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Sistema acusatório

Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Sumário
1. Os dois sistemas processuais penais.
2. Por que todos os sistemas processuais são
“mistos”? 3. O sistema processual penal atual:
a inquisição do CPP de 41. 4. O sistema proces-
sual penal no Projeto 156/09-PLS. 5. O lugar
constitucionalmente demarcado das partes e o
projeto 156/09-PLS.

1. Os dois sistemas processuais penais


Todos os sistemas processuais penais
conhecidos mundo afora são mistos. Isto
significa que não há mais sistemas puros, ou
seja, na forma como foram concebidos.
Há de se entender, porém, o que se
quer dizer com tal assertiva, tão difundida
quanto mal-entendida.
A compreensão da questão passa por
uma dúplice análise: em primeiro lugar,
da própria noção de sistema e, depois, da
possibilidade ou impossibilidade de se ter
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Pro- sistemas mistos.
fessor Titular de Direito Processual Penal na Ora, tem-se presente que os sistemas
Faculdade de Direito da Universidade Federal – ditos puros – nasceram, na forma como
do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito os conhecemos, no início do século XIII,
(PUCPR); Mestre (UFPR); Doutor (Università embora outros tenham existido, inclusive
degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coorde-
com tais nomes, antes, por exemplo, entre
nador do Núcleo de Direito e Psicanálise do
PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado os romanos. Esses, porém, só para alusões
do Paraná. Conselheiro Federal da Ordem dos secundárias têm alguma importância
Advogados do Brasil pelo Paraná. Membro da naquilo que aqui interessa, ou seja, a in-
Comissão Externa de Juristas do Senado Federal vestigação dos modelos atuais, precisos e
que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto datados, inclusive para não se permitir uma
no 156/2009-PLS. maior confusão.

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Os dois sistemas dos quais se fala (inqui- perspectiva a vida que ali se levava: cria-se
sitório e acusatório) vieram a lume, como se um novo sistema de trocas e já não mais
sabe, por razões políticas. Outras, de ordem cada um respondia pela sua própria so-
teológica, econômica, filosófica e jurídica brevivência, mas dependia dos outros, o
(entre tantas), foram altamente relevantes que se vê pelas chamadas Corporações de
mas, decididamente, secundárias ou, pelo Ofício, cada uma produzindo um tipo (ou
menos, sempre estiveram subordinadas tipos) de bens.
àquelas políticas. Era natural que se não pensasse nos
O Sistema Inquistório aparece no âmbito burgos como se pensava nos feudos; e se
da Igreja Católica e tem seu marco histórico vivesse de outro modo, embora, no início,
(1215) em face do IV Concílio de Latrão. tenha sido muito difícil, não raro mais que
Em síntese, poder-se-ia dizer que desde antes (nos feudos), porque o regime das
o século anterior (século XII), mais parti- relações pessoais era, em grande parte, pior
cularmente em seu final, a Igreja Católica que aquele dos escravos.
se debatia com um fenômeno social inte- À Igreja Católica (ou parte dela) impor-
ressante: pensavam alguns estar em risco tava, porém, não o fato de haver diferença
o seu domínio sobre o mundo conhecido, entre o burgo e o feudo, mas, sim, naquele
do qual era detentora da grande parte. Sua que não mais tinha um domínio pleno,
doutrina – era visível – já não encontrava agora eclipsado por aquele dos “burgue-
ressonância plena e, portanto, havia discór- ses”, senhores das caravanas, do comércio
dia em alguns pontos capitais. Pensava-se e do grosso do dinheiro. E, sem volta, pelo
que isso era fruto de “doutrinas heréticas” menos aparente. Aqui, então, o dilema: o
e, portanto, de postulados contrários àque- que fazer em relação a tal ponto?
les pregados desde Roma. Sabia-se, por sua Por evidente – e como não se duvida
parte, isso só ser possível em razão de ou- –, o movimento migratório na direção
tros fundamentos epistêmicos e, assim, não dos burgos foi acompanhado (como não
era tarefa fácil, nem banal, o seu combate. poderia deixar de ser) pela Igreja Católica.
Algumas medidas já haviam sido toma- Sua presença nos burgos (desde o início),
das: Inocêncio III, o papa de então, havia principalmente nos séculos X e XI, não foi
baixado uma Bula (Vergentis in senium), em suficiente para aplacar o móvel do cres-
1199, equiparando o crime de heresia ao de cimento, ou seja, o desejo, mola mestra da
lesa majestade, historicamente o mais grave propulsão de qualquer sociedade.
dos crimes. Ela, como tal, produziu poucos O problema, assim, estava em como
efeitos, porque eventual punição ainda esta- não perder para essa nova mentalidade,
va afeta aos leigos que, ademais, começavam dado ser complicado – e sempre foi – lutar
a avolumar poder em face do crescimento contra o desejo.
das nascentes cidades medievais, construí- Por trás de tudo estava (já haviam diag-
das não pela decadência dos feudos, mas, nosticado) Aristóteles e um outro modo de
sobretudo, em função da necessidade dos se pensar a vida. Basta ver o que se passou
senhores das caravanas melhor conduzirem com os Cátaros. Católicos como todos os
e distribuírem suas mercadorias, fato deter- demais, essa gente não tinha, aparente-
minante não só da criação dos entrepostos mente, nenhum motivo para ter contra si
comerciais, mas, principalmente, para serem uma Cruzada ordenada por Inocêncio III,
eles regidos por uma outra mentalidade, a qual se converteu em uma guerra sem
ligada ao comércio e, portanto, muito dife- tamanho. Como pano de fundo estava –
rente daquilo que se tinha nos feudos. sabe-se bem – o pensamento de Aristóteles,
Os entrepostos comerciais foram trans- presumivelmente incorporado a partir do
formados em burgos, vilas. E tinha outra contato mediterrâneo com os comerciantes

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do norte da África e do Oriente Médio. Já em 1252, extendida ao mundo em 1254,
não era, contudo, uma Cruzada contra os pela qual abriu-se o espaço definitivo para
“bárbaros incrédulos”, como se havia pas- os métodos utilizados na Inquisição, de
sado (com tal desculpa) antes. Era contra modo que Inquisitor e Socius se absolvessem
“iguais na fé”, por certo que determinada mutuamente por eventuais demasias, entre
por outras razões filosóficas e econômi- elas na tortura. A Igreja Católica tocava à
cas. Para tanto, basta ver o que fizeram barbárie que tanto havia criticado no início
a Carcassone, Toulouse e outras cidades do catolicismo romano, quando os católicos
arrasadas e saqueadas. foram perserguidos, torturados e mortos.
Outro forte sintoma da fragilidade do Excluídas as partes, no processo inqui-
domínio do pensamento da Igreja Católica sitório o réu vira um pecador, logo, detentor
se deu com a criação das Universidades, de uma “verdade” a ser extraída. Mais
quase todas produzidas como Studium importante, aparentemente, que o próprio
Urbis, justo para preparar as pessoas para crime, torna-se ele objeto de investigação. É
a nova realidade social dos burgos. sobre si que recaem as atenções, os esforços
O dilema, assim, não era simples, há do inquisidor. Dententor da “verdade”,
de se reconhecer. E se sabia das causas no dela deve dar conta. Eis a razão por que a
âmbito da Igreja Católica, onde nunca se tortura ganhou a importância que ganhou,
desconheceu Aristóteles, mas, por conve- e a confissão virou regina probationum.
niência, adotou-se o pensamento de Platão Se o inquirido resistisse, merecidamente
(a verdade em um mundo hipostasiado), poderia ser absolvido; e de alguns se tem
dado ser ajustado como uma luva aos seus notícia. Era algo um tanto difícil, usando-
interesses desde a conversão de Constan- se – como se usava – os métodos de per-
tino. Por sinal, Aristóteles, na sua maior quirição. A verdade estava dada ex ante e
extensão, só toca o mundo cristão verda- o inquisidor dela tinha ciência, de modo
deiramente com o gênio de São Tomás de que o trabalho (abjeto, em realidade) era
Aquino, mas no século XIV. um jogo de paciência e, ao final, confessar,
No início do século XIII, então, presente dentro do modelo proposto, era a vitória
o problema, Inocêncio III reúne a cúpula da da Inquisição, mas, para o consumo geral,
Igreja Católica em São João de Latrão e, ali, vitorioso era o inquirido que, como prêmio,
em 1215, decide-se (faz-se uma opção) pela ganhava a absolvição, nem que de tanto em
força. É o nascimento de um novo modelo tanto fosse parar na fogueira para, mais
processual, ao qual não interessava aquele rápido, entregar sua alma a Deus.
que estava em vigor, ou seja, os chamados Modelo hipócrita, dado a decisão estar
Juízos de Deus, adotado (ou domesticado?) preordenada. Com o resultado antecipado
dos invasores “bárbaros” vindos do norte (pelo menos ao raciocínio mais hábil), o
para demolir o império romano. resto eram os modos de se confirmar aquilo
No IV Concílio de Latrão decide-se, que a razão já havia projetado.
entre outras coisas, pela confissão pessoal Como modelo, a analítica de Aristóte-
obrigatória, pelo menos uma vez ao ano; e les, pela lógica dedutiva. Com o domínio
ela é o marco histórico do novo sistema. A pleno das premissas, o inquisidor conduz
partir daí a noção de Bulgaro (actus trium o resultado para onde quiser.
personarum: iudiciis, actori et rei) tende a de- O modelo é genial, não fosse, antes,
saparecer, pelo menos em processo penal. diabólico, embora nascido, como se viu, no
Tudo se consolida com uma Bula de seio da Igreja Católica. Em um tempo extre-
Gregório IX (Ex Excomuniamus), de 1231, mamente místico, não poderia ser diferente.
donde se delineia o arcabouço técnico; e Resistiu – e resiste – como o mais apurado
com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, sistema jurídico do qual se tem conheci-

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mento, tendo persistido por tanto tempo aos normandos a centralização do poder.
justo por sua simplicidade, isto é, porque Assim, colocando-se no lugar de senhor de
usa o próprio modelo de pensamento (por todos os feudos, transformou os suseranos
excelência) da civilização ocidental. em grandes vassalos. Sua luta foi destinada
Ao permitir – sobremaneira – que se à unificação da Grã Bretanha, o que conse-
manipule as premissas (jurídicas e fáticas), guiu a partir de 1171, quando avança sobre
interessa e sempre interessou aos regimes a Irlanda.
de força, às ditaduras, aos senhores do Para manter o controle integral e de-
poder. Podendo-se orientar o êxito, faz-se sestabilizar o poder dos suseranos/gran-
o que quiser. É o reino do solipsismo, por des vassalos, Henrique II, seguindo um
excelência. Daí ter durado por tanto tempo; modelo visivelmente romano, impõe uma
e seguir intacto, em muitos pontos, ainda lei do exército, pela qual impede a manu-
que os novos tempos, pela realidade, du- tenção e criação de exércitos feudais em
ramente o tenham atingido, mormente por troca de proteção que a todos daria desde
lhe desmascarar o falso discurso. Westminster. Eis o lugar da força, enfim
Ora, ele interessa a quem não é atingido concentrada em suas mãos.
por seus tentáculos ou, pelo menos, pensa- Por outro lado, no campo jurídico, es-
se inatingível, desde que as bases estão força-se para acabar com os Juízos de Deus,
lançadas ex ante: o alvo são os outros! presentes também na ilha desde a invasão
Não é de estranhar que ele confirme a dos nórdicos. E isso faz concentrando na ju-
alusão dos penalistas de se tratar o Direito risdição de Westminster as decisões; e para
Penal de uma luta de classes, dos que têm todos. O problema é que alguns resistiram,
contra os que não têm. Muito menos, por como seria natural. Foi o que se passou com
outro lado, desafia a inteligência (pelo o bispo de Canterburry, Thomas Becket,
menos em relação ao sistema adotado) o re- morto por sicários do rei.
sultado, no Brasil, de um mundo de pobres Assim, todos os que se sentissem pre-
presos, quase a integralidade dos quatro- judicados poderiam reclamar ao rei e o
centos e vinte mil ora indicados nos dados faziam por meio de petições. Essas, em
oficiais, em visível afronta ao princípío da regra, eram recebidas e decididas pelo Lord
isonomia constitucional. Afinal, a prisão, Chanceler e, em nome do rei, emitiam-se
numa ordem constitucional e democrática, ordens escritas (writ) aos representantes
é para culpados – e de preferência condena- reais (locais), ditos sheriff, a fim de que esse
dos –, sejam pobres ou ricos. Tem-se, porém, ordenasse que o indicado desse satisfação
uma opção preferencial pelos pobres e, por ao queixoso ou, se fosse o caso, compare-
certo, pode-se desconfiar dos motivos, mas cesse para dar explicações.
não se pode ter dúvida de que o sistema Tal modo de agir (forms of action) logo
processual penal adotado, aquele do Siste- abarrotou a jurisdição real e, mesmo que o
ma Inquistório, é um dos responsáveis. tribunal tivesse sido decomposto (dividiu-
Doutra parte, o Sistema Acusatório nasce se o chamado Curia regia em três tribunais),
na Inglaterra após a invasão normanda a situação não encontrava solução.
levada a efeito por Guilherme, o Conquis- Foi daí que Henrique II deu, quem sabe,
tador. Na realidade, a construção do novo o grande passo à construção de um modelo
sistema processual se dá sob o reinado de singular. Por um novo writ, dito novel dis-
Henrique II, talvez o mais importante dos seisin, instituiu para Clarendon, em 1166,
reis ingleses para o Direito. um Trial by Jury. Por ele, um Grand Jury,
Plantageneta, Henrique II governou de composto por 23 cidadãos (boni homines)
1154 a 1189. Ajudou a implantar o sistema indictment um acusado e, se admitida a
feudal na Grã Bretanha porque interessava acusação, seria ele julgado por um Petty

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Jury, composto por 12 membros. Nele, o tema é o que se convencionou chamar, mais
Jury dizia o direito material, ao passo que tarde, na forma como se conhece hoje, de
as regras processuais eram ditadas pelo Sistema Acusatório e, a partir desse padrão,
rei. O representante real, porém, não in- domina boa parte dos sistemas processuais
tervinha, a não ser para manter a ordem e, penais do mundo.
assim, o julgamento se transformava num Como se pode notar, a construção dos
grande debate, numa grande disputa entre sistemas processuais puros se deu por op-
acusador e acusado, acusação e defesa. ções políticas historicamente demarcadas,
Para tanto, a regra era a liberdade, sendo embora tivessem variados os motivos que
certo que o acusado era responsável pelas levaram a tanto.
explicações que deveria dar. Por sinal, não
se produziam provas no início: o Jury era 2. Por que todos os sistemas
a prova. Elas só vieram – como regra – nos processuais penais são “mistos”?
séculos XV e XVI, como evidence, quando já
não se tinha mais conhecimento dos fatos e, Um sistema processual penal misto,
portanto, era necessário reconstituir o crime ao contrário do que comumente pensam
e seus pormenores. alguns, não é a simples somatória de ele-
O julgamento, nesta dimensão, dava-se, mentos dos dois sistemas puros.
normalmente, em locais públicos e, do pon- E isso porque epistemologicamente não
to de vista político, foi uma opção e manobra se sustentaria uma somatória do gênero,
genial de Henrique II. Afinal, se o povo por um lado, mas, por outro (e quiçá mais
condenasse, era a resposta do rei; se o povo relevante), porque o própria noção de sis-
absolvesse, era a resposta do rei e, assim, tema não comporta algo do gênero.
estava ele sempre do lado aparentemente Ora, como precitado, o nascimento dos
correto. Não é de estranhar aparecerem sistemas processuais penais puros não se
aforismos como The king can do no wrong. deu em função de bases filosóficas ou, pelo
Deste modo, as regras de processo (ou menos, não foram elas as forças motrizes das
do como se deveria proceder) eram gerais suas constituições, e sim opções políticas,
e geravam um sistema comum (Common tanto na Igreja Católica (quando do nasci-
Law), ao passo que o direito material era mento do Sistema Inquisitório, embora nela se
local e expresso muito mais (como sempre soubesse da questão ligada ao pensamento
foi) pelos costumes que pelas leis. Eis por aristotélico) quanto na Grã Bretanha de
que, no Common Law, remedies precede rights. Henrique II, onde nasce, como hoje estrutu-
De qualquer maneira – perceba-se –, em rado, o Sistema Acusatório, quando, por certo,
sendo um sistema, trata-se d’O Common sequer se cogitou sobre o assunto, dado estar
Law e não d’A Common Law. a atenção quase que integralmente voltada
Ao que por ora interessa, vê-se que, para outros pontos, todos políticos.
nele, a disputa entre acusação e defesa Do ponto de vista filosófico, então, a
aparentemente tendia – e tende – a ser leal preocupação com os modelos processuais
e indicava uma paridade de condições entre penais só aparece mais tarde e, como não
os contendores. poderia deixar de ser, em face do momento
O vital, porém, era que os juízes deci- histórico, sempre vinculada à chamada
diam com base naquilo que sabiam (como Filosofia da Consciência.
não poderia deixar de ser), mas, depois, Tendo por referência o pensamento
com base naquilo que as partes aportavam cartesiano, objeto e método sempre foram
ao processo, o qual se mostrava como um os núcleos da base filosófica de descoberta
jogo dialético entre os argumentos delas, da verdade. Assim se pensava o mundo e
em geral travado em local público. Tal sis- da mesma forma se passava, então, com o

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Direito e seus ramos. Com o Direito Pro- (dicere ius ou iuris dictio), expressão do
cessual Penal não seria diferente. sentire (sentença) do órgão jurisdicional.
Enquadrado como uma estrutura com- Para decidir/sentenciar, todavia, precisa-se
plexa por definição, o processo (e a teoria de conhecimento e, para tanto, faz-se mis-
toda que lhe sustentava) não poderia ser ter, como se sabe, da prova: tudo aquilo que
pensado hilemorficamente, mesmo porque é produzido (introduzido) no processo com o
integrado por elementos que, por si sós, objetivo de tornar conhecido fatos, pessoas ou
eram de uma complexidade intolerável à coisas. Neste momento, ganha grande sig-
redução à unidade, necessidade inafastável nificado o conceito de processo aventado
no modelo aristotélico. Bom exemplo era – e por Canuto Mendes de Almeida, isto é,
segue sendo – a audiência. algo como a reconstituição histórica de um
Eis por que, dentre outros motivos, com fato pretérito que é o crime.
o tempo passou a ser pensado, o processo, Não se trata do crime – tenha-se bem
pela matriz sistêmica, agora vista no mode- presente – já existente (pelo menos apa-
lo kantiano. Ora, como se sabe, foi Kant que rentemente), mas da sua reconstituição, algo
concebeu, na sua Arquitetônica da Razão que se faz pela linguagem, como não se pode
Pura (na sua obra Crítica da Razão Pura), negar. Eis, então, a razão pela qual a lingua-
a possibilidade de se encontrar a verdade em es- gem é tão importante no espaço do Direito
truturas complexas e assim o fez imaginando Processual Penal. Afinal, consumado o
a possibilidade de se conhecer os conjuntos crime (teoricamente falando, obviamente),
(sýstema, do grego). Para ele, sistema era daí por diante tudo já é matéria processu-
o conjunto de elementos colocados em relação al e, assim, caminha-se nos labirintos da
sob um ideia única. Ela, por sua vez, seria linguagem. Salvo as raríssimas exceções
determinada pela finalidade do conjunto dadas pelos chamados atos reais (embora
e estaria colocada como princípio de liga- até eles sejam discutíveis enquanto tal),
ção entre os elementos integrantes, logo vistos na visão de Goldschmidt, tudo o
funcionaria como um princípio unificador, mais é pura linguagem. Não é de estranhar,
reitor da conexão e, como tal, dado a priori. não obstante: a investigação preliminar é
Foi assim que se pode pensar em sistemas sempre linguagem; a denúncia é, no que
nos mais variados campos, algo que vai do mais interessa (a imputação), linguagem; a
sistema solar ao sistema de governo, ou seja, prova, mormente aquela quantitativamente
matéria aparentemente de conhecimento mais significativa, a testemunhal, é pura
corriqueiro no cotidiano. Em todos, porém, linguagem; as razões e alegações das partes
há um princípio unificador. são pura linguagem; as decisões, máxime as
Por este viés, não é difícil compreeender sentenças, da mesma forma, são linguagem;
que todas as ciências e teorias se fundam em e assim por diante. Está-se, portanto, no
princípios unificadores, ali colocados como a reino da linguagem.
representação da coisa, da Verdade que, se Sem embargo disso, não são poucos os
existir, não pode ser dita, justo por faltar que sustentam a necessidade – e por que
linguagem para tanto. Tal princípio unifica- não a concreta possibilidade? – de se enten-
dor, reitor, fundante, que se coloca no lugar da der e discutir tudo a partir da “descoberta
Verdade que se não pode dizer, é um mito, ou da Verdade”, por evidente que ignorando
seja, a verdade (com minúscula) que é dita, como os giros produzidos pela linguagem. Para
linguagem, no lugar daquilo que, em sendo, não tanto se passar – como parece elementar
pode ser dito. É o significante primeiro. – há, sem dúvida, uma crença na real possibi-
Os sistemas processuais penais, por tal lidade de se obter a Verdade pelo conhecimento
vereda, vão pensados assim e, por isso, do objeto e, assim, aposta-se nos postulados
relacionados ao fim último do processo da Filosofia da Consciência como o genial

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caminho de descoberta. O sujeito dá conta patibilidade com o que se pode ler dos
do objeto porque, antes de tudo, crê no fundamentos históricos dos dois sistemas
método do qual dispõe: a lógica dedutiva! – a opção, no caso, é política, seja por um ou
Não é de estranhar que tudo seja pensado por outro sistema.
por silogismos. Ora, faz-se uma opção política quando se dá
No processo penal o sujeito deve conhecer a função de fazer aportar as provas ao processo
e, assim, ter acesso – e por ele domínio – ao seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório),
fato criminoso (objeto demarcado pelo caso seja às partes, como no Sistema Acusatório,
penal que dele resulta com a aparente – ou por evidente que sem se excluir (eis por que
concreta – consumação do crime), o que se dá todos os sistemas são mistos) as atividades
pela reconstituição precitada, ou seja, pelo secundárias de um e de outros, tudo ao
método adotado. contrário do que se passava nos sistemas
O problema é que é o fim do sistema ­­– puros. Daí que a gestão da prova caracteriza,
como referido –, que resignifica o princípio sobremaneira, o princípio unificador e, assim,
unificador e ele, como é elementar, ganha o sistema adotado.
um colorido diferente nos dois sistemas co- Isso, embora não seja por nada compli-
nhecidos: o princípio unificador será inquisitivo cado, tem sido difícil – muito difícil – fazer
se o sistema for inquisitório; e será dispositivo entender a alguns que primam pela leitura
se o sistema for acusatório. Como ideia única, óbvia da vida como linearidade, como se
não comporta divisão e, deste modo, não fossem imagens de um espelho e, assim,
se pode ter um princípio misto e, de conse- seguem insistindo, contra a Constituição, em
quência, um sistema misto. manter o Sistema Inquisitório que se retira,
Ora, se todos os sistemas processuais antes de tudo, do CPP, em permanente
penais da atualidade são mistos e, desde conflito com o modelo constitucional que
a noção de sistema não se pode ter um sis- reclama um devido processo legal e, assim, in-
tema misto, parece óbvio que que se trata compatível com aquele no qual o juiz é o senhor
de um problema meramente conceitual, e do processo, o senhor das provas e, sobretudo
não fático. – como sempre se passou no Sistema In-
Desde uma visão mais adequada, os quisitório – pode decidir antes (naturalmente
sistemas são mistos não por força da simples raciocinando, por primário e em geral bem
somatória dos elementos que os integram, intencionado) e depois sair à cata da prova que
mas, fundamentalmente, porque em sendo justifique a decisão antes tomada.
sistemas regidos pelo princípio inquisitivo, têm Nos labirintos do sistema processual
agregados a si elementos provenientes do sistema penal brasileiro habita Inocêncio III; e não
acusatório, como vai suceder com o sistema são poucos os que gozam o lugar de um Tor-
processual penal brasileiro em vigor e que quemada. Nunca se terá democracia proces-
tem por base o CPP de 1941; ou, em sendo sual desse modo, por evidente, mesmo se se
regidos pelo princípio dispositivo, têm agre- pensar tão só nos grandes magistrados. Um
gados a si elementos provenientes do sistema sistema desse porte, em que se controlam as
inquisitório, como vai suceder com o sistema premissas, não só não é alheio ao solipsismo
processual penal norte-americano. como lhe incentiva. E o pior é que a Consti-
Neste passo, porém, ainda não se tem tuição da República não se faz viva.
uma diferença concreta entre os sistemas
mistos, como se pode perceber. E ela (a di- 3. O sistema processual penal
ferença) não se dá em razão do arcabouço atual: a inquisição do CPP de 41
filosófico colocado à disposição, muito
menos pelas regras jurídicas que podem O sistema processual penal brasileiro
reger a matéria. Na realidade – e em com- atual, assentado no CPP de 41 (cópia do

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Codice Rocco, da Itália, de 1930, o fascista consideração poder pender para qualquer
Vincenzo Manzini na dianteira), tem por dos lados embora, como regra, tenda a
base – e sempre teve – a estrutura inqui- prestigiar a acusação.
sitorial. O dito processo misto, com o hálito do
Por trás de todos estava o Code Napoleón, qual Napoleão tocou o mundo a partir da
de 17.11.1808 (em vigor desde 01.01.1811), Europa continental mostrou-se, desde sem-
pilotado por Jean-Jacques-Regis de Cam- pre, uma fraude à democracia processual.
bacérès, homem de habilidades políticas No fundo, o sistema napoleônico nada mais
conhecidas mas, sobretudo, conhecedor das era – e é, para quem o adota – um Sistema
maneiras de como dobrar o Imperador. Foi Misto, ou seja, um Sistema Inquisitorial
dele (depois arquichanceler do Império) a mesclado com elementos provenientes
ideia de mesclar a investigação preliminar do Sistema Acusatório, sobretudo partes,
colhida nos mecanimos inquisitoriais das acusação separada formalmente do órgão
Ordonnance Criminelle de 1760, de Luís julgador e debates orais.
XIV, com uma fase processual no melhor Por ele – e para ficar em poucos exem-
estilo do Júri inglês, então adotado pelos plos –, nazistas, fascistas, soviéticos e
franceses, mutatis mutandis, por um De- todos os regimes totalitários chamaram de
creto de 16-29.09.1791 e combatido desde “democráticos” seus sistemas processuais
a adoção. Salvava-se, retoricamente, pela penais, em geral tratando-os como “Sis-
fase processual, a democracia dos julgamentos, temas Acusatórios”. Cambacérès segue,
dando-lhes uma aparência acusatória e, desde o inferno, gozando a dor da injus-
assim, um espetáculo com partes, acusação tiça que se perpetua pelo mundo, sempre
e defesa, debates orais e, de certa forma, tão em nome da Verdade, das boas intenções
só a intervenção do juiz para o controle da dos inquisidores (basta estar naquele lugar
sessão. Tudo era, contudo, só retórica de para ser um deles) e do chamado “Sistema
um chamado processo misto. Misto” (Inquisitorial agregado com elemen-
No fundo, toda a prova produzida na tos outros), apresentado como “Sistema
primeira fase da persecução, em regra por Acusatório” em razão da fase processual
um juiz instrutor, na investigação preli- comportar órgão de acusação diferente
minar puramente inquisitorial, era usada aparentemente daquele julgador, debates
na fase processual, por exemplo por sua orais e, sobretudo, partes. Tais elementos,
leitura no chamado Jugement. A sessão vi- como se sabe, são deveras importantes
rava, como era sintomático, teatro, não raro para ajudar a se caracterizar um sistema
pantomima; puro embuste; e os discursos, processual, mas sem dúvida (assim como
pomposos e longos, inflação fonética. As outros), secundários. O processo regido
cartas do jogo já estavam marcadas e para pelas precitadas Ordonnance Criminelle de
desdizer isso era preciso desacreditar na Luís XIV tinha todos eles e foi, quem sabe,
figura democrática do juiz instrutor, tão o maior monumento inquisitorial laico da
inquisidor quanto qualquer outro que, na história da humanidade.
história, ocupou aquele lugar. O mister No Brasil, tal modelo foi adotado qua-
não era – e segue não sendo – singelo. se que com a mesma conformação, isto é,
Querendo-se ou não a figura do juiz sem- aquela copiada do código italiano de 1930.
pre foi e continuará sendo muito próxima Interessava ao ditador de plantão, ainda
àquela do pai, inclusive pelas funções que mais porque, em face dos jogos de poder
ambos exercem. Natural, então, que se não do Império, acabou-se por adotar, em 1871
tenha muito ânimo para dele discordar, (Lei no 2.033, de 20.09.1871), no lugar do
mormente quando vai coadjuvado pela chamado Juizado de Instrução, o Inquérito
acusação ou pela defesa, tomando-se em Policial. No fundo, não há diferença excep-

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cional entre eles dado se tratar, sempre, O CPP – e o sistema como um todo –
de mecanismo inquisitorial (onde reside o como poucos outros instrumentos legais,
problema): qualquer um que estiver naque- oferece condições quase ilimitadas para o
le lugar – repita-se – tenderá a fazer o papel agir jurisdicional nesse âmbito (de busca e
de inquisidor, exerça a função que exercer. produção da prova), em qualquer das fases
Por sinal, o mister já esteve em mãos aos processuais, agora ainda mais ressaltado
bispos e tudo deu no que deu, como se pelas regras do art. 156 (CPP), com redação
sabe. O diverso, sem dúvida, entre lá e cá, da Lei no 11.690, de 09.06.08, comprovação
é que nos modelos europeus continentais, inequívoca de ser o sistema, na base, in-
quase sempre variações do modelo primei- quisitorial:
ro do Code Napoleón, o Juizado de Instrução “Art. 156. A prova da alegação in-
permitiu, quando do avanço democrático cumbirá a quem a fizer, sendo, po-
do século passado, adaptações tanto ne- rém, facultado ao juiz de ofício:
cessárias quanto interessantes, a ponto de I – ordenar, mesmo antes de iniciada
se poder seguidamente colocar em causa o a ação penal, a produção antecipada
próprio sistema, como sucedeu na Itália do de provas consideradas urgentes e
pós-guerra. Aqui, porém, isso não é pos- relevantes, observando a necessida-
sível (em função do status constitucional de, adequação e proporcionalidade
da investigação preliminar realizada pela da medida;
Polícia Judiciária) e uma evolução deve ser II – determinar, no curso da instru-
pensada desde outra perspectiva. ção, ou antes de proferir sentença, a
O certo, não obstante, é que o CPP realização de diligências para dirimir
configura um Sistema Misto e, deste modo, dúvida sobre ponto relevante.”
mantém na base o Sistema Inquisitorial e a Com tamanha liberdade probatória, o
ele agrega elementos típicos da estrutura juiz, no sistema processual penal brasileiro
do Sistema Acusatório. – e basta apontar em tal direção – pode fazer
Pesa, nele, em todos os quadrantes, a quase tudo o que pretender. Isso se dará, no
sobreposição de funções do órgão jurisdicional mais das vezes, dentro daquilo que Franco
e do órgão de acusação. Quando o juiz é o Cordero chamou de lógica deforme:
senhor plenipotenciário do processo – ou “La solitudine in cui gli inquisitori la-
quase – e pode buscar e produzir a prova vorano, mai esposti al contraddittorio,
que quiser a qualquer momento (na fase fuori da griglie dialettiche, può darsi
de investigação e naquela processual) não che giovi ao lavorìo poliziesco ma
só tende sobremaneira para a acusação sviluppa quadri mentali paranoidi.
como, em alguns aspectos, faz pensar ser Chiamiamoli ‘primato dell’ipotesi sui
despiciendo o órgão acusatório. fatti’: chi indaga ne segue una, talvol-
O sério problema que surge – com certo ta a occhi chiusi; niente a garantisce
ar de naturalidade – é que esse mesmo órgão più fondata rispetto alle alternative
jurisdicional que investiga e produz provas possibili, né questo mestiere stimola
vai, depois, julgar, ou seja, acertar o caso penal. cautela autocritica; siccome tutte le
Isso, por si só, faz pensar na falta de im- carte del gioco sono in mano sua ed
parcialidade (tomada como equidistância è lui che l’há intavolato, punta sulla
das partes e seus pedidos) e, por suposto, ‘sua’ ipotesi. Sappiamo su quali mezzi
no vilipêndio daquilo que é, para alguns, persuasivi conti (alcuni irresistibili: ad
quase sacro na Constituição: o lugar que a esempio, la tortura del sonno, calda-
nação delega a quem é investido do poder mente raccomandata dal pio penalista
jurisdicional, mormente para decidir, por Ippolito Marsili; usadoli orienta l’esito
ela, contramajoritariamente. dove vuole. Nelle cause milanesi de

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peste manufacta, giugno-luglio 1630, mentais paranóicos”. Em suma, tendem a pre-
vediamo come giudici nient’affatto valecer as hipóteses assumidas sobre os fatos e,
disonesti, anzi inclini a inconsueto com liberdade, o juiz orienta o êxito para onde
garantismo, fabbrichino delitto e de- quiser. Duvidoso, desde sempre, é o acerto
linquenti: l’inquisito risponde docil- da decisão tomada pelas aparências. Esse
mente; l’inquisitore gli scova in testa lugar, sem embargo de iludir a muitos é, na
i fantasmi che vi há proiettato.”1 análise estupenda de Lacan, por excelência,
Aqui, quem sabe, o grande motivo por o lugar do engodo, da fraude, do engano;
que a opção política deve ser pelo Sistema como não poderia deixar de ser.
Acusatório. Afinal, o “primado das hipóteses A única esperança, diante de tal quadro,
sobre os fatos” não é algo excepcional no Sis- é o juiz desconfiar, sempre e sempre, das suas
tema Inquisitório, e sim mecanismo compa- próprias aparências/imagens e, de consequên-
tível como o simples modo de pensar (por cia, das suas decisões, colocando-as à prova até
sinal, da civilização ocidental toda), logo, quando não mais for possível, em face do rito e
tende a atingir qualquer um; e não porque o momento determinado para a sentença porque,
são juízes, mas porque são humanos. teoricamente, nela, poderia encerrar sua ativida-
Ora, navegando com o pensamento de judicante no caso concreto. Estar-se-ia, por
para o futuro e para o passado, tende-se a elementar, no oposto da lógica deformada e,
acreditar nas imagens produzidas pela razão. por certo, seria o ideal. Trata-se, como se
É certo, não obstante, que tal crença não é pode perceber, de tarefa impossível, ou
definitiva e, assim, poder-se-ia dizer que quase. Seria como pedir ao humano que
admite prova em contrário, ou seja, pode- deixasse de pensar ou, por outro lado, que
se voltar atrás da posição anteriormente resistisse sempre às pulsões inconscientes.
tomada, mesmo porque, se assim não fosse, Em realidade, não é possível nem uma nem
a imagem assumida se converteria em real outra, e, se assim é, a solução – no plano da
e se estaria diante de uma psicose típica, normalidade – está em outro lugar.
a paranóia. Sem se poder descartar tal hi-
pótese, a regra é que assim não seja e, por 4. O sistema processual penal no
isso, Cordero, como se vê, fala em “quadros Projeto 156/09-PLS
1
CORDERO, Franco. Guida allá procedura penale. A Comissão que elaborou o anteprojeto
Torino: UTET, 1986, p. 51-52. “A solidão na qual os de lei de reforma global do CPP, agora
inquisidores trabalham, jamais expostos ao contra-
convertido no Projeto no 156/09-PLS, ao
ditório, fora dos grilhões da dialética, pode ser que
ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros meditar sobre a questão – e como não po-
mentais paranóicos. Chamemo-os ‘primado das hipó- deria deixar de ser diante das regras cons-
teses sobre os fatos’: quem investiga segue uma delas, titucionais – optou pela adoção da base do
às vezes com os olhos fechados; nada a garante mais Sistema Acusatório e, assim, estabeleceu-se
fundada em relação às alternativas possíveis, nem esse
mister estimula, cautelarmente, a autocrítica; assim um câmbio epistemológico sem preceden-
como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é tes no país: se aprovado o precitado projeto
ele que as coloca sobre a mesa, aponta na direção da se terá um Sistema Misto e, deste modo,
‘sua’ hipótese. Sabemos com quais meios persuasivos à base do Sistema Acusatório se agregará
conte [alguns irresistíveis: por exemplo, a tortura do
sono, calorosamente recomendada pelo pio penalista
elementos provenientes (em menor escala)
Ippolito Marsili]; usando-a orienta o êxito para onde do Sistema Inquisitório. Mas o sistema de re-
quer. Nos processos milaneses sobre a peste manufa- gência será o acusatório; e isso abre novas
turada, junho-julho de 1630, vemos como juízes por e melhores perspectivas para a democracia
nada desonestos, antes inclinados a um incomum ga-
rantismo, fabriquem delito e delinqüentes: o inquirido
processual.
responde docilmente; o inquisidor lhe retira da cabeça Depois de mais de oitocentos anos de
os fantasmas que lhe há projetado.” domínio inquisiorial chega-se à conclu-

112 Revista de Informação Legislativa


são óbvia que o problema é ele: o Sistema teria andado e muito menos o resultado
Inquisitório; e que não vale o investimento teria ocorrido se não fosse o ambiente de
na certeza de que os homens vencerão a respeito mútuo e amizade. Em definitivo,
batalha contra sua consciência e inconsci- a democracia só se perfaz onde houver
ência. O Direito, por certo, como sempre respeito pela diferença.
demonstrado, tem um papel vital na socie- Isso, de qualquer forma, não retirou
dade mas não o condão de lhe ditar, com acirradas disputas por pontos capitais e,
proeminência, os passos. dentre eles, este referente ao sistema pro-
Neste caso, a opção pela base do Sistema cessual a ser adotado. A resistência, tenaz
Acusatório é uma prestação de contas com e acompanhada de um discurso inteligente,
a realidade, principalmente porque depois fez presente um lugar comum naqueles
de 1988 não mais faz sentido – começan- que apostam nas possibilidades de câmbio
do pela inconstitucionalidade – nenhum do Sistema Inquisitório. Para eles, pode-se
ordenamento que se coloque de forma mudar sem mudar a estrutura, o que do
incompatível com a Constituição. ponto de vista epistemológico, como antes
Desde este ponto de vista, o princípio anotado, não parece ser possível.
republicano, o princípio da isonomia, o Por elementar, não se precisa saber
princípio do devido processo legal e o muito de Bachelard para se ter presente
princípio da fundamentação de todas as que a evolução científica se dá a partir de
decisões (dentre outros) formam um qua- rompimentos epistemológicos – daí o cor-
dro onde não há espaço para o predomínio te de que ele falava –, justo para se negar
da base do Sistema Inquisitório. Eis por que um passado de erros. Esses, sabem todos,
a opção da supracitada Comissão foi, com traduzem-se nas “verdades” que se carrega,
precisão, pelo Sistema Acusatório. as quais precisam ser abandonadas para
No Projeto no 156/09-PLS aparece a ma- se poder evoluir cientificamente. Afinal,
téria, antes de tudo, na regra do art. 4o: como disse Warat em certa passagem, as
“Art. 4o - O processo terá estrutura verdades consolidadas nos escravizam àquilo
acusatória, nos limites definidos que é eternamente ontem.
neste Código, vedada a iniciativa Trata-se de uma escravidão, sem dú-
do juiz na fase de investigação e a vida, mas arregimenta para o vivente um
substituição da atuação probatória gozo traquilizador, aquele mesmo que lhe
do órgão de acusação.” dá a sensação de segurança. Romper, desta
O texto merece alguma reflexão, sem maneira, é superar a disputa entre a razão e
embargo da sua precisão linguística, mes- o desejo, sendo certo que dele não se tem
mo porque, em tal matéria (e em tantas ou- domínio algum.
tras), nada se concluiu sem discordância. Falou mais forte, no caso concreto, a
Neste aspecto, o anteprojeto – hoje exigência – que a Comissão se impôs – de
Projeto no 156/09-PLS – foi um exemplo elaborar um anteprojeto que estivesse em
de democracia e contou com o comando do plena compatibilidade com a Constituição
Ministro Hamilton Carvalhido (o Coorde- da República, motivo pelo qual, daqui
nador da Comissão), sem o qual, por certo, por diante, será difícil sair de tal via, em
não teria vindo à lume. Da mesma forma, consonância com os ditamos regentes da
foi imprescindível o esforço do Relator, vida atual.
Prof. Dr. Eugênio Pacelli de Oliveira, autor, Eis, então, por que a opção foi pelo texto
inclusive, de grande parte da Exposição do art. 4o precitado. Nele, resta patente que a
de Motivos. Decisivo, não obstante, foi a gestão da prova escapa do comando direto do juiz
tolerância e compreensão de todos os mem- e, assim, passa ele a ter, em sua plenitude
bros. Com diferenças tão marcantes, nada (ou quase), a função que a Constituição lhe

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reserva: garante de ordem constitucional e, por uma cultura que os coloque, para sempre,
isso, do cidadão. no seu devido lugar, algo aparentemente
Procura-se acabar, deste modo e de vez, muito difícil no início, enquanto não houver
com a sobreposição de funções entre o órgão ju- (contra o sistema atual) uma mentalidade
risdicional e aquele acusador. Daí a criação constitucional arraigada.
de um Juiz das Garantias para a Investigação
Preliminar, na qual não atua senão para 5. O lugar constitucionalmente
controlar eventual invasão indevida na es- demarcado das partes e o
fera dos direitos e garantias individuais: “O
Projeto 156/09-PLS
juiz das garantias é responsável pelo con-
trole da legalidae da investigação criminal À guisa de conclusão, parece relevante
e pela salvaguarda dos direitos individuais ressalvar um dos maiores efeitos da ado-
cuja franquia tenha sido reservada à auto- ção, no Projeto no 156/09-PLS, da base do
rização prévia do Poder Judiciário,...” (art. Sistema Acusatório, ou seja, o lugar das
15). Não tem competência, assim, para sair partes no processo, em face das regras
à cata da prova que, em tal momento, não constitucionais.
lhe interessa eis que buscada para propiciar Ninguém desconhece que um processo
ao Ministério Público exercer a ação penal de cariz acustório faz sobressair os direitos
e obter, se for o caso, a tutela jurisdicional e garantias individuais e, diante dos casos
para o processamento do caso penal. penais, acaba por salientar a proibição de
Na fase processual da persecução, por excesso (art. 5o). Está-se em consonância
seu turno, o juiz do processo (e não mais com a CR/88.
aquele Juiz das Garantias) terá uma par- A cultura acusatória, do seu lado, impõe aos
ticipação decisiva, mas não em matéria juízes o lugar que a Constituição lhes reservou e
probatória. À acusação cabe provar os fatos de importância fundamental: a função de garan-
imputados (como deve ser, de fato), sem a te! Contra tudo e todos, se constitucional,
interveção direta do magistrado, a não ser devem os magistrados assegurar a ordem
para sanar dúvida pontual em algumas posta e, de consequência, os cidadãos
hipóteses, por exemplo complementando individualmente tomados. À ordem de
com perguntas as inquirições das testemu- prevalência, nesta dimensão, não se tem
nhas. Daí o veto à iniciativa do juiz no sen- muito o que discutir, mormente porque
tido da “substituição da atuação probatória não há direito coletivo mais relevante que
do órgão da acusação”. aqueles fundamentais dos cidadãos.
Dúvida maior, porém, veio com a inter- Deve-se ver com parcimônia, portanto,
venção dele quanto à produção da prova toda a grande disputa que se levou à ribalta
de defesa. Parte da Comissão entendeu entre os direitos individuais e os coletivos
que isso não se deveria passar, dentre ou- (da sociedade, como um todo), mormente
tros motivos pelo fato de que, ao final, se porque em um Estado de democracia tar-
houver dúvida, deve o réu ser absolvido, dia, a figura do juiz é imprescindível para
em face do in dubio pro reo. Ademais, à o cidadão, com frequência vilipendiado em
intervenção probatória do magistrado não seus direitos e infinitamente mais fraco, por
se tem, pela lei, qualquer mecanismo de sinal como projetado pelos contratualistas,
garantia que não atuará ele contra o réu; embora não se possa ingenuamente asse-
e sim a seu favor. Mais que jurídica, por- verar sem restrições, em relação a todos,
tanto, a questão se demostrará ética; e os coisa do gênero. A isonomia, porém, não
riscos da sobrevivência inquisitorial serão faz distinção entre os cidadãos e isso é
concretos dado se continuar a depender dos imprescindível para se deitar a luz consti-
próprios juízes e, assim, da construção de tucional sobre todos.

114 Revista de Informação Legislativa


Da sua parte, o Ministério Público tam- to não imputada. Em suma, espraiada pelo
bém vai ganhar o lugar que a Constituição Projeto inteiro, vê-se uma grande evolução
lhe assegura, muito mais relevante que das atribuições do MP mas, sem dúvida,
aquele do Sistema Inquisitório, algumas ainda foi acanhada e fruto de um aparente
vezes secundário , outras de coadjuvante medo já não mais cabível nos tempos atuais.
, mas também em constante conflito com A maior liberdade sabe-se bem é sempre
a CR/88. acompanhada da responsabilidade se, em
A noção do dominus litis agora poderá, questão, está a ordem constitucional.
enfim, calhar-lhe como devido. Afinal, é Por fim, a defesa ganha mecanismos para
para ele que se produzem as provas na se efetivar corretamente. Autodefesa e de-
investigação preliminar e, por isso, ser-lhe fesa técnica, como previsões legais, podem
primário o controle externo dela. Ganha, por não ser nada se as pessoas que as agitam
outro lado, uma mitigação o princípio da não têm o devido domínio do lugar ocupa-
obrigatoriedade da ação e, por isso, em muitos do. Fala forte, neste espaço, a diferença eco-
casos poderá optar, entre outras coisas, por nômica dos réus e a consciência necessária
uma forma peculiar de bargaining, embora sobre o assunto. Daí ser inarredável a exi-
ainda seja acanhada a proposta do Projeto. gência do Estado construir, como é de sua
Da mesma maneira, embora tenha havido obrigação, em todos os níveis competentes,
evolução na aplicação do princípio da dispo- Defensorias Públicas que respondam, den-
nibilidade do conteúdo do processo, ela ainda tro do devido padrão de qualidade exigido,
foi tímida: num processo penal de matriz pelas funções que lhes foram atribuídas na
acusatória o MP deve ter a mais ampla Constituição. Assim, sem o correto acesso à
liberdade neste sentido porque, valendo Justiça aos menos favorecidos, não haverá,
quase que tão só a prova da instrução nunca, democracia processual.
processual (a ressalva são aquelas reais), Não se trata – há de se entender – de
é mais coerente poder retirar a acusação pregar e impor um sistema processual em
que ser forçado a levar os pedidos até o favor dos criminosos como, sem qualquer
final e vê-los improcedentes, com trânsito procedência, têm pregado os menos avisa-
em julgado material da sentença, logo, dos, sempre adeptos à força, em geral à Lei
sem a menor possibilidade de renovação e Ordem, desde que seja contra os outros,
da ação. Pouco razoável, neste contexto, obviamente. O Sistema Acusatório não é e
a manutenção da regra atual do art. 385, nunca foi sinônimo da impunidade, algo, por
no art. 409 do Projeto. Ora, o juiz poder sinal, por que se reclama tanto do sistema
condenar contra o pedido do MP, vertido, atual. Trata-se isso sim de um sistema que
no texto, como mera opinião: O juiz poderá realça o papel das partes a começar por
proferir sentença condenatória, nos estritos aquele do juiz não só por compatibilizá-
limites da denúncia, ainda que o Ministério los com os ditames constitucionais mas,
Público tenha opinado pela absolvição, sobretudo, em razão de permitir que se
não podendo, porém, reconhecer qualquer caminhe na direção de uma maior demo-
agravante não alegada ou causa de aumen- cracia processual.

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