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JULIO CESAR SILVEIRA GOMES PINTO

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

MACAÉ
2004
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JULIO CESAR SILVEIRA GOMES PINTO

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

Monografia apresentada à Universidade


Estácio de Sá, no Curso de Pós Graduação em
Saúde Pública (Macaé).

Aprovada em

Banca Examinadora:
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Dedico esta monografia às


Agentes Comunitárias de Saúde
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AGRADECIMENTOS

A todos que, através do diálogo, do trabalho e da amizade, colaboraram para a minha atual
compreensão do campo da Saúde Mental.
À Equipe do Programa de Saúde Mental de Macaé, em especial às Coordenadoras de Equipes
Josemarlen Gonçalves Carvalho Silva, Maria Luiza Vaccari Quaresma, Naly Soares de
Almeida e Telma Auxiliadora Alves Ferreira Lobo, e a Paulo de Tarso de Castro Peixoto.
À Equipe do Programa de Saúde da Família de Macaé, em especial a sua Coordenadora,
Miriam Cristina Ribeiro Benjamin Franco Pacheco, a Cristina Albuquerque Cadinelli,
Elizabeth Silveira Ferolla, Raquel Miguel Rodrigues, e ao médico de família Henrique
Pazzini.
Ao Dr Pedro Reis, Secretário de Saúde de Macaé durante a aproximação entre a Saúde
Mental e o Programa de Saúde da Família.
A Hugo Fagundes, Coordenador do Programa de Saúde Mental do Município do Rio de
Janeiro.
À Equipe da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio
de Janeiro, a suas ex-coordenadoras Paula Cerqueira e Cristina Loyola, a Leila Vianna e
Carlos Eduardo Honorato.
A Mauricio Schneider.
A Sandra Fortes.
A Domingos Sávio.
Aos Professores do curso, em especial a Ann Mary Machado Tinoco Feitosa Rosas, André
Luis Toríbio Dantas, Gloria Michele e Jairo Luís Jacques da Matta.
Aos colegas do curso, especialmente à colega e secretária do curso, Christiane Oliveira dos
Santos.
Um agradecimento especial às Agentes Comunitárias de Saúde, que trazem as formas mais
criativas de lidar com os problemas da Saúde Mental.
A Taísa Alves Torres, por sua ajuda na formatação do texto.
A Norberto Bacelar Correia, pela ajuda na formatação e pelas cópias.
À Professora Celita Aguiar Ribeiro, pela revisão.
A Analúcia, Luisa e Clarice, pela paciência.
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“Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar


histórias. Contamos histórias os romancistas, contamos
histórias os dramaturgos, contamos também histórias os
poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não
virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas.
Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são
já uma história.”

José Saramago
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RESUMO

A presente monografia pesquisou como está acontecendo a entrada das ações de Saúde
Mental nos Programas de Atenção Básica (Programa de Agentes Comunitários de Saúde
(PACS) e Programa de Saúde da Família (PSF)), no Brasil, e em especial no Estado do Rio de
Janeiro. Foi utilizada a metodologia de pesquisa qualitativa, com referências bibliográficas
nacionais e estrangeiras. A experiência do autor da monografia, na área, foi mencionada.
Pretende-se que, com as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, as práticas da Reforma
Psiquiátrica sejam potencializadas e campo de capacitação seja aberto para profissionais e
população. Para a compreensão do tema central da monografia, foram estudados os conceitos
e práticas da Reforma Psiquiátrica e dos Programas de Atenção Básica, com as respectivas
origens e diretrizes atuais. A monografia percorreu a história das mudanças de paradigma na
abordagem ao sofrimento mental, saindo da exclusão para tomar o caminho da inclusão. Foi
dada atenção especial para: a tensão entre controle/transformação; as ações das Equipes de
Saúde Mental na Atenção Básica, junto ao PSF e ao PACS, com os possíveis modos de
articulação e capacitação; as diretrizes e documentos oficiais, portarias, relatórios de
Conferências Nacionais; as orientações da Organização Mundial da Saúde; a participação da
população na organização das ações de saúde; trabalhos de autores com prática na área e os
conceitos que formam a base do trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica. Têm destaque
os conceitos de rede, território e responsabilidade. Foram estudadas a mudança do Modelo
Assistencial em Saúde Mental e a estratégia de mudança do Modelo Assistencial que o PSF
representa. É problematizado o papel dos profissionais de Saúde, em particular o dos
Profissionais de Saúde Mental e dos Agentes Comunitários de Saúde. Foi evidenciada a
necessidade de capacitação em dois planos: para que os profissionais de Saúde Mental
conheçam as bases dos Programas de Atenção Básica e sua importância para a Saúde Mental
e para que os profissionais da Atenção Básica incorporem conceitos e ações de Saúde Mental,
tendo como resultantes as ações em conjunto. Foram examinadas algumas possibilidades de
Capacitação, com exemplos práticos e atuais, e também alguns possíveis entraves para a
entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. A importância das ações de Saúde
Mental na Atenção Básica foi evidenciada: na descoberta de grande faixa de desassistência,
fora do conhecimento dos dispositivos de Saúde Mental; na possibilidade de romper a
dicotomia mente/corpo; no questionamento da exclusão da loucura; na adoção, pelas Equipes
na Atenção Básica, de práticas individuais e grupais que dêem resposta à demanda motivada
por sofrimento mental, que aparece na Atenção Básica em número elevado; na ajuda às
Equipes da Atenção Básica para trabalhar seus problemas institucionais e seus sentimentos
despertados pelo contato com a realidade das pessoas e comunidades; para inserir ações de
cunho comunitário e participativo nas práticas diárias. Foi ressaltado o papel fundamental do
Agente Comunitário de Saúde para as práticas da Saúde Mental na Atenção Básica. Aspectos
de financiamento das ações, criação de indicadores e Capacitação em larga escala foram
analisados .
Palavras chave: Atenção Básica, Saúde Mental, Reforma Psiquiátrica.
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ABSTRACT

The present monography reports the research of how the input of Mental Health Action within
the Primary Care Programs (Program of Health Community Agents (PACS in Brazil)) and
Family Health Program (PSF in Brazil)), is taking place, with special regards in the State of
Rio de Janeiro. The methodology of qualitative research has been used, with national and
foreign bibliographical references. The monography author's experience, in the field, has been
mentioned. It is intended though, with the actions of Mental Health in Primary Care, that the
practices of the Psychiatric Reform are boosted together with the opening of training fields for
professionals and population. For the understanding of the core theme of this monography, the
concepts and practices of the Psychiatric Reform and Primary Care Programs have been
studied, with the respective origins and current guidelines. The monography has gone through
the history of the paradigm changes in the approach to mental suffering, leaving the exclusion
aside so as to take the road of inclusion. Special attention was given to: the tension between
control/transformation; the actions of the Mental Health Teams in Primary Care, together with
PSF and PACS, with possible articulation modes and training; the guidelines and official
documents, laws, National Conferences reports; the orientations of the World Health
Organization; the participation of the population in the organization of the health actions;
works of authors with practice in the area and the concepts that form the work base of the
Mental Health in Primary Care. Network concepts, territory and responsibility have been
highlighted. The change of the Assistance Model in Mental Health and the change strategy of
Assistance Model that PSF represents have been studied. The role of health professionals is
problematized, in particular the Mental Health Professionals and Health Community Agents.
The training need was evidenced in two scopes: so that the professionals of Mental Health get
to know the bases of the Primary Care Programs and their importance to the Mental Health as
well as the professionals of the Primary Care incorporate concepts and actions of Mental
Health, having group-action as a result. Some possibilities of Training, with practical and up-
to-date examples, and also some possible hindrances for the input of Mental Health actions in
Primary Care were examined. The importance of the actions of Mental Health in Primary
Care was evidenced: in the discovery of a large rate of lack of assistance, out of the
knowledge of the Mental Health departments; within the possibility to break the mind/body
dichotomy; in the inquiry of madness exclusion; in the adoption, for the Teams in Primary
Care, of individual and group practices that throw light to the demand motivated by mental
suffering, which appears in Primary Care at high figures; within the help to Primary Care
Teams to work out their institutional problems and their feelings wakened up by the contact
with the people and communities’ reality; to insert community-related and participation
actions in the daily practices. The Community Health Agent's fundamental role has been
pointed out for the practices of the Mental Health in the Primary Care. Aspects of financing of
the actions, creation of indicators and Training in wide scale have been analyzed.

Key Words: Primary Care, Mental Health, Psychiatric Reform.


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LISTA DE SIGLAS

ABP: Associação Brasileira de Psiquiatria

ACS: Agente Comunitário de Saúde

AIH: Autorização de Internação Hospitalar

CAPS: Centro de Atenção Psicossocial

CONASP: Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária

ESF: Equipe de Saúde da Família

MS: Ministério da Saúde

MTSM: Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

NAPS: Núcleo de Atenção Psicossocial

OMS: Organização Mundial da Saúde

OPAS: Organização Pan-americana da Saúde

PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde

PSF: Programa de Saúde da Família

SES-RJ: Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro

SIAB: Sistema de Informação da Atenção Básica

SUS: Sistema Único de Saúde


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SUMÁRIO

Cap. 1 - Considerações Iniciais ...................................................................................10


Cap. 2 - Metodologia ...................................................................................................13
Cap. 3 - A Reforma Psiquiátrica ..................................................................................15
3.1 Os antecedentes históricos ................................................................15
3.1.1 Antecedentes históricos estrangeiros .......................................16
3.1.2 Antecedentes históricos brasileiros ..........................................33
3.2 A Reforma Psiquiátrica Brasileira.....................................................36
Cap. 4 - Os Programas de Atenção Básica no Brasil ...................................................77
Cap. 5 - A Saúde Mental na Atenção Básica ..............................................................92
5.1 Precursores estrangeiros e críticas ...................................................92
5.2 Precursores brasileiros ...................................................................109
5.3 Trabalhos atuais .............................................................................118
5.4 O ano de 2001: mudanças e diretrizes ...........................................137
Cap. 6 - Considerações Finais ...................................................................................188
Referências Bibliográficas .........................................................................................204
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CAPÍTULO 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presente monografia tem como objetivo pesquisar, através de levantamento


bibliográfico, como está acontecendo a entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica,
no Brasil, com especial atenção para o Estado do Rio de Janeiro.
A inserção de ações de Saúde Mental na Atenção Básica traz consigo potencialidades,
críticas e problemas, que serão estudados.
Para atingir o que pretendemos e situar corretamente a questão, vamos estudar as duas
vertentes que estão se encontrando nas ações da Saúde Mental na Atenção Básica: a Reforma
Psiquiátrica, de um lado, e os Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de
Saúde, de outro. Logo após, investigaremos a seqüência de textos e acontecimentos que estão
levando às comunidades as ações de Saúde Mental.
Considerando que tanto a Reforma Psiquiátrica como os Programas de Saúde da
Família e de Agentes Comunitários de Saúde têm diversos pontos em comum, que serão
explicitados ao longo do texto, podemos supor que a articulação desses dois modos de
compreender o campo da Saúde pode ter como resultados avanços na assistência, redução dos
custos para o Sistema de Saúde, promoção das condições de vida e de saúde e maior
organização das comunidades.
Para os profissionais de Saúde em geral e para os profissionais de Saúde Mental, o
resultado da entrada da Saúde Mental na Atenção Básica poderá ser a quebra da dicotomia
mente/corpo na abordagem do ser humano. A compreensão deverá evoluir para um enfoque
global, com inclusão também dos aspectos sociais na determinação dos problemas de saúde e
nas suas soluções. A inclusão dos campos psíquico e social no trabalho diário da Atenção à
Saúde deverá fazer parte do questionamento da exclusão da loucura e da possível mudança de
atitude da sociedade, em relação a esse fenômeno humano.
Atenção especial deve ser dada para o aspecto de campo de capacitação e pesquisa que
o trabalho de Saúde Mental na Atenção Básica abre, com incidência em profissionais de
Saúde Mental, profissionais de Saúde em geral e comunidade.
A escolha do tema desta monografia está ligada à minha experiência na Saúde Mental.
Comecei a prática na área num Hospital Psiquiátrico Público, universitário, tradicional. Na
ocasião, tive a percepção da premência das mudanças. Por artes do acaso e da necessidade,
naquela época, uma equipe da qual fiz parte saiu, por momentos, do isolamento do Hospital e
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realizou uma Visita Domiciliar. O efeito da visão da realidade concreta da vida da pessoa
assistida provocou em mim a compreensão de que apenas incidindo na família e na
comunidade, poderíamos ter uma prática efetivamente transformadora. Anos depois pude
começar a agir além dos muros dos Hospícios e das salas dos ambulatórios, entrando na vida
concreta das famílias e comunidades. Portanto, esta monografia traz, a partir de certo ponto,
relatos e trabalhos relativos à minha atuação na área, que dura até hoje.
Para a história da Reforma Psiquiátrica, partiremos dos autores estrangeiros que a
influenciaram com textos e ações, sempre com atenção ao que deixaram de pistas para as
práticas com as comunidades.
Os movimentos questionadores da internação psiquiátrica enquanto instrumento de
exclusão e encobrimento da realidade social e psíquica, ou mesmo como uma forma pouco
cientifica de tratamento, serão revisados e comentados.
Foi dada especial atenção aos textos de Michel Foucault e aos textos e práticas da
Antipsiquiatria inglesa e da Psiquiatria Democrática italiana. Foucault nos fornece as bases
para a compreensão da crise dos saberes articulados em estratégias de poder. Ronald Laing e
David Cooper, na Inglaterra, radicalizaram a aproximação com a loucura, deixando elementos
para importantes e atuais reflexões. A influência de Franco Basaglia e de outros italianos,
decisiva para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, será registrada tanto com observações a
respeito de seus trabalhos na Itália, como nas intervenções no Brasil.
Em Gilles Deleuze e Felix Guattari vamos encontrar o estímulo para a procura de
ações que, ao questionar as centralizações, percorram caminhos potencializadores da
singularidade e da coletividade.
Pretendi observar algo a respeito da gênese do pensamento crítico que, no Brasil, após
o aparecimento de um movimento contestador, organizado por profissionais de Saúde Mental,
chegou à Reforma Psiquiátrica. Vamos, então, lembrar Ulysses Pernambucano, Luiz da Rocha
Cerqueira e Nise da Silveira, com suas propostas de uma psiquiatria sem segregação.
A crise do Modelo Assistencial baseado no complexo hospitalar, correspondente à
crise de financiamento do Setor Saúde, ao lado do processo de abertura política, favoreceu a
entrada do movimento de renovação em Saúde Mental no aparelho do Estado. Essa etapa será
observada, no texto, com detalhes e com citação de autores que a pesquisaram.
Serão abordados e detalhados alguns conceitos que norteiam as ações da Reforma
Psiquiátrica no Brasil, como, por exemplo, desinstitucionalização, rede, território,
responsabilidade.
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A progressiva adoção, pelos órgãos Federais, Estaduais e Municipais, das propostas e


práticas da Reforma Psiquiátrica será acompanhada, com destaque para as resoluções de
Encontros e Conferências e para acontecimentos que determinaram avanços. Em todo relato,
o foco estará voltado para a evolução das propostas de inserção das ações de Saúde Mental na
Atenção Básica.
Para um estudo a respeito de como surgiu a estratégia dos Programas de Saúde da
Família e de Agentes Comunitários de Saúde, serão pesquisados documentos internacionais
que orientam a mudança do Modelo Assistencial, textos de autores nacionais e documentos
oficiais norteadores do processo que será descrito.
Para chegar a compreender o que hoje está sendo praticado como Saúde Mental na
Atenção Básica, também recorreremos às origens internacionais, passaremos pelas propostas
e críticas iniciais ao trabalho nas comunidades, chegando aos dias de hoje com citação de
conclusões de Fóruns e Conferências, documentos oficiais, trabalhos atuais e resumo da
minha experiência.
Será dada atenção aos resultados que já têm sido relatados em termos de assistência e
de mudanças na atitude das Equipes de Saúde Mental e dos Programas da Atenção Básica, em
relação ao trabalho com Saúde Mental nas comunidades.
Será dado particular destaque para o repertório de ações de Saúde Mental que estão
sendo praticadas na Atenção Básica, em diversos trabalhos em andamento no Brasil, com o
interesse centrado nas atribuições das Equipes de Saúde Mental, do Programa de Saúde da
Família e de Agentes Comunitários de Saúde e suas necessidades de Capacitação.
O conflito entre controle e transformação está presente nas ações de Saúde Mental na
comunidade e é objeto de interesse na presente monografia.
É mantida a postura de análise crítica em relação aos textos e documentos
pesquisados, com atenção especial para os aspectos controladores das intervenções estatais
em Saúde. Por outro lado, a potencialidade mobilizadora das ações de Saúde, em particular as
da Saúde Mental, terá tratamento constante no texto.
Serão registradas as dificuldades que podem estar causando obstáculo ao mais rápido
desenvolvimento da entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, e avaliadas as
ações que a estimulam.
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CAPÍTULO 2

METODOLOGIA

A Metodologia utilizada para a realização desta monografia foi a da “Pesquisa


Qualitativa”. (Cf. MINAYO, 2003). Segundo esta autora, o campo da Saúde está inserido em
outro maior, o das Ciências Sociais. (Cf. MINAYO, 1992). Justificando a sua afirmação, a
autora citada diz que “[...] a saúde não institui nem uma disciplina nem um campo separado
das outras instâncias da realidade social” (MINAYO, 1992, p. 13). Como uma das
conseqüências, a metodologia para a pesquisa em Saúde estará “[...] submetida às mesmas
vicissitudes, avanços, recuos, interrogações e perspectivas da totalidade sociológica da qual
faz parte” (MINAYO, 1992, p. 13).
Minayo (Cf. MINAYO, 1992) interroga-se e decide por não fugir ao desafio, se é
possível “[...] tratarmos de uma realidade da qual nós próprios, enquanto seres humanos,
somos agentes” (MINAYO, 2003, p. 11). Tomando o princípio de que “O objeto das Ciências
Sociais é histórico” (MINAYO, 2003, p. 13, grifo da autora), a autora afirma que “O nível de
consciência histórica das Ciências Sociais está referenciado ao nível de consciência histórica
social” (MINAYO, 2003, p. 14). Sendo o pesquisador parte integrante do campo pesquisado,
não há a intenção de fazer ciência neutra. A autora diz mesmo que “Na investigação social, a
relação entre o pesquisador e seu campo de estudo se estabelecem definitivamente”
(MINAYO, 2003, p. 14). A autora cita Lévi-Strauss para ilustrar a sua argumentação: “Numa
ciência, onde o observador é da mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, é
uma parte de sua observação” (MINAYO, 2003, p. 14).
A Pesquisa Qualitativa, segundo Minayo,

[...] se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não
pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2003, p.
21).

Para a autora que vem sendo citada, não há oposição entre dados quantitativos e
qualitativos, mas complementariedade. (Cf. MINAYO, 2003). Enquanto as pesquisas que
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[...] trabalham com estatísticas apreendem dos fenômenos apenas a região


‘visível, ecológica, morfológica e concreta’, a abordagem qualitativa
aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um
lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas
(MINAYO, 2003, p. 22).

Para a realização da presente monografia, foram utilizados 42 livros; 4 textos


“mimeografados”; 3 trabalhos publicados em anais de Simpósios, Encontros, Congressos; 5
Relatórios de Conferências, Encontros, Simpósios; 21 documentos oficiais do Ministério da
Saúde; 32 trabalhos publicados em livros; 30 textos obtidos na Internet; um trabalho incluído
em publicação do Ministério da Saúde; 3 trabalhos publicados em Revistas Científicas; 2 teses
de doutorado; uma dissertação de mestrado; uma publicação de programa institucional de
saúde; 2 documentos oficiais de instâncias oficiais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro; um
texto cedido diretamente pelo autor; 2 palestras e um trabalho apresentado em congresso.
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CAPÍTULO 3

A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

3.1 Os antecedentes históricos.

Durante séculos, a forma de lidar com a loucura, radical ameaça à Razão, foi a
exclusão. Do barco que vagava pelo Mediterrâneo lotado de seres humanos indesejáveis (Cf.
FOUCAULT, 1978), passando pela depositação comum com delinqüentes e rejeitados de
todo tipo, chegamos à organização dos Hospitais Psiquiátricos. O Estado, no Brasil, desde o
Império, também isolou aqueles que a ciência ou o senso comum assim o determinava. Das
sucessivas crises desse sistema surgiram, no século XX, as tentativas de mudança de um
aparelho destruidor que se propunha terapêutico.
Segundo Amarante (1995, p. 21), citando Joel Birman e Jurandir Freire Costa,
existiram dois momentos importantes, quando a psiquiatria tentou a renovação, mas ainda
mantendo-se como preponderante. O primeiro tinha a pretensão de melhorar o funcionamento
organizacional do Hospício, com a intenção de tornar terapêutico esse ambiente. Com isso
afirmava, ainda, a internação psiquiátrica como terapêutica e o Hospital Psiquiátrico como o
lugar de práticas curativas. Os exemplos dessas tentativas, segundo o texto citado, são as
Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra e Estados Unidos e a Psicoterapia Institucional
Francesa. O segundo momento foi quando a psiquiatria pretendeu ampliar seus domínios,
saindo do Hospício para a comunidade. Prevenir e promover a saúde mental, dentro dos
marcos da adaptação social, foram as intenções da Psiquiatria de Setor na Franca e da
Psiquiatria Comunitária e Preventiva nos EUA, segundo os autores citados por Amarante (Cf.
AMARANTE, 1995, p. 22).
Importante para nós é a critica da entrada inicial da saúde mental na comunidade, que
se deu, conforme acima, numa tentativa de modernização da psiquiatria, sem questionar seus
princípios segregadores, sem a participação efetiva de outros saberes e sem a crítica política
que pudesse observar as implicações sociais dessas práticas.
Amarante (1995, p. 22), chama a atenção para o fato de que, ao contrário das
tentativas anteriores de “[...] meras reformas do modelo psiquiátrico [...]”, “[...] a
antipsiquiatria [...]” (Laing e Cooper, Inglaterra) e a “[...] psiquiatria na tradição basagliana
[...]” (Franco Basaglia, Itália), caminham no sentido de uma ruptura. Trata-se de matéria da
maior importância determinar os parâmetros dessa ruptura e suas conseqüências práticas no
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momento em que, hoje, estamos querendo observar, avaliar e praticar as ações de saúde
mental nas comunidades. Veremos a seguir, então, alguma das mais importantes raízes
históricas, de autores estrangeiros, que fundamentaram a Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Nesse resumo estão tanto aqueles movimentos que, segundo o texto de Paulo Amarante,
tentaram mudar a realidade da assistência psiquiátrica sem que o principal fosse tocado
(Comunidades Terapêuticas e Psicoterapia Institucional), como aqueles que foram mais longe
(Antipsiquiatrias e a Psiquiatria Democrática Italiana de Franco Basaglia e seus colegas).
Também faremos referência a Foucault, com sua aguda observação a respeito dos Poderes e
suas artimanhas.

3.1.1 Antecedentes históricos estrangeiros.

Segundo Amarante (1995, p. 32) o termo “psicoterapia institucional” foi uma


denominação dada posteriormente, para designar o trabalho iniciado por François Tosquelles,
no Hospital Saint-Albain, durante a II Grande Guerra Mundial. O trabalho de Tosquelles
revestiu-se de tons dramáticos, visto que tinha que salvar pacientes da morte, devido às
condições que encontrou no hospício em meio à guerra e, ao mesmo tempo, resistir ao
nazismo. A Psicoterapia Institucional supunha que um Hospital Psiquiátrico “tratado”, isto é,
com todos os seus habitantes (direção, funcionários, técnicos e internados) participando de
uma estrutura coletiva de desvendamento do mal que as relações institucionais, interpessoais e
intergrupais podem causar, poderia se tornar um ambiente terapêutico. Dessa forma, mantinha
a internação psiquiátrica como um instrumento válido. Por outro lado, o movimento que se
formou por inspiração da Psicoterapia Institucional aponta para a necessidade da constante
transformação institucional na área da Saúde Mental como condição básica para o
funcionamento de dispositivos que estejam a serviço das pessoas atendidas.
Laing e Cooper pretenderam questionar o saber psiquiátrico e psicológico, criticando-
os como instrumentos de alienação e dominação. Levaram à prática seus questionamentos e
deixaram importantes e emocionados relatos sobre o que fizeram. (Cf. Cooper, D. :
“Psiquiatria y Antipsiquiatria”, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1974 e Laing, R. D.: “A
Política da Família”, Martins Fontes, São Paulo e “O Eu Dividido”, Editora Vozes, Petrópolis,
1973).
No texto de apresentação do livro “Los Crímenes de la Paz” (BASAGLIA &
BASAGLIA, 1977 b) , Franco e Franca Basaglia resumem muito claramente a diferença e a
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pretendida complementariedade dos trabalhos que desenvolviam, em relação ao que fazia


Ronald Laing. Dizem eles que

La práctica y la teoría de Laing tienden a enfocar y a privilegiar – si bien


manteniendo presentes los otros planos del discurso – el momento de la
trasformación subjetiva; así como nosotros tendemos a privilegiar, si bien
manteniendo presentes los otros planos del discurso, el de la trasformación
social (BASAGLIA & BASAGLIA, 1977 b, p. 68).

O texto citado é exemplar, na medida em que define com precisão, não só a prática
basagliana, mas também o caminho que o ramo das chamadas antipsiquiatrias (Laing rejeitava
o termo) representada, aqui, por Laing, tomou. Podemos, também, fazer uma leitura do texto
que nos permite ver uma advertência quanto a tomar como “principal” um dos lados da
questão: o social/político ou o subjetivo. Tomando como principal o social/político e sua
transformação, poderá ser deixada de lado a pesquisa e a clínica da loucura, com todo o
desafio humano que representa. A tendência, nesse caso, é a burocratização dos trabalhos,
atrelado que ficaria ao movimento político e suas contingências. Caso o privilégio recaia
sobre o subjetivo, iludindo o social e o político, a queda na exaltação da loucura e sua
romantização são um caminho no qual a alienação passa a ser compartilhada entre
“terapeutas” e “pacientes”. Por isso, os autores apontam para uma necessária não exclusão
dos dois planos em jogo, mas marcando bem qual a atenção principal que tinham os dois
grupos, na época. O tempo passou e já quase trinta anos nos separam do texto citado. Já é
hora, portanto, de uma prática que não estabeleça privilégios na abordagem à loucura. Um dos
desafios colocados para nós é abordar com uma prática integradora os chamados “transtornos
mentais graves”, denominação atual para a loucura, que é o fenômeno humano de base.
Abordagem que ao mesmo tempo se aproxime da loucura, a investigue, acolha, “trate” e a
questione como produção psíquica e também traga toda a complexidade social e política
envolvida, com mobilização dos diversos atores da cena.
No diálogo entre Basaglia e Laing, no livro “Los Crímenes de la Paz”, este defende
sua posição de não mais trabalhar dentro de instituições estatais. Mesmo advertido por
Basaglia de que não existe um “fora do sistema”, Laing relata que, após dez anos de tentativas
de mudanças institucionais, percebeu que levaria a vida toda tentando, sem conseguir. Partiu,
então, para seus projetos de convivência direta com os ditos “pacientes”. Laing e seus amigos
fundaram, em Londres, a Philadelphia Association, base organizacional que mantinha casas
onde estudantes e profissionais de saúde mental e de outras áreas moravam com pessoas
diagnosticadas de esquizofrenia, sem que houvesse ali uma relação tradicional
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terapeuta/paciente. As pessoas diagnosticadas faziam seus tratamentos com outros


profissionais que não os que moravam na casa. Essa estratégia visava a fugir do ataque das
leis, que seriam manipuladas por aqueles a quem a experiência certamente incomodou.
Foucault (1993) define esta forma de lidar com os Poderes, a qual Laing tentou, como o “[...]
estabelecimento de um local privilegiado onde eles devam ser suspensos ou rechaçados no
caso de se reconstituírem” (FOUCAULT, 1993, p. 127). O objetivo desse instrumento foi
“investigar as causas da doença mental, bem como sua prevenção, ajudar financeiramente os
doentes mentais e promover a formação daqueles que se interessavam pela nova concepção de
doença mental” (Cf. MARQUES PINTO). Como podemos ver, esses são, hoje, partes
importantes dos objetivos dos nossos novos dispositivos de saúde mental, mostrando a
atualidade do trabalho de Laing. Mais ainda veremos essa atualidade, se observarmos que sua
prática direta com pessoas diagnosticadas, organizando em conjunto novas formas de viver,
deu pistas para a teoria e prática do Acompanhante Terapêutico, potente instrumento de
atuação em Saúde Mental que está presente nos Centros de Atenção Psicossocial, na Atenção
Básica, nas Oficinas Terapêuticas, nos Lares Abrigados e até mesmo nos ambulatórios e
atendimentos particulares.
No texto que se segue ao debate com Laing, Franco e Franca Basaglia apontam um
detalhe de importância para as nossas atuais discussões. Dizem os autores que Laing

replantea [...] la formación de un ‘asilo’que responda – fuera de cualquier


burocracia organizativa e institucional – a la necesidad de reparación, de
protección, de tutela de quien vive una experiencia “diferente”. Un lugar
donde el diferente pueda expresarse sin limitaciones y donde se aprenda a
convivir con él (BASAGLIA & BASAGLIA, 1977 b, p.77).

Encontramos essa defesa de um “direito de asilo” também nos italianos.


De acordo com Foucault, o trabalho de David Cooper se propôs, enquanto modo de
lidar com os Poderes do campo das práticas da psiquiatria, a “[...] balizá-los um por um e
destruí-los progressivamente, no interior de uma instituição de tipo clássico”. (FOUCAULT,
1993, p. 127).
Um dos livros de maior importância de Cooper é “Psiquiatria e Antipsiquiatria” (Cf.
COOPER, 1974), do qual apresento um resumo. Nessa obra, Cooper

— Explicitou a semelhança de origem e de métodos entre a violência da


família, da escola e da psiquiatria, enquanto produtoras de alienação.
— Utilizando o conceito de Alienação (Hegel, Marx e Sartre), descobriu, nas
famílias de esquizofrênicos, um padrão constante de “estranhamento” nas
relações, que leva à eclosão de psicose em um dos seus membros.
19

— Observou a melhora no padrão de relacionamento de esquizofrênicos,


quando estes freqüentavam grupos, durante a internação, onde as relações
interpessoais eram analisadas e não repetiam os modos alienados da família
e da sociedade.
— Abordou a esquizofrenia, não como uma entidade nosológica, mas como
um ‘ conjunto de pautas de interação pessoal’.
— Atacou as bases pouco críticas das Comunidades Terapêuticas.
— Preferiu atividades que desmistificassem os papéis envolvidos na
atribuição de esquizofrenia a uma pessoa, a grupos terapêuticos
interpretativos.
— Postulou que a esquizofrenia seria um dos aspectos da nossa necessidade
de fragmentação e posterior unificação. (Laing também compreendia assim).
— Após explorar os “limites de mudança possível dentro do hospital
psiquiátrico”, propôs a criação de unidades pequenas, fora do contexto
institucional psiquiátrico, como forma de atender psicóticos.
— Estabeleceu que o ponto central da organização do trabalho alternativo de
atendimento a psicóticos deve ser a elaboração, pela equipe, das fantasias e
preconceitos a respeito da loucura.
— Criticou as Terapias Ocupacionais alienantes, desvinculadas da realidade
dos pacientes, levando a um progressivo questionamento de todos os papéis
estereotipados na instituição: paciente, doença, tratar, enfermeiro, médico,
terapeuta ocupacional.
— Iniciou a experiência dos lares protegidos.
— Criticou radicalmente a psiquiatria clássica organicista enquanto teoria
que, a favor do “status quo”, tenta encontrar uma causa comum para a sua
suposta “doença mental”, igualando as pessoas que, pelo contrário, têm
sofrimentos diversos e singulares. Esta mesma crítica deve-se fazer hoje, em
relação às buscas por um gen que seria a “causa” da esquizofrenia ou de
outros distúrbios.
— Criticou a tendência, naquele momento, de colocar enfermarias
psiquiátricas em Hospitais Gerais, dizendo que este fato incrementaria a
noção de doença mental, como se disséssemos às pessoas: “Você não pode
estar realmente sentindo isso, trata-se só de que você está doente”.
— Treinou pessoas para a função que denominou de terapeutas sociais,
inclusive pacientes. Entre nós, são os hoje chamados Acompanhantes
Terapêuticos (PINTO, 1998, p. 24).

Cooper também partiu, como Laing, de uma base filosófica Humanista – Existencial
para mover suas críticas à psiquiatria. A prática inicial de Cooper foi dentro de um hospital
psiquiátrico, na década de 60, onde estabeleceu uma pequena comunidade, a “Vila 21”. Os
marcos institucionais da época suportaram durante pouco tempo a contestação resultante da
tomada da palavra pelos pacientes, e a experiência foi interrompida. A visão crítica e política
de Cooper tornou-se acentuada, tendo o Marxismo como fundamento. Estendeu a crítica à
psiquiatria, ao que chamou de psico-tecnologia que, no seu modo de ver, consiste num
problema mais amplo que o da repressão das instituições psiquiátricas. Dentro dessa psico-
tecnologia Cooper enquadrava, além da psiquiatria, a psicologia, a psicanálise, as terapias
alternativas, a mídia, as prisões, o militarismo, os tribunais. Sua função é manter a ordem
20

estabelecida iludindo, distraindo, prendendo, mistificando de acordo com local e necessidade.


(Cf. COOPER, 1979).
No capítulo “A Invenção da não-psiquiatria”, do Livro “A Linguagem da Loucura”,
publicado na Inglaterra em 1978 e acrescido de material de um artigo que saiu na Itália em
1975, Cooper diz que foi infeliz ao criar o termo “antipsiquiatria”, sujeito que foi a muitas
distorções, e que, na época, não “[...] havia consciência coletiva da necessidade de
envolvimento político”, já que ele e seus colegas estavam “isolados nos contextos nacionais
de trabalho” (COOPER, 1979, p. 124). Cooper define “não-psiquiatria” como o
desenvolvimento de ações “contra e para além do poder médico, que conduzem à
recuperação-ganho social da loucura como parte da cultura do povo, como parte de uma
subversão mais total do espírito burguês” (COOPER, 1979, p. 141).
Cooper fez sua definição política no sentido do marxismo, até mesmo de forma
bastante dogmática, mas apontando para a necessidade de uma revolução social, mais do que
a política, como campo de mudanças no qual a loucura poderia ser questionada e ter seu
destino mudado de alienação para libertação. Deste modo, define “antipsiquiatria” como “[...]
uma ação sistemática contra a repressão psiquiátrica dentro da estrutura estatal da psiquiatria,
e cujas vítimas são predominantemente da classe operária” (COOPER, 1979, p. 127).
Interessante para nós, hoje, é acompanhar a seqüência de acontecimentos que Cooper
descreve na sua trajetória. Na fase institucional, Cooper, além de trabalhar com a
transformação de hospitais psiquiátricos, chamou a atenção para a necessidade da psiquiatria
de setor. Porém, sentiu que havia um limite para a sua atuação transformadora dentro das
instituições, semelhante ao que acima está citado de Laing, e partiu para “dentro da
comunidade”. Cita experiências que se assemelham ao que hoje tem sido tentado, entre nós,
nos CAPS, Lares Abrigados, Oficinas Terapêuticas e comunidades, como “comunidades fora
do sistema hospitalar”, com o objetivo de “[...] produzir na comunidade um contexto em que
as pessoas pudessem viver situações críticas das suas vidas sem que o processo de mudança
fosse impedido pela habitual invalidação psiquiátrica [...]” (COOPER, 1979, p. 128).
Cooper faz um importante apanhado do que havia, no momento em que escreveu o
texto que está sendo citado por último, 1978, de movimentos e grupamentos em luta contra a
psiquiatria oficial e em busca de alternativas. Fala de trabalhos na França, Itália, Bélgica,
EUA, Espanha, Portugal, Suíça, Alemanha Ocidental, além da própria Inglaterra. Relata o
aparecimento da “Rede Internacional Alternativas para a Psiquiatria”, então nascente, que
depois, em 1982, fez uma reunião no Brasil, em Belo Horizonte. O relato de Cooper, além
dos ensinamentos históricos, é importante para que tenhamos a dimensão do que estava
21

ocorrendo no mundo, em comparação ao que acontecia no Brasil na época. A ênfase em todos


os trabalhos citados por Cooper é o da criação de redes sociais que escapem à captura pelo
sistema tradicional de transcrição de acontecimentos de determinação política em fatos
psicopatológicos. Exemplo dessa posição é o seguinte trecho:

O problema pessoal é visto no contexto das contradições políticas que ele


encarna. Depois surge outro problema e forma-se outra rede, e dá-se uma
sobreposição de redes que são mantidas como focos autogestores de
educação política nesse bairro, e depois noutros bairros da cidade (COOPER,
1979, p. 140).

Cooper, procurando resumir o que estava pensando na época, diz que um dos trabalhos
viáveis naquele momento seria uma ação com os “dissidentes”, loucos e profissionais, no
sentido de “sensibilizar a comunidade para a possibilidade de usar os seus próprios recursos
naturais humanos, a fim de procederem a uma autogestão desprofissionalizada não-médica da
sua loucura e ‘problema afetivos’” (COOPER, 1979, p. 149). Cooper falava do trabalho no
Setor, modelo Francês, mas não sem a importante advertência de que o Setor poderia criar os
“asilos familiares por meio da injeção neuroléptica de ação prolongada” (COOPER, 1979, p.
149). Note-se, mais uma vez, a atualidade do que dizia Cooper. Aqui, está apontado o rumo e
os perigos dos trabalhos com a comunidade. Ao mesmo tempo podemos ler nas suas palavras
algo muito semelhante a Basaglia, isto é, sem a crítica política constante, todo e qualquer
dispositivo de Saúde Mental, por maior que sejam as eternas boas intenções, cairá na lógica
da disciplina ou do controle.
Concluindo esse esboço da obra de Cooper, deixamos a seguinte citação:

A loucura é uma propriedade social comum que nos foi roubada, como a
realidade dos sonhos e das nossas mortes: temos que recuperar politicamente
estas coisas, de modo que se tornem criatividade e espontaneidade numa
sociedade transformada (COOPER, 1979, p. 12).

Franco Basaglia tem uma participação fundamental na história da Reforma


Psiquiátrica Brasileira. Com suas visitas ao Brasil pôde, com a clareza que lhe era própria,
demonstrar o absurdo dos hospitais psiquiátricos, ao lado de explicitar em nome de que
estavam organizados: da repressão às classes dominadas. A colocação em debate do ambiente
hospitalar, nos seus mínimos detalhes, com o lema “crear condiciones para permitir aflorar las
necessidades reales de los usuarios del servicio [...]” (BASAGLIA & BASAGLIA 1977 b),
foi a marca histórica do trabalho de Basaglia.
22

Franco Basaglia mostrou, com sua articulação entre as práticas de Saúde Mental e a
política, que a psiquiatria sempre esteve a serviço dos poderes dominantes. Pretendeu revelar
que o campo da saúde mental é eminentemente político. Esse desvelamento tornou-se fator
básico para os avanços, sem o qual o risco permanente de estarmos a serviço das forças da
alienação não pode ser criticado.
Basaglia colocou os direitos da cidadania como pedra fundamental para as práticas em
Saúde Mental. (Cf. Basaglia, F.: "A Instituição Negada - Relato de um hospital Psiquiátrico",
Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985. Basaglia, F.: “Qué es la Psiquiatria?”, Editorial Labor,
Madrid,1977. Basaglia, F.: “A Psiquiatria Alternativa: Contra o Pessimismo da Razão, o
Otimismo da Prática”, Ed. Brasil Debates, São Paulo,1982. Basaglia, F. & Basaglia, O. F.
(org.): “Los Crímenes de la Paz”, Siglo Veintiuno Editores, México, 1977).
No prólogo do livro “Qué es la Psiquiatria?” (Cf. BASAGLIA, 1977 a), Mario
Tommasini mostra a direção política do trabalho italiano em Saúde Mental, ao descrever o
início das contestações do asilo psiquiátrico. Diz ele que

La ocupación del Hospital Psiquiátrico Provincial por parte de los


estudiantes de la Facultad de Medicina, de los enfermeros y de los
trabajadores en febrero de 1969 tenía el objetivo de denunciar la realidad del
manicomio, en Parma como en todo nuestro país, de afirmar la necesidad de
que las instituciones democráticas se responsabilizaran de una
transformación radical en las estructuras asistenciales y de incidir en la
conciencia y en la cultura de la población de nuestra provincia (BASAGLIA,
1977 a, p. 9).

Apontando o caminho que a mudança no modo de organizar os sistemas de saúde


deveriam tomar, é ainda o autor do prólogo que ressalta que

las unidades locales de los servicios sanitarios y sociales tienen que ser
nuevos órganos de gestión democrática y de lucha, para convertirse también
en instrumentos de liberación del hombre oprimido (BASAGLIA, 1977 a, p.
10).

Aqui, Mario Tommasini adianta o percurso que tomou Basaglia no sentido de politizar
a discussão em Saúde em geral e em Saúde Mental em particular. Isto é, tornar explícita a
dimensão política envolvida em cada ação e instituição de saúde, já que, mesmo quando esse
aspecto não está claro e sendo discutido, não deixa de estar presente e produzindo efeitos.
No livro citado, Basaglia mostra que a psiquiatra, até então, só havia proposto
soluções negativas para o problema do sofrimento mental. Recortando um aspecto do homem
23

que sofre, reduzindo toda a complexidade da vida a dados psicopatológicos, a psiquiatria


tornou-se parte do aparelho de exclusão. Ao ter essa função, a psiquiatria se incumbia de
escamotear as contradições sociais que produzem as injustiças, o sofrimento, a miséria. Ao
propor as mudanças, Basaglia adverte para um perigo: o de cairmos num humanitarismo que
também estaria impedindo as transformações. Chamando de “literatura” a tendência da
psiquiatria de apenas descrever os fenômenos psicopatológicos, afastados da vida concreta
das pessoas, diz Basaglia:

Por el contrario, rechazando tanto la estéril “literatura” psiquiátrica como la


estéril relación puramente humanitaria, se siente la exigencia de una
psiquiatría que quiera constantemente verificar su validez en la realidad y
que encuentre en la realidad los elementos de discusión para discutirse a si
misma (BASAGLIA, 1977 a, p 20, grifo do autor).

Adverte, também, que o trabalho deve ter os dois aspectos: o científico e o político.
Pretendendo chamar a atenção para o fato de que o problema da Saúde Mental é muito mais
amplo do que a mera criação de novos “serviços”, atingindo a discussão da forma como se
organiza toda a sociedade, Basaglia diz que

sólo teniendo presente la extrema ambigüedad de la situación que estamos


viviendo, podremos evitar la edificación de una nueva ideología: la del
hospital abierto, de las comunidades terapéuticas, propuestas como solución
al problema del enfermo mental. (BASAGLIA, 1977 a, p. 21).

Transportando para os nossos dias, o que Basaglia diz é que não há “soluções”
definitivas em Saúde Mental, mas sim mudanças nas práticas que levam, cada vez mais, a
lançar a discussão e as ações na direção da vida concreta das pessoas envolvidas. E, também,
que a sociedade seja provocada a se colocar a mesma questão: o que é o sofrimento mental?
Quem são as pessoas que sofrem? Quais as condições sociais que favorecem a saúde mental e
as que a prejudicam?
Curioso e instrutivo é acompanhar a evolução do trabalho de Basaglia. Nos seus
escritos iniciais, como em “La liberdad comunitaria como alternativa a la regresión
institucional” (em “Qui es la psiquiatria”), lamentava que na França e na Inglaterra já existiam
experiências consolidadas de transformação do tratamento psiquiátrico, enquanto na Itália
havia muita dificuldade. (Cf. BASAGLIA, 1977 a, p. 27) Cita, como exemplo de que a
liberdade como base do tratamento não é nenhuma novidade, o trabalho de Conolly, em 1838,
na Inglaterra, que desenvolveu um esboço de comunidade terapêutica. Basaglia, ao assinalar
24

que Maxwell Jones descobriu a Comunidade Terapêutica em 1952, diz que a base do trabalho
de transformação institucional é a forma de trabalhar que tem como princípio o de “uma
comunidad organizada de forma que pueda permitir el movimiento de dinámicas
interpersonales entre los grupos que la constituyen y que presenta las características de
cualquiera otra comunidad de hombres libres” (BASAGLIA, 1977 a, p. 29). Note-se que a
crítica de Basaglia ao movimento da Comunidade Terapêutica é ao seu apoliticismo e à sua
tentativa de dar como resolvida a questão da psiquiatria com essa prática. Para Basaglia a
Comunidade Terapêutica é instrumento e não fim. Como fundamento assinala:

Tiene que partir, por lo tanto, de las exigencias del enfermo y desde ellas
intentar adaptar a su alrededor el espacio vital que necesita para extender y
actuar aquello que es la cuestión primera de la comunidade terapéutica: la
potencia terapéutica que cada uno de los miembros de la comunidad emana
hacia el otro (BASAGLIA, 1977 a, p 29).

Contrariando um ideal romântico que pode surgir da idéia de Comunidade


Terapêutica, Basaglia dizia que as contradições são uma base definitiva do trabalho, em todas
as suas formas de apresentação e entre todos os envolvidos: pacientes, funcionários de nível
superior, demais funcionários, etc. A organização de uma estrutura de reuniões comunitárias,
em que todos os que freqüentam a instituição devem participar, cria uma referência
psicológica protetora ao redor da qual os internados podem sair de seus papéis rígidos,
atribuídos pela sociedade e mantidos pela psiquiatria. Basaglia chama a atenção para a
reunião comunitária diária que, segundo ele, é o eixo ao redor do qual gira a vida
institucional. Note-se que esse preceito para uma transformação da realidade institucional dos
hospícios foi intensamente desenvolvido no Brasil e agora norteia o funcionamento dos
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e de muitos outros serviços de Saúde Mental.
Passaram, mesmo, as instituições que adotaram a forma de Comunidade Terapêutica, a serem
referências para o trabalho na área e campo importante de capacitação no início das ações da
Reforma Psiquiátrica, o que se mantém até os dias de hoje.
Basaglia destaca a colocação em questão do papel do médico e do enfermeiro na
Comunidade Terapêutica. Também instrutivo para a situação atual que vivemos, vemos
Basaglia mostrar muito claramente que a sociedade dá ao psiquiatra dois papéis que se
opõem: o de tratar e o de excluir. Aos enfermeiros, é requerida mais claramente a função de
vigilância. Com entrada em atividade da estrutura de decisão e funcionamento tipo
Comunidade Terapêutica, as contradições são reveladas e a possibilidade de mudança se
25

estabelece. Passa a haver história viva onde existia apenas a apatia e a rotina mortificadora.
Hoje, recomenda-se que essa discussão se dê em todos os locais de trabalho em Saúde Mental,
com as diversas categorias profissionais reagindo a seu modo quanto a questionar posturas
tradicionais.
Para esclarecer mais uma vez a posição crítica de Basaglia a respeito das
Comunidades Terapêuticas, lemos em “Los Crimenes de la Paz”, que ele considerava a
Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones e o XIII Arrondissement (França) “aparadores
psiquiátricos en los cuales exponer el nuevo producto listo para el consumo” (BASAGLIA,
1977 b, p. 41), e que sua proposta não se resumia a mais uma modificação técnica. Ao lado de
tornar claro que Basaglia adotava a estrutura da Comunidade Terapêutica como estratégia,
vemos, de passagem, a crítica à Psiquiatria de Setor da França. Essa crítica ao Setor pode ser
um dos motivos para as propostas atuais de entrada da Saúde Mental na Atenção Básica não
estarem se desenvolvendo no ritmo que seus resultados sugeririam. Encontramos, mais
adiante, uma advertência de Basaglia que temos que levar sempre em consideração, sem que
nos paralise:

Las consignas más actuales y modernas son ahora la medicina preventiva, el


mantenimiento de la salud, la lucha en la comunidad que frecuentemente se
reducen en la práctica a coartadas, apenas útiles para cubrir la realidad que
continúa inalterada a sus espaldas: porque se conservan inalteradas la
estructura y el modelo de las delegaciones del poder sobre las cuales se
fundamenta (BASAGLIA, 1977 b, p. 57).

Ainda em “A Instituição Negada”, Franca Basaglia afirma que as propostas da


Comunidade Terapêutica inglesa e a de Gorizia são diferentes na medida em que aquela, a
exemplo das “reformas de tipo setorial”, [...] "não vão além de promover o aperfeiçoamento
da assistência psiquiátrica, tendendo, no máximo, à ‘solução ideológica’ dos conflitos sociais”
(BASAGLIA, 1985, p. 96). De modo algum Basaglia pretende que a abertura do Hospital
Psiquiátrico de Gorizia limite-se a uma mudança apenas de alcance institucional. O desafio
que se colocava, e que é da maior importância para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e suas
práticas, está bem resumido na seguinte passagem:

O problema de Gorizia será, então, o de decidir em que medida sua atitude


de negação pode se voltar para o mundo externo, visto que o objetivo, desta
vez, é a estrutura social e não mais uma instituição particular. (BASAGLIA,
1985, p. 97).
26

Basaglia resume muito bem a sua orientação política aliada à técnica nas seguintes
linhas:

La experiencia de Gorizia, partiendo de la psiquiatría y del manicomio como


situaciones emblemáticas, proponía una problemática política y social que no
deseaba limitarse a la trasformación humanitaria del hospital – aunque la
efectuara – sino que consideraba ésta como una ocasión para poner
práticamente en discusión la finalidad de la existencia del manicomio y de
las modalidades de su existencia, en la relación con nuestra estructura social
(BASAGLIA, 1977 b, p. 41).

A influência de Basaglia demonstra-se no fato de que as tentativas de transformação


democrática dos Hospitais Psiquiátricos públicos foram, nas décadas de 70 e 80, no Brasil, a
maior e mais importante frente de luta pelas mudanças na Saúde Mental, a que gerou a maior
parte das discussões, e serviu como instrumento privilegiado para a formação de pessoal
questionador.
Basaglia, numa de suas estadas no Brasil em 1979, disse o seguinte: “O problema é
que quando se fala em destruição do manicômio, a terra treme sob os pés do profissional, ele
perde sua identidade e entra numa situação anômala, não sabendo mais quem ele é”
(BASAGLIA, 1982, p. 36).
No momento em que vivemos, podemos transpor a fala de Basaglia, para tentar captar
o que se passa com muitos dos profissionais de Saúde Mental, quando lhes é apresentada a
proposta de trabalhos com a comunidade. Já estabelecidos nos ambulatórios, depois dos
avanços iniciais da Reforma Psiquiátrica, os profissionais têm, em geral, uma visão muito
distante do que seja trabalhar diretamente nos Postos de Saúde, nas casas, nas praças e nas
ruas. A demora em se aproximar dessas ações e a adotar essas práticas pode vir, como diz
Basaglia, da ameaça de perda da identidade conquistada nos anos de formação tradicional e
nos anos de prática repetitiva nos ambulatórios de especialidades.
Notemos que os CAPS são muito mais rapidamente aceitos pelos profissionais que os
trabalhos na comunidade, apesar de serem muito mais intensos e exigentes que os
ambulatórios. Por que essa diferença? Matéria para pesquisa de campo, podemos ter como
hipótese, que a ausência das paredes institucionais e o confronto com a realidade social
gerariam o mesmo fenômeno que Basaglia detectou na ameaça da perda dos marcos históricos
dos hospícios.
Em “Psiquiatria Alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”
(Cf. BASAGLIA, 1982), que traz algumas conferências de Basaglia no Brasil, há um resumo
27

de seu percurso na abertura dos hospitais psiquiátricos. Após abandonar a carreira


universitária, que no seu modo de ver reproduzia a violência institucionalizada da psiquiatria,
Basaglia foi dirigir o Hospital Psiquiátrico de Gorizia, em 1961, já tendo conhecimento da
Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones. A base de seu trabalho foi dar voz aos pacientes,
numa organização de reuniões que confrontavam os diversos grupos da instituição.
Em 1968, o trabalho em Gorizia chega ao impasse e a partir de 1971 Basaglia e equipe
dirigem o Hospital Psiquiátrico Regional de Trieste. Como conseqüência dessa atuação, o
número de internados diminui e, com o apoio de forças políticas e culturais, organiza Centros
de Saúde Mental para o acolhimento das pessoas anteriormente internadas, com o trabalho
voltado para a comunidade. Partindo de um Hospital de 1101 leitos, organizou um local de
atendimento com quarenta vagas para quadros agudos. Eram realizadas internações curtas
(duas semanas), com as pessoas sendo depois atendidas nos Centros de Saúde Mental.
O livro citado (BASAGLIA, 1982) transcreve as conferências de Basaglia no Brasil,
no ano de 1979, quando houve uma virada na história do movimento pela transformação das
condições de atendimento à Saúde Mental no país. Essas conferências resumem muito bem a
importância de Franco Basaglia para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e há um registro que
mostra claramente o clima de efervescência política que existia naquele momento. A
sociedade brasileira tentava acordar de anos de regime de exceção e, na área de Saúde,
tomavam força as articulações para dotar o país de uma Política de Saúde voltada para os
interesses da população.
Na transcrição do debate que se seguiu à palestra de Basaglia no Hospital das Clínicas
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1979, aparece a fala de um
participante da platéia, não identificado, que, manifestando-se em nome do “movimento dos
profissionais do Rio” (BASAGLIA, 1982, p. 121), traça o quadro em que se encontrava a luta
naquele momento e anuncia os seus próximos passos. Denuncia o modelo assistencial
cronificador, hospitalocêntrico. Relata a realização, durante o V Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, em Camboriú, de uma Assembléia de Profissionais de Saúde Mental do Brasil,
onde foram condenadas as péssimas condições de trabalho e também o modelo assistencial.
Finalizando, cita as decisões de caráter organizativo que saíram de Camboriú, que foram a
criação de um banco de dados a respeito dos acontecimentos na área, e a realização do
Encontro Nacional de Profissionais de Saúde Mental, em São Paulo.
Estavam sendo dados, desta forma, alguns passos do movimento que teria fundamental
importância para a Saúde Mental no Brasil.
28

O trabalho de Basaglia e a mobilização que provocou fez surgir uma lei que passou a
orientar o trabalho em Saúde Mental na Itália. Trata-se da Lei 180, de 13 de maio de 1978,
que ficou conhecida como “Lei Basaglia”. O texto da lei estabelece critérios para a internação
involuntária, que na Itália recebe o nome de “tratamento sanitário obrigatório”. Os
procedimentos devem ser comunicados à autoridade jurídica em 48 horas. A lei determina que
o tratamento em Saúde Mental será feito prioritariamente em ambiente extra-hospitalar.
A obra de Michel Foucault é uma influência determinante, no Brasil, para a crítica à
psiquiatria reducionista e suas práticas de exclusão. Por isso, tornou-se de grande importância
para a Reforma Psiquiátrica. Em 1975 Foucault esteve no Brasil para uma série de
conferências e “influencia até hoje os rumos da implementação das novas formas de cuidar
em psiquiatria” (SÁVIO, 2003, p. 4). De interesse maior para nós é o livro “História da
Loucura na Idade Clássica” (Cf. FOUCAULT, 1978). Nele, Foucault, depois de descrever “as
condições que possibilitaram a constituição do saber sobre a loucura, sua submissão à razão
[...]” (AMARANTE, 1995, p. 23), chega ao século XVIII, quando se instituiu o conceito de
doença mental, numa coroação do processo histórico de controle social dos desviantes. Em “A
Casa dos Loucos” (Cf. FOUCAULT, 1993), Foucault descreve o percurso da submissão da
loucura ao conhecimento, ao historiar como se deu a constituição dos saberes e sua
dominação sobre os objetos a serem conhecidos. Para Foucault, a

grande transformação dos procedimentos de saber acompanha as mutações


essenciais das sociedades ocidentais: emergência de um poder político sob a
forma do Estado, expansão das relações mercantis à escala do globo,
estabelecimento das grandes técnicas de produção (FOUCAULT, 1993, p.
117).

Articularam-se, então, “formas de poder-e-de-saber, de poder-saber que funcionam e


se efetivam no nível da infra-estrutura” e que dão lugar à “relação de conhecimento sujeito-
objeto como nome do saber” (FOUCAULT, 1993, p. 117). Trata-se de uma norma
historicamente importante, segundo Foucault, porque vai tentar ser aplicada a tudo na
sociedade mercantilista e sob o poder estatal. O que escapa é definido como “doença, crime,
loucura” (FOUCAULT, 1993, p. 118). Estão em crise, no nosso tempo, segundo Foucault, os
ramos do saber encarregados do que foi definido negativamente: a medicina, a psiquiatria, a
justiça penal e a criminologia. Essa crise

coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma


sujeito-objeto. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e
políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos
29

ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber. Crise por conseqüência


histórico política (FOUCAULT, 1993, p 118).

Vemos, aqui, uma indicação de por onde as propostas da Reforma Psiquiátrica


encontraram substrato socioeconômico para evoluir. Além da crise de financiamento do setor
saúde, inviabilizando a assistência em bases hospitalares dispendiosas, também a crise nos
modelos teóricos antes hegemônicos.
Foucault diz que a função científica nascente, primordial, do Hospital, foi a de um
lugar onde a doença podia e devia se manifestar de modo livre e claro para, então, ser
compreendida e talvez tratada. Depois que Pasteur descobriu a contaminação levada pelas
mãos dos médicos, essa função do Hospital decaiu. Mas não nos Hospitais Psiquiátricos:

no Hospital de Pasteur, a função 'produzir a verdade da doença' não parou de


se atenuar. O médico produtor de verdade desaparece numa estrutura de
conhecimento. De forma inversa, no hospital de Esquirol ou de Charcot, a
função 'produção da verdade' se hipertrofia, se exalta em torno do
personagem médico. E isso num jogo onde o que está em questão é o sobre-
poder do médico (FOUCAULT, 1993, p. 122).

A hipótese de Foucault é que a crise da Psiquiatria começou quando ficou


demonstrado que Charcot “provocava” as crises histéricas que descrevia, à semelhança dos
médicos que Pasteur apontou como “transmissores das doenças que deviam curar”
(FOUCAULT, 1993, p. 123). Para Foucault, o ponto principal das crises da psiquiatria está no
questionamento do poder do psiquiatra: “Todas as grandes reformas, não só da prática
psiquiátrica mas do pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder; são
tentativas de deslocar a relação, mascará-la, eliminá-la e anulá-la” (FOUCAULT, 1993, p.
124).
Tentando perceber o que a antipsiquiatria trouxe de questionamento ao poder médico-
psiquiátrico, Foucault estabelece que “é precisamente a instituição como lugar, forma de
distribuição e mecanismo destas relações de poder, que a antipsiquiatria ataca” (FOUCAULT,
1993, p. 126). Especificando mais ainda o seu estudo a respeito das teorias e práticas que
tiveram como objetivo mudar radicalmente o panorama em vigor da psiquiatria no século XX,
Foucault subdivide o que chama de “diferentes formas da antipsiquiatria segundo sua
estratégia em relação a estes jogos do poder institucional” (FOUCAULT, 1993, p. 127):
-Szasz: escapar a eles segundo a forma de um contrato dual, livremente consentido por ambas
as partes.
30

-Kingsley Hall: estabelecimento de um local privilegiado onde eles devam ser suspensos ou
rechaçados no caso de se reconstituírem.
-Cooper, no pavilhão 21: balizá-los um por um e destruí-los progressivamente, no interior de
uma instituição de tipo clássico.
-Basaglia, em Gorizia: ligá-los a outras relações de poder que, do exterior do asilo já puderam
determinar a segregação de um indivíduo como doente mental.
Esta classificação de Foucault é bastante instrutiva quando podemos pensá-la, hoje,
em termos do que está sendo feito na Rede de Atenção Psicossocial que tecemos. Desde o
questionamento dos Hospícios, passando pelos Ambulatórios, os CAPS e a Saúde Mental na
Atenção Básica, podemos perceber a influência, nas nossas práticas, que a subdivisão de
Foucault contempla. Balizamento de poderes, sua colocação em questão de modo permanente,
a discussão do poder da psiquiatria e a queda da sua hegemonia são temas do nosso cotidiano.
Mas, quando Foucault diz que a relação de poder é o dado primordial na prática psiquiátrica,
devemos estar atentos, para perceber que essa relação não se desfaz apenas com a entrada em
ação das diversas categorias profissionais da Saúde Mental.
A relação de poder (disciplina, controle, exclusão) está sempre sendo requisitada ao
aparelho de atendimento em Saúde Mental, e a crítica diária é a tarefa básica, para evitar a
repetição de velhas submissões ou a criação de novas. E qualquer profissional de saúde pode
exercer o papel repressor.
Foucault descreve com clareza o jogo de poder estabelecido na relação
ciência/loucura, para depois lançar um desafio que, segundo ele, as antipsiquiatrias tomaram
para si:

Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos doença e daí em diante,
nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura
que lhe impede de ser um doente como os outros: você será então um doente
mental (FOUCAULT, 1993, p. 127).

O desafio é: “[...] é possível que a produção da verdade da loucura possa efetuar-se em


formas que não são aquelas da relação de conhecimento?” (FOUCAULT, 1993, p. 128). Uma
interpretação possível para essas palavras de Foucault é que devemos procurar uma
abordagem da loucura sem os preconceitos de qualquer conhecimento prévio, estando abertos
para o devir-louco (Deleuze). Tarefa desafiadora, mas necessária.
Para que possamos ter uma avaliação clara do alcance e pretensão do que está
colocado como metas e diretrizes atuais da Reforma Psiquiátrica no Brasil, bem como do
31

ponto de questionamento que alcançam as práticas comunitárias, vejamos o texto de Paulo


Amarante a respeito de Foucault:

O objeto de estudo de Foucault em História da Loucura é precisamente a


rede de relações entre práticas, saberes e discursos que vêm fundar a
psiquiatria. Os dispositivos disciplinares da prática médica psiquiátrica
permitem um mascaramento da experiência trágica e cósmica da loucura,
através de uma consciência crítica. Esta obra aponta para uma
desnaturalização e desconstrução do caminho aprisionador da modernidade
sobre a loucura, qual seja, aquele que submeteu a experiência radicalmente
singular do enlouquecer a classificações e terapêuticas ditas científicas:
submissão da singularidade à norma da razão e da verdade do olhar
psiquiátrico, rede de biopoderes e disciplinas que conformam o controle
social do louco (AMARANTE, 1995, p. 24).

O texto mostra o que está sendo tocado com as práticas de desinstitucionalização e as


ações comunitárias de Saúde Mental: estamos mexendo no imaginário a respeito do louco,
com séculos de duração. De saída, estamos tentando transgredir a lógica das relações de poder
que imperam na área da Saúde. Estamos, também, querendo devolver a experiência da
loucura para o campo do trágico, cujo conceito Nietzsche tão bem definiu, além de apontar a
vivência de horror que desperta nos menos habituados. Com isso, podemos compreender as
resistências que as práticas citadas despertam e a potencialidade de transformação social que
representam.
Para uma aproximação a respeito de como e em que medida Gilles Deleuze e Felix
Guattari influenciaram os profissionais de Saúde Mental no Brasil, no sentido de motivá-los
às práticas inovadoras, é preciso, sobretudo, partir da acirrada crítica que esses autores
desenvolveram a todo tipo de centralização. Desde a crítica da teoria de Édipo como
organizador do psiquismo humano, estão em questão todas as formações sociais que se
orientam pela referência identitária.
A abordagem da esquizofrenia como um limite alcançado nos capitalismos, a
compreensão do delírio como social-histórico e não pessoal-familiar, a dura crítica ao
familialismo da psicanálise e das técnicas de terapia familiar acomodadoras, tudo isso, e
muito mais, compõe um quadro teórico-prático estimulante. (Cf. DELEUZE, & GUATTARI,
1976). A instigação é para a procura de “linhas de fuga” coletivas a partir de cada
acontecimento-sintoma. Jamais o sintoma reduzido à sanha explicatória individualizante,
edipianizante, mas lançado no sentido do fenômeno social inerente e só invisível para quem
está com a visão encoberta por teorias reducionistas, suporte de ideologia. Portanto, Deleuze
32

e Guattari abriram caminho para as ações de caráter coletivo onde, antes, na mesma situações,
existiam práticas apaziguadoras e sem alcance social.
Muitos profissionais de Saúde Mental tiveram suas possibilidades de prática com as
pessoas com diagnóstico psiquiátrico de psicose expandidas pelos textos de Deleuze e
Guattari. Não mais aceitar a captura por modelos teóricos adaptadores, mas estimular a
singularização e a problematização cada vez mais ampla do emergente: família, serviços de
saúde, redes de vizinhança, movimentos sociais - invenção de possibilidades. A prática da
Clínica Ampliada tem nas concepções de Deleuze e Guattari uma de suas bases.
A clínica “La Borde”, nos arredores de Paris, ainda existente, fundada, dentre outros,
por Guattari, teve importante influência em profissionais de Saúde Mental que, ou receberam
seus relatos ou lá fizeram estágio. Trata-se de um lugar de experimentação de práticas
terapêuticas e institucionais que durante muito tempo foram supervisionadas por Guattari.
A crítica aos centralismos levou Guattari a renegar os movimentos que se pretendem
revolucionários, mas apenas repetem as estruturas que dizem combater. Investiu, então, nos
movimentos horizontalizantes, criativos, disparadores de ações contagiantes, sem controle
central. ”Instaurar ligações laterais”, segundo Deleuze. (Cf. CARRILHO, 1976, p. 21). Com
isso, inspirou, por exemplo, as rádios livres na França, um exemplo de ação molecular
transformadora. O molecular - campo da singularidade, dos movimentos do desejo e da
diferença – opõe-se ao molar, das instituições, das formações hierarquizadas. Mas a ação
molecular não exclui o trabalho no campo molar. Apenas que é exigido, sempre, o olhar que
procura a fratura, a fenda, a contradição exposta em acontecimento gerador de transformação.
(Cf. GUATTARI & ROLNICK, 1986, p. 127).
Guattari também colaborou com a Rede Alternativas à Psiquiatria, da qual dá sua
visão num artigo do livro “A Revolução Molecular” (Cf. GUATTARI, 1981). Nele, reafirma
o caráter político e não apenas técnico das mudanças realmente necessárias no campo da
Saúde Mental. Adverte que as inovações técnicas “despolitizadas” levam a novas formas de
controle. Por isso, a proposta da Rede foi de que os profissionais de Saúde Mental se
colocassem como estimuladores e assessores dos movimentos populares de busca de novos
caminhos na área. Guattari cita o exemplo da Itália, com Basaglia, Giovanni Jervis e outros,
como práticas mais conseqüentes, visto que enraizadas no movimento popular. Referindo-se
ao trabalho que Jervis desenvolvia em Reggio Emilia, Guattari diz que:

não são mais apenas os muros do asilo que se tenta destruir, mas igualmente
os muros do profissionalismo: a medicina mental aqui é feita diretamente
com os membros do gueto, com os trabalhadores das fábricas, nos vilarejos,
33

apoiando-se sobre “paraprofissionais” formados na prática (GUATTARI,


1981, p. 125).

Em nota, a tradutora do texto esclarece o termo “paraprofissionais”, cujo caráter


provisório as aspas anunciam: “Os paraprofissionais são membros da comunidade, ao lado
dos quais trabalham certas equipes de ‘saúde mental’ no sentido de reconhecer o poder
potencial da população, para autogerir a resolução de seus problemas” (GUATTARI, 1981, p.
127). Temos, mais uma vez, pistas para os trabalhos com Agentes Comunitários de Saúde e
com voluntários, que hoje estão sendo desenvolvidos no Brasil.
O conceito de Micropolítica (Cf. GUATTARI, & ROLNICK, 1986) desenvolvido por
Guattari, tem a grande utilidade de nos mostrar que, em cada ponto em que estejamos
situados, existe a possibilidade de atuação transformadora. Não há que esperar condições
favoráveis, nem sonhar com uma grande mudança que cada vez mais é adiada. Se o Poder se
instala e opera em cada desvão da sociedade, das relações interpessoais, familiares,
institucionais, todos esses são, portanto, locais de ação. Colocada no campo da Saúde Mental,
essa concepção ajuda a retirar o profissional da inércia, do adiamento ou da espera por dias
melhores, para agir num incitamento às ações afirmativas e alegres no dia de hoje. O termo
“Esquizoanálise” indica o trabalho de procurar de que modo funciona o nível molar, para
instalar máquinas de mudança. (Cf. CARRILHO, 1976, p 49).
Mesmo estando além das possibilidades de aprofundamento, aqui, é importante
assinalar a influência que tiveram entre nós os trabalhos de Erving Goffman, que especifica
os mecanismos de invalidação e mortificação das Instituições Totais e de Thomas Szasz, com
a crítica ao modelo psiquiátrico tradicional. Em Enrique Pichon-Rivière temos uma criativa
tentativa de articulação entre a psicanálise e o marxismo e uma união entre teoria e prática de
trabalhos com grupos. Deixou, juntamente com seus continuadores que vieram para o Brasil,
uma grande colaboração para a prática institucional em Saúde Mental.

3.1.2 Antecedentes históricos brasileiros.

De acordo com Heitor Resende, o aparecimento do louco enquanto problema de


desordem, portanto necessitando de providências repressivas, de acordo com a época, deu-se
de modo diferente na Europa e no Brasil. (Cf. RESENDE, 1987, p. 29). Na Europa, a
evolução do capitalismo, quebrando a ordem feudal, trouxe a necessidade de segregar as
pessoas que não se enquadravam no ideal daquele modo de produção. No Brasil, mesmo
numa sociedade ainda rural, modos de isolar os indesejáveis já estavam sendo articulados,
34

após um longo período no qual os loucos podiam vagar a esmo, recebendo ajuda eventual da
caridade pública, desde que não violentos. Para esses, a força policial era o remédio. Depois
da abolição da escravatura, surgiu um contingente de desempregados aos quais o olhar do
controle administrativo associou os loucos e os delinqüentes.

Socialmente ignorada por quase trezentos anos, a loucura acorda,


indisfarçavelmente notória, e vem engrossar as levas de vadios e
desordeiros nas cidades, e será arrastada na rede comum da repressão à
desordem, à mendicância, à ociosidade (RESENDE, 1987, p. 35).

Estava criada, no Brasil, situação semelhante que, na Europa, séculos antes, levou à
grande onda de internações. Portanto, a base da exclusão estava dada e se materializou com a
criação dos Hospícios, com a ciência emergente tomando para si a tarefa de segregar.
Em 1852, o Imperador D. Pedro II inaugurou, no Rio de Janeiro, o primeiro hospício
do Brasil, que tomou seu nome: Hospício de Pedro II. Nos cem anos que se seguiram à
fundação do primeiro hospício no Brasil, nota-se a proliferação de muitos outros,
predominantemente nas capitais dos estados. Também surgiram as Colônias, nada mais que
hospícios situados em áreas rurais, seguindo a tendência de que a natureza por si só faria bem
às pessoas internadas, além do trabalho agrícola. Ao mesmo tempo, serviam para escoar os
inúmeros pacientes “crônicos” excedentes dos hospícios. No Rio de Janeiro foram construídas
duas Colônias, uma para mulheres, no Engenho de Dentro e outra para homens, em
Jacarepaguá. Posteriormente a denominação “Hospício de Pedro II” ficou com a instituição do
Engenho de Dentro.
A psiquiatria dominante, na época, era a de origem francesa, toda ela marcada pelo
organicismo, com forte acento na interpretação dos problemas mentais como decorrentes de
degenerações. Útil para o recolhimento de indesejáveis, o “diagnóstico” de “degenerado
atípico” constava em 90% das descrições dos internados. (RESENDE, 1987, p. 44).
Com a sua história brevemente resumida acima, a Internação Psiquiátrica no Brasil
produziu seus efeitos: no fim da década de 50, os Hospícios estão com lotação muito acima da
sua capacidade, como por exemplo, o Juqueri, em São Paulo, com quase 15 mil pessoas, ou o
São Pedro, em Porto Alegre, com 3.200 internos, quando as vagas eram 1.700. (RESENDE,
1987, p 54). Propostas de “[...] organização assistencial abrangente, ambulatórios, hospitais
abertos e atenção aos egressos [...]” (RESENDE, 1987, p. 54), como a de Ulysses
Pernambucano, na década de 30, eram isoladas e não aceitas.
Foi no quadro descrito acima que, em 1944, foi trabalhar no então chamado Centro
Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro, a psiquiatra Nise da Silveira. Encontrou como
35

práticas dominantes o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia. (Cf. MUSEU DE


IMAGENS DO INCONSCIENTE, internet 1). Nise da Silveira conhecia a obra de Carl
Gustav Jung, o que proporcionou que levantasse questões incômodas para a época e ainda
para os dias em que vivemos: os sintomas e as produções do inconsciente das pessoas com
diagnósticos de psicose fazem sentido, caso se queira prestar atenção. De posse dessa
compreensão e de um profundo interesse pela pessoa a ser tratada, Nise organizou, em 1946,
o Serviço de Terapêutica Ocupacional no referido Hospício.
Utilizando técnicas de pintura, modelagem e xilogravura, Nise proporcionou aos
internos um oásis de humanidade e criatividade em meio à destruição do ambiente hospitalar.
Mostrou, com repercussão internacional, tendo como base as obras que os pacientes criavam,
que os métodos tradicionais da psiquiatria caracterizavam uma violência aniquiladora. Em
meio à incompreensão e falta de recursos, continuou com seu trabalho, já um verdadeiro
movimento, com diversos colaboradores. Viu surgir, dentre os internados, artistas cujas obras
estão entre as mais importantes do século XX no Brasil, como as de Fernando Diniz e Carlos
Pertuis.
São dela as palavras:

Sem a pintura seria pouco provável descobrir-se que no íntimo daquele


homem de aspecto humilde e face à primeira vista impassível
permanecessem guardadas secretas ambições nem que no seu mundo
interno tivesse raízes uma árvore de intensas emoções (SILVEIRA, Internet
2).

Nise da Silveira não teve, no seu tempo de atuação, ação no sentido de mudanças
amplas na organização da Assistência à Saúde Mental. A época estava ainda longe disso. Mas,
com seu trabalho que indica a aproximação pessoal e artística com as pessoas com
diagnósticos de psicose, revolucionou, pelo exemplo, pelas publicações e pela organização do
Museu de Imagens do Inconsciente, a face da Saúde Mental no Brasil. Hoje, o antigo
“Hospício de Pedro II” tem o nome de “Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da
Silveira”.
O psiquiatra alagoano Luiz da Rocha Cerqueira, que teve sua formação médica e
psiquiátrica no Recife, na década de 30 (Cf. CERQUEIRA, 1984), é, pela sua obra e
tenacidade, um capítulo à parte na história da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Inconformado
com o que via lutando em períodos de grande dificuldade política, produziu textos que
abriram caminho para o atual pensamento a respeito da Saúde Mental, suas determinações
sociais e sua assistência. Ao mesmo tempo em que criticava o mercantilismo na área da
36

Saúde, com textos políticos, mostrava, com minuciosas pesquisas, por exemplo, os dados
relativos a gastos com internações psiquiátricas, com o sistema ambulatorial, com o auxílio
doença. Pensou a formação de profissionais de saúde mental, as prioridades do atendimento, a
Terapia Ocupacional, as Emergências Psiquiátricas, a psiquiatria no Hospital Geral, dentre
muitos outros temas. Voltaremos ao trabalho de Luiz Cerqueira quando falarmos dos
primórdios da Saúde Mental Coletiva no Brasil.

Além das figuras públicas aqui nomeadas como precursores do movimento que
resultou na Reforma Psiquiátrica Brasileira, temos que destacar a importância de todos os
profissionais de Saúde Mental que, durante os tempos mais difíceis, ofereceram sua dedicação
e esforços no sentido de resistir ao autoritarismo político e institucional, ao lado de propor
mudanças no trabalho diário. Foram inúmeras as demissões e perseguições de profissionais
que não compactuavam com o que estava estabelecido. O somatório desses pontos de não
aceitação e proposição formou a massa crítica para o que veio a ser o movimento pela
mudança nos rumos da Assistência à Saúde Mental no país e a forma de conceber o que é
Saúde Mental.

3. 2 A Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Os autores consultados para a composição da cena em que se deu o início da Reforma


Psiquiátrica coincidem em localizar, no final da década de 70 e início da de 80, o período em
que os acontecimentos de precipitaram. É importante assinalar que o ambiente político era de
ditadura militar, com as liberdades democráticas não garantidas. A participação política,
portanto, era restrita ou impedida. O autoritarismo político se transferia para todas as
instituições, com dificuldade ou impossibilidade de debate. Este quadro facilitou a
implantação da chamada “indústria da loucura”, hospitais psiquiátricos particulares
conveniados com o poder público que atuavam praticamente sem barreiras. Sem eleições
diretas para Governadores dos Estados, os Hospitais Psiquiátricos Estaduais mantinham-se
com suas direções distantes da discussão política. Do mesmo modo, os Hospitais Psiquiátricos
Federais eram dirigidos por indicação superior, sem a participação das bases. Nas
Universidades, o quadro era semelhante: autoritarismo e resistência. Mas a insatisfação
fermentava na sociedade e nas Instituições de Saúde.
Paulo Amarante situa o “Início do movimento da reforma psiquiátrica” entre os anos
de 1978 e 1980. No seu modo de ver, “[...] o movimento da reforma psiquiátrica brasileira
tem como estopim o episódio que fica conhecido como a 'Crise da DINSAM'” (Divisão
37

Nacional de Saúde Mental). (AMARANTE, 1995, p. 51). Em abril de 1978, um episódio de


denúncia de falta de condições humanas e de trabalho, no então já denominado Centro
Psiquiátrico Pedro II, o velho hospício do Engenho de Dentro, resultou em apoios políticos e
notícias na imprensa. Os principais pontos de denúncia e reivindicação eram: péssimas
condições de trabalho, falta de garantias trabalhistas, ameaças a profissionais e pacientes,
agressões, estupros, trabalho escravo.
O movimento associativo na área médica estava renascendo, e a situação culminou
numa greve, em abril de 1978, e na demissão de estagiários e profissionais. Ao invés de
enfraquecer o movimento, a greve foi um estímulo e logo estariam acontecendo reuniões em
diversos serviços e entidades de classe. Assembléias reuniam profissionais de diversas
categorias e representantes das entidades da área de saúde. Com essa mobilização surgiu o
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), com a função de ser:

um espaço de luta não institucional [...] que aglutina informações, organiza


encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como
entidades e setores mais amplos da sociedade (AMARANTE, 1995, p. 52).

Aconteceu, então, um inédito estímulo à organização dos profissionais de Saúde


Mental no país, com repercussão nos serviços, entidades de classe, universidades.
Paulo Amarante resume os principais pontos de reivindicação e denúncias nos
diversos documentos elaborados pelo MTSM durante o ano de 1978: salariais, formação de
recursos humanos, relações entre instituição, clientela e profissionais, modelo médico-
assistencial e condições de atendimento. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 53). Note-se que as
condições eram dramáticas no que diz respeito a todos os pontos, na época, mas a pauta ainda
é atual.
Como um precedente oficial, crítico às internações psiquiátricas, Pedro Gabriel
Delgado (Cf. DELGADO, 1987) se refere ao “Manual de Serviço para Assistência
Psiquiátrica”, do antigo INPS, de 1973 (O.S. 304.3/73). Assinalemos, também, que a chamada
“Lei Basaglia”, que deu sustentação legal ao trabalho da Psiquiatria Democrática Italiana, foi
aprovada em maio de 1978. (Cf. AMARANTE, 1995).
As condições (ou a falta de) da assistência à Saúde Mental eram semelhantes em todo
o país. Com a mobilização no Rio de Janeiro, confluíram para o V Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, em Camboriú, em outubro de 1978, os movimentos que já estavam em andamento
em diversos estados. Realizado pela conservadora Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP),
o Congresso teve seu desenvolvimento politizado pela presença dos militantes do MTSM que,
38

através da federada baiana da ABP, a Associação Psiquiátrica da Bahia, conseguiram marcar


posição na plenária final e aprovar resoluções que foram tiradas nas reuniões paralelas ao
evento. A privatização na área da saúde é denunciada, bem como a ausência de discussão
pública a respeito dos rumos da assistência à saúde. A universidade é criticada pela sua
adesão à lógica do mercado. A prática psiquiátrica em vigor é apontada como instrumento “de
controle e reprodução das desigualdades sociais” (AMARANTE, 1995, p. 54). No campo
político amplo, a plenária também se manifestou, com a bandeira de luta pela Anistia Ampla,
Geral e Irrestrita.
Numa demonstração da fertilidade do momento, ainda em outubro de 1978 realizou-
se, no Rio de Janeiro, o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, que
lançava a instituição de formação em psicanálise, terapia de grupo e analistas institucionais, o
Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI). Nele estiveram presentes
Basaglia, Guattari, Robert Castel, Goffman e outros nomes representantes do pensamento
crítico da área. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 55). Revestido de uma aura de grande produção, o
Congresso movimentou ainda mais o ambiente.
Logo a seguir, em janeiro de 1979, acontece em São Paulo o I Encontro Nacional dos
Trabalhadores em Saúde Mental. É o movimento tomando corpo, aprofundando suas
discussões, organizando-se de modo autônomo. Nessa altura dos acontecimentos, o que estava
sendo colocado pelo MTSM, em resumo, era:

-A crítica ao modelo asilar em psiquiatria.


-Pressão por solução política para a questão da orientação da assistência à
saúde mental.
-O movimento faz parte dos setores da sociedade que lutam pelas liberdades
democráticas, pela Anistia, pela livre organização de trabalhadores e
estudantes (AMARANTE, 1995, p. 55).

Apesar da grande repercussão, entre os profissionais de Saúde Mental, do que estava


acontecendo com a mobilização em torno no MTSM, a grande imprensa mantinha-se, em
geral, distante do que havia por detrás dos muros dos hospícios.
A censura à imprensa permanecia em vigor e era difícil vencer a barreira do silêncio.
Este quadro mudou durante e após o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado em Belo
Horizonte, em novembro de 1979. O Congresso foi organizado pela Associação Mineira de
Psiquiatria, que já se colocava em adesão ao MTSM. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 55).
Durante o evento, Basaglia foi visitar o grande hospício de Barbacena, sobre os quais recaíam
denúncias assustadoras de maus tratos, inclusive a respeito de venda de cadáveres de
39

pacientes para faculdades de medicina. O relato emocionado de Basaglia, em palestra do


Congresso, repercutiu na imprensa e durante muitos dias foi para os grandes jornais do país a
situação dos hospitais psiquiátricos. Foi preciso um visitante estrangeiro, para romper o
bloqueio e expor o que estava escondido pelos muros dos hospícios, pela censura e pela
conivência.
Em 1980, em Salvador, realiza-se, paralelo ao VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria,
o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. A fragilidade da aproximação
entre a ABP e o MTSM, ocorrida em Camboriú, fica exposta nesse momento em que as
propostas do MTSM excedem em muito a posição mais que moderada da ABP. Continuam
em discussão no movimento os temas presentes nos encontros anteriores, com ênfase na
crítica ao “modelo assistencial como ineficiente, cronificador e estigmatizante”.
(AMARANTE, 1995, p. 56).
Paulo Amarante, ao especificar as características do Movimento dos Profissionais em
Saúde Mental, impulsionador importante da Reforma Psiquiátrica, no período que relatamos
aqui, diz que a forma de organização que tomou dispensava a institucionalização. Desse
modo, evitava-se a burocratização e mantinha-se a autonomia. Esta postura foi coerente com a
proposta de desinstitucionalização da assistência, um importante conceito do movimento. (Cf.
AMARANTE, 1995).
O MTSM cresceu, expandindo-se através das entidades das categorias profissionais
envolvidas, mas também em entidades fora da área médica. Teve adesão, por outro lado, de
usuários do sistema se saúde e seus familiares. Posteriormente, surge o Movimento da Luta
Antimanicomial, com as postulações do MTSM, porém coloca, mais claramente, a
perspectiva da abolição dos hospitais psiquiátricos. Devemos estar atentos para essa
possibilidade de trabalhar com a perspectiva de abolição total dos hospitais psiquiátricos. À
época, a bandeira de luta era tida como radical, mas hoje já está nas metas do Ministério da
Saúde. Porém, abolir os Hospitais Psiquiátricos não significa acabar com o procedimento
Internação Psiquiátrica, que pode sobreviver de outras formas, como por exemplo, nos
Hospitais Gerais. Voltaremos ao assunto, central em toda a discussão, mas, no horizonte,
temos que ter o fim da Internação Psiquiátrica, que se dará no momento em que a comunidade
souber lidar com os emergentes que até aqui foram excluídos.
Com o avanço da Abertura Democrática, no início da década de 80, “[...] o Estado
passa a incorporar os setores críticos da saúde mental [...]” e “os movimentos de trabalhadores
de saúde mental decidem, estrategicamente, atuar na ocupação do espaço que se apresenta nas
instituições públicas [...]” (AMARANTE, 1995, p. 58), com as propostas de criação de
40

dispositivos de saúde mental extra-hospitalares, gestão democrática e trabalho em equipes


multidisciplinares. Mantinha-se a perspectiva de abolir os hospícios e a crítica ao lucro
extraído das ações de saúde.
A ocupação de cargos e funções no aparelho do Estado sempre foi um dilema para os
movimentos sociais e seus integrantes. Nas décadas de 80 e 90 surgiram as oportunidades de
tentar mudar, de dentro do aparelho estatal, a realidade da Assistência à Saúde Mental no
Brasil, e postos de direção foram preenchidos por integrantes do início do movimento ou que
receberam suas influências. Paulo Amarante define bem a situação:

A questão da estratégia de ocupação de cargos em órgãos estatais, como


tática de mudança 'por dentro', ou indicador de cooptação das lideranças e
do projeto de MTSM pelo Estado, a partir do advento da 'co-gestão', chega
a dividir o movimento em duas facções, embora projetos como os da
Colônia Juliano Moreira ou do Centro Psiquiátrico Pedro II tenham
procurado equilibrar a direção e a militância das bases (AMARANTE,
1995, p. 58).

Equilibrar direção com militância nas bases, eis a questão.


O modelo de assistência implantado no Brasil, então, era curativista e privatizante.
Organizado pelos setores que se beneficiavam do regime de exceção, o modelo acabou por
levar os cofres públicos à penúria. E não por algum mau funcionamento do sistema, mas pelas
próprias características de um modelo que comprava serviços de particulares, pagando por
procedimento realizado com dinheiro público, e onde a fiscalização era ineficiente. Deu-se a
chamada “Crise da Previdência”, não apenas financeira, mas ética e de modelo de saúde. (Cf.
AMARANTE, 1995).
No início da década de 80 surge, para tentar aplacar a crise no setor, a “Co-gestão”, na
qual o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) passa a participar com custeio,
planejamento e avaliação das unidades hospitalares do Ministério da Saúde. A Co-gestão foi
uma oportunidade para a implantação de “uma política de saúde que tem como bases o
sistema público de prestação de serviços, a cooperação interinstitucional, a descentralização e
a regionalização, propostas defendidas pelos movimentos das reformas sanitária e
psiquiátrica” (AMARANTE, 1995, p. 58). Note-se que estamos nos primórdios da construção
do Sistema Único de Saúde. Com a Co-gestão, o MPAS deixa de comprar serviços ao
Ministério da Saúde, o pagamento por produção, e passa a atender de forma universalizada,
que será um dos princípios do SUS. Desta forma, há redirecionamento de recursos públicos
que estavam sendo usados, para pagar serviços prestados pelo setor privado.
41

Os empresários da área de saúde, representados pela Federação Brasileira de Hospitais


(FBH), preocupados com a perda de receita que viria da evolução do que estava proposto na
Co-gestão, colocaram-se contra as novas diretrizes. Maurício Lougon, citado por Paulo
Amarante, diz que

o debate FBH versus Co-gestão traduz uma disputa de modelos de


assistência: é a substituição de um modelo essencialmente privativista,
pautado na relação atendimento/produção/lucro, por um modelo assistencial
público eficiente (AMARANTE, 1995, p. 65).

O que estava acontecendo, naquele momento, no setor saúde, no Brasil, condizia com
a tendência global de reforma dos sistemas nacionais de saúde. Vemos numa nota do trabalho
“Estudo sobre o processo de reforma em saúde no Brasil”:

As reformas dos sistemas de saúde decorrem de uma conjuntura que produz


custos crescentes [...] frente a uma redução da capacidade financeira dos
estados nacionais e a quebra das bases de solidariedade criadas para a
cobertura dos riscos clássicos, como a doença, por exemplo (VIANA, 1998
p. 6).

O município do Rio de Janeiro tem a característica de ter herdado, além do primeiro


hospício do Brasil, outras unidades psiquiátricas que vieram a fazer parte do Ministério da
Saúde. Com isso, a crise da DINSAM e a Co-gestão tiveram uma enorme incidência nesse
contexto. Por isso, quando a articulação entre os Ministérios da Saúde e da Previdência e
Assistência Social se efetivou em ações de gerenciamento e reorganização dos hospitais
psiquiátricos situados no Rio, técnicos que participavam do MTSM, ou que recebiam sua
influência, puderam participar desse momento de colocação em prática do que estava sendo
proposto pelo movimento.
A crise financeira do Estado e da Previdência se agrava e, em 1981, é criado o
Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), ligado ao
MPAS, que será o “primeiro plano de assistência médico-hospitalar a ser discutido mais
amplamente” (AMARANTE, 1995, p. 66). O chamado “Plano do CONASP” tem como
função reverter o modelo médico assistencial privatizante da Previdência e tem uma parte
dedicada à assistência psiquiátrica, o “Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica
no âmbito da Previdência Social” (MPAS/CONASP), de 1982. Nessa altura dos
acontecimentos, influenciaram as resoluções do CONASP a experiência da Co-gestão e
algumas outras, realizadas em municípios e que seguiam os “princípios de integração,
42

hierarquização, regionalização e descentralização do sistema de saúde” (AMARANTE, 1995,


p. 65).
Citando o “Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica no âmbito da
Previdência Social”, de 1982, acima apontado, Pedro Gabriel mostra que desse texto constam
as seguintes diretrizes para um novo modelo assistencial:

a- ser predominantemente extra-hospitalar,


b- ser exercida por equipe multidisciplinar,
c- deve incluir-se numa estratégia de atenção primaria de saúde, ou seja:
1- ser regionalizada.
2- integrar-se a rede de serviços básicos de saúde da área
programática.
3- integrar ao sistema ‘[...] recursos não estritamente psiquiátricos’
(generalistas treinados, por exemplo).
4- promover ações de prevenção e promoção de saúde mental.
5- ‘[...] disciplinar os mecanismos de encaminhamento, em uma
estratégia global que se pode definir como a de evitar que o caos ou
problemas sociais sejam erroneamente rotulados e tratados como
doenças mentais’.
d- utilizar recursos ‘[...] intermediários entre o ambulatório e a internação
integral’, como hospital-dia, hospital-noite, pré-internação, pensão e oficina
protegidas.
e- restringir a internação aos casos estritamente necessários.
f- promover a implantação progressiva de pequenas unidades psiquiátricas
em hospitais gerais (DELGADO 1987, p. 182).

Podemos observar que nesses seis itens está contida grande parte das orientações que
norteiam a Reforma Psiquiátrica até hoje. Existe uma ênfase na atuação da Saúde Mental nos
serviços básicos de saúde, apenas sendo necessário que se note, mais uma vez, ainda no
registro restrito da psiquiatria. Mas está colocada a diretriz: “incluir-se numa estratégia de
atenção primária de saúde”.
Curioso notar, a título de revisão histórica, que ao dizer que se deve “restringir a
internação aos casos estritamente necessários”, o relatório do CONASP ainda mantém um
lugar para a internação psiquiátrica, isto é, afirma o procedimento.
Politicamente, a FBH continuava articulando contra as mudanças, por demais
estatizantes para seu gosto. Também se colocavam críticos os setores organicistas da
psiquiatria, a ABP, setores universitários e os grupos com posturas psicologizantes.
A entrada de profissionais, ligados ou influenciados pelo MTSM, na administração
pública, principalmente nas funções de direção, continuou criando polêmica. De acordo com
Paulo Amarante, nessa altura dos fatos, o MTSM “[...] acaba por assumir um papel que se
pode definir como não mais que modernizante, ou tecnicista, ou ainda reformista, no sentido
43

de operar reformas sem objetivar mudanças estruturais” (AMARANTE, 1995, p. 65). Trata-se
do velho problema, já apontado: equilibrar direção com militância nas bases. Permanecer no
movimento ou entrar para as instituições oficiais? Gostaria de ver essa discussão com suas
vertentes de necessidade de sobrevivência (política e pessoal) e de vaidades claramente
colocadas.
É interessante o resumo que Paulo Amarante faz das divergências que se clarificaram
na época. Uma “linha”, a chamada “institucional”, pretende proceder às reformas propostas
pelo movimento através da participação na administração pública. Outra, a “sindical”, atua
nas organizações dos trabalhadores. Paulo Amarante opina que a opção institucional “acaba
por confundir-se com o próprio Estado” [...] “comprometendo, assim, as suas próprias
bandeiras e projetos de origem” (AMARANTE, 1995, p 68). Já a linha sindical “também perde
os objetivos de uma real transformação da natureza da instituição psiquiátrica” (AMARANTE,
1995, p. 68), por passar a ver a luta dentro delas apenas como parte da luta mais geral pela
democratização do país, perdendo a especificidade do campo. Estamos, aqui, na eterna e ainda
não resolvida questão da unidade das forças que lutam por mudanças. Devemos aprender com
a História que, estando de acordo com os rumos principais, jamais podemos repetir divisões,
com base em detalhes secundários, que só nos enfraquecem.
A volta das eleições para Governadores dos estados foi mais um fator propiciante para
que, no meio da década de 80, muitos postos de direção em instituições, antes conduzidas por
representantes do conservadorismo, estivessem ocupados por militantes ligados ao MTSM. Já
na condição de participantes do poder público, organizam, em setembro de 1985, o “I
Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste”, em Vitória, no Espírito
Santo, já então discutindo as estratégias para “o desenvolvimento e fortalecimento das ações
no campo da saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 71). É traçado um diagnóstico mais claro
a respeito das condições da assistência à saúde mental, mas com a reafirmação do que havia
antes sido colocado pelo movimento: as internações psiquiátricas em hospitais privados
consomem a maior parte do dinheiro público gasto na área; a carência de recursos humanos
capacitados é patente; a desarticulação dos atores institucionais leva à ineficiência e gastos
sem controle.
Como estratégia, o movimento coloca em primeiro plano a redução do número de
leitos psiquiátricos (meta que continua hoje), com a sua substituição por dispositivos extra-
hospitalares. Quanto a esses dispositivos, naquele momento o que estava posto era: hospital-
dia, hospital-noite, pré-internações, lares abrigados, núcleos autogestionários. Propunha-se,
também, a internação em Hospitais Gerais. (AMARANTE, 1995, p. 71).
44

Notemos que cada um desses recursos está, hoje, em atividade, com nomes mudados e
concepção mais articulada. O hospital-dia perdeu esse nome, por sua identidade com a
instituição a ser desmontada, e aí estão os Centros de Atenção Psicossocial. Os hospitais
psiquiátricos públicos adotam as enfermarias abertas, que abrigam as pessoas que lá viveram
longos períodos e não têm para onde ir. É o antigo hospital-noite. Os hospitais psiquiátricos
interessados em diminuir o tempo de permanência (número de dias de internação), organizam
as pré-internações. Os lares abrigados estão funcionando com o nome de Serviço Residencial
Terapêutico, com portaria e financiamento do Ministério da Saúde. E como “núcleos
autogestionários” podemos entender as diversas criações conjuntas de profissionais, usuários
e familiares, que são as cooperativas sociais, os clubes, as associações de usuários e
familiares, e muitas outras.
Chama a atenção o fato de estar fora das estratégias daquele momento o trabalho nas
comunidades, que entram não como local de possíveis ações de Saúde Mental, mas como um
dos atores na participação social na condução das políticas públicas de saúde. Assim, os
fatores considerados básicos, no “I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região
Sudeste”, para o “fortalecimento efetivo do setor” são: “[...] os mecanismos de integração, de
participação comunitária, de unificação interinstitucional, de descentralização [...]”, “[...] de
controle, avaliação e informação” (AMARANTE, 1995, p. 72).
Em março de 1986, acontece a Oitava Conferência Nacional de Saúde, o passo
decisivo para as mudanças na área da Saúde no país. Além de reafirmar os princípios para um
sistema de saúde público, universal, equânime, descentralizado e com controle da sociedade, a
sua organização trouxe para a cena a discussão e decisão institucional sobre a necessidade de
participação, na formulação e avaliação das políticas de saúde, dos movimentos populares,
sindicatos, associações de moradores e de usuários, as igrejas, as associações profissionais,
enfim, a sociedade organizada. (AMARANTE, 1995, p 70).
Dando partida para a efetivação de uma das decisões da Oitava Conferência Nacional
de Saúde, a realização de conferências específicas, dentre as quais a de Saúde Mental, a
diretoria do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro toma a
iniciativa de organizar o I Encontro de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, que se
realiza em outubro de 1986, uma espécie de pré-conferência estadual.
A I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro ocorreu em
março de 1987, já com a participação de delegações do movimento social e de entidades de
profissionais. A convocação dessa conferência deu-se sem o aval do Ministério da Saúde, que
adiava a decisão de realizar a Conferência Nacional de Saúde Mental temendo o avanço da
45

renovação que julgava radical. Nota-se uma luta de posições, com o movimento pressionando
agora com eventos amplos, de repercussão nacional, inclusive Conferências Estaduais e
Municipais.
O tema central da I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de
Janeiro foi “a política nacional de saúde mental na reforma sanitária” (AMARANTE, 1995, p.
73), repercutindo, assim, no setor, o que estava em pauta após a Oitava Conferência Nacional
de Saúde. Houve grande participação de usuários e familiares, com alguns sendo eleitos como
delegados à Conferência Nacional de Saúde Mental.
As conclusões da I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de
Janeiro reconhecem que “[...] a doença mental é fruto do processo de marginalização e
exclusão social”. (AMARANTE, 1995, p. 73). Polêmica em todos os sentidos, essa afirmação
é positiva por um lado, pois aponta para as determinações sociais do sofrimento mental,
politizando a questão. Por outro lado, reafirma o duvidoso conceito de “doença mental” e
pode sugerir que, ao serem resolvidas a exclusão e a marginalização, a tal “doença mental”
desapareceria. Mas as conclusões que a Conferência tira do tema são pertinentes e atuais,
como a necessidade do “resgate da cidadania”.
A Conferência segue em suas conclusões, apontando para o direito do cidadão ao
acesso irrestrito a todos os recursos para tratamento disponíveis, o que hoje está como uma
das prioridades da orientação na área. Novamente o movimento insere os temas das equipes
multidisciplinares, das condições de trabalho para as equipes, a necessidade de participação
da comunidade e da sociedade organizada na elaboração e controle das políticas públicas. (Cf.
AMARANTE, 1995, p. 74).
Na área mais ampla, da Política Nacional de Saúde Mental, as conclusões são as
seguintes:

[...] considera-se que a saúde é resultante das condições de alimentação,


habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho não alienado, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, e acesso a serviços de
saúde. Reforça-se a necessidade de inserção, nos programas informativo-
pedagógicos, de medidas que visem a promoção da saúde em geral. Quanto
ao modelo assistencial, pretende-se a reversão da tendência hospitalocêntrica,
por meio de atendimentos alternativos em saúde mental, tais como leitos
psiquiátricos em hospitais gerais, hospital-dia, hospital-noite, pré-
internações, lares protegidos, etc. Propõe-se ainda, a redução progressiva dos
leitos manicomiais públicos e o não credenciamento de leitos privados, a
hierarquização da rede assistencial e a expansão da rede ambulatorial,
descentralizando e melhor capacitando tecnicamente, objetivando, assim, um
poder de resolutividade mais eficiente (AMARANTE, 1995, p. 74).
46

O documento mostra a continuidade do movimento de mudanças na Saúde Mental e a


crescente ampliação do leque de propostas, já então com responsabilidades de organização
dos serviços. Notamos que ainda não aparece nada em relação aos trabalhos que inserem
ações de saúde mental na comunidade.
Após a avaliação regional e nacional do movimento ter sido realizada em abril de
1987, no II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste, em Barbacena,
Minas Gerais, acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em junho de 1987, com a
participação de 176 delegados eleitos nas pré-conferências estaduais. (AMARANTE, 1995, p.
75). É interessante acompanhar o aumento do número de delegados nas próximas
Conferências, indicativo da crescente representatividade.
A I Conferência Nacional de Saúde Mental realiza-se em clima de aberto conflito
político, pois a Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão do Ministério da Saúde encarregado
da Política de Saúde Mental e a Associação Brasileira de Psiquiatria - suposta representante
dos psiquiatras - organizadoras do evento, ameaçam abandoná-lo ao verem rejeitada pela
plenária inicial o regulamento da Conferência, visto que este a pretendia um encontro
meramente técnico. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 80). Nesse momento, as correntes em disputa
dentro do movimento de transformação da Saúde Mental unem-se, tendo estado em atrito
devido à referida diferença de posição quanto ao modo de encaminhar as mudanças,
principalmente no que tange à ocupação do Aparelho de Estado.
Segundo Paulo Amarante, são as seguintes as principais recomendações da I
Conferência Nacional de Saúde Mental:

[...] a orientação de que os trabalhadores de saúde mental realizem esforços


em conjunto com a sociedade civil, com o intuito não só de redirecionar as
suas práticas (de lutar por melhores condições institucionais), mas também
de combater a psiquiatrização do social, democratizando instituições e
unidades de saúde;
[...] a necessidade de participação da população, tanto na elaboração e
implementação, quanto no nível decisório das políticas de saúde mental, e
que o Estado reconheça os espaços não profissionais criados pelas
comunidades visando a promoção da saúde mental;
[...] a priorização de investimentos nos serviços extra-hospitalates e
multiprofissionais como oposição à tendência hospitalocêntrica
(AMARANTE, 1995, p. 75).

Já aparece, então, na I Conferência Nacional de Saúde Mental, uma referência a


trabalhos ou ações de saúde mental na comunidade, com a recomendação de que “[...] o
Estado reconheça os espaços não profissionais criados pelas comunidades visando à
47

promoção da saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 75). Para além do fato de ser
contraditório pedir que o Estado reconheça espaços que se pretendem autônomos, ressalte-se
que algo já surge em uma reunião importante, de caráter nacional e de formulação de Políticas
de Saúde Mental, que aponta para a comunidade como sede de transformações.
Quanto aos fatos políticos do movimento, Paulo Amarante descreve como histórico
esse momento, devido a três fatores, além da aliança entre novos e antigos militantes:

-A renovação teórica e política do MTSM,


-O início de um processo de distanciamento entre o Movimento e o
Estado,
-A aproximação do MTSM com as entidades de usuários e familiares
(AMARANTE, 1995, p. 80).

Dentro da discussão acima, o MTSM avalia, durante a I Conferência Nacional de


Saúde Mental, que é preciso ter como estratégia principal “o desatrelamento do aparelho do
Estado, buscando formas independentes de organização e voltando-se [...] para a intervenção
na sociedade” (AMARANTE, 1995, p. 80). Assim, o lema “Por uma Sociedade sem
Manicômios” aponta para uma intervenção/provocação no âmbito sócio-cultural, ao colocar
no horizonte possível uma “utopia que pode demarcar um campo para a crítica das propostas
assistenciais em voga” (AMARANTE, 1995, p. 80).
No modo de ver de Paulo Amarante, a Reforma Psiquiátrica Brasileira toma, com as
novas decisões, o rumo da desinstitucionalização. Alcança, também, um patamar mais amplo
com as mudanças operadas nos campos técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-
conceitual e sociocultural. A influência basagliana torna-se predominante agora, com a
“desinstitucionalização em sua dimensão mais propriamente antimanicomial” (AMARANTE,
1995, p. 76 e 79).
Domingos Sávio, ao listar os “[...] marcos iniciais paradigmáticos da Reforma
Psiquiátrica no Brasil”, aponta, como os dois primeiros, a “I Conferência Nacional de Saúde
Mental” e o “Encontro Nacional do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental” (SÁVIO,
2003, p. 1), citado por Paulo Amarante como “II Congresso Nacional do MTSM”.
O II Congresso Nacional do MTSM aconteceu em Bauru, Estado de São Paulo, em
dezembro de 1987, com grande participação de técnicos, usuários e familiares, já com a tarefa
de “[...] construir opinião pública favorável à luta antimanicomial” (AMARANTE, 1995, p.
81). Nele, afirma-se a posição do movimento de que este deve ultrapassar as propostas de
transformação institucional, a limitação da crítica à psiquiatria, a aliança com o Estado, e
48

partir para expandir para a sociedade a discussão da loucura, da exclusão, das condições de
vida. Com essa compreensão, o conceito de desinstitucionalização passa a primeiro plano.
Outro fator da maior importância no momento descrito é a entrada em cena das
associações de familiares e usuários, abrindo a perspectiva de ações conjuntas e multiplicando
o questionamento a respeito dos métodos criticados e das alternativas.
Com o movimento em franca expansão e com pessoas ligadas a ele ocupando postos
de direção em diversas instâncias governamentais, aumentam em número e em qualidade os
dispositivos alternativos à internação psiquiátrica.
A instalação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do país, em São
Paulo, em 1987, é um momento marcante na história da transformação da assistência à Saúde
Mental no Brasil. Esse CAPS leva o nome de “Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz
da Rocha Cerqueira”.
Constatada a falência do Hospital Psiquiátrico, enquanto instrumento de tratamento, as
atenções voltaram-se para o ambulatório de Saúde Mental, que logo mostraram sua pouca
eficácia quanto à abordagem dos quadros graves, na sua maioria psicoses. Rotineiro,
repetidor, não integrado à comunidade, burocrático, ainda centrado no modelo médico, pouco
interdisciplinar, não questionador da exclusão, o ambulatório não dava respostas à enorme
tarefa de substituir a internação psiquiátrica.
Em São Paulo, com a eleição direta para Governador de Estado, surgiu a oportunidade
de implantar um Programa de Saúde Mental de acordo com o que havia de avançado na
época, e com a proposta de substituir internações por outros procedimentos. Com a
regionalização da assistência, as pessoas que precisavam de atendimento em Saúde Mental
procuravam o que então se considerava o mais simples, os Centros de Saúde. Caso fosse
necessário, haveria o encaminhamento para os Ambulatórios especializados de Saúde Mental,
que já contavam com o ingresso de diversas categorias profissionais além da psiquiatria
(Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional). (Cf.GOLDBERG, 1996, p. 103). Mesmo
reconhecendo os avanços conseguidos, Jairo Goldberg vê, no que foi implantado, um sistema
que não rompe com a “figura cronificada de 'paciente'” (GOLDBERG, 1996, p. 105).
Começa a surgir, dada a não efetividade das consultas especializadas no atendimento à
psicose, e às resistências a lidar com a questão, o que depois veio a ser chamado de
ambulatório ampliado com oficinas terapêuticas. Isto é, uma modalidade de atendimento
intensivo, multidisciplinar, grupal, praticado no espaço físico do ambulatório ou Centro de
Saúde, lembrando o já conhecido hospital-dia.
A percepção da necessidade de um espaço próprio para a abordagem da psicose fez
49

surgir o documento “O Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira –


Projeto Docente-Assistencial Multicêntrico”, que se propõe a “lidar com a psicose e suas
determinações de marginalização e cronificação nas vertentes de assistência, investigação e
formação de recursos humanos para a rede de prestadores de serviços de saúde”
(GOLDBERG, 1996, p. 111). O Projeto tomou corpo com a instalação, numa casa, de um
dispositivo que acolhia de modo diferenciado, com estímulo às relações interpessoais e
grupais e com “instâncias de escuta, de expressão verbal e não-verbal” (GOLDBERG, 1996,
p. 113).
O CAPS Luiz Cerqueira iniciou seu funcionamento em junho de 1987, no que foi o
disparador de um processo de multiplicação dessa modalidade de atendimento num ritmo que
mostra a adesão de profissionais e instâncias de governo, mas que ainda está aquém do
necessário para dar conta da demanda. Em 1997 já havia 176 CAPS e Núcleos de Atenção
Psicossocial (NAPS) no Brasil, chegando a 295 em 2001. (Cf. SÁVIO, 2003, p. 8).
Outro momento expressivo da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi a intervenção da
Secretaria de Saúde do Município de Santos, São Paulo, numa instituição privada conveniada,
a Casa de Saúde Anchieta, em maio de 1989. Devido ao inédito da ação, à vontade política
implicada, aos confrontos jurídicos, às denúncias de maus tratos e aos desdobramentos em
termos de articulação de um Programa de Saúde Mental que se propunha totalmente
substitutivo ao modelo manicomial, o fato teve demorada repercussão nacional. Mesmo não
sendo modelo para repetições mecânicas, a intervenção em Santos mostrou-se como exemplo
de determinação política e de resultados.
Os NAPS, em Santos, foram os instrumentos de substituição das internações,
complementando o trabalho de transformação feito dentro do hospício. Os NAPS têm uma
estrutura diferenciada dos CAPS, por exemplo, por oferecer atendimento nas 24 horas.
Assemelha-se mais ao que foi implantado na Itália.
O ano de 1989 também foi marcado pelo início da tramitação no Congresso Nacional
do Projeto de Lei do Deputado Federal por Minas Gerais, Paulo Delgado, que estabelecia os
direitos dos pacientes psiquiátricos e postulava a extinção progressiva dos hospitais
psiquiátricos. Apesar do longo tempo que levou para ser aprovado, ou até mesmo por isso, o
Projeto motivou uma discussão inédita a respeito da loucura, do preconceito, dos métodos de
tratamento e suas alternativas. Fez surgir, também, diversas associações de usuários e
familiares e leis estaduais com o mesmo sentido do Projeto federal. (Cf. AMARANTE, 1995, p.
84).
50

Domingos Sávio destaca como fatos importantes para a Reforma Psiquiátrica


Brasileira, na época que estamos percorrendo, fim da década de 80 e início da de 90, a
intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, e a apresentação do Projeto do Deputado
Paulo Delgado, os dois fatos em 89, e a Declaração de Caracas, em 1990. (SÁVIO, 2003, p.
1).
Após os avanços políticos e de organização conseguidos na década de 80, no Brasil,
na área da Saúde Mental, acontece em Caracas, na Venezuela, em novembro de 1990, a
"Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica dentro dos Sistemas
Locais de Saúde". Essa reunião produziu um documento que resume o que era o
entendimento, naquele momento, a respeito de como deveriam ser conduzidas as Ações de
Saúde Mental. Trata-se de um documento com a chancela da Organização Mundial da Saúde e
da Organização Panamericana da Saúde. No preâmbulo, o texto final aprovado na
Conferência, que veio a ser conhecido como "Declaração de Caracas", critica a internação
psiquiátrica e a assistência psiquiátrica convencional. Numa afirmação decisiva para a área da
Saúde Mental, lembra, nas considerações, que

O Atendimento Primário de Saúde é a estratégia adotada pela Organização


Mundial de Saúde e pela Organização Pan-Americana de Saúde e
referendada pelos países membros para alcançar a meta de Saúde para
Todos, no Ano 2000 (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 11).

Ressaltando que os Sistemas Locais de Saúde são os instrumentos para a efetivação da


meta de oferecer "[...] melhores condições para desenvolver programas baseados nas
necessidades da população de forma descentralizada, participativa e preventiva", a Declaração
recomenda que “[...] os Programas de Saúde Mental e Psiquiatria devem adaptar-se aos
princípios e orientações que fundamentam essas estratégias e os modelos de organização de
assistência à saúde" (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 11).
A parte do documento reservada às recomendações finais, sob a forma de declaração,
além de propor a quebra da hegemonia do hospital psiquiátrico como recurso preferencial e de
chamar a atenção para a necessidade de garantir os direitos humanos das pessoas assistidas
tem como seu primeiro ponto a recomendação de que

a reestruturação da atenção psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário de


Saúde e no quadro dos Sistemas Locais de Saúde, permite a promoção de
modelos alternativos, centrados na comunidade e dentro de suas redes
sociais (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 12).
51

A Declaração de Caracas, ao lado de representar um avanço da OMS, é um documento


que aponta com clareza o trabalho nas comunidades e nos sistemas locais de saúde como o
campo onde as ações preferenciais de Saúde Mental devem ser executadas.
A substituição do Modelo Assistencial em Saúde Mental estava, no seu início, no que
diz respeito às práticas do dia a dia, centrado na transformação dos hospícios e na implantação
de equipes multidisciplinares ambulatoriais. Depois, como vimos acima, a introdução dos
NAPS e CAPS representou um passo decisivo na concepção e prática da atenção intensiva.
Outros dispositivos, alguns já praticados de modo não sistemático, foram incorporados ao
cotidiano de profissionais, usuários e familiares (lares abrigados, emergências psiquiátricas
em hospital geral, oficinas terapêuticas em ambulatórios ampliados, clubes e associações
autônomas).
Porém, o trabalho nas comunidades permaneceu, durante anos, afastado do centro das
discussões, apesar da recomendação explícita da OPAS e da OMS na Declaração de Caracas.
Faz parte dos objetivos dessa monografia, levantar a seqüência das práticas de Saúde Mental
ligadas à Atenção Básica, no Brasil, tentando perceber o que facilita e o que dificulta a sua
compreensão e execução, bem como seus resultados.
Em 1991, começaram a ser editadas, pelo Ministério da Saúde, portarias que
concretizavam, oficialmente, as mudanças que estavam em andamento nos serviços de Saúde
Mental. Estas portarias foram elaboradas já com a participação de pessoas ligadas ao
movimento de transformação da Saúde Mental, que nessa altura estavam em postos no
Ministério da Saúde.
A Portaria 189, de 19 de novembro de 1991, do Secretário Nacional de Assistência à
Saúde do Ministério da Saúde, define o financiamento para ações de Saúde Mental que já
estavam sendo praticadas sem esse incentivo. Além de alterar a normatização da Autorização
de Internação Hospitalar, inclui no Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) os
seguintes procedimentos: atendimento em grupo, atendimento em CAPS e NAPS em um e
dois turnos, atendimento em Oficinas Terapêuticas, Visita Domiciliar e Psicodiagnóstico. A
importância desta e das outras portarias está no fato de alterar o financiamento em Saúde
Mental, de forma a adequá-lo à realidade da transformação em andamento. Conforme o
próprio comentário da publicação do Ministério da Saúde onde está a Portaria 189, “Política
pública de faz conhecer quando se define o seu financiamento” (BRASIL, MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002, p. 55).
Nas diretrizes contidas no preâmbulo da histórica Portaria 224, de 29 de janeiro de
1992, nota-se a orientação do movimento de mudanças, presente na Coordenação de Saúde
52

Mental do Departamento de Programas de Saúde da Secretaria Nacional de Assistência à


Saúde do Ministério da Saúde:

organização de serviços baseada nos princípios de universalidade,


hierarquização; regionalização e integralidade das ações; diversidade de
métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de complexidade
assistencial; multiprofissionalidade na prestação de serviços; ênfase na
participação social desde a formulação das políticas de saúde mental até o
controle de sua execução; definição dos órgãos gestores locais como
responsáveis pela complementação da presente portaria normativa e pelo
controle e avaliação dos serviços prestados (BRASIL, MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002, p. 56).

A Portaria 224 “[...] regulamenta o funcionamento de todos os serviços de saúde


mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 64), e teve a grande importância de
definir, em linhas gerais, as ações dos CAPS e NAPS. Tentou, também, traçar normas para os
Hospitais Psiquiátricos, sempre de difícil fiscalização, e proibir práticas restritivas típicas
desses locais. O comentário à portaria chama a atenção para o fato político que ela
representou, ao “[...] ter sido aprovada pelo conjunto dos coordenadores/assessores de saúde
mental dos estados, para que, entendida como 'regra mínima', pudesse ser cumprida em todas
as regiões do País” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 64).
É importante assinalar que o que foi chamado de Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental, no seu início, no fim da década de 70, já não pode mais ser, no fim da década
de 80 e início da de 90, visto como homogêneo, o que de fato nunca foi. Nem era essa a
pretensão. Em 1991, o movimento, isto é, o conjunto de profissionais, usuários e familiares
que postulavam e praticavam novas concepções a respeito do que se entende por “sofrimento
mental” e sua abordagem terapêutica, já é um conjunto complexo com várias tendências
políticas e linhas teóricas. Um dos méritos desse movimento foi encontrar a unidade na
prática. Cada linha teórica, seja do campo da psicologia, da psicanálise, seja das diversas
formas de compreender e trabalhar o social e o político, encontra meios de participar do
movimento em razão dos objetivos comuns.
A II Conferência Nacional de Saúde Mental acontece em Brasília, de 1 a 4 de
dezembro de 1992, após mobilização que contou com 150 conferências municipais ou
regionais e 24 Conferências Estaduais. A Conferência teve na sua Comissão Organizadora,
representantes das “[...] associações de usuários e familiares, conselhos da área de saúde,
prestadores de serviço, governos e entidades da sociedade civil” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
1994, p. 7). Foram cerca de 20 mil pessoas envolvidas nas diversas etapas. O amplo debate
53

prévio materializou-se, durante a Conferência, com a participação de usuários em todas as


atividades.
Segundo o Relatório Final, a Conferência teve como temas centrais a Rede de Atenção
em Saúde Mental, a transformação e cumprimento das leis e o direito à atenção e à cidadania.
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 9). Como poderemos perceber, mesmo tendo, na sua
Apresentação, uma marcada citação da Declaração de Caracas, apontada como sendo uma
“[...] referência fundamental para o processo de transformação do modelo de atenção à saúde
mental que se desenvolve no país” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 7), é esparsa e
mínima a alusão à entrada da Saúde Mental na Atenção Básica e nas comunidades. O termo
“Atenção Básica” não aparece no relatório.
A Conferência, dentro da sua posição política, afirma a necessidade da “[...]
democratização do Estado com controle da sociedade civil” [...] como “[...] fundamento do
direito à cidadania e da transformação da legislação de saúde mental” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1994, p. 11).
A Conferência reafirma todos os postulados do movimento de transformação da Saúde
Mental dos últimos anos e traça diretrizes para a sua efetivação na prática. Veremos, a seguir,
dentro de um resumo das conclusões da Conferência, quais os pontos aprovados que têm
relação com o trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica, deixando pistas, traçando rumos
ou marcando omissões, e alguns conceitos básicos que aparecem no texto do Relatório Final.
Nos “Marcos Conceituais”, estão indicados os conceitos que nortearam a Conferência:
Atenção Integral e Cidadania.
Define-se “Atenção Integral” como a concepção de atenção à saúde dentro dos
princípios da 8a. Conferência Nacional de Saúde, da Declaração de Caracas e da I
Conferência Nacional de Saúde Mental: visão integrada da complexidade da vida social,
dispositivos sanitários e socioculturais, universalidade, integralidade, eqüidade,
descentralização e participação. Aponta para a “[...] inserção da saúde mental nas ações gerais
de saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 13). Ao citar os dispositivos da rede de
atenção que substituirá o modelo hospitalocêntrico, relaciona:

unidades de saúde mental em hospital geral, emergência psiquiátrica em


pronto-socorro geral, unidades de atenção intensiva em saúde mental em
regime de hospital-dia, centros de atenção psicossocial, serviços territoriais
que funcionem 24 horas, pensões protegidas, lares abrigados, centros de
convivência, cooperativas de trabalho e outros serviços que tenham como
princípio a integralidade do cidadão (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p.
13).
54

Note-se que não há menção de trabalhos diretos com as comunidades.


Um conceito que tem forte presença no Relatório Final é o de “desinstitucionalização”.
Em artigo publicado em 1986, Franco Rotelli e outros esboçam a definição de
desinstitucionalização como:

o processo social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos


sociais envolvidos, que tende a transformar as relações de poder entre os
pacientes e as instituições, que tende a produzir estruturas de Saúde Mental
que substituam inteiramente a internação no Hospital Psiquiátrico [...]
(ROTELLI, 2001, p. 18).

Rotelli adverte para a distinção entre desinstitucionalização e desospitalização. Esta,


apenas retira as pessoas de dentro dos Hospitais Psiquiátricos, sem proporcionar uma rede de
atenção que os substitua e sem criar uma alteração na forma da sociedade lidar com o
“problema mental”. Para situar precisamente o que seu grupo italiano pratica como
desinstitucionalização, Rotelli diz que esta não se limita à desospitalização nem ao “intento de
renovar a capacidade terapêutica da Psiquiatria, liberando-a das suas funções arcaicas de
controle social, coação e segregação” (ROTELLI, 2001, p. 19). Igualmente não se destina ao
que “[...] para os grupos de técnicos e políticos radicais [...] simbolizava a perspectiva de
abolição de todas as instituições de controle social” (ROTELLI, 2001, p. 19), nem com um
“programa de racionalização financeira e administrativa, sinônimo de redução de leitos
hospitalares e uma das primeiras operações conseqüentes da crise fiscal” (ROTELLI, 2001, p.
19).
Rotelli afirma que a psiquiatria tradicional parte de uma concepção que a leva a
encarar o seu campo, sempre referido ao conceito de doença, dentro do esquema simplificador
problema-solução. O problema é a doença mental, a solução é o tratamento segregador.
Rotelli pretende trazer para a discussão e para a prática toda a complexidade, antes ocultada.
Ao não entrar na discussão teórica de etiologia dos transtornos mentais, quer, de saída, “[...]
desmontar a solução institucional existente para desmontar (e remontar) o problema”
(ROTELLI, 2001, p. 29). Então,

a terapia não é mais entendida como a perseguição da solução-cura, mas


como um conjunto complexo, e também cotidiano e elementar, de
estratégias indiretas e mediatas que enfrentam o problema em questão
através de um percurso crítico sobre os modos de ser do próprio tratamento
(ROTELLI, 2001, p. 29).
55

Marcando mais ainda sua posição a respeito de uma outra forma de encarar o
fenômeno do sofrimento mental, Rotelli diz que:

se o objeto ao invés de ser 'a doença' torna-se 'a existência sofrimento dos
pacientes', e sua relação com o corpo social, então desinstitucionalização
será o processo crítico-prático para a reorientação de todos os elementos
constitutivos da instituição para este objeto bastante diferente do anterior
(ROTELLI, 2001, p. 30).

Ressaltando o papel do técnico em Saúde Mental no processo de


desinstitucionalização, Rotelli mostra que estes “[...] ativam toda a rede de relações que
estruturam o sistema de ação institucional e dinamizam as competências, os poderes, os
interesses, as demandas sociais etc [...]” (ROTELLI, 2001, p. 31). Esta postura do técnico é
muito diferente da criticada no artigo, em que Rotelli diz que:

os diversos tipos codificados de 'terapia' (médica, psicológica,


psicoterapêutica, psicofarmacológica, social, etc...) são considerados como
momentos também importantes, mas redutivos e parciais, sobretudo se
isolados e codificados. Por isso trata-se de demolir a compartimentalização
entre estas tipologias de intervenção (ROTELLI, 2001, p. 46).

Mais adiante, Rotelli diz que a abordagem, que tem como ponto central a “doença”, vê
hospitais e ambulatórios como referência (Cf. ROTELLI, 2001). Ao mudar o paradigma para
a desinstitucionalização, a relação passa a ser como território, outro conceito que aparece no
texto do Relatório Final na II Conferência Nacional de Saúde Mental, como veremos mais
adiante.
Nota-se, no texto de Rotelli, uma preocupação constante em conseguir um novo
estatuto para a psiquiatria, desta vez com inserção no movimento social, e assumindo
integralmente sua função política. No bojo dessa intenção, Rotelli constrói uma articulação
estreita entre teoria e prática da maior importância para nós. (ROTELLI, 2001).
No Relatório Final da II Conferência, é marcante a importância que é dada aos
movimentos sociais, enquanto protagonistas dos avanços que se pretende na abordagem à
questão do sofrimento mental, tanto na sua determinação quanto na articulação da rede de
atenção.(Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE).
Em “Da Cidadania”, a Conferência se posiciona, mais uma vez, politicamente,
assinalando que:
56

a luta pela cidadania das pessoas com transtornos mentais, ou assim


consideradas, não deve estar desvinculada do conjunto de esforços
desenvolvidos pelo povo brasileiro na luta por sua cidadania, envolvendo
todas as instituições sociais, unindo os profissionais, usuários e familiares
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 19).

No mesmo capítulo, as conclusões apontam para trabalho nas comunidades:

O trabalho de saúde mental na comunidade deve ser voltado para o


envolvimento das pessoas, num processo de organização crescente, de modo
a que possam, cada vez mais, influir diretamente nas questões que lhes
digam respeito (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 19).

Notamos, no trecho acima, que há uma preocupação da Conferência com a


participação da comunidade, tanto no que se refere a estimular a participação e luta pela
cidadania, quanto pelo aspecto de controle do Sistema de Saúde e definição de seus rumos. O
que ainda não aparece é a comunidade como local de intervenção em Saúde Mental. O item
citado a seguir é um exemplo dessa postura: “Estimular a organização dos cidadãos em
associações comunitárias, onde serão debatidos os problemas de saúde mental e
encaminhadas as propostas aos conselhos municipais de saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
1994, p. 19). Ao lado de mostrar a importância da participação da comunidade, não há diretriz
que a defina como local de intervenção direta, contrastando com a proposta de
desinstitucionalização. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE).
Na Segunda Parte do relatório, que trata das “Recomendações Gerais” a respeito da
“Atenção à Saúde Mental e Municipalização”, há a indicação de “Adotar os conceitos de
território e responsabilidade, como forma de dar à distritalização em saúde mental um caráter
de ruptura com o modelo hospitalocêntrico [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 22).
Os conceitos de território e de responsabilidade são importantes para os dispositivos
que a Reforma Psiquiátrica está implantando e podem mesmo ser parâmetros de aferição da
propriedade ou impropriedade das ações.
André Luis Duval Milagres, numa nota de seu artigo sobre os “Serviços Residenciais
Terapêuticos”, cita Pedro Gabriel, o qual diz que “[...] território não é o bairro de domicílio do
sujeito, mas o conjunto de referências sócio-culturais e econômicas que desenham a moldura
de seu cotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção no mundo”. (MILAGRES, 2003, p.
122).
O conceito de responsabilidade vem da tradução do italiano presa in carico, por vezes
também traduzida por “tomar encargo”, segundo a nota da tradutora do artigo de Franco
57

Rotelli “Desinstitucionalização, uma outra via. A Reforma Psiquiátrica Italiana no Contexto


da Europa Ocidental e dos Países Avançados”, que esclarece:

cabe ressaltar que esta expressão se constitui numa premissa fundamental na


organização dos serviços territoriais e significa 'fazer-se responsável', isto é, a
impossibilidade de delegar a uma outra estrutura a assistência à população da
região de referência (ROTELLI, 2001, p. 34).

No capítulo “Financiamento”, já aparece a preocupação de redirecionar recursos das


internações psiquiátricas para a rede extra-hospitalar. Ao relacionar os componentes desta
rede, aparece uma referência à “saúde mental na rede geral de saúde pública, com unidades
básicas de saúde/centros de saúde; centros de convivência, oficinas terapêuticas e
cooperativas [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 28), dentre os outros dispositivos que
vêm sendo citados.
No capítulo “Gerenciamento”, aparece uma indicação de “Constituir equipes
itinerantes que atuem na comunidade, nas áreas urbana e rural, como alternativa para a
organização de serviços municipais”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 32). Esta parece
ser a indicação mais clara de um caminho para o trabalho junto às comunidades, com a
característica de não localização e de organização.
No capítulo que trata “Dos Trabalhadores de Saúde, da Organização do Trabalho e da
Pesquisa”, surgem algumas indicações para o investimento em capacitação para as ações nas
comunidades. Assim, destacam-se os itens:

Enfatizar temas de saúde e trabalho e de atenção em saúde da criança, para as


equipes de saúde dos sistemas locais.
Dar prioridade à capacitação do médico generalista para atenção em saúde
mental, principalmente em regiões onde a ampliação da equipe não seja
viável a curto prazo.
Recomendar à Universidade e demais órgãos formadores:
a) processar profundas mudanças nas agências formadoras de trabalhadores
de saúde, introduzindo temas de saúde mental sob a ótica de saúde coletiva
[...]
c) desenvolver programas de pós-graduação em saúde mental na perspectiva
da saúde coletiva [...]
d) criar projetos de extensão que possibilitem a formação de agentes
comunitários urbanos e rurais.
Formar e contratar agentes comunitários em saúde [...] (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1994, p. 37 e 38).

Na parte dedicada aos “Direitos dos Usuários”, está recomendado


58

Formar conselhos comunitários, com a cooperação do Ministério Público,


que terão por função principal assistir, auxiliar e orientar as famílias, de
modo a garantir a integração social e familiar dos usuários (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 1994, p. 55).

As conclusões da II Conferência Nacional de Saúde Mental tornaram-se as diretrizes


que passaram a nortear a luta pelas efetivas mudanças na área da Saúde Mental, tendo servido,
também, como um documento de persuasão nos municípios para que assumissem suas
responsabilidades.
A década de 90 foi marcada pela atuação institucional, nos níveis federal, estadual e
municipal, de milhares de profissionais de Saúde Mental que adotaram o ideário da Reforma
Psiquiátrica. Os profissionais, usuários e familiares, nos estados e municípios, fizeram surgir e
se firmar os Programas de Saúde Mental. Os concursos públicos, aos poucos, passaram a
inserir temas da Reforma Psiquiátrica, tendo, com isso, começado a afetar a formação,
divulgado os conceitos e levado, para a prática, profissionais ao menos informados a respeito
do que se pretende de avanço na área. A criatividade nos serviços tem produzido
diversificação e multiplicação das ações em Saúde Mental.
Uma mostra da atração que tem exercido a Reforma Psiquiátrica é a importante
produção acadêmica sobre o tema, não só de textos sobre a Reforma em si, mas muitos
abordando a clínica, a política e uma grande diversidade de aspectos singulares. Por outro
lado, a tendência à repetição do modelo que se quer substituir está sempre presente, com
alguns serviços burocratizando-se e perdendo a potencialidade transformadora.
A Reforma Psiquiátrica começou como um movimento e pretende continuar a sê-lo.
Quando fazemos um apanhado histórico, como aqui, vemos que a evolução dos
acontecimentos é favorável. Mas, no dia a dia, as tentativas de mudança esbarram com
problemas que tornam lentas as modificações. Os entraves são de diversas ordens: falta de
politização e de capacitação de profissionais, com adesão consciente ou não ao modelo
manicomial; choque com interesses políticos locais; inércia administrativo-burocrática; baixa
capacitação dos novos gestores; falta de compreensão das administrações para a questão da
Saúde Mental; dificuldades nas políticas públicas necessariamente parceiras da Saúde Mental
e, talvez, principalmente, os problemas ligados ao financiamento do Sistema Único de Saúde.
No plano da legislação, durante a década de 90, alguns estados editaram suas leis da
Reforma Psiquiátrica, adiantando-se à legislação nacional, em lenta tramitação. No Ministério
da Saúde, as portarias contemplaram a eterna e difícil tarefa de regulamentar e fiscalizar os
59

Hospitais Psiquiátricos, a assistência farmacêutica, o financiamento do Serviço Residencial


Terapêutico, este último já no ano 2000.
Em abril de 1999, Pedro Gabriel Delgado assumiu a Assessoria de Saúde Mental da
Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, junto com uma Equipe que, ao
lado dos Coordenadores Municipais de Saúde Mental, deram um impulso até então inédito na
organização da Assistência à Saúde Mental no estado. O diagnóstico da situação encontrada,
as prioridades e o início das ações da nova Assessoria estão no trabalho “A política de saúde
mental do estado do Rio de Janeiro: uma descrição preliminar”, de Pedro Gabriel Godinho
Delgado e Maria Paula Cerqueira Gomes. (Cf. DELGADO & GOMES, 2000).
Definindo a Política Estadual de Saúde Mental como de “[...] reorientação do modelo
assistencial hospitalocêntrico, criando uma rede de serviços de pequena e média
complexidade para atendimento psicossocial com base territorial” (DELGADO & GOMES,
2000, p. 18), o trabalho citado acima lista os

[...] dispositivos estratégicos para a Reforma Psiquiátrica [...] Serviços de


Atenção Diária (Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, Núcleos de
Atenção Psicossocial – NAPS, Hospital-Dia, HD), Unidades Psiquiátricas
em Hospital Geral (UPHG), ambulatórios, serviços residenciais terapêuticos,
trabalho protegido, programas de lazer, ações de apoio social e promoção de
direitos (DELGADO & GOMES, 2000, p. 18).

Chama a atenção a falta, nessa lista, das ações de Saúde Mental na Atenção Básica,
que, na época, já contava com alguns trabalhos em andamento no país.
Num gráfico a respeito da “Saúde Mental no Território”, na página 22 do trabalho
citado de Pedro Gabriel e Paula Cerqueira, aparece, aí sim, a “Rede Básica de Saúde – PSF”,
entre os dispositivos citados acima. O gráfico tem o “Serviço-Dia” como centro. (Cf.
DELGADO & GOMES, 2000). Desta forma, as ações de Saúde Mental na Atenção Básica
são listadas como possibilidade, mas sem prioridade estratégica. Prioridade é decisão política,
com os objetivos podendo ser alcançados através de diversos caminhos. A eleição dos CAPS
como prioridade é válida mas, se outros caminhos não são apontados com firmeza, traz um
problema: a necessidade de convencimento dos gestores municipais de que devem investir em
uma casa, material para colocá-la em funcionamento, pessoal, antes que a remuneração
comece. Temos visto municípios esperando o CAPS, como se só com a sua colocação em
funcionamento, teria início um bom trabalho em Saúde Mental. Quanto ao trabalho com a
Atenção Básica, não há necessidade de construção, aluguel, instalação. Além da Equipe de
60

Saúde Mental, a base de que precisamos para o trabalho já está alocada: a equipe do Programa
de Saúde da Família e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde.
Como ações estratégicas de trabalho, a Assessoria implantou o Colegiado de
Coordenadores Municipais de Saúde Mental, que se reúne mensalmente para troca de
informações e discussão geral. Foi também tomada a decisão, pela Secretaria de Estado de
Saúde e pela Comissão Intergestores Bipartite, de reorientação dos recursos das AIHs para o
sistema ambulatorial. (CIB 54). Como linhas de ação, foram eleitas: Padronização de
informações, Implantação dos CAPS, Programa de Educação Continuada para atendimento
psicossocial, Política de Medicamentos, Implantação dos Serviços Residenciais Terapêuticos,
Programa de Saúde Mental para crianças a adolescentes, Política intersetorial para
atendimento do usuário de drogas, Programa de atenção à população em situação de rua. (Cf.
DELGADO & GOMES, 2000, p. 19).
O diagnóstico da situação encontrada, relatada no trabalho que está sendo citado,
constatou que “[...] a assistência psiquiátrica pública no Estado do Rio de Janeiro ainda tem
como característica a hegemonia do dispositivo hospitalar e das longas internações”
(DELGADO & GOMES, 2000, p. 20). Constatou-se a falta de acompanhamento dos egressos
de internações e falhas na rede ambulatorial e na atenção diária. Naquele momento existiam
25 CAPS no estado, sendo 15 na Região Metropolitana e 10 no Interior. O trabalho coloca o
CAPS, como “[...] dispositivo estratégico, capaz de funcionar como centro articulador, em
uma lógica de rede, das instâncias de cuidados básicos em saúde [...]” (DELGADO &
GOMES, 2000, p. 21), o que é visto graficamente com a presença desse dispositivo no centro
dos recursos da rede de atenção psicossocial. O problema dessa definição do CAPS como
pólo articulador, repetimos, está em que ele só pode exercer tal função caso exista. O CAPS é
realmente estratégico, mas também o é prescindir dele, enquanto não se torna realidade,
praticando, então, as ações de atenção diária onde e como for possível.

Em maio de 2000, o Conselho Federal de Psicologia organizou, em Brasília, o Fórum


Nacional “Como Anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira? Avaliação, Perspectivas e
Prioridades”. (Cf. VÁRIOS AUTORES, 2000). Reunindo uma significativa representação de
profissionais ligados desde o início à Reforma Psiquiátrica, novos militantes, familiares e
usuários dos serviços, representou um balanço importante e um momento para rearticulações.
Um consenso entre os participantes do Fórum foi o de que a Reforma Psiquiátrica
passava por um período de dificuldades quanto à velocidade das ações. Foi assinalado que
“[...] há praticamente três anos, não conseguimos descer do patamar dos sessenta mil leitos
61

psiquiátricos no Brasil” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 15). Como fatores que impedem um
ritmo maior de queda dos leitos psiquiátricos, destacou-se a ação do “sindicato de
empresários”, organizados na Federação Brasileira de Hospitais e as “[...] forças corporativas
e profissionais reativas e reacionárias a um projeto de horizontalização das relações entre os
assistidos e os que assistem” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 15).
O Fórum estava sob o impacto da edição da Portaria 106, de 11/2/2000, que instituía o
Serviço Residencial Terapêutico. As críticas eram a respeito da não inclusão de pessoas que
têm família, mas são abandonados por elas, e pela demora da regulamentação da Portaria, que
só viria em 7/11/2000. (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 94). As respostas a
essas críticas mostravam que cabe aos Municípios partir para as ações práticas em Saúde
Mental, sem esperar pelo Ministério da Saúde.
Alfredo Schechtman, do Ministério da Saúde, após assinalar a fertilidade da primeira
metade da década de 90, quando a área de Saúde Mental do Ministério da Saúde era
coordenada por Domingos Sávio, lembra, dentre outras análises, que já existe em andamento
proposta de introdução da Saúde Mental no Programa de Saúde da Família e no Programa de
Agentes Comunitários de Saúde, por parte do Ministério.
David Capistrano Filho define a base da ação política em Saúde, citando a sua
experiência: “solidez dos apoios” [...] e “[...] amplitude das alianças [...]” (VÁRIOS
AUTORES, 2000, p. 23), sem que com isso deixe de ter claro que é necessário o conflito:
“Quando falo de falta de audácia de certos gestores progressistas é porque eles, na minha
opinião, evitam o conflito. Querem, a todo custo, ser algodão entre cristais. Não podem. Tem
que haver conflito” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 27).
Segundo David, há “dois grandes inimigos” da Reforma Psiquiátrica: “[...] o sindicato
dos donos de hospitais [...]” e “[...] um pensamento acadêmico, biologicista, reducionista [...]”
(VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 24). Mas, aponta “[...] problemas do nosso lado” [...] “uma
incompreensão ou uma idéia de não entender a reforma psiquiátrica como uma parte da
reforma sanitária” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 24). David também sugere que os
profissionais de Saúde Mental tenham menos timidez em abrir a discussão com a sociedade e
diz:

[...] quando mergulhamos a reforma psiquiátrica no caldo da reforma


sanitária, temos que pensar a mudança de estratégia e de modelo assistencial
que é o chamado Programa de Saúde da Família. Hoje em dia há mais de sete
mil equipes de saúde da família no país. Essas sete mil equipes se
responsabilizam por cerca de sete milhões de famílias, ou seja, mais ou
menos trinta milhões de pessoas no país. Isso está avançando aceleradamente
62

e chegando às regiões metropolitanas. Temos que introduzir os elementos de


construção dos sistemas alternativos nos Programas de Saúde da Família
(VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 26).

Diversos participantes mostraram a necessidade de maior participação dos militantes


da Reforma Psiquiátrica nos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde e na fiscalização dos
hospitais psiquiátricos.
O Deputado Paulo Delgado diz que a Reforma Psiquiátrica não parou, apenas está
mais lenta, e que levaria a reivindicação de maior ação ao então Ministro da Saúde José Serra.
(Cf. VÁRIOS AUTORES, 2000).
Pedro Gabriel Delgado, naquele momento, ainda Assessor de Saúde Mental da
Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, antes de coordenar a Saúde
Mental do Ministério da Saúde, reconheceu que “[...] o movimento da reforma psiquiátrica no
Brasil vive um período de estagnação [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 37), com “[...]
avanços localizados em alguns lugares, retrocessos extraordinários em lugares que haviam
avançado e existe uma desarticulação muito grande”. (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 37).
Pedro Gabriel informa que, no Estado do Rio de Janeiro, foi aprovada pela Comissão
Integestores Bipartite uma resolução que redireciona recursos das Interações Psiquiátricas
para a rede extra-hospitalar. Trata-se da Deliberação CIB-RJ N. º 54, de 14/03/2000, que
resolve:

Determinar que os recursos financeiros correspondentes à AIH tipo 5, dos


pacientes que tiverem alta para encaminhamento aos Serviços Residenciais
definidos nos termos da Portaria MS/GM nº 106, de 11 de fevereiro de
2000, sejam integralmente utilizados nos Serviços Residenciais
Terapêuticos do município onde se localize o Hospital Psiquiátrico em que
o paciente está internado, ou nos municípios de domicílio original do
paciente de longa permanência. [...] Aprovar a utilização dos recursos dos
tetos financeiros de Internação em Hospital Psiquiátrico para custear a
implantação e funcionamento de Centros de Atenção Psicossocial e Oficinas
Terapêuticas, definidos pela Portaria MS nº 224, de 29 de janeiro de 1992,
segundo os limites financeiros e o cronograma de implantação e
funcionamento discriminados no ANEXO II (Serviços Psiquiátricos Extra-
hospitalares de Implantação e/ou Consolidação Prioritárias, até dezembro de
2000), e no ANEXO III (Serviços Integrantes da Rede Pública de
Atendimento Psicossocial do Estado do Rio de Janeiro, a serem implantados
até dezembro de 2001, por município e por custo) (COMISSÃO
INTERGESTORES BIPARTITE, 2000).

A deliberação citada inaugura, na prática, o redirecionamento do dinheiro gasto com


internações psiquiátricas para a rede de atenção psicossocial, além de fechar os leitos que se
comprovarem ociosos.
63

Pedro Gabriel adverte que, para que se intitular um dispositivo substitutivo às


internações psiquiátricas, um serviço ou ação de Saúde Mental deve proporcionar atenção
diária, com base no território:

Tem que ser um serviço de atenção diária ancorado no território. Acho que
essa é uma questão teórica que temos que enfrentar. Através desse serviço de
atenção diária, são articuladas propostas interessantes – é fundamental que
entrem na agenda do movimento – relativas ao PSF – Programa de Saúde da
Família (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 39).

Pedro Gabriel conclui sua fala dizendo que “[...] a relativa paralisia da reforma deve-
se, também, a uma forma que me parece pouco eficaz do movimento social que sustenta a
reforma [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 39) e que “[...] talvez nós tenhamos que modificar
a nossa estratégia de lidar com o Estado” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 40).
Muitos participantes se manifestaram para afirmar a necessidade de estados e,
principalmente, os municípios, assumirem as suas responsabilidades com as ações da Reforma
Psiquiátrica. (Cf. VÁRIOS AUTORES).
Outras intervenções apontaram para o trabalho na Atenção Básica, como a de
Fernando da Cunha Ramos, que disse da “[...] importância de se utilizar, entre outras coisas,
recursos previstos e disponíveis no SUS, como os Programas de Saúde da Família e de
Agentes Comunitários de Saúde” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 45) e a de Gisele Bahia, que
opina que

Se consideramos que, hoje, o Ministério da Saúde propõe a saúde da família


como um eixo estruturante para a reformulação do modelo e que na
proposta da saúde da família todos os moradores de uma região são
cadastrados, visitados e acompanhados, e essas equipes se responsabilizam
por esse território, parece-me que a integração de saúde mental com o
projeto de saúde da família pode nos ajudar a conhecer a clientela, a impedir
novas internações, a tratar dessas pessoas e, mais do que isso, a evitar o
abandono do tratamento (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 53).

Isabel Cristina Lopes, da Associação SOS Saúde Mental, mandou um texto onde
informa que essa Associação promove a “[...] formação popular de agentes comunitários de
saúde mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p 68) e no qual afirma que “[...] a unidade básica
de saúde, como preconizada pela VIII Conferência Nacional de Saúde, carece ser recuperada
como espaço privilegiado para se fazer saúde mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 67).
Fernanda Nicácio toca num aspecto básico, que é o financiamento das ações em Saúde
Mental. Citando a máxima de Benedetto Saraceno, “o dinheiro segue o paciente”, pergunta:
64

“[...] como podemos, efetivamente, enfrentar a questão de como uma parte dos recursos
destinados à AIH, hoje, passe para a mão dos usuários?” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 77).
Uma das críticas que se faz às Reformas na Saúde adverte que o principal, para elas, é
fazer economia dos custos do setor. De fato, o que foi feito do dinheiro que pagava
mensalmente, há anos, os trinta mil leitos que foram fechados? Se, antes, não estávamos
atentos para isso, agora não é mais possível perder essa fonte de financiamento.
O Deputado Marcos Rolim anuncia que, de 15 a 25 do mês seguinte ao Fórum,
portanto quinze dias depois deste, estará sendo realizada a Primeira Caravana de Direitos
Humanos, com ida aos Hospitais Psiquiátricos com mais denúncias, em oito estados. A
Caravana pretende “[...] que haja retomada do debate público a respeito das condições de
privação de liberdade no Brasil, na área psiquiátrica [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 81).
O Deputado defende a idéia de “[...] abrir denúncias e acusações por tortura mental em alguns
manicômios e instituições psiquiátricas para se abrir uma nova disputa, que é processar
criminalmente os que submetem outros a sofrimento mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p.
81).
A Primeira Caravana Nacional dos Direitos Humanos foi composta por Deputados
Federais, que, nos estados, nas visitas, se faziam acompanhar, de acordo com a ocasião, por
representantes de Conselhos e Sindicatos das categorias profissionais da área de saúde,
membros dos Conselhos Municipais de Saúde, Associações de usuários, Fóruns regionais de
Saúde Mental, Deputados Estaduais, Vereadores, representantes do Movimento da Luta
Antimanicomial, representantes da OAB, usuários do sistema, profissionais de Saúde Mental,
Promotores de Justiça, Coordenadores Municipais de Saúde Mental, ONGs. (Cf. PRIMEIRA
CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS).
Iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a Caravana
teve como resultado apresentar uma amostra do que ainda acontece nos hospitais psiquiátricos
no país, criar o fato político e apresentar recomendações ao Ministério da Saúde. Foram
encontrados casos de clínicas que realizam psicocirurgia regularmente, uso generalizado de
eletrochoque, um número grande de pacientes cronificados, contenção mecânica fora das
recomendações técnicas, falta de Programa de Saúde Mental estadual e de rede de atenção
psicossocial, superlotação, abandono, relatos de violência, celas fortes, banho coletivo,
depositação de pacientes neurológicos.
A visita à Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, Estado do Rio de Janeiro, detectou
o seguinte quadro de tempo de internação: “até cinco meses - 203 pacientes, de 06 a 1 ano -
83 pacientes, de 01 a 05 anos - 474 pacientes, de 05 a 10 anos - 257 pacientes, mais de 10
65

anos - 485 pacientes” (PRIMEIRA CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS).


Este é o retrato dos resultados da psiquiatria organicista e do modelo manicomial. A Casa de
Saúde Dr. Eiras de Paracambi, hoje, está descredenciada do SUS, com seus pacientes sendo
encaminhados aos municípios pelo trabalho feito pela Assessoria de Saúde Mental do Estado
do Rio de Janeiro.
Nas recomendações ao Ministério da Saúde, a Caravana propõe, dentre outras
medidas, que seja acelerada a dinâmica da Reforma Psiquiátrica, com investimento da rede
substitutiva à internação, que seja convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental,
que seja restringido o uso do eletrochoque e abolida a psicocirurgia, que alguns hospitais
sejam descredenciados, que seja enfrentada a situação dos manicômios judiciários, que 50%
do valor que é pago nas Autorizações de Internação Hospitalar seja repassado aos pacientes e
famílias quando da alta. (Cf. PRIMEIRA CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS
HUMANOS).
O ano de 2001 trouxe avanços políticos significativos para a Reforma Psiquiátrica
Brasileira e também na cena mundial da Saúde Mental. A Organização Mundial da Saúde
decidiu chamar a atenção para as condições de Saúde Mental e sua assistência durante o ano
2001: ao mesmo tempo em que lançava o lema “Não à exclusão, sim aos cuidados”,
determinou que o Dia Mundial da Saúde, naquele ano, seria dedicado à Saúde Mental. A
OMS levou à sua Assembléia Mundial da Saúde, em maio de 2001, o problema da Saúde
Mental, sob o ângulo “[...] da pobreza, da discriminação, dos problemas específicos de cada
sexo e dos direitos humanos” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001). Nesse
momento, quem está na direção do Programa de Saúde Mental da OMS é Benedetto
Saraceno, que diz: “Nós sabemos o que não vai bem e temos as soluções. É nossa
responsabilidade insistir pelas mudanças de política e de atitude. É o nosso objetivo e o
atingiremos nos próximos anos” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001).
Fato político marcante, em 2001, foi a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção,
pelo Presidente da República, da lei 10.216, a chamada “Lei Paulo Delgado”. Mostrando a
importância da pressão internacional, a Lei foi sancionada pelo Presidente em 6 de abril, um
dia antes do Dia Mundial da Saúde da OMS, dedicado à Saúde Mental. A lei, na sua
definição, “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002, p. 15). Como bem assinala o “Comentário” do Ministério da Saúde, a respeito
da Lei, esta “[...] reflete o consenso possível sobre uma lei nacional para a reforma
psiquiátrica no Brasil” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 18). Este consenso foi
66

conseguido após 12 anos de tramitação do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, de


Minas Gerais. Ao longo desse percurso, o projeto passou por mudanças e, se reflete o
momento em que vivemos, mostra que avançamos muito e que precisamos avançar mais,
muito mais.
A Lei 10.216 define uma série de diretos das pessoas portadoras de transtorno mental,
dentre eles o de “[...] ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde
mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 15). Como, no artigo 4, a Lei indica
que “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002,
p. 16), depreende-se que o Poder Público está instado a dotar o SUS de meios para que a Lei
se cumpra: as pessoas têm o direito de terem tratamento em serviços comunitários e não em
internações psiquiátricas. Um avanço seria essa interpretação ser colocada de modo
absolutamente explícito.
A Lei 10.216 proíbe a internação em lugares de características asilares, determina que
deve ser desenvolvido programa de alta e reabilitação psicossocial para as pessoas há longo
tempo internadas, define e diferencia internações voluntárias, involuntárias e compulsórias.
Para as internações involuntárias, a Lei exige que, no prazo de setenta e duas horas, a mesma
seja comunicada ao Ministério Público Estadual, bem como as altas. (Cf. BRASIL,
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
A III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, de 11 a 15 de
dezembro de 2001, aconteceu após intensa mobilização, que fez realizar 163 Conferências
Municipais, 173 Micro-regionais e Regionais, em todos os 27 estados da federação, com cerca
de 30 mil pessoas envolvidas. (Cf. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 15).
O material de divulgação da III Conferência Nacional de Saúde Mental traz um
pequeno texto definidor cuja primeira parte, “Cuidar, sim, excluir, não”, é o lema da
Organização Mundial da Saúde para o ano 2001. Na segunda parte, o texto resume os
propósitos atuais da Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde: “Efetivando a Reforma
Psiquiátrica com acesso, qualidade, humanização e controle social”. Com essa orientação, os
sub-temas da Conferência foram: financiamento, recursos humanos, controle social e
acessibilidade, direitos e cidadania.
A Conferência teve, como tema de um de seus Painéis, “Saúde Mental na Atenção
Básica”, revelando a maior importância que o assunto estava adquirindo.
No “Caderno de Textos” da Conferência (Cf. BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001 b.), a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica é citada em várias passagens e num
67

item específico, com relatos de trabalhos em andamento. No capítulo III faremos referência a
esses textos.
Percorreremos, no Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, os
“Princípios e Diretrizes” de cada subtema e citaremos os itens aprovados que têm relação com
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica.
Sob o título de “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental”, a
Conferência reafirma os princípios do SUS e recomenda que “[...] as políticas de saúde
mental devem ter como pressupostos básicos a inclusão social e a habilitação da sociedade
para conviver com a diferença” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 23). Para isso,
indica que “[...] os municípios desenvolvam [...] políticas de saúde mental mediante a
implementação de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, territorializados
e integrados à rede de saúde [...]” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 24). Assinale-se
com ênfase, que na “Apresentação” do Relatório Final, está colocado que a Conferência
elaborou “[...] propostas e estratégias para efetivar e consolidar um modelo de atenção em
saúde mental totalmente substitutivo ao manicomial” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002,
p. 19). Esta é uma definição que não deixa margem a dúvidas: estamos no caminho, agora
fazendo parte do discurso oficial, da extinção dos hospitais psiquiátricos. Mas, como vimos
em Foucault, os poderes têm artes sutis com efeitos violentos. Entendemos, assim, que não
basta acabar com a organização hospital psiquiátrico, mas também com a internação e a
exclusão em todas as suas formas. Estamos no ambiente da cultura e do imaginário social,
campos importantes de enfrentamento da questão. A definição oficial mostra o avanço que foi
obtido e uma posição definida.
A III Conferência Nacional de Saúde Mental progride significativamente, em relação à
II, quanto ao conteúdo das propostas que focalizam a Atenção Básica.
Dos itens aprovados no título “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde
Mental” que tratam da Atenção Básica temos os que citaremos a seguir. Os números referem-
se à seqüência em que aparecem no Relatório Final.

12- Exigir que o Ministério da Saúde, governos estaduais e municipais


incluam a saúde mental na NOAS como prioridade na atenção básica [...]
27- Garantir espaços de promoção de saúde mental, estimulando a criação de
grupos de convivência e oficinas terapêuticas na comunidade...
84- Articular as ações de assistência, promoção, prevenção e reabilitação
psicossocial mediante o desenvolvimento da atenção básica associada ao
Programa de Saúde da Família, implementando uma rede de serviços
territoriais de saúde mental, [...]
68

89- Desenvolver a prática de cuidado domiciliar, em substituição ao cuidado


hospitalar, como estratégia de enfrentamento das situações de crise dos
portadores de sofrimento psíquico e seus familiares.
126- Estabelecer como porta de entrada da rede de saúde mental as Unidades
Básicas de Saúde, preferencialmente por meio da estratégia do Programa de
Saúde da Família (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48).

Ainda dentro do título “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental”,


mostrando a importância que a Atenção Básica assumiu na III Conferência, há um item
específico para ela. O texto introdutório desse item, “Atenção Básica”, reafirma as
recomendações da Oitava Conferência Nacional de Saúde “[...] que indica a responsabilidade
da unidade básica por 80% das necessidades de saúde da população, incluindo atenção em
saúde mental” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48). Dentro dessa ótica, para atender
ao Princípio da Integralidade, “[...] é necessário incluir a atenção aos portadores de sofrimento
psíquico nas ações básicas de saúde e, também, incorporar as ações de saúde mental no
Programa de Saúde da Família” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48).
Podemos destacar os seguintes itens aprovados:

128- Defender a inclusão das ações de saúde mental no nível básico da


atenção à saúde, no elenco de Ações e Programas exigidos pela NOAS/2001,
para que os municípios sejam habilitados ao nível de gestão PAB Ampliado,
de modo que sejam cumpridas as metas da OMS, quando, em sua recente
Assembléia Mundial, em maio de 2001, deliberou pela ampliação dos
cuidados em saúde mental na Atenção Básica à Saúde.
132- Introduzir o atendimento domiciliar na Rede de Assistência Básica.
134- Incluir, nas agendas municipais de saúde, a atenção à saúde mental,
definindo elementos para compor o pacto de criação de indicadores da
atenção básica.
135- Garantir maior resolubilidade e capacidade da Rede Básica de Atenção,
com capacitação em saúde mental das equipes mínimas do PSF, garantindo a
integralidade da atenção, dimensionando equipes especializadas de referência
(para atendimento e assessoria) que podem ser específicas, ou aquelas dos
serviços de saúde mental especializados já existentes.
136- Garantir a incorporação das ações de saúde mental no Programa de
Saúde da Família, mediante oferta de ações mais locais por parte dos
profissionais de Saúde da Família, tais como: visita domiciliar,
potencialização de recursos comunitários, atendimentos em grupo e
individuais, em articulação com os profissionais de saúde mental.
137- Garantir que cada município conte com atendimento e integração da
assistência à saúde mental na rede básica (PACS/PSF/Centros de Saúde
comunitários).
138- As equipes multiprofissionais de saúde mental que trabalham junto ao
PSF atenderão prioritariamente aos casos graves e observarão a seguinte
proporção para sua constituição: um profissional de saúde mental para cada
duas equipes de Saúde da Família.
139- Promover a prevenção em saúde mental por meio da oferta de
atividades para este fim (por exemplo: esportes comunitários, grupos de
69

mães, oficinas de arte e de ofícios, grupos de apoio, lazer e outros),


desenvolvidas preferencialmente por recursos comunitários, Saúde, PACS,
PSF e comunidade.
140- Criar equipes volantes de saúde mental, capacitadas nos princípios da
Reforma Psiquiátrica, que funcionem como referência às equipes do PSF e
das Unidades Básicas de Saúde, de acordo com a necessidade
epidemiológica de cada localidade ou para cada grupo de cinco equipes.
141- Garantir supervisão continuada no desenvolvimento do trabalho
conjunto das equipes PACS/ PSF e Saúde Mental e, também, avaliar as ações
de saúde mental executadas pelas equipes de Saúde da Família visto que o
Programa é recente.
142- Implantar serviços de atendimento/internação domiciliar em saúde
mental realizados por equipes itinerantes ou equipes do PACS/PSF.
143. Criar a ficha “B” de Saúde Mental no Sistema de Informação da
Atenção Básica – SIAB, como forma de coletar dados para acompanhar,
monitorar e avaliar os usuários portadores de transtornos mentais atendidos
pela Equipe de Saúde da Família. E o grupo “Atenção à Saúde Mental” do
sistema de informações ambulatoriais do SUS na designação “atendimento a
grupos específicos” da tabela de procedimentos (SISTEMA ÚNICO DE
SAÚDE, 2002, p. 51).

Os itens aprovados e citados acima revelam que diversos participantes da III


Conferência compareceram com o propósito de apresentar as ações de Saúde Mental na
Atenção Básica em andamento, colocar suas sugestões em discussão e aprová-las como
orientações para o âmbito nacional. Os itens mostram a diversidade de modos de compreender
a Saúde Mental na Atenção Básica e a fertilidade do momento. O conteúdo das propostas será
comentado adiante, quando tratarmos da "Oficina de Inclusão de Ações de Saúde Mental no
Programa Saúde da Família”, que aconteceu em Brasília, em março de 2001, que discutiu,
com detalhes, muitos pontos que apareceram como proposições na III Conferência.
No título “Recursos Humanos”, a III Conferência determina a qualificação continuada,
a remuneração justa, a garantia de condições de trabalho, a “[...] democratização das relações
e das discussões em todos os níveis de gestão, contemplando os momentos de planejamento,
implantação e avaliação” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 67). As orientações no
sentido de rompimento com os “especialismos” são explícitas, para a “[...] construção de um
novo trabalhador em saúde mental” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 68).
Importante definição é a que se segue, que tem incidência direta nas ações da Atenção
Básica:

[...] a política de recursos humanos deve estimular a dissolução do


“manicômio mental” implícito no saber científico convencional, que
discrimina o saber popular, por meio da maior valorização da experiência de
familiares e usuários, garantindo desta forma a integração e o diálogo com os
saberes populares (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 68).
70

Dentro do título “Recursos Humanos” há uma subdivisão que trata da “Capacitação em


saúde mental para a rede básica de saúde (PACS e PSF)” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE,
2002, p. 76).
Foram aprovados os itens:

239. Integração do programa municipal de saúde mental com o PACS/PCF,


garantindo o papel da equipe multidisciplinar de saúde mental na condição
de assessoria, capacitação, consultoria, atendimento e supervisão das equipes
dos referidos programas. Quando não houver competência das equipes do
PACS/PCF, os casos deverão ser referenciados para serviços mais
complexos.
240. Normatizar e realizar programas de capacitação em saúde mental para
todas as equipes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e
do Programa de Saúde da Família (PSF), em parceria das universidades com
os órgãos do SUS, de forma a garantir o desenvolvimento de uma prática de
saúde com integralidade e a incorporação destas equipes à rede de saúde
mental. Esta capacitação deverá contemplar tanto aspectos técnicos (relativos
à promoção da saúde, assistência e reabilitação social), e relativos à
humanização das práticas, quanto aqueles relacionados à mudança de
concepção da comunidade acerca do sofrimento psíquico.
241. Capacitar os médicos generalistas que atuam na atenção básica, por
meio de protocolos assistenciais, para o uso de medicamentos essenciais nas
patologias de maior prevalência (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, pp
76 e 77).

O título “Financiamento” reafirma um princípio que, nos próximos anos e décadas


deveremos ter como básico e orientador para a luta diária:

A lógica fundamental da estrutura de financiamento exigida é de que os


recursos financeiros devem acompanhar o usuário nos diferentes espaços de
reprodução social e ser viabilizadores de processos emancipatórios. Assim,
os recursos devem ser centrados nas pessoas e não nos serviços (SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 85. Grifo do autor).

Também foi enfatizada a necessidade de reorientar os recursos das AIHs para a rede
de atenção psicossocial. A Saúde Mental na Atenção Básica surge como um dos alvos do
redirecionamento financeiro.
O subtítulo “Financiamento das ações de saúde mental na Atenção Básica” tem o
seguinte preâmbulo:

Uma política de saúde mental baseada no princípio da integralidade requer a


garantia de financiamento para as ações básicas de saúde mental
desenvolvidas em Unidades Básicas de Saúde (UBS), Programa de Saúde de
71

Família (PSF) e Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), com


garantia de contratação de recursos humanos, com financiamento pelo Piso
de Atenção Básica (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, pp 85 e 86).

Foram aprovados, nesse subtítulo, os seguintes itens:

325. Financiar ações de saúde mental desenvolvidas em unidades básicas de


saúde, PSF, PACS e viabilizar recursos financeiros para a contratação de
profissionais de saúde mental.
326. Garantir o financiamento de ações substitutivas no campo da Saúde
Mental, com especial ênfase às ações no âmbito da atenção básica, incluídas
e incentivadas no PAB, tanto na parte fixa como na variável.
327. Incluir a atenção básica em saúde mental como ação prioritária e
critério para cadastramento dos municípios no PAB ampliado, com garantia
de financiamento pelo Ministério da Saúde.
328. Exigir que o Ministério da Saúde crie incentivo mensal para equipes do
Programa de Saúde da Família - como acontece na saúde bucal do PSF -
para os municípios que desenvolvem programas de saúde mental. Esse
repasse será realizado sem prejuízo dos outros recursos federais destinados à
saúde mental.
329. Reajustar a tabela PAB (Piso de Atenção Básica), revendo os valores
defasados destinados para os municípios (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE,
2002, p. 95).

No subtítulo “Implementação e regulamentação do financiamento de novas iniciativas,


ações e procedimentos em saúde mental”, está dito que:

O aprofundamento da Reforma Psiquiátrica requer a implementação de novos


mecanismos para viabilizar o financiamento de ações inovadoras visando à
ampliação do campo de possibilidades das práticas desenvolvidas pela rede
de serviços substitutivos. Tais proposições incluem a ampliação das
modalidades de serviços residenciais, a implementação de novas modalidades
de assistência domiciliar, o desenvolvimento de formas de apoio financeiro
aos usuários, familiares e cuidadores e o financiamento de programas de
geração de renda e cooperativas de trabalho (SISTEMA ÚNICO DE
SAÚDE, 2002, p. 97).

Dentro deste princípio, foi aprovada, com algumas modificações, a proposta que
levamos, representando o Estado do Rio de Janeiro, que determina:

335. Criar dispositivo de financiamento destinado às ações de atendimento


e/ou acompanhamento e/ou internação domiciliar/comunitária aos usuários
de todos os programas da rede de atenção em saúde mental, que inclua
aquisição e manutenção de veículo utilizado para a realização das visitas
e/ou transporte de usuários (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 97).
72

Destina-se, essa proposição, a incrementar a abertura de possibilidades de prestar


atendimento às crises, atualmente ainda denominadas de modo reducionista de “emergências
psiquiátricas”, totalmente com recursos comunitários e familiares, articulados à rede de
atenção psicossocial com ênfase nas ações de Saúde Mental na Atenção Básica.
Ainda no mesmo subtítulo, destacam-se os itens:

339. Que os governos federal, estadual e municipal desenvolvam iniciativas


visando destinar recursos financeiros ao cuidador (familiar ou membro da
comunidade) responsável pela desospitalização de usuário morador em
hospital psiquiátrico e responsabilizem o serviço de saúde mental de
referência pelo acompanhamento contínuo desse processo.
340. Garantir que as instâncias federal, estadual e municipal aprovem e
destinem recursos para a criação de bolsa incentivo aos programas de
desinstitucionalização às famílias ou diretamente aos usuários, para
promover a reinserção familiar ou a autonomia da pessoa nos serviços
residenciais, sob responsabilidade e acompanhamento do serviço territorial
de referência e controle dos conselhos de saúde.
341. Garantir que uma porcentagem do valor das AIHs referentes aos
leitos psiquiátricos desativados seja destinada à criação de bolsa de
auxílio aos familiares ou aos usuários ex-moradores de hospitais
psiquiátricos (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 98).

O título “Acessibilidade” reafirma um dos princípios do SUS, de garantir eqüidade de


acesso a todos os serviços para as pessoas que dele necessitem. No “Caderno Informativo”,
lançado na III Conferência pelo Ministério da Saúde, cujo texto já circulava antes da
Conferência, o tema é desenvolvido. Afirma que é necessário ampliar a rede de CAPS e de
ambulatórios e:

[...] garantir a implantação de serviços comunitários de saúde mental


integrados aos programas de atenção básica e à rede geral de serviços,
utilizando-se das estratégias mais adequadas a cada região/território no
intuito de superar o modelo tradicional (CONFERÊNCIA NACIONAL DE
SAÚDE MENTAL, 2001, p 39).

O texto do “Relatório Final” refere-se à “Acessibilidade” também em termos de acesso


a bens e serviços da sociedade: “[...] trabalho, creches, profissionalização, educação, lazer,
escolas, moradia decente com um mínimo de privacidade, transporte, segurança pública,
saneamento básico” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 107). Trata, ainda, da garantia
de acesso às informações a respeito dos dados, finanças e portarias do SUS e acesso ao
prontuário, que deve ser garantido ao usuário. (Cf. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002).
O título “Direitos e Cidadania” abre com uma importante definição:
73

Foi ressaltada a priorização, no âmbito da assistência em saúde mental, de


políticas que fomentem a autonomia dos portadores de transtornos mentais,
incentivando deste modo o exercício de cidadania plena, no lugar de
iniciativas tutelares (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 121).

Aqui, são incentivadas as ações de geração de renda e de inclusão dos portadores de


transtornos mentais no mundo do trabalho, da educação, do lazer, da cultura. Exige-se a
imediata colocação em ação dos princípios dispostos na lei Paulo Delgado (Lei 10.216/01) e a
regulamentação das internações voluntárias e involuntárias, com o usuário podendo recorrer
judicialmente quanto às últimas.
No título “Controle Social”, a Conferência propõe:

[...] garantir a continuidade da política de substituição do modelo


hospitalocêntrico, independente das mudanças do poder executivo, através
de mecanismos de controle social já existentes (por exemplo, os Conselhos)
e outros que se façam necessários: as Comissões de Saúde Mental, as
Conferências, a organização da sociedade civil e dos movimentos sociais, o
espaço legislativo, etc. (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 141).

Importante definição é a que se segue, dentro do mesmo item, “Controle Social”:

A ação da sociedade civil e dos movimentos sociais é ressaltada, visando a


garantir que os programas municipais de saúde mental não sofram
descontinuidade por ocasião de mudanças de gestão administrativa e/ou
política. Deve-se propiciar a participação dos usuários, familiares e
trabalhadores de saúde mental na elaboração das políticas públicas de saúde
e no acompanhamento das ações de saúde mental. Propõe-se incentivar e
apoiar as ações dos núcleos estaduais da luta antimanicomial, na fiscalização
das práticas de saúde mental. Também neste sentido, urge criar estratégias
para viabilização de maior envolvimento dos diferentes atores sociais com as
questões de saúde mental: usuários, familiares, ONGs, sindicatos,
instituições religiosas, poder público, grandes e pequenos empresários, setor
informal, movimentos sociais e outros (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE,
2002, p. 142).

Nas “Moções” da Conferência, destaca-se a que repudia a utilização do eletrochoque:

Moção de repúdio à utilização da Eletroconvulsoterapia (ECT): Determinar a


abolição em definitivo do uso do eletrochoque no cuidado em Saúde Mental,
assim como exigir a retirada do Projeto de Lei (hoje em tramitação) que
regulamenta o seu uso (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 161).
74

Como uma advertência para o que temos pela frente em termos de financiamento, além
de ser uma cobrança, temos a “Moção de repúdio ao Governo Federal e ao Ministério da
Saúde”, que diz:

Repúdio às atitudes de falta de transparência do Governo Federal e do


Ministério da Saúde que não explicaram o destino dos recursos financeiros
que “desapareceram” com a extinção de mais de 30.000 leitos psiquiátricos
nos últimos anos, como conseqüência direta do Movimento da Reforma
Psiquiátrica. Que estes recursos retornem como investimento na Rede de
Serviços Substitutivos, resgatando a dívida social com as vítimas do modelo
manicomial (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 161).

Para uma avaliação da importância do que consta dessa Moção, em dinheiro e valores
de hoje, a retirada desses leitos economizam um total de 21 milhões de reais por mês, ou 252
milhões de reais por ano. Esse montante deixou de ser gasto pelo Ministério da Saúde por
obra dos profissionais de Saúde Mental, associados a usuários e familiares na luta diária da
Reforma Psiquiátrica e não foi reinvestido no sistema. Com os instrumentos de
redirecionamento hoje existentes tal distorção começa a ser corrigida, mas fica a dívida que a
Moção cobra.
A III Conferência Nacional de Saúde Mental tem grande importância por reafirmar os
princípios da Reforma Psiquiátrica, propondo avanços, e por ter proporcionado, em todo o
país, o debate sobre os rumos das transformações que queremos. No aspecto específico da
Saúde Mental na Atenção Básica, o tema surge com uma força que não existiu nas
Conferências anteriores e vimos o lançamento do “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.
Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, da Organização Mundial da Saúde, que
sugere que a Saúde Mental deve ser abordada preferencialmente na rede primária. Voltaremos
a essa publicação no Capítulo IV.
Depois da III Conferência, o Ministério da Saúde editou Portarias que redefinem
alguns procedimentos. A Portaria 251, de 31/01/2002, estabelece normas para a assistência
em hospitais psiquiátricos, estimulando a “[...] substituição progressiva dos macro-hospitais”
(BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 105). A Portaria 336, de 19/02/2002, atualiza
a Portaria 224, de 1992, definindo normas e diretrizes para os CAPS de adultos, infantil e para
o problema do álcool e outras drogas. A Portaria 336 também tem o mérito de criar “[...]
mecanismo de financiamento próprio, para além dos tetos financeiros municipais, para a rede
CAPS” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 120).
75

Domingos Sávio, em palestra, em novembro de 2003, no lançamento do “Fórum Inter-


Institucional da Rede de Atenção Psicossocial Extra-Hospitalar do Estado do Rio de Janeiro”,
representando o Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel
Godinho Delgado, dá como diagnóstico e diretrizes do Ministério da Saúde, a respeito da área
de Saúde Mental, os seguintes pontos:

-Grupo de transtornos de alta e crescente prevalência e baixa cobertura


assistencial.
-Modelo Assistencial em transição do hospitalar para o comunitário, ainda
refletindo as graves distorções do modelo asilar.
-Política pública necessariamente intersetorial, com interfaces fundamentais
com áreas de assistência social, direitos humanos, justiça, trabalho,
habitação, etc. (SÁVIO, 2003).

De modo bastante instrutivo, Domingos adverte para o fato de que a Reforma


Psiquiátrica, no momento, tem hegemonia da política e não hegemonia da assistência. Isso
significa que os principais postos de Poder na área de Saúde Mental e a organização e prática
da assistência estão a cargo do movimento pela transformação da área, mas que o modelo que
ainda vigora é o manicomial. Domingos lista as diretrizes do Ministério da Saúde para 2003 e
2004, na Saúde Mental:

-Redução progressiva dos leitos psiquiátricos (desinstitucionalização).


-Expansão dos CAPS.
-Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica.
-Implantação do Programa 'De volta pra casa'.
-Expansão das Residências Terapêuticas.
-Formação e qualificação de Recursos Humanos.
-Promoção de direitos dos usuários e familiares e incentivo à participação
no cuidado.
-Reorientação dos Manicômios Judiciários.
-Qualificação do atendimento hospitalar e ambulatorial. (SÁVIO, 2003).

Em 20 de janeiro de 2004, O Ministério da Saúde editou uma Portaria que define o


"Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004". A
Portaria 52, acrescida da Portaria 53, da mesma data, estabelece uma progressão no valor das
diárias pagas aos Hospitais Psiquiátricos que diminuírem a quantidade de leitos. Com a
Portaria, os Hospitais Psiquiátricos têm um incentivo para a redução das suas vagas e os
Estados e Municípios estão, mais ainda, desafiados a aumentar as suas capacidades de
ampliação da Rede de Atenção Psicossocial.
Deve ser destacado o “Anexo” da Portaria 52, que contém definições para o momento
em que vivemos. Dele consta que “O processo de mudança do modelo assistencial deve ser
76

conduzido de modo a garantir uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares
possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção
no modelo comunitário”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c.). Numa afirmação da política
de Saúde Mental do Ministério da Saúde, nos últimos anos, diz a Portaria 52:

Este Programa Anual - 2004 é parte integrante da política de saúde mental


do SUS, cujo objetivo é a consolidação do processo de reforma psiquiátrica.
Ele trata do componente hospitalar especializado, de sua reestruturação, das
mudanças de seu financiamento, do redirecionamento dos recursos
financeiros para atenção extra-hospitalar, da construção de planos
municipais, micro-regionais estaduais de desinstitucionalização e de
implantação de rede de atenção comunitária. O Programa articula-se com
outras áreas da reforma psiquiátrica, especialmente: atenção em saúde
mental no hospital geral, saúde mental na atenção básica, urgência e
emergência em saúde mental, consolidação da rede de CAPS I, II, III, i e
AD, programa De Volta para Casa, expansão das residências terapêuticas e
outros, que são objeto de normas e documentos específicos. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2004, c.).

Em 16 de setembro de 2004, o Ministério da Saúde editou uma Portaria que representa


uma mudança na forma de financiar ações de Saúde Mental (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2004, f). Pela Portaria, os CAPS passam a receber o incentivo financeiro, inicial, logo após o
Gestor Municipal se comprometer a colocá-lo em funcionamento em três meses. Antes, este
incentivo só era recebido após o longo processo de credenciamento. Agora, o Governo
Federal adianta-se e, desta forma, estimula, com dinheiro novo, a expansão da rede de
assistência extra-hospitalar, o que foi uma reivindicação da III Conferência Nacional de Saúde
Mental.
Escrever sobre a Reforma Psiquiátrica é um trabalho interessante em muitos aspectos,
dentre eles o fato de ser um processo vivo. Pretendemos que, com os avanços, o próprio termo
“Reforma Psiquiátrica” já mostre o seu caráter provisório, visto que não se trata apenas de
uma mudança na psiquiatria. E é preciso algo mais do que “Reforma”. Deixo o relato nesse
ponto, aguardando e provocando novos acontecimentos.
77

CAPÍTULO 4

OS PROGRAMAS DE ATENÇÃO BÁSICA NO BRASIL

Neste capítulo veremos algo a respeito das origens das orientações para o trabalho na
Atenção Básica, os Programas que surgiram no Brasil e algumas críticas às Reformas na área
de Saúde.
A Declaração de Alma-Ata, de 1978, resultado da “Conferência Internacional sobre
Cuidados Primários de Saúde”, teve por objetivo expressar a

[...] necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que


trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade
mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo [...]
(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

A Declaração de Alma-Ata tornou-se uma referência central para todos os que pensam
a saúde coletiva, e seus princípios estão presentes nos projetos de saúde que trabalham com o
coletivo.
Num de seus primeiros itens, a Declaração diz: “É direito e dever dos povos participar
individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde”
(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA). Trata-se de uma definição simples e de profunda
significação. Hoje existe uma tentativa de incorpora-la no modo de agir dos que planejam e
executam as ações de saúde, mas ainda foi alcançada a sua plena potência.
A Declaração dá total ênfase ao que chama de “cuidados primários em saúde” e muitos
dos seus principais itens são voltados para esse conceito, assinalando que esses cuidados
seriam a chave, para que a meta de saúde para todos no ano 2000 fosse atingida.
A Declaração define:

Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados


em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentados e
socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e
famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a
comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento,
no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto
do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco
principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da
comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da
78

família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os


cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares
onde as pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um
continuado processo de assistência à saúde (DECLARAÇÃO DE ALMA-
ATA).

Como poderemos ver, o que consta dessa citação estará presente nas práticas do
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da Família e
nas ações da Saúde Mental na Atenção Básica.
A Declaração trata de esmiuçar a definição e o alcance dos cuidados primários de
saúde. Num dos pontos, diz que os cuidados primários de saúde: “Têm em vista os principais
problemas de saúde da comunidade, proporcionando serviços de proteção, cura e reabilitação,
conforme as necessidades” (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).
Coerente com a visão ampla a respeito do que é saúde, a Declaração recomenda a
educação para a saúde, o controle do meio ambiente e da água, o saneamento básico. Aponta
para a política intersetorial, principalmente no aspecto de produção de alimentos, habitação,
educação e comunicação.
Uma definição preciosa para os propósitos da Saúde Mental nas comunidades diz que
os cuidados primários de saúde:

Requerem e promovem a máxima autoconfiança e participação comunitária


e individual no planejamento, organização, operação e controle dos
cuidados primários de saúde, fazendo o mais pleno uso possível de recursos
disponíveis, locais, nacionais e outros, e para esse fim desenvolvem, através
da educação apropriada, a capacidade de participação das comunidades
(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

Possui grande implicação para as práticas atuais um dos itens que define os cuidados
básicos em saúde:

Baseiam-se, nos níveis locais e de encaminhamento, nos que trabalham no


campo da saúde, inclusive médicos, enfermeiros, parteiras, auxiliares e
agentes comunitários, conforme seja aplicável, assim como em praticantes
tradicionais, conforme seja necessário, convenientemente treinados para
trabalhar, social e tecnicamente, ao lado da equipe de saúde e responder às
necessidades expressas de saúde da comunidade (DECLARAÇÃO DE
ALMA-ATA).

Concluindo, a Declaração “[...] concita à ação internacional e nacional urgente e


eficaz, para que os cuidados primários de saúde sejam desenvolvidos e aplicados em todo o
79

mundo e, particularmente, nos países em desenvolvimento [...]” (DECLARAÇÃO DE


ALMA-ATA).
As orientações internacionais, adotadas criticamente ou não, influenciaram textos e
trabalhos no Brasil.
Num artigo muito citado na literatura a respeito do Programa de Saúde da Família,
Hesio Cordeiro situa o PSF como uma “[...] estratégia para a mudança do modelo assistencial
do SUS” (CORDEIRO, 1996, p. 10). Para iniciar sua argumentação, Hesio afirma que

As crises cíclicas do Estado brasileiro, as políticas de ajuste econômico e o


déficit público contribuíram para dificultar que os princípios da
Constituição-Cidadã saíssem do papel para que inspirassem leis, normas e,
principalmente, orçamentos que viabilizassem o pleno desenvolvimento da
reforma sanitária (CORDEIRO, 1996, p. 10).

A tarefa de então, segundo Hesio, seria “[...] a mudança do modelo assistencial


esboçada nos projetos de criação dos distritos sanitários ou dos sistemas locais de saúde”
(CORDEIRO, 1996, p. 10), mas com atenção para “[...] a lógica da incorporação das
inovações nas práticas de saúde” (CORDEIRO, 1996, p. 10).
Em afirmações que nos permitem fazer imediata correspondência com o que ocorre no
sub setor da Saúde Mental, Hesio critica “[...] o chamado ‘modelo hospitalocêntrico’, caro, de
caráter essencialmente curativo, e controlado pelo setor privado” (CORDEIRO, 1996, p. 10) e
também a não resolubilidade dos ambulatórios, que não incorporaram práticas que “[...]
assegurem a continuidade da relação médico-paciente ou da equipe de saúde com as famílias”
(CORDEIRO, 1996, p. 11).
Hesio defende que a mudança do modelo assistencial tem no Programa de Saúde da
Família a sua principal estratégia no campo das ações de saúde. (Cf. CORDEIRO, 1996) e dá
como princípios do mesmo os seguintes pontos:

O reconhecimento da saúde como um direito de cidadania e que expressa a


qualidade de vida;
A eleição da família e de seu espaço social como núcleo básico de
abordagem no atendimento à saúde;
A democratização do conhecimento do processo saúde/doença, da
organização dos serviços e da produção da saúde;
A intervenção sobre os fatores de risco aos quais a população está exposta;
A prestação de atenção integral, contínua e de boa qualidade nas
especialidades básicas de saúde à população adscrita, no domicilio, no
ambulatório e no hospital;
A humanização das práticas de saúde e a busca da satisfação do usuário
através do estreito relacionamento da equipe de saúde da comunidade;
80

O estímulo à organização da comunidade para o efetivo exercício do


controle social;
O estabelecimento de parcerias buscando desenvolver ações intersetoriais
(CORDEIRO, 1996, p. 11).

Hesio chama a atenção para o fato de que o modelo proposto se propõe a algo muito
maior do que “[...] um apelo às tecnologias simplificadas, inspiradas em Alma-Ata, visando
apenas à redução de custos e, muito menos, representando uma proposta de ‘medicina pobre
para pobres’” (CORDEIRO, 1996, p. 12).
Hesio recorre à crítica à divisão do trabalho, no caso, na área da saúde, para dizer que
o complexo médico-empresarial, dominante, com base nas relações sociais que predominam
na sociedade, impõe a fragmentação em especialidades valorizadas e a “[...] parcialização e
fragmentação do cuidado médico entre diversos profissionais que exercem trabalhos múltiplos
sobre múltiplos ‘objetos’ de trabalho – o corpo do usuário subdividido pelo olhar das várias
especialidades médicas” (CORDEIRO, 1996, p. 12). Podemos compreender, com base nas
linhas acima, que a divisão mente/corpo, histórica, está nas origens do aparecimento de
profissionais exclusivamente preparados para tratar dos corpos e de outros que se dedicam
apenas às mentes, numa seqüência de empobrecimento da compreensão global do ser humano
que ainda dará muito trabalho para reverter.
Dentro do contexto das declarações internacionais e da necessidade de avanços na área
de saúde no Brasil, coloca-se, portanto, o problema da mudança do Modelo Assistencial.
Segundo TEIXEIRA (1998, p. 8):

[...] o sistema de saúde brasileiro é, hoje, [...] palco de disputa entre modelos
assistenciais diversos, com a tendência de reprodução conflitiva dos modelos
hegemônicos, ou seja, o modelo médico-assistencial privatista (ênfase na
assistência médico-hospitalar e nos serviços de apoio diagnóstico e
terapêutico) e o modelo assistencial sanitarista (campanhas, programas
especiais e ações de vigilância epidemiológica e sanitária), ao lado dos
esforços de construção de ‘modelos’ alternativos (TEIXEIRA, 1998, p. 8).

De acordo com o trabalho citado, a “Vigilância da Saúde” pode ser “[...] entendida
como eixo de um processo de reorientação do(s) modelo(s) assistencial(ais) do SUS”
(TEIXEIRA, 1998, p. 9). O trabalho define a Vigilância da Saúde como um Modelo
Assistencial que tem como “Sujeito a Equipe de Saúde e a População (cidadãos)”
(TEIXEIRA, 1998, p. 18), como “Objeto os danos, riscos, necessidades e determinantes dos
modos de vida e saúde (condições de vida e trabalho)” (TEIXEIRA, 1998, p. 18), como “[...]
meios de trabalho as tecnologias de comunicação social, de planejamento e programação local
81

situacional e tecnologias médico-sanitárias” (TEIXEIRA, 1998, p. 18) e como “Forma de


organização as Políticas públicas saudáveis, as ações intersetoriais, as intervenções
específicas (promoção, prevenção, recuperação) e as operações sobre problemas e grupos
populacionais” (TEIXEIRA, 1998, p. 18).
O tema do Território aparece no trabalho citado de forma incisiva, na medida em que
os autores dizem que

O ponto de partida para o desencadeamento do processo de planejamento da


vigilância à saúde é a Territorialização do sistema municipal de saúde, isto é,
o reconhecimento e o esquadrinhamento do território do município segundo
a lógica das relações entre condições de vida, saúde e acesso às ações e
serviços de saúde (TEIXEIRA, 1998, p. 18).

Qual a origem das Reformas na Saúde? Necessidade da população expressa através da


suas organizações em conjunto com os profissionais de saúde? Necessidades de ajuste das
finanças públicas? Orientações internacionais com interesses diversos? Vejamos algo a
respeito dessa discussão.
Discorrendo a respeito das Reformas na área da Saúde, VIANA & POZ (1998, p. 4)
dizem que elas podem ser de dois tipos: big bang e incremental. As do primeiro tipo “[...] são
as que introduzem modificações expressivas e significativas no funcionamento do sistema de
saúde, de forma rápida (em curto espaço de tempo) e pontual” (VIANA & POZ 1998, p. 4).
Assim foi, segundo os autores, o início da reforma brasileira, com a criação do SUS:

Esse novo modelo, inscrito na própria Constituição brasileira de 1988,


definiu o princípio do universalismo para as ações de saúde, a
descentralização municipalizante e um novo formato organizativo (para os
serviços) sob a lógica da integralidade, da regionalização e da
hierarquização, com definição de porta de entrada (VIANA & POZ 1998, p.
4).

Com a evolução da crise na área da Saúde, de demanda e de oferta (Cf VIANA &
POZ 1998, p. 5), deu-se início ao que os autores chamam de “reforma da reforma da saúde
no Brasil, ou, do processo de reforma incremental do sistema público de saúde” (VIANA &
POZ 1998, p 5).
Exemplificando o modo como a reforma incremental se deu e quais as suas estratégias,
Viana & Poz destacam a importância do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e o
Programa de Saúde da Família. Desta forma, destacam:
82

No caso brasileiro, considera-se que as mudanças no modelo assistencial


que vêm se operando dentro do SUS, por conta de dois novos programas
(Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS e Programa de Saúde
da Família - PSF), estão provocando alterações tanto no padrão de
financiamento da política, quanto na forma de organização dos serviços.
Dessa forma, o PSF se constitui em uma estratégia de reforma incremental
do sistema de saúde no Brasil, tendo em vista que o programa aponta para
mudanças importantes na forma de financiamento do sistema de saúde
(superação da exclusividade do pagamento por procedimentos), nas práticas
assistenciais e no processo mesmo de descentralização (VIANA & POZ
1998, p. 7).

Definidas algumas origens das orientações para a mudança do modelo assistencial e


características da Reforma da Saúde no Brasil, passamos a especificar com mais detalhes os
conceitos ligados à Atenção Básica.
Ressalvadas as discussões a respeito das possíveis diferenças conceituais entre
“cuidados primários de saúde”, “atenção primária” e “atenção básica”, que não faremos aqui,
vemos que o Ministério da Saúde define Atenção Básica como:

[...] um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no


primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção
da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação. [...] A
ampliação desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um
sistema de saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio
ambiente (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999, p. 9).

Podemos perceber que a definição do Ministério da Saúde é muito semelhante ao que


consta da Declaração de Alma-Ata. Toda a luta para a valorização da Atenção Básica é parte
da mudança do Modelo Assistencial.
Na publicação citada, do Ministério da Saúde, de 1999, algo a respeito de Saúde
Mental aparece apenas numa das “Ações de Atenção Básica Dirigidas a Grupos Específicos
da População”: “Incentivo aos grupos de auto-ajuda, prioritariamente na população maior de
60 anos”, visando à “Redução das internações por depressão” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
1999, p 23). Nos “Indicadores para avaliação da Atenção Básica nos Municípios Habilitados
conforme a NOB-SUS 01/96”, não há referência à Saúde Mental. (Cf. MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1999, p. 37).
Dando conseqüência às conclusões da Oitava Conferência Nacional de Saúde, ao que
consta na Constituição do país, nas Leis do Sistema Único de Saúde e nas recomendações
internacionais sobre Atenção Básica, começaram a surgir (ou ressurgir?), no Brasil, de modo
organizado, experiências de mudança do modelo assistencial a partir da Atenção Básica.
83

O Ministério da Saúde, hoje, historiando os inícios dos Programas de Atenção Básica,


diz que

A estratégia do PSF foi iniciada em junho de 1991, com a implantação do


Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Em janeiro de 1994,
foram formadas as primeiras equipes de Saúde da Família, incorporando e
ampliando a atuação dos agentes comunitários (cada equipe do PSF tem de
quatro a seis ACS; este número varia de acordo com o tamanho do grupo
sob a responsabilidade da equipe, numa proporção média de um agente para
575 pessoas acompanhadas) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

Como princípios básicos do PSF, o Ministério da Saúde define:

A estratégia do PSF incorpora e reafirma os princípios básicos do Sistema


Único de Saúde (SUS) - universalização, descentralização, integralidade e
participação da comunidade - e está estruturada a partir da Unidade Básica
de Saúde da Família, que trabalha com base nos seguintes princípios:
Integralidade e hierarquização [...], Territorialização e cadastramento da
clientela [...], Equipe multiprofissional. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004
a).

Aparece, aqui, o conceito de “Territorialização”, citado no Capítulo II como um dos


pilares da Reforma Psiquiátrica. São as semelhanças de origem, influências e propósitos que
aparecem e que estamos balizando, entre a Atenção Básica e a Saúde Mental.
Dentro do aspecto do cadastramento, na definição acima, temos um ponto sensível e
que envolverá discussões ainda não resolvidas: o quantitativo de população que uma Equipe
de PSF pode atender de modo efetivo. O debate a respeito desse número ideal está sendo
travado, também, em relação ao trabalho das Equipes de Saúde Mental na Atenção Básica. O
texto do Ministério da Saúde recomenda que “[...] uma equipe (de PSF) seja responsável por,
no máximo, 4.500 pessoas” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a). A prática mostra que, com
esse número, as Equipes ficam “presas” ao Posto, com dificuldades de exercer as atividades
comunitárias. Para a Saúde Mental, a discussão desse número terá a importância de
determinar a população que uma Equipe pode trabalhar de modo a efetivamente mudar o
Modelo Assistencial.
No aspecto da composição da Equipe do PSF, está estabelecido que:

Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico, um


enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes
comunitários de saúde (ACS). Outros profissionais - a exemplo de dentistas,
assistentes sociais e psicólogos - poderão ser incorporados às equipes ou
formar equipes de apoio, de acordo com as necessidades e possibilidades
locais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).
84

Essa definição já abre a possibilidade da entrada da Saúde Mental nas Equipes do PSF,
ou sob a forma de profissionais incorporados às Equipes de PSF, ou como “equipes de
apoio”.
Na definição das atribuições de cada membro da Equipe do PSF, destacamos as do
Agente Comunitário de Saúde, pela importância que tem, não só para o trabalho em geral,
mas em especial para as pretensões da Saúde Mental:

Faz a ligação entre as famílias e o serviço de saúde, visitando cada


domicílio pelo menos uma vez por mês; realiza o mapeamento de cada área,
o cadastramento das famílias e estimula a comunidade (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2004 a).

A expressão “faz a ligação entre as famílias e o serviço de saúde”, junto com a


obrigação de ser pessoa moradora na área de atuação da Equipe, coloca o Agente Comunitário
numa posição peculiar e de grande potencial para a prática transformadora que pretendemos.
Mostrando a importância que esse profissional tem alcançado, há um decreto, de 1999, da
Presidência da Republica que “Fixa diretrizes para o exercício da atividade de Agente
Comunitário de Saúde (ACS), e dá outras providências” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004
b). Nesse decreto está determinado que o Agente Comunitário de Saúde deve residir na
comunidade e desenvolver atividades de educação para a saúde, estímulo à participação na
formulação das políticas públicas, dentre outras atividades específicas.
O Ministério da Saúde define que as Equipes do PSF devem estar capacitadas a:

-conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável, por meio de


cadastramento e diagnóstico de suas características sociais, demográficas e
epidemiológicas;
-identificar os principais problemas de saúde e situações de risco aos quais a
população que ela atende está exposta;
-elaborar, com a participação da comunidade, um plano local para enfrentar
os determinantes do processo saúde/doença;
-prestar assistência integral, respondendo de forma contínua e racionalizada
à demanda, organizada ou espontânea, na Unidade de Saúde da Família, na
comunidade, no domicílio e no acompanhamento ao atendimento nos
serviços de referência ambulatorial ou hospitalar;
-desenvolver ações educativas e intersetoriais para enfrentar os problemas de
saúde identificados (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).
85

O texto acima pretende estabelecer as atribuições de um trabalho que realize os


objetivos da Atenção Básica. No que diz respeito à Saúde Mental, adiantamos que as Equipes
de PACS e de PSF, consoante as formações das diversas categorias profissionais, não se
encontram, em geral, capacitadas a reconhecer, com detalhes operativos, os problemas de
Saúde Mental das pessoas, famílias e comunidade, bem como prestar assistência. O item
“elaborar, com a participação da comunidade, um plano local, para enfrentar os determinantes
do processo saúde/doença”, referido à Saúde Mental, leva-nos a uma instigante tarefa: discutir
com a população o que a faz sofrer psiquicamente e o que fazer para mudar a situação.
Uma Portaria do Ministério da Saúde, de 1997, traça as normas e diretrizes para o
Programa de Agentes Comunitários de Saúde e para o Programa de Saúde da Família. Na
Portaria, o Ministério da Saúde define como sua responsabilidade: “[...] contribuir para a
reorientação do modelo assistencial através do estímulo à adoção da estratégia de agentes
comunitários de saúde pelos serviços municipais de saúde [...]” e “[...] da estratégia de saúde
da família [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c). Está definido, na Portaria citada, que
o ACS deve trabalhar com, no máximo, 150 famílias ou 750 pessoas. Nas atribuições do
ACS, a Portaria indica muito pouco em relação ao trabalho em Saúde Mental. O item 8.14.27
dá como atribuição do ACS a “[...] identificação dos portadores de deficiência psicofísica
com orientação aos familiares para o apoio necessário no próprio domicílio” (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2004, c). Salvo pela indefinida “deficiência psicofísica”, há uma preocupação
do legislador em apontar o domicílio como local de intervenção terapêutica/reabilitadora, que
continua com a indicação de “incentivo à comunidade na aceitação e inserção social dos
portadores de deficiência psicofísica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c). Observaremos
como vão evoluir as atribuições do PACS e PSF em relação à Saúde Mental.
Um importante instrumento de gestão é o “Pacto de Indicadores da Atenção Básica”,
que

[...] constitui-se em um instrumento formal de negociação entre gestores das


três instâncias de governo (municipal, estadual e federal) tomando como
objeto de negociação as metas a serem alcançadas em relação a indicadores
de saúde previamente acordados (PACTO DE INDICADORES DA
ATENÇÃO BÁSICA, 2003).
86

Existem os Indicadores Principais e os Complementares, sendo que em nenhum deles


constam indicadores ligados à Saúde Mental. Com a evolução dos acontecimentos, o
indicador “Taxa de internação por transtornos mentais”, ou semelhante, deverá se impor.
De acordo com o Ministério da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 d), em
janeiro de 2004 existiam 184.934 Agentes Comunitários de Saúde, no Brasil e 19.182
Equipes de Saúde da Família. A cobertura alcançada com essas Equipes chega aos números
de 94.665.805 pessoas para os ACS e 62.685.065 para as Equipes de Saúde da Família. Trata-
se de um expressivo contingente populacional coberto. Com a entrada das ações de Saúde
Mental na Atenção Básica, o impacto em números e qualidade de vida deverá ser expressivo.
De acordo com Maria Fátima de Sousa (SOUSA, 2001)

O Programa de Agentes Comunitários de Saúde teve início no estado da


Paraíba, com a visita do assessor técnico do Fundo das Nações Unidas para
a Infância – UNICEF da região Nordeste, no dia 27 de junho de 1991
(SOUSA, 2001, p. 85).

O assessor citado, segundo Maria de Fátima, apresentou estudo que mostrava os bons
resultados do trabalho de 4 mil Agentes Comunitários de Saúde no Ceará. Antes disso,
segundo a mesma autora, já havia movimentação, em Brasília, para transformar as ações dos
ACS num Programa nacional. (Cf SOUSA, 2001). Segundo a autora citada:

[...] o compromisso social assumido pelo PACS sem nenhuma discriminação


era: melhorar, através dos Agentes Comunitários de Saúde a capacidade da
população de cuidar da sua saúde, em um processo de educação mútua, em
que os ACS exerceriam o papel de interlocutor privilegiado entre as
famílias/comunidade e os serviços de saúde locais (SOUSA, 2001, p. 55).

No texto citado acima existem algumas características que serão preciosas para o
trabalho com a Saúde Mental: o compromisso social, o estímulo ao autocuidado, a educação
mútua, a interlocução entre comunidade e serviços de saúde.
Os ACS podem ter influência na mudança da mentalidade tanto da população, quanto
dos profissionais de saúde, no estímulo aos cuidados com a saúde e no incremento da
participação ativa do cidadão na discussão a respeito dos condicionantes da saúde e das
doenças. Maria de Fátima assinala:

[...] verificou-se estrategicamente que a inserção dos Agentes Comunitários


de Saúde nos municípios [...] seria instrumento tático para contribuir para
enriquecer os debates em torno de questões cruciais no processo de
organização dos serviços locais de saúde, ou seja, um choque de povo, na
87

construção de uma nova agenda positiva para a saúde, em que a população


de fato estivesse presente (SOUSA, 2001, p. 120).

Tentando esboçar uma análise em termos de que tipo de proposta política está contida
nas mudanças praticadas na área de Saúde, e o PACS é um exemplo, a autora que vem sendo
citada diz que o decorrer dos acontecimentos nas últimas décadas fez com que

os representantes do movimento sanitário entendessem que [...]


transformações ocorreriam por meio de reformas parciais, setoriais,
institucionais e ou conjunturais, desde que se criassem condições para uma
efetiva transformação global (SOUSA, 2001, p. 144).

Mesmo ainda na expectativa de uma transformação global, temos, na lida diária,


necessidade de orientar nossas ações e forjar ferramentas operativas. Mais uma vez
reforçando o papel do ACS, SOUSA (2001), diz:

[...] o norte desses instrumentos encontrava-se: no exercício progressivo do


poder local onde o responsável pela saúde tivesse nome e endereço; no
reorientar das práticas sanitárias, em que a vigilância à saúde, a
multicausalidade, a intersetorialidade, a integralidade, o coletivo e a
participação popular fossem entendidos pelos profissionais locais e outras
forças sociais em constante construção e reconstrução, cujo interlocutor
poderia ser um deles: o Agente Comunitário de Saúde (SOUSA, 2001, p.
144).

No aspecto da capacitação dos ACS, Maria de Fátima assinala que “[...] o custo de um
agente bem treinado é insignificante, quando comparado à formação de qualquer outro
profissional” (SOUSA, 2001, p. 56). Voltaremos, adiante, muitas vezes, ao tema da
capacitação dos ACS, dentro e além do detalhe da economia de recursos.
No “Guia Prático do Programa de Saúde da Família”, do Ministério da Saúde, 2001,
existem as atribuições de cada componente da Equipe de Saúde da Família (ESF). Dentre as
atribuições do Agente Comunitário de Saúde destacam-se algumas que são da maior
importância para o trabalho em Saúde Mental (ressalvando-se que todas elas formam um
conjunto que, na sua harmonia, colabora para a assistência e promoção da saúde):

[...] – identificar indivíduos e famílias expostos a situações de risco; [...] –


realizar, por meio da visita domiciliar, acompanhamento mensal de todas as
famílias sob sua responsabilidade; [...] – estar sempre bem informado, e
informar aos demais membros da equipe, sobre a situação das famílias
acompanhadas, particularmente aquelas em situações de risco; [...] –
traduzir para a ESF a dinâmica social da comunidade, suas necessidades,
potencialidade e limites; [...] (BRASIL, 2001, p. 78).
88

Flávio Goulart, em tese de Doutorado de 2002, argumenta que o Programa de Saúde


da Família, na sua complexidade, pode ser alvo de análises contraditórias. Assim:

[...] poderia ser considerado, por exemplo, mais uma política


racionalizadora, de caráter focal, nos moldes preconizados pelos organismos
internacionais financiadores de programas sociais no terceiro mundo. Ao
mesmo tempo, poderia ser entendido como uma intervenção coerente com os
princípios de equidade, integralidade e universalidade, conforme as
disposições da Constituição Federal brasileira de 1988 (GOULART, 2002,
p. 25).

O autor da tese, no entanto, prefere fugir dos maniqueísmos e avaliar o que de positivo
o Programa de Saúde da Família traz para a mudança da abordagem aos problemas de saúde
no Brasil e para a promoção de melhores condições de vida. Deste modo, sugere que

O que pode transformá-lo nisso ou naquilo é o modo como está sendo


implementado; a capacidade formuladora e crítica de seus atores; as
circunstâncias que o rodeiam; as tradições políticas e institucionais; a
história; a força da ação política e das tradições comunitárias (GOULART,
2002, p. 90).

Ao tentar historiar as práticas de saúde da família, Goulart recorre à Declaração de


Alma-Ata, trazendo o conceito de “Atenção Primária à Saúde”, visto acima como “cuidados
primários em saúde”. A “Atenção Primária à Saúde” seria “a base do sistema de saúde e um
enfoque que determinaria o modo de atuar dos níveis restantes do sistema”
(GOULART, 2002, p. 50).

Citando Vuori, Goulart diz que a “Atenção Primária à Saúde” vem praticar a:

[...] mudança no sistema tradicional, ancorado em objetivos como: a cura de


doenças; o conteúdo baseado em terapias e atenção episódica referente a
problemas específicos; a organização baseada em médicos e especialistas
envolvidos com o trabalho individual e, finalmente, a responsabilidade
centrada de forma restrita no próprio setor saúde, com predomínio técnico-
profissional nos cuidados de saúde (GOULART, 2002, p. 50).

A crítica que a citação traz coincide em tudo com a necessidade de mudança do


Modelo Assistencial em Saúde Mental, sendo, mesmo, a descrição do tradicional Ambulatório
de Especialidades em Saúde Mental, atualmente questionado quando comparado com as
89

práticas que compreendem as ações de saúde como necessariamente interdisciplinares e


comunitárias.
Citando a publicação do Ministério da Saúde “Saúde da Família: Uma estratégia para a
organização da atenção básica”, de 2001, Goulart diz que

[...] podem ser encontradas várias das categorias-chave que contribuem para
a definição ora procurada, como por exemplo: (a) ser a porta de entrada de
um sistema regionalizado e hierarquizado de saúde; (b) ter um território
definido com uma população delimitada sob sua responsabilidade; (c) ter
como centro de atenção a família, inserida em seu meio social; (d) intervir
sobre os fatores de risco aos quais a comunidade está exposta; (e) prestar
assistência integral, permanente e de qualidade; (f) realizar atividades de
educação e de promoção da saúde; (g) estabelecer vínculos de compromisso
e de co-responsabilidade entre o serviço de saúde e a população; (h)
estimular a organização das comunidades para exercer o efetivo controle
social das ações e serviços de saúde; (i) utilizar os sistemas de informação
para o monitoramento das ações e para a tomada de decisões (GOULART,
2002, p. 51).

Goulart sintetiza, no seguinte trecho, a aproximação entre os conceitos de Atenção


Primária à Saúde e Saúde da Família de modo esclarecedor e fértil para as intenções da Saúde
Mental na Atenção Básica. Segundo o autor, são pontos de união entre os conceitos de
Atenção Primária à Saúde e Saúde da Família:

As práticas de saúde como objeto da intervenção do Estado, o que as


caracterizaria como partes de um corpo de políticas sociais;
O processo de trabalho tendo como resultado a intervenção do médico e de
outros profissionais dentro de um âmbito generalista, ou seja, fora do
caráter especializado que recorta e separa o objeto das práticas em saúde em
faixas de idade, gênero, sistemas e órgãos, ou mesmo de tipos de doenças;
Os modos de pensar e de praticar os cuidados à saúde baseados na
ampliação e superação dos conceitos tradicionais antinômicos entre
individual e coletivo; prevenção e cura; biológico e social; humano e
ambiental; oficial e não-oficial;
A proteção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para
coletivos (famílias, grupos, comunidades), resultando em um novo tipo de
práticas sociais de saúde;
O desenvolvimento de vínculos entre clientela e os prestadores de serviços,
de natureza administrativa, geográfica, cultural ou mesmo ética
(GOULART, 2002, p. 52).

Para uma compreensão histórica dos sistemas de saúde, o autor citado adverte, citando
Rosen, que
90

[...] em toda a história das sociedades humanas, os problemas de saúde


enfrentados tiveram, em sua origem, uma relação com a vida em
comunidade e, embora com ênfases diferentes, com as variadas maneiras
com que tais sociedades procuraram resolvê-los (GOULART, 2002, p. 52).

Valiosa para os nossos tempos, a citação nos permite refletir a respeito de que modo a
atual sociedade procura resolver os problemas de Saúde Mental. Até há pouco predominou a
exclusão. Estamos exercitando meios efetivos que tentam mudar a forma da sociedade
resolver os problemas da Saúde Mental?
A história novamente nos traz ensinamentos e nos abre os olhos para as origens e as
intenções iniciais do que estamos praticando hoje. Já no século XVII, na Inglaterra, foram
criadas as workhouses, instituições descentralizadas que tentavam recuperar pelo trabalho.
(Cf. GOULART, 2002, p. 60). Posteriormente, no século XVIII, os cuidados a domicílio
também apareceram na Inglaterra, com atendimento a crianças e em obstetrícia. (Cf.
GOULART, 2002, p. 61).
O autor situa a década de 60 como o tempo em que os acontecimentos e as idéias
colaboraram para o aparecimento do Programa de Saúde da Família no Brasil. Diz ele que,
através de uma luta contra-hegemônica e

[...] mediante seus componentes de saber, ideologia e ação política, teria


ocorrido o deslocamento de uma ênfase centrada meramente nos serviços
para as condições de saúde e seus determinantes, com práticas de saúde
imbuídas de caráter social e dimensões simultaneamente técnicas, políticas
e ideológicas (GOULART, 2002, p. 92).

Insistindo no polêmico tema da importação de propostas para a área de saúde, com


toda a conotação de suas possíveis intenções controladoras e apaziguadoras, o autor cita os
conceitos de “[...] campo da saúde de origem canadense, da promoção da saúde (OPAS/OMS)
e da vigilância à saúde, capazes de conferir novos sentidos para as questões formuladas pelo
movimento sanitário em décadas passadas” (GOULART, 2002, p. 92). O autor chama a
atenção, nesse contexto de absorção de idéias estrangeiras, para o paradigma da Medicina
Comunitária, importado na década de 60, com raízes que

[...] estão vinculadas tanto à crise do capitalismo como ao impacto dos


resultados da implementação dos welfare states na Europa ou ainda à
formação do National Health System no Reino Unido, entre outras
(GOULART, 2002, p. 93).

A Medicina Comunitária, conseqüência também da Declaração de Alma Ata, seria o


91

[...] substrato teórico, político e ideológico [...] da [...] política externa norte-
americana dos anos 60, voltada para os países pobres da América Latina,
também conhecida como Aliança para o Progresso, que difundiu nos países-
alvo sua proposta de saúde, com o apoio das agências internacionais
(GOULART, 2002, p. 93).

O autor comenta que as críticas à importação de modelos de saúde, de que estes teriam
a intenção de mero controle das camadas pobres da população, eram fortes na década de 70,
mas diminuíram de intensidade na década de 90, com o detalhe:

[...] as citadas energias intelectuais vão se concentrar em encontrar soluções,


não mais apenas em demolir as propostas colocadas em campo, vistas como
eram sob uma ótica fortemente ideológica e, até certo ponto, conspiratória
(GOULART, 2002, p. 94).

Toma força, então, nesse movimento de suavização da crítica, a importância das

[...] concepções fundamentais relativas à determinação social do processo


saúde-doença, bem como na dinâmica do processo de trabalho em saúde e,
dessa forma, passaria a orientar as propostas democratizadoras e de reforma
do sistema vigentes na década de 80 (GOULART, 2002, p. 95).

O autor sugere que, com a redemocratização do país e a possibilidade de ação política

[...] quem agora estava com a palavra e a vez não eram apenas as academias,
nem os organismos internacionais, nem mesmo os órgãos centrais dos
governos federal e estaduais. Havia simplesmente novos atores no jogo, os
quais passaram também a formular e colocar em prática novas propostas no
cenário – os municípios – como de resto o fizeram em relação a todo um
conjunto de políticas públicas a partir dos anos 90 (GOULART, 2002, p.
97).

Com a evolução dos fatos, de acordo com Goulart, na década de 80 começam a surgir
as experiências do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, no Nordeste. Ainda na
década de 70, “[...] destacam-se as experiências pioneiras realizadas em Porto Alegre (Vila de
São José do Murialdo) [...] e no Estado de São Paulo” (GOULART, 2002, p. 97). O autor
também cita Niterói, Campinas e Londrina como exemplo de municípios que tiveram
experiências pioneiras de reorientação do modelo assistencial “[...] com extensão de
cobertura, participação social, integração docente assistencial, etc.” (GOULART, 2002, p.
100).
92

CAPÍTULO 5

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

5.1 Precursores estrangeiros e críticas.

Para chegar ao que hoje está sendo praticado como Saúde Mental na Atenção Básica,
percorreremos, inicialmente, alguns precursores. Depois, chegaremos aos textos e trabalhos
atuais e ao que está sendo colocado nos textos oficiais.
Forçoso é partir de algum momento e autor. Comecemos, então, com a chamada
“Psiquiatria de Setor”, francesa, que provocou tanta discussão e ainda permanece em debate.
Um exemplo típico dessa corrente é Jacques Hochmann, com seu livro “Hacia uma
psiquiatria comunitária”, escrito entre 1965 e 1968. Antes mesmo de qualquer tentativa de
crítica a esse livro (ou ao “setor”), é necessário observar a lista de autores em que Hochmann
se baseia: Bachelard, Balint, Bastide, Bion, Cooper, Foucault, Freud, Goffman, Jones,
Marcuse, Marx e Engels, Sartre, Saussure, Spinoza, Szasz, entre outros.
Hochmann retoma a discussão a respeito do “tratamento” do hospital psiquiátrico, a
psicoterapia institucional, para introduzir a questão do seu livro, que é o tratamento dos
conjuntos humanos: instituição, família, bairro. (Cf. HOCHMANN, 1972). Criticando a
filosofia dualista, que influencia a psiquiatria na sua divisão estanque entre social e individual,
Hochmann ataca violentamente a nosografia, que chama de “[...] coraza ideológica, uma
categorización de los enfermos, que poco a poco se organizó como un catálogo de
enfermidades mentales […]” (HOCHMANN, 1972, p. 15) e vai propor o conceito de
“sociopatia”, enquanto “[...] una enfermedad del lazo que une los hombres entre si”
(HOCHMANN, 1972, p 24). A todo o momento Hochmann aponta para a necessidade de
desenvolver novos conceitos, para “[...] que rompan de manera radical con los antiguos
marcos de referencia” (HOCHMANN, 1972, p. 17).
Como exemplo de mudança, Hochmann define “o setor” e explica, numa nota
instrutiva:

Se designa con este nombre una nueva corriente de la psiquiatría,


preconizada por la circular ministerial del 15 de marzo de 1960. Esta
circular prevé que todos los servicios de psiquiatría pública deberán
relacionarse con un sector geográfico determinado. Este sector será su zona
de reclutamiento de los enfermos de ambos os sexos, y en él deberán
93

desarrollarse instituciones extrahospitalarias de cuidado y prevención, para


permitir que los enfermos sean atendidos, durante toda su evolución intra y
extrahospitalaria, por el mismo equipo médico-social y de enfermería [...]
(HOCHMANN, 1972, p. 18).

Podemos observar, no texto citado, os sinais de avanço e o que, hoje, podemos notar
como repetição sob nova roupagem: Hochmann já fala em serviços extra-hospitalares, mas
ainda sob a forma de instituições; depois de criticar a nosografia, refere-se às pessoas a serem
abordadas como “enfermos”; naquela época, como podemos notar, os avanços ainda eram
“uma nova corrente da psiquiatria”. Mas traz o que praticamos, agora, no PACS/PSF: um
setor geográfico restrito para o trabalho de cada equipe.
Defendendo a sua proposta diante das resistências, e compreendendo-as, Hochmann,
no seguinte trecho, é bastante avançado para a época:

Por primera vez desde la edad clásica, el lugar ideal para realizar el
tratamiento ya no es más la institución especializada, que vigila al loco y
previene el contagio, sino el medio de vida del enfermo, su familia, su casa,
su barrio, su lugar de trabajo. Se asocian al psiquiatra, considerado durante
mucho tiempo el agente terapéutico específico, los demás trabajadores de la
salud mental (enfermeros psiquiátricos, asistentes sociales, psicólogos o
educadores especializados), y también los trabajadores sociales de la
comunidad, los médicos clínicos y, por último, todos que se vinculan con el
enfermo, en particular su familia y amigos. Sobre todo, al dejar de estar
aislado en el asilo, el proceso patológico ya no impregna solo al enfermo,
único beneficiado de la intervención terapéutica, sino que engloba a su
medio y a la comunidad toda, considerada ‘enferma’ de sus locos y objeto
nuevo de un tratamiento original, la terapia comunitaria (HOCHMANN,
1972, p. 18).

Ao usar o termo “trabalhadores da saúde mental”, ao negar o privilégio terapêutico ao


psiquiatra, citando outras categorias, ao valorizar os trabalhadores sociais da comunidade,
médicos clínicos, parentes e amigos, Hochmann aponta o caminho das redes de atenção
psicossocial que hoje estamos tecendo.
No seguinte trecho, Hochmann oferece a sua visão a respeito da mudança de foco no
trabalho em Saúde Mental, saindo do indivíduo em direção ao coletivo:

Una vez que se rompe con la localización arquitectónica del paciente en el


interior del asilo, desaparece la localización exclusiva de la enfermedad en
el individuo. El mal se ubica en un sistema en el que se articulan el
enfermo, sus parientes, la estructura social subyacente y el conjunto de
quienes pretenden curarlos. El sistema completo soporta la patología y se
transforma en objeto del tratamiento (HOCHMANN, 1972, p. 19).
94

Os méritos do texto acima são: situar aqueles que tratam no mesmo sistema ao qual
pertencem as pessoas a serem tratadas e apontar que a estrutura social precisa estar em
questão, visto também ser parte do “mal”.
Hochmann discute o papel do profissional de Saúde Mental com bastante avanço para
a época em que escreveu. Ao negar os enfoques que colocam os profissionais com o saber,
seja interpretação, conselho ou remédio (Cf. HOCHMANN, 1972), a respeito do que acontece
com as pessoas que estão sendo tratadas, o autor diz que: “El centro del interés del profesional
lo constituye uma red de interacciones evolutivas en la que él se compromete personalmente”
(HOCHMANN, 1972, p. 25).
Hochmann entra na discussão do possível desaparecimento dos desviantes em
sociedades futuras negando essa possibilidade. Mas aponta muito claramente que a mudança
radical dar-se-á na forma como a sociedade poderá se organizar e, conseqüentemente, lidar
com seus “diferentes”:

Creo, simplesmente, que em todo momento el desviado expressa lo más


opressivo, alienante y destructor de uma cultura (de toda cultura). Estimo
que se ha querido acallar esta voz, esta negación. A mi juicio, nos
encaminamos hacia una civilización en la que ella no desaparecerá, sino que
será atendida en todo momento y encarada en forma constructiva,
continuamente ‘autoterapéutica’, por un grupo social que considere al
cambio como ley (HOCHMANN, 1972, p. 23).

Podemos ver, no texto acima, uma seta apontada para um futuro em que a exclusão
terá sido elaborada pela Humanidade, as manifestações hoje abordadas com métodos
reducionistas compreendidas no conjunto social e a função terapêutica espalhada pelos
membros das comunidades?
Para chegar a uma sociedade que integre suas diferenças de modo radical, a função
atual do terapeuta, trabalhando com a consciência de que opera num sistema do qual faz parte
é: “[...] contribuir a que en el interior de este sistema, al que pertence, se libere el discurso
reprimido” (HOCHMANN, 1972, p. 25).
Hochmann utiliza, para os capítulos do seu livro que tratam da prática da psiquiatria
comunitária, a experiência, que então durava quatro anos, nas cidades de Bron, Villeurbanne e
Vaulx-en-Velin, na França. Trabalharam com ele médicos, assistentes sociais, psicólogos,
enfermeiras e uma socióloga. (Cf. HOCHMANN, 1972)
Hochmann, ao descrever o que então conceituava como “atenção extrahospitalar”,
descreve as ações do “[...] dispensário de higiene mental” (Hochmann, 1972, p. 193),
95

semelhante aos nossos Ambulatórios, mas com algumas diferenças no sentido da ação na
comunidade. Já, então, afirmando que psicóticos e alcoólatras necessitam de atendimento de
Equipes e não se beneficiam de abordagens com apenas um profissional, Hochmann relata
que os dispensários de higiene mental se encarregavam dos egressos das internações e que os
médicos e a Equipe que atendiam os pacientes nos hospitais psiquiátricos, freqüentemente
eram os mesmos que o faziam nos dispensários. Isso, segundo o autor, facilitava uma
mudança na relação dos pacientes com seus problemas, ao poderem conviver com os
membros dos hospitais num outro tipo de relação, não carcerária. (Cf. HOCHMANN, 1972).
É interessante o registro histórico que faz Hochmann, ao citar o psiquiatra Sassolas,
como o primeiro, no contexto francês, que utilizou a “[...] consulta grupal” (HOCHMANN,
1972, p. 195). Este psiquiatra se colocava à disposição de um grupo de pacientes por um
período de três horas semanais, com freqüência livre e possibilidade de consulta individual.
Aos poucos, esse grupo recebeu pacientes que nunca estiveram internados e outros
profissionais, transformando-se “[...] em una especie de foro, en un club, pero com clara
orientación terapêutica” (HOCHMANN, 1972, p. 196), inclusive com pacientes assumindo
papéis de cuidadores. Note-se a semelhança do que está descrito com o que praticamos, agora,
nos Ambulatórios Ampliados.
Criticando as práticas profissionais isoladas, ainda freqüentes entre nós, atualmente,
Hochmann reforça a necessidade de intervenção de uma Equipe e diz:

Por lo tanto, el tratamiento siempre se emprende bajo una determinada


presión social, en un clima coercitivo que se adapta mal a las reglas de la
práctica liberal. El dispensario es una herramienta de inestimable valor para
permitir la intervención de muchos ( HOCHMANN, 1972, p. 188).

Exemplificando o tipo de abordagem que praticava, Hochmann relata um caso que é


instrutivo para seguirmos os passos da Saúde Mental nas comunidades:

X. se encerró en su casa desde hace ocho días, rechaza a todos y se deja


morir de hambre lentamente. En este caso el psiquiatra privado podría
desempeñar su papel con gran dificultad. El del dispensario puede venir a
hablar con el enfermo, con los vecinos, la asistente social y el médico del
barrio, desarticular la ansiedad y animosidad que aumentan y, por último,
ver el enfermo, hacerle aceptar la visita de una enfermera psiquiátrica a
domicilio y emprender un tratamiento (HOCHMANN, 1972, p. 197).
96

Mesmo ainda estabelecendo a prática muito centrada no psiquiatra, Hochmann já


mostra, claramente, o trabalho em Equipe, em rede e associado à Saúde em geral. É
interessante notar, no exemplo citado acima, que o paciente só é visto após muitas outras
ações da Equipe, que já são terapêuticas para o conjunto.
A respeito da assistência a domicilio, Hochmann diz que na França ela estava pouco
desenvolvida, mas que já estava em uso nos Estados Unidos e Canadá (Cf. Hochmann, 1972).
Hochmann fala mesmo da “[...] hospitalización a domicilio” (HOCHMANN, 1972, p. 199),
onde “El enfermo recibe cuidados de um equipo de enfermeras y médicos que van a verlo a su
casa todos os dias” (HOCHMANN, 1972, p. 199).
Sempre reforçando a necessidade básica de a Equipe questionar seus métodos, afinar
seus conceitos e perceber o contexto social em que atua, Hochmann diz que “[...] el
dispensario es un lugar de desalienación para el equipo de higiene mental” (HOCHMANN,
1972, p. 197). Os membros da equipe, ao saírem do asilo, questionam as hierarquias, entram
em contato com a vida real das comunidades e procedem ao trabalho de desalienação, que, é
claro, não termina nunca, pois, “[...] el asilo se reconstruye rapidamente” (HOCHMANN,
1972, p. 198). Desta forma, Hochmann traz uma mensagem muito atual para nós:

Por desgracia, pareciera que, en cuanto sale del asilo, el psiquiatra tiende a
reconstituir, con a complicidad del cuerpo social, una fortaleza, una baronía.
Le es necesaria una vigilancia particular para evitar un nuevo encierro en
algún Centro de Salud. La visita a domicilio es un elemento indispensable
para la higiene mental de los propios asistentes. Es el virus antijerárquico y
antiinstitucional más poderoso que conocemos (HOCHMANN, 1972, p.
200).

Hochmann percorre, na descrição de seu trabalho prático, toda a série de dispositivos


então em uso e que não diferem muito dos que utilizamos hoje: hospital-dia, hospital-noite,
lar de pós-cura, enfermaria psiquiátrica de bairro, oficina terapêutica, oficina protegida. (Cf.
HOCHMANN, 1972). Hochmann avança muito em relação ao que praticamos, há vários
anos, ao questionar se “[...] el mejor taller protegido no es la fábrica, en la que, con la ayuda
del equipo de higiene mental y el médico laboral, el enfermo puede encontrar una tarea
adecuada a él y un grupo de sostén en sus compañeros” (HOCHMANN, 1972, p. 202). Com
o exposto, Hochmann diz que os equipamentos já existentes na comunidade são os lugares a
serem ocupados e onde a exclusão será questionada e, talvez, revertida.
Dentro da sua linha de aproveitar os recursos das comunidades e de
desinstitucionalizar a abordagem, Hochmann cria uma regra que vai aparecer nos trabalhos
97

atuais de Saúde Mental na Atenção Básica e que requer muita atenção: “En la llamada
psiquiatría de ‘setor’, no debe crearse ninguna institución especializada antes que hayan sido
investigadas y utilizadas todas las posibilidades terapéuticas de la comunidad”
(HOCHMANN, 1972, p. 204). Mais adiante vamos ver esse conceito surgir, entre nós, com o
termo “recursos ocultos da comunidade”.
Hochmann afirma o caráter desinstitucionalizador do seu trabalho, a valorização dos
espaços e recursos comunitários e tenta frear os impulsos de abordagens especializadas dos
profissionais da Saúde Mental.
Seguindo a regra citada acima, Hochmann diz que se

Impide una fácil reconstitución del asilo fuera de sus limites, es decir, de un
nuevo espacio especializado, percibido de inmediato como hostil y
rápidamente excluido, en el que personas especiales (los psiquiatras) curen
a otras personas especiales (los locos) (HOCHMANN, 1972, p. 204).

Dentro de sua conceituação, que utiliza o termo “sociopatia”, conforme vimos acima,
e ainda coloca o trabalho que faz como uma modificação da psiquiatria, Hochmann chama de
“[...] acción sociopsiquiátrica” (HOCHMANN, 1972, p. 204) a prática que desenvolveu.
Como exemplo dela, Hochmann cita as ações junto às instituições que existem na
comunidade, como, por exemplo, a Escola, os Centros Médicos e Sociais, os abrigos para
jovens, os grupos de ex-alcoólatras, as associações de pacientes mentais (Cf. HOCHMANN,
1972). A “Equipe Psiquiátrica” estabelece colaboração com as Equipes das instituições, num
trabalho conjunto, que Hochmann exemplifica com a Escola, onde professores, psiquiatra do
setor, assistente social e psicólogo educacional funcionam juntos, para resolver os problemas
de modo coletivo (Cf. HOCHMANN, 1972).
Hochmann enfatiza a necessidade de que a Equipe se integre verdadeiramente à
comunidade, mantendo contato e trabalhando junto com as estruturas políticas e
administrativas. De alguma forma o trabalho político-administrativo deve ser organizado, com
assembléias, campanhas de esclarecimento, contatos com as instâncias policiais e políticas e o
grande público. (Cf. HOCHMANN, 1972). Hochmann diz que

El objetivo de estas discusiones es aumentar la tolerancia a la enfermedad


mental, desmitificando la locura y a los que la atienden, también llamar la
atención hacia los problemas de equipamiento y reclutamiento de personal,
en resumen, de dinero (HOCHMANN, 1972, p. 206).
98

Hochmann discute o papel do médico clínico na psiquiatria de setor, com alguns


pontos de contato com o que vemos hoje no Brasil. Criticando a especialização excessiva na
medicina, assinala o que, entre nós, é corriqueiro: o paciente perdido entre diversos
especialistas e sem que seja ouvido em sua integralidade (Cf. HOCHMANN, 1972).
Hochmann trabalhava nos “dispensários de higiene mental”, estrutura distinta daquelas que,
na região, atendiam os pacientes clínicos. Desta forma, tratava de trabalhar em conjunto com
os médicos clínicos, daí a ter podido fazer suas propostas para que a medicina pudesse ter
uma visão melhor da população, com “[...] la creación de uma opción ‘clínica’, con formación
psicológica y sociológica profundizada em el programa de los estúdios de medicina [...]”
(HOCHMANN, 1972, p. 208). Hochmann trabalhava na lógica que, entre nós, chamamos de
referência e contra-referência, que discutiremos adiante.
Hochmann valorizava de modo especial o trabalho dos Assistentes Sociais, chamados
por ele de “polivalentes” (Cf. HOCHMANN, 1972) na medida em que visitavam os
domicílios, faziam a ligação entre as famílias, os setores dos serviços de saúde, as diversas
instituições da comunidade e da cidade. Era o profissional que tinha mais conhecimento e
contato com a comunidade. (Cf. HOCHMANN, 1972).
Sempre atento às ameaças do reaparecimento dos vícios institucionais paralisantes,
Hochmann ressalta a importância das reuniões de pequenas equipes, centradas na discussão e
encaminhamento da abordagem de um paciente ou família. Dessas discussões participam
todos os envolvidos na situação, não importando a que instituição pertençam ou, até mesmo,
se pertencem a alguma. Momento de organização do atendimento, da troca de experiências a
respeito do que está sendo vivido, campo de capacitação, essas equipes, segundo Hochmann:

[...] solo se unen en razón del caso tratado (y no por una organización
jerárquica o la pertenencia a determinado servicio), que se realizan entre
servicios y son interdisciplinarios, se organizan y desaparecen según la
demanda y, de esta manera, están mejor protegidos contra los peligros de la
esclerosis institucional (HOCHMANN, 1972, p. 210).

Hochmann aponta que essas reunioes de equipe devem servir para o desenvolvimento
do que chamou de “[...] sustitutos terapéuticos” (HOCHMANN, 1972, p. 210), que são
membros da comunidade que já eram importantes na vida das pessoas e famílias atendidas e
que podem se transformar em importantes formadores de opinião e ajudantes terapêuticos.
Hochmann se dispõe a discutir as críticas que já então surgiam a respeito da psiquiatria
de setor, que seria uma forma especializada, mais “leve”, de controlar os indesejáveis. De um
modo um tanto conformista, Hochmann diz que “La psiquiatría que hagamos (sea hospitalaria
99

o extrahospitalaria), será a imagen y semejanza de la sociedad y del lugar que esta reserve a la
locura” (HOCHMANN, 1972, p. 222). Desta forma, foge da crítica ao postular que o que faz,
de qualquer modo, é produto da sociedade. Bem como a crítica, poderia completar. Assim,
isenta-se de afirmar que propõe mudanças na sociedade e de valorizar o caráter transformador
que sua própria prática contém, postura esta que não coincide com sua crítica social e com a
até violenta crítica à psiquiatria organicista e à nosografia. Concluindo sua resposta a
possíveis questionamentos, Hochmann diz que

De hecho, el ‘sector’ es, ante todo, un instrumento, y no un fin. La


psiquiatría comunitaria representa una etapa técnica en la evolución de la
psiquiatría (etapa que quizá sea franqueada con rapidez y que puede
desembocar en una decadencia de la propia psiquiatría). Si se evita convertir
al ‘sector’ o a la ‘comunidad’ en objeto ideal, especie de dios al que
conviene ofrecer sacrificios, si se lo considera, con más modestia, un medio
entre otros para asistir a los enfermos mentales - o a algunos -, entonces
pierden su razón de ser muchas críticas. Solo se puede cuestionar
teóricamente a la ideología comunitaria; la práctica de sector, en cambio,
debe ser juzgada por sus resultados (HOCHMANN, 1972, p. 225).

Vemos, no trecho citado, diversos detalhes que ao longo do presente capítulo serão
retomados, pois fazem parte da atual discussão a respeito da Saúde Mental na Atenção Básica.
Hochmann se refere ao setor como um instrumento e não como um fim. Perguntamos: para
que fim?
Hochmann responde, de modo novamente contraditório com o seu próprio discurso
crítico, que o fim é assistir enfermos mentais. Ao negar-se a dar conseqüência social e política
à sua prática, repleta delas, Hochmann recai na razão nosográfica, que tanto abomina. Mais
uma vez, também, Hochmann mostra que vê o seu trabalho como uma evolução da psiquiatria
e não, como agora podemos colocar, como resultante das mudanças sociais, políticas e
econômicas, que levaram a psiquiatria a ser apenas mais uma dentre várias formas de
compreender e agir em relação aos denominados “problemas mentais”. E a quais resultados
Hochmann se refere? Assistir enfermos mentais de modo avançado, é um resultado
necessário, mas acanhado em face dos muitos outros possíveis resultados que o próprio
Hochmann aponta: mudar a forma da sociedade encarar a loucura, questionar a exclusão,
fazer a sociedade criticar e mudar as suas formas doentias de relacionamento e produção,
tornar a comunidade mais autônoma em relação aos poderes estabelecidos.
100

Nas conclusões do seu livro, Hochmann volta a dar conseqüência social e política às
suas proposições e ações. O título do capítulo já é significativo: “Hacia uma política de salud
mental” (HOCHMANN, 1972, p. 226). Nele, Hochmann diz

En efecto, si no se esbozaran profundos cambios en las relaciones entre


enfermo mental y sociedad (y, por lo tanto, en la misión que asigna al
psiquiatra y sus colaboradores), si las instancias sociales no evolucionaran
en este sentido, el hecho de afirmar que el psiquiatra desea tratar a
conjuntos y considerar al enfermo como testimonio de una patología más
global, y de invocar su condena de una nosografia objetivante, a fin de
predisponerlo a nuevas perspectivas y cambios institucionales, solo tendría
interés anecdótico. Hay que redefinir la misión de la psiquiatría con ayuda
de instrumentos de trabajo radicalmente nuevos (HOCHMANN, 1972, p.
226).

Hochmann, nas suas conclusões, também aponta as dificuldades que o financiamento


do Setor Saúde impõe à prática integrada em Saúde Mental, que englobe, ou faça perder seus
limites, a assistência e a promoção da Saúde Mental (Hochmann fala em prevenção).
Mantendo a sua atualidade, para nós, já que estamos vivendo o problema, Hochmann propõe
um ganho, por Equipe, constante, e não o pagamento por “[...] precio diario” (HOCHMANN,
1972, p. 231). De acordo com Hochmann,

[...] la noción de precio diario surge directamente de la remuneración


inmediata que es común en las profesiones liberales. Esta forma de
financiación nos transforma en una empresa de producción de un servicio
individualizado y nos obliga a reforzar cada vez más nuestro poder de
especialistas, los únicos capaces de curar. (HOCHMANN, 1972, p. 231).

Em termos de organização dos serviços, Hochmann propõe:

[...] pequeñas unidades asistenciales polivalentes, diseminadas em la


comunidad, que puedan funcionar como lugar de cura, hogar, hospital
diurno y enfermaria psiquiátrica barrial. Estas pequeñas estructuras podrían
ser independientes o adscribirse a un hospital general cercano. Formarían
parte del dispositivo sectorial, y no tendrían en él carácter central alguno, ya
que representarían solo a uno de los elementos, sin ninguna función de
control por sobre los demás (HOCHMANN, 1972, p. 237).

Com essa proposta, Hochmann pretendia tornar unificadas as ações de assistência,


prevenção e organização/administração do sistema. (Cf. HOCHMANN, 1972). Quanto à
administração do sistema citado, Hochmann, coerente com sua postura de distribuir pela
101

comunidade as funções que tradicionalmente são precípuas dos aparelhos governamentais,


afirma que

Toda la orientación de nuestro trabajo conduce naturalmente a afirmar que,


bajo el control de los organismos presupuestarios públicos, los usuarios del
servicio, los asistentes, los pacientes, los habitantes de la comunidad, son
los únicos habilitados para orientar y dirigir con eficacia la política de salud
mental (HOCHMANN, 1972, p. 238).

Hochmann valoriza as Associações comunitárias, que, no caso francês, seriam sem


fins lucrativos e com captação de fundos públicos (Cf. HOCHMANN, 1972). Sugerindo o
tipo de composição e de funcionamento dessas Associações, Hochmann diz:

La representación de funcionarios municipales, miembros de asociaciones


barriales, familias de enfermos, de estos mismos enfermos y de quienes
están a cargo de la asistencia o prevención de sus problemas, la transforma
en una verdadera comunidad terapéutica (HOCHMANN, 1972, p. 238).

Ao longo de todo o livro citado, Hochmann propõe a discussão coletiva a respeito do


que acontece com aqueles que são apontados como pacientes mentais, nas relações com suas
famílias e sua comunidade. Conseqüente com sua orientação teórica, sugere a diluição e
potencialização, nas comunidades, da função terapêutica e de cuidados, com aprendizado
conjunto. Nas últimas páginas do seu capítulo de conclusão, deixa assinalada uma advertência
que estamos, agora, vivenciando e que voltaremos a comentar:

Pero esta inmersión en la corriente comunitaria, esta difusión del trabajo y


la pérdida de la protección que representa una identidad profesional,
señalada por la pertenencia a un cuerpo rígido (el espíritu de cuerpo), puede
provocar angustia; por lo tanto, es importante que el equipo de higiene
mental se transforme en un grupo de sostén enriquecedor y reparador
(HOCHMANN, 1972, p. 238).

Em 1979, Paulo Rocha, psiquiatra do Rio Grande do Norte, apresentou uma


Dissertação de Mestrado, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que teve como propósito, discutir os programas de psiquiatria comunitária na
América Latina. (Cf. ROCHA, 1979). O autor justifica a delimitação da pesquisa à América
Latina, devido à necessidade de observar trabalhos próximos de nós e com a característica de
102

países subdesenvolvidos, chamando a atenção para o perigo da importação de modelos. (Cf.


ROCHA, 1979). Apesar do título da dissertação fazer referência, ainda, apenas à psiquiatria, a
proposta do autor é “[...] contribuir a uma discussão que aperfeiçoe a direção orgânica do
movimento em torno da saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 5).
Paulo Rocha situa as práticas do trabalho comunitário em Saúde dentro do “modelo
desenvolvimentista”, sob orientação de organismos internacionais, como a Organização das
Nações Unidas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e que teve, nos Estados
Unidos, na década de 60, um impulso com os Programas de Ação Comunitária. (Cf. ROCHA,
1979). A intenção desses programas era que, através da participação popular e de
oportunidades sociais, “[...] os problemas sociais, com suas lutas e tensões, seriam minorados
e superados” (ROCHA, 1979, p. 7).
Tentando situar politicamente as práticas comunitárias em Saúde, Paulo Rocha,
fazendo referência a trabalho de Donnangelo, diz:

[...] a alternativa da medicina comunitária surge [...] como uma tentativa de


preencher os ‘vazios’ na estrutura de produção dos serviços médicos, com
extensão do consumo desse produto, simplificação de recursos
(barateamento de custos) e, ao mesmo tempo, fundamentalmente, com
ampliação de suas funções ideológicas e políticas, hegemonicamente, no
processo de ‘medicalização’ da sociedade (ROCHA, 1979, p 8).

O autor da dissertação, ao procurar definir as determinações que fizeram emergir a


“alternativa comunitária” em psiquiatria, situa importantes influências da “[...] série de
transformações sócio-econômicas-políticas, a partir da 2a. Guerra mundial, que repercutiram
diretamente nas formas organizacionais da Medicina [...]” (ROCHA, 1979, p. 9).
Na Inglaterra, em 1959, e nos Estados Unidos, em 1963, são editadas leis que
mudaram a forma de tratar em psiquiatria. As preocupações, nos dois casos, eram a
precariedade da assistência e a necessidade de cortar gastos. (Cf. ROCHA, 1979). Nos
Estados Unidos ganha força a proposta de

[...] aplicação dos princípios preventivistas em Psiquiatria com atuação na


comunidade, através dos centros comunitários de saúde mental. Estavam
lançadas as bases oficiais para a ampla extensão dessa política de saúde
mental, nos EUA e, conseqüentemente, a importação desse modelo, pela
dependência econômico-social, para a América Latina ao final da década
passada (ROCHA, 1979, p. 10).
103

De acordo com o autor que vem sendo citado, a sociedade americana passava por uma
crise, na época das propostas descritas acima, com incidência na forma de lidar com os “[...]
conflitos e tensões sociais resultantes de determinantes mais profundos e estruturais na sua
formação social” (ROCHA, 1979, p. 11). Característico da forma de os Estados Unidos
lidarem com seus problemas, predominava, com abordagem dos mesmos, a “[...] concepção
funcionalista que entende os problemas sociais, como resultantes de um ‘desvio’ ou
‘desajuste’ de uma pressuposta e dada sociedade equilibrada, estável, funcionando
harmonicamente [...]” (ROCHA, 1979, p. 11). Surgem as propostas de atacar os focos de
problemas, como, por exemplo, a pobreza, dentro dessa visão funcionalista.
A pobreza, então, não teria sua resolução com base nas origens da desigualdade, mas
“[...] dando ‘oportunidade’ de participação social: acesso a escolas, acesso a habitações,
acesso à assistência médica, acesso a centros comunitários para melhoria da saúde mental
[...]” (ROCHA, 1979, p. 11). A América Latina absorve, como conseqüência da dependência,
segundo Paulo Rocha, “[...] essas práticas de saúde, [...] a partir de 1960, com grande ajuda
dos organismos internacionais – OMS/OPAS” (ROCHA, 1979, p. 12), com os problemas
decorrentes da importação de modelos de Saúde.
Talvez tentando encontrar trabalhos que fugissem da lógica de repetição de modelos, o
autor da dissertação cita Lubchansky, argentino, que desenvolveu um trabalho comunitário a
respeito do qual saiu uma publicação em 1972. Lubchansky, segundo Paulo Rocha, dizia que

[...] é a prevenção primária, ao considerar a saúde como uma variável


dependente, a que colocaria mais em xeque, conflitivamente, o trabalho dos
profissionais na área, pois o situa face a face, dentro do esquema proposto
de evitar/controlar os fatores causais, com as questões estruturais da
sociedade – modelo econômico/político vigente [...] (ROCHA, 1979, p. 21).

Estamos vendo, na dissertação de Paulo Rocha, o nosso recorrente tema do aspecto de


controle que tem as ações de Saúde Mental na comunidade e as possibilidades de escapar
desse destino, mesmo enquanto agentes ligados ao serviço público.
Paulo Rocha, ao destacar os autores brasileiros que fundaram a psiquiatria social
lembra de Ulysses Pernambucano como o precursor. (Cf. ROCHA, 1979).
O autor da dissertação cita um trabalho de Lucena, de 1978, no qual este autor dá
como características da psiquiatria brasileira, na época:
104

- difusão nacional do importante esforço de mudança do estilo do hospital


psiquiátrico (de custodial para terapêutico);
- demonstração da miséria da assistência ao doente mental no Brasil;
- diretrizes de orientação comunitária, social e preventiva (se forem
seguidas) no âmbito da assistência psiquiátrica da Previdência Social;
- reconhecimento da significação das ciências sociais como uma das bases
das ações da ação do psiquiatra. (ROCHA, 1979, p. 21).

Sempre situando o problema da assistência psiquiátrica no campo político, Paulo


Rocha cita Leme Lopes que, em 1972, dizia da importância do “[...] trabalho psiquiátrico
como agente de transformação social [...]” (ROCHA, 1979, p. 26).
O autor da dissertação situa a importação dos modelos de saúde comunitária dentro da
necessidade, que será questionada, de dar conta da questão da marginalidade. (Cf. ROCHA,
1979). O primeiro modo de ver a marginalidade, que o autor descreve, é o funcionalista, que a
compreende como uma disfunção que se resolverá pela integração dos marginalizados ao
sistema social colocado como modelo a ser incorporado. (Cf. ROCHA, 1979). Por outro lado,
há o que Paulo Rocha descreve como “[...] uma visão estrutural, histórica, que busca
apreender o fenômeno da marginalidade como decorrente de formas de inserção num sistema
produtivo, ao nível das relações sociais de produção” (ROCHA, 1979, p. 29).
As diferentes formas de conceber a marginalidade resultará em diferentes modos de
propor e praticar a participação, tema básico para as propostas de saúde comunitária. A
participação será instrumento de modernização conservadora ou será a base mesmo do
trabalho comunitário, aberto a mudanças não previstas. Segundo Paulo Rocha, de acordo com
a pesquisa bibliográfica que realizou, os trabalhos de saúde comunitária são em geral
funcionalistas, com alguns esforços para que transitem para o enfoque estrutural. (Cf.
ROCHA, 1979).
Paulo Rocha depreende, da sua análise dos programas comunitários de Saúde Mental
na América Latina, que a participação popular neles tem aspectos mistificadores, ideológicos,
manipuladores. A participação é, então, citando Ulloa, uma “[...] forma de
pseudoparticipação, organização da pobreza no sentido adaptativo de diminuir as tensões
sociais” (ROCHA, 1979, p. 47).
Paulo Rocha, no terceiro capítulo da sua dissertação, discorre a respeito da
organização de programas de psiquiatria comunitária e de seus embasamentos teóricos. Para
isso, analisa alguns Programas de Psiquiatria Comunitária e de Saúde Mental em alguns
países da América Latina.
105

Ao citar as transformações na Saúde Mental no Chile, o autor da dissertação reafirma


a influência decisiva do momento histórico do país na determinação dos rumos dos programas
de Saúde. (Cf. ROCHA, 1979). Paulo Rocha cita Marconi, que se interroga, em trabalho de
1973, se seria necessária uma etapa intermediária entre o mundo feudal do asilo e a “[...]
solução nacional, maciça, intracomunitária.[...]” (ROCHA, 1979, p. 52). Da etapa
intermediária constariam os serviços de psiquiatria nos hospitais gerais e as unidades de saúde
mental. O autor que Paulo Rocha cita deixa uma interrogação muito atual: “Vivemos uma
revolução em saúde mental, porém... revolução tecnocrática ou revolução cultural?”
(ROCHA, 1979, p. 52).
Ainda o mesmo autor, Marconi, segundo Paulo Rocha, assinalava como princípios
gerais para “[...] projetos de programas integrais em saúde mental [...]” (ROCHA, 1979, p.
54) que “[...] o ponto de partida segue sendo a cultura popular; o diálogo criativo
comunidade-técnico é o motor central das mudanças [...]”, e que “[...] em nossos programas
partimos dos recursos existentes na área e não dos que deveriam existir, para iniciar a ação
[...]” (ROCHA, 1979, p. 54). Além desses princípios, a troca de informações e saberes com a
comunidade é ponto prioritário. (Cf. ROCHA, 1979).
Ao criticar o Programa de Saúde Mental implantado em Cáli, na Colômbia, Paulo
Rocha, numa discussão muito atual, diz que ele é

talvez o melhor exemplo da visão funcionalista na análise da realidade


social latino-americana e, especificamente, na área de saúde mental,
trazendo como conseqüência dessa orientação, concepção e propostas de
programas de psiquiatria comunitária de caráter eminentemente
profissional-burocrático, buscando solução, não pela participação ativa e
decisória da comunidade, mas através de melhor assistência pela
racionalização de recursos, ênfase no treinamento de técnicos-profissionais
especializados, etc, etc. (ROCHA, 1979, p. 63).

Ao chegar, na sua pesquisa e análise, ao Brasil, Paulo Rocha começa por situar a “[...]
Campanha Nacional de Saúde Mental esboçada a partir de 1964” (ROCHA, 1979, p. 67)
como representante direta das “[...] proposições norte-americanas sobre assistência aos
doentes mentais (Kennedy, no Congresso em 1963), bem como da nossa situação político-
econômica vigente pela implementação do novo governo militar” (ROCHA, 1979, p. 67).
Mesmo com um discurso onde aparece a intenção de desenvolver a “psiquiatria preventiva”, a
Campanha Nacional de Saúde Mental “[...] constituiu-se basicamente num plano hospitalar-
psiquiátrico, privilegiando as instituições hospitalares no sentido de internações, reforçando a
106

velha prática assistencial asilar” (ROCHA, 1979, p. 68). Em contraposição ao estabelecido,


Paulo Rocha cita os trabalhos de Luiz Cerqueira, (Cf. ROCHA, 1979) uma voz ativa em um
período especialmente difícil, como vimos páginas acima.
Paulo Rocha considera que foi com a “[...] elaboração de um projeto de serviço de
saúde mental comunitária no Centro Médico São José do Murialdo, nos arredores de Porto
Alegre [...]” (ROCHA, 1979, p. 71), que, no Brasil,

lançavam-se bases concretas de programas comunitários em Psiquiatria, nos


moldes dos programas anteriormente descritos do México, Cáli, entre
outros, de unidades de saúde mental integradas em serviços de saúde
pública (ROCHA, 1979, p. 71).

Paulo Rocha, a exemplo de Luiz Cerqueira, cita a tese de Ellis Busnello, “Integração
da Saúde Mental num Sistema de Saúde Comunitária” como de grande importância para a
compreensão dos inícios da Saúde Mental Comunitária, fazendo da tese, talvez, o ponto
central de seu estudo. (Cf. ROCHA, 1979).
A dissertação de Paulo Rocha, sempre com a atenção voltada para os conceitos que
embasam os trabalhos no que eles têm de ruptura com as formas alienantes de tratamento ou
sua repetição, é bastante crítica em relação ao trabalho de Busnello, desde o início das suas
observações. Por exemplo, detecta que Busnello ainda estava utilizando o antiquado binômio
saúde/doença e, além disso, “[...] colocado dentro de um prisma dos mais criticados
ultimamente: a adaptação” (ROCHA, 1979, p. 73).
Paulo Rocha percebe que Busnello, ao iniciar as ações de psiquiatria na comunidade,
o fez, seguindo “[...] os princípios gerais de implantação dos centros comunitários de saúde
mental conforme desenvolvidos nos EUA, na década de 60, estudando possibilidades de
adaptação dos mesmos ao nosso contexto sócio-cultural” (ROCHA, 1979, p. 76). Busnello
recai em repetições de modelo e em reforço do conceito de doença mental mesmo com as
boas intenções que demonstra ao criticar o modelo assistencial dominante na época, que
privilegiava as internações. (Cf. ROCHA, 1979).
Observando as bases conceituais de Busnello e sua prática e, mais uma vez mostrando
o que parece ser um dos focos principais de atenção da dissertação, o grau de participação da
comunidade nos Programas de Saúde Mental que se propõem comunitários, Paulo Rocha diz
que “Chama nitidamente a atenção nesses fundamentos a ausência da comunidade como
agente principal nesse trabalho, no sentido de participação ativa e decisória em todos os
níveis” (ROCHA, 1979, p. 77).
107

Apesar de já haver uma preocupação, no trabalho de Busnello, em treinar líderes


comunitários, segundo Paulo Rocha é ao ambulatório que cabe, nele, a função principal. O
acento, portanto, é na equipe, e no trabalho prioritário na esfera mental. (Cf. ROCHA, 1979).
Paulo Rocha, em diversas passagens de seu texto, critica a ênfase exclusiva que
Programas de Saúde Comunitária dão ao campo psicológico, enquanto entraves e soluções
para os problemas. Desta forma, Paulo diz que a colocação da solução dos problemas na
mudança psicológica, seja da população, seja dos profissionais, deixa de levar em conta as
“[...] preocupações com a análise e articulação de estudos dessas situações com as estruturas
sociais e políticas e seus determinantes econômicos vigentes” (ROCHA, 1979, p. 82).
Para concluir sua observação a respeito do trabalho no Sistema Comunitário de Saúde
da Unidade Sanitária Murialdo, Paulo Rocha diz que “[...] o papel das comunidades nesse
modelo de programa nos parece passivo e receptivo” (ROCHA, 1979, p. 82).
Paulo Rocha define como o “objetivo maior” de sua dissertação, “[...] traçar
coordenadas gerais, críticas, a partir dos estudos mais pormenorizados de cada programa
modelo, sobre as formas organizacionais desses programas na América Latina” (ROCHA,
1979, p. 84). Para dar conseqüência a essa proposta, Paulo cita Marconi, que diz que “[...]
existem três modelos teóricos básicos: asilo-hospital psiquiátrico, unidade de saúde mental e
programa integral de saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 84). Esses modelos acompanhariam a
“[...] estrutura sócio econômica de uma sociedade determinada” (ROCHA, 1979, p. 84). A
cada um desses modelos corresponde uma concepção do Homem, da sociedade e da
participação da comunidade nos serviços de Saúde. Apenas o último modelo define que a
comunidade deve gerir o serviço de Saúde, que é seu. (Cf. ROCHA, 1979). É freqüente que
convivam os três modelos em situações de transição.
Paulo Rocha cita mais uma vez Marconi, que opinava, já em 1976, que ao invés de
instalar “[...] unidades de saúde mental, com recursos institucionais tecnificados e em mãos
de profissionais de saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 87), deveria ser desenvolvido “[...]
programa de baixo custo, de acelerada difusão, de dinâmica interna alta, que utilize recursos
locais” (ROCHA, 1979, p. 88). As discussões que despertam as últimas citações estão no
nosso cotidiano: instalar como prioridade estruturas pesadas e que requerem alto investimento
ou aproveitar, também, o que já existe na Atenção Básica, potencializando-a para o trabalho
em Saúde Mental?
Paulo Rocha traça, já nos seus Comentários Finais, um interessante paralelo entre as
ações da Saúde Pública e as táticas de guerra, mais uma vez com a intenção de verificar o
quanto de dominação está sendo estabelecido pelos serviços de Saúde. Desta forma, entre
108

1930 e 1950 “[...] emerge o conceito de controle [...]” (ROCHA, 1979, p. 97) e entre as
décadas de 50 e 70 “[...] surge marcadamente o novo conceito: vigilância” (ROCHA, 1979, p.
98). Esta forma de situar o problema das ações de Saúde serve de base para que o autor da
dissertação entre no estudo das implicações político-ideológicas das práticas de psiquiatria
comunitária.
O primeiro autor que Paulo Rocha estuda é Caplan, de quem retira como bases para o
trabalho em prevenção primária, a psicologia do Eu e estudos de adaptação realizados no
exército americano, ambas conduzindo ao controle dos desvios. (Cf. ROCHA, 1979). A
prevenção para Caplan, segundo Paulo Rocha, é evitar o aparecimento de casos novos. Para
esse fim, inclusive, deveriam ser utilizadas técnicas de eugenia.
Caplan, de acordo com Paulo Rocha, coloca a situação sócio-econômica das pessoas
ao lado de características como sexo, idade e raça, portanto sem possibilidade de mudança.
Para concluir o que percebe em Caplan, Paulo Rocha diz:

É marcante a concepção funcionalista, ao colocar a Psiquiatria como


realizadora do ‘equilíbrio social’ que encontra-se desajustado, ‘desviado’,
por comportamentos ‘inadaptados’ dos indivíduos numa sociedade
(ROCHA, 1979, p. 103).

Paulo Rocha, ao estudar o que Blaya publicou, na década de 70, destaca que esse autor
fez uma comparação entre a psiquiatria que queria ver comunitária com a psiquiatria que foi
praticada na Segunda Guerra Mundial, já com os ensinamentos obtidos durante a Primeira
Guerra Mundial. (Cf. ROCHA, 1979). Também adaptativa, a psiquiatria comunitária que
Blaya sustentava não esconde a sua condição de mantenedora da ordem. Paulo Rocha cita
palavras muito significativas de Blaya: “[...] os princípios de organização são os mesmos
experimentados na guerra, com uma adaptação às condições sociais que desejamos servir”
(ROCHA, 1979, p. 104).
Paulo Rocha, apresentando o que percebeu em Hochmann, critica-o por observar que,
ao situar nas relações interpessoais o problema da saúde mental e suas dificuldades, poderia
estar isolando essas relações da dinâmica da sociedade e reduzindo “[...] a problemática da
loucura nesse nível de ‘interpessoalidade’ com um caráter de nítida psicologização,
escamoteando, evidentemente, outros determinantes” (ROCHA, 1979, p. 107). Os serviços
psiquiátricos organizados com base nessa concepção de Hochmann seriam, então, mais do
que qualquer outra coisa, uma “[...] rede ideológica” (ROCHA, 1979, p. 107).
109

Paulo Rocha recorre a Basaglia para continuar a situar o problema do desvio e seu
controle no campo econômico. As instituições psiquiátricas seriam, para Basaglia, segundo
Paulo, correlatas ao tipo de desenvolvimento do capitalismo, a cada momento dado. (Cf.
ROCHA, 1979). Na linha de pensamento de Basaglia, ao descrever como as ações
comunitárias lidam com o “social”, Paulo Rocha afirma:

Se nos limitarmos a considerá-lo como um simples conjunto de interações


psicológicas manipuláveis segundo uma técnica particular e não como um
conjunto das relações sociais de produção, se acaba por esquecer o jogo em
cujo interior continuaremos seguindo: a nova técnica psiquiátrico-social
surgida em oposição à rígida gestão institucional de enfermidade mental, se
converte na realidade em uma nova forma de manipulação que encobre, sob
a máscara da técnica, seu profundo significado de controle social (ROCHA,
1979, p. 112).

Ao concluir sua monografia, Paulo Rocha não fecha completamente as possibilidades


de que os programas da então chamada Psiquiatria Comunitária possam trazer mudanças que
sejam de interesse das populações. Apesar de suas pertinentes críticas às suas bases
ideológicas controladoras da Psiquiatria Comunitária, Paulo afirma que “[...] esses programas
de psiquiatria comunitária trazem necessariamente, no seu bojo, questões novas como a
participação e organização da população em torno de suas questões de saúde, abrindo
possíveis canais de reivindicação popular [...]” (ROCHA, 1979, p. 118). O autor da
monografia também reconhece que a Psiquiatria Comunitária traz avanços em relação ao asilo
e à organização da assistência como meio de lucro. (Cf. ROCHA, 1979).
Da sua extensa pesquisa, Paulo Rocha conclui que, na América Latina, naquele
momento, os programas estavam “[...] longe ainda de perspectivas ditas intracomunitárias,
integrativas, com real organização e participação da população” (ROCHA, 1979, p. 119).
Com essas palavras, Paulo mostra a sua expectativa e indica as características que devem ter
as ações de Saúde Mental praticadas em benefício das populações assistidas: “[...]
intracomunitárias, integrativas, com real organização e participação da população” (ROCHA,
1979, p. 119).

5.2 Precursores Brasileiros.

Com as origens das propostas de aproximação da Saúde Mental com as comunidades


esboçadas, passemos às práticas e idéias brasileiras.
110

Podemos destacar, no Brasil, o psiquiatra Luiz Cerqueira como um dos primeiros


profissionais de Saúde Mental que conceituou, propôs e tentou colocar em prática algo
diverso da psiquiatria organicista: uma prática social em Saúde Mental. No seu artigo “Raízes
e Tendências da Psiquiatria Social no Brasil”, de 1978, republicado no seu livro de coletânea
“Psiquiatria Social – Problemas Brasileiros de Saúde Mental”, de 1984, Cerqueira cita seu
mestre Ulysses Pernambucano, que, segundo ele, foi o precursor, no Brasil, das proposições
de uma psiquiatria social. Como ilustração, nesse artigo, Cerqueira cita as palavras do mestre:

O que desejam os neuro-higienistas é que os homens de governo se


capacitem de que a política de internar doentes, augmentar hospitais,
desenvolver colonias sem cuidar de prevenir doenças mentaes, de combater
as causas de psycopatias é tão errônea quanto o seria a que construisse
hospitaes para doenças contagiosas e não tratasse de evitá-las
(CERQUEIRA, 1984, p. 24).

Notam-se, no texto, a crítica à internação e o chamamento para que a psiquiatria se


interesse pelo mundo que rodeia o chamado doente mental. Ressalvas podem ser feitas ao
texto, mas o que ficou, segundo Cerqueira, foi o exemplo de Ulysses Pernambucano como
“[...] um psiquiatra com alma de sanitarista, descompromissado com o modelo médico-
privado-curativo exclusivo” (CERQUEIRA, 1984, p. 25). Ao fazer o elogio de seu professor,
Cerqueira o vê como profético, mas também o é, quando diz:

Vemos também nestas palavras algo de profético em que serão reduzidas,


um dia, todas as tendências da psiquiatra social, integrando saúde mental em
saúde pública, através dos centros comunitários de saúde mental ou coisa
que o valham, como, por exemplo, trabalhadores psiquiátricos em todos os
centros de saúde (CERQUEIRA, 1984, p. 25).

Apesar de ainda oscilar para a designação “trabalhadores psiquiátricos”, Cerqueira vê


a Saúde Mental integrada à Saúde Pública. O valor dessas palavras também está na sua
abertura, ao não fechar sua visão privilegiada numa só proposta, quando diz “através dos
centros comunitários de saúde mental ou coisa que os valha”. Com esse “ou coisa que os
valha”, Cerqueira mostra que olhava para o horizonte, sabia que lá existiriam novas ações em
Saúde Mental, mas não sabia exatamente quais seriam, nem se arvorava a isso. Deixava o
caminho aberto para as invenções, a criatividade e a surpresa.
Como raízes da psiquiatria social, Cerqueira lista a Sociedade de Higiene Mental de
Connecticut, EEUU, a psicobiologia, a fenomenologia, a psicologia não comprometida com
111

condicionamentos para controles sociais, a sociologia e a psicanálise, principalmente as suas


contribuições para o trabalho com grupos. (Cf. CERQUEIRA, 1984).
No modo de ver de Luiz Cerqueira, a psiquiatria aproximou-se da Saúde Pública
depois que “[...] os sanitaristas reformularam seus conceitos estanques de profilaxia,
terapêutica e reabilitação, integrando-os dinamicamente em prevenção primária, secundária e
terciária” (CERQUEIRA, 1984, p. 26). Interessante observar o que pensava Cerqueira, a
respeito do futuro da psiquiatra comunitária, enquanto ideal dos psiquiatras sociais: “A
assistência psiquiátrica absorvendo e identificando-se tanto com os aspectos sociais, que não
mais seria possível falar em psiquiatria social” (CERQUEIRA, 1984, p 27). Novamente, aqui,
a visão de futuro em aberto e que traria mudanças profundas, mas ainda não vislumbradas.
O que fazemos hoje, na Saúde Mental na Atenção Básica, está claro para nós, não é
psiquiatria comunitária, bem como não são ações praticadas exclusivamente pelos
profissionais de Saúde Mental. A diluição potencializadora, prevista por Cerqueira, está em
andamento, e o seu mérito também é o de - atitude corajosa - prever a transformação da sua
própria identidade profissional.
Cerqueira especula a respeito da demora da integração psiquiatria/saúde pública e vê
na dicotomia clínica/higiene, dos inícios da saúde pública, um dos seus determinantes. Até
hoje essa divisão está presente, embora de forma menos intensa. Por exemplo, na Saúde
Mental, a maioria dos profissionais da rede pública ainda foi formada apenas para a clínica.
Continuando a prestar homenagem a Ulysses Pernambucano, Cerqueira diz que em
1939, viu em Barreiros, Pernambuco, organizados pelo mestre

alguns pacientes se auto dirigindo como parte do programa da Colônia: na


periferia da fazenda, visitados pelo médico, em casas como as que eles
construíam em sua terra, cultivando suas roças, pescando no rio, cozinhando
os próprios mantimentos e os que iam buscar na sede (CERQUEIRA, 1984,
p. 28).

Salvo o fato de estar nos terrenos de uma Colônia, o que está colocado acima é o que
hoje estamos organizando sob o nome de “Serviço Residencial Terapêutico”.
Ulysses Pernambucano implantou, em 1931, o Serviço Aberto - uma forma de evitar a
internação psiquiátrica, que retirava os direitos civis das pessoas - abriu o primeiro
Ambulatório de Psiquiatria do Brasil e organizou a primeira equipe multiprofissional e uma
“[...] ação comunitária extra-hospitalar” (CERQUEIRA, 1984, p. 29).
Como tendências da psiquiatria social, Cerqueira aponta a psiquiatria de setor
(Lebovicci, Paumelle, Ajuriaguerra), a psiquiatria democrática (Basaglia), a psiquiatria
112

preventiva (Kaplan), a psiquiatria administrativa (Clark), a psiquiatria compreensiva e a


psiquiatria comunitária “[...] de muitos, de toda parte, sem se preocuparem com definições
acadêmicas” (CERQUEIRA, 1984, p. 29). Para Cerqueira, o mais importante autor, porém, é
Maxwell Jones, que recusava definições para a psiquiatria social.
Cerqueira aponta o que existe de comum nas correntes citadas, num resumo atual e até
mesmo um guia de estudo:

[...] ideologicamente, sem reducionismos, todas concebem etiologias e


terapêuticas biopsicossociais; advogam prevenção, amarrada nos 3 níveis –
primário, secundário e terciário – preocupando-se, como os sanitaristas,
com cobertura da demanda não satisfeita; organicamente aceitam
centralização normativa e descentralização executiva, em decorrência dos
princípios de regionalização, coordenação e integração, com vistas aos fins
e não aos meios; consagram a equipe multiprofissional; realizam tanto
atendimentos individuais como grupais; adotam da psicanálise a teoria do
inconsciente com os mecanismos de defesa da personalidade para a
compreensão da conduta, normal ou patológica, numa visão psicodinâmica;
tentam nova abordagem da comunidade, sem onipotências; enfim, rasgam o
modelo médico-clínico-excusivo – na verdade, para nós, enriquecendo-o
com uma consciência social (CERQUEIRA, 1984, p. 30).

Do Brasil, Cerqueira cita Ellis Busnelo, que produziu a tese “A Integração da Saúde
Mental num sistema de saúde comunitário”, em 1976, na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, baseada na experiência de Murialdo. (Cf. CERQUEIRA, 1984).
Em termos de análise do que estava ocorrendo na organização da assistência à Saúde
Mental no país (lembremos, o texto é de 1978), Cerqueira aponta o que os poderes
dominantes ainda tentavam esconder: a privatização da assistência, isto é, o que chamou de
“indústria da loucura”, levaria os cofres públicos à insolvência e à destruição de muitas vidas:
“Não mais de 10 anos e a empresa de saúde terá comido a galinha dos ovos de ouro, que é a
Previdência Social. O colapso virá” (CERQUEIRA, 1984, p. 32). Cerqueira percebe que, com
o que já se gasta com internações psiquiátricas, “[...] já podíamos ter um funcionamento
harmonioso, em moldes de vasos comunicantes, todo um sistema hospitalar conjugado com
um extra-hospitalar” (CERQUEIRA, 1984, p. 32).
Luiz Cerqueira apresentou, no V Congresso Mundial de Psiquiatria, no México, em
1971, um artigo que consta de seu livro de 1984. Trata-se de “Resistências às Práticas
Comunitárias”. (CERQUEIRA, 1984). Nele, Cerqueira vai buscar em Hipócrates “[...] as
resistências às práticas comunitárias [...]”, já que “[...] o caráter individualista da profissão
médica ainda hoje é ensinado aos psiquiatras, ensejando uma série de racionalizações, para
postergar o advento das socioterapias” (CERQUEIRA, 1984, p. 106).
113

Luiz Cerqueira diz que os obstáculos colocados pelos interesses da indústria da loucura
já não são novidade, preferindo analisar outras resistências, “[...] como a de certos sanitaristas,
esmagados com as endemias, a se recusarem, de modo geral, a admitir saúde mental em suas
preocupações” (CERQUEIRA, 1984, p. 107) e, “[...] a mais grave das resistências [...] a
generalizada dificuldade dos psiquiatras em considerar saúde mental como um problema de
saúde pública” (CERQUEIRA, 1984, p. 107).
Luiz Cerqueira tem um artigo, publicado no livro que está sendo citado, que é um
relatório que apresentou ao “Simpósio de Psiquiatria Comunitária”, que aconteceu em junho
de 1975, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Cf. CERQUEIRA, 1984). Nele,
Cerqueira dá notícia do que estava sendo desenvolvido em São Paulo: uma integração
docente-assistencial, envolvendo Universidade e Coordenadoria Estadual de Saúde Mental,
com a criação de “[...] uma prática de uma psiquiatria setorizada, pré-requisito para o centro
comunitário [...]” e “A possibilidade de aplicação de técnicas de saúde pública com vistas,
principalmente, à prevenção primária” (CERQUEIRA, 1984, p. 258).
Ellis Busnello, em palestra com debates no I Simpósio de Alternativas no Espaço Psi,
que aconteceu em Porto Alegre, em 1981 (Cf. I SIMPÓSIO DE ALTERNATIVAS NO
ESPAÇO PSI, 1982), apresenta a sua participação na experiência pioneira de Murialdo, Rio
Grande do Sul, que começou em 1966, e que integrou a Saúde Mental na saúde comunitária.
Busnello coloca-se como “psiquiatra de comunidade” e diz que “Eu vim falar sobre saúde
comunitária e sobre a integração da saúde mental em serviços comunitários de saúde”
(BUSNELLO, 1982, p 371).
Busnello inicia sua palestra diferenciando medicina tradicional, aquela das práticas
populares, da medicina convencional, dita científica, que atende por demanda, e da saúde
comunitária, que

procura ser abrangente fazendo prevenção, evitando doenças, tratando os


doentes e reabilitando-os. Os três níveis de prevenção clássicos da saúde
pública são atendidos dentro da comunidade. Não só a demanda é atendida,
mas a necessidade total. (BUSNELLO, 1982, p. 374).

Acentuando o conceito de população definida para as ações da saúde comunitária,


Busnello define “[...] necessidade [...]” como “[...] todos os problemas de saúde do grupo [...]”
e “[...] o total de serviços de saúde que a população precisa” (BUSNELLO, 1982, p. 374).
Continuando a marcar a diferença entre o atendimento por demanda e a saúde
comunitária, Busnello diz que “[...] a tradicional postura de um profissional com um paciente
114

deve ser substituída por um ou vários profissionais para alguns milhares de pacientes, para
atender populações e não apenas indivíduos” (BUSNELLO, 1982, p. 375). Recomendava que
“[...] deve-se atender, na saúde comunitária, com técnicas grupais e com auxílio e participação
dos doentes e das comunidades” (BUSNELLO, 1982, p. 375).
Busnello cita pesquisas, então em andamento no Brasil e em outros países, que
adiantavam o que hoje se constatou: “[...] um percentual muito grande de pessoas que vão à
consulta em Postos de Saúde tem definido problema de saúde mental. Esta percentagem varia
de país para país, de cerca de 20% a quase 50%” (BUSNELLO, 1982, p. 376).
Novamente tentando definir saúde comunitária, Busnello diz que “[...] é aquela que
atende uma população definida, de forma integral, continuada, personalizada e participativa”
(BUSNELLO, 1982, p. 377). Chama a atenção para a semelhança com o que está
estabelecido, hoje, para o Programa de Saúde da Família e para o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde, semelhança que se estende ao quantitativo populacional para cada
posto de saúde. Desta forma, Busnello advoga que

A organização sistêmica de um serviço de saúde comunitário inclui a


organização de postos de saúde que atendem, dentro deles mesmos e através
de visitação domiciliar, grupos de cerca de 5.000 pessoas, ou 1.000 famílias
(BUSNELLO, 1982, p. 377).

Busnello diz que o trabalho em Saúde Mental deve ser uma prioridade e, para isso,
argumenta com as estatísticas que mostram o grande número de pessoas necessitando de
atendimento e com o fato de que, muitas vezes, os profissionais de saúde não reconhecem os
problemas ligados à Saúde Mental. (Cf. BUSNELLO, 1982, p. 378).
Busnello chama a atenção, ainda, para a necessidade de atendimento às famílias das
pessoas com diagnósticos mentais, para a urgente saída da postura tradicional das profissões
do espaço psi, para a viabilidade da capacitação do pessoal médico e leigo para o trabalho na
comunidade e para as possibilidades que se abrem com o trabalho em conjunto com os
curandeiros. (Cf. BUSNELLO, 1982).
No mesmo Simpósio em que Busnello proferiu a palestra citada acima, Joel Birman
apresentou um trabalho em que pretendeu equacionar e analisar o que estava sendo colocado
como mais uma reforma da psiquiatria. A explanação de Birman nos interessa muito, na
medida em que retoma o mote em relação às propostas de mudança na Assistência à Saúde
Mental: transformação ou conservação? Senão vejamos:
115

A psiquiatria preventiva e comunitária pretende ser a ruptura com o hospital


psiquiátrico, na medida em que atuando diretamente no espaço social no
conjunto de relações inter-humanas que o estruturam, com o objetivo de
promover a saúde mental e impedir, assim, a organização futura de
enfermidades mentais. [...] A emergência da psiquiatria social como saber e
como prática técnica, foi inclusive assinalada como uma nova era na
história da sociedade ocidental nas suas formas de lidar com a problemática
da doença mental. Assim, a constituição da psiquiatria preventiva e
comunitária foi saudada como sendo a terceira revolução psiquiátrica, que
teria se seguido à liberação mítica dos loucos por Pinel na virada do século
XVIII para o século XIX e à revolução freudiana na aurora do século XX
[...] (BIRMAN, 1982, p. 158).

Consoante com seu rigor conceitual, Birman, para a análise mais aproximada da
questão que está colocada pela psiquiatria preventiva e comunitária, pretende responder a
algumas indagações que considera da maior importância: “[...] de que psiquiatria se fala nisso
tudo, quais são as suas pretensões? E centrada em que forma de sociedade se coloca tudo
isso?” (BIRMAN, 1982, p. 160).
Birman diz que, após uma linha de pesquisa e ação que não questionava a psiquiatria
enquanto instituição, apenas acrescentando etiologias sociais ao que deveria ter resposta pela
psiquiatria estabelecida, surge “[...] um novo limiar na reflexão das relações da psiquiatria
com a sociedade, a partir dos meados dos sessenta [...] sobretudo as implicações da psiquiatria
como prática social até então inquestionável” (BIRMAN, 1982, p. 163). Remontado ao
trabalho de transformação dos Hospitais Psiquiátricos, Birman alude a que a psicoterapia
institucional francesa, nascida revolucionária, “[...] ficou reduzida a uma experiência
reformista de melhorias das condições hospitalares” (BIRMAN, 1982, p. 166), ao contrário da
prática de Franco Basaglia, que questiona o conceito de doença mental. Ao se referir ao
trabalho de Basaglia, Birman diz que

[...] não cabe apenas pensar a relação com a loucura em termos de cura, pois
isso seria continuar no mesmo campo ideológico tradicional que
identificou-a com a doença mental, mas procurar transformar a relação da
sociedade ocidental com a loucura que está cristalizada no asilo e na
exclusão social, já que constituem elementos fundamentais de controle da
marginalidade social e de suas implicações políticas (BIRMAN, 1982, p.
166).

Birman faz essa crítica histórica, para dizer que o mesmo rigor deve recair sobre as
práticas da psiquiatria preventiva e comunitária no que “[...] estas pensam a saída do hospital
psiquiátrico meramente como um problema técnico, sem colocar em questão o conjunto de
116

contradições sociais cristalizadas na solução asilar” (BIRMAN, 1982, p. 167). A advertência


de Birman é que se não estivermos atentos para a crítica que aponta, poderá acontecer

[...] o asilamento do espaço social, com as novas intervenções


preventivistas, que tendem a serem produtoras de demanda psiquiátrica e a
constituir um sistema que tende a reduzir ao psicológico e ao
psicopatológico o conjunto dos comportamentos desviantes e socialmente
anômalos (BIRMAN, 1982, p. 167).

Para chegar ao cerne de suas observações, Birman refere-se às “antipsiquiatrias” e


esclarece que, se Sartre é uma referência comum tanto para Laing e Cooper, quanto para
Basaglia, este, por sua vez, articula-se “[...] ao pensamento marxista na sua tradição italiana,
isto é, na interpretação realizada por Gramsci e na maneira pela qual pensou especificamente
o fenômeno político” (BIRMAN, 1982, p. 168). O que pretende Birman é afirmar a
necessidade da “[...] interrogação sobre a dimensão histórica da instituição psiquiátrica [...]”,
(BIRMAN, 1982, p. 168, grifo do autor), porque com ela “[...] se atinge um novo limiar para
a reflexão das relações entre psiquiatria e sociedade” (BIRMAN, 1982, p. 168).
De Foucault, Birman vai resgatar a compreensão de que

[...] a história da psiquiatria é um momento contemporâneo da história da


loucura. Conseqüência necessária deste enfoque metodológico é que a
doença mental é um momento determinado na história da loucura, e que se
positivou como tal num momento preciso da história ocidental, baseada
num conjunto de razões de ordem política, econômica e social (BIRMAN,
1982, p. 168).

Se “[...] instituição e saber são dimensões do mesmo problema” (BIRMAN, 1982, p.


169), Birman vai ponderar que, se a crítica serve para o asilo, também deve servir para a
possibilidade de controle social através da psiquiatria preventiva e comunitária. (Cf.
BIRMAN, 1982).
Remontando às origens da medicina moderna, de meados do século XVIII ao início do
século XIX (Cf. BIRMAN, 1982), Birman afirma que a psiquiatria já nasceu com ares
preventivistas, enquanto encarregada de manter a ordem nas populações marginalizadas,

[...] que seriam enlouquecidas com mais facilidade, caso não existissem
medidas corretivas adequadas. [...] Foi em relação a esses bolsões de
miséria urbana, produto da própria sociedade capitalista na sua primeira
Revolução Industrial, seja para controlá-los, seja para discipliná-lo e retirar
seu capital explosivo, que a idéia de prevenção se organizou em psiquiatria
(BIRMAN, 1982, p. 172).
117

No Brasil, segundo Birman, o mesmo aconteceu com a psiquiatria, ocupando o papel


de controle daqueles que os poderes dominantes precisavam manter inofensivos. O discurso
preventivista da psiquiatria brasileira vem desde duas origens, com uma função de amortecer
os problemas gerados pelo desemprego. Diz Birman: “Essa massa tinha que ser mantida no
seu lugar, convencida da validade de sua miséria humana e social, disciplinada enfim, para
que não ameaçasse a ordem recente” (BIRMAN, 1982, p 172).
Sem meias palavras, Birman utiliza a sua argumentação foucaultiana, para dizer que
“É na procura das razões políticas e ideológicas, na disciplina de populações marginais que
possam apresentar algum caráter explosivo e que devem se conformar com a miséria humana
e social, que devemos entender o que é prevenção em saúde mental” (BIRMAN, 1982, p.
172).
No texto de Birman, de todos os modos absolutamente necessário, se existe a crítica
pertinente, que adverte para as estratégias do poder e do controle, abrindo possíveis inocentes
olhos para a importância ideológica, social e política das práticas em Saúde Mental, também
existe o que pode ser interpretado como uma crítica paralisante. De uma certa leitura de
Foucault nada escapa, e qualquer tentativa de mudança pode ser vista como nova roupagem
do controle. A respeito desse perigo de uma crítica paralisante, mais típica de alguns ditos
foucaultianos do que propriamente de Foucault, certamente não incluído aí Birman, John
Holloway adverte, após ressaltar a validade das análises de Foucault a respeito das relações
de poder, que

Não há movimento na sociedade que Foucault analisa: muda de uma


fotografia fixa a outra, mas não há movimento. Não pode haver, a menos
que o foco esteja no fazer e na sua existência antagônica (HOLLOWAY,
2003, p. 66).

Voltaremos, mais adiante, a esse aspecto dos efeitos limitadores da crítica inicial às
tentativas de ações de Saúde Mental nas comunidades.
Mostrando a riqueza do I Simpósio de Alternativas no Espaço Psi, de 1981, de cuja
publicação citei os últimos dois trabalhos, existe, também, uma apresentação de um grupo de
voluntários, o GUSP – Grupo Unido de Saúde Pública que, desde 1978, realizava um trabalho
comunitário numa região periférica de Viamão, RS. O trabalho apresentado pelo grupo faz
contraponto, ao mesmo tempo, com as críticas de Birman e com a prática de Murialdo. Desta
forma, define-se como um trabalho que busca “[...] uma mudança social, partindo para uma
118

sociedade mais democrática, mais justa.” (GUSP, 1982, p. 340). Uma de suas referências era
Paulo Freire, como instrumento para elaborar a relação dominador/dominado dentro da
Equipe e com a comunidade (Cf. GUSP, 1982). O grupo definia que “Dentro da área de saúde
mental, o que a gente tem como prioridade é a promoção da saúde mental, num nível de
prevenção primária de saúde” (GUSP, 1982, p. 342), referindo-se a “[...] um novo enfoque de
atuar em saúde, lançado pela Organização Mundial de Saúde, em 1978” (GUSP, 1982, p.
346).
O grupo citado define sua concepção de promoção de saúde mental: “[...] seria um
estímulo à crença da pessoa na sua capacidade de trabalhar pelas suas coisas, dentro de si, no
seu meio ambiente, para tornar este meio mais favorável à sua evolução” (GUSP, 1982, p.
342).
Portanto, temos um grupo politizado, atualizado em relação aos documentos
internacionais, atuando em uma área pobre, fazendo a crítica constante do próprio trabalho e
percebendo a dimensão política do mesmo. E isso tudo num momento difícil da vida nacional.
Em relação à experiência de Murialdo, numa reposta específica quanto às diferenças de
enfoque, a resposta que o representante do GUSP deu foi:

O trabalho de Murialdo partiu de um modelo norte-americano que utiliza


basicamente a medicina simplificada, quer dizer, é a medicalização das
doenças. O nosso modelo parte de uma busca de alternativas apropriadas.
Se nós temos uma tecnologia que se poderia chamar de imprópria àquela
comunidade, porque lá tem uma outra cultura, uma outra série de
símbolos e de relacionamentos que diferem da nossa, então nós buscamos
criar uma tecnologia apropriada à nossa vida e à Vila (GUSP, 1982, p.
346).

5.3 Trabalhos atuais.

Iniciando a aproximação com textos e práticas mais atuais, temos um esclarecedor


artigo de Antonio Lancetti, escrito entre 1987 e 1988, em que ele se propõe a “[...]
problematizar a prevenção que incide e insiste nas nossas práticas psicoafins” (LANCETTI,
1989, p. 76).
Para iniciar sua argumentação, Lancetti cita Gerald Caplan, que, no seu livro
“Princípios de Psiquiatria Preventiva”, define a psiquiatria preventiva como caracterizada por:

1-Programas para reduzir (não curar), numa comunidade, os transtornos


mentais (Prevenção Primária);
119

2-Programas para reduzir a duração dos transtornos mentais (Prevenção


Secundária);
3-Programas para reduzir a deterioração que resulta dos transtornos mentais
(Prevenção terciária) (LANCETTI, 1989, p. 77).

Para fazer incidir com mais nitidez sua crítica, Lancetti tenta perceber qual o conceito
de transtorno mental com que trabalha Caplan e cita o autor norte americano: “[...]
inadaptação ou desajustes aos princípios sociais e aos valores da cultura” (LANCETTI, 1989,
p. 77). Deste modo, Caplan se insere na linha da psiquiatria tradicional, que ignora qualquer
determinação do sofrimento mental que possa questionar as estruturas sociais. Lancetti
também considera a Declaração de Alma Ata na mesma linha, que supõe a “[...] comunidade
harmônica” (LANCETTI, 1989, p. 78).
Surge, portanto, o preventivismo como o fantasma teórico do qual temos que nos
afastar, caso a opção seja por uma prática que pretenda gerar movimentos autônomos nas
comunidades, afirmar diferenças, respeitar as culturas locais.
Lancetti desenvolve, no texto, ácida crítica ao preventivismo, do que temos o seguinte
exemplo:

A promiscuidade conceitual do preventivismo gera um objeto primordial que


visa à neutralização do conceito de classe social, a despolitização dos
movimentos comunitários, sua intencionalidade e eficácia consiste na captura
dos movimentos autogestivos e a produção de sujeitos carenciados
(LANCETTI, 1989, p. 84).

Tornando positivo o que está negado no trecho acima, podemos traçar algumas
diretrizes para nossas ações de Saúde Mental na comunidade. Ficaríamos com: reconhecer o
conceito de classe social, estimular a politização dos movimentos comunitários e
autogestivos, eximindo-nos de conduzi-los. Por último, estabelecer dispositivos de produção
de sujeitos potentes.
Diante de tantas críticas e, ao mesmo tempo, tantas propostas de trabalho em Saúde
Mental, temos que fazer perguntas que de certo não terão respostas imediatas, mas que devem
nortear nosso trabalho diário: quais são os parâmetros que nos informam a respeito de se
estamos ou não controlando a comunidade? Quais os indicadores que evidenciam que as
nossas ações estão colaborando para a emancipação da comunidade? Indicadores existem
diversos: número de internações, número de suicídios, ocorrências de violência, prevalências
e incidências várias. Mas, como avaliar se estamos sufocando os protestos inconscientes ou
levando-os a produzir mudanças?
120

Algumas visitas domiciliares realizadas, em 1976, por um pequeno número de


estudantes e residentes da Universidade Federal Fluminense, do qual fiz parte, impressionou a
todos. Trabalhávamos numa das enfermarias que eram base para o ensino na Universidade e
ficamos todos marcados pela experiência que mostrou que, de dentro do Hospital Psiquiátrico
onde trabalhávamos, não conseguíamos nem a mínima visão a respeito do que estava
acontecendo com os pacientes. (Cf. Pinto, 1998). Porém, a equipe não pôde dar conseqüência
ao que percebeu.
Em 1977, formou-se um grupo de estudos para elaborar o primeiro Programa de Saúde
Mental de Niterói. Na ocasião, discutimos a entrada de profissionais de Saúde Mental nos
Postos de Saúde, principalmente Psicólogos. O Programa, no entanto, se desenvolveu por
outros caminhos.
De 1991 a 1994, trabalhei com a Equipe do Internato Rural da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, na região rural de Resende, Estado do Rio de Janeiro, na condição de
Preceptor de Medicina, na área de Saúde Mental, com vínculo externo à Universidade. (Cf.
INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994).
Das intenções do Internato Rural da UERJ constavam “[...] a integração real entre
Universidade e comunidade, procurando o binômio teoria/prática, estimulando a existência de
uma sociedade mais democrática e igualitária” (INTERNATO RURAL DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994). Até 1992 o Internato recebia
estudantes do último ano de medicina e, depois, também os de nutrição e enfermagem. Os
estudantes faziam o atendimento à população da região serrana de Resende, supervisionados
pelos preceptores. A Equipe do Internato Rural articulava-se com a Secretaria Municipal de
Saúde de Resende para um trabalho integrado.
Na “Justificativa” do Internato Rural encontramos a intenção de “[...] uma política
universitária cada vez mais comprometida com a demanda social e com a realidade histórica
[...]” (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
1994, p. 12), levada à prática com o trabalho interdisciplinar.
Da proposta prática do Internato Rural constava o contato estreito dos estudantes e
preceptores com a comunidade, com destaque para as visitas domiciliares:

A humanização do atendimento a que nos referimos nos objetivos do


presente documento, é consubstanciada pelo uso intensivo da visita
domiciliar às famílias das comunidades da área abrangida. Tal prática foi
em muito potencializada, devido à inserção dos estudantes na vida
comunitária, através da moradia e da participação interativa de ambas as
121

partes (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO


RIO DE JANEIRO, 1994, p. 12, grifo do texto original).

Dentre os “Objetivos” do Internato Rural, destacamos os seguintes:

Garantir aos estudantes o contato e a possibilidade de integração com as


diversas formações das comunidades atendidas, a fim de que lhes sejam
dados a conhecer os determinantes sociais do processo saúde/doença; [...]
Oferecer aos educandos as condições para a realização de ações de saúde de
cunho biológico, individual e coletivo; [...] Dar condições aos alunos de
exercerem uma atuação social mais ampla, através do cumprimento de
projetos de pesquisa do Internato Rural (históricos, epistemológicos,
clínicos e de saúde comunitária) (INTERNATO RURAL DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 13).

Das metas do Internato Rural constavam, dentre muitas outras, as de “Criar cursos de
Agentes de Saúde”, e “Realizar projeto de pesquisa sobre alcoolismo e uso de
benzodiazepínicos” (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO
DE JANEIRO, 1994, p. 14).
A prática do Internato Rural desenvolvia-se, desde 1986, como um verdadeiro
precursor do que mais tarde veio a se constituir como o Programa de Saúde da Família.
Depois que me integrei à Equipe, surgiu a prática da Saúde Mental, desde o início com a
tentativa de questionamento da divisão mente/corpo e seus especialistas.
A respeito da integração do Internato Rural com os Programas do Município de
Resende, na parte dedicada à Saúde Mental há referência à “desospitalização”, à
“desmedicalização”, à abordagem familiar e coletiva do alcoolismo e do uso de
benzodiazepínicos e que o estudo desses temas “[...] tem propiciado com os internos
importantes reflexões que transcendem em muito os limites convencionais da terapêutica,
extrapolando para o campo filosófico e sócio-politico” (INTERNATO RURAL DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 14).
Os temas referidos acima, alcoolismo e uso abusivo de benzodiazepínicos, eram
levantados pela comunidade como suas prioridades.
Do programa do Internato Rural constam as “Atividades com Abordagem
Interdisciplinar”, onde inseri o “Estudo e Prática do Trabalho com Grupos”, o “Estudo e
supervisão da relação profissional de saúde/paciente”, a “Abordagem multidisciplinar do
alcoolismo” e a abordagem à “Dependência de benzodiazepínicos”. (Cf. INTERNATO
RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 27).
122

Ao dar início a essa etapa da minha vida profissional, a bagagem teórica que trazia era
a psicanálise, as teorias psicanalíticas de grupo (principalmente Pichon-Riviére e os
argentinos), Basaglia, Foucault, Goffman (Cf. PINTO, 1998) e um estudo de Filosofia que
chegou em Deleuze e Guattari. Alguns desses autores, dentre outros, como Laing e Cooper,
possibilitaram referências para tentativas de transformação dos hospícios e de modificação do
trabalho ambulatorial, dos quais participei, bem como para a atuação num grupo para a
criação de um Programa Municipal de Saúde Mental (Niterói). Tinha, também, conhecimento
da Declaração de Caracas, com sua recomendação para a atuação no nível primário.
No Internato Rural encontrei, no seu Coordenador em Resende, o Dr. Maurício
Schneider, um companheiro de trabalho com quem pude dialogar e produzir com grande
prazer e criatividade. Maurício vinha de lutas da categoria médica e pretendia levar à prática
uma assistência efetivamente enraizada na comunidade e discutir conceitos e visões de mundo
com os estudantes a respeito da transformação social.
Estava criado, então, um campo de trabalho muito fértil em relação às possibilidades
de praticar uma assistência à saúde com estreito vínculo com a comunidade e com a
colocação em discussão, com a população, dos temas ligados às suas condições de saúde e de
vida.
Observando o que seria possível fazer na área da Saúde Mental, sempre unida às ações
gerais de saúde (as supervisões dos dois preceptores de medicina eram feitas em conjunto),
logo surgiu o estudo, supervisão e modificação da relação profissional de saúde/paciente, com
repercussões tanto do lado da população, quanto do lado dos estudantes.
No trabalho que apresentei no Seminário “Subjetividade e Serviço Público”, na
Faculdade de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, em 1994, “Uma crítica à
Formação na Área de Saúde; uma experiência de ensino no Internato Rural da UERJ”, relato
o modo de atuar do conjunto preceptores/alunos, com as mudanças ocorridas ao longo da
experiência. (Cf. PINTO, 1998). Partindo da modificação da relação profissional de
saúde/paciente, no sentido de uma crítica ao modelo médico curativo estrito, com a rígida
divisão mente/corpo, os estudantes puderam abrir suas percepções para a vida afetiva e social
das pessoas atendidas, passando a observar esses componentes na determinação dos
problemas de saúde. Com a prática constante da visita domiciliar, que teve sua função e
modos de realizar bastante discutidos, a realização de grupos de discussão sobre saúde, nos
Postos, e visitas às lideranças comunitárias, após pouco tempo surgiram, em todas as
localidades onde os estudantes atuavam, fóruns comunitários de saúde. (Cf. PINTO, 1998).
123

No caso do alcoolismo, prioridade para a comunidade, foi desenvolvido um trabalho


de articulação que envolveu os estudantes, auxiliares de enfermagem, famílias e comunidade.
Neste aspecto do trabalho, bem como em outros, os estudantes alternavam os papéis de
profissionais que atendem nos Postos com o de visitadores domiciliares, o que potencializava
a sua possibilidade de visão do conjunto. (Cf. PINTO, 1998).
Em relação ao alcoolismo, apresentei um trabalho, em 1992, para a Equipe do
Internato Rural, como forma de colocar em discussão o que estávamos fazendo, do ponto de
vista da prática e da teoria, desta vez já com influência de Deleuze e Guattari. Partindo de um
pedido da comunidade, para que algo fosse feito em relação ao alcoolismo, interrogo:

Como instalar um dispositivo que, ao lado de promover o tratamento


individual e dar resolutividade aos casos, possa também abrir espaços de
criatividade, de circulação de relações e de encontros (Singularização), e que
possa tornar-se independente de quem o disparou? Esta é a tarefa teórica e
prática (Cf. PINTO, 1998, p. 136).

Com a proposta acima, pudemos articular os atores da cena social e familiar


envolvidos com o alcoolismo, evitando internações, tratando das pessoas e colocando o
assunto em discussão.
Trabalhando no Internato Rural da UERJ, tive a oportunidade de levar à prática uma
articulação entre a teoria e a prática da Saúde Mental, compreendida como parte integrante
das ações gerais de saúde, e aprofundar a visão da importância do trabalho comunitário. Ao
mesmo tempo em que desenvolvia o trabalho no Internato Rural, pude acompanhar algumas
discussões, em Niterói, a respeito da implantação do Programa Médico de Família, que se deu
em 1991, o que tornava o momento bastante instrutivo.
A partir de dezembro de 1994, passei a trabalhar no município de Quissamã, Estado
do Rio de Janeiro, onde se desenvolvia a implantação do “Programa de Saúde Familiar”,
municipal, cujas linhas gerais estavam colocadas no texto “O modelo de saúde familiar de
Quissamã”. Da proposta constava a lotação de médicos e enfermeiros com 40 horas nos
Postos de Saúde, que também contavam com Auxiliares de Enfermagem e Agentes
Comunitários de Saúde. Tratava-se de um modelo similar ao Programa de Saúde da Família.
Quissamã, na época, tinha cerca de 12 mil habitantes.
Em janeiro de 1995 decidimos capacitar, em Saúde Mental, as Equipes do Pronto
Socorro e as Equipes dos Postos de Saúde, com ênfase para os Agentes Comunitários de
Saúde. Todos os momentos da capacitação tiveram como base os casos concretos da vivência
124

diária dos profissionais. Existia um programa para a capacitação, mas todo ele era percorrido
com base em situações do trabalho de cada profissional ou equipe. Os assuntos e casos eram
trazidos pelos membros da Equipe, discutidos, relacionados com o conteúdo do programa e as
novas intervenções eram decididas em conjunto.
Estabeleci, então, uma capacitação para todo o pessoal que atuava na Atenção Básica:
cinco médicos, quatro enfermeiros e 12 Agentes Comunitários de Saúde. (Cf. PINTO, 1997).
A freqüência da capacitação com os Agentes Comunitários de Saúde era quinzenal, com
reuniões de duas horas e meia de duração. De acordo com a minha compreensão, na época,
esta capacitação se deu devido à “[...] necessidade de melhorar o atendimento ambulatorial
em psiquiatria, que encontrei ao iniciar o atendimento no Centro de Saúde” (PINTO, 1997, p.
166). O que estava colocado como intenção era a

[...] transformação do modo de ver o sofrimento psíquico de importantes


formadores de opinião, os Agentes de Saúde. A possibilidade de contar com
Visitas Domiciliares e futuros Acompanhantes Terapêuticos são outros
fatores importantes (PINTO, 1997, p. 166).

Com o desenvolvimento do trabalho, foram aparecendo as situações que eram


desconhecidas do ambulatório: pessoas presas em casa, as fantasias da comunidade em
relação às pessoas psiquiatrizadas, a possibilidade de uma nova inserção dos pacientes na vida
comunitária.
As Equipes passaram a reconhecer melhor e a tratar as situações ligadas à Saúde
Mental, como as queixas vagas, o uso de benzodiazepínicos, o alcoolismo e até alguns casos
agudos. Todas essas situações eram objeto de constante discussão com as Equipes.
Um fato logo chamou a minha atenção, fato que se repetiu, depois, em outros
municípios: a rapidez com que os Agentes Comunitários de Saúde aprendem o conteúdo da
capacitação, mudam suas atitudes e passam a criar e a trazer questões da maior importância
para a vida das pessoas atendidas, das famílias e das comunidades.
Um exemplo significativo da afirmação acima, foi a mudança de atitude da
comunidade em relação a uma pessoa que era constantemente internada em Hospitais
Psiquiátricos, e que não mais se internou após a abordagem realizada. Partindo da elaboração,
pela equipe, através de discussões e de visitas domiciliares com a minha presença, da aura de
perigo que cerca o paciente psiquiátrico, os Agentes Comunitários de Saúde passaram a sair
pelas ruas com a paciente, num processo de reinserção social que envolveu a família, os
vizinhos e o sistema de saúde.
125

Como avaliação, naquele momento, indiquei que

O presente trabalho mostra como, com economia de recursos, é possível


potencializar a capacidade de resolução da Rede de Assistência e ao mesmo
tempo levantar temas importantes a respeito da Saúde Coletiva. [...] Insere-
se também esse trabalho na criação de recursos assistenciais e comunitários,
que criem alternativas às Internações Psiquiátricas (PINTO, 1997, p. 169).

De fato, as internações psiquiátricas diminuíram muito após o início do trabalho, e a


forma como a comunidade via os pacientes psiquiátricos começou a mudar.
Como uma das conclusões do trabalho, está a afirmação de que

O modelo adotado aqui proporciona um campo de ações no qual, ao mesmo


tempo em que são aperfeiçoados os atendimentos, é estabelecida uma
discussão, que tende a se ampliar, a respeito do sofrimento psíquico, da sua
exclusão e dos modos de reincorporá-lo à vida das comunidades (PINTO,
1997, p. 169).

O trabalho desenvolvido em Quissamã foi um dos semifinalistas do Ciclo de


Premiação 1998, da Fundação Getúlio Vargas. (Cf. CADERNOS GESTÃO PÚBLICA E
CIDADANIA, 1998).
Em 1998, iniciei atendimento ambulatorial no município de Carapebus, então com
pouco mais de 14 mil habitantes, vizinho a Quissamã. Logo dei início ao trabalho com os
Agentes Comunitários de Saúde, que faziam parte do PACS. O trabalho seguia os moldes do
realizado em Quissamã, mas com participação de toda a Equipe do Programa Municipal de
Saúde Mental, que ajudei a organizar. Deste consta, na parte de “Treinamento”, em relação
aos Agentes de Saúde:

Treinamento com o objetivo de capacitar os Agentes de Saúde a atuarem no


Programa, onde terão como tarefas:
Visitas Domiciliares,
Acompanhamento Terapêutico,
Recurso Comunitário nas crises,
Membros da comunidade com conhecimento dos recursos da Rede de
Assistência,
Participação nas discussões, com a comunidade, a respeito do sofrimento
psíquico, suas origens e soluções,
Atuação junto às Escolas e familiares, nos casos de distúrbios de
aprendizagem e de comportamento em crianças (PROGRAMA DE SAÚDE
MENTAL DE CARAPEBUS, 1998).
126

Após umas poucas semanas de trabalho com os Agentes Comunitários, tanto em


Quissamã quanto em Carapebus, cada ACS ficou responsável, dentro da sua área, pelas
pessoas com diagnósticos de transtornos mentais graves, principalmente. Também os casos de
alcoolismo eram abordados, juntamente com suas famílias, e os ACS passaram a ser
referência de Saúde Mental nas suas localidades, além de acompanhar pacientes em crises no
Pronto Socorro, colaborando para a mudança de atitude dos plantões em relação a essas
pessoas atendidas. Com a divisão dos ACS pelas suas microáreas de atuação, geralmente
perto de suas residências, cada um desses profissionais passou a ter sob sua responsabilidade
cerca de quatro “pacientes graves”. Esses pacientes eram acompanhados de perto,
semanalmente, pelo menos, resultando em mudanças nas suas inserções familiares e sociais.
Os resultados e limitações das experiências de Quissamã e Carapebus serão
comentados mais adiante.
Depois de abril de 1999, com a atuação da nova gestão da Assessoria de Saúde Mental
da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, passaram a ser realizados, em
conjunto com os Municípios, os Fóruns Regionais de Saúde Mental, sendo que o primeiro foi
realizado em Carapebus. Nesta ocasião, foi destacada a atuação dos Agentes Comunitários de
Saúde na Saúde Mental dos municípios de Quissamã e Carapebus, com um depoimento
emocionado de umas das Agentes de Saúde de Quissamã a respeito do trabalho que estava
desenvolvendo na Saúde Mental.
Após esse Fórum, enviei à Assessoria de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro
um fax avaliando o encontro e sugerindo que, ao lado da prioridade para os CAPS, fossem
também motivos de muita atenção a melhoria das Emergências Psiquiátricas e o investimento
no trabalho com os Agentes Comunitários de Saúde, o qual “[...] produz resultados rápidos,
no que diz respeito ao melhor atendimento de casos graves, controle de altas hospitalares,
reconhecimento da população, formação de multiplicadores de opinião, etc.”
Nessa mesma época apresentei, numa reunião mensal dos Coordenadores Municipais
de Saúde Mental da Assessoria de Saúde Mental do RJ, o trabalho que estava sendo realizado
com os Agentes Comunitários de Saúde nos municípios citados, chamando atenção para a
potencialidade das ações, a grande velocidade de mudança na compreensão e nas ações dos
Agentes de Saúde e a rapidez dos resultados.
No ano de 2000, na condição de Gerente do Programa de Saúde Mental de Macaé,
estabeleci contato com o nível central do Programa de Saúde da Família do município, com a
127

intenção de estabelecer a aproximação dos dois Programas. Também iniciei, junto ao


Secretário Municipal de Saúde, os debates a respeito das ações conjuntas Atenção
Básica/Saúde Mental. Na época, não existiam profissionais de Saúde Mental disponíveis para
o trabalho na Atenção Básica, estando todos atarefados nos ambulatórios. Mas algo já poderia
ser feito. Como primeiras atividades junto às Equipes de PSF, então num total de 12 módulos,
coordenei reuniões de capacitação, para, de um lado, Agentes Comunitários de Saúde e, de
outro, profissionais de nível superior, que tiveram como objetivo informar a respeito do
Programa de Saúde Mental e da rede de assistência, esclarecer os modos de encaminhamento
e a discussão de alguns assuntos de Saúde Mental de escolha das equipes. Esta era uma forma
inicial, ainda precária, de aproximação, mas que foi formando a base do trabalho que se deu a
seguir.
Posteriormente, nesse mesmo ano, tentando suprir a dificuldade de encaminhamento e
de comunicação dos PSF com os ambulatórios, abri um horário de atendimento grupal, junto
com a Assistente Social Maria Luiza Vaccari Quaresma, num dos ambulatórios, para receber
a demanda de pacientes graves do PSF. Recebíamos essa clientela juntamente com os ACS e
familiares, ocasião em que era estabelecida uma discussão, entre todos os presentes, a respeito
das situações de cada família e membro identificado como “paciente”, feita a regularização da
medicação e estudada as possibilidades de mobilização do posto de PSF e comunidade para
atuar em cada situação. Com isso, os ACS estavam sendo capacitados na prática, mas sem
continuidade e acompanhamento constante. Tudo o que era decidido era comunicado, por
ficha de contra-referência, para as Equipes de nível superior dos módulos, e algumas
situações foram discutidas nas suas reuniões de capacitação.
No ano 2000, é lançado o livro “SaúdeLoucura 7, Saúde Mental e Saúde da Família”,
organizado por Antonio Lancetti, que escreve o artigo inicial.
O livro citado teve um papel muito importante na caminhada para o novo papel da
Saúde Mental, que é a sua inserção na Atenção Básica. Foi uma espécie de ponto de encontro
de experiências que se desenvolviam, na época, sem que tivessem uma organização ampla e
até sem conhecimento maior umas das outras. Vamos, então, abaixo, percorrer o artigo de
abertura e alguns outros trabalhos.
No artigo que abre o livro, Lancetti expõe os inícios da aproximação da Saúde Mental
da Atenção Básica, que promoveu no Projeto Qualis/PSF, do Governo do Estado de São
Paulo, a partir de 1998. Depois de descrever os princípios básicos do PSF, Lancetti diz que
“Logo percebemos que essa trama tecida pela organização sanitária era a esteira fundamental
de onde deveria emanar um processo que viesse a produzir saúde mental” (LANCETTI, 2000
128

b, p. 18). Note-se que Lancetti havia sido convidado para “[...] inventar um Programa de
Saúde Mental para o Projeto Qualis/PSF” (LANCETTI, 2000 b, p. 11), tendo optado pela
aproximação com o PSF, após notar as suas características, pela necessidade de “[...] criar
um dispositivo articulado à rede tecida pela organização de saúde [...]” e para “[...] radicalizar
na desinstitucionalização” (LANCETTI, 2000 b, p. 19). Com essa compreensão, utilizou as
“[...] equipes volantes de saúde mental” (LANCETTI, 2000 b, p. 19).
Lancetti e seu grupo decidiram que

[...] não iríamos utilizar nenhum dos dispositivos conhecidos, como


consulta psiquiátrica, psicológica ou visita domiciliar. Esta opção tinha o
intuito de evitar, de raiz, o processo de tratamento da demanda que acaba na
cronificação dos pacientes e dos próprios dispositivos de atenção.
Começaríamos capacitando as equipes de saúde mental e de saúde da
família intervindo nas famílias em maior dificuldade. A responsabilidade
pelo andamento do processo terapêutico recairia em ambas as equipes.
Começamos propositalmente sem psiquiatra. A idéia era cortar pela raiz o
processo de geração de demanda, que começa na consulta e termina no
hospício. (LANCETTI, 2000 b, p. 20).

Como estratégia, a equipe de Lancetti começou a capacitação pelos Agentes


Comunitários de Saúde e a realizar intervenções nas famílias através destes profissionais.
Num primeiro encontro de capacitação era feito um sociodrama, com distribuição de um guia
de saúde mental. (Cf. LANCETI, 2000 b). Havia a intenção de capacitar os ACS como “[...]
amigos qualificados” (LANCETTI, 2000 b, p. 21), segundo Lancetti o “[...] conceito [...] que
deu origem à profissão de acompanhante terapêutico” (LANCETTI, 2000 b, p. 20). No
segundo encontro eram revisadas as cenas do primeiro, com correlação com o texto e, no
terceiro, “[...] os agentes apresentavam as famílias que consideravam mais problemáticas.
Posteriormente, escolhíamos quais seriam as primeiras nas quais iríamos intervir”
(LANCETTI, 2000 b, p. 21).
Note-se a estratégia de entrar na Atenção Básica através dos Agentes de Saúde, que
são os profissionais que moram na comunidade e a conhecem. Ressalte-se também, que,
quando, acima, Lancetti diz que não faria visitas domiciliares, referia-se a que a Equipe de
Saúde Mental não lançaria mão desse instrumento como uma ação só sua, mas que as
primeiras ações no território seriam praticadas pelos ACS. Mais adiante, com o
desenvolvimento da capacitação e o inicio do conhecimento da comunidade, as Visitas
Domiciliares foram realizadas (Cf. LANCETTI, 2000 b)
129

Consta do “Guia de Saúde Mental do Agente Comunitário de Saúde” as seguintes


diretrizes:

-[...] tratar o grupo familiar para que este possa lidar de maneira mais
salutar com seu membro mais doente. [...]
-[...] a responsabilidade pelo cuidado pelo cuidado dessas famílias é da
equipe de saúde da família e da equipe de saúde mental. [...]
-[...] será dada prioridade às famílias que se encontram em maior
dificuldade. [...]
-[...] quando a equipe de saúde mental intervém, elabora um programa para
cada família. Este programa é monitorado [...]
-[...] as famílias serão atendidas preferencialmente na hora em que todos ou
a maioria dos familiares estejam em casa. Em muitas oportunidades vamos
ao encontro de surpresa. A estratégia de aproximação será sempre decidida
previamente pelas equipes de saúde da família e de saúde mental, mesmo
nos casos de emergência (LANCETTI, 2000 b, p. 22, grifo do autor).

Destaque-se uma estratégia e um modo de operar, que já foi aludido, mas, que pela
sua importância, merece destaque:

A equipe de saúde mental é volante, não está locada em nenhuma das


unidades do Projeto Qualis e sempre atua em parceira com as equipes de
Saúde da família. Não está prevista consulta psiquiátrica nem consulta
psicológica (LANCETTI, 2000 b, p. 22).

Considero que essa é uma decisão fundamental para a entrada da Saúde Mental na
Atenção Básica. Desta forma, fica logo claro para todos que não mais se repetirão os
encaminhamentos que, de fato, diminuem a responsabilização, marcando, também, que a
atuação com as pessoas e a comunidade é de responsabilidade conjunta. Esse fato potencializa
a capacitação, une as equipes, impede jogos de empurra, enfim, torna o trabalho
verdadeiramente de equipe, estimulando a integração, quebrando os especialismos. Mostra
para a comunidade, por outro lado, que a Saúde Mental está integrada aos demais cuidados
em saúde.
Especificando mais o seu trabalho e teorizando sobre ele, Lancetti situa todo o grupo
familiar como o paciente do Programa de Saúde Mental e que escutá-lo era “[...] conhecer a
estrutura ou sistema que organiza a vida desses grupos antropológicos e os seus interlocutores
invisíveis” (LANCETTI, 2000 b, p. 36). Como instrumento de ação, o autor citado, na linha
de Deleuze e Guattari, propõe uma “[...] clínica cartográfica” (LANCETTI, 2000 b, p. 37),
onde “Era premente produzir agenciamentos que conectassem as pessoas com as redes
130

trançadas pela organização sanitária, e com o que Benedetto Saraceno chama de recursos
escondidos da comunidade” (LANCETTI, 2000 b, p. 37).
No final de seu artigo, Lancetti sugere que, para cada duas equipes de saúde da
família, deve existir um técnico de saúde mental, para que o trabalho que organizou seja
desenvolvido a contento (Cf. LANCETTI, 2000). Voltaremos ao assunto, mas desde já
adiantamos que chegamos a números diferentes, que apontam para a necessidade de mais
profissionais de Saúde Mental por Equipe de Saúde da Família.
Quanto ao importante tema dos indicadores, Lancetti propõe que, para a avaliação do
Programa de Saúde Mental sejam levados em consideração “[...] a redução de internações
psiquiátricas, de suicídios, de violência familiar e comunitária e do uso abusivo de drogas”
(LANCETTI, 2000 b, p. 51).
Solange Mattos, uma Agente Comunitária de Saúde, relata, em um artigo do livro
organizado por Lancetti, a sua marcante experiência com uma pessoa, um homem de 57 anos.
A descrição dos acontecimentos é importante, tanto em termos do relato em si, como pelo
exemplo de mudança nas relações dos profissionais de saúde com a população que o trabalho
com a Saúde Mental pode proporcionar. Partindo de uma situação em que não sabia muito o
que fazer, para ajudar o paciente, que vivia isolado da família e da comunidade, surgem, após
discussão da situação com a Equipe de Saúde Mental, novas perspectivas, onde o papel da
Agente Comunitária de Saúde é determinante. (Cf. MATTOS, 2000).
Walter Augusto Bahia Pereira, psiquiatra, no início de seu artigo no livro que vem
sendo citado, traz uma definição importante a respeito do trabalho no Projeto Qualis:

Do modo como o Projeto foi concebido, a saúde, a loucura e as ações não


são restritas a espaços físicos predeterminados. Dessa forma, a equipe e eu,
como membro, também não ocupamos espaços físicos delimitados. Somos
‘volantes’. (PEREIRA, 2000, p. 96).

Esta é a introdução que Walter faz, para refletir a respeito da nova posição do
psiquiatra na Equipe de Saúde Mental e também introduz o tema do trabalho em Saúde, sem
as referências tranqüilizadoras e limitadoras das instituições conhecidas. Walter ressalta a
mudança que ocorre, em vários níveis, com a nova situação do profissional:

[...] rompe os muros e as paredes institucionais, confronta o poder médico


estabelecido; implode os cofres da loucura e da imposição de lugares, em
que ela posa existir e se manifestar; propicia diversidade; [...] coloca-se
como instrumento para uma possibilidade de mudança, movimento,
transformação (PEREIRA, 2000, p. 97).
131

A impotência, sentimento que assola os profissionais de saúde, mas que é disfarçado


nos diversos mecanismos de defesa que o instituído permite, é exposta por Walter de modo
muito claro. (Cf. PEREIRA, 2000). O psiquiatra descreve o caminho que segue a abordagem
aos emergentes tidos como problemas de Saúde Mental: quase sempre a partir de situações
conhecidas pelos Agentes Comunitários de Saúde, passando pela discussão em Equipe e com
a intervenção sendo aí decidida (Cf. PEREIRA, 2000).
Walter resume num trecho uma decisiva discussão a respeito da psiquiatria, seu papel
nas Equipes de Saúde Mental e na sociedade: “O psiquiatra, neste projeto, tem de suportar a
fragilidade da psiquiatria neste contexto e, ao rever sua função, tem também a possibilidade
de existir e intervir de uma outra forma” (PEREIRA, 2000, p. 100).
Frágil, parcial, a psiquiatria revestiu-se de corpo todo poderoso de saberes, mas para
isso precisou ignorar a realidade das vidas das pessoas atendidas, das suas famílias e das suas
comunidades. Operação encobridora em vários sentidos, do pessoal ao ideológico, tem
desfeito seu véu, para que possa tentar uma nova concepção e uma nova prática.
O autor citado fala do encontro entre as expectativas de profissionais de saúde e
moradores como a base do trabalho que está sendo criado: “É um encontro entre as duas
expectativas. O que há em comum entras duas expectativas e o que poderá se transformar em
trocas?” (PEREIRA, 2000, p. 101).
Falando em uma “clínica cartográfica”, cara a Deleuze e Guattari, Walter diz que o
novo psiquiatra

[...] tecerá pontes entre os profissionais [...]; entre os membros e os


moradores atendidos; entre os moradores e as atividades que falam e
intensificam a vida; entre os diversos níveis institucionais (outras instâncias
da saúde, justiça, educação, igreja, etc.), aos quais um sujeito poderia ser
remetido ou mesmo estar submetido. Trata-se, portanto, de funcionar como
potencializador e fertilizador de agentes e de pessoas na promoção da saúde
e da vida (PEREIRA, 2000, p. 101).

Vânia Casé descreve, num artigo do livro organizado por Lancetti, a experiência de
aproximação da Saúde Mental com o Programa de Saúde da Família realizada no município
pernambucano de Camaragibe. A partir de demandas da comunidade por consultas
psiquiátricas e psicológicas, a equipe de Saúde Mental decidiu-se pela aproximação com o
Programa de Saúde da Família, em 1995, por características deste, que a autora descreve:

-[...] contava com uma equipe mais bem estruturada quantitativa e


qualitativamente;
132

-trabalhava com responsabilidade por um território definido envolvendo


ações básicas de saúde;
-dirigia a atenção à saúde, não só à cura e à prevenção de doenças mas,
sobretudo, para promover a qualidade de vida e a valorização do papel dos
indivíduos, no cuidado com sua saúde, de sua família e de sua comunidade
(CASÉ, 2000, p. 123).

É importante assinalar a procura por ligação com o PSF, quando da necessidade de


estruturar um Programa de Saúde Mental. Ao invés de organizar dispositivos já consagrados
em Saúde Mental, a autora e sua Equipe foram para a Atenção Básica, pelos motivos citados,
dos quais os dois últimos são um resumo do porquê da potencialidade dessa articulação.
A autora encontrou o que se repete em todas as experiências de trabalho da Saúde
Mental na Atenção Básica: um número muito maior do que o imaginado de problemas de
Saúde Mental e pessoal sem preparo para reconhecê-los e abordá-los. (Cf. CASÉ, 2000). A
decisão foi, então, começar a capacitação com os Agentes Comunitários de Saúde, que se deu
sob a forma de Oficinas e que se estenderam para os demais funcionários. (Cf. CASÉ, 2000).
Com a evolução do trabalho, durante 1996 e 1997, a Equipe de Saúde Mental se reuniu com
todas as Equipes de Saúde da Família, com a intenção de capacitação e de “[...] discutir uma
proposta de saúde mental para o município” (CASÉ, 2000, p. 125).
Num ponto do seu relato, Vânia se refere a um pedido, sempre encontrado nas
aproximações da Saúde Mental com o PSF, de “[...] apoio às equipes do PSF, tendo em vista
o nível de conflitos vividos na comunidade e a angústia em lidar com eles” (CASÉ, 2000, p.
125). Aparentemente, a Equipe de Vânia não cumpriu esse papel. Porém, o que percebemos é
que as Equipes de Saúde da Família, em geral, estruturam-se como equipes clássicas de
saúde, isto é, reúnem-se para discutir as tarefas sem atenção para os aspectos institucionais e
emocionais das mesmas. Freqüentemente, não têm um espaço próprio para a elaboração do
que é mobilizado em cada um e no grupo a partir das condições que enfrentam. As
capacitações são vistas, muitas vezes, como um “cumpra-se”, sem discussão das implicações
do que estará sendo feito. Com a entrada da Saúde Mental, com a prática de discussão
constante dos aspectos institucionais e emocionais, as Equipes de Saúde Mental são vistas
como uma chance de abrir o diálogo, ventilar e elaborar os conflitos pessoais e grupais.
O trabalho em Camaragibe desenvolveu-se com as Oficinas de Capacitação e, para
deixar claro que a estratégia de entrada da Atenção Básica precedeu os outros dispositivos de
Saúde Mental, note-se que o NAPS e o Ambulatório de Psiquiatria foram inaugurados bem
depois. (Cf. CASÉ, 2000). Explicando essa orientação, a autora diz que
133

A estratégia de iniciar as ações de saúde mental no Programa de Saúde da


Família, antes de investir na criação de serviços especializados como NAPS,
CAPS ou Lares Abrigados, reverte uma lógica. O foco da atuação de saúde
mental em Camaragibe prioriza o lugar e o momento em que surgem as
primeiras dificuldades e necessidade de cuidados: a comunidade e a família
(CASÉ, 2000, p. 133).

Bárbara Cabral e suas colegas do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, partem,


para argumentar a favor da “[...] estratégia de trabalhar a saúde mental na atenção básica,
integrando-se ao Programa de Saúde da Família (PSF)” (CABRAL et. al., 2000, p. 139), das
postulações da Reforma Psiquiátrica, que

[...] reconhece a doença mental também como fruto do processo de


marginalização e exclusão social, fundamentando sua luta política e prática
clínica na construção da cidadania do sujeito em sofrimento psíquico e na
promoção da saúde mental (CABRAL et. al. , 2000, p. 139).Situado o
campo desta forma, o trabalho em Saúde Mental ganha outra dimensão, e
[...] resigna-se o objetivo da proposta terapêutica, que passa a comprometer-
se em construir diversas estratégias possibilitadoras de autonomia das
pessoas, mediante uma combinação de técnicas de apoio individual com
outras mais sócio-culturais (CABRAL et. al., 2000, p. 139).

Com a associação ao PSF, as autoras vêem a perspectiva de mudança nas práticas de


saúde e definem que “O ato de cuidar exige dos profissionais uma postura técnico-política
constante, mediante a criação e mobilização dos diversos espaços coletivos no seio da
comunidade” (CABRAL et. al., 2000, p. 140).
O Programa de Saúde Mental do Cabo de Santo Agostinho já contava com NAPS,
Ambulatório de Psiquiatria e Emergência quando, em 1998, a Equipe do Programa de Saúde
Mental iniciou as ações junto ao PSF, com a capacitação das 23 equipes do Programa Saúde
em Casa, nome local do PSF. As reações a essa capacitação foram muito características: “[...]
os agentes comunitários de saúde demonstraram preocupação com a abordagem da pessoa em
crise, destacando-se o medo de lidar com essa situação, [...] bem como indicaram a
necessidade de prestar apoio às famílias” (CABRAL et. al., 2000, p. 145) e “Os médicos e
enfermeiros [...] apresentaram um discurso marcado pela lógica do especialista, mostrando-se
resistentes a assumir esse cuidado como mais uma atribuição”. (CABRAL et. al., 2000, p.
145).
A reação à capacitação assinalada acima é freqüente. Os ACS assumem com muito
mais rapidez os conceitos da Saúde Mental e as suas ações, do que os profissionais de nível
superior. Uma reflexão sobre esse ponto é necessária, para que enganos e injustiças não sejam
134

cometidos. Os ACS já vivem perto dos problemas de Saúde Mental da comunidade,


freqüentam casas com pacientes identificados e seu medo é mais histórico do que teórico. Já
os profissionais de nível superior estão mais contaminados pela “ciência oficial”, veiculada
nas faculdades, que lhes forneceram uma idéia já ultrapassada do campo da Saúde Mental.
Além desses aspectos, há o fato de verem a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica,
como mais trabalho que irá se somar ao seu dia já atribulado. Não é possível iludir esse fato:
estamos levando mais trabalho para Equipes de Saúde da Família que, em geral, tem um
contingente populacional sob suas responsabilidades acima das suas capacidades.
Mil famílias representam uma quantidade de problemas de assistência, de promoção
de saúde, de atividades comunitárias, de articulações com os recursos de saúde, mais as
capacitações e relatórios, que acabam por dificultar alguma dessas tarefas. Não podemos,
portanto, entrar na ilusão de dizer para as Equipes de PSF que elas terão menos trabalho, já
que, por exemplo, chamar a ambulância e mandar uma pessoa para a Emergência e daí para o
distante Hospício dá muito pouco trabalho. A diferença não virá de menos ou mais trabalho, e
sim da satisfação de entrar em outra compreensão e atuação em Saúde e em Saúde Mental,
em ver as pessoas, famílias e comunidades atendidas e tendo sua cidadania desenvolvida.
Depois da capacitação inicial, a Equipe de Saúde Mental do Cabo de Santo Agostinho
promoveu “[...] encontros sistemáticos com cada uma das equipes (de PSF)” (CABRAL et.
al., 2000, p. 145), com a proposta de regularidade mensal. A Equipe de Saúde Mental
percebeu a importância de um estreitamento dos laços políticos com a coordenação do PSF,
para dar maior “[...] legitimidade para as ações desenvolvidas” (CABRAL et. al., 2000, p.
147). Foi percebida a necessidade de maior número de reuniões de capacitação, o que não
estava sendo possível devido à pequena Equipe de Saúde Mental para uma grande quantidade
de Equipes de PSF. (CABRAL et. al., 2000, p. 147). Foi, então, deduzido o número de
Equipes de PSF supervisionadas, ficando a proporção de um técnico de Saúde Mental para
cada quatro Equipes de PSF, com freqüência mensal de supervisão. Esta é uma opção
encontrada também em outros municípios e será objeto de discussão mais adiante.
Um tema da maior importância, levantado pelo trabalho que está sendo citado é o da
precariedade de indicadores de Saúde Mental na Atenção Básica. As Equipes decidiram, para
suprir essa carência, “[...] construir um instrumento de notificação de saúde mental que
permitisse delinear o perfil epidemiológico diagnóstico de cada área [...]” (CABRAL et. al.,
2000, p. 149).
As autoras encerram o trabalho com a afirmação da nova forma de trabalhar em Saúde
Mental e dizem: “A força deste novo paradigma está no encontro com as pessoas que fazem o
135

lugar, a fim de construir algo por meio de um dialogo verdadeiro” (CABRAL et. al. , 2000, p
152). Citamos, também, o poema chinês que fecha o texto:

Vá ao povo
Viva com ele
Ame-o
Comece com o que ele sabe
Construa com o que ele tem... (CABRAL, 2000, p. 152).

Araçuaí é um município de 36 mil habitantes, no Vale do Jequitinhonha, MG. No


meio da seca e da miséria, tornou-se sede administrativa de um Consórcio Intermunicipal de
Saúde, em 1995. Este consórcio iniciou um Programa de Saúde Mental (Cf. SILVA et al.,
2000).
Uma definição simples, e por isso mesmo repleta de significado, inicia a
argumentação das autoras do trabalho: “Depois da promulgação da Constituição Federal de
1988 e com a criação do SUS, a saúde passou a ser compreendida como questão coletiva, de
natureza social e política” (SILVA et al., 2000, p. 158).
As autoras do trabalho, incumbidas de mudar a orientação do atendimento à Saúde
Mental, encontraram-no organizado apenas com atendimento ambulatorial-medicamentoso,
sob a responsabilidade de um clínico. Foi, então, criado um serviço de Saúde Mental que “[...]
priorizava, entre as demandas sociais, a saúde preventiva, descartando o aspecto
eminentemente curativo” (SILVA et al., 2000, p. 159). Foram visitadas as famílias com
membros identificados como portadores de sofrimento mental, com o aumento da capacidade
de tratamento. (Cf. SILVA et al., 2000). Também foi criada uma “moradia assistida”,
retirando das ruas pessoas sem tratamento nem abrigo. O que ficou estabelecido foi um
trabalho de Atenção Básica, organizado a partir do Consórcio Intermunicipal e um NAPS,
com a abrangência de 105.500 habitantes. (Cf. SILVA et al., 2000). Depois da plena
instalação do PSF, o trabalho continuou na forma de “[...] intercâmbio entre o profissional
especializado em saúde mental e a equipe do PSF, que visa a procurar a melhor forma de
conduzir o tratamento” (SILVA et al., 2000, p. 165).
Esta forma de atuar enquadra-se na articulação entre os dois programas, Saúde Mental
e PSF, mantendo os encaminhamentos e as especialidades. Comentaremos adiante os avanços
e entraves dessa abordagem.
José Jackson Sampaio e Carlos Magno Barroso, do Ceará, definem o artigo final do
livro SaúdeLoucura número 7: “Os elementos postos em ralação no presente texto são o PSF
136

e os CAPS, com base numa perspectiva de uma política municipal de saúde mental e das
estratégias de atenção primária” (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 168).
Trata-se, portanto, de matéria da maior importância, que já foi tocada ao longo do
texto desta monografia e que voltará mais adiante.
O primeiro CAPS do Ceará foi inaugurado em 1991, num processo que evoluiu para
mais oito em 1999 e estava previsto que, no final de 2000, estariam em funcionamento 16
CAPS. O PSF já aparecia como parceiro privilegiado do trabalho do CAPS. (Cf. SAMPAIO
& BARROSO, 2000).
Os autores vão situar o trabalho na experiência de Sobral, município de 150 mil
habitantes

Que teve fechado seu hospital psiquiátrico clássico, de 25 anos de idade, e


monta uma reforma psiquiátrica complexa, baseada na construção de uma
rede composta por emergência e internação psiquiátrica em hospital geral,
um hospital-dia, duas residências terapêuticas, um pequeno ambulatório de
pronto-atendimento para referência aos municípios que ainda não têm
políticas de saúde mental, e um CAPS para cobertura municipal, bem
entrosado com as 42 equipes de PSF já instaladas (SAMPAIO &
BARROSO, 2000, p. 171).

Os autores definem de modo muito determinado o que pensam a respeito da relação


CAPS/PSF: “Os CAPS, instrumentos práticos da reforma psiquiátrica, adquirem impulso,
operacionalidade, logística e sustentabilidade com a expansão do PSF. CAPS e PSF
interdeterminam-se, interpotenciam-se e interdependem-se” (SAMPAIO & BARROSO,
2000, p. 168).
Os autores argumentam que, ajudando a acabar a era do confinamento, os CAPS têm,
necessariamente, que promover os encontros na cidade e não apenas dentro das suas paredes.
Desta forma, dizem que “As ações precisam estar onde as pessoas estão experimentando seus
estilos de vida e suas escolhas, na trama das possibilidades, condições de existência, funções,
papéis, trabalhos, lazeres, crenças” (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 173). A todo tempo
os autores lembram que é no campo comunitário que a Saúde Mental, agora, precisa ser
pensada e praticada. Desta forma apontam que

Na Saúde Mental, as mais complexas atividades, seja o diagnóstico


diferencial entre sintoma negativo, sintoma positivo, padrão cultural ou
escolha capaz de afirmar autonomia, seja a contenção de uma crise
psicótica aguda, tudo pode e deve ser feito na comunidade (SAMPAIO &
BARROSO, 2000, p. 173).
137

Consoante com a prática de virar “para fora” as ações, os autores dizem que “[...] o
CAPS de Quixadá tem optado, estrategicamente, pelo reforço dos vínculos diretamente com a
sociedade organizada, como as associações e federações de bairro” (SAMPAIO &
BARROSO, 2000, p. 175).
Os autores dizem que, a partir do inicio dos trabalhos do PSF, em 1994:

Formulou-se uma diretriz inicial: os problemas de sofrimento psíquico e


doença mental na Área Descentralizada de Saúde – ADS adstrita a cada
equipe, como os outros problemas sanitários, [...] seriam de inteira
responsabilidade das equipes, e que o município ofereceria o CAPS como
referência, retaguarda, vanguarda e centro de treinamento, assessoria e
consultoria. A diretriz traduz um princípio: não é necessário dispor de um
especialista para que o conhecimento sobre saúde mental seja introjetado na
atenção básica (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 173).

Trata-se de mais uma forma de a Saúde Mental atuar na Atenção Básica, desta vez
com o CAPS, mantendo-se, principalmente, como retaguarda e fonte de supervisão. Já vimos
o Projeto Qualis, onde os especialistas freqüentam a comunidade, para desfazer as
especialidades, já vimos os especialistas atuarem como supervisores das Equipes de PSF, mas
sem pertenceram aos CAPS, até porque na maioria dos municípios não há CAPS e, nesse
último trabalho, temos a definição acima.
Como um dos resultados, os autores citam a enorme queda na quantidade de
benzodiazepínicos receitadas. (Cf. SAMPAIO & BARROSO, 2000).
Outro dado significativo foi a queda de oito por semana, para seis por ano, no número
de pessoas enviadas para hospitais psiquiátricos, já que as internações passaram a ser feitas no
Hospital Geral. Neste, a circulação de visitas e agentes de saúde colaboraram para mudar a
forma da população encarar as crises. (Cf. SAMPAIO & BARROSO, 2000).

5.4 O ano de 2001: mudanças e diretrizes.

Em março de 2001, a Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde


convocou uma reunião, em Brasília, intitulada “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano
Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”. Como documento base
para o encontro, a Área Técnica de Saúde Mental e o Departamento de Atenção Básica
lançaram o documento “Proposta Preliminar. Plano de Inclusão de Ações de Saúde Mental na
Atenção Básica”.
O documento citado diz, em relação ao PSF e ao PACS:
138

Um novo modelo de atenção centrado na lógica da vigilância à saúde e


qualidade de vida, dirigido à família e à comunidade, que inclui desde a
proteção e promoção à saúde até o diagnóstico e tratamento das doenças,
começa a ser gerado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 4).

Com base na constatação de que é necessário ampliar as ações do PSF e do PACS,


com a entrada da Saúde Mental, o texto diz que

[...] o Ministério da Saúde, através da Secretarias de Políticas e da Área


Técnica de Saúde Mental, decide pela elaboração e implantação de um
Plano Nacional de Intervenção para incorporação de ações de Saúde Mental
no conjunto de ações que compõem o cuidado integral à saúde
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 4).

Esta é uma declaração da maior importância, visto partir do Ministério da Saúde,


responsável por induzir políticas públicas e sustentá-las com financiamento.
Nas “Justificativas” do Plano, o documento diz que com ele se estará “[...] rompendo
com o clássico modelo voltado para o indivíduo doente e iniciando um novo olhar aos grupos
humanos, ou seja, indivíduos, famílias e redes sociais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p.
5).
O texto aponta para a necessidade de identificar recursos na comunidade, até então
“[...] invisíveis e conseqüentemente imobilizados [...]” e a incluir nesses recursos as “[...]
riquezas culturais comunitárias” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 5).
O texto refere-se à situação, já aludida acima, de que, naquele momento,
“Experiências de inserção de ações de saúde mental nos PSF têm acontecido em diversas
regiões com resultados importantes, porém de forma isolada e assistemática” (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2001, p. 5).
Como forma e meio de chegar ao objetivo de inserir a Saúde Mental no PSF, o texto
começa a delinear ações de capacitação:

A ampliação do conhecimento sobre as ações de saúde mental para as


equipes que assistem as famílias [...] a realização de um conjunto de ações
que se encarregue de construir as pistas necessárias à transferência dos
conhecimentos do campo da saúde mental, de forma democrática e
participativa com a presença dos profissionais que já vêm agindo no âmbito
das comunidades (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p 6).

O “Objetivo Geral”, para o documento, é “Oferecer às equipes de saúde da família


condições para cuidar de cidadãos portadores de transtornos mentais no seu contexto familiar
139

e comunitário” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7). Note-se que, da forma como está
colocado, o Objetivo Geral limita-se à capacitação, não apontando para ações que envolvam
diretamente profissionais de Saúde Mental na comunidade, como já vimos em algumas
experiências relatadas.
Dos “Objetivos Específicos” consta a construção regional de planejamento e metas
para a implantação das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, o desenvolvimento de
capacitação para as Equipes de PSF, o enfrentamento dos problemas de uso de álcool e
drogas, a atenção a grupos familiares de risco. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7).
Também nos objetivos específicos estão os seguintes pontos muito importantes:

-Desenvolver uma base de dados específica para a Saúde Mental, incluindo-


a no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB);
-Construir coletivamente mecanismos públicos de participação, avaliação e
controle para as ações que estejam sendo implantadas no território,
proporcionando uma maior articulação das Redes Sociais com a
mobilização de recursos governamentais, ONGs, grupos de auto ajuda,
associação de bairro, conselho tutelar, entre outros.
-Regulamentação da equipe de Saúde Mental que vai se integrar ao PSF
para suporte especializado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7).

Desta forma, está apontado o caminho para a avaliação pública das ações de Saúde
Mental e sua inserção nas Redes Sociais, balizando o caráter participativo da proposta, o que
é uma definição política.
O documento coloca “Metas” para 2001 e para 2002, que, pelas informações que
tenho, não foram cumpridas integralmente, em sua maioria.
Para o ano 2001, além da realização da “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano
Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, as demais metas
ficaram por conta das iniciativas municipais, sem incentivo federal. Constavam das metas:
definir 40 municípios, para iniciar a implantação da Saúde Mental no PSF, criação e
capacitação de Equipes de Saúde Mental para apoio as equipes dos PSF, capacitação dos
recursos humanos dos PSF pelas equipes de Saúde Mental para implementação das ações,
Inclusão dos cuidados de Saúde Mental nos módulos básicos de treinamento para novas
equipes de saúde da família e oficinas regionais de acompanhamento e avaliação da
implantação do Plano Nacional. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001). Mesmo não tendo
sido possível realizar todas as metas, o documento deixou as indicações do que deveria ser
feito e, como já foi ressaltado, as iniciativas cabem aos municípios, apesar da dependência de
financiamento federal.
140

Para 2002, o texto propunha a “Implantação de ações de Saúde Mental nos municípios
de mais de 100.000 habitantes” e “Oficinas de acompanhamento e avaliação para as equipes
com programas em andamento” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 8).
Note-se que, ao descrever as ações de Saúde Mental no PSF, o documento fala em
capacitação das Equipes de PSF e não de atuação conjunta, com o profissional de Saúde
Mental na comunidade. Este detalhe, da maior importância, foi objeto de debates na “Oficina”
e sofreu mudanças de enfoque, inclusive em documentos posteriores do Ministério.
Na parte inicial do documento reservada às “Etapas para Incorporação da Saúde
Mental na Atenção Básica”, está sugerido “Elaborar o plano municipal de inclusão da Saúde
Mental no PSF, [...] definir o fluxo de referência e contra-referência” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001, p. 9). Também o tema da referência e contra-referência foi objeto de
acalorados debates na “Oficina”, com novas propostas.
No aspecto institucional, o documento sugere “Apresentar o Plano de Inclusão da
Saúde Mental ao Conselho Municipal de Saúde” e “Pactuar na Comissão Intergestores
Bipartite (CIB) a adesão da saúde mental à estratégia do PSF” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001, p. 9).
Como será notado abaixo, na descrição das atividades dos “[...] profissionais do
PSF/PACS com supervisão da equipe de Saúde Mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001,
p. 9), as ações no território estão, até esse momento, propostas para serem todas realizadas
pelas equipes de PSF/PACS:

-realização de diagnóstico da comunidade buscando identificar os principais


problemas de saúde mental e os recursos institucionais e comunitários
existentes com potencialidade de mobilização
-planejamento e programação de ações com base no diagnóstico e na
mobilização dos diversos setores envolvidos
-implantação de um sistema de informação que deverá compor o SIAB
-acompanhamento e avaliação das ações. (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001, p. 9).

No capítulo “Equipe de Saúde Mental e Atenção Básica”, o documento critica o


estado atual dos Ambulatórios de Saúde Mental: “[...] encontram-se, na sua maioria, isolados
com pouca mobilidade de articulação tanto em relação aos PSF, quanto aos serviços de maior
complexidade como os NAPS/CAPS, hospitais gerais e especializados” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001, p. 10). Como definição de princípios e reforçando importante diretriz, o texto
recomenda que, para operar a mudança do quadro criticado, “[...] é necessário consolidar um
Modelo de Atenção, baseado na integralidade e territorialização das ações com serviços
141

diversificados, articulados dentro da rede geral de saúde e voltado para a atenção integral”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 10). Percebem-se, no trecho citado, os dois conceitos
que vêm aparecendo como pilares do trabalho da Saúde Mental nos dias de hoje, tempos de
desinstitucionalização e mobilização social: rede e território. Além disso, aparece um dos
preceitos do SUS: a integralidade.
Para efetuar a proposta, os autores do documento do Ministério da Saúde recomendam

[...] a criação de uma equipe de saúde mental que se vincule diretamente


como suporte técnico especializado para atenção básica. Os profissionais
que vão integrar as equipes de saúde mental devem assumir o
acompanhamento do PSF, sendo uma referência para auxiliar no
diagnóstico e planejamento das ações, como também na capacitação,
treinamento e avaliação dos resultados com supervisão técnica continuada
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 10).

Chegamos às “Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, item 6 do documento que


vem sendo examinado. Lembremos que as ações, listadas a seguir, estavam pensadas para
serem integralmente executadas pelos profissionais das Equipes de PSF. São elas:

-Sensibilização para a escuta e compreensão da dinâmica familiar e das


relações sociais envolvidas
-Sensibilização para a compreensão e identificação dos pontos de
vulnerabilidade que possam provocar uma quebra ou uma má qualidade dos
vínculos familiares e sociais
-Incorporar a saúde mental nas ações voltadas para: hipertensão, diabete,
saúde da mulher, criança e adolescente, idoso, alcoolismo e outras drogas,
violência urbana entre outros
-Acompanhamento de usuários egressos de internações psiquiátricas,
egressos dos NAPS e de outros recursos ambulatoriais especializados
-Construções de intervenções terapêuticas de forma individualizada,
respeitando a realidade específica local e voltada para a inclusão social
-Mobilização de recursos comunitários estabelecendo articulações com
grupos de auto ajuda, associações de bairros, conselho tutelar, entre outras
organizações populares
-Promoção de palestras, debates, atividades artísticas e de grupos de uma
maneira geral com temáticas específicas de acordo com a realidade de cada
comunidade
-Buscar construir novos espaços de reabilitação psicossocial dentro da
comunidade como oficinas comunitárias e outros que venham a ser criados
pela mobilização social. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 11).

Assinale-se a clara orientação pela mobilização social como base do trabalho


proposto, a procura por recursos já existentes na comunidade e o estímulo à criação de outros.
Será de grande interesse comparar a lista de ações acima com as que resultaram da “Oficina”
e da que consta do documento “Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo
142

Necessários. Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, de 2004. (Cf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004), o que faremos adiante.
O documento propõe-se a definir as “Responsabilidades Institucionais”, começando
por aquelas definidas para o Ministério da Saúde. Salvo melhor juízo, nenhuma delas foi
executada até o momento. Faziam parte desse rol a facilitação regional de planejamento para
a inserção das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, a implantação de capacitação e
supervisão técnica no tema, a elaboração de material didático, a avaliação com os estados a
respeito do que estaria sendo praticado e a inclusão de base de dados no Sistema de
Informação da Atenção Básica (SIAB).
Quanto às “Responsabilidades das Secretarias Estaduais de Saúde”, a ênfase está
colocada em fornecer capacitação, em parcerias com as Secretarias Municipais de Saúde,
elaboração de material didático, criar de indicadores para avaliação das ações e trabalhar os
dados existentes no SIAB. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).
No Estado do Rio de Janeiro, na Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado
de Saúde, foi criado, no segundo semestre de 2001, um núcleo para encaminhar as propostas
de aproximação Saúde Mental/PSF, tendo como responsáveis Leila Vianna e Carlos Eduardo
de Moraes Honorato.
As “Responsabilidades das Secretarias Municipais de Saúde” são aquelas que
efetivamente aproximam os Programas Municipais de Saúde Mental da Atenção Básica. São
as seguintes:

-Elaboração do plano municipal para inclusão das ações de Saúde Mental


na Atenção Básica com objetivos e metas definidas;
-Sensibilizar para a necessária prioridade de direcionar as ações para os
grupos familiares mais vulneráveis e estabelecer os mecanismos adequados
para acompanhamento e avaliação dos resultados esperados;
-Assegurar o acesso progressivo de todas as famílias beneficiadas com o
PSF às ações de promoção da Saúde Mental e prevenção de seus agravos;
-Garantir a infra-estrutura de funcionamento da unidade de saúde para o
trabalho;
-Incorporar no treinamento do ACS os conteúdos de Saúde Mental;
-Disponibilizar meios para capacitação técnica e educação permanente
dos profissionais de Saúde Mental, em articulação com a SES por
intermédio dos Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente e
outras instituições de ensino;
-Elaboração de material didático para as atividades de educação continuada;
-Supervisionar o trabalho dos profissionais das equipes de Saúde Mental,
em conjunto com a SES;
-Participar de avaliação do trabalho das equipes de saúde da família,
juntamente com a SES;
143

-Alimentar o SIAB com os dados necessários para avaliação das ações


desenvolvidas . (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 13).

Como não se efetivaram integralmente as Responsabilidades nos níveis Federal e


Estadual, a iniciativa ficou quase apenas na dependência das ações municipais. Porém, o valor
das orientações acima permanece, enquanto um roteiro para a inserção das ações de Saúde
Mental na Atenção Básica.
O texto chama a atenção para a “Avaliação” das ações de saúde que estão sendo
implantadas e, no item “Avaliação da estrutura”, diz que “Em relação à Saúde Mental não há
necessidade de acrescentar nada à estrutura pré-existente na unidade de saúde”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 14). Apesar de estar em contradição com um dos itens
da lista de “Responsabilidades das Secretarias Municipais de Saúde”, acima, aqui está uma
das características que torna a entrada da Saúde Mental no PSF uma estratégia plenamente
exeqüível em curto prazo: não há o que construir, adequar, alugar. Trata-se de capacitar
recursos humanos e organizar o sistema.
O documento aponta a necessidade da avaliação quanto ao processo e quanto aos
resultados. Este último “[...] abordará o desenvolvimento da integração das ações de saúde
mental ao PSF, bem como os indicadores de eficácia e efetividade” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001, p. 14).
Depois de historiar os pontos de identificação entre o PSF e o “[...] novo modelo de
atenção descentralizado e de base comunitária” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 1), da
Saúde Mental, que já temos detalhado nessas páginas, o texto da “Proposta Preliminar”
aponta como “Objetivos” da Oficina:

- Aprofundar, entre os participantes da oficina, a discussão acerca da


inclusão de ações de saúde mental no Saúde da Família, com vistas a obter
subsídios para conclusão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de
Saúde Mental no PSF;
- Aproveitar as experiências vivenciadas pelos participantes da Oficina,
para subsidiar a conclusão do Plano Nacional de Inclusão da Saúde Mental
no Saúde da Família;
- Identificar estratégias específicas para o enfrentamento da concentração de
leitos psiquiátricos e problemas decorrentes do uso do álcool e outras
drogas e outros transtornos mentais de maior prevalência. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2001 b, p. 2)

Realizou-se, então, em março de 2001, em Brasília, a “Oficina de Trabalho para


Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”. O
144

encontro representou a retomada, em níveis amplos, da discussão da atuação da Saúde Mental


nas comunidades.
Foram apresentadas as experiências desenvolvidas nos municípios de Curitiba/PR,
Quixadá/CE, Sobral/CE, Cabo de Santo Agostinho/PE, Recife/PE, Camaragibe/PE,
Araçuaí/MG, Natal/RN, Aracaju/SE e no Projeto Qualis da Secretaria Estadual de Saúde de
São Paulo. Comparecei na qualidade de “Especialista convidado” e fui relator de um dos
Grupos de Trabalho.
As mesas redondas e a mesa inicial serviram de subsídios e aquecimento para os
trabalhos em grupo, que apresentaram as suas conclusões na Discussão Ampliada, momento
final da Oficina. O que será citado, daqui por diante, referido ao documento que saiu da
Oficina, é o que foi aprovado na Discussão Ampliada final.
Em termos gerais, os relatórios dos grupos reconhecem a semelhança de propósitos
que unem os Programas em questão e dizem que

As diretrizes do PSF e as diretrizes da reforma psiquiátrica constituem hoje


um conjunto de princípios que são fundamentais para o diálogo, a
articulação e a implementação de ações de saúde mental no PSF
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 15).

Os relatórios advertem, também, que as

[...] ações só terão eficiência e eficácia se estiverem inseridas e articuladas


com uma rede de cuidados e ações de saúde mental (emergência, hospital
geral, pronto atendimento, NAPS, CAPS, residências terapêuticas, etc.)
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 10).

Os grupos de trabalho dedicaram-se, para iniciar a discussão prática, a levantar,


segundo suas experiências e orientados pela coordenação do evento, os “[...] problemas de
saúde mental, e as situações de risco e vulnerabilidade que mais freqüentemente ameaçam e
comprometem os vínculos familiares e sociais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7).
Resultou dessa discussão uma extensa lista de problemas que, muitas vezes, não chegam aos
dispositivos já consagrados em Saúde Mental. São os seguintes os problemas e situações de
risco e vulnerabilidade, colocados aqui sem ordem de importância ou estatística: alcoolismo e
outras dependências (com suas conseqüências: violência doméstica e no trânsito, delitos,
tentativas de suicídio), psicoses e demais transtornos mentais graves, prostituição infantil,
doença clínica grave, exclusão social (pacientes cronificados em hospitais psiquiátricos,
prisão domiciliar, população em situação de rua, idoso abandonado, crianças e adolescentes
145

em situações de risco), violência (domiciliar, comunitária), suicídios e suas tentativas, abuso


de benzodiazepínicos, transtornos do humor e retardo mental (Cf. MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001 b).
Os participantes dedicaram-se, então, a trocar experiências e, a partir delas, a pensar
“Que ações devem ser desenvolvidas pela equipe de saúde mental em articulação com o PSF?
Qual sua composição e a quantas equipes de saúde da família deverá dar suporte?”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7). Trata-se, então, de um dos temas centrais da
discussão a respeito da Saúde Mental na Atenção Básica: as ações e as equipes.
Foco de muita polêmica, a inserção de profissionais de Saúde Mental diretamente no
campo, na comunidade, atuando junto com os membros das Equipes de PSF e PACS, foi a
posição que predominou amplamente na Oficina, tanto que consta de todos os relatórios dos
grupos. Este deve ser um tema de debate constante: o que deve fazer o profissional de Saúde
Mental na comunidade? Durante a Oficina foi destacado que, antes de ver o que deve ser
feito, há uma pequena e importante lista do que não é para ser feito: atuar como especialista
(pelo contrário, a tarefa é inverter o discurso das especialidades), fornecer capacitação, para
que as Equipes de PSF e PACS assumam sozinhas a função de “tratar” e receber
encaminhamentos (a Equipe de Saúde Mental), numa repetição do modelo dos ambulatórios.
Exemplificando o que foi aprovado nos relatórios, no tema acima, temos:
“Intervenção conjunta em consultas e visitas domiciliares, responsabilidade territorial [...]”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p 9), “Atuar junto ao PSF para capacitação e educação
continuada, discussão de caso, planejamento local, intervenção conjunta, mobilização e
integração com recursos existentes nas comunidades [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001
b, p. 12), “Intervenções familiares comunitárias conjuntas (PSF + ESM), como instrumento
de capacitação [...], Criação de Oficinas Terapêuticas na comunidade” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001 b, p. 21).
A alternativa à entrada direta dos profissionais de Saúde Mental nas comunidades,
junto às Equipes de PACS e PSF é a opção por manter um trabalho de supervisão, praticado
em alguns municípios. Deste modo, organiza-se melhor a rede de assistência à Saúde Mental,
com esclarecimentos a respeito de encaminhamentos, discussão de casos e capacitação em
temas específicos. Tenta-se, também, que as Equipes de PACS e PSF atuem em situações de
Saúde Mental sem a presença dos profissionais de Saúde Mental. Consideramos que, devido à
magnitude dos problemas da Saúde Mental, ao intricado de temas de capacitação, à
sobrecarga de trabalho das Equipes de PACS e PSF e à necessidade de agilizar as mudanças,
é preferível a presença de profissionais de Saúde Mental junto às Equipes de PACS e PSF,
146

conforme recomendou a Oficina, com funções de capacitação, organização conjunta do


trabalho e para a condução conjunta das situações que se apresentam.
As ações citadas acima são a base para muitas outras, como o estímulo à organização
de redes sociais, a mobilização de recursos comunitários, a incorporação da Saúde Mental na
atenção aos problemas de saúde em geral, o enfrentamento da questão da violência urbana e
doméstica, a atenção ao idoso e ao adolescente. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).
A capacitação é uma das ações que se tornaram consenso, com a recomendação de
que deve ser continuada e mútua, isto é, as Equipes trocam experiências e saberes. Em
conseqüência da metodologia de educação continuada, sempre a partir das realidades locais, a
Oficina não se limitou a traçar um programa mínimo de capacitação, mas estendeu
amplamente o campo de conhecimento que as Equipes da Atenção Básica podem adquirir, a
partir do contato com as Equipes de Saúde Mental. Foram citados desde conhecimentos de
psicofarmacologia e psicopatologia até a história das abordagens ao desvio e à loucura,
noções de dinâmicas de grupo, de Reforma Psiquiátrica, de Programas de Saúde Mental. (Cf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).
Um tema polêmico e importante, pois decisivo para o suporte das ações, é o da relação
quantitativa entre Equipes de Saúde Mental e Equipes de PSF. A pergunta inicial da Oficina,
em relação às funções das Equipes de Saúde Mental foi: “[...] a quantas equipes de saúde da
família deverá dar suporte?” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7). Os relatórios dos
grupos de trabalho indicam entre 8 e 10 Equipes de PSF para cada Equipe de Saúde Mental,
sendo esta composta, em média, por quatro profissionais. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001 b). Esta proporção não condiz com a prática, no meu modo de ver e com base na
observação da prática que tenho realizado.
Considerando que cada Equipe de Saúde da Família atende até mil famílias, num total
de cerca de quatro mil pessoas, oito Equipes de PSF atendem uma população de quase trinta e
duas mil pessoas. Se o Ministério da Saúde reconhece que 3% da população necessita de
cuidados contínuos, por apresentar transtornos mentais severos e persistentes (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2004, p. 2), só neste contingente estão cerca de novecentas e sessenta pessoas.
Articular assistência e promoção de cidadania para essas pessoas, além de todas as demais
ações recomendadas pela Oficina, é tarefa extensa demais para uma só Equipe de Saúde
Mental, por mais que saibamos que terá atuação conjunta com as Equipes locais de PACS e
PSF e o movimento comunitário disparado potencializará as ações. Voltaremos ao tema mais
adiante, ao discutir a implantação efetiva das ações de Saúde Mental na Atenção Básica em
Macaé.
147

Um item da maior importância é o que uma das perguntas da equipe de coordenação


do evento colocou: “Em que casos a pessoa com problemas de saúde mental deve ser
referenciada e qual o fluxo de referência e contra-referência ?” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001 b, p. 7). Quando a opção de trabalho é apenas pela supervisão das Equipes de PSF, é
estabelecido um melhor relacionamento entre o PSF e a rede de assistência à Saúde Mental,
com organização do fluxo de referência e contra-referência, o que é muito útil. Mas, se a
opção for por tentar, progressivamente, a abordagem efetiva da Saúde Mental na Atenção
Básica, as referências vão perdendo em volume e importância. Um dos grupos de trabalho
respondeu à pergunta acima com: “Mudança da denominação conceitual de referência/contra-
referência para co-responsabilidade e trabalho em rede de complementaridade”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 23). Isso significa que, ao lado de tentar abordar os
problemas da Saúde Mental na comunidade, num trabalho de co-responsabilidade entre
Equipes de Saúde Mental e PSF, a tradicional referência e contra-referência, que muitas vezes
perde a pessoa encaminhada de vista, passa a ser encarada como parte de uma rede de
complementaridade, trabalho verdadeiramente conjunto, integrado e em que todos os
envolvidos continuam responsáveis e em contato com as pessoas atendidas.
O tema “Financiamento” não esteve na relação de perguntas oferecidas pelo
Ministério da Saúde, mas preocupou e ocupou os participantes da Oficina, que produziram
propostas. Um dos grupos sugeriu e

[...] a plenária recomendou que seja destinado um incentivo por parte do


Ministério da Saúde para os municípios que incluírem ações de saúde
mental nos programas de saúde da família, dentro das diretrizes propostas
pelo Plano Nacional de Inclusão. A manutenção ou suspensão deste
incentivo serão balizadas pelos indicadores de avaliação também propostos
no Plano (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 14).

Também foi discutida, mas não consta do Relatório Final, a sobrecarga de trabalho das
Equipes do PSF. Com a entrada da Saúde Mental, mais trabalho é acrescentado, mesmo que,
depois de implantadas as ações, os problemas não resolvidos possam diminuir. Foi, então,
ventilada a possibilidade de diminuir a quantidade de famílias a serem atendidas pelas
Equipes de PSF que tenham ações de Saúde Mental.
Escrevo no segundo semestre de 2004 e até então nenhum incentivo de financiamento
à entrada da Saúde Mental na Atenção Básica foi regulamentado, por parte do Ministério da
Saúde. Está estabelecida uma definição de investimento em capacitação, como consta no
texto “Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão das
148

Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, que diz que existem possibilidades de financiar a
Formação Profissional através do Programa Permanente de Formação para a Reforma
Psiquiátrica, da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, em articulação com os
Pólos de Educação Permanente em Saúde e com os gestores estaduais de municipais (Cf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b).
Foram discutidos e sugeridos indicadores para a avaliação das ações de Saúde Mental
na Atenção Básica. O indicador mais presente nas sugestões foi o número de internações
psiquiátricas, que deveria fazer parte do SIAB. Um dos grupos sugeriu “[...] indicadores que
identifiquem a ampliação de trabalhos comunitários e territoriais” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2001 b, p. 19). Redução da violência na comunidade também foi um dos indicadores
mais citados (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).
Em resumo, a Oficina de 2001 produziu um relatório que é um roteiro para a
implantação da Saúde Mental na Atenção Básica com diretrizes, conteúdo conceitual e de
capacitação, sugestão de ações, indicadores e financiamento.
Durante a 54a. Assembléia Mundial da Saúde, da Organização Mundial da Saúde,
realizada em maio de 2001, ocorreram quatro mesas redondas de Ministros da Saúde dos
países membros, que resultaram no relatório “Mesas redondas: salud mental. Informe de la
secretaria”. Nele está contida a afirmação:

Todos los ministros coincidieron en que los problemas de salud mental


representan un componente importante de la carga de morbilidad a nivel
mundial, tienen enormes costos económicos y sociales, y provocan
sufrimiento humano. El hecho de que los países deban abordar otros
problemas sanitarios y que sus presupuestos de salud sean limitados ya no
puede aducirse como justificación para no adoptar medidas. La evolución
reciente indica con claridad que es posible hallar soluciones eficientes en
todos los contextos (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2001,
p. 1).

Apontando para a necessidade de financiamento do setor de Saúde Mental, dada a sua


importância epidemiológica e social, a OMS indica os meios para se chegar a uma assistência
e promoção, na área, que seja compatível com os conhecimentos atuais, iniciando com o
chamamento para o combate à estigmatização. (Cf. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA
SALUD, 2001, p. 2).
A Assembléia reconhece a importância dos fatores sociais para os problemas de Saúde
Mental e assinala que
149

Los ministros destacaron la importancia de situar el tema de la salud mental


en el contexto social pertinente, puesto que en ella inciden factores que
varían en los diferentes países. En gran parte del mundo se asiste a una
aceleración de las reformas económicas y los cambios sociales, incluida la
transición económica; esta evolución trae aparejadas unas tasas alarmantes
de desempleo, la desintegración de la familia, la inseguridad personal y la
desigualdad de ingresos (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD,
2001, p. 1).

Resta saber a que transição econômica se refere o texto, que chama de “evolução” um
processo que leva ao caos social, isto é, a globalização geradora de mais desigualdade.
Já no campo das ações de saúde, o texto, no capítulo “Mejora de las Políticas y los
Servicios de Salud Mental”, aconselha a “Adopción de la atención basada en la comunidad e
integración de la salud mental en los sistemas nacionales de atención primaria de salud”
(ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2001, p. 3).
No dia 11 de dezembro de 2001, Benedetto Saraceno, Coordenador do Departamento
de Saúde Mental e Abuso de Drogas da Organização Mundial da Saúde (OMS), proferiu a
Conferência de Abertura da III Conferência Nacional de Saúde Mental. A palestra, intitulada
“Saúde Mental, Cidadania e Direito do Cidadão”, foi um resumo, com referências ao Brasil,
da publicação, que então estava sendo lançada, o “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.
Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”.
Inicialmente, o documento lançado chama a atenção para a dimensão dos problemas de
Saúde Mental dizendo:

A OMS está fazendo uma declaração muito simples: a saúde mental –


negligenciada por demasiado tempo – é essencial para o bem-estar das
pessoas, das sociedades e dos países, e deve ser universalmente encarada
sob uma nova luz (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001,
p. 13).

Com o objetivo de dar a sua orientação atual para a Saúde Mental no mundo, a OMS
utilizou centros de pesquisa em dezenas de países, em todos os continentes, e chegou a dez
recomendações gerais. Ao observar o teor das recomendações, vemos que a primeira delas
situa na Atenção Básica as ações preferenciais da Saúde Mental. São os seguintes os títulos
das recomendações:

1-Proporcionar tratamento na atenção primária.


2-Garantir acesso aos medicamentos psicotrópicos.
3-Garantir atenção na comunidade.
4-Educação em saúde para a população.
5-Envolver as comunidades, as famílias e os usuários.
150

6-Estabelecer políticas, programas e legislação nacionais.


7-Formar recursos humanos.
8-Criar vínculos com outros setores.
9-Monitorizar a Saúde Mental na comunidade.
10-Dar mais apoio à pesquisa. (Cf. RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO
MUNDO, 2001).

Naquele momento, a Organização Mundial da Saúde apontava um caminho, com


clareza, que mostra, certamente, uma mudança significativa nos rumos das práticas em Saúde
Mental. A Diretora Geral da OMS, Gro Brudtland, na mensagem que abre o documento,
lembra três princípios adotados pela Organização das Nações Unidas há uma década:

O primeiro desses princípios é o de que não deverá existir discriminação em


virtude de doenças mentais. Outro é o que, na medida do possível, deve-se
conceder a todo paciente o direito de ser tratado e atendido na sua própria
comunidade. E o terceiro é o de que todo paciente deverá ter o direito de ser
tratado num ambiente o menos restritivo, com o tratamento menos restritivo
ou intrusivo (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 13).

Notemos que o que consta dessa declaração também está na Lei 10.216, a Lei Paulo
Delgado, de 2001. Cabe forçar as limitações desse “na medida do possível”.
A Dra Gro faz uma séria acusação, em relação às medidas tomadas para a assistência à
Saúde Mental: “Os governos têm-se mostrado desidiosos, tanto como a comunidade da saúde
pública” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 14). O Dicionário Aurélio
Eletrônico dá os seguintes significados de “desídia” : preguiça, indolência, inércia,
negligência, desleixo, descaso, incúria. Assim fica mais claro.
Num tom de exortação, a Dra Gro encerra o seu texto com as seguintes palavras:

Como a principal instituição mundial de saúde pública, a OMS tem uma e


apenas uma opção: assegurar que a nossa geração seja a última a permitir
que a vergonha e o estigma tomem a frente da ciência e da razão
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 14).

Na particularização do que está exposto nas recomendações do documento que


apontam para a Atenção Básica, lemos logo no primeiro: “Proporcionar tratamento na
Atenção Primária”. Diz o texto: “O manejo e tratamento de transtornos mentais no contexto
da atenção primária é um passo fundamental que possibilita ao maior número possível de
pessoas ter acesso mais fácil e mais rápido aos serviços [...]” (RELATÓRIO SOBRE A
SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 15).
No item 3, “Garantir Atenção na Comunidade”, a OMS afirma:
151

A atenção baseada na comunidade tem melhor efeito sobre o resultado e a


qualidade da vida das pessoas com transtornos mentais crônicos do que o
tratamento institucional. A transferência de pacientes dos hospitais
psiquiátricos para a comunidade é também efetiva em relação ao custo e
respeita os direitos humanos. Assim, os serviços de saúde mental devem ser
prestados na comunidade, fazendo uso de todos os recursos disponíveis. Os
serviços de base comunitária podem levar a intervenções precoces e limitar
o estigma associado com o tratamento. Os grandes hospitais psiquiátricos de
tipo carcerário devem ser substituídos por serviços de atenção na
comunidade, apoiados por leitos psiquiátricos em hospitais gerais e atenção
domiciliar que atenda a todas as necessidades dos doentes que eram de
responsabilidade daqueles hospitais. Essa mudança para a atenção
comunitária requer a disponibilidade de trabalhadores em saúde e serviços
de reabilitação no nível da comunidade, juntamente com a provisão de
apoio em face de crises e proteção na moradia e no emprego (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

Notemos que o item começa focalizando o paciente crônico, mas vai evoluindo até
propor intervenções precoces e apoio em crises, ampliando as ações que o início do texto
poderia sugerir como restritas. Desta forma, a atenção aos problemas graves de Saúde Mental
passa a ser integral.
O item quatro contempla uma das prioridades, segundo a OMS: a luta contra o estigma
e o preconceito. Deste modo sugere que, ao lado de divulgar as opções de tratamento, “Uma
bem planejada campanha de sensibilização e educação do público pode reduzir a
estigmatização e a discriminação, fomentar o uso dos serviços de saúde mental e lograr uma
aproximação maior entre saúde mental e saúde física” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO
MUNDO, 2001, p. 16).
O item cinco é uma tomada de posição quanto ao controle social das ações de Saúde
Mental, no seu planejamento e execução. Com o título de “Envolver as comunidades, as
famílias e os usuários”, diz que

As comunidades, as famílias e os usuários devem ser incluídos na


formulação e na tomada de decisões sobre políticas, programas e serviços.
Isso deve resultar num dimensionamento melhor dos serviços às
necessidades da população e na sua melhor utilização. Ademais, as
intervenções devem levar em conta a idade, o sexo, a cultura e as condições
sociais, a fim de atender às necessidades das pessoas com transtornos
mentais e suas famílias. (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 16).

O item “Formar recursos humanos” traz detalhes importantes, que nunca é demais
repetir e ver colocado em palavras claras e por uma entidade da importância da OMS. Diz ele
152

que “A maioria dos países em desenvolvimento precisa aumentar e aprimorar a formação de


profissionais para a saúde mental, que darão atenção especializada e apoiarão programas de
atenção primária em saúde” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 17).
Mais adiante, no mesmo item, está colocada mais uma vez a definição da OMS:

Embora a atenção primária ofereça o contexto mais vantajoso para a


atenção inicial, há necessidade de especialistas para prover toda uma série
de serviços. Em condições ideais, as equipes especializadas em atenção em
saúde mental deveriam incluir profissionais médicos e não médicos, tais
como psiquiatras, psicólogos clínicos, enfermeiros psiquiátricos, assistentes
sociais psiquiátricos e terapeutas ocupacionais, que podem trabalhar juntos
com vistas à atenção e à integração total dos pacientes na comunidade
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 17).

Deste modo, a OMS define que a Atenção Básica é o nível privilegiado para a
abordagem à Saúde Mental, não prescindindo, porém, de outros recursos. Destacamos, no
texto a expressão “[...] atenção e [...] integração total dos pacientes na comunidade”
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 17), o que parece indicar a
tentativa de tentar não referir o paciente e sua família para outros serviços, se isso for
possível. Voltamos, então, mais uma vez, à definição de que as pessoas devem ser tratadas
com os recursos comunitários sempre que isso for possível.
O item “Monitorizar a Saúde Mental na comunidade” reforça o que entre nós já vem
sendo repetido e proposto: a inclusão de indicadores de Saúde Mental no sistema de
informação da Atenção Básica. O texto diz:

A saúde mental das comunidades deve ser monitorizada mediante a


inclusão de indicadores de saúde mental nos sistemas de informação e
notificação sobre saúde. Os indicadores devem incluir, tanto o número de
indivíduos com transtornos mentais e a qualidade da atenção que recebem,
como algumas medidas mais gerais de saúde mental das comunidades. Essa
monitorização ajuda a determinar tendências e detectará mudanças na saúde
mental em resultado de eventos externos, tais como catástrofes. A
monitorização é necessária para verificar a efetividade dos programas de
prevenção e tratamento de saúde mental, e fortalece, ademais, os
argumentos em favor da provisão de mais recursos. São necessários novos
indicadores para a saúde mental das comunidades (RELATÓRIO SOBRE A
SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

O Relatório da OMS traz um estudo a respeito da prevalência dos transtornos mentais


no contingente populacional que procura a atenção básica, indicando que “[...] os diagnósticos
mais comuns são depressão, ansiedade e transtorno por uso de substâncias” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 51). Citando um estudo transcultural de Üstün e
153

Sartorius 1995 e de Goldberg e Lecrubier 1995, aponta números que, para o Rio de Janeiro
são: 15,8% para depressão atual, 22,6% para ansiedade generalizada e 4,1% para dependência
do álcool. (Cf. RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). Com esses números
significativos, a OMS chama a atenção para o impacto causado pelos transtornos mentais nas
pessoas, famílias e comunidades. Como “[...] uma em quatro famílias tem, pelo menos, um
membro que sofre atualmente um transtorno mental ou comportamental” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 51), é grande o número de lares onde ocorrem
perdas econômicas, necessidade de deslocar pessoas da atividade produtiva para o cuidado
com os membros afetados, além dos gastos com o tratamento e do sofrimento geral causado
pelo estigma e discriminação.
Confirmando a alta prevalência de transtornos mentais na população, Sandra Fortes,
em tese de doutorado de 2004, chegou aos seguintes números, pesquisando em unidades do
Programa de Saúde da Família em Petrópolis, RJ:

Detectou-se uma prevalência média de 56% de Transtornos Mentais


Comuns nos pacientes atendidos, sendo que 33% eram de quadros graves.
Constituía-se principalmente de Transtornos Depressivos e Ansiosos,
destacando-se também os Transtornos Somatoformes e Dissociativos
(FORTES, 2004, p. 5).

O Capítulo 3 do Relatório é dedicado à abordagem da Resolução de Problemas de


Saúde Mental, isto é, aos modos eficazes de tratamento. A OMS considera que três fatores
contribuíram para a mudança de paradigma da atenção à saúde mental: os avanços da
psicofarmacologia, o movimento em favor dos direitos humanos e a incorporação, na
definição de saúde, pela própria OMS, dos aspectos sociais e mentais. (Cf.RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). Podemos comentar que esse trio de avanços custa a
chegar às comunidades, ou mesmo contribuem para o seu controle, como por exemplo a
psicofarmacologia que, se é positiva, quando acoplada aos outros dois avanços, é meio de
controle, quando utilizada como único instrumento ou ao fornecer base para teorias
reducionistas de explicação do sofrimento mental. O movimento em favor dos direitos
humanos, como a própria denominação indica, movimento, está ao sabor das vontades
políticas cambiantes e das pressões pela manutenção do encobrimento das mazelas sociais.
A definição da OMS, que diz que saúde é o bem estar físico, mental e social, também
não tem amplo alcance, a começar pela formação dos profissionais de saúde que, em grande
maioria, é feita apenas em bases biológicas. A afirmação do Relatório é importante como
mais uma convocação à coerência entre os conceitos estabelecidos na teoria e a prática.
154

O Capítulo 3 resume, de forma drástica, a crítica aos hospitais psiquiátricos,


concluindo que “[...] as condições de vida em todos os hospitais psiquiátricos do mundo são
deficientes, resultando em violações dos direitos humanos e em cronicidade” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 80). Este é um dos pontos da argumentação para
justificar a atenção à Saúde Mental na comunidade. Interessante observar que a OMS define
que a atenção comunitária à Saúde Mental tem como função, dentre outras, “[...] garantir que
certas funções protetoras dos asilos sejam proporcionadas integralmente na comunidade e que
os aspectos negativos das instituições não sejam perpetuados” (RELATÓRIO SOBRE A
SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 80). Esta orientação faz lembrar o que disse Domingos Sávio
numa palestra (SÁVIO, 2003), em 2003, já citada no capítulo III: que o hospital psiquiátrico
fornece casa e comida, elementos que as propostas de transformação da assistência à Saúde
Mental não pode negligenciar. Está apontada a tarefa, em toda a sua grandiosidade e
importância.
Como detalhes da atenção à Saúde Mental na comunidade, o Relatório define:

-serviços que estão próximos ao lar, incluindo o hospital geral para


admissão de casos agudos e dependências residenciais de longo prazo
na comunidade;
-intervenções relacionadas tanto com as incapacidades como com os
sintomas;
-tratamento e atenção específicos para o diagnóstico e as necessidades de
cada pessoa.
-uma ampla gama de serviços que atendam às necessidades das pessoas
com transtornos mentais e comportamentais;
-serviços que são coordenados entre profissionais de saúde mental e
organismos da comunidade;
-serviços mais ambulatoriais do que fixos, inclusive os que podem oferecer
tratamento em casa;
-parceria com os provedores de atenção e atendimento das suas
necessidades;
-legislação em apoio dos aspectos da atenção mencionados. (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

Com o que está estabelecido acima, o Relatório chega ao tema da


desinstitucionalização e lança importantes advertências. Uma frase, deste ponto da
argumentação, deveria ficar à vista em todos os nossos estabelecimentos de Saúde Mental:
“Fechar hospitais mentais sem alternativas comunitárias é tão perigoso como criar alternativas
comunitárias sem fechar hospitais psiquiátricos” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO
MUNDO, 2001, p. 80). Fechar hospitais psiquiátricos sem alternativas comunitárias é a
155

desassistência, e criar alternativas comunitárias sem fechar hospitais psiquiátricos é manter o


caminho da exclusão aberto, numa mensagem de que ela ainda é um caminho viável e aceito.
Como componentes do processo de desinstitucionalização, o Relatório indica:

-Prevenção de admissões errôneas em hospitais psiquiátricos mediante a


provisão de serviços comunitários;
-Alta para a comunidade de pacientes internados há longo tempo em
instituições e que tenham recebido preparação adequada;
-Estabelecimento e manutenção de sistemas de apoio na comunidade para
pacientes não institucionalizados. (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO
MUNDO, 2001, p. 81).

As linhas a seguir se encaixam perfeitamente ao caso do Brasil e devem servir de base


para preocupação e organização de profissionais e usuários do sistema de saúde. Nelas, o
Relatório aponta que

A desinstitucionalização não tem constituído um êxito sem reservas, e a


atenção comunitária ainda enfrenta muitos problemas operacionais. Entre as
razões da falta de melhores resultados estão o fato de que os governos não
consignaram à atenção na comunidade os recursos poupados com o
fechamento de hospitais (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 81).

Lembremos os 30 mil leitos de Hospitais Psiquiátricos fechados no Brasil de 1990 até


hoje, com o dinheiro economizado tendo tomado outras vias que não a da Saúde Mental e,
também, no momento atual, a dificuldade que é extrair dos cofres públicos o que está
estabelecido em legislação como direitos dos usuários do sistema.
Os outros fatores para a demora de resultados da desinstitucionalização que o
Relatório aponta, são a falta de preparo dos funcionários para a mudança de seus papéis e a
manutenção do estigma que recai sobre as pessoas que passam por transtornos mentais.
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 81). Ambos devem ser alvo do
trabalho diário dos Programas Municipais de Saúde Mental.
Comentando o lento desenvolvimento das ações de Saúde Mental na atenção primária,
o Relatório adverte:

Mesmo em paises onde foi demonstrado em programas piloto o valor da


integração da atenção em saúde mental na atenção primária (por exemplo,
na África do Sul, Brasil, China, Colômbia, Filipinas, Índia, Paquistão,
República Islâmica do Irã, Senegal e Sudão), esse enfoque não foi ampliado
para cobrir todo o país (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 84).
156

Em algumas linhas, antes do trecho citado acima, está uma das razões para a citada
falta de velocidade na expansão das ações de Saúde Mental nas bases da sociedade:

O enfoque baseado na utilização de todos os recursos disponíveis na


comunidade tem o atrativo de emancipar o indivíduo, a família e a
comunidade para incluir a saúde mental na agenda do público, e não na dos
profissionais (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p.
84).

Dentro desse importante Capítulo 3, o Relatório apresenta os “Princípios da Atenção”,


onde discorre a respeito do que a pesquisa em todo o mundo qualificou como útil e exeqüível.
Uma definição logo de início chama a atenção, mostrando a importância das diretrizes da
OMS em relação ao assunto: “A idéia de atenção em saúde mental baseada na comunidade
constitui mais um enfoque global do que uma solução organizacional” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 85). Podemos compreender que não se trata
apenas de uma forma a mais de administrar Programas de Saúde Mental, mas de uma
mudança de direção definida.
O Relatório, chamando a atenção para a organização e utilização dos “recursos
ocultos” que existem na comunidade, aponta também para “princípios orientadores básicos”
para a atenção em Saúde Mental: “[...] diagnóstico, intervenção precoce, participação do
usuário, parceria com a família, envolvimento da comunidade local e integração na atenção
primária de saúde” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 86).
O Capítulo 4 do Relatório é dedicado a analisar a situação mundial dos investimentos
em Saúde Mental e as possibilidades de ação, mesmo em situações de dificuldade financeira.
Grande parte do capítulo é voltada para as mudanças no tratamento dos chamados
“transtornos mentais graves”. Como orientações, a OMS aponta: “A primeira é retirar a
atenção dos hospitais psiquiátricos; a segunda, desenvolver serviços comunitários; e a
terceira, integrar os serviços de saúde mental na atenção de saúde geral” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 121).
O Relatório indica quais os itens que devem ser desenvolvidos, para que a
transferência das pessoas internadas para as comunidades seja realizada com sucesso:

Em condições ideais, os serviços deveriam abranger nutrição, provisão para


admissão de casos agudos em hospitais gerais, atenção ambulatorial,
centros comunitários, serviços periféricos, lares residenciais, substitutivos
para as folgas de familiares e cuidadores, apoio ocupacional, vocacional e
157

de reabilitação, e necessidades básicas tais como abrigo e vestuário


(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123).

A lista de itens acima citada pode ser comparada com o que estamos realizando no
Brasil. Todos os pontos estão sendo praticados, em diversos lugares, com bons resultados.
Mas é interessante vê-los reunidos, e com a recomendação da OMS, para que a avaliação da
sua importância seja mais bem considerada. O que estamos tocando são as condições para que
a desinstitucionalização funcione. Para que não haja risco para pacientes, famílias,
comunidade e para as propostas da Reforma Psiquiátrica.
A OMS faz, então, três recomendações para o financiamento das ações de Saúde
Mental na sua nova fase e paradigma: “A primeira é liberar recursos para o desenvolvimento
de serviços comunitários mediante o fechamento parcial de hospitais” (RELATÓRIO SOBRE
A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123).
Já foi mencionada, no capítulo II desta monografia, a Deliberação 54 da Comissão
Integestores Bipartite da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, que
transfere recursos das Internações Psiquiátricas que estão deixando de serem feitas, para os
Serviços Residenciais Terapêuticos, CAPS e Oficinas Terapêuticas. Instrumento útil, mas que
não contempla a Atenção Básica.
“A segunda é usar financiamento transitório para investimento inicial em novos
serviços, a fim de facilitar a passagem dos hospitais para a comunidade” (RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123). É grave o problema do financiamento inicial
de dispositivos de Saúde Mental entre nós. Os serviços, como CAPS, Residências
Terapêuticas, Emergências Psiquiátricas, que requerem instalações físicas e gastos iniciais,
devem ser bancados inicialmente pelos municípios, o que muitas vezes atrasa o
desenvolvimento dos Programas Municipais de Saúde Mental. A remuneração dos
procedimentos e serviços só começa a ser recebida após o pleno funcionamento e
cadastramento. O incentivo financeiro para municípios que tenham a Saúde Mental na
Atenção Básica é uma medida adequada, aprovada na “Oficina” de 2001, em Brasília, a qual
ainda não se efetivou.
Concluindo as recomendações, o Relatório traz a terceira: “[...] manter financiamento
paralelo para continuar a cobertura financeira de certo nível de atenção institucional depois de
estabelecidos os serviços baseados na comunidade” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO
MUNDO, 2001, p. 123). Este item revela claramente a preocupação com a possível
desassistência que poderá ocorrer em determinados momentos, mesmo após os avanços
conseguidos.
158

O sempre controvertido tema da “Promoção da Saúde Mental” é enfrentado no


Relatório com sugestões simples e que já se mostraram eficazes em outros paises. Mas,
mesmo assim, existe a advertência: “O ponto de partida mais apropriado para a promoção da
saúde mental dependerá tanto das necessidades como do contexto social e cultural”
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 133). Dito isso, há três
recomendações. A primeira se intitula “Intervenções orientadas para os fatores que
determinam ou mantém a saúde debilitada” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 134). Sob esse título estão as ações capazes de fortalecer e qualificar as relações que
“[...] podem melhorar substancialmente o desenvolvimento emocional, social, cognitivo e
físico das crianças” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134). A
segunda recomendação trata de “Intervenções orientadas para grupos de população”
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134), onde o exemplo é a faixa
populacional acima de 60 anos. No item “Intervenções orientadas para determinados
contextos” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134), é ressaltado o
papel das Escolas para o desenvolvimento da saúde mental individual e coletiva, com um
chamamento para a ação nessa área.
O Relatório da OMS chama a atenção, em diferentes passagens, para o problema do
estigma e da discriminação que recaem sobre as pessoas que precisam de tratamento para
problemas mentais. A orientação é ocupar os meios de comunicação de massa e agir de todas
as maneiras possíveis, nas comunidades, para tentar quebrar o preconceito.
A Internet é citada como um recurso de vasta utilidade, podendo ser utilizada como

[...] meio de informar pacientes, estudantes, profissionais de saúde, grupos


de usuários, organizações não-governamentais e a população em geral sobre
saúde mental; para promover encontros de ajuda mútua e grupos de
discussão; e para proporcionar atenção clínica (RELATÓRIO SOBRE A
SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 135).

O Relatório da OMS chega ao fim com um interessante estudo a respeito de “Como


utilizar bem os recursos disponíveis” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001,
p. 150). São traçados três cenários que descrevem as situações que ocorrem nos países:
recursos escassos, nível médio de recursos e alto nível de recursos. (Cf. RELATÓRIO
SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). O lembrete do texto, cujo conteúdo nos transporta
para o que podemos observar no Brasil, no Estado do Rio de Janeiro e até mesmo dentro dos
municípios, é que os três níveis podem conviver numa mesma conjuntura. Deste modo, o
panorama de um país pobre, onde não há nem profissionais de saúde em número mínimo,
159

nem remédios sempre disponíveis, acontece num país que tem, em outras áreas, níveis médios
ou até altos de recursos. Para cada cenário há uma lista de recomendações, cuja consulta pode
trazer avanços.
Para a Atenção Primária, as recomendações para o cenário de recursos escassos são:

Reconhecer a saúde mental como componente da atenção primária de saúde


[...] Incluir o reconhecimento e tratamento de transtornos mentais comuns
nos currículos de formação de todo o pessoal de saúde e [...] Proporcionar
treinamento de atualização a médicos da atenção primária (pelo menos 50%
de cobertura em 5 anos) (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 153).

Quando passamos para o cenário de nível médio de recursos, para a Atenção Primária
é recomendado “Elaborar material de treinamento com relevância local e [...] Proporcionar
treinamento de atualização a médicos da atenção primária (100% de cobertura em 5 anos)”
(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 153). No nível alto de recursos,
temos: “Melhorar a eficiência no manejo de transtornos na atenção primária de saúde e [...]
Melhorar os padrões de encaminhamento” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,
2001, p. 153).

No final do ano de 2001, foi realizado, em Macaé, um concurso público que


possibilitou a entrada de vários profissionais no Programa de Saúde Mental. Não existiam,
naquela altura, no município, nem CAPS nem um trabalho de Saúde Mental efetivamente na
comunidade. O planejamento do Programa de Saúde Mental aguardava o Concurso Público
para levar à prática o que foi implantado, então, em abril de 2002, com apoio da Secretaria
Municipal de Saúde: além da entrada de profissionais de Saúde Mental nos ambulatórios e
emergência psiquiátrica, duas equipes foram criadas, uma para formar o embrião do futuro
CAPS, organizando, num dos ambulatórios, o atendimento sob a forma de Oficinas
Terapêuticas e, outra, para concretizar a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica em
novos termos. Note-se que, em 2000, na IV Conferência Municipal de Saúde, já havíamos
aprovado a mudança do Modelo Assistencial em Saúde Mental. Na ocasião, o trabalho com
os Programas de Atenção Básica foi apontado como um caminho a ser seguido.
Foi formada, portanto, uma Equipe para atuar na Atenção Básica. Contou com uma
Psicóloga, uma Terapeuta Ocupacional, uma Assistente Social e uma Psiquiatra. Esta última,
refletindo a falta de profissionais da psiquiatria, dividia seu tempo entre as Oficinas
Terapêuticas e a Atenção Básica. Além desses profissionais, uma psiquiatra, Naly Soares de
160

Almeida, que tinha formação sistêmica e visão comunitária, incorporou-se ao trabalho na


condição de Supervisora, sendo a minha função, a de capacitar todos esses profissionais para
o início do trabalho e, depois, a de Consultor.
A Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica freqüentou o mesmo curso que foi
oferecido aos novos profissionais, que se chamou “A Mudança do Modelo Assistencial em
Saúde Mental”, que teve como temas a história da exclusão da loucura, a Reforma
Psiquiátrica, os textos prévios à III Conferência Nacional de Saúde Mental, o Relatório da
OMS de 2001, sobre Saúde Mental, noções de rede e território. Depois desse curso, tive
reuniões com a Equipe de Saúde Mental, que estava indo para a Atenção Básica, de estudo e
discussão a respeito do que estava planejado para ter início. Foram estudados os textos
recentes a respeito de Saúde Mental na Atenção Básica. Esta Equipe de Saúde Mental recebeu
capacitação teórica, fornecida pelo nível central do PSF, a respeito do trabalho na Atenção
Básica e continuou essa capacitação em visitas ao Módulo que foi escolhido para o início do
trabalho. A escolha do Módulo foi feita pela Coordenação do PSF.
A forma de entrar na comunidade, que defendi e que a Equipe aceitou, bem como as
Coordenações dos outros serviços de Saúde Mental, o Secretário de Saúde e a Coordenação
do PSF, foi lotar a Equipe em apenas um Módulo de PSF. Essa entrada em apenas um
Módulo teve os propósitos de continuar a capacitação inicial da Equipe de Saúde Mental
(reconhecendo que nenhum de seus membros tinha experiência prática na área), capacitar a
Equipe na prática do trabalho do PSF, estabelecer discussões iniciais a respeito do que iria
surgir de demanda, examiná-la e decidir o inicio das ações. Em resumo, um início lento, para
que cada passo pudesse ser examinado. Destaquei, desde o início, a minha orientação, para
que a expansão do trabalho para outros Módulos de PSF fosse feita de modo cuidadoso e
discutido, para que pudéssemos determinar qual seria o limite para uma Equipe de Saúde
Mental trabalhar na Atenção Básica, avaliando, na prática, o que foi alvo de debates na
Oficina de Brasília em 2001.
Um ponto de importância fundamental, dentro de toda a discussão, que se deu no
momento que está sendo descrito, é o que define que nenhuma ação seria praticada, na
comunidade, apenas por membros da Equipe de Saúde Mental. Sempre deveria estar pelo
menos um membro do PSF, de preferência com a presença do Agente Comunitário.
Acreditamos que essa é a pedra de toque de todo trabalho na Atenção Básica. É essa prática
que vai realizar a capacitação permanente e mútua, que vai ajudar a introduzir a Equipe de
Saúde Mental na comunidade, que vai responder, com o tempo e a insistência, à demanda da
Equipe de PSF e da comunidade por atuação de especialistas, que a Equipe de Saúde Mental
161

recusará, mas de modo a tornar a situação produtiva, visto que a cada recusa cria-se campo de
capacitação e ação conjunta.
É com a atuação conjunta que a abordagem do sofrimento individual poderá ser
potencializado, de modo a provocar movimentos de mudança nas famílias e na comunidade.
Seguimos, então, as conclusões da “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de
Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, de Brasília, 2001. (Cf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).
Foram realizadas reuniões com a Equipe completa do Módulo de PSF, para
apresentações pessoais, discussão a respeito das propostas, estudo dos textos que foram
trabalhados pela Equipe de Saúde Mental na sua capacitação inicial e princípio dos debates a
respeito das ações a serem praticadas.
As primeiras ações com a participação dos profissionais de Saúde Mental foram: “[...]
grupos de sala de espera, Visitas Domiciliares, encontro com os ACS e participação nos
grupos já existentes” (PINTO et al, 2003, p. 5). Também foi realizado um grupo para acolher
pessoas com “sofrimento mental grave” e seus familiares, que foi o início das Oficinas
Terapêuticas que estão em atividade.
Em agosto de 2003 foi realizada uma avaliação, pela Equipe de Saúde Mental na
Atenção Básica, a pedido do nível central do PSF municipal, para efeitos de justificativa de
financiamento junto ao Ministério da Saúde (o Projeto de Apoio à Expansão do Programa de
Saúde da Família (PROESF)). Deste documento tirei a última citação, acima, e dele também
utilizo as seguintes.
A Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica reconheceu que a capacitação que
recebeu provocou mudanças, “[...] com plena integração dos profissionais nas ações na
comunidade e na formulação de propostas” (PINTO et al, 2003, p. 5).
Em relação à capacitação das Equipes de PSF, foi estabelecida uma rotina de reunioes
regulares com a Equipe completa do Módulo, para discussão dos casos e das situações
familiares e comunitárias, com as possíveis intervenções conjuntas. Ocorrem também as
reuniões de pequenas equipes, que se formam para intervir em situações que aparecem e que
não podem esperar por reuniões regulares. São praticadas as interconsultas, com o médico do
módulo e outros profissionais da base trocando idéias com a Equipe de Saúde Mental a
respeito de uma situação clínica, examinando a maior parte das informações possíveis.
A capacitação dos ACS está descrita da seguinte forma:
162

Os ACS da comunidade foram capacitados logo de inicio, pela Equipe de


Saúde Mental, em reuniões semanais das duas Equipes (PSF E SM) e
capacitação em serviço, usando as Visitas Domiciliares, Oficinas
Terapêuticas, Grupos de Diabéticos e Hipertensos, Terapia Comunitária e a
discussão de casos como base (PINTO et al, 2003, p. 5).

A avaliação dos resultados dessa capacitação foi a seguinte:

O resultado da Capacitação dos ACS foi o aparecimento de um novo olhar


a respeito da saúde mental, com desmistificação da loucura e do sofrimento
mental. Houve integração total ao trabalho, com participação em todas as
atividades da saúde mental e atenção em relação aos problemas na
comunidade (PINTO et al, 2003, p. 5).

Em relação à capacitação geral, a avaliação de 2003 relata que

Durante o desenvolvimento do trabalho, foi decidido e passou a ser


realizada uma reunião mensal com todos os profissionais de nível superior
do PSF do Município. Foi criado, então, um espaço para a discussão dos
problemas ligados ao trabalho em geral e para a capacitação técnica. Com
isso, a entrada da Saúde Mental no PSF está se dando em dois níveis: um,
com as ações nos Módulos e outro, com a capacitação técnica dos
profissionais de nível superior de todos os Módulos (PINTO et al, 2003, p.
6).

Havia dificuldade em relação à participação, nas reuniões de capacitação, dos


profissionais de nível superior do módulo onde as ações foram inicialmente implantadas. As
justificativas eram sempre ligadas à pressão do trabalho diário. Mas, após alguns meses, o
assunto foi trabalhado e a presença desses profissionais tornou-se freqüente, com o resultado
de que

[...] mudou o olhar dos profissionais a respeito dos problemas da saúde


mental, com postura ativa em relação a todas as atividades da saúde mental.
Houve mudança na relação profissional de saúde/paciente, com maior
resolutividade na abordagem à hipertensão, por exemplo. Houve adesão dos
profissionais de nível superior ao trabalho com grupos (PINTO et al, 2003,
p. 6).

Com o esquema de capacitação organizado, a Saúde Mental na Atenção Básica


tornou-se campo de estágio.
Eram as seguintes as ações de Saúde Mental realizadas em agosto de 2003, quando da
avaliação que está sendo citada: Oficina terapêutica para adultos, Terapia Comunitária,
Oficina de Geração de Renda, Grupos de Hipertensos e Diabéticos, Visitas Domiciliares,
163

Reuniões das Equipes com a comunidade, Eventos de Saúde na praça, Grupo de


Adolescentes. Todas essas ações são praticadas sempre em conjunto com a Equipe do PSF.
Da forma como está descrito acima, o trabalho do Programa de Saúde Mental junto ao
PSF está se dando, em Macaé, em dois planos: uma Equipe de Saúde Mental atuando junto a
Equipes de Módulos de PSF, na base, da forma descrita acima, e capacitação para os
profissionais de nível superior, mensal, para todas as Equipes de PSF (no momento são 24
Equipes de PSF). O programa desta capacitação é elaborado num acordo resultante das
necessidades das Equipes de PSF e das sugestões dos responsáveis pela capacitação.
Ao capacitar todas as Equipes de PSF, estamos cumprindo parte das diretrizes da
Oficina de Brasília 2001 e da OMS, mas não estamos diretamente na comunidade. São
diversos os ganhos com essa capacitação: esclarecimento a respeito do funcionamento na rede
de atendimento em Saúde Mental e do Programa de Saúde Mental, melhor estruturação de
encaminhamentos, estudo de assuntos específicos de Saúde Mental e Psiquiatria, criação de
espaço para os profissionais do PSF, para discussão de aspectos emocionais que surgem no
trabalho (também um espaço para discutir os conflitos naturais de equipe e problemas de
organização enquanto profissionais), melhor conhecimento dos capacitadores a respeito da
realidade do PSF e da demanda de assistência e promoção em Saúde Mental. E, muito
importante, preparação para a chegada das Equipes de Saúde Mental nos Módulos, de acordo
com o planejamento dos dois Programas (Saúde Mental e Saúde da Família), que é de colocar
a Saúde Mental em todos os Módulos.
Notamos, a exemplo de outras experiências de entrada da Saúde Mental no PSF, que
nos tornamos facilitadores de discussões que antes não se davam, ou estavam bloqueadas,
entre os membros das Equipes dos Módulos.
A prática de reuniões de equipe e decisões em conjunto, difundidas amplamente na
Saúde Mental, não é corrente na Saúde em geral, o que provoca todos os efeitos de uma
instituição/organização que não se discute e onde não há espaço para ventilar e trabalhar os
conflitos. Com a percepção de que a Equipe de Saúde Mental funciona de modo que os
assuntos são discutidos constantemente, com Reuniões de Equipe semanais, e também devido
à própria demanda, em relação aos psi, para “resolver problemas”, começam a aparecer os
pedidos para ajuda em reuniões das Equipes de PSF, ou elas são sugeridas pela Equipe de
Saúde Mental como instrumento de trabalho, com a conseqüência de fazer aparecer os
problemas latentes.
Os profissionais de Saúde Mental são também solicitados a suprir a falta de espaço,
onde possam ser expostos as angústias e o sofrimento por que passam as Equipes de PSF
164

diante da enorme carga de trabalho, das cobranças de produção e relatórios, da violência nas
comunidades, miséria, dificuldades do Sistema de Saúde, remuneração não condizente com as
responsabilidades. Acreditamos que podemos cumprir a tarefa de abrir espaços coletivos, para
que esses assuntos sejam abordados e encaminhados de modo produtivo.
Logo após o início do trabalho da Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica, o
número de internações psiquiátricas e de idas ao Pronto Socorro de pessoas com diagnósticos
de transtornos mentais graves diminuiu sensivelmente. Trata-se de uma decorrência da
organização inicial da assistência a pacientes que estavam, de um lado, com freqüência
irregular aos Ambulatórios de Saúde Mental e, de outro, sem serem vistos adequadamente
pelo Módulo do PSF. À época, eram vinte e três as pessoas com diagnósticos de transtornos
mentais graves em acompanhamento na comunidade. A situação de uma pessoa com quatorze
anos de internação psiquiátrica, quase contínua, começou a ser trabalhada com a chegada da
Equipe de Saúde Mental.
Abre-se, nesse ponto, um importante campo para pesquisa a respeito da efetividade
das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Devemos examinar os indicadores de Saúde
Mental numa comunidade, mesmo que sejam ainda precários, antes da entrada das ações de
Saúde Mental e compará-los com os obtidos, por exemplo, seis meses, um ano e dois anos
depois.
Após um ano de trabalho no primeiro Módulo de PSF, a Equipe decidiu entrar em
mais dois Módulos com as seguintes ações: “Reuniões de Equipe, Capacitação de toda a
Equipe dos Postos, Grupo de Sala de Espera, Visita Domiciliar, Terapia Comunitária, Oficina
Terapêutica e Interconsulta” (PINTO et al, 2003, p. 8).
O Município de Macaé tem uma região serrana, distante da sede. Para uma dessas
localidades, o Sana, foi pensado um tipo de entrada da Saúde Mental, com poucos recursos
humanos, e que pode servir de método de trabalho para os muitos Municípios do país que não
possuem mão de obra de Saúde Mental disponível com facilidade. Diz a avaliação que está
sendo citada:

[...] foi iniciado um trabalho em um Módulo do PSF (localidade do Sana),


com Terapia Comunitária, Visitas Domiciliares e da capacitação de Equipe,
a cargo da Supervisora. Esta é uma tentativa de expansão do trabalho
utilizando poucos recursos humanos. Os resultados são: grande freqüência
na Terapia Comunitária, integração entre a equipe do Modulo e a
Supervisora, resolução de alguns casos de transtorno mental grave e
reunioes das Equipes com a comunidade (PINTO et al, 2003, p. 8).
165

Como dificuldades encontradas para o trabalho que vem sendo realizado, a avaliação
de 2003 detectou: a falta de transporte, a falta de espaço para armazenamento de materiais de
trabalho, a dificuldade de encontrar psiquiatras para o trabalho e a violência nas comunidades.
(Cf. PINTO et al, 2003).
Uma das ações de Saúde Mental que aparecem acima, na descrição da situação em
Macaé, é a Terapia Comunitária. Trata-se de uma prática grupal-comunitária que rompe com
os conceitos de terapia, enquanto tratamento individual, para tentar alcançar o coletivo e a
promoção ou a criação de redes de solidariedade e de ação social. A base teórica da Terapia
Comunitária, segundo seu criador, Adalberto Barreto, está articulada em torno da Teoria
Geral dos Sistemas, a Teoria da Comunicação, a Antropologia Cultural e a Resiliência. (Cf.
BARRETO, 2000). O último termo citado, segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico é a “[...]
propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida, quando
cessa a tensão causadora de uma deformação elástica” ou “[...] resistência ao choque”. Para
uma explicação do termo, Adalberto Barreto apresenta uma definição que também pode ser
uma das intenções da Terapia Comunitária:

Não buscamos identificar as fraquezas e as carências, não tentamos


diagnosticar os problemas, nem os meios de compensa-los, pelo contrário, a
meta fundamental da terapia comunitária é identificar e suscitar as forças e
as capacidades dos indivíduos, das famílias e das comunidades, para que,
através desses recursos, possam encontrar as suas próprias soluções e
superar as dificuldades impostas pelo meio e pela sociedade (BARRETO,
2003, p. 12).

Segundo Adalberto Barreto, o Terapeuta Comunitário deve ser escolhido pela


comunidade, estar engajado em trabalhos comunitários, dentre outras características e, fato
instigante, “Não é exigida nenhuma capacitação anterior” (Cf. BARRETO, 2003, p. 17).
A Terapia Comunitária foi introduzida em Macaé pela Dra Naly Soares de Almeida e
está sendo praticada nas comunidades e também em reuniões com os profissionais do PSF.
Um dos desdobramentos da prática da Terapia Comunitária foi o surgimento de uma
reunião, agora constante, das Equipes com a Comunidade. Diz a avaliação de 2003:

Como resultado do grupo da Terapia Comunitaria surgiu a necessidade de


incluir a comunidade nas iniciativas da promocao da saude e da assistencia.
Iniciaram-se reunioes da comunidade com as duas Equipes (Saude Mental e
PSF). Na primeira reunião, ficou decidido que seria trabalhado o assunto
“Alcoolismo”, por ser um problema altamente prevalente. Estão sendo
realizadas reunioes em parceria com o “AA” e Oficinas com o tema “A
Bebida e a Família” (PINTO et al, 2003, p. 6).
166

Em 15 e 16 de abril de 2002, realizou-se em Itaipava, RJ, a “I Oficina de Capacitação


de Supervisores em Saúde Mental para o Programa de Saúde da Família”, uma iniciativa do
Pólo de Capacitação em Saúde da Família do Estado do Rio de Janeiro, com a coordenação
de Sandra Fortes e a colaboração da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de
Saúde do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ). O objetivo do encontro foi reunir pessoas que já
tinham alguma prática de Saúde Mental na Atenção Básica com Coordenadores Municipais
de Saúde Mental, profissionais ligados à Atenção Básica, profissionais e professores que
pensam a rede de assistência e um convidado estrangeiro, com a intenção de estimular as
ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Foi, também, uma oportunidade para aproximar as
duas importantes instâncias para o desenvolvimento da Saúde Mental no PSF: o Pólo de
Capacitação do PSF e a Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ.
Foram, na ocasião, reforçadas todas as diretrizes dos últimos textos e documentos
nacionais e de orientação da OMS, resumidos acima. A Oficina serviu para a troca de idéias e
de experiências e como estímulo para que os Coordenadores Municipais de Saúde Mental
tentassem se aproximar da Atenção Básica.
Na ocasião, a Coordenadora Estadual de Saúde Mental, Paula Cerqueira, na sua
palestra, reafirmou que os conceitos de território e rede são capitais para o trabalho da Saúde
Mental na Atenção Básica.
Para uma aproximação ao conceito de Rede, temos uma interessante incursão de Ana
Pitta, que faz uma correlação entre Rede e teia, dando como suas características a
metamorfose, a heterogeneidade, a fractalidade, a vizinhança e a multicentralidade. (Cf.
PITTA, 2001). A metamorfose faz da Rede um instrumento em constante mutação,
adaptando-se às tarefas e onde a “[...] estabilidade temporária será sempre fruto de algum
pacto ou negociação coletiva” (PITTA, 2001, p. 20). A heterogeneidade zela pelas conexões
múltiplas, plurais. A fractalidade responde pela característica de que

Cada conexão da teia/rede se vista de perto reproduz uma nova rede em si,
e, examinando ainda seus atores constitutivos, com suas raízes e influências
observa-se que um tecido rizomático os organiza (PITTA, 2001, p. 20).

Em “vizinhanças”, está dito que não podemos trabalhar com os conceitos rígidos de
hierarquia de serviços e sim com o acompanhamento dos acontecimentos ditados por “[...]
percursos ou atalhos regidos pela topologia e conhecimento ora de usuários, ora de
profissionais, ora de vizinhos” (PITTA, 2001, p. 20). A multicentralidade indica que os
167

centros organizadores das ações são provisórios, mobilizados “[...] na dependência da


importância que cada qual assuma na resolução de um problema” (PITTA, 2001, p. 20).
A Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ me convidou para apresentar, na Oficina de
Itaipava, numa mesa redonda, o tema “Transtornos mentais na atenção básica”, o que motivou
a redação do trabalho “A Abordagem aos Transtornos Mentais na Atenção Básica” (Cf.
PINTO, 2002). Nele, como uma espécie de declaração de princípios, digo que

As ações de saúde mental na atenção básica podem representar uma


mudança qualitativa no modo como tratamos os atualmente chamados
transtornos mentais graves e como a comunidade vê o que está
enclausurado no conceito de doença mental. Podemos, efetivamente, trocar
os conhecimentos que temos, questionando-os, com os conhecimentos
próprios das comunidades a respeito do sofrimento mental, suas
determinações e soluções. Devemos estar atentos, por outro lado, para o
imenso mecanismo de controle que estamos levando aos capilares da
sociedade. Se, em troca desse controle, não desenvolvermos ações que
estimulem a cidadania e a participação, estaremos apenas cumprindo o triste
destino apontado por Deleuze, de espraiar os tentáculos do Hospício por
toda parte. (PINTO, 2002, p. 2).

A advertência que encerra a citação acima refere-se ao que Gilles Deleuze diz em seu
artigo “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”, de 1990, em que examina a passagem
da sociedade disciplinar, onde o domínio era exercido por instituições fechadas (prisões,
hospícios), para a sociedade de controle, atual, onde o domínio é desempenhado pela mídia,
principalmente. Deleuze diz que “O marketing é agora o instrumento de controle social”
(DELEUZE, 1992, p. 224), e que

[...] o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três


quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais
para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das
fronteiras, mas também a explosão do gueto e favelas (DELEUZE, 1992, p.
224).

Mas, para Deleuze, não há motivos para recuar. Diz ele:

[...] na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os


hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas
liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que
rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar,
mas buscar novas armas (DELEUZE, 1992, p. 224).

No trabalho que apresentei em Itaipava, faço uma avaliação das experiências que tive
nos municípios de Quissamã e Carapebus, para chegar ao que então estava sendo iniciado em
168

Macaé. A ênfase foi na abordagem aos transtornos mentais graves, mas também na incidência
das ações na mudança do modelo assistencial. Destaco dois aspectos na avaliação das
experiências de Carapebus e de Quissamã. Em primeiro lugar, teve grande avanço a
abordagem aos transtornos mentais graves depois da capacitação constante e em serviço dos
ACS e das Equipes de PSF. O número de internações psiquiátricas caiu a quase zero, os
pacientes passaram a ter outra inserção na comunidade, saindo do isolamento, o tema da
loucura e a forma de a sociedade vê-la passou a ser discutido, as Equipes de PSF passaram a
ajudar nos tratamentos e as situações de crises, que necessitavam de idas ao Pronto Socorro,
eram acompanhadas pelos ACS, dando um novo aspecto à presença dos pacientes no Hospital
Geral. (Cf. PINTO, 2002).
Mas, em decorrência de avaliação posterior à Oficina de Brasília de 2001, da
publicação da OMS de 2001 (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001) e das
compreensões e discussões que se deram nesses últimos dois anos, chamei a atenção para as
limitações que tem o tipo de trabalho de supervisão com manutenção da referência para o
ambulatório. Não estaríamos, dessa forma, no caminho de uma efetiva mudança do modelo
assistencial, mas sim melhorando o modelo existente, de ambulatório de especialidades, no
caso, apoiado por um trabalho na Atenção Básica. (Cf. PINTO, 2002).
Tentei, no trabalho, discutir algo a respeito das dificuldades para a entrada mais rápida
da Saúde Mental na Atenção Básica e sugeri que

O passo para o trabalho direto nas comunidades ainda não havia sido dado,
em parte devido à pressão da demanda ambulatorial tradicional, em parte
fruto da manutenção interna do papel profissional. Esses dois fatores,
pressão da demanda ambulatorial tradicional e manutenção de papéis
profissionais, devem ser objeto de aprofundada elaboração, agora, quando
estamos em vias de avançar na introdução das ações de saúde mental na
atenção básica. (PINTO, 2002, p. 2).

Por “demanda ambulatorial tradicional” compreenda-se ambulatórios cheios, com


demanda crescente e que não permitem ao profissional mudar de prática. Mas os
questionamentos são necessários: será que o problema não está no próprio profissional, que
não quer ver questionado seu papel profissional e sua formação? E quando achamos que não
há possibilidades de entrar mais determinadamente na Atenção Básica, estamos nos referindo
a limitações externas ou à falta de clareza e de vontade política nossa mesmo?
Para uma efetiva entrada da Saúde Mental na Atenção Básica, o trabalho apresentado
resume as recomendações da Oficina de Brasília 2001, anunciando o que estava sendo
169

implantado em Macaé: uma equipe de Saúde Mental exclusiva para a Atenção Básica. (Cf.
PINTO, 2002).
Como instrumentos para uma atenção aos transtornos mentais graves na Atenção
Básica, indiquei, naquele momento:

a- Agentes Comunitários de Saúde como elementos de ligação entre as


equipes de Saúde Mental, do PSF, as famílias e a comunidade. Atuação
como Acompanhantes Terapêuticos.
b- Oficinas Terapêuticas Comunitárias.
c- Intervenções familiares.
d- Ações de promoção da saúde e de apoio social.
e- Ações contra a discriminação.
f- Articulação com os CAPS e os Serviços Residenciais Terapêuticos.
g- Suporte constante entre Equipe de Saúde Mental e Equipe do PSF.
h- Contato estreito com o Pronto Socorro, para o atendimento das situações
de crise, e com a instituição de internação (hospital psiquiátrico ou hospital
geral).
i- Atendimento nas crises. (PINTO, 2002, p. 7).

No final de 2002, sob a coordenação de Sandra Fortes, formou-se o Grupo de


Trabalho de Saúde Mental do Pólo de Capacitação/Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro,
com a finalidade inicial de dar aulas em cursos de Pós Graduação em Saúde da Família e,
depois, de produzir uma proposta, para promover a entrada da Saúde Mental na Atenção
Básica nos municípios do Estado do Rio de Janeiro. O Grupo contou com a participação de
profissionais de nove municípios, que já tinham alguma forma de trabalho de Saúde Mental
na Atenção Básica, alguns membros do nível central do PSF do Estado e de dois membros da
Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ que se dedicavam ao tema: Leila Vianna e Carlos
Eduardo Honorato, o Cadu, além de Sandra Fortes e Luiz Fernando Chazam, professor da
UERJ.
Depois de algumas reuniões, em que o Grupo discutiu como os seus membros estavam
praticando e compreendendo a Saúde Mental na Atenção Básica, fomos dar as aulas, sempre
em dupla e utilizando a Pedagogia da Problematização, para a qual o Grupo teve capacitação.
(Cf. REFLEXÃO PEDAGÓGICA, 2000).
A experiência de dar as aulas foi interessante, na medida em que foi possível observar
as vivências e expectativas de um grande número de profissionais de PSF, de diversos
municípios do Estado do Rio de Janeiro. Confirmamos o quadro que já percebíamos em
outras observações: os profissionais dos PSF não possuem quase nenhuma informação a
respeito de Programas de Saúde Mental, as cadeiras específicas nos cursos de formação
170

foram, na sua quase totalidade, dadas no modelo organicista, as ações de Saúde Mental são
revestidas de uma aura de mistério para esses profissionais e, talvez o detalhe mais
importante, do ponto de vista das intenções de introduzir a Saúde Mental na Atenção Básica,
existe o medo de que a entrada da Saúde Mental represente mais um fardo no cansativo dia a
dia do trabalho.
Notamos a sensação de esgotamento das Equipes, no seu trabalho diário, bem como a
má disposição em relação às capacitações que, em geral, representam mais trabalho sem
muita discussão, uma espécie de “cumpra-se”. Esses dados reforçam a nossa conduta em
relação às capacitações em Saúde Mental na Atenção Básica de que temos participado: não há
como negar que a entrada da Saúde Mental representa mais trabalho para as Equipes.
Se lembrarmos o que foi dito na Oficina de Brasília 2001, que “o PSF convive com o modelo
manicomial”, representando essa opinião o fato de que, formadas no modo organicista e
participantes do imaginário geral da sociedade, excludente, percebemos que as Equipes não
têm condições, por si mesmas, de reverter os dispositivos de exclusão.
Podemos compreender que não dá maior trabalho chamar uma ambulância e mandar
uma pessoa para o Pronto Socorro e daí para os hospícios. Perder essa pessoa de vista, não
saber onde está internada Repetir receitas de benzodiazepínicos dá muito menos trabalho, do
que questionar o porquê do uso, abrindo perspectivas que não se sabe em que resultarão.
Portanto, nas capacitações, a verdade precisa ser dita: é mais trabalho. O que podemos e
devemos fazer é abrir espaço para discutir a carga de trabalho e as angústias decorrentes e
apontar para a satisfação profissional que virá da nova prática. É possível que, depois da
capacitação adiantada, das ações de Saúde Mental implantadas, dos resultados aparecendo,
das novas formas de trabalho em Equipe surgindo, a carga de trabalho se amenize pelos
efeitos que a correção dos procedimentos produz, bem como com a função do cuidado já
tendo sido espalhada pelas Equipes e comunidade.
Depois do final da tarefa de dar as aulas, o Grupo de Trabalho produziu uma proposta
de capacitação de Coordenadores Municipais de PSF e de Saúde Mental, de modo a estimular
a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica. Foi sugerida a divisão do Estado em três
grupos de municípios, com um total de cerca de 30 municípios por grupo (o Estado do Rio de
Janeiro tem 92 municípios). Os municípios enviariam os Coordenadores de PSF e de Saúde
Mental, para um trabalho de capacitação, conduzido pelo Grupo de Trabalho, que se
desdobraria em outras reuniões, após alguns meses, para avaliação do que estivesse sendo
realizado nas práticas que surgissem. Até agora essa proposta não foi efetivada.
171

Em agosto de 2003, no “Pré-congresso” do VII Congresso Brasileiro de Saúde


Coletiva – ABRASCO, em Brasília, realizou-se a “Oficina de Saúde Mental: Desafios da
Integração com a Rede Básica”, em Brasília. O evento foi organizado pelo Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas e pela Coordenação Geral de Saúde Mental, do Ministério
da Saúde. O Objetivo da Oficina foi “Promover a discussão de questões que representam
hoje, desafios na integração das ações de saúde mental na atenção básica” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003, p. 2), com ênfase na

[...] questão do modelo de funcionamento da integração da área de saúde


mental com o PSF, desafios da formação de pessoal para o atendimento
comunitário em saúde mental, bem como na relação saúde mental e
violência urbana [...] (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 2).

Esperava-se do encontro, que contou com a participação de 63 pessoas de vários


Estados, a “Consolidação de consenso sobre diretrizes, modelo organizacional e clínico e
ações específicas sobre saúde mental na atenção básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003,
p. 2).
A Oficina em questão representa mais um avanço na integração, promovido pelas
áreas federais de Saúde Mental e de Atenção Básica, cujos dirigentes apresentaram uma fala
inicial, situando as questões do momento. Foi solicitado a cada grupo de trabalho que se
dedicassem a três questões:

Qual o papel da atenção básica na atenção em saúde mental?


Qual o desenho organizacional que possibilita a execução das
ações/atividades de atenção à saúde mental na atenção básica de forma
integrada?
Qual as ações/atividades que devem ser desenvolvidas e as prioridades de
atendimento, na assunção de responsabilidades entre a atenção básica,
caps/rede ambulatorial? (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 2).

Os participantes da Oficina reafirmaram as diretrizes de todos os textos até aqui


citados em relação à atuação da Saúde Mental na Atenção Básica, no que diz respeito à
confluência de modos de ver a Assistência e a Promoção da Saúde, na sua ligação estreita
com o território. Desse modo, reforçam as conclusões da Oficina de Brasília de 2001 e as
orientações da OMS, também de 2001. Um exemplo é o seguinte trecho:

É fundamental a possibilidade de que a atenção básica exerça ação


resolutiva no âmbito de suas ações que envolvem a saúde mental, pois a
172

lógica da referência para o nível de maior complexidade não responde


muitas vezes ao melhor cuidado, já que em diversos aspectos, há
pertinência dos problemas apresentados com o campo da comunidade, de
família e seus espaços de trocas sociais. Que podem sim, estes, serem
abordados, potencializados e olhados como o lugar e a esfera da realização
do cuidado. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 3).

O texto faz interessante paralelo entre os cuidados prestados nos dispositivos


substitutivos da Saúde Mental e os proporcionados na Atenção Básica, que devem ter as
mesmas características de “[...] foco no território e no vínculo” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2003, p. 3).
Mais uma vez aparece o chamamento para a definição de indicadores de Saúde Mental
na Atenção Básica, mas não há especificação de quais seriam. (Cf. MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003).
Foi advertido, também mais uma vez, que a “[...] efetiva implantação da rede de
atenção” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 4) é fundamental para o sucesso das ações de
Saúde Mental na Atenção Básica.
A parte do relatório dedicada aos “Princípios e Ações de Saúde Mental no PSF” inicia
com a recomendação de constituição

[...] de uma equipe de Saúde mental de referência, ou como apoio matricial,


do PSF para cada 9 equipes do PSF (de forma que esta esteja referenciada
em um serviço Caps ou de referência de saúde mental). Podendo ainda
alguns técnicos destes serviços ambulatoriais de referência e dos Caps, estar
compondo ações de supervisão as equipes do PSF na área de saúde
mental.Visando a discutir e compartilhar casos, elaborar projetos de
cuidado e intervenção social, elaborar junto com a equipe planejamento
coletivo das ações em saúde mental local, apoio técnico caracterizado como
capacitação continuada (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 6).

Voltamos, portanto, à questão da relação entre o número de Equipes de Saúde Mental


dedicadas à Atenção Básica e o de Equipes de PSF e também a ligação que essas Equipes de
Saúde Mental têm com os serviços de referência da rede de Saúde Mental. Consideremos:
uma Equipe de PSF é responsável por uma população entre 600 e 1.000 famílias, o que dá um
total entre 2.400 e 4.000 pessoas. Multiplicado por nove, temos entre 21.600 e 36.000
pessoas. Sabemos que a tendência é de os números de famílias adscritas nos Módulos de PSF
serem próximos do limite superior e não do inferior. A questão é: o que se quer e o que se
planeja para as ações das Equipes de Saúde Mental? Se for para retornar à proposta de apenas
supervisão, pode ser que a relação proposta pela Oficina, que está sendo citada, seja viável,
173

mas se for para a Equipe de Saúde Mental atuar nas comunidades, a proporção inviabiliza a
proposta, de acordo com o que observo na prática.
Senão, vejamos. Pelos cálculos da OMS e do Ministério da Saúde, 3% da população
necessitam de cuidados constantes e prolongados em Saúde Mental. Apenas esse número
representa um total entre 648 e 1.080 pessoas. Estão nesses números apenas as pessoas
chamadas de “pacientes graves”, que teriam que receber o tipo de assistência qualificada
proposta, com ações de inserção social, geração de renda, articulação de condições de vida.
Tarefa difícil de ser realizada apenas pelas Equipes de PSF. Para apenas uma Equipe de
Saúde Mental, o número é excessivo, considerando que muitas outras ações estão previstas e
propostas. O Relatório que está sendo citado, na sua “Consolidação dos Trabalhos de Grupo”,
não deixa explícita a opção pela presença dos profissionais de Saúde Mental diretamente na
comunidade, mas fala em “Atuação e sensibilização para a escuta e compreensão da dinâmica
familiar e das relações sociais envolvidas;”, em “Acompanhamento/Acolhimento de usuários
egressos de internações psiquiátricas, egressos dos NAPS e outros recursos ambulatoriais
especializados” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 6, grifos meus), que indicam a
presença na base, diretamente. E, depois, relaciona todas as ações já propostas na Oficina de
Brasília 2001.
Quanto à ligação que essas Equipes de Saúde Mental têm com os serviços de
referência da rede de Saúde Mental, parece-me que a forma mais correta de situa-la é no
Programa de Saúde Mental, este sim, organizador do sistema e não o NAPS, CAPS ou outro
dispositivo. A articulação deve ser entre todos os serviços, organizada no Programa de Saúde
Mental. Do contrário, condiciona-se a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica e até
mesmo a melhor organização da rede de assistência à existência de CAPS. O que pode ser
destacado dessa discussão é que o que importa é o CAPS como conceito, como sempre
assinala Domingos Sávio, e não apenas como estrutura física ou serviço. CAPS enquanto
conceito que envolve integralidade, continuidade de atenção, clínica ampliada, inserção e
articulação familiar e comunitária, cidadania.
Dos relatórios apresentados pelos Grupos de Trabalho, citarei apenas os itens que não
repetem o que foi descrito a respeito da Oficina de Brasília 2001 e aqueles que são mais
prioritários, a meu ver.
A criação de indicadores de Saúde Mental na Atenção Básica foi mais uma vez
lembrada nesse encontro, com o destaque para a utilização de indicadores que já podem ser
incorporados no trabalho diário: “[...] diminuição de prescrição de medicamentos; diminuição
174

de internação psiquiátrica; diminuição de suicídios e homicídios [...]” (MINISTÉRIO DA


SAÚDE, 2003, p. 8).
A questão do nível de participação dos profissionais de Saúde Mental na Atenção
Básica foi discutida, e foi assinalado que deve ser sob a forma de “Suporte ‘in locus’ do
especialista – ‘fazer junto’” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 8) e “[...] apoio matricial as
equipes de PSF (discutir e compartilhar casos, elaborar projetos, ir junto no domicílio etc)”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 10). Com essas afirmativas está, mais uma vez,
reforçada a idéia de que a inserção do profissional de Saúde Mental na Atenção Básica não se
esgota em Supervisões, mas requer a participação junto à comunidade.
Uma preocupante advertência, porque muito real, é a que fez um dos Grupos de
Trabalho: “Hoje, enfrentam-se 2 problemas que devem ser lembrados: equipe de CAPS não
sensibilizada para novas tecnologias e equipe de PSF sem perfil ou qualificação mínimas”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 10). Podemos entender que essas “novas tecnologias”,
que as aludidas equipes dos CAPS não incorporam, são as que indicam o trabalho em rede e a
assistência enquanto disparadora de movimentos sociais, caindo num movimento voltado
apenas para as pessoas identificadas como pacientes e para dentro dos limites institucionais. E
por “equipe de PSF sem perfil ou qualificação mínimas”, compreendemos o que resulta das
formações da área de Saúde voltadas para o corpo, sem nenhuma ênfase no social e no
emocional: um enfoque curativo e sem incidência de promoção de cidadania.
Em agosto de 2003, Leila Vianna e Carlos Eduardo Honorato apresentaram, no XXI
Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Goiânia, o trabalho “Integração entre os Programas
de Saúde Mental e de Saúde da Família no Estado do Rio de Janeiro” (Cf. VIANNA &
HONORATO, 2003).
No trabalho, os autores mostram os resultados de pesquisa feita com os 92 municípios
do Estado, para quantificar as ações de Saúde Mental na Atenção Básica em curso. Dos 72%
de municípios que responderam ao questionário, 80% declaram que têm alguma articulação
com o PSF, mas em apenas em 46% deles as ações são regulares (cerca de 24 municípios).
Dez municípios têm reuniões regulares entre o Programa de Saúde Mental e o PSF, e cerca de
12% dos municípios, que responderam, têm as seguintes ações: discussão de casos clínicos,
supervisões regulares, articulação em rede e identificação de casos de transtornos mentais
pelas equipes do PACS/PSF. Com mais freqüência temos as visitas domiciliares em conjunto
e as capacitações, com 16% e o acompanhamento medicamentoso pelo PSF, com 19%. Note-
se que não são os mesmos municípios que têm as mesmas ações, de acordo com informação
175

dos autores. Pesquisa, Oficinas Terapêuticas e Terapia Comunitária aparecem em 1% dos


municípios, sendo as duas últimas em Macaé.
É interessante observar a curva que mostra a época de início das ações de Saúde
Mental na Atenção Básica nos municípios pesquisados. Partindo de cerca de dois antes de
1999, três em 1999, aparece um significativo aumento durante o ano de 2000, quando quinze
municípios tomaram a iniciativa. Durante os anos de 2001 e 2002 a curva acentua o
crescimento, subindo um pouco menos pronunciadamente do meio de 2002 até o meio de
2003. Os autores prometem para breve mais dados, já que continuam a linha de pesquisa.
No final do ano de 2003, foi lançada a “Carta de Princípios das Ações de Saúde
Mental na Atenção Básica”, de responsabilidade da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria
de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro e da Coordenação Estadual do Programa
Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, da mesma Secretaria.
O texto tem início com a lembrança das “[...] semelhanças de diretrizes na condução
dos dois programas” (SES-RJ, 2003, p. 1) e a afirmação dos conceitos de base para o tema:
território e rede. O texto afirma que o Programa de Saúde Mental

Defende igualmente que aqueles que são chamados a cuidar devam


preencher as redes e relações produzindo atos de saúde que multipliquem a
vida e, conseqüentemente, o acesso aos equipamentos sociais distribuídos,
muitas vezes, de forma não equânime nos territórios (SES-RJ, 2003, p. 1).

O texto, citando o Ministério da Saúde, a Organização Pan-americana da Saúde


(OPAS) e a OMS, lembra a diretriz de “[...] mudança do modelo assistencial em saúde
mental” (SES-RJ, 2003, p. 2), que se dará com a construção da “[...] rede de serviços
territoriais de atenção psicossocial” (SES-RJ, 2003, p. 2). O texto lembra que de 80 a 85% da
demanda de saúde de uma comunidade podem ter resolubilidade na Atenção Básica, sendo de
Saúde Mental grande parte dessa demanda. Portanto, diz o texto: “[...] a proposta de
estruturação de uma ação conjunta do Programa de Saúde Mental e do Programa de Saúde da
Família mostra-se estratégica para ambos os Programas” (SES-RJ, 2003, p. 2).
Ressaltando a importância do acesso à atenção à Saúde Mental, dificultada muitas
vezes por falta de percepção do problema pelo meio ou por falta de informação e recursos
para procurar tratamento fora da comunidade, a Carta de Princípios ressalta que

[...] o trabalho efetivo com as famílias em seu local de residência permite


identificar diversas formas de sofrimento, de desassistência, de processos
que podem transformar as diferenças em desigualdade e exclusão (SES-RJ,
2003, p. 2).
176

O texto da Carta destaca que, além dos transtornos mentais mais graves, existem as
diversas formas de sofrimento mental que têm na Atenção Básica seu primeiro recurso de
atendimento: as ansiedades, os “distúrbios nurovegetativos”, as tentativas de suicídio, a
violência. (Cf. SES-RJ, 2003).
A Carta tem como objetivos “Estabelecer o conjunto de princípios e diretrizes [...]”
(SES-RJ, 2003, p. 2), para “[...] o desenho das ações de saúde mental na atenção básica dos
92 municípios do Estado do Rio de Janeiro” (SES-RJ, 2003, p. 2), afirmando o papel da SES-
RJ na “[...] integração das políticas de Saúde Mental e de Saúde da Família no âmbito do
Estado do Rio de Janeiro” (SES-RJ, 2003, p. 3).
Dentro dos Objetivos Específicos, a Carta reafirma a orientação de mudança do
modelo hospitalocêntrico, a reversão dos especialismos, a ação da Saúde Mental para além da
remissão dos sintomas. (Cf. SES-RJ, 2003). A Carta sugere a ampliação dos “[...] espaços
tradicionalmente reconhecidos como lugares de atendimento: além do consultório e sala de
procedimentos, o domicílio, a escola, o bairro, a rua, etc.” (SES-RJ, 2003, p. 3). Como meio
de chegar a esses Objetivos, a Carta indica a capacitação das Equipes de PSF na atenção à
Saúde Mental, na forma de mútuo aprendizado. (Cf. SES-RJ, 2003). Um importante
pronunciamento é o que diz que “É fundamental que o(s) profissional(is) de Saúde Mental
que atua(m) no PSF esteja(m) ligado(s) ao Programa Municipal de Saúde Mental” (SES-RJ,
2003, p. 3).
Mais uma vez é sugerido, dentro dos Objetivos Específicos, que o Sistema de
Informação em Saúde Mental se articule com o Sistema de Informação da Atenção Básica
(SIAB), “[...] possibilitando a criação de indicadores de acesso e impacto bem como o
acompanhamento e monitoramento das ações em curso” (SES-RJ, 2003, p. 3).
Como estratégias, a Carta recomenda a capacitação das Equipes de Saúde da Família,
a inclusão da Saúde Mental no Treinamento Introdutório das Equipes de PSF e a realização
de “[...] oficinas regionais de acompanhamento e avaliação da integração dos Programas de
Saúde Mental e Saúde da Família” (SES-RJ, 2003, p. 3).
A Carta não entra na questão da inserção de Equipes de Saúde Mental na comunidade,
limitando-se a sugerir a integração entre os Programas Municipais de Saúde Mental e de
Saúde da Família. Esta integração deve se dar com o conhecimento mútuo, o estabelecimento
de contato entre os Programas, a definição do fluxo de pacientes, dos encaminhamentos. (Cf.
SES-RJ, 2003).
177

Em novembro de 2003, o Ministério da Saúde, através da Coordenação de Gestão da


Atenção Básica e da agora chamada Coordenação Geral de Saúde Mental, lançou o texto
“Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão das Ações de
Saúde Mental na Atenção Básica”. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b.).
O texto começa por situar a estratégia Saúde da Família e os novos dispositivos
substitutivos em Saúde Mental como avanços na política do SUS nos últimos anos. (Cf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b.). O documento reafirma que “Os CAPS, dentro da atual
política de saúde mental do MS, são considerados dispositivos estratégicos para a organização
da rede de atenção em saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 2), mas com a
observação de que “Deve ser um serviço que resgate as potencialidades dos recursos
comunitários à sua volta, pois todos esses recursos devem ser incluídos nos cuidados em
saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 2).
O documento define que “[...] a atenção em saúde mental deve ser feita dentro de uma
rede de cuidados. Estão incluídos nesta rede: a atenção básica, as residências terapêuticas, os
ambulatórios, os centros de convivência, os clubes de lazer, entre outros”. (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003 b, p. 2, grifo do texto original).
Ao lado de lembrar que 3% da população necessitam de cuidados contínuos em saude
mental, visto que diagnosticados de portadores de transtornos mentais graves, o texto diz que
muitas situações de transtornos mentais menos graves já estão sendo atendidos na atenção
básica, concluindo que “Por sua proximidade com famílias e comunidades, as equipes da
atenção básica são um recurso estratégico para o enfrentamento de agravos vinculados ao uso
abusivo de álcool, drogas e diversas formas de sofrimento psíquico” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003 b, p 3). Outro motivo que o texto apresenta para a articulação da Saúde Mental
com a Atenção Básica é o fato de que “[...] todo problema de saúde é também – e sempre –
mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde” (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2003 b, p. 3).
Argumentado com a complexidade que representa “[...] atender pessoas com
problemas de saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 3), o texto diz que “[...]
a falta de recursos de pessoal e a falta de capacitação acabam por prejudicar o
desenvolvimento de uma ação integral pelas equipes” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p
3). Diríamos que falta capacitação às Equipes de PSF para a melhor compreensão da Saúde
Mental e falta capacitação às Equipes de Saúde Mental para melhor compreensão do que é a
Atenção Básica e sua potencialidade em relação à Saúde Mental.
178

O texto traz uma declaração importante, já que vinda do Ministério da Saúde, que
reforça os documentos já produzidos: “[...] urge estimular ativamente, nas políticas de
expansão, formulação e avaliação da atenção básica, diretrizes que incluam a dimensão
subjetiva dos usuários e os problemas mais graves de saúde mental” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003 b, p. 3).
Ressaltando que as ações de Saúde Mental na Atenção Básica “[...] devem estar
fundamentadas nos princípios de SUS e nos princípios da Reforma Psiquiátrica”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p 3), o documento sintetiza esses princípios
fundamentais, o que ajuda a fornecer uma base para a capacitação das Equipes:

Noção de território
Organização da atenção à saúde mental em rede
Intersetorialidade
Reabilitação psicossocial
Multiprofissionalidade/interdisciplinaridade
Desinstitucionalização
Promoção da cidadania dos usuários
Construção da autonomia possível de usuários e familiares. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2003 b, p. 3).

Para produzir as suas diretrizes, o documento toma por base a Oficina de Brasília de
2001, o “Seminário Internacional sobre Saúde Mental na Atenção Básica”, realizado por
parceria entre o Ministério da Saúde, a OPAS, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a
Universidade de Harvard, em 2002, e a “Oficina de Saúde Mental no VII Congresso
Brasileiro de Saúde Coletiva”. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).
O documento tem início com a definição do “Apoio Matricial da Saúde Mental às
Equipes da Atenção Básica”:

O apoio matricial constitui um arranjo organizacional que visa a outorgar


suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo
desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população. Nesse
arranjo, a equipe por ele responsável, compartilha alguns casos com a
equipe de saúde local (no caso, as equipes da atenção básica responsáveis
pelas famílias de um dado território). Esse compartilhamento se produz em
forma de co-reponsabilização pelos casos, que pode se efetivar através de
discussões conjuntas de caso, intervenções conjuntas junto às famílias e
comunidade ou em atendimentos conjuntos (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2003 b, p. 4).

Aqui, dentro da nossa questão a respeito da inserção do profissional de Saúde Mental


na comunidade, aparece uma importante definição do Ministério da Saúde: os profissionais
179

responsáveis pela capacitação e supervisão, definida como Apoio Matricial, estão presentes
nas Equipes e nas ações na comunidade, presença essa que serve de exemplo, demonstração,
responsabilização compartilhada, base mesmo para o Apoio Matricial. O texto aponta
possibilidade de, aos poucos, essa presença ir tornando-se desnecessária:

A responsabilização compartilhada dos casos exclui a lógica do


encaminhamento, pois visa a aumentar a capacidade resolutiva de
problemas de saúde pela equipe local. Assim, ao longo do tempo e
gradativamente, também estimula a interdisciplinaridade e a ampliação da
clínica na equipe. A ampliação da clínica significa o resgate e a valorização
de outras dimensões, que não somente a biológica e a dos sintomas, na
análise singular de cada caso. Assim, riscos como os sociais e outros se
incorporam à avaliação clínica (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

Excluindo a lógica dos encaminhamentos e apontando para a resolução das situações


de Saúde Mental, em número crescente, na própria comunidade, estão criados a base e o
caminho para a mudança do Modelo Assistencial. Mas a questão da inserção do profissional
de Saúde Mental persiste, desta vez, com uma importante orientação vinda do MS.
Imaginemos uma Equipe de PSF sem capacitação em Saúde Mental e trabalhando na lógica
manicomial, isto é, não há prioridade a respeito das pessoas em risco psicossocial e as
situações de maior gravidade são atendidas pelo que está estabelecido tradicionalmente no
município. Não há abordagem especial a transtornos mentais graves. Esta é a realidade que
temos constatado. Trata-se de Equipes em geral esgotadas na sua capacidade de atendimento,
muitas vezes deixando de realizar ações comunitárias devido à sobrecarga de trabalho, às
cobranças de números ou à deficiência na supervisão. Chega, então, a Equipe de Saúde
Mental para o Apoio Matricial, Equipe que estará presente no território, até que a Equipe
local de PSF absorva todas as ações necessárias à atenção em Saúde Mental.
A orientação do MS é interessante, mas, talvez só com mudanças ainda não
vislumbradas na estrutura do PSF poderá a Equipe de Saúde Mental sair do território. Com o
número de famílias a serem atendidas, no momento, não vejo como viável a absorção de
todas as ações de Saúde Mental pela Equipe de PSF. Mas, fica a orientação do MS como um
indicativo do caminho a seguir. Orientação coerente com a mudança do modelo assistencial,
com os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica e com a tentativa de dotar a área de
Saúde de ações que integrem os aspectos biológicos, emocionais e sociais.
No item “Como Organizar as Ações de Apoio Matricial”, o texto recomenda:
180

Onde houver Caps, Oficinas e/ou outros equipamentos de Saúde Mental: os


diversos membros dessas equipes de saúde mental farão o apoio matricial às
diferentes equipes da atenção básica, programando sua carga horária para
encontros semanais, e formas de contato para demandas inesperadas e
intercorrências (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

Também aqui, a orientação do MS é coerente quanto aos princípios e diretrizes da


Reforma Psiquiátrica e das Portarias, por exemplo, a 336, mas está aquém da urgência que se
apresenta. Sabemos que as Equipes dos CAPS estão sobrecarregadas. Pela orientação do MS,
teríamos Equipes de Saúde Mental sobrecarregadas, capacitando e supervisionando Equipes
de PSF igualmente sobrecarregadas. E não estamos num daqueles cenários descritos pela
OMS, de carência absoluta de mão de obra de profissionais de Saúde Mental. Pelo contrario,
o número de inscritos nos Concursos Públicos nos mostra a quantidade de profissionais à
espera de trabalho. E a quantidade de pessoas desassistidas, que só com o trabalho
comunitário podem ser descobertas, é imenso.
Para suprir a aparente escassez de recursos humanos, que a orientação acima deixa
transparecer, precisamos estar organizados, para que se obtenha o que está na proposta da
Coordenação de Saúde Mental do MS, para 2004, de acordo com o que consta da página da
Internet do MS, como um dos “desafios”: “Aumentar recursos do orçamento anual do SUS
para a Saúde Mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE e). Além disso, é importante sinalizar para
os municípios que é necessário investir em Saúde Mental, sendo o investimento principal o de
recursos humanos. O que propomos é a constituição de Equipes de Saúde Mental exclusivas
para a atuação na Atenção Básica. Essas Equipes devem estar estreitamente ligadas aos
CAPS, bem como a toda a rede de assistência à Saúde Mental, à Saúde em geral e a todos os
recursos da comunidade, inclusive os intersetoriais.
Para locais onde não existem serviços de Saúde Mental em número suficiente para
fornecer o Apoio Matricial, o texto propõe a

Criação de equipes de apoio matricial compostas, no mínimo, por um


médico psiquiatra (ou generalista com capacitação em saúde mental), dois
técnicos de nível superior (psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente
social, enfermeiro, etc.) e auxiliares de enfermagem, para no mínimo 6 e no
máximo 9 equipes de PSF ou para grupos populacionais entre 15 a 10 mil
habitantes (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

A Coordenação de Saúde Mental do MS não recomenda CAPS para municípios de


menos de 20 habitantes, em grande número no país. Para estes, a orientação é trabalhar na
181

lógica de Apoio Matricial descrita na última citação. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003
b).
No capítulo “Responsabilidades Compartilhadas entre as Equipes Matriciais de Saúde
Mental e da Atenção Básica”, vemos uma declaração de princípios que resume o que já foi
dito: “As equipes de saúde mental de apoio à atenção básica incorporam ações de supervisão,
atendimento em conjunto e atendimento específico, alem de participar das iniciativas de
capacitação” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 5). Não fica claro, porém, o que é
“atendimento específico”. Além das ações acima, o documento reafirma as ações a serem
desenvolvidas em conjunto pelas Equipes e que já foram descritas anteriormente, quando da
exposição da Oficina de Brasília 2001 e da Oficina de Saúde Mental no VII Congresso
Brasileiro de Saúde Coletiva. São elas, resumidamente: ações conjuntas priorizando casos de
transtornos mentais graves, de uso abusivo de álcool e outras drogas, egressos de hospitais
psiquiátricos, pacientes de CAPS, tentativas de suicídio e vítimas de violência doméstica.
Discussão de casos que envolvam o aspecto emocional. Reverter a medicalização. Ações
contra o preconceito e a segregação da loucura. Mobilização de recursos comunitários.
Desenvolver práticas grupais e coletivas. Desenvolver estratégia de redução de danos no
consumo de álcool e outras drogas. Trabalhar o vínculo com as famílias e articular redes de
apoio. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b). A lista de ações dá a dimensão da enorme
tarefa que as Equipes tem diante de si.
No penúltimo capítulo do texto, o Ministério da Saúde traz recomendações para a
formação de pessoal, com o título “Formação como Estratégia Prioritária para a Inclusão da
Saúde Mental na Atenção Básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 5). O documento
reconhece que

Os pólos de Saúde da Família, bem como os pólos de saúde mental, já


vinham desenvolvendo capacitações específicas em suas áreas, porém, de
forma desarticulada. Na atual gestão, esses pólos deverão se adequar às
novas diretrizes da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na
Saúde, por meio dos Pólos de Educação Permanente em Saúde, discutindo
propostas conjuntas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

Segundo o texto, haverá, da parte da Coordenação de Saúde Mental (do MS), a


implantação de “[...] Núcleos Regionais de Capacitação e Produção de Conhecimento no
interior dos Pólos de Educação Permanente em Saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b,
p. 5). Núcleos esses que “[...] estão se constituindo com representantes de SMS, SES,
unidades acadêmicas envolvidas, etc.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6). De acordo
182

com o texto, esses são “[...] instrumentos de apoio/cooperação para os municípios que
estiverem realizando ações de saúde mental na atenção básica no sentido de qualificar a rede
e o cuidado, e de repensar as estratégias de formação” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b,
p. 6). Devemos supor que a determinação de apoio para a Formação, que está sendo descrita,
também englobe os municípios que querem investir na Saúde Mental na Atenção Básica e
mesmo uma divulgação ampla do que já é possível realizar.
A Formação que o MS se propõe a proporcionar consta de cursos a serem oferecidos
ao pessoal da rede básica, e “[...] suporte e orientação técnica aos núcleos em formação e aos
gestores locais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).
Para concluir o capítulo sobre Formação, uma importante observação:

Visando ao estímulo para a formação permanente e não somente para


capacitações pontuais, a estratégia de capacitação a ser desenvolvida pelos
núcleos se entrelaça com a da implantação das equipes de apoio matricial,
pois essas podem trabalhar na linha da formação continuada e em serviço,
discutindo casos e textos junto às equipes da atenção básica (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

Estão lançadas, portanto, mais uma vez, as diretrizes em nível nacional para a Saúde
Mental na Atenção Básica. O que dá maior importância ao texto citado é que, desta vez,
existe a proposta de financiamento da capacitação, com divisão de tarefas entre as três
instâncias de gestão do SUS.
O documento diz que o financiamento da Formação/Capacitação proposta terá as
seguintes fontes:

[...] recursos do Projeto de Apoio à Expansão do Programa de Saúde da


Família (PROESF), de recursos da Secretaria de Gestão do Trabalho e de
Educação na Saúde (SEGTES) para os Pólos de Educação Permanente em
Saúde, de recursos específicos da Coordenação Geral de Saúde Mental, e
das parcerias entre gestores locais e estaduais (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2003 b, p. 6).

O último capítulo do texto trata da “Inclusão da Saúde Mental no Sistema de


Informações da Atenção Básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6), anunciando que
“Está em discussão a introdução, no SIAB, de indicadores de monitoramento baseados no
conceito de território, problema e responsabilidade sanitária [...]” (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003 b, p 6). Quanto à incorporação de indicadores da Saúde Mental nos Sistemas
de Informação da Atenção Básica, o texto indica que estão propostos indicadores que retratam
percentuais de pessoas acompanhadas pela rede básica que tenham problemas com álcool e
183

outras drogas, número de pessoas com transtornos mentais graves, percentual de pessoas
egressas de internações psiquiátricas e prevalência das epilepsias. (Cf. MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003 b). Estão, ainda, sugeridos indicadores que revelem o “Número de pessoas que
utilizam benzodiazepínicos atendidas pela rede básica [...]” e o “Percentual de pessoas com
tentativa de suicídio acompanhadas pela rede básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p
6).
A redação desta monografia, nos seus momentos finais, toma o aspecto de uma
reportagem, tendo em vista a dinâmica dos acontecimentos. Mas uma reportagem onde o
repórter está em ação no campo reportado. Assim sendo, prossigamos.
Em abril de 2004, a Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ promoveu, numa das suas
reuniões bimensais com os Coordenadores Municipais de Saúde Mental, como forma de
estimular a que os Coordenadores Municipais insiram ações de Saúde Mental na Atenção
Básica, uma apresentação do já citado trabalho de Leila Vianna e Carlos Eduardo Honorato
(Cf. VIANNA & HONORATO, 2003), a respeito da “Integração entre os Programas de
Saúde Mental e de Saúde da Família no Estado do Rio de Janeiro”. Logo após a esta
apresentação, coube-me expor o que está sendo praticado em Macaé, com uma introdução
teórica, e um exemplo de ação da Equipe em torno de uma pessoa com diagnóstico de
transtorno mental grave. Nos debates, foram explorados os temas de integração Saúde Mental
na Atenção Básica com os CAPS, a diversidade de práticas da Equipe, detalhes das
capacitações, a rapidez dos resultados das ações implantadas, a mudança do tipo de prática
que o profissional de Saúde Mental está sendo instigado a fazer.
Em julho de 2004, com a saída de Leila Vianna da Assessoria de Saúde Mental da
SES-RJ, fui convidado para colaborar, junto a Carlos Eduardo Honorato, na referida
Assessoria, nas tarefas de continuar a estruturar a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica
nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro.
Em julho de 2004, a Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica de Macaé realizou
seu Primeiro Fórum Interno de Saúde Mental na Atenção Básica. Os temas foram:
Infraestrutura e realidade no trabalho dos profissionais de Saúde Mental na Atenção Básica;
Oficinas Terapêuticas na Atenção Básica e no CAPS (discussão com a presença de um
Terapeuta Ocupacional do CAPS); Abordagem de pessoas com diagnósticos de transtornos
mentais graves; Visita Domiciliar e Interconsulta: quando fazer?; Expansão e Capacitação de
novos profissionais.
Neste momento a Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica estava composta por:
Naly Soares de Almeida, Psiquiatra, Supervisora; Débora Oliveira B. Jeovani e Maria do
184

Carmo Húbner Stróglio, Terapeutas Ocupacionais; Regina Helena Monerat, Psicóloga;


Rosemary Gonçalves de Souza, Assistente Social e Stephan Malta Oliveira, Psiquiatra.
A discussão do tema “Infraestrutura” não se prendeu apenas a detalhes do registro dos
procedimentos da necessidade de transporte e de material de consumo, mas entrou no assunto
da infraestrutura pessoal necessária para o trabalho com as comunidades. Está claro para
todos os membros da Equipe, a essa altura, que são duas as demandas que as Equipes de
Saúde Mental na Atenção Básica tem que atender: as da população e as das Equipes de PACS
e PSF. As demandas da população são, em certo sentido, mais fáceis de atender, visto que são
mais claras e o pedido de ajuda mais evidente. Mas, os pedidos das Equipes são mais
complexos, variando de uma atitude de negação da presença dos profissionais de Saúde
Mental, de modo mais ou menos sutil, situação em que parece que não há nada a ser realizado
em termos de Saúde Mental, até o outro extremo, onde toda a tarefa da assistência à Saúde
Mental tende a ser “empurrada” para a Equipe de Saúde Mental.
As reações das Equipes da Atenção Básica, citadas acima, foram compreendidas como
resultantes do fenômeno da exclusão, e como tal deve ser trabalhado. O sentimento dos
profissionais de Saúde Mental, que foi detectado no Fórum, despertado pelas formas diversas
com que são recebidos, às vezes, foi o de solidão. Elaborar esse sentimento, com a ajuda da
Equipe, nas suas reuniões, ajuda a que cada membro não se deixe identificar com o papel de
excluído, podendo, então, trabalhar a situação junto às Equipes da Atenção Básica. A
paciência foi a principal virtude apontada para a compreensão das necessidades das Equipes
da Atenção Básica.
No Fórum, foram estabelecidas comparações entre as Oficinas Terapêuticas realizadas
no CAPS e na Atenção Básica. Desta última podem beneficiar-se pessoas cujo
comprometimento mental é grave e que a rede de suporte social e familiar não é suficiente
nem para conduzi-lo ao CAPS. O CAPS seria mais atrativo, mesmo que momentaneamente,
para situações de carência de um suporte institucional mais estabelecido, ou em casos em que
a rede de apoio social ainda não foi possível de ser tecida. O diálogo entre CAPS Básica
prosseguirá, com a criação de mecanismos de integração. Ficamos, nessa discussão, com a
advertência de que as Oficinas Terapêuticas nas comunidades devem ser estabelecidas dentro
da evolução do trabalho geral da Saúde Mental, e não antes.
Foi avaliado o andamento do trabalho numa região de serra do município (Sana),
afastada do centro, onde a entrada da Saúde Mental se deu, inicialmente, com uma Supervisão
de Equipe semanal e uma Terapia Comunitária quinzenal, a cargo da Supervisora da Equipe
de Saúde Mental. Recentemente, começou a trabalhar na localidade a Terapeuta Ocupacional
185

Maria do Carmo, que iniciou sua atuação oferecendo-se para Visitas Domiciliares, junto com
ACS, para situações de pedido de intervenção à Saúde, que partem da Escola. Depois das
primeiras Visitas, a comunidade mobilizou-se e surgiram solicitações para atendimento de
pessoas graves, alguns acamados, outros com diagnóstico de psicose, sem tratamento, alguns
confinados em casa. Nesta localidade, está em atuação regular uma Reunião de Saúde
Comunitária, que surgiu do trabalho do Módulo do PSF com a Saúde Mental.
Foram discutidos, no Fórum, casos de abordagem a pessoas com transtornos mentais
graves. Em todas as situações estudadas, as pessoas não estavam em tratamento regular e
tinham histórias de longo curso do problema e/ou de diversas internações psiquiátricas. As
abordagens seguem a forma de trabalhar já descrita, de individualização do atendimento (cada
caso é um caso...) e máxima expansão, familiar e social, do alcance das ações.
A discussão a respeito de Visitas Domiciliares e Interconsulta levou a algumas
conclusões: a Visita Domiciliar é pouco discutida no PSF, muitas vezes sendo realizada
apenas visando os sintomas. O tema já foi assunto de capacitação da Saúde Mental e deve
voltar a ser mais discutido, portanto. Foi decidido tornar a Visita Domiciliar mais “precisa”,
isto é, mais importante, na medida em que discute-se previamente com mais intensidade os
seus motivos e a história do que está sendo abordado e, depois da Visita, cria-se um campo
mais efetivo de capacitação e de conclusões para as ações.
A Interconsulta ainda não está completamente absorvida no dia a dia do profissional
dos módulos, notando-se alguns bons resultados e, também, situações de adiamentos e
impedimentos. Foi decidida uma reunião que terá como participantes os médicos de áreas
onde já esteja em atuação a Equipe de Saúde Mental, a Supervisora, o Psiquiatra e o autor
dessa monografia.
Quanto à Capacitação dos novos profissionais de nível superior que estão para serem
integrados à Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica, através de Concurso Público,
decide-se que passarão por observação do trabalho que está sendo realizado, estudo de textos.
Uma Equipe completa entrará em dois Módulos de PSF, inicialmente, com as ações de
Capacitação, Visita Domiciliar e Interconsulta.
Um fato que considero como um dos resultados mais positivos do trabalho implantado
em Macaé foi a solicitação, feita pela Coordenadora do PSF, para que a Equipe de Saúde
Mental atuasse com mais determinação, isto é, que fosse mais adiante, na ajuda às Equipes
dos Módulos de PSF na resolução de seus conflitos internos e na ajuda para que essas Equipes
realizem trabalhos comunitários.
186

Em 18 de agosto de 2004, o Centro de Estudos do Instituto Municipal Philippe Pinel,


no Rio de Janeiro, promoveu um dia de debates a respeito da Saúde Mental na Atenção
Básica, sob a denominação de “Integração dos Programas de Saúde Mental e Saúde da
Família no Estado do Rio de Janeiro”. O evento teve a coordenação de Mário Barreira
Campos, Sandra Fortes e Marta Zappa. Na ocasião, foram reafirmadas as necessidades de
integração entre a Saúde Mental e os Programas de Atenção Básica, com os palestrantes
ressaltando a afinidade de conceitos entre as estratégias do PSF e da Reforma Psiquiátrica. O
tema da violência nas comunidades, tanto a violência doméstica quanto a urbana, foi um
ponto marcante nos debates.
Em 16 de setembro de 2004, aconteceu, no Rio de Janeiro, o “I Encontro Estadual de
Integração das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, uma iniciativa da Coordenação
Estadual do Programa Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, com apoio da
Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ. O Encontro foi dividido em duas partes: durante a
manhã, tivemos uma mesa redonda com a participação de Maria do Socorro Matos,
Coordenadora de Gestão da Atenção Básica do Ministério da Saúde, e de Maria Amélia
Alves, consultora de Saúde Mental do Departamento de Atenção Básica do MS. À tarde,
houve a apresentação de experiências de Saúde Mental na Atenção Básica de três municípios
do Estado do Rio de Janeiro: Petrópolis, Niterói e Macaé.
A representante do Ministério da Saúde, Maria do Socorro Matos, reafirmou a
necessidade estratégica das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, ressaltando a
importância das ações coletivas para a abordagem dos problemas de Saúde Mental. Maria do
Socorro informou, depois de questionada a respeito da demora do estímulo de financiamento
para as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, que está em fase final de aprovação a
criação de “Núcleos de Saúde Integral”, que terão a presença de supervisores das diversas
áreas da Saúde que estão atuando no PSF, como por exemplo, a Odontologia, a Fisioterapia e
a Saúde Mental. Para esses Núcleos, que atuarão junto às Coordenações Municipais de PSF,
haverá estímulo financeiro. Note-se que não há aceno de financiamento para as ações, e sim
para Supervisão. A representante do Ministério da Saúde informou, também, que está em
estudo a reformulação global do SIAB, o que ensejará a introdução de indicadores próprios da
Saúde Mental.
A Coordenadora de Saúde Mental da SES-RJ, Cristina Loyola, na sua fala, ressaltou
que, da pesquisa realizada por Leila Vianna e Carlos Honorato, já citada nesta monografia,
depreende-se que, apesar da intenção de os Coordenadores Municipais de Saúde Mental
187

promoverem ações junto à Atenção Básica, é pequeno o número de municípios que as têm
realizado de modo efetivo.
Coube-me coordenar a mesa de apresentação dos trabalhos dos municípios, que se
revelaram singulares, diferentes e unidos pelas diretrizes dos últimos textos e encontros a
respeito do tema. Foi sugerido que os apresentadores ressaltassem as ações que estão
produzindo bons resultados, os pontos de impasse e as possíveis modalidades de capacitação
que podem ser úteis. Esta solicitação, aos apresentadores, deveu-se à intenção dos
organizadores do Encontro de que um debate, ao final do mesmo, aprovasse meios de
estimular as ações de Saúde Mental na Atenção Básica.
No debate final foram aprovados os seguintes itens:
- continuar a discussão a respeito da inclusão de ações de Saúde Mental na Atenção
Básica, nos Fóruns Regionais de Coordenadores de Saúde Mental, com atenção para
cada município. Utilizar os Fóruns, também, para debater a respeito dos Núcleos de
Saúde Integral.
- realizar pesquisa, em algum município a ser escolhido, antes e depois de capacitação
em Saúde Mental na Atenção Básica;
- realizar um Fórum de Agentes Comunitários de Saúde, em que eles mostrem o que
têm para ensinar e as suas experiências;
- discutir, em Seminário, a articulação entre Serviços Residenciais Terapêuticos, PSF,
desospitalização e o “Programa de Volta pra Casa”;
- realizar Supervisão de Saúde Mental na Atenção Básica integrada e por Regiões de
Saúde;
- discutir, regionalmente, as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, tomando como
estimuladores as experiências apresentadas, pelos municípios, no Encontro;
- divulgar amplamente as conclusões do Encontro.
O Encontro renovou, portanto, as diretrizes e as intenções dos textos e eventos da
área, até o momento. Ficou destacada a necessidade de incrementar a aproximação entre a
Saúde Mental e a Atenção Básica, utilizando os espaços de discussão já existentes, mas com a
sinalização de que será preciso criar novos campos, específicos para a realização da tarefa.
188

CAPÍTULO 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia, para chegar ao seu objetivo principal - observar como está
acontecendo, hoje, a entrada das ações da Saúde Mental na Atenção Básica - percorreu a
história da exclusão praticada pela ciência oficial em nome do encobrimento e do controle de
emergentes sociais indesejáveis. Podemos dizer que os conteúdos da exclusão são o
inconsciente, as diferenças de classe e a miséria.
Ao pesquisar como alguns autores e programas lidaram com tentativas de reverter o
quadro de práticas de exclusão, pudemos perceber que as histórias da Reforma Psiquiátrica e
dos Programas de Atenção Básica são marcadas pela luta constante entre controle e
transformação social.
A história da abordagem ao que chamamos hoje de sofrimento psíquico, termo geral
que contém o conceito questionável de “doença mental”, nos mostra uma imensa variedade de
enfoques.
Os emergentes pessoais, que denotam algum funcionamento fora dos padrões da
normalidade eventual, têm diferenças consideráveis de tratamento, quando variam os lugares,
épocas e culturas. Exaltação, idolatria, execração, torturas, alvo de caridade, assassinato,
curiosidade científica e fonte de lucro são alguns dos destinos daqueles que, por seu
comportamento ou modo de pensar, não se incluem na maioria.
A ciência médica em ascensão organizou, em conformidade com as determinações
políticas e econômicas, a Grande Exclusão, sob a forma dos hospícios, com mais desenvoltura
no século XVIII.
Depois de dois séculos do isolamento que tentava proteger a sociedade de suas
próprias contradições, e da tentativa de expulsão do trágico da existência, a ciência oficial
entra em crise. A visão do horror dos campos de concentração nazistas e a perda das ilusões a
respeito da excelência da sociedade ocidental, com seus modos de produção e de exclusão,
colaboraram para o questionamento do que estava sendo feito com seres humanos nos
hospícios, sob a justificativa de tratá-los.
189

A ciência oficial psiquiátrica, excludente, segregadora, já atacada por novos


conhecimentos, inclusive da psicanálise, aprofunda a sua crise com o avanço da
psicofarmacologia, o que possibilitou o aumento do número de altas dos Hospitais
Psiquiátricos, a partir da década de 50 do século XX. Os textos e trabalhos práticos de
contestação da instituição psiquiátrica de segregação apareceram mais acentuadamente na
Europa, nas décadas de 60 e 70, mas têm precursores, que, nas suas épocas, não tiveram maior
repercussão.
A contestação política dos anos 60 e 70, não sendo coincidência a contemporaneidade
das práticas alternativas da Saúde Mental com os movimentos de questionamento dos poderes
daquela altura do século XX, produziu não apenas propostas teóricas, mas ações efetivas de
desinstitucionalização no trato com o diferente. Politizado, o movimento de renovação na
Saúde Mental mostrou que a individualização dos problemas de sofrimento mental encobria
realidades familiares e sociais que precisavam ser explicitadas.
Inicialmente trabalhando na democratização das instituições asilares, o movimento de
transformação na Saúde Mental criou dispositivos extra-hospitalares para a abordagem ao
sofrimento mental. Com o avanço do questionamento do Poder Médico, outras profissões da
área entraram em campo, formando os múltiplos olhares a respeito do sujeito a ser tratado e
ajudando a lançar, para além do indivíduo, a percepção da determinação e da solução dos
problemas.
Nota-se que a cada tentativa de mudança, no modo de abordar o sofrimento mental,
correspondem críticas, que podem ter funções estimulantes ou paralisantes. A dúvida que
permanece é a que traz o constante questionamento: estamos praticando meras reformas que
mantém o conteúdo controlador das ações de Saúde ou estamos colaborando para mudanças
efetivas?
As tentativas de abordar o sofrimento mental diretamente nas comunidades, em
contato com os bairros, ruas e famílias, também tiveram um impulso inicial na Europa e nos
Estados Unidos. De início repetindo o objetivo controlador, as ações de Saúde Mental na
comunidade mostraram que podem ter efeitos transformadores para pessoas, famílias e
população. As críticas que são feitas às tentativas iniciais de inserção de ações de Saúde
Mental, nas comunidades, apontam para a falta de participação da população na discussão e
organização em todas as fases do processo de mudanças que os profissionais pretendem
implantar. Os programas de Saúde Mental comunitária surgiram em meio a tentativas de
controlar populações que ameaçavam sair do domínio do poder estabelecido, portanto sua
implantação não levava em conta as reais necessidades dos “assistidos”.
190

Das tentativas iniciais de abordar a Saúde Mental na comunidade, tanto nos trabalhos
nacionais como nos estrangeiros, ficaram: as propostas de integração entre as Equipes
Clínicas e de Saúde Mental; a noção de população adscrita; o questionamento da divisão entre
profissionais do corpo/profissionais da mente; a necessidade de trocar conhecimentos com a
população; a entrada em campo de diversas categorias profissionais; a correlação entre
sofrimento mental e organização da sociedade; a perspectiva de mudar a forma da sociedade
lidar com o diferente; a percepção das diferentes formas com que a loucura é encarada ao
longo da história.
Os Programas de Atenção Básica, no Brasil, tiveram influência de orientações
internacionais. Mesmo criticada por alguns autores, a Declaração de Alma-Ata ainda é um dos
marcos de orientação para que as políticas públicas de Saúde definam-se pelas ações
comunitárias e incluam a população na condução dos programas. O que se pretende é
ultrapassar as definições de Alma-Ata, com o Programa de Saúde da Família como estratégia
para a mudança do Modelo Assistencial.
A mudança do Modelo Assistencial em Saúde, que tem no PACS e no PSF as suas
bases, possui diversos pontos de semelhança com o que tem sido proposto pela Reforma
Psiquiátrica, principalmente nos últimos anos. Os conceitos de território, rede,
responsabilidade e de integralidade, são comuns à Reforma Psiquiátrica e ao PSF/PACS,
assim como a orientação geral de que o trabalho de promoção da Saúde, a discussão a respeito
das condições de vida e o estímulo à organização das comunidades são partes inerentes do
trabalho.
A proposta do PSF como estratégia para a mudança do Modelo Assistencial tem
recebido atenção especial de Profissionais de Saúde, população, gestores da área da Saúde e
autores ligados, ou não, à Universidade. Porém, existem dois graves fatores de limitação das
possibilidades de efetiva mudança na forma de atuar dos serviços de Saúde, através do PSF: a
definição de um quantitativo populacional excessivo, para cada Módulo de PSF, para a tarefa
proposta, e a falta de capacitação de muitos profissionais para o trabalho de mobilização das
comunidades. Desta forma, o risco é a proposta de mudança resumir-se a uma expansão de
ambulatórios, melhorados, pelas comunidades, sem que as condições de vida e de saúde sejam
discutidas e transformadas.
De forma semelhante às críticas que recebem as tentativas de mudança na área da
Saúde Mental, que seriam meras formas renovadas de controle, também os Programas de
Atenção Básica são alvos de questionamento. A prática de cada Equipe responderá, bem
como o farão os resultados, em termos sociais, ao dilema controle/transformação.
191

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica teve o grande impulso na transformação dos


Hospícios, formando o pessoal e a consciência crítica que ocupou os cargos no Aparelho do
Estado, a partir do fim da década de 70 e início da de 80. O Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental teve papel decisivo na fase de contestação e, depois, na de propostas e
reorientação da condução da Política de Saúde Mental no Brasil.
A Reforma Psiquiátrica ganhou força, no Brasil, no bojo da crise de financiamento do
Setor Saúde, que tentava sustentar um Modelo Assistencial curativo fadado à falência.
Desde o início, o movimento pela transformação do campo da Saúde Mental teve forte
cunho político, refletindo as suas origens principalmente basaglianas.
Os Encontros de Profissionais de Saúde Mental, de fins da década de 70 e em toda a
década de 80, aprofundaram a discussão sobre a necessidade de mudança do Modelo
Assistencial em Saúde Mental, inserindo o que estava sendo pensado e praticado como
mudanças, na área, no campo maior da Reforma Sanitária e da Política.
O Hospital Psiquiátrico e a Internação Psiquiátrica eram o alvo preferencial das
críticas, ao lado do Poder Médico, da direção autoritária das instituições, da falta de condições
de trabalho, da escassez de recursos humanos e do gasto de quase todo o orçamento da Saúde
Mental com a exclusão.
Mesmo no início das formulações das mudanças na assistência à Saúde Mental já
aparecem, em documentos oficiais, orientações no sentido de incluir a Saúde Mental nos
cuidados básicos de saúde. Alguns anos teriam que se passar, para que a prática tivesse
correspondência com o que estava proposto.
No final da década de 80, os encontros do movimento de transformação da Saúde
Mental já acontecem com caráter oficial, como as Conferências Estaduais e a I Conferência
Nacional de Saúde Mental. Além da reafirmação dos princípios da Reforma Psiquiátrica,
esses eventos passam a ter o caráter de organização do que estava sendo praticado na
assistência e a contar, cada vez mais, com a participação da população, com a presença de
usuários do Sistema Único de Saúde e seus familiares. É ainda tímida, mas já se fazem notar,
nesses fóruns, as indicações de que a comunidade é um dos caminhos para as mudanças em
Saúde Mental.
Os dispositivos extra-hospitalares surgiram, então, com grande força, de início com a
multiplicação dos Ambulatórios de Saúde Mental, já com Equipes Multidisciplinares.
Ultrapassando o Ambulatório em acolhimento e em efetividade no cuidado das
pessoas com grave comprometimento mental, surgem os CAPS. O primeiro Centro de
Atenção Psicossocial foi inaugurado em 1987, em São Paulo, revelando-se de grande
192

utilidade para reduzir o número de internações psiquiátricas e proporcionar melhores


condições de vida para pessoas em risco de serem internadas. Caso sejam bem conduzidos, os
CAPS promovem o questionamento da cultura da exclusão.
Ao praticar uma assistência em Saúde Mental que não mais isolava as pessoas a serem
tratadas, a Reforma Psiquiátrica assume a tarefa de tentar mudar os conteúdos imaginários
seculares de rejeição da loucura. Não mais isolada no gueto da Psiquiatria Organicista, a
loucura passa a freqüentar as ruas, permanecer nas casas, fazer-se visível, a forçar a Medicina
a mudar seu discurso excludente, a provocar olhares e aproximações de diversas categorias
profissionais.
A Declaração de Caracas, de 1990, coloca os Sistemas Locais de Saúde como campo
privilegiado de ação da assistência da área mental, numa afirmação que ficou como
importante orientação para os anos que se seguiram.
A década de 90 assistiu à progressiva diminuição do número de leitos psiquiátricos, à
proliferação de CAPS e NAPS e ao desenvolvimento de diversos dispositivos criativos de
assistência, desde então já definidos em Portarias no Ministério da Saúde, onde já estavam
membros do movimento de renovação da Saúde Mental. As ações de Saúde Mental na
comunidade eram, então, incipientes, isoladas, sem definição de financiamento e não atraíam
a atenção dos profissionais da área. Uma espécie de “caminho natural” dos profissionais era o
Hospital Psiquiátrico em transformação, os ambulatórios de consultas e os CAPS e NAPS.
A II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1992, mesmo citando a
Declaração de Caracas, no seu Relatório Final, como uma diretriz a ser seguida, pouco avança
em relação a apontar a necessidade de práticas de Saúde Mental diretamente na comunidade.
Podemos supor que a relutância em tomar o caminho dos trabalhos com as comunidades, até
esse ponto da Reforma Psiquiátrica, devia-se à crítica ao preventivismo ter ficado muito
marcada, tornando as práticas comunitárias mais suspeitas de controle do que aquelas dos
Ambulatórios, CAPS e NAPS. Pode ter contribuído para essa relutância, o fato de que as
principais influências estrangeiras da Reforma Psiquiátrica Brasileira não terem sido ligadas a
trabalhos diretamente nas comunidades. Trabalhava-se com a comunidade fechada dos
Hospícios, transformando-os em Comunidades Terapêuticas, que deram a base de
organização dos CAPS e NAPS.
A II Conferência Nacional de Saúde Mental, de 1992, por outro lado, já traz conceitos
que serão base para a aproximação da Saúde Mental da comunidade, como a
desinstitucionalização e a reafirmação dos princípios da 8.a Conferência Nacional de Saúde:
universalidade, integralidade, eqüidade, descentralização e participação. Aparecem também,
193

com importância, os conceitos de território e responsabilidade, fundamentos das ações de


Saúde Mental na Atenção Básica e indicações para a constituição de “Equipes Itinerantes” e
para a capacitação de Agentes Comunitários de Saúde.
A década de 90 caracterizou-se pela expansão dos dispositivos propostos pela Reforma
Psiquiátrica, que avançou no período, mesmo contra toda as dificuldades, sendo as maiores
delas o enorme gasto com internações psiquiátricas e o próprio financiamento do SUS.
Na década de 90 surgiram e se desenvolveram os Programas de Atenção Básica no
Brasil, em parte reciclando experiências já estabelecidas no país e no exterior, mas com
aspectos novos. Os Programas de Atenção Básica, primeiro o PACS, e depois o PSF, tiveram
influência de diretrizes internacionais, sendo um exemplo marcante a Declaração de Alma-
Ata, de 1978. Mesmo criticada por alguns autores, em Alma-Ata estão indicadas importantes
orientações para o trabalho na Atenção Básica, como por exemplo, a afirmação do direito das
populações de participar do planejamento e controle das ações de saúde.
A implantação dos Programas de Atenção Básica torna-se, então, uma estratégia para a
mudança do Modelo Assistencial. As postulações dessa estratégia e dessa mudança de Modelo
Assistencial coincidem com os fundamentos e as práticas da Reforma Psiquiátrica, visto que
ambas têm suas bases em conceitos comuns: a visão da Saúde como um campo
eminentemente político e os princípios da Reforma Sanitária e do SUS.
A compreensão da Saúde como um direito de cidadania, o reconhecimento da
determinação social dos problemas de saúde, a necessidade da participação popular para a
transformação do campo da Saúde, o princípio da integralidade, são alguns dos muitos pontos
em comum entre a Reforma Psiquiátrica e a estratégia do PACS/PSF.
Com a implantação do PACS, surge, na figura do Agente Comunitário de Saúde, uma
possibilidade de ação comunitária inédita em Saúde Mental. Enraizado na comunidade, visto
que nela morador, o ACS é, ao mesmo tempo, o membro do Sistema de Saúde mais próximo
da realidade dos fatos da saúde da população. O ACS tem, então, devido à sua inserção, a
possibilidade de promover mudanças que realmente sejam duradouras.
Constatamos, então, que, na década de 90, surgem, em diversos estados do país, ações
de Saúde Mental ligadas ao PACS/PSF. Trabalhos consultados revelam a rapidez de resultados
e a potencialidade para a adoção de práticas de Saúde Mental pela Atenção Básica,
principalmente pelos ACS. Ao conhecer de perto a realidade das vidas das comunidades e ao
poder articular redes de apoio e inserção social, os profissionais envolvidos podem, ao lado de
assistir pessoas e famílias, estimular a participação da população na reflexão a respeito de
suas condições de saúde.
194

O trabalho do ACS, na articulação entre Saúde Mental e Atenção Básica, é um dos


fatores de maior importância e de estímulo. Nas capacitações que são fornecidas pelas
Equipes de Saúde Mental, é a categoria profissional que mais rapidamente sai da lógica da
exclusão e que compreende, de modo criativo e inovador, as propostas de inclusão. Com a
sensibilidade vinda do contato constante com a população e do conhecimento da cultura local
e da dinâmica das famílias e da comunidade, passam a ter o papel de referência para as
situações que envolvem a Saúde Mental. Em diversas situações são os ACS que fornecem as
soluções para os problemas enfrentados.
Um fato da maior importância para as práticas da Reforma Psiquiátrica é que, quando é
iniciado um trabalho de Saúde Mental nas comunidades, ligado ao PACS/PSF, constata-se
uma realidade que, muitas vezes, não chega nem aos ambulatórios nem aos CAPS: uma
imensa faixa de desassistência. São pessoas em cárcere privado, trancadas em cômodos,
isoladas em partes das casas ou terrenos onde moram as famílias ou mesmo perambulando a
esmo pelas comunidades. Estas situações em geral não são abordadas pelos Programas de
Atenção Básica, que estão, freqüentemente, na lógica da exclusão, por mais que os seus
conceitos de base indiquem a responsabilidade integral pela saúde da população.
Percebemos que, por um lado, permanecem os Profissionais de Saúde Mental sem
contato com pessoas que circulam entre casa, emergências e hospícios, ou que ficam nas
comunidades, mas com péssima qualidade de vida. Por outro lado, temos os Profissionais da
Atenção Básica que não possuem habilidades para perceber e reverter o quadro de exclusão
em que vivem pessoas com problemas de Saúde Mental da sua população. Estamos, porém,
apenas tocando no aspecto dos “transtornos mentais graves”, sem entrar, ainda, na área mais
geral da integração entre o que ficou dividido entre saúde física e saúde mental.
Criou-se, com a confluência entre a Reforma Psiquiátrica e os Programa de Atenção
Básica, com suas bases teóricas, conceitos e práticas, a possibilidade de a inserção da Saúde
Mental nas comunidades sair das meras tentativas de modificação da assistência psiquiátrica,
como aparecia no preventivismo e em trabalhos nacionais e estrangeiros.
Um ponto comum entre Equipes de Saúde Mental, que trabalharam nas comunidades
durante a década de 90 e no início do novo século, e a definição do CAPS como centro
organizador da Rede de Atenção Psicossocial, é o que coloca nos conceitos de território e rede
a base para as ações. Conceitos comuns e intenções comuns poderão fazer da articulação entre
os CAPS e a Atenção Básica, bem como entre toda a rede de assistência, a sustentação dos
avanços num novo patamar. A definição dos CAPS como prioridade estratégica deve ser
195

acompanhada de uma atenção especial para as possibilidades imediatas de ações de Saúde


Mental ligadas aos Programas de Atenção Básica.
Continuando a estabelecer as bases conceituais para a atuação da Saúde Mental, junto
aos Programas de Atenção Básica, consideramos que uma diretriz é determinante para os
rumos dos trabalhos: a que postula que, nas ações praticadas, deve estar sempre presente pelo
menos um membro da Equipe de Saúde da Família ou do PACS, além de um membro da
Equipe de Saúde Mental. Com essa prática estimulamos o princípio da integralidade,
tornamos as ações campo permanente de capacitação mútua, eliminamos a referência entre os
Programas (fonte de possível perda da responsabilização e manutenção da exclusão) e
investimos num trabalho realmente de Equipe, com múltiplas visões e colaborações.
Nas avaliações da Reforma Psiquiátrica, no ano 2000, o tema da urgência da entrada
da Saúde Mental na Atenção Básica já estava colocado com ênfase, o Ministério da Saúde já
percebia a necessidade de estimular essa inserção, e os apelos por estímulos de financiamento
já se faziam ouvir.
Com diversos trabalhos de Saúde Mental na Atenção Básica já em andamento,
produzindo resultados, o assunto financiamento passa a ter lugar de destaque. Foram feitas
solicitações, ainda não atendidas, de estímulo de financiamento para a introdução da Saúde
Mental na Atenção Básica.
Nos anos de 2000 e de 2001, o tema da Saúde Mental na Atenção Básica teve decisivo
impulso.
A publicação do livro “Saúdeloucura 7”, organizado por Antonio Lancetti, em 2000,
mostrou a criatividade e os resultados de muitos trabalhos de introdução da Saúde Mental nas
comunidades. No livro, já está colocado o conceito que define que as ações de Saúde Mental
na Atenção Básica devem ser praticadas, sempre, com a participação de pelo menos um
membro de cada Equipe: Saúde Mental e PACS/PSF. Em artigo de abertura do livro, Lancetti
sugere que para cada duas Equipes de PSF seja destinado um profissional de Saúde Mental,
iniciando uma longa discussão ainda longe do consenso. Na nossa experiência, essa
quantidade de profissionais de Saúde Mental é insuficiente em relação à quantidade de ações
a serem desenvolvidas.
No início de 2001, o Ministério da Saúde lançou um documento intitulado “Proposta
Preliminar. Plano de Inclusão de Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, preparatório
para a “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de
Saúde Mental na Atenção Básica”, que se realizou, em março de 2001, em Brasília. Da
196

Oficina saíram diretrizes básicas para a condução dos trabalhos da Saúde Mental na Atenção
Básica.
Foi aprovada, ainda em 2001, pelo Congresso Nacional, a lei 10.216, que “Dispõe
sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental”. Na Lei, é exigido que o poder público organize modos
comunitários de tratamento dos pacientes com transtornos mentais e coloca a internação
psiquiátrica como exceção.
A Organização Mundial da Saúde elege o tema “Não à exclusão, sim aos cuidados”,
para o Dia Mundial da Saúde, dedicado, em 2001, à Saúde Mental.
Foi realizada, em Brasília, em dezembro de 2001, a III Conferência Nacional de Saúde
Mental, repleta de itens aprovados que indicam a importância estratégica das ações de Saúde
Mental na comunidade. Durante a III Conferência, a OMS lança o documento “Relatório
Sobre a Saúde no Mundo 2001. Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”,
significativo estímulo para as ações comunitárias em Saúde Mental.
A Lei, os documentos e os encontros citados, de profissionais e usuários, convergem
para a definição da mudança do Modelo Assistencial em Saúde Mental.
A III Conferência, que teve uma das suas mesas dedicadas à Saúde Mental na Atenção
Básica, recomenda que a implantação da rede de serviços em Saúde Mental substitua
totalmente o Hospital Psiquiátrico, numa afirmação inédita para textos oficiais.
A III Conferência reforça o conceito de uma rede de assistência em Saúde Mental com
base territorial e ligada à rede geral de Saúde. Além dessa definição, a Plenária Final da III
Conferência aprovou diversos itens que reforçam a necessidade das ações de Saúde Mental na
Atenção Básica, mostrando que foi grande, no evento, a atenção para o tema.
De acordo com os itens aprovados, a atenção ao sofrimento mental nas ações básicas
de saúde garante o princípio da Integralidade, e a estratégia, para alcançar esse fim, é a
articulação da Saúde Mental com o PSF.
A III Conferência reforça a exigência de repasse financeiro para a Saúde Mental,
redirecionando a verba alocada nas Internações Psiquiátricas para as ações que a substituem.
Pela primeira vez, numa Conferência Nacional de Saúde Mental, a Saúde Mental na Atenção
Básica é citada, com destaque, como uma das modalidades de trabalho a serem contempladas
com o financiamento. Por exemplo, é sugerido que Municípios que tenham a Saúde Mental na
Atenção Básica recebam incentivo mensal, sem redução de outras dotações da Saúde Mental.
O documento do Ministério da Saúde, “Proposta Preliminar. Plano de Inclusão de
Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, base de discussão para a “Oficina de Trabalho
197

para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção
Básica”, é uma importante declaração de intenções da esfera Federal do SUS, trazendo
definições básicas.
A opção pela mudança do Modelo Assistencial é reforçada, estando presentes os
conceitos de território, rede e integralidade como pilares da mudança.
O texto da “Proposta Preliminar” define como função da Equipe de Saúde Mental na
Atenção Básica fornecer supervisão às Equipes de PACS e PSF. Nas discussões e conclusões
da “Oficina” esta diretriz foi ampliada, mudando significativamente o teor das tarefas a serem
desenvolvidas. Não apenas supervisão, mas trabalho conjunto, responsabilidade mútua. Na
prática, o que temos visto são trabalhos que optam por uma ou outra forma de agir e outros
que associam as duas possibilidades. Na nossa experiência, o trabalho conjunto deve ser a
meta a ser alcançada logo que possível.
No trabalho conjunto Saúde Mental/PACS-PSF, com as ações sendo praticadas pelos
dois grupos de profissionais, fica estabelecido que a entrada da Saúde Mental na Atenção
Básica nem é uma prática de supervisão, para que os profissionais da base executem melhor
as tarefas, nem é um posto avançado, comunitário, do Ambulatório de Saúde Mental. Esta é
uma fértil conclusão da “Oficina”: o trabalho deve ser conjunto.
As etapas que faziam parte do cronograma firmado na “Proposta Preliminar” não
foram totalmente concretizadas, ficando a iniciativa da inserção da Saúde Mental na Atenção
Básica por conta do empreendimento dos municípios. Tal fato causa dificuldades e atrasos,
levando-se em consideração o ineditismo da proposta para a maioria dos profissionais de
Saúde Mental e a falta de informação dos Coordenadores Municipais de Saúde Mental e de
PACS/PSF a respeito do assunto. Portanto, as ações do Ministério da Saúde e das Secretarias
Estaduais de Saúde são fundamentais e urgentes, para induzir práticas de saúde que
apresentam resultados rápidos, com impacto nos indicadores.
A questão dos resultados das ações de Saúde Mental na Atenção Básica abre um
interessante campo de pesquisa. Poderá ser pesquisado, por exemplo, um conjunto de
indicadores numa região onde já exista o PSF, de preferência já há algum tempo, mas que
ainda não tenha ações de Saúde Mental da forma que estamos desenvolvendo. Depois da
implantação das ações de Saúde Mental, a coleta dos dados deverá ser repetida, mais de uma
vez, ao longo do tempo, com comparação para efeitos de avaliar os resultados.
A “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de
Saúde Mental na Atenção Básica” chegou a conclusões em relação à prática das ações da
Saúde Mental na Atenção Básica que passaram à condição de diretrizes. Dentre elas
198

destacamos: a necessidade do trabalho conjunto entre as Equipes de Saúde Mental e de


PACS/PSF, com substituição da referência/contra-referência por co-responsabilidade e
trabalho em rede; a quebra dos especialismos; a necessidade de inserir o trabalho da Saúde
Mental na Atenção Básica em toda a rede articulada de cuidados em Saúde e em Saúde
Mental; a capacitação mútua como base do trabalho; a mobilização de recursos da
comunidade até então não ativados pelos serviços de saúde; a mobilização da comunidade
para a discussão dos problemas de Saúde Mental e seu enfrentamento; a abordagem ao
adolescente e ao idoso; a necessidade de aproximação e possível intervenção no problema da
violência urbana e doméstica.
A Oficina dedicou-se ao controvertido tema da proporção entre o número de
profissionais de Saúde Mental e Equipes da Atenção Básica. Os Grupos de Trabalho
recomendaram que cada Equipe de Saúde Mental, composta de quatro profissionais, trabalhe
com um número entre 8 e 10 Equipes de PSF. Em 2003, o Ministério da Saúde já abaixou
essa proporção para de 6 a 9 Equipes de PSF para cada Equipe de Saúde Mental. Na nossa
experiência, essas proporções são excessivas, podendo comprometer os resultados que
pretendemos alcançar.
Não se trata apenas de capacitar as Equipes de PSF, para que “ajudem” o Programa de
Saúde Mental a cumprir as suas funções. Trata-se de mudar toda uma visão a respeito do
lugar do “mental”, mudar o Modelo Assistencial em Saúde Mental, fomentar a discussão e a
articulação comunitária a respeito do sofrimento mental, apoiar as Equipes de Saúde da
Família e PACS nas suas dificuldades institucionais e relacionais, acompanhar as pessoas
com transtornos mentais graves, promovendo os seus direitos e cidadania, atuar em Escolas e
outras instituições da comunidade, que em geral encaminham situações para a Saúde Mental.
Na nossa experiência, não devem passar de cinco os Módulos de PSF que uma Equipe
de Saúde Mental de quatro membros pode assumir. Chegamos a esse número, na prática, ao
alocar em apenas um Módulo toda uma Equipe de Saúde Mental e procedendo a uma lenta e
estudada expansão, na medida em que o território e as ações estavam sendo conhecidos e
compreendidos e que crescia a habilidade da Equipe de Saúde Mental para o trabalho.
A Oficina de Brasília entrou no tema do Financiamento e sugeriu que fosse destinado
um incentivo aos municípios que tivessem ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Os
resultados seriam acompanhados por indicadores, que condicionariam os incentivos.
Como o próprio Ministério da Saúde define, as políticas públicas se materializam de
acordo com a decisão governamental de destinação de financiamento. Até o momento, a área
federal da Saúde não destinou verba própria para a Saúde Mental na Atenção Básica,
199

conforme está proposto em documentos oficiais e do que consta de decisões de Conferências,


Oficinas e Encontros. Assim sendo, a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica tem ficado
por conta da iniciativa dos municípios que, na atual conjuntura, colocam-se na dependência
de verbas federais para novos serviços. A OMS aponta, como uma das causas da lentidão no
avanço dos trabalhos de Saúde Mental nas comunidades, a falta de repasse, para essas
práticas, do que está sendo economizado com o fechamento de leitos psiquiátricos.
A OMS recomenda que incentivos de financiamento sejam dirigidos para estimular o
surgimento de ações de Saúde Mental nas comunidades e que, mesmo depois que essas ações
estejam produzindo resultados, não sejam retirados todos os investimentos em trabalhos
institucionalizados. Nota-se, com essa orientação, a preocupação em investir “dinheiro novo”
nos Programas de Saúde Mental e com a possível desassistência em determinados momentos.
Temos, então, uma situação na qual ações de Saúde Mental com grande potencial de
resolubilidade e impacto sobre os indicadores, embasados por um conjunto de conceitos e
diretrizes que postos em prática, validam as expectativas positivas. Torna-se fundamental
incentivo financeiro mais efetivo. É necessário, também, maior divulgação do assunto entre
os próprios Profissionais de Saúde Mental e de PSF. As conclusões dos Encontros a respeito
do tema poderiam ser mais divulgadas, visto que o campo de atuação na Atenção Básica é
novidade para a maioria dos profissionais de Saúde Mental e os profissionais do PSF não
estão formados para a atuação nessa área. Concluímos, do exposto, que reuniões de
esclarecimento e capacitação que sensibilizem e instrumentem Coordenadores Municipais de
Saúde Mental e de PSF/PACS, a respeito do trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica, é
estratégia essencial no momento.
Todos os encontros de profissionais de Saúde Mental que têm por objetivo discutir e
decidir a respeito das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, bem como textos oficiais e
outros escritos, são unânimes em apontar a urgência de definir um conjunto de indicadores
que sirvam de pesquisa e balizamento para os nossos novos tempos. O número de internações
psiquiátricas, o número de ocorrências de violência, a quantidade de pessoas em uso de
benzodiazepínicos, o número de tentativas de suicídio, o número de pessoas usuárias de
álcool e outras drogas, são alguns dos dados que devem ser trabalhados para servir de base
para a criação de indicadores da Saúde Mental na Atenção Básica. Da Oficina de Brasília
surgiu uma interessante proposição, que é a de criar indicadores que informem a respeito da
criação e manutenção de trabalhos comunitários, territoriais.
A OMS, em 2001, apresentou, no seu “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.
Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, justificativas epidemiológicas para a
200

atenção especial que a questão da Saúde Mental deve ter. Estudos internacionais e também
nacionais, recentes, demonstram que cerca de 50% das pessoas que são atendidas em
unidades de Saúde, nas comunidades, apresentam alguma forma diagnosticável de transtorno
mental. Esse grande número de pessoas freqüentemente não tem seu problema reconhecido,
devido à falta de capacitação do pessoal que as atende, ou são encaminhadas a ambulatórios
de Saúde Mental abarrotados e onde, em geral, não vão ter as dimensões familiares e sociais
do sofrimento abordadas. Os problemas de Saúde Mental que não os considerados mais
graves, são a maioria nos atendimentos na Atenção Básica e constituem-se em importante
campo para capacitação e interconsulta, resultando em nova visão dos profissionais a respeito
do sofrimento mental.
A OMS, na publicação indicada acima, define que os problemas de Saúde Mental
devem ser abordados, preferencialmente, nas comunidades, onde deverão ser feitos o
atendimento às crises, o acompanhamento dos tratamentos e a reabilitação. Para esse fim, a
capacitação é citada como estratégia fundamental.
A OMS dá destaque especial à luta contra o preconceito e o estigma em relação às
pessoas que necessitam de tratamentos mentais, o que pode ser feito com o trabalho de
inserção na vida das comunidades das pessoas que apresentam essas necessidades.
A OMS afirma a necessidade de participação das pessoas assistidas, seus familiares e
população em geral, em todas as etapas da organização dos Programas de Saúde Mental na
comunidade. Trata-se de importante manifestação de intenções e uma diretriz. Mas apenas a
prática dirá de que forma essa participação é estimulada, visto que a população pode ser
chamada a participar de forma ativa ou passiva. O fator “participação popular” é um tema
constante de trabalhos que se dedicam a avaliar as ações de Saúde Mental na Atenção Básica,
cujo enfoque inicial teve aspecto eminentemente controlador. Como o controle é uma das
funções precípuas do Estado, devemos sempre ter presente o questionamento a respeito do
que predomina nas nossas ações: o controle ou a mobilização das comunidades?
O Relatório da OMS, ao levantar as possíveis causas da demora de os países adotarem
as ações de Saúde Mental nos cuidados primários de Saúde, adverte que essas práticas
colocam a Saúde Mental na agenda da população e não mais, apenas, na dos profissionais de
Saúde Mental. É uma grave afirmação.
Podemos, então, listar alguns dos motivos que fomos encontrando, ao longo da nossa
pesquisa, que podem explicar o adiamento que vem sendo observado na efetiva entrada da
Saúde Mental na Atenção Básica. Para cada um deles deve haver uma forma de solução, que
faça adiantar o processo de mudanças.
201

1- O preventivismo foi a primeira proposta de prática coletiva de Saúde Mental no


Brasil, ainda apenas no campo da psiquiatria.
2- A formação dos quadros iniciais da reforma psiquiátrica se deu na transformação dos
hospícios, sendo os CAPS a sua seqüência lógica e não a comunidade.
3- A prioridade para os CAPS, em si mesma justificável, encobriu a visão de que práticas
mais simples e de mais rápida implantação, sem a necessidade de investimentos em
imóveis, mobiliário e material de consumo, podem trazer rápido impacto na
assistência e na mobilização social.
4- A formação dos profissionais de Saúde Mental para terapias individuais ou, no
máximo grupais, voltadas para a modificação individual, os impede de ver os
trabalhos comunitários como transformadores e como campo de trabalho.
5- Falhas nas formações dos Profissionais de Saúde Mental em política, sociologia,
antropologia, economia.
6- A falta de programas de Atenção Básica enraizados adiou a entrada da Saúde Mental
nas comunidades, nos inícios da Reforma Psiquiátrica.
7- Dificuldade dos profissionais de Saúde Mental em encarar a miséria e as difíceis
situações de vida da população.
8- Dificuldade dos profissionais de Saúde Mental para o trabalho em ambiente sem a
proteção institucional.
9- A falta de um movimento social forte e organizado.
10- A falta de definição de financiamento a partir do Ministério da Saúde.
11- Dificuldades no investimento próprio, em Saúde, dos Municípios.

Os diversos relatos de experiências de introdução de ações de Saúde Mental na


Atenção Básica têm alguns pontos em comum, que coincidem com a nossa prática. Depois de
superada, pelos profissionais da Atenção Básica, a primeira fase de preocupação com a
perspectiva de mais trabalho, há uma progressiva adesão, principalmente por parte dos ACS.
Com o desenrolar das ações conjuntas e a percepção de que, com intervenções simples
podemos obter respostas favoráveis, a adesão e o interesse aumentam. Ocorre, também, uma
percepção de que os profissionais de Saúde Mental podem ajudar a: resolver conflitos das
Equipes; acolher, discutir e tentar resolver dificuldades em relação à mobilização emocional
que surge com o contato com a dura realidade da população; auxiliar nas dificuldades no
relacionamento com a comunidade e na criação de espaços de discussão com os níveis
202

superiores do PSF. Desde que esses temas sejam trabalhados e bem elaborados pela Equipe
de Saúde Mental, estas ações podem ser de utilidade numa parceria constante.
Com as repostas à capacitação das Equipes de Saúde Mental para atuar na Atenção
Básica apresentando bons resultados, com a adesão das Equipes de PACS/PSF às ações de
Saúde Mental (com repercussões na assistência, mobilização comunitária e relacionamento de
Equipes), ficamos com a tarefa urgente de pensar e executar a capacitação em larga escala.
Textos recentes do Ministério da Saúde estimulam a formação de Equipes de Saúde Mental
para capacitação e ação conjunta com as Equipes de PACS/PSF.
Encontramos, na prática, algumas variações na forma de praticar a capacitação em
larga escala e, conseqüentemente, a introdução das ações de Saúde Mental na Atenção Básica.
O momento nos exige união de esforços, e que cada forma de praticar as capacitações e ações
possa dialogar com as outras.
O que está proposto é a mudança do Modelo Assistencial em Saúde e em Saúde
Mental. Dentro dessa concepção, e de acordo com diversos argumentos ao longo desta
monografia, não estamos tratando de capacitar Equipes da Atenção Básica para “ajudar” a
assistência à Saúde Mental. A pretensão é muito mais ambiciosa. Trata-se de mudar a forma
de lidar com o que historicamente foi abordado de modo dividido: corpo, mente e mundo
social. Trata-se, também, de uma aproximação com a loucura e outros fenômenos humanos
ditos “mentais” radicalmente oposta à exclusão. Portanto, a forma de capacitação que pode
produzir resultados mais consistentes é aquela que tem as características de ser em serviço,
constante e fornecida por Equipe responsável pela atuação conjunta na base.
As capacitações que são praticadas sem essas características ajudam, em muito, o
avanço das ações da Saúde Mental na Atenção Básica e a integração com seus Programas,
mas me parecem etapas preparatórias para a efetiva entrada das ações conjuntas.
Temos, de um lado, Coordenadores Municipais de Saúde Mental que, em grande
parte, ainda não despertaram para a potencialidade das ações de Saúde Mental na Atenção
Básica e não conhecem com detalhes a filosofia do PACS e do PSF. Por outro lado, temos os
Coordenadores dos Programas de Atenção Básica que, na sua maioria, não tem suficientes
esclarecimentos a respeito da Reforma Psiquiátrica, suas práticas e suas propostas atuais. Essa
desinformação permanece nas bases, nos profissionais dos dois lados que pretendemos
aproximar.
Uma forma de potencializar a entrada das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica
é a proposta, feita do início de 2003, pelo Grupo de Trabalho de Saúde Mental do Pólo de
Capacitação/Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro. De acordo com esse texto, o estímulo às
203

ações começaria pela reunião, principalmente, de Coordenadores Municipais de Saúde Mental


e de PACS/PSF (e seus supervisores), com a Equipe de Capacitação, divididos por regiões do
Estado. Os desdobramentos desse primeiro momento seriam reuniões periódicas de avaliação
das ações desenvolvidas nos municípios, onde os Coordenadores e Supervisores
desenvolveriam as tarefas necessárias para a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica. A
comunicação por correio eletrônico, nos intervalos entre os encontros, daria continuidade ao
trabalho, com a Equipe de Capacitação ficando disponível para consultas.
Do diálogo entre as várias formas de trabalhar, todas frutíferas, que pesquisamos ao
longo da monografia, sairão os consensos necessários às urgentes tarefas com que nos
deparamos na atual situação da Saúde no país.
Partindo de trabalhos dispersos, em alguns Estados, chegamos a um conjunto de
conceitos, diretrizes e experiências bem sucedidas que formam uma base para as capacitações
e ações da Saúde Mental na Atenção Básica.
Enquanto definição oficial, temos a inclusão das ações de Saúde Mental na Atenção
Básica, em terceiro lugar, na lista de diretrizes do Ministério da Saúde para 2004, logo a
seguir da redução do número de leitos psiquiátricos e a expansão dos CAPS. Trata-se se
importante manifestação de prioridade.

Percorremos, ao longo desta monografia, experiências recentes de introdução da


Saúde Mental na Atenção Básica, suas origens, seus conceitos, textos oficiais, resultados e
questionamentos. O que foi encontrado na pesquisa reforça as bases para ações de Saúde
Mental que, para além da assistência, sejam práticas de mobilização social.
204

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Ficha Catalográfica

362.22 PINTO, Julio Cesar Silveira Gomes


P 659 s A saúde mental na atenção básica./ Julio Cesar Silveira Gomes
Pinto – Macaé: Universidade Estácio de Sá, 2004.
210 f.

Bibliografia . 204-10

Monografia do curso de Pós Graduação em Saúde Pública.


Universidade Estácio de Sá/Macaé; 2004.

1- Psiquiatria 2- Saúde mental 3- Programa de Saúde da Família

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