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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil

Dorsa Figueiredo, Mariana; Onocko Campos, Rosana


Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede
multicêntrica
Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 143-149
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773014

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ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE 143

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde:


o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
Mental Health andprimary health care:
the matrix support building a multicentric net

"En medio de la marafia, Dios, la arafia':

Mariana Dorsa Figueiredo I


A1ejandra Pizarnik
Rosana Onocko Campos 2

1Mestre; doutoranda em Saúde RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Bdsica
Coleriva pelo Departamento de como uma das necessidades atuaispara a continuidade da Refàrma Psiquidtrica,
Medicina Preventiva e Social da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve serfeita dentro de uma rede
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usudrios. Em
(DMPSI FCMI UNlCAMI'). seguida, éproblematizado oapoio matricial como arranjo de gestãopara organizar
madorsa@hormail.com
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica esua potencialidade como disparador
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
2 Doutora em Saúde Coleriv3;

professora do DMPS/FCM/UNICAMI'. e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
rosanaoC@mpc.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção bdsica à saúde; Apoio
matricial.

ABSTRACT ln this article, it is argued the insertion 01Mental Health in the


basic system, as one 01the current necessities fór the continuity 01the Psychiatric
Refórm, considering that the attention to Mental Health must be made inside
an ample and linked net 01cares. After that, the matrix support is analyzed as a
powerful management arrangement to organize the actions 01Mental Health in
the basic attention and as a triggerfór the amplification olthe clinic in the health
teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix


support.

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INTRODUÇÃO disciplinar, por meio de wna rede inrerligada de serviços


de saúde, a qual permira a arriculação das ações que, em
Saúde Menral, é uma necessidade inquesrionável.

Uma rede ou um emaranhado?


Duranre as últimas duas décadas, a implemenração UMA REDE MULTICÊNTRICA
do modelo dos Cenrros de Atenção Psicossocial (CAPS)
tem sido o principal investimento da política de Saúde Considerando a complexidade das demandas em
Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
desses serviços demonstra a crescenre e inrensiva difusão sobre a necessidade de arricular a assistência prestada
da rede substitutiva de Saúde Menral pelo país, numa nos CAPS com outros serviços de saúde, equipamentos
trajetória frutífera de teversão do modelo assistencial cen- sociais e a rede social nos territórios, na construção de
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no
uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos
e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de
vínculos sociais.
desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as
Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses
formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na
graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-
lógica sanitária hegemônica (AMARANTE, 2001), o modelo
cidade de equipamentos como os CAPS (TEN6RJo, 2002),
dos CAPS ganhou grande visibilidade no decorrer da Refor-
a Atenção Básica rem um imporrante papel no processo
ma Psiquiátrica brasileira, ocupando wn lugar de destaque
de reinserção social, já que está imersa nos territórios e
na reorganização da assistência em Saúde Mental.
é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os
Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,
usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende
ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde
a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

à saúde, resultando num cerro descompasso entre as principais problemas de saúde. A questão mencionada

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra- incumbir das demandas de maior gravidade, se os CAPS

mentos imporrantes para o SUS, enquanto sistema ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser

unificado e integral, assim como para a eficácia ranto da construída entre os dois tipos de serviços.

Atenção Básica, quanto dos CAPS, devido a dificuldade O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção que um CAPS deve:
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, responsabilizar-se { ..} pela organização da demanda
e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
seu território e{ ..} desempenhar opapel de regulador
ticas e de profundas alterações nas estrururas de poder da porta de entrada da rede assistencial. (BRASIL,
estabelecidas, instiruindo uma lógica do trabalho inter- 2004, p. 126).

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Ora, se os CAPS forem considerados ordenadores da miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com O conceito e imagem de uma rede multicêntrica, os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o CAPS pode funcionar como agenciador das carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de cuidados contínuos, intensivos (específicos dos CAPS).
acordo com O andamento do Projeto Terapêutico de cada Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente (BRASIL, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
, . entrave ao tratamenro, à adesão as práticas preventivas e
usuanos possuem.
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos com uns entre os serviços, ou si tuações uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos CAPS quanro à Atenção se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
• A _ • A •
Básica. Seria o caso do usuário do CAPS, aquele da ou o paciente com cancer que nao encontra reslstenCla
região de abrangência de determinada equipe da UBS para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é (CAMPOS, G.WS., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimenro dos diversos arores no Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em q uestao. - dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transrornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e 'nervosas', Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio- que 56% das equipes de PSF referem realizar 'alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do ação de Saúde Mental' (BRASIL, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos, equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconâmica vigente. A com as famílias e as comunidades, elas se constituem

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num recurso estratégico para o enfrentamento do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico. dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti- ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos NASF são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (BRASIL, 2003). É o caso resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar 'poli-queixosà,
e que representa uma demanda freqüente para a Aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos, E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
"Onde a brasa mora e devora o breu
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
Como a chuva molha o que se escondeu
dispositivos de atenção, disparadores de produção de O seu olhar melhora o meu"
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(CAMPOS; NASCIMENTO, 2003).
Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
... ..
e para propIcIar maIOr conSlstenCla as Intervençoes
-,,','
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi- que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos, Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003). ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse- tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Men tal e outras áreas especializadas na Atenção Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata- mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a intervenção (CAMPOS, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nO 154, na qual o quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

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a implicação da equipe rende a aumentar e as resposras ciplinar. A rransdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos esrereoripadas. As Equipes por Passos e Barros (2000) é urna das grandes apostas
de Referência, porranro, seriam responsáveis por realizar do apoio matricial.
os projeros rerapêuricos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito
Dessa forma, o apoio marricial seria uma ferramen-
de desestabilização {..} da unidade das disciplinas e
ra para agenciar a indispensável insrrumentalização das dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica', subverrendo O modelo
médico dominanre que se rraduz na fragmentação do A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
rrabalho e na produção excessiva de encaminhamentos, a compor a rede matricial de apoio. Consumi uma linha
muiras vezes desnecessários, às diversas especialidades, de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003). lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio marricial se configura como um suporre romper com o sistema de referência e contra-referência,
récnico especializado (CAMPOS, 1999) que é oferrado a que produzem encaminhamenros consecutivos para as
uma equipe inrerdisciplinar de saúde, a fim de ampliar diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de amação e qualificar suas ações. Ele pode sabilização pela produção de saúde (CAMPOS, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia- A parrir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas esramos romando aqui a especificidade da a construção de projeros terapêuricos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjerivas venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser visiras domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em roda relação rerapêutica. ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a resoluriva das equipes, qualificando-as para uma arenção
lidar com os sujeiros em sua complexidade, incorporan- ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjeriva e social do ser humano, mas vida dos sujeiros.
que esrejam acompanhados por alguém especializado Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporre para compreender e intervir nesre rricial têm uma imporrante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe- equipes podem aprender in loco a inrervir no campo da
cimentos e ações, hisroricamente reconhecidos como Saúde Mental e se aurorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área 'psi', são oferrados aos profissionais de cabem nos prorocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar são social, violência, luro, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimenro psí- não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional 'psi' ao campo dos usuário de referência do CAPS que está em tratamenro na
profissionais de saúde (CAMPOS, 2000), na construção Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis- inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

ICampos, G. WS. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para cenrrâ-Ia num
sujeiro concreto e singular, porrador de cerra enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeiros em sua tota-
lidade, considerando o biológico como dererminanre do processo saúde e doença, mas rambém incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e
cultural como outros determinanres.

Smidum ~bnt~, Rio de Janeiro, v. 32, n. 7809/80, p. 143-149, jan.ldez.. 2008


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quadros psiquiátricos mais graves e o atendimenro Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com O apoiador matricial pode proporcionar desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir O preconceito necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura. enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi- a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela transdisci plinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade, lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo CAPS da região de abrangência. Pretende-se, com à reAexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada. do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso, a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa- fissionais não tiverem espaços de reAexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje- matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular. hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de Auxo, evitar práticas que levam à 'psiquiatrização' e à desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
'medicalização' do sofrimento humano. de captura e impotência.

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Disponível em: <http://dtt2004.saude.gov.br/dab/ Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n.
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Recebido: abr.l2008
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