Você está na página 1de 8

Journal of Human Growth and Development

Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8
2012; 22(1): 1-8 ORIGINAL RESEARCH

GRUPO DE CUIDADO COM A EQUIPE DE SAÚDE MENTAL: UMA


ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

CARE GROUP FOR MENTAL HEALTH TEAM: A PROFESSIONAL


DEVELOPMENT STRATEGY

Thaís Thomé Seni Oliveira Pereira1, Manoel Antônio dos Santos2

Resumo

A Atenção Psicossocial, modelo de atenção em saúde mental vigente no Brasil,


tem como princípios a democratização, participação social, envolvimento, co-
responsabilização, acolhimento, escuta polifônica e transversalidade. Vincula
saúde mental à cidadania e qualidade de vida, visando à promoção da reabilitação
psicossocial, protagonismo e autonomia dos usuários. O profissional é
caracterizado como cuidador e tem como principal instrumento de trabalho sua
própria pessoa, mediante contato direto e prolongado com usuários e equipe. O
trabalho em saúde mental engendra um tipo particular de vulnerabilidade, em
função do constante envolvimento afetivo com a clientela e outros profissionais,
demandando recursos afetivos, posturas profissionais, habilidades e
competências que ultrapassam os limites do conhecimento formal. Em função
destes aspectos, diversos estudos apontam a natureza e organização do trabalho
em saúde mental como geradoras de sobrecarga e estresse para profissionais.
Este estudo teve por objetivo identificar as temáticas emergentes em um processo
de intervenção realizado com profissionais das equipes de dois Centros de
Atenção Psicossocial - CAPS de uma cidade do norte do Paraná, Brasil. Foram
realizados 10 encontros semanais do grupo de cuidado direcionado à equipe de
saúde mental, nos quais se desenvolveram atividades vivenciais, seguidas de
discussão em grupo. A análise qualitativa dos diários de campo permitiu a
identificação de três núcleos temáticos: “O cuidado de si: assumindo
responsabilidade na redução da vulnerabilidade”, “Da posição individualista ao
projeto coletivo” e “Ressignificando o trabalho em equipe”. Conclui-se que a
intervenção promoveu reflexões importantes sobre questões do cotidiano
assistencial, que repercutiram nas práticas profissionais dos participantes,
evidenciando as potencialidades do grupo como uma estratégia de
desenvolvimento profissional na área de saúde mental.

Palavras-chave: saúde mental; equipe de assistência ao paciente; capacitação


em serviço de saúde mental.

1 Professora Assistente do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade de Londrina - UEL. Rod. Celso
Garcia Cid, Pr 445 Km 380, Campus Universitário. CEP 86051-980 - Londrina, PR. E-mail: thseni@yahoo.com.br
2 Professor Associado do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br
Este artigo deriva do trabalho apresentado no III Congresso Brasileiro de Psicologia: Ciência e Profissão, realizado
em São Paulo, SP, de 3 a 7 de setembro de 2010. Os autores agradecem ao grupo de estagiários do quinto ano do
curso de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina - UEL. A experiência de estágio
profissionalizante foi supervisionada pela primeira autora.
Correspondência para: masantos@ffclrp.usp.br

Suggested citation: Pereira TTSO, dos Santos MA. Care group for mental health team: a professional development
strategy. J. Hum. Growth Dev. 2012; 22(1): 68-72.
Manuscript submitted Aug 02 2011, accepted for publication Dec 20 2011.

–1-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

Abstract

The psychosocial care, the mental health care model applied in Brazil nowadays,
has the following principles: democracy, social participation, involvement and
shared responsibility, acceptance, listening and polyphonic interaction. This model
connect mental health to citizenship and quality of life, aiming the psychosocial
rehabilitation, the role and autonomy of users. In this model, the mental health
professional is characterized as a caregiver, being the main instrument of his
work, through direct and prolonged contact with users and staff. Thus, the
mental health work engenders a particular kind of vulnerability, due to the
constant emotional involvement with clients and other professionals, requiring
affective resources, professional attitudes, skills and competencies that go beyond
the limits of formal knowledge. Due to these aspects, several studies indicate
the nature and organization of mental health work as generators of overload
and stress for mental health professionals. This study aimed to identify the
thematics that emerged in an intervention process carried out with two
multidisciplinary teams of Psychosocial Care Center (CAPS) in a city in northern
Parana, Brazil. Ten weekly meetings of “care groups for mental health staff”
were carried out, with experiential activities followed by group discussion. The
qualitative analysis of field diary allowed some themes identification such as:
“Self-care: taking responsibility in reducing vulnerability,” “From individualistic
position to the collective project” and “Giving new meaning to teamwork”. It
was concluded that the intervention resulted in important reflections about
daily professional issues that reflected in participants professional practices. It
was highlighted that the care groups may constitute useful strategy for
professional development in the health mental field.

Key words: mental health; patient care team; inservice training.

INTRODUÇÃO serviços substitutivos aos hospitais psi-


quiátricos, destinados a acolher os pa-
A reforma psiquiátrica, movimento cientes com transtornos mentais, estimu-
que ganhou força no Brasil a partir da lar sua integração social e familiar,
década de 1970, propôs-se a substituir fortalecer suas iniciativas de busca da
o paradigma de assistência em saúde autonomia e oferecer atendimento mé-
mental tradicional vigente até então, que dico e psicológico. Devem prestar aten-
era centrado no hospital psiquiátrico e dimento clínico em regime de atenção
se sustentava, portanto, no modelo diária, regular a porta de entrada da rede
hospitalocêntrico. No bojo desse proces- de assistência em saúde mental e dar
so de transformação, o modelo de Aten- suporte à atenção em saúde mental na
ção Psicossocial surgiu como alternativa atenção básica3.
à concepção manicomial. Esse novo pa- Nos novos modelos de atenção em
radigma foi, posteriormente, adotado saúde, incluindo o modelo de Atenção
como política pública de Estado em 2001, Psicossocial, o papel do profissional de
preconizando uma forma de atenção saúde, em suas diversas áreas, corres-
descentralizada, interdisciplinar e ponde ao de cuidador4,5,6. Nesse contex-
intersetorial, que vincula o construto de to, destaca-se o caráter essencialmente
saúde mental aos conceitos de cidada- relacional do cuidado, o que implica, en-
nia e qualidade de vida1,2. tre outros avanços conceituais, a substi-
Os centros de atenção psicossocial tuição do termo “tratar” pela concepção
(CAPS) constituem dispositivos estraté- do “cuidar”. Nessa perspectiva, tratar
gicos no contexto do modelo atual. São pressupõe um diagnóstico, ao passo que

–2-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

cuidar torna possível sustentar uma vi- cinco psicólogos, duas assistentes sociais,
são ampliada do sujeito alvo dos cuida- seis médicos, duas terapeutas ocupacio-
dos4,5,7. nais, dois educadores físicos e onze au-
De modo geral, podemos entender xiliares de enfermagem. A idade dos par-
que as novas formas de assistência pre- ticipantes variou entre 28 e 53 anos, e o
conizadas requerem o desenvolvimento tempo de atuação na área da saúde men-
de novos tipos de competências e habili- tal, entre três meses e 12 anos. Dos 34
dades profissionais, que extrapolam o participantes, 27 eram do sexo feminino
êxito técnico5 e acabam por exigir mu- e sete do sexo masculino.
danças na formação e no desenvolvimen- A intervenção foi realizada em
to profissional dos técnicos que nele atu- duas unidades de CAPS: CAPS III e
am. Dessa maneira, as equipes de saúde CAPS Ad, de um município da região
se tornam elementos essenciais para a norte do estado do Paraná, Brasil. É
implementação e êxito do modelo atual, importante mencionar que o município
merecendo maior atenção e investimen- tem, atualmente, cerca de 500 mil ha-
to7,8,9,10. Segundo Lunardi et al.11, profis- bitantes e sua rede de atenção em saú-
sionais que desempenham o papel de de mental é composta por CAPS III,
cuidadores necessitam ser cuidados, para CAPS Ad, CAPS i, Ambulatório e Pronto
exercerem sua função de modo mais efi- Socorro Psiquiátrico.
ciente. As atividades da intervenção foram
O trabalho em saúde mental engen- realizadas em três momentos distintos:
dra um tipo particular de vulnerabilida- no primeiro momento foram realizadas
de, em função do constante envolvimento entrevistas individuais com os profissio-
afetivo com a clientela e outros profis- nais participantes, visando à caracteri-
sionais, demandando recursos afetivos, zação de cada equipe e ao levantamento
posturas profissionais, habilidades e com- de suas necessidades; no segundo mo-
petências que ultrapassam os limites do mento foi realizada uma devolutiva dos
conhecimento formal. Em função destes resultados da análise qualitativa para as
aspectos, diversos estudos apontam a equipes, na qual foi proposto o desen-
natureza e organização do trabalho em volvimento de grupos com os profissio-
saúde mental como geradoras de sobre- nais de saúde mental; finalmente, foram
carga e estresse para profissionais. realizadas as atividades em grupo, que
Para atender essa demanda, inter- denominamos Grupo de Cuidado.
venções em grupo direcionadas aos pro-
fissionais de saúde mental têm sido pro- Grupo de Cuidado para profissionais
postas como uma estratégia de de saúde mental
capacitação em serviço ou desenvolvi- Foram realizados 10 encontros se-
mento profissional em saúde mental. manais, com duração de uma hora e
Nessa direção, o objetivo deste estudo meia. Participaram dos encontros, em
foi identificar as temáticas emergentes média, 50% dos integrantes das equi-
em um processo de intervenção em gru- pes, em forma de rodízio para não pre-
po realizado com profissionais das equi- judicar o funcionamento dos serviços. A
pes de dois Centros de Atenção Psicos- cada encontro, uma dupla de estagiários
social - CAPS de uma cidade do norte do de Psicologia propunha uma atividade
Paraná. vivencial relacionada ao tema, previa-
mente planejada em supervisão.
Os temas dos encontros relaciona-
MÉTODO ram-se ao cuidado com os profissionais,
abrangendo suas trajetórias individuais
Participaram do estudo 34 profis- e constituição da própria equipe, vivên-
sionais pertencentes às equipes de saú- cias subjetivas do papel profissional, pro-
de dos serviços incluídos neste estudo. jetos individuais e coletivos. Posterior-
As equipes eram multidisciplinares, com- mente, emergiu do grupo a necessidade
postas por um total de seis enfermeiros, de se trabalhar questões referentes ao

–3-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

funcionamento grupal, como a comuni- bilidade aos eventos estressores ineren-


cação, os papéis prescritos e informais tes ao cotidiano laboral. Procurou-se ofe-
de cada profissional, assim como as difi- recer aos participantes, por meio do Gru-
culdades e satisfações dos profissionais po de Cuidado, um contexto de reflexão
do CAPS. mediado por atividades, propostas com
Os temas foram trabalhados por o objetivo de promover vivências e re-
meio de atividades expressivas e lúdicas, flexões sobre a importância do cuidado
como jogos, relaxamentos dirigidos, de si mesmos11.
colagens, desenho, pintura e dramatiza- Os participantes mostraram estra-
ção. As atividades eram seguidas de uma nhamento diante da vivência de se sen-
reflexão/discussão em grupo. tirem cuidados, o que sugere certa difi-
Os dados obtidos em cada encon- culdade em se deixar cuidar pelo outro.
tro grupal foram registrados a posteriori,
imediatamente à realização de cada en- Engraçado que, no começo, eu estava
me sentindo estranha, uma sensação es-
contro, de maneira descritiva e com des- tranha de alguém estar cuidando de mim,
taque para as falas significativas dos parece que eu só sei cuidar. (Participante
participantes. Desse modo, no presente 14)
estudo serão utilizados os registros dos
diários de campo dos pesquisadores, que Nesse excerto de fala nota-se que
constituíram o corpus de pesquisa. o profissional revela sua estranheza ao
Os dados foram submetidos à aná- sentir que estava ocupando um espaço
lise de conteúdo na modalidade temáti- delineado especialmente para seu cuida-
ca12 de acordo com o modelo proposto do. Refere que está habituado a assumir
por Biasoli-Alves e Dias da Silva13. Tal a função de cuidador e que se perceber
modelo visa a favorecer a vinculação com na posição de quem é alvo de cuidados é
a realidade, de modo que os indicativos uma experiência potencialmente pertur-
do trabalho de pesquisa possam embasar badora, na medida em que o desaloja do
reflexões sobre a prática profissional7, por habitual. Nesse sentido, participar do
meio da identificação de núcleos Grupo de Cuidado exige que o profissio-
temáticos. nal se implique subjetivamente, isto é,
Na condução do estudo foram se- que se perceba em sua singularidade e
guidos os cuidados éticos que envolvem identifique suas necessidades, que mui-
a pesquisa com seres humanos, sendo tas vezes encontram-se obscurecidas
que os participantes assinaram o termo pelo cumprimento mecânico de tarefas
de consentimento livre e esclarecido. automatizadas, em uma rotina preenchi-
da por obrigações e afazeres diários.
Os profissionais também se perce-
RESULTADOS beram como pessoas submetidas a pres-
sões decorrentes de sobrecarga de tra-
A análise permitiu identificar três balho e se queixaram da falta de tempo
núcleos temáticos: “O cuidado de si: as- para olharem para si mesmos.
sumindo responsabilidade na redução da
Porque é isso, né? O dia a dia te engole
vulnerabilidade”, “Da posição individua- mesmo. É uma correria tão grande, tanta
lista ao projeto coletivo” e “Ressignifi- gente numa condição difícil, e eles depen-
cando o trabalho em equipe”. dem de você, né? Dependem da equipe. E
a gente vai fazendo, fazendo, cuidando,
acudindo... e a gente mesmo vai ficando
O cuidado de si: assumindo pra trás. (Participante 6)
responsabilidade na redução da
Se for pensar, é uma coisa maluca, né?
vulnerabilidade A gente cuida, cuida, cuida, mas acaba não
Esse núcleo temático engloba rela- cuidando da gente. E quem cuida da gen-
tos dos diários de campo que remetem à te? (Participante 15)
discussão da questão do autocuidado
assumido pelos profissionais de saúde, Nessa direção, os participantes
como estratégia para reduzir a vulnera- mencionaram a responsabilidade dos pró-

–4-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

prios profissionais de saúde pela busca letivas, isto é, à busca do bem-estar co-
do autocuidado. Com o aprofundamento mum e da efetividade do trabalho inter-
das discussões, essa questão foi se des- disciplinar.
locando desde uma busca individual para Os participantes refletiram sobre
uma questão de responsabilidade coleti- suas trajetórias profissionais individuais,
va, que deveria ser discutida no ambien- suas metas pessoais e profissionais, bem
te e no horário de trabalho. como ponderaram sobre os objetivos do
trabalho em equipe. As atividades reali-
O profissional tem que se atualizar e se zadas no Grupo de Cuidado proporcio-
cuidar, né? A gente tem que ir atrás, fazer
grupo de estudo, terapia... O duro é arran- naram a reconstrução de sentidos do gru-
jar tempo e dinheiro para tudo isso [risos]. po sobre o trabalho e o papel do cuidador,
(Participante 8) partindo do resgate das histórias indivi-
duais dos percursos profissionais e dos
Com a experiência do Grupo de significados construídos por cada profis-
Cuidado, os participantes apontaram, sional ao longo de sua trajetória até o
como uma das maneiras de superar a momento presente – o trabalho no CAPS.
falta de tempo e de espaço para se dedi- Tal processo permitiu um re-conhecimen-
carem ao autocuidado, a inserção de ati- to dos integrantes do grupo e, possivel-
vidades dessa natureza no próprio con- mente, uma “re-identificação” com a ta-
texto do trabalho, percebendo-as como refa assistencial, que levou a uma
oportunidades para reavaliarem suas rearticulação de significados. Estes pas-
expectativas e ressignificarem seu de- saram da esfera eminentemente indivi-
sempenho profissional. dual para o âmbito grupal: a partilha de
saberes e informações, o redimensiona-
Nossa! Como a gente precisa disso. E
não tem, né? E não tem. Acho que muito mento das fronteiras entre os diferentes
do sentimento de sobrecarga vem daí, viu? fazeres, a tessitura do trabalho coletivo
[...] precisa ter um espaço assim dentro como lenitivo para as dificuldades enfren-
do trabalho, acaba sendo ferramenta de
trabalho pra gente. (Participante 21) tadas pela equipe no cotidiano, fortale-
cendo o papel de cada um na construção
Por meio das atividades desenvol- compartilhada de recursos para o enfren-
vidas, os participantes puderam refletir tamento dos desafios.
sobre a importância do cuidar de si, in-
Eu às vezes me perguntava: o que es-
clusive como uma forma de poderem tou fazendo aqui no CAPS? Me sentia meio
cuidar melhor do outro. Isso parece acon- caindo de pára-quedas. Mas olhando pra
tecer de duas maneiras: propiciando ao minha história profissional eu vejo como
fui construindo um caminho mesmo, que
profissional maior disposição interna para me permitiu sair da comodidade do con-
o exercício de seu papel e oferecendo sultório, buscar mais do que a clínica indi-
recursos técnicos para serem utilizados vidual, viver essa riqueza que é trabalhar
em equipe. (Participante 3)
em sua prática cotidiana.
Aqui a gente está sempre apagando in-
Esses momentos são muito importan- cêndio, sempre indo, vindo, acudindo e a
tes porque eu sinto assim, que eu me abro gente não pára para olhar os resultados do
mais para compreender o paciente, para trabalho, e nem para comemorar os suces-
empatizar com ele, e também levo daqui sos. A gente não pára para ver o que esta-
algumas coisas técnicas mesmo, essas di- mos fazendo aqui, olhar pra gente, olhar
nâmicas que a gente vivenciou e que sabe para a equipe, para esse resultado coleti-
o que vai despertar neles. (Participante 21) vo. (Participante 6)

Da posição individualista ao Ao tomarem consciência das pos-


projeto coletivo sibilidades de se fortalecerem recipro-
Este núcleo temático compreende camente no Grupo de Cuidados, os pro-
os relatos que remetem ao movimento fissionais se mostraram capazes de
que cada participante empreendeu em perceber com maior clareza seus limi-
sua trajetória profissional, articulando as tes e possibilidades. Descobriram que
dimensões individuais às demandas co- a inércia a que estavam subjugados ini-

–5-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

bia a apropriação eficaz de seus pró- da por meio de sorteio. Os desdobramen-


prios recursos, tolhendo o desenvolvi- tos dessa atividade foram surpreenden-
mento de suas potencialidades. Nesse tes, pois as entrevistas indicaram que a
sentido, tendiam a reproduzir um pa- equipe não estava integrada. No entan-
drão de funcionamento em equipe que to, durante a atividade, todos os partici-
enfatizava excessivamente os déficits, pantes discorreram com muita facilida-
as perdas e as dificuldades decorren- de sobre os papéis e funções dos colegas.
tes dos eventos adversos encontrados Lembraram, inclusive, papéis informais
no cotidiano do trabalho. Essa posição que muitos exerciam, o que mostrou o
é extremamente despotencializadora, quanto estavam “afinados” uns com os
na medida em que desencoraja a bus- outros. (Diário de Campo do 8º Encontro
ca de soluções criativas, o que explica- CAPS III)
ria, por exemplo, a falta de comemora- Outro resultado interessante ob-
ção dos resultados positivos. tido foi que os participantes caminha-
É importante ressaltar que o tra- ram para uma gradual revalorização de
balho com projetos individuais desenca- si mesmos, expressando a satisfação de
deou a articulação de projetos coletivos trabalharem em uma equipe interdisci-
do grupo, em relação aos atendimentos, plinar, uma vez que as principais deci-
à organização do trabalho e dos papéis sões podem ser tomadas no coletivo, o
profissionais na equipe e à criação de que contribui para compartilhar respon-
espaços relacionais fora do ambiente de sabilidades pelas decisões tomadas.
trabalho. Esse movimento permite maior proxi-
midade e diminuição das barreiras que
E eu acho que é rico isso, né? Pra mim, obstruem os processos de comunicação,
pelo menos, está sendo. Poder contar mi-
nha história, poder ouvir as histórias e ver levando à ampliação do conhecimento
o quanto eu também me acho nelas, e como que os membros da equipe têm dos
estamos construindo a história juntos. (Par- outros, o que resulta no enriquecimen-
ticipante 3)
to do trabalho.

Ressignificando o trabalho em Gente, eu tô surpresa de ver o tanto


que a gente se conhece. Falaram certinho
equipe do que eu faço. (Participante 8)
Esse núcleo temático englobou os
relatos dos profissionais que remetem ao O que eu sinto é que não estou sozinha
para tomar uma decisão. Quando você está
processo de reelaboração e ressignifica- em equipe você não está sozinho, a gente
ção do trabalho realizado pela equipe de compartilha os casos, as decisões e tam-
saúde. Os encontros proporcionaram o bém as responsabilidades. (Participante 15)
compartilhamento de satisfações – e não
apenas de dificuldades decorrentes do No decorrer dos primeiros encon-
trabalho no CAPS, bem como a discrimi- tros constatou-se que a equipe era per-
nação de papéis e funções de cada mem- cebida pelos participantes como multi-
bro dentro da equipe. disciplinar, e não interdisciplinar ou
Os participantes ressaltaram sua transdisciplinar, uma vez que, apesar
satisfação em trabalhar na área da saú- de contar com vários profissionais de
de mental e poder lidar com a diversida- diferentes categorias, não se realizava
de humana, aprendendo a se desfazer um trabalho fundamentado no inter-
de preconceitos e pré-julgamentos, a câmbio de saberes e fazeres. No entan-
aceitar as diferenças e lidar com as po- to, no processo de realização dos gru-
tencialidades e limites do outro, seja ele pos, os membros puderam compartilhar
usuário ou profissional. sentidos sobre o trabalho em equipe,
Em um primeiro momento, todos discorrer sobre suas funções profissio-
escreveram sobre as funções que exer- nais e de como percebiam os colegas
ciam no serviço. Na continuidade dessa de equipe, demonstrando respeito e
tarefa, os participantes relatariam sobre consideração pelo trabalho dos demais,
as funções de um colega, que foi defini- reconhecendo a contribuição de cada

–6-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

categoria profissional para o funciona- ceberem trabalhando em uma equipe in-


mento do serviço. terdisciplinar . A ressignificação do tra-
balho em equipe interdisciplinar vai ao
encontro das idéias de Costa8, quando
DISCUSSÃO menciona que a interdisciplinaridade é
conceituada pelo grau de integração exis-
O processo de reforma psiquiátrica tente entre as disciplinas e a intensida-
brasileira tem obtido avanços importan- de de trocas estabelecidas entre os es-
tes nas últimas décadas, com notáveis pecialistas, sendo que, desse processo
investimentos em equipamentos, recur- interativo, todas as disciplinas devem sair
sos humanos e políticas públicas14. Um igualmente enriquecidas.
dos desafios que se colocam na atualida- No que se refere ao desenvolvimen-
de é aprimorar a qualificação e fomentar to profissional em saúde ou capacitação
a coesão das equipes de saúde. Nesse em serviço, historicamente as intervenções
sentido, a proposta do presente estudo seguem o referencial da educação conti-
foi ouvir as demandas dos profissionais nuada, embasada na idéia de que o co-
de saúde que atuam em dois CAPS, por nhecimento define as práticas. Nessa ló-
meio de um dispositivo grupal que tinha gica de funcionamento, as ações educativas
por objetivo oferecer um espaço para cui- são propostas com foco na atualização de
dar da saúde mental do cuidador formal. conhecimentos específicos de modo des-
O discurso dos participantes do pre- cendente, pontual e fragmentado15,16.
sente estudo mostrou que a dificuldade A despeito de avanços em políticas
de se desligarem do ambiente de traba- e paradigmas educacionais, as institui-
lho faz com que os profissionais, com ções de saúde reproduzem ainda práticas
frequencia, no final de uma jornada educativas mais tradicionais. Diante dis-
exaustiva de trabalho, levem para casa so, propõe-se atualmente a mudança da
as tensões vivenciadas durante o desem- educação continuada para a educação per-
penho das tarefas assistenciais. Esse manente17, que inclui estratégias de ensi-
comportamento é indicador de sobrecar- no e metodologias ativas, visando a pro-
ga, produzida quando as tensões resul- mover o desenvolvimento de habilidades
tantes do cotidiano profissional não en- e competências profissionais.
contram vias apropriadas para sua É preciso considerar que mudanças
elaboração. Quando a exposição às con- na atenção dependem de novos arranjos
dições favorecedoras de sobrecarga é tecnológicos, ou seja, instrumentos, sa-
contínua e por tempo prolongado, pode beres e relações dos sujeitos envolvidos
acentuar a suscetibilidade do profissio- no ato de cuidar, repensados em articu-
nal ao sofrimento psíquico. lação como os demais componentes im-
Ao refletirem sobre a necessidade plicados no trabalho. Portanto, as inova-
de se cuidarem, os profissionais demons- ções assistenciais engendram, entre
traram que estão sensíveis à sua própria outros aspectos, a construção/reconstru-
responsabilidade no sentido de buscar ção dos sentidos do trabalho como tota-
recursos para a promoção de autocuida- lidade5,15, e é neste aspecto que um tra-
dos. Tal apontamento também se rela- balho consistente e permanente com os
ciona às competências e habilidades profissionais de saúde assume importân-
requeridas dos profissionais de saúde cia estratégica.
mental para a efetivação do modelo de O presente estudo evidenciou a im-
atenção psicossocial que, por ultrapas- portância de olharmos como o equipamen-
sarem o êxito técnico5, exigem mudan- to CAPS opera e intervém não apenas na
ças nas estratégias de ensino e capaci- vida dos seus usuários, como também de
tação, tanto na formação quanto no seus profissionais. A criação do Grupo de
desenvolvimento profissional posterior. Cuidado para os profissionais de saúde
No decorrer do trabalho em grupo, mental mostrou ser uma estratégia valio-
observou-se também uma progressiva sa de capacitação em serviço e desenvol-
revalorização de si mesmos, ao se per- vimento profissional em saúde. O grupo é

–7-
Care group for mental health team: a professional development strategy Journal of Human Growth and Development 2012; 22(1): 1-8

um espaço de múltiplos aprendizados, em Os resultados obtidos sugerem que


que não apenas a dimensão intelectual tal estratégia configura um espaço pri-
deve ser estimulada, mas também a cria- vilegiado de produção de subjetividades,
tividade aplicada ao cotidiano profissional, proporcionando aberturas para reflexões
alimentada pelo compartilhamento daquilo que facilitem a reconstrução de senti-
que se tece com o outro. Nesse sentido, dos pessoais e coletivos sobre funções
esse dispositivo pode funcionar como es- e papéis profissionais, sobre a equipe
tratégia de empoderamento dos profissio- multidisciplinar e as vicissitudes do tra-
nais, expostos no cotidiano a situações de balho em saúde mental, resultando em
sofrimento decorrentes do trabalho com a benefícios para as práticas profissionais
fragilidade humana. cotidianas dos participantes.

REFERÊNCIAS de trabalho em hospitalização inte-


gral e parcial, 2007. Tese (Doutora-
1. Amarante, P. Manicômio e loucura no do em Saúde Mental) Faculdade de
final do século e do milênio. In: Medicina de Ribeirão Preto - Univer-
Fernandes MI (Org.), Fim de século: sidade de São Paulo. Ribeirão Preto,
ainda manicômios? São Paulo: 2007.
IPUSP; 1999. p. 47-56. 10. Moraes SDTA et al. Acolhendo o aco-
2. Amarante, P. Saúde mental e aten- lhedor: o caminho mais curto para a
ção psicossocial. Rio de Janeiro: humanização da assistência. Rev bras
Fiocruz; 2008. crescimento desenvolv. hum. 2009;
3. Brasil, Ministério da Saúde. Reforma 19(3): 393-402.
psiquiátrica e política de saúde men- 11. Lunardi VL, Lunardi Filho WD, Silveira
tal no Brasil. Conferência Regional de RS, Soares NV, Lipinski JM. O cuida-
Reforma dos Serviços de Saúde Men- do de si como condição para o cuida-
tal: 15 anos depois de Caracas. do dos outros na prática de saúde.
Brasília, 2005. Disponível em: Rev. Latino-americana Enf. 2004;
<http://fjg.rio.rj.gov.br/publique/ 12(6): 933-39.
media/Relatorio_20anos_ 12. Minayo MCS. O desafio do conheci-
Caracas.pdf>. Acesso em: maio de mento: pesquisa qualitativa em saú-
2008. de. São Paulo: Hucitec, 2008.
4. Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetivi- 13. Biasoli-Alves ZMM, Dias-da-Silva
dade e práticas em saúde. Ciência e MGF. Análise qualitativa de dados de
Saúde Col. 2001; 6(1): 63-72. entrevista: uma proposta. Paidéia
5. Mandú ENT. Intersubjetividade na (Ribeirão Preto). 1992; 2: 61-9.
qualificação do cuidado em saúde. 14. Dimenstein M, Figueiró RA. O coti-
Rev Latino-americana Enf. 2004; diano de usuários de CAPS: empo-
12(4): 665-75. deramento ou captura? Fractal: Rev
6. Zoboli ELCP. A redescoberta da ética Psicol 2010, 22(2): 431-46
do cuidado: o foco e a ênfase nas 15. Sales AL, Dimenstein M. Psicólogos no
relações. Rev. Esc. Enfermagem USP. processo de reforma psiquiátrica: prá-
2004; 38(1): 21-7. ticas em desconstrução? Psicol Estud
7. Pegoraro RF, Caldana RHL. Sofrimen- (Maringá). 2009; 14(2): 277-85.
to psíquico em familiares de usuá- 16. Lopes EFS, Perdomini FRI, Flores GE,
rios de um Centro de Atenção Psi- Brum LM, Scolas ML, Buogo M. Edu-
cossocial. Interface - Comunic., cação em saúde: um desafio para a
Saúde, Educ. 2008; 12(25): 295- transformação da práxis no cuidado
307. em Enfermagem. Rev. Hosp. Clínicas
8. Costa RP. Interdisciplinaridade e (Porto Alegre). 2007; 2(27): 25-7.
equipes de saúde: concepções. Rev 17. Merhy EE. O desafio que a educação
Mental. 2007; 5(8): 107-24. permanente tem em si: a pedagogia
9. Ishara S. Equipes de saúde mental: da implicação. Interface Comunic
avaliação da satisfação e do impacto Saúde Educ. 2005; 9(16): 172-74.

–8-

Você também pode gostar