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DOI: 10.1590/1413-81232015202.

12642013 383

O labirinto e o minotauro:

REVISÃO REVIEW
saúde mental na Atenção Primária à Saúde

The maze and the minotaur: mental health in primary health care

Alice Hirdes 1
Helena Beatriz Kochenborger Scarparo 2

Abstract The article aims to discuss the issue of Resumo O presente artigo tem por objetivo dis-
integration of mental health in primary care by cutir a questão da integração da saúde mental na
matrix support in mental health. We point out the Atenção Primária mediante o apoio matricial em
main barriers in the use of this work method, as saúde mental. Apontamos as principais barreiras
well as the facilitating factors of the matrix sup- na utilização dessa metodologia de trabalho, bem
port of mental health in primary care. The first are como, os fatores facilitadores do apoio matricial
within the scope of epistemological specificities, em saúde mental na Atenção Primária. Os pri-
professional issues and management in the politi- meiros situam-se no âmbito das especificidades
cal and ideological dimensions. Among the second, epistemológicas, das questões profissionais e de
we highlight: the care for people with mental dis- gestão, nas dimensões políticas e ideológicas. Den-
orders in the territory; the reduction of stigma and tre os segundos, destacamos: o atendimento de
discrimination; the development of new skills for pessoas com transtornos mentais no território; a
professionals in primary care; reduction of costs; redução de discriminação e estigma; o desenvolvi-
simultaneous treatment of physical and mental mento de novas competências para os profissionais
illness, which often overlap; the possibility of in- da atenção primária; a redução dos custos; o tra-
corporating mental health care in a perspective of tamento simultâneo de doenças físicas e mentais,
extended clinical service using an inter/transdisci- que muitas vezes se sobrepõem; a possibilidade
plinary approach. de incorporar o cuidado em saúde mental numa
Key words Mental Health, Primary health care, perspectiva de clínica ampliada, mediante uma
Matrix support, Organizational innovation, Ma­ abordagem inter/transdisciplinar.
1
Programa de Pós- na­gement Palavras-chave Saúde mental, Atenção Primária
Graduação em Saúde à Saúde, Apoio matricial, Inovação organizacio-
Coletiva, Universidade nal, Gestão
Luterana do Brasil. Av.
Farroupilha 8001, São José.
92425-900 Canoas RS
Brasil. 92425-900
alicehirdes@gmail.com
2
Departamento de
Psicologia Escolar,
Faculdade de Psicologia,
Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande
do Sul.
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Hirdes A, Scarparo HBK

Introdução médicos da Atenção Primária coordenam o diag-


nóstico, o tratamento e a reabilitação de pessoas
O labirinto e o minotauro é um dos mitos gregos com transtornos mentais severos. O modelo im-
mais conhecidos. O minotauro, representado na plantando tem como premissa quatro elementos:
arte clássica como um ser com corpo de homem coordenação por médicos da Atenção Primária,
e cabeça de touro, habitava o labirinto, no qual o atendimento comunitário, o cuidado holístico
eram oferecidos tributos, inclusive jovens des- e o suporte de especialistas. Esses últimos prove-
tinados ao sacrifício. Tratava-se de um acordo em, além da revisão e do atendimento de casos
entre os reis Egeu de Atenas e Minos de Creta: complexos, a capacitação de médicos e enfermei-
o primeiro deveria enviar, a cada sete anos, qua- ros da APS. O Chile, por sua vez, implantou em
torze jovens à Creta, para que Atenas não fosse 2001, o Programa Nacional de Depressão na APS.
invadida por Minos. Coube a Teseu, um jovem Nesse país, 90% das pessoas com depressão rece-
herói de Atenas, juntar-se ao grupo de oferen- bem tratamento no território. Essa inclusão tem
das e enfrentar o monstro. Desenrola-se, então, como pontos-chave o suporte de lideranças polí-
a aventura no labirinto, cujo sucesso dependeu ticas e administrativas para alocação de recursos
também dos fios da jovem Ariadne que conduzi- financeiros e humanos e a supervisão e suporte
ram Teseu à saída do labirinto1. de profissionais de um centro comunitário de
A trama protagonizada por Teseu pode ser saúde mental3.
usada como metáfora de práticas na Atenção No Brasil, a experiência pioneira de Campi-
Primária à Saúde (APS). Apesar do princípio de nas (São Paulo), além de outras que a sucede-
integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS), ram, como a de Sobral (CE), a de Belo Horizonte
o cotidiano reproduz a imagem do Minotauro: (BH) e a de Gravataí (RS) vêm sendo desenvol-
a cabeça para os especialistas da área da saú- vidas com equipes matriciais de saúde mental. O
de mental e o corpo para os generalistas. Não é apoio matricial prevê a integração e o suporte de
necessário esforço imaginativo para vislumbrar profissionais especialistas e generalistas na Aten-
usuários e familiares em sofrimento perambu- ção Primária, considerando as especificidades de
lando no labirinto dos serviços para efetivar o cada território6. Consideramos essa metodologia
tratamento, que, de acordo com as diretrizes do de trabalho relevante para a inclusão das ações
SUS, não pode prescindir do cuidado integral. de saúde mental na Atenção Primária. Ela vem
No campo da saúde mental brasileira, nas últimas ao encontro da integralidade da atenção preconi-
duas décadas, esse cuidado tem sido articulado às zada pelo SUS e dos princípios e pressupostos da
ideias de desinstitucionalização2, com a proposta Reforma Psiquiátrica brasileira.
de uma reforma psiquiátrica, alvo de acalorados O apoio matricial foi desenvolvido e concei-
debates em diferentes segmentos sociais. Vivemos tuado por Campos7 e Cunha e Campos8 como
hoje processos de expansão da rede de cuidado uma metodologia de gestão do cuidado que obje-
extra-hospitalar: Centros de Atenção Psicossocial tiva assegurar retaguarda especializada a equipes
(CAPS), ambulatórios, residenciais terapêuticos, e profissionais da saúde, de maneira personaliza-
leitos de atenção integral à saúde mental (em hos- da e interativa. Busca oferecer retaguarda assis-
pitais gerais e CAPS III), Programa de Volta para tencial e suporte técnico-pedagógico às equipes
Casa, cooperativas de geração de renda e trabalho, de referência. Essa metodologia de trabalho de-
centros de convivência e cultura e a saúde mental pende da personalização da relação entre as equi-
na Atenção Primária à Saúde (APS). pes, da ampliação dos cenários onde se realiza a
No contexto mundial, a Organização Mundial atenção especializada e da construção compar-
da Saúde (OMS) juntamente com a Organização tilhada de diretrizes clínicas e sanitárias entre a
Mundial de Médicos de Família (WONCA)3 e a equipe de referência e os especialistas do apoio
Federação Mundial para a Saúde Mental4 defen- matricial. Indissociável do conceito de apoio ma-
dem a inclusão da saúde mental nos cuidados de tricial tem-se a equipe e os profissionais de refe-
saúde em geral, particularmente na APS. Na In- rência – aqueles que têm a responsabilidade pela
glaterra, Thornicroft e Tansella5 postulam que o condução de cada caso. Ambos, apoio matricial
tratamento à saúde mental deve ser parte integral e equipes de referência possibilitam a ampliação
da Atenção Primária. Sobretudo os países com da clínica e a integração dialógica entre diferentes
poucos recursos devem implementar a saúde especialidades e profissões.
mental na APS, com a retaguarda de especialis- O esforço em implementar a saúde mental na
tas para consultoria, avaliação e tratamento. Na APS por meio do apoio matricial se justifica por
Patagônia argentina, na Província de Neuquén, diferentes razões que vão desde a diminuição do
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sofrimento de usuários e familiares até as ques- nhamentos para serviços especializados. Ao mes-
tões de ordem socioeconômica. Um argumento mo tempo, favorece o reconhecimento precoce
relevante para essa integração diz respeito à car- de transtornos mentais e o desenvolvimento de
ga dos transtornos mentais que produzem difi- ações de promoção e prevenção.
culdades econômicas e sociais importantes para
as pessoas afetadas e as famílias. Além disso, a Barreiras à implantação do Apoio Matricial
integração da saúde mental na APS favorece as
práticas de cuidado integral, pois contempla a Resistência dos profissionais generalistas
concomitância de transtornos físicos e mentais, e especialistas
melhora o acesso aos serviços de saúde mental, Uma das barreiras à implantação do Apoio
promove os direitos humanos e reduz a lacuna Matricial é a resistência das equipes da ESF à
entre a prevalência de transtornos mentais e o adesão a esta metodologia de trabalho. Tal resis-
número de pessoas atendidas. As avaliações posi- tência se evidencia apesar de o atendimento inte-
tivas dessa integração se evidenciam, sobretudo, gral à saúde ser preconizado – o que, obviamente,
quando o trabalho articula comunidades e redes inclui o atendimento à saúde mental. Os argu-
de serviços de nível secundário3, o que fortalece mentos utilizados são de que problemas de or-
os argumentos em prol da prática de apoio ma- dem “mental” devem ser referenciados para espe-
tricial em saúde mental na APS. Nesse sentido, cialistas; além disso, é constante a cobrança por
a Organização Mundial de Saúde e a Associação produtividade pelo órgão gestor o que resulta em
Mundial de Médicos de Família3 formularam os pouca disponibilidade para a escuta da elevada
dez princípios para a integração da saúde mental demanda por atendimento. Somam-se a isso as-
na atenção primária: incorporar os cuidados de pectos da cultura de cada profissão e a disponibi-
saúde mental na atenção primária na política de lidade pessoal para a tarefa, atributo que poderá
saúde; mudar atitudes e condutas por meio de promover mudanças nas histórias das pessoas,
assessoramento; capacitar trabalhadores da aten- assim como na interação entre os profissionais. A
ção primária, propor tarefas operacionalizáveis; escuta envolve considerar a alteridade, tarefa que
contar com profissionais especializados em saú- exige constante preparo.
de mental; ter acesso a medicações psicotrópicas Algumas vezes o atendimento de transtor-
essenciais; ver a integração como um processo; nos mentais pode ser considerado acréscimo na
contar com um coordenador de saúde mental; demanda. Ainda que doenças físicas e psíquicas
contar com a colaboração de outros setores go- componham partes indissociáveis da vida das
vernamentais, organizações não governamentais; pessoas, o lema “não existe saúde sem saúde men-
dispor de recursos humanos e financeiros. tal” defendido por organismos internacionais3
A integração da saúde mental na APS é o me- evidencia esforços globais para a inclusão da saú-
lhor caminho para garantir que as pessoas com de mental na APS. Para que tal ocorra, além da
transtornos mentais recebam o cuidado do qual efetivação das políticas, é necessário sensibilizar
necessitam. Ela favorece a criação de estratégias os envolvidos para a mudança paradigmática.
para incrementar os serviços, a inserção da saú- Se, de um lado, abordamos resistências dos
de mental como prioridade de saúde pública; a generalistas, de outro podemos constatá-la nos
reorganização dos serviços de saúde mental e especialistas para transformar suas práticas. Ape-
sua integração aos serviços de saúde em geral; sar do conhecimento da falta de especialistas e de
o desenvolvimento de recursos humanos e o lacunas na assistência nessa área, parece existir
fortalecimento de lideranças públicas de saú- receio quanto aos efeitos das mudanças propor-
de mental9. Tais considerações nos levam a dis- cionadas pela socialização de saberes. Nas regiões
cutir as principais barreiras à implantação do urbanas, onde o número de especialistas é maior,
Apoio Matricial (AM) em saúde mental, assim existem casos de não acesso a esses profissionais.
como fatores facilitadores da integração da saúde Essa realidade é mais evidente em centros meno-
mental na APS. Este trabalho, independente das res e na zona rural, que frequentemente não con-
diferentes formas de abordagem que adote (su- tam com especialistas ou são em número muito
pervisão e suporte de especialistas para genera- aquém do mínimo preconizado. Isso se reflete na
listas ou atendimento conjunto de casos) poderá vida das pessoas, que perambulam no labirinto
propiciar acesso ao cuidado integral no território dos serviços tendo como fio condutor uma folha
e, consequentemente, a diminuição dos encami- de papel de referência ou contrarreferência, na
melhor das hipóteses.
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Gestão, liderança e políticas de saúde deveriam permear as práticas, porque esses irão
No âmbito da gestão, há necessidade de refletir, em última instância, na qualidade do ser-
convencimento dos gestores da necessidade de viço oferecido.
valorizar o apoio matricial como propositor de
alternativas de planejamento, gestão e avaliação Especificidades epistemológicas
do atendimento de pessoas em sofrimento psí- e recursos humanos
quico. No âmbito político, nota-se a ausência de
lideranças que defendam tais necessidades. Ao Outra barreira ao AM na APS diz respeito à
mesmo tempo, para que o trabalho seja efetivo necessidade de transformações conceituais e pa-
é necessário o respaldo institucional do gestor radigmáticas, mediante a formação permanente
local. Ele pode acontecer, por exemplo, pela alo- das equipes da ESF no campo da saúde mental,
cação de um número maior de profissionais para contemplando tratamento, reabilitação psicos-
o atendimento nos Centros de Atenção Psicosso- social, clínica ampliada e projetos terapêuticos
cial (CAPS) e ambulatórios, uma vez que, usual- singulares11. Implica o abandono da centraliza-
mente os profissionais necessitam compatibilizar ção do modelo biomédico para incorporar co-
as funções de atendimento nos serviços especiali- nhecimentos e modos de intervenção atinentes
zados e apoio matricial às equipes. a uma perspectiva ampliada de cuidado. Esse
Outra medida na descentralização das ações também é um argumento a favor de novos mo-
de saúde mental é a criação dos Núcleos de Apoio dos de operar no campo em foco que inclui a
à Saúde da Família (NASF) nos municípios. O crença nas potencialidades humanas e coloca a
processo de trabalho dos NASF deve ser realizado doença entre parênteses, como mencionou Basa-
pelo apoio matricial, através da criação de espa- glia12. Isso não significa negá-la, mas a transfor-
ços coletivos de discussão e planejamento com as mar a clínica, e estabelecer outra relação com o
equipes de referência. O NASF contempla aten- sujeito da experiência13, um conceito chave para
dimento compartilhado; intervenções específicas a ruptura paradigmática e para a construção de
com usuários e famílias; ações comuns nos terri- modos de operar. Essas transformações perpas-
tórios de sua responsabilidade, desenvolvidas de sam a inclusão da saúde mental numa perspec-
forma articulada com os profissionais da ESF. As tiva ampliada nos currículos dos cursos da área
ferramentas tecnológicas para o desenvolvimen- da saúde, sobretudo, nas disciplinas afins à Saúde
to do processo desse trabalho são: o apoio ma- Coletiva, Atenção Primária à Saúde e Psiquiatria/
tricial, a clínica ampliada, o Projeto Terapêutico Saúde Mental. Não podemos esperar que profis-
Singular (PTS) e o Projeto de Saúde no Território sionais formados no paradigma do tratamento,
(PST)10. Esses núcleos poderiam constituir-se em na centralização nos sintomas, no reducionismo
retaguarda importante às equipes da ESF, entre- terapêutico, tenham um desempenho de clínica
tanto essa articulação é incipiente nos municí- ampliada, sem que para isso tenham formação
pios. Sobretudo, deveria se dar entre os profissio- na área. Alguns cursos já realizam movimentos
nais do CAPS, da ESF e dos NASF, com o devido nesse sentido, mas percebe-se que não são sufi-
cuidado para a não fragmentação do trabalho. cientes para efetivar práticas de cuidado integral.
A integração da saúde mental na APS mos- A integralidade do cuidado, para além do con-
tra-se um sucesso quando é incorporada numa ceito constitucional, deve ser considerada como
política de saúde e legislativa, recebe suporte de um valor10 e se refletir na atitude do profissional.
lideranças públicas, recursos apropriados e go- Essa implica reconhecer demandas e necessida-
vernança em andamento3. Os aspectos anteriores des de saúde, assim como de ações de prevenção
são pontos frágeis no Brasil. Apesar de termos e de promoção e ações reabilitadoras. A oportu-
instituído um percentual mínimo a ser aplicado nidade de acadêmicos de diferentes áreas do co-
na saúde, isso se revela muito distante da realida- nhecimento vivenciarem o AM em saúde mental
de dos municípios brasileiros. A transformação descortina possibilidades novas de trabalho e in-
de políticas de governo em políticas de Estado tervenção em sua prática profissional no futuro.
revelou-se uma fragilidade do setor saúde. Cada Nesse sentido, a academia tem um papel impor-
troca de governo, dependendo dos interesses tante para a mudança paradigmática.
e das lideranças públicas evidencia mudanças Certas habilidades e competências são requi-
distantes dos processos dialógicos necessários sitos para avaliação, diagnóstico, tratamento e
à implementação da saúde integral. Precisamos suporte. Para isso, é essencial que os trabalhado-
discutir a rede, o tipo de cuidado a ser implemen- res de saúde mental da APS tenham suporte no
tado, os princípios e os valores profissionais que trabalho em saúde mental3. Além disso, o êxito
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no trabalho implica horizontalidade de relações cialização, discussão e planificação de um projeto
e processos dialógicos. Neles todos aprendem, ex- terapêutico singular. Isso é desejável, mas neces-
põem suas posições e consideram a complexida- sita de discursos afinados e de práticas coerentes.
de e a dinâmica das situações em foco. A prática A socialização de informações pessoais para um
do apoio matricial associada às noções de clínica grupo tão heterogêneo (agentes de saúde, técni-
ampliada e de projetos terapêuticos singulares fa- cos, profissionais e acadêmicos) implica conside-
vorece a óbvia inclusão da saúde mental na APS. rar constantemente a ética que justifica tal práti-
Não podemos desconsiderar a falta de recur- ca. Situações graves como a violência doméstica,
sos humanos – profissionais especialistas para a de gênero ou infantil, as populações em situação
realização do apoio matricial a equipes de pro- de vulnerabilidade ou excluídas mobilizam senti-
fissionais generalistas na APS. Usualmente, os mentos nas equipes dos setores envolvidos.
especialistas são vinculados aos CAPS, com as
demandas do próprio serviço. A alocação desses Fatores facilitadores para o Apoio Matricial
profissionais no apoio matricial implica o não em Saúde Mental
atendimento às demandas internas do CAPS e o
deslocamento para as equipes da APS. Isso im- Atenção integral e redução do estigma
plica contratar um efetivo maior de especialistas. Um dos argumentos potentes a favor do AM
Sobretudo, implica a sensibilização do gestor diz respeito ao atendimento de pessoas com
para a implantação das equipes matriciais em transtornos mentais no território. O apoio ma-
saúde mental. A instituição de equipes do NASF tricial poderá garantir o acesso ao atendimento a
poderia suprir uma lacuna e ser realizada com as pessoas que se encontram à margem do sistema
equipes de apoio matricial, mediante a delimita- de saúde, desassistidas, sem possibilidades de um
ção do território de abrangência. atendimento especializado. Milhões de pessoas
no mundo não têm possibilidade de cuidado em
Recursos financeiros e aspectos éticos serviços especializados. Estes, usualmente estão
Outra barreira ao AM em saúde mental na concentrados em centros urbanos maiores. Des-
APS é à falta de repasse financeiro pelo Ministério sa forma, a utilização do posto de saúde como
da Saúde, mediante a inclusão de indicadores de porta de entrada do sistema poderá prover um
saúde mental no sistema de Informação da Aten- atendimento qualificado, não sendo necessária
ção Básica (SIAB). A alocação de recursos pode- a referência ao serviço especializado (em saúde
ria se constituir num incentivo para a adoção da mental) como primeira opção. As vantagens de
metodologia do apoio matricial nos municípios, um cuidado de base territorial incluem: conhe-
sobretudo, para os gestores. A partir de 2006, as cimento dos profissionais da situação de vida
ações de saúde mental na atenção básica foram daquela pessoa (e não somente da doença), a
incluídas nas Diretrizes da Programação Pac- questão do vínculo, a possibilidade de acionar
tuada e Integrada da Assistência à Saúde (PPI), recursos da própria comunidade, a conexão com
publicada em Portaria Oficial no 1. 097, de 22 de outros setores – educação, assistência social, pro-
maio de 2006. Essa portaria ainda não vigora no gramas governamentais, entre outros.
que tange ao repasse de recursos financeiros, que Outro argumento a favor da inclusão de ações
é condicionado à inclusão de indicadores de saú- de saúde mental na APS por meio do AM diz res-
de mental no Sistema de Informações Ambulato- peito à diminuição do estigma associado à pessoa
riais (SIAB) do SUS14,15. com um transtorno mental, no atendimento no
A alocação de recursos financeiros para a território. Além do sofrimento de ter uma doen-
saúde mental historicamente contemplou os ça mental, o estigma acompanha as pessoas com
serviços especializados, comumente os hospitais transtornos mentais, como uma marca indelével,
psiquiátricos em detrimento da rede de cuidados sobretudo para as pessoas que foram submetidas
extra-hospitalares. Nos últimos anos esse cenário a hospitalizações em instituições psiquiátricas
vem sofrendo considerável mudança. Entretanto, tradicionais. O conceito de estigma é necessário
é necessário que esses recursos sejam aportados, para compreender as experiências de exclusão
sobretudo aos municípios com menos de vinte social de pessoas com um transtorno mental. O
mil habitantes que não dispõem de serviços es- estigma é conceituado Thornicroft et al.16 como
pecializados como os CAPS. uma combinação de três problemas relacionados:
Dentre os obstáculos éticos, cabe trazer a de conhecimento (ignorância), de atitudes (pre-
questão da confidencialidade, e um pressuposto judiciais) e de comportamento (discriminação).
básico do trabalho em equipe diz respeito à so- Os autores defendem que as evidências mais for-
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tes para a redução do estigma decorrem do conta- conceitos de clínica e de saúde coletiva compar-
to direto com pessoas com um transtorno mental. tilhada, para propor a reformulação ampliada
O documento Human Resources and Trai- do trabalho que se traduz na teoria e no méto-
ning in Mental Health17 traz que o atendimento do Paidéia. Neles, as mudanças são inevitáveis.
em serviços gerais de saúde ajuda na redução do Trata-se de um recurso para ampliar o potencial
estigma quando comparado com a procura por de intencionalidade dos sujeitos, considerando
serviços especializados de saúde mental. O docu- que, assim como as pessoas sofrem influência,
mento aponta que o estigma é um problema im- também reagem e interagem com os sujeitos/si-
portante para profissionais generalistas, em razão tuações. Ou seja, há uma corresponsabilização na
de esses serem o primeiro contato de pessoas com constituição de contextos singulares. O singular
transtornos mentais. Atitudes estigmatizadoras é o contexto situacional, produto do encontro
que provêm desses profissionais podem se tornar entre sujeitos em um dado contexto organiza-
uma barreira que impede as pessoas de receber cional, cultural, político e social. A coprodução
o cuidado de que necessitam. Assim, no territó- do singular decorre da interação entre fatores
rio poderão ser visualizadas diferentes formas de universais e particulares, resultando em sínteses
interação com o portador de transtorno mental: específicas. Diferentes fatores (biológicos, psico-
da convivência à exclusão, do não reconhecimen- lógicos, socioeconômicos) exercem influência na
to do outro. Mediante essas diferentes formas de constituição dos modos de vida dos sujeitos e nos
interação, os profissionais do apoio matricial po- seus estados de saúde e de doença. A diferença
derão implementar estratégias para incrementar está no grau com que cada fator atua em uma
as trocas relacionais entre os profissionais da APS dada situação específica. O desafio consiste em
e as pessoas com um transtorno mental e com captar essa variabilidade e propor projetos sin-
a comunidade. O cuidado no território propicia gulares adequados a cada situação. Nesse sentido,
a desmitificação da doença mental, assim como a teoria e o método Paidéia de apoio têm como
as ideias relacionadas a doentes mentais como objetivo a constituição de sujeitos reflexivos, que,
pessoas perigosas, que necessitam serem isoladas, além de entender a si mesmos e ao mundo, te-
institucionalizadas. nham a capacidade de agir sobre ele. Sujeitos de
reflexão e ação, que compreendam e interferiram
Suporte, capacitação e reformulação na ampliação, na corresponsabilização pela cons-
ampliada do trabalho em saúde tituição de contextos singulares.
O estabelecimento de suporte de especialistas A lógica do apoio matricial é uma possibili-
em saúde mental para profissionais generalistas, dade de que profissionais de referência e espe-
conforme já relatado anteriormente nas experi- cialistas mantenham uma relação horizontal na
ências de países que conseguiram incluir a saúde qual o apoiador e a equipe de referência possam
mental na APS, é fundamental para o processo. trabalhar em forma de planejamento, construin-
O apoio matricial, como coletivos organizados do uma visão multi e transdisciplinar para o tra-
em torno de um objetivo comum de trabalho18, balho em equipe, compartilhando dos saberes de
propicia a corresponsabilização, a cogestão e o seu núcleo de conhecimento, de sua experiência
vínculo. O atendimento longitudinal, a responsa- e visão de mundo, incorporando as demandas
bilização conjunta pelos casos, a cogestão de um trazidas pelos outros profissionais e pelo próprio
projeto terapêutico individual, o vínculo estabe- paciente, criando espaços coletivos que permi-
lecido entre as diferentes categorias profissionais, tam a interação dessas diferenças, para a constru-
assim como dos profissionais com as pessoas ção de novos conceitos e novas práticas de saúde
atendidas pressupõem o entendimento de que mental6-8. Desta forma, mediante a adoção de um
os generalistas terão suporte de especialistas para estilo de trabalho condizente com os pressupos-
o atendimento de situações de maior complexi- tos e princípios da reforma psiquiátrica brasilei-
dade. O investimento em reuniões objetivando ra e do SUS será possível consolidar práticas de
explanar e conseguir a aderência ao projeto tor- apoio matricial no País.
na-se mister. De outra forma, o entendimento e A não detecção e o não tratamento de trans-
a rejeição ocorrerão pela compreensão de que os tornos mentais na Atenção Primária à Saúde
profissionais generalistas das equipes terão que ocorrem por várias razões e podem ser divididos
atender a mais uma demanda, que usualmente é em: fatores dos pacientes, fatores relacionados
encaminhada aos serviços especializados. aos trabalhadores de saúde, fatores relacionados
Campos7 valoriza a coprodução do singular ao sistema de saúde, assim como fatores da so-
no processo saúde-doença. Para tanto, se vale dos ciedade e do desenvolvimento. Muitos pacientes
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não reconhecem que têm sintomas de um trans- processo. Assim, o apoio matricial gera possibi-
torno mental; em vez disso focam nos problemas lidades de “maiores de coeficientes de transver-
de saúde física como sintomas de fadiga, dores salidade nas relações entre os profissionais das
de cabeça, insônia e sintomas gastrointestinais. equipes de referência, entre equipes de vários
Outros subestimam a severidade dos problemas serviços e entre estes e os profissionais de áreas
e erroneamente acreditam que podem manejar a especializadas”19.
situação sem a ajuda de serviços formais de saú- Da interação do apoiador matricial com o
de. Os fatores relacionados aos trabalhadores di- profissional de referência, um afetando e sendo
zem respeito ao não recebimento de capacitação afetado pelo outro, compartilhando conheci-
adequada em problemas de saúde mental3. mentos, experiências, visões de mundo, con-
Os fatores relacionados ao sistema de saúde sonâncias e dissonâncias inclusive, emergem
compreendem os recursos financeiros e humanos novas perspectivas, possibilidades produtivas e
inadequados, sobretudo a diferença entre o nú- relações interpessoais. A riqueza desse processo
mero de pessoas que necessitam de atendimento diz respeito às intervenções ocorrerem não so-
e aquelas que recebem cuidados na APS. Outros mente na vida dos usuários, mas, também, no
fatores incluem o inadequado reembolso para universo existencial dos operadores. O processo
tratamentos de saúde mental pelas instâncias implica a construção do trabalho em ato, na es-
governamentais, os sistemas de saúde fragmen- cuta e no compartilhamento de informações, na
tados e pobremente estruturados, a falta de tra- planificação de um projeto terapêutico singular e
tamento, recursos e facilidades para populações na corresponsabilização dos profissionais envol-
vulneráveis. Os fatores relacionados à sociedade vidos. Algumas características são necessárias ou
e ao desenvolvimento incluem a discriminação e desejáveis: profissionais com capacidade de lide-
o estigma. Ressaltamos a compreensão estigma- rança sem, contudo, monopolizar ou centralizar
tizada da população em geral, que tende a asso- o processo, capacidade de escutar opiniões e en-
ciar os transtornos mentais com comportamento tendimentos diferentes, capacidade de valorizar a
violento e irracional3. aquisição de domínio de outra área, capacidade
Por meio de AM, os profissionais da Atenção de pactuar e conseguir consensos.
Primária podem reconhecer transtornos mentais, Nesse sentido, identificamos dois tipos de
situações de vulnerabilidade psicossocial e de lideranças diferentes: um situado no contexto
violência, uso/abuso de substâncias psicoativas macro, que, em regra, está no âmbito da gestão
para o estabelecimento de intervenções precoces. – em nível municipal, estadual ou nacional –, e a
Nesse sentido, a lógica do AM propicia tanto a liderança micro, que opera o processo de trabalho
capacitação em serviço, mediante a discussão de propriamente dito. A liderança no nível micro re-
casos clínicos, quanto o suporte aos profissionais fere-se a quem lidera a equipe de especialistas de
generalistas, mediante o atendimento conjunto saúde mental das equipes matriciais, atuando nes-
nos casos de maior complexidade. Thornicroft e se processo junto aos profissionais generalistas.
Tansella5 defendem que deve ser dada alta prio- Esta última liderança deve ter as características
ridade ao suporte em saúde mental aos profis- mencionados anteriormente, mais características
sionais da APS, para que as habilidades para o pessoais, como capacidade de agregar, empatia,
reconhecimento e o tratamento de transtornos flexibilidade, capacidade de resolução de conflitos
mentais façam parte do núcleo de competências e de síntese, além de ter qualificação técnica e ex-
dos cuidadores. periência de trabalho na área. Os profissionais es-
pecialistas também deverão ter o cuidado de não
Aspectos processuais, corresponsabilização se apresentarem como experts que tudo sabem e
e liderança tratar os generalistas como não detentores de um
A metodologia do apoio matricial é um pro- conhecimento específico, os que “nada ou pouco
cesso que demanda a construção coletiva. Nessa sabem”. Ao contrário, devem estabelecer alianças,
perspectiva, podem diminuir os riscos de insti- trocas disciplinares e propiciar o empowerment
tucionalização de condutas, assim como de con- do grupo de generalistas e do grupo como um
dutas iatrogênicas. Dessa forma, existe a possibi- todo. Desse modo, pessoas marcadas pelas carac-
lidade de incorporar o cuidado em saúde mental terísticas acima elencadas agregam especialistas e
numa perspectiva de clínica ampliada, mediante generalistas em defesa do cuidado à pessoa com
uma abordagem interdisciplinar e/ou transdisci- transtorno mental no território.
plinar. O apoio matricial em saúde mental im- A ausência de lideranças públicas de saúde
plica a construção coletiva do trabalho como um que defendam a inclusão da saúde mental na APS
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já foi identificada pela OMS e por outros orga- vir na urgência psiquiátrica, lançando mão, em
nismos internacionais3,4,9,17. Nesse sentido, com- regra, como primeira opção, dos recursos psi-
preendemos a figura do líder como aquela pessoa cofamacológicos. Reconhecemos a importância
que consegue arregimentar estratégias políticas, da psicofarmacologia e do quanto esse recurso
administrativas, organizacionais e recursos que revolucionou o tratamento de transtornos men-
favoreçam tal inclusão. Sobretudo, que consiga tais. Entretanto devemos atentar para um uso
estabelecer uma relação dialógica com a equi- parcimonioso, sob o ônus de um reducionismo
pe, quer de especialistas, quer de generalistas. e de uma simplificação do sofrimento humano.
As considerações anteriores vêm ao encontro A essa simplificação corresponde o advento das
da proposta de Cunha e Campos20 a coordena- “sociedades psicofarmacológicas”23, expressão
ção interdisciplinar. Os autores apontam que as cunhada pelo autor para a utilização sem prece-
chefias por corporações tendem a fragmentação dentes de psicofármacos na contemporaneidade.
do trabalho das equipes. Assim como tendem a Sobretudo, ao realizar um “diagnóstico de vida”,
preocupar-se mais com uma atividade corpora- numa perspectiva ampliada, criam-se inúmeras
tiva do que com o resultado final, além de refor- possibilidades de intervenção no sofrimento que
çar a grupalidade entre diferentes categorias (de podem ter como local o território, alargando-se
agentes comunitários de saúde, de médicos, de as possibilidades de atuar sobre os fatores sociais
enfermeiros...) que pode levar à desvalorização e econômicos.
ou à rivalidade. Os autores defendem que a co- Um argumento relevante a favor do AM em
ordenação da equipe de referência deve “cuidar saúde mental na APS refere-se ao desenvolvi-
da construção de uma interação positiva entre mento de novas competências para os profissio-
os profissionais, construindo objetivos e objetos nais da atenção primária e para a equipe de apoio
comuns, apesar das diferenças (e não contra as matricial, assim como a construção conjunta e
diferenças)”20. participativa do saber-agir. Os mais significativos
desafios são a integração das tecnologias leves e
Crises, urgências e mudança paradigmática leve-duras24,25 das diferentes categorias profis-
A Saúde da Família constitui-se um recurso sionais envolvidas. Os profissionais, além dos
estratégico, por representar a porta de entrada do saberes específicos, carregam valores pessoais e
sistema de saúde para o manejo de diferentes ti- profissionais, modos de agir próprios e caracte-
pos de transtornos, desde os transtornos mentais rísticas pessoais que irão influenciar os modos de
leves até transtornos mentais severos, uso e abuso operar. O desenvolvimento de novas competên-
de álcool e outras drogas, incluindo situações de cias profissionais, tanto dos especialistas como
risco (risco e tentativas de suicídio) e violência dos generalistas, requer abertura, flexibilidade,
familiar. Nesse sentido, o “acolhimento dialoga- uma postura de aprendizagem, assim como a ca-
do”21 como técnica de conversa passível de ser pacidade de colocar em prática o consenso.
operada por qualquer profissional do serviço de A mudança do paradigma biomédico para o
saúde, em qualquer momento de atendimento, da ampliação da clínica perpassa a vivência da
em qualquer dos encontros, possibilita a identifi- construção coletiva de um projeto terapêutico
cação precoce das diferentes situações menciona- pela equipe, a corresponsabilização e o acom-
das anteriormente. Para a autora, o acolhimento panhamento longitudinal. Ressaltamos uma
dialogado corresponde àquele componente das distinção importante: não ter uma resposta,
conversas que se dão nos serviços em que identi- não saber o que fazer é diferente de não se en-
ficamos, elaboramos e negociamos as necessida- volver ou se mobilizar perante a situação posta
des que podem ser satisfeitas. e buscar conjuntamente alternativas. A questão
Uma desconstrução importante que se faz processual perpassa essa metodologia de traba-
necessária é a ideia da urgência em saúde mental/ lho e esse é um aspecto importante que deve ser
psiquiatria para uma ética do cuidado urgente à considerado pelos profissionais e gestores. Esses
pessoa em crise. No atendimento de uma urgên- últimos comumente querem ver resultados pal-
cia psiquiátrica usualmente são enfocados sinto- páveis, aferíveis num curto período de tempo. A
mas, mediante a centralização e medicalização compreensão de que a inclusão da saúde mental
desses, em detrimento da história de vida22. Nes- é um processo que leva tempo, exige sensibiliza-
se novo paradigma, precisamos primeiramente ção para a aderência à proposta, enquanto que a
modificar o modo de operar dos profissionais, mobilização e o investimento de todos os atores
em razão de esses terem sido capacitados a inter- envolvidos são fundamentais.
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Cuidado integral no território, cretude no cotidiano. Sobretudo essa ampliação
promoção e prevenção da clínica encontra ressonância nos princípios do
O argumento do tratamento simultâneo de enriquecimento das competências profissionais e
doenças físicas e mentais, que compõem um pro- espaços de autonomia e decisão e na demolição da
cesso de vida e que muitas vezes se sobrepõem, compartimentalização das terapias (médica, psico-
deve figurar entre os mais fortes argumentos a fa- lógica, social, farmacológica ...).
vor do apoio matricial em saúde mental. A Saúde Os argumentos a favor do AM, abordados
da Família prevê o atendimento integral à saúde, anteriormente, corroboram que a APS é um re-
o que inclui a saúde/doença mental. Entretanto, curso imprescindível para a promoção da saúde
apesar de ser preconizado o atendimento integral mental. Documentos nacionais e internacionais
na perspectiva da ESF, na prática o cuidado em relatam a prevenção e a promoção, porém, inse-
saúde mental ainda continua sendo compreen- rido num “pacote geral” e fazendo parte do rol
dido, em muitos lugares, como atribuição de es- de atribuições da saúde pública. O território é o
pecialistas. Diversas razões concorrem para isso: local por excelência para o desenvolvimento de
o sentimento de não qualificação dos profissio- ações de promoção e prevenção de transtornos
nais generalistas no atendimento às pessoas com mentais, do uso e abuso de substâncias, da pre-
transtornos mentais; a sobrecarga de trabalho, venção da violência, das patologias sociais, assim
a pressão por produtividade (número de pesso- como a intervenção nas condições exacerbadoras
as atendidas). Produtividade como é concebida de doenças físicas e mentais, como o desemprego,
comumente e atendimento qualificado em saú- a pobreza, as condições de estresse no trabalho e
de mental não andam de mãos dadas. A escuta, a discriminação de gênero. A Organização Mun-
o vínculo, o resgate da história de vida, o diag- dial da Saúde defende que a promoção da saúde
nóstico fica comprometido mediante um atendi- mental pode ser desenvolvida mediante saúde
mento em série, centrado na medicalização dos pública efetiva e intervenções sociais. A colabora-
sintomas. ção intersetorial deve ser incrementada e fomen-
A utilização de espaços do território, incluin- tada, porque é a chave para programas efetivos de
do o conjunto de referências socioculturais e promoção da saúde mental29.
econômicas que fazem parte de seu cotidiano de
seu projeto de vida, de sua inserção no mundo26
poderá ampliar o poder contratual, as trocas. A Considerações Finais
reabilitação se constitui como um conjunto de es-
tratégias orientadas a aumentar as oportunidades A integração da saúde mental na APS, apesar de
de trocas de recursos e de afetos: é somente no inte- desejável, enfrenta diferentes forças que se con-
rior de tal dinâmica das trocas que se cria um efeito trapõem e que se situam no âmbito profissional
‘habilitador’27. O poder contratual da pessoa com (generalistas e especialistas), político, ideológico,
um transtorno mental tende a ser invalidado pela epistemológico e de gestão. É um processo com-
família, pelo entorno e não raro pelos próprios plexo, em razão de diferentes saberes, poderes e
profissionais. Os estereótipos tendem a se crista- desejos, de diferentes atores, estarem em jogo.
lizar, independente de a pessoa instituir modos Retomando o mito do Minotauro, o carretel de
de relação, de comportamento. Daí a importân- linha tem nós que precisam ser desatados, abor-
cia do apoio matricial como um dispositivo ca- dados anteriormente nas principais barreiras ao
paz de agenciar espaços de negociação para todos apoio matricial. A bandeira branca a ser hastea-
os envolvidos. da, esquecida por Teseu, é a da integração, profis-
A ampliação da clínica só será possível na reor- sionais generalistas, especialistas e gestores. Nesse
ganização do conhecimento, mediante um amplo sentido, os recursos humanos são fundamentais,
processo de capacitação das equipes para lidarem o bem mais valioso para a inclusão da saúde
com a subjetividade e uma reorganização dos mental na APS.
modos de como se trabalha, que permita a cons- Entretanto, apesar das resistências, este é um
trução de vínculo7. A ampliação da clínica tam- processo em curso em vários lugares do Brasil e
bém vem ao encontro dos princípios da reforma do mundo, em razão da compreensão da neces-
psiquiátrica, defendidos por Rotelli et al.28 como a sidade da inclusão da saúde mental na Atenção
centralização do trabalho terapêutico no objetivo Primária à Saúde. Alguns argumentos contrá-
de enriquecer a existência global; o cuidado como rios ao AM, como, por exemplo, a necessidade
elemento-chave, para transformar os modos de vi- de transformações conceituais, paradigmáticas e
ver e sentir o sofrimento do paciente em sua con- epistemológicas são também argumentos a favor
392
Hirdes A, Scarparo HBK

de novos modos de operar no campo da saúde e um processo de trabalho interdisciplinar/trans-


saúde mental, tanto para os profissionais genera- disciplinar. A alocação de recursos financeiros
listas como para os especialistas. Ou seja, depen- pelo órgão gestor é parte importante do proces-
dendo da perspectiva em questão, a dificuldade so. Entretanto, para além da regulamentação de
inicial com um núcleo específico de saber pode portarias, a efetivação dessa metodologia de tra-
ser transformada em potência criadora produto- balho deve ser compreendida como um processo
ra de novos cenários. As transformações ocorrem e como tal, implica a construção coletiva e con-
não somente na vida das pessoas com um trans- junta de profissionais generalistas e especialistas,
torno mental, mas também na vida e visões de mediante o respaldo dos gestores. Dessa forma, a
mundo dos profissionais. saúde mental poderá ser incorporada aos cuida-
O apoio matricial em saúde mental demanda dos de saúde na rede de atenção primária, opor-
a tecitura de uma rede de pessoas e serviços (tal tunizando intervenções no sofrimento psíquico
qual o fio de Ariadne) e implica a construção de no território e produzindo novas relações.

Colaboradores

A Hirdes participou da concepção do artigo, tra-


balhou na revisão da literatura, na redação da
primeira versão, na revisão crítica e na elabora-
ção da versão final do artigo. HBK Scarparo con-
tribui na concepção do artigo, na revisão crítica e
aprovou a versão a ser publicada.
393

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