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ISSN: 2675-2689 (impresso)

ABRIL DE 2020
BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ANO 3, Nº 08

ABRIL DE 2020

Elas no Front com Ana Artigo por Andremara dos Santos: Mútiplos Olhares com
Flauzina e Thula Pires: Violência contra as mulheres e Vera Andrade P.43
Roteiros previsíveis: responsabilidades institucionais:
racismo e justiçamento A parte que nos toca neste
no Brasil P.08 latifúndio P.11
Pesquisa: Daniel Fonseca (Coordenador-Chefe)
e Camila Hernandes (Coordenadora Adjunta)
Direito e Tecnologia: Thiago Vieira (Coordena-
dor-Chefe)
Diretoria Executiva Diálogos: Renato Schindler (Coordenador-Chefe)
Cursos: Thiago Vieira (Coordenador-Chefe),
Presidente: Luiz Gabriel Batista Neves
Gustavo Brito e Brenno Cavalcanti Araújo
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Brandão (Coordenadores Adjuntos)
Diretor Secretário: Lucas Carapiá
Convênio e Relações Institucionais: Fernanda
Diretora Tesoureira: Luciana Monteiro
Ravazzano (Coordenadora-Chefe)
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Coordenadora Regional: Luciana Silva
Machado, Reinaldo Santana e Liz Rocha
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Rômulo Moreira, Elmir Duclerc, Marina Cerqueira do II Seminário Regional do IBADPP: Sanzio
Coordenadores (as) de Departameto Peixoto e Nathiele Pereira Ribeiro
Biblioteca: Débora Pereira (Coordenadora-Chefe) Grupo de Estudo Feminismos e Processo
Publicações: Carolina Peixoto (Coordenadora- Penal: Charlene da Silva Borges
Chefe), Gabriela Andrade, Fernanda Nunes (Coordenadora-Chefe) e Lorena Machado
Morais da Silva, Brenno Cavalcanti Araújo Nascimento (Coordenadora-Adjunta)
Brandão, David Calvacante Texeira Daltro
(Coordenadores Adjuntos)

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entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias funda-
mentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate científico sobre o
Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, seminários, etc., que tenham o
fenômeno criminal como tema básico.

BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL


ANO 3 - N.º 8, ABRIL/2020, ISSN: 2675-2689 (IMPRESSO)
EXPEDIENTE
Conselho editorial Colaborações
Ana Cláudia Pinho, Elmir Duclerc Túlio Carapiá (ilustração do selo Trincheira
e Vinícius Romão Democrática)
Comitê editorial
Avenida Tancredo Neves, n. 620, Caminho
Lucas Carapiá, Carolina Peixoto,
das Árvores, CEP 41.820-020, Condominio
Gabriela Andrade, Fernanda
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Nunes Morais da Silva, Brenno
sala 510, Salvador - Bahia
Cavalcanti Araújo Brandão e
Periodicidade: Bimestral
David Calvacante Texeira Daltro
Impressão: Impactgraf
Edição
Luara Lemos
Projeto Gráfico e Diagramação CONTATO
Bianca Vatiele Ribeiro
http://www.ibadpp.com.br/
Capa
A capa dessa edição foi projetada publicacoes@ibadpp.com.br
usando recursos gráficos do
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O IBADPP agradece a todas que colaboraram para esta edição do boletim, em especial as
chargistas Bruna Maia, Laerte e Maíra Colares, que, gentilmente, cederam suas artes para
esta publicação.
Editorial
Crises não modificam contextos:
antes, os escancaram
[...] quando falamos nós temos medo trabalho, sermos desacreditadas enquanto defenso-
nossas palavras não serão ouvidas ras criminalistas ou quantas vezes somos silenciadas
nem bem-vindas e tuteladas.
Entretanto, basta um pequeno aguçar de senti-
mas quando estamos em silêncio dos para concluir que, na verdade, a despeito de se-
nós ainda temos medo rem incomuns os acontecimentos e as condições que
então é melhor falar os distinguem, as providências pensadas para com-
tendo em mente que batê-los e as medidas efetivamente adotadas conti-
não esperavam que sobrevivêssemos. nuam a reproduzir o mesmo padrão discriminatório
Audre Lorde, Uma Ladainha para sobre- há muito conhecido, estruturados por condições de
vivência. classe, raça e gênero. Não estamos no mesmo barco,
portanto.
O oito de março foi instituído como data come- No dia vinte de março, após notícias sobre a
morativa no ano de 1908. Nos anos dois mil e vinte, há segunda morte associada ao Covid-19 – "Doméstica
quem insista em nos dar flores e descontos em loja, idosa que morreu no Rio cuidava da patroa conta-
mas à custa do nosso suor e das nossas vozes pre- giada pelo coronavírus" –, Djamila Ribeiro ressaltou
cisamos gritar que marços cheiram a sangue: desde o fato de que, em tudo que leu, não encontrou o seu
o sangue das operárias que morreram e morrem às nome e a única alcunha desta senhora era designá-la
margens do maquinário fabril, passando pelo sangue como doméstica (RIBEIRO, 2020). Na Bahia, em Feira
que mina dos partos, dos cortes com facas na cozi- de Santana, o segundo caso notificado foi igualmente
nha, da menstruação, das feridas nascidas de episó- de uma empregada doméstica infectada pela patroa
dios de violência doméstica. que havia chegado da Itália. Em seguida, três pessoas
Cento e dez anos depois, nova data há que ser da família da funcionária também ficaram doentes.
integrada ao nosso calendário de lutas. Na noite do Lembramos da Maria de Conceição Evaristo, quando
dia catorze de março de 2018, após sair de um evento nos conta do dia que havia levado para casa os restos:
chamado Jovens Negras Movendo as Estruturas, Ma- “O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do
rielle Franco, mulher, negra, mãe, lésbica e vereadora cansaço" (EVARISTO, 2016, p. 40).
do Rio de Janeiro/RJ, foi morta a tiros junto com seu Nesse ponto, lembramos Lélia Gonzalez, que
motorista, Anderson Gomes. expôs a relação entre a emancipação econômica e
É sobre o sangue de Marielle Franco, Dandara social das mulheres brancas à custa da exploração
dos Palmares, Maria da Penha, Joana D’arc, Maria Fe- das mulheres negras no trabalho doméstico preca-
lipa, Luíza Mahin, Charlene Borges, Gabriela Andra- rizado e despido não apenas de direitos trabalhistas,
de, Fernanda Morais e tantas outras mulheres que se mas da sua própria subjetividade. Cleunice Gonçalves
põem as palavras desse boletim, cuja proposta não é é o nome da senhora de 63 anos que morreu no Rio
outra senão patentear e consolidar uma tomada de de Janeiro. Encontramos seu sobrenome, mas não
decisão política do Instituto Baiano de Direito Pro- encontramos a suposta mão invisível do mercado de
cessual Penal, traçando a importância desse espaço que fala o capitalismo neoliberal.
como metavoz de palavras femininas plurais. Em "Mulheres, raça e classe", Angela Davis, ao
Embora publicado em abril, a gestação deste discutir antirracismo, luta de classes e feminismo,
editorial começou em fevereiro e as dores desse par- nos fala sobre o legado da escravidão e os parâmetros
to nos acometeram em meados de mais um março para uma nova condição da mulher e da luta feminis-
de lutas, dessa vez pautado pelo contexto pandêmi- ta, esta que nasceu atrelada à luta antiescravagista.
co do COVID-19. Tudo parecia e ainda parece estar Hoje impõe-se na ordem do dia que o antirracismo
suspenso: as ideias, a boa escrita, nossos anseios em não deve ser dissociado da luta feminista, tal qual o
escrever sobre a produção feminina na ciência, a es- reconhecimento do lugar da branquitude, condição
trutura machista no sistema de justiça, o fato de tan- integrada por parte de nós, mas deve ser inerente ao
tas vezes não sermos levadas a sério no ambiente de processo de enfrentamento e luta contra o racismo.
Às mulheres fora historicamente atribuído o que se levantam e lutam lado a lado, um gesto de de-
cuidado como única missão de vida: cuidar da casa, safio que cura, que possibilita uma vida nova e um
cuidar da prole, cuidar do marido, cuidar dos outros. novo crescimento. Esse ato de fala, de erguer a voz,
Essa “missão” – culturalmente imposta –, que nos não é um mero gesto de palavras vazias: é uma ex-
rende jornadas triplas, sobrecarga física e emocio- pressão da transição de objeto para sujeito. A voz é
nal e maternidades solo, é a mesma que nos coloca um instrumento libertador e, ao enfrentar o medo
na ponta do sistema e nos reimpõe uma condição de de se manifestar e, desse modo, confrontar o poder,
vulnerabilidade frente ao COVID-19. continua a ser uma agenda vital para todas as mulhe-
Em meio a esse contexto de incertezas trazi- res (HOOKS, 2019).
das pela pandemia ora vivenciada, notícias dão conta Em relação à condição das mulheres negras,
do aumento da violência contra mulheres. No neces- quando estas conseguem romper as barreiras pesso-
sário cenário de isolamento social, muitas mulheres ais que envolvem autoestima e o medo de expressar-
vítimas dos diversos tipos de violência não possuem -se, exercer a fala com altivez pode muitas vezes ser
alternativas a não ser conviver com seus algozes. interpretado como uma postura de arrogância. Não
Desastroso, ainda, é observar que institu- é à toa que Hooks traduz o ato de colocar a sua voz
cionalmente a cultura de violência e dominação do no centro de importância como "um gesto político
feminino encontra respaldo inclusive na voz da au- que desafia políticas de dominação que nos conserva
toridade máxima do país, que atribui a violência no anônimos e mudos". Um ato de coragem que, portan-
ambiente doméstico a um efeito natural da crise eco- to, representa uma ameaça (HOOKS, 2019).
nômica desencadeada pela medida de isolamento, na Tragicamente, na história recente de nosso país,
qual o homem tido como “provedor” estaria despro- pudemos constatar que este ato de coragem e resis-
vido da liberdade de cumprir o seu papel social tradi- tência pode custar a própria vida dessas mulheres.
cionalmente atribuído, o que leva a concluir que seria Contudo, há um novo mundo sendo gestado.
legítimo descarregar as suas tensões decorrentes das Talvez esse novo mundo já esteja sofrendo as dores
incertezas e privações econômicas do momento na de parto – porque sim, o que nasce também sente
sua companheira de confinamento. dor –, não sabemos. O fato é que o contexto de vio-
Silvia Federici, em seu "Calibã e a Bruxa: Mu- lência de gênero não modificado, mas escancarado
lheres, Corpo e Acumulação Primitiva”, nos diz: “as- pela crise pandêmica, decerto dará o tom daquilo que
sim como a divisão internacional do trabalho, a divi- vem. Esse editorial representa, assim, o mexer dos
são sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma grilhões que insistem em nos oprimir, a palavra de
divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tem- ordem irresignada de quem se recusa a permanecer
po que um imenso impulso a acumulação capitalis- no mesmo lugar de oprimida, o ato convocatório a
ta” (FEDERICI, 2017, p. 232). Ao longo desse processo, todas para que, juntas, reassumamos o nosso papel
sendo o papel social de assistência historicamente protagonista em mais essa gestação.
atribuído as mulheres, nesse momento de pandemia Estamos dando à luz, estamos nascendo nova-
e adoecimentos familiares, termina por recair sobre mente, estamos doulas desse processo. E, em honra
as mesmas mulheres o ônus de estabelecer o cuida- ao legado de Marielle, reafirmamos que não nos dei-
do, sem ignorar, ainda, o racismo e sexismo manifes- xaremos ser interrompidas: nem em nossas palavras,
tamente interseccionados (AKOTIRENE, 2018, p. 103). nossas manifestações, nossos escritos, nossos pensa-
Se é verdade que a histórica divisão sexual do mentos, tampouco na nossa maneira peculiar e mais
trabalho que dividiu as atribuições entre homens e do que nunca, necessária, de produzir conhecimento.
mulheres no âmbito público e privado trouxe uma Abram espaço para o que vem: nós, de novo,
série de opressões, não é menos verdadeiro que a estamos à frente desse parto. Só que agora será tudo
prática sistemática do silenciamento de mulheres diferente.
respalda a tecnologia da dominação.
Ainda que possamos falar em avanços das prá- REFERÊNCIAS
ticas e lutas feministas dentro do contexto diverso AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Ho-
rizonte-MG: Letramento: Justificando, 2018.
e não universal que é peculiar a esses movimentos, BORGES, Thaís. Coronavírus: entenda como domésticas
cotidianamente é preciso romper obstáculos relacio- se tornaram grupo de risco. Disponível em: <https://
nados ao poder de expressão das mulheres. www.correio24horas.com.br/noticia/nid/coronavirus-
entenda-como-domesticas-se-tornaram-grupo-de-risco-
Nesse sentido, bell hooks lucidamente nos in-
no-brasil/>. Acesso em 23 de mar. de 2020.
forma que fazer a transição do silêncio à fala é, para DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci
o oprimido, o colonizado, o explorado e para aqueles Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acu- RIBEIRO, Djamila. Doméstica idosa que morreu no
mulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus.
Elefante, 2017. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-
EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. 1ª Ed. Rio de Janeiro: ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-
Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016. cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml>.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Acesso em 20 de mar. de 2020.
Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana: Ed. Fi-
lhos da África, 2018.
Charlene Borges
HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar
como negra. Tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Fernanda Morais
Paulo: Efefante, 2019. Gabriela Andrade

Respiro

Charge por: Bruna Maia @estarmorta


SUMÁRIO

05 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO: A LIBERDADE DE IMPRENSA NOS TEMPOS DO VÍRUS

08 EL AS NO FRONT COM ANA FL AUZINA E THUL A PIRES:


ROTEIROS PREVISÍVEIS:RACISMO E JUSTIÇAMENTOS NO BRASIL

11 ARTIGOS

11 VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E RESPONSABILIDADES INSTITUCIONAIS:


A PARTE QUE NOS TOCA NESTE LATIFÚNDIO

14 MULHERES NEGRAS NA EDUCAÇÃO: ENTRE LACUNAS, AUSÊNCIAS, PRESENÇAS E INSURGÊNCIAS

18 FOUCAULT, PANOPTISMO E DIREITO INFRACIONAL

20 A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NA MODALIDADE “GASLIGHTING" E A INVISIBILIDADE PERANTE O


SISTEMA DE JUSTIÇA

22 O USO DE PROVAS ILÍCITAS EM FAVOR DO RÉU

25 CONTRADIÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS EM QUESTÃO CRIMINAL: ANOTAÇÕES PARA UMA


ANÁLISE DO CONTEXTO BRASILEIRO

28 “O OUTRO”: GÊNERO NÃO LIDO

30 AS CARAVANAS DESSA GENTE TÃO ESTRANHA, DE SER MULHER, DE SER RÉU

33 MEU SONHO É MORAR NAS NOTÍCIAS DO MÊS DE MARÇO

35 POR UM ESPAÇO POSSÍVEL DE DISCUSSÃO ACERCA DA DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL

37 PODERES DE INVESTIGAÇÃO NO COMBATE AOS CRIMES FINANCEIROS

40 A VONTADE DE PODER DA SANTÍSSIMA TRINDADE BOLSONARIANA E A CRUZADA CONTRA OS


MENSAGEIROS DO COVID-19

41 MULHERES NAS SENZALAS MODERNAS

43 MÚLTIPLOS OLHARES COM VERA ANDRADE

48 A TODA PROVA: O VALOR PROBATÓRIO DA PALAVRA DO POLICIAL

53 WALKIE-TALKIE

56 IBADPP REALIZA
Coluna
PONTO E
CONTRAPONTO
Malu Fontes
Jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professora da
Faculdade de Comunicação da UFBA

A liberdade de imprensa nos tempos do vírus


31 de março de 2020. Segunda semana do cotidianos na imprensa, em todos os seus for-
isolamento social prescrito pelos governadores matos, durante todo esse tempo. Mais de cinco
da maioria dos estados brasileiros e aniversário décadas depois, a liberdade de imprensa como
de 56 anos do golpe militar que instaurou uma tema tem emergido no debate público brasi-
ditadura no país. Março fechava-se com estes leiro com muito mais frequência do que ima-
números: 201 mortos pela pandemia da CO- ginaríamos até bem pouco tempo. E não como
VID-19, 5.717 casos oficialmente confirmados, 42 rememoração ou reflexão, mas como risco de
mortes em 24 horas e 1.138 diagnósticos em ape- perdê-la.
nas um dia. Nesse cenário, tanto o presidente da A chegada ao poder, em vários países do
República, Jair Bolsonaro, quanto o vice, o gene- mundo, de governos com discursos populistas
ral Hamilton Mourão, começaram o dia fazendo e autoritários, associada ao fenômeno da pro-
referências elogiosas à data. O presidente, dian- dução e disseminação em massa de desinfor-
te da imprensa e de apoiadores, na saída matinal mação e narrativas fraudulentas, possibilitado
do Palácio da Alvorada, referiu-se ao aniversário pelas novas tecnologias digitais, empurraram a
do golpe como “o dia da liberdade”. Em uma rede imprensa para a maior crise de credibilidade da
social, reiterou seu negacionismo quanto ao re- sua história. A crise é financeira e filosófica. A
gime: “não houve golpe militar em 1964”. velha audiência saiu de cena, os novos suportes
O vice-presidente, em sua conta no Twitter, tecnológicos não garantiram até hoje a adesão
escreveu que “as forças armadas intervieram na dos nascidos digitais, os anunciantes pulverizam
política nacional para enfrentar a desordem, o dinheiro da publicidade em busca de diversi-
subversão e corrupção que abalavam as insti- ficação e nichos, e a verdade, como sinônimo
tuições e assustavam a população. [...] inicia- daquilo que se aproxima do registro factual da
ram-se as reformas que desenvolveram o Bra- realidade, perdeu importância. Entra em cena o
sil”. O Ministério da Defesa, na Ordem do Dia, que se chama de guerra de narrativas. Os fatos
referiu-se à tomada do poder pelos militares disputam espaço com versões alternativas da
como “um marco para a democracia brasilei- realidade, autoverdades, fake news, entre outras
ra”. Sim, para a democracia. O regime militar nomeações.
durou 21 anos, durante os quais houve tortura, Qual a função social do jornalismo e quais
supressão de liberdades políticas e civis e 424 são os seus critérios para a seleção, produção e
pessoas foram mortas ou desapareceram. circulação das narrativas sobre os acontecimen-
Uma das características das ditaduras é a tos que serão noticiados? Numa resposta breve,
suspensão da liberdade de imprensa e não foi a função da imprensa é proporcionar à socieda-
diferente no Brasil. Sobre o assunto, há uma de o acesso às informações que dizem respeito
infinidade de material produzido: livros, pes- direta e indiretamente à vida dos cidadãos e ao
quisas, filmes, documentários, canções, es- funcionamento das instituições públicas, políti-
petáculos, documentos oficiais. E os registros cas, sociais e culturais. Os critérios usados para

5
Coluna: Ponto e Contraponto

definir se algo é da ordem do noticiável ou não, essa função é sobreposta uma demanda da opi-
devem atender a determinadas condições de re- nião pública para, diariamente, desmontar um
levância, interesse público, amplitude, clareza, volume gigantesco de desinformações produzi-
negatividade, infração e notoriedade, entre ou- das por uma estrutura que atua politicamente e
tras. Tudo o que diz respeito às ações do poder a serviço do projeto ideológico do bolsonarismo.
público é da ordem do noticiável pela imprensa. Para enfrentá-la, todos os grandes veículos de
Quando se afirma que a liberdade de im- imprensa no Brasil precisaram desenvolver fer-
prensa é fundamental para a sobrevivência e o ramentas de checagem para verificar a autenti-
fortalecimento da democracia, essa não é uma cidade e a veracidade de informações, vídeos e
frase de efeito. Somente cidadãos munidos de áudios que todos os dias chegam aos brasileiros
informação e conscientes dos fatos relativos por diferentes canais digitais.
à sociedade em que vivem são capazes de fa- Sob uma crise financeira e ainda sem es-
zer escolhas cotidianas livres e autônomas. A tratégias eficazes para implantar modelos de
isto chama-se poder de deliberação: a tomada negócios que garantam sobrevivência financeira
de decisões individuais, mas que interferem na em níveis próximos aos anteriores à revolução
coletividade, no funcionamento da estrutura digital e com a credibilidade atacada sistemati-
social, a partir do conhecimento adquirido com camente por líderes como Trump e Bolsonaro,
o acesso a informações, cuja curadoria em am- para citar apenas os mais óbvios. Foi nessa con-
bientes democráticos é feita pela imprensa. O dição que a imprensa e os jornalistas de todo o
direito à informação é objeto de garantia cons- mundo se depararam com o mais imprevisto dos
titucional no Brasil, está assegurado na Declara- fenômenos: um vírus com altíssimo potencial de
ção Universal dos Direitos Humanos e presente contaminação. Em tempo recorde, promoveu
em várias convenções internacionais subscritas o apocalipse nos países mais desenvolvidos do
por países democráticos. mundo, desestruturou governos, economias e
A imprensa, para cumprir sua função de mercados, impôs pause a toda a população, da
promover a informação, deve contemplar, na India à África, da China às ilhas paradisíacas per-
publicização dos acontecimentos, a diversidade didas no fim do mundo dos oceanos. Lockdown,
e o contraditório, o que inclui narrar os atos do COVID-19, pandemia, quarentena e circuit
poder público, suas implicações, as ponderações breaker se tornaram em poucos dias expressões
contrárias a eles e os bastidores que os deter- cotidianas no repertório do mundo todo.
minam. Não é à toa que governos autoritários Nenhum país sabe coisa alguma consisten-
veem na imprensa livre um inimigo e adotam a te sobre sua economia ou condição de saúde e
censura como instrumento de manutenção da sobrevivência de sua população nos próximos
desinformação da opinião pública. meses. Hipóteses sobre o que seremos a curto,
Já como candidato à Presidência, Jair Bol- médio ou longo prazo fazem o mesmo sentido
sonaro deixava evidente o desprezo pela im- no presente se forem apresentadas por autori-
prensa e pelos jornalistas. Eleito, adotou como dades mundiais em epidemiologia, economia ou
prática cotidiana ofender, atacar e prejudicar os por organismos internacionais como OMS, ONU
veículos de imprensa, com exceção de uns pou- ou Banco Mundial. A ficção, a ciência ou os vi-
cos que o agradam. A seu serviço, um exército dentes têm, no presente, praticamente a mes-
de apoiadores nas redes sociais atua com o pro- ma autoridade para garantir o que quer que seja
pósito de criar uma realidade alternativa sobre sobre o mundo pós-pandemia? Como o mun-
o presidente e seus atos. A estratégia é liderada do sairá disso, só o tempo — que só é asserti-
pelos filhos do presidente, orientada pelo guru vo quando chega, nunca antecipa respostas ou
Olavo de Carvalho e estruturada em uma rede diagnósticos.
de grupos religiosos e de robôs que disseminam Ao receber um volume gigantesco de de-
desinformação e destruição de reputações con- sinformação e depoimentos fakes, é no jornalis-
tra críticos do governo em redes sociais e gru- mo que a sociedade busca elementos para se-
pos de WhatsApp. parar a verdade das mentiras. E essa não é uma
Diante da produção de fraudes informati- premissa empírica dos profissionais de impren-
vas em escala ininterrupta, fica com a imprensa sa. No Brasil, onde a desinformação circulante
a tarefa de dar conta não apenas da cobertura nos grupos de WhatsApp atinge uma das maiores
dos fatos de relevância e de interesse público. A incidências do mundo, uma pesquisa feita pelo

6
Coluna: Ponto e Contraponto

DataFolha revelou índices de confiança acima de o que automaticamente limitaria o acesso da


60% na imprensa (telejornais e jornais, impres- imprensa a dados oficiais. O Supremo Tribunal
sos e digitais) e abaixo de 10% em redes sociais e Federal impediu. A suspensão da normalidade
grupos de WhatsApp. do mundo gerada pela COVID-19 tem mos-
A imprensa está fazendo o melhor que trado o quanto a liberdade de expressão e o
pode para sair fortalecida em credibilidade e papel da imprensa são essenciais para que as
eficiência. Num paradoxo difícil de justificar, o sociedades saibam o que acontece ao redor e
governo brasileiro, em meio à crise sanitária, adotem as melhores estratégias possíveis para
tentou restringir a Lei de Acesso à Informação, lidar com a tragédia.

Respiro

Charge por: Maíra Colares (MotoKa) @mairadraws

7
Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Roteiros previsíveis: racismo e justiçamentos no Brasil
Por Ana Flauzina e Thula Pires

O mote Aprendemos com o então candidato à Presidên-


cia da República que a violência não é algo que
14 de março de 2018. Treze disparos. se controle. Ela se expande para fora da caixa
Duas vidas. dos que a manipulam e resulta em queimaduras,
Marielle Franco e Anderson Silva são já que é fogo que se alastra a esmo. O destino do
executados dentro de um carro no metalúrgico que ousou inspirar as massas ensi-
Estácio. na que o ostracismo é destino certeiro dos gru-
Os três tiros na cabeça da vereadora pos que perdem as disputas políticas para/da
sepultam muitos sonhos. branquitude. O exílio forçado, para dentro das
O racismo, uma vez mais, assina seu grades ou no estrangeiro, é a sentença dos que
protagonismo na história. não pactuam. A preta ponta firme das denúncias
incansáveis nos lembra que a morte segue sendo
7 de abril de 2018. Prisão. a parceira dileta da negritude, sentenciando de
Luis Ignácio Lula da Silva se entrega forma irreversível os/as que com bandeiras em
à Polícia Federal em São Bernardo riste ou não, trafegam pelas ruas com a letra es-
do Campo. carlate da pele escura.
Confisca-se, junto com a liberdade
do ex-presidente, a esperança dos A síntese do ano é clara: os brancos pade-
que apostaram no projeto. cem suas agonias em vida, aos negros, cabe a
rotina dos cemitérios.
6 de setembro de 2018. Atentado.
Jair Bolsonaro é esfaqueado no A crítica
abdômen em Juiz de Fora.
A hemorragia que ameaça a A leitura dos episódios que compõe a nove-
vida do candidato é estancada la chamada Brasil nos remete à atuação de inú-
pelas preces dos que vestem meras personagens. No atual contexto político,
verde e amarelo. além dos/as protagonistas naturais, nos parece
O discurso de ódio atinge seus importante destacar a atuação de um aparente
enunciadores. coadjuvante. Sérgio Moro, principal juiz da lava
jato e atual Ministro da Justiça, é um símbolo de
O roteiro extrema importância para o entendimento da
trama, em especial se queremos tratar dos dile-
O ritmo frenético que acelerou os dias do mas do povo negro no país.
ano de 2018 foram marcados por eventos ne- Não porque Moro tenha capacidade técni-
fastos. A lição é simples e direta: a violação dos ca, política e moral acima da média, como pen-
corpos de importantes nomes na arena política sam os camisas verdes e amarelas. Mas, porque
obedece à gradação de nossa estrutura social. Moro talvez seja o ator que referende de forma

8
Coluna: Elas no front

mais contundente o desprezo à vida negra que pelas mãos de policiais, agentes penitenciários,
se mantém inalterado desde o início das filma- promotores/as, procuradores/as, defensores/
gens da película lusitana das colonizações. Nes- as, juízes/as, desembargadores/as e minis-
se contexto, o dado histórico aponta o sistema tros/as de forma solidária. Como personagem
de justiça criminal como um dos instrumentos ilustrativa dessa dinâmica, Moro aparece como
preferenciais para a consecução do que pode símbolo dos homicidas togados que atuam con-
ser tomado como um genocídio (NASCIMENTO, fortavelmente nas comarcas de todo o Brasil
1978; FLAUZINA, 2008). sentenciando o povo negro à morte, direta e
Aqui, nos parece fundamental lançar lu- indiretamente.
zes sobre a complexidade do sistema, aten- Materializando esse processo, o feste-
tando para a atuação das diversas agências do jado pacote anti-crime1 que ele apresentou
controle penal na produção em série de mortes como principal ato de seu exercício no Minis-
que tem vitimado pessoas negras. Se focarmos tério da Justiça, só pode ser entendido como
nossa atenção no dilema das execuções sumá- a concretização das demandas da branquitu-
rias, podemos enxergar essa problemática. Via de pela legalização dos extermínios. Se o tex-
de regra, ao tratar do envolvimento das esferas to apavora pela afronta aos princípios consti-
institucionais nessas práticas, estas têm sido tucionais básicos, em especial na relativização
creditadas quase que exclusivamente às agên- do instituto da legítima defesa, é revelador do
cias policiais. Dentro dessa linha interpretativa papel decisivo que cumpre a esfera judicial na
hegemônica, ficamos diante de uma cena em conformação do campo minado em torno da
que pessoas negras se aniquilam autofagica- vida negra no Brasil2.
mente. A imagem cravada no imaginário proje- Se os ciclos da história nos demonstram
ta policiais e “bandidos” se consumindo numa que o direito sacrossanto de decretar a mor-
guerra selvagem, que, ao fim, está sustentada te de pessoas negras é o bem mais protegido e
na natureza violenta de homens negros. zelado pelas elites no país, é importante usar a
Esse tipo de abordagem tem servido à
continuidade das práticas genocidas no país, 1
Não iremos tratar dos termos do pacote após
na medida em que encerra o debate do terror negociações no Congresso Nacional. Para os efeitos
de Estado nas práticas policiais, exonerando as desse artigo, interessa-nos entender a proposta que
demais engrenagens do sistema de justiça de partiu do Ministério da Justiça, cuja íntegra do projeto
suas responsabilidades nesse processo. está disponível em <https://politica.estadao.com.
É importante lembrar, entretanto, que a br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/
sites/41/2019/02/MJSP-Projeto-de-Lei-Anticrime.
chancela judicial cumpre um papel decisivo na
pdf>, acesso em 15 de março de 2019.
produção da morte negra no país. 2
Ainda que se reconheça que o pacote “anti-crime”
E aqui não se trata somente de denunciar as recebeu duras críticas de determinados setores da
decisões que concretamente imunizam policiais magistratura, como as realizadas pela Associação de
de suas práticas homicidas, mas do entendimen- Juízes pela Democracia (AJD), estamos atribuindo
to mais amplo que o próprio recrutamento de centralidade a responsabilidade que toda a comunidade
pessoas negras para o cárcere, com aplicação de togada tem sobre os números de encarceramento,
penas rígidas e desproporcionais, ajuda a criar sobre os indeferimentos de prisões domiciliares a
as condições para o sufocamento das periferias mulheres que têm esse direito garantido por lei e
e a consequente instalação de ambientes belico- por decisões do Supremo Tribunal Federal, sobre as
sos nesses territórios. violações dos direitos previstos na lei de execuções
A partir dessa perspectiva, entende-se a penais, sobre todos os demais casos em que o racismo
institucional sentencia efeitos desproporcionais e
necessidade de situar o Judiciário com lentes
constitucionalmente injustificáveis para a população
que o posicionem dentro da maquinaria do
negra no Brasil. Para maiores detalhes acerca das
genocídio. É preciso, portanto, retirar o Judi-
críticas encaminhadas pela AJD ao pacote “anti-
ciário desse espaço de instância civilizatória crime”, ver matéria de Frederico Vasconcelos na
que ocupa de forma tão desmedida, situando Folha de São Paulo do dia 19 de fevereiro de 2019.
sua atuação como propagadora da barbárie. Disponível em < https://blogdofred.blogfolha.uol.com.
Com esse olhar, podemos entender que, br/2019/02/19/ajd-considera-inaceitavel-o-pacote-
de fato, não estamos diante de execuções su- anticrime-do-ministro-sergio-moro/>, acesso em 22
márias, mas de justiçamentos que são assinados de março de 2019.

9
Coluna: Elas no front

explicitação do terror para denunciar de for- alinham materializando processual e juridica-


ma clara e objetiva as instituições envolvidas mente o roteiro dos massacres quotidianos no
nesse processo. Nesse cenário, a implicação do país. Uma vilania que não terminará no capítu-
Judiciário é a implicação da branquitude, que lo final da novela pastelão que está em curso,
insiste, apesar de seu apetite pela violência, em mas que marca a formação desse país ancorada
projetar sua autoimagem como sinônimo de no racismo que, sem dúvida, encontrará meios
benevolência e temperança. e mentes para viabilizar sua continuidade. A
Diante dessas constatações ilustrativas do nós, resta encontrar novas formas de dirigir
roteiro televisivo tipo B que configura o atual esse enredo na esteira das militâncias negras
estado da vida política do Brasil, é preciso dis- que têm, apesar de tudo, apostado na vida e na
putar tanto as práticas quanto os sentidos das potência da resistência política.
narrativas. Nesse cenário, pautar o sistema de
justiça como um todo no acumpliciamento da REFERÊNCIAS
produção em série de mortes parece tão funda-
mental quanto a denúncia de atores de segunda FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no
que posam na arena pública com ares de cele- chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado
bridade. Por isso, apesar das pretensões de fi- brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
gurar como galã sofisticado da trama, é a vilania ABDIAS DO NASCIMENTO, O Genocídio do Negro
truculenta e gratuita o papel que cabe a Sérgio Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São
Moro, aos/as magistrados/as e aos/às demais Paulo: Paz e Terra, 1978.
membros do sistema de justiça que com ele se

ANA FLAUZINA

É mulher preta que aposta nos movimentos: da vida e das batalhas.


Doutora em Direito pela American University Washington College
of Law e com pós-doutorado pelo African and African Diaspora
Studies Department na University of Texas at Austin. Professora da
graduação da Faculdade de Educação da UFBA e da pós-graduação de
Direito da UFBA.
THULA PIRES

É mulher preta de axé,


mãe da Dandara e bailarina.
Professora da graduação/
pós-graduação em Direito da
PUC-Rio e coordenadora do
NIREMA (Núcleo Interdisciplinar de
Reflexão e Memória Afrodescendente)
na mesma Instituição. Associada de CRIOLA
e integra a Assembleia Geral da Anistia
Internacional no Brasil.

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Artigos

VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E RESPONSABILIDADES


INSTITUCIONAIS: A PARTE QUE NOS TOCA NESTE LATIFÚNDIO
Por Andremara dos Santos

Parafraseando João Cabral de Melo Neto, No que tange à concretização do sistema


em Morte e vida severina, incorporo a parte da de garantias e proteção dos direitos das mu-
minha responsabilidade, enquanto juíza de di- lheres1, assim como nos exemplos relativos ao
reito em uma vara de violência doméstica, ao sistema prisional visto como um todo e visto
ler no boletim de outubro o artigo Do inquérito sob uma especificidade concreta da condição
policial ao feminicídio de estado ao gendercide, da mulher, a possibilidade de gerar outros se-
de Soraia Mendes, para dizer que o Estado ge- res humanos, o que assusta é que a violência
nocida ali apontado também sou eu. E, também, institucional é disfarçada e justificada por um
para apontar para o meu próprio peito e me en- conjunto de crenças tradições e valores que, da
xergar como cúmplice do sistema de opressão mesma forma que esconde as violações perpe-
de gênero e raça denunciado no artigo “Je suis tradas pelo Estado, oculta a omissão das insti-
ici, ainda que não queiram” – há cúmplices en- tuições essenciais à administração da justiça.
tre nós no extermínio de mulheres negras, de Em ambos os casos, a violência institucio-
Ana Gabriela Ferreira, no boletim de dezembro nal além de constituir-se, ela própria, na viola-
último. ção do direito, esconde a responsabilidade de
Sim, sou eu e somos nós, homens e mu- cada indivíduo pela instituição que integra e
lheres que presentamos o Estado no sistema de presenta como policial, promotora ou promotor
justiça criminal. E o são, também, todos aque- de justiça, advogada ou advogado, defensora pú-
les que integrando as instituições essenciais ao blica ou defensor público, juíza ou juiz.
funcionamento da justiça, se calam, se omitem, E, além de ocultar situações e esconder
não se capacitam e não se valem dos mecanis- responsabilidades, cassa e nega vigência às nor-
mos e recursos técnicos e tecnológicos dis- mas de proteção existentes, ao negligenciar as
poníveis para investigar, requerer, reivindicar, obrigações institucionais consistentes em ações
denunciar, decidir, recorrer, reconsiderar, re- simples, mas que são essenciais no cotidiano: o
verter e modificar a realidade, no seu cotidiano. procedimento investigatório devido; a fiscaliza-
Estudo sobre o sistema prisional da co- ção da atividade policial; a descrição correta e
marca de Salvador, realizado no ano de 2015, completa do fato e das suas circunstâncias na
demonstrou, por meio de pesquisa baseada em denúncia; a apreciação e decisão ágil, adequada
evidência, como a atuação omissiva e a gestão e tempestiva dos requerimentos formulados; a
ineficiente e negligente dos órgãos e institui- utilização dos mecanismos adequados para re-
ções estatais responsáveis pela execução penal querer, recorrer e reclamar, na defesa de seus
(aí incluídos os que têm o dever de fiscalização constituintes e assistidos.
e de decisão), geram, naturalizam e mantêm O Estado, generocida e genocida, somos
invisível a violência institucional que suprime nós.
direitos fundamentais não alcançáveis pelas É que, de forma sistemática, essas omis-
decisões judiciais justificadoras da prisão pro- sões têm aumentado a situação de vulnerabili-
visória ou definitiva (SANTOS, 2015). dade das mulheres às violências física, psicoló-
Sob a perspectiva de gênero, a análise, no gica, sexual, patrimonial, moral e institucional,
ano de 2018, da situação nacional das mulhe- 1
Materializado, principalmente, na Constituição
res grávidas e lactantes privadas de liberdade,
Federal e na Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha,
demonstra uma realidade duplamente piorada,
mas também, em dispositivos como o art. 10, § 3.º
porque às violações de direito “comuns” aos ho- da Lei 9.504/1997 que assegura a participação das
mens no mesmo contexto, são acrescidas aque- mulheres na política partidária e em dispositivos
las exclusivamente decorrentes do fato de serem como as Resoluções CNJ n.º 252, 254 e 255, de 4 de
mulheres e de serem mães, com ainda maior in- setembro de 2018, que estabelecem para o judiciário
visibilização e silenciamento do impacto corres- a obrigatoriedade de adequação da sua atuação à
pondente (CNJ, 2018). perspectiva da igualdade de gênero.

11
Artigos

contra si produzidas e tornadas legítimas por nais, morais e patrimoniais, sustentados pelas es-
um padrão que tem estruturado as sociedades truturas de poder historicamente criadas, manti-
humanas e no qual a figura dos homens tem sido das e pensadas por homens e para homens.
valorada como mais relevante, predominan- O exame das situações especificadas pe-
te, determinante e preponderante sobre todos los incisos II e III do art. 7.º da Lei 11.340, de 7
os animais, e, especialmente, sobre as fêmeas de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha, sem
da sua própria espécie, mas que é incompatível prejuízo daquelas especificadas nos demais in-
com a realidade legislada atual. cisos, inclusive as relativas à violência patrimo-
Entretanto, em razão do embotamento da nial, e que, apesar da ordem em que aparecem,
sua própria razão e visão moldadas e formatadas podem ser consideradas desdobramentos, nos
por uma existência em que lhe são introduzidos dá a dimensão do quanto vem sendo esquecido
pela via dos sistemas religiosos, legais e educa- e do quanto de violência institucional vem sen-
cionais os valores que estruturam as bases fami- do praticado contra as mulheres, nos boletins
liares e contaminam todas as instituições sociais, de ocorrência, nas denúncias, nas queixas-cri-
veem-se as mulheres presas em um ciclo de do- mes, nas petições, nas sentenças, nos recursos
minação e reprodução das diversas formas de e nos acórdãos.
violência que lhes causam danos físicos, emocio-

CONDUTAS PREVISTAS NO ARTIGO 7.º, INCISOS II E III, DA LEI 11.340/2006

• Causar dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno


desenvolvimento da vítima ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
• Constranger a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
• Induzir a vítima a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade;
• Impedir a vítima de usar qualquer método contraceptivo;
• Forçar a vítima à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação;
• Limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da vítima.

É correto afirmar-se que uma mulher Em sendo assim, a parte que nos toca no
pode, sim, praticar qualquer das modalidades latifúndio do enfrentamento da violência con-
de violências acima descritas, inclusive a tota- tra as mulheres, é agir, nas tarefas cotidianas,
lidade delas, mas pelas regras naturalizadas e no sentido de reduzir o grau de vulnerabilidade
socialmente estruturadas, esta violência terá ao qual estão expostas as mulheres de todas as
por vítima, sempre, uma mulher. idades, impedindo a neutralização da proteção
Isto porque, a regra social e normativa- legal existente, por atuações obtusas e negligen-
mente institucionalizada e introduzida como tes, em desconformidade com a perspectiva da
padrão de normalidade e da natureza, é que igualdade de gênero e da relevância do reconhe-
algumas das condutas acima descritas são vá- cimento desta alteração dos papéis sociais como
lidas e, até pouco tempo atrás, constituíam um objetivo de desenvolvimento sustentável da hu-
padrão autorizado pelo ordenamento jurídico manidade. É atuar eficaz e eficientemente nos
brasileiro (v. o Código Civil de 1916 e as Leis n.º órgãos de segurança pública, no ministério pú-
4.121/ 1962 e 6.515/1977), uma vez que a igual- blico, na classe dos advogados, nas defensorias
dade formal de direitos entre homens e mulhe- públicas e no judiciário.
res só foi reconhecida pela Constituição Fede- Esta é uma tarefa de todas essas institui-
ral promulgada em 1988. ções e de todas e todos nós que as presentamos.

12
Artigos

REFERÊNCIAS

Conselho Nacional de Justiça. Relatório estatístico NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL - ONU BR. 17 Objetivos
visita às mulheres grávidas e lactantes privadas de para transformar o mundo. Disponível:. Acesso em:
liberdade. 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus. 11 de mar. 2020.
br/wp-content/uploads/2018/10/a988f1dbdd2a- SANTOS, A. Interoperabilidade e violência institu-
579c9dcf602c37ebf bbd_c0aaccbe4a781a772ee7dce- cional no sistema prisional: o caso da Comarca de
8e4c9a060.pdf. Acesso em 11 de mar. 2020. Salvador – Bahia. 2015. 154 f. Dissertação (Mestrado
FERREIRA, A.G. “Je suis ici, ainda que não queiram” - em Segurança Pública, Justiça e Cidadania) – Uni-
Há cumplices entre nós no extermínio de mulheres versidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. Disponí-
negras. Trincheira Democrática, Salvador, Ano 2, n.º vel em: http://www.progesp.uf ba.br/sites/progesp.
6, Disponível em: http://www.ibadpp.com.br/novo/ uf ba.br/files/dissertacao-final-andremara-dos-
wp-content/uploads/2020/01/BOLETIM-DEZ-WE- -santos-2015.pdf . Acesso em 11 de mar. 2020.
B-V4.pdf. Acesso em: 11 de mar. 2020.
MENDES, S. Do inquérito policial ao feminicídio de
estado ao gendercide. Trincheira Democrática, Sal-
vador, Ano 2, n.º 5, Disponível em: http://www.ibadpp.
com.br/novo/wp-content/uploads/2019/10/bole-
tim-outubro-web.pdf. Acesso em: 11 de mar. 2020.

ANDREMARA DOS SANTOS

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Titular da 1.ª Vara


de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Salvador.
Doutoranda em Direito (Universidade Nova de Lisboa), Mestre em Direito
Economico e em Segurança Pública Justiça e Cidadania pela Universidade
Federal da Bahia (Universidade Federal da Bahia). Especialista Internacional em
Segurança Pública (Universidade Estadual da Bahia e Universittà degli Studi di
Padova). Titular do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

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Artigos

MULHERES NEGRAS NA EDUCAÇÃO: ENTRE LACUNAS,


AUSÊNCIAS, PRESENÇAS E INSURGÊNCIAS
Por Ivanilda Amado Cardoso

E quando você ilumina, põe o foco nas A política de branqueamento projetada no


professoras negras, encontramos a século XX não só repercutiu no perfil do pro-
grande ausência delas na historia da fessorado como também moldou os currículos
formação de professores no Brasil, ou escolares com práticas eugênicas e eurocêntri-
seja, no assim chamado campo teórico da cas, bem como invisibilizou a produção teórica
formação de professores... de Schulman a de pesquisadoras negras.
ZEICHNER, de Marli André a Bernardete A “feminização” da profissão docente ocor-
Gatti, para onde se olha, encontramos re num contexto de precarização e desprestígio
a ausência das professoras negras, que financeiro da profissão, representando para as
estavam lá todo o tempo! mulheres brancas a ascensão social e liberdade
Anete Abramowicz (Banca de defesa de fora do espaço do lar e para a mulher negra esse
doutorado, fevereiro de 2020). espaço não era de civilidade, moralidade, limpe-
za e boa reputação*.
As discussões apresentadas neste texto A contribuição de Collins (1986) acerca das
são resultados da pesquisa de doutorado in- intelectuais negras, as denominando como “out-
titulada “Intelectuais Insurgentes no Campo siders within”, nos permite afirmar que o pro-
da Formação de Professores”1. A pesquisa teve cesso de branqueamento da carreira docente
como objetivo analisar a trajetória militante e são resultados das facetas do racismo e do pa-
acadêmica de intelectuais negras pioneiras no triarcalismo operando de forma interseccionada
campo das relações étnico-raciais e educação desconsiderando as contribuições que essas fi-
no Brasil, para reivindicar e reposicioná-las ao zeram ao longo do tempo de forma inovadora e
campo da formação de professores. Neste texto criativa por ocuparem um lugar estratégico en-
apresento discussões sobre os modus operandis quanto “estrangeiras de dentro”.
da academia que invisibilizou conceitos, epis- A despeito dos obstáculos enfrentados, as
temologias, ações e experiências educacionais mulheres negras deslocam a geografia da ra-
destas intelectuais no campo da formação de zão e o lugar de Outsiders within, que, segundo
professores. Collins (1986), é utilizado, por mulheres negras,
O sociólogo Jerry Dávila (2006) constatou criativamente e produz a literatura emergente
que na década de 1930 iniciou-se uma reflexão multidisciplinar que reflete um ponto de vista
sistemática sobre a formação de professores especial sobre elas mesmas, a família e a socie-
durante as reformas encampadas por médi- dade:
cos sanitaristas e reformadores da educação.
Como resultado foram instaurados processos [...] uma revisão cuidadosa da emergen-
sistemáticos e hostis de seleção de professo- te literatura feminista negra revela que
res/as evidenciando práticas eugênicas esca- muitas intelectuais negras, especialmente
moteadas nos discursos de profissionalização aquelas em contato com sua marginali-
docente, de capacidade técnica e moralidade, dade em contextos acadêmicos, exploram
provocando gradual branqueamento do cam- esse ponto de vista produzindo análises
po da profissão docente “[...] o moderno qua- distintas quanto às questões de raça, clas-
dro de professores que os reformadores cria- se e gênero (COLLINS, 1986, p. 100).
ram era branco, feminino e de classe média”
(DÁVILA, 2006, p. 148). A invisibilização de intelectuais negros
é uma prática científica também criticada por
1
Tese de Doutorado: Intelectuais insurgentes no campo da
pesquisadores norte-americanos. Grant et al.
formação de professores, Programa de pós-graduação em (2016) também questionaram a ausência das
Educação, Universidade Federal de São Carlos, Programa produções de pesquisadores negros em um dos
de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento- principais congressos da Educação nos Estados
NEAB/UFSCar/CAPES. Unidos, a American Educational Research

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Artigos

Association – AERA. A problematização instigou de 40% da bolsa de mestrado e 25% da bolsa de


os autores a publicar o livro intitulado Black doutorado.
Intellectual Thought in Education, escrito com Para muitas pesquisadoras brasileiras es-
o propósito de apresentar contribuições de tarem na academia, pesquisar, compor o campo
intelectuais afro-americanas para os problemas científico e comprar livros são exigências que
prevalentes e atuais da educação que as competem com as urgências necessárias à sua
escolas, as faculdades e a sociedade enfrentam sobrevivência e de sua família. Mesmo quando
atualmente. superadas as barreiras impostas pela posição de
A invisibilidade da mulher negra também classe, as pesquisadoras negras enfrentam ou-
foi questionada por Audre Lorde durante a con- tros obstáculos no reconhecimento de seu lugar
ferência no Instituto de Humanidades da Uni- de fala e suas perspectivas de suas análises.
versidade de Nova York, em 1979, sob a condição Os trabalhos encomendados, os/as pa-
de comentarista de ensaios. A escritora caribe- lestrantes convidados/as e as conferências de
nha-americana denuncia a ausência de repre- aberturas são alguns desses espaços de enun-
sentantes negras, feministas, lésbicas e aponta ciações políticas e epistemológicas. Vale des-
a arrogância acadêmica dos que desconsideram tacar que a ANPED, somente em 2017, na 38ª
nas discussões teóricas sobre o feminismo, as reunião da ANPED, convidou uma pesquisadora
contribuições das mulheres pobres, negras, do negra para proferir conferência de abertura de
terceiro mundo e lésbicas. abertura2, a Profª Drª Nilma Lino Gomes, a qual
Audre Lorde (1979) critica a organização da proferiu a conferência intitulada: “Democracia
conferência por deixar de fora as percepções e em risco: a pesquisa e a pós-graduação em con-
lugar de fala das mulheres negras e pobres so- texto de resistência”.
bre temas como existencialismo, cultura, poder, A participação de Nilma Lino Gomes na
erotismo, teoria feminista e heterossexualidade. conferência de abertura da reunião 38º da
Para Lorde (1979), a ausência dessas mulheres ANPED3, contexto de retrocessos sociais, pode
nas discussões é uma ferramenta do patriarcado ser interpretada pela máxima proferida por Ân-
racista e que está sendo usada para examinar o gela Davis “quando uma mulher negra se movi-
futuro do próprio patriarcado. Em outras pala- menta, o mundo todo se movimenta com ela”
vras, a autora chama a atenção para o fato de (DAVIS, 2017, s/p)4.
que a conferência examina e critica o patriarca-
do, operando de forma racista, excluindo as ex- 1
A primeira Reunião Nacional da Anped ocorreu em
periências das mulheres negras da análise já que 1975,mas apenas a partir da 26º Reunião que estão
disponibilizados os cronogramas e listas de conferencistas.
o patriarcado apesar de ter sua faceta sexista,
Desde a 26º reunião ocorrida e 2003, nenhum pesquisador
também é racista. negro proferiu conferência de abertura.
Embora associações como ANPED, AERA, 2
Lista de conferencistas na ANPED de 2003 a 2017: Marilena
ENDIPE, entre outros importantes no campo da Chauí (USP- 2003 - 26ª Reunião), Luis Antônio Cunha (UFRJ
educação, questionem os modos neoliberais ofi- – 2004 - 27ª Reunião), Bernard Charlot e Alceu Ferraro (EST/
ciais de agenciar a Educação, quando invisibili- RS- 2005 - 28ª Reunião), Renato Ortiz (UNICAMP - 2006 -
29ª Reunião), Luiz Antônio Cunha e Carlos Roberto Jamil
zam e ignoram a participação e contribuição de
Cury (2006 - 30ª Reunião), Roseli Fischmann (2008 – 31ª
intelectuais negros ainda representam o velho Reunião), Sara Morgenstern Pitcovsky (UNED – Espanha-
conciul colonial cujas epistemologias são coloni- 2009 - 32ª Reunião), Gaudêncio Frigotto (UERJ - 2010 -
zadoras. 33ª Reunião), Agnès Van Zanten (2011- 34ª Reunião), José
A Associação Nacional de Pós-Graduação de Souza Martins (USP – 2012 - 3ª Reunião), Stephen Ball
e Pesquisa em Educação (ANPED) é considerada (Institute of Education, University of London – 2013 - 36ª
Reunião), Luiz Dourado (UFG - 2015 - 37ª Reunião), Nilma
um campo científico legitimado por parte dos
Lino Gomes (UFMG - 2017- 38ª Reunião). Vale a pena chamar
professores da Educação Básica e pesquisadores atenção para o fato de, em um universo majoritariamente
na área da Educação. A associação promove, a feminino, as conferências são majoritariamente proferidas
cada biênio, a Reunião Nacional, e a categoria de por homens.
classe social é um fator operante na exclusão de 4
Conferência magna da filósofa e ativista Ângela Davis no
parte das pesquisadoras negras, principalmente salão nobre da reitoria da UFBA no Dia Da Mulher Negra
Latino Americana e Caribenha, dia 25 de julho de 2017,
iniciantes na carreira acadêmica, tendo em vista
intitulada “Atravessando o tempo e construindo o futuro
que o valor da inscrição é em média R$ 600, cer- da luta contra o racismo”. Disponível em: https://www.
ca de 54% do salário mínimo nacional, e cerca youtube.com/watch?v=h_t_2ExQyV8.

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Artigos

[...] vocês estão discutindo o tema da invi- para a educação brasileira? Como no país da di-
sibilidade forçada da mulher negra. Eu sei versidade da educação laica e gratuita pode-se
como isso ocorre. Ao mesmo tempo em que ignorar as trajetórias e contribuições das educa-
a mulher negra é considerada a mãe da doras negras? Para citar algumas delas: Balbina
cultura brasileira, ela é ao mesmo tempo Gomes da Graça, Antonieta de Barros e Virginia
invisível. E vocês sabem que nos Estados Leone Bicudo.
Unidos as mulheres negras têm lutado há Balbina Gomes da Graça, uma mulher ne-
décadas para acabar com essa invisibi- gra letrada em 1820. Balbina fundou a “Escola
lidade. Vejam os exemplos das escritoras Perseverança”, para meninas, em parceria com
negras contemporâneas como Toni Mor- o marido Antônio Ferreira Cesarino (1808-1892),
rison e Alice Walker (DAVIS, 2011, s/p.). na cidade de Campinas, em 1860. Antonieta de
Barros (1901-1985)6 nasceu em Santa Catarina e
Por outro lado, a presença de Nilma Lino é uma referência nacional por sua atuação na
Gomes pode ser analisada como um convite para educação e pioneirismo na luta contra a discri-
ocupar a linha de frente de um país em “chamas” minação racial. Em 1922, fundou, com recursos
de retrocessos e injustiças, reafirmando o lugar próprios, o curso de alfabetização Antonieta de
da mulher negra que a tudo resiste e produz co- Barros. Foi a primeira deputada estadual mulher
nhecimento na luta (GOMES, 2017). e negra do país, eleita em 1934.
Na cidade proporcionalmente mais negra A primeira psicanalista negra brasileira,
do Brasil, Salvador, o ENDIPE de 2018 reuniu Virginia Bicudo (1910-2003), formou-se em edu-
intelectuais para discutir Didáticas e Práticas cação em saúde oferecida pela escola de higiene
pedagógicas. Entre os conferencistas princi- e saúde pública em São Paulo entre as décadas
pais nenhum era negro, o direito de falar sobre de 1920 e 1960. O curso teve como objetivo ca-
educação foi conferido a Bernad Charlot, José pacitar os professores para trabalhar nas escolas
Carlos Libâneo, Selma Garrido, Maria Amélia e centros de saúde e, com isso, levar a consciên-
Santoro, Cipriano Luckesi, importantes inte- cia de “saúde” para a população. Em 1930, Virgí-
lectuais do campo da educação, mas precisa- nia Leone graduou-se na Escola Normal Caetano
mos nos questionar: como a diversidade inter- de Santos e, em 1932, após concluir um curso de
roga o campo da educação? educação para a saúde pública, ela começou a
Em homenagem à comemoração dos 80 trabalhar como uma educadora de saúde e, de-
anos do Ministério da Educação, criado em pois, como uma atendente psiquiátrica, subin-
1930, foi lançada em 2010 a “Coleção Grandes do para o nível de supervisor na clínica infantil
Educadores”, organizada pelo MEC em parceria orientada em São Paulo.
com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco. A exclusão de pesquisadores/as negros/
A coleção é composta pelo Manifesto dos Pio- as e a seletividade do cânone hegemônico são
neiros da Educação Nova (1932) e dos Educa- exemplos de continuum whitneess (SWARTZ,
dores (1959), a biografia de 61 Educadores (30 2014) que distribui de forma hierárquica e de-
brasileiros e 31 estrangeiros), cuja escolha teve sigual a dignidade humana.
por critérios “o reconhecimento histórico e o Em 2015, na ocasião da mobilização para
alcance de suas reflexões e contribuições para Nilma Lino Gomes assumir o ministério da edu-
o avanço da educação” (BRASIL, 2010).
Entre os 30 autores brasileiros, nenhum 5
Educadores Brasileiros UNESCO Alceu Amoroso Lima,
deles é negro, seis são mulheres e há concen- Almeida Júnior Anísio Teixeira, Aparecida Joly Gouveia,
Armanda Álvaro Alberto, Azeredo Coutinho, Bertha Lutz,
tração de educadores de naturalidade de esta-
Cecília Meireles Celso Suckow da Fonseca Darcy Ribeiro
dos da região sul e sudeste do Brasil. Entre os 30 Demerval Trigueiro, Edgard Roquette-Pinto Fernando de
educadores estrangeiros, apenas uma mulher foi Azevedo, Florestan Fernandes Frota Pessoa, Gilberto Freyre
mencionada, Maria Montessori. Nenhum educa- Heitor Villa-Lobos, Helena Antipoff, Humberto Mauro José
dor de países africanos foi mencionado5. Mário Pires Azanha, Júllio de Mesquita Filho, Lourenço
A lista de Educadores brasileiros compre- Filho, Manoel Bomfim, Manuel da Nóbrega, Nísia Floresta,
Paschoal Lemme, Paulo Freire, Rui Barbosa, Sampaio Dória,
ende o período do século XVI ao século XX. Em
Valnir Chagas.
quatro séculos, nenhum educador/a negro/a 6
No mesmo século poderíamos estudar a história de Adélia
foi digno de ser reconhecido pelo Ministério da de França (1926-1976), nasceu sem estado da Paraíba,
Educação como intelectuais que construíram nordeste do Brasil.

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Artigos

cação quando da saída de Cid Gomes, por curio- DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura: política social
sidade fiz um levantamento do perfil dos Minis- e racial no Brasil (1917-1945). Trad.: Claudia Sant’Ana
tros da Educação. Do total de 53 ministros ao Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006. 400 p.
longo da história do ministério da educação entre DAVIS, Angela. Conferência magna da filósofa e
1932 e 2015, apenas uma mulher branca ocupou ativista Angela Davis no salão nobre da reitoria
o cargo, Esther de Figueiredo Ferraz, no período da UFBA no Dia Da Mulher Negra Latino America-
de 24/08/82 a 15/03/85, e não foi identificada na e Caribenha, dia 25 de julho de 2017, intitulada
nenhuma mulher negra. Mesmo sem possibili- “Atravessando o tempo e construindo o futuro da
dade de ocupar espaços de poder e decisões da luta contra o racismo”. Disponível em: https://www.
política educacional e, apesar das ausências, elas youtube.com/watch?v=h_t_2ExQyV8. Acesso em
resistiram na história produzindo pedagogias. outubro de 2017.
Na tese de doutorado, demonstrei que as KING, Joyce Elaine; SWARTZ, Ellen E. Heritage
intelectuais insurgentes, Dra. Ana Célia da Silva, Knowledge in the Curriculum: retrieving an African
Dra. Maria de Lourdes Siqueira, Dra. Vanda Ma- Episteme. New Yok: Routledge: 2018, 212p.
chado, Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Dra. LORDE, Audre (1988) “La casa del amo no se der-
Joyce E. King, pelas suas trajetórias de vida e pro- rumba con las herramientas del amo”. In: CHERRÍE
duções, legaram à educação brasileira mais que MORAGA, Ch. y CASTILLO A. (eds.) Esta puente mi
contribuições; na minha concepção, as intelec- espalda. Voces de mujeres tercermundistas en los
tuais negras colocaram sob suspensão e questio- Esta- dos Unidos, San Francisco: Ism press, 1988.
namento a tradição educacional eurocentrada e GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador:
projetaram um modelo de educação pautada na saberes construídos nas lutas por emancipação. Pe-
liberdade, emancipação e insurgências. trópolis, RJ: Vozes, 2017. 154 p.
GRANT, et al.Black Intellectual Thought in Educa-
REFERÊNCIAS tion: the missing Tradition of Anna Julia Cooper,
Carter G. Woodson, and Alain LeRoy Locke. New
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider York: Routledge, 2016, 185p.
within: a significação sociológica do pensamento fe-
minista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1,
Janeiro/Abril 2016.

IVANILDA AMADO CARDOSO

Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),


Mestra em Educação (UFSCar). Graduada em Pedagogia pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP- Campus de Marília-SP. Atuou
como professora Substituta no Instituto Federal de São Paulo- IFSP- Bragança
Paulista; Desenvolve pesquisa no campo da formação de professores/as. É
integrante do NEAB- Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – UFSCar. Doutorado
Sanduiche- Research Scholar na Georgia State University - Atlanta- Georgia-
Estados Unidos. Programa Abdias Nascimento CAPES-NEAB-UFSCar.

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Artigos

FOUCAULT, PANOPTISMO E DIREITO INFRACIONAL


Por Liana Lisboa Correia

Quando se fala sobre “responsabilização” Uma incursão na legislação e na práti-


de adolescentes pela prática de atos infracio- ca socioeducativas pátrias demonstra como as
nais, é comum o discurso sobre a impunidade ideias de vigilância, controle e correção a que
que as medidas socioeducativas (MSEs) repre- se refere Foucault orientam todo o regramen-
sentariam, já que condicionadas a regras dis- to e cumprimento das MSEs. Segundo o autor,
tintas da pena de prisão prevista para adultos e o panoptismo é uma forma de poder que repou-
limitadas por lei ao máximo de três anos em sua sa não mais sobre o inquérito, mas sobre algo
hipótese mais gravosa. totalmente diferente: o exame. Se o inquérito
Mas, se, sob o plano legal e discursivo, “era um procedimento pelo qual, na prática judi-
existe uma especialidade que envolve a proposta ciária, se procurava saber o que havia ocorrido”
de socioeducação e as MSEs, na prática, “há uma (FOUCAULT, 2002, p. 87), a fim de reconstituir
verdadeira reprodução das estruturas penais e um “acontecimento” através de testemunhos e
da lógica penal no âmbito da criminalidade juve- provas, o exame, por sua vez, busca reconstituir
nil” (ALEIXO, 2012, p.19). Sob esta óptica, é pos- “alguém” “que se deve vigiar sem interrupção e
sível afirmar que, ao menos na esfera do “ser” totalmente” e implica um “saber que tem agora
(implementação das leis), o sistema juvenil inte- por característica não mais determinar se algu-
gra um sistema maior de controle social puniti- ma coisa se passou ou não, mas determinar se
vo, “revelando problemas que o tornam bastante um indivíduo se conduz ou não como deve, con-
semelhante ao sistema penitenciário” (CAPPI, forme ou não à regra, se progride ou não, etc.”
2017, p. 76), ainda que, na esfera do “dever ser” (Idem, p. 88).
(plano legal), tenha sido pensado sob a perspec- O Estatuto da Criança e do Adolescente
tiva da “proteção” e da “educação”. possibilita, em caso de remissão ofertada pelo
Assim, embora seja necessária cautela na Ministério Público, a imposição de MSEs sem
aproximação entre direito infracional e ciências a existência de provas suficientes de autoria e
criminais, ante o risco de essa ser mal compre- materialidade. Tal previsão, embora expressa-
endida como legitimação de um direito penal ju- mente afastada para as medidas de internação e
venil ou como fundamento para reduzir a maio- semiliberdade, revela como a noção de inquérito
ridade penal, é imprescindível que estudiosas e é mitigada no direito infracional, cedendo pro-
profissionais da área infracional apropriem-se tagonismo para o exame.
dos ensinamentos consolidados pelas ciências Segundo a legislação, a MSE deve ser exe-
criminais, notadamente pelas criminologias crí- cutada a partir de um Plano Individual de Aten-
ticas, no que concerne às violações de direitos dimento1 e terá sua reavaliação ou manutenção
que o aprisionamento significa. Mais que isso, condicionadas a relatório elaborado pela equi-
é preciso compreender, com base naqueles sa- pe técnica (composta por profissionais da área
beres, quais as funções reais e não apenas quais de serviço social, psicologia, pedagogia e medi-
as funções declaradas da segregação física de cina), que deverá registrar todos os aconteci-
adolescentes em unidades de internação, cujas mentos que envolvam o jovem durante a MSE.
celas, grades, arquitetura e rigorosas rotinas de Os acontecimentos transformam-se em regis-
disciplina em (quase) nada se diferenciam da- tros, que se tornam o saber-poder juridicamen-
quelas encontradas em unidades prisionais. te válido sobre o adolescente em cumprimento
Interessa-me, especialmente, como vigi- 1
Art. 52 da Lei nº 12.594/2012 (SINASE), “[o] cumprimento
lância, controle e correção – tríplice aspecto do das medidas socioeducativas, em regime de prestação de
panoptismo debatido por Michel Foucault em “A serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade
verdade e as formas jurídicas” – operam de ma- ou internação, dependerá de Plano Individual de
neira contundente na socioeducação, destacan- Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro
e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o
do ainda como a noção de “periculosidade” que
adolescente.” e que deve ser elaborado por equipe técnica,
norteou as ideias da criminologia e da penalida- à qual caberá a elaboração de relatórios que atestarão a
de no século XIX parece nunca ter sido abando- adequação ou não do jovem à medida e sua evolução no
nada pelo direito infracional. processo de ressocialização.

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Artigos

de MSE, constituindo um modelo denso do dis- te, mas “examiná-lo” através da equipe técnica e
positivo disciplinar apresentado por Foucault “reeducá-lo” a partir do diagnóstico obtido.
(MELO, 2016). A possibilidade de aplicar uma MSE atra-
No universo socioeducativo, os adoles- vés da remissão, mesmo sem prova de autoria e
centes são integralmente vigiados, examinados, materialidade, o momento do interrogatório e a
controlados, docilizados. Nesse cenário, tendo relevância dada aos relatórios das equipes técni-
em vista a função declarada de reeducação atri- cas evidenciam a preocupação do direito infra-
buída à MSE e a intensa participação de profis- cional em disciplinar, examinar o jovem a que se
sionais de diversas ciências na construção do impute um ato infracional, a partir do diagnós-
saber-poder sobre os jovens, principalmente tico de suas virtualidades individuais, dando ao
quando internados, não seria exagero afirmar ato praticado importância secundária quando da
que o panoptismo apresentado por Foucault fixação ou cumprimento da MSE.
incide sobre as MSEs com maior rigor do que Se uma racionalidade mais correcionalista
sobre as penas de prisão. que punitivista permite, em tese, que se dê ao
A afirmação parece ainda mais verdadei- adolescente que infringe a lei tratamento menos
ra quando se analisa o procedimento legal para aflitivo que o dado ao adulto, a práxis do direi-
apuração de ato infracional, que ainda pre- to infracional tem revelado uma reprodução das
vê o interrogatório (chamado de “audiência de estruturas e lógicas penais pelas instituições,
apresentação”) como ato inicial do processo e nos levando a afirmar que a socioeducação tem-
no qual é cabível a remissão com imposição de -se forjado a partir do somatório de duas racio-
MSE, mesmo que nenhuma outra prova venha nalidades: a panóptica e a retributivista. Olhar
a ser produzida nos autos, o que revela a baixa para esta realidade pela lente foucaultiana e pela
densidade e quase nenhuma importância confe- experiência das criminologias críticas pode for-
ridas por lei e pelas instituições ao contraditório necer novas chaves para a repensar a socioedu-
e à ampla defesa no direito infracional. cação no Brasil.
Ainda segundo as lições de Foucault, o con-
trole penal punitivo dos indivíduos ao nível de REFERÊNCIAS
suas virtualidades, característica do panoptis-
mo do século XIX, “tem em vista menos a defesa ALEIXO, Klelia Canabrava. Ato Infracional: ambi-
geral da sociedade que o controle e a reforma valências e contradições no seu controle. Curitiba:
psicológica e moral das atitudes e do comporta- Juruá, 2012.
mento dos indivíduos”, dando-se grande desta- CAPPI, Riccardo. A maioridade penal nos debates
que para a noção de “periculosidade”. Esta signi- parlamentares: motivos do controle e figuras do pe-
fica que “o indivíduo deve ser considerado pela rigo. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. Belo Hori-
sociedade ao nível de suas virtualidades e não zonte: Casa do Direito, 2017.
ao nível de seus atos” (FOUCAULT, 2002, p. 85). FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas.
Todavia “essa espécie de controle penal puniti- Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo
vo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
não pode ser efetuado pela própria justiça, mas MELO, Tatiane Alves de. O dispositivo socioeducação
por uma série de outros poderes laterais”, razão na inclusão e exclusão da criminalidade: histórias de
pela qual se desenvolve, “em torno da instituição vida. Dissertação, 2016. Disponível em http://reposi-
judiciária e para lhe permitir assumir a função torio.ufes.br/handle/10/5586 . Acesso: nov/2019.
de controle dos indivíduos ao nível de sua peri-
culosidade, uma gigantesca rede de instituições LIANA LISBOA CORREIA
que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua
existência” (Idem, p. 86), destacando-se as peda- Defensora Pública no
gógicas, psicológicas e psiquiátricas. Estado do Ceará. Espe-
Essa rede formada em torno das institui- cialista em Direito Penal e
ções judiciárias tem a função não mais de “punir” Processual Penal – Univer-
as infrações, mas de “corrigir” as virtualidades sidade Salvador (UNIFA-
dos indivíduos – assim como a MSE, a nível legal CS). Mestranda em Direito
e discursivo, não objetiva “punir” o adolescen- – Universidade de Brasília
(UnB).

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Artigos

A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NA MODALIDADE “GASLIGHTING"


E A INVISIBILIDADE PERANTE O SISTEMA DE JUSTIÇA
Por Anna Luiza Velloso de Mesquita Andrade Lemos e Charlene da Silva Borges

Perder partes da sua memória deixa tudo se busca plantar dúvidas na vítima, fazendo-a
muito plausível quando alguém lhe diz que questionar sua percepção, memória, e, em al-
não pode confiar na sua memória. Deixa guns casos, sua sanidade, por meio de mentiras,
tudo muito plausível quando a pessoa te inversões e contradições, que deslegitimam os
diz que você é abusiva. argumentos e crenças da mesma, e normalmen-
Mas é normal perder sua memória quan- te inocentam o agressor. (FERREIRA; SILVA; AN-
do você está sofrendo gaslighting. Na ver- JOS, 2018, p. 49 e PETRIC, 2018, p. 01)
dade, é um dos sinais aos quais você deve O sujeito ativo do gaslighting, denomi-
estar atenta. É um bom sinal de que pode nado gaslighter, retira credibilidade dos sen-
ser a hora de ir embora1. timentos e constatações da vítima, inicial-
mente colocando de lado qualquer evidência
As formas de minimização da condição fe- que traduza o comportamento injustificado do
minina na atualidade são constantes, sendo elas agressor, e continua pondo defeitos na vítima,
alvo de reiterado debate pelo movimento femi- e culpando-a pela sua “má interpretação”. Tal
nista, findando a compreensão e minimização da prática traduz de forma contumaz a misoginia,
popularização de tantos fenômenos misóginos afinal, ela se sustenta através da negação de va-
em tempos da tão propagada igualdade material. lidade à fala de mulheres. (STARK, 2019, p. 224-
Dentre diversas outras pautas, tal movimento 227). Essa prática, apesar de ser extremamente
social e político discorre veementemente acer- danosa, nem sempre é facilmente identificável,
ca das variações de violência perpetradas contra afinal, comportamentos questionadores em di-
mulheres. reção ao sexo feminino são comumente aceitos
Dentre as diversas formas de agressão na sociedade brasileira, caracterizando as viti-
previstas pela Lei 11.340/06 – Lei Maria da Pe- mizações secundária e terciária tratadas pela
nha –, no âmbito da agressão psicológica, des- criminologia.
taca-se o gaslighting, cuja prática é muito anti- Por vezes, a mulher vítima desta práti-
ga e comum, mas passou a ser estudada como ca prefere silenciar para evitar maiores confli-
um fenômeno a partir da década de 1960, após tos, incorrendo em dúvida sobre a sua sanida-
a popularização do comportamento pelo filme de mental, tendo sua autoconfiança minada de
“Gaslight”, de 1944. Nele, um marido manipulava maneira sutil e gradual. Trata-se de um tipo de
os sentimentos da esposa através de uma redu- violência de gênero difícil de caracterizar e ma-
ção na quantidade do gás que garantia a ilumi- terializar em forma de denúncia, eis que o liame
nação da casa, fazendo-a crer que sempre que de prova se encontra circunscrito à esfera de
reclamava estava delirando, enlouquecendo, daí subjetividade da vítima.
o uso do termo “gaslight”, traduzido como “meia Além do exemplo clássico encontrado no
luz”. (FERREIRA; SILVA; ANJOS, 2018, p. 30 e KO- cotidiano da convivência afetiva nos relacio-
SAK; PEREIRA; INÁCIO, 2018, p. 09)2 namentos ditos amorosos, para exemplificar a
A prática de gaslighting, portanto, consis- prática também é possível pensar numa situ-
te em mais uma artimanha de inferiorização da ação de abuso sexual, em que comumente as
mulher, que pode ocorrer em diversos aspec- atitudes da vítima são postas à prova, inclusive
tos, seja na vida social, amorosa ou profissional. através de excessivos pedidos de explicações,
É uma forma de manipulação através da qual com o fito de buscar contradições na narrati-
va. É comum que vítimas escutem que inter-
1
ARONOVICH, Lola. DEZ COISAS SOBRE GASLIGHTING pretaram errado, que a situação não foi exata-
COMO TÁTICA DE ABUSO. Disponível em: <http:// mente daquela maneira, ou que sejam acusadas
escrevalolaescreva.blogspot.com/2015/10/dez-coisas-
de buscar tirar proveito da situação, ou ainda,
sobre-gaslighting-como.html>. Acesso em: 7 mar. 2020.
2
Atualmente em cartaz, o filme O Homem Invisível de Leigh quando é difícil para o perpetrador da conduta
Whannell também ilustra este tipo de comportamento em negá-la, que o dano seja minimizado, compara-
um relacionamento abusivo. do a situações mais traumáticas.

20
Artigos

A prática de gaslighting, desse modo, está mulheres que não sofrem gaslighting em suas
presente no Processo Penal, na medida em que a microrrelações, mas pelo simples fato de vive-
identificação do tipo de violência diversa da físi- rem em uma sociedade misógina, comumente
ca, seja essa simbólica ou psicológica, ainda é um são afetadas. Isso porque o gaslighting é parte
grande desafio para os operadores do direito. A do projeto de opressão psicológica que carac-
busca da rede que envolve o Sistema de Justiça teriza um backlash ao feminismo, afinal, mu-
para obter acolhimento e prestação jurisdicional lheres confusas e inseguras são mais fáceis de
ou administrativa para esse tipo de conflito nem serem manipuladas.3
sempre é exitosa. A tendência é desacreditar
3
O blacklash foi muito comum nos Estados Unidos na
e não dar continuidade às investigações sobre
década de 1980, na qual a noção de feminilidade passiva foi
questões que permeiam o universo psíquico e incorporada à cultura popular, que fomentava ideias de que
íntimo da vítima. mulheres têm expectativas distorcidas e são hipercríticas
Conforme pontua Campos (2017), é bem de em relação a homens. (FALUDI, 2001, p. 332-333)
ver que a preocupação com as vítimas origina
respostas criminológicas ou políticas criminais REFERÊNCIAS
que apregoam, por um lado, a negação do uso
do sistema penal, e por outro sua utilização de FALUDI, Susan. Backlash: o contra-ataque na guer-
forma conectada às necessidades da Comunida- ra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro:
de ou, ainda, seu uso para pôr fim à violência de Rocco, 2001
gênero. FERREIRA, Ana Paula Junqueira; SILVA, Giovanna dos
Contudo, historicamente, a luta feminista Santos; ANJOS, Indianara Alessandra. A Violência
incorporada ao universo jurídico trouxe como Psicológica E Seus Subprodutos Proeminentes Nas
pauta a união e diálogo entre as esferas públi- Relações Sociais Contemporâneas. 2018. Monogra-
ca e privada. A experiência prática vivenciada fia (Graduação em Psicologia) - Centro Universitário
no cotidiano de enfrentamento às violências de Católico Salesiano Auxilium, São Paulo. Orientado-
gênero evidenciou a necessidade de tornar po- ra: Profª Melissa Fernanda Fontana. Disponível em:
lítico o que antes pertencia à esfera pessoal e <http://www.unisalesiano.edu.br/biblioteca/mono-
subjetiva das mulheres ou que estariam sujeitas grafias/62275.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2020
ao controle social da família, a exemplo dos con- PETRIC, Domina. Gaslighting and the knot theory
flitos domésticos. Esse tipo de controle, ainda of mind. Disponível em: <https://www.research-
residual na nossa estrutura social, sedimenta a gate.net/publication/327944201>. Acesso em: 04
dificuldade de levar a questão para o âmbito da mar. 2020
rede de enfrentamento à violência, pois se trata STARK, Cynthia A. Gaslighting, Misogyny, and Psycho-
de um delito considerado invisível, justamente logical Oppression. Revista The Monist, n. 02, v. 102,
pela sua natureza ontológica que consiste em abr. 2019, p. 221 - 235. Disponível em: <https://acade-
desacreditar a narrativa apresentada pela pes- mic.oup.com/monist/article/102/2/221/5374582>.
soa violentada psicologicamente. Acesso em: 03 mar. 2020
É importante ressaltar, por fim, que a prá- CAMPOS, Carmem Hein de. Criminologia Feminista.
tica de gaslighting, apesar de ser mais comum Teoria feminista e Crítica às criminologias. 1 Ed. Rio
em relações interpessoais, também ocorre no de Janeiro. Lumen Juris. 2017
âmbito político e pode estar presente na vida de

ANNA LUIZA VELLOSO CHARLENE


DE MESQUITA DA SILVA
ANDRADE LEMOS BORGES

Advogada e bacharela em Defensora


Direito pela Faculdade Pública Federal.
Baiana de Direito. Membra do GT
Mulheres da Defensoria Pública da União.
Coordenadora do grupo de estudos do
Departamento de Feminismos e Processo Penal
do IBADPP.

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Artigos

O USO DE PROVAS ILÍCITAS EM FAVOR DO RÉU


Por Mariana Madera Nunes e Sarah Piancastelli

O vazamento de conversas mantidas entre Nessa linha, no sistema de justiça da


um procurador e um juiz no curso da maior in- Inglaterra e País de Gales, nada obstante constar
vestigação criminal já realizada no país, a reve- do respectivo Código de Processo Civil (CPR),
lar o rompimento da condição de imparcialidade na Parte 32.1 (2)2, que o Tribunal pode gerir as
objetiva e subjetiva do magistrado1, despertou provas e suas maneiras de obtenção, bem como
absoluto interesse acerca da possibilidade de valer-se de discricionariedade para não as
utilização de provas ilícitas para comprovação admitir quando consideradas ilícitas (COLSTON;
de teses defensivas no processo penal brasileiro. BISCHOF; MOSLEY; GRISHCHENKOVA, 2017),
O Supremo Tribunal Federal terá oportunidade em 2003, no caso Jones v. University of Warnick3,
de se debruçar sobre o tema no julgamento do a Suprema Corte Inglesa criou um importante
HC 164.493/PR, definindo a admissibilidade e o precedente acerca da admissibilidade de provas
alcance de prova obtida, por particulares, com ilícitas pro reo.
violação de sigilo das comunicações, para reco- Jones buscava uma reparação de 135.000 €
nhecer a suspeição do magistrado e declarar a (cento e trinta e cinco mil euros) de sua empre-
nulidade do processo. gadora, a Universidade de Warnick, após haver
Como se sabe, o uso de provas ilegais no sofrido acidente de trabalho que teria incapa-
ordenamento pátrio é expressamente vedado citado a sua mão. Após um representante da ré
pela Constituição Federal, consoante disposto ter fingido que era um pesquisador de mercado
no seu art. 5º, inciso LVI – “são inadmissíveis, no para ter acesso à casa de Jones e filmá-la sem o
processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. seu conhecimento, foi possível provar que não
Indo além da previsão constitucional, no que havia qualquer restrição na mão, motivo que le-
prevê a sanção para o vício probatório, o art. 157 vou a Suprema Corte a, admitindo o uso da pro-
do Código de Processo Penal determina que as va, desobrigar o réu.
provas obtidas em violação a normas constitu- De maneira similar, no âmbito do Poder
cionais ou legais deverão ser desentranhadas do Jurídico Espanhol, em 1984, após o Tribunal
processo. Mais recentemente, com a inclusão Constitucional proferir a sentença 114/19844,
do §5º no mencionado dispositivo, pela Lei n. entendeu-se necessária a criação de uma regra
13.964/2019, impôs-se que o juiz que tiver con- expressa para proibir o uso de provas ilícitas,
tato com a prova declarada inadmissível sequer dando origem, assim, ao art. 11.1 da Lei Orgânica
poderá proferir sentença ou acórdão. do Poder Judiciário (LOPJ)5, que firmou posição
No entanto, se a produção de provas ilíci- no sentido de que provas ilícitas não surtiriam
tas for indispensável para assegurar o exercício efeito quando violassem direitos fundamentais.
de direito fundamental à ampla defesa do acusa- Com enfoque na última parte do dispositi-
do, a inadmissibilidade é afastada diante da pre- vo, em 1994, o Tribunal Superior espanhol deci-
valência do princípio do devido processo penal. diu admitir prova ilícita em uma investigação de
“A regra da inadmissibilidade de provas ilícitas tráfico de armas e drogas. In casu, foi realizada
não deve preponderar quando possa suprimir uma entrada forçada irregular na residência do
o exercício da ampla defesa pelo acusado, sob acusado, em busca de objetos que comprovas-
pena de se produzir um verdadeiro paradoxo: a sem o cometimento dos delitos. Contudo, pre-
violação ao devido processo legal (ampla defesa) 2
32.1 (2): The court may use its power under this rule to
com o fundamento de proteção do próprio de- exclude evidence that would otherwise be admissible.
vido processo legal (inadmissibilidade de provas 3
Courts of England and Wales: Supreme Court of
ilícitas)” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 755). Judicature: Court of Appeal.
4
A STC 114/1984 foi proferida em um caso de exoneração
1
Acerca do tema, conferir: VIEIRA, Antonio. Como os EUA de um funcionário que extorquiu seu superior e foi
trataram de casos de troca de mensagens entre juízes e gravado sem seu conhecimento.
promotores. Revista Consultor Jurídico, 19.06.2019. 5
“En todo tipo de procedimiento se respetarán las reglas de
Disponível em: <conjur.com.br/2019-jun-19/antonio- la buena fe. No surtirán efecto las pruebas obtenidas, directa
vieira-eua-tratam-contatos-entre-juizes-promotores>. o indirectamente, violentando los derechos o libertades
Acesso em: 06 mar.2020. fundamentales”.

22
Artigos

sente o fato de que nenhum indício havia sido ser visto como um simples instrumento a servi-
encontrado com a diligência, a conclusão da ço do poder punitivo (Direito Penal), senão que
busca e apreensão ilegal foi aceita pela Corte desempenha o papel de limitador do poder e ga-
para inocentar o réu (ÁVILA, 2006, p. 181-182), rantidor do indivíduo a ele submetido” (LOPES
assentando-se que a ausência do material no lo- JR., 2018, p. 35).
cal era suficiente para atestar a não participação Assim, com inspiração nos citados cases,
do investigado na prática delitiva. espera-se que o Supremo consagre a admissibi-
Assim, a utilização de provas angariadas lidade do uso de provas ilícitas em favor do réu,
de forma ilícita mostra-se debate relevante não tanto no que diz respeito ao uso de provas ilíci-
somente por questionar pontos já enraizados no tas exculpantes, oriundas de diligências promo-
direito processual penal brasileiro, no que gene- vidas pelo Estado, desde que inadmissível a sua
ricamente imposto o desentranhamento da pro- utilização em desfavor do acusado; quanto nos
va ilícita do processo6, sem efetivo exame acerca casos em que os próprios particulares tenham
do beneficiário da prova – se o Estado acusa- obtido os elementos probatórios ilegais, fazendo
dor, quando deve mesmo ser descartada, ou o prevalecer o devido processo legal e o fair trial, à
cidadão acusado, quando deve ser considerada luz de que as garantias individuais não admitem
válida. Por exemplo, logicamente, um trecho de peias quando em jogo a inocência e a liberdade.
interceptação telefônica ilegal que revela a in-
congruência de certo aspecto da acusação, po- REFERÊNCIAS
derá ser valorado para absolver o réu por ausên-
cia de prova suficiente para a condenação (art. ÁVILA, T. A. P. Provas ilícitas e proporcionalidade: uma
386, VII, CPP). análise da colisão entre os princípios da inadmissibi-
Deveras, a proibição do uso de provas ilí- lidade das provas obtidas por meios ilícitos. 2006. Dis-
citas (obtidas mediante violação de direito ma- sertação (Mestrado em Direito), UnB, Brasília.
terial) e de provas ilegítimas (alcançadas atra- COLSTON, J.; BISCHOF, O.; MOXLEY, C.; GRISH-
vés de violação de regras processuais), uma vez CHENKOVA, A. The fruit from a poisoned tree – use of
tratar-se de norma garantidora, está vinculada unlawfully obtained evidence. London: International
à necessidade de serem assegurados direitos Litigation Newsletter, International Bar Association,
básicos refletidos na sociedade e no respeito ao 17 set 2017. Disponível em: <http://brownrudnick.
convívio interpessoal. Como mecanismo regula- com/article/fruit-poisoned-tree-use-unlawfully-
dor de tais pressupostos em âmbito mundial, o -obtained-evidence/>. Acesso em; 14 nov. 2019.
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já so- LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15 ed. São
lidificou a necessidade do respeito às garantias Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 35.
fundamentais ao afirmar que “o objeto e a fina- MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gonet.
lidade da Convenção como instrumento de pro- Curso de direito constitucional. 7. ed. ver. e atual.
teção de direitos humanos individuais exigem São Paulo: Saraiva, 2012, p. 755.
que suas normas sejam interpretadas e aplicadas SUPREMA CORTE INGLESA. Caso Jones v. Univer-
de formar a efetivar e salvaguardar tais direitos” sity of Warnick. Julgado em 04.02.2003. Disponí-
(TEDH, 1989). vel em: <http://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/
De tal forma, é indene de dúvidas que a Civ/2003/151.html>. Acesso em: 14 nov,2019.
prova ilícita, quando em favor do réu, deve ser TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS.
aceita e considerada no processo, tendo em Soering v. Reino Unido. Julgado em 07.07.1989.
vista o fato de situar-se como ponto de interse- Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/
ção justamente no encontro entre óbices pro- eng#{%22itemid%22:[%22001-57619%22]}>. Acesso
cessuais, os quais somente devem ser opostos em: 14 out.2019.
em face do Estado. “O Processo não pode mais TRIBUNAL CONSTITUCIOANL DE ESPAÑA.
Sentencia 114/1984. Julgado em 29.11.1984.
6
STF, Inq. 731 ED, Plenário, Rel. Min. Néri da Silveira, j. Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es/es-
22.5.1996, DJ de 7.6.1996. ES/Resolucion/Show/367>. Acesso em: 14 nov.2019.

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Artigos

MARIANA SARAH PIANCASTELLI


MADERA NUNES
Pós-graduanda em Penal e
Pós-graduada em Ciências Processo Penal pelo Insti-
Criminais pela Faculdade tuto Brasiliense de Direito
Baiana de Direito Bachare- Público (IDP). Bachare-
la em Direito pela Univer- la em Direito pelo Centro
sidade Federal da Bahia. Organizadora do livro Universitário de Brasília. Advogada.
“Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal”. Contato: sarahpiancastelli@gmail.com.
Ex-Assessora de Ministro no STF. Professora
convidada do Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP). Advogada.
Contato: mariana_ madera@hotmail.com.

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Artigos

CONTRADIÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS EM QUESTÃO CRIMINAL:


ANOTAÇÕES PARA UMA ANÁLISE DO CONTEXTO BRASILEIRO
Por Ana Luisa Leão de Aquino Barreto e Bruna Portella de Novaes

Introdução confrontada com a parcialidade dos seus titu-


lares, sustentou-se a partir de uma revisão não
Discursos jurídicos são oriundos de espa- da categoria em si, mas da própria humanidade.
ços de poder. A atividade da jurista que se propõe Nesse sentido, poucos acontecimentos são tão
crítica é disputar as interpretações dessa narra- exemplares quanto a Revolução Haitiana. Pou-
tiva: questionar de onde surgem, como se forjam cos anos após a metrópole francesa, os habitan-
e a quais demandas de ordem servem (BATISTA, tes negros de São Domingos, colônia de intensa
2011). Essa tarefa pode parecer simples quando exploração e uso de mão-de-obra escrava, tam-
se trata de discursos flagrantemente desiguais bém entoavam gritos de liberdade, igualdade e
ou discriminatórios. Contudo, também os ins- fraternidade, embora com significados políticos
trumentos pretensamente igualitários, utiliza- radicalmente distintos (JAMES, 2010).
dos na luta por dignidade, podem ter sua traje- Para lidar com os paradoxos da atribuição
tória criticamente analisada. do status de humanidade — condição prévia aos
Apresentamos algumas reflexões sobre as direitos humanos —, privilegiamos o olhar para
contradições no campo dos direitos humanos, um dos maiores instrumentos de desumanização
salientando em específico a historicidade da de populações, o racismo. Sob o racismo cientí-
atribuição do status de humanidade. Admite-se fico, argumentava-se que a humanidade se divi-
que o sistema penal é um elemento importante dia em grupos biologicamente diversos e hierar-
para a compreensão dos limites desta categoria, quicamente distribuídos, cujas características
uma vez que o seu funcionamento, marcado em determinavam o comportamento físico e moral
realidades periféricas pelo racismo e colonialis- de seus membros (BANTON, 2010). A recepção,
mo, opera de acordo com matizes diferenciais pelo poder soberano, dessa lógica de hierarqui-
de humanidade. zação de populações é o que Foucault (1999) de-
nomina de racismo de Estado. O racismo, pois, é
1. Reflexões Sobre a Categoria Direitos Humanos um mecanismo que justifica que certas pessoas
sejam subjugadas à morte, mesmo quando o Es-
Os tensionamentos políticos de uma nas- tado moderno se orienta ao gerenciamento da
cente sociedade burguesa em torno do poder vida, através do biopoder (FOUCAULT, 1999).
despótico dos soberanos, fortemente conec- O racismo de Estado possibilita a segrega-
tados com o florescimento filosófico do ilumi- ção daqueles que devem viver dos que podem
nismo, desembocam na complexa categoria dos morrer e encontra-se na base das formações
direitos humanos (DOUZINAS, 2000). As raízes de terror modernas, que culminou no nazismo
da limitação do poder estatal podem remontar (MBEMBE, 2003). E é após o terror institucional
a outras formulações, mas é na modernidade do Holocausto que o discurso dos direitos hu-
burguesa que mecanismos de contenção do manos reveste-se de nova normatividade. Em
abuso se vinculam à ideia jusnaturalista de ga- 1948, elabora-se não só a Declaração Universal
rantia de direitos e liberdades próprios de todo dos Direitos Humanos, mas também é convo-
ser humano. cada uma convenção da ONU sobre o crime de
A categoria “direitos humanos” surge, de genocídio. Contudo, em realidades marginais, a
um lado, revestida de uma pretensão fortemen- desumanização racista não é uma ruptura, mas
te universal – em oposição aos privilégios es- continuidade sistemática. A partir da supracita-
tamentais da sociedade europeia do medievo da convenção da ONU, o movimento negro es-
– mas, também, marcada pela sua localização tadunidense elaborou uma petição na qual ar-
geográfica e temporal. Por isto, é seguro dizer gumentava que o regime de segregação ora em
que o titular dos direitos humanos, desde suas voga no país constituía, política e juridicamente,
primeiras formulações, tinha gênero, raça e um crime de genocídio (FLAUZINA, 2013).
status social bem definidos. A história eviden- Em espaços marcados pelo racismo
cia que a universalidade dos direitos humanos, colonialista, o poder estatal de matar — para

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Artigos

Mbembe (2003), necropoder —, não é apenas de drogas um aberto estereótipo racial. Michel-
residual ao biopoder, mas, sim, o cerne da le Alexander (2012) destaca como a política cri-
política estatal sobre as populações. Esta se minal de guerra às drogas tem contribuído para
orienta, entre outros vetores, pela violência retroalimentar o racismo estrutural, ao permitir
do sistema penal (FLAUZINA, 2008), seja ela a continuação de um estado de negação (denial)
declarada (pelas políticas de incremento punitivo deste mesmo racismo: não haveria uma guerra
e encarceramento) ou subterrânea (pelos contra os negros, diriam os defensores das polí-
poderes paraestatais que promovem extermínio, ticas repressivas, mas uma guerra contra o cri-
desaparecimento forçado, violação de domicílio). me. A intensidade violenta da política criminal
Portanto, interroga-se: o quanto a emergência em terras brasileiras contra os corpos de “jo-
discursiva dos direitos humanos pode modificar vens-homens-negros” (REIS, 2005) permite te-
realidades marginais estruturalmente marcadas cer reflexões similares às que propõe Alexander.
pelo racismo? Por outro lado, os níveis de violência ope-
rado sobre os sujeitos criminalizados somen-
2. Direitos Humanos e o Sistema de Justiça te são possíveis pela exclusão do negro da no-
Criminal ção de humanidade. Conforme aponta Flauzina
(2019): “em outras palavras, é preciso entender
O Brasil, assim como os demais países da que as dinâmicas de terror racial conseguiram
América Latina, teve a escravidão como eixo expropriar o sentido de humanidade de forma
fundamental na sua constituição histórico-so- tão brutal dos corpos negros que o sofrimento
cial. Entendendo os sistemas penais como in- imposto a esse segmento populacional não é so-
seridos nessa formação, o racismo estruturante cialmente inteligível” (p.65). No Brasil, a “raça in-
da instituição escravocrata é também um ele- forma o direito de viver” e as mortes pela polícia
mento substantivo na compreensão desses sis- são ilustrativas desse processo (JAMES; ALVES,
temas, neste lado da margem (FLAUZINA, 2008). 2017, p.139).
O racismo que estrutura os regimes escravo-
cratas tem na “desumanização (...) seu legado 3. Limites e Possibilidades
mais caro” (FLAUZINA, 2019, p.65). Esse intenso
processo de desumanização de sujeitos negros Conforme expusemos na primeira linha
levou a não apenas uma concepção restrita de deste trabalho, defendemos que discursos jurí-
cidadania, mas da própria noção de humanida- dicos são oriundos de espaços de poder e, como
de; nas palavras de João Vargas (2017), “ser negro tais, precisam ser problematizados sob o risco
significa não ser; significa ser, desde sempre, so- de se tornarem dogmas que invisibilizam confli-
cialmente morto” (p.85). tos sociais. As reflexões aqui expostas, entretan-
Com o fim do regime escravocrata, o dis- to, não visam suprir a categoria direitos huma-
curso torna-se mais sofisticado e incorpora al- nos. A categoria pode, por exemplo, funcionar
gumas doses de racismo científico, que inspiram como um limitador à barbárie dos sistemas pe-
um tratamento jurídico implicitamente diferen- nais. Para tanto, importa refletir sobre os limites
ciado. A igualdade formal precisou ser garantida, de um Estado democrático de direito, que, mes-
enquanto os sistemas penais passaram a ocupar mo após uma ditadura civil-militar de 21 anos,
posição de destaque na conformação dos corpos conciliou seus processos de redemocratização
negros. Flauzina (2008) aponta a criminalização e uma “constituição cidadã” com um aumento
da vagabundagem como um exemplo do contro- exponencial de pessoas encarceradas e um nú-
le penal: negros livres assustavam e precisavam mero de pessoas mortas apenas comparáveis
ser contidos. a países em guerra, demonstrando o que seria
É notável o papel ocupado pelo sistema “uma conciliação do trato constitucional com
penal no pós-escravidão, que retroalimenta os a plataforma da segurança pública” (FLAUZINA,
processos de desumanização sobre corpos ne- 2019, p.70).
gros – que, sob o rótulo de traficantes, passam Argumentamos, portanto, que um cami-
a ser mais legitimamente matáveis em tempos nho necessário ao ativismo em direitos huma-
de uma “neutralidade racial” –, legitimando tais nos é a compreensão das limitações históricas
processos. O discurso punitivo, assim, sofistica do conceito. Enquanto não se reconhecer “como
o discurso, ocultando sob o rótulo de traficante um ataque à ordem democrática os processos

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Artigos

sistemáticos de extermínio da população ne- FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso


gra” (FLAUZINA, 2019, p.70) e “que a degradação no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins
e morte negras não são acidentais, mas estru- Fontes, 1999.
turais” (VARGAS, 2017, p.101), não será possível JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ou-
superar o bordão repetido pelos jornais sensa- verture e a revolução de São Domingos. São Paulo:
cionalistas de que direitos humanos só são reco- Boitempo, 2010.
nhecíveis para “humanos direitos”. JAMES, Joy; AMPARO-ALVES, Jaime. Terror e secu-
ritização doméstica: geografia imperial da violência
REFERÊNCIAS policial antinegra. In: FLAUZINA, Ana; VARGAS, João
(Orgs.). Motim: Horizontes do genocídio antinegro.
BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Edições Brasília: Brado Negro, 2017.
70, 2010. MBEMBE, Achille. Necropolitcs. Public Culture, vol.
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Crimi- 15, n. 1, p. 11-40, 2003.
nologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. PIRES, Thula. Racializando o debate sobre direitos
DOUZINAS, Costa. The End of Humans Rights: Cri- humanos: limites e possibilidades da criminalização
tical Legal Thought at the Turn of the Century. Ox- do racismo no Brasil. Sur - Revista Internacional de
ford: Hart, 2000. Direitos Humanos, n. 28, v. 15, p. 65-75, 2018.
FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo negro caído no chão: o REIS, V. Atucaiados pelo Estado: as Políticas de Se-
sistema penal e o projeto genocida do Estado brasi- gurança Pública Implementadas nos Bairros Popu-
leiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. lares de Salvador e suas Representações, 1991-2001.
FLAUZINA, Ana Luiza. As dimensões racionais do Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) − Facul-
processo de ratificação da Convenção do Genocídio dade de Filosofia e Ciências Humanas da Universida-
nos Estados Unidos. Universitas/JUS, v. 24, n. 1, p. de Federal da Bahia, Salvador, 2005.
1-10, 2013. VARGAS, João. Por uma mudança de paradigma: An-
FLAUZINA, Ana Luiza. Democracia Genocida. In: PI- tinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA,
NHEIRO-MACHADO, Rosana; FREIXO, Adriano de Ana; VARGAS, João (Orgs.). Motim: Horizontes do ge-
(orgs). Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova di- nocídio antinegro. Brasília: Brado Negro, 2017.
reita e Desdemocratização, Rio de Janeiro: Oficina
Raquel, 2019.

ANA LUISA LEÃO BRUNA PORTELLA


DE AQUINO BARRETO DE NOVAES

Doutoranda em Direito Professora do Departamen-


Penal na Universidade do to de Direito da PUC-Rio.
Estado do Rio de Janeiro. Doutoranda em Direito pela
Mestra em Direito pela PUC-Rio. Mestra em Direito
Universidade Federal do pela Universidade de Brasília. Membro do Grupo
Rio de Janeiro. Membro do Grupo Clandestino Clandestino de Estudo em Cidade, Controle e
de Estudo em Cidade, Controle e Prisão (Bahia). Prisão (Bahia). Integrante do Laboratório de Crí-
Integrante do Laboratório de Críticas e Alter- ticas e Alternativas à Prisão (Rio de Janeiro).
nativas à Prisão (Rio de Janeiro). Membro do
Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

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Artigos

“O OUTRO”: GÊNERO NÃO LIDO


Por Firmiane Venâncio do Carmo Souza

“... a mulher determina-se e diferencia-se nários, uma espécie de justificativa para que a
em relação ao homem, e não este em rela- maior parte dos palestrantes fosse compos-
ção a ela; a fêmea é o inessencial perante o ta por homens veio na forma de uma pergunta
essencial. O homem é o Sujeito, o Absolu- bastante conhecida: quem são e onde estão as
to; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2009, p.17) mulheres que falam (e escrevem) sobre determi-
nados temas no Direito?
No filme “A esposa”1, a personagem Joan, Questionar onde estão as mulheres nos
estrelada por Glenn Close, experimenta o confli- espaços de produção e reprodução do conheci-
to existencial de ter deixado de lado seu talento mento realmente requer uma reflexão que pas-
como escritora, para apoiar a carreira literária do sa, inicialmente, pelo rompimento da persisten-
marido Joe, vivido por Jonathan Pryce. Quando te associação da racionalidade e cientificidade
este ganha o prêmio Nobel de Literatura, uma com o masculino. Essa herança da modernidade
torrente de questões de gênero2 vem à tona: qual (e seu contrato sexual4) implica até os dias de
o papel das mulheres em espaços eminentemen- hoje no desvalor atribuído à produção científica
te dominados pelos homens; quantas abdicam de mulheres, ou, ainda, na delimitação daquilo
de uma identidade própria para assumir o lugar sobre o que podemos pesquisar e escrever.
daquela que vive em função do nós, nas relações É ilustrativo o espanto causado recente-
sociais e instituições, incluindo aí a família. mente com a revelação pela imprensa de que
Por esses conflitos, e por outros que não pesquisadoras brasileiras, dentre as quais duas
descreverei para não revelar o desfecho da tra- negras, haviam sido as responsáveis por sequen-
ma, a personagem Joan recusa as menções elo- ciar, em tempo recorde, o genoma do coronaví-
giosas que o marido lhe dirige na cerimônia de rus5. Mas não é só, Londa Schiebinger6 chama
entrega do prêmio. A partir desse momento, a atenção para o fato de que a discussão sobre
denúncia que o filme faz acaba sendo extre- mulheres e ciência passa por questões culturais
mamente atual, porque reveladora daquilo que e sociológicas.
muitas mulheres experimentam em suas carrei- De fato, as condições de que dispõem as
ras: como é ser “o outro”. pessoas que decidem se dedicar a este mister e
A sorte da personagem Joan é um pouco os papéis sociais que desempenham estão rela-
diferente da de Simone de Beauvoir que conse- cionadas diretamente à divisão sexual do traba-
guiu desafiar a ordem patriarcal perversa nos lho. Assim, enquanto para pouco menos da me-
anos 19203, tornando-se para a história das mu- tade da humanidade a sua condição de gênero
lheres mais essencial na escrita do que Jean Paul é elemento facilitador para produzir ciência ou
Sartre, com quem conviveu. Fato é que, passados arte, para a outra metade, é o obstáculo a ser
cem anos, expressar o pensamento pela palavra ultrapassado.
em determinadas áreas, ainda implica um esfor- 4
Expressão cunhada por Carole Pateman ao discutir a au-
ço sobre-humano para muitas de nós. sência das mulheres, como sujeitos de direito no Contrato
Recentemente, em meio a intenso debate Social de Rousseau. Dizia a autora: “Apesar das diversas re-
no âmbito das Defensorias Públicas acerca da formas recentes na legislação e das mudanças mais amplas
composição de painéis em congressos e semi- na condição social das mulheres, ainda não temos a mes-
ma situação civil que os homens, embora esse fato políti-
1
Filme lançado em janeiro de 2019, com o qual a atriz Glenn co fundamental de nossas sociedades raramente seja tema
Close foi indicada ao Óscar. O roteiro é de Jane Anderson e dos debates contemporâneos sobre a teoria e a prática do
a direção de Björn Runge. contrato.” (PATEMAN, 1993, P.22)
2
A definição da historiadora Joan Scott é, desde a década de 5
Notícia veiculada em diversos veículos da imprensa
1990, uma das mais referenciadas no Brasil. Para a autora, mundial. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.
gênero é elemento constitutivo de relações sociais baseadas com.br/app/noticia/brasil/2020/03/08/interna-
nas diferenças percebidas entre os sexos e forma primária b ra s i l , 8 3 2 7 97/co n h ec a - a s - 5 - p e s q u i s a d o ra s - q u e -
de dar significado às relações de poder.(SCOTT, 1995) sequenciaram-o-genoma-do-coronavirus.shtml>. Acesso
3
Beauvoir se destaca na vida acadêmica no final da década em: 10 mar. 2020.
de 1920, embora sua primeira publicação ocorra somente 6
Historiadora norteamericana, autora do livro O Feminismo
em 1943. mudou a ciência?

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Artigos

Nesse sentido, é imprescindível levar o de- construção de painéis em congressos e semi-


bate para a seara política das relações de poder, nários que possibilitam às diversas mulheres
onde possamos questionar se os espaços públi- expressarem seu pensamento, emprestando
cos institucionais estão preparados para rece- suas perspectivas sobre as mais variadas pautas
ber um conhecimento produzido sob outras len- e debates.
tes e que evoca valores atinentes ao coletivo e à Essas ações, hoje de cunho afirmativo,
experiência de grupos que estiveram silenciados certamente impactarão nas próximas gerações,
durante tanto tempo. E, talvez por isso mesmo, para quem não constrangerá a pergunta: quan-
vocalizem posições desconfortáveis. Lembrando tos livros, teses, ensaios e artigos escritos por
que o desconforto é também virtude e experiên- mulheres você leu no último ano?
cia pedagógica.
Portanto, as mulheres que falam e escre- REFERÊNCIAS
vem sobre todas as áreas do Direito estarão por
toda parte, desde que disponham das mesmas BEAUVOIR, Simone de. “O segundo sexo”. 2ª ed. Rio
condições públicas (disponibilização de espa- de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
ços para publicar/falar e mercado que valorize PATEMAN, Carole. “O Contrato Sexual”. São Paulo/
esse saber, inclusive economicamente), quanto Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, pp.15-65.
privadas (relações que primem pelo respeito ao SCHIENBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciên-
tempo necessário para produzir, divisão de ta- cia? / Londa Schiebinger ;tradução de Raul Fiker. - -
refas domésticas e obrigações compartilhadas Bauru, SP : EDUSC, 2001.
independente de qual seja o arranjo familiar SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de
em que se viva). análise histórica. Educação & Realidade. Porto Ale-
Algumas instituições, selos editoriais, gre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99
têm adotado políticas de equidade de gênero
e raça na formação de conselhos editoriais, na

FIRMIANE VENÂNCIO DO CARMO SOUZA

Defensora Pública do Estado da Bahia com atuação nos Tribunais, Mestra


e Doutoranda pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Gênero,
Mulheres e Feminismos da Universidade Federal da Bahia.

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Artigos

AS CARAVANAS DESSA GENTE TÃO ESTRANHA,


DE SER MULHER, DE SER RÉU
Por Lavinie Eloah Cerqueira Pinho

Não foi preciso tantos anos de prática para faz a tipificação preliminar), 62,33% dos casos o
perceber, desde o início, que atuar na defesa cri- agente de segurança foi a única testemunha ou-
minal é adaptar-se a conviver com a angústia. vida no processo e em 53,79% dos casos o de-
Sobretudo, quando o lugar de fala é ocupado por poimento do agente de segurança foi a principal
uma mulher, atuando como Defensora Pública prova valorada pelo juiz para alcançar sua con-
no interior do Estado, iniciando a atribuição na clusão.
Comarca de Ribeira do Pombal/BA, cujas expe- Em diálogo com a pesquisa da DPE/RJ,
riências individuais servem para entender como Saulo Mattos (MATTOS, 2018) verificou que a
o lugar social que estes grupos ocupam restrin- primeira providência tomada pelo Ministério
gem oportunidades, produzem um lugar estrutu- Público baiano ao receber um inquérito refe-
ralmente silenciado, resulta em uma maior desi- rente a drogas é a denúncia, peça inaugural em
gualdade entre as partes (acusação e defesa) e faz 83,4% dos processos, contra 33 (7,40%) pedidos
com que as vozes “sejam tratadas de modo igual- de remessa, 27 (6,05%) pedidos de diligência e 14
mente subalternizadas” (RIBEIRO, 2017, p. 63). (3,14%) pedidos de arquivamento. No curso do
Esta inquietude, esse barulho que em- processo, outra pesquisa aponta que 64,5% dos
brulha por dentro, na mesma proporção que réus respondem o processo preso preventiva-
assombra, fomenta, e parece vir especialmente mente, sendo que 35,9% ficam presos durante
da insegurança jurídica que contamina a práti- parte do processo e 28,9%, durante todo o pro-
ca penal. Por tudo, o caldo engrossa quando a cesso (BARRETO, 2017, p. 74-75). Recentemente,
seletividade penal (BATISTA, 2007) passa a fazer um estudo revela que 90% das denúncias, nos
parte da receita e o espaço se torna livre e fértil crimes de tráfico de drogas, foram baseados no
para casuística. depoimento do agente policial, elemento que é
Não há surpresa em constatar que muito utilizado pelas(os) magistradas(os) como prova
dessa ausência de mínima racionalidade ao infli- extremamente relevante nas sentenças judiciais
gir dor (HULSMAN; CELIS, 2018) se apoia em ti- (SEMER, 2019, p. 187). Os dados coletados nes-
pos penais abertos, que, de constitucionalidade tas pesquisas refletem-se na conta do sistema
duvidosa, são local adequado para o solipsismo carcerário: o site do Senado Federal demonstra
judicial (STRECK, 2007). Este, então, adquire fil- que, desde a entrada em vigor da nova legislação
tro mais perverso quando olhado pelo viés se- sobre as drogas, em 2006, a população carcerá-
letivo. Nesse mar de incertezas, a Lei de Drogas ria subiu 37%.
é a alegoria perfeita para uma mistura explosiva E, se na capital o moinho de moer gen-
(e cruel) de tipos penais abertos, marcada pelo te (BATISTA, 2011) rompe com as estruturas
racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e pela sub- mais sólidas de resistência, no interior, tudo
jetividade das decisões judiciais. isso se acentua gravemente. A pessoalização
Coincidência ou não, a partir de 2006, ano do jogo penal (ROSA, 2016) e as questões de
em que é promulgada a Lei de Drogas, há um ex- gênero servem ao poder punitivo como forte
pressivo aumento no número de prisões (CER- elemento para fragilizar (ainda mais) a defesa
QUEIRA; NEVES, 2018, p. 108), uma explosão criminal. O ritual reproduz o quadro mental
desumana da população carcerária (BORGES, paranoico (CORDERO, p. 51) do machismo: fil-
2018) e uma crescente vertiginosa do recrudes- magens da defensora pelos agentes de segu-
cimento do poder punitivo, embora a lei tenha rança; “buchichos” de que o quórum das sa-
sido inovadora ao distinguir o traficante do usu- las de audiência ficam cheios para ver se “ela”
ário. Nessa base, a Defensoria Pública do Rio de aguenta a pressão das audiências e do plená-
Janeiro publicou, em 2019, o mapa das sentenças rio; o olhar desconfiado do assistido à primeira
judiciais de tráfico de drogas. vista e a fragilidade que é forjada pelos demais
O relatório aponta que, em 2008, como atores do sistema penal (CARVALHO, 2010) são
consequência deste subjetivismo legal, os am- práticas comuns ao ver uma mulher ocupando
plos poderes conferidos ao agente policial (quem o lugar da defesa.

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Artigos

Uma mulher desempenhando esta função, A esperança é que este momento, em que
especialmente quando é comprometida com o a dor da pandemia do Covid-19 (o novo corona-
Estado de Direito e a Constituição, é uma “es- vírus) atinge a todas e todos, sem distinção de
tranha”, uma ameaça à autoridade, uma intrusa raça, classe e gênero, construa um ambiente
“(...) quando pinta em Copacabana”, no meio de propício para que os atores do sistema possam
“(...) gente ordeira e virtuosa” (Chico Buarque), refletir sobre a necessidade de ter sensibilidade
nos espaços privilegiados do Poder Judiciário. humana na atuação da Justiça Criminal. Ou não
Evidentemente que isto é potencializado pela perceberam que essa “(...) gente tão insana” são
posição de defesa do réu, alvo certo da “jaula eles, essa gente muito estranha nessa “zoeira”
para prender seres humanos” (BINDER, 2003), de colocar os “(...) crioulos empilhados no porão”
o mais “estranho” de todos naquele arquétipo. (Chico Buarque)?
É por isso que o fundamental é se tornar uma
pensadora crítica, comprometida com a prática REFERÊNCIAS
da liberdade (HOOKS, 2017, p. 14-15), conscien-
te da necessidade de uma análise pelo realis- ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Belo Horizon-
mo jurídico-penal marginal: o ponto de vista de te: Letramento-Justificando, 2019.
uma região marginal do poder planetário, em BARRETO, Ana Luisa Leão de Aquino Urgência puni-
que se aprofundam “as contradições e antago- tiva e tráfico de drogas: as prisões cautelares entre
nismos na realidade latino-americana” (ZAFFA- práticas e discursos nas Varas de Tóxicos de Salva-
RONI, 2015). dor / Ana Luisa Leão de Aquino Barreto. -- Rio de
É, então, necessário perceber que se re- Janeiro, 2017.
finaram os instrumentos críticos e não é pos- https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdis-
sível exercer a litigância somente no âmbito cussao/dependencia-quimica/crack-chama-a-a-
individual. A defesa no processo penal precisa tencao-para-dependencia-quimica/populacao-car-
ser impulsionada por estratégias coletivas, ca- ceraria.aspx, acessado em 16.03.2020, às 20 horas.
bendo às instituições do sistema de justiça ser BATISTA, Nilo. Introdução crítica do Direito Penal
provocadas para utilizar dos instrumentos pro- brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
cessuais (ADPF, Mandado de segurança coletivo BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Crimi-
etc.) capazes de resolver questões estruturais, nologia Brasileira. Rio de Janeiro: Renavan, 2011.
sob pena da atuação individual não alcançar re- BORGES, Juliana, O que é encarceramento em mas-
sultados efetivos. Como exemplo, a Central de sa? Belo Horizonte: Letramento-Justificando, 2018.
Vagas do Sistema Penitenciário Estadual (Reso- BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processu-
lução Conjunta nº 3/2012) do Paraná é utiliza- al Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
da para uniformizar os critérios para remoção CERQUEIRA, Marina; NEVES, Luiz Gabriel Batista.
de presos, resultado de uma ação civil pública Por que a prisão cautelar no Brasil é uma medida
do Ministério Público (processo tombado sob o prima ratio(?): uma análise crítica aos desafios para
nº 0002481-85.2013.8.16.0089, em trâmite na 5ª a efetivação da Lei 12.403/2011. In: Desafiando a In-
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, quisição: ideias e propostas para a reforma processu-
Rel. Nilson Mizuta), que questionou a superlo- al penal no Brasil. Volume II. (Org.) Lorena Espinosa e
tação dos presídios em todas as comarcas do Paula R. Ballesteros. Santiago: Centro de Estudios de
Estado. Ou ainda, o estudo técnico da Secre- Justicia de las Américas, 2018.
taria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema
Humanos – Departamento Estadual de Políticas Penal na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiado
Públicas sobre Drogas do Estado do Paraná que da Aplicação da Pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
sistematizou dados sobre a informação do re- CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. To-
quisito objetivo da Lei n. 11.343/06. rino: UTET, 1986.
Estas medidas, se somadas a uma mudança DPE/RJ, Defensoria Pública do Estado do Rio de Ja-
de postura das pessoas que trabalham (das mais neiro. Pesquisa sobre as sentenças judiciais por trá-
diversas formas) no sistema de justiça criminal, fico de drogas na cidade e região metropolitana do
pode representar, ainda que de maneira bem tí- Rio de Janeiro. Disponível em http://www.defen-
mida e gradativa, um maior compromisso com soria.rj.def.br/Documento/Institucional-pesquisas.
os direitos humanos e os princípios fundamen- Acesso em: 14.03.2020
tais do processo penal democrático. HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação

31
Artigos

como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Horizonte: Letramento-Justificando, 2017.


Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2017 SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant
perdidas: o sistema penal em questão. Belo Horizon- lo blanch, 2019.
te: D´Plácido, 2018. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, Consti-
MATTOS, Saulo Murilo de Oliveira. Ministério Públi- tuição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: da pos-
co, Persecução Penal e Tráfico de Drogas: achados sibilidade à necessidade de respostas corretas em
empíricos. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019. Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do pro- ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas per-
cesso penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. Flo- didas. Rio de Janeiro: Renavan, 2015.
rianópolis: Empório do Direito, 2016.
RIBEIRO, Djamila, 2017. O que é lugar de fala? Belo

LAVINIE ELOAH CERQUEIRA PINHO

Pós-graduada em ciências criminais pela Universidade Federal da Bahia,


Defensora Pública do Estado da Bahia.

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Artigos

MEU SONHO É MORAR NAS NOTÍCIAS DO MÊS DE MARÇO


Por Amanda Quaresma

O protagonismo das mulheres nos meios em relação ao machismo ou construções de


de comunicação de massa, de modo geral, está masculinidades.
reduzido ao conjunto de crenças que cercam o Ao contrário, os fatos são narrados de for-
feminino, colocando-as, principalmente, na fun- ma tão vívida que é possível reviver os detalhes
ção social de mãe, dona-de-casa, objeto sexual, sórdidos e colocar-se no lugar dos autores dos
serviçal, vítimas de violência de gênero ou qual- delitos, dando espaço para justificar as violências
quer posição de fragilidade e submissão. perpetradas como atos de ciúmes, amor e pas-
Nesse contexto, os meios de comunicação sionalidade. Assim, as masculinidades, ao invés
de massa são responsáveis pela construção da re- de questionadas, são colocadas no lugar do sen-
alidade e pelo monopólio da narrativa da verdade timento incontrolável, desculpabilizando os au-
(BOURDIEU, 2004), de modo que passam a ser a tores dos crimes. A partir de uma manipulação
prótese do pensamento (TIBURI, 2011). Noutros da narrativa e da aceitação desses como motivos
termos, se a mulher é, constantemente, veiculada para a morte, os meios de comunicação acabam
na mídia enquanto dominada pelo masculino, tal reforçando esse sentimento de propriedade dos
informação torna-se verdade inquestionável para homens em relação às mulheres.
a opinião pública. Afinal, como Beauvoir afirmou, Desse modo, ao comparar as matérias que
não se nasce mulher, mas se torna uma, a partir são veiculadas no terceiro mês do ano com as
da incorporação dos ideais construídos pela civi- dos meses que se seguem, tem-se a impressão
lização (BEAUVOIR, 1967, p. 09). de que a ausência de material mais crítico é
No entanto, basta a aproximação do dito uma escolha refletida e consciente do conselho
“mês das mulheres”, para que as notícias vei- editorial, deixando claro quais são os reais in-
culadas modifiquem a sua linguagem, cenário, teresses da sua mídia: atrair clicks e audiência
público alvo e a narrativa trazida para a opinião para os seus anunciantes, mesmo que seja ne-
pública, falseando-se a sensação de que o pa- cessário utilizar-se do terror e da objetificação
norama sempre foi este do mês de março: de feminina.
empoderamento feminino, mulheres ocupando Evidente que a visibilidade da violência
lugares de destaque positivo, conscientização contra a mulher restrita aos cadernos policiais
acerca da violência contra mulher, além de ou- não contribui para mostrá-la como um pro-
tras cortinas de fumaça que escondem o modus blema social de interesse público. A predomi-
operandi do enquadramento padrão das mulhe- nância de informações sobre casos individuais,
res pela mídia. sem nenhuma ou com pouquíssima menção ao
Neste ano, logo no início do fatídico mar- patriarcado estrutural no texto dessas reporta-
ço, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia gens, favorece a naturalização do papel de víti-
traz o dado do aumento em 32,9% dos feminicí- ma feminino.
dios praticados no Estado em 2019 comparado Assim sendo, a rotinização das notícias da
ao ano anterior. Tal dado é divulgado com es- morte de mulheres pelo simples fato de serem
panto pelas mídias locais, no entanto, para quem mulheres, sem uma provocação à reflexão das
está atento às violências cotidianas, a informa- causas deletérias desses assassinatos, convida
ção alarmante não é novidade: sentimos o corte a audiência a aceitar os crimes mais ultrajantes
na carne feminina dia após dia. como uma característica natural e cultural da
Ao realizar uma análise do conteúdo das sociedade, quando, em verdade, sabemos que as
notícias veiculadas sobre feminicídios em por- construções de gênero são esculturas.
tais online baianos no período de abril e maio A exposição dos crimes de feminicídio nos
de 2019, foi possível constatar que as palavras meios de comunicação, nos moldes atuais, re-
mais utilizadas nas reportagens sobre o tema força a cristalização da narrativa da ideologia
davam enfoque em noticiar fatos como um fast androcêntrica dominante, desencadeando e
food jornalístico: sem estimular reflexões, pro- transmutando a crueldade das notícias para a
blematizações ou conscientização do público vida cotidiana.

33
Artigos

Ressalta-se que o presente artigo não tem REFERÊNCIAS


a intenção, no entanto, de pôr a responsabilida-
de de toda a narrativa misógina, racista e clas- BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janei-
sicista construída ao longo dos séculos apenas ro: Bertrand Brasil, 2004
nos meios de comunicação, todavia, voltar os TIBURI, Márcia. Olho de vidro. A televisão e o estado
olhares para a culpa de espelhar comporta- de exceção da imagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
mentos retrógrados ao invés de propor refle- BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. A experiência
xões quanto aos valores que almejamos ter, é vivida. 2ª Ed. Difusão Europeia do Livro, São Paulo,
uma responsabilização que devemos lhes atri- 1967.
buir a autoria.

AMANDA QUARESMA

Mestranda em Direito Penal e Liberdades Públicas (UFBA).


Graduada em Direito (UFBA). Membra do Grupo de Pesquisa
"Feminismos e Processo Penal", vinculado ao Instituto Baiano
de Processo Penal - IBADPP. Advogada Monitora do Patronato
de Presos e Egressos do Estado da Bahia - PPE/BA no Conjunto
Penal Feminino.

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Artigos

POR UM ESPAÇO POSSÍVEL DE DISCUSSÃO


ACERCA DA DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL
Por Luciana de Oliveira Monteiro

Todo aquele que observa os efeitos da es- co produzido pelos juristas, o qual se apresenta
piral crescente de utilização da intervenção es- como poderoso instrumento de contenção ao
tatal, pela via do Direito Penal e de suas agências pernicioso fenômeno de desintegração discur-
de controle, como instrumento para a solução siva que envolve a alienação política de teóricos
de conflitos e disputas em sociedade, cedo ou com a alienação técnica de políticos (ZAFFARO-
tarde se depara com a constatação de que se NI, 2002) e, para além disso, o preocupante ati-
trata de uma experiência coletiva frustrante. vismo político de setores do Poder Judiciário.
Muito aquém do avanço civilizatório que, Sob essa perspectiva, incumbe ao juris-
individualmente e enquanto corpo social, se al- ta, em revigorado compromisso, esclarecer e
meja, sob a égide do Estado Democrático de Di- disseminar os limites intrínsecos à atividade
reito, o que se descortina é o desenfreado retro- persecutória do estado, reiterando e propon-
cesso. A agudeza e o desacerto da radicalização do parâmetros propositivos, valorativos, in-
das respostas oferecidas pelo Estado Brasileiro, terpretativos e prescritivos concernentes ao
na sua atual conjuntura impressiona, na mesma que punir, por que punir, quando e como punir
medida em que assusta constatar que semelhan- (FERRAJOLI, 1995) aliados, indissociavelmente,
te arsenal ideológico é compartilhado por um à correlativa busca de critérios racionais de de-
significativo contingente de apoiadores ao for- terminação dos fatos pela via do devido proces-
talecimento do recurso à violência. so legal (NARDELLI, 2019).
Crenças hiperbólicas acerca da função, fi- Mas o que isso significa?
nalidade e eficácia do Direito Penal, impulsiona- A especial transcendência da dogmática
das artificialmente a partir de uma visão ahis- jurídico-penal pode ser demonstrada de diver-
tórica e irrefletida dos fatores determinantes sas formas. Uma aproximação ao significado
dos processos de criminalização e dos índices desta assertiva pode ser feita, por exemplo, com
de criminalidade, conduzem à inevitável distor- a análise de decisões judiciais que, a partir da
ção das decisões, desde a escolha dos métodos consideração das categorias sistemáticas do de-
investigativos e persecutórios até o momento lito, tratam do juízo de subsunção de um fato à
da interpretação e aplicação da norma penal na norma penal incriminadora.
apreciação, pelo judiciário, de casos concretos. Caso concreto, de grande notoriedade,
Nesse contexto há de se fortalecer, em como foi o rompimento da barragem do Fun-
sentido contraposto, a partir de uma atitude dão, situada no Complexo Industrial de Germa-
propedêutica e pedagógica, o saber e o labor dos no, Município de Mariana/MG, em 05/11/2015,
juristas (ZAFFARONI, 2015). constitui, em termos jurídicos, um campo fértil
Com efeito, o horizonte de equívocos e para a observação e análise, entre outros as-
incertezas que se descortina cobra dos ope- pectos, de erros e acertos na delimitação da re-
radores do sistema de justiça penal o compro- levância penal das condutas das pessoas físicas
metimento diário com o alcance da racionali- denunciadas e correlativa definição dos crimes
dade das deliberações judiciais. Propósito que que se consideram por elas praticados, no âm-
se revela possível conforme a compreensão e bito do processo n° 0002725-15.2016.4.01.3822,
valorização da dogmática jurídico-penal den- em trâmite perante a Vara Federal de Ponte
tro dos procedimentos de atribuição de res- Nova/MG.
ponsabilidade penal. Atuação que se apresen- Para que se tenha a representação práti-
ta concretamente marcada pela utilização de ca do alcance da reflexão proposta é suficiente
critérios técnicos que viabilizem a aplicação referir que, enquanto o MPF considera possível,
segura e calculável do Direito Penal na prática, segundo a denúncia, a maximização do âmbito
com o objetivo de reduzir o arbítrio, o impro- da responsabilidade penal a partir da tipificação
viso e, notadamente, a violência estatal. e imputação autônoma dos crimes de homicídio
Adquire, assim, notável relevância o in- qualificado e lesão corporal, em comissão, por
cremento da difusão do conhecimento científi- omissão e por dolo eventual, concomitantemen-

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Artigos

te com os crimes de inundação e desmorona- gravosos, os quais vêm sendo historicamente ne-
mento, sustentando a incidência do art. 13, § 2º, gligenciados no Brasil.
alínea “a”, art. 18, I, e art. 70, do Código Penal, c/c E não é só. A reflexão exige o olhar perti-
art. 2º, da Lei n.º 9.605/98, art. 121, § 2º, I, III e IV nente e atento à realidade local, capaz de tornar
(dezenove vezes), art. 129 (uma vez na forma do a elaboração e compreensão dogmática perme-
caput; c/c §1º, incisos I e III, por três vezes, sen- ável às vicissitudes da vida de relação que, entre
do duas c/c §7º), art. 254 e art. 256, todos do Có- nós, se desenvolve em um ambiente de marca-
digo Penal (além de outros dispositivos incrimi- das diferenças sociais e econômicas, conforma-
nadores da Lei 9.605/98); o TRF1, no julgamento da pelo racismo e por processos de marginali-
unânime do HC 0010679-98.2017.4.01.0000/MG, zação e criminalização seletiva, sem perder de
entendeu pela redução do campo da imputação, vista, ainda, a análise das consequências práticas
firmando a premissa de que, diante dos fatos es- e sistemáticas da utilização de critérios jurídico-
pecificamente narrados na exordial acusatória, -dogmáticos nos processos decisórios.
não é tecnicamente possível a caracterização Sob este enfoque, a dogmática jurídico-
autônoma dos crimes de homicídio qualificado e -penal encontra-se diante de um grande desa-
de lesão corporal. Dessa forma, ajustou-se, ain- fio e (arrisca-se dizer) encontra-se viva e aberta
da na etapa inicial do processo, a subsunção dos a todo aquele que se proponha discutir as cate-
fatos atribuídos às pessoas físicas denunciadas gorias sistemáticas estruturantes da teoria do
como sendo estas, em tese, responsáveis, pelo delito, bem como critérios de imputação e atri-
crime de inundação qualificado pelos resultados buição de responsabilidade penal, com vistas
morte e lesão corporal, sob a regência dos arti- à sua aplicação na solução de casos concretos
gos 254 e 258 do CP, com significativas implica- no âmbito do sistema de justiça criminal, sem
ções para o procedimento em curso. renunciar, é claro, à conformação negativa dos
Distante de um horizonte claro de defini- marcos de atuação do Direito Penal, ou seja, à
ção jurídico-penal, o caso é representativo de análise crítica e reflexiva sobre os limites da
uma das maiores tragédias ambientais do país, intervenção estatal e os caminhos que se fazem
ao qual se soma o funesto rompimento, em necessários percorrer para um futuro, quiçá,
25/01/2019, da Barragem da Mina do Feijão, lo- sem o Direito Penal.
calizada no Município de Brumadinho/MG, que
deu lugar a cerca de 260 mortes. REFERÊNCIAS
A gravidade e dimensão dos eventos não
pode, no entanto, conduzir à renúncia da aplica- FERRAJOLI, Luigi. Derecho e razón. Teoria del garan-
ção segura e calculável do Direito Penal que se tismo penal. Madrid: Trotta, 1995.
torna possível, tal como referido, com a utilização NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no Tribu-
de critérios racionais de imputação. Se o método nal do Júri. Uma abordagem racionalista. Rio de Ja-
de trabalho dos juristas conduz a uma redução da neiro: Lumen Juris, 2019.
incidência do poder punitivo, a tendência longe ZAFFARONI, Eugenio Raul. Política y dogmática
está de constituir o sofisma da impunidade. Em- jurídico penal. Revista Direito e Democracia. Canoas.
bora esta última ideia seja disseminada discur- Vol. 3, nº1. 2002, pp. 447-467. Disponível em: <http://
sivamente como consequência da imposição de w w w.periodicos.ul bra.br/index.php/direi to/
limites e do oferecimento de garantias ao proces- article/view/2441>. Acesso em 20/01/2020.
sado, a delimitação de um marco de atuação con- ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
creto para o Direito Penal aproxima-se em maior Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasi-
medida do estímulo à adoção de mecanismos dis- leiro. 1º Vol. Teoria Geral do Direito Penal. 4ª ed. 2ª
tintos e mais eficazes de prevenção de resultados reimpressão. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

LUCIANA DE OLIVEIRA MONTEIRO

Doutora em Direito pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha/Espanha.


Professora de Direito Penal e Assessora de Desembargador no Tribunal de
Justiça do Estado da Bahia. Associada ao Instituto Baiano de Direito Processual
Penal. Integra a Diretoria do IBADPP na gestão 2019/2020.

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Artigos

PODERES DE INVESTIGAÇÃO NO
COMBATE AOS CRIMES FINANCEIROS
Por Páris Borges

Em 2018, a publicização de um Relatório do CPP), então podemos dizer que qualquer pes-
de Inteligência Financeira (RIF) do Conselho de soa do povo pode promover uma investigação cri-
Controle de Atividades Financeiras (COAF), que minal, colhendo indícios com potencial de futura-
apontava movimentações suspeitas em contas mente instruir um processo penal. Neste sentido,
do senador da república Flávio Bolsonaro, rea- a expressão “poder de investigação” não parece
cendeu um debate público que parece longe de mais ter utilidade, já que, se a qualquer um cabe
encontrar um fim. Afinal, quais atores e institui- este poder, não é o caso de usar uma expressão
ções da República possuem “poder de investiga- que induza a um entendimento de exclusividade.
ção”? Indícios de crime achados por outros ato- O segundo significado diz respeito a um
res que não os delegados de polícia e membros poder conferido a determinado ator para exe-
do Ministério Público podem ser aceitos em um cutar medidas excepcionais, limitando direitos
processo penal? de indivíduos com o intuito de melhor condu-
É provável que a ambiguidade da expres- zir uma investigação e preservar indícios. Este
são “poder de investigação” seja causadora de significado parece ser mais apropriado, pois, se
grande parte das divergências, pois ora é uti- como demonstrado, apesar de qualquer pessoa
lizada com o significado de “competência res- poder conduzir uma investigação, os meios ne-
trita a alguns atores para conduzir investiga- cessários para levar esta investigação a termo
ções”, ora com o de “poder excepcional para não estão à disposição de todos. Aí sim a expres-
executar medidas que ferem ou limitam direi- são “poder de investigação” parece ter utilidade
tos individuais”. para indicar que se trata de algo excepcional.
É certo que o primeiro significado, que Dessa forma, os delegados de polícia, por exem-
diz respeito à competência para conduzir uma plo, têm o poder de determinar a apreensão de
investigação, não significa um monopólio des- objetos relacionados ao fato (art 6º, II, CPP), de
ta atividade pelas Polícias Judiciárias. Podemos requerer ao Poder Judiciário solicitando inter-
facilmente encontrar a autorização expressa no ceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário,
ordenamento jurídico para que outros atores e busca e apreensão em residências (art. 3º-B, XI,
instituições procedam a investigações crimi- CPP), de representar ao juiz por medidas cau-
nais, como é o caso por exemplo das Comis- telares, inclusive a prisão provisória (art. 282,
sões Parlamentares de Inquérito (CPI) ou dos §2º CPP), além de deter o poder de lavrar o auto
Inquéritos Penais Militares (IPM) conduzidos de prisão em flagrante (art. 304 CPP). A outros
pelas forças armadas, polícias militares e cor- atores também cabem poderes especiais, como
pos de bombeiros militares. O próprio Código o caso das CPI´s, que têm o poder de quebrar o
de Processo Penal assenta que a competência sigilo fiscal e bancário de um investigado, sem
das autoridades policiais para apurar infrações a necessidade de autorização judicial (MS 23669
penais não exclui a de autoridades administra- STF e outros precedentes desta corte). É neste
tivas (art 4º P.U. CPP). Em 2015, uma decisão do sentido, portanto, que é possível distinguir as
Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraor- investigações conduzidas por delegados de po-
dinário 593727 reconheceu também o poder do lícia, promotores e outros atores que detêm po-
Ministério Público de conduzir investigações deres para interferir em direitos individuais de
criminais. Portanto, não estamos diante de um uma investigação conduzida por qualquer pes-
monopólio. soa desprovida destes poderes.
Contudo, gostaria de propor uma interpre- Cumpre ressaltar que uma das caracte-
tação ainda mais abrangente dos dispositivos do rísticas do inquérito policial é justamente a dis-
Código de Processo Penal e da Constituição Fe- pensabilidade (vide arts. 39, §5º 46, §1º do CPP),
deral. Considerando que qualquer pessoa do povo sendo facultada ao Ministério Público a possibi-
pode encaminhar às autoridades policiais ou ao lidade de oferecer denúncia baseada apenas nos
Ministério Público informações a respeito do co- indícios de que tenha tomado conhecimento por
metimento de infração penal (art. 5º, §3º e art. 27 ação própria ou por informação de terceiros (o

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Artigos

que reforça o entendimento de que qualquer um processo penal. Em razão destes atores mante-
pode investigar). rem consigo a decisão do que fazer com as infor-
Como tentei demonstrar, qualquer pessoa mações recebidas, a atuação do COAF não repre-
ou instituição pode conduzir uma investigação senta uma ameaça de competição por espaço e
no sentido de buscar informações e indícios de poder, mas uma vantagem, pois torna o COAF um
autoria e materialidade de crimes, contudo, so- intermediário para ampliação de seus próprios
mente alguns atores têm poderes para fazê-lo poderes. É o que se pôde constatar na operação
suprimindo direitos individuais. O que existe Lava-Jato. Visando a brecha aberta para amplia-
é uma constante disputa entre diversos atores ção indireta de seus poderes e principalmente
para conquistar/ampliar esses poderes e para beneficiados por um momento onde a tecnolo-
impedir que concorrentes conquistem/ampliem gia possibilitava o trânsito e análise de volumes
os seus. Quanto mais exclusivo for o poder, gigantescos de informações, os procuradores
maior o seu valor político. Michel Misse (2010) da república passaram a utilizar os relatórios do
demonstra como essa construção monopólica COAF como principal ferramenta para obter in-
de poder e sua concentração nas mãos de alguns dícios de crimes financeiros. Como sempre, este
atores criam o que ele chama de “mercadorias poder foi também usado de maneira seletiva, cri-
políticas” – com potencial de serem negociadas minalizando certos indivíduos e evitando “melin-
através de clientelismos, tráfico de influências, drar” quem era visto como aliado político.
acordos ilícitos, corrupção ou até extorsão. Ao longo de 2019, o controle do COAF pas-
Voltando para o caso que motivou este sou então a ser disputado e o seu poder de inves-
breve ensaio, o COAF foi criado pela lei 9.613/98, tigação questionado. Após passar pelo Ministério
que lhe conferiu o poder de receber das insti- da Justiça e voltar para o Ministério da Economia,
tuições financeiras informações sigilosas sobre o COAF finalmente foi vinculado ao Banco Central.
movimentações que pudessem configurar cri- A possibilidade de compartilhamento de informa-
mes de lavagem de dinheiro. O COAF pode in- ções com o Ministério Público e Polícias Judiciárias
clusive receber e analisar informações de pes- foi negada liminarmente durante a tramitação do
soas que possuem foro especial por prerrogativa Recurso Extraordinário 1055941 no STF, trancando
de função, aliás, deve trabalhar principalmente todas as investigações que utilizavam RIF’s. Depois,
com informações destes que são classificados com a conclusão do julgamento, o STF decidiu au-
como “pessoas politicamente expostas”. A mes- torizar o compartilhamento de informações. Con-
ma lei criou a obrigação para estas instituições tudo, em janeiro de 2020, a Lei 13.974, sancionada
financeiras de manterem registros detalhados e pelo Presidente da República, criminalizou a con-
informar ao COAF sobre movimentações suspei- duta de membros do COAF que venham a revelar
tas. Os poderes do COAF são, portanto, conferi- informações a quem não tenha autorização legal
dos por Lei, tal qual os poderes de investigação ou judicial para acessá-las (art. 8º, §1º), ressusci-
das autoridades policiais, conferidos pelo Códi- tando mais uma vez o debate.
go de Processo Penal. O dilema sobre o qual se funda este de-
Não quero aqui simplesmente realizar uma bate público é o choque entre a necessidade de
defesa dogmática da possibilidade jurídica de repressão a crimes financeiros versus o direito
órgãos administrativos legalmente imbuídos da constitucional ao sigilo bancário. Poderes excep-
atribuição de fiscalizar transações financeiras cionais como os que foram conferidos ao COAF
encaminharem indícios de materialidade e auto- são comumente distribuídos com a promessa de
ria de crimes para o Ministério Público e Polícias resolver através do Direito Penal graves confli-
Judiciárias. O imbróglio judicial sobre os limites tos sociais, como o terrorismo e a proliferação
da atuação do COAF foi motivado por disputas de armas nucleares1, quando na verdade o que
de poder e não por exercícios hermenêuticos de 1
O COAF se insere no cenário internacional como elo de
interpretação da lei descolados do sentido políti- ligação com o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem
co que lhes dão os respectivos atores envolvidos. de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – GAFI
Para os delegados de polícia e promotores, os (ou Financial Action Task Force – FATF), uma iniciativa
intergovernamental que orienta a produção de normas
relatórios do COAF contêm informações valiosas
que visam o combate a crimes de lavagem de dinheiro e
obtidas sem a necessidade de solicitar expedição relacionados. Como definido pelo próprio grupo “The
de mandados judiciais e que, a seu discernimen- Financial Action Task Force (FATF) is the global money
to, podem iniciar um inquérito policial ou um laundering and terrorist financing watchdog.”

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Artigos

fazem é serem instrumentalizados por atores dos prometidos, mascara a inevitabilidade dos
de controle social que os utilizam de maneira movimentos de expansão e retração de um Es-
seletiva, recrudescendo o arbítrio e o autorita- tado Policial, que ora aquiesce com os avanços
rismo que marcam o sistema de justiça crimi- dos agentes de controle social, lhes garantindo
nal. A solução tampouco passa pela manutenção a utilização de poderes de investigação extraor-
de um sistema financeiro opaco, impossibilitan- dinários para perseguir seus objetivos pessoais,
do qualquer tipo de investigação sem “supervi- ora impõe limites a estes mesmos poderes, não
são judicial” (reproduzindo o termo usado pelo por um prestígio ao Estado de Direito, mas por
Ministro Dias Toffoli em sua decisão monocráti- razão do momento histórico e da influência dos
ca no RE 1055941, que suspendeu a investigação atores políticos alvos das investigações.
sobre Flávio Bolsonaro e os demais processos
que utilizavam RIF’s do COAF). A ponderação ju- REFERÊNCIAS
rídica entre estas duas soluções, criando meio
termos e reformando o Direito Penal com a MISSE, Michel. Trocas ilícitas e mercadorias políti-
eterna promessa de que a partir de mais uma cas. Anuário Antropológico, II, 2010, p. 89-107.
alteração ele finalmente entregará os resulta-

PARÍS BORGES

Pesquisadora do LAESP/INCT-InEAC Laboratório de Estudos sobre conflito


cidadania e segurança pública. Mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.
Bacharel em Direito e Agente da Polícia Rodoviária Federal.

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Artigos

A VONTADE DE PODER DA SANTÍSSIMA TRINDADE BOLSONARIANA


E A CRUZADA CONTRA OS MENSAGEIROS DO COVID-19
Por Jacqueline Muniz

Há um cálculo na jogada da Santíssima heroica de denunciar tudo, todos, ele mesmo.


Trindade (Pai, Filho e as Fakenews). A retórica li- Ele, o (des)político (des)comprometido que faz
bertária antissistema – “não tô nem aí”– substitui e desfaz o que não fez para despolitizar o reba-
a condução política “impura” do Estado por um nho, provocando um estado de susto que alerta
comando missionário “puro” da nação. Em vez suas ovelhas contra as tramoias dos outros, as
de agir como governante, age intencionalmente raposas da política. Os outros têm ideologia, ele
como um mártir destemido, independente e vi- tem a verdade revelada.
sionário, o ELEITO, que vive o RITO do sacrifício A unidade é ele, o profeta que cura o re-
público das desmoralizações, xingamentos e pa- banho e o chefe tribal que leva a Terra sem
nelaços dos eleitores para se fazer MITO. Males. A unidade do pensamento único, tota-
“Ser (do) contra” o seu próprio governo é litário-afetivo que faz crer que os ELEITORES
uma tática para obter um poder virtuoso acima são especiais, porque foram por ele ELEITOS
da política corruptora da “boa ordem, da boa quando aceitaram o chamado da cruzada mo-
moral, dos bons costumes”. Um jogo do ganha ral libertadora em seus corações. Foram esco-
ou ganha de qualquer modo. Ele é a unidade na lhidos para viver a sina do rebanho imunizado
revolta: um artilheiro solitário do exército “con- que reconhece a sua desigualdade como “na-
tra tudo que tá aí”, contra si mesmo, se preciso tural” e aceita as perdas de direitos como o
manipular for. Um artilheiro, com a língua fei- preço a ser pago para seguir glorioso na sanha
to mira giratória, que precisa ser perseguido da travessia fantasiosa para a terra prometida.
por todos e injustiçado pelos seus. É assim que Foram escolhidos para viver diariamente as ba-
ele ganha novas adesões. Apresenta-se como a talhas apocalípticas do juízo final, porque estão
Grande Vítima que serve de saco de pancadas curados pela palavra (des)ideologizadora. Ago-
no lugar do povo simples, ordeiro e trabalhador ra, a batalha é contra o COVID e seu exército
porque é o seu Grande Irmão: aquele que apa- de mensageiros e devotos (STF, parlamentares,
nha no seu lugar para te defender e, com isso, governadores, prefeitos, ministros tomados
ter o privilégio de ser sempre o primeiro a bater pelos demônios da OMS, mídias, esquerdistas,
em você. Ele é o combatente que, ao sobreviver etc.) para salvar vida: a vida política dele que foi
a agonia de ser traído por dentro, tem a missão eleito presidente.

JACQUELINE DE OLIVEIRA MUNIZ

Antropóloga. Doutora em Ciência Política. Professora Adjunta do Departamento


de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
E-mail: jacquelinedeoliveira.muniz@gmail.com

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Artigos

MULHERES NAS SENZALAS MODERNAS


Por Karen Priscila Araújo Baraúna e Angela Almeida Araújo

No contexto da mulher na sociedade, fa- pessoas devem ter medo. Os discursos e po-
z-se importante dissertar, especificamente, so- líticas implementadas corroboram com esse
bre a mulher negra. Fazendo uma análise his- pensamento repugnante. Nesse contexto, essas
tórica, esse contingente populacional tende a manifestações reforçam a violência para com
se sujeitar a trabalhos subalternos. Esse grupo as pessoas negras, incentivando, assim, o cará-
específico predomina no campo dos trabalhos ter genocida da instituição prisional (BORGES,
informais e de baixa remuneração (BANDEIRA, 2018, p. 54).
2016, p. 46). É notório o fato de o racismo estar A empatia social para com essas deten-
impregnado na fundação do Estado brasileiro tas quase não existe. O sofrimento suportado
(BORGES, 2018, p. 53), fazendo parte da “base nas celas remete ao período de escravização. É
fundacional de sua gestação” (FLAUZINA, 2006, possível afirmar que essa ordem criminal opera
p. 44). Do mesmo modo, o sexismo é uma infe- como uma máquina genocida contra essa po-
liz realidade, a qual faz parte de uma ideologia pulação. Percebe-se que o poder do Estado de
patriarcal. Na zona de intersecção, a mulher aplicar castigos é naturalmente direcionado a
negra encontra-se presente, isto é, no ápice da uma comunidade específica, a qual tende a com-
marginalização. partilhar da mesma cultura social.
“Desde as construções das identidades na- A solidão suportada, a clientela previa-
cionais, o racismo e a assimetria de gênero es- mente escolhida para fazer parte do contin-
truturaram, hierarquizaram e definiram relações gente prisional, a seletividade na essência da
sociais e políticas” (BANDEIRA, 2016, p. 45). Essa ordem criminal, e o caráter repressor. Essas ca-
conjuntura é percebida no ambiente social e no racterísticas devem ser analisadas para que seja
prisional, ocorrendo “a negação da humanidade possível haver o questionamento no sentido de
de mulheres negras, assim como na legitimação ser, ou não, razoável a existência do cárcere,
de todas as violências direcionadas a tal grupo um instrumento tão desumano e que possui
racial e de gênero” (BANDEIRA, 2016, p. 60). peculiaridades semelhantes às senzalas, locais
Na conjuntura vigente, a desigualdade no históricos de sofrimento e de objetificação do
tratamento de grupos distintos na esfera social, corpo negro.
racial e de gênero, faz-se presente. A realidade
do sistema penal não diverge desse cenário. Le- REFERÊNCIAS
vando em consideração essa conjuntura, é no-
tório o caráter repressor e excludente da lógica BANDEIRA, Isadora de Assis. Cadeia, substantivo ne-
punitiva estatal, a qual ratifica a eliminação da gro e feminino: etnografia de uma situação carcerá-
mulher preta e pobre do âmbito social, não lhe ria na tríplice fronteira. 2016. Trabalho de Conclusão
permitindo, ao menos, obter seus direitos bá- de Curso (Bacharel em Antropologia – Diversidade
sicos, que lhe são negados tanto em um cená- Cultural Latino-Americana) – Universidade Federal
rio no qual a sua liberdade não esteja mitigada, da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu.
quanto em uma situação onde o seu direito de BOITEUX, Luciana. Encarceramento Feminino e Se-
ir e vir esteja cerceado. letividade Penal. Rede Justiça Criminal, p. 2, 2016.
Essas cidadãs estão em uma condição de Edição 9. Disponível em:<https://redejusticacrimi-
vulnerabilidade (BOITEUX, 2016). Fala-se aqui nal.org/pt/portfolio/encarceramento-feminino-e-
de mulheres pretas e que não possuem riqueza -seletividade-penal/>. Acesso em: 3 março. 2020.
patrimonial. Trata-se de um grupo desamparado BORGES, Juliana. O que é encarceramento em mas-
pelo Estado. Essas mulheres não são enxergadas sa?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.
como seres humanos. Elas sofrem com a objeti- FLAUZINA , Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído
ficação, isto é, para a sociedade, de forma geral, no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Es-
elas não aparentam ser pessoas dotadas de sub- tado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Di-
jetividade. reito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasí-
O território brasileiro ratifica a concep- lia, Brasília.
ção do corpo negro como perigoso, do qual as

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Artigos

KAREN ANGELA
PRISCILA ALMEIDA ARAÚJO
ARAÚJO
BARAÚNA Graduada em Ciências
Sociais pela Faculdade
Graduada em Federal da Bahia em 1996.
Direito pela Professora.
Faculdade Baiana de Direito em 2019.
Advogada.

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ENTREVISTA

Múltiplos Olhares
materialismo histórico e dialético) e uma cons-
trução em permanente devir, podemos dizer que
os questionamentos são contemporâneos à sua
fundação e a discussão sobre sua “crise” é feita
desde o seu interior, tratando-se de uma crítica
intrassistêmica . Assim o fizeram, seriamente, na
década de 80, Melossi, Baratta, Cohen, Larrauri,
Maurício Martínez, Rosa Del Olmo, Roberto Ber-
galli, Eduardo Novoa Monreal e outros.
O debate sempre envolveu muitas questões,
tanto em relação às questões aparentemente
resolvidas pelo paradigma, quanto, e sobretudo,
àquelas que ele passa a entreabrir , que vão desde
o abandono da questão causal, pelo abandono da
visão ontológica e determinista da criminalidade
e a consistência da explicação proposta, para a
Vera Andrade questão criminal, até as questões político-cri-
Professora Titular de Criminologia da UFSC; minais e as consequências não desejadas do pa-
Professora da ESMESC, Pesquisadora; Pós- radigma, como a reação conservadora aos pro-
-Doutora em Direito Penal e Criminologia pela cessos de abertura e alternativas penais (essa,
UFPR e em Direito Penal e Criminologia pela uma das questões inadequadas de Larrauri, pois
Universidade de Buenos Aires; Doutora em Di- atribui a responsabilidade à CC daquilo que per-
reito pelo PPGD da UFSC e Mestre; Especialis- tence ao processo histórico) consubstanciando
ta em Direito Processual pela UNISC; Bacha- o que, hoje, denominamos, sob o capitalismo ne-
rel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFSM. oliberal, do “grande encarceramento” ou “encar-
vrpandrade@hotmail.com ceramento em massa”.
Alessandro Baratta concedeu, continuamente, as
Apesar das incontestáveis contribuições, mais elaboradas respostas a tais questões. Como
a criminologia crítica (doravante CC) se ele concluiu, inclusive sobre as questões levan-
tornou objeto de sérios questionamentos. tadas por Larrauri, tratava-se de uma crise de
Por exemplo, Elena Larrauri (“La herencia “crescimento” (crise é derivada do latim crescere
de la criminologia critica”) propõe uma = crescer) necessária à revitalização e avanço do
reflexão acerca da crise da criminologia paradigma, e não uma crise de desaparecimento
crítica. Diante disso, quais são os principais ou morte, como equivocadamente considerou
limites da criminologia crítica? Larrauri com o título “A herança” da CC. E tan-
to o foi que, embora já tendo cumprido um pa-
VERA ANDRADE Embora muitos questiona- pel fundamental, ela ainda está viva. Ao mesmo
mentos possam ser inadequados, não são um tempo, criminólogos críticos originários como
problema “em si”, ontológico. Questionamen- Jock Young e John Lea, romperam com o para-
tos integram a dinâmica do conhecimento digma, dando origem à perspectiva denominada
científico, são necessários e fazem o conhe- “neorrealismo de esquerda”. No Brasil, também
cimento avançar. E quanto mais sérios, mais existem vários polos de crítica externa à CC, seja
dignificam o saber que questionam. Apenas os desde as ciências criminais oficiais (Dogmática,
saberes dogmáticos, que se apresentam com criminologia e política criminal positivistas), da
pretensão de verdades acabadas, inadmitem extrema direita punitivista, do centro sociológi-
questionamentos, o que é epistemologica- co (Sociólogos do Direito, da Justiça, do contro-
mente inaceitável. le social etc.), da criminologia cultural, feminis-
Em relação à CC, derivada de epistemologias ta, antirracista, interseccional, que conformam
abertas, (como o interacionismo simbólico e o um leque bastante amplo e, se acrescente, nem
sempre coberto pelo adjetivo da “seriedade”.

43
Entrevista: Múltiplos Olhares

Entretanto, o conteúdo da “crise” discutido na der, e mesmo o funcionalismo e o liberalismo


Europa é diferente do conteúdo das críticas re- político (Roberto Bergalli, Rosa Del Olmo, Lola
alizadas no Brasil, devido à ressignificação das Aniyar de Castro, Juarez Cirino dos Santos, Nilo
teorias e contextos. Lá, dizia ainda respeito à Batista, Juarez Tavares, Roberto Lyra Filho, Raúl
própria construção do paradigma, suas delimi- Zaffaroni, para ficar com alguns dos pioneiros),
tações básicas; aqui, diz respeito à sua continui- mas todos sob os preceitos do paradigma da
dade no Brasil. À sua vez, a questão sobre o prin- reação social, do controle ou da definição.
cipal limite da CC é complexa, senão vejamos. E a tradução da CC, no Brasil, passou por várias
A CC é, primeiramente, um saber datado, con- formas de aproximação e acúmulos para chegar-
textual. Ela se propôs a trabalhar dentro de uma mos ao estágio em que hoje nos encontramos,
moldura analítica e tem produzido conhecimen- tendo reunido muitos esforços da comunidade
to e avanços no seu âmbito. Essa moldura já foi CC, em diversas Universidades e movimentos so-
longamente explicitada. A base epistêmica ori- ciais em todo o Brasil. De nossa parte, junto aos
ginal da CC é o interacionismo e o marxismo, a cursos de graduação e pós-graduação em Direito
década é a de 70 do século XX, inicialmente nos da UFSC produzimos, eu e meus orientandos de
EEUU, a seguir na Europa chegando à América graduação, PIBIC, PET, mestrado e doutorado,
Latina. O conceito fundante, extraído da eco- uma quantidade expressiva de pesquisas, par-
nomia política da pena acumulada à época é o cialmente publicadas, que seguiram, entre1990
de “modo de produção da vida social” recortado até 2016, as seguintes linhas de pesquisa, cumu-
como capitalismo, visto como estrutura social e lativas: 1) a recepção - tradução do paradigma da
totalidade. Daí, se segue uma teoria materialista reação social e da CC no Brasil: abolicionismos,
do desvio e da pena, ou seja, dos processos de minimalismos e eficientismo penal; 2) relações
criminalização formais e informais. A CC, por- entre CC, feminismo e a questão racial; 3) da re-
tanto, faz análise estrutural, macrossociológica cepção da criminologia crítica na América Latina
e assume a posição condicionante do capitalis- e no Brasil à construção da CC latino-americana
mo (estrutura social) em relação ao sistema de e brasileira: em busca da latinidade e da brasilida-
controle social e penal, demonstrando, assim, a de. Abolicionismo e Justiça restaurativa. Essa his-
sua funcionalização na reprodução instrumental tória foi parcialmente abordada em recente tese
e simbólica da dominação burguesa (um contro- sobre o Ensino da Criminologia1 e objeto de uma
le de classe). É esta a moldura analítica que opera Obra-Homenagem organizada pelos meus ex-o-
o salto qualitativo em relação ao interacionismo, rientandos2.
desde uma episteme já consolidada, do desvio Destarte, em América Latina e Brasil, a introdu-
(e do crime) concebido como construção social ção da questão racial e de gênero não é nova,
seletiva (a teoria da seletividade, dos estereóti- pois já acompanha, parcialmente, a tradução do
pos, dos estigmas, das carreiras criminógenas paradigma, embora hoje, pelas mãos dos movi-
etc.) e caminha para uma teoria da desigualdade mentos feministas e negros e suas potentes te-
(de classe), num contexto predominantemente orizações, ela se intensifique e, legitimamente,
burguês urbano, masculino e branco que não se reivindique centralidade.
propôs a trabalhar relações de gênero ou raciais. Chego, assim , à resposta à sua pergunta final: o
Neste sentido, já cumpriu o seu programa, inclu- principal desafio da CC hoje é reconhecer sua
sive seu papel pedagógico de nos formar critica- incompletude epistêmica e dialogar sobre suas
mente, soando anacrônico cobrar, descontextu- condições de possibilidade enquanto teoria crí-
alizadamente, hoje, análises de gênero ou raciais tica do controle social e punitivo capaz de in-
neste saber datado. corporar e se dialetizar, com as demandas cog-
A base latino-americana da CC, por sua vez, tem nitivas e emancipatórias de etnia-raça, gênero e
sua moldura alargada em relação ao centro ca- sexualidade, e outras que estão vindo e virão.
pitalista, incluindo um pluralismo epistêmico,
1
CARDOSO, Helena Schiessl. um mosaico à luz do Ensino
que tem a ver, desde sempre, com nosso con-
do Direito. Tese de doutorado.Programa de Pós-Graduação
texto periférico e marginal, e nela estão pre- em Direito da UFSC. 2018. No prelo.
sentes tanto aquelas matrizes originais, quanto 2
PRANDO, Camila Cardoso de Mello; GARCIA, Mariana
a perspectiva colonialista, da dependência e do Dutra de Oliveira; ALVES, Marcelo Mayora. Construindo as
capitalismo periférico, a Filosofia da libertação, Criminologias críticas: a contribuição de Vera de Andrade.
a Sociologia do conflito, a microfísica do po- Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

44
Entrevista: Múltiplos Olhares

Esta abertura requer, a meu ver, alguns movi- nismo penal contemporâneo e têm como refe-
mentos fundamentais: a) o reconhecimento da rência deste movimento social e intelectual os
contribuição: que o acúmulo criminológico crí- sistemas penais subjacentes aos seus contextos.
tico central e periférico, tanto de saber quan- Mas o pensamento e a luta abolicionistas não
to de experiência, é uma conquista irreversível são monopólio europeu e se estendem ao globo,
e não pode ser desperdiçado; até porque, as incluindo América Latina e Brasil.
teorias feministas e raciais não são, regra ge- É um imperativo de resgate da humanidade per-
ral, teorias primariamente criminológicas e o dida para a cultura punitiva e a pena, sobretudo
abandono do paradigma da reação social como para a prisão, que é essencialmente desumana e
episteme para a visão do crime tem resulta- desumanizadora dos seres vivos, como o é toda
do num retorno à visão criminal do paradigma forma de cativeiro, como os hospitais psiquiátri-
etiológico, o que é um retrocesso em todos os cos, as instituições juvenis, os asilos e os conven-
sentidos; b) o reconhecimento da incompletu- tos; os canis, as gaiolas, as jaulas e os zoológicos.
de: a epistemologia da CC originária (moldura O que se coloca como fundamental, então, não é
analítica) segue sendo fundamental e necessá- interdição do abolicionismo pelo protagonismo
ria, mas não é suficiente para dar conta da tota- europeu, mas a evitação de cópias acríticas de
lidade, seja porque o contexto é outro, seja por- ideias fora do lugar, impondo-se para o Brasil a ne-
que os avanços teóricos de que dispomos são cessidade de pensar e militar pela abolição (o que
outros, seja porque as demandas estão ressig- é uma escolha sempre política) a partir de nossas
nificadas: há que se superar os limites da bran- condições concretas de produção, reprodução e
quitude e do patriarcalismo-sexismo dentro do existência: é fundamental a contextualização.
paradigma; c) o reconhecimento das potencia- E, aqui, o abolicionismo penal tem como refe-
lidades: a epistemologia da CC é aberta e tem rência, para além do acúmulo teórico central, a
potencialidades para se dialetizar com as teo- história e o horror da escravidão, modo de pro-
rias críticas feministas e raciais, como muitas dução e reprodução da vida social cuja herança
pesquisas vem demonstrando; d) o reconhe- mais visível (potencializada pela militarização e
cimento da existência de uma crise de cresci- pela ditadura militar) está no próprio funciona-
mento-amadurecimento e quiçá paradigmáti- mento do poder punitivo e, sobretudo, das po-
ca: estamos perante uma nova crise da CC que lícias e das prisões que torturam e matam, num
nos coloca diante de uma inflexão definitiva: verdadeiro exercício de penas informais cruéis,
trata-se, para crescermos, de operar o trânsito degradantes e de morte por dentro da pena for-
da existência de uma CC euroamericana (euro- mal e pública de prisão: uma herança punitiva
peias, americana e latino-americana) no Brasil corporal racista de extremada violência. A prisão
para uma CC brasileira. O imperativo, nessa di- cumpre, aqui, a função cumprida no escravismo,
reção, é o abrasileiramento da CC, razão pela pelo navio negreiro e a senzala; a tortura e a
qual tenho aludido a uma Criminologia para a morte nas prisões cumprem a função cumprida
brasilidade, sempre na esteira do acúmulo cen- pelos suplícios no tronco. Instituições e méto-
tral e periférico. Esta existe apenas em pedaços dos punitivos simbolizam, guardadas as devidas
e ensaios e sua construção quiçá possa alavan- proporções históricas, a continuidade da infe-
car um específico paradigma. riorização e exclusão racial: eis o nosso escravo-
capitalismo punitivo.
Sabe-se que os autores eleitos como prin- Desta forma, se para o centro europeu a aber-
cipais abolicionistas são europeus, norue- tura das prisões significava libertação de classe,
gueses e holandeses, acarretando uma da classe operária urbana, das “classes subalter-
dissonância com as nossas feridas histó- nas” dominantemente criminalizadas, de que fa-
ricas, principalmente quando se parte das lavam os criminólogos críticos originários, para
heranças da escravização. Diante dessas a periferia brasileira abolição das prisões signi-
questões, quais elementos seriam impor- fica libertação dos negros e pobres, e hoje , das
tantes para pensar um abolicionismo pe- negras e pobres, notadamente adultos jovens. A
nal brasileiro? abolição da prisão representa, guardadas todas
as proporções, uma página radical da abolição
VERA ANDRADE Os europeus e sobretudo es- da escravatura, historicamente inconclusa, por-
candinavos, são, de fato, matrizes do abolicio- que o negro liberto da escravidão, sem nenhum

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Entrevista: Múltiplos Olhares

suporte estatal, teve sua condenação a um “não Contemporaneamente no Brasil, o feminismo


lugar” perpetuado na sociedade brasileira. De apela ao Direito e ao sistema penal, buscando
mercadoria e mão-de-obra corporal à sobra im- uma terceira via de fundamentação para a pena
produtiva, da escravidão ao “escravocapitalismo”, na teoria do direito, a da “nomeação”, argumen-
é a ferida que nunca cessou de doer e indignar, tando a necessidade de nomear as violências
é a ferida central da incompletude democrática contra a mulher, com uma específica identida-
no Brasil. Penso, então, que um abolicionismo de de gênero, como o “feminicídio”, para que
pensado para a brasilidade toca “diretamente” cumpra uma função simbólica exemplar. Penso
em nossas feridas históricas, porque toca cen- que esta pode ser considerada uma função não
tralmente na libertação instrumental do povo declarada que se atribui à pena, mas em nome
negro (dominantemente vulnerável à crimina- da qual o feminismo e as mulheres continuam
lização e ao extermínio) e no racismo histórico tendo um preço alto a pagar, que são todas as
do “medo branco” e, portanto, na redistribuição consequências negativas do impacto do sistema
étnica. Por derradeiro, há que se incluir nessa penal sobre suas vidas e relações. Continuo de-
análise os povos indígenas e os camponeses, sua fendendo que as demandas feministas de pro-
crescente criminalização e novo extermínio. teção seriam muito mais adequadamente con-
E é a questão dos “sujeitos” em nome dos quais duzidas por dentro do direito constitucional, do
falamos que deve ocupar o centro do debate na direito civil, de família e da Justiça restaurativa,
construção de uma Criminologia para a brasili- como começa a acontecer no Brasil, de forma re-
dade, que será necessariamente uma Crimino- sidual e experimental, a partir dos espaços aber-
logia abolicionista mestiça, multiétnica para a tos pela Lei Maria da Penha, segundo um para-
brasilidade. digma dialógico. Tratam-se estes, sem deixar
de pertencer ao paradigma de controle social e
Assim como a criminologia não se conjuga dominação que é o Direito, inclusive dominação
no singular, o feminismo também encon- masculina, racista e classista, tratam-se de es-
trará algumas variações. Convive-se então paço de maior positividade em relação ao penal,
com uma ambivalência: por um lado, tem- porque permitem a luta pela reconhecimento
-se a necessidade de contração do sistema de direitos, danos, indenizações, superação de
penal; por outro lado, justifica-se a tutela traumas, etc.; enquanto o espaço da pena, aí, es-
penal diante de demandas de grupos vul- tamos cansados de repetir, acho que todos sa-
nerabilizados. A partir disso, quais são as bemos.
principais dificuldades do minimalismo Pontuando então, o foco da pergunta, a busca
fim e do abolicionismo, quando se justifica do sistema penal pelas mulheres para tratar de
o sistema penal pela necessidade de pro- suas violências é legitima? Obviamente que sim,
teção à mulher? como o é a busca do sistema penal pelas raças
inferiorizadas para tratar do racismo. O que a
VERA ANDRADE Esta demanda, cujos limites CC fez e continua fazendo é alertar para os ris-
apontei em diversos trabalhos (a partir de uma cos e o preço desta que é, em definitivo, uma es-
pesquisa realizada no Fórum de Florianópolis colha. Daí que o aspecto da justificação seja mais
no ano de 1996), apesar de legítima, tem contri- polêmico que o da legitimidade.
buído para o processo de criminalização expan- Gostaria de lembrar que, regra geral, o feminis-
sionista do sistema penal e sua relegitimação, mo parte do conceito positivista tradicional de
na qual se insere, crescente e paradoxalmente criminalidade, como ação de homens violentos,
para o feminismo, a figura da mulher, sobretu- considerando a mulher como vítima, em de-
do negra e pobre, criminalizada pelo tráfico. Ao trimento do conceito de criminalidade do pa-
mesmo tempo, o permanente crescimento das radigma da reação social que a considera uma
denúncias de violência contra mulher, com o construção social derivada da ação + reação so-
crescente apoio da mídia oficial, e indicativa do cial (instâncias de controle social e penal). E a
fracasso da punição como proteção da mulher, manutenção deste pressuposto epistemológico
reativa a ciranda por mais punição, sem que seja superado que conduz à própria rubrica “violên-
acompanhada de um processo simultâneo ao cia contra a mulher” e a que o discurso vitimador
encontro do minimalismo como fim ou do abo- tenha tanta força dentro do movimento. Acre-
licionismo. dito que este seja um fator não desprezível na

46
Entrevista: Múltiplos Olhares

manutenção do binômio crime-pena e na difi- mo-comunista, hoje ressuscitado no Brasil pelo


culdade de assunção de um ponto de vista aboli- inferno do bolsonarismo, levando as mulheres
cionista. Por fim, é preciso lembrar que existem para parir seus filhos nas prisões, construídas à
feminismos tanto comprometidos com o mini- imagem e semelhança do masculino, pelo e para
malismo como fim quanto comprometidos com os homens.
o abolicionismo, estes últimos reunindo, majori- A criminalização, sempre seletiva de algumas dro-
tariamente, mulheres procedentes da CC, entre gas, afirma-se como um núcleo duro do capitalis-
as quais me incluo. mo neoliberal responsável pelo encarceramento
Como a pauta da violência contra a mulher está em massa e, no Brasil, levará para as prisões não
no centro do(s) feminismo(s), e como as violên- quaisquer mulheres, mas mulheres sobretudo
cias de que se trata são, centralmente, pratica- negras e pobres das periferias urbanas, “territó-
das por homens contra mulheres em relações rio” de vulnerabilidade seletiva, onde a “guerra” se
heterossexuais, as energias do feminismos fica- realiza e os traficantes são procurados. Daí, toda
ram e continuam concentradas na punição dos uma rede de relações entre homens traficantes
violentadores e, portanto, numa política crimi- e suas “companheiras” é tecida pelo poder puni-
nal do autor e não da vítima ou, como propõe tivo e toda uma rede de questionamentos trazi-
o abolicionismo, da “situação problemática” e da dos para a discussão criminológica. A política de
“relação” entre as pessoas nela envolvidas, crimi- drogas tem sido mais uma das grandes violências
nalmente já etiquetadas como autor e vítima (lin- contra as mulheres negras periféricas e sua aboli-
guagem mantida pelo feminismo e que propõem ção deveria estar no centro das lutas feministas e
superar, inclusive). Daí as dificuldades, inverten- raciais no Brasil. Esta é uma pauta absolutamente
do, assim, o fluxo minimalista-abolicionista, de prioritária e “vital”.
luta por menos pena e, sobretudo, menos prisão. Por sua vez, a criminalização declarada “proteto-
ra” da mulher, reescrita e rubricada, após longas
O encarceramento em massa (Juliana lutas feministas, de “crimes contra a dignidade
Borges) brasileiro apresenta algumas sexual”, onde outrora residiam os patriarcais
particularidades, dentre as quais está o “crimes contra os costumes”, segue, igualmen-
aumento significativo do aprisionamento te, a lógica da seletividade, a partir de uma su-
de mulheres. A política criminal de drogas blógica específica, que temos descrito como a
é um vetor importante desse recente “sublógica da honestidade”, estudada naquela
interesse do sistema penal pelo público pesquisa citada na questão “1”, segundo a qual,
feminino. O sistema penal que, no discurso nesses crimes, notadamente no estupro, o sis-
oficial, propõe a proteção da mulher é tema penal acende suas luzes sobre as vítimas,
o mesmo que a expõe no cárcere e a não para protegê-las, mas para julgá-las, divi-
revitimiza nos crimes contra a dignidade di-las e estigmatizá-las, de acordo com a moral
sexual, como a senhora escreve no livro patriarcal, em “mulheres honestas” e mulheres
“Pelas mãos da Criminologia”. Como fáceis, de vários leitos, prostitutas, selecionando
podemos interpretar essa ambiguidade do as primeiras como dignas de proteção através da
sistema penal? criminalização de seus violentadores.
Mas aqui, o sistema não apenas revela sua se-
VERA ANDRADE A ambiguidade integra os pro- letividade sexista na divisão das mulheres pela
cessos sociais e não é negativa “em si”. Aqui, en- atribuição de honestidade sexual, mas, simulta-
tretanto, a ambiguidade é mais aparente do que neamente, sua seletividade classista e racial: a
real, pois ambos os processos integram uma vitimização majoritária é reconhecida às mu-
unidade funcional, integram a mesma lógica de lheres brancas, das classes médias e altas.
funcionamento classista, racista e sexista do sis- De novo, o sistema penal não protege, mas dupli-
tema penal. ca, triplica, as violências e separa as mulheres em
Primeiramente, a “guerra às drogas” é, sim, o classes e raças, replicando as estruturas sociais.
grande detonador da criminalização feminina no Em suma e novamente: insistir no sistema penal
Brasil e no globo , desde que a política da guerra é uma energia desperdiçada. O caminho abolicio-
às drogas substituiu a política da guerra fria e nista requer do(s) feminismo(s) que, no mínimo,
o inimigo “ tráfico-traficante-crime organizado- conjugue(m) suas políticas identitárias com as
-facções” substituiu o inimigo externo comunis- demais, num tributo às relações e à totalidade.

47
Coluna
1.60

JANAINA MATIDA

O VALOR PROBATÓRIO DA PALAVRA DO POLICIAL


Infelizmente a nossa curta visão não de um terço (248.929 pessoas) seja de presos
permite avistar um germe do mal provisórios, além dos 347.661 internos ao sistema
naqueles que são chamados de bons,
e um germe de bem, naqueles que são que cumprem suas penas em regime fechado.
chamados de maus. Condenamos e prendemos mais do que o nosso
(Francesco Carnelutti, As misérias do sistema é capaz de absorver, o que deu ocasião
processo penal, 1957) a um déficit de mais de 300 mil vagas. Além do
mais, a informação de que 42,92% dos internos
A passagem de Carnelutti (1957) data da foram condenados/preventivamente presos em
metade do século passado e, no entanto, ainda razão de crimes contra o patrimônio, seguidos de
serve como chave de leitura às situações do nosso 29,24% de condenados/preventivamente presos
cotidiano. Não erro em dizer que ela tem especial relacionados às drogas torna possível ver o que
pertinência quando tentamos compreender o não está dito: que esse amontoado de gente deve-
atual estado de coisas do nosso sistema de justiça se ao maior grau de criminalização atribuído a
criminal. São dados já conhecidos, mas não custa determinadas condutas quando as comparamos
repetir: com mais de 760 mil internos1, temos a com outras. Crimes contra o patrimônio e
terceira população carcerária do mundo. Chama relativos às drogas são os responsáveis por
muito a atenção o fato de que deste total, cerca alimentar a lógica do pânico moral (SEMER,
2019) e, como consequência, servem a gerar o
1
São 752 mil presos em penitenciárias, mais 14.475 presos clamor social contra a impunidade. O combate
em unidades prisionais de outra natureza, como delegacias à impunidade, por sua vez, produz pressão
de polícia, hospitais de custódia etc. Acesso por: sobre aqueles que investigam, acusam e julgam.
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTk3ZTdmMDEt
Neste cenário, a idoneidade do agente policial
MTQxZS00YmExLWJhNWYtMDA5ZTllNDQ5NjhlIiwiCI6Im
ViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiGRhNJm - a presunção de veracidade de tudo o que por
ZThlMSJ9. Os demais dados relativos à população prisio- ele é relatado - é premissa quase obrigatória
nal brasileira também foram extraídos deste relatório. para o alcance dos resultados almejados. Já a

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Coluna: A Toda Prova

palavra do réu, a menos que seja réu confesso, a Secretaria dá conta à população do quanto vem
pouco é levada em consideração pelos juízes. fazendo em nome do combate à criminalidade3
Em suma, tal como denunciado por Carnelutti, (no mês de janeiro de 2020, por exemplo, 2.412
negamo-nos a ver “qualquer germe de mal nos pessoas foram presas em flagrante na cidade de
que são chamados de bons, qualquer germe São Paulo). A tendência à justificação de suas ações
de bem nos que são chamados de maus”. e o incentivo institucional que o sistema oferece
Concede-se um irracional e antidemocrático à eficiência policial deveriam ser razões bastantes
protagonismo probatório à palavra do policial. para que o policial nunca fosse ouvido como pessoa
No texto de hoje, vou abordar o valor probatório desinteressada, isto é, como testemunha.
concedido à palavra do policial, analisando o No entanto, o estado atual de coisas reflete
que justificadamente seria possível extrair dela, radical desprezo a considerações como estas. Para
sem deixar de destacar ajustes necessários à ser mais exata, uma ida às decisões judiciais dos
compatibilização entre seu uso e um sistema de tempos atuais nos mostra que a presunção de
justiça constitucional e democrático. Vamos lá. veracidade do que o policial afirma ter ocorrido
O primeiro óbice ao uso que se faz da desempenha papel de destaque na determinação
palavra do policial deve-se à condição de dos fatos. A conhecida súmula 70, formulada pelo
testemunha em que ele é ouvido. Nos mais Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
diversos sistemas, oriundos de diferentes pretende exatamente cristalizar esse entendimento,
culturas jurídicas, testemunha é a "pessoa apaziguando eventuais questionamentos quanto
estranha ao feito", chamada a juízo para depor à sua suficiência probatória para as decisões
sobre o que sabe a respeito do fato litigioso. condenatórias:
Aqui, cabe esclarecer que nos referimos
ao policial que atua na ponta de contato O fato de restringirem-se a prova
oral a depoimentos de autoridades
entre sociedade e sistema jurídico penal,
policiais e seus agentes não
isto é, ao policial militar. É ele quem relata desautoriza a condenação.
ter encontrado certa quantidade de
entorpecente com acusado,
que afirma ter enfrentado Embora não sumulado
resistência à abordagem, que, nos outros estados, neles esse
finalmente, realiza a prisão em conteúdo também se encontra
flagrante. Só por isso, já não majoritariamente sedimentado.
deveria fazer o menor sentido É o que se pode depreender
aos magistrados ouvi-los da análise conjunta de pesquisas
como testemunhas: policiais como a de Marcelo Semer4, da já
não são estranhos ao feito mencionada Maria Gorete Marques
pois têm interesse direto de Jesus e do Instituto de Defesa do
em justificar as suas ações; 2
Em “Verdade policial como verdade jurídica:
buscam contribuir a que se narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”
conclua pela correção de seus cursos de ação. Maria Gorete Marques de Jesus divide com o seu leitor pes-
Adicione-se a isto, o fato de que o arranjo quisa em que analisou: a) 667 autos de prisão em flagrante
das instituições brasileiras incentiva que sejam por tráfico de drogas, realizados entre dez 2010 a janeiro
de 2011; b) 604 sentenças; c) 70 entrevistas com profissio-
atingidos números elevados de prisões em
nais da segurança pública e da justiça criminal; d) diários
flagrante. A pesquisa realizada por Maria Gorete de campo”: d.1) de 10 audiências de instrução e julgamento
Marques de Jesus, que conta com diferentes realizadas entre fev-maio de 2011, d.2) de 63 audiências de
formas de obtenção de dados2, contribui para esta custódia de abril-julho de 2015, 27 audiências de instrução
e julgamento de jul-nov de 2018. JESUS, Maria Gorete Mar-
conclusão. Nas entrevistas que a pesquisadora
ques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrati-
realizou, policiais civis e militares mencionaram vas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. In Revista
a existência de uma "política de metas", que tem Brasileira de Ciências Sociais”, n. 102, 2020.
como principal indicador a realização da prisão. 3
Disponível em: <https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/
Essa lógica de produtividade, aliás, encontra-se Pesquisa.aspx>. Acesso em: 24 mar. 2020.
4
A pesquisa realizada por Marcelo Semer compreende a
registrada no site da Secretaria de Segurança análise refinada de 800 sentenças de tráfico de drogas,
Pública do Estado de São Paulo e leva o explícito provenientes de 8 estados, 315 municípios, proferidas por
título de “produtividade policial”. De mês a mês, 665 juízes.

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Coluna: A Toda Prova

Direito de Defesa (IDDD). Debruçando-se sobre por aí prendendo pessoas inocentes que não
o funcionamento das audiências de custódia, conhecem”) (JESUS, 2020, p. 5/6) contribuem à
pesquisadores do IDDD chegaram a números que consolidação do entendimento de que a palavra
merecem a nossa atenção: num universo de 2.774 do policial é o ponto de partida adequado à
casos5 (divididos em 13 cidades e 9 estados), em reconstrução dos fatos. Até porque, “o policial
55,6% dos casos, a palavra do policial que efetuou sabe o que está fazendo” (crença no saber
o flagrante era a única fonte de relato contra os policial) (JESUS, 2020, p. 7). Na fala de um dos
custodiados. Considerando somente a conduta juízes entrevistados por Jesus, a polícia tem o
de tráfico de drogas, a palavra do policial era a “bom discernimento na diferenciação entre
única prova apresentada contra o custodiado o usuário e o traficante”, “eles ficam atentos à
em 90% dos casos (IDDD, 2019, p. 25). Em 85% postura, analisam para ver se uma pessoa está
dos casos, houve convergência entre o pedido passando uma coisa para outra (pessoa)” etc
formulado pelo órgão acusador e a decisão (JESUS, 2020, p. 7)6.
judicial. No correr das páginas de Semer, o leitor Assim, os relatos resultantes do “tirocínio
esbarra com trechos das decisões que condenam policial” ganham status jurídico de presunção
a partir da presunção de idoneidade do agente da legal relativa, servindo indevidamente à
lei (SEMER, 2019, p. 188): imposição do ônus da prova à defesa. Tal como
ocorre com as presunções deste tipo, à condição
(...) as declarações de agentes públicos de que não haja prova em contrário, um enunciado
tem fé pública, cabendo à parte que fático não confirmado por provas é tido como
alega provar o contrário... (sentença verdadeiro. Neste cenário, a situação do réu se
275);
torna ainda mais difícil, pois a atitude judicial
de aderência prima facie à palavra do policial
as declarações dos agentes estatais, a
princípio, os testemunhos de policiais acaba significando radical falta de credibilidade
revestem-se de credibilidade por às provas trazidas pela defesa, principalmente
ostentarem presunção de veracidade à palavra do réu. O princípio segundo o qual o
(sentença 568); réu não está obrigado a produzir prova contra
si mesmo é interpretado, no mais das vezes,
deve-se levar em conta a fé pública da como autorização à mentira. A sua vez, essa
autoridade policial e seu desinteresse
no deslinde da causa - a não ser o 6
Entrevista ao juiz n. 10.
combate ao crime (sentença 368);

O mesmo destaque à palavra do policial


pode ser constatado no trabalho de Jesus,
quem estabelece um leque de crenças, as quais,
por sua vez, desempenham papel fundante à
construção do tratamento jurídico enquanto
presunção relativa: as "crenças na função
policial" (“os policiais são funcionários
públicos no cumprimento do dever
legal...”, “os policiais têm fé pública”)
(JESUS, 2020, p. 5) e na "conduta
do policial" (“os policiais não têm
motivos ou interesses para saírem

5
IDDD, “O fim da liberdade, relatório na-
cional”, p. 6: “Ao todo, foram analisados
2.774 casos que passaram pelas audiên-
cias de custódia de 13 cidades de 9 esta-
dos. A amostra se refere a pessoas cus-
todiadas e não a audiências realizadas, já
que é comum atendimento simultâneo
de indivíduos que foram presos juntos”.

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Coluna: A Toda Prova

autorização à mentira é elevada à presunção juiz se afastar de critérios racionais.


relativa: o policial diz sempre a verdade Se é certo dizer que a livre valoração
porque é desinteressado e tem fé pública, já se contrapõe à prova taxada, de modo algum
o réu sempre mente porque é interessado em ela significa caminho aberto às intuições,
escapar. Salvo se confessa, tudo o que disser sentimentos ou pressentimentos do julgador
- e até mesmo o que não disser, como o ficar (FERNÁNDEZ LÓPEZ, 2009, p. 98). Mercedes
em silêncio (SEMER, 2019, p. 206) - será tido Fernández López constrói a sua argumentação
como mera estratégia para se evadir do castigo no sentido de defender requisitos mínimos
merecido. de credibilidade para que a palavra de alguém
possa ser considerada à etapa de valoração
Ressalte-se que o réu não tem e, via de consequência, possa eventualmente
compromisso com a verdade, servir à condenação de alguém. Tais requisitos
tampouco em produzir prova contra teriam a função de impedir o exercício abusivo
si, sendo-lhe autorizado, inclusive,
da valoração, iluminando as margens da uma
no exercício do direito de defesa,
atividade intelectual racional. Como mínimos,
permanecer em silêncio, devendo,
por conseguinte, o seu depoimento não se pode esperar desses requisitos que
ser analisado com cautela. (sentença “garantam a verdade da declaração, mas sem
608) dúvidas contribuem a minimizar as possibilidades
de erro na valoração” (FERNÁNDEZ LÓPEZ,
No distrito, ficou em silêncio, 2009, p. 105). Por razões de espaço, farei uma
respaldado em norma de ordem rápida ida a eles:
constitucional, fato, posto que seja
um direito constitucional, não condiz a. a ausência de incredibilidade
com a atitude de quem é inocente. subjetiva: em primeiro lugar, seria
(sentença 163) a necessária ausência de qualquer
motivação escusa para a incriminação
Em juízo, optou por permanecer de alguém. O sentimento de vingança,
silente, conduta incompatível com de obediência a um terceiro, ou
aquela que se espera de alguém que ainda o interesse direto por alguma
esteja sendo devidamente acusado de vantagem, seriam fatores capazes
qualquer prática delitiva. (sentença de desabonar a palavra de alguém.
203) (SEMER, 2019, p. 207) Por si só, no entanto, esse requisito
não afastaria a palavra de alguém do
Nosso desenho institucional serve a conjunto de provas a ser considerado
resultados que não podem ser racionalmente pelo juiz. Tomado com cautela,
justificados. Não há qualquer apoio racional ao seria necessário contemplá-lo em
excessivo valor atribuído à palavra do policial. conjunto com os demais requisitos8.
Colocar a questão em sua dimensão adequada b. a verossimilhança da alegação: em
implicaria reconhecer que uma investigação segundo lugar, seria necessário
poderia ter seu início a partir do relatado pelo que o relato não fosse fantástico,
agente da lei, mas sob nenhuma hipótese seria correspondendo-se às regras da
lógica e da experiência.
possível reconhecê-la como prova suficiente a
c. firmeza ao longo do procedimento:
satisfazer a exigência elevada que um standard
em terceiro lugar, seriam necessárias
probatório penal deve apresentar. O conteúdo reiteração e constância na declaração
de um relato, seja de quem for, deve ser inculpatória. Por reiteração deve-se
corroborado por outros elementos probatórios, entender a ausência de modificações
que de modo independente, avalizem a mesma importantes e por constância a
conclusão. Um “conjunto”7 probatório composto ausência de retratações. Contradições
apenas por provas ancoradas na palavra do policial
- testemunho do policial, reconhecimento do réu 7
A palavra conjunto está entre aspas porque é preciso
pelo policial, confissão do réu colhida pelo policial
mais de um elemento probatório para que se possa fazer
- nem de longe pode servir a qualquer decisão que uso correto da palavra conjunto.
se pretenda justificada. O livre convencimento 8
A autora menciona a dificuldade de se apreciar a satisfa-
não deve ser interpretado como liberdade de o ção desse requisito no caso de menores de idade, p. 109.

51
Coluna: A Toda Prova

em aspectos secundários da presunção de veracidade da palavra do policial,


declaração, bem como a existência de não há convivência possível. Sendo o status da
lacunas, não são dados que, por si só, primeira constitucional, enquanto a segunda é
tornariam imprestáveis as declarações
resultante de postura irracional e enviesada,
(FERNÁNDEZ LÓPEZ, 2009, p. 110).
é fácil escolher qual delas merece a nossa
d. Finalmente, há que se exigir
corroboração por outros elementos incondicional defesa. A presunção de inocência,
de prova. Esse é o mais importante e só ela, pode ser lente capaz de corrigir a curta
dos requisitos, sobre o qual, a visão de que Carnelutti nos falava.
jurisprudência espanhola tem sido
unânime (FERNÁNDEZ LÓPEZ, 2009, 9
O problema das “falsas memórias” e dos chamados “erros
p. 110). honestos” localizam-se aí. Mesmo as pessoas que querem
contribuir, de boa-fé, à correta determinação dos fatos
podem descrever, por engano e atitude não intencional,
A partir desses requisitos mínimos de um fato que não ocorreu daquele modo. Sobre isso, ver as
fiabilidade à palavra de alguém, podemos obras de Elizabeth Loftus, Giuliana Mazzoni e, no cenário
voltar à palavra do policial no nosso sistema de brasileiro, Lilian Stein e Gustavo Noronha de Ávila.
justiça. Aqui, o juiz age como “continuidade do
trabalho do policial” (SEMER, 2019, p. 287), dando REFERÊNCIAS
seguimento à chancela que o órgão acusatório
já reconheceu ao relato do oficial da lei. Nesta CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo
penal, 1957.
rotina, o compromisso cognitivo com a hipótese
CORDERO, Guida alla Procedura Penale. Torino:
acusatória gera, por um lado, a supervalorização UTET, 1986. p. 51.
de elementos probatórios confirmatórios (viés FERNÁNDEZ LÓPEZ, Mercedes. “La valoración ra-
confirmatório) e, por outro, a desvalorização de cional de las pruebas declarativas”. In Jueces para la
elementos contrários à hipótese previamente democracia, n. 64, 2009.
escolhida (efeito inércia). O que Cordero (1986, p. INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA
(IDDD). O fim da liberdade: A urgência de recuperar
51) chamou do primado da hipótese sobre o fato
o sentido e a efetividade das audiências de custódia.
- e que também pode ser entendido a partir da 2019. http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/
teoria da dissonância cognitiva (RITTER, 2019) dlm_uploads/2019/08/OFimDaLiberdade_simples.
- deve servir à franca revisão do tratamento pdf
institucionalmente oferecido à palavra do policial. JESUS, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial
Dessa feita, impõe desfazer-nos da presunção como verdade jurídica: narrativas do tráfico e drogas
no sistema de justiça”. In Revista Brasileira de Ciên-
de veracidade da palavra do policial; não porque
cias Sociais”, n. 102, 2020.
se desconfia do policial, mas porque nenhuma RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: re-
palavra, com independência de quem seja, deva flexões a partir da teoria da dissonância cognitiva.
ser tomada como presumidamente verdadeira9. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019
A fiabilidade dos relatos deverá ser demonstrada SEMER, Marcelo. “Sentenciando tráfico: o papel dos
no curso do processo através de criteriosa juízes no grande encarceramento”. São Paulo: Tirant
lo blanch, 2019
valoração. Entre a presunção de inocência e a

Janaina Matida é professora da Faculdade de Direito da Universidade


Alberto Hurtado, Chile. Doutora pela Universitat de Girona, Espanha, tese
“sobresaliente cum laude”. Mestre e graduada em Direito pela PUC-Rio. É
co-líder do GREAT (Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos
Tribunais), na UFRJ. É consultora do projeto Prova sob Suspeita, do IDDD.
Co-editora da revista “Discusiones”, da Universidad Nacional del Sur (Ar-
gentina). É co-colunista da “Limite Penal”, do ConJur. Curadora do podcast
“Improvável”. Membro da Comissão de Defesa do Estado Democrático de
Direito da OAB-RJ. Presta consultoria jurídica relativa à temática da pro-
va penal.

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O QUE REVERBEROU NAS REDES

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Walkie-Talkie

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IBADPP realiza

IBADPP LIBERA VÍDEOS DOS


SEMINÁRIOS
NACIONAIS
NO YOUTUBE
O Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) vem a público, neste
momento difícil da saúde pública em nosso país, reafirmar seu compromisso com
a Democracia e o Estado de Direito.

Estamos cientes de que teremos meses difíceis pela frente, em que os contatos
presenciais devem ser evitados, dificultando a missão Institucional de oferecer
conteúdos críticos sobre as ciências criminais, em especial o processo penal.

Por essa razão, a Diretoria Executiva, composta pelos Professores Luiz Gabriel B.
Neves (Presidente), Vinicius Assumpção (Vice-Presidente), Lucas Carapiá (Diretor
Secretário) e Luciana Monteiro (Diretora Tesoureira), decidiu disponibilizar,
gratuita e gradativamente, todos os vídeos dos Seminários Nacionais na
plataforma online do IBADPP no Youtube.

Além disso, os Departamentos de Cursos, de Diálogos e de Direito e Tecnologia


estão planejando ações para darmos continuidade à reflexão sobre os temas
mais sensíveis acerca das ciências criminais e o poder punitivo do Estado, mas
de maneira que tudo possa ser difundido por meios não presenciais.

Em breve teremos novidades. Fiquem atentos!

Estamos à disposição e sempre na trincheira da resistência democrática.

55
IBADPP realiza

IBADPP E EDESP REALIZAM CURSO DE ATUALIZAÇÃO EM PROCESSO PENAL

A Escola Superior da Defensoria Pública (Esdep), em parceria com o Instituto Baiano de


Direito Penal e Processual (IBADPP), realizou o Curso de Atualização em Processo Penal, no mês
de março, em Salvador. A iniciativa, aberta a todos os defensores, teve por objetivo principal
abordar as temáticas mais importantes acerca da Lei Anticrime de 2019, que modificou uma
série de procedimentos, ritos e questões de diversas legislações penais.
A qualificação foi dividida em seis aulas, aplicadas por professores reconhecidos por sua
contribuição ao processo penal, ao direito penal, à criminologia e à execução penal. Entre os
grandes nomes envolvidos na ministração do conteúdo estão os especialistas Jacinto Coutinho,
Matheus Moitinho, Andremara dos Santos, Gustavo Badaró, Jéssica Freitas e André Cerqueira.
Cabe ressaltar que a parceria se deu como mais uma das ações do departamento de cursos
do IBADPP, sob coordenação do Professor Thiago Vieira e coordenação adjunta de Brenno Ca-
valcanti e Gustavo Brito. Os interessados podem conferir parte das aulas, disponibilizadas pela
DPE/BA em seu canal do Youtube.

56
IBADPP realiza

Respiro

Charge por: Laerte @coutinholaerte

Charge por: Maíra Colares (MotoKa) @mairadraws

57
http://www.ibadpp.com.br/
publicacoes@ibadpp.com.br
@ibadpp

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