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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 159

Saúde mental sob a ótica de Agentes


Comunitários de Saúde: a percepção de
quem cuida
Mental health in the perspective of Community Health Agents:
perceptions of caregivers

Thamiris Maria Nascimento Cabral1, Paulette Cavalcanti de Albuquerque2

RESUMO Este estudo buscou identificar a percepção de Agentes Comunitárias de Saúde (ACS)
no tocante aos problemas de saúde mental na comunidade. Intervir junto a indivíduos em
sofrimento psíquico é um desafio, pois a loucura é marcada por mitos negativos, o que sugere
conhecer as concepções dos profissionais envolvidos no cuidado desses sujeitos. Para a rea-
lização da coleta de dados, foi utilizada a técnica do grupo focal, seguida de análise de con-
teúdo. Verificou-se que, embora as intervenções no campo da saúde mental estejam sendo
revistas e realizadas de maneira mais abrangente nos últimos anos, as percepções das ACS
ainda apoiam-se no imaginário popular, e o conceito amplo de saúde mental é pouco compre-
endido pela categoria.

PALAVRAS-CHAVES Saúde mental; Atenção Primária à Saúde; Agente Comunitário de Saúde.

ABSTRACT This study aimed to identify the perception of the Community Health Agents (ACS)
as regards the mental health problems in the community. Intervene with the individuals in psy-
chological distress is a challenge, because madness is marked by negative myths, suggesting to
know the conceptions of the professionals involved in the care of these individuals. For the accom-
plishment of the data collection, it was used a technique of the focus group, followed by content
analysis. It was found that, although interventions in the mental health field are being reviewed
and performed more widely in past years, the perceptions of ACS still relies on the popular ima-
gination, and the broad concept of mental health is poorly understood by category.

KEYWORDS Mental health; Primary Health Care; Community Health Worker.

1 Universidade de
Pernambuco (UPE) –
Recife (PE), Brasil. Instituto
de Ensino Superior Santa
Cecília (Iesc) – Alto do
Cruzeiro (AL), Brasil.
thamiris.mnc@gmail.com

2 Universidade de
Pernambuco (UPE) – Recife
(PE), Brasil. Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhaes (CPqAM) –
Recife (PE), Brasil.
paulette.cavalcanti@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-110420151040415 SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 159-171, JAN-MAR 2015
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Introdução prejudicial de álcool ou outras drogas são


uma realidade na prática cotidiana desse
O cuidado de base territorial oferecido aos nível de atenção (SOUZA, 2006; BRASIL, 2009).
indivíduos em sofrimento psíquico, pouco Dados do Ministério da Saúde apontam
a pouco, vem construindo um novo espaço que, em média, 22 a 25% dos usuários aten-
social para a ‘loucura’ e transformando os didos pelas Equipes de Saúde da Família
procedimentos da psiquiatria tradicional (EqSF) apresentam transtornos mentais
(AMARANTE, 2007). e exigem cuidado integral e continuado
Esse cuidado é motivado pelos ideários em saúde. Além destes, todos os usuários
da Reforma Psiquiátrica, entre eles, a atual necessitam de atenção em ‘saúde mental’
concepção de saúde mental, cujo termo (BRASIL, 2009).
designa uma área extensa e complexa do Assim, no âmbito territorial, as EqSF – es-
conhecimento, um campo polissêmico e tratégia de operacionalização das diretrizes
plural na medida em que diz respeito ao instituídas em 1994, no Programa de Saúde
‘estado mental’ dos sujeitos e das coletivi- da Família (PSF) – podem ser vistas como
dades. Implica um sentido mais abrangente responsáveis por um papel fundamental na
que engloba a problemática da saúde e da construção de um novo modelo de cuidado,
doença, sua ecologia e também traz uma uma vez que estão inseridas em um contexto
preocupação quanto à utilização e avalia- que permite maior aproximação entre usu-
ção das instituições, dos profissionais, bem ários, família, comunidade e profissionais.
como envolve o estudo das necessidades da Nessas equipes, destaca-se o papel do Agente
comunidade e dos recursos para satisfazê-la Comunitário de Saúde (ACS) – membro de
(IZAGUIRRE APUD FERNÁNDEZ, 2001; AMARANTE, 2007). maior proximidade com a realidade local e
Saúde mental, hoje, tem íntima relação vinculação com os usuários –, que funciona
com as práticas de prevenção, promoção e re- como elo entre comunitários e EqSF (PEREIRA,
cuperação da saúde, a fim de evitar minimi- 2007; SOUSA, 2007). É um parceiro potencial para
zar ou de ressignificar a vida dos indivíduos as estratégias de cuidado em saúde, em espe-
em sofrimento psíquico nos seus contextos cial, na área de saúde mental, pois reside no
sociais. É compreendida como um campo de território, vivencia situações semelhantes às
conhecimento e de atuação técnica, enga- vividas pelos usuários, identifica os casos e
jamento político e compromisso social dos repassa as informações para a equipe. Atua,
atores envolvidos no âmbito das políticas também, como um tradutor de orientações
públicas de saúde (AMARANTE, 2007). técnicas, ao favorecer uma linguagem acessí-
Com base nas atuais concepções e na vel à população (SOUSA, 2007; PEREIRA, 2007).
necessidade de reorientação do modelo de No entanto, compreende-se que intervir
atenção em saúde mental, há evidências de junto a indivíduos em sofrimento psíquico
que esse cuidado de base territorial requer configura-se como um desafio, pois a ‘loucura’
a prática de ações intersetoriais e a amplia- faz parte de um imaginário construído,
ção das articulações entre os equipamen- marcado por representações sociais, mitos e
tos da rede de atenção à saúde, sobretudo princípios negativos fortemente instituídos.
com a atenção primária, pois este nível Tal desafio sugere a importância de se conhe-
tem o potencial de conferir maior resolu- cer as concepções dos trabalhadores envolvi-
tividade aos problemas de saúde mental dos no cuidado aos indivíduos em sofrimento
emergentes na comunidade. Além disso, psíquico, como também tem suscitado a neces-
demandas como sinais e sintomas depres- sidade das atividades de apoio matricial junto
sivos, transtornos mentais severos e per- às EqSF, a consolidação de práticas contínuas
sistentes e transtornos decorrentes do uso de formação e reflexões cotidianas acerca do

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processo de trabalho – a educação permanente As equipes foram escolhidas a partir das


–, visto que tais estratégias podem ajudar na atividades que a pesquisadora, residente do
desconstrução de mitos populares arraigados programa de Residência Multiprofissional
nos profissionais e a subsidiar práticas diárias em Saúde Mental (RMSM), realizou no mu-
em saúde, com delineamento de uma linha de nicípio, junto à equipe do Núcleo de Apoio à
cuidado de qualidade em saúde mental. Saúde da Família (Nasf ). Foram convidadas
Nessa perspectiva, compreendendo- a participar da pesquisa todas as ACS inte-
-se que a atenção em saúde mental só será grantes das equipes já referidas, num total de
efetiva mediante o seu fortalecimento e sua 11 ACS, quantitativo inicialmente organizado
articulação com a atenção primária, e consi- em 02 (dois) grupos para coleta de dados –
derando, principalmente, o papel dos ACS, Grupo 1 (G.1 – com 7 ACS – urbano) e Grupo
que podem ser encarados como técnicos de 2 (G.2 – com 4 ACS – rural). Durante a coleta
referência no território, o presente estudo das informações, uma das ACS do G.2 encon-
tem como objetivo identificar a percepção trava-se de férias, não sendo incorporada à
das ACS atuantes na Estratégia Saúde da pesquisa. Logo, no grupo G.2, apenas 3 ACS
Família (ESF) sobre os problemas de saúde colaboraram com o estudo. Com uma perda
mental da comunidade. na amostra, participou da pesquisa um total
de 10 ACS (G.1 – 7 ACS, G.2 – 3 ACS).
Para a coleta dos dados, foi utilizada a
Procedimentos técnica do grupo focal, um instrumento
metodológicos que permite reunir grupos pequenos e ho-
mogêneos, como parte do público-alvo de
Trata-se de um estudo exploratório, de nature- investigações, com duração média de 30
za qualitativa. Foi desenvolvido em um muni- minutos a duas horas, a fim de coletar infor-
cípio da Região Metropolitana do Recife/PE, mações sobre determinada temática, a partir
o qual possui 29 bairros distribuídos em uma do diálogo e do debate entre os indivíduos.
área aproximada de 52,9 km², considerada Os encontros são mediados por um roteiro
100% urbana, ainda que observadas caracterís- e têm coordenação de um moderador, seja
ticas rurais em algumas regiões, e uma popula- para gerar consenso ou para explicitar diver-
ção estimada em 144.466 habitantes (IBGE, 2010). gências no grupo estudado (MINAYO, 2010).
A história desse território se desenvol- A coleta dos dados foi previamente agen-
veu nos arredores e ‘em função’ de 02 (dois) dada, com datas, horários e locais definidos
dos maiores centros psiquiátricos do Brasil, junto às participantes, mediante suas dispo-
ambos recentemente desativados e com seus nibilidades; foi realizado um encontro com
egressos acolhidos pela rede de saúde muni- cada grupo de ACS, nos meses de outubro
cipal – dado relevante e que também justifica de 2013 (G.1) e janeiro de 2014 (G.2), com
a escolha do local do estudo. duração média de 50 minutos.
O município está organizado em 04 (quatro) A dinâmica foi coordenada pela pes-
territórios de saúde e, entre seus dispositivos, quisadora encarregada de administrar a
dispõe de 42 EqSF a serviço da população, das entrevista e o grupo, enquanto um pesqui-
quais duas, de territórios de saúde diferentes, sador assistente documentou as respostas
colaboraram com o presente estudo. Uma das em formato de relatoria, concomitante-
equipes é referência de um bairro situado na mente com a gravação em áudio e vídeo.
região norte do município, com características As discussões foram mediadas com base
rurais; enquanto a outra é referência de um em perguntas norteadoras, listadas abaixo,
bairro localizado na região sul, próximo ao a partir das quais foram trabalhados os
centro urbano e econômico da cidade. conceitos de saúde mental e transtorno

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mental; casos de sofrimento psíquico iden- e interpretação. Na delimitação do ‘corpus


tificados na comunidade e fatores deter- do estudo’, a fim de facilitar a análise, foram
minantes; e formação profissional. 1. O que geradas seis unidades temáticas: Conceito
você entende como saúde mental? 2. O que de saúde mental; Conceito de transtor-
é transtorno mental? 3. Quais são os tipos no mental; Transtornos identificados na
de transtornos mentais que você identifi- comunidade; Determinantes/causas do
ca na comunidade? 4. O que você acha que transtorno mental; Formação, treinamen-
são as causas (ou determinantes) desses to, capacitação; Apoio matricial e educação
problemas? 5. Quais são as ações que você permanente.
desenvolve diante desses problemas, en- O estudo foi submetido ao Comitê de
quanto ACS? 6. Você recebeu alguma ca- Ética do Complexo Hospitalar HUOC/
pacitação/treinamento/curso de formação Procape, com o Certificado de Apresentação
para trabalhar com pessoas com transtor- para Apreciação Ética (CAAE) número
no mental? 20045313.4.0000.5192.
A participação das ACS deu-se volunta-
riamente, e as atividades só foram realiza-
das após a leitura e assinatura do Termo de Resultados e discussão
Consentimento Livre e Esclarecido.
Ao término de cada grupo, foram dis- Quem são e onde trabalham
tribuídas fichas de identificação com in-
formações como: nome, idade, sexo, cor, Brancas, pardas, morenas, filhas, mães,
escolaridade, estado civil, tipo de moradia, esposas, solteiras, profissionais, residentes
renda mensal familiar e tempo que traba- no território onde trabalham, ACS são o elo
lha como ACS, para preenchimento indivi- entre a comunidade e as EqSF, como bem se
dual, com o objetivo de reconhecer o perfil descrevem e acrescentam: profissionais que
das ACS envolvidas na pesquisa. As entre- prestam cuidados, mas que também preci-
vistadas foram codificadas com números sam ser cuidadas. Mulheres que vivenciam
de 1 a 10. realidades distintas, ainda que tenham o
Os dados coletados foram submetidos nome do município como algo comum em
ao processo de análise de conteúdo, que, seus comprovantes de residência. Sobretudo,
segundo Bardin (1977), configura-se como verdadeiras cidadãs diante de suas comuni-
um conjunto de técnicas de análise de co- dades – ACS cidadãs.
municação que relaciona as estruturas se- Por essas 10 mulheres – nascidas e criadas
mânticas (significantes) com as estruturas no município, ou que muito novas chegaram
sociológicas (significados) dos enunciados à área do estudo em questão; com idades va-
e articula a superfície das mensagens com riando entre 32 (trinta e dois) e 51 (cinquen-
os fatores que determinam suas caracte- ta e um) anos; na sua maioria, com 2º grau
rísticas (psicossociais, contexto cultural, completo (7); e tempo de serviço como ACS
entre outras). entre 2 e 19 anos – foi constituído o universo
A partir das três etapas cronológicas de trabalhado.
Bardin (1977), estruturadas em: 1) pré-análise Imersas num território amplo, com ca-
– fase de organização propriamente dita, racterísticas físicas, socioeconômicas e
com uma análise flutuante; 2) exploração culturais diversas, as entrevistadas des-
do material – etapa na qual os dados brutos crevem os bairros em evidência no estudo
são transformados em unidades temáticas como territórios ‘bons’ para trabalhar, com
(processo de codificação e categorização); comunidades receptivas, porém marca-
e, 3) tratamento de resultados – inferência das pela passividade e ‘acomodação’ dos

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comunitários, que não se organizam para Conceito de saúde mental


reivindicar melhorias na infraestrutura das
localidades. Principalmente no bairro com Nos relatos das ACS, pode-se evidenciar o
características rurais evidentes (G.2), onde quão difícil é distinguir os termos saúde e
a falta de asfalto, de estruturas comerciais e doença, parecendo a dificuldade aumen-
de lazer, transporte precário e descolamen- tar quando se pretende conceituar saúde
to a ‘pé’ dos comunitários e ACS são uma mental, uma vez que a definição do termo
realidade. “Ela não tem transporte, a gente parece confundir-se ou estar relacionada a
é precária de transporte; asfalto a gente não quadros de adoecimento, acompanhamento
tem; a gente não tem um lazer aqui [...]” clínico especializado e uso de medicação.
(ACS 9 – G.2). “[...] reclamam da dificulda- “Saúde mental é um distúrbio que o paciente
de de transporte. Na minha área tem muitos tem com relação ao comportamento normal
idosos, deficientes, e eles acham muita difi- das pessoas” (ACS 9 – G.2). “Saúde mental,
culdade para chegar até a unidade, porque para mim, é o acompanhamento que a gente
acham longe” (ACS 10 – G.2). presta a partir do momento que ele tem
Contudo, os territórios são apresentados aquele diagnóstico, né?” (ACS 8 – G.2). “[...]
como tranquilos, ainda que ‘mal’ vistos por é está sempre naquele controle, para saber
muitos moradores de bairros ou municí- como estão aqueles comunitários, se real-
pios vizinhos, sobretudo pelo aumento do mente estão tomando a medicação, se está
consumo de substâncias psicoativas, como sendo acompanhado, tanto por psicólogo,
relata uma ACS do G.1, ou, ainda, como ‘um psiquiatra” (ACS 4 – G.1). “[...] se encontrar
paraíso’ para morar, mesmo com os proble- alguém já doente... tomar a medicação cor-
mas estruturais evidenciados pelas ACS do retamente, para ter uma vida normal [...]”
G.2. “A gente entra aqui e sai a hora que for (ACS 7 – G.1).
[...] para a gente não é perigoso, eu não acho” Apenas dois breves discursos fizeram uma
(ACS 3 – G.1). “[...] gosto da tranquilidade. De associação discreta entre saúde mental e
uns tempos para cá, vem piorando o caso das práticas de prevenção e promoção da saúde,
drogas, mas, no meu ver, é um bairro igual a tendo ficado evidente, pela maior parte do
qualquer um, um bairro mais tranquilo do que universo estudado, que saúde mental ainda é
muitos [...]” (ACS 4 – G.1). “Temos as nossas compreendida como sinônimo de transtorno
dificuldades... Mas, antes de tudo, é uma co- mental, termo abordado em seguida: “[...] é
munidade boa de morar, é um paraíso [...]” quando a gente está trabalhando para que a
(ACS 10 – G.2). pessoa não adoeça [...] a gente não trabalha
O perfil das entrevistadas do presente com a medicação, a gente trabalha com a pre-
estudo assemelha-se aos apresentados por venção” (ACS 5 – G.1). “Saúde mental é tra-
Sousa (2007), Álvares (2012) e Waidman, Costa balhar com a orientação e a prevenção” (ACS
e Paiano (2012) em suas pesquisas, nas quais 2 – G. 1).
a maioria das participantes era do sexo fe- Durante muito tempo, tem-se ouvido
minino, o que reafirma a prevalência de mu- profissionais referirem ‘trabalhar na saúde
lheres na função de ACS, com idades entre mental’ como uma prática que, num con-
os 25 e 60 anos, com 2º grau completo e texto histórico, esteve reduzida ao estudo
tempo de atuação profissional inferior a 20 e ao tratamento das doenças. Todavia, nas
anos de prática. últimas décadas, observa-se um processo
A partir das narrativas individuais das contínuo de desconstrução e ressignifica-
ACS e do conhecimento do contexto no qual ção dos conceitos e práticas que definem a
estão inseridas é que se passa à análise e dis- saúde mental (AMARANTE, 2007; WAIDMAN; COSTA;
cussão das unidades temáticas. PAIANO, 2012).

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No entanto, observa-se na literatura (e é significativamente comum entre os ACS, cuja


os dados do presente estudo corroboram) identificação dá-se facilmente em função de
a concepção de que o trabalho para des- características comportamentais destoantes
mistificar conceitos preexistentes, princi- do consenso construído pelo coletivo.
palmente na atenção primária, junto aos Os sujeitos estudados apresentam concei-
ACS, ainda é discreto, e os eixos nortea- tos que remetem a indivíduos em situação
dores da saúde mental ampliada pouco que demanda cuidados, mas os relatos de-
explorados (WAIDMAN; COSTA; PAIANO, 2012). monstram insegurança para definir a expres-
Ainda que realizem práticas de cuidado são transtorno mental. Essa dificuldade para
de maneira mais abrangente, o conceito de estruturar a definição do termo pode ser um
saúde mental, na sua magnitude, parece reflexo do termo transtorno, ainda bastante
ser pouco compreendido pelas ACS, sendo utilizado, e fruto de um imaginário social cons-
por elas associado sempre ao estado/ truído, o qual remete a transtornado, o mesmo
quadro de adoecimento. que possesso, (AMARANTE, 2007; ÁLVARES, 2012).
Vale ressaltar que, na busca do referencial Tais colocações confirmam a importân-
teórico para fundamentar o estudo, poucas cia de falar, compreender, cuidar de su-
foram as pesquisas encontradas que traça- jeitos e utilizar, cotidianamente, o termo
ram como um dos objetos de estudo, com o sofrimento psíquico ou mental, seja pelos
público alvo em questão, a compreensão do profissionais e pelas instituições de saúde
termo ‘saúde mental’. Muitos dos trabalhos ou na própria comunidade. A ideia de so-
localizados exploram apenas a percepção da frimento nos remete a pensar em um indi-
terminologia transtorno mental, tais como víduo que sofre, nas experiências por ele
os de Pereira et al. (2007), Sousa (2007) e Costa vividas, nos contextos em seu entorno e
e Paiano (2012), entre outros. nos papeis sociais que desempenha. Logo,
trabalhar com essa concepção, bem como
Conceito de transtorno mental difundi-la na sociedade, pode possibili-
tar a desconstrução de mitos enraizados
Para as participantes, o significado da ex- na cultura popular e libertar o sujeito em
pressão transtorno mental está relacionado sofrimento psíquico das representações
a quadros de adoecimento, ao desequilíbrio, reducionistas de um diagnóstico: de um
ao que está fora dos padrões. “[...] é quando a ser sadio ou doente, normal ou anormal, o
pessoa já está doente, né? Aí já está precisando diferente.
de um atendimento médico, já está precisan-
do de uma atenção maior, ela vai precisar de Transtornos mentais identificados na
mais cuidados para que ela não piore” (ACS 5 comunidade
– G.1). “É o desequilíbrio da mente [...] quando
a mente não está funcionando, quando ela não Ao serem questionadas sobre os transtor-
está funcionando dentro da forma correta [...]” nos mentais que identificam nas atividades
(ACS 3 – G.1). “Então, são doenças acometi- cotidianas, as ACS listam uma variedade de
das no juízo da pessoa [...] e que não segue o diagnósticos presentes na CID-10, ainda que
parâmetro da sociedade, que não segue o refiram não conhecê-los de fato, demons-
parâmetro, entre aspas, das pessoas comuns” trando nos relatos compreender e acolher o
(ACS 9 – G.2). sujeito pelos sinais e sintomas apresentados.
Os dados corroboram os levantados por “Fobia tem muito [...] drogas, síndrome do
Barros, Chagas e Dias (2009) e Álvares (2012), pânico... o transtorno bipolar, autismo” (ACS
ao verificarem em estudos que a definição de 7 – G.1). “Eu vejo muita ansiedade, agressivi-
transtorno mental como uma doença de cabeça dade, depressão tem muita [...]” (ACS 5 –G.1).

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“Esquizofrenia, depressão, ansiedade, síndro- um tipo de transtorno a dependência” (ACS


me do pânico” (ACS 8 – G. 2). “O que eu vejo 5 – G.1). “[...] eu acho, pelo menos nessa
aqui é muita depressão” (ACS 9 – G.2). “[...] área da gente, acho que o maior problema
falta de sono, que escuta vozes, não querem de saúde mental é o consumo de droga”
comer, nem dormir, nem tomar banho. Muitos (ACS 3 – G.1).
ficam quieto, calado, no cantinho” (ACS 10 Por fim, foram observadas nas falas
– G.2). dúvidas quanto a essa questão, principal-
Apontam uma maior frequência de casos mente pelos sujeitos do G.2, e até mesmo na
de depressão e esquizofrenia identificados, política de saúde, na qual o uso prejudicial de
com ênfase para depressão. “Acho que de- álcool e outras drogas está inserido. “Saúde
pressão, depressão tem demais [...]” (ACS 3 – do homem, já que a maioria dos alcoolistas
G.1). “O que eu vejo aqui é depressão e muita, são homens” (ACS 8 – G.2).
e esquizofrenia” (ACS 8 – G.2). Observa-se, também, que há raras refe-
Os discursos assemelham-se aos ob- rências aos transtornos decorrentes do uso
servados por Sousa (2007) e Álvares (2012) prejudicial de álcool e outras drogas, bem
em estudos com ACS, nos quais as ACS como a compreensão do mesmo como uma
mencionaram diagnósticos, tais como os questão de saúde mental, sobretudo pela uti-
supracitados, de maneira não especifica- lização do álcool, cujo consumo é socialmen-
da; e reforçam a familiaridade das ACS te aceito e pouco chama atenção das ACS
com transtornos psicóticos (esquizofre- (SOUSA, 2007).
nia) e depressivos, principalmente com a
depressão. Determinantes/causas dos trans-
Estudo da Organização Mundial de tornos mentais identificados na
Saúde (OMS), conduzido no Rio de Janeiro, comunidade
apontou uma prevalência de 29,5% de diag-
nósticos de transtornos depressivos na Para as ACS, as causas dos transtornos
atenção primária, sem contar no contato mentais parecem estar relacionadas, na sua
cotidiano das ACS com demandas caracte- maioria, a fatores externos. Os contextos
rizadas por sintomas ansiosos, depressivos e sociais nos quais o sujeito está inserido, as
somatoformes (VALENTINI ET AL., 2004). Os dados relações estabelecidas e os eventos ocasio-
ajudam a justificar os relatos das agentes de nais do ciclo vital são citados como os prin-
saúde quando declaram se deparar mais fre- cipais fatores determinantes do sofrimento
quentemente com tal tipo de sofrimento no psíquico.
exercício de sua profissão.
Verificou-se ainda na análise dessa Muita ociosidade. Jovens que não trabalham,
unidade temática que as agentes comuni- não estudam, não querem nada, passam o dia
tárias não apontaram espontaneamente, sem fazer nada e terminam entrando nas dro-
durante a discussão, o uso prejudicial de gas. Aí gera um problema familiar, a mãe adoe-
álcool e outras drogas como um transtorno ce, entra em depressão, e aí começam os trans-
mental. Após serem questionadas, lança- tornos, gera um desequilíbrio na família toda,
ram mão de alguns discursos que, embora né? (ACS 1 – G.1).
apontem o consumo dessas substâncias
pelos comunitários, não definem segura- “É o nível de estresse muito alto, desem-
mente a dependência química como uma prego, um falecimento, perda de um familiar,
situação de sofrimento psíquico. “Tem é o estresse do dia a dia, é algum problema
também o transtorno pelo álcool e outras que ele não sabe conduzir diante da vida”
drogas” (ACS 7 – G.1). “[...] acho que é até (ACS 8 – G.2).

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Diversos fatores foram apontados pelas mentais têm sua organicidade ancorada na
ACS, condizendo com a gênese multifatorial incerteza – na chamada etiologia não defi-
dos transtornos mentais apresentada pela nida (SALUM JÚNIOR, 2012). Os fatores genéticos
OMS (2001), que pontua como sendo diversos são, muitas vezes, esquecidos ou não men-
os fatores que determinam a prevalência, o cionados, assim como o sofrimento psíqui-
início e a evolução dos transtornos mentais. co, atrelado à subjetividade do sujeito, bem
Segundo a OMS, fatores sociais e econômi- como aos fatores do ambiente no qual está
cos, demográficos (sexo e idade), ameaças inserido.
graves, como conflitos e desastres, a presen- É preciso atentar, também, para o fato de
ça de doença física grave e o ambiente fami- que o transtorno mental, quando entendido
liar estão entre estes fatores determinantes como hereditário, assume uma roupagem
do sofrimento psíquico. ‘fatalista’, já que não se pode, segundo essa
Assim como pontuado por Sousa (2007), perspectiva, interferir na sua gênese; e o
para as ACS do presente estudo, o sofrimen- indivíduo, no lendário popular, torna-se es-
to mental decorre de vários excessos, como tigmatizado, predestinado à dependência do
problemas, preocupações, estresses da vida meio, incapaz de desempenhar adequada-
cotidiana e das dificuldades de cada um para mente os papéis ocupacionais e sociais exigi-
superar os problemas vividos. dos pela coletividade. Essa associação pode,
Os dados ainda corroboram com Barros, também, justificar o fato de as condições
Chagas e Dias (2009), que referem também genéticas não terem sido muito citadas como
estarem implicados na origem dos transtornos fator determinante do sofrimento psíquico
mentais os eventos de vida que desestabilizam (BARROS; CHAGAS; DIAS, 2009).
o estado emocional do indivíduo, como a perda Assim, torna-se evidente que as ACS
de familiares, do emprego ou a ociosidade. Os entendem como determinantes da saúde
autores observaram que as ACS sinalizam, mental macrofatores, associados não só ao
com destaque, o desemprego e as dificuldades setor saúde, imediatamente perceptíveis,
financeiras como fatores determinantes para o mas a fatores externos a este, como o traba-
desequilíbrio da saúde mental. lho, o desempenho de papéis e as redes de
Não menos importante, mas pouco pon- apoio social (BARROS; CHAGAS; DIAS, 2009).
tuado pelas ACS do presente estudo, foram
os fatores genéticos, hereditários, como Formação, treinamento, capacitação
determinantes no processo de sofrimento
psíquico, tendo sido necessário, junto a um No material compilado, observou-se que as
dos grupos, mencionar a temática, para, ACS relatam poucos ou nenhum processo
assim, vir à tona a discussão. “Algumas são de formação, capacitação, treinamento ou
da genética, mas algumas vêm pelo ambien- preparação para que possam intervir junto
te, pelo contexto” (ACS 1 – G.1). “Surgem às demandas de saúde mental da comunida-
por questões externas e também familiares, de. Ao mesmo tempo, referem ter interesse
hereditário também existe isso. Não só as em receber formação e reconhecem a ne-
causas externas do dia a dia” (ACS 9 – G. 2). cessidade dessas ações para compreensão
O fato apontado pode ser justificável, da complexidade que envolve o sofrimen-
uma vez que as dificuldades para identifi- to psíquico e a consequente melhoria de
car as alterações genéticas e fisiológicas de- seus processos de trabalho. “Vocês rece-
terminantes dos transtornos mentais ainda beram algum treinamento? (Pesquisadora)
são uma realidade, pois, diferentemente das Naaaaaaaão! [um coro]” (G.1). “A gente não
doenças clínicas, cujas causas e efeitos são tem capacitação desde a época de [...] há mais
facilmente comprovados, os transtornos de 10 anos” (ACS 5 – G.1). “A gente já teve, no

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iniciozinho, sobre saúde mental, mas sobre No relato supracitado, pode-se evidenciar
medicação, não” (ACS – G.1). “Eu queria que é uma realidade, durante as capacitações
muito. Eu acho que o que a gente tem mais e demais espaços de formação das ACS, a
dificuldade em saúde é saúde mental” (ACS lógica da educação bancária, compreendida
6 – G.1). “Rapaz, eu não me lembro, não. Até por Paulo Freire (1987) como uma relação fun-
porque faz muito tempo que a gente não teve damentalmente narradora entre educador e
uma capacitação. Está voltando a ter agora, educando. Metodologia na qual a educação
está voltando a se reciclar agora” (ACS 9 – G. se torna um ato de depositar conteúdos, com
2). “Sim, a gente precisa muito desse curso de o educador na função de depositante e os
saúde mental” (ACS 10 – G.2). educandos como os depositários.
Os dados do presente estudo não Concomitantemente, os resultados
diferem dos encontrados por Vecchia e sugerem reflexões acerca da formação em
Martins (2009) e Álvares (2012), nos quais as saúde mental ofertada aos agentes comu-
ACS apontam a inexistência de processos nitários e de como ela vem sendo por eles
de capacitação nas localidades pesquisadas compreendida. Desde o ano de 2002, o
ou fragilidades quando os mesmos aconte- Ministério da Saúde desenvolve o Programa
cem, sobretudo, no que concerne às me- Permanente de Formação de Recursos
todologias utilizadas, que, na maioria das Humanos para a Reforma Psiquiátrica, que
vezes, não dialogam com a realidade por incentiva, apoia e financia a implantação de
elas vivenciada; bem como a importância e núcleos de formação em saúde mental para
o interesse em realizá-las. Essas evidências a rede pública, com alguns cursos somente
vão de encontro às inúmeras mudanças que para ACS. Programas esses desenvolvidos
operam no campo das políticas públicas, através de convênios com instituições for-
como na Reforma Psiquiátrica, que exige madoras (especialmente universidades
qualificação dos recursos humanos, prin- federais), municípios e estados, e que con-
cipalmente da atenção primária, diante tabilizam inúmeras capacitações para inte-
do modelo de cuidado de base territorial grar saúde da família e saúde mental numa
preconizado. única rede de cuidados aos usuários de todo
Damos destaque para a fala seguinte, que o Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2007).
problematiza a questão das metodologias Cabe pontuar que, embora as ACS do
utilizadas durante os processos formadores. estudo não tenham realizado curso técnico
para exercerem essa função, o município
Se conseguirem alguma capacitação em saúde no qual atuam possui um vasto histórico de
mental [...] Seria bom e interessante que fosse ações voltadas para formação profissional,
assim, dinâmica, ter um dinamismo, uma dinâ- sobretudo com ênfase na educação perma-
mica de trabalho diferente, uma capacitação nente como proposta formadora. Ressalta-
diferente. Porque, geralmente, é o instrutor se, ainda, que no período da coleta de dados
na frente e o agente de saúde atrás, e ele só da pesquisa apenas um dos grupos das
vomita, vomita, vomita... que fosse uma coi- ACS havia iniciado o projeto Caminhos do
sa envolvente, que envolvesse mesmo e desse Cuidado, desenvolvido recentemente pelo
gosto de participar. Porque a gente só fica lá Ministério da Saúde, com a meta de oferecer
a manhã toda só sentada, e ‘priu’, aí sai. Mui- formação em saúde mental, crack e outras
tas vezes, acrescenta coisas que a gente sabe, drogas para ACS e Auxiliares e Técnicos de
mas, muitas vezes, é só um repasse. Que fosse Enfermagem. O projeto supracitado não foi
uma capacitação como oficina, oficina, enten- referido pelas agentes de saúde durante a
desse? (ACS 9 – G.2). coleta dos dados.

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Apoio matricial e educação Estudos de equipes matriciadoras perma-


permanente nentes que avaliem impactos do apoio matri-
cial no cuidado em saúde e a compreensão
Durante a coleta de dados, chamou atenção da estratégia pelas ACS, desde o significado
nos discursos o fato de os sujeitos pesquisa- da expressão à importância no processo de
dos apontarem que adquirem conhecimen- trabalho, não foram identificados até a estru-
to do processo de trabalho no dia a dia e que turação final do artigo.
têm suporte de alguns profissionais como algo Os dados chamam a atenção e fazem re-
presente nas suas atividades cotidianas. No cordar o conteúdo referido pelo Ministério
entanto, as nomenclaturas das estratégias uti- da Saúde (2007) no ‘Relatório de Gestão
lizadas como sendo práticas de educação per- 2003-2006’ (BRASIL, 2007). No documento, a
manente e apoio matricial não foram referidas implantação, expansão e qualificação do
durante a pesquisa, e a compreensão de que apoio matricial (conceituado como uma
tais atividades fazem parte de um espaço con- metodologia de trabalho que visa a asse-
tínuo de formação e qualificação profissional gurar, além da retaguarda especializada,
não parece clara ou do conhecimento das ACS. no nível assistencial e técnico-pedagógico,
“A gente pega a manha no dia a dia, mas a gente um espaço no qual ocorra intercâmbio sis-
precisa de orientação” (ACS 3 – G.1). temático de conhecimento entre equipes
de referência – profissionais da atenção
E o psicólogo daqui, não é um curso que ele dá. primária e os apoiadores) foram apresen-
Ele dá uma pincelada, para ser mais fácil, para a tadas como um dos principais desafios
gente identificar alguma necessidade que aquele para a gestão da política de saúde mental
paciente tenha de procurar um profissional. Ele (CAMPOS; DOMITTI, 2007). Também foi apontada
faz em cada reunião, fala sobre o que é esquizo- a necessidade do fortalecimento de uma
frenia, dá uma pincelada do que seja esquizofre- política efetiva de formação continuada,
nia, o estresse, o que leva, entendeu? Ele dá uma compreendida como o processo educativo
pincelada. (ACS 9 – G.2). que coloca o cotidiano do trabalho ou da
formação em saúde em análise – a educação
A partir dos discursos analisados e do levan- permanente –, como uma das principais
tamento do referencial teórico para fundamen- prioridades para consolidação do cuidado
tar o estudo em questão, constata-se a escassez integral do sujeito nos anos seguintes ao
de pesquisas que abordem diretamente as relatório. Continuam esses ainda sendo
temáticas do apoio matricial e da educação os desafios para a expansão das ações de
permanente com os ACS, a fim de identificar a saúde mental na atenção primária?
real compreensão das ACS quanto às metodo- A ausência da denominação clara e es-
logias referidas. Foi possível localizar estudos, pontânea dessas ações, pelas participantes
como o de Cunha e Campos (2011), entre outros, da pesquisa, pode permitir, ainda, alguns
que apresentam os resultados de estratégias de questionamentos para estudos futuros, so-
apoio matricial de um modo geral, junto aos bretudo pela compreensão de que tais me-
agentes de saúde (com intervenções e avalia- todologias podem ajudar na desconstrução
ções em um espaço de tempo delimitado), na de pré-conceitos populares relacionados
maioria, bem sucedidas e operacionalizadas ao sofrimento psíquico, e subsidiar práti-
por equipes ligadas ao campo da pesquisa – cas diárias em saúde, com delineamento
como centros universitários, programas de de uma linha de cuidado de qualidade em
residências em saúde, entre outros. saúde mental.

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Considerações finais do processo de trabalho. Essa dicotomia


gera conflitos e contradições entre manter a
Perfazer e tentar depreender os caminhos essência da categoria, com base nos conhe-
que levam à prática das ACS revelou que cimentos populares, ou instrumentalizar
as intervenções no campo da saúde mental científica e academicamente esses profis-
estão sendo reformuladas e realizadas de sionais. Fato é a importância de somar esses
maneira mais abrangente ao longo dos conhecimentos, populares e científicos, para
últimos anos. No entanto, as percepções da a efetivação das políticas de saúde mental,
categoria ainda estão pautadas no imagi- principalmente na atenção primária.
nário popular, e o conceito amplo de saúde Os dados do estudo apontam que, para
mental pouco compreendido e aplicado nas além de instituir uma política de saúde
práticas cotidianas dessas profissionais. mental que garanta os direitos dos sujeitos
Durante a análise dos dados e a identifi- em sofrimento psíquico, por anos à margem
cação do perfil das ACS, chamaram atenção da sociedade, faz-se necessário formar, qua-
as variáveis grau de escolaridade e tempo de lificar e apoiar os profissionais envolvidos
experiência profissional. Ainda que a maioria no processo de cuidado, principalmente
apresente 2° grau completo e mais de 10 anos considerando as suas percepções oriundas
de exercício da função, esses elementos não de um processo cultural, cuja lógica ma-
se mostraram determinantes para justificar nicomial e asilar era a única estratégia de
a aquisição de percepções mais amplas da atenção à saúde, para, a partir de então,
saúde mental e do sofrimento psíquico, como trabalhar na perspectiva da desconstrução
também uma fundamentação das atividades de conceitos, mitos e preconceitos, que
profissionais sem a exigência frequente de até hoje permeiam o imaginário popular e
espaços de formação para a construção de comprometem o cuidado do sujeito em so-
conhecimento técnico-científico. frimento psíquico.
É bem verdade que, para muitos, o conhe- A análise dos resultados obtidos no estudo
cimento gera a necessidade de mais conhe- respondeu às questões iniciais, tidas como
cimento, e capacitações com fundamentação norteadoras da pesquisa, e também apontou
técnica acabam por se tornar uma exigência para reflexões importantes. Mas a pesquisa
pessoal e profissional constante dos atores é, sim, o ponto de partida para novas inves-
envolvidos no cuidado em saúde. Essa co- tigações, ao apontar reflexões importantes
brança parece se destacar entre os agentes sobre a trajetória local da formação dos pro-
comunitários, cuja identidade profissional fissionais da atenção primária com relação
é marcada pelos valores e pela cultura dos à saúde mental e sobre as possíveis ações a
territórios nos quais estão inseridos, e o partir das estratégias de educação perma-
saber empírico é a principal base conceitual nente e apoio matricial. s

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