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faces contemporâneas

Daniel Menezes Coelho e Eduardo Leal Cunha organizadores


faces contemporâneas da razão
faces contemporâneas da razão da razão
Daniel Menezes Coelho Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha Eduardo Leal Cunha
organizadores organizadores

André Filipe dos Santos Leite


Daniel Menezes Coelho
Dolores Galindo
Eduardo Leal Cunha
Ernani Chaves
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ieda Tucherman
Joel Birman
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida
Leomir C. Hilário
Marcelo de Almeida Ferreri
Marcus Vinicius Oliveira Santos
Nilo Batista
Renata Vilela Rodrigues
Rogério Paes Henriques
Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Teresa Cristina Carreteiro
Vera Malaguti Batista

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faces contemporâneas
da razão
Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha
organizadores

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Edições Concern
conselho editorial
Joel Birman (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Richard Simanke (Universidade Federal de Juiz de Fora)
Leopoldo Fulgencio (Universidade de São Paulo)
Daniel Kupermann (Universidade de São Paulo)
Rita Sobreira Lopes (Universidade Federal do Rio Grande do sul)
Leonardo Niro Nascimento (Essex, Londres, Inglaterra)
Christian Hoffmann (Paris 7, Paris, França)
Eduardo Leal Cunha (Universidade Federal de Sergipe)
Paulo de Carvalho Ribeiro (Universidade Federal de Minas Gerais)
Elias Mallet da Rocha Barros (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, IPA)
Paulo Sandler (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, IPA)

coordenação
Leopoldo Fulgencio
Eduardo Leal Cunha

Edições Concern / Attar Editorial


Rua Madre Mazzarello, 336
São Paulo - SP - 05454-040
Fone/Fax: (11) 3021 2199
attar@attar.com.br
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da razão
Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha
organizadores

São Paulo - 2018

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faces contemporâneas da razão

organizadores
Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha

autores
André Filipe dos Santos Leite
Daniel Menezes Coelho
Dolores Galindo
Eduardo Leal Cunha
Ernani Chaves
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ieda Tucherman
Joel Birman
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida
Leomir C. Hilário
Marcelo de Almeida Ferreri
Marcus Vinicius Oliveira Santos
Nilo Batista
Renata Vilela Rodrigues
Rogério Paes Henriques
Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Teresa Cristina Carreteiro
Vera Malaguti Batista

capa, projeto gráfico e diagramação


Cristina Verdade

F138 Faces contemporâneas da razão / Daniel Menezes Coelho, Eduardo Leal Cunha
organizadores. – São Paulo, SP: Concern, 2018.
247 p.

ISBN 978-85-5893-001-7

1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Razão. I. Coelho, Daniel Menezes. II. Cunha, Eduardo Leal.

CDU 159.964.2

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sumário

7 Psicanálise, razão e contemporaneidade: uma apresentação.


Eduardo Leal Cunha e Daniel Menezes Coelho

19 Uma Entrevista com Eugène Enriquez


por: Eduardo Leal Cunha

Eixo I
Razão, modernidade e crítica

35 Razões cínicas
Ernani Chaves

45 Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida


Marcus Vinicius Oliveira Santos

61 Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição


Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Daniel Menezes Coelho

77 Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord
Leomir C. Hilário

95 Sigmund Freud e as tradições históricas de Paul Feyerabend


Daniel Menezes Coelho

Eixo II
Racionalidades e processos de subjetivação no mundo contemporâneo

111 Catástrofe, risco e trauma


Joel Birman

131 Precaução, educação e medicalização pela oferta de saúde


Dolores Galindo
Flávia Cristina Silveira Lemos
Renata Vilela Rodrigues
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida

139 Trabalho e psicanálise


Teresa Cristina Carreteiro

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Eixo III
Racionalizar o outro

151 A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação


Marcelo de Almeida Ferreri

167 Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda


Ieda Tucherman

181 Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda


Eduardo Leal Cunha

197 A psicose ordinária como modalidade do mal-estar na atualidade


Rogério Paes Henriques
Joel Birman

209 A “disforia de gênero” como síndrome cultural norte-americana:


notas sobre o imperialismo na atualidade
André Filipe dos Santos Leite
Rogério Paes Henriques

225 Razão e crime


Vera Malaguti Batista

233 Astúcias da (des)razão punitiva


Nilo Batista

245 Sobre os autores

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Psicanálise, razão e contemporaneidade:
uma apresentação.
Eduardo Leal Cunha
Daniel Menezes Coelho

Este livro reúne ensaios resultantes da participação dos autores nas confe-
rências, mesas redondas e debates do 3o Colóquio Clínica & Cultura, realizado,
em 2014, pelo Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica e Cultura Contemporânea,
com o apoio do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social1 e do Departa-
mento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, com financiamento da
CAPES (Ministério da Educação) através do edital PAEP 2014. Sua publicação
conta ainda com o apoio decisivo da Editora da UFS e o auxílio financeiro da
FAPITEC/SE. Nessa terceira edição do colóquio, procuramos ainda apresentar
resultados de pesquisas desenvolvidas no quadro de projeto de cooperação aca-
dêmica e intercâmbio contemplado com o Edital PROCAD/NF 2009 da CAPES,
que reuniu programas de pós-graduação em Psicologia e Teoria Psicanalítica das
universidades federais de Sergipe, Pará e Rio de Janeiro e teve, como tema geral,
“a dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenô-
menos socioculturais.”
Como em outras edições, procuramos promover o diálogo da psicanálise
não apenas com a psicologia, mas também com a filosofia e as ciências humanas
e sociais. Por isso, o convite a uma personalidade certamente fundamental na
história desse diálogo, o professor Eugène Enriquez, que infelizmente não pôde
comparecer ao evento, mas se faz presente agora com uma entrevista que nos foi
concedida em seu apartamento, em Paris, em 2015, e da qual nos apropriamos
como manifesto em defesa de uma postura criativa e colaborativa de profissionais
das mais diversas áreas na crítica e na transformação do mundo em que vivemos.
Nosso percurso se inicia, portanto, com a entrevista concedida por Eugène
Enriquez, professor emérito da Universidade de Paris e pioneiro da Psicossocio-

1 Entre 2015 e 2017, houve uma restruturação que transformou o antigo NPPS em Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, o que permitiu inclusive a criação de uma linha de pesquisa específica em
psicanálise e cultura contemporânea, na qual se aloja atualmente nosso Grupo de Pesquisa Clínica
Psicanalítica e Cultura Contemporânea.

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logia e da Sociologia Clínica. Hoje, aos 86 anos, o sociólogo francês, nascido na
Tunísia, nos fala de modo apaixonado do nosso mundo contemporâneo e dos
embates entre a razão instrumental, centrada na busca de meios eficazes para
alcançar objetivos determinados, e uma racionalidade dos valores que interroga
os objetivos postos e abre espaço para as paixões. Enriquez destaca ainda o lugar
prevalente da imaginação e da criatividade, na vida social, e o risco do seu apa-
gamento da vida institucional, na atualidade. Com isso, nos propõe uma série de
reflexões sobre o lugar das ciências humanas no mundo contemporâneo e prega
a defesa intransigente da interdisciplinaridade.
Acreditamos que esse é o melhor ponto de partida para os debates que se
seguem ao longo deste livro, organizados em torno de três eixos: Razão, moder-
nidade e crítica; Racionalidades e processos de subjetivação no mundo contemporâ-
neo; Racionalizar o outro.

Razão, modernidade e crítica


Neste primeiro eixo, de caráter eminentemente histórico, os autores se veem
envolvidos, sobretudo, com as complexas relações entre Freud, sua psicanálise e a
modernidade, esta marcada não apenas pela consolidação do sistema capitalista
de produção e pela experiência das luzes, que inaugurou um período no qual o
dito pensamento racional assume o núcleo da nossa relação com o mundo e as
pessoas à nossa volta, mas sobretudo pela transformação das nossas formas de
governo – como diria o filósofo Michel Foucault – tanto de si quanto dos outros.
São, assim, as relações entre o pensamento, as formas de constituição do psíqui-
co, a experiência subjetiva, as modalidades do laço social, a ética e a política que
estão aqui postas em jogo desde o início.
Ernani Chaves parte de um chiste contado por Freud, no qual as mulheres
são equiparadas a sombrinhas, para considerar as relações entre o pensamento
freudiano e a experiência moderna tendo, como referência, a contraposição entre
a filosofia cínica da antiguidade e o cinismo moderno. O autor recorre ao último
curso proferido por Michel Foucault, no Collège de France, antes de sua morte,
“A coragem da verdade” e também à obra de Peter Slortedjik, “Crítica da razão
cínica”. Com isso, articula as reflexões de Freud sobre os chistes como expressão
dos conflitos inconscientes com as formulações de Foucault sobre o franco falar,
a parrêsia grega. Destaca ainda o lugar estratégico da referência ao sexo e à ani-

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malidade na experiência cínica, contribuindo para situar o pensamento freudia-
no frente à experiência moderna, que teria produzido outras formas de cinismo
distintas daquela que constituiu o cinismo antigo. O que está em jogo aqui é o
potencial crítico e transgressivo da atitude cínica, sustentada por filósofos como
Diógenes de Laercio, e que seria retomado por Freud na sua leitura dos chistes,
potencial crítico que se articula a discussões ainda atuais sobre as relações entre a
razão e as pulsões, o corpo e a mente ou o subjetivo e o objetivo.
Situar o pensamento freudiano em relação à modernidade é ainda o tema
central do trabalho de Sarah Monteiro Figueiredo e Daniel Menezes Coelho. Seu
objeto são os possíveis vínculos entre a teorização freudiana da cultura e dos mo-
dos de organização social, e a tradição contratualista, representada em particular
pelas obras de Rousseau e Hobbes. Segundo os autores, Freud, ao longo de sua
obra, teria se afastado do pensamento do primeiro para aproximar-se do segun-
do. Questões como a da autoridade reaparecem aqui, deixando-nos claro, uma
vez mais, o modo como o tema da razão é inseparável da discussão sobre as for-
mas de vivermos juntos que, em Freud, são também indissociáveis da constitui-
ção subjetiva individual. Tal indissociabilidade aparece, por exemplo, no vínculo,
destacado neste trabalho, entre as origens da moral e da sociedade e as fontes do
sentimento de culpa que marcam a experiência da neurose obsessiva. Os autores
nos mostram, por fim, o lugar central ocupado pela violência e pela destrutivida-
de nesses processos.
Reencontramos também a interrogação sobre os vínculos entre a psicanálise
e a modernidade como o pano de fundo da pesquisa desenvolvida por Marcus
Vinicius Oliveira Santos. Em seu texto, o autor parte de uma breve apresentação
do debate ocorrido no final no século XVIII, na Alemanha, em torno da questão
“O que é o esclarecimento (Aufklärung)?” para, em seguida, com Foucault, des-
dobrar tal questão em duas outras: o que é crítica? Como se pode exercer a crítica
do tempo presente? Com o devido destaque à famosa resposta de Kant, o autor
explora as articulações entre o esclarecimento e a questão da autoridade e das
relações entre o indivíduo e as instituições politicas e religiosas, tendo como pers-
pectiva a distinção entre os usos público e privado da razão. Em seguida, explora
dois aspectos considerados centrais na leitura do opúsculo kantiano empreendi-
da por Foucault: a atitude crítica e o diagnóstico do presente. Com elas, o autor
pode discutir as relações entre a crítica e o governo de si e dos outros, colocando

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em destaque os vínculos entre política, racionalidade e processos de subjetivação.
Leomir Cardoso Hilário, por sua vez, procura confrontar o pensamento de
duas figuras centrais do pensamento moderno: Marx e Freud. Destaca o fato de
que tal interlocução não se deu diretamente, mas sim nas sombras da obra de
Freud, projetada em autores como Adler e Reich, que procuraram conciliar as
formulações psicanalíticas ao pensamento socioeconômico de Marx. É, a partir
daí, que faz um breve comentário sobre a referências a Marx, ao marxismo e ao
bolchevismo na obra de Freud para, em seguida, aproximar os dois autores atra-
vés de uma superação do marxismo e do liberalismo presente em Freud. O texto
se debruça então sobre as obras de Guy Debord e Ernst Bloch, tendo, em seu ho-
rizonte, a crítica radical do capitalismo contemporâneo e de sua “irracionalidade
constitutiva”, buscada a partir de uma aproximação entre a barbárie vivida na
Europa, tanto durante a segunda grande guerra, quanto no contexto do totalita-
rismo soviético, e a nossa barbárie contemporânea. Com isso, são as perspecti-
vas atuais do chamado freudomarxismo que ocupam o núcleo da argumentação
proposta, na qual se tece uma aproximação entre diferentes tempos históricos
marcados pela crise e pela angústia, tanto no nível individual quanto coletivo,
com a qual somos incitados à busca de ferramentas teóricas que façam pensar cri-
ticamente o tempo presente e as possibilidades de transformação da realidade, a
partir de uma articulação entre o subjetivo e o sociopolítico. Aqui, portanto, mais
uma vez, como em outros momentos deste livro, a possibilidade de uma razão
crítica, a interrogação sobre o presente e sobre os futuros possíveis e a articulação
entre os modos de organização social, as formas da racionalidade e os processos
de subjetivação são colocados em jogo.
Enquanto Leomir Hilário nos propõe o diálogo Marx-Freud, destacando
a atualidade de duas figuras centrais da experiência moderna, Daniel Menezes
Coelho procura estabelecer, desta feita com a mediação do pensamento de Ernst
Mach, o diálogo entre as obras de Freud e Feyerabend, colocando assim em ques-
tão o que talvez seja o produto prínceps de tal experiência: nossa ideia de ciência,
face mais visível do que hoje entendemos como racionalidade. O texto se inicia
estabelecendo pequenas aproximações entre Feyerabend e Freud, a partir de tra-
ços das suas – aparentemente tão distantes – biografias, para, em seguida, encon-
trar uma conexão mais produtiva no vínculo comum com a obra de Ernst Mach,
no qual desempenhará papel privilegiado a ideia de especulação. O que estará em

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jogo afinal é a inscrição da obra freudiana, junto com aquela de Mach, no que
Feyerabend denomina tradições históricas de pensamento. Em jogo, estará ain-
da a existência de verdades universais, desconectadas de tempos históricos e de
contextos socioculturais. Por fim, através da reflexão sobre o lugar da especulação
na produção do conhecimento científico, são postos em questão não apenas o su-
jeito desse conhecimento, definido antes de tudo como um corpo, mas também a
separação entre o trabalho científico e o trabalho da imaginação, mostrando que
também à nossa razão cabe às vezes sonhar.
Discutir os laços entre a psicanálise e a experiência moderna tem certa-
mente efeitos para uma discussão sobre o nosso mundo contemporâneo, ainda
que deixemos de lado a questão de estarmos ainda em uma modernidade tardia,
avançada ou radical, ou já no que deveríamos denominar pós-modernidade. De
todo modo, as marcas da ruptura empreendida já há alguns séculos com a tradi-
ção e a transcendência ainda se fazem presentes e é por isso que o nosso debate
se desdobra em seguida numa interrogação sobre os efeitos dos modos de pensar
sobre as formas possíveis de experiência subjetiva. Passamos assim ao segundo
eixo de discussão.

Racionalidades e processos de subjetivação no mundo contemporâneo


Joel Birman, elaborando os resultados de uma pesquisa desenvolvida pre-
cisamente na interface entre psicanálise, filosofia e ciências humanas e sociais,
e que tem como referência maior as categorias de trauma e catástrofe, explicita
desde as primeiras linhas do texto sua intenção de articular a categoria foucaul-
tiana de subjetivação e as formulações de Jacques Lacan em torno da ideia de
laço social. Transitando por conceitos fundamentais ao pensamento psicana-
lítico, como aqueles de trauma, compulsão à repetição, desamparo, angústia e
pulsão de morte, Birman nos apresenta sua leitura da experiência subjetiva na
contemporaneidade, na qual a ideia de um sujeito no limite ocupa lugar central.
Desenhando em seus detalhes a figura de um Freud crítico da modernidade,
articula o pensamento psicanalítico a outras leituras críticas da modernidade
avançada, como aquelas estabelecidas por Beck, Castel, Sennett, Bordieu, Bau-
man, Lasch e Foucault. O autor mantém o foco em nosso contexto histórico
presente, dando destaque à dimensão sociopolítica, para assim identificar o que
haveria de específico na experiência traumática na atualidade, considerando tal

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condição existencial limite. Destaca-se em sua leitura, por fim, a ideia de uma
nova economia psíquica do trauma na qual o masoquismo aparece como forma
específica de subjetivação.
Teresa Carreteiro parte de reflexões sobre o mundo do trabalho, na atualida-
de, para questionar o lugar da psicanálise em um mundo marcado por um imagi-
nário hiper-racional, pelo predomínio da razão instrumental e pela reafirmação
da soberania do eu. Mais uma vez são interrogados os modos como o sujeito se
posiciona no mundo contemporâneo, desta feita a partir das transformações nos
ambientes institucionais e de seus efeitos sobre o imaginário social, e sobre as
formas possíveis de relação do sujeito consigo mesmo e com o outro. É interro-
gado, ainda, o lugar da psicanálise e de sua concepção do sujeito, marcado pelo
descentramento, pelo reconhecimento da castração, da finitude e dos impulsos
destrutivos em um mundo governado pelo investimento radical na objetivação
da realidade e do outro por um eu soberano. Tomando o ambiente profissional
como campo privilegiado dos processos de subjetivação de um indivíduo empre-
sário de si, a autora evidencia os efeitos paradoxais da injunção cotidiana de que
devemos ser mais autônomos, criativos e até mesmo mais felizes no ambiente
corporativo, ao mesmo tempo em que devemos nos submeter inteiramente a seus
mandamentos de eficácia e produtividade.
A crítica do que se pensa hoje como razoável requer ainda a reflexão sobre as
formas contemporâneas da desrazão. É nessa direção que nos conduz o texto de
Rogério Paes Henriques sobre os desdobramentos possíveis da noção lacaniana
de estrutura psicótica em herdeiros como Jacques-Alain Miller. Tendo a psicaná-
lise, em seus inícios, destacado o que havia de pensamento no corpo histérico ou
no delírio paranoico, trata-se agora de saber o que há de desrazão na banalidade
adaptativa do cotidiano. Partindo de uma breve retomada do percurso lacaniano
em torno da clínica da psicose, e destacando especialmente as fronteiras de tal
clínica em relação ao tratamento da neurose, centra em seguida sua atenção nos
textos da década de 1970 e, sobretudo, na leitura de Joyce para discutir a categoria
de Sinthoma e seus efeitos no enfrentamento psicanalítico da loucura.
Ieda Tucherman nos propõe a articulação entre biopolítica e autoajuda, a
partir da formulação de uma breve genealogia do amor que tem, como horizon-
te, os destinos da experiência amorosa em nosso tempo presente. Tal genealogia
não é, contudo, desinteressada, mas serve ao propósito de pensar a subjetividade

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em nossa sociedade contemporânea, descrita como uma sociedade biotecnoló-
gica de mercado. Trabalhando basicamente com a obra de Michel Foucault, em
especial o primeiro volume da sua História da sexualidade, publicado em 1976,
e o curso de 1978/1979 no Collège de France sobre o nascimento da biopolítica,
publicado na França em 2004, a autora elege como ferramenta privilegiada de
sua leitura do sujeito e da sociedade contemporâneas a categoria de biopolítica,
sobretudo, na medida em que nela se costuram os laços entre uma concepção do
homem como ser vivo, fazendo da sua biologia um elemento central ao cálculo
politico, e aquela que o vê como empreendedor de si, gestor do seu capital huma-
no. Por isso, o foco não apenas nas ciências da vida, mas no modo como o saber
produzido por elas ocupa o espaço sociocultural, através da chamada autoaju-
da, que coloniza o nosso imaginário e se afirma como importante instrumento
auxiliar na gestão do capital humano. É sobre essa base que a autora explora
nossos sentimentos e saberes contemporâneos em torno do amor, considerando
sua centralidade na nossa relação com o outro, e nos modos como nos comuni-
camos e nos definimos nessa relação.
O amor ainda estará em jogo, e as ditas literaturas de autoajuda se consti-
tuirão do mesmo modo no corpus fundamental para a análise do que Eduardo
Leal Cunha apresenta como figura privilegiada dos processos contemporâneos
de subjetivação: o amante eficaz. Investigando os livros de autoajuda em busca
dos elementos discursivos comuns que evidenciariam não apenas seu modo de
funcionamento, mas a concepção de sujeito a que seus enunciados se referem, o
autor formula a hipótese de que a autoajuda se configura hoje efetivamente, em
termos foucaultianos, como um dispositivo capaz de definir uma forma específi-
ca de subjetivação e assim estabelecer os limites possíveis para a nossa existência,
bem como as formas de viver junto e enunciar nossos laços afetivos e sociais. Tal
forma de subjetivação, o amante eficaz, aparece como uma conciliação entre o
homo psychologicus e o homo economicus, e pode ser descrita como resultado da
confluência entre a razão instrumental, denunciada por Adorno & Horkheimer
em sua dialética do esclarecimento; a difusão do saber e da semântica da psico-
logia e psicoterapias, como principais ferramentas de autodescrição do indivíduo
contemporâneo, descrita por Eva Illouz, e, por fim, a racionalidade neoliberal
proposta por Foucault como governamentalidade própria ao registro do biopo-
der, a esta altura já reconhecidamente uma ferramenta fundamental às leituras

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propostas neste livro em torno dos laços estabelecidos entre razão e sujeito no
mundo contemporâneo.
Cumprida essa segunda etapa, algumas leituras da atualidade parecem se
afirmar, dentre elas aquela, certamente de matriz foucaultiana, que privilegia os
laços entre poder e saber. Assim, passamos ao terceiro momento dos nossos de-
bates, no qual está em jogo o modo como nossos modos de pensar e de saber se
exercem como poder sobre o outro, especialmente aquele que pode representar
algo da ordem de uma alteridade radical precisamente na medida em que amea-
ça, de algum modo, as formas de vida vinculadas às formas estabelecidas, hege-
mônicas, de poder e saber.

Racionalizar o Outro
Racionalizar o outro implica conferir-lhe inteligibilidade, submetendo-o ao
nosso modo de pensar, de modo que este não seja posto em risco pela diferença,
pela intrusão que o outro representa e que o define, antes de tudo, como um es-
trangeiro. Mas quem pode ocupar o lugar desse outro? Quem pode representar,
para as formas hegemônicas da razão, essa figura da alteridade na qual não deve-
ríamos ou não poderíamos nos reconhecer? Quais são as existências dissidentes
que precisam ser ressignificadas de acordo com o nosso imaginário atual do que
seja o homem racional?
Nosso percurso continua com pesquisas que procuram delinear algumas
dessas figuras e mostrar como, ao torná-las inteligíveis, nós também as incor-
poramos em uma determinada hierarquia, articulando desse modo inteligibi-
lidade e norma.
Marcelo de Almeida Ferreri toma como referência a obra do sociólogo es-
panhol Martin Sagrera para nos falar da juventude e da idade como sistema de
discriminação. Além de nos apresentar esse autor relativamente desconhecido
no Brasil, e sua sociologia das idades, o texto destaca sua pertinência na leitura
de conflitos sociais contemporâneos e na interrogação de certas ideias presentes
em nosso senso comum, como aquela de um protagonismo juvenil. Com uma
escrita que procura se aproximar do tom positivamente panfletário do sociólogo
aposentado e manifestante ativo, Ferreri nos mostra como as idades, em Sagrera,
são desobjetificadas e ganham caráter político, não podendo mais ser reduzidas
ao aspecto quantitativo, cronológico, que se articula a uma leitura eminente-

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mente biológica da experiência humana. Nesse capítulo, que conta ainda com
uma discussão sobre os efeitos da lógica da classificação e do ordenamento cro-
nológico sobre os saberes e fazeres psicológicos, vemos claramente como o or-
denamento social, baseado na idade, passa pelo estabelecimento de um sistema
de segregações que se articula à produção de uma hierarquia entre os diversos
atores do campo social.
André Leite e Rogério Paes Henriques, por sua vez, propõem um confronto
entre a postura universalizante do manual diagnóstico da APA (American Psy-
chiatric Association), em particular no campo das experiências contemporâneas
de sexo e de gênero, e formas particulares de vivências da sexualidade presentes
em outras culturas. Tomando a contraposição entre a descrição proposta pelo
DSM-5 para a chamada disforia de gênero e formas de travestilidade presentes
na cultura brasileira, os autores procuram mostrar a incompatibilidade entre o
reconhecimento da diversidade cultural e subjetiva, que marca o mundo contem-
porâneo, e a leitura proposta pela APA, que assumiria um tom imperialista a sub-
meter a leitura de manifestações subjetivas, presentes em outros países, às lentes
da cultura norte-americana e mesmo aos interesses da indústria farmacêutica.
A ideia de risco também ocupa lugar central nos questionamentos trazidos
por Dolores Galindo, Flávia Lemos, Renata Rodrigues e Leila Cristina Almeida
a respeito dos processos de medicalização da sociedade. Nesse ensaio, construí-
do, sobretudo, a partir das formulações de Michel Foucault, nos cursos dados
no Collège de France e dedicado especialmente às formas de poder e controle
das populações estabelecidas a partir do século XIX, as autoras procuram alertar
para as complexas implicações entre o registro do biopoder, a governamentali-
dade neoliberal e o amplo processo de medicalização da sociedade que, já com
alguns séculos de história, parece se radicalizar cada vez mais em nossos dias.
Tais implicações seriam visíveis sobretudo nas políticas públicas voltadas para a
saúde e a educação.
Se a racionalidade biomédica aparece como forma predominante de orde-
namento – e de governo – da relação do sujeito consigo mesmo, talvez possa-
mos pensar que os dispositivos jurídicos, em particular o criminal, aparecem
hoje como formas hegemônicas de regulação dos laços sociais, dando sentido
particular à nossa relação com o outro, visto sobretudo como ameaça, como
fator de risco.

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Por isso, o convite para que participasse do nosso encontro o jurista Nilo
Batista, professor universitário e eminente advogado criminalista, dono de uma
extensa e rigorosa reflexão sobre os vícios do nosso sistema criminal e seus efeitos
na produção de segregações e violações cotidianas dos ditos direitos universais do
homem. Em sua conferência, da qual se origina o penúltimo capítulo deste livro,
a interrogação sobre a racionalidade que sustentaria o pensamento criminológico
é ironicamente convertida em afirmação de uma desrazão fundada em uma im-
periosa vontade de punir. Seu ponto de partida é precisamente aquele momento
histórico que, ao menos em nosso imaginário, marca a afirmação definitiva da
razão sobre as paixões: o iluminismo. O autor começa nos dizendo que, naquele
momento, a razão se ajoelhou diante da pena para, em seguida, considerando as
diferentes perspectivas que tomam a pena como dever, direito ou simplesmente
signo do poder do Estado, enumerar evidências de como a punição permanece
até hoje como núcleo da racionalidade jurídica, em articulação direta com os
princípios de funcionamento da sociedade capitalista, ainda que sob diferentes
disfarces e máscaras.
Concluindo esta última sessão temática e também o registro do nosso 3o
Colóquio Clínica & Cultura, a historiadora Vera Malaguti Batista empreende, por
um outro caminho, a articulação entre a razão e o crime. A autora explora em
particular o modo como a produção de uma verticalidade nas práticas da justi-
ça – no lugar da horizontalidade que marcava a regulação dos laços sociais e das
transgressões desses laços pela própria comunidade – se articula diretamente à
produção de um discurso racional sobre o crime e o criminoso pelas disciplinas
científicas, como a medicina e, um pouco mais tarde, a psicologia, as quais, não
por acaso, se constituem ao mesmo tempo em que tal verticalização se instala.
Explora ainda os vínculos entre a racionalização do crime e o processo de expan-
são colonial dos estados europeus, mostrando como a objetificação do outro e
dos conflitos humanos tem papel nesse processo.

Face às questões que a razão nos coloca


Assim, se conclui nosso percurso. Como o leitor pode perceber, a partir de
diferentes referências teóricas e pontos de vista são abordados temas centrais
ao trabalho de crítica da nossa realidade presente, considerando, de modo es-
pecial, os impasses colocados aos sujeitos pelos nossos modos de pensar, mas

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também as possibilidades abertas pelo trabalho do pensamento para a trans-
formação dessa realidade e as condições que tornam tal crítica e tais transfor-
mações possíveis. Pode-se dizer que a inserção da psicanálise em um campo
transdisciplinar se articula diretamente a esta interrogação e implica o enfren-
tamento da pretensa soberania da razão, materializada quase sempre na figura
do proprietário senhor de si mesmo.
É nesse sentido, que se articulam as questões abordadas neste livro. Quais
são as formas de racionalidade que prevalecem no mundo contemporâneo?
Quais faces contemporâneas da razão a psicanálise deve encarar para que se
constitua ainda em crítica do tempo presente e interrogação dos modos de pen-
sar, sofrer e existir? Questões de inevitável caráter ético, que advém da articula-
ção entre a clínica psicanalítica e a crítica das racionalidades que habitam nosso
mundo contemporâneo.
Nesse percurso, fica clara a referência frequente não apenas ao pensamento
psicanalítico, com evidente destaque para os nomes de Sigmund Freud e Jacques
Lacan, mas também a autores de outros campos de saber e disciplina, com des-
taque para o trabalho de Michel Foucault. Por fim, destaquemos alguns pontos
importantes nesse diálogo tão contemporâneo, entre Foucault e a psicanálise, e
que parecem justificar plenamente que nele nos aprofundemos cada vez mais.
O primeiro se refere ao tema dos universais, tão presente na obra do filóso-
fo francês. De modo mais ou menos implícito, o corpo dos diversos textos, que
compõe esta obra, tangencia este tema – a começar pela consideração de que não
se pode tomar a razão como um universal, que carrega em si algo da ordem de
uma transcendência ou imutabilidade, mas que ela sempre deve ser considerada
criticamente, a partir de várias formas que podemos identificar em diferentes
contextos sócio-históricos. Da mesma forma, também o sujeito, dito racional,
não aparece aqui como um universal mas sim através de diferentes formas, tam-
bém situadas historicamente.
O que nos leva a uma segunda contribuição fundamental de Foucault às
formulações aqui presentes: a relações entre razão, ética e sujeito, ou melhor, en-
tre os modos de pensar, as formas de governo de si e do outro e os processos de
subjetivação, estes sempre referidos a um duplo equilíbrio entre assujeitamento
e afirmação de si. Aqui se insere ainda, como na verdade desde o iluminismo, o
problema da autoridade nas relações com as instituições que nos governam ou

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nos servem de referência – outra forma de se referir à problemática tão assumi-
damente freudiana das relações conflituosas entre o indivíduo e a sociedade ou
entre as pulsões e a civilização.
Também de Michel Foucault, vem certamente a ênfase dada ao neolibera-
lismo, não apenas como forma de governo hegemônica na atualidade, mas, so-
bretudo, como modo de pensar e forma de vida, o que o coloca no centro mesmo
dos processos pelos quais estabelecemos as formas possíveis de relação consigo e
com o outro, sobretudo, através das figuras do capital humano e do empreendedor
de si mesmo.
Por fim, vale destacar o engajamento teórico-político da maioria dos textos,
uma forma de produzir conhecimento na qual se afirma, ao invés de negar, tanto
seu alcance político quanto seu aspecto subjetivo. Essa foi a nossa forma de res-
ponder ao chamado à interdisciplinaridade feito por Eugène Enriquez e espera-
mos tê-lo feito de modo tão rigoroso quanto criativo.

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1
Uma entrevista com eugène enriquez
Por: Eduardo Leal Cunha

Eduardo Leal Cunha:


Professor Enriquez, eu começo falando do colóquio que fizemos no ano
passado, porque isso nos fornece um ponto de partida. Esse colóquio visava o
modo como pensamos a razão, o que definimos como razão, hoje, e, sobretudo,
o modo como, a partir disso que entendemos como razão, como pensamento
racional, concebemos atualmente o sujeito e o mundo em que vivemos. A partir
daí, eu coloco uma primeira questão para dar ao senhor a possibilidade de falar
um pouco do seu pensamento e do seu trabalho. Podemos dizer que no seu
trabalho trata de uma crítica da razão?

Eugène Enriquez:
Difícil responder a uma questão tão vasta. Digamos de imediato que eu não tenho
nada contra a razão, ainda que eu suspeite do imperialismo que ela pode exercer.
Eu diferenciarei, a partir de [Max] Weber, a racionalidade dos fins (dos valores),
da racionalidade instrumental.
A racionalidade dos valores depende do estado da sociedade, em uma época
histórica dada, e da capacidade dos sujeitos de ter uma discussão franca e au-
têntica, como dizia Habermas, sobre a consistência e a hierarquia dos diferentes
valores. Dito de outro modo, a racionalidade dos valores se baseia na qualidade
do diálogo intersubjetivo e transubjetivo que pode se desenvolver no corpo social.
Não há, então, essencialidade do mundo dos valores. São sempre os homens, a cada
momento, que o constroem, a partir da sua percepção, de suas pulsões, de seus
desejos. Ora, pulsões e desejos obedecem a uma racionalidade própria: a busca, a
vontade de satisfação. De fato, nós sabemos que as pulsões podem ser sublimadas,

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

mas nem mesmo a mais elevada sublimação tem o poder (e Freud bem o mostrou
em Além do princípio do prazer) de bloquear totalmente a busca da satisfação.
A racionalidade dos valores deve então reservar lugar para a racionalidade das
paixões e é apenas porque as paixões (pulsões, desejos) podem se exprimir nos
debates e controvérsias entre os humanos, que podem chegar a definir o que são
para eles os valores essenciais que tomam como referência e que querem defender.
Estes debates serão afetados ainda pelo que [Cornelius] Castoriadis denominou a
força instituinte do imaginário social. Cada sociedade elabora e dispõe assim de
certo número de significações imaginárias sociais. Assim, para tomar um exemplo
que não tenho agora tempo de trabalhar, uma sociedade arcaica, fundada sobre
o dom e o contradom, tal qual descreveu [Bronislaw] Malinowsky ou [Marcel]
Mauss não dá aos objetos o mesmo valor que uma sociedade capitalista atual. Em
consequência, o debate intersubjetivo é também e fundamentalmente um debate
transubjetivo sobre a escolha dos valores sociais a instaurar e a manter.
Assim, não pode haver para mim uma racionalidade no sentido da razão
platônica ou cartesiana. Para Platão, se raciocinamos bem, todos podem alcan-
çar a beleza, a bondade, a verdade e sair da escuridão que reina na caverna. Para
[René] Descartes, para [Francis] Bacon, o sujeito racional é aquele que vai se
tornar possuidor e senhor da natureza. Para todos esses autores, a razão é uma
essência que define o ser mesmo do homem. De minha parte, seguindo Weber,
Freud, Castoriadis, eu diria que a razão se apoia na subjetividade das paixões e
na capacidade para a intersubjetividade e é continuamente afetada pelo imagi-
nário da sociedade.
Weber não evoca apenas a racionalidade dos valores. Ele destaca também a ra-
cionalidade instrumental, aquela que aplicamos continuamente. Desde que um valor
é definido, desde que seu alvo foi caracterizado, deve-se poder não apenas expressá-
-lo pela linguagem (pois, nesse caso, isso seria crer na virtude performativa de toda
linguagem, ilusão frequente entre os políticos e os tecnocratas), mas atualizá-lo nas
ações. É preciso então implementar os meios e os métodos para atingir esse alvo, para
promover esses valores. Não se trata mais de responder à questão do porquê (por que
nós preferimos tais valores), mas à questão de como (como, logo, por quais meios e
métodos, com qual cálculo, nós podemos atingir esse alvo, promover tal fim).
Ora, atualmente, nós, com frequência o sabemos demais. Como nos tinha
mostrado, há mais de trinta anos, Michel Serres, não nos colocamos mais (ou co-

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

locamos raramente) a questão do porquê; pelo contrário, nos colocamos sempre


(e às vezes apenas) a questão do como. O mundo moderno, dando à matemática
o primeiro lugar entre todas as ciências, fez do cálculo do custo e dos ganhos, na
escolha dos meios e métodos, a ciência suprema.
Daí, o desenvolvimento de uma ciência econômica, a ciência sinistra, segun-
do Carlyle, que reduz todos os comportamentos humanos à sua função de utili-
dade e que encontra sua apoteose nos trabalhos do Prêmio Nobel Gary Becker,
que se aplica a dar um valor de mercado (portanto, calculável) a todas as paixões
e a todos os sentimentos. Assim, um amor constante, uma grande disponibilidade
para com o outro, pode valer (ser equivalente a) um casaco de Visom! Tudo se
compra, tudo se vende. Nunca o axioma de Walras encontrou tanto eco. O dom
desapareceu, o amor desinteressado também. A totalidade do mundo é baseada
no interesse e conduzida apenas por ele.
Eu não tenho nada contra um uso moderado da razão instrumental. É nor-
mal que procuremos os métodos e meios eficazes para atingir um alvo estabele-
cido, mas isso significa que a razão instrumental deve sempre ser secundária em
relação à racionalidade dos fins e não a mais importante ou mesmo a única, como
se pode vê-la funcionar em nossa sociedade.
Sendo assim, existem momentos essenciais em nossa sociedade nos quais
não raciocinamos, quando são as paixões, os desejos, os preconceitos, o imagi-
nário social dominante que dão o ritmo de evolução do campo social. E isto é
normal, mesmo se frequentemente o negamos, pois a matriz do laço social jamais
foi a razão (racionalidade dos fins e racionalidade instrumental), mas, como bem
o mostrou Freud, a libido (tanto o amor quanto o ódio) temperada pela necessi-
dade (a luta ou o acordo com a natureza).

Eduardo Leal Cunha:


Para continuar, eu vou então retomar ao menos dois pontos do que o
senhor disse. O primeiro vem ainda de uma frase de Jacques Rancière, em
O inconsciente estético, na qual ele afirma que Freud tentou um pensamento
não pensado. Talvez possamos considerar esse domínio de um pensamento
não pensado como aquele do imaginário, da imaginação, do sonho, do
ato falho etc.. É isso que está em declínio atualmente em função dessa
prevalência da racionalidade instrumental?

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

Podemos falar de um declínio do imaginário, de uma espécie de recusa do


imaginário ou talvez de um recalcamento do imaginário, da imaginação, dessa
dimensão que não pode ser calculada ou medida? Esta é uma primeira questão.
Em seguida, o segundo ponto, e evidentemente eu o deixo estabelecer ou
não uma ordem entre as duas questões. Em geral, quando se fala de ciências, que
são subordinadas à economia, se mira, sobretudo, eu creio, as ciências humanas
e sociais, mas eu lhe pergunto se não podemos ir um pouco mais longe, até as
ciências da natureza ou mesmo as ditas ciências exatas. Nesse domínio, parece-
me muitas vezes que não se investiga mais as grandes questões, como se os
cientistas não se dedicassem mais, ao menos em sua maioria, à descoberta do
novo, mas apenas a trabalhar sobre o que já foi mais ou menos estabelecido. O
senhor pensa que podemos falar hoje de uma redução da ciência à técnica?

Eugène Enriquez:
Retomemos a questão do imaginário, a partir dos trabalhos de Castoriadis. Para
ele, cada indivíduo é provido de um imaginário radical e toda sociedade produz,
de maneira inconsciente (isto é, não prevista e não pretendida), para se estruturar
significações imaginárias sociais. É desse modo que ela se forma e se transforma
sem que tenha havido previamente reflexão ou ações particulares visando tal
resultado e sem que qualquer pessoa tenha uma ideia prévia do resultado.
Citando Castoriadis:
Centenas de burgueses, visitados ou não pelo espírito de Calvino e a ideia
de ascese intramundana se põem a acumular. Milhares de artesãos arrui-
nados, de camponeses esfomeados, encontram-se disponíveis para entrar
nas fábricas. Alguém inventa uma máquina a vapor, um outro um novo
tear. Filósofos e físicos tentam pensar o universo como uma grande má-
quina e descobrir as suas leis. Reis continuam a submeter e emascular a
nobreza e criam instituições nacionais. Cada um dos indivíduos e dos
grupos em questão persegue fins que lhe são próprios. Ninguém visa à
totalidade social como tal. Entretanto, o resultado é inteiramente de
outra ordem. É o capitalismo. 1

1 Castoriadis, C. (1975) L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil. Citado por Enriquez, E. (1997)
Les jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise. Paris: Desclée de Brouwer, p. 381.

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

Assim, não existe uma vontade de transformação social global. Cada


um joga seu próprio jogo. Às vezes, isso provoca mudanças globais signifi-
cativas; outras vezes, as consequências serão remotas (e “a posteriori”, como
dizem os psicanalistas) e ainda, em outras ocasiões, as mudanças serão pou-
co perceptíveis.
O que Castoriadis tenta mostrar é que cada um – classes sociais, grupos, in-
divíduos etc. – persegue seus interesses, seus sonhos particulares. Por vezes, esses
interesses, esses sonhos se articulam uns aos outros e acabam por formar certa
massa crítica que permite o surgimento do novo, mas não há aí nada de automá-
tico. De fato, tudo funciona segundo o acaso e a necessidade, como dizia Jacques
Monod. Mas, se não houvesse criação imaginária, nada se faria. Como diz o poeta
inglês William Blake (autor francamente apreciado por Castoriadis): “tudo o que
foi provado, foi um dia imaginado”.
Uma outra citação de Castoriadis me permitirá precisar a sua proposição e
também a minha:
Uma interpretação psicanalítica deveria poder dar conta do que torna
um indivíduo capaz de assumir mais ou menos sua situação efetiva, que
é, bem entendido, sempre uma situação social. Não pode haver socieda-
de capitalista a menos que capitalistas e proletários sejam reproduzidos
cotidianamente aos milhões de exemplares pelo funcionamento social.
Os processos psicogenéticos, tornando os indivíduos capazes de assumir
as posições de capitalista e de proletário, têm uma importância decisiva,
eles são uma das condições de existência do sistema capitalista. (...) Tais
processos são irredutíveis a processos puramente sociais; mas eles pres-
supõem também logicamente e realmente esses últimos, pois se trata,
neste caso, de formar um indivíduo como capitalista ou proletário e não
como senhor, praticante ou sacerdote de Amon-Rá. Nada no psiquis-
mo enquanto tal pode produzir tais significações. Nenhum componente
constitucional, aberração de formação, o caráter vicário do objeto da
pulsão ou a perversidade dos parentes podia em Atenas ou Roma, pré-
-formar uma criança para tornar-se presidente da General Motors. 2

2 Castoriadis, C. (1975) L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil. Citado por Enriquez, E. (1997)
Les jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise. Paris: Desclée de Brouwer, p.357.

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

Assim, uma sociedade cria, diariamente, significações imaginárias so-


ciais e permite ao imaginário social global se impor. Esse imaginário social vai
formar os indivíduos seguindo os esquemas que lhe são próprios. Mas, esses
indivíduos, por sua vez, com seus psiquismos inteiramente diversos, vão ter
também uma função de transformação importante ou sutil da sociedade, levan-
do-se em conta as suas possibilidades de ação em domínios nos quais estão em
condições de intervir.
Essa posição de Castoriadis se junta àquela que tínhamos enunciado alguns
anos mais cedo (mas, de um modo menos formalizado e sem dúvida com menos
força): meu amigo, professor de economia, André Nicolaï, e eu mesmo. Nicolaï
foi sem dúvida o primeiro – em seu livro “Estruturas econômicas e comporta-
mentos sociais” – a afirmar que não havia jamais verdadeiras mudanças globais,
mas que as mudanças (mesmo se têm consequências consideráveis) são o fruto de
múltiplas mudanças locais que interferem umas nas outras.
Quanto a mim, em 1972, no meu texto sobre a mudança social, indiquei
que o lugar da mudança era sempre local e que a mudança era a consequência
das ações variadas dos indivíduos e dos grupos, mesmo se estes perseguiam
objetivos diferentes.
Não houve influência particular de um desses três autores sobre os outros.
Nicolaï e eu sempre trabalhamos juntos. Nós fundamos, na Universidade de Paris
X – Nanterre, o Centro de Antropologia Econômica e Social (CAESAR), nos anos
1970, que agrupou pesquisadores de disciplinas diferentes e que tentou (e às vezes
conseguiu) lançar pesquisas transdisciplinares. Quanto a Castoriadis, que se tor-
nou para mim um amigo muito próximo e um bom companheiro para Nicolaï,
nós só o conhecemos verdadeiramente em 1968, enquanto meus primeiros traba-
lhos com Nicolaï datam de 1957 e nosso pensamento já estava estruturado. Nós
pudemos, a partir de 1968, trabalhar frequentemente os três juntos, em particular
no interior de uma ONG que teve certa influência: o Fórum de Delfos. Sendo
assim, se citei Castoriadis é que eu penso que sua reflexão nos ajudou bastante
– a Nicolaï e a mim – a dar ao imaginário o lugar que lhe cabe na instituição da
sociedade e que seu pensamento multidisciplinar nos permitiu prosseguir com
nossos trabalhos por caminhos inéditos.
Eu acrescentarei que o trabalho da imaginação nunca para, pois, não impor-
ta qual seja o tipo de estrutura social ao qual nós chegamos, esse deixa sempre

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

resíduos, insatisfações que relançam continuamente o trabalho da imaginação, a


vontade de criatividade. Eu digo criatividade e não inovação, pois a inovação é
tão somente um aperfeiçoamento das técnicas e dos meios utilizados no quadro
habitual, enquanto a criatividade tem por função fazer arrebentarem os hábitos,
as estruturas, os meios estabelecidos e fazer advir, tanto quanto seja possível, um
novo mundo. Mais ainda, a criatividade toma por vezes caminhos aberrantes.
Basta-nos ler o livro de Watson sobre a descoberta da dupla hélice do DNA por
ele mesmo e Crick para nos darmos conta de que eles não seguiram minimamen-
te caminhos de pesquisa bem balizados, mas o contrário. Assim, a publicação
do livro teve um efeito escandaloso. A obra mostrava que a imaginação, o jogo,
as discussões aberrantes ou fúteis tiveram tanto ou mesmo mais importância na
descoberta da estrutura do DNA que o raciocínio científico. O que é verdade para
todas as ciências, tanto as ciências da natureza quanto as ciências humanas. As-
sim, um astrofísico como Hubert Reeves diz que sem imaginação ele não poderia
trabalhar; um especialista em Grécia Antiga, Marcel Detienne, declara que ela é
necessária para encontrar qualquer coisa e comparar o que é incomparável. To-
dos eles dizem que os grandes sábios devem ser também, e antes de tudo, grandes
poetas, capazes de pensar o impensável.
Naturalmente, essa criatividade perturba três quartos das pessoas, mesmo
se elas dizem o contrário, pois ela mostra que não é possível calcular tudo, colo-
car tudo em sistemas de equações econômicas, que não é possível aceitar o que
Castoriadis nomeia “a ascensão da insignificância”. Tal criatividade nos diz que a
pesquisa fundamental é sempre indispensável, que não é possível se restringir a
realizar pesquisas aplicadas, a responder a editais de fomento à pesquisa, e que a
ciência não deve se limitar a invenções tecnológicas por mais brilhantes que elas
sejam. A imaginação deve ficar no poder.

Eduardo Leal Cunha:


Muito bem. Será que posso colocar uma última questão? Trata-se de uma
pergunta ainda mais aberta, mas me sinto um pouco obrigado a colocá-la. O
senhor criou se não uma nova disciplina ao menos um novo campo de pesquisas,
que é a psicossociologia ou sociologia clínica. E quanto a nós, somos um grupo
de psicanalistas trabalhando atualmente em um programa de psicologia social.
O que eu gostaria – e por isso disse que se tratava de uma questão ainda mais

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aberta – é de um comentário, uma posição sua, a propósito da questão das


disciplinas e dos limites entre elas. Nós estamos todo o tempo desenhando ou
demarcando novos territórios de pesquisa, mas há sempre a fantasia de que se
acabe por criar uma nova disciplina, uma nova fronteira, novos limites. Então,
como é que se pode fazer um trabalho que seja efetivamente interdisciplinar e
que possa permitir a descoberta, a aparição de novos inteligíveis e, ao mesmo
tempo, guardar certa identidade de pensamento, seja com a psicanálise, seja
com a psicologia ou sociologia. Porque parece haver hoje certo enfrentamento
entre as diferentes disciplinas, por causa, talvez, da economia, das fontes de
financiamento para a pesquisa etc.. O que acontece é que muitas vezes, se
tentamos fazer uma pesquisa que não esteja bem delimitada em relação às
disciplinas e áreas de atuação, cujo objeto e referenciais teóricos não estejam
bem demarcados, nos arriscamos a não conseguir o dinheiro necessário ou
não obter um lugar na universidade. Por outro lado, se delimitamos demais,
nos fechamos em uma disciplina e não há espaço para a criatividade. O que o
senhor gostaria de dizer sobre isso?

Eugène Enriquez:
Para te responder de modo válido, é preciso voltar às razões que presidiram a
criação das disciplinas que, em ciências humanas, se forjaram contra a filosofia e
igualmente contra as outras disciplinas que teriam podido suplantá-las. Assim, a
sociologia se criou contra a filosofia da história (à qual ela permanecerá, apesar de
tudo, por muito tempo presa) e contra a psicologia. Cada disciplina quis definir
um campo de estudos, métodos de pesquisa, estruturar um modo de pensar
diferente. Este movimento é igualmente verdadeiro nas ciências da natureza.
Foi assim que física e química se separaram. O movimento científico só pôde se
solidificar porque disciplinas recusaram a filosofia, a literatura, as sínteses fáceis, e
porque elas quiseram não apenas assegurar sua autonomia, mas, frequentemente,
adquirir um estatuto de predominância. Assim, muitos sociólogos recusam toda
visão psicológica dos processos sociais e muitos psicólogos têm tendência a
reduzir os problemas sociais a questões de ordem psicológica.
De fato, a separação nem sempre foi clara. Desse modo, um sociólogo
[Georg] Simmel continuou em muitos de seus trabalhos um verdadeiro filósofo
e, mais que isso, contribuiu fortemente para a criação da psicologia social. Da

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mesma maneira, um etnólogo e sociólogo como Marcel Mauss se interessou pe-


las relações do psíquico e do social e pelas técnicas do corpo e pôde ser, durante
algum tempo, presidente da Sociedade Francesa de Psicologia.
Progressivamente, uma parte dos pesquisadores em ciências humanas se
deu conta de que suas disciplinas arriscavam tornar-se fechadas demais e se as-
sumiram como interdisciplinares e mesmo, segundo o termo de [Gaston] Ba-
chelard, como transdisciplinares. Assim, conceitos nascidos numa certa região
de origem podem, depois de alguns acréscimos, algumas reestruturações, certas
remodelações, servir em outras disciplinas. Tomemos um único exemplo: as no-
ções de entropia e de neguentropia, que vem da termodinâmica, já há muito tem-
po servem aos psicanalistas e aos psicólogos, para compreender certos estados
de decomposição psíquica, nomeados entropia psíquica, e aos sociólogos, para
compreender os estados de decomposição e de recomposição social denomina-
dos entropia social.
Sua questão tem então um aspecto prático além do seu aspecto teórico:
como fazer as pessoas admitirem que a ciência que elas desenvolvem não se pren-
de aos limites postos de início?
Isso é muito verdadeiro para a psicanálise. Muitos psicanalistas recusaram
e ainda recusam a visão sociológica e antropológica (como em “Totem e Tabu”)
e também a visão especulativa (no caso da pulsão de morte) de certas obras de
Freud, que não lhes parecem coerentes com suas descobertas e sua prática tera-
pêutica. Quando eu apresentei minha Tese [de doutorado] em 1980, Didier An-
zieu, que era um renomado psicanalista e que ocupava a função de presidente da
banca, me interpelou dizendo textualmente “mas por que o senhor está interes-
sado na parte não científica da obra de Freud?”, visto que eu tentava analisar as
obras sociológicas e especulativas do criador da psicanálise. Hoje em dia, ou a
partir de certa época, quando um número muito grande de psicanalistas, psicólo-
gos, filósofos, sociólogos, etnólogos, de economistas se pôs a ler e a comentar essa
parte essencial da obra freudiana, uma tal reação só poderia aparecer entre certos
psicanalistas atrasados. Mas, quando eu escrevia “Da horda ao Estado” (minha
tese modificada e publicada em 1983), eu estava bastante sozinho. Os psicanalis-
tas puros e duros não suportavam que Freud, inventor da psicanálise, tivesse tido
uma visão da psicanálise extremamente ampla, enquanto eles mesmos se conten-
tassem com um Freud diminuído e desnaturado.

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

Vemos, no caso da psicanálise, que certos psicanalistas não só não querem acei-
tar outras óticas e utilizar outras disciplinas (como a sociologia, por exemplo) como
estabelecem limites e mesmo constroem muros no próprio campo psicanalítico.
Ora, fazendo isso, eles amputam a psicanálise de suas capacidades de des-
coberta. Ao contrário, se lemos uma psicanalista morta há alguns anos, e que foi
uma de minhas grandes amigas, Nathalie Zaltzman, em particular seu livro sobre
“a cura psicanalítica”, podemos nos dar conta das virtudes de uma concepção da
psicanálise que integra uma reflexão avançada sobre o social.
Para Zaltzman, uma psicanálise bem-sucedida não significa que o paciente,
afinal, se sinta melhor consigo mesmo e reforce seu eu e as pretensões narcísicas
deste. O que ela visa é que o analisante chegue a compreender e a viver com seus
sintomas e consiga se virar, ou seja, encontre outras soluções temporárias para
seus problemas, que não aquelas utilizadas anteriormente; e que o analisante não
se torne um indivíduo contente de si, narcísico, posto que exista essa tentação,
após ter falado tanto de si durante vários anos. E, sobretudo, que o paciente sinta
fazer parte da espécie humana, seja apto a compreender que, o que acontece ao
outro, acontece também a ele mesmo e que ele tem, portanto, um dever de fra-
ternidade para com o outro. O que Zaltzman visa é que os indivíduos tornem-se
mais humanos, mais próximos uns dos outros, mais resistentes a todas as formas
de injustiça social. Assim, a psicanálise que ela preconiza não deixa de lado os
fenômenos sociais, mas, ao contrário, os integra.
Hoje, vemos, cada vez mais, psicanalistas se debruçarem sobre o “mal-estar” dos
indivíduos ligado ao “mal-estar da sociedade inteira” ou ao mal-estar que eles sentem
no trabalho que eles devem realizar nas organizações sociais que os empregam. É ver-
dade que certos analistas resistem, mas eles são cada vez menos numerosos.
É a mesma aventura que foi vivida pelos psicossociólogos. Nós nos demos con-
ta, frequentemente, em muitos países simultaneamente (notadamente USA, Grã-Bre-
tanha, França, Itália, Canadá e Brasil), que era preciso construir uma disciplina que
não privilegiasse a psicologia ou a sociologia. Com efeito, a sociedade não imprime
sua marca de modo uniforme em todos os indivíduos. Ela o faz sempre através de
estruturas intermediárias que são as instituições sociais (por exemplo: o Estado, o
exército, o sistema educativo, a família), as organizações sociais (empresa, escola, hos-
pital, administração pública) e os grupos mais ou menos estabilizados dos quais nós
fazemos parte (grupo de referência, associação, agrupamentos temporárias etc.).

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

Nós estamos sempre em contato com conjuntos (instituição, organização,


grupo) que fazem a mediação entre a sociedade global e nós mesmos. Então, o
indivíduo deve ser compreendido como um ser fundamentalmente psicossocial,
mesmo se, em certos momentos, ele se porta um pouco como sujeito social e,
em outros, como sujeito psíquico. A psicossociologia deve então tomar de em-
préstimo, remodelando-os, uma parte de seus conceitos da sociologia, uma outra
da psicologia (ou da psicanálise, de preferência) e ela deve igualmente levar em
consideração as grandes estruturações antropológicas e filosóficas (que definem
o lugar do homem na sociedade): o cultural, o real, o simbólico, o imaginário.
Acrescentemos que ela deve igualmente tentar criar conceitos específicos ou dar
uma outra formulação a conceitos vindos de outras disciplinas (por exemplo:
liderança, poder, emoções).
O trabalho a ser feito é considerável e os resultados nem sempre estiveram
à altura dos esforços teóricos e práticos do psicossociólogos. Esse é o porquê
de, infelizmente, a psicossociologia tender a desaparecer da universidade; os
pesquisadores, como as instituições, preferindo se referir a disciplinas bem cir-
cunscritas e de aparência sólida, do que à psicossociologia, sempre vivida como
uma aventura que ainda não produziu os frutos desejados. Por isso, muitos dos
psicossociólogos não querem se definir como tais. Eles temem não ser levados a
sério e em consequência não encontrar trabalho e um lugar na sociedade.
Eu mesmo vivi profundamente tal situação. Embora tenha sempre me iden-
tificado como psicossociólogo, fui obrigado, na minha carreira universitária, a
posicionar-me como sociólogo (isso devido ao acaso, eu poderia, igualmente,
como muitos dos meus confrades, fazer minha carreira na psicologia). Eu tive
muita dificuldade para ser aceito por meus colegas sociólogos, muitos dos quais
quiseram impedir-me de virar professor. Com efeito, durante muitos anos, os
membros do CNU (Conselho Nacional das Universidades), que têm o poder de
designar os professores3, rejeitaram-me, mesmo tendo todos os títulos para ser
nomeado professor. Felizmente, em determinado momento, os sociólogos, que

3 O CNU determina, a partir da apresentação de uma candidatura, se um determinado acadêmico


pode concorrer aos concursos para professor das universidades públicas francesas e a qual cargo
pode concorrer – se Mestre de conferências ou Professor das Universidade – sendo tal autorização
concedida por um determinado período de tempo, e sendo necessária uma nova autorização caso o
candidato não tenha obtido nenhum posto naquele período. (N.T.)

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

me eram favoráveis, estiveram em maioria no CNU. Tornei-me então professor


e até membro do CNU em seguida. Fui eleito, para minha grande surpresa, por
meus colegas, com o maior número de votos, empatado com Raymond Bouchon,
representante da sociologia mais clássica. A partir desse momento, eu fui reco-
nhecido como um sociólogo marginal, porque integrava, em minhas pesquisas,
uma ótica psicanalítica e uma ótica psicossociológica, mas raramente como um
psicossociólogo. Devo dizer que minha carreira me levou a ser, durante dez anos,
docente em uma universidade de ciências econômicas e a ser seu diretor adjunto,
já que havia recusado ser o diretor (me parecia aberrante um sociólogo tornar-se
diretor de uma universidade de ciências econômicas) e isso tornou ainda mais
obscura minha identidade profissional, aos olhos de muitos dos meus colegas.
Ainda hoje, alguns pensam que sou psicólogo, psicanalista, economista etc.. Se
eu tivesse que me definir, eu diria que amo trabalhar na articulação de domí-
nios que, na realidade, se colocam sempre de modo unitário e que são separados
apenas porque as disciplinas, em determinado momento, se distinguiram para
existir. Sou um homem que quer compreender o mundo onde ele se encontra –
mundo sempre histórico, sociológico, econômico, psíquico – e que tenta utilizar
as ciências humanas e psicossociologia em primeiro lugar para “revelar o real”
(expressão de Serge Leclaire). Eu acrescentarei que, para ser um analista social,
é necessário conhecer bem uma disciplina, saber praticá-la, e igualmente se sen-
tir profundamente interdisciplinar, recorrendo a todas as ciências e maneiras de
pensar disponíveis. Dito de outro modo, não se trata apenas de estar aberto às
ciências humanas, em geral, mas a todos os produtos de nossa imaginação e de
nosso pensamento (como poesia, jogo de xadrez, matemáticos etc.) e igualmente
à nossa incompetência (pois, é também quando não se conhece nada de um do-
mínio que é possível, às vezes, fazer descobertas inesperadas).
Para terminar, queria dar dois exemplos com pesos diferentes:
a) Todo mundo conhece a operação Overlord, isto é, o desembarque das tropas
aliadas na Normandia. O que conhecemos menos são as condições que
presidiram o sucesso dessa operação.
Ingleses e americanos se encontravam diante do problema seguinte: como le-
var à Inglaterra centenas de milhares de combatentes, milhões de munições, barcos,
tanques etc., ou seja, todo o material de guerra necessário ao desembarque, sem que
os comboios enviados ao Atlântico fossem atacados e destruídos pelos submarinos

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

alemães? O problema era bem prático. Sem solução, sem desembarque.


Durante muito tempo, ingleses e americanos estiveram apoiados sobre um
preceito militar bem conhecido; a arte da guerra é a arte da dissimulação. Em con-
sequência, eles enviavam pequenos comboios mal protegidos sobre o Atlântico,
esperando que estes não fossem detectados pelos alemães e pudessem alcançar a
Inglaterra. Ora, na realidade, esses comboios de navios eram muito comumente
afundados pelos alemães e os militares que se encontravam ali estavam, desde o
princípio, num estado de stress que os impedia de combater bem.
Assim, diante do fracasso, os aliados criaram um grupo de pesquisa operacio-
nal, no qual se encontravam não só especialistas militares, mas também psicólo-
gos, psicanalistas, sociólogos e economistas para explorar as diferentes dimensões
do problema. Esse grupo inter e transdisciplinar era conduzido por um animador
bastante competente na conduta de grupos e em seu domínio próprio, que não ti-
nha nada a ver com a arte militar (a fisiologia das ciências antropoides!!). Ele sabia
escutar; colocar as boas perguntas; relançar o debate, quando as soluções pareciam
mancas; fazer de modo que todas as forças do problema fossem estudadas. Con-
clusão: a solução encontrada foi revolucionária. No lugar de pequenos comboios,
se lançaram sobre o Atlântico imensos comboios bem protegidos com cruzadores,
porta-aviões etc. Esses comboios deveriam ser vistos pela frota alemã. Mas, ou
os submarinos não ousavam mais atacar essa imensa armada, ou, se atacassem,
seriam destruídos pelo poder de fogo dos navios e aviões. Ao fim, as perdas aliadas
diminuíram em 75% e as perdas alemãs aumentaram na mesma porcentagem. O
sucesso era devido, por um lado, à conduta extremamente inteligente e prudente
do animador e, por outro lado, à capacidade do grupo em explorar todas as di-
mensões do problema com um espírito verdadeiramente transdisciplinar. Um ani-
mador, que não sabia nada, tinha conseguido fazer com que cada participante se
tornasse apto a compreender o que diziam seus colegas de outras disciplinas. Cada
um deles havia se tornado, ao final, um verdadeiro pesquisador transdisciplinar.
b) Tentei, no meu nível, transpor essa experiência. Trabalhando em um
banco, com seu conselho de administração (embora não tenha nenhuma
competência bancária), eu tinha me dado conta de que cada um dos
membros se referia aos dados que tinha o hábito de controlar, mas era
incapaz de escutar as opiniões de seus colegas.
Eu instituí, então, ao fim de cada encontro, um longo momento de regulação

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Uma entrevista com Eugène Enriquez - por Eduardo Leal Cunha

do grupo por ele mesmo (eu mesmo desempenhando um papel de facilitador e


de regulador), afim de que os membros do grupo começassem a se escutar, se
compreender, guiar suas reflexões de maneira conjunta.
Em seguida, recorri a um escultor e a uma dançarina afim de que eles parti-
cipassem das reuniões do conselho. Nessa época (anos 1955-1965), as organiza-
ções econômicas estavam prontas a fazer experiências aberrantes como essa. E,
eu mesmo, tendo em conta minha juventude, a ousar propô-las.
O resultado foi surpreendente. O escultor e a dançarina colocaram as ques-
tões que vinham ao espírito e obrigaram os membros a tentar respondê-las. Pro-
gressivamente, essas pessoas que (como eu) não conheciam nada do trabalho
bancário, permitiram aos membros do conselho pensar diferente e encontrar so-
luções originais. Ao cabo de seis meses, todos se felicitavam por aquela experiên-
cia original que tinha tido como consequência transformar os modos de pensar
e de agir de um grupo que não se questionava. Tal tipo de experiência não é mais
possível nos nossos dias. As empresas ficaram menos ousadas e só pensam em
rentabilidade. Eu já não proporia uma fórmula tão marginal. Mas, ela mostrou
que, quando as pessoas (psicossociólogo, dançarino, escultor, membros do con-
selho de administração) aceitam se pôr em questão e imaginar novos caminhos,
elas estão em condições de experimentar uma grande criatividade.
Infelizmente, como já disse, nossa época ama a inovação e não a criativi-
dade; incensa a especialização e não a transdisciplinaridade. Esperemos que,
um dia, voltará o tempo em que cada um podia se modificar e ajudar o mundo
a se transformar.

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Eixo I
Razão, modernidade e crítica

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2
Razões cínicas
Ernani Chaves

“Eine Frau ist wie ein Regenschirm - man nimmt sich


dann doch einen Komfortabel”
“Uma mulher é como uma sombrinha – pega-se
­então a que seja confortável”.

Esta piada, este gracejo, esta frase de espírito, este chiste, este Witz, que soa
aos ouvidos de hoje tão insuportavelmente machista, sexista, preconceituoso,
sujeito inclusive a sanções legais, se encontra no texto de Freud, O chiste e sua
relação com o inconsciente, de 1905 (FREUD, 1905/1992, p. 125) e foi extraído dos
“Registros da crônica genealógica do Príncipe Carnaval”. Se lembrarmos logo o
primeiro parágrafo de seu livro sobre o chiste, veremos que Freud conhece bem
as implicações estéticas, psicológicas e filosóficas que estão em jogo quando se
trata do “esclarecimento (Aufklärung) acerca da essência e das relações do chiste”
(p. 25). Tais implicações sinalizam, por sua vez, para o grau de complexidade que
a problemática do chiste introduziu na cultura germânica, na medida em que era
necessário, por exemplo, estabelecer sua singularidade no interior de um campo
que ainda hoje comporta outras manifestações a ele assemelhadas, tais como o
humor e o cômico. Questões que não escapam a Freud, como a pouco afirmei e
diante das quais ele não hesita em se posicionar.
Questões que me são caras e que por isso sempre sou tentado a me deter
mais longamente nelas. Mas, este não é o momento mais apropriado para isso.
Aqui vou me limitar a expor, numa espécie de resumo bastante grosseiro, as
considerações de Freud a propósito do chiste da mulher como sombrinha. Estas
considerações se encontram na segunda parte do livro sobre o chiste, intitulada

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Ernani Chaves

“As tendências do chiste”. Na primeira parte do livro, Freud se ocupou da “Téc-


nica do chiste”, isto é, ele se perguntava “em que consiste essa técnica?” ou ainda
“Na nossa perspectiva, o que acontece com uma ideia, até que ela se transforme
em chiste e do qual rimos tão felizes?” (p. 34). O chiste é considerado como o re-
sultado de um processo de “travestimento”, cujo efeito, em princípio, é o riso feliz!
Seria necessário então investigar, esclarecer esse processo de “travestimento”, esse
jogo de esconde-esconde próprio do chiste. Concluída essa primeira parte, Freud
então vai se fazer outra pergunta, que diz respeito agora aos efeitos do chiste:
É fácil intuir (erraten) o caráter do chiste, ao qual se acoplam as diferen-
tes reações dos ouvintes a ele. Por um lado, ele tem um fim em si mesmo
e não oferece nenhum propósito em especial, por outro, ele se coloca à
disposição de tal propósito; ele se torna tendencioso. Apenas esse tipo de
chiste, que tem uma tendência, corre o risco de escandalizar as pessoas,
que não querem ouvi-lo.
O chiste não-tendencioso, foi chamado por Th. Vischer de “abstrato”; pre-
firo chamá-lo de inofensivo (harmlosen). (FREUD, 1905/1992, p.104)

Ora, qual é propriamente a tendência do chiste sobre a mulher como som-


brinha? Freud dá uma resposta aparentemente inusitada: “Trata-se de chistes cí-
nicos (zynische), o que eles encobrem, são cinismos (Zynismen)” (p.125). Freud
insiste, na sua explicação, na relação transgressiva em relação às instituições, que
os chistes cínicos apresentam:
Entre as instituições, que os chistes cínicos tratam de agredir, não há ne-
nhuma mais importante, mais insistente a ser protegida pelos princípios
morais, mas não obstante mais convidativa à agressão, do que o instituto
do casamento, a quem em geral os chistes cínicos se dirigem. Nenhum
direito é mais pessoal do que aquele que diz respeito à liberdade sexual
e não há nenhum outro lugar onde a cultura tenta exercer uma forte
opressão (Unterdrückung) do que na região da sexualidade. (FREUD,
1905/1992, p. 125)

Essa forma de chiste, a cínica, possui, por sua vez, uma técnica que lhe é pró-
pria, tal como o chiste da mulher = sombrinha o mostra: trata-se de “uma com-
paração desconcertante, aparentemente impossível de ser feita, mas que como

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Razões cínicas

vimos, não tem graça” (p. 125). Não tem graça, acrescento eu, mas rimos, mesmo
que esse riso seja “amarelo”. Nesse ponto, Freud avança sua própria interpretação:
A comparação poderia ser explicada da seguinte maneira: Casamos, para
nos assegurarmos do combate à sensualidade e então se evidencia que o
casamento não constitui nenhuma satisfação de uma necessidade forte,
exatamente como pegamos uma sombrinha para nos proteger da chuva e
então, na chuva, ficamos molhados. ( FREUD, 1905/1992, p.125)

Os chistes de tendência cínica atualizam, portanto, uma imagem do cinis-


mo antigo, a qual conhecemos a partir, principalmente, dos relatos de Diógenes
de Laercio, na sua conhecida Vidas e doutrinas dos filósofos. O cinismo antigo,
do qual Diógenes de Sínope é o nome mais conhecido, se caracterizou pela re-
cusa radical do sentido e da função da filosofia e do filósofo que se impuseram
na Grécia, a partir de Platão e Aristóteles. Agressividade, escárnio, blasfêmia,
tal como as práticas da masturbação pública e mesmo do ato sexual em público
expressavam com eloquência; faziam parte dos hábitos daqueles que se com-
paravam aos cães. Ora, mas entre as caracterizações de Diógenes, aquele que
apenas vestia um manto branco, carregava uma sacola e um bastão, se incluíam,
além dos “atos despudorados” e de “um modo de vida ascético”, os “ditos espi-
rituosos”, isto é, os chistes (KRUGER, 2007, p. 247). Ora, se uma outra caracteri-
zação dos cínicos, também recolhida por Diógenes de Laercio, diz que eles são
os “mestres da parrêsia”, do “franco falar” – caracterização que, como sabemos,
será um dos motes da interpretação dos cínicos antigos feita por Foucault em A
coragem da verdade, o último curso no Collège de France – então, um dos modos
pelos quais a parrêsia se expressa é na forma “travestida” do “dito espirituoso”,
do chiste. Nessa perspectiva, o cínico antigo “era o protótipo do desprezo num
duplo sentido da palavra, em seus sentidos ativo e passivo. Ele era um gênio em
expressar desprezo e, ao mesmo tempo, era o modelo de tudo o que fosse des-
prezível” (NIEHUES-PRÖBSTING, 1988, p. 380). Mais ainda: o cínico antigo é
aquele que, por desprezar e, ao mesmo tempo, “ser desprezível”, passa a ser tam-
bém qualificado e desqualificado por seu “despudor”, por sua “sem-vergonhice”,
por sua Schämlosigkeit. Assim sendo, é principalmente pelo exercício de sua
sexualidade, marcada pela Schämlosigkeit, que o cínico antigo vai ser conhe-
cido (NIEHUES-PRÖBSTING, 1988, p. 198). Sobre ele, então, pesarão todos os

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Ernani Chaves

anátemas. Seu “despudor”, sua “sem-vergonhice” só poderiam ser interpretados


como redução do homem à animalidade, uma vez que, da masturbação, não se
gerava filhos e o ato sexual em público quebrava a distinção entre o espaço do
oikos, o da casa, e o da pólis, o da cidade.
Não é por acaso, portanto, que Freud destaca o aspecto sexual dos “chistes
cínicos”. Mais ainda, como também assinala Niehues-Pröbsting (1988, p. 353),
embora extremamente inserida na tradição literária do século XIX, a posição de
Freud destaca o papel das instituições, o papel da autoridade e, com isso, ele re-
toma, de maneira decisiva, a recepção iluminista do cinismo antigo. Nesta pers-
pectiva, Freud escreve:
Impedir o pudor ou se contrapor ofensivamente em situações explícitas
é um caso tão comum, que possibilita tomar chiste tendencioso com
uma preferência muito especial para possibilitar a agressão ou a crítica
contra as instituições mais elevadas, (contra) a autoridade. (FREUD,
1905/1992, p. 119)

Ou ainda:
Os objetos do ataque do chiste podem ser tanto instituições quanto pes-
soas, na medida em que elas sejam portadoras de princípios da moral
ou da religião, de visões do mundo, que fruam com tais perspectivas, de
tal modo que o seu protesto contra elas não possa aparecer a não ser sob
a máscara do chiste, de fato, de um chiste encoberto por sua fachada.
(FREUD, 1905/1992, p. 120)

Embora o livro de Heinrich Niehues-Pröbsting sobre o cinismo tenha sido


uma das fontes mais importantes de Foucault para sua análise do cinismo, ou ain-
da, como Foucault mesmo disse, a mais apropriada, a mais adequada para os seus
propósitos, ele não deu nenhuma importância à seção dedicada por Pröbsting
em seu livro a Freud e à psicanálise. Ao contrário de Peter Sloterdijk (a primeira
edição do livro de Pröbsting é de 1979 e a publicação da famosa Crítica da razão
cínica é de 1983), que dedicou muitas páginas à relação entre cinismo e psicaná-
lise. Passo agora a palavra a Sloterdijk.
O Esclarecimento – nos diz Sloterdijk – silencia o mundo fisionômico, ou
seja, ao reificar e objetivar o saber em nome de uma distância entre o sujeito e as

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Razões cínicas

coisas, o sujeito e o mundo, como garantia da neutralidade, ele condena à mudez


todo um “campo fisionômico”. Este, por sua vez, pressupõe um além da lingua-
gem verbal, um dirigir-se ao mundo das coisas, de tal modo que passamos a es-
tabelecer com elas uma forma de comunicação que poderia ser chamada de “sen-
sorialidade”. Um mundo de mímicas, de gestos, de rostos, nos invade; as coisas
que nos rodeiam, nos atropelam, mostrando-nos as múltiplas facetas do mundo
que lhes é próprio. Assim, por todos os lados, por todos os sentidos, nos chegam
sons, figuras, cores, atmosferas. Certamente que, tomados de assalto pela violên-
cia dessas sensações, pelo que há de devastador nos sentidos, podemos sucum-
bir, perder essa batalha para nós mesmos, sermos arrastados por essas correntes
que se apoderam de nossa percepção, nos confundem inteiramente e podem, vez
por outra, ou ainda com uma frequência cada vez maior, nos conduzir à morte.
O preço do “progresso civilizatório” consiste, pois, em nos fazer adquirir uma
“competência perceptiva”, que possa se constituir num “eficiente antídoto” contra
o veneno mortal que se apodera das entradas e orifícios do nosso próprio corpo.
Assim, os olhos, a boca, o nariz, as mãos tateantes, a língua para fora, os dejetos,
a flatulência, a bunda, os seios, os genitais, se destacam nesse processo, no qual
o corpo inteiro se mobiliza, entre espasmos e orgasmos, gargalhadas ruidosas e
silêncios melancólicos, gestos obscenos e posturas de assentimento.
A proposição inicial do célebre Johan Kaspar Lavater, considerado o inven-
tor de uma ciência, a Fisiognomia, cujo objeto era o estudo dos traços do rosto
humano, a fim de, a partir destes, descobrir, desvelar a verdade do seu caráter,
ampliada, relida por Goethe, mas também por cientistas e por filósofos como
Marx e Nietzsche, encontrou sua formulação mais contemporânea, com Walter
Benjamin. Este último, cujo pensamento atravessa de ponta a ponta a Crítica da
razão cínica, ao traçar uma fisionomia da metrópole moderna, não a fez a partir
propriamente dos traços do rosto de seus habitantes, mas da profusão de imagens
que a própria metrópole suscita; imagens que, ao invés de nos remeterem a um
futuro radioso e feliz, estabelecem uma conexão com outras imagens, arcaicas,
originárias, aquelas que pensávamos estar definitivamente ultrapassadas pela so-
ciedade industrial, altamente tecnológica, na qual vivemos (BOLLE, 1994). Esta
vinculação entre antigo e moderno, novo e arcaico, que Benjamin acrescenta à
historicidade própria da percepção humana – a qual culmina na “semelhança
dessemelhante”, na semelhança deslocada do seu lugar de semelhança – parece

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Ernani Chaves

também atravessar a seção destinada à “fisionômica” na Crítica da razão cínica. E


é por meio desta vinculação, que vamos encontrar, no horizonte de Sloterdijk, a
fisionomia de Freud e da psicanálise.
Para entendermos a posição de Sloterdijk, é preciso lembrar que ele retoma
uma antiga discussão acerca da diferença entre o cinismo antigo, em especial o
de Diógenes de Sínope, e o cinismo moderno, que desqualificaria a atitude do ci-
nismo antigo, caracterizada pela blasfêmia e pelo escândalo e por uma concepção
de verdade inteiramente imanente ao corpo. Sloterdijk tinha, no seu horizonte,
certamente, o livro fundamental de Heinrich Niehues-Pröbsting, publicado em
1979 e já referido acima, intitulado O cinismo (Kynismus) de Diogenes e o conceito
de Zynismus (Cinismo). Entre Kynismus e Zynismus, configura-se um diferencial,
para o qual a tradução brasileira do livro de Sloterdijk propõe uma boa solução,
e que diz respeito tanto à ideia de “crítica”, como à própria ideia de filosofia. En-
quanto o cinismo antigo (a tradução brasileira mantém, para estes casos, a pala-
vra grega, Kynismus) pressupõe mais uma atitude, um gesto crítico, coerente com
o papel que o corpo desempenha nesse processo crítico em relação aos grandes
sistemas filosóficos da Antiguidade, o cinismo moderno (“cinismo”, na tradução
brasileira), reduz o Kynismus à condição de um conceito de segunda categoria,
que o despe inteiramente de seu potencial crítico. É só assim, portanto, na con-
fluência desses debates e tensões, que podemos compreender o Freud cínico de
Sloterdijk: por um lado, Freud devolve aos órgãos genitais uma função crítica e,
assim, redefine, cinicamente, a nossa imagem do mundo, a fisionomia do mundo
em que vivemos; mas, por outro lado, é preciso também se indagar pelas conse-
quências da reviravolta freudiana, ou seja, é preciso sinalizar para as tensões que
dela são herdadas, tensões que também decorrem do modo pelo qual a psicanáli-
se pode ser inserida numa “dialética do esclarecimento”.
Em que consiste propriamente o Kynismus de Freud? No fato de que ele
nos ensina, “em última análise, que toda atividade humana provém dos im-
pulsos sexuais e de suas deformações”. Nessa perspectiva, Freud retoma o que
há de blasfemo e escandaloso no gesto do cinismo antigo, na medida em que
não se deixou enganar pelos disfarces assumidos pelo processo civilizatório,
que se funda no recalcamento da pulsão sexual. Freud é aquele, então, que não
hesita em levantar o véu de Maia (para lembrar a imagem de Schopenhauer,
retomada por Nietzsche no Nascimento da tragédia), que encobria de beleza o

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Razões cínicas

que havia de atroz e cruel no mundo. O cientificismo do século XIX encontrou


uma forma muito direta e simples para denunciar a ausência de cientificidade
da descoberta freudiana, qual seja, a de designá-la como produto de um cínico.
Para Sloterdijk, não se trata apenas de uma crítica à cientificidade da psicanáli-
se, mas uma tentativa de sufocar o seu potencial crítico. O Kynismus de Freud
deveria se tornar cinismo. Assim, a psicanálise, ao conceder à sexualidade um
lugar central e decisivo na decifração do humano, contaminava-se com o ma-
terial baixo e sujo que constituía o seu objeto. Em consequência disso, ela seria
apenas mais uma variante do niilismo e o materialismo de Freud, nada mais
do que uma valorização da besta que nos habita. Em suma, a pulsão kyniké da
psicanálise deveria ser extirpada, uma vez que expressava tão somente a von-
tade cínica de reduzir tudo o que é “superior” ao que é mínimo e inferior. Era
preciso, em suma, apagar, deixar cair no esquecimento, o esforço de Freud em
se contrapor aos tabus idealistas que sacrificaram o prazer corpóreo. A exposi-
ção por Diógenes de seus próprios órgãos genitais, ativados pela masturbação
pública por ele praticada, se atualizava – quase como uma imagem que já se
tornou arcaica – na exposição pública que a psicanálise fizera da pulsão sexual,
indeterminada “a priori” no seu objeto, incongruente com a finalidade repro-
dutiva, indiferente às determinações normativas usuais.
Entretanto, Sloterdijk não se compraz em festejar o Freud cínico e a revolu-
ção psicanalítica. É preciso avaliar, mais de perto, os seus desdobramentos. Indi-
ferente aos desdobramentos do movimento psicanalítico do pós-guerra, emble-
maticamente expressos e de maneira contrária na “psicologia do ego” americana e
no ensino de Lacan, Sloterdijk dá dois exemplos, rápidos, desses desdobramentos.
Inicialmente, ele reitera que a psicanálise constituiu um conhecimento
sobre a sexualidade, fundado na relação essencial entre sexo e prazer e não
entre sexo e reprodução. Com isso, ela teria “esclarecido” os nossos órgãos ge-
nitais para além de suas funções biológicas e convergido, de algum modo, na
chamada “revolução sexual” dos anos 1960. Mas, aqui, algo estranho acontece.
Ou melhor, algo da ordem de uma “dialética do esclarecimento” acaba por se
impor: a descoberta freudiana abre um abismo aparentemente intransponível
entre o sexo e o amor, entre os atos sexuais e a arte de amar. Ela surgira, por-
tanto, no interior da cisão que Michel Foucault havia assinalado no primeiro
volume de sua História da Sexualidade, entre ars erotica e ciência sexual. Os

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Ernani Chaves

órgãos sexuais esclarecidos se transformaram, nos diz Sloterdijk, numa espécie


de “consciência infeliz”, da mesma maneira pela qual Hegel, nas páginas me-
moráveis da Fenomenologia do espírito, analisou as aventuras e desventuras da
consciência que, para compreender-se a si mesma e a sua tarefa de alçar-se às
instâncias do Absoluto, precisa desfazer-se – penosamente – do seu invólucro
natural. Entretanto, a proclamação freudiana acerca da natureza da pulsão para
além da atividade reprodutora se transformou no seu oposto: a “licenciosidade
sexual” deu origem a um cinismo que relativiza tudo. Os críticos de Freud po-
deriam se rejubilar, pois o seu Kynismus revelou-se tão somente cínico, pois os
movimentos de liberação sexual acabaram num “tudo é a mesma coisa”. Neles, a
“dialética do esclarecimento” própria à psicanálise teria encontrado sua expres-
são maior, pois, se por um lado, aos órgãos genitais foi concedida a licença para
que frequentem a “escola do bel-prazer”, por outro, eles passaram a conhecer a
“frieza da liberdade”, isto é, a indiferença.
Estamos diante de um Sloterdijk moralizador e romântico, nostálgico dos
encontros amorosos duradouros e felizes, ou ainda da ideia de família como reino
privilegiado dos afetos, garantida pela vinculação entre sexo e reprodução? Ou,
ao contrário, estaríamos diante de uma questão que nos persegue e nos aborrece,
nos entedia e nos intranquiliza, a propósito das soluções que engendramos, uma
vez que se tornou possível diminuirmos a culpa de fazer sexo por prazer e assim
dissociarmos sexo e amor?
É bem verdade que Sloterdijk separa a proposição freudiana de suas con-
sequências posteriores. Para ele, é necessário manter viva a chama que Freud,
“segundo o espírito de Diógenes, e mais ainda, de Epicuro”, acabou por acen-
der para nós, uma chama que, num momento histórico muito preciso, o próprio
movimento psicanalítico tentou apagar. Sloterdijk refere-se, num outro excurso
dedicado à psicanálise no seu grande livro, à coincidência, no mesmo dia, mês
e ano, 30 de janeiro de 1933, entre a publicação do artigo de Edmund Bergler,
“A propósito da psicologia do cínico”, na revista Movimento psicanalítico, e a
ascensão de Hitler ao poder. Bergler, lembra Sloterdijk, escreve seu artigo num
momento em que os traços cínicos e a imagem pornográfica da psicanálise são
evidenciados pelos nazistas, “duas expressões que podiam se fundir de uma ma-
neira quase fatal com o predicado ‘judeu’”. Sloterdijk destaca a posição complexa
de Bergler: por um lado, ele não abdica de uma “enérgica mordedura kyniké”, ao

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Razões cínicas

se defender dos ataques à psicanálise, considerada como cínica e, ao mesmo tem-


po, no estudo de alguns de seus pacientes, procura destacar seus traços cínicos,
os quais se manifestavam, principalmente, “na forma de agressões contra ele, o
analista”, que ele considerava uma espécie de insanidade moral. Defendendo o
Kyniker que haveria nele e na psicanálise, Bergler patologiza o cínico! Ele classifi-
ca 64 formas e variantes do cinismo, das quais apenas quatro são conscientes. Seu
diagnóstico não poderia ser outro: os “mecanismos cínicos” são uma “manifes-
tação do inconsciente e do infantil que prossegue no adulto”. No cinismo, o lado
negativo e agressivo da ambivalência ganha expressão na forma de um embate
entre a “compulsão à confissão” (conceito que Bergler retira de Theodor Reik) e
as exigências do Supereu. Além disso, seu comportamento jocoso expressa uma
“tendência exibicionista”, um “prazer narcísico” e, por meio das piadas, ele pode
descarregar suas tendências infantis, remetendo-o, em última instância, às vicis-
situdes do Complexo de Édipo. O Supereu e suas exigências no cumprimento dos
deveres e obrigações morais aparece então como uma espécie de último refúgio
dos “moralistas” (­BERGLER, 1933, p. 19-52).
Sloterdijk, entretanto, aponta um pequeno (e grande) problema na posição
de Bergler, ao afirmar que pensar as intermitências do cinismo como um “conflito
interno”, a um enfraquecimento do Supereu não resolve o problema da época,
qual seja, a de que existe um outro cinismo, um cinismo objetivo, pressupondo
uma “decomposição coletiva do superego”. A frieza subjetiva contra a moral re-
flete, ao contrário, “uma gelificação social geral”. Não por acaso, acrescenta ele,
a psicanálise tem na piada “a sua melhor metade”. Sloterdijk, desta vez, reitera
o compromisso social e político da psicanálise. Ao contrário de Bergler, que se
manteve nos estritos limites do indivíduo e por isso não pode compreender o
alcance social e político das resistências morais de seus pacientes, ele afirma: “a
piada, que provém da frieza, lembra ao menos em sua agressividade uma vida
mais vital”. Não por acaso, portanto, a piada é a “melhor metade” da psicanálise.
Como se vê, tanto na Alemanha nazista quanto nos movimentos libertários
iniciados na década de 1960, o que está em jogo, segundo Sloterdijk, é o caráter
Kyniker da psicanálise. Neste jogo, o que conta é o alcance da relação entre ci-
nismo antigo e moderno que a psicanálise de algum modo encena. No primeiro
exemplo, a dissociação entre sexo e amor; no segundo, a dissociação entre subje-
tivo e objetivo. Problemas que continuam sendo nossos.

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Ernani Chaves

Referências

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Bewegung_Jg5_1933_Heft1.pdf>. Acesso em 14.09.2015.
BOLLE, W. (1994). Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Edusp.
FOUCAULT, M. (1976). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de
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FREUD, S. (1905/1992). Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten.
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GOULET-CAZÉ e BRAHAN (Orgs.), Os cínicos. O movimento cínico na
­Antiguidade e o seu legado, São Paulo: Loyola.
SLOTERDIJK, P. (2012). Crítica da razão cínica. São Paulo: Companhia das ­Letras.

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3
Genealogia da Aufklärung:
impasses da razão esclarecida
Marcus Vinicius Oliveira Santos

Nas últimas décadas do século XVIII, a Alemanha foi palco de um in-


tenso debate em torno da seguinte questão: o que é Esclarecimento (Was ist
­Aufklärung1)? Neste trabalho, buscamos apresentar o contexto no qual foi formu-
lada esta pergunta, bem como enunciar uma hipótese para o que entendemos ser
a preocupação latente em tal questão. Para isso, elencamos os principais autores
que protagonizaram o debate e que teve como escopo nomear e circunscrever
os limites de um projeto que visava, sobretudo, à emancipação dos homens e ao
aperfeiçoamento das instituições. Cabe salientar que, na perspectiva de Foucault
(1979/1996), a genealogia não implica uma pesquisa da origem, mas, ao contrá-
rio, um trabalho atento ao disparate, ao acaso dos começos. Assim, veremos, a
propósito do Esclarecimento, como o debate foi suscitado por uma questão sur-
preendentemente inócua – o casamento civil – que, não obstante, provocou certo
alvoroço entre aqueles que assumiram a tarefa de formular uma resposta para a
mencionada questão.
Em seguida, abordaremos as leituras do filósofo Michel Foucault sobre as
Luzes. Ao longo de sua obra, Foucault dedicou-se por diversas vezes a investigar
questões a respeito do célebre texto de Kant “Resposta à pergunta: o que é Escla-
recimento?”. Diante disso, buscaremos discutir as duas problemáticas que con-

1 Ao traduzir a palavra alemã Aufklärung por Esclarecimento, tomamos como referência os argumentos
apresentados por Almeida (1985), responsável pela tradução da Dialética do Esclarecimento, de Adorno
e Horkheimer. Convém destacar que, embora tenhamos optado pelo uso do termo Esclarecimento,
eventualmente o leitor irá encontrar as palavras “Ilustração” ou “ilustrados”, nos casos em que citamos
diretamente um trecho no qual o autor escolheu essa tradução.

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

sideramos ocupar uma posição de destaque na leitura foucaultiana do opúsculo


de Kant, isto é, a atitude crítica e o diagnóstico do presente. Tomaremos como
referência, na obra de Foucault, alguns de seus escritos, seminários e entrevistas,
com vistas a problematizar as duas questões mencionadas.

O debate em torno do Esclarecimento e seus limites no século XVIII


Em 1783, Johann Erich Biester e Friedrich Gedike fundaram um periódico
chamado Berlinische Monatsschrift, publicação do círculo de intelectuais conhe-
cido externamente como “Sociedade das Quartas-Feiras” e internamente como
“Sociedade dos Amigos do Esclarecimento”. Naquele mesmo ano, Biester pu-
blicou no referido periódico um artigo intitulado “Proposta de não mais se dar
trabalho aos eclesiásticos na consumação do matrimônio”, cujo intuito, como o
próprio título sugere, era propor a desvinculação entre a sanção religiosa e o en-
lace matrimonial. O autor argumentava que, se o restante das relações jurídicas
entre os homens dispensava a sanção religiosa, o mesmo deveria ocorrer com o
contrato que une o homem e a mulher. E, ademais, acrescentava que, para os es-
clarecidos, essas cerimônias seriam dispensáveis (TORRES-FILHO, 1987).
A resposta à proposta de Biester não tardou a aparecer. Em dezembro de
1783, o teólogo e reformador educacional Johann Friedrich Zöllner publicou, no
mesmo periódico, o ensaio “Será aconselhável não mais sancionar o vínculo ma-
trimonial pela religião?”. O autor mostrava-se inteiramente contrário à proposta
de seu interlocutor, argumentando que a relação entre os cônjuges, bem como a
relação entre pais e filhos, decidiria em grande medida sobre a felicidade do ser
humano e, portanto, não deveria ser tratada como se tivesse o mesmo grau de
importância que os demais contratos burgueses. Além disso, o laço matrimonial
e o laço familiar, que dele decorre, sustentaria todo o Estado, na medida em que
o valor do patriotismo dependeria precisamente desse vínculo. Portanto, seria
preciso sancionar o matrimônio mais do que qualquer outro contrato burguês,
e nada melhor que a religião para fazê-lo. Segundo Zöllner (1783/1989, pp. 8-9),
não seria prudente desvalorizar a religião nos assuntos profanos e desse modo,
“sob o nome de Esclarecimento, confundir as cabeças e os corações dos homens”.
Zöllner manifestou uma grande preocupação com a possibilidade de desvir-
tuamento da proposta do Esclarecimento. Conforme aponta Torres-Filho (1987, p.
88), “fazer da Ilustração, tomada sem crítica e sem a consciência dos seus limites,

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

um pretexto para a subversão e para a anarquia – ilustrar às cegas – seria pôr a


perder até mesmo aquilo que as luzes conseguiram, até agora, laboriosamente con-
quistar”. Nesse ponto, Zöllner (1783/1989, pp. 8-9) formulou, em nota de rodapé,
a célebre questão que seria o gatilho para o debate em torno da Aufklärung: “Que
é o Esclarecimento? Esta pergunta, que é quase tão importante quanto ‘o que é a
verdade’, deveria ser respondida, antes que se comece a esclarecer. E, todavia, eu
ainda não a encontrei respondida em parte nenhuma”. Assim, vale dizer, Zöllner
convocou os esclarecidos a interromper, provisoriamente, sua tarefa e propôs, antes
de mais nada, que indagassem sobre a própria natureza do Esclarecimento.
Ainda em 1783, o médico berlinense Johann Karl Wilhelm Möhsen, mem-
bro da Sociedade das Quartas-Feiras, apresentou, perante a referida sociedade,
um escrito de sua autoria, intitulado “O que é para ser feito em direção ao escla-
recimento da cidadania?”. A intenção do autor era estabelecer algumas propostas
norteadoras, com relação à tarefa do Esclarecimento, a fim de disseminá-la por
toda a Alemanha. A primeira das propostas enunciadas por Möhsen (1783/1996,
p. 49) coincidia com a própria questão formulada por Zöllner: “que seja determi-
nado precisamente: O que é Esclarecimento?”. A segunda e a terceira propostas
diziam respeito a problemas de natureza ética e à erradicação de preconceitos e
enganos, nocivos ao projeto do Esclarecimento. A quarta proposta aludia a uma
investigação que buscasse entender o porquê de o Esclarecimento dos seus com-
patriotas não ter efetivamente avançado, mesmo após quarenta anos2 de liberda-
de de pensar, falar e publicar. A quinta proposta referia-se ao aperfeiçoamento da
linguagem utilizada por aqueles que promoviam o Esclarecimento, de modo que
houvesse maior inteligibilidade na comunicação com o público. A última propos-
ta convocava os esclarecidos a refletir se seus esforços seriam úteis ou nocivos, não
apenas para o público, assim como para o Estado e o governo. Interessa-nos, aqui,
destacar a primeira e a última propostas, na medida em que refletem as principais
preocupações dos autores que apresentamos nesta seção do trabalho, a saber: a
definição do Esclarecimento e a preocupação com a possibilidade de desvirtua-
mento de tal projeto.

2 Os “quarenta anos”, aos quais Möhsen se referia, dizem respeito ao reinado de “Frederico, o Grande”,
que governou a Prússia entre as décadas de 1740 e 1780. Ao assumir o trono, Frederico promoveu
reformas que visavam combater as leis de censura, bem como propagar a tolerância às divergentes
opiniões acerca de questões religiosas. A esse respeito, Cf. Klein, 1784/1996.

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

A convocação feita por Zöllner aos “amigos do Esclarecimento” foi pron-


tamente atendida. Em 1784, um ano após a formulação da famosa questão, o
Berlinische Monatsschrift publicou as duas respostas mais conhecidas: a de Moses
Mendelssohn e a de Immanuel Kant. Como veremos, ambos os autores engen-
draram distinções conceituais com o escopo de fornecer uma solução para o pro-
blema do desvirtuamento do Esclarecimento. Cabe ressaltar que é absolutamente
questionável que, ao perguntar “O que é Esclarecimento?”, Zöllner gostaria ape-
nas de obter uma simples definição do termo. A hipótese que aqui enunciamos
é que a famosa pergunta estava longe de ser despretensiosa. Talvez fosse mais
apropriado questionar: quais são os limites do Esclarecimento? O que podemos
fazer para que tal projeto não se torne uma ameaça à tranquilidade pública? Con-
forme aponta Torres-Filho (1987, p. 86), “o que se quer saber, de fato, é quem é a
Ilustração: em que nome ela fala. Questiona-se sua idoneidade moral, seu grau de
respeitabilidade ou, ao contrário, de periculosidade. Em que medida ela põe em
risco as instituições?”.
A resposta de Mendelssohn foi publicada na edição de setembro de 1784,
com o título “Sobre a questão: o que é Esclarecimento?”. O autor iniciou o ensaio
advertindo que as palavras esclarecimento, cultura e educação eram muito recen-
tes naquela época e frequentemente apareciam misturadas, haja vista que o uso
linguístico ainda não havia estabelecido as fronteiras entre elas. Haveria, em co-
mum, entre os três termos que todos eles diziam respeito a modificações da vida
social, resultante do esforço dos homens para aprimorar sua condição. De acordo
com o autor, a educação se desdobraria em esclarecimento – referente a questões
teóricas – e cultura – orientada a questões práticas.
Doravante, após a tentativa de circunscrever os limites entre aqueles ter-
mos, Mendelssohn (1784/1989) engendrou a distinção conceitual que, a nosso
ver, foi fundamental para encaminhar uma solução para o problema enunciado
por Zöllner, qual seja: a diferenciação entre o destino do homem como cidadão
e o destino do homem como homem. Isto é, o autor distinguiu o Esclarecimento
civil do Esclarecimento dos homens. Estes dois registros, vale dizer, coincidiriam
apenas quando se tratava da cultura, na medida em que as questões práticas, vol-
tadas para a esfera social, deveriam interessar a todos os membros da sociedade.
Contudo, o esclarecimento do homem poderia entrar em conflito com o esclare-
cimento do cidadão. Nos dizeres do autor: “certas verdades, que são úteis ao ho-

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

mem como tal, podem às vezes ser nocivas para ele como cidadão” (p. 14). Posto
isso, ele advertiu aos amigos do Esclarecimento:
Quanto mais nobre é uma coisa em sua perfeição – diz um escritor he-
breu –, tão mais terrível é em sua deterioração. Um pedaço de madeira
podre não é tão feio como uma flor murcha; esta não é tão repugnante
quanto um animal em decomposição; e este, por sua vez, não é tão terrí-
vel quanto o homem em sua corrupção. Assim também acontece com a
cultura e a Ilustração. Quanto mais nobres forem em seu apogeu, mais
terríveis são em sua corrupção e perversão.
O mau uso da Ilustração debilita o sentimento moral, leva ao egoísmo, à
irreligião e à anarquia. O mau uso da cultura produz luxúria, hipocrisia,
fraqueza, superstição e escravidão (MENDELSSOHN, 1784/1989, p. 15, tra-
dução nossa).

Em dezembro de 1784, o Berlinische Monatsschrift publicou o opúsculo de


Kant, intitulado “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?”, a mais consa-
grada dentre as respostas à questão formulada por Zöllner. O autor iniciou o
texto com uma definição do conceito em questão: “Esclarecimento (Aufklärung)
é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (KANT,
1784/1985b, p. 100). Nesse trecho, bastante citado, é possível entrever dois ele-
mentos importantes na definição kantiana: a) a definição do Esclarecimento
como um processo de saída do estado de menoridade; b) a responsabilidade do
homem nesse processo.
A definição kantiana indica que o projeto do Esclarecimento deveria pro-
porcionar o afastamento dos homens do estado de menoridade; neste sentido,
tal empreendimento deveria contrapor-se às figuras de autoridade, sobretudo, a
autoridade eclesiástica e a autoridade legislativa. Eis, portanto, os principais alvos
do Esclarecimento: a religião e a política. A esse respeito, em 1781, no “Prefácio
à primeira edição da Crítica da Razão Pura”, Kant (1781/1985a, p. 14) antecipava:
“A nossa época é por excelência uma época de crítica à qual tudo deve submeter-
-se. De ordinário, a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade,
querem subtrair-se a ela”. Todavia, vale dizer, embora o momento histórico tenha
sido definido como época de crítica à qual tudo deveria submeter-se, seria pre-
ciso estabelecer algumas diretrizes para que a tarefa crítica não se tornasse uma

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

atividade subversiva, ameaçadora da tranquilidade pública. Nesse ponto, como


pretendemos demonstrar, Kant parece ter compreendido melhor o sentido da
questão formulada por Zöllner.
Kant afirmou que o único requisito para o Esclarecimento seria a mais ino-
fensiva entre tudo aquilo que se pode chamar liberdade. Ora, caso não houvesse
desconfiança em torno do Esclarecimento, seria preciso sublinhar que a liberdade
exigida para o seu exercício é, de fato, inofensiva? Certamente, não. Disse o autor:
“[...] num regime de liberdade, a tranquilidade pública e a unidade da comu-
nidade não constituem em nada motivo de inquietação” (KANT, 1784/1985b, p.
114). E acrescentou: “[...] mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo
em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publi-
camente ao mundo suas ideias sobre uma melhor compreensão dela” (p. 114).
Em suma, Kant argumentou que seria benéfico para o governo e para a religião
aliar-se ao Esclarecimento, na medida em que tal projeto possibilitaria o aperfei-
çoamento das instituições, sem colocá-las em risco.
O esforço maior de Kant (1784/1985) foi tentar mostrar que era possível ser,
ao mesmo tempo, um entusiasta do Esclarecimento e um funcionário obediente.
Para tanto, o autor engendrou a tão conhecida distinção entre o uso público e o
uso privado da razão, que serviu de alicerce para sua argumentação. Em linhas ge-
rais, o uso privado da razão é aquele que se faz como engrenagem disciplinada da
máquina pública, ou seja, como funcionário. Como se sabe, uma vez corrompida
apenas uma das engrenagens, prejudica-se o funcionamento de todo o conjunto.
Destarte, o uso privado é um uso da razão adaptado a fins específicos, ou, em ou-
tras palavras, um uso instrumental da razão. O uso público da razão, por sua vez,
é aquele que se faz na condição de sábio (Gelehrter), como membro de uma socie-
dade cosmopolita, ou, em outras palavras, é o uso livre e universal da razão. Aqui,
a razão não tem outra finalidade senão ela mesma e o seu uso deve ser irrestrito.
Cabe ressaltar que Mendelssohn havia formulado uma distinção semelhante
– homem como homem e homem como cidadão –, advertindo que, nem sempre, o
esclarecimento do cidadão seria benéfico para a sociedade. No entanto, a solução
encontrada por Kant era muito mais tranquilizadora que a de seu interlocutor,
na medida em que enfatizava: o uso público e o uso privado da razão poderiam
coexistir. O funcionário, o sacerdote, o soldado, o cidadão que paga impostos,
deveriam ser deixados livres para pensarem e questionarem aquilo que fazem,

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

porém deveriam igualmente cumprir com as suas obrigações. Nesse sentido,


Kant propôs ao monarca Frederico, em termos pouco velados, aquilo que Fou-
cault (1984/2008c, p. 340) denominou “contrato do despotismo racional com a
livre razão”, numa tentativa de afastar o temor pela instauração de um ambiente
subversivo provocado pelo Esclarecimento. Tal contrato ratificava: o uso público,
livre e universal da razão será a melhor garantia da obediência dos cidadãos. Com
efeito, a Aufklärung não seria uma ameaça à tranquilidade pública e à obediência,
que permaneceriam intactas, na esfera privada.

Foucault e as Luzes: atitude crítica e diagnóstico do presente


“As Luzes que descobriram as liberdades inventaram
também as disciplinas.” (FOUCAULT, 1975/2009, p. 209).

No período compreendido entre 1978 e 1984, ano de sua morte, Foucault


debruçou-se de maneira recorrente sobre o opúsculo de Kant “Resposta à per-
gunta: o que é Esclarecimento?”. Cabe destacar que, em torno desta temática, co-
locavam-se três questões de fundamental importância para o autor: a) em primei-
ro lugar, Foucault procurava responder àqueles que atribuíam ao seu trabalho o
rótulo de pós-moderno; b) em segundo lugar, buscou esclarecer o perfil metodo-
lógico das suas investigações filosófico-históricas, situando-as no que denominou
ontologia do presente; c) por fim, colocava-se a questão da aproximação entre as
suas críticas à modernidade com aquelas formuladas por Adorno e Horkheimer
na “Dialética do Esclarecimento” (MAIA, 2002).
Reconhecemos a importância dessas questões nas discussões de Foucault
acerca das Luzes, no entanto, não gostaríamos de centrar nossas reflexões em
tais problemas, cuja relevância parece estar relacionada a uma defesa em face de
seus interlocutores. Interessa-nos, com efeito, investigar dois aspectos que enten-
demos ocupar uma posição central na leitura foucaultiana do texto de Kant, a
saber: a atitude crítica e o diagnóstico do presente. Tomaremos como referência,
na obra de Foucault, alguns de seus escritos, seminários e entrevistas, dos quais
destacamos: “O que é a crítica?” (1978), “O sujeito e o poder” (1982), “O governo
de si e dos outros” (1983), “Estruturalismo e pós-estruturalismo” (1983), “O que
são as luzes?” (1984), “A vida: a experiência e a ciência” (1984).
Em maio de 1978, Foucault apresentou a conferência intitulada “O que é

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

a crítica? (Crítica e Aufklärung)”, perante a Sociedade Francesa de Filosofia. Foi


então a primeira vez que o autor fez referência ao opúsculo kantiano “Resposta
à pergunta: que é o Esclarecimento?”. Naquele mesmo ano, Foucault ministrava
um curso no Collège de France – “Segurança, território e população” –, e um dos
seus interesses fundamentais, vale dizer, referia-se à profusão da arte de gover-
nar os homens, que eclodiu no Ocidente moderno, a partir do século XVI. As
questões “como se governar, como ser governado, como governar os outros, por
quem devemos aceitar ser governados, como fazer para ser o melhor governador
possível?” (FOUCAULT, 1978/2008a, p. 118), bem como a multiplicação das artes
de governar em domínios diversos – governo dos filhos, das famílias, dos corpos,
dos Estados etc. –, são, portanto, características desse período.
Essa governamentalização, advertiu Foucault, não poderia ser desvinculada
da questão: “como não ser governado?”. Nesse ponto, o autor situou o que ele de-
nominou atitude crítica, como contrapartida das artes de governar, como forma
de desvencilhar-se delas, de recusá-las. Assim, Foucault (1978/2012, p. 59) propôs
como primeira definição de crítica: “a arte de não ser de tal modo governado”. Di-
zer de tal modo governado implica ratificar que não se trata de dizer “não quere-
mos ser governados em absoluto”, mas sim que não queremos ser governados dessa
maneira, em nome de tais princípios, por meio de determinados procedimentos.
Em seguida, Foucault (1978/2012) procurou assinalar alguns pontos de
ancoragem históricos dessa atitude crítica: a) época em que a arte de governo
era uma arte espiritual ou prática religiosa, na qual “não querer ser governado”
significava rechaçar o magistério eclesiástico, questionar a autenticidade das es-
crituras; b) momento no qual “não querer ser governado” implicava a crítica ao
governo e à obediência que exige, ou seja, colocava-se a questão de quais os limi-
tes da arte de governar; c) em um terceiro momento, “não querer ser governado”
levantava o problema da certeza em face da autoridade, ou seja, colocava-se a
questão de não aceitar simplesmente como verdadeiro aquilo que a autoridade
atribuía como verdade.
A contraposição entre governamentalização e atitude crítica tornou-se ain-
da mais evidente quando Foucault (1978/2012, p. 60) colocou em pauta a questão
da sujeição. Por um lado, a governamentalização trata-se de uma “[...] prática so-
cial, de sujeitar os indivíduos através de mecanismos de poder que invocam uma
verdade”. Por outro lado, a atitude crítica é o movimento que “[...] teria essencial-

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

mente como função a dessujeição no jogo que poderíamos chamar, sucintamente,


a política da verdade” (p. 61). Dessa forma, o autor concluiu: “a crítica é a arte da
inservidão voluntária, da indocilidade reflexiva” (p. 61). Foi precisamente nesse
ponto que Foucault identificou a atitude crítica com a Aufklärung:
O que Kant descrevia como a Aufklärung é o que eu tentava até um
momento descrever como a crítica, como esta atitude crítica que vemos
aparecer como atitude específica no Ocidente a partir, creio, do que tem
sido historicamente o grande processo de governamentalização da socie-
dade (FOUCAULT, 1978/2012, p. 61).

Ora, se o estado de menoridade – no qual o indivíduo é mantido sob a tutela


de alguma autoridade, em que conviria fazer uso autônomo da razão – é respon-
sabilidade do próprio indivíduo, na medida em que lhe faltam decisão e coragem,
podemos inferir que a menoridade é, com efeito, o lugar da sujeição, da servidão
voluntária3, tal como fora formulada por La Boétie (1580/1997). Por seu turno,
a atitude crítica como arte da inservidão voluntária, na medida em que tende à
dessujeição, é compatível com o potencial de emancipação, de desprendimento,
próprio da Aufklärung. Vemos, pois, que o processo do Esclarecimento e a atitude
crítica são operações imbricadas, indissociáveis.
Em 1983, quando ministrava outro curso no Collège de France – “O gover-
no de si e dos outros” –, Foucault elaborou novamente, desta vez de modo mais
sofisticado, as relações entre a menoridade, o Esclarecimento e o problema do
governo. Nos dizeres do autor, a menoridade se definiria por uma relação entre
o uso que fazemos de nossa própria razão e a direção dos outros. E acrescentou:
“Governo de si, governo dos outros: é nessa relação, nessa relação viciada que se
caracteriza o estado de menoridade” (FOUCAULT, 1983/2010b, p. 32, grifo nosso).

3 No século XVI, Étienne de La Boétie escreveu o célebre Discurso sobre a Servidão Voluntária, obra
que antecipou em mais de 200 anos alguns dos argumentos presentes no texto de Kant sobre o
Esclarecimento. Com efeito, uma questão se colocava para a reflexão de La Boétie: como seria
possível que a maioria das pessoas obedecesse a um só homem, não sob o efeito de terror, mas
voluntariamente? O espanto de La Boétie o levou a recusar que a servidão fosse uma evidência
natural e a buscar as suas origens nos acontecimentos históricos. De uma maneira bastante parecida
com Kant, o autor advertiu, em tom de apologia, aos covardes e preguiçosos: “tomai a resolução
de não mais servirdes e sereis livres” (LA BOETIE, 1580/1997, p. 26). Em suma, bastaria que os
indivíduos se recusassem a servir para que o tirano enfraquecesse, pois não é senão por culpa
daqueles que este os oprime.

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

A relação entre governo de si e dos outros, no estado de menoridade, é viciada na


medida em que o homem acomoda-se em fazer a autoridade pensar, decidir por
ele. Nesse caso, o homem recusa-se a governar a si mesmo e delega essa tarefa a
algum senhor. O próprio Kant (1784/1985, p. 100) advertira, dois séculos antes:
“é tão cômodo ser menor!”.
Devemos acrescentar que não se deve pensar que Kant era absolutamente
reticente com relação ao uso daquelas três autoridades que ele mencionou para
exemplificar o estado de menoridade – o livro, o diretor espiritual e o médico.
É precisamente o uso que o sujeito faz de tais autoridades que irá caracterizar o
estado de menoridade. O autor não era exatamente contrário ao uso de livros,
apenas questionava o uso que deles fazem os indivíduos, que substituíam de bom
grado o seu entendimento em proveito de tal autoridade. Foi então, nesse contex-
to, que Foucault (1983/2010b, p. 32) enunciou a função do Esclarecimento: “[...] o
que a Aufklärung deverá fazer, o que ela está fazendo, pois bem, vai ser justamente
redistribuir as relações entre governo de si e governo dos outros”. Redistribuir
aqui tem o sentido de problematizar estas relações: eu leio o livro, mas tenho au-
tonomia suficiente para questioná-lo, para impor o uso da minha própria razão,
caso meu entendimento seja divergente.
Na leitura foucaultiana do Esclarecimento, há outro elemento que atra-
vessa praticamente todos os textos que o autor dedicou ao assunto, a saber: a
reflexão sobre a atualidade ou, em outras palavras, o diagnóstico do presente
como uma importante função da filosofia moderna. Esta seria, vale dizer, a
novidade trazida por Kant em sua “Resposta à pergunta: Que é Esclarecimen-
to?”. Deve-se ressaltar, contudo, que o diagnóstico do presente como tarefa
para a filosofia foi objeto de estudo para Foucault, antes mesmo da Aufklärung.
Em uma entrevista de 1968, publicada com o título “Foucault responde a Sar-
tre”, o autor asseverou: “Diagnosticar o presente, dizer em que nosso presente
difere de modo absoluto de tudo o que ele não é, ou seja, de nosso passado.
Talvez seja isso, talvez seja essa a tarefa atribuída nos dias de hoje ao filósofo”
(­FOUCAULT, 1968/2011, p. 172). Passemos então à investigação sobre a relação
entre Aufklärung e diagnóstico do presente.
De acordo com Foucault (1984/2008c), a reflexão sobre o momento pre-
sente, como objeto do pensamento filosófico, tomou três direções principais,
antes de Kant: a) concebia-se o presente como um período distinto dos demais

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

por possuir características singulares ou por estar separado de épocas anterio-


res por um acontecimento dramático; b) interessava-se pelo presente, pois atra-
vés dele seria possível decifrar os indícios que anunciariam um acontecimento
iminente; c) compreendia-se o presente como um ponto de transição, uma pas-
sagem em direção da aurora de um novo mundo. Em linhas gerais, poderíamos
localizar estas três formas de reflexão sobre o presente, respectivamente, em
Platão, Agostinho e Vico.
Kant, por sua vez, inscreveu a reflexão sobre o presente, a partir do Escla-
recimento, de uma maneira absolutamente distinta das anteriores: não se tratava
do pertencimento a uma época específica, nem de um evento do qual deciframos
os sinais, nem da transição em direção da aurora de um novo mundo. O autor
definiu o Esclarecimento de uma maneira negativa, como uma saída, como um
desprendimento. Nos dizeres de Foucault:
No texto sobre a Aufklärung, a questão se refere à pura atualidade. Ele não
busca compreender o presente a partir de uma totalidade ou de uma reali-
zação futura. Ele busca uma diferença: qual a diferença que ele introduz
hoje em relação à ontem? (FOUCAULT, 1984/2008c, p. 337, grifo nosso).

Assim, segundo Foucault (1983/2008b), o filósofo alemão deslocou-se, pela


primeira vez, da investigação dos sistemas metafísicos ou dos fundamentos do
conhecimento científico, para um acontecimento histórico, contemporâneo: a
Aufklärung. Colocava-se, para Kant, a questão de analisar quem somos nós e o
que é esse momento preciso em que vivemos. Nesse sentido, a herança kantiana
imputou à filosofia a tarefa de interrogar a própria atualidade, diagnosticar o pre-
sente, entender o que é esse agora, do qual o filósofo também faz parte.
A questão do momento presente tornou-se, com efeito, um problema do
qual a investigação filosófica não poderia se desvencilhar. Não seria apenas a
questão do pertencimento a uma doutrina ou tradição filosófica, nem tampouco
a investigação dos grandes dilemas metafísicos, o que se colocava para o filóso-
fo, mas sim a questão do seu pertencimento a um nós e a um contexto histórico
muito específico, a saber: o presente do qual ele faz parte. De acordo com Higuera
(2003), a partir desse momento, da Aufklärung, a atualidade parece ser o único
objeto da filosofia. A própria filosofia acha-se incluída nesse objeto, o que obriga
o trabalho filosófico a empreender um questionamento de si mesmo.

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Marcus Vinicius Oliveira Santos

Dito isso, Foucault (1983/2010b) procurou mostrar como essas questões


operaram uma mudança no discurso sobre a modernidade, de uma perspectiva
longitudinal para uma relação sagital. Aqui, novamente, o texto “Resposta à
pergunta: Que é Esclarecimento?” foi considerado como um marco dessa pas-
sagem. Anteriormente à tradição kantiana, a questão da modernidade era posta
em uma perspectiva longitudinal, ou seja, a modernidade era colocada como
uma questão de polaridade: de um lado os antigos e, de outro lado, os moder-
nos. Em suma, a questão era saber, por exemplo, se os antigos foram superiores
aos modernos ou se vivemos um período de prosperidade. Com a Aufklärung,
eclodiu uma nova maneira de situar a questão da modernidade, a partir de uma
relação sagital, ou, em outras palavras, uma relação vertical do discurso com a
sua própria atualidade.
Destarte, a partir da inscrição de uma relação sagital do discurso filosófico
com a atualidade, fazia-se do Esclarecimento o momento no qual a filosofia iria
se deparar com a possibilidade de se constituir como um elemento determinante
de uma época. A filosofia apareceria como figura que desvelaria as significações
da atualidade. E o filósofo, por sua vez, teria um papel a desempenhar, na medida
em que ele próprio faz parte desse momento presente. Talvez seja esse o principal
legado da Aufklärung kantiana. De Marx à Teoria Crítica alemã, o diagnóstico
do presente aparece como peça fundamental da investigação filosófica. A partir
da herança dessa relação entre Esclarecimento e Crítica, conforme apresentamos
nesta seção, a interrogação filosófica assume uma atitude de desconfiança: ques-
tiona-se, vale dizer, a relação entre racionalização e excessos de poder político. De
acordo com Foucault:
Desde Kant, o papel da filosofia é prevenir a razão de ultrapassar os
­limites daquilo que é dado na experiência; porém, ao mesmo tempo – isto
é, desde o desenvolvimento do Estado moderno e da gestão política da
sociedade –, o papel da filosofia é também vigiar os excessivos poderes da
racionalidade política (FOUCAULT, 1982/2010a, p. 275).

Diante do que foi exposto, pode-se entrever que, desde o debate em torno
do Esclarecimento e seus limites, no século XVIII, à sua retomada por Foucault,
no século XX, o que se colocava em questão era o problema do governo. Cabe
salientar que a desconfiança dos governantes diante de um projeto que visava à

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Genealogia da Aufklärung: impasses da razão esclarecida

emancipação dos homens e, por conseguinte, fomentava a crítica às figuras de


autoridade, dizia respeito ao risco de que se instaurasse um ambiente de sub-
versão. Vale lembrar que, no final do século XVIII, nos anos que se seguiram
ao debate sobre a questão da Aufklärung, a Revolução Francesa promoveu a
destituição do poder soberano do Rei, numa espécie de simulacro da conde-
nação à morte de Deus, proclamada por Nietzsche (2011) como um filosofema
da modernidade. Por conta disso, Kant se propôs a tarefa de reflexão sobre a
atualidade, na tentativa de oferecer uma solução que pudesse assegurar a gover-
namentalização. Assim, a distinção entre o uso público e o uso privado da razão
era um recado endereçado tanto a Frederico quanto a Zöllner: não haveria mo-
tivos para se preocupar, tendo em vista que a atitude crítica não colocaria em
xeque a obediência civil.

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4
Discurso freudiano e contratualismo:
da convergência à contraposição
Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Daniel Menezes Coelho

Este trabalho se propõe a problematizar a relação entre o discurso freu-


diano e a tradição contratualista. Para tanto, inicialmente apresentaremos
uma breve descrição dessa tradição, tomando como principais referências
os trabalhos de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Posteriormen-
te, apresentaremos a perspectiva freudiana sobre o advento da civilização,
a partir dos textos sociais que compõem a sua obra, notadamente Totem
e Tabu e O Mal-estar na cultura. Interessa-nos demonstrar que a leitura
freudiana no que tange à regulação dos laços sociais teria se deslocado da
referência ao discurso de Rousseau e se aproximado do discurso de Hobbes.
Por fim, cabe salientar que a elaboração deste trabalho tem por objetivo, em
última instância, discutir a seguinte questão: o discurso freudiano se inscre-
veria na tradição contratualista?
Iniciamos a nossa investigação pela busca de uma definição para o termo
contratualismo. Assim, em consulta ao Dicionário de Política, podemos entre-
ver que, em sentido amplo, tal termo compreende:
Todas aquelas teorias políticas que veem a origem da sociedade e o fun-
damento do poder político (chamado, quando em quando, potestas,
imperium, Governo, soberania, Estado) num contrato, isto é, num
acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos, acordo que
assinalaria o fim do estado natural e o início do estado social e político
(BOBBIO, MATTEICCI & PASQUINO, 2010, p. 272).

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

O Estado oriundo de um contrato seria um instrumento coercitivo cuja função


consistiria na criação e execução do direito que a sociedade racionalmente expres-
sou. Bobbio et al. (2010) assevera que a tradição contratualista vê a força operar de
modos distintos no estado de natureza e no estado de direito. No primeiro, o homem
estaria exposto ao constante risco de ser agredido, bem como à tentação de agredir.
Portanto, para evitar esta situação de insegurança – na qual a força agiria em estado
difuso e cada indivíduo seria livre para decidir quanto ao seu uso – os indivíduos,
por intermédio de um contrato, outorgaram o monopólio da força ao Estado.
Para Limongi (2012), o contrato seria uma modalidade de associação que os
homens resolveriam instituir voluntariamente e pela qual deixariam de ser con-
duzidos pelo movimento natural de suas paixões. A tese contratualista pressupõe
a fundação da sociedade política sobre uma relação jurídica, na medida em que o
contrato consistiria em um ato jurídico pelo qual as partes contratantes estabele-
ceriam direitos e deveres recíprocos. Cabe ressaltar que essa relação jurídica seria
uma característica essencial que permitiria a distinção da sociedade política de
outras formas de comunidade.

O Contratualismo na filosofia política de Hobbes e Rousseau


Considerado um dos primeiros contratualistas, o filósofo inglês Thomas
Hobbes viveu entre 1588 e 1679. Sua importância consiste em ter reunido em
torno do conceito de Estado os traços que em sua época começavam a apontar
para uma nova concepção de política. Conhecido por seu pensamento político e
criador da ideia de representação política, é considerado pai do conceito moderno
de Estado, o qual é composto por três ideias fundamentais, a saber: a ideia de
soberania – o Estado se constituiria como um poder soberano, acima do qual
não haveria nenhum outro; a ideia segundo a qual o Estado teria por finalidade
a regulamentação da vida econômica; e, por fim, a ideia de que o Estado seria re-
presentativo, ou, em outras palavras, seus atos representariam a vontade de seus
cidadãos e se fariam em nome dela (LIMONGI, 2002).
Hobbes também é conhecido por sua visão negativa do homem1, a qual lhe

1 Por visão negativa do homem, Limongi (2002) aponta que, na perspectiva de Hobbes, os homens
seriam maus por natureza e naturalmente inimigos uns dos outros. Portanto, nenhuma aliança entre
eles poderia se consolidar, não fosse a intervenção de um poder absoluto, coercitivo e punitivo o qual
viria a conter o egoísmo inerente à natureza humana e viabilizaria a paz entre os homens.

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

rendeu o título de “realista”, isto é, alguém que supostamente compreendeu a na-


tureza humana em sua essência. A partir de seu diagnóstico negativo, Hobbes
justifica a necessidade de instauração de um poder coercitivo que seria capaz de
forçar os homens à obediência das leis necessárias para uma convivência pacífica.
Hobbes afirma em sua teoria que a condição natural do homem seria uma
condição de guerra de todos contra todos. Todavia, para compreender tal condi-
ção, é preciso compreender o que nos determinaria a experimentar certas paixões
que nos conduziriam à guerra. Primeiramente, para Hobbes, o homem em sua
condição de um ser provido de desejos e necessidades, empreenderia uma mar-
cha contínua em busca da satisfação desses e almejaria também obter garantias
para a satisfação de outros desejos futuros (HOBBES, 1651/2008).
Outra circunstância que seria apontada como explicação para nosso com-
portamento natural seria a condição de igualdade entre os homens. Sendo os
homens naturalmente iguais no que tange às faculdades do corpo e do espírito,
seria pertinente que alimentassem a esperança de poder conseguir para si o
mesmo que os outros. Contudo, o desejo por um objeto que não possa vir a ser
desfrutado em conjunto promoveria a disputa e causaria a inimizade. Dessa
disputa pelo desfrute do objeto desejado, pautada no Direito de Natureza2, se
originaria então o sentimento de desconfiança, o qual justificaria o comporta-
mento dos homens em busca de segurança no intuito de antecipar um eventual
ataque que poderia vir a sofrer.
A guerra seria então decorrente das paixões. Na perspectiva hobbesiana,
fora das repúblicas civis, em que não haveria um poder comum capaz de manter
os homens sob coerção, a condição existente seria de guerra. Na ausência da Re-
pública, não haveria sociedade, visto que a guerra seguiria em tempo contínuo e
não haveria possibilidade para o progresso no trabalho, no conhecimento, e no
cultivo da terra. Não existiriam noções de certo e errado; a segurança do homem
proveria exclusivamente de sua própria força, de modo que haveria um medo
contínuo da morte e sua perspectiva de vida seria “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta” (HOBBES, 1651/2008, p. 109).

2 O Direito de Natureza consistiria na liberdade que cada homem possuiria de usar seu próprio poder da
maneira que quisesse para a preservação da sua vida e, consequentemente, de fazer tudo aquilo que o
seu próprio julgamento e razão lhe indicassem como meios mais adequados para esse fim (HOBBES,
1651/2008).

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

Na medida em que a condição de guerra seria permeada pela miséria e


pela incerteza, o medo da morte e a esperança por uma vida confortável, basea-
da na segurança e estabilidade da ordem social, despertariam no homem a bus-
ca pela paz. Com o ato contratual, deixaríamos de poder atuar tal como nossa
vontade nos impelisse, tendo em vista que a obrigação seria um compromisso
em relação ao outro. A paz exigiria reciprocidade; portanto, quem a desejasse,
deveria demonstrar interesse em cumprir os contratos aos quais se comprome-
teu. Os contratos surgiriam, assim, com a finalidade de controlar nossas pai-
xões e promover uma convivialidade agradável. No entanto, Hobbes alerta para
o fato de que isso não seria suficiente, pois “os pactos sem a espada não passam
de palavras (...)” (HOBBES, 1651/2008, p.143). Caso não fosse instituído um
poder suficiente para garantir a nossa segurança, cada um confiaria apenas na
sua própria força e capacidade como proteção contra os outros. Seria necessário
algo além de um pacto para tornar constante e duradouro o seu acordo, ou seja,
um poder comum que manteria o respeito entre os homens e que dirigiria suas
ações para o benefício comum.
Segundo Hobbes (1651/2008), assim teria sido instituído o Estado ou Repú-
blica, por meio de um contrato no qual um homem ou assembleia de homens se-
ria eleito por todos e autorizado a representá-los por seus atos e palavras. Seria da
instituição da República que derivariam todos os direitos e competências daquele
ou daqueles a quem o poder soberano seria confiado e ilimitado. A soberania
teria o poder de prescrever as regras através das quais todo homem poderia saber
quais os bens de que poderia gozar e quais as ações que poderia praticar. Embora
fosse possível imaginar muitas consequências negativas de um poder tão ilimi-
tado, Hobbes afirmou que ainda assim as consequências da ausência do poder
soberano seriam muito piores.
Por fim, cumpre colocar em destaque que o poder do Estado em Hobbes
não estaria limitado a uma simples força coercitiva para as desregradas paixões
humanas. Sua finalidade maior consistiria na retirada dos homens do plano das
relações de puro poder e força, alocando-os em um campo de relações jurídicas
e racionais. Conforme aponta Limongi (2002), o Estado possibilitaria a transfor-
mação do homem em cidadão ao introduzir moralidade e racionalidade em suas
relações, impondo vínculos de obrigação permanentes entre eles e coibindo-os
para que não se comportem simplesmente como suas paixões os impeliriam a

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

agir, mas que calculem suas condutas a partir do modo como desejariam expri-
mir suas vontades e paixões.
Os pressupostos teóricos apresentados por Hobbes vieram posteriormente a
exercer grande influência sobre o pensamento de Rousseau. Entretanto, divergên-
cias teóricas motivaram este último a defender uma posição contrária à leitura de
seu predecessor a respeito das características e condições do estado de natureza
e dos fundamentos do contrato social. A teoria do contrato social seguiria uma
nova via a partir da elaboração do princípio da soberania do povo, apresentado
por Rousseau no seu texto O contrato social, publicado no ano de 1762. A novi-
dade em sua doutrina consistia na declaração de que a soberania deveria residir
no povo, não podendo haver outro soberano além do povo. Portanto, o Estado
republicano consistiria na única forma legítima de Estado.
A descrição do homem no estado de natureza feita por Rousseau aponta
para um ser primitivo, nômade, que não mantém relações com outros de sua
espécie devido ao distanciamento geográfico e ainda não desenvolveu formas
de raciocínio mais complexas, de tal modo que não possui linguagem para se
comunicar (ROUSSEAU, 1755/2006). Desse modo, a doutrina rousseauniana
defende que a maior parte das paixões tem sua origem e desenvolvimento no
convívio permanente dos homens com seus semelhantes. Segundo essa pers-
pectiva, as paixões seriam capazes de unir os homens tanto quanto seriam
responsáveis por dividi-los, apresentando-se como uma fonte perpétua de dis-
córdia. Podemos seguramente inferir que Rousseau estaria de acordo com o
argumento hobbesiano a respeito das paixões e dos desejos serem uma fonte
geradora de discórdia entre os homens, contudo, o autor faz a ressalva de que
esta discórdia ocorreria apenas a partir do momento em que o homem passa-
ria a conviver na proximidade de seus semelhantes. De acordo com Derathé
(2009), para Rousseau, a condição inicial do estado de natureza seria de dis-
persão ou isolamento dos homens, fator que não constituiria uma conjuntura
favorável ao desenvolvimento das paixões. O homem selvagem seria um ser
solitário, sem relações com outros semelhantes, de modo que não seria levado
a comparar sua sorte à dos outros.
Um dos principais questionamentos elaborados por Rousseau em oposição
à perspectiva de Hobbes estaria relacionado ao seu não reconhecimento do sen-
timento de piedade, virtude natural que o homem possui ao ver sofrer seu se-

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

melhante. A piedade seria considerada por Rousseau como um sentimento tão


poderoso que, por si só, conseguiria promover a conservação mútua de toda a
espécie. Dela, decorreriam todas as virtudes sociais, a exemplo da generosidade,
da clemência, da benevolência e da amizade (ROUSSEAU, 1755/2006). Portanto,
Rousseau conclui que, com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os
homens selvagens estariam mais preocupados em proteger-se do mal que podia
acometê-los – proveniente da natureza, de animais predadores ou de outros ho-
mens – do que tentados a fazê-lo a outrem.
Para Rousseau, as paixões e os desejos se tornaram fonte de discórdia entre
os homens a partir do momento em que eles passaram a conviver juntos. A vida
em sociedade provocaria mudanças profundas na natureza do homem, pois o
desenvolvimento da sociabilidade e das paixões ocorreria de forma concomitan-
te. Não obstante, a formação das sociedades civis tornar-se-ia uma necessidade
vital para o homem em razão da permanente insegurança presente no estado de
natureza. Aqui, apontamos outra questão a respeito da qual a leitura rousseaunia-
na concordaria com a de Hobbes: para Rousseau, caso o engajamento recíproco
entre os homens não possuísse um superior comum capaz de impor a todos o
respeito da palavra dada, existiria o risco do surgimento de dissensões perpétuas,
as quais provocariam a dissolução do corpo político. Com efeito, embora os ho-
mens compactuassem, continuariam a priorizar mais seus interesses pessoais do
que o bem comum, tornando-se necessário a instituição de um poder soberano
para constrangê-los a cumprir seu dever de cidadãos e a submetê-los à vontade
geral (DERATHÉ, 2009).
A necessidade do estabelecimento de uma autoridade política que regu-
laria a vida em sociedade levaria os homens a se unir para selar um pacto por
meio do qual todos se obrigariam à observância das leis que seriam nele esti-
puladas e que formariam os vínculos de sua união (ROUSSEAU, 1755/2006).
Apontamos anteriormente que a doutrina de Rousseau se diferenciaria de
seus predecessores ao estabelecer que a soberania deveria ser exercida ex-
clusivamente pelo povo. Rousseau defendia que a soberania deveria perten-
cer ao povo para que sua liberdade fosse preservada. Assim, de acordo com
Nascimento (2006), todos os seus esforços se direcionariam para uma ordem
social que assegurasse aos homens a liberdade, sem que a autoridade do Es-
tado fosse enfraquecida.

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

Para Rousseau, o pacto social proporcionaria a seus associados a perda de


sua liberdade natural3 em troca de uma liberdade civil ou moral. A associação civil
possuiria a finalidade de impedir que um associado submeta outro à sua vontade,
assegurando a todos os cidadãos um convívio equivalente ao de sua independên-
cia natural. Conforme explica Derathé (2009), em Rousseau, essa alienação seria
legítima apenas porque se faria em benefício de toda a comunidade, isto é, sendo
necessário que cada associado adotasse a vontade geral – por bom grado ou pela
força – como preceito de sua conduta. A partir de então, os homens somente
poderiam agir considerando a relação que os une ao corpo social do qual seriam
membros, sem levar em conta suas preferências pessoais. A transição do estado
de natureza para o estado de direito produziria no homem mudanças notáveis, ao
substituir em sua conduta o instinto pela justiça e ao dar às suas ações a morali-
dade que lhes faltara anteriormente.
O autor afirma que a liberdade moral seria a única capaz de tornar o homem
verdadeiramente senhor de si, pois ceder ao mero impulso do apetite seria uma
forma de escravidão (ROUSSEAU, 1762/2006). Por meio da aquisição da liberda-
de moral, os homens obteriam poder para consultar sua razão, reinar sobre suas
paixões e resistir às suas inclinações. A liberdade moral seria, portanto, o ver-
dadeiro benefício que o homem retiraria da instituição da sociedade civil. Con-
forme aponta Derathé (2009), a passagem do estado de natureza para o estado
de direito proporcionaria aos homens condições para seu progresso intelectual e
moral, além disso, suas faculdades da razão e da consciência seriam exercidas e
desenvolvidas, o que elevaria o homem a um grau superior de liberdade. Destar-
te, somente no seio da sociedade civil, sob a coerção das leis, o homem poderia
vir a desenvolver todas as suas faculdades, tornando-se um ser justo, livre e se-
nhor de si, apesar de suas paixões.
A referência às repercussões que o processo de passagem do estado de natu-
reza para o estado de direito implicou sobre os homens, além da necessidade de
que abdicassem de seus desejos e paixões em prol de uma convivialidade pacífica,
também foi objeto de investigação do discurso freudiano, conforme apresentare-
mos no tópico a seguir.

3 Por liberdade natural, compreende-se o direito ilimitado dos homens a tudo o que desejam e podem
alcançar (ROUSSEAU, 1762/2006).

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

O mito freudiano da horda primordial: contrato social e renúncia pulsional


A despeito de não ter sido um filósofo4, Sigmund Freud também apresentou
sua interpretação a respeito da origem da sociedade, nas hipóteses sugeridas em
seu texto de 1913, Totem e Tabu. Conforme assevera Renato Mezan (1985, p.347),
“Totem e Tabu trata-se de um mito político que situa Freud, de certo modo, na
tradição filosófica que vê num contrato a origem da sociedade”, na medida em
que, a partir da passagem do estado de natureza para o de direito, procura inferir
quais as condições de possibilidade para que a força se transforme em direito.
Conforme aponta Peixoto-Júnior (1999), Totem e Tabu ocuparia um lugar
central nas hipóteses sociais freudianas. Nesse texto, Freud buscaria não apenas
desenvolver as relações entre a sexualidade e a civilização, já esboçadas anterior-
mente, mas especificar melhor sua hipótese quanto à gênese da cultura, dos interdi-
tos por ela impostos e seus reflexos na história das produções desejantes humanas.
Encontramos no último ensaio do texto, intitulado “O Retorno do Tote-
mismo na Infância”, a versão de Freud sobre o advento da civilização e a tese da
instituição do contrato social, através do mito da horda primordial. Em suma,
supõe-se uma época na qual os homens viviam em bandos, sob o domínio de
um pai tirânico e opressor que concentrava em si toda a autoridade do grupo
e detinha a exclusividade de todas as mulheres do clã. Insatisfeitos, os irmãos,
que haviam sido expulsos, retornaram juntos, mataram o pai e devoraram seu
corpo, colocando assim um fim à horda patriarcal. Tal ato criminoso, vale dizer,
constituiria o início das “organizações sociais, das limitações éticas e da religião”
(FREUD, 1913/1996, p.144).
Posteriormente, uma vez consumado o crime, os irmãos teriam se dado
conta de que nenhum deles poderia ocupar o lugar do pai, ou o ciclo de assassi-
natos se repetiria perpetuamente. Desse modo, para impedir que isso ocorresse,
os irmãos instauraram uma associação baseada na igualdade de condições entre
eles, de maneira que ninguém poderia possuir privilégio sobre os demais.
Além disso, Freud aponta outra consequência em relação à morte do pai, a
saber: o sentimento de culpa pelo crime cometido. Freud destaca que os irmãos,
influenciados pelo sentimento de culpa filial, decidem estabelecer as interdições

4 Em Freud e a filosofia, Joel Birman (2003) destaca que, embora não tenha sido um filósofo, haveria
uma interlocução latente da psicanálise com a filosofia que atravessaria a totalidade do discurso
freudiano.

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

que viriam a ser os dois tabus fundamentais do sistema totêmico, quais sejam: a
proibição da morte do totem – substituto do pai – e a renúncia às mulheres que
haviam sido libertadas. Ademais, o autor sublinha que não poderia haver socie-
dade sem esse pacto de renúncia que a lei institui.
Segundo Millot (1987), as leis instituídas a partir do assassinato primordial
– a interdição do incesto e do assassinato – ao regularem o exercício do poder,
passam a constituir o fundamento de todas as sociedades humanas. Nos dizeres
de Enriquez (1990, p.34), “passamos de um mundo de relações de força a um
mundo de relações de aliança e solidariedade, de um estado de natureza a um
estado de direito”, no qual a lei seria encarnada por aquele que representava em
vida o arbítrio total.
De acordo com Peixoto-Júnior (1999), a primeira longa exposição freudia-
na acerca do problema do antagonismo entre a civilização e a vida pulsional dos
sujeitos, que perpassa toda a leitura freudiana sobre o social, encontra-se em um
texto de 1908, intitulado A moral sexual ‘cultural’ e a nervosidade moderna. No
texto mencionado, Freud defende a tese de que:
sob o império de uma moral sexual cultural a saúde e a eficiência dos
indivíduos esteja sujeita a danos e que tais prejuízos causados pelos sacri-
fícios que lhe são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que
indiretamente cheguem a colocar também em perigo os objetivos cultu-
rais (FREUD, 1908/1996, p.163).

Dessa forma, Freud destaca a influência nociva da civilização sobre os indi-


víduos, na medida em que responsabiliza a moral sexual civilizada pelo aumento
dos distúrbios neuróticos. A esse respeito, Millot (1987) argumenta que Freud
percebe que as exigências de uma sexualidade sadia entrariam em conflito com
as exigências da civilização.
Cabe sublinhar que, no texto de 1908, o grande adversário da civilização
seria a sexualidade. Conforme aponta Peixoto-Júnior (1999), o conflito entre a ci-
vilização e a vida pulsional dos sujeitos é examinado por Freud, nesse momento,
à luz da sua primeira teoria das pulsões. É nesse contexto que o autor afirma que
“em termos universais, nossa cultura se edifica sobre o sufocamento das pulsões”
(FREUD, 1908/1996, p.167-168). Ou seja, cada indivíduo deve renunciar a uma
parcela das suas disposições pulsionais em prol do convívio em sociedade.

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

Posteriormente, em 1915, no texto intitulado Reflexões para os tempos de


guerra e morte, Freud procura novamente elucidar a questão da relação entre a
civilização e a renúncia pulsional. Na parte inicial do texto, o autor trata da de-
silusão provocada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. Freud nos diz que
muito se acreditava que as grandes nações civilizadas da Europa poderiam resol-
ver os seus impasses por vias diplomáticas, ou seja, concebendo-os “como uma
oportunidade para exibir os progressos do sentimento comunitário dos homens”
(FREUD, 1915/1996, p.280), na medida em que se acreditava que o aperfeiçoa-
mento técnico e científico dessas nações corresponderia ao aperfeiçoamento mo-
ral de seus cidadãos. Sobretudo, acreditava-se que as pulsões egoístas pudessem
ser transformadas em pulsões sociais mediante a influência da educação, da razão
científica e da moralidade.
Essas nações civilizadas adotavam rigorosos padrões de conduta moral, aos
quais os seus cidadãos deveriam adequar-se igualmente, no intuito de conviverem
harmoniosamente em sociedade. Contudo, nos dizeres de Freud, “estes preceitos,
amiúde extremos, exigiam muito do indivíduo, impunham uma extensa restrição
de si mesmo, uma vasta renúncia à sua satisfação pulsional” (FREUD, 1915/1996,
p.278). Em outras palavras, as nações civilizadas forçaram os seus membros a um
alheamento em relação à sua disposição pulsional, haja vista que todos deveriam
conformar-se aos elevados valores morais da sociedade. Em decorrência disso, os
indivíduos encontram-se submetidos a uma constante supressão das pulsões e a
tensão resultante disso pode ser evidenciada, por exemplo, no domínio da sexua-
lidade, tendo como resultante o desencadeamento das doenças nervosas.
De acordo com Millot (1987), em O mal-estar na cultura, Freud retoma o
problema do antagonismo entre as pulsões e a civilização a partir das suas re-
centes elaborações, que o levaram a enunciar a existência da pulsão de morte. As
bases para esse conceito foram introduzidas, em 1920, no texto Além do princípio
de prazer. Na obra em questão, o termo “pulsão” designa uma tendência, ineren-
te à vida orgânica, de retorno ao inanimado, ou a um estado anterior de coisas
(FREUD, 1920/1996). Para Garcia-Roza (2004), no texto de 1920, as pulsões de
morte somente encontravam expressão em sua articulação com as pulsões se-
xuais, manifestando-se através das práticas do sadismo e do masoquismo, ou atra-
vés da compulsão à repetição. Dito isso, salientamos que, nesse momento, Freud
recusava-se a reconhecer a autonomia da pulsão de morte. Afinal, reconhecê-la

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

“como algo totalmente independente da sexualidade, era reconhecer a maldade


fundamental e irredutível do ser humano” (GARCIA-ROZA, 2004, p.134).
Posteriormente, em O mal-estar na cultura, Freud (1930/1996) passa a re-
conhecer a autonomia da pulsão de morte, desvinculando-a das pulsões sexuais.
No capítulo V do mencionado texto, o autor introduz a noção de pulsão de morte
como pulsão de destruição, de modo que esta é entendida como uma disposição
pulsional que se faz presente, ao mesmo tempo, nos indivíduos e no campo da
cultura (PEIXOTO-JÚNIOR, 1999). Acerca disso, Freud argumenta que:
[...] o ser humano não é um ser manso, amável, no máximo capaz de
defender-se se o atacam, mas é lícito atribuir a seus dotes pulsionais uma
boa quota de agressividade. Em consequência, o próximo não é somente
um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer
nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo
sexualmente sem seu consentimento, apossar-se de seu patrimônio, hu-
milhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo. Homo homini
lupus (FREUD, 1930/1996, p.108).

Em consequência dessa “poderosa quota de agressividade”, a sociedade civi-


lizada encontra-se constantemente sob a ameaça de desintegração. O autor reco-
nhece que a civilização obteve êxito com relação ao domínio das forças da natu-
reza, proporcionado pelo progresso da ciência e da tecnologia. Todavia, sublinha
o seu fracasso no que diz respeito à regulação dos laços sociais. Diante disso,
conclui que a pulsão de morte seria o obstáculo mais poderoso à cultura.
Nesse ponto, é de nosso interesse demonstrar que a perspectiva freudiana
no que tange à regulação dos laços sociais teria se deslocado da referência ao
discurso de Rousseau e se aproximado do discurso de Hobbes (BIRMAN, 1994).
O mito da horda primordial no discurso freudiano passa pela problemática da
construção da ordem social e da ordem política, tema presente em Hobbes e
Rousseau, autores fundamentais da filosofia política clássica. Segundo Birman
(1994; 1997), importa destacar que, embora a enunciação do mito da horda
primordial no discurso freudiano perpasse questões igualmente pertinentes à
filosofia política clássica, não podemos considerar Freud como um teórico que
utilizou sistematicamente as categorias e as temáticas da filosofia política clás-
sica, tampouco, caracterizá-lo como um comentador de Hobbes e de Rousseau.

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo & Daniel Menezes Coelho

Sua relação com esse campo discursivo seria provavelmente indireta, pois esses
textos se inscreviam no arquivo discursivo da cultura europeia, na segunda me-
tade do século XIX.
Apontamos anteriormente que em Totem e Tabu, Freud enunciou, através
de uma narrativa mítica, o advento da civilização e a tese da instituição do con-
trato social. O autor acreditava que o papel atribuído ao sentimento de culpa
como instância reguladora da força pulsional possibilitaria o estabelecimento
de um convívio pacífico, marcado pela igualdade dos sujeitos. De acordo com
Birman (1997), o discurso freudiano enunciado no texto de 1913 se aproximaria
da atribuição feita por Rousseau ao sentimento de piedade como sendo funda-
mental para a manutenção da ordem social. Em termos gerais, Rousseau atribui
à piedade face ao outro o valor fundamental que faria com que cada indivíduo
estabelecesse um limite ao seu poder absoluto, alienando uma parcela do seu
direito natural para tornar possível a constituição de uma ordem social que re-
gularia a relação entre todos.
Posteriormente, em Reflexões para os tempos de guerra e morte, a leitura
freudiana sobre a ordem política sofreu transformações para fundamentar o novo
limiar da crueldade que a experiência da guerra revelara. Com efeito, se inicial-
mente Freud opunha o registro das pulsões sexuais ao das pulsões de autoconser-
vação, em Além do principio de prazer o discurso freudiano passou a opor a pul-
são de vida e a pulsão de morte. De acordo com Birman (1997), em decorrência
dessa transformação teórica, o discurso freudiano também transformou as suas
referências teóricas no campo da filosofia política. Se anteriormente a sua maior
referência era o discurso de Rousseau, doravante, o discurso freudiano passou a
se referir à filosofia política de Hobbes.
Nessa perspectiva, a partir do enunciado da pulsão de morte, notadamen-
te no texto Mal-estar na cultura, o discurso freudiano aproximou-se dos pressu-
postos de Hobbes, mais especificamente da hipótese segundo a qual “o homem
é o lobo do homem”. Como vimos, de modo geral, a perspectiva hobbesiana
afirmaria o potencial de violência e de crueldade presente nos sujeitos ao carac-
terizar o contexto do estado de natureza como sendo de uma guerra contínua,
na medida em que os homens lutariam contra todos, valendo-se para isso da
violência em nome da manutenção da sobrevivência. Em prol da preservação
da vida e dos direitos naturais, o homem teria abdicado de sua violência ori-

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Discurso freudiano e contratualismo: da convergência à contraposição

ginária em nome da constituição de um Estado onipotente, para tornar assim


possível a constituição da ordem social.
Freud, porém, foi além: colocou em evidência que o sujeito não abriria mão
jamais dessa violência e dessa crueldade em favor do Estado. Por isso mesmo, a
proibição do exercício da violência e da crueldade seriam agora uma das condi-
ções de possibilidade para a disseminação do mal-estar social (BIRMAN, 2010).
Assim, o espaço social seria marcado pela presença de conflitos insuperáveis en-
tre os sujeitos, delimitando então a dimensão estrutural do mal-estar na civiliza-
ção. Nos dizeres de Freud, “a este programa da cultura se opõe a pulsão agressiva
natural dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra
um” (1930/1996, p.118). E complementa que os homens “não teriam dificuldades
em se exterminar uns aos outros, até o último homem” (1930/1996, p.140).
Por fim, vale evocar o enunciado freudiano de Psicologia das massas e aná-
lise do eu segundo o qual o homem seria um animal de horda e não um animal
de massa (FREUD, 1921/1996, p.115). Isso implica dizer que o sujeito não seria,
portanto, docilizável. Com efeito, Freud aponta desde então para o fracasso no
que tange à regulação dos laços sociais. Salienta-se que não há contrato social que
proporcione garantias com relação à manutenção da ordem política e social. A
figura do sujeito como animal de horda colocaria um limite a toda e a qualquer
possibilidade de governabilidade. Nesse ponto, o discurso freudiano se afastaria
da tradição filosófica contratualista, na medida em que esta defende que o contra-
to social é efetivamente a condição de possibilidade para a regulação dos laços so-
ciais. Portanto, no final do seu percurso teórico, não seria mais possível inscrever
o discurso freudiano naquela tradição. Conforme Freud (1937/1996) enunciou
no ensaio Análise terminável e interminável existiriam três práticas sociais impos-
síveis: educar, governar e psicanalisar. Em suma, é justamente por ser um animal
de horda que a tarefa de governar seria concebida como uma tarefa impossível.

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faces contemporâneas da razão 61-75 [248] 75

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5
Marx e(m) Freud:
para além da sombra marxiana com
Bloch e Debord
Leomir C. Hilário

Dentro do campo das relações entre as obras de Marx e Freud, há um


postulado consensual segundo o qual a psicanálise e o marxismo são saberes
de certo modo acabados – ou seja, constituem grandes teorias com conceitos,
metodologia e objetos específicos – que se relacionam por complementaridade:
a psicanálise teria aquilo que falta ao marxismo e vice-versa. Em outras pala-
vras, tudo se passa como se o marxismo fosse capaz de corrigir o déficit político
da psicanálise e esta, por sua vez, de corrigir o déficit subjetivo do marxismo.
Dos precursores desse diálogo, como Alfred Adler1 até o freudo-marxismo de
Reich e Marcuse, o pressuposto básico é o de que se trata de duas peças de que-
bra-cabeças a serem combinadas, a fim de produzir uma leitura crítica tanto da
sociedade quanto da subjetividade.
No entanto, talvez marxismo e psicanálise não possam ser entendidos

1 Cabe sublinhar aqui a influência comumente esquecida de León Trotsky para o intento de Alfred Adler
de pensar o marxismo com a psicanálise, portanto para o início desse diálogo entre Marx e Freud.
Cito dois motivos para defender esta influência: primeiro que sua esposa era Raissa Epstein, russa
e socialista, amiga de Trotsky. Sobre o impacto dela sobre o pensamento dele, cf. Santiago-Valles
(2009); segundo que Trotsky (1924/1979), na contracorrente do pensamento russo da época, defendia
que declarar a psicanálise como incompatível com o marxismo e voltar às costas a Freud era um ato
demasiado simples. Vale sublinhar, ainda, que Trotsky viveu em Viena de 1907 a 1914, onde dirigiu a
revista Pravda com David Riazanov (responsável pela primeira edição das obras completas de Marx
e Engels). Além disso, foi Adolf Yoffe, então paciente de Adler e também colaborador da revista, que
apresentou a psicanálise para o revolucionário russo. Ambos tinham uma amizade tão intensa que,
segundo Isaac Deutscher (1954/2007, p. 178), o suicídio de Yoffe, em 1927, foi um protesto à expulsão
de Trotsky do partido bolchevique. É preciso levar em consideração essa dimensão histórica na relação
entre marxismo e psicanálise, mais além da fria dimensão epistemológica e conceitual.

faces contemporâneas da razão 77- 93 [248] 77

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Leomir C. Hilário

como saberes acabados que se unem pacificamente. Em alguns momentos, é


possível encontrar críticas frontais de Freud ao marxismo2, como se o pró-
prio fundador da psicanálise impusesse um obstáculo a esse diálogo e con-
junção com Marx. Antes mesmo de pressupor uma conexão possível entre
marxismo e psicanálise, é necessário compreender como Freud via Marx,
ou seja, dar um passo anterior ao problema do modo pelo qual a psicanálise
e o marxismo se relacionam e investigar como Marx emerge no discurso
freudiano. Trata-se então de pensar Marx em Freud, para depois pensar na
possibilidade de Marx e Freud.
No decorrer do discurso freudiano, não existe uma interlocução direta
com a obra de Marx e suas categorias de análise (como valor, mercadoria,
fetichismo, duplo caráter do trabalho, capital, luta de classes etc.), de modo
que Freud se limita a tomar como referência, ao falar de Marx, aquilo que se
pode chamar de sombra marxiana, isto é, o resultado da interpretação de ter-
ceiros em relação à obra de Marx (HILÁRIO, 2014). Isto é, sempre que Freud
fala de Marx ou do marxismo ele está se referindo, por um lado, ao marxismo
soviético (MARCUSE, 1969), contra o qual Freud se dirige por se tratar de um
sistema ilusório de organização social no qual os indivíduos estariam plena-
mente satisfeitos; ou, por outro lado, ele se refere às obras de Adler e Reich,
contra as quais Freud se dirige tanto para manter suas noções psicanalíticas
independentes da reflexão marxista, entendida como uma Weltanschauung,
uma visão de mundo. Não se trata jamais, repito, de uma leitura categorial
da obra de Marx.
Em relação ao marxismo soviético, é, de fato, necessário realizar uma
crítica demolidora, razão pela qual o posicionamento de Freud é indiscuti-
velmente pertinente. Com efeito, a versão oficial do marxismo foi produzida
com o objetivo de fornecer uma doutrina fechada e unitária que servisse de
guia para as atividades políticas do movimento operário internacional, he-
gemonizado pelos Partidos Comunistas. Esse marxismo era constituído por

2 Como esta argumentação, por exemplo: “Como a necessidade de todos seriam satisfeitas, ninguém
teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o
trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema
comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas
sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão
insustentável” (FREUD, 1930/1996, p. 118).

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

três pilares, segundo Michael Heinrich (2008): a) uma visão economicista da


sociedade, cuja função era reduzir a explicação dos processos sociais às causas
econômicas, entendendo a ideologia e a política como tradução direta e cons-
ciente de interesses econômicos; b) uma concepção determinista da história,
segundo a qual o modo de produção capitalista colapsaria inevitavelmente
(necessidade natural) dando espaço ao comunismo; e c) uma concepção mecâ-
nica da dialética, entendida como conjunto de leis que determina o curso da
natureza, da sociedade e do pensamento.
A crítica da economia política de Marx foi assim convertida em fórmulas
simplórias, num “marxismo ideológico” (HEINRICH, 2008), cuja função foi a for-
mação da identidade de pensamento da União Soviética e como discurso legiti-
matório do poder do partido para asfixiar a discussão pública e crítica. Exemplo
mais acabado disso é o pronunciamento do então secretário do Comitê Central
do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Suslov (1968/1975), em Mos-
cou, por ocasião do 150º aniversário de Karl Marx, em que ele põe Marx como
educador e guia da classe trabalhadora e o marxismo-leninismo como a base
científica da construção da sociedade comunista.
Em sua visão, que representava a concepção tradicional partidária do mar-
xismo soviético, Marx e Engels enunciaram leis gerais do desenvolvimento da
natureza, da sociedade e do pensamento humano. Uma ironia histórica a ser
sublinhada é que enquanto Suslov pronunciava essas palavras, a 5 de maio de
1968, explodia a rebelião estudantil e proletária na França. Se Suslov parecia não
estar atento ao seu próprio presente histórico, defendendo uma teoria ossificada,
o mesmo não se pode dizer dos estudantes, que fizeram questão de afirmar, nos
muros parisienses: “a humanidade só será feliz no dia em que o último capitalista
for pendurado com as tripas do último burocrata”.
Portanto, tem razão Freud em sua crítica e rechaço a esse marxismo
congelado e petrificado, sobretudo quando argumenta que o marxismo
[­bolchevismo, Freud usa este termo em asserções mais duras e críticas] é uma
Weltanschauung, ou seja, “uma construção intelectual que soluciona todos os
problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese
superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta
sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”
(FREUD, 1996b, p. 155).

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Leomir C. Hilário

O problema está em sua recusa ao marxismo soviético vir acompanhada da


negligência em relação à obra completa de Marx e, o que é mais questionável, da
negação de pensar o que pode ser uma forma social radicalmente diferente da
vigente. Ele joga fora a criança junto com a água suja do banho e se coloca, de
acordo com suas próprias palavras, como “um liberal da velha escola”3.
Assim, em termos esquemáticos, se o problema de Marx foi o de ter sido
reduzido ao marxismo soviético, deixando de ser uma teoria crítica para se tornar
uma ideologia cujo objetivo era manter um Estado consolidado, o equívoco de
Freud foi aderir acriticamente ao liberalismo como posicionamento político, pas-
sando ao largo das suas contradições políticas intrínsecas. A essa altura, a tarefa
que se coloca é o de como pensar Marx para além do marxismo e Freud para além
do liberalismo. É no contexto dessa tarefa que emergem os pensamentos de Ernst
Bloch e Guy Debord. Com este texto, busca-se defender que as obras destes dois
autores permitem este gesto, além de contribuírem para a atualização de Marx e
Freud para a crítica radical do capitalismo na atualidade.

Bloch e Debord: paralelos biográfico-políticos


Prima facie, há muitas diferenças culturais e de percurso intelectual entre
ambos: Ernst Bloch está inserido num contexto germânico do início do século
XX, nascido em 1885, na cidade de Ludwigshafen am Rheim, situada na Alema-
nha; relacionou-se, por exemplo, com Max Weber, Georg Lukács, Walter Benja-
min, Theodor Adorno; foi aluno de Theodor Lipps (cuja obra sobre o humor e o
cômico foi lida e comentada por Sigmund Freud em seu ensaio sobre o Witz, de
1905) e do sociólogo Georg Simmel; fundou com Bertold Brecht e Thomas Mann
a editorial Aurora (Aurora Verlag) em Nova York.
Sua vida foi marcada pela Segunda Guerra Mundial, que lhe forçou o
exílio nos Estados Unidos, mas também pela Guerra Fria, que lhe tirou o em-
prego. Por ocasião da Revolução Húngara de 1956 e da repressão militar da
União Soviética, Bloch foi obrigado a se aposentar depois de tecer críticas ao
regime soviético, em 1957. Ele foi paradoxalmente excluído tanto da direita

3 Frase retirada de uma das cartas entre Freud e Arnold Zweig: “Apesar de toda minha insatisfação com
o atual sistema econômico, não tenho esperanças de que o caminho seguido pelos soviéticos conduza
a uma melhora. Na verdade, qualquer esperança que eu possa ter nutrido desapareceu nesta década
de governo soviético. Continuo um liberal da velha escola” (E. L. Freud, 1970, p. 21).

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

como exilado político do fascismo quanto da esquerda pelas tentativas ofi-


ciais de silenciá-lo intelectualmente4.
Guy Debord, por sua vez, vive em outro tempo histórico: nasceu em Paris,
em 1931 e ficou mundialmente conhecido por ter seu nome vinculado ao famo-
so Maio de 1968. O contexto político europeu e mundial era efervescente: havia
lutas de liberação do Terceiro Mundo, conflitos internos aos países do socialismo
real e problemas em relação à subjetividade nos países ocidentais sob a égide do
Welfare State. Estes três exemplos podem ser correlacionados aos três elementos
fundamentais do pensamento debordiano: a situação, a vida cotidiana e o indiví-
duo (HERNANDO, 2010).
De certa maneira, Debord passa ao largo do boom do pensamento francês
com o estruturalismo e pós-estruturalismo, exemplo disso é que seu nome não
figura na extensa obra de quase mil páginas de Michel Winock (2000) dedicada
aos intelectuais franceses. Até hoje, é visto como uma espécie de maldito do pen-
samento contemporâneo ou simplesmente desconsiderado e esquecido. Foi pró-
ximo a Henri Lefebvre e frequentou o grupo de estudos sociológicos sobre vida
cotidiana no Centro de Estudos Sociológicos do Centre national de la recherche
scientifique (CNRS). Assistiu também às aulas de Jean Hyppolite, no Collège de
France. No entanto, nunca ocupou nenhum posto universitário.
Debord fez parte de alguns grupelhos, que contavam com menos de quatro
dezenas de membros (Internacional Letrista e Internacional Situacionista são os
mais conhecidos), produziu obras cinematográficas e filosóficas. Ao contrário do
que se pensa, Debord não foi algo como um líder da rebelião estudantil de 1968,
talvez tenha sido, ao contrário, seu maior crítico de esquerda. Ele recuperou o
tema da alienação como central para a análise crítica do capitalismo, como Ador-
no, Benjamin, Marcuse, Horkheimer, Sohn-Rethel (outro maldito do pensamen-

4 No entanto, nem sempre Bloch adotou esta conduta. Um dos motivos pelos quais não foi convidado
por Max Horkheimer a participar do Instituto de Investigação Social foi sua defesa do stalinismo,
inclusive dos “Processos de Moscou”, como ficaram conhecidos os processos contra dissidentes
comunistas durante os anos 1936-37, que caçou os trotskistas e assassinou nomes como Isaak Rubin,
Evgeni Pachukanis, além da velha guarda formada por Kamenev, Zinoiev, Bujárin etc. Cf. Kortz (2011) e
o belo livro de Koestler (1964). Tais processos tiveram impacto também para a relação histórica entre
marxismo e psicanálise, uma vez que Sabina Spielrein, ex-paciente de Jung, socialista e introdutora da
noção de pulsão de morte na psicanálise também foi perseguida pelo stalinismo. O fato é que, apesar
dessa defesa, o pensamento heterodoxo e utópico de Bloch estava em completo desacordo com a
ortodoxia marxista-leninista, como ficou provado a partir de 1956. Esse dilema entre intelectual (crítica)
e partido (ortodoxia) também foi vivido por muitos de sua geração, como Brecht, Lukács e Sartre.

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Leomir C. Hilário

to crítico, nascido na França), dentre outros, que seguiram a máxima de Lukács


(1922/2003, p. 343) segundo a qual “o capítulo sobre o caráter fetichista da mer-
cadoria oculta em si todo o materialismo histórico”.
Em que pesem essas diferenças geográficas, políticas e culturais, penso que
não é incorreto uni-los naquilo que se pode chamar de pensamento crítico hete-
rodoxo, não vinculado a partidos ou a instituições, cujo horizonte é a superação
dessa forma social capitalista. Tanto em Debord quanto em Bloch, podemos en-
contrar, ao mesmo tempo, uma apropriação específica de Freud e de Marx. No
entanto, ambos não são psicanalistas nem marxistas. Jamais foram filiados ao
Partido Comunista tampouco se dedicaram à formação psicanalista de alguma
escola. Ambos foram marcados pela Guerra Fria. Ambos romperam frontalmen-
te com a experiência do socialismo real (com o marxismo) e, ao mesmo tempo,
buscam inspiração na obra de Marx e Freud para a construção de uma crítica
social radical.
O percurso intelectual solitário de ambos prenunciou o status atual do pensa-
mento crítico heterodoxo num contexto de barbárie como o nosso do século XXI.
Ambos podem, por fim, ser lidos como “outsiders” da teoria crítica. Principalmen-
te, se tivermos em mente a “teoria crítica” não como um saber ancorado numa ins-
tituição de pesquisa situada hoje na cidade de Frankfurt, mas sim como um exer-
cício de análise radical da sociedade contemporânea, cujos textos fundamentais
foram escritos não em Frankfurt am Main, mas sim em Paris, Nova York, Berkeley,
Los Angeles, San Diego e outras cidades que receberam os membros do Institut für
Sozialforschung [Instituto de Pesquisas Sociais] e a Walter Benjamin. Como defen-
de Stefan Gandler (2009), a teoria crítica pode passar, e muito bem, sem Frankfurt
e para além de Frankfurt. E este foi o caso de Ernst Bloch e Guy Debord.

Ernst Bloch: superação do liberalismo em Freud


A obra de Ernst Bloch pode ser localizada no interior do quadro de trans-
formação do marxismo em uma ideologia cuja função era legitimar um Estado
consolidado. Essa transformação da teoria crítica de Marx em um conjunto de
dogmas científicos aplicáveis é, portanto, o alvo geral de sua obra. Arno Münster
(1997), um de seus ex-alunos da Universidade de Tübigen, argumenta que a uto-
pia é uma preocupação constante nas elaborações intelectuais de Ernst Bloch, de
seu início ao seu fim.

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Para Bloch, a tentativa cientificista e economicista de apropriação da obra


de Marx pode ser entendida como corrente fria do marxismo: “Ela faz do ma-
terialismo marxista não só uma ciência das condições mas também, no mesmo
fôlego, uma ciência de luta e oposição a todos os entraves e dissimulações ideo-
lógicos das condições de última instância, que são sempre de ordem econômica”
(BLOCH, 1959/2005, p. 207). Em paralelo, corre o que ele chama de marxismo
quente: ou seja, um marxismo que seja capaz de reabrir o horizonte emancipató-
rio e recolocar o problema da utopia como tarefa urgente para além do marxismo
soviético: “Por seu turno, da corrente quente do marxismo fazem parte a inten-
ção libertadora e a tendência real humano-materialista, materialista-humana, e
é em função de seu alvo que todos esses desencantamentos são empreendidos.
Daí provém o forte recurso ao ser humano humilhado, escravizado, abandonado,
feito desprezível, daí provém o recurso ao proletariado como ponto de transbordo
para a emancipação”. (BLOCH, 1959/2005, p. 207).
Essa inspiração lembra muito o jovem Marx (1844/2010, p. 152) quando
este propõe “o imperativo categórico de subverter todas as relações em que o
homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível”. Arno Müns-
ter (1993) tem razão ao afirmar que Bloch se esforça para atualizar, no contex-
to antiutópico do século XX, tão bem narrado pelos distópicos como Zamiátin,
Bradbury, Orwell e Huxley, a dimensão utópica no interior da teoria marxista. O
“marxismo utópico” de Bloch se caracteriza pela vontade de corrigir as concep-
ções de um materialismo vulgar elaborando as bases teóricas de um marxismo
renovado (MÜNSTER, 1984).
A utopia em Bloch não se refere a um estado futuro a ser alcançado (aqui
ele se filia à Ideologia Alemã5, outra obra da juventude de Marx), mas sim a uma
atividade essencialmente humana e cotidiana orientada para o futuro. Isto é,
a utopia deixa o registro de um estado futuro a ser consolidado para emergir
em fenômenos cotidianos que podem impulsionar o sujeito a mudar o mundo.
Mais do que isso, Bloch procura situar a utopia no terreno da vida cotidia-
na investigando o que se pode chamar de “raízes antropológicas da esperança”
(FURTER, 1974).

5 “O comunismo não é, para nós, um estado (Zustand) que deve ser implantado, um ideal ao qual a
realidade [haverá] de se sujeitar. Nós chamamos de comunismo o movimento real que suspende e
supera (aufhebt) o estado de coisas atual”. (MARX & ENGELS, 1845-46/2007, p. 59)

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Ele encontra nos sonhos diurnos o fundamento para defender essa utopia
concreta e cotidiana, por se tratar de um evento cotidiano e universal, ou seja,
todos nós sonhamos dormindo e sonhamos acordados. Os sonhos noturnos te-
riam sido alvo de investigação de Freud. De certo modo, os sonhos seriam um
caminho para o reprimido, para os desejos não realizados no passado. De algum
modo, é o passado que vem à tona no sonho noturno. O seu conteúdo é oculto,
dissimulado, simbólico.
Diferentemente de Freud, Ernst Bloch se interessou pelo que chamou de so-
nhos diurnos. Enquanto os sonhos noturnos seriam marcados por uma realização
oculta e passada, o sonho diurno é orientado para frente, para além do presente.
O sujeito tem controle sobre o sonho diurno e produz no interior dele um livre
curso. Em termos psicanalíticos: é o eu que controla o sonho diurno, de modo
que ele está livre, isto é, não é constrangido moralmente pelo supereu. Ou seja,
estes sonhos são provocados pela vontade, estando, portanto, ao alcance da razão,
sendo possível manipulá-los, criticá-los, dialogar com estas representações: o ego
está sempre presente; enquanto, no sonho noturno, ele é posto entre parênteses
pela ação do inconsciente.
O sonho diurno é motivado pela melhoria da vida cotidiana por meio da
transcendência do presente para o futuro: “O que o sujeito aqui fareja não é o bafo
do porão, mas o ar da manhã”, diz Bloch (1959/2005, p. 117), referindo-se aos
sonhos diurnos. Em resumo, para Bloch, a esperança não é uma diretriz ou uma
orientação da ação, mas algo como um princípio ou, mais do que isso, uma causa
de ação, uma fonte de práxis transformadora. Sua defesa é a de que a utopia faz
parte da estrutura pulsional histórica do sujeito moderno, pois ela é a “expressão
de uma constante humana” (FURTER, 1966, p. 7).
Bloch busca construir as bases para uma utopia imanente, surgida não da
exterioridade das ideias futuras elaboradas, mas da materialidade dos fenômenos
da vida cotidiana. Sua ligação com Marx é mais forte aqui, isto é, na crítica da
economia política se faz oposição ao capitalismo não por meio de uma sociedade
ideal futura, mas pela investigação das mediações produzidas por esta mesma
forma social. Ou seja, é como se Marx dissesse: “esta sociedade pretende produzir
trocas livres e justas, vamos ver se ela cumpre esta pretensão; pretende produzir
sujeitos juridicamente iguais, vamos ver se isso reside na esfera formal e material
ao mesmo tempo etc.”. A partir das contradições internas do capitalismo é que se

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

exerce a crítica e se expõe sua irracionalidade constitutiva. É bom lembrar que é


a isso que se chama dialética (ADORNO, 1958/2013).
Uma das obras mais conhecidas de Bloch, chamada O Princípio Esperança –
escrita no exílio americano entre 1938 e 1947, publicada definitivamente somente
em 1959, pela editora alemã Suhrkamp Verlag de Frankfurt an Main – pode ser
lida como um extenso inventário dos sonhos diurnos da humanidade, os quais se
agrupam na noção de utopia, isto é, dos sonhos de uma vida melhor que ultrapas-
se o presente. Nas palavras de Suzana Albornoz (2006, p. 139), esse livro é uma
enciclopédia das utopias apresentada como uma história dos sonhos diurnos.
Como diz expressamente Bloch (1959/2005, p. 21): “o presente livro não tra-
ta de outra coisa que não o esperar para além do dia que aí está. O tema das cin-
co partes desta obra são os sonhos de uma vida melhor”. Na filosofia blochiana,
“pensar significa transpor” e a tarefa do filósofo é “levar a filosofia até a esperan-
ça” (BLOCH, 2005, p. 14 e 17). As implicações e desdobramentos destas reflexões
de Bloch são infinitos, porém, o que me interessa aqui é demarcar como, não
sendo psicanalista nem marxista, Ernst Bloch conseguiu mobilizar a psicanálise
para além do liberalismo – ou seja, os conceitos psicanalíticos são pensados na
chave da utopia, isto é, orientados para além do mundo existente, para além do
capitalismo; e Marx, para além do marxismo – o “marxismo frio” do socialismo
real é incapaz de pensar a emancipação, esta parece ser a lição de Bloch.

Guy Debord: reformulação de Marx para além do marxismo


Guy Debord pertence a uma tradição do marxismo heterodoxo pouco lida
e conhecida. Ele faz parte de um conjunto maior de autores que efetuaram aquilo
que se pode denominar de crítica do fetichismo (JAPPE, 1999, p. 35), ou seja, uma
crítica que centraliza os processos de alienação social, indo além dos processos de
exploração econômica. Esta é a base de sua crítica em A Sociedade do Espetáculo,
seu livro mais conhecido, publicado em 1967, no qual ele assenta sua análise na
redescoberta de certas categorias marxistas como mercadoria, valor e fetichismo.
Ao centralizar os processos de alienação, isto é, os modos pelos quais os in-
divíduos produzem algo que, embora seja fruto de sua ação, está para além de seu
controle, Debord (1967/1997, p. 35) esboça a noção de inconsciente social: “no lu-
gar onde havia o isso econômico, deve haver o eu”. Debord está subvertendo uma
frase de Freud (1996b, p. 84) segundo a qual “onde estava o id, ali estará o ego”.

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Com isso, ele não está propondo a ideia de uma sociedade completamente trans-
parente. Na verdade, está, da mesma forma que Freud, criticando a situação na
qual aquilo que é construído pelos indivíduos passe a dominá-los. Assim como
Freud entendia que o sujeito não deve ser dominado/prejudicado pelos seus sin-
tomas, Debord propõe que os indivíduos não sejam coagidos pela sociedade que
eles mesmos produzem.
É preciso demarcar que, em Debord, a economia (o ça économique) não se
refere apenas ao domínio da troca e do mercado, mas sim a uma esfera que se
autonomizou da sociedade e passou a determiná-la e subordiná-la. Isto significa
que Freud emerge no discurso crítico de Debord no momento em que ele procura
pensar a superação de uma forma social heterônoma. Se, na clínica freudiana, o
sujeito, por vezes, se encontra enredado nos produtos de seus sofrimentos, cujo
contexto é a sua história individual, isto é, aquilo que ele produziu e experimen-
tou se lhe aparece como algo estranhado e alheio (tomemos como exemplo o sin-
toma histérico no qual ocorre a paralisação de um membro sem lesão orgânica),
na sociedade do espetáculo, o produto da ação humana – as relações sociais que
constituem a sociedade – aparece aos sujeitos como algo externo ao qual devem
obedecer e submeter.
O reencontro do produtor com o produto se dá, na escala clínica, em en-
contro aos mecanismos de defesa e aos processos de elaboração, dentre outros, já
na escala social, “o sujeito só pode emergir da sociedade, isto é, da luta que existe
nela mesma. Sua existência possível depende do resultado da luta de classes que
se revela como o produto e o produtor” (DEBORD, 1967/1997, p. 35). A luta de
classes não é aquilo que denota a derrota de um bloco social contra outro, como
um embate entre dois megassujeitos autoconscientes de seus projetos históricos
antagônicos. Ela é, na verdade, o meio pelo qual advém não o antagonismo social,
mas a contradição desta forma social. Assim como em Freud, não se trata de sub-
sumir o inconsciente no consciente, a questão é de destruir os mecanismos de es-
tranhamento que produzem sofrimento, compreender as forças que são exercidas
na e contra a sociedade.
Além disso, de mobilizar Freud contra essa forma social, Debord pensa
Marx para além do marxismo. Seus conceitos de espetacular difuso e espetacu-
lar concentrado são exemplos disso. Debord se interessa em compreender de que
maneira os dois lados da Guerra Fria representavam, em verdade, lados opostos

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

de uma mesma moeda. Isso significou questionar frontalmente a ideia de que o


socialismo real representava alguma alternativa emancipatória.
A primeira forma, espetacular concentrado, refere-se à ideologia concentra-
da em torno de uma personalidade ditatorial, como na contrarrevolução totalitá-
ria nazista e stalinista; a segunda forma, espetacular difuso, refere-se à situação na
qual os trabalhadores são postos pela propaganda como livres para escolher suas
mercadorias, embora sejam obrigados a consumir. Em 1988, quase vinte anos
depois de A Sociedade do Espetáculo, Debord promove uma modificação desses
conceitos, formulando a ideia de espetacular integrado para pensar o novo estágio
do capitalismo. Ou seja, a queda do Muro de Berlim não representaria a vitória
triunfal do capitalismo, mas a entrada em uma nova fase de seu desenvolvimento
histórico, uma era de crise estrutural (não mais conjuntural) diante da qual a crí-
tica marxiana permanece urgente e necessária.
Se, antes, alguma parte da sociedade escapava ao espetáculo, nessa forma
nada lhe escapa. No final do século XX, entramos no “reino autocrático da eco-
nomia mercantil” (DEBORD, 1997, p. 168) ou, nas palavras de Daniel Bensaïd
(2011), no espetáculo como “estágio último do fetichismo da mercadoria”. Aqui,
é preciso fazer uma observação: isto não significa afirmar que, para Debord, o
espetáculo subsome tudo e a todos, sem possibilidade de emancipação.
Contra este argumento, basta lembrar que, dos nove capítulos que compõem
A sociedade do espetáculo, apenas dois deles tratam do conceito de espetáculo e se
pode afirmar, com alguma segurança, que, do quarto capítulo em diante, Debord
está preocupado em encontrar as brechas possíveis para escapar da dominação
espetacular. Um leitor atento perceberá sua predileção pelo chamado “Comu-
nismo de Conselhos” e não deixará de notar o apelo feito no último aforismo do
livro para a autoemancipação de nossa época.
Debord foi um dos primeiros autores a compreender a função sistêmica
que o socialismo real exerceu. Ele põe em causa a análise de que o socialismo
real não foi a construção de uma alternativa social emancipatória, mas sim o
modo pelo qual o capitalismo realizou uma modernização retardatária e ace-
lerada em determinadas nações atrasadas do ponto de vista da instauração do
capitalismo, fazendo a revolução industrial em países feudais como a Rússia da
passagem para o século XX.
O uso de Freud aparece no discurso debordiano para possibilitar pensar um

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problema (superação do espetáculo e da alienação) que vem de uma leitura muito


específica de Marx: assim como em Bloch, a relação entre Freud e Marx aqui não
deixa nem a psicanálise nem o marxismo inalterados. Mais do que isso, tanto em
Bloch quanto em Debord, Freud e Marx aparecem como fontes inspiradoras da
construção de uma nova teoria crítica do capitalismo.

Psicanálise e marxismo hoje: crise do capitalismo e subjetividade supérflua


O freudo-marxismo tinha como opositor o que se pode chamar de mar-
xo-pavlovismo (SINELNIKOFF, 1975), isto é, a visão ortodoxa do marxismo so-
viético em compreender a subjetividade de maneira positivista/cientificista e a
conclusão de que a psicanálise seria uma forma de ideologia burguesa. O enfren-
tamento entre estas duas perspectivas acerca da subjetividade se deu, sobretudo,
a partir de 1925, no interior da revista oficial da III Internacional, cujo título era
“Sob a bandeira do marxismo” (Unter dem Banner des Marxismus). De um lado,
aqueles que viam a psicanálise como uma caótica e abstrata mescla das diversas
orientações da filosofia burguesa na época de sua crise (Nietzsche, Schopenhauer,
Hartmann e Bergson, p. ex.), portanto, portadora de algo essencialmente ideoló-
gico; de outro, aqueles que defendiam a assimilação da psicanálise, uma vez que o
marxismo necessita de uma psicologia social. A psicanálise, portanto, seria, para
estes últimos, algo como uma ciência auxiliar do marxismo.
O marxo-pavlovismo fazia parte da constelação de um mundo que não exis-
te mais daquela forma autoritária, ainda que as tentativas de cientificizar a psico-
logia e a psicanálise não tenham cessado. Os intentos de pensar Marx com Freud
também não cessaram e atravessam toda a história do século XX, por meio de
obras como as de Georges Bataille, Deleuze & Guattari, Jean-François Lyotard,
para citar os franceses da segunda metade do século XX. Isto, porque o freudo-
-marxismo, como apropriação heterodoxa, constituiu-se como campo aberto de
reflexão acerca das relações entre subjetividade e sociedade. Indo um pouco mais
adiante, basta ver a influência da psicanálise e do marxismo em autores contem-
porâneos como Slavoj Zizek, Judith Butler e Ernesto Laclau (2011). Nestes auto-
res, como em Bloch e Debord, a questão já não é a de unir pacificamente Marx e
Freud, mas a de produzir uma crítica social do mundo contemporâneo. Usando
uma imagem de Razmig Keucheyan (2013), Marx e Freud continuam como saté-
lites que orientam todo o hemisfério esquerda.

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

Voltando a Bloch e Debord, são dois autores muito pouco lidos atualmente
e vistos por alguns como “cachorros mortos”, mesma expressão que foi utilizada
para Hegel e Marx, para denotar que seus pensamentos já não produzem nada
na realidade. O mundo vivido por eles não é assim tão diferente do nosso e hoje,
mais do que nunca, é necessário lê-los, compreendê-los e atualizá-los.
Afirmar isso pode parecer esquisito, pois, afinal de contas, houve uma in-
flexão histórica de amplitude global nos anos 1989-1991 com a queda do Muro
de Berlim e a dissolução do regime soviético. Para muitos, a era das ideolo-
gias havia terminado, o capitalismo saia vitorioso e, na fórmula mais acabada
de Francis Fukuyama, a história havia chegado ao seu fim, levando consigo o
marxismo e tudo o que ele almejava. Mas será isso correto? Depois de quase três
décadas de hegemonia do neoliberalismo em âmbito mundial e o surgimento
de guerras civis moleculares (ENZENSBERGER, 1995), o sonho da paz mundial
nunca esteve tão distante.
Muito mais do que uma ruptura, nosso mundo se assemelha a uma inten-
sificação dos traços constitutivos da sociedade do século XX. Se outrora havia
um grande muro separando dois supostos projetos diferentes de sociedade, hoje
temos vários: o muro que separa os Estados Unidos do México, construído em
1994 para conter a imigração ilegal; o muro da Cisjordânia que, desde 2002, sepa-
ra os palestinos dos israelenses, chamado pelo governo de Israel como “Cerca de
Separação ou Segurança” para evitar a infiltração de “terroristas”, isolando mais
de 450 mil pessoas; os muros que separam Espanha e Marrocos nas cidades de
Melilla, Ceuta e do Ilhote de Vélez de la Gomera; os muros contra ciganos na
Eslováquia, em Kosice; o muro entre Turquia e Grécia, construído em 2012, ao
longo da margem do rio Evros, erguido em meio à crise grega e que custou 3,2
milhões de euros; dentre tantos outros.
Posso ainda mencionar, com o risco de estar sendo um pouco forçoso, o
“muro marítimo” do Mediterrâneo6, através do qual imigrantes tentam chegar à
Europa. Contra isso, vale sublinhar, que líderes europeus propuseram destruir

6 Para se ter uma ideia do fluxo de imigrantes, a operação “Mare Nostrum” da Itália, que consistia em
resgatar os imigrantes em alto mar, salvou a vida de 150 mil em um só ano, o tempo que durou esta
operação, entre 2013 e 2014. Esta operação se iniciou após os naufrágios em Lampedusa (uma ilha
italiana) que provocaram a morte de mais de 400 pessoas, cuja imagem dos corpos boiando no mar
chocou o mundo.

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Leomir C. Hilário

os navios usados pelos “traficantes”. Após protestos da ONU e da Cruz Vermelha,


que argumentaram não ser a solução bombardear navios cheios de imigrantes,
essa ideia perdeu força. É bom lembrar que a extrema direita europeia conse-
guiu, em 2009, por meio de plebiscito com 52% de aprovação, a legalização da
expulsão, ao final do cumprimento da pena, de todos os estrangeiros condena-
dos por crimes como homicídio, estupro, tráfico de drogas, dentre outros. Um
mundo tão ou mais totalitário quanto o do século XX. E muito mais cínico,
como se pode verificar.
Nunca, na história da modernização, deu-se uma situação de crise social
mundial de tamanha amplitude: financeira, econômica, demográfica, climática,
ecológica, tecnocientífica, ética, cultural, sanitária etc.. Ou seja, o fracasso do
capitalismo, acometido por crises profundas num intervalo temporal cada vez
menor, em promover o bem-estar humano é visível. Ao mesmo tempo, parado-
xalmente nunca a crítica social esteve tão fortemente desarmada e desorientada
como hoje. Parece-me claro que necessitamos de uma teoria capaz de dar conta
dos atuais acontecimentos históricos, da atual forma assumida pelo capitalismo,
da dinâmica brutal de suas crises. Gostaria de dar como exemplo, para finalizar, o
problema do sujeito supérfluo como questão contemporânea urgente.
Um traço constitutivo da sociabilidade capitalista, em que pesem alguns dis-
cursos eleitorais que prometem pleno emprego (como o de Sarkozy, nas eleições
francesas de 2006), é o de que nem todo mundo pode se inscrever no campo
das relações sociais capitalistas. Em termos mais objetivos, não há trabalho para
todos e, por consequência, nem todos têm posse do objeto que lhe permite rea-
lizar mediações sociais básicas, tais quais morar e comer. Como ensinou Marx
(1867/1983, p. 71), no capitalismo, o que passa são “relações reificadas entre as
pessoas e relações sociais entre coisas”. Em outras palavras, para o que interessa
aqui, não é por ser um ser humano que alguém tem acesso aos bens materiais
desta sociedade, mas por ser portador de um objeto (o dinheiro). O que garante
a relação social é uma coisa.
Nunca houve espaço para todos no interior do capitalismo. No atual con-
texto da crise estrutural, cujos contornos não posso delimitar, devido ao espaço e
escopo desta escrita, essa massa que sobra se torna a tendência desta forma social.
Isto é, há cada vez mais pessoas que são descartáveis ao sistema, cuja exploração
da força de trabalho já se tornou dispensável. Há algo pior, portanto, do que a

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Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord

exploração econômica: é não ser capaz de ser explorado, eis o verdadeiro “horror
econômico” (FORRESTER, 2000).
O psicanalista Bertrand Ogilvie (2013), nos últimos anos, esteve atento a
este fenômeno. Para ele, apesar das constantes tentativas de situar a violência em
alguns campos, como urbano, étnico, gênero etc., convém não se esquecer dessa
violência constitutiva do capitalismo que consiste em descartabilizar os sujeitos.
No Brasil, como em outros lugares do mundo, esses sujeitos descartados inundam
as periferias e as prisões.
Penso que um dos problemas para o diálogo entre Marx e Freud, no século
XXI, diz respeito a como uma forma social é capaz de prescindir dos sujeitos que
a compõem e, também, de que tipo de subjetividade é essa que se forja nesses pro-
cessos de descartabilidade. Além de sujeitos reprimidos, perversos, neuróticos,
psicóticos, dentre outras categorias mais clássicas, na passagem do século XXI
temos, como tendência de produção de subjetividade do capitalismo em tempo
de crise, os sujeitos supérfluos como materialidade da experiência numa socieda-
de em decomposição.

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6
Sigmund Freud e as tradições históricas de
Paul Feyerabend
Daniel Menezes Coelho

Introdução: nos mesmos ares de Viena


Nossa intenção no presente trabalho é testar uma aproximação entre os no-
mes de Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, e de Paul Feyerabend, o epis-
temólogo anarquista. Não se trata de uma tarefa fácil, pois a psicanálise não é as-
sunto preferencial de Feyerabend (são escassas e rápidas as suas referências a ela),
ao mesmo tempo em que ele próprio parece aproximar-se demais do relativista
que Freud (1933/2010) ridiculariza em sua consideração sobre a Weltanschauung,
pedindo dele que atravessasse uma ponte feita de papel, ou se submetesse a uma
cirurgia com gás lacrimogêneo no lugar do anestésico, para denunciar que sua
posição, aparentemente libertária, fundava-se na interdição do questionamento,
logo na interdição do pensamento – logo, no recalque.
Ao mesmo tempo, são dois vienenses que respiraram o mesmo ar. Viveram
na mesma Viena, de 1924 – data do nascimento do pequeno Paul – até 1938,
quando o velho Freud consegue, com a ajuda da Princesa Marie Bonaparte, exi-
lar-se em Londres, fugindo da perseguição aos judeus que se seguiu à unificação
da Áustria com a Alemanha Nazista.
Feyerabend lembra bem dessa data, e se refere a ela logo na primeira pági-
na da sua autobiografia (FEYERABEND, 1996), na qual justifica o projeto de sua
escrita. Tratava-se do quinquagésimo aniversário da unificação. Ele relembra o
entusiasmo com o qual a população saudou Hitler à época, para imediatamente
contrastá-lo com as condenações vigorosas e apelos humanitários de cinquen-
ta anos depois. Declara também uma curiosidade sobre seus anos de juventude
no Terceiro Reich, quase esquecidos a essa altura, e uma sensação incômoda de

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Daniel Menezes Coelho

distanciamento e estranheza para com sua família. Uma autobiografia poderia


resgatar tanto o esquecido numa história geral – o entusiasmo com o Reich –
quanto o esquecido de sua história pessoal – seus pais, família, anos de juventude
e formação, a atuação como soldado na guerra.
Feyerabend e Freud viveram, sim, sob os mesmos ares de Viena. Mas isso
exprime menos um traço comum a ambos que a própria tensão daquele mo-
mento histórico.
Há, no entanto, que se destacar que nossos dois personagens aproxi-
mam-se aqui e ali.
Vejamos a série de primeiros objetos de estudo de Freud. O sintoma histéri-
co (1893-1895/2016); o sonho (1900/1969); o esquecimento, o lapso, o descuido
(1901/1969); a piada e o dito espirituoso (1905/1969), todos objetos um pouco
excêntricos, que sempre sofremos para justificar do ponto de vista metodológico,
sobretudo em ambientes mais cientificistas – e que, no entanto, formam, segundo
Lacan (1966/1998), o estofo metodológico da psicanálise, na medida em que de-
finem a prática de deciframento do inconsciente.
À excentricidade do objeto, corresponde uma excentricidade do método.
As regras de ouro da clínica – associação livre e escuta flutuante – implicam abrir
mão de qualquer procedimento de seleção, hierarquização ou mera organização
sobre o material. A elaboração do material própria ao processo de pesquisa deve
ser deixada para depois: as notas para depois da sessão, sua organização e ela-
boração para depois do fim do caso. Freud gaba-se de que sua psicanálise pode
reivindicar o mérito de realizar, num mesmo ato, a clínica e a pesquisa. Ao mes-
mo tempo, considera que as duas são incompatíveis, e que os procedimentos de
pesquisa devem ser deixados para depois. Em psicanálise, clínica e pesquisa são
excêntricas (FREUD, 1912/2010).
E vejamos, por outro lado, as justificativas de Feyerabend em sua autobio-
grafia, ou seja, retirar do esquecimento os anos há muito passados; a juventude
no exército nazista; seus próprios pais, agora estranhos, mas que o fizeram “um
otimista nervoso”, que se tornou “um intelectual sofrível, um professor raso, com
um salário regular, uma reputação controvertida e uma esposa maravilhosa”. São
enigmas que moveriam uma análise, ainda que devamos descontar de seu tom
uma parcela de performance.
Ora, as excentricidades metodológicas da psicanálise poderiam ter interes-

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Sigmund Freud e as tradições históricas de Paul Feyerabend

sado o espírito anarquista de Feyerabend, mas seus interesses estavam longe da


psicologia e da prática terapêutica. Quanto ao seu projeto de elaboração autobio-
gráfica, apenas à força podemos relacioná-lo a algo que iria no mesmo sentido de
uma psicanálise.
Há outro ponto em comum entre os dois vienenses, que será o objeto de nos-
sa exploração no presente trabalho. É a referência, forte para os dois, a Ernst Mach,
pesquisador e pensador em diversas áreas, notadamente na física e na psicologia.
Mach figura como chefe-de-escola de uma epistemologia à qual Freud ade-
riu, ainda que não sem alguma tensão. Seu nome está por trás da posição episte-
mológica freudiana, apoiada por um lado no papel da observação, por outro lado
no papel da especulação. Parece que a posição de Freud quanto à filosofia, que
comporta certo encanto, mas também um profundo distanciamento, também é
devida a Mach. A relação entre os dois, no entanto, não era nem próxima nem
amistosa. Mach teria recebido mal A interpretação dos sonhos, o que pesa para
que, no mesmo ano em que Freud publica um texto no qual praticamente copia
os escritos de Mach – trata-se da introdução de Pulsões e seus destinos (FREUD,
1915/2010) –, ao mesmo tempo desaconselhe o entusiasmo que Ferenczi nutria
por ele (ver ASSOUN, 1983; FULGENCIO, 2016).
Paul Feyerabend também aderiu à epistemologia de Mach, certamente em
outro contexto, com outra leitura e com outros propósitos que Freud. Podemos
dizer que há um alvo preferencial para críticas na obra de Feyerabend, que é a fi-
losofia das ciências de Karl Popper. No entanto, devemos tomar Popper como um
representante (preferencial, porque pessoal – Feyerabend o teve como orientador
de estudos, e chegou a aderir por um período à sua proposta do quadro hipotéti-
co-dedutivo) de um alvo mais amplo, que Feyerabend (1987/2009) denominará
como as tradições teóricas de pensamento. Tais tradições são, em sua obra, con-
frontadas com as tradições históricas de pensamento.
Feyerabend (1987/2009) define as tradições teóricas primeiramente por sua
vontade de suplantar as tradições históricas, mais antigas que as primeiras. Tra-
dições teóricas identificam conhecimento com universalidade e padronização.
Assim, o conhecimento deve identificar o que é constante na história, ou seja, o
que não é afetado por ela. Um conhecimento desse tipo tem a pretensão de ser
genuíno, em detrimento de todos os conhecimentos regionais (não universais) ou
temporais (históricos).

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Daniel Menezes Coelho

Tradições históricas, por outro lado, são primeiramente identificadas com o


que é particular, regional e temporal, ainda que não dispensem os meios lógicos
quando lhes é conveniente. Elas compreendem tanto conhecimentos tácitos uti-
lizados por todo artesão em seu ofício, quanto áreas do conhecimento científico
resistentes ao ordenamento desejado pelas tradições teóricas, como as ciências
humanas, a clínica médica, e mesmo algumas leituras da matemática a entendem
como um empreendimento humano e, portanto, como tradição histórica. Como
veremos mais adiante, Feyerabend fará uma leitura de Ernst Mach que o inscreve
profundamente nas tradições históricas.

Mach e Freud
Freud praticamente copia Mach em sua pequena exposição sobre a forma
(sobretudo, a gênese) de uma teoria científica, que abre o texto metapsicológico
sobre as pulsões, de 1915 (Sobre isso, ver ASSOUN, 1983, e FULGENCIO, 2016).
Destaquemos do texto de Freud (ou de Mach): o ponto de partida na descri-
ção dos fenômenos, para depois agrupá-los, ordená-los e relacioná-los. Por ou-
tro lado, o papel das ideias abstratas, inevitáveis já na descrição, tomadas “daqui
e dali, não certamente só da experiência”. Com isso nascem os conceitos, que
“devem comportar um certo grau de indeterminação”, e são repetidamente apli-
cados e confrontados ao material. Apenas parece que tais ideias são retiradas do
material. O material, na verdade, lhes é subordinado. O conceito então é uma
“convenção”, mas uma convenção não totalmente arbitrária, pois é determina-
da por “significativas relações com o material empírico”. Essas relações, nós as
“acreditamos adivinhar”, ainda antes que possamos reconhecer e demonstrar. Só
muito depois, com muita exploração, pode-se limpar essas convenções, e torná-
-las definições. Mas o progresso da ciência também não tolera definições rígidas.
Conceitos fundamentais experimentam constante alteração de conteúdo. Isso é o
que se lê, grosso modo, no início do texto de Freud sobre as Pulsões. Segue-se daí a
apresentação do conceito fundamental, isto é, “um conceito básico assim conven-
cional”, obscuro, mas indispensável, o de pulsão (FREUD, 1915/2010, p. 52-53).
Do texto de Freud, podemos depreender que as relações entre observação
(descrição dos fenômenos) e especulação (ideias abstratas) nunca são simples.
Há uma articulação tensa entre observação e especulação desde o início, e parece
difícil estabelecer alguma hierarquia nessa relação. Tem-se a impressão, aliás, que

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Sigmund Freud e as tradições históricas de Paul Feyerabend

elas trocam de lugar nesse pequeno trecho de Freud. Partimos da descrição dos
fenômenos, de onde poderíamos retirar ideias, e acabamos com ideias a partir
das quais organizamos os fenômenos. Mais ainda, tudo isso é necessariamente
frouxo: é frouxo no início, pois não se tem certeza da adequação da ideia abstrata
ao material; é frouxo no final, posto que exista essa intolerância do progresso da
ciência quanto a definições rígidas. É um jogo de adivinhação, antes que de reco-
nhecimento e demonstração.
Esse jogo frouxo encontra seu rigor em outros lugares: na relação com o
problema, por um lado, e na relação com a descoberta, por outro. Assim, obser-
var e especular não são, nem um nem outro, nosso ponto de partida. Parte-se
sempre de um problema, que o cientista se propõe a resolver por meio de uma
descoberta (de uma relação ainda não observada entre fenômenos). A descoberta
acaba implicando novos problemas, reiniciando o circuito. Dessa forma, temos
muito mais um rigor do problema e da descoberta, que um rigor da observação
(por exemplo, fenomenológica ou empirista) ou da especulação (por exemplo,
metafísica ou racionalista).
É interessante notar, já que esbarramos com o assunto das relações entre a
filosofia e a ciência, que o projeto de Mach é o de “reduzir, tanto quanto possível,
a psicologia da pesquisa científica a pensamentos autóctones da ciência” (1905,
citado por ASSOUN, 1983, p. 87), ou seja, Mach recusa à filosofia o papel de or-
ganizadora da “psicologia da pesquisa científica”, preferindo, no lugar disso, um
pensamento autóctone, todo ele apoiado no que a ciência pôde produzir.
Como fica claro, a leitura de Mach que apresentamos por ora é de segun-
da mão e, por isso, está além de nossos esforços, reconstituir seu pensamento.
Mas cremos que se possa afirmar que a saída de Mach para a psicologia da pes-
quisa científica se dá pela via de uma crítica à teoria do sujeito, substituindo-a
por consequências da obra de Darwin. Quem conduz a ciência, o agente de seu
conhecimento, não é um sujeito abstrato, mas um corpo que precisa sobreviver
(FEYERABEND, 1987/2009).
Há muitas consequências nisso. Um corpo não está separado do mundo.
Um “problema” para um corpo é da ordem da sobrevivência, não da ordem da
razão. Um corpo sempre conhece e pode-se dizer que é portador de um conheci-
mento biologicamente demarcado, resultado de milhões de experimentos. Quan-
do falamos em corpo, e não em sujeito, há continuidade entre a ameba que sabe

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onde lançar seu pseudópodo, o leão que conhece a rota migratória da sua caça, o
bebê que sabe sugar o seio, o artesão que sabe moldar a argila, a criança que sabe
mexer no smartphone, o cientista que sabe imaginar um experimento.
Em Freud, também encontramos essa mesma recusa à filosofia como aquilo
que poderia organizar e guiar o campo do conhecimento. A figura do filósofo
surge em sua obra, lembremos, pelos versos divertidos de Heine: “com seus gor-
ros de dormir e os andrajos do pijama, tapa os buracos do edifício do universo”
(FREUD, 1933/2010, p. 326).
Quanto ao agente do conhecimento, em Freud ele é certamente um eu –
que quer viver, mas também quer ser amado; que é um conjunto de traços de
identificação com os outros a quem ama e de quem deseja amor; mas é também,
não obstante, um isso – busca irrefreada de satisfação, lugar de acúmulo de uma
herança filogenética arcaica. Por outra via, é preciso dizer que a sobrevivência,
na obra de Freud, nunca está sozinha como força motriz de nossos corpos. Ao
lado da autoconservação, Freud indica a pulsão sexual: um corpo não quer ape-
nas sobreviver, ou fazer uma espécie sobreviver, mas também quer gozar, quer
ter prazer, quer ter satisfação. Mais tardiamente, a postulação de uma pulsão
de morte indica que tal corpo, que quer sobreviver, também deseja morrer. É
evidentemente diferente pensar que o agente do conhecimento é movido pela
sobrevivência, e pensar, por outro lado, que ele é movido também pelo desejo de
gozar, ou pelo desejo de morrer.
Em Mach e em Freud, portanto, não há lugar para uma teoria do conhe-
cimento desinteressado, neutro, construído para além de qualquer desejo. O
conhecimento não é um fim, mas um meio para a sobrevivência, para o gozo,
ou mesmo para a morte. O conhecimento não é filho da Razão, mas de um
processo de adaptação que tem história e que deseja – deseja pelo menos sobre-
viver, mas talvez também gozar e quem sabe inclusive morrer. O que quer que
se deseje, quando as coisas estão colocadas dessa forma, tanto Mach quanto
Freud estão definitivamente amarrados ao que Feyerabend chama de tradições
históricas do pensamento.

Mach e Feyerabend
Feyerabend é uma figura controversa. Sua obra, marcada pelo teor crítico, é
também cheia de humor, de trapaças e de argumentos que carecem de consistên-

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Sigmund Freud e as tradições históricas de Paul Feyerabend

cia. Seus rompantes enfurecem os adversários intelectuais, que veem frequente-


mente nele alguém que não se deve levar a sério nem confiar.
Vejamos como seus detratores o apresentam. Resumo o trecho de “Impos-
turas Intelectuais”, dedicado à sua figura (SOKAL e BRICMONT, 1999, p. 85-91).
Trata-se de um personagem complexo, cujas atitudes pessoais e políticas
renderam certa simpatia, e cujas críticas às tentativas de formalização do método
científico é frequentemente correta. Apesar de ser identificado com as alcunhas
de relativista e de anarquista, distanciou-se das atitudes anticientíficas de alguns
de seus seguidores no fim de sua vida. Seu texto é um tanto quanto ambíguo e,
por vezes, desemboca em violentos ataques à ciência moderna, por vias filosófi-
cas, históricas e políticas, nas quais ele mistura irrefletidamente julgamentos de
fatos com julgamentos de valor. Ao ler sua obra, enfrenta-se sempre o problema
de saber quando levá-lo a sério. É uma espécie de bobo da corte da filosofia da
ciência, e desempenha o papel com prazer. Por outro lado, é muito bem informa-
do no campo da história e da filosofia da ciência, assim como no terreno da física.
Sokal e Bricmont concordam com a crítica de Feyerabend a um projeto de
ciência montado sobre regras fixas e universais, classificando tais projetos como
ao mesmo tempo utópicos e perniciosos. Os autores destacam que, se ele houves-
se parado aí, ou seja, na demonstração das limitações da ciência de regras fixas e
universais, eles estariam de acordo. Mas ele vai mais longe em seu Contra o méto-
do, quando diz que a única regra que sobrevive na história da ciência é que “qual-
quer coisa vale”. Aqui, os autores indicam o raciocínio típico relativista, no qual
se pula do reconhecimento das limitações das metodologias ao “vale tudo”. Eles
argumentam que há métodos melhores e piores e então não é verdade que “vale
tudo”. Indicam ainda que isso não é verdade nem para o próprio Feyerabend, que,
no prefácio à segunda edição de Contra o método, afasta-se do que chama de um
anarquismo ingênuo, recusando uma posição segundo a qual devemos proceder
sem regras ou critérios.
Os autores entendem que a oposição de Feyerabend à ciência não é de “na-
tureza cognitiva”, mas de uma “escolha de estilo de vida”. Ele marca diversas vezes,
especialmente em Adeus à razão (1987/2009), que seus motivos são humanistas,
e não intelectuais. Que ele quer apoiar as pessoas e não fazer avançar o saber. Isso
nos joga para além da “natureza cognitiva” da ciência, introduzindo, na discus-
são, considerações políticas, éticas e afetivas.

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Sokal e Bricmont destacam especialmente a insistente confusão de julga-


mentos de fato (de natureza cognitiva) com julgamentos de valor (políticos, éti-
cos, pessoais). Eles rejeitam essa confusão, destacando que “não dá para esca-
par tão facilmente das questões que envolvem verdade e objetividade” (SOKAL e
­BRICMONT, 1999, p. 91).
Teço agora alguns comentários sobre pontos abordados por Sokal e Bricmont.

Vale-tudo performático
Sobre o “vale tudo” de Contra o método (Feyerabend, 1975/2007), é preciso
esclarecer como ele se dá historicamente. As primeiras linhas do prefácio do
livro nos informam que o projeto inicial era intitulado “A favor e contra o mé-
todo”. Seria escrito com Imre Lakatos, discípulo de Popper, de quem era grande
amigo. Feyerabend escreveria suas “ideias estranhas”, Lakatos faria uma répli-
ca, eles se divertiriam muito, e publicariam a coisa toda. Lakatos, no entanto,
morre antes que lhe fosse possível escrever sua parte. Feyerabend, então, publi-
cou o que havia produzido sozinho. Disso tudo, depreende-se que o “qualquer
coisa vale” era realmente performático. Por um lado, indica sim que se trata de
uma crítica a um quadro de valores (do que vale e do que não vale) universal e
permanente na história. Mas por outro lado, era – é – uma provocação para a
réplica de um amigo.

Fatos e valores: tradições teóricas e tradições históricas


Um segundo ponto é o da confusão entre julgamento de fato (de natureza
cognitiva) e julgamento de valor (de natureza pessoal, ética e política). A sepa-
ração entre fato e valor só se justifica quando estamos no quadro das tradições
teóricas. O fato, nessas tradições, é o que é independente de qualquer julgamento
de valor – o que, paradoxalmente, faz com que o fato seja altamente valorizado,
ou mesmo, seja a única coisa à qual um cientista deve dar valor dentro de sua
atividade. Ao mesmo passo que, para as tradições históricas, os julgamentos de
valor são fatos, e não se pode excluí-los de uma consideração sobre a realidade.
De outro modo, as tradições históricas também compreendem que a própria con-
sideração da realidade é sempre feita a partir de um desejo (ou um problema),
que está indefectivelmente amarrado às nossas redes de valores. A confusão entre
os julgamentos de fato e os julgamentos de valor não é, portanto, um erro, um

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deslize ou uma trapaça de Feyerabend (pelo menos não simplesmente). Quando


se consideram as tradições históricas, valores e fatos se confundem.
Ora, é fácil defender uma física, ou mesmo uma química, completamente
afastada das questões do valor (assim que se ultrapassa a crítica mencionada aci-
ma, segundo a qual o “fato” é a marca de um valor). Mas ao nos aproximarmos do
mundo humano, seja pelo terreno da vida (CANGUILHEM, 1966/2011), seja pelo
terreno da cultura, estamos imediatamente embebidos nas questões de valor, que
estão entranhadas nos objetos de estudo, e chegam mesmo a constituí-los.

Razões humanitárias: a pessoa


O terceiro ponto que abordo é sobre as razões humanitárias de Feyerabend,
quando ele diz que quer apoiar as pessoas, e não fazer o saber avançar. Não me
parece que se trate simplesmente de uma “escolha de estilo de vida”, como dizem
Sokal e Bricmont. Em Lalande (1926/1999, p. 812-813), encontramos o verbete
pessoa: “do latim persona, máscara de teatro”. Ele destaca três sentidos para o ter-
mo: o sentido moral, que remete às “características que lhe permitem participar
da sociedade intelectual e moral”, entre elas as capacidades de distinguir verda-
deiro e falso, bem e mal; o sentido de pessoa física, que remete ao corpo de um
homem, ou seja, de uma pessoa moral (assim, uma pessoa física é alguém, e creio
que se pode destacar ainda um sentido negativo da linguagem popular quando
se diz de alguém que ele é um “ninguém”); o sentido de pessoa jurídica, como al-
guém que tem direitos ou deveres determinados por lei (Lalande destaca que um
escravo não é uma pessoa).
O termo é utilizado ainda para traçar uma diferenciação conceitual quanto
ao indivíduo. Assim, Da Matta (1978) afirmará, a partir de uma pesquisa empíri-
ca, que o quadro social brasileiro não se funda sobre a igualdade dos indivíduos,
como seria o caso dos Estados Unidos, mas sobre um quadro hierárquico mon-
tado a partir das relações pessoais. Se lá alguém se defende rebaixando aquele
que confronta ao seu lugar de indivíduo igual aos outros, a quem não se deve dar
privilégios, dizendo “Who do you think you are?”, aqui, ao contrário, a defesa se
dá no destaque à posição de privilégio daquele que se defende, e portanto se diz,
diferentemente, “Você sabe com quem está falando?”. Notemos que o que subjaz
à pergunta brasileira não é necessariamente o fato de que se fala com alguém de
importância – um senador, por exemplo – mas muito frequentemente é o fato de

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que aquele que se defende mantém relações pessoais com alguém de importância
– pode ser o filho do senador, ou mesmo o seu motorista.
Ainda, MD Magno (2008) usa pessoa para produzir uma diferenciação
conceitual não apenas com o indivíduo, mas também com o sujeito lacaniano,
o que indicará um caminho de pesquisa e de análise no qual a concepção é a de
que alguém, uma pessoa, é um nó numa rede de extensão infinita, fundamen-
talmente amarrado no resto da rede (essa rede não é puramente simbólica, mas
inclui também as determinações físicas, biológicas etc. – estamos amarrados às
leis da gravitação, ao alimento que precisamos comer, ao amor do outro etc.), e
não a concepção de que um “eu” é uma entidade autônoma individual, ou ainda
a concepção de que um “eu” é um intervalo vazio entre dois significantes. Isso
não impede, claro, que a pessoa diga “eu” e mesmo revolte-se contra as linhas
que as amarram.
Então, pessoa remete ao problema da moral e da valoração, em primeiro lu-
gar, e por essa via remete a uma ligação com o mundo e com o outro. A tese básica
de Feyerabend é a de que ciência é um empreendimento de pessoas, inseparáveis
de seu mundo, de seus outros e de seus valores, e não de indivíduos ou de sujeitos.
Essa tese não pode, no entanto, obliterar a outra, que destacamos na articulação
entre Freud e Mach, ou seja, que a pessoa em questão é um corpo, que precisa
sobreviver e que quer gozar (senão morrer).

A especulação
Dito isso tudo, podemos partir para uma breve discussão sobre um ponto
que é importante para Mach, e também para Freud e Feyerabend: o problema da
especulação.
Em Freud e em Mach, a especulação é tão essencial quanto os fatos. Como
vimos, antes, no trecho do texto sobre as pulsões, elas estão presentes desde o
início da pesquisa, e organizam os próprios fatos, o material empírico. Em Freud,
sabemos que isso acaba por definir a metapsicologia, por seu caráter especula-
tivo, como uma bruxaria ou como produção de mitos. Em Mach, não se dá de
forma diferente. Conceitos fundamentais em física, tais como força e átomo, para
ele são artifícios intelectuais especulativos aparentados com as antigas mitologias
da natureza, e não podem ser compreendidas como definições bem ajustadas ao
material empírico. É importante salientar que essa atividade especulativa, como

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bem lembram Assoun (1983) e Fulgencio (2016), tem caráter heurístico, isto é,
importam porque levam a novas descobertas, revelam novos materiais, fazem o
conhecimento – o conhecimento dos fatos – andar.
Não obstante, é preciso tentar compreender no que consiste exatamente essa
atividade de especulação. Feyerabend (1987/2009) discute o problema, confron-
tando a posição de Mach com a de Einstein. Para este último, a atividade espe-
culativa seria um produto da criação livre da mente humana. Ora, em Mach (em
Freud também, dado que para ele existe determinismo psíquico) não há nenhum
espaço para a criação livre da mente humana. Quando um cientista arrisca a pos-
tulação de um princípio de longo alcance, o mito ou a ficção que produz deve ser
compreendido não à luz de uma suposta liberdade mental, mas da dependência
de muitos fatores históricos, que compreendem um acúmulo de determinações
que atravessam a biologia, a tradição e a experiência pessoal. No lugar de uma
mente humana livre e criadora, Mach aponta para o instinto, ou os “elementos
instintivos da ciência”, ou um “conhecimento instintivo”: a atividade especulati-
va está menos ligada à livre criação de conceitos do que a uma intuição ou uma
convicção que, podemos acrescentar, lendo o Freud de 1915 (ou o Mach que ele
copia), obtém-se por uma via que não pode dispensar a adivinhação.
Assim, o instinto consiste numa espécie de conhecimento sem a necessida-
de de experimento. Ele não é necessário, pois já foi realizado incontáveis vezes,
está inscrito em nossos organismos e tradições (Feyerabend, 1987/2009). São, na
realidade, resultado de incontáveis experimentos que nos dão os dados necessá-
rios para imaginar, sem precisar montar materialmente qualquer experimento;
nos dão ainda os dados necessários para que possamos imaginar ou intuir um
princípio operando nisso tudo, que, uma vez descoberto, abre a possibilidade de
enxergar novas relações no material sobre o qual nos debruçamos. A especulação
não se funda então na criação de uma mente livre. Ao contrário, ela é a criação
de uma mente extremamente determinada, que carrega consigo a sua própria
história, a história de sua cultura e a de sua espécie.

Para concluir: memória, feiticeiras e demônios


Não se pode deixar de lembrar, quanto a esse debate, que em Freud a “li-
berdade” da associação do paciente quer dizer apenas que ele não deve interferir
na determinação inconsciente de sua fala. Não queremos que ele crie livremente,

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mas que se deixe levar pela memória, na qual veremos articulado o desejo como
um movimento da pulsão de reeditar o que fica marcado como experiência de
satisfação. Ou seja, o instinto de pesquisa de Mach é compatível, ainda que em
certa distância, com a regra da associação livre: ao pedir para dizer “o que lhe vier
à mente”, o que se aposta é que aquilo que se cria na fala do paciente, por mais
fresca e atual que seja, é carregada de lembrança e de desejo (de repetir uma lem-
brança marcada pela satisfação).
Ora, é na memória inconsciente que Freud fundamenta a sua prática de adi-
vinhação, nos dois âmbitos em que ela aparece: na prática interpretativa clínica e
na atividade especulativa teórica.
A interpretação clínica depende, segundo Freud, de uma postura que im-
plica “entregar-se totalmente à sua memória inconsciente” (1912/2010, p. 156).
A adivinhação sobre o sentido do sintoma que caracteriza a interpretação clínica
não se apoia, portanto, num simples passo de audácia ou esperteza do analista,
como quer Ricoeur (1965/1977), mas no fato de que o analista usa seu incons-
ciente – um aparelho de memória, um lugar de depósito de herança filogenética
arcaica – como um aparelho de sensibilidade que é afetado pela fala do paciente.
Quanto à especulação teórica, nossa pequena discussão sobre o instinto de
pesquisa faz ver que talvez fosse exagero de Freud chamar sua metapsicologia de
bruxa. O papel que Mach – mais exatamente, que a leitura de Feyerabend sobre
Mach – dá à história, na formação do instinto de pesquisa e na atividade espe-
culativa, indica que o reino da feiticeira freudiana não é outro que a memória. A
bruxa da especulação, ao que parece, mora ao lado do demônio da transferência
(lembrança em ato), no inferno da memória inconsciente.

Referências

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Zahar.
CANGUILHEM, G. (1966/2011) O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense
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Eixo II
Racionalidades e processos de subjetivação
no mundo contemporâneo

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Catástrofe, risco e trauma
joel Birman

É preciso enunciar inicialmente que este ensaio é norteado por pressupostos


e coordenadas teóricas de caráter eminentemente interdisciplinar, como todas as
demais, aliás, que se inscrevem na linha geral de investigação intitulada “Catás-
trofe e trauma”. Esta é coordenada por mim e pelo professor Cristian Hoffman,
pelo acordo de colaboração internacional estabelecido entre a Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro e a Université Paris Diderot, iniciada em 2013. É preciso
evocar ainda que este ensaio é uma produção direta desta investigação.
No que concerne à pesquisa específica, que realizo e que se condensa
esquematicamente neste texto, a interdisciplinaridade em pauta se delineia
nas bordas estabelecidas entre o discurso psicanalítico e os discursos das
ciências humanas e sociais, assim como da filosofia, de maneira que as pro-
blemáticas1 da subjetivação ( FOUCAULT, 1976) e do laço social (LACAN,
1969-1970/1991) serão assim colocadas efetivamente no primeiro plano de
minhas proposições teóricas. Foi assim em torno destes problemas específi-
cos que este ensaio foi construído.
Desta maneira, a questão fundamental a ser então delineada é a de estabe-
lecer os limites e as articulações efetivamente existentes entre os acontecimentos
que ocorrem no espaço social e as formas de subjetivação que lhes seriam correla-
tas. É no campo de ressonâncias, estabelecido entre estes dois registros diferentes,
que a pesquisa em questão se inscreve, delineando as linhas de força e as coor-
denadas de sua problemática, assim como a nervura tecida pelos seus propósitos
cruciais. Vale dizer: é este campo de ressonâncias que estará então aqui sempre

1 Sobre isso, ver: Foucault (1994); Deleuze e Guattari (1980).

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em questão e que orientará, desta maneira, as minhas indagações teóricas. Pode-


-se enunciar assim que é o registro de laços sociais que estará sempre em pauta e
que será colocado em evidência, pois é este registro que realiza a mediação efetiva
entre os registros do espaço social e das formas de subjetivação. Enfim, é esta a
hipótese fundamental de trabalho que me orienta neste ensaio, do qual derivam
as demais hipóteses subsidiárias e secundárias.
Nessa perspectiva, é preciso destacar que, quando a sociedade contempo-
rânea se transformou efetivamente numa sociedade de risco, para retomar dessa
maneira o conceito fundamental formulado por Beck (1986/2010), uma descon-
tinuidade radical foi então estabelecida entre a contemporaneidade e a moderni-
dade e a modernidade avançada ao mesmo tempo, de forma que se pode afirmar
sem vacilar e titubear que esse novo real social foi a condição concreta de possi-
bilidade para o engendramento de catástrofes, que se desdobraram em rupturas
cruciais dos laços sociais e que tiveram como efeitos substantivos a constituição
de novas formas de subjetivação. Portanto, se as catástrofes se produzem, assim,
regularmente, no registro do espaço social da sociedade de risco, a violência em
todos os seus estados e os traumas seriam então produzidos como consequências
efetivas nos registros dos laços sociais e das subjetivações.
De qualquer forma, é preciso colocar devidamente em destaque que o su-
jeito estará sempre em questão na leitura que aqui lhes proponho, pois o trauma
é uma problemática que concerne sempre o sujeito, de maneira inequívoca. Vale
dizer: não existe qualquer possibilidade de pensar a emergência da experiência
do trauma sem que o registro do sujeito seja colocado devidamente em evidên-
cia, com todos os seus desdobramentos possíveis. No entanto, é preciso evocar
ainda e colocar em destaque que a categoria do sujeito será sempre concebida
aqui como forma de subjetivação, isto é, o sujeito não seria nunca concebido na
origem e no fundamento da experiência, mas seria produzido, em contrapartida,
como forma de subjetivação, isto é, como destino, efeito e produção (FOUCAULT,
1988/1994) do que se ordena primordialmente no registro dos laços sociais.

Sujeito no limite
Entretanto, para situar devidamente a questão do trauma, é preciso destacar
efetivamente que o sujeito como tal, no campo dessa experiência crucial, assume
uma configuração específica e que delineia assim a sua singularidade, a saber: é

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Catástrofe, risco e trauma

um sujeito no limite, conduzido concretamente que foi às suas expensas para uma
condição existencial limite. Com efeito, como se sabe desde os tempos históricos
de Freud, na constituição da psicanálise, a experiência do trauma foi sempre mar-
cada inequivocamente para o sujeito pela dimensão do inesperado, de forma que
a marca da surpresa é constitutiva do campo do traumático.
Contudo, enunciar que na experiência traumática o sujeito é colocado na
condição limite e que essa posição específica seja a contrapartida necessária des-
sa experiência, não implica dizer que esse sujeito no limite se inscreva na cate-
goria nosográfica dos estados limites (BERGERET, 1980), como algumas escolas
psicanalíticas contemporâneas propuseram para relançar a nosografia psicana-
lítica, ao lado dos campos da neurose, da psicose e da perversão estabelecidos es-
truturalmente por Freud, e reafirmados posteriormente por Lacan. Enfim, o que
está em pauta na experiência traumática é que o sujeito é colocado efetivamen-
te numa condição existencial limite, de forma a se configurar especificamente
como sujeito no limite.
Essa formulação teórica e clínica sobre o trauma foi enunciada por Freud,
em 1920, no importante ensaio intitulado “Além do princípio do prazer”
(1920/1981), no qual o discurso freudiano enunciou então uma nova teoria do
trauma, que era diametralmente oposta à que formulara no início de seu percurso
teórico (FREUD, 1906/1973; FREUD e BREUER, 1895/1971), pois não seria mais o
registro específico da sexualidade e o primado correlato do princípio do prazer,
no aparelho psíquico, que estariam em pauta, de maneira tal que os signos trau-
máticos seriam as marcas eloquentes reveladoras da violência evidenciada pela
experiência traumática e do sujeito colocado então na posição limite. Ao lado
disso, nessa mesma obra, a operação da compulsão à repetição foi efetivamente
destacada, em contrapartida, como sendo o dispositivo psíquico específico para
tentar dominar com insistência e possibilitar assim a simbolização da experiência
traumática (FREUD, 1920/1981).
Em consequência dessa condição traumática, o princípio do prazer e o
registro do desejo como seu correlato seriam subvertidos e colocados assim
momentaneamente em questão no psiquismo, de maneira que a dor como pa-
thos se impõe como imperativo insofismável desse sujeito colocado na condição
limite e que remete à existência de um além do princípio do prazer e ao domínio
efetivo da pulsão de morte. Nesse contexto, a pulsão de destruição se inscreve de

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maneira ruidosa como desdobramento efetivo da economia psíquica da pulsão


de morte, assim como o masoquismo como forma específica de subjetivação
seria então o signo ostensivo e eloquente do sujeito posicionado na condição
limite (FREUD, 1920/1981).
Seria, ainda, em consequência disso, que Lacan, no “Seminário XI”, de 1964,
intitulado “Os conceitos fundamentais da psicanálise” (1964/1973), enunciou a
tese da existência do inconsciente traumático, para propor uma leitura dessa pas-
sagem teórica fundamental do discurso freudiano dos anos 1920. Com efeito, o
sujeito, situado na posição limite na experiência traumática, se inscreveria deci-
didamente no campo do inconsciente traumático, de forma que seria o real que
ocuparia então o lugar estratégico na experiência psíquica. Vale dizer: seria o
registro da pulsão que delinearia, assim, em última instância, a experiência do
trauma e que promoveria a condição limite do sujeito.

A perda de si mesmo
Entretanto, não é possível circunscrever efetivamente essa nova economia
psíquica do trauma sem articulá-la devidamente com as problemáticas da perda e
do luto, tal como Freud começou a esboçar clínica e teoricamente no ensaio me-
tapsicológico de 1915, intitulado “Luto e melancolia” (1915/1968). Com efeito, é
preciso colocar em destaque que, pela experiência traumática, o sujeito na condi-
ção limite estaria na iminência de se perder de si próprio, pois o trauma é uma mo-
dalidade radical de experiência na qual o sujeito está ameaçado vertiginosamente
de se perder de si mesmo. Pode-se condensar dessa maneira concisa, enfim, o que
está em pauta psiquicamente na experiência do trauma para o sujeito.
Contudo, é preciso evocar ainda que se trata, nessa experiência traumática,
de uma modalidade de luto particular e bastante específica, já que no campo des-
sa experiência limite para o sujeito o que está efetivamente em causa não é a per-
da do objeto, como ocorre de fato com a experiência da melancolia, numa leitura
metapsicológica, mas a perda de si próprio. Daí, a violência que caracterizaria de
maneira eloquente a experiência do trauma para o sujeito.
De que maneira é possível circunscrever e descrever essa condição funda-
mental de perda de si próprio, evidenciada pelo sujeito na condição limite? A
configuração dessa experiência do sujeito no limite não é simples nem tampouco
é possível captá-la de maneira direta, de forma que, para nos aproximar devida-

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Catástrofe, risco e trauma

mente de sua descrição, é preciso cautelosamente aludir a signos indiretos para


começar a circunscrevê-la, colocando em destaque para isso as coordenadas e as
linhas de força que delineiam o campo da experiência traumática.
O que é que o discurso freudiano nos oferece em relação a esse ponto espe-
cífico, nesse contexto teórico de seu percurso? Quais são os signos que eviden-
ciam essa condição limite do sujeito de se perder vertiginosamente de si mesmo?
Antes de mais nada, o masoquismo se impõe como forma específica de
subjetivação nesse contexto teórico do discurso freudiano. É preciso evocar
em relação a isso que não é um simples acaso que o discurso freudiano te-
nha trabalhado bastante sobre a problemática do masoquismo desde os anos
1920 até o final de seu percurso teórico, muito mais do que fizeram outrora
no seu percurso. Com efeito, o masoquismo foi situado por Freud como des-
dobramento psíquico crucial, no campo delineado pela economia da pulsão
de morte e da pulsão de destruição. Daí, porque o masoquismo passou a ser
caracterizado como primário e não mais como secundário, como anterior-
mente, em relação ao sadismo.
Foi em decorrência disso que Freud publicou o ensaio intitulado “O pro-
blema econômico do masoquismo” (1924/1973), assim como o ensaio “Bate-se
numa criança” (1919/1973), voltados para a leitura da experiência traumática no
masoquismo. Pode-se enunciar assim que o masoquismo, como forma específica
de subjetivação, foi colocado em posição de destaque no discurso freudiano, de
maneira que essa modalidade de subjetivação passou a modular como uma inva-
riante, desde então, todas as estruturas clínicas descritas pelo discurso freudiano,
a saber: a neurose, a psicose e a perversão.
Em seguida, é preciso colocar também em destaque o imperativo da an-
gústia que se colocou como marca inconfundível da experiência do trauma, se
impondo, pois, no psiquismo, como signo eloquente do sujeito no limite. Em re-
lação a isso, não se pode esquecer de que, no ensaio intitulado “Inibição, sintoma
e angústia” (1926/1973), Freud passou a opor decisivamente o que denominou
de angústia sinal à condição de angústia real, de forma que esta seria o signo por
excelência da experiência psíquica do sujeito colocado na condição limite, em
oposição àquela, em que a antecipação do perigo seria regulado pelo princípio do
prazer e, por isso mesmo, a experiência do trauma não ocorreria.
Além disso, é preciso evocar ainda que, no ensaio intitulado “A inquietante

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estranheza” (1919/1933), publicado já nesse novo contexto teórico, Freud come-


çava a esboçar essa outra leitura sobre a angústia, de maneira decisiva, pela opo-
sição que foi estabelecida entre o que era familiar e o que não era familiar para o
sujeito, inscrito que este estaria nas bordas da condição limite. Neste contexto, as
experiências psíquicas da despersonalização e do duplo seriam os signos eloquentes
da perda de si do sujeito, posicionado este nas bordas da condição limite.
Além disso, na conjunção íntima estabelecida entre o masoquismo e a an-
gústia do real, o que caracterizaria ainda a condição psíquica do sujeito no limite
seria a experiência do desamparo. Com efeito, se essa forma limite de subjetiva-
ção foi destacada por Freud como sendo originária desde a obra não publicada
intitulada “Projeto de uma psicologia científica” (1895/1973), não resta qualquer
dúvida de que a condição psíquica do desamparo radical marcaria também a ir-
ruptiva experiência do sujeito na iminência de se perder a si próprio.
Finalmente, lançado vertiginosamente que é na condição limite de se per-
der de si mesmo, o sujeito se dilacera e se fragmenta de maneira ostensiva e
eloquente, procurando eliminar, assim, custe o que custar, de si próprio, algo
que lhe é ameaçador, para preservar ainda algo de si mesmo. Essa modalidade
limite de experiência foi descrita esquematicamente por Freud, em 1939, num
de seus últimos ensaios, intitulado “A divisão do eu nos processos de defesa”
(1939/1978). Enfim, não resta qualquer dúvida de que a divisão psíquica, que
se desdobraria inequivocamente na fragmentação de si mesmo do sujeito, seria
uma das marcas incontestáveis da condição limite do sujeito em vias de se per-
der dolorosamente de si próprio.
Pode-se enunciar assim, de maneira sintética e sumária, que, colocado na
condição limite que é delineada pelas bordas da experiência traumática, o sujeito
na iminência de se perder de si mesmo se caracterizaria pelos signos eloquentes
do masoquismo, da angústia do real e do desamparo, que se conjugariam e se
desdobrariam tragicamente no limite pela divisão psíquica incontornável, assim
como pelas experiências do duplo e da despersonalização. Enfim, esses signos
condensariam ostensivamente a experiência de perda de si do sujeito, tal como
podemos situá-lo rigorosamente pela leitura do discurso freudiano no final de
seu percurso teórico, efeitos psíquicos eloquentes, que seriam da conjunção entre
a economia de pulsão de morte e da pulsão de destruição, inscritos no registro
psíquico do além do princípio do prazer.

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Catástrofe, risco e trauma

Modernidade, modernidade avançada e contemporaneidade


Contudo, é preciso ainda circunscrever e situar devidamente o percurso teó-
rico do discurso freudiano, depois dos anos 1920, numa perspectiva que seja ao
mesmo tempo histórica e genealógica (FOUCAULT, 1970/1994), para não subs-
tantivá-lo e lhe conferir assim as suas dimensões temporal e estratégica. Nesse
contexto teórico renovado, o que o discurso freudiano estava realizando era a
crítica eloquente da modernidade avançada, iniciada em 1914, com a eclosão san-
grenta da 1ª Grande Guerra.
Porém, é preciso evocar ainda que Freud inicia essa crítica já em 1915, no
calor dos embates bélicos, com a publicação do ensaio intitulado “Considerações
atuais sobre a guerra e a morte” (1915/1981), no qual o discurso freudiano come-
çava a examinar os efeitos pungentes da destruição e da crueldade que estavam
presentes nas práticas e nas formas de subjetivação promovidas pela experiência
da guerra, que se opunham decididamente ao que ocorrera nos tempos históricos
da modernidade. Daí, o espanto e até mesmo a quase incredulidade de Freud face
ao que estava ocorrendo de sangrento nos campos de batalha, onde o confronto
entre as grandes potências de então não poupavam até mesmo as populações civis
dos massacres. Enfim, a crueldade entre os homens ultrapassou um limiar deci-
sivo, de maneira a promover a descontinuidade histórica entre a modernidade e
a modernidade avançada.
Assim, foi esse mesmo paradigma teórico (KUHN, 1975), esboçado que foi
pelo discurso freudiano nesse contexto teórico dos anos 1920 e 1930, que foi re-
tomado posteriormente por Melanie Klein e Lacan nos anos 1930 e 1940 (KLEIN,
1946/1969; LACAN, 1936/1966 e 1948/1966), para circunscreverem a condição li-
mite do sujeito no campo da fragmentação do tecido social e do sujeito no espaço
social da modernidade avançada, por um lado, e os efeitos de alienação desta
fragmentação sobre o sujeito, pelo outro. No entanto, a contemporaneidade vai
conferir marcas ainda mais complexas e trágicas nas formas de subjetivação do
sujeito no limite, como veremos ainda posteriormente.
Com efeito, se a problemática da violência em todos os seus estados estava
certamente inscrita no arcabouço das diferentes formulações conceituais formu-
ladas por Freud, Melanie Klein e Lacan, centrada nesse paradigma teórico, a vio-
lência no mundo contemporâneo, em contrapartida, assumiu contornos ainda
mais sinistros e desastrosos no registro dos laços sociais e nas formas de subjeti-

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vação, em decorrência da constituição de uma sociedade de risco, tal como Beck


(1986) caracterizou a nova construção social delineada na contemporaneidade.
Entretanto, o conceito sociológico de sociedade de risco deve ser aproximado
e articulado das práticas sociais contemporâneas de gestão de risco, descritas con-
ceitualmente por Castel na obra intitulada “A gestão de riscos” (1983). Além dis-
so, é preciso articular internamente as questões colocadas por Beck e Castel, sobre
o campo social da contemporaneidade, com as que foram desenvolvidas previa-
mente por Foucault, no que concerne à biopolítica, ao dispositivo de segurança e
ao neoliberalismo. Com efeito, se, em “A vontade de saber” (1976), Foucault enun-
ciou os conceitos de biopoder e da bio-história, em contrapartida, no curso intitu-
lado “Segurança, território e população” (1977-1978/2004), formulou o conceito
de dispositivo de segurança, enquanto que, no curso “Nascimento da biopolítica”
(1978-1979/2004), descreveu a constituição histórica do neoliberalismo.
Vale dizer: nos encontramos aqui face a diversas conjunções e imbricações
conceituais, que é preciso colocar devidamente em evidência em nome da consis-
tência teórica que estou aqui propondo. Assim, os conceitos de sociedade de risco,
de gestão de risco, de dispositivo de segurança, de biopolítica e de neoliberalismo,
que pretendem ser chaves de leitura para empreender a interpretação teórica da
contemporaneidade, são leituras efetivamente complementares da sociedade con-
temporânea. Pode-se dizer então que, pela mediação dessas diferentes leituras,
uma mesma problemática se encontra subjacente, que as permeia decisivamente.
Portanto, é essa problemática que está aqui em causa.
Assim, é no campo dessa problemática, caracterizada que é pelas coorde-
nadas e as linhas de força acima destacadas, que se pretende inscrever a questão
do trauma na atualidade, de maneira a colocar em pauta o sujeito na condição
existencial limite, em outras modulações.

Genealogia da contemporaneidade
Assim, para apreender e compreender devidamente o que está em causa
nessa problemática, evidenciando a ruptura ocorrida nas suas linhas de força
e na reconfiguração das suas coordenadas, é preciso realizar uma breve e es-
quemática genealogia da contemporaneidade, percorrendo as tradições socio-
lógica e histórica. Foram essas tradições teóricas, com efeito, que começaram
a colocar em evidência as transfigurações cruciais que estavam ocorrendo no

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Catástrofe, risco e trauma

Ocidente, desde os anos 1970, que foram galvanizadas e tornadas mais comple-
xas ao mesmo tempo pelas leituras genealógicas realizadas por Foucault, como
veremos ainda posteriormente.
Essas transformações fundamentais começaram a serem evidenciadas por
Sennett, com a publicação da obra intitulada “O declínio do homem público”
(1974). Qual era então a tese enunciada por Sennett? Como o título dessa obra
sugere, Sennett destacava já, em meados dos anos 1970, que uma reformulação
crucial do espaço social contemporâneo estava em curso, em decorrência do apa-
gamento progressivo do espaço público. Em contrapartida, ocorria uma expansão
e uma inflação do espaço privado.
Essa retração e expansão do espaço público e do espaço privado, respecti-
vamente, da ordem social na contemporaneidade, colocavam em evidência a des-
construção em pauta da sociedade política e a inflação, em contrapartida, da socie-
dade civil. Seria em decorrência disso que o subtítulo dessa obra de Sennett era jus-
tamente “As tiranias da intimidade”, pela qual se destacavam a desarticulação das
linhas de força que foram constitutivas da modernidade avançada, por um lado, e
a sua rearticulação na construção das coordenadas da contemporaneidade, pelo
outro. Além disso, pela metáfora e pelo conceito de “tirania da intimidade”, Sennett
enunciava a ruptura dos laços sociais e a constituição correlata de novas formas de
subjetivação na sociedade contemporânea, na medida em que o sujeito passou a
se articular diferentemente nos registros do espaço público e do espaço privado.
Em 1979, o historiador norte-americano Lasch publicou uma obra crucial
que estava em ressonância com essa obra de Sennett e que se intitulava “A cul-
tura do narcisismo” (1979/2006). Pode-se destacar assim, numa leitura transver-
sal entre as duas obras em questão, como a expansão das tiranias da intimidade
descritas por Sennett se desdobrava e se conjugava com a inflação da cultura do
narcisismo, na contemporaneidade. Isso implica dizer, com efeito, que o espaço
público perdeu a sua potencialidade dinâmica no espaço social contemporâneo
e que os indivíduos no espaço privado passaram a se inscrever no primeiro plano
da cena social. Além disso, os laços sociais se apagaram progressivamente como
o efeito privilegiado da desconstrução do espaço público e o incremento correlato
das tiranias da intimidade. Enfim, a cena social passou a ser ocupada por diver-
sos indivíduos dispersos como mônadas fechadas em si mesmas, que passaram a
estabelecer entre si laços esparsos e débeis.

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Seria, assim, em decorrência da transformação do espaço social num aglo-


merado de individualidades superpostas e fechadas sobre si mesmas como mô-
nadas, que o conceito de cultura do narcisismo foi enunciado para descrever as
novas coordenadas do espaço social na contemporaneidade. Ao lado disso, seria
pela ruptura em larga escala dos laços sociais que assim se delineia, que Lasch
(1979/2006) colocou como subtítulo de sua obra “A vida americana numa idade
do declínio da esperança”. Vale dizer: os sintagmas “decadência do homem públi-
co” (SENNETT) e “declínio da esperança” (LASCH) não apenas se articulam, mas
também se conjugam intimamente.
Pode-se enunciar assim que as coordenadas teóricas fundamentais para a
construção do conceito da sociedade de risco na contemporaneidade, tal como
Beck enunciou posteriormente, assim como as linhas de força que norteavam as
práticas sociais de gestão de riscos, segundo a leitura de Castel, estavam já evi-
denciadas pelas obras seminais forjadas por Sennett e Lasch. Com efeito, a dis-
seminação permanente das possibilidades de risco, no espaço social contempo-
râneo, estaria fundada na desconstrução efetiva do espaço público e a expansão
correlata do espaço privado, que teria, como desdobramento crucial, a colocação
do indivíduo no primeiro plano da cena social e o narcisismo, como marca por
excelência dessa individualidade, de forma que os laços sociais entrariam em dis-
solução progressiva e vertiginosa.

Neoliberalismo e mundialização
Contudo, é preciso colocar ainda em destaque que as descrições socioló-
gica e histórica, acima delineadas, que procuravam evidenciar as coordenadas
constitutivas da contemporaneidade e a desarticulação consequente da mo-
dernidade avançada, tiveram como o seu correlato a construção e a dissemi-
nação do discurso do neoliberalismo, que foi instituído no Ocidente na segunda
metade dos anos 1970 e que foi a condição concreta de possibilidade para uma
nova mundialização da economia internacional (BRUGUÈRE e LE BLANC,
2011; LAVAL, 2007; DARDOT e LAVAL, 2009; JUPIOT, 2010). O que isso quer
dizer, afinal das contas?
Antes de tudo, isso quer dizer que o espaço social da modernidade e o da
moralidade avançada ao mesmo tempo foi ostensivamente desconstruído e que,
no lugar, o mercado se impôs e se instituiu como referência crucial na contem-

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Catástrofe, risco e trauma

poraneidade. Em seguida, é preciso evocar ainda que o correlato desse processo


foi a desconstrução da categoria do cidadão, signo efetivo de destaque tanto no
espaço social da modernidade quanto naquele da modernidade avançada, que
foi apagado e colocado em estado de suspensão, de maneira que, no seu lugar, foi
instituída a categoria de consumidor.
Com efeito, é possível depreender com facilidade a proximidade que exis-
te entre a leitura de Sennett de desconstrução do espaço público e as tiranias
da intimidade como o seu correlato, assim como a disseminação da cultura
do narcisismo, segundo Lasch, com a construção de uma nova ordem social e
econômica na contemporaneidade, na qual a figura do cidadão se apaga e a fi-
gura do consumidor é colocada em contrapartida no primeiro plano do espaço
social da atualidade.
Pode-se dizer assim, portanto, que a sociedade como tal começou a ser me-
ticulosa e progressivamente desconstruída na contemporaneidade, tal como ela
foi concebida outrora na modernidade e na modernidade avançada, centrada que
era na figura do cidadão, e que o mercado se impôs decididamente como a mar-
ca por excelência da contemporaneidade, tendo, na figura do consumidor, a sua
referência crucial. É nesse sentido que é preciso evocar a formulação precisa rea-
lizada por Thatcher, primeira ministra do Reino Unido e uma das instauradoras
da ordem neoliberal em conjunção com o presidente Reagan dos Estados Unidos,
de que ela não sabia efetivamente o que era uma sociedade, pois conhecia apenas
a existência de indivíduos, que estabeleciam relações de troca no âmbito do mer-
cado de bens e de consumo.
O que implicou efetivamente essas mudanças cruciais? Nada mais nada
menos que, desde o final dos anos 1970, tudo foi transformado em mercado e
em objeto de consumo, sem qualquer exceção, no horizonte social do Ociden-
te. Assim, mesmo os bens que estavam inscritos no campo do espaço público,
desde o início do século XIX — como a saúde, a educação, a ciência e a arte — ,
passaram a se inscrever decisivamente no registro do mercado e foram trans-
formados então em ativos do mercado de bens e de serviços. Vale dizer: todo
e qualquer objeto presente no espaço social foi transformado em mercadoria
(MARX, 1867/1963, p.561-698), sem qualquer exceção, de forma que a sociedade
foi transformada num mercado, configurado agora em escala global pelo proces-
so de mundialização em curso.

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A constituição desses novos limiares e campos de mercantilização no Oci-


dente indica com clareza a diferença crucial que existe entre o discurso liberal do
século XIX e o discurso neoliberal da contemporaneidade, pois, naquele, certas
práticas sociais e certos objetos sociais se inscreviam no campo do espaço pú-
blico e eram então geridos pelo Estado. A inclusão do prefixo neo na palavra
liberalismo não deve nos confundir quanto ao sentido diferenciado dessas duas
modalidades de ordem econômica e social, pois não se trata, com o advento do
neoliberalismo, do simples relançamento do liberalismo clássico na contempora-
neidade, mas de uma transformação radical das linhas de força constitutivas do
espaço social. Em decorrência disso, se instituiu a sociedade de risco (BECK) e o
seu correlato, qual seja, as práticas sociais de gestão de risco (CASTEL).
Foi justamente nesse novo contexto sociopolítico em formação que Foucault
empreendeu a problematização da biopolítica e do biopoder, no campo da cons-
tituição histórica do neoliberalismo, num curso realizado no Collège de France,
em 1978-1979, intitulado “Nascimento da biopolítica” (1978-1979/2004). O que
me interessa sublinhar nesse curso de Foucault é a enunciação de uma nova for-
ma de subjetivação que se constituiu nesse contexto histórico, que evidenciaria
assim a emergência de uma nova modalidade da gestão do espaço social.
Com efeito, pela constituição da figura do empresário de si mesmo, Foucault
(1978-1979/2004) formulou a existência de outra forma de subjetivação que seria
até então inédita na tradição ocidental, pela qual o registro da empresa se materia-
lizaria também no âmbito do indivíduo, de maneira a ser o empresário de si mes-
mo, que realizaria a gestão no espaço social neoliberal. Vale dizer: com a expansão
em seus anteriores limites do mercado e a dissolução em contrapartida dos laços
sociais, que teriam como seus correlatos a expansão dos indivíduos e do narci-
sismo, cada indivíduo passou a ter a pretensão de ser o empresário de si próprio.
Seria assim, em decorrência desse processo, que se constituiria a oposição
cortante entre a sociedade existente outrora, seja aquela existente na modernida-
de seja aquela constituída na modernidade avançada, e a sociedade contempo-
rânea. Com efeito, se, naquelas, existia certamente uma configuração hierárqui-
ca, a figura do cidadão tinha, entretanto, uma mobilidade social possível no seu
interior, pois, pela aquisição de direitos sociais, pelos conflitos de classes e pela
ascensão social no âmbito do mercado de trabalho, o trabalhador poderia efetiva-
mente ascender socialmente e ter assim uma outra inscrição na hierarquia social,

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Catástrofe, risco e trauma

legando então aos seus descendentes outra posição no espaço social. Ao contrá-
rio, na contemporaneidade, o que se instituiu efetivamente, pela transformação
de sociedade em mercado e na mudança da figura do cidadão na do consumidor,
foi a emergência de novas coordenadas e de outras linhas de força, que transfor-
maram radicalmente o espaço social, fazendo-o girar de ponta-cabeça, de forma
a constituir um dilema insolúvel para o indivíduo: ou este estaria inscrito no inte-
rior do espaço social ou então ele estaria no exterior deste, de maneira ostensiva e
peremptória, pois, pela transformação da figura do cidadão na do consumidor, o
indivíduo seria consumidor ou não seria, sendo assim incluído provisoriamente
ou excluído definitivamente do campo do mercado. Essa mudança radical, enfim,
implicou uma perda progressiva e disseminada de direitos sociais pelos cidadãos
e pelos trabalhadores (FASSIN, 2010).

Poder, lógica humanitária e lógica securitária


A resultante inequívoca desse processo foi o incremento ostensivo da desi-
gualdade social no Ocidente, invertendo as coordenadas e as linhas de força da
modernidade avançada com o advento triunfante do neoliberalismo (PIKETTY,
2013). Se, naquela, com efeito, ocorreu uma maior distribuição de riquezas com
a constituição do Estado Providência, após a segunda Guerra Mundial, a ordem
neoliberal contemporânea retomou a concentração de riqueza existente ante-
riormente, de forma que as oligarquias familiares foram efetivamente restaura-
das (PINÇON e PINÇON-CHARLOT, 2012). A concentração de riqueza nas mãos
das oligarquias atingiu níveis apocalípticos, sem dúvida, invertendo significati-
vamente as linhas de força delineadas nos tempos da modernidade avançada.
Além disso, com os novos limiares promovidos pela mundialização neoliberal,
esse processo de produção de desigualdade não ficou restrito ao Ocidente, mas se
realizou igualmente no Oriente.
Por isso mesmo, alguns autores enunciaram de maneira radical, na tradição
sociológica, que estaríamos lançados hoje no fim das sociedades, como nos disse
concisamente Touraine, na obra intitulada “O fim das sociedades” (TOURAINE,
2013). É diante disso, que nos encontramos confrontados, hoje, com a dissemina-
ção da mundialização e do neoliberalismo.
Em decorrência dessa exclusão absoluta do espaço social de quem não é
consumidor, uma parcela significativa das populações é lançada literalmente na

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lata do lixo, no âmbito global. Essas populações são destinadas então à morte
social, não tendo assim os indivíduos que a constituíram qualquer direito e qual-
quer horizonte de existência possível no futuro. Enfim, é a morte social que se
impõe de maneira trágica, sem dúvida, mas que se banaliza certamente na atuali-
dade, na medida em que os indivíduos que compõem essas populações de mise-
ráveis não podem ser empresários de si próprios e, por isso mesmo, não podem
mais existir efetivamente.
Foi ainda nesse contexto social contemporâneo que se constituiu uma nova
gestão social da miséria, incidindo naqueles que seriam marcados pela iminência
da morte social. Foi essa nova gestão social da miséria que Fassin intitulou de
lógica humanitária, na qual se propõe a empreender criticamente “uma história
moral do tempo presente” (FASSIN, 2010). Com efeito, seria pela mediação da
lógica humanitária que as populações situadas nas bordas da morte social rece-
beriam favores provenientes das agências sociais de gestão de risco, em nome de
suas sobrevivências. Vale dizer: o que estaria aqui em pauta não seria mais algo
fundado na ordem dos direitos dos cidadãos, mas de favores promovidos pelos
poderes constituídos em nome de uma humanidade (suposta) existente de quem
cuida e de quem é cuidado. Seriam, enfim, também norteadas pela lógica huma-
nitária que algumas agências sociais seriam organizadas em âmbito internacio-
nal e realizariam a gestão dos riscos resultantes das catástrofes contemporâneas,
como os Médicos sem fronteiras e os Médicos do mundo (FASSIN, 2010).
Contudo, é preciso destacar, ainda, que a dita lógica humanitária seria tam-
bém centrada nas suas operações, ao mesmo tempo tática e estratégica, pelas
coordenadas do poder pastoral, tal como Foucault enunciou a pertinência desse
conceito no seu curso intitulado “Segurança, território, população”, realizado no
Collège de France (1977-1978/2004). Com efeito, para cuidar devidamente de seu
rebanho, o pastor deve não apenas estar atento ao rebanho como um todo, mas
também se voltar para a condição de cada uma de suas ovelhas, que poderiam
se desgarrar e se perder do rebanho. Portanto, a lógica humanitária na sua ação
pressuporia a operacionalização do poder pastoral como sendo a sua condição
concreta de possibilidade.
No entanto, não se pode perder de vista que a lógica humanitária se conjugaria
intimamente também com a lógica securitária (FASSIN, 2010), como modulações
diferenciais que seriam da gestão social das catástrofes na contemporaneidade, na

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Catástrofe, risco e trauma

dependência estrita que estariam das variações sociais da conjuntura. Com efeito,
a lógica securitária do Estado se imporia efetivamente no espaço social quando
a ameaça de violência se delineasse no horizonte daqueles que seriam marcados
pela iminência da morte social, de forma que a criminalização ativa das popula-
ções seria instituída, em larga escala, pela conjunção da retirada de direitos sociais
anteriormente existentes e a construção correlata de novas modalidades de delitos.
É para a leitura dessas marcas psíquicas engendradas no sujeito, pelas ca-
tástrofes disseminadas na contemporaneidade, que se constituem efetivamente
como a matéria prima para o trauma, que vou me voltar agora de forma conden-
sada, para concluir assim este texto.

Trauma e subjetivações
Assim, em decorrência desse cenário estruturalmente catastrófico – que
delineia a cena social na contemporaneidade pelas transformações cruciais das
linhas de força, que norteavam o espaço social na modernidade avançada – as
formas masoquistas de subjetivação se disseminaram, de um lado, e as novas mo-
dalidades de violência se multiplicaram de uma maneira indiscutível, de outro.
Ao lado disso, a angústia, sob a forma limite da síndrome do pânico, assim como
a disseminação do desamparo e das despersonalizações, colocaram em evidência
os novos limiares atingidos pela fragmentação psíquica.
Pode-se colocar então em destaque, nessas diferentes formas de subjetiva-
ção, a presença ostensiva do sujeito na condição limite, mas em que este assume,
nesse novo contexto social, traços complexos, se lhe compararmos às marcas que
apresentava outrora, nos anos 1920 e 1930, inscrito que estava então no campo
social da modernidade avançada.
No que tange a essa mudança crucial na economia do sujeito, é preciso des-
tacar que, na condição radical de precarização social que se configurou e de sua
disseminação na contemporaneidade, na qual a iminência da morte social se im-
põe efetivamente, o sujeito, na condição limite, não teria mais efetivamente qual-
quer crença no futuro, em decorrência da suspensão da mobilidade social e da
possibilidade correlata de hierarquização ausente no espaço social, que existiam
ainda na modernidade avançada.
Portanto, o sujeito inscrito na condição existencial limite na contempo-
raneidade estaria ameaçado por uma transformação radical na experiência do

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tempo, revirando, assim, de ponta-cabeça, a modulação da temporalidade, que


Sennett já destacava na obra intitulada “A corrosão do caráter”, que se voltava
para a leitura crítica das “consequências pessoais do trabalho no novo capitalis-
mo” (SENNETT, 1999). Com efeito, pelas transformações das categorias do es-
paço e do tempo, oriundas das mudanças ocorridas no mercado de trabalho, na
contemporaneidade, e que seriam reguladoras e moduladoras da experiência do
sujeito, a espinha dorsal do sujeito seria simbolicamente fraturada e produziria,
como consequência, o que Sennett denominou de corrosão do caráter.
Seria, ainda, em consequência dessa transformação crucial na experiência
temporal do sujeito posicionado em condição limite na contemporaneidade, que
Lasch indicava que a constituição da cultura do narcisismo, na descontinuida-
de histórica que evidenciava, implicava o advento melancólico de uma idade de
“perda das esperanças” (LASCH, 1979/2006).
Em 1993, o sociólogo Pierre Bourdieu nos mostrou tudo isso no que con-
cerne à tradição social francesa, numa obra intitulada “A miséria do mundo”
(BOURDIEU, 1993). Nessa obra, composta de entrevistas de indivíduos nas bor-
das da morte social, Bourdieu buscou focalizar as marcas catastróficas presentes
nas novas modalidades de precarização social na contemporaneidade e seus pos-
síveis efeitos traumáticos sobre as individualidades.
Assim, é preciso colocar, em devida evidência, a articulação existente nos
indivíduos entre a dor corporal, de um lado, e a disseminação da violência so-
cial, de outro, que delineiam as coordenadas constitutivas do campo do trauma,
no sujeito colocado na condição existencial limite. Isso porque é preciso colocar
em destaque que a violência que se dissemina nesses indivíduos é a resultante
do não reconhecimento da condição de sujeito daqueles (LACAN, 1948/1966)
que perderam a condição social de cidadão e que foram reduzidos à condição
insustentável de seres descartáveis, por não poderem ser e exercer a condição
de empresários de si próprios.
Entretanto, frente a esse cenário trágico, marcado que é pela catástrofe e
pelo trauma, o primeiro movimento empreendido pela ordem social contem-
porânea para regular essa situação limite é a da psiquiatrização do mal-estar,
presente nessas populações marcadas pela precarização, para regular, pela
utilização ampla e indiscriminada das drogas psicofarmacológicas, o mal-es-
tar assim engendrado. Contudo, se essa modalidade de regulação da morte

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Catástrofe, risco e trauma

social e da violência engendrada pelo não reconhecimento real e simbólico,


que se disseminou nas ações desses indivíduos doloridos, é a criminalização
dessas populações que se impõe em larga escala, como segundo movimento
regulador do dito mal-estar. Desta maneira, a lógica humanitária se trans-
forma inequivocamente em lógica securitária, de forma que a criminalização
dos indivíduos se impõe de maneira eloquente, incrementando e inflando as
populações carcerárias.
Existe, na atualidade, certo consenso estabelecido entre os pesquisadores
de que há efetivamente uma inflação absurda das populações carcerárias em
todo o mundo, sem que isso implique o aumento da criminalidade de sangue,
mas que isso seria o resultado da subtração de direitos anteriormente existentes
e na criação correlata de novas modalidades de delitos pelo direito penal, assim
como de novas modalidades de periculosidade (WACQUANT, 2009; BAUMAN,
1997). Pode-se afirmar que estamos assistindo hoje ao terceiro grande encarce-
ramento que marcou a história do Ocidente, sendo o primeiro o que ocorreu no
século XVII e o segundo no século XIX (PIVEN e CLOWARD, 1993). Contudo,
o encarceramento populacional, que ocorre hoje em larga escala, ultrapassa em
muito aos que ocorreram anteriormente, sem dúvida, pelo aumento ocorrido
na população em geral, se esta for comparada à que existia nos dois tempos
históricos anteriores.
Porém, na sua economia psíquica, o sujeito, na condição existencialmente
limite, seria marcado preferencialmente pela vergonha, se bem que a culpa tam-
bém lhe marcaria, pelos traços de falta e de dívida que lhe permearia inteira-
mente. Foi, assim, pelo viés conjugado da culpa e da vergonha, que se constituiu
a nova condição de vítima que, como modalidade destacada de subjetivação na
contemporaneidade, oferece a matéria-prima por excelência para as práticas as-
sistenciais humanitárias acima destacadas.
Além disso, é preciso sublinhar ainda que, neste contexto social catastrófico
da contemporaneidade, a cultura das drogas se disseminou fartamente, seja para
sustentar as práticas performáticas dos empresários de si mesmo nas suas dispu-
tas individuais intermináveis com os seus rivais, seja para regular a dor indizível
dos sujeitos inscritos nas bordas da morte social.
De qualquer forma, é sempre o registro do corpo o que está no primeiro pla-
no na construção do mal-estar do sujeito na contemporaneidade, pois o corpo é

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Joel Birman

o registro do ser pelo qual o sujeito evidencia a dor que lhe perpassa e que não
pode ser transformada em sofrimento, em decorrência da precarização real de suas
condições sociais e da perda dos instrumentos simbólicos correlatos de que tais
sujeitos são despossuídos, em consequência de sua precarização (­BIRMAN, 2013).

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8
Precaução, educação e medicalização
pela oferta de saúde
Dolores Galindo
Flávia Cristina Silveira Lemos
Renata Vilela Rodrigues
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida

Este capítulo aborda, em formato de ensaio, os processos de medicaliza-


ção da educação e da saúde, articulados ao mercado da precaução/prevenção por
meio de práticas da biomedicina e dos usos das biotecnologias, no cuidado e
governo preventivo da vida. Buscou-se organizar algumas perguntas acerca dos
percursos e conceitos de Michel Foucault que possibilitam delinear visibilidades
no campo da medicalização da vida pela promoção da saúde e da educação, das
estratégias de segurança e do mercado de consumo de tecnologias que visam ao
empresariamento de si e dos outros.
Castiel (1987) assinalou como as políticas de saúde e educação, na segunda
metade do século XX, em diante, foram ganhando feições de gerência de ris-
cos em nome da segurança e da produção de altas performances de rendimento,
em um mercado da saúde e do cuidado preventivo da educação, desde a tenra
infância – discursos esperançosos quanto a um futuro imune de patologias e a
expectativa do aumento da longevidade. As biomedicinas e suas técnicas desem-
penham, agora, um papel importante na modelação das subjetividades (ROSE,
2013), caracterizadas principalmente pelo seu caráter amedrontador e precaucio-
nário (CASTIEL; ÁLVAREZ-DARDET, 2007b).
No neoliberalismo, tornamo-nos empresários de nossas vidas, sendo nosso
próprio capital e fonte de renda (FOUCAULT, 1978-1979/2008), pois o mercado
não é definido pelos instintos do homem em fazer troca. Por mercado, enten-

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Dolores Galindo et al.

de-se uma relação de concorrência e desigualdade, na qual os sujeitos não são


comerciantes, mas empresários (LAZZARATO, 2013). Passa-se a gerenciar e co-
mercializar a si como empresa e centro biomédico, visando melhorar sua saúde e,
consequentemente, a aumentar a longevidade e o empreendedorismo como estilo
de vida no campo dos processos de subjetivação.
O empreendedorismo de si tem lugar numa cultura marcada pela vida me-
dicalizada. Castiel e Álvarez-Dardet (2007b, p. 59) enfatizam que permanecemos
no regime dos riscos característico da biopolítica traçada por Michel Foucault,
porém, soma-se igualmente o regime da hiperprevenção, em que a encomenda
pela precaução se torna bem maior que a prevenção inicialmente pensada na se-
gunda metade do século XIX.

Saúde, educação e segurança em jogo no mercado da vida


Com Foucault, práticas de saúde são práticas sociais e, portanto, são consi-
deradas “práticas discursivas e não discursivas que fazem qualquer coisa entrar
no jogo do verdadeiro ou falso e a constitui como objeto para o pensamento”
(FOUCAULT, 2004, p. 242). O imperativo de saúde, na sociedade contemporânea,
oriundo de instituições, leis, normas, arquiteturas, equipamentos e saberes dife-
rentes –, funciona como um dispositivo que põe em relevo a saúde como um bem
e um dever (NUNES, 2009).
Os discursos acerca da oferta de promoção de saúde à população se deslo-
caram do eixo das práticas médico-curativas, hospitalares, para aquelas denomi-
nadas como atinentes à promoção da saúde. O bem-estar da população emerge
como objeto de preocupação do Estado, tornando-se uma questão política e eco-
nômica. Foucault (1979, p. 198) chega a ressaltar que os “traços biológicos de uma
população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica (...)”.
Tomar o desenvolvimento em suas condições úteis e um investimento fu-
turo para que a infância seja útil é uma preocupação política e econômica da
época e ainda do presente. A relação pais-filhos ganha um novo objetivo, não
mais dominação patriarcal, mas medicalização como um conjunto de cuidados e
obrigações entre ambos, de ordem médica, psicológica, educativa e de cuidados e
vigilância protetiva liberal.
A educação em saúde, a gestão dos espaços urbanos, o saneamento das ci-
dades, a regulação da alimentação e o controle dos contágios estiveram entre as

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Precaução, educação e medicalização pela oferta de saúde

práticas de promoção e prevenção da saúde, na dimensão da medicalização da


cidade, apesar das iniciativas de saúde coletiva e promoção/prevenção nas polí-
ticas de atenção básica e de promoção de saúde. Foucault faz uma desvinculação
da norma do campo da biologia, remetendo-a ao campo social como uma grande
rede de discursos, dentre os quais estão os da saúde.
A normalização cada vez mais é exercida por procedimentos de padronização,
comparação, divisão, classificação e demarcação dos sujeitos com relação à média,
à marcação destes por meio de diagnósticos e ao encaminhamento para correções.
A medicalização da vida faz parte desses procedimentos e é relativa à patologiza-
ção das condutas individuais, estando presente em diversos tipos de práticas so-
ciais e contando “com apoio de variados campos de conhecimento, das ciências
biológicas e médicas às ciências humanas e sociais” (PRADO-FILHO, 2010).
A medicalização e a promoção de saúde operam pela moralidade e pela nor-
malização com funções econômicas e políticas bem dispostas, no liberalismo e no
neoliberalismo. Em tempos de avanços das neurociências, de mercado da saúde
ampliado por internações e realização de exames desnecessários e de prescrição
exacerbada de medicamentos, a política de promoção de saúde pode fazer vibrar
linhas de fuga e resistências paralelamente aos novos perigos de aumentar conco-
mitantemente os processos de medicalização.
A problematização das condições de emergência e proveniência das políti-
cas sociais de promoção de saúde auxilia-nos a pensar e interrogar os modos de
cuidar e produzir saúde, em termos de multiplicidade de forças em que, onde há
poder, há resistências. A emergência da gestão da vida como valor na história, em
uma entrada política do corpo da população como espécie biológica no fazer viver
e deixar morrer implica o nascimento da biopolítica, a partir da segunda metade
do século XIX. No curso Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1975-1976/2005),
há uma definição da biopolítica como prática de governo da população em nome
da vida, da expansão da saúde, da segurança e da paz.
Em Segurança, território e população, Foucault (1978-1979/2008) declara
que o poder pastoral era o governo do rebanho para a salvação das almas, da
Antiguidade até a Idade Média. Esse poder pastoral foi transformado em go-
verno das condutas pela moralização, pelo poder disciplinar, pela biopolítica
e, posteriormente, pelo dispositivo de segurança, na emergência do Estado
governamentalizado.

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Dolores Galindo et al.

Ao problematizar a biopolítica funcionando no dispositivo de segurança,


Foucault (1976/1988; 1975-1976/2005) afirma que nunca se matou e se deixou
tanto morrer quanto nas sociedades que exaltaram a vida e a democracia como
valores supremos. Ter uma lei garantista possibilita conquistas para as lutas coti-
dianas, mas apenas no plano da normalização social. Paradoxos variados foram
instalados e trouxeram preocupações analíticas da gestão da vida, pois mata-se
em nome do cuidado e do governo da saúde.
As relações estariam cada vez mais pautadas na capitalização e no em-
presariamento da vida. Em Segurança, território e população, Foucault (1977-
1978/2008) fala sobre a realização dos negócios no espaço com seguridade e
como as cidades vão ganhando uma lógica de organização que beira os acam-
pamentos militares para favorecer a circulação de bens, pessoas, conhecimentos,
normas e equipamentos diversos. Abrir conexões entre os espaços para ampliar
o empresariamento da vida é um vetor de forças neoliberais cada vez mais inci-
sivas e esmagadoras das esferas coletivas e das redes de solidariedade, pois afasta
comunidades e inibe as resistências em nome do desenvolvimento e do aumento
da geração de renda (FOUCAULT, 1977-1978/2008).
O risco de se desviar de uma norma, seja de saúde, de comportamento, de
produtividade, de relacionamento, de aprendizagem, é calculado com base em
fatores chamados de variáveis condicionantes de riscos, em lógicas experimentais
inferenciais. Contudo, o risco nada mais é do que uma virtualidade, porque é
apenas um cálculo de possibilidade de algo ocorrer e não um evento de fato, ou
seja, a medicalização pode operar pela prevenção de doenças que poderão nunca
acontecer (FOUCAULT, 1988; CASTIEL, 1987).
Nesse sentido, a bioinformática facilita a matemática inferencial e passa a
ser aplicada ao cálculo de riscos, sustentando todo um campo de indicadores
de direitos e planejamentos de políticas públicas, como as de saúde, educação,
assistência social e as policiais. Para Castiel (1987), a medicina personalizada bio-
médica e alguns saberes da psicologia forjam uma racionalidade propícia à gestão
diferencial das populações.
Expectativas, receios, ansiedades e fluxos de capital atrelados ao empreen-
dedorismo de si mesclam-se e dão base a negociações sobre a gestão da saúde.
A associação entre biotecnologia, corpos, identidades e alimentos compensa-
tórios, assim, oferece condições para criar uma cultura somática (ROSE, 2013;

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Precaução, educação e medicalização pela oferta de saúde

2011b). Os recortes dos grupos populacionais denominados como de risco ga-


nham uma analítica programática nos equipamentos especiais, mediados por
experts tecnicistas, por terapias instrumentais e pela administração social uti-
litarista. Dossiês são constituídos pelos peritos da norma, que constroem casos
de desadaptados a enquadrar por diagnósticos. Nesse ponto, o poder psiquiá-
trico se torna uma chave para abrir todas as portas de performances considera-
das como déficits a compensar.
Por isso, Foucault (1973-1974/2006), em O poder psiquiátrico, afirma
que a questão da psiquiatrização da sociedade é a gestão dos processos de
desenvolvimento e a modulação diferencial dos mesmos. A psiquiatria mo-
ral e a neuropedagogia instauraram estratégias psicoeducativas de caráter ao
mesmo tempo disciplinar e moral, em defesa da sociedade. Os saberes médi-
co-psicológicos que se baseiam de forma reducionista na neurobiologia e na
neuroquímica passam a dar legitimidade aos diagnósticos e às classificações,
baseadas em rótulos psicopatológicos.
A modulação bioquímica desse processo ganha notoriedade em uma so-
ciedade pautada na busca de receitas e programas rápidos com “menor” custo
econômico e político, no neoliberalismo. A rentabilidade do aumento da produ-
ção, acrescida do disciplinamento normalizante e da moral social, ganha mais
relevância nas terapias cognitivo-comportamentais contemporâneas, associadas
à administração de psicofármacos.
As denominadas drogas de conforto e de gestão dos desempenhos passam a
compor os aparatos da educação, do trabalho e da saúde, se tornando um dispo-
sitivo que promete assegurar conforto, acesso aos direitos, entrada em empregos,
manutenção de relacionamentos, evitando medos e estimulando supostas habili-
dades, como a memória e outras funções ditas neurológicas e cognitivas.
É prometido, por meio do marketing das empresas farmacêuticas, uma es-
tabilização de sentimentos, humores, pensamentos e ações, em um contexto so-
cial e político-econômico de encomendas voltadas a uma constante aceleração de
cada ato e de cada pensamento, com vistas ao mercado do investimento subjetivo
como uma empresa a gerir a saúde. Nos processos de medicalização atuais, as
pessoas se orientam por critérios de biossegurança: somos todos considerados
categoria de risco, mesmo que não apresentemos sinais evidentes de adoecimen-
to. Com efeito, as técnicas medicalizantes de modulação dos desempenhos com

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Dolores Galindo et al.

o uso de drogas variadas e exercícios diversos como tecnologias de si objetivam


aumentar a produção econômica, a docilidade política e a ampliação da vida.

Considerações finais
Na gestão da insegurança, a prevenção se revelou um instrumento bastan-
te efetivo, haja vista que possibilita a medicalização do inexistente, ou seja, da
probabilidade futurológica do desenvolvimento de alguma patologia. Em outras
palavras, não parece mais haver a “exigência” da constatação de uma doença, para
que os tratamentos sejam iniciados. O discurso deixa de visar à “doença” para
visar à possibilidade de “doença”.
A biopolítica, no século XXI, abre-se para dimensões nas quais as biotecno-
logias arregimentam novas formas de vida social e participação política (NOVAS,
2006; RABINOW, 1999). Dessa maneira, a biopolítica atual está dirigida às exi-
gências globais dos mercados internacionais. O Estado também é medicalizado
em uma ordem biopolítica, que emerge na segunda metade do século XIX e vai
se ampliando no último século (FOUCAULT, 1979). A organização da política
econômica em mercados da saúde, em uma verdadeira religião do controle bio-
tecnológico dos corpos, ganha intensa materialidade pela medicina social, que se
estende por toda a sociedade, como racionalidade reducionista da complexidade
da vida aos aspectos biomédicos e de biossegurança pela hiperprevenção.
No curso Nascimento da Biopolítica (1978-1979/2008), Foucault ressalta o
aspecto de mercado, no cálculo de custo e benefício da relação entre liberdade e
segurança, no governo da população nas cidades. Para ele, gerir riscos e perigos
se tornou um mecanismo de modulação dessa relação nada simples de oferta de
liberdade e de seu asseguramento protetivo.
Em Segurança, território e população, Foucault (1977-1978/2008) já relatava
que a polícia do cotidiano foi uma técnica instalada pelo Estado moderno para
controlar os deslocamentos dos corpos na cidade e regular sua conduta, na bio-
política. Ainda destaca que a circulação no espaço se tornou uma das principais
problemáticas do liberalismo e do uso dos higienismos normalizadores de con-
dutas para operar a relação entre corpos e meio. Essa noção de meio surge com a
visão entre biologia e cultura, em especial, em um darwinismo social, utilitarista
e liberal, que transformava os circuitos em mercado e a saúde em uma religião da
circulação supostamente segura.

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Precaução, educação e medicalização pela oferta de saúde

Nesse sentido, os processos de medicalização operam como estratégias da


medicina social, acopladas aos saberes biotecnológicos, à geografia política, à
economia neoliberal, à bioinformática, à gestão empresarial da vida pela edu-
cação e à circulação saudável. Em nome do aumento de performances produ-
tivas e marcadas pela perspectiva de segurança, corpos, subjetividades e cida-
des poderão ser medicalizados pelo reducionismo biotecnológico, biomédico,
biopsicológico, da bioinformática, da biocracia, do biocapital, da bioeconomia,
enfim, da biopolítica.
A religião da saúde pela precaução educativa e controle medicamentoso
também é um mercado e traz, no conceito de qualidade de vida e empreen-
dimento de bem-estar, um mote e marketing usados para negociar capitais
variados, como o relacional, o humano, o social, o afetivo, o biológico, o am-
biental e o psicológico. Nessa direção, as práticas de promoção à saúde e edu-
cação visam à produção de sujeitos “autores da sua própria saúde” e, por isso,
dignos de merecer uma longevidade saudável. Esta não é uma figura gerada
apenas na saúde privada. Na saúde pública, igualmente, enfatizam-se certas
práticas que priorizam o prolongamento da vida em termos estritos de longe-
vidade, de preferência, com o máximo de conforto possível, conforme as cir-
cunstâncias que a vida apresenta e seus bolsos permitam adquirir (CASTIEL
& GUILAM, 2007; ROSE, 2011).

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9
Trabalho e psicanálise
Teresa Cristina Carreteiro

O texto tem por perspectiva discutir aspectos que atravessam o mundo atual
do trabalho, destacando, entre outros, a produção subjetiva através do empreen-
dorismo calculista de si; da obrigação de inovar; da mercantilizarão e da com-
petição. Tais questões nos levam a perguntar: que lugar a psicanálise pode ter,
face a uma produção social que tende a acentuar a racionalização instrumental,
pensando poder transformar o homem em uma espécie de hiper-homem?
Os processos de trabalho no mundo atual estão relacionados, em grande
parte, às novas tecnologias de gestão. Pede-se aos trabalhadores que tenham uma
disponibilidade quase total para as atividades que exercem, nas mais diferentes
organizações, particulares ou privadas, juntamente com a exigência de qualidade
e de excelência. Qualquer trabalhador enfrenta desafios constantes no exercício
de suas funções. Ele deve contar com recursos cognitivos e criativos para atender
às crescentes demandas, muitas vezes contraditórias, excessivas, que exigem in-
tensas cargas de trabalho. Há uma aceleração acentuada do ritmo de atenção para
alcançar os objetivos demandados, o que requer um hiperfuncionamento psíqui-
co (AUBERT, 2004). O trabalhador tem de estar sempre pronto para fazer face
e se adaptar a cada nova situação. Certamente, levam-se em conta os diferentes
contextos laborais e suas singularidades. No entanto, mesmo havendo situações
muito diversificadas, todo indivíduo atualmente no trabalho é forçado a assumir
riscos e ir além de suas capacidades, o que Ehrenberg (1998) denomina “indiví-
duo insuficiente”. Ele sempre está aquém do que lhe é solicitado, seja porque o
tempo é exíguo, a tarefa exige mais competência, demasiadas exigências físicas,
intelectuais e a obrigação de se superar continuamente. Existem também aspectos
definidos pelas políticas empresariais que fazem com que, aqueles que exercem

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Teresa Cristina Carreteiro

cargos de gestão, tenham que praticar demissões e ter ações que imprimam dile-
mas éticos, por serem consideradas injustas.
Outra cobrança feita ao trabalhador é a obrigação de inovar e ser criati-
vo. Essas ideias não estão presentes apenas nos campos de trabalho, elas são
difundidas em toda a sociedade. Ser criativo significa ser forçado a produzir
conceitos novos, realizar ações inovadoras e demonstrar uma variedade de ha-
bilidades. Pode-se perguntar até que ponto a inovação como obrigação estaria
vinculada à criatividade.
As ideias expressas acima nos levam a recorrer ao pensamento de Castoriadis
(2002). Para esse autor, as criações humanas devem ser dotadas “de significações”.
O ser humano modela radicalmente sua humanidade criando sentidos e formas
imaginárias sociais significativas (GEORGE, 2013, p. 167). O autor considera que a
criação radical constrói formas, objetos e ideias que não existiam anteriormente,
que não são nem assujeitadas, nem submetidas à repetição. “A criatividade”, diz
Castoriadis, “é própria dos seres humanos singulares e contribui a autoalteração
da sociedade”. (CASTORIADIS, 2002, p. 169). Ao mesmo tempo, ele nos aponta a
dificuldade desse processo, visto que “a instituição social fabrica o indivíduo so-
cial, e o fazendo ela tende a lhe impor quase mecanismos de motivação, que tor-
nam seus atos não unicamente previsíveis, mas também em conformidade com a
conservação institucional” (CASTORIADIS, 2002, p.172). Esses fenômenos visam
à heteronomia, à repetição. A criação, de modo contrário, envolve um processo
de pensamento, de questionamento, de significações instituídas e, finalmente, um
processo de poder correr riscos. Podemos dizer, a partir dessas considerações,
que a obrigação de inovar raramente é concebida como vinculada à criatividade,
tal como postulada por Castoriadis, pois a inovação está sempre a serviço da
preservação da instituição social; trata-se, então de uma inovação estratégica. Ela
é arquitetada para participar de um campo no qual impera a competição, tanto
entre as pessoas, quanto entre as empresas. O objetivo da inovação, como obriga-
ção nos novos modelos de gestão, é ganhar mais espaço no mercado, nos grupos,
nas lutas competitivas entre os indivíduos e as empresas. Para o trabalhador, a
perda de espaço pode significar perda do emprego, afastamento de suas funções,
falta de reconhecimento, dimensões importantes nas produções subjetivas atuais.
Nesse contexto, cada indivíduo deve tornar-se um empreendedor de si pró-
prio. Com o enfraquecimento dos coletivos no campo laboral e o incremento

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Trabalho e psicanálise

da noção de individualismo, a ideia de ser empreendedor de si próprio tem se


ampliado (GAULEJAC e HANIQUE, 2015). Todo trabalhador deve se sentir res-
ponsável por si, deve criar as condições de se desenvolver em seu trabalho, deve
se mostrar indiferente aos outros e competitivo, devendo sempre se ultrapassar,
tentando seguir os objetivos que lhe são pedidos e, ainda, criar objetivos mais
elevados. Na verdade, o trabalhador investe na construção permanente de seu
CV. Ele deve forjar maneiras para encontrar diferenças entre ele e os outros. Ob-
serva-se constantemente em ação o mecanismo identitário, chamado por Freud
de “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 1930/1974), segundo o qual as
pessoas e os grupos sociais querem diferenciar-se edificando fortes fronteiras en-
tre o dentro e o fora e praticando uma política de rejeição e de desprezo do outro.
Os campos empregatícios reforçam esse narcisismo e os trabalhadores também
seguem ditames competitivos. Quanto maior os resultados alcançados, maior
deve ser o esforço para ultrapassá-los e mais se é cobrado para alcançar objetivos
superiores. Criar constantemente diferenças, torna-se uma qualidade digna de
preservação a qualquer preço, e um valor em si mesmo (BAUMAN, 2003).
Em um universo social, no qual a economia tornou-se um valor funda-
mental, a diferença é representada também por números, o que remete a ou-
tro valor atual: a avaliação (ENRIQUEZ, 2011). No campo de serviços, qual o
melhor vendedor? - entende-se o que mais vende. No campo industrial, qual
a empresa mais rentável e que tem suas ações com boas cotações na bolsa? Na
perspectiva acadêmica, quais os pesquisadores que publicam mais artigos qua-
lificados? Vive-se a ditadura dos números, uma obsessão estatística. Qualquer
instituição, organização, grupo ou indivíduo receia ter uma avaliação negativa
e almeja que esta seja positiva, mesmo que saibam que ela é sempre provisória.
As exigências são muito grandes, todos sabem que o que lhes é demandado é
sempre lábil, é valido para hoje, mas provavelmente não o será para o amanhã,
pois as demandas são sempre mutantes, marcadas pela instantaneidade. É esse
conhecimento, advindo da experiência, que impulsiona os sujeitos e os sujeitos-
-trabalhadores a serem marcados pelo desejo de domínio e buscarem banalizar
o que os afasta de uma posição dominante. Nesse contexto, há constantemente
a negação da castração.
A psicanálise enfatiza a castração, a impossibilidade de completude, a con-
flitualização, enfim, as falhas às quais estão sujeitas todas as construções huma-

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nas. O que rege o imaginário aqui discutido é o desejo de onipotência, como se a


pulsão de domínio, a que pretende poder tudo controlar, pudesse imperar. Des-
tacamos, neste ponto, a presença da idealidade nas construções imaginárias. No
entanto, os indivíduos e os grupos que querem poder tudo dominar desenvolvem
mecanismos defensivos muito fortes para negar ou transgredir as situações que,
de algum modo, tocam aspectos do vazio ou da morte. As formas de funciona-
mento que surgem são mais próximas das imagens ligadas ao excesso, afastando-
-se do vazio, da morte ou da finitude.
Vale destacar a mensagem do ex-presidente da Coca-Cola, Bryan Dyson,
ao deixar recentemente o cargo: “Imagine a vida como um malabarismo com
5 bolas. Estas são seu trabalho, sua família, sua saúde, seus amigos e sua vida
espiritual. E você tem que mantê-las sempre no ar. Logo você vai perceber que
o trabalho é como uma bola de borracha, se você deixar cair, ela rebaterá e irá
saltar de volta, mas as outras 4 bolas são frágeis como vidro. Se você deixar cair,
serão irrevogavelmente lascadas ou mesmo quebradas. Por isso, trabalhe de for-
ma eficaz nas horas normais de trabalho, mas, nas demais, dê o tempo necessário
para o mais importante: a família, os amigos e você.” Este trecho quer passar uma
mensagem ética, da boa medida, talvez seja a ética do malabarista na empresa,
que deve pensar que o malabarismo é a normalidade. No final, quer dar a indica-
ção-conselho de não ser excessivo no trabalho e de poder dedicar tempo a outros
campos existenciais. Mas, não explica o que é trabalhar de forma eficaz. Essa
ideia, em uma análise rápida, parece não contemplar o contexto de trabalho atual,
no qual estão inscritas as exigências que recaem sobre os trabalhadores, que são
de primar pela excelência e se superar sempre. Mas, ao se aprofundar essa ideia,
pode-se pensar que se deve ser malabarista, mas tranquilo, ou melhor, ser um
malabarista zen. A metáfora do sujeito-malabarista, indicada pelo ex-presidente
da Coca-Cola, imprime um movimento veloz à vida. Há aqui um campo de con-
tradições que subentende ideias que, por terem sentidos diferentes, parecem não
poder se articular: ser comedido, zen e malabarista. As questões que integram
o mundo do trabalho são próximas a estas: deve-se naturalizar os excessos e as
contradições. Estas questões estão bem incluídas no capitalismo atual; ele atinge
um nível extremamente paradoxal e cria uma aparência de inexistência da con-
tradição (GAULEJAC e HANIQUE, 2015).
No entanto, todo o indivíduo, principalmente o trabalhador, considera ter

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Trabalho e psicanálise

sua subjetividade ampliada pelas novas tecnologias virtuais, smartphones, com-


putadores etc.. É como se essas próteses existenciais criassem uma expansão sub-
jetiva que justificasse as crescentes e contraditórias demandas laborais que lhe
são endereçadas. No glossário dessas novas tecnologias, “estar plugado” é sinô-
nimo de disponibilidade permanente, visto que a noção de espaço é modificada,
pode-se trabalhar em qualquer lugar. O ser trabalhador passa a acompanhar os
indivíduos, que podem ser solicitados a qualquer momento a exercer funções
que antes só eram feitas em um lugar específico, onde exercia suas atividades de
trabalho. O presenteísmo se torna a norma; deve-se estar pronto pra reagir ao que
lhe é demandado na imediaticidade. Há uma porosidade entre as fronteiras do
profissional e do pessoal (GAULEJAC e HANIQUE, 2015).
O conjunto dessas dimensões tem duas faces: aquela da visibilidade e a que é
vivenciada internamente pelo sujeito. Nesta o sujeito, em grande parte das vezes,
não pode reconhecer os frutos nocivos do desgaste que lhe é causado, mas os vive
como um mal-estar difuso ou tendo patologias orgânicas. O sujeito atualmente
deve banir de seu horizonte qualquer realidade do infortúnio (ROUDINESCO,
2005). A norma é não manifestar nenhuma dor ou sofrimento. A depressão pas-
sa a ser uma dominante na subjetividade contemporânea (ERHENBERG, 1998;
ROUDINESCO, 2005). Mas, a depressão não é concebida como fruto de um con-
flito como para a psicanálise. O depressivo se desloca da posição de sujeito e
busca encontrar próteses subjetivas nas ofertas que estão disponíveis no mundo
atual, tal como: remédios, drogas, terapias milagrosas, religiões, novas tecnolo-
gias e consumos. Diferentes próteses são constantemente criadas e a ideia de tra-
balho do inconsciente se mantém alheia, visto que os novos consumos acimen-
tam qualquer fissura que possa estar relacionada com depressão ou o mal-estar.
Em um mundo onde reina tal racionalidade e tamanho desejo de poder,
qual é o lugar da psicanálise?
Trata-se de uma questão difícil de ser abordada, pois, ao nos referirmos a
elementos de extrema racionalidade presentes no mundo atual, pensamos que
são significações imaginárias que, na concepção de Castoriadis, seriam fortemen-
te presentes em uma época. Tais significações são muito pregnantes no contexto
atual, mas não podemos negar a existência de muitos outros elementos de resis-
tência ao imaginário hiper-racional, mesmo que sejam menos visíveis. No entan-
to, o mundo marcado por uma racionalidade instrumental, aquela que postula

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que o fim justifica os meios, encontra pouco lugar para uma reflexão desinte-
ressada, que aposte na discussão, no debate, na autorreflexão e na causalidade
inconsciente. A reflexão atual tornou-se, por sua vez, também instrumentalizada.
Enriquez (2000) nos diz: “ uma sociedade que valoriza a competição, a concor-
rência, o sucesso pessoal a qualquer preço é uma sociedade que baniu a convivên-
cia, que forja adversários e inimigos e não pessoas com as quais é possível deba-
ter, se confrontar, negociar”. Essa ideia é bastante diferente daquela que expressa
­Birman (1988) ao dizer que a criação da psicanálise teria retirado a última anco-
ragem da pretensão humana, o último reduto de sua proposta de superioridade e
arrogância ao enunciar que a consciência não é soberana no psiquismo. O que se
observa atualmente é o desejo de soberania da consciência.
O mundo psi continua a fazer sentido para muitos, em que se postula o
sujeito do inconsciente, a finitude e a castração, mesmo que não ignore os ele-
mentos que citei anteriormente. Nesse mundo, a psicanálise tem lugar. Mas há
outros universos sociais que negam as ideias veiculadas pela psicanálise e mesmo
se erguem contra elas. Nesses horizontes, a psicanálise pode nos ajudar a pensar,
analisar, mas não pode interferir em suas transformações. As concepções de su-
jeito protético têm poucas possibilidades de dialogar com a psicanálise. O campo
de articulação dessas concepções se faz com os horizontes que afirmam verdades
e que abominam a dúvida. No entanto, a psicanálise continua a ser uma força
de resistência, que procura desconstruir as verdades afirmadas sem fissuras, que
propõe a existência de homens igualmente acimentados, presos nas insignificân-
cias imaginárias (CASTORIADIS, 2002) de nosso tempo, que venera o culto da
insignificância, das pequenas diferenças e dos sujeitos unicamente consumidores
de pequenas vitórias.
As democracias e as sociedades atuais tendem a opor a figura do indiví-
duo autônomo à do indivíduo independente (GIUSTDESPRAIRIES e FAURE,
2014). As democracias modernas (contrariamente à antiga, na qual o homem
era um cidadão, cuidando das questões da “polis”) permitiu o desenvolvimento
do individualismo. No entanto, durante muito tempo esse individualismo foi
compatível com a ideia de que cada homem fazia parte de um coletivo (nação,
família, agremiações de trabalho etc.) e deveria saber se autolimitar. A auto-
nomia, nesse contexto, significa então para o homem aceitar os limites e tam-
bém poder questioná-los, reconhecer a presença do outro (o “rosto” do outro

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Trabalho e psicanálise

escreve Lévinas (1972), sentir os sofrimentos do outro), podendo ver no outro


um modelo, um objeto de identificação, um suporte e também um adversário,
como mostra Freud (1930).
As sociedades atuais quiseram fazer dos homens não seres autônomos, mas
seres independentes uns dos outros, cada vez mais narcisistas, sentindo-se dife-
rentes uns dos outros, indiferentes a seus sofrimentos e os considerando como
potenciais adversários que devem ser descartados ou eliminados. Desse modo, o
que surge é uma sociedade fragmentada (na qual o outro pode ser visto como um
inimigo a ser combatido), constituída de indivíduos que vivem sobre o fantasma
da eliminação dos desejos e almejando ter um poder total. A sociedade se diz
ainda democrática, mas a democracia está mais no nome, pois propõe valores
que pregam a excessiva competição, a busca da riqueza, o desdém e a animosi-
dade pelos que são muito diferentes, pelos pobres, pelos imigrantes, por aqueles
que são considerados “perdedores”. Por outro lado, a sociedade admira os que são
considerados “ganhadores”, os que constroem trajetórias sociais de sucesso, de
ascensão, de grande visibilidade. Estas ideias estão em total contradição com os
princípios democráticos, que estariam no ideário (não na prática) da revolução
francesa, que propôs a liberdade, igualdade e a fraternidade. Em síntese, valores
que se vinculam ao reconhecimento da alteridade, respeitando o outro como um
ser, digno de ser amado.
Pode-se pensar que a psicanálise se quer democrática, visto que a conside-
ramos vinculada às ideias que abordamos sobre a filosofia democrática. Nesta vi-
são, os sujeitos poderiam tender a autonomia, sabendo também se autolimitar, e
poderiam ter a coragem de enfrentar seu imaginário radical, suas pulsões de vida
e capazes de reconhecer os representantes das pulsões de morte, podendo ques-
tionar e mesmo transgredir as interdições sociais. A psicanálise não sugere uma
vida fácil, mas uma aventura intensa que não elimina os conflitos, os sofrimentos,
as censuras. Ela não dá garantias sobre o futuro, mas tem ferramentas para se
pensar o humano. A psicanálise se inscreve em oposição às principais tendências
da sociedade atual que visam a rebaixar os homens à situação de indivíduos sem
convicções próprias, indiferentes aos outros, menosprezando-os, humilhando-os
ou mesmo matando-os. A morte também é simbólica quando o outro deixa de
ser considerado como humano, logo podendo morrer.
No texto “Análise terminável e interminável”, Freud (1937/1974, p. 282)

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formulou a célebre reflexão: “parece que analisar seja o terceiro destes ofícios
‘impossíveis’ dos quais podemos desde o princípio estar seguros de um sucesso
insuficiente. Os dois outros, conhecidos já há muito tempo são educar e gover-
nar”. Não cabe, neste capítulo, reanalisar as ideias expostas por Freud e tão discu-
tidas por comentadores (ENRIQUEZ et all, 1986; CIFALI, 2009), mas afirmar que
a psicanálise, apesar de seus limites, continua a ser uma teoria e uma prática que
permite desmistificar a ordem estabelecida e pode ajudar ao sujeito situar-se no
mundo como um criador de história (ENRIQUEZ, 1997).
O fim da análise, segundo a psicanalista Nathalie Zaltzman (1998), não tem
o propósito de que os indivíduos estejam “bem em sua pele”, mas que saibam
tratar seus problemas inter e transpsíquicos, isto implica que eles possam se ver
e considerar o outro como representantes da espécie humana. Como diz Freud,
“saibam amar e trabalhar” (ENRIQUEZ, 2005).
Na verdade, nenhum futuro está dado, o jogo do conflito e de lutas estará
sempre presente no jogo entre as pulsões agressivas e as de vida. Apesar das pul-
sões de morte terem predominância na sociedade, é possível que os homens se
desviem da “via sem saída” (CASTORIADIS, 1990) e tentem construir uma civi-
lização melhor, mais justa na qual cada um possa ver no outro um próximo com
o qual é possível viver.
Concluindo, o imaginário enganador (ENRIQUEZ, 1997) difunde implicita-
mente a falsa ideia de que o trabalhador atual deve se tornar um hiper-homem.
No entanto, ele é tratado como uma mercadoria, como uma coisa ou como uma
máquina que necessita sempre ser aperfeiçoada. Tal situação é consequência di-
reta do triunfo da racionalidade instrumental que substituiu a questão do porquê
(que definia a racionalidade dos fins e dos valores) por aquela do como, que só
se interessa pelos meios e pelos métodos. Assistimos atualmente à reedificação
da consciência. A ótica psicanalítica, que permitiu dar um lugar importante ao
papel do imaginário, das pulsões e dos afetos, se ergue contra a racionalidade
instrumental que se quer ser considerada como o único equivalente da razão. A
psicanálise teria um lugar de desmistificação: ela é contra a consciência enrijecida
atual, que é simplesmente a aplicação de uma ideologia do sucesso individual,
da competição e do desprezo pela humanidade como categoria radical. Talvez a
psicanálise possa auxiliar a combater esta falsa racionalidade, a resistir a ideologia
de todos contra todos e a nos permitir reencontrar a categoria de humanidade.

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Trabalho e psicanálise

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Eixo III
Racionalizar o outro

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10
A juventude em Martin Sagrera:
a idade como sistema de discriminação
Marcelo de Almeida Ferreri

“As idades estão politizadas”, dispara Martin Sagrera, nas primeiras páginas1 de
seu livro “El edadismo contra ‘jovenes’ y ‘viejos’: la discriminacion universal”, publicado
em 19922, como em um panfleto. Sob esse mote, o sociólogo espanhol aposentado –
como faz questão de se apresentar – elabora uma instigante análise do mundo contem-
porâneo que arrasta, em seu bojo, de modo provocante, o tema da juventude. Descre-
ver algumas das linhas dessa sociologia das idades, que interpela politicamente alguns
conflitos sociais do mundo de hoje, é o propósito deste texto. Situar a juventude como
um dos polos principais dessa crítica completa o intento desta breve apresentação.
O encontro com o livro, e em seguida com a “figura” de Sagrera (se puder
assim dizer) na rede mundial, foi recente, imprevisto, sem indicações anteriores,
ocorreu no espírito daquilo que comumente se chama “um achado de pesquisa”.
Em meio a uma sequência de pesquisas sobre a participação social da juventude
sob a lógica do protagonismo juvenil, tateando bibliografias diversas que ligassem
política e jovens, o encontro com a ideia do edadismo3 primeiramente, e depois

1 Mais precisamente na décima segunda página da edição utilizada nesse texto.

2 Esse dado ainda é impreciso; na publicação da Editorial Fundamentos não aparece a data de publicação
em destaque; há um número de registro do depósito legal cuja série final traz o ano indicado no texto;
outras indicações encontradas com o mesmo ano foram colhidas em sites de sebo virtual, tal como o
www.estantevirtual.com.br; os esforços de pesquisa seguem para esclarecê-lo.

3 Cabe registrar a decisão de manter o termo edadismo conforme o livro, sem busca de tradução. Vê-se
a relação com a palavra edad, idade, cuja tradução dos termos de origem seria evidentemente segura,
mas ao vislumbrar a aproximação com os possíveis ‘candidatos’ “idadismo”, ou um ajuste forçado em
“etarismo”, fica fácil reconhecer perigos na tradutibilidade do termo, a começar pela sonoridade das
palavras.

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Marcelo de Almeida Ferreri

com um pouco da vida do autor, levou a um empolgado interesse de incorporar


alguns dos pontos de vista dessa sociologia inesperada (CATANI & GIGLIOLLI,
2008). Tal sociologia pretende mostrar um complicado sistema de discrimina-
ção e ordenação social atuante, que opera segregações múltiplas debaixo da mais
ampla e praticamente irrevogável aclamação social, calcado na função social das
idades. No contexto das pesquisas que realizava, conhecer as idades segundo Sa-
grera, conduziu à suposição de que o edadismo desafiaria, por exemplo, a ideia
do protagonismo juvenil, embora causasse uma primeira impressão de afinidade,
como se indicará a seguir. Mas, o alcance das provocações sociológicas desse au-
tor vai muito mais longe.
Antes de tratar do livro propriamente, vale uma passagem no que é possível
“ver” sobre o autor na internet. Essa breve navegação, ao menos nesse momento,
tem menos o valor de busca por fontes informativas ou biográficas sobre ele, uma
pesquisa sobre Sagrera em sentido estrito, e mais o de uma contextualização das
ideias pelas imagens, ou quem sabe uma deriva, que leve a uma apreensão de seu
pensamento, a partir da sua figura nas ruas de Madri e de seu ofício com as pan-
cartas. As pancartas funcionam bem como uma forma de encarar seu livro; não
por sua estrutura, mas pelo efeito de sua leitura. Nesse sentido, o texto seguirá com
um ligeiro deslize no registro de referências, cujas fontes foram efetivamente maté-
rias diversas captadas na rede e as páginas do livro do edadismo, fazendo aparecer
apenas uma constelação de posicionamentos do autor sobre o mundo em que vi-
vemos e a função política hegemônica das idades. Sendo assim, para uma possível
reprodução desse exercício pelos interessados, segue a sugestão de que se escreva
o nome dele na ferramenta de busca e que abra a matéria que aparecer.
As imagens de Sagrera na internet começam mostrando, em geral, um se-
nhor numa espécie de escritório em que se destaca uma bancada abarrotada de
pequenos cartazes. Esses cartazes, aparentemente uma cartolina colada em uma
vareta, são chamados de pancartas. Eles trazem frases panfletárias sobre os mais
diversos temas de protestos das ruas da cidade, todas elaboradas por ele, naquela
oficina. Em seguida, essas imagens mostram a distribuição desses cartazetes nas
passeatas de Madri. As pancartas são recebidas pelos manifestantes e ostentadas
ao longo dos protestos. O sociólogo parece ser presença marcante nas manifesta-
ções madrilenas: passeatas contra as medidas econômicas da austeridade, a polí-
tica habitacional, as últimas crises do poder na Espanha – o episódio recente da

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

abdicação do rei –, reivindicações na visita do Papa, entre outras. Numa dessas


imagens, Sagrera está reclamando da violência policial por sofrer agressão.
As primeiras pancartas surgiram no final da década de 1960. São finan-
ciadas com sua aposentadoria e com uma herança de família. Estas nasceram,
segundo Sagrera, de suas inquietações políticas e de seus conflitos autorais, pois
seriam uma maneira de reagir à pouca difusão de sua obra: segundo diz, o pú-
blico não lê seus livros. Assim, de certa forma, o texto pancartista abriria espaço
para suas ideias, em meio às questões dos manifestantes, ainda que não reproduza
exatamente seus escritos acadêmicos. Escapa aos limites destas linhas tratar da
escrita dos cartazes, porém é importante assinalar que o arsenal panfletário de
Sagrera não se reduz, por sua vez, ao cunho protestador das reivindicações; há
presença de sua sociologia no texto.
Sua biografia não foi devidamente narrada. Em uma breve entrevista jorna-
lística numa das matérias, diz que se formou em sociologia na Universidade de
Paris. Após isso, retornou à Espanha e permaneceu por lá até 1952, quando saiu
em direção à América Central por conta da ditadura Franco. Trabalhou como
professor de ciência política em Porto Rico até 1978. Nesse período, publicou
vários livros, tratando de temas como aumento populacional, economia, política,
mito e sociedade, racismo, sexualidade, feminismo, aborto, dentre outros. As úl-
timas publicações em livro ocorreram, segundo informa, em 1991. Após os livros,
passou a escrever cartas a editorais de jornais, ao longo da década de 1990 (El País
e outros), tratando de temas ligados ao impacto social do crescimento populacio-
nal; das mobilizações nas ruas de Madrid, da seguridade social e suas reformas.
Um último aspecto dessas imagens sobre Sagrera já remete ao que ele pro-
blematiza com o edadismo: sua apresentação como sociólogo aposentado. Afora
suas queixas em relação à seguridade social espanhola, assunto candente nas ma-
nifestações sobre a crise social que assola a Espanha, o aceno à condição de apo-
sentado aponta também para a economia de discriminações e preconceitos sofri-
dos pelos mais velhos. É contra a ideia da inatividade ou mesmo de incapacidade,
que põe em questão, que afirma seu jubilamiento, cultura estabelecida de modo
profundo que é o alvo primeiro de sua crítica ao edadismo. O aposentado é, na
concepção comum, aquele que não produz nada, que está ultrapassado, que é, so-
bretudo, velho demais para algo. A dedicação à oficina pancartista e sua incansá-
vel travessia nas manifestações, com reconhecida participação (principal aspecto

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Marcelo de Almeida Ferreri

que as imagens buscam ressaltar na rede) seriam, de certa forma, respostas de


sua iniciativa contra o que chama no livro de sistema discriminatório das idades.
O cerne do que diz Sagrera sobre as idades, essa é a suposição dessas li-
nhas, se encaixaria bem ao modo textual das pancartas: as idades estão politiza-
das! Inspirado nisso, segue a defesa de que esse assunto deveria ganhar as ruas!
Sua reflexão consiste em um apelo ao enfrentamento das discriminações etárias,
passando pela apreciação das possibilidades de luta na forma de mobilizações
sociais. O texto do livro é uma espécie de manifesto e sustenta uma análise so-
ciológica original que quer sair da prateleira para o mundo contra uma violência
altamente enraizada. A exposição das ideais do livro, sem uma marcação precisa
das citações, obedecerá à tentativa de recriar o clima panfletário de sua escrita,
para que se registre assim a contundência da convocação que essa sociologia faz
e a profundidade da luta a ser travada.

As idades como eixo da análise social: el edadismo


A elaboração do edadismo começa com a retomada das apreensões mais
básicas acerca da idade. As idades, segundo Sagrera, são consideradas, em quase
todas as culturas, em seus aspectos quantitativos e cronológicos. Elas são con-
vencionalmente usadas para a contagem da duração de uma coisa ou para o re-
gistro de processos na história. Embora não se excluam os sentidos e em ambas
se firme a importância de um calendário, no segundo caso se destaca a tentativa
de enfatizar algo no tempo, um determinado processo ou acontecimento utili-
zado para produzir marcos ao longo da história. No primeiro, a idade se destaca
sob o caráter de medida de duração, de permanência contada, que adquire lugar
especial quando se trata da duração de uma vida. Nesse último aspecto, a idade
diz respeito à duração biológica do corpo operada como contagem que, no auge
da sofisticação dessa função, pode estar a serviço de uma biografia. Sagrera tem
como alvo alguns efeitos da colagem da idade cronológica com a vida biológica.
Sua perspectiva sobre as idades é absolutamente social, melhor dizendo,
sociológica e quer estabelecer uma distinção quanto a possíveis amarras à bio-
logia. A rigor, essa elaboração encontra amparos diversos e, às vezes, indiretos e
inesperados. Tal é o que ocorre ao se estabelecer uma aproximação com Philippe
Ariès, este que é um dos autores citados por Sagrera na sociologia das idades. Nas
páginas iniciais de “História Social da Criança e da Família”, de 1962, Ariès (1981)

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

define idade como quantidade legalmente mensurável que assumiu lugar funda-
mental nas práticas dos reformadores religiosos e civis do século XVI. O histo-
riador aponta que a idade foi passando aos costumes relacionados à identidade
civil de cada um, processo muito bem ajustado ao conjunto de transformações
que faria reconhecer o mundo atual como o mundo da exatidão e do número.
Como esse aspecto não recebe nenhuma outra elaboração ao longo do livro, fica
sugerido o tom despretensioso de Ariès quanto aos possíveis desdobramentos de
sua discreta formulação sobre o assunto. Discrição que, naquele livro, abre a já
conhecida pesquisa sobre a consolidação histórica do sentimento de infância e
das transformações na família e na educação.
Para Sagrera, na sua formulação do edadismo, as idades aparecem como o
mais extenso, enraizado e estimado sistema de discriminação na sociabilidade
contemporânea. Não causa nenhum grande transtorno acusar de inadequação
etária a alguém que pratica determinada ação assim entendida. Porém, há danos
a serem computados a quem sofre tal acusação na medida em que ela intenta
desautorizar determinado sujeito em relação a uma prática ou posição na socie-
dade. A dinâmica principal do edadismo repousa na acusação de que se é jovem
ou velho demais para alguma coisa. Assim, supõe-se que há momento ou lugar
adequado para algo ao longo da cronologia das pessoas e o ajustamento pela ida-
de funciona como o modo de operar tal julgamento.
Na base do edadismo, Sagrera aponta a exploração nas relações produtivas
e vê, nesse ponto, o auge do processo na consolidação da economia capitalista e
o aumento da expectativa de vida. Essa conjugação entre exploração pelo traba-
lho, que produz condições diferenciadas de vida, e aumento da expectativa de
vida, ressaltando os impactos demográficos do processo, faz com que a idade
sirva como pauta das relações sociais, em vários modos de sociabilidade, e seu
uso nesses termos possua uma condição bem peculiar: uma aceitação irrecusável
e profunda como quesito de ordenamento do modo de vida. Pela marcação da
idade, se estabelece o que se recomenda ou mesmo o que se pode e o que não se
pode fazer em variados modos de vida.
Para Sagrera, mais do que discriminar, em nosso modo de vida, a discrimi-
nação por idade oferece refúgio a interesses que fomentam outras discrimina-
ções, incrementam os discursos de superpopulação e a competição por um lugar
no mercado de trabalho. Em seu ponto de vista, nessa lógica de discriminação,

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o indivíduo isolado parece mais vulnerável aos efeitos do edadismo e, por essa
razão, Sagrera passa muito rápido à conclamação para uma articulação política.
Na sua visão, alguns modos de discriminação possuem contestação reco-
nhecida (raça, sexo, orientação sexual etc.) e as novas gerações, efeito dessas
contestações, seriam bastante sensíveis para detectar discriminações, mesmo nas
sutilezas da vida social. Contudo, em sua análise sociológica, ninguém questiona
amplamente a discriminação por idade, mesmo nos movimentos de valorização
da criança ou da terceira idade. Para o sociólogo, é urgente haver algum tipo de
articulação política contra o edadismo. Nas primeiras páginas do livro, não há
constrangimento em chamar para luta.
O plano material é decisivo no edadismo. A competição capitalista, com a
superação das técnicas e expressões culturais (modas), promove uniões cada vez
mais limitadas de efetivos e impõe barreiras pautadas nas idades. O convívio en-
tre as diferentes gerações é perpassado pela disputa por acessos ao mundo do
trabalho e à produção das riquezas. A exploração do trabalho, nas relações pro-
dutivas, impõe hierarquias que repercutem em diferenciação na valoração das
idades. A valorização dos adultos, aspecto preponderante do jogo de discrimi-
nação das idades, que não se origina desse processo, propriamente, pois possui
uma história mais extensa que a do capitalismo, ganha impulso com ela. O que
depreende desse aspecto da economia política, e que é relevante destacar, é que
o desenvolvimento econômico não é suficiente para impedir a lógica do edadis-
mo. A estabilidade da população e das condições econômicas nos países mais
industrializados não elimina a discriminação; e obviamente isso se intensifica em
épocas de crise econômica. Aumento da concorrência no mercado de trabalho se
traduz em aumento de adultos disponíveis e o descarte de trabalhadores pratica-
mente limita o período de idade em que uma pessoa é considerada apta para um
trabalho ou um posto.
Na relação com o “alargamento da vida”, o aumento da expectativa de vida
aumenta a quantidade de pessoas que sobrevive a cada idade, e isso modifica a
cadeia de gerações. Uma geração se encontra em plenitude de vida quando até a
terceira já surgiu. Segundo Sagrera, já há convivência de até cinco gerações em
vida, em alguns casos. Trata-se do aumento de número de gerações presentes
para a concorrência na vida produtiva e essa é uma condição propícia para o eda-
dismo. É preciso, entretanto, não tomar as confusões nas relações mútuas entre

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

as gerações como discriminações por idade. Edadismo não é conflito de gerações,


mas ordenamento das condições de competição no modo de vida, a partir da ida-
de. Com efeito, para Sagrera, “as idades estão politizadas e os que se identificam
com a geração do ano tal e qual ela é valorizada possuem mais chances de triun-
far” (p.12). Que haja diferença ou divergência entre gerações não significa que se
esteja já na discriminação por idade. Essa ocorre quando tais diferenças incidem
nos acessos às possibilidades de experiência na vida social.
Em última análise, no edadismo, a idade substitui a família, a origem local
ou a ideologia como vínculo que proporciona uma determinada posição social
e exclui os demais. Sagrera aponta que a própria UNESCO sinaliza o conflito ao
afirmar que há diferença de interesses e atividades em grupos de jovens com di-
ferença de sete a oito anos, com severa distinção na maneira de pensar e compor-
tar-se. Mesmo a pretensão de democracia entre idades não disfarça o edadismo,
na medida em que não põe em questão a competição. Não se trata de negar a
idade, nem de tolerar idades, nem crer no discurso que prescinde de idades. Para
o escritor das pancartas, trata-se de amar aos demais com sua idade e não segre-
gar segundo a idade. O trânsito entre as idades deve ser gradual e não repentino
como acontece em uma vida pautada na idade cronológica. A passagem do adulto
à velhice, por exemplo, deve ser imperceptível.

Edadismo diante dos estudos sobre desenvolvimento na psicologia


A edição do livro utilizada nessas páginas o inscreveu em uma coleção de
psicologia e esse aspecto leva provocantemente a apreciações específicas. O en-
contro com a sociologia das idades instiga a várias relações e contrapontos com
os estudos da noção de desenvolvimento humano. Essa comparação promete am-
plos desdobramentos, que certamente escapam ao escopo dessas linhas, e pedem
devido cuidado: as apreciações iniciais dessa correlação apontam pontos impor-
tantes esboçados para ambos pontos de vista.
O lugar da cronologia, por exemplo, aparece como aspecto fundamental e de
diferenciação entre as duas perspectivas. O edadismo a tem como elemento central
em suas elaborações, pois é a marcação principal do controle dos acessos das idades
na ordem social. A cronologia deixa evidente o cerco das discriminações e ajuda a
consagrar a lógica discriminatória na medida em que se consolida, por exemplo,
no âmbito jurídico (nas leis que distinguem grupos etários) ou nas ciências.

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Já no campo do desenvolvimento humano, a cronologia se encontra em


uma espécie de oscilação quanto à sua centralidade. Nos manuais de pedia-
tria, a cronologia aparece como marcação fundamental, algumas vezes va-
riando suas escalas em termos de dias, meses, anos. As descrições de dia-a-
-dia do bebê gozam de ampla difusão e uso junto ao público. O crescimento
da criança é acompanhado em diferentes processos e as intensidades das mo-
dificações observadas são assinaladas com o estreitamento ou o alargamento
das marcações cronológicas. As variações do crescimento das crianças meno-
res, por exemplo, são monitoradas conforme os meses, ou dias em algumas
situações de acompanhamento minucioso, enquanto as crianças maiores são
observadas conforme os anos.
Contudo, quando se trata de teorias psicológicas do desenvolvimento, a
cronologia tem seu papel sujeito a modulações quanto à importância. Embora
escape aos limites destas linhas detalhar as razões dessa oscilação da cronologia
no âmbito dessas ideias psicológicas, algumas observações a respeito, que são
também de conhecimento bastante difundido, podem ser ressaltadas. Arnold
Gesell (1880-1961), com sua perspectiva de desenvolvimento que o atrelava in-
timamente ao crescimento, produzia elaborações com precisões em termos de
meses e dias, a partir de sua perspectiva cinematográfica de análise. Segundo Za-
zzo (1989), na vertente naturalista da pesquisa de Gesell, o recurso das filmagens
proporcionava a exploração das minúcias do desenvolvimento infantil: “a criança
é filmada com a mãe em suas condições habituais de vida em certos marcos de
idade: isso dá ‘O dia de um bebê de 12 semanas’, ‘O comportamento na idade de
um ano’” (p.188), filmes que o inventor da cineanálise deixou nos arquivos da
Yale School of Medicine.
René Spitz (1887-1974) também produziu algo próximo dessa relação com
a cronologia no domínio de uma psicanálise infantil. Ao apresentar o que de-
signava como estágio de desenvolvimento pré-objetal (não objetal), amparado
na ideia freudiana de organismo psicologicamente indiferenciado, Spitz (1988)
sustenta que: “parece-nos possível afirmar que certamente durante os primeiros
dias e por mais um mês aproximadamente, em medida decrescente, o mundo
exterior praticamente inexiste para a criança” (p. 28; grifos meus). Seguindo na
marcação da cronologia, Spitz (1988) declara, ainda: “no decorrer do primeiro
ano de vida, a criança passará por um estágio de simbiose psicológica com a

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

mãe, a partir da qual estará preparada para o próximo estágio, em que são de-
senvolvidas inter-relações sociais” (p.9 – grifo meu).
Já Jean Piaget, embora tenha seus estágios de desenvolvimento amplamente
conhecidos com marcações cronológicas presentes em sua obra (divisão consa-
grada nos manuais de psicologia: estágio sensório-motor de 0 a 2 anos; pré-ope-
racional de 2 a 7 anos etc.), fazia questão de enfatizar que o desenvolvimento varia
individualmente em termos de idade (PIAGET, 2006). A cronologia não oferece
marcos fiéis, como afirmou em vários de seus livros, para apreciar o processo de
passagem das etapas de maturação das funções psicológicas ao longo do cresci-
mento. Em Lev Vigotsky, as idades nem aparecem como marcos no avanço em
direção ao desenvolvimento pleno (VIGOTSKY, 2010). A cronologia, portanto,
recebeu tratamentos diferenciados entre vários autores no campo da psicologia
do desenvolvimento humano.
Outro aspecto da correlação entre edadismo e desenvolvimento humano
diz respeito ao lugar da biologia em suas formulações. Nas elaborações de
Sagrera, a biologia aparece como uma espécie de ferramenta ideológica usada
no sistema de discriminação por idades. Primeiro, pelo fato de haver um es-
candaloso, ao mesmo tempo que insuspeito, atrelamento da idade ao âmbito
dos fenômenos biológicos. A idade é amplamente entendida como possuindo
uma natureza biológica e não social, como ressalta repetidas vezes o sociólo-
go. E é no aspecto de duração do corpo que a idade adquire esse caráter, que
termina por confundir a todos quanto à sua natureza absolutamente social.
A capacidade de absorção de ar pelo pulmão, por exemplo, até a perda de sua
elasticidade, evento essencialmente biológico, poderia ter, a rigor, a função
de duração do corpo que a contagem de dias da vida possui. É a amarra so-
cialmente construída para a administração da vida (operada em termos de
duração) que torna a idade um marco privilegiado, administração populacio-
nal, sobretudo. Com isso, Sagrera recorrentemente enfatiza que o aumento da
expectativa de vida não é um fenômeno biológico, mas absolutamente social,
pois diz respeito a melhorias nas condições sociais de vida (saneamento, aces-
so a ações em saúde, educação etc.). A espécie humana continua vivendo, por
sua vez, dentro dos limites de duração de vida já bastante conhecidos; poucos
conseguem atingir o centenário.
A biologia é, portanto, um aspecto a ser desmascarado na análise social

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das idades, conforme Sagrera; ela é, a seu ver, apropriada pelas forças de do-
minação na vida produtiva e posta a serviço da discriminação por idade. O
mundo do trabalho usa as supostas bases biológicas para estruturar sua eco-
nomia de acessos. No domínio da sexualidade, campo de interesse especial
para o autor, o caso histórico, ao mesmo tempo que extraordinário, de Nina
Medina, apareceria como peça chave para fortalecer a crítica da vida etária
pelo autor. Sua gravidez aos cinco anos de idade, numa comunidade isolada
no Peru dos anos 1940, ainda figura como absurdo de idade para gravidez
nos dias de hoje (LAPASSADE, 1975). Uma história praticamente folclórica
nos dias de hoje.
No âmbito do desenvolvimento humano, a biologia é reconhecidamente um
domínio conexo, uma matriz, uma ciência com a qual se tece inquestionável in-
terface desde os primeiros estudos clássicos de desenvolvimento da criança do
século XIX. A configuração do desenvolvimento em termos de teorias matura-
cionistas (de matriz na biologia) e de teorias de aprendizagem ou ambientalistas,
que estruturou esse campo de conhecimento na psicologia até a segunda metade
do século passado, informa claramente a posição proeminente da biologia nesse
campo (OTTAVI, 2001). Embora não desfrute mais desse estatuto integralmente,
fruto do fortalecimento das ideias psicanalíticas e comportamentais que limita-
ram sua predominância nesse âmbito, o recente fortalecimento das neurociências
e das tecnologias médicas de investigação têem favorecido a uma recolocação da
biologia em destaque novamente.
Entretanto, não há apenas diferenças entre o campo de desenvolvimento
humano e a sociologia das idades de Sagrera. Dois aspectos ajudam a ver algumas
aproximações entre as perspectivas em foco: a globalidade do olhar e o problema
do adultocentrismo. Tanto o edadismo quanto a psicologia do desenvolvimento
se voltam para uma visão global do homem, que abarque as diferentes etapas da
vida humana. Ambos procuram mostrar as respectivas lógicas dos fenômenos
que investigam ressaltando as relações e as distinções deles em uma perspecti-
va de integralidade, e não de partes, segmentos do curso da vida fracionando
suas análises. Na sociologia das idades, ficam marcadas as tensões e a competição
das etapas da vida; no desenvolvimento humano, a completude de uma etapa em
consonância com outra; ainda que se marquem descontinuidades entre fases ou
estágios de desenvolvimento, o que se tem em vista é a totalidade da trajetória de

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

vida. Em psicologia, isso fica claro quando se considera o discurso de substitui-


ção da perspectiva dos estudos do desenvolvimento em relação às psicologias da
criança e do adolescente, aspecto bem discutido por Zazzo (1989).
Outro ponto de convergência entre edadismo e desenvolvimento humano
é a crítica à valorização demasiada da etapa adulta como auge da vida humana.
Esse aspecto tem despertado vários questionamentos no âmbito da psicologia
do desenvolvimento, que se apresenta através de variados conflitos da área, tal
como no problema da continuidade ou descontinuidades das fases do processo
maturacional, em que o adulto apareceria ou não como fim último de um per-
curso, desde o princípio preformado, que depreciaria as demais etapas como
imaturas ou senescência; ou na questão das capacidades heterogêneas das di-
ferentes etapas da vida, em que as funções psicológicas seriam consideradas
em termos de distinções, especificidades, diferenças (ou ausências delas) em
relação ao seu estado na vida adulta.
Na sociologia das idades, o problema da valorização da vida adulta aparece
como atrelado ao problema da competitividade e da hierarquização no mundo do
trabalho, bem como na disputa por acessos às benesses da vida social e nos efeitos
da coexistência prolongada entre gerações diversas, em função do aumento da
expectativa de vida. Para Sagrera, a discriminação por idade redunda na ampla
valorização do adulto como forma de tornar seus efeitos como passageiros em
cada um, e todos se veem como decidida e irreversivelmente adultos. Isso, por sua
vez, leva à contrapartida de que sempre se é demasiado jovem ou velho para de-
sempenhar determinadas funções, e sempre se discriminará alguém como ima-
turo ou ultrapassado em alguma atividade profissional, física, sexual etc., mesmo
que se esteja na vida adulta.
A luta contra o edadismo deve insistir, segundo Sagrera, na desmistifica-
ção do adulto ideal, segundo o autor. Primeiramente, esse adulto idealizado,
auge do amadurecimento e das capacidades humanas, não corresponde a quase
ninguém nem à maior parte da vida na sociedade moderna. Ser aceito como
adulto na sociedade edadista implica a ameaça de revolta de jovens e velhos,
vítimas privilegiadas desse sistema. Leva a confrontar inclusive o jovem que fo-
mos ontem e o velho que seremos amanhã. Os escassos triunfos como adultos,
segundo o sociólogo das idades, se tornariam fugazes, só serviriam para um
momento demasiado curto da vida.

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Marcelo de Almeida Ferreri

Juventude, edadismo e o protagonismo juvenil


Como dito, as vítimas principais do edadismo são os jovens e os velhos4.
Com toda a distinção que se possa atribuir ao sistema discriminatório que recai
sobre cada uma, Sagrera começa por estabelecer os paralelos entre as duas etapas
da vida. Destaca que os dois grupos atravessam grandes mudanças corporais, que
possuem conflitos com a vida adulta, que não são levados a sério (o jovem, por-
que “não sabe o que fala”; os velhos, porque “já não fazemos desse modo”), estão
às voltas com drogas (ainda que de diferentes tipos, promovidas por distintos
grupos), possuem limitados acessos na vida social e têm grandes dificuldades de
conseguir emprego fixo. Por essas razões, o autor vê tanto um quanto outro como
figuras fundamentais na luta contra a discriminação das idades.
A juventude é, ao mesmo tempo, prestigiada, como valor cultuado em fun-
ção de sua vitalidade crescente, e discriminada, por ser vista como incompletude
da maturidade. Para Sagrera, é difícil compreender até que ponto a palavra juven-
tude não traz nela mesma algo de discriminatório para aquele que, ingênua ou
nocivamente, a aceita e se orgulha de apropriar-se dela como distintivo próprio.
Em seu ponto de vista, os jovens não são de modo algum um grupo de idade
e sim um grupo privilegiado e discriminado em relação ao conjunto da socieda-
de; condição eminentemente social. Mais uma vez é na UNESCO que encontra
apoio para suas elaborações. Em 1983, a organização afirmava que a maioria dos
jovens não pertencem e nem pertencerão à juventude. Ao longo da história, exce-
to em pequenas culturas “ecologicamente mais equilibradas”, a alta mortalidade
existente exigia passar sem transição da infância à vida produtiva e reprodutiva.
Só as classes altas, libertas do trabalho envelhecedor, viam seus filhos tardarem
mais anos para substituírem seus pais, vivendo um período de preparação que é
o que abre caminho para a chamada juventude.
A juventude, portanto, é algo raro e luxuoso de uma sociedade opulenta,
baseada na exploração de classes desfavorecidas, para o sociólogo espanhol.
É um equívoco crer que a juventude seja uma etapa da vida reconhecida em
todas as sociedades. Por isso, seu estatuto é social e não biológico. Tanto a
concepção de juventude como a de adolescência aponta para o alargamento

4 Cabe apontar o uso de termos por Sagrera sem a polidez técnica vigente, que ronda a palavra “velho”,
no texto, por exemplo. Esse uso se torna, inclusive, pertinente na exposição do edadismo para marcar
os conflitos discriminatórios do sistema das idades.

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

moderno da vida. O termo adolescência traz, para Sagrera, inclusive, a marca


da tentativa de dar um caráter eminentemente biológico aos conflitos vividos
por essa parcela da população.
Os conflitos edadistas, vividos pelos jovens, são violentos e visíveis porque
cada vez mais chegam, ao mercado de trabalho, gerações mais numerosas que
levariam, segundo Sagrera, às crises sociais tão conhecidas por todos. Esses con-
flitos ficam ainda mais fortes em países desenvolvidos porque a entrada na vida
produtiva encontra com um notável aumento do número de adultos, e também
de anciãos, na luta por acessos e permanências no mercado.
Nesse sentido, a competição com os adultos adquire traços ainda mais con-
tundentes em termos de expectativa de vida. Mais do que uma questão quantita-
tiva de aumento populacional de jovens fora do jogo na vida laboral, conforme
assinala o autor, há ainda a transformação qualitativa desfavorável para a juven-
tude que diz respeito ao aumento do vigor e da juventude biológica dos adultos,
estado de vitalidade que seria considerado utópico em tempos mais antigos. A
isso chama de o “peso dos adultos” (p.42).
Na sua visão, as tão difundidas crises da juventude têm como cerne o sis-
tema de discriminação por idades que se impõe a um grupo dotado de energia
que é chamado à vida pela sociedade que, em seguida, nega a admiti-los em seu
âmbito produtivo. Tendo isso em vista, Sagrera acena para as diversas medidas
tomadas para solucionar os estragos das rebeliões juvenis, reflexo desse impasse
estrutural frente aos jovens. É nessa direção que se é possível localizar as atuais
políticas de protagonismo juvenil no conjunto do sistema edadista.
Educar, distrair, eliminar os rebeldes modificando a partilha do trabalho, da
riqueza e do poder social são algumas das soluções postas em curso, segundo Sa-
grera. A ideia do protagonismo juvenil, que agita as ações políticas voltadas para
jovens nos dias de hoje, encontra lugar nesse rol de providências seguramente.
O discurso do protagonismo juvenil anuncia, em primeiro lugar, como pronta
ruptura perante o tratamento tradicional dos conflitos dos jovens na sociedade,
a renúncia à concepção de juventude como problema social, condição atribuída
a essa parte da vida em função dos históricos e recorrentes tropeços políticos no
tratamento da questão da delinquência juvenil.
Nesse sentido, o protagonismo juvenil afirma a importância da educação
como preparação para a vida. Muitas vezes em seu discurso, essa preparação se

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Marcelo de Almeida Ferreri

traduz em uma espécie de empreendedorismo que visa tornar os jovens capazes


de encontrar as saídas para seus entraves de inserção na vida social. Trata-se de
um empoderamento que se estrutura a partir do incremento das medidas edu-
cacionais, por um lado, e da busca de uma margem de partilha de poder para
os jovens, através de mecanismos de participação social no âmbito de instâncias
decisórias em políticas públicas voltadas para suas supostas necessidades, que
levaria à resolução de conflitos estruturais de sua entrada na vida.
No Brasil, o principal emblema desse processo é a recente promulgação do
Estatuto da Juventude, Lei Federal 12852/2013, que dispõe sobre os direitos da ju-
ventude e estabelece juridicamente sua faixa de idades entre 15 e 29 anos. Não há
como negar que a lei e a concepção de jovem, que embala o protagonismo, pos-
suam caráter combativo quanto aos impasses estruturais da condição dos jovens
na sociedade atual. A própria legitimação do discurso protagonista fixa a ideia de
uma espécie de dívida política da sociedade a pagar em relação aos jovens, aos
longos tempos de abordagem meramente policial de seus conflitos. Contudo, a
sociologia das idades permite que se considerem os limites dessa perspectiva na
tentativa de modificar essa condição problemática.
Primeiro, que a marcação cronológica da idade do jovem somente reafirma
seu lugar à sombra dos adultos que, em sua condição política e jurídica, prescin-
de desse tipo de amparo. A presença do mecanismo jurídico tende a exacerbar
a posição de vulnerabilidade ao mesmo tempo em que assegura legalmente seu
reconhecimento. Esse paradoxo parece inescapável na condição instituída pela
lei. Reverter isso implica incremento da luta social da valorização do jovem e não
abrandamento dos esforços. A conquista legal estruturada na marcação etária
mantém, de certa maneira, as tramas do sistema de discriminação por idades.
Nesse sentido, as ideias de Sagrera não deixam dúvidas sobre as possibilidades de
acirramento dos problemas etários dos jovens, mediante soluções dessa natureza.
Outro perigo nessa direção é o da cronologia tomada como coisa naturaliza-
da na medida em que se inscreve legalmente; a lei a torna uma forma vazia, efeito
prático da judicialização das relações nos dias de hoje. Como visto com Sagrera, a
cronologia é um marco essencialmente social, fruto dos ordenamentos respecti-
vamente instalados nos modos de vida em que opera. No caso da juventude, esse
aspecto se exacerba, já que ela não se apresenta como uma condição universal
para todos aqueles que nela poderiam se encontrar na vida social. A inegável

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A juventude em Martin Sagrera: a idade como sistema de discriminação

conquista política do protagonismo não deve se contentar com o enquadramento


cronológico de parte da população em seus termos, já que, o que se encontra em
questão, é a base na qual se estrutura a distribuição dos acessos às benesses da
vida. Em nossa sociedade, como visto na sociologia das idades, isso incide no
enfretamento da competição capitalisticamente orientada, aspecto que pode se
tornar evanescente nos discursos do protagonismo juvenil.

Considerações finais sobre um livro-pancarta


A crítica das idades de Sagrera abre horizontes importantes para a análise
social mais ampla, como para a apreciação das questões específicas das diferentes
etapas da vida. Em relação a um plano mais geral de análise, o problema da discri-
minação por idades joga luz sobre íntimas ligações entre processos sociológicos
do âmbito das relações produtivas, especialmente sobre as questões da compe-
tição e exploração no mercado de trabalho e dos efeitos das transformações das
técnicas, que deixam transparecer incontornáveis distâncias entre as gerações. Há
uma combinação intensa entre sociologia, economia e demografia que mostra o
conflito das idades em sua complicada extensão e profundidade.
No âmbito das especificidades da discriminação etária conforme as etapas
da vida, o pensamento do autor mostra como o sistema de discriminação das
idades assinala particularidades de efeitos nocivos para cada grupo, ao mesmo
tempo em que deixa claro os vínculos desses efeitos com os demais grupos, em
uma perspectiva de globalidade do sistema.
Assim, o edadismo, mais do que uma contribuição acadêmica à reflexão so-
bre o contemporâneo, supõe outro destino que é o enfrentamento como luta con-
tra a discriminação que ele impõe. Pela extensão de seu enraizamento na socie-
dade; pela vinculação a grandes processos sócio-demográficos, cujo rebatimento
em termos de cultura e história ficam evidentes, pelos danos específicos a cada
etapa da vida, sua consequência imediata é a de entrave no proveito da plenitude
das experiências de vida.
Essa é, por fim, a grande violência debatida por Sagrera: as relações de pro-
dução, no modelo em que se encontram em nossa sociedade, incitam a vivência
das etapas de vida sob o regime de anulação das demais. O conflito edadista as-
sume, ele mesmo, o estatuto de texto para pancartas que devem, com o aval do
sociólogo aposentado, ganhar ruas e força de protesto em toda parte.

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Marcelo de Almeida Ferreri

Referências

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Inflexões biopolíticas da subjetividade:
amor e autoajuda
Ieda Tucherman

A tentativa de pensar o campo de experiências no qual se vive e no qual se


reflete sobre os modos de presença da subjetividade contemporânea indica ser
essencial fundamentar o que nos parece ser o contexto em que a mesma tem o
seu lócus. Em textos anteriores, considerei que poderíamos definir a sociedade
contemporânea como sendo uma sociedade biotecnológica de mercado. Significa
dizer que é preciso, por um lado, compreender o estado da arte das biotecnolo-
gias e, por outro, problematizar os seus efeitos, que entendemos como sendo os
da configuração de uma sociedade de mercado, onde tudo pode ser avaliado e
precificado. Neste sentido, parece-nos redutor falar em economia de mercado
que existia desde o mercantilismo. O que vemos agora vai muito além desta pers-
pectiva, ultrapassando a expressão vida para consumo, de Bauman (2008).
Duas citações de Foucault, muito próximas no tempo, funcionam como pre-
missa para a nossa análise. A primeira aparece nas páginas finais de A Vontade de
Saber, primeiro volume da História da Sexualidade: “O homem durante milênios
permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de
existência política; o homem moderno é um animal em cuja política, sua vida de
ser vivo está em questão” (FOUCAULT, 1977, p. 134). É o momento em ele cunha
o termo biopolítica explicitando seus dois eixos, nascidos em séculos diferentes.
O primeiro, do século XVII, seria a anatomopatologia dos corpos que os analisa-
ria como máquinas dinâmicas, e aqui podemos consagrar o resultado da clínica
médica; o segundo seria uma biopolítica das populações, o que envolve pensar a
população como um todo, natalidade, mortalidade, longevidade etc.. Nascida na
metade do século XIX, já traz embutida em si o cálculo de riscos substituindo a

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Ieda Tucherman

lógica da norma. Foucault nos dá um ótimo exemplo disto quando fala em Segu-
rança, território, população (FOUCAULT, 1977-1978/2008), na vacina da varíola
pertencente a esse modelo, versus os modelos anteriores da lepra, abandono, e da
peste, segregação.
A segunda citação aparece no Nascimento da biopolítica, curso no Collège
de France, 1978-1979, e aí Foucault (1978-1979/2008) acrescenta um dado fun-
damental para entendermos o nosso hoje, quando anuncia que o homem econô-
mico seria substituído pelo empreendedor de si mesmo, tornando-se um capital
humano constituído de elementos inatos e de outros adquiridos. Podemos acres-
centar também um capital social. Na atualidade, devemos ser empreendedores de
nós mesmos, fazendo uma gestão calculada e cuidadosa da nossa vida, a partir
das novas descobertas da biociência e das informações que nos são divulgadas.
Note-se aí, e de imediato, a viciada relação entre ciência e mídia: a mídia confe-
rindo visibilidade e a ciência conferindo prestígio, assim como aparece, encon-
tramos a descoletivização dos riscos, o que aponta na direção já nomeada como
a da cultura do narcisismo.
Uma observação é importante e reforça nossos argumentos: existe uma es-
pécie de balanço na hierarquia das ciências quanto ao seu prestígio e, portanto,
aos investimentos que recebe. Certamente, para pensadores como Badiou, Anne
Marie Moulin e o próprio Foucault, a palavra-chave do século XX, que se man-
tém no XXI, foi saúde. Anne Marie Moulin diz que o século XVIII teve como
chave a liberdade; o século XIX, a felicidade – que escorregou para o século XX –
e hoje, vindo de antes, saúde. Para Foucault, a saúde substitui a salvação e o corpo
passa a ocupar o centro do pensamento.
Por estas razões, as ciências da vida têm hoje a hierarquia vigorosa do cam-
po do saber-poder, o que reforça a ideia de biopolítica e isto por três distintas
e poderosas razões. A primeira foi a associação entre ciência e indústria, muito
desenvolvida no pós-guerra, que trouxe a indústria de fármacos (lógica capita-
lista) para o mundo da pesquisa. A segunda se deveu à entrada no universo digi-
tal, que tornou possível o avanço da genética e a elaboração do fantástico projeto
Genoma, o maior já visto no Ocidente. Finalmente, a questão da visibilidade: se
para o Ocidente ver é conhecer, da radiografia, datada de 1895, passando pelas
endoscopias, ultrassonografias em 3D, ressonâncias magnéticas, tomografias
computadorizadas e, finalmente os PET SCANS, não há mais o último limite de

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Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda

que falava Merleau Ponty: “nunca veremos o pensamento sendo pensado”.


Essa aposta da visibilidade, como a marca absoluta da verdade, tem dado
também campo a outra e longa onda das biociências, a saber: as neurociências que
se sustentam a partir da visibilidade possível das várias partes do cérebro, a ação
visível dos hormônios e as associações com estados de saúde, humor, fé, inteligên-
cia, amor etc.. Podemos dizer que o próprio conceito “evidência” apresenta uma
torção: a rigor, evidência é afirmação de presença, não fundo secreto da verdade.
Voltando à biopolítica, não é de espantar, portanto, que o interesse pelo ina-
to tenha vindo a se combinar com a atenção para o campo hereditário, infor-
mação necessária para o cálculo de riscos, uma nova maneira de atuação das
biociências, de raiz nitidamente econômica, que trataria de gerir a vida, segundo
princípios de valor e risco. Nosso velho humanismo ficaria com os cabelos em pé
vendo a associação estreita entre a ideia de corpo e o princípio do biocapital. Nos
bancos de sêmen, a variação do valor depende da avaliação do doador: um físico
vale mais que um contador. Estranhos novos headhunters.
O que não aparece com clareza, mas nos parece importante, é que existe
– tanto por parte das suscetibilidades atribuídas às heranças genéticas, como à
compreensão neuroquímica dos afetos, que associa, por exemplo, a paixão à li-
beração de noradrenalina e serotonina e a fidelidade ou o amor à ocitocina – um
certo renascer das antigas e perigosas teorias que buscavam sustentar cientifica-
mente o determinismo biológico.
Em relação aos elementos adquiridos, certamente necessários ao empreen-
dedorismo de si mesmo, a questão é identificar aqueles capazes de agregar valor
ao capital humano. O desenho obtido nesse processo de busca do que aumenta ou
agrega valor, justificaria investimentos educacionais e formas de aconselhamento
ligadas à formação de um tipo de indivíduo compatível, a saber, potencialmente
eficaz, ou seja, disponível para as motivações mais diversas e, ao mesmo tempo,
flexíveis para vários agenciamentos. O que vai se configurando é uma subjetivi-
dade alter dirigida, em tudo contrastante com o que fundou o nosso olhar sobre
a subjetividade moderna, e que nos levou a buscar, no campo da literatura, a sua
melhor perspectiva, nomeada como autenticidade.
Nesse caminho, o biopoder atua tanto na determinação da existência coleti-
va, como a da experiência individual, propondo modos de subjetivação nos quais
os indivíduos trabalham a si mesmos, por meio de práticas de si, que incluem

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Ieda Tucherman

inexoravelmente a relação com a saúde, em nome tanto da sua própria vida, como
a da população como um todo. O fumante passivo, como denominação, identifica
um comportamento social que é o de, em nome da saúde da população ou do ou-
tro, se preferirmos, culpabilizar os hábitos de quem, tendo sido informado sobre
os malefícios daí advindos, não os abandona. A questão é que, embora todos sai-
bam que o cigarro faz mal, nem todos pararam de fumar. Contudo, agora, manter
o dito vício merece reprovação social e medidas concretas dos seguros de saúde
que podem – e o fazem – recusar a proteção aos ditos fumantes.
Esse processo vai ainda mais longe: o mesmo desenho de futuro veiculado
na associação da ciência com a mídia nos conduz à crença de que a nova geração
de psicofármacos será capaz de, em curto prazo de tempo, nos permitir intervir
na nossa subjetividade mais imediata, atuando de maneira a equilibrar nossos de-
sejos, humores, emoções, desejos e inteligência. Estamos claramente falando de
um movimento cada vez mais presente e difundido que podemos chamar de me-
dicalização da subjetividade, que atua tanto no campo individual como no social.
No primeiro, exerce uma intervenção direta, artificializando a vida num processo
de biologização do psíquico e do mental; no segundo, o campo social, constrói-se
uma sociedade que deve ser compatível com o avanço da indústria farmacêutica
na sua perversa relação com as pesquisas biotecnológicas. Como intuiu Foucault,
o remédio produz o doente e a mídia o divulga no mundo sociopolítico. Ou,
como vaticina Ehrenberg (2000), se Marx identificou na religião o ópio do povo,
a atual sociedade é “naturalmente” dopada.
Nesse universo, vivemos assediados por promessas de conquista de uma
longevidade inimaginável, ou, se levarmos os mais eufóricos em consideração,
a erradicação da morte natural (morreremos por causas externas se não as con-
trolarmos: aquecimento global, terrorismo e violência das metrópoles). Mais do
que isso, retomando a argumentação que sustentamos acima, a chamada socie-
dade tecnológica de informação designa, no plano da vida, a entrada num século
governado pelas políticas biotecnológicas e nos leva a considerar uma espécie de
produção de pessoas sob encomenda, criadas e equipadas com as qualidades e
capacidades que se fizerem necessárias, ou seja, passando a poder ser fabricadas
por demanda. Pessoas para o mercado.
É nesse momento que podemos ver dois eixos da colonização do imaginá-
rio. O primeiro seria a cultura somática: aqui as emoções podem ser descritas

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Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda

no repertório médico e por ele diagnosticado o que gera uma patologização per-
manente – agora não ficamos mais tristes, ficamos deprimimos. A mídia fez da
depressão o “mal du siècle”, mas é bom lembrarmos que isto é uma apropriação
um tanto perversa; por conta da difusão, aquilo que antes só podia ser exercido
por profissionais que, em situações especiais, identificavam e medicavam alguns
indivíduos, hoje se tornou comentário indiscriminado: o personal trainer, a ma-
nicure, qualquer amigo e assim por diante, se dão ao direito de vaticinar que o
nosso caso é depressão1.
O segundo eixo de colonização do imaginário aparece na exponencial ex-
pansão do dispositivo de autoajuda, o que Bauman chamou de surto de acon-
selhamento. Para citar um exemplo da própria mídia, a revista Isto é de abril de
2014 trouxe uma matéria na capa: A cura do amor. Imaginaríamos que seria aju-
dar a diminuir o sofrimento de alguém que tivesse sido abandonado ou preterido,
mas a questão não era curar um amor que não deu certo2, mas sim controlar a
intensidade do mesmo. Não é à toa que na entrevista de Badiou (2009) sobre o
amor, ele afirmou que o que o estarreceu foram banners de um site de relaciona-
mentos popular na França: ame sem se apaixonar (aimer sans tomber amoureux)
e “ amour sans aventure”.

A genealogia do amor
Qual foi o motivo que nos levou a fazer do amor uma questão histórica es-
pecialmente no campo da comunicação e da cultura? Podemos dizer que o cam-
po da comunicação tem duas palavras-chave: mediação – ou mediatização – e
vínculos, ambos remetendo a certo belonging ou certo pertencimento que nos
ancora no mundo. Sem estes dois pilares, o campo dinâmico da comunicação,
nome que indica direção à ação comum, não se configura.

1 Benilton Bezerra, psicanalista e pesquisador do Instituto de Medicina Social da UERJ, numa participação
em uma banca de doutorado de um orientando meu, intitulada Depressão como atualidade midiática,
comentou, rindo, que num dos muitos quiz distribuídos por revistas de divulgação científica ou mesmo
informativas, uma das perguntas cuja resposta afirmativa combinada com outras determinaria a
existência de depressão seria uma certa tristeza nas segundas de manhã, que já há bastante tempo,
e sem considerar patologia, os americanos chamam de monday moon; tristeza das segundas-feiras.
Como ele torce pelo Botafogo que joga habitualmente nos domingos e perde seguidamente, ele fica
triste nas segundas. Um gol no adversário seria mais eficaz do que toda a farmácia tarja preta.

2 Dar certo aí não é qualificativo: é apenas constatação, do tipo ainda estão juntos.

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Podemos dizer que a força dos vínculos se relaciona com a tradição e corres-
pondeu ao universo mítico e religioso sem nunca ter desaparecido completamen-
te. A modernidade transformou os vínculos em laços, que ainda amarram, mas
podem ser desfeitos, e a contemporaneidade, no seu logos técnico, mas também
no seu lócus imaginário, traduziu os laços por conexões que podem e devem ser
efêmeras, múltiplas e flexíveis. Parece-nos possível fazer uma analogia com outro
percurso de nomeação e significação: da alma (que transmigrava na experiência
grega) para o espírito, deste para a consciência na racionalidade moderna, e desta
para o cérebro, palavra-chave das novas neurociências.
A pergunta que a nossa atualidade propõe é: o que é pensar o amor, a mais
gasta das palavras, o mais forte dos vínculos e um dos nossos sentimentos mais
confusos, cujo campo semântico engloba enamoramento, paixão, altruísmo, se-
xualidade e realização, assim como ódio, ciúme, rejeição, frustração?
Há ainda um adendo, explorado por Niklas Luhmann, no livro chamado A
improbabilidade da comunicação (1992). O autor pergunta como a mais impro-
vável situação de sucesso, ou seja, a da comunicação perfeita, pode se tornar a
mais frequente e fundamental para a nossa experiência. Enumerando as causas
da improbabilidade, a primeira remete imediatamente ao nosso tema: diz ele que,
mesmo numa comunicação interpessoal, dada num contexto amoroso de máxi-
ma intimidade, nem sempre se ouve efetivamente o que foi dito pelo outro, tal
como foi dito. Afinal, escutamos nossa voz com a garganta e a do outro com o
canal aéreo; portanto, mesmo que faça parte da proximidade, a identificação de
tristeza ou alegria no tom de voz do outro muitas vezes leva a mal-entendidos
ligados a esta não coincidência entre falar e ouvir. A melhor estratégia, para o
autor, não seria repetir a mesma coisa ou interpretar, pois a diferença permane-
cerá, podendo se transformar em distância. Ao contrário, para diminuir o atrito,
a tática mais eficaz é trazer à cena o que foi construído nessa relação de amor: a
música, que parece o tema do casal; o prato favorito ou o “neutro” eu te amo, que
encerra a discussão3.
Verificamos que o amor é um tema que atravessa a filosofia, a psicologia, a
medicina (neurociência), a cultura de elite e a de massa (o que seria desta sem o

3 Roland Barthes, na apresentação de Fragmentos de um discurso amoroso, fala do sujeito amoroso


como o que diz primeiro o eu te amo. Sobra pouco para o outro, a não ser eu também. Vale um post
que recebi pela rede “eu te amo tanto que nem respiro/ isto não é amor, é asma/ então eu te asmo”.

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Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda

amor?), além da literatura, do cinema, dos sites de relacionamento e dos manuais


de autoajuda. A impressão que fica é que se fala do amor em toda parte e não se
diz nunca o que ele é. O modo como o amor é vivido – ou seja, experimentado
–, o sentido que a ele se atribui e as narrativas que o provocam ou o convocam
variam de uma sociedade para outra. Portanto, temos multiplicidade, historicida-
de e tensão com os sentimentos que se misturam e confundem nas combinações
variadas, internas e externas. Seguindo as pistas de Simon May e a metodologia
Nietzsche-Foucault, que integra as rupturas da história, temos diferentes lógicas
e momentos para pensar o amor.
O primeiro momento seria o do valor do amor: entre o Deuteronômio (um
dos cinco livros que compõem a Torá) e Santo Agostinho, sec. IV d.C., o amor é
a virtude suprema porque é necessariamente o amor a Deus no campo religioso.
Esta ainda seria a matriz fundamental, mesmo na sua laicização. A sua tradução
mais conhecida seria a do incondicional amor materno, mas Elizabeth Badinter
(1980) aponta sua formação cultural, e o casal Beck em Amor à distância (2012)
pergunta como ele se dá nos movimentos da globalização, quando uma filipina
deixa seus filhos e vai cuidar de outras crianças em Manhattan. Essa transforma-
ção concerne ao objeto do amor. Nela, a figura de um único ser humano torna-se
digno do amor de alguém, o que antes era atributo de Deus.
No século XII, configura-se uma nova forma de narrativa, a do amor cor-
tês. Herdeiro do amor cavalheiresco árabe, o amor cortês (e sua extrema codifi-
cação, o asag), introduz aspectos fundamentais para a experiência ocidental. Se-
gundo a medicina da época, o amor entrava pelos olhos e ia para o coração. De
lá podia descer para os testículos (os trovadores são homens) e produzir desejo,
cuja realização significaria sua própria morte até que outro desejo se instalasse.
Mas podia também subir para a cabeça e, neste caso, produzir as canções tro-
vadorescas. Não que o coito fosse interdito, mas na ética cortês era preciso uma
prova, que consistia em passar a noite com a dama sem tocá-la, para ganhar o
direito do mesmo. A premissa é que a poesia manteria o desejo protegido do seu
fim. E a poesia e a literatura trovadoresca são certamente a origem dos nossos
textos que falam de amor.
No século XVI, temos um movimento de laicização do mundo, ao mesmo
tempo em que há o surgimento do que chamamos de ciência moderna. A figu-
ra emblemática seria Galileu, afirmando que o espaço infinito tornou obsoleta a

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Ieda Tucherman

ideia do mundo fechado como uma esfera em que Deus ocuparia o centro. Quem
explicita isto, numa intervenção inspirada, é o monge Giordano Bruno, que afir-
ma: se o Universo é infinito ele não tem nem centro nem margens, portanto,
Deus está em todo lugar, mas em lugar nenhum... e assim o homem é aquele
que tudo pode, mas nada é. Essa figura do homem como ex-cêntrico, expulso do
centro que não há mais, ganha a liberdade e perde a destinação. Aí, o amor como
possibilidade de um novo vínculo remetido à interioridade humana, nossa subje-
tividade, ligada à liberdade, pode aflorar. Não é por acaso que o romance, como
forma literária, sempre a história de vidas singulares, nasce no início do século
XVII com Dom Quixote de Miguel de Cervantes (1610)4. Também é o mundo de
Shakespeare e não há exemplo tão expressivo quanto o de Romeu e Julieta para
falar destes vínculos transgressores.
Ainda na genealogia de May (2012), outro momento começa no século
XVIII, com a figura de Rousseau, e estaria ainda presente nos nossos dias. No seu
comentário, o amor se enamora de si mesmo, ou seja, é o amante, aquele que sabe
e/ou quer amar, que recebe o foco e a atenção, o que é aguçado, ao mesmo tem-
po, pelo processo de interiorização cultivado pelas psicologias e pela psicanálise;
pelas idealizações propostas nos produtos da cultura de massa entre as quais se
incluem hoje alguns novos produtos (livros e filmes) que o marketing apresenta
como transgressores, como 50 tons de cinza.
Podemos falar também de outra figura literária correspondente: das Confis-
sões e Meditações vão surgir, no mundo não filosófico, os diários, que são a ma-
neira de tornar linguagem os acontecimentos e as sensações, em princípio para si
mesmo, e, posteriormente, nas figuras das biografias e autobiografias que, como o
romance, também contam uma vida, mas não uma vida fictícia. Este movimento
do dizer de si vai ganhar fôlego posteriormente em dois sentidos. O primeiro é o
próprio movimento histórico da história quando a chamada “história em miga-
lhas” (histoire en miettes) vai trazer, para frente da cena, o chamado prestígio do
testemunho. O segundo é ainda mais contemporâneo e remete à nova subjetivi-
dade alter dirigida, demandante de reconhecimento, onde vivo se sou visto (ou

4 Badiou descreve o romance, assim como outras formas ou estilos de arte como configurações em
que haveria pontos-sujeito. É sua maneira de se referir aos autores vinculando-os ao acontecimento e
não à história da literatura. Seu ponto de origem seria Dom Quixote e seus pontos de explosão seriam
Proust e Joyce.

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lido), cujo modelo algo caricato é o Big Brother e o menos evidente Facebook5.
Também para a autoajuda, o testemunho e o exemplo são a chave mestra.
Nós vemos ainda um último momento, na retomada do amor no contexto
desse novo homem, que Foucault apresenta como o do empreendedor de si mes-
mo, aquele que deve gerenciar sua vida como se fosse uma empresa, buscando
agregar valor e evitar seu desgaste. Aí, o amor se transforma num elemento de
mercado, avaliado como conveniente ou não, e regulado quanto ao nível de in-
tensidade a ser experimentado.
A palavra amor permaneceu a mesma durante todo esse percurso e nun-
ca se afastou das tensões de conflitos e intensidades. Não sabemos exatamente
definir o que é o amor, mas nenhuma dúvida se coloca quanto à sua capacidade
de vender e, junto com aquilo que não entrega, chegam as sensações de uma
vida não realizada. Tudo indica que estamos num momento no qual cabe como
uma luva aquilo que Foucault designou como atualidade, como diferença com
o presente: temos sintomas fortes do romantismo do século XIX, mas também
estamos nos tornando seres de outra natureza. Basta pensarmos, por exemplo,
no amor e no sexo virtual.
Mesmo os hábitos que marcavam até pouco tempo a prática do amor estão
desatualizados. José Carlos Rodrigues, professor do Departamento de Comuni-
cação da PUC-RJ, lembrou num congresso (não na sala de debates, mas no bar,
aonde se vai depois) que o amasso no elevador perdeu o lugar com as câmaras de
vigilância ligadas diretamente na portaria e algumas vezes nos apartamentos, a
menos que se trate de um show de exibicionismo. Outro amigo querido lembrou
que nós, quando adolescentes apaixonados, ligávamos só para ouvir a voz e desli-
gávamos sem falar, o que o identificador de chamadas tornou impossível.
O que parece ser mais ou menos um ponto de concordância é que as liber-
dades conquistadas no século XX: a pílula anticoncepcional e a revolução sexual,
o divórcio e o casamento gay, não foram nem de perto acompanhadas por uma
reinvenção do amor. Foram tão absorvidos pelo mercado, que incentiva o con-
sumismo, que estamos correndo com enorme ansiedade atrás do amor certo e
da pessoa certa, também no espaço virtual e, neste caso, estamos sempre apa-
vorados, já que, apesar da enorme oferta de parceiros, aí também podemos não

5 A este proposto leia-se O império do eu de Paula Sibilia.

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ser o amor ou a pessoa certa para quem gostaríamos de sê-lo. Ou podemos ter
escolhido mal. Na esteira do livro de Alain Ehrenberg (2000), A fadiga de ser eu
(La fatigue d´être soi), apontamos para a tensão que se cria com a assimetria entre
a multiplicidade quase infinita das escolhas que podemos e devemos fazer e nossa
insegurança, que cresce diante de tal abundância.
Como foi dito antes, Alain Badiou, no Elogio do Amor, (2010) se propõe a
defendê-lo porque o vê ameaçado. Para começar, ele aponta os slogans publicitários
de um site de relacionamentos apresentado em cartazes pendurados em Paris: “Ame
sem o acaso”; “Pode-se amar sem ‘cair’ [tomber] amoroso”; “Você pode amar sem
sofrer”; “Amor sem aventura”. O que está em oferta é um coaching amoroso, nesta
relação do empreendedor de si com uma concepção de amor correspondendo ao já
referenciado surto de aconselhamento. Para nosso autor, ao contrário:
“o amor não pode ser este dom feito à existência no regime da ausência
total de riscos (...). Ora, no mundo de hoje, a convicção mais difundida
é que cada um segue apenas o seu interesse. Então o amor é uma con-
tra prova (...). O amor é verdadeiramente esta confiança dada ao acaso”
(­BADIOU, 2010, p. 22).

Aliás, Badiou e Bauman relacionam o neoliberalismo econômico e cultural


ao afetivo: eu não me engajo, assim como não te engajo com segurança no traba-
lho. Por dever, tudo deve ser efêmero e a meu ver, precário.

Autoajuda
O fenômeno da autoajuda é certamente um dos assuntos que merece maior
interesse dos pesquisadores das chamadas ciências sociais e humanas. Sua visi-
bilidade mais imediata é a quantidade de publicações que se vem produzindo
no mundo e também no Brasil, com tiragens surpreendentes; além disto, parece
contagiar todos os outros gêneros literários, conquistar parte da área do audiovi-
sual e gerar comportamentos sociais curiosos, como a nova moda da Cabala e a
aproximação das religiões orientais.
Isto não dá conta da sua atuação, que se explica melhor a partir do conceito
de dispositivo proposto por Foucault e relido por Agamben, porque o importante
não é propriamente a expansão dos produtos, mas a forma de atuação, que inter-
fere tanto nos jogos de saber-poder, oferecendo a figura dos especialistas como

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Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda

coachs, como na linha da subjetividade que interfere como “correção” tanto para
a percepção do presente como na avaliação de riscos e benefícios.
A autoajuda, falando de si mesma, apresenta-se em torno de dois nichos de
objetivos, o primeiro sendo ligado ao “alimento para a alma” cujas palavras-chave
seriam: autoestima; autoconhecimento, bem-estar e felicidade que, curiosamen-
te, passam a ser imperativos. Por mais estranho que pareça, somos obrigados a
ser felizes, ou melhor, a buscar a felicidade o tempo todo e quase a qualquer pre-
ço. O mais imediato é que se supõe que esta busca é individual e intransferível:
portanto, aquilo que nos fazia associar felicidade com as promessas das utopias
coletivas, ficou anacrônica6.
O segundo eixo de objetivos é de natureza totalmente pragmática, identi-
ficado por sucesso, dinheiro, prestígio, beleza e saúde. É quase uma aplicação
dos mandamentos dos departamentos de recursos humanos, com as noções
prescritivas de motivação e dedicação, identificadas com maestria por Deleuze
quando fala que a fábrica, substituída pela empresa, será o modelo do trabalho
e da vida. Aí, a autoajuda funciona, ela mesma, como uma insidiosa operação
de marketing, uma narrativa motivacional para o indivíduo compatível com
o biopoder. Instala-se assim num lugar de incerteza que é o nosso presente, o
surto de aconselhamento.
Aliás, a indústria da autoajuda sabe se ajudar porque não apenas compreen-
de as angústias próprias de cada época e se dirige a elas com soluções apaziguado-
ras como sabe usar aquilo que prega: a perseverança no próprio objetivo. Sendo
um negócio, sabe não apenas chegar ao seu público como também formá-lo, indo
buscá-lo onde ele está.
No Brasil, apontado como o segundo público consumidor (o primeiro é os
Estados Unidos, onde ela nasceu e vingou), os editores de autoajuda souberam
usar as bancas de jornal, que cobrem o país de norte a sul, para distribuir seus
títulos, compensando a falta de livrarias de que o país sofre. Hoje, vão mais lon-
ge: existem acordos entre algumas editoras e a fábrica de cosméticos Avon, que
trabalha buscando o consumidor no seu domicílio, “Avon chama!”, que associam
a venda de seus livros às mesmas representantes, que venderiam assim, se puder-

6 Badiou acaba de publicar um livro, Métaphysique du bonheur réel no qual retoma esta dimensão de
coletivo para o pressuposto da felicidade.

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Ieda Tucherman

mos comentar, dois tipos de cosméticos, os da face e os da alma. Numa pesquisa


quantitativa feita entre os anos de 2008 e 2014, e citando apenas as editoras mais
afins ao tema, a Sextante publicou 188 livros catalogados como autoajuda, com-
portamento e relacionamento e a Ediouro publicou 92.
Historicamente, os períodos de crise ou de grandes transformações são tam-
bém os que são mais propícios para a recepção dos conteúdos da autoajuda. Se
pensarmos na genealogia do amor e nas relações de biopoder, é possível intuir
que nos dois polos, tanto no objeto do amor quanto no sujeito amante, uma cole-
ção de problemas se coloca.
Significa dizer que, a partir das redes de relacionamento, e da sua influência
no mundo presencial, invertemos a forma da escolha do par, já que nela pri-
meiro se conhece e seleciona e depois há um encontro racionalmente decidido
e programado, ao contrário da antiga fórmula que dava lugar à sedução antes
da informação. Esta nova forma, embora tenha aumentado exponencialmente a
possibilidade de escolha de parceiros ou parceiras, multiplicou também a nossa
insegurança: será que a escolha que fizemos é mesmo a que mais agrega valor ao
nosso empreendedorismo? Por outro lado, será que seremos escolhidos? E isto
nos conferirá valor ou seremos pouco ou nada selecionados? O que corresponde
a um quase não existir, já que na subjetividade alter dirigida é o olhar do outro
que me constrói. Por curiosidade e porque é o ápice deste comportamento, vale
um exemplo no mínimo engraçado.
Trata-se do site Adote um cara, apresentado como um supermercado de
encontros dirigido ao público feminino. A sua apresentação é a seguinte: “no
supermercado de encontros as mulheres fazem bons negócios”, o que torna evi-
dente seu caráter mercadológico. Funciona como uma loja virtual: as mulheres
têm o poder de decidir, escolhendo seus “produtos” em seus “carrinhos”. Por-
tanto, ao mesmo tempo incentiva o consumo, pois insta a “encher os carrinhos”,
e, por outro lado, incentiva a competição tanto entre as mulheres, que podem
“desejar o mesmo produto”, quanto aos homens-objeto que serão escolhidos
numa claríssima lógica de mercado.
Vemos aí a aplicação dos recursos de marketing dos quais nos fala ­Deleuze:
no Adote, o termo adoção indicaria objeto de carinho, o que certamente não é
o caso, além disto, as fotos são de modelos e não correspondem aos homens
disponíveis nas prateleiras, o que pode e costuma gerar decepção.

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Inflexões biopolíticas da subjetividade: amor e autoajuda

Mesmo assim, em cinco anos de presença na França, se apresenta como o


site mais importante nos relacionamentos amorosos tendo alcançado, segundo
o kit de imprensa do próprio site 5,7 milhões de membros. É bom lembrar que
a última estatística de população na França fala de 62,6 milhões de habitantes, o
que pode nos levar a suspeitar do número citado, mas não da abrangência.
Nesse universo competitivo, se formos objetos, caímos na rede do winner
ou loser, não há como não tremer nas bases. Inseguros diante das nossas possibi-
lidades de sucesso, buscamos ajuda nos manuais de autoajuda e nos experts que
saíram do campo já competitivo do departamento de recursos humanos, restritos
à empresa, para a virtual totalidade da sociedade.
Não é muito diferente quando a questão é sermos o sujeito que ama. Será
que estou medindo corretamente a intensidade? Para muitos comentadores, o
amor-paixão (o que libera as endorfinas e adrenalinas e pode viciar) produz ne-
cessariamente ira contra aquele de quem eu dependo tanto para “me sentir viva”,
como se a perda desse amor ou do amado fosse a nossa experiência de morte
mais disponível. A observação plausível é lembrar a vantagem que é o renascer
ou se reinventar, se o ressentimento não intervier. Também incomoda e enraivece
quando acontece o oposto, ou seja, passamos a ser para o outro toda a fonte de
vida, no que poderíamos chamar de um amor simbolicamente vampiresco, que
nos rouba a energia e a autonomia. Como se vê, a própria dissimetria de intensi-
dade é causa permanente de tensão.
Nesse caso, temos uma solução mais sofisticada: além da autoajuda, como
diz a matéria a Cura do Amor, drogas lícitas ajudam-nos nesta tarefa. Sem falar
nos conselhos que também chegam a partir de uma visão rasteira da neurociência
que, no limite, produz um determinismo biológico: tenho naturalmente pouca
produção deste hormônio ou um problema glandular – portanto, sou incapaz de
amar ou de amar corretamente.
Para finalizar, quase como resistência nessa tentativa de tamponar a diferen-
ça de intensidade, acho que “as drogas” aconselhadas estão em bibliotecas e não
em farmácias. Para alguns tipos de temperamento, minha sugestão seria Dom
Casmurro, de Machado de Assis; para outros mais complexos, Proust, na veia: À
la recherche du temps perdu - Em busca do tempo perdido.
Sobra apenas uma dúvida: dando sugestões de como entender os próprios
sentimentos, estarei eu também, apreendida no dispositivo de autoajuda?

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Ieda Tucherman

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Sobre o amante eficaz:
o sujeito no dispositivo de autoajuda
Eduardo Leal Cunha

Apresento a seguir traços genéricos de uma personagem emblemática do


mundo contemporâneo e que, derivada dos discursos de autoajuda, talvez seja
uma boa indicação tanto do modo como tais práticas discursivas podem ser
tomadas hoje, em seu conjunto, como algo da ordem do que Foucault (1976), e
depois dele Agamben, descrevem como dispositivo, quanto dos impactos desse
dispositivo sobre formas e processos de subjetivação na atualidade. Ela se cons-
tituiria assim na figura exemplar do que podemos vislumbrar como racionali-
dade hegemônica em nosso ocidente contemporâneo, seu tipo ideal, na medida
mesmo em que é seu produto, isto é, a forma subjetiva de tal racionalidade.
Trata-se do amante eficaz.
Para além de um elemento central no novo discurso amoroso, ancorado
não mais na literatura romântica e sim nos manuais paracientíficos de relaciona-
mento, tal personagem nos parece tornar possível uma reflexão sobre o estatuto
do sujeito em tal dispositivo de autoajuda e, portanto, uma reflexão sobre a sub-
jetividade contemporânea, sobre as formas possíveis da experiência subjetiva na
atualidade. Essa nova modalidade do sujeito amoroso seria então a forma sujeito
produzida pela retórica da eficácia afetiva característica do novo discurso amoro-
so engendrado pelo dispositivo de autoajuda.
Estamos aqui entre, de um lado, o homo psychologicus, denunciado por
Illouz na trilha de todos aqueles que centram sua crítica no indivíduo inte-
riorizado e dono de uma vida privada supervalorizada e trasbordando sobre
o espaço público, tomando o seu lugar, e, do outro lado, o homo economicus,
o homem do cálculo e do raciocínio desenhado entre a lógica de mercado do

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Eduardo Leal Cunha

empreendedor de si e o cálculo atuarial do agente de seguros, sempre orien-


tado para o menor risco.
Vamos localizá-lo nos discursos sobre amor e relacionamento presentes nos
chamados livros de autoajuda, nos famosos manuais de relacionamento, de amor
e sexo, mas também em programas de televisão sobre saúde e bem-estar ou mes-
mo em revistas semanais de informação (SANTOS; CUNHA, 2015) ou ainda na
literatura de divulgação científica, particularmente aquela apoiada na psicologia
e em especial na psicologia evolucionista (PRECHT, 2012). Assim, esse conjunto
de práticas, instituições e discursos que procuramos compreender como um dis-
positivo produtor de formas e processos de subjetivação, ou seja, de modalidades
de relação consigo mesmo e com o outro, nos apresenta uma série de formulações
sobre o amor que a nosso entender pode ser pensada como a constituição de um
novo discurso amoroso, a ser contraposto ao discurso romântico que até pouco
tempo atrás orientava, de modo hegemônico, as formas possíveis de compreen-
der nossos vínculos afetivos, organizando, sobretudo, as nossas crenças em torno
da experiência amorosa (COSTA, 1998).
Tal discurso amoroso é marcado por uma forma particular de compreen-
der o amor e os relacionamentos sexo-afetivos, a qual pensamos poder deno-
minar retórica da eficácia afetiva, na medida em que ela introduz no campo in-
tersubjetivo e no domínio dos sentimentos valores como objetividade, controle,
previsibilidade e eficácia. Infelizmente, não posso desenvolver aqui todas os tra-
ços diferenciais desse novo discurso amoroso ou mesmo os modos de operação
dessa nova retórica do amor. Procurarei, no entanto, deixar algumas pistas nas
duas direções através da descrição dessa figura central tanto a um como a outra:
o amante eficaz.
Com este novo protagonista das histórias de amor, produzido a partir da
rede de saberes especializados, com a qual se tecem os manuais de sexo e relacio-
namentos, vemos fortalecidos os vínculos do dispositivo de autoajuda com aqui-
lo que o sociólogo britânico Anthony Giddens (1991) descreve como sistemas
peritos. Produtos da passagem das sociedades tradicionais às formas modernas
de organização social, a partir da revolução técnico-científica e industrial, em
especial dos séculos XVIII e XIX, tais acervos de conhecimento sobre o mundo
baseados na investigação científica e voltados para a previsão e controle da na-
tureza e dos fenômenos humanos, substituem os antigos contextos de confiança

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

que regulavam as sociedades pré-modernas – a saber: as cosmologias religiosas,


a comunidade, as relações de parentesco e a tradição – e emancipam o homem
do poder divino. Veremos, fortalecida, ainda, a presença, em nossa leitura coti-
diana do modo como nos relacionamos uns com os outros, daquilo, que Foucault
(2004) descreve como racionalidade ou governamentalidade neoliberal.
A existência desse novo herói amoroso supõe tanto a produção de novas
crenças sobre o amor quanto possivelmente a redefinição radical da experiên-
cia do encontro com o outro. O confronto com o corpo desejante do outro, por
exemplo, responsável, no pensamento freudiano, pela configuração da relação
consigo mesmo e pela definição mesma dos limites entre eu e mundo se vê redefi-
nido completamente em outras bases. Já não há corpo, e sim organismo, já não há
desejo, inconsciente, incontrolado e talvez já não haja de fato sequer alteridade,
pois do objeto de amor, para que o amor possa dar certo, deve lhe ser retirado
tudo o que carrega de estrangeiro.
Esse novo objeto de amor, ainda essencial ao sucesso e felicidade do amante
eficaz, já não será a figura adorável que surge imprevista na paisagem, ela será
buscada meticulosamente em um longo e rigoroso processo de recrutamento e
seleção, ou seja, será mais um investimento que precisa produzir resultados po-
sitivos, mais um capital a ser gerido, por um sujeito racional, empreendedor e
gestor de si, dos seus bens e dos seus relacionamentos. Uma ilustração dessa nova
forma da conquista amorosa nos é dada por aqueles que constituem hoje uma
das principais ferramentas de busca de parceiros afetivos e sexuais, os sites de
relacionamento e de encontros disponíveis na internet e agora, sobretudo, em
aplicativos de celular, na medida em que estes se apoiariam, segundo Eva Illouz
(2011; 2016) na fantasia da livre-escolha, na fantasia de que, no fundo, agimos, na
nossa vida amorosa, como agentes do mercado.
Se antes o amor, sobretudo na tradição romântica europeia, nos inseria
numa história atribuindo sentido a nosso percurso individual e nos engajando
em um drama orientado pela especulação quanto ao desejo do outro (ILLOUZ,
2016), a experiência amorosa contemporânea nos situa não num drama afetivo
e sim numa troca econômica, a partir, como nos diz Foucault, de uma mutação
epistemológica, de uma redefinição da economia, que passa a ser compreendida
no contexto neoliberal como “a ciência do comportamento humano, ciência do
comportamento humano como uma relação entre fins e meios raros que têm usos

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Eduardo Leal Cunha

mutuamente exclusivos” (FOUCAULT, 2004, p. 228), ciência, portanto, da esco-


lha racional entre alternativas de utilização de recursos raros com o objetivo de
alcançar determinados resultados, os quais podem em geral ser expressos como
ganho a ser obtido, ou seja: como receita ou lucro.
Testemunha da objetificação dos sujeitos e das relações afetivas e sociais
operada pela razão instrumental que baseia o conhecimento dito objetivo dos fe-
nômenos humanos através dos sistemas peritos, o amante eficaz será assim tam-
bém testemunha da sua mercantilização, ou ainda daquilo que Foucault descre-
veu sem seu curso sobre os vínculos entre a biopolítica e o neoliberalismo como a
expansão da grade de inteligibilidade econômica para domínios não econômicos,
ou seja, o fato de que passamos a interpretar nossa presença e lugar no mundo a
partir da lógica das trocas e do mercado, momento, ainda segundo Foucault, em
que a racionalidade neoliberal, especialmente aquela que se configura no contex-
to norte-americano, se afirma como um modo de vida, “uma maneira de ser e de
pensar” (FOUCAULT, 2004, p. 224).
Modificando dessa maneira o modo como enunciamos a experiência amo-
rosa e as formas possíveis de relação com os nossos objetos de investimento libi-
dinal, ou parceiros em relações afetivas ou sexuais, a existência possível do aman-
te eficaz e sua eleição como ideal do sujeito amoroso na atualidade modificam
ainda, também de um modo que talvez devamos considerar radical, as relações
do indivíduo contemporâneo com ele mesmo.
Deste modo, como nos diz Eva Illouz (2016), os discursos contemporâneos
sobre o amor, em especial na sua articulação com os discursos de autoajuda,
podem nos ensinar sobre os processos de subjetivação e também sobre os mo-
dos de organização social no ocidente contemporâneo. Mais do que isso: se a
partir do século XVII, o conhecimento passa a mediar a relação com a pessoa
amada, o que não acontecia antes, o deslocamento dos discursos amorosos dos
romances da ficção para os manuais de relacionamento baseados na difusão do
conhecimento científico, iniciado na passagem do século XIX para o XX, sobre-
tudo com a difusão da psicanálise e de outros saberes psicológicos, faz com que
a narrativa amorosa contemporânea dê testemunho não apenas das formas de
laço afetivo entre dois sujeitos ou de como a narrativa desse laço dá sentido à
própria história individual de cada um deles, engajando-os em uma história afe-
tiva, mas nos mostra ainda como o conhecimento científico e os ditos sistemas

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

peritos passam a mediar não apenas nossa relação com o mundo à nossa volta,
mas com o nosso próprio universo subjetivo. Desse modo, a figura do amante
eficaz exemplifica não apenas a compreensão dominante do que seja o amor na
atualidade, mas também o modo como organizamos nossa percepção do mundo
articulando a experiência individual, subjetiva, aos modos de organização da
sociedade e aos valores prevalentes em um ambiente cultural e em um contexto
histórico determinados.
Sua genealogia pode, desse modo, ser referida ao cruzamento de pelo
menos três movimentos que marcam a nossa experiência desde a moderni-
dade e que de algum modo parecem se radicalizar na atualidade. Movimen-
tos que se entrelaçam permanentemente e cujos limites internos são bem
difíceis de estabelecer.
Em primeiro lugar, a consolidação do projeto moderno de domínio da na-
tureza e de afirmação do indivíduo como centro do mundo, consolidação da
hegemonia daquilo que Adorno e Horkheimer descrevem em sua dialética do
esclarecimento como razão instrumental, projeto de reordenamento das relações
entre o homem e a natureza a partir da submissão desta ao primeiro pela via
do conhecimento técnico que a objetifica e transforma, sendo um passo deci-
sivo desse projeto a objetificação ainda do próprio homem e das suas paixões
(­ADORNO; HORKHEIMER, 1985), o que aparece, por exemplo, de modo banal e
cotidiano, no dispositivo de autoajuda através da ideia, frequente tanto em livros
de autoajuda quanto em testes e avaliações com pretensão tecnocientífica, de que
é possível mensurar e controlar os nossos afetos.
Em segundo lugar, a produção, no mundo capitalista, de uma reconfigu-
ração das identidades a partir da linguagem terapêutica e de uma ideologia da
autorrealização que faz com que esse indivíduo seja cada vez mais descrito, sobre-
tudo a partir de uma linguagem psicológica que o descola dos seus laços sociais
e o insere, e também a seus afetos, agora mensuráveis, no universo das mercado-
rias e das trocas, no que a antropóloga Eva Illouz denomina capitalismo afetivo
(­ILLOUZ, 2011).
Por fim, terceiro movimento, o mais recente deles, a consagração da racio-
nalidade neoliberal como modo de pensar hegemônico e principal regulador das
relações do sujeito consigo mesmo e com o outro no registro contemporâneo da
biopolítica, marcado, segundo Foucault, pela expansão da grade de inteligibilida-

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de econômica para domínios não econômicos, a partir da redefinição da econo-


mia como ciência da alocação de recursos raros (FOUCAULT, 2004).
Tendo identificado rapidamente as linhas mestras da sua genealogia e res-
peitando os limites deste capítulo, proponho então que tentemos delinear nossa
personagem, dando-lhe contornos mais palpáveis, a partir de certos elementos
constantes dos manuais de amor e relacionamento. Descreverei então o amante
eficaz, recorrendo a determinados esquemas presentes em alguns livros clássicos
de autoajuda. A inspiração para o delineamento de tais esquemas vem das figuras
que compõem o clássico “Fragmentos do discurso amoroso”, de Roland Barthes
(2003), imagens textuais, elementos discursivos que se repetem, estabelecendo
assim os contornos ideais, ou imaginários, da experiência amorosa.
Com a ideia de figura, Barthes procura aproximar os instantes decisivos da
experiência subjetiva do apaixonado1 das figuras da linguagem e assim da própria
literatura, sem a qual não se amaria do mesmo modo. As figuras são assim “ca-
cos de discurso” (BARTHES, 2003, p. XVIII), produzidas pelo amante enquanto
percorre os labirintos da linguagem em busca das palavras que capturem a si e
ao ser amado, de preferência na mesma teia. Deste modo, as figuras servem ao
reconhecimento do sujeito, dos seus sofrimentos e alegrias, embora não tenham
apenas – o autor faz questão de destacar – sentido puramente retórico. Ao con-
trário, tais figuras devem guardar ainda o “sentido ginástico ou coreográfico... o
gesto do corpo apanhado em ação e não em repouso... a figura é o amante em
ação” (BARTHES, 2003, p. XVIII).
Escolhi, contudo, outra palavra, de origem próxima na língua grega, como,
aliás, o próprio Barthes menciona no mesmo trecho: esquema. Com isso, preten-
do destacar, no lugar do caráter imaginário, de captura em uma imagem, o sen-
tido processual ou mesmo tático do que queremos representar. O esquema nos
remete mais à totalização que à tautologia. Um bom esquema pretende dar conta
com precisão do seu objeto. Colados ao real, estamos no campo dos planos, dos
projetos, dos modelos explicativos e da simplificação. O discurso amoroso já não

1 Ao contrário da maioria dos meus colegas, optei pelo termo apaixonado, ao contrário de enamorado,
por ser este o termo corrente em nosso país. É assim, como apaixonado, que na maioria dos casos
nos descrevemos ao falar das nossas experiências amorosas, enquanto o termo enamorado, além de
parecer retirar desta experiência o peso da paixão, remete em nossa língua muito mais rapidamente a
namoro e a namorado.

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

será exuberante, pois deve agora obedecer a certa economia e também a uma das
regras básicas da retórica da eficácia afetiva, a simplificação, a redução da com-
plexidade da experiência a fórmulas simples, equações de fácil solução, de modo
facilitar o desempenho cognitivo do indivíduo, simplificar sua compreensão da
realidade e de si mesmo.
Ao mesmo tempo, devemos lembrar que o esquema já não pertence prio-
ritariamente ao enamorado, ao menos certamente não da mesma forma que o
discurso romântico lhe era próprio. O novo discurso amoroso em princípio não
sai da boca do enamorado, não é ele que prioritariamente o enuncia ou o detém,
a não ser como signo da submissão ao discurso competente (CHAUÍ, 2014) sobre
o amor, enunciado pelo especialista, autor dos manuais de autoajuda apoiado nos
sistemas peritos. Discurso que reduz o sujeito à disciplina e à obediência, pois
o coloca na posição de quem não sabe, o reduzindo a objeto do conhecimento
produzido e controlado por um outro.
Destaco a seguir três desses esquemas, presentes em manuais de relaciona-
mento e que me parecem necessários e suficientes para delinear traços funda-
mentais do amante eficaz, ao mesmo tempo em que nos permitem vislumbrar
tanto elementos decisivos do novo discurso amoroso quanto certos modos de
construção da retórica da eficácia afetiva. São eles: o organismo apaixonado, o
sexo puro e a inteligência amorosa.
Uma das principais marcas dos discursos de autoajuda é o seu vínculo com
os sistemas peritos – os saberes especializados apoiados no discurso científico
– produzindo, por conseguinte, uma leitura do fenômeno amoroso baseada em
informações oriundas do campo científico, especialmente das ciências biológi-
cas, o que trará, dentre outras implicações, a colocação em primeiro plano, do
organismo. É o corpo anatômico, explorado pela biologia e pelas neurociências,
que será posto no lugar de um corpo erótico, de viés transgressivo, ou mesmo da
carne, cristã, destinada ao pecado. Desde então, é a partir do organismo que a
experiência do apaixonamento será enunciada.
Correspondente necessário da medicalização da moral, que testemunha-
mos, por exemplo, nas sucessivas edições do DSM, o manual norte-americano
para diagnóstico em saúde mental, o organismo apaixonado mantém em cena,
agora a partir do rebaixamento da paixão ao plano dos neurotransmissores, uma
natureza essencial ao amor, da qual não há como escapar, mas cuja verdade já

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Eduardo Leal Cunha

não se encontra numa lógica transcendente submetida a uma racionalidade do


desejo, mas em algum lugar concreto entre o cérebro e o gene, sendo, portanto,
virtualmente passível de manipulação e controle. O que significa, ainda, ideal-
mente, que o amor pode ou poderá em algum momento ser gerido, ser submetido
a uma política de qualidade total voltada para a minimização dos riscos e para a
maximização dos lucros ou seja: converter-se definitivamente em componente do
nosso capital humano e fator determinante de uma boa posição no mercado de
trocas afetivas, agora pensadas no mesmo diapasão das trocas econômicas.
No organismo apaixonado, são os hormônios que fornecem o ponto de an-
coragem da diferença sexual, agora representada concretamente pela incomuni-
cabilidade radical dos parceiros amorosos, descrita de modo primoroso e mesmo
divertido, em um dos maiores clássicos da autoajuda: Homens são de marte, mu-
lheres são de vênus (GRAY, 1997). Ou seja, é a testosterona que impede o homem
de compreender as demandas afetivas da sua parceira, por isso, melhor nem in-
sistir. Embora na discussão de relacionamento, a cena amorosa contemporânea,
o diálogo torne possível qualquer forma de negociação, é preciso reconhecer os
limites instransponíveis da natureza do homem ou da mulher. A biologia é a úni-
ca barreira possível ao regime neoliberal dos novos contratos amorosos, no qual
toda negociação vale o investimento e qualquer barganha é legítima.
A essencialização biologizante do amor não o livra, contudo, de seu caráter
patológico. O amor pertence ainda à nossa natureza mais fundamental, e nos
aproxima, deste modo, dos animais. Talvez por isso mesmo precise ser controla-
do pela razão e represente um perigo real e imediato: “estar loucamente apaixo-
nado ativa as mesmas áreas do cérebro que a dependência de cocaína. Portanto,
esteja você apaixonado ou sob efeito de drogas terá sensações idênticas.” (PEASE;
PEASE, 2010, p. 27)
Desse modo, será uma vez mais fundamental “entender como seu cérebro
escolhe os parceiros para você.” (PEASE; PEASE, 2010, p. 13). Os intrigantes mis-
térios da feminilidade, que tanto perturbavam Freud, são efetivamente reduzidos
à diferença anatômica, mas o falo já não terá nada ver com isso e sim o cérebro. É
deste modo que o obscuro percurso do desejo no homem e na mulher será substi-
tuído pelas “programações mentais diferentes em relação a sexo e amor” (PEASE;
PEASE, 2010, p. 15), afinal: “O desejo surge por meio de ondas de hormônios se-
xuais, como a testosterona e o estrogênio” (PEASE; PEASE, 2010, p. 20)

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

Ao mesmo tempo em que liga nossa experiência singular à determinação


biológica estabelecida ao longo do processo evolutivo, no entanto, a prevalência
do organismo apaixonado preserva a possibilidade, para o indivíduo, de assumir
o controle sobre seu destino afetivo e erótico e assim, assegura também as condi-
ções de uma boa gestão das suas experiências afetivas:
Quando entendemos porque somos motivados a fazer determinadas es-
colhas e que o amor tem uma base científica e biológica, que não é uma
força mística, adquirimos mais controle sobre nossas decisões e melho-
ramos nossas chances no jogo do amor, embora o cérebro já tenha sua
programação natural (PEASE; PEASE, 2010, p. 39)

O organismo apaixonado é, por fim, o desdobramento de uma concepção


do humano na qual a sua verdade não está em sua alma, desejo ou atos, mas
em sua biologia: “Todos nós somos uma mistura ilimitada de genes, substâncias
químicas e experiências que tornam cada um de nós único” (FISHER, 2010, p.
78). Trata-se talvez de localizar aí o ponto de virada importante na construção
do que Foucault descreve no último capítulo d’A vontade de Saber (FOUCAULT,
1976/2015) como o aparecimento e consolidação de uma nova forma de governa-
mentalidade a substituir o poder soberano: a biopolítica ou biopoder. Tal ponto
de virada seria o ultrapassamento gradativo da racionalidade do desejo, que mar-
ca o dispositivo de sexualidade, em direção a uma outra forma de racionalidade a
qual, acreditamos, Foucault procura localizar sobretudo no desenvolvimento do
pensamento neoliberal no século XX. Desse modo, a verdade do sujeito já não se-
ria localizada numa sexualidade que expressa um desejo, mas na materialidade de
um organismo a ser gerido com base no conhecimento científico e nas melhores
práticas de gestão comercial.
O organismo apaixonado confere materialidade objetiva à verdade da nos-
sa vida afetiva e sexual. Ao mesmo tempo, ao reconhecermos a legitimidade da
paixão orgânica, abrimos ainda espaço, para outros esquemas determinantes no
novo discurso amoroso. O sexo puro é um deles e com ele nós passamos direta-
mente de uma forma particular de enunciação de si, a percepção de si como um
organismo determinado pelos seus genes e por seu metabolismo, a uma forma
também específica de relação com outro, na qual, mesmo no campo amoroso e
sexual, esse outro e essa relação podem ser descritos e vividos sem a referência

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necessária a categorias como desejo e afeto. Trata-se, portanto, nessa nova forma
de descrever o amor, de um outro purificado, na medida do possível, de toda pai-
xão, de qualquer pathos.
O sexo puro aparece no domínio dos relacionamentos casuais – “sem ne-
nhuma emoção ou sentimento” (PEASE; PEASE, 2010, p. 113), pertence ao reino
dos organismos apaixonados e se apoia na biologização da experiência amorosa,
a ser doravante claramente dividida entre desejo (sexual) e amor romântico:
O cérebro apaixonado e o cérebro que está vivenciando o desejo não se
parecem porque cada um deles usa um sistema diferente. (...) O desejo e
o amor estão associados a locais diferentes do cérebro e não são a mesma
coisa. (PEASE; PEASE, 2010, p. 32)

É curioso perceber, ainda, como certos traços que aparecem com valor nega-
tivo na genealogia do amor romântico, como a frieza, a sensualidade, a frivolidade
e o cálculo que marcariam o amor nas Sociedades de Corte descritas por Norbert
Elias (1987) e que aparecem, por exemplo, no romance As ligações perigosas, de
Chordelos de Laclos, publicado em 1782, são positivadas em uma nova moral
sexual que parece pretender instaurar uma práxis sexual independente da ordem
dos sentimentos, e, portanto, paradoxalmente, do próprio amor. É curioso per-
ceber, ainda, que tal independência sexual, que valoriza o pragmatismo e afirma
a superficialidade das experiências eróticas, integra o núcleo do novo discurso
amoroso na medida mesmo em que a eficácia afetiva depende também inversa-
mente de que a experiência amorosa não se deixe contaminar pela necessidade
sexual, cada vez mais rebaixada ao plano do organismo. Desse modo, a idealização
amorosa sobrevive, embora em outros termos, pois um relacionamento estável e
feliz, é sinal de uma vida de sucesso, ou seja, de uma vida bem administrada.
Ponto de encontro entre diversas matrizes da autoajuda, da lógica neoliberal
de exploração do mercado de corpos à moral amorosa naturalista, passando pela
racionalização biologizante do desejo, o sexo puro materializa não apenas a liberda-
de, mas também outro valor supremo do mundo contemporâneo, a vida saudável:
O sexo traz muitos benefícios para a saúde. O sexo frequente melhora
o seu sentido do olfato, reduz o risco de doenças cardíacas, melhora o
condicionamento físico geral, contribui para a perda de excesso de peso,
alivia a dor, reduz a frequência de resfriados e gripes e melhora o controle

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

da bexiga. Fazer sexo de boa qualidade também faz com que você queira
fazer mais sexo, em grande parte porque a atividade sexual aumenta os
níveis de testosterona. (FISHER, 2010, p. 256)

Ou seja: trata-se de verdadeira sinergia: seja bonito, tenha a aparência de um


vencedor, confie em si mesmo e no seu autocontrole, domine seus sentimentos,
adquira vantagens estratégicas sobre seus competidores, respeite a natureza e viva
saudável e feliz transando com quem quiser.
É importante destacar também a linha de separação estabelecida entre a
promiscuidade e o sexo puro, na medida em que a primeira aparece como com-
pulsão, no campo da patologia, enquanto o segundo, ao contrário, revela um per-
feito controle sobre as relações com o outro de modo que o contato estabelecido
fique restrito ao que foi acordado previamente. De algum modo, o sexo puro é a
situação ideal em que meu desejo, reduzido a uma dimensão física, não é atrapa-
lhado pela subjetividade alheia, ou seja, pelo desejo do outro.
O sexo puro não escapa à exigência de uma boa condução de Eros. Mas já não
se trata de dominar sentimentos ou de gerir nosso apetite e sim de controlar o cor-
po e suas expressões. O sexo puro é ao mesmo tempo a afirmação de uma anatomia
soberana e o reconhecimento do poder e do autocontrole ilimitados do indivíduo.
Portanto, para assumir o domínio efetivo da sua vida amorosa, aprenda a manipu-
lar suas reações corporais, administre o seu organismo apaixonado, e, já na etapa
da conquista, ao se deparar com um objeto da sua cobiça sexual, lembre-se que:
Você mostra interesse mais forte quando você repuxa por trás o lábio su-
perior para exibir a fileira dentária superior, o sorriso superior. Com-
bine isso com um sinal de sobrancelha (levantá-la e abaixá-la rapida-
mente) e você mandará um sinal claro de interesse. (FISHER, 2010, p. 248)

O reconhecimento do organismo apaixonado e a purificação do sexo nos


conduzem à inteligência amorosa, a um Eros bem administrado. Chegamos assim
ao terceiro esquema ao qual pretendo me referir no delineamento dessa forma
ideal a ser assumida pelas subjetividades contemporâneas a partir de sua inscri-
ção no dispositivo de autoajuda.
A inteligência amorosa, se apoia na inteligência emocional, na máxima sub-
missão dos afetos à cognição, na ideia, por exemplo, de que devemos, desde a

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infância, ser capazes não apenas de reconhecer tanto as nossas emoções como as
do outro, mas também de controlá-las, de usá-las em nosso benefício, de acordo
com objetivos conscientes bem determinados (COLEMAN, 1996). Ela pode ser
lida, muito simplesmente, como a instalação do bom senso em nossa vida afetiva,
mas um bom senso regulado por uma compreensão muito particular da nossa
experiência subjetiva, onde nem os afetos nem a paixão amorosa, escapam ao
domínio da razão.
Um bom senso que reúne nossos valores morais e a racionalidade das me-
lhores práticas de gestão, pois em nosso mundo contemporâneo, o amor já não
deve tornar as pessoas bobas ou estúpidas; no universo da eficácia amorosa não
há lugar para qualquer jeito estúpido de amar, nem toda maneira de amor vale
a pena. O relacionamento deve se submeter à gestão racional do nosso capital
humano do qual faz parte, ou seja, ser um investimento com excelente retorno,
apoiado em uma operação conduzida com planejamento e cuidado, ou seja, para
alcançar os melhores resultados o relacionamento deve ser bem gerenciado e isto
naturalmente só será possível se Eros for bem conduzido.
A moderação, ainda que não seja suficiente, é necessária, porque “exis-
te uma insanidade gradativamente progressiva implícita em se amar demais”
(NORWOOD, 2010, p. 235). Temos aqui uma versão contemporânea da velha
ideia de temperança, na qual se destaca a crença de que a moderação é sinal de
poder, não apenas sobre si mesmo, mas especialmente sobre o outro, na medida
em que nos afirmamos independentes dele. Administrando bem Eros, podemos
até mesmo descobrir que o outro, afinal, já não importa tanto.
A base da inteligência amorosa é a percepção correta da realidade, e por
isso quase todo o trabalho e os exercícios definidos nos manuais de autoajuda se
apoiam na retificação cognitiva. Alcançamos a verdade e a felicidade através do
conhecimento, pois no fundo trata-se apenas de corrigir a nossa percepção do
mundo, do outro e de nós mesmos: “Todas as vezes que você estiver sofrendo
algum tipo de dor, inclusive tensão e ansiedade, está se utilizando de uma convic-
ção errônea.” (JORDAN; JORDAN, 1998, p. 60)
Como na ontogênese que repete a filogênese, a experiência individual
que segue a trilha aberta pela evolução da espécie, o bom caminho do amor
repete o processo de racionalização que nos trouxe d’Os sofrimentos do jovem
Werther à eficácia afetiva exemplar dos autores de autoajuda (CUNHA, 2013).

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Sobre o amante eficaz: o sujeito no dispositivo de autoajuda

Vale notar ainda o destaque que ganham categorias como as de adequação,


proveito e crescimento.
Segundo a lógica da inteligência emocional, o núcleo dos problemas
amorosos já não está em sentimentos ou desejos, mas na cognição. Assim, a
felicidade, ou melhor, o sucesso no relacionamento, que corresponde por sua
vez, a “conseguir o que você quer”, como nos diz explicitamente o subtítulo
de um livro de grande sucesso, depende basicamente da eficiência cognitiva
capaz de sustentar a percepção correta da realidade, dos atos e sentimentos
do outro e, por fim, a boa comunicação – racional e objetiva – entre os par-
ceiros, especialmente no que diz respeito aos aspectos da realidade que não
podemos modificar.
Se para Shakespeare “é pobre o amor que pode ser medido.” (­SHAKESPEARE,
2001, p. 20), é precisamente no campo do cálculo amoroso que nos encontramos
agora. O amante eficaz nada mais é do que o sujeito a calcular. Um sujeito marca-
do paradoxalmente pela experiência de despossessão do próprio corpo, um orga-
nismo cujo destino foi traçado geneticamente, e pela exigência de domínio sobre
si e sobre o outro. Um ser marcado pela razão instrumental e pela colonização do
mundo e da alteridade, ocupado ao mesmo tempo em fazer as melhores escolhas
e, assim, gerir da melhor forma o seu capital, numa experiência amorosa que foi
reduzida a um empreendimento sexo-afetivo.
Temos aqui, a lógica instrumental conduzida a seu limite pelo dispositivo de
autoajuda, sobretudo na apropriação da experiência de confronto com o corpo
desejante do outro, mas talvez tenhamos mais, pois na submissão do enamorado,
figura eminentemente patológica, ao primado utilitarista do homo economicus,
na ilusão do sujeito soberano que o pós-moderno amante eficaz resgata pela via
da instrumentalização de todas as esferas da experiência subjetiva, talvez pos-
samos vislumbrar como horizonte, afinal, o próprio apagamento do sujeito, ao
menos do sujeito definido pelo desejo.
Apagamento que talvez deva ser articulado ao aparecimento desse outro
sujeito, o empreendedor de si, pois, firmemente articulado à racionalidade ins-
trumental desde a sua origem em meados do século XIX, o dispositivo de au-
toajuda tece gradualmente laços cada vez mais estreitos e sólidos com outra
forma de regulação das nossas relações consigo mesmo e com o mundo, aquela
que Foucault denominará racionalidade neoliberal e que associará ao registro

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Eduardo Leal Cunha

da biopolítica. Nesse sentido, o amante eficaz é também o empreendedor si,


gestor do seu capital humano, no qual se incluem seus afetos, relacionamentos
e objetos sexuais ou amorosos.
Foucault delineia e localiza essa figura do empreendedor de si no contex-
to do neoliberalismo e em particular no neoliberalismo norte-americano, visto
por ele como “tentativa sistemática de pensar todas as relações sociais segundo o
modelo econômico da concorrência” (TERREL, 2010, p. 118). Com ela, o filósofo
francês nos faz pensar que o decisivo na apropriação do amor pelo mercado não
é, portanto, a transformação dos signos românticos em mercadorias, nem tam-
pouco a criação de um mercado de bens amorosos, mas a submissão da própria
experiência sexo-afetiva inteira à lógica das trocas, do investimento e do lucro, o
que implica, em última instância, a redefinição tanto da relação consigo mesmo
quanto da relação com o outro, das quais os discursos amorosos foram uma fer-
ramenta central de elaboração e, portanto, de ordenamento em nossa sociedade
ao menos desde a modernidade.

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13
A psicose ordinária como modalidade do
mal-estar na atualidade
Rogério Paes Henriques
Joel Birman

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora


uma ilha perdida no oceano da razão;
começo a suspeitar que é um continente
(MACHADO DE ASSIS, 1882/1995, p. 27).

A psicose é um vasto continente,


um continente imenso (MILLER, 2012, p. 421).

(...) a psicose ordinária não tem definição rígida.


Todo mundo é bem-vindo para dar sua opinião e sua
definição da psicose ordinária (MILLER, 2012, p. 401).

A psicose: uma “estrutura” diferida


Polônio, ato II, cena II, de Hamlet, afirma sobre o príncipe da Dinamarca:
“Apesar de ser loucura, revela método” (SHAKESPEARE, s/d). Herdeiro francófo-
no do espólio freudiano, que tem Shakespeare como um de seus avatares, o psica-
nalista francês Jacques Lacan ousou, na década de 1950, uma empreitada que se
revelaria exitosa: a extração do “método” da loucura, demonstrando assim a face
de razão daquilo que se acreditava ser ou desrazão ou alienação mental.
Lacan foi um defensor da potência disruptiva da noção de “estrutura psicó-
tica” afirmando-a em seu diferimento para com a estrutura neurótica. Em vista
de seu progressivo abandono à adoção de uma estrutura lógica totalizante, no

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Rogério Paes Henriques & Joel Birman

decorrer de seu ensino, Lacan tornou-se adepto de uma peculiar forma de estru-
turalismo chamada “estruturalismo gödeliano” por Fink, no qual se
mantém a importância da estrutura, enquanto continua a apontar para
uma incompletude necessária nela e para a fundamental indecodibili-
dade de determinadas afirmações feitas dentro dela. Lacan adota cla-
ramente as noções de Gödel de que todo sistema formal significativo
contém algumas declarações que não são passíveis de decisão e que é
impossível definir a verdade de uma linguagem naquela mesma lingua-
gem. (...) Seus trabalhos corporificam a própria estrutura da histeria:
quanto mais próximo ele chega de formular um sistema, mais vigoro-
samente o reexamina e o questiona. Se é um “sistema para acabar com
todos os sistemas”, é Lacan que nos ensina a ler essa expressão de uma
forma nova (FINK, 1988, p. 155).

Nesse mesmo sentido, Miller (citado por DOSSE, 1993, p. 146-147) assinala
que a estrutura dos estruturalistas formais “é coerente e completa, ao passo que
a estrutura lacaniana é antinômica e des-completada. (...) Lacan leva em conta
o fato de existir o inapreensível, algo não apreendido na teoria”. É ainda Miller
quem assinala que
(...) o que Lacan chamou de sinthoma no fim do seu ensino, é a versão
­lacaniana do que é a fragmentação das estruturas clínicas no DSM. Não
se trata da mesma fragmentação, mas do mesmo movimento de deses-
truturação das entidades observado na segunda clínica de Lacan (...)
essa clínica nos apresenta uma série infinita de arranjos a partir de três
rodinhas de barbante. O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era
a repartição estanque, descontínua entre neurose, psicose e perversão
(MILLER, 2011, p. 19-20).

Não à toa, a obra de Lacan – sobretudo seu último ensino – é mais palatável
aos chamados “pós-estruturalistas” do que àqueles com formação filosófica ou
psicanalítica nos moldes tradicionais.
Segundo a frase atribuída pela lenda a Lacan, cujo cunho chistoso acabaria
por consolidá-la como aforismo: Não é louco quem quer, mas quem pode, em
outros termos, não se enlouquece por mero capricho, antes é preciso já estar dis-

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A psicose ordinária como modalidade do mal-estar na atualidade

-posto a tanto. A psicose como estrutura remete-se a uma dis-posição prévia,


certamente que não biológico-constitucional, como supôs e ainda supõe a psi-
quiatria de orientação médica, mas sim linguístico-estrutural. Esta dis-posição
concerne a um modo sui generis de enodamento psíquico que determina a rela-
ção do sujeito com a linguagem, na qual se pode dizer que o psicótico prescinde
dela, isto é, ele abdica do “tesouro dos significantes” e rejeita (verwirft) a herança
simbólica transmitida entre gerações sucessivas. É justamente na relação com o
símbolo que o sujeito entra na história e na cultura.
Por intermédio do conceito de “foraclusão (verwerfung) do Nome-do-
-Pai” , cunhado por Lacan, na década de 1950, que traduz o colapso da sim-
1

bolização no psicótico, a estrutura psicótica vem sendo, desde então, afirmada


em oposição às teses psicanalíticas evolucionistas que, tendo originado catego-
rias guarda-chuvas, constituídas por supostos estados fronteiriços, concebem
a psicose como uma regressão a fases ou etapas precoces do desenvolvimento
psíquico, passível de reversibilidade e de restituição à pretensa normalidade
perdida. Para além de uma leitura simplista, que vê nisso uma mera querela
entre metapsicologias de escolas psicanalíticas concorrentes, urge trazer à tona
implicações clínicas de maior grandeza em psicanálise no que tange ao diferi-
mento entre neurose e psicose:
a detecção da estrutura do sujeito condiciona de maneira decisiva a
condução do tratamento. A confiança ingênua na “histericização do
psicótico” não é mais aceitável: sabe-se atualmente que as intervenções
próprias para temperar o gozo desenfreado [na psicose] devem ser clara-
mente distintas daquelas orientadas à análise do recalcado [na neurose]
(­MALEVAL, 2014, p. 112).

Aplicar o modelo extraído da clínica psicanalítica das neuroses às psicoses


é fazer estas deitarem-se no leito de Procusto daquelas; assim como pressupor

1 “Podemos (...) deduzir da experiência analítica que a neurose e a constituição dita normal têm um
significante distinto, referente ao Nome-do-Pai, na estrutura do esqueleto de nosso temperamento.
Falar em significante é dizer que nada na experiência é suficiente para estabelecê-lo. Ser pai é
muito diferente de ser mãe. Há naturalidade na relação materna; a paterna, como notou Freud, é
essencialmente cultural. A função do pai pode ser atribuída a um outro que não ao genitor biológico. O
Nome-do-Pai é função significante; indispensável e fundadora da ordem simbólica” (MILLER, 1997, p.
134).

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Rogério Paes Henriques & Joel Birman

uma identidade estrutural entre neurose e psicose e, por conseguinte, manejá-las


clinicamente de modo idêntico, pode mostrar-se desastroso.
Se o analista acredita na neurose deste sujeito, ele manterá “sua vestimenta”
de neurótico; no melhor, nada vai acontecer, não sendo possível nenhum domí-
nio sobre o inconsciente; no pior, uma interpretação irá tocar desastradamente
na amarração precária que o analista descobrirá então (DEFFIEUX, 1998, p. 14).

Os dois tempos da psicose em Lacan


Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan já nos alertava para o risco de se
aceitar “pré-psicóticos” em análise, pois, ao tomar a palavra, para além da imita-
ção, suas psicoses poderiam se desencadear: “admitimos que o desfalecimento do
sujeito no momento de abordar a palavra verdadeira situa sua entrada, seu desliza-
mento, no fenômeno crítico, na fase inaugural da psicose” (LACAN, 1955-56/2002,
p. 296). Lacan sugeria aí que a clínica da psicose possui um manejo específico,
distinto da clínica da neurose cuja teleologia é a tomada da “fala plena” abordada
em seu “Relatório de Roma” (LACAN, 1953/1998) – muito embora tal insight dife-
ridor entre o manejo clínico da neurose e da psicose não tenha sido desenvolvido
por ele2. E assim, Lacan conclui seu escrito sobre a psicose, de 1959, com uma
afirmação que soa frustrante aos ouvidos do leitor interessado nas implicações
práticas da clínica psicanalítica da psicose: “Dizer o que podemos nesse terre-
no [manejo do tratamento] seria prematuro, porque seria ir, agora, ‘para-além de
Freud’, e não se trata de superar Freud quando a psicanálise segundo Freud (...)
voltou à etapa anterior” (LACAN, 1959/1998, p. 590). Aos que insistiram que Lacan
revelasse a suposta fórmula do “para-além de Freud”, ele ponderou: “sim, consegui
tratar alguns psicóticos, mas não sei como o fiz” (citado por MILLER, 1997, p. 135).
Naquela ocasião de seu “retorno a Freud”, Lacan interessava-se apenas em firmar
as bases de sua hipótese estrutural da psicose, em contraposição às já citadas teses
psicanalíticas evolucionistas, consideradas por ele como pré-freudianas.
Somente em 1975/1976, quase duas décadas depois de suas primeiras incur-
sões psicanalíticas propriamente ditas sobre a psicose, em seu seminário sobre

2 Gerbase (2015, p. 97) afirma que a clássica distinção entre a “fala plena” e a “fala vazia” será
abandonada por Lacan no capítulo “Um significante novo”, de seu O Seminário, livro 24: L’insu
que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Dessa nova perspectiva, toda fala é plena e o falo perde o
reinado da significação.

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A psicose ordinária como modalidade do mal-estar na atualidade

o sinthoma, Lacan recolocaria em pauta a noção de estrutura psicótica, relida à


luz da topologia (teoria dos nós) e baseada no estudo de “caso” de James Joyce,
com ênfase na psicose não desencadeada do escritor irlandês e nos seus modos
singulares de compensação e suplência3. A “casuística” daí extraída de que a fa-
lha estrutural pode ser compensada pelos psicóticos com estratégias inventivas
(poiéticas), que impedem o desencadeamento de suas psicoses clínicas, renova as
possibilidades de se pensar uma clínica da estabilização (profilática?). A partir de
então, reconhece-se a possibilidade de “servir-se do Nome-do-Pai prescindindo-se
de crer nele” (LACAN, 1975-76/2007, p. 238). Não há outra escolha a não ser passar
do Nome-do-Pai como garantia que não existe (MILLER & LAURENT, 2010) à
condição de se servir dele, de colocar sua função. Se o Nome-do-Pai falha sempre,
os Nomes-do-Pai são numerosos e se pluralizam para suprir a falha. Lacan então
reconhece publicamente a multiplicidade inerente às singulares formas de amar-
ração, derivadas do predicativo do Nome-do-Pai, que permitem manter juntos os
três registros psíquicos: real, simbólico e imaginário (RSI).
O “efeito Joyce” é visível quando, em 1977, Lacan afirma que “A psicose é
aquilo frente a qual um analista não deve retroceder em nenhum caso” (LACAN,
1977/1992, p. 9; grifo nosso). Como desdobramento dessa afirmação, alçada ao es-
tatuto de axioma no campo lacaniano, assinala-se o princípio ético de que o trata-
mento analítico das psicoses não tem contraindicação, pois são as características
da demanda do paciente, articuladas em função do desejo do analista, que deci-
dem pelo engajamento em uma análise ou por sua recusa. Lacan, o “libertador” da
psicanálise, justifica esse epíteto, que lhe seria atribuído na ocasião de sua morte,
em 1981, por ninguém menos que Michel Foucault (FOUCAULT, 1981/2000), ao
livrar a psicose do niilismo e do obscurantismo teórico aos quais ela se associava
no campo psicanalítico, abrindo-lhe uma miríade de possibilidades.

A psicose ordinária
Insistimos aqui na noção de estrutura psicótica ou de psicose não desenca-
deada, oriunda do ensino de Lacan, pois é ela o leitmotiv a partir do qual vem se
construindo a noção de “psicose ordinária”, proposta no final da década de 1990

3 Há em Lacan dois acessos possíveis à (suposta) psicose de Joyce, por um lado, o sintoma literário,
foraclusão metódica do sentido, e, por outro, o abandono do corpo próprio, que aponta o deslize do
imaginário e o erro no enodamento psíquico, compensado por seu ego-sinthoma.

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Rogério Paes Henriques & Joel Birman

por psicanalistas francófonos do Campo Freudiano. Jacques-Alain Miller, patro-


no do Campo Freudiano, assinala ter criado o sintagma “psicose ordinária” para
driblar a rigidez da clínica binária: neurose (N) e psicose (P). Segundo ele,
A psicose ordinária era uma maneira de introduzir o terceiro excluí-
do pela construção binária, religando-o simultaneamente ao lado
direito do binarismo.

N P

Vocês dizem “psicose ordinária” quando não reconhecem sinal evidente


de neurose [que é uma estrutura muito precisa] e, assim, são levados a
dizer que é uma psicose dissimulada, uma psicose velada. Uma psico-
se difícil de reconhecer como tal, mas que deduzo de pequenos indícios
variados4. Trata-se de uma categoria mais epistêmica do que objetiva
(MILLER, 2012, p. 404).

Não se trata, portanto, de uma categoria de Lacan, mas se supõe tratar-se de


uma categoria lacaniana, isto é, uma categoria construída a posteriori a partir dos
desdobramentos do seu ensino.
A clínica da psicose ordinária revela a falha do nó borromeano (estrutura psi-
cótica) e sua forma típica de compensá-la, caracterizada pela fragilidade, na qual
um compensatory make-believe - CMB (“fazer-crer5 compensatório”) faz a função
do Nome-do-Pai ausente (P0). Além da estabilização da psicose desencadeada via
“metáfora delirante” e da estabilização da psicose não desencadeada via “obra”, cujos
“casos” Schreber e Joyce (“analisados” por Lacan) seriam respectivamente os para-
digmas clínicos, haveria ainda, segundo os teóricos contemporâneos do Campo

4 Aquilo que Lacan (1959/1998) designava: “(...) uma desordem provocada na junção mais íntima do
sentimento de vida no sujeito” (p. 565); “Os psiquiatras tentaram delinear esse ‘sentimento de vida’.
Eles falam de sinestesia, de sentimento geral do sujeito, de ‘ser-no-mundo’. A desordem se situa na
maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu
corpo e no modo de se relacionarem com suas próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).

5 Outra tradução possível, menos literal, da expressão make-believe para a língua portuguesa é
“faz-de-conta”.

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A psicose ordinária como modalidade do mal-estar na atualidade

Freudiano, “outros meios diversos para se tentar sustentar junto R, S e I (...) várias
formas de ‘dar um jeito’ ou de bricolagens duvidosas que não se revelam sempre
suficientes para proteger o sujeito do real e do gozo” (­SKRIABINE, 2009, p. 7).

Sua majestade: o imaginário


“A clínica da psicose ordinária” – assinala Maleval (2014) – “participa da
mesma estrutura e (...) deve diferir da psicose clínica apenas pela discrição de
suas manifestações e por seus modos originais de estabilização” (p. 113-114).
Dentre estes, a autonomia assumida pela dimensão imaginária nas psicoses pare-
ce fundamentar estabilizações entre as mais frequentes. A psicose ordinária seria
então a psicose que “dá certo” devido a algum efeito estabilizador que permitiria
ao sujeito constituir-se como semblante, atrelado à sua nominação (nommer-à)
para uma função social, evitando dessa forma as vivências psicóticas mortíferas.
A psicanalista francesa Marie-Hélène Brousse vem insistindo na ideia de
que o social assumiria a função do Nome-do-Pai na contemporaneidade, ci-
vilizando o gozo por meio da instituição de um limite. No Brasil, os dispositi-
vos estatais de assistência social, ligados ao Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), em conexão em rede com os dispositivos estatais de saúde mental ligados
ao Sistema Único de Saúde (SUS), são ilustrativos da ideia do social como limite
se substituindo ao Nome-do-Pai, portanto, à exceção. Tais dispositivos, no uso
de suas atribuições legais, nomeiam os sujeitos – sobretudo os “vulneráveis” que
constituem seu público-alvo – à determinada função social, promovendo ações
de inclusão, segundo a perspectiva da democracia e da cidadania, que ambos os
sistemas compartilham como coordenadas.
No caso de sujeitos psicóticos, subjaz o efeito estabilizador daquilo que a
psiquiatria clássica designou por funcionamento “como se” e “tipo impostor”6, os
quais, de fato, refletem identificações imaginárias em espelhamento (imagem ideal
de um semblante) não sustentadas pelo traço unário. Todavia, adequar-se conve-
nientemente ao modelo social esperado e ter o ar absolutamente normal (ordinário,
comum, banal...) não implica amarração e consequente empoderamento, mas sim
reflete a captura da singularidade pelo novo mestre contemporâneo: a ordem social

6 “A base clínica comum à psiquiatria e à psicanálise é a identificação imaginária (...)” (LECHERTIER,


1998, p. 43). Exemplos ilustrativos nesse sentido são os filmes Zelig, dirigido por Woody Allen, e Vips,
dirigido por Toniko Melo, sendo este último baseado em fatos reais.

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Rogério Paes Henriques & Joel Birman

– fundada não sobre a função do pai que nomeia, mas sobre a curva de Gauss cuja
normalidade é a mediana (o politicamente correto, o consenso, a evidence proof).
Na era da globalização, caracterizada pela máquina do não todo7, a chama-
da “hipermedicalização”8 –, responsável pela criação de uma “cultura da droga”
inscrita no estilo contemporâneo de existência (BIRMAN, 2012, p. 86) – cumpre
um importante papel na ordinarização da vida cotidiana, isto é, na conformação
dos sujeitos à nova ordem social estatística. Esta última caracteriza-se como uma
“ ‘ordem de ferro’ mais feroz que o Nome-do-Pai porque não é o desejo que lhe
é correlato, como se produz no caso do interdito, mas o gozo de forma direta”
(BROUSSE, 2009, p. 10-11). “É exigência superegoica angustiante e não repressão
culpabilizadora do Ideal” (VIEIRA, 2004, p. 2). Se alguns modos de estabilização
permitem assumir o lugar da exceção (Schreber tornou-se “A mulher de Deus”,
enquanto Joyce tornou-se “O Artífice”), e, portanto, do interdito, uma forma de
tratamento do real pelo simbólico, resta aos psicóticos ordinários a identificação
imaginária à normalidade, reduzida à média estatística. No novo horizonte da
psicose, nada ou muito pouco de vertical é permitido. Há muitos guardiões da
ordem a postos para a vigília dos que ousam atualmente escalar a caverna de Pla-
tão – como Schreber e Joyce o fizeram outrora.

Um mal-estar ordinário
Birman (2012) assinala o surgimento de novas formas de subjetivação con-
temporâneas nas quais a dominância da experiência da espacialização em detri-
mento da temporalização, aliada ao esvaziamento do conflito psíquico (perda do
potencial de simbolização), faz com que “o pensamento e a linguagem tendam a

7 “A estrutura do não todo [introduzida por Lacan em seu escrito O aturdito (Lacan, 1973/2003)] é
o que é descrito no nível social e político por Antonio Negri como impero [(Hardt & Negri, 2005)],
como o império que se desenvolve precisamente sem encontrar limites” (MILLER, 2011, p. 10). Em
termos psicanalíticos, o não todo corresponde “ao declínio disso que Freud havia chamado de o mundo
vertical da identificação e sua substituição pelas formas horizontais de identificação, a constituição
de pequenos grupos de sujeitos unidos por uma relação partilhada de um aspecto bem específico da
vida” (VORUZ, 2009, p. 13-14).

8 Fugindo da controvérsia em torno da “medicalização”, como aquela que estabelece Parens (2013), por
exemplo, ao assinalar que essa noção sociológica é meramente descritiva, não se tratando, portanto,
de algo bom ou ruim per se, a expressão “hipermedicalização”, como vem sendo usada na literatura
especializada, implica sempre o uso irracional da medicação, correspondendo assim necessariamente
à “má medicalização”.

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A psicose ordinária como modalidade do mal-estar na atualidade

desaparecer como eixos ordenadores do mal-estar na atualidade” (p. 67). Esse


processo de progressivo apagamento da dimensão simbólica na contempora-
neidade, do qual nos fala Birman, é também intuído pelos teóricos do Campo
Freudiano, que apontam o correlato declínio do estatuto privilegiado concedido
ao delírio (pensamento) e aos neologismos (linguagem) como marcadores pa-
tognomônicos da psicose, em favor de uma primazia dada aos seus signos mais
discretos (neodesencadeamento9), que se expressam nos registros do corpo (neo-
conversão10 e acontecimentos de corpo11), da ação (passagens ao ato12) e das inten-
sidades (irrupção de um gozo fora do limite13).
Uma das principais consequências do empobrecimento da linguagem na
economia psíquica – destacada por Birman (2012) – é a perda do seu poder meta-
fórico, em prol do imagético: “(...) a linguagem e o discurso assumem uma feição
marcadamente metonímica, e não mais metafórica” (p. 134). A partir daí, pode-se
aventar que os modos de compensação da psicose privilegiados na atualidade
estejam mais atrelados às identificações ordinárias em espelhamento (uma deriva
imaginária, em seus intermináveis deslocamentos metonímicos no eixo a-a’) que
aos delírios extraordinários (metáforas instauradoras de um ponto de basta na
cadeia significante). Sai de cena o delírio – considerado uma tentativa de cura
ou reconstrução por Freud (1911/2010; 1924/2011); uma solução de problema
por Lacan (1959/1998); um conto simbólico capaz de ordenar um mundo por
Miller (2012, p. 408) – enquanto Narciso e seus duplos ganham o protagonismo.
A psicose ordinária, caracterizada justamente por sua sintomatologia discreta e
por modos de compensação mais frágeis, seria, então, uma das modalidades do
mal-estar na atualidade, levando-se em consideração os novos modos de sub-
jetivação emergentes; tratar-se-ia da psicose de massa na época da democracia,
coerente com a época do Outro que não existe (BATISTA & LAIA, 2012) ou com a
época do colapso da experiência da temporalização (BIRMAN, 2012).

9 Cf. O neodesencadeamento. In Batista & Laia (2012, pp. 21-96).

10 Cf. A neoconversão. In Batista & Laia (2012, pp. 99-151).

11 Cf. Miller (2004).

12 Cf. Lacan (1962-63/2005).

13 Cf. Lacan (1972-73/2008).

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Rogério Paes Henriques & Joel Birman

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14
A “disforia de gênero” como
síndrome cultural norte-americana:
notas sobre o imperialismo na atualidade
André Filipe dos Santos Leite
Rogério Paes Henriques

Desde os antigos astrônomos gregos, o globo terrestre é dividido em


um sistema de linhas imaginárias traçadas sobre sua superfície, que tem por
objetivo, através da intersecção entre as linhas verticais (os meridianos) e as
linhas horizontais (os paralelos), localizar qualquer ponto na superfície da
Terra. Para além desses acordos cartográficos, que permitem nossa orienta-
ção espacial – e mais recentemente também temporal, visto que os meridia-
nos funcionam inclusive como fusos horários –, tais marcadores, especial-
mente Greenwich e Equador, carregam uma marcação simbólica não somente
orientadora de bússolas, astrolábios e balestilhas, mas também norteadora de
nossos próprios agenciamentos cotidianos. Basta que observemos como em
termos culturais, geopolíticos e econômicos operamos com a ideia de hemis-
fério norte e sul/ocidental e oriental, colocando sempre os primeiros como
superiores aos segundos.
Vale ressaltar que não é de agora que essa hierarquização entre norte/sul
e ocidente/oriente e seus produtos – colonialismo, orientalismo, imperialismo,
etnocentrismo etc. – são objetos de diversas críticas oriundas dos estudos cultu-
rais, pós-estruturalistas, pós-coloniais e tantos outros. Tendo essas perspectivas
teóricas como pano de fundo, pretendemos investigar, neste trabalho, o quanto
a medicina, mais especificamente a psiquiatria norte-americana, atravessada por
tais referentes hierarquizantes, funciona produzindo um conjunto de práticas que

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André Filipe dos Santos Leite & Rogério Paes Henriques

ampliam a esfera da influência geopolítica dos Estados Unidos sobre o resto do


mundo. Ou, mais propriamente, nos termos de Bourdieu e Wacquant, como o
imperialismo cultural estadunidense “repousa sobre o poder de universalizar os
particularismos ligados a uma tradição histórica singular, fazendo-os não se re-
conhecerem como tais” (1998, p. 109).
Assim como no século XIX várias questões filosóficas debatidas na E ­ uropa
provinham de particularidades históricas próprias às universidades alemãs,
atualmente diversas discussões intelectuais, que se disseminam ao resto do
mundo, aparentemente desvinculadas de qualquer regionalismo específico,
referem-se aos particularismos da sociedade e dos meios universitários nor-
te-americanos. Bourdieu e Wacquant (1998, p. 109) sugerem que a ampla difu-
são de “teses com as quais discutimos, mas sobre as quais não discutimos”, nos
campos acadêmico e político mundiais, favorece a neutralização do contexto
histórico que as originou e produz uma universalização aparente que fortalece
o trabalho de teorização da nova doxa intelectual planetária num processo de
“McDonaldização servil do pensamento”1.
Nesse sentido, vários temas recentemente aparecidos no cenário intelectual
mundial são: “produtos da pesquisa americana (...) conduzindo a uma espécie
de despolitização principal dos problemas sociais e políticos, assim desemba-
raçados de qualquer referência a qualquer espécie de dominação” (BOURDIEU
& WACQUANT, 1998, p. 111). Um exemplo ilustrativo encontra-se no debate
acerca da “raça” e da “identidade”. O modo arbitrário e reducionista pelo qual
os norte-americanos assinalam a dicotomia entre brancos e negros está se dis-
seminando em países onde os princípios de concepção e de divisão das diferen-
ças “raciais” são completamente distintos. A incoerência desses “estudos colo-
nizadores” fica em evidência quando se verifica a discrepância da concepção de
“raça” entre os Estados Unidos e o Brasil, por exemplo. Enquanto os norte-ame-
ricanos definem a “raça” unicamente através da análise da ascendência familiar,
bastando o indivíduo possuir um ou vários parentes identificados como negros
para ser também identificado sumariamente como tal, independentemente de
quaisquer características físicas ou sociais, os brasileiros utilizam princípios
mais plásticos para essa mesma definição.

1 “McDonaldisation rampante de la pensée” no original (BOURDIEU & WACQUANT, 1998, p. 109).

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A “disforia de gênero” como síndrome cultural norte-americana

Os brasileiros levam em consideração, além das variações das tonalida-


des de cor da pele, outras características físicas como a textura dos cabelos, a
forma dos lábios e do nariz, bem como a posição ocupada pelo indivíduo no
espaço social, o que culmina na existência de um espectro (continuum) entre
os dois extremos: brancos e negros. A inexistência de categorias intermediárias
na lógica classificatória etnorracial estadunidense2 parece-nos próxima, em ter-
mos de uma gramática binário-normativa, da equivalente ausência de catego-
rias intermediárias (entre o normal e o patológico) na lógica classificatória da
Associação Norte-Americana de Psiquiatria (APA), materializada no “Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, atualmente em sua quinta
edição: DSM-5 (APA, 2014).
O modelo dimensional em nosografia psiquiátrica é dinâmico, sendo o
normal e o patológico os dois extremos de um espectro no qual se distribui
quantitativamente o real da condição humana. Assim, por se constituir num
continuum que varia do normal ao patológico, um enfoque nosográfico di-
mensional permite múltiplas possibilidades de nuances quantitativas, várias
gradações, entre os estados que se compreende como normal e patológico.
Já o modelo categorial, que passou a embasar o DSM, a partir de sua tercei-
ra edição de 1980 vigorando até a versão atual, é estático, sendo o normal
e o patológico determinados de modo binário por critérios qualitativos de
inclusão e exclusão a categorias nosológicas predeterminadas. Dessa forma,
no modelo categorial bidimensional, ou a pessoa se inclui ou não à tipologia
proposta. A opção pela divisão do conjunto dos transtornos mentais em ca-
tegorias ou tipos-ideais reflete a adesão do DSM à tese de que a patologia é
mais fielmente representada dessa forma. Contudo, não há qualquer evidên-
cia científica que justifique a escolha pelo modelo categorial em psiquiatria.
Deve-se, portanto, buscar em outro lugar, que não na razão científica, a ade-
são da APA ao modelo categorial.
O próprio DSM-5 assimila tal crítica quando afirma que “a aspiração histórica
de se atingir homogeneidade diagnóstica a partir de uma subtipificação progres-

2 Como afirma Caetano Veloso na canção “Americanos” (do álbum Circuladô Vivo), de sua autoria: “Para
os americanos / branco é branco / preto é preto / e a mulata não é a tal...”.

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André Filipe dos Santos Leite & Rogério Paes Henriques

siva inserida em categorias de transtornos não é mais sensata”3 (APA, 2014, p. 12;
grifo nosso). Contudo, conserva o insensato modelo categorial, ao menos até que a
pretensa “evolução” científica abra alas para transformações efetivas. Dessa forma,
apregoa que “revisões contínuas do DSM-5 fazem com que ele se transforme em
um ‘documento vivo’, adaptável a descobertas futuras em neurobiologia, genética e
epidemiologia” (APA, 2014, p. 13; grifo nosso). Tal pretensão de adaptação especí-
fica a “futuras descobertas científicas” (APA, 2014, p. 17) exclui a interlocução com
outras configurações diagnósticas já existentes, baseadas em modelos teóricos não
biológicos. O DSM-5 é explícito nesse sentido e procura se amalgamar na biologia.
Assim, percebe-se que tanto o sistema classificatório etnorracial quanto o
sistema classificatório psiquiátrico norte-americanos se apoiam no pensamento
binário (e, por conseguinte, na caracterização tipológica rígida), como represen-
tante do que há talvez de mais típico da cultura estadunidense4. Digamos que
a ciência norte-americana é bastante enviesada/interessada e as manifestas pre-
tensões globais de sua doxa acabam por universalizar, de modo latente, sua con-
cepção de mundo particular. Desse modo, autores das mais diversas perspecti-
vas teóricas (GAINES, 1992; YOUNG, 1997; HACKING, 2000; FRANCES, 2013;
HENRIQUES, 2015) vêm denunciando que o DSM, para além de sua carapaça
científica pretensamente neutra (ateórica e descritiva), refletiria os valores cultu-
rais dos Estados Unidos. Gaines (1992), um dos autores a inaugurar esse tipo de
crítica, extraiu uma etnopsicologia subjacente a esse manual isolando uma noção
positiva idealizada do eu: aquela de um “eu referencial”, autocontrolado, cujas
questões existenciais centrais se referem à autonomia, à individualização e ao de-

3 Um dos elaboradores da terceira edição do DSM, J. S. Saraus, já havia afirmado que, depois de
anos dedicados a contribuir com o desenvolvimento desse manual, fora para ele impossível não se
dar conta de que, com frequência, os pacientes psiquiátricos não se encaixavam de maneira correta
nas tipologias propostas, uma vez que eles descreviam experiências “intermediárias” em relação
à definição dos sintomas (um pensamento delirante ou “quase” normal; uma alucinação ou um
pensamento percebido de forma “muito intensa”), o que acarretava marcações frequentemente
arbitrárias. A utilização desse manual para levantamento diagnóstico “(...) mostrava como as pessoas
‘reais’ bem pouco se adaptavam às categorias psiquiátricas: emergia claramente um continuum entre
diversos grupos diagnósticos, entre diversos grupos de sintomas e também entre manifestações
sintomáticas e manifestações psicológicas normais” (citado por SARACENO, 1999, p. 89-90).

4 Não à toa que Jacques Derrida, pai da teoria da desconstrução, que se propõe a desconstruir a lógica
binária constitutiva da história do pensamento ocidental, teve uma das mais bem-sucedidas recepções
justamente nos Estados Unidos, sendo apropriado pelo campo acadêmico de lá para confrontar os
valores culturais estadunidenses, muitos deles disfarçados de teses científicas.

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senvolvimento/crescimento pessoal5; a psiquiatria norte-americana seria então


uma etnopsiquiatria (na medida em que é porta-voz da “tradição protestante ger-
mânica do norte europeu” e de sua concepção de eu) e não, como sustenta a APA,
produto de uma síntese científica supostamente trans-histórica e transcultural.
Sugerimos, então, que ironicamente a noção de “síndrome cultural” utili-
zada no DSM-56 para definir síndromes psicopatológicas, que afetariam socieda-
des e culturas específicas, poderia ser aplicada a todos os transtornos listados no
DSM-5. Ou seja, seriam os transtornos descritos no DSM-5 todos eles produtos
da própria cultura estadunidense e vendidos sob o rótulo de universais, o que, em
última instância, parece funcionar como o exemplo mais ilustrativo do projeto
imperialista da APA, que dissemina seus particularismos como sendo algo uni-
versal. Essa noção de “síndrome cultural” que existe para designar “síndromes”
atribuídas a culturas exóticas, bizarras, estranhas... – ou seja, que existe para cap-
turar e arregimentar os contextos culturais específicos no âmbito de seu projeto
universalista, acaba, por fim, nos fornecendo a chave de leitura para a empreitada
neoimperialista da APA. Entendendo que a
biomedicina ocidental não pode ser considerada simplesmente como uma
expressão científica de demarcações naturais, na medida em que a sua
definição, e as práticas que dela derivam, são cultural e historicamente
específicas. (...) se considerarmos que as fronteiras da competência e do
profissionalismo médico emergem como resultado de processos históri-
cos e sociopolíticos, acaba por ser difícil defender que as suas categorias
podem ser utilizadas universalmente para conferir ordem e coerência às
experiências e às emoções dos outros (PUSSETTI, 2006, p. 6).

5 Sabe-se o quanto a chamada “psicologia humanista” (CASTEL, 1987) – as tecnologias psicológicas


“pós-psicanalíticas”, surgidas, sobretudo, nos Estados Unidos no contexto da contracultura – é tributária
desses mesmos valores, que norteiam a cultura norte-americana.

6 Trata-se da reformulação da anterior noção de “síndrome ligada à cultura” (Culture-Bound Syndromes


- CBS) do DSM-IV-TR. Esse termo foi cunhado pelo psiquiatra chinês P. M. Yap, em 1967, no intuito de
agrupar conceitualmente as síndromes restritas a grupos ou culturas específicas numa rubrica geral.
Passou a ser adotado no lugar de expressões como psicoses étnicas, neuroses étnicas, psicoses
histéricas, exóticas ou atípicas e síndromes reativas à cultura. O DSM-IV, de 1994, popularizou-o
a partir de sua inclusão no Apêndice I “Plano de Formulação Cultural e Glossário para Síndromes
Ligadas à Cultura”. O DSM-5, por sua vez, reagrupa em um capítulo específico a discussão em torno da
“Formulação Cultural” do diagnóstico e manejo clínicos (APA, 2014, p. 749-759); e segue apresentando
nos “apêndices” um “Glossário de Conceitos Culturais de Sofrimento”, que possui um quantitativo
reduzido de categorias similares àquelas descritas no DSM-IV-TR (APA, 2014, p. 833-837).

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Isso nos faz questionar: em que medida as categorias que se pretendem uni-
versais no DSM não refletiriam as peculiaridades da cultura norte-americana na
delimitação de seus problemas locais? Lembrando que o DSM surgiu, em 1952,
como alternativa à Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização
Mundial de Saúde (OMS) justamente em função de uma demanda dos psiquia-
tras norte-americanos, que não reconheciam na CID os transtornos psiquiátricos
específicos existentes em solo estadunidense. Após a guinada metodológica de
1980, que coincidiu com a sua terceira edição, o DSM se repaginou como “cien-
tífico” e assumiu suas pretensões universalistas, porém, os transtornos psiquiá-
tricos específicos dos Estados Unidos não desapareceram dessa terceira edição
tampouco das seguintes; quem quer que tenha um pingo de visão crítica e curio-
sidade em folhear as páginas de sua quinta edição, recentemente publicada, en-
contrará transtornos com forte apelo regionalista.
Um desses transtornos, que se pretende universal, e que contempora-
neamente se encontra constantemente atravessado por debates cada vez mais
afinados sobre sua validade epistemológica como patologia, é a categoria de
“disforia de gênero”7. O “transtorno de identidade de gênero” do DSM-IV-TR,
renomeado “disforia de gênero” no DSM-5, relaciona-se mais propriamente
àquilo que vem sendo descrito como “experiências trans” (BENTO, 2006) e,
desde que se aventou a realização da última atualização do DSM, um movi-
mento internacional denominado Stop Trans Pathologization se organizou na
tentativa de pressionar os editores do DSM-5 a retirar o então “transtorno da
identidade de gênero” do manual (BENTO & PELÚCIO, 2012), a exemplo do
que já havia acontecido com a homossexualidade8.
Contudo, diferentemente do desfecho favorável ocorrido com a homosse-
xualidade, as “experiências trans” continuariam inscritas como patologia nas li-

7 Logo na primeira linha do capítulo reservado à “disforia de gênero”, o DSM-5 apresenta essa categoria
como um “diagnóstico global” (APA, 2014, p. 451; grifo nosso).

8 Os grupos homossexuais organizados pressionaram a APA na ocasião da revisão que levaria à terceira
edição do DSM para que a homossexualidade deixasse de ser considerada um “desvio sexual”, o
que acabou acontecendo em 1974, por determinação dos editores desse manual, após aprovação
num plebiscito interno realizado pela APA. O futuro da homossexualidade ter sido definido por
um consenso corporativo da APA explicitou o quanto esse até então “transtorno mental” possuía
fronteiras cientificamente imprecisas, definidas pela “moral sexual ‘civilizada’” (FREUD, 1908/1996),
constituindo-se assim um alvo privilegiado de disputas políticas.

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nhas do DSM-5, rebatizadas como “disforia de gênero”. Assim, argumentamos


neste texto que aquilo que é específico da cultura estadunidense, não só atravessa
a confecção do próprio DSM-5, – que se pretende um manual neutro, puramente
científico e imune à cultura –, mas se constitui como um projeto de universaliza-
ção dos modelos de funcionamento norte-americanos. De tal modo, propomos,
analisando as linhas e páginas do manual, que a categoria de “disforia de gênero”
– apesar de descrita pelo manual como sendo global e atravessando as mais dife-
rentes culturas – constitui uma espécie de “síndrome cultural” norte-americana,
o que no fundo ilustra o projeto universalista e imperialista norte-americano, que
aqui tem como pano de fundo o mais eminente manual da psiquiatria ianque.
Diferente daqueles que sugerem ter havido uma mera alteração semântica
dessa categoria que culminaria em “mais do mesmo”, sustentamos que a passa-
gem do “transtorno da identidade de gênero” para a “disforia de gênero” teria
implicado o recrudescimento dessa categoria, haja vista que a disforia passaria
a ser focada de modo mais descritivo “como um problema clínico, e não como
identidade por si própria” (APA, 2014, p. 452; grifo nosso). O diagnóstico de uma
identidade (noção psicológica) requer a escuta subjetiva e, ao menos em alguma
medida, a legitimação do sujeito a ser diagnosticado acerca de sua própria con-
dição; já o diagnóstico de um problema clínico (noção médica) prescinde dessa
escuta subjetiva e legitimação do sujeito, centrando-se no olhar perscrutador do
diagnosticador (tornado detetive) em busca das “evidências” associadas à “dis-fo-
ria” (do grego: dys + phérein = “má condução”) de gênero.
Se o DSM-IV-TR exigia, ao menos em tese, o estabelecimento de um vínculo
intermediado pela fala entre diagnosticador/diagnosticado e de uma negociação
entre ambos na delimitação de uma identidade de gênero, o DSM-5 passou a exigir
apenas a observação objetivante dos “vestígios” da “má condução de gênero” do
diagnosticado pelo detetive-diagnosticador.
Assim, sustentamos que a passagem do “transtorno da identidade de gênero”
para a “disforia de gênero” teria promovido um desempoderamento ainda maior
das “experiências trans”, as quais, desontologizadas e objetivadas como meros
problemas clínicos (“vestígios” de “má conduta”), tenderiam a ser sumariamente
patologizadas pela psiquiatria ao sabor das suas próprias definições médicas. Da
mesma forma que, na clínica médica geral, não se necessita da anuência do su-
jeito para se lhe diagnosticar uma tuberculose, em caso de infecção comprovada

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pelo bacilo de Koch, ou um diabetes mellitus tipo 2, em caso de glicemia de jejum


maior que 126 mg/dL em duas medidas consecutivas, ou ainda uma hipertensão
arterial sistêmica, em caso de níveis pressóricos maiores que 140/90 mmHg, e as-
sim por diante; a psiquiatria norte-americana, via DSM-5, parece aderir ao mode-
lo biomédico prescindindo da anuência do sujeito na detecção de sua “dis-foria”,
em caso de “constatação” de sua “má condução” de gênero9.
Examinando o que o manual diz sobre a “disforia de gênero”, observamos
que o que está em jogo nas suas “características diagnósticas” são marcações cul-
turais específicas, as quais, preocupadas em preservar os contornos dos gêneros,
tentam circunscrever tudo aquilo que lhes escapa nos termos de uma patolo-
gia. Tal patologização embasa projetos interventivos calcados nas tecnologias
cirúrgicas e endocrinológicas para o “tratamento” desses estados. O empreen-
dimento tecnocientífico biomédico norte-americano toma então as matizes de
“terapêutica” e, não à toa, conhece sua franca expansão na atualidade. Trata-se
do que alguns críticos nomeiam por disease mongering: a comercialização do
pacote ou combo diagnóstico/terapêutico forjado em torno de uma nova “doen-
ça” (a “disforia de gênero”), cujo desdobramento é a completa medicalização das
“experiências trans”.
Definida como “uma incongruência acentuada entre o gênero experimen-
tado/expresso e o gênero designado de uma pessoa” (APA, 2014, p. 452), em um
capítulo inteiro dedicado a essa condição, o DSM-5 busca inicialmente diferen-
ciar a “disforia de gênero em crianças” e a “disforia de gênero em adolescentes e
adultos”. Na tentativa de estabelecer essa distinção, o manual evidencia o funcio-
namento de uma sociedade baseada numa rígida gramática normativa binária de
gênero, bem típica – ainda que não exclusiva – da cultura norte-americana.
Assim, os “meninos pré-puberais com disforia de gênero (...) preferem usar
trajes de meninas ou de mulheres ou podem improvisar roupas com qualquer
material disponível (p. ex., usar toalhas, aventais e xales como cabelos longos ou
como saias)”; esses meninos “podem desempenhar papéis femininos em brinca-

9 O mesmo processo ocorreu com a antiga “impotência sexual masculina”, chamada no DSM-5 de
“transtorno erétil” (APA, 2014, p. 426-429). Para além da mera alteração semântica, a detecção de
uma noção psicológica como impotência remete em tese a uma relação intersubjetiva no plano da
construção do diagnóstico clínico, enquanto a detecção de uma noção médica como disfunção erétil
requer apenas a mensuração objetivante do órgão sexual masculino reificado.

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deiras (por ex., brincar de ‘mãe’)” e com frequência preferem atividades lúdicas
tradicionalmente femininas como “brincar de casinha, desenhar quadros femi-
ninos, assistir a programas de televisão ou vídeos com personagens femininos
favoritos”; “Bonecas estereotípicas femininas (p. ex., Barbie) geralmente são os
brinquedos favoritos, e as meninas são as companheiras de brincadeira preferi-
das” (APA, 2014, p. 453-454). Meninas pré-puberais, por sua vez, apresentam o
transtorno quando “preferem usar roupas e cortes de cabelo de meninos”, sendo
com frequência “percebidas como meninos por estranhos”. “Com frequência, sua
preferência é por esportes de contato, brincadeiras agressivas e competitivas, jo-
gos tradicionalmente masculinos e ter meninos como pares”. Às vezes, chegam
até a recusar-se “a urinar na posição sentada” (APA, 2014, p. 453).
O que observamos é que, quando o DSM-5 descreve uma possível “disforia
de gênero em crianças”, em nada o manual está se referindo a “constantes sintoma-
tológicas clinicamente observáveis”; antes disso, está endereçando suas atenções
às normativas de gênero que exigem que indivíduos nascidos com determinada
genitália representem uma performance específica, historicamente construída e
culturalmente assimilada àquela genitália em questão (MURTA, 2007). Tais nor-
mativas de gênero são alçadas pelo DSM-5 ao patamar de marcadores diagnósti-
cos: a preferência por “brincar com a Barbie” ou por escolher “esportes de contato”
torna-se parte significativa dos critérios necessários e suficientes no DSM-5 para a
confirmação, em crianças, desse diagnóstico altamente estigmatizante.
A existência de sujeitos “subversivos” para com as normativas de gênero –
em sua exigência de uma equivalência forçada entre sexo biológico e expressão
de gênero (BENTO, 2006) – parece de algum modo assustar à sociedade norte-a-
mericana – basta novamente observar que os critérios diagnósticos utilizados no
delineamento da “disforia de gênero” baseiam-se estritamente numa regulação
moral das experiências de gênero, considerando aqueles que destoam do que é
culturalmente preconizado como “normalidade” na experimentação dos gêneros,
objetos da nosologia psiquiátrica –, que então passa a exigir uma resposta a essa
suposta “ameaça” a sua gramática binário-normativa. Tentando salvaguardar essa
estrutura, é então que a APA aparece, procurando manter a ordem legislando em
prol dessas normativas, numa espécie de macarthismo psiquiátrico: os “subversi-
vos” devem ser, cada vez mais precocemente, identificados, regulados, gerencia-
dos, normatizados e “tratados”.

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São as tecnologias cirúrgicas e os procedimentos endocrinológicos a “te-


rapêutica” de escolha nesses casos, ao menos quando se trata de adolescentes e
adultos. Hormônios, próteses e intervenções invasivas são elementos então ar-
regimentados para a encenação de uma performance de gênero específica. O
acionamento desses dispositivos tecnológicos como cirurgias de redesignação
sexual – notem que a própria ideia de (re)designação aponta para a necessidade
de designar algo a um estado anterior pré-determinado –, implantes de próteses
mamárias e uso de fármacos hormonais como tratamento, coincide justamente
com um avanço dessas áreas no cenário norte-americano (HAUSMAN, 1995).
Torna-se possível assim transitar de um gênero a outro, desde que preservada a
sua gramática normativa binária; inverter o sexo designado no nascimento – por
intermédio da redesignação corporal atrelada à tecnociência biomédica, garanti-
dora da equivalência forçada entre o fenótipo sexual e a expressão de gênero – pa-
rece ser uma das poucas formas de transição aceitas na cultura norte-americana;
assim, os “disfóricos” norte-americanos são construídos como consumidores de
bens e de serviços biomédicos, nos termos da disease mongering, supostamente
promotora dessa transição de gênero10.
Parece-nos ainda que o argumento de que a categoria de “disforia de gê-
nero” é uma produção específica do pensamento binário norte-americano con-
dizente com o “empuxo-à-tecnologia” que sustenta seu modelo biomédico fle-
xineriano – ou dito de outro modo, que a “disforia de gênero’ funciona como
uma “síndrome cultural estadunidense” –, se reafirma quando observamos em
diversas partes do mundo a existência de outras experiências de trânsito entre
os gêneros que são reguladas por outros códigos culturais e escapam à tentativa
de captura do DSM-5. Assim, ressaltamos a diversidade das “experiências trans”

10 Recentemente, os chamados “estudos da deficiência” vêm questionando a noção de “deficiência”


como algo individualizado e localizado nos “deficientes”. Afinal, a “deficiência” só existiria porque a
sociedade não seria capaz de acolher as diferenças; assim, só existiria “deficiência física” em função
da carência de mobilidade urbana, por exemplo. A solução para a “deficiência física” seria intervir no
“deficiente” via tecnociência biomédica (com o uso de exoesqueletos, por exemplo), assumindo-se
como desvio patológico a ser ortopedicamente corrigido? Ou seria intervir no ambiente social no sentido
da construção de espaços arquitetônicos e urbanísticos mais acessíveis e democráticos, assumindo-
se como diferença a ser acolhida? Em termos gerais, deve-se adequar os “desviantes” à suposta
norma saudável ou fazer com que a coletividade acolha as suas diferenças, incluindo aí o “abjeto”?
O imperativo social da redesignação sexual via tecnociência biomédica que recai individualmente
sobre os “corpos abjetos” parece reforçar o caráter supostamente patológico das “experiências trans”,
fazendo-as se adequar à norma instituída da gramática binária de gêneros.

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existentes mundo afora: as travestis do Brasil, as hijras da Índia, as muxes do


México, as mahu da Polinésia, as fakaleiti de Tonga, as fa’afafine de Samoa11 e
tantas outras experiências de trânsito entre os gêneros que não se reduzem a isso
que o DSM-5 designa como “disforia de gênero”. Logo, a própria “dis-foria” (“má
condução”) de gênero mostrar-se-ia um efeito das normativas de gênero, típicas,
porém não exclusivas, da cultura norte-americana em sua assimilação literal da
“tradição protestante germânica do norte europeu”12 – assinalada por Gaines
(1992) como eixo norteador valorativo do DSM –, e esse exercício de universa-
lização dessa categoria particular denotaria o ímpeto imperialista da psiquiatria
estadunidense representada pela APA.
Quando aportam em outros solos, seja a oeste do meridiano de Greenwich
seja ao sul da linha do Equador, essas outras experiências de trânsito dos gêneros
oferecem diferentes inflexões existenciais. Nesse sentido, tomando brevemente
como exemplo a experiência da travesti brasileira, sustentamos que essa modali-
dade particular de trânsito de gênero – assim como outras experiências particu-
lares e marcadamente culturais –, não necessariamente se subsume àquilo que o
DSM-5 tenta descrever como “disforia de gênero”, evidenciado que muito pouco
de universal tem essa última categoria.
Em sua última edição, o DSM afirma que os portadores de “disforia de
gênero” “podem encontrar outras maneiras de solucionar a incongruência
entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado (...) sem procurar
tratamento médico para alterar as características corporais” (APA, 2014, p.
454; grifo nosso), o que poderia sugerir que as travestis brasileiras se inclui-
riam nessa categoria, haja vista sua relativa autonomia com relação à de-
manda por tratamento médico nos termos da disease mongering. Todavia,
parece-nos que essa modalidade de trânsito de gênero escapa a tal pretensa
captura, pois não se enquadra ao que o próprio manual assinala ser o mar-
cador diagnóstico indispensável de disforia, que fizemos questão de destacar

11 Para mais informações sobre essas experiências de gênero e suas particularidades, ver Lanz (2014).

12 Dentre tantos outros, o filme relativamente recente “A fita branca” (Das Weiße Band - Eine deutsche
Kindergeschichte; direção de Michael Haneke, França/Itália/Áustria/Alemanha, 2009, Cor/DVD,
2h24min) ilustra com maestria essa tradição cultural. A rigidez moral do povoado prussiano com suas
normativas binárias centradas no bem/mal, retratada com maestria nessa obra, também faz parte do
espírito americano puritano.

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no trecho citado anteriormente: “a incongruência entre o gênero experimen-


tado/expresso e o gênero designado”.
Desse modo, o que faria com que as experiências travestis definitivamen-
te não se enquadrassem na categoria de “disforia de gênero” seria, sobretudo, a
flagrante ausência dessa incongruência entre o gênero experimentado/expresso e
designado, aspecto constatado por extensas etnografias sobre as travestis brasi-
leiras (DENIZART, 1997; PERES, 2005; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2009). Tais
estudos apontam o quanto a relação dessas pessoas com sua corporeidade não
passa necessariamente pela ideia de incongruência,13 mesmo que outros critérios
diagnósticos vicinais para a “disforia de gênero” sejam de algum modo atendidos,
especialmente os que se referem às alterações das características sexuais secundá-
rias. Outra possível tentativa de redução dessa experiência de trânsito de gênero
à “disforia de gênero” é quando o DSM-5 assinala que “o equivalente à disforia
de gênero foi também relatado em pessoas que vivem em culturas com outras
categorias de gênero institucionalizadas além do masculino e feminino” (APA,
2014, p. 458). Contudo, o mesmo não deixa de ponderar que “não está claro se,
no caso desses indivíduos, os critérios diagnósticos de disforia de gênero seriam
preenchidos” (APA, 2014, p. 458; grifo nosso). É justamente em torno dessa fal-
ta de clareza confessada pelo DSM que pretendemos operar com os argumentos
aqui desenvolvidos.
Se a categoria travesti, como experiência eminentemente tupiniquim restri-
ta aos “tristes trópicos”, parece escapar dos meandros classificatórios da categoria
de “disforia de gênero”, parece que o projeto neoimperialista da psiquiatria nor-
te-americana tenta apreendê-la – como a tantas outras experiências locais – em
outro contexto: quando dentro do grupo dos “transtornos parafílicos”, o D ­ SM-5
descreve uma categoria denominada “transtorno transvéstico”, definida como
uma “excitação sexual recorrente e intensa resultante de vestir-se como o sexo
oposto (cross-dressing), conforme manifestado por fantasias, impulsos ou com-
portamentos” (APA, 2014, p. 703), que difere da categoria de “disforia de gênero”,
devido à ausência de incongruência entre o gênero sentido/designado e à au-

13 Como eixo norteador dessa suposta “incongruência”, o DSM-5 aponta a negação e ojeriza que todos
os sujeitos com “disforia de gênero” teriam dos seus próprios genitais, o que não acontece com
as travestis, que nos estudos citados não relatam essa necessidade de alteração de suas genitálias
externas.

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sência de desejo de alterações corporais/morfológicas. Contudo, não nos parece


ainda assim que essa categoria do DSM consiga apreender a figura das travestis,
tendo em vista que tais sujeitos recorrem a algumas alterações corporais, nitida-
mente o uso de silicone industrial e a administração de hormônios femininos, o
que supostamente invalidaria sua adstrição ao “transtorno transvéstico”.
Assim, o que observamos é que, em um contexto propriamente brasileiro,
as travestis encenam um tipo específico de experiência de trânsito de gênero que
escapa aos limites daquilo que nossa cultura ocidental, marcadamente euroa-
mericana, entende como masculino e feminino. Quando as travestis procuram
marcar em seus corpos, a priori biologicamente masculinos, com signos do fe-
minino mantendo, entretanto, alguns caracteres sexuais primários com os quais
convivem sem grandes dilemas (DENIZART, 1997; PELÚCIO, 2009), percebemos
o quanto essa ideia de “má condução” dos gêneros é um fenômeno marcadamen-
te produzido num contexto norte-americano de rígidas fronteiras entre o mas-
culino e o feminino. Mesmo que sem o desejo de alteração de suas genitálias, as
travestis, a partir de uma apropriação subversiva de diversas técnicas protéticas,
constroem seus corpos como femininos, seja por meio da ingestão de hormô-
nios, seja valendo-se do saber de outras travestis chamadas de “bombadeiras”, que
injetam silicone industrial naquelas que assim almejam. Essa “hibridização” do
corpo, esse “monstro: meio masculino, meio feminino” (LEITE JR, 2012), se tor-
na inapreensível para a cultura norte-americana, já que nossos vizinhos ianques
funcionam com base naquilo que Judith Butler (2012) destacava como matriz de
inteligibilidade dos gêneros, ou seja, a necessidade de uma suposta coerência e
continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.
Essas tensões evidenciam o quanto experiências profundamente locais,
como a experiência das travestis no Brasil, não podem ser marcadas sob a insíg-
nia de uma categoria pretensamente universal calcada nos sistemas de raciocí-
nio ocidentais e setentrionais. Tal dis-posição só denuncia o projeto imperialista
da psiquiatria norte-americana de totalização do mundo em suas inscrições, um
exercício que aponta para como essa categoria de “disforia de gênero” descrita
pelo DSM-5 funciona como uma síndrome cultural norte-americana.
De algum modo, o que sugerimos neste trabalho tem a chancela do pró-
prio DSM-5, que “reconhece que todas as formas de sofrimento são moldadas
localmente, incluindo os transtornos do DSM. De acordo com essa perspectiva,

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muitos diagnósticos do DSM podem ser entendidos como protótipos operacio-


nalizados que começaram como síndromes culturais e se tornaram amplamen-
te aceitos como consequência de sua utilidade para a clínica e para a pesquisa”
(APA, 2014, p. 758). Questionamos então se os critérios necessários e suficientes
para que uma “síndrome cultural” torne-se um transtorno específico codificado
no DSM (como ocorreu com a “disforia de gênero”) seriam tão somente a sua
aceitabilidade e utilidade? Se sim, o DSM parece endossar o “anarquismo epis-
temológico” de Feyerabend (1977), assumindo-se como uma retórica mais con-
vincente do que suas concorrentes. Nesse caso, pressupor-se-ia que a gramática
biomédica, por gerar certo consenso utilitário e ter projeção global, seria mais
válida do que as demais etnogramáticas de cunho local. Não à toa, o DSM-5 afir-
ma que “diferenças culturais clinicamente importantes com frequência envolvem
explicações ou experiência de sofrimento em vez de configurações de sintomas cul-
turalmente distintivas” (APA, 2014, p. 758; grifo nosso). Sigamos tal raciocínio: se
essa discussão sobre as “síndromes culturais” se resume a uma confusão babélica
em função do modo pelo qual cada cultura expressa/experiencia o sofrimento,
dentro em breve, com o desenvolvimento das apropriadas traduções, não have-
rá mais “síndromes culturais” sendo todas elas capturadas pela gramática (útil e
consensual) da biomedicina. As cartas estão na mesa. O projeto imperialista da
APA nunca foi tão desnudado e a céu aberto. Cabe agora aos jogadores se posi-
cionarem para a partida.

Referências

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e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-V. Porto Alegre: Artmed.
BENEDETTI, M. (2005). Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de J­ aneiro:
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BENTO, B. (2006).  A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência
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André Filipe dos Santos Leite & Rogério Paes Henriques

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15
Razão e crime
Vera Malaguti Batista

Quando refletimos sobre  a história dos pensamentos criminológicos, uti-


lizamos o século XIII como marco temporal. A partir de Michel Foucault, as-
sumimos a importância da introdução da confissão, no IV Concílio de Latrão,
como um dispositivo fundamental para os movimentos de centralização da Igreja
(FOUCAULT, 1977). Nesse período, podemos observar também os primórdios (a
origem é o demônio do historiador, diria Marc Bloch, 1965) do processo de acu-
mulação de capital e do surgimento do Estado, no Ocidente. Zaffaroni afirma que
o tribunal inquisitorial, que se institucionalizou, produziu o primeiro discurso
criminológico. Os demonólogos seriam os primeiros teóricos e os exorcistas os
primeiros clínicos (ZAFFARONI & BATISTA, 2003).
Poderíamos fazer uma analogia histórica entre o processo de cercamento
das terras comuns e a consolidação da ideia de propriedade com o fim da solu-
ção comunitária dos conflitos na Europa. Até o século XIII, a conflitividade era
gerida de forma horizontal. O teatro inquisitorial produziu não só o confisco do
conflito, mas também uma verticalização e objetificação da acusação, produ-
zindo a figura do promotor que acusa em nome do Estado. É nessa conjuntura
que o Ocidente produz o sujeito culpável a ser submetido a uma nova raciona-
lidade. Surge aí, uma metodologia médico-jurídica de produção de verdade e,
especificamente, de uma verdade criminosa. Sobre o corpo dos acusados, inci-
dirão técnicas de extração de verdade que subsidiarão a naturalização da tortura
diante do mal maior. No tribunal inquisitorial, o cirurgião médico vai tratar de
descobrir o punctum diabolicum, prova irrefutável da presença do mal. A isto
vem sendo convocado o saber médico-psi até hoje no sistema penal, provar, por
meio de perícias, a presença da periculosidade. 

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Vera Malaguti Batista

Os desdobramentos racionalizantes em torno da questão criminal se de-


senvolveram do século XIII ao XVIII, subsidiados pelos processos análogos
de centralização da Igreja, consolidação do Estado e acumulação de capital.
O absolutismo, o mercantilismo e a colonização foram erigindo formas con-
cretas ao poder punitivo engendrado na longa duração. Rusche foi pioneiro
em demonstrar as relações entre a governamentalização da mão de obra no
mercado de trabalho, a acumulação de capital e o sistema penal em cons-
trução (RUSCHE & ­KIRCHHEIMER, 2004). Nesta senda, Melossi e Pavarini
demonstram a relação simbiótica entre a manufatura e a casa de correção,
abrindo caminho para a relação cárcere e fábrica impulsionada pela revolução
industrial (MELOSSI & PAVARINI, 2006).
Vale a pena pontuar, na nossa margem periférica, a colonização como eixo
central da construção de um grande outro, menos humano, para o qual convergi-
riam técnicas de conversão, destruição e aniquilamento. A racionalidade ociden-
tal vai se esmerando na produção de máquinas de matar.
Para Darnton, é fundamental compreender o debate, a partir do século XVI,
sobre método e disposição correta na organização do conhecimento (DARNTON,
1988). A colonização ensejava uma tendência a mapear, a delinear e a espaciali-
zar segmentos do conhecimento. A Encyclopedie, de Diderot e d’Alembert, surge
como “relato sistemático da ordem e concatenação do conhecimento humano”.
Submetendo a religião à filosofia, aparece uma nova ética profundamente imbri-
cada ao utilitarismo. Darnton afirma que a estratégia epistemológica da Encyclo-
pedie causou uma tempestade no século XVIII. Aquela necessidade de dividir e
classificar produziu uma ação social que fluía através de fronteiras determinadas
pelos esquemas de classificação: estabelecer categorias e policiá-las foi o grande
embate na década de 1750. “Conhecimento era poder e, mapeando o universo do
saber, partiram para sua conquista” (DARNTON, 1988, p.270).
Entre o século XVI e o XVIII, essa racionalização vai formulando novos
discursos jurídicos, mas o enciclopedismo também produz, entre 1750 e 1830,
a medicina social. Esse novo saber vai ensejar novos dispositivos de controle do
novo personagem construído na acumulação de capital entre a manufatura e a
fábrica: a população. Interessa à medicina social quantificar e qualificar os pode-
res sobre a vida coletiva. Nascimentos, óbitos, doenças, a saúde das crianças, das
mulheres... Tudo isso vai interessar à ciencia. Quetelet vai produzir cartografias

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Razão e crime

estatísticas construídas numa perspectiva atuarial ligadas aos negócios emergen-


tes. Surge nessa conjuntura a ideia de uma polícia médica que vai abrir caminho
para a ideia de polícia em si. Mais uma vez, na história da criminologia, o discur-
so jurídico e o médico vão se autonomizar, mas farão parte dos movimentos de
poder descritos como biopoder por Foucault.
Pensando na nossa margem periférica através das nossas matrizes ibéricas,
é importante pontuar que a marca dessa racionalização histórica se distingue na
península que vai atuar como colonizadora. Gizlene Neder analisa como a moder-
nização conservadora, liderada pelo Marquês de Pombal, e fundadora do direito
e da medicina no Brasil, articulava fé e razão através do tomismo, síntese da razão
aristotélica com a fé de Tomás de Aquino (NEDER, 2007). A modernização na
península ibérica se deu sem a derrota do clero e da monarquia, como na Europa
revolucionária. Para Darcy Ribeiro, o nosso processo civilizatório se deu através
de incorporacões forçadas de nossas riquezas e trabalho (RIBEIRO, 1987). Esse le-
gado tomista ibérico produziu, no iluminismo jurídico-penal, uma conjugação sui
generis: liberalismo e escravidão. A Constituição Brasileira de 1824 não se refere à
escravidão, mas a legitima ao afirmar que a propriedade rege em toda a plenitude.
O escravo era objeto perante o ordenamento jurídico como um todo (seu seques-
tro era interpretado como furto), mas era sujeito perante a juridição penal...
Mas, no restante da Europa, o século XVIII apresentava uma inversão na
perspectiva da demanda por ordem. A movimentação das massas produzia re-
beliões, motins e revoluções. Como diria Rudé, surgiu a multidão na história
(RUDÉ, 1991). Parte dessa conjuntura revolucionária, que produziu o iluminis-
mo jurídico-penal, inspirou a crítica da forma do poder punitivo no absolutis-
mo. As práticas punitivas do absolutismo eram baseadas na restauração do sobe-
rano, uma infração correspondia de alguma forma ao crime de lesa-majestade.
Segundo Foucault, o suplício se constituía numa técnica que repousava na arte
quantitativa do sofrimento. O suplício incidia no corpo do condenado através de
cerimônias públicas. O que aconteceu no XVIII revolucionário é que aquele es-
petáculo torna-se perigoso para o poder: a multidão começa a se identificar com
os executados. Afinal de contas, a grande revolução burguesa na França começa
com a queda da Bastilha, prisão símbolo das opressões absolutistas penais. O ro-
mance de Alejo Carpentier, O Século das Luzes, começa com a chegada da guilho-
tina numa ilha das Antilhas. A nova demanda por ordem da ascensão burguesa

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Vera Malaguti Batista

produz uma nova estratégia política e uma nova tecnologia do poder de punir
que se nutre das inovações da Revolução Industrial. 
Essa nova estratégia política não buscava punir menos, mas punir melhor.
Buscava também fazer da punição uma função regular. Mas, talvez o mais impor-
tante, inserir mais profundamente nas subjetivações o poder de punir. As disci-
plinas, na fábrica e na prisão, produziram uma arte das distribuições, baseadas
nas classificações e cartografias da Encyclopedie. Sua arquitetura, simbolizada
pelo panopticum, erigiu fábricas, prisões, escolas e asilos. Essa cidade discipli-
nar é que vai engendrar o que Foucault denominou de “o grande internamento”
(FOUCAULT, 1978). Nossa tradução antropofágica de Foucault permite aqui um
reparo: no Brasil escravocrata, o liberalismo não abria mão do suplício. No século
XIX, ele vai para trás dos muros das prisões para que o Estado imperial execute a
pena para os senhores proprietários.
É na arquitetura disciplinar europeia que se desenvolvem as técnicas de
controle minucioso e reticular dos corpos a serem docilizados e as técnicas de
vigilância. É importante observar como o surgimento de um sistema disciplinar
articulado e modular surge junto com suas críticas. Em 1777, Howard escreve o
relatório sobre a situação dos estabelecimentos penais, sórdida como as prisões
contemporâneas (HOWARD, 1929). A prisão surge então como uma perversa
utopia da razão. Seu fracasso aparente na erradicação do crime esconde seu ob-
jetivo central: organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. Ao
agenciar a conflitividade social, a prisão se torna um instrumento fundamental
para o controle diferencial das ilegalidades populares. O princípio da less elegibili-
ty, segundo o qual a prisão tem que oferecer condições piores do que as piores no
mundo do trabalho, seria a razão condutora do punitivismo moderno. É esse mo-
numentum, o panopticum, que encarna as racionalidades do direito penal moder-
no, suas exposições globais e articuladas, sua proporcionalidade, suas classifica-
ções e mensurações do tempo do homem, cujo corpo será consumido na prisão.
É de toda essa ambiência que o século XIX constrói uma nova demanda
por ordem, uma ordem repleta de medos pós-revolucionários. Medo do povo
em armas, das multidões iradas que irromperam pelo continente e também pelas
colônias. A revolução haitiana assombrou as elites brancas das Américas durante
todo o século. Além dos medos brancos, o século XIX contava com um grande la-
boratório: aquela arquitetura disciplinar e seu conjunto de técnicas e instituições

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Razão e crime

que medem, controlam e corrigem os que estão para lá da normalidade. Uma


nova racionalização científica, conduzida pelo discurso médico, vai se dirigir ao
crime e ao criminoso. Aquelas verticalização e objetificação, que surgiram no
XIII, vão ser repotencializadas agora por um discurso biológico, etiológico e de-
terminista. Se o liberalismo do século anterior desnaturalizou o poder absolutista
racionalizando e relegitimando a questão criminal com um saber político e jurí-
dico, o positivismo criminológico vai renaturalizá-lo e despolitizá-lo. Verdades
convenientes para o grand peur das revoluções.
É no século XIX que o poder punitivo surge como um sistema em que a pri-
são vai ocupar o lugar central. A nova utopia penal vai produzir seus argumentos:
ressocialização, reabilitação, reeducação, todos na perspectiva correcionalista.
Para a construção desses argumentos, serão convocados os saberes médicos e
psiquiátricos, agora autonomizados dos discursos e das limitações garantistas dos
juristas. A racionalidade penal necessita agora de argumentos que aumentem as
intervenções penais, a partir das comprovações das patologias sociais. Vai surgir
uma nova terapêutica social que verticaliza e objetifica o corpo do homem cri-
minoso com um discurso científico que renovou historicamente, no Ocidente,
aquele grande outro. Para os frenólogos Gall e Spurzheim, que antecederam o
positivismo, as melhores faculdades morais do cérebro estavam em falta no sul da
Europa, nos animais e no resto do mundo (ANITUA, 2008). O social-darwinismo
reveste o colonialismo de uma verdade científica a justificar os massacres contra
os povos originários e os africanos na escravidão. 
Essa nova racionalidade positivista funda a criminologia. Se no liberalismo
jurídico-penal o objeto era o delito, na criminologia positivista, o objeto será o ho-
mem físico, o homem delinquente. Serão construídas técnicas de aferição do perigo
através do exame criminológico, presente até hoje nos sistemas penais. Como o
cirurgião do tribunal inquisitorial, caberá ao saber psi encontrar o punctum diabo-
licum. Essas técnicas incidem sobre o corpo e a vida do homem produzindo uma
nova objetificação construtora do paradigma causal-explicativo. A pena curativa
volta a ser indeterminada produzindo historicamente uma nova expansão do po-
der punitivo, funcional aos medos brancos e ao processo de acumulação de capital
que se intensifica exponencialmente. Essa racionalização despolitizante da questão
criminal vai alimentar o nazi-fascismo em ascensão na Europa. No Brasil e nas
Américas, ela vai ser funcional para o controle dos remanescentes do extermínio

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Vera Malaguti Batista

dos povos originários, da escravidão e dos imigrantes que trouxeram consigo o


“germe” das lutas sindicalistas. O positivismo é mais do que um simples discurso
sobre o crime, ele é uma cultura profunda a moldar e reproduzir neocolonialismos.
O século XX irrompe carregando em si esse “ovo da serpente” científico.
Na Europa, seus críticos como Rusche e Freud vão procurar o exílio e suas ideias
circulam pelos Estados Unidos da América. Lá, o New Deal de Roosevelt vai con-
trapor ao positivismo uma criminologia sociológica e integracionista, funcional
à construção do Estado Previdenciário. A experiência pioneira da Universidade
de Chicago empreende um novo olhar para além da prisão, apostando em inter-
venções urbanas e na gestão comunitária dos conflitos sociais. Uma criminologia
generosa e não punitiva floresce acolhendo a Escola de Frankfurt, marxista, e
produzindo uma gama de pesquisas empíricas, a partir da realidade dos guetos
das grandes metrópoles estadunidenses (ANITUA, 2008).
O século XX realiza novas racionalizações na direção da crítica da pena e na
contenção do poder punitivo. Os discursos deslegitimantes da pena vão atravessar
a criminologia marxista e funcionalista e o abolicionismo penal vai se desenvol-
ver entre o liberalismo e o anarquismo, com contribuições luxuosas da esquerda.
Os anos 1960, com sua efervescência libertária, vão orientar novas racionalidades
e novas práticas penais. Mas isso não duraria muito... As crises cíclicas do capital,
mas em especial a dos anos 1970, vão apontar uma nova etapa do processo de acu-
mulação de capital, tangida pela tendência destrutiva e regressiva do capital. Foi
Loïc Wacquant quem observou e comprovou empiricamente como o neolibera-
lismo produziu uma mudança radical na paisagem criminológica (WACQUANT,
2007). Assistimos ao desmonte concreto e discursivo do Estado previdenciário
nos Estados Unidos de Reagan e na Inglaterra de Thatcher. Ecoado pela grande
mídia, o capital vídeo-financeiro produziu uma nova demanda por ordem: os
pobres assistidos pelo Estado passam a ser alocados no sistema penal. Uma co-
lossal estratégia de criminalização das estratégias de sobrevivência vai varrer o
planeta, capitaneada pela Guerra contra as Drogas. As taxas de encarceramento
se multiplicaram como nunca na história, mas principalmente inculcou-se como
nunca a adesão ao sistema penal com forma de resolução de conflitos. A nova
razão encontrava-se no paradigma da lei e da ordem. Mauricio Dieter realizou
a genealogia da adequação de sentido que o sistema penal produziu no capita-
lismo pós-fordista (DIETER, 2013). Os Estados Unidos conduziram um volume

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Razão e crime

de pesquisas de mapeamento dos fatores de risco vinculados a uma “tendência


criminosa” que construíram instrumentos autuariais, vetores do encarceramento
em massa. Demonstrando que a história é feita de rupturas e permanências, o
positivismo ressurge e com ele o cérebro nos discursos criminológicos. As neu-
rociências reabilitam o determinismo biológico na criminologia erigindo novas
verdades científicas que tratarão de relegitimar a intervenção penal como uma
espécie de fórmula geral de resolução de conflitos.
Raul Zaffaroni afirmou que o risco de todo discurso criminológico seria for-
mular racionalizações justificadoras das dores e sofrimentos da execução penal
(ZAFFARONI, 2012). Em diferentes demandas por ordem, os discursos crimi-
nológicos construirão argumentos legitimantes ou deslegitimantes da pena. Seu
uso intensivo é sinal de tempos difíceis. Tobias Barreto foi o primeiro jurista das
Américas a compreender a relação entre a guerra e o sistema penal:
“Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se
é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.
“Que a pena considerada em si mesma, nada tem que ver com a ideia do
direito, prova-o o fato de que ela tem sido muitas vezes aplicada e exe-
cutada em nome da religião, isto é, em nome do que há de mais alheio à
vida jurídica” (BARRETO, 1892, p.178).

Quando conhecemos a história da prisão no Ocidente nos damos conta de que


essa razão verticalizadora e objetificadora dos conflitos humanos, a razão punitiva,
padece de sucesso nos objetivos a que se destina. Ciclicamente, a crítica à desumani-
dade dos sistemas penais acaba se impondo com o tempo e com as necessidades do
capital. O fracasso histórico das prisões demonstra que, na verdade, essa racionali-
dade esconde uma profunda irracionalidade e arraigada fé no castigo. Razão ou fé?

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Vera Malaguti Batista

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16
Astúcias da (des)razão punitiva
Nilo Batista

Para Amilton Bueno de Carvalho:


jurista tão grande, que nunca lhe bastou um só direito,
e juiz tão inspirado que sempre esteve na vanguarda da
jurisprudência.

Tenho repetido, ao longo de minhas atividades docentes, que o encontro da


razão com a pena, naquela conjuntura transformadora que teve seu epicentro no
século XVIII e ficaria conhecida como “iluminismo”, “esclarecimento”, “ilustra-
ção” ou “luzes”, foi um encontro muito estranho, no qual a razão se ajoelhou aos
pés da pena. Este livro oferece-me uma oportunidade para debater e tentar com-
preender a cena espantosa: os homens da ilustração conseguem cortar o galho
da teologia da árvore do conhecimento, mas as antigas propriedades místicas da
pena, disfarçadas pelo discurso jurídico, obtêm passaporte para o futuro.
Antes de mais nada, recordemos o caráter multifário e complexo do ilu-
minismo jurídico-penal. Existiu, é claro, uma plataforma comum, que pretendia
tratar racionalisticamente o direito natural (até então teocêntrico), postulava le-
galidade para que todos os signatários do contrato social pudessem desfrutar de
segurança jurídica em seus negócios, investidos de direitos subjetivos inatos, e
olhava com desconfiança a interpretação judicial das leis para garantir a legiti-
midade política do comando legislativo, apostando na capacidade da razão para
revelar princípios jurídicos universalmente válidos etc.. Contudo, orientando as
opções dos juristas perante tal amplo cardápio, estava uma divisão cujas raízes re-
montavam ao debate empirista inglês do século XVII, ao debate que opõe o pen-
samento de Hobbes ao de Locke. Poderemos assim falar de um iluminismo jurí-

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Nilo Batista

dico do despotismo esclarecido, inspirado direta ou indiretamente em Hobbes,


ao lado de um iluminismo jurídico liberal-democrata, mais ou menos inspirado
em Locke (COMANDUCCI, 1978).
Uma cartografia europeia simplificada dessas divergências situaria o ilumi-
nismo reformista-conservador na Áustria e na Prússia e o iluminismo transfor-
mador-liberal na França e na península itálica. Para nós, interessa especialmente
recordar que o iluminismo jurídico-penal português integrou as hostes reformis-
tas conservadoras1. Olhemos para Pascoal José de Mello Freire, o iluminado lu-
sitano que, em 1789, por encomenda da rainha D. Maria, redige um anteprojeto
de Código Penal. Embora, ofuscado pelas luzes, tenha proscrito “penas cruéis” e
estabelecido que a pena de morte seria executada “de um só golpe”, não apenas
admitia a mutilação (“que lhe cortem algum membro”) como recomendava que
os convictos de lesa-majestade, após supliciados, “serão logo despedaçados em
quatro partes e postos nas praças da cidade até o tempo os consumir; e o coração
e o fígado lhes serão aí mesmo arrancados pelo algoz e lançados ao fogo e depois
ao mar” (FREIRE, 1823, p. 26, 27, 60).
Considerando a articulação com a psicologia e a psicanálise, não resisto a
transcrever o mais enigmático dispositivo desse anteprojeto ilustrado: “O delicto
que se cometer em sonhos não he imputavel, salvo podendo-se prever antes e não
se acautellando” (FREIRE, 1823, p. 22). Este dispositivo é paradoxalmente con-
temporâneo da invenção jurídica do princípio da lesividade, que isentava de toda
punição o simples pensamento, integrando-se à batalha final contra a inquisição
moderna, contra a criminalização de bruxas e hereges.
Nas fontes contraditórias e surpreendentes do iluminismo jurídico-penal,
privilegiemos um só, porém estratégico, dado: a natureza jurídica atribuída à pena.
É possível, esquematicamente, encontrar três grandes linhas, a segunda das quais
tributária da primeira. Houve quem olhasse a pena como um dever inexorável que
o Estado tem que cumprir para preservar a justiça no mundo. Houve quem nela
visse não propriamente um dever, mas sim um direito do soberano, uma facultas
puniendi cujo titular é o Estado. E houve por fim quem percebesse na pena um ato
de poder que, como os demais, necessitaria de limites e regulação. Essas três visões

1 Sobre isso, o indispensável Neder, Gizlene, Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro – Obediência e


Submissão, Rio, 2007, ed. ICC-Revan.

234 233 -24 3 [248] eixo III - racionalizar o outro

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Astúcias da (des)razão punitiva

(pena-dever, pena-direito e pena-poder), todas reivindicando legitimidade racio-


nalista, porém diferenciadamente ancoradas na filosofia moral, no direito natural
e na política criminal, serão desenvolvidas pelo discurso jurídico-penal. De seu
intenso confronto, aprendemos algo sobre as astúcias da (des)razão punitiva.

Pena-dever
Começaremos com a pena-dever, e portanto com Kant. Nesse território,
todo cuidado é pouco, e cabe, pois, advertir que nos interessará aqui aquela que
pode ser chamada de versão jurídico-penal do pensamento kantiano, tal como
apreendida e exposta na literatura jurídico-penal em geral, a partir do que escre-
veu ele sobre pena na Crítica da Razão Prática e principalmente na Metafísica
dos Costumes. Não ignoramos as interpretações que pretendem circunscrever ao
campo da moral, e particularmente à refutação do eudemonismo, a atribuição à
pena do caráter de imperativo categórico2. Tampouco ignoramos que seu texto
Über Pädagogik, publicado em 1803, um ano antes de sua morte, menciona casti-
gos escolares que ostentam uma óbvia finalidade (contradizendo assim o axioma
da moral fundada na autonomia), e que, em suas Lições de Ética, publicadas em
1824, ele se referiu expressamente a penas expiatórias e a penas preventivas. Aqui
estaremos focados apenas no legado kantiano que decisivamente influenciou a
concepção jurídica da pena, tal como efetivamente o fez. É provável que tal visão
implique um esquematismo da densa reflexão kantiana, mas foi assim que ela
chegou ao direito penal e – na versão neokantista de Baden – dominou hegemo-
nicamente a metodologia jurídico-penal na primeira metade do século XX.
Kant afirma na Metafísica dos Costumes que o soberano tem o “direito de
castigar”, ou seja, de “afetar dolorosamente o súdito por causa da infração à lei”.
Poderíamos ser tentados a ver aí uma concepção de pena-direito, e muitos ju-
ristas que a perfilharam se abeberaram nessa passagem. Mas, se continuarmos a
leitura, veremos que a coisa não é bem assim, porque “a lei penal é um imperativo
categórico”. Ele já consignara, na Crítica da Razão Prática, que a justiça constitui
a essência do conceito de pena. Portanto, a pena – que em diversas passagens
caracterizou com “mal físico” (physiches Übel) – deve incidir sobre o culpado

2 Sobre isso, ver: Cattaneo, Mario A., Dignità Umana e Pena nella Filosofia di Kant, Milão, 1981, ed.
Giuffrè, pp. 189 ss; também Merle, Jean-Christophe, et al. (orgs.), A Moral e o Direito em Kant, trad.
A. T. Gomes, B. Horizonte, 2007, ed. Mandamentos, pp. 221 ss.

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“pela única razão de ter delinquido”. (Abram-se parênteses para ressaltar que,
na aversão de Kant pelos usos exemplarizantes da pena, resplandece entranhado
compromisso com a dignidade humana; o homem não pode ser tratado como
meio pelo sistema penal.) A qualidade e a quantidade do mal físico a ser infligido
é problema que ele remete ao talião; para os crimes patrimoniais, trabalhos força-
dos ou redução à condição de escravo, mas quem matou “deve também morrer”.
Ele abre exceção para certos casos de infanticídio (sob o cruel argumento de que
“a criança nascida fora do casamento é uma criança fora da lei”) e para o duelo
que, por realizar-se publicamente e com consentimento, “não pode ser chamado
de homicídio”. Nega o direito de graça, restringindo-o às ofensas contra o próprio
soberano. E ilustrou sua exposição com um exemplo que, a despeito de muito
conhecido, vale a pena transcrever:
(se, por exemplo, o povo que vive em uma ilha decidisse desagregar-se e
espalhar-se pelo mundo), o último assassino no cárcere teria de ser antes
executado, de modo que cada um recebesse o que merecem seus atos e a
culpa sangrenta não recaísse sobre o povo, que não fez por merecer essa
punição, mas poderia ser considerado cúmplice nessa violação pública da
justiça. (KANT, 1996, p.120)

Ou seja: a pena, como imperativo categórico integrante da lei penal, iria


além da sociedade civil, transcenderia o próprio direito. A aplicação e execução
da pena configuraria um dever ao qual o soberano (o Estado) estaria rigorosa-
mente adstrito. Mas, qual seria a fonte desse dever tão absoluto e irremissível?
Um dos primeiros a perceber na moral kantiana “pressupostos teológicos
ocultos” foi Schopenhauer, para quem – numa tradição que remonta a Platão e
Sêneca – a pena se legitimaria não na falta cometida e sim na evitação de faltas
futuras. A fundamentação kantiana, do gênero “pelo castigo a falta é resgatada,
neutralizada, apagada etc.” é para Schopenhauer “um puro palavreado incoeren-
te” (SCHOPENHAUER, 2001, p.364; CACCIOLA, 1994, p.151)
O certo é que, na pena retributiva, tal como concebida por Kant, palpitam
as propriedades expiatórias e sacrificiais místicas de tantas culturas antigas, que,
tangidas pela Inquisição, chegariam à baixa Idade Média e à modernidade, e das
quais a Ilustração pretendeu ser o ponto final.
Não foi. Se a pena é um dever do Estado e de cada cidadão, se a pessoa é de-

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finida por Kant como o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação (KANT,
1996), e se, após uma ação dessa pessoa, só cabe – ao largo de toda utilidade –
considerá-la “digna da pena”, então um penalista fervorosamente religioso tende-
ria a vê-la como um direito do infrator!
Isto aconteceu, de forma explícita, na metade do século XX, com um pe-
nalista italiano, democrata cristão, Giuseppe Bettiol: “O homem tem direito à
pena, assim como tem direito ao reconhecimento da sua dignidade de pessoa”
(­BETTIOL, 1967, p.170)3. O sofrimento físico como direito, essa construção aber-
rante de um direito subjetivo individual à pena, é um dos terríveis contrapontos
da concepção da pena-dever.
Lembrando que este texto teve como ponto de partida uma conferência rea-
lizada na Universidade Federal de Sergipe, não resisto a recordar uma expressão
do maior jurista sergipano – talvez brasileiro –, o irreverente e genial Tobias Bar-
reto, que caracterizou como “jurista-theologo” aquele que “ainda crê nos efeitos
salutares e purificadores da pena” (BARRETO, 1886, p.69).

Pena-direito
Tratemos agora da disseminada concepção da pena-direito, direito não do
padecente sobre o patíbulo ou do recluso no ergástulo, mas sim direito do so-
berano (do Estado).
Isto era um lugar comum no ancien regime: a racionalização jurídica do
absolutismo não podia deixar de conceber a imposição de penas como uma
faculdade do soberano. Um jurista contemporâneo de Mello Freire reduzia os
muito vastos e abundantíssimos direitos dos monarcas portugueses a cinco
classes: legislativo, inspectivo, policiativo, judiciativo e executivo, sendo que,
dentro deste último, residiria o direito de impor penas (SAMPAIO, 1793)4. Sur-
preendente é que essa mesma concepção tenha permanecido na teoria dos ju-
ristas liberais, e seja ainda hoje adotada pela esmagadora maioria dos tratados
e manuais de direito penal.

3 .Para a opção política: “Justiça retributiva por um lado e salvaguarda das exigências da personalidade
moral do indivíduo, por outro, são as caraterísticas fundamentais de uma concepção cristã do direito
penal, que devem, igualmente, iluminar a concepção democrática” (p. 74). Jesus Cristo afastou-se
radicalmente dos democratas cristãos quando evitou a lapidação da mulher adúltera (João 8, 11).

4 Ver: Sampaio (1793) P. 2ª, tit. 4º, cap. LX e tit. 7º, cap. II.

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Visitemos um dos mais consagrados juristas liberais, com sólida formação


kantiana haurida, na última década do século XVIII, na Universidade de Jena:
Feuerbach. (Não confundir com seu filho Ludwig, aquele filósofo que para Marx
jogava no time dos que apenas interpretavam o mundo, indiferentes ao repto de
transformá-lo.) Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach afastou-se em muitos
pontos da orientação kantiana na qual se formara. A mais notória de suas dissi-
dências foi o abandono da pena retributiva em favor de uma pena cujo objetivo
estaria na intimidação dos cidadãos (“coação psicológica”). Mas, foi numa pe-
quena obra, anterior a seus estudos jurídicos, intitulada Anti-Hobbes, na qual
punha em discussão o poder sem limites do soberano e o direito de resistência
dos súditos, que ele – com admirável delicadeza e respeito – se afastou de algumas
posições politicamente autoritárias de Kant (FEUERBACH, 2010) 5.
Para Feuerbach, o direito penal seria “a ciência dos direitos que tem o Es-
tado, fundando-se nas leis penais, frente a seus súditos como possíveis infrato-
res delas” (FEUERBACH, 1989, p. 47). Convém ressaltar que, na oração reduzida
“fundando-se nas leis penais”, está a sepultura dessa inviável pretensão de um
direito estatal de punir. Homem de seu tempo, Feuerbach estava comprometido
até a medula com o princípio da legalidade e, entre outros merecimentos, cabe
creditar-lhe ter cunhado as três fórmulas latinas – nulla poena sine lege; nulla poe-
na sine crimine; nullum crimen sine poena legali (FEUERBACH, 1989, p. 63) – que,
sintetizadas, manifestam tal princípio nas Constituições e nos Códigos Penais de
nossa família jurídica até hoje6. Ao admitir que o Estado dispõe de um direito de
punir seus súditos, condicionando-o no entanto a que esteja “fundado nas leis
penais”, Feuerbach estabelece que o conteúdo e os limites de tal direito coincidem
estritamente com aquilo que estiver previsto na legislação penal.
Ora, se o Estado – pelo menos, o Estado democrático de direito – está rigo-
rosamente vinculado, em matéria de crimes e penas, à legislação, ao direito penal
objetivo (legislado), como vislumbrar na criminalização secundária do infrator o
exercício de um direito subjetivo, de uma faculdade? Que direito subjetivo será

5 . Em certa passagem (p. 101), ele se indaga: “até que ponto então este Anti-Hobbes é também um
Anti-Kant”?

6 Por exemplo, em nosso código penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal” (art. 5º, inc. XXXIX CR; art. 1º Código Penal).

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Astúcias da (des)razão punitiva

este cujo titular nem pode renunciar a ele, nem pode exercê-lo, afastando-se um
milímetro que seja das prescrições legais? Um autor espirituoso, embora positi-
vista, ridicularizava a construção teórica dessa estranha facultas puniendi desnu-
dando o absurdo de consistir ela “na faculdade do Estado de agir em conformi-
dade com as normas de direito objetivo postas pelo próprio Estado, e só por ele”
(FERRI, 1931, p. 115).
Mas, o pior é que o modelo do direito subjetivo, sem dúvida útil no âmbito
do direito privado, particularmente no direito das obrigações (relacionando um
credor e um devedor obrigacional) nos levaria a emparelhar ao credor-Estado,
titular de um ius puniendi, um devedor-réu, ao qual caberia a obrigação de supor-
tar a pena. Essa obrigação não existe: nem Hobbes, que obviamente reconhecia
um direito de punir, chegou a tanto. Só num Estado de polícia se poderia preten-
der que o réu esteja obrigado a submeter-se à pena, obrigação que, além de con-
duzir à criminalização da fuga, suprimiria o direito de resistência e estabeleceria
um antidemocrático dever incondicional de obediência dos súditos.
É claro que o condenado é compulsoriamente submetido à pena, e isto faz
parte do exercício daquele falso monopólio de violência legítima do qual falou
Max Weber (falso porque o poder punitivo se exerce na sociedade civil, através
de uma microfísica que compartilha muitos espaços distintos do sistema penal).
A execução da pena constitui um ato de violência, e o mais importante debate
penalístico, o grande divisor de águas, questiona precisamente a legitimidade da
violência punitiva.

Pena-poder
Por fim, detenhamo-nos sobre aqueles que trataram a pena como um ato
de poder (pena-poder), começando por observar uma curiosidade: muitos deles
conviviam com a ideia de pena-direito, porém sua preocupação estava em cercear,
traçar limites restritos para tal direito – indicando que, essencialmente, preten-
diam conter e reduzir um poder.
Rousseau, por exemplo, que deduzia o direito de punir precisamente do
acúmulo das parcelas da liberdade de cada cidadão, que adere ao contrato social,
e que são assim transferidas ao soberano, restringia o emprego da sanção capital:
“não se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, senão aquele que se não
pode conservar sem perigo” (ROUSSEAU, 1971, p.46).

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Também Beccaria que, nesse passo, seguiu a fundamentação de Rousseau –


dois anos separam a publicação, em Amsterdam, do Contrato Social, em 1762, e
a primeira edição de Dos Delitos e das Penas – também Beccaria reconhecia um
direito de punir, e poucos textos golpearam tão profundamente o estilo punitivo
do antigo regime como seu livro.
Liberais radicais, juristas, philosophes, artistas, revolucionários, muita gente
está naquela conjuntura olhando para o sistema penal com asco e repulsa. Um
amigo de Beccaria, autor de empenhado libelo contra a tortura judicial, manifes-
tava expressamente a “repugnância que sentia pelos processos criminais cruéis e
absurdos” (VERRI, 1977, p.1). Marat abre seu Plano de Legislação Criminal des-
tacando a natureza política das opressões penais: “Les loix criminelles, necessaire-
ment liées au systême politique” (MARAT, 1974, p.54).
Na Encyclopedie, o verbete peine versava “o direito de punir na sociedade
civil” (...) “como sendo um ramo do poder soberano (comme étant une branche du
pouvoir souverain)”. Neste verbete, parece repercutir a equiparação que Espinosa
fizera entre direito e poder: “o direito natural de cada indivíduo estende-se até
onde se estende sua potência” (ESPINOSA, 2009, p.12)7.
Não era propriamente uma novidade considerar a pena como ato de po-
der. O mesmo Hobbes, que no Leviatã se debruçou sobre o direito de punir,
no De Cive se exprimiria da seguinte forma: “Quem tem o direito de punir à
sua discrição tem direito a compelir todos os homens a fazerem todas as coi-
sas que ele quiser; e não se pode imaginar poder maior que este” (HOBBES,
1992, p.118).
Fechemos os olhos para esse ilimitado “direito de punir à sua discrição”, an-
terior à invenção histórica do princípio da legalidade (recordando que Feuerbach
o atrelaria à legalidade: “fundando-se nas leis penais”), para observar a curiosi-
dade de um direito que, no curso de pequeno período, se converte num poder, e
no maior de todos.
Os intelectuais e penalistas ilustrados que, mesmo admitindo um ius pu-
niendi, trabalharam a pena como um ato de poder, estavam numa importante
luta política, e são os responsáveis pela refundação moderna do direito penal;

7 Marilena Chauí saudou como “grande inovação política de Espinosa” definir “a equivalência entre o
direito e o poder (o direito é a potencia, ius sive potentia)” (CHAUÍ, 2003, p.242)

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graças a sua luta, é possível hoje desatrelar a política criminal de sua dependência
para com a legislação penal e vê-la como a ciência política do poder punitivo.

Conclusão
Para concluir, esbocemos um quadro, por certo lacunoso, de algumas con-
sequências que decorrem da assunção da pena-dever e da pena-direito em opo-
sição à pena-poder:

pena-dever e pena-direito pena-poder

1. submissão incondicional direito de resistência


dos súditos

2. talião proporcionalidade
3. execução atroz humanidade
4. suficiência da infração lesividade
5. criminalização de atitudes internas lesividade
ou de meras condições existenciais

6. nomorreia legislativa penal fragmentariedade e subsidiariedade

Nessas diferenças, reside a distinção essencial entre Estado de polícia e


Estado de direito. Nos dias que correm, marcados pela intensa punitividade
que a transição do capitalismo industrial para o capitalismo vídeo-financei-
ro transnacional instalou, e que se retroalimenta nos florescentes negócios
do controle do crime (do comércio de equipamentos à vigilância particular,
passando pelas penitenciárias privadas8), a concepção de pena-dever está não
apenas viva como domina o senso comum criminológico massivamente di-
fundido pela mídia. A pena é o remédio de todos os males, a solução de todos
os problemas. E quando, a despeito deles, o problema subsiste – o que é a
regra – é preciso mais pena.

8 Sobre isso, ver: Herivel, Tara et al. (2013.), Quem Lucra com as Prisões – o Negócio do Grande
Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan.

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Pouco importam os fracassos da pena diante de suas funções proclamadas –


pense-se na ressocialização através da privação da liberdade9 em confronto com
uma reincidência penitenciária entre 60% e 75% – porque certas funções ocultas,
sobre as quais não posso deter-me aqui, estão sendo eficientemente cumpridas.
Ao mesmo tempo em que a questão criminal é despolitizada, e sobre os
conflitos interindividuais lança-se um olhar moralista, compatível com uma pena
que exprime um imperativo categórico, a política é intensamente criminalizada.
A (des)razão punitiva tem sido astuciosa o suficiente para sobreviver,
ao longo de milênios, como um camaleão que assume as formas requisitadas
pelas relações econômicas, relegitimando-se constantemente através do dis-
curso jurídico, disfarçada na pele de um dever ou de um direito do Estado.
Quando a razão encontrou-se com ela, na conjuntura história sobre a qual
nos detivemos tão precariamente, ajoelhou-se a seus pés, e até hoje estamos
pagando o preço disso.

Referências

BARRETO, T. (1886) Menores e Loucos em Direito Criminal. Recife: Typ. ­Central.


BETTIOL, G. (1967) O Problema Penal. Coimbra: Edições Coimbra.
CACCIOLA, M.L.M.O. (1994) Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. São
Paulo: Editora USP
CATTANEO, M.A. (1981) Dignità Umana e Pena nella Filosofia di Kant, Milão:
Giuffrè.
CHAUÍ, M. (2003) Política em Espinosa. São Paulo: Cia. das Letras.
COMANDUCCI, P. (1978) L’ Iluminismo Giuridico. Bolonha: Il Mulino.
ESPINOSA, B. (2009) Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes.
FERRI, E. (1931) Princípios de Direito Criminal. São Paulo: Saraiva.
FEUERBACH, P.J.A.R. (2010) Anti-Hobbes. Buenos Aires: Hammurabi.
______. (1989) Tratado de Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi.
FREIRE, P.J.M. (1823) Ensaio do Código Criminal Lisboa: Typ. Maigrense.

9 “A execução penal tem por objetivo (...) proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado” – art. 1º da lei nº 7.210, de 11.jul.1984.

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Astúcias da (des)razão punitiva

HERIVEL, T. et al. (2013) Quem Lucra com as Prisões: o Negócio do Grande


­Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan.
HOBBES , T. (1992) Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes.
KANT, I. (1996) Fundamentação da metafísica dos costumes. Petrópolis: Vozes
MARAT, J.-P. (1974) Plan de Legislation Criminelle. Paris: Aubier Montaigne.
MERLE, J.-C., et al. (2007) A Moral e o Direito em Kant. Belo Horizonte:
­Mandamentos.
NEDER, G. (2007) Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro – Obediência e
­Submissão. Rio de Janeiro: ICC / Revan.
ROUSSEAU, J.-J. (1971) O Contrato Social. São Paulo: Cultrix.
SAMPAIO, F.C.S. (1793) Prelecções do Direito Pátrio, Público e Particular.
­Coimbra: Universidade de Coimbra.
SCHOPENHAUER, A. (2001) O Mundo como Vontade e Representação. Rio de
Janeiro: Contraponto.
VERRI, P. (1977) Observaciones sobre la tortura. Buenos Aires: Depalma.

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Sobre os autores

André Filipe dos Santos Leite


Integrante dos grupos de pesquisa Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais,
e Clínica Psicanalítica e Cultura Contemporânea (UFS). Membro da Liga
Acadêmica de Psiquiatria de Sergipe – LAPSI/SE. Membro da OSCIP de Combate
à Homofobia Mexam-SE. Graduado em Medicina pela UFS.

Daniel Menezes Coelho


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFS. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

Dolores Cristina Gomes Galindo


Professora do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação
em Psicologia e em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT. Doutora em
Psicologia Social pela PUC-SP.

Eduardo Leal Cunha


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFS. Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ.

Ernani Chaves
Professor da Faculdade de Filosofia e dos Programas de Pós-Graduação em
Antropologia e Psicologia da UFPA. Doutor em Filosofia pela USP.

Eugène Enriquez
Professor Emérito da Universidade Paris-VII e do Laboratoire de Changement
Social. Doutorado em Psicossociologia e Sociologia Clínica. Membro fundador
da ARIP – Association pour la Recherche et l’Intervention Psychosociologiques.
Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris VII.

Flávia Cristina Silveira Lemos


Professora da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFPA. Doutora em História Cultural pela UNESP.

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Ieda Tucherman
Professora da Escola de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da UFRJ. Doutora em Comunicação pela UFRJ.

Joel Birman
Professor do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e
do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UERJ. Pesquisador do
Collège International de Philosophie e do Laboratório “Psicanálise e Medicina” da
Universidade de Paris-VII. Doutor em Filosofia pela USP.

Leila Cristina Almeida


Professora da Universidade da Amazônia. Doutora em Psicologia Social pela UFPA.

Leomir Cardoso Hilário


Professor do Departamento de Psicologia da UFS. Doutor em Psicologia Social
pela UERJ.

Marcelo de Almeida Ferreri


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFS. Doutor em Psicologia Social pela UERJ.

Marcus Vinicius Oliveira Santos


Integrante do grupo de pesquisa Clínica Psicanalítica e Cultura Contemporânea
(UFS). Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

Nilo Batista
Professor Titular de Direito Penal da UFRJ e da UERJ. Presidente do Instituto
Carioca de Criminologia. Doutor em Direito Penal pela UERJ.

Renata Rodrigues
Professora do Curso de Psicologia do UNIVAG. Mestra em Estudos de Cultura
Contemporânea pela UFMT.

Rogério Paes Henriques


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFS. Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ.

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Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Integrante do grupo de pesquisa Clínica Psicanalítica e Cultura Contemporânea
(UFS). Mestra em Psicologia Social pela UFS.

Teresa Carreteiro
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. Membro do
Centre International de Psicosociologie e do Institut International de Sociologie
Clinique (Paris). Doutora em Psicologia Social Clínica pela Universidade de
Paris-VII.

Vera Malaguti Batista


Professora da Faculdade de Direito da UERJ. Membro do Instituto Carioca de
Criminologia. Doutora em Saúde Coletiva pela UERJ.

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faces contemporâneas

Daniel Menezes Coelho e Eduardo Leal Cunha organizadores


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Daniel Menezes Coelho Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha Eduardo Leal Cunha
organizadores organizadores

André Filipe dos Santos Leite


Daniel Menezes Coelho
Dolores Galindo
Eduardo Leal Cunha
Ernani Chaves
Flávia Cristina Silveira Lemos
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Joel Birman
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida
Leomir C. Hilário
Marcelo de Almeida Ferreri
Marcus Vinicius Oliveira Santos
Nilo Batista
Renata Vilela Rodrigues
Rogério Paes Henriques
Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Teresa Cristina Carreteiro
Vera Malaguti Batista

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