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coordenação
Leopoldo Fulgencio
Eduardo Leal Cunha
organizadores
Daniel Menezes Coelho
Eduardo Leal Cunha
autores
André Filipe dos Santos Leite
Daniel Menezes Coelho
Dolores Galindo
Eduardo Leal Cunha
Ernani Chaves
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ieda Tucherman
Joel Birman
Leila Cristina da Conceição Santos Almeida
Leomir C. Hilário
Marcelo de Almeida Ferreri
Marcus Vinicius Oliveira Santos
Nilo Batista
Renata Vilela Rodrigues
Rogério Paes Henriques
Sarah Monteiro de C. T. Figueiredo
Teresa Cristina Carreteiro
Vera Malaguti Batista
F138 Faces contemporâneas da razão / Daniel Menezes Coelho, Eduardo Leal Cunha
organizadores. – São Paulo, SP: Concern, 2018.
247 p.
ISBN 978-85-5893-001-7
1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Razão. I. Coelho, Daniel Menezes. II. Cunha, Eduardo Leal.
CDU 159.964.2
Eixo I
Razão, modernidade e crítica
35 Razões cínicas
Ernani Chaves
77 Marx e(m) Freud: para além da sombra marxiana com Bloch e Debord
Leomir C. Hilário
Eixo II
Racionalidades e processos de subjetivação no mundo contemporâneo
Este livro reúne ensaios resultantes da participação dos autores nas confe-
rências, mesas redondas e debates do 3o Colóquio Clínica & Cultura, realizado,
em 2014, pelo Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica e Cultura Contemporânea,
com o apoio do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social1 e do Departa-
mento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, com financiamento da
CAPES (Ministério da Educação) através do edital PAEP 2014. Sua publicação
conta ainda com o apoio decisivo da Editora da UFS e o auxílio financeiro da
FAPITEC/SE. Nessa terceira edição do colóquio, procuramos ainda apresentar
resultados de pesquisas desenvolvidas no quadro de projeto de cooperação aca-
dêmica e intercâmbio contemplado com o Edital PROCAD/NF 2009 da CAPES,
que reuniu programas de pós-graduação em Psicologia e Teoria Psicanalítica das
universidades federais de Sergipe, Pará e Rio de Janeiro e teve, como tema geral,
“a dimensão ética do pensamento psicanalítico e seu impacto no estudo de fenô-
menos socioculturais.”
Como em outras edições, procuramos promover o diálogo da psicanálise
não apenas com a psicologia, mas também com a filosofia e as ciências humanas
e sociais. Por isso, o convite a uma personalidade certamente fundamental na
história desse diálogo, o professor Eugène Enriquez, que infelizmente não pôde
comparecer ao evento, mas se faz presente agora com uma entrevista que nos foi
concedida em seu apartamento, em Paris, em 2015, e da qual nos apropriamos
como manifesto em defesa de uma postura criativa e colaborativa de profissionais
das mais diversas áreas na crítica e na transformação do mundo em que vivemos.
Nosso percurso se inicia, portanto, com a entrevista concedida por Eugène
Enriquez, professor emérito da Universidade de Paris e pioneiro da Psicossocio-
1 Entre 2015 e 2017, houve uma restruturação que transformou o antigo NPPS em Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, o que permitiu inclusive a criação de uma linha de pesquisa específica em
psicanálise e cultura contemporânea, na qual se aloja atualmente nosso Grupo de Pesquisa Clínica
Psicanalítica e Cultura Contemporânea.
Racionalizar o Outro
Racionalizar o outro implica conferir-lhe inteligibilidade, submetendo-o ao
nosso modo de pensar, de modo que este não seja posto em risco pela diferença,
pela intrusão que o outro representa e que o define, antes de tudo, como um es-
trangeiro. Mas quem pode ocupar o lugar desse outro? Quem pode representar,
para as formas hegemônicas da razão, essa figura da alteridade na qual não deve-
ríamos ou não poderíamos nos reconhecer? Quais são as existências dissidentes
que precisam ser ressignificadas de acordo com o nosso imaginário atual do que
seja o homem racional?
Nosso percurso continua com pesquisas que procuram delinear algumas
dessas figuras e mostrar como, ao torná-las inteligíveis, nós também as incor-
poramos em uma determinada hierarquia, articulando desse modo inteligibi-
lidade e norma.
Marcelo de Almeida Ferreri toma como referência a obra do sociólogo es-
panhol Martin Sagrera para nos falar da juventude e da idade como sistema de
discriminação. Além de nos apresentar esse autor relativamente desconhecido
no Brasil, e sua sociologia das idades, o texto destaca sua pertinência na leitura
de conflitos sociais contemporâneos e na interrogação de certas ideias presentes
em nosso senso comum, como aquela de um protagonismo juvenil. Com uma
escrita que procura se aproximar do tom positivamente panfletário do sociólogo
aposentado e manifestante ativo, Ferreri nos mostra como as idades, em Sagrera,
são desobjetificadas e ganham caráter político, não podendo mais ser reduzidas
ao aspecto quantitativo, cronológico, que se articula a uma leitura eminente-
Eugène Enriquez:
Difícil responder a uma questão tão vasta. Digamos de imediato que eu não tenho
nada contra a razão, ainda que eu suspeite do imperialismo que ela pode exercer.
Eu diferenciarei, a partir de [Max] Weber, a racionalidade dos fins (dos valores),
da racionalidade instrumental.
A racionalidade dos valores depende do estado da sociedade, em uma época
histórica dada, e da capacidade dos sujeitos de ter uma discussão franca e au-
têntica, como dizia Habermas, sobre a consistência e a hierarquia dos diferentes
valores. Dito de outro modo, a racionalidade dos valores se baseia na qualidade
do diálogo intersubjetivo e transubjetivo que pode se desenvolver no corpo social.
Não há, então, essencialidade do mundo dos valores. São sempre os homens, a cada
momento, que o constroem, a partir da sua percepção, de suas pulsões, de seus
desejos. Ora, pulsões e desejos obedecem a uma racionalidade própria: a busca, a
vontade de satisfação. De fato, nós sabemos que as pulsões podem ser sublimadas,
mas nem mesmo a mais elevada sublimação tem o poder (e Freud bem o mostrou
em Além do princípio do prazer) de bloquear totalmente a busca da satisfação.
A racionalidade dos valores deve então reservar lugar para a racionalidade das
paixões e é apenas porque as paixões (pulsões, desejos) podem se exprimir nos
debates e controvérsias entre os humanos, que podem chegar a definir o que são
para eles os valores essenciais que tomam como referência e que querem defender.
Estes debates serão afetados ainda pelo que [Cornelius] Castoriadis denominou a
força instituinte do imaginário social. Cada sociedade elabora e dispõe assim de
certo número de significações imaginárias sociais. Assim, para tomar um exemplo
que não tenho agora tempo de trabalhar, uma sociedade arcaica, fundada sobre
o dom e o contradom, tal qual descreveu [Bronislaw] Malinowsky ou [Marcel]
Mauss não dá aos objetos o mesmo valor que uma sociedade capitalista atual. Em
consequência, o debate intersubjetivo é também e fundamentalmente um debate
transubjetivo sobre a escolha dos valores sociais a instaurar e a manter.
Assim, não pode haver para mim uma racionalidade no sentido da razão
platônica ou cartesiana. Para Platão, se raciocinamos bem, todos podem alcan-
çar a beleza, a bondade, a verdade e sair da escuridão que reina na caverna. Para
[René] Descartes, para [Francis] Bacon, o sujeito racional é aquele que vai se
tornar possuidor e senhor da natureza. Para todos esses autores, a razão é uma
essência que define o ser mesmo do homem. De minha parte, seguindo Weber,
Freud, Castoriadis, eu diria que a razão se apoia na subjetividade das paixões e
na capacidade para a intersubjetividade e é continuamente afetada pelo imagi-
nário da sociedade.
Weber não evoca apenas a racionalidade dos valores. Ele destaca também a ra-
cionalidade instrumental, aquela que aplicamos continuamente. Desde que um valor
é definido, desde que seu alvo foi caracterizado, deve-se poder não apenas expressá-
-lo pela linguagem (pois, nesse caso, isso seria crer na virtude performativa de toda
linguagem, ilusão frequente entre os políticos e os tecnocratas), mas atualizá-lo nas
ações. É preciso então implementar os meios e os métodos para atingir esse alvo, para
promover esses valores. Não se trata mais de responder à questão do porquê (por que
nós preferimos tais valores), mas à questão de como (como, logo, por quais meios e
métodos, com qual cálculo, nós podemos atingir esse alvo, promover tal fim).
Ora, atualmente, nós, com frequência o sabemos demais. Como nos tinha
mostrado, há mais de trinta anos, Michel Serres, não nos colocamos mais (ou co-
Eugène Enriquez:
Retomemos a questão do imaginário, a partir dos trabalhos de Castoriadis. Para
ele, cada indivíduo é provido de um imaginário radical e toda sociedade produz,
de maneira inconsciente (isto é, não prevista e não pretendida), para se estruturar
significações imaginárias sociais. É desse modo que ela se forma e se transforma
sem que tenha havido previamente reflexão ou ações particulares visando tal
resultado e sem que qualquer pessoa tenha uma ideia prévia do resultado.
Citando Castoriadis:
Centenas de burgueses, visitados ou não pelo espírito de Calvino e a ideia
de ascese intramundana se põem a acumular. Milhares de artesãos arrui-
nados, de camponeses esfomeados, encontram-se disponíveis para entrar
nas fábricas. Alguém inventa uma máquina a vapor, um outro um novo
tear. Filósofos e físicos tentam pensar o universo como uma grande má-
quina e descobrir as suas leis. Reis continuam a submeter e emascular a
nobreza e criam instituições nacionais. Cada um dos indivíduos e dos
grupos em questão persegue fins que lhe são próprios. Ninguém visa à
totalidade social como tal. Entretanto, o resultado é inteiramente de
outra ordem. É o capitalismo. 1
1 Castoriadis, C. (1975) L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil. Citado por Enriquez, E. (1997)
Les jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise. Paris: Desclée de Brouwer, p. 381.
2 Castoriadis, C. (1975) L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil. Citado por Enriquez, E. (1997)
Les jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise. Paris: Desclée de Brouwer, p.357.
Eugène Enriquez:
Para te responder de modo válido, é preciso voltar às razões que presidiram a
criação das disciplinas que, em ciências humanas, se forjaram contra a filosofia e
igualmente contra as outras disciplinas que teriam podido suplantá-las. Assim, a
sociologia se criou contra a filosofia da história (à qual ela permanecerá, apesar de
tudo, por muito tempo presa) e contra a psicologia. Cada disciplina quis definir
um campo de estudos, métodos de pesquisa, estruturar um modo de pensar
diferente. Este movimento é igualmente verdadeiro nas ciências da natureza.
Foi assim que física e química se separaram. O movimento científico só pôde se
solidificar porque disciplinas recusaram a filosofia, a literatura, as sínteses fáceis, e
porque elas quiseram não apenas assegurar sua autonomia, mas, frequentemente,
adquirir um estatuto de predominância. Assim, muitos sociólogos recusam toda
visão psicológica dos processos sociais e muitos psicólogos têm tendência a
reduzir os problemas sociais a questões de ordem psicológica.
De fato, a separação nem sempre foi clara. Desse modo, um sociólogo
[Georg] Simmel continuou em muitos de seus trabalhos um verdadeiro filósofo
e, mais que isso, contribuiu fortemente para a criação da psicologia social. Da
Vemos, no caso da psicanálise, que certos psicanalistas não só não querem acei-
tar outras óticas e utilizar outras disciplinas (como a sociologia, por exemplo) como
estabelecem limites e mesmo constroem muros no próprio campo psicanalítico.
Ora, fazendo isso, eles amputam a psicanálise de suas capacidades de des-
coberta. Ao contrário, se lemos uma psicanalista morta há alguns anos, e que foi
uma de minhas grandes amigas, Nathalie Zaltzman, em particular seu livro sobre
“a cura psicanalítica”, podemos nos dar conta das virtudes de uma concepção da
psicanálise que integra uma reflexão avançada sobre o social.
Para Zaltzman, uma psicanálise bem-sucedida não significa que o paciente,
afinal, se sinta melhor consigo mesmo e reforce seu eu e as pretensões narcísicas
deste. O que ela visa é que o analisante chegue a compreender e a viver com seus
sintomas e consiga se virar, ou seja, encontre outras soluções temporárias para
seus problemas, que não aquelas utilizadas anteriormente; e que o analisante não
se torne um indivíduo contente de si, narcísico, posto que exista essa tentação,
após ter falado tanto de si durante vários anos. E, sobretudo, que o paciente sinta
fazer parte da espécie humana, seja apto a compreender que, o que acontece ao
outro, acontece também a ele mesmo e que ele tem, portanto, um dever de fra-
ternidade para com o outro. O que Zaltzman visa é que os indivíduos tornem-se
mais humanos, mais próximos uns dos outros, mais resistentes a todas as formas
de injustiça social. Assim, a psicanálise que ela preconiza não deixa de lado os
fenômenos sociais, mas, ao contrário, os integra.
Hoje, vemos, cada vez mais, psicanalistas se debruçarem sobre o “mal-estar” dos
indivíduos ligado ao “mal-estar da sociedade inteira” ou ao mal-estar que eles sentem
no trabalho que eles devem realizar nas organizações sociais que os empregam. É ver-
dade que certos analistas resistem, mas eles são cada vez menos numerosos.
É a mesma aventura que foi vivida pelos psicossociólogos. Nós nos demos con-
ta, frequentemente, em muitos países simultaneamente (notadamente USA, Grã-Bre-
tanha, França, Itália, Canadá e Brasil), que era preciso construir uma disciplina que
não privilegiasse a psicologia ou a sociologia. Com efeito, a sociedade não imprime
sua marca de modo uniforme em todos os indivíduos. Ela o faz sempre através de
estruturas intermediárias que são as instituições sociais (por exemplo: o Estado, o
exército, o sistema educativo, a família), as organizações sociais (empresa, escola, hos-
pital, administração pública) e os grupos mais ou menos estabilizados dos quais nós
fazemos parte (grupo de referência, associação, agrupamentos temporárias etc.).
Esta piada, este gracejo, esta frase de espírito, este chiste, este Witz, que soa
aos ouvidos de hoje tão insuportavelmente machista, sexista, preconceituoso,
sujeito inclusive a sanções legais, se encontra no texto de Freud, O chiste e sua
relação com o inconsciente, de 1905 (FREUD, 1905/1992, p. 125) e foi extraído dos
“Registros da crônica genealógica do Príncipe Carnaval”. Se lembrarmos logo o
primeiro parágrafo de seu livro sobre o chiste, veremos que Freud conhece bem
as implicações estéticas, psicológicas e filosóficas que estão em jogo quando se
trata do “esclarecimento (Aufklärung) acerca da essência e das relações do chiste”
(p. 25). Tais implicações sinalizam, por sua vez, para o grau de complexidade que
a problemática do chiste introduziu na cultura germânica, na medida em que era
necessário, por exemplo, estabelecer sua singularidade no interior de um campo
que ainda hoje comporta outras manifestações a ele assemelhadas, tais como o
humor e o cômico. Questões que não escapam a Freud, como a pouco afirmei e
diante das quais ele não hesita em se posicionar.
Questões que me são caras e que por isso sempre sou tentado a me deter
mais longamente nelas. Mas, este não é o momento mais apropriado para isso.
Aqui vou me limitar a expor, numa espécie de resumo bastante grosseiro, as
considerações de Freud a propósito do chiste da mulher como sombrinha. Estas
considerações se encontram na segunda parte do livro sobre o chiste, intitulada
Essa forma de chiste, a cínica, possui, por sua vez, uma técnica que lhe é pró-
pria, tal como o chiste da mulher = sombrinha o mostra: trata-se de “uma com-
paração desconcertante, aparentemente impossível de ser feita, mas que como
vimos, não tem graça” (p. 125). Não tem graça, acrescento eu, mas rimos, mesmo
que esse riso seja “amarelo”. Nesse ponto, Freud avança sua própria interpretação:
A comparação poderia ser explicada da seguinte maneira: Casamos, para
nos assegurarmos do combate à sensualidade e então se evidencia que o
casamento não constitui nenhuma satisfação de uma necessidade forte,
exatamente como pegamos uma sombrinha para nos proteger da chuva e
então, na chuva, ficamos molhados. ( FREUD, 1905/1992, p.125)
Ou ainda:
Os objetos do ataque do chiste podem ser tanto instituições quanto pes-
soas, na medida em que elas sejam portadoras de princípios da moral
ou da religião, de visões do mundo, que fruam com tais perspectivas, de
tal modo que o seu protesto contra elas não possa aparecer a não ser sob
a máscara do chiste, de fato, de um chiste encoberto por sua fachada.
(FREUD, 1905/1992, p. 120)
Referências
1 Ao traduzir a palavra alemã Aufklärung por Esclarecimento, tomamos como referência os argumentos
apresentados por Almeida (1985), responsável pela tradução da Dialética do Esclarecimento, de Adorno
e Horkheimer. Convém destacar que, embora tenhamos optado pelo uso do termo Esclarecimento,
eventualmente o leitor irá encontrar as palavras “Ilustração” ou “ilustrados”, nos casos em que citamos
diretamente um trecho no qual o autor escolheu essa tradução.
2 Os “quarenta anos”, aos quais Möhsen se referia, dizem respeito ao reinado de “Frederico, o Grande”,
que governou a Prússia entre as décadas de 1740 e 1780. Ao assumir o trono, Frederico promoveu
reformas que visavam combater as leis de censura, bem como propagar a tolerância às divergentes
opiniões acerca de questões religiosas. A esse respeito, Cf. Klein, 1784/1996.
mem como tal, podem às vezes ser nocivas para ele como cidadão” (p. 14). Posto
isso, ele advertiu aos amigos do Esclarecimento:
Quanto mais nobre é uma coisa em sua perfeição – diz um escritor he-
breu –, tão mais terrível é em sua deterioração. Um pedaço de madeira
podre não é tão feio como uma flor murcha; esta não é tão repugnante
quanto um animal em decomposição; e este, por sua vez, não é tão terrí-
vel quanto o homem em sua corrupção. Assim também acontece com a
cultura e a Ilustração. Quanto mais nobres forem em seu apogeu, mais
terríveis são em sua corrupção e perversão.
O mau uso da Ilustração debilita o sentimento moral, leva ao egoísmo, à
irreligião e à anarquia. O mau uso da cultura produz luxúria, hipocrisia,
fraqueza, superstição e escravidão (MENDELSSOHN, 1784/1989, p. 15, tra-
dução nossa).
3 No século XVI, Étienne de La Boétie escreveu o célebre Discurso sobre a Servidão Voluntária, obra
que antecipou em mais de 200 anos alguns dos argumentos presentes no texto de Kant sobre o
Esclarecimento. Com efeito, uma questão se colocava para a reflexão de La Boétie: como seria
possível que a maioria das pessoas obedecesse a um só homem, não sob o efeito de terror, mas
voluntariamente? O espanto de La Boétie o levou a recusar que a servidão fosse uma evidência
natural e a buscar as suas origens nos acontecimentos históricos. De uma maneira bastante parecida
com Kant, o autor advertiu, em tom de apologia, aos covardes e preguiçosos: “tomai a resolução
de não mais servirdes e sereis livres” (LA BOETIE, 1580/1997, p. 26). Em suma, bastaria que os
indivíduos se recusassem a servir para que o tirano enfraquecesse, pois não é senão por culpa
daqueles que este os oprime.
Diante do que foi exposto, pode-se entrever que, desde o debate em torno
do Esclarecimento e seus limites, no século XVIII, à sua retomada por Foucault,
no século XX, o que se colocava em questão era o problema do governo. Cabe
salientar que a desconfiança dos governantes diante de um projeto que visava à
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1 Por visão negativa do homem, Limongi (2002) aponta que, na perspectiva de Hobbes, os homens
seriam maus por natureza e naturalmente inimigos uns dos outros. Portanto, nenhuma aliança entre
eles poderia se consolidar, não fosse a intervenção de um poder absoluto, coercitivo e punitivo o qual
viria a conter o egoísmo inerente à natureza humana e viabilizaria a paz entre os homens.
2 O Direito de Natureza consistiria na liberdade que cada homem possuiria de usar seu próprio poder da
maneira que quisesse para a preservação da sua vida e, consequentemente, de fazer tudo aquilo que o
seu próprio julgamento e razão lhe indicassem como meios mais adequados para esse fim (HOBBES,
1651/2008).
agir, mas que calculem suas condutas a partir do modo como desejariam expri-
mir suas vontades e paixões.
Os pressupostos teóricos apresentados por Hobbes vieram posteriormente a
exercer grande influência sobre o pensamento de Rousseau. Entretanto, divergên-
cias teóricas motivaram este último a defender uma posição contrária à leitura de
seu predecessor a respeito das características e condições do estado de natureza
e dos fundamentos do contrato social. A teoria do contrato social seguiria uma
nova via a partir da elaboração do princípio da soberania do povo, apresentado
por Rousseau no seu texto O contrato social, publicado no ano de 1762. A novi-
dade em sua doutrina consistia na declaração de que a soberania deveria residir
no povo, não podendo haver outro soberano além do povo. Portanto, o Estado
republicano consistiria na única forma legítima de Estado.
A descrição do homem no estado de natureza feita por Rousseau aponta
para um ser primitivo, nômade, que não mantém relações com outros de sua
espécie devido ao distanciamento geográfico e ainda não desenvolveu formas
de raciocínio mais complexas, de tal modo que não possui linguagem para se
comunicar (ROUSSEAU, 1755/2006). Desse modo, a doutrina rousseauniana
defende que a maior parte das paixões tem sua origem e desenvolvimento no
convívio permanente dos homens com seus semelhantes. Segundo essa pers-
pectiva, as paixões seriam capazes de unir os homens tanto quanto seriam
responsáveis por dividi-los, apresentando-se como uma fonte perpétua de dis-
córdia. Podemos seguramente inferir que Rousseau estaria de acordo com o
argumento hobbesiano a respeito das paixões e dos desejos serem uma fonte
geradora de discórdia entre os homens, contudo, o autor faz a ressalva de que
esta discórdia ocorreria apenas a partir do momento em que o homem passa-
ria a conviver na proximidade de seus semelhantes. De acordo com Derathé
(2009), para Rousseau, a condição inicial do estado de natureza seria de dis-
persão ou isolamento dos homens, fator que não constituiria uma conjuntura
favorável ao desenvolvimento das paixões. O homem selvagem seria um ser
solitário, sem relações com outros semelhantes, de modo que não seria levado
a comparar sua sorte à dos outros.
Um dos principais questionamentos elaborados por Rousseau em oposição
à perspectiva de Hobbes estaria relacionado ao seu não reconhecimento do sen-
timento de piedade, virtude natural que o homem possui ao ver sofrer seu se-
3 Por liberdade natural, compreende-se o direito ilimitado dos homens a tudo o que desejam e podem
alcançar (ROUSSEAU, 1762/2006).
4 Em Freud e a filosofia, Joel Birman (2003) destaca que, embora não tenha sido um filósofo, haveria
uma interlocução latente da psicanálise com a filosofia que atravessaria a totalidade do discurso
freudiano.
que viriam a ser os dois tabus fundamentais do sistema totêmico, quais sejam: a
proibição da morte do totem – substituto do pai – e a renúncia às mulheres que
haviam sido libertadas. Ademais, o autor sublinha que não poderia haver socie-
dade sem esse pacto de renúncia que a lei institui.
Segundo Millot (1987), as leis instituídas a partir do assassinato primordial
– a interdição do incesto e do assassinato – ao regularem o exercício do poder,
passam a constituir o fundamento de todas as sociedades humanas. Nos dizeres
de Enriquez (1990, p.34), “passamos de um mundo de relações de força a um
mundo de relações de aliança e solidariedade, de um estado de natureza a um
estado de direito”, no qual a lei seria encarnada por aquele que representava em
vida o arbítrio total.
De acordo com Peixoto-Júnior (1999), a primeira longa exposição freudia-
na acerca do problema do antagonismo entre a civilização e a vida pulsional dos
sujeitos, que perpassa toda a leitura freudiana sobre o social, encontra-se em um
texto de 1908, intitulado A moral sexual ‘cultural’ e a nervosidade moderna. No
texto mencionado, Freud defende a tese de que:
sob o império de uma moral sexual cultural a saúde e a eficiência dos
indivíduos esteja sujeita a danos e que tais prejuízos causados pelos sacri-
fícios que lhe são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que
indiretamente cheguem a colocar também em perigo os objetivos cultu-
rais (FREUD, 1908/1996, p.163).
Sua relação com esse campo discursivo seria provavelmente indireta, pois esses
textos se inscreviam no arquivo discursivo da cultura europeia, na segunda me-
tade do século XIX.
Apontamos anteriormente que em Totem e Tabu, Freud enunciou, através
de uma narrativa mítica, o advento da civilização e a tese da instituição do con-
trato social. O autor acreditava que o papel atribuído ao sentimento de culpa
como instância reguladora da força pulsional possibilitaria o estabelecimento
de um convívio pacífico, marcado pela igualdade dos sujeitos. De acordo com
Birman (1997), o discurso freudiano enunciado no texto de 1913 se aproximaria
da atribuição feita por Rousseau ao sentimento de piedade como sendo funda-
mental para a manutenção da ordem social. Em termos gerais, Rousseau atribui
à piedade face ao outro o valor fundamental que faria com que cada indivíduo
estabelecesse um limite ao seu poder absoluto, alienando uma parcela do seu
direito natural para tornar possível a constituição de uma ordem social que re-
gularia a relação entre todos.
Posteriormente, em Reflexões para os tempos de guerra e morte, a leitura
freudiana sobre a ordem política sofreu transformações para fundamentar o novo
limiar da crueldade que a experiência da guerra revelara. Com efeito, se inicial-
mente Freud opunha o registro das pulsões sexuais ao das pulsões de autoconser-
vação, em Além do principio de prazer o discurso freudiano passou a opor a pul-
são de vida e a pulsão de morte. De acordo com Birman (1997), em decorrência
dessa transformação teórica, o discurso freudiano também transformou as suas
referências teóricas no campo da filosofia política. Se anteriormente a sua maior
referência era o discurso de Rousseau, doravante, o discurso freudiano passou a
se referir à filosofia política de Hobbes.
Nessa perspectiva, a partir do enunciado da pulsão de morte, notadamen-
te no texto Mal-estar na cultura, o discurso freudiano aproximou-se dos pressu-
postos de Hobbes, mais especificamente da hipótese segundo a qual “o homem
é o lobo do homem”. Como vimos, de modo geral, a perspectiva hobbesiana
afirmaria o potencial de violência e de crueldade presente nos sujeitos ao carac-
terizar o contexto do estado de natureza como sendo de uma guerra contínua,
na medida em que os homens lutariam contra todos, valendo-se para isso da
violência em nome da manutenção da sobrevivência. Em prol da preservação
da vida e dos direitos naturais, o homem teria abdicado de sua violência ori-
Referências
1 Cabe sublinhar aqui a influência comumente esquecida de León Trotsky para o intento de Alfred Adler
de pensar o marxismo com a psicanálise, portanto para o início desse diálogo entre Marx e Freud.
Cito dois motivos para defender esta influência: primeiro que sua esposa era Raissa Epstein, russa
e socialista, amiga de Trotsky. Sobre o impacto dela sobre o pensamento dele, cf. Santiago-Valles
(2009); segundo que Trotsky (1924/1979), na contracorrente do pensamento russo da época, defendia
que declarar a psicanálise como incompatível com o marxismo e voltar às costas a Freud era um ato
demasiado simples. Vale sublinhar, ainda, que Trotsky viveu em Viena de 1907 a 1914, onde dirigiu a
revista Pravda com David Riazanov (responsável pela primeira edição das obras completas de Marx
e Engels). Além disso, foi Adolf Yoffe, então paciente de Adler e também colaborador da revista, que
apresentou a psicanálise para o revolucionário russo. Ambos tinham uma amizade tão intensa que,
segundo Isaac Deutscher (1954/2007, p. 178), o suicídio de Yoffe, em 1927, foi um protesto à expulsão
de Trotsky do partido bolchevique. É preciso levar em consideração essa dimensão histórica na relação
entre marxismo e psicanálise, mais além da fria dimensão epistemológica e conceitual.
2 Como esta argumentação, por exemplo: “Como a necessidade de todos seriam satisfeitas, ninguém
teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o
trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema
comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas
sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão
insustentável” (FREUD, 1930/1996, p. 118).
3 Frase retirada de uma das cartas entre Freud e Arnold Zweig: “Apesar de toda minha insatisfação com
o atual sistema econômico, não tenho esperanças de que o caminho seguido pelos soviéticos conduza
a uma melhora. Na verdade, qualquer esperança que eu possa ter nutrido desapareceu nesta década
de governo soviético. Continuo um liberal da velha escola” (E. L. Freud, 1970, p. 21).
4 No entanto, nem sempre Bloch adotou esta conduta. Um dos motivos pelos quais não foi convidado
por Max Horkheimer a participar do Instituto de Investigação Social foi sua defesa do stalinismo,
inclusive dos “Processos de Moscou”, como ficaram conhecidos os processos contra dissidentes
comunistas durante os anos 1936-37, que caçou os trotskistas e assassinou nomes como Isaak Rubin,
Evgeni Pachukanis, além da velha guarda formada por Kamenev, Zinoiev, Bujárin etc. Cf. Kortz (2011) e
o belo livro de Koestler (1964). Tais processos tiveram impacto também para a relação histórica entre
marxismo e psicanálise, uma vez que Sabina Spielrein, ex-paciente de Jung, socialista e introdutora da
noção de pulsão de morte na psicanálise também foi perseguida pelo stalinismo. O fato é que, apesar
dessa defesa, o pensamento heterodoxo e utópico de Bloch estava em completo desacordo com a
ortodoxia marxista-leninista, como ficou provado a partir de 1956. Esse dilema entre intelectual (crítica)
e partido (ortodoxia) também foi vivido por muitos de sua geração, como Brecht, Lukács e Sartre.
5 “O comunismo não é, para nós, um estado (Zustand) que deve ser implantado, um ideal ao qual a
realidade [haverá] de se sujeitar. Nós chamamos de comunismo o movimento real que suspende e
supera (aufhebt) o estado de coisas atual”. (MARX & ENGELS, 1845-46/2007, p. 59)
Ele encontra nos sonhos diurnos o fundamento para defender essa utopia
concreta e cotidiana, por se tratar de um evento cotidiano e universal, ou seja,
todos nós sonhamos dormindo e sonhamos acordados. Os sonhos noturnos te-
riam sido alvo de investigação de Freud. De certo modo, os sonhos seriam um
caminho para o reprimido, para os desejos não realizados no passado. De algum
modo, é o passado que vem à tona no sonho noturno. O seu conteúdo é oculto,
dissimulado, simbólico.
Diferentemente de Freud, Ernst Bloch se interessou pelo que chamou de so-
nhos diurnos. Enquanto os sonhos noturnos seriam marcados por uma realização
oculta e passada, o sonho diurno é orientado para frente, para além do presente.
O sujeito tem controle sobre o sonho diurno e produz no interior dele um livre
curso. Em termos psicanalíticos: é o eu que controla o sonho diurno, de modo
que ele está livre, isto é, não é constrangido moralmente pelo supereu. Ou seja,
estes sonhos são provocados pela vontade, estando, portanto, ao alcance da razão,
sendo possível manipulá-los, criticá-los, dialogar com estas representações: o ego
está sempre presente; enquanto, no sonho noturno, ele é posto entre parênteses
pela ação do inconsciente.
O sonho diurno é motivado pela melhoria da vida cotidiana por meio da
transcendência do presente para o futuro: “O que o sujeito aqui fareja não é o bafo
do porão, mas o ar da manhã”, diz Bloch (1959/2005, p. 117), referindo-se aos
sonhos diurnos. Em resumo, para Bloch, a esperança não é uma diretriz ou uma
orientação da ação, mas algo como um princípio ou, mais do que isso, uma causa
de ação, uma fonte de práxis transformadora. Sua defesa é a de que a utopia faz
parte da estrutura pulsional histórica do sujeito moderno, pois ela é a “expressão
de uma constante humana” (FURTER, 1966, p. 7).
Bloch busca construir as bases para uma utopia imanente, surgida não da
exterioridade das ideias futuras elaboradas, mas da materialidade dos fenômenos
da vida cotidiana. Sua ligação com Marx é mais forte aqui, isto é, na crítica da
economia política se faz oposição ao capitalismo não por meio de uma sociedade
ideal futura, mas pela investigação das mediações produzidas por esta mesma
forma social. Ou seja, é como se Marx dissesse: “esta sociedade pretende produzir
trocas livres e justas, vamos ver se ela cumpre esta pretensão; pretende produzir
sujeitos juridicamente iguais, vamos ver se isso reside na esfera formal e material
ao mesmo tempo etc.”. A partir das contradições internas do capitalismo é que se
Com isso, ele não está propondo a ideia de uma sociedade completamente trans-
parente. Na verdade, está, da mesma forma que Freud, criticando a situação na
qual aquilo que é construído pelos indivíduos passe a dominá-los. Assim como
Freud entendia que o sujeito não deve ser dominado/prejudicado pelos seus sin-
tomas, Debord propõe que os indivíduos não sejam coagidos pela sociedade que
eles mesmos produzem.
É preciso demarcar que, em Debord, a economia (o ça économique) não se
refere apenas ao domínio da troca e do mercado, mas sim a uma esfera que se
autonomizou da sociedade e passou a determiná-la e subordiná-la. Isto significa
que Freud emerge no discurso crítico de Debord no momento em que ele procura
pensar a superação de uma forma social heterônoma. Se, na clínica freudiana, o
sujeito, por vezes, se encontra enredado nos produtos de seus sofrimentos, cujo
contexto é a sua história individual, isto é, aquilo que ele produziu e experimen-
tou se lhe aparece como algo estranhado e alheio (tomemos como exemplo o sin-
toma histérico no qual ocorre a paralisação de um membro sem lesão orgânica),
na sociedade do espetáculo, o produto da ação humana – as relações sociais que
constituem a sociedade – aparece aos sujeitos como algo externo ao qual devem
obedecer e submeter.
O reencontro do produtor com o produto se dá, na escala clínica, em en-
contro aos mecanismos de defesa e aos processos de elaboração, dentre outros, já
na escala social, “o sujeito só pode emergir da sociedade, isto é, da luta que existe
nela mesma. Sua existência possível depende do resultado da luta de classes que
se revela como o produto e o produtor” (DEBORD, 1967/1997, p. 35). A luta de
classes não é aquilo que denota a derrota de um bloco social contra outro, como
um embate entre dois megassujeitos autoconscientes de seus projetos históricos
antagônicos. Ela é, na verdade, o meio pelo qual advém não o antagonismo social,
mas a contradição desta forma social. Assim como em Freud, não se trata de sub-
sumir o inconsciente no consciente, a questão é de destruir os mecanismos de es-
tranhamento que produzem sofrimento, compreender as forças que são exercidas
na e contra a sociedade.
Além disso, de mobilizar Freud contra essa forma social, Debord pensa
Marx para além do marxismo. Seus conceitos de espetacular difuso e espetacu-
lar concentrado são exemplos disso. Debord se interessa em compreender de que
maneira os dois lados da Guerra Fria representavam, em verdade, lados opostos
Voltando a Bloch e Debord, são dois autores muito pouco lidos atualmente
e vistos por alguns como “cachorros mortos”, mesma expressão que foi utilizada
para Hegel e Marx, para denotar que seus pensamentos já não produzem nada
na realidade. O mundo vivido por eles não é assim tão diferente do nosso e hoje,
mais do que nunca, é necessário lê-los, compreendê-los e atualizá-los.
Afirmar isso pode parecer esquisito, pois, afinal de contas, houve uma in-
flexão histórica de amplitude global nos anos 1989-1991 com a queda do Muro
de Berlim e a dissolução do regime soviético. Para muitos, a era das ideolo-
gias havia terminado, o capitalismo saia vitorioso e, na fórmula mais acabada
de Francis Fukuyama, a história havia chegado ao seu fim, levando consigo o
marxismo e tudo o que ele almejava. Mas será isso correto? Depois de quase três
décadas de hegemonia do neoliberalismo em âmbito mundial e o surgimento
de guerras civis moleculares (ENZENSBERGER, 1995), o sonho da paz mundial
nunca esteve tão distante.
Muito mais do que uma ruptura, nosso mundo se assemelha a uma inten-
sificação dos traços constitutivos da sociedade do século XX. Se outrora havia
um grande muro separando dois supostos projetos diferentes de sociedade, hoje
temos vários: o muro que separa os Estados Unidos do México, construído em
1994 para conter a imigração ilegal; o muro da Cisjordânia que, desde 2002, sepa-
ra os palestinos dos israelenses, chamado pelo governo de Israel como “Cerca de
Separação ou Segurança” para evitar a infiltração de “terroristas”, isolando mais
de 450 mil pessoas; os muros que separam Espanha e Marrocos nas cidades de
Melilla, Ceuta e do Ilhote de Vélez de la Gomera; os muros contra ciganos na
Eslováquia, em Kosice; o muro entre Turquia e Grécia, construído em 2012, ao
longo da margem do rio Evros, erguido em meio à crise grega e que custou 3,2
milhões de euros; dentre tantos outros.
Posso ainda mencionar, com o risco de estar sendo um pouco forçoso, o
“muro marítimo” do Mediterrâneo6, através do qual imigrantes tentam chegar à
Europa. Contra isso, vale sublinhar, que líderes europeus propuseram destruir
6 Para se ter uma ideia do fluxo de imigrantes, a operação “Mare Nostrum” da Itália, que consistia em
resgatar os imigrantes em alto mar, salvou a vida de 150 mil em um só ano, o tempo que durou esta
operação, entre 2013 e 2014. Esta operação se iniciou após os naufrágios em Lampedusa (uma ilha
italiana) que provocaram a morte de mais de 400 pessoas, cuja imagem dos corpos boiando no mar
chocou o mundo.
exploração econômica: é não ser capaz de ser explorado, eis o verdadeiro “horror
econômico” (FORRESTER, 2000).
O psicanalista Bertrand Ogilvie (2013), nos últimos anos, esteve atento a
este fenômeno. Para ele, apesar das constantes tentativas de situar a violência em
alguns campos, como urbano, étnico, gênero etc., convém não se esquecer dessa
violência constitutiva do capitalismo que consiste em descartabilizar os sujeitos.
No Brasil, como em outros lugares do mundo, esses sujeitos descartados inundam
as periferias e as prisões.
Penso que um dos problemas para o diálogo entre Marx e Freud, no século
XXI, diz respeito a como uma forma social é capaz de prescindir dos sujeitos que
a compõem e, também, de que tipo de subjetividade é essa que se forja nesses pro-
cessos de descartabilidade. Além de sujeitos reprimidos, perversos, neuróticos,
psicóticos, dentre outras categorias mais clássicas, na passagem do século XXI
temos, como tendência de produção de subjetividade do capitalismo em tempo
de crise, os sujeitos supérfluos como materialidade da experiência numa socieda-
de em decomposição.
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Mach e Freud
Freud praticamente copia Mach em sua pequena exposição sobre a forma
(sobretudo, a gênese) de uma teoria científica, que abre o texto metapsicológico
sobre as pulsões, de 1915 (Sobre isso, ver ASSOUN, 1983, e FULGENCIO, 2016).
Destaquemos do texto de Freud (ou de Mach): o ponto de partida na descri-
ção dos fenômenos, para depois agrupá-los, ordená-los e relacioná-los. Por ou-
tro lado, o papel das ideias abstratas, inevitáveis já na descrição, tomadas “daqui
e dali, não certamente só da experiência”. Com isso nascem os conceitos, que
“devem comportar um certo grau de indeterminação”, e são repetidamente apli-
cados e confrontados ao material. Apenas parece que tais ideias são retiradas do
material. O material, na verdade, lhes é subordinado. O conceito então é uma
“convenção”, mas uma convenção não totalmente arbitrária, pois é determina-
da por “significativas relações com o material empírico”. Essas relações, nós as
“acreditamos adivinhar”, ainda antes que possamos reconhecer e demonstrar. Só
muito depois, com muita exploração, pode-se limpar essas convenções, e torná-
-las definições. Mas o progresso da ciência também não tolera definições rígidas.
Conceitos fundamentais experimentam constante alteração de conteúdo. Isso é o
que se lê, grosso modo, no início do texto de Freud sobre as Pulsões. Segue-se daí a
apresentação do conceito fundamental, isto é, “um conceito básico assim conven-
cional”, obscuro, mas indispensável, o de pulsão (FREUD, 1915/2010, p. 52-53).
Do texto de Freud, podemos depreender que as relações entre observação
(descrição dos fenômenos) e especulação (ideias abstratas) nunca são simples.
Há uma articulação tensa entre observação e especulação desde o início, e parece
difícil estabelecer alguma hierarquia nessa relação. Tem-se a impressão, aliás, que
elas trocam de lugar nesse pequeno trecho de Freud. Partimos da descrição dos
fenômenos, de onde poderíamos retirar ideias, e acabamos com ideias a partir
das quais organizamos os fenômenos. Mais ainda, tudo isso é necessariamente
frouxo: é frouxo no início, pois não se tem certeza da adequação da ideia abstrata
ao material; é frouxo no final, posto que exista essa intolerância do progresso da
ciência quanto a definições rígidas. É um jogo de adivinhação, antes que de reco-
nhecimento e demonstração.
Esse jogo frouxo encontra seu rigor em outros lugares: na relação com o
problema, por um lado, e na relação com a descoberta, por outro. Assim, obser-
var e especular não são, nem um nem outro, nosso ponto de partida. Parte-se
sempre de um problema, que o cientista se propõe a resolver por meio de uma
descoberta (de uma relação ainda não observada entre fenômenos). A descoberta
acaba implicando novos problemas, reiniciando o circuito. Dessa forma, temos
muito mais um rigor do problema e da descoberta, que um rigor da observação
(por exemplo, fenomenológica ou empirista) ou da especulação (por exemplo,
metafísica ou racionalista).
É interessante notar, já que esbarramos com o assunto das relações entre a
filosofia e a ciência, que o projeto de Mach é o de “reduzir, tanto quanto possível,
a psicologia da pesquisa científica a pensamentos autóctones da ciência” (1905,
citado por ASSOUN, 1983, p. 87), ou seja, Mach recusa à filosofia o papel de or-
ganizadora da “psicologia da pesquisa científica”, preferindo, no lugar disso, um
pensamento autóctone, todo ele apoiado no que a ciência pôde produzir.
Como fica claro, a leitura de Mach que apresentamos por ora é de segun-
da mão e, por isso, está além de nossos esforços, reconstituir seu pensamento.
Mas cremos que se possa afirmar que a saída de Mach para a psicologia da pes-
quisa científica se dá pela via de uma crítica à teoria do sujeito, substituindo-a
por consequências da obra de Darwin. Quem conduz a ciência, o agente de seu
conhecimento, não é um sujeito abstrato, mas um corpo que precisa sobreviver
(FEYERABEND, 1987/2009).
Há muitas consequências nisso. Um corpo não está separado do mundo.
Um “problema” para um corpo é da ordem da sobrevivência, não da ordem da
razão. Um corpo sempre conhece e pode-se dizer que é portador de um conheci-
mento biologicamente demarcado, resultado de milhões de experimentos. Quan-
do falamos em corpo, e não em sujeito, há continuidade entre a ameba que sabe
onde lançar seu pseudópodo, o leão que conhece a rota migratória da sua caça, o
bebê que sabe sugar o seio, o artesão que sabe moldar a argila, a criança que sabe
mexer no smartphone, o cientista que sabe imaginar um experimento.
Em Freud, também encontramos essa mesma recusa à filosofia como aquilo
que poderia organizar e guiar o campo do conhecimento. A figura do filósofo
surge em sua obra, lembremos, pelos versos divertidos de Heine: “com seus gor-
ros de dormir e os andrajos do pijama, tapa os buracos do edifício do universo”
(FREUD, 1933/2010, p. 326).
Quanto ao agente do conhecimento, em Freud ele é certamente um eu –
que quer viver, mas também quer ser amado; que é um conjunto de traços de
identificação com os outros a quem ama e de quem deseja amor; mas é também,
não obstante, um isso – busca irrefreada de satisfação, lugar de acúmulo de uma
herança filogenética arcaica. Por outra via, é preciso dizer que a sobrevivência,
na obra de Freud, nunca está sozinha como força motriz de nossos corpos. Ao
lado da autoconservação, Freud indica a pulsão sexual: um corpo não quer ape-
nas sobreviver, ou fazer uma espécie sobreviver, mas também quer gozar, quer
ter prazer, quer ter satisfação. Mais tardiamente, a postulação de uma pulsão
de morte indica que tal corpo, que quer sobreviver, também deseja morrer. É
evidentemente diferente pensar que o agente do conhecimento é movido pela
sobrevivência, e pensar, por outro lado, que ele é movido também pelo desejo de
gozar, ou pelo desejo de morrer.
Em Mach e em Freud, portanto, não há lugar para uma teoria do conhe-
cimento desinteressado, neutro, construído para além de qualquer desejo. O
conhecimento não é um fim, mas um meio para a sobrevivência, para o gozo,
ou mesmo para a morte. O conhecimento não é filho da Razão, mas de um
processo de adaptação que tem história e que deseja – deseja pelo menos sobre-
viver, mas talvez também gozar e quem sabe inclusive morrer. O que quer que
se deseje, quando as coisas estão colocadas dessa forma, tanto Mach quanto
Freud estão definitivamente amarrados ao que Feyerabend chama de tradições
históricas do pensamento.
Mach e Feyerabend
Feyerabend é uma figura controversa. Sua obra, marcada pelo teor crítico, é
também cheia de humor, de trapaças e de argumentos que carecem de consistên-
Vale-tudo performático
Sobre o “vale tudo” de Contra o método (Feyerabend, 1975/2007), é preciso
esclarecer como ele se dá historicamente. As primeiras linhas do prefácio do
livro nos informam que o projeto inicial era intitulado “A favor e contra o mé-
todo”. Seria escrito com Imre Lakatos, discípulo de Popper, de quem era grande
amigo. Feyerabend escreveria suas “ideias estranhas”, Lakatos faria uma répli-
ca, eles se divertiriam muito, e publicariam a coisa toda. Lakatos, no entanto,
morre antes que lhe fosse possível escrever sua parte. Feyerabend, então, publi-
cou o que havia produzido sozinho. Disso tudo, depreende-se que o “qualquer
coisa vale” era realmente performático. Por um lado, indica sim que se trata de
uma crítica a um quadro de valores (do que vale e do que não vale) universal e
permanente na história. Mas por outro lado, era – é – uma provocação para a
réplica de um amigo.
que aquele que se defende mantém relações pessoais com alguém de importância
– pode ser o filho do senador, ou mesmo o seu motorista.
Ainda, MD Magno (2008) usa pessoa para produzir uma diferenciação
conceitual não apenas com o indivíduo, mas também com o sujeito lacaniano,
o que indicará um caminho de pesquisa e de análise no qual a concepção é a de
que alguém, uma pessoa, é um nó numa rede de extensão infinita, fundamen-
talmente amarrado no resto da rede (essa rede não é puramente simbólica, mas
inclui também as determinações físicas, biológicas etc. – estamos amarrados às
leis da gravitação, ao alimento que precisamos comer, ao amor do outro etc.), e
não a concepção de que um “eu” é uma entidade autônoma individual, ou ainda
a concepção de que um “eu” é um intervalo vazio entre dois significantes. Isso
não impede, claro, que a pessoa diga “eu” e mesmo revolte-se contra as linhas
que as amarram.
Então, pessoa remete ao problema da moral e da valoração, em primeiro lu-
gar, e por essa via remete a uma ligação com o mundo e com o outro. A tese básica
de Feyerabend é a de que ciência é um empreendimento de pessoas, inseparáveis
de seu mundo, de seus outros e de seus valores, e não de indivíduos ou de sujeitos.
Essa tese não pode, no entanto, obliterar a outra, que destacamos na articulação
entre Freud e Mach, ou seja, que a pessoa em questão é um corpo, que precisa
sobreviver e que quer gozar (senão morrer).
A especulação
Dito isso tudo, podemos partir para uma breve discussão sobre um ponto
que é importante para Mach, e também para Freud e Feyerabend: o problema da
especulação.
Em Freud e em Mach, a especulação é tão essencial quanto os fatos. Como
vimos, antes, no trecho do texto sobre as pulsões, elas estão presentes desde o
início da pesquisa, e organizam os próprios fatos, o material empírico. Em Freud,
sabemos que isso acaba por definir a metapsicologia, por seu caráter especula-
tivo, como uma bruxaria ou como produção de mitos. Em Mach, não se dá de
forma diferente. Conceitos fundamentais em física, tais como força e átomo, para
ele são artifícios intelectuais especulativos aparentados com as antigas mitologias
da natureza, e não podem ser compreendidas como definições bem ajustadas ao
material empírico. É importante salientar que essa atividade especulativa, como
bem lembram Assoun (1983) e Fulgencio (2016), tem caráter heurístico, isto é,
importam porque levam a novas descobertas, revelam novos materiais, fazem o
conhecimento – o conhecimento dos fatos – andar.
Não obstante, é preciso tentar compreender no que consiste exatamente essa
atividade de especulação. Feyerabend (1987/2009) discute o problema, confron-
tando a posição de Mach com a de Einstein. Para este último, a atividade espe-
culativa seria um produto da criação livre da mente humana. Ora, em Mach (em
Freud também, dado que para ele existe determinismo psíquico) não há nenhum
espaço para a criação livre da mente humana. Quando um cientista arrisca a pos-
tulação de um princípio de longo alcance, o mito ou a ficção que produz deve ser
compreendido não à luz de uma suposta liberdade mental, mas da dependência
de muitos fatores históricos, que compreendem um acúmulo de determinações
que atravessam a biologia, a tradição e a experiência pessoal. No lugar de uma
mente humana livre e criadora, Mach aponta para o instinto, ou os “elementos
instintivos da ciência”, ou um “conhecimento instintivo”: a atividade especulati-
va está menos ligada à livre criação de conceitos do que a uma intuição ou uma
convicção que, podemos acrescentar, lendo o Freud de 1915 (ou o Mach que ele
copia), obtém-se por uma via que não pode dispensar a adivinhação.
Assim, o instinto consiste numa espécie de conhecimento sem a necessida-
de de experimento. Ele não é necessário, pois já foi realizado incontáveis vezes,
está inscrito em nossos organismos e tradições (Feyerabend, 1987/2009). São, na
realidade, resultado de incontáveis experimentos que nos dão os dados necessá-
rios para imaginar, sem precisar montar materialmente qualquer experimento;
nos dão ainda os dados necessários para que possamos imaginar ou intuir um
princípio operando nisso tudo, que, uma vez descoberto, abre a possibilidade de
enxergar novas relações no material sobre o qual nos debruçamos. A especulação
não se funda então na criação de uma mente livre. Ao contrário, ela é a criação
de uma mente extremamente determinada, que carrega consigo a sua própria
história, a história de sua cultura e a de sua espécie.
mas que se deixe levar pela memória, na qual veremos articulado o desejo como
um movimento da pulsão de reeditar o que fica marcado como experiência de
satisfação. Ou seja, o instinto de pesquisa de Mach é compatível, ainda que em
certa distância, com a regra da associação livre: ao pedir para dizer “o que lhe vier
à mente”, o que se aposta é que aquilo que se cria na fala do paciente, por mais
fresca e atual que seja, é carregada de lembrança e de desejo (de repetir uma lem-
brança marcada pela satisfação).
Ora, é na memória inconsciente que Freud fundamenta a sua prática de adi-
vinhação, nos dois âmbitos em que ela aparece: na prática interpretativa clínica e
na atividade especulativa teórica.
A interpretação clínica depende, segundo Freud, de uma postura que im-
plica “entregar-se totalmente à sua memória inconsciente” (1912/2010, p. 156).
A adivinhação sobre o sentido do sintoma que caracteriza a interpretação clínica
não se apoia, portanto, num simples passo de audácia ou esperteza do analista,
como quer Ricoeur (1965/1977), mas no fato de que o analista usa seu incons-
ciente – um aparelho de memória, um lugar de depósito de herança filogenética
arcaica – como um aparelho de sensibilidade que é afetado pela fala do paciente.
Quanto à especulação teórica, nossa pequena discussão sobre o instinto de
pesquisa faz ver que talvez fosse exagero de Freud chamar sua metapsicologia de
bruxa. O papel que Mach – mais exatamente, que a leitura de Feyerabend sobre
Mach – dá à história, na formação do instinto de pesquisa e na atividade espe-
culativa, indica que o reino da feiticeira freudiana não é outro que a memória. A
bruxa da especulação, ao que parece, mora ao lado do demônio da transferência
(lembrança em ato), no inferno da memória inconsciente.
Referências
Sujeito no limite
Entretanto, para situar devidamente a questão do trauma, é preciso destacar
efetivamente que o sujeito como tal, no campo dessa experiência crucial, assume
uma configuração específica e que delineia assim a sua singularidade, a saber: é
um sujeito no limite, conduzido concretamente que foi às suas expensas para uma
condição existencial limite. Com efeito, como se sabe desde os tempos históricos
de Freud, na constituição da psicanálise, a experiência do trauma foi sempre mar-
cada inequivocamente para o sujeito pela dimensão do inesperado, de forma que
a marca da surpresa é constitutiva do campo do traumático.
Contudo, enunciar que na experiência traumática o sujeito é colocado na
condição limite e que essa posição específica seja a contrapartida necessária des-
sa experiência, não implica dizer que esse sujeito no limite se inscreva na cate-
goria nosográfica dos estados limites (BERGERET, 1980), como algumas escolas
psicanalíticas contemporâneas propuseram para relançar a nosografia psicana-
lítica, ao lado dos campos da neurose, da psicose e da perversão estabelecidos es-
truturalmente por Freud, e reafirmados posteriormente por Lacan. Enfim, o que
está em pauta na experiência traumática é que o sujeito é colocado efetivamen-
te numa condição existencial limite, de forma a se configurar especificamente
como sujeito no limite.
Essa formulação teórica e clínica sobre o trauma foi enunciada por Freud,
em 1920, no importante ensaio intitulado “Além do princípio do prazer”
(1920/1981), no qual o discurso freudiano enunciou então uma nova teoria do
trauma, que era diametralmente oposta à que formulara no início de seu percurso
teórico (FREUD, 1906/1973; FREUD e BREUER, 1895/1971), pois não seria mais o
registro específico da sexualidade e o primado correlato do princípio do prazer,
no aparelho psíquico, que estariam em pauta, de maneira tal que os signos trau-
máticos seriam as marcas eloquentes reveladoras da violência evidenciada pela
experiência traumática e do sujeito colocado então na posição limite. Ao lado
disso, nessa mesma obra, a operação da compulsão à repetição foi efetivamente
destacada, em contrapartida, como sendo o dispositivo psíquico específico para
tentar dominar com insistência e possibilitar assim a simbolização da experiência
traumática (FREUD, 1920/1981).
Em consequência dessa condição traumática, o princípio do prazer e o
registro do desejo como seu correlato seriam subvertidos e colocados assim
momentaneamente em questão no psiquismo, de maneira que a dor como pa-
thos se impõe como imperativo insofismável desse sujeito colocado na condição
limite e que remete à existência de um além do princípio do prazer e ao domínio
efetivo da pulsão de morte. Nesse contexto, a pulsão de destruição se inscreve de
A perda de si mesmo
Entretanto, não é possível circunscrever efetivamente essa nova economia
psíquica do trauma sem articulá-la devidamente com as problemáticas da perda e
do luto, tal como Freud começou a esboçar clínica e teoricamente no ensaio me-
tapsicológico de 1915, intitulado “Luto e melancolia” (1915/1968). Com efeito, é
preciso colocar em destaque que, pela experiência traumática, o sujeito na condi-
ção limite estaria na iminência de se perder de si próprio, pois o trauma é uma mo-
dalidade radical de experiência na qual o sujeito está ameaçado vertiginosamente
de se perder de si mesmo. Pode-se condensar dessa maneira concisa, enfim, o que
está em pauta psiquicamente na experiência do trauma para o sujeito.
Contudo, é preciso evocar ainda que se trata, nessa experiência traumática,
de uma modalidade de luto particular e bastante específica, já que no campo des-
sa experiência limite para o sujeito o que está efetivamente em causa não é a per-
da do objeto, como ocorre de fato com a experiência da melancolia, numa leitura
metapsicológica, mas a perda de si próprio. Daí, a violência que caracterizaria de
maneira eloquente a experiência do trauma para o sujeito.
De que maneira é possível circunscrever e descrever essa condição funda-
mental de perda de si próprio, evidenciada pelo sujeito na condição limite? A
configuração dessa experiência do sujeito no limite não é simples nem tampouco
é possível captá-la de maneira direta, de forma que, para nos aproximar devida-
Genealogia da contemporaneidade
Assim, para apreender e compreender devidamente o que está em causa
nessa problemática, evidenciando a ruptura ocorrida nas suas linhas de força
e na reconfiguração das suas coordenadas, é preciso realizar uma breve e es-
quemática genealogia da contemporaneidade, percorrendo as tradições socio-
lógica e histórica. Foram essas tradições teóricas, com efeito, que começaram
a colocar em evidência as transfigurações cruciais que estavam ocorrendo no
Ocidente, desde os anos 1970, que foram galvanizadas e tornadas mais comple-
xas ao mesmo tempo pelas leituras genealógicas realizadas por Foucault, como
veremos ainda posteriormente.
Essas transformações fundamentais começaram a serem evidenciadas por
Sennett, com a publicação da obra intitulada “O declínio do homem público”
(1974). Qual era então a tese enunciada por Sennett? Como o título dessa obra
sugere, Sennett destacava já, em meados dos anos 1970, que uma reformulação
crucial do espaço social contemporâneo estava em curso, em decorrência do apa-
gamento progressivo do espaço público. Em contrapartida, ocorria uma expansão
e uma inflação do espaço privado.
Essa retração e expansão do espaço público e do espaço privado, respecti-
vamente, da ordem social na contemporaneidade, colocavam em evidência a des-
construção em pauta da sociedade política e a inflação, em contrapartida, da socie-
dade civil. Seria em decorrência disso que o subtítulo dessa obra de Sennett era jus-
tamente “As tiranias da intimidade”, pela qual se destacavam a desarticulação das
linhas de força que foram constitutivas da modernidade avançada, por um lado, e
a sua rearticulação na construção das coordenadas da contemporaneidade, pelo
outro. Além disso, pela metáfora e pelo conceito de “tirania da intimidade”, Sennett
enunciava a ruptura dos laços sociais e a constituição correlata de novas formas de
subjetivação na sociedade contemporânea, na medida em que o sujeito passou a
se articular diferentemente nos registros do espaço público e do espaço privado.
Em 1979, o historiador norte-americano Lasch publicou uma obra crucial
que estava em ressonância com essa obra de Sennett e que se intitulava “A cul-
tura do narcisismo” (1979/2006). Pode-se destacar assim, numa leitura transver-
sal entre as duas obras em questão, como a expansão das tiranias da intimidade
descritas por Sennett se desdobrava e se conjugava com a inflação da cultura do
narcisismo, na contemporaneidade. Isso implica dizer, com efeito, que o espaço
público perdeu a sua potencialidade dinâmica no espaço social contemporâneo
e que os indivíduos no espaço privado passaram a se inscrever no primeiro plano
da cena social. Além disso, os laços sociais se apagaram progressivamente como
o efeito privilegiado da desconstrução do espaço público e o incremento correlato
das tiranias da intimidade. Enfim, a cena social passou a ser ocupada por diver-
sos indivíduos dispersos como mônadas fechadas em si mesmas, que passaram a
estabelecer entre si laços esparsos e débeis.
Neoliberalismo e mundialização
Contudo, é preciso colocar ainda em destaque que as descrições socioló-
gica e histórica, acima delineadas, que procuravam evidenciar as coordenadas
constitutivas da contemporaneidade e a desarticulação consequente da mo-
dernidade avançada, tiveram como o seu correlato a construção e a dissemi-
nação do discurso do neoliberalismo, que foi instituído no Ocidente na segunda
metade dos anos 1970 e que foi a condição concreta de possibilidade para uma
nova mundialização da economia internacional (BRUGUÈRE e LE BLANC,
2011; LAVAL, 2007; DARDOT e LAVAL, 2009; JUPIOT, 2010). O que isso quer
dizer, afinal das contas?
Antes de tudo, isso quer dizer que o espaço social da modernidade e o da
moralidade avançada ao mesmo tempo foi ostensivamente desconstruído e que,
no lugar, o mercado se impôs e se instituiu como referência crucial na contem-
legando então aos seus descendentes outra posição no espaço social. Ao contrá-
rio, na contemporaneidade, o que se instituiu efetivamente, pela transformação
de sociedade em mercado e na mudança da figura do cidadão na do consumidor,
foi a emergência de novas coordenadas e de outras linhas de força, que transfor-
maram radicalmente o espaço social, fazendo-o girar de ponta-cabeça, de forma
a constituir um dilema insolúvel para o indivíduo: ou este estaria inscrito no inte-
rior do espaço social ou então ele estaria no exterior deste, de maneira ostensiva e
peremptória, pois, pela transformação da figura do cidadão na do consumidor, o
indivíduo seria consumidor ou não seria, sendo assim incluído provisoriamente
ou excluído definitivamente do campo do mercado. Essa mudança radical, enfim,
implicou uma perda progressiva e disseminada de direitos sociais pelos cidadãos
e pelos trabalhadores (FASSIN, 2010).
lata do lixo, no âmbito global. Essas populações são destinadas então à morte
social, não tendo assim os indivíduos que a constituíram qualquer direito e qual-
quer horizonte de existência possível no futuro. Enfim, é a morte social que se
impõe de maneira trágica, sem dúvida, mas que se banaliza certamente na atuali-
dade, na medida em que os indivíduos que compõem essas populações de mise-
ráveis não podem ser empresários de si próprios e, por isso mesmo, não podem
mais existir efetivamente.
Foi ainda nesse contexto social contemporâneo que se constituiu uma nova
gestão social da miséria, incidindo naqueles que seriam marcados pela iminência
da morte social. Foi essa nova gestão social da miséria que Fassin intitulou de
lógica humanitária, na qual se propõe a empreender criticamente “uma história
moral do tempo presente” (FASSIN, 2010). Com efeito, seria pela mediação da
lógica humanitária que as populações situadas nas bordas da morte social rece-
beriam favores provenientes das agências sociais de gestão de risco, em nome de
suas sobrevivências. Vale dizer: o que estaria aqui em pauta não seria mais algo
fundado na ordem dos direitos dos cidadãos, mas de favores promovidos pelos
poderes constituídos em nome de uma humanidade (suposta) existente de quem
cuida e de quem é cuidado. Seriam, enfim, também norteadas pela lógica huma-
nitária que algumas agências sociais seriam organizadas em âmbito internacio-
nal e realizariam a gestão dos riscos resultantes das catástrofes contemporâneas,
como os Médicos sem fronteiras e os Médicos do mundo (FASSIN, 2010).
Contudo, é preciso destacar, ainda, que a dita lógica humanitária seria tam-
bém centrada nas suas operações, ao mesmo tempo tática e estratégica, pelas
coordenadas do poder pastoral, tal como Foucault enunciou a pertinência desse
conceito no seu curso intitulado “Segurança, território, população”, realizado no
Collège de France (1977-1978/2004). Com efeito, para cuidar devidamente de seu
rebanho, o pastor deve não apenas estar atento ao rebanho como um todo, mas
também se voltar para a condição de cada uma de suas ovelhas, que poderiam
se desgarrar e se perder do rebanho. Portanto, a lógica humanitária na sua ação
pressuporia a operacionalização do poder pastoral como sendo a sua condição
concreta de possibilidade.
No entanto, não se pode perder de vista que a lógica humanitária se conjugaria
intimamente também com a lógica securitária (FASSIN, 2010), como modulações
diferenciais que seriam da gestão social das catástrofes na contemporaneidade, na
dependência estrita que estariam das variações sociais da conjuntura. Com efeito,
a lógica securitária do Estado se imporia efetivamente no espaço social quando
a ameaça de violência se delineasse no horizonte daqueles que seriam marcados
pela iminência da morte social, de forma que a criminalização ativa das popula-
ções seria instituída, em larga escala, pela conjunção da retirada de direitos sociais
anteriormente existentes e a construção correlata de novas modalidades de delitos.
É para a leitura dessas marcas psíquicas engendradas no sujeito, pelas ca-
tástrofes disseminadas na contemporaneidade, que se constituem efetivamente
como a matéria prima para o trauma, que vou me voltar agora de forma conden-
sada, para concluir assim este texto.
Trauma e subjetivações
Assim, em decorrência desse cenário estruturalmente catastrófico – que
delineia a cena social na contemporaneidade pelas transformações cruciais das
linhas de força, que norteavam o espaço social na modernidade avançada – as
formas masoquistas de subjetivação se disseminaram, de um lado, e as novas mo-
dalidades de violência se multiplicaram de uma maneira indiscutível, de outro.
Ao lado disso, a angústia, sob a forma limite da síndrome do pânico, assim como
a disseminação do desamparo e das despersonalizações, colocaram em evidência
os novos limiares atingidos pela fragmentação psíquica.
Pode-se colocar então em destaque, nessas diferentes formas de subjetiva-
ção, a presença ostensiva do sujeito na condição limite, mas em que este assume,
nesse novo contexto social, traços complexos, se lhe compararmos às marcas que
apresentava outrora, nos anos 1920 e 1930, inscrito que estava então no campo
social da modernidade avançada.
No que tange a essa mudança crucial na economia do sujeito, é preciso des-
tacar que, na condição radical de precarização social que se configurou e de sua
disseminação na contemporaneidade, na qual a iminência da morte social se im-
põe efetivamente, o sujeito, na condição limite, não teria mais efetivamente qual-
quer crença no futuro, em decorrência da suspensão da mobilidade social e da
possibilidade correlata de hierarquização ausente no espaço social, que existiam
ainda na modernidade avançada.
Portanto, o sujeito inscrito na condição existencial limite na contempo-
raneidade estaria ameaçado por uma transformação radical na experiência do
o registro do ser pelo qual o sujeito evidencia a dor que lhe perpassa e que não
pode ser transformada em sofrimento, em decorrência da precarização real de suas
condições sociais e da perda dos instrumentos simbólicos correlatos de que tais
sujeitos são despossuídos, em consequência de sua precarização (BIRMAN, 2013).
Referências
Considerações finais
Na gestão da insegurança, a prevenção se revelou um instrumento bastan-
te efetivo, haja vista que possibilita a medicalização do inexistente, ou seja, da
probabilidade futurológica do desenvolvimento de alguma patologia. Em outras
palavras, não parece mais haver a “exigência” da constatação de uma doença, para
que os tratamentos sejam iniciados. O discurso deixa de visar à “doença” para
visar à possibilidade de “doença”.
A biopolítica, no século XXI, abre-se para dimensões nas quais as biotecno-
logias arregimentam novas formas de vida social e participação política (NOVAS,
2006; RABINOW, 1999). Dessa maneira, a biopolítica atual está dirigida às exi-
gências globais dos mercados internacionais. O Estado também é medicalizado
em uma ordem biopolítica, que emerge na segunda metade do século XIX e vai
se ampliando no último século (FOUCAULT, 1979). A organização da política
econômica em mercados da saúde, em uma verdadeira religião do controle bio-
tecnológico dos corpos, ganha intensa materialidade pela medicina social, que se
estende por toda a sociedade, como racionalidade reducionista da complexidade
da vida aos aspectos biomédicos e de biossegurança pela hiperprevenção.
No curso Nascimento da Biopolítica (1978-1979/2008), Foucault ressalta o
aspecto de mercado, no cálculo de custo e benefício da relação entre liberdade e
segurança, no governo da população nas cidades. Para ele, gerir riscos e perigos
se tornou um mecanismo de modulação dessa relação nada simples de oferta de
liberdade e de seu asseguramento protetivo.
Em Segurança, território e população, Foucault (1977-1978/2008) já relatava
que a polícia do cotidiano foi uma técnica instalada pelo Estado moderno para
controlar os deslocamentos dos corpos na cidade e regular sua conduta, na bio-
política. Ainda destaca que a circulação no espaço se tornou uma das principais
problemáticas do liberalismo e do uso dos higienismos normalizadores de con-
dutas para operar a relação entre corpos e meio. Essa noção de meio surge com a
visão entre biologia e cultura, em especial, em um darwinismo social, utilitarista
e liberal, que transformava os circuitos em mercado e a saúde em uma religião da
circulação supostamente segura.
Referências
O texto tem por perspectiva discutir aspectos que atravessam o mundo atual
do trabalho, destacando, entre outros, a produção subjetiva através do empreen-
dorismo calculista de si; da obrigação de inovar; da mercantilizarão e da com-
petição. Tais questões nos levam a perguntar: que lugar a psicanálise pode ter,
face a uma produção social que tende a acentuar a racionalização instrumental,
pensando poder transformar o homem em uma espécie de hiper-homem?
Os processos de trabalho no mundo atual estão relacionados, em grande
parte, às novas tecnologias de gestão. Pede-se aos trabalhadores que tenham uma
disponibilidade quase total para as atividades que exercem, nas mais diferentes
organizações, particulares ou privadas, juntamente com a exigência de qualidade
e de excelência. Qualquer trabalhador enfrenta desafios constantes no exercício
de suas funções. Ele deve contar com recursos cognitivos e criativos para atender
às crescentes demandas, muitas vezes contraditórias, excessivas, que exigem in-
tensas cargas de trabalho. Há uma aceleração acentuada do ritmo de atenção para
alcançar os objetivos demandados, o que requer um hiperfuncionamento psíqui-
co (AUBERT, 2004). O trabalhador tem de estar sempre pronto para fazer face
e se adaptar a cada nova situação. Certamente, levam-se em conta os diferentes
contextos laborais e suas singularidades. No entanto, mesmo havendo situações
muito diversificadas, todo indivíduo atualmente no trabalho é forçado a assumir
riscos e ir além de suas capacidades, o que Ehrenberg (1998) denomina “indiví-
duo insuficiente”. Ele sempre está aquém do que lhe é solicitado, seja porque o
tempo é exíguo, a tarefa exige mais competência, demasiadas exigências físicas,
intelectuais e a obrigação de se superar continuamente. Existem também aspectos
definidos pelas políticas empresariais que fazem com que, aqueles que exercem
cargos de gestão, tenham que praticar demissões e ter ações que imprimam dile-
mas éticos, por serem consideradas injustas.
Outra cobrança feita ao trabalhador é a obrigação de inovar e ser criati-
vo. Essas ideias não estão presentes apenas nos campos de trabalho, elas são
difundidas em toda a sociedade. Ser criativo significa ser forçado a produzir
conceitos novos, realizar ações inovadoras e demonstrar uma variedade de ha-
bilidades. Pode-se perguntar até que ponto a inovação como obrigação estaria
vinculada à criatividade.
As ideias expressas acima nos levam a recorrer ao pensamento de Castoriadis
(2002). Para esse autor, as criações humanas devem ser dotadas “de significações”.
O ser humano modela radicalmente sua humanidade criando sentidos e formas
imaginárias sociais significativas (GEORGE, 2013, p. 167). O autor considera que a
criação radical constrói formas, objetos e ideias que não existiam anteriormente,
que não são nem assujeitadas, nem submetidas à repetição. “A criatividade”, diz
Castoriadis, “é própria dos seres humanos singulares e contribui a autoalteração
da sociedade”. (CASTORIADIS, 2002, p. 169). Ao mesmo tempo, ele nos aponta a
dificuldade desse processo, visto que “a instituição social fabrica o indivíduo so-
cial, e o fazendo ela tende a lhe impor quase mecanismos de motivação, que tor-
nam seus atos não unicamente previsíveis, mas também em conformidade com a
conservação institucional” (CASTORIADIS, 2002, p.172). Esses fenômenos visam
à heteronomia, à repetição. A criação, de modo contrário, envolve um processo
de pensamento, de questionamento, de significações instituídas e, finalmente, um
processo de poder correr riscos. Podemos dizer, a partir dessas considerações,
que a obrigação de inovar raramente é concebida como vinculada à criatividade,
tal como postulada por Castoriadis, pois a inovação está sempre a serviço da
preservação da instituição social; trata-se, então de uma inovação estratégica. Ela
é arquitetada para participar de um campo no qual impera a competição, tanto
entre as pessoas, quanto entre as empresas. O objetivo da inovação, como obriga-
ção nos novos modelos de gestão, é ganhar mais espaço no mercado, nos grupos,
nas lutas competitivas entre os indivíduos e as empresas. Para o trabalhador, a
perda de espaço pode significar perda do emprego, afastamento de suas funções,
falta de reconhecimento, dimensões importantes nas produções subjetivas atuais.
Nesse contexto, cada indivíduo deve tornar-se um empreendedor de si pró-
prio. Com o enfraquecimento dos coletivos no campo laboral e o incremento
que o fim justifica os meios, encontra pouco lugar para uma reflexão desinte-
ressada, que aposte na discussão, no debate, na autorreflexão e na causalidade
inconsciente. A reflexão atual tornou-se, por sua vez, também instrumentalizada.
Enriquez (2000) nos diz: “ uma sociedade que valoriza a competição, a concor-
rência, o sucesso pessoal a qualquer preço é uma sociedade que baniu a convivên-
cia, que forja adversários e inimigos e não pessoas com as quais é possível deba-
ter, se confrontar, negociar”. Essa ideia é bastante diferente daquela que expressa
Birman (1988) ao dizer que a criação da psicanálise teria retirado a última anco-
ragem da pretensão humana, o último reduto de sua proposta de superioridade e
arrogância ao enunciar que a consciência não é soberana no psiquismo. O que se
observa atualmente é o desejo de soberania da consciência.
O mundo psi continua a fazer sentido para muitos, em que se postula o
sujeito do inconsciente, a finitude e a castração, mesmo que não ignore os ele-
mentos que citei anteriormente. Nesse mundo, a psicanálise tem lugar. Mas há
outros universos sociais que negam as ideias veiculadas pela psicanálise e mesmo
se erguem contra elas. Nesses horizontes, a psicanálise pode nos ajudar a pensar,
analisar, mas não pode interferir em suas transformações. As concepções de su-
jeito protético têm poucas possibilidades de dialogar com a psicanálise. O campo
de articulação dessas concepções se faz com os horizontes que afirmam verdades
e que abominam a dúvida. No entanto, a psicanálise continua a ser uma força
de resistência, que procura desconstruir as verdades afirmadas sem fissuras, que
propõe a existência de homens igualmente acimentados, presos nas insignificân-
cias imaginárias (CASTORIADIS, 2002) de nosso tempo, que venera o culto da
insignificância, das pequenas diferenças e dos sujeitos unicamente consumidores
de pequenas vitórias.
As democracias e as sociedades atuais tendem a opor a figura do indiví-
duo autônomo à do indivíduo independente (GIUSTDESPRAIRIES e FAURE,
2014). As democracias modernas (contrariamente à antiga, na qual o homem
era um cidadão, cuidando das questões da “polis”) permitiu o desenvolvimento
do individualismo. No entanto, durante muito tempo esse individualismo foi
compatível com a ideia de que cada homem fazia parte de um coletivo (nação,
família, agremiações de trabalho etc.) e deveria saber se autolimitar. A auto-
nomia, nesse contexto, significa então para o homem aceitar os limites e tam-
bém poder questioná-los, reconhecer a presença do outro (o “rosto” do outro
formulou a célebre reflexão: “parece que analisar seja o terceiro destes ofícios
‘impossíveis’ dos quais podemos desde o princípio estar seguros de um sucesso
insuficiente. Os dois outros, conhecidos já há muito tempo são educar e gover-
nar”. Não cabe, neste capítulo, reanalisar as ideias expostas por Freud e tão discu-
tidas por comentadores (ENRIQUEZ et all, 1986; CIFALI, 2009), mas afirmar que
a psicanálise, apesar de seus limites, continua a ser uma teoria e uma prática que
permite desmistificar a ordem estabelecida e pode ajudar ao sujeito situar-se no
mundo como um criador de história (ENRIQUEZ, 1997).
O fim da análise, segundo a psicanalista Nathalie Zaltzman (1998), não tem
o propósito de que os indivíduos estejam “bem em sua pele”, mas que saibam
tratar seus problemas inter e transpsíquicos, isto implica que eles possam se ver
e considerar o outro como representantes da espécie humana. Como diz Freud,
“saibam amar e trabalhar” (ENRIQUEZ, 2005).
Na verdade, nenhum futuro está dado, o jogo do conflito e de lutas estará
sempre presente no jogo entre as pulsões agressivas e as de vida. Apesar das pul-
sões de morte terem predominância na sociedade, é possível que os homens se
desviem da “via sem saída” (CASTORIADIS, 1990) e tentem construir uma civi-
lização melhor, mais justa na qual cada um possa ver no outro um próximo com
o qual é possível viver.
Concluindo, o imaginário enganador (ENRIQUEZ, 1997) difunde implicita-
mente a falsa ideia de que o trabalhador atual deve se tornar um hiper-homem.
No entanto, ele é tratado como uma mercadoria, como uma coisa ou como uma
máquina que necessita sempre ser aperfeiçoada. Tal situação é consequência di-
reta do triunfo da racionalidade instrumental que substituiu a questão do porquê
(que definia a racionalidade dos fins e dos valores) por aquela do como, que só
se interessa pelos meios e pelos métodos. Assistimos atualmente à reedificação
da consciência. A ótica psicanalítica, que permitiu dar um lugar importante ao
papel do imaginário, das pulsões e dos afetos, se ergue contra a racionalidade
instrumental que se quer ser considerada como o único equivalente da razão. A
psicanálise teria um lugar de desmistificação: ela é contra a consciência enrijecida
atual, que é simplesmente a aplicação de uma ideologia do sucesso individual,
da competição e do desprezo pela humanidade como categoria radical. Talvez a
psicanálise possa auxiliar a combater esta falsa racionalidade, a resistir a ideologia
de todos contra todos e a nos permitir reencontrar a categoria de humanidade.
Referências
“As idades estão politizadas”, dispara Martin Sagrera, nas primeiras páginas1 de
seu livro “El edadismo contra ‘jovenes’ y ‘viejos’: la discriminacion universal”, publicado
em 19922, como em um panfleto. Sob esse mote, o sociólogo espanhol aposentado –
como faz questão de se apresentar – elabora uma instigante análise do mundo contem-
porâneo que arrasta, em seu bojo, de modo provocante, o tema da juventude. Descre-
ver algumas das linhas dessa sociologia das idades, que interpela politicamente alguns
conflitos sociais do mundo de hoje, é o propósito deste texto. Situar a juventude como
um dos polos principais dessa crítica completa o intento desta breve apresentação.
O encontro com o livro, e em seguida com a “figura” de Sagrera (se puder
assim dizer) na rede mundial, foi recente, imprevisto, sem indicações anteriores,
ocorreu no espírito daquilo que comumente se chama “um achado de pesquisa”.
Em meio a uma sequência de pesquisas sobre a participação social da juventude
sob a lógica do protagonismo juvenil, tateando bibliografias diversas que ligassem
política e jovens, o encontro com a ideia do edadismo3 primeiramente, e depois
2 Esse dado ainda é impreciso; na publicação da Editorial Fundamentos não aparece a data de publicação
em destaque; há um número de registro do depósito legal cuja série final traz o ano indicado no texto;
outras indicações encontradas com o mesmo ano foram colhidas em sites de sebo virtual, tal como o
www.estantevirtual.com.br; os esforços de pesquisa seguem para esclarecê-lo.
3 Cabe registrar a decisão de manter o termo edadismo conforme o livro, sem busca de tradução. Vê-se
a relação com a palavra edad, idade, cuja tradução dos termos de origem seria evidentemente segura,
mas ao vislumbrar a aproximação com os possíveis ‘candidatos’ “idadismo”, ou um ajuste forçado em
“etarismo”, fica fácil reconhecer perigos na tradutibilidade do termo, a começar pela sonoridade das
palavras.
define idade como quantidade legalmente mensurável que assumiu lugar funda-
mental nas práticas dos reformadores religiosos e civis do século XVI. O histo-
riador aponta que a idade foi passando aos costumes relacionados à identidade
civil de cada um, processo muito bem ajustado ao conjunto de transformações
que faria reconhecer o mundo atual como o mundo da exatidão e do número.
Como esse aspecto não recebe nenhuma outra elaboração ao longo do livro, fica
sugerido o tom despretensioso de Ariès quanto aos possíveis desdobramentos de
sua discreta formulação sobre o assunto. Discrição que, naquele livro, abre a já
conhecida pesquisa sobre a consolidação histórica do sentimento de infância e
das transformações na família e na educação.
Para Sagrera, na sua formulação do edadismo, as idades aparecem como o
mais extenso, enraizado e estimado sistema de discriminação na sociabilidade
contemporânea. Não causa nenhum grande transtorno acusar de inadequação
etária a alguém que pratica determinada ação assim entendida. Porém, há danos
a serem computados a quem sofre tal acusação na medida em que ela intenta
desautorizar determinado sujeito em relação a uma prática ou posição na socie-
dade. A dinâmica principal do edadismo repousa na acusação de que se é jovem
ou velho demais para alguma coisa. Assim, supõe-se que há momento ou lugar
adequado para algo ao longo da cronologia das pessoas e o ajustamento pela ida-
de funciona como o modo de operar tal julgamento.
Na base do edadismo, Sagrera aponta a exploração nas relações produtivas
e vê, nesse ponto, o auge do processo na consolidação da economia capitalista e
o aumento da expectativa de vida. Essa conjugação entre exploração pelo traba-
lho, que produz condições diferenciadas de vida, e aumento da expectativa de
vida, ressaltando os impactos demográficos do processo, faz com que a idade
sirva como pauta das relações sociais, em vários modos de sociabilidade, e seu
uso nesses termos possua uma condição bem peculiar: uma aceitação irrecusável
e profunda como quesito de ordenamento do modo de vida. Pela marcação da
idade, se estabelece o que se recomenda ou mesmo o que se pode e o que não se
pode fazer em variados modos de vida.
Para Sagrera, mais do que discriminar, em nosso modo de vida, a discrimi-
nação por idade oferece refúgio a interesses que fomentam outras discrimina-
ções, incrementam os discursos de superpopulação e a competição por um lugar
no mercado de trabalho. Em seu ponto de vista, nessa lógica de discriminação,
o indivíduo isolado parece mais vulnerável aos efeitos do edadismo e, por essa
razão, Sagrera passa muito rápido à conclamação para uma articulação política.
Na sua visão, alguns modos de discriminação possuem contestação reco-
nhecida (raça, sexo, orientação sexual etc.) e as novas gerações, efeito dessas
contestações, seriam bastante sensíveis para detectar discriminações, mesmo nas
sutilezas da vida social. Contudo, em sua análise sociológica, ninguém questiona
amplamente a discriminação por idade, mesmo nos movimentos de valorização
da criança ou da terceira idade. Para o sociólogo, é urgente haver algum tipo de
articulação política contra o edadismo. Nas primeiras páginas do livro, não há
constrangimento em chamar para luta.
O plano material é decisivo no edadismo. A competição capitalista, com a
superação das técnicas e expressões culturais (modas), promove uniões cada vez
mais limitadas de efetivos e impõe barreiras pautadas nas idades. O convívio en-
tre as diferentes gerações é perpassado pela disputa por acessos ao mundo do
trabalho e à produção das riquezas. A exploração do trabalho, nas relações pro-
dutivas, impõe hierarquias que repercutem em diferenciação na valoração das
idades. A valorização dos adultos, aspecto preponderante do jogo de discrimi-
nação das idades, que não se origina desse processo, propriamente, pois possui
uma história mais extensa que a do capitalismo, ganha impulso com ela. O que
depreende desse aspecto da economia política, e que é relevante destacar, é que
o desenvolvimento econômico não é suficiente para impedir a lógica do edadis-
mo. A estabilidade da população e das condições econômicas nos países mais
industrializados não elimina a discriminação; e obviamente isso se intensifica em
épocas de crise econômica. Aumento da concorrência no mercado de trabalho se
traduz em aumento de adultos disponíveis e o descarte de trabalhadores pratica-
mente limita o período de idade em que uma pessoa é considerada apta para um
trabalho ou um posto.
Na relação com o “alargamento da vida”, o aumento da expectativa de vida
aumenta a quantidade de pessoas que sobrevive a cada idade, e isso modifica a
cadeia de gerações. Uma geração se encontra em plenitude de vida quando até a
terceira já surgiu. Segundo Sagrera, já há convivência de até cinco gerações em
vida, em alguns casos. Trata-se do aumento de número de gerações presentes
para a concorrência na vida produtiva e essa é uma condição propícia para o eda-
dismo. É preciso, entretanto, não tomar as confusões nas relações mútuas entre
mãe, a partir da qual estará preparada para o próximo estágio, em que são de-
senvolvidas inter-relações sociais” (p.9 – grifo meu).
Já Jean Piaget, embora tenha seus estágios de desenvolvimento amplamente
conhecidos com marcações cronológicas presentes em sua obra (divisão consa-
grada nos manuais de psicologia: estágio sensório-motor de 0 a 2 anos; pré-ope-
racional de 2 a 7 anos etc.), fazia questão de enfatizar que o desenvolvimento varia
individualmente em termos de idade (PIAGET, 2006). A cronologia não oferece
marcos fiéis, como afirmou em vários de seus livros, para apreciar o processo de
passagem das etapas de maturação das funções psicológicas ao longo do cresci-
mento. Em Lev Vigotsky, as idades nem aparecem como marcos no avanço em
direção ao desenvolvimento pleno (VIGOTSKY, 2010). A cronologia, portanto,
recebeu tratamentos diferenciados entre vários autores no campo da psicologia
do desenvolvimento humano.
Outro aspecto da correlação entre edadismo e desenvolvimento humano
diz respeito ao lugar da biologia em suas formulações. Nas elaborações de
Sagrera, a biologia aparece como uma espécie de ferramenta ideológica usada
no sistema de discriminação por idades. Primeiro, pelo fato de haver um es-
candaloso, ao mesmo tempo que insuspeito, atrelamento da idade ao âmbito
dos fenômenos biológicos. A idade é amplamente entendida como possuindo
uma natureza biológica e não social, como ressalta repetidas vezes o sociólo-
go. E é no aspecto de duração do corpo que a idade adquire esse caráter, que
termina por confundir a todos quanto à sua natureza absolutamente social.
A capacidade de absorção de ar pelo pulmão, por exemplo, até a perda de sua
elasticidade, evento essencialmente biológico, poderia ter, a rigor, a função
de duração do corpo que a contagem de dias da vida possui. É a amarra so-
cialmente construída para a administração da vida (operada em termos de
duração) que torna a idade um marco privilegiado, administração populacio-
nal, sobretudo. Com isso, Sagrera recorrentemente enfatiza que o aumento da
expectativa de vida não é um fenômeno biológico, mas absolutamente social,
pois diz respeito a melhorias nas condições sociais de vida (saneamento, aces-
so a ações em saúde, educação etc.). A espécie humana continua vivendo, por
sua vez, dentro dos limites de duração de vida já bastante conhecidos; poucos
conseguem atingir o centenário.
A biologia é, portanto, um aspecto a ser desmascarado na análise social
das idades, conforme Sagrera; ela é, a seu ver, apropriada pelas forças de do-
minação na vida produtiva e posta a serviço da discriminação por idade. O
mundo do trabalho usa as supostas bases biológicas para estruturar sua eco-
nomia de acessos. No domínio da sexualidade, campo de interesse especial
para o autor, o caso histórico, ao mesmo tempo que extraordinário, de Nina
Medina, apareceria como peça chave para fortalecer a crítica da vida etária
pelo autor. Sua gravidez aos cinco anos de idade, numa comunidade isolada
no Peru dos anos 1940, ainda figura como absurdo de idade para gravidez
nos dias de hoje (LAPASSADE, 1975). Uma história praticamente folclórica
nos dias de hoje.
No âmbito do desenvolvimento humano, a biologia é reconhecidamente um
domínio conexo, uma matriz, uma ciência com a qual se tece inquestionável in-
terface desde os primeiros estudos clássicos de desenvolvimento da criança do
século XIX. A configuração do desenvolvimento em termos de teorias matura-
cionistas (de matriz na biologia) e de teorias de aprendizagem ou ambientalistas,
que estruturou esse campo de conhecimento na psicologia até a segunda metade
do século passado, informa claramente a posição proeminente da biologia nesse
campo (OTTAVI, 2001). Embora não desfrute mais desse estatuto integralmente,
fruto do fortalecimento das ideias psicanalíticas e comportamentais que limita-
ram sua predominância nesse âmbito, o recente fortalecimento das neurociências
e das tecnologias médicas de investigação têem favorecido a uma recolocação da
biologia em destaque novamente.
Entretanto, não há apenas diferenças entre o campo de desenvolvimento
humano e a sociologia das idades de Sagrera. Dois aspectos ajudam a ver algumas
aproximações entre as perspectivas em foco: a globalidade do olhar e o problema
do adultocentrismo. Tanto o edadismo quanto a psicologia do desenvolvimento
se voltam para uma visão global do homem, que abarque as diferentes etapas da
vida humana. Ambos procuram mostrar as respectivas lógicas dos fenômenos
que investigam ressaltando as relações e as distinções deles em uma perspecti-
va de integralidade, e não de partes, segmentos do curso da vida fracionando
suas análises. Na sociologia das idades, ficam marcadas as tensões e a competição
das etapas da vida; no desenvolvimento humano, a completude de uma etapa em
consonância com outra; ainda que se marquem descontinuidades entre fases ou
estágios de desenvolvimento, o que se tem em vista é a totalidade da trajetória de
4 Cabe apontar o uso de termos por Sagrera sem a polidez técnica vigente, que ronda a palavra “velho”,
no texto, por exemplo. Esse uso se torna, inclusive, pertinente na exposição do edadismo para marcar
os conflitos discriminatórios do sistema das idades.
Referências
lógica da norma. Foucault nos dá um ótimo exemplo disto quando fala em Segu-
rança, território, população (FOUCAULT, 1977-1978/2008), na vacina da varíola
pertencente a esse modelo, versus os modelos anteriores da lepra, abandono, e da
peste, segregação.
A segunda citação aparece no Nascimento da biopolítica, curso no Collège
de France, 1978-1979, e aí Foucault (1978-1979/2008) acrescenta um dado fun-
damental para entendermos o nosso hoje, quando anuncia que o homem econô-
mico seria substituído pelo empreendedor de si mesmo, tornando-se um capital
humano constituído de elementos inatos e de outros adquiridos. Podemos acres-
centar também um capital social. Na atualidade, devemos ser empreendedores de
nós mesmos, fazendo uma gestão calculada e cuidadosa da nossa vida, a partir
das novas descobertas da biociência e das informações que nos são divulgadas.
Note-se aí, e de imediato, a viciada relação entre ciência e mídia: a mídia confe-
rindo visibilidade e a ciência conferindo prestígio, assim como aparece, encon-
tramos a descoletivização dos riscos, o que aponta na direção já nomeada como
a da cultura do narcisismo.
Uma observação é importante e reforça nossos argumentos: existe uma es-
pécie de balanço na hierarquia das ciências quanto ao seu prestígio e, portanto,
aos investimentos que recebe. Certamente, para pensadores como Badiou, Anne
Marie Moulin e o próprio Foucault, a palavra-chave do século XX, que se man-
tém no XXI, foi saúde. Anne Marie Moulin diz que o século XVIII teve como
chave a liberdade; o século XIX, a felicidade – que escorregou para o século XX –
e hoje, vindo de antes, saúde. Para Foucault, a saúde substitui a salvação e o corpo
passa a ocupar o centro do pensamento.
Por estas razões, as ciências da vida têm hoje a hierarquia vigorosa do cam-
po do saber-poder, o que reforça a ideia de biopolítica e isto por três distintas
e poderosas razões. A primeira foi a associação entre ciência e indústria, muito
desenvolvida no pós-guerra, que trouxe a indústria de fármacos (lógica capita-
lista) para o mundo da pesquisa. A segunda se deveu à entrada no universo digi-
tal, que tornou possível o avanço da genética e a elaboração do fantástico projeto
Genoma, o maior já visto no Ocidente. Finalmente, a questão da visibilidade: se
para o Ocidente ver é conhecer, da radiografia, datada de 1895, passando pelas
endoscopias, ultrassonografias em 3D, ressonâncias magnéticas, tomografias
computadorizadas e, finalmente os PET SCANS, não há mais o último limite de
inexoravelmente a relação com a saúde, em nome tanto da sua própria vida, como
a da população como um todo. O fumante passivo, como denominação, identifica
um comportamento social que é o de, em nome da saúde da população ou do ou-
tro, se preferirmos, culpabilizar os hábitos de quem, tendo sido informado sobre
os malefícios daí advindos, não os abandona. A questão é que, embora todos sai-
bam que o cigarro faz mal, nem todos pararam de fumar. Contudo, agora, manter
o dito vício merece reprovação social e medidas concretas dos seguros de saúde
que podem – e o fazem – recusar a proteção aos ditos fumantes.
Esse processo vai ainda mais longe: o mesmo desenho de futuro veiculado
na associação da ciência com a mídia nos conduz à crença de que a nova geração
de psicofármacos será capaz de, em curto prazo de tempo, nos permitir intervir
na nossa subjetividade mais imediata, atuando de maneira a equilibrar nossos de-
sejos, humores, emoções, desejos e inteligência. Estamos claramente falando de
um movimento cada vez mais presente e difundido que podemos chamar de me-
dicalização da subjetividade, que atua tanto no campo individual como no social.
No primeiro, exerce uma intervenção direta, artificializando a vida num processo
de biologização do psíquico e do mental; no segundo, o campo social, constrói-se
uma sociedade que deve ser compatível com o avanço da indústria farmacêutica
na sua perversa relação com as pesquisas biotecnológicas. Como intuiu Foucault,
o remédio produz o doente e a mídia o divulga no mundo sociopolítico. Ou,
como vaticina Ehrenberg (2000), se Marx identificou na religião o ópio do povo,
a atual sociedade é “naturalmente” dopada.
Nesse universo, vivemos assediados por promessas de conquista de uma
longevidade inimaginável, ou, se levarmos os mais eufóricos em consideração,
a erradicação da morte natural (morreremos por causas externas se não as con-
trolarmos: aquecimento global, terrorismo e violência das metrópoles). Mais do
que isso, retomando a argumentação que sustentamos acima, a chamada socie-
dade tecnológica de informação designa, no plano da vida, a entrada num século
governado pelas políticas biotecnológicas e nos leva a considerar uma espécie de
produção de pessoas sob encomenda, criadas e equipadas com as qualidades e
capacidades que se fizerem necessárias, ou seja, passando a poder ser fabricadas
por demanda. Pessoas para o mercado.
É nesse momento que podemos ver dois eixos da colonização do imaginá-
rio. O primeiro seria a cultura somática: aqui as emoções podem ser descritas
no repertório médico e por ele diagnosticado o que gera uma patologização per-
manente – agora não ficamos mais tristes, ficamos deprimimos. A mídia fez da
depressão o “mal du siècle”, mas é bom lembrarmos que isto é uma apropriação
um tanto perversa; por conta da difusão, aquilo que antes só podia ser exercido
por profissionais que, em situações especiais, identificavam e medicavam alguns
indivíduos, hoje se tornou comentário indiscriminado: o personal trainer, a ma-
nicure, qualquer amigo e assim por diante, se dão ao direito de vaticinar que o
nosso caso é depressão1.
O segundo eixo de colonização do imaginário aparece na exponencial ex-
pansão do dispositivo de autoajuda, o que Bauman chamou de surto de acon-
selhamento. Para citar um exemplo da própria mídia, a revista Isto é de abril de
2014 trouxe uma matéria na capa: A cura do amor. Imaginaríamos que seria aju-
dar a diminuir o sofrimento de alguém que tivesse sido abandonado ou preterido,
mas a questão não era curar um amor que não deu certo2, mas sim controlar a
intensidade do mesmo. Não é à toa que na entrevista de Badiou (2009) sobre o
amor, ele afirmou que o que o estarreceu foram banners de um site de relaciona-
mentos popular na França: ame sem se apaixonar (aimer sans tomber amoureux)
e “ amour sans aventure”.
A genealogia do amor
Qual foi o motivo que nos levou a fazer do amor uma questão histórica es-
pecialmente no campo da comunicação e da cultura? Podemos dizer que o cam-
po da comunicação tem duas palavras-chave: mediação – ou mediatização – e
vínculos, ambos remetendo a certo belonging ou certo pertencimento que nos
ancora no mundo. Sem estes dois pilares, o campo dinâmico da comunicação,
nome que indica direção à ação comum, não se configura.
1 Benilton Bezerra, psicanalista e pesquisador do Instituto de Medicina Social da UERJ, numa participação
em uma banca de doutorado de um orientando meu, intitulada Depressão como atualidade midiática,
comentou, rindo, que num dos muitos quiz distribuídos por revistas de divulgação científica ou mesmo
informativas, uma das perguntas cuja resposta afirmativa combinada com outras determinaria a
existência de depressão seria uma certa tristeza nas segundas de manhã, que já há bastante tempo,
e sem considerar patologia, os americanos chamam de monday moon; tristeza das segundas-feiras.
Como ele torce pelo Botafogo que joga habitualmente nos domingos e perde seguidamente, ele fica
triste nas segundas. Um gol no adversário seria mais eficaz do que toda a farmácia tarja preta.
2 Dar certo aí não é qualificativo: é apenas constatação, do tipo ainda estão juntos.
Podemos dizer que a força dos vínculos se relaciona com a tradição e corres-
pondeu ao universo mítico e religioso sem nunca ter desaparecido completamen-
te. A modernidade transformou os vínculos em laços, que ainda amarram, mas
podem ser desfeitos, e a contemporaneidade, no seu logos técnico, mas também
no seu lócus imaginário, traduziu os laços por conexões que podem e devem ser
efêmeras, múltiplas e flexíveis. Parece-nos possível fazer uma analogia com outro
percurso de nomeação e significação: da alma (que transmigrava na experiência
grega) para o espírito, deste para a consciência na racionalidade moderna, e desta
para o cérebro, palavra-chave das novas neurociências.
A pergunta que a nossa atualidade propõe é: o que é pensar o amor, a mais
gasta das palavras, o mais forte dos vínculos e um dos nossos sentimentos mais
confusos, cujo campo semântico engloba enamoramento, paixão, altruísmo, se-
xualidade e realização, assim como ódio, ciúme, rejeição, frustração?
Há ainda um adendo, explorado por Niklas Luhmann, no livro chamado A
improbabilidade da comunicação (1992). O autor pergunta como a mais impro-
vável situação de sucesso, ou seja, a da comunicação perfeita, pode se tornar a
mais frequente e fundamental para a nossa experiência. Enumerando as causas
da improbabilidade, a primeira remete imediatamente ao nosso tema: diz ele que,
mesmo numa comunicação interpessoal, dada num contexto amoroso de máxi-
ma intimidade, nem sempre se ouve efetivamente o que foi dito pelo outro, tal
como foi dito. Afinal, escutamos nossa voz com a garganta e a do outro com o
canal aéreo; portanto, mesmo que faça parte da proximidade, a identificação de
tristeza ou alegria no tom de voz do outro muitas vezes leva a mal-entendidos
ligados a esta não coincidência entre falar e ouvir. A melhor estratégia, para o
autor, não seria repetir a mesma coisa ou interpretar, pois a diferença permane-
cerá, podendo se transformar em distância. Ao contrário, para diminuir o atrito,
a tática mais eficaz é trazer à cena o que foi construído nessa relação de amor: a
música, que parece o tema do casal; o prato favorito ou o “neutro” eu te amo, que
encerra a discussão3.
Verificamos que o amor é um tema que atravessa a filosofia, a psicologia, a
medicina (neurociência), a cultura de elite e a de massa (o que seria desta sem o
ideia do mundo fechado como uma esfera em que Deus ocuparia o centro. Quem
explicita isto, numa intervenção inspirada, é o monge Giordano Bruno, que afir-
ma: se o Universo é infinito ele não tem nem centro nem margens, portanto,
Deus está em todo lugar, mas em lugar nenhum... e assim o homem é aquele
que tudo pode, mas nada é. Essa figura do homem como ex-cêntrico, expulso do
centro que não há mais, ganha a liberdade e perde a destinação. Aí, o amor como
possibilidade de um novo vínculo remetido à interioridade humana, nossa subje-
tividade, ligada à liberdade, pode aflorar. Não é por acaso que o romance, como
forma literária, sempre a história de vidas singulares, nasce no início do século
XVII com Dom Quixote de Miguel de Cervantes (1610)4. Também é o mundo de
Shakespeare e não há exemplo tão expressivo quanto o de Romeu e Julieta para
falar destes vínculos transgressores.
Ainda na genealogia de May (2012), outro momento começa no século
XVIII, com a figura de Rousseau, e estaria ainda presente nos nossos dias. No seu
comentário, o amor se enamora de si mesmo, ou seja, é o amante, aquele que sabe
e/ou quer amar, que recebe o foco e a atenção, o que é aguçado, ao mesmo tem-
po, pelo processo de interiorização cultivado pelas psicologias e pela psicanálise;
pelas idealizações propostas nos produtos da cultura de massa entre as quais se
incluem hoje alguns novos produtos (livros e filmes) que o marketing apresenta
como transgressores, como 50 tons de cinza.
Podemos falar também de outra figura literária correspondente: das Confis-
sões e Meditações vão surgir, no mundo não filosófico, os diários, que são a ma-
neira de tornar linguagem os acontecimentos e as sensações, em princípio para si
mesmo, e, posteriormente, nas figuras das biografias e autobiografias que, como o
romance, também contam uma vida, mas não uma vida fictícia. Este movimento
do dizer de si vai ganhar fôlego posteriormente em dois sentidos. O primeiro é o
próprio movimento histórico da história quando a chamada “história em miga-
lhas” (histoire en miettes) vai trazer, para frente da cena, o chamado prestígio do
testemunho. O segundo é ainda mais contemporâneo e remete à nova subjetivi-
dade alter dirigida, demandante de reconhecimento, onde vivo se sou visto (ou
4 Badiou descreve o romance, assim como outras formas ou estilos de arte como configurações em
que haveria pontos-sujeito. É sua maneira de se referir aos autores vinculando-os ao acontecimento e
não à história da literatura. Seu ponto de origem seria Dom Quixote e seus pontos de explosão seriam
Proust e Joyce.
lido), cujo modelo algo caricato é o Big Brother e o menos evidente Facebook5.
Também para a autoajuda, o testemunho e o exemplo são a chave mestra.
Nós vemos ainda um último momento, na retomada do amor no contexto
desse novo homem, que Foucault apresenta como o do empreendedor de si mes-
mo, aquele que deve gerenciar sua vida como se fosse uma empresa, buscando
agregar valor e evitar seu desgaste. Aí, o amor se transforma num elemento de
mercado, avaliado como conveniente ou não, e regulado quanto ao nível de in-
tensidade a ser experimentado.
A palavra amor permaneceu a mesma durante todo esse percurso e nun-
ca se afastou das tensões de conflitos e intensidades. Não sabemos exatamente
definir o que é o amor, mas nenhuma dúvida se coloca quanto à sua capacidade
de vender e, junto com aquilo que não entrega, chegam as sensações de uma
vida não realizada. Tudo indica que estamos num momento no qual cabe como
uma luva aquilo que Foucault designou como atualidade, como diferença com
o presente: temos sintomas fortes do romantismo do século XIX, mas também
estamos nos tornando seres de outra natureza. Basta pensarmos, por exemplo,
no amor e no sexo virtual.
Mesmo os hábitos que marcavam até pouco tempo a prática do amor estão
desatualizados. José Carlos Rodrigues, professor do Departamento de Comuni-
cação da PUC-RJ, lembrou num congresso (não na sala de debates, mas no bar,
aonde se vai depois) que o amasso no elevador perdeu o lugar com as câmaras de
vigilância ligadas diretamente na portaria e algumas vezes nos apartamentos, a
menos que se trate de um show de exibicionismo. Outro amigo querido lembrou
que nós, quando adolescentes apaixonados, ligávamos só para ouvir a voz e desli-
gávamos sem falar, o que o identificador de chamadas tornou impossível.
O que parece ser mais ou menos um ponto de concordância é que as liber-
dades conquistadas no século XX: a pílula anticoncepcional e a revolução sexual,
o divórcio e o casamento gay, não foram nem de perto acompanhadas por uma
reinvenção do amor. Foram tão absorvidos pelo mercado, que incentiva o con-
sumismo, que estamos correndo com enorme ansiedade atrás do amor certo e
da pessoa certa, também no espaço virtual e, neste caso, estamos sempre apa-
vorados, já que, apesar da enorme oferta de parceiros, aí também podemos não
ser o amor ou a pessoa certa para quem gostaríamos de sê-lo. Ou podemos ter
escolhido mal. Na esteira do livro de Alain Ehrenberg (2000), A fadiga de ser eu
(La fatigue d´être soi), apontamos para a tensão que se cria com a assimetria entre
a multiplicidade quase infinita das escolhas que podemos e devemos fazer e nossa
insegurança, que cresce diante de tal abundância.
Como foi dito antes, Alain Badiou, no Elogio do Amor, (2010) se propõe a
defendê-lo porque o vê ameaçado. Para começar, ele aponta os slogans publicitários
de um site de relacionamentos apresentado em cartazes pendurados em Paris: “Ame
sem o acaso”; “Pode-se amar sem ‘cair’ [tomber] amoroso”; “Você pode amar sem
sofrer”; “Amor sem aventura”. O que está em oferta é um coaching amoroso, nesta
relação do empreendedor de si com uma concepção de amor correspondendo ao já
referenciado surto de aconselhamento. Para nosso autor, ao contrário:
“o amor não pode ser este dom feito à existência no regime da ausência
total de riscos (...). Ora, no mundo de hoje, a convicção mais difundida
é que cada um segue apenas o seu interesse. Então o amor é uma con-
tra prova (...). O amor é verdadeiramente esta confiança dada ao acaso”
(BADIOU, 2010, p. 22).
Autoajuda
O fenômeno da autoajuda é certamente um dos assuntos que merece maior
interesse dos pesquisadores das chamadas ciências sociais e humanas. Sua visi-
bilidade mais imediata é a quantidade de publicações que se vem produzindo
no mundo e também no Brasil, com tiragens surpreendentes; além disto, parece
contagiar todos os outros gêneros literários, conquistar parte da área do audiovi-
sual e gerar comportamentos sociais curiosos, como a nova moda da Cabala e a
aproximação das religiões orientais.
Isto não dá conta da sua atuação, que se explica melhor a partir do conceito
de dispositivo proposto por Foucault e relido por Agamben, porque o importante
não é propriamente a expansão dos produtos, mas a forma de atuação, que inter-
fere tanto nos jogos de saber-poder, oferecendo a figura dos especialistas como
coachs, como na linha da subjetividade que interfere como “correção” tanto para
a percepção do presente como na avaliação de riscos e benefícios.
A autoajuda, falando de si mesma, apresenta-se em torno de dois nichos de
objetivos, o primeiro sendo ligado ao “alimento para a alma” cujas palavras-chave
seriam: autoestima; autoconhecimento, bem-estar e felicidade que, curiosamen-
te, passam a ser imperativos. Por mais estranho que pareça, somos obrigados a
ser felizes, ou melhor, a buscar a felicidade o tempo todo e quase a qualquer pre-
ço. O mais imediato é que se supõe que esta busca é individual e intransferível:
portanto, aquilo que nos fazia associar felicidade com as promessas das utopias
coletivas, ficou anacrônica6.
O segundo eixo de objetivos é de natureza totalmente pragmática, identi-
ficado por sucesso, dinheiro, prestígio, beleza e saúde. É quase uma aplicação
dos mandamentos dos departamentos de recursos humanos, com as noções
prescritivas de motivação e dedicação, identificadas com maestria por Deleuze
quando fala que a fábrica, substituída pela empresa, será o modelo do trabalho
e da vida. Aí, a autoajuda funciona, ela mesma, como uma insidiosa operação
de marketing, uma narrativa motivacional para o indivíduo compatível com
o biopoder. Instala-se assim num lugar de incerteza que é o nosso presente, o
surto de aconselhamento.
Aliás, a indústria da autoajuda sabe se ajudar porque não apenas compreen-
de as angústias próprias de cada época e se dirige a elas com soluções apaziguado-
ras como sabe usar aquilo que prega: a perseverança no próprio objetivo. Sendo
um negócio, sabe não apenas chegar ao seu público como também formá-lo, indo
buscá-lo onde ele está.
No Brasil, apontado como o segundo público consumidor (o primeiro é os
Estados Unidos, onde ela nasceu e vingou), os editores de autoajuda souberam
usar as bancas de jornal, que cobrem o país de norte a sul, para distribuir seus
títulos, compensando a falta de livrarias de que o país sofre. Hoje, vão mais lon-
ge: existem acordos entre algumas editoras e a fábrica de cosméticos Avon, que
trabalha buscando o consumidor no seu domicílio, “Avon chama!”, que associam
a venda de seus livros às mesmas representantes, que venderiam assim, se puder-
6 Badiou acaba de publicar um livro, Métaphysique du bonheur réel no qual retoma esta dimensão de
coletivo para o pressuposto da felicidade.
Referências
peritos passam a mediar não apenas nossa relação com o mundo à nossa volta,
mas com o nosso próprio universo subjetivo. Desse modo, a figura do amante
eficaz exemplifica não apenas a compreensão dominante do que seja o amor na
atualidade, mas também o modo como organizamos nossa percepção do mundo
articulando a experiência individual, subjetiva, aos modos de organização da
sociedade e aos valores prevalentes em um ambiente cultural e em um contexto
histórico determinados.
Sua genealogia pode, desse modo, ser referida ao cruzamento de pelo
menos três movimentos que marcam a nossa experiência desde a moderni-
dade e que de algum modo parecem se radicalizar na atualidade. Movimen-
tos que se entrelaçam permanentemente e cujos limites internos são bem
difíceis de estabelecer.
Em primeiro lugar, a consolidação do projeto moderno de domínio da na-
tureza e de afirmação do indivíduo como centro do mundo, consolidação da
hegemonia daquilo que Adorno e Horkheimer descrevem em sua dialética do
esclarecimento como razão instrumental, projeto de reordenamento das relações
entre o homem e a natureza a partir da submissão desta ao primeiro pela via
do conhecimento técnico que a objetifica e transforma, sendo um passo deci-
sivo desse projeto a objetificação ainda do próprio homem e das suas paixões
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985), o que aparece, por exemplo, de modo banal e
cotidiano, no dispositivo de autoajuda através da ideia, frequente tanto em livros
de autoajuda quanto em testes e avaliações com pretensão tecnocientífica, de que
é possível mensurar e controlar os nossos afetos.
Em segundo lugar, a produção, no mundo capitalista, de uma reconfigu-
ração das identidades a partir da linguagem terapêutica e de uma ideologia da
autorrealização que faz com que esse indivíduo seja cada vez mais descrito, sobre-
tudo a partir de uma linguagem psicológica que o descola dos seus laços sociais
e o insere, e também a seus afetos, agora mensuráveis, no universo das mercado-
rias e das trocas, no que a antropóloga Eva Illouz denomina capitalismo afetivo
(ILLOUZ, 2011).
Por fim, terceiro movimento, o mais recente deles, a consagração da racio-
nalidade neoliberal como modo de pensar hegemônico e principal regulador das
relações do sujeito consigo mesmo e com o outro no registro contemporâneo da
biopolítica, marcado, segundo Foucault, pela expansão da grade de inteligibilida-
1 Ao contrário da maioria dos meus colegas, optei pelo termo apaixonado, ao contrário de enamorado,
por ser este o termo corrente em nosso país. É assim, como apaixonado, que na maioria dos casos
nos descrevemos ao falar das nossas experiências amorosas, enquanto o termo enamorado, além de
parecer retirar desta experiência o peso da paixão, remete em nossa língua muito mais rapidamente a
namoro e a namorado.
será exuberante, pois deve agora obedecer a certa economia e também a uma das
regras básicas da retórica da eficácia afetiva, a simplificação, a redução da com-
plexidade da experiência a fórmulas simples, equações de fácil solução, de modo
facilitar o desempenho cognitivo do indivíduo, simplificar sua compreensão da
realidade e de si mesmo.
Ao mesmo tempo, devemos lembrar que o esquema já não pertence prio-
ritariamente ao enamorado, ao menos certamente não da mesma forma que o
discurso romântico lhe era próprio. O novo discurso amoroso em princípio não
sai da boca do enamorado, não é ele que prioritariamente o enuncia ou o detém,
a não ser como signo da submissão ao discurso competente (CHAUÍ, 2014) sobre
o amor, enunciado pelo especialista, autor dos manuais de autoajuda apoiado nos
sistemas peritos. Discurso que reduz o sujeito à disciplina e à obediência, pois
o coloca na posição de quem não sabe, o reduzindo a objeto do conhecimento
produzido e controlado por um outro.
Destaco a seguir três desses esquemas, presentes em manuais de relaciona-
mento e que me parecem necessários e suficientes para delinear traços funda-
mentais do amante eficaz, ao mesmo tempo em que nos permitem vislumbrar
tanto elementos decisivos do novo discurso amoroso quanto certos modos de
construção da retórica da eficácia afetiva. São eles: o organismo apaixonado, o
sexo puro e a inteligência amorosa.
Uma das principais marcas dos discursos de autoajuda é o seu vínculo com
os sistemas peritos – os saberes especializados apoiados no discurso científico
– produzindo, por conseguinte, uma leitura do fenômeno amoroso baseada em
informações oriundas do campo científico, especialmente das ciências biológi-
cas, o que trará, dentre outras implicações, a colocação em primeiro plano, do
organismo. É o corpo anatômico, explorado pela biologia e pelas neurociências,
que será posto no lugar de um corpo erótico, de viés transgressivo, ou mesmo da
carne, cristã, destinada ao pecado. Desde então, é a partir do organismo que a
experiência do apaixonamento será enunciada.
Correspondente necessário da medicalização da moral, que testemunha-
mos, por exemplo, nas sucessivas edições do DSM, o manual norte-americano
para diagnóstico em saúde mental, o organismo apaixonado mantém em cena,
agora a partir do rebaixamento da paixão ao plano dos neurotransmissores, uma
natureza essencial ao amor, da qual não há como escapar, mas cuja verdade já
necessária a categorias como desejo e afeto. Trata-se, portanto, nessa nova forma
de descrever o amor, de um outro purificado, na medida do possível, de toda pai-
xão, de qualquer pathos.
O sexo puro aparece no domínio dos relacionamentos casuais – “sem ne-
nhuma emoção ou sentimento” (PEASE; PEASE, 2010, p. 113), pertence ao reino
dos organismos apaixonados e se apoia na biologização da experiência amorosa,
a ser doravante claramente dividida entre desejo (sexual) e amor romântico:
O cérebro apaixonado e o cérebro que está vivenciando o desejo não se
parecem porque cada um deles usa um sistema diferente. (...) O desejo e
o amor estão associados a locais diferentes do cérebro e não são a mesma
coisa. (PEASE; PEASE, 2010, p. 32)
É curioso perceber, ainda, como certos traços que aparecem com valor nega-
tivo na genealogia do amor romântico, como a frieza, a sensualidade, a frivolidade
e o cálculo que marcariam o amor nas Sociedades de Corte descritas por Norbert
Elias (1987) e que aparecem, por exemplo, no romance As ligações perigosas, de
Chordelos de Laclos, publicado em 1782, são positivadas em uma nova moral
sexual que parece pretender instaurar uma práxis sexual independente da ordem
dos sentimentos, e, portanto, paradoxalmente, do próprio amor. É curioso per-
ceber, ainda, que tal independência sexual, que valoriza o pragmatismo e afirma
a superficialidade das experiências eróticas, integra o núcleo do novo discurso
amoroso na medida mesmo em que a eficácia afetiva depende também inversa-
mente de que a experiência amorosa não se deixe contaminar pela necessidade
sexual, cada vez mais rebaixada ao plano do organismo. Desse modo, a idealização
amorosa sobrevive, embora em outros termos, pois um relacionamento estável e
feliz, é sinal de uma vida de sucesso, ou seja, de uma vida bem administrada.
Ponto de encontro entre diversas matrizes da autoajuda, da lógica neoliberal
de exploração do mercado de corpos à moral amorosa naturalista, passando pela
racionalização biologizante do desejo, o sexo puro materializa não apenas a liberda-
de, mas também outro valor supremo do mundo contemporâneo, a vida saudável:
O sexo traz muitos benefícios para a saúde. O sexo frequente melhora
o seu sentido do olfato, reduz o risco de doenças cardíacas, melhora o
condicionamento físico geral, contribui para a perda de excesso de peso,
alivia a dor, reduz a frequência de resfriados e gripes e melhora o controle
da bexiga. Fazer sexo de boa qualidade também faz com que você queira
fazer mais sexo, em grande parte porque a atividade sexual aumenta os
níveis de testosterona. (FISHER, 2010, p. 256)
infância, ser capazes não apenas de reconhecer tanto as nossas emoções como as
do outro, mas também de controlá-las, de usá-las em nosso benefício, de acordo
com objetivos conscientes bem determinados (COLEMAN, 1996). Ela pode ser
lida, muito simplesmente, como a instalação do bom senso em nossa vida afetiva,
mas um bom senso regulado por uma compreensão muito particular da nossa
experiência subjetiva, onde nem os afetos nem a paixão amorosa, escapam ao
domínio da razão.
Um bom senso que reúne nossos valores morais e a racionalidade das me-
lhores práticas de gestão, pois em nosso mundo contemporâneo, o amor já não
deve tornar as pessoas bobas ou estúpidas; no universo da eficácia amorosa não
há lugar para qualquer jeito estúpido de amar, nem toda maneira de amor vale
a pena. O relacionamento deve se submeter à gestão racional do nosso capital
humano do qual faz parte, ou seja, ser um investimento com excelente retorno,
apoiado em uma operação conduzida com planejamento e cuidado, ou seja, para
alcançar os melhores resultados o relacionamento deve ser bem gerenciado e isto
naturalmente só será possível se Eros for bem conduzido.
A moderação, ainda que não seja suficiente, é necessária, porque “exis-
te uma insanidade gradativamente progressiva implícita em se amar demais”
(NORWOOD, 2010, p. 235). Temos aqui uma versão contemporânea da velha
ideia de temperança, na qual se destaca a crença de que a moderação é sinal de
poder, não apenas sobre si mesmo, mas especialmente sobre o outro, na medida
em que nos afirmamos independentes dele. Administrando bem Eros, podemos
até mesmo descobrir que o outro, afinal, já não importa tanto.
A base da inteligência amorosa é a percepção correta da realidade, e por
isso quase todo o trabalho e os exercícios definidos nos manuais de autoajuda se
apoiam na retificação cognitiva. Alcançamos a verdade e a felicidade através do
conhecimento, pois no fundo trata-se apenas de corrigir a nossa percepção do
mundo, do outro e de nós mesmos: “Todas as vezes que você estiver sofrendo
algum tipo de dor, inclusive tensão e ansiedade, está se utilizando de uma convic-
ção errônea.” (JORDAN; JORDAN, 1998, p. 60)
Como na ontogênese que repete a filogênese, a experiência individual
que segue a trilha aberta pela evolução da espécie, o bom caminho do amor
repete o processo de racionalização que nos trouxe d’Os sofrimentos do jovem
Werther à eficácia afetiva exemplar dos autores de autoajuda (CUNHA, 2013).
Referências
decorrer de seu ensino, Lacan tornou-se adepto de uma peculiar forma de estru-
turalismo chamada “estruturalismo gödeliano” por Fink, no qual se
mantém a importância da estrutura, enquanto continua a apontar para
uma incompletude necessária nela e para a fundamental indecodibili-
dade de determinadas afirmações feitas dentro dela. Lacan adota cla-
ramente as noções de Gödel de que todo sistema formal significativo
contém algumas declarações que não são passíveis de decisão e que é
impossível definir a verdade de uma linguagem naquela mesma lingua-
gem. (...) Seus trabalhos corporificam a própria estrutura da histeria:
quanto mais próximo ele chega de formular um sistema, mais vigoro-
samente o reexamina e o questiona. Se é um “sistema para acabar com
todos os sistemas”, é Lacan que nos ensina a ler essa expressão de uma
forma nova (FINK, 1988, p. 155).
Nesse mesmo sentido, Miller (citado por DOSSE, 1993, p. 146-147) assinala
que a estrutura dos estruturalistas formais “é coerente e completa, ao passo que
a estrutura lacaniana é antinômica e des-completada. (...) Lacan leva em conta
o fato de existir o inapreensível, algo não apreendido na teoria”. É ainda Miller
quem assinala que
(...) o que Lacan chamou de sinthoma no fim do seu ensino, é a versão
lacaniana do que é a fragmentação das estruturas clínicas no DSM. Não
se trata da mesma fragmentação, mas do mesmo movimento de deses-
truturação das entidades observado na segunda clínica de Lacan (...)
essa clínica nos apresenta uma série infinita de arranjos a partir de três
rodinhas de barbante. O ternário RSI se distingue e se opõe ao que era
a repartição estanque, descontínua entre neurose, psicose e perversão
(MILLER, 2011, p. 19-20).
Não à toa, a obra de Lacan – sobretudo seu último ensino – é mais palatável
aos chamados “pós-estruturalistas” do que àqueles com formação filosófica ou
psicanalítica nos moldes tradicionais.
Segundo a frase atribuída pela lenda a Lacan, cujo cunho chistoso acabaria
por consolidá-la como aforismo: Não é louco quem quer, mas quem pode, em
outros termos, não se enlouquece por mero capricho, antes é preciso já estar dis-
1 “Podemos (...) deduzir da experiência analítica que a neurose e a constituição dita normal têm um
significante distinto, referente ao Nome-do-Pai, na estrutura do esqueleto de nosso temperamento.
Falar em significante é dizer que nada na experiência é suficiente para estabelecê-lo. Ser pai é
muito diferente de ser mãe. Há naturalidade na relação materna; a paterna, como notou Freud, é
essencialmente cultural. A função do pai pode ser atribuída a um outro que não ao genitor biológico. O
Nome-do-Pai é função significante; indispensável e fundadora da ordem simbólica” (MILLER, 1997, p.
134).
2 Gerbase (2015, p. 97) afirma que a clássica distinção entre a “fala plena” e a “fala vazia” será
abandonada por Lacan no capítulo “Um significante novo”, de seu O Seminário, livro 24: L’insu
que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Dessa nova perspectiva, toda fala é plena e o falo perde o
reinado da significação.
A psicose ordinária
Insistimos aqui na noção de estrutura psicótica ou de psicose não desenca-
deada, oriunda do ensino de Lacan, pois é ela o leitmotiv a partir do qual vem se
construindo a noção de “psicose ordinária”, proposta no final da década de 1990
3 Há em Lacan dois acessos possíveis à (suposta) psicose de Joyce, por um lado, o sintoma literário,
foraclusão metódica do sentido, e, por outro, o abandono do corpo próprio, que aponta o deslize do
imaginário e o erro no enodamento psíquico, compensado por seu ego-sinthoma.
N P
4 Aquilo que Lacan (1959/1998) designava: “(...) uma desordem provocada na junção mais íntima do
sentimento de vida no sujeito” (p. 565); “Os psiquiatras tentaram delinear esse ‘sentimento de vida’.
Eles falam de sinestesia, de sentimento geral do sujeito, de ‘ser-no-mundo’. A desordem se situa na
maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu
corpo e no modo de se relacionarem com suas próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).
5 Outra tradução possível, menos literal, da expressão make-believe para a língua portuguesa é
“faz-de-conta”.
Freudiano, “outros meios diversos para se tentar sustentar junto R, S e I (...) várias
formas de ‘dar um jeito’ ou de bricolagens duvidosas que não se revelam sempre
suficientes para proteger o sujeito do real e do gozo” (SKRIABINE, 2009, p. 7).
– fundada não sobre a função do pai que nomeia, mas sobre a curva de Gauss cuja
normalidade é a mediana (o politicamente correto, o consenso, a evidence proof).
Na era da globalização, caracterizada pela máquina do não todo7, a chama-
da “hipermedicalização”8 –, responsável pela criação de uma “cultura da droga”
inscrita no estilo contemporâneo de existência (BIRMAN, 2012, p. 86) – cumpre
um importante papel na ordinarização da vida cotidiana, isto é, na conformação
dos sujeitos à nova ordem social estatística. Esta última caracteriza-se como uma
“ ‘ordem de ferro’ mais feroz que o Nome-do-Pai porque não é o desejo que lhe
é correlato, como se produz no caso do interdito, mas o gozo de forma direta”
(BROUSSE, 2009, p. 10-11). “É exigência superegoica angustiante e não repressão
culpabilizadora do Ideal” (VIEIRA, 2004, p. 2). Se alguns modos de estabilização
permitem assumir o lugar da exceção (Schreber tornou-se “A mulher de Deus”,
enquanto Joyce tornou-se “O Artífice”), e, portanto, do interdito, uma forma de
tratamento do real pelo simbólico, resta aos psicóticos ordinários a identificação
imaginária à normalidade, reduzida à média estatística. No novo horizonte da
psicose, nada ou muito pouco de vertical é permitido. Há muitos guardiões da
ordem a postos para a vigília dos que ousam atualmente escalar a caverna de Pla-
tão – como Schreber e Joyce o fizeram outrora.
Um mal-estar ordinário
Birman (2012) assinala o surgimento de novas formas de subjetivação con-
temporâneas nas quais a dominância da experiência da espacialização em detri-
mento da temporalização, aliada ao esvaziamento do conflito psíquico (perda do
potencial de simbolização), faz com que “o pensamento e a linguagem tendam a
7 “A estrutura do não todo [introduzida por Lacan em seu escrito O aturdito (Lacan, 1973/2003)] é
o que é descrito no nível social e político por Antonio Negri como impero [(Hardt & Negri, 2005)],
como o império que se desenvolve precisamente sem encontrar limites” (MILLER, 2011, p. 10). Em
termos psicanalíticos, o não todo corresponde “ao declínio disso que Freud havia chamado de o mundo
vertical da identificação e sua substituição pelas formas horizontais de identificação, a constituição
de pequenos grupos de sujeitos unidos por uma relação partilhada de um aspecto bem específico da
vida” (VORUZ, 2009, p. 13-14).
8 Fugindo da controvérsia em torno da “medicalização”, como aquela que estabelece Parens (2013), por
exemplo, ao assinalar que essa noção sociológica é meramente descritiva, não se tratando, portanto,
de algo bom ou ruim per se, a expressão “hipermedicalização”, como vem sendo usada na literatura
especializada, implica sempre o uso irracional da medicação, correspondendo assim necessariamente
à “má medicalização”.
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gital_38_a2.pdf. Acesso em 12 out 2015.
2 Como afirma Caetano Veloso na canção “Americanos” (do álbum Circuladô Vivo), de sua autoria: “Para
os americanos / branco é branco / preto é preto / e a mulata não é a tal...”.
siva inserida em categorias de transtornos não é mais sensata”3 (APA, 2014, p. 12;
grifo nosso). Contudo, conserva o insensato modelo categorial, ao menos até que a
pretensa “evolução” científica abra alas para transformações efetivas. Dessa forma,
apregoa que “revisões contínuas do DSM-5 fazem com que ele se transforme em
um ‘documento vivo’, adaptável a descobertas futuras em neurobiologia, genética e
epidemiologia” (APA, 2014, p. 13; grifo nosso). Tal pretensão de adaptação especí-
fica a “futuras descobertas científicas” (APA, 2014, p. 17) exclui a interlocução com
outras configurações diagnósticas já existentes, baseadas em modelos teóricos não
biológicos. O DSM-5 é explícito nesse sentido e procura se amalgamar na biologia.
Assim, percebe-se que tanto o sistema classificatório etnorracial quanto o
sistema classificatório psiquiátrico norte-americanos se apoiam no pensamento
binário (e, por conseguinte, na caracterização tipológica rígida), como represen-
tante do que há talvez de mais típico da cultura estadunidense4. Digamos que
a ciência norte-americana é bastante enviesada/interessada e as manifestas pre-
tensões globais de sua doxa acabam por universalizar, de modo latente, sua con-
cepção de mundo particular. Desse modo, autores das mais diversas perspecti-
vas teóricas (GAINES, 1992; YOUNG, 1997; HACKING, 2000; FRANCES, 2013;
HENRIQUES, 2015) vêm denunciando que o DSM, para além de sua carapaça
científica pretensamente neutra (ateórica e descritiva), refletiria os valores cultu-
rais dos Estados Unidos. Gaines (1992), um dos autores a inaugurar esse tipo de
crítica, extraiu uma etnopsicologia subjacente a esse manual isolando uma noção
positiva idealizada do eu: aquela de um “eu referencial”, autocontrolado, cujas
questões existenciais centrais se referem à autonomia, à individualização e ao de-
3 Um dos elaboradores da terceira edição do DSM, J. S. Saraus, já havia afirmado que, depois de
anos dedicados a contribuir com o desenvolvimento desse manual, fora para ele impossível não se
dar conta de que, com frequência, os pacientes psiquiátricos não se encaixavam de maneira correta
nas tipologias propostas, uma vez que eles descreviam experiências “intermediárias” em relação
à definição dos sintomas (um pensamento delirante ou “quase” normal; uma alucinação ou um
pensamento percebido de forma “muito intensa”), o que acarretava marcações frequentemente
arbitrárias. A utilização desse manual para levantamento diagnóstico “(...) mostrava como as pessoas
‘reais’ bem pouco se adaptavam às categorias psiquiátricas: emergia claramente um continuum entre
diversos grupos diagnósticos, entre diversos grupos de sintomas e também entre manifestações
sintomáticas e manifestações psicológicas normais” (citado por SARACENO, 1999, p. 89-90).
4 Não à toa que Jacques Derrida, pai da teoria da desconstrução, que se propõe a desconstruir a lógica
binária constitutiva da história do pensamento ocidental, teve uma das mais bem-sucedidas recepções
justamente nos Estados Unidos, sendo apropriado pelo campo acadêmico de lá para confrontar os
valores culturais estadunidenses, muitos deles disfarçados de teses científicas.
Isso nos faz questionar: em que medida as categorias que se pretendem uni-
versais no DSM não refletiriam as peculiaridades da cultura norte-americana na
delimitação de seus problemas locais? Lembrando que o DSM surgiu, em 1952,
como alternativa à Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização
Mundial de Saúde (OMS) justamente em função de uma demanda dos psiquia-
tras norte-americanos, que não reconheciam na CID os transtornos psiquiátricos
específicos existentes em solo estadunidense. Após a guinada metodológica de
1980, que coincidiu com a sua terceira edição, o DSM se repaginou como “cien-
tífico” e assumiu suas pretensões universalistas, porém, os transtornos psiquiá-
tricos específicos dos Estados Unidos não desapareceram dessa terceira edição
tampouco das seguintes; quem quer que tenha um pingo de visão crítica e curio-
sidade em folhear as páginas de sua quinta edição, recentemente publicada, en-
contrará transtornos com forte apelo regionalista.
Um desses transtornos, que se pretende universal, e que contempora-
neamente se encontra constantemente atravessado por debates cada vez mais
afinados sobre sua validade epistemológica como patologia, é a categoria de
“disforia de gênero”7. O “transtorno de identidade de gênero” do DSM-IV-TR,
renomeado “disforia de gênero” no DSM-5, relaciona-se mais propriamente
àquilo que vem sendo descrito como “experiências trans” (BENTO, 2006) e,
desde que se aventou a realização da última atualização do DSM, um movi-
mento internacional denominado Stop Trans Pathologization se organizou na
tentativa de pressionar os editores do DSM-5 a retirar o então “transtorno da
identidade de gênero” do manual (BENTO & PELÚCIO, 2012), a exemplo do
que já havia acontecido com a homossexualidade8.
Contudo, diferentemente do desfecho favorável ocorrido com a homosse-
xualidade, as “experiências trans” continuariam inscritas como patologia nas li-
7 Logo na primeira linha do capítulo reservado à “disforia de gênero”, o DSM-5 apresenta essa categoria
como um “diagnóstico global” (APA, 2014, p. 451; grifo nosso).
8 Os grupos homossexuais organizados pressionaram a APA na ocasião da revisão que levaria à terceira
edição do DSM para que a homossexualidade deixasse de ser considerada um “desvio sexual”, o
que acabou acontecendo em 1974, por determinação dos editores desse manual, após aprovação
num plebiscito interno realizado pela APA. O futuro da homossexualidade ter sido definido por
um consenso corporativo da APA explicitou o quanto esse até então “transtorno mental” possuía
fronteiras cientificamente imprecisas, definidas pela “moral sexual ‘civilizada’” (FREUD, 1908/1996),
constituindo-se assim um alvo privilegiado de disputas políticas.
9 O mesmo processo ocorreu com a antiga “impotência sexual masculina”, chamada no DSM-5 de
“transtorno erétil” (APA, 2014, p. 426-429). Para além da mera alteração semântica, a detecção de
uma noção psicológica como impotência remete em tese a uma relação intersubjetiva no plano da
construção do diagnóstico clínico, enquanto a detecção de uma noção médica como disfunção erétil
requer apenas a mensuração objetivante do órgão sexual masculino reificado.
deiras (por ex., brincar de ‘mãe’)” e com frequência preferem atividades lúdicas
tradicionalmente femininas como “brincar de casinha, desenhar quadros femi-
ninos, assistir a programas de televisão ou vídeos com personagens femininos
favoritos”; “Bonecas estereotípicas femininas (p. ex., Barbie) geralmente são os
brinquedos favoritos, e as meninas são as companheiras de brincadeira preferi-
das” (APA, 2014, p. 453-454). Meninas pré-puberais, por sua vez, apresentam o
transtorno quando “preferem usar roupas e cortes de cabelo de meninos”, sendo
com frequência “percebidas como meninos por estranhos”. “Com frequência, sua
preferência é por esportes de contato, brincadeiras agressivas e competitivas, jo-
gos tradicionalmente masculinos e ter meninos como pares”. Às vezes, chegam
até a recusar-se “a urinar na posição sentada” (APA, 2014, p. 453).
O que observamos é que, quando o DSM-5 descreve uma possível “disforia
de gênero em crianças”, em nada o manual está se referindo a “constantes sintoma-
tológicas clinicamente observáveis”; antes disso, está endereçando suas atenções
às normativas de gênero que exigem que indivíduos nascidos com determinada
genitália representem uma performance específica, historicamente construída e
culturalmente assimilada àquela genitália em questão (MURTA, 2007). Tais nor-
mativas de gênero são alçadas pelo DSM-5 ao patamar de marcadores diagnósti-
cos: a preferência por “brincar com a Barbie” ou por escolher “esportes de contato”
torna-se parte significativa dos critérios necessários e suficientes no DSM-5 para a
confirmação, em crianças, desse diagnóstico altamente estigmatizante.
A existência de sujeitos “subversivos” para com as normativas de gênero –
em sua exigência de uma equivalência forçada entre sexo biológico e expressão
de gênero (BENTO, 2006) – parece de algum modo assustar à sociedade norte-a-
mericana – basta novamente observar que os critérios diagnósticos utilizados no
delineamento da “disforia de gênero” baseiam-se estritamente numa regulação
moral das experiências de gênero, considerando aqueles que destoam do que é
culturalmente preconizado como “normalidade” na experimentação dos gêneros,
objetos da nosologia psiquiátrica –, que então passa a exigir uma resposta a essa
suposta “ameaça” a sua gramática binário-normativa. Tentando salvaguardar essa
estrutura, é então que a APA aparece, procurando manter a ordem legislando em
prol dessas normativas, numa espécie de macarthismo psiquiátrico: os “subversi-
vos” devem ser, cada vez mais precocemente, identificados, regulados, gerencia-
dos, normatizados e “tratados”.
11 Para mais informações sobre essas experiências de gênero e suas particularidades, ver Lanz (2014).
12 Dentre tantos outros, o filme relativamente recente “A fita branca” (Das Weiße Band - Eine deutsche
Kindergeschichte; direção de Michael Haneke, França/Itália/Áustria/Alemanha, 2009, Cor/DVD,
2h24min) ilustra com maestria essa tradição cultural. A rigidez moral do povoado prussiano com suas
normativas binárias centradas no bem/mal, retratada com maestria nessa obra, também faz parte do
espírito americano puritano.
13 Como eixo norteador dessa suposta “incongruência”, o DSM-5 aponta a negação e ojeriza que todos
os sujeitos com “disforia de gênero” teriam dos seus próprios genitais, o que não acontece com
as travestis, que nos estudos citados não relatam essa necessidade de alteração de suas genitálias
externas.
Referências
produz uma nova estratégia política e uma nova tecnologia do poder de punir
que se nutre das inovações da Revolução Industrial.
Essa nova estratégia política não buscava punir menos, mas punir melhor.
Buscava também fazer da punição uma função regular. Mas, talvez o mais impor-
tante, inserir mais profundamente nas subjetivações o poder de punir. As disci-
plinas, na fábrica e na prisão, produziram uma arte das distribuições, baseadas
nas classificações e cartografias da Encyclopedie. Sua arquitetura, simbolizada
pelo panopticum, erigiu fábricas, prisões, escolas e asilos. Essa cidade discipli-
nar é que vai engendrar o que Foucault denominou de “o grande internamento”
(FOUCAULT, 1978). Nossa tradução antropofágica de Foucault permite aqui um
reparo: no Brasil escravocrata, o liberalismo não abria mão do suplício. No século
XIX, ele vai para trás dos muros das prisões para que o Estado imperial execute a
pena para os senhores proprietários.
É na arquitetura disciplinar europeia que se desenvolvem as técnicas de
controle minucioso e reticular dos corpos a serem docilizados e as técnicas de
vigilância. É importante observar como o surgimento de um sistema disciplinar
articulado e modular surge junto com suas críticas. Em 1777, Howard escreve o
relatório sobre a situação dos estabelecimentos penais, sórdida como as prisões
contemporâneas (HOWARD, 1929). A prisão surge então como uma perversa
utopia da razão. Seu fracasso aparente na erradicação do crime esconde seu ob-
jetivo central: organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. Ao
agenciar a conflitividade social, a prisão se torna um instrumento fundamental
para o controle diferencial das ilegalidades populares. O princípio da less elegibili-
ty, segundo o qual a prisão tem que oferecer condições piores do que as piores no
mundo do trabalho, seria a razão condutora do punitivismo moderno. É esse mo-
numentum, o panopticum, que encarna as racionalidades do direito penal moder-
no, suas exposições globais e articuladas, sua proporcionalidade, suas classifica-
ções e mensurações do tempo do homem, cujo corpo será consumido na prisão.
É de toda essa ambiência que o século XIX constrói uma nova demanda
por ordem, uma ordem repleta de medos pós-revolucionários. Medo do povo
em armas, das multidões iradas que irromperam pelo continente e também pelas
colônias. A revolução haitiana assombrou as elites brancas das Américas durante
todo o século. Além dos medos brancos, o século XIX contava com um grande la-
boratório: aquela arquitetura disciplinar e seu conjunto de técnicas e instituições
Referências
Pena-dever
Começaremos com a pena-dever, e portanto com Kant. Nesse território,
todo cuidado é pouco, e cabe, pois, advertir que nos interessará aqui aquela que
pode ser chamada de versão jurídico-penal do pensamento kantiano, tal como
apreendida e exposta na literatura jurídico-penal em geral, a partir do que escre-
veu ele sobre pena na Crítica da Razão Prática e principalmente na Metafísica
dos Costumes. Não ignoramos as interpretações que pretendem circunscrever ao
campo da moral, e particularmente à refutação do eudemonismo, a atribuição à
pena do caráter de imperativo categórico2. Tampouco ignoramos que seu texto
Über Pädagogik, publicado em 1803, um ano antes de sua morte, menciona casti-
gos escolares que ostentam uma óbvia finalidade (contradizendo assim o axioma
da moral fundada na autonomia), e que, em suas Lições de Ética, publicadas em
1824, ele se referiu expressamente a penas expiatórias e a penas preventivas. Aqui
estaremos focados apenas no legado kantiano que decisivamente influenciou a
concepção jurídica da pena, tal como efetivamente o fez. É provável que tal visão
implique um esquematismo da densa reflexão kantiana, mas foi assim que ela
chegou ao direito penal e – na versão neokantista de Baden – dominou hegemo-
nicamente a metodologia jurídico-penal na primeira metade do século XX.
Kant afirma na Metafísica dos Costumes que o soberano tem o “direito de
castigar”, ou seja, de “afetar dolorosamente o súdito por causa da infração à lei”.
Poderíamos ser tentados a ver aí uma concepção de pena-direito, e muitos ju-
ristas que a perfilharam se abeberaram nessa passagem. Mas, se continuarmos a
leitura, veremos que a coisa não é bem assim, porque “a lei penal é um imperativo
categórico”. Ele já consignara, na Crítica da Razão Prática, que a justiça constitui
a essência do conceito de pena. Portanto, a pena – que em diversas passagens
caracterizou com “mal físico” (physiches Übel) – deve incidir sobre o culpado
2 Sobre isso, ver: Cattaneo, Mario A., Dignità Umana e Pena nella Filosofia di Kant, Milão, 1981, ed.
Giuffrè, pp. 189 ss; também Merle, Jean-Christophe, et al. (orgs.), A Moral e o Direito em Kant, trad.
A. T. Gomes, B. Horizonte, 2007, ed. Mandamentos, pp. 221 ss.
“pela única razão de ter delinquido”. (Abram-se parênteses para ressaltar que,
na aversão de Kant pelos usos exemplarizantes da pena, resplandece entranhado
compromisso com a dignidade humana; o homem não pode ser tratado como
meio pelo sistema penal.) A qualidade e a quantidade do mal físico a ser infligido
é problema que ele remete ao talião; para os crimes patrimoniais, trabalhos força-
dos ou redução à condição de escravo, mas quem matou “deve também morrer”.
Ele abre exceção para certos casos de infanticídio (sob o cruel argumento de que
“a criança nascida fora do casamento é uma criança fora da lei”) e para o duelo
que, por realizar-se publicamente e com consentimento, “não pode ser chamado
de homicídio”. Nega o direito de graça, restringindo-o às ofensas contra o próprio
soberano. E ilustrou sua exposição com um exemplo que, a despeito de muito
conhecido, vale a pena transcrever:
(se, por exemplo, o povo que vive em uma ilha decidisse desagregar-se e
espalhar-se pelo mundo), o último assassino no cárcere teria de ser antes
executado, de modo que cada um recebesse o que merecem seus atos e a
culpa sangrenta não recaísse sobre o povo, que não fez por merecer essa
punição, mas poderia ser considerado cúmplice nessa violação pública da
justiça. (KANT, 1996, p.120)
finida por Kant como o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação (KANT,
1996), e se, após uma ação dessa pessoa, só cabe – ao largo de toda utilidade –
considerá-la “digna da pena”, então um penalista fervorosamente religioso tende-
ria a vê-la como um direito do infrator!
Isto aconteceu, de forma explícita, na metade do século XX, com um pe-
nalista italiano, democrata cristão, Giuseppe Bettiol: “O homem tem direito à
pena, assim como tem direito ao reconhecimento da sua dignidade de pessoa”
(BETTIOL, 1967, p.170)3. O sofrimento físico como direito, essa construção aber-
rante de um direito subjetivo individual à pena, é um dos terríveis contrapontos
da concepção da pena-dever.
Lembrando que este texto teve como ponto de partida uma conferência rea-
lizada na Universidade Federal de Sergipe, não resisto a recordar uma expressão
do maior jurista sergipano – talvez brasileiro –, o irreverente e genial Tobias Bar-
reto, que caracterizou como “jurista-theologo” aquele que “ainda crê nos efeitos
salutares e purificadores da pena” (BARRETO, 1886, p.69).
Pena-direito
Tratemos agora da disseminada concepção da pena-direito, direito não do
padecente sobre o patíbulo ou do recluso no ergástulo, mas sim direito do so-
berano (do Estado).
Isto era um lugar comum no ancien regime: a racionalização jurídica do
absolutismo não podia deixar de conceber a imposição de penas como uma
faculdade do soberano. Um jurista contemporâneo de Mello Freire reduzia os
muito vastos e abundantíssimos direitos dos monarcas portugueses a cinco
classes: legislativo, inspectivo, policiativo, judiciativo e executivo, sendo que,
dentro deste último, residiria o direito de impor penas (SAMPAIO, 1793)4. Sur-
preendente é que essa mesma concepção tenha permanecido na teoria dos ju-
ristas liberais, e seja ainda hoje adotada pela esmagadora maioria dos tratados
e manuais de direito penal.
3 .Para a opção política: “Justiça retributiva por um lado e salvaguarda das exigências da personalidade
moral do indivíduo, por outro, são as caraterísticas fundamentais de uma concepção cristã do direito
penal, que devem, igualmente, iluminar a concepção democrática” (p. 74). Jesus Cristo afastou-se
radicalmente dos democratas cristãos quando evitou a lapidação da mulher adúltera (João 8, 11).
4 Ver: Sampaio (1793) P. 2ª, tit. 4º, cap. LX e tit. 7º, cap. II.
5 . Em certa passagem (p. 101), ele se indaga: “até que ponto então este Anti-Hobbes é também um
Anti-Kant”?
6 Por exemplo, em nosso código penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal” (art. 5º, inc. XXXIX CR; art. 1º Código Penal).
este cujo titular nem pode renunciar a ele, nem pode exercê-lo, afastando-se um
milímetro que seja das prescrições legais? Um autor espirituoso, embora positi-
vista, ridicularizava a construção teórica dessa estranha facultas puniendi desnu-
dando o absurdo de consistir ela “na faculdade do Estado de agir em conformi-
dade com as normas de direito objetivo postas pelo próprio Estado, e só por ele”
(FERRI, 1931, p. 115).
Mas, o pior é que o modelo do direito subjetivo, sem dúvida útil no âmbito
do direito privado, particularmente no direito das obrigações (relacionando um
credor e um devedor obrigacional) nos levaria a emparelhar ao credor-Estado,
titular de um ius puniendi, um devedor-réu, ao qual caberia a obrigação de supor-
tar a pena. Essa obrigação não existe: nem Hobbes, que obviamente reconhecia
um direito de punir, chegou a tanto. Só num Estado de polícia se poderia preten-
der que o réu esteja obrigado a submeter-se à pena, obrigação que, além de con-
duzir à criminalização da fuga, suprimiria o direito de resistência e estabeleceria
um antidemocrático dever incondicional de obediência dos súditos.
É claro que o condenado é compulsoriamente submetido à pena, e isto faz
parte do exercício daquele falso monopólio de violência legítima do qual falou
Max Weber (falso porque o poder punitivo se exerce na sociedade civil, através
de uma microfísica que compartilha muitos espaços distintos do sistema penal).
A execução da pena constitui um ato de violência, e o mais importante debate
penalístico, o grande divisor de águas, questiona precisamente a legitimidade da
violência punitiva.
Pena-poder
Por fim, detenhamo-nos sobre aqueles que trataram a pena como um ato
de poder (pena-poder), começando por observar uma curiosidade: muitos deles
conviviam com a ideia de pena-direito, porém sua preocupação estava em cercear,
traçar limites restritos para tal direito – indicando que, essencialmente, preten-
diam conter e reduzir um poder.
Rousseau, por exemplo, que deduzia o direito de punir precisamente do
acúmulo das parcelas da liberdade de cada cidadão, que adere ao contrato social,
e que são assim transferidas ao soberano, restringia o emprego da sanção capital:
“não se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, senão aquele que se não
pode conservar sem perigo” (ROUSSEAU, 1971, p.46).
7 Marilena Chauí saudou como “grande inovação política de Espinosa” definir “a equivalência entre o
direito e o poder (o direito é a potencia, ius sive potentia)” (CHAUÍ, 2003, p.242)
graças a sua luta, é possível hoje desatrelar a política criminal de sua dependência
para com a legislação penal e vê-la como a ciência política do poder punitivo.
Conclusão
Para concluir, esbocemos um quadro, por certo lacunoso, de algumas con-
sequências que decorrem da assunção da pena-dever e da pena-direito em opo-
sição à pena-poder:
2. talião proporcionalidade
3. execução atroz humanidade
4. suficiência da infração lesividade
5. criminalização de atitudes internas lesividade
ou de meras condições existenciais
8 Sobre isso, ver: Herivel, Tara et al. (2013.), Quem Lucra com as Prisões – o Negócio do Grande
Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan.
Referências
9 “A execução penal tem por objetivo (...) proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado” – art. 1º da lei nº 7.210, de 11.jul.1984.
Ernani Chaves
Professor da Faculdade de Filosofia e dos Programas de Pós-Graduação em
Antropologia e Psicologia da UFPA. Doutor em Filosofia pela USP.
Eugène Enriquez
Professor Emérito da Universidade Paris-VII e do Laboratoire de Changement
Social. Doutorado em Psicossociologia e Sociologia Clínica. Membro fundador
da ARIP – Association pour la Recherche et l’Intervention Psychosociologiques.
Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris VII.
Joel Birman
Professor do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e
do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UERJ. Pesquisador do
Collège International de Philosophie e do Laboratório “Psicanálise e Medicina” da
Universidade de Paris-VII. Doutor em Filosofia pela USP.
Nilo Batista
Professor Titular de Direito Penal da UFRJ e da UERJ. Presidente do Instituto
Carioca de Criminologia. Doutor em Direito Penal pela UERJ.
Renata Rodrigues
Professora do Curso de Psicologia do UNIVAG. Mestra em Estudos de Cultura
Contemporânea pela UFMT.
Teresa Carreteiro
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. Membro do
Centre International de Psicosociologie e do Institut International de Sociologie
Clinique (Paris). Doutora em Psicologia Social Clínica pela Universidade de
Paris-VII.