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cebia os outros 94%. Em 2004, os 516 CAPS cos e ensaios diagnósticos (...). São raros os nú-
existentes receberam 20% dos recursos citados cleos ou grupos de pesquisa que vinculem saú-
contra 80% destinados aos 55 mil leitos psi- de mental, contexto social e saúde pública”
quiátricos no Brasil 2. (grifos nossos).
Podemos apontar a aprovação da Lei n. Tal vinculação permitiria o desenvolvimen-
10.216 da Reforma Psiquiátrica, a publicação to de investigações na interface entre saúde co-
da Portaria n. 336/02 e da Portaria n. 189/02 – letiva e saúde mental, que permanece ainda um
que atualizam a Portaria n. 224/92 e incorpo- território quase inexplorado, potencialmente
ram os avanços ocorridos na condução dos equi- uma área emergente de máxima relevância so-
pamentos substitutivos 3 – a realização da III cial. O estabelecimento de interlocução sistemá-
Conferência Nacional de Saúde Mental 4, que, tica entre esses dois campos poderia trazer sig-
entre outras coisas, consolidou o novo modelo nificativo avanço para ambos, conforme apon-
assistencial dos CAPS e, finalmente, a expe- tam experiências exitosas nesse sentido 8.
riência acumulada nos mais de dez anos de A efervescência da última década, represen-
existência desses serviços como fatores decisi- tada pelos debates e efetivas transformações
vos na história recente para um substancial in- no âmbito da saúde mental no Brasil, vem ocor-
cremento dos CAPS no Brasil e para a relativi- rendo com restrito acompanhamento, elabora-
zação do papel (ainda) hegemônico dos hospi- ção e contribuição instrumental por parte do
tais psiquiátricos na atenção em saúde mental. pensamento da saúde coletiva. Ainda que per-
Nesse contexto, os CAPS assumem especial tençam a um movimento de raízes comuns, a
relevância no cenário das novas práticas em Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica se-
saúde mental no país, configurando-se como guiram caminhos paralelos na última década,
dispositivo tornado estratégico para a reversão esboçando uma certa distância disciplinar en-
do modelo hospitalar. O Ministério da Saúde tre os dois campos 9.
(MS) preconiza para estes serviços o papel de A saúde coletiva em suas vertentes relacio-
articulador de uma lógica de rede calcada em nadas à avaliação de serviços e desenvolvi-
várias instâncias 5, como as de cuidados bási- mento de pessoal vem ampliando seu espaço
cos (Programa Saúde da Família – PSF), ambu- na academia sem correlativo aumento de sua
latórios, leitos de hospitais gerais e iniciativas utilização nos serviços de saúde mental que,
de suporte e reabilitação psicossocial – Servi- por sua vez, requerem uma necessária adapta-
ços Residenciais Terapêuticos e trabalho prote- ção desse instrumental e não a simples extra-
gido 6. No entanto, a função aglutinadora e de polação de categorias já consagradas em ou-
organizador da rede local de saúde mental re- tros âmbitos.
querida dos CAPS é ainda um horizonte a ser A necessidade de novos e mais estudos nes-
alcançado no plano nacional. sa área é ressaltada por importantes atores da
Algumas observações preliminares permi- reforma, conforme relato da III Conferência Na-
tem-nos supor que certas críticas aos CAPS, cional de Saúde Mental 3 (p. 75), que aponta a
produzidas no seio da Reforma Psiquiátrica, se necessidade de “estimular a articulação entre
não guarnecidas de um corpo de categorias pa- entidades de financiamento à pesquisa (CAPES,
ra o seu enfrentamento e superação, poderão CNPq etc.), entidades formadoras e o Ministério
expor os serviços ao risco de sua deslegitimiza- da Saúde para o fomento à pesquisa e prioriza-
ção social sem que os impasses sejam suficien- ção de temas da assistência em Saúde Mental e
temente identificados e enfrentados. Referimo- Reforma Psiquiátrica”.
nos a certas falas (presentes, por exemplo, no Considerando os CAPS dispositivos estraté-
último Congresso Brasileiro de CAPS, realizado gicos da reforma dos cuidados em saúde men-
em São Paulo em 2004), nas quais figuras rele- tal no Brasil – configurando-se simbólica e nu-
vantes do Movimento pela Reforma Psiquiátri- mericamente como a grande aposta do Movi-
ca, gestores e trabalhadores apontam para o mento de Reforma Psiquiátrica Nacional –, e
risco de uma “manicomialização” dos novos considerando a aproximação entre a saúde co-
equipamentos. letiva e a saúde mental uma necessidade para
O próprio MS 7 (p. 2) reconhece a necessi- a constituição de um campo interdisciplinar de
dade de qualificar a discussão em torno das saberes e práticas, julgamos investigações es-
novas ações em saúde mental: “em relação ao pecificamente dirigidas aos CAPS como poten-
debate científico e à produção de conhecimen- cialmente geradoras de subsídios para a Refor-
to, o tema da saúde mental como parte da saú- ma Psiquiátrica Brasileira e, ao mesmo tempo,
de pública está ausente na graduação e pós- propulsora de um novo território de pesquisa
graduação (...). Toda a pesquisa na área con- no âmbito das políticas públicas e da avaliação
centra-se em dois grupos: ensaios farmacológi- de serviços de saúde.
dução, pois aquilo que é destacado ressalta ao questões e reivindicações existentes 48, para re-
mesmo tempo aquilo do qual se destaca 53. Em velar as aprendizagens silenciosas do cotidia-
nosso caso, as questões não compreendidas dos no 56 e propiciar espaço para negociações e
CAPS – que representam a grande aposta de trocas simbólicas entre os envolvidos 57.
Reforma Psiquiátrica brasileira – deve nos levar Os gerentes dos CAPS, trabalhadores da as-
à busca pelo passado e pelas tradições da área. sistência, nível central de administração muni-
O que a saúde coletiva e a saúde mental tra- cipal, usuários e familiares constituem-se gru-
zem de seus respectivos percursos e bagagens pos de interesse a priori, sendo que outras ca-
históricas para o desenho das políticas e dos ser- tegorias podem ser eventualmente incluídas se
viços substitutivos de saúde mental na atualida- consideradas as características de cada local.
de? Interpelados pelos impasses oriundos dos Os grupos de interesse podem ser abordados
novos serviços de saúde mental, buscamos res- utilizando-se a técnica de grupos focais.
postas às questões: como de fato eles têm fun-
cionado no cotidiano? Como organizam os pro- • Grupos focais
cessos de trabalho e que formas neles assume a
gestão? Qual ou quais modelos de clínica vem ou Grupos focais vêm sendo amplamente utiliza-
vêm se desenvolvendo? Com quais estratégias de dos nas áreas da saúde, educação e sociologia
formação estão sendo preparados seus trabalha- para a captação de dados e para a avaliação de
dores? Quais os dilemas ou entraves existentes programas e serviços 58 mostrando-se perti-
na relação dos novos serviços com outros equi- nentes em processos de avaliação participativa.
pamentos da rede SUS? Como estão se organi- O grupo focal é uma técnica que permite a
zando e funcionando as equipes dos CAPS? Co- obtenção de dados a partir de sessões grupais
mo, no cotidiano dos Serviços os modelos de entre pessoas que compartilham um traço em
gestão e de atenção estão se articulando? comum. Tais grupos permitem a coleta de in-
Como podemos observar, e concordando formações relevantes sobre um determinado
com Gadamer 53, o problema da aplicação está tema, possibilitando a apreensão não somente
sempre, e desde o começo, definido pelo obje- do que pensam os participantes, mas também
to. Para a metodologia gadameriana, o desta- do porquê eles pensam de determinada forma,
que do objeto já opera uma aplicação, pois é além de possibilitar a observação da interação
no contexto desta última que se faz possível o entre seus componentes e os diferentes graus
seu destaque. de consensos e dissensos existentes 59,60.
Isto implica que no bojo da escolha do ob-
jeto deverá estar contida preocupação por de- Tratamento e interpretação dos dados
linear saídas para os problemas concretos que
venham a ser detectados na atenção prestada Em um desenho hipotético de pesquisa, como
nos serviços substitutivos (CAPS) do Sistema vimos esboçando neste artigo, podem surgir,
Público de Saúde, gerando subsídios para a to- dentre outros, dados relativos aos modelos de
mada de decisão em diversos níveis. gestão assistencial, formação dos trabalhado-
res da saúde e decorrências da institucionali-
Técnicas de coleta de dados zação. Neste caso, deverão ser considerados a
partir de uma abordagem que permita conju-
Naturalmente, as formas de coleta de dados se- gar análise e interpretação com a construção
rão decorrentes das “escolhas” paradigmáticas de novas alternativas, tarefa para a qual propo-
e metodológicas. Em nosso caso, citamos duas mos a utilização da hermenêutica crítica utili-
dentre outras possíveis e pertinentes ao que vi- zada por Ricoeur 61,62, por sua vez inspirada na
mos discutindo anteriormente. hermenêutica gadameriana 53.
É nosso entendimento que a interpretação
• Identificação dos grupos de interesse é composta de dois movimentos: análise e cons-
trução 11,63, sendo a análise necessária para a
A inclusão de representantes de diferentes seg- compreensão aprimorada dos fenômenos em
mentos envolvidos em um programa ou servi- curso, e a construção 64 à maneira de uma nar-
ço, na qualidade de seus trabalhadores ou be- rativa, fundamental para a formulação de pro-
neficiários (“stakeholders”), vem sendo defen- postas e elaboração de novos sentidos que po-
dida por diversos autores para aumentar a deriam ser agenciados por trabalhadores e ges-
chance de utilização dos resultados da pesqui- tores no aprimoramento da atenção em saúde
sa 54, para estimular a participação, a capacita- mental no Brasil.
ção e o desenvolvimento dos envolvidos 55, pa- Como ressaltado por Gadamer 53, a herme-
ra a consideração dos diferentes interesses, nêutica não deve ser considerada uma meto-
dologia no sentido cartesiano, mas uma postu- A ação avaliativa nos CAPS é uma ação so-
ra interrogativa que se aplicaria fundamental- cial singular, desenvolvida em ambientes com-
mente ao estudo de textos. Assim, consideran- plexos, nos quais dificilmente se poderia atri-
do-se a abordagem hermenêutica, pode-se tra- buir significado específico a um elemento sem
balhar o material produzido pelos grupos fo- considerar a lógica e a interferência de outros,
cais (ou outras fontes) da seguinte forma: sobretudo no contexto da desinstitucionaliza-
1. Após a primeira aproximação do material ção de programas e serviços 65.
gerado nos grupos focais, faz-se uma primeira A partir dessa constatação, Mercier 65 esta-
interpretação das narrativas ali produzidas, con- belece algumas proposições, dentre as quais:
siderando o material como unidade narrativa; (1) a escolha das questões da avaliação deter-
2. Após essa construção narrativa, empreen- mina o grupo de interesse por ela privilegiado;
de-se uma segunda fase de interpretação con- (2) os métodos epidemiológicos e quase-expe-
frontando as narrativas produzidas entre si: rimentais são pouco úteis para a intervenção
seus diálogos, convergências, diferenças e pon- direta; (3) existem, em avaliação, abordagens
tos de recalque. O produto dessa fase será con- mais aptas que outras para favorecer a articu-
siderado como uma meta-narrativa; lação entre intervenção e pesquisa; (4) a utili-
3. Finalmente, pode-se realizar uma terceira zação de dados da avaliação visando ao plane-
volta hermenêutica visando à interpretação jamento de intervenções pode acarretar efeitos
dessa meta-narrativa e ao contexto da produ- perversos aos usuários.
ção histórico-social tanto da saúde coletiva bra- Criar alternativas à hegemonia do aspecto
sileira quanto da saúde mental. Nesse momen- financeiro na análise de intervenções, minimi-
to, busca-se identificar a presença das várias zar eventuais efeitos perversos aos grupos ne-
tradições dessas duas áreas e, novamente, seus las implicados 66, considerar a complexidade
pontos de diálogo, interação, convergências, do serviço e de sua inserção no contexto, com-
diferenças e recalques; preender melhor os componentes e formas de
4. O produto dessas três etapas de trabalho articulação da ainda novidade representada
deverá ser apresentado e discutido com os par- pelos CAPS, parecem ser alguns dos benefícios
ticipantes dos grupos de interesse, sendo suas da instauração de processos avaliativos parti-
considerações incluídas no relatório final. cipativos nesses centros.
Dessa maneira, procuraremos cumprir com Considerando que, no Brasil, setores pro-
o postulado hermenêutico de passar várias ve- gressistas da reforma psiquiátrica ocupam lu-
zes pelo mesmo lugar e que caracteriza o círcu- gar de destaque na formulação e na condução
lo hermenêutico. Círculo que, no dizer de Ga- executiva das mudanças em saúde mental,
damer 53, não deve ser visto como “círculo vi- acreditamos ser oportuno incluir no processo
cioso” pois, apesar de ser obrigado a passar pe- de avaliação dos dispositivos criados para a im-
lo mesmo lugar, passa sempre em uma latitude plementação da reforma, atores que, de algu-
diferente, de maneira que “quando se logra ma forma, mantém-se à margem do processo,
compreender, compreende-se sempre de manei- em posturas essencialmente críticas, o que po-
ra diferente” 54 (p. 444). de reduzir eventuais pontos cegos dos gestores
e formuladores de políticas 67.
A avaliação sistemática dos CAPS, de suas
Considerações finais: um processo relações com a rede de serviços gerais de saú-
avaliativo qualitativo na interface entre de, do seu exercício do papel “ordenador” da
a saúde coletiva e a saúde mental rede e a elucidação das formas sob as quais es-
se papel é ou não exercido poderiam subsidiar
Toda ação social desenvolve-se em um contex- reformulações e acertos de rumo das políticas
to de complexidade crescente, envolvendo vá- vigentes para a área, visando o incremento de
rios atores sociais, portadores de papéis, inte- sua eficácia.
resses, lógicas e linguagens diversos e não rara-
mente contraditórios.
Resumo Referências
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