que
os referidos cálculos deveriam sofrer atualização monetária por época
própria, ou seja, mês a mês, sob penal de se encontrar valor infinitamente
inferior ao correto. (p. 524).

Em anexo, apresentou uma nova planilha de cálculos, cujo valor total somava
R$ 48.335,40, sendo que R$ 14.500,62 deveria ser pago a título de honorários
advocatícios (30%) e R$ 33.834,78 o total líquido devido ao autor (p. 525).

Conforme pedido, os autos retornam à Contadoria Judicial, remetidos pelo


Magistrado. Os cálculos são retificados e chega-se a um novo somatório:
R$ 4.500,54. Novamente os cálculos foram impugnados pelo advogado de
Hermenegildo em 25 de julho de 2014 e apresentada nova planilha de cálculos
atualizada no valor de R$ 51.453,49.

Finalmente, em 10 de março de 2015, a União Federal se manifesta para dizer


que “nada tem a opor aos cálculos de fls. 541/543, no total de R$ 51.453,49
em valores de jul/2014, nos termos do parecer da Ilustre Contadoria desta
Procuradoria em anexo” (p. 546).

A descrição, compreensão e análise da Reclamação Trabalhista ajuizada por


Hermenegildo Pedro Inocêncio em face da União Federal no início da década
de 1980, como o intuito de requerimento judicial dos direitos negados durante
a vigência do contrato de trabalho entre ambos, apontou para a possibilidade
de reconstrução de parte das relações de trabalho que se constituíram na Ilha
da Marambaia após a chegada da administração da Marinha do Brasil em 1971.

41
A despeito de ter sido produzido com esse objetivo, o processo judicial permitiu
o levantamento de informações sobre jornadas de trabalho extenuantes em
ambientes insalubres, cumpridas por uma pessoa já idosa. Os fatos descrevem
uma importante dimensão da dinâmica de rápido crescimento econômico
atrelado a relações de trabalho precárias e degradantes, características do
período em análise, em que pese se tratar de uma relação de trabalho que não
está direcionada para a produção econômica propriamente dita.

É possível refletir sobre os impactos das relações sócio econômicas estabele-


cidas em regiões sob o controle direto das Forças Armadas durante o regime
militar no Brasil e como estas relações podem ser impactadas também pelo
conjunto das relações de trabalho que eram estabelecidas em paralelo, no
espaço agrário do país de maneira geral.

Além disso, é possível refletir ainda sobre o fato de que a forma como tal
relação de trabalho foi estabelecida não fugiu por completo da forma da lei,
que emprestou legitimidade ao modo como foram estabelecidas as regram
que regeriam o cotidiano de trabalho de Hermenegildo. Isso porque havia
contrato de trabalho escrito, salário pré-estabelecido, dentre outras forma-
lidades exigidas pelas normas vigentes. No entanto, tais formalidades não
impediram que a relação estabelecida remetesse aos tempos históricos nos
quais as práticas trabalhistas não eram contempladas pela regulamentação
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). E isso num contexto em que a
própria União Federal era a empregadora.

Ao mesmo tempo, é possível analisar e refletir sobre o momento em que


Hermenegildo passa a buscar a reparação pelas práticas degradantes esta-
belecidas durante a vigência de seu contrato de trabalho por meio do Poder
Judiciário, do processo judicial, portanto.

O fato se deu no ano de 1982, já num período em que politicamente se vis-


lumbrava a abertura “gradual e segura” do regime militar e após o mesmo
ser dispensado arbitrariamente de suas funções pela administração da Ilha.
Logo de início, seu requerimento esbarrou em uma regra legal que limitava

42
o questionamento de sua relação de trabalho aos dois anos anteriores ao seu
ingresso no Judiciário, independentemente da data de rompimento de seu
contrato[4]. No caso de Hermenegildo, que contava com mais de dez anos de
trabalho para a Marinha do Brasil, foi impedido de requerer o ressarcimento
da totalidade do período trabalhado devido à referida norma.

É possível perceber, portanto, uma continuidade, uma permanência, por-


tanto, no modo como se configuraram as relações sócio econômicas na Ilha
da Marambaia desde a ditadura militar até os anos finais de tramitação do
processo judicial, bem como nas relações de poder e dominação que possi-
bilitaram o rebaixamento das condições de trabalho dos funcionários civis
da administração militar durante a ditadura.

No mesmo sentido, é possível refletir ainda sobre como a condição de terri-


tório negro tradicional, contemporaneamente reconhecido como território
quilombola, pode ter colaborado para o modo como a Marinha do Brasil
passou a lidar com os funcionários civis, antigos moradores da Marambaia.

É possível refletir também como tais relações puderam ser perpetuadas ao


longo dos anos posteriores, mesmo após a emergência do processo político de
redemocratização do país e o fim do regime ditatorial, por meio do processo
judicial, que pode ser lido como um fio condutor entre os períodos históricos
diversos. É a materialização, portanto, da reflexão de Florestan Fernandes
quando afirma que no Brasil é possível a concentração de diversos tempos
históricos em um só.

Tal materialização pode ser percebida por alguns aspectos importantes. O


primeiro deles é a dinâmica da relação entre o tempo do processo e o tempo da
vida. No processo judicial, ambos os tempos são colocados em relação de modo
que o primeiro se apresente de forma apartada do segundo.

[4]  Trata-se do extinto artigo 11 da CLT, cuja redação afirmava que “Não havendo disposição
especial em contrário nesta Consolidação, prescreve em dois anos o direito de pleitear a repara-
ção de qualquer ato infringente de dispositivo nela contido”. O dispositivo foi revogado em 1998
e atualmente o prazo prescricional inicia sua contagem após o término da relação de trabalho.

43
De maneira geral, no processo judicial, o tempo é um elemento situado acima
do campo das regulamentações normativas e do ativismo judicial. Ele se
apresenta como uma dimensão quase fluida no campo dos embates entre
argumentações conflitantes. No entanto, pode incidir de forma decisiva na
configuração final da designação dos direitos discutidos.

Nem sempre o tempo longo, ou seja, o longo trâmite de um processo judicial


significa a perda de direitos. No caso das ações possessórias, por exemplo,
quando estão em litígio perspectivas opostas sobre a concepção de posse –
uma como sinônimo de propriedade e a outra atrelada ao cumprimento da
função social– o tempo longo para a decisão, ou mesmo a não decisão, pode
significar a vitória da segunda perspectiva.

Em relação ao processo judicial analisado nesta pesquisa, no entanto, o tempo


longo, ou seja, as cerca de três décadas de trâmite do pedido de ressarcimento
das verbas trabalhistas ajuizado por Hermenegildo Pedro Inocêncio significou
o aprofundamento, a reiteração e a atualização da violência que o mesmo esteve
submetido na forma de violação de seus direitos trabalhistas mais básicos.

Tal afirmação pode ser percebida no momento da liquidação da sentença, ou


seja, no momento em que foi necessária a tradução da sentença que reconheceu
a justeza de seu pedido em um quantum, um valor em dinheiro. A disparidade
entre o valor apontado pelo contador judicial e pela representação jurídica
do espólio de Hermenegildo aponta para a ausência de parâmetros claros
para a atualização monetária de valores traduzidos de décadas anteriores.

Tais aspectos reforçam a dimensão ideológica da construção do campo jurí-


dico como um espaço neutro, situado acima das relações de poder entre as
classes sociais e frações de classes presentes na sociedade.

44
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organizador e tradutor: BAR-
RENTO, João. . Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

DECCA, Edgar de. 1930: O Silêncio dos Vencidos. Brasiliense: São Paulo,
1988

GÓMEZ, José María (Org). Lugares de Memória: ditadura militar e re-


sistências no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2018.

LOPES, Aline Caldeira. Marambaia: Processo Social e Direito. Disserta-


ção defendida no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
UFRRJ, 2010.

PIRES, Thula. Colorindo Memórias e Redefinindo Olhares: Ditadura


Militar e Racismo no Rio de Janeiro. Comissão da Verdade Rio: Re-
latório de Pesquisa, 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/
wp-content/uploads/2015/12/Pires-T-Colorindo-memorias-e-redefinin-
do-olhares-Ditadura-militar-e-racismo-no-Rio-de-Janeiro-2.pdf. Acesso
em 28 de novembro de 2017.

RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE REMA-


NESCENTE DE QUILOMBOS DA ILHA DA MARAMBAIA, MUNICÍPIO DE
MANGARATIBA (RJ). Coordenação: José Maurício Arruti. Rio de Janeiro,
Koinonia Presença Ecumênica e Serviço e Fundação Palmares 2003.

RELATÓRIO DA COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE. Violações de


Direitos no Campo (1946-1988), 2014. Disponível em: https://cpdoc.fgv.
br/sites/default/files/Relat%C3%B3rio%20Final%20Comiss%C3%A3o%20
Camponesa%20da%20Verdade%20-%2009dez2014.pdf. Acesso em 28
de novembro de 2017.

Processo judicial
BRASIL. Justiça Federal do Rio de Janeiro. Reclamação Trabalhista n°
0492120-33.1900.4.02.5101.

45
Racismo Institucional e Sistema de Justiça com Foco no Sis-
tema Criminal

46
Carolina Dzimidas Haber[5]

1. Introdução

Em janeiro de 2015, diante da necessidade da consolidação de uma gestão


pautada pela coleta e análise de dados, a Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro criou a Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça,
fortalecendo, assim, “a compreensão de que a defesa dos direitos individuais
e coletivos, de forma integral e gratuita, deve ter como subsídio a produção
de dados que possibilitem a atuação estratégica dos defensores públicos”[6].

No âmbito dessa diretoria, foram realizadas diversas pesquisas que serviram


para qualificar a participação da instituição no debate público (DPERJ, 2018a) e
trazer à tona questões relevantes ao sistema de justiça e à sociedade, de forma
a contribuir ao planejamento e execução de políticas públicas.

Nesse sentido, a diretoria tem buscado, nas pesquisas realizadas até o momento,
apresentar dados que evidenciem o funcionamento do sistema de justiça
criminal, dentre os quais acaba se destacando a questão racial.

Com esse enfoque, serão apresentados os dados de três pesquisas diferentes,


sobre i) o perfil dos réus atendidos pela Defensoria Pública nas audiências
de custódia no Rio de Janeiro; ii) as sentenças judiciais por tráfico de drogas
na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro; e iii) o perfil das mulhe-
res processadas por aborto no Rio de Janeiro, de forma resumida, mas com
o destaque no perfil racial dos indivíduos que passaram pelo sistema de
justiça criminal.

[5]  Diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do


Rio de Janeiro

[6]  Resolução DPGE nº 880, de 16 de maio de 2017, que dispõe sobre o funcionamento da Diretoria
de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

47
2. O perfil dos réus nas audiências de custódia

As audiências de custódia, regulamentadas pela Resolução 29, de 24 de agosto


de 2015, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, começaram a funcionar na
cidade do Rio de Janeiro em 18 de setembro de 2015[7].

Durante a audiência, o juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade, ava-


liando a necessidade ou não de manter o preso custodiado ou se é caso de
concessão de liberdade provisória, com ou sem a imposição de outras medidas
cautelares. É também possível avaliar eventuais ocorrências de tortura ou de
maus-tratos, entre outras irregularidades, além de permitir que o réu tenha
acesso ao defensor o mais rápido possível, assegurando de forma efetiva a
ampla defesa.

Desde seu início, os defensores públicos preenchem um questionário de


atendimento ao preso, acompanhando diariamente a realização dessas
audiências. A partir desses questionários, é possível apresentar o perfil dos
réus atendidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, bem como indicar
o resultado da análise da prisão feita pelo juiz[8].

Considerando o total de 11.667 réus que passaram pelas audiências de custódia


entre 18 de setembro de 2015 e 15 de setembro de 2017, é possível verificar o

[7]  O art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992,
dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz
ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada
em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo”. Diante
dessa previsão, o Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Tribunal de Justiça de SP e
o Ministério da Justiça, entre outras entidades, iniciou um projeto para garantir que presos em
flagrante sejam apresentados a um juiz num prazo máximo de 24 horas, tendo como referência
o art. 306, §1º do Código de Processo Penal, que menciona esse prazo para apreciação do auto
de prisão em flagrante pelo juiz. Atualmente, as audiências de custódia ocorrem em todo país,
nas justiças estadual e federal.

[8]  Ver, sobre os dados coletados, os relatórios produzidos pela Defensoria Pública do Rio de
Janeiro (2018b, 2018c), disponíveis em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/53f2bf4a-
c82541d3a0aa8bc6c6243c3e.pdf e http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c2f0263c194e-
4f67a218c75cfc9cf67e.pdf, acesso em 10/08/2018.

48
índice de soltura por semestre, que variou, nos dois primeiros anos de reali-
zação dessas audiências, entre 34% e 48% (figura 1).

Levando-se em conta o perfil racial desses réus, a maioria é de pretos e pardos,


que correspondem a cerca de 75% do total (figura 2). Esse número reflete o
perfil das pessoas que compõem o sistema carcerário, formado, em sua maio-
ria, por negros (64%, de acordo com o Infopen de 2016)[9].

Entretanto, quando verificamos o índice de soltura por cor, percebe-se que os


réus brancos têm mais chance de serem soltos do que os réus pretos e pardos
(figura 3). Esse “possível tratamento judicial mais duro para os acusados negros”
aparece também em pesquisa realizada em âmbito nacional pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, a pedido do Conselho Nacional de Justiça,
que apontou, para as pessoas brancas detidas, um índice de manutenção da
prisão de 49,4% e para as pessoas negras, de 55,5% (CNJ, 2018).

Outro dado que merece destaque e pode contribuir com o debate sobre o
racismo institucional do sistema de justiça está relacionado aos casos em
que há relatos de agressões por ocasião da prisão, voltados, em sua maioria,
aos réus negros (figura 4).

[9]  http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_ junho.


pdf, acesso em 10/08/2016.

49
50
51
52
53
3. As sentenças judiciais de tráfico de drogas

Diante da constatação do aumento desproporcional da população carcerária


pela prática dos crimes envolvendo o uso e o tráfico de drogas consideradas
ilícitas após o advento da Lei nº 11.343/2006[10], colaborando para exacerbar o
contingente carcerário brasileiro que, em números absolutos, já é o terceiro
maior do mundo, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro realizou uma
pesquisa com o objetivo de analisar as justificativas contidas nas sentenças
judiciais de varas especializadas na área criminal no julgamento de crimes
relacionados ao tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, a fim de identificar quais são os critérios levados em consideração
pelos juízes para condenar ou absolver os réus envolvidos nesses tipos de
delito e, assim, pensar numa estratégia de defesa mais abrangente e eficaz[11].

Um dos dados interessantes verificados na pesquisa diz respeito à quantidade


de vezes em que o Ministério Público denuncia os réus pelos artigos 33 e 35 da
Lei nº 11.343/2006[12] (42,7%), maior do que o total de denúncias apenas pelo
tipo penal do art. 33 (40,27%), o que poderia levar à condenação de uma pena
de pelo menos oito anos (a pena mínima do artigo 33 é de cinco anos e a do

[10]  De acordo com os dados do DEPEN/MJ, entre dezembro de 2006 e dezembro de 2012, a
população carcerária cumprindo pena por tráfico de drogas aumentou de 65.494 para 138.598,
ou seja, 112%, enquanto a população carcerária total cresceu 88% (de 291.403 para 548.003).

[11]  A pesquisa (DPERJ, 2018d) é fruto de um convênio celebrado entre o Fundo Nacional
Antidrogas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e está disponível para consulta
em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913fa8a96.pdf,
acesso em 06/06/2018.

[12]  O art. 33 dispõe sobre as condutas de “importar, exportar, remeter, preparar, produzir,
fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” e o art. 35 sobre
a conduta de “associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou
não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e 34”.

54
art. 35 é de três anos), inviabilizando a aplicação do benefício da redução da
pena previsto no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006[13].

Ainda que metade dessas denúncias resultem em condenações apenas pelo


art. 33, 26,33% do total das condenações foram pelo concurso dos artigos 33 e
35 (26,33%). A análise das justificativas para o concurso revela que, na maioria
das vezes, prevalece a presunção de que o réu integra a associação em razão
do local da apreensão, dominado por facção criminosa (figura 5).

A maioria dos réus não tem antecedentes criminais (77,36%), nem condena-
ções em juízo (73,85%) e foram abordados sozinhos (50,39%), em flagrantes
decorrentes de operações regulares da polícia (57%), em lugar dito conhecido
pela venda de drogas (42,41%), portando consigo uma única espécie de droga
(48,04%).

A constatação de que o local é dominado por facção criminosa e, portanto,


o réu não poderia estar traficando sozinho nesse local, é feita pelos agentes
de segurança pública, que depõem como testemunhas em 94,95% dos casos,
sendo a única testemunha a depor em 52,33% deles.

Apesar de a pesquisa não ter se debruçado sobre o perfil social dos réus que
são condenados pelos crimes da Lei nº 11.343/2006, pois o foco foi a leitura
de sentenças, e a colheita desse tipo de informação demandaria a consulta
ao inquérito policial, foi possível identificar, quando se observa o mapa de
segregação racial do Rio de Janeiro (NEXO JORNAL, 2015), que a maioria das
sentenças da capital foi proferida em comarcas localizadas nas unidades
prisionais e nos bairros da zona norte do Rio de Janeiro, onde se concentra a
população preta e parda da cidade. A zona sul, com apenas 5,26% de ocorrên-
cia das sentenças, tem uma população majoritariamente branca (figura 6).

[13]  Art. 33, §4º. Nos delitos definidos no caput e no §1º deste artigo, as penas poderão ser redu-
zidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se
dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. 

55
3.1 – FIGURA 5:

Não Sim
Justificativas para o
Total
concurso
Nº % Nº %

Quantidade e/ou variedade de


662 86.54 103 13.46 765
droga

Presume-se integrar asso-


ciação em razão do local da
190 24.84 575 75.16 765
apreensão, que é dominado
por facção criminosa

Réu portava rádio transmis-


334 43.66 431 56.34 765
sor/arma

Prática de crimes de outros


665 86.93 100 13.07 765
diplomas legais

Ação em conjunto com ter-


720 94.12 45 5.88 765
ceiros

Outra 645 84.31 120 15.69 765

Fonte: DPERJ (2018d), Pesquisa sobre sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região
metropolitana do Rio de Janeiro.

56
57
4. As mulheres criminalizadas por aborto

A partir da leitura de 55 processos de aborto em trâmite no estado do Rio de


Janeiro, foi possível traçar o perfil das mulheres que são criminalizadas por
esse tipo de conduta, descrita no art. 124 do Código Penal (aborto provocado
pela gestante ou com seu consentimento)[14].

Do total de 42 mulheres processadas pelo crime consumado ou tentado, 15


eram as únicas rés no processo; cinco foram processadas em conjunto com a
pessoa com quem tinham um relacionamento sexual ou com algum familiar
que lhe auxiliou, e as demais (22) foram processadas em conjunto com as
pessoas que trabalhavam nas clínicas onde estavam fazendo o aborto quando
os policiais chegaram.

Para melhor compreensão da realidade dessas mulheres, elas foram divididas


em dois grupos, o primeiro composto por 20 mulheres, que na maioria dos
casos ingeriram Citotec ou chás abortivos para realizar o procedimento, e o
segundo por 22 mulheres, que estavam realizando ou tinham acabado de
realizar um procedimento para encerrar a gravidez em clínicas clandestinas
quando os policiais chegaram.

No Grupo 1, em geral, o que deu início à investigação foi a denúncia do pró-


prio hospital. Em algumas situações, essa denúncia estava relacionada a um
pedido de remoção do feto, mas em dois casos, ocorridos na capital, o policial
de plantão no hospital foi chamado enquanto as mulheres estavam sendo
atendidas, tendo, inclusive, um deles, falado que era assistente social para
obter a confissão da ré.

Observa-se que a situação dessas mulheres é de extrema vulnerabilidade, pois,


como regra, elas recorrem ao atendimento médico porque se sentiram muito
mal em casa, vindo a abortar, muitas vezes, no local onde foram atendidas.
Constatou-se que é comum que a mulher se demore a decidir pelo aborto

[14]  A pesquisa (DPERJ, 2018e) foi publicada na revista Entre a morte e a prisão: quem são as
mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro, disponível em http://www.
defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c70b9c7926f145c1ab4cfa7807d4f52b.pdf, acesso em 10/08/2018.

58
por medo de ser descoberta, realizando o procedimento com a gravidez já
em estágio avançado, sofrendo de forma mais drástica os efeitos do proce-
dimento de interrupção da gestação. Notou-se também que muitas abortam
no banheiro do hospital e são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros que
deveriam auxiliá-las a entender o que ocorreu com elas.

Há também dois casos de mulheres que tomaram chás abortivos, começaram


a sentir dores e sofreram todo o processo de expulsão do feto sozinhas den-
tro do banheiro de suas casas, sem nenhum apoio, ao menos de um familiar.
Ambas já estavam na segunda metade da gravidez e relatam que a sensação
que tiveram é de praticamente terem parido sozinhas.

Quanto aos aspectos sociais, extrai-se dos dados da pesquisa que 60% das
mulheres são negras e 40% são brancas. No campo da escolaridade, cinco têm
o 1º grau (completo ou incompleto), duas, o 2º grau (completo ou incompleto),
uma é analfabeta, uma tem o 3º grau e em 11 casos não foi possível obter
essa informação.

O tempo de gestação varia muito, mas apenas três mulheres indicaram ges-
tação abaixo de 12 semanas ou 3 meses (16,6% dos casos com informação).
Já 12 mulheres indicaram gestação entre 16 e 25 semanas, duas entre 26 e
28 semanas e uma mulher estaria em estado avançado de gravidez, com 38
semanas (83,3% dos casos com informação).

O perfil da mulher que vai até uma clínica particular realizar o procedimento
de interrupção da gravidez é diferente do perfil da mulher que se vale de outros
métodos, como a ingestão de medicamentos e chás abortivos, especialmente
no que diz respeito ao tempo de gravidez. Em todos os casos que se tem infor-
mação, a gestação estava abaixo de 12 semanas, o que indica que a mulher que
pode pagar pelo procedimento consegue tomar a decisão com mais rapidez.

Oito mulheres são brancas, quatro negras e três pardas. Considerando os


casos em que há informação sobre a cor, a proporção de mulheres brancas
no Grupo 2 (53%) é maior do que no Grupo 1 (40%).

59
Há uma prevalência de mulheres com melhor escolaridade dos que as do
Grupo 1, já que aqui 75% das mulheres cursaram até o 2º grau, enquanto no
Grupo 1 esta porcentagem é de apenas 22%.

Da análise desses dois grupos, foi possível perceber a situação de vulnerabi-


lidade dessas mulheres, que não encontram no sistema de saúde a estrutura
adequada para atendê-las no caso de um aborto mal sucedido. Pelo contrário,
sabendo que sua conduta é ilícita, essas mulheres adiam ao máximo a decisão,
agravando o risco ao realizarem um aborto num estágio avançado da gravidez,
como ficou demonstrado no Grupo 1.

As mulheres que tomam remédios e chás abortivos não sabem qual vai ser o
efeito dessas substâncias no seu corpo, arriscando a própria vida, com doses
erradas e efeitos colaterais, além de demorarem a buscar ajuda quando o
aborto está acontecendo, sofrendo sozinhas com o processo de expulsão do feto.

Conforme observado, as mulheres que têm condições de procurar clínicas


de aborto são mais instruídas e o fazem logo no começo da gravidez. Apesar
da situação arriscada em que realizam o procedimento, pois quase nunca
podem perguntar como vai ser realizado e muitas vezes devem comparecer
desacompanhadas e sem celular, e sofrem o risco de serem flagradas por
policiais que investigam a clínica, essas mulheres estão em melhor situação,
pois é mais comum contarem com a participação de um médico e tomam a
decisão bem mais cedo, com a gravidez ainda em fase inicial.

Do total de casos com informação, 54,2% das mulheres processadas é negra


e 54,7% das mulheres foram assistidas pela Defensoria Pública em algum
momento do processo. Se forem considerados apenas os casos com informação,
esse número sobe para 64,7%, o que nos leva à conclusão de que a crimina-
lização do aborto tem impacto desproporcional ao atingir especialmente as
mulheres negras e em situação de pobreza.

60
4.1 – FIGURA 7:

Grupo 1 Grupo 2

20 mulheres 22 mulheres

90% usaram citotec ou chás


abortivos; 45% finalizaram o Procedimento realizado em
aborto em casa e 45% no hos- clínicas que realizam abortos
pital

Em 83,3% dos casos o aborto foi Em 100% dos casos o aborto foi
realizado a partir de 16 sema- realizado antes de 12 semanas
nas de gestação de gestação

60% são negras 47% são negras

22% cursaram até o 2º grau 75% cursaram até o 2º grau

75% assistidas pela Defensoria 40% assistidas pela Defensoria


Pública Pública

Fonte: DPERJ (2018e), Pesquisa sobre o perfil das mulheres processadas por aborto no Rio de
Janeiro.

61
Referências
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Apresenta-
ção: A Defensoria em Dados: pesquisas realizadas pela Defensoria Pú-
blica do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018a.

________. Relatório. Um ano de audiência de custódia no Rio de Janeiro,


2018b. Disponível em: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/
53f2bf4ac82541d3a0aa8bc6c6243c3e.pdf

________. Relatório 2º ano das audiências de custódia no Rio de Ja-


neiro. 2018c.

________. Pesquisa sobre sentenças judiciais por tráfico de drogas na


cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro, 2018d.

________. Entre a morte e a prisão: quem são as mulheres criminali-


zadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro, 2018e. Disponível em:
http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c70b9c7926f145c1ab-
4cfa7807d4f52b.pdf, acesso em 10/08/2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório. Audiência de cus-


tódia, prisão Provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e
ideológicos à efetivação da liberdade como regra. 2018. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85593-audiencias-de-custodia-maio-
ria-sao-jovens, acesso em 10/08/2018.

DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Mi-


nistério da Justiça e Segurança Pública. 2018. Disponível em: http://
www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relato-
rio_2016_ junho.pdf, acesso em 10/08/2016.

NEXO JORNAL. O que o mapa racial do Brasil revela sobre a segre-


gação no país. 2015. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/es-
pecial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-sobre-a-segre-
ga%C3%A7%C3%A3o-no-pa%C3%ADs, acesso em 10/08/2018.

RESOLUÇÃO DPGE nº 880, de 16 de maio de 2017, que dispõe sobre o


funcionamento da Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça
da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

62
Racismo Institucional: Desafios e Perspectivas na Imple-
mentação de Políticas Antirracistas na FAETEC

63
Lilian do Carmo de Oliveira Cunha[15]

Introdução

Eu nunca tive certeza do que preencher nos formulários que tinham o campo
“cor”. Branca eu sabia que não era, mas ao olhar para a minha pele, ela não era
preta e também não era parda. Como é ser pardo? Pardo não é cor de papel?
Eu sou morena “oras”! Mas esta opção não aparecia nos formulários. E aí me
restava ficar com “o meio termo”: a opção parda. Também me recordo que
quando meus pais iam me matricular ou renovar matrícula na escola, havia
um campo destinado ao preenchimento da religião. Lembro que eles sempre
preenchiam que eram católicos, mas não frequentavam a Igreja Católica e
nem seguiam os preceitos desta religião, embora eu e minha irmã tenhamos
sido batizadas e feito primeira comunhão. Na adolescência, entendi que
meus pais eram “macumbeiros”, mas era muito agressivo aos ouvidos dos
outros dizer isso e por isso sempre se diziam católicos e talvez também por
isso colocaram a mim e a minha irmã para seguir os preceitos desta ordem
religiosa. Depois da minha primeira comunhão eu não mais frequentei a
igreja, a não ser para batizados e casamentos de familiares. O local que eu
frequentava semanalmente era o terreiro de umbanda, local este que frequen-
tei desde o ventre. Mas eu não era macumbeira, tinha vergonha disso, então
comecei a dizer que era espírita, pois parecia mais leve para a minha boca e
para os ouvidos dos outros. Muitas vezes eu dizia para meus amigos que iria
a uma festa ou na casa de algum parente, para não dizer que iria ao terreiro.
E assim os anos foram passando, mascarando a religião que até então era só
a dos meus pais, mas era o pé no chão e a batida do atabaque e das palmas
que faziam vibrar meu coração. Para Silvério (2002, p.223) “as discordâncias
sobre o modo de categorizar os morenos no sistema brasileiro podem des-

[15]  Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, Demandas


Populares e Contextos Contemporâneos – PPGEDUC/UFRRJ; Supervisora Educacional da Fun-
dação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC; membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas,
Movimentos Sociais e Culturas – GPMC.

64
vendar a dimensão política da nossa classificação racial”. E foi no intuito de
compreender a dimensão política de ser negro no Brasil que mergulhei na
busca de inúmeras respostas que não tinha...ou melhor, que ainda não tenho!

O racismo institucional, embora seja uma temática com crescente discussão,


tornando-se objeto de pesquisas nos últimos anos, ainda não possui muitas
investigações e bibliografias no campo da educação. A presente pesquisa
foi desenvolvida durante o mestrado acadêmico em Educação, Demandas
Populares e Contextos Contemporâneos, na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, sendo concluída no ano de 2017, e teve como um dos objetivos
principais analisar a implementação de políticas públicas antirracistas como
forma de enfrentamento ao racismo institucional presente nas instituições
escolares.

O ponto de partida e a proposta de pesquisa

A não inserção efetiva do negro na estrutura econômica, política, social


e cultural que se estabeleceu no período pós-abolição, deixou cicatrizes e
consequências a uma parte significativa da nossa sociedade, configurando
hierarquias sociais e raciais que perduram até os dias de hoje. A ausência de
ações por parte das instituições que detinham o poder estatal que tivessem
como finalidade abstrair o negro da condição de inferiorizado sustentou a
subordinação deste povo. “Daí poder afirmar que a presença do Estado foi
decisiva na configuração de uma sociedade livre que se funda com profunda
exclusão de alguns segmentos, em especial, a população negra” (SILVÉRIO, 2002,
p.225). Posteriormente, a ideia de democracia racial estabelecida no Brasil fez
parecer que todos aqueles que aqui habitavam tinham iguais condições de
acesso às diversas esferas da sociedade. A aparente convivência pacífica entre
as raças não denunciava as desiguais posições que os negros ocupavam. Seria
satisfatório poder narrar estas questões como um fato do passado, todavia,
essa segregação racial e social não foi modificada com o passar dos anos, uma
vez que no Brasil o senso comum faz persistir a ideia de que a raça não cons-
titui fator determinante para as desigualdades, isto mesmo depois da ideia

65
de democracia racial ter sido desvelada como um mito. Se entendermos que
estas hierarquias foram construídas para designar superioridade econômica,
social e cultural sobre os negros, consubstanciada por uma política estatal,
percebemos que desconstruir estas é condição emergencial para a efetivação
de uma sociedade verdadeiramente democrática.

A problemática racial é demarcada como uma questão social expressiva a


partir de denúncias de movimentos sociais, em especial, o movimento negro.
As evidências desencadeadas por estas mobilizações fizeram emergir a dívida
histórica que o Brasil tem com os negros, dívida esta que institucionalizou o
racismo por meio de mecanismos de segregação e exclusão que dificultaram
a mobilidade social, econômica e educacional da população negra. Estas
denúncias, posteriormente, resultaram na cobrança de um posicionamento
político no tocante ao tratamento dado ao negro e a sua cultura.

Nos espaços acadêmicos e espaços educacionais de diversos níveis, os debates


sobre a questão racial no Brasil ganharam grande proporção após a alteração
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) vigente, por meio da Lei
Federal 10.639/03, que tornou “obrigatório incluir nos currículos oficiais das
redes de ensino a temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’” (BRASIL, 2003),
propondo uma reestruturação nas concepções hegemônicas enraizadas nas
instituições escolares. Tendo como base esta lei, minha primeira proposta
seria pesquisar o currículo do ensino médio de uma erede estadual, obser-
vando a obrigatoriedade descrita na alteração da LDB por meio da Lei Federal
10.639/03. Após assistir uma aula com a professora da UERJ, Inês Barbosa de
Oliveira, em que ela mencionou a quase invisibilização dos profissionais da
educação que efetivam em seus cotidianos um enfrentamento com vistas a
uma educação verdadeiramente igualitária, refleti se a proposta de análise
curricular não seria “mais do mesmo”, mais uma pesquisa somada ao insucesso
das lutas antirracistas na educação que atribuiria “ao sujeito”, no caso, o pro-
fessor, a não efetivação das leis na prática. Comecei a indagar sobre “quem faz
acontecer”. Será que suas ações individuais são o bastante para modificar um
contexto institucional racista? E a escola enquanto instituição, submetida a

66
uma gestão e a órgãos governamentais, de que maneira combate este racismo
institucional? Será que a existência de políticas antirracistas modifica por
si só as relações raciais nos espaços escolares? Podemos afirmar que basta
que leis sejam promulgadas para que as questões concernentes ao racismo
sejam sanadas? Uma imposição legal traz mudanças efetivas nas práticas?

As falas recorrentes de muitos docentes apontam as dificuldades tocantes


à implementação destas políticas públicas (OLIVEIRA, 2012). Percebe-se um
distanciamento entre teoria e prática e isso, muitas vezes, recai sobre questões
subjetivas. Em sua pesquisa, Oliveira (2012, p. 21) evidencia “uma significativa
distância entre as reflexões teóricas e conceituais sobre a questão étnico-ra-
cial e a disponibilidade efetiva, de grande parte dos docentes, de enfrentar
possíveis conflitos na prática de ensino”. Todavia, o que os dados de pesquisas
nesta temática apontam como atitudes e/ou limitações individuais, outros
sinalizam como parte de um sistema que confere suporte a este racismo
individual (PACE e LIMA,2011), explicando a lógica social de internalização e
naturalização da reprodução das desigualdades.

Para Silvério (2002, p. 223), “as discriminações e os racismos são componentes


essenciais na conformação da sociedade brasileira e operam menos no plano
individual e mais no plano institucional e estrutural”. Assim, estas dificul-
dades de abordagem e tratamento das questões concernentes às relações
raciais, resultantes de uma legitimação do racismo por parte do Estado, são
entendidas como racismo institucional. O conceito de racismo institucional
refere-se à manifestação do racismo nas estruturas de organização da socie-
dade, ou seja, nas diversas instituições que a compõem, definidas por North
(1990 apud SAMPAIO, 2003, p.81) como organizações que englobam corpos
políticos, econômicos, sociais e educacionais. Para Sampaio (2003, p. 79) “a
identificação precisa do significado de racismo institucional se constitui em
condição sine qua non para uma implementação exitosa de políticas”. Por este
prisma, torna-se imprescindível a compreensão de que

67
na forma individual o racismo manifesta-se por meio de atos discrimi-
natórios cometidos por indivíduos contra outros indivíduos; podendo
atingir níveis extremos de violência, como agressões, destruição de bens
ou propriedades e assassinatos (GOMES N. L., 2005. p. 52).

Já a forma institucional

implica práticas discriminatórias sistemáticas fomentadas pelo Estado ou


com o seu apoio indireto. Elas se manifestam sob a forma de isolamento
dos negros em determinados bairros, escolas e empregos. Estas práticas
racistas manifestam-se, também, nos livros didáticos tanto na presença de
personagens negros com imagens deturpadas e estereotipadas quanto na
ausência da história positiva do povo negro no Brasil (GOMES N. L., 2005. p. 52).

Tomando como base as falas de Gomes N. L. (2005), Oliveira (2012), Silvério


(2002) e Sampaio (2003), é possível afirmar que existe uma estrutura racista,
quase filosófica, presente nos diversos segmentos da sociedade e ela se reflete
diretamente no sistema educacional. Esta estrutura se revela sólida quando,
mesmo com a existência de determinações legais que objetivam mudar este
cenário, outros fatores impedem que o antirracismo se torne uma práxis;
e investigar que fatores são estes foi um dos objetivos desta pesquisa. O
campo em que a investigação foi realizada, estabelecendo assim o recorte
da pesquisa, foi a Fundação de Apoio à Escola Técnica– FAETEC, instituição
pública responsável pela educação profissional e tecnológica do Estado do
Rio de Janeiro, vinculada à Secretaria de Ciência e Tecnologia e Inovação. É
importante pontuar os aspectos que justificam a importância social e polí-
tica do trabalho apresentado. O primeiro é que as discussões voltadas para o
racismo institucional estão em grande parcela direcionadas às organizações
do campo econômico (NORTH, 1990 apud SAMPAIO, 2003), como órgãos tra-
balhistas, havendo poucas análises no campo educacional, onde o racismo
institucional se manifesta de maneira sutil, travestido de racismo individual.
Outra questão, considerando o racismo institucional como estrutura, é a
compreensão de que silenciosamente este racismo inviabiliza a expansão
de práticas pedagógicas de caráter afirmativo, mesmo havendo respaldo da

68
legislação vigente. Fato este que, como já mencionado anteriormente, confere
ao indivíduo o insucesso e/ou não concretização das leis na prática, havendo
necessidade de avanço e aprofundamento destas afirmações. Evidenciadas as
questões acima, a pesquisa visou contribuir para novas explanações sobre o
racismo institucional e políticas públicas antirracistas no contexto escolar.

Entendendo o racismo institucional

Pensar o racismo a partir da perspectiva de Hasenbalg (2005) nos auxilia de


maneira relevante para compreender a estruturação das relações raciais no
Brasil. Após a análise sociológica de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes,
a discussão trazida por Hasenbalg aponta os diversos caracteres fundantes
do racismo estrutural do país. Na mesma linha teórica, George Reid Andrews
(1998), embora não tenha cunhado o termo de racismo institucional em sua
obra, apresenta uma descrição aprofundada da dimensão ideológica em que
o racismo se forja no Brasil, tornando-se fator determinante para a concentra-
ção de poder e prestígio a determinado grupo social frente às imposições de
ordem política e institucional levadas a cabo pelo Estado (ANDREWS, 1998, p.13).

O período pós-abolição foi marcado, entre outras questões, pelas dificulda-


des enfrentadas pelos negros para se inserirem no mercado de trabalho. As
oportunidades de trabalho eram disputadas com os imigrantes europeus,
que tinham o privilégio de acesso a estas. Andrews (1998) aponta o Estado
“como árbitro na competição entre negros e imigrantes pelo mercado de tra-
balho”. Assim, fica evidente um sistema que impede que os negros disputem
as oportunidades dos melhores trabalhos em detrimento do favorecimento
aos imigrantes. Começa então a se delinear “as poucas oportunidades e as
dificuldades de ascensão dos negros, em relação à maioria branca. Esta fica
com os melhores empregos, deixando aos negros os lugares menos cobiçados
e mais mal pagos” (ANDREWS, 1998, p.14). Este fato define o lugar do negro na
organização política e, consequentemente, na organização social, considerando
as hierarquias sociais, o que possibilita o entendimento de outras questões
socioculturais de inferiorização, discriminação e segregação.

69
Entender esta estrutura econômica contribui para a identificação da dimensão
cultural da desigualdade racial brasileira, onde o poder do Estado influenciou
a estruturação de um sistema discriminatório, determinando um modelo de
racismo no país. Nesse sentido, foram desenvolvidos no Brasil alguns “padrões
básicos da desigualdade racial” (ANDREWS, 1998, p. 47) relacionados com a sua
história nas esferas econômica, social e política. Ou seja, “as políticas e ações
empreendidas pelas instituições do Estado (corpos legislativos, entidades
executivas, tribunais) ou instituições ligadas ao Estado (partidos políticos, a
Igreja, os sindicatos) tiveram impactos importantes sobre as relações raciais no
Brasil” (ANDREWS, 1998, p.46). Se forja então uma ideologia racista (ANDREWS,
1998, p. 262) por trás de uma aparente democracia racial existente, ideologia
esta que define quem ocupa os lugares sociais, agregando um “estereótipo
antinegros” (ibidem) com raízes tão profundas que ele se mantém nos dias
atuais. “Os negros são vistos como criminosos, preguiçosos, estúpidos, irres-
ponsáveis, promíscuos, mal cheirosos, a essência do outro que contamina a
sociedade” (ANDREWS, 1998, p. 263). Neste contexto, Andrews apresenta uma
intrigante reflexão: se a imagem negativa do negro inclui como característica
ser preguiçoso, por que a eles é conferido o trabalho braçal? O autor atribui a
não oportunidade de ascensão destes à concentração da expansão econômica
do Estado, uma vez que estes empregos eram e ainda são mal remunerados.

O fato central da vida de classe média no Brasil é que ela representa uma fuga
do mundo do trabalho braçal, do mundo do povo, degradado e associado à
pobreza. Por isso, os empregos de colarinho branco carregam consigo benefí-
cios psicológicos que complementam e às vezes até excedem seus benefícios
financeiros; e a competição para conseguir e se manter nesses trabalhos é
correspondentemente intensa. Aqueles que competem pelo status do colarinho
branco usam todos os recursos de que dispõem: educação, ligações pessoais
e familiares, boa aparência e status racial (ANDREWS, 1998, p.265).

Andrews (1998), ao analisar a condição racial do negro, associando-a com a


sua posição social e vice e versa, corrobora com os argumentos de Hasenbalg
(2005) no momento em que desmonta a perspectiva de harmonia racial descrita

70
por Freyre e a dissociação raça e classe feita por Fernandes, fundamentando
a ideia de que o racismo é uma estrutura ideológica, um sistema organiza-
cional institucionalizado. Em linhas gerais, as diferenças raciais, culturais e
econômicas existentes no Brasil são resultantes de uma construção histórica
que, embora tenham sido reconfiguradas com o passar dos anos, se mantém
como parte da representação social. Corroborando com o pensamento de
Hasenbalg e Andrews, Silvério (2002, p.222) afirma que a discriminação racial
teve uma configuração institucional, tendo o Estado legitimado historica-
mente o racismo institucional.

O conceito de racismo institucional foi cunhado na década de 1960, nos


Estados Unidos da América, para especificar como se manifesta o racismo
nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições, para descrever
os interesses, ações e mecanismos de exclusão estabelecidos pelos grupos
racialmente dominantes (PACE e LIMA, 2011, p.4).

Observando o contexto histórico descrito por Andrews, percebe-se que o


racismo sempre teve sua representação como estrutura social, não se redu-
zindo a atitudes individuais, e sim institucionalizadas, como nos afirma
Silvério (2002), estabelecendo uma lógica racial que legitimou um juízo de
superioridade de uma raça sobre a outra. Assim, podemos entender o racismo
institucional como a existência de um sistema de discriminação operado e
mantido pelas estruturas sociais de poder, que se sobrepõe às ações de discri-
minação racial individuais. Ou ainda, como a gerência do poder do Estado na
manutenção do racismo ou inação deste para o enfrentamento do racismo
nas estruturas institucionais da sociedade.

Ressalto, mais uma vez, que o racismo institucional no Brasil é pouco debatido,
resultando também na ínfima produção bibliográfica sobre a temática, prin-
cipalmente no tocante ao reflexo deste nas instituições escolares. Contudo,
penso que a análise da pesquisa realizada trouxe contribuições para o debate,
bem como a exposição de exemplos na prática descritos pelos colaboradores
desta investigação, os professores entrevistados, auxiliando para uma melhor
compreensão do conceito em tela.

71
Perspectivas da implementação de políticas públicas antir-
racistas na Faetec

Considerando que um dos objetivos das ações afirmativas é a neutralização


dos efeitos da discriminação racial, em consonância com o enfrentamento ao
racismo institucional, realizei uma pesquisa documental a fim de identificar
as políticas públicas afirmativas no âmbito da Faetec. A Rede, nos 19 anos
de sua existência, caminhando para o vigésimo, só possui dois documentos
institucionais concernentes ao antirracismo. As demais políticas públicas
antirracistas cumpridas pela instituição são leis de nível estadual e federal,
que abrangem os níveis de ensino por ela atendida. A primeira lei de caráter
afirmativo que atingiu a Faetec foi a Lei Federal 10.639, de 09 de janeiro de
2003, que altera a Lei 9.394/96, tornando obrigatório incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”.

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá


o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão mi-


nistrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

72
Em 2008, o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passou
a vigorar com outra redação, a partir da promulgação da Lei 11.645:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-
ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas
no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na for-
mação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos


indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo es-
colar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras.

Observando a alteração da LDB em 2003, tendo ela determinado a inclusão


dos conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira no âmbito de
todo o currículo escolar, já emerge a necessidade de ações que promovam a
sua implementação.

Ainda no ano de 2003, durante o governo Rosinha Garotinho, a Lei nº 4.151


instituiu o sistema de cotas para ingresso nas universidades públicas estaduais:

Art. 1º - com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas,


deverão as universidades públicas estaduais estabelece cotas para ingresso
nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:

I – oriundos da rede pública de ensino;

II – negros;

III – pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, integrantes


de minorias étnicas, filhos de policiais civis e militares, bombeiros mili-

73
tares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou
incapacitados em razão do serviço.

Art. 3º - Deverão as Universidades Públicas Estaduais constituir Comissão


Permanente de Avaliação com a finalidade de:

I – orientar o processo decisório de fixação do quantitativo de vagas aos


beneficiários desta lei, levando sempre em consideração seu objetivo maior
de estimular a redução de desigualdades sociais e econômicas;

II – avaliar os resultados decorrentes da aplicação do sistema de cotas na


respectiva instituição; e

III – elaborar relatório anual sobre suas atividades, encaminhando-o ao


colegiado universitário superior para exame e opinamento e posterior
encaminhamento à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Art. 4º - O Estado proverá os recursos financeiros necessários à implemen-


tação imediata, pelas universidades públicas estaduais, de programa de
apoio visando obter resultados satisfatórios nas atividades acadêmicas
de graduação dos estudantes beneficiados por esta Lei, bem como sua
permanência na instituição.

Art. 5º - Atendidos os princípios e regras instituídos nos incisos I a IV do


artigo 2º e seu parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência
desta Lei deverão as universidades públicas estaduais estabelecer vagas
reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo total de 45%
(quarenta e cinco por cento), distribuído da seguinte forma:

I- 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;
II- 20% (vinte por cento) para negros; e III - 5% (cinco por
cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor,
integrantes de minorias étnicas, filhos de policiais civis, militares, bombei-
ros militares e de inspetores de segurança e administração penitenciária,
mortos em razão do serviço.

74
Conforme exposto na estrutura institucional da Faetec, tendo em vista a exis-
tência do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e das Faculdades
de Educação Tecnológica, esta lei também passa a incidir sobre a Fundação.
Cabe destacar que o artigo 3º da lei supracitada estabelece a constituição de
uma comissão permanente de avaliação com vistas ao acompanhamento dos
alunos cotistas. Esta deliberação não foi cumprida no tocante ao nível superior.

Em 2007, um importante documento institucional marca a oficialização de


um movimento docente que vinha se articulando na Rede para promover a
implementação da Lei 10.639/03. A Resolução conjunta nº 03, da Secretaria de
Ciência e Tecnologia – SECT/ Fundação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC,
regulamenta o Núcleo de Estudos Étnico- Raciais e Ações Afirmativas (NEERA)
como órgão de Ensino, Pesquisa e Extensão.

Art. 1º A presente resolução regulamenta o Núcleo de Estudos Étnico- Ra-


ciais e Ações Afirmativas (NEERA), setor vinculado ao Programa de Inclusão
da FAETEC, como órgão de ensino, pesquisa, extensão e consultivo, acerca
da Educação das Relações Étnico-raciais, da História e cultura africana
e afro-brasileiras e das ações afirmativas de promoção da diversidade e
igualdade étnico-racial no âmbito da Rede FAETEC.

Parágrafo único. Para fins de relações, parcerias e convênios institucionais,


a FAETEC reconhece o NEERA como o seu Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros.

Art. 2º Compete ao NEERA:

I – Pesquisar, produzir análises e propor ações afirmativas para soluções


de problemas referentes ao cumprimento da legislação, em especial dos
artigos 26-A e 79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as Di-
retrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e as Convenções Internacionais
de Combate ao Racismo, Preconceito e outras formas de discriminação e
as violações de Direitos Humanos;

II – Traçar um plano de ação anual para fomentar o debate e a produção


de material pedagógico sobre Diversidade Cultural, Educação das Relações

75
Étnico-Raciais, História e Cultura afro-brasileira e Políticas de Ação Afir-
mativa no âmbito da Rede FAETEC;

III – Promover, no âmbito da FAETEC, formação continuada de profissionais


e grupos de pesquisa sobre os conteúdos da História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana, educação das relações étnico-raciais e ações afirmativas;

IV – Produzir e divulgar publicações acadêmicas, material didático- pe-


dagógico, exposições e suportes audiovisuais resultados de pesquisas e
investigações em educação das relações étnico-raciais e História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira;

V – Organizar em parceria com os Institutos Superiores de Educação da


FAETEC cursos de Especialização e Extensão sobre Diversidade Étnico- racial
e História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

A formação do NEERA, sua regulamentação e as atividades por ele desenvolvida


são um capítulo à parte na história da Faetec, que demarca as perspectivas
da implementação de políticas públicas antirracistas na Rede, bem como os
desafios encontrados considerando o racismo institucional presente nas
instituições educacionais.

Em 15 de abril de 2013, no governo Sérgio Cabral, a Lei 6.433 institui o sistema


de cotas para ingresso nas escolas técnicas estaduais do Estado do Rio de
Janeiro, com basicamente os mesmos princípios e definições da legislação
das universidades públicas estaduais. A diferença encontra-se no artigo 5º,
onde ao invés de destinar 45% de vagas às cotas, são destinadas 40%:

Art. 5º Atendidos os princípios e regras instituídos no artigo 2º e seu pa-


rágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei deverão
as escolas técnicas estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes
carentes, negros, pardos e índios no percentual mínimo total de 40% (qua-
renta por cento), distribuído da seguinte forma:

I – 20% (vinte por cento) para estudantes carentes que cursaram integral-
mente o ensino fundamental na rede pública de ensino;

76
II – 20% (vinte por cento) para estudantes negros, pardos e índios.

No mês seguinte à promulgação desta lei foi publicada a portaria Faetec/


PR nº 386, criando a Comissão Permanente de Avaliação da Rede Faetec, em
atendimento à determinação da lei, com os objetivos dispostos em seu artigo
5º. A comissão foi composta por 3 docentes lotados em escolas técnicas, 1
representante da Diretoria de Desenvolvimento da Educação Básica e Técnica,
1 representante da Divisão de Inclusão, 1 representante do Serviço Social e
1 representante da Divisão de Registros Escolares. O processo de criação da
comissão registra que no ano de 2013 foram realizados três encontros entre
os membros, nos meses de julho, agosto e setembro, em que em um destes
foi nomeado como presidente o professor Alexandre Nascimento. Não foram
encontrados registros de reuniões posteriores.

A partir do levantamento das políticas de ações afirmativas que englobam


a Faetec e dos documentos institucionais que orientam as ações para a pro-
moção da igualdade racial da Rede, foi possível investigar as estratégias de
enfrentamento ao racismo institucional na Faetec; compreender a trajetória
da implementação de políticas públicas antirracistas na instituição; e analisar
as perspectivas dos docentes no tocante às estratégias de enfrentamento ao
racismo institucional.

Com o objetivo de investigar as estratégias de enfrentamento ao racismo insti-


tucional na Faetec, perguntei aos professores quais intervenções institucionais
antirracistas eram importantes de serem destacadas e se a Faetec possuía
ações/políticas antirracistas anteriores à promulgação da Lei 10.639/03, pri-
meira lei voltada para a reestruturação curricular com vistas a uma mudança
epistemológica no tocante à história e cultura do Brasil. Sobre as ações e
políticas anteriores à alteração da LDB pela lei 10.639/03, os companheiros
da pesquisa foram unânimes, afirmando que não havia nenhuma política
e que as ações antirracistas se limitavam à ação isolada de alguns docentes
nas unidades escolares, ou seja, não havia antirracismo a partir de uma
perspectiva institucional.

77
Um grupo de professores vinha fazendo isso individualmente e iam se
agrupando na medida em que sabiam que havia outro grupo de professores
abordando a discussão (...) Eu já era membro da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros, então fora da Faetec já estava pleno esse debate e
quando começou esse movimento, eu me integrei a ele. (Professor Alexandre).

Quem fez ali fez no espaço reduzido da sala de aula. E com certeza só tinha
espaço em maio e em novembro. Outros professores falavam alguma coisa
em função do 13 de maio e do 20 de novembro, mas era aquele mural com a
imagem do escravo, rompimento de grilhão, as mesmas imagens do tempo
em que fui alfabetizada. (Professora Ana Diogo).

Até onde eu conheço, tinha vários professores espalhados em várias esco-


las que faziam ações, mas a gente não tinha contato no sentido de trocar
ideias e experiências. Não tinha uma ação unificada da Faetec. (Professor
Luiz Fernandes).

O professor Aderaldo faz uma análise mais aprofundada ao falar sobre ini-
ciativas institucionais:

Quando pensamos iniciativas institucionais, tem duas instâncias: uma da


própria escola, da gestão da escola, da direção, que tem uma certa autono-
mia. E outra da gestão da própria Fundação. Como a Fundação é formada
por várias escolas que fazem parte da Rede, existe essa instância que estaria
na gestão geral da instituição e também o feedback das ações da escola. E
aí eu acho assim, que em termos de instituição Faetec, o momento de agir
nesse sentido de propor essas ações mais objetivas do antirracismo, ficou
um pouco pra trás, demorou um pouco.

A partir desta análise, esbarramos com outro objetivo proposto pela pesquisa,
que foi compreender a trajetória da implementação de políticas públicas
antirracistas na instituição. Com base nos documentos apresentados enquanto
políticas públicas da e para a Faetec e nos dados apresentados pelos docentes,
constatamos aqui que a Faetec não possui um histórico de enfrentamento
antirracista autônomo. Sua trajetória de implementação de políticas de ação

78
afirmativa esteve vinculada por determinações legais de instâncias superio-
res, ou seja, do Governo Federal e Estadual, bem como à ação individual de
professores militantes que, engajados com o combate ao racismo por um
posicionamento político, permearam as suas práticas, envolvendo também
outros colegas que de alguma maneira achavam a discussão importante,
mas não sabiam por onde começar a desenvolvê-la. As entrevistas também
apontaram que, mesmo após a Faetec ter que adotar estratégias antirracistas
por força de lei, elas ainda não caracterizavam uma perspectiva institucional,
tendo forma ainda de ação personificada. “As iniciativas eram individuali-
zadas. Mesmo assim, após a Lei, as ações passam a ser institucionais, mas na
perspectiva dos indivíduos. Ainda não é uma política institucional. Não é
uma perspectiva institucional efetiva”. (Professora Selma).

É importante considerar também que a Faetec, enquanto instituição edu-


cacional, é submetida, em ordem hierárquica, a duas outras instituições
de instâncias maiores: a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Inovação e ao
Governo do Estado do Rio de Janeiro, órgãos que só foram propor políticas
afirmativas também no ano de 2003, a partir das cotas para as universidades
estaduais, deixando de fora, por 10 anos, propostas voltadas para a educação
básica, sendo esta inserida também a partir do estabelecimento de cotas
para as escolas técnicas estaduais. Pontuo esta questão, pois, de acordo com
o Parecer CNE/CP 003/200429, que visa regulamentar a alteração trazida pela
Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1994 os municí-
pios de Aracajú e Belém já possuíam leis que dispunham sobre a inserção
de conteúdos relativos aos negros na formação sociocultural brasileira, na
disciplina de História e no currículo “de 1º e 2º graus”, respectivamente. Do
mesmo modo, em 1996, o município de São Paulo criou uma lei dispondo
sobre a introdução nos currículos das escolas municipais de estudos contra
a discriminação. Isto mostra a autonomia dada à gestão municipal e, conse-
quentemente, estadual, na criação de dispositivos legais que se preocupem
em educar para as relações étnico-raciais, objetivando repensar a relações
entre os diferentes em sua identidade racial. Ou seja, o Estado, mantendo-se

79
na inércia da criação de programas e políticas antirracistas voltados para
a educação, é responsável pela manutenção do racismo institucional nesta
esfera. Do mesmo modo, se as instituições educacionais também não se
fizerem ativas no enfrentamento às diferenças étnico-raciais e culturais que
fazem parte do cotidiano da escola, sendo esta parte da estrutura social, elas
também estarão corroborando com a perpetuação do racismo.

Cabe ao Estado promover e incentivar políticas de reparações, no que cum-


pre ao disposto na Constituição Federal, Art. 205, que assinala o dever do
Estado de garantir indistintamente, por meio da educação, iguais direitos
para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um, enquanto pessoa,
cidadão ou profissional. Sem a intervenção do Estado, os postos à margem,
entre eles os afro-brasileiros, dificilmente, e as estatísticas o mostram sem
deixar dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigual-
dades e gera injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em
preconceitos e manutenção de privilégios para os sempre privilegiados
(Parecer CNE/CP 003/2004, p. 3).

Outra questão exposta pelos companheiros entrevistados diz respeito à pro-


mulgação da Lei 10.639/03. Esta lei se constitui num marco político no tocante
à luta antirracista, sobretudo no campo educacional. É a concretização das
reivindicações do movimento negro para a construção de uma “política cur-
ricular, fundada em dimensões históricas, sociais e antropológicas oriundas
da realidade brasileira [que] busca combater o racismo e as discriminações
que atingem particularmente os negros” (Parecer CNE/CP 003/2004).

As falas dos professores fundamentam uma questão expressiva no tocante


ao racismo institucional: embora já houvesse uma mobilização acerca de
ações antirracistas desde o ano de 1999 por parte de docentes nas diversas
unidades da Fundação, uma estrutura de ação coletiva só veio a se consoli-
dar no momento em que uma professora militante, a professora Sílvia Cruz,
passou a fazer parte de um setor institucional, ou seja, de uma parte da Rede
que estava ligada diretamente à direção geral.

80
Os desafios para a implementação das políticas públicas percebidas a partir
da trajetória da Faetec possibilitam demonstrar em quais aspectos o racismo
institucional se mantém nas estruturas educacionais. Retomando uma questão
colocada nos tópicos introdutórios deste trabalho, a respeito da afirmação
de que não é por falta de políticas que o cenário das relações raciais não se
efetivou em termos concretos, a partir das contribuições dadas pelos docentes
que se dispuseram a participar desta pesquisa, notamos que também não é
por falta de esforço, de práticas pedagógicas ou de propostas de ação que o
enfrentamento ao racismo não se torna efetivo. Existe um interesse de cunho
ideológico para que este sistema se mantenha e, desta forma, para que os pri-
vilégios e o poder social continuem sobre a população branca. Em cada esfera
social o racismo institucional opera de uma maneira, mas como quer que se
apresente, se não houver também um esforço institucional para combatê-lo,
o antirracismo será um eterno processo de luta solitária, solidária e militante.

81
Referências
AGUIAR, Márcio Mucedula. “Raça” e desigualdade: as diversas interpre-
tações sobre o papel da raça na construção da desigualdade social no
Brasil. Tempo da Ciência (15) 29, p. 115-133. UFGD, 2008.

ALVEZ-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências


naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pio-
neira, 1998.

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo, (1888-1988).


Tradução de Magda Lopes. São Paulo: EDUSC, 1998.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília: MEC, 2004

_______. Estatuto da igualdade racial: Lei nº 12.228, de 20 de julho de


2010, e legislação correlata. 4 ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edi-
ções Câmara, 2015.

_______. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.html Acesso em agosto de
2014.

_______. Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm Acesso em ja-
neiro de 2016.

_______. Lei nº 7.716 de 05 de janeiro de 1989. Disponível em: http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716.htm Acesso em fevereiro de 2017.

_______. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclu-
são. Brasília: MEC, SECADI, 2013.

82
COSTA, Sérgio. A construção sociológica da raça no Brasil. Estudos
Afro-Asiáticos, Ano 24, nº1, p. 35-61. Rio de J a n e i -
ro, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
d=S0101546X2002000100003&script=sci_arttext Acesso em janeiro de
2016.

DOMINGUES, Petrônio. O recinto sagrado: educação e antirracismo no


Brasil. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 138, set. /dez. 2009. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cp/v39n138/v39n138a14.pdf Acesso em janeiro
de 2017.

FARIAS, Rosane de Abreu. Ensino médio integrado na Rede Faetec:


do tecnicismo à uma nova concepção de educação profissional? 2016.
205f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Huma-
na) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro, 2016.

FERNANDES, Florestan. Além da pobreza: o negro e o mulato no Brasil.


Em: O negro no mundo dos brancos. 2ª edição. São Paulo: Global, 2007.

GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (orgs.). Métodos de


Pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

GOMES, Joaquim B. Barbosa Gomes. A recepção do Instituto da Ação


Afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. Em: Ações afirmativas
e combate ao racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate


sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. Em: Educação an-
ti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.63. Brasília: SECADI
– MEC, 2005.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Bra-


sil. São Paulo: Editora 34, 2009.

83
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
2ed. Tradução de Patrick Burglin. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de
Janeiro: IUPERJ, 2005.

HERINGER, Rosana. Mapeamento de ações e discursos de combate às


desigualdades raciais no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, nº 2, p.
1-43, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid=S0101-546X2001000200003. Acesso em setembro de 2015.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da


liberdade. São Paulo: Ed. Martins fontes, 2013.

LIMA, Fabiana Ferreira de; KLEIN, Gudrun; FARIAS, Úrsula Pinto Lima de.
A formação docente promove uma educação antirracista? Reflexões
sobre aqueles “que se educam entre si”. Em: CUNHA, Lilian do Carmo
de Oliveira; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; LEMOS, Roma Gonçalves (or-
gs.).1ªed. Rio de Janeiro, Editora Selo Novo, 2016.

LINS, Mônica Regina Ferreira; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Por uma
desobediência epistêmica: sobre lutas e diretrizes curriculares antirra-
cistas. Revista da ABPN, v. 06, n 13, p. 365-386, mar –
jun, 2014. Disponível em: http://www.academia.edu/7511227/
POR_UMA_DESOBEDI%C3%8ANCIA_EPIST%C3%8

AMICA_SOBRE_LUTAS_E_DIRETRIZES_CURRICULARES_ANTIRRACIS-
TAS Acesso em dezembro de 2016.

MEDEIROS, Carlos Alberto. Ação afirmativa no Brasil: um debate em


curso. Em: Ações Afirmativas e combate ao racismo nas Américas.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2005.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: história e debates no Brasil. Ca-


dernos de Pesquisa, n.117, p. 197-217. Novembro, 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf . Acesso em outubro de 2015.

MOTTA, Roberto. Paradigmas de interpretação das reações ra-


ciais no Brasil. Estudos Afro- Asiáticos, nº 38, p. 113-133, Rio de Ja-
neiro, 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi-

84
d=S0101546X2000000200006&script=sci_abstract&tlng= PT Acesso em
fevereiro de 2016.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de


raça, racismo, identidade e etnia. Em: Programa de Educação sobre
o negro na sociedade brasileira. BRANDÃO, André Augusto P. (org.). Ni-
terói: EdUFF, 2000.

NASCIMENTO, Alexandre do; PEREIRA, Amauri Mendes; OLIVEIRA,


Luiz Fernandes de; SILVA, Selma Maria. Histórias, Culturas e Territórios
Negros na Educação – reflexões para uma reeducação das relações ét-
nico-raciais. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

NEERA. Projeto de curso de extensão em História da África e Cultura


Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Faetec, 2007.

_______. Projeto de Pós-graduação em História da África e Cultura


Afro-Brasileira e Educação para as Relações Étnico-Raciais. Rio de
Janeiro: Faetec, 2007.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. História da África e dos africanos na es-


cola: desafios políticos, epistemológicos e identitários para a formação
dos professores de história. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2012.

_______. História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos da Faetec. XXV


Simpósio Nacional de História. Fortaleza: ANPUH, 2009.

________. Produzir conhecimento é um pensar militante. Disponí-


vel em: http://www.institutobuzios.org.br/documentos/Luiz%20F.%20
de%20Oliveira_Produzir%20conhecimento%20%C3%A9%20um%20
pensar%20militante.pdf. Acesso em dezembro de 2016.

PACE, Ângela F.; LIMA, Marluce O. Racismo Institucional: apontamentos


iniciais. Revista Artifícios, v.1, nº2, 2011. D i s p o n í v e l
em: www.artificios.ufpa.br/Artigos/a%20angela%20pace%20rev.pdf .
Acesso em maio de 2015.

85
PEREIRA, A. M. Para além do racismo e do antirracismo: a produção
de uma cultura de consciência negra na sociedade brasileira. Itajaí:
Casa Aberta Editora, 2012.

RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Catálogo Faetec 2013. Rio de Ja-


neiro, FAETEC, 2013.

________. Decreto 42.327 de 04 de março de 2010. Rio de Janeiro, 2010.

________. Lei nº 1.176 de 21 de junho de 1987. Rio de Janeiro, 1987.

________. Lei nº 2.735 de 10 de junho de 1997. Rio de Janeiro, 1997.

________. Lei nº 3808 de 05 de abril de 2002. Rio de Janeiro, 2002.

SAMPAIO, Elias de Oliveira. Racismo Institucional: desenvolvimento so-


cial e políticas públicas de caráter afirmativo no Brasil. Revista Interna-
cional de Desenvolvimento Local, Vol.4, n. 6, p.77-83. Campo Grande:
UCDB, 2003.

SEPPIR. O que são ações afirmativas. Disponível em: http://www.


seppir.gov.br/assuntos/o- que-sao-acoes-afirmativas. Acesso em janeiro
de 2016.

SILVÉRIO, Valter Roberto. Ação afirmativa e o combate ao racismo ins-


titucional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, nº 117, p. 219-246. 2002. Dis-
ponível em http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15560.pdf . Acesso em maio
de 2015.

SOUZA, Arivaldo Santos. Racismo Institucional: para compreender o


conceito. Revista da ABPN, vol. 1, n.3, p.77-87, 2011. Disponível em: http://
www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/view/39/82. Acesso
em janeiro de 2016.

86
A Manutenção do “Tráfico” contra Mulheres Negras: A Análi-
se da Readaptação da Escravização do Século XIX à “Guerra
às Drogas” do Século XXI

87
Lorraine Carvalho Silva[16]

Introdução

Este artigo visa apresentar o panorama entre o fim do período escravocrata


no Estado brasileiro, a construção da raça como fundamento da inferiori-
dade da população negra liberta e a manutenção de privilégios da população
dominante. A visão linear de emblemáticas legislações do fim do século XIX
e início do século XX é essencial para se compreender que as práticas estatais
de criminalização da população negra não foram irracionais.

Ao expor dados e informações oficiais no capítulo 1, demonstra-se o perfil


da população carcerária feminina, composta majoritariamente por mulhe-
res negras. Além disso, expõem-se as demais vulnerabilidades a que estão
suscetíveis pela falta de acesso à educação, ao mercado de trabalho formal,
à saúde, à moradia digna.

Em seguida, o capítulo 2 apresenta as legislações do fim do período escravo-


crata ao início da República e como o século XX se inicia objetivando manter
as relações do período de exploração do corpo negro. Incentivos à imigração
em conjunto com políticas de exclusão da população negra, sobretudo pelo
desenvolvimento do mito da democracia racial, foram essenciais para a
marginalização da população negra.

Este processo, portanto, não envolve somente as movimentações legislativas,


mas readaptações efetivas de controle social. A punição que estava sob o
comando do senhor, com o fim da escravização, passa às autoridades policiais

[16]  Mestranda em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em


Social Innovation Management pelo Amani Institute (2018). Pós-graduada em Direito Penal
Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (2017). Pós-graduada em Direitos Fundamentais pelo
Centro de Direitos Humanos da Universidade Coimbra em parceria com Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (2017). Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015).
Advogada. Coordenadora executiva do II e III Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM. Membra da Comissão de Igualdade Racial
da OAB-SP e da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo.

88
e ao Estado por meio do direito penal. Não à toa, ao longo dos anos de 1830 e
1940, vigeram três códigos penais e somente um código civil, sendo este de 1916.

Atualmente, a construção da inferioridade e criminalização do corpo negro


permanece como forma de controle. A diferença reside na dimensão das
políticas de exclusão da população negra. O encarceramento em massa é uma
dessas dinâmicas e quando se volta para a população de mulheres encarce-
radas, percebe-se um crescimento exponencial, sendo a grande maioria por
acusações de crimes relacionados à droga.

A declaração unilateral de guerra às drogas perpetua esforços proibicionistas


contra uma prática sem violência e sem vítimas. Se, ao contrário, entende-se
que a repressão despendida contra o tráfico de drogas e, principalmente,
contra o traficante – lê-se, nesta oportunidade, jovem, negra e periférica – é a
única responsável pela produção de vítimas, tem-se o conjunto de declaração
unilateral de guerra.

O objetivo, portanto, é demonstrar que o sistema carcerário brasileiro atinge


a terceira maior população do mundo e a quarta composta por mulheres
– negras, em 62% - porque o Brasil transformou a escravização de pessoas
traficadas da África no encarceramento em massa do século XXI contra a
população negra por meio da criminalização do tráfico de drogas.

1. Expondo o perfil feminino e negro do encarceramento


em massa

1.1. Mulheres destinadas a serem “sujeitos de segunda


classe”

O Brasil ocupa a terceira posição na lista de países com as maiores populações


carcerárias do mundo, com o total de 726.712 pessoas privadas de liberdade no
país (INFOPEN, 2016. p. 7). Quando se volta para a população feminina aprisio-
nada, tem-se a junção de outras vulnerabilidades às violações decorrentes da
superlotação, tendo em vista que, no cárcere, as opressões do patriarcalismo

89
se reproduzem. Neste primeiro capítulo, serão expostos dados com recorte
de gênero, raça e classe como delineamento do sistema carcerário imposto
às mulheres negras.

Segundo dados informados pelo Depen ao Supremo Tribunal Federal (STF) no


Habeas Corpus nº 143.641 (Ofício nº 618/2017/GAB)[17], a população carcerária
de mulheres aumentou em 800% entre os anos de 2000 e 2016, atingindo um
total de 44.721 mulheres presas. Esta expressiva quantidade coloca o Brasil
na quarta posição de maior população prisional feminina do mundo, sendo
importante pontuar que 43% dessas mulheres estão presas provisoriamente,
ou seja, as acusações que recaem sobre elas ainda não foram a julgamento.

As vulnerabilidades associadas a violações de gênero estão explícitas no


contexto prisional. Contudo, não há como tratar da questão de gênero sem
considerar as opressões de raça e classe, em consonância com Angela Davis:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, in-
forma a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe
é vivida. Precisamos refletir bastante para perceber as intersecções entre
raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem
relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir
a primazia de uma categoria sobre as outras (DAVIS, 2011).

Dados do INFOPEN Mulheres 2ª edição, expressam que a taxa de aprisiona-


mento entre 2000 e 2016 aumentou em 455%, constituindo-se uma popula-
ção carcerária de 42.355, em que 62% das mulheres aprisionadas são negras
(INFOPEN, 2017). Tal dado não é mera coincidência, indica a criminalização
incidente sobre uma parcela específica da população.

(...) é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de


sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades

[17]  Os dados consultados no site do STF juntados ao processo Habeas Corpus nº 143.641
divergem dos números apresentados pelo levantamento divulgado em 08 dez. 2017. Não se
pode afirmar se tal divergência se dá por dados não inseridos no INFOPEN, por omissão de
alguns estabelecimentos prisionais que, entretanto, teriam divulgado seus dados ao Depen
como resposta ao Ofício judicial.

90
latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu
impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria
hierarquia de gênero em nossas sociedades (CARNEIRO, 2011).

Ao se destacar a raça em conjunto com as vulnerabilidades impostas ao


gênero mulher, busca-se expor a construção histórica de opressões advindas
do racismo estrutural fundante na sociedade brasileira. Além dos recortes de
gênero e raça, é importante também aprofundar a análise quanto à opressão
da hierarquia de classes, imposta pela estrutura do capitalismo.

A pesquisa Tecer Justiça traz que, da população que compõe o estudo, “41,6% das
mulheres e 27,9% dos homens declararam ganhos de até um salário mínimo
e 33,8% das mulheres e 42,2% dos homens, entre um e três salários mínimos”
(INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA et al., 2012. p. 34), expondo a seleção,
pela justiça criminal, de um perfil com grande vulnerabilidade econômica.

O evidente pertencimento ao baixo estrato econômico da população carce-


rária expõe a hiperrepresentatividade das mulheres negras aprisionadas
– retomando a clássica fala de Angela Davis citada anteriormente. Ademais,
o INFOPEN Mulheres 2ª edição expressa que cerca de 45% das mulheres não
concluíram o ensino fundamental, enquanto 15% concluíram o ensino médio
e somente 1% completou o ensino superior.

O Dossiê Mulheres Negras, formulado pelo Instituto de Pesquisa Econômica


Aplicada (IPEA) em 2013, acentua que, em 2009, quanto à taxa de escolarização
de ensino superior, “a diferença entre mulheres brancas e negras era de 13,9
pontos percentuais” (IPEA, 2013. p. 40 e 59) e, aproximadamente, de 15 pontos
com relação ao ensino médio, possibilitando presumir qual o perfil mais
condizente com o 1% apontado pelo INFOPEN Mulheres.

Também em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reali-


zou uma síntese de dados sobre a qualidade de vida da população brasileira.
Segundo as informações, do número de mulheres participantes, 68,8% não
trabalhava e não estudava, e 62,9% das pessoas identificadas como pretas

91
ou pardas tampouco exerciam essas atividades. Este levantamento ainda
aponta que:

Enquanto do total de estudantes brancos de 18 a 24 anos 69,4% frequen-


tavam o ensino superior, apenas 40,7% dos jovens estudantes pretos e
pardos cursavam o mesmo nível (…). Essa proporção ainda é menor do que
o patamar alcançado pelos jovens brancos em 2004 (47,2%) (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014. p. 109).

Evidente que a falta de oportunidades de acesso à educação de qualidade,


relacionadas também com a alta taxa de abandono escolar, precariedade do
ensino público de educação de base, gestação na adolescência, violência de
gênero, trabalho infantil, opressões que atingem em maior grau mulheres
negras, permitem concluir que o mercado de trabalho também é inacessível
a elas.

Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (AGÊNCIA BRASIL, 2012)


indica que mulheres negras e indígenas somam 41,5% da geração que não tra-
balha ou estuda na faixa etária entre 18 a 25 anos. Quando atuam no mercado,
exercem profissões subalternizadas, exploradas e, muitas vezes, informais.
Neste contexto, a dissertação de Dina Alves evidenciou que, da população
entrevistada, 77,8% trabalhava como empregada doméstica (ALVES, 2015. p.
62) e, nos casos em que conquistam uma posição no mercado de trabalho
formal, destacam-se situações em que a mulher negra receberia até 172% a
menos que o homem branco (GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2015).

O racismo é estrutural e, ainda que se superem alguns obstáculos, a desi-


gualdade não diminui, ela simplesmente se desloca e se adapta. Conforme
exemplificado por Dina Alves:

Entre as trabalhadoras com carteira assinada também existe diferença. O


percentual é de 33,5% das mulheres brancas e 28,6% das mulheres negras.
Isso reflete diretamente no salário que elas recebem: R$ 766,6 das brancas
contra R$ 639,0 das negras; valor inferior ao salário-mínimo. (ALVES, 2017.
p. 107).

92
A situação de vulnerabilidade que enfrenta a mulher negra é notoriamente
mais acentuada se comparada aos demais grupos sociais. A influência nega-
tiva da desigualdade econômica em conjunto com as opressões do racismo e
do machismo compõem os requisitos criminalizantes do sistema de justiça
criminal, os quais serão ainda reproduzidos como controle dentro do sistema
penitenciário.

1.2. As violações de direitos fundamentais pelo cárcere

Após a exposição do perfil feminino e negro que compõe a população peni-


tenciária brasileira, as condições de aprisionamento a que estão submetidas
também devem ser discutidas. De plano, frisa-se um recorte necessário quanto
à falta de estabelecimentos prisionais femininos. De acordo com o INFOPEN
– atualizações – junho 2016:

A maior parte dos estabelecimentos penais foram projetados para o públi-


co masculino. 74% das unidades prisionais destinam-se aos homens, 7%
ao público feminino e outros 17% são caracterizados como mistos, o que
significa que podem contar com alas/celas específicas para aprisionamento
de mulheres dentro de um estabelecimento originalmente masculino.
(INFOPEN, 2017. p. 19. grifo meu).

O aprisionamento de mulheres em uma estrutura pensada para as neces-


sidades do homem causa, por si só, violações à própria existência feminina
nestes espaços de privação de liberdade. Situação que, para além de descum-
prir o artigo 82, § 1º, da Lei de Execuções Penais, fere o princípio da dignidade
humana em face das especificidades da mulher.

O fato de somente 17% dos estabelecimentos prisionais serem exclusivamente


femininos, em conjunto com o déficit de 359.058 vagas (INFOPEN, 2017. p. 20)
no sistema penitenciário nacional, aponta mais uma forma de opressão sobre
as mulheres em estabelecimentos mistos, quando não em presídios mascu-
linos, pois não há qualquer garantia de preservação de espaços isolados, em
atenção às especificidades do gênero mulher. A destinação de uma ala ou cela

93
em presídios mistos ou masculinos, portanto, não elimina as violações a direi-
tos inerentes à mulher pela evidente inadequação das estruturas prisionais.

A ausência de objetos de higiene íntima, demandas de saúde, como médicos


ginecologistas, locais adaptados aos períodos de gravidez, pós-parto e ama-
mentação são alguns dos apontamentos que marcam demandas específicas
das mulheres. Entretanto, a discussão limitada ao gênero, respeitando sua
evidente importância, não satisfaz as necessidades de mulheres que também
vivenciam recorte racial, o qual aponta para uma situação de maior vulnera-
bilidade, violência e enfrentamento que não pode ser ignorada.

Segundo Simone Henrique, “ao lado das doenças prevalentes na população


negra, há uma lista de patologias que acometem apenas mulheres negras, tais
como câncer de colo de útero, câncer de mama, doença inflamatória pélvica
etc.” (HENRIQUE, 2013. p. 101). Ademais, o Ministério da Saúde apontou que a
Diabetes tipo II – não insulinodependente é mais comum em pessoas negras,
sendo que as mulheres negras possuem 50% mais chances de desenvolvê-la
do que mulheres brancas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005. p. 8).

Ressaltar as deficiências dos estabelecimentos prisionais pelo recorte de gênero


e raça não significa dizer que a solução está na construção de novos presídios
adaptados, pois, afinal, o sistema prisional brasileiro como um todo impõe
violações a direitos fundamentais. Destaca-se que o Supremo Tribunal Federal,
na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (ADPF 347)
decidiu, em análise preliminar do pedido, pelo reconhecimento do “Estado de
Coisas Inconstitucional” quanto ao sistema penitenciário brasileiro.

De acordo com o Ministro Relator Marco Aurélio, o pedido da Arguição vai


além da humanização dos presídios, pois reconhece que o funcionamento
deficiente do Estado é estrutural e, portanto, torna-se responsável por viola-
ções a direitos fundamentais de presos e presas, e pela própria manutenção
de insegurança para toda a sociedade.

O encarceramento de mulheres negras não é um fenômeno que se destaca no


Brasil por relações de criminalidade, mas por processos de criminalização. O

94
cárcere é uma ferramenta de controle que detém pessoas pré-determinadas,
mulheres negras pobres e jovens, impondo a elas situações de repressão e
opressão quando institucionalizadas. Nas palavras de Angela Davis:

A prisão assim sendo funciona ideologicamente como um local abstrato


onde indesejáveis são depositados, aliviando-nos da responsabilidade
de pensar sobre os reais problemas que afligem as comunidades de onde
os prisioneiros foram marcados em tamanho número desproporcional.
(DAVIS, 2003. p. 16. tradução livre).

A exposição dos processos de criminalização demonstra as adaptações arti-


culadas e rearticuladas pelo Estado brasileiro após a abolição da escravatura,
objetivando manter a inferioridade imposta à população negra.

2. A função do sistema prisional e a readaptação das corren-


tes

O encarceramento em massa como instrumento de controle contra corpos


de mulheres negras não é um fenômeno novo, mas uma readaptação das
antigas ferramentas que surgiram pós-abolição da escravatura.

Neste capítulo será traçado um panorama, por meio de determinadas legis-


lações, do período que culminou em 13 de maio de 1888 e o início dos anos
pós proclamação da República. Em seguida, apresentar-se-á a construção da
“raça” no Brasil como termo que, tendo um sentido a princípio biológico, se
transforma em sociocultural. Por esta apresentação, espera-se que seja pos-
sível perceber a influência do racismo, do patriarcalismo e do capitalismo
no aprimoramento do encarceramento como meio de controle e exclusão
contra corpos femininos negros.

2.1. Uma parte da história à margem da “história geral”

Em que pese o apagamento de registros sobre o período escravocrata por Rui


Barbosa como forma de “esquecimento da barbárie”, assume-se que em 1538
Jorge Bixorda teria traficado as primeiras pessoas a serem escravizadas no

95
Brasil. O período de 1700 a 1810 é a época de maior fluxo de tráfico negreiro,
sendo estimado um total de 1.891.400 de pessoas escravizadas (GELEDÉS –
INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2012). Com a proclamação da independência
do Brasil, em 1822, iniciam-se movimentos abolicionistas pelo progresso do
país e, em 1888, é promulgada a Lei que decretou a abolição da escravização.

Ana Luiza Flauzina, em sua dissertação “Corpo Negro Caído no Chão: o sis-
tema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro” (2006), apresenta os
desenvolvimentos articulados entre regimes políticos e controles contra a
população negra. Com base em Nilo Batista, aponta que os sistemas penais
brasileiros podem ser divididos em quatro momentos: colonial-mercantilista,
período de 1500 a 1822, que compreende o contexto relacional casa-grande/
senzala onde são concebidas as gradações do sistema penal; imperial-escra-
vista, momento em que se intensifica a repressão contra a resistência dos
quilombos, período em que foram implementadas legislações de violência
sobre os corpos negros ao mesmo tempo em que se formaram movimentos
abolicionistas contrários ao regime escravagista; republicano-positivista,
período em que se intensificam esforços para a manutenção da submissão e
inferioridade da população negra recém-liberta; e o período atual neoliberal,
em que a violência contra corpos negros permanece institucionalizada e se
manifestando também por meio do sistema prisional.

Segundo Wlamyra Albuquerque, “[d]iante da propagação dos ideais abolicio-


nistas, da rebeldia dos cativos e da crescente ingerência do Estado Imperial
nas relações escravistas, cresciam as tensões e incertezas acerca do desfecho
da questão servil no Brasil” (2009. p. 33). As legislações vigentes durante o final
do período escravocrata foram ensaios que prolongaram ao máximo a formal
abolição instituída pela Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Aliás, é possível
destacar o caráter meramente formal da Lei de 1888, tendo em vista que, na
prática, a maioria das pessoas já não estava mais submetida à escravização.

O exercício legislativo de se adiar a formal extinção do período escravocrata


não foi um movimento inconsciente. O Código Criminal do Império de 1830,
por exemplo, reconhecia o caráter de pessoa ao escravizado e escravizada,

96
ainda que não fossem reconhecidos como sujeitos de direito civil, tendo em
vista que a Constituição do Império de 1824 previa como cidadão brasileiro
os nascidos no Brasil se libertos e, ainda assim, não possuíam direito a voto,
como os considerados criminosos.

No esteio do reconhecimento da condição de pessoa dada à população escra-


vizada na seara criminal na segunda metade do século XIX e em consonância
com o cenário de total desvantagem, apresentam-se diversas leis que cons-
truíram uma hierarquia socioeconômica racializada. As leis de ensaio para
a abolição da escravatura denotam indubitável desinteresse na libertação
das pessoas escravizadas.

Nos anos de 1850, foram promulgadas duas leis com finalidades bem demar-
cadas. A Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, estabelecia medidas de repres-
são ao tráfico negreiro em complemento à Lei de 7 de novembro de 1831, que
já previa multas aos que traficassem pessoas da África ao Brasil e penas de
extradição aos próprios escravizados. Ambas as Leis de combate ao tráfico
negreiro foram inofensivas ao propósito, sobretudo porque ainda não havia
interesse na mudança do regime servil. Segundo Ana Flauzina, “é por meio
desse tipo de mecanismo que não visa libertar aos poucos, mas, ao contrário,
aprisionar um pouco mais, que as elites brancas ganham o tempo necessário
para construir o novo caráter racial do país” (2006. p. 63).

Paralelo a tais tentativas de prorrogação da abolição da escravatura, também


em 1850 entra em vigor a Lei nº 601, de 18 de setembro, conhecida como Lei
de Terras. Tal dispositivo estabelecia, em seu preâmbulo, a disposição de que
as terras já medidas e demarcadas “sejam elas cedidas a título oneroso, assim
para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de
nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação
extrangeira na forma que se declara.” (BRASIL, 1850. grifo meu). Além disso,
autorizava gastos públicos com a vinda de colonos livres, sendo que a admi-
nistração pública teria como prioridade tomar medidas antecipadas para
que, logo após o desembarque de tais estrangeiros, conseguissem emprego
(art. 18, da Lei nº 601, de 1850).

97
As ações estatais deste período iniciam passos duvidosos quanto à pró-
pria liberdade da população negra escravizada no país e, ao mesmo tempo,
criam condições de privilégio e acesso aos estrangeiros imigrantes. Wlamyra
Albuquerque, ao apresentar dois casos de deportação de pessoas negras
livres a serem julgados pela comissão de justiça do Conselho do Estado, um
de 1866 e outro de 1877, conclui que “cada um dos casos foi analisado em
períodos distintos, mas sob o mesmo princípio: ‘pessoas de cor não podiam
imigrar para o Brasil’, fossem livres ou libertas, todas deveriam ser deportadas”
(ALBUQUERQUE, 2009. p. 66).

Neste contexto de prolongação do estado de subumanidade, especificamente


quanto às mulheres negras escravizadas, tem-se a Lei nº 2.040, de 28 de setem-
bro de 1871 (Lei do Ventre Livre), a qual previa a condição de liberdade aos
filhos de mulheres escravizadas sob a condição de que até os oito anos de
idade a criança ficaria sob o poder dos “senhores” de suas mães. Após os oito
anos, os “senhores” poderiam entregá-los ao Estado mediante recebimento
de indenização ou se utilizar dos serviços dessa criança até que completasse
21 anos, sendo a omissão do “senhor” interpretada pela Lei como opção pelo
uso dos serviços.

Outra previsão desta mesma Lei era a possibilidade do filho da mulher escra-
vizada se remir da servidão mediante prévia indenização pecuniária paga
pela criança ou por terceiro, sendo que o “senhor” deveria acordar com o valor
para viabilizar o negócio.

Indiscutível, pela análise desta Lei, que não havia qualquer propensão do
Estado em inserir a população negra escravizada na sociedade, ao menos,
não sem garantir um benefício ao “senhor”. E quando se fala em um legítimo
movimento a favor da liberdade dessa população, exalta-se a resistência das
pessoas escravizadas no exercício da quilombagem.

Para Clóvis Moura, a quilombagem é um processo histórico e de resistência


iniciado no século XVI. A formação de quilombos pelas pessoas negras que
fugiam da exploração perdurou durante todo o período escravocrata e se

98
concretizou como uma forma efetiva de desgaste ao regime de exploração
escravagista. A repressão contra essas manifestações de resistência se intensi-
ficou ao longo dos anos e, com a abolição em 1888, essas relações de controle
contra o corpo negro que escapa às regras preestabelecidas como aceitáveis
socialmente se adaptam a novos domínios. Nas palavras dele:

o quilombo foi a unidade básica de resistência, persistindo desde os pri-


meiros momentos da escravidão até praticamente a sua decomposição
econômica e social. Durante todo o tempo em que existiu a escravidão,
foi um fator permanente de desgaste econômico, social e psicológico do
escravismo, inclusive porque criou a “síndrome do medo” que atingiu e
deformou psicologicamente a classe senhorial. (MOURA, 2004. p. 338).

Somado a este contexto, o incentivo estatal aos imigrantes não-africanos e


a iminência da abolição da escravatura formam um período marcado pelo
início de novas ferramentas de controle.

Até 1886, no âmbito penal, vigorava a pena corporal de açoite, conforme o


artigo 60 do Código Criminal de 1830. Com a vigência da Lei nº 3.310 de 1886,
que revoga referido dispositivo, determina-se a aplicação das mesmas penas
previstas no Código Criminal já aplicadas a qualquer delinquente não-escra-
vizado, exceto quando forem estipuladas penas “de degredo, de desterro ou de
multa” (BRASIL, 1886), as quais aos escravizados serão substituídas por pena
de prisão, simples ou com trabalho. Esta revogação é bastante emblemática,
pois evidencia que dois anos antes da abolição da escravatura, altera-se o
modo de punição às pessoas escravizadas criminalizadas.

A abolição de fato chega em 1888 e em 1889 é proclamada a República. Nas


palavras de Ana Flauzina, “o sistema penal consolidado no Império deveria,
dentro dessa perspectiva, garantir a passagem do controle dos grilhões às
algemas sem abrir qualquer possibilidade para rupturas” (2006. p. 66).

99
2.2. Criminalização racializada e o acorrentamento por alge-
mas

Com a abolição em 1888, a imagem de desobediência da população negra


liberta se torna motivo de medo para os “senhores” e as reclamações da insu-
ficiência da polícia, como instrumento de repressão da euforia negra, tor-
nam-se recorrentes. Logo as comemorações foram associadas à vadiagem e
celebrações com tambores e rodas de samba foram relacionadas a rebeliões
e levantes, justificando-se, assim, as queixas às autoridades policiais para a
intervenção e a repressão.

As brigas, roubos, desordens, desrespeito à moral, sambas e candomblés


nos quais se envolviam os trabalhadores nacionais enchiam os relatórios
das delegacias. Era cada vez mais recorrente a ênfase num discurso que
os associava a comportamentos ‘inadequados’, próprios ao tempo da es-
cravidão, ‘perigosos à ordem pública’, o que justificava a necessidade do
controle e reiterava que, mesmo sendo libertos e nacionais, eles guardavam
a predisposição inata, para a subversão. (ALBUQUERQUE, 2009. p. 181).

O período que compõe o fim do período escravocrata e o início da República é


marcado por diversas legislações que asseguravam a manutenção do “senhor”
no topo da hierarquia social e, para a população negra, a negação ao acesso aos
direitos mais básicos, não pela segregação explícita, mas pela implementação
de privilégios ao grupo dominante.

A Constituição da República de 24 de fevereiro de 1891 reforça a relação de


superioridade/inferioridade na sociedade. O texto constitucional previa que
não podiam se alistar como eleitores os analfabetos e os mendigos, sendo que
os direitos de cidadão brasileiro eram suspensos em casos de condenação
criminal enquanto durassem seus efeitos.

No âmbito penal, vigorava o Código Penal de 1890, que criminalizava a men-


dicância, a embriaguez, a vadiagem e a capoeiragem. Os dispositivos entre os
artigos 391 e 404 do Código criminalizavam as condições impostas à população
negra, como o não acesso ao mercado de trabalho e à moradia, da mesma forma

100
como ocorreu com a cultura afro-brasileira, por meio da criminalização da
capoeira. À prática de “fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade
e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem” previa-se a
pena de dois a seis meses de prisão celular, sendo que o artigo 403 aplicava a
pena no grau máximo de três anos aos que reincidissem na conduta.

Ressalta-se que é a partir do século XIX que a estrutura das prisões se modi-
fica e garantem-se os muros como forma de viabilizar a segregação e a invi-
sibilidade dos que nela estão inseridos (CHIES, 2017, p. 409). Os muros e o
distanciamento dos centros urbanos concretizam a exclusão das pessoas
destinadas àquele local.

A incidência do controle penal sobre a capoeira e a mendicância expressa a


intencionalidade e a racionalidade da intervenção estatal contra corpos negros.
As ações favoráveis à submissão da população negra ficam evidentes com a
expansão do panorama legislativo do Estado brasileiro, que investe em leis
punitivas contra a população negra, criminalizando condutas intimamente
ligadas à situação de marginalização a ela imposta deliberadamente pelo
próprio Estado e penalizando práticas culturais.

A criminalização da vadiagem e da capoeira expressa o poder de restrição do


Estado, pois, enquanto “coisas”, os escravizados utilizavam o próprio corpo
como defesa e eram violentados pela exploração do trabalho. Já libertos, a
criminalização da vadiagem os impediu de acessar a liberdade e a criminali-
zação da capoeira lhes retirou a possibilidade de defesa. Nas palavras de Ana
Flauzina, “o que esse dispositivo visa é que os escravizados passem da tutela
dos senhores diretamente para a do Estado.” (2006, p. 58).

2.3. E quando se começa a falar de raça no Brasil?

Com a formal libertação da população escravizada em 1888 e a proclamação


da República em 1889, são os estereótipos[18] da negritude que a acorrentam,

[18]  “Estereótipos são construções ideológicas que servem a propósitos específicos, sendo que
eles têm a função de referendar concepções de mundo que encobrem as relações de poder

101
sendo esses alimentados por um racismo particularmente brasileiro, o mito
da democracia racial.

No final dos anos 1890 e início dos anos 1900, é com a miscigenação e a raça
que a elite intelectual se preocupa. Contra a população negra, as legislações
já estavam encaminhadas ao controle penal, e a repressão policial contra a
recém-conquista da liberdade se junta aos estudos científicos de raça.

Os intelectuais do direito assumiram uma postura liberal, em que suas teses


conviviam com as teses raciais da elite médica (SCHWARCZ, 1993. p. 242-245).
A igualdade formal das leis no Brasil era fundamentada pelo determinismo
racial, o qual se refere à “evolução humana” pela diferença entre as raças e sua
importância na construção da nação. Ao mesmo tempo, omite-se o debate de
cidadania e participação da população negra, passo essencial ao momento
pós-abolição.

A visão de um “criminoso” nunca esteve atrelada ao cidadão. A população


negra foi criminalizada muito antes de ter reconhecida sua humanidade
pelo Estado, e essa construção do não-ser, do “perigoso”, mantém-se aos dias
de hoje. Segundo Clóvis Moura, “nunca os negros no Brasil, quando fizeram
movimentos políticos, foram julgados como prisioneiros políticos, mas
sempre como criminosos” (GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2009).

Com os esforços do Estado em implementar a democracia racial, que negava


o racismo estruturante da sociedade brasileira, passa-se a enxergar o mestiço
como esperança. Este fruto dos históricos abusos sexuais sofridos por mulhe-
res negras apontava-se, no final do século XIX, como solução ao extermínio
do “sangue negro” do Brasil. Nas palavras de Abdias do Nascimento “o que
se fazia essencial e indisputável era a necessidade de embranquecer o povo
brasileiro por dentro e por fora” (1978, p. 73).

A mulher negra, em todo este contexto, internaliza não só as opressões do


racismo, mas as do patriarcalismo também. Quando se traça o panorama

existentes dentro de uma determinada comunidade política” - MOREIRA, Adilson José. O que é
discriminação?. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando, 2017. p. 42.

102
institucional dessas opressões, é preciso compreender que a mulher negra,
historicamente, esteve envolvida com tais incursões, seja pelos estereótipos
que lhe são impostos, seja pelas opressões sofridas.

Diferente da mulher não-negra, a mulher negra, ao longo da escravização,


não foi diferenciada do homem negro escravizado, nunca foi poupada do
trabalho braçal e das longas jornadas de exploração, sendo a diferença de
gênero marcada por mais opressões, como a violência sexual praticada pelos
“senhores”. Logo, a construção de uma criminalização sobre a liberdade, cha-
mada de vadiagem, recai também sobre as mulheres negras.

Circulando pelo espaço público antes e com muito mais intensidade do que
as mulheres brancas, as negras teriam de ser controladas de perto nesse
ambiente, que, paradoxalmente, não lhes era próprio pela sua condição
feminina. Ou seja, o processo de desumanização imposto às mulheres
negras pelo racismo solapa as possibilidades de se reconhecer nesse seg-
mento os atributos típicos da feminilidade, o que abre espaço para que à
pena privada que lhes é imposta somem-se também as marcas da pública.
(FLAUZINA, 2006. p. 132).

O argumento sustentado pelo mito da democracia racial faz com que todo
o panorama racista e sexista seja resumido à classe. Entretanto, a análise da
construção legislativa, que se inicia ainda no período escravocrata, torna indu-
bitáveis as ações estatais de manutenção da inferioridade da raça negra pela
negação do racismo. A ordem de ações do Estado não deixa dúvidas quanto ao
objetivo final. A população negra nunca teve reconhecida sua humanidade,
mas usufrui da que foi conquistada por meio de muita luta e resistência.

Não à toa o Estado permanece declarando guerras unilaterais contra a popula-


ção negra. Na Era Vargas se tem a mestiçagem como o símbolo representativo
da nação brasileira e, então, a raça se transmuta para uma questão cultural,
envolvendo “resgates” de costumes e festas (SCHWARCZ, 1993, p. 38.), as quais,
até 1940, com a promulgação do Código Penal vigente, eram criminalizadas.
A adoção de uma nova forma de o Estado se relacionar com aspectos que, até

103
então, aprisionavam homens e mulheres negras, não só demonstra as rea-
daptações da postura estatal para benefício de um grupo dominante, como
também afirma que o apagamento das histórias se dá pelo conto de uma
única história, considerada geral.

3. A declaração unilateral da “guerra às drogas”

A construção da criminalidade negra está consolidada no imaginário social


brasileiro. Por influência do momento político que se encontrava os Estados
Unidos da América, em 1937 é declarada a guerra às drogas, sendo que o com-
promisso de combate ao envolvimento com drogas será assumido de forma
global, inclusive por tratados internacionais. A nova guerra possibilitará
não só a reconstrução de um inimigo, mas aumentará exponencialmente a
população carcerária de muitos países, incluindo o Brasil.

O fato de a guerra às drogas ser administrada pelo controle punitivo não é


uma coincidência. Como foi demonstrado, a intervenção policial e a prisão
se tornam ferramentas indispensáveis ao controle de corpos negros e à inter-
nalização da inferioridade (e da superioridade). Em um cenário de completa
falta de acesso a direitos básicos de sobrevivência, assumir o caminho que é
vendido como seu “lugar” pode indicar este processo de internalização por
imposição.

Dados do INFOPEN Mulheres mostram que 62% das mulheres estão presas por
tráfico de drogas e associação ao tráfico no Brasil, indicando que 3 em cada 5
mulheres estão em privação de liberdade por crimes relacionados a drogas
(INFOPEN, 2017), um número extremamente elevado se considerarmos que
os demais 38% correspondem a todos os demais crimes previstos no orde-
namento jurídico, dentre eles, quadrilha ou bando, roubo, furto, homicídio,
infanticídio, aborto, desarmamento, latrocínio, receptação.

Pode-se afirmar, portanto, que a proibição ao tráfico de drogas por meio


do direito penal é a ferramenta que mais encarcera a população feminina.
Somando-se que a maioria das mulheres presas são negras, cerca de 62% de

104
acordo com o INFOPEN Mulheres de 2017, é possível afirmar que a criminali-
zação por tráfico de drogas incide prioritariamente sobre corpos femininos
negros.

Além disso, o INFOPEN Mulheres apresenta que 45% aguardam julgamento


aprisionadas. Como outra forma de combinação de dados, pode-se presumir
também que a prisão provisória, em conjunto com o crime de maior incidência
contra mulheres e a predominância de mulheres negras, não é um fenômeno
novo, mas uma readaptação do controle penal historicamente construído.

De acordo com infográfico do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, baseado em


dados colhidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), em 48% dos
casos a relação entre a pessoa acusada e os entorpecentes foi realizada pelas
autoridades policiais que realizaram a abordagem, tendo em vista que não
estavam na posse da pessoa. Além disso, em 74% das prisões no estado de São
Paulo pelo crime de tráfico de drogas, as únicas testemunhas são os policiais
envolvidos na detenção (INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA, 2015).

As coincidências históricas não são meras coincidências. O controle sobre


corpos negros, especificamente sobre os femininos negros, e a estrutura para
colocá-lo em prática é readaptada com o tempo.

A análise de diversos processos no Arquivo Nacional, da Oitava Pretoria


Criminal, a qual era responsável pelo julgamento das contravenções penais,
dentre elas, a vadiagem, resultou em um modus operandi quase idêntico aos
dados apresentados pelo ITTC. As constatações decorrentes da dinâmica
processual nos anos da primeira República retratam um cenário comum aos
processos atuais de tráfico de drogas.

As histórias relatadas representam o padrão de como se desenrolavam


os processos de apuração das contravenções penais. Todas elas seguem o
mesmo fluxo: Inicia-se com o auto de prisão em flagrante, quando o policial
condutor irá especificar o local e horário da prisão, além de afirmar que
o acusado não possui ofício nem profissão, nem qualquer outro meio de

105
subsistência, nem domicílio certo onde habite. Todas essas circunstâncias
estão sempre presentes no depoimento do condutor. (ROORDA, 2017. p. 278).

Ademais, a narrativa que determina a criminalização primária de uma pessoa


está, historicamente, nas mãos das autoridades policiais. O papel do Poder
Legislativo na previsão legal do tipo penal já demonstrou, em casos atrelados
à população negra, ser um mecanismo político destinado ao objetivo final
de exclusão, como foram as criminalizações da capoeira e da vadiagem pelo
Código Penal de 1890.

A história do Brasil no âmbito penal demonstra que as implementações


legislativas se relacionam intimamente com os cenários políticos e a raciona-
lidade que circunda o controle de corpos negros, não só pela semelhança na
participação de autoridades policiais na manutenção da prisão por tráfico de
drogas, mas pelos requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva,
presente nos processos criminais do século XIX.

De acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal vigente, uma das
motivações para a decretação da prisão preventiva contra alguém é a “garantia
da ordem pública”. A análise de 334 processos envolvendo pessoas escraviza-
das do Livro de Entrada e Saída da Cadeia de Pelotas, entre os anos de 1862 a
1878, demonstrou que:

das prisões (371 referências) se destacam duas categorias: a pedido de seus


senhores, em 119 casos (32,1%); e, por atos contra a ordem pública, com 58
registros (15,6%). Nesta última categoria se destacam três subcategorias:
vagar alta noite pelas ruas fora de hora, em 14 casos; desordem, 21; para a
segurança, 12. (CHIES, 2017. p. 410-411. grifo meu).

Uma das fundamentações mais comuns para se aprisionar uma pessoa acu-
sada da prática de um crime no Brasil, sendo hoje esse contingente de 45%
entre mulheres, é um argumento presente desde o século XIX. A população
atingida é a mesma do período imperial-escravista, somente que a ferramenta
de controle passou do “senhor” no âmbito privado para a polícia no âmbito
público, e a punição deixou de ser por açoites e passou para o cárcere.

106
Com tal panorama não se anulam as conquistas do povo negro, que resiste
desde que o primeiro navio negreiro desembarcou em terras nacionais. O
que se busca demonstrar é que o controle social e quem se tenta excluir são
os mesmos atores do século XVI, que foram libertos no século XIX e que são
aprisionados por uma guerra declarada unilateralmente no século XXI. E tudo
engendrado por um mito que omite a existência do elemento que justifica a
construção do domínio, o racismo. E quando se especifica as mulheres negras,
não só o racismo, mas o patriarcalismo e o classismo.

Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas.
Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito
de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre
as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação,
onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem
para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você.
(LORDE, 2015).

Conclusão

O capítulo 1 expôs o perfil predominante das mulheres privadas de liberdade,


em sua maioria negra, com baixa escolaridade, não inseridas no mercado de
trabalho formal. Quando inseridas, recebem os menores salários, o acesso à
saúde é precário e muitas residem em locais periféricos. Ademais, apresentou
as condições do sistema penitenciário feminino, onde a superlotação, somada
às condições de vulnerabilidades que envolvem a interseccionalidade de
gênero, raça e classe, resulta em locais de reprodução de novas opressões ao
corpo feminino e negro.

No capítulo 2, delimitou-se a análise histórica, por meio de legislações do


período imperial-escravista e republicano-positivista, das readaptações do
controle de corpos negros. A abolição foi conquistada pela população escra-
vizada. Contudo, as ações estatais do pós-abolição resultaram no desenvol-
vimento de novas formas de aprisionamento e exploração da população

107
negra. Intensificam-se os estudos de teorias raciais que resultam no mito da
democracia racial em conjunto com os incentivos públicos à imigração de
pessoas não-africanas e asiáticas.

Posto este cenário, na década de 30, por influência dos Estados Unidos da
América, iniciou-se um compromisso global de “guerra às drogas”, sendo
estabelecido como perigo a figura do “traficante”. No Brasil, com relação às
mulheres privadas de liberdade, evidencia-se que 62% respondem por crimes
da Lei de Drogas, aprisionadas com pouca quantidade, sem variedade, muitas
vezes exercendo serviços de “mula” no comércio ilegal, ou seja, mão-de-obra
descartável.

O último capítulo concentrou seu relato em apontar que não há meras coin-
cidências no modus operandi das estruturas do processo e da prova para a
possibilidade do encarceramento. Como demonstrado, tanto a suficiência
de provas restritas nas palavras das autoridades policiais responsáveis pela
criminalização primária como a manutenção da “ordem pública” como fun-
damento para a prisão preventiva pelo Judiciário já eram responsáveis por
justificar prisões no século XIX.

Pode-se concluir que os movimentos do Estado, com a abolição da escravatura,


os incentivos à política de embranquecimento e a negação da discriminação
racial, com incidência do direito, especificamente, do direito penal como forma
de punição e exclusão da população negra, expõem um cenário, comprovado
legislativamente, de negação de humanidade e exclusão.

A história do Brasil foi muito camuflada por uma “história geral” e não é levada
em consideração para o entendimento de mecanismos que, hoje, mantêm
opressões racistas e patriarcais. Não há como entender o presente sem ana-
lisar o passado e a luta contra as condições que colocam a mulher negra em
último lugar na hierarquia econômico social. Essas imposições baseiam-se
na construção inferiorizante e desumana, sendo a “guerra às drogas” só mais
uma ferramenta.

108
Referências

1. Artigos
AGENCIA BRASIL. Mulheres negras são maioria entre jovens que não
trabalham nem estudam. 2012. Disponível em: <http://www.ebc.com.
br/2012/11/mulheres-negras-sao-maioria-entre-jovens-que-nao-traba-
lham-nem-estudam>. Acesso em 25 jul. 2018.

ALVES, D. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionali-


dade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão
paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Dere-
cho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi, abr. 2017.

ALVES, Enedina do Amparo. Rés Negras, Judiciário Branco: uma aná-


lise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da pu-
nição em uma prisão paulistana. 2015. 173f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/
SP. São Paulo, São Paulo.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra


na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2011. Dispo-
nível em: <http://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-
-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-
-genero/>. Acesso em: 25 jul. 2018.

CHIES, Luiz Antônio Bogo. Séculos XIX e XXI: prisão e segregação racial
em Pelotas (RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol 135. ano
25. p. 377-416. São Paulo: Ed. RT, set. 2017.

DAVIS, Angela. As mulheres negras na construção de uma nova uto-


pia. 2011. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/as-mulheres-ne-
gras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/>. Acesso em:
19 ago. 2018.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema


penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Brasília: Universidade

109
de Brasília, 2006. Dissertação (mestrado em Direito). 145f.

GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. História da escravidão


negra no Brasil. 2012. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/
historia-da-escravidao-negra-brasil/?gclid=CjwKCAiAjanRBRByEiwA-
KGyjZSDZ6Q3V9bDg7hz-vmGNQ-3R97ntVy5txZpSatP4iT8dZTkA-
EzZ7pRoCtQkQAvD_BwE>. Acesso em: 23 ago. 2018.

__________. Mulheres Negras recebem até 172% a menos. 2015. Dispo-


nível em: <http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-recebem-ate-
-172-menos/>. Acesso em: 23 ago. 2018.

__________. A Nação Afro-brasileira. Entrevista com Clóvis Moura. 2009.


Disponível em: <https://www.geledes.org.br/nacao-afro-brasileira-en-
trevista-com-clovis-moura/>. Acesso em: 12 jul. 2018.

HENRIQUE, Simone. O direito fundamental à saúde da mulher ne-


gra no município de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2013. Dissertação (mestrado em Direito). 125f.

INFOPEN. Levantamento nacional de informações penitenciária. IN-


FOPEN – atualização – Junho de 2016. Thandara Santos [org.]. Brasília:
Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário
Nacional, 2017.

__________. Levantamento nacional de informações penitenciária. IN-


FOPEN Mulheres – 2ª edição. Thandara Santos [org.]. Brasília: Ministério
da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional,
2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de In-


dicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população
brasileira. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.
gov.br/visualizacao/livros/liv91983.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Dossiê Mulheres


Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil
– 2013.

110
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. Infográfico Mulheres e o
Tráfico de Drogas. 2015. Disponível em: <http://ittc.org.br/wp-content/
uploads/2015/08/infografico-mulheres-e-trafico-de-drogas.pdf>. Aces-
so em: 10 jul. 2018.

INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA E PASTORAL CARCERÁ-


RIA NACIONAL. Tecer Justiça: presas e presos provisórios da cidade
de São Paulo – Maio de 2012.

LORDE, Audre. Não existe hierarquia de opressão. 2015. Disponível


em: <https://www.geledes.org.br/nao-existe-hierarquia-de-opressao/>.
Acesso em: 20 ago. 2018.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Perspectiva da eqüidade no Pacto Nacional


pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal: atenção à saúde
das mulheres negras. Maria Auxiliadora da Silva Benevides et al (org). II.
Título. III. Série. Brasília, 2005.

MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Relatório do Mecanismo de


Prevenção e Combate à Tortura. 2017. Disponível em: <http://www.
mdh.gov.br/noticias/pdf/mecanismo-nacional-de-prevencao-e-comba-
te-a-tortura-lanca-relatorio-anual-2016-2017-2>. Acesso em: 19 ago. 2018.

ROORDA, João Guilherme Leal. Criminalização da vadiagem na Primei-


ra República: o sistema penal como meio de controle da população ne-
gra (1900-1910). Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 135. ano
25. p. 269-306. São Paulo: Ed. RT, set. 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Pre-


ceito Fundamental. ADPF nº 347. Inteiro teor do acórdão. 2015.

2. Legislação
BRASIL. Constituição Política do Imperio do Brazil, de 25 de marzo de
1824. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao24.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.

111
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de
fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.

______. Decreto 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em:
09 jul. 2018.

______. Decreto Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>.
Acesso em: 10 jul. 2018.

______. Lei 581, de 4 de setembro de 1850. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.

______. Lei 601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.

______. Lei 2040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em: <https://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm>. Acesso em: 09 jul.
2018.

______. Lei 3.310, de 15 de outubro de 1886. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM3310.htm#art1>. Acesso em: 09 jul.
2018.

______. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso
em: 10 jul. 2018.

______. Lei de 13 de maio de 1888. Disponível em: <http://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em: 09 jul. 2018.

______. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Aceso em: 09 jul.
2018.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Lei de 7 de novembro de 1831. Dispo-


nível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-

112
-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>.
Acesso em: 09 jul. 2018.

3. Livros
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e
cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DAVIS, Angela. Are Prisions Obsolete? New York: Seven Stories Press,
2003.

MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação?. Belo Horizonte: Letra-


mento: Casa do Direito: Justificando, 2017.

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo:


Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo


de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, institui-


ções e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.

113
Direitos Humanos, Refúgio e Relações Raciais: Reflexões so-
bre o Mito da Proteção no Brasil

114
Lumena Aleluia[19]
Amana Mattos[20]

Introdução

“Meu marido falou pra deixar pra lá, ficamos com medo…ainda não temos a
legalidade no Brasil” (NZINGA, 2015)[21]. A referida fala é de uma mulher congo-
lesa, solicitante de refúgio no Brasil, residindo no Rio de Janeiro. O conteúdo
da fala corresponde a uma entrevista realizada ao longo das suas experiên-
cias de acesso aos serviços públicos de saúde no Rio de Janeiro. Foi diante de
tais experiências e relatos que podemos entender de perto os entraves que
se relacionam às estruturas complexas delimitadas pelos cenários políticos
e institucionais do tema Refugiados no Brasil, percursos que têm produzido
distintos itinerários de produção subjetiva em território nacional ao recebe-
rem o status de mulher africana refugiada em território brasileiro. Nzinga
vivenciou por um significativo tempo sequelas emocionais e físicas em sua
saúde sexual/reprodutiva, intimamente associadas à experiência de violência
institucional sofrida em uma maternidade pública no Rio de Janeiro. A fala
acima de Nzinga foi a resposta dada quando foi apresentada à possibilidade
de denunciar a violência sofrida pelo profissional.

Reconhecidamente, o debate sobre o crescente fluxo de pessoas solicitantes


de refúgio no Brasil, no contexto dos últimos anos, tem sido transversalizado
por uma série de temáticas que o tangenciam. Isto muito por conta de esta

[19]  Mestra pelo Programa de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Integrante do DEGENERA – Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: luma.aleluia@gmail.com

[20]  Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia


Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Coordenadora do DEGENERA – Núcleo de
Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: amanamattos@gmail.com

[21]  Nzinga é um nome fictício.

115
discussão ter se fortalecido nos diferentes setores de governo e da sociedade
civil, fazendo emergir diferentes implicações por parte destes grupos ao
abordar tal assunto. No bojo destas temáticas transversais, vemos surgir
uma forte discussão sobre a garantia dos Direitos Humanos, especialmente
no tocante aos condicionantes das violações – concebendo estes enquanto
um conjunto de aspectos presentes em praticamente todas as dimensões
das relações sociais que permeiam os processos de deslocamento forçado.

O “universo institucional do refúgio” – termo cunhado pela antropóloga Ángela


Facundo, é composto por um conjunto de ações, setores e fluxos burocráticos
que intentam organizar a gestão dos refugiados, dentre as quais se destacam
os equipamentos acionados pelas organizações internacionais, que buscam
estabelecer pactos estatais a partir de negociações com autoridades governa-
mentais de modo a viabilizar ações e programas de assistência a refugiados.
Tais organizações se valem de parcerias com ONGs locais ou internacionais
(FACUNDO, 2015).

A história dos fluxos migratórios para o Brasil revela que a presença negra
sempre foi permeada por influências políticas, outrora com o tráfico negreiro
e, no cenário atual, com o crescente fluxo de pessoas com status de refugiados
para o Brasil. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
em parceria com a Caritas - Centro de Referência para Refugiados de São Paulo,
contabilizou os seguintes dados em 2017: ao todo, foram 72 nacionalidades a
solicitar refúgio no país, tendo como principais motivações e nacionalidades
pessoas advindas de Angola — com o Governo MPLA desde 1979 se assentou a
perseguição política, repressão e truculência do poder público; Síria — por conta
da guerra civil instaurada há seis anos, participações de radicais e conflitos
entre os jihadistas, frente Nusra e curdos na região norte do país; República
Democrática do Congo — vivencia uma ditadura instaurada pelo governo
de Joseph Kabila desde 2011 e conflitos entre etnias na região Kivu do norte,
violências de gênero e sexual; Guiné-Conacri — por conta da opressão étnica
e disputas de poder entre os Malinké e os Peuh; Nigéria — diante da presença
do Boko Haram e de outros grupos insurgentes, emergiram conflitos entre

116
cristãos e muçulmanos, bem como criminalização da homossexualidade e
conflitos étnicos; e Mauritânia — perseguições relacionadas ao racismo. Em
2017, no que tange ao recorte de gênero, 33% foram mulheres e 67% foram
homens, a maior parte tem entre 20 e 39 anos. Já no que se refere à escolaridade,
37% têm o ensino médio e 22% ensino superior. O principal acesso se deu via
aeroporto de Guarulhos-SP, com 84%; estrada, principalmente Roraima, 9%;
e marítimo, via Porto de Santos, 2 % (ACNUR, 2017).

Comumente, os condicionantes relacionados ao deslocamento forçado des-


ses segmentos se vinculam diretamente ao fato e presença de guerras civis
baseadas em conflitos históricos, étnicos, de gênero e políticos como princi-
pais desencadeadores da saída de seus países de nacionalidade. Ao solicitar
refúgio no Brasil, tais segmentos acionam ao território nacional o status de
busca por proteção e garantia desses direitos. Apesar do significativo número
de pessoas a buscar refúgio no Brasil ser proveniente de países do conti-
nente africano, de descendência e fenotipicamente negros, não se tem visto
da ACNUR e nem dos programas de integração e assistência que vêm sendo
realizados no Estado brasileiro contribuições ou posicionamentos acerca
das discrepâncias que envolvam a conjuntura dos problemas sociais, raciais
e de gênero que o Brasil ainda enfrenta. De maneira contraditória, mas não
ingênua, o Brasil é constantemente mencionado nos discursos dos agentes
do universo institucional do refúgio como um país com uma positiva capa-
cidade de acolhida, avaliação demarcada sobretudo pelo caráter “acolhedor”
das pessoas e das comunidades (FACUNDO, 2015).

Nesta direção, faz-se fundamental reconhecer as articulações simbólicas que


estiveram presentes na formação de uma dita “identidade nacional brasileira”,
a qual se caracteriza enquanto um processo sistematicamente estruturado
sobre princípios racializados, compreensão estrategicamente velada mediante
a imagem construída de um país multicultural. A negação da existência dos
conflitos raciais foi o caminho escolhido pelo Estado brasileiro, onde a visão
baseada no processo de miscigenação da população brasileira deve-se, princi-
palmente, à figura de Gilberto Freyre e seus discípulos, grandes precursores na

117
disseminação da imagem do Brasil enquanto paraíso racial, dando-lhe uma
roupagem científica, bem como defendendo o Brasil como um país mestiço,
onde se convive bem entre as três raças (GUIMARÃES, 2012). Nota-se, portanto,
o fortalecimento da compreensão mestiça da cultura brasileira, intimamente
associada à negação do racismo no Brasil. A miscigenação passa a ser vista
como sinônimo de tolerância entre as raças que resultaria numa cultura
homogênea, apesar de resultante de povos tão diversos (SCHWARCZ, 2012).
Muito por conta desses resquícios, o Brasil tem ganhado notoriedade pelo
ACNUR, agência especializada da ONU criada com o intuito de se responsabi-
lizar pela gestão de soluções lidas como duradouras ou temporárias – como
a instalação em campos de concentração, repatriamento, reassentamento e
integração local. Assim, tem sido projetado internacionalmente como um
país de referência para o acolhimento aos refugiados sobretudo frente ao seu
caráter exemplar de avançada legislação e ações que intentam a integração
local dos solicitantes de refúgio em contexto nacional.

Segundo os documentos de referência, a integração local faz referência ao


processo que se desenvolve quando o solicitante ou pessoa com status de
refugiada passa a acessar os mecanismos relacionados ao Sistema de Proteção
para Refugiados no Brasil, que vêm sendo configurados ao longo dos anos a
partir de legislações e programas que visam a “integração cidadã” dos solici-
tantes de refúgio.

Dentre os marcos políticos desse sistema está a Convenção de 1951, conside-


rada um marco, pois incentiva a criação do CONARE (Comitê Nacional para
os Refugiados), encarregado de “analisar o pedido e declarar o reconheci-
mento da condição de refugiado”; o Protocolo de 1967, relativo ao Estatuto dos
Refugiados, instrumento que elimina as restrições temporais e geográficas,
aspectos que foram estabelecidos na Convenção de 1951; a Declaração de
Cartagena, que marca um momento importante na discussão sobre o tema
perante o panorama de conflitos armados. No plano nacional, o Estado bra-
sileiro conta com alguns dispositivos de operacionalização desses acordos,
entre eles, escritórios em Brasília e em São Paulo, que são responsáveis pela

118
proteção e integração de refugiados e da arrecadação de recursos. A agência
atua diretamente com os órgãos do governo, bem como a partir de parcerias
com o setor privado e organizações da sociedade civil que trabalham em
territórios estratégicos do Brasil realizando ações de cunho assistencial e
acompanhamento jurídico. De modo a programar ações no país frente ao
contingente de demandas acerca dos (as) refugiados (as), foi aprovada a lei
9474/97[22] que determina os mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados. Tais documentos têm sido utilizados como justificativas para
discursos de elogio por parte dos agentes institucionais do refúgio (FACUNDO,
2014), localizando tanto as políticas de governo, como também conteúdos
relacionados ao histórico da nação brasileira, comumente evidenciada pelo
seu caráter multicultural, a partir de um passado receptivo aos imigrantes e
estrangeiros, enaltecendo com veemência o lado humanitário do povo bra-
sileiro enquanto parte de um Estado-nação.

Entretanto, segundo os dados divulgados pelo Atlas da Violência 2018[23] sobre


as cartografias que envolvem a violência no Brasil, fica evidente as contradi-
ções agudas entre o discurso institucional de agentes que atuam no universo
institucional do refúgio frente às pautas de direitos humanos no Brasil:

É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em


países completamente distintos. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios
de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0 por 100.000
habitantes contra 40,2). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016,
a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa
entre os não negros teve uma redução de 6,8%. (BRASIL, 2018).

[22]  Consta que refugiado (a) é toda pessoa que devido a fundado temor de perseguição por
motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de
seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; ou que
devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL, 1997)

[23]  Fonte: http://www.ipea.gov.br/portal/images/170609_atlas_da_violencia_2017.pdf

119
Já no que tange ao cenário das relações de gênero, segundo dados do Mapa
da Violência, o país ocupa, desde 2013, o 5º lugar no ranking de homicídios
femininos entre 83 países. O Mapa da Violência revelou que diariamente são
registrados aproximadamente 13 feminicídios em território nacional, o que
levou ao movimento feminista a reivindicar o termo feminicídio como cons-
tructo político para demarcar a taxa de mortalidade de mulheres no Brasil.
Tal barbárie se agrava quando nos damos conta das suas intersecções. No que
tange à população LGBT, o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou um aumento de
30% nos homicídios de LGBTs em 2017 em relação ao ano anterior. Segundo
a pesquisa, a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida vítima da
“LGBTfobia”, dando status ao Brasil de país onde mais se mata pessoas LGBTs.
Diante desses dados apresentados, cabe questionar: como é possível considerar
o Brasil um país que oferece segurança a pessoas solicitantes de proteção por
fundado temor de perseguição, frente às questões de raça, gênero e sexualidade?

Nesse sentindo, o universo institucional do refúgio soa como mais um cenário a


ser interpelado frente às questões das relações raciais e suas intersecções, visto
que carrega, através das narrativas produzidas e disseminadas, resquícios de
um Brasil inventado para poucos e restrito quando se é negro, mulher e LGBT.

Para Crenshaw (2014) as opressões produzidas estruturalmente frente às


categorias raciais e de gênero acentuam o processo de vulnerabilização de
determinados grupos sociais, sobretudo, quando estas se interseccionam com
o aspecto da migração. Ao tratarmos a subjetividade como algo constituído
em múltiplas dimensões, lhe conferimos o status de construto dinâmico e,
portanto, em constante adaptação. Nesse sentido, podemos afirmar que a qua-
lidade das interações sociais para um dado indivíduo repercute diretamente
na sua constituição enquanto sujeito; em outras palavras, na produção de
sua subjetividade. Este processo resulta, por consequência, no próprio desen-
volvimento e ou agravamento de questões relacionadas à sua saúde – qual
seja na esfera do adoecimento psíquico ou da sua proteção – evidenciando a
concepção de que não é possível discutir a subjetividade sem pautar de forma
associada as múltiplas dimensões da vida em sociedade.

120
Ao estudar a subjetividade, coloca-se de forma indivisível a relação entre
indivíduo e sociedade como momentos da constituição do sujeito, rom-
pendo com dicotomias muito presentes no pensamento psicológico, como
social e individual, interno e externo, consciente e inconsciente, cognitivo
e afetivo (MOTTA; URT, 2009, p. 626).

Hall (2014) nos ajuda a compreender que a formação de uma cultura nacio-
nal está diretamente associada ao ideal de padronização do funcionamento
social dos sujeitos, passando pela unificação de signos como a língua nacional,
chegando à homogeneização da cultura através dos processos educativos,
bem como a partir dos meios de comunicação. Portanto, a construção de uma
identidade nacional perpassa por uma série de mediações que permitem a
invenção do que é comumente disseminado como “alma nacional”, ou seja,
recursos simbólicos que funcionam como “provas” da existência dessa iden-
tidade unificada.

Esse discurso se torna ainda mais problemático quando pensamos as reflexões


proporcionadas por Hall (2014) frente à construção de um Brasil enquanto
Estado-nação caracterizado como um país passível de capacidade humani-
tária. Esta imagem tem sido relacionada de maneira recorrente aos fluxos
contemporâneos de migrações, sobretudo, nos discursos de especialistas
que atuam no universo institucional dos refugiados no Brasil. Perante isto,
algumas questões se levantam: de que maneira as produções/representa-
ções disseminadas sobre o Brasil como o país da diversidade e acolhimento
cultural têm sido agenciadas pelo universo institucional do refúgio frente
aos atuais fluxos de refugiados para o Brasil? Onde nos é possível visualizar
estas relações? E ainda, serve a quê e a quem a propagação de tais narrativas?
Acreditamos que são questionamentos que se fazem necessários evidenciar
perante este tema, visto que desnaturalizar estas representações e sobre elas
produzir incômodos é mais um exercício político de contrapor as correlações
que surgiram perante a identidade nacional brasileira de um território de
acolhida para pessoas em deslocamento forçado.

121
Ao passo de uma contextualização histórica dos mecanismos estatais frente
à gestão de corpos em deslocamento, faz-se necessário aprofundarmos e
levantarmos questionamentos acerca do quanto as produções decorrentes das
experiências dos refugiados têm se tornado interessantes sob o ponto de vista
das agendas econômicas e políticas. Por exemplo, no que tange à produção
discursiva acerca da crise dos refugiados no Brasil, faz-se necessário salientar
que, quando comparamos a outros territórios, o fluxo de deslocamento para
o território brasileiro se torna insignificante, ao contrário do que acontece
no Oriente Médio e no Norte da África.[24] Logo, cabe questionar: quais são os
fatores que têm ancorado a ideia de vivenciarmos um problema dos refugia-
dos no Brasil? Quem está ganhando com a produção dessas narrativas? Sobre
isto, faz-se necessário destacar a importância que tem sido dada à produção
lucrativa de dados a respeito das experiências da população refugiada, sobre-
tudo, no que se refere aos pontos apresentados por Facundo em sua tese sobre
refugiados colombianos:

É fácil identificar a importância que tem tido a produção de dados a respeito


das pessoas desterradas, devido especialmente à capacidade de algumas
agências de disputar com o governo nacional a fabricação de categorias,
de visibilizar o estado de guerra em que vive o país e o consequente caráter
político do deslocamento. Também têm sido elementos-chave para ques-
tionar a imagem de pós-conflito que vem se elaborando e promovendo
nos últimos anos a partir do governo central, embora as causas e as dinâ-
micas da guerra continuem. Porém, me parece pertinente refletir sobre
outras implicações sociais que subjazem nesses processos de elaboração
de estatísticas, bem como seu arquivamento e sua circulação por meio de
diferentes meios impressos ou digitais (FACUNDO, 2014, p. 21).

Tais correlações feitas pela autora facilitam a compreensão do quanto


as produções decorrentes da experiência das mulheres refugiadas têm se

[24]  Fonte: Instituto Igarapé em parceria com o Create Lab (Laboratório de Comunidade,
Robótica, Educação e Empoderamento Tecnológico), da Universidade Carnegie Mellon, nos
Estados Unidos, que indica de quais países os refugiados estão saindo e para quais estão indo.

122
tornado interessantes sob o ponto de vista das agendas econômicas e polí-
ticas, as quais envolvem muitos outros elementos, que estão para além dos
discursos constantemente disseminados de cunho humanitário, solidário e
assistencial. Uma das críticas apontadas pela autora questiona a relação que é
instituída entre a produção de dados estatísticos por agências especializadas
que intentam traduzir em números e categorias uma determinada realidade
social, a exemplo do sistema ONU que possui o controle e domínio exclusivo
acerca da produção dos dados sobre as experiências de refúgio.

No caso das congolesas, ao buscar relatórios, artigos, notícias acerca de


“mulheres congolesas refugiadas” em plataformas de pesquisa, os resultados
em sua maioria se baseiam em análises sociológicas macro, pautando os con-
flitos étnicos, fazendo referências ao “comportamento dos homens africanos”
como condicionantes da violência perpetrada. Segundo o relatório da ONU,
somente no ano de 2009, mais de 8.000 mulheres foram estupradas, o que deu
à República Democrática do Congo a primeira colocação na reportagem inti-
tulada “Os 10 piores países do mundo para as mulheres”, bem como o status de
“capital mundial do estupro”. Em relação às mulheres refugiadas congolesas,
um dos aspectos que se destaca são as constantes narrativas correlaciona-
das ao tema da violência sexual, bem como a ênfase na reprodução massiva
sobre a violência sexual enquanto um ato institucionalizado no país (RDC)
e a permanente produção de referências acerca de como esta – a violência
sexual contra mulheres congolesas –, passou a ser vista como uma arma de
guerra durante os conflitos armados que ocorrem no país. Estes aspectos têm
atravessado um número significativo de produções e discursos intelectuais
acerca da experiência de refúgio das mulheres congolesas. Entretanto, é raro
encontrar produções que estejam voltadas às análises de outros marcadores
das experiências dessas mulheres em seus territórios específicos, ou que
tragam olhares e perspectivas distintas em relação à experiência frente à
guerra e ao refúgio, ou que discorram para além de um país africano estereo-
tipado, a exemplo do Congo enquanto território único que produz somente
mulheres vítimas da violência sexual. Reconhecidamente, a guerra produziu

123
consequências impactantes para as mulheres congolesas, que obviamente
envolvem distintas violências, como também distintas repercussões, dentre
elas o deslocamento forçado de seus territórios em busca de novos projetos
de vida. Mas os atos de violação sobre o corpo das mulheres congolesas,
aspecto que tem sido destacado, é uma realidade complexa que transcende
um indicador estatístico e estático dos fatos.

Com base nisso, torna-se possível acessar as possíveis dinâmicas de agen-


ciamento perante determinados grupos de refugiados, os quais se tornam
naturalmente representados por categorias institucionalizadas, racionais,
objetivas e universais, e que no caso das congolesas, corrobora diretamente
com os aspectos ideológicos que sustentam as instituições no âmbito do
refúgio, onde comumente o estupro se torna categoria sine qua non para o
reconhecimento social enquanto refugiadas. Diante disso, é possível indagar
acerca de como tais produções acerca de pessoas refugiados se relacionam com
o pensamento colonial, evidenciando o ideal de uma população despossuída,
abandonada, demandante de intervenção estatal, bem como a imagem de um
Estado que garantirá a civilização, a ordem para um grupo destituído do seu
território de origem. Nesse sentindo, o Brasil se ancora na representação de
um Estado benevolente perante ações solidárias e humanitárias ao acolher
tais segmentos. Os trabalhos desenvolvidos por Seyferth (2000, 1997, 1995) em
distintos momentos da história do Brasil sinalizam as estruturas em que os
processos migratórios têm se promovido, sendo possível identificar as rela-
ções de continuidade ideológica presentes, sistematicamente baseadas em
interesses econômicos e geopolíticos.

Stolke (2006) discorre sobre as consequências de uma produção histórica de


cunho moral frente à sexualidade de mulheres, refletindo acerca das relações
de gênero no contexto colonial ibérico e evidenciando como foram forjadas
as interseções entre gênero, raça, sexualidade feminina, honra familiar e a
ordem do Estado. Ao historicizar esses fatos, ela nos ajuda a levantar indagações
quanto à associação de mulheres de descendência africana a uma dimensão
(i)moral da sexualidade nesse contexto das políticas de refúgio, ou a estarem

124
sendo constantemente descritas em narrativas que acionam dimensões da
exploração de sua sexualidade.

A repercussão destes fenômenos ainda se faz presente nas produções sim-


bólicas sobre os povos africanos. As culturas africanas são vistas de maneira
unificada, homogênea ou então associadas a características animalescas,
primitivas, imorais, seres incapazes de socialização e cumprimento das leis
ditas morais. Tais acúmulos, que compõem e estão presentes nas produções
discursivas e representações sobre elementos que estejam relacionados à
África, suscitam uma certa inquietação acerca dos modos como vêm sendo
interpretadas as experiências de refúgio das mulheres congolesas, por exemplo,
onde os temas da sexualidade ganham um status quase que exclusivo desse
grupo, gerando um silenciamento massificado acerca de outras narrativas,
seja de violências ou de enfrentamento destas. Eric Fassin (2012), através do
seu conceito de democracia sexual, nos ajuda a pensar as maneiras como os
mecanismos de percepção relacionados à sexualidade perpassam por ordens
socialmente construídas.

É necessário, mas não suficiente, denunciar a instrumentalização xenó-


foba e o racismo da democracia sexual: a postura crítica não se contenta
de criticar. É preciso compreender a racialização das questões sexuais, e a
sexualização das questões raciais [...] Não se deve jogar fora o bebê da de-
mocracia sexual com a agua do banho dos nacionalismos sexuais (FASSIN,
2012, p.37 traduzido).

No Brasil do século XIX, para as pessoas negras (ex-escravizadas) foram reserva-


dos o estigma e as consequências sociais de um longo período de desassistência.
Em paralelo à negação do acesso a direitos por parte da população negra, foi
desenvolvido por parte dos governantes brasileiros um projeto de incentivo
para a vinda de imigrantes europeus, apoio que se deu intimamente associado
aos ideais do projeto político de branqueamento do país, cujo objetivo era
apagar os traços que se relacionassem aos signos herdados (cultura, traços
fenotípicos e costumes) pelo contexto da escravidão. Afinal, todo e qualquer
símbolo que se associasse ao ideal de cultura negra constituiria, portanto,

125
um status de atraso. Em contrapartida, quanto mais símbolos de referência
europeia estivessem presentes na cultura brasileira, mais próximos estaríamos
do modelo de progresso socioeconômico e desenvolvimento civilizatório a ser
seguido. Desse modo, o Estado brasileiro se dedicou politicamente a apagar
o que chamavam de “mancha negra”[25] da escravidão, pois esta representava
as marcas de um país atrasado. Com esses elementos em mente, podemos
destacar que as experiências de deslocamento migratório para o Brasil, pri-
meiramente, no que tange à diáspora, foram justificadas perante a oferta
de salvação da alma de pessoas africanas (caráter sagrado) velando a via de
sustentação econômica a partir da utilização da mão de obra escravizada,
ou seja, os “interesses econômicos da coroa portuguesa confundia-se com a
expansão do catolicismo” (VASCONCELOS, 2015, p. 40).

Já no que se refere à imigração europeia, verificamos que esta obedeceu à


adoção dos princípios formulados pelas teorias raciais do final do século XIX,
sob a justificativa do avanço socioeconômico, visto que o Brasil era avaliado
como “modelo da falta e atraso” em função da sua composição étnica e racial
(SCHWARCZ, 2012). Seyferth (1995) demarca, de maneira mais aprofundada,
os mecanismos que envolvem a preferência política por determinados gru-
pos nacionais no âmbito das migrações, sob a justificativa de um ideal de
desenvolvimento econômico benéfico para o progresso do Brasil. Para tal, a
formação da nacionalidade brasileira se constituiu negligenciando os con-
flitos e incômodos resultantes das desigualdades raciais. Afinal, estávamos
construindo uma nação que se relacionava de forma racialmente harmônica,
tese que contribuiu com a campanha de nacionalização do Estado Novo[26].

[25]  A miscigenação produzia naturalmente uma população mais clara, em razão de dois fatores:
primeiro, o branco era biologicamente superior ao negro; segundo, as pessoas tendiam a procurar
parceiros mais claros para se casar. A união de casais mistos desencadearia o surgimento de uma
população mestiça, sempre disposta a tornar-se mais branca, tanto cultural como fisicamente.
Essa teoria foi exposta por João Batista de Lacerda (1846-1915), médico, antropólogo e diretor do
Museu Nacional. Ele foi o único delegado latino-americano que participou, em julho de 1911, do
I Congresso Universal de Raças, em Londres (DOMINGUES, 2003, p. 255).

[26]  A tese do branqueamento da população vislumbrava os europeus como parte de um

126
Assim, o país do futebol e da Copa dos Refugiados segue sendo um país sem
distinção de cor, raça, sexo ou religião aos olhos do universo institucional
do refúgio. Chama atenção a contradição aguda entre este cenário social e
os posicionamentos por parte dos porta-vozes de temas relacionados aos
refugiados sobre a proteção que o Brasil lhes pode oferecer, visto os contextos
violentos e arbitrários dos quais estas pessoas estão fugindo. O Brasil é eviden-
ciado como um país com caráter de acolhimento e proteção para as vítimas
da violência sexual e de gênero, sendo um dos países mais bem ficcionados
em mitos democráticos e repercutindo internacionalmente a imagem de um
Brasil homogêneo, um exemplo a ser seguido para solucionar os problemas,
dentre eles os raciais e de gênero que afligem outros países— um laboratório
de convivência pacífica (FACUNDO, 2014).

Como consequência dos anos de escravidão temos um cenário onde os privi-


legiados se mantêm nas estruturas de poder, narrando e elegendo os episó-
dios a serem lembrados ao longo da história brasileira. Sobre tais discussões
a psicóloga Lia Schumann em seus estudos sobre branquidade (2014) nos
traz:
No Brasil, o racismo desenvolveu-se de forma particular, porque o Estado
nunca legitimou, mas foi e ainda é presente nas práticas sociais e nos discur-
sos. Ou seja, aqui temos um racismo de atitudes, ainda que não reconhecido
pelo sistema jurídico e também negado pelo discurso de harmonia racial
e não-racialista da nação brasileira (SCHUCMAN, 2014, p. 86).

Sendo assim, cuidar da forma como se processam as dinâmicas de integração


local de determinados grupos sociais, cuja raça e gênero impactam diretamente
na qualidade deste processo, apresenta-se como uma das grandes tarefas dos

processo do caldeamento racial e, por outro lado, estes europeus deviam integrar-se como
forma de abrasileiramento cultural. O imaginário nacionalista obsessivamente apegado a um
sentido étnico de formação nacional ajudou a criar não só outras formas de exclusão por graus
de assimilação, como reafirmou os preceitos racialistas de desqualificação dos nativos da Ásia e
da África que, no início da república, estavam consignados em lei, depois revogada. A construção
simbólica da individualidade nacional, portanto, ajudou a produzir os preceitos de exclusão que
marcaram a política imigratória no Brasil (SEYFERTH,1997).

127
pesquisadores das temáticas que compõem o eixo de fluxos migratórios para
o Brasil. Trata-se de elucidar os marcos civilizatórios que contribuíram com a
construção da imagem do Brasil como um país a la Gilberto Freire, democrá-
tico culturalmente. Contrapor o entendimento ingênuo que para alguns têm
servido de justificativa para limitar os avanços de políticas que evidenciem
as estruturas discriminatórias que estão por detrás dos deslocamentos for-
çados de corpos negros. Criticar os mecanismos que advogam a manutenção
desnecessária de uma produção de sofrimento psíquico sistematicamente
silenciada, fruto de formas equivocadas e excludentes de organização social.
Nesse sentindo, os fluxos migratórios contemporâneos de corpos negros se
relacionam diretamente com a produção de novos lugares de reflexão no
âmbito da produção subjetiva frente às relações de raça e gênero no Brasil.

Em Crítica da razão negra, Adchile Mbembe (2014) escreve que a raça esteve
no decorrer dos séculos precedentes na origem de inúmeras catástrofes,
tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis
crimes e massacres. Já Fanon (2008) evidencia as múltiplas jornadas que as
pessoas negras são convocadas a elaborar ao longo de suas vidas. A primeira
delas perpassa pelo reconhecimento dos signos racistas que estruturam a
sua subjetividade.

o negro vive uma ambigüidade extraordinariamente neurótica. Com vinte


anos, isto é, no momento em que o inconsciente coletivo é mais ou menos
perdido, ou pelo menos difícil de ser mantido no nível consciente (…) No
inconsciente coletivo, negro = feio, pecado, trevas, imoral. Dito de outra
maneira: preto é aquele que é imoral. Se, na minha vida, me comporto
como um homem moral, não sou preto. Daí se origina o hábito de se dizer
na Martinica, do branco que não presta, que ele tem uma alma de preto.
A cor não é nada, nem mesmo a vejo, só reconheço uma coisa, a pureza
da minha consciência e a brancura da minha alma. (FANON, 2008, p.162).

Ambos os autores discorrem ao longo de suas obras como as construções


ideológicas acerca do constructo racial em torno da palavra negro e do fenó-
tipo negro geram fortes marcas – efeitos psicossociais – na produção da

128
subjetividade, tanto individual quanto social. Referenciando González Rey ao
propor uma análise que coloque ambos os campos em perspectiva, “busca-se
uma reflexão que abranja o tema em sua complexidade, entendendo-o como
um campo de significação heurística ao permitir um diálogo permanente
com todos os níveis constitutivos da realidade social e dos sujeitos imersos
nesse contexto” (SANTOS; MOTA; SILVA, 2013, p. 703).

Nesse sentindo, como muitas histórias as quais têm sido contadas sob um
olhar embranquecido daqueles que sempre tiveram o seu ponto de vista legi-
timado, o tema do refúgio no Brasil não escapa à regra. Diante desses silêncios
imprimidos compulsoriamente ao longo da história, falas como “Você pode
substituir Mulheres Negras como objetos de estudo por Mulheres Negras contando
suas próprias histórias” — Giovana Xavier, ou “Mulher negra precisa dizer nome
e sobrenome, senão o racismo coloca o nome que quiser” – Lélia Gonzalez, nos
convocam a indagar ao longo desse texto: quais repercussões mulheres negras
de descendência africana têm experenciado diante do status de refugiada?
Ao migrar de território, seus corpos se deslocaram de lugares e quais outros
lugares se fez necessário produzir? Como tem sido para mulheres negras não
nacionais com status de refugiadas se relacionar com as estruturas racistas
e sexistas impressas no marco civilizatório brasileiro?

A partir deste caminhar é que reivindicamos a ideia de não mais incorrermos


nos riscos de desvincular debates tão caros para o entendimento de alguns
processos sócio-históricos que configuram distintas experiências identitá-
rias no contexto dos fluxos migratórios, sobretudo diante da necessidade de
avançarmos no campo dos estudos que intentem aprofundar as produções de
sofrimento psíquico diante das experiências de pessoas negras em processo
de deslocamento transnacional. Reconhecidamente o Brasil está longe de ser
um país acolhedor para mulheres, assim como está longe de ser um paraíso
racial. Em verdade, somos um país socialmente marcado por conflitos e desi-
gualdades de gênero e raciais escancaradas, diferenças que são históricas e
atuais, constantemente veladas por uma série de mecanismos de controle
e justificadas principalmente pelas lógicas de meritocracia que estruturam

129
as organizações. Mas a ideia de democracia racial persiste e constantemente
é propagada.

Nesse viés, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em uma apre-


sentação no programa de auditório TED, nos presenteia com importantes
reflexões em seu texto “O perigo de uma única história”.

E então eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana


deve ter, por toda sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única
história. Como um professor, que uma vez me disse que meu romance não
era “autenticamente africano”. Bem, eu estava completamente disposta
a afirmar que havia uma série de coisas erradas com o romance, que ele
havia falhado em vários lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele
havia falhado em alcançar alguma coisa chamada autenticidade africana.
Na verdade, eu não sabia o que era “autenticidade africana”. O professor
me disse que minhas personagens pareciam-se muito com ele, um ho-
mem educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas
não estavam famintas. Por isso elas não eram autenticamente africanos
(ADICHIE, 2009).

A autora tece uma série de problematizações que nos leva a compreender os


poderosos agenciamentos acerca das relações raciais no campo das subje-
tividades em meio às dinâmicas das representações estereotipadas acerca
de determinados grupos sociais, mecanismos que engendram controle e
manutenção de discursos poderosos sobre o que é ser; nesse caso sobre o que
é ser africano. Nesse sentido, faz-se necessário garantir um olhar criterioso
acerca das categorias que emergem perante os status que são acrescidos ao
fenômeno das migrações, visto que nessa dinâmica encontram-se presentes
diversos atravessamentos e interesses ideológicos, a exemplo dos mecanismos
agenciados pela construção da identidade nacional. Sobre este constructo
social Stuart Hall afirma:

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com


os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos

130
estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias
que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são cons-
truídas (HALL, 2014, p. 31).

Chimamanda Ngozi Adichie discorre ainda:

Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas


de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid
Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais sim-
ples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar”. Comece uma
história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos
britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história
com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado
africano e você tem uma história totalmente diferente (ADICHIE, 2009).

Com base nisso, se torna possível acessar as possíveis dinâmicas de agen-


ciamento perante determinados grupos de refugiados, os quais se tornam
naturalmente representados por categorias institucionalizadas, racionais,
objetivas e universais (FOUCAULT, 1981 apud FACUNDO, 2014).

Conforme esse argumento, podemos pensar que a criação estatística dos


refugiados como um grupo populacional e seu tratamento como um corpo
passível de intervenção requereria não apenas do poder social e político
da agência que centraliza essa criação – o Acnur, e de seus agentes ou
especialistas – mas também de outras formas para conseguir que esses
procedimentos de cálculo sejam socialmente aceitos como “a verdade”
sobre os refugiados (FACUNDO, 2014).

Os fluxos migratórios contemporâneos se relacionam diretamente com a


produção de novos lugares de reflexão. A psicologia, enquanto ciência e pro-
fissão, estrutura-se a partir da reflexão das diferentes formas que perpassam
a produção de subjetividades nos mais diferentes contextos sociais. Diante
disso é que se faz necessário garantir um olhar criterioso acerca das formas de
institucionalização sobre a verdade dos refugiados, de modo a compreender-
mos os fluxos ideológicos que se relacionam na organização social do tema

131
refugiados no Brasil. Também é necessário debater as intersecções relaciona-
das aos critérios das relações raciais e de gênero, de modo a conjecturarmos
conexões mais aprofundadas no que tange às experiências de produção da
subjetividade no âmbito dos fluxos migratórios. Isso é importante para pro-
duzir novos discursos sobre os elementos sociais que atravessam o cotidiano
das experiências de migração de determinados grupos sociais, considerando
que o sofrimento derivado disto repercute diretamente na construção da
subjetividade – construto de considerável relevância no campo de análise
dos efeitos psicossociais.

132
Referências
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS
(ACNUR). Cartilha para refugiados no Brasil: direitos e deveres, docu-
mentação, soluções duradouras e contatos úteis. (sem data)

_____. Refúgio no Brasil: uma Análise Estatística (2010-2012). 2013.

CRENSHAW, K A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero.


Em: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2014.

FACUNDO, A. Êxodos e refúgios: colombianos refugiados no Sul e Su-


deste do Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2014.

GUIMARÃES, A. S. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34,


2002.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade (1a ed.). Rio de


Janeiro: Lamparina, 2014.

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona. Tradução de


Marta Lança, 2014.

MOLON, S. I.. Notas sobre constituição do sujeito, subjetividade e lin-


guagem. Maringá: Psicol. Estud. v. 16, n. 4, 2011.

SANTOS N., L., MOTA, A., & SILVA M. V. A dimensão subjetiva da subci-
dadania: Considerações sobre a desigualdade social brasileira. Psicol.
Cienc. Prof., Brasília, v. 33, 2013.

SCHWARCZ, L. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e


raça na sociabilidade brasileira / Lilia Moritz Schwarcz. — 1a- ed. — São
Paulo: Claro Enigma, 2012.

SEYFERTH, G. A invenção da raça e o poder discricionário dos estere-


ótipos. Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

_______. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Rio de


Janeiro: Revista Mana: estudos de antropologia social, v. 3, n. 1, p. 95-
131,1997.

133
_______. Assimilação dos imigrantes no Brasil: Inconstâncias de um con-
ceito problemático. São Paulo: Revista Travessia, v. 36, p. 44-50, 2000.

VASCONCELOS, S.. Tópicos sobre o papel da Igreja em relação à escra-


vidão e religião negra no Brasil. Revista de Teologia e Ciências da reli-
gião. Ano IV, nº 4, 2005.

VIEIRA, D. Do Congo para o Brasil – entre a formação de redes e a busca


por trabalho – o caso dos refugiados e solicitantes de refúgio acolhidos
no Rio de Janeiro: Cadernos OB Migra V.1 N.3, 2015.

134
Violência contra a Mulher Negra: Racismo Institucional e
Sistema de Justiça

135
Maria Sylvia Aparecida de Oliveira[27]

A violência contra as mulheres negras

Em novembro de 2015, foi divulgado o Mapa da Violência – Homicídio


de Mulheres no Brasil, produzido pela Faculdade Latino-Americana
de Ciências Sociais (Flacso), trabalho coordenado pelo sociólogo Júlio
Jacobo Waiselfisz[28] que visibilizou o alarmante número de homicídios[29]
de mulheres negras em razão da violência de gênero e raça. A taxa de
homicídios de mulheres negras no Brasil era de 4,5 para cada 100 mil
habitantes. Onze anos depois, em 2013, a taxa subiu para 5,4/100 mil
habitantes. Em contrapartida, as taxas de homicídios de mulheres brancas
caíram de 3,6/100 mil habitantes em 2003 para 3,2/100 mil habitantes.
Sintetizando, um aumento de 54% na morte de mulheres negras em 10
anos e diminuição de 9,7% para as mulheres brancas no mesmo período.
O título “A cor das vítimas” no referido relatório traz as seguintes informações:

Nos diversos Mapas da Violência em que abordamos a questão da incidência


da raça/cor na violência letal, para o conjunto da população, concluímos que:

a. Com poucas exceções geográficas, a população negra é vítima prioritária


da violência homicida no País.

b. As taxas de homicídio da população branca tendem, historicamente, a


cair, enquanto aumentam as taxas de mortalidade entre os negros.

[27]  Advogada, presidenta do Geledés- Instituto da Mulher Negra.

[28]  Mapa da Violência de 2015

[29]  Neste relatório o termo utilizado é “homicídio”, pois a lei de feminicídio só foi sancionada
em 09 de março de 2015 - Alterando o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de
homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos
crimes hediondos.

136
c. Por esse motivo, nos últimos anos, o índice de vitimização da população
negra cresceu de forma drástica (WAISELFISZ, 2015, p. 29).

Em razão dos dados apresentados no Mapa da Violência – homicídio de


mulheres no Brasil, o Geledés-Instituto da Mulher Negra, em São Paulo, e
a organização Criola, no Rio de Janeiro, sob a coordenação de Nilza Iraci e
Jurema Werneck, elaboraram o dossiê denominado “A situação dos direitos
humanos das mulheres negras – violências e violações” em que se expõem
as diferentes formas de violações de direitos humanos de mulheres negras
brasileiras numa perspectiva de gênero.

O dossiê foi apresentado pelas supracitadas organizações da sociedade civil na


157º (centésima quinquagésima sétima) sessão da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA, ocor-
rida em abril de 2016, em Washington, onde o Geledés-Instituto da Mulher
Negra tem assento enquanto sociedade civil. Os fatos apresentados no dossiê,
acompanhados de dados oficiais sobre mortalidade de mulheres negras em
razão da ação e da omissão do Estado, ou seja, em razão do racismo estrutural
e institucional no Brasil, desencadearam a realização de audiências públicas
no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, em setembro de 2016, com a presença
da senhora Margarette May Macaulay, Relatora sobre os Direitos das Mulheres
e sobre os Direitos de Afrodescendentes na OEA.

O dossiê também denuncia que o Brasil não possui programas voltados para
o enfrentamento e a proteção da violência contra mulheres negras, apesar
de ser signatário de vários pactos internacionais que pugnam pela atuação
do Estado no efetivo combate à violência contra as mulheres.

Neste sentido, os documentos mais significativos a serem adotados como


parâmetro mínimo do Estado para garantia e promoção dos direitos huma-
nos das mulheres, tanto no âmbito público, quanto no privado, são: CEDAW
- Convenção contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de
1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, de 1994.

137
Para além das convenções internacionais acima mencionadas, em se tratando
de violência contra as mulheres negras, é necessário lembrar que o Brasil
adotou uma das primeiras convenções que trata especificamente do enfrenta-
mento à discriminação racial, sendo signatário da 1a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificando-a
através do Decreto 65.810, de 08 de dezembro de 1969, que tem por objetivos
eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e
prevenir e combater doutrinas e práticas racistas.

Outros instrumentos internacionais dos quais pouco se fala quando tratamos


da violência contra a mulher negra incluem o Plano de Ação de Durban que
trata das Medidas de Prevenção, Educação e Proteção Visando a Erradicação
do Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, resul-
tado da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban/África do Sul em
agosto de 2011, conferência na qual o Brasil teve um papel preponderante
como relator geral.

O item III do Plano de Ação de Durban, que trata das Medidas de Prevenção,
Educação e Proteção Visando a Erradicação do Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata nos Âmbitos Nacional, Regional
e Internacional, em seu inciso nº 62 informa textualmente que os Estados
signatários da mencionada Convenção devem tomar

todas as medidas necessárias para enfrentarem, através de políticas e


programas, o racismo e as violências motivadas por racismo contra mu-
lheres e meninas e para aumentar a cooperação, as respostas políticas e
implementação efetiva de legislação nacional e de outras obrigações de
acordo com os relevantes instrumentos internacionais e outras medidas
protetoras e preventivas visando a eliminação de todas as formas de
discriminação racialmente motivadas e de violência contra mulheres e
meninas (grifo nosso).

138
Todavia, diante de tudo o que até aqui foi exposto, podemos verificar que em
relação ao contexto de incorporação da questão raça e da discriminação racial
muito pouco foi feito se comparado aos compromissos assumidos em Viena
e Beijing, em termos de incorporação de gênero (CRENSHAW, 2002, p. 173).

Portanto, a questão a ser enfrentada em nossa sociedade é a dificuldade em


ver na população negra e mais especificamente nas mulheres negras, com
seu histórico de objetificação e desumanização, um ser dotado de direitos.

O que temos na nossa realidade é que o racismo estrutural e sistêmico natu-


raliza

a negação da humanidade de uma parcela da população, relativizando a


dignidade destes indivíduos e concebendo escalas de diferentes intensi-
dades de direitos na sociedade o que, por si só, é uma forma de agressão à
dignidade para a qual o Estado brasileiro não conseguiu ainda desenvolver
políticas de proteção. (CONCEIÇÃO, 2009, pag. 70).

Tendo em vista os dados da violência contra mulheres e meninas negras, é


extremamente necessária a adoção de políticas específicas que deem conta de
se fazer cumprir os compromissos assumidos nas convenções supracitadas.

O racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no cotidiano brasi-


leiro (racismo institucional) não representam simplesmente uma herança
do passado. O racismo vem sendo recriado e realimentado ao longo de toda
nossa história (racismo estrutural). Seria impraticável desvincular as desi-
gualdades observadas atualmente dos quase quatro séculos de escravismo
que a geração atual herdou.

Racismo institucional

O racismo institucional se configura como aquelas práticas cotidianas das


instituições públicas ou privadas que obstam ou dificultam o acesso a servi-
ços, trabalho, educação, justiça, etc. O racismo institucional se dá através da

139
ação e da omissão do Estado que fecha os olhos para as microviolências[30]
cotidianas, fruto da atuação individual de seus agentes, produzindo e repro-
duzindo a hierarquia racial.

Nas palavras de Sales Jr., citado no texto racismo institucional: uma aborda-
gem conceitual:

o “fracasso institucional” é apenas aparente, resultante da contradição


performativa entre o discurso formal e oficial das instituições e suas prá-
ticas cotidianas, sobretudo, mas não apenas informais. Esta contradição
é (...) fundamental para entender os processos de reprodução do racismo,
em suas três dimensões (preconceito, discriminação e desigualdade étni-
co-raciais), no contexto do mito da democracia racial. (SALES JR, 2011, apud
GELEDÉS, 2012, p. 15).

Mulheres negras e violência doméstica

A Lei Federal 11.340, de 07 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha,


é considerada um marco na legislação mundial, pois pensou um sistema de
proteção integral às mulheres em situação de violência e que tem como prin-
cipal objetivo coibir e prevenir a violência de gênero. A Lei Maria da Penha
em seu artigo sexto anuncia que: “A violência doméstica e familiar contra a
mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”.

Em que pese a suposta universalidade da lei, nem todas as mulheres são


alcançadas pela proteção nela prevista. Os números do Mapa da Violência
de 2015, como já mencionado na introdução deste artigo, comprovam que
quando se trata de violência contra a mulher negra, não podemos falar em
proteção integral.

[30]  A Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que essa pratica de minimizar
as agressões raciais cotidianas: “tem como efeito a discriminação indireta na medida em que
impede o reconhecimento do direito de um cidadão negro de não ser discriminado e o gozo
e o exercício do direito desse mesmo cidadão de aceder à justiça para ver reparada a violação.
Demais disso, tal prática causa um impacto negativo para a população afro-descendente de
maneira geral.” (CIDH, 2006)

140
A questão é que existe uma imensa dificuldade das instituições em incorporar
a raça às questões de gênero em razão do racismo estrutural e institucional que
refletem todo um histórico de desumanização, os quais foram descritos neste
artigo e, também, a invisibilização das mulheres negras. Vale dizer, apesar da
suposta universalidade da norma jurídica no caso da Lei Maria da Penha, em
que pese estabelecer que “toda mulher, independentemente de classe, raça,
etnia (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, existe
um abismo entre as ideias concebidas para a implementação das práticas e
rotinas de enfrentamento à violência e a efetiva execução destas práticas no
que diz respeito às diferentes especificidades e necessidades entre mulheres
negras e mulheres não negras.

Nos últimos 12 anos, tempo de vigência da Lei Maria da Penha, as políticas de


enfrentamento à violência doméstica ampliaram significativamente a rede
de atendimento às mulheres em situação de violência, principalmente na
região sul e sudeste, segundo a Nota Técnica nº 13 do IPEA[31] (p.15), que trata
da “Institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência
contra as mulheres no Brasil”.

Com muitas deficiências, é certo, estas políticas deram conta de diminuir o


feminicídio de mulheres brancas em quase 10% (dez por cento). Comentando
os 10 anos da Lei Maria da Penha, em reportagem para o site Brasil de Fato,
Júlio Jacobo Waiselfisz (2012) faz a seguinte análise:

[31]  A violência contra as mulheres tornou-se, na última década, um dos problemas públicos
de maior visibilidade social e política no país. Esse processo acompanha um movimento global
de reconhecimento dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência. Organizações
femininas brasileiras, juntamente com atores estatais, conquistaram a aprovação da Lei Maria da
Penha, que previu mudanças estruturais na forma como o Estado lida com a violência doméstica.
Diante desse novo quadro, o presente estudo destina-se a analisar a especialização dos referidos
serviços especializados, considerando as premissas da transversalidade das políticas públicas, da
intersetorialidade e da capilaridade previstas pelo Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher.

141
Vitimiza-se hoje seletivamente. Além disso, as brancas, muitas vezes, são
melhores (sic) atendidas, enquanto negras são deixadas de lado. Há toda
uma estrutura de segregação e seletividade da violência. As taxas de violên-
cia contra brancas tendem a baixa enquanto para contra negras tendem
a aumentar, o que aumenta também o fosso de proteção que existe entre
brancos e negros na própria Justiça.

O que foi apresentado teoricamente pode ser comprovado com a pesquisa


realizada pela socióloga Suelaine Carneiro em unidades da rede de enfrenta-
mento à violência contra mulheres (CDCMs – Centros de Defesa e Convivência
da Mulher e CRMs Centros de Referência da Mulher), na cidade de São Paulo. O
resultado do trabalho está publicado no e-book “Mulheres Negras e Violência
Doméstica: Decodificando os Números” (CARNEIRO, 2017).

Nesta pesquisa, a socióloga busca, para além da divulgação de números


estatísticos, em sua pesquisa de campo, fazer entrevistas que priorizassem
a escuta qualificada e o diálogo com as mulheres em situação de violência,
negras e não negras, que procuravam os serviços disponibilizados pela rede
de enfrentamento à violência contra a mulher.

Foi possível constatar que componentes como o

machismo, conflitos familiares, questões socioeconômicas, violência físicas


e sexuais, disputas patrimoniais...” são temas que atravessam as narrativas
das mulheres em situação de violência, todavia, as narrativas de violên-
cia doméstica sofridas pelas mulheres negras trazem o diferencial “onde
a cor da pele é um importante instrumento simbólico utilizado para a
manutenção e submissão, humilhação, desumanização e preservação do
controle e poder sobre os corpos e as mentes das mulheres negras. (CAR-
NEIRO, 2017, pag. 135).

Neste sentido, é preciso que o Estado brasileiro assuma que, para coibir e pre-
venir a violência doméstica e ser bem sucedido no enfrentamento à violência
contra a mulher, é preciso lutar por uma educação que aborde as relações de
gênero. Contudo, para que possa coibir a violência contra as mulheres negras, é

142
necessário mais. Para as mulheres negras é absolutamente necessário discutir
as relações raciais numa sociedade que ainda guarda resquícios do sistema
escravocrata e não enxerga essa parcela da população como seres humanos,
não as enxerga como pessoas.

Considerações finais

A denúncia do racismo institucional alerta para a forma difusa de preconcei-


tos que atuam no funcionamento cotidiano de instituições e organizações
e que acabam por discriminar com base em raça e etnia. Quando falamos de
racismo institucional no sistema de justiça não é diferente.
Assim, “Não basta reprovar a discriminação racial e a discriminação sexual,
pois a injustiça sofrida por mulheres brancas é diversa daquela vivida por
mulheres negras, assim como a discriminação experimentada por homens
negros e por mulheres negras não é a mesma” (RIOS e SILVA, 2015, p. 3).
A compreensão de que ser mulher e negra, em sua grande maioria periférica,
somados todos os outros marcadores sociais que exacerbam as opressões e
violências é fundamental para o entendimento das desigualdades que atin-
gem essa parcela da população. É necessário compreender, nesta perspectiva,
que “a interseccionalidade reunirá em um único termo aglutinador todas as
forças opressivas que limitam a vida das mulheres dos grupos racialmente
inferiorizados – e das mulheres negras em especial”. (GELEDÉS, 2012, p. 13).
As práticas jurídicas e as intervenções das políticas públicas na efetivação
da proteção integral das mulheres negras devem operar na perspectiva do
conceito jurídico de discriminação interseccional como nos explica Roger
Raupp, “diversos critérios proibidos de discriminação” acontecendo simul-
taneamente ou não (RIOS e SILVA, 2015, p. 14).
Em se tratando de violência contra as mulheres negras, o seu enfrentamento
deve passar pelo combate ao racismo estrutural e institucional. É preciso que
a sociedade se abra para discutir o racismo e todas as suas consequências.
Para além disso, o Estado brasileiro deve assumir a responsabilidade de pautar
esse debate e definir políticas que deem conta de extirpar das relações sociais
essa chaga que é o racismo.

143
Referências
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA– IPEA; FÓRUM BRA-
SILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA– FBSP Atlas da Violência 2018. Rio
de Janeiro, junho de 2018, Disponível em:

http: //www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&-
view=article&id=33410&Itemid=432, acesso em 01 de jul de 2018.

BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray (orgs). Branqueamento


e Branquitude no Brasil. Em: Psicologia social do racismo – estudos
sobre branquitude e branqueamento no Brasil, Petrópolis, RJ: Vozes,
2002, p. 25-58.

BRASIL. Lei Federal 11.340, de 07 de agosto de 2006, disponível em:www.


planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em
01 de jul. 2018.

CAMPOS, Luiz Augusto. Racismo em Três Dimensões: Uma abor-


dagem realista-crítica. RBCS vol. 32, nº 95/2017. Disponível em:
h t t p : / / w w w . s c i e l o . b r / s c i e l o . p h p ? p i -
d=S0102-69092017000300503&script=sci_abstract&tlng=pt, acesso em
27/03/2018.

CAMPILONGO, Celso Fernandes; GONZAGA, Alvaro; FREIRE, André Luiz


(coords). Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo I (recurso eletrônico):
teoria geral e filosofia do direito. - São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2017 Recurso eletrônico. Disponível em:

https://enciclopediajuridica.pucsp.br/pdfs/racismo_58ec762192828.pdf,
acesso em 20/04/2018.

CARNEIRO. Suelaine Aparecida. Mulheres negras e violência domés-


tica: Decodifancando os números. E-book. Disponível em: https://www.
geledes.org.br/wp-content/uploads/2017/03/e-BOOK-MULHERES-NE-
GRAS-e-VIOLÊNCIA-DOMÉSTICA-decodifancando-os-números-isbn.
pdf, acesso em 12 de maio de 2018.

144
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS-CIDH. Relató-
rio n. 66/06 - caso 12.001. 21 de Outubro de 2006, disponível em:

http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Aces-
so 28 de junho de 2018.

CONCEIÇAO. Isis Aparecida. Os Limites dos Direitos Humanos Acríti-


cos em face do Racismo Estrutural Brasileiro: O programa de Penas
e Medidas Alternativas do Estado de São Paulo. Faculdade de Direito
Universidade de São Paulo- USP, 2009.

CRENSHAW. Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas


em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Rev. Estu-
dos Feministas, 1º Semestre de 2002, vol.10, n.1, pp.171-188.

1a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de


Discriminação Racial. Disponível em:

https://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-69_Con-
vencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf, acesso
em 28 de junho de 2018.

Convenção contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher


- CEDAW de 1979. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-
-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf, acesso em 28 de ju-
nho de 2018.

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência


Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, de 1994 –

http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm, acesso
em 28 de junho de 2018.

GELEDÉS- INSTITUTO DA MULHER NEGRA; CRIOLA Organização de


Mulheres Negras. A Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Ne-
gras no Brasil Violências e Violações. São Paulo/Rio de Janeiro, 2016.

GELEDÉS- INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Racismo Institucional: uma


abordagem conceitual. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/

145
wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo-Institucional-uma-
-abordagem-conceitual.pdf, acesso em 03 de abr. de 2018.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Nota Técnica - 2015


- março - Número 13. A institucionalização das políticas públicas de en-
frentamento à violência contra as mulheres no Brasil (versão prelimi-
nar). Organizadores: ANTUNES MARTINS, Ana Paula;, CERQUEIRA, Da-
niel; MATOS, Mariana (orgs.) Brasília, março de 2015.

PIRES. Thula Raphaela de Oliveira. 20 de Novembro: Um convite à dis-


cussão sobre branquitude. Disponível em: http://emporiododireito.com.
br/leitura/20-de-novembro-um-convite-a-discussao-sobre-branquitu-
de, acesso em 31 de maio de 2018.

RIOS, Roger Raupp;  SILVA, Rodrigo da. Discriminação múltipla e dis-


criminação interseccional: aportes do feminismo negro e do direito da
antidiscriminação. Rev. Bras. Ciênc. Polít. [online]. 2015, n.16, pp.11-37.,
acesso em 10 de maio de 2018.

SEVERI. Fabiana Cristina. Justiça em uma perspectiva de gênero: ele-


mentos teóricos, normativos e metodológicos. Revista Digital de Di-
reito Administrativo, vol. 3, nº 3 (especial) 2016. Faculdade de Direito de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/rdda/article/viewFile/119320/116998, acesso em 30 de se-
tembro de 2017.

SILVA, Caroline Lyrio; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Teoria Crítica da


Raça como Referencial Teórico Necessário - Para Pensar a Relação entre
Direito e Racismo no Brasil. Em: Direitos dos conhecimentos [Recur-
so eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS; Coordenadores: Fer-
nando Antonio De Carvalho Dantas, Heron José de Santana Gordilho,
Wilson Antônio Steinmetz– Florianópolis: CONPEDI, 2015, pags. 61 a 85.

WAISELFISZ. Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homi-


cídios no Brasil. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/
pdf2012/mapa2012_cor.pdf, acesso em 13/07/2017.

146
“Quando o terreiro vai à delegacia”. Racismo, intolerância
religiosa e sistema judiciário em Belém, Pará, Amazônia

147
Marilu Márcia Campelo[32]
Zélia Amador de Deus[33]

Viemos de uma terra sagrada onde o alá é quem cobre as nossas cabeças
e Oxalá é o guardião da paz, mesmo assim fazem guerra e racismo com
a nossa gente. Não podemos colocar um turbante ou um gobi, uma saia
rodada nem um gunny que somos taxados de macumbeiros, feiticeiros e
adoradores do diabo. Em que universo estamos? Que universo é este onde
os direitos de exercer a Fé nos é negado. Como se estabelece um Estado de
direito sem direitos? Esta é a pergunta que não quer calar. (CONSEP-PA,
2017, p. 1 e 2)

Quando os africanos foram trazidos para as Américas trouxeram consigo seu


corpo, sua memória e sua alma. Aqui imprimiram marcas profundas, criando
novas estruturas religiosas. Nos seus processos de resistência e acomodação
foram capazes reordenar no novo território uma rica cosmovisão religiosa
advinda do contato de culturas e transferências físicas.

Essas estruturas religiosas envolvem cultos diversos, mas com características


marcantes, pois abrangem cultos de ancestrais (espíritos de mortos ilustres)
e/ou um panteão de divindades/deuses chamados de Orixás, Voduns, Nkisses
e Loas.

As religiões de matriz africana têm se desenvolvido em um processo histórico


marcado pela necessidade de criar estratégias de sobrevivências e diálogos
frente às condições adversas que a sociedade brasileira lhes impôs. Esse qua-
dro se repete nas diversas regiões do país.

[32]  Antropóloga, professora associada da Universidade Federal do Pará, líder do Grupo de


Pesquisa CNPq Roda de Axé. Coordenadora do NEAB Grupo de Estudos Afro-Amazônico/UFPA.

[33]  Antropóloga, professora Associada da Universidade Federal do Pará, Grupo de Pesquisa


CNPq Roda de Axé, membro do Grupo de Estudos Afro-Amazônicos/ Coordenadora da Assessoria
de Diversidade e Inclusão Social da UFPA, membro do Centro de Estudos e Defesa do Negro no
Pará - CEDENPA/ Conselheiro no Conselho de Segurança Pública do Pará - CONSEP).

148
Foram perseguidas pela Igreja Católica por quatro séculos, pelo Estado repu-
blicano (sobretudo na primeira metade do século XX) quando este se valeu
de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene men-
tal; foram perseguidos pelas elites sociais e intelectuais que desprezaram e
admiraram estas religiões através de jornais, textos literários, artes plásticas
e música, justamente “pelo exotismo que estas religiões representam para
elas” (SILVA, 2007, p. 9-27).

A partir de 1970 este quadro começa a mudar, quando essas religiões conquis-
tam uma relativa legitimidade nos centros urbanos, resultado da associação
entre os movimentos de renovação cultural e de conscientização política
engendrada pela aliança entre artistas, políticos, profissionais liberais, classe
média, pesquisadores e movimento negro. Porém novos inimigos e novas armas
adentraram esse campo obrigando os terreiros, pensados como comunidades,
a reelaborarem suas estratégias de sobrevivência e inserção na sociedade
mais ampla (MORAIS, 2012).

As religiões de matriz africana ocupam posição marcante na vida de várias


cidades brasileiras desde o século XIX acompanhando as mudanças histó-
rico-culturais no país e se renovando, criando novas estruturas de culto e,
porque não dizer, tradições.

São religiões de transe cujo desenvolvimento inicial esteve circunscrito às


principais cidades portuárias do país: Salvador, São Luís, Recife e Rio de Janeiro,
espalhando-se em períodos muito específicos por diferentes regiões. Os
deuses que vieram da África aqui foram se encontrando com outros tipos de
culto e crenças e, num processo de aculturação e sincretismo, foram criando
novas estruturas de culto. Em cada região do Brasil esses cultos tomaram
formas que mantém, em certo sentido, uma unidade. Dividem-se em nações
(que podem ser pensadas como recriações das antigas etnias) desenvolvidas
entre as diferentes experiências religiosas trazidas da África. Nesse âmbito, a
predominância das influências iorubanas (nagôs) e ewe-fon (jejes) é um dos
mais importantes referenciais no reconhecimento entre as nações.

149
Ora reivindicam uma origem de tradições variadas – o sincretismo – tais como
africana, europeia e indígena; ora buscam uma origem negra e africana[34].
Chamada outrora de feitiçarias, passaram a cultos e, na segunda metade
do século XX, ganharam o status de religiões afro-brasileiras e, finalmente,
religiões de matriz africana respeitadas como religiões tradicionais, fruto de
ações e políticas públicas para os povos de terreiro (CAMPELO, 2009).

Todas essas religiões são organizadas em comunidades, tratadas aqui como


“comunidades-terreiros”. Elas são baseadas em regras de convívio, em que
predomina um conjunto de etiquetas num jogo de hierarquia e humildade
entre as diferentes categorias de idade, impostas pelo tempo de iniciação.
O aprendizado é produto da vivência e da iniciação que vai sendo concreti-
zado através da transmissão oral do saber. Não são religiões do livro ou de
um único mito fundante. Sendo assim, o iniciado tem que aprender a cantar
corretamente, dançar bem e pronunciar com precisão as diferentes saudações
dirigidas aos mais velhos e aos orixás, nkisses, voduns, espíritos, encantados e
antepassados. É um processo de aprendizado progressivo e lento.

A transmissão do saber passa dos mais velhos para os mais novos e acontece
quando os primeiros reconhecem nestes últimos a capacidade e os consideram
socialmente identificados com as normas fundamentais do grupo, podendo,
desta forma, ser portadores e transmissores do saber e de axé. O conhecimento
“vem com tempo”, dizem os mais antigos. Assim, através de um processo len-
tamente adquirido, o saber do novo iniciado vai sendo incorporado ao seu
conhecimento e sua experiência (COSSARD-BINOM, apud BARROS, 1999).

[34]  Geograficamente podemos dizer que o Candomblé (com suas variações internas como
keto, angola e jeje) e a Umbanda (também com suas variações) são conhecidas e praticadas em
todo o país, seguidos hoje pela disseminação do Culto de Ifá (trazido por cubanos e nigerianos no
final do século XX). Outras denominações estão circunscritas ao processo histórico de ocupação
da região onde se desenvolveram. São elas o Tambor de Mina, a Mina Nagô (e suas variações), o
Terecô, as Linhas de Cura (Pajelança) e Encantarias, a Barquinha (que já é um sincretismo com
o Santo Daime), o Xangô, o Toré, o Catimbó, a Jurema, o Xambá, o Candomblé de Caboclo, o
Candomblé de Egum, o Omolocô, o Jarê, o Batuque e a Quimbanda.

150
O mundo afro-religioso, segundo Pessoa de Barros, (1999, p.39) é um mundo de
sons, de textos falados ou cantados, bem como de gestos e expressões corporais
associados a objetos-símbolos que transmitem um conjunto de significados
determinados pela sua inserção em diferentes ritos. Ele reproduz a memória
e a dinâmica do grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comuni-
dade através da dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também
nas histórias contadas pelos mais velhos como modelos paradigmáticos.

Porém, se de um lado as religiões de matriz africana foram se abrindo a novos


praticantes e ganhando espaço público, muito mais pelo viés da cultura, por
outro lado, o estigma – como feitiço, magia negra, feitiçaria, macumba ou
mandinga – permaneceu. Estigma alimentado pelas ideias raciais sobre a
produção cultural e histórica dos descendentes de africanos, enfim, estigmas
alimentados pelo racismo.

Embora a liberdade de crença faça parte da organização da sociedade brasi-


leira, ela nem sempre atingiu as religiões de matriz africana, que só passam a
conseguir um relativo conforto a partir da Constituição de 1988, que garantiu a
liberdade religiosa, o direito de crença, rituais e proteção dos lugares de culto:

Cumpre também ressaltar, que não há pleno exercício desta garantia, sem
que haja a colaboração dos cidadãos, e de forma mais relevante, do Estado,
como entidade zeladora da liberdade religiosa, devendo esta instituição, da
qual emanam todos os regramentos sociais, por meio de leis e da prestação
jurisdicional, propiciar um ambiente laico, sem o uso do poder estatal para
o favorecimento desta ou daquela entidade religiosa (MOYA, 2015).

Contudo, a hostilidade às religiões de matriz africana vem crescendo cada vez


mais, agressões físicas e verbais são mais comuns do que se pensa. A quem
interessam estas agressões? E, por que, apesar de haver uma garantia por lei,
é necessário recorrer a instâncias jurídicas para poder exercer uma crença,
um rito? E como avaliar a maior de todas as contradições em relação ao apa-
rato legal que é justamente o de proteção aos locais de culto, se invasões aos

151
terreiros se tornaram corriqueiras e são vistas nas delegacias como simples
brigas de vizinhos, o que leva à subnotificação do tema?

Podemos trabalhar aqui com duas explicações a priori: de um lado o racismo


e a discriminação que o acompanha remontam ao período colonial e à escra-
vidão que rotularam as religiões atuais pelo simples fato de serem de origem
africana. E ser de origem africana é tido como primitivo, incivilizado, mágico
e perigoso, é sujo, é o que faz mal. E de outro lado, a ação de certos movimen-
tos neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de preconceitos
e ideias errôneas para “demonizar” e insuflar a perseguição a umbandistas e
candomblecistas em todo o país, iniciada como uma silenciosa guerra religiosa.

A intolerância religiosa hoje é capitaneada por vários grupos e é uma forma


dissimulada de preconceito e discriminação.

Ela está expressa em atitudes e palavras. Ela pode ser sutil e está no cotidiano
sem envolver violência física, como por exemplo: no transporte público, na
rejeição à roupa branca nas sextas-feiras (dia sagrado para a grande maio-
ria dos afro-religiosos); no uso de um colar ritual no pescoço no transporte
público, quando a pessoa se benze ou se levanta por não querer ficar sentada
ao lado; na criança que hostilizada na escola por ser da religião ou por seus
pais serem praticantes, ser chamada de filha do diabo; na rejeição ao ensino
da história da África e dos africanos na educação básica, ou então, chamando
as oferendas públicas de lixo. “Tais atitudes se observadas e interpretadas a
partir dos que a praticam, revelam inabilidades, preconceitos e uma indis-
posição em relação ao reconhecimento e o respeito às diferenças ou crenças
religiosas do outro”, afirma José Geraldo da Rocha (2011, p. 2).

Do ponto de vista da origem, confirma o autor, “a intolerância está relacionada


ao sistema de convicção religiosa nas próprias crenças dos indivíduos ou
mesmo na incapacidade do indivíduo de compreender as crenças e práticas
religiosas diferentes das suas e consequentemente, admitir o seu direito à
existência (ROCHA, 2011, p.2 e 3).

152
Eu tava pagando a minha obrigação de ano, quando a gente foi entregar
um presente nas águas, depois que terminou a entrega dos presentes, três
guardas vieram abordar a gente que estávamos jogando lixo nas águas da
baía do Guajará, tratou a gente super mal, por mais que a gente estava tra-
jando roupas da nossa religião, falamos pra eles que era que a gente estava
fazendo lá que era o caso que era o presente das águas, eles disseram que era
lixo e não deixaram a gente terminar o que a gente estava fazendo, acabou
tendo uma discussão entre os mais velhos que estavam com a gente e eles.
Eu digo é assim, a falta de importância que é a religião da gente porque
se o povo pode fazer aquele círio fluvial e jogarem aquele mundo de lixo,
porque jogam copos descartáveis, jogam sacola, jogam um monte de coisa,
todo barco que passa deixa o seu sujo lá na água, não é verdade? Se os evan-
gélicos fazem essas passeatas que também deixam a rua imunda, por que
a gente não pode fazer hein? Por que só pra gente que era lixo? Só o que a
gente faz que é lixo e das outras religiões não é lixo? A gente foi entregar a....
porque sempre tem a última oferenda que é o Urupim... que vai comida, vai
flores, vai grãos, vai um monte de coisa pra dentro das águas, que a gente
acaba entregando pra dentro das águas e foi isso que eles consideraram
como lixo, e não tinha nada lá que fosse lixo, tudo ia ser comido por peixe,
tudo ia servir depois pra própria natureza, que até o alguidar que a gente
levou trouxemos de volta, não ficou lá. Então se mais pessoas tivessem a
iniciativa que foi tomada de ir dar parte dos guarda tudo, eu acho que até
que dava um avanço nessa coisa toda, mas não, o pessoal deixa passar, ainda
se trancam ainda (Tata Kitauange, CONSEP-PA, 2017, pg. 21 e 22).

Em 2008, portanto, dez anos atrás, Ari Pedro Oro e Daniel Bem (2008) já chama-
vam a atenção para as contradições que havia entre o estatuto jurídico que
assegura a liberdade religiosa, associada à liberdade de expressão, à liberdade
de consciência e às representações construídas sobre as religiões de matriz
africana na sociedade brasileira.

Assim, a universalização dos ataques de que são vítimas as religiões de


matriz africana na atualidade, tanto por parte de outras religiões quanto

153
de indivíduos e de instituições outras da sociedade inclusiva, revelam que
aqui e alhures ainda vigora uma mentalidade distorcida acerca daquelas
religiões, apesar das legislações que reconhecem a isonomia entre todas
as religiões, constituindo-se isso, porém, numa face do mesmo preconceito
e racismo votado (sic) ao negro (Avancini, 2008, p. 139), malgrado os pactos
internacionais em favor dos Direitos Humanos e de respeito às diversidades
étnicas e às minorias sociais (ORO; BEM, 2008, p. 315).

Da perseguição do século passado à intolerância atual, o certo é que os adep-


tos das religiões de matriz africana vêm sendo agredidos em todo o Brasil.
Na região amazônica, particularmente no Estado do Pará, a situação não
é diferente, tanto é que em 2017, após o assassinato de seis (06) lideranças
religiosas, criou-se o GT de Matriz Africana, que investiga casos de violência
contra a tradição de matriz africana e suas autoridades e lideranças no Estado
do Pará, no Conselho de Segurança Pública do Estado do Pará[35]. Atualmente
esse quantitativo chegou a 09 assassinatos em 3 anos.

Em março de 2015, a partir da divulgação, em redes sociais, da criação de


um grupo de milícia fundamentalista que se auto intitula ligado à Igreja
universal do reino de Deus, várias autoridades de povos tradicionais de ma-
triz africana protocolaram documento elaborada por instituições de Povos
Tradicionais de matriz Africana no Ministério Público Federal, endereçado
ao Procurador Regional de Direitos do Cidadão – PRDC/PGR/MPF , tratava-se
de uma Representação (em forma de manifesto) CONTRA A CONTINUAÇÃO
DE PRÁTICA DE INTOLERÂNCIA/DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA, e essa represen-
tação foi acompanhada de CARTA ABERTA ÀS AUTORIDADES BRASILEIRAS:

[35]  Desde 2014, o NEAB Grupo de Estudos Afro-Amazônicos e o Grupo de Pesquisa Roda de
Axé vêm acompanhando também o crescente número de denúncias envolvendo os terreiros em
Belém e na Região Metropolitana da cidade através de um Projeto de Extensão chamado Axé
e Tambor. Neste ano de 2018 pretende-se dar continuidade ao mesmo, mapeando o racismo e
a intolerância religiosa em Belém e Região Metropolitana. Nossas metas visam acompanhar as
ações do GT de Matriz Africana no Conselho de Segurança Pública – CONSEP-PA, bem como
mapear e registrar os casos de violência que os terreiros e as práticas culturais de matriz africana
vêm sofrendo na cidade.

154
PROTEÇÃO DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA CONTRA OS “GLADIADORES
DO ALTAR” , E OUTRAS QUESTÕES RELATIVAS À DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA.
Essa representação dos povos tradicionais de matriz africana da zona
metropolitana de Belém foi arquivada por falta de provas em dezembro de
2015, pela Dra Melina Tostes, que à época respondia pela PRDC/PGR/MPF-PA,
com os argumentos de que os registros eram feitos em outros estados da
federação e que não haviam indícios de que haveriam ameaças contra au-
toridades, lideranças ou mesmo contra os territórios e as territorialidades
de povos tradicionais de matriz africana no Pará.

Coincidência ou não, foi a partir de abril do mesmo ano de 2015 é que uma
série de assassinatos de lideranças e autoridades tradicionais começou a ser
percebida e visibilizada pelas comunidades, e a partir dessa percepção se
formou o MOVIMENTO ATITUDE AFRO, que buscava o diálogo com o poder
público para a salvaguarda e proteção das tradições de matriz africana na
zona metropolitana de Belém. (CONSEP-PA, 2017, p.6-8)

O CONSEP-PA aprovou a solicitação do Centro de Estudos e Defesa do Negro do


Pará –CEDENPA –, através da Resolução nº 306, de 30 de novembro de 2016,
homologada pelo Decreto nº 1.690, de 03/02/2017, que atendeu a reivindica-
ção e oficializou o Grupo de Trabalho. Os integrantes foram designados pela
Portaria nº 008/CONSEP, de 22 de março de 2017.

O Grupo de Trabalho foi instalado pelo Conselho Estadual de Segurança Pública


na tarde da terça-feira, 11 de abril de 2017 no Terreiro de Tambor de Mina Dois
Irmãos, o mais antigo de Belém, no Pará, fundado em 1890 e Tombado pelo
Patrimônio Cultural do Pará em 2010, localizado na passagem Pedreirinha,
bairro do Guamá.

O Grupo de trabalho tem por finalidade investigar a violência contra


a matriz africana e projetar políticas públicas de segurança e proteção aos
cultos afro-brasileiros no Estado do Pará.

O que motivou a criação do GT pelo CONSEP-PA foi esse crescente índice


de violência contra os povos tradicionais de Matriz Africana na Região

155
Metropolitana de Belém, e a solicitação ao CONSEP se deu depois de acionar
o MPF e de termos nossa solicitação negada, da tentativa de diálogo com
a PMB que resulta em agressão sofrida por pessoas de outras religiões, e
de denunciar essa agressão sofrida na manifestação do aniversário de
Belém ao MPE, é que recorremos ao CONSEP-PA em busca de diálogos que
pudessem resultar em políticas públicas para a garantia de direitos dos
Povos Tradicionais de Matriz Africana.

Foi por esse motivo que autoridades e lideranças tradicionais de matriz


africana protocolaram mobilizaram organizações do movimento negro
em todo o território nacional, para conjuntamente com as organizações
locais assinassem o ofício ao Conselho de Segurança Pública do Estado do
Pará – CONSEP-PA denunciando o clima de insegurança e os assassinatos
ocorridos entre 2015 e 2016 que os jornais registraram, a saber, pelas datas
de publicação de notícias:

22/04/2015 – Mametu Luango Neire do Socorro Ferreira da Fonseca (Moju).

05/10/2015 - Pai Roberto Ruan Neves da Silva, 22 anos. (Castanhal)

02/12/2015 – Babalorixá Bessen ny Odo - Marco Antônio Albuquerque da


Cruz, 50 anos. (Belém, bairro da Pratinha)

17/12/2015 - Pai José Flávio Ferreira de Andrade, 36 anos. (Benevides)

23/12/2015 – Pai Xoroquẽ do Brasil, Raimundo Nonato Ferreira, 50 anos,


(Belém, bairro de Águas Negras)

08/08/2016 – Babalorixá Sigbonile - José Mário Cavalcante da Silva, 39 anos.


(Ananindeua, bairro do Icuí)

29.09.2016 – Huntó Jigongoji – Ivonildo dos Santos, o Nego Banjo, 69 anos


(Belém)

(...)

O assassinato do Huntó Jigongoji mobilizou ainda mais as comunidades


de POTMA e atingiu também os grupos culturais, pois o mesmo atuava em

156
grupos de dança, de capoeira e de música, provocando matérias em jornais,
emissoras de rádio e emissoras de televisão com várias manifestações, in-
clusive em redes sociais, alertando para o genocídio do povo negro e para
o etnocídio das tradições de matriz africana no estado do Pará. (CONSEP,
2017. Grifos nossos).

A Secretaria Nacional de Direitos Humanos fez um levantamento estatís-


tico sobre os casos de intolerância religiosa no período de janeiro de 2011 a
dezembro de 2015 no Brasil.

157
158
Os dados do Disque 100 apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011
e dezembro de 2015, a maioria registrados nos Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade
Religiosa e Direitos Humanos (CEPLIR), criado em 2012, registrou 1.014 casos
entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões
de matrizes africanas, 7,7% contra evangélicos, 3,8% contra católicos, 3,8%
contra judeus e sem religião e 3,8% de ataques contra a liberdade religiosa
de forma geral.

Em 2016, 759 denúncias foram feitas pelo serviço telefônico, frente a 556 em
2015. Do total, 9,75% eram relacionadas à umbanda, 9,09% ao candomblé e
4,35% a outras religiões de matriz africana.

São muitos casos: lei do silêncio, uso do jogo religioso de acusação entre bruxos
e feiticeiros, ação de traficantes que se dizem evangélicos, e um pequeno, mas
já sentido êxodo dos terreiros, cujos sacerdotes têm mais poder aquisitivo,
para áreas mais afastadas dos centros urbanos repetindo um movimento
do final do século XIX e início do século XX. O descaso de autoridades e a ina-
bilidade de delegados e investigadores para conduzirem o caso quando este
se torna um boletim de ocorrência, entre outros casos, levaram à criação de
um grupo de trabalho dentro da Secretaria de Segurança Pública que pudesse
responder por estas agressões aos afro-religiosos e à população negra em
geral. O grupo de trabalho tem por finalidade investigar a violência contra
a matriz africana e projetar políticas públicas de segurança e proteção aos
cultos afro-brasileiros no Estado do Pará.

A intolerância religiosa pode e deve ser considerada uma violação dos direitos
humanos e seus praticantes são criminosos, não importando de se tratar de
cidadãos ou pessoas que estejam representando órgãos públicos. Do ponto de
vista da origem, a intolerância religiosa está relacionada ao próprio sistema
de crenças de indivíduos; na incapacidade de compreender crenças e práticas
religiosas diferentes das suas, e, consequentemente, admitir o direito dessas
crenças existirem (SILVA Jr, 2009). A intolerância religiosa é, portanto, um novo
racismo, e muitas comunidades e grupos que foram perseguidos por séculos

159
por causa da cor da sua pele são perseguidos agora por causa de sua religião
e por um processo de demonização a tudo que se refere a afro e africano. Ao
assumir o caráter racial, a intolerância religiosa configura mais uma face do
racismo à brasileira que resiste ao processo de democratização:

1. Então, assim, eu saí ... eu já sabia que eles eram, tipo, eles tinham co-
ragem de ... de meter o pé na minha porta e matar lá dentro. Então, eu
realmente não ... eu não pres ... não ... não prestei nenhuma queixa, não
bati nenhum B.O. por conta disso, por medo mesmo, entendeu? Ah ...
eu preferi mesmo botar placa de venda, vendi e saí correndo de lá. Mas,
assim, quero deixar aqui a minha contribuição relacionado ao racismo
religioso, e pedir, assim, a gente pede com que esses depoimento sejam
fundamentais, porque, isso sim, isso faz com que a nossa dignidade,
a nossa estima enquanto cidadão, enquanto pessoas que lutam pelo
um direito, direito do humano, direito à dignidade, que a gente o
tempo todo vai tá ... ah ... a gente sabe que a gente é amparado pela a
... pela Constituição, mas ... eh ... o Estado é laico, mas essa “laiticidade”
(sic) nunca ... nunca existiu. E aqui, através desses depoimentos, ah ...
eu quero que realmente fique bem claro que o racismo religioso, ele
é capaz de fazer com que as nossas casas seje (sic) queimada, que as
nossas casas sejem (sic) apedrejada, e que ... e que de alguma forma a
comunidade ou ... ou o entorno da onde a gente mora e essas igrejas
que perseguem a gente fazem com que, eh ... chegue o ponto até de ...
de assassinar, né. (sic) (Baba Oba Ytan, CONSEP-PA, 2017, p. 23-28).

2. Nós vivemos assim, intolerância ela convive com a gente em todos os


espaços. O senhor sabe que o nosso Ilê não é muito longe da feira, e nós
temos o hábito de estarmos no Ilê e vestimos nossas roupas, nossos
axós e temos o hábito de irmos ao supermercado, à feira, em todo lugar.
E teve um dos casos, uma filha minha, o evangélico chegou a puxar
mesmo em cima dela as conta, vendo uma moça sozinha ‘tira isso, isso
é do demônio’ aquelas coisas idiotas, como o pessoal da feira conhece
a nossa casa, até por conta de que muitos participam dos trabalhos

160
sociais que a casa faz, o senhor sabe né que a ACYOMI tem os traba-
lhos sociais com a comunidade em torno, eles foram pra cima ‘larga a
menina, larga a menina’ ela chegou tão abalada em casa, tão abalada!
Ela tem 26 anos, e nunca mais ela quis vestir a roupa pra ir pra rua, ela
ficou apavorada. Outro foi um filho de 15 anos, estava de axó também,
foi ao mercado e foi seguido por dois homens falando dizendo aque-
las palavras de... de... sei lá, de deus de diabo, daquelas coisas que eles
falam esculhambando. Graças a Olorum eles não agrediram. A partir
disso nós continuamos porque nós somos um povo de resistência, eu
faço conversa com eles, nós não vamos desistir, nós não vamos e não
temos nem porquê não é? Deixar de usar nossas roupas, de mostrar
nossas contas, de mostrar nossa tradição, então a gente continua indo
mas ninguém sai mais do que de três, só sai três, não sai nem de dois,
só sai de três, no supermercado, na feira, e assim nós fazemos e eu
fico pensando, há quantos anos também nós estamos ali no bairro
da Terra Firme: há muitos anos, década e conhecidos ACYOMI já tem
quinze anos que faz trabalhos e ainda acontece isso conosco. (...) Tudo
bem, a polícia fez o trabalho dela, isso eu não posso negar. Eles foram,
eles tavam começando a formar uma igreja eles foram lá, mandaram
o que manda né pra eles, as intimações, eu soube que eles receberam,
porque a mãe de um veio pedir pra retirar queixa porque era vizinha
há tanto tempo, eu disse a ela que se eles me considerassem, a senhora
não tinha permitido, não consideraram, não respeitaram, eu sempre
respeitei vocês não respeitaram eu não vou retirar, apesar de ser uma
vizinha de mais de vinte e cinco anos também, mas eu conversei com
ela e mostrei pra ela, enfim, até hoje estou esperando. E os rapazes, os
outros fugiram, porque, com essa história descobriram que um estava
inclusive fugido do presídio, o outro era um ex-traficante, usuário, sei lá
essas história, também tinha problema aí fugiram. (...) Teve é....tiveram
dois ou três pais que sofreram casos até piores do que o meu, como um
que foi invadido ele foi a primeira, foi a segunda e desistiu, por conta
dessa morosidade, disso tudo que eu relatei no meu caso, acaba que

161
eles desistem antes porque eles não acreditam que vai haver justiça,
esse é o pior! É esse o maior entrave, esse é o gargalo, a justiça não dá
resposta pra gente, não dá retorno. Então quando a gente fala muitas
das vezes, que eu coloquei nome, eu dizia onde era a delegacia, que
nós tínhamos uma especializada, e eu falava, o que eu escutava era
isso: ‘Mas a senhora acha que isso dá certo? A senhora acha que eles
vão fazer alguma coisa por nós?’ É total falta de crédito na justiça, pra
retorno pra nós. É isso, pai. E infelizmente a verdade é essa, nós não
temos retorno, é bater na caixa vazia, sabe, é um horror isso... (...) (Mãe
Nalva de Oxum, CONSEP-PA, 2017, p.28-34).

3. O descrédito da polícia é muito grande com nós povos tradicionais, a


palavra nem é descrédito é desrespeito mesmo, porque se um vizinho
denunciar como já aconteceu aqui comigo, a polícia veio e entrou com
armas pesada, eu pago imposto eu sou cidadã, eu pago imposto como
qualquer pessoa, eu acho que teria... pra ele entrar na minha casa e
verificar o que tinha acontecido, ele teria que ter uma ordem pra en-
trar na minha casa, mas assim ele veio né de uma forma truculenta,
desrespeitosa, e me desrespeitou como mulher idosa, como mãe de
santo, como pessoa humana, então é isso. Se fosse eu ou um de nós
que fosse fazer uma denúncia do vizinho seria a resposta assim – ah,
madame, ou minha senhora, vá pra sua casa - isso aí, então faça como
antigamente, um termo de bom viver, isso não existe pra nós, nós esta-
mos cansados, de ser desrespeitados, de ser avacalhado pelas pessoas
como se nós fôssemos, como se não fôssemos ninguém, nós somos seres
humanos, nós não queremos tolerância, nós queremos é respeito por
nós humanos e de tradição. Na verdade a polícia, os delegados, elas não
conhecem as nossas tradições, e dessa forma não ensinam o policial, o
Estado a ter um respeito, a ter um olhar de respeito com as nossas tra-
dições, com as nossas casas, com nossos mansus, terreiros, com nossos
ilês, com nossos templos, não tem. É diferente o policial bater numa
igreja, que ele nem se atreve, do que ele bater na porta de um terreiro,

162
e de fato foi terrível porque eu me senti acuada dentro da minha casa.
Eu na verdade eu já fui denunciar quando a casa foi apedrejada mas
eu não quis naquela época em oitenta e cinco, o que que aconteceu,
a polícia veio pra manter a ordem, eu não sei se na verdade a pessoa
que foi comigo, o filho de santo, ele tinha algum conhecido dentro
da polícia que teve a sensibilidade ou se nós com uma produção dos
nossos deuses, a gente teve naquele momento uma sensibilidade do
policial que veio reparar ou cuidar pra vim manter a ordem para que
nosso ritual seguisse, mas assim, aquele fato, um homem, um senhor
que se diz que trabalhava no IBAMA, e viu um membro da casa que ele
vinha com um passarinho que ela achou, botou numa caixa e trouxe
pra gente cuidar ela estava, ainda não estava nem com pena, não tava
empenado, então não custava a gente cuidar, que isso cai das nossas
árvores passarinho, a gente cuida depois solta, que a nossa tradição é
de cuidar, então assim o senhor do IBAMA ligou pra polícia, ameaçou,
gritou, disse que eu era matadora, que aquilo ia ser mais um pássaro
que eu ia matar e na verdade não foi isso que aconteceu, eu mostrei
que era um pássaro desse da noite ou um arancuã, um pássaro que
tava por aí procurando as penas dele, ainda era criança e a gente ia
cuidar, e aí isso foi, além de estar acuada na minha casa, a minha
pressão ficou alta, me senti invadida pela polícia, com vergonha dos
meus vizinhos porque esse homem fez tanta intolerância na porta do
terreiro que eu tive que chamar um membro da casa pra me socorrer,
mas isso aí se você for na polícia dar parte, eles dizem, ah, isso é briga
de vizinho, eles nunca vinculam como intolerância, como desrespeito,
como qualquer coisa que vá a pessoa ser punida, pelo menos a pedir
desculpa – ôh, vizinha me perdoe, eu desconheço as suas tradições,
por isso que eu agi... – Nem isso! (...) Muitas vezes eu já fui perseguida
pelos meus vizinhos, por eles ligarem pro meio ambiente ou por algum
outro fato, que eles se sente incomodados com a nossa ritualística, ou
liga pra polícia, essa casa nossa, ela já foi apedrejada com pessoas fe-
rida, eu acho por exemplo que uma das piores violências, preconceito,

163
racismo, intolerância, desrespeito pelas nossas tradições é quando
o meu vizinho me diz, olha a senhora tá incomodando, por que a
senhora não compra um terreno, uma casa, lá pra longe, pro interior
e vai embora daqui de perto da gente, pra mim é uma intolerância ...
(Mametu Nangetu, CONSEP-PA, 2017, p.45-50)

Em relatos fornecidos pela Rádio Exu[36] contextualizam, pelo menos, trinta


anos da história dos terreiros da zona metropolitana de Belém, uma história
que pode ser contada pela sucessão de agressões por motivação racista que
são cotidianamente praticadas por populares, por agentes da segurança
pública e pelos agentes do sistema judiciário, sucessão de violação de direi-
tos que resulta na percepção de que não adianta registrar ocorrência pois o
racismo institucional faz com que, como disse Mãe Nalva de Oxum, “a gente
tem de primeiro provar que nós somos pessoas de bem para o policial, para a
promotoria do Ministério Público e até para o juiz que vai julgar as denúncias
das violências das quais nós somos as vítimas” (CONSEP-PA, 2017, p.28-34)

Mesmo dentre os casos que o GT acompanhou, casos em que mães e pais de


santo tiveram seus terreiros violados, destruídos e/ou sofreram ameaças contra
pessoas praticantes de cultos de matriz africana, tanto no momento de regis-
tro da ocorrência, quanto nas investigações, temos verificado a dificuldade
em qualificar o relato do denunciante como racismo por razão religiosa, no
caso de matriz africana, onde em vários momentos o sistema de justiça tenta
direcionar a investigação para outras motivações. O sistema judiciário por
sua vez, leia-se delegacias, não está preparado para receber estas denúncias
agindo na maioria das vezes com arrogância e coerção da vítima, que acaba
sendo transformada em ré:

1. Pai Clodomilson em Santarém, oeste do Pará. Afirma que no município


de Santarém existem 37 casas de Axé (casas de santo/povos de terrei-
ros), as quais realizam rituais para o sagrado de matriz africana e lhes

[36]  A Rádio Exu, emissora sediada em Belém, no Pará, e transmitida pela web, tem populações
negras como protagonistas de suas produções. Acesso: radioexu.com

164
são exigido o pagamento de uma taxa de realização de festas e shows
por parte da polícia administrativa (DPA). (CONSEP-PA, 2017, , p. 54-55).

2. R.R.C.J (pediu anonimato), Distrito de Icoaraci, Belém. “No dia 07/08/2016


por volta de 22h estava participando de um festejo de caboclo no
terreiro do Pai Marivaldo, que fica localizado na sétima rua, distrito
de Icoaraci/Belém/PA, quando um homem armado entrou no local e
desferiu vários tiros dentro do terreiro. Que o referido homem gritava
os seguintes textuais: “parem com isso, isso não é de Deus, respeitem a
palavra de Deus; Bora acabar com essa palhaçada”: Que os participantes
assustados correram para o quintal do terreiro. Que o atirador após
ter desferido os tiros saiu do terreiro e ficou a distância de duas casas
observando a movimentação no local. Que uma das participantes da
festa ficou lesionada no pescoço com os estilhaços provocados pelos
tiros. Que o declarante e os demais participantes ficaram aguardan-
do os ânimos se acalmarem e depois se evadiram do terreiro. Que o
declarante acredita que eles e os participantes do festejo de caboclo
foram vítimas deste atentado em razão de racismo contra as tradições
de matriz africana. (CONSEP-PA, 2017, p. 55-56)

3. Mãe Patrícia de Iemanjá, em Outeiro, Belém. No dia 10 de julho de 2017,


a Sra. Patrícia Mendes Carvalho (Mãe Patrícia de Iemanjá) comunicou
a delegacia de combate aos crimes discriminatórios que seu vizinho
“L.R” a injuriou com as seguintes palavras; “ eu não aguento mais este
fumacê, quero ver se o diabo entra no meu couro, aí ninguém vai me
segurar; bora ver se esse diabo se levanta em mim, eu vou tomar uma
atitude própria, não vou mais em delegacia o caralho, caralho eu fazer
uma merda daqui pra ali, não sabe com quem está se metendo”. Mãe
Patrícia já havia feito T.C.O contra o mesmo na UIPP Pro paz Outeiro
e ali informou que havia sido agredida verbalmente por sua crença
Umbanda no dia 05 de junho de 2017. No entanto esta DEPOL Outeiro
não encaminhou o BOP à delegacia especializada, tendo ela mesma
(Mãe Patrícia) que fazer o registro na DCCDH-DIOE e ali foi “convencida”

165
a fazer um termo de Desistência no dia 13 de julho de 2017 e no termo
se comprometeria a: “proteger suas velas e diminuir a quantidade de
incenso utilizado na defumação para não prejudicar o vizinho e nem
sua comunidade”. Ressaltamos que Mãe Patrícia estava acompanhada
de advogados, mas estes não atentaram aos fatos descritos por ela no
T.C.O em Outeiro. Após esses fatos, alguns componentes do G.T de matriz
africana quando souberam do ocorrido conversaram com Mãe Patrícia e
resolveram juntos com a Ouvidoria do SIEDS encaminhá-la novamente
a Delegacia especializada e ali conversaram com a Delegada Hildenê
e desta reunião foi deliberado que Mãe Patrícia não desistiria de sua
denúncia. E assim no dia 01 de agosto de 2017 prestou declarações em
IPL por portaria 00042.2017.1000036-5 e relatou novamente os fatos que
haviam sido relatados no TCO em Outeiro e ainda outras perseguições
por parte do vizinho ‘L.R”. (CONSEP-PA, 2017, p.56-59)

4. Mãe Carmem de Mariana, Terra Firme em Belém. Informou que no dia


15 de julho de 2017 por volta das 20hs, a vizinha ‘O” de Mãe Carmem de
Mariana (Carmem Lúcia dos Santos Tavares) lhe agrediu verbalmente
através de terceiros com as seguintes palavras e frases: “Essa macum-
beira fracassada, se ela fosse boa mesmo, ela trazia o marido dela de
volta, eu não tenho medo dela”. Ainda informou que esta vizinha
lhe persegue constantemente, principalmente quando ela percebe
que haverá algum ritual no terreiro de Mãe Carmem lhe chamando
de “macumbeira” e que já disse, inclusive: “macumbeira, essa preta
macumbeira fica evocando esses demônios.” Mãe Carmem também
informou na delegacia especializada que tentou reconciliação diver-
sas vezes com a agressora através de assistente social na Seccional da
Terra Firme, mas que não houve êxito, pois a agressora continua a lhe
ofender por cunho racista religioso e de cor e resolveu denuncia-la e
que deseja representar criminalmente contra a agressora. Este GT não
obteve informações da delegacia especializada de como se encontra o
procedimento investigatório até a presente data. (CONSEP-PA, 2017, p.59).

166
5. Pai César Pajé, Distrito de Icoaraci, Belém. Pajé Cesar (Júlio Cesar da
Silva Oliveira) informou em sua ocorrência que pratica pajelança e que
no dia 04 de outubro de 2017, por volta de 01 e 30hs sofreu agressões
verbais e teve seu terreiro depredado por parte de familiares, que são
evangélicos (sobrinhos e irmã). Que sua casa foi toda depredada, inclu-
sive todo seu patrimônio de caráter sagrado e cultural. Ainda informou
que estes crimes não foram registrados na delegacia de Icoaraci, pelo
fato do delegado de plantão se negar e que após procurar apoio junto
aos movimentos em defesa de Direitos Humanos e combate ao racis-
mo religioso conseguiu fazer um registro na delegacia especializada
(DCCDH-DIOE) no dia 05 de outubro, no entanto informa que a pessoa
responsável pelo registro (não soube dizer se era a delegada ou escrivã)
teve muita resistência em registrar os fatos conforme ele narrava e o
B.O.P não informa totalmente os fatos vivenciados por ele. O Pajé Cesar
atualmente se encontra escondido e acolhido por pessoas da sociedade
civil, pois ao tentar retornar para sua casa foi alertado por pessoas
próximas de que havia duas pessoas (motoqueiros) em frente a sua
casa perguntando por ele e que os vizinhos desconfiavam ser mata-
dores. A Situação não é improvável visto que os familiares agressores
ainda lhe afirmaram que iriam lhe matar. Pajé Cesar se escondeu em
outra casa e foi recolhido do local de perigo por uma equipe da polícia
Civil, em contato constante com a Corregedoria e Ouvidoria o mesmo
relata uma sensação constante de insegurança, pois estas agressões e
ameaças já foram registradas mais de cinco vezes e nada ocorreu com
seus agressores. (CONSEP-PA, 2017, p. 60-61).

6. Sérgio Cunha, em 25 de agosto de 2017 · Belém – “Ontem, covarde ataque


a nossa Tenda de Umbanda Sagrada! Não é “intolerância religiosa”, é
“ódio religioso”! Demônios, em “nome de Jesus”! 04h da manhã. Meus
olhos pesam, o cansaço toma conta do meu corpo e, acima de tudo,
um sentimento misturado de indignação, revolta e preocupação não
me deixa dormir. 24 de agosto é o dia que, na Umbanda, louva-se aos

167
Srs e Sras Guardiões, nossos amados Exus e Bombogiras, que nada têm
daquelas aberrações por aí afora reproduzidas. Houve um tempo em
que eu tentei esclarecer alguns pontos sobre o que não é Exu, mas a
intolerância e o deboche me levaram ao caminho contrário, o famoso
botão do foda-se. Hoje o nosso trabalho estava marcado para 20h, e
algumas pessoas que chegaram aproximadamente nessa hora foram
intimidadas, injuriadas e ameaçadas por um grupo (inicialmente
formado por 3 pessoas) com bíblias embaixo do braço. Carros foram
cercados e banhados com óleo ungido e incontáveis discursos de ódio
foram proferidos. Tentamos prosseguir, mas as provocações chegaram
em um nível tão absurdo e o discurso de ódio foi tão assustador que
chamamos a polícia. Antes da chegada da viatura várias pessoas fo-
ram ameaçadas, inclusive de morte. Temos vídeos, fotos e dezenas de
testemunhas. As pessoas envolvidas foram encaminhadas à delegacia.
Nós, que chegamos após as viaturas, seríamos ouvidos após o grupo
que nos ameaçou, mas para nossa surpresa, enquanto aguardávamos
na sala de registro, o delegado da Seccional da Cidade Nova liberou
o indivíduo que proferiu a ameaça de morte sem sequer anotar os
seus dados ou adotar qualquer procedimento. Ao questionarmos
sobre essa atitude, tentaram nos coagir e impedir o nosso acesso aos
locais de tomada de depoimentos de uma das vítimas, mesmo sendo
declarado que estávamos atuando como advogados. Chegamos na
delegacia aproximadamente às 21h e saímos quase 02 da manhã. Em
todo esse tempo, a única coisa que conseguimos fazer foi registrar
2 boletins de ocorrência. Saímos de lá indignados e frustrados por
tudo o que passamos e por um indivíduo que não brincou em serviço
ao proferir ameaças. Enquanto ainda estava na delegacia soube que
o Diário Online já tinha publicado uma matéria sobre o ocorrido, e
alguns comentários demonstram o que já estamos sentindo na pele
há algum tempo: estamos em um tempo de ódio e perseguição sem
precedentes. Estamos no nosso local atual há mais de 10 anos e nunca
tivemos nenhum tipo de problema. Os carros ficam estacionados no

168
nosso pátio, dividido e organizado com uma transportadora que há ao
lado, com quem também jamais tivemos qualquer tipo de problema.
Nossa Casa é fechada e do lado de fora não é possível ouvir qualquer
barulho, inclusive alguns vizinhos que frequentam nosso terreiro são
provas disso. Eu fico me perguntando que deus é esse que transtorna
e torna as pessoas violentas e intolerantes? Que religião é essa funda-
mentada em perseguição, ódio e desrespeito? Que aparato público é esse
que também não adota qualquer atitude de prevenção e/ou repressão?
Bem, se não pudermos ser respeitados pelo simples fato de ser essa a
atitude mais pacífica e justa, então o seremos pela movimentação de
nossos direitos. Não silenciarão os nossos tambores. Nossos corações
seguirão compassados com eles” (CONSEP-PA, 2017, p.66-67).

Nos casos dos boletins de ocorrência com vítimas fatais, nenhum deles cita
tratar-se de sacerdote, e em todas as situações foi omitida a informação de
que a vítima era sacerdote/ sacerdotisa e que professava uma religião de
matriz africana. Essa informação só passa a ser publicizada quando o fato
é destacado pela imprensa, ou quando é conhecido de alguém que informa
pelas redes sociais. Deve-se considerar também que em alguns casos a própria
família da vítima não quer a divulgação religiosa, levantando a hipótese de
que haja muitos mais casos dos que já foram levantados.

Dentre os casos de aparente recusa à investigação de racismo religioso, é


emblemática a afirmação do delegado responsável pela investigação do assas-
sinato do Huntó Jigongoji, o Nego Banjo, Dr. Jivago Freitas, que aponta outras
motivações, ele diz: “na verdade ele não foi morto por intolerância religiosa,
ele foi morto porque ele era uma pessoa muito correta e ele não aceitava cer-
tas condutas junto a sua residência, dentre elas a venda de entorpecentes”. E
continua, “não só os afro-religiosos, a população em geral se sente desassistida
na segurança pública” (CONSEP-PA, 2017, pg.73-74).

O Relatório aponta ainda que em casos recentes de violência contra pais e


mães de santo, a própria delegacia de combate a crimes discriminatórios e
homofóbicos dificultou o registro de ocorrências de racismo (ou injuria racial)

169
e desqualificou as queixas dos reclamantes para sugerir que registrassem as
ocorrências como meras ameaças, sem considerar que essas ameaças ocorrem
por motivação de identidade étnico-racial das tradições de matriz africana:

A título de exemplo, o caso de Mãe Patrícia de Iemanjá, antes da vítima


chegar até a delegacia de combate a crimes discriminatórios e homofóbi-
cos, essa mesma vítima já havia ido à delegacia mais próxima e em ambos
os casos saiu dessa delegacia como agressora de seus algozes, e quando
chegou na DCCDH ainda encontrou a indisposição da escuta por parte das
autoridades policiais da delegacia especializada.

Acompanhamos a saga de mãe Patrícia de Iemanjá, que teve de ir três vezes


nessa mesma delegacia para que fosse realizado os procedimentos iniciais,
no entanto, durou aproximadamente duas semanas e três deslocamentos
da vítima, advogados e membros do GT para que, enfim, sob muita pressão
social e dos membros deste GT, a delegacia finalmente aceitasse o registro
da ocorrência de Mãe Patrícia.

No caso de Pai Jaime de Oyá, a própria vítima relatou pela rede social de
whatsapp que quando o mesmo foi recebido na DCCDH para relatar a
invasão aos Terreiros, e registrar que os membros da casa haviam sido
amarrados, roubados seus pertences e torturados, a escrivã lhe havia dito
que a delegada iria primeiro ver se se tratava de intolerância religiosa, e
que a mesma havia lhe perguntado se ele teria registros em vídeos para
comprovar que o que estava dizendo.

Táta Kinamboji afirma que o acompanhou na segunda vez que Pai Jaime
foi à delegacia de combate a crimes discriminatórios, e que durante o re-
gistro do depoimento de Pai Jaime, havia um policial que a todo momento
intervia tentando desviar a configuração do crime. Ele diz que se recorda
do momento em que esse policial teve acesso a outros registros de ocor-
rência que envolvia uma das pessoas identificadas pela vítima, e ouviu o
mesmo comentar algo como: “mas essa senhora já denunciou um pastor

170
de igreja evangélica, portanto não é uma questão de intolerância religiosa”.
(CONSEP-PA, 2017, p, 74)

Essa indisposição para a escuta e para o registro dos casos da violência sofrida
aparece nos relatos de Babá Oba Ytan, que não foi à delegacia fazer a denún-
cia, pois, para ele: “mesmo que eu ... que eu fizesse um B.O., né, um boletim
de ocorrência, eu acredito que essas ameaças não iam parar”. E, também, no
relato de Tata Kitauanje, quando ele diz que:

de três em três meses praticamente eles manda chamar a gente lá, a gente
depõe tudo de novo, fala tudo que aconteceu e acaba não dando em nada
porque eles só fazem escutar, a gente assina, chamam de novo, a gente
assina e não sai disso...toda vez o que aconteceu, aconteceu a gente tem de
depor, aí da outra vez o advogado não estava, aí acabou não tendo (CON-
SEP-PA,2017, p. 75 e 76).

Ou mesmo Mãe Nalva, que venceu a parte da delegacia, mas encontrou difi-
culdades para a continuidade do processo, quando ela conta que:

Botei processo, botei na polícia, fui pra delegacia especializada que nós
temos, a delegada foi excepcional pediu as testemunhas, fiz tudo como a
justiça manda. Esse caso foi três vezes pra promotoria e todas a três vezes
voltou o processo para a delegacia, a delegada me chamava, a primeira vez
volta o processo, a segunda vez eu disse ‘o que que a senhora me diz ago-
ra?’ ela ‘não vamos ter paciência, eu digo ‘não se preocupe eu vou ter toda
paciência do mundo’, aí ela: ‘mas não desista’, ‘a senhora pode ter certeza
de que eu não vou desistir, eu já disse a ela que isso é racismo, aí ela disse
‘não, Mãe Nalva, não é não, isso é porque é assim mesmo’, eu digo: ‘tá bom!’.
Aí volta, aí a terceira vez, volta tudo de novo, as mesmas testemunhas, (...)
Conclusão, meu pai: Três vezes voltou, o promotor não aceitava, eu não sei
como é que diz isso, mas eu sei que voltava pra refazer, e da terceira, eu
não sei nem quantos anos tem isso, até hoje estou aguardando resposta
do Ministério Público (CONSEP-PA, 2017, p.76).

171
A verdade é que o racismo institucional, aliado ao racismo religioso, é um dos
fatores que tem afastado comunidades de terreiros em busca da garantia de
seus direitos. Por tudo isso, o enfrentamento ao racismo é uma tarefa que cabe
a todos: indivíduos, instituições, comunidades e sociedade de maneira geral.

O Relatório aponta duas direções que caminham paralelamente. De um


lado, há ainda uma distância muito grande entre os operadores de direito,
o dispositivo jurídico de liberdade religiosa e sua efetivação na prática. Ir
a uma delegacia, buscar seus direitos como cidadãos, torna-se uma prática
penosa, lenta e cansativa aos afro-religiosos. E, por outro lado, após o enfren-
tamento das barreiras, ver as suas causas minimizadas, não compreendidas
e tampouco acatadas pelos agentes operadores do sistema, melhor dizendo,
a intolerância religiosa e o racismo são minimizados e não tratados como
crime, conforme prevê a legislação, o que se configura e pode ser classificado
como racismo institucional.

O racismo institucional, portanto, é aquele que ao longo do tempo tem cami-


nhado silenciosamente por dentro das regras regimentais das instituições e
os sistemas de segurança e justiça, que não fogem à regra no Brasil. É aquele
racismo que, conforme alguns estudiosos, constitui-se no “crime perfeito”,
pois não existe o autor nem testemunhas do crime, existem apenas as “víti-
mas” que muitas vezes não têm como se defender dada a “perfeição” das
ações que as inferiorizam, desconhecendo que as especificidades precisam
ser conhecidas e reconhecidas para amenizar e politizar as ações coloniais
que colocam viseiras nos agentes operadores do sistema, que costumam se
pautar pelo senso comum. E mais, não raras vezes, têm o poder de decidir o
destino dos grupos vitimados pelo racismo.

172
Referências
BARROS, J.F.P. O banquete do rei ... Olubajé: uma introdução a música
sacra afro-brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, INTERCON, 1999.

CAMPELO, M. M. Os Candomblés de Belém: história, origens, conflitos


intra-religiosos. Em: LEITÃO, Wilma Marques; MAUÉS, Raymundo He-
raldo (Org.). Nortes Antropológicos - trajetos, trajetórias. 1 ed. Belém:
EDUFPA, 2009.

MOAYA, R. Liberdade religiosa a luz da Constituição Federal. (2015). Dis-


ponível em: https://renatomoya.jusbrasil.com.br/artigos/243224376/li-
berdade-religiosa-a-luz-da-constituicao-federal. Acesso em: 10/05/2018.

MORAIS, M. R. de. Políticas públicas e a fé afro-brasileira: uma reflexão


das ações de um estado laico. Ciencias Sociales y Religion/ Ciências
Sociais e Religião. Porto Alegre, Ano 14, n. 16, p. 39-59, junho de 2012.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/CienciasSociaiseReligiao/
article/view/26559. Acesso em: 09/04/2017.

ORO, A.; BEM, D. F. de. A discriminação contra as religiões afro-brasilei-


ras: ontem e hoje. Ciências & Letras. Porto Alegre, n. 44, p. 301-318, jul. /
dez. de 2008. Disponível em: https://docplayer.com.br/39757369-A-dis-
criminacao-contra-as-religioes-afro-brasileir.... Acesso em: 16/07/2012.

PRANDI, R. As religiões afro-brasileiras nas Ciências Sociais: uma confe-


rência, uma bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográ-
fica em Ciências Sociais, BIB. ANPOCS. São Paulo, 63, 2007. Disponí-
vel em: www.anpocs.com/index.php/edicoes-anteriores/bib-63 . Acesso
em: 15/08/2017.

CONSELHO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO PARÁ-CONSEP-


-PA. Relatório GT de Matriz Africana., 2017.

ROCHA, J. G. da. A intolerância religiosa e religiões de matrizes africa-


nas no Rio de Janeiro. Revista África e Africanidades. Ano IV. Vol. 14-15,
agosto-novembro de 2011. Disponível em: http://www.africaeafricanida-
des.com.br/documentos/14152011-05.pdf. Acesso em: 13/08/2016.

173
SANTOS, I. A. A. dos. Direitos humanos e as práticas de racismo. Edi-
ções Câmara, 2013.

SILVA JR., H. Intolerância religiosa e direitos humanos. Em: Ivanir dos


Santos, Astrogildo Esteves Filho (Org.). Intolerância religiosa x demo-
cracia. Rio de Janeiro: CEAP, 2009

SILVA, V. G. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalis-


mo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007.

174
Racismo Institucional: da Perpetuação da Discriminação Ra-
cial, às Formas de Enfrentamento do Grupo de Trabalho de
Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco[1]

175
Marinete Cabral Cavalcanti da Silva[37]
Guilhermina D’arc Carneiro do Nascimento[38]

I – Introdução[39]

Desde o início da colonização do Brasil, instituída a partir da escravização


dos povos negros africanos, a população negra vem enfrentando uma série
de vulnerabilidades sociais, herança da escravidão e do processo pós-abo-
licionista. Essas vulnerabilidades advêm de uma ideologia utilizada pelos
europeus na colonização do país. Trata-se do racismo, a crença de que existem
raças diferenciadas, superiores e inferiores, de acordo com as características
fenotípicas e étnicas dos indivíduos. Essa crença atravessou os tempos e
atualmente estrutura as relações sociais brasileiras, permeando todas as
áreas e instituições do país, o que resulta na exclusão da população negra nos
processos sociais, culturais, políticos e econômicos a partir da discriminação
racial e de suas variadas manifestações.

[37]  Graduada em Serviço social pelo Centro Universitário Estácio do Recife (2017.2), Pós-gra-
duanda em Direito Social e Políticas Públicas pela Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE
(início em 03/2018).

[38]  Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
- UFRPE , especialização em Direitos Humanos e mestrado em Antropologia ambos pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco- UFPE. Desenvolveu ações na Secretaria de Direitos Humanos
e Políticas sobre Drogas da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Tem experiência na área
de pesquisa social acerca de temas como religião, relações raciais e política de drogas. Possui
quinze anos de experiencia em ensino superior (graduação e pós graduação) nos cursos de
Direito, Psicologia e Serviço Social.

[39]  O presente estudo é parte da monografia produzida para a graduação em Serviço Social,
que teve como objetivo analisar de que maneira as ações realizadas pelo Grupo de Trabalho de
Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco contribuíram para o enfrentamento
do racismo institucional nos anos de 2003 a 2004 e 2015 a 2016.

176
O responsável por essa exclusão é denominado racismo institucional, mais
um, senão o pior aspecto do racismo, pois é através do racismo institucional
que a população negra é destituída de seus direitos fundamentais e de sua
emancipação social, o que deveria ser assegurado pelo Estado brasileiro. Essa
problemática reverbera no não-atendimento ou na precarização dos serviços
prestados à população negra nas áreas da saúde, da educação, habitação, lazer,
cultura, dentre todas as áreas que organizam e integram a vida em sociedade,
o que finda por gerar desigualdades raciais. O racismo institucional ainda
é o principal motivo da ínfima representatividade da população negra nos
espaços de poder e nos postos de comando da sociedade brasileira.

No cenário atual percebe-se no Brasil uma maior abordagem da discussão sobre


o tema por parte do Estado e da sociedade civil. De fato, algumas políticas de
ações afirmativas vêm sendo implementadas em resposta às demandas dos
movimentos sociais, em especial do movimento negro a partir da Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas
Conexas de Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. Esse
cenário somente se tornou possível a partir da presença e das demandas do
movimento negro na Conferência, além da representatividade negra, mesmo
que modesta, no campo da política brasileira. Todavia, o racismo institucional
e a discriminação racial ainda são problemas enfrentados pelos negros no
Brasil e isso desemboca na necessidade da criação de estratégias de enfren-
tamento aos mesmos, pelo Estado brasileiro.

Refletindo sobre essas questões, a presente pesquisa surgiu a partir do inte-


resse em realizar uma análise sobre as ações do GT Racismo do Ministério
Público de Pernambuco e foi formulado o seguinte problema: de que maneira
as atividades realizadas pelo Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo do
Ministério Público de Pernambuco contribuíram para o enfrentamento ao
racismo institucional nos anos de 2003 a 2004 e 2015 a 2016? O objetivo geral
teve como pressuposto analisar de que maneira as ações realizadas pelo Grupo
de Trabalho de Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco
contribuíram para o enfrentamento do racismo institucional nos anos de

177
2003 a 2004 e 2015 a 2016. Os objetivos específicos foram construídos de
maneira que pudessem possibilitar a resposta da pergunta-problema. Nesse
sentido, foram formuladas as seguintes questões: verificar que condicionantes
geraram a necessidade da criação do grupo, compreender de que forma se
estabelece o processo do racismo institucional, identificar os desafios do GT
na busca pelo enfrentamento do racismo institucional, além de compreender
qual a importância da implantação de um grupo de trabalho em instituições
públicas e privadas que visem enfrentar o racismo institucional.

O motivo do recorte dos anos de 2003 a 2004 e 2015 a 2016 deve-se ao fato de
a pesquisadora acreditar ser necessário fazer um comparativo das ações do
Grupo de Trabalho nos referidos anos, buscando verificar se houve o declínio
do racismo institucional na instituição.

O aporte-teórico metodológico teve por base uma pesquisa descritiva, pois


foram descritos os fatos observados pela necessidade de se fazer uma análise
detalhada do objeto da pesquisa, de natureza qualitativa, com o intuito de
compreender o objeto estudado através da análise de suas especificidades a
partir da técnica de pesquisa bibliográfica, que se materializou por meio da
análise em livros e em materiais cedidos pela coordenação do GT Racismo,
a saber, folders, cartilhas e CD, materiais produzidos pelo Ministério Público
de Pernambuco a partir das ações do GT Racismo, além da pesquisa netno-
gráfica, método de pesquisa derivado da técnica etnográfica, desenvolvida
no campo da antropologia e que se caracteriza pela revisão de materiais em
meio eletrônico, pois, na atual conjuntura da sociedade, onde a informática
e o mundo digital são recursos que colaboram com as pesquisas científicas,
a pesquisa netnográfica é um método possível e facilitador da produção de
conhecimento (KOZINETS, 2002 apud ROCHA e MONTARDO, 2005).

O presente estudo visa contribuir com a ampliação do debate sobre o racismo


institucional no espaço acadêmico e em toda a sociedade, além de demonstrar
a importância da criação de grupos de trabalho que abordem e enfrentem as
problemáticas da questão étnico-racial. As discussões e estudos acerca do tema

178
podem e devem evoluir para a proposição de ações que venham a realizar o
enfrentamento ao racismo institucional.

II – Desenvolvimento

1. Uma análise sobre o racismo: ideologia de dominação, es-


trutural e estruturante, das relações sociais no Brasil

Na busca pelo significado dos conceitos racismo estrutural e racismo insti-


tucional, primeiramente deve-se fazer uma análise sobre o que é o racismo
e em que contexto ele surge em diversas sociedades.

De acordo com o etnólogo[40] Carlos Moore, (2007) a ideia de que o racismo é


algo recente é de um contrassenso. Segundo ele, supõe-se que o racismo tenha
surgido por conta da escravidão e essa ideia é disseminada no espaço aca-
dêmico e na sociedade em geral. Todavia, o racismo tem entre 3 a 4 mil anos
de existência. Há indícios de racismo há 1.700 anos a.C., conforme Moore. De
acordo com suas pesquisas, o etnólogo constata ainda a presença de povos
melanodérmicos[41] nos continentes europeu, no Oriente Médio e na Ásia
Meridional em tempos remotos.

É a partir desta constatação, pensamos, que deve ser reanalisada toda


a problemática da gênese histórica do racismo. Com efeito, não vemos
como desvincular a realidade contemporânea, dominada por uma visão
negrofóbica em escala mundial, de uma realidade semelhante evidenciada
nos mitos e nos textos mais antigos dos povos euro-semitas da Europa,
do Oriente Médio e da Ásia Meridional, incluindo a própria Bíblia, de
origem judaica, os textos védicos (particularmente o Rig-Veda), os textos
fundadores do Zoroastrismo persa (Zend Avestra) e, finalmente, o Alcorão.
(MOORE, 2007, p. 50).

[40]  Quem estuda sobre etnias, culturas e características gerais dos povos e grupos sociais
primitivos ou contemporâneos. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/etn%C3%B3logo/

[41]  Povos de pele negra.

179
A afirmação do autor nos leva a enxergar o racismo como um fenômeno de
amplitude densa e com raízes bem mais profundas e resistentes do que se
imagina. A partir dessa afirmação, pode-se concluir que, se o racismo advém
de um tempo bem mais antigo, seu enfrentamento torna-se ainda mais
complexo, pois se vê o sistema racial como algo inerente à própria história
da humanidade.

Existem várias conceituações sobre o racismo, porém, todas se referem a uma


ideologia, um sistema racial criado para diferenciar e, sobretudo, segregar
grupos de acordo com suas raças, etnias, culturas e principalmente a cor
da pele. Esse sistema resulta na precarização de serviços e na negação dos
direitos dos cidadãos pertencentes a determinadas populações, sobretudo,
aos cidadãos negros. (WERNECK, 2013, p. 11).

Em um pensamento antagônico às declarações feitas por Moore (2007) expos-


tas acima, Wieviorka (2007, p. 19) afirma que “O racismo propriamente dito,
a idéia de uma diferença essencial, inscrita na própria natureza dos grupos
humanos, em suas características físicas, não começa verdadeiramente a se
difundir senão no final do século XVIII e no século seguinte”.

A partir da apropriação do conceito de racismo, consegue-se compreender o


que é e como o racismo estrutural se organiza e se efetiva em uma sociedade.
De acordo com Almeida (2016) o que a noção de racismo estrutural coloca
é que o racismo é um modo de estrutura social; um fenômeno normal no
Brasil. Normal no sentido de que ele (o racismo) constitui as relações sociais
no seu padrão de normalidade. Ou seja, o racismo estrutural é uma forma
de racionalidade que constitui não só as ações conscientes, como também
as inconscientes. Essa condição imposta à sociedade brasileira a partir de
sua formação histórica, se interliga às esferas da economia, da política e da
subjetividade, causando danos materiais, morais e psicológicos às populações
negra e indígenas, tendo em vista que essas são as populações preteridas em
detrimento da população branca ou caucasiana desde a formação do país.

180
Os indicadores sociais traduzem quantitativamente a realidade inerente à
população negra brasileira e evidencia o abismo sociorracial existente no
país. No sistema jurídico, por exemplo, esfera responsável por disciplinar o
convívio em sociedade, o racismo deveria ser veementemente combatido e
penalizado. Contudo, é a partir desse sistema que o racismo se institucionaliza
e é legitimado através do não-dito racista e de um discurso não-intencional
como afirma Sales Júnior (2006), a partir do fetichismo linguístico configu-
rado pelo mito da democracia racial. Isso acontece frequentemente com os
casos denunciados à Justiça, onde os réus quando do julgamento, justificam
suas agressões racistas com o pretexto de não ter a intenção de ofender as
vítimas, mesmo quando o processo indica a total intencionalidade desses
réus em inferiorizar e humilhar cidadãos negros. Esse processo preenchido
por ambiguidades, ainda segundo Sales Júnior (2006), dificulta a punibilidade
dos casos de racismo e finda por legitimar a dita cordialidade das relações
raciais e o mito da democracia racial, e de maneira preponderante, a Justiça
brasileira não penaliza aqueles que cometem o crime de racismo.

Sistematizando as afirmações acima, prosseguimos com análises sobre como


o racismo interfere nas relações sociais e na estrutura da sociedade brasileira
e de que forma ele se desdobra em tipos diferenciados que, todavia, apesar de
se apresentarem em diferentes espaços sociais, estão imbricados e não se pode,
nem se consegue, dissociá-los. O racismo estrutural embasa todos os tipos de
racismo que se desenvolvem na sociedade, como o racismo institucional, o
racismo cultural, o racismo ambiental, o racismo religioso e o epistemoló-
gico. Todos estão justapostos e se sustentam uns aos outros. (ALMEIDA, 2016).

Com relação à conceituação, de acordo com o Programa de Combate ao Racismo


Institucional (PCRI) o racismo institucional é

o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissio-


nal e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou
étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discrimi-
natórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do
preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de

181
atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre
coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação
de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais
instituições e organizações. (CRI, 2006, p. 22 apud WERNECK, 2013, p. 11).

Na sociedade brasileira, mesmo que não instituído juridicamente, a exemplo


do que aconteceu em meados do século XX nos Estados Unidos e na África
do Sul, cujas sociedades utilizaram-se de regimes e leis baseados em normas
racistas para haver a separação de brancos e negros que ficaram conhecidas
como Segregação racial e Regime do apartheid, respectivamente, o racismo
estrutura as relações sociais, predeterminando espaços aos indivíduos de
acordo com sua cor de pele, raça e etnia, conforme costumes estabelecidos
desde a escravidão, impedindo os cidadãos negros de participarem da vida
em sociedade de maneira livre e democrática.

Trata-se ainda, de acordo com Noguera (2016), de uma disputa por espaços de
poder no campo social, político, econômico e cultural, imposta pelos europeus
na colonização do Brasil e que se sustenta ainda nos dias atuais através da
concepção de que a população que detém o direito de ocupar esses espaços
é a branca, além de ser difundida e legitimada a noção de que a população
branca possui superioridade em relação à população negra, no que se refere
aos padrões de beleza e de inteligência. Portanto, a ocupação de pessoas
negras em espaços e posições de poder, historicamente predeterminados
a pessoas brancas, causa um estranhamento aos cidadãos, justamente por
conta da racialização da sociedade brasileira. A ideologia racista propagada
pela elite brasileira é tão consistente por conta de sua estrutura organizada
historicamente que influencia a todos na sociedade, inclusive aos próprios
negros, o que reverbera muitas vezes em um discurso racista aos seus iguais,
conforme avalia Freire (1987). Afinal, é o discurso ideológico da elite quem
organiza e determina as relações de uma sociedade (MARX; ENGELS, 2008, p. 40).

182
2. O racismo institucional em números e suas consequên-
cias para a população negra nos campos da educação, saúde,
empregabilidade, segurança e sistema de Justiça

O modo como a discriminação racial se organizou no Brasil a partir das rela-


ções sociais desenvolvidas na escravidão, sobretudo no pós-abolição quando
a libertação da população negra não passou de mero embuste, corroborou
com a efetivação e a naturalização do racismo, seja no âmbito pessoal ou no
âmbito institucional, além de sua efetivação em outras áreas da sociedade.

Os indicadores sociais pesquisados e divulgados pelo próprio Estado brasi-


leiro através de instituições oficiais que tratam dos direitos humanos e das
desigualdades sociais e raciais, confirmam a existência e as consequências
do racismo para a população negra brasileira.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) realizada no país em


2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que
dentre os 14,4 milhões de analfabetos existentes no país, 10 milhões eram
negros ou pardos. (PNAD apud ARAGAKI, 2007)

Em 2012, os indicadores sociais divulgados pelo IBGE através da PNAD, reali-


zada entre a população com mais de 15 anos, revelaram que 23% da população
branca tinha menos de quatro anos de estudo. Entre os negros este percentual
atingiu 32,3%. Dentre as pessoas brancas com doze anos ou mais de estudo
cresceu de 13,3% em 2001, para 22,2% em 2012, enquanto entre os negros
aumentou de 3,5% para 9,4%. Como é possível verificar, os dados reiterada-
mente indicam a desproporcionalidade entre a população negra e a popu-
lação branca com relação ao acesso à educação. (IBGE apud IPEA, 2014, p. 19).

Sobre a situação da população negra no Brasil com relação à saúde, façamos


uma análise sobre as múltiplas dimensões necessárias para a sobrevivência
humana. O IBGE, na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013 afirma que:

Os determinantes socioambientais e os estilos de vida são fatores que


influenciam diretamente as condições de saúde da população. Assim,

183
compreende-se que a saúde é resultado de uma diversidade de aspectos
relacionados à qualidade de vida, incluindo padrões apropriados de ali-
mentação, habitação e saneamento, bem como oportunidades de educação
ao longo da vida, estilos de vida adotados, acesso à assistência à saúde,
entre outros determinantes. (PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE, 2013, p. 24).

A saúde é resultante de vários fatores que estão interligados e que se com-


plementam para atingir sua promoção. A Secretaria de Políticas de Ações
Afirmativas SPAA/SEPPIR em sua cartilha “Racismo como determinante social
de saúde” desenvolvida em 2011 afirma que:

Grande parte das causas de doenças e desigualdades em saúde derivam,


principalmente, de fatores como: condições em que a pessoa nasce; traje-
tórias familiares e individuais; desigualdades de raça, etnia, sexo e idade;
local e condições de vida e moradia; condições de trabalho, emprego e ren-
da; acesso à informação e aos bens e serviços potencialmente disponíveis.
(BRASIL, 2011, p. 3)

A afirmação abre espaço para refletirmos, por exemplo, sobre o porquê da


prevalência da população negra nos indicadores sociais de dados de mortali-
dade materna e infantil, que era de 68,8% para mulheres negras e de 47% para
crianças negras por 100 mil habitantes em 2011, enquanto para as mulheres
brancas era de 50,6% e para crianças brancas 38% (PORTAL DA SAÚDE, 2012).

Dentre os fatores fundamentais para a manutenção da saúde dos cidadãos


estão a empregabilidade e renda. Em pesquisas realizadas sobre a temática,
fica evidenciado que essas são as áreas de maiores desafios para a popula-
ção negra, tendo em vista que boa parte dessa população vive em situação
de extrema pobreza, como divulgou um trabalho realizado pela ministra do
Desenvolvimento Social Tereza Campello em 2014, sobre a decomposição dos
beneficiários do Programa Brasil Sem Miséria que inclui o Bolsa Família e
que revelou que 73% dos beneficiários são pretos ou pardos autodeclarados
(MARTINS, 2014).

184
Em se tratando de empregabilidade, de acordo com dados do estudo Retrato
das desigualdades de gênero e raça, realizado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA a partir de 2004, no ano de 2009 a taxa de desem-
prego atingiu o índice de 6,6% entre os homens negros. Já entre as mulheres
negras chegou a 12,5%. Entre as mulheres brancas o desemprego foi de 9,2%,
enquanto que entre os homens brancos foi de 5,3%. (IPEA, 2011, p. 27).

Ainda analisando os indicadores sociais sobre empregabilidade da popula-


ção negra, seguimos tratando agora de uma pesquisa realizada por Marcelo
Paixão, Luiz M. Carvano e Irene Rossetto sobre os “Indicadores de acesso ao
mercado de trabalho metropolitano desagregados por cor ou raça 2009”, que
tem por base os microdados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada invariavelmente nas seis
maiores Regiões Metropolitanas brasileiras, a saber: Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, que revela que:

os distintos contingentes de cor ou raça – incluindo sua variação de gêne-


ro – não se distribuem de forma igual entre as posições e os grupamentos
de atividade econômica. Tal cenário ficará especialmente nítido quando
forem vistos os indicadores de acesso às posições na ocupação, onde fica
nítido que brancos, de um lado, e pretos & pardos, de outro, encontram-se
em distintos segmentos no interior da classe trabalhadora. (PAIXÃO; CAR-
VANO; ROSSETO, 2009, p. 2).

Segundo os Indicadores Sociais Municipais resultantes do Censo Demográfico


2010 sobre a renda da população brasileira nas cidades com mais de 500 mil
habitantes, falando especificamente sobre Salvador, Recife, Belo Horizonte,
São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, segundo o Censo Demográfico 2010
realizado pelo IBGE, o rendimento financeiro de pessoas brancas é superior
ao de pessoas negras (IBGE, 2011, p. 51).

A população negra se depara cotidianamente com a violência, sobretudo os


jovens negros, que, de acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI
criada para investigar os assassinatos de jovens negros e pobres no Brasil, vêm

185
sofrendo um “genocídio simbólico” por parte da segurança pública do país, que
rotineiramente extermina membros dessa população, como foi declarado pelo
relator da CPI o Senador Lindbergh Farias. De acordo com o relatório final da
Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Assassinato de Jovens - CPIADJ[42],
instaurada em 06 de maio de 2015 e finalizada em 14 de março de 2016, a cada
23 minutos um jovem negro é assassinado no país. São 23.100 jovens negros
com idade entre 15 a 29 anos por mês tendo suas vidas ceifadas brutalmente,
resultado da ação, mas principalmente da inação do Estado brasileiro, tendo
em vista que essa problemática resulta da discriminação racial sofrida pelos
jovens negros por parte das polícias militares que agem em nome do poder
público, além de resultar também da falta de políticas públicas adequadas a
este grupo específico. (FARIAS, 2016).

Nas escolas, o racismo institucional se materializa de diversas maneiras,


sobretudo quando a Lei 10639/03, que obriga o ensino da história e da cul-
tura afro-brasileiras e africanas em estabelecimentos de ensino públicos e
privados do país, não é cumprida de forma efetiva e ainda quando traz nos
livros didáticos a representação do negro de forma estereotipada e sem uma
abordagem real de sua participação na construção da economia e da nação
brasileira. Ou quando nos livros didáticos, uma das principais ferramentas
utilizadas pelos professores no processo educacional e que para o aluno, muitas
vezes, por sua imaturidade e pouca capacidade de reflexão, peculiar à idade,
é tido como verdade absoluta, a população negra é sub-representada, como
afirma Silva (2015, p. 5), ou é representada através de profissões subalternas,
o que pode prejudicar a compreensão dos alunos sobre o assunto, levando-os
a apreender e a naturalizar estereótipos sobre a população negra brasileira.

É preciso haver um enfrentamento efetivo ao racismo institucional e a com-


pleta dissolução da ideia de que no Brasil não existe discriminação racial, pois

[42]  A Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens - CPIADJ foi criada pelo
requerimento 115 de 2015 de autoria da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA) com o intuito de inves-
tigar os assassinatos de jovens no Brasil, suas causas e os principais responsáveis pela violência
cometida contra esses jovens.

186
enquanto houver a disseminação dessa ideia, as consequências do racismo
para a população negra serão devastadoras e continuarão prejudicando esse
grupo específico.

3. O Estatuto da igualdade racial e a importância de tratar


desigualmente os desiguais no interior de um sistema capi-
talista neoliberal: Recortes de classe, gênero e raça

Em 20 de julho de 2010 a Lei 12.288 foi promulgada no Brasil instituindo o


Estatuto da Igualdade Racial. A Lei, composta por 65 artigos, foi criada com
o intuito de garantir à população negra a efetivação da igualdade de opor-
tunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica, através
do conjunto de regras estabelecidas a partir da referida Lei. O Estatuto é
dotado de transversalidade, definindo diretrizes e perpassando as áreas da
saúde, educação, habitação, cultura, esporte e lazer, além da defesa dos direi-
tos ao livre exercício dos cultos religiosos e das comunidades quilombolas.
O capítulo VI que trata dos meios de comunicação ainda indica que deverá
ser realizada a inserção do negro nos espaços pertencentes a esse segmento,
valorizando a herança cultural e a participação da população negra na his-
tória do país. (BRASIL, 2010).

De acordo com Silva (2012, p. 7) “Iniciando com um Projeto de Lei (PL) apre-
sentado em 2000, a proposta de um estatuto para a população negra no Brasil
percorreu uma década de avanços, retrocessos, consensos e resistência, cir-
cunscrita de muita polêmica”.

Embora o Estatuto original tenha sido desconfigurado, tendo muitas altera-


ções e alguns artigos eliminados, além de ter tramitado no Poder Legislativo
brasileiro durante quase dez anos, o autor do projeto que o tornou lei, o
atual senador Paulo Paim (apud TV BRASIL, 2015b) o avalia como positivo e
sinaliza em sua fala a importância da contínua luta pela igualdade racial e

187
a necessidade de avançar além dessa conquista, na busca pela efetivação da
igualdade racial no país.

Segundo Silva (2012, p. 8) o Estatuto possibilitou a criação da lei 12.990/14 que


institui 20% das cotas para negros no serviço público federal que inicialmente
fazia parte das proposições do Estatuto original, além de possibilitar a criação
da lei 12.711/12 que dispõe de cotas nas universidades federais e instituições
federais de ensino técnico de nível médio. Essas, sem dúvida, marcos na luta
pela igualdade racial no Brasil. (PORTAL BRASIL, 2017)

“Entre os principais pontos que foram mantidos no Estatuto da Igualdade


Racial, estão a adoção das ações afirmativas (por exemplo, art. 4), o combate
ao racismo institucional” (SILVA, 2012, p. 19).

Os que se posicionam contrariamente ao Estatuto afirmam que sua criação


é inconstitucional, como declarou o sociólogo e jornalista Demétrio Magnoli
antes mesmo da sua aprovação. Em um artigo no Jornal Folha de São Paulo,
Magnoli (2006) faz a crítica ao Estatuto declarando que “À luz do estatuto, a
nova confederação de “raças” não é uma nação, mas duas, separadas pelo
evento histórico da escravidão”.

Magnoli (2006), a exemplo do também jornalista Ali Kamel (2006), critica o


sistema classificatório de cor ou raça empregado pelo IBGE, onde as categorias
preta e parda referentes à cor da pele estão inseridas em um mesmo grupo, o
negro, que se refere à raça. Kamel (2006, p. 97) ainda se refere ao Estatuto como
“iniciativas para racializar as relações sociais brasileiras”

Ora, se já não houvesse uma racialização construída socialmente na sociedade


brasileira desde a escravidão, não haveria a necessidade de se instituir um
Estatuto que buscasse a promoção da igualdade racial no país.

A historiadora Mônica Grin também crítica o Estatuto afirmando que,

Essa comunidade imaginada que o Estatuto pretende edificar seria plausí-


vel se no Brasil as pessoas considerassem parte de uma sociedade cindida
em duas raças: uma branca, historicamente dominante e privilegiada, e

188
outra negra, historicamente excluída e oprimida. Tal comunidade faria
sentido se, ao promover a igualdade racial, garantisse como princípio de
justiça que os membros de ambos os grupos raciais não experimentassem
qualquer forma de exclusão e se beneficiassem das oportunidades em to-
dos os campos da vida social, econômica e cultural. Mas, ao se estabelecer
essa nova concepção de sociedade, na qual seus cidadãos terão a marca de
uma ou outra “raça” (uma vez que o Estatuto concebe apenas duas raças) –
conferida por traços fenotípicos e consolidada por registros civis, censos
escolares, documentos e sistemas de informação –, estará se instaurando
uma ordem com cenários óbvios de injustiça. (GRIN, 2014, p. 143)

A afirmação da historiadora revela uma postura universalista, preocupada


com uma sociedade em sua totalidade com relação à questão social. Sabe-se
que no Brasil a exclusão social é percebida e sofrida por grupos diversos;
todos comungando de uma mesma classe social, a classe trabalhadora; uma
classe desprovida de recursos diversos, subordinada ao sistema capitalista,
o que com toda certeza se faz necessário refletir e buscar novas estratégias
diuturnamente junto ao poder público com o intuito de promover a demo-
cracia plena. Todavia é fato confirmado pelos órgãos oficiais brasileiros que
a população negra, a partir da inferiorização racial atribuída a ela desde a
escravidão, é uma população preterida na sociedade brasileira e consequen-
temente a que mais sofre violência, seja no âmbito jurídico, conforme afirma
Sales Júnior (2006), seja na saúde, conforme conclui d’Orsi E. et al., (2014) seja
na educação, como podemos verificar através dos órgãos oficiais (IBGE apud
IPEA, 2014, p. 19).

A bem da verdade, conforme Maturana (2015), embora tenha sofrido alterações


em seu documento original onde as solicitações eram mais significativas e
impunha um caráter mandatório, o Estatuto da Igualdade Racial é uma lei
cujo conteúdo, se não trouxe a transformação da realidade da questão racial
no Brasil e nem possibilita alcançar toda a população negra no que concerne
aos direitos sociais afirmados em seu conteúdo, ao menos deu visibilidade
à questão racial no país, trazendo à tona questões não discutidas anterior-

189
mente. Levou os cidadãos a refletirem sobre a discriminação racial e sobre
o racismo, e essa questão o torna um instrumento primordial na luta pela
igualdade racial no Brasil, além de o mesmo levar o Estado brasileiro a propor,
planejar e efetivar políticas de ações afirmativas em resposta às demandas
da população negra, como de fato vem acontecendo a partir de sua promul-
gação. E, em conformidade com a afirmação de Silva (2012), vale ressaltar que:

Estatuto aprovado, o presente desafio está em desenvolver mecanismos


eficientes para que as determinações não sejam atendidas apenas formal-
mente e para que as orientações de caráter geral encontrem respaldo em
metodologias e mecanismos que garantam sua operacionalização pela
administração pública federal. (SILVA, 2012, p. 22).

Com relação às políticas de ações afirmativas tais como o Estatuto da Igualdade


Racial, Santos et al. produz uma crítica a partir de sua percepção sobre um
Estado neoliberal afirmando que

as pessoas não se identificam mais como pertencendo a essa ou aquela classe,


mas sim através de identidades particulares como negros, mulheres, gays,
lésbicas, que não são definidas por uma base econômica. Portanto, se não
há um sistema único – o capitalismo –, como querem os pós-modernos, o
mesmo não pode ser superado, nem sequer combatido, e o máximo que se
pode esperar são reformas estatais gradativas. É dentro desta perspectiva
micro-reformista e pós-moderna que se pode entender as políticas de cotas
raciais (Santos et al., 2007, p. 77).

Problematizando as afirmações de Santos et al. sobre os grupos organizados


no cerne da sociedade contemporânea e sobre as identidades particulares dos
cidadãos, de acordo com Calhoun (1994 apud Castells, 1999, p. 24) a formação
de grupos identitários particulares faz parte da natureza humana, das rela-
ções de poder impostas pela própria sociedade e ainda da necessidade de se
inserir em um grupo onde os atores sociais desvalorizados e estigmatizados
pela lógica da dominação se identificam uns com os outros reunindo-se em
busca de formas de resistência e de sobrevivência à opressão do Sistema. Esse

190
processo faz parte da organização das sociedades capitalistas que se utilizam
da “Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação
aos atores sociais [...]” (SENNETT, 1986, apud CASTELLS, 1999, p. 24).

Referindo-se ainda às afirmações de Santos et al. acima, agora com relação ao


pertencimento às classes sociais e como elas se organizam no sistema capita-
lista, entende-se que no interior do modo de produção capitalista há muitas
limitações por parte da classe trabalhadora enquanto apenas detentora da
força de trabalho. Ela executa suas atividades impostas pelos capitalistas
vendendo sua mão de obra em troca de um salário em uma incontestável
relação de exploração. A classe trabalhadora é, portanto, entendida como
classe subalternizada (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008), compreendendo que
as relações sociais no Brasil são organizadas por um Estado neoliberal que
opera em favor da manutenção e do desenvolvimento do modo de produção
capitalista, mediando essas relações entre burguesia e proletariado que obtém
seus direitos sociais através da pressão sobre esse Estado (NETTO, BRAZ, 2012).
Por fim, compreendemos que “o racismo é a forma de manutenção do capi-
talismo à brasileira” (BARROS, 2015), que capitalismo, machismo e racismo
estão imbricados e que se faz necessária a organização de grupos distintos
como forma de resistência ao sistema, tendo em vista que o próprio sistema
capitalista dificulta a organização da classe trabalhadora de modo uno onde
possam alcançar a transformação da realidade social. Por isso, entendemos
que é a partir da organização desses grupos distintos e movidos por ideais
singulares, que busquem atingir seus objetivos com o intuito de alcançar a
emancipação humana, que os direitos sociais podem ser viabilizados a partir
das demandas desses grupos. É o caso da população negra, que, através das
políticas de ações afirmativas, vem sendo incluída na sociedade e adquirindo
protagonismo, embora essas políticas não atinjam em sua totalidade a popu-
lação a que são destinadas.

Não há possibilidades de enfrentar a desigualdade racial no interior do sistema


capitalista sem que se faça o tensionamento ao Estado e se intervenha nele a

191
partir das demandas da população. Portanto, afirmamos que a existência de
instrumentos como o Estatuto da Igualdade Racial e a prática de ações por
parte do Estado que colaborem para o enfrentamento à discriminação racial
em uma sociedade cujo racismo se faz presente desde sua construção é de
suma importância para a efetivação da democracia plena.

Entende-se também que é extremamente importante a ampliação das ações


afirmativas para a inclusão e ascensão de mulheres e homens negros nas
diversas áreas que englobam a sociedade, pois é a partir dessa ampliação que
novas possibilidades surgem para a população negra. A representatividade
negra nos diversos espaços que compõem a sociedade é muito importante,
pois possibilita a igualdade racial de fato. A sociedade brasileira carece de
reflexão e da desconstrução da ideia ainda difundida, de que o Brasil vive uma
democracia racial, pois quanto mais se acredita que vivemos essa democracia,
menos se enfrenta o problema da discriminação racial e do racismo.

Na verdade, precisamos acabar com a ideia de que “diferenças nos corpos –


sejam elas raciais, sexuais ou de idade – justifiquem desigualdades, opressão,
discriminação e injustiça” (CAMURÇA; GOUVEIA, 2004, p. 43).

4. A proposta da criação do GT Racismo e o reconhecimento


por parte do MPPE da importância do enfrentamento ao ra-
cismo institucional

Alinhado aos compromissos do Ministério Público com a sociedade e com


o cumprimento da lei, da promoção e da defesa da cidadania e dos direitos
humanos, o Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo do Ministério Público
de Pernambuco foi idealizado e proposto pela então promotora de justiça
Maria Bernadete Martins de Azevedo Figueiroa, atualmente procuradora de
justiça e coordenadora do GT Racismo. No ano de 2002, através da portaria
524/2002, o GT se tornou efetivo passando a atuar nas dependências do MPPE.

Com relação à sua finalidade, o GT Racismo surgiu com o objetivo de construir


estratégias de enfrentamento ao racismo no âmbito da Instituição a partir

192
do conceito de racismo institucional (MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO,
[ca. 2017b]).

Além da questão racial, o GT também tem entre suas ações assegurar os


direitos básicos da população quilombola, indígena e cigana, bem como
a implementação da Lei 10639/03 (alterada pela 11.645/08), que prevê a
inclusão obrigatória da história e cultura afro-brasileira e indígena nos
currículos escolares dos ensinos médio e fundamental (MORAES, 2014 p. 37).

O Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo, desde a sua criação, se reúne


mensalmente para discutir, elaborar e organizar as ações que darão conti-
nuidade ao trabalho realizado. As estratégias de enfrentamento ao racismo
são desenvolvidas através da realização de seminários, debates, oficinas de
capacitação e sensibilização, além de grupos de estudos que contam com
a participação do movimento negro, de instituições públicas municipais,
estaduais e federais, e a participação de organizações não-governamentais
que abrangem as áreas do sistema de justiça, segurança, educação, saúde e
assistência social, que semelhantemente buscam fazer o enfrentamento ao
racismo a partir da interdisciplinaridade nesses espaços institucionais e
alcançar resultados que reforcem o combate à discriminação e às desigual-
dades raciais (Ministério Público de Pernambuco, [ca. 2017b]).

No que se refere ao reconhecimento do MPPE da importância de se comba-


ter o racismo através da institucionalização e oficialização de um GT em
suas dependências, trata-se de uma atitude coerente com a função a que se
destina a Instituição, cujos representantes têm entre suas atribuições a res-
ponsabilidade pela “defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis
da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis” (BRASIL, 1981),
o que se configura também na busca pela igualdade racial.

O combate ao racismo, à discriminação racial e às suas diversas formas de


manifestação é uma luta cotidiana e necessária que vem sendo travada pelo
MPPE/GT Racismo. Embora, conforme Silva e Figueiroa (apud Moraes, 2014, p.
139) os “avanços legais e jurisprudenciais, penosamente conquistados, têm se

193
revelado insuficientes para propiciar a mudança pretendida no trato da ques-
tão, à medida que a implementação das leis tem encontrado grande resistência”,
seja no âmbito educacional, com a não-implementação ou a implementação
de forma ineficiente das leis 10.639/03 e 11645/08 “que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”
(BRASIL, 2008), seja no âmbito da saúde, onde comportamentos racistas por
parte dos profissionais interferem no atendimento, no diagnóstico e no tra-
tamento médico da população negra. Interferem também na implementação
de políticas de saúde adequadas e voltadas para indivíduos negros afetados
por determinadas doenças que os atingem em maior proporção devido à
genética, como é o caso da anemia falciforme, doenças adquiridas derivadas
de condições socioeconômicas desfavoráveis, de evolução agravada ou de
tratamento dificultado ou por condições fisiológicas alteradas por condições
socioeconômicas. (SISTEMA NAÇÕES UNIDAS, 2001, p. 5-6).

Embora seja atuante, colhendo resultados positivos no que concerne às suas


atividades e à sua participação em eventos do gênero, o GT Racismo enfrenta
os desafios inerentes à questão étnico-racial no Brasil, considerado um paraíso
das raças, mas embasado por um racismo não-dito, conforme pontua Sales
Júnior (2006). Um país onde é negada a existência do racismo, porém, onde
a discriminação racial é a base das relações sociais no âmbito interpessoal
e institucional, dificultando ou mesmo impedindo a inclusão e a ascensão
da população negra nos espaços de poder, além de comprometer seu acesso
a bens e serviços públicos.

Conforme Moraes (2014) esse racismo, embasado pelo ainda existente mito
da democracia racial, impossibilita a implementação de ações e de políticas
públicas efetivas, que atendam a toda a população negra.

É claro que a criação de estatutos e leis, fundamentais para empoderar e


legitimar direitos da população negra, não pode, por si só, modificar uma
realidade repleta de desigualdades. É preciso que o texto materialize-se
em ação, que se torne realidade no cotidiano dos afrodescendentes. Tal

194
afirmação, aparentemente óbvia, encontra um (infelizmente) vasto nú-
mero de barreiras para que o enfrentamento da discriminação racial seja
satisfatório. Uma delas é o desconhecimento, dentro das instituições, das
leis antirracismo: além de serem, em grande parte, recentes, elas também
passam pelo filtro da resistência, esta calcada, nunca é demais lembrar, na
falácia de nossa democracia racial. (MORAES, 2014, p. 34-35)

Cidadãos negros morrem nas filas dos hospitais à espera de atendimento ou


por conta de iniquidades em saúde, em decorrência da postura racista dos
profissionais de saúde que, de acordo com d’Orsi E et al (2014) poderiam ser
evitadas. Crianças e adolescentes dessa população sofrem com a discriminação
racial e com os efeitos psicossociais do racismo, conforme verifica Pompeu
(2008), em decorrência do sistema de educação brasileiro que mesmo tendo
uma lei que prevê a inclusão obrigatória da história e cultura afro-brasileira
e indígena nos currículos escolares dos ensinos médio e fundamental, não a
implantam em seus currículos de forma efetiva, de modo a gerar resultados
positivos em relação ao combate ao racismo e a discriminação racial. Essa é
mais uma forma de discriminação racial que vem ocorrendo institucional-
mente e não há punição aos culpados.

Atualmente estamos vivenciando retrocessos em diversos campos, não ape-


nas no campo político ou no econômico, como também na sociedade em
geral, em que grupos discriminados social e racialmente estão perdendo os
poucos direitos conquistados a base de muita luta desde o passado, o que
nos impele, enquanto cidadãos que buscam a democracia, a buscar alterna-
tivas de enfrentamento às discriminações diversas. Grupos de trabalho que
tratem da temática racial no Brasil, expondo e problematizando o racismo,
a discriminação racial e todas as suas formas de apresentação na sociedade,
possibilitam a desconstrução do ainda existente mito da democracia racial,
além de tornar possível uma mudança comportamental dos cidadãos a
partir de reflexões sobre preconceitos, discriminação racial e suas perversas
consequências à população negra, o que possibilita uma transformação nas
instituições com relação à questão racial.

195
Além disso, é preciso que o Estado brasileiro, em suas várias instâncias, cons-
trua uma rede de trabalho de enfrentamento ao racismo e à discriminação
racial que não se atenha à comunidade acadêmica, ou apenas às instituições
governamentais. O combate ao racismo institucional deve atingir também o
âmbito privado e, sobretudo, os cidadãos comuns, principalmente os cidadãos
negros que cotidianamente são destituídos de seus direitos fundamentais
a partir do racismo, mas que se calam diante de quem o pratica, ora por des-
conhecer que o racismo é uma violação dos direitos humanos, que é crime
e passível de punição, ora por vergonha, ora por desacreditar na punição do
crime, o que de fato ocorre no Brasil cotidianamente (LOPES, 2014).

Entende-se que a criação de uma rede de trabalho com esse objetivo obviamente
venha a enfrentar múltiplos desafios, pois essa ação vai contra os interesses
da estrutura da sociedade capitalista brasileira, que desde sua formação fora
embasada por um ideário racista cujo objetivo era o de explorar a força de
trabalho dos negros através da escravização; uma sociedade controlada por
homens, brancos, heterossexuais e que não pretendem abrir mão de seus
privilégios em detrimento de qualquer outra população, sobretudo a negra.

III – Conclusão

Considero que a implantação de grupos de trabalho de combate ao racismo


em instituições públicas e também privadas é de suma importância para o
enfrentamento ao racismo institucional, posto que essa ação colabora com
a desconstrução de estereótipos e de preconceitos relacionados à população
negra, seus valores, costumes, crenças e religiosidade e às demais caracterís-
ticas da população negra, além de viabilizar ações que incentivem a inclusão
social da população negra em espaços de poder e em postos de comando,
contribuindo com a emancipação social, o empoderamento dos cidadãos
negros e consequentemente a igualdade racial de fato.

Com relação ao possível declínio do racismo institucional no MPPE nos anos de


2003 a 2004 e 2015 a 2016, a presente pesquisa revelou que o GT Racismo é um

196
importante mecanismo de enfrentamento ao racismo institucional. Todavia,
o GT não tem condições de realizar uma transformação tão grandiosa, tendo
em vista que o racismo é imanente à sociedade brasileira e permeia todos
os espaços que a compõe. As atividades realizadas pelo grupo são de grande
relevância para o enfrentamento à discriminação racial, porém, modificar essa
realidade não é trabalho para uma única instituição e a curto prazo. Trata-se
de algo complexo que engloba a participação de toda a sociedade. De toda
forma, houve uma transformação na conduta dos membros e funcionários
da Instituição com relação ao racismo institucional, o que colabora para o
seu enfrentamento.

No tocante à implantação de grupos de trabalho que tratem da questão


racial nas instituições governamentais, a exemplo do GT Racismo do MPPE,
analiso que seja essencial para a luta pela igualdade racial, pois a criação
de mecanismos que levem Estado e sociedade a desconstruírem a ideia de
que há grupos étnico-raciais superiores e inferiores colabora para a efetiva-
ção da democracia plena. Nesse sentido, torna-se fundamental a criação de
grupos compostos por cidadãos aptos a elaborarem e a executarem formas
de enfrentamento ao racismo, principalmente na atual conjuntura política,
social e econômica do Brasil, onde os cidadãos vêm sofrendo graves ataques
com relação aos direitos sociais conquistados ao longo dos anos à base de
muitas lutas e que, de acordo com os dados obtidos nessa pesquisa, prejudica
sobretudo a população negra, por sua baixa escolaridade decorrente da falta
de políticas públicas adequadas na área da educação; por sua ínfima parti-
cipação social, política e cultural, dentre tantos outros fatores que a torna
uma população discriminada, minoritária em termos de representatividade
e excluída socialmente.

Por fim avalio que, o enfrentamento ao racismo institucional se concretiza


através da criminalização do racismo, mas acima de tudo a partir da educação,
o que envolve principalmente a desconstrução de estereótipos racistas através
da escola, de campanhas publicitárias, dentre outros meios desenvolvidos
pelo Estado e por suas diversas instituições. Meios esses que possibilitem

197
a reflexão dos cidadãos sobre os malefícios do racismo. É também dever do
Estado respeitar, além de valorizar a cultura negra e tudo o que ela envolve,
buscando o empoderamento de cidadãos negros através da implementação
de políticas de ações afirmativas nos diversos campos da sociedade.

Espera-se que o presente estudo possa colaborar com informações relevantes


que contribuam para a discussão sobre a temática, que evidentemente não
se esgota nessa pesquisa, posto que o racismo é estrutural e estruturante da
sociedade brasileira, perpassando todos os espaços da mesma, sendo assim,
motivo para abordagem e enfrentamento contínuos.

A luta por um novo modelo de sociedade onde crianças, homens e mulheres


tenham seus direitos sociais resguardados e efetivados de fato e de forma
igualitária pelo Estado brasileiro, independentemente de sua cor de pele,
raça ou etnia, idade ou condição social, não pode cessar. Ideais precisam ser
almejados, construídos e efetivados para que se tornem realidade. E esse
compromisso deve ser assumido pelo Estado, por todas as instituições que o
compõem e por toda a sociedade brasileira.

198
Referências
ALBUQUERQUE, Wlamyra R de; FILHO, Wálter Fraga. Uma história
do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais. Bra-
sília: Fundação Cultural Palmares, 2006. 320 p. Disponível em: <http://
www.ebah.com.br/content/ABAAABXM0AE/a-historia-negro-no-brasil>.
Acesso em 06 de mar. 2017.

ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? TV Boitempo. São


Paulo: 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P-
D4Ew5DIGrU>. Acesso em 01 de ago. 2017.

ARAGAKI, Bruno. Dois em cada três analfabetos brasileiros são ne-


gros ou pardos, diz IBGE. UOL Educação: 2007. Disponível em: <http://
noticias.uol.com.br/educacao/ultnot/ult105u5898.jhtm>. Acesso em 09
de jan. 2017.

BARROS, Douglas Rodrigues. O racismo é a forma de manutenção


do capitalismo à brasileira. Coluna: Escrita da História. Carta Capital.
São Paulo. 2015. Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.
br/o-racismo-e-a-forma-de-manutencao-do-capitalismo-a-brasileira/>.
Acesso em 03 de out. 2017.

BRASIL. Lei complementar nº 40, de 14 de dezembro de 1981. Esta-


belece normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério
Público estadual. Brasil: 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp40.htm>. Acesso em 18 de nov. 2017.

______. Lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igual-


dade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13
de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novem-
bro de 2003. Brasília: 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>. Acesso em 20 de jul. 2017.

______. Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de


20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro
de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para

199
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temá-
tica “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: 2008. Dispo-
nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/
l11645.htm>. Acesso em 17 de out. 2017.

______. Presidência da República. Secretaria de Políticas de Ações Afir-


mativas – SPAA/SEPPIR. Racismo como determinante social de saúde.
Brasília: 2011. 16 p. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/central-de-
-conteudos/publicacoes/pub-acoes-afirmativas/racismo-como-deter-
minante-social-de-saude-1 pag.3>. Acesso em 10 de jan. 2017.

CAMURÇA, Silvia; GOUVEIA, Taciana. O que é gênero. 4. ed. Recife: SOS


Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. 2004. 40 p. Disponível
em: <https://www.passeidireto.com/arquivo/26263613/camurca-silvia-
-gouveia-taciana--o-que-e-genero-4ed-recife-sos-corpo---instituto->.
Acesso em 03 de out. 2017.

CASTELLS, Manoel. O poder da identidade Volume II. Tradução: Klauss


Brandini Gerhardt. Paz e Terra. Cap. I São Paulo: 1999. 44 p. Disponível
em: <https://identidadesculturas.files.wordpress.com/2011/05/castells-
m-o-poder-da-identidade-cap-1.pdf>. Acesso em 28 de set. 2017.

D’ORSI, Eleonora. Et al. Desigualdades sociais e satisfação das mulhe-


res com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base
hospitalar. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro: 2014. 15 p. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/csp/v30s1/0102-311X-csp-30-s1-0154.pdf>. Aces-
so em 14 de set. 2017.

FARIAS, Lindbergh. Relatório final. CPI assassinato de jovens. Brasí-


lia: 2016. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/arqui-
vos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-
-jovens>. Acesso em 25 de ago. 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987. 129 p. Disponível em: <http://lelivros.com/book/download-
-pedagogia-do-oprimido-paulo-freire-em-epub-mobi-e-pdf/>. Acesso
em 12 de nov. 2017.

200
GRIN, Monica. “Raça” Debate Público no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad
X: FAPERJ, 2010. 203 p.

IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e


serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-meto-
dológica. 23. ed. São Paulo: Cortez, CELATS, 2008. 380 p.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigual-


dades de gênero e raça. 4ª ed. Brasília: Ipea, 2011. 42 p. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em 27 de ago.
2017.

______. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Situação social da


população negra por estado. Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial. – Brasília: IPEA, 2014. 115 p. Disponível em: <http://repo-
sitorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3290/1/Situa%C3%A7%C3%A3o%20
social%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20negra%20por%20estado.
pdf>. Acesso em 09 de set. 2017.

KAMEL, Ali.  Não somos racistas: Uma reação aos que querem nos
transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
143 p.

LOPES, Raíssa. Racistas não vão para a cadeia. 2014. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/node/28809/>. Acesso em 18 de nov.
2017.

MAGNOLI, Demétrio. Constituição do racismo. Folha de São Paulo. Ca-


derno de Opinião. São Paulo: 2006. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/fsp/opiniao/fz1201200607.htm>. Acesso em 22 de set. 2017.

MARTINS, Miguel. O racismo em números. Carta Capital Revista eletrô-


nica. Caderno de Política. Políticas públicas. 2014. Disponível em: <http://
www.cartacapital.com.br/revista/767/o-racismo-em-numeros-6063.
html> Acesso em 10 de janeiro de 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 2ª ed.


São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann. 2008. 112 p.

201
MATURANA, Márcio. As novas cores da (des)igualdade racial. Sena-
do Notícias. Brasília: 2015. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/
noticias/materias/2015/08/04/as-novas-cores-da-des-igualdade-racial>.
Acesso em 22 de set. 2017.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO. Conheça o GT Racismo. Re-


cife: [ca. 2017b]. Disponível em: < http://www.mppe.mp.br/mppe/institu-
cional/nucleos-e-gts/gt-racismo>. Acesso em 14 de out. 2017.

MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: Novas bases epistemológicas


para a compreensão do Racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições. 2007.
Disponível em: <https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=-
ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxwcm9mZXNzb3JzaWx2aW9mYW1ldHJvfG-
d4OjMwYmI5OTM0ZTQ2ZWEwNWQ>. Acesso em 08 de jul. 2017.

MORAES, Fabiana. No País do Racismo Institucional: Dez anos de


ações do GT Racismo no MPPE. Recife: Publicações Ministério Público
de Pernambuco, 2014. 175 p.

NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: Uma introdu-


ção crítica. Biblioteca Básica de Serviço Social. Vol. 1. 8. ed. São Paulo:
Cortez, 2012. 263 p.

NOGUERA, Renato. Seminário “Enfrentando o Racismo Institucio-


nal”. São Paulo: 2016. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/
comunicacao/2016_05_20-seminario-racismo/2016_05_20-seminario-
-racismo.html>. Acesso em 11 de nov. 2017.

PAIXÃO Marcelo; CARVANO Luiz M.; ROSSETTO Irene. Desigualdade ra-


cial e crise: indicadores de acesso ao mercado de trabalho metropoli-
tano desagregados por cor ou raça em 2009. 2011. 16 p. Disponível em:
<http://www.ie.ufrj.br/datacenterie/pdfs/seminarios/pesquisa/textomar-
celopaixao.pdf> Acesso em 10 de jan. 2017.

PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE. 2013. Acesso e Utilização dos Servi-


ços de Saúde, Acidentes e Violências. Brasil, Grandes Regiões e Uni-
dades da Federação. Ministério da Saúde. IBGE, Coordenação de Tra-
balho e Rendimento. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. 100 p. Disponível em:

202
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94074.pdf> Acesso
em 14 de set. 2017.

PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 21. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
95 p.

POMPEU, Fernanda. Os efeitos psicossociais do racismo. São Paulo:


Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto AMMA Psique e Ne-
gritude, 2008. 88 p. Disponível em: <http://www.ammapsique.org.br/
baixe/Os-efeitos-psicossociais-do-racismo.pdf>. Acesso em 08 de set.
2017.

PORTAL BRASIL. Cidadania e Justiça. Estatuto da Igualdade Racial é


um marco no combate ao racismo e ao preconceito. Combate ao
racismo. Brasília: 2017. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cida-
dania-e-justica/2017/07/estatuto-da-igualdade-racial-e-um-marco-no-
-combate-ao-racismo-e-ao-preconceito>. Acesso em 15 de set. 2017.

PORTAL DA SAÚDE. Ministério da Saúde. Indicadores de saúde. Indica-


dores e dados sobre a saúde da população negra. Brasília: 2012. Dispo-
nível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php?option=com_con-
tent&view=article&id=15580&Itemid=803#doencas> Acesso em 14 de
setembro de 2017.

ROCHA, Paula Jung. MONTARDO, Sandra Portella. Netnografia: in-


cursões metodológicas na cibercultura. 2005. Revista da Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Disponí-
vel em: <http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFi-
le/55/55>. Acesso em 17 de mar. 2017.

SALES JÚNIOR, Ronaldo L. de. Raça e justiça: o mito da democracia


racial e o racismo institucional no fluxo da justiça. 2006. 476 f. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife. 2006. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br/bitstream/hand-
le/123456789/9747/arquivo9288_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Aces-
so em 01 de mar. 2017.

203
SANTOS, Cleito Pereira dos; BRAGA, Lisandro; MAESTRI, Mário; VIANA,
Nildo. Capitalismo e Questão Racial. 1. ed. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007
84 p. Disponível em: <http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uplo-
ads/2012/09/Capitalismo-e-Quest%C3%A3o-Racial-Nildo-Viana-e-Clei-
to-Pereira1.pdf>. Acesso em 28 de jul. 2017.

SILVA, Flávia Carolina da. A análise da representação do/a negro/a em


um livro didático. Revista África e Africanidades - Ano 8 – n.20, jul. 2015
– ISSN 1983-2354. 2015. 18 p. Disponível em: <http://www.africaeafrica-
nidades.com.br/documentos/009020072015.pdf>. Acesso em 11 de set.
2017.

SILVA, Tatiana Dias. O Estatuto da Igualdade Racial. 1712 Texto para


discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Governo
Federal Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da Repúbli-
ca. 2012. 70 p. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/
stories/PDFs/TDs/td_1712.pdf>. Acesso em 20 de set. 2017.

SISTEMA NAÇÕES UNIDAS. Subsídios para o debate sobre a política


nacional de saúde da população negra: Uma Questão de Equidade.
Brasília: 2001. 13 p. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publi-
cacoes/saudepopnegra.pdf>. Acesso em 17 de nov. 2017.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira. Uma nova perspectiva sociológi-


ca. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003. 347 p.

TV BRASIL. EBC. Estatuto da Igualdade Racial. Ver TV. Brasília: 2015b.


Disponível em: <http://tvbrasil.ebc.com.br/vertv/episodio/estatuto-da-i-
gualdade-racial>. Acesso em 22 de set. 2017.

WERNECK, Jurema. Racismo Institucional Uma Abordagem Concei-


tual. Rio de Janeiro: Ibraphel. [2013] 55 p. Disponível em: <http://www.
onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racis-
mo-Institucional-uma-abordagem-conceitual.pdf>. Acesso em 11 de jul.
2017.

WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspec-


tiva, 2007. 164 p.

204
Implantação da variável raça/cor na secretaria municipal de
saúde do Rio de Janeiro

205
Monique Miranda
Louise Silva- SMS-Rio

Introdução

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), publicada


através da Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, pelo Ministério da
Saúde (MS), apresenta como marca o reconhecimento do racismo, das desi-
gualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes
sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde.
Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos,
culturais, étnicos-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a
ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo
a Comissão Nacional de Determinantes Sociais em Saúde (CNDSS). Políticas de
equidade no Brasil, convenções e tratados internacionais demonstram que
as desigualdades de raça e gênero determinam oportunidades de trabalho
e renda, acesso a recursos institucionais, condições de moradia, vulnerabi-
lidades e exposição à violência. Entretanto, gênero e em especial a variável
raça/cor ainda são insuficientemente incorporados no desenho de políticas,
programas e serviços das instituições públicas e privadas.

A PNSIPN endossa e correlaciona-se com outros marcos legais, a saber: a


Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886 de 20 de
novembro de 2003), a Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS (Lei nº 8.080
de 19 de setembro de 1990), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20
de julho de 2010), a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria MS/GM
nº 687, de 30 de março de 2006), a III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas (Durban 2001), a
Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia
Geral da ONU (Resolução 68/237, para o período entre 2015 e 2024). Por fim ,
destacamos o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “Art. 196. A saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e

206
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação.”

Embora a categoria raça tenha sido desprovida do seu sentido biológico,


considera-se importante a incorporação do conceito sociológico de raça para
possibilitar a visibilidade das discriminações derivadas desta própria ideia,
já que para os negros não adianta a verdade científica da não existência de
raças, pois este conceito é constituinte do seu reconhecimento e classificação
pelos outros como pessoa (GUIMARÃES, 1999). Esta concepção é corroborada
por outros autores, os quais comentam que, apesar de raça não ser útil como
categoria biológica, “é um importante constructo social, que determina iden-
tidades, acesso a recursos e a valorização da sociedade” (CHOR e LIMA, 2005).

Gilberto Freyre, segundo Munanga (2008), consolidou o mito originário da


sociedade brasileira, da mistura das raças negra, branca e índia, incluindo-se
além da mistura biológica a mestiçagem cultural; e desta forma lentamente
brotou o mito da democracia racial. Mito que penetrou profundamente na
sociedade brasileira e que, ao exaltar a ideia de convivência harmoniosa entre
os indivíduos de todas as camadas sociais e étnicas, na verdade dissimula as
desigualdades e encobre os sutis mecanismos de exclusão. Munanga (2008)
declara que desta forma conflitos raciais são mascarados, impedindo que
as camadas subalternas tomem consciência de características culturais que
teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria.

As desigualdades raciais são visíveis nos indicadores socioeconômicos e


obedecem a um continuum de cor que aumenta a desigualdade do polo mais
claro ao mais escuro. Os indicadores aproximam os pardos dos pretos, sendo
possível delinear dois grandes grupos que apresentam substanciais dife-
renças: os brancos e não brancos. Heringer (2001) afirma: “As desigualdades
são graves e, ao afetarem a capacidade de inserção dos negros na sociedade
brasileira, comprometem o projeto de construção de um país democrático e
com oportunidades iguais para todos”.

207
O racismo no Brasil é um fenômeno complexo, que se reafirma cotidianamente
pela linguagem comum, sustentado pela tradição e cultura. Influencia a vida, o
funcionamento das instituições e as relações entre as pessoas, constituindo-se
em uma programação social que a todos afeta. Uma especificidade brasileira
é o racismo velado, exercido através da elaboração de estratégias individuais
e coletivas menos evidentes de discriminação racial, porém muito danosas.
Esta modalidade provoca uma sensação de impotência diante de uma situação
não explícita de discriminação e se equiparada à vivida pela agressão física. O
racismo, o preconceito, a discriminação e a intolerância ferem, desequilibram
e podem até matar (LOPES, 2007).

A Classificação de Raça/Cor

Em 2010, a população brasileira era 47,7% (91.051.647) composta por brancos;


43,1% (82.277.333) por pardos; 7,6% (14.517.961) por pretos; 1,1% (2.084.288)
por amarelos; 0,4% (817.963) por indígenas; e 0,003% (6.608) por habitantes
cuja cor não havia sido declarada (IBGE, 2012). Identificando‑se que 50,7% da
população é composta por pretos e pardos, consistindo na população negra,
evidencia‑se que o Brasil é um país de maioria negra (SILVA et al., 2017).

A mudança do panorama das graves iniquidades que atingem a população


negra requer o reconhecimento da sua situação de saúde. Para tal é necessá-
rio que a variável raça/cor seja incluída em todos os sistemas de informação,
formulários, cadastros, prontuários, impressos. Destacamos que um dos
objetivos específicos da PNSIPN é a inclusão do quesito cor em todos os ins-
trumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados
ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Os principais sistemas de informação em saúde, o Sistema de Mortalidade (SIM)


e o Sistema de Informações dos Nascidos Vivos (SINASC) foram implantados no
Brasil respectivamente em 1979 e 1990, sendo o quesito raça/cor adotado por
ambos apenas em 1996, a partir da pressão do movimento social. O governo
federal, após a mobilização das organizações do movimento negro, por ocasião

208
da celebração dos 300 anos de Zumbi de Palmares, criou o Grupo de Trabalho
Interministerial de Valorização da População Negra em 1996. Dentre as ações
estabelecidas relativas à saúde, destacam-se: a introdução do quesito cor no
SIM e SINASC e a elaboração da Resolução 196/96, que ao regular a pesquisa em
seres humanos inseriu o recorte étnico-racial. A criação da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, vinculada à
Presidência da República, intensifica a implementação de políticas públicas
no combate às desigualdades raciais (Brasil, 2007). No Sistema Nacional de
Agravos Notificáveis (SINAN), o quesito cor foi incorporado somente em 2002. O
padrão de morbidade e mortalidade destes sistemas de informação apresenta
diferenças de riscos e vulnerabilidade entre brancos, pretos e pardos, sendo
sistematicamente mais desfavorável para a população negra.

O padrão oficial previsto para a coleta da variável raça/cor é a definida pelo


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), utilizado no censo e
em outros levantamentos populacionais. A variável deve ser autodeclarada,
escolhendo-se apenas uma categoria das descritas a seguir: Branca - pessoa
que se enquadrou como branca, Preta- pessoa que se enquadrou como preta,
Amarela- pessoa que se enquadrou como amarela (de origem japonesa, chinesa,
coreana etc.), Parda- pessoa que se enquadrou como parda ou que se decla-
rou mulata, mestiça, cabocla, cafuza ou mameluca, Indígena- pessoa que se
enquadrou como indígena ou se declarou como tal, vivendo em aldeamento
ou fora deste. Esta opção se desdobra em outras perguntas sobre pertenci-
mento a qual etnia/povo e a língua falada.

Lopes (2007) considera que a informação do quesito cor faz parte do rol de
informações necessárias para mapear as vulnerabilidades e desigualdades
na população, sendo que a produção e a disseminação de dados desagregados
por cor permitirão monitorar e avaliar o impacto de políticas e ações junto
aos diferentes segmentos populacionais.

O marco inicial da implantação da Política Nacional de Saúde Integral da


População Negra no município do RJ foi a realização em dezembro de 2006
pela Assessoria de Promoção da Saúde (atual Superintendência de Promoção

209
da Saúde) em parceria com a ONG Criola, do II Seminário de Promoção de
Saúde – Equidade em Saúde da População Negra, com a participação de cerca
de 300 pessoas entre profissionais, gestores, profissionais de saúde, ativistas
do movimento negro e de mulheres negras, representantes da sociedade
civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras.
O Seminário teve como objetivo geral sensibilizar profissionais e gestores da
saúde e definir estratégias de implantação PNSPN na cidade do Rio de Janeiro.
Dentre diversas estratégias elencadas duas foram primordiais:

1. A criação do Comitê Técnico de Saúde da População Negra através da


Resolução SMS nº 1298 de 10 de setembro de 2007, publicada no Diário
Oficial. O CTSPN é constituído por representantes da sociedade civil,
profissionais e gestores da SMS-Rio e no escopo dos seus objetivos tem
como função atuar na implantação, acompanhamento e avaliação das
ações programáticas e políticas referentes à promoção da equidade
em saúde da população negra na SMS-Rio.

2. A implantação do registro da variável raça/cor nos impressos oficiais,


o que demandou a readequação dos formulários e a sensibilização e
instrumentalização de gestores e profissionais, realizando-se reuni-
ões e oficinas sistematicamente para fomentar a discussão de dados
epidemiológicos com recorte étnico-racial e a apresentação da PNSIPN.

Na Secretaria Municipal de Saúde, embora já houvesse o campo cor nos impres-


sos de matrícula e atendimento, seu preenchimento sempre foi deficitário.
Levantamento realizado em 2008 nos Centros Municipais de Saúde verificou
que no impresso denominado “Ficha Central”, utilizado nas matrículas dos
pacientes em unidades ambulatoriais, 49% não apresentavam o campo cor
preenchido, sendo que o espaço deste campo era aberto, sem o padrão do
IBGE, embora já houvesse legislação específica sobre a obrigatoriedade do
preenchimento do quesito cor nos prontuários médicos, a Lei nº. 3506 de 16
de janeiro de 2003. Posteriormente, o sistema classificatório foi aperfeiçoado
através da Lei nº. 4930 de 22 de outubro de 2008, vinculando-o às diretrizes e
ao padrão do IBGE e estendendo-o a todos os impressos oficiais.

210
A metodologia inovadora utilizada nas oficinas denominadas “Qual é a sua
cor?” possibilitou o debate sobre o contexto histórico e político que fomen-
tou o racismo no Brasil e seus impactos sobre a saúde da população negra.
Utilizamos dinâmicas de grupo que facilitaram a reflexão e discussão sobre
a identidade étnico-racial dos profissionais e o relato de vivências pessoais
de preconceito e discriminação. As oficinas demonstraram ser uma poderosa
ferramenta para a capacitação dos profissionais de saúde no preenchimento
do quesito raça/cor no atendimento aos usuários e na reflexão do racismo
enquanto determinante social da saúde.

Desigualdades Raciais em Saúde 

A discriminação racial traz consequências à saúde porque é um dos fatores


estruturantes das desvantagens econômicas e sociais; provoca exposição
a ambientes menos saudáveis; causa assistência à saúde inadequada ou
degradante. Nos EUA, estudos epidemiológicos que utilizaram metodologia
específica para aferir a associação da discriminação com hipertensão arterial,
depressão e autoavaliação da saúde observaram um padrão consistente de
desvantagem para negros que relataram experiências diretas de discriminação
racial (KRIEGER, 2004 apud CHOR e LIMA, 2005:1592).

Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, foram observadas evidências de iniquidades,


porque injustas e evitáveis, raciais em saúde. A taxa de mortalidade infantil
de filhos de mães brancas em 1982 (30 por 1.000 nascidos vivos) só foi alcan-
çada por filhos de pretas e pardas em 2004! Nos dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD 2008), foi constatado que a realização de
mamografia era maior para mulheres brancas, de maior renda, de maior
escolaridade ou que moravam em regiões metropolitanas de melhor padrão
socioeconômico (CHOR , 2013).

O Brasil não cumpriu a 5ª meta dos Objetivos do Milênio (ONU), a melhora da


saúde materna, permanecendo o indicador razão de mortalidade materna
(RMM) em patamares elevados, o que configura grave iniquidade, pois a morte

211
materna é uma tragédia evitável em 92% dos casos (BATISTA, 2016). A morta-
lidade materna se refere às mortes de mulheres em idade fértil (10 a 49 anos
de idade), ocorridas durante a gravidez, parto ou puerpério.

A existência das desigualdades raciais também é negada por parte da socie-


dade quando se propõem ações de discriminação positiva e ou de promoção
da equidade. Nas redes sociais e na própria academia, as ações de promoção
de equidade de acesso dessa população aos serviços de saúde e educação
são por vezes percebidas negativamente, por se tratar de forma socialmente
“diferente” a população negra – é nesse momento que entra em cena o argu-
mento de que somos todos iguais “biologicamente”, enquanto membros da
“raça humana”. O não reconhecimento das desigualdades raciais no acesso
aos direitos e a não compreensão por parte da sociedade em relação às ações
de equidade acabam por aprofundar as iniquidades (SILVA et al., 2017).

Os dados epidemiológicos da cidade do Rio de Janeiro apontam maior vul-


nerabilidade de cidadãos pretos e pardos aos agravos à saúde, embasando
a necessidade de se priorizar a implantação de uma política específica de
equidade racial da população negra em nossa cidade. Análises do SIM/SINASC
de nosso município comprovam: maior mortalidade infantil da população
negra em comparação com a branca; maior risco de morte entre os jovens
da população negra em comparação com os jovens brancos; maior mortali-
dade materna das mulheres negras quando comparadas com as mulheres
brancas. Os dados de consulta pré-natal também apontam a necessidade de
se priorizar estratégias para ampliação do acesso da população negra aos
serviços de saúde.

Considerações Finais

O racismo é um grave determinante social da saúde, sendo fundamental que


as desigualdades étnico-raciais sejam monitoradas através de dados, indica-
dores e informação em saúde, desagregados por raça/cor.

212
Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado
uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/
cor, ainda é incipiente e descontínua sua utilização na análise, planejamento
e tomada de decisões nas políticas e ações de saúde, assim como no inves-
timento de recursos. É necessário também que sejam divulgados e disponi-
bilizados de forma ampla e sistemática os dados epidemiológicos por raça/
cor junto à sociedade civil e a população em geral, devendo ser engendrados
esforços para que a temática saúde da população negra seja transversal a
todos os programas e ações de saúde das diversas áreas técnicas da SMS-Rio.
E da mesma forma ser capilarizada junto às unidades de saúde de toda a
rede assistencial da Prefeitura Rio, devendo desta forma ser respeitados os
marcos legais relativos à saúde da população negra e ao combate ao racismo.

A ampliação do acesso ao SUS e a integralidade das ações de saúde, assim como


a transformação das graves desigualdades étnico-raciais demandam que
profissionais, gestores e sociedade civil reconheçam o racismo institucional,
se comprometendo para o desafio cotidiano da desconstrução da ideologia
racista existente em nossa sociedade.

213
Referências
BATISTA L. E ; RATTNER D.; KALCKMANN S.; OLIVEIRA M.; Humanização
na atenção à saúde e as desigualdades raciais: uma proposta de inter-
venção. Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.689-702, 2016.

BENTO M A S. A implementação do quesito cor na área da saúde: o


caso da prefeitura de São Paulo. Em: Batista L E; Kalckmann S (Orgs.).
Seminário Saúde da População Negra - Estado de São Paulo, 2004. São
Paulo: Instituto de Saúde, 2005.

CHOR D; LIMA C R A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades ra-


ciais em saúde no Brasil. Cad. saúde pública. 2005 Out; 21 (5): 1586-1594.

CHOR D. Desigualdades em saúde no Brasil: é preciso ter raça. Cad.


Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(7):1272-1275, jul, 2013.

GUIMARÃES A S A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educ


Pesq. 2003 Jan / Jun; 29 (1): 93-107.

HERINGER R. Mapeamento de Ações e Discursos de Combate às Desi-


gualdades Raciais no Brasil. Revista Estudos Afro-Asiáticos. 2001; 23
(2): 1- 43.

KABENGELE M. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade na-


cional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica; 2008.

LAGUARDIA J. O uso da variável “raça” na pesquisa em saúde. Physis


(Rio J.). 2004; 14 (2): 197-234.

LOPES F. Vamos fazer um teste: qual a sua cor? A importância do


quesito cor na saúde. Saúde da População Negra no Estado de São
Paulo. Suplemento 1 do Boletim Epidemiológico Paulista. 2007.

SILVA, N. G.; BARROS S.; AZEVEDO F.; BATISTA L. E.; POLICARPO V. O


quesito raça/cor nos estudos de caracterização de usuários de Centro
de Atenção Psicossocial . Saúde Soc. São Paulo, v.26, n.1, p.100-114, 2017.

214
215
216
217
218
ANEXO 5

Notificação de Violência Sexual | Mulheres Adultas (20-59


anos) residentes Rio de Janeiro segundo raça/cor, 2015-2018

Raça 2015 % 2016 % 2017 %

Branca 106 38.3 146 42.1 172 37.7

Preta 39 14.1 50 14.4 79 17.3

Amarela 5 1.8 3 0.9 2 0.4

Parda 89 32.1 105 30.3 141 30.9

Indígena 1 0.4 0 0 0 0

Sem Inf. 37 13.4 43 12.4 62 13.6

TOTAL 227 100 347 100 456 100

Pop Negra* 128 46.2 155 44.7 220 48.2

Fonte: Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) - SMS/RJ


*Pop Negra = preto + pardo

219
Anexos:

Por um Sistema de Justiça Democrático e Antirracista

220
Allyne Andrade e Silva[43]

Apresentação

O presente ensaio apresentará, em breves linhas, uma análise do sistema de


justiça brasileiro e seu papel na manutenção da desigualdade racial. Para tal,
na primeira seção desse ensaio trataremos do sistema de justiça e sua função.
Na segunda parte do ensaio, é apresentado o arcabouço jurídico que coloca
o combate ao racismo como objetivo do Estado brasileiro. Na terceira seção,
são demonstrados dados e fatos que apoiam a afirmação de que esse sistema
engendra e reproduz a desigualdade racial no seu fazer diário. Por fim, trata-
mos quais seriam as direções para a construção de um sistema antirracista,
democrático e emancipatório.

1. O que é o sistema de justiça e qual sua função?

A expressão sistema de justiça busca abarcar uma realidade complexa e pode


ser conceituada como um “conjunto de instituições estatais e profissionais
responsáveis pela oferta de serviços de justiça pelo Estado” (ALMEIDA, 2015,
p.214). Sadek (2002, p.236), ao forjar o conceito e agrupar as instituições que
fazem parte deste, levou em consideração duas características: (i) seu caráter
institucional-formal e (ii) sua vinculação à organização jurídico-constitucio-
nal do Poder Judiciário.

[43]  Advogada, é coordenadora jurídica da Mandata Quilombo da Deputada Estadual Erica


Malunguinho. Possui doutorado (2019) e mestrado (2015) em Direito pela Universidade de São
Paulo. Obteve o LL.M - Master of Laws- na área de Teoria Crítica Racial da Faculdade de Direito da
Universidade da California Los Angeles - UCLA School of Law (2019). Fez a graduação em Direito
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009) . Atualmente, é representante discente no
conselho de pesquisa da Universidade de São Paulo. Membro colaboradora da JusDH- Articulação
Justiça e Direitos Humanos, DeFEMde - rede de Juristas Feministas e da Comissão de Direito
Humanos da OAB- SP. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público; Direito
e Políticas Públicas; Terceiro Setor, Teoria Crítica Racial; Direito e Relações raciais; Diversidade,
Inclusão e Ações Afirmativas.

221
Para fins desse ensaio, serão identificadas como sendo da estrutura do sistema
de justiça brasileiro: O Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública,
a Procuradoria da República, a Advocacia Geral da União, as polícias, os advo-
gados, isto é, os operadores de direito. Abaixo será explicado brevemente a
função de cada uma dessas instituições.

O Judiciário compreende funções de justiças especializadas (trabalhista, mili-


tar, eleitoral) e a justiça comum (cível e criminal), cada qual com autonomia
administrativa e estruturas burocráticas (tribunais, carreiras, hierarquias)
próprias. Dividindo-se, ainda, em uma esfera federal (com competências da
justiça comum, mas também especializadas) e uma justiça estadual (comum
e militar).

O Ministério Público, definido pela Constituição em seu artigo 127 e seguintes,


tem como incumbência defender a ordem jurídica, o regime democrático, bem
como os interesses sociais coletivos, difusos e individuais indisponíveis[44], o
controle externo da polícia e instaurar inquéritos possuindo poderes inves-
tigatórios, e promover, privativamente, a ação penal pública. Compreende:
(i) o Ministério Público da União, composto pelo Ministério Público Federal;
o Ministério Público do Trabalho; o Ministério Público Militar; e o Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios; e (ii) os Ministérios Públicos dos
Estados. O Ministério Público é regido pela Lei Orgânica do Ministério Público.

Na Reforma do Judiciário, conforme o exposto na Introdução, foram criados


ainda dois órgãos: (i) O Conselho Nacional de Justiça - CNJ (art. 92, I-A, CF), da
estrutura do Poder Judiciário e (ii) o Conselho Nacional do Ministério Público
- CNMP (art. 130 - A, CF), da estrutura do Ministério Público.

[44]  Direitos difusos são direitos comuns a um grupo de pessoas não determináveis e que ape-
nas se encontram unidas em razão de uma situação de fato. Por exemplo, o direito de todos os
cidadãos de não serem expostos à propaganda enganosa e abusiva veiculada pela televisão ou o
Direito pretensão a um meio ambiente sadio e preservado para as presentes e futuras gerações.
Os direitos coletivos são direitos comuns a grupo determinável de pessoas, como uma entidade
associativa – um sindicato de trabalhadoras domésticas, por exemplo - ou aquelas que possuem
uma relação jurídica base estabelecida com a parte contrária, como um grupo de compradores
de apartamentos de uma mesma imobiliária.

222
Continuando na tarefa de definição dos órgãos do sistema de justiça, temos
ainda a Advocacia Pública. A Advocacia-Geral da União (art. 131, CF) é a ins-
tituição que representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-
-lhe, ainda, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder
Executivo. Há ainda as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (art.
132, CF) com as mesmas atribuições de representação e assessoramento nas
suas respectivas esferas federativas. Em alguns municípios também existem
Procuradorias com a mesma função, mas não há disposição constitucional
acerca das mesmas[45]. Há ainda os advogados da administração pública direta
e indireta, também sendo denominados Advogados Públicos. Por fim, temos
os defensores públicos responsáveis pela orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
nos dizeres constitucionais. A Defensoria Pública se organiza em Defensoria
Pública da União e dos Estados.

O advogado, inclusive o de atuação privada, é entendido pela Constituição


como órgão indispensável à administração da justiça e, em razão disso, a
advocacia também é entendida como parte do sistema de justiça. A carreira
é regida pela lei nº 8.906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A OAB é composta pelo Conselho Federal;
pelos Conselhos Seccionais, com jurisdição sobre os respectivos territórios
dos Estados-membros e do Distrito Federal, e suas subseções, bem como pelas
Caixas de Assistência dos Advogados.

Há ainda a polícia, que embora seja da estrutura do Executivo tem em suas


mãos a execução da política de segurança pública e que se divide em: Polícia

[45]  Há uma proposta de emenda constitucional de estruturação da carreira de procurador


do município, através de alteração do artigo 132. Inicialmente, PEC 153/03 na Câmara, foi votada
e aprovada na Câmara e remetida à Casa Revisora. Com o parecer favorável da Comissão de
Constituição e Justiça do Senado Federal, a proposta foi renumerada para PEC nº 17/2012. Foi
aprovada na CCJ, em 04 de junho de 2012, hoje aguarda apenas a sua inclusão na pauta do
plenário da Casa Legislativa em que ora tramita.

223
Federal, Polícia Rodoviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos
de Bombeiros Militares.

Todas as instituições do sistema de justiça estão encarregadas de garantir


os preceitos constitucionais, de aplicar a lei e de distribuir a justiça (SADEK,
2002, p.237). Um dos objetivos da República brasileira, explicitado em nossa
Constituição é o combate à discriminação e a promoção da igualdade. Isso
significa que uma das funções dos poderes públicos deveria ser combater a
desigualdade racial e o tratamento discriminatório. Abaixo, trataremos bre-
vemente do arcabouço jurídico que sustenta essa afirmação.

2.2. O combate à desigualdade racial como missão do siste-


ma de justiça

A Constituição Federal de 1988 reconheceu ao longo do seu texto diversos


direitos que, ainda que não tratassem diretamente da promoção da igualdade
racial, tratavam de questões transversais como a igualdade e o combate à
discriminação. Tais direitos permitiram que o Estado brasileiro, ao longo dos
anos, implementasse políticas de combate à discriminação e de promoção da
igualdade racial. Nesse sentido, podemos destacar: (i) artigo 1º que trata da
dignidade da pessoa humana; (ii) o artigo 3º, que estabelece como objetivo
fundamental da República o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e
redução das desigualdades, e afirma a recusa a qualquer tipo de preconceito
ou discriminação; (iv) o artigo 4º que estabelece prevalência dos Direitos
Humanos como princípio das relações internacionais brasileiras; (v) o artigo
5º que em seu inciso XLII estabelece repúdio ao racismo e o caracteriza como
crime inafiançável e imprescritível; (vi) no artigo 7º, em seu inciso XXX, consta
a proibição da diferença salarial ou admissão por motivos de cor; e (vii) há
a previsão de garantia de uma educação sem preconceitos presente no art.
227 e que tenha o pluralismo de ideias como princípio (artigo 206, III), Houve
ainda o reconhecimento constitucional da pluralidade étnico-racial brasileira
pela (vii) fixação das datas comemorativas significativas para os diferentes
“segmentos étnicos nacionais” (Art. 215) e (ix) o acolhimento das contribuições

224
de diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro no ensino
de História (Art. 242). (JACCOUD, 2009, p.27-29).

Assim sendo, a Constituição Federal pode ser entendida como marco jurídico
no que tange à garantia de Direitos e ao combate ao racismo como política de
Estado no Brasil[46] (JACCOUD ET ALLI, 2009, p. 271). Além disso, ela reconhece
uma dimensão material da igualdade e da liberdade, não se restringido ao
entendimento desses direitos de acordo com a visão liberal dos direitos fun-
damentais, uma vez que prevê diversas medidas positivas para a consecução
desses direitos.

O Brasil é ainda signatário de diversos tratados no plano internacional sobre


o combate à discriminação. A Convenção 11ª da OIT relativa à Discriminação
com respeito ao Emprego e à Ocupação (1958), Convenção relativa à Luta
contra a Discriminação no Campo do Ensino da Unesco (1960), Declaração
das Nações Unidas sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial (1963), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, Convenção nº 169 da OIT obre Povos Indígenas e
Tribais (1989) e Convenção nº 189 da OIT sobre Trabalho Decente para as
Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (2011). O Brasil participou das
três conferências das Nações Unidas[47] em que o combate ao racismo esteve
em foco e é signatário. Atualmente, está em curso - e o Brasil é Estado-parte

[46]  A abordagem da igualdade racial na Constituição aqui apresentada é bastante sucinta,


apenas para ilustrar os elementos jurídicos que possibilitam a criação das políticas de igualdade
racial. Para uma abordagem mais completa da igualdade étnico-racial no Direito brasileiro, ver
Hédio Silva Júnior (2002) e Daniel Sarmento (2006).

[47]  A Primeira e a Segunda Conferência Mundial para Combate ao Racismo e à Discriminação


Racial ocorreram em Genebra em 1978 e 1983, respectivamente. A Terceira Conferência Mundial
Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata ocorreu em
agosto de 2001 em Durban, na África do Sul. O então Presidente Fernando Henrique Cardoso
reconheceu o racismo existente no país no âmbito da preparação para a Conferência. Dela
resultou a Declaração e o Programa de Ação de Durban que influenciou as políticas públicas
adotadas pelo Brasil nessa seara. Houve ainda a Conferência de Revisão de Durban em Genebra,
em 2009, que também contou com a participação do país.

225
da iniciativa – a Década Internacional dos Afrodescendentes, com foco na
inclusão racial[48].

Esse arcabouço jurídico demonstra que está entre um dos objetivos do Estado
brasileiro e, portanto, dos seus poderes constituídos a busca pela igualdade
racial, pelo combate à discriminação racial. Assim sendo está também entre os
objetivos do Judiciário e, em sentido mais amplo, do sistema de justiça acima
definido, o combate à desigualdade racial. Entretanto, o que se tem visto é um
sistema de justiça que, ao contrário, vem reforçando a desigualdade. Abaixo,
falaremos mais sobre o tema.

3. Por que dizemos racista o sistema de justiça brasileiro?

Eis aqui um dos paradoxos da desigualdade racial brasileira. Embora se


anuncie a inexistência de uma legislação que discrimine com base em raça
e haja uma gama de leis promovendo a igualdade racial e proibindo a dis-
criminação, o Estado vem atuando como instrumentalizador do racismo
estrutural brasileiro, reproduzindo em sua lida diária, com todo o peso de
suas institucionalidades, a desigualdade racial.

De acordo com Guimarães (2004), pode ser afirmado que a reprodução das
desigualdades raciais se articula com três diferentes processos: na formação e
atribuição de carismas, algo que não se limita apenas ao racial, mas que atinge
praticamente todas as formas de identidade social; no processo político de
organização e representação de interesses na esfera pública; e terceiro, na
criação de constrangimentos institucionais que funcionam como verdadeiros
mecanismos de retroalimentação.

[48]  A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela resolução 68/237 da


Assembleia Geral das Nações Unidas e será observada entre 2015 e 2024. O objetivo é fortalecer
a estrutura institucional da Organização das Nações Unidas, dos Estados-membros, bem como
a sociedade civil e todos os outros atores relevantes. O objetivo é a adoção ou fortalecimento
de medidas eficazes para a implementação do programa de atividades no espírito de reconhe-
cimento, justiça e desenvolvimento dos povos afrodescendentes, a promoção de a sua plena
inclusão, o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.

226
Esses constrangimentos institucionais podem também ser identificados com
o conceito de racismo institucional[49]. Embora teoricamente neutros, as regras
e fazeres institucionais diariamente constroem e rearticulam a desigualdade,
seja pela falta de visibilidade de diferentes formas de vida, seja pela construção
de empatia com diferentes identidades, seja pela falta de representatividade
ou pelos constrangimentos burocráticos que engendra.

Estão disponíveis alguns dados e atos que demonstram que o sistema de justiça
tem sido uma dessas instituições que tem funcionado como um sistema eficaz
de manutenção e reprodução do racismo, tanto por suas regras pretensamente
neutras de ingresso na carreira, quanto pelos ritos e costumes para o acesso
à justiça que sistematicamente exclui uma parcela da população ou, ainda,
pela negligência e ineficácia diante de níveis de violência racial exacerbado.

O Estado Brasileiro possui e convive com índices alarmantes de violência racial.


Aqui utilizaremos, como exemplo, apenas os indicadores de desigualdade que
guardam relação com o sistema aqui estudado, isto é, dados de violência que
poderiam ser mitigados ou prevenidos com uma atuação eficiente do sistema
de justiça: dados sobre o extermínio da população negra[50], violência contra
a mulher e encarceramento.

O Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica


Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança, revela que homens,
[49]  O conceito de racismo institucional foi definido pelos ativistas integrantes do grupo Pan-
teras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton (1967), para especificar como se manifesta o
racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições. Para os autores, “trata-se
da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas
por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. O racismo institucional perpassa todas as relações
sociais daquelas formações sociais que Hall (1980) chama de racialmente estruturadas. Assim,
as instituições dessas sociedades, sejam elas públicas ou privadas, tendem a reproduzir, modi-
ficando e atualizando, os mecanismos discriminatórios inscritos nas práticas e relações sociais.
(SILVÉRIO, 2003, p. 63). Mais recentemente Jurema Werneck definiu o racismo institucional como
“um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que
os primeiros inexistam ou existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência
dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação desse último”( 2010).

[50]  Sobre o assunto, recomendo a leitura de trabalho de Ana Flauzina (2006).

227
jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes
violentas no país. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10%
dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios.

Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De


acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores
de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado
o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.
Aproximadamente, 80% dos crimes de homicídio nos Estados não são solu-
cionados pelo poder público, de acordo com levantamento “Onde Mora a
Impunidade”, publicado pelo Instituto Sou da Paz (2018).[51]. Essa ineficiência
ou inatividade estatal em relação aos crimes de homicídio demonstram que
o Estado tem convivido com altos índices de impunidade e pouco tem se
mobilizado para reverter esse quadro.

No que diz respeito à letalidade policial, na pesquisa “Desigualdade Racial e


Segurança Pública em São Paulo”, em que foram analisadas informações refe-
rentes a mortes em decorrência da ação policial na totalidade dos processos
disponibilizados pela Ouvidoria da Polícia entre os anos de 2009 e 2011, vê-se
que o perfil das vítimas apontou que elas são predominantemente negras
(61%), homens (97%) e jovens, entre 15 e 29 anos de idade. Em relação aos
policiais autores das mortes, foi observado que a maioria deles é de cor branca
(79%), é homem (97%) e se concentra na faixa etária de 25 a 39 anos (73%). O
número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100
mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a popu-
lação branca. Enquanto a taxa de homicídio de brancos diminuiu 24,8%, a de
negros aumentou 38,7% entre 2002 e 2012, demonstrando um caráter racial
da violência policial no Brasil (Fonte: Mapa da Violência/2014).

Sobre o encarceramento[52], dados oficiais (INFOPEN) apontam que em 2016


cerca de 64% da população prisional brasileira é composta por pessoas negras
[51]  https://www.cartacapital.com.br/sociedade/homicidios-no-brasil-sao-pouco-elucidados-
-diz-pesquisa

[52]  Sobre o assunto ver: https://g1.globo.com/politica/noticia/brasil-dobra-numero-de-presos-

228
e esse índice tende a crescer, conforme as pesquisas voltadas ao tema. 40% dos
presos no Brasil são presos provisórios, isto é, pessoas que ainda não foram
julgadas e nem condenadas.

Diversas pesquisas indicam a seletividade racial, isto é, o viés racista da justiça


criminal. Desde o trabalho seminal de Adorno, verificando crimes violentos
julgados em primeira instância em São Paulo, na década de 1990, pouca coisa
mudou. Em 2015, pesquisa divulgada pelo Ipea sobre “A aplicação de penas e
medidas alternativas no Brasil” apontou que o rigor da Justiça Criminal com
negros é maior que com brancos, que possuem mais direito a penas alterna-
tivas. O viés racial pode ser visto já na definição do trâmite dos processos.
Enquanto 41,9% dos acusados em varas criminais eram brancos, 57,6% eram
negros. Já nos juizados especiais - que analisam casos de menor potencial
ofensivo -, a ordem é inversa, com 52,6% dos réus brancos e 46,2%, negros. A
escolha da vara onde o processo irá tramitar depende da pena pedida e é uma
decisão do promotor de justiça. Acolhida ou não pelo juiz responsável, isso
terá influência na pena que será recebida pelo réu caso seja condenado, uma
vez que há possibilidade de adoções de medidas alternativas, mais brandas,
nos juizados especiais. Recentemente, pesquisa do IDDD demonstrou que há
desfavorecimento dos réus negros quando da decretação de prisão preventiva
em audiências de custódia. Ao que parece, há uma atribuição de carisma ao
réu branco, na sua percepção como menos perigoso, o que faz com que receba
penas alternativas e tenha mais possibilidades de aguardar em liberdade seu
julgamento.

Outro dado revela a persistência da relação entre o recorte racial e a violên-


cia no Brasil. Enquanto a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e
indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice
subiu 22%. Mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha e o advento da Lei
do Feminicídio, importantes conquistas legais para o combate à violência
contra a mulher, há indícios que os as políticas públicas e as instituições do
sistema de justiça são menos eficientes na proteção das mulheres negras.

-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgados.ghtml

229
Assim como as vítimas desse sistema têm cor e classe, têm cor as pessoas
que o dirigem. Sobre a composição da carreira, o processo seletivo adotado,
pretensamente neutro – os concursos públicos – vem sistematicamente
produzindo o resultado perverso de favorecer um mesmo perfil de candida-
tos que, em geral, são aqueles que não pertencem e nunca pertenceram aos
grupos sociais excluídos e marginalizados. Há relatos públicos de perguntas
preconceituosas feitas a candidatos no momento da entrevista oral[53]. A
magistratura brasileira é composta majoritariamente por homens. Segundo
os números preliminares do Censo dos Magistrados, realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça, 64% dos magistrados são do sexo masculino. Eles che-
gam a representar 82% dos ministros dos tribunais superiores. Em relação
à composição étnico-racial da carreira, juízes, desembargadores e ministros
declararam ser brancos em 84,5% dos casos. Apenas 14% se consideram par-
dos, 1,4% pretos e 0,1%, indígenas. O censo teve participação de 60% (170,7
mil) dos servidores do Judiciário e de 64% dos juízes (10,7 mil).

Informações prestadas pelos Ministérios Públicos locais ao CNMP no âmbito


de processo administrativo sobre adoções de ações afirmativas na carreira[54]
demonstram a flagrante ausência de representatividade negra na carreira. A
título de ilustração, o Ministério Público do Rio de Janeiro declarou que, entre
910 promotores, apenas quatro são negros. O MP do Distrito Federal alegou ter
dez negros entre seus 370 promotores. O MP de Minas Gerais afirmou possuir
87 promotores negros num universo de 1003, chegando até mesmo ter locais
onde não há nenhum promotor negro, como no caso do Rio Grande do Sul,
onde, de acordo com o declarado pelo MP-RS, não há nenhum promotor negro
entre os seus 700 promotores.

[53]  Foi bastante divulgado a abertura de 6 procedimentos administrativos junto ao Conselho


Nacional de Justiça pedindo a anulação das provas orais do 183º Concurso para juízes realizado pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, em razão de perguntas preconceituosas. Veja mais em https://
fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2012/09/17/o-preconceito-na-escolha-de-juizes-em-sp/

[54]  Procedimento de Controle Administrativo n.º 0.00.000.000443/2013-23.

230
Vale dizer que, recentemente, tanto o CNJ quanto o CNMP tiveram papel impor-
tante na adoção de ações afirmativas[55], que eram constantemente cobradas
pelos movimentos sociais negros brasileiros protagonistas na adoção desse
tipo de medida no Brasil. Por se tratar, entretanto, de medidas ainda recentes[56],
pode-se dizer que o sistema de justiça é composto e pensado institucionalmente
por um grupo muito específico de pessoas: homens brancos, heterossexuais,
cristãos e casados, como numa atualização de critérios de participação dos
“homens bons” do Brasil Império.

Na letra fria das legislações, o sistema de justiça é um local de resguardo dos


direitos humanos de todas e todos, e há farta legislação tanto no plano nacio-
nal quanto no internacional sobre o combate ao racismo e à discriminação.
Contudo, conforme demonstrado acima, na prática ele reforça a desvalia da
vida humana dos homens e mulheres negras para o estado brasileiro. Resta
saber se há algum potencial emancipatório nas frestas do racismo institu-
cional que parece governar essas instituições...

4. Que justiça queremos?

O sistema de justiça que defendemos é um sistema emancipatório, isto é,


democrático, antirracista e representativo da sociedade brasileira. Ao utilizar
esses três termos: “democrático”, “antirracista” e “representativo”, pensamos as

[55]  De acordo com Joaquim Barbosa (2001), as ações afirmativas são como políticas públicas
e/ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à
neutralização dos efeitos da discriminação. Elas podem ser relacionadas à discriminação racial,
de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Ver em BARBOSA, Joaquim.
Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.

[56]  As cotas na magistratura foram estabelecidas em 2015 pela Resolução CNJ n. 203, com
reserva de 20% das vagas para candidatos negros, com o objetivo de reduzir a desigualdade de
oportunidades para a população afrodescendente na Justiça brasileira. O Plenário do Conselho
Nacional do Ministério Público (CNMP) aprovou, no dia 13 de junho, por maioria, duas propostas
de resolução que instituem, respectivamente, reserva aos negros de 20% das vagas nos concursos
públicos para provimento de cargos efetivos no CNMP e de ingresso nas carreiras do Ministério
Público brasileiro.

231
instituições tanto do ponto de vista da composição de seus membros quanto
do ponto de vista do seu ideário de justiça e seus reflexos no serviço que essa
instituição entrega, isto é, da garantia de direito aos cidadãos.

Seria democrático, nesse sentido, um sistema de justiça que colaborasse na


organização da sociedade com o objetivo de garantir e expandir os direitos
(O’DONNELL, 2004, p. 35). Em outras palavras, um judiciário que não só garanta
as liberdades básicas, mas a cidadania civil e social, isto é, que colabore na
construção de um projeto de Estado que proteja e expanda a liberdade, a
justiça e o progresso, organizando as tensões e conflitos que geram as lutas
pelo poder (O’DONNELL, 2004, p.35).

Nesse sentido, é preciso que esse sistema de justiça opere na criação e legiti-
mação de um sistema de crenças e valores, direitos e obrigações em relação à
cidadania (JELIN e HERSHBERG, 1996). Essa unidade de valores é especialmente
importante num país que se habituou à desigualdade social (e racial) de tal
forma que naturalizou a existência de indivíduos como membros do grupo
dos subcidadãos, isto é, a existência de “ralé que não detêm e não merece
reconhecimento social e político” (SOUZA, 2003, p.47).

Um sistema de justiça, portanto, preocupado com a redução ou desarticulação


das desigualdades deveria estar preocupado, por exemplo, com a composição
racial e de gênero de seus membros, com a forma que os sujeitos são atendidos,
mas também no reflexo dessa composição e no horizonte interpretativo do
direito, isto é, e nas matrizes epistemológicas utilizadas para compreendê-lo
e nas nuances de sua aplicação feitas (ou não) por esses operadores. Ou seja,
precisa ter a raça como categoria de análise válida e o combate ao racismo
como meta estratégica.

É esse sistema de Justiça que queremos.

232
Referências
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e Justiça penal: réus
brancos e negros em perspectiva comparativa.  Revista Estudos His-
tóricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 283-300, dez. 1996. ISSN 2178-1494.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/
view/2034>. Acesso em: 17 Set. 2018.

ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e reforma do Judiciário. Revista


Brasileira de Ciência Política, nº17. Brasília, maio - agosto de 2015, pp.
209-246.

ALVES, J.A. Lindgren. A Conferência de Durban contra o Racismo e a


responsabilidade de todos. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 45, n. 2, p. 198-
223, Dec. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S0034-73292002000200009&lng=en&nrm=iso>. acesso
em: 16 Set. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292002000200009.

BARBOSA, Joaquim. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da


Igualdade, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.

BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdu-


ção crítica ao racismo, 1989.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema


penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação
(Mestrado)–Coordenação de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de
Direito, Universidade de Brasília, Brasília.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo


no Brasil. Rev. Antropol., São Paulo , v. 47, n. 1, p. 9-43, 2004. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S003477012004000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 23 Julho,
2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012004000100001.

JACCOUD, Luciana (org.). A construção de uma política de promoção


da igualdade racial: uma análise dos últimos 20 anos / - Brasília: Ipea,
2009.

233
JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric. Human Rights and the construc-
tion of democracy. Em: JELIN, Elizabeth HERSHBERG, Eric (Org). Cons-
tructing Democracy: Human Rights, Citizenship and Society in Latin
America.Westview Press, 1996.

PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Em busca das raízes de nossas


desigualdades raciais. Augusto Guzzo Revista Acadêmica, 34-43, 2005.

SADEK, Maria Tereza. A judicialização da política. 2003. 4p. Disponível em:


www.ces.uc.pt/opiniao/bss/078en.php.

SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociolo-


gia política da modernidade periférica. Editora UFMG, 2003.

234
Diálogos com o “Realismo Marginal” e a Crítica à Branquida-
de: Por que a Dogmática Processual Penal “não vê” o Racismo
Institucional da Gestão Policial nas Cidades Brasileiras?

235
Evandro Piza Duarte[57]

1. Introdução

Neste texto, apresento argumentos sobre as relações entre o discurso jurídico


e o racismo institucional no Brasil.

A questão que me move é a necessidade de refletir sobre os limites que, coti-


dianamente, vemos ser reproduzidos no discurso jurídico sobre uma parte
importante da realidade social: a gestão policial nas cidades e a gestão do
sistema carcerário. Nessas duas formas de “gestão”, observamos como o dis-
curso jurídico: não identifica os atos de violência nessa gestão; imuniza a
responsabilidade dos sujeitos que praticam atos de violência ilegal; não
debate a responsabilidade daqueles que estão no comando da gestão; não
atribui a condição de vítima àqueles que são afetados por essa gestão; não
busca identificar os processos institucionais que servem para produzir a vio-
lência, imunizar a responsabilidade dos indivíduos e dos administradores;
não entra em contato com os fatos cotidianos da violência, não confronta os
atores que praticam violência ilegal, diretamente ou na cadeia de comando,
nem se importa com os relatos das vítimas.

Portanto, trato da violência silenciosa contida na forma como o próprio


discurso jurídico qualifica ou não qualifica as violências dessas formas de
gestão. Nesse sentido, estou empenhado em sugerir outros modos de pensar

[57]  Professor de Direito Processual Penal e Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade


de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela UnB. Autor de Criminologia e Racismo. Curitiba: Juruá:
2017 e Criminologia do Preconceito: Racismo e Homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo:
Saraiva, 2017. Professor na Cátedra Brasil sobre Relações Raciais (Capes) na Universidade Nacional
da Colômbia (2014), Coordenador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação da
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (CEDD/FD/UnB), do Núcleo de Estudos Maré
sobre Cultura Jurídica e Atlântico Negro, do Projeto Corpolítica: Diálogos sobre Raça, Gênero e
Sexualidades e do Projeto Justiça, Racismo e Sexismo: Dimensões da Desigualdade nos Sistemas
de Justiças do Brasil, dos EUA e Colômbia e integrante do Grupo IDCARÁN/UNAL/CO.

236
o discurso da dogmática processual e penal e, ao mesmo tempo, de denunciar
o papel dos juristas na reprodução dessa violência. Quase sempre voltamos
nossos olhos para a denúncia da violência praticada por um policial, mas não
para a violência dos juristas. Aquela violência, registrada em cenas absurdas,
somente pode existir porque há este outro tipo de violência, aparentemente
silenciosa. Os juristas estão aí, na sua grande maioria, para validá-la por
inúmeras estratégias.

Todavia, não utilizo os conceitos explicativos sobre a realidade social em


assertivas absolutas, de tal modo, por exemplo, que a teoria me obrigue a dizer
que essa ou aquela característica seja a única possibilidade porque seja “da
natureza das coisas, do sistema, das relações, do direito burguês” etc. O uso de
categorias explicativas desse modo pode servir para ocultar processos e sujeitos
reais que estão em múltiplas tensões e produzir homogeneização onde há, na
verdade, campos de disputas. Arrisca a produzir uma desesperança (que pode
ser mobilizada politicamente, mas sem perspectiva estratégica) e um certo
gozo aristocrático do intelectual (de um sujeito que pretende ser portador de
uma verdade capaz de explicar todas as dimensões dos fenômenos sociais).

Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocínio
escolhi um exemplo insuspeito de defesa dos Direitos Humanos e da pró-
pria racionalidade jurídica como possibilidade, Eugênio Raúl Zaffaroni que
propôs, há três décadas, uma resposta teórica, no plano da dogmática penal,
à violência racista do sistema penal na América Latina. Dialogo, portanto,
com uma posição à qual me filio e com um autor pelo qual tenho profundo
respeito. Estou empenhado em demonstrar como as perspectivas críticas
sobre a branquidade teriam sido um elemento importante para avançar em
alguns dos limites de sua proposta e como esses limites coincidem com parte
da percepção dos juristas que torna o racismo institucional invisível para a
dogmática (penal e processual).

A seguir, desde a proposta de Zaffaroni, e valendo-me das vivências pessoais


como professor (“branco”) de direito penal e processual penal na rede pri-
vada e pública, ensaio uma descrição da forma como os saberes cotidianos

237
racializados são convertidos em estruturas de raciocínio no aprendizado da
dogmática penal (o que chamo do uso do “exemplo” e do “caso”). Dialogo com
o conceito de revolução de paradigmas e de crise da ciência de Thomas Kuhn
para constatar a importância, novamente, da racialização das instituições que
sustenta um modelo de percepção jurídica sobre o racismo institucional das
práticas de gestão policial nas cidades brasileiras.

Ao final, insisto, em diálogo com a perspectiva do Realismo Marginal, na neces-


sidade de aprofundar as possibilidades de reconhecimento desse racismo
institucional como problema pela dogmática jurídica. Porém, destaco que
não se trata “apenas” da diminuição dos padrões de seletividade dos casos
individuais que são levados ao (des)conhecimento dos juízes, mas das dimen-
sões institucionais da produção dessa violência, inclusive no plano acadê-
mico, onde a exclusão dos corpos negros representa uma forma de definir
as sensibilidades sobre os problemas que são considerados relevantes e as
estratégias de decisão.

A crítica à branquidade como sistema de poder tem sido um elemento impor-


tante para explicitar como desde as experiências e a posição situada são
construídas as perspectivas sobre a investigação teórica e as decisões em que a
solidariedade com o destino do outro é um elemento central (BERTULIO, 1989).

Nesse sentido Calazans et. al. (2016) propõem considerar as ausências na


Criminologia Crítica da “questão racial”. Por sua vez, Ortegal (2016) preocupa-
-se com as interrelações entre violência, criminalidade e raça e a forma como
tais categorias aparecem no discurso criminológico e na Criminologia Crítica,
identificando certo “silêncio” do discurso criminológico crítico, de base teórica
marxista, quanto à raça e ao racismo, muito embora tais categorias tenham
assumido posição central no denominado “paradigma etiológico”. Freitas (2016)
desenvolve o argumento de que o “silêncio criminológico”, materializado no
ocultamento da temática racial na produção teórica em criminologia crítica,
não impediu o surgimento de “interpretações marginais e divergentes”. O
silêncio decorreria da manutenção de posições de poder (de raça, de classe e
de gênero) e de hierarquias no campo do discurso criminológico que nega a

238
condição de sujeitos aos negros (como vítimas e como intelectuais). Trata-se
da manutenção, pela Academia, dos “privilégios da branquitude”, reprodu-
tora da mesma lógica de marginalização que estrutura o genocídio negro.
Prando (2017) aborda o campo da Criminologia Crítica a partir da influência
da branquidade, propondo a existência de “dois efeitos da lógica e métodos
brancos na produção do conhecimento do campo”: “Tratam em seus estudos
da categoria raça e não das relações raciais e invisibilizam a norma branca
que escreve, pesquisa e produz seus resultados no campo” (2017, p. 10).

Nesse contexto, Dora Lucia de Lima Bertúlio (1989) escreveu o primeiro tra-
balho acadêmico na área do direito, “Direito e relações raciais: uma introdução
crítica ao racismo”, relacionando sistema penal e racismo institucional, ini-
ciando a crítica dos usos da ideologia da democracia racial pelos juristas
brasileiros como forma de negar as demandas por reconhecimento das pes-
soas negras que são vítimas de atos de racismo. Sua obra, no entanto, reunia,
num momento em que sequer a teoria crítica da raça havia se organizado
no cenário americano, elementos da crítica marxista e liberal para passar em
revista as estruturas normativas constitucional e penal brasileiras, denun-
ciando os elementos racializados da cultura jurídica nacional. Seu trabalho
inspirou intelectuais e juristas negros e dissidentes. Porém, restou isolado
pelo poder acadêmico da branquidade. Somente as mudanças institucionais,
provocadas pelas lutas sociais por ações afirmativas, foi capaz de provocar
algumas fraturas nos espaços de visibilidade acadêmica e, sobretudo, novos
espaços de diálogo acadêmico. O silêncio dos juristas foi um tema central de
suas pesquisas. Um silêncio que, às vezes, é cuidadosamente articulado para
produzir efeitos de poder.

No âmbito de uma publicação relevante como esta, destaco que minha posição
crítica em relação à branquidade não se situa no plano dos prazeres da crítica
teórica e das honrarias acadêmicas. Como aprendi com a trajetória de vida
dessa intelectual pioneira, a crítica à branquidade não é um jogo de efeitos de
verdade e representação, mas uma luta cotidiana de resistência para produzir
novos arranjos nas relações de poder. Por tal razão, insisto na necessidade de

239
tematizar como a formação tradicional acadêmica da branquidade provoca
os efeitos concretos de violência sobre os corpos negros.[58]

2. Um diálogo com o realismo marginal desde a crítica da


branquidade

Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocí-
nio, escolhi um jus-filósofo e criminólogo que tematizou em seus escritos o
racismo. Eugenio Raul Zaffaroni, Em busca das Penas Perdidas, em seu realismo
marginal, propôs uma alternativa à cultura jurídica penalista. Seu diagnós-
tico reconhecia o impacto do colonialismo (genocídio e racismo) do sistema
penal. Disso resultariam a hipertrofia das funções policiais normalizadoras, a
subsidiariedade do encarceramento nos processos de violência institucional,
a presença de práticas e discursos subterrâneos, acobertados por uma cultura
jurídica legalista e formalista incapazes de lidar com elementos empíricos
da realidade do sistema penal (ZAFFARONI, 1991).

Zaffaroni demonstrou que as diversas agências do sistema penal estão longe


de constituírem um “sistema orgânico” e, ao invés disso, mantém áreas de
competição. Qualquer um que acompanha o debate penal já ouviu as queixas
de que a polícia civil não respeita o trabalho da polícia militar, de que os juízes
não conhecem o trabalho dos policiais nas ruas e de que o mundo dos gabi-
netes e das salas de aulas é diferente daquele “da prática” (ZAFFARONI, 1991).

A criminologia crítica, por sua vez, como reconhece o autor, demonstrou o


caráter seletivo do sistema penal, ou seja, enquanto há inúmeras condutas
criminosas sendo definidas e praticadas na realidade, apenas uma pequena
parte dessa realidade chega a ser de conhecimento das instituições, que, por
sua vez, operam inúmeras outras seleções que resultam numa minoria de
pessoas condenadas. Ao mesmo tempo, ela demonstrou que é impossível, de
fato, punir a todos, as pautas punitivas são irracionais e atendem a deman-
das de legitimação política, ao invés de formularem políticas criminais

[58]  Sigo, portanto, parte do caminho trilhado por Freitas (2016).

240
consistentes com os recursos efetivamente existentes. A lei nunca será para
todos, porque o sistema penal se funda em mecanismos de reprodução da
desigualdade (ZAFFARONI , 1991).

O realismo marginal demonstrou como a punição nos sistemas latino-ameri-


canos está em todos os momentos em que o sistema penal “toca” sua clientela.
Aqui a punição sem condenação efetiva, decorrente de violências nas ruas, nas
delegacias, de prisões processuais, demonstra como a legalidade não consegue
produzir uma legitimidade democrática. Há um mundo de seleções produzidas
pelas instituições que resultam de discursos que não podem ter legitimação
pública, pois não resultam de um monopólio legítimo da violência, ou seja,
da violência regulada previamente pelo direito (ZAFFARONI, 1991).

Para legitimar a violência aqui produzida seria necessário que o direito se


degradasse em seus discursos em direção à guerra? Qual foi a resposta dada
pelo “realismo marginal” ao diagnóstico da violência institucional? De modo
direto, se a seleção operada pela polícia é marcada por discriminações e vio-
lências cotidianas, qual deveria ser o papel do direito? O direito, representado
especialmente na figura dos juízes e promotores, deveria usar um discurso
de garantia capaz de diminuir o caráter violento dessas seleções, impedindo
a continuidade dos processos de violência naqueles casos:

partindo-se da deslegitimação do sistema penal, é possível definir provi-


soriamente o direito penal (o saber jurídico-penal) como a reconstrução
discursiva que interpreta as leis de conteúdo punitivo (leis penais) para
dotar a jurisdição dos limites exatos para o exercício do poder decisório e
de modelos ou opiniões não contraditórios para os conflitos que o poder
das demais agencias seleciona a fim de submete-los a sua decisão, de modo
a proceder de forma menos violenta. (ZAFFARONI , 1991).

Ou ainda, em termos de estratégia:

O que se deve pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue


todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde o seu
poder permitir, o número e a intensidade destas violações, operando

241
internamente em nível de contradição com o próprio sistema, a fim de
obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização
operativa desses princípios (ZAFFARONI, 1991, p. 235).

A resposta do realismo marginal continha um silêncio importante: ele não


estava focado em atuar na realidade cotidiana da gestão da violência nas
cidades que, de fato, nunca é levado ao Poder Judiciário. Ao invés disso, propu-
nha-se a tarefa de atuar na pequena parte da realidade social selecionada pelo
sistema, na qual caberia, aos juristas, produzir soluções que interrompessem
o processo de seletividade. A tarefa aqui (na parte selecionada pelo sistema)
é, sem dúvida, imensa. Tem sido esquecida, sobretudo diante do aumento do
número de encarcerados. É impactante, pois representaria uma mudança
de postura dos juízes e promotores em relação à violência institucional. Se
ficássemos apenas na gestão do sistema “carcerário”, por exemplo, é notório
que há um conjunto de problemas bem conhecidos em que a mera aplicação
da Lei de Execução Penal representaria, na prática, mudanças importantes
para diminuir a violação de direitos. Ou ainda, padrões mais garantistas no
processo penal levariam à absolvição milhares de pessoas.

Entretanto, silenciosamente, no discurso de Eugenio Zaffaroni, há o reconhe-


cimento de que o Estado Policial, para aquém dos casos processados e levados
ao judiciário, resta aí, como que algo do real, um excesso, não judicializável,
não discursivo (MAGALHÃES, 2017)[59]. Alguns insistem em chamá-lo de Estado
de Exceção permanente. Lá, bem aqui, estaria o impensável juridicamente,
constitucionalmente, legalmente, dogmaticamente, em tratados ou textos,
processos, decisões... As práticas policiais são “ontologicamente” não jurídi-
cas? A segurança pública não é um problema jurídico? Ali, bem aqui, algo de
silêncio sobre uma sensação de impotência diante da normalização de corpos
e mentes. Mas de quem são os corpos nas cidades e nas academias? Ou nos
lugares em que o discurso funcionaliza o controle da violência e onde ele
resta inaplicável? Essa normalização (FOUCAULT, 2011)[60] (da ciência normal)

[59]  Valho-me das leituras derridianas de Camilla Magalhães (2017)

[60]  O conceito de normalização como o fenômeno de irradiação da “norma” sobre todo o

242
comporta distinções e privilégios (sociais, raciais e de gênero). Para alguns a
normalização consiste em fechar os olhos e viver no mundo do direito. Para
outros a normalização consiste em ter seus corpos e suas vidas apropriadas
pelas práticas cotidianas de violência. Para alguns é o silêncio sobre o mundo,
para outros é o silêncio imposto pelo mundo.

Na América Latina, as ditaduras deixaram registrado para uma parte da


intelectualidade a proximidade entre gestão policial das cidades e terror de
Estado. Para essa parte, o Poder Judiciário foi uma esperança e uma estraté-
gia importante para salvar as vidas de modo singular. Ainda assim, foi uma
esperança frustrada como mostram as diversas experiências da Justiça de
Transição. Para outra parte, as ditaduras representaram um incremento das
formas de violência cotidiana, foi a época de invenção das rondas e dos cam-
burões nas grandes cidades, a consolidação de um modelo de urbanização
com instituições cada vez mais militarizadas. E, paulatinamente, com assas-
sinatos justificados em razão da política de drogas. As técnicas de violência
utilizadas na ditadura para uma nova clientela composta de intelectuais de
esquerda foram desenvolvidas desde as práticas cotidianas da gestão policial
das cidades. Os porões da ditadura foram construídos desde os porões da
segurança pública.

Entretanto, é preciso compreender que:

a racialização não atinge apenas o corpo dos racializados como subalterni-


zados, mas os corpos nas sociedades ocidentais, regulando e distribuindo
os modos de se habitar um corpo, sentir-se adequado, sofrer e ter prazer
com este corpo, narrar-se como uma continuidade biológica (a família,
os antepassados, a origem etc.). Nesse sentido, não apenas “negros” e “in-
dígenas” foram racializados enquanto os demais grupos não teriam sido
objeto de práticas racializadoras. A branquidade é também um modo de
subjetivação do corpo, de sentir com sua presença biológica. O racismo,

corpo social está desenvolvido em Foucault (2011, 176-177)

243
como teoria racial, foi pensado em hierarquias internas ao grupo racial e
externas em relação ao demais grupos. (DUARTE et. al, 2016, p. 01).

Nesse sentido, são as diferentes formas de racialização que explicam o privi-


légio de ser vítima, como destacam Flauzina e Freitas (2017):

Fato é que, de forma extremamente paradoxal, apesar de a vitimização ser


a constante na relação de terror estabelecidas a partir das dinâmicas abu-
sivas do terror de Estado, o seu reconhecimento é marca de um privilégio.
Privilégio esse reservado aos parâmetros da branquitude, seja no plano
político macro, como evidenciado nas trincheiras dos processos de revisão
histórica que reclama a categoria de presos políticos de forma exclusiva,
seja nos padrões quotidianos em que as mortes, o aprisionamento ilegal
e o tratamento abusivo são naturalizados como rotina porque dirigidos a
corpos que não tem a seu dispor a prerrogativa da vitimização. (FLAUZINA,
FREITAS, 2017, p. 68).

Para vítimas eventuais, singulares, estratégias de proteção jurídica individuais


parecem suficientes para barrar os processos de violência. Para vítimas siste-
máticas, em que o processo de vitimização precede ao momento considerado
“jurídico” pelos juristas, as mudanças requerem novos ajustes institucionais
e, provavelmente, estruturais. Estratégias jurídicas podem ser utilizadas para
tensionar as mudanças institucionais. Porém, neste caso, seria necessário que
essa dimensão fosse, no mínimo, objeto do próprio discurso jurídico.

Muito embora a obra de Zaffaroni seja um dos momentos mais importantes


da crítica ao racismo do discurso dos juristas, tanto pelo seu conteúdo quanto
pela sua autoridade no campo, não creio que a violência massificada e coti-
diana tenha sido colocada na centralidade das preocupações do autor. Ela
não considerou os limites de sua proposta nos impactos reais sobre a vida
e os corpos que sofrem a maior parte da violência “fora do sistema legal” e
de como ela enfrentaria resistência em instituições administradas desde o
poder da branquidade. De fato, o autor faz parte de uma geração em que a
universalidade na linguagem é um ponto importante para a legitimação de

244
suas propostas na sociedade e, desde esse ponto de vista, as sensibilidades
também são vistas como universais, mesmo quando trazem as experiências
situadas de um intelectual branco.

Entretanto, como disse acima, esses limites não são capazes de descartar a
profunda relevância de suas reflexões, a possibilidade de que elas sejam des-
locadas para novas dimensões e o fato de que suas propostas constituem uma
agenda política teórica e prática relevante. Raúl Zaffaroni foi contundente ao
reconhecer quatro elementos da relação do Judiciário com o processo genocida
na América Latina: a) que o discurso dos órgãos dos sistemas penais era um
“discurso underground” para “comprometidos”, reprodutor do velho discurso
racista-biologista; que era o discurso racista do século XIX, convertido em um
saber para iniciados e em fragmentos que compunham o imaginário dos juris-
tas em sua dimensão prática; b) que esse discurso era na verdade o discurso
político usado pelas elites locais para justificar sua posição de hegemonia (o
que nos lembra que ele permeia as diversas dimensões de interpretação do
direito, administrativo e constitucional); c) que o judiciário mantinha com
o aparato policial uma relação marcada por aquele imaginário racista, pois
eles são compostos por grupos distintamente racializados (uma maioria
branca e outra negra); d) por fim, que nos meios universitários, repetem-se os
discursos teóricos centrais (gerados para racionalizar um exercício de poder
dos órgãos de nossa região marginal) e, de outro, o discurso dos órgãos dos
sistemas penais degrada-se em um “discurso underground” para “comprome-
tidos”, expressando publicamente um saber discursivamente contraditório e
confuso, ao qual o autor designa de “atitude”. (ZAFFARONI, 1991, p. 79)

A ponderação aqui proposta sobre sua posição pode ser exemplificada no


modo como o autor descreve a deslegitimação dos sistemas penais latino-
-americanos de forma inovadora, mas, ao mesmo tempo, não reflete sobre o
racismo na produção da inércia desse sistema “apesar de sua desligitimação”.
Segundo o autor, haveria uma deslegitimação teórica e uma deslegitimação
pelos próprios fatos cotidianos de violência, característica de nossa região.
Desse modo, ele nos convidou, de forma generosa, a abrir as páginas dos jor-

245
nais ou acessar as imagens de violência policial, de matanças nos cárceres,
da condição de indignidade humana de todas as práticas penais. Ao mesmo
tempo, apontou dois elementos centrais para compreender a continuidade
de um sistema penal que, de fato, está deslegitimado: o papel da mídia e o
papel da formação jurídica, vinculando-os aos mecanismos de reprodução
do colonialismo (ZAFFARONI, 1991).

Todavia, considero essa resposta insuficiente. Por que nós vivemos numa
cultura jurídica cega aos fatos mais elementares da vida social? Num diálogo
mais direto com esta coletânea: por que os juristas não tematizam a vida das
pessoas negras e os problemas advindos do racismo institucional?

Bertúlio (1989), Duarte (1997), Flauzina (2008) e Goes (2016) têm insistido que
a hierarquia racial e a produção do genocídio do povo negro são a chave
explicativa da diferenciação entre os discursos de proteção e de violência no
âmbito do direito. Zaffaroni (1991) tentou descrever as diversas “camadas” de
discursos que integram nosso sistema (discursos fragmentados, discursos
subterrâneos, discursos teoricamente degradados).

Gostaria de voltar a uma cena pessoal, presenciada, portanto, por um professor


branco, para pensar essa relação racializada sobre o que pode ser “aceito” como
um problema jurídico. Numa palestra da professora Barbara Hudson, uma
das escritoras que tratou do tema das discriminações de classe, gênero e raça
na criminologia inglesa, uma aluna branca levantou-se de forma agressiva
em minha direção para dizer: “que o sistema penal persegue pobres, isso eu
já sei, não vou ficar ouvindo isso”. Interessante é que ela já sabia, mas não
poderia ficar naquele ambiente para falar algo sobre o tema. Por que isso
não pode ser discutido?

Em minha vivência de professor[61] descobri que, sobretudo antes da implemen-


tação das políticas de ação afirmativa nas universidades, estudantes brancos
de direito tinham dificuldade em falar sobre desigualdade, em debatê-la, e
estudantes negros sentiam-se mais confortáveis em falar em termo de classe

[61]  Entrei no curso de direito em 1989 e comecei minhas atividades de professor em 1995.

246
social. Acho que isso faz sentido por razões distintas, pois o grupo branco e os
intelectuais negros isolados, com algumas exceções, fugiam da posição racial
no debate. Para os estudantes negros, falar de pobreza era buscar, muitas vezes,
uma experiência pessoal, mas também uma forma de alcançar um ponto de
vista universal, de falar incluindo a sensibilidade suposta do outro, de tema-
tizar a desigualdade sem implicar-se pessoalmente em dimensões subjetivas,
resultantes de experiências dolorosas. Para o grupo de estudantes brancos,
“não falar” é um lugar confortável para quem tem privilégios ou que pretende
esconder uma marca de origem naquele local privilegiado. A propósito, certa
vez entrevistei um advogado negro que havia sido reprovado três vezes na
prova oral em concurso para juiz. Ao ser perguntado se tinha sofrido racismo,
apresentou alguns atos de discriminação ao longo de sua vida. Porém, no
momento em que o tema das provas orais apareceu, sua negativa tomou a
forma de uma contrariedade profunda, inclusive, corporal: “Se eu achar que
foi racismo, daí não posso mais fazer a prova, desisto, entende?”

Atualmente, há elementos “novos”. Os estudantes brancos, diante de estudantes


negros que fazem interpelações sobre o racismo, continuam com as formas de
desqualificação discursiva (sobretudo aquelas veladas, consistentes em microa-
gressões tais como fazer barulho, olhar para o lado, conversar, etc.) ou apelam
para discursos sobre desigualdade econômica, atribuindo valor a explicações
que os distanciam do problema (creio que esta é uma das causas da reedição
do marxismo vulgar ou versões empobrecidas da teoria da dependência com
o apelo à teoria dos sistemas). A acusação moral, aparentemente contida ou
lida como tal, nos argumentos sobre o racismo são dificilmente aceitas por
estudantes brancos que tendem a pensar o racismo como um problema de
preconceito individual. O debate sobre o racismo atinge um tema em que o
repertório dos argumentos aceitos como “racionais” no espaço público não
é acionado, pois o espaço público até recentemente, antes das políticas de
ação afirmativa e do ativismo pós 1988, era hegemonicamente branco, sem
grandes fraturas discursivas. Por sua vez, uma das cenas que se repete sobre
racismo é uma pessoa branca argumentando que ela não é racista, ou seja,

247
as dimensões públicas de um problema são transformadas rapidamente
numa dimensão pessoal e privada, em tom acusatório, ainda que o discurso
genérico não contenha uma acusação. Essa assunção do problema como culpa
pessoal não ocorre comumente nos espaços em que discutimos desigualdade
de renda ou uma inadequação sistêmica, aqui todos os privilégios raciais são
ocultados. A estratégia de crítica aos discursos que denunciam a existência
de desigualdades econômicas não é tomada como um problema de ofensa
pessoal. Há uma dimensão moral e subjetiva do debate sobre o racismo que
atinge as dimensões da sensibilidade e das experiências negadas no cotidiano,
um interdito importante.

Esse interdito, porém, não pode ser explicado por opções de estratégias dis-
cursivas desses estudantes. A ciência normal, em sua colonialidade, estrutu-
rou uma ideologia, a Democracia Racial (MOURA, 1998), que propõe retratar
(e resolver) as “relações entre as raças” como questões da vida privada. Casa
Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal (CG&S), publicado em 1933, foi a interpretação mais conhecida desse
ethos brasileiro que, de fato, era uma das facetas “conciliadoras” do discurso
das elites coloniais. Situou a identidade nacional na continuidade da herança
portuguesa do patriarcalismo e na plasticidade racial que estaria presente nos
engenhos de açúcar do período colonial. O problema racial era o “problema
negro”, ou seja, da presença do contingente negro na sociedade brasileira que
era identificado como a marca do atraso. A solução brasileira teria nascido
da miscibilidade dos portugueses, de sua capacidade de se misturarem, bio-
logicamente e culturalmente, fazendo “bom uso” das heranças africanas e
indígenas. Todavia, a bondade da solução da “valorização” de Freyre somente
faz sentido num contexto em que o direito de desconsiderar a participação
africana no plano cultural e material e de subordinar e excluir do plano dos
direitos pessoas negras estrutura o espaço público e, especialmente, a academia.
Ou seja, num ambiente racista, onde se prega a eliminação e a desvaloriazação
absoluta das pessoas negras, Freyre soa como inovador e bondoso.

248
Ademais, Freyre pensa em “relações entre as raças” como entidades biológico/
culturais ao invés de “relações raciais”, onde a dimensão do poder é central à
própria ideia de construção da percepção da “raça” (constructo social). Todavia,
a sua maior “virtude” acadêmica, que permitiu sua hegemonia acadêmica
na branquidade, foi não atacar as dimensões institucionais e estruturais
do racismo brasileiro. Ao invés disso, a obra de Freyre reconciliou os descen-
dentes dos senhores de escravos com o seu passado e, ao mesmo tempo, foi
utilizada como uma estratégia de silenciamento dos intelectuais negros. Ela
pretendeu colocar uma pá de cal sobre outras narrativas da violência colonial,
transformando a violência numa dimensão relacional entre o branco sádico
e o negro masoquista, e fez das vítimas do escravismo peças silenciosas da
construção de uma sociedade (BERTÚLIO 1989). A circularidade do argumento
da “democracia racial” é importante: “Se não há racismo no Brasil, porque
nossa sociedade não é racista, as denúncias dos intelectuais negros não
fazem sentido”. No espaço público, falar de racismo é incentivar o conflito e,
portanto, romper a unidade nacional. Essa ideologia garante o isolamento
da academia diante das demandas das pessoas negras. Todavia, a produção
de sentido dessa estratégia somente existe quando se consegue fechar bem
os olhos e os ouvidos, impedir o acesso e as vozes de intelectuais negros na
academia (ou contra ela) (DUARTE, 2011).

No direito, a afirmação de que vivemos numa “democracia racial” permite


que o racismo, mesmo quando constitui o ethos central dos operadores seja,
paradoxalmente, visto apenas como um deslize individual e não prejudicial
se não for publicamente e explicitamente apresentado (BERTÚLIO 1989).
Todavia, são desses pequenos deslizes de bastidores que mostram como se
constroem as decisões. O discurso para iniciados (e identificados racialmente
como brancos), como falava Zaffaroni, projeta, no cotidiano, o outro racia-
lizado. Por meio da reafirmação da “democracia racial”, como demonstrou
Dora Lúcia Bertúlio há quase três décadas, os juízes negam a palavra das
vítimas de racismo, desvalorizam as provas dos atos de discriminação racial
e solidarizam-se com os agressores (BERTÚLIO 1989). Mais ainda, o direito ao

249
deslize e ao uso estratégico da democracia racial somente pode existir num
ambiente em que os brancos falam de si e para si, dominam a esfera pública
e, portanto, onde predomina, literalmente, a “opinião do homem branco
heterossexual médio”.

O principal interdito sobre o racismo é a dimensão hegemônica da branquidade


contida na estrutura e na representação das carreiras jurídicas e acadêmicas.
A irracionalidade de nossa dogmática tem um vínculo direto com o racismo,
o racismo como elemento operacional de produção de violência e o racismo
contido na construção da branquidade como forma de ser dos operadores do
direito. Logo, a branquidade não se manifesta apenas na não consciência de si
(de ser racializado como branco), mas no modo como se organizam os próprios
espaços de poder, reproduzindo em outros corpos brancos a continuidade do
poder acadêmico, eventualmente, até para produzir críticas sobre o racismo.

Em razão das múltiplas interpretações que a afirmação anterior pode ter, é


imprescindível dizer: que não considero “ser branco” uma ontologia, decorrente
da epiderme, mas uma historicidade (SEGATO, 2007); que não considero “ser
branco” uma totalidade, ausente de contradições e fraturas; que não se pode
“ser branco” ou deixar de sê-lo por opções pessoais e construções individuais,
pois os sistemas de referência que produzem sentido social às nossas ações,
muito embora não sejam estáticos, não são controlados por nossos desejos
e decisões individuais (DUARTE, 2011).

Portanto, utilizo o termo branco e branquidade como termos que indicam


sistemas de poder e não como grupos de indivíduos, portadores de uma subje-
tividade a-histórica e previsível. De fato, considero que pensar a branquidade
desse modo é assumir como válido o argumento racista, das teorias sobre as
raças no século XIX, de que o destino dessas “entidades” (as raças) seja o conflito.

Concordo com Frankenberg, para quem:

1. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estru-


turadas na dominação racial; 2. A branquidade é um ‘ponto de vista’, um
lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e

250
globais; 3. A branquidade é um lócus de elaboração de uma gama de práticas
e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou
denominadas como nacionais ou ‘normativas’, em vez de especificamente
raciais; 4. A branquidade é comumente redenominada ou deslocada dentro
das denominações étnicas ou de classe; 5. Muitas vezes, a inclusão na cate-
goria ‘branco’ é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e luga-
res, alguns tipos de branquidade são marcadores de fronteiras da própria
categoria; 6. Como lugar de privilégio, a branquidade não é absoluta, mas
atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação
relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial,
mas o modulam ou modificam; 7. A branquidade é produto da história
e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem
significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos.
Nessas condições, os significados da branquidade têm camadas complexas
e variam localmente e entre os locais; além disso, seus significados podem
parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis; 8. O caráter relacional e
socialmente construído da branquidade não significa, convém enfatizar,
que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e
discursivos. (FRANKENBERG, 2004, p. 312–313)

Creio que as noções de branquidade dialogam com os argumentos propos-


tos pelo “realismo marginal”, trazendo novos elementos para a forma como
pensamos a formação jurídica e a racionalidade dos discursos dos juristas,
de sua “dogmática penal”.

O trivial da formação jurídica, tais como os discursos “não jurídicos” em sala


de aula, os aprendizados nos estágios junto aos operadores do direito, as
conversas cotidianas, o perfil dos professores (na sua maioria homens bran-
cos cis e heterossexuais), a qualidade do espaço público (incapaz de debates
desigualdades e discriminações) tornam-se elementos centrais. O lado prático
e não público da formação constrói um tipo de racionalidade que impacta
na compreensão da dogmática. A dogmática trata dos grandes temas porque
aborda, justamente, aquilo que os juristas não falam no cotidiano. O mundo

251
da dogmática “refinada” não tem utilidade para o trivial, mas apenas para a
exceção estrangeira. Esse olhar da cópia busca no real a repetição do que está
lá fora, mas desde que isso não estabeleça um confronto com a dimensão
prática e cotidiana.

O que permite essa identificação, essa mediação, é a branquidade, a branqui-


dade como estrutura de poder, por exemplo, das redes internacionais de poder
acadêmico, formadas pelos mesmos sujeitos e, também, como patologia, ou
seja, como o desejo de ter ou identificar-se com os símbolos da branquidade
que faz com que a academia colonial branca seja, muitas vezes, um conjunto
de tipos sociais (também risíveis) de caricaturas das universidades americanas
e europeias. A busca da legitimação, interna e externa, faz das academias da
periferia da branquidade espaços mais brancos que as academias da bran-
quidade dos países centrais, tanto em sua presença numérica quanto em
suas performances. [62]

3. A crítica à ciência normal da branquidade e sua crise


moral

O debate proposto por Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas, nas quais
as mudanças de paradigmas são considerados como episódios de desenvol-
vimento não cumulativos, em que um paradigma mais antigo é substituído
por um novo, incompatível com o anterior, tem sido central na criminologia
crítica para pensar os debates acadêmicos sobre o modo como pensamos a
punição e os sujeitos envolvidos em sua dinâmica social. Nesse sentido, o
autor propôs pensar o termo paradigma em dois sentidos complementares:
a) “toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos
membros de uma comunidade determinada;” b) “um tipo de elemento dessa
constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como
modelo ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para

[62]  O argumento da comparação com as universidades estrangeiras tem sido defendido por
Carvalho (2003; 2006) e também foi constatado em minhas poucas experiências de internacio-
nalização.

252
a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (KUHN, 1996, p.
218). Logo, se o paradigma indicava as crenças de fundo, essas crenças eram
traduzidas no “quebra-cabeças” que orientavam a ação intelectual. As crenças
de fundo e, por assim dizer, as dimensões práticas dessas crenças, de modo
circular, definiam a própria comunidade científica. Ou seja: “Um paradigma é
aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma
comunidade científica, consiste em homens que partilham um paradigma”
(KUHN, 1996, p. 219).

Ao refletir sobre as mudanças nos paradigmas científicos, Kuhn aposta no


esgotamento racional das perguntas:

quando os membros da profissão não podem mais esquivar-se das ano-


malias que subvertem a tradição existente da prática científica – então
começam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a
profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a
prática da ciência (p. 25).

Daí seu conceito de “revolução científica” para denominar “os episódios extraor-
dinários nos quais ocorrem essa alteração de compromissos profissionais.
As revoluções científicas são complementos desintegradores da tradição à
qual a atividade da ciência normal está ligada” (1996, p. 25.). Por sua vez, a
ciência normal “significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais
realizações científicas. Essas realizações são reconhecidas durante algum
tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando
os fundamentos para sua prática posterior” (1996, p.29).

Se a “revolução científica” implicava num esgotamento das questões práticas


internas, Thomas Kuhn indicava, porém, a importância da “percepção subje-
tiva” dos pesquisadores, das “sensibilidades” da “comunidade científica” ou,
nas palavras do autor, “o sentimento de funcionamento defeituoso”:

“De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as
revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também
seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade cientí-

253
fica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente
na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anterior-
mente dirigida pelo paradigma. Tanto no desenvolvimento político como
no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar
à crise, é um pré-requisito para a revolução” (KUHN, 1996, p. 126).

Alessandro Baratta (1989; 1990; 1997) e Vera Regina Pereira Andrade (1995; 1997),
no âmbito da crítica criminológica, ao abordarem o tema, apresentaram as
transformações na ciência relativas ao esgotamento das perguntas centrais do
paradigma etiológico e o desenvolvimento do paradigma da reação social. Ao
mesmo tempo, demonstraram como o paradigma etiológico não tinha uma
sustentação meramente interna, pois ele era responsável pela consolidação
de uma ideologia mais ampla “a Ideologia da Defesa Social”. Logo, no sistema
penal os “saberes penais” eram elementos da prática interna dos juristas (a
comunidade científica) e, no mesmo passo, da reprodução ideológica do
sistema que passava pela formação acadêmica (as universidades) e, ainda,
pelo acoplamento do sistema à reprodução ideológica social (especialmente
pela mídia).

Nas resistências epistemológicas (CARNEIRO, 2005), os conceitos de experiên-


cia situada e sensibilidade, defendidas por epistemologias feministas e pelo
pensamento negro (COLLINS, 2016), têm sido duas estratégias importantes
para provocar deslocamentos na verdade produzida pela ciência normal.
Novas sujeitas, ao falarem de si de uma perspectiva situada, trazem novas
dimensões para compreender os conceitos de violência. Novas formas de
narrar produzidas por novas sujeitas que vivem para além dos portões ins-
titucionais ou conseguiram vencer as barreiras do racismo institucional
(DUARTE, QUEIROZ E FARRANHA, 2017).

Alguns nichos acadêmicos de intelectuais feministas, queers e negros se


organizam em espaços de resistência, muitas vezes excluídos de redes mais
amplas de poder acadêmico, e produzem dinâmicas contra-hegemônicas
que permitem organizar novos campos de conhecimento. Todavia, na nossa
academia colonial, com algumas exceções, as novas intelectuais têm diante de

254
si a árdua tarefa de iniciarem seus textos num duplo movimento: há ensaios
de se valer das experiências de outros países ou de criar novos marcos gerais à
força da urgência que, em sua urgência, vive na precariedade. A precariedade
do lugar institucional acadêmico é, de fato, uma posição determinante para
aqueles que habitam a precariedade produzida e reproduzida nos poderes
da branquidade que domina e molda as instituições.

Habitar entre as fronteiras, todavia, pode ser uma virtude (COLLINS, 2016).
Valho-me do exemplo de Thula Pires, que avança na possibilidade de uma
outra perspectiva criminológica em “pretuguês”, utilizando-se dos textos de
Lélia Gonzalez, outra intelectual negra excluída dos espaços acadêmicos da
branquidade:

Tem-se por objetivo, mobilizar as categorias de análise desenvolvidas por


Lélia Gonzalez para propor uma crítica criminológica decolonial que “car-
rega na tinta”, que busca racializar para politizar as disputas em torno do
significado da política criminal, direito penal e processo penal, segurança
pública e direitos humanos, de modo a ser apreensível pelos corpos que
secular e desproporcionalmente aguentam os ônus do modelo de exter-
mínio, controle e punição hegemônico. (PIRES, 2017, p. 552).

Entretanto, é preciso ressaltar que, numa academia ainda apropriada pelo


poder da branquidade, a crise da ciência normal é apenas moral (BUCK-MORSS,
2011)[63]. Não se trata de uma crise paradigmática, pois isso sequer pode, na
maioria dos campos de conhecimento, ser colocado em questão. A ideia de
“crise moral” pode ser pensada a partir da noção de “desautorização”, ou
seja, de situações nas quais nossos discursos professados publicamente são
incompatíveis com nossas práticas. De certo modo, tal posição é inerente à
condição humana, às críticas que dirigimos a nós mesmos e que nos é dirigida.
A “desautorização” nos impulsiona a processos transformadores importantes,
em que nossas ações negam nossas ações para se adequarem aos valores que
professamos. É dessa perspectiva que sobrevive o argumento de que as práti-

[63]  Valho-me do conceito de desautorização presente em Buck-Morss (2011).

255
cas dos profissionais de uma ciência serão sempre revistas de modo racional.
Porém, isso seria verdadeiro em todos os contextos?

Numa academia colonial (ou quando se observa desde determinadas pers-


pectivas da exclusão), os padrões de contradição entre discursos e práticas
adquirem níveis sistêmicos. Como explicar que estudantes talentosos e com
excelentes temas de pesquisa sejam excluídos porque a instituição considera
“normal” a exclusão de determinados temas de pesquisa, os quais alcançam
grupos pertencentes a grupos sociais determinados? Onde a branquidade
domina as formas de acesso na formação de pesquisadores, as pautas de
pesquisa, os critérios de excelência, as redes de apoio e de financiamento,
não há crise paradigmática. A branquidade pode seguir fazendo as mesmas
perguntas e dando-se as mesmas respostas. A branquidade não duvida de sua
fábula de competência e produtividade. Não há esgotamento, há mesmicidade
e auto-honrarias (PIRES, 2017). A crise somente pode ser moral porque a uni-
versidade está cada vez mais exposta à realidade virtual e a diversas esferas
públicas contra-hegemônicas, como o movimento negro, lgbt e de mulheres.
Às vezes, a crítica vem de dentro e, em raras situações, é absorvida. Porém,
sem mudança nas redes de poder acadêmico, a universidade ameaça perder
o seu mais importante momento de uma nova reconstrução num cenário
em que as políticas de ação afirmativa produzem efeitos na pós-graduação
(CARVALHO, 2003).

4. Apreender a Branquidade no “quebra-cabeça” das Ciências


Criminais

Creio que se pode pensar em situações em que as “sensibilidades” estruturam,


de fato, o “quebra-cabeça” interno nas ciências criminais. Nesse sentido, gostaria
de apresentar argumentos quanto: a) às práticas de ensino e de exposição dos
manuais de direito; b) ao conceito de violência legítima contida nos discursos
sobre finalidade do direito processual penal; c) ao conceito de inquérito como
procedimento que registra a investigação ocorrida na fase pré-processual.
Esses três argumentos, como disse no início, me parecem dimensões em que

256
as sensibilidades articulam-se com as crenças e as soluções. Obviamente, não
descarto a importância das ideologias como a ideologia da defesa social e o
punitivismo. Porém, o objetivo é compreender a articulação da produção do
silêncio e da decisão no “quebra-cabeças” dos juristas vinculados à operati-
vidade do sistema penal.

Na ciência normal, o conceito de violência partiu de noções des-historizadas


dos construtores dos discursos e de sua audiência participante. Sujeitos violen-
tadores, ações de violação, direitos violados e vítimas foram os elementos para
definir os tipos de violência: individual, institucional e estrutural. O discurso
sem história e, portanto, sem corpo, universalizou determinadas percepções
e pressupôs a existência de leitores universais. Um dos temas que atravessa
os limites dessas definições são os resultados em que se chega e que, de fato,
estão pressupostos nos exemplos e nos casos. Eles trazem a sensibilidade
do escritor em sua historicidade: branco, heterocisnormativo, proprietário,
defensor de alguma moral e senso de estética hegemônica. Assim, por exemplo,
num manual de direito a violência individual é descrita pela ação do homem
que esfaqueia outro homem. Nada se fala sobre as microagressões que levam
ao suicídio de indivíduos encurralados pelo preconceito (JUNQUEIRA, 2012).
O ato único de força do “macho” guerreiro, transformado em lição, tampouco
retrata seus gritos, suas ameaças e os estupros às mulheres no cotidiano de
casamentos socialmente impostos.

Na tradição do ensino continental, o exemplo mais do que o caso concreto


é o “arquétipo” que a realidade deve repetir para ser considerada relevante
para o direito. O arquétipo busca seu duplo na realidade e orienta a ação.
Explica-se em sala de aula o conceito de furto famélico (aquele que não
contraria o direito por configurar “estado de necessidade”), propondo um
desenho. Os contornos são construídos a partir do olhar do desenhista e do
provável leitor nas academias de direito e nos tribunais (compostos em sua
maioria por homens brancos heterocisnormativos). Neste caso, a hipótese
que parece sugerir uma imitação do real, na realidade, dificilmente se realiza
para beneficiar a clientela do sistema penal, formada por pessoas negras e

257
pobres. O exemplo é o caso do náufrago que durante dias sem comer chega
em terra e invade a casa na praia, mas não é a mãe negra que furta leite em
pó ou fraldas para sua filha. Nessa tradição, o exemplo fala de um real imagi-
nado para não falar do real que está por toda parte, ao redor da sala de aula
(PONTE CARVALHO, DUARTE, 2018; DUARTE, 2017; DUARTE, KALKMANN, 2018;
DUARTE, QUEIROZ, COSTA, 2016).

No ensino de tradição inglesa, o caso tem dois usos bem conhecidos. O caso
de estudo empírico e o caso jurídico. O caso jurídico parece seguir o sentido
oposto, parte do inusitado da realidade e, ao ser estudado, fornece uma nova
dimensão não reconhecida dos casos anteriores. Ele alarga o sentido, pois
há um novo olhar sobre o real (DWORKIN, 2007). O caso tem sua relevância
construída pelo poder de decisão de uma corte formada por aqueles mesmos
senhores do exemplo. No caso, a sensibilidade que alarga o olhar, o restringe ao
mesmo tempo. A Suprema Corte Americana, ao longo de sua história, decidiu
inúmeras vezes sobre casos nos quais o racismo era o tema central, sem jamais
tocar no assunto e, quando o fez, construiu o belo conceito de diversidade
das instituições sem questionar o próprio poder da branquidade (WARE, 2007)
resultante do colonialismo e da escravidão (DUARTE, QUEIROZ, 2017).

Por sua vez, o caso de estudo empírico nos leva ao poder acadêmico que, assim
como o poder jurídico, se organiza em bases semelhantes. Os conceitos de
interesse e de visão de mundo têm servido para demonstrar como os estudos
empíricos e as rupturas no campo correspondem a influências externas e
a mudanças institucionais que transformam as pautas de pesquisa acadê-
mica. Porém, a ideia de prova empírica exerce um outro poder fundamental,
semelhante ao do precedente, pois quem se propõe inovar em algo no campo
científico tem a seu desfavor o acúmulo histórico da ciência branca colonial
europeia. A prova empírica encontra sua validação na capacidade de se rela-
cionar a outras provas e, assim, de modo encadeado, falar mais do mesmo e
para os mesmos que dominam as linhas de pesquisa e os estudos anteriores.

258
Quando se considera a crise da dogmática (ANDRADE, 2007)[64] processual penal,
percebe-se que ela somente não é mais evidente porque uma de suas estruturas
centrais de legitimação é a própria definição do âmbito de abrangência de
suas contradições internas. A leitura de obras introdutórias de processo penal,
inclusive algumas do espectro crítico, demonstra que o esforço discursivo do
campo está em organizar conceitos, percepções, recomendações práticas, etc.
a partir do reconhecimento da necessidade de provocar um equilíbrio entre
o direito de punir estatal e o direito de liberdade dos indivíduos. Desde esse
ponto de partida, ora se agrupam os que pretendem, de modo mais truculento
ou mais envernizado, defender a supremacia da necessidade da punição
(interesse da sociedade, da coletividade, público etc.) ora aqueles que apon-
tam para a necessidade de estruturar a punição racionalmente, produzindo,
neste caso, conceitos que garantam os direitos fundamentais dos acusados.
Na sua aparente contradição, disputam o campo dentro dessas fronteiras
onde ressurge o poder de punir, legitimado por suas funções de segurança,
quer da sociedade, quer dos indivíduos (ou de outras abstrações que lhe sejam
correspondentes). Mas como poderia ser diferente? Em ambos os polos está a
representação do Estado como monopólio legítimo da violência, cumprindo
o seu papel de conter a violência social e tornando legítimo, mediante o res-
peito aos procedimentos, o próprio uso da violência.

[64]  Como argumenta Vera Andrade: “A Dogmática Penal é um dos desdobramentos discipli-
nares da Dogmática Jurídica (que deita raízes na Escola histórica, como Dogmática do Direito
privado) e, como tal, é o modelo de Ciência do Direito Penal que se consolidou desde finais do
século XIX na Europa ocidental (especialmente desde Alemanha e Itália) e se transnacionalizou,
sendo posteriormente recebido em outros Estados da Europa continental (Espanha, Portugal,
Grécia, Holanda...) e da América Latina (Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela...) e assu-
mindo então o estatuto de um paradigma, com uma marcada vigência histórica no centro e na
periferia da modernidade – o que aponta para um potencial universalista do paradigma que lhe
permite funcionar contextualizadamente e fora do lugar de origem. No Brasil é recepcionado
pela comunidade de penalistas desde as primeiras décadas do século XX, por influência princi-
palmente de Arturo Rocco e Vincenzo Manzini, e, por consequência, do Código Penal italiano de
1930, influenciando o Código Penal brasileiro de 1940”. (ANDRADE, 2007).

259
A racionalidade dessa dogmática processual penal, portanto, é sustentada pelo
mito do Estado de Direito que, como mito, não é debatido em sua historicidade
concreta, mas produz efeitos de verdade, ao ser tomado como realidade. Que
Estado de Direito é esse forjado a partir da guerra colonial contra sociedades
inteiras, instrumento de escravização, de desumanização de sujeitos, de apos-
samento de corpos, de expropriação de terras, de aniquilamento e apropriação
de culturas? Que Estado de Direito é esse, desde sempre, apropriado privada-
mente por elites econômicas racializadas que reproduzem seus privilégios
(da branquidade e da colonialidade) tanto na composição das instituições
quanto no monopólio do discurso sobre o passado e o presente das disputas
sociais por direitos? (DUARTE, QUEIROZ, COSTA, 2016; FLAUZINA, 2008; DUARTE,
2002; CARVALHO, DUARTE, 2017; FRANKLIN, 2017; NOVAES, 2017; SANTOS, 2016;
DUARTE, SCOTTI, CARVALHO NETO, 2015; FREITAS, 2016; CALAZANS et al, 2016).

A face bélica do Estado, apenas em sua superficialidade aparentemente neutra


e sempre em disputa nas lutas por hegemonia, traz em seu DNA institucio-
nal a marca colonial. Reforçar a cultura punitiva e as estratégias de punição
é, sem muito esforço, alimentar esse modelo de colonialidade do direito
(SANTAMARIA, 2010; QUIJANO, 2005). A disputa pelo direito, especialmente o
debate constitucional, compõe tentativas de moldar a guerra, limitando as
formas de violência (BARATA, 1997; ROSA, 2014; CARVALHO, 2004).[65] Porém, esse
caminho necessário corre sempre o risco de, ao negar-se o confronto com sua
historicidade, transformar em vazios semânticos as palavras e a gramática
utilizada para falar sobre direitos fundamentais.

A questão está em saber: quais são as disputas constitucionais que redefinem,


efetivamente, as dimensões bélicas do exercício do poder punitivo?

[65]  Alessandro Baratta afirma: “Um esforço conjunto de fantasia da parte dos juristas e de
imaginação coletiva possibilitaria emancipar a cultura da política da cultura do penal. Esse
esforço deve visar uma releitura radical de todas as necessidades e de todas as emergências,
através do sistema dos direitos fundamentais e da arquitetura normativa da Constituição. Não se
trata simplesmente de desenhar o direito penal da Constituição, mas sim de redefinir a política
segundo o desenho constitucional, como política de realização dos direitos” (BARATTA, 1997).
Nesse sentido, vejam-se: (ROSA, 2014; CARVALHO, 2004.)

260
Como tem deixado evidenciado o “realismo marginal” e a “crítica à branqui-
dade” a Luta pelo Direito não deveria ser intuitiva. E ideologicamente nunca é
(IHERING,2009).[66] A hegemonia cultural[67] presente na definição dos problemas
com os quais a dogmática processual penal deve se ocupar aproxima, mais
do que distancia, os dois extremos em disputa pela definição do “equilíbrio”.
A composição das universidades, das revistas especializadas, dos congressos,
dos espaços de “reprodução ideológica do sistema” (BARATA, 1990, p. 34) inclui
um treinamento para a defesa e para a crítica do sistema. Não significa que a
defesa de um ponto de vista punitivista e de outro garantista sejam idênticos.
Não o são, com certeza. Todavia, há muito a dizer sobre o silêncio em relação a
formas cotidianas de violência. Não é por acaso que no campo da dogmática
processual penal as ficções jurídicas são tão fantasiosas quanto ambivalentes.
Num dia o excelentíssimo Ministro da Corte Constitucional acorda garantista
para, ao final do dia, sonhar-se punitivista. De fato, faltam adjetivações para o
caráter delirante de muitos dos esquemas mentais utilizados. De igual modo,
novas percepções sobre a realidade e tentativas de redefinição das fronteiras
são rapidamente reapropriadas em modas acadêmicas, do garantismo ao
garantismo de escritório (ANDRADE, 2007), do abolicionismo ao denuncismo
acadêmico de redes, da crítica radical ao auditório radicalmente constituído
pela audiência socialmente privilegiada, etc.

De outra parte, há toda uma geração que, ao se defrontar com problemas


cotidianos, foge rapidamente da disputa no campo dogmático para produzir
discursos radicais de denúncias sobre a realidade (valendo-se da repetição
dos conceitos da moda crítica), mas que não articula soluções dogmáticas,
estratégias políticas ou dialoga com sujeitos coletivos. Denúncias contun-

[66]  Veja-se o caráter privatista e elitista que ela comumente recebe a partir da obra de Ihering
(2009).

[67]  Uso o conceito de hegemonia a partir Gramsci, que significa a preponderância da persu-
asão sobre a coerção na construção das relações interativas entre indivíduos. Como argumenta
Carlos Nelson Coutinho: “Gramsci articula explicitamente a hegemonia com a obtenção do
consenso, distinguindo assim da coerção enquanto meio de determinar a ação dos homens”.
(COUTINHO, 1989, 67-68).

261
dentes sem respostas técnicas, sem diagnóstico. No mesmo passo, os grandes
debates da dogmática processual situam-se em problemas que constituem
violações fundamentais graves, mas que, quase sempre, não se dirigem aos
graves problemas cotidianos para a população. O que dizer da doutrina
(garantista) da exclusão da prova ilícita que pouco ou nada diz sobre o direito
mais elementar do cidadão de estar no espaço público? Fala-se em violação
da intimidade nas interceptações telefônicas, mas nada sobre o baculejo, o
tapa na cara, o desce e encosta todo mundo na parede (WANDERLEY, 2017).
O que dizer da doutrina (garantista), que se ergue contra a possibilidade
do uso do inquérito policial como elemento de prova, mas silencia sobre as
investigações realizadas diuturnamente pelas polícias militares? Fala-se do
inquérito como se a violência hoje nas periferias se situasse nas delegacias,
fechando os olhos ao fato de que os bairros da periferia se transformam em
zonas de guerra nas quais repressão, juízo e execução estão num contínuo
de violência, ali na cara dura. Fala-se em liberdade de expressão enquanto as
polícias transformam as periferias em áreas de exceção, nas quais se impõe
toques de recolher, estratégias de intimidação e repressão (como o aumento
das revistas, prisões, presença ostensiva e criminalizadora) quando há mani-
festações populares (como bailes, casamentos, festas etc.) (REIS, 2001; AVELAR,
2016; BATISTA, 2009).

Todos os problemas que interessam a uma dogmática processual garantista,


desde uma perspectiva do “realismo marginal” deveriam ser (também) pro-
blemas da gestão policial (dos conflitos sociais, dos processos de construção
da verdade, de aplicação de sanções penais, etc.). São os problemas da gestão
policial trazidas ao processo e os problemas esquecidos nas práticas jurídicas
de uma “ciência normal” do direito. Problemas sobre o indizível. Para come-
çar, é preciso reconhecer que o inquérito não começa e tampouco termina
na definição dos manuais segundo a qual o inquérito se trata de um proce-
dimento escrito. Nada está escrito no inquérito. Ao contrário, ele é apenas o
resultado de um trabalho cuidadoso de ocultação dos procedimentos que
levam à produção de um resultado, consistente na atribuição arbitrária de

262
uma culpa, por parte de um poder que não se submete às regras jurídicas,
mas tão somente busca validar a posteriori suas opções de controle social. O
inquérito não começa nas delegacias, começa nas ruas, na gestão racializada
dos espaços na cidade.

Segundo, é preciso reconhecer que a unidade do sistema não existe. A reforma


processual de 1941 dizia pretender impedir a fragmentação do sistema pela
manutenção do inquérito, diante da impossibilidade de impor um “juiz de
instrução”. De fato, era algo bem diferente. A presença do inquérito permitia
a maleabilidade jurídica e o ocultamento de que nos diferentes estados, em
diferentes cidades, delegacias etc., a fase de investigação se confundia e se
transformava junto aos mecanismos de gestão da população. As regras de con-
trole de escravos e libertos, a legislação sobre vadiagem, as prisões e detenções
para averiguação, as regras processuais sobre prisão preventiva e as exceções
para os sem trabalho e sem domicílio e, finalmente a política de combate
às drogas, mostram um contínuo e, ao mesmo tempo, uma adaptação local
à segregação urbana e social de direitos. Aqui as polícias estão em trabalho
sincrônico com o Poder Judiciário. Muito se insiste sobre o caráter inquisitório
do processo a partir das possibilidades legais conferidas aos juízes na gestão
da prova na fase processual (especialmente, a possibilidade de determinar a
prova de ofício). O argumento convence, mas não vence a realidade cotidiana
dos processos penais. Em sua dimensão cotidiana e massificada, o juiz padrão
é um burocrata legalista que esconde suas decisões na inércia (VARGAS, 2011).

Todavia, há um ato jurisdicional fundante do processo penal: a decisão de


validar, de não questionar, de não problematizar, de reconhecer o valor intrín-
seco de tudo que é feito na fase de investigação. Não se trata apenas de trazer
o inquérito para o processo, se trata de sequer questionar como aquilo se
transformou em inquérito. A dogmática processual, o habitus (BOURDIEU,
2007)[68] acadêmico e profissional não têm categorias para dizer ou acessar essa

[68]  Bourdieu define habitus como um: “sistema de disposições socialmente constituídas que,
enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador
do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”. (BOURDIEU,

263
realidade. A ladainha silenciosa é sempre a mesma. O juiz padrão olha atencio-
samente os papéis e copia atenciosamente seus arquivos de jurisprudência,
tem horror ao que está ali na rua, diante do Fórum. Não precisa fazer força
para ser inquisidor. Seu papel é mais simples, precisa apenas dizer para si e
para o mundo que não há inquisição alguma matando pessoas todos os dias.
O irretocável trabalho das polícias é a face dinâmica das mãos sempre limpas
dos juízes. Diante do aparato policial que entrega os corpos e os discursos de
culpabilidade, as delegacias e os inquéritos apagam as manchas de sangue,
formalizando os discursos, e o sistema judicial valida a “fraude processual”.

Como se constrói esse pacto de silêncios? E poderia ser diferente? É preciso


reconhecer que o modo como os operadores da dogmática processual penal
raciocinam em relação ao aparato policial não é da natureza das coisas, desse
código da natureza que separaria o jurídico do não jurídico, estabelecendo
que o juiz deve se calar sobre fatos tão duvidosos quanto a investigação. A
leitura de decisões da Suprema Corte Americana, das Cortes Europeias, do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos
Humanos nos faria encontrar diversas tentativas de controle jurisdicional
da fase policial (DUARTE, MURARO, LACERDA, DEUS GARCIA, 2014; WANDERLEY,
2017; RODRIGUES, 2015).

Infelizmente, a resposta jurídica padrão já está dada: é preciso melhorar o


treinamento policial. Seguramente as formas de intervenção no aparato
policial são múltiplas (CANO, 2005). O que se questiona aqui é o papel do
direito e dos juristas, e especialmente do direito constitucional (CARVALHO
NETTO, 2000, 2003, 2003; CARVALHO NETTO, SOCOTTI, 2012). No plano prático,
é possível falar em treinamento para a melhoria, ao mesmo tempo em que
se valida o bom trabalho trazido ao processo? Como a dogmática processual
penal tematiza as atividades policiais e seus resultados? Essas perguntas não
podem ser descartadas por não terem a resposta única e ideal. De fato, essas
questões deveriam compor um horizonte de novas problemáticas (DUARTE,
MURARO, LACERDA, DEUS GARCIA, 2014).

2007, 191).

264
5. Considerações Finais

A proposta desse texto foi refletir sobre a violência contida no discurso jurí-
dico quando ele trata uma parte importante da realidade social: a gestão
policial nas cidades e a gestão do sistema carcerário. Tentei demonstrar como
os limites “jurídicos” para tratar desse problema não são jurídicos, mas do
modo como a branquidade impacta os arranjos institucionais, define pautas
políticas, formas de aprendizado e subjetividades.

Uma primeira questão fundamental é: como o Poder Judiciário, o Ministério


Público e as Defensorias interagem, do ponto de vista racial, com o aparato
policial? A segunda questão fundamental: por que devo aceitar sua resposta
calcada numa tradição acadêmica que não resolve as questões centrais da
violência no Estado colonial?

Há, obviamente, uma ausência de estudos mais sistemáticos sobre a compo-


sição racial e as dinâmicas racializadas dessas instituições. A própria ausên-
cia é uma das marcas do racismo institucional, pois muitas das instituições
decidem não produzir ou não publicizar os dados. Do ponto de vista ético,
as vítimas de um sistema de poder sem transparência (ou transparência
reduzidas) não podem ser responsabilizadas pela ausência desses dados. O
Poder Judiciário brasileiro é desproporcionalmente branco e, nos níveis de
maior hierarquia, branco e masculino. O mesmo se pode dizer do Ministério
Público e parcialmente das Defensorias. Por sua vez, o aparato policial é, nos
postos mais altos da hierarquia da gestão, predominantemente branco e, nas
atividades de policiamento, desproporcionalmente branco, mas com uma
maior presença de pessoas negras (DUARTE e FREITAS, 2018).

O discurso mais comum no cotidiano das respostas institucionais é, por parte


do Poder Judiciário, atribuir a responsabilidade pela violência aos policiais
que fazem as atividades de policiamento urbano, especialmente à sua falta
de formação; e, por parte dos Comandos das Polícias, atribuir a responsabili-
dade pela violência aos policiais que seriam as “maçãs podres” especialmente,
porque trariam de seus lugares de origem social comportamentos violentos

265
ou desonestos para dentro das corporações. Logo, há uma imunização dos
espaços da branquidade que correspondem, justamente, aos locais de maior
prestígio, capital social e econômico, bem como maior poder institucional de
gerenciamento do sistema de segurança e para alterar os padrões coletivos
de comportamento (DUARTE & FREITAS, 2018).

Nos discursos públicos das instituições brasileiras, a dimensão racializada


surge ainda no modo como se distribuem as representações sobre o valor do
próprio trabalho diante das críticas da sociedade ou das vítimas. O espaço
corporativo das instituições policiais produz uma oposição em relação aos
lugares de origem e, ao mesmo tempo, a mobilização em defesa da corpora-
ção, identificada com o comando. O aparato policial nega as críticas externas
sobre racismo, porque ele se estrutura em bases racializadas.

Porém, o mais relevante nesse cenário é o modo como o Poder Judiciário segue
se apresentando com as “mãos limpas” diante do genocídio, quando, de fato,
suas mãos estão sujas de sangue.

Não obstante, como afirmei acima, a branquidade não é um bloco monolítico,


logo, é preciso explorar suas fissuras.

266
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do
controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997.

____. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança


e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso co-
mum. Revista Sequência, Florianópolis, Editora da UFSC, n. 30, p. 24-27,
jun. 1995.

____Construção e identidade da dogmática penal: do garantismo pro-


metido ao garantismo prisioneiro. Em: Revista Sequência, nº 57, p. 237-
260, dez. 2007.

ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. Do estado social ao estado penal: in-


vertendo o discurso da ordem. Em: BITTAR, Walter Barbosa. (Org.). A cri-
minologia no século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris; IBCCRIM, 2007.
p. 119-144.

AVELAR, Laís da Silva. “O pacto pela vida, aqui, é o pacto pela morte”:
o controle racializado das Bases Comunitárias de Segurança pelas nar-
rativas de jovens do Grande Nordeste de Amaralina. Dissertação. Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito Humanos e Cidadania da Univer-
sidade de Brasília, 2016.

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Em: Discur-


sos Sediciosos (Rio de Janeiro), v. 12, n.12, p. 271-289, 2002.

_____BATISTA, Nilo. A executivização do sistema penal através da mídia.


Em: Discursos Sediciosos (Rio de Janeiro), v. 12, n.12, p. 403-406, 2002.

BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois


tempos de uma história. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2009.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.


Introdução á Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

267
_____. Por una teoría materialista de la criminalidad y del control so-
cial. Estudos penales y criminológicos. Espanha: Universidade de San-
tiago de Compostela, 1989.

_____. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: linea-


mentos de uma teoria do bem jurídico. Tradução de Ana Lúcia Sabadell.
Saarland, Alemanha: Universidade de Saarland, 1990. 34 p. Original em
italiano. Mimeo.

BINDER, Alberto M. O Descumprimento das Formas Processuais: Ele-


mentos para uma Crítica da Teoria Unitária das Nulidades no Processo
Penal. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p. 26.

BERTÚLIO, D. L. de L. Direito e relações raciais: uma introdução crítica


ao racismo. Florianópolis, 1989. 229 f. Dissertação (mestrado) – Universi-
dade Federal de Santa Catarina. p. 105.

BORGES FILHO, Nilson. Os Militares no Poder. São Paulo: Acadêmica,


1994.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Pers-


pectiva, 2007, p. 191.

BRASIL. Decreto-Lei n.o 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Pro-


cesso Penal. DOU, Brasília, DF, 13 out. 1941.

BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Trad. Sebastião Nascimento. Em:


Novos Estudos, 90, jul, 2011, pp. 131-171.

CALAZANS, Márcia Esteves, et al. Criminologia crítica e questão racial.


Cadernos do CEAS: Revista crítica de humanidades 238 (2016): 450-463.

CARNEIRO, Aparecida Sueli (2005). A construção do outro como não


ser como fundamento do ser. Tese (doutorado) em Educação. São
Paulo: Universidade de São Paulo.

CANO, Ignácio. Controle de polícia no Brasil (Trabalho apresentado na


Conferência internacional “Controle da polícia e a qualidade do monito-
ramento: tendências globais em contextos nacionais”). Haia: Altus, 2005.

268
Disponível em: http://www.soudapaz.org/upload/pdf/textocanoppc.pdf.
Acesso em 24 de março de 2017.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o


paradigma do Estado Democrático de Direito. Em: Notícia do Direito
Brasileiro. Nova Série, no 6, jul/dez de 1998, Brasília: Universidade de
Brasília, Faculdade de Direito, 2000.

_______. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos


fundamentais. Em: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição cons-
titucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

________. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Em:


Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais (org.). A Consolida-
ção das leis e o aperfeiçoamento da democracia. Belo Horizonte: As-
sembléia Legislativa de Minas Gerais, 2003, p. 13-38.

________. SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza


do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação
do sistema de regras. Prefácio de Vera Karam de Chueiri. Belo Horizon-
te: Fórum, 2012.

CARVALHO, José Jorge de. Inclusão Étnica e Racial no Brasil: a ques-


tão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attar Editorial, 2006.

_______. Ações Afirmativas para Negros na Pós-Graduação, nas Bolsas


de Pesquisa e nos Concursos para Professores Universitários como Res-
posta ao Racismo Acadêmico. Em: SILVA, P. B. G. & SILVÉRIO, V. R. (orgs.)
Educação e Ações Afirmativas. Brasília: INEP, 2003.

CARVALHO, Salo. Teoria Agnóstica da pena: O modelo garantista de li-


mitação do poder punitivo. Em: CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução
Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004

CARVALHO, Salo de; DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia do Pre-


conceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Sa-
raiva, 2017.

269
COLLINS, Patrícia. Aprendendo com a outsider within: a significação
sociológica do pensamento feminista negro. Em: Revista Sociedade e
Estado, p. 99-127, Volume 31, Número 1, Janeiro/Abril, 2016.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento


político. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 67-68.

COSTA, Pedro Henrique Argolo. Entre hidra e leviatã: o nomos da terra


de Carl Schmitt e o paradoxo da história universal. Monografia em Direi-
to pela Universidade de Brasília. Brasília, 2015.

DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de


Janeiro: Contraponto, 1997, p. 28.

DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia e Racismo. Curitiba: Juruá,


2002.

_______. A Máquina de Vidro: Sociedade de Informação e Processo Pe-


nal. Em: Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da
UniBrasil, v. 4, p. 39-64, 2005.

_________; CARVALHO NETTO, Menelick de. A cidade da guerra e a re-


pressão humanitária: as Fantasias de Katsuhiro Otomo sobre a Cidade
Fortaleza. Em: Criminologia e cinema: perspectivas sobre o controle
social. 1ed. Brasília: UniCEUB, 2012, p. 67-129.

_________; ZACKSESKI, Cristina. Garantismo e Eficientismo Penal: Dis-


senso e Convergência nas Políticas de Segurança Urbana. Em: Anais do
XXI Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2012, p. 7112-7143.

_________; MURARO, Mariel; LACERDA, Marina; DEUS GARCIA, Rafael de.


Quem é o suspeito do crime de tráfico de droga? Anotações sobre a
dinâmica dos preconceitos raciais e sociais na definição das condutas
de usuário e traficantes pelos Policiais Militares nas Cidades de Brasí-
lia, Curitiba e Salvador. Em: Isabel Seixas de Figueiredo; Gustavo Camilo
Baptista e Cristiane do Socorro Loureiro Lima. (Org.). Pensando a Se-
gurança Pública e Direitos Humanos: Temas Transversais. 1ed.Brasília:

270
Ministério da Justiça (SENASP), 2014, v. 5, p. 81-120.

________; QUEIROZ, Marcos V. L. ; COSTA, Paulo H. A. . A Hipótese Co-


lonial, um diálogo com Michel Foucault: a Modernidade e o Atlântico
Negro no centro do debate sobre Racismo e Sistema Penal. Universitas
Jus, v. 27, p. 1, 2016.

________; GARCIA, Rafael de Deus e QUEIROZ, Marcos V. Lustosa. A Re-


belião da Prisão de Attica (Nova Iorque, 1971): Opressão Racial, Encarce-
ramento em Massa e os Deslocamentos da Retórica da Igualdade. Em:
Revista de Estudos Criminais, Ano XV, nº 61, 2016.

________, QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa, FARRANHA. Racismo e


Constituição: o caráter estrutural da opressão racial e suas consequên-
cias jurídicas. Em: ÁVILA, Thiago André Pierobom (coord.). Acusações
de racismo na capital da República. Brasília: MPDFT, 2017, p. 225-264.

_________; QUEIROZ, M. V. L. . DUARTE, E. C. P. ; QUEIROZ, M. V. L. . A Re-


volução Haitiana e o Atlântico Negro: o constitucionalismo em face do
lado oculto da modernidade. Direito, Estado e Sociedade (Impresso),
v. 49, p. 10-42, 2017.

________. Formação do Sistema Penal no Brasil: Perspectivas Criminoló-


gicas a partir da crítica à modernidade. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 130, p. 27, 2017.

________; KALKMANN, T . Por uma releitura dos conceitos de sistema


processual penal inquisitório e acusatório a partir do princípio da igual-
dade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 142, p. 171-208, 2018.

_________; SCOTTI, Guilherme e CARVALHO NETTO, Menelick de. A quei-


ma dos arquivos da escravidão e a memória dos juristas: os usos da his-
tória brasileira na (des)construção dos direitos dos negros. Em: Univer-
sitas JUS, v. 26, n. 2, pp. 23-39. 2015.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. SP: Martins Fontes, 2007.

ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos. Trad. Plínio Dentzien. Rio

271
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema


penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 2008.

___________. FREITAS, Felipe da Silva. Do Paradoxal Privilégio de Ser Ví-


tima: Terror de Estado e a Negação do Sofrimento Negro no Brasil. Re-
vista Brasileira de Ciências Criminais. Dossiê Especial: Direito Penal,
Criminologia e Racismo. Editor: Evandro Piza Duarte. Ano 25. Edição 135.
2017.

FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, Gênero e Criminologia: reflexões


sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia po-
sitivista de Nina Rodrigues. Dissertação de mestrado no curso de Pós-
-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2017.

FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para criminologia brasileira:


poder, racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS: Revista
crítica de humanidades 238 (2016): 488-499.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. e org. de Roberto Ma-


chado. Rio de Janeiro: GraaI, 1992.

_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Ed.


Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 176 e 177.

FRANKENBERG, R. A miragem de uma branquidade não-marcada. Em:


WRON, W. (Ed.). Branquidade: identidade branca e multiculturalismo.
Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p. 307-338.

GÓES, Luciano. A ‘tradução’ de Lombroso na obra de Nina Rodrigues:


o racismo como base estruturante da Criminologia brasileira. Rio de Ja-
neiro: Editora Revan, 2016.

GOMES, Camilla de Magalhães. Têmis Travesti – As relações entre gê-


nero, raça e direito na busca de uma hermenêutica expansiva do “hu-
mano” no direito. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-

272
-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, 2017.

GOMES, Rodrigo Portela. Quilombos, constitucionalismo e racismo:


famílias negras na luta pela propriedade em Barro Vermelho e Conten-
te no Piauí. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Brasília,
Brasília, 2018.

GRAMSCI, Antonio. Antología. 1ª ed. 4ª reimp. Buenos Aires: Siglo Vein-


tiuno Editores, 2011.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Trad. João de. Vasconcelos.
São Paulo: Martin Claret, 2009.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A Pedagogia do Armário: heterossexismo


e vigilância de gênero no cotidiano escolar. Revista Educação On-line
PUC, Rio de Janeiro, n. 10, p. 64-83, 2012.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo:


Perspectiva, 1996, p. 29.

MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi L. de. & SWENSSON Jr., Walter Cruz.
Contra os Inimigos da Ordem. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Portugal: Antígona, 2014.

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. SP: Ática, 1998.

NOVAES, Bruna Portella de. Embranquecer a Cidade Negra: gestão


do trabalho de rua em Salvador no início do século XX. Dissertação de
mestrado no curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Brasília, 2017.

ORTEGAL, L. R. O. Raça, criminologia e sociologia da violência: contri-


buições a um debate necessário. Cadernos do CEAS, v. 238, p. 449, 2016.

PEREIRA, Moacir. Novembrada: um Relato da Revolta Popular. Floria-


nópolis: Insular, 2005.

PIRES, T. R. O. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica cri-

273
minológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 135, p. 541-562, 2017.

PONTE CARVALHO, GABRIELA ; PIZA DUARTE, Evandro. As Abordagens


Policiais e o Caso Miranda v. Arizona (1966): violência institucional e o
papel das cortes constitucionais na garantia da assistência do defensor
na fase policial. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 4, p.
303-334, 2018.

PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Trad. Angelina Peralva.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 90.

PRANDO, Camila Cardoso de Mello. A Contribuição do Discurso Crimi-


nológico Latino-Americano Para a Compreensão do Controle Punitivo
Moderno: Controle Penal na América Latina. Em: Veredas do Direito,
Belo Horizonte, v. 3, n.6, p. 77-93, julho-dezembro de 2006.

________ et al. A criminalização de Rafael Braga Vieira: Notas Sobre a Se-


letividade Racializada e a Cidade Revanchista. Em: RESENTE, Viviane de
Melo; DA SILVA, Rosimeire Barbosa (org.). Diálogos sobre resistência:
Organização Coletiva e Produção do Conhecimento Engajado. Campi-
nas-SP: Pontes Editores. 2017.

________. Criminologia Crítica no Brasil e os estudos críticos sobre bran-


quidade. Revista Direito e Práxis. Ahead of print, Rio de Janeiro, 2017.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América La-


tina. Em: LANDER, Edgardo (org). A Colonialidade do Saber: eurocen-
trismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires:
Clacso, Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales, 2005.

REIS, Vilma. Atocaiados pelo Estado: as políticas de segurança públi-


ca implementadas nos bairros populares de Salvador e suas represen-
tações, 1991-2001. Dissertação de mestrado defendida no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia,
2001.

RODRIGUES, João Victor Nery. Os usos da legislação antiterror na

274
América Latina: um estudo a partir do julgamento do caso Norín Catri-
mán y otros vs. Chile pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Trabalho de conclusão de curso em Direito na Universidade de Brasília,
2015.

ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme


a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SANTAMARIA, Rosembert Ariza. El derecho profano. Colômbia: Edito-


rial Universidad Externado de Colombia, 2010.

SANTOS, Raquel Cerqueira. Quem Participa? Participação popular e


direito à cidade: um estudo de caso do Plano Salvador 500. Dissertação
de mestrado no curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Brasília, 2016.

SEGATO, Rita Laura. El color de la carcel en América Latina: Apuntes so-


bre la colonialidad de la justicia en un continente en desconstruccion.
Nueva Sociedad, v. 208, p. 142-161, 2007.

VARGAS, Beatriz. A ilusão do proibicionismo: estudo sobre a crimi-


nalização secundária do tráfico de drogas no Distrito Federal. Tese de
doutorado no curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Brasília, 2011.

WANDERLEY, Gisela Aguiar. Liberdade e Suspeição no Estado de Di-


reito: o poder policial de abordar e revistar e o controle judicial de vali-
dade da busca pessoal. Dissertação de mestrado no curso de Pós-Gra-
duação em Direito da Universidade de Brasília, 2017.

WARE, Vron. O poder duradouro da branquidade: “um problema a solu-


cionar”. Em: WARE, Vron (org). Branquidade: identidade branca e mul-
ticulturalismo. RJ: Garamond, 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de


legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e
Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro : Revan, 1991.

275
Racismo e Sistema de Justiça: Um Debate sobre o Modelo de
Controle das Polícias no Brasil

276
Racismo e Sistema de Justiça: Um Debate sobre o Modelo de
Controle das Polícias no Brasil[69]

Felipe da Silva Freitas[70]

Neste ensaio pretendo refletir sobre o papel das polícias, e, de modo particu-
lar, sobre as relações entre as polícias e a população negra no Brasil. Ao lado
de sublinhar as características da abordagem policial, gostaria de provocar
um alargamento da questão, destacando a dimensão violenta que estrutura
a sociedade brasileira e ressaltando a autorização social para práticas de
autoritarismo contra grupos sociais vulneráveis e historicamente excluídos.

A história do Brasil é marcada pela violência de Estado. E, portanto, é neces-


sário destacar que as polícias são expressão visível de formas de vigilância,
controle e gestão do espaço urbano.

Herdeiras dos códigos – legislativos e culturais – da escravidão, as polícias


constituíram-se no Brasil com forte relação com as representações da vio-
lência de Estado e dos modelos hierárquicos de organização do Direito e
da sociedade. Como produto da cooperação paralegal entre Estado e forças
privadas na gestão do espaço público, a estrutura da sociedade brasileira é
permeada por uma pulsão de morte que alimenta as estruturas burocráticas
e que organiza os sentidos de vida/morte, justiça e liberdade entre nós:

A existência coletiva da população negra vai sendo comprometida dentro


da conformação espacial urbana, por meio de processos que reúnem de-
sencorajamento pessoal aliado às poucas alternativas sociais de redução
da vida em sociedade, além das investidas efetivas sobre sua corporalidade.
Em suma, as periferias das cidades brasileiras são o cenário interativo em
que se somam práticas e omissões para a consecução do projeto genocida
de Estado (FLAUZINA, 2018, p. 117).
[69]  Este texto foi apresentado durante a I Jornada Nacional sobre Racismo Institucional e
Sistema de Justiça realizada entre os dias 22 e 23 de março de 2018 na cidade do Rio de Janeiro.

[70]  Felipe da Silva Freitas, doutorando e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Univer-
sidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual
de Feira de Santana.

277
Tomando emprestadas as palavras de Marilena Chauí podemos dizer que há
uma série de mecanismos jurídicos, ideológicos e culturais que impedem
a tematização da violência praticada pelo Estado e que apenas evidencia
aquela violência auto designada como do campo da delinquência, do desvio
e da criminalidade:

Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali


mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como
toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que
viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações so-
ciais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que
isso, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são
violentas porque está cega para o lugar efetivo da produção da violência,
isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades
econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais,
a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o
sexismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas
formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como
estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico
de superfície (CHAUÍ, 2010, p. 349).

A violência não é percebida ali mesmo onde se origina, mas tematizada como
um acontecimento, um episódio, uma chacina, um massacre ou um caso de
execução específica e pontual. As abordagens usuais sobre a questão da vio-
lência no Brasil muitas vezes deixam de considerar sua dimensão estrutural
e privilegiam suas expressões episódicas e conjunturais.

Por outro lado, também é oportuno destacar que esta autorização pública se
dá por meio de inúmeras vozes que legitimam o Terror de Estado e, no âmbito
da segurança pública, recrutam homens (como policiais e como não policiais)
para matarem e morrerem numa guerra totalmente vocacionada a eliminar
negros(as). Uma guerra sabidamente incapaz de produzir segurança e uma
guerra destinada a eliminar pessoas, grupos e comunidades.

278
Vale ressaltar que as dinâmicas internas das polícias no Brasil são marcadas
por péssimas condições de trabalho e por formas assimétricas de organização
dos fluxos de funcionamento das corporações. Em pesquisa realizada em 2009
por Silvia Ramos, Marcos Rolim e Luiz Eduardo,[71] demonstra-se a reprovação
desse modelo militarizado até mesmo pelos próprios profissionais de segu-
rança pública (SOARES; ROLIM; RAMOS, 2009) que em sua maioria declaram
que não é adequada a vinculação da Polícia Militar ao Exército.

Segundo a mesma pesquisa, 65% dos profissionais declaram que a hierar-


quia provoca desrespeito e injustiças profissionais; 92% apontam os baixos
salários como um problema das corporações policiais; 81% declararam que a
falta de verbas para equipamentos é um problema muito importante para as
condições de trabalho dos policiais e 64,5% afirmam que há um predomínio
das reações a fatos consumados em detrimento da preparação para ações pre-
ventivas nas orientações estratégicas emitidas pelos comandos das polícias.
Ou seja, dentro das próprias estruturas policiais verificam-se manifestações
de violência institucional que vulneram a todos os profissionais da área,
mas que prioritariamente atingem as pessoas negras que, na maioria das
vezes, ocupam as posições inferiores nas hierarquias policiais (PIRES, 2010;
RAMALHO NETO, 2012).

É sobre os profissionais negros que se concentram os fatores de vulnerabi-


lidade no âmbito das corporações policiais, ampliando experiências de dis-
criminação e reproduzindo violências e marginalizações que transbordam
para a relação das polícias com o conjunto da sociedade:

A raça, da mesma forma que a condição econômica do policial, também


delimita um grupo que é mais vitimado por discriminações, humilhações
por colegas de trabalho, acusações injustas de práticas de atos ilícitos e

[71]  Trata-se de levantamento realizado através 65 mil questionários, respondidos nos meses de
abril e maio de 2009, por policiais civis (4.720), militares (40.502), federais (215) e rodoviários federais
(333), peritos não ligados à polícia civil (360), bombeiros militares (5.957), agentes penitenciários
(4.312) e guardas civis municipais (7.731). Os questionários foram aplicados por meio virtual, para
o que se recorreu à Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP).

279
situações de desrespeito aos seus direitos trabalhistas (DURANTE; OLIVEIRA
JUNIOR, 2013, p. 142 - 143).

Assim, somos provocados a demonstrar a dimensão articulada do funciona-


mento destas diferentes agencias de controle e a desafiar-nos para uma leitura
da violência policial através de lentes que ultrapassem o espectro jurídico e
que alcancem uma discussão sobre as bases em torno das quais organizamos
e pavimentamos os nossos pactos e acordos sociais. Neste sentido, um desafio
está relacionado ao reconhecimento de que polícia é o poder político na rua e
que a violência policial, ao lado de ser produto da ação dos agentes da polícia,
é também resultado de um enredo de violências institucionais legitimadas
juridicamente na definição do mandato da atividade policial no Brasil.

Quem autoriza, valida e legitima a ação policial? Como as noções de reconhe-


cimento, identidade e ação pública são desenhadas dentro das corporações
policiais? O que ensina ao policial que pode atirar na Rocinha e que não pode
atirar em Copacabana? Quem explica que processo com folha de antecedentes
criminais é auto de resistência e que processo com descrição do histórico
profissional da vítima é caso de violência policial?

Em trabalho desenvolvido em 2013 pelo professor Evandro Piza, juntamente


com o um grupo de pesquisadores e pesquisadoras da Universidade de Brasília,
destacou-se o papel do sistema de justiça criminal na validação de aborda-
gens policiais violentas com base em critérios raciais (DUARTE et al., 2014).
No estudo, analisa-se o papel do “tirocínio policial”, do “código das ruas” e
das diversas atividades de policiamento na política de repressão às drogas e
na reprodução de padrões de preconceito econômico e racial (DUARTE et al.,
2014). Por meio de grupos focais com policiais e pesquisas documentais o
estudo discute ações preventivas e repressivas da Polícia Militar ao tráfico e
uso de drogas ilícitas em três cidades brasileiras (Brasília, Salvador e Curitiba)
destacando a importância da valoração de delegados, juízes e promotores
para a continuidade de padrões de atuação policial.

280
O “currículo oculto” e o “saber das ruas” são parcialmente validados nas
interações entre Aparato Policial e o Sistema de Justiça Criminal. De um
lado, a lei aparece como suficientemente “aberta” em suas hipóteses para
criar o espaço de “discricionariedade” do policial, de outro, a cultura jurídica
é suficientemente formalista para negar a possibilidade de observar os
padrões cotidianos de violência. Por fim, haverá aqueles casos em que os
juízes e tribunais “descobrem”, “surpresos”, a violência dos agentes policiais.
Esse modelo de “convivência” entre “padrões jurídicos” ambíguos (liberais e
autoritários) decorre de uma historicidade concreta do controle social em
que o racismo institucional é um elemento central das políticas públicas
empreendidas pelo Estado. A convivência entre escravidão e instituições
liberais durante quase um século propõe tal explicação (DUARTE et al., 2014).

Tal processo se dá por meio de padrões jurisprudenciais fartos em estimular


a ação policial alheia a qualquer parâmetro de legalidade democrática, o que
ratifica a ideia de que “as práticas policiais ‘são o que são’ não tão somente
porque os policiais decidem executar o seu ‘tirocínio’, mas porque os policiais
agem num ambiente legislativo, jurisdicional, social e institucional que per-
mite e tende a validar suas ações” (DUARTE et al., 2014). Este itinerário aponta
para a necessidade não só de reformulação dos procedimentos policiais,
mas também de reflexão sobre as relações institucionais e a permanência
do racismo no Brasil, compartilhando as responsabilidades com o Poder
Executivo, Poder Judiciário e a Mídia.

O mandato policial é definido na lei, na formação, mas, é redefinido na rua a


partir das expectativas sociais que temos, daquilo que queremos que a polícia
faça para nós. No fundo, temos sido pródigos em descrever o que a polícia não
deve fazer, mas, temos sido débeis na descrição de qual é mesmo a atribuição
policial. Que polícia queremos? Para quê? Para quem?

281
Os mandatos de busca e apreensão coletivos[72], a condenação apenas com base
no depoimento da autoridade policial[73] e a entrada franqueada em domicílio
sem mandado judicial[74] são algumas das muitas manifestações judiciais que
alargam o mandato policial e ampliam o campo da discricionariedade com
que atuam estes profissionais. E, logicamente, não estou falando aqui que
tais standarts jurídicos operam do mesmo modo, estou dizendo que é a raça
que regula a aplicação ou não destes institutos!

Ao dizer que o controle da vida negra se estabelece por meio do reconheci-


mento de quais são os corpos matáveis, estou querendo chamar a atenção
para o fato de que também são negros os corpos recrutados pelas polícias
para morrer no front como policiais de baixa patente ou como soldados de
fuzil na mão nas intervenções militares na segurança pública.

Na prática, sabemos que a polícia que é socialmente esperada é aquela que


“limpe” a cidade dos seus problemas. Que aja rapidamente para a prestação
de serviços públicos para o establishment branco e que – longe das câmeras

[72]  Trata-se de mandados de busca e apreensão “genéricos” expedidos sem a devida explicitação
da limitação do domicílio ao qual se refere, mas à designação genérica de uma região ou conjunto
de casas de uma determinada comunidade. A medida passou a ser bastante reivindicada pelas
autoridades policiais em operações realizadas no âmbito da intervenção federal na segurança
pública do Rio de Janeiro iniciada em fevereiro de 2018. A este respeito ver: (YAROCHEWSKY, 2018)

[73]  Tal prática é recorrente no sistema de justiça brasileiro e, mesmo não encontrando amparo
no texto Constitucional, segue sendo aplicada, sobretudo em casos de apreensão em flagrante
com acusação de tráfico de drogas. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo,
encontra-se a Súmula 70 que versa sobre a admissibilidade de condenação criminal com base
exclusivamente em depoimentos policiais. A respeito do tema, ver: (CARVALHO; WEIGERT, 2018)

[74]  Cuida da prática de entrada forçada em domicílio sem mandado judicial nos casos em
que verificadas fundadas razões que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante
delito. O expediente fora analisado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extra-
ordinário (RE) 603616/2015, quando ficou fixado que a validade do ato ficará condicionada à
apresentação de razões, a posteriori, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. A decisão do Supremo não mitigou
as sérias controvérsias sobre o tema e persiste entre os especialistas razoáveis questionamentos
à constitucionalidade das referidas operações.

282
e dos olhos piedosos da classe média – elimine quem tem que eliminar. O
que regula o policial que será ou não reprovado em sua ação não é “o que ele
faz”, mas “onde” e “contra quem” ele atua.

A questão que entra no jogo é que não é possível falar em controle da ação
policial ou de enfrentamento à violência policial se continuarmos operando
com os mesmos aparatos conhecidos: formação em direitos humanos, for-
talecimento das corregedorias de polícia ou das promotorias de controle
externo. Sem dúvida, estas instâncias e estratégias são fundamentais; no
entanto, qualquer mudança real e permanente só é possível se pensarmos
em alterações de natureza estrutural (desmilitarização, redefinição do man-
dato, delimitação da cadeia de comando e de responsabilidades) e isso só
pode ser efetivamente feito se arrolarmos a raça como elemento central na
compreensão e nos encaminhamentos do debate.

A raça é base do sistema de controle penal no Brasil. Foi o racismo que moldou
as instâncias de segurança pública e de justiça criminal; portanto, só a luta
negra é capaz de desmontar este esquema de poder e morte[75].

O desafio, portanto, está ligado à possibilidade de construirmos outras ima-


gens baseadas na desnaturalização do racismo enquanto combustível destas
experiências policiais. Falo aqui nas possibilidades contra-hegemônicas
que podemos patrocinar com base no reconhecimento das insuficiências
dos instrumentos jurídicos na transformação da sociedade, mas atentos às
abordagens marginais que sempre foram utilizadas pelos grupos sociais
historicamente excluídos para confrontar o poder, o Direito, a lei e a ordem.

Destaque-se a possibilidade de redes de juristas, militantes, ativistas negras


e negros – juntamente com seus aliados e aliadas – para contraporem e
construírem discussões e práticas sobre: a) como ampliar a participação de
negras e negros no debate sobre o sistema de justiça criminal e de segurança
pública?; b) como romper com as prescrições normativas que insistem em

[75]  Há uma ampla literatura sobre o tema no Brasil. Apenas a título de exemplo citamos:
(BERTULIO, 1989; DUARTE, 1998; FLAUZINA, 2018; FREITAS, 2016; PIRES, 2017)

283
apontar o direito como “fim” e não como “meio” das nossas batalhas cotidia-
nas?; c) como conferir à questão racial centralidade na compreensão e no
encaminhamento dos problemas do controle da polícia e da administração
dos conflitos na vida das cidades?

A questão de fundo é como podemos desnaturalizar a ausência negra nos


espaços de decisão e como podemos tematizar a questão racial como compo-
nente estruturante na compreensão dos mecanismos que criam, autorizam,
legitimam e reproduzem as bases da violência policial. Ao confinarmos o
problema da violência nas cidades a uma questão meramente criminal, esta-
mos aceitando a polarização imbecilizante em que – policiais e não policiais
– negros são imputados como responsáveis pela manutenção de práticas
violentas e em que o Poder Branco é poupado num jogo de palavras estéril que
quer sequestrar o potencial disruptivo e revolucionário dos nossos discursos:

Não é o recrudescimento penal que vai ampliar a proteção dos profissio-


nais de segurança pública no país. O desafio para aprimorar a proteção das
polícias e alterar a tendência genocida em curso passa por deixar de expor
policiais ao confronto, formulando uma política de segurança pública
preventiva com a preservação dos direitos humanos.

Os policiais são parte fundamental de um outro modelo de segurança


pública (democrático e garantista) e reconhecer isto é um primeiro passo
para o debate. Contudo, o reconhecimento do efetivo papel das polícias na
construção da segurança só se dará através de mecanismos menos intrusivos
e mais humanizados, capazes de as afastarem de atribuições de matar e de
morrer na guerra para a qual são convocados seus integrantes, num irra-
cional recrutamento de soldados para o combate (FREITAS, 2015, p. 41 - 43).

O que estou tentando assinalar é que precisamos discutir mandato policial!


Precisamos definir – socialmente, politicamente e juridicamente – o que
esperamos da polícia e não nos beneficiarmos do caos normativo em que nos
encontramos e imputarmos apenas as partes inferiores do sistema (MUNIZ;
PROENÇA JÚNIOR, 2010). No Brasil as polícias matam e morrem excessivamente;

284
no entanto, é preciso convocar os vários atores institucionais que criam, legi-
timam e reproduzem esta barbárie. O Presidente que autoriza intervenção, o
professor de Direito que segue ensinando a dogmática cadavérica da segurança
jurídica, a Juíza que debocha das vítimas e difama quem foi assassinada, o
Promotor que pede prisão provisória sem o requisito legal, o defensor que
deixa de atender a vítima de violência ou que desacredita da mãe desesperada.
Todos são igualmente responsáveis pela violência policial e se beneficiam do
Poder Branco assentado em pilhas de corpos negros malcheirosos.

Não se trata de repetir a cantilena dos pesquisadores brancos bem-intencio-


nados que querem inserir uma alegoria explicativa que fala de seletividade
racial e reproduz narrativas fáceis para o problema da violência policial. O
desafio é, a partir de um ponto de vista negro, refletir sobre o racismo e suas
implicações na discussão sobre polícia no Brasil elaborando uma reflexão
séria e profunda acerca dos efeitos do racismo na constituição do mandato
policial, e dos entraves desta definição seletiva na noção de Estado de Direito
e de sociedade democrática.

285
Referências
BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais - Uma in-
trodução crítica ao Racismo, Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal de Santa Catarina,1989.

CARUSO, Haydée Glória Cruz; BLANCO, Antonio Carlos Carballo; MUNIZ,


Jacqueline (Orgs.). Polícia, Estado e Sociedade: saberes e práticas lati-
no-americanos. Rio de Janeiro: Publit, 2007.

CARVALHO, Salo De; WEIGERT, Mariana de Assis. “Making a drug de-


aler”: o impacto dos depoimentos policiais e os efeitos da súmula n. 70
do TJRJ na construção do caso Rafael Braga. Revista de Estudos Crimi-
nais, v. 17, n. 68, p. 45–77, 2018.

CHAUÍ, Marilena. Ética, violência e política. Em: Cultura e democracia:


o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez Editora, 2010. p.
311–339.

DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia e racismo: introdução ao pro-


cesso de recepção das teorias criminológicas no Brasil. 1998. Disserta-
ção de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, 1998.

DUARTE, Evandro C. Piza et al. Quem é o suspeito do crime de tráfico


de drogas? Anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e so-
ciais na definição de condutas de usuários e traficantes pelos policiais
militares das cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. Em: LIMA, Cristia-
ne; BAPTISTA, Gustavo; FIGUEIREDO, Isabel (orgs.). Segurança Pública
e Direitos Humanos: temas transversais. Brasília: Ministério da Justiça,
2014. p. 81–118.

DURANTE, Marcelo Ottoni; OLIVEIRA JUNIOR, Almir. Vitimização dos


policiais militares e civis no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pú-
blica, v. 7, n. 1, p. 142–143, 2013.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro caído no chão: o sistema


penal e o projeto genocídio do Estado brasileiro. 2a ed. Brasília: Brado
Negro, 2018.

286
FREITAS, Felipe da Silva. A violência real e as ciladas do punitivismo: re-
flexões sobre atividade policial e a Lei n13.142, de 6 de julho de 2015. Em:
FREITAS, Felipe da Silva; FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro (Eds.). Discur-
sos Negros: legislação penal, políticas criminal e racismo. 1a ed. Brasília:
Brado Negro, 2015. p. 12–43.

FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a criminologia brasileira:


poder, racismo e direito no centro da roda. Caderno do CEAS, Salvador,
v. 238, p. 488–499, 2016.

MUNIZ, Jacqueline; PROENÇA JÚNIOR, Domício. Mandato policial na


prática: Tomando decisões nas ruas de João Pessoa. Caderno CRH, v.
23, n. 60, p. 449–473, 2010.

PIRES, George Luiz. A cor da farda: as relações raciais na polícia militar


de Sergipe. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Sergipe,
2010.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico:


por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasi-
leira de Ciências Criminais, v. 135, n. 25, p. 541–562, 2017.

RAMALHO NETO, Jaime P. Farda & cor: um estudo racial nas patentes
da polícia militar da Bahia. Afro-Ásia, n. 45, p. 67–94, 2012.

SOARES, Luiz Eduardo; ROLIM, Marcos; RAMOS, Silvia. O que pensam


os profissionais da segurança pública no Brasil. Ministério da Justiça.
Brasília.

YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Mandado de busca e apreensão co-


letivo viola direitos e garantias fundamentais. Justificando, São Paulo,
2018. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/20/
mandado-de-busca-apreensao-coletivo-viola-direitos-e-garantias-fun-
damentais/>

287
Racismo Institucional na Administração Pública Direta e
Indireta: uma afronta à Constituição Federal Brasileira

288
Francineide Marques da Conceição Santos[76]

Problematizo o racismo institucional na administração pública direta e


indireta como um racismo de Estado que contraria os princípios constitucio-
nais consagrados no artigo 37 da Constituição Federal/88. Discuto violações
aos direitos humanos por entes estatais e busco identificar (para combater)
onde se localizam os obstáculos que impedem uma vida digna às pessoas
negras, alinhando-me, epistemológica e metodologicamente, a pesquisado-
ras/es negras/es que consideram as interseccionalidades como importantes
para a análise das distintas realidades sociais em contraposição ao racismo
epistêmico, epistemicídio e outras mortes que nos têm sido impostas pelas
forças colonizadoras.

Compreendo que as entidades da administração pública direta e indireta têm


o dever e a responsabilidade em dar cumprimento aos princípios da legali-
dade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (todos expostos
no art. 37 da Constituição Federal). Os valores representados nesses princípios
configuram o Brasil como um Estado Democrático de Direito, pois dá limites à
atuação do próprio Estado e seus dirigentes. Isso também se explicita quando
o Brasil subscreve pactos internacionais no sentido da paz e não-violência
para a observância, respeito e efetividade dos direitos humanos, aí embutido o

[76]  Doutoranda no Programa do DMMDC, Doutorado em Geração e Difusão do Conhecimento


UFBA/UNEB. Mestra em Educação pelo Programa de Educação, Culturas e Identidades Univer-
sidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE parceria Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ;
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Raça, Gênero e Sexualidades
Audre Lorde - GEPERGES Audre Lorde (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6858955999645910).
Desenvolve atividades de pesquisa em epistemologia, filosofia afrobrasileira, relações raciais,
gênero, capoeira angola, política, direitos humanos. Investiga movimentos sociais, participação
política, feminismos negros e processos cognitivos. Integrante da ANPED - Associação Nacional
de Pós Graduação e Pesquisa em Educação. Registrada na OAB- Ordem de Advogados do Brasil.
Especializada em Processos civis e trabalhistas; em Recursos aos Tribunais Superiores STF, STJ
e TST. Assessoria e consultoria jurídica ao terceiro setor. Atuei na Educadoria da Universidade
Corporativa do Banco do Brasil. Trabalhei como Assessora Técnica no Banco da Mulher com a
finalidade de fortalecer empreendimentos liderados por mulheres em Salvador-BA.

289
direito constitucional de não apenas respeitar, mas fazer respeitar a lei maior,
utilizando-se dos mecanismos processuais previstos no texto constitucional,
qual seja, habeas corpus, habeas data e ação popular, incluindo-se o mandado
de segurança em tudo harmonizado com o due process of law, ou princípio
do devido processo legal.

Assim, mesmo que o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo


queiram agir, ou se omitir, de forma a desconsiderar os ditames constitucionais,
não o podem fazer. A Constituição Federal Brasileira impõe limites explicita-
mente estabelecidos de que aqui, no Estado brasileiro, deve-se cumprir e fazer
cumprir a lei, aqui cabendo o jargão popular: “doa a quem doer”. Entretanto,
apesar de ser um texto juridicamente avançado no sentido de prever ações
para limitar os desbordos e desrespeitos às leis, inclusive por parte dos agen-
tes de Estado, não há como negar que o cotidiano do país apresenta grande
afastamento entre a vontade da Lei Constitucional e a tragédia de milhares
de mães que choram a morte de filhos e filhas negras mortas por policiais e
outros agentes estatais e paraestatais[77].

Essas violências advindas do próprio Estado servem como emblema da falência


de um sistema político que banaliza a morte e a violência de pessoas negras,
negando-lhes a proteção e segurança, como nos faz ver a professora militante
e pesquisadora negra, Vilma Reis:

O impacto dessas mortes em nossas vidas revela o drama de uma ampla


parte da sociedade baiana e brasileira, sem direito a pensar o amanhã, pois
nossos sonhos estão sendo sequestrados num mar de sangue. Conter esse
mar de sangue não tem sido tarefa assumida nem por gestores do execu-
tivo, que lideram as políticas de segurança pública, e, não tem sido, sequer,
ponto de reflexão dos poderes de justiça, que existem para seus próprios
membros e não para conter a fronteira de ódio estruturada pelo racismo,
o qual se materializa na ação concreta da polícia, e muito menos ainda

[77]  Agentes pertencentes aos quadros de empregados concursados das Empresas Públicas,
Sociedade de Economia Mista e Fundações Públicas.

290
do parlamento, constituído, majoritariamente, por grupos econômicos
beneficiários da indústria do medo. (REIS, 2005, p. 231).

Conceber uma “onda de ódio estruturada pelo racismo” dentro de órgãos e


entidades estatais e para estatais, significa que enfrentamos um racismo de
Estado que se espraia por todo o arcabouço jurídico e judicial brasileiro e se
ramifica nos órgãos públicos de todas as esferas administrativas federais,
estaduais e municipais. As políticas públicas que tentam combater essa rea-
lidade têm sido insuficientes e ineficientes dadas as dimensões do racismo
que se retroalimenta em um sistema biopolítico conservador do biopoder
sobre os corpos negros em um dispositivo de controle de vida e morte como
já nos alertara a militante e pesquisadora negra Sueli Carneiro (2005), que, ao
trabalhar com conceitos de Michel Foucault, nos explica que:

Para Foucault, essa biopolítica que se converte em biopoder promove a


emergência de três novos elementos desconhecidos até então tanto da
teoria do direito como das técnicas disciplinares. São eles: a população
(os corpos múltiplos); a busca do controle sobre os fenômenos coletivos e
aleatórios e em terceiro lugar poder que consiste em fazer viver e em deixar
morrer. (CARNEIRO, 2005, p. 71)

Temos, com Sueli Carneiro e Michel Foucault (2002), que “o racismo é indis-
pensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a
vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde
que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT apud
CARNEIRO, 2005, p. 75) (grifos de agora).

Pensar o direito e os dilemas de justiça brasileiros é buscar entender como a


lógica do racismo se utiliza dos mecanismos do poder e como os órgãos da
administração pública direta e entes da administração indireta (empresas
públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas) dispõem sobre
a vida e a morte da população negra em um nefasto sistema em que esse
biopoder se revela, atingindo a vida de milhões de pessoas, negando opor-
tunidades sociais e o direito humano à vida, como tem sido os genocídios

291
lastreados por um projeto de Estado contaminado pelo racismo e machismo,
como foi recentemente publicizado na fala de Marielle Franco, vereadora do
Rio de Janeiro, executada juntamente com o seu motorista Anderson Gomes.

O direito humano à vida é desafiado pelo biopoder em típico crime de execu-


ção, “crime de mando”: alguém mandou matar a vereadora e o seu motorista.
Alguém exercitou um biopoder (poder de vida e de morte) sobre o corpo de
um homem e de uma mulher, uma mãe, negra, lésbica, feminista, política,
periférica e de um trabalhador morto, também em serviço. “Quem matou
Marielle Franco?” é uma indagação que simboliza a ausência de segurança e
que esse alguém pode ser qualquer pessoa, ainda não identificada, inclusive
um representante do Estado brasileiro, como recentemente noticiado[78]. A
declaração do ministro Raul Jungmann sobre a investigação em torno do
assassinato de Marielle Franco dá a medida do fracasso que foi a intervenção
militar na segurança pública do Rio de Janeiro. Disse o ministro:

São duas (as dificuldades). Em primeiro lugar é o fato, que é difícil de te


responder… Com as informações que tenho, eu não posso trazer todas aqui
porque senão eu criaria problemas para a própria investigação. Em segun-
do lugar, a complexidade. Esse assassinato da Marielle envolve agentes
do Estado. Envolve, inclusive, setores ligados seja a órgãos de setores do
Estado seja a órgãos de representação política (JUNGMAN, 2018).

E por que o Estado Brasileiro estaria abrigando possíveis mandantes de crimes


(no caso de Marielle Franco e seu motorista, um feminicídio e um homicídio,
respectivamente)? Por que o Estado que deveria garantir segurança e proteção
mata mulheres negras, homens negros, as nossas crianças, os nossos jovens
negros?

Essas são perguntas desafiadoras que nos fazem refletir sobre a sociedade
onde estamos vivendo e as raízes históricas de opressões que cumulam com a
perda da vida de centenas de milhares de pessoas negras. As tristes estatísticas

[78]  Disponível em https://www.diariodocentrodomundo.com.br/declaracao-de-jungmann-


-sobre-marielle-revela-o-fracasso-da-intervencao-militar-no-rio-de-janeiro/. Acesso 09/08/2018

292
mostram que é a população negra que mais morre violentamente, vítimas do
feminicídio, de homicídios e por falta de assistência médica e atendimento
nas unidades de saúde. São as pessoas negras que mais morrem por tiros
de arma de fogo, são as mulheres negras as principais vítimas de estupros e
todos os tipos de violência recaem sobe os corpos negros.

São os corpos negros que as instituições racistas querem eliminar, pois o Atlas
da Violência (2017) mostra que a “cada 100 pessoas assassinadas no Brasil,
71 são negras.”[79] São os espoliadores da força de trabalho alheia: o racista, o
capitalista irresponsável e o machista que se servem da própria torpeza para
desrespeitar as pessoas negras, as sexualidades dissonantes, as culturas, as
religiões, as tradições que não sejam as hegemônicas, que são projetadas e
impostas pelas forças colonizadoras. São sempre essas forças colonizadoras
que querem dilapidar o patrimônio, subtrair vidas e derramar o sangue
negro. A luta social é árdua, intensa, triste quando se sabe que diariamente[80],
“São 63 por dia. Um a cada 23 minutos... A cada 23 minutos um jovem negro é
assassinado no Brasil”.

Kabenguele Munanga nos ensina que vivemos em uma “sociedade colonizada”


(1997), portanto, são os senhores, os donos, os mandantes, os homens hetero-
brancoeuronormativos que mostram com as alarmantes estatísticas o ódio e
o desprezo da vida das pessoas às quais explora. Eles se servem da força de
trabalho das pessoas que oprimem, quando lhes convém, mas não toleram a
coexistência com as pessoas que não estão incluídas dentro da mesma classe e
origem social que eles. Embora a sociedade brasileira tenha sido descrita pela
ótica do colonizador, seus cânones e suas teorias igualmente racistas, como
uma “coisa maravilhosa, um exemplo de harmonia entre raças”, sabe-se bem
que essa prática criminosa deu origem à existência de milhares de lares em
que as mulheres ficam responsáveis pelo sustento, com crianças abandonadas,

[79]  Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=30253.


Acesso em 08/08/2018. Dados de 2016. Aumentou a violência contra pessoas negras como se
pode ver na figura.

[80]  Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295. Acesso em 09/08/2018.

293
“abortadas pelos pais”, milhares de nascituros cujo “pai”, “o irresponsável”,
não comparece às suas obrigações paternas, causando insegurança social;
assim como o Estado abandona a sua população quando deixa de prover a
segurança pública.

Essa é a nossa “sociedade colonizada” onde se criou o mito da “democracia


racial” em que, idílica e hipocritamente se supunha que se pudesse viver “feliz
da vida em um país de pardos, mestiços como exemplo de miscigenação que
deu certo”. Esse é um olhar racista que “invisibiliza” e escamoteia a história bra-
sileira, visto que “essa linda mestiçagem” é, em verdade, composta por pessoas
negras com tons de peles menos retintas fruto de ações criminosas, fruto de
milhares de estupros de mulheres negras e índias feitos pelos colonizadores.

Entretanto, apesar das violências historicamente cometidas contra as pes-


soas negras, essa população sempre lutou para a transformação social, como
observa Nádia Cardoso (2010). A luta não é mesmo de agora para que o Estado
brasileiro implemente políticas públicas e adote ações para que se possa ter
a efetividade de direitos que são historicamente negados.

Nós, as populações negras espoliadas, que produzimos as riquezas nacionais


com trabalho mal remunerado, somos excluídas do bem-estar social, dos bens
e serviços públicos. E o Estado brasileiro, com a sua ineficiência, contraria o
princípio da eficiência e outros correlatos (art. 37 da CF/88) quando permite
que a população negra seja o alvo do arsenal dos órgãos de segurança. Estes,
em lugar de nos protegerem, nos matam, como se pode constatar pelas ações
militares que estão sendo repudiadas. Invadem lares, dentre outras ofensas
aos princípios da legalidade e moralidade públicas, já que ignoram os direitos
humanos, fundamentais à privacidade, como a inviolabilidade de domicílio e
do sossego constantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XII).

Apesar das previsões constitucionais no sentido de fazer banir do Estado bra-


sileiro as discriminações, ainda hoje existem dificuldades em fazer emergir no
debate social o racismo cometido pelo Estado, pois, como nos diz Wanderson
Nascimento (2017):

294
Temos, ainda hoje, uma imensa dificuldade de lidar com temas raciais.
É impressionante, por exemplo, que o tema da biopolítica tenha se po-
pularizado nos últimos vinte anos e, não obstante, que obliteremos ou
ignoremos o debate iniciado por Foucault sobre o papel fundamental
do racismo de Estado para a constituição da biopolítica e na difusão do
biopoder (2017, p. 141).

É esse biopoder que trata de exaurir a saúde negra, de adoecer, de fazer desa-
parecer corpos negros, como se fossemos objetos descartáveis. Temos negada
a nossa dignidade. Até hoje se perpetua o pensamento colonizador que alia o
racismo a um machismo institucional causando-nos opressões interseccionais:

são as mulheres que têm seus direitos violados nessas situações. “Elas
são as principais vítimas. São tratadas como mães de traficantes, como
traficantes, como mães de presos, criminosas em potencial.” É um estigma
alimentado pelo racismo persistente e entranhado no Brasil. Nessa en-
grenagem, a seletividade penal da Justiça e da área de segurança pública
precisa ser considerada.

O corpo dessas mulheres é visto historicamente como um lugar privilegiado


de testes, de punições e de morte no sistema de Justiça. O corpo da mulher
negra é o centro dessa política e dessa parafernália de segurança pública.
A intervenção é no útero das mulheres negras.” Esse olhar sobre o corpo
da mulher que mora na favela não vem de hoje. Há pouco mais de 10 anos,
o então governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, declarou que as mães
que vivem nas favelas são “fábrica de produzir marginal”. Ele defendia o
aborto pra conter a criminalidade. (TREVISAN, 2018)

O racismo, assim como o machismo, quer sempre ser servido: é preguiçoso!


O ideal de mulher para o machismo é aquele que, de tão “recatado”, facilita
bastante o trabalho a que o machismo se propõe: explorar, se beneficiar da
força do trabalho alheio e manter a vítima asfixiada, paralisada, emudecida
e inofensiva, o máximo possível personificando o biopoder que explora,
abandona e mata. São as mulheres negras as maiores vítimas dessa realidade

295
racista e sexista, como nos informam as estatísticas oficiais que estampam
o racismo de Estado, agindo contra mulheres negras, como denunciam as
organizações de mulheres, a exemplo do noticiado no site da Agência Pagu[81]

O Ministério da Justiça aponta ainda que esse segmento populacional é


maioria entre as vítimas de tráfico de pessoas. E, de acordo com o Ministério
do Trabalho, são também a maioria entre as vítimas de assédio moral e
sexual no trabalho. Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade
do Ministério da Saúde (SIM/MS) de 2012 indicam que as mulheres negras
são 62,8% das vítimas de morte materna, considerada por especialistas
como uma ocorrência evitável com acesso a informações e atenção ade-
quada do pré-natal ao parto. 65,9% das mulheres submetidas a algum tipo
de violência obstétrica no Brasil também são pretas ou pardas, segundo o
estudo Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento
ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar, publicado em 2014,
nos Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.

Já se pode ver que o que interessa ao racismo e ao machismo, como estrutu-


rantes das desigualdades sociais, é continuar com a manutenção do poder e
garantir os seus privilégios, ainda que à custa das violências que são diaria-
mente praticadas contra a população negra com a agência e conivência do
Estado, seja pela sua administração direta, quando deixa de implementar
políticas públicas eficazes que garantam a cidadania plena, seja pela admi-
nistração indireta, quando deixa de garantir o cumprimento dos preceitos
constitucionais.

Os casos de racismo institucional são situações tão componentes do coti-


diano brasileiro que têm sido retratados em filmes e novelas. Nas cenas do
filme Jardim das Folhas Sagradas, que trazemos para ilustrar o nosso debate, a
homofobia, o racismo religioso, o racismo institucional emergem da trama.
Detenho-me naquelas cenas especificamente gravadas dentro do ambiente
de trabalho do protagonista, aproximando-me da análise de conteúdo para

[81]  Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/violencia-e-ra-


cismo/. Acesso em 01/08/2018.

296
percebê-las como inseridas na temática aqui discutida acerca do racismo e
outras discriminações dentro da administração direta e indireta, ou seja,
pelo Estado brasileiro.

A narrativa daquele cotidiano corporativo que nos foi trazida pelo diretor,
Pola Ribeiro, me instigou a pensar se aqueles fatos foram intencionalmente
ali retratados como uma maneira de se dar visibilidade às discriminações e,
a partir daí, implantar ações para superar essas ocorrências com o mapea-
mento e o tratamento que possibilitem a (re)educação das pessoas. De outro
lado, observei que as cenas já fazem parte de um imaginário que não apenas
aceita, mas também reproduz, banaliza, naturaliza, faz “piada” com as situações
discriminatórias de racismo, homofobia, dentre outras que são vivenciadas
cotidianamente.

O racismo atinge indivíduos e coletivos. Como discurso dominante, intenciona


moldar pessoas e comunidades como subalternas, faz da aparência de uma
pessoa motivo de escárnio e de exposição ao ridículo e alvo das desvantagens
que lhe imporão um lugar de submissão e inferioridade social e econômica.
Esse racismo tanto é individualizado, como institucional, como nos explica
Nádia Cardoso: “Estamos utilizando aqui um conceito de racismo que, para
além de crenças, se refere às ações individuais e institucionais que tenham
como consequências a subordinação da população negra” (2010, p. 9).

O racismo conjugado com as suas interseccionalidades (gênero, classe, origem,


sexualidades, etc.) aprisiona, acorrenta pessoas em campos de imobilidade
e em suas desproporcionais forças discriminatórias, causando prejuízos
às suas vítimas, muitas vezes irreversíveis. Hoje, com os estudos realizados,
já se sabe que as opressões atuam de mãos dadas atingindo populações de
distintos territórios, nos mais diversos aspectos da construção dos direitos
humanos, como no explicita Nádia Cardoso:

Assim é que, a constatação das profundas desigualdades raciais no sistema


de ensino superior brasileiro como resultado das desvantagens acumuladas
pela juventude negra afetada pelo racismo e pela discriminação racial

297
coloca em crise a crença da sociedade brasileira como democracia racial
exemplar para o mundo e desconstrói a mestiçagem como estratégia de
inclusão social e de alcance do desenvolvimento e do progresso nacional.
(CARDOSO, 2010, p. 227) (grifo nosso)

Como se pode perceber, o racismo é praticado em vários segmentos da socie-


dade, quer seja individual ou institucionalmente causa grandes danos à
sociedade, especialmente às comunidades negras, como nos mostra o estudo
de Tiago Vinicius André dos Santos que identificou, na Segurança Pública, a
ocorrência de racismo institucional:

Segundo as estatísticas, os negros são vítimas costumeiras de persegui-


ção, tortura e morte, além de mais numerosos na população carcerária.
O racismo institucional na segurança pública é discutido, num primeiro
momento, levando-se em consideração aspectos jurídicos, históricos e
sociológicos relevantes para a compreensão da violência policial incidente
sobre a população negra (crime, criminologia, segurança pública, polícia
e sua relação com a questão racial no Brasil) e, num segundo momento,
a partir de uma perspectiva jurídica, como uma forma de discriminação
indireta. (SANTOS, 2012, p. 10) (grifo nosso)

São braços de uma mesma raiz, árvore cujos galhos se tocam e se sustentam: o
machismo, o capitalismo, o racismo, a gordofobia, a lesbofobia, a homofobia,
os preconceitos de origem, classe, nível de escolaridade, a misoginia, a trans-
fobia e todas as opressões existem de forma clivada e, uma vez entrelaçadas,
pisoteiam as liberdades individuais e coletivas. Essas opressões se apresentam
em blocos coesos, andam juntas, mas nem por isso são sempre fáceis de serem
detectadas, pois se apresentam muitas vezes em faces variadas. Daí a impor-
tância de se pensar meios para combater essas situações discriminatórias
dentro e fora das escolas, casas, órgãos públicos, empresas. As violências são
muitas vezes silenciosas – como se estivesse tudo bem –, o crime é feito na
surdina, são olhares furtivos, “piadinhas” quase inaudíveis, risinhos, omissões,
sobrecargas de trabalho, oposição de obstáculos à ascensão profissional ou
até mesmo à simples realização do trabalho.

298
Por isso mesmo, metodologicamente, as narrativas biográficas são fontes
representativas do desafio aqui proposto: problematizar, em ambientes
corporativos, a ocorrência de casos que se amoldam às condutas e compor-
tamentos que tipificam o crime de racismo. Esse comportamento insidioso
não atua sozinho: faz-se acompanhar de outras discriminações, a exemplo
da gordofobia, da falta de equidade de gênero e das homo e transfobias.

Vários meios são empregados como instrumentos para a prática desse “crime
de racismo”, além dos tiros de arma de fogo: uso de expressões pejorati-
vas, emprego de palavras que desestabilizam a saúde emocional, discursos
embutidos nas “piadas” e “brincadeiras” que servem para escamotear a real
intencionalidade de discriminar, diminuir, infernizar, adoecer e, por fim,
expulsar a vítima do ambiente que o racismo considera não ser “apropriado
a certos tipos de gente”, como podemos ver na fala da personagem racista
do filme em comento, que se refere ao “escurinho do café” como pessoa “que
não sabe o seu lugar”.

A presença desses corpos “que não sabem o seu lugar”, como diz a persona-
gem racista do filme, apenas é tolerável quando estão a serviço do bem-estar
e da geração de lucros ao racismo. Apenas são “permitidos” em situações de
subalternidade, limpando-lhes as suas sujeiras, cuidando das suas crianças
sem salários à altura, lavando as roupas que vestem e que se apresentam tão
garbosos em seus colarinhos brancos (à custa do trabalho mal remunerado
de uma passadeira, certamente, uma mulher negra). Porque são geralmente
espoliadores da força de trabalho alheia, o racismo, o capitalismo e o machismo
se servem da própria torpeza. Desrespeitam as pessoas negras, as mulheres,
as sexualidades dissidentes, as profissionais do sexo, as pessoas aprisionadas,
as religiões de matrizes afro-indígenas, mas se servem, quando lhes convém,
de todas essas identidades excluídas.

Se lembrarmos mais uma vez Kabenguele Munanga quando nos diz que vive-
mos em uma “sociedade colonizada” (2008, p. 10) em que se foi implantado o
mito da democracia racial – que adota parâmetros colonialistas para explicar
uma “sociedade colonizada” que viveria “feliz da vida em um país de pardos,

299
mestiços como exemplo de miscigenação que deu certo” – damos conta de
que esse olhar “esquece”, “ignora”, “invisibiliza”, “apaga” a história brasileira
de que “pardos”, “essa linda mestiçagem”, são fruto de ações criminosas. São
fruto de milhares de estupros de mulheres negras e índias feitos pelos homens
colonizadores. Embora tenha sido descrita pela ótica do colonizador como
uma “coisa maravilhosa, um exemplo de harmonia entre raças”, sabe-se bem
que essa prática criminosa e irresponsável deu origem à existência histórica
de milhares de crianças abandonadas, “abortadas pelo pai”, pois não compa-
recem às suas obrigações patenas no provimento de condições dignas de vida.

A masculinidade no Brasil apresenta grandes mostras de irresponsabilidade


que resvalam nas ações criminosas de pais, padrastos, primos, tios, avôs,
estupradores em geral. Colabora de maneira decisiva para que crianças, ado-
lescentes de 13, 14 anos sejam um grande percentual de mães solteiras, sendo
uma das explicações para a existência de crianças abandonadas no Brasil. O
abandono por parte de parceiros, companheiros, maridos, namorados é causa
de óbitos decorrentes de interrupção de gravidez, abortos que são praticados
em todas as classes sociais, mas que atingem letalmente as mulheres negras.
O abandono causado por governantes, historicamente homens brancos,
deixa de implementar políticas públicas de segurança que visem proteger
as meninas, as mulheres negras e os homens negros dos comportamentos
criminosos, nos mais distintos ambientes, quer sejam privados, domésticos,
quer sejam nos ambientes institucionais, nas empresas, escolas, dentre outros.

O racismo e outras discriminações se repetem sempre para explorar, para


se aproveitar, para ganhar mais dinheiro e se locupletar daquelas existên-
cias maltratadas e ultrajadas pelo capitalismo machista, classista e racista.
Tratamentos torturantes são desferidos para desumanizar as pessoas, estig-
matizando os corpos negros, femininos, transexualizados, gordos, como pode-
mos ver do trecho seguinte em que Maria R (identidades foram preservadas),
ex-funcionária terceirizada de um ente da administração direta, nos relata:

Por mais que eu desempenhasse a minha função com o maior afinco... eu


sempre ando bem arrumada, bem maquiada, eu chegava no horário, saia

300
no horário ela sempre achava uma picuinha, uma piadinha pra fazer,
uma implicância pra fazer.. ela... [...] “Maria tomou o café todo, a gordinha
comeu tudo” ficava sempre fazendo esse tipo de piadas, está acabando com
tudo e ficava sempre com aquele tipo de piada...e aquilo me machucava,
me incomodava não pelo fato de eu ser gordinha, mas pelo fato dela me
acusar de roubar comida por ser gorda, ela dizia, eu nunca roubei nada e
eu não precisava roubar comida, eu nunca precisei roubar comida se eu
sou gorda é porque tenho dinheiro para comprar um bocado de comida
e... era no ambiente de trabalho porque se fosse em ambiente que ela não
fosse minha chefe, se ela não fosse minha superior na hierarquia eu poderia
responder, [...] por ela ser uma chefe, uma superior, eu não podia responder
de uma maneira grosseira, eu tentava falar, mas ela não me permitia e
saia dando risada, ela não permitia ela me fazia chacota ela fazia piada,
ela me fazia de piada [...] ela me puxava pelo braço pra falar alguma coisa
para fazer piada, para que as outras pessoas rissem, e os outros não riam.
Ela sempre buscava uma picuinha pra contar que eu era gorda. (grifo nosso)

A violência psicológica é feita por ações/omissões torturantes que buscam


inferiorizar as pessoas, desconsideram a capacidade volitiva e sob as formas
mais cruéis revelam a “ilusão do poder”. A máxima de que “quer conhecer uma
pessoa dê-lhe poder” é aqui expressamente narrada por Amelia Y.

Eu sempre trabalhei alegre. Gosto de trabalhar, gostava muito da empresa.


Em um setor a gerência me perseguia. Tudo que eu fazia tinha defeitos. Eu
sempre fiz meu trabalho com seriedade. Sempre fui ótima funcionária. Eu
não sabia o que tinha de errado comigo porque sempre fui elogiada pelo
serviço sempre. Por onde passei. Aquilo foi dando uma tristeza, eu não
conseguia mais me motivar. Fui ficando deprimida. Não sabia mais o que
fazer (choro contido). Caí na depressão. Estou de licença. Eu trabalhei no
atendimento e caixa. (grifo nosso)

Chefias, gerências, supervisões, comissões acionam, nas mais variadas situa-


ções, as mentes colonizadas. Pensam que ainda estão no período da escravidão,
sentem-se os brancos, os privilegiados, senhores feudais, donos de engenho,

301
fazendeiros, latifundiários, “autoridades” que, para a manutenção dos seus
status, para o exercício desses “poderes” cuja “podridão” vem sendo diutur-
namente mostrada pelas mídias, podem agir, se comportar como se fossem
seres “acima do bem e do mal” e estivessem acima da dignidade das pessoas.
O racismo institucional, a gordofobia, a homofobia, que são propagados pelos
prepostos, massacram as suas vítimas, tirando-lhe a paz, o sossego. As vítimas
são estigmatizadas, tratadas com desrespeito com o fito de lhes desacreditar
a imagem, afetar-lhe a dignidade humana, de ferir o amor-próprio como se
pode constatar do trecho abaixo, em que Maria R., por ser gorda, é “acusada”
de roubar comida e se sente “acuada, constrangida”:

Eu me sentia acuada, constrangida. E aí, posterior a isso, depois aconteceu


também na situação da torta, ficava na geladeira e sempre sumia... uma
funcionária estava comendo e ela chegou e falou: “você ainda achou algum
pedaço?! porque lá vem a gordinha, lá vem a gordinha, vai comer tudo!”
[...]. Como se ser gorda... ela o tempo todo, fosse um motivo de piadas,
de brincadeira, se é pra ela, azar o dela, pra mim não! Pra mim pode ser
no meu ambiente pessoal...com amigos... Uma coisa é no meu ambiente
pessoal, entre amigos, mas com ela? No ambiente de trabalho? Era uma
acusação de roubo. Roubar comida? Aquilo não era uma brincadeira e sim
uma acusação. Roubar comida? Uma coisa bem desagradável! (grifo nosso)

A vileza das palavras proferidas, o peso dos discursos inferiorizantes e estig-


matizantes – o desrespeito aos direitos humanos – são atitudes que inibem
a reação das vítimas, dada a profundidade com que atingem a dignidade.
Alteram a capacidade de interação com as pessoas e com o espaço em que se
dão essas violações, mantendo-as em um distanciamento do que é aceitável,
educado, civilizado:

Houve outra pessoa que fazia piada comigo, piada comigo nesse mesmo
ambiente de trabalho, que o papel higiênico acabava eram várias pessoas
que usavam o banheiro. O banheiro era um só. A funcionária, a pessoa que
ia ao banheiro que via a quantidade que diminuía do papel higiênico...ela
questionava, “Maria foi ao banheiro, [...] está acabando o papel higiênico todo

302
[...]”...eram piadas bem pejorativas, do gasto do papel higiênico, e que eu
mais uma vez fui motivo de piadas. [...] Naquele momento eu precisava ser
reconhecida. Até porque eu atendia 6 telefones, atendia superintendentes
de todo o país, nunca houve queixa, reclamação, de um mal atendimento,
de algo que foi ineficaz, o meu trabalho estava ocultado por ser gorda. Isso
era irrelevante naquele momento, O fato de ser gorda não me impedia de
chegar no horário, realizar nenhuma das minhas funções. (grifo nosso)

A contextualização das violências nos ambientes corporativos, em que se


precisa estar diariamente, parece não ter fim e isso se dá, certamente, porque
a convivência diária, obrigatória, proporciona diferentes situações, uma vez
que a presença daquela pessoa que acarreta(ou) dano à saúde mental, psicoló-
gica, emocional da vítima é imposta pela circunstância e a vítima precisa do
trabalho para sobreviver. As vítimas são coagidas a conviver com agressões e
inferiorizações desferidas por superiores dentro da hierarquia da corporação.

As vítimas são perseguidas, torturadas psicologicamente até que chegam em


um determinado momento em que não mais suportam e vão embora. Então
são novamente estigmatizadas de preguiçosas, fracas, etc. Fogem, abandonam
o emprego e/ou adoecem, como relatou Almeida E (codinome para preserva-
ção de identidade), rapaz negro, gay assumido que foi estagiário e que, não
suportando as investidas racistas e homofóbicas de um gerente, terminou
por ter o seu contrato de estagiário encerrado, como diz:

Sim, sofri perseguição do Gerente. Nada que eu fazia prestava. Eu sempre


trabalhei bem e fui elogiado pela gerente que o antecedeu, mas quando
ele assumiu a carteira, começou o inferno. Eu não aguentei e saí. Eu vou
dizer, para me perseguir daquele jeito.... ele deve ser gay também, só que
vive dentro do armário. (grifo nosso).

Essa fuga prejudica os interesses pessoais e profissionais das vítimas, sinali-


zando prejuízos à sua saúde. Alice F. narra que foi perseguida com aumento
de volume no trabalho e falta de reconhecimento nas promoções, ascensões
dentro da empresa:

303
Ocorreu que quando finalmente fui promovida, a supervisora me massa-
crava com o aumento de volume de serviços. Ela passava para mim o dobro!
O dobro do que passava para outros funcionários e o dobro do serviço que
repassava para a outra funcionária loura que estava no mesmo patamar
que eu naquele setor. Eu não tinha percebido. Sempre trabalhei tanto e
nunca, de verdade, nunca me preocupava qual a quantidade de serviços
fora passada para as demais pessoas. Eu chegava, pegava meus papeis, via
os trabalhos que tinha para ser feito e começava a fazer. Ficava exausta,
mas nunca reclamava diretamente por isso porque eu achava que o serviço
estava sendo distribuído por igual. Ledo engano! Eu estava extenuada. Eu
não conseguia fazer mais nada a não ser trabalhar. Eu não tinha energia. Eu
sempre fiz cursos, sempre fiz atividades físicas, mas ali naquelas condições
eu não conseguia. Certo dia, a funcionária que distribuía o serviço disse
para mim: está demais, viu? Por que essa quantidade tão grande para a
senhora? Eu falei não...está difícil para todos nós. Ela respondeu: a senhora
não está vendo...está vindo o dobro para a senhora! Ela está jogando duro,
sem pena! Eu mesma já estou com raiva disso. Então, né, Eu fui perguntar
aos outros colegas e realmente: a chefe passava o dobro do serviço para
mim! E, realmente, ela tinha um candidato (homem branco) para ocupar
a vaga que eu passara a ocupar. Foi horrível. Fiquei um bagaço com aquilo
tudo. Já andava tão cansada de tanto serviço e ainda aquilo. Fiquei acabada
com aquela situação. [...] Eu não tive reação, exceto vergonha daquilo tudo.
Depois ela saiu rindo e foi sentar na mesa dela. (grifo nosso).

O racismo e outras discriminações dentro desses ambientes se dão nos mes-


mos moldes: perseguição, desqualificação, descrédito, humilhação até que
as vítimas não suportam mais e saem, pois é a ausência das vítimas daquele
lugar o que desejam esses assediadores. Agem nesse intuito: expulsar a vítima
dali, daquela empresa, daquele cargo. A fala de Maria retrata, igualmente,
mecanismos de desestabilização emocional, psicológica e psíquica que são
eficientes no sentido de promover adoecimentos:

304
Houve uma outra funcionária também que... em outro setor que fazia
também muita piada era uma constante, [...] eu fiquei em um nível de
stress elevadíssimo.... tinha outros tipos de perseguição, além do fato de
eu ser gorda, dizendo que eu ficava horas dentro do banheiro porque eu
sempre andei muito bem maquiada, recebia elogios por minha maquia-
gem impecável! por isso nunca retocava maquiagem no banheiro. [...]eu
fiquei depois que eu sai nessa paranoia mesmo em casa eu ia no banheiro
rápido cronometrando eu fazia xixi 1:06 seg, eu sabia dizer os horários, eu
decorava os dias e os horários que eu fiz xixi, eu lembro que numa sexta
feira dia 07 de agosto 2015, eu fiz xixi às 05:20, eu decorava, eu sabia quantos
xixi eu fazia por dia, eu fiquei paranoica, eu tinha que dar satisfação do
meu xixi, eu comecei a pesquisar de quantas vezes é normal fazer xixi. Eu
fazia xixi três dias. Eu fiquei paranóica. [...]. Eu descobri essa doença pra-
ticamente quando eu saí porque eu tive uma crise de nervoso de stress, o
médico desconfiou que tinha alguma coisa errada com a minha coluna e
a ressonância detectou na lombar. (grifo nosso).

“As piadas”, “as brincadeiras” vão sempre no sentido de menosprezar. São


bullying. Nada daquilo que é feito pela vítima presta. Ao revés, aquelas nuances
da existência da pessoa escolhida como vítima de estigmatização serão a todo
o tempo ressaltadas, como narra Alice F. a indignação de outra empregada
que percebeu as discriminações. A qualidade do trabalho das vítimas jamais
é considerada:

Outra coisa: ela não lhe elogia, mesmo com resultados positivos. Mas pra
outras pessoas ela elogia e escreve: “Parabéns!”. Eu vejo. Eu perguntei: por
que será? A funcionária respondeu: acho que é porque ela ficou com raiva
porque o candidato dela perdeu a vaga pra senhora, ou porque a senhora é
boa demais, mesmo! Consegue fazer esse trabalho todo e ela nunca vê!? E por
que o da outra funcionária que ela gosta ela vê e fala bem alto com o elogio
pra todo mundo ouvir?! Isso é discriminação com a senhora. (grifo nosso)

Sempre que possível, as vítimas são invisibilizadas, exceto quando é para o


destaque negativo, como narra Maria R.:

305
eu estava entrando na agência ao lado dessa funcionária, eu e essa fun-
cionaria do meu lado, e o cliente veio: minha gerente, veio falar comigo e
aí eu falei, não sou a gerente, é ela. E ela falou: Sou eu. Por que você acha
que essa gorda é a gerente? Então eu fiquei ... o que tem a ver gorda com ser
gerente?... gerente não pode ser gorda?.... (risadas) mas é isso. Como existia
uma questão de hierarquia eu deixei ela e fui fazer o meu trabalho. Claro,
sempre informando à empresa tudo o que estava ocorrendo comigo. Em
todos os momentos comigo. Eu sempre notificava à empresa esses tipos
de situações que não eram adequadas. (grifo nosso)

As ações criminosas ignoram os resultados positivos do trabalho das víti-


mas, fazem questão de impor situações limites; a repetição dos ataques, das
agressões travestidas de “brincadeiras” são opressões impostas pelo poder de
“demitir”, de avaliar, de interferir na vida da vítima. O direito à liberdade é
atingido, posto que é fato público e notório que no Brasil o direito de escolha
de estar neste ou naquele emprego é diminuto, dado a carência de postos de
trabalho. Este fato facilita para que situações abusivas ocorram, toda vez que
abusadores sabem que as vítimas precisam do trabalho para a sobrevivência e
a satisfação das suas necessidades pessoais, dificultando-lhe a defesa e reação.

Alice F., mulher negra, relata que possuía, “há muito tempo”, os requisitos
para ascensão profissional, mas mesmo tendo surgido várias oportunidades,
nunca era promovida.

Eu fiquei durante anos esperando a minha promoção. Sempre trabalhei


muito. [...] Eu chegava a substituir funcionários que ocupavam esses cargos
superiores ao meu na hierarquia da empresa, em verdade, eu já ocupava
de fato porque fazia o serviço que seria de um cargo superior ao meu.
Todavia, quando surgia a vaga, a oportunidade de ocupar o cargo melhor,
lá vinha uma pessoa não sei de onde, indicada por não sei quem, que era
branca, loura e recebiam a comissão, mas a minha promoção não vinha.
Era ridículo. Muitas vezes essas pessoas não tinham o mesmo nível de
experiência e conteúdo jurídico que eu tinha. Eu me sentia impotente.
Me sentia triste. [...] Dava raiva!

306
Mentes colonializadas gerando padrão de injustiças, negando direitos, obsta-
culizam o acesso à ascensão profissional contaminando o ambiente de traba-
lho com doenças decorrentes das suas ações e omissões, como relata Alice F:

Dava tristeza enorme também, eu fui ficando desgostosa, chateada. Deses-


timulada. Mas sempre fazia questão de fazer o melhor trabalho e eles se
aproveitavam bastante disso: me atolavam de serviço. Perante os colegas
eu me sentia inferiorizada porque todo mundo ali sabia da minha capaci-
dade e eu não era nomeada nunca, mesmo surgindo várias oportunidades.
Nunca falaram nada, exceto “não tinha o perfil” só posso imaginar que era
a minha cor, porque sou uma mulher negra assumida. A minha estética,
os meus cabelos crespos, a minha religião – sou do candomblé – deviam
interferir naquelas nomeações porque o tão propalado “perfil” eu tinha
e isso também fazia com que outras pessoas do setor ficassem revoltadas
com aquela situação. Por que não me promoviam se eu já tinha provado
muitas vezes que tinha capacidade técnica e perfil psicológico para tal?
Que diacho de “perfil” era esse que eu não tinha? [...] Comecei a sentir muita
raiva de tudo aquilo ali. Na verdade, acho que comecei a sentir nojo. Fiquei
com depressão diagnostica. (grifo nosso).

Das diversas narrativas pode-se ver como agem os superiores hierárquicos


no sentido de atacar as pessoas que estão em degrau anterior na escala hie-
rárquica corporativa. Continuemos com a narrativa de Alice F. que fala por si:

Era de costume saírem para almoçar juntos, principalmente dia de sexta-


-feira ou, quando havia visitas de inspeção e chegavam funcionários de
outros locais. Esse superior chamava as pessoas em voz alta chamando
pessoas do setor que ficava colado ao nosso: Vamos, fulano? Vamos sicrana?
Vamos almoçar não sei onde? Chegava mesmo a levantar da cadeira, olhar...
procurando pessoas para o seu convite... Aconteceu de eu estar sozinha no
setor, ficava na minha, continuava trabalhando normal, mas ele não me
chamava...era como se não estivesse me vendo. Eu sempre estava ali porque
não tinha como dar conta do serviço senão trabalhando muitas vezes sem
tirar a hora do almoço. Observava: esse chefe nunca me chamava. Chegava

307
a ser acintoso! Ele chamava as pessoas em tom alto. Eu ouvia e todas as
pessoas ouviam, mas a mim...ele nunca chamou. Nunca. Trabalhávamos
juntos, no mesmo setor. Eu só posso admitir que era pela minha cor. Tam-
bém pode ser porque sou lésbica. Nunca espalhei, também nunca neguei.
E eu já tinha ouvido algumas vezes, ele fazer tipo piadinhas baixinho com
uma colega que era lésbica. Era covarde. Na frente era educado, parecia
gentil, mas quando abaixava a cabeça...fazia troças com as pessoas. Era
sarcástico e falava piadinhas racistas e homofóbicas. Eu ouvia porque
estava silêncio e muitas vezes só tinha eu e ele trabalhando no setor.
Talvez fizesse de propósito para que eu ouvisse mesmo...não sei direito.
Algumas vezes foi injusto comigo, mas sempre relatava situações em que
ele próprio sofrera injustiça por parte de um chefe. Também ocorreu de
outras 2 colegas negras virem para este setor.... era vergonhoso... ele tam-
bém nunca as chamava. Só chamava uma outra do setor contíguo que era
negra (mas o cabelo era alisado. Como dizia outra funcionária do setor: ela
pensava que era branca) e era mesmo nível salarial dele, mesmo patamar
hierárquico que esse gerente. Pelo menos eu nunca vi, exceto quando não
tinha jeito, era tipo aniversário de alguém que aí a gente era chamada e
eu, por respeito a quem estava aniversariando, ia. Não por ele ter chamado,
mas geralmente quem estava organizando a confraternização. Veja... eu
não tinha qualquer interesse em almoçar com ele, mas aquilo era uma
discriminação explícita. Não apenas para mim, mas também para as outras
colegas negras que estavam trabalhando ali, né? (grifo nosso)

Esse poderio sente-se como se fossem “reis’ e “rainhas”, mas de uma estirpe
tirana, que maltrata a sua própria aldeia, como podemos ver a insídia que
nos narra Maria B. e as outras narrativas quando nos falam sobre os assédios
sofridos. A situação de maior vulnerabilidade social das vítimas, identidades
que estão “fora da caixinha”, do padrão heteroeurobranconormatizado parece
atiçar as agressões que não se contentam em espezinhar a autoestima, o
amor próprio das vítimas, colocando obstáculos à ascensão profissional,
como narra Aline F:

308
E o pior... nomeavam pessoas que sequer tinham os requisitos que eu já
tinha. Eles colocavam requisitos e eu tinha todos! Todos! Tinha experiência,
tinha títulos, tinha expertise, tinha boas relações no ambiente de trabalho,
todos, inclusive os mais experientes do setor, reconheciam a qualidade do
meu trabalho e a própria gerência também, mas era só de boca porque no
papel não me nomeavam. Quando eu perguntava respondiam...na próxima.
E a próxima vaga chegava e novamente... nada! (grifo nosso)

As ofensas nem sempre parecem ter uma razão lógica, exceto quando se
analisam esses comportamentos como parte de um conjunto que rejeita as
populações excluídas dos lugares de mando, poder, gerência, direção, como
nos faz ver a narrativa de Alice F.

Era uma situação frustrante e humilhante. Comecei a ficar infeliz ali


dentro, me sentia discriminada, preterida, injustiçada. [...] O fato é que
na hora do pesado, das dificuldades sabiam que podiam contar comigo
e contavam! Mas na hora do reconhecimento.... a branquitude levava
a melhor. Nada pessoal, mas a situação era vexatória e era sempre. Era
isso. Muito revoltante! Eu estava muito cansada, sentia tonturas, ficava
extremamente consternada quando via outras pessoas chorando porque
também se sentiam exauridas e atoladas de serviço. Presenciei, diversas
vezes, homens e mulheres chorando dentro do setor. Presenciei brigas, dis-
cussões, xingamentos de chefes com funcionárias por excesso de trabalho,
um ambiente nada saudável. Imagina a minha situação que já estava ruim,
mas sempre ajudava, acalmava colegas e estagiários que sempre vinham
buscar conforto em mim.

Falamos aqui de pessoas excluídas, “fora da caixinha”, identidades mostradas


pelas opressões impostas que teimam em desacreditar as ditas “minorias
sociais”, que em verdade constituem a maioria da população brasileira. São
pessoas pobres, negras, mulheres, transexuais, lésbicas, gays, bissexuais, queer,
gordas, indígenas, praticantes das religiões afro-indígenas, as pessoas campo-
nesas, todas as pessoas sobre as quais pesam a pecha de “abjetas”, inferiores,
os “corpos que pesam”, como diz Judite Butler (2000).

309
Conclusão

As estatísticas mais alarmantes quando se trata das mulheres negras, na forma


demonstrada, atualizam a Declaração da III Conferência Mundial contra o
Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, parágrafo 69:

Estamos convencidos[as] de que racismo, discriminação racial, xenofobia e


intolerância correlata revelam-se de maneira diferenciada para mulheres
e meninas, e podem estar entre os fatores que levam a uma deterioração
de sua condição de vida, à pobreza, à violência, às múltiplas formas de
discriminação e à limitação ou negação de seus direitos humanos.

O genocídio de jovens (REIS, 2005), a mortandade, a violência obstétrica, as


vítimas de feminicídios expõem o racismo do Estado brasileiro, descumpridor
dos princípios constitucionais, dos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência na construção de uma sociedade livre
de preconceitos e discriminações.

Assim, o funcionário/a público/a, o/a empregado/a que age contrariamente


a esses princípios, permitindo a ocorrência de atos racistas e machistas, está
cometendo um “crime” contra a administração pública, além do crime contra
as pessoas vítimas dessas ações e/ou omissões. Já sabemos que o racismo, assim
como discriminações, faz parte da realidade brasileira, como nos alertou Luiza
Bairros (2011), mas precisa ser combatido em todas as esferas e instâncias como
um racismo de Estado, inconcebível em um Estado democrático de Direito.

As situações de violência tornam-se tão banalizadas, como são no mais das


vezes as situações já relatadas, que fica difícil às vítimas reagir. Muitas vezes
a única coisa que querem é escapar daquela ambiência doentia. As desigual-
dades sociais que decorrem da repetição de padrões preconceituosos são
discriminações que representam condutas criminosas, ilegais, antijurídicas
e inconstitucionais. As situações são torturantes, doentias, por mais que se
tenha uma atitude de resistência, por mais que se queira resistir, tem uma
hora que a vítima vai sucumbir à violência. As narrativas apresentam exem-
plos de ataques inequívocos, de potencialidades letais à dignidade, ao direito

310
de viver em paz que cada ser possui. Ações/omissões que geram transtornos
mentais, como a depressão, que foram abertamente mencionados em mais
de uma narrativa.

As cenas mostradas no filme e nas memórias de pessoas noticiam que a


Administração Indireta está consentindo, com práticas discriminatórias que
são impensáveis para organizações fundamentais aos interesses da União.
Essas empresas públicas e sociedades de economia mista estão incorporadas
ao patrimônio da União, da República Federativa do Brasil. São, portanto,
de todas as cidadãs e cidadãos brasileiros. O “pensamento único” que visa
implantar relações verticais de exclusão e negar equidade e efetividades aos
direitos humanos, já previsto por Milton Santos (2001), foi propositadamente
colocado para que a mobilização social seja dificultada, para que se garanta
o contingente atingido pela miséria, a exclusão de comunidades inteiras aos
bens sociais, às riquezas geradas no país onde moram e trabalham.

Algumas marcas institucionais fazem parte da vida, das memórias. Essas


marcas constituem o que é ser cidadão brasileiro, porque nos mais distantes
e esquecidos rincões, poder-se-ia contar: Correios, Banco do Brasil e Caixa
Econômica fazem parte de uma memória coletiva. Essa atuação empresarial
que possibilita práticas racistas e discriminatórias de qualquer natureza vai
também de encontro ao estipulado na Constituição Federal art. 5º, XLII que
prevê como conduta típica, como conduta criminosa, antijurídica, a prática
do racismo que é um crime apenado com reclusão.

De igual maneira, porque o crime de racismo apresenta-se como ameaçador


à sociedade e fere de morte a dignidade humana, esse crime é imprescritível.
Ou seja, a qualquer tempo, a vítima poderá denunciá-lo perante a sociedade,
formalizar a sua “queixa” perante uma delegacia, levando assim a notitia
criminis ao conhecimento das autoridades policiais que deve levar ao conhe-
cimento do Ministério Público.

311
O racismo é crime[82] de alto potencial ofensivo e, por isso mesmo, a sua prática
poderá ser objeto de investigação pelas autoridades policiais e pelo Ministério
Público, mesmo que não haja a denúncia dos fatos. Por ser imprescritível, poderá
ser apurado a qualquer tempo. Basta que as autoridades tenham conhecimento
para que tenham a obrigação funcional de deflagrar a investigação policial
e a ação criminal no intuito de responsabilizar as pessoas responsáveis para
que respondam criminalmente pelos atos racistas.

O racismo institucional já abordado em outros trabalhos acadêmicos, a exem-


plo de Ângela Ferreira Pace (2012), é um velho conhecido das pessoas negras,
suas vítimas. As discriminações são reproduzidas dentro das repartições
públicas e empresas, tornando a vida laboral das vítimas mais difícil, pois além
de serem submetidas aos desgastes próprios do trabalho, precisam enfrentar
o preconceito que lhes diminui as chances de ascensão social. Não olvidamos
que outros grupos sociais também sofrem esses ataques criminosos que levam
ao sofrimento físico e psicológico, como nos narra Maria R. cuja narrativa
biográfica corrobora a existência de práticas discriminatórias. Identifica-se
com o estudo realizado que há, de forma inconteste[83], o emprego de práticas
racistas, preconceituosas e discriminatórias que dificultam a vida de empre-
gados e empregadas, e que as discriminações dentro dos ambientes laborais
exigem um tratamento adequado para que essas práticas criminosas deixem
de se repetir e reproduzir desigualdades sociais, raciais, sexuais e de gênero.

[82]  Racismo é crime previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XVLII). O crime de
racismo foi disciplinado pela Lei Federal nº 7.716/1989, com a redação dada pela Lei Federal nº
9.459/19997), que em seu artigo nº 20 o tipifica (diz quais condutas podem ser crime de racismo)
e, também, diz qual é a pena a ser aplicada nos casos em que se praticar o crime de racismo
(Pena de Reclusão – 1 a 3 anos).

[83]  As cenas do filme mostram práticas preconceituosas e discriminatórias de racismo e


homofobia. Os relatos aqui trazidos deixam explícitas as ocorrências de condutas discrimina-
tórias na empresa. Há outras pesquisas que demonstram a situação de racismo institucional e
corporativo, a exemplo de “Chega de fingir que é normal. O Racismo Institucional no RH” vídeo.
Disponível em https://www.geledes.org.br/chega-de-fingir-que-e-normal-o-racismo-institucio-
nal-no-rh-veja-o-video/#gs.FrLNiF4. Acesso em 11/07/2017.

312
Entende-se aqui que é possível uma educação corporativa que leve ao respeito à
autonomia enquanto elemento primordial do ser humano se nesses ambientes
forem criadas “culturas corporativas” de valorização das construções históri-
cas, sociais, econômicas e psicológicas de cada pessoa. Essas discriminações
podem ser definitivamente elididas dos ambientes de trabalho, evitando que
as entidades da Administração Indireta e a pessoa responsável venham a ser
penalizados pela infração prevista no art. 20 da Lei Federal nº 7716/89 com
a redação que foi dada pela Lei Federal nº 9459/1997 - que dispõem sobre os
crimes de racismo e da Injúria Racial, conforme previsto no crime, tipo penal
do art. 140, § 3º do Código Penal; bem assim no Estatuto da Igualdade Racial,
Lei 12. 288/2010, art. 1º e seguintes, tudo no intuito de transformar a realidade
vivenciada dentro dessas corporações.

Devemos, também, lembrar que pesquisas têm demonstrado que “60% dos
negros dizem ter sofrido racismo no trabalho”[84], percentual que poderá ser
bastante elevado se entendermos que 92% (noventa e dois por cento) das pes-
soas negras afirmam que há racismo na contratação para as empresas, como
nos aponta essa mesma pesquisa. Ora, se o índice do racismo é elevado quando
da contratação, então, logicamente, será também elevado com aquelas pessoas
negras que conseguirem ultrapassar essa barreira de ingresso às empresas.
Mas, dado o alto índice de indicação de racismo nessa contratação, o fato de
ter conseguido entrar não significa que as relações raciais venham ocorrer
da maneira prevista nas normas internas e externas. Além do prejuízo civil,
há, também, prejuízo econômico/financeiro, pois ao deixar de ingressar no
emprego, perdem a oportunidade de ganhar valores salariais mais altos e de
adquirir bens e mobilidade na pirâmide social. São profissionais que têm as
suas carreiras corporativas usurpadas por ditames racistas, discriminatórios,
adotados por chefias e gerencias. As ações e omissões discriminatórias são
determinantes para a presença nos ambientes corporativos de pessoas que

[84]  https://www.geledes.org.br/60-dos-negros-dizem-ter-sofrido-racismo-no-trabalho-apon-
ta-pesquisa/

313
estejam inseridas nessas comunidades excluídas, mas as práticas criminosas
são noticiadas:

Cresce o assédio moral dentro da Caixa Econômica Federal[85]

[...] os empregados da Caixa, ainda sofrem com o assédio moral dentro


da empresa. A violência psicológica realizada nas agências e centros ad-
ministrativos da CEF tem ocasionado efeito devastadores para saúde e
desempenho dos funcionários.

Um ponto que influencia ferozmente nessas ações opressoras é o parcial-


mente implantado GDP/Caixa Gestão de Desempenho de Pessoas, que faz
parte da estratégia de gestão de pessoas. Baseado no sistema de meritocracia,
que por sinal é uma péssima forma de classificar pessoas, a ação acaba por
se tornar um instrumento que aperfeiçoa práticas de assédio.

Ainda se pode ver que esses comportamentos excludentes dentro das insti-
tuições e empresas vão desencadear doenças e prejuízos psíquicos, físicos
e psicológicos às vítimas desse racismo sistêmico, dessas discriminações
em função do corpo, da aparência física que se dá dentro das corporações
empresariais.

A Justiça do Trabalho no Piauí condenou o Banco do Brasil a pagar indeni-


zação por dano moral coletivo no valor de R$ 5 milhões por assédio moral
[...] “Os gerentes eram submetidos a pressões psicológicas muito além do
limite do suportável. O banco adotou um sistema baseado no medo e no
terror, que os levou a adquirir doenças físicas e psíquicas”, [...] A procura-
dora entendeu que o problema era de assédio moral organizacional, que
estava prejudicando vários empregados do Banco do Brasil e que aquele
processo precisava parar.[86]

[85]  http://www.fenae.org.br/portal/rj/informacoes/noticias-apcef/cresce-o-assedio-moral-den-
tro-da-caixa-economica-federal-1.htm

[86]  Disponível em http://www.prt22.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-go/112-justica-con-


dena-bb-assedio-moral. Acesso em 25/09/2017.

314
Das narrativas de Maria R, Alice F e das outras aqui trazidas emergem situa-
ções que são corroboradas, repudiadas pelas notícias de condenação dessas
entidades da administração indireta nos Tribunais brasileiros:

CEF é condenada a pagar indenização por assédio moral à caixa aposenta-


da[87]. Uma ex-empregada da Caixa Econômica Federal receberá indenização
de R$ 20 mil por dano moral decorrente de assédio por parte do gerente
geral da agência onde trabalhava

E as situações discriminatórias examinadas pelo Poder Judiciário em muito


se assemelham às narrativas biográficas aqui citadas:

Estagiária da Caixa Econômica Federal é ameaçada de demissão por ser


transexual[88]. [...] Fernanda diz que foi contratada como mulher e não
aceitava cortar o cabelo..[...] “As atividades eram cobradas aos gritos. Eram
feitas provocações na frente dos funcionários. Ele falou do meu cabelo, da
minha maquiagem. Nunca ninguém se envolveu para não se prejudicar”,
diz a estagiária. Fernanda alega também ter havido omissão por parte do
Departamento de Relacionamento com Funcionários da agência bancária.

O racismo e outras discriminações fazem parte da realidade brasileira que vem


sendo constatada por pesquisas científicas[89], denunciada diuturnamente pelos
noticiários, pelas estatísticas, pelos movimentos negros, de mulheres negras.

[87]  Disponível em https://pndt.jusbrasil.com.br/noticias/100643425/cef-e-condenada-a-pagar-


-indenizacao-por-assedio-moral-a-caixa-aposentada. Acesso em 26/09/2017.

[88]  Disponível em: https://www.sul21.com.br/jornal/estagiaria-da-caixa-economica-federal-e-a-


meacada-de-demissao-por-ser-transexual/. Publicado em: agosto 29, 2012. Acesso em 27/09/2017.
publicado em: agosto 29, 2012

[89]  Além das clássicas produções sobre o racismo e as suas implicações psicossociais de
Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Lélia Gonzalez, Maria Lúcia da Silva, Virgínia
Bicudo, podemos saber mais com Gênero, raça, desigualdades e políticas de ação afirmativa
no ensino superior, Artigo de Pesquisa de Paula Cristina Barreto; A legitimação do intelectual
negro no meio acadêmico brasileiro: negação de inferioridade, confronto ou assimilação
intelectual? de Ari Lima.

315
Referências
BAIRROS, Luiza – Entrevista. Não podemos ficar indiferentes ao fato
de que os negros morrem mais cedo quando comparados a qual-
quer outro grupo social. 2011. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
desafios/index.php?option=com_content&id=2675:catid=28&Itemid=23.
Acesso em 11/07/2017.

BRASIL, Constituição (1988) Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei Federal nº 7716/89 com a redação que foi dada pela Lei
Federal nº 9459/1997 - que dispõem sobre os crimes de racismo e da
Injúria Racial, conforme previsto no crime, tipo penal do art. 140, § 3º do
Código Penal.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do


“sexo” Em: LOURO, Guacira Lopes (org). O corpo educado: Pedagogias
da sexualidade. Traduções: Tomaz Tadeu da Silva. 2ª Edição Autêntica:
Belo Horizonte, 2000. Pgs. 151 – 176.

CARDOSO, Nádia Maria. Instituto Steve Biko: juventude negra mobi-


lizando-se por políticas de afirmação dos negros no ensino superior.
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestra junto à
Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Huma-
nas. Campus I. Orientador: Prof. Dr. Wilson Roberto de Mattos. Salvador,
2010. 246 pgs.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser


como fundamento do ser. Tese apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da USP para a obtenção do título de Doutora em
Educação. São Paulo. 2005

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem do Brasil. Tese


apresentada para obtenção do título de Livre Docente em Antropolo-
gia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. São Paulo, 1997

316
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Entrevista a Cláudia Cisiane Benetti,
Simone Freitas Gallina e Elisete Tomazetti Em: Refilo–Revista Digital
de Ensino de Filosofia. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/
refilo/article/view/31362/17240. Acesso em 02/03/2018.

O Jardim das Folhas Sagradas. Direção, Produção, Roteiro: Pola Ribei-


ro. Fotografia de Antonio Luiz Mendes. Intérpretes: Antonio Godi, Au-
ristela Sá Cidade: Salvador. 2009. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=dJpJf9tF9bg. Acesso em 01/07/2018.

PACE, Ângela Ferreira. Afro-brasileiros e racismo institucional: o pa-


pel dos concursos na democratização de acesso aos cargos públicos
/ Ângela Ferreira Pace – 2012. 151 f.: il. Orientador: Ahyas Siss. Dissertação
(mestrado) UFRRJ, Pós-Graduação em Educação.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à


consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2001.

SANTOS, Francineide Marques da.; MIRANDA. Humberto. Convenções


e tratados internacionais, currículo e direitos humanos: avanços e
recuos no Brasil contemporâneo. 2016. Disponível em http://www.co-
loquiocurriculo.com.br/diversos/Serie4.pdf. Pgs 237 – 246.

SANTOS, Tiago Vinicius André dos. Racismo institucional e violação


de direitos humanos no sistema da segurança pública: um estudo a
partir do Estatuto da Igualdade Racial. Dissertação de Mestrado. Fa-
culdade de Direito. São Paulo, 2012.

REIS, Vilma. Atucaiados pelo Estado. As políticas de segurança pú-


blica implementadas nos bairros populares de Salvador e suas re-
presentações, 1991- 2001. Dissertação de Mestrado, para a obtenção do
grau de mestra Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais.

TREVISAN, Maria Carolina. Quando a segurança pública engole os di-


reitos humanos. Disponível em: https://mariacarolinatrevisan.blogosfe-
ra.uol.com.br/2018/02/28/quando-a-seguranca-publica-engole-os-direi-
tos-humanos/. Acesso em 01/03/2018.

317

Você também pode gostar