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Comité Científico
Jorge Chinea
(Wayne State University - EUA)
Keila Grinberg
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Brasil)
Marcia Calainho
(Instituto Jurídico Luso Brasileiro - Portugal)
Monique Montenegro
(Instituto Ensinar Brasil - Brasil)
Yanina Benitez
(Instituto de Filosofía Ezequiel de Olaso/Centro de Investigaciones Filosoficas - Argentina)
Organizadores
Aimée Schneider
Isadora de Mélo Escarrone Costa
Maíra M. S. Villares Vianna
Mariana Barreto Jorge
Raphael Garcia Pinto Barros
Thaís Silva Félix Dias
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de
História Política
Copyright © 2021 Aimée Schneider, Isadora de Mélo Escarrone Costa, Maíra M. S.
Villares Vianna, Mariana Barreto Jorge, Raphael Garcia Pinto Barros e Thaís Silva
Félix Dias (org)
ISBN: 978-989-9037-05-2
Conselho Editorial
Lou Calainho
Magno F. Borges
Maria Auxiliadora B. dos Santos
ISBN: 978-989-9037-05-2
1. História - Congressos. I. Schneider, Aimée. II. Costa, Isadora de
Mélo Escarrone. III. Vianna, Maíra M. S. Villares. IV. Jorge, Mariana
Barreto. V. Barros, Raphael Garcia Pinto. VI. Dias, Thaís Silva Félix. VII.
Título.
CDD: 900
CDU: 093
www.editoracravo.pt
contacto@editoracravo.pt
+351 960 221 473
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................................................19
SIMPÓSIO TEMÁTICO 01
REFLEXÕES SOBRE A ANTIGUIDADE E O MEDIEVO
O contexto histórico das inovações socioculturais da “Música Nova” em Atenas (480-410 a.C.)....69
Felipe Nascimento de Araujo
Kristni Saga (séc. XIII): contexto da cristianização dos vikings e imaginário nas sagas
islandesas..........................................................................................................................................101
Lucas Pinto Soares
SIMPÓSIO TEMÁTICO 02
NAVEGAÇÕES, CONQUISTAS E REVOLUÇÕES: O MUNDO COLONIAL E
MODERNO
Algumas notas sobre a formação das vilas dos sertões do Ceará grande: a ocupação e a
formação das capitanias do norte nos séculos XVII e XVIII.................................................163
Adson Rodrigo Silva Pinheiro
Liberdade sob tutela: as políticas indigenistas de Pombal e o impacto para os índios Puri
em Campo Alegre no Vale do Paraíba Fluminense..................................................................197
Enio Sebastião Cardoso de Oliveira
Porque causas mover guerra justa contra infiéis: a guerra na legitimação das conquistas
portuguesas do século XVI...........................................................................................................207
Fernando Vasconcellos Sperle Musso Santos
“Me faça a mercê de mandar socorro”: defesa militar e relações transfronteiriças nas
correspondências dos Governadores do Estado do Grão-Pará e da Capitania de Mato
Grosso (1759-1772)........................................................................................................................291
Otávio Vítor Vieira Ribeiro
SIMPÓSIO TEMÁTICO 03
ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS: INTERFACES E DESAFIOS
Análises sobre cultura e classe trabalhadora na América Latina sob a ótica do materialismo
histórico............................................................................................................................................323
Bianca da Costa Bastos
SIMPÓSIO TEMÁTICO 04
TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
SIMPÓSIO TEMÁTICO 05
ENSINO DE HISTÓRIA: DESAFIOS, TENSÕES E PARADOXOS
Leia antes de efetuar disparos: a "estranha morte da América liberal" e o uso de drones
como arma humanitária.................................................................................................................563
Leonardo de Carvalho Augusto
SIMPÓSIO TEMÁTICO 06
AFRICANIDADES E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Um filho ingrato.............................................................................................................................633
Landirléya dos Reis Silva e Wagner Pereira de Oliveira
Controle e Seleção Eugênica da Imigração no Brasil nos anos 20 e 30: Reflexões a partir da
“Lei dos Indesejáveis”...................................................................................................................683
Wiliam Vaz de Oliveira
SIMPÓSIO TEMÁTICO 07
DITADURAS E REDEMOCRATIZAÇÕES (SÉCULO XX)
Maioria Absoluta: Utopias Agrárias pelas lentes do Centro Popular de Cultura da UNE
(1960-1964)......................................................................................................................................827
Maíra Santana Marinho da Cunha
SIMPÓSIO TEMÁTICO 08
HISTÓRIA DAS MULHERES, RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES:
NARRATIVAS SOBRE FEMINILIDADES E MASCULINIDADES
A saúde feminina pelo prisma da beleza: A mídia impressa e medicamentos para mulheres
na década de 1950...........................................................................................................................905
Adriana Augusta Beltrão de Andrade
Políticos e juízes do sertão: masculinidades públicas à luz dos jornais da cidade de Caxias
durante Primeira República (1889-1930)....................................................................................977
João Vitor Ramos da Silva e Jakson dos Santos Ribeiro
Tal pai, tal filho: uma reflexão acerca do alcoolismo masculino e seus efeitos no núcleo
familiar em Caxias/MA (1889-1930)...........................................................................................999
Lais Isabelle Rocha de Souza
A moda da capital para os filhos da Princesa do Sertão: moda masculina a luz das Revistas
Elegante e Revista do Norte durante a Primeira República...................................................1037
Marta Gleiciane Rodrigues Pinheiro e Jakson dos Santos Ribeiro
“Mãe dos pobres”?: a atuação de Luíza Távora e as relações entre gênero, política e religião
no Ceará (1960-1990)...................................................................................................................1067
Norma Sueli Semião Freitas
SIMPÓSIO TEMÁTICO 09
ESTUDOS DO TEMPO PRESENTE
SIMPÓSIO TEMÁTICO 10
O LONGO SÉCULO XIX: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE
Da pena à escrita: anotações biográficas acerca da escritora inglesa Maria Graham no Brasil
Oitocentista...................................................................................................................................1273
Denise G. Porto
Imprensa, política e partidos no Brasil Oitocentista...............................................................1283
Edyene Moraes dos Santos
“Comandante geral seria Branco?”: o fim das milícias segregadas por cor na imprensa
carioca e no parlamento (1830-1834)........................................................................................1319
Maria Clara Aredes de Figueiredo
“Não se fala em outra coisa nas províncias do Norte”: o “morticínio eleitoral” em Cajazeiras/PB
nas páginas da imprensa (1872)..................................................................................................1329
Maria Larisse Elias da Silva
Uma análise comparativa entre o romance A Escrava Isaura (1875) e a novela Fany ou o
modelo das donzelas (1847)..............................................................................................................1361
Marllon Alves
O Maranhão Imperial através das composições de Maria Firmina dos Reis (1860 –
1888)...............................................................................................................................................1371
Natália Lopes de Souza
Apenas libertos? Ou libertos e ingênuos? Os direitos civis para os libertos nas propostas da Lei
do Ventre Livre (1866 – 1877)...................................................................................................1385
Thomaz Santos Leite
SIMPÓSIO TEMÁTICO 11
BIOGRAFIAS, TRAJETÓRIAS E PROSOPOGRAFIAS
Nove mil dias com João Ribeiro: As memórias de Joaquim Ribeiro sobre a vida e a
intelectualidade do mestre acadêmico.......................................................................................1543
Veronica Rocha da Silva
SIMPÓSIO TEMÁTICO 12
CULTURA E PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL
Das palavras sobre as imagens para a ação: a nascente crítica cinematográfica carioca
enquanto promotora cultural e política (1926-1932)..............................................................1587
Mauricio Rezende Dias
Pombo (UERJ), Prof. Dr. Eduardo Ferraz (UERJ), Profa. Dra. Erica Sarmiento (UERJ),
Profa. Dra. Isadora Maleval (UFF), Prof. Dr. José Gil Vicente (ICET/IFAM), Prof. Dr.
Sergio Galiana (UGS), Profa. Dra. Larissa Costard (CAp-UERJ), Prof. Dr. Rafael Araújo
(UERJ), Prof. Dr. Ricardo Mendes (UERJ), Profa. Dra. Ana Carolina Soares (UFG), Profa.
Dra. Joana Maria Pedro (UFSC), Prof. Dr. Daniel Lvovich (UGS), Prof. Dr. Flaviano Isolan
(UERJ), Profa. Dra. Hevelly Acruche (UFJF), Profa. Dra. Karoline Carula (UFF), Prof. Dr.
Marcelo Steffens (UNIFAL), Profa. Dra. Marta Rovai (UNIFAL), Profa. Dra. Ana Luce
Girão (Fiocruz) e Profa. Dra. Maria Helena Versiani (Museu da República).
Ao longo do ciclo foi desenvolvido um ambiente de afeto, de aprendizado,
crescimento e mudanças, com os pesquisadores relatando não apenas os tradicionais
resultados positivos de suas pesquisas, como também as experiências que os exigiram
passar por momentos de dificuldades ocasionadas – sobretudo, pelo avanço da Covid-19
no Brasil e no mundo. Entre pesquisas que abordavam um vasto arsenal bibliográfico, com
trabalhos de campo, de história oral, dos arquivos policiais, das charges, das caricaturas, da
imprensa, das trajetórias biográficas, dos achados arqueológicos, do ensino de história,
dentre outros, foi possível perceber as expectativas e experiências, as etapas avançadas e o
medo, cansaço, preocupações, angústia e outras questões que, no momento de pandemia,
não deixaram de ser mencionadas em meio as comunicações.
Em um contexto em que a educação vem sendo atacada, em especial na última
década pelo Estado brasileiro, compreende-se o Ciclo Virtual Internacional de História Política
como um espaço de resistência e de voz da universidade e da pesquisa científica realizada
em diversos locais do Brasil e do mundo, reforçando os valores inclusivos defendidos por
todos que construíram o sucesso do evento. Procurou-se fomentar um espaço horizontal
em que o rigor acadêmico tenha sido mitigado e que o evento pudesse ser um lugar de
apoio e de superação através de um sopro virtual dedicado à interação e ao debate.
Sendo assim, a Comissão Organizadora saúda coordenadores e comunicadores,
professores e alunos, que, com seus trabalhos, ajudaram a compor e abrilhantar um evento
pensado e elaborado por nós com muita dedicação em um tempo de tamanha
excepcionalidade. Esperamos, com a realização deste Ciclo e a publicação deste volume, trocar
experiências, movimentar conhecimentos, ampliar vozes e trazer visibilidade para pesquisas de
qualidade produzidas pelos pesquisadores de diversas partes do Brasil e do mundo.
Comissão Organizadora
Resumo
A história é responsável pela construção de diferenças sociais é possível observar por meio
dos estudos que uma parcela importante da sociedade fora excluída da produção histórica
por séculos, um desses grupos importantes foram as mulheres, silenciadas e deixadas de
lado como coadjuvantes, somente com estudos impulsionados por meio da luta feminista
ganharam espaço relevante na academia. Diante dessa emergência discussões sobre as
relações de gênero também contribuíram para o campo, assim este artigo busca ressaltar
algumas questões referente aos estudos e a produção historiográfica acerca de um período
marcado pela misoginia e negativação da figura feminina: a Idade Média Central. Baseando-
se também na novela de cavalaria cristianizada A Demanda do Santo Graal, que demonstra a
visão do clero sobre as mulheres e os modelos de comportamentos inseridos na tentativa
de contê-las.
Introdução
A Idade Média Central foi marcada por diversas mudanças na sociedade medieval,
tanto econômicas como sociais; surgiram mercados, feiras, e as cidades cresciam cada vez
mais, bem como, as relações feudais também passaram por mudanças. Outro aspecto
importante da Idade Média Central foi o desenvolvimento da atividade literária: “Até o fim
do século XII, só há literatura vernácula em verso: o lirismo e a canção de gesta, ambos
cantados e, um pouco mais tarde, o romance”3. Destaca-se no século XIII principalmente
1 Aluna do curso de Licenciatura em História da UEMA, orientada pela Profª Drª Adriana Maria de Souza
Zierer e membro do Brathair (Grupo de Estudos Celtas e Germânicos). E-mail:
gabrieledamasceno15@gmail.com Bolsista de iniciação científica (CNPq/PIBIC/UEMA) nos anos de 2018-
2020.
2 Doutora em História. Docente da Graduação e Pós-Graduação em História da UEMA (PPGHIST-UEMA).
os escritos em formato de prosa, pois era considerado mais fiel e direto. Le Goff traz
atenção para essa nova produção que permitiu a construção de uma literatura
posteriormente considerada histórica:
Entretanto, a autoridade é o atrativo do passado, seu fortalecimento
como valor ideológico guardando os relatos de diversão das crônicas do
século XIV e XV, tiveram na literatura um lugar importante, senão na
história, pelo menos na memória”4.
Deste modo, o autor põe em questão essa valorização do amor cortês que
mesmo colocando as mulheres em um novo espaço literário, ainda estaria colocando a
figura do cavaleiro romântico de maneira exaltada e valorizada, mostrando a limitação
dada às personagens femininas nessas narrativas.
Em A Idade Média Nascimento do Ocidente de Hilário Franco Jr6, o autor destaca a
postura da Igreja perante aos elementos culturais considerados “bárbaros”; o clero
modificava e adaptava as narrativas e mitos pagãos transformando-os em vista a um
propósito de dominação social. No caso da Literatura, o autor afirma que “também foi
influenciada por aquela tendência a preservar e cristianizar obras antigas, mais do que a
criar.” Podemos observar a vertente fortemente religiosa da cavalaria já cristianizada e a
relação com vários mitos pagãos que estão presentes nas narrativas da época.
Nesse contexto, é importante ressaltar o culto à Virgem Maria, que foi
popularizada na Penísula Ibérica por meio das Cantigas de Santa Maria como modelo de
comportamento para mulheres fiéis e tementes a Deus. Já as novelas de cavalaria, um
do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado,vol II, 2002, p. 90.
4 LE GOFF, Jacques. O imaginário Medieval. Editorial Estampa. 1994.
5 DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do Amor e outros Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 71.
6 FRANCO, Hilário Jr. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.
7 MEGALE, Heitor. O Jogo dos Anteparos. A Demanda do Santo Graal: A Estrutura Ideológica e a Construção da
Narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz Ed., 1992; MONGELLI, Lênia Márcia. Por quem Peregrinam os Cavaleiros de
Artur. São Paulo: Íbis, 1995; ZIERER, Adriana. Literatura e História n’A Demanda do Santo Graal: o rei, o cavaleiro
e a mulher. In: ZIERER, Adriana, FEITOSA, Márcia Manir (Orgs). Literatura e História Antiga e Medieval: olhares
interdisciplinares. São Luís: EDUFMA, 2011, p. 13-44.
8ZIERER, Adriana. Da ilha dos bem-aventurados à busca do santo graal: Uma outra viagem pela Idade Média. São Luís:
pelo mesmo durante a Santa Ceia e levá-lo a Inglaterra. Nesta narrativa o Graal é
representado como Vaso Sagrado.
Quando chega a Camelot, a corte arturiana, já armado como cavaleiro, Galaaz
começa a demostrar sinais de que é o cavaleiro no qual Merlim e outros profetas haviam
falado: ele senta no assento perigoso destinado ao “Cavaleiro por quem seriam acabadas as
aventuras do Reino de Logres”9, ele realiza outro sinal por acabar com a aventura da pedra,
ao retirar a espada que pertenceria ao melhor cavaleiro da terra. Assim, Galaaz provou que
era o cavaleiro eleito pata dar cabo às aventuras de A Demanda do Santo Graal. O Graal
aparece no paço onde os cavaleiros estão reunidos em torno da Távola Redonda e este se
retira do Reino de Logres, devido aos pecados do rei e da maior parte de sua corte, o que
dá início as aventuras para devolvê-lo a Camelot10.
Durante as aventuras, os cavaleiros encontram mulheres que seguem dois
modelos de comportamento distintos: o primeiro, composto pelas mulheres que os
ajudam na busca do Graal, refletindo as qualidades do modelo mariano; mulheres puras,
adjuvantes, com bom comportamento. Já o segundo modelo ou contramodelo na visão
dos clérigos que compuseram a obra. Apresenta as mulheres que seguem as más
qualidades de Eva, a mulher luxoriosa, que era resposável por desencaminhar e testar os
cavaleiros com sua beleza e sedução. Estas últimas também estavam frequentemente
associadas ao diabo, ao inferno, até mesmo a relações sexuais com os demônios.
Em Da ilha dos bem-aventurados à busca do santo graal: Uma outra viagem pela Idade
Média11, discorre sobre a cristianização do Mito Arturiano, e a “clara luta entre Deus e o
Diabo”. Entre os diversos episódios onde a mulher aparece, a DSG apresenta esse caráter
pedagógico em relação à mulher e o cavaleiro, a autora destaca um episódio:
Deus dirige-se diretamente aos fiéis, impedindo-os de cometer maus atos,
como por exemplo, quando aparece a Persival uma linda donzela capaz de encher
o seu coração de amor, levando-o a quase realizar o ato sexual.
Repentinamente, o jovem ouve uma voz do Céu e desmaia para logo a
seguir a donzela transformar-se no diabo11.
9 A Demanda do Santo Graal. Texto sobre os cuidados de Heitor Megale. São Paulo:T.A. Queiroz,1988.
10 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Cultrix, 1975; FERNANDES, Rául César.
Maravilhas e Aventuras n´A Demanda do Santo Graal. Espéculo. Revista de Estudos Literários. Madrid,
Universidad Complutense de Madrid, 2010, v. 45, p. 1-14. Disponível
em:www.ucm.es/info/especulo/numero45/sinalesp.html, Acesso em 25/10/2020.
11 ZIERER, Adriana. Da ilha dos bem-aventurados à busca do santo graal: Uma outra viagem pela Idade Média. São Luís:
exemplo, por Santo Tomás de Aquino, como o homem imperfeito12, seus comportamentos
relacionados ao sexo e sua libido considerada, em geral, torpe e impura. Devido a essa
concepção, manuais, sermões e a própria Literatura cristianizada estava colocando esses
modelos, para que, principalmente as mulheres que tinham acesso à leitura, como as damas
da corte, se comportassem conforme os padrões exigidos pela Igreja. Em outro episódio, a
pureza dos homens e a tentação feminina novamente são colocadas em evidência:
Galaaz é um digno representante da pureza porque em nenhum
momento se sente tentado pelo sexo feminino, nem mesmo quando uma
vez uma donzela caiu de amores por ele e se deitou na sua cama no meio da noite13.
Ao contrário de Persival no episódio citado sobre a donzela-diabo, o
cavaleiro que usava a estamenha não se sentiu atraído em nenhum
momento, e recusou o amor da jovem14.
Uma donzela-diabo, uma jovem luxuriosa, uma rainha adúltera entre outras
representações negativas. No entanto, havia também as que seguiam o modelo mariano,
mulheres que para ajudar esses cavaleiros deram até mesmo sua vida em sacrifício como a
Irmã de Persival, uma jovem bela de longos cabelos e pura, capaz de realizar milagres em
favor dos cavaleiros eleitos. O Ocidente herdeiro de reminiscências medievais e da carga
misógina desde Antiguidade até os dias de hoje, infelizmente ainda busca colocar a
mulheres em posições inferiores aos homens, modelos de comportamentos de boas ou más
mulheres, padrões de beleza e competição.
no modelo mariano que representava uma mulher pura e a figura de uma mãe exemplar.
Este modelo foi difundido por séculos, fornecendo um ideal de comportamento
inatingível que perpetuou a relação de poder dos homens sobre as mulheres.
José Rivair Macedo em A mulher na Idade Média desenvolve um estudo geral sobre
as posições sociais ocupadas pelas mulheres no Medievo e aponta que “Nunca será
demais dizer que a história das mulheres é um recorte temático em franco
desenvolvimento”16. Assim, a mobilização de novas pesquisas em todos os campos das
Ciências Humanas é essencial para o avanço desta temática que se desenvolve há poucas
décadas. O autor também aborda um aspecto interessante quanto ao o campo, sobre
escrever uma história das mulheres já que “boa parte do das informações foi fornecida por
homens, e que a imagem obtida nos revela um olhar masculino nem um pouco neutro”17.
As narrativas que os historiadores têm acesso são escritas pelo clero, homens que não
tinham nem mesmo contato direto com mulheres, a figura da mãe era o mais próximo de
uma mulher que esses homens chegavam.
Foi por meio das mudanças do século XX, e da chamada Nova História que
campos de destudo como o imaginário e as representações foram abordados, permitindo-
nos hoje pesquisar, por meio das Artes e Literatura, bem como de outras manifestações, o
cotidiano e os aspectos culturais importantes de uma sociedade passada. Também
perceber as permanências de estruturas sociais que ainda são reproduzidas na sociedade
atual.
Georges Duby em Idade Média Idade dos Homens faz um estudo profundo da
sociedade medieval no qual ele classifica a Idade Média como “Resolutamente masculina.
Pois todos os relatos que chegam até mim e me informam vêm dos homens, convencidos
da superioridade do seu sexo”18. Apesar das dificuldades de estudar as mulheres, e sua
participação na sociedade do período, é por meio da literatura ainda que escrita por
16 MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5ª ed. - revista e ampliada. São Paulo: Contexto, 2002, p.
103.
17 MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5ª ed. - revista e ampliada. São Paulo: Contexto, 2002, p.
10.
18 DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do Amor e outros Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 8.
homens que podemos nos aproximar mais das representações de mulheres consideradas
pelo clero más ou boas, santas ou pecadoras.
Ao discutir o feminino, o conceito de Gênero desenvolvido por Joan Scott, uma
das maiores teóricas sobre o uso de gênero durante os anos 80 nos Estados Unidos, é
importante para entender que “gênero” era um termo usado para diferenciar questões
sexuais, adotado mais tarde pelas teóricas feministas para analisar as diferenças e os
debates sobre a relação entre masculino feminino. Scott, por ser da corrente pós-
estruturalista, define que gênero tem partes e subpartes ligadas entre si: “O gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”19.
Destacando as relações de poder, a autora influenciada por Foucault, pontua
sobre as relações entre os gêneros principalmente entre o masculino e feminino. Scott
também se baseia na questão simbólica sobre as mudanças nas relações sociais interligadas
ao gênero:
Como símbolos da mulher, por exemplo, na tradição cristã ocidental -
mas também mitos de luz e escuridão Os símbolos culturalmente
disponíveis que evocam representações simbólicas (e com frequência
contraditória) - Eva e Maria, purificação e poluição, inocência e
corrupção. Para os/as historiadores/as, a questão importante é: que
representações simbólicas são invocadas, como, e em quais contextos?19.
A autora define que “gênero significa o saber a respeito das diferenças sexuais”, e
este saber, dizia ela, era pensado no sentido que lhe dava Michel Foucault, isto é, sempre
relativo; seus usos e significados “nascem de uma disputa política e são os meios pelos
quais as relações de poder – de dominação e de subordinação – são construídas”.
Portanto, concluía Scott, “gênero é a organização social da diferença sexual”19. Desta
forma, podemos dizer que um dos maiores desafios da pesquisa histórica é se desprender
de relações sociais que se referem ao “gênero” como sendo uma categoria reduzida à
dicotomia feminino/masculino, campo que nos faz pensar nas relações entre passado e
presente e pensar nas Reminiscências que a sociedade medieval e o cristianismo deixaram
marcados no atual Ocidente.
19SCOTT, Joan Wallach. Gender: an useful category of historical analyses: Gender and politics of history(gênero: uma
categoria útil de análise histórica). New York: Columbia University, 1989, p. 82-86.
Considerações Finais
Bibliografia
A Demanda do Santo Graal. Texto sobre os cuidados de Heitor Megale. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1988.
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do Amor e outros Ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
FERNANDES, Rául César. Maravilhas e Aventuras n´A Demanda do Santo Graal. Espéculo.
Revista de Estudos Literários. Madrid, Universidad Complutense de Madrid, 2010, v. 45, p.
1-14. Disponível em:www.ucm.es/info/especulo/numero45/sinalesp.html, Acesso em
25/10/2020.
FRANCO, Hilário Jr. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.
LE GOFF, Jacques. O imaginário Medieval. Editorial Estampa. 1994.
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5ª ed. - revista e ampliada. São Paulo:
Contexto, 2002 (Repensando a História).
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Cultrix, 1975.
MEGALE, Heitor. O Jogo dos Anteparos. A Demanda do Santo Graal: A Estrutura Ideológica e a
Construção da Narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz Ed., 1992.
MONGELLI, Lênia Márcia. Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur. São Paulo: Íbis, 1995.
NOGUEIRA, Carlos R. Bruxaria e História. São Paulo: Ática, 1991.
SCOTT, Joan Wallach. Gender: an useful category of historical analyses: Gender and politics of history
(gênero: uma categoria útil de análise histórica). New York: Columbia University, 1989.
SCOTT, Joan Wallach. “História das Mulheres”. In: BURKE, Peter. A Escrita da História.
São Paulo: UNESP, 1992, p. 63-95.
ZIERER, Adriana. Literatura e História n’A Demanda do Santo Graal: o rei, o cavaleiro e a mulher.
In: ZIERER, Adriana, FEITOSA, Márcia Manir (Orgs). Literatura e História Antiga e
Medieval: olhares interdisciplinares. São Luís: EDUFMA, 2011, p. 13-44.
ZIERER, Adriana. Da ilha dos bem-aventurados à busca do santo graal: Uma outra viagem pela Idade
Média. São Luís: Editora UEMA, 2013, p. 163-164.
ZINK, Michel. “Literatura (s)” In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado,vol
II, 2002, p. 79-93.
Resumo
ricos, mas também os melhores4. Assim, para ingressarem nas fileiras da cavalaria romana,
os cidadãos candidatos ao posto deveriam alcançar o censo mínimo anual de 400.000
sestércios e serem reconhecidos pelos censores como dignos desta honra. Somente então,
os novos membros da cavalaria recebiam a principal insígnia do grupo: o direito de possuir
o cavalo público. Esta divisão social também definia as funções políticas. Um exemplo
disso é o fato de que os membros da cavalaria romana possuíam um lugar especial na
Assembleia das Centúrias5, e eram os primeiros chamados a votar6.
Em sua origem, os Senadores eram os membros das famílias mais antigas e com
prestígio frente aos reis, desempenhando função consultiva. Após a reforma e a criação do
censo mínimo de 1 milhão de sestércios para ser Senador, a constituição do Conselho
Senatorial não sofreu grandes modificações, pois somente as famílias patrícias possuíam a
riqueza e o prestígio necessários para cumprir os requisitos exigidos pelos censores.
Podemos perceber, então que os Senadores, por apresentarem um censo mínimo superior
ao exigido para a participação na cavalaria romana, também participavam de sua
constituição.
A tendência geral era que o filho de um cavaleiro romano fosse também cavaleiro,
mas isto não era uma obrigação. Formalmente o título de cavaleiro não era hereditário, mas
ter um pai, avô ou algum familiar que tivesse sido cavaleiro, sempre que se reuniam os
demais requisitos de censo, idade e moralidade, pesava na decisão dos censores7. Dado que
o título de cavaleiro romano representava grande honra e que sua diferença para com o de
senador não ia acompanhada de pesadas cargas, era muito raro um filho de cavaleiro
renegar esta honra.
Claude Nicolet afirma que ordo – ao se referir a um grupo que na classificação
sócio-política do Estado tinha certa função, certa dignitas, e que exigia certo critério
4 NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Répubilcaine (312-43 av. J.-C.). Tome 1: Définitions juridiques et
structures sociales. Paris: E. Boccard, 1974. p. 15 -16
5 A Assembleia Centurial – cujos participantes eram os membros das centúrias do exército romano, criadas
durante a reforma serviana que reorganizou o exército com bases censitárias – reunia-se mediante a
convocação do cônsul ou de um tribuno, e era responsável pela escolha dos magistrados e pela resolução de
apelações, além de julgar todos os crimes sujeitos à pena de morte e decidir sobre guerra e paz; também
possuía a responsabilidade de votar, sem direito de emenda, medidas propostas pelos magistrados ou pelo
Senado. O voto era dado por centúria, possuindo, cada uma destas, o direito a um voto determinado pela
maioria de seus membros. Isso dava à Assembleia um caráter conservador em suas decisões, porque os
membros da 1ª e 2ª classes formavam o maior número de centúrias.
6 CORASSIN, Maria Luiza. A Reforma Agrária na Roma Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.61
7 NICOLET, Claude.Un Ensayo de Historia Social: el Orden Ecuestre en las postrimerias de la Republica
Romana. In: Ordenes, Estamentos y classes: Coloquio de historia social Saint-Cloud, 24-25 de mayo de 1967. Madrid:
SigloVeintiuno, 1978. p. 42.
censitário para dele participar8, um grupo que se caracterizava por ser fechado cujos
membros eram registrados oficialmente em uma lista redigida por determinados
magistrados9; que tinha necessidade de status legal, devendo ser revisado regularmente, e
que não constituía um conjunto heteróclito de pessoas, apresentando uma estrutura
interna10 – deve ser traduzida pela historiografia moderna como “Ordem”, e não como de
“classe social”, como alguns trabalhos historiográficos fazem ao se referir a estruturas do
Mundo Antigo utilizando conceitos carregados de valores modernos.
Mostra-se mais adequada à estrutura romana a tradução de ordo não como
“classe”, mas sim como “ordem”; tradução justificada pelo esforço em evitar equívocos, já
que, nos nossos dias, a noção de classe social é essencialmente determinada pela renda e
pelas atividades econômicas; diferentemente da ordo, que preconizava a dignitas e que tinha
um sentido preciso e quase jurídico, se referindo às divisões do povo diferentes das classes
censitárias, mas reconhecidas pelos censores11.
Assim podemos falar de Ordem Equestre e Ordem Senatorial. A primeira era
constituída pelos membros da cavalaria romana, sua dignitas era representada pela possessão
do cavalo público e exigia o um censo mínimo anual, conforme já foi dito. Da Ordem
Senatorial participavam os membros do Senado, que também possuíam um censo mínimo
anual e a função política bem definida. Portanto, podemos dizer que a Ordem Equestre e a
Ordem Senatorial constituíam dois grupos definidos que se relacionavam de forma
bastante próxima, pois os membros da segunda, basicamente por uma questão censitária,
também participavam da primeira.
Os Cavaleiros participavam da ideologia dos Senadores, os membros das duas
Ordens casavam-se entre si, formando alianças políticas, tinham em comum o fato de
serem os mais ricos com mesma qualificação censitária. No entanto, havia diferenças entre
ambas as Ordens que resultavam de suas especializações, das incompatibilidades e
proibições legais existentes. Algumas das diferenças entre as Ordens diziam respeito ao fato
de que os Senadores ligavam-se ao exercício das magistraturas e eram proibidos de
8 NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Répubilcaine (312-43 av. J.-C.). Tome 1: Définitions juridiques et
structures sociales. Paris: E. Boccard, 1974. p. 169 e 175
9 Era o reconhecimento do censor, e em sua falta, do legislador ou, na época imperial, do príncipe, que
Romana. In: Ordenes, Estamentos y classes: Coloquio de historia social Saint-Cloud, 24-25 de mayo de 1967. Madrid:
SigloVeintiuno, 1978. p. 41.
11 NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Répubilcaine (312-43 av. J.-C.). Tome 1: Définitions juridiques et
participar de uma concorrência pública por serem seus organizadores. Por outro lado,
nenhuma proibição legal atingia os Cavaleiros: as concorrências eram abertas para todos
que não fossem Senadores, e os contratos eram arrematados pela melhor oferta. Os
principais detentores dos contratos oferecidos nestes leilões eram os chamados
Publicanos12, dos quais alguns eram Cavaleiros13
Sabemos que falar sobre o conceito de Identidade na Antiguidade é algo ainda
muito difícil. Não há consenso na comunidade acadêmica sobre a natureza dos laços
identitários no Mundo Antigo. Ao se eleger como objeto de análise o Império Romano,
por exemplo, percebemos a impossibilidade de empregar as três variáveis necessárias para
se afirmar a identidade étnica: a língua, a religião e a raça14 15. No amplo território da Roma
Imperial, encontra-se uma pluralidade de línguas faladas, diferentes expressões religiosas e
uma grande diversidade de povos sob o domínio de Roma. Isso porque a dominação
romana exigia apenas o pagamento de tributos ao Império, controle romano da
administração pública e respeito aos cultos oficiais – principalmente o culto ao Imperador
– jamais impondo sua língua, proibindo os cultos locais ou criando, através de mitos, laços
ancestrais com os povos conquistados.
É certo que a ideia de uma Identidade integral, originária e unificada tem sido
bastante criticada, e o estudo das identidades individuais e coletivas, como identidades
interdependentes, tem rendido frutos na análise das sociedades contemporâneas, podendo
também abrir um interessante campo de análise na História Antiga. Por isso afirmamos que
as duas camadas superiores da sociedade romana apresentavam fortes laços identitários
que, a partir de 123 a.C. – ano em que Caio Graco foi tribuno da Plebe – sofreram certo
desgaste, mas que jamais se romperam por completo.
A maior definição das fronteiras Identitárias entre os Senadores e a Ordem
Equestre surgiu pela ascensão à função judiciária desta última que assim ultrapassou a linha
12 Pode-se afirmar que a predominância de cavaleiros vitoriosos nos leilões do direito de coletar impostos nas
províncias advinha de sua fortuna, sendo mais uma questão de comportamento social e político, e não a
aplicação de um texto de uma lei, pois jamais houve uma medida legal que precisasse que só os cavaleiros
pudessem participar das concessões públicas. Um cavaleiro detinha uma fortuna pessoal mínima de 400.000
sestércios que representava uma garantia de que, em caso de dificuldade, o Estado sempre teria segurança
para recuperar seu dinheiro (NICOLET, 1978, p. 46).
13 CORASSIN, Maria Luiza. A Reforma Agrária na Roma Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.62-63.
14 Esta tem alto grau de indeterminação por não se ancorar em critérios científicos balizados. Sua importância
na construção de uma identidade reside na sugestão de uma origem comum do grupo (SILVA, 2004, p. 19).
15 SILVA, Gilvan Ventura da. Representação social, identidade e estigmatização: algumas considerações de
caráter teórico. In:--------- (org). Exclusão Social, Violência e Identidade. Vitória: Floricultura, 2004, p. 19.
que separava as duas Ordens: o acesso à magistratura16 17.Tal ascensão ocorreu quando, em
seu segundo mandato como Tribuno da Plebe, Caio Graco transferiu dos Senadores para
os cavaleiros, mediante uma lei – a Lex Repetundarum –, o direito de proporcionar os juízes
dos tribunais de justiça responsáveis por julgar as denúncias de crimes de extorsão e
corrupção nas províncias e que estavam desacreditados por sua venalidade18.
Caio Graco era irmão de Tibério Graco, que fora Tribuno da Plebe dez anos antes
que o irmão mais novo, e que entrou em atrito com os Senadores devido a seus projetos de
reforma agrária e foi morto pelos partidários destes durante a Assembleia que deveria votar
sua reeleição. Ambos eram filhos de Tibério Graco, cônsul em duas ocasiões, e de Cornélia
Semprônia, exemplo de maternidade para os romanos e filha mais nova de Cipião Africano.
Ao longo de suas duas magistraturas, Caio propôs uma série de leis, cuja ordem
cronológica não é muito fácil de definir. A historiografia moderna elegeu como as
principais propostas de Caio lei tais como a Lei Frumentária19, com a qual Caio ganhou o
apoio do povo e despertou a antipatia daqueles que mantinham sua influência política
através de sua clientela, e que logo acusaram Caio de esvaziar os cofres públicos a fim de
obter popularidade20.
Outra lei considerada importante pela historiografia é aquela que permitia a
reeleição do Tribuno. Alguns autores afirmam que esta lei21 foi proposta por Caio e
aprovada ainda em 123 a.C., o que lhe permitiu continuar no cargo de tribuno em 122 a.C.
Apiano, porém, informa que esta lei não é de autoria de Caio, relatando que ela já estava
em vigor e dava ao povo o direito de eleger dentre todos os cidadãos um tribuno, se as
16 De acordo com Claude Nicolet (1974, p. 467-468), a magistratura não era só o exercício de uma função
civil, comportando também responsabilidades e privilégios políticos, fixada em certas famílias e limitada a
certo meio, ela tende pouco a pouco a se transformar em guardiã de certa ideologia, influenciando no
desenvolvimento do pensamento político em Roma.
17 NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Répubilcaine (312-43 av. J.-C.). Tome 1: Définitions juridiques et
79.
19 Esta lei responsabilizava o Estado pela distribuição mensal de trigo a preço fixo e mais baixo que o de
mercado para os cidadãos romanos, medida que favorecia exclusivamente os residentes em Roma e aliviava a
miséria da plebe urbana, que até então dependia de doações das grandes famílias, o que contribuía para a
criação dos laços de clientelismo enfraquecidos por tal lei, fazendo com que Caio obtivesse o apoio popular
(CORASSIN, 1988, p. 58).
20 CORASSIN, Maria Luiza. A Reforma Agrária na Roma Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.62-63. p. 59.
21 Maria Luiza Corassin (1988, p. 58) afirma que esta lei possibilitou a Caio derrubar um dos grandes
obstáculos enfrentados por Tibério, pois os seus opositores não puderam impedir sua reeleição, já que esta,
diferentemente do tempo de Tibério, não era uma ação ilegal, não podendo ser ele acusado de intentar um
golpe de estado ou o poder régio.
22 APIANO. Guerras Civis I, 21. In: História Romana II. .Trad. Antonio Sancho Royo. Madrid: Gregos, 1985.
23 PLUTARCO. Vida de Caio Graco, 08. In: Vidas Paralelas. Trad. Gilson César Cardoso. Rio de Janeiro:
Paumape, 1992.
24 De acordo com Apiano, o passar do tempo, a intenção de tal afirmação não se concretizou de forma
benéfica, pois se criou na verdade um vácuo de poder de governo, ao estar somente a dignidade nas mãos do
Senado e o poder efetivo nas mãos dos cavaleiros (APIANO. Guerras Civis, I. 22)
25 APIANO. Guerras Civis I, 22. In: História Romana II. .Trad. Antonio Sancho Royo. Madrid: Gregos, 1985.
26 O pretor deveria ler em voz alta, na Assembleia do Povo, sua lista anual de 450 jurados, e publicá-la em um
quadro de notícias ao longo do ano; também precisava publicar a lista de jurados escolhidos e advogados
indicados para cada caso e realizar um juramento público de que havia escolhido apenas homens de bem. O
povo ao redor da corte precisava ver os votos dos jurados, que eram contados e declarados para a multidão
(SHERWIN-WHITE, 1982, p. 21 e 23).
27 Eram excluídos do júri todos aqueles que estavam fora da Península Itálica, aqueles que estavam ocupados
com tarefas nas províncias e os que estavam servindo ou podiam servir na cavalaria. Isto porque os jurados
precisavam estar disponíveis em Roma durante o ano; os limites de idade eram baseados no serviço militar,
que termina aos trinta anos, quando começava a vida política efetivamente, vida esta que acabava aos sessenta
anos (SHERWIN-WHITE, 1982, p. 22).
28 SHERWIN-WHITE, A. N. The Lex Repetundarum and the Political Ideas of Gaius Gracchus. Jornal of
Roman Studies. London, v. 72, 1982. p. 21 e 23.
29 NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Répubilcaine (312-43 av. J.-C.). Tome 1: Définitions juridiques et
Bibliografia
Resumo
A proposta desta comunicação é discutir a utilização da lei e da capacidade legislativa como
instrumento de propaganda política por parte do poder régio. Para tanto, analisaremos o
caso do reino medieval de Castela e Leão durante a segunda metade do século XIII.
Partimos do pressuposto que o uso propagandístico da lei possuía um objetivo específico
que seria reforçar ou consolidar a legitimidade do governante – no caso o próprio rei –
diante da população do seu reino. Para tanto, utilizaremos como fonte de investigação o
Fuero Real, um código de leis elaborado a mando do monarca Afonso X (1252-1284 d.C) e
pretensamente destinado a todo o território castelhano-leonês.
Introdução
1Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Universidade Castelo Branco.
Contato:almirjr@outlook.com.br
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
sociedade medieval castelhana. Além de ser uma produção idealizada pelo mais alto cargo
do governo do reino, o Fuero contém em suas páginas informações que podem nos ajudar a
compreender a forma como estes governantes enxergavam seu próprio papel diante da
sociedade.
O uso da lei é, dentro deste raciocínio, parte da estratégia política da monarquia
castelhana daquele período histórico. A ação legislativa será entendida aqui como expressão
do poder político de uma elite, da qual o rei medieval representa o topo da hierarquia
social. Esta estratégia era pautada na veiculação de ideias e concepções acerca dos poderes
atribuídos ao rei. Ao utilizar a lei para disseminar tal discurso, a monarquia tentava
construir uma narrativa que mostrava não apenas o monarca como figura soberana, mas
também ditava a forma como sus súditos deveriam se relacionar com ele.
A propaganda política
2CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo, Editora Contexto: 2006. P.19
3NIETO SÓRIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII – XIV). Madrid:
EUDEMA. 1988. P.45
Soria, a força destas imagens está apoiada principalmente no discurso veiculado pelos
documentos que foram produzidos no âmbito da corte régia ou diretamente a mando do
rei4. O conhecimento desta documentação é indubitavelmente primordial para alcançar
nossos objetivos e por isso faz-se necessária uma apresentação de nossas principais fontes
de análise. A escolha do corpus documental foi feita justamente tentando contemplar o
impacto que o mesmo possuiu para o cenário político de seu respectivo momento
histórico.
Nieto Soria elaborou uma abrangente análise dos fundamentos ideológicos
utilizados pelas monarquias medievais castelhanas e leonesas, levando em consideração
elementos oriundos mesmo da esfera da religião e do sagrado que se imbricavam às
concepções políticas medievais5.Tais elaborações possuíam um intento nitidamente
determinado e já foram apontadas por outro historiador, Georges Duby6. Ambos os
autores ressaltaram que estas alegorias almejavam apresentar o monarca como a figura mais
indicada para governar o reino, uma vez que sua autoridade era concedida por uma
instância superior a qualquer outro poder na terra. Um dos principais objetivos deste
discurso era claro: reforçar a aceitação do poder central em meio à população do reino.
Para que tal intento se concretizasse, percebemos que toda a estrutura do Estado,
munido de seus “aparelhos de propaganda”, tornou-se uma imensa emissora de mensagens
dirigidas principalmente ao fortalecimento de sua aceitação perante seus súditos diretos e
sua população7. Soria ainda chama a atenção para o próprio conceito que guardamos hoje
acerca das noções de propaganda, pois evidentemente os mecanismos que “promoviam
algo” no medievo não eram os mesmos dos dias atuais. Se estivermos interessados em
investigar os mecanismos de divulgação do estado, então falamos de uma propaganda
política que possuía veículos de divulgação próprios. Entre eles se encontrava a própria
produção intelectual realizada no âmbito da corte, como a prosa didática, destinada a
instruir os futuros reis na arte de governar8; as obras de caráter jurídico, que não continham
apenas leis, mas modelos de uma sociedade que se almejava construir; as crônicas ou
História: Novos Problemas. Rio de janeiro. Livraria Francisco Alves Editora. 1995. p.130-145
7 GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV (os Estados). São Paulo: Pioneira, 1981. p.71
8 O predecessor de Afonso X, Fernando III de Castela e Leão (1217-1252) mandou escrever em seu nome
um tratado similar a fim de deixá-lo a seu herdeiro, cuja obra intitulava-se “El libro de los doze sábios”.
Editado já faz algumas décadas por. WALSH, John K (ed). El libro de los doze sabios o Tractado de la nobleza y
lealtad Real Academia Española de la Lengua (Anejos del Boletín de la Real Academia Española, XXIX).
Madrid. 1975.
histórias do reino, verdadeiros monumentos que, além resgatar ou construir uma memória
que possui estreitas relações com o tempo presente, exaltava na mesma proporção os
sentimentos de pertencimento a uma determinada unidade política. Justamente em função
destes pressupostos é que empreendemos a escolha do corpus documental que será
trabalhado
O Fuero Real
Ainda no seu prólogo, o Fuero tenta explicar as razões que levaram à sua elaboração.
O texto reitera sua compilação a mando do rei Afonso X, indicando que tal ação estaria
atendendo às demandas que lhe eram encaminhadas pelas vilas que não possuíam um
código de normas minimamente estruturado.
Determinar a autoria da obra requer uma atenção especial para as suas condições de
produção. Tradicionalmente, os estudos históricos apontam o monarca castelhano Afonso
X como seu “autor” ou “idealizador”, mas isso não significa, necessariamente, que ele
próprio tenha redigido o texto. As dimensões do código e seu numeroso e detalhado
número de leis e temas torna pouco provável que tenha sido trabalho de uma só pessoa.
O próprio prólogo da obra, mais uma vez, menciona a consulta à especialistas em assuntos
relativos ao direito que se encontravam na corte régia10. Ainda assim, o Fuero Real é
reconhecido sendo “de Afonso X”.
Este código de leis foi gradativamente concedido a diversas localidades do reino ao
longo dos vinte primeiros anos de governo de Afonso X. Entre 1256 e 1272, Jerry
Carddock indica que o Fuero Real foi estendido às regiões da Andaluzia, Murcia e
Extremadura, não tardando muito até que boa parte de Castela se encontrasse sob este
estatuto régio11. Neste processo, foram suprimidos tanto os foros locais e relativamente
“jovens”, como também antigos códigos de leis que estavam em vigor havia séculos, tal
como o Fuero Juzgo, utilizado pela cidade de Toledo desde a época visigótica.
Chama a atenção a forma como a própria figura régia é apresentada pelo
documento. Por mais que se trate de um código de leis, o Fuero não se furta a tecer longos
comentários sobre a natureza do poder régio e de como ele se coloca diante da sociedade.
Logo nos seus primeiros títulos, vemos que se tenta construir um vínculo direto entre o
monarca e a divindade. A alegoria propunha toda uma corrente de subordinações que
colocaria abaixo de Deus os demais seres sobrenaturais pertencentes à mitologia cristã
(entre os quais estavam arcanjos, anjos e santos), e alcançava a sociedade terrena,
primeiramente através do rei, representante máximo da divindade na terra.
Nuestro Señor Dios ordenó primeramente la su corte en el Cielo, y puso
asimesmo por cabeza y encomenzamiento de los Archangeles, y de los
Angeles, è quiso, è mandó que los amasen, y que como al
10 oviemos conseio con nuestra corte e con los omes sabidores de derecho, e dimosles este fuero que es escripto en este libro. IN:
PERZ MARTIN (ed.). 2015. p.6
11 CARDDOCK. Jerry R. The Legislative Works of Alfonso el Sabio. In: BURNS, Robert Ignatius. Emperor
of culture: Alfonso X the learned of Castile and his thirteenth century renaissance. Pennsylvania: University of
Pennsylvania Press. 1990.
Ao propor a existência desta longa cadeia de elos que submetia todas as criaturas,
desde os anjos até os homens, esta teoria política apresentava à comunidade cristã a
percepção de que tal ordenação era uma imposição divina que se impunha à sociedade.
Através dela, não só o rei, mas toda a instituição régia justificava a sua existência na medida
em que a própria divindade cristã era apresentada como um monarca. Segundo tal alegoria,
os vassalos de Deus eram justamente os reis, que em nome de seu Senhor governavam o
mundo dos homens, cada um em seu próprio território.
No momento em que a autoridade régia é apresentada como uma dádiva concedida
pela divindade aos seus representantes no mundo dos homens, o discurso político
habilmente propunha uma série de implicações que advinham desta tomada de posição.
Uma destas implicações derivava de uma associação lógica direta: na medida em que os
soberanos se apresentavam como escolhidos de Deus para governar o mundo em seu
Nome, o desrespeito à autoridade dos monarcas poderia representar um desacato direto à
própria vontade divina, sendo interpretado inclusive como sacrilégio.
Todo home que de los fechos del Rey, è de los dichos algun mal trayere,
que es descomulgado e debe haver la pena de aquel que hace sacrilégio
(...) porque movieron contra el poder de Dios, è contra sus fechos de
guisa 13.
Em busca da legitimidade
O Fuero Real, bem como o discurso político acerca da realeza contido em suas
páginas, mostram-se como intentos em reforçar a legitimidade e a autoridade da monarquia
castelhana sob o governo de Afonso X. Em linhas gerais, ser considerado legítimo
implicava a necessidade de que houvesse um relativo consenso, ao menos em meio a uma
parcela significativa da população do reino, acerca da obediência à autoridade régia, sem
que para isso fosse necessário recorrer à força14. Lucio Levi aponta que em função desta
14Ainda assim, contando já com o respaldo de sua população, os reis podem valer-se da violência para coagir
àqueles que não o obedece.
premissa “ Todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo
(...) A crença na legitimidade é, pois, o elemento integrador da relação de poder que se verifica no
âmbito do estado”15.
Por meio dos códigos legislativos, a monarquia castelhana, procurou difundir seu
discurso político, no qual a concepção de que a instituição régia tinha suas origens em um
plano divino. Tratava-se de uma ação em resposta a própria realidade em que se encontrava
o poder régio, frequentemente desgastado e abalado por revoltar e sublevações
aristocráticas. A busca por um enunciado discursivo que legitimasse a supremacia do poder
do rei mostra-se como uma estratégia retórica para tentar combater a cruel realidade na
qual o governante se encontrava se encontrava.
Uma vez que nossa proposta é justamente compreender estes objetivos, dentro do
contexto histórico do reino medieval de Castela e Leão na segunda metade do século XIII,
precisamos ter em mente que, naquele momento, a lei mostra-se muitas vezes como um
projeto político do próprio governante para com restante da sociedade que ele governava.
Este projeto tinha na aristocracia senhorial seu principal alvo, uma vez que eram estes
mesmos aristocratas as figuras que representavam maior ameaça ao reconhecimento d
autoridade régia.
O fato de o Fuero Real ter sido escrito na língua românica, e não no latim, traz mais
um elemento da estratégia de difusão do discurso político da monarquia. Estando em um
idioma mais acessível, a sua leitura e a sua consequente circulação seriam potencializadas,
auxiliando a mensagem a alcançar uma maior quantidade de indivíduos.
Últimas considerações
15LEVI, Lucio. “Legitimidade”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de Política. São Paulo. Imprensa Oficial, 2004. P.92
Bibliografia
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV (os Estados). São Paulo: Pioneira, 1981.
LEVI, Lucio. “Legitimidade”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. São Paulo. Imprensa Oficial, 2004.
MARTÍNEZ MARINA, Francisco. “Ensayo histórico-crítico sobre la legislación y
principales cuerpos legales de los reinos de León y Castilla especialmente sobre el código de
las Siete Partidas de Don Alonso el Sabio”, IN: Obras escogidas. Madri: Biblioteca de Autores
Españoles desde la formación del lenguaje hasta nuestros días , 1966.
NIETO SÓRIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII –
XIV). Madrid: EUDEMA. 1988.
PERZ MARTIN, António (Ed.). Fuero Real de Alfonso X El Sabio. Madri: Agencia Estatal
Boletín Oficial Del Estado, 2015.
STOPPINO, Mario. “Poder”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCHI, Nicola e
PASQUINO, Gianfranco (org.). Dicionário de Política. Brasília: Editora UNB, 2004. vol 2.
p.933-943.
Resumo
Introdução:
1 Graduanda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Programa de Estudos Medievais (PEM –
UERJ). E-mail:amanda_cruzxavier@yahoo.com.br. A produção do presente artigo contou com a orientação
da Profª. Drª Marta de Carvalho Silveira, Professora Adjunta de História Medieval da UERJ.
2 Fonte Primária: DEPLAGNE, Luciana Calado; SIMONI,Karine. Trotula de Ruggiero: Sobre a doença das
Escola de Salerno
A Escola de Salerno estabeleceu uma formação mais particular para aqueles que
queriam ter um estudo mais aprofundado no campo da medicina3. Esses estudos incluíam
técnicas de dissecação e traduções dos tratados anatômicos do arabe para o latim. De
acordo com Silva4 os professores salernitanos acreditavam que a medicina estava ligada à
filosofia da natureza, sendo influenciados pelo pensamento de Hipócrates.
Os saberes de Hipócrates alcançaram grande destaque na Escola de Salerno, alguns
de seus estudos prescrever o consumo de ervas medicinais para algumas enfermidades que
provinham diretamente de um desequilíbrio nos fluidos e nos humores do corpo. Como
frisa Silva:
Não entrando na discussão sobre o Hipócrates histórico, o
aparecimento de uma medicina que procura prevenir ou curar a
doença através de procedimentos naturais reconhecendo causas
naturais a todas as enfermidades, conhecidas ou não,
revolucionou a ciência da cura.5
É importante ressaltar que todos esses saberes desenvolvidos nesta escola estavam
relacionados à sua localização em uma região conhecida por ser multicultural, graças a
presença da cultura árabe, hebraica, grega e latina. Essas referências culturais ampararam a
produção da Escola de Salerno durante os século X e XII dando grande popularidade à
instituição, do mesmo modo que a transformou no espaço de estudo da medicina mais
importante do mundo ocidental.
A atividade de estudos sobre as doenças femininas afirmou a notoriedade da Escola
de Salerno, não só pela multiplicidade do conhecimento produzido, mas especialmente por
ter sido elaborada por mulheres que ficaram conhecidas com as Damas de Salerno. Um dos
nomes que ganhou grande destaque nesses estudos foi Trotula de Salerno que escreveu
alguns tratados médicos relacionados à beleza feminina, à menstruação, ao puerpério e às
doenças femininas.
3 Para maiores informações ver: MASIERO, Luciana Maria. Escola Medica Salermitana, Procedimentos Cirúrgicos
Estéticos e Trotula de Ruggiero: um trabalho de campo em Salerno (Itália). Trim-11, 2016, pp 27-44.
4 SILVA, André F. Oliveira da. Físicos e Cirurgiões Medievais Portugueses: Contextos socioculturais, práticas e transmissão
Trotula de Salerno
6 REBOLLO, Regina Andrés. O Legado Hipocrático E Sua Fortuna No Período Greco-Romano: de Cós a Galeno.São
Paulo: Scientle Studia,v.4, n.1, 2006,p.75.
7 PINHO, Lucia Regina O. E. TRÓTULA DE SALERNO: périplo na história e historiografia, Brasilia, 2016,
Os dois tratados de Trotula mais conhecidos são De passionibus mulierum ante, in e post
partum (Sobre as doenças das mulheres antes, durante e depois do parto), também chamado
8 COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Entre a
medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. Porto Alegre: Editora FI,2019,p.222-223.
9 SIMONI, Karine. De Dama da Escola de Salerno à Figura Legendária: Trotula de Ruggiero entre a
de Trotula maggiore (Trotula maior), e De ornatu mulierum (Sobre a beleza das mulheres), ou
Trotula minore (Trotula menor). Ambos foram escritos em latim e traduzidos para diversas
línguas como alemão e o francês, sendo possível confirmar a existência de mais de cem
manuscritos da obra de Trotula dispersos em bibliotecas de cidades como Bruxelas,
Oxford, Londres, Breslávia, Paris, Florença, Madri e Cidade do Vaticano, dentre outros10.
Essas três variantes da obra de Trotula circularam até 1544, ano em que o editor Georg
Kraut compôs o conteúdo dos três manuscritos, transformando-os em um só e
publicando-o pela primeira vez com o uso da prensa sob o título De passionibus mulierum ante,
in et post partum (Trotula Maior e Trotula Menor), que é a versão do texto mais difundida na
época atual.
O tratado sobre as doenças e o tratado sobre a beleza, está dividido em 61
capítulos, mais dois capítulos que teriam sido inseridos a posteriori compreendendo 60
capítulos de extensão variada e voltada para assuntos específicos como a falta ou o excesso
das menstruações, o prurido e o inchaço nos órgãos genitais e a infertilidade feminina e
masculina. Também menciona o câncer, o excesso de suor, as hemorroidas, a desinteria, a
presença de piolhos e sarnas, a dor de dente, o mau-hálito, as feridas na pele, e as doenças
nos olhos e na garganta.
Ademais, Trotula expôs aconselhamentos tanto para evitar a gravidez quanto para
alcançá-la, além dos cuidados necessários durante o período da gravidez, os meios para
tornar o parto menos doloroso, e os cuidados com o recém-nascido e com as mulheres
após o parto. A médica identificou também soluções para repor a virgindade da mulher,
para emagrecer e para acalmar o desejo sexual das mulheres que se encontrassem
impossibilitadas de realizá-lo. A farmacopeia para cada tratamento concentrava-se na
natureza das ervas medicinais. No tratado foram citadas cerca de duas centenas de ervas
diferentes divididas entre “quentes” e “frias”, ministradas de modo puro ou misturadas
entre si, em forma de chás, emplastros, pessários, pomadas, unguentos ou fumigações.
Examinando a forma como Trotula elaborou o seu saber médico, Pina de Carvalho
afirmou que:
Trotula pertence a um mundo em que o contato com a doença
era de fato com a doença, por meio do interrogatório das
maneiras pelas quais essa se apresentava para a observação; e a
10 DEPLAGNE, Luciana Calado; SIMONI, Karine. Trotula de Ruggiero: Sobre a doença das mulheres.
Florianópolis: Editora COPIART,2018, p.21-22.
Trotula considerava que grande parte das doenças femininas eram motivadas pelo
desequilíbrio no ciclo menstrual, embora o sangue menstrual fosse também considerado
como um instrumento de purificação do corpo feminino.
No caso de faltarem as menstruações e a mulher ficar com o
corpo debilitado, deve ser furada a veia, chamada Safena, que está
na cavidade interna do pé, o primeiro dia em um pé, o dia
seguinte no outro pé, e deve ser extraído sangue de acordo com o
que a energia dela permitir. Pois em cada doença deve-se tomar
cuidado e ponderar para que a doente não se debilite demais. De
fato, Galeno faz referência a uma mulher a quem por nove meses
faltaram as menstruações e que ficara constipada e fragilizada no
corpo todo; além disso, ela tinha perdido completamente a
vontade de comer. Por esse motivo, ele mesmo extraiu o sangue
da referida veia dela por três dias: no primeiro dia, uma libra de
um pé, no segundo dia, uma libra do outro pé, no terceiro dia,
novamente, oito onças do primeiro pé, e assim em breve tempo
ela retomou a cor e o calor vivificante, com o devido bem-estar
de todo o corpo.12
11 DEPLAGNE, Luciana Calado; SIMONI, Karine. Trotula de Ruggiero: Sobre a doença das mulheres.
Florianópolis: Editora COPIART,2018,p.23.
12 DEPLAGNE, Luciana Calado; SIMONI, Karine. Trotula de Ruggiero: Sobre a doença das mulheres.
Florianópolis: Editora COPIART,2018,p.41.
13 DEPLAGNE, Luciana Calado; SIMONI,Karine. Trotula de Ruggiero: Sobre a doença das mulheres.Florianópolis:
Editora COPIART,2018, p.35.
14 GREEN, Monica H. The Trotula: a medieval compendium of women’s medicine. Filadélfia: University of
Considerações finais
Bibliografia
Resumo
Introdução
O presente tranalho aborda o período patrístico da Igreja, com ênfase nos séculos IV
e V, o qual foi marcado pelo estabelecimento do Cristianismo e de suas concepções
filosóficas. No período patrístico de nosso arco temporal, quando a sociedade romana se
encontrava em crise, as referências de mundo que os indivíduos possuíam passavam por
uma série de transformações. Dentro desse cenário de crise, o Cristianismo expandiu-se,
reproduzindo discursos doutrinários, crenças e ideias que compunham uma visão de
mundo, sociedade e sentido de vida. Transmitidas pela tradição cristã, essas características
estão presentes em algumas sociedades contemporâneas. Em nosso recorte cronológico,
umas das principais questões debatidas pelos teólogos das diversas vertentes cristãs
existentes, eram aquelas sobre a origem do mal e a sua relação com Deus. Apontamos
como dois principais pensadores destas questões, Agostinho de Hipona e Gregório de
Nissa.
Agostinho de Hipona, que nasceu no dia 13 de novembro de 354, em Tagaste,
Numídia. Em 372, com 18 anos, conheceu sua concubina, com quem conviveu durante 13
anos. Trabalhava como professor de retórica. Desde 373 passa a ser “ouvinte” dos cultos
1Doutorando em História Política Pelo PPGH/UERJ, bolsista Capes/DS, orientador Edgard Leite Ferreira
Neto e Bruna Dutra de Oliveira Soalheiro Cruz. E-mail: daniel-dias12@hotmail.com
Anais do
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maniqueístas da igreja de Mani, em Cartago, que mais tarde passou a considerar como
hereges. No fim de 384, com 30 anos, foi a Milão e conseguiu acesso à residência imperial.
Decidiu romper com sua concubina em 385, e viveu uma fase melancólica em sua vida até
386. Influenciado pelos estudos de Santo Ambrósio, decidiu se converter ao Cristianismo
em 386. Tornou-se padre em 391, na cidade de Hipona, onde se tornou Bispo no ano de
401. Agostinho tornou-se um dos principais teólogos e filósofos do período patrístico da
Igreja Cristã, sendo um dos nomes fundamentais para o desenvolvimento do Cristianismo
e Filosofia Medieval. Atuou como um “árbitro” do Cristianismo, discutindo e formulando
teorias importantes, como o Dogma da Trindade, a concepção do casamento católico e a
Guerra Justa. Agostinho faleceu aos 75 anos, no dia 28 de agosto de 430, em Hipona,
Numídia, atual Argélia 2.
Por sua vez, Gregório de Nissa, nasceu em 335 d.C, era descendente de uma nobre
família cristã rica. Seu pai chamava-se Basílio, esse trabalhava como professor de retorica, e
sua mãe de Emélia. O casal teve ao todo nove filhos, sendo quatro homens e cinco
mulheres. Gregório, no decorrer de sua formação, adquiriu conhecimentos da literatura
clássica, da Filosofia, tendo lido Platão, Aristóteles, os estoicos, Plotino, Posidônio de
Apameia entre outros. Na Teologia, leu não somente a Bíblia, mas também Fílon de
Alexandria, Orígenes e outros teólogos, sendo um perfeito dominador da retórica.
Gregório contraiu o matrimônio, uma vez que na época o casamento não era um
impedimento para à sagração episcopal. Tornou-se Bispo em Nissa, no ano de 372. Em
376, após diversas discórdias existentes em Nissa, entre elas que sua eleição para bispo foi
irregular, Gregório é desposto e vive em exílio até 378, quando retorna à Nissa, como
pastor. Gregório fez inúmeras viagens, participando de vários Concílios para resolver
querelas arianas, nicenianas e sabelianas, todas de caráter doutrinal. Ele faleceu no ano de
394 d.C.3.
Agostinho de Hipona e Gregório de Nissa conviveram num período na qual a
liberdade de culto era garantidade por meio do Edito de Milão, sancionado pelo imperador
Constatino, em 3134. Mas é importante ressaltar que durante a Antiguidade Tardia ainda
2 BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia Sexual no Início do Cristianismo. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 318 – 327.
3 GREGÓRIO DE NISSA, Santo. A criação do homem; A alma e a ressurreição; A grande catequese. Tradução de
Dentro desse cenário exposto por Peter Brown de intensa divisão de opinião
dentro da Igreja Primitiva, Agostinho e Gregório estabelecem um discurso direcionado aos
cristãos para ressaltar suas concepções religiosas e assim confrontar outras vertentes do
Cristianismo. Uma das principais vertentes refutadas por ambos foi a do Maniqueísmo, a
qual surgiu em cerca de 240 d.C., quando um jovem persa chamado Maniqueu, ou Manes,
que nasceu em 14 de abril de 216 d.C, na aldeia rural de Nahar-Koutha, distrito de
Mardinu, localizada entre os rios Eufrates e Tigre, na Babilônia do Norte, que era
considerado como o enviado, o profeta anunciado por cristo6. Começou a pregar suas
ideias as grandes multidões na capital nacional Ctesifonte e na grande cidade grega de
Selêucia, na margem oposta do Tigre. Contemporâneo de Plotino, Maniqueu pregou
durante trinta anos, demonstrando altos dotes espirituais e artísticos e amplos
conhecimentos. Seu objetivo era fundar uma comunidade religiosa que abarcasse toda a
Terra7.
Defendia um vivo racionalismo; marcado pelo materialismo e dualismo radical na
concepção do bem e do mal, entendidos não apenas como princípios morais, mas também
como princípios ontológicos e cósmicos8. Defendia as teses da existência de dois princípios
- um princípio do bem e outro do mal -, sendo cada ser presidido pelos dois princípios, de
forma que o mal seria metafísico e ontológico, ou seja, imposto ao indivíduo independente
de sua vontade de cometê-lo. Portanto, para o homem maniqueu, o mal que ele praticava,
não era responsabilidade sua, ou fruto de sua livre escolha, mas algo involuntário e
inevitável, visto estar deterministicamente marcado pela parte má de sua natureza humana
– a matéria -, ou que o mal estava inerente em sua natureza corpórea9.
Mas as ideias maniqueístas acabaram sendo consideradas radicais pelos persas, cujos
reis, cedendo aos poderosos expoentes da religião nacional tradicional, condenaram
Maniqueu à morte (cerca de 274-77). Porém, todo o império estava infiltrado pela sua
doutrina e antes que se passasse outro século ele havia penetrado também nas imensas
regiões do mundo romano10. Por seu turno, o governo romano odiava os maniqueístas por
motivos políticos, pois considerava profundamente suspeita e potencialmente sediciosa a
sua origem persa. Recorreu, por isso, à repressão. Mais tarde, quando os cristãos tentaram
tornar o Cristianismo a religião nacional de Roma, o Maniqueísmo viu-se incapaz de resistir
também a eles. Era demasiado ascético e antissocial para formar uma igreja coesa e
vigorosa11.
De modo a buscarmos a representação feita em relação ao mal no nosso objeto de
estudos, nos apoiaremos teoricamente nos métodos e abordagens advindas da História
Cultural, buscando uma interdisciplinaridade como outras ciências, como a Filosofia e a
Teologia para entender as diversas representações feitas a respeito da origem do mal nas
diversas vertentes do Cristianismo. É importante analisarmos a questão da História Cultural
proposta por Roger Chartier, uma vez que a noção de representação nos permite
compreender as diferentes configurações intelectuais que são construídas
contraditoriamente pelos diversos grupos de uma sociedade, e como instâncias coletivas ou
indivíduos singulares representam a existência de uma classe, grupo ou comunidade perante
uma sociedade, como no caso de Agostinho de Hipona e Gregório de Nissa. Chartier
observa que, pela análise das diversas representações feitas pelos diversos grupos, é
possível entender a sociedade por meio das posições e identidades representadas por cada
classe ou meio12.
Metodologicamente, nos apoiamos na história comparada proposta por Marc
Bloch, que conforme José D’Assunção Barros fixa dois requisitos fundamentais, de um
lado uma similaridade entre os fatos analisado, de outro, as dessemelhanças nos ambientes
em que esta semelhança ocorre13.
Deste modo, por meio do discurso de Agostinho de Hipona, que viveu no Império
Romano do Ocidente, e Gregório de Nissa, do Império Romano do Oriente, buscamos em
suas reflexões sobre a origem do mal feita em períodos e ambientes diversos, percebe seu
poder simbólico perante os indivíduos, através da sua atuação definindo conceitos,
ensinamentos e respondendo dúvidas sobre a doutrina cristã.
concluir que a divisão da divindade em duas metades era odiosa e chocante – e, por
consequência, impossível de ser acreditada16.
Posteriormente, em 386, influenciado por Ambrósio de Milão e entusiasmado com
as ideias neoplatônicas, Agostinho escreveu “O Livre-arbítrio”, em caráter público, para
confrontar os maniqueístas que defendiam a tese da existência de dois princípios - um
princípio do bem e outro princípio do mal, e que cada ser seria presidido pelos dois
princípios, sendo assim o mal metafísico e ontológico, ou seja, imposto ao indivíduo
independente de sua vontade em cometer o mal. De modo, a refutar a tese defendida pelos
maniqueístas, Agostinho faz uma defesa da origem do mal e de sua existência por meio de
três tipologias.
Na primeira, ele explica o mal do ponto de vista metafísico-ontológico. Para
Agostinho não existe mal no cosmo, apenas seres inferiores em relação a Deus. Ele
defende a tese que existem diferentes e diversos níveis de bem que um indivíduo pode
possuir, dependendo somente de suas escolhas, ou seja, o livre-arbítrio, como exposto em
suas palavras:
Assim, pois, a vontade obtém, no aderir ao Bem imutável e universal, os
primeiros e maiores bens do homem, embora ela mesma não seja senão
um bem médio. Em contraposição, ela peca, ao se afastar do Bem
imutável e comum, para se voltar para o seu próprio bem particular seja
exterior, seja inferior. Ela volta-se para seu bem particular, quando quer
ser senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a
apropriar-se de coisas alheias, ou de tudo o que não lhe diz respeito; e
volta-se para um bem inferior, quando ama os prazeres do corpo17.
Assim, do ponto de vista metafísico-ontológico, o mal não vem de Deus, uma vez
que sua natureza não faz com que sofrêssemos nenhum mal, em que os sofrimentos e as
consequências más são fruto de nossas próprias escolhas.
Na segunda, o bispo de Hipona explica o mal moral que é a sua grande
preocupação para poder confrontar os maniqueístas, para ele o mal moral é o pecado e
depende exclusivamente da nossa vontade. Em suas palavras ressalta que:
Nessas condições, as pessoas afastam-se muito da verdade, ao supor que
têm direito de atribuir ao Criador os pecados das criaturas, dizendo que
aquilo que Deus previu como futuro deva acontecer necessariamente.
Longe da verdade também estavas tu, (ó Evódio), ao dizeres que não
compreendias como não atribuir ao Criador o que em sua criatura
acontece necessariamente. Eu, pelo contrário, não encontro, e mesmo
certifico de que não existe, nem pode existir, meio de atribuir a Deus o
que em suas criaturas acontece necessariamente. Ao contrário, que tudo
se realiza de tal forma que sempre fica intacta a vontade livre do
pecador”18.
Dessa maneira, todo mal sofrido pelos indivíduos é decorrente do mal moral,
quando Adão e Eva se utilizaram do livre-arbítrio e acabaram cometendo o pecado
original, puniram a alma de todos os seres humanos, fazendo com que o mal físico se
tornasse presente, passando todos os indivíduos a partir de tal momento a serem punidos
de forma física devido as suas escolhas.
18 Ibidem. p. 169.
19 AGOSTINHO, Santo, op. cit., nota 17, p. 224.
O Bispo de Nissa, para chegar à conclusão de que o mal tem origem no livre-arbítrio
do indivíduo, apoia-se no Apóstolo Paulo em seu discurso aos Coríntios:
Com efeito, todos esses e semelhantes argumentos, graças à sua superficial
verossimilhança, apresentam certa força sugestiva para aqueles que estão
profundamente impregnados de tradição herética, como de certa tinta
indelével; porém, quem penetra mais a fundo a verdade poderá
compreender claramente que são argumentos falazes e como esses fornecem
a prova de seu engano. E parece-me bem propor neste caso o Apóstolo
como advogado de minha acusação contra eles. Em seu discurso aos
Coríntios, ele distingue as condições das almas em carnais e espirituais,
mostrando com as suas palavras, creio eu, que não convém julgar o bem e o
mal mediante a sensação, mas, afastando a mente dos fenômenos corporais,
distinguir por si mesmas a própria natureza do bem e a natureza do mal,
porque “o homem espiritual – como ele diz – julga tudo”22.
Uma vez que a origem do mal se encontra na livre vontade do indivíduo, todas as
dores e sofrimentos sentidos em seu corpo, são frutos da ausência do bem que é a natureza
do mal, não tendo nenhuma relação com Deus a origem de tais consequências dolorosas,
em suas reflexões:
É esta para mim a razão que produziu naqueles que aduzem tais motivos
as fantasias daquelas doutrinas: reduzindo a definição do bem ao prazer
do gozo corporal, pelo fato de que a natureza do corpo está sujeita
necessariamente a misérias e a doenças sendo composta e destinada à
dissolução, e, uma vez que a tais doenças se segue uma sensação
dolorosa, [por tudo isso] eles julgam obra de um deus mau a criação do
homem. Se, ao menos, a sua mente tivesse descortinado algo mais
elevado e, afastando suas mentes de toda disposição voluptuosa, teriam
direcionado o olhar, livre de paixões, para a natureza dos seres, teriam
O Bispo de Nissa defende que o homem é formado somente por um corpo e uma
alma, e que ambos em conjuntos são responsáveis por exercer o livre-arbítrio e decidir por
aquilo que os agradam. Pois tanto o corpo e a alma foram criados simultaneamente, a
diferença é que após a morte a alma sobrevive, mas uma vez que ocorre a ressureição
ambos voltam a se unir24. Conforme verificado no seguinte trecho ao refutar autores gregos
e principalmente o maniqueísmo:
Uma vez nascida segundo o modo que apraz ao Criador, a nossa alma,
graças ao seu livre-arbítrio, tem a faculdade de escolher aquilo que lhe
agrada, e de tornar-se aquilo que deseja.
As nossas suposições se dispersariam entre diversos princípios, se
acreditássemos na existência de um princípio que seria estranho à causa
criadora, e da qual sabedoria engenhosa (hē technikē sophia) recolheria os
elementos necessários para a criação. Uma vez que uma só é a causa dos
seres, e que não há homogeneidade entre a causa transcendente e o que
ela faz nascer, resulta igual o absurdo de ambas as suposições, pensar que
a criação deriva da natureza de Deus ou que os seres se tenham formado
a partir de uma essência diversa: ou se deve pensar que Deus se encontra
nos traços particulares da criação, mas então os seres criados são afins a
Deus; ou ainda é preciso introduzir uma natureza material distinta da
substância divina, mas igual a Deus pelo fato de que é não gerada e
eterna. É justamente o que imaginaram os Maniqueus bem como alguns
filósofos gregos que admitiram as mesmas suposições, e eles
estabeleceram como dogma esta quimera25.
Portanto, Gregório de Nissa define que o mal não é ontológico, uma vez que ele é
fruto das decisões feitas pelo indivíduo ao utilizar o livre-arbítrio que é um bem dado por
Deus.
Considerações finais
Bibliografia
Resumo
Neste artigo buscamos analisar as inovações musicais na Atenas Clássica a partir de um
debate historiográfico, conceitual e documental. São abordados tópicos referentes à
contextualização histórica da primeira metade do século V a.C. destacando a questão da
liderança unipolar ateniense no Mar Egeu e o desenvolvimento da democracia e sua relação
com o processo de inovações socioculturais que ocorria na pólis ateniense. No que se refere à
questão da música, pretendemos problematizar o conceito da Música Nova presente na
historiografia tradicional.
Introdução
cavalaria (hippeis) enquanto os pequenos e médios proprietários de terra, os zeugitai, combatiam como hoplitas,
ou seja, na infantaria pesada a pé como cidadãos soldados. Este conceito é citado por Marcel Detienne (1999, p.
158-159) que menciona ter ocorrido uma transferência da função guerreira das mãos dos hippeis para os
cidadãos médios que seriam camponeses proprietários de terras. DUARTE, Alair Figueiredo. Guerra e
Mercenarismo na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2013, p. 71.
4 Trirreme consiste no termo latino para denominar as trieres helênicas, embarcações subdivididas em três níveis
de remadores, possuindo uma acentuada eficácia nas batalhas marítimas. Seu formato e maneabilidade sobre
Anais do
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teria representado uma parte fundamental de sua educação política como cidadão, o que se
relacionava com a consolidação do regime democrático em Atenas. Desse modo, após as
batalhas determinantes das Guerras Greco-Pérsicas (Salamina em 480 e Plateia em 479)
será ampliada a participação político-social dos cidadãos sem recursos em Atenas, no qual
foram promovidos um fator identitário de cooperação e engajamento políticos durante a
guerra. Além disso, a liderança unipolar5 de Atenas no Mar Egeu igualmente irá proporcionar
um alargamento de atividades alternativas ao meio agrícola, no qual muitos thetai estariam
presentes no espaço urbano da ágora de Atenas atuando em diversos ofícios como: a
produção de cerâmica nas olarias e pinturas de vaso (mais notadamente do bairro de
Kerameikos); a pescaria/venda de peixes; o exercício da medicina; a produção têxtil (como
sapateiros); o comércio em geral; a construção naval e edifícios públicos; entre outros.
Sendo assim, podemos afirmar que no decorrer do quinto século houve um
expressivo aumento de recursos pecuniários decorrente das atividades mercantis e
comerciais em Atenas, o que ocorreu devido aos estímulos oriundos da atividade marítima
no sentido militar e aos recursos obtidos durante o período da liderança unipolar. Ambos os
aspectos se relacionam com a hegemonia ateniense frente às outras pólis da região do Mar
Egeu. Neste contexto, diversos grupos sociais como os thetai, por exemplo, ascenderam
economicamente e socialmente em Atenas ocasionando profundas mudanças nas
dinâmicas e relações de poderes entre as tradicionais elites aristocráticas. Outros fatores a
serem destacados é o grande trânsito de estrangeiros na Ática, especialmente no Porto do
Pireu, e o aumento da população de metecos (estrangeiros residentes) que participavam
intensamente das atividades comerciais da pólis.
Entre todas as mudanças que ocorriam no contexto de liderança unipolar na Atenas
do quinto século,6 nosso objeto a ser analisado neste artigo consiste no conjunto de
inovações que ocorreram na música ao longo desse período, ocasionando o surgimento de
as águas do Mar Egeu em conjunto com a habilidade dos marinheiros áticos garantiu a supremacia da pólis
ateniense ao longo do quinto século.
5 O conceito de liderança unipolar trabalho por Maria Regina Candido remete “ao sistema de poder cujo
controle hegemônico passou a ser exercido por uma potência líder que efetiva um projeto de controle que
mantém estreita relação entre as poleis através do estabelecimento de uma cultura comum. A ação se deve ao
fato de que uma região, com potencial poder de liderança, quando busca a hegemonia, a longa duração no
controle não depende do embate e/ou imposição de normas e regras regidas pela força, pois estas fomentam
a resistência ativa”. Ver CANDIDO, Maria Regina. Atenas: liderança unipolar no Mar Egeu (480-411 a.C.). Rio de
Janeiro: NEA/UERJ; Letras e Versos, 2016, p. 116-117.
6 Devemos destacar que, em nossa pesquisa, a hegemonia ateniense sob a Liga de Delos é abordada a partir
do conceito de liderança unipolar no lugar da noção tradicional de imperialismo ateniense presente na historiografia.
Tal perspectiva teórica representa um olhar alternativo acerca do contexto histórico após as Guerras Greco-
Pérsicas.
um novo gênero musical, a Música Nova. Tal fenômeno se relaciona diretamente com as
inovações socioculturais que ocorriam em Atenas. Em suma, nosso objetivo neste artigo
consiste em estabelecer parâmetros gerais acerca da relação das inovações com o contexto
político e social deste período de consolidação da democracia ateniense.
Warren D. Anderson7 afirma que o termo Música Nova (“New Music”) não foi
cunhado na Grécia Antiga, mas sim criado pela moderna historiografia germânica. Segundo
o autor, o termo não corresponde a um período específico e pré-definido na cronologia da
Grécia Clássica, pois se refere a um considerável número de inovações técnicas nos campos
da composição musical e da performance em si. Tal noção do “novo” foi duramente
criticada por diversos autores helênicos contemporâneos a esse movimento no fim do
quinto século, tendo sido objeto de comentários desfavoráveis posteriormente ao longo de
todo o quarto século. É interessante notarmos como os poetas cômicos se utilizaram do
novo gênero como alvo de escárnio e zombaria em suas peças, como Aristófanes e
Ferécrates, por exemplo. Alguns desses documentos frequentemente descreviam o novo
gênero musical a partir da palavra neos (novo) de uma forma pejorativa, ou mais
frequentemente com a palavra kainos.
Um dos motivos para este desenvolvimento seria a sofisticação do teatro grego,
cuja crescente complexidade das peças teria exigido diferentes tipos de sonoridade tanto
dos coros quanto das melodias da música encenada. Nesse caso, compositores/poetas
populares entre a sociedade ateniense como Melanípides de Mélos, Cinésias, Frínis de
Mitilene, Agatão e Timóteo de Mileto seriam adeptos de características pertencentes ao
gênero da Música Nova que, segundo Eric Csapo,8 teria influenciado decisivamente gêneros
preexistentes musicais preexistentes ao teatro como o ditirambo,9 por exemplo. Entre esses
musicistas, podemos destacar Timóteo de Mileto, cujo conjunto de obra foi considerado
7 ANDERSON, Warren D. Music and Musicians in Ancient Greece. Ithaca: Cornell University Press, 1994, p.126-
127.
8 CSAPO, Eric. Dolphins of Dionysus. In: CSAPO, Eric. MILLER, Margareth C. (Org.) Poetry, Theory, Praxis:
The Social Life of Myth, Word and Image in Ancient Greece. Oxford: Oxbow Books, 2003, p. 70.
9 O ditirambo era um gênero musical que possuía suas origens nas celebrações de Dioniso, o deus do vinho,
da fertilidade e das artes de modo geral. Suas composições no decorrer dos séculos se expandiram em grande
escalas, sendo executadas por coros completos em festivais em Atenas, Delfos e Delos, por exemplo
(MATHIESEN, 1999, p. 71).
por alguns estudiosos gregos na Antiguidade como sendo “rude” e fora da tradição dos
nomoi.10 Um dos mais famosos e conhecidos compositores de sua época, Timóteo era
reconhecido como um inovador tendo implementado um estilo mais complexo e melódico
através de novas técnicas de construção da kithara11 (cítara), adicionando quatro cordas na
lira tradicional de sete, o que teria “expandido o alcance musical e emocional de suas
composições”.12
Além das críticas dos comediógrafos presentes no teatro grego, podemos verificar
também que em outras categorias de documentos escritos igualmente são tecidas críticas às
inovações musicais. Referências sobre as mudanças estilísticas da Música Nova e a crescente
profissionalização dos musicistas podem ser verificadas em Platão nas Leis e na República;
em Aristóteles na Política; e no tratado Sobre a Música de autoria atribuída a Plutarco.13 Entre
as obras citadas, deve-se destacar que Aristóteles realiza apontamentos pontuais, expondo
acerca das disposições do ensino de música na pólis ideal, no qual o virtuosismo vinculado
ao ensino profissional de música deve ser evitado, visando a formação de um musicista
amador.14 Dessa forma, a progressiva profissionalização dos musicistas ao longo dos
séculos V e IV se relacionaria com a complexidade técnica exigida pelos pressupostos das
inovações da Música Nova. De modo geral, no que se refere aos documentos supracitados,
Lidiane Carderaro dos Santos coloca que a renovação do cenário musical da Música Nova
“será arduamente debatida e severamente criticada entre os pensadores da época, a
10 A noção de nomos (nomoi no plural) compreende diversas formas poéticas/musicais gregas que
essencialmente representariam um estilo de grande complexidade, sendo alguns associados com musicistas
virtuosos. Fundamentalmente quatro tipos de nomoi podem ser identificados: dois são cantados com o
acompanhamento da cítara ou um aulós (flauta grega) e outros dois são executados de forma instrumental e
solo por um citarista ou aulètes. MATHIESEN, Thomas. Apollo’s Lyre: Greek music and music theory in
Antiquity and the middle ages. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1999, p. 58-59.
11 A kithara é um instrumento de cordas feio de uma caixa de ressonância de madeira tocado de pé com o
plectro, acessório ancestral das modernas palhetas de guitarra e violão utilizadas atualmente. A kithara pode ser
considerado como um instrumento cordofone da mesma família da lira, sendo de construção mais complexa
e associada com musicistas profissionais devido ao alto nível de exigência técnica para tocá-la.
12 MATHIESEN, Thomas. Apollo’s Lyre: Greek music and music theory in Antiquity and the middle ages.
Roosevelt Rocha) defendem a tese que foi o próprio Plutarco que teria escrito a obra, porque ainda que “em
certos momentos, o estilo de Plutarco no tratado parece destoar da personalidade da escrita plutarquiana
presente em outros textos”, existem numerosos argumentos que comprovam ter sido Plutarco, como por
exemplo: “A maneira como Plutarco usa os termos tonos, tropos e harmonia em obras consideradas autenticas e
muito similar a maneira como esses termos aparecem em Sobre a Música”. Pela falta de consenso em relação à
autoria da obra, iremos nos utilizar da denominação de Plutarco por convenção. ROCHA, Roosevelt.
Introdução. In: Obras Morais – Sobre o Afecto aos Filhos – Sobre a música. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2012, p. 77, 87.
14 CERQUEIRA, Fábio Vergara. A imagem pública do músico e da música na Antiguidade Clássica: desprezo
de “tempos antigos”, como é referenciada posteriormente pelo autor de Sobre a Música, foram seguidas até as
Guerras Greco-Pérsicas, conforme nos indica a passagem: “O ateniense: Em primeiro lugar as que diziam
respeito à música daquela época (a que era realizada até o final do sexto século e início das Guerras Greco-Pérsicas), se
for para descrevermos desde o início como a vida de liberdade excessiva se desenvolveu. Naquela época entre
nós a música era dividida em vários gêneros e estilos”. Platão, Leges, livro 3, v. 700a-b.
19 Platão, Leges, livro 1, v. 637e; livro 3 v. 694.699b.
tornar honrada, através de valores que seriam associados com a aristocracia. Além disso,
Platão assim como o autor de Peri Mousikés também realiza uma associação das inovações
musicais com o teatro grego, afirmando que “em lugar de uma aristocracia da música
nasceu uma vil teatrocracia (Theatrokratia)”, no qual Gregory Nagy20 deixa transparecer que as
formas de música anteriores que eram associadas com a aristocracia se tornaram
progressivamente “democratizados” pela instituição políade a partir da expansão do teatro
nos grandes festivais públicos do quinto século.
É importante sublinharmos que apesar do tom inflamado das críticas dos autores
clássicos, grande parte dos músicos e compositores/poetas deste período experimentaram
grande sucesso entre a população comum da sociedade ateniense. Um claro exemplo disso
é o próprio Timóteo de Mileto, cuja composição Persae (“Os Persas”) foi a vencedora dos
certames musicais em um festival ateniense21 ocorrido em algum momento entre os anos de
420 e 416. Segundo referências presentes na Vida de Eurípides de Sátiro, o prelúdio desta
composição foi escrito por Eurípides, igualmente considerado um dos adeptos das
inovações musicais do quinto século.22 Neste caso, deve-se observar que dos três grandes
tragediógrafos gregos,23 Eurípides é aquele que faz mais referências à música em suas obras,
sendo reconhecido em sua época como parte da efervescência artística do período clássico
em suas últimas obras24 que se adequaram às tendências inovadoras da música.
Em contrapartida a esse sucesso popular, os autores ligados aos estratos sociais da
aristocracia, no caso mais notadamente Platão, de acordo com Csapo, tratavam a Música
Nova como uma ruptura das raízes tradicionais da música, profundamente interligadas com
os antigos cultos situados no contexto das genes25 arcaicas. Em um artigo intitulado “Later
Euripidiean Music” (1999-2000), Csapo associa o conceito historiográfico da Música Nova
com o que seria uma “música voltada para o teatro” para os antigos, cuja associação não
ocorreu por uma mera casualidade, mas sim por conta de um desejo dos “novos
20 NAGY, Gregory. Transformations of Choral Lyric Traditions in the Context of Athenian State Theater. Arion, n.3, p.
41-55, 1995.
21 MATHIESEN, Thomas. Apollo’s Lyre: Greek music and music theory in Antiquity and the middle ages.
26 Com exceção das Grandes Dionisíacas, festival ateniense no qual ocorriam performances e competições de
ditirambos e tragédias, não existem evidências concretas da existência de outros festivais dramáticos
semelhantes antes do ano de 440. Fora do território ático, Csapo afirma que festivais teatrais eram presentes
na Macedônia, no fim do quinto século e provavelmente em Siracusa, Taranto, Metaponto, Argos e Ístmia.
CSAPO, Eric. Later Euripidean Music. Illinois Classical Studies. Vol. 24/25, Euripides and Tragic Theatre in
the Late Fifth Century, 1999-2000, p. 402.
27 Tradução livre de “This schematic vision of an orderly Golden Age overtaken by a period of noisy,
populist degeneracy influenced the thinking of generations of musical conservatives after Plato”. POWER,
Timothy. The culture of kitharoidia. Washington D.C.: Center of Hellenic Studies of Harvard, 2010, p. 111.
qual é feita uma analogia onde a música aparece como uma mulher violada pelos novos
compositores. Tais críticas seriam contemporâneas ao advento dos novos musicistas,
situadas nas décadas finais do quinto século, aproximadamente entre as décadas de 420-
10.28 Além disso, é importante notar como a Música Nova coincide com o período em que
houve uma grande polarização política e social sucedida após os anos de Péricles, nos quais
as medidas democráticas em Atenas foram consideravelmente ampliadas. A expansão do
teatro representa um desses aspectos, pois havia as leitourgiai (liturgia) que financiavam os
grandes festivais públicos através do investimento privado e voluntário de um cidadão rico
e proeminente, sendo a khoregia29 uma liturgia específica que financiava os coros que
integravam as peças teatrais. Desse modo, assim como as leitourgiai que financiavam a
construção de embarcações de guerra, as trieres, as leitourgiai que financiavam as atividades
artísticas eram instituições intrinsicamente relacionadas com a democracia, pois o prestígio
que um cidadão adquiria ao custear tais eventos era algo que incentivava a sua participação.
Eram muitos os cidadãos que desejavam ser o khoregos de um coro vencedor nos certames
dos festivais, por exemplo, visto que objetivavam a glória da vitória para a posteridade.30
Em suma, as referências textuais platônicas deixam transparecer que as antigas
tradições musicais ficarão incólumes até provavelmente os anos das Guerras Greco-
Pérsicas, o que se coaduna com produção de cerâmicas áticas cujas pinturas representam
musicistas ricamente adornados participando dos ágons (competições) musicais e cenas no
contexto de performances teatrais. Exemplos de tais cerâmicas são: a Ânfora do pintor
Brygos;31 a Ânfora do Museu britânico representando um aulètes;32 e a Cratera em formato de
28 ANDERSON, Warren D. Music and Musicians in Ancient Greece. Ithaca: Cornell University Press, 1994, p.
132.
29 Khoregia pode ser definida como sendo, em linhas gerais, uma instituição pública na qual um cidadão rico se
encarregava de arcar com os custos gerais de um coro específico para competir nos grandes festivais. Os
cidadãos que financiavam o coro eram chamados de khoregoi, sendo um símbolo de status e prestígio entre a
sociedade o ato de um cidadão ter financiado um coro vencedor. WILSON, Peter. Private wealth for public
performance. In: The Athenian Institution of the Khoregia: the Chorus, the City, the Stage. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000, p. 11-49.
30 ARAUJO, Felipe Nascimento de. Os coros musicais como lugar antropológico na comunidade política de Atenas no
processo de instauração em Clístenes no final do século VI a.C. 2018. 197f. Dissertação (Mestrado em História) –
Programa de Pós-Gradução em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018, p.
67-68.
31 Formato: Ânfora de “pescoço”. Localização: Museum of Fine Arts – Boston, Estados Unidos. Inventário:
nº 26.61. Procedência: Comuna de Gela, região da Sicília, Itália. Numeração no Beazley Archive: 204098.
Fabricação: Ática, Atenas. Datação: cerca de 480 a.C. Pintor: Brygos Painter.
32 Formato do vaso: Ânfora. Localização: British Museum – Londres, Inglaterra. Inventário: E270 – 1846,
1103.34. Procedência: Vulci, Península Itálica. Numeração no Beazley Archive: 201668. Fabricação: Ateniense.
Datação: entre 490 e 480 a.C. Pintor: Kleophrades Painter.
Considerações parciais
33 Formato: Cratera estilo “cálice”. Localização: British Museum – Londres, Inglaterra. Inventário: E467 -
1856, 1213.1. Procedência: Comuna de Altamura, região da Puglia, Itália. Numeração no Beazley Archive:
206955. Fabricação: Ateniense. Datação: entre 460 e 450 a.C. Pintor: Niobid Painter.
34 Para maiores detalhes acerca destes tópicos, consultar as respectivas obras: sobre o uso de peixe em
banquentes, VIEGAS, Alessandra Serra. A recepção de Homero no banquete político de Mátron de Pitane na
Atenas do IV século a.C.: uma abordagem comparada. Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em História
Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2018; sobre as hetaireias no teatro, PUGA, Dolores. As disputas políticas na arena do teatro ateniense: um
estudo comparado das hetaireias de Eurípides e de Aristófanes (415-404/4 a.C.). Rio de Janeiro, 2018. Tese
(Doutorado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018; sobre o
culto de Ísis, ROCKENBACK, Marina. Por um comparativismo construtivo do culto de Ísis entre atenienses e egípcios no
final do V século AEC. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação. (Mestrado em História Comparada) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
Bibliografia
Documentação
Bibliografia
ANDERSON, Warren D. Music and Musicians in Ancient Greece. Ithaca: Cornell University
Press, 1994.
ARAUJO, Felipe Nascimento de. Os coros musicais como lugar antropológico na comunidade política
de Atenas no processo de instauração em Clístenes no final do século VI a.C. 2018. 197f. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Gradução em História, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
CANDIDO, Maria Regina. Atenas: liderança unipolar no Mar Egeu (480-411 a.C.). Rio de
Janeiro: NEA/UERJ; Letras e Versos, 2016.
CARDERARO DOS SANTOS, Lidiane C. Do encanto à hybris: Representações de serem
mitológicos com atributo musical na pintura de vasos gregos. Tese de Mestrado. Instituto
de Estudos Clássicos - Universidade de Coimbra, 2015.
CERQUEIRA, Fábio Vergara. A imagem pública do músico e da música na Antiguidade
Clássica: desprezo ou admiração? História, São Paulo, v. 26, 2007, p. 63-81.
CSAPO, Eric. Dolphins of Dionysus. In: CSAPO, Eric. MILLER, Margareth C. (Org.)
Poetry, Theory, Praxis: The Social Life of Myth, Word and Image in Ancient Greece. Oxford:
Oxbow Books, 2003, p. 69-80.
CSAPO, Eric. Later Euripidean Music. Illinois Classical Studies. Vol. 24/25, Euripides and
Tragic Theatre in the Late Fifth Century, 1999-2000, p. 399-426.
Resumo
O trabalho intenta apresentar a concepção de história carolíngia entre os séculos VIII e IX
a partir dos anais produzidos na corte carolíngia, denominados Annales Regni Francorum ou
Anais do Reino dos Francos. O quadro teórico-metodológico da pesquisa parte da
proposta alemã da Vorstellungsgeschichte, que torna a própria narrativa historiográfica o foco
da pesquisa. Dessa maneira, a pesquisa não se preocupa da fonte enquanto ferramenta para
busca da factualidade do passado, mas sim das subjetividades inerentes ao autor da obra.
Sendo assim, a narrativa da historiografia carolíngia é compreendida como um artifício de
legitimação do poder em torno de uma identidade comum alcançada através da construção
de um passado e memória comuns ao povo franco.
Introdução
A história do Império Carolíngio, compreendida entre os séculos VIII e IX, tem de
ser concebida como um ponto focal no processo de formação das concepções e usos da
história na Idade Média. A escrita da história carolíngia é uma escrita da história
autorreflexiva, fruto de concepções políticas e teológicas que moldaram as possibilidades de
uso da narrativa histórica como ferramenta de monumentalização do poder, enquadrando a
memória sobre o passado merovíngio, franco e cristão sob uma ótica de desenvolvimento
lógico que satisfaria as necessidades de legitimação do poder do domínio sob o qual se
assentou a translatio imperii após a queda do Império Romano, conforme atestado por um
biógrafo de Carlos Magno em fins do século IX.2 A análise do historiador contemporâneo
permite atribuir significado inerente aos símbolos conscientes e inconscientes das
produções do passado, a fim de trabalhar as concepções humanas, frutos da necessidade de
expressão identitária de todo sujeito que sofre as experiências do tempo.
3 GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. “Uma ‘Terceira Via’ para o estudo das idéias políticas: a
Vorstellungsgeschichte como resposta aos problemas colocados pelo Cambridge School of the History of
Political Thought”. Diálogos Mediterrânicos, n.3, pp. 143-59, nov. 2012, p.155.
4 ISIDOR apud ENGELS, Odilo. “Compreensão do conceito na Idade Média”. In: KOSELLECK, Reinhart;
MEIER, Christian; GÜNTHER, Horst; ENGELS, Odilo. O conceito de história. Tradução de René Gertz.
Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p.64.
5 O conceito de história também enquanto um produto da leitura bíblica é discutido em GOETZ, 2006 e
6 Tradução do termo alemão Wir-Gefühl por INNES, 2011, p.1 como ‘us-ness’, no original em inglês.
7 MCKITTERICK, Rosamond. History and memory in the carolingian world. Cambridge University Press,
2004, p.16. No original: “The manuscript thus contrives to place the history of the Franks as an extension of
that of fifth-century Gaul by the simple expedient of visual markers and layout”. Tradução própria.
8 Ambos os conceitos são traduzidos do termo original em alemão, Geschichtsbewuẞtsein e Geschichtsbild,
respectivamente.
Os anais do reino dos francos são anotações de eventos significativos de cada ano,
de 741 a 829, não necessariamente escritas contemporaneamente aos eventos anotados,
produzidos em caráter oficial na corte carolíngia. De acordo com o paleógrafo organizador
da edição crítica dos anais, Friedrich Kurze, há três períodos discerníveis de escrita da obra:
as entradas de 741 a 788 representam o trabalho de uma pessoa, provavelmente realizado
de uma vez; entre 807 e 820 há uma unidade e tom coeso na composição e entre 820 e 829
é provável a autoria de Hilduíno de Saint-Denis. Mas além da composição original, que foi
incrementada com informações complementares e reestilizadas a partir da primeira metade
do século IX, pode-se argumentar que o mais significativo dessa obra não é seu ímpeto
inicial, mas muito mais sua apropriação posterior, a fim de se buscar a legitimação do
passado em torno de um enquadramento da memória. Seu conteúdo serviu de maneira a
representar um passado que enviesou uma história gloriosa dos francos, atribuindo sentido
a uma ordem política que fosse adequada aos interesses da corte.
A entrada do ano de 776 demonstra de maneira clara um aspecto recorrente nos
anais como um todo, que é a leitura da história enquanto uma interpretação exegética da
vontade divina. Durante uma investida de Saxões ao castelo de Syburg, a resistência dos
francos foi devida duplamente à sua coragem varonil e à intervenção divina:
O quanto o poder de Deus trabalhou contra [os Saxões] pela salvação
dos Cristãos, ninguém pode dizer. Mas quanto mais os Saxões estavam
atemorizados, mais ainda os Cristãos estavam confortáveis e louvavam o
poderoso Deus que permitiu revelar seu poder sobre seus servos.
Quando os Saxões fugiram, os Francos seguiram em seus calcanhares
9GOETZ, Hans-Werner. “Constructing the past. Religious dimensions and historical consciousness in Adam
of Bremen's Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum”. In: MORTENSEN, Lars Boje (Org.). The
Making of Christian Myths in the Periphery of Latin Christendom. Copenhagen: Museum Tusculanum Press
University of Copenhagen, 2006, p.18-20, 26.
10 “Royal Frankish Annals”. In: Carolingian Chronicles. Royal Frankish Annals and Nithard’s Histories.
Tradução de Bernhard Walter Scholz e Barbara Rogers. The University of Michigan Press, 1970, p.55. No
original: “How much the power of God worked against them for the salvation of the Christians, nobody can
tell. But the more the Saxons were stricken by fear, the more the Christians were comforted and praised the
almighty God who deigned to reveal his power over his servants. When the Saxons took to flight, the Franks
followed on their heels as far as the River Lippe slaughtering them. Once the castle was safe, the Franks
returned home victorious”. Tradução própria.
11 “Annales Regni Francorum inde ab A. 741. usque ad A. 829. Qui dicuntur Annales Laurissenses Maiores et
Einhardi”. In: PERTZ, Georg; KURZE, Friedrich (org.). Scriptores Rerum Germanicarum in usum
scholarum ex Monumentis Germaniae Historicis separatim editi. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani,
1895, p.41.
cultura de um povo, por sua vez, pode apresentar certas concepções que venham a
legitimar ou subverter o status quo, onde a história legada pelos carolíngios serviu a ambas as
ações. Subverteu a memória sobre os merovíngios, colocando-os como uma etapa
menorizada no desenvolvimento do povo franco, onde seu ápice fora a coroação de Carlos
Magno imperador. Os saxões, representados como desleais, têm sua memória soterrada e
relegada à contrariedade da vontade divina, a favor de uma história que escolhe lados. De
maneira geral, a própria subversão empreendida pela historiografia do período entre fins do
século VIII até o IX, parte de uma concepção da elite aristocrática carolíngia, concebe uma
legitimação que expande além de meras pretensões aparentes da factualidade. O próprio
conceito de povo ‘franco’, enquanto distinto de ‘neustriano’ ou ‘austrasiano’, é
representado na subsequente subjugação da periferia do que fora o reino merovíngio.
Como um todo, a colocação de uma ordem divina e eclesialmente ordenada – pela
intervenção divina presente nas narrativas bélicas dos anais e pela legitimação da unção de
presbíteros –, esquematicamente colocada na ordem teológica de desenvolvimento da
história e a própria criação de um passado onde Carlos Magno se tornou um ponto de
comparação comum à concepção do poder, serviu para legitimar a ordem do poder
carolíngio, sedimentando por séculos vindouros a história construída pelas obras que foram
fruto do chamado ‘renascimento carolíngio’.
Considerações finais
12MCKITTERICK, Rosamond. History and memory in the carolingian world. Cambridge University Press,
2004, p.134.
seguiria pelos séculos, suscitando discussões sobre aquilo que a narrativa construiu do
passado.
Há muito o que se explorar partir da análise proposta pela escola alemã da
Vorstellungsgeschichte, de maneira a contribuir à discussão sobre concepções medievais da
realidade, da experiência da história e do sofrer das particularidades do tempo. Não
somente à Idade Média pertence a construção do passado, afinal, e é a partir da
sensibilização crítica, do entendimento das dinâmicas inerentes ao processo de construção
do conhecimento do passado – concepção e imagens da história, contexto político,
econômico, cultural e social – que se potencializa o conhecimento sobre as experiências
históricas do passado.
Bibliografia
“Annales Regni Francorum inde ab A. 741. usque ad A. 829. Qui dicuntur Annales
Laurissenses Maiores et Einhardi”. In: PERTZ, Georg; KURZE, Friedrich (org.). Scriptores
Rerum Germanicarum in usum scholarum ex Monumentis Germaniae Historicis separatim editi.
Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1895.
ENGELS, Odilo. “Compreensão do conceito na Idade Média”. In: KOSELLECK,
Reinhart; MEIER, Christian; GÜNTHER, Horst; ENGELS, Odilo. O conceito de história.
Tradução de René Gertz. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
GOETZ, Hans-Werner. “Historical Writing, Historical Thinking and Historical
Consciousness in the Middle Ages”. Diálogos Mediterrânicos, n.2, Mai, 2012, p.110-28.
_______. “Constructing the past. Religious dimensions and historical consciousness in
Adam of Bremen's Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum”. In: MORTENSEN,
Lars Boje (Org.). The Making of Christian Myths in the Periphery of Latin Christendom.
Copenhagen: Museum Tusculanum Press University of Copenhagen, 2006, p. 17–51.
GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. “Uma ‘Terceira Via’ para o estudo das idéias políticas: a
Vorstellungsgeschichte como resposta aos problemas colocados pelo Cambridge School of
the History of Political Thought”. Diálogos Mediterrânicos, n.3, pp. 143-59, nov. 2012.
MCKITTERICK, Rosamond. History and memory in the carolingian world. Cambridge
University Press, 2004.
NOTKER BALBULUS. “Gesta Karoli Magni Imperatoris”. In: HAEFELE, Hans (org.).
Scriptores Rerum Germanicarum Nova Series. Tomus XII. Berolinum: Weidmannos, 1959.
“Royal Frankish Annals”. In: Carolingian Chronicles. Royal Frankish Annals and Nithard’s
Histories. Tradução de Bernhard Walter Scholz e Barbara Rogers. The University of
Michigan Press, 1970, p.35-126.
O martírio no cristianismo
O termo “martírio” e seus derivados têm origem no grego martyréoo, que indica “ser
testemunha” ou “testemunhar”, corroborando o dito por Avemarie e Henten, que
entendem o termo “mártir” como “um desenvolvimento semântico do substantivo grego
martys (testemunha)”2.
No cristianismo até o século IV, o modelo ideal de mártir foi fundamentado a partir
da figura de Jesus de Nazaré, mas também noutros elementos não cristocêntricos.
Podemos observar nos Evangelhos o uso do termo em referência ao acima exposto, ou
seja, ainda não revestido dos significados simbólicos que a religião imprimiu a posteriori,
mas sim tendo em vista apenas o ato de testemunhar, como pode ser observado a seguir:
“Guardai-vos dos homens: eles vos entregarão aos sinédrios e vos
flagelarão em suas sinagogas. E, por causa de mim, sereis conduzidos à
presença de governadores e de reis, para dar testemunho perante eles e
perante as nações.”3
“Entregar-vos-ão aos sinédrios e às sinagogas, e sereis açoitados, e vos
conduzirão perante governadores e reis por minha causa, para dardes
testemunho perante eles.”4
1 Mestre em História pelo PPHR-UFRRJ. Pós-graduado em História Antiga e Medieval pela FSBRJ. Filiado
ao PEM-UERJ. Professor docente da SEEDUC. E-mail: prof.msc.gabriel@gmail.com
2 AVEMARIE, Friedrich; HENTEN, Jan Willem van. Martyrdom and the Noble Death: Selected texts from Graeco-
Roman, Jewish and Christian Antiquity. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2002, p. 2.
3 Mt, 10, 17-22.
4 Mc, 13, 9.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
diretamente de Jesus a incumbência do martírio, como segue: “Mas recebereis uma força, a
do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em
toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra”5. Assim, o texto passa a nos indicar que
o ato de testemunhar é visto como algo tão penoso, a ponto das testemunhas necessitarem
de uma força sobrenatural para concretizá-lo, mas ao mesmo tempo, se tornariam pessoas
mais próximas da divindade e por isso especiais, pelo repouso do Espírito sobre eles.
O martírio de Estêvão pode servir para ilustrar esta fórmula textual, pois o texto
nos diz que “[...] cheio de graça e de poder, operava prodígios e grandes sinais entre o
povo”6, portanto, investido da supracitada força sobrenatural que o tornava alguém
especial, posto inclusive que seus algozes no Sinédrio, “[...] com os olhos fixos nele,
tiveram a impressão de ver em seu rosto o rosto de um anjo”7. Desta maneira, o texto
conduz e prepara o leitor para a efetiva prática do testemunho de Estêvão, que se apresenta
assim: “O Sumo Sacerdote perguntou: As coisas são mesmo assim? E ele respondeu:
Irmãos e pais, ouvi.”8, quando inicia de fato seu testemunho em defesa de seu causa. Neste
caso, para além da verificação de modelos textuais espiritualizantes, é importante frisar a
seguinte constatação para o texto de Atos que “[...] caracteriza a expansão realizada pelo
grupo dos judeus cristãos helenistas como um evento casual e sem organização prévia, em
função da perseguição movida contra ele pela(s) sinagoga(s) de judeus helenistas em
Jerusalém”9, o que possibilita dizer que os martírios podem ser considerados como
expressões de tensões sociopolíticas, envoltas numa explícita divergência entre práticas
religiosas, culturais, crenças e posições de autoridades distintas.
Para um caso de fora do Cânon neotestamentário, podemos destacar o de
Policarpo de Esmirna, exposto na História Eclesiástica e já denominado mártir por Eusébio
de Cesareia, como segue: “Neste tempo morreu mártir Policarpo, quando enormes
perseguições estavam perturbando a Ásia”10. O tempo era o do imperador Marco Aurélio,
portanto a segunda metade do século II, quando ocorreram as execuções de outros
mártires, como Germânico, narrada por Eusébio: “Ante a gloriosa morte deste homem, a
multidão toda pasmou-se vendo a valentia do mártir divino e a virtude de toda a linhagem
5 At, 1, 8.
6 At, 6, 8.
7 At, 6, 15.
8 At, 7, 1-2.
9 SELVATICI, Mônica. “O Altíssimo não Habita em Obras de Mãos Humanas”: A Crítica de Estêvão ao
Templo de Jerusalém no Livro dos Atos dos Apóstolos. In: CHEVITARESE, André Leonardo; et alii. Jesus de
Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006, p. 135.
10 HE, IV, XV, 1.
dos cristãos, e todos a uma voz começaram a gritar: Morram os ateus! Que se busque
Policarpo!”11. Aqui a morte é colocada como atitude digna de exaltação e a figura do mártir
passa a ser divinizada, de maneira que por si só, estende essa divinização para a totalidade
dos cristãos.
Podemos encontrar nesses textos um processo de construção gradual e edificante
da figura do mártir, que de testemunhas que enfrentariam resistência de autoridades e
religiosos mais fundamentalistas, ao receberem o poder sobrenatural diretamente de Jesus,
passariam a ser vistos como portadores de características divinas e seus assassinatos como
uma forma de entrega magna em prol da causa cristã, como o modelo apoteótico que a
narrativa sobre Jesus estabelecera.
Segundo Atanásio, Antão desejava também receber o martírio e por isso se expôs
ajudando os confessores, uma vez que o texto afirma, peremptoriamente, que o monge
“desejava sofrer o martírio. Mas, não querendo entregar-se a si mesmo, servia aos
confessores nas minas e nas prisões”15. Aqui existe um ponto que requer atenção, pois,
além de Atanásio dizer que Antão desejava ser mártir, não conseguindo tal proeza, também
não se entregava. Acreditamos que isto pode ser um reflexo das posições políticas de
Atanásio, na tentativa de elaboração da chamada ortodoxia da fé cristã, pois o bispo de
Alexandria foi grande opositor das chamadas heresias, principalmente a ariana 16. Inclusive,
no próprio texto, Atanásio expõe sua aversão ao arianismo e ao que era visto como
heresias em geral, a partir do que escrevia sobre Antão: “Horror de Antão ao cisma e à
heresia”17; “A pedido dos bispos, vem a Alexandria refutar os arianos”18; “Visão profética
das violências arianas”19.
Retomando o caso da recusa de Antão se entregar espontaneamente para o
martírio, parece que o bispo desejava afastar de seu hagiografado a imagem dos
circunceliões, pois estes “[...] passaram a ser considerados puramente monges errantes
hereges”20, que entendiam o suicídio como uma forma de martírio21. Portanto, se Atanásio
indicasse que Antão, de fato e inquestionavelmente, desejasse o martírio e ainda atuasse no
sentido de consegui-lo por sua própria ação voluntária, o monge poderia ter sido apontado
como membro deste grupo, considerado herético, o que desabonaria toda a conduta
política pregressa de Atanásio, na defesa da pretensa ortodoxia. Assim, o que o bispo fez
enquanto estratégia textual foi amenizar o desejo de Antão pelo martírio, colocando o
monge com uma espécie de “diácono dos mártires” durante sua estadia em Alexandria, já
que atuava no sentido de “[...] receber e acompanhar até o fim aqueles que davam
testemunho”22.
Atanásio parece ter elaborado uma estratégia textual que variava entre aproximação
e afastamento da imagem de Antão dos circunceliões, visto que logo após as afirmações
mais amenizantes, retornava com indicações mais enfáticas do desejo do monge pela morte
15 Idem.
16 HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Rosari, 2009, p. 82.
17 VA, 3, 68.
18 VA, 3, 69.
19 VA, 3, 82.
20 SILVA, Uiran Gebara da. Bagaudas e Circunceliões: revoltas rurais e a escrita da história das classes subalternas na
Antiguidade Tardia. 365 f. Tese de Doutorado – USP, São Paulo, 2013, p. 10.
21 FREITAS, Lucas Jorge de. Estudo da Construção do Ethos Retórico Donatista e suas Implicações no Cristianismo
Africano do Século IV e V. 164 f. Dissertação de Mestrado – USP, São Paulo, 2013, p. 32.
22 VA, 2, 46.
gloriosa no martírio, uma vez que mesmo sob a proibição do prefeito de Alexandria sobre
a presença dos monges nos julgamentos dos mártires, Atanásio diz que Antão não se
ocultou, pois: “[...] sem preocupar-se com a proibição, mandou lavar sua veste de cima e no
dia seguinte se colocou bem em evidência sob os olhos do prefeito”23, como se esperasse
ser o próximo preso, julgado e martirizado e, mais uma vez, o hagiógrafo afirma que Antão
“[...] desejava dar testemunho pelo sangue e se afligia por não conseguir fazê-lo”24. Mas,
por fim, volta a amenizar o desejo do monge, afirmando que Antão “serviu, pois, os
confessores da fé, como se estivesse preso com eles, e se consumia nesse serviço”25.
Portanto, apesar de Antão não ter sido mártir, o tema do martírio aparece na hagiografia e
o monge é colocado de forma bem próxima daqueles que entregaram sua vida pela fé,
inclusive desejando a própria morte, porem, num distanciamento seguro dos circunceliões
heréticos.
27 MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. II do Concílio
de Nicéia ao Início da Idade Média. Tomo 1. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 64.
28 Idem.
29FRANGIOTTI, Roque. Introdução In: ATANÁSIO. Contra os pagãos; A encarnação do
Verbo; Apologia ao Imperador Constâncio; Apologia de sua fuga; Vida e Conduta de S.
Antão. São Paulo: Paulus, 2002 (Patrística; 18), [não paginado].
30 Verificar o Anexo.
imperfeito, corruptível e pecador ao unificá-lo com Deus, conforme excerto seguinte nos
diz:
“O Verbo, portanto, compreendia que a corrupção dos homens de
forma alguma poderia ser destruída, a não ser pela morte. Mas, era
impossível que o Verbo morresse por ser imortal, ele, do Pai do Filho.
Por isso, assume o corpo mortal, a fim de que este, partícipe do Verbo,
superior a tudo, seja capaz de morrer por todos [...]”.36
Uma das formas nas quais é possível perceber Atanásio se valendo de sua própria
teologia política da unidade, se dá através de algumas percepções acerca da autoridade
episcopal no século IV. Neste caso, torna-se salutar a delimitação do que entendemos por
autoridade, que neste caso não se encerra na esfera do político, mas uma autoridade
episcopal (político-religiosa), como segue: “Definimos autoridade espiritual como um dom
do Espírito”37, que por sua vez consistia nas seguintes formas: “o sofrimento físico dos
mártires, e a imposição das mãos na ordenação dos bispos”38.
Uma terceira forma foi através do “martírio” diário do ascetismo [...]”39. Vale dizer
que esta última, acreditamos ter sido utilizada por Atanásio para justificar e fundamentar a
sua própria autoridade, já que ele não foi e nem queria ser mártir (por isso preferiu os cinco
exílios), a imposição das mãos, que valia para ele, mas era igualmente válida para seus rivais
melecianos e arianos, sobrando apenas a terceira via do ascetismo cotidiano, ou quotidie
morior, conforme já visto.
O cristianismo copta era composto por uma diversidade de grupos e movimentos
chamados cismáticos e/ou heréticos. As tensões entre esses grupos e movimentos
acabaram por se intensificar durante o episcopado de Atanásio, levando em conta a sua
atuação no sentido de estabelecer um cristianismo copta homogêneo teológica e
hierarquicamente, contudo liderado de seu próprio trono em Alexandria. Doravante, a
introdução da participação imperial nestas questões desde a política constantiniana acirrou
ainda mais as disputas, pois “Durante o século IV, imperadores e bispos trabalharam para
criar uma Igreja Cristã mundial, que seria, em suas palavras, católica”40, isto é, universal,
tornando o conflito inevitável, uma vez que as lideranças e autoridades discutiam sobre
quem deveria liderar a Igreja e que expressões do cristianismo eram legítimas.
36 EnV, 2, 9, 1.
37 RAPP, Claudia. Holy Bishops in Late Antiquity: The Nature of Christian Leadership in an Age of Transition. Berkley;
Los Angeles; Londres: University of California Press, 2005, p. 100.
38 Idem.
39 Idem.
40 BRAKKE, David. Athanasius and the Politics of Asceticism. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 2.
41 VA, 2, 46.
assumir o lugar do mártir, como o modelo de cristão mais que perfeito, nas representações
forjadas na hagiografia elaborada por Atanásio, defensor do que entendia por ortodoxia.
Bibliografia
ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo. São Paulo: Paulus, 2010, (Patrística, vol. 18).
__________. Apologia ao Imperador Constâncio. São Paulo: Paulus, 2010, (Patrística, vol. 18).
__________. Vida e Conduta de Santo Antão. São Paulo: Paulus, 2010, (Patrística, vol. 18).
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AVEMARIE, Friedrich; HENTEN, Jan Willem van. Martyrdom and the Noble Death: Selected
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2002, p. 2.
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BRAKKE, David. Athanasius In: ESLER, Philip F. The Early Christian World. Vol. 2.
Londres; Nova Iorque: Routledge, 2000, p. 1102.
__________. Athanasius and the Politics of Asceticism. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 2.
FRANGIOTTI, Roque. Introdução In: ATANÁSIO. Contra os pagãos; A encarnação do
Verbo; Apologia ao Imperador Constâncio; Apologia de sua fuga; Vida e Conduta de S.
Antão. São Paulo: Paulus, 2002 (Patrística; 18), [não paginado].
FREITAS, Lucas Jorge de. Estudo da Construção do Ethos Retórico Donatista e suas Implicações no
Cristianismo Africano do Século IV e V. 164 f. Dissertação de Mestrado – USP, São Paulo,
2013, p. 32.
HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Rosari, 2009, p. 82.
MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da Literatura Cristã Antiga Grega e
Latina. II do Concílio de Nicéia ao Início da Idade Média. Tomo 1. São Paulo: Edições Loyola,
2000, p. 64.
RAPP, Claudia. Holy Bishops in Late Antiquity: The Nature of Christian Leadership in an Age of
Transition. Berkley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 2005, p. 100.
SELVATICI, Mônica. “O Altíssimo não Habita em Obras de Mãos Humanas”: A Crítica
de Estêvão ao Templo de Jerusalém no Livro dos Atos dos Apóstolos. In:
CHEVITARESE, André Leonardo; et alii. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2006, p. 135.
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subalternas na Antiguidade Tardia. 365 f. Tese de Doutorado – USP, São Paulo, 2013, p. 10.
STE. CROIX, Geoffrey. ¿Por que fueron perseguidos los primeros cristianos? In:
FINLEY, M. Estúdios Sobre Historia Antigua. Tradução R. López. Madri: Akal, 1981, p. 234.
Anexo:
Estratégia textual de Atanásio
Aproximação: Invalidação:
“[...] eu o sei, tu és cristão e homem “[...] a mudança de opinião de Ursácio e
religioso de antepassada tradição.” (ApC, 1). Valente mostra suficientemente a todos a
falta de fundamento de todas as acusações
[...].” (ApC, 1).
“[...] os termos do bem-aventurado Paulo “[...] os acusadores não expuseram
(At, 26, 2) para tê-lo como embaixador argumento algum contra o sacerdote
junto de ti.” (Idem). Macário.” (Idem).
“[...] segundo a sabedoria com a qual Deus “[...] os processos deste gênero encontram-
te gratificou adivinhar o resto a partir de se [...] cheios de nulidade porque não foram
algumas destas palavras e lavrados nas formas da lei.” (Idem).
reconhecer a falsidade da acusação.” (ApC,
5).
“Sei muito bem que conheces as Divinas ***
Escrituras [...]” (ApC, 35).
“Graças sejam dadas ao Senhor que te deu o ***
império.” (Idem).
Introdução
marcas nas narrativas das sagas e contos. Por pressões políticas posteriores, causadas pela
vinda de crenças das pessoas do continente, a Islândia iria ser cristianizada no século X, e a
produção dos manuscritos se iniciou tanto na língua oficial da Igreja quanto no vernáculo3.
Entretanto, o viés político e abrupto dessa conversão religiosa pode ser colocado em
questão quando analisamos as linhas dessas sagas. Um processo híbridizado entre as
culturas cristã e pré-cristãs pode ser observado na formação da identidade cristã islandesa
nas narrativas das escrituras. Os compiladores, de forma velada, revelam valores e moral
cristãos nos acontecimentos relatados. Dentro da interpretatio norroena, observamos as
narrativas compostas no final da Era Viking, como objeto híbrido entre paganismo e
cristianismo, portanto, não formam escrituras originalmente pagãs, mas um fruto de
séculos de contato entre duas culturas4.
O imaginário medieval cristão e nórdico torna-se fundamental na pesquisa das
sagas, considerando que a todo momento precisamos dessa compreensão para atingirmos o
entendimento dos acontecimentos e processos desenvolvidos nas narrativas. A presença
soberana do Deus cristão, os milagres e os feitos maravilhosos dos bispos, missionários e
reis cristãos nas sagas e contos demonstram a emolduração do imaginário em prol da
cristandade, ao mesmo tempo que não fazem uma aculturação forçada. Dessa maneira,
entendemos esses aspectos das sagas, aqui, como elementos do maravilhoso e imaginário.
Esse imaginário oriundo da conceituação de Le Goff, no qual o imaginário remete à
imaginação, não somente como a história da imaginação, mas a história da criação e do uso
das imagens que trazem a sociedade agir e pensar5.
Sabemos, portanto, que os cristãos islandeses produziram documentos de extrema
importância, que nos possibilitam uma rica pesquisa a respeito da Era Viking. Esse
conjunto documental, quando analisada sob lentes adequadas, nos revelam o imaginário
cristão e pré-cristão das comunidades islandesas e através desse imaginário
compreendemos o processos de cristianização inserindo o conceito de Hibridismo
Cultural6 estudado por Peter Burke. As sagas islandesas consistem em conjuntos de obras
escritas em formato de prosa que abordam diversos aspectos da sociedade e cultura
islandesa. Elas contam sobre elementos antigos (sagas lendárias); conflitos familiares (sagas
3 Ibid., p.39.
4 LANGER, Johnni.. Dicionário de mitologia nórdica: símbolos, mitos e ritos. Hedra. São Paulo, 2015. p.312.
5 LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis: Editora Vozes. 2011.p.13.
6 BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editoraunisinos, 2013.
de família); reis (sagas reais); cavalarias (sagas cavaleirescas) e a vida dos santos e bispos
(sagas de bispos)7.
Na perspectiva política, a compilação e escrita das sagas foram incentivadas por
chefes seculares e pelo clero para relatar eventos passados e formar a identidade islandesa 8;
no âmbito social, as sagas e contos, com uma narrativa cristã da História dos islandeses e
escandinavos, adentrava o imaginário das comunidades e serviam de ferramentas para
auxiliar na conversão dos últimos focos de resistência ao cristianismo9; no horizonte
cultural, as sagas que os cristãos missionários levam a fé para a Islândia, é comum grupos
de pessoas e artistas manifestando resistência conversão, portanto, o imaginário coletivo
estava bem ligado aos antigos ritos. Observamos nos milagres realizados pelos cristãos a
tentativa de incorporar os símbolos cristãos aos pré-cristãos.
7 OLIVEIRA, A. A.. Islândia da Era Viking. In: LANGER, Johnni. (Org.). Dicionário de História e Cultura
da Era Viking. 1ed.São Paulo: Hedra, 2017, v. 1, p. 431-432.
8 LÖNNROTH, Lars. The Icelandic Sagas. In: BRINK, Stefan; PRICE, Neil. The Viking World. New York.
Routledge, 2008.
9 OLIVEIRA, A.A. Imaginário E Identidade Na Conversão Da Islândia. Universidade Federal Do
Maranhão, 2015.
10 VAHL, Mônica M; VASCONCELLOS, Marciele A. Mentalidades e Imaginário: (des)continuidades. Cad.
de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, Santa Catarina v.15, n.106, p. 221-234 – jan./jun. 2014.p.
221-222.
pensamento factual, ao mesmo tempo que foi importante a contribuição para elaborações
mais precisas no conceito de imaginário.
Na Idade média, a reflexão sobre o passado se centrou nas linhas da nobreza,
possuindo ligação direta com os dogmas da igreja cristã, ou seja, elementos sagrados
cristãos11. A forte nobreza cristã formada nesse período, em contato com os chefes da
Escandinávia possivelmente despertou o interesse dos nórdicos que buscavam terras,
riquezas e domínios políticos mais sólidos. Nordeide acredita que questões políticas foram
as principais, se não as únicas, para que os Vikings permitissem a entrada da cristandade
nos países do norte da Europa12. O contato e o hibridismo ocorrido após essa aceitação
iriam posteriormente causar o sucesso da entrada da nova religião e moral nessas regiões.
As sagas narram as histórias anteriores desse contato, muitas vezes tendo como clímax a
chegada e a difusão do cristianismo.
A influência da Nova História Cultural nas pesquisas sobre a Escandinávia
implementou o objetivo de entender a formação identitária e a construção do imaginário
nessas narrativas, assim como a percepção do processo de alterização na identidade cristã
da Islândia e Noruega. No cenário formado pelo pensamento da Nova História Cultural, a
história factual dá lugar a história problema – pensar para além do que está escrito na fonte
– ampliando a noção de fonte quanto objeto de estudo, permitindo abordagens diferentes a
respeito do mundo escrito medieval da Islândia.13
O que definiria a NHC, segundo Chartier, seria o método de compreender as
relações entre os símbolos e formas simbólicas com a sociedade estudada, sem ignorar as
escolhas conscientes e inconscientes existentes na construção da narrativa histórica. Nessa
visão, o autor afirma, sobre como a história deve olhar para a ficção, onde a ficção possui
um discurso que informa sobre o real sem representá-lo e a história “pretende dar uma
representação adequada da realidade que foi e já não é”14. Os contos escritos nos séculos
XII e XIII demonstram com ficção – de tempos mais passados – o quadro político do
período, incorporando a questão da religiosidade nórdica sendo inferior a cristã, é nesta
percepção que entra o papel do historiador, encontrando a realidade que “foi e já não é” na
ficção discutindo o real.
11 Ibid., p.222.
12 NORDEIDE, Sæbjørg W. Entrevista: A Cristianização da Escandinávia. Brathair 10 (1), 2010, p. 149.
13FERNANDES, Lucas C. “IN Sorte Diaboli”: Cultura Escrita E A Construção Do Imaginário De
15 ESPIG, M. Ideologia, mentalidades e imaginário: cruzamentos e aproximações teóricas. Revista Anos 90,
Porto Alegre, n. 10, 1998, p.162.
16 BACZKO, B. A imaginação social. In: LEACH, E. et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional;
(“Nú hefr tat, hversu Kristni kom á Ísland”): os ricos proprietários rurais e a cristianização da Islândia (sécs.
IX – XIII). Brathair 9 (1), 2009, p.25.
Observamos nesse trecho que em lugar chamado Giljá havia uma pedra onde
eram realizados sacrifícios, e a crença era de que nesta rocha vivia um espírito guardião.
Korán, um homem que de início se recusou a aceitar ser batizado precisava de uma prova de
20 GRØNLIE, Siân. ‘Preaching, Insult and Wordplay. IN: The Old Icelandic Kristniboðsflættir’, Journal of
English and Germanic Philology, 2004, p.xxxii.
21 LÖNNROTH, op. Cit., p. 225-227.
22 KRISTNI SAGA, Capítulo I.
23 Íslendingabók — Kristni Saga: The Book of the Icelanders — The Story of the Conversion. Viking Society
for Northern Research. Volume XXVIII University College London, 2006. Traduzido para o Inglês por: Siân
Grønlie, p. 35 – 36. (Tradução própria para o português)
que o novo deus e o bispo ali presente eram mais poderosos que o espírito da pedra. O
bispo então foi até a pedra e começou a cantar e milagrosamente a rocha se partiu, por sua
vez, Korán chegou à conclusão de que o espírito havia sido derrotado. O homem, que antes
havia se recusado, agora fora batizado junto a sua família, exceto seu filho Ormr, que não
aceitou a fé. Essa passagem da saga enfatiza o que fora falado anteriormente. Fica no
imaginário da história da Islândia o grande poder de milagre do deus cristão, apenas com
uma canção e fé, o bispo conseguiu destruir uma rocha tida como sagrada, que habitava um
espírito guardião. Devemos nos atentar que a força e a ideia de espírito de Korán foi
substituído pela força e espírito do novo deus, e a figura da rocha sagrada agora é
substituída pela figura sagrada do bispo. Além disso, devemos nos atentar a Ormr, filho de
Kóran, que não aceitaria a nova fé, mostrando que tinham pessoas que ressentiam a
mesma.
Eles viajaram por toda a Islândia para pregar a fé. O bispo e
Þiorvaldr estavam em uma festa de outono em Vatsdalr em Giljá
com Óláfr. Fiorkell Krafla e muitas outras pessoas tinham ido lá.
Dois berserks apareceram lá, ambos chamados Haukr. Eles
ameaçaram usar a força contra as pessoas, deram a volta uivando e
avançaram pelo fogo. Então as pessoas pediram ao bispo para
destruí-los. Depois disso, o bispo consagrou o fogo antes que eles
passassem, e eles foram gravemente queimados. Depois disso, as
pessoas os atacaram e mataram, e eles foram carregados para a
montanha pela guelra. É por isso que desde então é chamado de
Haukagil (...) muitos dos que estiveram presentes neste evento
foram batizados.24
24Ibid., p. 36
25MIRANDA, Pablo Gomes de. Seguindo o Urso e o Lobo: Discussões Sobre os Elementos Religiosos dos
Berserkir e dos Ulfheðnar. História, imagem e narrativas No 11, outubro/2010.
Considerações finais
Bibliografia
GRØNLIE, Siân. ‘Preaching, Insult and Wordplay. IN: The Old Icelandic
Kristniboðsflættir’, Journal of English and Germanic Philology, 2004, p. 458–74.
GRØNLIE, Siân. Íslendingabók — Kristni Saga: The Book of the Icelanders — The Story
of the Conversion. Viking Society for Northern Research. Volume XXVIII University
College London, 2006.
LANGER, Johnni.. Dicionário de mitologia nórdica: símbolos, mitos e ritos. Hedra. São
Paulo, 2015.
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis: Editora Vozes. 2011.
LÖNNROTH, Lars. The Icelandic Sagas. In: BRINK, Stefan; PRICE, Neil. The Viking
World. New York. Routledge, 2008.
MIRANDA, Pablo Gomes de. Seguindo o Urso e o Lobo: Discussões Sobre os Elementos
Religiosos dos Berserkir e dos Ulfheðnar. História, imagem e narrativas No 11,
outubro/2010 - http://www.historiaimagem.com.br Acesso em 08/09/2020.
NORDEIDE, Sæbjørg W. Entrevista: A Cristianização da Escandinávia. Brathair 10 (1),
2010: 148-152.
OLIVEIRA, João Bittencourt de. Aventura e Magia no Mundo das Sagas Islandesas.
Brathair (Online), v. 9 (1), p. 38-65, 2010.
OLIVEIRA, A.A. Imaginário E Identidade Na Conversão Da Islândia. Universidade
Federal Do Maranhão, 2015.
OLIVEIRA, A. A.. Islândia da Era Viking. In: LANGER, Johnni. (Org.). Dicionário de
História e Cultura da Era Viking. 1ed.São Paulo: Hedra, 2017, v. 1, p. 430-432.
VAHL, Mônica M; VASCONCELLOS, Marciele A. Mentalidades e Imaginário:
(des)continuidades. Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, Santa Catarina
v.15, n.106, p. 221-234 – jan./jun. 2014.
Resumo
Dada a uma tradição historiográfica inaugurada no século XIX, a Idade Média é entendida,
ainda hoje e, sobretudo, no senso comum, como um tempo marcado pelas “trevas da
ignorância”, pelo predomínio da cultura eclesiástica e pela ausência da produção intelectual
fora dos espaços clericais. Os livros didáticos, recursos de ensino correntes no cotidiano
escolar, durante muito tempo contribuíram para o reforço desses estereótipos. Esse
trabalho pretende, a partir da análise de duas obras didáticas participantes do Programa
Nacional do Livro Didático, considerar a presença ou a ausência da disponibilização dos
conteúdos relativos à cultura intelectual medieval.
Palavras chaves: Livros didáticos; Idade Média; Ensino de História; cultura intelectual
1Doutora em História Social pela UFF. Profa. Adjunta de História Antiga e Medieval na UERJ. Esse trabalho
conta com o financiamento da FAPERJ. E-mail martadecarvalhosilveira@gmail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
nacionais, a Idade Média teve o seu perfil historiográfico traçado. Contudo, como alerta
Patrick Geary (2005), o romantismo do século XIX não contribuiu para a reabilitação do
período medieval, mas fundamentou a elaboração de uma História da Europa bastante
artificial, por priorizar a historicidade de partes do continente, ignorando profundamente
aquela dos espaços considerados periféricos.
As novas perspectivas historiográficas inauguradas pela Escola dos Annales em
muito contribuiu para a elaboração de um novo olhar sobre o período medieval. A
proposição de uma história total, a ampliação da noção e do uso das fontes primárias, a
diversificação das concepções do tempo histórico, a noção de que a pesquisa histórica só se
sustenta a partir de uma problemática e a busca por uma proximidade teórica e
metodológica com as outras áreas do conhecimento tornou a Idade Média quase que um
novo espaço a ser desbravado, sob um novo olhar e esquadrinhado a partir de novas
temáticas.
O desafio para os medievalistas atuais consiste em garantir que esse
esquadrinhamento seja realizado e, para tanto, torna-se necessário romper com o conforto
gerado pelas interpretações modelares, como por exemplo, a que considera a existência de
uma cultura medieval homogênea e europeia. Para tanto, faz-se preciso assumir a
perspectiva de uma Idade Média eclética, marcada por uma profunda e pouco explorada
heterogeneidade temporal e espacial. Partindo-se da constatação dessa diversidade, torna-se
possível caminhar para o entendimento e a exploração analítica das conexões existentes
entre as sociedades díspares que caracterizaram o ocidente e o oriente medievais, aqui
entendidos no sentido meramente geográfico.
A perspectiva da elaboração de uma história conectada obriga o medievalista a
romper com uma visão espacial forjada no século XIX de que as formações políticas
medievais eram modelos precoces e mal acabados dos Estados modernos e a debruçar-se
sobre as fontes que permitirão o entendimento dos fenômenos medievais em si. E é
justamente no entendimento da documentação a partir de um olhar menos engessado que
se poderá de fato considerar e explorar as possíveis conexões culturais existentes nesse rico
espaço dez séculos tradicionalmente denominado Idade Média. Daí, então, será possível
aproximar-se do processo de construção do conhecimento que permeou os diversos
centros de saber ocidentais e orientais, cristãos, muçulmanos e judeus, institucionalizados
ou não que se constituíram no período medieval. Tal horizonte tem instigado vários
2 MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete Conferência de Jomtien.
Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em:
<https://www.educabrasil.com.br/conferencia-de-jomtien/>. Acesso em: 08 de out. 2020.
Educação Para Todos que contemplassem as diretrizes e metas do Plano de Ação da Conferência.
Os países envolvidos deveriam realizar um diagnóstico dos problemas educacionais mais
recorrentes em seus Estados e propor ações políticas que promovessem a sua resolução.
No caso brasileiro, os principais problemas enfrentados foram o analfabetismo, a evasão
escolar e a defasagem etária nos anos de escolaridade.
A proposta de elaboração da BNCC deveria envolver tanto a esfera acadêmica,
quanto os professores atuantes nos Ensinos Fundamental e Médio além da sociedade em
geral. A primeira versão da Base foi apresentada ao público em Setembro de 2015 e
discutida. As críticas levantadas ao documento levaram à formulação de uma segunda
versão, em Maio de 2016. O texto proposto não satisfez aos setores envolvidos na
discussão e uma terceira versão do documento destinado ao Ensino Fundamental foi
apresentada ao público, em 2017.
No que se refere ao ensino da Idade Média, as versões anteriores da BNCC foram
particularmente danosas. Em comum, as três versões do documento deslocaram os
conteúdos relacionados ao período medieval para o sexto ano, enquanto anteriormente era
comum o seu posicionamento no sétimo ano de escolaridade. Na primeira versão
apresentada ao público, os conteúdos referentes ao período medieval foram simplesmente
retirados da grade curricular brasileira. Já na segunda versão os conteúdos e as habilidades
referentes à Idade Média foram reintroduzidos no documento, mas bastante sintetizados na
versão final da Base.
A BNCC propôs uma ótica conectada em relação à compreensão do período
medieval. Sem priorizar a história europeia ocidental, a Base favoreceu a noção de uma
Idade Média plural em termos políticos, econômicos e sociais. Nos aspectos culturais, que
são aqueles a que esse trabalho se refere, a Base insiste na concepção do Mediterrâneo
como um espaço de trocas e, para tanto, estabelece como habilidades a serem
desenvolvidas pelos alunos: “(EF06HI15) Descrever as dinâmicas de circulação de pessoas,
produtos e culturas no Mediterrâneo e seu significado.” e: “(EF06HI18) Analisar o papel
da religião cristã na cultura e nos modos de organização social no período medieval.” Desta
forma, a Base situa a Igreja como protagonista da produção, mas abre a possibilidade de se
explorar as interconexões culturais existentes na sociedade medieval. O desenvolvimento
dessas habilidades no alunado é o norte que guia os autores na formulação do texto
didático.
3 Para maiores informações vf: BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História. Fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2009.
4 Para maiores informações sobre a regulamentação e o processo histórico de formação da política de
podem ser historiadores de fato, ou profissionais de outro ramo e que contam com a
assessoria de uma espécie de corpo técnico), os profissionais que se dedicam ao campo das
artes visuais e asseguram que a obra se torne visualmente atraente para o leitor, e os
editores que elaboram o suporte necessário para que o livro alcance o sucesso esperado
nesse amplo mercado de constantes e intensas disputas por contratos milionários.
A polifonia dessas obras se expressa também na multiplicidade de discursos nelas
contidos. Pelo menos três tipos de discursos se coadunam no universo dos livros didáticos:
o textual histórico, o imagético e o pedagógico. Portanto, a análise dessas fontes tão
complexas está longe de ser uma tarefa fácil, mas que se mostra bastante necessária, pois,
como lembra Circe Bittencourt, um livro didático
[...] pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do
lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes
situações escolares. É um objeto de “múltiplas facetas”, e para a sua
elaboração e uso existem muitas interferências.5
Os títulos selecionados para análise foram Geração alpha História (2018) de Débora
Mottoka e Estudar História das origens do homem à era digital (2018) de Patrícia Ramos Braick e
Anna Barreto. Em torno desses títulos estabelecemos as variáveis comparáveis apontadas
anteriormente, mesmo sabendo, como afirma Kocka que as abordagens comparativas “[...]
apenas enfatizam e, particularmente, fazem manifestar o que é implícito em qualquer tipo
de trabalho histórico: um forte componente seletivo e construtivo.”6
Na Coleção Alpha História observa-se uma tendência a considerar somente a Igreja
como o polo de produção do conhecimento intelectual. Motooka pontua que os
conhecimentos existentes entre os celtas e os germânicos se viram submersos pela
crescente onda de romanização. Dessa forma, a autora não considera o dinamismo das
apropriações e das representações decorrentes da interação cultural entre tais povos e os
romanos. A sensação que o leitor tem diante do texto é a de que as culturas “bárbaras”
foram inteiramente suplantadas pela imposição da cultura romana.
Buscando abordar o período medieval de acordo com um parâmetro historiográfico
mais atual e aproximando-se timidamente da questão cultural, Motooka, ao referir-se ao
mundo feudal, ressaltou que a história medieval foi muito mais dinâmica do que os
humanistas afirmaram, já que:
[...] Nesse longo período, criaram-se instituições, como os bancos e as
universidades. Invenções como a prensa de tipos móveis, o relógio
mecânico, os jogos de carta e a pintura a óleo também datam dessa
época. E, apesar do controle da igreja católica sobre o pensamento e a
cultura, foram os seus monges que, por meio das transcrições,
garantiram a preservação de muitas obras escritas na Antiguidade.7
9 BRAICK, P. e BARRETO, A. Estudar História das origens do homem à era digital. São Paulo: Moderna: 2018. p.
205.
10 BRAICK, P. e BARRETO, A. Op. cit. p. 243
detalhes sobre a formação dos alunos que ingressavam nas universidades, ressaltando que
se dedicavam ao estudo das sete artes liberais. O interessante e louvável nesse aspecto é
que as autoras reforçaram com os seus leitores a existência de uma ampla circulação de
conhecimentos oriundos do mundo muçulmano nas universidades medievais,
especialmente através das traduções das obras clássicas e da leitura de autores como
Averróis e Avicena, que influenciaram a formação da escolástica.
Conclusão
Bibliografia
Resumo
A presente comunicação tem como objetivo acrescer a discussão sobre Usos do Passado,
partindo de casos específicos sobre a apropriação e reutilização do passado romano com a
finalidade de justificar ações políticas de diversos contextos históricos. O texto se dividirá
em duas partes: a primeira se dará na discussão a respeito da própria definição de Usos do
Passado, fazendo uma breve retomada historiográfica a respeito das Recepções Clássicas e
do campo específico dos Usos do Passado; a segunda parte trará as exemplificações das
utilizações de um passado específico: o romano.
1 Mayra Silva dos Santos / Mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo / e-mail:
santos.mayra@unifesp.br
2 PROST, A. Doze lições sobre a História. São Paulo: Autêntica, 2006, p. 96.
3 SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de
Wolfganf Iser4 (1926-2007) defendia que a forma que o leitor lê o texto impacta o resultado
final da obra, ou seja, cada pessoa em sua temporalidade modifica o texto a partir de sua
releitura. Hans Robert Jauss5 (1921-1997), por sua vez, afirmava que não há como ler o
texto objetivamente, que a cada leitura, uma nova interpretação é formada, chegando à
conclusão de que o texto do passado só consegue responder as questões a partir da nossa
concepção do presente sobre o passado. Júnior afirma que:
Para Jauss, o processo de produção de significado da leitura é
intrinsecamente desenvolvido num processo comunicativo de produção
e recepção de textos. Assim, quando leio uma obra, atualizo-a para meu
presente não somente através de minhas experiências e conceitos prévio
realizados por outros sujeitos que cristalizaram um determinado sentido
de leitura acerca da referida obra6.
4 Wolfgang Iser foi professor de Literatura Inglesa e Comparada na Universidade de Constanza (Alemanha) e
Professor do Departamento de Inglês na Universidade da Califórnia (EUA), suas maiores obras são: The
Implied Reader (1972) e The Act of Reeding (1976).
5 Hans-Robert Jauss, teórico alemão, juntamente com Wolfgang Iser, fundou a conhecida Escola de
Constanza, a qual teve influência significativa na crítica anglo-americana da resposta do leitor. Sua palestra
inaugural em 1967, intitulada “Literary History as a Challenge to Literary Theory”, foi um marco para o que
ele nomeia como “Estética da Recepção”. Suas obras mais importantes são: Toward an Aesthetic of
Reception (1982) e Aesthetic Experience and Literary Hermeneutics (1982).
6 JÚNIOR, Vitor Claret Batalhone. "Uma história de recepção: Robert Holub e a Teoria da Recepção." Belo
como Arnaldo Momigliano (1990); ambos trataram em detalhe dos gregos clássicos e helenísticos e suas releituras. Assim,
recepção e usos do passado estão envolvidos em dois aspectos essenciais: a emissão e a recepção dos antigos em sucessivos momentos
da história, de Roma ao Novo Mundo (Hingley, 2001)”.
8 Charles Martindale é atualmente, professor do Departamento de Inglês e Literatura Comparada na
Universidade de York, entre suas obras mais importantes estão: Redeeming the Text (1993) e Latin Literature
and the Judgement of Taste (2004), assim como a organização de livros como: Classics Uses of Reception
(2006), A Companion to the Classical Tradition (2007), entre outros.
9 SILVA, Glaydson José da; FUNARI, Pedro Paulo; e GARRAFFONI, Renata Senna. "Recepções da
Antiguidade e usos do passado: estabelecimento dos campos e sua presença na realidade brasileira." Dossiê de
História Antiga. São Paulo: Revista Brasileira de História vol. 40 nº84, 2020, p. 48.
10 MARTINDALE, Charles. “Reception”. In: KALLENDORF, Craig W. (Org). A Companion to the Classical
Thinking Through Reception, disponível no Classics and the Uses of Reception (2006), livro
organizado juntamente com Richard Thomas, Martindale afirma que: “Antiguidade e
modernidade, presente e passado, sempre implicam entre si, sempre em diálogo – para entender um, é preciso
pensar nas condições do outro11”. Desta maneira, ele nos instiga a pensar que o estudo da
Recepção discerne que o passado e o presente estão sempre comprometidos um com o
outro, tornando ela, uma parte fundamental para a compreensão do mundo antigo e dos
estudos clássicos.
Assim como Charles Martindale, Lorna Hardwick12 se apresenta como uma
importante teórica para os Estudos da Recepção na atualidade, a mesma lança em 2003 seu
livro Reception Studies, que passa a ser fundamental para os estudos da área. Na introdução
de sua coleção intitulada A Companion to Classical Receptions, Hardwick define “recepções”
como “a maneira em que o material grego e romano foi transmitido, traduzido, fragmentado, interpretado,
reescrito, repensado e representado13”. Hardwick defende que o olhar para o passado direcionado
pelo presente, permite um revisionismo das fontes, uma nova problemática que é
direcionada a fontes que já foram exploradas, como por exemplo, os estudos de gêneros,
da sexualidade, da loucura, entre outros. Partindo do pressuposto que a mesma fonte poder
ser revisitada em diferentes épocas, com olhares políticos completamente distintos,
chamando atenção ainda para o olhar para o passado como herança, no qual muitos
conservadores caem no mito fundamental da Historia Magistra Vitae, procurando no
passado, explicações e continuidades para o presente.
É a partir dos estudos de Recepção que podemos problematizar a própria área dos
denominados Estudos Clássicos. A área de estudos clássicos foi por muito tempo, isolada
das demais esferas historiográficas:
11 Tradução livre, pela presente autora. MARTINDALE, Charles. “Thinking Through Reception –
Introduction”. In: MARTINDALE, Charles; THOMAS, Richard (Orgs). Classics and the Uses of Reception.
Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 05.
12 Lorna Hardwick é atualmente professora emérita de Estudos Clássicos e diretora do projeto Classical
Receptions in Late Twentieth Century Drama and Poetry in English na “The Open University”, na Inglaterra.
Ela é pesquisadora associada honorária do arquivo de performances de teatro Grego e Romano em Oxford.
Entre suas principais obras, se encontram: Translating Words, Translating Cultures (2000) e New Surveys in
the Classics; Reception Studies (2003). Ela é, juntamente com o professor Jim Porter (University of
Michigan), a editora da série da nova série Oxford Studies in Classical Receptions: Classical Presences e é co-
editora, com o Dr. Chris Stray (Swansea) do Blackwell Companion to Classical Receptions (2008) e, com
Carol Gillespie, de Classics in Post-colonial Worlds. Ela foi editora fundadora do Classical Receptions
Journal, lançado como Oxford Journal em 2009. Ela é a organizadora fundadora do grupo de pesquisa
internacional Classics and Poetry Now (CAPN).
13 HARDWICK, Lorna; STRAY, Christopher Stray. A Companion to Classical Receptions, Oxford: Blackwell,
2008, p. 1. apud BAKOGIANNI, Anastasia. “O que há de tão ‘clássico’ na recepção dos clássicos? Teorias,
metodologias e perspectivas futuras”. Rio de Janeiro, Codex – Revista de Estudos Clássicos, v. 4, n. 1, 2016,
p. 116.
Bernal15 acrescenta ainda que nos séculos XIX e XX, a área de estudos clássicos foi
fundamental para a legitimação histórica da cultura europeia ocidental, marcada por uma
atitude “francamente política”.
Todavia, a própria construção do passado é um objeto de estudo para a área de
Recepção, uma vez que a leitura do passado é influenciada pela visão contemporânea do
historiador. Por anos houve diversas críticas sobre o enquadramento da Recepção dos
Clássicos como uma vertente da História Antiga, o principal questionamento quanto à área
refere-se ao distanciamento da fonte estudada com o passado antigo, fonte essa que se
encontra muitas vezes em períodos distantes da própria Antiguidade Clássica. Charles
Martindale afirma em 200616, que seu texto Redeeming the Text (1993), foi um manifesto para
a adoção da Teoria da Recepção nas disciplinas clássicas, questão esta um tanto controversa
na época. Silva17 destaca que “por transcender as fronteiras do mundo greco-romano, a recepção dos
clássicos por muito tempo não foi entendida como parte dos estudos de História Antiga no Brasil, em
contraste com sua inclusão no âmbito dos Classics na Europa e nos Estados Unidos”. O artigo
“Recepções da Antiguidade e usos do passado: estabelecimento dos campos e sua presença na realidade
brasileira”, produzido por Glaydson José da Silva, Pedro Paulo Funari e Renata Senna
Garraffoni, no início deste ano, e publicado pela Revista Brasileira de História em um
dossiê de História Antiga, retrata os avanços da área da Recepção em campo brasileiro,
evidenciando o reconhecimento do campo de estudos na última década. Lorna Hardwick
ainda afirma no editorial do primeiro número do Classical Receptions Journal, em 2009,
“que o estudo da recepção de gregos e romanos tornou-se uma das áreas que mais crescem no campo dos
14 BERNAL, Martin. “A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a
hegemonia europeia”. In: Repensando o mundo antigo. Tradução de Fábio Adriano Hering. 1ª ed., n. 49.
Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003. p. 25. apud SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do
Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo:
Annablume; FAPESP, 2007. p. 25.
15 BERNAL, Martin. “A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a
hegemonia europeia”. In: Repensando o mundo antigo. Tradução de Fábio Adriano Hering. 1ª ed., n. 49.
Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003. p. 14.
16 MARTINDALE, Charles. “Thinking Through Reception – Introduction”. In: MARTINDALE, Charles;
THOMAS, Richard (Orgs). Classics and the Uses of Reception. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 03.
17 SILVA, Glaydson José da; FUNARI, Pedro Paulo; e GARRAFFONI, Renata Senna, 2020, op. cit., p. 47.
À vista disso, a História Antiga surge com o intuito de estabelecer uma linhagem
civilizatória entre o passado greco-romano e os recentes Estados Nação europeus.
Considerando que esse passado é dado como glorioso pelos mesmos, é necessário então,
analisar não somente quem produz o passado, mas a mando de quem. Buscando esse
passado glorioso, países como França, Itália e Alemanha, investiram em pesquisas
arqueológicas e históricas para justificar sua ascendência com o intuito de legitimação
política e identidade nacional, entretanto, essa história nem sempre foi gloriosa, o que
18 SILVA, Glaydson José da; FUNARI, Pedro Paulo; e GARRAFFONI, Renata Senna, 2020, op. cit., p. 48.
19 SILVA, Glaydson José da; FUNARI, Pedro Paulo; e GARRAFFONI, Renata Senna, 2020, op. cit., p. 52.
20 GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto, 2013, p. 20.
simbólicos da Antiguidade clássica por Napoleão Bonaparte." Campinas: Revista de História da Arte e
Arqueologia, 2006, p. 70.
Mundo Antigo. Campinas: IFCH/Unicamp, 2002, p. 27-62 Coleção Textos Didáticos, n. 47 apud BARBOSA,
Renata Cerqueira. "O Império Romano e os Usos do Passado na Inglaterra Vitoriana." Sonhos, Mitos e Heróis:
Memória e Identidade. 1ed. São Luís: Ed. UEMA, 2015, p. 3.
Vitorianos seria uma descendência legítima dos romanos, no momento em que estes fundaram a colônia da
Bretanha29”.
Glaydson José da Silva (2018) apresenta o artigo “Historicidade, memória e escrita da
História: Augusto e o culto della romanità durante o ventennio fascista”, no qual discute importantes
considerações acerca das utilizações do passado e da ascensão do fascismo na Itália de
Mussolini. Silva apresenta no texto, ações que colocaram a “Antiguidade a serviço da experiência
totalitária na Itália, ao evocar, oportunamente, a continuidade e a herança da Roma republicana e
imperial, estabelecendo um paralelismo da Itália fascista com a grandiosidade da antiga Roma, em uma
exaustiva apelação ao mito da romanidade30”, apontando que a usurpação do Império Romano
da Antiguidade estava presente no projeto político italiano-fascista. Todavia, a
“romanidade” romana é reinventada a serviço da ideologia fascista, elevando os ideais de
autoridade e disciplina, elevando a História da Roma Antiga como sendo a própria História
nacional da Itália. Mussolini, que aqui se identificava como cidadão romano, trouxe a antiga
Roma ao cotidiano Italiano do século XX,
referências como o fascio littorio, símbolo da nova era, as águias
imperiais, a saudação com a mão estendida, o passo romano, a marcha, a
ideia da disciplina como a cura para as mazelas sociais e restauradora da
ordem, por exemplo, ilustram a evocação de um aparato simbólico-ritual
da cultura romana antiga como elemento ativo na construção/formação
do poder governamental de Mussolini31.
29 BARBOSA, Renata Cerqueira. "O Império Romano e os Usos do Passado na Inglaterra Vitoriana." Sonhos,
Mitos e Heróis: Memória e Identidade. 1ed. São Luís: Ed. UEMA, 2015, p.9.
30 SILVA, Glaydson José da. "Historicidade, memória e escrita da História: Augusto e o culto della romanità
durante o ventennio fascista." Vitória: Romanitas: Revista de Estudos Greco-Latinas, 2018, p. 143.
31 SILVA, Glaydson José da. 2018, op. cit. p. 147.
32 SILVA, Glaydson José da. 2018, op. cit. p. 160.
Garraffoni (2019) Passado, Presente e experiências: reflexões sobre a recepção dos antigos gregos em
Curitiba na virada do século XX; Rebeca Gontijo (2014) Sobre cultura histórica e usos do passado: a
Independência do Brasil em questão; Rafael Arruda Silva e Renato Pinto (2017) Usos do Passado e
estatuário nas reformas urbanas em Recife no início do século XX; Mariana Fujikawa (2016) Usos do
passado clássico nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) 1889-1930; entre
outros.
A área dos Estudos Clássicos, durante os últimos anos, vem dialogando mais com
as demais esferas historiográficas, o que permite novas discussões e questões que
anteriormente não eram apresentadas. Dentre os avanços metodológicos na área, o dito
campo das recepções clássicas e dos usos do passado vem tomando força em território
nacional e mundial, o interesse nos estudos destas utilizações vem também sendo
reconhecido dentro dos próprios estudos da Antiguidade, demonstrando as grandes
possibilidades que o campo pode acrescer a ciência histórica.
Bibliografia
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presente: os usos simbólicos da Antiguidade clássica por Napoleão Bonaparte." Campinas:
Revista de História da Arte e Arqueologia, 2006, p. 73.
Resumo
Dante Alighieri foi um político e poeta florentino que atuou no conflito entre Monarquia e
Papado durante a passagem do séc. XIII para o séc. XIV. Após ser exilado por motivos
políticos, ele se dedica à produção de obras que visavam problematizar questões da
sociedade e denunciar sujeitos que causavam algum infortúnio à Florença. A fim de
solucionar esses conflitos, Dante propõe o estabelecimento de uma Monarquia Universal, a
qual seria capaz resolver todos os problemas identificados em Florença.
Introdução
Dante Alighieri nasceu em 1265 em Florença, na Itália. Acredita-se que sua família
possuía certa influência em Florença, o que teria lhe proporcionado uma boa educação.
Alighieri estudou letras, ciências, artes, teologia e apresentava um grande conhecimento
filosófico. Apesar de casar-se com Gemma Donati2, com a qual teve vários filhos, ele
demonstrava amar verdadeiramente Beatrice Portinari3. Dante era atuante na política,
lutando ao lado dos Guelfos Brancos contra os Guelfos Negros. Após a derrota para os
Negros, por volta de 1302, os Brancos, incluindo Dante, são acusados de corrupção e
condenados a pagar multa. Na sequência, Dante recebe a sentença de exílio, sendo
ameaçado de morte caso retornasse à Florença. A partir desse momento, o florentino passa
a escrever sobre a situação de Florença, discorre a respeito dos conflitos políticos e defende
o estabelecimento de uma Monarquia Universal para solucionar todos os problemas por ele
identificados na sociedade.
provavelmente, pertencia à alta nobreza florentina, o que tornou impossível o envolvimento de Dante devido
a sua posição social. Beatrice foi sua grande inspiração, aparecendo constantemente em suas obras. Ela
aparece sendo citada no Convívio e, principalmente, como guia de Dante pelo Paraíso descrito em A Divina
Comédia.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
O poeta produziu três de suas principais obras durante o momento de seu exílio.
Desse modo, elas apresentam as reflexões do poeta a respeito da sociedade, dos conflitos
religiosos e políticos no cenário florentino e, principalmente, quais eram suas concepções
políticas. A Divina Comédia (Commedia) teve sua produção iniciada por volta de 1304, sendo
concluída por volta de 1321. O título foi pensado como uma contraposição às tragédias
gregas, pois, enquanto a tragédia apresenta uma jornada com início feliz e final trágico, a
comédia começa por situações penosas e termina em felicidade4. O poema foi escrito em
toscano florentino, língua vulgar que era falada nas ruas de Florença, e é composto por 100
cantos separados em três livros: Inferno, Purgatório e Paraíso. São 34 cantos compondo o
Inferno, sendo o primeiro canto uma espécie de introdução, 33 para o Purgatório e 33 no
Paraíso.
O Além dantesco possui três divisões e o poema narra a peregrinação de Dante-
personagem por esses locais em busca de sua salvação, assim como a da sociedade. O
Inferno possui nove círculos concêntricos que se estreitam em direção ao centro da terra e
os pecados são distribuídos levando em consideração o consentimento da vontade5. O local
abriga respectivamente: pagãos virtuosos, luxuriosos, gulosos, avaros e pródigos, iracundos
e rancorosos, heréticos, violentos, fraudulentos e, por último, os traidores. A divisão do
Purgatório considera os sete pecados capitais e o princípio tomista-aristotélico6. Neste local
estão, respectivamente: orgulhosos, invejosos, iracundos, preguiçosos, avaros e pródigos,
gulosos e, por fim, luxuriosos. A terceira parte, o Paraíso, é dividida em nove esferas7, onde
4 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. 3ª ed. Brasília: Edições do Senado, 2008, p. 252.
5 O homem seria dotado de livre-arbítrio, faculdade formada por intelecto e vontade e ligada à disposição
individual. Essa faculdade seria responsável por conduzir o homem durante sua vida na terra, fazendo-o amar
de maneira certa ou errada. Para a filosofia aristotélica, o intelecto seria guia na escolha da Virtude (o justo
meio entre dois extremos). Visto isso, Dante concebia que os pecadores se corrompiam e praticavam o Mal
por terem perdido o intelecto e, consequentemente, não teriam escolhido destinado corretamente o amor
sobre as coisas. Posto isso, a corrupção tem sua origem no amor imoderado ou mal orientado. Cf.
AUERBACH, Erich. Dante: Poeta do mundo secular. Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997,
p. 133.
6 Os sentimentos básicos são amor, desejo e prazer. O amor é o primeiro sentimento, porque todas as
paixões derivam dele. O inimigo da vida feliz seria as paixões, desejo, ódio, fuga, tristeza, esperança,
desespero, audácia, temor, ira etc., sentimentos contidos na alma, influenciando a vida moral do ser humano.
Ao agir sob influência das emoções e paixões, o homem se desviaria do fim buscado pela razão, passando a
servi-las e por elas sendo movido, afastando-se dos princípios éticos de razoabilidade. Cf. ANDRÉS, Gabriel
Martí. El crecimiento en la virtud a la luz del pensamiento aristotélico-tomista (I): Las pasiones del alma.
Málaga: Metafísica y Persona, 2010, p. 107; DIAS, Rafael Parente Ferreira; MENEZES, Marcello Renault.
Introdução ao tomismo: uma análise acerca da moralidade. Curitiba: Relegens Thréskeia, 2019, p. 200.
7 A região é formada por nove Céus, sendo sete que sete deles correspondem aos sete planetas da astronomia
ptolomaica: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno. Em seguida existe o oitavo nível, das Estrelas
as almas estão organizadas de acordo com as suas boas práticas em vida. Durante o
percurso, Dante aponta e denuncia diversos sujeitos que tinham algum envolvimento com
os conflitos políticos e religiosos que atingiam Florença, além de mostrar condutas que
deveriam ser mudadas.
A outra obra, Monarquia (De Monarchia), foi produzida por volta de 1318. Escrita
originalmente em latim e dividida em três partes, ela pode ser considerada um tratado
filosófico, no qual é discutida a relação entre os poderes secular e espiritual, ou seja, entre
Império e Papado. Na primeira parte, Necessidade da Monarquia, Dante explica que o homem
vive em sociedade e é necessária sua inserção em seu meio social, o qual seria dividido em
dois planos: espiritual e terreno. Em sua visão, a finalidade humana só seria atingida
quando a paz fosse concretizada sob a liderança de um Monarca Universal, pois ele criaria
as condições necessárias para a plena realização do homem.
Na segunda parte, Como o povo romano obteve legitimamente o encargo da Monarquia e do
Império, o autor retoma fatos históricos ligados ao Império Romano, o qual teria sido
auxiliado pela Divina Providência, por isso sobressaiu sobre os demais povos. Por fim, no
terceiro livro, O encargo da Monarquia e do Império provém imediatamente de Deus, Dante conclui
sua defesa dos benefícios de se ter um Monarca Universal. Ele recorre a argumentos
filosóficos, históricos e bíblicos para diferenciar as esferas de poder temporal e espiritual.
Por serem áreas distintas e independentes, seriam cargos de governo distintos: o poder
temporal seria dever do Imperador e o poder espiritual seria competência da Igreja.
Já o Convívio teve sua produção iniciada por volta de 1304. Ela foi escrita em
vernáculo e conta com quatro tratados, nos quais o poeta exalta a filosofia como caminho
para a concretização do fim humano. O Convívio pode ser considerado um trabalho
filosófico, por meio do qual Dante expõe suas reflexões envolvendo a filosofia e a
sociedade. O primeiro tratado contém referências ao pensamento aristotélico sobre o
desejo natural do ser humano pelo saber, o que conduz o homem a buscar pela sua própria
perfeição. Os segundo e terceiro tratados, formados por 15 capítulos cada, são dedicados a
explicitar a apreciação da Filosofia pelo poeta. O quarto tratado tem o dobro da dimensão
dos dois primeiros. Nele o autor discorre sobre a verdadeira nobreza do homem e busca
demonstrar a forma como encara a Filosofia, sua importância e relação com aqueles que
Fixas, e o nono é o Céu Cristalino, ou Primum Mobile, cujo movimento é responsável pelo movimento de
todo o universo. Acima está o Empíreo, no qual temos a Rosa dos Beatos, ou Rosa Mística, e, por fim, os
nove Círculos Angélicos rodeando Deus. A nona esfera, mais próxima do Empíreo, através da hierarquia das
Inteligências, comunica seu movimento às esferas inferiores. Cf. AUERBACH op. cit., p. 128.
desejavam governar. Sendo assim, o Convívio funcionaria como uma iniciação filosófica,
uma vez que a obra esclarece questões sobre as relações entre a filosofia e a autoridade do
Império, traça princípios e formas para que a perfeição fosse atingida por meio do saber.
Sabendo que Dante produziu suas obras após ser atingido diretamente por conflitos
ocasionados pela nova conjuntura na qual se via inserido, é necessário que analisemos
alguns aspectos do contexto do florentino, para, assim, compreendermos suas críticas. Um
dos principais aspectos que devem ser observados no progresso do Ocidente, a partir do
séc. XI, é o desenvolvimento urbano que atinge seu apogeu por volta do séc. XIII8. As
novas dinâmicas da cidade modificaram o homem medieval e mudaram a forma como ele
se relacionava, uma vez que seu círculo familiar foi restringido, entretanto a rede de
comunidades da qual participa foi ampliada.
Nesse contexto, Florença era uma das maiores cidades da Europa e seu poder podia
ser percebido pela riqueza que tinha produzida, acumulada e em circulação9. O
desenvolvimento de tecnologias voltadas à agricultura e o aumento produtivo
desencadearam um acelerado crescimento demográfico, originando burgos e novas relações
econômicas10. A população das cidades cresceu em decorrência da atração de atividades
produtivas que se desenvolveram e causaram a ampliação das fronteiras das cidades,
inclusive de Florença, devido ao número cada vez maior de moradores11.
Dante via o crescimento como uma das causas dos conflitos ocorridos em
Florença: “A gente nova e a rápida fortuna/ geram o orgulho que ora se depara/ em ti
Florença, e que já te importunam!”12. Além disso, segundo Alighieri, a mescla da população
de diferentes regiões era um agravante dos embates de interesse observados na região de
Florença. De acordo com Dante, “Sempre que muita mescla se ocasione,/ para a cidade
mau destino fada”13. Essa mescla se deve, também, ao posicionamento geográfico favorável
8 LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 1ª ed. Lisboa: Presença, 1989,
p. 19.
9 STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008, p. 31.
10 SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 16ª ed. São Paulo: Atual, 1994, p. 5.
11 BRAZZAROLA, Giorgia. A vida, a sociedade, a política e a cultura nos tempos de Dante Alighieri.
da península itálica, pois possibilitava a rota entre oriente, ocidente e o norte da África14. A
Europa, principalmente a região florentina, transforma-se em ponto de circulação de
caravanas de mercadores, muitas das quais acabaram se fixando na região, compondo um
eixo comercial15.
Enquanto caminha pelo Inferno, Dante-personagem vê e aponta sujeitos que
tinham condutas violentas, haviam cometido crimes ou causado algum infortúnio à
sociedade. A Europa nesse contexto é caracterizada pela diversidade e mudanças
constantes e a mentalidade mercantil e do lucro dominavam16.
As pessoas têm de estar constantemente precavidas contra a violência
porque “a cidade leva ao crime”. As violências cívicas — exposições no
pelourinho, flagelações, execuções de condenados — são,
inclusivamente, oferecidas como espetáculo aos habitantes17.
política contra o poder do Papado medieval. Franca: História e Cultura, 2016, p. 57.
19 PEREIRA, Ronny Costa. Entre Brancos e Negros: representações e influências das facções políticas na
Divina Comédia. Encontro Estadual De História. Santo Antônio de Jesus: ANPUH, 2018, n/p.
20 DUARTE, Tiago Ancelmo. Inferno: uma ideia do espaço dos pecadores na Divina Comédia de Dante
VIII ingressou na carreira religiosa na adolescência e assumiu o trono papalino em 1294, após a abdicação de
Celestino V. Ele comandou a Igreja Católica de 24 de dezembro de 1294 até 1303, ano de sua morte.
Guelfos Negros tomassem o poder. Por conta disso, os principais membros dos Guelfos
Brancos são exilados e proibidos de retornar à Florença22. Dante torna-se, então, um dos
exilados, pois era membro dos Brancos. Muitos personagens descritos recebendo punição
no Mundo dos Mortos dantesco foram pessoas que atuaram em alguns desses partidos
políticos, contribuindo com os conflitos que causavam infortúnios à Florença. A partir do
momento em que se encontra exilado, Dante dedicou-se à produção intelectual voltada à
reflexão sobre questões políticas, religiosas, sociais, econômicas, culturais, morais etc. Por
meio de suas obras, o poeta ataca tudo aquilo que considerava errado, sujeitos e condutas
pecaminosas. Todavia, ele propõe uma solução: a Monarquia Universal.
22 CAVALCANTE, Acilon Himercírio Baptista. Dante Alighieri: o Inferno e Florença. São Paulo: Urbana,
2012, p. 194.
23 CALAFATE, Pedro. O laicismo político na Monarquia de Dante. Lisboa: Philosophica, 2009, p. 406.
24 DANTE, Monarquia, I, V. Tradução de Carlos do Soveral. In: SELEÇÃO DE TEXTOS. Os pensadores:
Para o poeta, “Os domínios, por exemplo, do rei de Castela, terminam onde
começam os do rei de Aragão”31. Entretanto, Dante reconhece as falhas do gênero humano
e defende a necessidade de um poder superior ao dos príncipes32, o qual seria responsável
por colocar fim ao choque entre Estados que comprometia o alcance da felicidade33. Para o
florentino, a felicidade era impedida porque o ser humano não se contentava com uma
posse limitada de terra e desejava sempre possuir mais territórios, gerando, assim, os
conflitos34. Dante faz a defesa da importância de um terceiro elemento, superior aos
jurisdição e igual aos demais já envolvidos no conflito, o que produziria um processo indefinido que só
poderia ser solucionado com um juiz cujo poder fosse superior ao dos envolvidos no conflito. Cf. DANTE,
Monarquia, I, X. In.: SELEÇÃO DE TEXTOS. Os pensadores: Tomás de Aquino et al: Os pensadores. São Paulo:
Abril, 1985, 418 p.
33 FRANCO JUNIOR, Hilário. Dante: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 39.
34 DANTE, Convívio, IV, IV. Trad. de Philip H. Wicksteed. London: J. M. Dent, 1903, 447 p.
envolvidos em um conflito – o Monarca Universal35. Ele não teria competidores, uma vez
que tudo já era dele por direito, não precisaria desejar ter mais nada, consequentemente
seria o indivíduo com menores disposições hostis36.
Deste modo, o Monarca Universal seria o mais capacitado e habilitado para
governar a humanidade, garantindo as condições fundamentais para a obtenção do bem-
estar. Faria isso atuando como um juiz resolvendo querelas entre príncipes, mantendo a paz
universal e eliminando todas as situações que levam o homem à situação de servidão37.
Dante julgava ser necessário que o gênero humano fosse governado a partir dos pontos
comuns a todos os homens e sob uma única lei38. Dante via no Monarca Universal a função
de formulador de uma lei geral, à qual os príncipes deveriam acrescentar regras particulares,
adaptando-a de acordo com cada localidade39. Apesar da supremacia da unidade das
vontades na figura do Monarca Universal, Dante também leva em consideração a
diversidade que forma o gênero humano. O florentino não considerava que as leis de cada
cidade devessem partir do Monarca Universal, pois cada local possuiria suas características
particulares. Porém, considerava que estas leis particulares pudessem ser defeituosas,
tornando necessária a supervisão40. Mesmo sendo defensor da superioridade do Monarca,
Dante deixa claro que o governo deve estar em função da humanidade, e não o contrário,
pois segundo ele:
Não são, com efeito, os cidadãos que existem para os cônsules ou o
povo para o rei, mas, antes, os cônsules para os cidadãos e o rei para o
povo; e tal como não é o regime feito para as leis, mas estas para o
regime, assim também não são os indivíduos que vivem conformes à lei
que se ordenam ao legislador, mas antes este quem se ordena a eles41.
35 Id, Monarquia, I, X. In: SELEÇÃO DE TEXTOS. Os pensadores: Tomás de Aquino et al: Os pensadores. São
Paulo: Abril, 1985, 418 p.
36 CALAFATE, op. cit., p. 408.
37 TÔRRES, Moisés Romanazzi. Aristocracia e Nobreza em Dante Alighieri. Mirabilia, 2009, p. 241.
38 DANTE, Monarquia, I, XIV. In.: SELEÇÃO DE TEXTOS. Os pensadores: Tomás de Aquino et al: Os
Segundo ele, a filosofia (por meio do Império) e teologia (por meio da Igreja) deveriam ser
aliadas, atuando como guias da cristandade ao seu duplo fim e no alcance da felicidade. O
poder desse Monarca Universal seria atribuído diretamente por Deus e não por meio da
mediação da Igreja43. Portanto, somente a Monarquia Universal forneceria todas as
condições necessárias para que a humanidade vivesse em paz e atingisse a felicidade plena.
Considerações finais
Como foi possível perceber, Dante Alighieri foi um poeta e político atuante em
Florença na passagem do século XIII para o século XIV. Após ser exilado, ele se dedica a
produzir obras na intenção de tecer críticas à população, apontar e acusar sujeitos
envolvidos nos conflitos e reformar a sociedade. Além disso, o poeta propõe o
estabelecimento da Monarquia Universal para a solução desses problemas. Essa forma de
governo seria capaz de solucionar os problemas enfrentados em Florença causados pelas
ambições e corrupções da natureza humana. Ele propôs a independência do Papado e da
Monarquia, atribuindo a cada uma sua própria função. Além disso, a humanidade guiada e
governada por apenas um líder estaria mais próxima da vontade divina. Esse guia, o
Monarca Universal, atuaria nas divisões de terras, nas leis, nos direitos etc., eliminando os
conflitos e proporcionando as condições necessárias para a conquista da felicidade plena do
ser humano.
Bibliografia
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Feira de Santana: ANPUH, 2016.
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sua linguagem política contra o poder do Papado medieval. Franca: História e Cultura, 2016,
p. 56-72.
Resumo
O trabalho apresenta um ensaio abordando a fusão dos temas religião e política,
encadeando a heresia valdense ao processo político francês. A partir do estudo da
formação da monarquia francesa e da política exercida no sul da França, analisaremos
como a heresia dos valdenses foi capaz de se difundir no sul francês, quais foram as
facilidades encontradas pelos heréticos nesta parte da França que pôde beneficiar o
crescimento e expansão da heresia e o que os fez optar pelo sul e sudeste.
discordante” 4. Este vocábulo não nasce com a Idade Média, mas está presente até antes de
haver a religião cristã. O escritor Russel Norman Champlin na obra Enciclopédia de Bíblia,
teologia e filosofia destaca que o uso da palavra “heresia” não é necessariamente negativo,
podendo indicar qualquer facciosidade ou seita. Quando esta palavra aparece no livro da
Bíblia, indica, em algumas vezes, algo não necessariamente ruim. No livro bíblico de Atos
15.5, a palavra αἱρέσεος (lê-se “hairéseos”) significa partido ou seita. Entretanto, é possível
achar vocábulos indicativos para heresia em livros bíblicos que nos parecem com uma
opção negativa, como podemos ver nos livros de Tito 3.10, onde o herege, depois de
admoestações deve ser rejeitado pela comunidade cristã e 2ª Pedro 2.1, onde autor liga a
palavra αἱρέσεις (heresias) à destruição. Entretanto, o problema parece não estar na crença
dissidente, mas sim na consequência que ela pode causar, ou seja, a divisão. Allister
Macgrath apontará que “O que está em causa não é o aparecimento de “grupos” ou
“partidos”, mas as consequências negativas dessa ocorrência para a unidade das igrejas,
cujos líderes administram mal essa ocorrência” 5.
Embora as dissidências e heresias existam no seio do cristianismo desde os
primórdios, o modo com que foram tratadas foi se modificando ao longo da história. A
partir da junção da Igreja com o Império Romano, as práticas usadas para afastar a heresia
começaram a sofrer modificações e, muitas vezes, era apelado para a coerção física, além de
excomunhão e disciplinas drásticas 6. Ao chegarmos à Idade Média o pensamento continua
o mesmo, inda mais quando analisamos mais atentamente às transformações na política
clerical dos séculos XI, XII e XIII. As diminuições das invasões e as reformas feitas pela
Igreja Romana tornam esta instituição como “cabeça” da sociedade cristã, líder sobre
outras igrejas e fora da subordinação laica 7. No século XII a igreja irá desfrutar de uma
autoridade política sem precedentes, inclusive ambicionando tornar os poderes seculares
submetidos aos seus. Comparando à submissão da lua ao sol, assim também deveria ser a
relação da Igreja com os poderes seculares de acordo com Inocêncio III 8. Essa crescente
do poder da Igreja medieval também será sentida no combate aos dogmas hereges. A
heresia circunscrita dentro da história cristã “(...) segue o ritmo da evolução do poder –
4 ZERNER, Monique. Heresia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário analítico do ocidente
medieval. São Paulo : Unesp, 2017, p. 562.
5 MCGRATH, Allister. Heresia. Uma história em busca da verdade. Tradução José Carlos Siqueira. São Paulo:
A heresia Valdense
Os valdenses são um grupo de cristãos que irão seguir Pedro Valdo, um mercador
de Lyon que vende todos os seus bens para viver da pobreza e da pregação a partir de
1174, pedindo também para traduzir a Bíblia do latim para a língua franco-provençal 10.
Podemos ver a área de atuação da heresia valdense na figura 1 em anexo 11. No ano de
1180, Valdo irá mostrar ao bispo de Lyon sua profissão de fé, que se apresenta parecida
com muitas normas do catolicismo. Entretanto, no ano de 1182 o bispo de Lyon que
parecia apoiar Valdo, Guichardo, acaba por falecer e quem assume o bispado é João
Bellesmains, proibindo os valdenses de estarem na cidade de Lyon 12.
Por conta da proibição de permanecerem na cidade de Lyon, os valdenses fogem
para o sul da França, chegando também à Itália 13. Diante deste fato podemos fazer alguns
questionamentos para saber por quais motivos Valdo e seus seguidores teriam escolhido o
sul da França e não o norte para se estabelecerem. Além disso, quais são as atrações e
facilidades que permitem a heresia de encontrar terreno fértil no sul francês, local onde
também surgem outras heresias? Por que mesmo com o fortalecimento da Igreja, como
vimos acima, há expansão da heresia? Estes questionamentos poderão ser respondidos
através da análise do centro-sul francês durante a Idade Média.
(1170-1183). In: ZERNER, Monique (org). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da inquisição. São
Paulo: Unicamp, 2009, p. 209.
13 ZERNER, op.cit., p. 571.
A parte que hoje se caracteriza como território francês é desde muito disputada por
grupos distintos. Desde antes dos romanos, a presença comercial de outros povos no sul da
França aparece de forma destacada. O autor David Abulafia destacará que, na época da
expansão grega e etrusca havia presença de materiais destes respectivos povos nos portos
franceses, colocando que:
(...) Massália, no sítio da atual Marselha, atuou como ponte entre o
mundo grego metropolitano e as praias mais ocidentais do Mediterrâneo.
(...) Massália tornou-se um ponto de contato com os povos celtas da
Europa ocidental, de modo que a cerâmica grega e etrusca e outros
produtos convergiam de lá, na direção norte, para o centro da Gália 14.
Quando houve a invasão da Gália por Júlio Cesar no século I A.C., a parte sul e
sudeste deste território foi a mais afetada pela presença romana, onde ali foi fundada a
cidade que seria a capital da Gália romana: Lugdunum. O autor Patrick Boucheron nos
conta como ocorreu este processo:
“A colônia Lugdunum original – a Lyon da antiguidade – foi fundada na
colina ocidental de Fourvière em 43 A.C para abrigar legionários
romanos. Como ponto central natural de comunicações e o único
território gaulês onde os cidadãos possuíam direito à cidadania romana
fora da Gália Narbonensis, tornou-se capital da Gália Lugdunensis” 15.
Por conta deste processo de conquista e sedentarização dos romanos no sul gaulês,
esta parte mediterrânea francesa, ou seja, o sul, irá se mostrar com características bastante
romanas, inclusive durante a Idade Medieval. O autor Luis Suarez Fernandez (1969)
apontará o Mediterrâneo como uma herança romana, formando ao redor do Império
Romano, através do Grande Mar, uma comunidade de trocas comerciais e culturais. A
historiadora Adeline Rucquoi, em sua tese, colocará que o grau de romanização aumenta a
partir da proximidade com o mar Mediterrâneo, fazendo com que estes povos se baseiem
no direito herdado pelos romanos e nas cidades 16. Sendo assim podemos já ver que os
14 ABULAFIA, David. O Grande Mar. Uma história humana do Mediterrâneo. Tradução Cássio de Arantes
Leite – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 116.
15 BOUCHERON, Patrick, et al. France in the world: a new global history. Paris: Édition du Seuil, 2019. Tradução
livre do original: The original Lugdunum colony — the Lyon of antiquity — was founded on the western hill
of Fourvière in 43 BCE to house Roman legionaries. As a natural communications hub and the only Gallic
territory whose citizens were entitled to Roman citizenship outside Gallia Narbonensis, it became the capital
of Gallia Lugdunensis.
16 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da península ibérica. Tradução Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1995,
p. 11.
locais mais ao sul da Europa, incluindo a França, serão cidades com maior influência
romana e também de outras culturas através das trocas.
Ao florescer a Idade Média, a França passará por transformações e outros povos
irão lançar mão daquela região até a chegada dos francos. Este povo, ao conquistar a região
da Gália, irá transformá-la em suas bases política, econômica, cultural. Haverá uma junção
das culturas ali já presentes com a cultura franca. O século VIII, “(...) na verdade é o século
dos francos. (...) um novo mundo nascera no ocidente, surgindo lentamente da fusão do
mundo romano e do mundo bárbaro. A Idade Média ocidental havia tomado forma” 17.
Enquanto outros povos se convertiam ao Arianismo, religião da antiguidade que pregava a
não consubstancialidade de Jesus e Deus, Clóvis e os francos se convertem ao catolicismo.
Com isso os francos ganham a categoria e o direito de primogenitura na cristandade
ocidental, ou seja, seria o povo franco o maior e mais poderoso entre seus “irmãos”
bárbaros 18. A partir da chegada de Carlos Magno ao poder, coroado no ano 800 da nossa
era, o reino dos francos atingiu suas máximas fronteiras, possivelmente vistas na segunda
figura em anexo 19.
Entretanto, mesmo com todo o crescimento do Império Carolíngio, este, após a
morte de Carlos Magno, se dividiu e se desestruturou. Após a sucessão do trono ter ido
para as mãos de Luís, chamado O Piedoso, este reparte a terra entre seus três filhos,
criando uma guerra interna e um problema de sucessão 20, sendo vista essa divisão na figura
3 em anexo 21. O historiador Jacques Le Goff pontuará o problema da sucessão como uma
forma de ajudar a fragmentar o reino. Para ele os Francos não possuíam claramente uma
definição exata do que era um Estado, colocando pra si todos os pertences da pátria, e,
como se fosse sua, dividindo a terra pelos seus filhos. Nas palavras de Le Goff,
Apesar do empenho em absorver de Roma sua herança política e
administrativa, os francos não haviam adquirido o sentido de Estado. Os
reis francos consideravam o reino sua propriedade, exatamente como
seus domínios, seus tesouros. E, o reino que lhes pertence, os reis
francos partilham entre seus herdeiros 22.
17 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Tradução Monica Stahel. Rio de Janeiro: Vozes,
2016, p. 30.
18 ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado. In: Dicionário analítico do ocidente medieval. Volume 1. Tradução
Nov. 2020.
20 LE GOFF, op. Cit., p. 36.
21 Disponível em: < https://www.todoestudo.com.br/historia/tratado-de-verdun> Acesso em 2 Nov. 2020.
22 Ibidem., p. 45.
Além desta dificuldade enfrentada pelo governo carolíngio após a morte de seu líder
maior, há outra que se iniciou ainda no governo de Pepino, o breve, e Carlos Magno. Após
as conquistas realizadas por Pepino, O breve, e seus sucessores, foram colocados nobres
para assumirem os vários locais conquistados pelo exército franco. Porém, com o passar do
tempo, esses nobres começaram a adquirir maior prestígio, sendo senhores poderosos em
suas áreas. Sobre este fato, Georges Duby discorrerá que:
Para que submetessem em seu nome os outros povos conquistados, os
carolíngios haviam tentado estabelecer francos em toda a parte, confiar-
lhes as “honras”, além de implantar junto a esses delegados, para
completar a quadrilha, homens de sua casa, os vassi 23.
Embora esta tática de escolher homens da confiança do rei para ocuparem cargos
estratégicos tenha parecido plausível aos olhos dos monarcas carolíngios, após o século IX
esta prática se tornou mais um gargalo para os reis francos. Os homens que detinham
poder sobre um pequeno pedaço do território começaram a se tornar homens poderosos e
que, muitas vezes, não deviam ao rei franco obediência ou homenagens. Algumas regiões
da França, mais ainda o sul, muitas vezes se apresentavam ou pareciam independentes do
restante do território. Para sacramentar ainda mais este poder regional frente ao poder
régio, houve também a contribuição das invasões dos séculos IX e X no território franco.
De acordo com Perroy,
Em primeiro lugar, as invasões aceleraram a decomposição das
instituições monárquicas. Feriram o prestígio dos soberanos, cujos
exércitos se revelavam inoperantes (...). De outro lado, os progressos da
insegurança levaram a estender, ao conjunto do território, o regime das
marcas, a multiplicar as fortalezas e as obras defensivas, a fragmentar o
exército real em pequenas milícias regionais, encarregadas da defesa
permanente, a deixar a iniciativa das operações militares aos
representantes locais do soberano. Destarte, precipitou-se a evolução no
sentido do fracionamento dos poderes do comando. 24
A partir destes séculos o sul da França continuou cada vez mais independente com
sua própria política, seus próprios costumes e cultura. Como irá afirmar Georges Duby, o
sul é um mundo completamente distinto do restante do território francês 25.
23 DUBY, Georges. A França na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 39.
24 PERROY, Édouard. O esmaecer da Europa. In: CROUZET, Maurice. História geral das civilizações. Rio
de Janeiro: Bertrand, 1994, p. 210 e 211.
25 DUBY, op. Cit., p. 39.
Conclusão
Bibliografia
ABULAFIA, David. O Grande Mar. Uma história humana do Mediterrâneo. Tradução Cássio de
Arantes Leite – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 116.
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BOUCHERON, Patrick. Et al. France in the world: a new global history. Tradução para o Inglês
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LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Tradução Monica Stahel. Rio de Janeiro:
Vozes, 2016, p. 30, 31, 45 e 46.
MCGRATH, Allister. Heresia. Uma história em busca da verdade. Tradução José Carlos Siqueira.
São Paulo: Hagnos, 2014.p. 51 e 254.
PERROY, Édouard. O esmaecer da Europa. In: História geral das civilizações. Rio de Janeiro:
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RUCQUOI, Adeline. História Medieval da península ibérica. Tradução Ana Moura. Lisboa:
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RUBELLIN, Michel. Na época que Valdo não era herege: hipóteses sobre o papel de
Valdo em Lyon (1170-1183). In: Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da
inquisição. Tradução Neri de Barros et al. São Paulo: Unicamp, 2009, p. 209.
RUST, Leandro Duarte. Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito.
In: História da historiografia. Ouro Preto: Edufop, 2009, p. 138.
ZERNER, Monique. Heresia. In: Dicionário analítico do ocidente medieval. Volume 1. Tradução
Hilário Franco Jr. São Paulo: Unesp, 2017, p. 562 e 571.
Anexo:
Resumo
A presente comunicação busca demonstrar a importância das aparições e intervenções da
Mãe de Jesus na história dos cristãos e no Império Bizantino. A figura de Maria permeia
todo o cristianismo desde os primeiros séculos das comunidades cristãs, percebe-se que os
conceitos atribuídos a Mãe de Jesus aumentam e solidificam-se com o tempo assim como
suas aparições e intervenções. Buscamos em nosso trabalho marcar e mostrar o início
desses eventos como anterior ao Concílio de Éfeso (451) proclamá-la Mãe de Deus e
comum as mais variadas igrejas cristãs, assim como suas intervenções tornaram-se cada vez
mais comuns dentro do Império Bizantino, em especial na cidade de Constantinopla que a
tinha como protetora e padroeira.
Introdução
1Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:
vanessa_bezerrarj@yahoo.com.br.
2Para os gregos, o termo kanon, donde o nosso substantivo “cânon” e o adjetivo “canônico” designa a norma,
1787.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
os Atos, Paulo e João, que falam sobre uma mulher da qual nasceu Jesus, os três primeiros
evangelistas transmitem o seu nome: Maria.
Excetuando-se a narrativa da anunciação e do nascimento milagroso de Jesus, Maria
é descrita como mulher do povo de origem pobre, torna-se noiva, torna-se mãe, visita uma
prima idosa, faz as peregrinações à Jerusalém, está presente em uma festa de bodas, como
também na morte do filho, acha-se inserida no núcleo familiar e na comunidade apostólica.
Podemos dizer em termos quantitativos que os relatos acerca da figura de Maria são
pequenos dentro dos escritos canônicos em comparação com a sua imagem crescente ao
longo dos séculos. Em relação a sua morte “a tradição bizantina acredita na morte e no
sepulcro da Virgem, mas também na sua antecipada glorificação ao céu com o corpo e a
alma, à semelhança e em virtude de quando aconteceu ao seu divino Filho”4.
Segundo esta mesma tradição, Maria foi sepultada de forma breve, próximo ao
jardim do Getsêmani.
Ao mapearmos a figura de Maria nas narrativas cristãs percebemos que desde os
primeiros séculos do cristianismo perdurava entre os cristãos relatos de aparições
marianas5.
Não pretendemos, em nosso estudo, abordar a veracidade ou não desses relatos,
mas a crença existente acerca da figura de Maria nas mais variadas Sés apostólicas e dentro
do Império Bizantino.
As aparições da virgem
Segundo a tradição a primeira aparição da Virgem teria sido para Tiago Maior,
quando este encontrava-se na atual região da Espanha pregando. A tradição cristã nos
relata que Maria apareceu a Tiago e este à pode ver sentada num pilar de mármore no meio
de um coro de anjos, dando-lhe conselhos específicos sobre a evangelização naquela região
e o confortando. Após a aparição, Tiago construiu uma capela no lugar, juntamente com
seus discípulos, a capela transformou-se na Basílica de Saragoça e assim surgiu o título de
4DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. Tradução de P. Mihail Sabatelli, 1ª edição. São Paulo:
Editora Ave Maria, 1998, p. 65.
5Chama-se de aparição a manifestação visível de um ser cuja visão naquele lugar ou naquele momento é
Nossa Senhora do Pilar, presente na tradição cristã há mais de 1900 anos. Este relato faz
parte da devoção popular, no caso da península ibérica.6
O primeiro registro datado de uma aparição encontra-se no século III. São
Gregório Taumaturgo teve uma visão da Virgem e de João Batista, esta visão encontra-se
na sua biografia escrita por São Gregório de Nissa, no século IV, com o nome de “Vida e
Panegírico de Gregório”:
Se diz que ele (Gregório Taumaturgo) ouviu o que tinha aparecido em
forma feminina exortando João Evangelista para explicar ao jovem o
mistério da fé. João por sua vez, declarou que ele estava completamente
disposto para agradar a Mãe do Senhor, mesmo nesta matéria, e esta foi a
coisa mais próxima de seu coração, e assim a discussão chegando ao fim,
e depois de terem deixado bem clara e precisa, para ele, os dois
desapareceu de sua vista7.
No ano de 370 d.C, Gregório de Nazianzeno relata uma aparição de Maria, este
convida os cristãos a venerá-la e a lhe dirigir preces, relatando o exemplo de Justina de
quem escreveu sua hagiografia. Justina foi uma mártir cartaginense que foi assassinada na
primeira década do século IV, durante as perseguições de Diocleciano. Gregório lembra
que Justina invocou a Santíssima Virgem para que lhe preservasse sua virgindade8.
Em outro relato, Gregório Nazianzeno confirma que os cristãos invocam
diretamente Maria na sua oração pessoal; ele dá o exemplo também de duas virgens, Justina
e Tecla, que encontrando-se em particular necessidade, suplicam a mãe do senhor que
venha em seu auxílio9. Este a proclama devotamente como “a Mãe do rei de todo o
Universo” e “Mãe Virgem (que) deu à luz o Rei de todo o mundo”10.
No século IV, o historiador Sozômeno relata que em Constantinopla, no tempo de
Gregório, uma divina potência distribuía graças aos doentes e necessitados em uma
pequena igreja; o historiador acrescenta que era convicção geral que se tratava da mãe do
senhor11.
6ROMAN, Ernesto. Aparições de Nossa Senhora. 1ª edição. São Paulo: Editora Paulus, 2001, p. 25.
7SÃO GREGÓRIO DE NISSA. Vida e Panegírico de Gregório. apud. DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore.
Dicionário de Mariologia. Tradução de Álvaro A. Cunha, Honório Dalbosco e Isabel F. L. Ferreira, 1ª edição.
São Paulo: Paulus, 1995, p. 359.
8GREGÓRIO DE NAZIANZENO. Oratio 21, 10s. apud. DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore, op. cit.,
p. 360.
9GREGÓRIO DE NAZIANZENO. Oratio 24, 11. apud. DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore, op. cit.,
p. 360.
10GREGÓRIO DE NAZIANZENO. Poemata Dogmática, XVIII, v. 58. apud. DE FIORES, Stefano e
MEO, Salvatore, op. cit., p. 361.
11SOZÔMENO. História Eclesiástica. 7,5. apud. DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore, op. cit., p.361.
As relíquias
Outra relíquia mariana cultuada na cidade era conhecida pelo nome de zona15. Esta
foi levada para Constantinopla segundo a tradição pelo imperador Arcádio, colocada na
igreja de Blacherne e posteriormente introduzida na Basílica de Santa Maria, do Mercado do
Cobre (Chalcoprateia) por iniciativa da Imperatriz Pulquéria, em 450 d.C16.
Além do Maphórion da Virgem e da Zona, encontravam-se outras relíquias referentes
a Maria na cidade de Constantinopla. Estas eram pinturas conhecidas pelo nome de ícone.
A imagem do ícone era a pessoa que ela representava, ou, pelo menos, a presença
ativa e realizadora de milagres daquela pessoa, assim como as relíquias dos santos também
eram. Para ser autêntico este ícone devia ter realizado algum milagre. Não importava se a
representação era bela; ela precisava ser a Correta.
Quando ocorre o surgimento dos primeiros ícones na transição entre a cultura
mais antiga e a Antiguidade Tardia, os ícones começaram a ser entendidos como a
manifestação de uma realidade superior, o instrumento de um poder sobrenatural.
A história do culto aos ícones começou com imagens milagrosas, que pareciam ser
capazes de transmitir privilégios sobrenaturais. O ícone era declarado autêntico através da
realização de milagres, a prova clássica de autenticidade. Segundo Hans Belting, “Só uma
pessoa ou um mistério” da fé pode ser venerado. A imagem deriva sua autoridade, no
primeiro caso, da aparência autêntica de uma pessoa sagrada e, no segundo, do correto
“tratamento na história da salvação”17
Dentro do Império Bizantino uma nova e decisiva fase do culto e das intervenções
creditadas a Mãe de Jesus começou quando a capital e o Império, precisaram de seu apoio
na época de guerras contra os ávaros e os persas e, finalmente, contra o Islã. A esperança
por auxílio divino foi direcionada a Maria, que atuava também como símbolo de unidade
da população do Império. Essa época, começou com a morte de Justiniano, em 565, e
alcançou seu primeiro clímax com o cerco da cidade por ávaros e persas em 626.
Em 626, quando Constantinopla fora sitiada pelos persas e ávaros, o povo da
cidade voltou-se para pedir proteção a Virgem e o Patriarca mandou pintar a imagem dela
nos portões da cidade como um ato de desafio aos pretensos conquistadores.
Em virtude do grande desespero e iminente invasão dos persas a Constantinopla, o
patriarca Sérgio convocou todos os sitiados para pedir juntos a ajuda da Virgem. Aconteceu
15Espécie
de cinto, faixa peitoral.
16DE FIORES, Stefano e MEO, Salvatore, op. cit., p. 1202.
17BELTING, Hans. Semelhança e Presença. Tradução Gisah Vasconcelos, 1ª edição. Rio de Janeiro: ARS
que no 11º dia do assédio, segundo as narrativas, foi vista uma bela senhora, acompanhada
de duas aias, saindo de uma Igreja para ir ao campo dos persas. O povo julgou que fosse a
imperatriz que tivesse ido levar alguma mensagem ao chefe das forças inimigas. Mas a
imperatriz continuava dentro da cidade e aquela senhora saiu e não mais retornou à cidade.
Desapareceu. Logo depois, no campo persa houve tamanha confusão que os persas
obrigaram a interromper o assédio. Os cristãos atribuíram isso à intervenção da Mãe de
Deus18.
A subida ao trono do Imperador Heráclio, foi atribuída por este à especial ajuda de
Maria. Aqui segue um relato sobre o acontecido, segundo o poeta Jorge, o Pisidiano, um
contemporâneo:
Em seu poema sobre o imperador Heráclio, o poeta também menciona
um ícone da Virgem com o qual o imperador conquistou seu trono em
610, derrubando seu antecessor Focas ao retornar da África para
Constantinopla.
Não o derrotaste pela astúcia, assim como fez Perseu [contra Medusa,
mas opuseste contra esse espoliador de virgens a imponente figura
[phrikton eidos] da Virgem imaculada [achrantou Parthenou]. Tiveste a
imagem como tua ajudante [autes ... tem boethon eikona] quando
derrubaste a fera selvagem [o tirano].19
O poeta deixou-nos também um relato sobre a guerra dos ávaros (626) e como a
imagem da Virgem foi decisiva na luta dos bizantinos contra estes inimigos:
O poeta dedica seu poema (Bellum Avaricum) sobre a libertação da capital
do cerco dos ávaros e persas, em 626, não ao imperador, que se encontra
distante em uma guerra, mas à Mãe de Deus, a quem considera a
verdadeira vencedora, e ao patriarca Sérgio, (610-38), que atuou como
representante do imperador. Ele se dirige a ambos em discurso direto.
Tu, por quem nenhuma alma se perde, e que diariamente geras filhos de
nosso Deus enquanto permaneces virgem e és mãe...salve, general de
nossa ativa vigília noturna. Com coração disposto, te puseste e falaste
sem palavras, de forma que tua firmeza derrubou o inimigo. Salve, líder
de nosso exército, tu que lutaste com lágrimas [como armas] quanto mais
[Daí o poeta canta o louvor do patriarca, que teve a Virgem ao seu lado e
conseguiu resultado dos eventos que lhe previra (proistorei, 11.226-270).]
Quando a batalha alcançou o resultado desejado por Deus [krisin
theographon], mais uma vez agiste. Pois não foi à toa que te tornaste o
porta-voz do povo. Exigiste falar, correste para a muralha da cidade, e
firmemente mostraste a eles [os ávaros] a imagem imponente da pintura
não pintada [to phrikton eidos tes grafes tes agraphou].
Pode-se dizer que nisso foras mais esperto que o juiz [krites, ou Deus],
mostrando ao inimigo seu olhar paralisante [antiprosopon]. Visto que,
como sabes, uma criança naturalmente sente mais compaixão por sua
mãe que por qualquer outra pessoa, procuraste as boas graças da mãe do
juiz por meio de lamentações, súplicas, lágrimas, jejuns e generosas
doações. Assim, conveceste-a primeiro, e em seguida ela rapidamente
convenceu seu filho e anunciou a vitória [nikosan krisin], quase antes de o
veredito [dikes] ser pronunciado.
Desde quando Heráclio entrou no poder derrotando Focas, com ajuda do Patriarca
Sérgio e da facção verde, as dificuldades enfrentadas por este foram inúmeras, o Imperador
lutou contra os sassânidas, que conquistaram Jerusalém em 609 d.C e Alexandria em 618
d.C e já nessa época essas guerras eram tratadas como religiosa.
Em 717 os sarracenos armam um cerco à capital, mas são obrigados a levantá-lo
graças a uma misteriosa intervenção que São Germano de Constantinopla atribui à Santa
Virgem, depois que seu ícone, a Hodigítria, tinha sido carregado em procissão solene. A
linguagem do Padre da Igreja é do tipo bélico agressiva: segundo este a Virgem abate os
invasores, toma-os pelos cabelos e joga-os por terra.
Ao longo de todo este tempo de batalhas e invasões em Constantinopla o que pode
ser percebido foi a solidariedade do patriarca e do povo à figura do Imperador através de
um apelo à lealdade à Theotókos21 e a crença na vitória através de sua mediação.
Considerações finais
Percebemos por meio de nosso estudo que a crença nas aparições e intervenções da
Mãe de Jesus vão aumentando ao longo dos séculos pelos cristãos, porém não surgem de
uma igreja cristã específica ou devido a alguma intervenção do império, mas sim da tradição
e da crença popular do poder da intermediação de Maria pelos cristãos.
As aparições continuaram nas Igrejas tanto de rito ocidental quanto de rito oriental
até os nossos dias, através de modalidades bem diferentes.
Bibliografia
Resumo
terras indígenas na capitania do Siará grande a partir da segunda metade do XVII , vai se
realizar a partir desses investimentos, efetivados por uma parcela da burocracia luso-
pernambucana que buscava nas novas terras honrarias e cargos 3.
O sucesso português pelas terras frente aos outros conquistadores, sobretudo
holandeses trouxe consequências para todas as capitanias, principalmente quando se
relaciona com a crise econômica provocada pela queda do açúcar e a disputa de famílias
pelo poder local dos territórios anteriormente ocupados pelos neerlandeses, como seguiu
Pernambuco4. Apartada a ameaça externa, a necessidade de dilatação de fronteiras agrárias
para o sertão, tencionando a recuperação da indústria de exportação do açúcar a partir,
também, da de mão de obra, no caso a indígena, e a busca de pontos de produção para
abastecimento interno corresponde em uma primeira parte do movimento de conquista 5.
Para além da conquista por portugueses, a atenção dada por invasores estrangeiros
(franceses, ingleses e holandeses) em também conquistar aquele sertão até então incógnito,
arrastava a “população excedente” de Pernambuco sedenta por novas terras e por novas
oportunidades formaram importantes coeficientes no processo de conquista dos Sertões do
Norte 6.
Os serviços nobres prestados ao rei nesse processo de ocupação na troca dos
serviços por promessa de honras e mercês contribuíram para os arranjos sociais, jurídicos e
econômicos gerados na capitania do Ceará. As trocas de favores e os investimentos desses
particulares mostram-nos o atrelamento e dependência da monarquia portuguesa às
famílias instaladas nas capitanias do norte, que anteciparam a assistência do próprio Estado.
Eram os serviços da conquista contra a invasão de inimigos e o castigo as tribos insurgidas
ou apartadas. Assim, como declara Pedro Puntoni7, os “poderes públicos não tinham
condições de realizar de maneira eficiente o controle e defesa do território diante dos
inimigos ‘internos’”, recrutados entre os moradores já presentes.
Os cenários dos sertões, alimentados pela cobiça e manchados com o pigmento do
sangue indígena, tinha, em sua população, o desejo de dividir entre as famílias dos
3Idem.
4MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
5ROLIM, Leonardo Cândido. Tempo das carnes do Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes
da Vila de Santa Cruz do Aracati. (c.1690-1802). 2012. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
6Idem.
7PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militares na expansão da fronteira da
América portuguesa (1550-1700). In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrick. Nova
História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 43-44.
8AHU_CU_006, Cx. 3, D. 183. Representação dos moradores da capitania do Ceará Grande ao rei [D. João
V], em que pedem um ministro para tombamento das terras da capitania.
9Idem.
10OLIVEIRA, Almir Leal de. A Dimensão Atlântica da Empresa Comercial do Charque. In: Encontro
Nordestino de História Colonial., 1., João Pessoa. Anais. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba,
2006.
11THÉBERGE, Pedro. Esboço histórico sobre a província do Ceará. Tomo I. Edição fac-sim. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001, p.131.
121738, Abril, 20, Fortaleza. CARTA do desembargador Antônio Marques Cardoso, ao rei [D. João V], dando
conta das sindicâncias feitas no Ceará e recomendando a prisão dos culpados das famílias dos Feitosas e dos
Montes. AHU_CU_006, Caixa: 3, documento: 190.f.3
13KOSTER, H.. Viagens ao Nordeste do Brasil. 12. ed. Rio de Janeiro: ABC, 2003 [1816], p. 177.
14VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780- 1850).
Fortaleza: Demócrito Rocha: Hucitec, 2004, p.209.
15Idem.
papel importante. Ao contrário do parentesco consanguíneo, o apadrinhamento ritual é fruto de uma escolha.
Tratava-se de um vínculo especial que abria caminhos para grupos sociais mais empobrecidos, ou seja,
elegiam-se parentes pertencentes a grupos superiores da sociedade.
19 NOGUEIRA, Op. cit.
20 Para Kalina Vanderlei Silva em Nas Solidões Vastas e Assustadoras, é preciso diferenciar o “pobre” do
“vadio”. Ambos foram recrutados pela coroa, mas possuíam condições sociais distintas. O vadio podia ser
comparado mesmo a um criminoso – ainda que pudesse reafirmar o modelo ideal daquela sociedade
barroca onde o trabalho era visto como algo impuro. Em oposição, o pobre, apesar de produtivo, por isso,
corrompia esse ideal.
atividade com as reses, podia ser considerada uma válvula de escape para esses diversos
sujeitos sociais.
Com a ameaça dessas fronteiras, uma medida que visava garantir a conquista da
terra e a implementação do poder régio para o controle das querelas e das injustiças que
surgissem naqueles sertões, foi a criação de vilas. Ao tratar sobre o assunto, Nogueira
21 9 fev. 1737. Bando para que nenhum homem dos poderosos da capitania recolha vagabundos em sua casa.
In: MARTINS, op. cit., 2013.
(2010) apresenta contextos e motivações das criações de vilas ao longo do século XVIII
com esse objetivo, como Aquiraz (1700), Fortaleza (1726) e Icó (1738). É pertinente
lembrar que a vila de Icó correspondia a uma área ativa economicamente falando nos
sertões da ribeira do Jaguaribe. À medida que os caminhos eram aproveitados pelo fluxo
grande de pessoas, iam nascendo as estradas, que eram ateadas pelo fluxo constante de
viajantes e comerciantes. Para chegar à vila de Icó, havia a estrada do Jaguaribe. Essa
estrada partia de Aracati, principal porto da Capitania, “descia o rio Jaguaribe, passava em
Russas e Icó e seguindo o rio Salgado ultrapassava a chapada do Araripe para alcançar os
sertões do Pernambuco em direção à Bahia” 22.
Em um viés mais econômico, são criadas outras vilas, como a de Santa Cruz do
Aracati, em 1748. Teve como justificativa a criação de um local para “o controle das
atividades econômicas desenvolvidas na localidade, na produção e comercialização de
carnes- secas e couro que se fazia na localidade do porto dos barcos, próxima à foz do rio
Jaguaribe” 23.
Segundo Vieira Jr., “a formação de vilas se impunha como solução para o combate
à dispersão” e consistir em “uma tentativa de organizar o crescimento da população”24.
Elevar freguesias em vilas e fixar residências tornou-se uma medida importante para o
controle do deslocamento das famílias sertanejas, além de favorecer a agricultura e
aumentar o poder de fiscalização das autoridades administrativas25. No ano de 1767,
Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, capitão-mor da capitania do Ceará, em
cumprimento a uma ordem do governador de Pernambuco, manda um bando para ser lido
naquele sertão. Nele, pronuncia-se a carta régia de 22 de julho de 1766 acerca da
aglutinação de “vadios e vagabundos” em povoados civis. Nessa carta régia de Dom José I,
in verbis, que:
Sendome prezente em muitas emuito repetidas queixas osCrueis,
eatrozes insultos que nos certões desa Capitania tem Cometido os
vadios, e facinorozos que neles vivem, como feras separadas da
Sociedade Civil e Comersio ûmano: Sou servido ordenar que todos os
omens que nosditos Certões seacharem vagamundos, ouem vicios
volantes sejam todos obrigados aescolherem lugares acomodados para
viverem juntos em Povoacoes Civis, que pelo menos tenhaõ desincoenta
fogos para sima, com Juis Ordinario vereadores, eProcurador
22 JUCÁ NETO, Clóvis R.. Primórdios da Urbanização no Ceará. Fortaleza: UFC, Banco do Nordeste, 2012.
23 Idem.
24 VIEIRA JR, Op. Cit., p. 54.
25 Idem.
Outro processo apontado pelo autor da elevação para vilas estava no processo de
transformação dos indígenas aldeados em vassalos d‘El Rey. No campo administrativo, as
aldeias foram elevadas a vilas, mesmo sem as necessárias condições populacionais ou
comerciais, surgindo o cargo de diretor em subtituição da administração dos missionários.
Essa nova autoridade devia garantir a boa convivência, a prática dos “bons costumes” e da
moral e, não menos importante, o incentivo ao trabalho e ao comércio dos indígenas 27.
Assim, as aldeias indígenas foram elevadas a vilas dos índios, surgindo a Vila Viçosa Real
(1759), Soure e Arronches (1759), Paupina (1760) Monte Mor o Novo da América (1759) e
Vila Real do Crato (1764).
Por fim, Nogueira (2010) estabelece o grupo das vilas que surgiram para o controle
da população volante, pautadas na ordem régia de 1766, já citada logo acima. Pautadas
nesse documento, tornaram-se vilas o povoado da Caiçara, passou a ser Sobral (1773), de
onde casou Antônio da Costa, Campo Maior de Santo Antonio de Quixeramobim (1789),
São João de Príncipe (1802) e São Bernardo do Governador (1802), a vila de Granja (1776)
e a vila Nova d‘el Rey (1791). As funções comerciais urbanas também se diversificaram, ao
passo que vilas e povoados do sertão apareciam, principalmente na segunda metade do
século XVIII, para além do comércio de carne, que era importante. O povoado da Caiçara,
por exemplo, onde Francisco Barbosa encontrar-se-á, já era região conhecida pelo
comércio das carnes secas, couro e solas, vendidas para outras capitanias, principalmente
para Pernambuco28.
Mas nas vilas e povoados como a Caiçara apareciam os pequenos comerciantes,
marchantes, taverneiros, caixeiros, mercadores a retalho e mascates ambulantes, que
conviviam lado a lado com pequenos grupos de grandes negociantes29. Isso acabou
articulando as zonas açucareiras e mineiras com os sertões, possibilitando contatos,
mobilidades e conexões socioeconômicas e culturais. Rakel Galdino em Mulheres escravas e
26 19 maio 1767. Bando para publicação da carta régia de 22 de julho de 1766 sobre a congregação de vadios e
vagabundos em povoações civis. In: MARTINS, Cínthya da Silva. Ao rufar das caixas, leia-se o bando: estudo
diacrônico da tradição discursiva bando no Ceará (1670- 1832). 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística
Aplicada) – Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza,
2013.
27 Idem.
28 GIRÃO, Valdelice Carneiro. As charqueadas. In: SOUZA, Simone de (Org.) História do Ceará. Fortaleza,
Universidade Federal do Ceará. Fundação Demócrito Rocha. Stylus Comunicações, 1989, p.113.
29 VIEIRA JR., Op. Cit.
forras na Ribeira do Acaraú observa que a vila de Sobral, a antiga povoação da Caiçara, partiu
do processo de crescimento econômico e demográfico após a ocorrência frequente de
feiras e a oferta maior dos serviços especializados nesse período. Grande parte desses
lugares estava conectada pela circulação de pessoas que podiam comercializar gêneros
alimentícios, em vendas com portas abertas, ou ofertadas publicamente e de mercadorias.
Outra região que teve contato não só de comerciantes, mas também pela ganância
portuguesa pela exploração de minérios foi os Cariris Novos. O interessante pela região
dava-se pelas tentativas de exploração aurífera, que chamavam a atenção desde 1719,
quando foram descobertas, mas a descoberta não foi recebida com tanto ânimo pela Coroa,
com temor de prejudicar as lavouras de açúcar. Passaram-se trinta anos para que a
exploração mineradora ganhasse mais fulgor nos Cariris Novos, mas, mesmo assim, não
prosperou, sendo essa exploração encetada em 1750 e findada, oficialmente, por ordem da
Coroa, em 1759. Contudo, os engenhos de açúcar e de rapadura, além de uma agricultura
de subsistência que se cultivava pela fartura de água da região, a estrada que promovia os
contatos diretos com Pernambuco e Bahia ocorria através de uma estrada que atravessava a
Chapada do Arararipe e alcançava o Rio São Francisco, pontos importantes para os
migrantes que aqui chegaram 30 .
Por meio deste artigo compreendemos, portanto, o processo de formação das vilas
do Ceará grande, que se deu por conta não apenas da economia, mas pela dinâmica social
e cultural da região. A partir disso, pudemos concluir que a pecuária, o comércio, mas
também os conflitos entre famílias, a busca de status e o intenso comércio foram
responsáveis pela formação social do que se entendeu como sertões do Ceará. Nesse
sentido, foi possível compreender a organização e formação do espaço, bem como
compreender as características de ocupação de cada uma das vilas que irão se destacar ao
longo dos séculos XVII e XVIII.
Bibliografia
30 Idem.
Resumo
O presente trabalho visa analisar a importância dos casamentos para a Casa de Lavradio.
Para tal, será analisado um dos casos de uniões dessa casa, durante o ano de 1774. É fulcral
salientar que nesse momento, seu representante, o 2º marquês do Lavradio, D. Luís de
Almeida Portugal, encontrava-se apartado da corte por ocupar cargos no serviço colonial.
Busca-se demonstrar a importância da relação entre o marquês do Lavradio e o secretário
de Estado, Sebastião de Carvalho e Melo, 1º conde de Oeiras e 1º marquês de Pombal,
além de se apresentar as mudanças na legislação matrimonial do chamado “período
pombalino”.
Introdução
1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista CAPES. E-mail:
carol.cardoso@ufrj.br
2 http://www.arqnet.pt/dicionario/lavradio1m.html <acesso em 12/07/2020>
3 Segundo Cunha e Monteiro não há registro de títulos como barão, visconde, conde, marquês ou duque
serem vendidos durante o Antigo Regime português in: CUNHA, Mafalda Soares da (ed.). Redes Sociais e
decisão política no recrutamento dos governantes das conquistas, 1580-1640. In: FRAGOSO, João;
GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos
xvi-xviii. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 117-154.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
D. Joana Antónia de Lima. D. Antônio de Almeida foi feito conde do Lavradio pela carta
patente em 12 de janeiro de 1714 por conta dos serviços realizados por seu tio, D. Tomás
de Almeida, 1º patriarca de Lisboa.
Em 1726, o então conde do Lavradio casou-se com D. Francisca das Chagas
Mascarenhas e dessa união nasceram cinco filhos, com dois falecendo na infância4. D.
Antônio serviu ao rei, D. João V em alguns postos como capitão de infantaria e depois
coronel do regimento de Elvas. Em 1749, foi nomeado como governador de Angola. Em
1753, foi feito então 1º marquês do Lavradio como forma de recompensa a seus serviços.
Retornou a Portugal em 17545.
O 1º marquês regressou após seu período na África a um novo rei. Em 1750, subia
ao trono D. José I, um monarca que durante seu reinado (1750-1777) teve que lidar com
diversos problemas. A perda do prestígio econômico de Lisboa e Madrid frente a reinos
como França, Inglaterra e Países Baixos forçavam uma mudança para Portugal e Espanha
em termos estruturais. Nesse contexto, “a decadência forçaria os governantes a adotarem
medidas de modernização, elementos esses que dependiam da eficiência governativa e da
consolidação do Império para a manutenção da importância e influência de Portugal.6”
É também possível lembrar-se do reinado de D. José I por uma tragédia como o
terremoto de Lisboa em 1º de novembro de 1755, que deixou milhares de mortos e
destruiu grande parte da cidade ou até mesmo pela tentativa de atentado que sofreu a
Majestade em 1758. Todos os eventos citados tiveram suas consequências administradas
por duas grandes figuras da época: o próprio rei e seu secretário de Estado, Sebastião José
de Carvalho e Melo, 1º conde de Oeiras e marquês de Pombal (1699-1782) que foi
considerado por muitos como “o rei não coroado de Portugal”.7 Tal fato se deu por sua
indicação ao cargo de secretário de Estado e por seu notável poder na política lusa.
O marquês de Pombal tinha grandes laços com a Casa de Lavradio. Ele influenciou
a nomeação de alguns de seus membros para diferentes cargos. A primeira interferência a
favor dos Lavradio feita por Sebastião de Carvalho e Melo foi a indicação de D. Antônio
4 Uma vez que para a época a quantidade de filhos por casal era maior, destaca-se que D. Francisca faleceu
pouco tempo após se casar, em 1733, devido a complicações enfrentadas em seu último parto.
5 https://inventarq.fcsh.unl.pt/index.php/portugal-antonio-de-almeida-soares-1699-1760 <acesso em
12/07/2020>
6 FERRO, Carolina Chaves. Terremoto em Lisboa, tremor na Bahia: um protesto contra o donativo para a
reconstrução de lisboa. 2009. 200 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História Social, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-
2009_Carolina_Chaves_Ferro-S.pdf. Acesso em: 08 jul. 2020
7 ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the Marquis of
de Almeida para o cargo de vice-rei do Brasil, em 1760 que foi aceita pelo rei, D. José I.
Portanto, a Casa permanecia com muito prestígio mesmo em diferentes reinados, apesar
das diversas mudanças implementadas por Sebastião de Carvalho na administração e na
política lusa.
Retomando a D. Antônio de Almeida, o 1º marquês do Lavradio, ele já estava
gravemente doente antes de sua partida de Lisboa para exercer o cargo de vice-rei do Brasil
segundo os registros consultados. O marquês faleceu seis meses após a chegada ao
território da Bahia, sede do vice-reinado, devido a um grande tumor nos pulmões que tinha
metástase para o fígado. Após sua morte, ocorreram elogios fúnebres no convento de São
Francisco, em Lisboa8. Posteriormente, a Casa e os títulos passaram a pertencer a D. Luís
de Almeida Portugal Soares de Alarcão d'Eça e Melo Silva Mascarenhas, 5º conde de
Avintes e 2º marquês do Lavradio, filho legítimo do primeiro e que à época da morte de
seu pai tinha 31 anos9.
Nascido em 1729, D. Luís de Almeida Portugal morreu em 1790, aos 61 anos. Ele
contou com uma educação tradicional para um aristocrata em meados do século XVIII.
Aos 10 ou 12 anos10, sentou-se na praça no regimento de infantaria de Elvas. É relatado
que fazia vários serviços de soldado, apesar de ainda ser criança11. Em 1746, aos 17 anos foi
armado cavaleiro por seu tio materno, o 3º marquês de Gouveia e último duque d’Aveiro,
D. José de Mascarenhas. Luís de Almeida também recebeu sua primeira patente militar, se
tornando capitão e foi elevado a 4º conde de Avintes, podendo acrescentar Dom ao seu
nome.12 Por volta de seus 20 anos, em 1749, D. Luís de Almeida, foi enviado para visitar as
cortes de Madrid e Paris, nas quais especula-se que tenha estudado algumas inovações de
guerra e conhecimentos específicos de fortificações. A autora Adriana Angelita da
Conceição salienta que há poucas informações sobre o período em que jovem conde do
8https://pt.qwe.wiki/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Almeida_Soares_de_Portugal,_1st_Marquess_of_Lavradio
<Acesso em 12/07/2020>
9 A partir desse momento, onde já faleceu o 1º marquês, deve-se presumir por “marquês” ou “marquês do
Lavradio” como o 2º, D. Luís de Almeida Portugal. Ao se tratar do 1º, D. António de Almeida, se
especificará.
10 Não se há consenso, nas fontes consultadas, sobre a idade exata de D. Luís de Almeida Portugal nesse
momento.
11 LAVRADIO, José Maria do Espírito Santo et al. Vice-reinado de D. Luiz D’Almeida Portugal, 2º marquês de
marquês do Lavradio - sentir, escrever e governar (1768-1779). São Paulo: Alameda, 2013. p. 199.
Lavradio teria visitado essas cortes, mas que sua ida seria importante para complementar
seus estudos.13
Após seu retorno14, D. Luís de Almeida se casou com Dona Mariana Teresa Rita da
Cunha Silveira e Távora (1732 - 1814) em 1752. É válido salientar que a união entre a Casa
de Lavradio e os Távora não era algo novo, uma vez que há gerações existiam casamentos
entre essas duas famílias. Sua mãe, Francisca Mascarenhas de Chagas (1707-1733) era filha
de Martinho de Mascarenhas, 3º marquês de Gouveia e Inácia Rosa de Távora. Portanto,
ao contrair matrimônio com alguém da família Távora, Lavradio repetiu uma tradição
consolidada em sua ascendência. Desse casamento, se sucedeu uma extensiva prole,
contando com doze filhos no total. Dos doze, quatro morreram em terna idade, incluindo
um casal de gêmeos que faleceram aos dois anos de idade.15 Neste artigo, o foco será
centralizado em apenas um matrimônio: o de Ana Teresa de Almeida (1761-??)16 com
Francisco de Meneses da Silveira e Castro (1754-1834).
Retomando a D. Luís de Almeida, em 1766, seis anos após a morte de seu pai,
Lavradio recebeu o título de Marquês do Lavradio além dos bens da Coroa e Ordens que
possuiu seu pai17. Em 1767, D. Luís de Almeida foi considerado por D. José I para ser aio
de seu neto homônimo, o príncipe D. José. Contudo, o rei foi demovido da ideia pelo
marquês de Pombal que atestou a grande desordem em que se encontrava o governo da
capitania da Bahia e afirmou ao monarca que alguém com as qualidades de Lavradio era
exatamente o que se precisava na administração daquela capitania18
É importante relembrar que ao sair de Lisboa, nenhum dos filhos de D. Luís de
Almeida se encontrava casado. Desta maneira, caberia ao marquês de Lavradio o grande
desafio de negociar e consolidar essas uniões apartado da corte. É importante salientar que
para tal, ele contou com ampla colaboração de seu tio, D. Tomás de Almeida que era
principal da catedral de Lisboa à época (ele também ficou conhecido como Principal de
Almeida). Além de sua esposa, D. Mariana de Távora, a marquesa do Lavradio. Houve
também influência do Secretário de Estado, marquês de Pombal, que influenciava na
13 Idem.
14 Não foi possível confirmar a data de retorno exata de D. Luís de Almeida à Portugal.
15 SOUZA, Laura de Mello e (comp.). A vida privada dos governadores na América Portuguesa no século XVIII. In:
MATTOSO, José (org.). História da vida privada em Portugal: idade moderna. Lisboa: Temas e Debates e Círculo
de Leitores, 2011. p. 305.
16 É importante salientar que informações biográficas acerca de datas de nascimento/morte sobre os Lavradio
escolha dos genros e na “aprovação” dos matrimônios, fato que foi exposto em diversas
correspondências entre Lavradio e o marquês de Pombal. No caso específico que concerne
este trabalho, o matrimônio de de Ana Maria de Almeida, ocorreu em 1775, alguns anos
após o marquês ser elevado ao posto de vice-rei do Brasil, em 1769.
Segundo Jorge Alves, “no Antigo Regime, casar-se é, antes de mais, fundar um
<casal>, unidade não apenas afetiva e biológica, mas, sobretudo, económica e social”.19
Em adendo a essa concepção, pode-se citar o trabalho de Antônio Gomes Ferreira, que
aborda alguns moralistas que, do século XVI ao XVIII, escreveram sobre o casamento em
Portugal. Nenhum deles se refere como ao amor como uma causa primeira e necessária a
consolidação de um casamento.20
A autora Mafalda Soares da Cunha aponta ainda que as alianças matrimoniais no
Antigo Regime são realizadas por representarem algo atrativo a determinado grupo
familiar. Assim sendo, se procuram determinados atributos sociais, econômicos e
relacionais ou simbólicos que levam a concretização dessas uniões21. A procura de tais
atributos levou a uma enorme homogamia matrimonial realizada pela nobre titulada lusa.
De acordo com um levantamento de dados realizado por Nuno Gonçalo Monteiro:
“Tanto os sucessores como as filhas casaram-se, até finais do século
XVIII, em mais de 95% dos casos, dentro da primeira nobreza de corte,
maioritariamente titulada. Essa opção era fundamental para preservar a
identidade social do grupo, contribuindo para garantir o monopólio dos
principais ofícios da monarquia e da respectiva remuneração em doações
régias. Aliás, foi essa lógica que determinou que se preferisse encaminhar
para o clero os secundogênitos e arte das filhas à alternativa de os casar
<abaixo de sua condição>, eventualmente sem dote e sem despesas de
maior”.22
19 PEREIRA, Gaspar Martins; ALVES, Jorge Fernandes. Comportamentos nupciais na Terra da Maia em fins do
Antigo Regime. Cadernos de Ciências Sociais, nº8/9, p. 31. 1990.
20 FERREIRA, António. O perigo do amor-argumentos sobre a fundamentação das relações sócio-afectivas na familia
portuguesa do Antigo regime. 1995.
21 CUNHA, Mafalda Soares da (ed.). Redes Sociais e decisão política no recrutamento dos governantes das conquistas,
1580-1640. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Na Trama das Redes: política e negócios no
império português, séculos xvi-xviii. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 117-154.
22 Monteiro, 2010, op.cit., p.139
regiam o matrimônio no Antigo Regime português? Ademais, qual era o papel da Igreja
Católica para legitimar as uniões matrimoniais considerando que, no recorte temporal
apresentado, a sociedade lusa era extremamente católica?
Em um artigo elaborado por Antonio Manuel Hespanha, é possível encontrar
respostas para os importantes questionamentos expostos acima. Segundo o autor, era
preciso existir a coesão entre dois pontos fundamentais para o matrimônio ser realizado em
Portugal durante o Antigo Regime: o primeiro era o consentimento entre os noivos,
buscando assim acabar com uniões forçadas. Esse fator buscava consolidar enlaces
baseados em:
“um consentimento verdadeiro, e não fictício, livre de coação e de erro e
manifestado por sinais externos, requisitos com os quais se pretendia por
freio tanto às pretensões das famílias de se substituírem aos filhos na
escolha dos seus companheiros como às tentativas dos filhos de
escaparem a estes constrangimentos casando-se secretamente”.23
23 HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos
da família na época moderna. Análise social, v. 28, n. 123/124, p. 952. 1993.
24 Idem, p.960
1, p. 403-14, 1984.
Para a realização desse enlace, com o vice-rei (e pai) apartado por tão longínqua
distância, D. Luís de Almeida precisou contar com o apoio de outros. No caso da união de
Ana com Francisco de Meneses, alguns fatores são de grande relevância para se observar
uniões aristocráticas.
O primeiro é a importância da concordância do marquês de Pombal a união.
Fabiano Vilaça dos Santos pontua que o secretário de Estado e o vice-rei compartilhavam
uma relação de compadrio e que esta “tinha finalidade muito semelhante à do casamento:
estreitar relações, capitalizar ganhos políticos, reafirmar antigos laços de amizade, do tipo
das "amizades" desiguais, que envolviam indivíduos de status social ou posição
política distintos”.28 Em cartas enviadas ao marquês de Pombal que tratavam sobre os
casamentos de seus filhos, D. Luís de Almeida reforça sempre as uniões só serão
confirmadas com o consentimento e a aprovação de Pombal.
O segundo ponto é a falta de titulação da família. O noivo, apesar de seu pai, D.
José de Meneses e Távora da Silveira e Castro, ser senhor da Patameira e do morgado de
Caprica, não possuía títulos. Essa é uma grande diferença em relação ao casamento de
outras filhas e do filho primogênito do marquês do Lavradio que se casaram com famílias
que pertenciam aos “Grandes” de Portugal e ainda se incluíam no círculo “puritano”.
Contudo, pode-se suspeitar que o casamento com Ana Teresa favoreceu os Silveira e
Castro, pois D. Francisco foi feito 1º conde de Caprica em 1783 e 1º marquês de Valada
em 1813.
As comemorações do casamento, mostram a consonância com as novas leis do
reino. O número de padrinhos foi limitado e a noiva entregou “quatro mil cruzados em
roupa do seu enxoval”29. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva “mas agora a supressão do
dote era total: o fidalgo que tivesse filhas para casar só lhes poderia dar um “enxoval de
roupa branca” e este não podia custar mais de quatro mil cruzados. Nada mais receberia a
noiva”30.
Diferentemente de outros casamentos das filhas de Lavradio, não se encontrou
expressiva correspondência com o genro ou sobre o evento. Na única carta localizada
enviada ao pai do noivo, o s.r. Dom José de Meneses e Castro em 1º de março de 1775, D.
28 SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o exemplo da Casa de
Lavradio. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 48, p. 301-329, 2004.
29 Documento disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7770861 <Acesso em 22/10/2020>
30 Silva, op.cit., p. 407
Luís de Almeida apenas afirma que “vê grande satisfação em renovar a aliança com esta
Casa.31”
Portanto, pode-se afirmar que o casamento era um momento de grande
importância para as Casas aristocráticas e mesmo que seu representante estivesse apartado
pela distância (como foi o caso do 2º marquês do Lavradio) ainda assim ele deveria garantir
boas uniões aos seus. No Antigo Regime, essas uniões poderiam se mostrar valiosas devido
a possibilidade de maior engrandecimento de sua Casa por conta do prestígio social
presente nas uniões. Esse prestígio, que estava muito ligado à herança e ao peso da Casa
escolhida para o matrimônio, poderia ser futuramente uma via de obtenção de cargos,
rendas, mercês e postos de serviço.
Bibliografia
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the
Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. University of California Press, 1968.
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Civilização Brasileira, 2010. p. 117-154.
___________________________. Redes Sociais e decisão política no recrutamento dos governantes
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donativo para a reconstrução de lisboa. 2009. 200 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
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Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.
HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
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PEREIRA, Gaspar Martins; ALVES, Jorge Fernandes. Comportamentos nupciais na Terra da
Maia em fins do Antigo Regime. Cadernos de Ciências Sociais, nº8/9, p. 31. 1990.
31DO LAVRADIO, Marquês. Cartas do Rio de Janeiro, 1769-1776. Ministério da Justiça, Arquivo
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SOUZA, Laura de Mello e (comp.). A vida privada dos governadores na América Portuguesa no
século XVIII. In: MATTOSO, José (org.). História da vida privada em Portugal: idade moderna.
Lisboa: Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2011.
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Mediações entre a fidalguia portuguesa e o Marquês de Pombal: o
exemplo da Casa de Lavradio. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 48, p. 301-329, 2004.
SILVA, MBN da. A legislação pombalina e a estrutura da família no Antigo Regime
português. Pombal Revisitado, v. 1, p. 403-14, 1984.
Anexo 01:
Caroline Coelho1
Resumo
Este trabalho tem por objetivo desenvolver algumas considerações, de forma sintética,
sobre a abordagem tradicional do Antigo Sistema Colonial e o surgimento de uma nova
historiografia, denominada de Antigo Regime nos Trópicos. Será apresentado, à luz dessas
novas abordagens, as suas mais influentes contribuições, bem como os pressupostos
teóricos que embasaram a pesquisa desse novo grupo de historiadores. Pretende-se, assim,
analisar e contrapor cada uma dessas correntes historiográficas, e, consequentemente,
traçar a implicâncias destas para a História, enquanto disciplina escolar. Desse modo, o
presente trabalho insta em desenvolver um debate que permita ampliar as bases de
conhecimento estabelecidas pela historiografia anterior, aos estudantes da Educação básica
brasileira e ressaltar o papel do professor nesse diálogo.
Introdução:
2 SÁ, Charles Nascimento de. Historiografia e ensino de história: música popular brasileira e o sentido da
colonização do Brasil. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 250-271, 2015, p. 251.
3 SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia dos primeiros tempos do brasil moderno. Tendências e desafios das
duas últimas décadas. História Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 175-216, jan./jun. 2009, p. 180.
4 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo Colônia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 8.
Ainda no início do século XX, outros grandes historiadores, como Sérgio Buarque
de Holanda7 e Gilberto Freyre8, traçaram suas perspectivas e interpretações sobre o Brasil
Colonial. Essa geração ficou conhecida como “geração de 30”, e por muito tempo suas
obras foram utilizadas para compor a Educação básica brasileira. A obra Casa Grande e
Senzala, publicada em dezembro de 1933 por Gilberto Freyre, retratou a formação da
sociedade, através da mestiçagem e a demonstração de uma certa harmonia entre as raças
que compõe a identidade nacional.9 Já Sergio Buarque de Holanda, com sua obra Raízes do
Brasil, tece considerações sobre o regime da exploração latifundiária adotado, na qual a
presença do negro teria sido fator obrigatório para o desenvolvimento dessa economia.10
Atualmente, entende-se que tanto Freyre quanto Sergio Buarque tiveram grande influência
das questões nacionalistas que pairavam no início do século XX, e por isso, ao tentar traçar
elementos de uma identidade nacional, também cunharam uma ideia falsa de “democracia
racial”.11
Algumas décadas depois, em 1973, Fernando Novais apresenta sua tese de
doutorado, chamada de Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), que
deu início a presente vertente interpretativa do Antigo Sistema Colonial. A formulação de
Novais desdobra em um aprofundamento da formulação de Caio Prado,12 e uma superação
da concepção de colonização exposta por este autor em sua obra Formação do Brasil
Contemporâneo, segundo a qual o "sentido da colonização" é construído a partir de um
capitalismo comercial e a exploração econômica do Brasil. De acordo com a historiadora
13 BICALHO, Maria Fernanda. Pacto colonial, autoridades negociadas e o império ultramarino português. In:
BICALHO, Maria; GOUVÊA, M. F., SOIHET, Rachel (Orgs.) Culturas políticas. Ensaios de história cultural,
história política e ensino de história. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 86.
14 As obras de Caio Prado Júnior que mais versam sobre o assunto são “História econômica do Brasil” e
17 SILVA, Rafael Ricarte da; CARVALHO, Reinaldo Forte. Entrevista com George Felix Cabral de Souza,
Professor Associado da Universidade Federal de Pernambuco. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 25, p. 149-
157, set.-dez. 2020, p. 152.
18 HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F. (Orgs) Antigo Regime no Trópicos, a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 165.
19 Ibid., p. 166.
20 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. 1. ed. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
21 FRAGOSO, João. Homens de Grossa Ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
mecanismos que viabilizassem seu governo, de modo que, fez-se necessário a adoção de
medidas descentralizadoras que atribuíam à elite colonial certas liberdades de atuação.22
A inexistência de um projeto único que representasse as ideologias de expansão, ou
um processo homogêneo de construção do Império, permitiram a formação plural do
direito e da administração do Reino.23 Segundo Isabele de Mello, a Coroa delegava ao
corpo de magistrados a administração da justiça aos seus súditos residentes no ultramar.24
Além disso, os oficiais de justiça tinham autonomia completa frente aos governadores, e,
suas decisões possuíam o mesmo valor das decisões reais, sendo também e irrevogáveis.
Nesse sentido, pela falta de hierarquia rígidas, e pela multiplicidade das relações
políticas, as regiões submetidas à Coroa portuguesa tinham a possibilidade de manter suas
regras jurídicas particulares, frente as gerais.25 Sobre essa ótica, percebe-se a formação de
um conceito novo a respeito da monarquia portuguesa, caracterizada como uma monarquia
pluricontinental, na qual o poder real partilhava espaço político com poderes maior ou
menor hierarquia.26
Segundo Nuno Gonçalo Monteiro,27 este período histórico foi marcado pelo
oferecimento de serviço pelos súditos e dos laços pessoais para a construção da
governabilidade. A política de mercês, por exemplo, não era fruto da liberalidade dos
monarcas, mas sim de um dever de retribuir os serviços prestados por seus vassalos. Os
serviços tornavam-se patrimonializáveis, e a partir deles, criava-se uma “economia da
graça”, que recompensava adequadamente os súditos de acordo com seus merecimentos e
qualidades.28 Todavia, cabe ainda ressaltar que essas mercês variavam de acordo com a
posição de cada indivíduo, determinando uma relação assimétrica de poder.29 Dessa forma,
administração colonial (séc. XVIII). Revista de História, São Paulo, n.171, p.351-381, 2014, p. 353.
25 HESPANHA, Op. Cit., p. 169 a 172.
26 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. António Manuel Hespanha, o Antigo Regime luso e a historiografia
brasileira: notas sobre um diálogo transatlântico. Topoi, Rio de Janeiro, v. 21, n. 43, p. 7-14, jan./abr. 2020, p.
11.
27 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os
vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João;
GOUVÊA, Maria F. (Orgs) O Antigo Regime nos trópicos, a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 280- 281.
28 BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e
a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, São Paulo, n.2, novembro 2005, p. 22.
29 MATTOSO, José (ed.) & HESPANHA, António M. (org.). História de Portugal. Lisboa: Círculo dos
30 FRAGOSO, João A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial. In:
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F. (Orgs) Antigo Regime no Trópicos, a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 44.
31 BICALHO, Op. Cit., p. 23.
32 FRAGOSO, Op. Cit p. 44.
33 BICALHO, Op. Cit., página 26.
34 FRAGOSO, Op. Cit., p. 43.
35 FRAGOSO, Op. Cit., p. 49.
essas conquistas das primeiras elites mercantis, que através da política de mercês,
adquiriram o prestígio local e a administração política do território, possibilitando a
interlocução do poder local com poder central e a governabilidade do Império.
Sendo assim, conclui-se, portanto, que o período em comento foi determinado por
um complexo sistema ultramarino, com uma economia multifacetada, um direito pluralista,
e uma base política marcada pela elite colonial, que contribuíram para a formação de uma
sociedade ampla e complexa.36 Os reflexos desses novos olhares e propostas determinaram
a formação de uma historiografia colonial que procura enxergar as peculiaridades desse
período, sem se limitar na relação centralizadora entre “centro” e “periferia” ou “colônia” e
“metrópole”.
Conclusão
36CAETANO, Antonio Filipe Pereira. O renascer de um debate: administração, poder e política colonial.
Topoi, Rio de Janeiro, v.10, n.18, jan./jun. 2009, p. 77.
possibilite dotar de sentido esse período histórico, e com isso, buscar um horizonte amplo
de reflexões para esta representação do passado. Não existe um modelo interpretativo
perfeito, e é da confrontação de ideias que se resulta o progresso na produção do saber em
qualquer disciplina. A recusa completa de uma proposta, e a sobreposição por outra,
considerada como “perfeita”, impossibilita o historiador de um diálogo inerente à sua
profissão.
Bibliografia
NOVAIS, Fernando. “Sobre Caio Prado Júnior”. In: Aproximações. Estudos de história e
historiografia. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 288-289.
NOVAIS, Fernando. “Entrevista”. In: Aproximações. Estudos de história e historiografia. 1. ed.
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PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo Colônia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 8.
SÁ, Charles Nascimento de. “Historiografia e ensino de história: música popular brasileira e
o sentido da colonização do Brasil”. Revista de Teoria da História, Goiânia: Universidade
Federal de Goiás, 2015, p. 251.
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. “António Manuel Hespanha, o Antigo Regime luso e
a historiografia brasileira: notas sobre um diálogo transatlântico”. Topoi. Rio de Janeiro,
2020, p. 11.
SANTOS, R. Caio Prado Jr. na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2001,
p. 20.
SCHWARTZ, Stuart B. “A historiografia dos primeiros tempos do brasil moderno.
Tendências e desafios das duas últimas décadas”. História: Questões & Debates, Curitiba:
Editora UFPR, 2009, p. 180.
SILVA, Rafael Ricarte da; CARVALHO, Reinaldo Forte. “Entrevista com George Felix
Cabral de Souza, Professor Associado da Universidade Federal de Pernambuco”. Revista
Maracanan, Rio de Janeiro: UERJ, 2020, p. 152.
Resumo
Na ascensão do Marques de Pombal ao poder, ocorreram importantes reflexos na colônia
do Brasil. A política Pombalina, possuía em si, uma forte influência da Ilustração,
principalmente no que se refere ao “Despotismo Esclarecido”, que rompeu com antigas
estruturas econômicas, consolidando sua base na mão de obra escrava negra em detrimento
da decadente atividade dependente da repartição e da força do trabalho indígena. Assim, as ações
do Marquês foram centradas na colônia através do Diretório Pombalino que estabelecia
uma política indigenista para a América. Esse trabalho pretende fazer uma breve reflexão
sobre o Diretório Pombalino e seus impactos no sul do Vale do Paraíba Fluminense, a
antiga região de Campo Alegre da Paraíba Nova, onde atualmente localiza-se o município
de Resende, habitada naquele momento, por várias etnias indígenas, principalmente a Puri.
Introdução
1 Doutor em História Política – UERJ. Vinculação institucional – UERJ/SME – Prefeitura de Resende – RJ.
E-mail: enioprof@gmail.com
2 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo. Edusp. 1999. p.24.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Sobre essa circunstância, Francisco José Calazans Falcon, em seu trabalho, não
deixa nenhuma dúvida de que o período Pombalino foi um movimento reformista, que
embora tenha empregado mecanismos conservadores, como as práticas econômicas
mercantis. Falcon classifica essa política de Pombal como projeto “tardio, mas ajustado à
defasagem da sociedade lusa, adequado ao instrumento reformador”3. Já para Ciro
Flamarion, o período Pombalino é identificado como um movimento que rompe com antigas
estruturas econômicas que, a partir de 1750, teve a configuração de um setor dominante pautado
na mão de obra escrava negra, diante de uma decadente atividade dependente da repartição e da
força do trabalho indígena4.
Não cabe buscar maior aprofundamento sobre todas as características da chamada
“Era Pombalina”, mas vamos nos ater nesse artigo, apenas a política indigenista de Pombal
para a então colônia luso-brasileira e o chamado Diretório Pombalino ao longo da segunda
metade do século XVIII, e seu impacto na colônia, especialmente na região de Campo
Alegre da Paraíba Nova, habitada, sobretudo, pela etnia Puri.
3 FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina: Política econômica e monárquica Ilustrada. São Paulo.
Editora Ática. 1982. p. 483.
4 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Economia e sociedade em áreas periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-
5 MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Os Índios na Ordem Imperial: Legislação Colonial Pós- Pombalina. Brasília.
FUNAI. 2005. p. 231.
6 Alvará de 7 de junho de 1755, mandando renovar a inteira observância da Lei de 12 de setembro de 1653,
em que os índios do Grão do Pará e Maranhão sejam governados no temporal pelos Governadores com a
inibição da administração dos regulares. Secretaria do Estado do Brasil, códice 80, documentos em armário e
mostruário, ARM 1, LIV. 6 folha 3 – Arquivo Nacional.
7 A data da Promulgação do Diretório observada nas fontes entra em desacordo com alguns autores, como
por exemplo: Ângela Domingues, cita a sua promulgação para o dia 6 de junho, já só cita o ano 1750. Porém,
a fonte encontrada no Arquivo Nacional é clara no que diz respeito à data da Promulgação da Carta (dia 7 de
Junho de 1755). MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Os Índios na Ordem Imperial: Legislação Colonial Pós-
Pombalina. Brasília. FUNAI. 2005. p. 233.
8 MOURA, Ana Maria da Silva. Fazendo Fronteira: A Experiência de Francisco Xavier Mendonça de Furtado na Grande
Colonial (século XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História Dos Índios no Brasil. São Paulo.
Companhia das Letras/FAPESP/SMC-PMSP, 2º edição. 2006. P. 115.
Podemos observar que, mesmo nos momentos em que a liberdade dos índios
estava em vigor, os colonos sempre conseguiam estratégias de burlar a legislação e tentar
levar o índio ao cativeiro, vide os bandeirantes paulistas que escravizaram e
comercializaram os índios soltos ou capturados nas reduções missionárias. Porém, mais
especificamente nas capitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e regiões mineiras, detectamos
o desenvolvimento de três categorias de índios: amigo e catequizado, também chamado de
manso, que vivia nas reduções e aldeamentos, e que, apesar de serem considerados livres,
estavam sujeitos ao trabalho compulsório; os escravos, que eram índios capturados para
trabalhar nas fazendas coloniais; e o “brabo ou bravo” que viviam nos sertões.
Não obstante, os colonizadores se esmeravam em desenvolver estratégias para
escravizar os índios, como a utilização da “guerra justa”10, mesmo a legislação prevendo o
seu caráter “defensivo” em grande parte da história colonial. Desse modo, os colonizadores
criavam estratégias para burlar as leis, nos momentos em que esta era favorável à liberdade
dos índios, isto é, quando só permitia a guerra de caráter “defensivo”11. Podemos afirmar
que muitas vezes as hostilidades eram provocadas pela agressividade dos próprios
colonizadores que, incitando os índios à violência, se beneficiavam com uma “guerra justa”,
que nada mais era do que uma forma de escravizar os índios com a finalidade de obter sua
mão de obra12 ou desocupar uma região da presença indesejável desses índios. A “guerra
justa” era, sem dúvida, o principal instrumento de reconhecimento da escravização legal e,
em certa medida, foi o principal fator que levou ao conflito em Campo Alegre e à formação
do Aldeamento de São Luiz Beltrão, no que é hoje o município de Resende no sul do Vale
do Paraíba Fluminense.
Segundo Perrone-Moisés, entre um dos fatores de justificava da “guerra justa”,
podemos assinalar a rejeição ao cristianismo pelos índios, levando os colonizadores a forçá-
los à conversão, tendo eles suas práticas culturais e religiosas “pagãs” e “infiéis” e,
sobretudo, a antropofagia – que não eram toleradas. Além disso, não aceitavam que os
índios cultuassem seus próprios deuses, fazendo assim que a fé cristã se tornasse um
elemento importante para impor a cultura “civilizatória” ao índio e a alegação mais que
10 HEMMING, John. Ouro Vermelho: A conquista dos índios brasileiros. Tradução de Eugênio Marcondes de
Moura. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.
11 Domingues salienta: “a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos luso-brasileiros e a queda de
pactos celebrados eram motivos a se considerar na declaração da justeza de uma Guerra”. DOMINGUES,
Ângela. Quando Os Índios Eram Vassalos, Colonização e Relação de Poder no Norte do Brasil Na Segunda Metade do
Século XVIII. Lisboa. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 2000. p.
28.
setecentos. Portanto, ter o controle sobre as populações indígenas passou a ser uma
questão de dominação colonial, mas também da soberania portuguesa, após um
complicado processo, os Jesuítas foram expulsos do Pará e do Rio Negro em junho de
1757 e, no ano seguinte, o Diretório Pombalino passou a ser estendida finalmente a toda
colônia brasileira15.
15A Carta Régia de 1758 estendeu a Lei das liberdades do Maranhão para todo o Brasil. “Restituindo os índios
de todas as aldeias desse estado à inteira liberdade de suas pessoas, bens e comércio (...)”. ALMEIDA, Maria
Regina Celestino. Metamorfose Indígena: Identidade e Cultural nas Aldeias Coloniais do Rio de Janeiro, administração das
aldeias. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional. 2001. 169.
16 ANRJ. Fonte Manuscrita. Carta de Simplício Fernando de Castro Vitorino ao Vice-Rei Conde de Resende.
Resende – 4º seção – 13º classe série I, 4º coleção, caixa 484 – pacote 2, 328 a 376. ANRJ
Os sertões de Campo Alegre, ocupados pelos “índios brabos” das etnias Puri,
Coroado e Coropó, possuía outra realidade em comparação com os índios do Norte do
Brasil na Província do Grão-Pará e Maranhão, visto que lá, na condição de vassalos do Rei,
se tornavam peças fundamentais na garantia da posse da terra da Coroa portuguesa,
principalmente nas áreas de fronteiras com terras da Espanha.
Na capitania do Rio de Janeiro, a situação era muito diferente: as questões estavam
ligadas principalmente à consideração de “fronteira aberta” em uma região
indiscutivelmente já portuguesa, isto significa uma presença muito mais constante que em
regiões mais afastadas. O índio nessa região era visto como um obstáculo à expansão da
ocupação luso-brasileira. Dessa forma, os conflitos entre os chamados gentios e os colonos
traziam as características do tradicional processo colonizador. O que podemos concluir é
que os conflitos não cessavam em Campo Alegre. Ora alguns grupos indígenas faziam
“correrias”; outros grupos aceitavam o aldeamento imposto, ora recuavam para a floresta,
ora expulsavam os colonos de suas fazendas17. Foi nesse mesmo panorama de conflitos que
foi fundado o aldeamento de São Luiz Beltrão, conforme apontado por autores como
Joaquim Norberto Sousa Silva.
Toda essa discussão nos leva a constatação de que a chegada do conquistador a
Campo Alegre e a fundação da Freguesia, ocorre a partir de relações conflituosas entre
colonizadores e indígenas, o que não era diferente de outras regiões da colônia. A elevação
de Campo Alegre à condição de vila em 1756 é já, portanto, no Período Pombalino as
vésperas da vigência do Diretório.
Fontes indicam que o processo de fundação do Aldeamento de São Luiz Beltrão
partiu da eclosão de um conflito, onde no qual, ainda segundo o Vice-rei Luís de
Vasconcellos (1884) em seus apontamentos, os índios em situação beligerante, passaram a
ser uma ameaça e a intervenção do poder da Coroa Portuguesa se fazia necessária. Para
isso, sob a liderança do Sargento-mor Joaquim Xavier Curado, que mais tarde vai se tornar
o Conde de Duas Barras, e com apoio da população local de colonos, conseguiram
expulsar os índios. E assim, o Aldeamento foi fundado em 1788.
No processo de fundação de São Luís Beltrão, podemos afirmar que a partir de
uma série de hostilidades, houve uma intervenção militar, com ajuda dos colonos, aos
17LEMOS, Marcelo Sant’ana. O Índio Virou Pó de Café? A Resistência Dos Índios Coroados de Valença Frente à
Expansão Cafeeira no Vale do Paraíba (1788-1836), Dissertação de Mestrado, UERJ, Rio de Janeiro, 2004.
moldes dos conflitos que ocorriam na colônia entre luso-brasileiros e indígenas, apesar dos
textos, sobre esse processo não falem de Guerra Justa, há indícios da sua ocorrência18.
Não foi detectada claramente ainda uma possível influência do Diretório na
fundação do aldeamento. Em apontamentos de Pizarro, o que ficou claro que era a direção
e ensino do Vigário d’aquella freguesia, o Padre Henrique Joze de Carvalho, e que esse
passa a exercer o Cargo de Diretor do Aldeamento, uma função que tinha sido entregue a
uma administração laica, quando da promulgação do Diretório. A carta não esclarece qual a
ordem (capucho, beneditino, carmelitas, etc.) a que ele pertencia ou se era um padre
secular. Porém, Pizarro relata:
S. Luiz Beltrão, por Ordem do Vice-Rei Luiz de Vasconcellos e Souza,
cuja cathequesi foi incumbida à um Sacerdote privativo , sustentado pela
Fazenda Real com a simples e diminuta Côngrua de 100$ réis. De
principio tão avantajado se esperava o progressivo crescimento da
reducção Indica, em utilidade da Igreja e do Estado:[...]19
Considerações Finais
18SOUSA SILVA, Joaquim Norberto, Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Memória Histórica das
Aldeias do Rio de Janeiro, 3ª Série, Nº 14 – IHGB, 1852.
19 ARAÚJO E PIZARRO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das Províncias annexas
aldeamento, o que seria negar a aliança que existiu durante séculos entre igreja e coroa
através do Padroado Real20 Cairíamos dessa forma em uma mera conjectura ao identificar a
fundação do aldeamento a partir de diretrizes do Diretório Pombalino, não levando em
conta a possibilidade da manutenção de uma prática multissecular (SOUSA SILVA, 1852.
P. 243) 21.
Temos subsídios para pontuar com certeza que São Luiz Beltrão, foi fundada a
partir de um grande conflito que atingiu grande parte da Paraíba Nova, e mais
especificamente Campo Alegre, onde os índios Puri foram em parte afugentados da região,
outros sofreram baixas nos combates, outros mortos contaminados pela varíola, e outros
aceitaram ser reduzidos em uma região, aonde foi fundada o Aldeamento de São Luiz
Beltrão, no qual a sua administração permanece com a Igreja além da catequese dos índios,
sob os auspícios da Coroa.
No entanto, não podemos deixar de pontuar que cerco aos índios Puri, na freguesia
de Campo Alegre, também foi resultado de uma política de estímulos à formação de
aldeamentos que ocorre a partir de meados do século XVIII, que seguia princípios do
Diretório Pombalino, visando diminuir e controlar os conflitos e reduzir a mobilidade do
índio, tutelar a sua liberdade para favorecer a posse da terra dos sertões aos colonizadores,
frente à expansão das fronteiras, em direção a região de sertões, isso demonstra em certa
medida, dentro de um contexto de final do século XVIII, o Diretório exercia uma certa
influência dentro das ações que a coroa e as autoridades locais tomavam em relação aos
índios na região de Campo Alegre na Paraíba Nova e o seu impacto no cotidiano dos índio
Puri.
Bibliografia
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Resende. Resende – 4º seção – 13º classe série I, 4º coleção, caixa 484 – pacote 2, 328 a 376.
1791.
20MOURA, Ana Maria da Silva, Guerra Justa e Padroado: O poder do Príncipe, USS, Vassouras, RJ. 2011. p. 11
21Vice-rei mostra a permanência de um clérigo na administração do aldeamento, mesmo essa sendo fundada
no qual afirma Joaquim Norberto partiu de uma ação militar. De certo, a fundação de um aldeamento por
mãos militares não é novidade na história colonial brasileira, porém, sempre esteve atrelado a uma ordem
religiosa, seja ela capucha, beneditina, e claro a Jesuíta, que acompanhava essas “entradas”, aos aldeamentos.
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto, Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Memória Histórica das
Aldeias do Rio de Janeiro, 3ª Série, Nº 14 – IHGB, 1852. p. 243.
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Resumo
Embora o debate sobre a guerra justa tenha sido iniciado com Cícero, ainda na Roma
Antiga, seu desenvolvimento certamente não parou na antiguidade. Com novos contextos
surgindo, o tema precisou ser renovado para atender as diversas expectativas dos atores
presentes ao longo de toda a história. O descobrimento de novos povos que não
conheciam o cristianismo em terras nunca antes habitadas por cristãos será um desses
episódios onde o conceito, outrora incontestável, não provê mais um embasamento
teológico suficiente para justificar as conquistas ibéricas no ultramar. Com o debate sendo
iniciado sendo iniciado primeiramente pelos espanhóis, este trabalho visa compreender
como foi elaborada a resposta portuguesa para esta problemática a partir da carta enviada à
D. João III, Porque causas se pode mover guerra justa contra infiéis2, atribuída à D. Antônio
Pinheiro.
D. João III iniciou seu governo em 1521 depois do falecimento de seu pai, D.
Manuel I, herdando um império em expansão. Contudo, junto com essa herança veio
também diversos desafios, de diferentes naturezas, locais ou internacionais. Ademais,
também no ano de sua coroação, Leão X publicou uma bula onde excomunga o monge
Martinho Lutero, aprofundando ainda mais a delicada situação diplomática da Europa e
reforçando os laços de alguns reinos com a Igreja Católica, como Portugal.
Os reinos europeus vão presenciar novas relações políticas, com seus reis passando
a exercer cada vez mais poder devido a conjuntura geral e interna de cada um desses
Estados. Com o aumento da riqueza arrecadada pelo comércio, começa uma gradual
burocratização do Estado, crescendo o número de instituições que administravam
1 Graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Mestrando no curso de Mestrado em
História Moderna e dos Descobrimentos pela Universidade Nova de Lisboa. E-mail para contato:
fernando_musso@yahoo.com.
2 Todas as transcrições foram feitas com alterações do documento original para ajudar na compreensão.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 COSTA, Célio Juvenal. O Rei D. João III (1521-1577) e a construção da sociedade de corte em Portugal,
Comunicação Coordenada, O Império Português e o processo civilizador nos séculos XVI, XVII e XVIII:
história, cultura, educação e direito, S/D, pp. 2-3.
4 Ibid., S/D, pp. 5-8.
5 PAES, Maria Paula Dias Couto. De Romatinas a Christianitas: o Humanismo à portuguesa e as visões sobre o
reinado de Dom João III, O Piedoso. Varia História, Belo Horizonte, vol. 23, Nº 38, p. 502, 2007.
6 Ibid., pp. 506-507.
7 OLIVEIRA, Fábio Fidelis de. A Mesa da Consciência e Ordens e o “Universalismo Europeu”. Uma
abordagem institucional da Segunda Escolástica Peninsular em Portugal, Lusíada. Direito, Lisboa, Nº 14, pp.
33-34, 2015.
8 SANTOS, Pedro Ricardo da Silva. Sobre o direito de guerra: Estudo introdutório e tradução comentada de
Relectio de iure belli de Francisco de Vitória. Dissertação (Mestrado em Estudos Clássicos) - Instituto de
Estudos Clássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, f. 5-7, 2016.
espanhóis, tornando a conversão injusta. Em relação ao último ponto, Vitória defende que
qualquer tipo de profecia deveria ser provada mediante milagres, algo que não existia.9
Após refutar todos estes argumentos, Francisco de Vitória vai escrever mediante
quais casos seria legítimo a conquista e subjugação dos índios e de suas terras sob o
domínio espanhol. São eles: o título de sociabilidade e comunicação natural; a pregação do
evangelho; a proteção dos convertidos; dar um príncipe cristão aos convertidos; os
sacrifícios humanos e antropofagia; a eleição verdadeira e voluntária; os tratados de aliança.
Em relação ao primeiro ponto, Vitória diz, baseado no direito natural, que é lícito à
qualquer um viajar para a região que desejar, inclusive os espanhóis para a terra dos índios,
desde que não seja com a intenção de causar dano. A partir deste título, então, surgiam
outro dois: o direito de viajar para uma região e se estabelecer nela (ius peregrinandi e ius
degendi) e o de fazer comércio (ius commercii). O segundo ponto leva em consideração outro
direito natural, o de pregação do evangelho (ius praedicandi), que, junto com os outros, daria
justa causa de guerra aos espanhóis caso fossem impedidos. O terceiro e o quarto títulos
estão relacionados com o dever dos espanhóis de protegerem e darem liderança, mediante
o conflito, aos novos convertidos. O quinto, de natureza parecida, dava direito aos cristãos
de intervirem militarmente, sem a permissão do papa, para impedir a prática de ações
desumanas. Os dois últimos pontos legitimam a conquista espanhola caso a eleição dos
índios fosse justa e voluntária e tratados de aliança fossem consumados entre os espanhóis
e os nativos.10
Por fim, em sua Relectio de iure belli, o mestre dominicano adota a doutrina de guerra
justa de São Tomás de Aquino - autoridade de um príncipe, justa causa e justa intenção - e
introduz seus novos elementos, reformulando o conceito e abrangendo novos casos.11
Como dito anteriormente, o contexto dos descobrimentos levantou diversas questões
políticas, morais e filosóficas sobre a legitimidade da conquista ibérica.
9 Ibid., f. 9-12.
10 Ibid., f. 12-13.
11 Ibid., f. 22.
12 MARCOCCI, Giuseppe. Entre guerras justas e monopólios comerciais. In: ________ (Org). A consciência
de um Império: Portugal e seu mundo (sécs. XV-XVII), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
2012, pp. 323-324.
13 ANDRÉ, Carlo Ascenso. Retórica e política no ocaso do império: António Pinheiro de Porto de Mós,
humanista e orador da coroa. In: MOREDA, Santiago López; SOARES, Nair de Nazaré Castro (Coord).
Gênese e consolidação ideia de Europa, Vol. 4: Idade Média e Renascimento, Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2009, pp. 399-402.
14 Porque causas se pode mover guerra justa contra infiéis, p. 500. In: CALAFATE, Pedro. Escola Ibérica da paz nas
Universidades de Coimbra e Évora (século XVI). Vol. I: sobre as matérias da guerra e da paz, Coimbra,
Almedina, 2015.
15 Ibid., pp. 500-501.
A primeira destas duas causas têm os príncipes cristãos para mover guerra aos
mouros da África e aos turcos da Ásia, cada um contra os de sua conquista,
porque eles ocuparam injustamente as terras e estados dos cristãos que as
possuíam e cujas eram, e a cujos herdeiros e descendentes, pertenciam se ali
estivessem.16
Entretanto, logo depois, aponta que o mesmo motivo não poderia ser utilizado
contra os gentios.
Onde se infere que pois esta causa: não pode se mover guerra contra infiéis
gentios, ou mouros, que habitam províncias nunca possuídas por cristãos e que
se pode bem presumir que nunca chegou notícia do nome cristão nem fama da
Lei evangélica. A justificação da causa para lhes poder mover guerra, se há de
fundar na segunda causa que é tomar emenda de alguma ofensa de que os
autores dela não fazem razão. Porque cessando esta razão, a guerra que se lhes
mover para tomar seus estados de que são legítimos possuidores, será injusta
[...], e pecariam de forma gravíssima os que por esta via quisessem argumentar o
culto divino, senhoreando as ditas províncias, e nunca serão delas justos
possuidores nem de boa fé os que as conquistassem. 17
Pinheiro ainda aponta para o fato de que esses conquistados e seus herdeiros serem,
agora, obrigados a responder esses injúrias feitas contra seu povo, algo que seria
considerado justo, uma vez que eles foram subjugados de forma injusta por cristãos.18
O autor segue o pensamento que estava se tornando dominante na época, onde a
guerra contra os infiéis mouros e turcos era permitida e com os gentios que nunca
escutaram a palavra de Cristo, não. Contudo, conseguimos identificar já algumas diferenças
do padrão que estava sendo construído. Em terras que nunca pertenceram aos cristãos, os
mesmos não poderiam empreender guerra justa se baseando na primeira causa de Pinheiro,
nem mesmo aos mouros. A permissão, aqui, é na causa onde se defende de uma ofensa
feita, mas até ela deveria ser tratada com muita cautela e proporção, pois caso isso fosse
perdido, a guerra já se tornaria injusta e todos os seus espólios ilícitos. Ademais, o bispo já
começa a tecer suas críticas contra algumas das expedições realizadas pelos reinos ibéricos
durante as expansões.
Em seguida, Pinheiro vai apresentar como as conversões deveriam ser realizadas
nos territórios onde a Verdade cristã estava sendo ouvida pela primeira vez e como
deveriam ser tratados seus pregadores.
O modo que nosso redentor mandou que se tivesse na conversão dos infiéis à
sua Santa fé foi mandar gente que ensinasse com doutrina e exemplo oferecida
pela salvação das almas, a tão certo perigo como estão as ovelhas entre lobos, a
qual buscasse a glória de Deus e não a sua, o céu e não à terra, salvação das
almas e não tesouros temporais. [...]. E de todos aqueles a que chegam e dão esta
embaixada e recado da parte de Deus devem ser bem tratados e recebidos de
16 Ibid., p. 501.
17 Ibid., p. 501.
18 Ibid., pp. 501-502.
forma benigna e mais, pois não vão com força para sobrestar com ela as pessoas
a receber sua doutrina[...].19
Será aqui, então, que o bispo de Miranda vai defender uma causa onde a guerra
justa poderia ser aplicada contra povos que não tinham conhecimento do cristianismo
anteriormente.
E como seja coisa natural e de todas as nações geralmente recebidas, a segurança
e bom tratamento dos mensageiros, enviados e embaixadores, da gente que esta
Lei não guarda com os embaixadores de Deus que são os pregadores, podem e
devem tendo disposição e oportunidade os Reis cristãos, tomar emenda e
castigar com mão armada, a ofensa feita aos pregadores da fé católica. E porque
esta é a segunda causa de Justa guerra que inferem os doutores que contra os
infiéis possuidores de terras nunca habitadas de cristãos, se pode mover guerra
quando precedeu diligência de lhes mandar pregadores e eles não quiseram
receber em suas terras, nem ouvi-los, ou nelas, os perseguiram e maltrataram,
não para obrigar por armas a que creem, mas para emenda e castigo da ofensa e
injúria que fizeram aos enviados de Deus e para que não tenham forças para
impedir a liberdade dá pregação evangélica e com seu poder temporal favorecer
e ajudar os que perturbaram a conversão do que recebem nossa santa fé [...] e
induzem o povo a permanecer nos erros em que foram criados. E pois é justa
esta causa para mover guerra contra infiéis, esta que os Estados, terras,
províncias e reinos que na tal guerra se conquistaram pertençam ao senhorio e
ficam súditos do Rei com autoridade e poder do qual se conquistaram. 20
Embora bastante longo, o trecho acima nos mostra uma nova possibilidade onde a
guerra justa poderia ser cabível, expondo que somente após uma injúria cometida contra os
pregadores o uso da força era legítimo. A partir disso, o objetivo era não permitir que tal
injúria ocorresse novamente, com os territórios e os povos conquistados agora sobre a
tutela de um príncipe cristão. O argumento de que primeiro se deveria optar por uma via
mais pacífica, o da pregação, para depois, se necessário, utilizar a força para defender os
pregadores, ia de acordo com o que pensavam Las Casas e Vitória.
Não obstante, Pinheiro separa essa regra para dois casos diferentes: dos mouros e
dos gentios. Em relação aos primeiros o bispo escreve que devido à experiências passadas,
já era conhecido que eles não aceitavam pregadores em seus territórios ou, quando isso
acontecia, os mesmos eram perseguidos e mortos. Portanto, em decorrência disso, seria
possível partir com um exército para conquistar essas terras e permitir a pregação cristã. O
mesmo, contudo, não era cabível aos gentios, onde muitos aceitavam receber essas
enviados e alguns até se converteram. Além disso, como eles não tinham conhecimento da
religião, era compreensível que alguns decidam não escutar a palavra dos pregadores. O uso
19 Ibid., p. 502.
20 Ibid., p. 502-503.
da força, então, deveria ser reconsiderado, persistindo na pregação e dando mais uma
chance antes de aplicar o castigo.21
Ainda neste ponto o autor defender que também não é conveniente enviar, junto
com essas pregadores, soldados com intenções maldosas. Isto traria muitos efeitos
negativos, pois além de tornar as conversões realizadas ilícitas, permitiria que os gentios
não aceitassem mais pregadores, pois pensariam que os cristãos quisessem convertê-los a
partir da força. O que seria permitido, aqui, era a presença de homens de bem, buscando
realizar comércio com boa comunicação que, indo em números extensos, poderiam ajudar
aos pregadores em qualquer sinal de perigo.22
Toda esta argumentação de Pinheiro vai culminar na sua defesa das guerras feitas
por D. Manuel na Índia.
Deste mesmo princípio se poder ver quão Justa causa de moverem guerra na
Índia, teve el Rei D. Manuel de louvada memória, vosso pai e Vossa Alteza,
porque as mais das terras, cidades, reinos e estados que os capitães de Vossa
Alteza conquistaram, foram perseguindo com mão poderosa as ofensas que se
fizeram as pessoas que nas ditas terras ficavam assentando trato pacífico, ou
condições de pazes e amizades, para bem daquelas partes, ou chegaram como
embaixadores de rei amigo e eram recebidos como Inimigos públicos, ou com
dissimulações perigosas de amigos falsos. E como esta seja uma das Justas
causas de mover guerra ficam os Reis destes Reinos legítimos possuidores dos
Estados que nas partes do oriente conquistaram, quanto mais que nas que já
foram cristãos, ou eram usurpadas de mouros, ou de gentios, concorreu
juntamente a primeira causa. Algumas se entregaram voluntariamente a nossa
proteção, outras não receberam pregadores. E para cada uma destas causas
possuem com boa consciência os Estados que por guerra governam. 23
21 Ibid., p. 503.
22 Ibid., pp. 503-504.
23 Ibid., p. 504.
justa. O bispo, embora reconhecendo que esses pecados são graves, reconhece que
nenhum deles são mais danosos para a Lei natural que a Idolatria e a Infidelidade. Pinheiro
defende, então, que embora os índios praticassem delitos contra a Lei natural, os mesmos
não implicam em uma perda do direito positivo, como o título de legítimo possuidor da
terra. Isto, por fim, não tornaria justa a guerra empreendida por esse motivo e nem se
possuiria a terra com boa consciência.24
Seguindo sua linha de raciocínio, o bispo também afirma que o Papa, mesmo sendo
o pastor de todas as ovelhas de Cristo, não teria como atribuir autoridade à um rei cristão
de realizar guerra justa contra infiéis que não o obedeçam ou reconheçam ele como seu
pastor.25 O sumo pontífice tinha um dever com aqueles que iam para as terras descobertas
pregar o evangelho ou aqueles que iriam responder com mão armada quaisquer ofensas
contra essas embaixadores de Deus.
[...] ao papa convém pela parte que têm de pastor, animar os Reis cristãos a
fazerem isto, favorecer muito os que fazem e para a ajuda e despesa das ditas
conquistas tomadas necessariamente e por esta causa, ajudar e suprir com
temporal patrimônio da igreja que são os frutos e rendas e com o espiritual que
é o tesouro dos infinitos merecimentos de Cristo Jesus e das super abundantes
satisfações dele, [...], dando para estas conquistas graças e Indulgências.26
Pinheiro reforça o argumento predominante visto até aqui que os índios americanos
possuíam direito sob a sua terra e não estavam subordinados ao poder papal. O autor
reforça que o único método para conversão do gentio seria a partir da pregação pacífica, se
utilizando da guerra somente em último caso, quando a violência contra os pregadores
fosse constante. Ele também define qual o papel que a Igreja deveria exercer durante todo
o processo, servindo de seu poder espiritual e material para auxiliar os homens que
viajaram até terras longínquas para expandir a fé cristã e aqueles que foram defender os
pregadores e punir os infratores. É possível ver como que o tema do gentio, seu direito sob
sua terra e a conquista feita contra ela era um tema central em todos estes debates.
Em seguida, o bispo de miranda vai mostrar as intenções de Portugal nas suas
guerras de conquista.
A terceira causa que faz a guerra justa como disse é a intenção. Nesta há menos
que falar porque consta dá que tiveram os Reis destes Reinos nas guerras que
moveram contra infiéis em África com tanta despesa sua e dos seus com tantos
perigos de suas pessoas e de seus vassalos, somente por afastarem da
cristandade tais prejudiciais vizinhos e tais capitães inimigos como são os
mouros por extirparem a seita do perverso e falso profeta mafamede, e
restituírem a obediência de Cristo Jesus às terras em que seu nome fora louvado
e agora era blasfemado. Nem se pode duvidar que em tão duvidosa e tão custosa
conquista como foi o da Índia, e em tão variado, e incerto descobrimento como
parecia a princípio o daquelas partes. Este foi o principal intento del Rei D.
Manuel de gloriosa memória, vosso pai zelo da salvação daquela gente, glória do
nome cristão, aplicação do culto divino de nossa santa fé católica. E que por
este fim fez tantos tantos gastos de armadas, aventurou as vidas de tantos tendo
os proveitos que disso se lhe apresentaram como acessórios para poder com eles
suprir os gastos que fazia para conseguir seu principal intento. 27
Pinheiro também não poupa elogios para D. João III, no qual, mediante a
experiência adquirida das expedições de seu pai, conseguiu dar continuidade ao projeto
expansionista manuelino, mesmo com diversos desafios, com muita prudência e de forma
justa.28 Para as terras descobertas onde os portugueses só tinham comércios e tratos era
necessário somente observar se essas contratos eram feitos analisando as necessidades de
ambas as partes em negociações justas. Ademais, Pinheiro também aponta que reis,
senhores ou a república que assina tal contrato devem possuir diligência para se certificar
de que os negócios sejam lícitos sob pena de pecado mortal. Por fim, o bispo também
defende que as bulas não conferem autoridade ou poder para empreender guerra justa, mas
sim tratar de outras questões, como a possibilidade de coletar o dízimo, licença de coisas
outroras proibidas pelos santos cânones da igreja e afins.29
Nesta última parte de sua carta, Pinheiro legítima teologicamente todo o processo
de conquista empreendidas por D. Manoel I e D. João III. Após definir ao longo do
documento quais eram os limites para a guerra justa e qual deveria ser o papel de cada um
dos agentes envolvido nela, ele finalmente declara as ações portuguesas como lícitas.
Mediante essas argumentos o monarca poderia prosseguir sua política e defender seus
territórios conquistados contra acusações de outros Estados que desejavam parte das terras
sob posse portuguesa, contando com o importante apoio da Igreja nestas disputas.
Conclusão
27 Ibid., p. 508.
28 Ibid., pp. 508-509.
29 Ibid., p. 509.
Fonte
PINHEIRO, D. Antônio. Porque causas se pode mover guerra justa contra infiéis. In: CALAFATE,
Pedro (Dir.); TARRÍO, Ana Maria (Coord.); VENTURA, Ricardo (Coord.). A Escola
Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (século XVI), Coimbra, Almedina,
2015, 509 p.
Bibliografia
Introdução
1Mestranda em História na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) financiada pela CAPES e vinculada
ao Laboratório de História Econômica e Social (LAHES) da mesma universidade. E-mail:
gabrielaferreira.historia.ufjf@gmail.com.
Anais do
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2MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. “Forças militares no Brasil colonial”. In: POSSAMAI, Paulo
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havia uma série de outros membros participantes deste corpo político – tais como
conselhos, tribunais, juntas, secretarias4 – e, dentre a variedade de instâncias de poder,
encontrava-se a esfera militar, aqui a ser destacada.
A este respeito, cabe informar sobre a organização bélica lusitana clássica, dividida
em três tipos específicos de forças, também encontradas na América portuguesa: I) a tropa
paga, ou Corpos Regulares; II) as milícias ou Corpos de Auxiliares; e III) as tropas
irregulares ou Corpos de Ordenanças. Primeiramente, as tropas regulares compunham a
força profissional, permanentemente sob armas e remunerada. Já os Corpos de Auxiliares
atuavam junto à regular e a substituía quando necessário, porém sem, eram desprovidos de
armamentos ou equipamentos para desempenhar suas atividades. Por último, as tropas
irregulares (Ordenanças) eram formadas por moradores locais não instruídos militarmente,
porém acionados em casos de perturbação da ordem, sem receber soldo5. Sabemos,
também, que as especificidades da América portuguesa adaptaram o tripé clássico,
resultando numa subdivisão atrelada à hierarquia social associada a grupos de índios,
pretos, pardos e brancos.6. Estaremos atentos a tais especificidades nas fontes primárias
deste trabalho.
mestiços nas milícias da América Portuguesa. 1ª Edição. Belo Horizonte: Crisálida, 2010, p. 44.
6COSTA, Ana Paula Pereira. “Apresentando as forças”. Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial:
Vila Rica (1735-1777). 1ª Edição. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2014, p. 44.
precisou tomar várias medidas para elevar a capacidade defensiva do Brasil. Dentre elas,
estava a promulgação da Carta Régia de 22 de março de 1766, que foi responsável por
reformar as milícias nos âmbitos da disciplina, competência e ampliação dos corpos,
formalizando as tropas de pretos e pardos na colônia. Devido à inviabilidade econômica da
Coroa em constituir tropas pagas, foram criados vários regimentos de Auxiliares e de
Ordenanças, por serem gratuitos e organizados a partir de critérios étnico-raciais7.
Uma cópia desta Carta Régia foi enviada pelo rei D. José ao vice-rei do Brasil, na
época, D. Antônio Álvares da Cunha, conhecido como Conde da Cunha. A parte inicial da
referida correspondência diz o seguinte:
Conde da Cunha, Vice Rey e capitão general do Estado do Brasil amigo:
Eu El Rey vos venho muito saudar, como aquele que amo. Sendo
informado da irregularidade, e falta de disciplina a que se acham
reduzidas as tropas auxiliares desse Estado: E atendendo a que nelas,
sendo reguladas, e disciplinadas, como devem ser, consiste uma das
principais forças que tem o mesmo estado para se defender: sou servido
ordenar-vos, que logo que recebeis esta mandeis alistar todos os
moradores das terras de vossa jurisdição, que se acharem em estado de
poderem servir nas tropas auxiliares sem exceção de nobres, plebeus,
brancos, mestiços, pretos, ingênuos, e libertos, e a proporção dos que
tiver a referida cada uma das referidas classes, formeis os terços de
auxiliares e de ordenanças, assim de cavalaria, como de infantaria, que
vos parecerem mais próprios para a defesa de cada uma das comarcas
deste Estado8.
7SILVA,Bruno Cezar Santos da. “A reforma nas tropas auxiliares da capitania da Paraíba (1750-1777)”. Anais
do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: 2011, p. 8.
8AHU_CU_017, Cx. 77, D. 6968.
com certa qualidade, segundo o conde de Lippe, “anfíbia”: soldados “meio paisanos, meio
militares”9.
Por sua vez, os sujeitos deste estudo, oficiais militares arregimentados em tropas de
pretos ou de pardos, compunham sempre as tropas de Ordenanças ou de Auxiliares. Sobre
esta divisão, Christiane Pagano de Mello destaca o fato de tais tropas não serem compostas
por soldados profissionais, mas sim por moradores, geralmente pequenos agricultores, que,
quando se fazia necessário, deixavam suas atividades econômicas cotidianas para acudir as
necessidades militares, sendo até mesmo chamados de “paisanos armados”10. Sobre as
funções gerais atribuídas a cada tropa, a autora ressalta que:
Os auxiliares tinham por dever acudir as fronteiras para as quais
estivessem designados e, enquanto nelas permanecessem mobilizados,
receberiam tal qual os soldados pagos [...]. Com funções militares
restritas, as tropas de Ordenanças serviriam na pequena guerra, local e
circunscrita, estando submetidas a exercícios periódicos e a duas mostras
gerais por ano. Pretendia-se, assim, manter a população militarmente útil,
ainda não alistada nas tropas de linha ou nas de auxiliares habituadas à
ordem de combate11.
No que diz respeito aos outros requerimentos de cartas patentes, todos os outros
8 também mencionaram a Carta Régia de 22 de Março de 1766 como fator justificável e
legitimador à nomeação dos postos militares aos suplicantes, fosse a companhia de pretos
forros ou de pardos libertos.
A partir desta breve análise, encontramos indícios da ampliação do espaço de
influência e possibilidades de atuação política de sujeitos classificados como pretos ou
pardos no cenário da América portuguesa, frente à demanda por ampliação dos efetivos
militares diante do cenário interno do conflito luso-castelhano na América. Diante de tais
circunstâncias, verificamos um aumento da emissão de requerimentos de confirmação de
postos e, também, de cartas patentes, durante o período que foi marcado por esses
conflitos. Sabemos que, para a Coroa portuguesa, era inviável ampliar sobremaneira as
tropas pagas no ultramar, visto a impossibilidade econômica devido aos gastos advindos de
seu envolvimento na Guerra dos Sete Anos, Consequentemente, a solução encontrada foi a
aumentar os efetivos não remunerados pela Real Fazenda – a saber, as tropas Auxiliares e
de Ordenanças, nas quais encontravam-se as tropas de pretos e de pardos.
15Idem.
Conclusão
A esfera militar funcionava como uma das várias instâncias de poder que se
encontravam no cerne da monarquia corporativa e pluricontinental característica da
organização do Império português enquanto sistema de Antigo Regime. A Carta Régia de
22 de março de 1766 ampliou a participação política de oficiais de cor dentro da América
portuguesa, uma vez que institucionalizou e conferiu legitimidade a seu espaço de atuação.
Conferiu-lhes maiores direitos, enquanto súditos do Rei de Portugal, a solicitarem mercês
como retribuição de seus serviços prestados. Isso os consolidava enquanto vassalos fiéis de
sua majestade, ao mesmo tempo em que colocava o rei numa posição de obrigação moral
de retribuição de serviços, tal como nas normas da chamada “economia de mercês”.
Portanto, encontramos um espaço político em reformulação diante do quadro dos
conflitos bélicos das décadas de 1760 e 1770, especialmente diante do conflito luso-
castelhano na América. É cedo demais para atestarmos uma conclusão concreta. Nosso
objetivo foi o de apresentar o que a documentação indicava durante o período do início da
reforma militar lusitana até o fim do conflito luso-castelhano na América, a fim de que
Bibliografia
1 Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, graduado em Direito pela Faculdade de Direito
Milton Campos e graduando em História pela PUC-MG. E-mail: gustavo.belem@gmail.com.
2 SABATO, Hilda. “Soberania popular, cidadania, e nação na América Hispânica: a experiência republicana
Uma vez mais, devemos esclarecer que a exaltação do juízo popular não traz
consigo a concepção de que o povo é plenamente capaz de governar a si próprio.
Retomando Montesquieu, verificamos que o expoente das Luzes francesas compartilha da
mesma opinião quanto à capacidade de apreciação da coletividade reunida7 sem que, como
visto anteriormente, admita sua intervenção ativa no governo do Estado. Posição que
corresponde, em grande medida, à perspectiva do Libertador.
Nesse sentido, é fundamental que “povo” seja compreendida a partir dos sentidos
que podem-lhe ser atribuídos no contexto das revoluções hispânicas das primeiras décadas
8 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madri:
Ediciones Encuentro, 2009, p. 432.
9 Ibid., p. 434.
10 Ibid., p. 73.
11 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madri:
Ediciones Encuentro, 2009, p. 73.
12 Cf. LYNCH, C.E.C. “O pensamento conservador ibero-americano na era das independências (1808-
In: Historia global de América Latina: del siglo XIX a la Independencia. Madri, 2018, p. 60.
In: Historia global de América Latina: del siglo XIX a la Independencia. Madri, 2018, p. 64.
21 HALPERIN DONGHI, Tulio. Hispanoamérica después de la independencia: consecuencias sociales y
Que a adesão do povo à causa independentista não era uma certeza dada de
antemão é algo que o próprio Bolívar havia observado. A Segunda República na Venezuela,
encabeçada pelo Libertador, fora derrotada em batalha por “guerrilhas legalistas
populares”23, por exemplo – no caso, os llaneros comandados por José Tomás Boves.
Afinal, de acordo com Pérez Brignoli, os sujeitos marginalizados da hierarquia social
hispano-americana eram hostis tanto aos criollos como aos espanhóis, de modo que a
emancipação por si só não era suficiente para angariar seu apoio. Assim, quando se lançou
à terceira (e bem-sucedida) campanha, o Libertador se manifestou em favor de uma série
de reformas que atendiam às reinvindicações das camadas desfavorecidas: para “aumentar
sua base de apoio”, propusera desde a redistribuição das terras confiscadas até a libertação
dos escravizados e a extensão das promoções no serviço militar aos pardos24.
Assim, a vitória na guerra de independência não poderia significar o retorno à
ordem colonial ou ao paradigma do Antigo Regime: as armas poderiam ser depostas, os
desdobramentos do embate entre patriotas e legalistas persistiriam. Sobre o tópico, Bolívar
se manifestou em 24 de maio de 1824, em carta endereçada a Pedro Gual:
Estos son los que Vds. conocen; son los que Vds. no conocen; hombres que
han combatido largo tiempo, que se creen muy beneméritos, y humillados y
miserables, y sin esperanzas de coger el fruto de las adquisiciones de su lanza.
Son llaneros determinados, ignorantes y que nunca se creen iguales a los otros
hombres que saben más o parecen mejor. Yo mismo, que siempre he estado a
su cabeza, no sé aún de lo que son capaces. Los trato con una consideración
suma; y ni aun esta misma consideración es bastante para inspirarles la confianza
y la franqueza que debe reinar entre camaradas y conciudadanos. Persuádase
Vd., Gual, que estamos sobre un abismo, o más bien sobre un volcán pronto a
hacer su explosión. Yo temo más la paz que la guerra, y con esto doy a Vd. la
idea de todo lo que no digo ni puede decirse25.
23 BUSHNELL, David. A independência da América do Sul espanhola. In: BETHELL, Leslie (org.). História
da América Latina, v. III: da independência a 1870. Trad. Maria Clara Cescato, São Paulo: Edusp, p. 142.
24 BUSHNELL, David. A independência da América do Sul espanhola. In: BETHELL, Leslie (org.). História
da América Latina, v. III: da independência a 1870. Trad. Maria Clara Cescato, São Paulo: Edusp, p. 166.
25 BOLÍVAR, Simón. Doctrina del Libertador. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2009, p. 183.
26 GARGARELLA, Roberto. Los fundamentos legales de la desigualdad: el constitucionalismo en América (1776-
calcular sobre lo útil y practicar la virtud eran atentados de lesa tiranía, más
fáciles de cometer que de obtener su perdón. La mancilla, la expatriación y la
muerte seguían con frecuencia a los talentos, que los ilustres desgraciados solían
adquirir para su ruina, no obstante el cúmulo de obstáculos que oponían a las
luces los dominadores de este hemisferio32.
prático de exercício da política. Tem-se, pois, a “ficção democrática” de que fala François-
Xavier Guerra36 e que se fez presente – sob diversos matizes e articuladas de outras
maneiras – para além dos limites temporais e espaciais da América Espanhola dos
oitocentos.
Considerações finais
Bibliografia
36GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madri:
Ediciones Encuentro, 2009, p. 443.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo fazer um estudo sobre as tensões e conflitos
presentes no cotidiano dos soldados das Companhias das Índias Ocidentais no Brasil sob a
perspectiva de Peter Hansen Hajstrup, um soldado dinamarques de baixa patente mas que
participou de eventos importantes do período do “Brasil Holandes”, explorar as dinâmicas
sociais, e militares, relações com a natureza e alimentação. Para isso é utilizado como fonte
o diário de viagem escrito por Peter Hansen Hajstrup intitulado Viagem ao Brasil (1644-
1654).
Introdução
Em consoancia com Peter Burke “a outrora rejeitada como trivial, a história da vida
cotidiana é encarada agora, por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o
centro a que tudo o mais deve ser relacionado”2, algo que o historiador Bruno Ferreira
Miranda em sua obra Gente de Guerra: Origem, cotidiano e resistência dos soldados do exército da
Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654) escreve que o tema do cotidiano sob o
período não foram muito explorados pela historiografia do período do “Brasil Holandês”,
“ora porque foram negligenciados, ora porque não constituíram o foco da pesquisa”3
mesmo o tal período contendo um material riquíssimo para o estudo do cotidiano.
Esse trabalho tem como objetivo fazer uma análise do cotidiano de um soldado
comum que serviu na Companhia das Índias Ocidentais, por meio de uma fonte riquíssima
Sociabilidades e cotidiano
4 PRIORE, Mary Del. “História do Cotidiano e da Vida Privada”. In Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas,
Ronaldo (Orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997,
p.260.
5 Ibid. p.250.
6 MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. “Apresentação”. In HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil
Hansen. Nas palavras de Bruno Miranda, “o diário traz exemplos concretos de como
diferentes culturas interagiram no mundo colonial europeu”7.
Apesar de nunca ter alcançado uma patente alta como soldado da WIC8, no período
que passou no Brasil, Hansen prestou serviços em distintas regiões de Nova Holanda,
territórios que hoje compreende os estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande
do Norte. Sua primeira missão logo quando chegou ao Brasil nos idos de 15 Dezembro de
1644 teve como designo sevir no Forte Ernestus na Cidade Mauricia. “fomos estacionados
e os que eram moços jovens e bem-vestidos foram atribuídos à Companhia de Guarda do
conde Maurits sob o tenente-major, senhor Hendrick Van Haus, e entre eles eu também”9.
Nessa missão percebemos o comportamento intempestivo de Hansen, pois este logo
entrou em conflito com o comandante da guarda Willen Harstein por conta de um
mosquete resultando em um julgamento perante o tribunal militar e sua prisão:
A 20 do dito, fiz meu primeiro serviço de ronda [...] nem sabia os modos
nem conhecia os oficiais, depositei o mosquete ao meu lado. Quando o
tenente de nome Willem Harstein (que nessa altura servia de comandante
na guarda principal) viu isso, veio para examinar-me. Como se
aproximava e eu não lhe apresentará a arma, quis tomar o meu
mosquete. Mas eu, que não o julgava correto, peguei pessoalmente o
mosquete. Ele zangou-se muito com isso e golpeou-me o pescoço com
uma bengala, com pragas e insultos. [...] eu fui logo retirado do posto de
sentinela e, algemado nas mãos e nos pés levado ao corpo da guarda.10
7 Ibid. p.11
8 Abreviação de West-Indische Compagnie ou, Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais.
9 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.49.
10 Ibid. p.49-50.
11 MOREAU, Pierre. “Relação verdadeira do que se passou na guerra travada no país do Brasil entre os
portugueses e os holandeses desde o ano de 1644 até o ano de 1648”. In: MOREAU, Pierre; BARO, Roulox.
História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses e Relação da viagem ao país dos Tapuias. Coleção
Reconquista do Brasil, volume 54. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1979, p.39.
12 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.91.
13 Ibid. p.91.
14 Ibid. p.91-92.
15 Ibid. p.94.
16 Ibid. p.100.
17 PAPAVERO, Claude Guy. “Alegrias e desventuras do paladar: a alimentação no Brasil holandês”. Rev.
Hansen conta que ao chegar ao Brasil também recebeu sua primeira ração semanal
que consistia em “quatro canecas de farinha para pão”18 e “quatro libras de carne fresca”,
“A 17 do dito, sábado, recebemos nossa primeira ração, ou alimento semanal, a saber,
quatro cabeças de farinha para pão e quatro libras de carne fresca [...]”19. Já em 1945, após
sair da prisão na ocasião do desentendimento com o comandante Harstein, Peter Hansen
foi designado para uma missão para o interior Pernambuco em um grupo de 1200 homens.
Com poucas provisões e muitas bocas para alimentar encontraram alimento em um cavalo
cansado que estava em meio a um engenho abandonado. “Um velho cavalo estafado que
foi morto por um tiro e dividido entre nós; mas para 1200 soldados não representava muita
coisa; e assim devíamos nos contentar com as frutas dos campos e da mata [...]”20.
Em 1946, Peter Hansen de guarda no Rio Grande, relata que sua ração “semanal”,
ao qual no caso deveria durar nove semanas consistia de “uma libra e meia de bacalhau,
uma libra de farinha de trigo, uma caneca de azeite de palma e uma caneca de vinagre[...]”21.
O soldado dinamarquês conta que por isso muitos ali pereceram facilmente para o inimigo
ou morreram de fome. A solução então encontrada por Hansen e os outros foi a de buscar
provisões no que tinha ao seu redor, o soldado relata que “nos arranjamos nos campos
com perrexil do mar e outras ervas e plantas. Também os cavalos, cachorros, gatos e
ratazanas foram a nossa melhor comida [...]”22.
Em 1650, o soldado dinamarquês relata de maneia clara o problema da escassez de
água que assolava o pelotão em suas incursões ao sertão, “seguimos marchando umas
quatro milhas a noite na margem do rio Potengi, [...] rio que consistia de areia seca e
espessa, tínhamos que cavar [...] até a profundidade de um homem para encontrar água”23.
Hansen também conta que havia lagos em que os “brasilianos”24 não bebiam por
considera-los amaldiçoados pelo diabo, fato é que “os que tinham bebido caíram logo
18 De acordo com nota de Bruno Romero Ferreira Miranda, em Amsterdã, naquele período, uma caneca era
equivalente a 150 mililitros. Cf.: HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia
Editora de Pernambuco, 2016. p.53.
19 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.49.
20 Ibid. p.56.
21 Ibid. p.71.
22 Ibid. p.71.
23 Ibid. p.94.
24 Os brasilianen ou brasilianos eram como os holandeses chamavam os povos indígenas de língua Tupi que
habitavam a costa. In MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores, Estudos de História Indígena e do
Indigenismo. Tese de Livre Docência, Unicamp, 2001, pp. 12-35. Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281350>. Acesso em 20 Out. 2020.
doentes de diarreia”25 deixando claro o motivo para o qual os índios consideravam esses
amaldiçoados. Peter Hansen conta que não havendo a possibilidade de cavar o leito seco
do rio que “devíamos nos contentar, assim, com uns restos de água da chuva e o mijo dos
mocós, cujo líquido devíamos coar com um lenço, por conta das muitas caganitas, e que
era salgado como a água do mar”26 e ainda que aproveitavam o lugar para caçar, “os mocós
nos serviam também de alimento, porque havia muitos deles nas fendas das rocas e eram
muito saborosos”27.
Segundo Bruno Miranda Ferreira no artigo Doentes e incapazes para marchar que
discute as doenças e moléstias que os soldados da WIC enfrentavam no Brasil holandês,
“foram as enfermidades as responsáveis pelas mais elevadas taxas de baixa durante os anos
de ocupação”, devido os regulares problemas de abastecimento, que levava a uma
alimentação precária e a falta d’agua que agravava a situação28. Diversos são os casos
relatados por Peter Hansen sobre companheiros acometidos por doenças devido as
péssimas condições aos quais eram submetidos a beber água “terrivelmente salgada a
minerais, enxofre e salitre”29, como no ocorrido após a Batalha dos Tabocas em 1645, onde
o soldado diz que uma diarreia sangrenta acometeu a tropa após ingerir uma bebida feita
com frutos:
Em 4 de agosto ficamos no Engenho Tapacurá, onde nos refizemos um
pouco, embora não recebêssemos outra coisa de comer senão algumas
laranjas, maracujá e outras frutas, e açúcar e garapa misturada com água.
Bebemos isso, e por essa razão a maior parte dos nossos apanhou uma
diarreia sangrenta, da qual muitos morreram.30
Outro ponto interessante presente nos relatos do diário de viagem de Peter Hansen
Hajstrup é a sua relação com os tapuias31. O soldado da WIC aparece como um mediador
25 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.95.
26 Ibid. p.96.
27 Ibid. p.96.
28 MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. “Doentes e incapazes para marchar: vida e morte no exército da
Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais no Nordeste do Brasil, 1630-1654”. Hist. cienc. Saúde-
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 337-353, Jun 2015. p.341. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702015000200003&lng=en&nrm=iso>
Acesso em 20 Out 2020.
29 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.96.
30 Ibid. p.57.
31Como eram chamados pelos holandeses os povos indígenas não-tupis que habitavam o interior. In
MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores, Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese de Livre
Docência, Unicamp, 2001, pp. 12-35 Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281350>. Acesso em 20 Out. 2020.
entre os tapuias e os brasilianos em relato de 5 de setembro 1648 onde ele foi “[...]
mandado à aldeia de Silva dos selvagens, ou tapuias, para falar com eles, e ler e traduzir
uma carta redigida em português por parte dos brasilianos que sofriam grandes danos deles
nas roças.”32 Peter Hansen relata ter sofrido muito medo de ser devorado pelo líder dos
tapuias:
Quando me encontrei com o rei deles, Nhanduí, e li a ele o conteúdo da
carta na qual ele era proibido por nossos senhores e Alto Conselho de
causar danos aos brasilianos, ele ficou muito irritado. Até tive a
impressão de que queria me matar e devorar33
Peter Hansen Hajstrup, de acordo com Benjamin Teensma, mesmo sem ter
recebido treinamento militar, participou diretamente de uma série de conflitos e guerras,
como das batalhas de Tabocas (1645), de Casa Forte (1645) e dos Guararapes (1648, 1649)
que foram travadas entre portugueses e holandeses pela posse dos territórios açucareiros
que a WIC manteve por mais de duas décadas sob seu domínio.35. Mesmo que “Hansen
menciona apenas superficialmente os muitos desenvolvimentos políticos e militares que
assolaram o Brasil neerlandês a partir de 1645”36 o relato não deixa de ser uma fonte
riquíssima para entender o conflito sob a perspectiva de um homem comum como Peter
Hansen Hajstrup, um soldado de baixa patente.
Sob a batalha de Tabocas (1645), Hansen relata os problemas que os soldados
holandeses enfrentaram, “A 29 de junho os nossos enviaram um grupo de 30 soldados,
32 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.85.
33 Ibid. p.85.
34 Ibid. p.86.
35 TEENSMA, Benjamin. “A carreira brasileira de um soldado de Schleswig (1644-1654)”. In HAJSTRUP,
Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016. p.18-19.
36 Ibid. p.21.
entre os quais dez brasilianos. Quase todos foram mortos perto da aldeia de São Lourenço;
não voltaram mais do que quatro brasilianos para relatar o acontecido”37 e que no dia 3 de
agosto marchando atrás dos soldados portugueses “[...] encontramos os primeiros guardas
dos portugueses, uns 50 ou 60 homens[...], mas não podemos realizar nada porque ao redor
do monte tinham preparado uma serie de covas pérfidas com estepes de madeira”38 tal feito
levou a perda de 250 soldados, segundo Hansen, “fomos obrigados a nos retirar pelo
aguaceiro com a perda de 250 de nossa gente que ficou nesse monte”39, além dos que
perderam a vida devido a diarreia sangrenta descrita anteriormente.
Na batalha de Casa Forte (1645), o soldado dinamarquês descreve de maneira mais
detalhada, “A 17 de agosto de madrugada, ao alvorecer, o inimigo, aproximadamente 4.000
portugueses, nos atacou no engenho de Tourlon [...] não tínhamos mais que uns 300 ou
340 militares europeus entre oficiais e soldados, e perto de 500 brasilianos”40, o grupo de
Peter Hansen tinha com ele cerca de 40 soldados, dos quais somente 12 saíram com vida.
Ele também relata que o grupo sofreu com falta de munição, “preparamos de novo nossas
armas porque faltava munição [...]” e como se viraram improvisando pedras e madeiras
como balas “[...] chegaram os portugueses gabando-se de quantos holandeses tinham
matado. Porém, quando iam passar por nosso primeiro grupo, atiramos nossas armas
contra eles, a maioria carregadas de pedaços de ferro”41 O resultado negativo da batalha é
evidenciado pelo soldado dinamarquês, de acordo com o relato de Hansen, “[...] de 800
soldados europeus e brasilianos, só se salvaram dois alemães e sete brasilianos, todos os
outros ficando mortos ou presos.”42
Os relatos da batalha dos Guararapes (1648, 1649) feitos por Hansen são mais
breves, porém não de menor valor. Em consonância a Evaldo Cabral de Mello em sua obra
O Brasil Holandês (2010), é na batalha dos Guararapes que se define o fim do exército
holandês da WIC, abrindo um caminho para a vitória portuguesa43. Na primeira batalha em
1648, o soldado da WIC conta que “A 18 de fevereiro, o nosso general, Sigismund von
Schoppe, saiu em expedição com 3500 homens para atacar o inimigo no Monte dos
37 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.55-56.
38 Ibid. p.56.
39 Ibid. p.56-57.
40 Ibid. p.59.
41 Ibid. p.60-61.
42 Ibid. p.61-62.
43 MELLO, E. C. de. O Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010, p.457-458.
Guararapes [...]”44, aqui segundo nota de Bruno Miranda, Peter Hansen se confunde com a
data, pois a batalha tem início em abril45. No Monte Guararapes, Hansen conta que “
Ficaram lá da nossa gente uns 1600 homens e 17 companhias, mas atacaram o inimigo e
venceram-no no campo, lá recebi um tiro na veia da perna direita e não foi possível fechar
a feriada[...]”46, na segunda e derradeira batalha em 1949, Peter Hansen descreve somente
em um único parágrafo, que “A 7 de fevereiro, o senhor general Sigismund Von Schoppe
saiu em expedição contra os portugueses com 4000 homens, mas foi derrotado pelo
inimigo, deixando no campo 1400 mortos e 200 presos”47.
Considerações finais
44 HAJSTRUP, Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016.
p.85.
45 Ibid. p.86.
46 Ibid. p.85.
47 Ibid. p.87.
48 BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História. Novas Perspectivas. [Cambridge, 1991] São Paulo: Universidade
Peter Hansen. Viagem ao Brasil (1644-1654). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2016. p.19.
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Resumo
A comunicação política entre os governadores subordinados do Rio Grande de São Pedro
e o vice-rei do Estado do Brasil e 2° marquês do Lavradio pode ser analisada a partir das
trocas de correspondências entre esses administradores. Durante o século XVIII, o
território do Rio Grande foi bastante assediado, colocando em risco o domínio da coroa
portuguesa sob a região. Marca disso é a invasão e ocupação do Rio Grande em 1763 por
parte dos espanhois. Esse cenário colocaria a coroa portuguesa em estado de alerta.
Trataremos aqui, brevemente, das estratégias diversificadas utilizadas para a defesa dessas
possessões entre os anos de 1773 e 1775, articuladas pelo 2° marquês do Lavradio e o
governador José Marcelino de Figueiredo.
Alguns dos problemas característicos dos séculos XVII e XVIII referem-se, como
vimos, às indefinições de jurisdição e que são reafirmadas pela fragilidade dos limites e
fronteiras em constante disputa política e que muitas vezes são sintetizados por tratados
que não tem o devido reconhecimento de todas as partes envolvidas. Essas situações ficam
marcadas nos conteúdos das missivas e dialogam amplamente com a questão da defesa e da
administração do Rio Grande de São Pedro. Algumas medidas adotadas em governos
anteriores impactaram diretamente na gestão do governador José Marcelino de Figueiredo,
subordinado a Lavradio:
Dos manifestos do General Castelhano, se vê claramente que os seus intentos se
não dirigiam que a lançar-nos foram dos estabelecimentos em que nos achamos
e são fúteis os seus fundamentos que eles só os autorizam com as convenções
particulares, umas feitas pelo Governador Inácio Eloy de Madureira, que alem
de estar já sem acordo nenhum pela grave moléstia em que se achava e pelas
apertadas circunstâncias em que se via, sem gente, nem meios, sem ser
socorrido de parte alguma nunca tinha poder nem jurisdição que o autorizasse
para fazer ajustes a respeito dos limites daquela fronteira e menos se podia
arraigar a si a liberdade de os fazer contra os direitos incontestáveis que El Rei
meu Senhor Fidelissimo tem ao continente em que estamos de posse a e a maior
parte daquele em que injustamente estão situados os Castelhanos e a mesma
falta de jurisdição tinha o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria para o que
praticou contra os sobreditos direitos e sendo certo que semelhantes ajustes
nunca podem ser válidos ainda tendo aprovação ou consentimento do Vice-rei
do Estado, ou de quem nele fizesse o Lugar-Tenente do mesmo Snr. Sem que
expressa e claramente, se lhes tivesse dado jurisdição para isso, contudo, nem
aquele insignificante consentimento do Vice-rei ou governador do Rio de
Janeiro, tiveram os ajustes feitos de Inacio Eloy e de José Custódio, e foram só
uma resolução absoluta, indiscretas e de nenhum vigor praticadas por aqueles
dois homens, sem jurisdição nenhuma. Os castelhanos reconhecem tanto a
pouca força que tem o Convênio ajustado por aquela forma, qe eles cheios da
maior malcia não lhe chamam senão Tratado de Fronteira.4
2 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Século XVIII: Século Pombalino do Brasil. Rio de Janeiro: 1988. Carta 303,
p. 587-589.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
6 Os convênios mencionados são os que fizemos referência nos parágrafos acima, e que eram utilizados pelos
espanhóis para requerer a posse dos territórios por eles pretendidos, incomodando a coroa portuguesa e os
administradores diretamente ligados ao caso.
7 Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Secretaria de Estado do Brasil, Códice 104, vol. 15, folha 41
8Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p. 5 – 6
9Arquivo Nacional – Rio de Janeiro . Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p.6.
10Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p. 13
11Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p. 7
12Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p. 10
mesmo Regimento como cadete.13 O mesmo ocorreu com Manoel Silveira Dutra,
transferido ao Rio Grande em 1774 juntamente com sua esposa, a ser incorporado no
Regimento que José Marcelino melhor julgasse.14 Essas incorporações duplas favoreciam
tanto as estratégias militares, pelo aumento da capacidade de mão-de-obra das tropas e para
a questão do povoamento, com a transferência de todo o núcleo familiar. No dia 7 de
setembro de 1774, Lavradio trata com José Marcelino de Figueiredo de carta remetida pelo
Provedor da Fazenda do Rio Grande à respeito do casamento entre um Soldado Dragão e
uma índia:
Remeto a V.S. a carta que me escreve o Provedor da Fazenda deste continente
para que V.S. me informe do procedimento do Soldado Dragão Jozé Joaquim
Gonçalo que quer cazar com a índia que o mesmo provedor tem mandado
educar e que de capacidade que ele tem para tratar de lavouras e se he ou não
justo efetuar-se o mesmo casamento, assim como da conduta da índia.15
O vice-rei busca então a opinião de José Marcelino de Figueiredo sobre esta matéria, para
compreender se é ou não viável o a concessão do casamento mestiço. Narra, sem detalhes,
da preparação dessa mulher indígena para a incorporação das demandas por trás do
povoamento articulado pela coroa portuguesa.
Lavradio também cuidou da transferência do capitão Gaspar Jozé de Matos com o
Esquadrão da Cavalaria, ao mesmo passo que solicitou, na mesma carta, que José
Marcelino de Figueiredo transferisse o Sargento Mayor Luiz Sutero da Costa de volta para
o Rio de Janeiro a fim de que pudesse se cuidar de seus problemas de saúde.16 A atividade
de Lavradio no envio e trânsito de oficiais, sobretudo a partir de 1773, é uma das matérias
que mais estão presentes nas correspondências, demonstrando a sua preocupação, domínio
e atuação, nem sempre com instruções minuciosas com relação aos Regimentos onde esses
oficiais deveriam ser incorporados, mas sempre sendo o responsável pelos
encaminhamentos e transferências desses homens (e por vezes, seus familiares).
A possibilidade de invasão de Santa Catarina agitou o Brasil Meridional a partir de
1770, ameaçando também as capitanias vizinhas, como é o caso do Rio Grande de São
Pedro. Daí a preocupação que descrevemos acima. Em outras missivas, o marquês e vice-
rei utilizou o coronel José Marcelino de Figueiredo para transmitir ordens, mantimentos à
13Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3, item
1, p. 13 . 9 de agosto de 1773.
14Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
serem reabastecidos, munições e armamentos para a Ilha de Santa Catarina que enfrentava
o drama da iminente invasão dos castelhano. Solicita Lavradio que José Marcelino
encaminhe a Santa Catarina “a quantia referente aos soldos, uniformes para as tropas e 28
alqueires de feijão para o abastecimento dos armazéns desse continente”.17
O mesmo ocorre na missiva de 3 de dezembro de 1773, em que Lavradio acusa “o
envio de 17 caixotes que devem ser repassados à Ilha de Santa Catarina aos cuidados do
governador da mesma Ilha”.18 Por conta da distância territorial entre o Rio de Janeiro e as
capitanias do Sul, essa estratégia está ligada muito mais ao ponto de vista prático da administração,
facilitando a comunicação, uma vez que as capitanias do Rio Grande de São Pedro e a Ilha de Santa
Catarina eram geograficamente próximas. No entanto, observamos também que, nas missivas
analisadas, foi mais comum que as notícias, materiais, quantias, etc., fossem enviadas para o Rio
Grande e repassadas a Santa Catarina, e menos para Santa Catarina com recomendação de envio
para o Rio Grande de São Pedro. O mesmo ocorreu em correspondência enviada por Lavradio ao
governador José Marcelino no dia 6 de janeiro de 1774, em que o vice-rei comunica o envio de
“120 barris de pólvora a serem enviados a Ilha de Santa Catarina”19 para o fortalecimento de
suas fronteiras. Também acusa o envio de material para o fardamento do Regimento dos
Dragões a serem entregues por José Marcelino aos cuidados do governador da Ilha de
Santa Catarina.20
Outra questão que se destaca dentre os meandros da comunicação política e ainda a
respeito da circularidade de informações e dos conflitos de jurisdição, pode ser sintetizada
pela correspondência enviada por Lavradio à José Marcelino de Figueiredo no dia 5 de
maio de 1774, dessa vez versando mais sobre a questão do povoamento:
Remeto a V. S. o requerimento junto que faz o Capitão Mor Regente e mais
moradores e mais moradores da nova vila do Certão dos Lages a respeito de se
não deichar passar no novo registro do rio das pelotas os animais de que
necessitao para o estabelecimento daquella vila, para que V.S. a vista do mesmo
requerimento e dos documentos me informe do que for feito sobre esta matéria
(...).21
17Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
item 1, p. 17 . 12 de outubro de 1773.
18 Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
item 1, p. 21-22. Carta de 6 de dezembro de 1773.
19 Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
item 1, p. 24. Carta de 6 de janeiro de 1774.
20 Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
item 1, p. 58. Carta de 30 de agosto de 1774.
21 Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio – correspondências ativas, catálogo 3,
item 1, p. 48. Carta de 5 de maio de 1774
Observamos que o Capitão Mor da Vila do Certão dos Lages, geograficamente estava mais
próximo do posto de governo de José Marcelino de Figueiredo. Então, por qual motivo o
tal requerimento foi enviado ao Rio de Janeiro, para ser deliberado pelo vice-rei? O único
fator que pode nos auxiliar no esclarecimento dessa indagação, são as questões hierárquicas
referentes a jurisdição. O requerimento foi enviado ao Rio de Janeiro, autorizado pelo vice-
rei, que aí sim encaminhou ao governador subordinado a quem ainda solicitou maiores
informações sobre a conclusão dessa matéria. Evidentemente, como reafirmamos por
diversas vezes, durante o século XVIII, a jurisdição, os limites e fronteiras, não eram tão
bem definidos e se encontravam em constantes disputas. Por outro lado, as hierarquias que
envolvem a jurisdição e a malha administrativa da América portuguesa não podem ser
ignoradas ou descartadas quando o objetivo é a melhor compreensão da comunicação
política.
A missiva acima nos auxilia a compreender um pouco mais da circularidade de
informações entre os postos administrativos na gestão da capitania do Rio Grande de São
Pedro durante o século XVIII. A figura do 2° marquês do Lavradio e os atributos por ele
utilizados na gestão das possessões da América portuguesa, compreendendo as soluções
diversificadas, de afrouxamento ou rigidez, que não estão sempre conectadas ao fato de ser
ou não ser eficiente, mas ao direcionamento dos administradores ilustrados do XVIII.
Durante o período de guerra, os territórios envolvidos nos conflitos tendem a
passar por situações críticas quanto ao abastecimento. O comprometimento das finanças
por conta do investimento no aumento e qualificação das tropas, pagamento de soldos,
munições e fortificações, além da criação de novos Regimentos e recebimento de novos
oficiais, ou mesmo as próprias movimentações nas fronteiras de terra e mar, dificultam a
chegada de produtos necessários para a sobrevivência populacional, sendo o bloqueio de
estradas ou dos portos, uma das estratégias utilizadas para o enfraquecimento das frentes
de guerra pelo lado adversário.
Quando afirmamos que o 2° marquês do Lavradio buscou garantir a sua jurisdição
no que se refere a gestão da capitania subordinada do Rio Grande de São Pedro, mesmo
nos períodos de guerra que nos propusemos a analisar, não partimos da premissa de que o
vice-rei tinha controle efetivo sobre tudo o que era decidido, no que compete a
administração do Rio Grande, ou que tinha essa pretensão declarada. Ressaltamos a
presença da sua jurisdição, que de nenhuma maneira pode ser descartada analiticamente,
porém defendemos que, as outras ordens, de outros administradores, não necessariamente
Bibliografia
Fontes Manuscritas:
Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Vice-reinado, Capitania do Rio de Janeiro, códice 104,
caixa. 749, pacote 01.
Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Secretaria do Estado do Brasil, Vice-Reinado, códice
104, caixa 1 e 2.
Arquivo Nacional- Rio de Janeiro. Secretaria do Estado do Brasil, Correspondência do
governador e mais pessoas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina sobre a demarcação de
limites, códices 106 e 107.
Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. Fundo Marquês do Lavradio, Correspondências ativas,
catálogo 3, item 1.
Bibliografia:
Resumo
Poderoso Rey Dom Ioão o IV. nosso Senhor, cuja Monarquia prospere Deos por largos Annos. Dedicada aos fidalgos de
Portugal. Lisboa: 1641. fol. 11.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
de Mendonça Furtado e d. Antão de Almada. Além disso, figuras menos visíveis, porém
que sabiam da intenção de ruptura e do planejamento para ela com muita antecedência
eram o 3º marquês de Ferreira e o 5º conde de Vimioso, os dois parentes do duque de
Bragança4. Os conjurados que passaram a orbitar o núcleo duro da conspiração tinham
muito em comum. Em maioria, os aclamadores pertenciam a uma nobreza média assentada
nas margens de Portugal e que, apesar de fidalguia consolidada e indiscutível, porém longe
do cimeiro do referido estrato social, não conseguiam ocupar cargos de relevo em no reio
luso ou mesmo angariar mercês de Madri5. Para Cunha, isso pode ter ocorrido porque os
integrantes do grupo dos conjurados não foram membros das clientelas de Miguel de
Vasconcelos e aparentemente não participaram das redes clientelares mais importantes dos
primeiros reinados dos Felipes em Portugal6. Dos dados apresentados podemos depreender
que a principal amálgama entre os apoiadores do golpe do 1º de dezembro era justamente a
distância dos espaços de atuação política de relevo no Portugal da monarquia hispânica.
Os conjurados tentaram por alguns anos convencer o até então d. João, duque de
Bragança, a encabeçar a revolta que estava a ser planejada contra Madri. D. João sempre
hesitava, porém não dava resposta afirmativa ou negativa, de modo que os conjurados
chegaram a enviar o padre Nicolau da Maia para a Alemanha de modo a buscar o irmão do
duque de Bragança, d. Duarte, que à altura lutava sob as ordens do imperador do Sacro
Império, para que liderasse o movimento7. Por que o duque de Bragança hesitava tanto em
tomar as rédeas da conspiração que visava romper com Madri? Para Mafalda Soares da
Cunha, havia uma pronunciada diferença de interesses entre o duque e os indivíduos da
nobreza que queriam rebelar-se. Os duques de Bragança desfrutavam da confiança dos
Áustrias e d. João quedava muito satisfeito pelas graças concedidas por Madri8, entre elas
um convite para ser vice-rei de Milão, feito pelo conde-duque de Olivares, valido de d.
Felipe IV9. Ou seja, como se pode notar, ao contrário dos conjurados aristocráticos, d. João
e sua Casa estavam assimilados por Espanha e mercês não eram problema. Por que, então,
d. João, duque de Bragança, se rebelou contra um estado de coisas que tanto o beneficiava?
4 CUNHA, Mafalda Soares da. “Os insatisfeitos das honras. Os aclamadores de 1640”. In: O Governo dos Povos.
São Paulo: Alameda, 2009. pp. 485-505.
5 Idem.
6 Idem.
7 Relaçam de tudo o que se passou na felice aclamação... fols. 5-6.
8 VALLADARES, Rafael. “Sobre reyes de invierno. El diciembre portugués y los cuarenta fidalgos (o algunos
menos, con otros más)”. Pedralbes, Revista d’Història Moderna. 1995, pp. 103-136.
9 SOTO, Josefina Castilla. “La aportación de Galicia a la Guerra de Secesión de Portugal (1640-1668)”.
Segundo Cunha, a Casa de Bragança era herdeira de uma tradição capaz de oferecer
legitimidade dinástica para uma ruptura com Madri e, por isso, foi arrastada para a
rebelião10. Ao fim e ao cabo, d. João, duque de Bragança, apenas aceitou encabeçar a
ruptura quando a Catalunha se rebelou no verão de 1640, o que garantiria que Madri não
conseguiria dar pronta resposta ao que estava se concertando pelos conjurados que
orbitavam o chefe da Casa brigantina. O duque de Bragança, porém, não saiu de Vila
Viçosa até que o golpe estivesse concretizado em Lisboa, posto que, se o intento não desse
certo, poderia se defender mais facilmente de uma eventual acusação de lesa-majestade11.
O golpe do 1º de dezembro de 1640 foi realizado por um grupo de nobres,
apoiados por alguns elementos do povo, que invadiram, aos gritos de “liberdade, liberdade,
viva el rey d. João IV!”12, o Paço Real em Lisboa, onde residia a vice-rainha de Portugal, d.
Margarida de Savóia, duquesa viúva de Mântua, que foi presa. O secretário de Estado,
Miguel de Vasconcelos, se escondeu dos invasores em um armário, com uma espingarda
carregada, porém foi encontrado com relativa facilidade, baleado e defenestrado13. A vice-
rainha tentou dissuadir os conjurados de levar o golpe adiante, dando garantias de que
pediria em pessoa ao rei da Espanha que perdoasse e premiasse os atos contra um ministro
injusto que era d. Miguel de Vasconcelos. D. Antão de Almada, por medo de que a
duquesa persuadisse os nobres, a mandou se recolher14.
Uma vez o golpe consumado, havia tudo por se fazer. Quais foram os passos
seguintes do duque de Bragança e dos conjurados? Segundo Paiva, já no final dos eventos
da manhã do sábado, 1º de dezembro de 1640, os revoltosos constituíram um “mini-
governo” para manter a ordem até que o duque de Bragança, agora rei, chegasse em
Lisboa15. O governo provisório foi composto por d. Rodrigo da Cunha, arcebispo de
Lisboa, Lourenço de Lima, Miguel de Almeida, d. Antão de Almada e o arcebispo de
Braga, d. Sebastião de Matos de Noronha. As primeiras medidas dos governadores foram
evitar a recuperação de Lisboa pelas guarnições espanholas estacionadas na dita urbe e
10 CUNHA, Mafalda Soares da. “From Dukes to Kings. Particular Aspects of the Development of the House
of Braganza within the Iberian Context (Sixteenth and Seventeenth Centuries)”. In: Growing in the shadow of an
Empire – How Spanish colonialism affected economic development in Europe and in the World (XVIth-XVIIIth cc.). 2012.
p. 315.
11 VALLADARES, Rafael. op. cit.
12 Relaçam de tudo o que se passou na felice aclamação... fols. 16-17.
13 Ibid., fols. 20-21.
14 Ibid., fols. 21-22.
15 PAIVA, José Pedro. “Agora que Portugal tem rey que o governe, pay que o console, senhor que o defenda
(...), Senhor, levai-me para vós”. D. Rodrigo da Cunha e a Restauração de 1640. Lusitania Sacra. Lisboa: 2017,
pp. 135-157.
espalhar a notícia do golpe pelo reino. No dia 3 de dezembro de 1640 enviaram correios
para diversas cidades e vilas, dando conta de que “a nobreza e povo” de Lisboa
“apelidaram rei destes reinos ao duque de Bragança D. João, que se tem mandado chamar,
e nos elegeram para governadores em sua ausência”16. Além disso, d. Rodrigo da Cunha se
ocupou em preparar o palácio que receberia d. João IV, “mandando trazer da Câmara
lisboeta todos os adornos que se davam aos reis, tendo ele próprio acompanhado a
disposição de tudo.”17. Agora sim podemos chegar ao ponto nevrálgico de nossa
argumentação. D. João IV, o novo rei de Portugal, até então duque de Bragança, ascendeu
ao trono através de uma rebelião. Muitos o consideravam ilegítimo e mesmo grande parte
da nobreza ficou ao lado de d. Felipe IV de Espanha, havendo inclusive uma fuga em
massa da aristocracia portuguesa para Madri, o que deixou ainda mais delicada a situação
política do novo monarca luso18. A necessidade de aproximar d. João IV dos símbolos
régios era das maiores.
D. João IV chegou em Lisboa no dia 6 de dezembro de 1640 e formou seu
Conselho de Estado, com o qual passou a se reunir diariamente. Nove dias depois da
chegada de d. João IV teve lugar sua cerimônia de levantamento, para a qual um auto foi
confeccionado19. A cerimônia de levantamento de d. João IV, durante a qual houve o
juramento de obediência dos “grandes, títulos seculares, eclesiásticos e pessoas que se
acharam presentes” ao novo monarca, ocorreu no dia 15 de dezembro de 1640, no terreiro
do Paço da Ribeira20. O auto da ocasião começa versando acerca da estrutura montada para
que o evento acontecesse, assim como os primeiros passos da requintada cerimônia. O
duque-rei entrou no lugar da cerimônia vestido com “Opa de brocado Roçagante, &
vestido de rico pardo bordado de ouro, com abotoadura de pedraria, & hum collar ao
pescoço (...), & delle pendente o habito da Ordem de Nosso Senhor IESV Christo”21. Em
seguida sentou-se em uma cadeira situada em cima de um pequeno estrado, debaixo de um
16 Idem.
17 Idem.
18 VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal – Guerra e Restauração (1640-1680). Lisboa: A Esfera dos
Eclesiásticos, & pessoas que se acharão presentes, se fez a el Rey Dom João o IV. nosso Senhor, na Coroa, & Senhorio destes
Reynos, & do que elle fez às mesmas pessoas na Cidade de Lisboa, em os quinze dias do mes de Dezembro do Anno de 1640.
Lisboa: 1641.
20 Ibid., fol. 1.
21 Ibid., fol. 2.
dossel bordado de ouro e prata, por sua vez ladeado por figuras bordadas em pano
riquíssimo de “ras de ceda, & ouro” que representavam a Justiça e a Prudência22.
Segundo o auto, do lado direito do rei ficaram alguns prelados e eclesiásticos, entre
os quais d. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, d. Francisco de Castro, inquisidor geral
de Portugal, d. Sebastião de Matos de Noronha, Arcebispo de Braga e d. Francisco de
Sotto Mayor, bispo de Targa. Do lado esquerdo estiveram os “mais Grandes, & Titulos do
Reyno, Officiaes Mores da Casa de Sua Magestade, & Fidalgos”, sem precedências
cerimoniais. Houve mais nomes da nobreza do que do clero presentes no juramento de 15
de dezembro de 1640, dado que a ruptura com Madri foi concertada e engendrada, em
esmagadora maioria, por parcelas da nobreza, como vimos anteriormente. Entre os
presentes, mas não apenas23, pela nobreza, estavam d. Miguel de Meneses, duque de
Caminha, d. Luis de Noronha, marquês de Vila Real, d. Sancho de Noronha, conde de
Odemira e d. Lourenço de Lima e Brito, visconde de Vila Nova de Cerveira24. Ao centro,
aos pés do estrado, ficaram os senhores de terras, alcaides-mores e fidalgos que não tinham
lugar ao lado de d. João IV.
Após a entrada do monarca e de todos em pé nos seus lugares, houve uma
proposição – ou exposição oral – feita pelo doutor Francisco de Andrade, ao longo da qual
o mesmo se referiu aos “justos motivos” para a ruptura com Castela – basicamente o
desrespeito aos usos e costumes portugueses por parte de Madri e direito ao trono que
tinha d. João IV por sua ascendência25 –. Após o discurso de Francisco de Andrade, chegou
a vez de d. João IV fazer o seu próprio juramento. Com a mão direita posta em uma cruz
sobre um missal, e um cetro de ouro na mão esquerda, proferiu o seguinte juramento:
“Iuramos, & prometemos de com a graça de nosso Senhor, vos reger, &
governar bem, & dereitamente, & vos administrar inteiramente justiça,
quanto a humana fraqueza premite, & de vos guardar vossos bons
22 Ibid., fol. 3.
23 Optamos por não listar os nomes de todos os presentes. A relação completa dos nomes dos que estiveram
na cerimônia se encontra no auto.
24 Auto do levantamento... fol. 4.
25 D. João IV era descendente de d. Catarina de Bragança, que havia disputado o trono de Portugal quando
da crise sucessória de 1580. Os principais candidatos ao trono na ocasião foram d. Felipe II de Espanha e a
supracitada duquesa. D. Felipe II descendia de d. Manuel I por via materna, enquanto a duquesa de Bragança
era descendente patrilinear de d. Manuel I. Tal fato poderia favorecer a duquesa de Bragança em sua
candidatura, posto que na época, quando se tratava de sucessões dinásticas, a linhagem masculina tinha
preferência sobre a feminina. Além disso, d. Catarina era a candidata preferida de d. Henrique no tema da
sucessão de Portugal, porém o velho monarca não conseguiu apoio da nobreza para a duquesa de Bragança,
dado que parte importante do referido estrato social já tinha sido cooptado por d. Felipe II. HERMANN,
Jacqueline. “Um rei indesejado. Notas sobre a trajetória política de D. Antônio, Prior do Crato.” Revista
Brasileira de História. São Paulo: 2010, p. 141-166.
monarca ter herdado o reino – ou, no caso de d. João IV, usurpado – de seu antecessor
para ser rei30: era preciso ter o beneplácito das Cortes.
D. João IV, e membros de seu Conselho de Estado, sabiam da importância política
das Cortes e, portanto, não se demorou para convocá-las. As Cartas de convocação foram
enviadas para as vilas e cidades do reino que tinham direito a representação em Cortes.
Vale lembrar que apenas o rei tinha a prerrogativa de chamar as Cortes e, se d. João IV
tivesse seu chamado atendido, seria uma grande vitória política e um bom termômetro da
aderência à ruptura com Madri31. E foi o que aconteceu. Nas Cortes que tiveram início no
dia 28 de janeiro de 1641, as primeiras da nova dinastia de Bragança, estiveram presentes
procuradores de 84 cidades e vilas das aproximadamente 100 com direito de assento em
Cortes32. Os procuradores das cidades e vilas mencionadas eram os representantes do
Terceiro Estado, ou Povos, que apenas poderiam juntar-se por ocasião de convocação régia
para Cortes. Em cada cidade e vila eram eleitos dois procuradores para que fossem ao lugar
das Cortes para tratar dos assuntos prementes, sempre aludidos nas cartas convocatórias 33.
Seria muito ingênuo de nossa parte pensar que d. João IV convocou as Cortes para fins de
janeiro de 1641, portanto quase dois meses após o golpe de dezembro de 1640, por um
genuíno respeito às tradições portuguesas. O juramento de d. Felipe III de Espanha, em
Portugal, feito nas Cortes de 1619, foi considerado defeituoso. E isso porque o monarca
espanhol teve reservas em respeitar os estilos portugueses, o que, claro, foi aproveitado
30 Havia vozes destoantes no que toca a capacidade eletiva e fiscal das Cortes portuguesas. Alguns
consideravam que o rei era soberano e que, por isso, estava desobrigado a pedir o beneplácito das Cortes
quando precisava instituir impostos ou tratar de uma questão sucessória. ALMEIDA, Pedro Tavares de
(org.). História do Parlamento Português. Lisboa: Assembleia da República (no prelo).
31 CARDIM, Pedro. op. cit., p. 110.
32 Nas Cortes de 1641, 84 vilas e cidades foram representadas, sendo que os procuradores de Santiago de
Cacém não foram admitidos. O número de vilas e cidades representadas nas Cortes em tela se aproxima da
quantidade de cerca de 100 tradicionais urbes com assento em Cortes, mencionada por Cardim em:
CARDIM, Pedro. “La corona y las autoridades urbanas en el Portugal del Antiguo Régimen: entre los
Habsburgo y los Braganza”. In: Congreso Internacional “Espacios de poder: Cortes, ciudades y villas (s-XVI-XVIII)”.
Madrid: Universidad Autónoma, 2002, pp. 29-49, v. 1.
33 Quando da ocasião da convocação de Cortes, o monarca português mandava expedir cartas às câmaras das
cidades e vilas que possuíam voto e assento nelas. Cartas régias eram enviadas para os Provedores das
Comarcas, que as entregavam nas respectivas câmaras, que por sua vez passavam certidões de recebimento e
ciência, que os Provedores remetiam ao Procurador da Coroa. Estas cartas enviadas pelo monarca português
eram compostas por três elementos: I- Os motivos principais pelos quais as Cortes estavam a ser convocadas;
II- Local e dia da celebração da Sessão Real de Abertura das Cortes; III- Ordem para eleição e designação dos
Poderes das Procurações. Em casos particulares, as cartas reais de convocação para as Cortes continham
instruções para eleição de definidores, como nas que eram enviadas aos arcebispos e bispos, priores das
ordens militares, como de Santiago e de Avis, e abades dos principais mosteiros do reino, como o da
Alcobaça e de Santa Cruz. Cartas régias com o mesmo formato eram enviadas para os nobres titulados,
senhores de terras e alcaides mores. CARVALHOSA, Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de
Macedo Leitão. Memorias para a Historia, e teoria das Cortes geraes, que em Portugal se celebrarão pelos tres Estados do
Reino. Lisboa: 1827. vol 1. pp. 3-8.
pela propagandística brigantina34. Além disso, consta que d. João IV convocava as Cortes
sempre “com muita repugnância”35.
O segundo juramento de obediência a d. João IV, dessa vez com os Três Estados
reunidos, como mandava a tradição, ocorreu aos 28 de janeiro de 1641 – um dia antes da
seção de abertura das Cortes de 1641 –, no Paço da Ribeira. Diferentemente da cerimônia
de levantamento do dia 15 de dezembro de 1640, o juramento dos Três Estados ocorreu na
sala dos Tudescos, e não no terreiro do Paço. Como na cerimônia de levantamento,
segundo o auto do juramento de obediência dos Três Estados, d. João IV entrou no
recinto vestido “de pardo bordado de ouro, com botões de finissimos rubis, & requissimo
collar de pedraria de que trazia pendente o habito da ordem de nosso Senhor IESV Christo
(...)” e assentou-se em uma cadeira ricamente decorada36. Após todas as formalidades
iniciais e os representantes dos Eclesiásticos, Nobreza e Povos assentados, houve um
discurso de proposição proferido por d. Manoel da Cunha, bispo de Elvas. Em seu
discurso, o prelado se referiu aos apuros econômicos de Portugal e exortou todos a
contribuir da melhor maneira para o bem comum do reino. D. Manoel da Cunha ainda
afirmou que um dos motivos que levara d. João IV a convocar os Três Estados para as
Cortes era que os Povos pudessem jurar obediência ao rei:
“He que os amados, & queridos Povos seus, & mais pessoas, que não gozarão
daquelle ditoso dia37, nem poderão por sua absencia reconhecer a Sua Magestade
por seu Rey, & Senhor com juramento, se não sò por acclamação, & desejos,
agora os satisfação neste Acto querendo Sua Magestade tambem por este modo
satisfazer em parte a seu amor com o prazer, & contentamento, que recebe de
nos tomar huma, & muitas vezes debaxo de seu amparo, & procteção.” 38
Por baixo do belo discurso, porém, havia intenções menos nobres por parte da Coroa. Em
um parecer supostamente de autoria de Pedro Vieira da Silva, que seria secretário de
Estado posteriormente, se aconselha que d. João IV promova uma cerimônia de juramento
em Cortes, com os Três Estados reunidos, de modo que cada um jurasse em particular,
como ditavam as tradições do reino. Segundo o parecer, isso faria com que aqueles que
jurassem obediência ao novo monarca – um rebelde aos olhos de Madri – perdessem as
34 CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. p. 108.
35 ALMEIDA, Pedro Tavares de. op. cit.
36 ALVAREZ, Antonio (impressor). Auto da retificaçam do juramento que os Tres Estados destes Reynos fizerão a elRey
nosso Senhor Dom Ioam o IV deste nome, & do juramento, preito, & menagem que os mesmos tres Estados fizerão ao
Serenissimo Principe Dom Theodosio N. Senhor em a Cidade de Lisboa a 28 de janeiro de 1641. Lisboa: 1641. fol. 2
37 O “ditoso dia” foi o levantamento de d. João IV, que teve lugar aos 15 de dezembro de 1640, em Lisboa.
Como dito anteriormente, porém, a aclamação de um monarca não era suficiente em termos de legitimidade.
Os Três Estados do reino precisavam prestar juramento de fidelidade em torno do novo monarca em Cortes.
38 Auto da retificaçam... fol. 6.
esperanças de um perdão por parte de Castela e, logo, não tivessem outra opção a não ser
lutar com o máximo de suas capacidades pelo sucesso da ruptura engendrada em 1º de
dezembro de 164039.
D. João IV não jurou novamente defender os “privilégios e liberdades” dos
Estados na cerimônia do dia 28 de janeiro de 1641. Esta serviu exclusivamente para que os
vassalos jurassem obediência ao novo rei. Aqueles que juraram lealdade a d. João IV no 15
de dezembro de 1640 o fizeram novamente, porém. Da mesma forma como ocorreu no
levantamento de d. João IV, a fórmula de juramento, a mesma utilizada na cerimônia do dia
15 de dezembro de 1640, foi lida em voz alta pelo secretário de Estado Francisco de
Lucena, de forma que os que iam jurar apenas diziam “assim o juro”, com a mão direita em
cima de uma cruz sobre um missal, para depois beijar a mão do monarca40. O primeiro a
jurar foi o duque de Caminha, seguido pelos outros elementos da Nobreza, sucedidos pelos
Povos e, enfim, os Eclesiásticos41.
Podemos concluir que o simples levantamento de d. João IV pelos “grandes títulos
seculares e eclesiásticos”, como ocorreu no dia 15 de dezembro de 1640, seria imperfeito,
incapaz de conferir a legitimidade necessária ao novo monarca, e mesmo o auto da ocasião
reconhecia que estavam presentes apenas “dous Estados” (Eclesiásticos e Nobreza). Além
disso, mais do que necessidade de legitimidade através do respeito aos costumes do reino,
havia também o componente político de prender os súditos por juramento, o que os tiraria
qualquer horizonte de perdão de Castela no caso de derrota dos rebeldes capitaneados pelo
duque de Bragança. Segundo a análise feita, podemos depreender que o levantamento
ocorrido no dia 15 de dezembro de 1640 foi empreendido para conferir, além de alguma
fina resina de legitimidade ao movimento de ruptura com Madri, uma base de apoio
político mínima para o novo monarca, de modo que o frágil castelo de cartas do pós-golpe
conseguisse resistir até que as Cortes pudessem ser reunidas no fim de janeiro de 1641. Aí
sim, nas Cortes, com os Três Estados reunidos, se poderia dizer que o duque de Bragança
estava, finalmente, em situação política menos delicada, posto que jurado rei na referida
assembleia representativa.
39 CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. pp. 88-
89.
40 Auto da retificaçam... fol. 16.
41 Ibid., fols. 8-16.
Bibliografia
ALMEIDA, Pedro Tavares de. (org.). História do Parlamento Português. Lisboa: Assembleia da
República (no prelo).
ALVAREZ, Antonio (impressor). Auto da retificaçam do juramento que os Tres Estados destes
Reynos fizerão a elRey nosso Senhor Dom Ioam o IV deste nome, & do juramento, preito, & menagem
que os mesmos tres Estados fizerão ao Serenissimo Principe Dom Theodosio N. Senhor em a Cidade de
Lisboa a 28 de janeiro de 1641. Lisboa: 1641.
___________________________. Auto do levantamento e juramento, que por os grandes títulos
seculares, e Eclesiásticos, & pessoas que se acharão presentes, se fez a el Rey Dom João o IV. nosso
Senhor, na Coroa, & Senhorio destes Reynos, & do que elle fez às mesmas pessoas na Cidade de Lisboa,
em os quinze dias do mes de Dezembro do Anno de 1640. Lisboa: 1641.
ANVERES, Lourenço de (impressor). Relaçam de tudo o que se passou na felice aclamação do Mui
Alto, & mui Poderoso Rey Dom Ioão o IV. nosso Senhor, cuja Monarquia prospere Deos por largos
Annos. Dedicada aos fidalgos de Portugal. Lisboa: 1641.
CARVALHOSA, Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão.
Memorias para a Historia, e teoria das Cortes geraes, que em Portugal se celebrarão pelos tres Estados do
Reino. Lisboa: 1827. vol 1.
CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições
Cosmos, 1998.
______________. “La corona y las autoridades urbanas en el Portugal del Antiguo
Régimen: entre los Habsburgo y los Braganza”. In: Congreso Internacional “Espacios de poder:
Cortes, ciudades y villas (s-XVI-XVIII)”. Madrid: Universidad Autónoma, 2002, pp. 29-49, v.
1.
COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Temas e Debates, 2008
CUNHA, Mafalda Soares da. “Os insatisfeitos das honras. Os aclamadores de 1640”. In: O
Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009.
_______________________. “From Dukes to Kings. Particular Aspects of the
Development of the House of Braganza within the Iberian Context (Sixteenth and
Seventeenth Centuries)”. In: Growing in the shadow of an Empire – How Spanish colonialism
affected economic development in Europe and in the World (XVIth-XVIIIth cc.). 2012.
HERMANN, Jacqueline. “Um rei indesejado. Notas sobre a trajetória política de D.
Antônio, Prior do Crato”. Revista Brasileira de História. São Paulo: 2010, pp. 141-166.
PAIVA, José Pedro. “Agora que Portugal tem rey que o governe, pay que o console,
senhor que o defenda (...), Senhor, levai-me para vós”. D. Rodrigo da Cunha e a
Restauração de 1640. Lusitania Sacra. Lisboa: 2017, pp. 135-157.
SOTO, Josefina Castilla. “La aportación de Galicia a la Guerra de Secesión de Portugal
(1640-1668)”. Espaço, Tiempo y Forma. 1996, pp. 231-232.
VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal – Guerra e Restauração (1640-1680).
Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006.
____________________. “Sobre reyes de invierno. El diciembre portugués y los cuarenta
fidalgos (o algunos menos, con otros más)”. Pedralbes, Revista d’Història Moderna. 1995, pp.
103-136.
Resumo
1Luiz José da Silva, doutorando em História. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Bolsista
CAPES. E-mail: luizjosesilva909@gmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
5 Idem, p.175,176.
6 WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1973, Vol.
II, p.400.
com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem
apenas das intenções dos sujeitos”7.
Elaboramos com brevidade três tópicos, através dos quais procuramos nos inserir
no contexto das “Navegações, Conquistas e Revoluções: O Mundo Colonial e Moderno”:
Contexto político a partir das Cortes de Évora-Viana (1481-1482); Presença política,
territorial e econômica da África no reinado de D. João II; e, Ações de D. João II:
consolidação do processo de expansão marítima.
7 ORLANDI, Eni Puccineli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 5ª ed. Campinas, SP: Pontes,
2003, p.30.
8 SOUZA, Armindo de. A Estratégia política dos municípios no reinado de D. João II. In: Encontro Científico Poder
Central e Poderes Periféricos em Perspectiva Histórica. Évora. 1989, p.140. Disponível em:
ojs.letras.up.pt>index.php>historia>article>download. Acess 01 ago 2020.
9 Idem.
10 OLIVEIRA MARTINS, J. P. História de Portugal. 3.ed. Tomo I. Lisboa: Livraria Bertrand,1882, p.194.
11 HESPANHA, Antônio Manuel. As vésperas do Leviatã: instituições e poder político – Portugal séc XVII.
Lisboa: Pedro Ferreira, Artes Gráficas, 1986, p.19.
12 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia política. Rio de Janeiro: Livraria
observação de Xavier Gil Pujol: “o começo do Estado moderno está muito ligado à
proclamação do império da lei, como referência explícita da autoridade real e, em
consequência, está também ligado ao aumento do número de oficiais de justiça e ao
endurecimento do direito penal”13. As Cortes reunidas em Évora Viana (1481-1482)
exteriorizam a força da lei sob a autoridade do rei D. João II; a reavaliação dos direitos e
propriedades que eram exclusividade da aristocracia, agora sob a ação dos corregedores e as
alterações nas penalidades.
13 PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre Capital e
territórios nas Monarquias europeias dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Edições Cosmos, 1991, p.131.
14 AZURARA, Gomes Eannes de. Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné. Paris: J. P. Aillaud,
1841.
15 Transpor o Cabo Bojador era o desafio e uma vez isto realizado, alcançar as terras antes não visualizadas
Ainda que estivesse ocupado com a realização das Cortes de Évora não deixou de
ter a África como prioridade paralela a implementação de seu ideal político, enviando
Diogo d’Azambuja com a missão de construir o Castelo da cidade de São Jorge na Mina,
no mês de dezembro de 1481. Transportava seiscentos homens, entre cem pedreiros,
carpinteiros e quinhentos homens de armas, mesmo com a oposição de membros do
RAMOS, Rui. História de Portugal. Lisboa, Portugal: A Esfera dos Livros, 2009, I Parte, Cap.VII.
16
17LOURENÇO, Ana Luísa Pereira. D. João II: entre a história e a historiografia. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História – PPGHIS, Universidade de Brasília – UNB, 2016, p.30.
conselho que acreditavam não ser esta uma tarefa possível de ser realizada, devido a
distância, as doenças da terra e a falta de confiança dos negros e outros inconvenientes. 18
Esta edificação tinha por finalidade garantir o estoque de mercadorias utilizadas para a
sobrevivência daqueles que lá ficariam ou como moeda de troca na aquisição do ouro a ser
enviado à Portugal.
Desde que assumiu o controle da Guiné, o “Príncipe Perfeito” identificara o
desastre econômico da administração de seu pai, D. Afonso V e não ignorava que somente
as investidas marítimas poderiam revitalizar o comércio, situando Portugal diante de novas
possibilidades. Joaquim Veríssimo Serrão19 e Gomes Eanes de Zurara, explicitam que as
razões econômicas conduziram o processo expansionista na busca de produtos carentes no
reino, como exemplo a falta de cereais, como o trigo de centeio, que passaram a explorar
nas ilhas de Madeira e Açores. Outros encontrados e explorados: o mel; a madeira; a cera;
produtos exóticos; o sal de Tagaza e Igilde; o cobre de Takkeda; e, o ouro de Aguim. Essas
descobertas ocorreram durante as viagens de exploração. Nas conquistas de D. João II:
Tomada de D’Arzilla (1471), Tânger (1471), Tratado de Alcáçovas (1471), Ilha de São
Tomé (1471), Ilha do Príncipe (1471), Sul de Angola (1482–1486), Cabo das Tormentas ou
da Cabo da Boa Esperança (1488) e Tratado de Tordesilhas (1495), não mencionamos
descobertas, mas ações que a partir das de D. Henrique possibilitaram D. João II
reorganizar os aspectos: social, econômico e o territorial do reino.
No verão de 1486, Bartolomeu Dias partiu de Lisboa, para dobrar o Cabo da Boa
Esperança. Neste mesmo ano, D. João II enviou por terra, para o Oriente, Antônio de
Lisboa e Pero Montarroio, com a missão de observar e tudo anotar, ou seja obter
informações para o monarca português; infelizmente não passaram de Jerusalém por não
falarem árabe. Este obstáculo não diminuiu o interesse de D. João II em ter informações e
desta vez envia Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, ambos partem de Lisboa, separam-se
no decorrer da viagem, sendo que Afonso de Paiva falece, mas Pero da Covilhã alcança
Calicut e Goa, atravessa o Oceano Índico, atinge Sofala, onde colheu informações sobre a
costa oriental da África e a ilha da Lua (Madagascar).20 Estas são ações de D. João II, tidas
como pioneiras, se considerarmos este homens como precursores dos espiões modernos.
18 RESENDE, Garcia. Crônica do Rei D. João II. Lisboa: Biblioteca de Clássicos Portuguese, Vol II,
Cap.XXV, 1902.
19 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: formação do Estado Moderno (1415-1495). Lisboa:
Fizeram chegar ao monarca, informações preciosas que muito o auxiliaram e aos seus
sucessores.
O reinado de D. João II, breve em seus 14 anos, porém ultrapassou as fronteiras do
tempo e está presente naquilo que seus sucessores realizaram. Existe a prática de consagrar
venturoso o que realiza, pois este é presente, aquele que está inserido no contexto passado,
entra para a história ou não. Os estudiosos do “Príncipe Perfeito” se deparam em suas
pesquisas com fragmentos de informação, o que torna mais desafiador e pretensioso
resgatar um reinado quase perfeito.
Bibliografia
Resumo
Monarquia confessional
1Bacharel em Teologia pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, graduada em História pela UFF,
mestra em História Social pela UFF e doutoranda em História Moderna pela UFF, e-mail para contato:
marianasarkis@id.uff.br .
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
38.
5 Concílio de Trento, sessão VI, decreto de reforma I. Também na sessão XXIII, p.98.
suas dioceses6. Entretanto, a sessão XXIV amplia os poderes episcopais, conferindo aos bispos
autoridade especial no que tange a correção dos erros contra a fé e a conduta. Felipe II e seus
representantes em Trento, defenderam a jurisdição episcopal e a independência dos Tribunais
episcopais frente aos argumentos de Roma. O monarca buscava evitar a intromissão do papa
nos processos que se realizavam nos tribunais eclesiásticos, assim como, pretendia centralizar
sua política eclesiástica através da figura do bispo por ele nomeado7.
Não podemos esquecer que através do Patronato Real, o rei obtinha o direito de
nomear os bispos, mantendo sua dependência a respeito da Coroa, e de certo modo,
fragilizava as tentativas do papa de dirigir a ação pastoral e reformadora do episcopado. O
Patronato foi a legislação secular sobre assuntos eclesiásticos, construída através de um
processo de longas adaptações e negociações entre Igreja e Estado. Através dessa
prerrogativa, a monarquia alçava os prelados à missão de líderes da reforma dos costumes,
ao mesmo tempo que alimentava o caráter dual entre Igreja e Estado. Assim sendo, os
conflitos de competência foram contínuos pelo desejo régio de exercer as potestades
espirituais em matérias que Roma considerava de sua exclusiva incumbência.
Fato é que, a reforma dos costumes não teve início ou se concluiu com Trento. Em
1564 Felipe II aprovava os decretos do Concílio, agindo com ressalvas para com aqueles
decretos que pudessem afetar os privilégios da coroa “interponiendo a ello nuestra
autoridad y brazo real, cuanto será necesario y conveniente”8, contrariando as atas do
Concílio, onde apenas o papa estaria apto para resolver as dificuldades de interpretação dos
decretos. Conforme apontou Terricabras, Felipe II não se limitou a impulsionar a reforma,
mas também a controlar suas estruturas internas por diversos mecanismos9.
6 Trento, sessão XXIV, cap. III. O monarca foi vitorioso nessa questão, pois na sessão XXIV, capítulo XX,
ordenou-se que a apelação se daria no reino e não em Roma. Os capítulos de reforma da sessão XXIV
também ampliaram os poderes episcopais diante ao clero local.
7 MILLAN, Jose Martinez. El confessionalismo de Felipe II y la Inquisición. Revista Trocadero: Universidad
concilios provinciales en la disputa por las parroquias indígenas, 1555-1564. México: IISUE-UNAM, 2010,
pp. 220-221.
9 TERRICABRAS, Ignasi Fernández. Felipe II y el clero secular: la aplicación del Concilio de Trento. Madrid:
Junta Magna em 156810, presidida pelo cardeal Diego de Espinosa, essa junta foi
responsável por algumas ações reformistas que não necessariamente seguiam as ordenanças
papais, e tratava da consolidação da igreja nas Índias de Castela. Discutiu-se, entre outros
assuntos, a pretensão papal de enviar núncios aos bispados americanos, como resposta aos
insistentes informes sobre uma evangelização insuficiente e a indisciplina do clero. O papa
acabou decidindo não enviar núncios à América, evitando novos embates com a coroa.
A Junta Magna também delimitou a jurisdição dos tribunais reais e eclesiásticos, em
que todas as medidas relacionadas a jurisdição episcopal, permitiria evitar a intervenção de
outras autoridades, e o mais importante, controlar a administração da justiça. Uma pronta
resposta foi a bula papal “In Coena Domini”, que tratava das excomunhões e penas
reservadas a absolvição papal. Como resultado da Junta Magna, o rei mandou por meio de
seu embaixador em Roma, Juan de Zúñiga, um documento com diversas petições ao papa.
Nesse documento o monarca manifestou sua preocupação com a justiça, e ligada a essa
questão estava a petição de que os bispos tivessem uma maior jurisdição nos casos
reservados, assim como, instrumentos necessários para poder levar a cabo um processo
judicial do início até a sentença final11.
Como resultado dessa Junta Magna, Felipe II autorizou a publicação da
“Ordenanza de Patronazgo”, que formava parte do livro I “De la gobernación espiritual”
escrito por Juan de Ovando, visitador e presidente do Conselho das Índias, entre 1563-65,
nesse livro se encontra plasmado os projetos da corte a respeito da organização e
funcionamento do tribunal episcopal, embora o livro não tenha sido totalmente publicado,
devido a morte de Ovando, suas partes se tornaram conhecidas através das cédulas reais 12.
No título IV do livro de Ovando se estabeleceu os parâmetros para nomeação dos
prelados, assim como, suas obrigações e direitos, como o dever de residência, a necessidade
das visitas as dioceses, o dever de convocar os concílios provinciais, e as barreiras jurídicas
de cada tribunal a cargo dos prelados, sobre esse último, vejamos:
10 Nela se reuniram os representantes dos Conselho das Índias, do Conselho da Fazenda e do Conselho de
Castela; também representantes das ordens mendicantes, além do visitador e presidente do Conselho das
Índias, Juan de Ovando, estiveram presentes o vice-rei Francisco de Toledo e o mestre-escola da catedral do
México, Sancho Sánchez de Muñón. Veja: RAMOS, Demetrio. La crisis indiana y la Junta Magna de 1568.
Jahrbuch für geschichte von staat,wirtschaft und gesellschaft Lateinamerikas, Köln, Böhlau Verlag, 1986, p. 6-
7. Disponível em: https://www.degruyter.com/view
11 AGI, Patronato, 171, N. 1, R.1; Documento publicado por Op. Cit. Puente, 2010, pp.64-65. Também
citado por: TERA, Gabriela Oropeza. La reforma a la disciplina eclesiástica vista a través del tribunal del arzobispado de
México, siglo XVII. Universidad Nacional Autónoma de México, 2012. (dissertação de mestrado), pp. 53-54.
12 Documento publicado IN: Puente, 2010, pp. 64-65
de México, 1712-1748. IN: Los Concilios Provinciales en Nueva España. Reflexiones y Influencias. María del
Pilar Martínez López-Cano e Francisco Javier Cervantes Bello (coord.) México: UNAM, 2005, p.337-362.
Concílios provinciales mexicanos, época colonial. México: UNAM, 2004. A partir de agora cito apenas: III
Concílio, livro 3, tít. I, § I-II.
Ser bem composto e ordenado nas palavras, movimentos e ações, temperado no comer,
modesto no vestir e na ornamentação de sua casa. Entre os principais vícios e pecados dos
bispos estaria gastar suas rendas com coisas profanas, não pregar o evangelho, não residir
em sua diocese, e não realizar as visitas, a pena poderia ser a suspensão e obrigação de
restituir à igreja21.
A visita episcopal era uma ferramenta importante na vigilância e prevenção dos
pecados públicos e escandalosos. O teólogo consultor do III Concílio, o jesuita Juan de la
Plaza, dedicou um memorial ressaltando a importância da atuação dos bispos nessas visitas,
a qual chamou de “el ánima del gobierno de su obispado”22. Os conciliares ordenaram que
o objetivo central dessas visitas seriam “introducir y propagar la doctrina santa y ortodoxa,
extirpar las herejías, proteger y fomentar las buenas construmbres”23. Os decretos deixam
claro que, com essas visitas se esperava dos bispos “la reforma del clero y del pueblo”24.
Através dessas visitas se realizavam um verdadeiro exame das dioceses, e se constituiram
enquanto um recurso importante que alçava os prelados como agentes da reforma dos
costumes, e suas determinações eram admitidas pela coroa25.
Juan de la Plaza também apresentou um memorial chamando a atenção dos bispos
conciliares para figura do confessor como peça chave ao lado dos prelados. O confessor
teria a tarefa de guiar o bispo, instruir nos casos difíceis e mantê-lo no caminho da moral e
dos bons costumes que sua hierarquia requeria. O jesuíta apresenta que a falta de bons
confessores era a razão de tantos pecados e desordens entre os cristãos na América26. Por
essa razão, Plaza sugeria que os bispos conciliares dessem atenção ao exame, que Trento já
exigia27, para eleger os ministros confessores. Não por acaso, o próprio Plaza foi autor do
Directorio de Confessores elaborado pelo III Concílio mexicano.
Outra ferramenta indispensável para realização da reforma dos costumes foi
reafirmação do foro judicial eclesiástico. A autoridade do bispo estava dividida em duas
potestades: a primeira eram os atos de caráter sacramental e a segunda eram suas funções
21 Utilizamos para esse estudo o Directorio del Santo Concilio Provincial Mexicano, publicado na integra por Op.
Cit. López-Cano, 2004, pp. 126-127.
22 Os memoriais enviados ao III Concílio estão publicados na coletânea organizada por CÁZARES, Alberto
Carrillo. Manuscritos del Concilio Tercero Provincial Mexicano. Zamora: El Colegio de Michoachán,
primeiro tomo, volumen I, 2006, pp. 254.
23 III Concílio, livro V, Tít. I, “De las Visitas”… § IX.
24 III Concílio, Livro III, Tít. I, § I .
25 Muitos aspectos deveriam ser avaliados nessas visitas, descatam-se os decretos do Livro V, Tít. I; Libro V,
Tít. IX.
26 Op. Cit. Cázares, Tomo I, Vol. I. Também IN: ZUBILLAGA, Felix. Historia de la Iglesia en la América
judiciais. Com tantas obrigações a cumprir os bispos delegavam aos juízes eclesiásticos sua
autoridade e jurisdição sob os Tribunais Eclesiásticos da Nova Espanha28. Cada bispado
deveria contar com um tribunal e suas faculdades jurisdicionais eram amplas. Tratavam da
disciplina interna do clero, de assuntos matrimoniais, dos delitos das populações nativas, e
atuavam contra os pecados públicos. Embora tivessem Madrid como última instância, cada
tribunal atuou segundo considerou mais oportuno, ou seja, o tribunal poderia mudar de
política judicial e pautas de atuação, dependendo de quem o regia, o bispo, ou quando em
Sede Vacante, o Cabildo da catedral29. Por estarem distantes de Roma, mais penas e
pecados cuja absolvição estaria normalmente reservada à Santa Sede, nas Índias de Castela
teria passado para a jurisdição do bispo. O mesmo ocorria na administração da justiça, a
apelação de sentença, por exemplo, não precisaria ser dirigida à Roma, mas a um arcebispo
titular da província ou a outros bispos próximos.
O III Concílio reforçou a faculdade dos bispos como juízes no livro segundo dos
decretos, e também abordou os direitos e obrigações dos oficiais do tribunal, legislando sobre o
desenvolvimento dos processos30. Os decretos regularizaram algumas penas, apresentando
sobre qual autoridade recaia a responsabilidade de sentenciar, ora seria o bispo, ora o juiz
eclesiástico, e por vezes, o próprio confessor. Os principais delitos que deveriam ser
perseguidos pelo tribunal se concentram em calúnias, simonia, heresia, injúrias, concubinato,
danos, adultério, usura, e feitiçaria31. Esses delitos eram recorrentes nos manuais de confessores
da época, e também no próprio Directorio elaborado pelo III Concílio como exemplos de
transgressão da conduta ideal. O castigo deveria se dar de maneira distinta para cada individuo,
segundo sua ocupação social. Assim sendo, devemos entender a política de condenação como
parte do cuidado da ortodoxia e da reforma dos costumes, e o recurso judicial se instituiu como
complementário e vinculado à ação pastoral de vigilância.
Conclusão
Embora os decretos do III Concilio Provincial mexicano tenha levado 37 anos para
serem publicados, a política eclesiástica invocava a tradição dos bispos como agentes
28 Assim diz o Decreto: “necesitan de la ayuda de los vicarios, a quienes deben reunirse para que tomen con
ellos parte en la solicitud episcopal, principalmente en los casos pertencientes al foro judicial”. Libro I, Tít.
VIII, § I. Sobre os foros eclesiásticos ver: TRASLOSHEROS, Jorge. Historia judicial eclesiástica de la Nueva
España. México: Editorial Porrúa, 2014, pp. 21-22.
29 Op. Cit. Traslosheros, 2014, p.17-19.
30 III Concílio, Livro II, Tít. I.
31 III Concílio, Livro I, tít. VIII-IX.
políticos, e entende-se o papel desempenhado por eles como um fio condutor para
reflexões mais amplas sobre o difícil equilíbrio entre Igreja e Estado no governo da
América hispânica. Até aqui expomos o “modelo ideal”. Modelo e prática não
necessariamente caminhavam juntos, ou na mesma direção. Conforme vimos, para fazer
valer esse modelo, ansiado tanto pelo monarca como pela Igreja, o Concílio provincial
estabeleceu instrumentos de vigilância. A visita pastoral somavam esforços com o Tribunal
Eclesiástico, e esse último tinha como missão reparar os comportamentos públicos e
escandalosos. Com uma difícil transição entre os séculos XVI e XVII a monarquia
dependeria ainda mais do exercício das virtudes morais cristãs e da justiça para sua
conservação, em uma reforma permanente dos costumes que teve seu ápice regalista no
século XVIII, contexto para outras discussões.
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Resumo
Secretaria de Estado e Cultura, 1993, p. 22; CHAVES, Otávio Ribeiro. “América portuguesa: do Tratado de
Madri ao Tratado de Santo Idelfonso”. Revista Territórios & Fronteiras. Cuiabá: Editora do Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, 2014, p. 231; CARREIRA, Antônio. A
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do século XVIII. 1ª edição. São Paulo: Editora Nacional, 1988, p. 49-53; DIAS, Manuel Nunes. “Fomento
ultramarino e Mercantilismo: a companhia geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778)”. Revista de História.
São Paulo: Editora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 1966, p. 364 e DORADO RODRIGUES, Nathália Maria. A Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão e os homens de negócio de Vila Bela (1752-1778). 2008. Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade Federal do Mato Grosso, p. 58.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 CARDIM, Pedro & HESPANHA, Antônio Manuel. “A estrutura territorial das monarquias ibéricas”. In:
Monarquias ibéricas em perspectiva comparativa (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos
político-administrativos. 1ª edição. Lisboa: Editora da Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa, 2018, p. 58; BRITO, Adilson Júnior Ishihara. Insubordinados sertões: o Império português entre guerras e
fronteiras no norte da América do Sul – Estado do Grão-Pará, 1750-1820. 2016. Tese (Doutorado em
História) - Universidade de São Paulo, p. 27 e CHAVES, Otávio Ribeiro. “América portuguesa: do Tratado
de Madri ao Tratado de Santo Idelfonso”. Revista Territórios & Fronteiras. Cuiabá: Editora do Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, 2014, p. 219.
4 Consistia em um “conjunto de produtos extraídos da floresta visando a exportação” composto por “frutos,
folhas, raízes, resinas e óleos com origem vegetal, que poderiam ser empregados em diversas utilidades:
medicina, alimentação, tinturaria, cordoaria, construção naval e em outros empregos” dos quais os mais
apreciados eram a “baunilha, breu, cacau, canela-do-mato, castanha-do-Pará, cravo (fino ou grosso), madeiras,
óleos vegetais (andiroba, copaíba, cumaru, umeri), piaçaba, puxuri, gengibre, anil, salsaparrilha e urucum”.
MATOS, Frederik Luizi Andrade de. O comércio das “drogas do sertão” sob o monopólio da Companhia Geral do Grão-
Pará e Maranhão (1755-1778). 2019. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, p. 87.
5 CARREIRA, Antônio. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão: O comércio monopolista Portugal-
África-Brasil na segunda metade do século XVIII. 1ª edição. São Paulo: Editora Nacional, 1988, p. 92-93;
MATOS, Frederik Luizi Andrade de. O comércio das “drogas do sertão” sob o monopólio da Companhia Geral do Grão-
Pará e Maranhão (1755-1778). 2019. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, p. 95-96 e
DIAS, Manuel Nunes. “Fomento ultramarino e Mercantilismo: a companhia geral do Grão-Pará e Maranhão
(1755-1778)”. Revista de História. São Paulo: Editora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1966, p. 395-397.
6 PORTO, Maria Emília Monteiro. “A mudança da autoridade na lógica colonial: da fronteira missionária à
fronteira colonial”. In: Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de História Militar na
Idade Moderna. 1ª Edição. São Leopoldo: Editora Oikos, 2012, p. 299; BRITO, Adilson Júnior Ishihara.
Insubordinados sertões: o Império português entre guerras e fronteiras no norte da América do Sul – Estado do
Grão-Pará, 1750-1820. 2016. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, p. 39-42;
CARDIM, Pedro & HESPANHA, Antônio Manuel. “A estrutura territorial das monarquias ibéricas”. In:
Monarquias ibéricas em perspectiva comparativa (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos
norte da América do Sul – Estado do Grão-Pará, 1750-1820. 2016. Tese (Doutorado em História) -
Universidade de São Paulo, p. 27-29; DAVIDSON, David Michael. Rivers and Empire: the Madeira route and
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CHAVES, Otávio Ribeiro. Política de povoamento e a constituição da fronteira oeste do Império português: a capitania de
Mato Grosso na segunda metade do século XVIII. 2008. Tese (Doutorado em História) - Universidade
Federal do Paraná, p. 116.
8 CARDIM, Pedro. “’Administração’ e ‘governo’: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime”. In:
Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português, séculos XVI-XVIII. 1ª edição. São Paulo:
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administrativas no Estado do Grão – Pará e Maranhão (1751 – 1780). 2008. Tese (Doutorado em História) -
Universidade de São Paulo, p. 31, 58-61 e SANTOS, Marília Nogueira dos. Escrevendo cartas, governado o Império:
a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no ultramar português (1690 – 1702).
2007. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, p. 88.
9 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. 1ª Edição. São Paulo:
Editora Alameda, 2008, p. 41 e MEGIANI, Ana Paula Torres. “Memória e conhecimento do mundo:
coleções de objetos, impressos e manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha, sécs. XV-XVII”. In: O
Império por escrito. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. Séculos XVI-XIX. 1ª Edição. São Paulo:
Editora Alameda, 2009, p. 185.
10 SOUZA, Laura de Mello e. “A vida privada dos governadores na América portuguesa do século XVIII”.
In: História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. 1ª Edição. Lisboa: Editora Círculo de Leitores, 2011, p.
318.
11 HESPANHA, Antônio Manuel. “Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do
império colonial português”. In: Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-
XVIII. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010, p. 62 e CUNHA, Mafalda Soares da &
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos
XVII e XVIII”. In: Optima Pars – elites ibero-americanas do Antigo Regime. 1ª Edição. Lisboa: Editora da Imprensa
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2005, p. 196.
namatteria oq’ Melhor intender; pois eunella Menáo intereso nada, antessenti
aquozualidade por parte de ambos, pois aambos estimava”12.
Este fato reflete a capacidade que os oficiais tinham de mobilizar seus congêneres
com os quais se relacionavam em termos administrativos, hierárquicos e pessoais como
forma de elucidar questões cotidianas, nas quais a sobreposição de jurisdições e o uso
estratégico da delegação de decisões configurou-se como prática administrativa corrente na
América portuguesa13.
A solicitação de socorro para a manutenção da integridade territorial de suas
circunscrições foi outra constante presente neste circuito epistolar, sendo demarcada pela
concessão de autorização de passagem de tropas militares entre as capitanias pelos
governadores, por vezes, requerida pelos próprios militares junto a estes oficiais e/ou
diretamente distribuídas pelo monarca no Reino, como a que fez o soldado Joaquim
Henriques a D. Antônio Rolim de Moura – conde de Azambuja - “p.a os Dragôes desta
Cap.nia alegando, tinha p.a isso faculdade vocal” e o soldado Antônio Azevedo “q’ veyo no
Destacam.to Snór Joseph deS.Payo emhumà provizão que obteve deS.Mag.de”14.
As canoas e tropas de socorro enviadas pelos governadores seguiam “atoda
adiligencia, brevidade possivel” e “grande zelo” para conter “os Nossos vezinhos”
castelhanos que “vaó conduzindo para Esta fronteira algua gente”1516. Esta dinâmica de
constante instabilidade foi vivenciada concreta e discursivamente por estes oficiais, haja
12 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, D. Antônio Rolim de Moura,
conde de Azambuja, para o Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando
da Costa de Ataíde Teive sobre a briga protagonizada pelo Tenente José de Sampaio com o Cabo de
Esquadra Joaquim Pedro Borralho dentro do quartel]. 28 de dezembro de 1763. APEP, Documentação
manuscrita, Códice 17, Correspondência de Diversos com o Governo, Doc. 62.
13 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo
português, 1680-1730”. In: Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII.
1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010, p. 185.
14 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, D. Antônio Rolim de Moura,
Conde de Azambuja, para o Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando
da Costa de Ataíde Teive sobre a solicitação feita pelo Soldado Joaquim Henriques na qual se pedia
autorização para a passagem dos Dragões do Destacamento de Nossa Senhora da Conceição para a Capitania
do Grão-Pará]. 27 de dezembro de 1763. APEP, Documentação manuscrita, Códice 17, Correspondência de
Diversos com o Governo, Doc. 67.
15 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre o pedido de 70 soldados com seus respectivos oficiais para socorrer a capitania de Mato Grosso].
Outubro de 1765. APEP, Documentação manuscrita, Códice 122, Correspondência de Diversos com o
Governo, Pág. 225.
16 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre o pedido de socorro militar e de artilharia solicitado a Capitania do Grão-Pará]. 10 de fevereiro de 1766.
APEP, Documentação manuscrita, Códice 127, Correspondência de Diversos com o Governo, Doc. 10.
vista que dependiam “desta sorte” e “auxilio degente, edemuniçoens deGuerra” para
“resistir felizmente aopoder das mãos vezinhas”17.
Este trânsito logístico era consubstanciado pelo conhecimento geográfico,
hidrográfico e militar mobilizado nas expedições demarcatórias e na integração comercial e
econômica instituída entre o vale amazônico e a fronteira oeste através da atuação da
Companhia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A circulação e o
fluxo de tropas, armas e provisões viabilizava a sua defesa territorial e o desenvolvimento
das atividades econômicas regionais pelos seus oficiais18.
O suporte material utilizado nestas viagens eram as canoas em que os indígenas
atuavam como remeiros e pilotos. Os remeiros eram a força motriz responsável por remar
e atuavam na atividade conduzida pela força bruta. Já os pilotos, também conhecidos
localmente como jacumaúbas, trabalhavam como guias e dispunham de conhecimentos
sobre a navegabilidade e geografia regional19.
A transposição das cachoeiras do rio Madeira com a artilharia enviada do Grão-Pará
para o Mato Grosso20 e o exercício de atividades como a do indígena chamado “França que
há desservirde Piloto à Tropa do Socorro com dous Indios da Aldea de S. Miguel” que
atuaram como remeiros na canoa de transporte do “Soldado Dragaó Innocencio Rodrigues
e três Pedestres” do Destacamento de Nossa Senhora da Conceição na Capitania de Mato
Grosso para a vila de Borba na Capitania de São José do Rio Negro21 expressam a
particularidade que demarcava o trânsito entre estes espaços.
17 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre o pedido de munições, artilharia e soldados para a fronteira oeste]. 20 de junho de 1766. APEP,
Documentação manuscrita, Códice 127, Correspondência de Diversos com o Governo, Doc. 16.
18 CHAVES, Otávio Ribeiro. “América portuguesa: do Tratado de Madri ao Tratado de Santo Idelfonso”.
Revista Territórios & Fronteiras. Cuiabá: Editora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Mato Grosso, 2014, p. 228 e MATOS, Frederik Luizi Andrade de. O comércio das “drogas do sertão”
sob o monopólio da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778). 2019. Tese (Doutorado em História) -
Universidade Federal do Pará, p. 361.
19 FERREIRA, Elias Abner Coelho. Oficiais canoeiros, remeiros e pilotos Jacumaúbas: mão de obra indígena na
Amazônia colonial portuguesa (1733-1777). 2016. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
do Pará, p. 103-105.
20 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre o transporte da artilharia militar realizado pelas cachoeiras do rio Madeira]. 11 de fevereiro de 1766.
APEP, Documentação manuscrita, Códice 127, Correspondência de Diversos com o Governo, Doc. 12.
21 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre o emprego de dois índios da Aldeia de São Miguel que vai à Canoa junto ao Dragão Inocêncio
Rodrigues para servir na Tropa de socorro da Capitania]. 10 de outubro de 1765. APEP, Documentação
manuscrita, Códice 122, Correspondência de Diversos com o Governo, Doc. 52.
Em As muralhas dos sertões, Nádia Farage defende que nos limites fronteiriços, os
indígenas garantiam as pretensões de posse da Coroa portuguesa ao comporem “barreiras
humanas” contra possíveis e iminentes invasores nestes espaços, dinâmica esta que tornava
“imperativa” a sua arregimentação política para a concretização do projeto colonial lusitano
na América22.
João Pedro da Câmara justifica em carta remetida para Fernando da Costa de Ataíde
Teive a falta que teve na realização de viagem junto ao seu antecessor no governo da
Capitania, D. Antônio Rolim de Moura – conde de Azambuja – para a vila de Borba para
mediar as negociações com os “Comboeyros” que os aguardavam no local por conta do
adoecimento de alguns indígenas empregados no transporte das canoas, fato este que
tornaria “aviagem mais morosa” e consequentemente perigosa.
Não dispondo de seus exímios pilotos e remeiros para a condução das canoas, para
a realização do trajeto foram empregados um “Cabo de Esquadra, E os doze Soldados,
Dragoes, e os Pedestres” que deveriam ser “recebidos, com amayor brevidade tanto pella
falta quefazem Nesta Fronteyra, como por náo demorar muito tempo os Comboeyros que
devem esperar em Borba” haja vista que “háo de voltar no mesmo Bote emque vay od. to
MeuAntecessor”23.
Pode-se perceber que a construção desta rede de circulação interna de informações
e agentes ensejou o estabelecimento das relações transfronteiriças entre os governadores do
Grão-Pará e Mato Grosso. Por meio do vencimento do curso dos rios, se efetivou o apoio
logístico e mútuo dispensado ao bom exercício da atividade governativa e a defesa
territorial destas espacialidades durante a segunda metade do século XVIII.
Considerações finais
22 FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. 1ª edição. Rio
de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1991, p. 128.
23 [Ofício do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara para o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão Fernando da Costa de Ataíde Teive
sobre a necessidade de recepção mais rápida possível a ser dada aos Soldados, Dragões e Pedestres que
acompanham o conde de Azambuja quando chegarem em Borba]. 15 de fevereiro de 1765. APEP,
Documentação manuscrita, Códice 122, Correspondência de Diversos com o Governo, Pág. 189.
português. Eles buscaram fazer valer seus atributos ao passo em que gerenciavam o
cotidiano governativo, dando conta das dificuldades que permeavam suas práticas24.
A comunicação epistolar possibilitava a realização do poder no âmbito da escrita e o
seu trânsito proporcionava a construção dos canais de comunicação necessários ao seu
reconhecimento, obediência e referência entre remetente e destinatário25.
A relação político-administrativa que se estabeleceu entre ambos os oficiais se deu
pela mobilidade subjacente ao circuito epistolar interno e transfronteiriço; sua capacidade
de arregimentar os saberes sobre a realidade regional e a habilidade de exercer funções na
condução das canoas pelos povos indígenas locais.
O trânsito de armas, militares e pedidos de apoio logístico se deram nas franjas
territoriais de um império que buscava se impor e equilibrar geopoliticamente na Europa e
no ultramar em meio a porosidade e fluidez que demarcava o trato das relações entre as
espacialidades de seus domínios e destas com os dos castelhanos.
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24 SANTOS, Marília Nogueira dos. Escrevendo cartas, governado o Império: a correspondência de Antônio Luís
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25 CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. No vai e vem das cartas: a arte de governar da política colonial
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Resumo
* Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora de pós-
doutorado no programa de pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Registra-se aqui, especial agradecimento à Capes pelo financiamento recebido para execução desta pesquisa.
1 WILLIAMS, Rachel Saint. Ecos do aristotelismo na tratadística política hispânica: teorias do direito natural e
doutrina constitucionalistas na época moderna (1528-1612). Revista de História, São Paulo, n° 179, 2020. p. 01-
27.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
discussão pode ser percebido após uma breve consulta a um dicionário de língua castelhana
publicado em 16112. No léxico composto pelo licenciado Sebastián Covarrubias não existe
registro para a palavra soberania, o mais próximo que dela se chega é a definição de soberano,
claramente associada ao sagrado, “el altissimo y poderosíssimo que es sobre todos”3.
Curiosamente, apesar de não haver referência à palavra soberania, podemos encontrar a
noção de summa potestas que é uma das atribuições associadas ao exercício da soberania
vinculada, porém, à definição de tirano: “este nombre, cerca de los antiguos se tomava en
buena parte, y significava tanto señor, Rey y Monarca, el qual tenia potestade plena sobre
sus súbditos”4.
Um dos principais nomes associados ao conceito de soberania na época moderna é
o do jurista francês Jean Bodin que, em sua obra Les six livres de la République, publicada pela
primeira vez em 1576, definiu algumas das principais diretrizes que orientariam o debate
sobre os pressupostos básicos da soberania. Na obra citada partia-se de um entendimento
geral da soberania como potência absoluta, perpétua e livre, da qual disporia um
governante ocupado com a regência das sociedades humanas. Tal soberania estaria
alicerçada na detenção da jurisdição exclusiva sobre um determinado território. São
inegáveis as conexões existentes entre a noção de soberania e o tema da lei – envolvendo
nesta seara todas as teorizações acerca da capacidade do soberano de dar, modificar ou
anular as leis e, ainda, se ele mesmo estaria submetido às mesmas. É exatamente esse fator
que explica a importância da discussão sobre a questão da soberania, pois as diferentes
doutrinas e as variadas aplicações práticas concebidas acerca das potencialidades e
limitações da potestas régia corresponderiam às diferentes opções de sistemas políticos e às
variadas formas de organização social.
O historiador Jose Antonio Maraval, quase na metade do século XX, identificou
três posturas distintas que foram adotadas pelos tratadistas que se debruçaram sobre a
noção de soberania. Na primeira possibilidade, estariam aqueles que concebiam o poder
político ligado a uma ordem humana de leis e competências superior e anterior à existência
2 Expressivamente, quase um século depois no dicionário, composto em Portugal, pelo padre Raphael
Bluteau, serão muitas as vozes associadas à soberania. São três as entradas para soberania, quatro para soberano e
ainda
figuram os termos soberanamente e soberanizar. As definições de Blutaeu mais representativas são: “Soberania.
Independencia. Poder soberano”; “Soberano. Independente. Principe soberano. O que não depende de outra potencia humana”, e,
por último, “Soberano poder, summa potestas”. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português & Latino: aulico,
anatomico, architecntonico. 8 v. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728, p. 670.
3 COVARRUBIAS, Sebastián de. Tesoro de la Lengua Castellana o Española. Madrid: por Luis Sanchéz, 1611. f.
31.
4 Ibidem. f. 44.
de reis e reinos e que, portanto, rechaçavam a noção da soberania. Um segundo caso seria
identificado naqueles que não se preocupavam em colocar nenhum obstáculo para o
exercício ilimitado da soberania pelo governante. E, por fim, na situação em que Maravall
enquadra a grande maioria dos tratadistas do século XVII na Monarquia Hispânica,
estariam aqueles que se colocavam como missão:
[...] construir una doctrina de Estado de forma que sin hacer renunciar a
éste, porque las circunstancias históricas no lo permiten, a su poder libre
y soberano, no obstante el orden de la justicia, del que nace la paz, según
se ha venido considerando desde San Agustín, sea el ámbito en el que
precisamente se haga posible5.
5MARAVALL, José Antonio. Teoria española del Estado en el siglo XVII. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997. p. 188.
extraordinário deveria implicar um enorme respeito pelos direitos adquiridos dos súditos e,
também, uma particular atenção às situações jurídicas específicas6.
Neste contexto, os tratadistas hispânicos dos seiscentos empreenderam um esforço
significativo para adaptar a noção de soberania aos particularismos de sua própria teoria
política. O resultado foi uma interpretação controlada e substancialmente jurídica do
exercício da potestas extraordinaria, como bem enfatizou Albaladejo. O mesmo autor ainda
sublinhou que destacados personagens, como Diego Covarrubias de Leyva7 e Fernando
Vázquez de Menchaca8, nutriam verdadeira aversão à possibilidade de exercício de um
poder extraordinário que atuasse acima do ordenamento jurídico, pois tal poder, segundo
os mesmos, só poderia ser compreendido como característica típica da tirania, pensamento
profundamente enraizado nos pressupostos da Segunda Escolástica.
Assim, é seguro sustentar que a doutrina da soberania que interpretava o rei como
legibus solutus alcançou baixíssima representatividade entre os hispânicos. Soma-se a esta
dificuldade de aceitação de ordem teórica, uma questão de ordem prática, pois o preceito
de soberania absoluta seria de difícil acomodação em uma estrutura política composta, na
qual coexistiam distintas organizações jurisdicionais, e portanto distintos pactos sociais,
como era o caso da Monarquia Hispânica. Assim, conforme Maravall apontou com muita
propriedade, por mais que a expressão poder absoluto constasse na tratadística hispânica,
ela não seria utilizada com um sentido jurídico concreto. O emprego da expressão estaria
muito mais vinculado à figuração alegórica e elogiosa sobre o poder do monarca, ou ainda,
à uma disputa entre os reinos da cristandade, mas nunca à subjugação da comunidade
política pelo rei. Muito ilustrativo dessas questões é o trecho que segue, retirado da obra de
Gregorio López Madera:
Azpiculeta, Francisco de Vitoria e Domingo de Soto. Covarrubias conquistou uma carreira política
expressiva, tendo sido ouvidor na Real Chancelaria de Granada, entre 1548 e 1559, e presidente de um dos
mais importantes conselhos da estrutura administrativa da Monarquia Hispânica, o Conselho de Castela, no
período de 1572 a 1577. Cf. PENA GONZÁLEZ, Miguel Anxo. La(s) Escuelas(s) de Salamanca;
proyecciones y contextos históricos. In: POLO RODRÍGUEZ, Juan Luís; RODRÍGUEZ-SAN PEDRO
BEZARES, Luis. Universidades hispánicas: colegios y conventos universitarios en la Edad Moderna II.
Miscelánea Alfonso IX, 2009. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2013, p. 185-237.
8 Fernando Vázquez de Menchaca foi um jurista laico que fez carreira como alto funcionário da Monarquia
Hispânica, tendo alcançado o grau de bacharel em Leis e Cânones na Universidade de Salamanca em 1544,
posteriormente obteve a cátedra prima de Leis em 1550. Vázquez de Menchaca, contudo, encerrou sua
participação na vida acadêmica em 1552 e iniciou sua carreira como juiz e ouvidor na Contaduría Mayor de
Hacienda, tendo ainda sido designado por Felipe II para participar do Concílio de Trento. Cf. EGÍO
GARCÍA, Víctor Manuel. El pensamiento republicano de Fernando Vázquez de Menchaca. Tese (Doutorado) -
Universidad de Murcía. Departamento de Filosofía, 2014.
Lugar es este, en que será bien declarar, que cosa es el poder absoluto, y
señorío Soberano, que con tantas razones hemos probado pertenecer a
los Ínclitos Reyes de España. Porque se podría pensar, que entendemos
del por esta superioridad conceden a los Príncipes muchos Doctores.
Dándoles su voluntad por regla, de manera que puedan decir los Reyes
Christianos, lo que no dijeran los Gentiles, y Infieles, abominando de tal
poder, como cosa que es contra ley, y derecho, y así diciéndole el Rey
Antigono, que todo cuanto los Reyes querían era licito, respondió q esto
seria entre los Barbaros, porque a los demás solo lo justo, era justo, y lo
honesto, honesto [...]
Por lo cual pues dice agudamente Agustino Veroyo, que este poder
absoluto de que tratan los Doctores, arguye estar la Justicia, y razón en
contrario, no se ha de conceder a nuestros Catholicos Reyes, que tanto
son mayores quanto mas justos, y observantes del derecho [...]
Y por esto dicen notablemente aquel gran Philosofo moral que es
opinión de necios, pensar que, es la mejor cosa que tienen los Reyes, no
estar sujetos a nadie siendo la mas peligrosa, pues lo han de estar a las
leyes, y no a las escriptas en libros sino en nuestro corazón, y lo que la
razón dicta, que es, a lo que tienen respecto los Philosophos, cuando
sujetan los Príncipes a las leyes [...]
De manera que este poder absoluto, como aquellos Auctores le
entienden es de Tiranos, y no casi en otra cosa consiste la Tyrannia que
en hacer los Príncipes su voluntad sin subjetarse a la razón y derecho
[...].9
uma identidade coletiva espanhola. Revista de Teoria da História/ Rth 7(1), 2012, p. 41 - 65.
sentenças acima, possui o exato título: “Que cosa es Monarchia, como el Reyno de España
lo es, y Señorío soberano sin superior, de los muchos privilegios que se siguen de serlo, y
que cosa es el poder absoluto que por esto pertenece a sus Reyes”. Confirma-se, assim, que
o simples uso da expressão poder absoluto não significava adesão integral às teorias que
advogavam em prol da aceitação inequívoca da soberania régia. Nessa obra em particular,
tal uso tinha como objetivo designar a situação da monarquia hispânica no contexto
internacional, para citar apenas um exemplo.
Certas noções expressas na obra de dois grandes nomes do discurso político
hispânico do século XVII, Baltasar Álamos de Barrientos11 e Diego Saavedra Fajardo12, são
indicativos bastante precisos da dinâmica a partir da qual se desenrolava a discussão a
respeito dos vínculos entre a autoridade política e o ordenamento jurídico. O fato destas
produções terem sido escritas em momentos distintos serve para comprovar a prolongada
aceitação do preceito que identificava a base jurídica como um dos principais sustentáculos
da república. Em Idea de un Principe Christiano, publicada pela primeira vez, quase na metade
do século XVII, em 1640, Saavedra Fajardo consagrou especialmente a empresa de número
21 ao tratamento do tema das leis, sendo que o mote correspondente a essa empresa, regit
et corrigit, é por si mesmo ilustrativo. Neste escrito, Saavedra adere a uma distinção em
relação às leis que era uma constante nos tratados políticos ibéricos: a diferenciação da lei
em seu aspecto penal, cujo símbolo era a espada e que deveria ser igual para todos: “Los
dos cortes dela son iguales al rico y al pobre. No con lomos para no ofender al uno y con
hilos para herir al otro”13; o outro aspecto da lei seria sua acepção distributiva simbolizada
pela régua e pelo esquadro, que medem a cada um por suas ações e direitos, “esta regla de
justicia se han de ajustar a las cosas; no ella a las cosas”. O autor das empresas políticas
considerava ainda que a multiplicidade de regras é danosa para a república, e além disso,
também ratificava o princípio das artes de governar que recomendava que os príncipes
11 Baltasar Álamos de Barrientos foi um primeiros hispânicos a traduzir e comentar a obra de Tácito, ver:
ANTÓN MARTÍNEZ, Beatriz. El tacitismo en el siglo XVII en España: el proceso de "receptio”. Tese (Doutorado)
Universidad de Vallodoid, 1992. Em Tácito español ilustrado com aforismos, o autor declara que traduziu
Tácito, ilustrado com aforismos e advertências de Estado, porque os ensinamentos do historiador romano
são convenientes e indispensáveis para “conservación y aumento desta monarquia”, axioma central das
doutrinas a respeito da razão de Estado.
12 Diego Saavedra Fajardo foi um proeminente escritor do siglo de oro espanhol, responsável por uma extensa
produção textual que alcançou grande destaque e circulação. Saavedra Fajardo ocupou alguns postos de alto
relevo na esfera política do período, como o cargo de embaixador, em diversas cortes europeias, e o posto de
conselheiro no Conselho das Índias. Ver: GARCÍA HERNÁN, Enrique. Políticos de la Monarquia Hispánica
(1469-1700); Ensayo y Diccionario. Madrid: Fundación MAPFRE Tavera, 2002.
13 SAAVEDRA FAJARDO, Diego. Empresas Políticas. LÓPEZ, Sagrario (edición). Madrid: Ediciones Cátedra,
Letras Hispánicas, 1999. (Primeira edição: SAAVEDRA FAJARDO, Diego. Idea de un príncipe político-cristiano
representada en cien empresas. Monaco: en la imprenta de Nicolao Enrico, 1640.) p. 358.
deveriam obedecer em primeiro lugar às leis, para com seu exemplo motivar a comunidade,
em seus termos: “Vanas serán las leyes si el príncipe que las promulga no las confirmare y
defendiere con su ejemplo y vida. Suave le parece al pueblo la ley a quien obedece el mismo
autor de ella”14. Certamente, porém, a perspectiva mais interessante presente na reflexão do
diplomata sobre a lei fica explícita no segmento abaixo:
Sobre las piedras de las leyes, no de la voluntad, se funda la verdadera
política. Líneas son del gobierno, y caminos reales de la razón de Estado.
Por ellas, como por rumbos ciertos navega segura la nave de la república.
Muros son del magistrado, ojos y alma de la ciudad y vínculos del
Pueblo, o un freno [...] que le rige y le corrige. Aun la tiranía no se puede
sustentar sin ellas.
A la inconstancia de la voluntad, sujeta a los afectos y pasiones y ciega
por sí misma, no se pudo encomendar el juicio de la justicia, y fue
menester que se gobernarse por unos decretos y decisiones firmes, hijas
de la razón y prudencia, y iguales a cada uno de los ciudadanos, sin odio,
ni interés: tales son las leyes que para lo futuro dictó la experiencia de lo
pasado.15
Saavedra condenava claramente a prática governativa que se rege pela vontade e não
pelas leis, e a estas interpretava como caminhos da razão de Estado, subvertendo um dos
axiomas centrais desta doutrina, inclusive em sua perspectiva contrarreformada, que seria a
capacidade do governante de agir desconsiderando as leis, caso isso fosse do interesse
supremo do Estado. O famoso diplomata chegou ao extremo de afirmar que nem mesmo a
tirania pode se sustentar sem leis. Fica muito claro, portanto, onde Saavedra depositava sua
confiança para a boa condução dos negócios da república, reproduzindo os termos dos
escritores do período. Vale a pena mencionar, após tudo que foi exposto, que Diego
Saavedra Fajardo era bacharel em jurisprudência e direito canônico pela Universidade de
Salamanca.
Por sua vez, até mesmo Baltasar Álamos de Barrientos, com todo seu pragmatismo
político, não deixava de apontar a relevância das leis para a manutenção e boa condução do
governo. O texto de Tácito Español ilustrado com aforismos, foi possivelmente concluído em
1594 – quando seu autor estava encarcerado pelo envolvimento com o controverso
secretário de Estado de Felipe II, Antonio Pérez –, mas só foi publicado em 1614. Na obra
em questão, Barrientos, através de seus aforismos, comunicava algumas de suas crenças
colocando na mesma disposição lógica seu juízo sobre as leis, a tirania e o poder absoluto.
14 Ibidem, p. 367.
15 Ibidem, p. 359-360.
O grande tacitista se aproveitava também da temática em pauta para dar alguns conselhos
ao governante que desejava manipular as leis a seu favor. Uma de suas considerações
obedece à mesma razão operacional já mencionada por Saavedra, assim o monarca que
almejava que seus súditos cumprissem as leis, deveria também submeter-se a elas, “No
tiene porqué esperar el Príncipe de sus vasallos, que hayan de guardar sus leyes, si es él el
primero que las quebranta” e ainda “Buenas son las leyes, a que también viven sujetos, y
obedientes los Príncipes, y Monarcas”16.
Em relação ao poder absoluto, Álamos de Barrientos asseverava que nem mesmo o
monarca cujo governo degenerou em tirania, pretenderia que sua figura fosse vinculada a
nomes e símbolos associados ao poder absoluto ou, ainda, que sua imagem fosse vinculada
a afrontas aos costumes e a leis humanas. Desta forma, o autor delimitava em uma
habilidosa manobra seus próprios parâmetros para definir a tirania. Barrientos sustentava
uma visão bastante dessacralizada das leis que, nessa acepção, divergia bastante de outras
opiniões mais comumente aceitas. Pode-se verificar esta disposição, por exemplo, na
passagem em que o autor desaconselha a confiança nas leis em tempos de revoltas e
alvorotos ou, de forma mais contundente, quando o autor afirma que as leis nem sempre
são ordenadas por zelo ao bem público, pois, segundo o mesmo: “también las pasiones, y
provecho de los particulares tienen parte en su invención”, ainda que esse pressuposto
fosse sinal de grande corrupção. As leis também poderiam ser facilmente manipuladas pelo
soberano, como adverte Álamos de Barrientos, bastando para isso simplesmente que o
nome do delito cometido fosse trocado por outro mais grave, permitindo assim um castigo
mais severo. Todavia, o trecho em que todas as crenças sobre esta matéria aparecem
sintetizadas adiciona, ainda, um relevante elemento, o tema da liberdade:
Tres son las verdaderas señales de la libertad de una República, con
Príncipe nuevo en ella. La primera, cuando no ay en ella poderío que
sobrepuje, o iguale las leyes, sino que por ellas solas se determinan
igualmente todas las diferencias de los ciudadanos sin aceptación de
personas. La segunda cuando los Magistrados del gobierno, y justicia, no
sirven ni agradan al poderío de un particular con afrenta suya; teniendo
por merced hacer su gusto, como a medio de su acrecentamiento: sino
que proceden conforme a la verdad, y guardando la dignidad, y entereza
debida a su oficio. La tercera, cuando la misma República no está
oprimida del señorío de un particular; sino que todos sus ciudadanos
poseen por igual la libertad, y tienen igual esperanza de mercedes, y
Bibliografia
Resumo
No início do século XIX, o comércio realizado na capitania do Pará se deslocava para as
áreas dos sertões, onde os produtos extraídos eram negociados e transportados para a
cidade de Belém. Em função das transações comerciais realizadas nessa área, as autoridades
demandaram um maior controle sobre as mercadorias que abasteciam o comércio local ou
que eram exportadas para o porto de Lisboa. Com esse intuito, as fortalezas levantadas ao
longo dos rios serviam de ponto de fiscalização para aferir os produtos negociados e as
pessoas afeitas a esse comércio. Diante disso, o objetivo desse trabalho é analisar o
comércio de gêneros dos sertões e os sujeitos envolvidos nesse circuito. Na documentação
que se utilizou pode-se encontrar os Registros da Coletoria dos Impostos de Gurupá
organizadas nos códices do Arquivo Público do Estado do Pará e os avulsos do Projeto
Resgate (Pará e Rio Negro).
Introdução:
Ainda no século final do XVIII, a cidade de Belém passou a ser o principal porto
do Estado do Grão-Pará e Maranhão, recebendo, diretamente, as embarcações que saíam
da Europa com destino à América portuguesa. Para o porto da cidade de Belém escoava
não só a produção das vilas situadas na região dos altos rios (Santarém, Óbidos, Gurupá e
Barra do Rio Negro), como também das vilas de Cametá, de Bragança e da Ilha do Marajó.
O porto de Belém também desempenhava o papel de abastecer de produtos e de
mercadorias as diversas embarcações que seguiam em direção a outros pontos do Pará,
assim como para as capitanias do Rio Negro, do Maranhão, do Mato Grosso e de Goiás.2
O comércio realizado em canoas ou em embarcações maiores conectava essas
regiões e permitia a circulação de pessoas e dos gêneros que eram negociados em diferentes
áreas da capitania do Pará e das capitanias vizinhas. A grande circulação de canoas e de
pessoas para essas áreas era controlada, não só pela necessidade de passaportes para se
deslocar para os sertões, como também por meio dos registros de deslocamento das
pessoas (relações descritivas sobre essa circulação), nos quais constava o “número
individual das tripulações das canoas de comércio, e do tempo da sua partida das
povoações”.3 As pequenas e grandes embarcações navegavam, efetivamente, segundo as
suas dimensões e a sua tonelagem, por todas as baías, rios e lagos da capitania/província do
Pará. Entretanto, havia uma padronização nesse circuito fluvial, no qual as embarcações de
grande porte utilizadas para o comércio com Belém tendiam a fazer o deslocamento para
localidades mais distantes, enquanto as pequenas, além do transporte de mercadorias em
menor quantidade, atuavam também no transporte de pessoas e de informações (correio)
que, em função de seu tamanho, tendiam a se deslocar em menos tempo e risco para a
tripulação.
O objetivo desse trabalho é analisar o comércio fluvial dos sertões realizado nessas
embarcações, que servia para abastecer o mercado da cidade de Belém, bem como para
escoar os produtos comercializados no porto da cidade. Inicialmente, apresentam-se os
registros sobre esse comércio, os quais possibilitam perceber as principais vilas do interior
que atuavam nesse comércio, os sujeitos envolvidos e as mercadorias transportadas. As
principais fontes documentais utilizadas foram os Registros da Coletoria dos Impostos de
Gurupá sobre as embarcações que passavam pela fortaleza dessa vila, a qual permite
acompanhar a circulação das embarcações e os principais negociantes envolvidos nesse
comércio, além das Procurações Gerais e Bastante, do Cartório Perdigão, depositadas no
Arquivo Público do Estado do Pará.
Isso é significativo para afirmar que os negociantes que se detinham nesse circuito
mercantil deveriam ser detentores de grandes cabedais e de uma ampla rede de
comerciantes pelo interior. Isso porque a realização de longas viagens com uma grande
quantidade de remadores requeria um grande investimento que deveria ser compensado
pela venda dos produtos que transportavam. Nos sertões, esse negociante deveria também
garantir a aquisição de gêneros para serem negociados no porto de Belém. Por isso, os
negociantes afeitos a esse comércio deviam estabelecer uma rede de relações bem articulada
3 Isso foi uma das instruções iniciais que o governador Dom Francisco de Souza Coutinho fez quando
assumiu a administração do Estado do Grão-Pará, em 1790. BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio
Corografico sobre a Província do Pará. Pará: Typographia de Santos & Menor, 1839, p. 223.
com os comerciantes dos sertões, assim como com as povoações indígenas que habitavam
essas áreas tanto do lado português como do lado espanhol.4
4 ROLLER, Heather Flynn. “Colonial collecting expeditions and the pursuit of opportunities in the
Amazonian Sertão”, c. 1750-1800”. The Americas, 66:4, 2010, pp. 435-467.
5 SCHWARTZ, Stuart B. “O Brasil Colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e as periferias”. In:
BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: América Latina Colonial. Vol. 2. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, p. 384.
6 Os índios que trabalhavam como pilotos das canoas de comércios gozavam de maior prestígio nas
povoações, ver: FERREIRA, Alexandre Rodrigues, Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio
Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 92. Desde o Diretório, o
piloto ou cabo das canoas tinham um tratamento diferenciado, seja por sua condição (geralmente eram
brancos ou mamelucos), seja por serem nomeados para desempenhar tal função. Roller afirma que os cabos
das canoas que seguiam para o sertão recebiam a nomeação dos conselhos municipais e dos Principais, em
Esse registro fazia o controle das embarcações que circulavam em toda a região
oeste da capitania do Pará e das vilas da capitania do Rio Negro. Em ofício de 1761, o
desembargador do Pará informava os procedimentos que passara a adotar naquela
coletoria. Além das diligências para verificar o serviço e atuação dos cabos que trabalhavam
nos negócios das canoas, o desembargador reforçava o controle que devia ser adotado
nesse comércio. Os cabos deviam fazer o registro das mercadorias que os moradores
enviavam por encomendas nessas canoas para serem entregues na cidade de Belém. Havia
também o cuidado com a tripulação das canoas, pois pessoa alguma poderia entrar ou sair
das canoas, mesmo depois de iniciada a viagem, isso valia também para as mercadorias por
elas transportadas (AHU_ACL_CU_013, Cx. 51, d. 4689). Uma continuidade desses
cuidados é a proibição de fazer paradas fora dos portos indicados. No caso, a canoa ao sair
de sua vila só poderia fazer paragem no porto de Belém. Controle este que se reafirmava
nos códigos de postura para o desenvolvimento do comércio até meados do século XIX,
em que se delimitava os portos para se fazer o desembarque das mercadorias e pessoas na
orla da cidade de Belém.7
Em 1812, um dos negociantes que teve o seu barco vistoriado foi Antonio
Rodrigues Lisboa.8 Na descrição apresentada em um desses registros descritos acima, ele
havia partido da vila de Monte Alegre e regressava para a cidade de Belém. Esse é um dos
poucos documentos que permitem identificar a carga que era transportada e de onde ela
vinha; no caso, foi feita a seguinte relação de gêneros: 5 paneiros de ervilha, 5 paneiros de
feijão, 3 potes de manteiga, 13 potes de mixiras,9 564 arrobas de peixe seco, 1.755 arrobas
alguns casos podiam ser nomeados pelo próprio governador da capitania. Tal atenção se devia pelos cuidados
que o cabo devia ter com os índios sob a sua responsabilidade, mas principalmente pela atenção que devia ter
com as drogas coletadas. Em função disso, não faltaram registros de diligências para apurar os serviços dos
cabos das canoas que seguiam para o sertão. Roller afirma que o comportamento do cabo era ponto de
avaliação nas instruções da legislação do Diretório, principalmente quando se faziam denúncias de maus
tratos na tripulação e nos desvios das mercadorias, que muitas vezes eram vendidas para negociantes locais.
ROLLER, Heather Flynn. “Colonial collecting expeditions and the pursuit of opportunities in the Amazonian
Sertão”, p. 441.
7 LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. “O ‘reflorescimento’ da economia pós-Cabanagem”. In: COELHO,
Mauro; GOMES, Flávio dos Santos; MARIN, Rosa Acevedo (orgs.). Meandros da História: trabalho, e poder
no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005. Ver: HARRIS, Mark. Rebellion on the
Amazon: the Cabanagem, race, and popular culture in the North of Brazil, 1798-1840. New York, Cambridge
University Press, 2010.
8 Desde 1794 que Antonio Rodrigues Lisboa costumava circular e fazer comércio pelos “Sertões do Estado”
quando foi designado como procurador de Fernandes José, da cidade de Lisboa (APEP, Procuração Bastante
e Geral 1181).
9 Segundo a descrição de Alexandre Rodrigues Ferreira, a carne da tartaruga “é comida quando fresca, cozida,
assada ou frita, em tudo se assemelha com a carne de vaca. Dela se fazem as importantíssimas provisões das
carnes secas, de conservas em potes de manteiga da mesma, a que chamam mixira, e de salmoura. Tudo isso
de cacau e 23 arrobas de sebo. Além da carga, a sua embarcação era composta pela seguinte
equipagem: um cabo, um piloto, 11 índios remadores e 6 escravos (sendo 2 mulheres),
transportando também 8 pessoas como passageiros, o que sugere ser uma embarcação de
grande porte para realizar esse comércio (APEP, Códice 659).
O transporte de grandes quantidades de mercadorias para a cidade de Belém tinha
duas finalidades: ou as mercadorias já deveriam ter um negociante certo para a sua
aquisição, ou então seriam resultado da formação de sociedades entre negociantes que
visavam seguir para os sertões atrás dos gêneros da terra, tais como o cacau, o tabaco e a
salsaparrilha, os principais produtos da balança comercial que eram exportados nesse
período. Em 1814, Manoel Gomes Ribeiro saiu com o seu barco da vila de Santarém com
destino à cidade de Belém. O transporte de 1.100 arrobas de cacau e 24 arrobas de couro
de boi era feito em uma embarcação com 1 índio piloto, 3 índios remeiro, 3 escravos e 1
preto forro. Possivelmente, a condução dessas mercadorias devia envolver o negociante
João Pedro Ardasse em Belém, visto que em novembro de 1813, este negociante passou
procuração para Manuel Gomes Ribeiro representá-lo na Vila de Santarém (APEP, Códice
659). Ao estreitar as suas relações comerciais para os sertões da capitania, os negociantes de
Belém garantiam sua participação nesse comércio. Por outro lado, para os negociantes dos
sertões essas relações com Belém eram a garantia que as mercadorias arrecadadas seriam
vendidas e o lucro seria certo. O que permite indicar a existência de uma escala entre os
negociantes que agiam no interior e na cidade, e dessa relação o seu desdobramento entre
os negociantes de Belém e de Lisboa.
Esse circuito mercantil para os sertões da capitania tinha nas vilas de Santarém,
Óbidos e Monte Alegre os principais destinos de comerciantes, visto que grande parte das
mercadorias comercializadas era coletada e/ou produzida nessa região. Na documentação
da Coletoria dos Impostos de Gurupá, há 175 registros de canoas que saíram dessas vilas
para Belém. A maior parte das canoas, num total de 55 (31,42%), saiu da vila de Santarém,
mas foi possível notar que alguns negociantes dessa vila também registravam suas canoas
como originárias de outras vilas próximas. O que pode significar a articulação comercial
desses negociantes no interior desse circuito do sertão do Pará. Como no registro de
Manuel dos Santos, que entre 1812 e 1816, realizou 6 viagens para Belém, sempre
transportando cacau e mais algum produto (peixe, peixe seco, café e feijão). Em seu
de um consumo notável por todo o Estado”. FERREIRA, Alexandre Rodrigues, Viagem filosófica pelas
capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, p. 27.
primeiro registro ele aparece como morador da vila de Santarém, entretanto nas outras
viagens que realizou, consta que a origem de sua canoa era também de Alenquer e Monte
Alegre. Ao contrário do tenente-coronel José Luís Coelho, que no mesmo período realizou
9 viagens, todas saindo da vila de Santarém. O transporte que fazia o tenente-coronel era
mais diversificado em produtos incluindo, além do cacau, gêneros como café, cravo,
salsaparrilha, manteiga, óleo de copaíba e couros de boi.
Com base nesses dois exemplos, foi possível perceber que o negociante Manuel dos
Santos, que diversifica o seu espaço de atuação, tende a eleger apenas um produto, o que
mais lhe traria rentabilidade na negociação, no caso o cacau, pois os gastos em armar uma
embarcação para o comércio nessa região deviam ser compensados pelos ganhos advindos
dos produtos que seriam conduzidos. Enquanto o negociante José Luís Coelho, que
concentrava a sua atuação apenas na vila de Santarém, diversificava os produtos que eram
comercializados.
Essas viagens mais longas, como as que saiam de Santarém ou do Rio Negro
requeriam um investimento maior, tendo em vista que as embarcações deveriam trazer uma
grande quantidade de mercadorias e de índios remadores para a sua condução até Belém.
Nesse caso, foi possível perceber que entre os negociantes que faziam esse circuito
mercantil havia os que já possuíam uma rota regular. Como o caso no negociante José Luís
Coelho da vila de Santarém, que entre os anos de 1812 a 1815 realizou nove viagens para a
cidade de Belém, sempre transportando cacau e mais outro produto (APEP, Códice 659).
Entretanto, para esse mesmo espaço de tempo, há registro de negociantes que fizeram
apenas uma viagem, na qual o produto conduzido era sempre o cacau e mais outro produto
como cravo ou couro de boi. Esses produtos tinham saída certa nos portos de Belém para
a Europa daí o seu interesse em comercializá-los.
Esse comportamento pode ser visto também nos comerciantes do Rio Negro. Em
37 registros de viagens realizadas para Belém, aparecem os nomes dos 26 proprietários de
embarcações, dos quais apenas quatro fizeram viagens regulares para Belém. O tenente
Antonio da Silva Craveiro10 realizou quatro viagens, sendo que três delas todas no ano de
1816 e na viagem que fez em 1812 levava sob o seu comando duas embarcações com 27
remadores. O principal produto transportado nessas embarcações era a manteiga de
10 Em 1817, há uma procuração para o Rio Negro, na qual o procurador é o capitão Antonio da Silva
Craveiro. Em 1821, outra procuração é encaminhada para a mesma capitania o nomeando como procurador.
Esse negociante era mesmo estabelecido da região e a regularidade das viagens realizadas reforça a sua
atuação nesse circuito entre o Rio Negro e Belém (APEP, Procuração Bastante e Geral 1170, 1159).
tartaruga, peixe e café (APEP, Códice 659). Como os outros produtos comercializados
dessa vila para Belém, nota-se que em sua maioria eram produtos destinados ao
abastecimento interno.
Isso pode ser notado nas canoas que saíam da capitania do Rio Negro, que deviam
passar e fazer registro no posto fiscal de Gurupá. Como afirmado, há o registro de 37
canoas (21,14%) vindas do Rio Negro, transportando em sua maioria manteiga de
tartaruga, peixe, farinha, galinha, café, peixe boi, produtos que tinham como destino o
mercado interno. Além desses gêneros, havia referências sobre o carregamento de tabaco,
salsaparrilha, cravo e cacau (esse último em menor quantidade), mas todos voltados para a
exportação.
O mesmo pode ser afirmado para as outras vilas como Gurupá e Monte Alegre, em
que cada uma delas apresentou 10 (5,71%) registros de canoas. Embora nesses registros
haja uma grande quantidade de cacau sendo transportada dessas áreas para Belém, há uma
diversificação dos produtos que são remetidos tais como: peixe seco, feijão, paneiros de
ervilhas, manteiga de tartaruga e carne seca, gêneros mais voltados para o abastecimento
interno do que para a exportação.
Os registros que tinham como origem a vila de Óbidos totalizavam 30 canoas (17%
do total). Entre os produtos que elas conduziam, a maior referência é para o cacau, seguido
pelo cravo. Como pode ser notado nas guias de registro da canoa de João da Gama Lobo
Bentes.11 Entre 1813 a 1815, ele realizou três viagens saindo de Óbidos com destino à
Belém, nas quais ele transportou cacau, cravo, carne seca e couros, para a cidade de Belém.
Os outros negociantes que saiam dessa localidade não variavam muito no produto que
transportavam, sendo o cacau e o cravo os produtos mais usuais (APEP, Códice 659).
Dos produtos registrados nem todos eram remetidos para a Europa. Alguns deles
eram diretamente voltados para o abastecimento local, como a manteiga de tartaruga, que
era utilizada para iluminação, farinha, galinha e parte do peixe seco e da carne seca. Além
dos gêneros vindos dos sertões, acima listados, pode-se citar também: baunilhas, algodão,
âmbar, almíscar, azeites, quina-quina, canela e gengibre, que tinham como destino os
portos da Europa.12 Com base na descrição de Manuel Barata, produtos como cacau, arroz,
café e algodão eram os principais produtos da balança comercial do Pará. Outros
11 João da Gama Lobo Bentes era negociante estabelecido na vila de Óbidos, chegando a atuar no cargo de
coletor da vila, o qual arrematou para no período de 1847 a 1848.
12 Segundo a relação feita por Frei Veloso, nos anos de 1769 a 1792, os portos de Gênova, Hamburgo,
Veneza, França e Holanda eram o principal destino desses produtos (VELOSO, 1853: 88).
13 BARATA, Manuel. “A antiga produção e exportação do Pará: estudo histórico-econômico”. In: Formação
Histórica do Pará: obras reunidas. Belém: UFPA, 1973, p. 307.
14 SAFIER, Neil. “Subalternidade tropical? O trabalho do índio remador nos caminhos fluviais amazônicos”.
In: PAIVA, Eduardo França, ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de
pensar e formas de viver, séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002, pp. 427-443.
15 ROLLER, Heather Flynn. “Colonial collecting expeditions and the pursuit of opportunities in the
Considerações finais
Bibliografia
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corografico sobre a Província do Pará. Pará:
Typographia de Santos & Menor, 1839.
BARATA, Manuel. “A antiga produção e exportação do Pará: estudo histórico-
econômico”. In: Formação Histórica do Pará: obras reunidas. Belém: UFPA, 1973.
FERREIRA, Alexandre Rodrigues, Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972.
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North of Brazil, 1798-1840. New York, Cambridge University Press, 2010.
LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. “O ‘reflorescimento’ da economia pós-Cabanagem”. In:
COELHO, Mauro; GOMES, Flávio dos Santos; MARIN, Rosa Acevedo (orgs.). Meandros
da História: trabalho, e poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005.
ROLLER, Heather Flynn. “Colonial collecting expeditions and the pursuit of opportunities
in the Amazonian Sertão”, c. 1750-1800”. The Americas, 66:4, 2010, pp. 435-467.
SAFIER, Neil. “Subalternidade tropical? O trabalho do índio remador nos caminhos
fluviais amazônicos”. In: PAIVA, Eduardo França, ANASTASIA, Carla Maria Junho
(orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver, séculos XVI a XIX. São Paulo:
Annablume: PPGH/UFMG, 2002, pp. 427-443.
SCHWARTZ, Stuart B. “O Brasil Colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e as
periferias”. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: América Latina
Colonial. Vol. 2. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2004, p. 339-421.
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1981.
Introdução
2 Para mais informações ver em: MARX, Karl. A Assim Chamada Acumulação Primitiva. In: MARX, Karl. O
capital: Crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 959-1014.
3 LENIN, V.I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Obras Escolhidas, tomo 2. Lisboa-Moscovo:
4FONTES, Virgínia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: Teoria e História. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010, p.
86.
5 Nas relações sociais de produção capitalista se apresentam as contradições entre as duas classes
mencionadas, e se gera então o ponto central do conflito, categorizado por Karl Marx de “luta de classes”.
6 Essa identificação da convergência de interesses entre os grupos de trabalhadores é o movimento da
trabalhadores pensam dentro de condições determinadas, “em sua vida material, em suas relações
determinadas, em sua experiência dessas relações e em sua autoconsciência dessa experiência.”
(THOMPSON, 1981, p. 111).
A análise metodológica
8 Carlos Fonseca era um grande defensor do amadurecimento político dos trabalhadores, pois ele entendia
que não bastaria somente armar um camponês, ou um trabalhador urbano, ou até mesmo um estudante, e sim
era fundamental fazer esses setores entenderem a origem e o motivo de sua própria luta, logo a classe
trabalhadora é uma categoria dotada de vida histórica, com total validade analítica para sua realidade e com
potencial de transformação social. Ver mais em FONSECA, Carlos. Obras. Viva Sandino. Managua:
Departamento de Propaganda e Educação Política da FSLN, 1984.
9 Thompson descarta de sua análise tanto as categorias de explicação positivista ou utilitarista quanto sua
Não se coloca esse ponto aqui para que seja compreendido que o momento da
Revolução Sandinista foi um fator espontâneo e inevitável, como analisam alguns
pensamentos do determinismo histórico.12 A categoria experiência permite sair da
armadilha do estruturalismo althusseriano que desconsidera o papel dos sujeitos na história
e tende a reduzir todos os acontecimentos sociais ao econômico.
Dois erros arraigados na tradição marxista foram confundir o tão
importante conceito de modo de produção (no qual as relações de
produção e seus correspondentes conceitos, normas e formas de
10THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 15.
11Idem. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 260, grifo do autor.
12 Através da contradição engendrada pela sociedade e luta de classes existe potencial de geração de
E mais uma vez, a categoria experiência se impõe como necessária para ajudar a
evidenciar a capacidade de homens e mulheres romperem com condições impostas. Ao
tratar classe social como um fenômeno histórico, “definida pelos homens enquanto vivem
sua própria história”, Thompson afirma a perspectiva de ver a realidade histórico-social
como um movimento contínuo, sujeita a transformações oriundas das lutas de classes.
Disso resulta a preocupação metodológica desse autor de que, para ter validade, toda
categoria teórica é uma categoria histórica.
Com isso, pensamos a construção do conhecimento a partir de uma relação
dialética entre sujeito e objeto, dentro da concepção do materialismo histórico. Logo, as
categorias teóricas são utilizadas como meios para o conhecimento, e não como categorias
fechadas, rígidas, inflexíveis e imutáveis. Estas próprias categorias são, dentro deste
método, produtos históricos sujeitos às modificações, pois “(...) à medida que o mundo se
modifica, devemos aprender a modificar nossa linguagem e nossos termos. Mas nunca
deveríamos modificá-los sem razão.” (THOMPSON, 1981, p. 34). Para Thompson a
história se manifesta por meio dos fatos e das evidências, que se tornam cognoscíveis
através dos métodos históricos. Importante ressaltar que como marxista, a metodologia
thompsoniana é materialista, então, se afastando do empiricismo o autor destaca que tais
fatos e evidências não se manifestam por si mesmos, mas devem sempre ser “interrogados”
pelas categorias teóricas.
O importante foco de todas as questões apresentadas, é entender que quando
pensamos em formação política da classe trabalhadora, devemos pensar em consciência e
Conclusão
noção de que não é uma categoria estática, logo a ideia de “cultura” também não. Ela deve
sempre estar atrelada a um contexto e em diálogo com as análises teóricas, que observam
suas manifestações, costumes e tradições. É importante entender também que quando se
pretende fazer um estudo cultural, é necessária demasiada atenção ao uso das palavras, para
que o discurso não adquira uma argumentação de superioridade de uma cultura sobre a
outra, ou qualquer tipo de demérito da cultura popular, como muito é feito por membros e
intelectuais das elites.
Com isso, é central o esforço em não generalizarmos a ideia de “cultura popular”.
Devemos entender todas as contradições e fraturas que este conceito pode carregar,
entendendo que não se compõe de forma homogênea, pois isso pode anular a análise da
complexidade que permeia a classe trabalhadora, trazendo o pensamento para os
trabalhadores nicaraguenses, por exemplo, as questões específicas dos trabalhadores rurais
x urbanos. Pois, embora estejam submetidos dentro da mesma lógica de exploração
capitalista, sentem essa movimentação de formas distintas, por conta de sua relação com os
meios de produção que podem se dar de diferentes formas, porém sempre entendendo que
todas as formas de exploração do trabalho se conectam pelo capital.
Bibliografia
Resumo
A pesquisa objetiva mapear de que formas as imagens fotográficas das Forças de Defesa de
Israel, disseminadas por veículos oficiais do governo, se apresentam como ferramentas
viáveis para a investigação de aspectos relevantes sobre a organização, funcionamento e
transformação da sociedade israelense. As fotografias serão utilizadas com vistas a permitir,
nelas, a análise das formações discursivas, bem como de questões referentes ao controle da
narrativa israelense a partir da homogeneização das representações das forças armadas por
via de um determinado olhar pensado e promovido pelos que ocupam posições de poder.
Dessa forma, e através da análise histórico-semiótica, será possível desvendar uma rede de
significações que teria dado suporte à criação de um padrão comportamental das forças
armadas israelense no teatro das operações visuais.
Introdução
1 Graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação da Profª Drª Tatiana Poggi.
E-mail: carollinemello@id.uff.br
2 KIMMERLING, B. The invention and decline of Israeliness: state, society, and the military. Berkeley: University of
árabes vizinhos –, as três instituições são mobilizadas como resposta aos problemas
enfrentados por Israel. Aqui, é dado foco à instituição militar para compreender como ela é
utilizada como instrumento de coesão do grupo e como resposta às ameaças tanto no
âmbito militar quanto dos discursos políticos e narrativas.
A premissa do trabalho é entender as forças armadas israelense para além da sua
posição fundamental como um poder de coerção e instituição monopolizadora da
violência, mas como contribuinte para a transformação nos valores públicos associados ao
serviço militar como um sinal de cidadania plena, o que o posiciona como instrumento de
construção da nação essencial ao funcionamento do Estado de Israel. Nesse sentido, o que
pode ser conceituado como a “nação em armas”3 teria se desenvolvido a partir da posição
central que as Forças de Defesa ocupam na sociedade israelense, se apresentando como
vital ao funcionamento e reprodução de Israel. Somente a partir desses fatores teria se
desenvolvido, ao longo do trajeto de construção do Estado, a ideia de um exército moral e
justo – o jus in bello e a legítima defesa preventiva – no qual suas ações e posicionamentos
políticos são justificados pela mentalidade permanente do cerco e por um senso de
vulnerabilidade decorrente da falta de consenso internacional em relação à própria
existência do Estado judeu.
As imagens fotográficas se apresentam, aqui, como objeto estratégico para verificar
a construção da representação de um tipo específico de exército. Serão utilizadas com
vistas a permitir, nelas, a análise das formações discursivas, bem como de questões
referentes ao controle da narrativa israelense a partir da homogeneização das
representações das Forças de Defesa por via de um determinado olhar pensado e
promovido pelos que ocupam posições de poder. Dessa forma, e através da análise
histórico-semiótica, será possível desvendar uma rede de significações que teria dado
suporte à criação de um padrão comportamental das forças armadas israelense no teatro
das operações visuais.
Desde que emergiu oficialmente a partir dos grupos paramilitares judaicos ainda em
momentos iniciais da Guerra Árabe-Israelense de 1948 – que oficializa a criação do Estado
3HOROWITZ, Dan. Strategic Limitations Of A Nation in Arms. Armed Forces & Society, vol. 13, n.2, 1987. p.
277.
de Israel – as Forças de Defesa de Israel (FDI) se tornaram uma das principais forças
militares do mundo. Em comparação com o modo no qual se apresentava durante a criação
do Estado, com combatentes e comandantes quase totalmente autodidatas, sem educação
militar formal e armada com equipamentos abaixo dos padrões mundiais, as FDI passam
por um processo de modernização extremamente sofisticado tecnologicamente em um
curto período de tempo, o que poucos conseguiram ainda nos seus primeiros anos4.
O objetivo fundamental das FDI têm sido, desde a sua criação, a defesa pela
existência e integridade do Estado e de seu território – seja qual fosse ele no momento. O
ethos defensivo ocupa papel central desde a Guerra Árabe-Israelense, e a partir do
processo de modernização interna, as forças armadas passam a disponibilizar de uma
segurança intensiva que conta com postos de controle, cercas, muros, domos de ferro,
ocupação e até a opção nuclear. Ainda como recurso em prol da segurança, o exército que
antes era treinado para a guerra a partir de 1967 passa a ser treinado para a ocupação militar
após a vitória israelense na Guerra dos Seis Dias, que garante à Israel os territórios da
Cisjordânia e a Faixa de Gaza – que desde 1948 se encontravam sob ocupação da Jordânia
e Egito, respectivamente –, além das Colinas do Golã, território sírio, e a Península do
Sinai, território egípcio5.
Chefiado por um fórum de comandantes sêniores, sob direção do Chefe de Estado-
Maior, as Forças de Defesa de Israel se encontram sob supervisão do Ministério de Defesa
(MOD), que possui como objetivo principal a proteção de Israel e de seus cidadãos por via
dos meios políticos, militares e sociais. Sendo responsável por defender o Estado de
possíveis ameaças militares internas e externas, o MOD supervisiona a maior parte das
forças de segurança israelenses6.
Segundo a sua própria denominação, as Forças de Defesa de Israel são
responsáveis “pela defesa do Estado de Israel, sua integridade, sua soberania, o bem-estar
de seus cidadãos e a prevenção dos esforços dos inimigos para interromper o modo de vida
do país”7. Se apresentando como as forças armadas de Israel, as FDI incluem o exército, a
marinha e a força aérea israelense.
Evidenciando o quão polarizada é a sociedade israelense, as Forças de Defesa
Israelense são compostas por diferentes grupos de combatentes, sendo muitos deles parte
4 VAN CREVELD, M. L. The sword and the olive: a critical history of the Israeli defense force. New York:
PublicAffairs, 2002. p. 70.
5 SHLAIM, A. The iron wall: Israel and the Arab world. New York: W.W. Norton & Company, 2014. p.372.
6 ISRAEL DEFENSE FORCES. IDF Sites. Disponível em: https://www.idf.il/en.
7 Ibidem.
de minorias étnicas ou religiosas, que envolvidos na vida social de Israel ainda mantém
vivas suas línguas, culturas e tradições. Dessa forma, o Estado exige que todo cidadão
israelense com idade superior a 18 anos, sendo judeu, druso ou circassiano sirva nas forças
armadas. Entre aqueles que estão isentos encontram-se os árabes israelenses, mulheres
religiosas, indivíduos casados e os considerados inaptos médico ou mentalmente –
independente às isenções, muitos desses se voluntariam para servir nas Forças de Defesa.
Além dos grupos de presença obrigatória nas FDI, os beduínos, árabes muçulmanos
originalmente vagantes, fundamentam um grupo étnico que se alista voluntariamente nas
FDI, ocupando notoriamente a função de rastreadores em unidades específicas, devido a
seu modo típico de vida e ao amplo conhecimento geográfico.
Alistados e já como parte das FDI, os homens devem servir por um período
mínimo de 32 meses e as mulheres devem servir por um período mínimo de 24 meses. No
que se tem a questão feminina e as FDI, Israel é o único país em que o serviço militar é
obrigatório para mulheres, que constituem cerca de um terço do número total de recrutas e
quase vinte por cento das forças regulares totais. Apesar das mulheres terem estado
presente também nas linhas de frente durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948, após isso
têm-se o afastamento destas das posições de combate. A situação só se altera a partir de
2000, quando o caso Alice Miller vs. o Ministro de Defesa é levado à Suprema Corte
israelense denunciando a política militar que proibia a presença de mulheres em
determinadas posições como uma ação de discriminação de gênero. Em consequência, as
regras do serviço são reformuladas e as mulheres passam a ocupar posições de combatentes
e áreas do exército até então reservadas à figuras masculinas. Assim, são criados batalhões
mistos, podendo ser encontradas mulheres em diversas posições nas FDI, não estando
apenas nas forças especiais e cargos de alto escalão por não serem sêniores o suficiente para
chegar a tais postos8.
Criado quase imediatamente após a proclamação de independência do Estado de
Israel, as Forças de Defesa se apresentaram desde o início como braço de violência política
e de uma política externa agressiva, como protagonista central em conflitos geopolíticos
históricos na região do Oriente Médio, e como instrumento no processo de construção da
nação e da identidade israelense a partir de um sistema burocrático, cultural e militar
específico, que não abarcava as especificidades de todos os grupos judaicos que a partir de
8IZRAELI, Dafna N. Israel Defense Forces. Jewish Women: A Comprehensive Historical Encyclopedia. Jewish
Women's Archive, 2009.
Objetivos
Referenciais teórico-metodológicos
9 MAUAD, Ana Maria. Fotografia pública e cultura do visual, em perspectiva histórica. Revista Brasileira de
História da Mídia, vol. 2, n. 2, 2013.
10 CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, H. Perez. El Concepto de Clases Sociales: Bases para una discusión.
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa
12
Com relação às fontes, parte-se do pressuposto de que essas não falam por si só,
esses documentos, sejam quais forem suas tipologias, não contêm toda a história, sendo
necessário, como ponto inicial, questioná-los através de métodos específicos de
investigação. As fontes primárias – as fotografias das Forças de Defesa de Israel – serão
analisada com auxílio de uma bibliografia especializada no tema.
Distanciando-se da noção de que as imagens representam o real, na presente
pesquisa as imagens serão posicionadas como representantes de um real imaginado, criado
por um determinado grupo de pessoas em situação de poder, já que nas sociedades
contemporâneas as classes dominantes “são também aquelas no controle da criação,
circulação e legitimação dos discursos e narrativas, sejam eles verbais ou não-verbais”13.
Inserindo as imagens fotográficas no contexto no qual estão sendo produzidas, faz-se
necessário ao estudo histórico-semiótico dos comportamentos humanos a articulação da
imagem com conceitos que dialogam com questões referentes ao poder, às representações
e às ideologias.
A priori, as imagens fotográficas serão trabalhadas a partir dos três níveis
semânticos do discurso propostos por Cardoso14: o figurativo, temático e o axiológico, na
intenção de encarar as problemáticas das fotografias. A partir da observação das imagens
fotografias, serão selecionadas grandes temáticas a partir da proeminência e prevalência de
mensagens a serem transmitidas. Com os temas selecionados, têm-se a etapa de análise da
figurabilidade através de um processo de seleção dos elementos figurativos, já que o
fotógrafo como produtor da imagem escolhe, consciente ou inconscientemente, os mais
diversos artifícios para estruturar as temáticas da sua imagem fotográfica e a mensagem que
se encontra por trás dela. A partir da catalogação de temas e elementos figurativos das
imagens, serão selecionados os elementos mais relevantes para a análise axiológica, que está
relacionado com as práticas sociais. Dessa forma, além da atenção aos elementos que
compõem a imagem, serão realizadas análises da sociedade na qual essas fotografias são
produzidas e disseminadas, a fim de essas possam ser entendidas como materializações dos
discursos em questão.
13 CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios Racionalistas: Filosofia, Ciências Naturais e História. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1988.
14 CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, 1997.
Considerações finais
Bibliografia
Resumo
Introdução
Humanidades Digitais
3BRASIL, Eric; NASCIMENTO, Leonardo Fernandes. História Digital: reflexões a partir da Hemeroteca
Digital Brasileira e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica. Estudos Históricos, v. 33, n. 69,
2020, p. 199.
tecnologias pelos pesquisadores da área das Ciências Humanas, através dos bancos de
dados, dos softwares e de acervos on-line, por exemplo.
Esse “novo” formato de se fazer pesquisa nas áreas humanas representa não apenas
uma adequação a Era Digital, mas também uma maneira de preservar acervos e fazer
circular o conhecimento de modo mais rápido e ampliado.
Na História da Educação, em particular, o uso de ferramentas e de acervos digitais
tornou-se comum. Apesar da ampla utilização, o suporte em que as fontes são
disponibilizadas e os instrumentos de pesquisa não devem estar desconectados das
problematizações, pois essas novidades interferem na produção do conhecimento histórico,
na maneira de se fazer e pensar história e memória. Nesse sentido, demonstrando
preocupações com o rigor metodológico, alguns autores fazem com que o tema seja pauta
de discussões no campo.
Três dos artigos sobre os quais nos deteremos neste trabalho integraram o mesmo
dossiê, publicado pela Revista História da Educação, em 2002. Em O livro e a biblioteca, o
documento e o arquivo na era digital, Diana Gonçalves Vidal refletiu sobre os espaços ocupados
pelo livro físico e o digital, numa tentativa de mostrar ao leitor que a existência de um não
inviabiliza a de outro. Ou seja, apesar de muitos autores acreditarem que a “era da
informática”, e tudo aquilo que dela deriva, veio para substituir os considerados analógicos,
essa não é uma prática que deva ser levada ao pé da letra. Ao dialogar com Chartier e
Darton, por exemplo, relata sobre os diferentes modos de usos que devem ser levados em
consideração na hora de se apropriar de cada uma das tecnologias. Nesse sentido, a autora
fez uma discussão sobre as apropriações que devem ser feitas tanto dos materiais
pertencentes à biblioteca física, quanto ao que podemos localizar na internet. Afirmou que
se é “uma impossibilidade tudo preservar sob o risco de nada recuperar, é também
equívoco substituir todos os documentos por cópias digitais, cuja durabilidade é uma
incógnita e o acesso se restringe à parcela da população mundial detentora da inovação”,
do poder financeiro “e do consumo das novas tecnologias; e na qual a materialidade
4 VIDAL, Diana Gonçalves. O livro e a biblioteca, o documento e o arquivo na era digital. Revista História da
Educação, v. 6, n. 11, 2002, p. 60.
5 Conforme já brevemente informado, os textos de Vidal, Werle e Stephanou compuseram o mesmo dossiê
e guardado pelos pesquisadores. Ao dialogar com Bisotto e Popkewitz, por exemplo, tenta
demonstrar um pouco dos aspectos positivos e negativos da criação e construção de um
banco de dados, além de sua importância tanto para salvaguardar materiais já bem
depreciados devido ao tempo e tentar “encurtar” distâncias e outras possíveis
impossibilidades que cercam o cotidiano dos estudantes e pesquisadores.
Em 2008, a partir da experiência do Grupo de Pesquisa de História da Educação
Matemática no Brasil (GHEMAT), vinculado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) na
construção de bases de dados documentais digitalizados no arquivo escolar do Colégio
Pedro II, Wagner Rodrigues Valente produziu o artigo Arquivos escolares virtuais: considerações
sobre uma prática de pesquisa – publicado na Revista Brasileira De História Da Educação – no qual
buscou problematizar o uso de arquivos escolares e pessoais digitalizados. Dialogou com
autores como Rolando Minuti e Rosely Curi Rondinelli para trazer alguns problemas que
surgem na prática historiográfica com os documentos virtuais. Apontou para a modificação
no suporte, questões sobre autenticidade e fidedignidade de documentos eletrônicos, a
mediação mecânica e eletrônica para a leitura das fontes e a substituição de sistemas
operacionais, que dificultam o acesso permanente mais do que o do papel que pode ser
preservado por longos anos.
No artigo Acervos e pesquisas em História da Educação: das vitrines do progresso aos desafios
da conservação digital – publicado na Revista História da Educação, em 2008 –, Marcia de Paula
Gregorio Razzini propõe formas, possibilidades, limites e desafios das pesquisas em
acervos institucionais com fontes para a História da Educação. Destacou muitas
contribuições que os acervos e as pesquisas na área receberam das mídias digitais nos
últimos anos como a constituição de sítios na internet para os museus escolares de diversos
países e a constituição de banco de dados em acervos online. Indicou uma série de
instituições que realizaram esse tipo de trabalho e que disponibilizam acesso remoto a
documentações que podem ser utilizadas pelos historiadores da educação. Apesar dos
aspectos positivos dos recursos digitais que ampliam as possibilidades de trabalho,
colaboraram na preservação e acesso aos acervos, não deixa de tratar os limites e desafios
dessa novidade, como as mutações do aparato informático que obrigam atualização
contínua dos processadores, programas e suportes com risco de não se conseguir mais
consultar no suporte antigo. Além disso, entende também que as constantes atualizações
dos acervos para não tornar as fontes obsoletas tornam os custos instrucionais grandes.
Segundo a autora, o acesso virtual não afastou os historiadores dos arquivos, muito pelo
contrário, por terem informações prévias, permitiu que encontrassem mais rapidamente e
em número maior os dados necessários. Embora os filtros de busca que algumas mídias
digitais possam facilitar e tornar mais rápidas e efetivas a localização de informações, a
autora deixa claro que quem “propõe as buscas, faz a filtragem e cruzamento de dados e
atribui significado a eles é o pesquisador”6.
Vivian Galdino Andrade, no artigo: A experiência de criação de um repositório digital como
fonte de pesquisa para a história da educação de Bananeiras – publicado na Revista de História e
Historiografia da Educação, em 2017 –, relatou que foi a partir da participação em um projeto
de PIBIC que nasceu a ideia de digitalizar algumas fontes pertencentes ao município de
Bananeiras (PB) a fim de que fosse possível “facilitar” e estimular a pesquisa da história da
educação local. Nesse sentido, pretendeu relatar o percurso de criação e coleta das fontes
do repositório “História da Educação do município de Bananeiras / HEB”. Teceu
discussões a respeito da relação entre história e tecnologia, dialogando com Vidal, Faria
Filho e Bonato, que a ajudam a perceber que “aliar a História da Educação às novas
tecnologias nos permite lançar mão de estratégias que possibilitem estabelecer um elo entre
estas áreas do conhecimento, que aparentemente díspares, podem se comunicar na arte e
na tarefa de fazer pesquisa”7. Para compor o acervo digital, que está ligado à Universidade
Federal da Paraíba, localizaram, dentre outros, jornais, revistas e livros de memórias.
Apesar de a proposta ser de um encurtamento de distância entre o pesquisador e as fontes,
a autora afirmou ser imprescindível para a pesquisa o contato direto com o impresso e seu
local de guarda.
Bica, Rodrigues e Gervasio, ao escreverem o artigo Tatu Magazine: os modos de ser e
fazer do Repositório digital Tatu – publicado na Revista História da Educação, em 2019 –,
apresentaram a elaboração de um periódico firmado como uma espécie de catálogo do
repositório criado pelo Grupo de Estudos em Educação, História e Narrativas (Geehn), da
Universidade Federal do Pampa/RS. Para tanto, dialogaram com Rodrigues e Zucatto e
Júnior na tentativa de justificar e compreender a importância da criação de um repositório
que abriga fontes digitalizadas, visando “[...] colaborar para a preservação e divulgação de
acervos relacionados à história da educação, caracterizando-se como uma ferramenta de
6 RAZZINI, Marcia de Paula Gregorio. Acervos e pesquisas em História da Educação: das vitrines do
progresso aos desafios da conservação digital. Revista História da Educação, v. 12, n. 25, 2008, p. 148.
7 ANDRADE, Vivian Galdino. A experiência de criação de um repositório digital como fonte de pesquisa
para história da educação de bananeiras. Revista de História e Historiografia da Educação, v. 1, n. 2, 2017, p. 266.
Considerações finais
8 BICA, Alessandro Carvalho; RODRIGUES, Tobias de Medeiros; GERVASIO, Simôni Costa Monteiro.
Tatu Magazine: os modos de ser e fazer do Repositório Digital Tatu. Revista História da Educação, v. 23, 2019, p. 1.
9 SIMÕES, Robson Fonseca. Memórias postadas, histórias compartilhadas: a educação rondoniense nas
É necessário considerar ainda que a própria maneira como realizamos este trabalho,
a partir do campo de buscas de periódicos digitais, convergiu nesses resultados, sem que
signifique que apenas as produções aqui apresentadas tratem a questão das Humanidades
Digitais na História da Educação. O assunto requer ainda aprofundamento e mais
discussão no campo.
Bibliografia
Anexo:
Total 07 16 23
Resumo
O seguinte trabalho pretende realizar uma breve abordagem da relação entre romance
policial e história. Para isso, dividiremos este trabalho em três partes, nas quais seguem
pontos de discussão levantados a respeito da questão proposta. Primeiramente,
abordaremos o romance policial como gênero inaugurado no século XIX e a relação
pertinente entre o mesmo e o que chamamos de paradigma indiciário, termo cunhado pelo
historiador Carlo Ginzburg. A discussão segue ao diferenciarmos o romance de enigma do
romance hard-boiled, apresentando e caracterizando o segundo subgênero. Em última
etapa, discutiremos de maneira breve argumentos que defendem o gênero hard-boiled
como crítica social e política dentro do romance policial.
Introdução
3PIMENTEL PINTO, Júlio. A pista e a razão: Uma história fragmentária da narrativa policial. E-galaxia,
2019
4TODOROV, T. Tipologia do Romance Policial. In: As Estruturas Narrativas. São Paulo Perspectiva, 2006.
Para montar tal quebra-cabeça seria necessário a investigação dos fatos, a observação
meticulosa de cada dado disponível, e além disso, dos dados ocultados. O método exige
disciplina, raciocínio e uma capacidade dedutiva apurada, não sendo qualquer pessoa capaz
de aplicá-lo. Nas estórias policiais, as pessoas que dedicam-se a arte de resolver mistérios
são os detetives, e embora cada autor possua o seu próprio estilo de narrativa, o que Carlo
Ginsburg chama de paradigma indiciário continua sendo o principal elemento das obras
que compõem esse gênero.
O paradigma do saber indiciário, conceito que aparece no ensaio “Sinais: raízes de um
paradigma indiciário”, de Carlo Ginzburg, aponta semelhanças entre o ofício do historiador e
a atividade do detetive. Ginzburg, por meio de sua obra nos mostra como o método da
dedução está presente na história humana, desde os nossos antepassados com a caça ao
desenvolvimento da medicina. Giovanni Morelli, historiador da arte e médico italiano, sob
o pseudônimo de Ivan Lermolieff foi o responsável por desenvolver no século XIX um
método que lhe permitisse identificar a falsificação de obras artísticas. Ao contrário de
outros historiadores da arte que se concentravam em procurar as características que se
mostrassem como grandes marcas dos pintores, Morelli entendeu que para achar as provas
de falsificação seria necessário ter atenção não para as características que os indivíduos mais
se esforçassem para esconder, ou no caso das pinturas, reproduzir com fidedignidade, no
entanto as características que lhe passassem despercebidos. Com isso, Giovanni Morelli
analisava orelhas, mãos, dedos, e quaisquer outras características que não chamassem tanta
atenção na obra dos grandes autores e dessa forma, seus falsificadores não teriam o mesmo
empenho em reproduzir. Como Ginzburg aponta em seu artigo, o método de Morelli tem
notável semelhança com outros dois nomes do século XIX, o pai da psicanálise Sigmund
Freud e com o escritor Sir Arthur Conan Doyle, representado no seu personagem da ficção
Sherlock Holmes.
Nos três casos, pistas talvez infinitesimais permitam captar uma realidade
mais profunda, de outra formam inatingível. Pistas: mais precisamente,
sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes),
signos pictóricos (no caso de Morelli).5
Assim como o método de Morelli, a psicanálise médica se propõem a investigar pistas (ou
sintomas) e traços ocultos ou despercebidos na personalidade e desta forma ser capaz de chegar a
um diagnóstico. Inclusive, em seu ensaio O Moisés de Michelangelo (1914), Freud cita Giovani Morelli,
5GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014. p. 150
mostrando que se este não possuía influências diretas em seu estudo, ao menos possuía
conhecimento do método aplicado pelo médico italiano e reconhecia as suas semelhanças com a
psicanálise:
Fiquei então extremamente interessado ao descobrir que o pseudônimo
russo ocultava a identidade de um médico italiano chamado Morelli, que
morrera em 1891 como Senador do Reino da Itália. Parece-me que seu
método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise
que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir
de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por
assim dizer, de nossas observações.6
6FREUD, 1976, p. 36-7, apud GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: Mitos,
Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 147
7Ibid., p. 167
Desta forma, o paradigma indiciário pode ser encarado como a base da medicina
hipocrática, embrião dos romances policiais e além disso, será também presente nas
ciências humanas. A influência da semiologia médica é decisiva para o paradigma indiciário
no século XIX, e a partir dela, como Ginzburg aponta, podemos relacionar tanto aos
romances policiais e seus detetives, quanto à História: “[…] Nesse sentido, o historiador é
comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico
de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário,
conjetural.9”
Enquanto o detetive investiga um crime, o historiador investiga o seu objeto, tanto
ao crime quanto ao objeto é apresentado um problema, ou seja, o que o historiador busca
por meio do estudo daquele objeto, e no caso do detetive a compreensão do processo e
resolução do crime. Além disso, o entendimento de processos é fundamental para a
atividade do historiador. Ambos, o historiador e o detetive, também utilizam a coleta de
dados, na historiografia comumente chamados de fontes e para o detetive, pistas. Com um
objeto definido (crime ou tema pesquisado), com a coleta dos dados (fontes ou pistas)
sobre o problema apresentado, ambos precisam submeter estes dados ao rigor de um
método e com isso conseguir extrair de suas fontes ou pistas as informações desejadas. Por
meio deste método tanto o historiador quanto o detetive pretendem alcançar a resolução de
seu problema. Podemos dizer também que a investigação de pistas permite aos elaborar
uma narrativa, no caso dos historiadores, ela seria histórica. Já para os detetives, uma
narrativa criminal.
8DOYLE, Arthur Conan. Um Estudo em Vermelho. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2016. p. 24
9GINZBURG, op. cit., p. 157
O escritor Tzvetan Todorov, apesar de não julgar as obras, tal como Chandler, corrobora
com a sua visão ao assinalar os esquemas apresentados pelos romances de enigma. Segundo
Todorov, os romances policiais de enigma seriam marcados por duas histórias: uma do assassinato
ou crime que antecede o livro e a outra do seu inquérito11. Ainda segundo Todorov, no romance de
enigma, os acontecimentos se concentram todos na primeira história, a que já aconteceu. Desta
forma, na segunda história, resta às personagens apenas solucioná-las.
As personagens dessa segunda história, a história do inquérito, não agem,
descobrem. Nada lhes pode acontecer: uma regra do gênero postula a
imunidade do detetive. Não se pode imaginar Hercule Poirot ou Philo
Vance ameaçados por um perigo, atacados, feridos, e ainda menos,
mortos. As cento e cinqüenta páginas que separam a descoberta do crime
da revelação do culpado são consagradas a um lento aprendizado:
examina-se indício após indício, pista após pista.12
As críticas de Raymond Chandler à tradição do romance policial não são o único tema
tratado no ensaio. Outro tema debatido é sobre a “simples arte de matar”, ou seja da arte de
escrever sobre crimes e assassinatos. Chandler defende que as estórias policiais devem desnudar o
universo da violência, entregando tramas que representem a realidade. Representem crimes de
forma fidedigna, assim como toda a atmosfera de seu submundo. Escritores como o próprio
Raymond Chandler se empenharam por criar histórias sobre esse univsrso, e para o autor, o
primeiro a realizar isso – com a crueza e maestria necessária – foi Dashiell Hammett.
Um desmascaramento verdadeiramente revolucionário tanto da
linguagem quanto do material ficcional vinha acontecendo já há algum
tempo. Provavelmente começou com a poesia; quase tudo vale.
Querendo, pode-se rastrear isso claramente até Walt Whitman. Mas
Hammett aplicou esse desmascaramento à história de detetive, e isto,
dada à grossa casca de refinamento inglês e do pseudo-refinamento
americano, ficou bastante difícil de digerir.13
10CHANDLER, Raymond. A Simples Arte de Matar. In: A Simples Arte de Matar vol. 1. Porto Alegre:
L&PM, 2009. p. 13
11TODOROV, T. Tipologia do Romance Policial. In: As Estruturas Narrativas. São Paulo Perspectiva, 2006.
12Ibid., p. 96
13CHANDLER, op. cit., p. 22
14PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Ediciones Fausto, 1993 (1ª edição:1986)
Argentina, contar com a ajuda de Borges para a sua recepção15. Além disso, Piglia fará uma defesa
do hard-boiled, o qual se refere como romance negro, chamando atenção para o caráter materialista
e social de tais obras. Denunciando e evidenciando problemas referentes à sociedade capitalista
En última instancia (pienso em Cosecha roja de Hammet, em El pequeño
César de Burnnet, em ?Acaso no matan los caballos? de McCoy) el único
enigma que proponen – y nunca resuelven – las novelas de la serie negra
es ele de las relaciones capitalistas: el dinero que legisla la moral y
sostiene la ley es la única <<razón>> de estos relatos donde todo se
paga. En este sentido, yo diría que son novelas donde todo se paga. En
este sentido, yo diría que son novelas capitalistas en el sentido más literal
de la palabra debe ser leídas, pienso, ante todo como síntomas.1617
Piglia utilizará o romance duro como espaço privilegiado para crítica social e histórica,
associando temporalidades. Com isso, entendo o romance policial por uma ótica diferente da crítica
que o interpretava como mantenedor da ordem burguesa. Este argumento é explorado pelo
historiador Júlio Pimentel Pinto em A pista e a razão: uma história fragmentária da narrativa policial
(2019). Pimentel desenvolve o argumento de Ricardo Piglia a respeito do romance duro (hard-
boiled), entende que a tentativa de representação da violência tal como a realidade traz ao gênero o
aspecto de crítica e denúncia social, defendendo desta forma, um discurso político presente dentro
do gênero.
Da articulação entre Freud, Baudelaire, Benjamin e Borges, resulta a
compreensão do detetive como identificador dos rumos da experiência
histórica: aquele que busca fazer da literatura seu lugar de reflexão e
problematização, de crítica e, ocasionalmente, denúncia. Na contramão
da forma negativa como parte da crítica definiu o gênero – uma
validação das regras e dos valores da sociedade burguesa –, Piglia o
concebeu como espaço de interpretação; para ele, o policial pode reunir
história e ficção, associar temporalidades, definir o lugar privilegiado do
crítico. Tal possibilidade se abriu para o gênero, segundo ele, na
passagem do policial analítico ao “policial duro”, ou hard-boiled.18
15Ibid.
16Ibid.
17Em última instância (penso Cosecha roja de Hammett, em El pequeño César de Burnett, em ?Acaso no matan los
caballos? de McCoy) o único enigma que propõem – e nunca resolvem – os romances negros é o das relações
capitalistas: o dinheiro que legisla a moral e detém a lei é a única <<razão>> de todos estes relatos donde
tudo se paga. Neste sentido, eu diria que são novelas capitalistas no sentido mais literal da palavra: devem ser
lidas, penso, antes de tudo como sintomas. (tradução nossa)
18PIMENTEL PINTO, Júlio. A pista e a razão: Uma história fragmentária da narrativa policial. E-galaxia,
2019. Arquivo E-book. O livro nos apresenta um estudo sobre narrativa policial, crítica literária e história,
apresentando autores e estilos considerados centrais dentro do gênero, tal como o romance de enigma e o
hard-boiled.
ou ao menos, relativamente envolvidos com o universo dos crimes. Esta violência é fruto
de um mundo capitalista e de suas crises, no qual o dinheiro possui valor central na
sociedade. Ele é capaz de gerar tanto riquezas, quanto desigualdades. Pode ser conquistado
licitamente, quanto ilicitamente, no entanto, a certeza é a da impossibilidade de um mundo
material sem ele. Desta forma, no romance duro, a atmosfera é material, seja pelo luxo de
um magnata político, ou pela impureza do degradado submundo do crime.
Com isso, além de social o hard-boiled, também é marcado por um discurso
político ao denunciar não somente a desigualdade social e a violência, como também a
corrupção na sociedade. Corrupção não somente de cidadãos, como de instituições
políticas e do Estado. Podemos encontrar nas páginas de tais romances, por exemplo, um
juiz corrupto que aceita propina da máfia em troca de sentenças que a favoreça, assim
como muitas vezes a polícia colaborando com o crime, e quando não, sendo esta a própria
criminosa. Luiz Alfredo Garcia-Roza, autor carioca que tinha grande inspiração no hard-
boiled, em muitas de suas obras nos apresenta tal corrupção policial. Seu personagem
principal, o detetive Espinosa, sabia que não podia confiar em seus colegas de profissão,
justamente por isso, se considerava muitas vezes “um estranho no ninho” e preferia ter
como parceiros jovens recém-ingressos à polícia, por presumir que como ainda novos no
ofício e instituição, estes não estariam corrompidos.
Seu modo diferente de ser, somado ao fato de nunca ter sido cooptado
pela corrupção policial, tornava-o diferente. Os iguais tendem a se
agrupar e a expelir o diferente, aquele cujo desejo não se confunde com
o desejo do grupo e por essa razão sofre uma morte social, expelido
lenta e gradualmente. Este era o motivo pelo qual procurava se ligar aos
policiais mais jovens, recém-saídos da academia de política, ainda não
corrompidos. Welber era um deles e, no entanto, estava à morte numa
UTI de hospital. (GARCIA-ROZA, 1996)
Considerações Finais
trabalho, é de fato rica e apresenta um amplo campo a ser explorado, ou nas linhas de um
detetive, investigado.
Bibliografia
CHANDLER, Raymond. A Simples Arte de Matar. In: A Simples Arte de Matar vol. 1.
Porto Alegre: L&PM, 2009.
DOYLE, Arthur Conan. Um Estudo em Vermelho. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil,
2016.
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In: Mitos, Emblemas,
Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
PIMENTEL PINTO, Júlio. A pista e a razão: Uma história fragmentária da narrativa
policial. E-galaxia, 2019
GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. O Silêncio da Chuva. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. DEBOLS!LLO, 2014. Arquivo E-book. (1ª edição:1986)
TODOROV, T. Tipologia do Romance Policial. In: As Estruturas Narrativas. São Paulo
Perspectiva, 2006.
Resumo
A guerra civil grega (1943-1949) foi um dos mais emblemáticos processos dos anos entre o
fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. Pretendemos aqui traçar um
breve panorama das principais correntes de análise historiográfica desse conflito, a saber: a
vertente dita ortodoxa, que imputa aos guerrilheiros comunistas a responsabilidade pela
violência que assolou a Grécia durante os anos 1940 e considera positivas as intervenções
britânica e americana — que teriam salvado os gregos de uma ditadura pró-Moscou —; a
perspectiva revisionista, que critica a atuação anglo-americana, tida como imperialista e
violenta; e, finalmente, os estudos pós-revisionistas, que embora muito diversos têm em
comum o esforço de elidir leituras maniqueístas e propor estudos que levem em conta
dimensões até então pouco abordadas da guerra (gênero, cultura, etc). A intenção é
destacar como o contexto da Guerra Fria acabou por influenciar em muito os debates a
respeito da tragédia grega.
Introdução
1 Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF-PPGH). Vinculado ao Núcleo
de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF). Contato: felipedesouza1988@gmail.com. Este trabalho contou
com apoio de bolsa de doutoramento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
2 LOWE, Keith. Continente selvagem: o caos na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Tradução: Rachel Botelho e
3 GEROLYMATOS, André. An international civil war: Greece, 1943-1949. 1ª edição. New Haven: Yale
University Press, 2016. 367p.
4 SAKKAS, Jonh. Britain and the greek civil war 1944-1949: British imperialism, public opinion and the coming of the
um breve esboço desses debates, é necessário ter em mente algo que o famoso Plano
Marshall, emitido pelo governo americano de Harry Truman, deixa bem claro: as diretrizes
desse documento, que pregam a necessidade de defender os chamados povos livres de
ameaças comunistas (viessem elas de Moscou ou de movimentos pró-bolcheviques
autóctones), foi elaborada tendo em mente justamente o conflito grego (além da Turquia).
Ou seja: a Grécia era pensada de forma intimamente relacionada ao contexto da Guerra
Fria. Mais do que isso: a história política grega entre as décadas de 1950 e 1980 foram
profundamente marcadas pelos efeitos do resultado da guerra civil — que por sua vez
foram intensificados pela adesão da Grécia ao bloco capitalista e sua entrada na OTAN em
1952. A derrota dos guerrilheiros do KKE abriu espaço para uma série de governos
anticomunistas, autoritários e caracterizados pela forte presença de militares — situação
que se tornou mais grave durante a chamada ditadura dos coronéis (1967-1974), quando a
Grécia foi governada arbitrariamente por uma junta militar liderada por Giorgios
Papadopoulos. É esse contexto — autoritarismo e Guerra Fria — que influencia o tom da
maior parte das pesquisas a respeito da guerra civil grega.
5WOODHOUSE, C. M. The struggle for Greece 1941-1949. 1ª edição. New York: Ivan R. Dee, 2002. 370 p.
6SAKKAS, John. Old Interpretations and New Approaches in the Historiography of the Greek Civil War. Disponível
em: https://aegean.academia.edu/JohnSakkas. 20p.
7 KOSOULAS, George. Revolution and defeat: the story of the Greek Communist Party. 1ª edição. Oxford: Oxford
University Press, 1965. 160 p.
8 STAVRIANOS, Leften. Greece: american dilemma and opportunity. 1ª edição. Chicago: H. Regnery, 1952. 220p.
9SAKKAS, John. Old Interpretations and New Approaches in the Historiography of the Greek Civil War. Disponível
em: https://aegean.academia.edu/JohnSakkas. 20p.
britânico), chamando atenção para o que seria uma impossibilidade, diante das evidências
disponíveis em taxar um ou outro grupo como principal responsável pelo conflito.
A questão da responsabilidade, para os pós-revisionistas, tinha uma importância
apenas secundária. A ênfase em questões imediatamente políticas e militares foi reduzida, e
os aspectos econômicos, culturais e sociais receberam maior atenção, o que levou,
evidentemente, à expansão de perspectivas, metodologias, hipóteses e fontes utilizadas.
Segundo Sakkas:
Uma nova geração de pesquisadores seguindo uma abordagem
interdisciplinar e diferentes prioridades de pesquisa utilizaram estudos
locais, história oral e métodos antropológicos juntamente a formas mais
convencionais de história social e política para alcançar questões antes
ignoradas. Como as pessoas respondiam à repressão. Por que elas
escolhiam participar da resistência ou das unidades colaboracionistas?10
Não há espaço aqui para listarmos todos os temas abordados pelos pesquisadores
a partir do início deste século — dentre os quais se destacam pesquisa sobre as mulheres e
as relações de gênero durante a guerra civil grega, sobre os refugiados e seus filhos, sobre
pequenas vilas, sobre questões étnicas e sobre a construção da memória coletiva. Mas vale a
pena mencionar John Sakkas11, cujo livro Britain and the Greek Civil, traz uma visão mais
sofisticada da intervenção britânica, examinado o impacto que a política externa de
Londres para a Grécia teve em diversas instâncias da população britânica — imprensa,
organizações sindicais, partidos de oposição, etc. Sakkas demonstra que a Grã-Bretanha
não é um bloco monolítico que opera simplesmente como um vetor imperialista ou como
mantenedor da liberdade. Ao contrário, o autor mostra que a intervenção na Grécia foi um
processo complexo e contraditório, parte integrante de intricadas lutas políticas que se
desenrolavam em várias dimensões sociais, nas quais colidiam diferentes percepções do que
deveria ser a política externa de Londres e o que ela deveria defender.
Também é digno de nota, dentre os estudos mais recentes, o volume editado por
Mark Mazower12, After the war was over. Estudando a população grega durante a Segunda
Guerra Mundial e a guerra civil, Mazower e sua equipe de autores alcançam um resultado
que consideramos análogo ao que Sakkas fez com a questão da intervenção britânica.
Tratando dos mais variados temas — a questão dos judeus de Salônica, os membros do
10 Ibid.
11 SAKKAS, Jonh. Britain and the greek civil war 1944-1949: British imperialism, public opinion and the coming of the
Cold War. 1ª edição. Berlin: Harrasowitz, 2013.
12 MAZOWER, Mark (org). After the war was over: reconstructing the family, nation and state in Greece, 1943-1960. 1ª
Conclusão
Bibliografia
Resumo
Partindo da formulação de um conceito para “ideários estéticos”, este trabalho estuda a
proposição do artista afro-americano Jean-Michel Basquiat (1960-1988) de transpor limites
politico-territoriais de um campo artístico hegemonicamente branco e inscrever sua arte
através de signos estéticos contestadores dos agenciamentos identitários eurocêntricos que,
conferem apagamento a legados artísticos afro-atlânticos.
Introdução
Neste ano de 2020 em que, se vivo, completaria 60 anos, parece relevante incluir o
pintor norte-americano Jean-Michel Basquiat na ordem das reflexões sobre legados
africanistas no imaginário cultural do século XX. Sua relevância artística e sua
expressividade como vulto propulsor de uma inscrição afirmativa do elemento negro no
cenário predominantemente branco das artes visuais dos anos 80 recrudescem o debate
sobre o confrontamento de um historicismo colonialista que tenta subordinar agentes
negros a papéis coadjuvantes ou mesmo inexpressivos por meio de lógicas de
apagamento. Visando compartilhar um pouco da metodologia e dos mecanismos para
uma aproximação ao objeto de estudo, aqui exponho um breve relato de minha trajetória
como pesquisador no respectivo campo.
Há cinco anos tenho me dedicado a uma imersão na arte de Basquiat,
compreendendo visitas a acervos nos museus Met (Metropolitan Museum of Art) e
MoMA (Museum of Modern Art) de Nova York em 2015, e no CCBB (Centro Cultural
Banco do Brasil) do Rio de Janeiro em 2018; um vasto levantamento textual (livros, e-
books, artigos acadêmicos internacionais, catálogos de exposição, matérias jornalísticas,
2 São exemplos a curadora de arte Talin Maltepe, o curador e colecionador Randall Smith e a PhD Jordana
Moore Saggese, professora do Departamento de Arte, História e Arqueologia da University of Maryland –
todos com obras publicadas; sobretudo a última, com valiosos estudos acadêmicos sobre Jean-Michel
Basquiat.
3 WARSH, Larry. Basquiat-isms. New Jersey: Princeton University Press, 2019, p.74.
4 FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p.43.
5 Idem, ibidem, p.45.
Atribui-se algum facilitador (um petit-nègre) que tenha possibilitado seu sucesso. O
discurso de primitivização constitui uma narrativa de cunho racista que também advém de
uma exegese colonial, como pondera o sociólogo peruano Aníbal Quijano ao analisar a
questão dos negros latinos em contraponto à modernidade eurocêntrica:
“[...] o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a ideia
do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja
culminação é a civilização europeia ou ocidental. Desse mito se origina a
especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento e
de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi
associado com a classificação racial da população do mundo. Essa
associação produziu uma visão na qual se amalgamam, paradoxalmente,
evolucionismo e dualismo”6.
6 QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, p.116. In: Lander, Edgardo
(Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, p.. 107-170. Buenos Aires:
Clacso, 2005.
7 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São
Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001, p.28.
Ao formular suas reflexões sobre estética e ideologia, Terry Eagleton lembrou que
“qualquer um que inspecione a história da filosofia européia desde o Iluminismo deve ser
atingido pela alta prioridade curiosamente atribuída às questões estéticas”8, mencionando
pensadores como Schopenhauer e Nietzsche, para quem “a experiência estética representa
uma forma suprema de valor”9. A abordagem de valor também aparece no pensamento de
Pierre Bourdieu sobre a questão do gosto, quando o autor discorre sua teoria sobre esferas
ideológicas de poder presentes tanto na educação familiar quanto na educação escolar,
considerando que esses agentes criam uma hierarquia social para as artes e também para
seus consumidores, estabelecendo, assim, uma certa “nobreza cultural”10. Para Bourdieu, é
clara a concepção do senso estético como um senso de “distinção”, cuja hierarquização
estabelece esferas diferenciadas de poder, possibilitando a determinados agentes “a
expressão distintiva de uma posição privilegiada no espaço social”11. O pensador francês
Michel Maffesoli potencializou as discussões sobre a natureza do sujeito pós-moderno
utilizando a nomenclatura de homo aestethicus para o sujeito contemporâneo que reafirma-se
através de sua sensibilidade e do desfrute hedonista, considerando o momento em que a
divindade unificada dilui-se em um “divino social” - o qual ilustra, para o autor, a máxima
nietzschiana de uma “vontade de poder enquanto arte”12.
Em todas essas postulações, o elemento comum é o de que os signos estéticos ou
artísticos não possuem uma valoração inata; antes são previamente instituídos dentro de
um contexto cultural, ou seja, codificados por meio de uma circulação ideológica. Essa
irradiação de signos nos remete a uma breve leitura de Jean Baudrillard, onde o pensador
francês caracteriza como “pós-orgia” o momento posterior à explosão da modernidade,
potencializado por uma “disponibilidade de todos os signos”13, e mais adiante teoriza sobre
a questão do “transestético” como uma proliferação da arte por toda parte em uma lógica
de “desaparição” mediante uma produção de valores estéticos baseada em uma
“proliferação dos signos ao infinito, reciclagem das formas passadas e atuais”14.
8 EAGLETON, Terry. The Ideology of the Aesthetic. London: Wiley-Blackwell, 1990, p.1.
9 Idem, ibidem.
10 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 1a.ed. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre, RS:
15Consideraríamos, assim, para exemplificar tal raciocínio, o marxismo como ideologia e suas premissas
como ideários; o cristianismo como ideologia e as ortodoxias ou dogmas eclesiásticos como ideários.
16ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: Larkin, Elisa (Org.).
Afrocentricidade: Uma Abordagem Epistemológica Inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p.94.
possui um crivo distintivo no sentido em que constitui um ideário estético que contribui
para o pensamento decolonial, revelado em sua expressão artística de forma discursiva e
em fluxo contínuo. Tal aspecto da obra de Basquiat pode ser compreendido como assinala
a seguinte postulação:
O pensamento decolonial reflete sobre uma colonização como um
grande evento prolongado e de muitas rupturas e não como uma etapa
histórica já superada. [...] Deste modo, é importante ressaltar que a
intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o
momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é ativar um
posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. Implicações
decoloniais, portanto, são uma luta contínua17.
Ante essa compreensão, postula-se que Jean-Michel Basquiat, mais que um artista
de exceção, é um agente que se inclui em uma perspectiva comum a vários outros
intelectuais e artistas atuantes do século XX - desde o movimento conhecido como Harlem
Renaissance ocorrido nos anos 20, passando pela luta pelos direitos civis dos negros
americanos nos anos 50, até os anos 80 em que ele, Basquiat, emerge, além de uma
insurreição de inúmeros pensadores negros latinos e mesmo europeus: o empenho na
desconstrução de um ocidentalismo cujo viés ideológico colonialista marginaliza e
invisibiliza a cultura dos povos pretos. Sua obra, portanto, transcende o artístico e dialoga
com a teoria social de todo um século de lutas em favor de uma afrocentricidade.
De forma textual ou sob linguagem figurativa, Basquiat inscreveu no mundo das
artes seu repertório imagético que evidenciava uma cultura de protesto relacionada à sua
“revolta” por não ver figuras de personalidades negras nas obras dos museus nem das
galerias de arte. Assim ele afirmaria: “O negro é o protagonista na maioria das minhas
pinturas. Percebi que não via muitas pinturas com negros"18.
Na imagética das obras de Basquiat, intencionalmente elaboradas para criar um
ato com sentido de reparação, estavam presentes personagens que reiteravam as vozes, os
discursos e o protagonismo negro numa postura reativa à sua invisibilidade:
Os títulos de muitas das pinturas de Basquiat - “Ironia de um policial
negro”, “Jim Crow”, “História dos negros”, “Nada a ser ganho aqui”,
“Muitos reis jovens cortam a cabeça”, “Origem do Algodão”, “Famosos
Atletas Negros”, “Leilão de Escravos”, “Oreo” - assim como os temas
17 COLAÇO, Thais Luzia. Novas Perspectivas para a Antropologia Jurídica na América Latina: o direito e o pensamento
decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012, p.8.
18 WARSH, Larry. Basquiat-isms. New Jersey: Princeton University Press, 2019, p.40.
Bibliografia
ASANTE, Molefi Kete. “Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar”. In:
Larkin, Elisa (Org.). Afrocentricidade: Uma Abordagem Epistemológica Inovadora. São Paulo: Selo
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EAGLETON, Terry. The Ideology of the Aesthetic. London: Wiley-Blackwell, 1990.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel
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HOBAN, Phoebe. Basquiat: A quick killing in art. New York: Penguin Putnam Inc., 1998.
MAFFESOLLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In:
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americanas, p.. 107-70. Buenos Aires: Clacso, 2005.
WARSH, Larry. Basquiat-isms. New Jersey: Princeton University Press, 2019.
19 HOBAN, Phoebe. Basquiat: A Quick Killing in Art. New York: Penguin Putnam Inc., 1998, p.341-342,
tradução nossa.
Anexo
Figura 1: Jean-Michel Basquiat em seu estúdio em Nova York, 1980. Fonte: Rede Social Pinterest
Introdução
1 Graduado em História pela UERJ (2019), é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História na
mesma universidade com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). E-mail: igor.arias70@gmail.com.
2 O artigo de Dipesh Chakrabarty The Climate of History é um dos principais testemunhos do atual interesse
pelas mudanças climáticas no campo das humanidades, mais especificamente da História pelo fato do autor
ser um historiador, onde é possível verificar diversas referências sobre a temática que funcionam como
interlocutores importantes para a intenção introdutória ao problema contemporâneo colocado pelo indiano.
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Trad. Denise Bottmann, Fernanda Ligocky,
Diego Ambrosini, Pedro Novaes, Cristiano Rodrigues, Lucas Santos, Regina Félix e Leandro Durazzo. Sopro
91, julho/ 2013, 22 p. Publicado originalmente em: Critical Inquiry, 35: 97-222, (2009).
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
É verdade que ainda existe bastante resistência por parte do campo da História em
tratar de assuntos que envolvam questões atendidas com maior regularidade por ciências
supramente empíricas como a geologia, a climatologia e a ecologia, por exemplo. Ao
historicizar nosso campo podemos começar por verificar que os dualismos modernos,
entre eles o de sujeito-objeto, por exemplo, operando efetivamente para a idealização da
história, acabaram por reservar à natureza os eventos sem interioridade, como constata
Dipesh Chakrabarty ao analisar em pensadores como Robert Collingwood e Benedetto
Croce
a velha ideia viquiano-hobbesiana de que nós, seres humanos, podemos
ter conhecimento propriamente dito apenas das instituições civis e
políticas porque fomos nós que as criamos, ao passo que a natureza
continua a ser obra de Deus, em última análise inescrutável ao homem8.
Vale dizer que para essas e outras constatações nos parece interessante trazer duas
dimensões fundamentais para pensar a contemporaneidade, que mesmo distinguindo-se de
outras temporalidades vividas no passado, marcadas por desarticulações dos quadros
espaço-temporais ou de um possível esgotamento imaginativo destes em suas respectivas
épocas, também aquela possui inerente ao pensamento de boa parte de seus viventes a
operação central entre homem e mundo. Estas duas dimensões, de acordo com Déborah
Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, são responsáveis pela colocação do problema do
fim do mundo em tempos de mudanças climáticas, de forma que ‘‘o fim do mundo é um
problema posto por e para o pensamento, pois só o pensamento problematiza - o que não
significa, o que é menos trivial, que só os humanos pensem, isto é, tenham um mundo a
perder.9’’
6 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1994.
7 LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução: Maryalua Meyer, 1ª
10 ARENDT, Hannah. O conceito de História - antigo e moderno. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2007, p. 69-95, passim.
11 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., nota 3, p. 26.
12 CROSBY JR, Alfred W. The Past and Present of Environmental History. American Historical Review 100
In: Climate Change: What It Means for Us, Our Children, and Our Grandchildren. Cambridge, Mass., 2007, p. 73, 74
apud CHAKRABARTY, op. cit., nota 2, p. 5-6.
Além disso, cabe lembrar que a discussão que gira em torno dessa virada ontológica
sobre o humano em relação ao seu mundo, tem sob a mesma distinção anteriormente
frisada como desfeita, a categoria ‘‘moderno’’ enquanto dupla assimetria - a ruptura da
passagem do tempo e a ruptura com os que não se modernizaram - como importante
ferramenta que historicamente polarizou os humanos entre vencedores e vencidos, ou
como Boaventura Santos batizou14, dividiu com sua linha abissal global colonizadores e
colonizados, excluindo outras formas de conhecimento e modos de existir, de perceber os
eventos da natureza e a si mesmos enquanto parte desta, de debates assumidamente
cooperativos.
Nesse sentido, implicadas as dimensões imaginativas da vulgata mitológica
ocidental, por assim dizer, que por sua vez impossibilita a desconjunção entre ‘‘nós’’ e
mundo fora dos padrões modernizantes, há de se corroborar uma certa preexistência
ontocosmológica no pensamento ameríndio ditada pelas palavras de Ailton Krenak, a fim
de aqui exemplificarmos brevemente a proposta de comparar os historicamente
incomparáveis, a saber indígenas e não indígenas:
Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas,
incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e
um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa
abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí
atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que
existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à
nossa disposição [...] Esse contato com outra possibilidade implica
escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou de
fora da gente como ‘‘natureza’’, mas que por alguma razão ainda se
confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-
humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está
sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase
humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar de fora dessa
dança civilizada, da técnica, do controle do planeta15.
14 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos
saberes. Novos estudos. - CEBRAP n.79 São Paulo Nov. 2007.
15 KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 69-70.
sua histórica defesa pelos Direitos da Natureza e do Buen Vivir, esse modo de existir entre
diversos povos andinos, que na temporalidade contemporânea, em alguma medida cunhada
por François Hartog como mais presentista que outrora futurista16, necessitamos parar de
torturar a natureza como faziam os inquisidores do Santo Ofício com seus réus para
revelarem seus segredos17.
A inquietação gerada por essa temporalidade, fruto da imaginação outra de
futuridade pelos ditos modernos desde pelo menos a Revolução Industrial que cristalizou
na ideia de progresso sua significação unilinear18, coincide com o surgimento das narrativas
indígenas contemporâneas que, ao atualizarem seus mitos - menos seus sonhos maus que
devem ser narrados publicamente ao acordarem para que não se atualizem19 - sob o signo
da catástrofe socioambiental, nos devolvem a urgência de pensarmos ‘‘uma desestabilização
da imagem filosófica tradicional de nós mesmos20’’ de forma que o tempo histórico e o
tempo físico possam operar conjuntamente para tornar visíveis os povos diferentemente
humanos que nomeiam à sua maneira esse lugar comum que é o planeta.
Assim como a proposição científica de Gaia feita por James Lovelock e Lynn
Margulius nos anos 197021, há um conjunto inumerável de nomes para esse organismo vivo
autorregulador que funciona de múltiplas e emaranhadas maneiras constitutivas de um
processo de agenciamento de relações, entre aqueles que foram e ainda são tidos como
não-modernos ou ‘‘quase-humanos’’22. Somadas as explicações antropogênicas para as
mudanças climáticas com a nomeação de Gaia - o planeta enquanto um ser vivo - somos
precisamente aqui remetidos à filosofia ancestral de Ailton Krenak que, enquanto
embaixador dos povos da floresta, está empenhado em nos alertar para outras formas de
pensar e estar no mundo que não percebam qualquer coisa desamparada de natureza, ou de
16 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica,
2013, p. 140.
17 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda. São
existência: entrevista com Bruno Latour. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2014, v. 57, nº 1, p. 500.
21 LOVELOCK, James. Gaia: alerta final. Trad. Vera de Paula Assis, Jesus de Paula Assis. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2010.
22 KRENAK, loc. cit.
Conclusões
31 PÁDUA, José Augusto. Vivendo no Antropoceno: incertezas, riscos e oportunidades. Disponível em: <
https://museudoamanha.org.br/livro/10-vivendo-no-antropoceno.html>.
32 Ibid.
33MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. Trad. André Langer. Disponível
em:<http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando>. Acesso
em: 21 de janeiro de 2020.
34 STENGERS, op, cit., nota 5.
Bibliografia
ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de
Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016
ARENDT, Hannah. O conceito de história - antigo e moderno. In: Entre o passado e o futuro.
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DANOWSKI, Déborah. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio
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2014.
DIAS, Jamille Pinheiro. SZTUTMAN, Renato. MARRAS, Stelio. Múltiplos e animados
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STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes - resistir à barbárie que se aproxima. Tradução:
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio. Mana, v. 2, n. 2, Rio de Janeiro, Oct. 1996.
Introdução
1 Doutoranda em História Social pelo PPGHIS da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em
História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e graduada em História pela UFRRJ. Bolsista CAPES.
E-mail: isabellecspires@gmail.com
2 Jornal do Brasil. 11/12/1930.
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Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Uma história social do feminismo: diálogos de um campo político
brasileiro (1917-1937). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 31, nº 63, p. 8-26, janeiro-abril 2018. p. 13.
4 MARQUES, Teresa Cristina Novaes. A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino,
Brasil: 1932-1943. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, no 59, p. 667-686, setembro-dezembro 2016. p.
669.
5 SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”. Tradução de: Christine Dabat e Maria
busco perceber o quanto os papeis sociais tradicionais das mulheres foram determinantes
para a construção de um projeto político para elas no mundo do trabalho e questionar se
tais políticas atuaram no sentido de manter ou afastar as mulheres no trabalho industrial.
Portanto, essa argumentação se alinha com a discussão historiográfica que discorre sobre
os mundos do trabalho, salientando, o modo como as representações de gênero definiram
espaços de atuação masculinos e femininos no Brasil.
Nesse sentido, pretendo neste texto analisar o projeto político construído para as
mulheres trabalhadoras durante os governos de Getúlio Vargas dos anos 1930. Reconheço
as disputas de poder que estavam em jogo, bem como, os diferentes agentes preocupados
com o debate sobre as mulheres no espaço produtivo do trabalho, mas o foco aqui será me
concentrar no que se tornou lei, decreto e na atuação do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio. Para isso, utilizarei como fontes o Decreto n° 21.417-A, de 17 de maio de
1932, que regulamentou as condições de trabalho das mulheres em estabelecimentos
industriais e comerciais; o Decreto n° 423, de 12 de novembro de 1935, que ratificou a
proibição de trabalho noturno feminino em estabelecimentos industriais; e as Constituições
de 1934 e 1937, focalizando as determinações acerca dos mundos do trabalho e gênero.
6 GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora IUPERJ, 1988. p. 214/222.
7 RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e classe operária. In: FAUSTO, Boris et al (Org.). O Brasil
republicano III: Sociedade e Política (1930 1964), 3 v. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 511.
8 FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os direitos das mulheres – organização social e legislação trabalhista no
auxílio correspondente à metade do seu salário, de acordo com a média dos últimos seis
meses de vencimentos; também ficava garantido o retorno ao trabalho após o afastamento
por licença; e, as lactantes tinham direito a dois intervalos diários de meia hora durante os
seis primeiros meses do bebê para amamentação. Para isso, os estabelecimentos que
empregassem, pelo menos, trinta mulheres com mais de 16 anos teriam que possuir local
apropriado onde as trabalhadoras pudessem deixar seus filhos lactantes para que estes
recebessem cuidados necessários durante o tempo de serviço das mães, mas também
pudessem ser amamentados. O decreto também proibia que o empregador demitisse uma
gestante pelo simples fato de estar grávida. Em relação a casos de aborto, ficava
estabelecido que se verificado que tenha ocorrido de forma espontânea, a trabalhadora teria
direito a duas semanas de repouso beneficiada por um auxílio; em caso de aborto
provocado, ou seja, considerado criminoso, a mulher perderia o direito ao auxílio10.
Analisando esse decreto, torna-se possível perceber que representa o
reconhecimento da importância da presença das mulheres no trabalho produtivo e que se,
de um lado, demandas reivindicadas pelas mulheres da classe trabalhadora desde a Primeira
República foram conquistadas, como garantias em favor da capacidade reprodutiva das
mulheres; de outro, observamos também restrições e proibições ao trabalho das mulheres
privilegiando certas noções de gênero, como fragilidade feminina e necessidade de proteção
à honra das mulheres. Além disso, nesse momento, os encargos referentes à licença
maternidade e à creche recaíam exclusivamente sobre os empregadores, o que acabava por
tornar mais caro contratar mulheres.
Após a conquista do voto feminino conseguido também em 1932, grupos
feministas, que ganharam destaque no debate público, passaram a reivindicar avanços na
agenda da igualdade jurídica com os homens. Nesse sentido, demandaram participar das
discussões sobre os ofícios exercidos por mulheres. Bertha Lutz, uma das principais
feministas do período e líder da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, quando
chamada a proferir uma fala em uma reunião do Conselho Nacional do Trabalho (CNT)
em 1932, criticou a proibição do trabalho noturno presente no decreto e recomendada pela
OIT:
“As garçonetes nos oferecem um caso concreto de efeitos prejudiciais
dessa lei. Não podem trabalhar legalmente após as 22 horas, não são
aceitas nos sindicatos masculinos da classe a que pertencem, não podem
1937. p. 23 Apud MARQUES, Teresa Cristina Novaes. A regulação do trabalho feminino em um sistema
político masculino, Brasil: 1932-1943. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, no 59, p. 667-686, setembro-
dezembro 2016. p. 675.
Considerações finais
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 56-57.
Nesse período, o trabalho exercido por elas proporcionou forte debate público em
torno de grandes questões e levaram diferentes grupos e agentes sociais a discutir essas
pautas, tais como, grupos feministas, grupos católicos, sindicatos, legisladores e etc. Temos
que levar em consideração que o que lemos nos textos de decretos, leis e Constituições são
frutos de disputas travadas entre esses diferentes sujeitos em torno da construção de um
ideal de mulher trabalhadora em um contexto de ressignificação do trabalho por parte do
Estado, de acesso a direitos trabalhistas por meio da sindicalização e de forte investimento
na industrialização do país. Estabelecer normas para o trabalho a partir de noções de
gênero significava dizer se a mão de obra das mulheres estaria integrada em tal processo de
modernização da sociedade brasileira ou se elas enfrentariam obstáculos para trabalhar na
indústria.
Bibliografia
Resumo
O sindicalismo estudantil foi o principal modelo organizativo do movimento estudantil
francês no pós-Segunda Guerra Mundial. Articulado em torno da União Nacional dos
Estudantes da França (UNEF) esse modelo articulou uma série de demandas, lutas e
polêmicas no meio estudantil. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar
o surgimento e atuação do sindicalismo estudantil francês da sua fundação até o Maio de
1968. Para a sua realização duas metodologias principais foram utilizadas: primeira a
pesquisa bibliográfica que deu suporte para a análise do tema proposto. O segundo foi a
pesquisa documental baseada em documentos oficiais, como a Carta de Grenoble, que
foram responsáveis para compreender o sindicalismo estudantil e as suas especificidades e
demonstrar o que levou esse modelo de dominante em 1945, frangalhos no pós-1968.
Introdução
Doutor em sociologia pela UFG. Professor do Instituto Federal Goiano – Campus Morrinhos. E-mail:
mvc.costa@gmail.com
Anais do
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Esses pontos, deixam claro o objetivo da luta nas três décadas posteriores que ficam
conhecidas na França como os trinta anos gloriosos. Jean Fourastié2 ao lançar o conceito
buscar explicar o motivo da França ter progredido no período do pós-guerra, utilizando-se
de dados demográficos, para explicar como o nível de vida dessa população atinge um
ápice nunca antes alcançado.
O crescimento da produção e da lucratividade nas economias avançadas
no pós-Segunda Guerra favoreceu a manutenção de elevados índices de
investimentos privados e estatais, acompanhados de uma aceleração da
produtividade, associados a crescimento salarial neutro relativamente aos
lucros. De fato, juntamente aos baixos níveis de desemprego e de
inflação, tratavam-se de resultados econômicos nunca historicamente
alcançados, enquanto constatavam-se processos recessivos pouco
significativos3.
harmonização entre as classes”. Pesquisa & Debate, SP, volume 18, número 1 (31) pp. 27-47, 2007.
4 HOBSBAWM, Erica. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita. 2ª
edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
5 O Maio de 1968 foi um conjunto de manifestações e greves estudantis e operárias que ocorreram na França,
1960, em especial durante o Maio de 1968, que realizou uma leitura muito peculiar das novas configurações
do capitalismo no pós-Segunda Guerra Mundial realizando uma defesa dos conselhos operários como
estrutura necessária para uma revolução social que mudaria a estrutura social capitalista.
travadas tanto por melhorias nas instituições quanto no próprio embate contra as premissas
que o capitalismo apontava.
7 BENSAÏD, D., & WEBER, H. Mayo 68: um ensayo general. Cidade do México: Ediciones Era, 1969.
8 BENSAÏD, D., & WEBER, H. Mayo 68: um ensayo general. Cidade do México: Ediciones Era, 1969, p. 38.
9 Foi secretário geral da UNEF entre 1964 e 1965.
10 KRAVETZ, M. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Les Temps Modernes, 1964, nº 214, p.1447-
1475.
engrenagens do capital. O autor busca demonstrar os erros cometidos pela UNEF durante
a luta de libertação argelina e como as escolhas realizadas por essa organização se
mostraram precipitadas, inclusive se colocando contrárias a organizações que se mostravam
com possibilidades de tirar seu posto na condução do movimento estudantil. Para ele, a
organização conseguiu cumprir algumas funções, porém ela deveria repensar a sua
organização, pois
Nós não “damos lição a ninguém”. Mais diretamente preocupado com as
novas realidades do capitalismo, era normal que o sindicalismo estudantil
realizou seu esforço e sua luta sobre este novo terreno. Ele está abrindo
caminho para as lutas de amanhã, mas se ele ficar sozinho por muito
tempo dessa maneira, ele será derrotado rapidamente. Os alunos irão
adaptar-se ao serviço de novos mestres e isso será uma vitória para o
regime. Mas o movimento estudantil não será o único derrotado11.
11 KRAVETZ, M. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Les Temps Modernes, 1964, nº 214, p. 1475.
12 VIAUD, Marie-Laure. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Histoire de l’éducation, 2008, nº 119, p.
113-116.
13 VIAUD, Marie-Laure. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Histoire de l’éducation, 2008, nº 119.
14 GRISET, A.; KRAVETZ, M. “De Algérie à la Réforme Fouchet: critique du syndicalisme étudiant”. Paris:
organizar a Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, foi o presidente que coordenou a
reorganização do Estado francês após a guerra, além de ser o primeiro presidente da V República, fundada
em 1958 com o intuito de acabar com a crise causada pela Guerra de independência Argelina.
Críticas como a realizadas acima, passam a ser cada vez mais comuns no seio do
movimento estudantil, atingindo seu ápice em 1968, quando a UNEF perde as suas últimas
grandes possibilidades de se portar como uma instituição revolucionária, mas se coloca
como uma instituição corporativista, como um sindicato realmente o é.
Na segunda metade da década de 1960, a crise da UNEF se notabiliza, abrindo espaço para
uma sucessão de novos grupos e modelos organizativos pensados para a nova realidade estudantil
que se aproximava.
BENSAÏD & WEBER17 colocam essa fase como a dos grupúsculos, uma vez que a perca
de importância da UEC, faz com organizações de tamanhos bem menores passem a ter uma
importância fundamental na organização da UNEF.
Um dos primeiros grupos a criticar abertamente não só o modelo sindical, mas como a
própria organização estudantil é a Internacional Situacionista18. O seu principal ponto, é demonstrar
que não existe a possiblidade do estudante ser um grupo revolucionário, pois isso pertencia a classe
operária. Criticando o modo como o estudante se portava e colocava como ser revolucionário, os
situacionistas demonstram como esse grupo social poderia ser no máximo um auxiliar do
proletariado durante a revolução, pois é dali que nasceria o novo mundo.
É nesse sentido, que o grupo de estudantes de Nanterre vinculados as ideias situacionistas,
os enragés, buscaram atuar durante o Maio de 1968. A posição de defesa do papel dos operários é
claro.
Se o proletariado não consegue se organizar revolucionariamente, não
pode vencer. As lamentações trotskistas sobre a ausência de uma
16 GRISET, A.; KRAVETZ, M. “De Algérie à la Réforme Fouchet: critique du syndicalisme étudiant”. Paris:
Les Temps Modernes, 1965, nº 227 e 228, pp. 2068.
17 BENSAÏD, D., & WEBER, H. Mayo 68: um ensayo general. Cidade do México: Ediciones Era, 1969.
18 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. “A miséria do meio estudantil”. In: Situacionista: teoria e prática
da revolução. Tradução Francis Wuillaume. 1ª ed. São Paulo: Conrad, 2002, p. 27-60.
Essa posição de Viénet20 é a defesa dos conselhos operários, como responsáveis por uma
revolução social. Cabia aos estudantes, apoiar os avanços dessa classe operária e por isso o
sindicalismo estudantil não faria sentido, ele serviria como freio as pretensões revolucionárias.
O outro grupo que atua criticamente ao modelo sindicalista é o movimento 22 de março.
Criado também na Faculdade de Letras de Nanterre, esse movimento surge como resposta a prisão
de estudantes por se manifestarem contra a guerra do Vietnã. Com a ocupação do prédio
administrativo da faculdade no dia 22 de março, esse movimento começa a se articular
autonomamente para além do sindicato estudantil, procurando articular as demandas internas com
as externas da universidade. No manifesto de ocupação, eles lançam os temas que deveriam ser
abordados pelo movimento estudantil, para perceber a dinâmica que eles estavam sendo colocados:
“O capitalismo em 68 e as lutas dos trabalhadores; Universidade e Crítica Universitária; a luta anti-
imperialista e os países do leste e as lutas dos trabalhadores e estudantes nesses países”21.
A ocupação de Nanterre, acaba causando os maiores movimentos que a França vivencia no
século XX, que foi denominado de Maio de 1968. A deflagração dos embates entre estudantes e
policiais, articulados a ocupação da Universidade Sorbonne em Maio de 1968, com as série de
manifestações que culmina na greve de 13 de maio de 1968 em que milhões de trabalhadores param
toda a França, a UNEF demonstra e perde o seu protagonismo.
Atuando para que os estudantes e operários não articulem uma greve, o sindicato estudantil
buscou a toda forma demonstrar o seu poder de ser o representante fiel dos estudantes, não
deixando que outras organizações ou mesmo uma organização autônoma, como se articulação em
1968, tomasse a frente dos acontecimentos.
Considerações finais
Bibliografia
BALANCO, Paulo & PINTO, Eduardo Costa. Os anos dourados do capitalismo: uma
tentativa de harmonização entre as classes. Pesquisa & Debate, SP, volume 18, número 1 (31)
pp. 27-47, 2007.
BENSAÏD, D., & WEBER, H. Mayo 68: um ensayo general. Cidade do México: Ediciones
Era, 1969.
FOURASTIÉ, Jean. Les Trente Glorieuses: Ou la révolution invisible de 1946 à 1975. Paris:
Fayard, 2014.
GRISET, A.; KRAVETZ, M. “De Algérie à la Réforme Fouchet: critique du syndicalisme
étudiant”. Paris: Les Temps Modernes, 1965, nº 227 e 228, p. 2067- 2089.
HOBSBAWM, Erica. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução de
Marcos Santarrita. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
INTERNACIONAL SITUACIONISTA. “A miséria do meio estudantil”. In: Situacionista:
teoria e prática da revolução. Tradução Francis Wuillaume. 1ª ed. São Paulo: Conrad, 2002,
p. 27-60.
KRAVETZ, M. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Les Temps Modernes, 1964, nº
214, p.1447-1475.
MOUVEMENT DU 22 MARS. Mai 68: tracts et textes. La Bussière: Acratie, 1998.
UNION NATIONALE DES ÉTUDIANTS DE FRANCE. La charte de Grenoble. 1946.
Recuperado em 18 de março de 2018, de: http://www.germe-inform. fr/?p=1824 5/8.
VIAUD, Marie-Laure. “Naissance d’un syndicalisme étudiant”. Paris: Histoire de l’éducation,
2008, nº 119, p. 113-116.
VIÉNET, R. Enragés y situacionistas en el movimiento de las ocupaciones. 1968. Recuperado em 01
de junho de 2018, de: http:// kehuelga.net/IMG/pdf/119990124-enrages-y-situacionistas-
en-el-movimiento-de-las-ocupaciones-rene-vienet.pdf
Resumo
Introdução
Nos últimos meses, em meio à perene querela política e econômica entre EUA e
China e à imensa crise sanitária mundial, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump
se referiu ao novo coronavírus como um “vírus chinês”. O “novo coronavírus” é a
identificação comum do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2,
sigla de severe acute respiratory syndrome coronavirus 2, em inglês). A pandemia causada pelo vírus
foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 e levou a
óbito cerca de 280 mil pessoas no mundo todo, sendo esses os números do dia 10 de
maio2. Questionado se essa expressão refletiria racismo, Trump alegou que se referia à
origem do vírus e negou uma intenção racista 3. Porém, americanos de origem asiática
4 “As principais notícias sobre a pandemia de coronavírus (11/04)”. Deutsche Welle, 11 de abr. de 2020.
Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/as-principais-not%C3%ADcias-sobre-a-pandemia-de-
coronav%C3%ADrus-11-04/a-53093786>. Acesso em: 11 de abr. de 2020.
5 “Trump harshly blames China for pandemic; a lab ‘mistake’?”. The Washington Post, Washington, 30 de abr.
coronavírus”. BBC News Brasil, São Paulo, 07 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52194322>. Acesso em: 12 de abr. de 2020.
7 “Huawei: Por que os EUA consideram a gigante chinesa de tecnologia uma ameaça à segurança nacional”.
A construção do mito
O livro clássico de Raoul Girardet, intitulado Mitos e mitologias políticas8, fornece uma
importante chave de leitura para a compreensão desse fenômeno atual. Um aspecto
essencial dessa obra é a apropriação política de um imaginário conspiratório do qual as
elites e os donos do poder tiram proveito. Em períodos de crise e conflito, há uma
exacerbação dos mitos, como uma maneira de combater o “Outro”. A luta se trava, em
especial, na conquista do imaginário.
Lançando mão dos complôs como pretexto, elites e governantes justificaram a
eliminação de opositores e esconderam suas próprias falhas. Porém, não é plausível uma
manipulação sem que haja uma condição prévia no imaginário coletivo que torne possível
sua receptividade. Nesse caso, refiro-me ao anticomunismo, difundido historicamente em
suas muitas versões.
Como afirma o historiador Rodrigo Patto Sá Motta9, a partir de meados do século
XIX e, especialmente, ao longo do século XX, o espectro do comunismo se tornou uma
força a assombrar os setores mais conservadores das sociedades. De fato, mais do que um
“fantasma”, no intervalo de tempo entre a Revolução Russa de 1917 e a crise do socialismo
real do final dos anos 1980 e início dos 1990, o comunismo adquiriu concretude, deixando
de ser uma promessa e alternativa teórica. Se, entre seus defensores, o comunismo
apontava para uma ruptura libertadora e humanitária e um indubitável progresso
econômico e social, para seus difamadores, porém, sua efetivação significava a consumação
de um gigantesco terror, do caos social e do desmoronamento da “boa sociedade”. A
emergência e o fortalecimento de partidos e de ideais comunistas contribuíram para que
surgissem sentimentos fortes e antagônicos. Nesse processo, nasceu o anticomunismo.
Movidos pelo medo e pela insegurança, grupos conservadores de diferentes matizes,
como aqueles inspirados pelo liberalismo, pelos fascismos e pelo tradicionalismo católico,
se formaram, articulando investidas contrarrevolucionárias, transformando-se em
movimentos políticos a partir da percepção de uma escalada comunista que precisava ser
contida e eliminada, fosse tal ascensão real, fosse exagerada de forma proposital. Assim, de
acordo com Motta, o anticomunismo se manifesta em dois níveis distintos, mas que se
8 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 25-62.
9 MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. “Anticomunismo”. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS,
Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Orgs.). Dicionário crítico do pensamento da direita: ideias,
instituições e personagens. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2000, p. 49.
A conjuntura brasileira
10 “China acusa Weintraub de racismo e difamação”. Deutsche Welle, 06 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://www.dw.com/pt-br/china-acusa-weintraub-de-racismo-e-difama%C3%A7%C3%A3o/a-
53041850>. Acesso em: 11 de abr. de 2020.
11 ARAÚJO, Ernesto. “Chegou o Comunavírus”. Metapolítica 17: contra o globalismo, 22 de abr. de 2020.
12 CHARLEAUX, João Paulo. “Como funcionam as eleições e o partido único da China”. Nexo, São Paulo,
19 de out. de 2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/10/19/Como-
funcionam-as-elei%C3%A7%C3%B5es-e-o-partido-%C3%BAnico-da-China>. Acesso em: 10 de maio de
2020.
13 “O simbolismo da bandeira da China”. Instituto Sociocultural Brasil-China, São Paulo. Disponível em:
não deixam de ter relevância as tentativas de releitura feita pelo Partido dos Trabalhadores
ao período em que governou o Brasil, caracterizando-o grosso modo como uma “era de ouro”
de prosperidade do Brasil recente, pós-redemocratização14. Entretanto, os problemas
inerentes a essa narrativa são inevitáveis.
Por fim, os setores progressistas brasileiros devem refletir sobre quais caminhos
trilhar na crucial disputa pelas consciências, pelos afetos e pelo imaginário coletivo. Nesse
sentido, divisões recém-surgidas nos grupos conservadores e reacionários não devem ser
ignoradas, mas analisadas atentamente e exploradas com cuidado.
Bibliografia
MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. “Anticomunismo”. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira
da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Orgs.). Dicionário
crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2000,
p. 49.
“O simbolismo da bandeira da China”. Instituto Sociocultural Brasil-China, São Paulo.
Disponível em: <https://ibrachina.com.br/cultura/o-simbolismo-da-bandeira-da-china/>.
Acesso em: 10 de maio de 2020.
“Outrage as Trump defends calls coronavirus ‘Chinese Virus’”. Al Jazeera News, Doha, 17
de mar. de 2020. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2020/3/17/outrage-
as-trump-calls-coronavirus-chinese-virus>. Acesso em: 11 de abr. de 2020.
SOUZA, Herbert José de. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Editora Vozes, 1984.
“Trump harshly blames China for pandemic; a lab ‘mistake’?”. The Washington Post,
Washington, 30 de abr. de 2020. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/politics/us-intel-coronavirus-not-manmade-still-
studying-lab-theory/2020/04/30/39ee3172-8aea-11ea-80df-d24b35a568ae_story.html>.
Acesso em: 03 de maio de 2020.
Introdução
O que é serviço de inteligência? Para além das façanhas do agente secreto James
Bond, também conhecido como 007, nos filmes inspirados nas obras de Ian Fleming, este
tipo de atividade envolve instituições, processos, dados e indivíduos com as mais diversas
funções. Aqui entendemos inteligência como um processo de invadir o sistema de
segurança da informação do alvo (a contrainteligência), reconhecer e selecionar os dados
úteis para a defesa. Essas informações serão analisadas pela instituição responsável por
todo o processo desde a coleta até o repasse das suas avaliações para os formadores de
políticas que podem ou não adotá-las em suas decisões. Portanto, a inteligência é produto
do trabalho institucional e coordenado voltado para a segurança e defesa do Estado ao
estimar o comportamento do alvo analisado e seus pontos fortes e fracos.
Partimos da perspectiva de Michael Herman de encarar o serviço de inteligência
como um sistema e um conjunto de processos2. Da mesma forma, é capaz de provocar
certas atividades do alvo através da desinformação e ações encobertas. Essas últimas
1 Doutoranda em História Comparada pela UFRJ (PPGHC). Integrante do Grupo de Estudo do Tempo
Presente (GET/UFS/CNPq). Professora substituta da UFRRJ (DH/IM). E-mail: raquel@getempo.org.
Orientador: Dr. Dilton Cândido S. Maynard (UFS/DHI – PPGHC/UFRJ)
2 HERMAN, Michael. Intelligence Power in Peace and War. Cambridge: Cambridge University, 1996, p. 16.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
O objetivo de Lake era sabotar linhas ferroviárias antes do Dia D para dificultar o
deslocamento das tropas inimigas no momento do desembarque das forças Aliadas na
Normandia (1944). Através da guerra de guerrilha, o agente deveria “assumir o controle
dos Maquis no circuito de Dordogne”5 e “dirigir os maquis em suas operações contra
tropas alemãs evacuando o sul da França, e suas batalhas pela libertação de Perigueux”. 6
Este estudo será realizado através de documentos oficiais produzidos por estas
instituições. Sobre a OSS utilizaremos o “ROOK: Sabotage of Transportation and
Communications in Southern France, Nov 1943-Feb 1944”. Trata-se do projeto da Operação
ROOK coletado no National Archives de Washington D.C. Para a análise da missão SOE,
nossa investigação se pautará no relatório “Peter Ivan Lake. Cataloque Reference: HS/9/877/5.
Date: 1939 Jan 01-1946 Dec 31”, obtido no site do National Archives de Londres7. Por meio
da análise dessas fontes procuraremos investigar qual a leitura que estes órgãos possuíam
em relação às suas atividades em teatros de operação na França.
Para tal, utilizaremos como metodologia a História Comparada. Nos basearemos
nas ideias de Marc Bloch de comparação entre sociedades próximas no tempo e espaço,
para encontrarmos analogias e especificidades entre as operações destas agências. Essa
comparação será perpassada por problemas em comum: qual a leitura que a SOE e a OSS
possuíam de suas operações em campo? Como entendiam suas relações com os
movimentos de resistência? Segundo Bloch, esta metodologia nos proporciona
compreendermos como um mesmo fenômeno se apresenta em objetos distintos ao
lançamos sobre eles os mesmos questionamentos, identificarmos influências mútuas ou até
uma origem parcialmente em comum8.
Essa comparação nos proporcionou chegar a seguinte hipótese: tanto a SOE como
a OSS possuíam pretensões para o pós-guerra com suas operações. A nossa tese é que os
interesses hegemônicos dos EUA e da Grã-Bretanha para o pós-guerra já se apesentaram
em suas atividades de espionagem, sabotagem e guerrilha, contudo com estratégias
Eduardo. Marc Bloch: una historia viva. Estudio preliminar y seleccion de textos. Buenos Aires: Centro Editor
de América Latina, 1992, p. 64-65.
diferentes. Portanto, defendemos que a leitura dessas agências sobre suas operações não era
apenas como uma ferramenta para ajudar na vitória dos Aliados, mas também como uma
forma de seus respectivos países estabelecerem influências em certas regiões. Não
afirmamos se de fato isso ocorria ou não, mas qual era a perspectiva das instituições ao
conceber e executar estas ações.
Chegamos a essa ideia ao observamos os laços que a SOE e a OSS mantinham com
certos grupos da resistência francesa. Na Operação ROOK, a OSS agiu em parceria com a
CTG. Essa era a maior organização trabalhista da França antes da guerra e no pós-guerra
assumiu uma posição triunfante com os comunistas controlando quase todas as federações
envolvidas na produção industrial e a maior parte dos sindicatos9. Inclusive, o Partido
Comunista era o maior da resistência francesa, com diversas organizações sob seu controle
ou influência, como a própria CGT10.
A presença e a força dos comunistas era uma preocupação para os interesses norte-
americanos. As relações entre a Casa Branca com o líder da França Livre, o General De
Gaulle, eram marcadas por tensões e uma das justificativas dos EUA em não apoiar o
general era sua aproximação com os comunistas. Segundo Robert Gildea, para o Secretário
de Estado dos EUA, Cordell Hull, os comunistas na França eram os mais organizados e
tinham De Gaulle como seu líder11. Neste cenário, o governo estadunidense, ao contrário
do britânico, não reconhecia diplomaticamente a liderança de De Gaulle na França Livre12.
Portanto, observamos como os comunistas eram vistos pelos Aliados como fator
de preocupação para o final e o pós-guerra. Conforme H.R Kedward, muitos grupos de
esquerda não angariaram ajuda militar e estratégica da SOE e da OSS13. Desta forma,
verificamos como essas instituições de espionagem possuíam a preocupação de agir em
conjunto com grupos selecionados para atender os interesses políticos de seus respectivos
países.
No caso da OSS foi escolhida na Operação ROOK a CGT, grupo com forte
influência entre os trabalhadores franceses. O que no leva ao seguinte questionamento:
14 SOE, Real Name: Capitão P.I. Lake. Nom de Guerre: Basil. Circuit: Digger.
15 KELLY, M. FRANCS-TIREURS ET PARTISANS FRANÇAIS. In: GORDON, Bertram M. (Edited by).
Historical dictionary of World War II France: The Occupation, Vichy, and the Resistance, 1938–1946, 1998, p.
145)
16 OSS, French Labor Project.
17 Idem.
18 Idem.
19 OSS, Letter for Omer
20 OSS, Notes...ROOK
21 Idem.
22 Idem
23 OSS, French T.U. Project.
24 Idem
25 Idem
26 SOE, Real Name: Capitão P.I. Lake. Nom de Guerre: Basil. Circuit: Digger.
27 Idem.
‘sua França’ que instrumentos da vitória Aliada”28. Desta forma, seu encontro com o agente
Lake, em Saintes, gerou tensões como pode ser observada no diálogo abaixo:
Portanto, percebemos que essa cooperação entre os serviços secretos Aliados com
a resistência não era um fenômeno homogêneo. Tal incidente com De Gaulle impediu que
a SOE empreendesse uma outra missão que seria comandada por Lake, a Operação Bickford,
cujo objetivo era infiltrar agentes, sabotadores e materiais na Ilha de Oleron em ações
contra o inimigo30. Esse tipo de conflito dentro da própria rede dos Aliados demonstra o
aspecto político de disputa de poder para agir conforme seus interesses. Ou seja, apesar de
possuírem os mesmos inimigos e objetivos semelhantes de expulsá-los do território
francês, podemos nos questionar: em que medida havia uma convergência na forma que os
britânicos, os norte-americanos e os franceses pretendiam executar suas estratégias? Qual o
alcance de cooperação entre esses serviços secretos e a resistência local?
Conforme David De La Marck, a partir de 1942 De Gaulle procurou estabelecer
um serviço secreto francês articulado não somente com questões militares, mas também
políticas. Seu objetivo era criar na França Livre uma organização clandestina para vencer
28 HASTINGS, Max. The Secret War: Spies, ciphers, and guerrillas 1939-1945. New York: HarperCollins
Publishers, 2015, p. 272.
29 SOE, Meeting with Général De Gaulle at Saintes on Sept. 18th.
30 SOE, Real Name: Capitão P.I. Lake. Nom de Guerre: Basil. Circuit: Digger.
Considerações finais
31 MARCK, David De Young De La, De Gaulle, Colonel Passy and British Intelligence, 1940–42, Intelligence
and National Security, 18:1, 2003, p. 27, DOI: 10.1080/02684520308559245, p. 27.
32 Ibidem, p. 29-30.
33 (Isabelle Tombs 2002, p. 108)
34 RICHELSON, Jeffrey T. A Century of Spies: Intelligence in the Twentieth Century. New York: Oxford
gaullistas que possuíam objetivos diferentes para o futuro da França. Desta maneira, a
imagem que essas agências possuíam em relação às suas atividades era como uma
ferramenta de poder para auxiliar seus respectivos países a fortalecerem suas hegemonias.
Fontes
Bibliografia
BLOCH, Marc. Por una historia comparada de las sociedades europeas. In: GODOY,
Gigi; HOURCADE, Eduardo. Marc Bloch: una historia viva. Estudio preliminar y seleccion
de textos. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992.
GILDEA, Robert. Combatientes en la Sombra: La Historia Definitiva de la Resistencia
Francesa. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Taurus, 2017.
HASTINGS, Max. The Secret War: Spies, ciphers, and guerrillas 1939-1945. New York:
HarperCollins Publishers, 2015.
HERMAN, Michael. Intelligence Power in Peace and War. Cambridge: Cambridge University,
1996, p. 16.
HAUG, C. J. CONFÉDÉRATION GÉNÉRALE DU TRAVAIL. In: GORDON,
Bertram M. (Edited by). Historical dictionary of World War II France: The Occupation, Vichy,
and the Resistance, 1938–1946, 1998.
KEDWARD, H.R. In Search of the Maquis: Rural Resistance in Southern France 1942-1944.
New York: Oxford University Press, 1993.
KELLY, M. FRANCS-TIREURS ET PARTISANS FRANÇAIS. In: GORDON, Bertram
M. (Edited by). Historical dictionary of World War II France: The Occupation, Vichy, and the
Resistance, 1938–1946, 1998.
MARCK, David De Young De La, De Gaulle, Colonel Passy and British Intelligence,
1940–42, Intelligence and National Security, 18:1, 2003, p. 27, DOI:
10.1080/02684520308559245
RICHELSON, Jeffrey T. A Century of Spies: Intelligence in the Twentieth Century. New
York: Oxford University Press, 1995.
THOMAS, Martin. The Massingham mission: SOE in French North Africa, 1941–1944,
Intelligence and National Security, 11:4, 1996, p. 696, DOI: 10.1080/02684529608432387.
TOMBS, Isabelle, Scrutinizing France: collecting and using newspaper intelligence during
world war II, Intelligence and National Security, 17:2, 2002, DOI:
10.1080/02684520412331306510
VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência
ao longo da história. São Paulo: Contexto, 2019.
Resumo
Introdução
oficial não era falada por todos e sobressaíam os dialetos, cumpre salientar que suas
identidades não eram unas quando chegaram no solo capixaba. Desse modo, é fundamental
relatar a importância e o papel de unidade que as associações comunitárias representam ao
preservar e recriar as identidades de italianos no Novo Mundo.
Em análise teórica sobre associacionismo e imigração, Juan Andrés Blanco
Rodríguez3 indica que as associações criadas pelos imigrantes são uma das partes mais
visíveis da imigração. Nessa perspectiva, a pesquisa problematizou a imigração italiana em
Venda Nova do Imigrante sob a ótica das associações formadas para preservar a cultura
dos imigrantes. Para compreender o fenômeno da imigração italiana no município, foram
realizadas visitas às associações para, a partir do diálogo dos dados obtidos através das
entrevistas e documentos das associações, reconstruir a imigração no município.
6 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História: Trabalhos da Memória. São Paulo: PUC,
n. 17, 1989, p. 74.
7 BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Definindo história oral e memória. Cadernos CERU, São Paulo, v. 5, n.2, p.
52-60, 1994. p. 57
8 BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Definindo história oral e memória. Cadernos CERU... p. 57.
lacunas deixadas pelas fontes escritas, se revelando, assim, “mais um recurso do que um
problema”9, acresce a autora.
Alinhado ao método da tradição oral de José Meihy e de Marieta Ferreira, o
trabalho se guiou também pelas sugestões metodológicas da abordagem qualitativa
enfatizadas por Rosália Duarte em sua publicação Entrevistas em pesquisas qualitativas, onde a
autora fornece importantes recomendações para o bom desempenho de uma pesquisa de
caráter qualitativo, análise que privilegia as particularidades e experiências individuais e que
se mostra mais vantajosa para compreender o processo migratório que se deu em Venda
Nova. Para a realização do trabalho também foram utilizados materiais bibliográficos, atas
de reuniões das associações, artigos, entrevistas contidas em periódicos e em páginas
eletrônicas. Destaca-se que foram de grande valia os periódicos e sítios eletrônicos da mídia
local, principalmente pela velocidade com que são atualizadas as informações e socializados
os acessos.
9FERREIRA, Marieta de Moraes. (org.) Entre-vistas: Abordagens e Usos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora
da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 10.
Resultados
com as entrevistas realizadas, ser um dos poucos locais de encontros das pessoas
envolvidas na atividade de canto e dramatização ainda nas décadas de 1960, 70 e 80 em
Venda Nova do Imigrante, se tornando, assim, um local onde os membros do grupo
podem tecer suas identidades e relacionar-se com a sociedade, ao mesmo tempo em que
fornecem aspectos da cultura do imigrante italiano para Venda Nova e região através da
musicalidade.
Considerações finais
Referências
http://www.estacaocapixaba.com.br/2016/01/foto-guilherme-santos-neves-anos-
1950.html. Acesso em 06 de outubro de 2020, s/p.
DUARTE, Rosália. Entrevistas em pesquisa qualitativas. Educar em revista. V. 20, n. 24,
Curitiba: UFPR, jul./dez., 2004. pp. 213-225. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.357. Acesso em: 06 de outubro de 2020.
FERREIRA, Marieta de Moraes. (org.) Entre-vistas: Abordagens e Usos da História Oral. Rio de
Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História: Trabalhos da Memória.
São Paulo: PUC, n. 17, 1989.
POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Revista Estudos Históricos. v. 5. Rio de
Janeiro: 1992. p. 200-212. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080. Acesso em: 06
de outubro de 2020.
Resumo
instrumentos da Teoria da História, com a intenção de que a área dos estudos históricos
conheça melhor as dinâmicas da dor social, suas (im)possibilidades de representação, e suas
características gerais e/ou peculiares ao Brasil neste período de exceção (1964-85), onde
disputas de narrativas sobre esse passado específico se apresentam nas mais variadas
camadas de nossa sociedade atualmente, embora o debate sobre a história que nos molda
seja vital, o historiador é o responsável por assegurar que os registros históricos sejam
apresentados para a sociedade, combatendo a pós-verdade que apela para discursos que
apelam a moral, crenças e emoções contra os fatos e a razão que devem ser preservados
pelos intelectuais e pela Academia.
Objetivos Específicos
Metodologia
articulações entre as áreas, dentro de cada eixo e destes entre si, baseiam-se em autores que
as tensionam para pô-las em diálogo e discutir os métodos interdisciplinares sem apagar
suas diferenças, resultando desse movimento formas de conhecimento com potencial
flexível e criativo, que problematizam a realidade e relativizam as verdades estabelecidas,
reconhecendo as relações de poder nelas incrustadas, mas não negam a existência de suas
especificidades.
Assim, os métodos de análise priorizam as seguintes concepções teóricas:
a) a obra de Carlo Ginzburg e Antonio Candido, ambos baseados em Eric
Auerbach, para uma compreensão nuançada dos conceitos de “mimese” e “realismo”
como transfiguração recriadora do real, mas a ele permeáveis, bem como para a afirmação
da inextricável dialética entre localismo e cosmopolitismo como marca das culturas
brasileira e latino-americanas, refletindo sobre as condições históricas dessa região,
inicialmente colonizada e a posteriori uma zona periférica do cenário global, o que fez com
que esses locais se tornassem receptáculos culturais, porém suas especificidades criaram
novas formas por suas perspectivas e vivências únicas nesses cenários, fazendo com que
eles não sejam simples reprodutores passivos, mas sim donos de uma cultura própria.
b) as reflexões de Martin Jay sobre o “ocularcentrismo” da cultura contemporânea
José Emilio Burucúa e Carlo Ginzburg, com base em Aby Warburg, sobre a relação entre
morfologia e temporalidade (sincronia e diacronia) focado na análise de obras das artes
visuais;
c) os estudos de Enzo Traverso sobre a “história rasgada” e o modo como os
intelectuais lidaram com a excepcionalidade política e civilizatória contida nos eventos das
grandes guerras e do holocausto, assim como seus debates sobre a justa medida na relação
entre os ditames subjetivos da memória e os protocolos da disciplina histórica;
d) as discussões de Dominick LaCapra acerca dos desdobramentos anti-
humanitários e traumáticos do holocausto sobre a história e a linguagem, portanto, sobre a
Historiografia e as artes em geral;
e) as teses de Walter Benjamin acerca do conceito de história, a produção poética
sob Estado de exceção e suas implicações na sociedade capitalista, com culturas sendo
comercializadas e tornando-se objetos de dominação de grandes potências.
No que tange ainda às discussões acerca dos traumas sociais, são relevantes os
trabalhos desenvolvidos na América Latina em torno dos efeitos das ditaduras militares no
continente. A partir da clínica psicanalítica e dos estudos do psicólogo salvadorenho
Fontes:
AMARAL, Antonio Henrique. A morte no sábado: tributo a Vladimir Herzog, In:
https://www.artsy.net/artwork/antonio-henrique-amaral . Acesso em 22 de outubro de
2020.
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literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie
Gagnebin, 7ª edição. São Paulo:Brasiliense, 1994, pp. 114-119
BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final, 2014. In:
http://www.cnv.gov.br/. Acessado em 22 de outubro de 2020.
BRASIL. Projeto Memórias Reveladas/Armazém da Memória – inclui o Projeto Brasil Nunca
Mais; o curta-metragem As veias abertas da América Latina e outros curtas censurados durante
a ditadura militar, (na Galeria de Vídeos) e o documentário Democracia em vertigem (Petra
Costa, 2019).
CAMARGO, Iberê. Andamento III. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4014/andamento-iii>. Acesso em: 22 de
outubro de 2020.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade - 9 ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2006
FERRO, Sérgio. Revolução. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9336/sergio-ferro>. Acesso em: 22 de
outubro de 2020.
PARENTE, Letícia. Marca Registrada. Videoarte, 1975. 10,33 min. Youtube. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=J5RakZ433wA. Acesso em 22 de outubro de 2020.
Resumo
Os debates foram longos e, na maior parte das vezes, inconclusivos. O período foi
marcado pelo “entrecruzamento de vários dualismos quanto às formas de entender a
História do Brasil: teórico-interpretativo, historiográfico e o acadêmico” que dificultavam a
conformidade entre as ideias e expectativas sobre o curso.4 O crescente tensionamento fez
dos congressos os espaços de reinvindicações, circulação de ideias, troca de experiências e
aproximação e atrito entre intelectuais e profissionais da História. O registro desses
encontros, publicados em forma de anais, nos fornecem um bom panorama dos
questionamentos e embates que nortearam o processo de institucionalização do
conhecimento histórico.
Nesse cenário, a implementação das disciplinas teóricas no currículo dos cursos
superiores era um campo de batalha no qual disputavam aqueles que defendiam a
modernização dos programas rumo à cientificidade e aqueles atrelados à historiografia mais
conservadora. No presente artigo, fruto do primeiro capítulo de dissertação em fase de
produção, tentaremos compreender o posicionamento de José Honório Rodrigues na
defesa de uma nova estrutura para o curso superior de História no 1ª Encontro Brasileiro
Sobre Introdução ao Estudo da História (EBIEH).
Os anais do evento em questão são um grande inventário das discussões travadas
entre os professores de Introdução aos Estudos da História (doravante IEH). Sua
convocação objetivou a troca de experiências docentes, o confronto entre as metodologias
de pesquisa e, principalmente, buscou expor os principais problemas e desafios em lecionar
essa recém implementada disciplina. O 1º EBIEH ocorreu em Nova Friburgo, município
da Região Serrana do Rio de Janeiro, entre os dias 07 e 13 de julho de 1968. José Honório
Rodrigues foi o palestrante convidado para a sessão solene de abertura do evento.5
Em grande momento de sua carreira, na qual parte foi dedicada à inserção de
disciplinas teóricas nos currículos das universidades brasileiras de História, Rodrigues
discursou em tom crítico à estrutura universitária da época, principalmente por conta da
organização das cátedras.6 Sua fala representa um período de mudança e crescente
profissionalização universitária. Almejava-se a modernização não somente da estrutura
4 FALCON, Francisco. “A historiografia fluminense a partir dos anos 1950/1960: algumas direções e
pesquisas”. In: GLEZER, Raquel. Do passado para o futuro: edição comemorativa 50 anos da ANPUH. São
Paulo: Contexto, 2011, p. 20.
5 RODRIGUES, José Honório. “O Ensino Superior da História e a Reforma Universitária”. In: 1º
existente no ensino superior, mas dos intelectuais inseridos nela; para tanto, era necessário
formar um novo grupo de profissionais da História.
O historiador fez da abertura do evento uma grande oportunidade para sustentar
seu posicionamento contra o que chamava de “fraude universitária” da cátedra vitalícia, que
acarretava numa profunda “desilusão com os cursos e currículos”.7 As novas faculdades
inauguradas em décadas anteriores já nasciam velhas, formadas por professores nomeados
mais por influência política que devido ao mérito acadêmico. Contudo, a nova geração que
adentrava a universidade tinha ímpeto pela mudança, era por e para essa nova geração que
Honório Rodrigues falava.
Após uma temporada visitando as universidades norte-americanas, o autor
defrontou-se com as diferenças entre os processos de contratação e permanência do corpo
docente brasileiro e estadunidense. Segundo ele, enquanto no Brasil vigorava a rigidez,
posto que um professor era “dono” de uma cadeira engessada, os programas (e
professores) de lá eram atualizados constantemente. O personalismo tão difundido por
aqui, num período que acabava por privilegiar as relações de simpatia e amizade em
detrimento da impessoalidade necessárias para a contratação de indivíduos capacitados.
Talvez faltasse no Brasil uma postura avaliativa mais meritocrática, com a qual os
professores seriam condecorados de acordo com suas contribuições intelectuais e não por
seus laços fraternos. Até ser estabelecida uma mudança real no ensino superior de História,
os cursos seriam dominados pelos “medíocres” e pelo “antiquarismo”, pois “que adianta
que as Faculdades mudem de nome, e que os professores de História, por exemplo, passem
a chamar-se de cientistas sociais, quando nunca foram sequer historiadores?”.8 Os
catedráticos eram, para o autor, o grande empecilho para a modernização dos cursos. Logo,
o ímpeto pela mudança não partiria da universidade ou dos professores, uma vez que eram
parte do sistema, a mudança viria dos alunos insatisfeitos com a estrutura vigente.9
As enfáticas acusações de Rodrigues contra a estrutura universitária brasileira,
segundo Andre Freixo, serviam para legitimar a perspectiva defendida pelo autor, segundo
a qual precisaríamos formar pesquisadores desvinculados do nosso passado colonial.10
Como solução para o tradicionalismo, o historiador propunha uma formação baseada na
Rodrigues”.
11 FREIXO, Andre de Lemos. “Um ‘arquiteto’ da historiografia brasileira: história e historiadores em José
Honório Rodrigues”. Revista Brasileira de História, v. 31, n. 62, 2011, p. 146.
12 RODRIGUES, José Honório. Op. Cit., p. 25.
13 RODRIGUES, José Honório. Op. Cit., p. 26.
14 RODRIGUES, José Honório. Op. Cit.p. 27.
15 Ibidem, p. 30-31.
16 PEREIRA, Ludmila Gama, “A construção do saber histórico e projeto social: Os historiadores da UFRJ na
época da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985)”. In: Anais do XIII Encontro de História – ANPUH-Rio,
Rio de Janeiro. Anais... ANPUH, 2008, p. 4-9.
17 FÁVERO, Maria de Lourdes. “A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968”.
BRASILEIRO SOBRE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA, 1., 1968, Nova Friburgo, RJ.
Anais… Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1970, p. 231.
19 Ibidem, p. 226.
Bibliografia
20 Ibidem, p. 252.
21 GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 14.
Resumo
A partir do século XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura
própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem.
Michel Foucault, As palavras e as coisas, 1999.
Introdução
O período oitocentista foi, sem dúvidas, marcado por mudanças iniciadas em fins
do século anterior com os movimentos revolucionários americanos e europeus, que
alteraram não só a conjuntura sociopolítica e econômica, mas igualmente, as estruturas
conceituais. A impressão para seus atores era a de que a Revolução estava por todo lado, e a
frase do escritor francês Louis Sébastien Mercier ‘Tout est révolution dans ce monde’2, simboliza essa
ideia: tudo na política parecia refletir ou conter a ideia revolucionária e definir o rumo das
condutas, mobilizando as ações e as reações na sociedade, além de definir “os lados” no
jogo político, extremamente polarizado.
1Mestra em História Social pelo PPGH da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-
mail: ingrid.lucashf@gmail.com
2 KOSELLECK, R. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de Janeiro:
É esta historicidade da palavra que merece ser destacada por ser terreno de embate
entre as forças políticas conservadoras e progressistas, próprias deste tempo. Como
6 Nietzsche apud KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos Históricos.
Rio de Janeiro: Contraponto PUC, 2006.p. 109.
7 Como é o caso dos já citados Koselleck em textos como Estratos do Tempo e Futuro Passado; ou Hannah
Arendt em Sobre a Revolução. Ou ainda, em autores como Jacques Le Goff, em História e Memória (2003), que
tratam vastamente deste aspecto.
8 KOSELLECK, op. cit. 1992, p. 5.
argumenta Bobbio9, não podemos pensar nas ideias de conservadorismo e progressismo antes
deste período. E, é por isso que eram essas forças próprias são cruciais para o
estabelecimento de uma compreensão em torno do conceito. Ao entender o pensamento
progressista como ideias vinculadas à Revolução Francesa, este se vincula ao ponto de vista
de Revolução como irreversibilidade.
Por outro lado, o pensamento conservador10 vinculava-se a ideia de manutenção do
poder, sem rupturas abruptas, uma perspectiva reformista, e por isso mesmo, ligada à
perspectiva retorno. Esta ideia atrelava-se a perspectiva da Revolução Inglesa ou até mesmo
Americana, como argumenta o próprio Edmund Burke, considerado pai do
conservadorismo moderno.
Salientadas essas discussões, realçamos o caráter variável das definições (conceitos), e
a disputa ao longo do período. Exemplo disso são os já mencionados dicionários, mas
também as enciclopédias e libelos políticos que exprimem esta instabilidade dos termos, ou
na expressão koselleckeana, essa batalha semântica.
O contexto e a ideia de Revolução neste período são de suma importância para a
discussão de seus possíveis significados. O termo revolução adquire nesta tempestade de
acontecimentos, de seu período inaugural, uma nova compreensão. A esta altura vale
ressaltar sua significação primária.
A palavra, inicialmente pertencia às ciências naturais, uma das principais referências
é o texto copernicano De revolutionibus orbium coelestium (A Revolução dos corpos celestes,
publicado em 1543), e seu significado tinha uma conotação completamente diferente da
que adquire após a Revolução de 1789. Até este período revolução significava o movimento que
os planetas faziam (de forma natural) de retorno à órbita, quando se desalinhavam desta, ou
seja, possuía um sentido de volta constante a um ponto específico. E, quando adentra o meio
político este é o sentido que possui: assim como os corpos celestes, os homens ao saírem do
ciclo político natural, obedecem a uma estrutura de retorno a órbita política original.
Em suas primeiras utilizações, ou nas palavras de Arendt11, a primeira vez que o termo
desceu dos céus para designar os acontecimentos da vida dos homens na Terra, ainda possuía a
perspectiva de retorno ou restauração. Como argumentou a filósofa, até mesmo a Revolução
Americana, com todas as suas especificidades, se caracterizou ainda nessas premissas. No
9 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Vol. 1. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.
10O pensamento conservador ou o Conservadorismo, como ideia política, não deve ser interpretado
simplesmente como um reacionarismo, é preciso, como neste caso, compreender suas nuances e
complexidades como qualquer outro termo político.
11 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Para traçar uma breve análise como forma de aplicação da perspectiva da História
dos Conceitos destaca-se como exemplo, alguns dos principais dicionários e vocábulos da
língua portuguesa no século XIX que nos possibilitam discutir a respeito da complexidade
que o termo revolução adquiriu.
Sem dúvidas, estes dicionários estão em diálogo com os principais dicionários do
mundo ocidental, como são os casos dos dicionários existentes nos idiomas francês, inglês
e alemão, em que podemos perceber a transição e disputa em relação ao termo.
Há, certamente, um conflito em torno do vocábulo revolução, ou seja, em linhas gerais,
há um ponto de vista que o equipara à ideia de revolta; ou outro viés que o entende como
permanência da perspectiva astrofísica newtoniana. Mesmo porque, estamos em um
momento em que os termos existentes para determinar eventos como os ocorridos pós-
1789, de alguma maneira, não capturavam ou se aproximavam do acontecimento.
Koselleck argumenta, por exemplo, que nos séculos anteriores às manifestações
políticas e sociais foram expostas com palavras que se perpetuaram, como revoltas, ou
os dicionários. A palavra que importa ser compreendida como conceito é aquela que propõe reflexão e
teorização: Revolução é uma dessas palavras.
22 O Dicionário publicado por Moraes tinha como referência o Vocabulário Português e Latino, publicado
pelo francês, padre Raphael Bluteau entre os anos 1712 e 1728, reconhecido como um dos parâmetros de
dicionários da língua até então.
Conclusão
Fontes:
CONSTANCIO, F. Dicionário Crítico e Etimológico da Língua Portuguesa. 1836.
Correio Mercantil, 1840-1850. Hemeroteca Digital. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ . Acesso em: jan. 2019.
MORAES, A. Dicionários da Língua Portugueza. Lisboa: Imprensa Regia, 1831.
Bibliografia:
Resumo
11Doutorando em história na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) - Escola de
Humanidades – Departamento de História Email: ivanrtrevisan@gmail.com. A pesquisa teve o financiamento
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
maneira “mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo”, cabendo
ao pesquisador compreender “o modo como essas tradições surgiram e se estabeleceram”2.
Nesse sentido, tradições que muitas vezes parecem ou são consideradas antigas, são
na verdade bastante recentes, visto que as “tradições inventadas” (já uma redundância aqui)
“caracterizam-se por estabelecer com o passado histórico uma continuidade bastante
artificial”, formulando narrativas históricas que estabelecem-se “através da repetição quase
que obrigatória”3. Segundo Hobsbawm, a invenção de tradições ocorre:
Quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os
padrões sociais para os quais as “velhas tradições” foram feitas,
produzindo novos padrões com os quais essas tradições são
incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus
promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido
grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando
são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam se tradições
quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto
do lado da demanda quanto do lado da oferta4.
2 Por tradição inventada entende-se “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.
9.
3 Ibidem. p. 10.
4 Ibidem. p. 12.
Nessa perspectiva, o que importa não é o fato de a nação ser um mito, mas sim o
próprio mito da nação enquanto objeto de estudos e de análises. Em consonância á essa
crítica, podemos afirmar que não é a tradição e o seu caráter inventivo (ou a ideologia e o
seu falseamento da realidade) que importam, mas como elas operam, como se reproduzem e
se mantém em um determinado contexto social.
Para ir além da crítica Hobsbawmiana, a tradição deve ser entendida enquanto
elemento formador de identidades de um determinado grupo social e mesmo no âmbito
individual que em última instância adere a determinados complexos simbólicos que passam
a dar sentido a sua existência na relação e na diferenciação com os demais (identidade
reflexiva7), compreendendo as identidades enquanto elementos dinâmicos, flexíveis, híbridos
e, portanto em permanente transformação. A historicização dos elementos ligados à
tradição faz com que se perceba a dinâmica ativa do processo de construção de identidades
e, sobretudo a possibilidade de aceitação ou recusa por parte dos indivíduos, vistos não
apenas como receptores, mas como sujeitos ativos nesse processo, com capacidade de decisão
e de escolhas na reprodução das narrativas e práticas vinculadas a tradição - mesmo que
essas escolhas sejam limitadas muitas vezes por fatores objetivos e subjetivos.
5 Para Marx e Engels, a ideologia não passa de uma “inversão” da realidade, da vida real e concreta entre os
homens: “a consciência nunca pode ser mais do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo da
vida real. E se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como acontece
numa câmera obscura, isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a
imagem invertida dos objetos que se forma na retina é uma consequência do seu processo de vida
diretamente físico”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução L. C. Castro e Costa. São
Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 19.
6 PALTI, Elías. José. Aporías: tempo, modernidade, historia, sujeto, nación, ley. Buenos Aires: Alianza, 2001, p. 211.
7 A identidade comumente constitui-se com relação ao “outro”.
Ou seja, a tradição faz sentido – inclusive para uso prático – aos indivíduos que a ela
aderem, mesmo se tratando de uma invenção ou de uma mistificação sobre o passado.
Em A Interpretação Das Culturas, o antropólogo estadunidense Clifford Geertz
trabalha com o conceito de ideologia nessa mesma perspectiva crítica apresentada até aqui à
concepção de tradição de Hobsbawm. Ao caracterizar a ideologia como “tendência,
supersimplificação, linguagem emotiva e adaptação ao preconceito” bem como “a infeliz
qualidade de ser psicologicamente deformada, contaminada, falsificada, distorcida,
sombreada”10, verificam-se semelhanças com os discursos e narrativas históricas elaboradas
pela tradição. Centralmente, o problema proposto por Geertz é o de desenvolver uma
sociologia do conhecimento capaz de reconhecer e verificar como funcionam os aspectos
simbólicos das ideologias, pois (assim como as tradições) já não importa aqui tanto a
8 Para Giddens: “a tradição é contextual, gradativa, uma combinação de ritual e verdade formular. É a verdade
formular que torna os aspectos centrais da tradição intocáveis e confere integridade ao presente em relação ao
passado”. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade pessoal. Oeiras: Celta Editora, 1997, p. 127.
9 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
Para além do papel psicológico das ideologias – bem como das tradições - a
formulação de uma sociologia do conhecimento deve compreender os “processos de
formulação simbólica”, analisando as ideologias como “sistemas de símbolos interatuantes,
com padrões de significados entrelaçados”14, daí a necessidade de uma ciência social capaz
de analisar o comportamento simbólico, ou seja: como os símbolos funcionam em determinado
contexto. A sociologia do conhecimento proposta por Geertz (que segundo o autor deveria
chamar-se “sociologia do significado”) talvez seja a mais adequada para analisar a função
desempenhada pelas tradições nas sociedades, para além dos critérios de verdadeiro ou
falso, como nas formulações de Hobsbawm.
Outro aspecto a ser considerado é o fato das tradições (bem como as ideologias)
terem uma necessária “correspondência” com a realidade em que estão inseridas para
obterem o mínimo respaldo entre os indivíduos que dela fazem parte, do contrário, não
faria sentido aos membros aderirem à ela. Usando o exemplo de uma metáfora, que só pode
15 SILVA, Ricardo. Liberalismo e democracia na sociologia política de Oliveira Vianna. Revista Sociologias, ano
10, n. 20, p. 238-269, jul.\dez., 2008, p. 251.
16 Outro autor que destaca o papel das ideologias nas relações de dominação e de poder é John Thompson.
Para o teórico das ideologias: “a análise da ideologia está primeiramente interessada nas maneiras como as
formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder. Ela está interessada nas maneiras como o sentido é
mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de
poder”. THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 76.
17 ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 13.
18 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004, p. 190.
19 Ibidem. p. 192.
20 Edward Said sobre o uso ‘instrumental’ da memória pela ‘tradição inventada’: “a method for using
collective memory selectively by manipulating certain bits of the national past, suppressing others, elevating
still others in an entirely functional way. Thus memory is not necessarily authentic, but rather useful”. SAID,
Edward Wadie. Invention, Memory, and Place. Critical Inquiry, v. 26, n. 2, p. 175-192, 2000, p. 179. The
University of Chicago PressStable Wintger. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1344120. Acesso em
10 Abril de 2019.
Entre esses teóricos encontra-se Hobsbawm com sua uma visão “instrumental” do
nacionalismo, onde a nação aparece estritamente ligada as “tradições inventadas”, tendo
como base de funcionamento os “exercícios de engenharia social, frequentemente
deliberados”, bem como a elaboração de narrativas históricas “feita convenientemente sob
medida”22. Não negamos que a nação e que o discurso nacionalista tenham e continuem
sendo usados de maneira manipulada para fins de interesses políticos e econômicos, mas
acreditamos que o discurso e as praticas nacionalistas e das tradições não se reproduziriam
exclusivamente pela imposição de um pequeno grupo. Smith parece compartilhar dessa
mesma compreensão:
Porque essa ‘invenção’, com tanta frequência e em contextos culturais e
sociais tão diferentes, parece tocar um nervo tão sensível, e por tanto
tempo? Nenhum artifício, por mais bem construído que fosse, poderia
sobreviver a tantas espécies diferentes de vicissitudes ou se adaptar a
tantas condições diferentes. É claro que há mais coisas na formação das
nações do que uma ‘fabricação’ nacionalista23.
p. 22.
23 SMITH, Anthony. David. O nacionalismo e os historiadores. In: BALAKRISHMAN, G. Um Mapa da Questão
Independente do que está por trás (interesses políticos, econômicos...) das tradições,
inclusive do aspecto conservador que muitas apresentam, as tradições não devem ser
consideradas como estanques e imóveis no tempo, mas em constante transformação e
25 Id. Ibid.
26 Para Ricouer, “o conceito de realidade cobre todos os processos que podem ser descritos sob o título de
materialismo histórico” (RICOUER, Paul. Ideologia e utopia. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 175). Isso nos ajuda a
compreender o binarismo (oposição) entre realidade e invenção apresentado por Hobsbawm.
27 Ibidem.
28 Ibidem. p. 176.
29 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
Bibliografia
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 21, 26.
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GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade pessoal. Oeiras: Celta Editora, 1997, p. 127.
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ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
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Resumo
O presente trabalho tem por objetivo central tratar de pontos importantes da trajetória de
Gilberto Freyre que contribuíram para a construção de um pensamento social brasileiro
através de três obras centrais: Casa-grande & Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso.
Dessa forma, foi realizada uma abordagem de sua trajetória biográfica com destaque para
suas viagens internacionais, a influência de Franz Boas e sua integração ao
lusotropicalismo.
tmartinfonseca@gmail.com.
3 CURTY, Carla; MALTA, Maria; BORJA, Bruno. Intérpretes do Brasil: influências na origem do pensamento
Em primeiro lugar, é preciso delinear sua trajetória marcada pelo nascimento entre
dois séculos e a vida em um mundo em transição.4 Gilberto de Mello Freyre nasceu em
1900 no Recife, capital do Estado de Pernambuco, descendendo tanto por parte de mãe,
Francisca de Melo Freyre, quanto de pai, Alfredo Freyre, de famílias patrícias da região. O
Pernambuco que Freyre nasceu, já havia perdido o protagonismo econômico no cenário
nacional, estando marcado pela decadência e pelas memórias do passado, em parte
glorioso, características dos Estados que se voltaram à produção e ao comércio de cana-de-
açúcar desde o período colonial. O pesquisador Mário Hélio Gomes de Lima frisa o
esforço intelectual de pensarmos sobre o tempo histórico de “restos e rastros” em que
Freyre nasceu e atuou, pontuando seu foco no Nordeste brasileiro, que concentrou grande
parte de sua atenção5.
Ainda no Brasil estudou no Colégio Americano de Recife e se tornou bacharel em
Ciências e Letras6. Por indicação de Oliveira Lima, que o auxiliará na sua carreira acadêmica
e rede de contatos, viajou para os Estados Unidos onde realizou os estudos superiores, de
pós-graduação e se especializou em sociologia. A graduação foi realizada no Baylor College,
no Texas, e o mestrado na Universidade de Columbia na década de 1920 e complementou
seus estudos em Oxford. Na sua pós-graduação nos Estados Unidos foi orientado por
Franz Boas que influenciou bastante sua produção. Segundo Ricupero, Boas acreditava que
fatores como raça e meio ambiente deveriam ser entendidos em função da cultura de
grupos humanos, e tal entendimento influenciara as noções de Freyre de raça e cultura7.
Também viajou pela Europa entre agosto de 1922 a março de 1923. As notas sobre sua
juventude foram publicadas já em sua velhice em Tempo morto e outros tempos (1975).
Esta formação no exterior, caracterizada por Pallares-Burke8 como “viagens de
formação”, é pautada como central em sua trajetória intelectual, “não apenas pelo que
aprende na universidade norte-americana, mas também pelo estímulo decorrente da
experiência, de fora do Brasil, procurar entender seu país”.9 Retornou a Recife em 1923
onde se tornou professor e atraiu o interesse de políticos como Anísio Teixeira e Estácio
4 LIMA, Mário Hélio Gomes de. “Gilberto Freyre”. In.: PERICÁS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln Ferreira
(Orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 120.
5 Ibid., p. 183.
6 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2013, p. 644.
7 RICUPERO, Bernardo. “Gilberto Freyre”. In.:________. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. 2 ed. São
Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. 2 ed. São Paulo: SENAC, 1999, p. 217.
12 RICUPERO, Bernardo. Op. cit., passim.
13 PESAVENTO, Sandra Jatahy. “De Recife para o mundo”. In.: DIMAS, Antonio; LEENHARDT,
Jacques; PESAVENTO, Sandra (Orgs.). Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre história e ficção. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/Editora da USP, 2006, p. 43.
14 LIMA, Mário Hélio Gomes de. Gilberto Freyre. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana,
nasceu em 1987 e atualmente sua antiga residência abriga a Fundação Gilberto Freyre
aberta à visitação do público.
No início do século XX os intelectuais tiveram a necessidade de buscar uma
identidade brasileira que transpusesse os regionalismos e as questões de classe, porém nas
últimas décadas tem ocorrido um movimento de valorização de culturas regionais e de
grupos que sofrem de exclusão social, as “minorias”. Esse movimento é uma das
justificativas de ser perceber continuidades e permanências e de se buscar a releitura de
clássicos15.
O primeiro livro a consagrar Freyre foi Casa-grande & Senzala que contava com o
subtítulo Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal e era assinalado como
Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil -1, sendo lançado em 1933 durante o
primeiro governo de Getúlio Vargas. Para Guimarães e Cabral este livro surge em meio a
um cenário intelectual de efervescência em que “a proposta de Freyre ganharia notoriedade
justamente por apresentar uma imagem original e positiva da nação e do legado colonial”16.
Pensavento ainda indica as correlações entre o novo olhar sobre o Brasil oferecido por
Freyre e a proposta de formulação nesta época de um novo projeto identitário que afastaria
do pensamento brasileiro o estigma racial herdado do século XIX17.
Também devemos pontuar as formas pelas quais Freyre apresenta a antropologia e
a sociologia, tendo em conta que o social e o cultural não aparecem como sinônimos. Em
suas produções a vida social aparece como um “fio condutor”18 e como antropólogo se
serviu de inúmeras fontes e “se exerceu no campo da medicina, do meio ambiente, da
engenharia, da arquitetura e da alimentação. [...] Do seu projeto antropológico, no entanto,
nunca se pode separar o político”19.
Nesta obra Freyre se coloca como escritor de tradição ibérica e se aproxima das
interpretações de autores do início do século XIX, que desde von Martius vinculam a
história brasileira a contribuição racial e cultural de três raças: a indígena, a negra e a
15 OLIVEIRA, Lucia Lippi. “Ordem e Progresso em Gilberto Freyre”. In: XXIV ENCONTRO ANUAL
DA ANPOCS. RJ: Petrópolis, 2000. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/anpocs00/gt10/00gt1021.doc. Acesso em: 30 jun. 2020, não
paginado.
16 GUIMARÃES, Lucia Maria P; CABRAL, Thais Pimentel. “Da teoria ao discurso da memória vivida:
breves reflexões sobre o lusotropicalismo”. In.: SARMENTO, Cristina Montalvão (Coord.). Culturas cruzadas
em português: redes de poder e relações culturais (Portugal-Brasil, séc. XIX e XX). 2 v. Influências, ideários,
periodismo e ocorrências. Coimbra: Almedina, 2012, p. 185.
17 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., passim.
18 LIMA, Mário Hélio Gomes de. Op. cit., p. 189-190.
19 Ibid., p. 121.
20 ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Chuvas de verão. “‘Antagonismo em equilíbrio” em Casa Grande &
Senzala de Gilberto Freyre”. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz; BOTELHO, André (Orgs.). Um enigma chamado
Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 200.
21 ZANINI et al. Pensamento social no Brasil por Giralda Seyferth: notas de aula. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015,
16.
22 LIMA, Mário Hélio Gomes de. Op. cit., p. 188.
celebração da mestiçagem: “todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,/
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor / o preto, o pardo, o roxo e não
apenas o branco e semibranco”.23
Dedica capítulos as três “raças” ressaltando a sua importância para a formação do
brasileiro, colocando a figura do português como fator fundamental de adaptação ao se
misturar pelo contato sexual com outros povos. Em relação ao negro, Freyre enfatiza sua
influência na vida sexual - principalmente na introdução do jovem branco às relações
sexuais - e na alimentação colonial. No entanto, Seyferth discute a “suavização” das
violências do sistema escravista em sua produção, relatando que esta suavizou a escravidão
brasileira em comparação com a norte-americana ao interpretá-la “à luz da cordialidade e
do cruzamento racial”.24 Já o indígena é qualificado como uma raça atrasada em contraste
com os europeus, tidos também como inaptos para o trabalho.
Percebemos assim que Freyre aponta constantemente a miscigenação como fator
essencial para a identidade e formação nacional, especialmente, no período colonial e traz
nessas discussões argumentos relacionados à superioridade e inferioridade cultural “todo
brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (...)
a sombra, ou menos uma pinta, do indígena ou do negro”.25
Seyferth ainda alerta para o fato de que a interpretação de Freyre está em foco com
a plantation canavieira pernambucana, de maneira que mesmo tendo proposto uma análise
mais ampla do Brasil ele ainda possuía uma leitura influenciada por seu pertencimento a
uma elite conservadora, a qual, muitas vezes, foi acusado de proteger e enaltecer. Ademais,
atenta para a discussão da problemática da democracia racial26, enquanto Araújo demarca
os entendimentos da questão dos “antagonismos em equilíbrio” na formação do povo
brasileiro27.
Freyre publica em 1936 a obra Sobrados e Mucambos que se constitui como uma
continuação de Casa-grande & Senzala, agora voltada para o meio urbano. Para Seyferth esta
obra representaria “o Brasil Império, já o Brasil mais urbano”28. Freyre assinala esta
continuidade no uso da expressão Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil – 2 e a
especificando em Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Ou seja, estabelece
sua continuidade com Casa-grande & Senzala, já que “ambas tratam da formação e do
declínio do patriarcado rural brasileiro, bem como de sua transformação e suavização
daqueles aspectos mais brutais em um semipatriarcado semifeudal”29.
Tão extensa quanto à parte 1, Sobrados e Mucambos tem como diferencial o elevado
número de capítulos que totalizam doze, entre os quais: I – O sentido em que se modificou a
paisagem social do Brasil patriarcal durante o século XVIII e a primeira metade do XIX, II – O engenho
e a praça; a casa e a rua, V – O sobrado e o mucambo e VII – O brasileiro e o europeu.30 Novamente
os títulos se referem a formas de moradia, mas agora em cidades, pois que o Sobrado
remete a ideia de moradia do senhor, da elite enquanto o Mucambo está atrelado ao
imaginário de habitação dos pobres, dos escravos urbanos. Estes ainda fazem alusão a
relações dicotômicas.
Percebe-se mais claramente a formulação de um estudo voltado à história da vida
privada brasileira. Freyre configura e busca trabalhar essa fusão de classes, raças e culturas
em um processo de criação de uma identidade do brasileiro. Neste sentido, para Leenhardt
Sobrados e Mucambos aparece, no interior dos argumentos de Freyre, como se existisse entre
duas épocas e “ocupa um lugar-chave entre a forma/estrutura patriarcal colonial e a
formação de uma realidade ainda difícil de perceber no século XIX: o povo”31.
Na produção em questão, Freyre aponta uma perda de espaço da família rural
patriarcal no século XIX, dando ênfase a presença da família real no Rio de Janeiro.
Segundo Seyferth, nesta obra Freyre delineia melhor as questões sociais, tendo em pauta o
Brasil Império e a ascensão dos mulatos como o resultado da miscigenação a partir da ideia
de uma “acomodação miscigenada”. Neste sentido, o mulato é pautado como o meio
termo e solução da questão racial, como elemento chave da “harmonização das relações
sociais (...) o elemento socialmente dinâmico que teria diluído ou amolecido os
antagonismos entre os dois extremos”32. Assim, Freyre produz, ainda focado no
antagonismo entre moradia/grupos sociais, uma análise profunda sobre as relações sociais
no Brasil urbano do século XIX, tendo consciência de suas transformações e permanências
em relação à sociedade patriarcal.
29 LEENHARDT, Jacques. “Protocolos da escrita: estratégias de Gilberto Freyre”. In.: DIMAS, Antonio;
LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra (Orgs.). Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre entre história e
ficção. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Editora da USP, 2006, p. 148.
30 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2013. (Trabalho originalmente publicado em
1936).
31 LEENHARDT, Jacques. Op. cit., 147.
32 ZANINI et al. Op. cit., p. 175.
O último livro aqui examinado é a obra de 1959 Ordem e Progresso, que se propõe a
pensar a Primeira República (1889-1930) e trouxe um lema positivista associado a bandeira
republicana brasileira. Enquanto os dois primeiros livros são escritos por um Freyre jovem,
com aproximadamente 30 anos de idade, Ordem e Progresso é desenvolvido em sua
maturidade. O cenário político brasileiro de sua publicação também não é o mesmo dos
anos 1930, com o fim do regime varguista e a estruturação de um período democrático
visto no governo de Juscelino Kubistchek (1956-1961). Apesar de finalizar a trilogia, este
último título destoa dos dois primeiros que trazem mensagens da dualidade entre mundo
rural e urbano. Este acabou sendo também um livro de menor impacto na crítica.
É também o maior livro da trilogia, se aproximando do número de mil páginas. No
entanto, mantém o subtítulo Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil – 3 e
acrescenta outro explicativo Processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no
Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo
para o trabalho livre; e da monarquia para a república.33
Freyre foca principalmente no momento de transição entre o Império e a
República, estendendo sua análise até o início do século XX e indicando as consequências
da República e da Abolição, tanto que o próprio título da obra remete a ideia de civilização.
Neste livro, ele demonstra uma continuidade na forma de organização de base patriarcal na
sociedade, constatando a mudança apenas na transferência da figura do imperador para a
do presidente. Ainda retoma elementos centrais das obras anteriores, como a presença do
patriarcado e a “interpenetração de etnias e culturas” na formação do brasileiro34.
Apesar do grande destaque dado a essas três obras apresentadas, devemos
mencionar a vastidão de sua produção acadêmica, a maioria de caráter sociológico e
histórico como: Brasis, Brasil e Brasília (1968), Homens, engenharias e rumos sociais (1987), entre
outros. Gilberto Feyre atingiu o patamar de “clássico”, sendo lido e relido no mundo
inteiro com a tradução de suas obras para mais de 30 idiomas e dezenas de edições.
Também é preciso mencionar as discussões que atrelam Freyre e seus livros ao
lusotropicalismo, tendo em conta que sua leitura se configura como “um projeto de
35
entendimento da formação nacional desde o Brasil Colônia” e continua sendo
interpretada e apropriada em múltiplas perspectivas e fins.
33 FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. São Paulo: Global, 2013. (Trabalho originalmente publicado em
1959).
34 BASTOS, Elide Rugai. Op. cit. p. 217.
35 ZANINI et al. Op. cit., 161.
Esta discussão necessita que tenhamos em mente que sua produção não só pautou
a produção acadêmica e o imaginário social que cerca o imaginário do ser “brasileiro”, mas
também dialoga com o mundo ibérico e colonial de Portugal. Esta especificidade é
trabalhada em consoante com a política de aproximação levada ao cabo pelo Estado Novo
varguista (1937-1945) e pelo regime Salazarista português (1933-1974), em que as
considerações de Freyre sobre civilização tropical, permanências da cultura portuguesa em
suas colônias e miscigenação foram apropriadas pelo regime ditatorial português para tratar
do colonialismo e utilizadas durante um período de vultuosos movimentos por
independência em suas colônias.
Castelo nos diz que os fundamentos do lusotropicalismo podem ser encontrados
em sua primeira obra, pois que na tentativa de “estabelecer uma ligação genealógica do
passado português à colonização ‘bem-sucedida’ do Brasil, Freyre evoca as origens remotas
de Portugal na faixa ocidental da Península Ibérica”36.
Suas ideias são apropriadas pelo regime Salazarista de forma a servir aos interesses
da propaganda e da política externa portuguesa durante o período do colonialismo tardio, e
a “instrumentalização” destes conceitos forneceu “argumentos (supostamente) científicos,
capazes de legitimar a presença de Portugal em África e na Ásia”37.
No entanto, devido à complexidade desta discussão que não é possível de ser
abarcada neste trabalho preferimos nos valer dos argumentos de Guimarães e Cabral sobre
lusotropicalismo que indicam novos rumos de pesquisa da história luso-brasileira a partir
das obras de Freyre, focando não somente na sua associação ao colonialismo português,
mas pensando sobre sua teorização das identidades e culturas híbridas e de como caberia
ao Brasil o papel de guia das ex-colônias em processo de desenvolvimento.38
Assim Gilberto Freyre se consagrou entre os maiores escritores da historiografia
brasileira que tentou consolidar uma leitura de Brasil, inovando ao tratar de aspectos que
muitas vezes foram deixados de lado, entre os quais o mundo privado e suas relações.
Apesar dos muitos elogios, principalmente de seus contemporâneos, como Monteiro
Lobato e Darcy Ribeiro, também foi duramente criticado ao longo das décadas de 1980 e
reflexões sobre o lusotropicalismo. In.: SARMENTO, Cristina Montalvão (Coord.). Culturas cruzadas em
português: redes de poder e relações culturais (Portugal-Brasil, séc. XIX e XX). 2 v. Influências, ideários,
periodismo e ocorrências. Coimbra: Almedina, 2012, p. 185.
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ZANINI et al. Pensamento social no Brasil por Giralda Seyferth: notas de aula. Porto Alegre:
Letra&Vida, 2015.
Resumo
Este trabalho é fruto de uma pesquisa em desenvolvimento sobre a reescrita da história na
ficção contemporânea da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A partir de uma
discussão conceitual na interseção entre Teoria da História e Teoria da Literatura, procura-
se analisar o diálogo entre ficção e história ao longo da História da Literatura. Em paralelo
com a breve mobilização de algumas ficções históricas, noções como a acepção
contemporânea de ficção, metaficção historiográfica e pós-autonomia são discutidas,
formando uma panorama sucinto que abrange do século XIX até a contemporaneidade
mais recente.
Companhia das letras, 2019, Jacob Burckhardt reivindica o gênero do ensaio para sua obra, se afastando,
assim, da afirmação científica que seu contemporâneo Leopold von Ranke defendia para a disciplina histórica.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
da Literatura com foco na questão sobre como a ficção lida com o passado e que
contribuições isso pode ter para a construção do conhecimento histórico.
Neste sentido, uma abordagem conceitual de relevância para nós é aquela proposta
por Hayden White5, ao diferir entre a produção de um “passado prático” e de um “passado
histórico”. Enquanto o primeiro seria produzido pela ciência histórica desde que esta se
propôs a estudar o passado como uma coisa em si mesma, purgando-se de qualquer
interesse pelo “passado prático”, o “passado histórico”, por outro lado, diria respeito ao
passado entendido à maneira leiga. Mas, se a história como ciência buscou se afastar do
“passado prático” em nome de seu status científico, a ficção, por seu turno, a partir de uma
“conexão histórica íntima”6 com o romance (novel), ganha a acepção que mobilizamos aqui.
Esta conexão histórica íntima de que nos fala a teórica da literatura Catherine Gallagher
nos parece especialmente interessante para compreender como a ficção passou a lidar com
a realidade.
De acordo com Gallagher, durante o século XVIII, a partir da já mencionada
conexão, o conceito de ficção teria conquistado o terreno da verossimilhança e passado a
ser concebido à maneira que nos é contemporânea. Antes disso, explica Gallagher, a ficção
era entendida como uma história explicitamente inverossímil, enquanto “as narrações
críveis em prosa – inclusive as que atualmente definimos como ficção – eram lidas ou
como relatos reais ou como reflexões alegóricas sobre pessoas ou evento da
contemporaneidade”7. Percebe-se, então, ter sido ao longo do século XVIII, e por meio do
romance histórico, que a ficção passou a dividir a matéria da realidade com a história,
abrindo espaço para o que White descreveu como a porta fornecida pelo romance realista
ao “passado prático” jogado para fora da janela da história propriamente dita8.
A este respeito é possível mencionar ficções como O vermelho e o negro9, do
romancista Stendhal. Produzido no contexto da Restauração, após a queda de Napoleão, O
vermelho e o negro é narrado pela personagem Julien Sorel, um jovem camponês arrivista,
hipócrita e profundamente entediado com seu tempo, a França pós-revolução. Como
5 WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da
ccultura. São Paulo: Edusp, 1994; e LACAPRA, Dominick, Retórica e História. Revista Territórios e fronteiras,
Cuiabá, vol. 6, n. 1, jan.-jun., 2013.
6 GALLAGHER, Catherine. Ficção. In. MORETTI, Franco (org.) A cultura do romance. Trad. Denise
2003.
10 HUTCHEON, Linda. Metaficção historiográfica: “o passatempo do tempo passado”. In: ___. A poética do
pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad.: Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
11 Ibidem.,p. 142.
12 COETZEE, J.JM. Foe. Trad.: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
admitem leituras literárias, isto quer dizer que não se sabe ou não se importa […] se são
realidade ou ficção”13. Deve-se observar que a teorização de Ludmer parte de textos em
que “os sujeitos se definem pelo seu pertencimento a certos territórios”14.
Esse pertencimento ao território é um aspecto interessante para a interpretação da
obra da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A relação entre as heroínas e a
problemática dos enredos é sintomática desse aspecto da obra de Adichie: no caso do
conto “A historiadora obstinada”15, o direcionamento que Afamefuna dá ao trabalho com a
historiografia está diretamente relacionado a uma perspectiva africana sobre a história; no
caso de Ifemelu, heroína do romance mais recente de Adichie, Americanah16, o retorno à
Nigéria e a tentativa de uma “pequena redenção da Nigéria”, título que Ifemelu atribui ao
novo blog, também indica uma narrativa que existe em função do imbricamento com o
território de origem; enquanto em Meio sol amarelo17, um dos aspectos marcantes do enredo
é a escrita de um livro sobre a história da Nigéria e os conflitos internos provocados, em
grande medida, pela unidade imposta pela colonização britânica aos povos igbo, hauça e
iorubá.
No entanto, deve-se notar a negatividade com que Ludmer caracteriza este “fim do
ciclo da autonomia literária”, enquanto outras apropriações do conceito se apresentam de
maneira a positivar a classificação. A teórica da literatura Diana Klinger, por exemplo, a
partir do tema da biografia e da relação entre obra e sujeito da escrita, procura
redimensionar o conceito de pós-autonomia “como uma forma de ler e de entender a
literatura como uma continuidade e uma posição diante da vida”18. Outra apropriação que
contorna a negatividade do conceito de pós-autonomia literária é o que se apresenta no
artigo de Fabiana Carneiro da Silva sobre o romance histórico Um defeito de cor19, cujo tom
autobiográfico é um elemento importante de sua estrutura enunciativa20. Argumentando em
favor do romance como uma provocação à história, Carneiro defende que
autora e personagem, cujo efeito é o tom autobiográfico que guia a narrativa em primeira pessoa da heroína
Kehinde.
21 SILVA, Fabiana Carneiro. Quando o que se discute é a realidade: um defeito de cor como provocação à
história. Afro-Ásia, n. 55, 2017, p. 107.
22 LACAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2005.
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Resumo
O iberismo pode ser definido como a transposição, por herança, da tradição portuguesa –
ou da Península como um todo - para o Brasil, do ponto de vista político, social e cultural.
A formação do pensamento político e social brasileiro tem como uma de suas fundações as
teorias políticas surgidas na Modernidade Ibérica e é resultado da opção de resgate e
valorização à tradição antiga e medieval. Tratar a história dos ibéricos como um conjunto
de opções alternativas à modernidade Ocidental, cujas consequências resultaram na
distintividade brasileira, foram as escolhas dos iberistas Oliveira Viana e Gilberto Freyre.
Diante do avanço no século XX das pressões liberais modernizantes vindas dos Estados
Unidos e Europa, esses intelectuais reafirmaram a importância do legado ibérico e da
tradição na singularidade brasileira por meio da sociologia política.
Introdução
2 Tomamos por Modernidade Ocidental o conjunto de transformações gestadas no século XVI e XVII, como
a revoluções científica e religiosa – que operam a transformação da ciência e da consciência -, os avanços
tecnológicos associados à globalização, o racionalismo como autoridade na produção de conhecimento e da
verdade, o individualismo anglo-saxão, entre outros aspectos do mundo moderno que encontram ressonância
no Iluminismo e na sociedade burguesa do século XIX e XX. Para mais, ver: GUMBRECHT, Hans Ulrich.
Cascatas da Modernidade. In: Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
3 CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol.4, nº7,
1991, p.82-99.
4 PAIM, Antonio. A querela do estatismo. Brasília: Senado Federal. 1999.
5 VIANNA, Luiz Werneck. Weber e a Interpretação do Brasil. Seminário Internacional Max Weber, 1999.
6 Ibidem.
7Ao prefaciar o livro Tradição e Artifício, Luiz Werneck Vianna (2000, p.18) cita uma agenda de estudos
sociológicos reducionistas que, no canon weberiano, ocultam a natureza específica da “outra” América,
explicada pelo que lhe falta do que pelo que de fato é.
8 MERQUIOR, Guilherme. O outro ocidente. Revista Presença, nº15, 1990.
9 Para Rubem Barboza Filho (2000, p278-279), as principais questões enfrentadas pelos ibéricos no século
XVI e XVII foram: lidar com a descoberta da América no pensamento cosmológico europeu; o resgate do
Sacro-Império Romano Germânico por Carlos V; o embate dos ibéricos com o luteranismo; os embates com
a ciência moderna ou a “Questão Galileu”; e por fim, a “questão turca”, o embate civilizacional entre ibéricos,
judeus e mouros na Península.
10 DOMINGUES, Beatriz Helena. Tradição na modernidade e modernidade na tradição: a modernidade ibérica e a
11 Para mais, ver: HAZARD, Paul. A Crise da Consciência Europeia (1680-1715). Editora UFRJ, 1ªed., 2015.
12 BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2000. p. 33-68.
13 Idem, p.36
14 Ibidem.
Essa temática encontrou ressonância no Brasil nas décadas de 1920 e 1930 por
meio de intelectuais que buscavam compreender as especificidades de nosso povo em suas
origens culturais. Nesse contexto, sentiam os impactos do choque entre a tradição, presente
no patriarcalismo rural e na ordem produzida pelas relações seculares entre as oligarquias
do campo, e a modernidade, que avançava conforme o desenvolvimento dos setores
urbanos no início do século XX desembocava na contestação dos fundamentos
estruturados no ruralismo e no arranjo político do Segundo Império.15 Assim, afirmavam
que a cultura brasileira encontraria o alimento para seu crescimento na consolidação e
manutenção em seus elementos próprios e em sua tradição, iberista e autóctone.
15 MATTOS, Ilmar Rolhoff de. O tempo saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1997.
16 PAIM, Antonio. A querela do estatismo. Brasília: Senado Federal, 1999. p.34-36.
17 VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan,
2004. p. 169.
18 OLIVEIRA VIANA, Francisco de. Populações Meridionais do Brasil, Brasília: Senado Federal, 2005, p.48.
19 Apud VIANNA, 2004, p.171.
20 OLIVEIRA VIANA, 2005, p.98.
21 Idem, p.97
22 Idem, p.233-234.
ideias para a apropriação das instâncias de poder regional pelo patronato rural, à iminência
do caos anárquico previsto por Sarmiento.23Restava no centralismo do Estado imperial, por
meio do autoritarismo instrumental, fornecer a substância de uma sociedade desfibrada,
marcada pela insolidariedade e pelas relações de subordinação do campo, garantindo
direitos, difundindo a ordem pública por todo o país e restringindo os poderes regionais
dos caudilhos e latifundiários.24
Segundo o sociólogo, os americanistas não levavam em consideração a dinâmica
social e política brasileira ao advogar pelo fortalecimento dos centros locais à moda
saxônica. A consequência da descentralização seria o progressivo fortalecimento da
aristocracia agrária, das oligarquias da terra e da política de submissão e favores das massas
rurais em relação ao senhor e proprietário. Conforme o poder político fosse se esvaindo do
centro, o ambiente rural – a escola moral formadora dos valores mais básicos da
mentalidade de nosso povo – tornar-se-ia um obstáculo para o desenvolvimento de valores
associativistas e de uma sociedade civil consciente do ponto de vista política. Desse modo,
a realidade do caudilhismo acabaria por inverter a função do poder central.
Ao contrário de autores como José Henrique Rodó e Eduardo Prado, entendia
que o iberismo e americanismo não eram diametralmente opostos, mas complementavam-
se como realização.25 Da cultura anglo-americana, admirava o grau de intelectualização do
Estado e o associativismo, que entre nós se fazia ausente pelos domínios da aristocracia
rural. O tema do interesse, caro aos americanistas e ao liberalismo, é tratado pelo sociólogo
sob a forma coletiva: o interesse que aparece em primeiro plano não é o individual
utilitarista de Bentham e Hume, mas o interesse nacional e coletivo do escolasticismo
ibérico.
Por sua vez, Freyre em A Interpretação do Brasil (1947) irá realizar síntese de sua
proposta de valorização da matriz ibérica como responsável pela capacidade de assimilação
e harmonização de antagonismos. A hibridez identitária e a rusticidade do ibérico conferem
resistência a algumas das exigências da sociedade burguesa, como a homogeneização, e abre
espaço para a assimilação de formas culturais inaceitáveis do ponto de vista tradicional de
26 FREYRE, Gilberto. A interpretação do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p.86.
27 Idem, p.61.
28 OLIVEIRA VIANA, Francisco. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2005, p.179.
29 FREYRE, 2001, p.63.
30 THOMAZ, 2001, p.18.
31 Para Freyre (2001, p.60), o mulato se europeiza nos sobrados e se africaniza nos mocambos, transitoriedade
Considerações Finais
32 Essa concepção de duplicidade da alma ibérica é retirada diretamente da noção de dupla personalidade do
Dr. Jekill- Mr.Hyde, embora também tenha ressonância das reflexões de Unamuno. Segundo Freyre (2001,
p.44), as concepções e condições de vida dos ibéricos não chegam a um equilíbrio sem antes passar por um
conflito, característica que teria sido herdada pelos brasileiros.
33 Idem, p.86.
34 Idem, p.89.
35 Idem, p.90.
36 Elide Rugai Bastos (2006, p.42) faz menção ao título de Casa Grande & Senzala, onde o “&” indica a relação
de integração entre os distintos espaços e agentes históricos no Brasil Colônia, quando a relação em outras
realidades seria a oposição ou ruptura. Da mesma maneira, aposta na integração no antagonismo proposto na
obra Sobrados e Mucambos, destacando a figura do mulato na sociedade brasileira, europeizado nos sobrados e
africanizado nos mucambos, como superação das ambiguidades e harmonia entre contrários.
Bibliografia
37 GOMES, Angela de Castro. Autoritarismo e Corporativismo no Brasil: o legado Vargas. São Paulo: Revista USP,
nº 65, março/maio, 2005, p.110.
38 CARVALHO, 1991, p.97.
39 PAIM, 1999, p.34.
MATTOS, Ilmar Rolhoff de. O tempo saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1997.
MERQUIOR, Guilherme. O Outro Ocidente. Revista Presença, nº. 15, 1990.
OLIVEIRA VIANA, Francisco de. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, vol.27, 2005.
PAIM, Antonio. A querela do estatismo. Brasília: Senado Federal. 1999.
THOMAZ, Omar Ribeiro. Introdução para A interpretação do Brasil, de Gilberto Freyre, São
Paulo: Cia. Das Letras ; Organizador: Omar Ribeiro Thomaz ; Tradução: Olívio
Montenegro. 2001.
VIANNA, Luiz Werneck. Weber e a Interpretação do Brasil. Seminário Internacional Max
Weber, 1999.
________, Luiz Werneck. Introdução para Tradição e Artifício, de Rubem Barboza Filho,
Belo Horizonte, UFMG, 2000.
________, Luiz Werneck. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de
Janeiro: Revan, 2004.
Resumo:
Tida pelas elites intelectuais ilustradas da Grã-Bretanha e de outras partes da Europa como
o mais nobre gênero da prosa, a História esteve presente em diferentes momentos das
carreiras de diversos e polifacetados intelectuais. Aclamados por suas dimensões estético-
pedagógicas e efeitos extrínsecos, os textos históricos desafiaram as habilidades de muitos
letrados, entre eles David Hume. Nas duas últimas décadas de sua vida, o filósofo escocês
dedicou-se à árdua tarefa de compor uma abrangente, filosófica e multitemática História da
Inglaterra: da Invasão de Júlio César à Revolução de 1688, a qual foi publicada em volumes
separados, entre 1754 e 1762. Isto posto, o objetivo central da comunicação aqui resumida
será destacar a mobilização da problemática, porém amplamente presente nas letras da
época, noção de imparcialidade na tentativa de legitimação do texto histórico de Hume.
Não há dúvidas de que David Hume foi um dos escritores mais prolíficos de seu
tempo. Tendo nascido em Edimburgo, em 1711, foi um autor que transitou com maestria
entre diversas áreas do conhecimento, destacando-se a filosofia e a história. Em seus
sessenta e cinco anos de vida, foi idealizador de: a) um dos mais conhecidos e abrangentes
tratados da história da filosofia ocidental, o Tratado da Natureza Humana, publicado pela
primeira vez nos anos finais da década de 1740; b) de uma série de investigações,
dissertações e ensaios filosóficos, políticos e literários, os quais foram, em sua maioria,
publicados nas décadas de 1740 e 1750; c) de uma História Natural da Religião, publicada em
1757, junto à outras dissertações sobre múltiplos temas, dentre os quais se destacam as
paixões, a tragédia e o gosto; d) e, por último, todavia não menos importante, da obra que
mais nos interessa neste texto, uma História da Inglaterra: da Invasão de Júlio César à Revolução de
1688, editada e publicada - na maioria das vezes, nos últimos dois séculos e meio -, entre
seis e oito volumes. Apesar de nos séculos XX e XXI, ter gozado de um prestígio
incomparavelmente maior por seu trabalho de filósofo do que de historiador, o
reconhecimento de Hume nem sempre se deu dessa forma; muito pelo contrário.
De acordo com Ernest Mossner2 e Alfred Ayer3, dois dos mais conhecidos
biógrafos da vida do filósofo escocês, o início de sua carreira como escritor foi conturbado.
Mesmo com talentos únicos para a literatura descobertos muito cedo, em especial para a
Filosofia e a História, a recepção de seus primeiros escritos, notadamente do Tratado, foi
surpreendentemente fraca. Ainda que seja um lugar-comum imperativo para que possamos
entender a essência do pensamento humeano – destacadamente aquilo que o autor chama
de a lógica do entendimento -, o Tratado é um texto longo, denso e complexo. E que, para além
disso, requereu uma série de escritos subsequentes que o explicassem e parafraseassem suas
partes mais áridas, em uma tentativa de fazer mais digeríveis as bases do pensamento do
autor4 . Por isso, cumpre destacar que a fama de Hume se mostrou mais evidente
tardiamente, na primeira metade da década de 1750, quando seus ensaios, em especial os de
cunho político, ganharam popularidade. Segundo Pedro Paulo Pimenta5, foram
majoritariamente os textos dessa década que permitiram a Hume desenvolver uma ciência
política, a qual se baseava no livro 3 de seu Tratado e que, posteriormente - após persuadido
por seus editores e amigos próximos -, desdobrou-se em uma reflexão mais ampla, na
forma do gênero prosaico mais nobre à época: a História. Não obstante, levada em
consideração essa alegada pressão de amigos e editores pela escrita da História, parece-nos
também que ela veio a calhar.
Pondera-se que em meados do século XVIII, as elites inglesa e escocesa avaliavam
as tradições historiográficas de seus países como incapazes, até então, de produzir uma
narrativa histórica nacional comparável àquelas produzidas pelos mais famosos
historiadores gregos e romanos da antiguidade. Em outras palavras, conforme colocado
por Philip Hicks6, claramente imersos na longuíssima tensão entre os paradigmas clássico e
neoclássico de escrita da História, os intelectuais setecentistas da ilha da Grã-Bretanha se
2 MOSSNER, Ernest. The Life of David Hume. 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1980. pp. 117-121.
3 AYER, Alfred. David Hume: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2000. pp. 5-6.
4 PIMENTA, Pedro Paulo. “Apresentação”. In: HUME, David [1778]. História da Inglaterra: Da Invasão de
Júlio César à Revolução de 1688. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. XI.
5 Ibid., p. XII.
6 HICKS, Philip. Neoclassical History and English Culture: From Clarendon to Hume. 1. ed. London: Macmillan,
7 PHILLIPS, Mark Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in Britain (1740-1820). Princeton:
Princeton University Press, 2000. p. 39.
8 BONGIE, Laurence. Hume: Prophet of the Counter-Revolution. 2. ed. Indianapolis: Liberty Fund, 2000. p.
8.
9 HICKS, 1996, p. 5-6
10 Ibid., p. 23-25.
11 BONGIE, op. cit, p. 5.
Em defesa parecida, em outro trecho de carta, mas agora de uma escrita a seu
amigo e confidente Adam Smith, Hume (1778: XII) pontuou:
Você sabe que não há um posto de honra mais vago no Parnaso inglês
do que aquele da História. Estilo, julgamento, imparcialidade, cuidado -
é tudo que se pede dos nossos historiadores; e mesmo Rapin, nesse
período mais recente, é extremamente deficiente15.
Assim, as citações e os grifos acima nos mostram que uma noção e o preocupava e
precisava nortear o seu trabalho: a imparcialidade. Nas linhas a seguir tentaremos
circunscrevê-la, trazer as linhas gerais de sua história própria e alguns de seus limites, os
yet been written, not only for style, which is notorious to all the world, but also for matter; such is the
ignorance and partiality of all our historians. Rapin, whom I had an esteem for, is totally despicable. I may be
liable to the reproach of ignorance, but I am certain of escaping that of par[chtiality: The truth is, there is so
much reason to blame and praise alternately King and Parliament, that I am afraid the mixture of both in my
composition, being so equal, may pass sometimes for an affectation, and not the result of judgement and
evidence.” (HUME, loc. cit., tradução nossa, grifo nosso).
15 “You know that there is no post of honour in the English Parnassus more vacant than that of History.
Style, judgement, impartiality, care—everything is wanting to our historians; and even Rapin, during this latter
period, is extremely deficient.” (HUME, loc. cit., tradução nossa, grifo nosso).
destacamos David Hume22. Além disso, nota-se que ao longo do século XVII inglês, a
consciência da imparcialidade circulava com pujança nas práticas letradas e culturais, sendo
vista: a) no teatro – especialmente tragédia de vingança -; b) na imprensa efêmera das
décadas de 1640 e 1660 – as quais defendiam que imparcialidade não era neutralidade ou
suspensão de julgamento, mas sim moderação e razoabilidade de opiniões -; c) nas ideias de
John Wilkins – membro fundador da Royal Society e que defendia que quaisquer atividades
intelectuais que preconizavam o exercício de apreciação e análise deveriam ser imparciais,
entre elas a História -; d) e, por fim, e nos bastante populares textos de Joseph Addison –
os quais defendiam que uma imparcialidade exacerbada poderia ser injusta e generatriz de
conjunturas de violência e barbárie. Porém, apesar, como acabamos de ver, ser poliédrica e
multifacetada, é possível notar que para muitos inseridos neste habitus, entre eles David
Hume, o postulado da imparcialidade era pré-requisito para constituição do texto histórico.
O texto histórico de Hume nos mostra que imparcialidade e a hipótese, por exemplo, de
engajamentos e aproximações no curso da escrita, não eram associações entendidas como
dicotômicas e antitéticas, como passaram a ser a partir do século XIX23.
A história filosófica, gênero historiográfico do qual Hume é talvez o maior e mais
importante representante, tinha novos objetos e novos métodos, inaugurou uma nova
forma de se pensar a História, tipicamente iluminista. Segundo Sara Albieri24, o gênero se
preocupava em não relatar os eventos de maneira fragmentada, em uma tentativa de cobrir
a totalidade dos costumes de um povo, com suas instituições políticas, financeiras e sociais.
Ainda segundo Albieri25, esse tipo de História, o qual consistia em uma reflexão
metodológica ligada a um ideal de cientificidade, via-se na função de explicar, e não apenas
descrever, conferindo aos fatos históricos um maior grau de inteligibilidade. Na tentativa de
agradar a imaginação, fortalecer a virtude e aprimorar o entendimento, a obra de Hume a
obra de Hume atribui grande importância à imparcialidade, ao cuidado metódico no trato
com a documentação primária, análise dos testemunhos e relatos levados em consideração.
Esse é talvez o seu principal mecanismo de legitimação.
Assim como para inúmeros outros historiadores da mesma época e de alguns
momentos anteriores e imediatamente posteriores, para Hume, a História era um
22 PHILLIPSON, Nicholas. David Hume: The Philosopher as Historian. 1. ed. Londres: Penguin, 2011.
23 ASSIS, A. A. “Objectivity and the First Law of History Writing”. Journal of the Philosophy of History, v. 13, n.
1, pp. 107-109.
24 ALBIERI, Sara. “David Hume: Filósofo e Historiador”. Mediações: Revista de Ciências Sociais, v. 9, n. 2, p.
Bibliografia
Resumo
Este artigo tem como objetivo expor e comentar a presença do determinismo religioso na
obra do historiador franco-inglês Hilaire Belloc. Iniciaremos apresentando o que
entendemos por determinismo religioso. Neste ponto, lançaremos mão do esquema
explicativo do determinismo econômico, comumente atribuído ao materialismo histórico –
de modo específico, do determinismo sincrônico – e de uma comparação com a
multicausalidade weberiana. Depois, demonstraremos como o determinismo religioso
aparece nas obras O estado servil (1912) e as crises de nossa civilização (1937), escritas por Belloc.
Introdução
1 Doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em História pela mesma
instituição. Graduado em História pela Universidade Católica de Petrópolis. E-mail:
nascimentorhuanreis@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
a uma situação na qual, ao nosso ver, o que se verifica é um “determinismo teológico”. Isto
é, à ideia segundo a qual a causa de todos os fenômenos pode ser explicada a partir da
vontade de um ser transcendental.2
Frente à escassez de estudos sobre o tema, bem como às confusões que ocorrem
em torno do mesmo, temos tomado o determinismo religioso como objeto de alguns dos
nossos estudos. Acreditamos que o preenchimento da lacuna sobre o determinismo
religioso poderá contribuir para o conjunto dos estudos relacionados à Historiografia e à
Teoria da História. Dessa forma, apresentamos na edição de 2019 da Semana de História
Política da UERJ um artigo que visava delimitar o que consideramos “determinismo”
religioso. Tal trabalho foi intitulado “Considerações acerca do determinismo religioso na
análise histórica”.
O presente estudo, embora vise auxiliar no preenchimento da mesma lacuna,
objetiva expor como o determinismo religioso aparece em textos históricos. Para isso,
abordaremos as obras O estado servil (1912) e As crises de nossa civilização (1937), do historiador
franco-inglês Hilaire Belloc (1870-1953). Antes, contudo, apresentaremos brevemente
aquilo a nossa perspectiva sobre o correto uso da expressão “determinismo religioso”.
Determinismo religioso
2 Cf: BUARQUE, Sérgio C. “Metodologia e técnicas de construção de cenários globais e regionais. In: Textos
para discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nº 939, fev. 2003, p. 15; PEREIRA JUNIOR,
Alfredo. “Indeterminismo e Liberdade em Hume”. In: Trans/Form/Ação. São Paulo, 16, 1993, p. 37; TAUB,
Emmanuel. “Violencia, Religión y Messianismo: reflexiones desde la filosofia judia”. In:Sergio Tonkonoff. La
pregunta por la Violencia. Buenos Aires: Pluriverso Ediciones, 2017, p. 60.
3 BARROS, José D’Assunção. “Materialismo histórico e determinismo: revisitando uma polêmica”. In:
Cultura e Sociedade: revista de cultura política. V.1, n.1, jan/jun de 2011, pp. 97-99.
4 Cf: WOODS, Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo: Quadrante, 2008;
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações, 2016.
multicausal, de modo que a religião é apresentada como um dentre vários fatores que dão
razão às transformações sociais.5
2- Da mesma forma, tomar a religião como objeto de um estudo de caráter
histórico não faz do historiador um determinista. O determinismo religioso pressupõe uma
postura analítica que sujeita toda a complexidade dos fenômenos sociais a uma causalidade
religiosa. Por esse prisma, a produção histórica de Hilaire Belloc surge como exemplo ideal
de obra na qual o determinismo religioso pode ser verificado.
5 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2012.
6 NASCIMENTO, Rhuan Reis. “Introdução à edição brasileira de O Estado Servil”. In: BELLOC, Hilaire. O
Estado Servil. Curitiba-PR: Livraria Danúbio Editora, 2017, p. 10.
7 PEARCE, Joseph. El viejo trueno: biografia de Hilaire Belloc. Madrid: Ediciones Palabra S. A., 2016, p. 54.
8 Ibidem., p. 64.
9 NASCIMENTO, Rhuan Reis. “Introdução à edição...”. Op. Cit, p. 10.
Como exemplos deste último segmento, pode-se citar O estado servil (1912) e As crises de
nossa civilização (1937).
Apesar da variedade temática presente na obra de Belloc, uma característica que
salta aos olhos do leitor é que o autor frequentemente utilizou aspectos ligados à religião
para dar causa aos eventos históricos sobre os quais escreveu.
O estado Servil
Em O estado servil, por exemplo, Belloc propôs que a emergência de leis voltadas à
garantia da seguridade social favorecia a perpetuação do capitalismo, à medida que reduzia
as tensões existentes entre os proletários e os capitalistas. Desse modo, tal legislação
corroborava com o advento de uma sociedade baseada na servidão de muitos proletários a
poucos possuidores dos meios de produção. Para fundamentar sua tese, Belloc percorreu a
história do Velho Continente enfatizando as mudanças na estrutura produtiva. Apesar da
especificidade do seu objetivo, chama a atenção o uso frequente de termos ligados à
religião.
Belloc iniciou seu estudo salientando que a escravidão foi uma instituição
amplamente difundida entre as civilizações da antiguidade. Ao apresentar os principais
aspectos desta instituição – como sua desconexão dos fatores raciais e sua relevância como
pilar da produção de riqueza – Belloc insistiu em descrever a Antiguidade como um
período de hegemonia pagã.10
A insistência de Belloc no paganismo da Antiguidade é melhor entendida durante a
leitura do terceiro capítulo do livro. Nessa parte, o autor discorreu sobre como aconteceu a
dissolução do arranjo socioeconômico característico da Idade Antiga, que teria ocorrido em
paralelo ao fortalecimento da Igreja Cristã e à emergência de um sistema produtivo baseado
no maior acesso à propriedade. Para o historiador franco-inglês, o fortalecimento do
Cristianismo colaborou para a descentralização do acesso à terra, principal meio de
produção de riquezas, e, portanto, para a extinção da escravidão.11
Nesse sentido, para Belloc, a grande mudança social que ocorreu na passagem da
Antiguidade para a Idade Média cristã foi a substituição do domínio absoluto dos
proprietários sobre a terra por uma estrutura que garantia ao antigo escravo usufruir dos
10 Belloc, Hilaire. O Estado Servil. Curitiba-PR: Livraria Danúbio Editora, 2017, pp. 51-57.
11 Ibidem., pp. 59-61.
frutos do seu trabalho. Já predominante no século IX, essa estrutura, dava ao servo
liberdade para produzir riqueza para si na parcela da terra do senhor que lhe era destinada,
devendo, em contrapartida, cumprir apenas uma série de obrigações previamente acordadas
com o seu senhor.12
Tal foi a transformação que ocorreu na sociedade europeia no curso de
dez séculos cristãos. A escravidão fora extinta, e em seu lugar veio o
estabelecimento da livre propriedade, que parecia tão normal aos
homens e tão consoante com uma vida feliz. Na época, nenhum nome
específico se deu para isso. E hoje, que esse arranjo social desapareceu,
temos de cunhar um, ainda que insólito, e dizer que a Idade Média,
instintivamente, concebeu e deu origem ao Estado Distributista.13
Ao falar sobre o fim do arranjo social medieval e sobre a sua substituição pelo
capitalismo, Belloc abordou especificamente à situação da Inglaterra. A justificativa dada
pelo autor foi que a Revolução Industrial, apontada por muitos como marco do
capitalismo, ocorreu primeiro neste país. Entretanto, ressaltou Belloc, a dita Revolução foi
um reflexo do capitalismo e curso e não a sua causa.15
Na perspectiva de Belloc, os primeiros passos para o surgimento do capitalismo
ocorreram no contexto da Reforma Protestante, quando Henrique VIII confiscou as terras
da Igreja Católica (cerca de 28% das terras da Inglaterra). Sem conseguir administrá-las, o
rei cedeu à pressão dos homens que já possuíam grandes propriedades, tornando-as ainda
maiores. Tal ação alterou o equilíbrio econômico experimentado na Idade Média. Assim,
no primeiro terço do século XVII, a monarquia inglesa estava empobrecida frente à nova
oligarquia composta pelos grandes proprietários que ela mesma ajudou a formar. Tudo isso
ocorreu sobre os escombros da religião cristã católica. Nesse cenário, o surgimento das
indústrias agravou a concentração da propriedade nas mãos de poucos e a proletarização de
muitos. Isto, pois, foram os herdeiros dos grandes proprietários do passado que se
converteram em donos de indústrias ao longo do século XVIII.16
Contudo, o sistema capitalista que embasava a sociedade industrial era, na visão de
Belloc, moralmente insustentável. Os homens eram naturalmente livres. Tinham uma
disposição natural à propriedade. A legislação, amplamente influenciada pela moral cristã,
tinha como fundamento a liberdade e a propriedade. Entretanto, na prática, a maior parte
da massa que constituía o Estado não possuía os meios de produção necessário para sua
subsistência. Assim, vendiam sua força de trabalho a um proprietário e, com isso, perdiam
sua liberdade. Tal contradição fazia com que Belloc acreditasse que o capitalismo
fatalmente daria lugar a outro sistema produtivo.17
Nesse sentido, três são as possibilidades elencadas por Belloc. A primeira, é uma
sociedade coletivista, que é desacreditada pelo autor, por também ter como fundamento a
concentração da propriedade, com a especificidade de centralizá-la nas mãos dos
representantes do Estado. A segunda era a sociedade servil, que seria fundamentada na
redução das tensões capitalistas por meio de uma legislação voltada à seguridade social.
Esta era, segundo Belloc, indesejada, porém mais provável de se consolidar. E a última,
desejada pelo autor, era a fragmentação da pequena propriedade e a recuperação dos
valores cristãos experimentados na Idade Média.18
20 Ibidem., p. 24.
21 Ibidem., p. 25.
22 WEBER, Max. A ética protestante... Op. Cit., p. 32.
23 BELLOC, Hilaire. La crisis... Op, Cit., pp. 26-27.
24 Ibidem., pp. 45-77.
Por fim, Belloc tratou das “crises” que dão título ao livro – a Reforma Protestante,
e a emergência do Capitalismo e do Comunismo – como fenômenos de matriz religiosa.
Isto, pois, Belloc afirmava existir uma relação linear entre a fé protestante e a moral
capitalista, à medida que aquela permitia e legitimava a usura e a livre competição, aspectos
fundamentais para a emergência do capitalismo.26 Já o comunismo, seria um possível
remédio aos males trazidos pelo capitalismo. Contudo, como era um remédio baseado na
moral materialista e ateísta era, na visão de Belloc, um remédio destrutivo. 27
Tal como ocorreu nas obras de Marx e Engels, a análise histórico-social apresentada
por Belloc em O estado servil está atrelada a uma proposta político-econômica que recebe o
nome de Distributismo. Belloc foi formulador e defensor do Distributismo, que tinha
como fonte de inspiração a Encíclica Rerum novarum (1891) de Leão XIII, que versava sobre
a condição social dos proletários ao final do século XIX.
Os distributistas consideravam que a raiz dos problemas sociais modernos estava
no fato da propriedade dos meios de produção estar concentrada nas mãos de poucos
capitalistas. Para eles, a dita concentração era a causa da redução da grande massa de
homens a uma vida de servidão assalariada. A partir deste diagnóstico, os distributistas
propuseram como solução aos problemas causados pelo capitalismo um modelo
econômico fundamentado na descentralização e na maior distribuição da propriedade dos
meios de produção. O socialismo também foi rejeitado pelos distributistas, à medida que
foi igualmente apontado como um ideal concentrador de propriedade, com a especificidade
de centralizá-la nas mãos da elite estatal.28
A adesão de Belloc ao Distributismo pode auxiliar na compreensão de sua opção
por uma postura determinista. Belloc era um católico ativo e militante, que viveu em uma
sociedade protestante. As questões de matriz religiosa afetaram diretamente sua vida.
Diante disso, Belloc assumiu uma posição reativa e combativa, de forma que suas obras
25 Ibidem., p. 114.
26 Ibidem., pp. 197-236.
27 Ibidem., pp. 237, 261.
28 SILVA, Alessandro Garcia da. O pensamento econômico de Alceu Amoroso Lima na década de 1930. (Dissertação
Conclusão
29 Nas traduções para o português, o livro The Outline of History, de W. G. Wells, recebeu como título A
História Universal.
30 PEARCE, Joseph. El viejo... Op. Cit., pp. 265-267.
nosso objetivo foi fornecer ferramentas para que outros pesquisadores possam identifica-lo
e descrevê-lo.
Referências
Resumo
1Doutoranda em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (PPGH-UFF), e-mail: sabina.costa.freitas@gmail.com.
2No artigo citado, o autor realiza um breve resumo sobre a questão da renovação da História Política citando
alguns expoentes intelectuais que contribuíram para tanto. JULIARD, J. A política. In: LE FGOFF, J.
NORA, P. História: Novas Abordagens. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
poder-se-ia dizer relevantes, dos textos políticos. As contribuições do autor inglês são
particularmente valiosas para a história intelectual e a história do pensamento político3.
Reconhecer a importância historiográfica de Skinner para o estudo de temas
políticos pode soar redundante, mas acredito que as discussões a respeito das valiosas
contribuições do autor não estão esgotadas e me proponho a retomar determinados
aspectos de suas propostas de abordagem para os temas políticos, cotejando-as com as
perspectivas de Jacques Le Goff para o estudo do político na Idade Média. Assim como
Skinner, o historiador francês teceu valiosas contribuições para a renovação da história
política, especialmente para o estudo da política no medievo. Parece interessante pensar as
especificidades do estudo do político na Idade Média conjugando as propostas de Le Goff
à algumas noções e conceitos trabalhados por Skinner.
Para Skinner, ao debruçar-se sobre textos e autores políticos clássicos ou antigos,
o historiador do político deve, incialmente, abandonar a ideia de que o texto político 4 é um
cânone, realizando uma investigação mais abrangente das linguagens políticas presentes no
texto e relacionando-as com a sociedade5. Em seguida, para explicar e interpretar aquele
texto deve, também, identificar o contexto de sua produção.
Por contexto, pode-se entender tanto o conjunto das questões políticas, sociais,
culturais e econômicas de sua produção quanto as ideias e argumentos em evidência na
época de produção da obra e com os quais seu autor dialoga, seja afirmando ou
contestando. É preciso, portanto, conhecer o pensamento político, as ideias e princípios
políticos que ensejam a produção da obra selecionada, isto é, o contexto intelectual da
produção dos principais textos6.
Esse procedimento que relaciona texto e contexto, essa “interpretação
contextualista”, para usar uma expressão do autor, é uma análise do passado com base,
principalmente, na linguagem e na cultura. Por um lado, a explicação do pensamento
político depende do estudo das ideias e princípios políticos. Por outro, estudar o cenário da
produção de uma obra, pode revelar-se um meio de alcançar uma visão interna mais ampla
do que seu autor queria dizer. Em outras palavras, não se trata de estudar o texto pelo
3 LOPES, M. A. A história do pensamento político: dos Grands Doctrinaires à história social das ideias. São Paulo,
Tempo Social, Revistas de Sociologia da USP, 14 (2), outubro de 2002. p. 113-127
4 Uso de modo generalizado a expressão “ texto político” referindo-me ao seu conteúdo, mas as propostas de
1999.
6 SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
texto, mas de buscar o seu sentido original: aquele que o próprio autor havia concebido na
época em que escreveu7.
Nesse sentido, deve o estudioso do político realizar não apenas a leitura e releitura
de um texto, esmiuçando seu conteúdo e argumentos, mas buscar o sentido autoral da obra
em questão. Estudar o contexto de determinada obra não deve ser feito de modo apartado
da análise do texto em si. Ao contrário, na análise do texto deve estar incluída a sua
interpretação8.
Segundo Skinner, a grande contribuição dos estudos dessa natureza ocorre
quando o historiador se dedica a recuperar as intenções de um autor, analisando o contexto
histórico de produção de suas obras, considerando os eventos e debates travados a respeito
de questões políticas formuladas em seu próprio tempo, não só por ele mas também, por
outros personagens e agentes políticos.
Assim, além de identificar os acontecimentos políticos, econômicos e sociais
vigentes na época de redação da obra estudada, convém analisar o contexto da circulação e
atuação do autor e do texto selecionados, identificando sempre que possível os pormenores
dessa circulação, ou seja, procurar responder como sua atuação explicita sua filiação e os
argumentos presentes em suas obras9. Isto é explicar sobre o quê, para quê e para quem
aquele autor escreveu!
Ao relacionar as vinculações ideológicas e a conduta desse autor, que é um agente
político, explica Skinner, é possível identificar as referências a quaisquer princípios que ele
teria professado. A realização dessa análise, quando os temas políticos são estudados do
ponto de vista das ideias e ideologias, tem-se como resultado uma compreensão mais clara
entre a teoria e a prática política. Mais do que focar no texto, o historiador do político deve
concentrar-se no lugar ocupado por esses textos em tradições e quadros mais amplos de
pensamento, “a matriz mais ampla, social e intelectual de que nasceram suas obras”10.
Assim, ao reconstituir o sentido histórico das ideias, o historiador pode ter acesso ao que
os pensadores políticos pretenderam dizer com seus textos.
7LOPES, M. A. Aspectos teóricos do pensamento histórico de Quentin Skinner. Krireron, Belo Hosrizonte,
n.123, jun/2011, pp.177-195
8 VOGT, D. R. A linguagem como intervenção política: uma análise sobre a contribuição de Quentin Skinner.
1999.
10 SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
11 É conhecida a influência das teorias de John Pocock nos estudos de Quentin Skinner. O próprio autor faz
referência as contribuições de Pocock tanto para a nova história política quanto para os seus estudos em
particular. Cf. SKINNER, Q. A liberdade e o historiador. In: Liberdade antes do liberalismo. Franca: Editora da
UNESP, 1999.
12 Sobre a teoria de análise da linguagem nos textos políticos elaborada por Pocock cf. POCOCK, J. G. A. O
conceito de linguagem e o métier d’historien: algumas considerações sobre a prática. In: Linguagem o ideário
político. São Paulo: EDUSP, 2003. p.63-82
13POCOCK, J. G. A. O conceito de linguagem e o métier d’historien: algumas considerações sobre a prática.
14 LOPES, M. A. Aspectos teóricos do pensamento histórico de Quentin Skinner. Krireron, Belo Horizonte, n.123,
jun/2011, p. 191.
15 LOPES, M. A. Aspectos teóricos do pensamento histórico de Quentin Skinner. Krireron, Belo Horizonte, n.123,
jun/2011, p. 193.
16 LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 356.
17 Cf. DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa, Editorial Estampa, 1994.
18Segundo Kantarowicz, os reis medievais, assim como Cristo, possuíam dois corpos: um corpo físico, mortal
e um corpo político, místico e imortal, associado ao reino, à sociedade, à cidade medieval. Cf.
KANTAROWICZ, E. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
19 LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp.11-33.
20Cf. BARROS, J. D’Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Barros. Rio de
2012, p. 59
26 LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 16.
Bibliografia
LOPES, M. A. A história do pensamento politico: dos Grands Doctrinaires à história social das ideias.
São Paulo, Tempo Social, Revistas de Sociologia da USP, 14 (2), outubro de 2002. p. 113-
127
LOPES, M. A. Aspectos teóricos do pensamento histórico de Quentin Skinner. Krireron,
Belo Hosrizonte, n.123, jun/2011, pp.177-195.
LYON, H. Dicionário de Idade Média.
POCOCK, J. G. A. O conceito de linguagem e o métier d’historien: algumas considerações
sobre a prática. In: Linguagem o ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003. p.63-82.
SKINNER, Q. A liberdade e o historiador. In: Liberdade antes do liberalismo. Franca: Editora
da UNESP, 1999.
SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
SOARES, N. de N. C. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório. Coimbra,
INIC, 1994.
VOGT, D. R. A linguagem como intervenção política: uma análise sobre a contribuição de
Quentin Skinner. Rio Grande do Sul, AEDOS, num 7, vol. 3, fevereiro de 2011, pp.84-96.
Resumo
Ainda que seja possível notar mudanças substantivas nos últimos anos, de maneira geral
ainda é incipiente o campo de investigações acadêmicas acerca da história de mulheres,
tanto nas pesquisas sobre historiografia quanto naquelas associadas ao ensino da história.
Embora os movimentos sociais e debates públicos contemporâneos apontem para a
centralidade das mulheres na cena política moderna, este movimento ainda não tem o
mesmo alcance na historiografia. Quando pensamos em livro didático e colocamos ele
como um lugar de fronteira entre a historiografia acadêmica e o ensino de história,
precisamos refletir como as mulheres e quais mulheres estão sendo representadas. E por
isso o presente trabalho tem como objetivo analisar os livros didáticos de história
aprovados pelo PNLD de 2017.
Introdução
Ainda que seja possível notar mudanças substantivas nos últimos anos, de maneira
geral ainda é incipiente o campo de investigações acadêmicas acerca da história de
mulheres, tanto nas pesquisas sobre historiografia quanto naquelas associadas ao ensino da
história. Embora os movimentos sociais e debates públicos contemporâneos apontem para
a centralidade das mulheres na cena política moderna, este movimento ainda não tem o
mesmo alcance na historiografia, quando pensamos no papel das mulheres nas formações
sociais ao longo do tempo.
A mulher entra em cena com protagonismo na história a partir do desenvolvimento das
análises em história social, quando se começa a pensar os acontecimentos do cotidiano. E o
aparecimento das mulheres no livro didático não é diferente: sabemos que a partir do século
XIX, com a formação das nações na América Latina, alguns dos instrumentos mais utilizados
para a consolidação da nação foram a escola e o livro didático. Um material voltado à formação
do mito das origens, utilizado para a construção das histórias nacionais, partindo de um modelo
que reforça a diferenciação social entre homens e mulheres, colocando um papel separado para
cada um e a mulher como submissa e inferior – refletindo, neste sentido, a própria
diferenciação imposta entre homens e mulheres na sociedade.
As mulheres começam a aparecer na historiografia a partir dos movimentos
feministas da década de 1960, em suas demandas por melhores condições profissionais e
igualdade salarial, como aponta a historiadora Joan Scott (1992), reivindicando a história das
heroínas. A autora aponta que como resposta às ativistas as historiadoras produziram uma
conexão entre política e intelectualidade, mas a partir da década de 70, as historiadoras se
afastam do viés político e começam a pensar a Historiografia das mulheres a partir dos
aspectos sociais, produzindo assim um conjunto de artigos e monografias. E já no início da
década de 80 a questão do gênero começa a aparecer como objeto de estudo e ganha espaço
dentro das universidades, como uma categoria que questiona a naturalização do homem
como o sujeito universal No cerne da argumentação de Scott está a apresentação de uma
“incômoda ambiguidade” inerente ao projeto de história das mulheres, isto é, “ela é, ao
mesmo tempo, um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento radical
dessa história” (SCOTT, J.: 1992, 75), ou seja, pode servir como mero complemento da
história tradicional ou potencializar uma mudança na perspectiva do olhar sobre a história.
No Brasil algumas mulheres também foram protagonistas nas escritas acerca das
mulheres e suas histórias, como a escritora Lélia Gonzalez que já na década de 1980
apresentava as questões feministas com um recorte social e racial, de forma brilhante ela
toca em assuntos primordiais para entendermos a realidade da mulher brasileira,
apresentando inclusive a questão da mulata do carnaval carioca Ao refletir sobre a
abordagem de Lélia fica exposto de forma clara que não existe um conceito mulher de
forma singular, são várias mulheres que formam esse grupo heterogêneo.
O lugar em que nos situamos determinar nossa interpretação sobre o
duplo fenômeno do racismo e o sexismo. Para nós, o racismo se
constituiu como sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira.
Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz
efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. (GONZÁLES, A:
2019, 238)
sistemas de valor associados à cultura. Também foi um período em que o país viveu sob o
comando de uma Ditadura Militar, onde as disciplinas de história e geografia muitas vezes
foram substituídas por “estudos sociais”, “educação moral e cívica” e “Organização política
social do Brasil”. Segundo Ana Maria Monteiro (2009), os livros didáticos de história
seguiam o modelo conservador correspondente ao tipo de sociedade projetada pelos
militares, que preservava uma história geral única., e do homem como o principal ator
histórico. Mas a partir da democratização no país uma nova safra de livros didáticos foi
produzida, com uma versão diferente da história, mais ligada ao marxismo.
Cristiani Bereta da Silva (2007) destaca que o livro didático precisa se adaptar às
demandas sociais, inclusive por ser um bem cultural de alto consumo. Segundo a autora, a
partir da década de 1980, temas relacionados às identidades como a de gênero, como a
questão indígena e a dos negros, estavam aparecendo e ganhando bastante espaço.
Principalmente por conta do crescimento desses debates no meio acadêmico, além do fato
de que foi o momento de debate sobre Parâmetros Curriculares Nacionais para os níveis
Fundamental e Médio e o Programa Nacional do Livro Didático.
De modo geral, os livros didáticos utilizados nas escolas trazem
apropriações persistentes de imagens que informam um “mundo” ainda
bastante masculino, de raça branca, adulto, cristão, O saber histórico
escolar sobre as mulheres e relações de gênero nos livros didáticos de
história heterossexual; de grupos que vivem em cidades, sujeitos que
estão trabalhando, que são magros, sadios, entre outros padrões
hegemônicos.(SILVA, C.:2007, 229)
problema abordado por Cristiani Bereta da Silva (2007) é que a questão só foi incorporada
por meio de textos complementares e imagens, sem mudar a estrutura eurocêntrica e
patriarcal do livro didático, ou seja, não são realmente apresentados os sujeitos de forma
plural.
Atualmente, o livro didático ocupa um papel central no ensino de história na escola.
Em função do contexto de precarização do trabalho do professor, com rotina extensa de
aulas e turmas superlotadas, muitos professores e professoras montam suas aulas
exclusivamente a partir de livros didáticos, elevando ainda mais sua centralidade. Além
disso, mesmo antes da Base Nacional Comum Curricular ser aprovada, os livros didáticos
serviam como organizadores de conteúdos curriculares, servindo também como base para
provas e exames de avaliação externos realizados pelo governo. Quando o sistema
educacional brasileiro é colocado em questão, notamos o papel fundamental exercido pelo
livro didático enquanto ferramenta didática, utilizado por quase todas as escolas – em
muitos lugares do Brasil é o único recurso disponível para os professores(as) – pois mesmo
com o avanço no mundo digital, não abarca toda a comunidade escolar. Sendo assim, sob
a mediação do(a) professor (a), o livro didático tem potencial para impulsionar a reflexão e
a autonomia dos alunos, ajudando assim na construção da formação cidadã, pois é
concentrado nele o papel de representação do mundo.
Entendemos que o(a) professor(a) não é inteiramente subordinado aos
conhecimentos contidos no livro, ou seja, a utilização do livro didático amplia as
possibilidades de autoria do professor (MATTOS, I.: 2006), na forma como são pensados
conteúdos e metodologias para a aula. O livro implica na exposição de um determinado
saber histórico, mas não é o único saber abordado em sala de aula. Pois os saberes
escolares são construídos em diversas frentes (MONTEIRO, A.: 2007), dentre as quais o
uso do livro didático, entendido aqui como uma ferramenta pedagógica fundamental à
disposição do(a) professor(a), levando em conta o contexto cultural em que o livro está
inserido e sua transposição para a sala de aula.
Tendo em vista estes pressupostos, a pesquisa assume o desafio de analisar o livro
didático de história em sua condição historiográfica e de fronteira entre a historiografia
acadêmica e a escolar, levando em conta, ainda, os aspectos destacados por Ana Maria
Monteiro: “Instrumento pedagógico, referência sobre conteúdos selecionados, objeto
cultural, documento histórico, mercadoria, o livro didático é certamente um objeto de
grande complexidade” (MONTEIRO, A: 2009, 198), possibilitando a produção de
E uma das principais propostas do movimento é a censura aos livros didáticos. Seus
idealizadores apontam que o livro é um instrumento de doutrinação ideológica, devendo
permanecer “neutros”. Mas sabemos que um livro didático nunca será neutro, pois ele é
resultado da relação do sujeito histórico com a cultura e seu tempo. Quando o MESP fala
em conhecimento neutro, na verdade, ele propõe um conhecimento conservador, onde só
o lado tradicional é abordado, tirando da escola o seu papel de formação humana e
atingindo frontalmente, deste modo, as perspectivas da história de gênero.
É em meio a este contexto que a pesquisa tem o objetivo de analisar como e quais
são as mulheres representadas nos livros didáticos de história adotados pela rede pública
estadual do Rio de Janeiro, e as estratégias pedagógicas utilizadas por professores (as) para
o tratamento das questões de gênero. Visto que a escola faz parte da construção cultural e
política dos estudantes, falar sobre gênero é fundamental, pois a mesma é formada por
homens e mulheres.
Maria da Glória de Oliveira (2018) propõe a reflexão acerca da invisibilidade das
produções de autoria feminina na história intelectual, e conclui que tais produções não são
um tema frequente na história da historiografia, e que o tema gênero não é usado para a
análise histórica. Podemos entender o livro didático como uma modalidade da
historiografia escolar, entender como temas acerca das mulheres são refletidos, examinando
justamente se a mulher foi reproduzida nos livros didáticos apenas de uma forma
estereotipada, como a dona do lar, a boa mãe e esposa, ou seja, se a mulher é vista como
“sexo frágil”; ou se a mulher sendo representada qualitativamente enquanto sujeito e
protagonista em processos históricos. Pois o livro didático é o material que estará presente
na vida do estudante durante todo o ano letivo, e esse material que faz parte da construção
do aluno ou aluna, levando em conta o papel da escola na formação cidadã.
O livro didático como produção historiográfica que relaciona dimensões
acadêmicas – em seu esforço por contínua atualização antes as novidades nas pesquisas
universitárias – e escolares, tendo em vista o público para o qual o livro se dirige, isto é,
professores(as) e estudantes da escola básica em seus objetivos específicos.
Compreenderemos a análise dos livros didáticos como tema de fronteira entre o
conhecimento histórico produzido na universidade e na escola, algo que vem ganhando
bastante destaque em pesquisas acadêmicas recentes associadas tanto à História da
Historiografia quanto às pesquisas sobre o Ensino da História2. Uma questão que nos
remete aos vínculos entre a produção do conhecimento histórico na escola e na
universidade, envolvendo os diversos vetores desta conexão, nos termos de Luis Reznik, “a
formação de professores, o mercado editorial, política pública para a produção e
distribuição de livros didáticos, política de extensão universitária, além dos caminhos da
historiografia contemporânea, entre outros.” (REZNIK, L.: 2009, 411).
A pesquisa tem em sua base pensar a discussão de gênero nos livros didáticos,
buscando o como , qual e de qual forma a mulher é representada, para isso é preciso
debater primordialmente sobre a elaboração dos livros. De acordo com Ana Maria
Monteiro (2009), o autor de livro didático não é neutro, ele pertence a um universo cultural
que influencia diretamente em sua escrita. Seus posicionamentos políticos, ideológicos e
pedagógicos são implicados no momento da escrita do livro. Ana Monteiro também
evidencia que um bom livro didático nas mãos de professores evita erros de ensino e
possibilita a introdução de atualização de conteúdos e a implementação de ensino e
aprendizagem criativos, afinados com o que tem de novo nas pesquisas acadêmicas.
Ana Monteiro também trabalha com as visões de Chopin sobre as quatro funções
dos livros didáticos. A primeira ligada à função referencial, a segunda é a instrumental, a
terceira documental e a quarta, que é a que mais interessa ser pensada pela pesquisa , é a
função ideológico-cultural (MONTEIRO, A.: 2009, 187). Pois é ela que é responsável por
pensar os valores inseridos no livro didático, visto como um instrumento de identidade
coletiva. Por isso a necessidade de que eles contenham os discursos de gênero de uma
forma mais profunda, não tratando superficialmente ou então só utilizando a palavra
mulher para tratá-la como inferior.
Helenice Rocha, Marcelo Magalhães e Rebeca Gontijo (2009), autores do texto “A
Aula como texto: Historiografia e ensino de história” defendem um pressuposto teórico
metodológico importante para a pesquisa no sentido de pensar sobre os objetivos do
2Podemos usar como exemplo, neste sentido, os livros de ROCHA, H ; MAGALHÃES, M; GONTIJO R .
A escrita da história escola: memória e historiografia- Rio de Janeiro. Editora FGV, 2009 p.13-31 e ROCHA,H;
REZNIK,L; MAGALHÃES,M; A História na Escola. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2009
Bibliografia:
MIGUEL, Luis Felipe. “Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero" -Escola Sem
Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro”. Direito & Práxis. Rio de Janeiro,
Vol. 07, N. 15, 2016, p. 590-621.
MONTEIRO, Ana Maria, “Professores e Livros didáticos: narrativas e leituras do ensino
de história” in ROCHA, H; REZNIK, L; MAGALHÃES, M; A História na Escola. Rio de
Janeiro. Editora FGV, 2009. P.177-199.
OLIVEIRA, Maria da Glória. “Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à
história da historiografia”, História da Historiografia, v. 11, n. 28, set-dez, ano 2018, p. 104-
140
REZNIK, Luís. “História da Historiografia: a era Vargas”. In: ROCHA, Helenice;
MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO. A escrita da história escola: memória e historiografia-
Rio de Janeiro. Editora FGV, 2009 p.13-31
ROCHA, Helenice ; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO Rebeca “Aula como texto
históriofráfico e ensino de história”. In: A escrita da história escola: memória e historiografia-
Rio de Janeiro. Editora FGV, 2009 p.13-31
SCOTT, Joan, “História das Mulheres”. In: BURKE, Peter, Escrita a historia: Novas
Perspectivas / tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista 1992. P.63-96.
SILVA, Cristiani Bereta . “O saber histórico escolar sobre as mulheres: O saber histórico
escolar sobre as mulheres e relações de gênero e relações de gênero nos livros didáticos de
história”. Caderno Espaço Feminino, v. 17, n. 01, Jan./Jul. 2007
Resumo
1Doutora em História pela UFF. Atua como professora na UERJ e no CAp UERJ. Email:
giselle.histoire@gmail.com
2Doutora em História pela UERJ. Atua como professora na UERJ, no CAp UERJ, na UNIRIO (EAD) e no
Educ. vol.28 no.108, Rio de Janeiro, Jul./Sept. 2020, Epub July 06, 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40362020000300545. Acesso em: 15 de
outubro de 2020.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
histórica4 e pela análise das narrativas em vídeo de alunos das redes pública e privada da
educação básica do Rio de Janeiro, intenta-se refletir sobre os sentidos práticos da história,
por meio de experiências sociais distintas dos discentes.
Diante das notícias de confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil em
26 de fevereiro de 2020 pelo Ministério da Saúde em São Paulo, a imprensa começou a
discutir de forma mais direta as possibilidades dos riscos da proliferação da doença no país,
fato acompanhado de medidas preventivas por parte dos executivos estaduais. No Rio de
Janeiro, o então governador do estado Wilson Witzel, no dia 16 de março admitiu a
situação de emergência da saúde pública estadual, adotando medidas para o enfrentamento
da propagação da doença, a partir do Decreto nº 46.973 e, quatro dias depois, por meio do
Decreto nº 46.984, reconheceu o estado de calamidade pública no Rio de Janeiro em
decorrência do Covid-19.5
No campo da Educação, houve a suspensão das aulas a partir do dia 16 de março,
inicialmente por 15 dias, seguida pela recomendação do uso de plataformas digitais, para o
ensino remoto. Enquanto a Secretaria de Educação anunciava a parceria com a Google
para o uso do Google Classroom, sua plataforma de estudos, fora facultada liberdade às
escolas privadas quanto ao uso de plataformas diferenciadas.6
Esta solução, todavia, encontrou consideráveis percalços. Boa parte dos alunos,
assim como um número significativo de professores, não possuíam equipamentos
(computadores, tablets ou celulares) adequados, tampouco formas de conexões à internet
necessárias, o que se traduziu na dificuldade de acesso às plataformas digitais. Por outro
lado, o ensino remoto era uma realidade, com as suas devidas especificidades, distante do
quotidiano dos alunos e da maioria dos professores, fato constatado em pesquisa de Dias e
Pinto
(...) e um número considerável alto de professores precisou aprender a
utilizar as plataformas digitais, inserir atividades online, avaliar os
estudantes a distância e produzir e inserir nas plataformas material que
ajude o aluno a entender os conteúdos, além das usuais aulas gravadas e
online. Na pandemia, grande parte das escolas e das universidades estão
fazendo o possível para garantir o uso das ferramentas digitais, mas sem
4 Cf: RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da
historiografia, Ouro Preto, n. 2, p. 163-209, mar. 2009.
5 SANTOS JUNIOR, Irapoan Bertholdo dos. Percepção de alunos e professores da Seeduc/RJ sobre o
ensino on-line de caráter emergencial durante a pandemia. Educação Pùblica, agosto de 2020. Disponível em:
<https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/30/percepcao-de-alunos-e-professores-da-seeducrj-
sobre-o-ensino-ion-linei-de-carater-emergencial-durante-a-pandemia>. Acesso em 19 de outubro de 2020.
6 Ibidem.
tendo como bolsistas de Iniciação Científica os alunos da graduação em História da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro Erick Magalhaes, Vitória Wandermurem Borges da Silva e Adriele Conceição da Silva,
além do bolsista de Iniciação Científica Júnior Guiliano Beringh, este último entre 2018 e 2019.
10 RÜSEN, Jörn. Op. Cit.
11 LIMA, Maria. Consciência histórica e educação histórica: diferentes noções, muitos caminhos. In:
MAGALHÃES, Marcelo et al. Ensino de história: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2014. p. 58.
12 RÜSEN apud LIMA, Maria. Idem, p. 61-62.
13 ALMEIDA, M. E. B., & VALENTE, J. A. Integração currículo e tecnologias e a produção de narrativas
Com base nos relatos interpretados, constatamos que a maioria dos alunos
evidenciou sentir falta do ambiente escolar, resposta que apareceu em vinte e quatro das
vinte e cinco narrativas. No tocante às justificativas para a ausência da escola no cotidiano
dos discentes, houve uma diversidade de explicações, prevalecendo, no entanto, a
compreensão deste local como um espaço de subjetivação, onde são travadas relações
sociais e trocas afetivas, bem como do diálogo e da diversidade e, por fim, do aprendizado.
Alguns dos entrevistados indicaram a preferência do pelo ensino presencial em
detrimento das aulas remotas, pela dinâmica das aulas, consideradas “mais produtivas”,
conforme destacou o aluno A. Concomitantemente, “a falta da presença do professor”, foi
também considerada um dos motivos primordiais para que o jovem B, concluísse que
“consegue aprender melhor”, por meio da atuação de um educador. Já outros estudantes
apontaram para a mudança de hábitos provocada pela pandemia, tendo em vista o impacto
na rotina “de acordar cedo, de tomar banho, tomar café e outras coisas” que se faz
“quando vai para a escola”, como destacou C.
A ausência de interação entre os “amigos de turma” repercutiu na fala de dezessete
indivíduos, argumento que reforçou a dimensão afetiva que o colégio desempenha no
cotidiano do alunado, como ressaltou D:
A escola faz bastante falta pra mim, porque eu acho que as relações e
a dinâmica dentro da sala de aula são completamente diferentes do
Ensino a Distância, inclusive é o que eu mais valorizo na escola, é o
que eu mais sinto falta são as pessoas, relações sociais, ter uma rotina,
conviver com os outros, conviver na diferença, trocar experiência,
isso é o que há de mais valioso, e, é o que eu mais sinto falta.
gripe espanhola é um dos maiores exemplos daquilo que a História contribuiu ao longo
desses anos.”
Alunos que vivenciaram aulas remotas destacaram que o tema da pandemia vem
sendo abordado de maneira direta, por meio de atividades escolares, que visam despertar o
senso crítico dos jovens. Neste sentido, o estudante G nos assegurou estar “aprendendo
muito” com o trabalho proposto por sua professora de história, o qual tem “que escrever
um pouco do que está acontecendo na minha quarentena”, o que o leva a refletir sobre o
assunto, além das “muitas matérias” que tem aprendido com a disciplina, e que “estão
ajudando muito para passar essa fase chata.” Outros dois estudantes, porém, reconheceram
a importância da história para compreender o cenário político da atualidade, que vem
sendo desgastado com a falta de medidas mais eficazes no combate à doença.
Ainda em relação aos usos práticos da história, constatamos, por meio de quatro
vídeos, falas que vão na direção da maneira pela qual concebem a disciplina e a relação dos
indivíduos com o tempo. O aluno H, considerou que “o que estudou em história na escola
o ajuda a pensar o momento atual, porque estamos fazendo a história no momento em que
vivemos.” De acordo com o estudante I, “aprendendo o que aconteceu no passado,
consegue-se entender o presente, e através dos erros do passado, consegue aprender essas
coisas para não cometer eles mais”, opinião que se aproximou da máxima ciceroniana
historia magistra vitae. Na busca pela definição de história, o jovem J destacou que a matéria
(...) ajuda a compreender o que está se passando no mundo hoje e este é um
propósito da história. Olhar para o passado e, a partir dele, refletir sobre
algumas situações que acontecem hoje em dia. A gente se deparar com uma
situação e a partir do conhecimento histórico, do nosso senso crítico, perceber
que remete a um período da história, seja algum período ruim ou bom, e
analisar ele: se foi ruim ou bom. Se foi ruim, impedir que ele aconteça, tentar
fazer diferente, esse é um dos propósitos da história.
enfrentamento da pandemia, já que “o que aprendeu no ano passado, não está ajudando a
entender o que estamos aprendendo agora”, apontou a estudante M.
No que diz respeito às possibilidades de aprendizagem em história fora do âmbito
escolar, contabilizamos que vinte e dois alunos afirmaram positivamente a esta pergunta, de
modo que em sete narrativas destacaram a importância da internet nesse processo, pela
facilidade e rapidez na obtenção de informações. Através das ferramentas disponibilizadas
na web, os estudantes têm recorrido a notícias e reportagens em sites especializados, como
também em “redes sociais”, conforme salientou a aluna N. As respostas, de uma forma
geral, corroboram as reflexões de Flávia Caimi15 no que diz respeito à educação e a um
traço essencial da sociedade atual: sua vinculação à cultura digital. Essa relação, segundo a
autora, se coloca de forma constante e diversa, requerendo, assim, outras formas de
aprendizado, distintas das que tradicionalmente conhecemos. Há que se considerar a
atualidade deste debate, sobretudo em meio ao direcionamento das aulas e das atividades
remotas, e o quanto essas experiências enraizaram-se nos últimos meses.
Outros meios de comunicação, como os jornais de grande circulação e a televisão
foram igualmente considerados eficazes na configuração de um conhecimento histórico
propriamente dito. Séries, filmes, documentários e novelas têm desempenhado um papel
fundamental na divulgação da cultura histórica, justificativa que se repetiu em oito relatos.
O aluno O, por sua vez, considerou que essas instâncias sociais “demonstram o passado”
de uma maneira cuidadosa, “seguindo bastante à risca”. A visitação a lugares de memória,
como museus, e demais passeios educativos, foram apontados por três alunos, como locais
que fornecem importantes interpretações do passado. Nessa mesma direção, outros dois
estudantes disseram aprender história no espaço público, ao transitarem pelas ruas, através
da arquitetura e, até mesmo, na relação afetiva com a cidade onde vivem.
A compreensão da disciplina por meio de livros científicos e demais “textos e
histórias” estiveram presentes em apenas três narrativas, indicando que os discentes têm
buscado alternativas análogas para obtenção deste tipo de conhecimento. Apenas um
aluno, porém, afirmou aprender história por meio de relatos orais, especialmente “sobre
como é que eram as doenças no passado, e sobre as pandemias que já aconteceram há
tempos atrás, como, por exemplo, tuberculose”, conforme revelado por E, que
15 CAIMI, Flávia Eloisa. Geração Homo Zappiens na escola: Os novos suportes de informação e a
aprendizagem histórica. In: MAGALHÃES, Marcelo; ROCHA, Helenice; RIBEIRO, Jayme (orgs.). Ensino de
História: usos do passado, Memória e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
Bibliografia
Resumo
O que se pretende nas linhas a seguir é apresentar duas obras que julgo serem muito
importantes e atuais, pela argúcia com que analisam o Tempo Presente: A do historiador
britânico Tony Judt e a do filósofo francês Grégoire Chamayou. Neste caso tentarei
enquadrar o problema dos impactos das novas tecnologias informacionais, em particular o
“objeto violento não identificado” supracitado com o silêncio dos intelectuais sobre a
Guerra ao Terror. Meu ponto de partida será a percepção de alguns estudantes de
graduação em Comunicação Social, na universidade onde leciono. Numa incursão
experimental nos campos da História Digital e da História Pública, tomei como evidências
empíricas os comentários publicados por estxs alunxs na página Moodle (Ambiente Virtual
de Aprendizagem - AVA) da disciplina História do Mundo Contemporâneo.
Pps. 9-283.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
O texto a seguir, que inaugura o terceiro tópico, foi publicado no dia seguinte à
execução do menino João Pedro pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ):
Logo na introdução do seu texto, Chamayou chama atenção para o fato
de que “Esses aparelhos são enviados a zonas de conflito armado, como o
Afeganistão, mas também a países oficialmente em paz, como a Somália, o Iêmen e
sobretudo o Paquistão, onde os drones da CIA conduzem em média um ataque a
cada quatro dias.[9] É muito difícil determinar as cifras exatas, mas, para esse único
país, estimam-se de 2.640 a 3.474 mortos entre 2004 e 2012.[10]”. [Isso] dá
conta de como ações sistemáticas podem estar vitimando uma população
indefesa.
Minha provocação de hoje é sobre o papel da imprensa na cobertura do
assassinato do menino João Pedro, que teria sido um tanto quanto
"eufemística" na manhã de ontem, ao noticiar o caso. Segue o link
(atenção ao primeiro parágrafo): https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2020/05/19/morte-do-menino-joao-pedro-durante-
acao-policial-causa-comocao-na-web.ghtml
Será que, quando a mídia adota uma postura mais preservacionista em
relação às forças de segurança, ela não estaria reforçando a hierarquia de
quais vidas importam?6
Em 12 de janeiro de 2011, Barack Obama fez um discurso que foi muito bem
recebido, tanto por seus correligionários quanto por seus opositores. Um pronunciamento
calculado, porém contundente, combinado com palavras bem colhidas, que resultaram
numa oratória magistral, capaz de apaziguar os ânimos exaltados pelo clima de polarização
política. As palavras de Obama receberam elogios em toda parte, mas irei me deter apenas
a dois fragmentos dela, que citarei a seguir. Há o risco de que, se descontextualizadas, tais
palavras acabem sendo mal interpretadas. Se isso ocorrer, assumo a responsabilidade pelos
equívocos. Cito:
(...) Esses homens e mulheres não se lembram que o heroísmo não está
apenas nos campos de batalha. Eles nos lembram que o heroísmo não
requer força física nem treinamento especial. O heroísmo está aqui, no
coração de tantos de nossos concidadãos a nossa volta, só esperando
para ser convocado como foi no sábado de manhã... . (...)
Então, a perda repentina nos faz olhar para trás, mas também nos
força a olhar para frente, a refletir sobre o presente e o futuro, sobre
a maneira como vivemos nossa vida e alimentamos nossa relação
com aqueles que ainda estão conosco.7
6 AUGUSTO, L. C. “Islamabad-Rio Datta Khel-São Gonçalo... O Paquistão pode ser aqui?” - quarta, 20 Mai
2020, 14:01 Cf. Anexo III
7 OBAMA, Barack. “O heroísmo está aqui, no coração de tantos de nossos concidadãos” (12 de janeiro de
2011). In: BURNET, Andrew. (org.) 50 discursos que marcaram o mundo moderno. Tradução Janaína
Marcoantonio. 1ª. Edição. Porto Alegre, RS: L&PM Editora, 2017. Respectivamente páginas 278, 279 e 280.
Os destaques foram acrescidos.
8 O evento se chamava “Congress on your corner” e de acordo com as palavras do Presidente as pessoas que
foram ali atingidas “estavam colocando em prática um princípio fundamental da democracia concebido pelos
nossos fundadores: representantes do povo respondendo a perguntas de seus eleitores, para então levar suas
preocupações à capital do nosso país.” Idem. P. 276.
Cristina Taylor-Green. Evidências sugerem que o alvo era a deputada democrata, que levou
um tiro na cabeça, à queima roupa, mas sobreviveu. Para se dedicar à recuperação, ela
inclusive renunciou ao mandato. A motivação de Loughner nunca ficou clara,
posteriormente, ele foi diagnosticado com esquizofrenia.
Ao propor sua Teoria do Drone, o francês Grégoire Chamayou situa esse veículo em
um trabalho de investigação filosófica9e destaca a crise a inteligibilidade que se verifica a
partir de sua crescente utilização. Subversivo e irreverente, o filósofo busca sempre escorar
a radicalidade de sua obra em uma base empírica, precisa e documentada. Acredito que sua
pesquisa guarda uma estreita afinidade com o que se convencionou chamar de história do
tempo presente: “Este livro enfoca o caso dos drones voadores armados, aqueles que hoje
servem para conduzir os ataques que a imprensa regularmente noticia, os chamados drones
‘caçadores-matadores’. Sua história é a de um olho convertido em arma.”
Em seguida, Chamayou recupera a elogiosa fala do general da Air Force Teed
Michael Moseley, para apresentar melhor o fenômeno: “Com o Reaper, passamos de um
uso dos UAV centrado originalmente em tarefas de informação, vigilância e
reconhecimento […] para uma verdadeira função ‘caçador-matador’”. Em outros termos, a
mudança consistia na “natureza letal desse novo sistema de armas.” 10 O nome “Reaper”,
cuja tradução para o português seria a palavra “ceifeiro” se adequaria perfeitamente aos
novos fins pretendidos.
De acordo com os levantamentos realizados pelo autor, máquina de guerra
estadunidense tem acusado o golpe da dronização como forte tendência: os índices de
envio de patrulhas de drones cresceu 1.200% entre 2005 e 2011 – coincidentemente, o ano
do discurso de Tucson e que antecedeu a campanha que culminaria na reeleição de Obama.
Nos Estados Unidos, formam-se hoje muito mais operadores de drones
do que pilotos de avião de combate e bombardeiro juntos. Enquanto o
orçamento da Defesa estava em baixa em 2013, com cortes em
numerosos setores, os recursos alocados aos sistemas de armas não
tripuladas tiveram um aumento de 30%11.
9 O projeto seria justificado da seguinte forma pelo autor: Conformo-me aí ao preceito de Canguilhem: “A
filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve
a matéria que lhe for estranha”. CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 22.
Op. Cit. CANGUILHEM, G. Le Normal et le Pathologique. Paris: PUF, 1966, p.7 [ed. bras.: O normal e o
patológico, trad. Maria Thereza Redig de C. Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p.10].
10 CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Idem, p. 19-20. A sigla UAV significa, “unmanned aerial vehicle”. Numa tradução livre para o português
“veículo aéreo não-tripulado”.
11 Idem. P. 22. OP. Cit. John Moe, “Drone Program Grows While Military Shrinks”. Marketplace Tech Report,
27 jan. 2012.
12 Ibidem. P. 22. Op. Cit. Jo Becker & Scott Shane, “Secret ‘Kill List’ Proves a Test of Obama’s Principles
and Will”. The New York Times, 29 maio 2012. O autor sugere também que se veja Steve Coll, “Kill or
Capture”. The New Yorker, 2 ago. 2012.
13 CHAMAYOU P. 22-23.
14 Idem. P. 22. OP. Cit. Medea Benjamin, Drone Warfare: Killing By Remote Control. Nova York: OR Books,
2012.
Mas qual seria esta causa? Assumindo de forma decisiva seu lugar de “intelectual-
público”, conforme nos ensina o historiador luso Rui Bebiano17, Judt criticaria seus
contemporâneos, distinguindo perspicazmente alguns aspectos ideológicos que orientam tal
postura. Seu “Orientalismo” operaria como uma atualização da narrativa dos tempos de
guerra fria. Assim sendo, articulistas como Paul Berman, Peter Beinart, Christopher
Hitchens, entre outros, apostariam numa divisão do mundo em dois e creem na
mistificação do “islamofacismo”. Seduzidos por “uma justaposição que elimine a
complexidade e a confusão exóticas”18, essa intelectualidade liberal mobilizaria de maneira
inflexível conceitos como “Democracia x Totalitarismo, Liberalismo x Fascismo, Eles x
15 JUDT, Tony. “O silêncio dos inocentes: sobre s estranha morte da América liberal”. In: Reflexões sobre
um século esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. p. 426.
16 Idem. P.428.
17 BEBIANO, Rui. Tony Judt: historiador e intelectual público. Lisboa: Edições 70, 2017. Passim.
18 Idem. P. 428
19Idem. P.428.
20OBAMA, Barack. “O heroísmo está aqui, no coração de tantos de nossos concidadãos” (12 de janeiro de
2011). P. 278. Ênfase minha.
fascista”?21 Talvez ainda não seja seguro afirmar. Mas o mesmo discurso possibilita outras
associações, bastante mais consistentes, acerca do uso do drone como uma arma colonial e
a relação dessa escolha tática por parte do governo do EUA com a influência israelense na
performance de sua política externa para o Oriente Médio.
A preocupação de Obama com a preservação das vidas de seus concidadãos se
liga a uma racionalidade prática que prevê a imunidade do combatente imperial, mas
isso não se deve ao heroísmo. Aqui a circularidade de perspectivas em relação ao
Oriente Médio e a intensa troca de expertises militares, entre Israel e os EUA são
aproximadas em zoom.
Em “Is the War on Terror Just?”, Alex J. Bellamy afirmaria que as intervenções
unilaterais dos EUA e demais forças aliadas, no Iraque e Afeganistão, adotavam como
paradigma “atribuir mais valor à vida dos combatentes do que à dos não combatentes.”:
Parece que surgiu um esquema claro em que a proteção dos combatentes
norte-americanos tem prioridade sobre a proteção dos não combatentes
nas zonas de operação […] os não combatentes só serão preservados na
medida em que sua salvaguarda não implique tomar providências que
poderiam pôr as vidas dos soldados em risco.22
Mas a partir de quando esse entendimento se tornou uma doutrina? E por que foi
justamente a partir de conhecimentos israelenses que ela foi cunhada?
Chamayou chama atenção para o fato de que, após a Guerra do Vietnã (1964-
1975) os estadunidenses haviam abandonado seu projeto de drones, que havia sido
posto em prática como uma solução para os problemas táticos causados pelos mísseis
terra-ar soviéticos. “Israel, que havia herdado algumas dessas máquinas, soube perceber
suas vantagens táticas potenciais” 23, chegando inclusive a utilizá-los para distrair as
linhas de defesa aérea egípcia e síria na Guerra do Yom Kippur. Nos anos 80, a
indústria israelense que era incipiente e baseada em adaptações de aeromodelismo e
fotografia aérea, progrediu significativamente. Até que em 1995 a General Atomics
desenvolveu o protótipo do Predator – um avião espião telecomandado, que apesar do
nome ainda não contava com armamento. “No Kosovo, onde foi utilizado em 1999, o
21 Me refiro à obra de STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Tradução Bruno
Alexander. Porto Alegre, RS: L&PM Editora, 2019.
22 Alex J. Bellamy, “Is the War on Terror Just?”. International Relations,v.19, n.3, 2005 [pp.275-96], p.289,
apud Daniel Brunstetter & Megan Braun, “The Implications of Drones on the Just War Tradition”. Ethics &
International Affairs, 25, 2011, pp.337-58. OP. Cit. CHAMAYOU, G.Teoria do drone. P. 146.
23 CHAMAYOU, G.Teoria do drone. P. 36. O projeto seria retomado depois que, em outubro de 1983, - dois
dias depois de um atentado ter destruído instalações dos fuzileiros navais -, o general P. X. Kelley sobrevoou
secretamente a região e, ao desembarcar algumas horas depois em Tel Aviv, , assistiu estupefato as imagens
captadas pelo drone Mastif exibidas pelo Tsahal (israelense).
drone se limitava a filmar e ‘iluminar’ alvos com laser para indicá-los aos ataques dos
aviões F16.”24
Todas essas mudanças técnicas/tecnológicas não estavam desacompanhadas de
uma filosofia política que visava legitimar o “assassinato seletivo” como parte integrante da
guerra preventiva e dos “princípios teóricos da caça ao homem” e que se prestou a essas
operações.
Em 2001, duas declarações poderiam exemplificar o que acaba de ser dito. A
primeira é do Presidente Bush, a outra a do Secretário de Estado Donald Rumsfeld. Antes
mesmo que se completasse dois meses desde o início da guerra, o homem mais poderoso
do mundo à época disse:
O conflito no Afeganistão nos ensinou muito mais sobre o futuro do
nosso exército que uma década de colóquios de alto nível e de
simpósios think tank juntos. O Predator é um ótimo exemplo […] é
claro que o exército ainda não possui quantidade suficiente de
veículos sem piloto”25.
Bibliografia
BEBIANO, Rui. Tony Judt: historiador e intelectual público. Lisboa: Edições 70, 2017.
CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. Tradução: Célia Euvaldo, 1ª. Edição. São Paulo:
Cosac Naify, 2015. Pps. 9-283.
24 Idem. P. 37.
25 Idem. P. 37-38. Op. Cit. “President George W. Bush Addresses the Corps of Cadets”, 11 dez. 2001.
26 CHAMAYOU, G. p. 41. Op. Cit. Eyal Weizman, “Thanatotactics”. Springerin, 4 jun. 2006 (variante do
capítulo “Targeted Assassinations: The Airborne Occupation”, in Hollow Land: Israel’s Architecture of
Occupation. Londres: Verso, 2007, pp. 239-58).
http://www.springerin.at/dyn/heft_text.php?textid=1861&lang=en> Ver também, para a estratégia
israelense dos assassinatos seletivos e sua desmesura, Ariel Colonomos, “Les Assassinats ciblés: la chasse à
l’homme”, in Le Pari de la guerre: guerre préventive, guerre juste?. Paris: Denoël, 2009, pp.202-40
JUDT, Tony. “O silêncio dos inocentes: sobre s estranha morte da América liberal”. In:
Reflexões sobre um século esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. Pp. 426-435.
OBAMA, Barack. “O heroísmo está aqui, no coração de tantos de nossos concidadãos” (12
de janeiro de 2011). In: BURNET, Andrew. (org.) 50 discursos que marcaram o mundo moderno.
Tradução Janaína Marcoantonio. 1ª. Edição. Porto Alegre, RS: L&PM Editora, 2017. Pps.
274-281.
Anexos
A coragem antes era o símbolo daqueles que se arriscavam para defender suas bandeiras,
mas agora, especificamente com a “guerra ao terrorismo” dos EUA, focada em uma
entidade, um espectro sem rosto e sem nacionalidade, dá aval para que brutalidades
aconteçam sem que responsáveis sejam atribuídos. A tecnologia que deveria tornar a
identificação e o combate ao inimigo mais fáceis abre caminho para a violência cega
unilateral.
Não creio que haja bravura em apertar um botão, depois de horas de espera, e explodir um
alvo mal acusado. E se não forem o seu alvo? Se forem civis nacionais daquela pátria que
está sendo espreitada em segredo sob o pretexto de que ali se esconde um espectro
terrorista? Para apertar esse botão, é necessário realmente ter coragem ou uma pessoa sem
escrúpulos poderia fazê-lo?
Penso que a bravura, no caso dessa quimera – de acordo com o que afirmou Clausewitz,
citado por Chamayou -, estaria na investigação minuciosa, na proteção real do outro quanto
a uma injustiça acontecendo em frente às câmeras do drone. Em uma guerra, na qual o
distanciamento torna o outro apenas um alvo e tendo consciência do perigo que isso pode
causar a vidas inocentes, creio que bravura deveria ser sinônimo de cautela.
Professor, marquei que não concordo e tenho dois pensamentos para esses "combatentes"
não sentirem culpa ao controlar o drone:
1. A ideologia: Sempre quando há guerra, é criado uma entidade maligna, um vilão, no caso
dos EUA é o terrorismo. Esses soldados não vêem os inimigos como detentores de vida,
mas sim como alvos que devem ser abatidos, pois é uma ameaça ao seu país.
2. A impessoalidade: Como tratamos nas aulas da Era da Guerra Total, há a impessoalidade
da Guerra que faz tudo ser mais fácil e tranquilo, hoje somos muito acostumados com
números e poucos se afetam, 10mil mortes por Covid-19 no Brasil e ainda tem tanta gente
saindo na rua. Imagino que para soldados americanos 100 mortes do lado inimigo não seja
tão alarmante, ainda mais vindo apenas de um controle remoto.
É o que eu tenho em mente, posso estar errado, mas acho que essas duas questões
dialogam bem com a crise no Ethos Militar que conversamos em aula.
II
III
Há uma hierarquia de vidas no Brasil e, a imprensa não dá o devido destaque para isso
todos os dias, pois isso não "vende" ou por quaisquer outros motivos. A mídia deveria se
posicionar em relação às forças de segurança do país, que atuam todos os dias, de maneira
racista e assassina. A população, de maneira geral, por não receber esse tipo de informação
de forma maçante, acaba não tomando conhecimento, sendo de certa forma conivente.
2) Re: “Islamabad-Rio, Datta Khel-São Gonçalo... O Paquistão pode ser aqui? por
A. A. S. R. F. - segunda, 25 Mai 2020, 20:36
Votei que concordo em parte, pois apesar da matéria apresentada realmente eufemisar a
questão, na televisão enxerguei uma cobertura mais forte em mostrar o gigantesco
problema que a morte de João Pedro representa. [...]
Resumo
A formação cidadã está entre os tópicos mais abordados no cotidiano escolar. Pode-se
dizer que a principal característica do cidadão é se identificar com o meio no qual está
inserido, mas o que vê-se, muitas vezes, no espaço escolar, é a relação de distanciamento
dos estudantes com sua própria realidade. Tem-se então o papel do ensino de História,
partindo dos estudos acerca da formação do Brasil, cabendo então ao papel de formação
do docente, a preparação daqueles que atuarão com esses jovens, uma nova proposta de
abordagem ou referencial que auxilie os futuros educadores a exercerem seu papel de
mediadores na construção do saber do educando a partir de sua realidade, valorizando seu
conhecimento e sua vivência.
Introdução
1Licenciado em História pela Universidade de Sorocaba (UNISO); professor de educação básica na rede
pública do estado de São Paulo; e-mail: marcos.constanca@gmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
tem-se aqui uma análise bibliográfica, de alguns dos principais trabalhos acerca da
formação da sociedade brasileira e, consequentemente, do Brasil como conhecemos, tendo
como justificativa a necessidade da problematização, ainda na formação dos professores de
História e Geografia, para que estes, no futuro, sejam capazes de promover uma autonomia
intelectual em seus estudantes, levando a eles uma riqueza de informações, sendo capazes
de analisar documentos históricos, sanando curiosidades, construindo, como apontado por
Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia (1996), uma “curiosidade epistemológica”2.
Temos em História do Brasil (2008) uma visão didática, na qual o autor tem como
público alvo, sobretudo, alunos do ensino médio. O livro faz parte de uma série
denominada Coleção Didática e tem, por finalidade, reunir os principais eventos da
História nacional, desde o descobrimento até eventos da História Contemporânea.
Reconhecendo a diversidade de fatores e a pluralidade de abordagens possíveis no
que diz respeito à delimitação de tempo, o autor ressalta que não está nos apresentando a
versão definitiva da história do Brasil, colocando tal missão como uma “tarefa pretensiosa e
aliás impossível”3. Assim sendo, o autor tem sua pesquisa voltada a alguns aspectos, tais
como, os econômicos, os político-sociais e, também, ideológicos4. Acerca dos movimentos
culturais, o autor alegou não abordá-los mediante a sua complexidade, o que demandaria
um trabalho demasiado, além de determinados aspectos culturais serem contemplados em
outros volumes na série da qual a obra em questão faz parte.
Temos então um texto que busca analisar e expor rupturas e continuidades, sendo
uma produção historiográfica, é comum que o autor busque tal exposição. Entretanto, se
abstém de abordagens classificatórias, que enxergam a história do Brasil como uma linha
contínua de progressos ou de imobilidade histórica, na qual práticas presentes desde o
início da formação do país, permanecessem intactas5, ainda que com novas roupagens.
Um dos pontos que torna esse um trabalho acadêmico capaz de atingir alunos da
educação básica, é a riqueza de fontes trabalhadas pelo autor, que tem como proposta,
expor pontos de vistas diversos sobre determinados temas da História do Brasil. Desse
2 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. 63ª ed. - Rio de Janeiro/São
Paulo: Paz e Terra, 2020.
3 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed., 1 reimpr. São Paulo: Edusp, 2008. p. 13.
4 Idem.
5 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed., 1 reimpr. São Paulo: Edusp, 2008.
modo, o autor deixa claro que quer levar ao leitor a noção de que a História está em
constante construção e que não se encontrará uma verdade absoluta sobre os mais variados
temas, fomentando assim nos estudantes a desenvolverem um olhar crítico a tudo o que
estão submetidos em seu processo educacional de construção de saberes, pois somente
sabendo que nem mesmo no meio acadêmico há consenso em diversos aspectos, se
sentirão mais inclusos, uma vez que o jovem tem grande apreço pela aprovação e pela
razão.
Obra publicada em 1942, onde o autor busca expor a formação daquele Brasil no
qual se situava partindo da análise histórica, geográfica e sociológica que compunham esse
processo. Analisando os pilares coloniais da história do Brasil, é buscado explicitar as
continuidades e os rompimentos através da história.
É negada a visão de que a chegada da corte portuguesa em 1808 seja o fator
determinante para a emancipação política, mas entende-se que tal fato marca sim uma fase
decisiva nesse processo, mas que ele é permeado por diversos outros processos complexos.
Ou seja, a mudança da corte por si só não teria força para tal mudança, mas outros
acontecimentos que ocorrem antes, durante e depois da estadia da coroa portuguesa em
território brasileiro dão forças para a luta emancipatória.
Entretanto, a raiz da sociedade brasileira não se desenvolve apenas nesse
momento, mas sim ao longo de todo o período colonial, com a chegada daquela que seria a
população brasileira. Tem-se então uma nova população, que não vive de acordo com os
costumes nativos indígenas e, mesmo que com pouca diferença, também não vivia de
acordo com a os portugueses responsáveis pelo movimento colonizador6, uma vez que o
objetivo dessa nova população não estava voltado apenas na colonização.
Mais de uma vez o autor ressalta que o processo de formação desse Brasil
contemporâneo ainda está ocorrendo7, apontando, inclusive, que “O passado, aquele
passado colonial [...] aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas
presente em traços que não se deixam iludir.”8.
6 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
7 O livro foi publicado no século XX, então este é o referencial do autor. Não cabe aqui analisar a atualidade,
apenas a visão trazida por ele.
8 Idem, p. 9.
Um dos aspectos ressaltados pelo autor é o econômico, uma vez que desde o
período colonial a economia brasileira se vê voltada para a produção em grande escala de
produtos visando a exportação. Mas no campo social é também revelado que, em algumas
regiões, as relações pouco mudaram, como que de maneira anacrônica, o autor relata que
“Salvo em alguns setores do país, ainda conservam relações sociais, em particular as de
classe, um acentuado cunho colonial.”9.
No trabalho A Elite do Atraso (2019), o autor tem como objetivo expor, por meio
de análise crítica da História e de obras consideradas essenciais, quem são os responsáveis
pelo problema histórico da corrupção brasileira. Para tanto, ele coloca seu texto como uma
resposta à Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, tido como uma das
principais análises da formação do Brasil e do povo brasileiro.
Para o autor, Sérgio Buarque é capaz de ser um ícone tanto para aqueles com
posições políticas à esquerda e direita, pois segue dois fatores, sendo eles “[...] haver
construído uma narrativa totalizadora [...]”10 e “[...] ter criado a legitimação perfeita para
uma dominação oligárquica e antipopular com a aparência de estar fazendo crítica social.”11.
A visão adotada pelo autor para entender a construção da população brasileira
tem um ponto que difere da visão liberal e marxista da construção social, em que percebe
“[...] as classes sociais como como construção sociocultural.”12, pois assim ele combate a
visão em que “O conflito entre as classes também é distorcido e tornado irreconhecível,
sendo substituído por um falso conflito entre Estado corrupto e patrimonial e mercado
virtuoso.”13, para que a população entenda seu papel na construção da sociedade.
Tem-se então uma obra que visa realizar uma análise historiográfica da história do
Brasil com a proposta de identificar os fatores causais da crise social e política que o país
enfrenta nos dias atuais. Mesmo um trabalho recente é pertinente na construção de uma
perspectiva educacional capaz de formar as pessoas, a fim de conscientizá-las e despertar
sua criticidade. Essa é a proposta apresentada inicialmente por Jessé de Souza, mesmo que
9 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
p. 10.
10 SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. p. 9.
11 Idem.
12 Idem, p. 10.
13 Idem, p. 11.
não necessariamente voltada para o meio educacional, a formação faz parte da vida das
pessoas. Ao longo do trabalho, o autor também cita trabalhos como Casa Grande & Senzala,
de Gilberto Freyre, e A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes,
utilizando a análise histórica da sociedade, ignorando as interpretações dos autores e se
valendo apenas de suas reconstruções.
14 MELO, Alfredo César. “Saudosismo e crítica social em Casa grande & senzala: a articulação de uma
política da memória e de uma utopia”. Estud. av., São Paulo, v. 23, n. 67, p. 279-296, 2009. p. 279.
15 Idem.
16 MELO, Alfredo César. Saudosismo e crítica social em Casa grande & senzala: a articulação de uma política da
memória e de uma utopia. Estud. av., São Paulo, v. 23, n. 67, p. 279-296, 2009. p. 291.
A prática educativa
17 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. 63ª ed. - Rio de Janeiro/São
Paulo: Paz e Terra, 2020.
18 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.
19 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2013.
20 BARBOSA, Manuel Gonçalves. “Educação e ambiguidades da autonomização: para uma pedagogia crítica
da promoção do indivíduo autónomo”. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 20, n. 63, p. 995-1008, Dez. 2015.
que “[...] o ser humano não nasce pronto; nasce, ao contrário, inacabado, inconcluso, muito
embora traga como herança ‘acabamentos’ dados pelas práxis da humanidade em períodos
anteriores.”21, fazendo com que busque se desenvolver cada vez mais, tornando-se assim,
protagonista do processo educativo e social o qual está inserido, agindo como cidadão.
Partindo de uma formação prévia plural, o docente exercerá, no âmbito escolar,
um papel fundamental de facilitador na construção dos saberes dos estudantes, assim como
também, despertará e alimentará sua criticidade. Conclui-se com as observações trazidas,
que a escola é um dos pilares da formação, mas não o único, pois todos carregam
experiências e saberes ao longo da vida. Formar o futuro docente com essa percepção é
essencial para que sua atuação no processo de ensino e aprendizagem seja a mais
abrangente possível.
Bibliografia
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.
BARBOSA, Manuel Gonçalves. “Educação e ambiguidades da autonomização: para uma
pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo”. Rev. Bras. Educ., Rio de
Janeiro, v. 20, n. 63, p. 995-1008, Dez. 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782015000400995&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10/07/2020.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2013.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed., 1 reimpr. São Paulo: Edusp, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. 63ª ed. -
Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
MARTINS, Marcos Francisco. Todos educam para a cidadania. Cadernos de pesquisa, v. 26, p.
149-166, 2019.
MELO, Alfredo César. “Saudosismo e crítica social em Casa grande & senzala: a
articulação de uma política da memória e de uma utopia”. Estud. av., São Paulo, v. 23, n.
67, p. 279-296, 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142009000300031&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 05/10/2020.
PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. 1. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2019.
21 MARTINS, Marcos Francisco. Todos educam para a cidadania. Cadernos de pesquisa, v. 26, p. 149-166, 2019.
Resumo
Introdução
A cada ano que passa fica mais latente a necessidade de se debater e de se inserir
nas escolas as discussões étnico-raciais, não apenas por uma necessidade burocrática de
adequação ao currículo a lei 10. 639 de 2003 que torna a temática afro-brasileira obrigatória
nos currículos de ensino fundamental e médio. Mas pela emergência de fatos que
rotineiramente assolam a cidade do Rio de Janeiro e impactam na vida de docentes e
discentes. Como ignorar o genocídio da população negra? Ou a posição espacial e social
desse grupo no cenário econômico do país? Essas e outras questões nos parecem
incontornáveis e precisam de reflexão por parte dos jovens das escolas públicas.
Tendo como intuito debater algumas dessas questões, foi desenvolvido um projeto
envolvendo as disciplinas de geografia e história. Os objetivos dessa iniciativa foram: trazer
as questões étnico-raciais para fora da sala de aula, apresentar equipamentos urbanos
3 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002.
Termo cunhado pelo geógrafo Milton Santos para designar objetos técnicos que testemunham períodos
pretéritos e que persistem na paisagem contemporânea.
4 MATTOS de Castro, Hebe Maria. "O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil". In:
ABREU, Martha e SOIHETS, Rachel (org.) Ensino de História. Conceitos, temáticas e metodologias. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 127-138.
5 ABREU, Maurício de. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO; Zahar, 1987.SANTOS,
Ynaê Lopes dos. “Global porque escravista: uma análise das dinâmicas urbanas do Rio de Janeiro entre 1790
e 1815”. In. Revista Almanack, no. 24, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/alm/n24/pt_…
6 NETO, João Colares da Mota. Por uma pedagogia decolonial na América Latina. Reflexões em torno do
pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: Editora CRV, 2016.
discurso sobre a paisagem carioca para um enfoque decolonial. Nossas exposições não
estavam preocupados em destacar apenas as narrativas que ressaltam a colonialidade
carioca, os grandes fatos e narrativas ligadas ao passado branco, patriarcal e europeu. Mais
do que isso, nossa proposta foi no sentido de sensibilização, treinamento e imaginação dos
alunos em relação a vida e a riqueza da presença negra na paisagem carioca.
Neste sentido, a atividade orienta-se a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), enfatizando a convivência de tradições, convicções e práticas culturais
diferenciadas contribuindo para o aprendizado do respeito e valorização da diferença, bem
como da formação de identidades plurais.7 Buscamos mediar o processo de aprendizagem
apontando os conflitos e contradições que são próprios à sociedade brasileira, como a
todas as sociedades humanas. Acreditamos que assim, permitimos aprofundar a
compreensão acerca da pluralidade cultural, fundamental para educação dos jovens
educandos, especialmente, os alunos das escolas públicas, majoritariamente, oriundos dos
segmentos populares. Neste sentido, buscamos contribuir para rompemos com o mito da
mestiçagem como homogeneizadora ou formadora de uma "democracia racial".8
Orientamos nossa prática buscando criar estratégias a partir da ideia de que tanto os
professores, quanto os alunos, são participantes ativos do processo de ensino e
aprendizagem, e, esse, não se restringe ao conhecimento livresco, mas aos modos de viver,
aos hábitos de ser e às práticas da vida.9 Entendemos que a aula campo permite ao
educando desenvolver a percepção acerca das interações do Homem e o seu meio, bem
como se entender enquanto sujeito atuante e transformador da sociedade em que está
inserido.10
O recorte do espaço
7 AZEVEDO, Cecília e ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. "Identidades plurais". In: ABREU, Martha
e SOIHETS, Rachel (org.) Ensino de História. Conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003, p. 25-27.
8 VIANA, Larissa. "Democracia racial e cultura popular: debates em torno da pluralidade cultural". In:
ABREU, Martha e SOIHETS, Rachel (org.) Ensino de História. Conceitos, temáticas e metodologias. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 103-115.
9 FREIRE, PAULO. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996. HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2017.
10 GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História. Campinas: Papirus, 2012.
11SILVA, LUCIA. "Freguesia de Santana na cidade do Rio de Janeiro: territórios e etnia no último quartel do
século XIX". Revista eletrônica do centro interdisciplinar de estudos sobre a cidade. v. 7, n. 10, j jan /ago (2015).
não habitado da cidade, foi motivada pelo incômodo da população local com a presença
dos Pretos Novos. Incômodo que vinha de longa data. Ao menos desde 1718, a câmara do
Rio de Janeiro solicitava ao rei a vista da saúde ao navios negreiros, pois eram focos de
"achaques contagiosos". Era preciso "limpar" a região.12
Além do discurso sanitário, havia a questão moral. O "povo" alegava que os negros
recém chegados, estavam semi-nus, quando não nus, escandalizando a "boa sociedade".
Embaixo de uma fina chuva, pedimos aos alunos que localizassem no ambiente
referências aos nosso relatos. Não há placas, um aluno disse. Outro afirmou que já havia
estado ali algumas vezes, mas nunca tinha passado nada daquilo pela cabeça deles. Uma
aluna arriscou: "foram os escravos que construíram isso aqui" - apontando para o Paço. Ela
estava correta. Porém um turista que circulasse por ali ou o trabalhador que cruza a praça
para pegar as barcas ou o VLT todos os dias, pode ter acesso a essa informação? Os
alunos, quase como um coro, disseram que não.
Neste primeiro momento do campo, procuramos ressaltar as diferentes
temporalidades presentes no perímetro da Praça XV. Neste espaço de ensino não formal,
os alunos puderam perceber as diferentes camadas de objetos que atestam técnicas
construtivas e modos de organização social e econômica de tempos pretéritos. Além disso,
os alunos puderam observar a presença dos monumentos na paisagem e constatar a
invisibilização de elementos que ratificassem a presença do negro nesse setor da cidade, no
qual a arquitetura do período colonial foi preservada, entretanto sem mencionar a
escravidão.
Compartilhamos como os alunos a imagem 1 (anexo 1) através de um aplicativo de
comunicação. Pedimos eles que identificassem elementos comuns entre o passado
retratado na imagem e o presente. O Chafariz em terceiro plano, foi prontamente
reconhecido. A partir disso, solicitamos uma descrição dos demais componentes da tela de
Debret. A presença de homens e mulheres negros na paisagem foram destacados. O
comércio realizado pelas mulheres negras, vendendo alimentos chamou a atenção das
alunas que questionaram: elas eram livres ou escravas? Impossível saber. A negretude
aproximava-a todos da escravidão, mesmo sabendo-se que muitos desses individuos
poderiam ser livres ou libertos através dos mais diversos tipos de acordos com os seus
proprietários.
Bibliografia
SANTOS, Ynaê Lopes dos. “Global porque escravista: uma análise das dinâmicas urbanas
do Rio de Janeiro entre 1790 e 1815”. In. Revista Almanack, no. 24, 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/alm/n24/pt_…
SILVA, LUCIA. "Freguesia de Santana na cidade do Rio de Janeiro: territórios e etnia
no último quartel do século XIX
STRAFORINI, R. “O ensino da Geografia como prática espacial de significação.” Estudos
Avançados, v. 32, p. 175-195, 2018.
Anexo
A tela de Debret, de 1825, mostra que ali ocorria venda de mercadoria, um peitoril a beira mar e a
presença de navios ancorados.
Resumo
A lei 10.639 de janeiro de 2003 foi uma importante conquista do movimento negro brasileiro,
entretanto após 17 anos, ainda enfrentamos entraves para a sua aplicabilidade. Mostrando um
distanciamento entre as produções acadêmicas e a sala de aula no Ensino básico, ainda observamos
discursos superados pela historiografia, ainda sendo disseminados acriticamente em sala de aula.
Portanto, a presente pesquisa busca realizar uma análise crítica acerca de como as agências negras
são apresentadas no movimento abolicionista presente em um livro didático do 8º ano do Ensino
Fundamental.
projeto político de formação de uma identidade nacional que muitas vezes impede que “os
subalternos falem”.2 Neste sentido, o ensino de História emerge como um espaço
importante para se pensar a formação de currículos que engendram esse silenciamento.
Desta maneira, uma pergunta se faz necessária. Por que, em pleno 2020, 132 anos
após a abolição, ainda há que se debater o fato de o 13 de maio e a figura da Princesa Isabel
não representarem, de fato, o que foi o movimento abolicionista, pensando-o, sobretudo,
pelas agências da população negra, escravizada, livre e liberta, encobertas por tal
representação?
Apesar da lei 10.639/03 ter sido uma vitória do movimento negro3, verifica-se que
ainda, em alguns livros didáticos utilizados em muitas salas de aula, o que se vê em relação
a como a História do Brasil vem sendo contada é uma história que representa o negro (e
digo negro no masculino, uma vez que as vozes femininas muitas vezes são silenciadas e
apagadas da História oficial) ora, como o passivo, àquele incapaz de resistir e tomar a
dianteira de sua História, ou seja, a verdadeira representação do personagem “Pai João”.
Ora, como o extremo oposto, o rebelde, selvagem que lidera movimentos isolados,
representado pela figura do “Zumbi dos Palmares”, sem ao menos mencionar que ao lado
dele havia outra personagem que protagonizou essa resistência – Dandara, sua esposa e
uma das lideranças do movimento.4
Esses esquemas explicativos, além de silenciar, não possibilitam observarmos as
agências cotidianas da população negra. Quando tais vozes surgem, são através de eventos
extraordinários, extremos, destacadas como uma excepcionalidade. Representações, frutos
de uma historiografia que por muito tempo via a questão racial brasileira como um entrave
à formação de uma identidade nacional5, bem como um problema a ser denunciado pelo
2 Gayatri Chakravorty Spivack é uma crítica e teórica indiana famosa por ser uma das bases dos estudos pós-
colonialistas. Em seu livro “Pode o subalterno falar?”, publicado em 1985, a autora realiza um
questionamento “à ênfase de Gramsci na autonomia do sujeito subalterno como uma premissa essencialista”,
ao se perguntar se realmente “pode o subalterno falar?” Para um aprofundamento dessa perspectiva pós-
colonial ver: SPIVACK, Gayatri C. “Pode o subalterno falar?”. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
3 Sobre a implementação da lei 10.639/03, como resultado da luta do movimento negro, ver: PEREIRA,
Amilcar. “O Movimento Negro brasileiro e a Lei 10.639/03”: da criação aos desafios da implementação.
Revista Contemporânea de Educação. Vol.12, n.23 (2017). Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/3452. Acessado em: 30 de junho de 2019. Ver também:
BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Brasília, DF: MEC. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.639.htm Acessado em 19 de fevereiro de 2019.
4 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
dentre várias obras podemos destacar: SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e
questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
homem branco, onde o negro surgia como objeto de estudo, mas não como agente de sua
própria história.
Tal concepção do problema racial brasileiro no pós-abolição foi enfrentada, a priori,
pelos estudos sociológicos, surgidos a partir das décadas 1940. Trabalhos como os de
Oracy Nogueira, Costa Pinto, Virgínia Bicudo, Florestan Fernandes e seus orientandos,
trouxeram à tona a questão da herança da escravidão e o problema do racismo em suas
análises. Tais estudos, financiados pelo projeto UNESCO6, que após a Segunda Guerra
Mundial se debruçou em tentar dirimir e entender os conflitos raciais em diversos países,
realizavam críticas à ideia de “democracia racial”, popularizada por Gilberto Freyre7.
É inegável a importância desses estudos à época. Entretanto, apesar de dar
visibilidade aos problemas e desigualdades criadas pela questão racial no país, tais estudos,
sobretudo os produzidos por Florestan Fernandes e seus orientandos, foram responsáveis
pela disseminação de uma imagem da História negra pautada na anomia, na falta de
agência, na ideia de que após a abolição tais personagem foram “lançados à própria sorte”.8
Se a sociologia não deu visibilidade às agências da população negra, tampouco fez a
historiografia brasileira até a década de 1980. Baseada em um marxismo ortodoxo, a
produção historiográfica entre os anos 1960 e 1970 pautava-se nos estudos das relações e
meios de produção, em uma “’interpretação estruturalista da escravidão’ brasileira”.9 Foi a
partir da década de 1980, inspirada pelo marxismo britânico thompsoniano e representado
por historiadores como Sidney Chalhoub, Lúcio Kowarick e Gladys Ribeiro, que
destacaram as experiências e lutas de negros e negras no cotidiano de trabalho e de
experimentação da liberdade em uma sociedade que vivenciava a abolição da escravidão10 .
6 Para uma análise mais aprofundada sobre a inserção desses intelectuais no projeto UNESCO, ver: MAIO,
Marcos Chor. “O Projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50”. RBCS, vol.
14, nº41. Outubro/99. Disponível em: http://ww.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n41/1756.pdf. Acessado em: 20
de junho de 2019.
7 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
sobre a escravidão brasileira. Revista de História. São Paulo, nº169, p.223-253, Julho/Dezembro 2013.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-
83092013000200223&script=sci_abstract&tlng=pt. Acessado em: 28 de junho de 2019.
10 Para uma análise mais aprofundada acerca da produção historiográfica e dos avanços e obstáculos a serem
enfrentados em relação as questões raciais e a História do Trabalho no Pós-Abolição ver: LARA, Silvia.
“Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil”. Proj. História, São Paulo (16), pp. 25-38. fev. 1998;
CHALHOUB, S e SILVA, F. T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n.6, 2009
11 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011. (1 ed. 1990)
12 SALVARI, Fábio. História. Ensino Fundamental II. Pernambuco: Formando Cidadãos Editora, Do 1 semestre
Esta visão sobre as experiências negras, apresentada pelo autor, apesar de ter
trinta anos19 e mostrar-se uma realidade presente nos estudos da escravidão e pós-
abolição desenvolvidos por importantes grupos de estudos e historiadores detidos ao
tema20, ainda é pouco implementada nas aulas e livros didáticos destinados ao Ensino
Fundamental e Médio, reproduzindo-se a concepção de anomia do negro, proliferada
pelos estudos de Florestan Fernandes e seus orientandos. Tal permanência de
concepção, em relação ao ensino de História da população negra, reflete o
distanciamento e descompasso entre a produção historiográfica e as salas de aulas.
Concepção que há tempos vem sendo denunciado por educadoras/es como Maria do
Rosário da Cunha Peixoto 21, que vê a sala de aula como um local de produção de
conhecimento e pesquisa, onde se planeja a superação da divisão hierárquica entre o
Ensino Fundamental e Médio e a produção acadêmica produzida nas Universidades.
Nesta perspectiva, o conhecimento acadêmico não deve ser transposto para o aluno,
como se o mesmo fosse uma tábula rasa, mas pensando como uma ferramenta para
auxiliar a produção de saberes e pesquisa em sala de aula.
17 Ibidem. p. 285
18 Ibidem. p.275.
19 A primeira edição de Visões de Liberdade é de 1990.
20 Podemos citar os trabalhos desenvolvidos pelo CULTNA, grupo de estudos coordenado pelas professoras
Doutoras Martha Abreu e Hebe Mattos, ambas da UFF, bem como o Grupo de Trabalho Mundos do
Trabalho e o Pós-Abolição, coordenado pelo Prof. Dr. Álvaro P. do Nascimento (UFFRJ), dentre outros.
21 PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. “Ensino como pesquisa”: um novo olhar sobre a História no
Ensino Fundamental. Como e por que aprender/ ensinar História. História e perspectivas, Uberlândia (53): 37-
70, jan/jul. 2015. Disponível em: file:///C:/Users/Documentos/Downloads/32765-Texto%20do%20artigo-
132877-1-10-20160105.pdf. Acessado em 02 de julho de 2019.
22 Na legenda da foto dos negros encontra-se a seguinte frase: “A tão sonhada abolição da escravatura foi
acompanhada da marginalização do negro na sociedade” e na legenda da foto da Princesa Isabel encontramos: “Com a
assinatura da Lei Áurea, a Princesa Isabel foi chamada , por alguns, de “A Redentora””. SALVARI, Fábio. História.
Ensino Fundamental II. 8º ano. PE: Formando Cidadãos Editora201-. (Manual do Educador) Cap.11. p. 153
23 BITTENCOURT, Circe. “Livros Didáticos entre Textos e Imagens”. In. O saber histórico na sala de aula. São
Referências
Documentos oficiais
BRASIL. Ministério da Educação. Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Brasília, DF: MEC.
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.639.htm Acessado em
19 de fevereiro de 2019.
24 Ibidem. p.73.
25 NASCIMENTO, Álvaro P. do. Qual a condição social os negros no Brasil depois do fim da escravidão? O
pós-abolição no ensino de história. In. SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.) A República e a questão
do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. p.23
26 Esta frase introduz o texto da Azoilda Trindad. TRINDADE, Azoilda Loretto. Uma trajetória até a 10639/2003.
In .Edição Especial: 10 anos da Lei 10.639TV Escola. Ano XXIII, Novembro, 2013. P.1 Disponível em:
https://cdnbi.tvescola.org.br/contents/document/publicationsSeries/164235EE_Lei10639.pdf Acessado em 25
de maio de 2020
Livro didático
SALVARI, Fábio. História. Ensino Fundamental II. Pernambuco: Formando Cidadãos
Editora, 201-. (Manual do Educador).
Notícias
Fala da ativista Denise Benedita sobre as comemorações do 13 de maio no Congresso
Nacional. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/576415-
PROTESTO-MARCA-SESSAO-SOLENE-QUE-HOMENAGEOU-OS-131-ANOS-
DA-ASSINATURA-DA-LEI-AUREA.html. Acessado em 30 de junho de 2019.
Bibliografia
BITTENCOURT, Circe. “Livros Didáticos entre Textos e Imagens”. In. O saber histórico na
sala de aula. São Paulo: Editora Contexto, 2005.pp.69-90.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª ed. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2001.
_____ e SILVA, F. T. da. “Sujeitos no imaginário acadêmico”: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, n.6, 2009
_____ Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes: (o legado da “raça
branca”). Vol. 1. 5 ed. São Paulo: Globo, 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. 51ªed. rev. São Paulo: .Global, 2006.
LARA, Silvia L. “Escravidão, cidadania e História do Trabalho no Brasil”. Proj. História, São
Paulo, (16), fev. 1998. P.27. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11185. Acessado em 29 de junho
de 2019.
MAIO, Marcos Chor. “O Projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos
anos 40 e 50”. RBCS, vol. 14, nº41. Outubro/99. Disponível em:
http://ww.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n41/1756.pdf. Acessado em: 20 de junho de 2019.
MARQUESE, Rafael de Bivar. “As desventuras de um conceito”: capitalismo histórico e a
historiografia sobre a escravidão brasileira. Revista de História. São Paulo, nº169, p.223-253,
Julho/Dezembro 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-
83092013000200223&script=sci_abstract&tlng=pt. Acessado em: 28 de junho de 2019.
PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. “Ensino como pesquisa”: um novo olhar sobre a
História no Ensino Fundamental. Como e por que aprender/ ensinar História. História e
perspectivas, Uberlândia (53): 37-70, jan/jul. 2015. Disponível em:
file:///C:/Users/Documentos/Downloads/32765-Texto%20do%20artigo-132877-1-10-
20160105.pdf. Acessado em 02 de julho de 2019.
Anexo:
Figura 1: SALVARI, Fábio. História. Ensino Fundamental II. 8º ano. PE: Formando
Cidadãos Editora201-. (Manual do Educador) Cap.11. p. 153
Resumo
A pesquisa em questão tem por proposta analisar formas de se trabalhar na sala de aula
uma história brasileira decolonial a partir do relato de Esperança Garcia, uma escrava
letrada que, no século XVIII, após ser levada para outra fazenda, escreveu uma carta ao
Presidente da Província de São José do Piauí. A relevância em estudar o breve registro que
a História fez de Esperança Garcia se solidifica na percepção de que a mesma está para
além de um mero dado quantitativo das relações sociais e econômicas entre escravos e
senhores no Brasil Colonial. Antes, trabalhar sua trajetória nos apresenta a possibilidade de
um resgate e valorização da identidade étnico-racial, social e cultural no espaço escolar.
A presente escrita tem por objetivo apresentar uma experiência realizada em uma
aula de História nos Anos Iniciais, em uma escola pública do município do Rio de Janeiro,
na qual os alunos conheceram a história da escrava Esperança Garcia. Esperança viveu no
século XVIII em uma fazenda jesuíta, dos Algodões, na região de Oeira, aproximadamente
300 Km de Teresina (Piauí). Essa fazenda, juntamente com outras, pertencia à inspeção de
Nazaré, onde hoje é o município de Nazaré do Piauí.
Esperança Garcia foi apresentada a nós através do historiador Luís Mott que, ao
investigar no Arquivo Público do Piauí, em 1979, se deparou com uma cópia de uma carta
escrita por Esperança que, por ser escrava de uma fazenda administrada pelos Jesuítas,
conseguiu ser alfabetizada.
Para Mott,
do documento mais antigo de reivindicação de uma escrava a uma
autoridade. Documento insólito” primeiro por vir assinado por uma
mulher, já que mulher escrever antigamente era raridade. As mulheres
eram vítimas das estratégias de seus pais, mantê-las distante das letras, a
1Doutoranda em História Política pelo PPGH-UERJ. Professora de História e Anos Iniciais na rede privada
do município do Rio de Janeiro. E-mail:thaisfelixdia@gmail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Não se sabe o que aconteceu com Esperança, se sua petição foi aceita, se ela sofreu
consequências físicas pela ação ou se fugiu. Fato é que a carta nos remete ao entendimento
de que as relações entre escravos e senhores estavam para além de meros dados
quantitativos. Antes, nos mostram as particularidades nessas relações e construções sociais
no Brasil Colonial.
Apesar de sua importância histórica, pouco se sabe sobre a vida de Esperança. Esse
descaso da sociedade é consequência principalmente de sua condição de negra escravizada.
Porém ela se destaca por ter sido corajosa a ponto de escrever uma carta, datada de 6 de
setembro de 1770, ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro,
denunciando os maus tratos sofridos por ela, seus filhos e demais companheiros de senzala.
A carta serviu de inspiração para diversas manifestações contemporâneas como o
grupo de mulheres que trabalhavam pela cidadania da mulher negra piauiense que recebeu
o nome de Esperança Garcia assim como a maternidade de Nazaré do Piauí, e, a data desta
carta, é o dia da Consciência Negra no Piauí desde 1999.
Atualmente, para além dos estudos historiográficos, há duas obras literárias que
trazem ao público o contato com a história de Esperança Garcia. São as obras “Quando a
escrava Esperança Garcia escreveu uma carta”, de Sonia Rosa (2013) e “Heroínas Negras
Brasileiras Em 15 Cordéis”, de Jarid Arraes (2017).
Para a proposta pedagógica lançada aos alunos foi escolhido o livro de Sonia Rosa
por seu caráter mais lúdico e adequado à faixa etária em questão – alunos do primeiro ano
do ensino fundamental. A proposta foi implementada em todos os anos do segmento Anos
Iniciais, porém preferimos apresentar a implementação no primeiro ano, com alunos na
faixa etária de 6-8 anos.
O motivo de tal escolha vem do período de transição escolar que tais alunos estão
vivenciando e o contato direto que os mesmos tem com a literatura, na escola, e com os
‘heróis’, em casa. Aqui, nos aproveitamos da ideia de Jarid Arraes, em trabalhar mulheres
com relevância histórica para o Brasil como heroínas3, para criarmos laços de
pertencimento nos alunos que diariamente tem contato com os super-heróis nos desenhos
e filmes. A ideia era mostrar que no Brasil também houve heróis/heroínas que, ao
2MOTT, Luiz. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: APL, 2010, p.143.
3Para maiores informações, conferir ARRAES, Jarid. Heroínas Negras Brasileiras Em 15 Cordéis. São Paulo:
Editora Jandaíra; 1ª edição, 2017
contrário dos desenhos e filmes assistidos por eles, existiram e contribuíram na construção
de nossa sociedade.
Assim, o diálogo proporcionado a partir do encontro entre História e Literatura
nos possibilitou auxiliar os alunos na compreensão da História do Brasil de forma lúdica.
Na obra de Sonia Rosa observamos o destaque para a importância da personagem
para a história da região do Piauí, sua relação com a administração jesuítica no Brasil.
Lembrando que Esperança viveu no século XVIII e morava em uma fazenda administrada
por jesuítas.
Os percalços que ocorrem em sua vida estão diretamente ligados a um contexto
maior – A Companhia de Jesus foi criada ainda na primeira metade do século XVI, em uma
época de intensas exaltações religiosas. Já para Portugal, a criação da Companhia tinha
valores não somente cristãos, mas antes entendida como uma forma de levar também o
poder do Estado Portugal para as partes do mundo. Entretanto, ao assumir o poder,
Marquês de Pombal expulsou gradativamente os jesuítas de todos os negócios das
possessões portuguesas e, assim, ocorreu com a fazenda dos Algodões. A perda dos
jesuítas, acarretou em uma futura venda dos escravos, entre eles, Esperança Garcia.
Através da literatura de Rosa, conseguimos trabalhar também com os alunos o
contexto social da época através dos conceitos de escravidão, colonização, educação, a
geografia da região do Piauí bem como do translado África-Brasil.
Ademais, Sonia também propicia ao leitor o contato direto com a fonte histórica.
Ao longo da ora literária nos deparamos com a carta de Esperança Garcia que nos diz
eu sou uma escrava de V.Sª. administração de Capitão Antonio Vieira de
Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da
Fazenda dos Algodões onde vivia com meu marido, para ser cozinheira
de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes
trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez
extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um
colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada,
por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas
parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por
batizar. Pelo que peço a V.Sª. pelo amor de Deus e do seu valimento,
ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a
fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha
filha. De V.Sª. sua escrava, Esperança Garcia4
4 ROSA, Sonia. Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. 7
alunos perante o conteúdo e assim as fontes deixam de ser meras ilustrações e passam a ser
recursos utilizados pelos alunos para compreensão de um fato histórico.
As fontes são o meio através do qual o historiador percorre a realidade passada e
com ela estabelece o diálogo e também nos possibilitam imaginar, sendo essa imaginação
considerada pelos historiadores como importante por poder ser usada em apoio à
construção de imagens do passado5. Além do mais, como elemento cognitivo, a imaginação
permite tornar o passado mais presente no espírito da criança e, simultaneamente,
reconstituir o imaginário do passado.
Muitos professores consideram válido possibilitar um contato do aluno com o
“real” ao invés de basear o ensino aprendizagem apenas numa acumulação de fatos
elaborada pelos materiais didáticos6. O contato com os vestígios históricos introduz o
aluno no pensamento histórico, porém longe da pretensão de torná-lo um historiador.
Antes, o propósito é desenvolver uma autonomia intelectual capaz de propiciar análises
críticas da sociedade em uma perspectiva temporal.
Tudo isso propicia, a partir da leitura de Fonseca7, para a consolidação do uso da
interdisciplinaridade na educação e de dinamização nas aulas, pois
nesse contexto sociocultural e educacional processa-se de forma intensa
o debate acerca dos paradigmas, das relações entre os padrões e níveis de
conhecimento, das concepções de educação e da escola, o que evidencia
a necessidade de repensar as práticas pedagógicas dos professores no
interior dos diferentes espaços educativos. Isso não é novidade.
Entretanto, há sim algo novo nessa discussão: a abordagem das formas e
relações entre conhecimentos e metodologias. 8
5 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História – fundamentos e métodos. 4º edição. São Paulo:
Editora Cortez, 2011, p. 79
6 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Op. cit. p. 37
7 FONSECA, Silva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História: experiências, reflexões e aprendizados 7ª ed.
Vera Maria, MOREIRA, Antônio Flávio (orgs.). Multiculturalismo: Diferenças culturais e práticas culturais. São
Paulo: Editora Vozes, 2008, p.13
Um campo de estudo que tem contribuído nos trabalhos que envolvem bagagens
sócio-culturais dos alunos e suas e identidade raciais é o campo decolonial.
Compreendemos que a decolonialidade se reproduz em uma tripla dimensão do poder, do
saber e do ser, como por exemplo nas questões relacionadas à raça e ao gênero. Entretanto,
o protagonismo atual que observamos não foi conquistado de um momento para outro.
Antes, é notório que a historiografia sofreu uma reviravolta a partir da década de 1970,
com o que chamamos de “a história vista de baixo” e com a ascensão de estudos que
anteriormente eram colocados à margem. Assim, o protagonismo atual, ainda que tardio e
iniciante, é, segundo Ballestrin, fruto de lutas de vários grupos latino-americanos que
ganharam força a partir da década de 1970.12
É nesse caminho, e dialogando sempre com a lei 10.639/03, que propostas que
valorizem a identidade negra e apresentem uma história para longe do olhar eurocêntrico
finalmente adentrem o nosso cotidiano de maneira mais incisiva, crítica, desniveladora.
Seria esse o marco referencial que possibilitaria com que toda a história do povo negro no
Brasil, pudesse ser reconhecida e valorizada. Não como um passe de mágica, mas como
desdobramento de todas as lutas seculares vividas no Brasil.
Finalizamos nossa escrita apresentando sucintamente a resposta obtida dos alunos.
Após a contação de história, foi pedido que os mesmos registrassem, em desenho, um
13 GONTIJO, Stella Ferreira. "A desobediência epistêmica e as mulheres como sujeitos historiográficos". In.:
Revista Crítica Histórica. Ano X, n.19, junho 2019, p.44
14 KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In NIKITIUK, Sonia L.
implementação das diretrizes curriculares nacionais para educação das relações étnico-raciais e para o ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana, 2009. p. 13.
desfecho para Esperança Garcia que, como já foi dito, continua desconhecido. Foi
interessante perceber que os alunos não só enxergaram Esperança como negra, e a
desenhando como tal, mas também como, de fato, uma heroína ao contrário as fictícias.
Ademais, alguns alunos negros demostraram um sentimento de pertencimento e
valorização em relação à trajetória de Esperança, chegando a mencionar que a luta dela se
aproximava mais da luta de suas famílias do que a trajetória que os demais heróis, que eles
assistiam na televisão, representavam.
Conclusão
Bibliografia
ARRAES, Jarid. Heroínas Negras Brasileiras Em 15 Cordéis. São Paulo: Editora Jandaíra; 1ª
edição, 2017.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e Giro Decolonial. In: Revista Brasileira de Ciência
Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 89-117.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História – fundamentos e métodos. 4º
edição. São Paulo: Editora Cortez, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica.
Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, 2009.
p. 13-17.
Resumo
A presente comunicação pretende ser uma reflexão acerca das possibilidades de uso
pedagógico nas aulas de História do Ensino Fundamental de trechos selecionados de três
obras do escritor carioca Lima Barreto, que viveu na cidade do Rio de Janeiro, entre os
anos de 1881 e 1922. As obras escolhidas são os romances Recordações do escrivão Isaías
Caminha, Clara dos Anjos e o livro de memórias do autor, Diário íntimo. Essas obras
escolhidas nos permitem trabalhar com os alunos questões que envolvem as relações
étnico-raciais e que contribuam de alguma forma para a denúncia contra o racismo, à
exclusão social e sua permanência na nossa sociedade.
A caminho do objeto
formação da nação brasileira, e, portanto, o racismo não existe. Se não existe racismo no
Brasil, se não somos racistas, então porque depois de 131 anos do fim do escravismo, as
taxas de desigualdades na saúde, educação, no pagamento de salários, número maior de
homicídios, atingem em maior proporção, a população negra?
Após 131 anos depois da assinatura da Lei Áurea, que aboliu a escravidão em
todo o território brasileiro, as consequências de três séculos do regime escravista estão
presentes na realidade do país, reveladas através de pesquisas de taxas de mortalidade da
população, desigualdades em relação a empregos, salários, educação e saúde. Apesar de
serem mais da metade da população brasileira (53,6%), negros e negras são 76% dos 10%
mais pobres, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)2. Os dados
apresentados pelo Atlas da Violência 2018
vêm complementar e atualizar o cenário de desigualdade racial em
termos de violência letal no Brasil já descrito por outras publicações. É o
caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, ano base 2015,
que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio
no Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Já o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de
mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que
representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as
vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou
que 76,2% das vítimas de atuação da polícia são negras3.
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_
2018.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
4 No Atlas da violência 2018, o Ipea adota a classificação do IBGE para raça/cor que considera negros os
indivíduos de cor preta ou parda, e indivíduos não negros, os brancos, indígenas ou amarelos.
violenta intencional”5. Quando se observa os dados sobre feminicídio no Brasil nos últimos
anos, a constatação é de que o número de mulheres negras assassinadas é maior do que as
mulheres não negras. O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de violência contra a
mulher, com a taxa de homicídios bem maior entre as mulheres negras (5,3) do que entre as
não negras (3,1), uma diferença de 71%, de acordo com dados do Atlas da Violência 2018.
Segundo os dados da pesquisa no período compreendido entre 2006 e 2016, do mesmo
atlas, em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres
negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve redução de 8%6.
Diante de todas essas dificuldades, muitas dúvidas e perguntas surgiram. Como
contribuir para tentar diminuir essa triste realidade? Como contribuir para ajudar os
docentes em sala de aula, que, como eu, procuram meios para, através das aulas de
História, a tentar mudar essa situação? No ambiente escolar hoje a sensação comum
compartilhada por vários professores é que está cada vez mais difícil abordar temas
considerados polêmicos em sala de aula, principalmente no contexto atual em que
lecionamos – em que estão incluídas dificuldades como diminuição da autonomia dos
professores e sua crescente desvalorização, precariedade das instituições de ensino,
principalmente as públicas, intolerância e desrespeito às opiniões e culturas diferentes.
Quais são as dificuldades dos professores de história para conseguirem trabalhar temas
considerados polêmicos com os alunos?
As dificuldades são muitas. Elas incluem desde o desinteresse dos alunos por
questões ocorridas em um passado recente ou não, até a resistência de alguns responsáveis
que acreditam que o estudo de temas sensíveis não merecem ser trabalhados porque
podem atrapalhar o cumprimento do programa ou influenciá-los ideologicamente. O
interesse em trabalhar com as obras do escritor Lima Barreto revelou-se um caminho
possível para enfrentar essas dificuldades, principalmente através dos romances Clara dos
Anjos, Recordações do escrivão Isaías Caminha e de seu Diário íntimo. As obras escolhidas para o
desenvolvimento deste trabalho privilegiam questões relacionadas às relações étnico-raciais
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_
2018.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
e que contribuam de alguma forma para uma educação antirracista, contra a exclusão social
e sua continuidade na nossa sociedade.
Entendo que a obra literária do escritor Lima Barreto pode ser um instrumento
para auxiliar professores de história em seu trabalho em sala de aula, especialmente no
Ensino Fundamental, e na disseminação de uma educação antirracista e democrática. E
acreditando no potencial da obra de Lima Barreto, desenvolvi uma pesquisa no âmbito do
Mestrado Profissional em Ensino de História, pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PROFHISTÓRIA/UERJ). O resultado dessa pesquisa foi a elaboração de um
conjunto de seis atividades pedagógicas centradas no ensino de história, a serem utilizadas
em ambiente escolar ou para além dele, que visam despertar o interesse dos alunos pelos
textos literários, através dos trechos selecionados das obras do escritor Lima Barreto,
produzindo, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre discriminação, injúria racial e suas
consequências para a sociedade brasileira no contexto contemporâneo.
Desse modo, espero contribuir com os docentes de História em seu trabalho
cotidiano em temas considerados difíceis/sensíveis de serem abordados com os alunos,
além de tentar contribuir para a conscientização e respeito desses mesmos alunos em
relação ao outro e a eles próprios, visando a uma formação e prática cidadã e antirracista.
7 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Triste visionário. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 485.
A cidade do Rio de Janeiro, local onde Lima Barreto nasceu e morreu, foi
profundamente atingida por todas as transformações, que já marcavam presença nos
últimos anos do império, resultado dos recentes episódios de libertação dos escravos e da
proclamação da república. Essas transformações foram uma consequência natural, pois a
cidade era a maior do país (e sua capital), tornando-se o seu centro econômico, político e
cultural.
No início do século XX, com o advento da ordem republicana, o Rio de Janeiro
passou por um grande processo de convulsão política e social, marcado por crises e pela
crescente eliminação na cena política, das elites tradicionais do império, e o que elas
representavam, o “atraso”, o “obscurantismo” em oposição à modernidade, identificada
com o progresso e, portanto, com a república. Atento as contradições que faziam parte do
processo de urbanização e do desenvolvimento do capital industrial e financeiro do Brasil,
Lima Barreto sempre as denunciou em várias de suas obras9. As reformas urbanas na
cidade do Rio realizadas pelos prefeitos Pereira Passos (1903-1906) e Carlos Sampaio
(1920-1922) foram criticadas por Lima que entendia que o processo de “‘regeneração’ da
cidade e, por extensão, do país, na linguagem dos cronistas da época”10 não trouxe os
8 ENGEL, Magali Gouveia et al. Crônicas cariocas e ensino de história. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008, p. 26.
9 ENGEL, Magali Gouveia et al. Crônicas cariocas e ensino de história. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008, p. 27.
10 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4 ed. São
benefícios do progresso para todos. A “ideologia burguesa propagava que as benesses seriam
estendidas a toda a sociedade”11, o que na verdade não aconteceu.
Durante toda a sua vida o escritor Lima Barreto lutou, sem obter sucesso, contra
os obstáculos resultantes de sua condição de mulato e pobre, que impediram o
reconhecimento de sua obra, dentro de um sistema de apadrinhamento, arrivista e
preconceituoso em relação às camadas humildes, nas quais se incluíam os negros e mulatos.
Apesar das imensas dificuldades enfrentadas, Lima Barreto escolheu um difícil caminho
como escritor: o de transformar sua obra em um instrumento de crítica e luta por
mudanças sociais. Lima Barreto expressa em sua obra “[...] o compromisso com a
militância política que fazia de sua literatura uma missão transformadora da realidade social
desigual e discriminatória.”12. Essa missão transformadora levaria o leitor a uma reflexão
sobre seus obstáculos e problemas sociais, despertando nele, a necessidade de mudança13.
O racismo foi um dos temas abordados e denunciados em suas obras,
principalmente nos dois romances escolhidos para esse projeto Recordações do escrivão Isaías
Caminha, Clara dos Anjos e o Diário íntimo. O Recordações do escrivão Isaías Caminha, livro
escolhido por Lima Barreto para ingressar na vida literária nacional e com o qual esperava o
reconhecimento de seus pares, não foi bem aceito pelos críticos literários. Um dos
principais motivos da crítica negativa ao livro foi desmascarar o racismo na sociedade da
época.
O romance narra a história do jovem Isaías, que se muda de uma cidade do
interior para a capital da república, a cidade do Rio de Janeiro, com o sonho de tornar-se
“doutor”, mas é humilhado, desiludindo-se, vítima do preconceito. Em Clara dos Anjos, a
vítima da discriminação racial nos primeiros anos da república na cidade do Rio de Janeiro,
é a jovem mulata Clara. O local onde se desenvolve a história é novamente a cidade do Rio
de Janeiro, e Clara é uma adolescente meiga e ingênua de 16 anos, filha de um carteiro e de
uma dona de casa. A jovem se apaixona por um malandro branco suburbano, Cassi Jones,
que a engravida e a abandona, como já havia feito com outras jovens humildes. Ao
procurar a família do namorado, Clara é vítima do preconceito por ser negra e pobre. O
Diário íntimo, um livro de memórias que começou a ser escrito por volta de 1900 e só foi
publicado em 1953, o autor registrou situações vividas ou presenciadas por ele ao longo de
muitos anos de sua vida, como a discriminação racial, a desigualdade social, a descrição de
momentos em que foi tomado pelos sentimentos de esperanças, angústia e decepções, além
de esboços de obras publicadas postumamente, como Clara dos Anjos.
O uso da obra de Lima Barreto contribui para confirmar a importância da
literatura desse autor carioca para as aulas de história, um intelectual negro que não obteve,
em sua época, o reconhecimento como escritor, mas que nos dias atuais, se faz necessário,
como um instrumento que ajude no combate ao preconceito, na desnaturalização de
estereótipos que todos nós possuímos e que valorize a importância do diálogo
intercultural14.
Bibliografia
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881-1922). 7 ed.. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1988.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1981.
______________________________. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956.
_______________________________. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 8. ed., São
Paulo: Ática, 1998.
CANDAU, Vera Maria Ferrão. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em
direitos humanos. Educação e sociedade. Campinas: v. 33, n. 118, p. 235-250, jan./mar., 2012.
Disponível em: <http//www.cedes.unicamp.br>. Acesso em 12 dez.2017.
ENGEL, Magali Gouveia et al. Crônicas cariocas e ensino de história. Rio de Janeiro: Editora
7Letras, 2008, p. 9-83.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de Indicadores
Sociais (SIS). 6 de novembro de 2019. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012agenciadenoticias/noticias/25
882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos>.
Acesso em: 10 de nov. de 2019.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2018. Rio de
Janeiro, jun. 2018. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_a
tlas_da_violencia_2018.pdf>. Acesso em 10 out. 2018.
______________________________. Atlas da violência 2019. Rio de Janeiro, 5 de junho de
2019. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3478
4&Itemid=432>. Acesso em 10 nov. 2019.
(CUTI) LUIZ, Silva. Lima Barreto. São Paulo: Selo Negro, 2011.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Triste visionário. 1. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 4 ed., São Paulo: Brasiliense, 1995.
14 CANDAU, Vera Maria Ferrão. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos. Educação e
sociedade. Disponível em: <http//www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 12 dez. 2017.
Resumo
Este texto apresenta parte de resultados do projeto de pesquisa de iniciação científica que
tem como temática a relação das políticas educativas das organizações negras do fim do
século XIX até a primeira metade do XX. A nossa questão centraliza levantamentos de
como os Movimentos Negros foram peças chaves para a ampliação da perspectiva
educativa, diretamente da população negra e indiretamente da sociedade brasileira como
um todo. Nesta comunicação focaremos no levantamento inicial das regulações educativas
no século XIX e as experiências educacionais que institucionalizadas pelo Congresso
Agrícola e as respostas de sujeitos e grupos.
Introdução
Começamos essa reflexão por uma série de questões de Nilma Lino Gomes em seu
livro Movimento Negro Educador, que tal qual a autora, conduzem nossa pesquisa:
O que a Pedagogia e as práticas pedagógicas teriam a aprender com o
Movimento Negro entendido como ator político e educador? E o campo
das Humanidades e das Ciências Sociais? O que os cursos de formação
de professoras e professores sabem e discutem sobre esse movimento
social e suas demandas por educação? E os cursos de pós-graduação das
Humanidades e Ciências Sociais? O que os currículos têm a aprender
com os processos educativos construídos pelo Movimento Negro
ao longo da nossa história social, política e educacional?3 A pós-
graduação dialoga com esses aprendizados? E têm integrado em seus
corpos docente e discente sujeitos negras e negros que fazem parte ou
foram reeducados por esse movimento social? Que sabedorias ancestrais
o Movimento Negro nos ensina? Como ele nos reeduca?4
1Giulia Simões da Costa é graduanda em Pedagogia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e
bolsista de Iniciação Científica. Apoio financeiro: Unirio. E-mail: giuliasimoes@edu.unirio.br.
2Jane Santos da Silva é professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -
5 Grifos nosso.
e objetivos.
fazendeiros e quais ações poderiam ser feitas. As respostas deliberariam quais ações seriam
adotadas para votação e encaminhadas para promulgação pelo império.
Os interesses da grande lavoura, a qual, na situação actual é ainda a base
da riqueza e properidade nacionaes, occupam seria e vivamente a
attenção do Governo Imperial, que, reconhecendo a importancia que
exercem nas condições economicas do paiz, está disposto a animal- os e
promovel-os e em tudo quanto depender da acção dos Poderes Publicos.
Com este intuito, entende o Governo Imperial que, para bem servir à
causa desse importantissimo ramo, de nossa principal industria, antes de
tudo convém obter informações seguras, esclarecimentos indispensaveis
para firmar opiniar que seja movel de suas deliberações9.
A educação da juventude negra do período, seja ela livre ou não, foi pensada com o
intuito de oferecer, nessas escolas agrícolas, uma educação profissional ligada as funções
exercidas nas fazendas, de forma a não perder trabalhadores quando estes obtivessem a
liberdade formalizada nas fazendas na região Sul do país, especificamente os estados
participantes do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, Minas Gerais, São Paulo,
Espírito Santo, Rio de Janeiro e a Corte. Que naquele momento, apesar de em declínio,
representava a hegemonia das lavouras cafeicultoras do país (CONGRESSO AGRÍCOLA
DO RIO DE JANEIRO, 1878):
Defendia-se o ensino primário para os menos favorecidos, porém para
os que apresentassem um pouco mais de capacidade e habilidade
deveriam ser encaminhados para a educação agrícola. Com isso, tirava-se
proveito da primeira infância dessas crianças, com o intuito de levar
todas as crianças nascidas libertas a trabalhar na agricultura15.
14SILVA, Noemi Santos da. Escravos, Libertos e Ingênuos na Escola: Instrução e Liberdade na Província do Paraná
(1871-1888). 2013, p. 8
15 NASCIMENTO, Maria Isabel Moura. O negro, da senzala para escola: A educação nos Congressos Agrícolas do Rio
Nas últimas décadas do século XIX e o início do século XX, nos deparamos com a
construção de organizações educativas e com sujeitos negros que exerceram iniciativas
educacionais em uma forma adversa das Colônias Agrícolas. Destacamos aqui os exemplos
dos professores Pretextato dos Passos e Silva e Hemetério José dos Santos e suas ações à
reivindicação por educação formal para essa parcela da população.
O professor Pretextato em 08 de abril de 1853, na Rua da Alfândega n° 313, no Rio
de Janeiro, abriu em sua própria casa a “Escola de Primeiras Letras” para meninos de cor
preta e parda (SILVA, 2002). Ele traçou sua escola antes da promulgação do decreto n°
1331A de fevereiro de 1854, que regulamentava a instrução primária e secundária do
Município da Corte (SANTOS, 2014). Esta regulamentação estabelecia as condições para o
funcionamento dos locais particulares e públicos que ministravam aulas e ditava uma série
de regras de conduta para exercício do magistério “cujo principal objetivo foi sistematizar o
controle do Estado sobre os professores [...]”16.
Consoante ao decreto, a escola do professor Pretextato deveria adequar-se às
normas ou correria o risco de ser fechada, sendo ela de iniciativa privada, visto que ela
surgiu a pedidos dos pais das crianças que o conheciam. Para que seus filhos continuassem
a estudar, os pais e responsáveis por essas crianças, construíram um abaixo assinado,
mesmo a maioria destes sendo analfabetos (Silva, 2002, p. 6-7) (Santos, 2014, p.47),
inserido a outros documentos recolhidos por Passos para apresentar ao Inspetor Geral da
Instrução Primária e Secundária da Corte, o ministro do Império Luís Pedreira do Couto
Ferraz.17 Apesar de ter sido acolhido os seus documentos não referendou a continuidade da
escola.
16SILVA, Adriana Maria Paulo da. “A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a respeito das práticas
de escolarização no mundo escravista”. Revista Brasileira De História Da Educação, n° 4 jul./dez.,2002, p. 6
17 Luís Pedreira do Couto ferraz, Visconde do Bom Retiro foi um político nascido no Rio de Janeiro em 1818,
frequentou a Faculdade de São Paulo, no curso de Direito, iniciando a vida política em 1844. Foi presidente da
Província do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, consecutivamente nessa ordem.
“No lastro da boa reputação que gerou na Corte, decorrente sobretudo da implantação da reforma de ensino no
Espírito Santo e no Rio de Janeiro, Couto Ferraz foi convidado para assumir a pasta dos Negócios do Império
no Gabinete de Honório Hermeto Carneiro Leão, 24 conhecido como Gabinete da Conciliação e considerado,
Abriu uma escola no Rio de Janeiro, em 1883, que funcionou ao que se tem
registro, provavelmente até 1889. Atendia do jardim da infância ao ensino primário,
posteriormente ampliada até o ensino secundário meses após sua abertura (Santos, 2019).
Foi inicialmente chamado de “Pequeno Jardim da Infancia” e mudado o nome meses
depois para “Collegio Froebel”, inspirado pela concepção educacional de Friederich
Fröbel19.
Pequeno Jardim da Infancia ou Ensino Primario Intuitivo
Professado por Hemeterio José dos Santos
Ex-explicador particular no Collegio D. Pedro II
Numero limitado: trinta alunos de 5 a 11 annos.
Preferem-se meninos completamente analphabetos.
por muitos, fundamental na consolidação do reinado de Pedro II” (Begonha Bediaga, 2017. p.7) ocupou tal cargo
de 1853 a 1857. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/topoi/v18n35/2237-101X-topoi-18-35-
00381.pdf> Acesso em 15/10/2020.
18SILVA, Luara dos Santos. “Negro, intelectual e professor: Hemetério José dos Santos e as questões raciais
de seu tempo (1875 – 1920)”. In: Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh - Rio: Saberes e Práticas
Científicas. 2014, p. 4
19 Friederich Fröbel (1782- 1852) educador alemão, que inovou com sua concepção de infância, através da
organização dos jardins infância (Kindergarten) como espaço de formação às crianças desde essa etapa
educacional, dando relevância aos jogos, cantos e dados. Sua didática da infância foi o cerne de sua práxis,
reverberando fortemente no século XIX. (CAMBI, F. A História da Pedagogia. 1999, p. 425- 427)
Pensão:
Por trimestre (adiantado)......... 25$000
Por mez (idem) ...................... 10$000
O Jardim tem mobília e apparelhos próprios.
As aulas se abrem a 1 de Março.
42 Rio-Comprido 4220.
O deixou escrito algumas obras que postulam seu grau de sofisticação e estudos,
entre eles: Gramática Elementar da língua Portuguesa (1879); O livro dos meninos (1881);
Gramática portugueza Segundo Grão Primário (1913); Pretidão de amor (1909) e Carta aos
maranhenses (1909).
Para além de experiências individuais como as dos professores indicados acima nos
fins dos 1800 e no início dos 1900 encontraremos ações coletivas de organizações negras
colocando em prática a institucionalização educativa.
Podemos citar a Sociedade Beneficente Luís Gama fundada em 18 de maio de
1888, em Campinas. “Com proposta de amparo social, a entidade abriu um “colégio” com
cursos para a educação de adultos trabalhadores, no período noturno, e para jovens, no
diurno.”21.
O colégio São Benedito na cidade de Campinas (1902), incorporado à Federação
Paulista de Homens de Cor no ano de 1910 (Domingues,2016) que iniciou suas atividades
organizado da seguinte forma:
O curso collegial é de tres annos e abrange os ensinos secundario,
intermediario e primario dividido em séries proporcionais ao
desenvolvimento intellectual do allumno. [...]
O colégio está dividido em duas secções distintas: a masculina fundada
[...] acha-se a do professor normalista Francisco José de Oliveira e a
feminina [...] cargo da professora D. Maria Luzia Pacheco e Silva22.
Fontes
Bibliografia.
Resumo
Este artigo apresenta Luaty Beirão numa história do tempo presente, em Angola, e sua
trajetória de vida: composta de ativismo e de perseguições políticas. Ele como rapper o
Ikonoklasta e sua arte quebra os muros da censura imposta pelo Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) que hoje se caracteriza como um regime sem transição
democrática de poder, limitando a liberdade de expressão. O MPLA perde cada vez mais o
seu brilho das lutas por independência de Angola e obscurece ainda mais nas crescentes
denúncias de corrupção. Assim o estudo biográfico de Luaty torna-se necessário por seu
intenso ativismo político em prol da liberdade de expressão e da anticorrupção no país
angolano, um estudo que possui o aporte teórico no conceito de Trajetória de Pierre
Bourdieu.
inquisidor-mor de Portugal e suas possessões ultramarinas. Fonte: Portugal, Dicionário Histórico. Portal da
História: http://www.arqnet.pt/dicionario/henrique_rei.html . Acessado em 15 de junho de 2020.
5O dia 20 de novembro é o Nacional da Consciência Negra no Brasil. E mesmo que tenha sido oficializado
apenas no ano de 2011, essa data é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, um dos negros que
mais combateu o sistema escravocrata português no Brasil.
6Pesquisa de significado de nome em: Nomes Angolanos. In:Nomes & Mais Nomes, o blog dos nomes
7Pesquisa de significado de nome em: Nomes originais de meninos e significado. In: Mamãe me quer.
https://www.maemequer.pt/estou-gravida/prepare-a-chegada-do-bebe/o-nome-para-o-bebe/nomes-
originais-meninos/. Acessado em 15 de junho de 2020.
8Primeiro verso da música “Meio Demônio”(Acapella Sujo) de Ikonoklasta. Música de própria autoria de
imagens nos séculos VIII ao IX que foi iniciado pelo Imperador Bizantino Leão III. Nem as imagens de
Cristo e da Virgem Maria eram aceitáveis, tendo-se a representação da cruz sem o Redentor. O que mostra a
intenção de Luaty Beirão de criticar o culto às imagens numa Angola em que as estátuas do MPLA se
destacam mais do que a história do próprio país.
10MICAEL, Manuela. Luaty, o filho do apoiante do presidente que contesta o regime. TVI24. Disponível em:
https://tvi24.iol.pt/internacional/luaty-beirao/luaty-o-filho-do-apoiante-do-presidente-que-contesta-o-
regime. Acessado em: 17 de junho de 2020.
11O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), fundado em 1956, lutou nas guerras de
independência (1961-74), assumiu o poder do país entre os anos de 1974-75 e se mantém até os dias de hoje,
sem mudança democrática. Mais informações em: http://mpla.ao/. Acessado em: 21 de junho de 2020.
12José Eduardo dos Santos foi o segundo presidente de Angola entre os anos de 1979 e 2017. Os 38 anos sem
alternância de poder no governo demonstram a fragilidade democrática angolana frente ao regime político do
MPLA que ainda se mantém no poder sob o governo do atual Presidente da República João Lourenço.
13A última atualização da Revista Forbes sobre a riqueza de Izabel dos Santos é do dia 01 de julho de 2020 e a
cotação do dólar para o real é do dia 05 de julho de 2020, com o dólar valendo 5,31 reais. Mais informações
em: https://www.forbes.com/profile/isabel-dos-santos/#27684486523f. Acessado em 05 de julho de 2020.
14Matéria da equipe da BBC do dia 21 de janeiro de 2020 com o seguinte título: Os documentos que revelam como a
mulher mais rica da África fez fortuna com corrupção e exploração de seu próprio país. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51173638. Acessado em: 20 de junho de 2020.
Bem, antes de continuarmos, convido a todos para uma reflexão sobre a obra do
Ikonoklasta. Falo da obra artística que foge a todo momento da censura e busca no rapper
uma linguagem mais marginal da sociedade para atender melhor o público com quem Luaty
se comunica: um público jovem, marginalizado pela sociedade e que mais sofre as
desigualdades sociais. Assim há letras15 de músicas e arte política. Sua mãe foi Ana Paula
Silva, vocalista da banda “Os Jovens”16, e segunda colocada no concurso de Miss Angola de
197017. Portanto, é de se pensar que a mãe pode ter influenciado a trajetória do filho no
meio artístico e a liberdade de produzir o levou a sair da bolha de um regime totalitário.
Pois vale destacar que Beirão estudou Engenharia Eletrotécnica em Plymouth (Reino
Unido) e Economia em Montpelier (França), o que é de fato um privilégio por ter origem
num país pobre como Angola, mas quem sabe foi respirando ares diferentes que ele pode
contestar o diferente na percepção do Outro e abrir os olhos para a realidade política e
social de seu país natural.
A música já tocava e as pessoas a cantavam, porém foi no ano de 2015 que o
Ikonoklasta se mundializou como principais notícias jornalísticas dentro e fora da África.
Ele havia sido preso, junto com outros ativistas, acusados de conspiração contra o
Presidente José Eduardo dos Santos. O processo ficou conhecido como o Processo dos
15+2, onde 17 ativistas políticos sofreram prisões políticas arbitrárias em 20 de junho de
201518, por simplesmente se manifestarem publicamente contra a corrupção em Angola, ao
se reunirem para discutirem um livro19 censurado pelo regime. Lembrem que Isabel dos
Santos é filha de Eduardo dos Santos. Pois bem, após uma greve de fome (36 dias)20 e
seguidas internações médicas (consequentes dessa greve) a opinião pública internacional
investigação rasa leva-me a suspeitar que “Os Jovens” era uma banda de rock, o que carece de maiores
pesquisas sobre essa banda.
17Oficialmente, o concurso de Miss Angola foi fundado em 1997, portanto a mãe de Luaty foi eleita a
segunda mulher mais bonita de Angola num contexto bem diferente do dia de hoje. Pois em 1970, Angola
ainda era colônia de Portugal o que influenciou nos padrões estéticos nacionais. E vale destacar que no ano
de 2011, Leila Lopes foi coroada a Miss Universo, enaltecendo mulher angolana.
18Formalmente acusados em 16 de setembro de 2015, por planejarem uma conspiração contra José Eduardo
dos Santos.
19CRUZ, Domingos. Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura: Filosofia Política da Libertação para
Angola. Luanda: Mundo Bantu / Observatório da Imprensa, 2015. Como o livro é clandestino, segue o link
do PDF: https://www.makaangola.org/wp-content/uploads/2015/11/Ditadura final Print.pdf
20DIAS, João de Almeida. Luaty Beirão: o rapper em greve de fome que enfrenta o regime angolano a partir de
deu amplo destaque no cenário internacional, mas, mesmo assim, os ativistas foram
condenados à cinco anos e seis meses de prisão no dia 28 de março de 2016, tendo o
Tribunal Supremo de Luanda deferido a liberdade condicionada dos ativistas em 29 de
junho do mesmo ano. Hoje, o Ikonoklasta ainda compõe e canta para levar em sua arte a
sua militância política, lógico que com certo distanciamento físico de Angola para não ser
novamente preso, mas sempre presente em seu país nas suas letras de críticas sociais.
Em relação a história de vida do Luaty Beirão podemos constatar que a vida é
constituída por um conjunto de acontecimentos que permitem conceber histórias e relatos
quando se trata dos estudos biográficos, segundo a perspectiva de Pierre Bourdieu21 é
necessário reconstruir o relato por meio do contexto histórico e social em que o Luaty
Beirão age. É percebido que os relatos biográficos são concedidos pelo Luarty a partir da
seleção dos eventos que são importantes para ele, podendo seguir uma sucessão
cronológica que muitas das vezes foge da ordenação linear do calendário para seguir a sua
preferência de eventos. Acredita-se que tanto o nós e o Beirão possuímos o mesmo
interesse de aceitação diante ao “postulado de sentido da existência narrada”22 que tende a
seguir um sentido.
O fato do Henrique Luaty da Silva Beirão possuir um nome próprio, de batismo, e
ao mesmo tempo possuir outro nome artístico assinado como Ikonoklasta permite mostrar
a sua relação com o mundo social, a medida que os seus nomes de batismo e artístico
revelam constantemente as suas identidades sociais. Pois “garante a identidade do indivíduo
biológico em todos os campos possíveis onde ele intervém como agente, isto é, em todas
as suas histórias de vida possíveis”23. O nome de Luaty, por ser um identificador da
identidade social, aborda desde as suas origens familiares às demais informações que vão
além de pertencimento da sua vida privada que é compartilhada com o Estado e em
diferentes tempos e espaços sociais.
A compreensão sobre a história da vida de Luaty Beirão somente será
compreendida através do contexto histórico e social em que ele nasceu. Em momentos de
guerra civil, numa Angola entrelaçada na sua origem familiar e considerando o seu período
de estudos no exterior que permitiu uma mudança radical do seu ponto de vista e
posicionamento por meio de sua arte, para suscitar os questionamentos ao regime do
21BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta. Usos & abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-191.
22Idém, p. 184.
23Idém, p. 186.
MPLA no país angolano. Assim o estudo biográfico possibilita não somente acessos às
informações de sua vida privada, como também de sua imagem pública, na tentativa de
buscar as ideias que fizeram mudar suas atitudes e posturas, tornando-o um filho ingrato
do partido preponderante em Angola. Assim sendo possível usar o conceito de Trajetórias24
que pode ser entendo enquanto uma “série de posições sucessivamente ocupadas por um
mesmo agente”25, no caso o Luarty Beirão.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta. Usos
& abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-191.
CRUZ, Domingos. Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura: Filosofia Política da
Libertação para Angola. Luanda: Mundo Bantu / Observatório da Imprensa, 2015.
Disponível em: https://www.makaangola.org/wp-content/uploads/2015/11/Ditadura
final Print.pdf
DIAS, João de Almeida. Luaty Beirão: o rapper em greve de fome que enfrenta o regime
angolano a partir de uma cama de hospital. O observador, 2015. Disponível em:
https://observador.pt/2015/10/12/luaty-beirao-rapper-greve-fome-enfrenta-regime-
angolano-partir-cama-hospital/. Acessado em 22 de junho de 2020.
MICAEL, Manuela. Luaty, o filho do apoiante do presidente que contesta o regime. TVI24,
2015. Disponível em: https://tvi24.iol.pt/internacional/luaty-beirao/luaty-o-filho-do-
apoiante-do-presidente-que-contesta-o-regime. Acessado em: 17 de junho de 2020.
NOGUEIRA, Rodrigo. Luaty Beirão: 5 músicas de um rebelde. O observador, 2015.
Disponível em: https://observador.pt/2015/10/16/luaty-beirao-5-musicas-de-um-
rebelde/. Acessado em: 21 de junho de 2020.
Ikonoklasta – MeioDemônio (Acapella Sujo). YouTube, 2018. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gXhqaJniDl0. Acessado em: 17 de junho de 2020.
Isabel dos Santos. Forbes, 2020.Disponível em: https://www.forbes.com/profile/isabel-dos-
santos/#27684486523f. Acessado em: 05 de julho de 2020.
Os documentos que revelam como a mulher mais rica da África fez fortuna com corrupção
e exploração de seu próprio país. BBC NEWS, 2020. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51173638. Acessado em: 20 de junho de
2020.
Portugal, Dicionário Histórico. Portal da História, 2020. Disponível em:
http://www.arqnet.pt/dicionario/henrique_rei.html . Acessado em: 15 de junho de 2020.
Nomes Angolanos. Nomes & Mais Nomes, o blog dos nomes portugueses, 2012. Disponível em:
http://nomesportugueses.blogspot.com/2012/07/nomes-angolanos.html. Acessado em:
15 de junho de 2020.
Nomes originais de meninos e significado. Mamãe me quer, 2020. Disponível em:
https://www.maemequer.pt/estou-gravida/prepare-a-chegada-do-bebe/o-nome-para-o-
bebe/nomes-originais-meninos/. Acessado em: 15 de junho de 2020.
24Idém, p. 189.
25Idém, p. 189.
Marcelle Carvalho1
Resumo:
A colonização da Libéria foi elaborada como projeto organizado pela Sociedade Americana
de Colonização, dos EUA, e se desenvolveu ao longo do século XIX. Esse texto propõe
pensar tal iniciativa por três vieses que se entrelaçam. Partiremos da construção de um
discurso proto-pan-africanista pelos indivíduos envolvidos na colonização. Num segundo
momento, pensaremos as identidades e seus tensionamentos na efetivação da migração.
Por fim, discutiremos algumas resistências ao projeto. O texto tem por objetivo refletir
sobre a busca de um lugar de acolhimento, direitos e liberdade para uma população
violentada pela escravidão e pelo racismo. E, por outro lado, perceber os conflitos
impostos.
1 Doutoranda em história social, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com bolsa de financiamento
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Mestra em História, pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Licenciada e Bacharela em História, pela Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP). e-mail: marcellecarvalho.historia@gmail.com
Esse trabalho é fruto da pesquisa de doutorado em andamento, financiada pela CAPES.
2 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-
3 WALKER, Grant. A conspiracy in colonize 19th century United States free blacks in Africa by American Colonization
Society. Trafford Publishing, 2014.
4 OLUKOJU, Ayodeji. Culture and Customs of Liberia. Westport, Connecticut; London: Greenwood Press,
2006, p. 01.
5 A expressão “pan-africanismo” só foi elaborada na “Conferência dos povos de cor”, de 1900, realizada na
Inglaterra.
6 PAIM, Márcio. Pan-africanismo: tendências políticas, Nkrumah e a crítica do livro Na Casa de Meu Pai.
Sankofa: Revista de História da África e de Estudos de Diáspora Africana, Ano VII, n. XIII, Julho, 2014.
Defendia um destino comum para todos os negros, independente da história de cada povo,
sua ecologia, ou qualquer outra especificidade. Foi uma das primeiras pessoas a falar como
negro no continente e, por tudo isso. Crummel via o negro como unidade política natural,
semelhante aos italianos ou anglo-saxões.7 Ele deu seu próprio exemplo como argumento
de convencimento da validade da emigração para Libéria como opção redentora, em suas
palavras “Decidi então por mim e por meus filhos, na medida em que um parente pode
determinar o futuro de sua linhagem, que a Libéria deve ser nosso país e nosso lar para
sempre. Nem me arrependi desta eleição.”8 Contudo, Crummel ainda usou muitos
elementos negativos para representar a África e os africanos e isso deixou um legado
incômodo para os negros. 9
No fim do século XIX, ainda havia muitas defesas das ações da SAC, entre elas
cabe destaque para outro grande precursor das ideias pan-africanistas: o ativista negro
Edward Wilmot Blyden (1832-1912). Ele viveu parte de sua vida na Monróvia (capital da
Libéria), e em Freetown (capital de Serra Leoa). Blyden se frustrou com as ações e atitudes
dos missionários e pediu demissão da igreja presbiteriana em 1886.10 Mas manteve sua
admiração pela SAC, na obra Cristianismo, islamismo e a raça negra (1887), afirmava que
“nenhuma ação ainda foi tentada no sentido de regeneração da África que prometesse
tanto e fosse capaz de tanto para o bem estar permanente do povo como o método da
Sociedade Americana de Colonização (SAC) no estabelecimento da Libéria.” (tradução
livre)11 Ele defendia as ações dos Estados Unidos, oferecendo os meios para “o progresso e
o desenvolvimento da República da Libéria”. Blyden se envolveu ainda no
desenvolvimento de elementos valorizados da cultura ocidental na Libéria, como:
estabelecimento de escolas, o avanço do cristianismo, o fomento do conhecimento para o
trabalho mecânico e agricultura.
7 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997.
8 No original: [...] I then decided for myself and for my children, so far as a parente can determine the future
of his line, that Liberia should be our country and our home forever. Nor have I repented this election.
(CRUMMELL, Alexander. Destiny and Race: Selected Writings, 1840-1898. Amherst: University of
Massachusetts Press, 1992, p. 166).
9 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997.
10 LYNCH, Hollis R.. Edward Wilmot Blyden: Pan-Negro Patriot, 1832-1912. Oxônia: Oxford University Press,
1970, p. xv).
11 No original: “No agency has yet been tried for the Africa’s regeneration which promises so much and is
capable of so much for the permanent welfare of the people as the method of the American Colonization
Society in the establishment of the Liberia.” (In: BLYDEN, Edward Wilmot. Christianity, Islam and the Negro
Race. Baltimore, Maryland: Black Classic Press, [1888] 1994, p. 450).
12 TIBEBU, Teshale. Edward Wilmot Blyden and the Racial Nationalist Imagination. University Rochester Press,
2012, p. 96.
13 LYNCH, Op. Cit., p. 251.
14 APPIAH, Op. Cit., 1997.
15 MELISH, Joanne Pope. Disowning Slavery: Gradual Emancipation and "Race" in New England, 1780-1860. Ithaca:
Cornell University Press, 1998.
16 HETRICK, Matthew J.. African American Colonization and Identity: 1780-1925. Tese. Faculty of the University
convenções e jornais. Por exemplo, Hamilton, ativista negro estadunidense citado acima, na
Convenção, lamentou a separação da América em “brancos, escravos e população livre de
cor”.18
As noções de raça foram reavaliadas e reformuladas continuamente, inclusive,
para muito além de dicotomias, como: negro-branco, escravo-livre que eram
predominantes nos Estados Unidos. A SAC incentivou os emigrantes a se considerarem
missionários civilizados, reforçou a ideia de uma África selvagem, que precisava de
intervenção. A sociedade liberiana que se desenvolveu tornou-se estratificada,
excluindo os africanos "selvagens", frequentemente explorando-os e, muitas vezes, até
escravizando-os, fazendo-os vítimas de um projeto que se propunha redentor para a
população negra.19
Desta forma, os emigrantes em contato com os habitantes locais e o lugar de
recebimento (a África) passaram a pensar a si mesmos e perceberem as mudanças sofridas
no tempo transcorrido entre a saída dos antepassados e o que definiam como o “retorno à
África”. Logo, reavaliaram suas semelhanças e diferenças e perceberam que as identidades
traçadas não tinham mais sustentação em seu período histórico, fazendo com que os
antigos termos fossem selecionados e ressignificados pelos indivíduos no trânsito entre os
continentes conforme as novas vivências. Em choque com essa cultura imposta a eles,
como se fosse de origem, percebem a artificialidade das criações.
Assim terminamos com a reflexão de Stuart Hall que nos alerta que “as
identidades podem funcionar, ao longo de toda a sua história, como pontos de
identificação e apego apenas por causa de sua capacidade para excluir, para deixar de
fora, para transformar o diferente em exterior abjeto” 20. Transpondo sua reflexão para a
colonização da Libéria, a citação nos faz pensar o quanto as identidades norte -
americanas brancas (nortistas e sulistas) buscavam excluir os negros de suas
identidades; o quanto os negros e negras que emigraram tiveram que criar pontos de
identificação e lidar com novas exclusões de suas identidades, excluindo os habitantes
das comunidades africanas originais.
21 GREENE, Ousmane kirumu. Against wind and tide: African Americans’ Response to the Colonization Movement and
Emigration, 1770 – 1865. 2007. 521 f. Tese. University of Massachusetts Amherst. Amherst. 2007, p. 02.
22 No original: “African rights and liberty is a subject that ought to fire the
breast of every free man of color in these United States”. (STEWART, Maria W.. An Address Delivered at
the African Masonic Hall. Boston, February 27, 1833. IN: PORTER, Dorothy, Ed., Early Negro Writing, 1760
– 1837. Boston: Beacon Press, 1971, p. 133).
23 GREENE, Op. Cit., p. 141-142.
24 No original: I observed a piece in the Liberator […], stating that the colonizationists had published a work
respecting us, asserting that we were lazy and idle. I confute them on that point. Take us generally as a
people, we are neither lazy nor idle…although I acknowledge, with extreme sorrow, that there are some who
never were and never will be serviceable to society. And have you not a similar class yourselves? (STEWART,
Maria. A lecture by Maria W. Stewart, given at Franklin Hall, Boston, September 21,1832. In: James Walvin
(comp.) SLAVE VISIONS The Aspirations and Hopes of Slaves and Former Slave. Paris: UNESCO, 2001, p. 60).
25 HETRICK, Op. Cit., p. 124
26 GREENE, Op. Cit, p. 141-142
Considerações finais
Fontes:
BLYDEN, Edward Wilmot. Christianity, Islam and the Negro Race. Baltimore: Black Classic
Press, [1888] 1994.
27HOLCOMB, Julie. Abolitionism. In: HYMAN-KATZ, Marth B.; RICE, Kym.(Eds.) World of a Slave:
Encyclopedia of the Material Life of Slaves in the United States, Volume 2. Santa Barbara, California; Denver,
Colorado; Oxford, England: Greenwood. 2011, p. 64.
Bibliografia
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997.
CLEGG, Claude A., The Price of Liberty: African Americans and the Making of
Liberia. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004.
FRANKLIN, John Hope & MOSS, Alfred A.. Da escravidão a liberdade: a História do Negro
Americano. Nórdica, 1989.
GREENE, Ousmane kirumu. Against wind and tide: African Americans’ Response to the
Colonization Movement and Emigration, 1770 – 1865. 2007. 521 f. Tese. University of
Massachusetts Amherst. Amherst. 2007.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença.
Petrópolis (RJ): Vozes, 2014
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Resumo
Este estudo tem como objetivo geral investigar a relação do Grêmio Recreativo Escola de
Samba Educativa Império da Tijuca com a educação e as relações étnico-raciais no
transcorrer de sua trajetória, uma vez que, desde sua fundação, a agremiação tem se
preocupado em ofertar ações pedagógicas para sua comunidade localizada Morro da
Formiga, zona norte do Rio de Janeiro. A pesquisa busca também analisar como tal
entrelaçamento pode ser encontrado nas narrativas propostas pela agremiação, em especial
no enredo no carnaval de 2020 Quimeras de um eterno aprendiz, uma homenagem ao Evando
dos Santos, o Homem- Livro. Para isso, utilizaremos os seguintes aportes teóricos: Bakhtin
(1987), Cavalcanti (1999), Carvalho (1987) Lopes e Simas (2015) e Faria (2018) em diálogo
com a entrevista concedida pelo carnavalesco Guilherme Estevão e periódicos de grande
circulação.
Introdução
2 DUARTE, Francisco. “Sambar não é só sambar”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 fev. 1980. Caderno B,
p.6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1980_00312.pdf>. Acesso em: 19 jun.
2020.
3 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Para o carnavalesco Estevão, as escolas de samba podem ensinar por meio de suas
artes/criações, não ficando restritas a serem somente espaços de recreação e de inversão de
papéis e transgressões. A agremiação passa uma mensagem para o público, ação semelhante
ao do professor. O enredo é o fio condutor, é o motor principal de todo potência
pedagógica e cultural que uma escola de samba possui e para iniciar o desfile, o
carnavalesco homenageou grandes educadores brasileiros tais como Paulo Feire, Darcy
Ribeiro, Florestan Fernandes, Maria Nilde Mascellani e Anísio Teixeira. Já no último setor
da escola, Estevão retratou a própria história da agremiação com a educação, com destaque
ao momento de fundação da verde e branco do Morro da Formiga, que nasceu de dentro
de uma escola de alfabetização.
O carnavalesco segue ao afirmar:
Eu vejo escola de samba como uma entidade recreativa e cultural. Mas
para, além disso, sempre vi como pesquisador e, como profissional que
sou hoje, um instrumento pedagógico e talvez seja essa a maior relação
com educação do professor. Eu acho que a escola de samba tem que
gerar algum tipo de reflexão, algum tipo de construção, de algum saber.
Ela transmite uma série de informações e, de alguma maneira, se constrói
e ali na avenida pelo entendimento de cada um dos espectadores e pela
forma como a escola passa aquela mensagem. Então eu acho que esse
caráter é fundamental e é por muitas vezes, não é visto com tanta
relevância até para os sambistas e de uma maneira geral, pela sociedade.
A escola de samba acaba sendo vista apenas como um espaço de
extravasar, de inversões... Enfim, um espaço de recreação e não como
um espaço de conhecimento, mas eu acho que tudo isso está ligado a
uma maneira como o carnaval é vendido e midiatizado. Ai se constrói
um discurso muito errado e que gera uma série de consequências, entre
elas a que gente está sofrendo hoje em dia. 6
6ESTEVÃO, 2019.
7BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: HUCITEC; Editora da Universidade de Brasília, 1987.
Assim, seja na Avenida ou nos bancos escolares defender a democracia, é lutar por
país mais justo, com oportunidade de para todos e com garantias constitucionais. Uma das
primeiras tarefas desse desafio é compreender uma gestão democrática em todas as esferas
da sociedade e ampliar a compreensão dos espaços formativos. Como conta, o
carnavalesco do Império da Tijuca:
O barracão não deixa de ser uma escola, porque no barracão é uma troca
de conhecimento, uma troca de aprendizado e a construção de um
projeto. Eu acabo sendo uma espécie de professor também. Só que ao
mesmo tempo eu sou aluno, porque muitas vezes os profissionais
conhecem uma série de coisas que eu não conheço, me ensina. Mas sou
eu que tenho que, de alguma maneira direcionar um caminho para eles.
Então é trocar super gostosa e super interessante. Eu acho que de tudo é
o que as pessoas não enxergam, porque não tem acesso, mas talvez seja o
mais rico de todo o processo de construção no carnaval. 8
compreende os enredos e suas respectivas letras dos sambas, sobretudo em meio à década
de 1960, como porta-vozes das identidades étnico-raciais negras do país no que tange suas
questões raciais e as ações de combate ao racismo.
Considerações finais
Bibliografia
Entrevista
Resumo
1 Doutoranda em História Política na linha de Política e Cultura pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) sob a orientação do Prof. Dr. Washington do Nascimento. Membro do Grupo
Interinstitucional de Pesquisa Áfricas (UERJ-UFRJ) - http://grupoafricas.wix.com/site e pesquisadora no
projeto de pesquisa Angola (século XX): dinâmicas sociais e trânsitos culturais. Esta pesquisa conta com o
financiamento da FAPERJ.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2 MUDIMBE, Valentin-Yves. Discurso de Poder e o conhecimento da Alteridade in: A invenção da África. Luanda:
Editora Mulemba, 2013, p. 26.
3 Idem, p. 28.
4 "Ministério das Colónias - Secretaria Geral. Decreto n.º 18.570". Diário do Govêrno. I Série. Nº 156. 8 de
julho de 1930. P. 1308.
5 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n.32, dezembro de 2016,
p. 132.
6 FERREIRA, José Carlos Ney e VEIGA, Vasco Soares da. Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da
7 Idem p. 13.
8 NASCIMENTO, Washington S. Gentes do Mato: os "Novos Assimilados" em Luanda (1926-1961). Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2013.
9 Idem p. 113.
fábricas, não administravam bancos, transportes ou comércios; eram em sua grande maioria
assalariados e ocupavam cargos subalternos.10
O sistema de ensino era a réplica do aplicado em Portugal, utilizava do mesmo
material didático que constavam informações sobre a geografia e história portuguesa e
apenas uma página trazia informações sobre Angola, pois a proposta era formar a
sociedade colonial sob a luz das virtudes morais e cívicas a partir da doutrina cristã.
Percebemos isso no artigo abaixo do Estatuto do Indígena da Lei Orgânica de Ultramar de
1953:
Artigo 6º - O ensino que for especialmente destinado aos indígenas deve visar
aos fins gerais de educação moral, cívica, intelectual e física, estabelecidos nas
leis e também à aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, de harmonia com os
sexos, as condições sociais e as conveniências das economias regionais.
1º O ensino a que este artigo se refere procurará sempre difundir a língua
portuguesa, mas, como instrumento dele, poderá ser autorizado o emprego de
idiomas nativos.11
MATEUS, Dalila Cabrita. A luta pela independência. Mem Martins: Editora Inquérito, 1999, p. 23.
10
FERREIRA, José Carlos Ney e VEIGA, Vasco Soares da. Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da
11
12FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.
São Paulo: Paz e Terra, 2011, pág. 49.
cultural de suas sociedades, de tal forma que as tornariam sujeitos participativos dessa
narrativa, donos de sua própria história. Afirmava que apesar dos séculos de colonização
perversa que os portugueses infligiram nos países africanos, os grupos étnicos conseguiram
manter suas raízes culturais e linguísticas ao se esconderem nas florestas, e assim
preservaram suas histórias nativas, suas crenças e sua fé, sendo um obstáculo para a
implementação do projeto civilizatório português. Com a saída da metrópole de suas
províncias ultramarinas, tem início um movimento de retorno as tradições, as práticas
cotidianas religiosas com seus ritos, músicas e danças. Entretanto, a herança da
colonialidade portuguesa imputada nas sociedades africanas atuou como um grande desafio
para a percepção do que “cabia e o que não cabia de seus costumes e crenças no mundo pós-
industrial”13. O que encontramos hoje é a grande dificuldade em conseguir distinguir o que é
preciso preservar e o que se deve abandonar para se inserirem no século XXI; que aceitem
que são diferentes, não inferiores.
A influência da pedagogia de Freire em Angola se encontra na formulação do
material didático utilizado pelos militantes do MPLA dentro das florestas, espaço que se
concentravam os CIR’s. O professor e escritor Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos,
conhecido pelo pseudônimo de Pepetela, durante a guerra de libertação angolana ocupava a
função de guerrilheiro associada à elaboração do material de alfabetização. Neste trecho ele
conta como teve contato com as ideias de Freire:
Tive contato com as ideias de Freire em Argel ainda, em 1965, quando fiz o
material de alfabetização, que se chamava ‘A vitória é certa!’, creio. Esse manual
de alfabetização, que depois foi mais ou menos adaptado, depois da
independência, para servir como manual de alfabetização nas primeiras
campanhas daqui. Foi aí que tive contato com uns camaradas brasileiros, que
eram exilados políticos. Já havia a ditadura militar, tinham ido para Argel. Acho
que foi o primeiro grupo, ligado ao sequestro de um embaixador. Falaram e
depois arranjaram-me mesmo algum material do Paulo Freire, que, no fundo,
acabou por nos servir como mola inspiradora para algumas coisas,
particularmente o manual. Porque – e isso é do Paulo Freire – cada lição tinha
um desenho, e a primeira discussão era sobre o desenho, o que levava até uma
palavra, a palavra-chave. Aí era decomposta a palavra e depois começava enfim
a alfabetização. Esse método era uma tentativa de adaptação do método Paulo
Freire a um manual escrito, o que é contrário ao método , em princípio, não é?14
Era notória a preocupação dos militares brasileiros com a circulação de Freire pela
África em processo de descolonização. De maneira geral, o governo militar brasileiro se
preocupava com a circulação de "professores brasileiros de esquerda, inimigos confessos do regime".
Com o exílio de uma quantidade considerável de intelectuais brasileiros que se colocaram
13 Idem p. 26-27.
14 Idem, p. 148-149.
contra o golpe de 1964 como também formaram resistência contra a condução do governo
ditatorial, boa parte desses intelectuais refugiaram-se pela Europa e passaram a atuar como
professores nas universidades e institutos técnicos. No relato abaixo do embaixador
brasileiro em exercício em Portugal durante a década de 70 – Carlos Alberto Fontoura,
podemos compreender como eram vistos esses pensadores:
Essas iniciativas, que, com o beneplácito oculto do Ministério da Educação
Nacional, vem sendo coordenadas pelo conselheiro de Estado Rui Luís Gomes,
Reitor da Universidade do Porto e antigo professor no Recife, conhecedor dos
seus colegas brasileiros de magistério superior e de contestação política, já
trouxe a Portugal Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Carlos Figueiredo de Sá, Plinio de
Arruda Sampaio, Hernane Fiori, Marcio Moreira Alves e outros. A presença
desses elementos, e dos demais que estão para vir, os quais, posto
ideologicamente diferentes entre si, estão unidos pelo denominador comum da
militância política anti-Revolução (SIC) de 1964, seria apenas pouco
inconveniente para o Brasil se ficasse limitada ao âmbito universitário.15
15Arquivo nº 8 sobre Portugal: territórios africanos de expressão portuguesa, perspectiva das relações com o
Brasil. Lisboa: Embaixada do Brasil, outubro/1974, p. 41-42.
vivenciar essa vitória, pois foi assassinado dois anos antes em Conacri, capital da Guiné,
por membros do seu próprio partido.
Freire e Cabral foram homens que se comprometeram com a difusão do
pensamento crítico; ambos consideravam “que o conhecimento só pode ser legitimado
epistemologicamente se tiver origem na prática e politicamente, se se tornar instrumento de intervenções mais
conscientes na mesma prática”16. Também concordavam que a revolução é permanente, pois a
libertação definitiva só seria alcançada de maneira plena quando o povo dessa nação se
libertasse das racionalidades que os colonizadores deixaram profundamente enraizadas na
consciência dos ex-colonizados, num movimento chamado por Amílcar Cabral de
“africanização do espírito”.
Este processo revolucionário que tanto Freire quanto Cabral concordavam ser de
primeira necessidade não estava diretamente ligado a utilização de armas, mas sim a uma
revolução cognitiva, onde a sociedade colonizada superasse a racionalidade da colonialidade
a partir do processo de descolonização das mentes. Mais do que uma transformação, essa
revolução modificaria por completo as estruturas econômicas, políticas e sociais, seria a
Revolução da Razão e aqui o termo razão é utilizado como visão de mundo que pertence a
uma classe social específica.
A revolução tem de estar presente na própria elaboração da ontologia (teoria do
ser), da gnosiologia (produção do conhecimento) e da epistemologia (teoria do
conhecimento), ou seja, na ciência do ser humano, nas elaborações e
representações humanas a respeito dos seres, dos fenômenos e dos processo e
na que analisa as formas de produção do próprio conhecimento humano. 17
16 GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José Eustáquio. Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes. São
Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2012, p. 9.
17 Idem, p. 15-16
18 FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.
que tinha como base primordial a oralidade, colocando no papel as ideias que foram
discutidas nos grupos de elaboração do projeto educacional, facilitando o progresso do
trabalho de alfabetização, pois preparava os quadros que atuariam diretamente com a
população.
A obra “Cartas à Guiné-Bissau”, não atoa, foi dedicada à memória de Amílcar
Cabral. De acordo com Mario Cabral, Freire foi o que melhor compreendeu as ideias de
Amílcar sobre a educação, o considerando um grande pedagogo, mesmo não o tendo
conhecido pessoalmente.
Seja para qual nação africana irmã estivesse falando, a proposta freireana se insere
na importância de se desenvolver em África o reconhecimento como sujeitos diferentes,
que diante de suas contradições e fragilidades em comparação ao processo de
mundialização, possa ser reconhecida e se libertar como nações livres e independentes, mas
o que acompanhamos atualmente, é que no afã de incluírem seus países no mundo
globalizado/industrial/capitalista, numa tentativa de recuperar o tempo que foram apenas
território de exploração, os governos africanos estão pulando as etapas dos processos
endógenos de desenvolvimento como nações, permitindo assim que a exploração se
perpetue.
As marcas do colonialismo em suas antigas colônias ainda estão latentes: foram
colônias de exploração econômica e hoje são nações independentes, mas que permanecem
com o sentimento de submissão em relação às potências mundiais, que as levam a
dependência, numa nova roupagem.
A grande contribuição de Freire para a atualidade é pensar se as condições
apresentadas devem ser aceitas como um destino divino, e a resposta do pedagogo é clara:
não!
É de dentro das fragilidades e das contradições é que podem surgir as novas
relações que possibilitam estabelecer novas condições de vida, nascidas na e da
radicalidade humana - a esperança -, intrínseca à nossa natureza de seres sensíveis
e pensantes, construindo-nos, ininterruptamente, fizemo-nos, então, seres
capazes de projetar o futuro histórico de nossas vidas e o das nossas
sociedades.19
19FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.
São Paulo: Paz e Terra, 2011, pág. 30.
sua história com as marcas da colonização. Que juntas possam ser as protagonistas da
guinada epistemológica, modificando por completo a visão reproduzida mundo afora.
Bibliografia:
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Paz: Lisboa, 2017.
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FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São
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MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n.32,
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Resumo
Introdução
1 Os ’Macuas são uma comunidade etnolinguística de falantes da língua com o mesmo nome (Macua ou
emákhuwa) e destaca-se por ser a que mais falantes tem em Moçambique, sobretudo na região norte, nas
províncias de Nampula, Niassa, Cabo Delgado e Zambézia (agora Centro). É a língua que se ouve nas ruas,
mercados, e estradas, no dia-a-dia. A língua oficial do país, usada nas repartições, bancos, escolas,
administração é o português. Moçambique é um país multi-étnico, cuja riqueza e complexidade cultural se
manifesta nas mais de vinte línguas faladas no território’’.
2 Mestre em Turismo pela Universidade Federal Fluminense-UFF, Bolsista do Conselho Nacional de
Comunidades
“De acordo com Carolina Teles Lemos comunidade é um dos conceitos mais vagos
e evasivos nas ciências sociais”, devido aos diferentes significados e conotações atribuídas a
palavra5. Não obstante Mocellim afirma que comunidade é um dos conceitos das ciências
sociais que, por mais que o tempo passe permanece controverso6.
Segundo Roberto Esposito comunidade não é o entre do ser, mas o ser como entre
significa não é uma relação na qual o ser modela a relação, mas o próprio ser como
relação7. Para Bauman o que quer que comunidade signifique remonta à “coisa boa”, as
companhias ou à sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade é viver
entre pessoas amigáveis e bem intencionadas. Para o autor, comunidade é tudo aquilo de
que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes8.
Para Bauman o que caracteriza as comunidades antigas é o entendimento
compartilhado por todos os integrantes, este entendimento natural e tácito, precede
acordos e desacordos. Parte integrante da idéia de comunidade é a “obrigação fraterna de
partilhar as vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles”.
De acordo com Glossário da Lei de Terra em Moçambique comunidade local
constitui:
Agrupamento de famílias e indivíduos vivendo em circunscrição territorial de
nível de localidade, ou inferior, que visa a salvaguarda de interesses comuns
através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou
em pousio, florestas, locais de importância cultural, pastagens, fontes de água,
áreas de caças e de expansão9.
12 Bantu terminologia usado pelo linguista alemão Bleek em 1862 para designar as 300 línguas Africanas com
terminações Muntu para mencionar pessoas - Homens. na língua Macua Pessoa significa Mutxu, não tem as
mesmas terminações, sendo o elemento que coloca dúvida na descendência destes povos através dos Bantus.
Tendo em conta que a teoria dos bantus não esgota os questionamentos surge à
segunda teoria que busca esclarecer a origem da comunidade Macua. A segunda teoria
defende que estas comunidades são originárias do monte Namuli, segundo os autóctones
foi exatamente no monte Namuli onde Deus criou o homem e a natureza mitologicamente
considerados pelos nativos o berço da humanidade14.
O Monte Namuli constitui a segunda montanha mais alta de Moçambique com
2.419 metros, localizado na província da Zambezia distrito de Guruè.
Segundo o mito local, no passado era vedado ao indivíduo escalar o monte até uma
determinada região de forma a preservar o sagrado, caso o indivíduo violasse os espaços,
cairia nas mãos do guardião do monte, esta figura mística simbolizava o guarda da prisão.
Segundo Anders Lindegaard,
“Antigamente só se podia escalar a montanha até um determinado sítio, a partir
daí, era proibido, porque era terra sagrada. O castigo de quem se aventurasse até
à parte de cima do monte era (como é muitas vezes, nesta parte do mundo, o
castigo de quem viola alguma regra costumaria) a pessoa perder-se-ia e nunca
mais encontraria o caminho para casa. O que é original – e delicioso – na lenda
Macuas é a maneira como a pessoa se perde: se o guardião eterno da montanha
lá apanhar alguém, começava a falar com essa pessoa tanto e tão depressa que a
confundia completamente; e ela, de tão baralhada que ficava, nunca mais
encontrava o caminho de volta a casa”.Lindegaard15.
De forma diferente são apresentados os exemplos, mas todos têm algo em comum
que é o duro preço da “segurança” pago por desobedecer ou infringir uma lei costumeira.
Segundo o conceito de Bauman “Os mitos não são histórias divertidas, seu objetivo é
ensinar por meio da reiteração sem fim de sua mensagem: um tipo de mensagem que os
ouvintes só podem esquecer ou negligenciar se quiserem”17.
Lindegaard afirma que a partir do mito local nestas terras do monte Namuli são
visíveis às pegadas do primeiro homem, entretanto, não pode ser vista, “não é para ver”
havia um mistério em volta em que não se podia ser descortinado.
As mulheres desempenham papel fundamental dentro das comunidades Macuas,
estas são responsáveis pelo acesso aos recursos, pela prática da agricultura, pelas cerimônias
tradicionais, ritos de iniciação, de nascimento, emergenciais, sacrifícios tradicionais, cultos
aos antepassados, crenças ancestrais, descendência do grupo e quanto aos filhos por mais
que seja feito por indivíduos de linhagens patrilineares “pertencem” a linhagem da
mulher18.
As comunidades Macuas não detêm de grandes avanços na escrita “a linguagem
oral constitui um dos elementos de transmissão de memórias e defesa da identidade,
transmitido de geração em geração através de sons, sinais e símbolos, crenças, costumes e
tradições. A língua falada por estas comunidades é a língua emákhuwa e constitui o dialeto
mais falado em Moçambique e um “meio de resistência à presença do “outro”, do
estrangeiro, do colonizador que ameaçava destruir sua identidade”19.
Para Bauman as identidades “comunitárias” ostensivamente compartilhadas são
subprodutos ou consequências do infindável (e por essa razão tanto mais febril e feroz)
processo de estabelecimento de fronteiras20.
Segundo o conceito de Bauman “Identidade” significa aparecer: ser diferente e, por
essa diferença, singular, para obter a singularidade este precisa trair sua origem por forma a
oferecer segurança, tranquilidade e consolo, isto é, “deve negar ser “apenas um substituto”
17 BAUMAN, Z. A comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003,
p.14
18 LINDEGAARD, V. S. Faz de Conta que Histórias, Disponível em:
http://llindegaard.blogspot.com/2010/04/o-guardiao-dos-montes-namuli.html. 2010., Acesso em03 de
Janeiro de 2018
19 FONSECA, L.; TRISTONI, R. H. P. Os desafios que o povo Makhua encontra para manter sua cultura
diante do plurilinguismo na região de Cabo Delgado, Moçambique. Revista Travessias. Vol 7 Nº 1 –2013, p.255
20 BAUMAN, Z. A comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
mas que oficialmente não é. Segundo José Jaime Macuane. “o Macuas não sabe dizer não;
mas pode aceitar alguma coisa e depois não fazer”22.
Para Bauman a homogeneidade da comunidade desaba quando o equilíbrio entre a
comunicação “de dentro” e “de fora”, antes inclinado para o interior, começa a mudar,
embaçando a distinção entre “nós” e “eles”23. Na mesma linha de pensamento Gough
defende que o contato com as nações industrializadas ocidentais através da economia de
mercado foi a principal razão para a desintegração da comunidade mais do que o contato
com religiões (Cristianismo e Islamismo) vindo com portugueses e árabes que promovem o
sistema patrilinear24.
Ora veja, em tela acima apresenta similitudes na origem dos conflitos dos povos
Macuas, pois estes também derivam do incremento da comunicação com o “outro”. A
partir do século V e.C, teve início no litoral o desenvolvimento das trocas comerciais
praticadas pelos Macuas e os árabes. Destas trocas comerciais destacou-se o comercio de
escravizados praticados pelos nativos que derrubou a moral e valores da mesmice,este
aumento de contato entre os de dentro e os de fora contribuiu para a desestruturação das
fronteiras outrora importantes na defesa da comunidade.
O contato entre nativos e os árabes resultou no processo de islamização da
comunidade bem como transfigurações indenitárias no seio dos habitantes. Segundo
Teixeira expansão das confrarias islâmicas na Ilha contribuiu para expansão popular do
islamismo, e das formas organizacionais e de expressão cultural que lhe estão associadas,
tendo obtido a adesão quase total da população local a esta religião25.
Os povos Macuas são Islamitas na maioria e estas adotaram a religião islâmica por
herança dos contatos com os Árabes que pregam a patrilinearidade, entretanto, mesmo
com a influência do islão e do sistema patrilinear as tradições locais não são foram
abandonadas por completo, as formas de organização política, social e cultural são
preservadas até os dias de hoje no sentido matrilinear.
22MÁCUANE, José Jaime et al (Org.). Estudo de Governação de Nampula - EGN: Versão final.
Nampula, Moçambique: ACS, 2010. p. 8
23BAUMAN, Z. A comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Op. Cit.
24GOUGH, K. The Modern Disintegration of Matrilineal Descent Groups. In SCHNEIDER, D., &
GOUGH, K. (Eds.), Matrilineal kinship (pp. 631-655). Berkeley: University of California Press, 1961
25 TEIXEIRA, J. P. Conteúdos comunitários na área da Ilha de Moçambique face a projetos de
Conclusão
Lisboa: Center for the Study of Southeast Asia (Cepesa, Lisbon). p. 183-194, 2001. RIZZI, K. R. A construção do
Estado no Timor-Leste: colonização, ocupação e independência. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75,
jul./dez. 2010.
pois esta comunidade possui laços fortes do coletivismo, solidez nos laços de parentesco,
vizinhança e solidariedade. Todavia, os valores modernos estão presentes na identidade
cultural devido ao globalismo, entretanto são perceptíveis a resistência cultural em vista a
manutenção da identidade cultural em virtude da passividade com que estas comunidades
encaram os elementos da cultura global.
O critério para definição do ideal e real difere muito de contexto para contexto, o
que para Bauman constitui comunidade ideal são para os Macuas comunidades reais, tendo
em conta os valores tradicionais de vizinhança, solidariedade e parentesco que o autor
apresenta na diferenciação de comunidade ideal e real, pode-se concluir que a comunidade
Macua se enquadram na tipologia de comunidades antigas.
As trocas vivenciadas ao longo do percurso histórico entre as comunidades e povos
árabes, portugueses, indianos, franceses e ingleses deixaram diferentes resquícios que se
denotam na gastronomia, vestuário, religião entre outras. Em virtude destas interações as
comunidades se recriaram, mantendo dentro da comunidade vínculos que rementem a
comunidade antiga, fruto da herança de seus ancestrais. Por estas serem de linhagens
matrilineares o sentido de comunitarismo ainda é muito forte e valorizado pelos seus
descendentes.
No que concerne a fluidez e flexidez pode-se constatar que ocorre mais nas
comunidades modernas e no caso da comunidade macua não tem semelhanças pois estes
dois elementos flexidez x fluidez não ocorrem. O que remete ao olhar com relativismo a
dicotomia apresentado pelo autor, não só na Fluidez x Flexidez, Liberdade x Segurança e
Ideal e Real.
Bibliografia
BAUMAN, Z. A comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
CUNHA, L. M. P. O impacto da cultura e sociedade europeias em Timor-Leste: aspectos
de transculturação e de globalização. Tese (Mestrado). Mestrado em Cultura e Sociedade na
Europa. Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras. 2012.
ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origen y destino de la comunidade. Buenos Aires:
Amorrortu, 2012
FONSECA, L.; TRISTONI, R. H. P. Os desafios que o povo Makhua encontra para
manter sua cultura diante do plurilinguismo na região de Cabo Delgado, Moçambique.
RevistaTravessias. Vol 7 Nº 1 – 2013
GOUGH, K. The Modern Disintegration of Matrilineal Descent Groups. In
SCHNEIDER, D., & GOUGH, K. (Eds.), Matrilineal kinship (pp. 631-655). Berkeley:
University of California Press, 1961.
Resumo
1Doutor em História social com Pós-Doutorado pelo Institute of Advanced Studies da University College London
(IAS-UCL). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia do Instituto Fernando
Rodrigues da Silveira (CAp.UERJ). Este trabalho faz parte da minha pesquisa de pós-doutorado sobre
“higiene mental e psiquiatria preventiva no período entreguerras”, desenvolvida no IAS-UCL, no período de
agosto de 2019 a julho de 2020. Este trabalho contou com o apoio da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e da University College London, instituições as quais deixo o meu agradecimento. E-mail:
williamvazpsicologia@gmail.com.
2 BRASIL. 59ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1921, p. 326.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
considerou o projeto como um atentado à constituição republicana que, segundo ele, além
de não admitir privilégios de nascimento, raça e classe social, não fazia distinção entre
brancos, negros ou pardos. Segundo ele, assim como determinava a constituição brasileira,
em tempos de paz, qualquer um poderia entrar no território nacional ou dele sair com sua
fortuna e bens, quando e como lhe conviesse, independentemente do seu passaporte. Neste
sentido, além de contrariar os princípios determinados pela constituição, tal projeto
representava, de acordo com o deputado gaúcho, “um atentado aos direitos do homem, do
cidadão, proclamados pela humanidade (...), além de ser uma atentado contra a própria raça
negra.3 Osório destacava ainda o papel fundamental da raça africana na formação da
nacionalidade brasileira, pedindo a rejeição do projeto que, nas suas palavras, seria “o início
de um código negro, de uma política de preconceitos de raças que felizmente não existem
em nossa Pátria”.4 O deputado Joaquim Osório não apenas se posicionou contrariamente
ao projeto como também defendeu que o mesmo não poderia nem mesmo ser objeto de
deliberação da Câmara do Deputados. Frente a tal posicionamento, e temendo que o
projeto deixasse de ser considerado objeto de deliberação já em primeiro turno, o deputado
Andrade Bezerra observa que caberia à Câmara naquele momento apenas verificar a sua
constitucionalidade, e a possibilidade ou não de ser objeto de solução legislativa. Destaca
que, de acordo com regimento da casa, somente proposições “que [atentassem] contra o
regime constitucional do país ou [versassem] sobre matéria de competência de outro poder,
ou medida de impossível realização prática”, não poderiam ser objetos de deliberação da
Câmara do Deputados.5 Quanto ao conteúdo do projeto defende o controle da imigração
como medida de defesa da nacionalidade brasileira, destacando as legislações existentes em
países como Estados Unidos, Canadá e Austrália com o objetivo de restringir a entrada de
imigrantes, especialmente os de origem asiática. Segundo ele, os sentimentos de amor,
altruísmo e simpatia por esta ou aquela nacionalidade não deveriam se sobrepor ao “desejo
de defender os reais interesses de nossa pátria”.6 À despeito dos posicionamentos
contrários ao projeto de lei, o mesmo foi colocado em votação, sendo julgado objeto de
deliberação com 94 votos a favor e 19 votos contrários, seguindo da Câmara dos deputados
para as Comissões de Agricultura e Indústria e de Constituição e Justiça, a cargo de Fidélis
Reis, então deputado pelo Estado de Minas Gerais.
3 Ibidem.
4 Ibidem, p. 629.
5 Ibidem, p. 630-631.
6 Ibidem, p. 632.
7 BRASIL. 109ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1923, p. 3939.
8 Ibidem.
No que diz respeitos aos povos asiáticos, a lei de 1917 determinava a proibição no
país de:
(...) persons who are native os islands not possessed bey the United
States adjacent to the Continent of Asia, situate South of the twentieth
paralell latitude north, West of the one hundred and sixtieth meridian of
longitude east from Greenwich, and north of the tenth paralell of
latitude South, or who are natives of any country, province or
dependency situate on the Continent of Asia West of the one hundred
and tenth meridian of longitude east from Greenwich and east of the
fiftieth meridian of longitude east from Greenwich and South of the
fiftieth paralell of latitude north (...), and no alien now in any way
excluded from, or prevented from entering, the United States shall be
admitted to the United States (...).10
9 USA. Immigration Act (An act to regulate the immigration of aliens to, and the residence of aliens in, the
United States), de 5 de fevereiro de 1917. US immigration legislation online, fevereiro de 1917, p. 875-876.“Todos
os idiotas, imbecis, pessoas débeis mentais, epilépticos, pessoas insanas; pessoas que tiveram um ou mais
ataques de insanidade em qualquer momento anterior; pessoas de inferioridade psicopática constitucional;
pessoas com alcoolismo crônico; indigentes; mendigos profissionais; vagabundos; pessoas com tuberculose
(...); deficiente mental ou fisicamente, sendo esse defeito físico de uma natureza que pode afetar a capacidade
de tal estrangeiro de ganhar a vida; pessoa que foi condenada por admitir ter cometido um crime ou outro
crime ou contravenção envolvendo torpeza moral; polígamos ou pessoas que praticam a poligamia ou
acreditam ou defendem a prática da poligamia; anarquistas (...); prostitutas ou pessoas que entram nos
Estados Unidos com o propósito de prostituição ou qualquer outro propósito imoral (...)”. (Tradução livre).
10 USA. Immigration Act (An act to regulate the immigration of aliens to, and the residence of aliens in, the
United States), de 5 de fevereiro de 1917. US immigration legislation online, fevereiro de 1917, p. 875-876. “(..)
pessoas que são nativas de ilhas não possuídas além dos Estados Unidos adjacentes ao Continente da Ásia,
situam-se ao sul do vigésimo paralelo de latitude norte, a oeste do cento e sexagésimo meridiano de longitude
a leste de Greenwich e ao norte do décimo paralelo de latitude Sul, ou que são nativos de qualquer país,
província ou dependência situados no Continente da Ásia, a oeste do centésimo décimo meridiano de
longitude a leste de Greenwich e a leste do quinquagésimo meridiano de longitude a leste de Greenwich e ao
sul do quinquagésimo paralelo de latitude norte (...), e nenhum estrangeiro agora de qualquer forma excluído
ou impedido de entrar nos Estados Unidos será admitido nos Estados Unidos (...)”. (Tradução livre).
others purposes), de 26 de maio de 1924. US immigration legislation online, maio de 1924, p. 153-170.
13 BRASIL. 109ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1923, p. 3941.
14 Ibidem.
15 BRASIL. 109ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1923, p. 3941.
16 Ibidem.
17 Ibidem, 3942.
totalmente contrário à imigração de negros para o Brasil e de quaisquer raças que não
fossem as raças brancas da Europa, dizendo que sós poderia aplaudir um projeto que
visava justamente a entrada de colonos “pretos e amarelos” no Brasil.18 Apesar de
reconhecer a contribuição do negro na formação do país, Vianna afirmava que “teria sido
infinitamente melhor que eles não tivessem constituído um dos grandes fatores da
formação da nossa nacionalidade”.19 Segundo ele, a mestiçagem era o principal fator de
retardamento do progresso do país, visto que o cruzamento entre o negro e o branco teria
dado origem a uma “mestiçagem inferior”, recheada de elementos “inúteis” e
“inaproveitáveis”, “um peso morto”, formado por indivíduos “impulsivos”,
“desorganizados” e “criminosos”. Em contrapartida, ele dizia o seguinte:
Faça-se, porém, o cruzamento entre os tipos brancos da Europa,
germanos, escandinavos, saxões ou celtas, e ver-se-á que destas fusões de
indivíduos emergentes darão uma porcentagem superior, e altíssima de
elementos eugênicos. O que devemos procurar aqui introduzir são raças,
que sejam ricas em eugenismo. Ora, de todas as raças humanas, são as
indo-europeias as que acusam um coeficiente mais elevado de
eugenismo. Logo – só estas nos servem – porque o progresso das
sociedades e a sua riqueza e cultura são criação dos seus elementos
eugênicos, cuja função na economia social é análoga à função do
oxigênio, na economia animal.20
18 BRASIL. Anais da 155ª Sessão da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, em 27 de Dezembro de 1923, p. 379.
19 Ibidem.
20 BRASIL. Anais da 155ª Sessão da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, em 27 de Dezembro de 1923, p. 380.
21 Ibidem.
22 Ibidem, p. 383.
sustentava que a condição “inferior” do negro brasileiro não era uma questão de raça, mas
falta de educação e condições de higiene e saneamento adequados. Por isso mesmo, ao
invés de nos ocuparmos com o estrangeiro, deveríamos, segundo ele, buscar a regeneração
do elemento nacional.
O projeto de Fidelis Reis seguiu para discussão na Comissão de Agricultura e
Indústria, tendo como seu relator o deputado paulista João de Faria. No dia 20 de
dezembro de 1923, o deputado paulista apresentou à Câmara Federal um substitutivo do
projeto mantendo o seu conteúdo fundamental que, além de reafirmar a proibição da
entrada de imigrantes negros no país, estabelecia a restrição da entrada de “amarelos” que,
ao contrário dos 3% apresentados no projeto original, passaria a ser de 5% correspondente
ao indivíduos residentes dessas origens existentes no Brasil, tendo como referência o censo
de 1890. Em seu discurso, o parlamentar deixa evidente a sua preferência pelos imigrantes
europeus, especialmente italianos, considerados, por ele, mais “assimiláveis” ao país, devido
às suas características étnicas, raciais, culturais e linguísticas. Quanto à proibição dos
imigrantes negros o parecer de João de Farias era muito claro, mas no que diz respeito aos
“amarelos” sugeriu a realização de um inquérito para consultar as opiniões de pensadores e
avaliar a questão de forma mais ampla.
Sendo encomendado pelo presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA),
Geminiano Lyra Castro, o resultado do inquérito foi apresentado à SNA no ano de 1926.
Para elaboração desse inquérito a SNA havia enviado cerca de seis mil questionários para a
sua diretoria, associações comerciais e rurais, gabinetes dos presidentes dos Estados da
Federação, instituições médicas como a Academia Nacional de Medicina, instituições de
pesquisa e ensino, tais como a Sociedade Brasileira de Geografia e Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, bem como para os prefeitos das principais cidades brasileiras,
incluindo: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Alagoas,
Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Ceará, Maranhão, Pernambuco e Bahia. De
acordo com Jair de Souza Ramos, dos questionários enviados foram obtidas 166 respostas
oriundas dos diversos Estados. No que diz respeito à imigração de negros, das 166
respostas, 134 eram contrárias. Em relação à imigração dos povos “amarelos” , 94
respostas eram contrárias ou defendiam a restrição respeitando-se as cotas apresentadas
pelo projeto de Fidelis Reis, 57 respostas foram favoráveis e outras 14 respostas não
Considerações Finais
23 RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vêm do sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante
indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo
Ventura. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. p. 74.
24 RICCIOPPO, Thiago. Raça, etnia, imigração e trabalho na perspectiva de Fidelis Reis (1919-1934). Dissertação de
Fontes e Bibliografia
BRASIL. 59ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1921,
p. 630-631.
BRASIL. 109ª Sessão dos Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 23 de outubro de
1923, p. 3933-3950.
26 Ibidem, p. 173.
27 Parágrafo 6º do Artigo 121 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934.
BRASIL. Diário do Congresso Nacional, Ano XXXIX, nº. 152, 4 de Novembro de 1923, p.
4312-4352.
BRASIL. Anais da 155ª Sessão da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, em 27 de Dezembro
de 1923, p. 368-493, p. 379.
BRASIL. Decreto nº 4.247, de 6 de janeiro de 1921. Regula a entrada de estrangeiros no
território nacional. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-
1929/decreto-4247-6-janeiro-1921-568826-publicacaooriginal-92146-pl.html. Acesso em:
10 de março de 2020.
BRASIL. Decreto nº 16.761, de 31 de dezembro de 1924. Proíbe a entrada no território
nacional de imigrantes (passageiros de 2ª e 3ª classe) nos casos e condições previstos nos
arts. 1º e 2º da lei n. 4.247, de 6 de janeiro de 1921. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-16761-31-dezembro-
1924-503902-republicacao-88581-pe.html. Acesso em: 10 de março de 2020.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Parágrafo 6º
do Artigo 21. Publicação original: Diário Oficial da União – Seção 1 – Suplemento –
16/07/1934. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-
1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publicacaooriginal-1-pl.html, último acesso
em: 24/11/2020.
RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vêm do sangue: as representações raciais e a
categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In:
MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de
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RICCIOPPO, Thiago. Raça, etnia, imigração e trabalho na perspectiva de Fidelis Reis (1919-1934).
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia, 2014.
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http://library.uwb.edu/Static/USimmigration/42%20stat%205.pdf. Acesso em: 05 de
março de 2020.
USA. Emergency Quota Law (An act to limit the immigration of aliens into the United
States, and for others purposes), de 26 de maio de 1924. US immigration legislation online,
maio de 1924. Disponível em: <
http://library.uwb.edu/Static/USimmigration/43%20stat%20153.pdf>. Acesso em: 05 de
março de 2020.
DITADURAS E REDEMOCRATIZAÇÕES
(SÉCULO XX)
A memória de uma jornada: produção artística e transição política no
Brasil pré-Constituinte de 1987-88
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar duas pinturas em tela, produzidas em 1986,
sob a temática das eleições Constituintes brasileiras de 1987-88: uma de Carlos Scliar e a
outra, de Glênio Bianchetti. Procura-se relacioná-las com o contexto em que foram
produzidas, tendo por base o período de transição política que marcou a saída do país de
uma longa ditadura rumo à redemocratização. Utilizam-se, como marcos teórico-
metodológicos, a relação entre imagem e história, em uma ampliação do conhecimento
acerca do passado, e a ideia de sensibilidade como dado histórico, capaz de interferir
objetivamente na própria concepção da história, conforme abordada por Georges Didi-
Huberman.
Considerações Iniciais
homem e a realidade social e política, de modo conscientizar e aproximar o povo das artes
plásticas.
É nesse contexto do panorama nacional do pós-guerra, dando ênfase ao realismo
e à temática social, que esses grupos surgiram, em uma esfera compartilhada de
experiências. Em que pese os artistas aqui mencionados tenham seguido caminhos
individuais, sua produção, independentemente do grau de abstratividade, tem como ponto
de partida suas trajetórias dentro de um contexto histórico coletivo. Importante apontar,
ainda, que apesar do caráter polissêmico da noção de artista, tal termo, aqui exposto, não
diz respeito a uma educação formal, mas a uma categoria de indivíduos engajados, com
papel ativo no meio social – e cuja obra, uma vez divulgada, desempenhou uma função
decisiva para a transformação democrática. Não se pode ignorar que esses artistas
encontram na imagem um meio para a difusão de ideias, explorando temas como a luta
contra a opressão e a defesa de direitos.
No âmbito da redemocratização brasileira, quando a campanha nacional pró-
Constituinte foi desencadeada, deu-se início aos debates de uma efetiva participação social.
As mobilizações foram fundamentais para a construção dos alicerces dos debates
constitucionais, servindo de palco para a retomada de uma série de movimentos sociais e
culturais. O debate político incluía palavras de ordem e uma luta por espaço visual para que
se pusesse colocar em evidência as mais diversas reivindicações. Neste contexto, foi criado
o slogan “Constituinte sem povo não cria nada de novo”.2
No entanto, o “que a imagem reflete? Ela é a expressão da realidade ou é uma
representação?”.3 A empreitada de valorização das imagens na produção historiográfica,
segundo a historiadora Ana Maria Mauad, é tributária da renovação historiográfica do final
dos anos 1970 e início dos anos 1980. A elaboração dos quadros da historicidade parte da
materialidade das experiências sociais e dos seus vestígios, de modo que Mauad argumenta
que “não basta olhar, é fundamental estranhar”.4 O historiador Paulo Knauss alerta, no
entanto, para o cuidado no trato da imagem, a qual não deve ser interpretada como mera
prova de algo, mas como um instrumento para se pensar as experiências visuais, em
2 BRANDÃO, Lucas Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: entre a
política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, 2011, p. 217.
3 KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, vol. 5, n.10, pp. 237-
5 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v.8, n.12,
jan-jun. 2006.
6 DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.
Considerações Finais
com o outro. Abre-se à interdisciplinaridade por meio do diálogo com outras áreas do
saber, valorizando as relações coletivas e os códigos culturais construídos pelos próprios
sujeitos sociais.
O protesto artístico no âmbito da redemocratização brasileira era usado como
ferramenta de ação, intervenção e resistência política de modo que o envolvimento de
artistas nas questões sociais foi um dos aspectos da interconexão entre as artes e o
ativismo. A expressão artística surge como uma via para se compartilhar um sentimento de
dor pelo vivido e de esperança com a elaboração de um novo aparato legal – o que
potencializou os laços e sentidos de comunidade. O material artístico é uma fonte de
produção de significados e de comunicação, influenciando a ação no âmbito do ativismo
político: não apenas por meio do incentivo à mobilização, mas também com a possibilidade
de infiltrar questionamentos.
Bibliografia
Anexos
➢ Anexo 01
➢ Anexo 02
Resumo
O texto presente soma-se à uma vasta bibliografia acerca do nacionalismo, sua relação com
o imaginário popular e em última instância com a cultura brasileira. O recorte temporal
data do período entre 1946 e 1968, compreendendo sua continuidade com o projeto
desenvolvimentista em curso desde os anos de 1930 mas também levando em consideração
as rupturas; especialmente após 1964. Os critérios de análise para a cultura de um país
periférico são oferecidos por Frantz Fanon em sua obra ‘Os Condenados da Terra’ e como
fonte dos diferentes imaginários nacionais serão elencadas algumas obras da MPB.
Introdução
5 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira
Lopes Louro-11. ed. -Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
6 HOBSBAWM, Eric. A Era do capital, 1848-1875 - 27º ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017
p.141
7 Ibid. p.143
8 Ibid. p.149
Retornando à Stuart Hall, o autor faz três observações que funcionam como balizas
para o desenvolvimento das culturas nacionais: A conquista violenta foi o signo de muitas
das unificações nacionais; essas nações sempre vão se constituir de diferentes classes
sociais, grupos étnicos e de gênero; por fim, a dinâmica de dependência perpetrada pelo
sistema colonial e neocolonial criou hegemonias culturais que subjugam culturas
periféricas. Em 2000 Partha Chatterjee afirmava que após a URSS, o ressurgimento do
nacionalismo passou a ser a ameaça à ‘pax liberal’. O autor denuncia a disciplina imposta
aos Estados pós-coloniais em que “desenvolvimento e modernização” transformaram-se
em antagonistas do nacionalismo periférico9. Na América Latina houve uma ‘esterilização’
dos nacionalismos que passaram a ser associados às ditaduras de segurança nacional, e,
portanto, entendidos como conceito “autoritário”. Os princípios nacionalistas de
independência, soberania e autodeterminação foram rejeitados pela Europa e suas
manifestações na periferia capitalista amplamente denunciadas10. Nesse contexto hostil ao
nacionalismo Chatterjee cita o êxito de Benedict Anderson em trazer novas questões
relevantes ao debate. No entanto questiona a tese de Anderson no que se refere às “formas
modulares” que estruturam de um Estado-Nação. Isto é: o formato e a organização de um
Estado moderno é imposta por uma lógica de eficiências e prioridades orientadas pela
ordem capitalista internacional: “O que lhes resta para imaginar?”11. Se criar um Estado-
Nação fosse como pintar um quadro, o que foi dado para as periferias foram três cores de
giz de cera e um livro de colorir velho. Como sugere o autor, é fundamental entender o que
constitui a identidade de cada nação para além da hegemonia colonial12.
9 CHATTERJEE, Partha. Comunidade imaginada por quem? In: Balakrishnan, G. Um mapa da questão
nacional. Rio de Janeiro - Ed. Contraponto, 2000 p.227
10 Ibid. p.228
11 Ibid. p.229
12 Ibid. p.230
13 FANON, Frantz. Os Condenados da Terra: 2º. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979 p.196
legitimidade da reivindicação nacional; legitimidade essa que, uma vez estabelecida entre
partido e povo, mobiliza e convida para a ação14. Para enfrentar a primeira fase de uma luta
nacional, o colonialismo recorre ao economicismo; simula preocupação com a sorte de um
povo que julga tão indefeso e de um território que diz ser tão pobre – mas que são fortes e
ricos o suficiente para aguentar séculos de exploração – até perceber que suas reformas não
satisfazem as aspirações do povo colonizado. “Vale mais a fome com dignidade que o pão
na escravidão”, arremata Fanon15. A complexidade étnica do continente Africano, agravada
pela diáspora, faz com que Frantz Fanon considere limitada uma orientação meramente
identitária como guia das lutas; levando-as inexoravelmente à um “beco sem saída”16.
Assim como um “doisladismos” que busca dividir erros e acertos entre colonizadores e
colonizados; como se ambos estivessem em pé de igualdade na condução de seus
destinos17. Esse pensamento é estéril, inócuo, universalista, conciliador e se prova
totalmente inútil quando posto em prática. Esse fenômeno opera como um recalque
político; uma tentativa desesperada de alterar a realidade para acomodar soluções
confortáveis. É um “desvio de rota” que, apesar do seu valor pedagógico, prolonga o
caminho da Revolução. Uma vez completo esse desvio de rota – ou seja, uma vez que a
realidade se impôs e nenhuma conciliação foi capaz de solucionar os problemas – resta ao
colonizado duas alternativas: resignar-se ou reagir. Fanon afirma que o colonizado começa
sua reação redescobrindo seus signos e renegando todos os símbolos e gestos da cultura
ocupantes. “Reencontrar o povo é fazer-se árabe, fazer-se o mais indígena possível, o mais
irreconhecível, é cortar as asas que se tinha deixado crescer”18. Fanon enxerga a cultura
colonizada passando por 3 etapas na evolução até sua fase nacional-libertadora19: 1)
Assimilação exterior: Trata-se da absorção da cultura dominante. Neste processo o
colonizado que fetichiza tudo o que lhe é estrangeiro. Não necessariamente com a mesma
conotação sexual que Fanon discute em ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, ainda que haja um
diálogo possível entre os dois. Mas certamente como a manifestação de uma idolatria que
garante ao colonizado um falso sentimento de pertencimento daquela cultura que não é a
sua. É o momento em que o artista colonizado tenta emular o artista colonizador,
copiando sua estética, sua temática, e o que mais for necessária para que o colonizador lhe
14 Ibid. p.172
15 Ibid. p.173
16 Ibid. p.178
17 Ibid. p.181
18 Ibid. p.183
19 Ibid. p.185
Ao propor essa perspectiva de análise, Fanon tinha em mente um país cuja luta de
libertação e construção nacional estivesse em curso. Portanto, a evolução das etapas estaria
20 Ibid. p.188
21 Ibid. p.193
22 Ibid. p.194
Por isso o recorte escolhido para este trabalho data do período entre 1946 e 1968.
Além de ser um período consagrado na historiografia, trata-se justamente dos anos
marcados pelos debates acerca de um projeto de modernização brasileira. Em maior ou
menor grau veremos que elementos de uma sociedade em rápido desenvolvimento
permearam as letras de canções populares da época. Para evitar um prolongamento
desnecessário vamos elencar um exemplo para cada etapa proposta por Fanon. É
importante ter em mente que, a pretexto de ilustração, foram elencados momentos
pontuais da carreira dos cantores, compositores e da MPB como um todo; o que não
significa que suas propostas artísticas e estéticas não variaram ao longo do tempo. Tão
pouco significa propor que a ‘linha evolutiva da MPB’ se deu de forma cartesiana e
teleológica. A ordem cronológica dos exemplos mais tem a ver com o caminhar da
sociedade brasileira do que um movimento pensado e articulado pelos artistas de então. O
corte a partir de 1946 deve-se pelo início de um período de redemocratização pós-guerra e
seu fim em 1968 justifica-se, além do AI-5, pelo marco que representou a prisão de
Gilberto Gil e Caetano Veloso, o fim abrupto do projeto tropicalista por conta do exílio
dos dois e o avanço de um modelo de produção fonográfico industrial. Farnésio Dutra e
Silva ganhou popularidade no final dos anos 1930 interpretando canções estrangeiras na
rádio Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro. Para ganhar credibilidade perante o público
adotou o nome artístico de Dick Farney. Cantou nos principais palcos da elite carioca, tal
como o Cassino da Urca e o Copacabana Palace. Sua voz imponente servia muito bem
para as canções que importavam o estilo do jazz/big band das rádios estadunidenses. Sua
canção ‘Copacabana’ de 1946 é, ainda que com muita ternura, um anúncio turístico.
Essa fase inicial da carreira de Dick Farney estava completamente submetida aos
padrões estéticos do estrangeiro, feita para ecoar nos salões da elite carioca que buscava
agradar os turistas, legitimar sua modernidade perante a metrópole capitalista. Apesar das
tentativas de apropriação desde o Estado Novo, o samba ainda tinha um longo caminho
para uma ampla aceitação por parte das elites. O samba-canção – experimentado por
Farney – ensaiou uma conciliação que era progressivamente rejeitada pela elite. Em 1958
surge João Gilberto com ‘Chega de Saudade’. A simplicidade da voz e violão, resgatando a
batida do samba na harmonia jazzística de seu violão, João Gilberto – tal qual propõe
Fanon – inadvertidamente mergulhou nas raízes da música brasileira e emergiu como a
mais novo símbolo da modernidade brasileira. ‘Desafinado’ é um exemplo de como João
Gilberto transformou a audição do público sem, como argumentava Theodor Adorno,
regredir musicalmente24. Claro, as músicas eram mais simplificadas em termos de arranjo,
mas não em relação a sua harmonia.
Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é bossa nova, que isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Chega de Saudade (1968) abriu as portas da arte musical para além do padrão técnico.
Em contraste com Farney – que também fez seu sucesso – a Bossa Nova de João Gilberto
é até hoje associada à uma época áurea para o Brasil. Esse reconhecimento se dá não
apenas pela qualidade objetiva mas por espelhar a então crescente vida urbana do povo
brasileiro. Com o golpe de 1964 a tarefa imediata de organizações como CPC/UNE e
24 ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Textos escolhidos (Os
Pensadores) Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas; traduções de José
Lino Grünnewald … [et al.]. - 2º. ed. - São Paulo: Abril Cultural, 1983
Conclusão
Oferecer a imagem de uma utopia já não é uma tarefa simples sob condições
normais de temperatura e pressão; que dirá em um momento cotidianamente distópico da
História da humanidade. Para muitos é difícil imaginar um futuro seja ele qual for e
certamente a Indústria Cultural é uma das milhares de barreiras erguidas contra as nações
periféricas tal como apontou Chatterjee. É comum ouvir versos de poesia ‘slam’ nos trens e
metrôs das grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Arrisco dizer que essa é hoje
a nossa mais profunda manifestação de identidade nacional; é da periferia que sai a imagem
de um país periférico como o nosso. Os versos são contundentes, agressivos e sarcásticos,
refletindo a contundência, a violência e a ironia da vida cotidiana daqueles tudo produzem,
mas que nada possuem. Um exemplo está disponível pelo coletivo Rimadores de Vagão,
que atuam no Metrô do Rio de Janeiro. O poema ‘Racismo’ dispõe dos seguintes versos:
Ei, viu, mais uma casa caiu.
São milhares sem moradia
E o governo, alguém viu?
Não ligam para os civis,
só se seguir os esquemas
Num país sem pena de morte,
mas que tem a morte sem pena
Dá pena
Moradores sem moradia
A fome matando por dia e
No Brasil, de graça, só a antena
E o sistema? Rouba mais!
Tem mais operação no morro
do que nos hospitais.
Os versos seguem expondo por meio de poesia e atuação a vida de um povo que
precisa fingir que está tudo bem para seguir; nem que isso seja apenas para a próxima
estação. Mas, apesar do talento inquestionável desses e de tantos outros artistas que tecem
críticas sobre a miséria brasileira, surge como tarefa histórica dos artistas políticos imaginar
uma nova comunidade, uma nova nação. É a tarefa dessa geração de artistas criar o ‘novo
viramundo’. Afinal, a genialidade é a saída criativa em momentos de desespero.
Bibliografia
https://open.spotify.com/track/1e9huqPFbteN6gBWFhKrT0?si=8dmUp7rVSMS5OFklF
sqDQw (Último acesso: 01/10/2020)
GIL, Gilberto. Viramundo In. Louvação. Produção: João Melo. Philips Records. Vinil
longplay (41:56 min).
GILBERTO, João. Desafinado. Produção: Antônio Carlos Jobim. Rio de Janeiro, EMI-
Odeon 1959, disco de 78 rotações, (01 min. e 58 seg.).
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro-11. ed. -Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOBSBAWM, Eric. A Era do capital, 1848-1875 - 27º ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e
Terra, 2017
NAPOLITANO, Marcos. História e música popular: um mapa de leituras e questões. In :
Revista de História n. 157: DOSSIÊ – "História e Música São Paulo, 2007
Resumo
O artigo versa sobre o processo de transição sociopolítica de Moçambique, partindo da
proclamação da independência, guerra civil à formação do multipartidarismo. Para a
prossecução e cumprimento das metas do trabalho foram levados em conta todos os
eventos políticos que eram tendentes à construção do multipartidarismo em Moçambique.
A proclamação da independência política pressupôs o direito à liberdade de expressão e
participação política, tais direitos foram negados a uma boa parte de segmentos do povo
moçambicano. Tal fato levou a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO) a iniciar
uma guerra que tinha em vista a participação do povo nos assuntos políticos através de
eleições livres, justas e transparentes. O artigo objetiva discutir sobre a independência,
perceber a crise sociopolítica e democratização. Espera-se que contribua para a
compreensão dos processos políticos em Moçambique.
Introdução
1António Raúl Sitoe é mestrando em Ciências Jurídicas e Sociais no Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito da Universidade Federal Fluminense.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2 Cf. HANLON, Joseph. Mozambique: The Revolution Under Fire, Zed Books, 1984
3 Cf. Idem
4 CHINWEIZU, A. A África e os países capitalistas, in MAZRUI A. e WONDJI, C. (ed.) História geral da
5 Cf. KRUKS, Sonia. “From Nationalism to Marxism: The Ideological History of FRELIMO, 1962-19977”,
In: MARKOVITZ, Irving Leonard (Ed). Studies in Power and Class in Africa, Oxford University Press,
1987.
6 Cf. BOWEN, Merle. The Sate Against Peasantry – Rural Struggles in Colonial and Post – colonial Mozambique,
classe trabalhadora, cuja a gestão tem o objetivo a promoção de igualidade social por meio
da intervenção pública8.
Essa reorganização econômica e social das populações nativas depois da
independência, tinha vários objetivos a solidariedade coletiva a que os nativos já estavam
habituados, podendo assim intervir como na vida jurídica e económica. Por outro lado os
autores Durozoi e Roussel, aliado a uma ideia de uma economia centrda na base
comunitária, acrescentam, que o socialismo é espécie de uma política e economia que se
funda com base num ideal de justiça e de fraternidade que tende a vincular o indivíduo à
sociedade onde o interesse individual é suplantado num interesse geral9. Este tipo de
ideologia opõe-se ao individualismo e liberalismo econômico, recusando a produção e
propriedade privada, livre concorrência. Uma economia desta natureza concentra nas mãos
da classe trabalhadora responsável pela distribuição equitativa dos meios de produção.
A Frelimo, a sua opção pelo socialismo não é extranha visto que, o bloco socialista
apoiou o processo da descolonização da África e particularmente a luta armada de
libertação nacional de Moçambique que durante esse período foi se inspirando no
marxismo. O despertar de uma consciência de inspiração marxista manteve-se a quando do
apoio financeiro, treinamento e em lógistica militar. Os países socialistas eram contra os
países capitalistas, por isso ao ser criado teve uma orientação socialista-marxista e com um
apoio de toda a socidade moçambicana. Para Miguel Gómez, a inspiração marxista se
vislumbra nestas teses:
A FRELIMO, como preparação do III Congresso, publicou um
conjunto de teses que sintetizavam o princípio da sua opção pela
transformação em partido marxista-leninista, o seu carácter de classe e a
sua constituição em Partido de Vanguarda da aliança operária-camponesa
e o seu papel dirigente do Estado e da sociedade. Essas teses foram
amplamente estudadas nos diversos sectores da sociedade e adoptadas
no III Congresso, em Fevereiro de 1977. Coerente com a concepção
leninista, o Partido foi concebido como o agente central da direcção do
Estado, da organização, da educação das massas trabalhadoras e da
democratização da sociedade10.
8 Cf. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicolas; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. I Vol.
Tradução de Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo
Dini. Brasília: UnB, 1998.
9 Cf. DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. São Paulo: PAPIRUS, 1993.
10 GÓMEZ, Miguel. Educação Moçambicana – História de um processo: 1962-1984. Maputo: UEM, 1999.
11 Cf. HENRIKSEN, Thomas, “Marxism and Mozambique”, In: African Affairs, Vol. 77, nº 309, Outubro,
1978.
12 FRELIMO. III Congresso do Partido Frelimo, Fev. 1977, Directivas Econômicas Sociais. Maputo:
FRELIMO,1977.
13 Constituição da Reública de Moçambique de 1975
socialista como objetivo da coletivização da produção por meio da transformação do setor familiar
numa cooperativa de consumos machambas estatais14.
14 O documento da “Oitava Sessão do Comité Central da Frelimo e do III Congresso. Jornal NOTÍCIAS, 7,
8e 12 de Outubro,1981.
15 Cf. HALL, Margaret. “The Mozambican National Resistance Movement (RENAMO): A Study in the Destruction
of an African Country”. Journal of International African Institute, Vol. 60, nº. 1, pp.39-68, 1990.
16 Cf. YOUNG, Tom (1990) “The MNR/RENAMO: External and Internal dynamics”. African Affairs, Vol. 89,
nº 357
A FRELIMO ao conseguir interroper o apoio que vinha da África do Sul pensou que,
teria consigo minimizar os impactos dos ataques por parte da Renamo, muito contrário do
que era esperado, a guerra se intensificou. Em 1984 foi celebrado o Acordo de Nkomati
liderado pelo governo moçambicano representado por Samora Moisés Machel, Presidente
da Republica Popular de Moçambique e na parte sul africana representado pelo Presidente
17 CLINE Sibyl W., RENAMO, Em Defesa da Democracia em Moçambique, Conselho de Estratégia Global dos
Estados Unidos, Washington, D.C., 1989, pp. 63-64
18Idem, p. 29
Pieter Willem Botha. O acordo tinha o objetivo de pôr fim à guerra civil em Moçambique.
O acordo, embora tenha causado descrédito por algumas facções em relação a RENAMO,
entretanto serviu de estímulo às forças da RENAMO numa luta pela realização das eleições
livres e justas que conduzissem ao multipartidarismo, pondo fim o regime do partido
único. Segundo Samora Machel19 (1984), o acordo alcançado, representou um sucesso para
a diplomacia moçambicana, etapa importante para a construção de um ambiente de paz em
Moçambique. Samora Machel, morto num acidente aéreo, em 1986, substituiu o então
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Joaquim Alberto Chissano que sob a sua égide, vão se
celebrar o Acordo Geral de Paz em Roma.
Os autores Morozzo della Rocca20, Cameron Hume21 e United Nations 22
apresentam uma visão ampla e completa sobre o processo de pacificação em
Moçambique. A partir deste momento, a RENAMO, no mapa internacional, deixou de
ser visto como um grupo de criminosos, no entanto passou a ser visto como grupo de
combatentes que tinha na sua agenda a luta pela liberdade negada ao povo
moçambicano pelo regime marxista-leninista. Comisso, ficou claro que, os organismos
internacionais e diversas individualidades nacionais a sua mediação asseguraria uma
resolução concertada do fim da guerra civil. Foi por isso que, deu-se o início de
tentativas do diálogo que contou com o empenho do governo queniano na pessoa do
seu Presidente Daniel Toroiticharap Moi, governos do Zimbabué e Malawi, contou
igualmente com as representações das igrejas cristãs com o Cardeal Alexandre Maria
dos Santos, Dom Jaime Gonçalves, Arcebispo da Beira, ambos da igreja católica e
bispo da igreja anglicana, Dom Dinis Sengulane e o Pastor Jeremias Mucache,
presidente do Conselho Cristão de Moçambique (CCM). Em 1989, devido à ofensiva
conjunta das Forças Armadas de Moçambique e do Zimbabué no centro de
Moçambique, ficou adiada a primeira conversação que havia sido agedada para o dia 12
de julho do mesmo ano em Nairobi. No ano seguinte, isto é, em fevereiro de 1990,
Afonso Dhlakama, deslocou-se à Roma, Itália para encontro com os representantes do
governo italiano, este evento foi possível com o apoioda Comunidade de Sant’Egídio.
Em março do mesmo ano, Joaquim Chissano, numa visita realizada aos Estados Unidos
da América, demonstrou-se desponível ao diálogo em vista a pacificação. Mais uma vez,
as conversações agendadas com ajuda do Quénia e Zimbabué para o dia 12 de junho de
1990, com a ausência da RENAMO foi cancelada. A Comunidade Sant’Egídio, com o
apoio e consentimento do governo italiano, propôs que as conversações fossem
realizada sem Roma, as partes, tendo concordado, deram início o diálogo pela paz em
Moçambique.
As rondas negociais negociais realizaram-se em 1990, o primeiro protolo do
Acordo de Paz foi assinado no dia 18 de outubro do mesmo ano, fixando por esta via a
legitimidade do governo moçambicano, estabelecimento da comissão reperesentada pelo
governo, pela RENAMO e pela ONU e de outras organizações para supervisionar a
efetivação do acordo. No dia 20 de dezembro de 1991, foi feita uma declaração em que
ambas as partes se comprometiam à realização das primeiras eleições presidenciais e
legislativas após assinatura do do cessar-fogo, as partes concordaram igualmente que, o
processo da paz envolveria as seguintes organizações, a ONU e a OUA. Finda a
negociação, foi celebrado o Acordo Geral de Paz, em Roma, aos 4 de outubro de 1992.
Enquanto a independência de 1975 devolveu ao povo moçambicano os direitos e as
liberdades fundamentais, a Constituição de 1990 introduziu o Estado de Direito
Democrático fundado na separação e independência dos poderes e no pluralismo,
contribuindo de forma decisiva para a instauração de um clima democrático que levou
Moçambique à realização das primeiras eleições multipartidárias com a realização das
primeiras eleições em 1994.
Conclusão
Bibliografia
Augusto Peres1
Leticia Andrade2
Resumo
O artigo faz um panorama e breves considerações sobre o debate educacional na ditadura a
fim de entender como se deu a evolução do pensamento educacional, sua transmutação na
prática escolar, as reformas educacionais ocorridas no período e o legado que essas
transformações nos são herdadas hoje em dia. A partir da investigação histórica sobre as
transformações da Escola Técnica Nacional (ETN) durante a ditadura civil-militar e o
debate sobre essa experiência no contexto do revisionismo e negacionismo, reuniu-se um
grupo de estudantes do ensino médio para divulgar o conhecimento histórico para o
público em geral, mas principalmente para a comunidade escolar do CEFET-RJ. Desse
encontro, surgiu o site Ditadura em Prosa, utilizando um perfil na rede Instagram para a
divulgação dos resultados da pesquisa. Um dos tópicos abordados no projeto são as
reformas educacionais durante a ditadura.
Introdução
1 Estudante do ensino médio/técnico do CEFET/RJ que faz parte do projeto Ditadura em Prosa, orientado
por Samuel Oliveira. O estudante é bolsista de Iniciação Científica do CEFET-RJ. E-mail:
augustoperes1801@gmail.com.
2 Estudante do ensino médio/técnico do CEFET/RJ que faz parte do projeto Ditadura em Prosa, orientada
por Samuel Oliveira. A estudante é bolsista Jovem Cientista de Nosso estado, da FAPERJ-RJ. E-mail:
leticiandrade07@gmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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atualmente e, por isso, o projeto faz a divulgação de conteúdos e conceitos, uma vez que a
história é para todos.
Durante o processo de pesquisa sobre diversos temas da ditadura militar foi
perceptível que dentre outras, a educação era uma das áreas mais afetadas pelo governo.
Por conseguinte, esse é o tema abordado ao longo deste artigo. As reformas educacionais
da ditadura tiveram como objetivo a transformação do sistema educacional brasileiro como
um todo. Uma das primeiras mudanças desse período foi a concepção do propósito
educacional na sociedade brasileira, a partir da teoria do capital humano desenvolvida pelo
professor da escola de Chicago, Theodore W. Schultz (1902-1998).
O pensamento tecnocrático, que visava transformar o país em uma grande
potência, se naturalizou na educação através da valorização do ensino voltado para o
mercado de trabalho a partir da educação básica até o ginásio. O investimento em escolas
de ensino técnico foi um marco desse processo que se manifestou de diversas maneiras ao
longo dos governos.
A configuração do modelo educacional seguia a mesma lógica do modelo
econômico vigente com o objetivo de aumentar ao máximo a produtividade econômica da
sociedade como é sugeridos nas teses de Mário Henrique Simonsen e Eugênio Gudin,
teóricos da política econômica, que envolvia a educacional, na ditadura.
Esses temas da reforma da educação e a sua relação com a teoria do capital humano
são debatidos nos artigo “Educação e Ideologia Tecnocrática na Ditadura Militar” de
Amarilio Ferreira Jr e Marisa Bittar e “ “O Legado educacional da ditadura” de Demerval
Saviani3.
3 FERREIRA JR., Amarilio, BITTAR, Marisa. Educação e ideologia tecnocrática na Ditadura Militar.
Cadernos Cedes, Campinas, v.28, n.76, p.333-355, set./dez.2008; SAVIANI, Demerval. O legado educacional
do regime militar. Cadernos Cedes, Campinas, v.28, n.76, p.291-312, set./dez.2008.
4BRASIL: LEI Nº 4.024, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1961. Lei das Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4024.htm. Acesso em: 5 mar.2020
A partir desse período, a maior função da escola se torna preparar o estudante para
o mercado de trabalho, para que o mesmo seja mão de obra rentável dentro da lógica
essencialmente capitalista. Um ponto a ser analisado, é a naturalização desse processo e a
eficácia do mesmo em ganhar popularidade no pensamento das pessoas e como o mesmo
tipo de pensamento está totalmente naturalizado nos planos de vida dos cidadãos até os
dias de hoje sem o debate a alternativas novas.
Os acordos firmados logo a partir de abril de 1964, mas tornado públicos somente
em 1966, entre o antigo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (United States Agency for International
Development - USAID) com intuito de padronizar a educação brasileira a partir do sistema
norte-americano de ensino e reformular as bases educacionais do país apoiado nos alicerces
ideológicos próprios da Ditadura em associação com os Estados Unidos. As principais e
mais notórias mudanças se dão nas reformas do Ensino Superior e dos 1° e 2° graus.
A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional foi criada
em 1961 na presidência de John F. Kennedy oficialmente de caráter civil para auxiliar o
desenvolvimento econômico e social em países na esfera de influência estadunidense. Por
consequência, foi amplamente usada estrategicamente dentro jogo geopolítico no contexto
da Guerra Fria muitas vezes trabalhando junto com a Agência Central de Inteligência dos
Estados Unidos (Central Intelligence Agency - CIA) nos países onde atuava.
5 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do regime militar brasileiro nos campi – Assessorias de Segurança e
Informação das Universidades. Topoi, Rio de Janeiro, v.9, n.16, p.30-67, jan. – jun.2008.
6 BRASIL; LEI No 5.692, DE 11 DE AGOSTO DE 1971. Lei da Reforma dos 1° e 2° Graus. Disponível
obras, aumentarem suas cartelas de cursos, e fez também convênios com empresas
privadas como a CTB (Companhia Telefônica Brasileira) , para garantir a contratação de
seus alunos ao término do curso. Além dessas medidas, em 1970, o governo desenvolveu a
meta de triplicar o número de alunos de escolas técnicas, através de um projeto de
preparação de mão de obra que tinha como objetivo final transformar o número anual de
8.500 técnicos formados para 50.000 em no máximo 20 meses.
A Escola Técnica Nacional foi considerada o modelo do ensino técnico no estado
da Guanabara. Por receber constantes estímulos governamentais para manter o seu
funcionamento em um padrão alto, fazendo convênios com empresas privadas e estatais
para garantir o emprego a todos alunos formados, aumentando a grade de cursos
oferecidos pela escola, e consequentemente, a demanda pelo modelo de ensino.
Através das falas dos jornais da época, é perceptível o apreço da população pela
modalidade de ensino, que além de oferecer qualidade de ensino, dava aos jovens uma
garantia de emprego, com salários consideráveis.
Bibliografia
Introdução
1 Doutoranda em História Econômica (USP); mestre em História Social (UFAM); graduada em História
(UFMG). E-mail: camilabmoncao@hotmail.com.
2 FERREIRA, O. S. Do liberalismo no Brasil. Revista USP, São Paulo, Nº 17, 1993, p. 8.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 MOTTA, R. P. S. Cultura política e ditadura: um debate teórico e historiográfico. Tempo & Argumento,
Florianópolis, v. 10, n. 23, jan./mar. 2018, p. 133.
________. Anticomunismo, antipetismo e giro direitista no Brasil. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto et al.
(orgs.). Pensar as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2019, p. 96.
4 PÁDUA, L. Ideias liberais estão em alta no Brasil — o que isso muda?. In: Revista Exame, 28 de abril de
vinculações com organizações latino-americanas. Anais do XII Encontro Internacional da ANPHLAC, Campo
Grande, 2016, p. 1.
6 ONOFRE, G. O papel dos intelectuais e think tanks na propagação do liberalismo econômico na segunda metade do século
XX. 2018. Tese – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, p. 16.
7 PECK, J. Constructions of Neoliberal Reason. Oxford: Oxford University Press, 2010.
8 Jamie Peck e Gabriel Onofre explicam que desde de suas origens, que são múltiplas, o chamado
“neoliberalismo” é multiforme, plural e tem contradições internas, entre seus próprios precursores. Ou seja,
falar de neoliberalismo sem determinar o que se entende por essa denominação, é algo vago.
9 Paulo Guedes, atual Ministro da Economia do governo conservador-liberal de Jair Bolsonaro, fez sua pós-
graduação na Universidade de Chicago nos anos 1970, período de efervescência da Escola de Chicago e dos
chamados “Chicago Boys”. Guedes também atuou como pesquisador e acadêmico visitante da Universidade
do Chile nos anos 1980, durante o período ditatorial no país.
movimento liberal no Brasil tem estreita ligação com o liberalismo praticado na segunda
metade do século XX.
10NAPOLITANO, M.. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p. 8.
são constitutivas dele”11. Ou seja, é possível afirmar que o liberalismo brasileiro tem
características próprias, singulares, fruto da articulação entre os objetivos individuais dos
atores liberais brasileiros, seus projetos de país, suas trocas dentro das redes de
sociabilidade que construíram e suas formas de apropriação do que veio de fora de maneira
seletiva e condizente com suas percepções da realidade do país.
de sociabilidade que constituíram e suas posturas, muitas vezes ambíguas, nas relações com
a ditadura militar e com o processo de abertura política.
Eugênio Gudin (1889-1986): Gudin foi membro da Sociedade Mont Pèlerin14 e um
dos responsáveis pela fundação do IBRE (Instituto Brasileiro de Economia)15, em 1951 –
um think tank dentro da Fundação Getúlio Vargas. Na ditadura militar, Gudin publicou
colunas n’O Globo, tecendo críticas ao aumento da participação do Estado da economia, ao
mesmo tempo em que comemorava a saída do país das “garras do comunismo”.
Roberto Campos (1917-2001): Roberto Campos é tido como um dos maiores
economistas brasileiros, tendo sido Ministro do Planejamento de Castelo Branco entre
1964-1967. Também integrou o IPES16, organização de caráter liberal-conservador que
participou ativamente da articulação do golpe de 1964. Campos é tido como um dos mais
relevantes expoentes do pensamento liberal no Brasil.
Octávio G. de Bulhões (1906-1990): Tido como um dos representantes da proposta
econômica liberal/neoliberal no Brasil. Assim como Roberto Campos, era associado ao
IPES e atuou como Ministro da Fazenda entre 1964 e 1967. Também trabalhou com
Gudin no IBRE.
Henry Maksoud (1929-2014): Maksoud, membro da Sociedade Mont Pèlerin, foi,
talvez, o empresário mais envolvido com o movimento liberal brasileiro nas décadas de
1970 e 1980. Em 1974, comprou a revista e a editora Visão e passou a utilizá-las para
disseminar valores liberais para o público. Além disso, Maksoud comandou um programa
de entrevistas na Rede Bandeirantes entre 1988 e 1990, no qual abordava temas afins ao
liberalismo. Entre 1977 e 1981, financiou visitas do economista Friedrich von Hayek ao
Brasil para aproximar os políticos e intelectuais brasileiros da Escola Austríaca17. Maksoud
também tinha empresas de engenharia, dentre elas a Hidroservice, que foi responsável por
14 A Sociedade Mont Pèlerin foi fundada em 1947 com o objetivo de debater e repensar o liberalismo
clássico. Sua fundação contou com pouco mais de trinta pessoas, dentre eles Hayek, Ludwig von Mises e
Milton Friedman.
15 Segundo Ricardo Bielschowsky (2007), a FGV foi o núcleo de militância intelectual dos neoliberais e o
Volume II - Relatório da Comissão Nacional da Verdade, nº8: “Civis que colaboraram com a ditadura”;
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de Classe. Rio de Janeiro:
Vozes, 1981.
17 Elio Gaspari, em A Ditadura Acabada, aponta que Golbery do Couto e Silva, Ministro-chefe do Gabinete
Civil do Brasil, teria acusado não ter espaço na agenda para receber Hayek. Alega ainda que “Anos Antes,
Geisel não tivera agenda para receber Milton Friedman”. Não foram encontradas maiores informações sobre
os incidentes, mas eles podem indicar que os dirigentes da ditadura militar não tinham interesse em se
aproximar dos teóricos (neo)liberais do período.
pelo viés liberal-conservador. Vários de seus membros declararam-se liberais, incluindo seu
fundador, Miguel Reale18. Outros nomes associados ao liberalismo brasileiro como Antonio
Paim, Ubiratan B. de Macedo, Roque Spencer de Barros e Ricardo Vélez Rodríguez19
também são associados ao IBF e contribuíram com textos diversos para a Convivium.
Interessante destacar que os intelectuais do IBF não sofreram nenhuma perseguição
política ou cultural na ditadura como ocorreu com intelectuais de outros institutos20. O IBF
é fundamental para compreender a aproximação entre o conservadorismo e o liberalismo
no Brasil.
O IL e o IEE foram os primeiros think tanks liberais contemporâneos no Brasil. O
IL foi fundado em 1983, no Rio de Janeiro, pelo empresário Donald Stewart Jr., com
objetivo de difundir ideias ligadas ao liberalismo (especialmente à Escola Austríaca),
publicando livros traduzidos de pensadores liberais internacionais ainda no período de
redemocratização. Já o IEE, foi fundado em 1984 a partir da organização de um grupo de
jovens empresários gaúchos que se reuniram a convite de William Ling (o primeiro
presidente do IEE) com o objetivo de formar lideranças empresariais durante o processo
de redemocratização21.
Os congressos, encontros organização de publicações e grupos de estudos
promovidos por esses institutos abriram oportunidades de relacionamentos e troca de
ideias entre esses atores do liberalismo brasileiro. Ou seja, a partir dos encontros
promovidos por essas instituições, eles puderam articular planos de ação para inserir no
país o processo de liberalização.
Muito interessante notar que parte significativa desses atores liberais eram
intelectuais e o próprio Hayek já apontava que as mudanças nos valores da sociedade para
uma perspectiva liberal deveria partir fundamentalmente desse grupo. Por isso, institutos
ligados a educação e pesquisa teriam função primordial para moldar a opinião pública e as
ações políticas, promovendo encontros, utilizando a imprensa e publicações diversas.
18 Antes de ser liberal, Reale foi conhecido por sua participação no movimento Integralista Brasileiro, da
caráter fascista.
19 Vélez Rodríguez foi nomeado por J. Bolsonaro como Ministro da Educação em janeiro de 2019, mas ficou
Conservadora”. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, jul. 2015, Florianópolis, p. 2-3.
21 CASIMIRO, Flávio H. C. A nova direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e a atualização das
estratégias de dominação burguesa (1980 – 2014). 2016. Tese – PPG em História Social, UFF, p. 280.
ditadura do início ao fim, mas mantendo as colunas ácidas de Gudin que teciam várias
críticas ao intervencionismo dos militares na economia. O Estadão, por sua vez, apoiou com
entusiasmo o golpe de 1964, considerando-o como uma revolução legítima24. Porém,
percebendo o endurecimento do regime com a promulgação dos Atos Institucionais,
passou a demonstrar sua insatisfação com as restrições às liberdades institucionais e com a
liberdade de imprensa, e acabou sendo submetido à censura prévia. A GM, atuou em um
nicho mais específico que os demais jornais e atrelou-se ao jornalismo econômico voltado
para o empresariado e o mercado. Ou seja, dentro do próprio liberalismo brasileiro é
possível identificar pontos de vista diversos, consolidando a ideia de que não é possível
falar de um liberalismo único, puro.
Conclusão
24MOTTA, R. P. S.. Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973).
Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v. 43, n.2, maio/ago. 2017, p. 369.
Bibliografia:
Resumo
Em "K. Relato de uma busca", Bernardo Kucinski trata da temática da memória, do luto,
da relação entre a militância e o desaparecimento forçado, e de uma tentativa de
esquecimento. Os embates acerca da memória, assim como o processo incompleto de luto,
se dão dentro do contexto da Ditadura Militar Brasileira. Em virtude de um caráter
conciliador e de esquecimento forçado, a Anistia se tornou um processo que complexifica
ainda mais tais relações, fazendo-as presentes ainda hoje.
O livro K. O relato de uma busca, escrito pelo jornalista e cientista político Bernardo
Kucinski, conta a história de um pai, chamado K, em busca de sua filha desaparecida em
meio a Ditadura Militar brasileira. Lançado inicialmente em 2011, trata da memória dos que
vão e dos que continuam, do luto, da relação entre uma aparente “vida normal” e a
militância, do desaparecimento e em como este desaparecimento é lidado, seja pelos
familiares (aqui, o personagem-título) ou pelas autoridades oficiais. Proposto como um
romance de ficção, o autor planta a semente da dúvida sobre a história a ser contada já na
abertura da história, ao dizer “Caro leitor: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo
aconteceu”2.
A confusão é proposital. Quando se trata sobre as memórias de um passado
traumático, embates entre a memória e o esquecimento sobre o período são comuns, com
momentos de “altos e baixos”, e no caso brasileiro não seria diferente. As narrativas sobre
a Ditadura Militar são até hoje disputadas por diferentes grupos, cada um trabalhando à sua
maneira o momento histórico. Em K., a narrativa gira muito mais em torno de quem
protagoniza e vivencia estes debates, como sobreviventes e familiares de presos e
desparecidos políticos, mas também contém passagens imaginando como seria o discurso
3 SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer do golpe de 1964 quarenta
anos depois. IN: Revista Anos 90, Porto Alegre, vol.14, n.26, dezembro de 2007. Pp. 127-128.
4 SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo
5 “Cualquier sociedad confrontada con un pasado trágico y difícil de asumir desarrolla mecanismos de
inhibición, esforzándose por olvidar los acontecimientos y las experiencias cuya evocación provoca
sufrimiento y amenaza su identidad, su autoestima o su equilibrio. Voluntaria o involuntariamente, intenta
arrancarlos de su memoria. A menudo lo logra pero sólo por un cierto tiempo, más o menos largo, después
del cual el pasado reprimido vuelve a la superficie.” GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e
imposibilidad de olvido em los países del Cono Sur. IN: GROPPO, Bruno; FLIER, Patricia (orgs.). La
imposibilidad del olvido. Recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguay. La Plata: Al Margen, 2001. P.31.
6 Tanto Sarlo (2007) quando Schmidt (2007) discorrem sobre a necessidade de testemunhar por parte dos
sobreviventes, mas seus pontos são diferentes. A argentina retoma Primo Levi, para quem por não ser o
objetivo último da violência, o testemunho do sobrevivente deveria ser feito justamente pelo fato de que
outros morreram. Já o brasileiro aponta o movimento dos testemunhos como um “chamamento interior”,
como uma forma de lidarem individualmente com o que vivenciaram.
7 TELES, Janaína. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por "verdade e justiça" no Brasil.
IN: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010. P. 262.
8 BRITO, Alexandra Barahona de. "Justiça transicional" em câmera lenta: o caso do Brasil. IN: PINTO,
António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (orgs.). O passado que não passa: a sombra das
ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. P.259.
O Estado brasileiro reconhece hoje um total de 434 pessoas, sendo eles 191 mortos
e 243 desaparecidos políticos, cujos nomes estão presentes no Relatório final da Comissão
Nacional da Verdade, publicada no final do ano de 2014. Centenas de famílias continuam
sem poder fazer o luto devido aos seus mortos, em função do desconhecimento de seus
paradeiros finais. A lembrança destas pessoas é formulada e mantida pela batalha
empreendida entre seus familiares e entes queridos e o Estado e com as circunstâncias.
A figura do desaparecido político é fundamental para entender a busca
empreendida por K e o que motivou o autor a escrever e publicar o livro em 2011. Para
além, o traço que permeia a história é observar de que forma o desaparecimento político
forçado afeta aqueles que permanecem vivos. Para as famílias especificamente,
Os parentes acabam se relacionando com as ausências que se convertem
em “fantasmas”. [...] Temos que enfrentar a ausência, que, por sua
extrema dor, não é um processo comum de luto. Trata-se de um “luto
sem objeto”. É o vazio, a perda absoluta, a morte sem cadáver e sem
enterro[...] Todas essas relações distorcidas são causadas por este ato
bárbaro de sequestro. As famílias pedem a verdade para poder enfrentá-
la.10
Contudo, a ausência do corpo acaba não só por impedir o enterro de seus mortos,
mas também o processo de luto de quem fica. Devido a isso, o ser que fica, neste caso o
familiar, carrega o peso e o fantasma do passado até o presente, eliminando a perspectiva
de futuro em função deste passado que não passa; perde-se a noção dos limites entre
passado, presente e futuro. Quando se trata da memória dos que ficaram, seja dos
sobreviventes ou dos familiares de quem pereceu, uma forma de processar a memória, e o
11 GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. IN: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pp. 184-185.
12 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade: Relatório final, volume III. Brasília: CNV, 2014. Pp. 1646-1652.
13 LISBOA apud SCHMIDT, op. Cit., p.134.
14 Ambos os nomes estão presentes na lista de 136 pessoas reconhecidas pela Lei 9.140/95. Ver em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/66623/Anexo%20Condor-005%20-%20Lei%209140-
95%20e%20anexo.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
15 KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. P.60.
16 TELES, Janaína. Op. Cit., p.259, 269.
haverem negado a terapia do luto, pela supressão do seu corpo morto, o carteiro fosse um
Dybbuk, sua alma em desassossego”17.
Carlos; MARTINS, Ismenia de Lima (orgs.). 1964-2004. 40 anos do golpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. P. 46-
47.
anteriores19. Diferentemente de seus vizinhos do Cone Sul, a estrutura que estava no poder
durante os anos autoritários no Brasil saíram quase sem arranhões, perda de prestígio das
instituições militares ou nomes que participaram do aparato violento sendo julgados e
presos, além da crença de que realmente fizeram o bem necessário que o país necessitava.
Não houve um rompimento entre os anos ditatoriais e os novos anos democráticos, a
transição se deu de forma opaca e tranquila.
Neste sentido, a Anistia foi responsável por provocar mais um sentimento
traumático para os sobreviventes, que além de terem vivenciado inúmeras situações de
violência praticadas pelo Estado, ainda tem suas histórias mais uma vez silenciadas e seus
algozes perdoados publicamente. Se o perdão social necessita de punição e julgamento para
que a “guerra de memória” seja sanada, e o uso da razão e da lembrança retomados, a
Anistia criou novamente barreiras para os sobreviventes se resolverem com seu passado
traumático20. Com isso, mais um impedimento é posto, já que por ter um caráter ambíguo e
situacionista, a anistia impede também direitos jurídicos, pois “as ambiguidades da
transição política negociada no Brasil e a impunidade decorrente estão intimamente ligadas
às dificuldades políticas relacionadas à adesão e aplicação do direito internacional dos
direitos humanos.”21. A aplicação da lei 6683/79
Se deu basicamente nos termos que o governo militar pretendia e, por
isso mesmo, se mostrou mais adequada aos anseios de impunidade dos
integrantes do aparato de repressão do que à necessidade de justiça dos
perseguidos políticos. (...) Seu sentido principal era de ‘conciliação
pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime
democrático’. Aos perseguidos políticos e aos familiares de mortos e
desaparecidos restou uma única opção: seguir reivindicando seus
direitos22
19 GAGNEBIN apud. MONAY, Ana Carolina. Sobreviver: a reelaboração da identidade de mulheres que passaram pela
experiência de tortura na Ditadura Militar brasileira. Rio de Janeiro: 2017. Trabalho de monografia. Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. P.60.
20 PEREIRA, Mateus. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014).
Brasil. IN: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010. Pp. 254-255.
22 MEZARROBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. IN: TELES, Edson;
nas décadas seguintes se deram basicamente pela pressão feita pelos grupos que sofreram
de forma mais direta com o regime, já que, diferentemente da anistia, suas pautas não
ganharam tanta adesão em meio à sociedade. Ainda assim, se mostram insuficientes, com
alcance limitado e um tanto distante do que o direito internacional entende como uma
efetiva política de justiça de transição.
Mesmo com a assinatura de novas leis e projetos nos governos FHC e Lula, e a
abertura da CNV no mandato da presidente Dilma, a atuação sempre esteve limitada pela
lei de 1979. Nenhum governo do recente período democrático ousou extrapolar seus
limites, nem mesmo os presidentes com um histórico de militância contra a ditadura. Em
todas as ocasiões em que medidas de aprofundamento da justiça de transição e reparação
ocorriam, as Forças Armadas, principalmente a figura do Exército, se colocavam
publicamente contra e atuavam pressionando por um recuo ou limitação, sempre
lembrando dos limites "da reconciliação nacional".
Considerações finais
Bibliografia
Resumo
O artigo tem como objetivo apresentar a relação entre a ditadura militar, a trajetória do
movimento estudantil e a relação entre a repressão estatal nesse período com eventos da
atualidade. A partir da investigação histórica sobre as transformações da Escola Técnica
Nacional (ETN) durante a ditadura civil-militar e o debate sobre essa experiência no
contexto do revisionismo e negacionismo, reuniu-se um grupo de estudantes do ensino
médio para divulgar o conhecimento histórico para o público em geral, mas principalmente
para a comunidade escolar do CEFET-RJ. Desse encontro, surgiu o site Ditadura em Prosa,
utilizando um perfil na rede Instagram para a divulgação dos resultados da pesquisa. Um
dos tópicos abordados no projeto é a experiência do movimento estudantil durante a
ditadura civil-militar.
Introdução
O site Ditadura em Prosa surgiu em 2020, no bojo de outras iniciativas para divulgar
o conhecimento histórico em meio digital e no boom de aparecimentos de jornais escolares
em mídia digital para divulgar os projetos da instituição. Além do Ditadura em Prosa, há no
campus Maracanã as seguintes iniciativas: Folha CEFET, Historiando, Diário de Classe etc. A
pandemia da COVID-19 instaurou uma crise escolar sem precedentes, e estimulou o uso
de recursos digitais para favorecer formas de ensino remoto, ainda gerando muita
controvérsia e desigualdade das condições de ensino e aprendizagem.
A seguir, será abordado o movimento estudantil, visando apresentar caráter de sua
luta durante o regime militar de extrema-direita que se instaurou após o golpe de Estado ao
presidente Jango, em 1964, e a sua trajetória ao longo da primeira década de ditadura. Além
disso, será realizado um diálogo com aspectos dessa época que persistem na atualidade e o
porquê.
O movimento estudantil foi uma força contra o regime militar muito importante e
participativa. Seja organizando passeatas, distribuindo panfletos ou entrando para grupos
de resistência armada, encontravam sua forma de resistir ao sistema opressor que havia se
estabelecido.
Sendo assim, os estudantes foram fortemente atingidos pelo governo, que
estabeleceu muitas formas de bloquear seus protestos, impondo normas indiretas como
pela censura, ou diretamente por meio da violência.
Conseguimos ver a relevância que esse grupo tinha na luta contra o regime imposto
e o impacto que ele causava ao vermos as tentativas dos militares de silenciá-los. A
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos aponta que dos 436 mortos e
desaparecidos políticos, 125 eram estudantes2.
Mostrou-se evidente desde o início que eram um alvo quando fuzilaram e
incendiaram a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, na noite
do dia trinta e um de março para o dia primeiro de abril de 1964, o dia do golpe militar.
Na ocasião, agentes do regime enviados pelo Comando de Caça aos Comunistas
(CCC), sem fardas de identificação, invadiram o estabelecimento, atiraram para fora móveis
2 “Parte II: Grupos Sociais e Movimentos Perseguidos ou Atingidos Pela Ditadura – A Perseguição ao
Movimento Estudantil Paulista”. Comissão da Verdade. Disponível em
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap6.html. Acesso em: 1 de mar.2020.
3BARROS, Vic. “1964-2014: A DITADURA SE FOI, A PALAVRA FICOU. POR QUÊ?”. União Nacional
dos Estudantes (UNE). 2014. Disponível em https://une.org.br/2014/03/leia-artigo-da-presidenta-da-une-
sobre-o-golpe-de-1964/. Acesso em: 1 mar. 2020.
ABDALA, Vitor. “Líderes estudantis da década de 50 relembram incêndio da sede da UNE”. Agência Brasil.
2014, Rio de Janeiro. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-04/lideres-
estudantis-da-decada-de-50-relembram-incendio-da-sede-da-une. Acesso em: 24 mar. 2020.
4 CUNHA, Luís Antônio. “Lei Suplicy”. Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível em
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/lei-suplicy. Acesso em: 24 mar.2020.
movimento estudantil. Muitos se juntavam a grupos armados como a Ação Popular (AP), a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Aliança Libertadora Nacional (ALN).
Nesse período, ainda tentavam reconstruir suas entidades estudantis para organizar
a luta contra o regime. Em meio a esta situação, havia o aluno Alexandre Vannucchi Leme,
que fazia parte de um grupo que visava reconstruir o DCE da USP e era membro do grupo
ALN. O secundarista foi preso, torturado e morto por agentes do DOI-Codi, gerando uma
enorme repercussão e a primeira grande manifestação após o decreto do AI-5 no país.
6 BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. “Entre a técnica e tática: movimentos estudantis na Escola
Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca (1967-1978)”. Dissertação de Mestrado (156 fls.). Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação, Programa de
Pós-Graduação em Educação, 2017.
7 GOMES, Amélia. “Osvaldão, um herói brasileiro”. Brasil de Fato. Belo Horizonte, 2018. Disponível em
8 PESTANA, Lucas. “Após denúncias contra seguranças, estudante da UFPB é encontrado morto”. Correio
Braziliense. 2020. Disponível em
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/02/19/interna-brasil,829147/apos-
denuncias-contra-segurancas-estudante-da-ufpb-e-encontrado-morto.shtml. Acesso em: 1 mar.2020.
9 G1 PB. “Comissão diz que estudante denunciou agressões cometidas por seguranças à UFPB desde 2016”.
Bibliografia
Felipe Lott1
Resumo
O presente trabalho busca apresentar um esboço de uma nova interpretação sobre o
Exército, principalmente em sua atuação na sociedade ao longo do século XX, a partir do
pensamento sociológico de Bourdieu.
O presente artigo constitui uma prévia de um dos pontos teóricos que venho
desenvolvendo na pesquisa de doutorado Edna Lott (1919-1971): uma biografia. Atuação
feminina na política, Forças Armadas e sociedade no Brasil, pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), e que foi escrito como trabalho de conclusão de curso da disciplina Metodologia Poder
e Sociedade, ministrada pela Professora Doutora Gladys Sabina Ribeiro, no primeiro
semestre de 2020 do programa de pós-graduação em História da UFF (PPGH). Para
produzir tal trabalho, escolhemos refletir sobre o pensamento sociológico de Bourdieu por
ser o principal teórico que utilizamos em nossa pesquisa. Devido ao curto espaço
disponível para a escrita desse artigo, não pretendemos aqui abordar todos os aspectos da
sociologia de Bourdieu, limitando-nos a apresentar como esse pensamento nos auxilia a
melhor compreender o Exército a partir de nossa biografada, Edna Lott. Filha do marechal
Lott, tendo se casado com um oficial, que chegou ao posto de coronel, tendo irmãs casadas
com outros oficiais e irmão oficial pela Aeronáutica e ter tido filhos que estiveram sempre
relacionados à caserna, como os nascimentos no Hospital Central do Exército (HCE) e
estudos no Colégio Militar, Edna Lott foi uma mulher profundamente atravessada pelos
valores castrenses. Nesse sentido, para podermos analisar o habitus de nossa biografada,2
torna-se incontornável a compreensão do Exército em sentido histórico, sociológico,
1 Felipe Varzea Lott de Moraes Costa, doutorando em História Contemporânea pelo PPGH-UFF, mestre em
História Contemporânea pelo PPGH-UFF (2019), bacharel em Ciências Sociais pela UFF (2016). Vinculado
ao Laboratório Brasil Republicano – Pesquisadores em História Cultural e Política (BR – PHCP). Contato:
felipelott29@gmail.com.
2 Sobre a importância do habitus para a construção de uma biografia, ver: BOURDIEU, Pierre. “A ilusão
biográfica”. In: Usos & abusos da história oral. MORAES FERREIRA, Marieta de.; AMADO, Janaína. (org.).
8.ed. 7.ª reimp. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
antropológico e político. Além disso, ao estudarmos Edna Lott e sua relação com o
Exército, emerge a possibilidade de oferecermos uma nova interpretação para o
funcionamento da corporação, que não seria possível se nos detivéssemos apenas no
quadro de oficiais.
Há duas interpretações tradicionais sobre o Exército e uma terceira, que mescla
elementos das outras duas. A primeira, intitulada instrumental, compreende a ação dos
militares fundada em sua origem de classe ou na sua instrumentalização por uma classe.
Advindos da classe média e/ou do povo, os militares apresentariam uma profunda
identificação com a sua classe de origem e, por isso, atuariam no espaço público de modo a
defender os interesses dessa(s) classe(s). Uma outra forma de interpretação instrumental
identifica nos militares uma certa ingenuidade, que os faz serem manipulados e
instrumentalizados constantemente pela classe dominante para garantirem seus interesses.
Em ambos os casos, o fator da classe, seja por pertencimento, seja por manipulação, é o
fundamento da ação dos militares. O principal autor dessa linha explicativa pode ser
apontado em Nelson Werneck Sodré. A segunda interpretação, nomeada de organizacional,
identifica na organização interna do próprio Exército a origem de sua ação no espaço
público. Nesta visão, a origem de classe perde completa importância em detrimento de
como o Exército se constrói de maneira institucional, ou seja, como consegue verbas,
armamento, como administra suas instalações, como se dá a entrada e saída de civis para a
vida militar, a formação, etc. Entre seus autores, Edmundo Campos Coelho é o nome de
maior destaque. A terceira linha explicativa busca mesclar fatores de classe e fatores
institucionais para compreender o Exército, assim equilibrando as explicações exógenas (de
classe) e endógenas (institucionais).3
Como podemos perceber, a terceira linha de interpretação não apresenta uma visão
própria e sistemática sobre o Exército, utilizando-se do que entende como razoável de cada
uma das duas interpretações hegemônicas. Se a visão instrumental possui uma forte
influência marxista e a organizacional, uma forte influência weberiana, buscaremos superar
esse embate a partir de Bourdieu, que, ao longo da sua produção intelectual, buscou
encontrar uma síntese entre o pensamento de Marx, Durkheim e Weber. Ao utilizarmos
Bourdieu, pretendemos fazer uma análise a partir de três dimensões, arrolados aqui na
3 Ver: WERNECK SODRÉ, Nelson. História Militar do Brasil. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010;
CAMPOS COELHO, Edmundo. Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de
Janeiro: Record, 2000; PEIXOTO, Antonio Carlos. “Exército e política no Brasil. Uma crítica dos modelos
de interpretação”. In: Os partidos militares no Brasil. ROUQUIÉ, Alain. (coord.). Rio de Janeiro: Record, 1980.
situação não profissional, que estouraram a partir de 1922 até a ruptura em 1930. Nossa
biografada, portanto, apresenta-nos grandes possibilidades para compreendermos o habitus
dentro do Exército pelo fato dela ter vivido entre esses dois momentos, o Exército ainda
em um modelo aristocrático e o Exército profissional, apresentando, assim, o que
poderíamos chamar de hibridismo, que ela própria não percebia de todo, como é possível
perceber claramente no momento em que ela passou a buscar a libertação de seu filho da
prisão da Ditadura, a partir de 1969.
Assim que analisaremos o Exército enquanto um agente dentro de um campo, como
afirmamos anteriormente. Dentre todos os campos que o Exército participa, o mais
importante se enquadraria no que estamos propondo como campo da violência física e
material. Algumas ressalvas são importantes quando tratamos do tema. A primeira delas é
discernir violência de poder e de política. O pensamento ocidental consagrou a violência
como atributo intrínseco e inseparável da política e do poder. Podemos arrolar uma longa
lista de autores iniciando em Maquiavel e Hobbes e passando por Nietzsche e Weber.
Discordamos dessa concepção nos apoiando em Pierre Clastres, que nos mostra que essa é
apenas a forma como uma sociedade de Estado ou de classes se relaciona com o poder e a
política, isto é, através da violência.5 Sociedades sem Estado ou, como preferia Clastres,
contra o Estado não veem na violência o medidor e o mediador do poder e da política. Ao
tratarmos do campo da violência física e material devemos, portanto, aclarar que estamos
tratando de uma sociedade de classes ou de Estado, pois a violência nesse tipo de sociedade
apresenta especificidades que não são encontradas em sociedades que não se baseiam no
Estado. Cabe a ressalva que não afirmamos com isso que não haja violência nas sociedades
sem Estados, apenas que a violência não serve como medidor e mediador do poder e da
política.
A outra ressalva importante a se fazer é que Bourdieu distingue o campo político do
campo do poder. Este último representa um metacampo, um campo que tem poder de
influenciar as regras de outros campos, em que todo detentor de capital, seja ele qual for,
ingressa para disputar a definição dos demais campos. No campo do poder, Bourdieu
confere preponderância ao capital econômico, que é responsável por transmutar-se em
capital cultural para facilitar a dominação e o reconhecimento do domínio e/ou monopólio
do capital econômico, e ao capital político, que representa, segundo Bourdieu, o capital
5CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Trad. Theo Santiago. Prefácio
Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
simbólico por excelência. O campo político, por outro lado, é estruturado pela divisão do
trabalho político que separa aqueles que produzem produtos políticos (agentes políticos
ativos) daqueles que consomem produtos políticos (agentes políticos passivos), em uma
dialética de delegação e reconhecimento. Assim, por exemplo, os eleitores delegam poder a
um candidato e reconhecem que esse candidato pode representa-los, da mesma forma
como esse candidato delega seu poder e reconhece o poder do partido ou do sindicato ou
outra instituição qualquer. Essa relação acontece de acordo com a quantidade de recursos
de produzir a política que cada agente detém nesse campo, ou seja, o quanto de capital
político possui. Isso não significa dizer que seja esquemática e mecânica a dinâmica da
distribuição e concentração do capital político. Pode haver casos em que um candidato
detenha um capital político maior do que um partido, assim como é possível que os
destituídos de capital político não reconheçam mais um candidato.6
Essa distinção é fundamental porque mostra como Bourdieu não pressupõe a
violência física e material da política e do poder. Ao contrário, o sociólogo francês trabalha
muito mais com a questão da violência simbólica, uma violência que é reconhecida pelos
que sofrem essa violência sem saber que a reconhecem ou, como Bourdieu gostava de
afirmar, o reconhecimento do desconhecimento, do que propriamente com a violência
física e material.7 Inclusive Bourdieu radicaliza para o lado do simbólico, contrapondo-se
aos intelectuais de sua época, acabando por quase ignorar a questão física e material. Outra
ressalva importante que precisamos fazer trata-se de intuir que o monopólio do capital
disponível no campo da violência física e material, que estamos propondo, representaria a
formação do Estado ou que tivesse alguma relação com a forma estatal. Há muitos
exemplos empíricos para chegarmos a essa conclusão, sendo o mais usual a nomeação do
tráfico de drogas ou da milícia como “Estado paralelo”. Entretanto, o Estado não se
resume ao monopólio da violência legítima, como se cristalizou no senso comum essa
simplificação do pensamento de Weber. Para o sociólogo alemão, a violência representa
apenas o meio específico do Estado, não o meio normal ou único, uma vez que o Estado já
6 BOURDIEU, P. “Algumas propriedades dos campos”. In: Questões de sociologia. BOURDIEU, P. trad. Fábio
Creder. Petrópolis: Vozes, 2019; BOURDIEU, P. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). [edição
estabelecida por Patrick Champagne... [et al.]]. trad. Rosa Freire D’Aguiar. 1.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014; BOURDIEU, P. “A representação política: elementos para uma teoria do campo político”. In: O
poder simbólico. BOURDIEU, P. Trad. Fernando Tomaz (português de Portugal). 11. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007. Ver também: THOMSON, Patrícia. “Campo”. In: Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais.
edit. Michael Grenfell. trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2018.
7 BOURDIEU, P. “Sobre o poder simbólico”. In: O poder simbólico. BOURDIEU, P. Trad. Fernando Tomaz
havia exercido, segundo Weber, quase todas as funções de uma associação social.8 Da
mesma forma considera Bourdieu. Para o sociólogo francês, o Estado, que não se resume a
um agente dentro de um campo, é um metacampo formado pela concentração de uma série
de capitais, que vão muito além da violência física.9
Ainda que o objetivo dos agentes do campo da violência física e material seja a
conquista e a manutenção do monopólio dessa violência, raramente essa situação faz com
que o agente em questão se configure como Estado, a não ser metaforicamente.
Precisamos, portanto, definir esse campo que estamos propondo. Poderíamos chama-lo de
campo da segurança, porém compreendemos que se trataria de uma eufemização daqueles
que detêm o monopólio da violência física e material. Compreendemos violência a partir da
teoria da dominação de Weber, como qualquer meio que um agente utilize de alguma força
(coação) para impor a sua vontade a terceiros.10 Essa força pode ser física, material,
simbólica, psicológica, emocional, etc., no nosso caso, estamos trabalhando com a física e
material. Definimos violência física como qualquer ato de força humano que produza dano
em qualquer coisa que não tenha sido transformada pelo trabalho humano, em um sentido
marxista. Em resumo, tudo o que age de modo a danificar o que entendemos por natureza
(rios, florestas e, inclusive, o corpo humano), ou seja, o que se produz e reproduz sem a
interferência humana. Definimos violência material como qualquer ato de força humano que
produza dano em qualquer coisa que tenha sido produzida pelo trabalho humano. Para
darmos um exemplo, destruir uma plantação representa uma violência material e destruir
uma floresta, uma violência física. O corpo humano se encontra na interseção entre esses
dois tipos de violência, uma vez que o homem possui um desenvolvimento biológico
natural, como qualquer ser vivo, assim como também transforma o seu próprio corpo a
partir do seu trabalho.
Definidos os termos, torna-se necessário esclarecermos que esse campo pode ter
diferentes tamanhos e motivações. Violência doméstica, violência entre gangues, entre
torcidas de futebol, entre agremiações religiosas divergentes, etc. estão circunscritas dentro
do campo da violência física e material de maneira particular. Muito frequentemente esses
casos arrolados não se relacionam diretamente. Precisamos, portanto, definirmos os
8 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe
Barbosa. rev. téc. Gabriel Cohn. 4. ed. 4. reimp. vol. 2. Brasília: UnB, 2015. p. 525.
9 BOURDIEU, P. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). [edição estabelecida por Patrick
Champagne... [et al.]]. trad. Rosa Freire D’Aguiar. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 105-8 e
146-7.
10 WEBER, M., op. cit., p. 191.
capitais disponíveis nesse campo, composição esta que chamaremos de capital bélico.
Entendemos esse capital bélico composto pelo acúmulo de capital econômico, capital
cultural, capital social e capital simbólico, que é o capital que todo detentor de capital
possui, que estejam relacionados ao campo da violência física e material. Se tomarmos
como exemplo o Exército, agente dentro desse campo que estamos estudando no
momento, podemos colocar o capital econômico como o orçamento somado ao nível
industrial do país (armas e munições, equipamentos militares, engenharia, comunicações e
agricultura são as principais indústrias necessárias, mas não somente). Quanto maior o seu
orçamento e quanto mais industrializado fosse o Brasil, no caso, maior o capital econômico
do Exército, que, por sua vez, aumentaria o capital bélico da corporação.
O capital cultural se apresenta de três formas: incorporado, objetificado e
institucionalizado.11 Podemos colocar o incorporado como treinamentos, técnicas de
combate, manuseio de armamento, teoria de guerra que o militar incorpora passando a
fazer parte da sua disposição corporal. O capital cultural objetificado podemos citar
armamentos e munições, instalações militares, manuais de instrução, escolas militares,
lugares de lazer próprios, etc. Por fim, o capital cultural institucionalizado podemos
perceber em cursos que o militar tira na própria corporação, como a Escola Superior de
Guerra ou o Instituto Militar de Engenharia, ou alguma outra instituição reconhecida
socialmente, como cursos universitários que aperfeiçoem o oficial. O capital social se
apresenta nas relações que o Exército consegue estabelecer com outros setores da
sociedade, podendo ser classes sociais ou instituições, como jornais, o sistema judiciário,
igrejas, etc., que reconheçam e legitimem o uso da violência física e material por parte do
Exército. Finalmente, o capital simbólico que se trata do reconhecimento do monopólio do
capital bélico pelos demais agentes do campo da violência física e material, que poderíamos
definir, em termos hobbesianos, como a capacidade de infligir o medo da morte violenta.
Fica nítida a importância de nossa proposta quando analisamos a biografia de Edna
Lott. Nascida em 1919, o Exército possuía um capital bélico bastante pequeno em
comparação à Guarda Nacional e às polícias estaduais, situação que percorreu desde a
Monarquia até o golpe do Estado Novo. Quando vamos a analisar o habitus de Edna Lott,
podemos observar, portanto, esses dois períodos do Exército, o de pouco capital bélico e o
de detentor do monopólio do capital bélico. Nossa biografada se mostra, portanto, como
11BOURDIEU, P. “The forms of capital”. In: Handbook of theory and research for the sociology of education. John G.
Richardson (org.). Westport (Connecticut): Greenwood, 1986.
BOURDIEU, P.; CHARTIER, Roger. “Habitus e campo”. In: O sociólogo e o historiador. BOURDIEU, P.;
12
CHARTIER, R. trad. Guilherme João de Freitas Teixeira, com colaboração de Jaime A. Clasen. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011. p. 62.
13 CASTRO, C. “A luta pela implantação do serviço militar obrigatório no Brasil”. In: CASTRO, Celso.
Exército e nação: estudos sobre a história do exército brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
14 LOURO, Guacira Lopes. “Mulheres na sala de aula”. In: História das mulheres no Brasil. Mary Del Priori
(org.). Carla Bassanezi (coord. De textos). 6. ed. São Paulo: Contexto, 2002; MALUF, Marina; MOTT, Maria
Lúcia. “Recôndito do mundo feminino”. In: História da vida privada no Brasil. Nicolau Sevcenko (org.). vol. 3.
República: da Belle Époque à Era do Rádio. Fernando A. Novais (coord.). 9. reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
15 CASTRO, C. (org.). A família militar no Brasil: transformações e permanências. Rio de Janeiro: FGV, 2018.
Assim, estudar a biografia de Edna Lott nos possibilita lançar um novo olhar sobre o
Exército, que supere a dicotomia entre uma visão endógena e exógena. Além disso,
podemos observar como o habitus não é algo dado e estanque, mas é formado ao longo da
experiência humana, sofrendo modificações e manutenções. Por ter nascido justamente no
período de transição mais acentuada de um exército aristocrático para um profissional,
Edna Lott traz em seu habitus pontos fortes desses dois períodos do Exército brasileiro.
Bibliografia
MCCANN, Frank D. Soldados da pátria: história do exército brasileiro, 1989-1937. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
PEIXOTO, Antonio Carlos. “Exército e política no Brasil. Uma crítica dos modelos de
interpretação”. In: Os partidos militares no Brasil. ROUQUIÉ, Alain. (coord.). Rio de Janeiro:
Record, 1980.
THOMSON, Patrícia. “Campo”. In: Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. edit. Michael
Grenfell. trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2018.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. trad. Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. rev. téc. Gabriel Cohn. 4. ed. 4. reimp. vol. 2. Brasília: UnB, 2015.
WERNECK SODRÉ, Nelson. História Militar do Brasil. 2.ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a poesia de Alex Polari de
Alverga em Inventário de Cicatrizes (1978) e de Afonso Henriques Neto e Eudoro Augusto
em O misterioso ladrão de Tenerife (1972), relacionando-as com o contexto em que foram
produzidas, a Ditadura Militar (1964-1985). Tomamos de partida dois princípios teórico-
metodológicos: a relação entre poesia e história como passível de ampliar o conhecimento
acerca do passado, entendendo a produção poética e artística em sua esfera singular
correlacionada à história; a dor subjetiva como dado histórico, capaz de interferir
objetivamente na experimentação do tempo e na própria concepção da história.
Introdução
O poeta-prisioneiro
2 POLARI, Alex. Inventário de cicatrizes [1978]. 4. ed. Rio de Janeiro: Global, 1979. p. 18.
3 Ibidem, p. 17.
4 Ibidem, p. 19.
Os poetas marginais
5 VIEIRA, Beatriz de Moraes. A palavra perplexa: experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1960. São Paulo:
Hucitec, 2017, p. 298.
6 SALGUEIRO, W. “Tortura sob deboche: uma questão de riso ou morte (Análise de “Trilogia Macabra”, de
Alex Polari)”. In: Anais do Congresso Internacional da ABRALIC, 12, 2011, Curitiba, p. 1.
inovador, revela os traços de um novo tipo de relação com a literatura, agora quase
confundida com a vida.”7. De acordo com Andréa Cátropa da Silva, essas características
adquirem contornos específicos na obra de Afonso Henriques Neto e Eudoro Augusto:
Assim o estilo antiliterário, em seus textos, não prescinde da elaboração
formal, antes se manifesta como auto-ironia, como antídoto ao texto
precioso. O tema do cotidiano surge ao lado de outras temáticas
recorrentes em sua obra e, quando elementos do cotidiano são
incorporados a seus poemas, não ocorre uma tentativa de transposição
direta e mimética da realidade para a obra de arte.8
Numa perspectiva semelhante, Pedro Brito mostra que a obra, antes de realizar
um “salto” sem intermédios entre a consciência e a escrita, onde através da espontaneidade
teríamos acesso ao “eu” do poeta – como era o processo criativo comum entre os
chamados poetas marginais –, há na verdade “uma ‘personalidade literária’ forjada na
intercessão com máscaras e vozes latentes.”9. Para o autor, O misterioso ladrão, embora
explore as tópicas geracionais da poesia marginal, é permeado “por atitudes, propostas e
mitos culturais partilhados por sua geração e pertencentes a certa linhagem maldita da
literatura ocidental, que nos remete, por exemplo, a Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud,
Jean Genet, Allen Ginsberg e Roberto Piva.”10
Dito isso, é importante salientar que a obra não se furta a refletir sobre a Ditadura
Militar e seus impactos sociais. Poemas como “Poema”11 lidam diretamente com a questão,
questionando-se sobre os mascarados “que penetraram os altos muros”. Entretanto, a obra
acaba por, na maioria das vezes, comentar o seu contexto de forma mais sutil e profunda,
como mostraremos a seguir.
As análises aqui propostas têm como objetivo principal entender de que forma a
experiência ditatorial se traduziu na produção poética desses autores. Evidentemente, há
uma diferença marcante entre os autores: um era militante, aprisionado e vítima de tortura,
7 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2004, p. 109.
8 SILVA, A. C. “Das margens ao infinito - a trajetória poética de Afonso Henriques Neto”. Estudos Lingüísticos
A quinta estrofe, por sua vez, dá conta de caracterizar o que seria a perplexidade,
termo recorrente na obra do autor. Neste caso, dispõe de paradoxos como que numa
gradação: “ Então houve o percurso sem volta/ a chuva que não molhou/ a noite que não
era escura/ o tempo que não era tempo/ o amor que não era mais amor/ a coisa que não
era mais coisa nenhuma”. Esse percurso resulta numa vivência específica do tempo, onde
“Entregue a perplexidades como estas, / meus cabelos foram se embranquecendo/ e os
12 Cf. VIEIRA, Beatriz de Moraes. “Geléia, medula e ossos: reflexões sobre experiência histórica dolorosa e
conhecimento histórico ético-político”. In: OLIVEIRA, Rodrigo Perez; SILVA, Daniel Pinha. (Org.). Tempos
de crise; ensaios de história política. 1ed.Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
13 POLARI, Op. cit., p. 36.
14 Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “O testemunho: entre a ficção e o ‘real’”. In: SELIGMANN-SILVA,
Márcio. (Org.) História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp,
2003.
dias foram se passando.” Esta última estrofe reverbera ideias que são apresentadas ao leitor
durante todo o livro. Na décima estrofe de “Recordações do paraíso”15, por exemplo,
temos:
Inquérito.
Muito general estrelado
comida de oficial
vista da Praça da República.
Eles encenavam ter pena de mim
e perguntaram minha idade.
Eu disse: 200 anos.
Tal trecho adquire forte carga irônica, ainda mais quando em verso da estrofe
anterior se diz: “eu tenho apenas 20 anos”. Como dito anteriormente, essas construções
poéticas nos sugerem a existência de uma percepção particular do tempo, onde o corpo é
percebido em envelhecimento acelerado. Tal percepção pode ser relacionada a um
interessante jogo de palavras realizado pelo autor ainda em “Canção para Paulo”. Os “fios
do destino”, clássica imagem que remete às irmãs fiandeiras, o famoso oráculo da mitologia
grega, tornam-se aqui os fios elétricos utilizados como método de tortura, que igualmente
tecem o destino daqueles a que são submetidos. “Eles queimaram nossa carne com os fios/
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade”. Essa “mesma eletricidade” de que fala é a
condição de preso político, de torturado, de vítima de um Estado de Exceção: é esta
experiência traumática que transforma os indivíduos - aqueles que sobreviveram – nos
“mutilados de corpo e alma”, como diz o autor em outro poema, “Inventário de
Cicatrizes”16. Dessa forma, essa experiência do tempo manifestada pelo autor não lhe é
exclusiva: é uma pista para entendermos as psiques esfrangalhadas daqueles que foram
submetidos à violência desumanizadora da ditadura brasileira e suas compreensões próprias
das temporalidades. Como afirma Beatriz Vieira, “a experiência dolorosa desorganiza os
encadeamentos de passado-presente-futuro.”17
Em O misterioso ladrão de Tenerife, por sua vez, a relação entre experiência histórica e
dor se manifesta em outra chave. Utilizaremos de exemplo o poema “Simples narração”, de
Afonso Henriques Neto, como principal manifestação dessa questão. O poema conta a
história do povo sumério, vítima de uma epidemia de gripe que o dizimou. Neste primeiro
momento, vendo-se incerto diante de afirmações sobre o que teria de fato ocorrido, o eu-
lírico recorre a um questionamento da própria História enquanto discurso: “[...] já não
podemos saber se a História possui alguma razão de ser, ou se simplesmente veio sendo
reinventada por extensa cadeia de razões adoecidas [...]”18. De forma semelhante, ao refletir
sobre as contribuições possíveis dos “peritos no assunto”, isto é, os historiadores, nos avisa
da “inutilidade de tais empreendimentos.”19. Ao analisar o poema, Beatriz Vieira esclarece o
sentido amplo que a História adquire nessa crítica:
[...]a facticidade de uma razão histórica é questionada, em ambos os
sentidos do termo “história”: quer uma racionalidade contida no
processo histórico em si, que não existe salvo se o senso comum ou os
historiadores lhe atribuírem um telos, quer uma teoria racional que orienta
a historiografia ou a práxis social, tanto mais demandada em momentos
críticos [...]20
Nesse sentido, a experiência histórica em curso seria uma das causas dessa
evidente descrença em relação ao próprio discurso histórico, dotado de uma racionalidade
que nesse contexto não faz sentido. Justamente, a dor proveniente de um estado de
exceção se traduz, aqui, num eu-lírico desinvestido da vida, aprisionado numa “existência
insípida, ir e vir entre galpões sombrios, gado e carvão.” Temos, então, acesso às
elocubrações de um “personagem de feições levemente semelhantes àquelas gravadas em
antigas substâncias sumérias”, que segue no mesmo sentido:
a) estou ferido mortalmente. nenhum médico, nenhuma medicina
conhecem minhas dores. é amargo e sórdido estar aqui sentado, a pensar
só na morte, unicamente na morte, por mais que escreva ou leia vida [...]
nenhuma filosofia por resgatar. se ao menos. [...] ... há um cemitério
ubíquo, não importa o assentimento ou a contradição. ou a revolta.
[...] multidões de energias se dilaceram nas galáxias. há mortos siderais
como há sementes siderais.
[...] Resta pensar se entre os tais mortos da tal epidemia de gripe e os tais
mortos de tal epidemia de gripe(talvez ambas atômicas) foi estabelecida
uma qualquer hierarquia de valores (na hierarquia dos anjos?), algo que
nos revelasse alguma diferença entre todos os que perecerem de mãos
dadas [...] Os sumérios estão vivos como a morte.21
Dessa forma, o que se evidencia é que não há aqui, de fato, uma negação da
existência de sentido ou racionalidade na história, mas a proposição de um sentido outro.
Como podemos observar, a história dos sumérios que introduz o poema na verdade diz
respeito à história como um todo, a famosa história com H maiúsculo. Os sumérios são, de
forma geral, os homens e, mais especificamente, o povo brasileiro. O que os liga, aqui, é a
morte. Mais do que a morte, a catástrofe, a barbárie. O seguinte trecho, presente no início
do poema, nos é muito caro:
[...] e como não há prova de que os sumérios poderiam conhecer o seu
específico vírus gripal, a verdade estaria concentrada na morte de cada um
daqueles habitantes do estranho reino, cada qual a seu modo implorando vida
aos ocultos desígnios dos deuses. 22
Podemos dizer, portanto, que o diagnóstico realizado por esse poeta brasileiro
imerso num dos mais dolorosos episódios da história brasileira, a Ditadura Militar, diz
respeito a uma particular compreensão da história que vê, antes do progresso, a morte e o
sofrimento como as verdadeiras constantes, as verdadeiras chaves de entendimento, aquilo
que une os sumérios e os contemporâneos.
É possível enxergar, nessas reflexões, algumas semelhanças com as considerações
expostas pelo filósofo alemão Walter Benjamin em seu documento derradeiro, Teses sobre o
conceito de história. Na sua famosa tese IX, por exemplo, descreve um quadro de Paul Klee,
Angelus Novus, que basicamente resume sua perspectiva em relação à História. O anjo que
figura no quadro está, para Benjamin, com os olhos voltados para uma catástrofe sem fim,
para a verdadeira ruína que é a história. Mesmo desejoso de cuidar dos feridos, de acordar
os mortos, se vê arrastado por um vendaval que o impele para o futuro. “Aquilo a que
chamamos o progresso é este vendaval.”23 De forma semelhante, na tese VIII, argumenta
da necessidade de um conceito de história que cuide do fato de que o “estado de exceção”,
antes de um acidente de percurso, é a verdadeira regra. De acordo com Michel Löwy, aqui
Benjamin contrapõe duas perspectivas acerca do funcionamento da história:
a confortável doutrina "progressista", para a qual o progresso histórico, a
evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz,
é a norma, e aquela que ele afirma ser seu desejo, situada do ponto de
vista da tradição dos oprimidos, para a qual a norma, a regra da história
é, ao contrário, a opressão, a barbárie, a violência dos vencedores.24
Bibliografia
Resumo
Este texto tem como objetivo a análise da reforma do ensino secundário durante a ditadura
civil-militar, dentro da lei 5692/1971 e suas contradições, enquanto dialoga com o
pensamento de Celso Furtado e sua perspectiva referente à cultura e desenvolvimento.
Buscando relacionar pensamentos e indagar reflexões acerca dos processos que culminaram
no desenvolvimento do ensino secundário no Brasil e de entender por quais caminhos ele
percorreu.
Introdução
1 Graduando do curso de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Seu e-mail é gilmar.bosco@edu.unirio.br
2 Graduanda do curso de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
3 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Editora Brasiliense, primeira edição, 1981.
p.11.
4 FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 23
ideologia política e social tenha sucesso. As raízes culturais estavam fincadas nas
perspectivas europeias, sobretudo portuguesas, como pensa Furtado.
(...) o peso dessas minorias na formação da cultura brasileira é
avassalador. Não apenas porque os portugueses são os senhores e os
demais, escravos ou quase escravos, pois o número dos que não são
proprietários nem exerce funções de mando cresce rapidamente. O
decisivo esteve em que os portugueses não somente partiram de técnicas
mais avançadas mas continuavam a alimentar-se de suas fontes culturais
européias. Ora, os aborígenes e os africanos haviam sido isolados de suas
matrizes culturais respectivas e, ao serem posteriormente privados das
próprias línguas, perdiam o senso de identidade cultural.5
Furtado nos apresenta que a cultura europeia foi influente no decorrer da nossa
construção cultural, assim como no percurso de desenvolvimento do processo de
colonização no século XVI, e essa ação se repercutiu ao longo da criação da identidade
brasileira. Porém, a imposição da cultura europeia não é o único fator a se levar em conta
neste percurso, a cultura indígena já presente no Brasil, pelos indígenas que aqui já estavam,
e a cultura africana trazida pelos negros escravizados, também fizeram parte da composição
da identidade brasileira. Tal como afirma Darcy Ribeiro:
No plano étnico‐cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma
etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios
desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e os
europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com
os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas.6
5FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 20.
6RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2° Ed. São Paulo: Companhia das letras,
1995. p. 30.
econômico e seus impactos, Furtado (1992) coloca que esse modelo de sistema econômico
nacional que vingou neste período, de alguma forma ou de outra, impactará na construção
do Estado nacional, principalmente no que diz respeito à cultura, não só economicamente.
Pensando em educação, Furtado (1984) trabalha a ideia de que o ensino necessita
ser ressignificado, ao ponto que, intencionalmente ou não, ele é um meio de difundir os
conhecimentos e propagar ideias. Logo,
(...) Quanto mais o ensino se funda em conhecimentos que armam o
estudante para melhor compreender o seu contexto social, maior será a
influência da Universidade no processo de transformação da sociedade.
Portanto, o que se deve almejar é que boa parte das atividades de ensino
seja uma projeção do trabalho de pesquisa.7
Furtado tinha uma visão para educação pautada no intelecto, logo suas reflexões
estão em oposição a reforma educacional de 1971 já que seus objetivos não se pautavam
em uma cultura para o desenvolvimento do país e sim do indivíduo. No que se apresenta
logo no primeiro artigo de sua composição.
Art. 1o O ensino de 1o e 2o graus tem por objetivo geral proporcionar
ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas
potencialidades como elemento de autorrealização, qualificação para o
trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania.8
Afinal a lei está de acordo com o panorama educacional da ditadura civil-militar, que não
fornece uma base sólida para o desenvolvimento econômico e de um projeto nacional,
porque: (..) houve uma precarização na estrutura escolar, bem como na
atuação dos professores, que estavam muito mais sobrecarregados com o
aumento dos turnos, as salas cheias e a contração da jornada escolar.9
7 FURTADO,Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.62.
8 BRASIL. Lei n° 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2° graus, e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692impressao.htm>
Acesso em 25 jul. 2020. p.1.
9 SILVA; PEREIRA; RORIGUES. Reformas educacionais no Brasil: reprises históricas? In: A arte de pesquisar.
O acesso à educação, ao ensino e a escola, naquele momento, não era para todos, a
democratização do acesso à sala de aula ainda dava seus primeiros passos. Cada indivíduo
que não pertencesse à bolha da elite social estava fadado a não ter acesso ou evadir cedo da
escola e consequentemente ocupar cargos inferiores e com baixa remuneração no mercado
de trabalho.
As pessoas oriundas das classes privilegiadas estavam nas posições de poder,
utilizando de sua força intelectual apurada nas melhores escolas e nos bancos universitários.
“Por isso, o sistema educacional é visto como uma instituição que preenche duas funções
estratégicas para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução da estrutura
de classes.”13
A reforma que cria o 2° grau em 1971 vem com a promessa de desenvolvimento
pessoal e ao crescimento de oportunidades através do ensino profissionalizante.
11 PIMENTEL; FREITAS. O ensino secundário brasileiro em 1930 no contexto da cultura escolar e história
da educação. IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil. João Pessoa:
jul/ago. 2012. p 936
12 FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.58.
13 PIMENTEL; FREITAS. O ensino secundário brasileiro em 1930 no contexto da cultura escolar e história
da educação. IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil. João Pessoa:
jul/ago. 2012. p. 936
Episódios como este intensificam a cultura da subdivisão de classes, uma vez que a
população menos privilegiada não consegue ter acesso à educação de qualidade prometida
pela Lei 5692/1971. Sem o êxito esperado, mais uma vez a política educacional vigente é
afetada e passa por novas transformações até chegar no modelo atual, a Lei de Diretrizes e
Base, nº 9394 promulgada em 1996.
14 CUNHA, Luiz Antônio. Ensino profissional: o grande fracasso da ditadura. Caderno de Pesquisa. São Paulo:
out/dez. 2014. p. 920.
15 GERMANO, José. Estado militar e educação no Brasil: 1964/1985: Um Estudo sobre a política educacional. 2°. Ed.
da política econômica então implementada principalmente sob a direção do Ministro da Fazenda Antônio Delfim Neto mas
também de uma conjuntura econômica internacional muito favorável. Esse período (e por vezes de forma mais restrita os anos
1968-1973) passou a ser conhecido como o do “milagre econômico brasileiro”, uma terminologia anteriormente aplicada a fases
de rápido crescimento econômico no Japão e em outros países. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/milagre-economico-brasileiro,> Acesso:
16/10/2020)
O que estava inserida em toda esta proposta é a ideia de que o segundo grau é a
etapa final da educação para as classes populares, logo, o estudante que completou seus
estudos e possui habilitação para exercer uma função, habitualmente encerra seus estudos
em busca de emprego. Segundo Germano (1990), a reforma do 2° grau está diretamente
relacionada com a contenção do fluxo de alunos para a universidade.
Trata-se de uma tentativa de estabelecer uma relação direta entre sistema
educacional e sistema ocupacional; de subordinação da educação a
produção. Desse modo, a educação só teria sentido se habilitasse ou
qualificasse para o mercado de trabalho. Por isso o 2° grau deveria ter
um caráter terminal.18
Naquele momento a demanda para ingressar nas universidades era alta, entretanto
menor quando comparada com a demanda do ensino secundário, principalmente pelo
escasso número de escolas. A saída para este gargalo foi pela nova lei com bolsas de
estudos em colégios privados. Estas eram oferecidas aos estudantes que não conseguiram
vaga nas escolas públicas.
A gratuidade da escola oficial e as bôlsas de estudo oferecidas pelo Poder
Público serão progressivamente substituídas, no ensino de 2º grau, pela
concessão de bôlsas sujeitas à restituição. A restituição de que trata êste
artigo poderá fazer-se em espécie ou em serviços profissionais, na forma
de que a lei determinar. (BRASIL,1971, art 63, §§ único)19
17 BRASIL. Lei n° 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2° graus, e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692impressao.htm>
Acesso em: 25 jul. 2020. 1971, p. 4.
18 GERMANO, José. Estado militar e educação no Brasil: 1964/1985: Um Estudo sobre a política educacional. 2°. Ed.
Considerações finais
Mas para que isso se concretize, é necessário que se haja liberdade e autonomia.
Liberdade para pensar e autonomia para tomar as suas próprias decisões. A sua autonomia
perante à sociedade. De uma universidade que caminhe com as próprias pernas, sem as
humana e boa educação. História da Educação (Online). Porto Alegre: jan. 2018, p. 10.
22 FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.60.
Bibliografia
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Editora Brasiliense, primeira
edição, 1981 - 24° reimpressão, 1989.
BRASIL. Lei n° 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1°
e 2° graus, e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692impressao.htm > Acesso em: 25 jul.
2020.
CUNHA, Luiz Antônio. Ensino profissional: o grande fracasso da ditadura. Caderno de
Pesquisa. São Paulo: out/dez. 2014. p. 912-933.
FURTADO, C. Brasil: a construção interrompida. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
___________ . Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
GERMANO, José. Estado Militar e Educação no Brasil: 1964/1985 Um Estudo sobre a
Política Educacional. 2°. Ed. São Paulo, Cortez, 1990.
PIMENTEL; FREITAS. O ensino secundário brasileiro em 1930 no contexto da cultura
escolar e história da educação. IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade
e Educação no Brasil. João Pessoa: jul/ago. 2012, p. 931-944.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2° Ed. São Paulo:
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SILVA; PEREIRA; RORIGUES. Reformas educacionais no Brasil: reprises históricas? In:
A arte de pesquisar. 1° edição. Rio de Janeiro: Autografia, 2020. p. 23-39.
SILVA; WENCESLAU. Uma configuração para o ensino secundário (1930-1960): cultura,
formação humana e boa educação. História da Educação (Online). Porto Alegre: jan. 2018, p.
232-245.
23 FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.51
Resumo
O artigo aborda a temática da justiça de transição desde reflexões seu conceito até as
experiências em que esse processo foi posto em prática, priorizando o caso brasileiro
posterior à vigência do regime militar de 1964 a 1985. A partir da investigação histórica
sobre as transformações da Escola Técnica Nacional (ETN) durante a ditadura civil-militar
e o debate sobre esse período, em um contexto de revisionismo e negacionismo, reuniu-se
um grupo de estudantes do ensino médio para divulgar o conhecimento histórico para o
público em geral, mas principalmente para a comunidade escolar do CEFET-RJ. Desse
encontro, surgiu o site Ditadura em Prosa, desenvolvido na rede social do Instagram como
produtor de conteúdo, sendo um dos conceitos abordados o de justiça de transição.
Introdução
1 Estudante do ensino integrado do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
(CEFET/RJ), no curso de Edificações, integrante do projeto Ditadura em Prosa, coordenado pelo prof. Dr.
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ), Conselho de Pesquisa, pelo Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPQ) e pelo CEFET-RJ. | Email: juliaranha9@gmail.com
2 Estudante do ensino integrado do CEFET/RJ, no curso de Edificações, integrante do projeto Ditadura em
Prosa, coordenado pelo prof. Dr. Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e financiado pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Conselho de Pesquisa, pelo Conselho de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e pelo CEFET-RJ. Possui bolsa de Iniciação Científica
do CEFET-RJ. | Email: kathellync@gmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Contextualização histórica
5Ibidem.
6 CIURLIZZA, Javier. Entrevista para um panorama global sobre a justiça de transição. Revista Anistia –
Política e justiça de transição, Brasília, n.1, p.23-31, jan./jun.2009.
A justiça de transição ganhou mais destaque nas últimas décadas. Isso porque o
século XX foi marcado por vários regimes ditatoriais, autoritários e de segregação racial,
ferindo amplamente os direitos humanos. Logo, na tentativa de reconstruir o Estado de
Direito após tais períodos, foram realizados investimentos na área no cenário internacional.
As medidas desejadas não só “saíram do papel”, como também viraram objetos legais,
sendo necessárias intervenções tanto de atores nacionais, com as obrigações estatais em
enfrentar as violações de direitos, quanto internacionais, como a criação da Corte Pena,
Internacional, a qual exige que cada signatário responda de maneira adequada às violações
dos direitos humanos, estando o país sujeito a uma ação legal caso não o faça. Porém, é
importante entender também que cada país possui uma história e, dada sua condição única,
não se pode falar em modelos perfeitos e únicos de transição, o que não quer dizer que não
existiram casos positivos8.
7 ZYL, Paul Van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista Anistia – Política e
justiça de transição, Brasília, n.1, p.32-56, jan./jun.2009, p. 34-38.
8 Ibidem, p. 33.
9 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Governo João Goulart e o Golpe de 1964: da construção do
esquecimento às interpretações acadêmicas. Revista Grafía, Bogotá, Vol. 9. p. 175-191, 2012.
10 Ibidem, p. 175-191.
11 BRASIL. Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 1968.
12 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição e Usos Políticos do Poder Judiciário no Brasil
em 2016: um Golpe de Estado Institucional? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, nº 3, p.1284-1312,
2018.
13 BRASIL. Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de
Conclusão
15 BRASIL. Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa
Civil da Presidência da República. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 nov. 2011 – edição extra.
16 DUAILIBI, Julia. A verdade da comissão. Revista Piauí, N.91, Abril, 2014. Disponível em:
Estado. Outrossim, indo pela contramão das recomendações de organizações zelosas dos
direitos humanos, o governo de Jair Bolsonaro cria ainda mais obstáculos para o fim do
sofrimento dos familiares e amigos das vítimas da ditadura civil-militar brasileira. Ainda de
acordo com Pedro Teixeirense, uma das primeiras medidas tomadas por Bolsonaro foi
desvincular a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, limitando sua capacidade de
atuação20. O presidente e sua equipe também modificaram a composição dos membros da
comissão, com o objetivo de fragmentá-la. É evidente a tentativa de transformar o
significado de “anistia” que era associado a “reparação” para “esquecimento” através de
sistemáticos atentados para desqualificar e desmontar a Comissão de Anistia e a Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos.
Em janeiro de 2020, foi a público um informe do Itamaraty de julho de 2019 que
trata da situação dos crimes de desaparecimento no Brasil. No texto de 29 páginas, o
governo omite a existência da ditadura entre 1964 e 1985 e reafirma que a Lei da Anistia
deve cobrir todos os crimes. Em resposta ao relatório, o Instituto Vladimir Herzog alertou
à Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a característica "extremamente grave e
problemática” de manter a Lei de Anistia para todos os casos de desaparecimento
forçado”20.
De acordo com pesquisa publicada pelo Data Folha no dia 1º de janeiro de 2020, o
apoio da população brasileira à democracia caiu sete pontos percentuais durante o primeiro
ano de governo Bolsonaro (de 69% em 2018 para 62% em 2019), bem como apontou que
30% da população aprova o regime militar21. É assustador que um terço do maior país da
América Latina ainda questione a legitimidade do regime democrático e isso se deve,
majoritariamente, aos pronunciamentos do presidente da República, de seus familiares
(também políticos) e de seus apoiadores, os quais repetem incansavelmente sua devoção
aos “anos de chumbo” e, inclusive, fazem menções saudosas a militares acusados de
tortura.
As adversidades são muitas, mas a busca pela verdade não pode ter fim. Para isso,
existe o projeto de divulgação online Ditadura em Prosa e existem muitos pesquisadores
em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/01/cai-apoio-a-democracia-no-brasil-durante-
governo-bolsonaro-apoio-a-ditadura-militar-permanece-estavel.ghtml>. Acesso em 20 mar. 2020.
Bibliografia
BRASIL. Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
13 dez. 1968.
BRASIL. Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas
desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades
políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 dez. 1995.
BRASIL. Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Regulamenta o art. 8o do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 14 nov. 2002.
BRASIL. Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no
âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18
nov. 2011 – edição extra.
CHADE, Jamil. À ONU, Brasil esconde ditadura e fala em anistiar crimes de desaparecimento, 2020.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/01/15/ditadura-
brasil-governo-bolsonaro-relatorio-onu.htm>. Acesso em: 19 mar. 2020.
CIURLIZZA, Javier. Entrevista para um panorama global sobre a justiça de transição.
Revista Anistia – Política e justiça de transição, Brasília, n.1, p.23-31, jan./jun.2009.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Governo João Goulart e o Golpe de 1964: da
construção do esquecimento às interpretações acadêmicas. Revista Grafía, Bogotá, Vol. 9.
p.175-191, 2012.
DUAILIBI, Julia. A verdade da comissão. Revista Piauí, N.91, Abril, 2014. Disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-verdade-da-comissao/. Acesso em: 03 abr.2020.
G1. Cai apoio à democracia no Brasil durante governo Bolsonaro; Apoio à ditadura militar permanece
estável. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/01/cai-apoio-a-
democracia-no-brasil-durante-governo-bolsonaro-apoio-a-ditadura-militar-permanece-
estavel.ghtml>. Acesso em 20 mar. 2020.
CNV. Conheça e acesse o relatório final da CNV. Disponível em:
<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-
acesse-o-relatorio-final-da-cnv>. Acesso em: 18 mar. 2020.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição e Usos Políticos do Poder
Judiciário no Brasil em 2016: um Golpe de Estado Institucional? Revista Direito e Práxis, Rio
de Janeiro, vol. 9, nº 3, p. 1284-1312, 2018.
TEIXEIRENSE, Pedro. Podcast Historiador Explica - Ep. 15. São Paulo: ANPUH Brasil,
2020.
TEÓFILO, João. Justiça de Transição: origem e desenvolvimento do termo. Disponível
em: <https://www.cafehistoria.com.br/justica-de-transicao/>. Acesso em 19 mar. 2020.
ZYL, Paul Van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista
Anistia – Política e justiça de transição, Brasília, n.1, p.32-56, jan./jun.2009, p. 33-38.
Resumo
Entender uma Comissão de Verdade como um objeto histórico de estudo nos permite
elucidar algumas questões sobre os aspectos políticos e sociais que envolvem sua
construção e sobre as disputas de memória produzidas por sua instauração. Nosso trabalho
tem como objeto de estudo a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación chilena instaurada
em 1990, meses depois do fim da Ditadura Militar. Pretende-se discutir alguns aspectos de
sua construção, qual era seu principal objetivo, qual foi sua metodologia de trabalho e quais
as limitações encontradas pela Comissão durante seus seis meses de trabalho.
Verdad como instrumentos de narración oficial”. Revista de Historia Iberoamericana, vol 7, n°1, 2014, pp.35-74.
7 WINN, Peter; STERN, Steve. “El tortuoso camino chileno a lamemorialización”. In: WIIN, Peter; STERN,
Steve; LORENZ, Federico; MARCHESI, Aldo (Orgs.) No hay manana sin ayer: batallas por la memoria histórica em
el Conor Sur. Santiago: LOM Ediciones, 2014, p.213-214, p. 214.
Humanos, a Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas (FASIC), a Fundación de Protección a la
Infancia Dañada por los Estados de Emergencia, a Anistia Internacional, as Nações Unidas, a Comisión
Internacional Investigadora de los Crímenes de la Junta Militar en Chile e a Cruz Vermelha Internacional.
11 PADILLA, Op. Cit., p.54.
12 Uma espécie de Polícia Militar chilena
13 BRINKMANN, Beatriz. “La Comisión de la Verdade y el desarollo de la problemática de Derechos
Humanos en Chile”. In: CHERNICHARO, Luciana, GARRIDO, Ayra, et al. (Orgs.). Pelos caminhos da verdade:
uma análise sobre as experiências de comissões da verdade na América Latina. Rio de Janeiro: ISER, 2016, pp.111-132.
14 BRINKMANN, Op. Cit., p. 116.
15 CHILE. Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, reedição de dezembro de 1996, p.2.
divulgação dos locais onde eram recebidas as solicitações aconteceu principalmente através
dos jornais. As petições eram feitas dentro de cada região do Chile16, e, de acordo com a
necessidade local, havia um ou mais postos para receber os pedidos. De acordo com o
jornal La Segunda, em geral quem coordenou essa tarefa foram os Secretarios Regionales
Ministeriales (SEREMIS) de Justiça ou de Governo, apoiados por advogados e assistentes
sociais:
Incluso, en el sur se destinaron vehículos especiales para este propósito.
Para incentivar las peticiones de audiência, se publican avisos en los
diarios y rádios regionales. Y para facilitar aún más el trámite, se han
desplegado afiches informativos en las ciudades.17
16 O Chile está dividido em 13 regiões, que se referenciam normalmente através de números romanos.
17 “451 peticiones de audiencia para la Comisión Verdad y Reconciliación han recebido las intendencias del
país”. La Segunda, 20 de junho de 1990, Archivo Prensa, Museo de la Memoria y los Derechos Humanos,
Santiago, Chile.
18 CHILE. Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, reedição de dezembro de 1996, p.2.
19 “451 peticiones de audiencia para la Comisión Verdad y Reconciliación han recebido las intendencias del
país”. La Segunda, 20 de junho de 1990, Archivo Prensa, Museo de la Memoria y los Derechos Humanos,
Santiago, Chile.
20 CHILE. Op. Cit., p.3.
21 CHILE. Op. Cit., p.2. As organizações que enviaram antecedentes a Comissão foram: sete Colégios
No total, a Comissão recebeu cerca de 3.400 casos22. Os presos políticos também tiveram
um papel importante nesse primeiro momento, entregando à Comissão testemunhos sobre
o que havia acontecido com pessoas presas após 1973 que sumiram ou foram mortas. Tal
iniciativa foi organizada pela Coordinadora Nacional de Presos Políticos que entregou os
testemunhos numa conferência de imprensa realizada no interior do Cárcel Pública. Foi
solicitado que a Comissão se instalasse no local para conhecer os testemunhos e
denúncias23.
O funcionamento das audiências se deu da seguinte forma:
En esa audiencia se encontraban presentes el abogado, la asistente social
y el egresado de Derecho correspondiente, aún cuando en los períodos
de mayor trabajo las audiências fueron tomadas por sólo dos de estos y
em algunos casos, aunque muy excepcionalmente, por una sola de estas
personas. Al menos un Miembro de la Comisión estuvo siempre
presente en el local de ésta, participando en las diversas audiencias que se
llevaban a efecto y procurando resolver cualquier problema de
emergência que se presentara. Cada audiencia tenía una duración
aproximada de cuarenta y cinco a setenta minutos, aunque algunas se
extendían largo tempo más.24
Derechos Humanos de la Octava Región, o Movimiento Contra la Tortura Sebastián Acevedo, a Corporación Nacional Pro
Defensa de la Paz (CORPAZ), a Frente nacional de Organizaciones Autónomas (FRENAO), a Agrupación de Familiares
de Detenidos Desaparecidos e a de Ejecutados Políticos, a Central Unitaria de Trabajadores (CUT) e a Comisión Nacional
de Junta de Vecinos.
22 CHILE. Op. Cit., p.3.
23 “Presos políticos entregarán testimonios a Comisión Rettig.”, La Tercera, 21 de junho de 1990, Archivo
Ainda que essas primeiras denúncias fossem recebidas com certo espanto pela
população, foi a descoberta de valas clandestinas em Pisagua, região de porto no norte do
Chile, em Atacama, dentro da província de Iquique, que mudou completamente o cenário
político. De acordo com informações do jornal Hoy, foi através de uma denúncia feita por
um ex-preso político de Pisagua que foram encontradas as valas clandestinas. Alberto
Enrique Neumann Lagos, era médico quando foi preso por ser comunista e ficou
responsável no local por atestar a morte de seus companheiros. Neumann entregou, no
final de 1989, um testemunho a Vicaría de la Solidariedad, onde relatava a existência de um
cemitério clandestino ao lado norte do cemitério de Pisagua. Entretanto, a Vicaría decidiu
esperar um momento político propício para realizar as escavações no local, pois existia uma
barreira militar próxima que poderia interferir nos trabalhos. Em 31 de maio de 1990 um
dos advogados da Vicaría, Héctor Salazar, juntamente com Neumann, apresentou ao
juizado de Pozo Almonte uma petição por “enterro ilegal”27. O número total de corpos
encontrados nas escavações chegou a 2128.
Se no início dos trabalhos da Comissão ainda existiam dúvidas sobre se ocorreu ou
não no Chile casos de violações de Direitos Humanos, a ampla divulgação dada pela
imprensa do que aconteceu em Pisagua fez com que se consolidasse a legitimidade da
Comissão e aumentou a pressão contra o Exército e Pinochet:
El impacto nacional que ha causado el hallazgo de estas osamentas,
especialmente en la derecha política, há terminado legitimando la
Comisión Verdad y Reconciliación. Ya no es el gobierno el que tiene que
dar explicaciones respecto a por qué creó esa Comisión; ahora la pelota
la tiene que julgar el bando contrario: es el comandante en Jefe del
Ejército el que tiene que responder a la larga lista de explicaciones que
surgen de los hallazgos de Colina y Pisagua.29
Durante todo o mês de junho, os jornais chilenos publicaram imagens das valas
clandestinas em Pisagua e declarações de diversos setores da sociedade exigindo uma
explicação do ex-ditator Pinochet. A Igreja teve um papel importante em pressionar para
que se revelasse a verdade não só sobre o que se aconteceu em Pisagua, mas também se
existiam outras fossas clandestinas iguais as que foram encontradas. Gonzalo Vial e Laura
27 “Por que ahora: El hallazgo de osamentas en el norte legitima a la Comisión Verdad y Reconciliación y
complica al Ejército”, Hoy, n. 673, de 11 a 17 de junho de 1990, p. 14-16, Archivo Prensa, Museo de la
Memoria y los Derechos Humanos, Santiago, Chile.
28 Disponível: <https://www.monumentos.gob.cl/monumentos/monumentos-historicos/fosa-pisagua>
Último acesso em 07 de fevereiro de 2019.
29 “Por que ahora: El hallazgo de osamentas en el norte legitima a la Comisión Verdad y Reconciliación y
complica al Ejército”, Hoy, n. 673, de 11 a 17 de junho de 1990, p.15, Archivo Prensa, Museo de la Memoria
y los Derechos Humanos, Santiago, Chile.
Todos esses casos ocorridos em diversas regiões do Chile deixavam claro que a
execução de pessoas era uma política de Estado durante o regime militar. Ainda em agosto
de 1990, a Vicaría de la Solidariedad, apresentou uma reclamação de enterro ilegal no lugar
que ficaria conhecido como Patio 2934, outro caso emblemático de cemitério clandestino do
período ditatorial.
De acordo com Ascanio Cavallo, a descoberta desses cadáveres fez com que a
Armada, a Força Aérea e os Carabineiros entregassem de forma sigilosa suas respostas a
Comissão35. Em um ato público em 6 de agosto, o Exército entregou 4 tomos e um vídeo a
cada um dos Comissionados: o primeiro tomo continha uma análise da situação que
conduziu ao golpe, o segundo uma relação de vítimas militares que abarcava todos os
mortos em serviço, e os dois últimos fotocópias, documentos e livros sobre o fenômeno
insurrecional do começo dos anos 1970. O vídeo continha 3 partes: uma ilustrando o caos
e violência durante o governo da Unidade Popular, outra com imagens de mutilações e
cadáveres de militares mortos em atentatos “subversivos”, e a última parte com
testemunhos de vítimas civis de “atos terroristas”. Além disso, havia uma seção de
“Planteamientos que se someten a la Comisión” que solicitava 3 medidas a Comissão:
Los hechos presentados por el Ejército deben formar parte del cuadro
global; las bajas, falecidos y heridos, deben ser reconocidos como
víctimas de graves violaciones de Derechos Humanos; y medidas legales
y administrativas que tendem a “prevenir e impedir” la repetición de
estos hechos.36
34 O caso do Patio 29 se refere a uma cova comum no Cemitério Geral de Santiago onde foram enterrados
durante a Ditadura prisioneiros políticos assassinados, dados como desaparecidos na época. Após dez anos da
denúncia inicial feita pela Vicaría foram identificados os corpos de 96 vítimas da Ditadura. A maior parte
desses lugares viraram hoje locais de memória no Chile e estão listados pelo Conselho de Monumentos
Nacionais chileno, sendo possível encontrar maiores informações sobre esses lugares em:
<https://www.monumentos.gob.cl/monumentos>. Sobre o processo de memorialização pelo qual passou o
Chile já nos anos 200, ver WINN, Peter; STERN, Steve. “El tortuoso camino chileno a lamemorialización”.
In: WIIN, Peter; STERN, Steve; LORENZ, Federico; MARCHESI, Aldo (Orgs.) No hay manana sin ayer:
batallas por la memoria histórica em el Conor Sur. Santiago: LOM Ediciones, 2014.
35 CAVALLO, Op. Cit., p.87
36 Idem.
37 “Muerte de Oficial y Hallazgo de Osamentas Hieren Unidad Nacional”. El Mercurio, 05 de junho de
1990, Archivo Prensa, Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, Santiago, Chile.
38 Idem.
39 Braço armado do Partido Comunista durante a Ditadura.
40 Sobre a Frente Patriótico Manuel Rodríguez, ver: VALLEJOS, R.A. Cultura política y represión política: el
caso del partido comunista de Chile. In: ABREU, Luciano e MOTTA, Rodrigo (Orgs.). Autoritarismo e
cultura política. Porto Alegre: FGV: Edipucrs, 2013.
41 WINN e STERN, Op. Cit., p.219
42 Idem.
43 SUTIL, Jorge Correa. “Dealing with past humans rights violation: the chilean case after ditactorship”, 67
Bibliografia
Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Orgs.). Violência na História: Memória, trauma e reparação.
Editora Ponteio, 2012, pp.
VALLEJOS, R.A. “Cultura política y represión política: el caso del partido comunista de
Chile”. In: ABREU, Luciano e MOTTA, Rodrigo (Orgs.). Autoritarismo e cultura política.
Porto Alegre: FGV: Edipucrs, 2013.
WINN, Peter; STERN, Steve. “El tortuoso camino chileno a lamemorialización”. In:
WIIN, Peter; STERN, Steve; LORENZ, Federico; MARCHESI, Aldo (Orgs.) No hay
manana sin ayer: batallas por la memoria histórica em el Conor Sur. Santiago: LOM Ediciones,
2014, p.213-214.
Resumo
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, p. 141-152.
3 Ibidem, p. 141-152.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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foi a oportunidade prefeita para a ditadura tentar aumentar o consenso da sociedade e criar
4
uma imagem de país vencedor em que deu a Médici grandes ganhos políticos. Se na
Argentina, a organização da Copa do Mundo de 1978 serviu para a ditadura militar
argentina se projetar ao mundo e ganhar um certo prestígio perante a comunidade
internacional, a conquista da Copa de 1970 serviu para a ditadura militar brasileira se impor
perante a população e conquistar um certo consenso.5 Portanto, pode-se afirmar que a
conquista da Copa do Mundo de 1970, foi um ótimo meio, junto com o Milagre
Econômico, que a ditadura militar encontrou para se impor e ganhar um certo consenso da
população.
A ditadura militar brasileira, que tinha como base a Doutrina de Segurança
Nacional, era marcada por um forte anticomunismo, no qual o inimigo interno era aquele
cidadão que defendia os ideais comunistas ou que simplesmente contestava o regime. A
ideia de segurança nacional era a de que eles deveriam combater o inimigo interno, e a
violência foi amplamente utilizada pela ditadura militar para tentar impor o seu projeto6
O Milagre Econômico
Após o Golpe Militar de 1964, os militares resolvem continuar com uma política
intervencionista, porém, com altos custos para a população mais pobre. O chamado
Milagre Econômico foi um período de extraordinário crescimento do PIB brasileiro
7
durante seis anos, porém os mais pobres não se beneficiaram tanto. O governo militar
continuou com o mesmo intervencionismo econômico dos governos anteriores, mas
resolve privilegiar as classes proprietárias em detrimento das classes populares, portanto
houve uma proteção às classes privilegiadas e os militares concordaram que os mais pobres
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 4-5.
6 BORGES, Nilson. “A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares”. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida Neves: O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e
movimentos sociais em fins do século XX. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 13-42.
7 SINGER, Paul. “O processo econômico”. In: REIS, Daniel Aarão: Modernização, ditadura e democracia 1964-
deveriam se sacrificar para que a política econômica do regime tivesse êxito, e, para isso, o
governo não hesitou em usar a força e todo o seu aparelho repressor. 8
A ditadura, para atingir os seus objetivos econômicos, resolveu intervir nos
sindicatos e proibiu as greves, proibindo, dessa forma, um meio de mobilização e
contestação da classe trabalhadora. Logo depois, a equipe econômica do governo
interrompeu os reajustes salariais, fazendo com que o salário dos trabalhadores perdessem
um pouco do seu valor.9
Os militares também interviram nas relações entre os patrões e os empregados, em
que foi abolida a indenização por demissão não causada pelo Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS)10. Os militares acreditavam que, com essa nova regra, os patrões
teriam mais liberdade para demitir os empregados e diminuiria os custos das empresas.
Conforme escreve Singer (2014, p.188), a abolição da regra de indenizar o trabalhador
demitido, enfraqueceu bastante a situação dos trabalhadores diante dos seus patrões. O
trabalhador, que já estava privado de um meio de mobilização, que eram as greves, se vê
fragilizado diante das vontades dos seus patrões, que podiam fazer qualquer negociação
injusta com o trabalhador, pois os trabalhadores, de acordo com a legislação do regime,
estavam proibidos de realizar greves.
O resultado do Milagre foi a queda da inflação, no qual era 54,9% em 1966 e foi
para 34,1% em 1967. O ministro da fazenda dos militares, Delfim Netto, utilizou o sistema
de crédito para impulsionar a economia. A construção civil foi o setor privilegiado pelas
políticas de Delfin Netto, portanto, houve um impulso do setor graças às concessões de
créditos efetuadas pelo governo. 11
Por causa das políticas econômicas adotadas por Delfin Netto, houve um período
de grande crescimento do PIB brasileiro, em que a partir do ano de 1968 foram registrados
índices de crescimento muito superiores à média. Conforme escreve Singer, a partir de
1968 começou o período do chamado Milagre Econômico, em que foi registrado um índice de
crescimento de 9,8%, depois foi para 9,5% em 1969, 10,4% em 1970, 1, 3% em 1971,
12,1% em 1972, 14,0% em 1973.12
Observa-se que o Milagre aconteceu durante o governo de Garrastazu Médici (1969
– 1974). Período que também coincidiu com a vitória da Seleção Brasileira de Futebol na
8 Ibidem, p. 187.
9 Ibidem, p. 187.
10 Ibidem, p. 188-189.
11 Ibidem, p. 192-193.
12 Ibidem. P.193
Copa do Mundo de 1970. Apesar da existência da censura durante a ditadura militar, que
escondia os problemas que o país enfrentava, o Milagre, junto com uma imagem de
torcedor comum, permitiu que Médici conquistasse uma boa popularidade para si e, com
isso, também consolidar a impressão de megalomania sobre o Brasil.13 O Milagre, com a
concessão de créditos permitiu um aumento do consumo, principalmente por parte da
classe média, e, com isso, houve um consenso entorno da ditadura. Além da censura, havia
também a repressão, que também desestimulou movimentos de contestação ao regime, ao
mesmo tempo que a melhora da situação econômica e o aumento do consumo ajudaram a
criar esse consenso em torno da ditadura.
A Copa do Mundo
13 MAGALHÃES, Lívia Gonçalves; CORDEIRO, Janaina Martins. “O poder na torcida: consenso, futebol e
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 8-9.
14 PEREIRA, Camila Konrath. Pra Frente Brasil, Ditadura militar, Identidade e Copa de 70. Porto Alegre, 2012, p.
4.
15 MAGALHÃES, Lívia Gonçalves; CORDEIRO, Janaina Martins. “O poder na torcida: consenso, futebol e
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 8-9.
16 BREITKREITZ, Luciano Anderson. “A ditadura e o futebol na América do Sul: A construção de um
imaginário coletivo através das Copas do Mundo de 1970 e 1978”. Revista Semina. Passo Fundo: UEL, 2012, p.
10-11.
como a ditadura tentou fazer com que Médici fosse visto como um torcedor comum, como
um homem que torce como o povo, no qual buscava sempre dar os seus palpites para
demonstrar que entendia de futebol e que fazia questão de ser visto no estádio com um
rádio de pilha. Breitkreitz (2011) também escreve que, conforme era repassado nos meios
de comunicação, algumas reuniões no mesmo horário dos jogos eram remarcadas para que
ele pudesse acompanhar as partidas.17
Além da humanização de Médici, mostrando ele como um torcedor comum,
Breitkreitz demonstra que o governo queria explorar uma inovação: a transmissão ao vivo
da Copa do Mundo para todo o território nacional. Bretikreitz também escreve que o
governo militar queria aproveitar a sensação de unidade nacional pelo fato de que a Copa
do Mundo estava sendo transmitida para todo o território nacional, contribuindo, assim,
para o imaginário popular de que o Brasil estava se tornando desenvolvido.18
O aumento do consumo devido ao Milagre junto com a censura, que escondia os
problemas que o país enfrentava, mais a vitória na Copa do Mundo de 1970 foram fatos
que serviram para Médici tirar proveito e desviar a atenção do povo19. A imprensa também
contribuiu para que o governo ganhasse popularidade ao passar uma imagem humanizada
de Médici. Para um governo ditatorial chefiado por militares, que chegou ao poder através
de um golpe, eles precisavam de apoio político e um certo consenso social para se
manterem no poder. A Copa do Mundo e o Milagre não foram as causas principais dessa
conquista de consenso, mas foram fundamentais, junto com a imprensa para melhorar a
imagem do presidente, no qual queria apresenta-lo como um torcedor comum que arrisca
palpites das partidas e que vai aos estádio com o seu rádio de pilhas.20
Com a Copa do Mundo, a ditadura conseguiu não somente um consenso em torno
de si, conforme escrevem Magalhães e Cordeiro21, mas também conseguiu os seus frutos
políticos. Junto com a sua agência de relações públicas, a AERP, a ditadura transmitiu os
17 Ibidem, p. 11.
18 Ibidem, p. 10.
19 ROLLEMBERG, Denise. “A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974.” In:
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, pp. 141-152.
20 Ibidem, p. 141-152.
21 MAGALHÃES, Lívia Gonçalves; CORDEIRO, Janaina Martins. “O poder na torcida: consenso, futebol e
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 5.
seus valores políticos, mas Magalhães e Cordeiro apontam que a Copa do Mundo serviu
para a ditadura se impor diante da população.22
A AERP
22 Ibidem, p, 5-6.
23 ROLLEMBERG, Denise. “A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974”. In:
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, p. 141-152
24 PEREIRA, Camila Konrath. Pra Frente Brasil, Ditadura militar, Identidade e Copa de 70. Porto Alegre, 2012, p.
3-4.
25 ROLLEMBERG, Denise. “A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974.” In:
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, p. 141-152
26 MAGALHÃES, Lívia Gonçalves; CORDEIRO, Janaina Martins. “O poder na torcida: consenso, futebol e
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 6.
político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente”. Espaço Plural Ano XIII, N°27. Rio de
Janeiro: 2012, p. 39-53.
30 MAGALHÃES, Lívia Gonçalves; CORDEIRO, Janaina Martins. “O poder na torcida: consenso, futebol e
ditadura no Brasil (1970) e na Argentina (1978)”. Revista Faces de Clio Vol.2, N°4. Juiz de Fora: Julho-
Dezembro 2016, p. 5-6.
31 ROLLEMBERG, Denise. “A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974.” In:
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, p. 141-152
32 Ibidem, p. 141-152.
33 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p.
173-204.
fundamentais para a manutenção dos militares no poder, e numa época de alta repressão
era um risco muito grande erguer a voz para contestar o regime. Médici se aproveitou do
momento para ganhar popularidade, pois o Milagre, apesar de beneficiar alguns setores da
classe média e as elites, e permitir a concentração de renda, conforme aponta Rollemberg,
também trouxe empregos para a população mais carente. Portanto, junto com toda a
propaganda de grandiloquência com a conquista da Copa do Mundo e do Milagre
Econômico, a ditadura colheu os seus frutos políticos e conseguiu força política suficiente
para se manterem no poder.
Conclusão
A ditadura militar foi o período mais sombrio vivido pelos brasileiros, no qual
prevalecia a violência por parte do Estado brasileiro para impor os seus ideais, no qual a
participação democrática da população foi restringida.
Conforme apontado acima, um regime de exceção, comandado por militares que
deram um golpe político contra a população, precisava da propaganda para se manterem no
poder, e eles se aproveitaram dos avanços dos meios de comunicação, como a televisão,
para espalhar as suas ideias. Os militares, evidentemente, não desperdiçaram a
oportunidade de associar a vitória da Copa do Mundo de 1970 com o seu governo, pois
eles, através da AERP, queriam mostrar um clima de paz, ordem e crescimento, coisas que
eram totalmente falsas, pois, conforme apontam Rollemberg34 e Singer35, apesar do
crescimento econômico causado pelo Milagre Econômico, houve o crescimento da
concentração de renda em que foi baseado na repressão dos órgãos de representação dos
trabalhadores, como os sindicatos.
A Copa do Mundo de 1970 e o Milagre Econômico não foram os únicos fatores
que permitiram aos militares se manterem no poder, mas foram fundamentais para que eles
se mantivessem no poder junto com todo o seu mecanismo de repressão das vozes
contestatórias do regime. Apesar das vitórias da seleção brasileira na Copa do Mundo e do
crescimento econômico, o Brasil vivia uma falsa paz, pois apesar das investidas da AERP
durante o governo de Médici, os militares brasileiros, desde o momento que deram um
34 ROLLEMBERG, Denise. “A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974.” In:
MARTINHO, Francisco Carlos Palomano (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2006, p. 141-152
35 SINGER, Paul. “O processo econômico”. In: REIS, Daniel Aarão: Modernização, ditadura e democracia 1964-
golpe político contra o seu próprio povo e se apossaram do Estado, decretaram guerra aos
pobres através da sua política econômica e contra a população em geral com o seu aparelho
repressor. Portanto, não estava tudo bem no Brasil, e a Copa do Mundo de 1970,
conquistada por uma seleção espetacular e o Milagre foram utilizados como apoios para um
governo militar que, através de toda a sua propaganda, eles souberam aproveitar para
ganharem força política e se manterem no poder.
Bibliografia
Resumo
Este trabalho se propõe a analisar o contexto político, cultural e artístico da década de 1960
no Brasil, tendo como base o estudo das utopias e, mais especificamente, das utopias
agrárias que movimentaram este período. Neste contexto de agitação política, ao passo que
se anunciam as Reformas de Base (1961) e a Reforma Agrária, o protagonismo do sujeito
agrário e da representação do meio rural demonstra-se presente nas produções artísticas,
como forma de criticar o modelo de desenvolvimento edificado no Brasil. Para isso,
trabalhamos com o documentário Maioria Absoluta (1964), do cineasta Leon Hirszman, em
uma produção conjunta ao Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Nos interessa
também compreender o lugar de Leon Hirszman na construção argumentativa das
narrativas e representações artísticas, tecendo, assim, relações desta pesquisa entre a
História Política e a História Intelectual.
Introdução
O período anterior a ditadura militar brasileira foi marcado por uma grande
efervescência política, cultural e artística, crítica ao modelo de desenvolvimento e,
principalmente, a condição de miséria e exploração no país. A noção de fio interrompido,
proposta por Roberto Schwarz em O Fio da Meada (1985) suscita aos historiadores uma
investigação sobre esta ebulição presente em nosso país, sobretudo durante os anos 1960
até 1964. Resgatar este fio nos tempos atuais, em que a população urbana supera
qualitativamente a agrária, os trabalhadores rurais são perseguidos, e onde impera a ordem
do agronegócio, é se defrontar com um Brasil muito diferente daquele da década de 1960,
onde 80% da população vivia nos campos2 e a dinâmica social era regida por outras
1Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História Política (PPGH/UERJ). Graduada em História
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: mairaa.marinho@gmail.com
Pesquisa em desenvolvimento com apoio financeiro da CAPES.
2A tese de doutorado, que resultou em livro de mesmo título, “A palavra perplexa: experiência histórica e
poesia no Brasil nos anos 70”, da professora Beatriz de Moraes Vieira apresenta dados do IPEA na década de
1960.
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perspectivas. Nesse sentido, recuperar este período nos mostra como o projeto
modernizador do Brasil avançou em um curto espaço de tempo, e como existem querelas
ainda presentes na sociedade brasileira com as quais alguns grupos sociais já se
defrontavam durante os anos 1960.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar o panorama político da década
de 1960 no Brasil, a partir do filme Maioria Absoluta (1964)3do cineasta brasileiro Leon
Hirszman (1937-1987). Partimos pela percepção4 da produção cinematográfica constituída
pela ideia que estamos denominando de Utopia agrária5, isto é, uma construção narrativa
mobilizadora de um imaginário agrário, elevando o campo e o camponês como figuras
centrais para a superação do chamado subdesenvolvimento brasileiro. Nesse sentido, o
campo cumpre um duplo papel: um negativo, como sintoma do atraso; um positivo, ligado
à ideia do camponês como uma classe mais potente ou mesmo revolucionária na ação
política para a superação da condição de subdesenvolvimento brasileiro.
A perspectiva de apresentar o meio rural com protagonismo é o elemento central e
mostra-se presente desde a música que envolve as primeiras cenas do filme – semelhante a
uma romaria, manifestação religiosa cultural presente no interior do Brasil, até as
entrevistas com trabalhadores rurais. No entanto, o filme não fala sobre os camponeses, mas
apresenta as contradições sociais presentes no Brasil dos anos 1960 a partir do ponto de
inflexão do analfabetismo. Para isso, o diretor entrevista pessoas da elite e trabalhadores
rurais com a pergunta: “Qual é o maior problema do povo brasileiro?”, as primeiras
respondem que o problema é principalmente a falta de moralidade. O filme pretende
destacar como as múltiplas camadas sociais estavam pensando o Brasil neste período, de
forma a representar suas visões sobre o contexto em que vivem. A partir da introdução do
filme, com as respostas da elite, Hirszman faz uma escolha de direção, que também é
política, ao inserir logo em seguida a narração de Ferreira Gullar acerca da realidade do
analfabetismo, proveniente da pobreza. Evidenciando uma dualidade de visões de Brasil,
cujas desigualdades são vivenciadas pela maioria absoluta dos brasileiros. O filme convida,
3“Maioria Absoluta” (1964) é um curta-metragem, do gênero documentário. O filme é dirigido pelo cineasta
Leon Hirszman, com montagem de Nelson Pereira dos Santos e narrado por Ferreira Gullar. Embora tenha
sido produzido por Hirszman, o documentário foi uma produção que fez parte do Centro Popular de Cultura
(CPC). Ficha técnica detalhada em: <http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-
bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=I
D=019401&format=detailed.pft> acesso em 20 out. 2020.
4Esta percepção delineia a hipótese do projeto de pesquisa em desenvolvimento no mestrado do Programa de
Starling, Henrique Rodrigues e Marcela Telles. Ed. UFMG. Belo Horizonte: 2008
ao fim, a uma reflexão sobre a participação dos trabalhadores agrários à vida política
brasileira, na medida em que a grande maioria desse segmento é analfabeta e, portanto,
impedida de votar neste período. A crítica ao analfabetismo desencadeia na crítica à
exclusão dessa democracia vigente, dialogando com as diferentes vertentes de nacionalismo
democrático, elucidada por César Guimarães (2001)6.
Leon Hirszman, diretor da obra cinematográfica escolhida, fez parte do movimento
do Cinema Novo e foi integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante toda sua
vida. Esteve também engajado na construção do Centro Popular de Cultura – CPC (1962-
1964) do Rio de Janeiro, onde realizou seu primeiro filme enquanto diretor, Pedreira de São
Diogo, curta-metragem que está presente na filmografia Cinco Vezes Favela (1962) elaborado
pelos membros do Centro Popular de Cultura7.
O Centro Popular de Cultura (CPC) fundado em 1962 constitui-se como uma
iniciativa que almejava construir um centro de propagação de idéias, através da ação
cultural. A finalidade do Centro era difundir a chamada “cultura genuína nacional” - conforme
defendida pelos membros do CPC, e a partir disto combater a alienação causada pelo
subdesenvolvimento8. Apesar de sua breve existência (1962-1964), o CPC possui uma
produção considerável de trabalhos artísticos, dentre peças teatrais, músicas e filmes.
O documentário Maioria Absoluta (1964) nasce como parte do esforço descrito
acima, retratando as condições de vida do camponês no meio agrário brasileiro, ressaltando
a realidade do analfabetismo e se situa no escopo mais amplo de representações das
populações rurais, estimulada pelos intelectuais e artistas deste período. Encaixa-se como
uma produção coletiva, tal como se pretendiam as elaborações cepecistas, tendo a montagem
de Nelson Pereira dos Santos, um dos precursores do Cinema Novo e, como pontuado, a
narração de Ferreira Gullar, que também fez parte do CPC. Desse modo, pretende-se
compreender como os movimentos artísticos estavam interligados à construção das utopias
presentes nas discussões políticas dos grupos de esquerda, que almejaram contribuir para a
incorporação das populações rurais na dinâmica republicana do Brasil9.
6GUIMARÃES, César. Vargas e Kubitschek: “A longa distância entre Petrobrás e Brasília”. In.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. República do Catete. 1ª edição. Rio de Janeiro Ed: Museu da República,
2001
7CARDENUTO, Reinaldo. “O cinema político de Leon Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência
durante o regime militar brasileiro”. Tese de doutorado Universidade de São Paulo. São Paulo. 2014
8Ver: ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. Ed Brasiliense. SP. 1986.
9Idem
10CARVALHO, Maria do Socorro. Cinema Novo brasileiro. In. MASCARELLO, Fernando. História do
Cinema Mundial. Campinas, SP. Ed. Papirus, 2008.
11Terceiro Mundo é um conceito utilizado para países de altos índices demográficos, com baixo
desenvolvimento econômico que adotavam sistemas políticos derivados dos países ricos. A maioria dos países
da América Latina, que não estavam alinhados à União Soviética (Segundo Mundo), eram englobados nesta
categoria. Ver mais em: HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
12ARAÚJO, Maria Paula. Intelectuais, artistas e revolucionários: o cinema militante no Brasil e na Argentina
nos anos 1960 e 70. Boletim Tempo Presente, nº1, 2012, p. 1-17
13GUIMARÃES, César. Vargas e Kubitschek: A longa distância entre Petrobrás e Brasília. In. CARVALHO,
Maria Alice Rezende de. República do Catete. Ed: Museu da República. Rio de Janeiro. 2001
14FICO, Carlos. “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”. Revista brasileira de História. São
pobreza sob as quais parte da população brasileira se encontrava15. Tal adesão dessa
camada intelectualizada se deu em grande medida pelo clima da época, pelas contradições
sociais existentes durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e também pelas
suas próprias concepções políticas. A organização do Centro Popular de Cultura (CPC)
apresentava o caráter de agremiação, congregando artistas que se engajaram frente às
desigualdades sociais16. Ainda segundo Heloísa Buarque de Hollanda (2004)17, os cepecistas
entendiam que a postura dos artistas frente ao momento pelo qual o Brasil passava deveria
ser “revolucionária e consequente”.
Cabe destacar que as ideias progressistas, com as quais o CPC trabalhava, estavam
vinculadas ao nacionalismo, a partir do entendimento proposto por intelectuais de esquerda
do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)18. Entretanto, o ISEB não era um
movimento de concepção única do nacionalismo e, portanto, possuía vertentes que
estavam ligadas a um nacionalismo de esquerda, mas também existiam os nacionalistas de
direita19. As formulações do ISEB que respaldavam o CPC estão fincadas no que podemos
chamar de nacional-marxismo, ou mesmo nacionalismo de esquerda, ou revolucionário20.
A relação entre as proposições isebianas e do CPC acontecia pela utilização de reflexões
formuladas pelos intelectuais membros do ISEB, tais como Álvaro Vieira Pinto, Alberto
Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. As categorias mobilizadas apontavam para a ideia de
subdesenvolvimento, semicolonialismo e consciência alienada. Deste modo, entendia-se
que o Brasil não era apenas economicamente dependente dos países centrais, mas também
culturalmente21. Isto é, os intelectuais do CPC deveriam despertar no povo a consciência
através de uma produção artística que expressasse a verdadeira cultura nacional.
A expressão artística oriunda da efervescência política e cultural se propõe a
apresentar uma “verdadeira cultura nacional”, que se materializa em peças teatrais, filmes,
canções, poesias, representando a condição de pobreza de grande parte da população
brasileira, apontando para uma tomada de consciência desta situação. Podemos citar o
15 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000
16HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. 4ª edição. Rio
de Janeiro: ed. Aeroplano, 2004
17Idem
18GARCIA, Miliandre. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do Centro Popular de Cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE)”. Revista Brasileira de História. São Paulo, 2004, p.127-62
19Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977; PÉCAUT, Daniel.
filme Cinco Vezes Favela (1962), o início das gravações de Cabra Marcado Para Morrer (1964),
filme que foi interrompido pelas forças militares após o golpe de 1964, e o curta-metragem
Maioria Absoluta (1964), sendo o último objeto desta pesquisa.
As utopias que mobilizaram intelectuais, artistas e movimentos políticos durante os
anos 1960 projetaram representações que visavam simbolizar a autenticidade do povo
brasileiro, a partir de um ideário romântico revolucionário. Este conceito, desenvolvido por
Michael Lowy e Robert Sayre (1995)22, busca demonstrar ao longo da história um
sentimento anticapitalista de supressão das relações hierárquicas entre homem e natureza.
O historiador Marcelo Ridenti (2000)23 ressignifica este conceito, ao apresentar as utopias
de construção do sujeito revolucionário na década de 1960 no Brasil, onde desenvolve a
imagem do camponês como autêntico homem do povo e que representa as raízes do povo
brasileiro, distante da lógica da modernidade urbana capitalista. Essa representação
almejava a construção do homem novo nos moldes propostos por Karl Marx e Che Guevara
– destacamos aqui a importância que a Revolução Cubana (1959) teve na formação do
pensamento desses intelectuais. A relevância dos camponeses para a construção da
representação da autenticidade do povo brasileiro, segundo Ridenti (2000)24 se mostra nas
disputas dos símbolos para a formação de um país independente, economicamente e
culturalmente, temáticas que circunscrevem as aspirações nacionalistas e progressistas. A
partir desses anseios, a visão de povo edificada no Brasil por estes intelectuais durante este
período está vinculado a uma identidade comum de combate ao anti imperialismo, indo
desde os camponeses, semiproletariado, proletariado, pequena burguesia e até setores da
média e alta burguesia comprometidos com a luta anti imperialista25.
Durante o espaço temporal aqui trabalhado, os movimentos camponeses se
fortaleceram e dialogaram com partidos e organizações à época. Não por acaso, o período
que compreende 1961-1963 apresenta a expansão política das Ligas Camponesas, um dos
movimentos mais importantes deste período26.
Dentre as denúncias das desigualdades sociais e reivindicações por reformas de
base, destaca-se a Reforma Agrária, vista como pauta central nos movimentos políticos que
22LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia - o romantismo na contramão da modernidade. 1ª edição.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1995
23 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000
24Idem
25SODRÉ, Nelson Werneck. “Quem é o povo no Brasil?” In Cadernos do Povo Brasileiro. 1ª edição. Rio de
Pedro. Questão Agrária no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Ed. Atual. 1997
antecederam o Golpe de 1964. Tal importância pode ser justificada pela marca da
desigualdade social brasileira, que tem como grande pilar a concentração fundiária e que
marca grandes tensões nas áreas rurais e pela expressividade da população vivendo nessas
mesmas zonas, ainda que o processo de industrialização estivesse em intensificação.
O tema da Reforma Agrária e a importância dos camponeses no acesso a direitos
sociais não estavam limitadas apenas ao Brasil. Na América Latina, as forças que se
insurgiram contra a ditadura de Fulgêncio Batista, e construíram o processo da Revolução
Cubana (1959), classificaram como prioritária a distribuição de terra no país, a partir da
Reforma Agrária27. Dessa forma, tal pauta enfrentou grande resistência por parte das elites
vinculadas ao latifúndio, por temerem uma organização camponesa aos moldes cubanos.
É importante frisar, conforme apontado acima, a visão do camponês como um
agente importante para o processo de mudanças no país, e que não acontecia apenas com
os movimentos de esquerda do Brasil. A discussão proposta pelo médico e filósofo
martinicano Franz Fanon, também é tangenciada pelo protagonismo dos trabalhadores
rurais. Em Os Condenados da Terra (1961)28, Fanon expressa a centralidade dos camponeses
para as transformações sociais, quando enseja uma reflexão aos intelectuais e partidos de
esquerda sobre o protagonismo do campesinato, indígenas e famélicos enquanto sujeitos
prioritários para os processos de mudanças sociais.
Com isso, buscamos articular a análise das utopias e das utopias agrárias neste
repertório político, de modo a perceber como elas estão presentes no documentário Maioria
Absoluta, e como também forjaram a ação política dos intelectuais e artistas durante a
década de 1960. Identificando a luta pela terra como elo em comum entre as utopias
projetadas pelos movimentos políticos brasileiros e na América Latina.
Bibliografia
27PAZ, Juan Valdés. “A Revolução Agrária Cubana: conquistas e desafios”. Estudos avançados. São Paulo: USP,
2011, p. 73-87.
28FANON, Franz. Os Condenados da Terra, 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968
Resumo
Este trabalho tem como núcleo compreender a segregação sócio espacial na cidade de
Jacarezinho, especificamente nas relações sociais dos botecos da cidade, sendo este espaço
que recebeu os quais migraram internamente no período de 1970 a 1980. Compreende-se
que a segregação está relacionada à fragmentação integral da existência humana e seu
espaço, sendo um fenômeno provocado pela mecanização agrícola no Brasil, de modo que
na cidade escancarou uma reação à exclusão sociopolítica feita pelo Estado brasileiro.
Desta forma, o objeto de investigação será a sociabilidade nos botecos como forma de
compreensão da segregação sócio espacial.
Introdução
Revista Paranaense de desenvolvimento. Curitiba, v.36, n.129, p.153-170, jul./dez. 2015, p. 157. Disponível neste
link: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5342680.pdf Acesso em 04 de Ago. 2020
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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As famílias camponesas que acabaram sendo expulsas de seu lar não conseguiram
arrumar uma moradia, de forma que acarretou em um povoamento nas bordas da cidade,
próximos dos morros, separados do centro da cidade, constituindo-se em 1940 os
primeiros bairros separados:
4 PRIORI, Angelo. O Protesto do Trabalho: História das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná: 1954-1964. 1ª
ed. Maringá, PR: Eduem. 1996, p.33
5 FERNANDES, Antonio. Da questão do trabalho fora do “mundo do trabalho”: canavieiros e a experiência social do
sofrimento. Tese de Doutoramento, Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília,
SP, 2012, p.173. Disponível neste link: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/101012?locale-
attribute=en Acesso em 15 de Jun. 2020
6 PRIORI, Angelo. Ibid. p.50
7 NEGRI, Silvio. Segregação Sócio-Espacial: Alguns Conceitos e Análises. Revista Coletâneas do Nosso Tempo.
Rondonópolis - MT, v. VII, nº 8, p. 129 a 153, 2008, p.135. Disponível neste link:
https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/. Acesso em 15 de Jun. 2020
A Vila São Pedro, um dos bairros mais antigos, surgido no final de 1940,
veio a ser, dessa maneira, na zona do município – em face da
substituição dos cafezais e os avanços dos canaviais - o destino de
grande parte da população migrante, constituindo-se, em nossos dias,
ainda que superado pelo bairro Aeroporto, surgido no início da década
de 1980 na zona leste da cidade, o segundo bairro mais populoso do
município8.
8 FERNANDES, Antonio. Da questão do trabalho fora do “mundo do trabalho”: canavieiros e a experiência social do
sofrimento. Tese de Doutoramento, Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília,
SP, 2012, p.37. Disponível neste link: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/101012?locale-
attribute=en Acesso em 15 de Jun. 2020
9 Cf. Figura 1
10 Ibid. p.37
11 LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. 5ª ed, São Paulo: Centauro. 2008, p. 75
12 PIRES, Murilo.& RAMOS, Pedro. O termo modernização Conservadora: Sua Origem e Utilização no Brasil. Revista
Econômica do Nordeste, v.40, n.3, julho-setembro, p.412-423. 2009, p.413. Disponível neste link:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4207148/mod_resource/content/1/516_05_semin%C3%A1rio_
PIRES_o%20termo%20moderniza%C3%A7%C3%A3o%20conservadora.pdf Acesso em 11 de Nov. 2020.
13 LEFEBVRE, Henry. Ibid. p.22
14 WILLIANS, Raymond. Cultura e Materialismo.2ª ed. SP: Unesp. 2011, p.46
Durante o trabalho será discutido como esta segregação refletiu nas formas de
sociabilidade no bar, pois seguindo os passos dos estudos culturais15 é a partir das relações
sociais que percebemos que a infraestrutura e a superestrutura estão articuladas, além disso
que a sociedade é dinâmica, mantendo tradições antigas refletindo nos sistemas modernos,
ampliando o debate e análise da epistemologia do materialismo histórico. Sob esta questão,
as tensões sociais fazem parte da manutenção entre a superestrutura e a infraestrutura que
refletem nas relações sociais, ou seja, a segregação reflete agrava nas tensões sociais.
15 Epistemologia do new left britânica de E.P. Thompson e Raymond Willians que dialoga com a
antropologia a qual utiliza da metodologia da experiência de campo para depois obter a reflexão, definindo
que as relações sociais, tal qual a subjetividade não é moldada pela economia, o comportamento humano e a
cultura não se modifica conforme revoluções, mas a cultura como a economia se relacionam de forma
horizontal, sendo as relações sociais um campo rico de análise social ,cultural e política.
THOMPSON, Edward. A Miséria da Teoria. 1ª ed. Rio: Zahar. 1981, p. 182
WILLIANS, Raymond. Ibid. p.47
16LEFBVRE, Henry. Ibid. p.25
17 CHALHOUB, Sidney. Trabalho Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ªed.
Nota-se que o armazém de secos e molhados estava intercalado em boa parte dos
bares do norte do Paraná, sendo chamado também de venda, o qual era também o
estabelecimento de comércio nos bairros rurais, logo essa característica de bar de secos e
molhados permanece no processo de rurbanização no norte do Paraná.
Porquê na verdade o bar ele não era só não vendia só bebida alcoólica
eu coloquei no meu bar eu vendia milho, vendia farinha de milho, vendia
fubá,vendia trigo, sardinha, mortandela, era uma tipo de uma venda, a
primeira instância o pai montou o bar pra mim, mas eu falei não, eu
quero coloca um seco e molhados aí vendia açúcar, vendia café, vendia
feijão. Lógico que as pessoas iam tomar sua pinguinha. Cerveja não
vendia no bar porque... você não vai tomar cerveja sem ser gelada né,
não cabe, tem que ser cerveja gelada e como não tinha força,
refrigerante até passava, pessoal até tomava... Né pelo fato de não tê a
companhia de luz não chegava, naquela época a luz não chegava naquele
pedaço do Jardim São Luiz II (sic).19
19 Entrevista concedida por LUIZ, Bar Jardim São Luiz. [02.2018]. Entrevistador: Mateus Forcella Biagini,
Jacarezinho, 2018, arquivo m4A (2 min.).
20 ZALUAR, Alba. Violência, dinheiro fácil e justiça no Brasil: 1980-1995. In: ACSELRAD, Gilberta. org.
Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos [online]. 2nd ed. rev. and enl. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2005, p. 65-88, p.67. Disponível neste link: http://books.scielo.org/id/bgqvf/pdf/acselrad-
9788575415368-06.pdf Acessado em 4 de Ago. 2020
21DAVIS, Mike. Planeta Favela. 1ª ed. SP: Boitempo. 2006, p.179
22 Cf. Figura 2
como um ponto de drogas. Salienta-se, que há outros bares e boates citados pelo jornal
definidos como “transas noturnas” afirmados como locais de perigo e criminalidade.
No jornal é retratado o boteco, como um ponto de lazer sedento de perigo e
degradação humana, tirando o ser humano de sua racionalidade e produtividade, sendo um
espaço perigoso para a ordem da sociedade. A partir do período de 1980, o tráfico de
drogas aumenta substancialmente no Brasil, visto que, a globalização amplia os espaços de
lazer, prazeres e consumos intercalados com a informalidade do trabalho. Sendo assim, a
informalidade do trabalho e o crime organizado fazem uma aliança para camuflar o
desemprego.
Entre as drogas ilegais, a cocaína hoje associa-se a uma cultura de
valorização do dinheiro, do poder, da violência e do consumismo...Os
controles morais que tornam a lei necessária pararam de funcionar e não
foram substituídos no pós segunda guerra23
possui uma estrutura penal arbitrária, sendo reflexo de uma junção de liberalismo
conservador, de modo que irá refletir na justiça sob um espectro moral e subjetivo do
povo.
Ao observar estes conflitos, é complexo e ousado afirmar que existe uma
consciência de classe em geral dos camponeses recém chegados no meio urbano de
Jacarezinho, ou de trabalhadores que moravam no bairro rural, seja por causa da
segregação que fragmenta os indivíduos e os tornam individualistas, e até porque se estima
que dificilmente o sindicato dos trabalhadores rurais cumpriu seu papel de processo de
conscientização de classe, além de alguns proprietários dos botecos conforme a tabela 1 em
anexo25 terem negado o envolvimento de trabalhadores informais com o sindicato,
constatando-se que o sindicato não dava sequer atenção para eles.
Ou seja, o sindicato dos trabalhadores perde a sua força e representatividade que
tinha nos anos 1960. Devido ao fato do processo de mecanização agrícola e do
afrouxamento dos direitos trabalhistas no processo de urbanização e da ditadura militar que
retirou o vínculo empregatício dos colonos e transformaram-os em bóias frias,
ensacadores, estivadores. No outro caso, a classe camponesa se constitui historicamente:
Os camponeses ocupam uma posição análoga à da pequena burguesia
nas cidades. Também não cidades. Também não formam uma classe,
propriamente dita, porque, sob o regime capitalista, se desmembram
continuamente. Em cada aldeia, alguns partem à procura de trabalho e
acabam por tornarem-se operários, enquanto outros se tornam
exploradores. Os camponeses médios são, igualmente, um elemento
muito instável; alguns deles se arruínam, transformando-se em
“camponeses sem cavalo”. 26
Cf, Tabela 1.
25
26CARRARA, Angelo. Camponês: Uma controvérsia conceitual. In: OLINTO, Beatriz, MOTTA, Márcia,
OLIVEIRA, Oséias. (Org.). História Agrária: Propriedade e Conflito, 1ª ed. Guarapuava, Unicentro, 2009, p.29
Com a perca de sentido de sua obra fragmentado integralmente, isto se agrava com
a informalidade do trabalho que alcança seu auge nos anos 1980 28a informalidade urbana
se equivale a inserir o indivíduo em uma marginalidade e em uma condição análoga à de
servidão que a partir da confirmação das Nações Unidas atualmente “constituem cerca de
dois quintos da população economicamente ativa no mundo em desenvolvimento.”
Considerações Finais
Bibliografia
Anexos
Figura. 1: Mapa da cidade Jacarezinho. Fonte: Prefeitura Municipal de Jacarezinho Secretaria de Conservação
Urbana 2017
Figura 2: O bar que comercializava cocaína. Folha de Londrina. Fonte: Museu Dom Ernesto de Paula e Centro
de Documentação e Pesquisa Histórica (CDHIS). 1987
Bar 3
O sindicato rural pegava mais o pessoal do sítio mesmo. Muitos que
vieram para cidade ainda continuaram pagando. Mas, o restante
não... Maioria era favelado, coitado desse pessoal. Mentalidade
deles não era gastar com sindicato, quem vai pagar com sindicato?
Bar 7 Era do campo que era sindicalizado.
Resumo
Este trabalho pretende trazer a temática do papel destinado às mulheres durante o governo
de Getúlio Vargas, em especial o período do Estado Novo. Mas além disso, não
percebendo-as como figuras passivas, mas participantes da história nacional e que
buscavam alcançar direitos e ocupar espaços. Salientamos aqui algumas contradições e
conquistas em torno da figura feminina que permearam o cenário brasileiro neste período
de ditadura.
Em uma ditadura sabemos que vários direitos são suprimidos. Os grupos mais
afetados certamente são as minorias, aqueles que não possuem espaço ou força política
para não serem parcial ou completamente esmagados pela ordem autoritária imposta.
Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, principalmente no Estado Novo, as coisas
não eram diferentes. Entre esses grupos estão as mulheres.
Destacamos que estudos acerca da participação feminina no mercado de trabalho e
na atuação pública durante o Estado Novo são demonstrações de que mesmo em
momentos de anomia e sob regras, pressões e ameaças, em especial que atingiam às
mulheres, elas permaneciam escrevendo a história de nosso país e conquistando seu lugar
ao sol, seja na luta explícita contra os governos, dentro do próprio sistema ou através da
coragem em sair da zona de conforto que a sociedade determinou para ela, sair de seus
lares e assumir postos de trabalho.
É curioso notar como a figura da mulher durante o Estado Novo estava imersa em
contradições legais e sociais. A Constituição de 1937 não fazia referências distintas quanto a
homens e mulheres, tratava a todos como “cidadãos”, que por sinal tinham, conforme art.
122, igualdade perante a lei e direito de manifestar seu pensamento.2
O código eleitoral vigente a maior parte do Estado Novo foi o decretado em 04 de
maio de 19353, que assim como o de 1932, garantia que homens e mulheres maiores de 18
anos poderiam ser eleitores, desde que não fossem analfabetos, tivessem privados dos
direitos políticos, fossem mendigos ou praças.
Aparentemente, mulheres e homens eram vistos como iguais perante a lei, inclusive
tendo direitos iguais quanto ao voto. Porém, é interessante notar que o Código Civil em
vigência durante esse período era o promulgado em 19164 e que colocava a mulher
claramente como tutelada pela figura de seu marido. São inúmeros os artigos que colocam
o marido tendo direitos sobre sua esposa. Dentre eles podemos destacar o art. 6 desse
código que coloca a mulher casada como relativamente incapaz quanto ao ato jurídico e o
art. 178, que dava, respectivamente dentro do prazo de 10 dias e de 2 meses, direito ao
marido de anular o casamento se descobrisse que a esposa fora anteriormente deflorada e
contestar a legitimidade do filho.
Existiam também nesse código as seções específicas para tratar dos direitos e
deveres do marido e da mulher. No caso masculino, eram juridicamente reconhecidos
como chefes da sociedade conjugal (art. 233) e que lhes competia, por exemplo, a
autorização para que a esposa pudesse exercer uma profissão. Reforçando a necessidade da
permissão do marido para poder trabalhar, tinha-se em outro artigo:
Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):
I - praticar os atos que este não poderia sem o consentimento
da mulher (art. 235);
II - alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio
particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, II, III e VIII,
269, 275 e 310);
III - alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem;
IV - Aceitar ou repudiar herança ou legado.
V - Aceitar tutela, curatela ou outro munus público.
VI - Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos
indicados no arts. 248 e 251.
2 Direito este que prescrevia em casos considerados de ameaça à ordem. Ver: BRASIL. Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil (1937). Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 10 novembro de
1937. Art. 136. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-
35093-10-novembro-1937-532849-publicacaooriginal-15246-pe.html>. Acessado em 01/08/2019. Art. 122.
3 Lei Nº 48, de 4 de maio de 1935. Modifica o Código Eleitoral. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-48-4-maio-1935-398002-publicacaooriginal-1-
pl.html> Acessado em 01/08/2019.
4 Lei Nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-
1-pl.html> Acessado em 01/08/2019.
5SCOTT, Ana Silvia. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla
Bassanezi (orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016, p. 15 - 42.
Segundo Andrea Borelli e Maria Izilda Matos6, a partir do final do século XIX, com
o fim da escravidão e crescimento das indústrias, mulheres e crianças começaram a
trabalhar nas fábricas, em funções consideradas mais adequadas para seus perfis. “Pesava
na opção por empregar mulheres em determinados setores a ideia bastante difundida de
que delicadeza para lidar com certos produtos, submissão paciência, cuidado e docilidade
eram atributos femininos”. E as atividades às quais elas ocupavam iam sofrendo cada vez
maior desvalorização, seja social ou monetariamente, sendo deixadas de lado pelos homens.
Fora das fábricas, elas atuavam em armazéns, bares, quitandas, vendendo produtos
alimentícios nas ruas e atividades realizadas em suas próprias casas no regime de
pagamento por peça. No geral, atividades que lhes permitiam maior flexibilidade de horário
e conciliar com a educação dos seus filhos. As mulheres negras, graças ao racismo
estrutural da sociedade brasileira, tinham mais dificuldade para conseguir um trabalho e por
isso ficavam com as tarefas ainda mais desvalorizadas.
Mas após a Primeira Guerra Mundial, a oposição ao trabalho feminino cresceu com
a disseminação da ideia de que a mulher deveria se dedicar ao lar e à maternidade.
Entre 1920 e 1940, ocorreu uma diminuição da presença feminina no
universo fabril, devido a uma conjunção de fatores: as transformações no
processo de industrialização (desenvolvimento de setores
tradicionalmente masculinos, como o metalúrgico, o siderúrgico e o
mecânico e a adoção de novos métodos de organização do trabalho)
somada às ações (públicas, médicas e do movimento operário) contra o
trabalho feminino e à legislação dito protetora deste.7
Mesmo diante das resistências de grande parte da sociedade e, mais tarde, somadas
às diretrizes ventiladas pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas, houve aquelas mulheres
que se mantiveram em postos de trabalho. Mas é verdade que em profissões, em geral,
adequadas a sua suposta natureza: magistério, enfermagem, odontologia, setor agrícola.
Em termos oficiais, de acordo com Ana Silvia Scott, a necessidade de ter
autorização do marido para trabalhar fora do domicílio foi relativizada em 1943, tornando
possível que ela assumisse um emprego quando o homem não estivesse suprindo todos os
gastos da casa. A relativa incapacidade da mulher casada e seu impedimento total de
trabalhar sem autorização do marido, confirmada pelo Código Civil de 1916, só teve fim
em 1962 com o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121). Borelli e Matos, apontam o item
6 BORELLI, Andrea; MATOS, Maria Izilda. Espaço feminino no mercado produtivo. In: PEDRO, Joana
Maria; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016, p.
126- 147.
7 Ibidem, p. 134.
8 Apesar de Rachel Soihet afirmar que a Constituição de 1934 já havia determinado a proibição da diferença
salarial para um mesmo trabalho independentemente da idade, gênero, nacionalidade ou estado civil. Ver:
SOIHET, Rachel. A conquista do espaço público. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanezi
(orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016, p. 218- 237.
9 Gustavo Capanema, Conferência proferida por ocasião do centenário do Colégio Pedro II, 2 de dezembro
de 1937. GC/Capanema, Gustavo, 02.12.37. série pi apud Schwartzman, Simon ; Bomeny, Helena Maria
Bousque; Costa, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. São Paulo: paz e Terra: Fundação Getúlio
Vargas, 2000, p. 123.
10 DECRETO-LEI Nº 3.200, DE 19 DE ABRIL DE 1941. Dispõe sobre a organização e proteção da
11 LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres
no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 443- 481.
12 Idem.
como se sua dedicação ao trabalho fosse impeditiva de uma boa administração das
questões da sua casa e educação dos filhos. Questionamento esse que não é naturalmente
feito aos homens como é para elas. Mesmo porque não são vistos como também
responsáveis por essas tarefas.
Como afirmou Louro sabiamente, “a incompatibilidade do casamento e da
maternidade com a vida profissional feminina foi (e continua sendo!) uma das construções
sociais mais persistentes”.13
Essa hipótese da incompatibilidade levava a renúncia feminina da vida profissional
no momento do casamento. Mas enquanto mulheres solteiras, o magistério dava a
oportunidade para que externalizassem seus instintos maternos. Na falta de um marido e
filhos para se dedicar, podiam se dedicar a cuidar e educar outras crianças. A formação das
normalistas na capital ficava a cargo do Instituto de Educação no Rio de Janeiro, que
através do Decreto nº 7.941/1943 o tornou restrito ao sexo feminino14, garantindo assim a
moralidade e que o foco do ensino fosse voltado para a preparação das jovens com
disciplinas direcionadas especificamente para elas e que abordavam questões domésticas e
noções de cuidados específicas para crianças para atuarem junto aos alunos.
Percebemos assim que as diferenças eram claramente perceptíveis entre homens e
mulheres. Existiam profissões que seriam compatíveis com a natural personalidade dócil e
educadora feminina, negando-lhes ou dificultando o acesso às profissões ditas masculinas.
Assim como, também o currículo escolar era adaptado nesse sentido.
No caso específico do magistério, como afirmou Guacira Lopes Louro, “não
parece ser difícil compreender a história de como as mulheres ocuparam as salas de aula
sem notar que essa foi uma história que se deu também no terreno das relações de
gênero”.15 Mas é importante nos atentarmos ao fato de que de qualquer forma a sua
profissão não poderia interferir na sua função maior de esposa e mãe. O magistério então
seria uma das profissões consideradas mais adequadas a uma pouco provável conciliação
entre casamento e trabalho ao possuir horários menores e mais flexíveis.
Outro fator de exclusão feminina interessante de notarmos é que somente em 1971,
curiosamente durante mais um período ditatorial brasileiro, com a Lei de Diretrizes e Bases
13Ibidem, p. 379.
14 LOPES, Sonia de Castro. Formação de professores no Rio de Janeiro durante o Estado Novo. Cadernos
de Pesquisa. v. 39, n. 137, p. 597- 619, maio/ago. 2009.
15 LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres
da Educação, o curso normal secundário passou a dar acesso ao ensino superior 16.
Possibilitando que diversas jovens professoras pudessem adentrar no meio universitário.
Não que mulheres não tivessem direito legal a ter acesso ao ensino superior. June E.
Hahner escreveu, por exemplo, que as faculdades de Direito e Medicina foram abertas às
mulheres em 187917. No entanto, pouquíssimas mulheres vão de fato exercer esse direito. A
verdade é que mulheres no ensino superior foi durante muito tempo algo que deve ser
encarado dentro da ideia de excepcionalidade. Seu compromisso maior era com a casa,
marido e filhos. O destaque que damos a equiparação do ensino normal como meio de
acesso à universidade se deve ao fato de que muitas eram as mulheres que o cursavam e
ficavam impedidas de iniciar seus estudos posteriormente na faculdade.
Aliás, se pensarmos que a maior parte da população brasileira nesse período era
analfabeta e o número de mulheres nessa condição era superior ao masculino, o simples
fato de cursarem o ensino secundário e, ainda mais para serem professoras, é algo
excepcional. De acordo com os dados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a taxa
de analfabetismo era de 56,8 % em pessoas com 10 ou mais anos de idade e o número de
homens alfabetizados era superior ao de mulheres em todas as regiões do país em 1940.18
Não podemos nos esquecer de que a trajetória da conquista feminina por espaço e
direitos na sociedade foi feita através da mobilização delas próprias e não por uma questão
de consciência e bondade governamental ou de apoio social. Sem contar que mesmo que
não houvesse uma consciência das desigualdades sofridas por grande parte das mulheres
brasileiras isso não significa que não tenham contribuído de alguma forma para que
ocorressem mudanças. Rachel Soihet ressalta que apesar da aceitação da condição de
inferioridade feminina pela maioria das mulheres, não se quer dizer que não existe uma
intenção de “deslocar ou subverter a relação de dominação”. O que acreditamos que tenha
ocorrido durante o Estado Novo com a ida das mulheres para espaço público/privado da
escola ou outros que permitissem cumprir seu papel social, mas que ajudaram com o
processo de profissionalização feminina. Sabendo que a aceitação do trabalho feminino se
16 ROSEMBERG, Fúlvia. Mulheres educadas e a educação de mulheres. In: PEDRO, Joana Maria;
PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016, p. 334.
17 HAHNER, June E. In: Ibidem, p. 59.
18 Tendências Demográficas: Uma análise da população com base nos resultados dos Censos Demográficos
19 SOIHET, Rachel. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas. Estudos Feministas,
v.5, n.1, p.7-29, 1997.
20 MARQUES, Tereza Cristina Novaes. Bertha Lutz (Série perfis parlamentares). Brasília: Câmara dos
indivíduo não nasce mulher, mas sim se torna22, ligava-se à ideia de fragilidade, afetividade,
submissão e vocação maternal, com o respaldo da medicina social do final do século XIX e
início do século XX23, que deixou marcas na sociedade nas décadas seguintes. Teorias estas
criadas por homens, que restringiam a atuação feminina e garantiam a supremacia
masculina e as relações sociais desiguais, configurando-se em uma forma de violência,
como afirmou Rachel Soihet24.
A figura feminina, durante o Estado Novo, deve ser vista, portanto, inserida no
contexto das políticas públicas do governo ditatorial e conservador e que
consequentemente interferiram diretamente nas escolhas das mulheres daquela época. Um
governo que suprimiu direitos, ditou normas e condenou aqueles que eram contrários. Por
outro lado, com auxílio de todo um aparato burocrático e propagandístico, criou uma
noção de que tudo era feito em prol da harmonia e crescimento nacional e que cada
indivíduo tinha um papel a cumprir. Aos homens, claramente, que assumissem as rédeas da
família e trabalhassem para seu sustento e de seu país. Às mulheres, primava-se pela
manutenção da sua vocação ao casamento e materna, apesar da abertura aceita socialmente
à algumas profissões, que por sinal, deveriam dar continuidade às suas características
naturais, como era o magistério, a odontologia, a enfermagem. Diante de tamanhas
barreiras sociais, orientações governamentais e alto índice de analfabetismo, consideramos
atuar profissionalmente em carreiras que exigiam mais estudo algo singular. Devemos
considerar também a excepcionalidade daquelas mulheres que se fizeram presentes no
espaço político, majoritariamente masculino, e buscaram por meio das vias legais
conquistar direitos.
Por fim, não podemos perder de vista que o processo de emancipação das mulheres
na sociedade brasileira foi sendo construído aos poucos, com avanços e retrocessos, ao
longo de muitas décadas, inserida na dualidade do sexo masculino e feminino expresso, por
exemplo, na divisão social do trabalho e que parece não ter sido concluído até os dias de
hoje. Por isso se torna tão necessário abordarmos temáticas desse tipo, para que não nos
esqueçamos dos caminhos percorridos, das dificuldades encontradas e ultrapassadas, para
não esmorecermos em tempos de instabilidades políticas.
22 BEAUVOIR, Simone. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.
23 SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História
das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p.363.
24 Idem. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas. Estudos Feministas, v.5, n.1, p.7-
29, 1997.
Bibliografia
BEAUVOIR, Simone. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1980.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
GOMES, A. M. C. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
Idem. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito.
In: Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, nº. 2, 1996.
LOPES, Sonia de Castro. Formação de professores no Rio de Janeiro durante o Estado
Novo. Cadernos de Pesquisa. v. 39, n. 137, p. 597- 619, maio/ago. 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História
das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo : Contexto, 2004.
MARQUES, Tereza Cristina Novaes. Bertha Lutz (Série perfis parlamentares). Brasília:
Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2016.
PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Nova História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2016.
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary
(org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
Idem. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas. Estudos
Feministas, v.5, n.1, p.7-29, 1997.
Tendências Demográficas: Uma análise da população com base nos resultados dos Censos
Demográficos 1940 e 2000. Rio de Janeiro: IHGB, 2007. Disponível em:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv34956.pdf> Acesso em
17/08/2019.
Resumo
Introdução
sobre a ditadura brasileira. Foi cunhado como forma de demonstrar que houve a participação de civis e de
setores específicos da sociedade tanto no processo de derrubada do presidente João Goulart quanto na
instauração e consolidação do regime militar. Para saber mais, ver: ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT,
Samantha (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século
XX, Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; FICO, Carlos. Além do golpe: versões
e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
4ª Região Militar, sediada na cidade, que foram em direção ao Rio de Janeiro “defender a
democracia”, em um esforço conjunto com outras forças militares, cujo resultado foi a
deposição do presidente. Mas a história se encarregaria de reduzir as dimensões daquela
alcunha e “revelar o patético encoberto no título pomposo”3.
Se de um lado havia um movimento de apoio à “quartelada e conspurcação da
ordem constitucional”4, que também contou com a adesão de uma parcela significativa da
sociedade civil, de outro, a repressão, a censura e a violência policial se faziam presentes no
cotidiano daquela nova ordem iniciada em 31 de março de 1964. Como veremos nas
páginas deste artigo, os trabalhadores de Juiz de Fora, sobretudo aqueles vinculados ao
movimento sindical, foram duramente reprimidos. Concomitante à repressão, foi
desenvolvida e colocada em prática pelos governos militares uma nova agenda salarial, a
qual entendemos como uma política econômica autoritária direcionada aos trabalhadores e
à população mais pobre.
No plano econômico, a restrição salarial, associada ao aumento da inflação e dos
preços das mercadorias de primeira necessidade, de fato impactou a vida dos trabalhadores
e de suas famílias. Os anos da ditadura foram, assim, marcados por políticas de arrocho
salarial que resultaram em concentração de renda nas mãos dos detentores de capital e,
consequentemente, no crescimento das desigualdades sociais.5 Contra a desvalorização da
força de trabalho, os trabalhadores de Juiz de Fora, através dos seus sindicatos, ingressaram
com ações na Justiça do Trabalho, como forma de reivindicar aumentos salariais e
melhorias nas condições de trabalho.
Este artigo procura refletir a respeito dos impactos da repressão e do arrocho
salarial sobre a vida dos trabalhadores de Juiz de Fora, buscando revelar atuações e agências
que visavam lutar por direitos e resistir ao regime autoritário que solapou a democracia e
seus direitos básicos, como a liberdade e o direito a um salário digno. Nesse aspecto, o uso
da Justiça do Trabalho se tornou pedra angular para que os trabalhadores conquistassem
aumentos salariais e outros direitos, considerados como obstáculos à rígida e autoritária
política econômica, salarial e trabalhista que os governos militares colocaram em prática a
partir de 1964.
3 Juiz de Fora. Comissão Municipal da Verdade. Memórias da Repressão: relatório da Comissão Municipal da
Verdade de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MAMM, 2015, p. 12.
4 Ibid.
5 LUNA, Francisco Vida; KLEIN, Herbert S. “Transformações econômicas no período militar (1964-1985)”.
In. REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). A ditadura que
mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp. 97-98.
6 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório, v. II, textos temáticos / Comissão Nacional da
Verdade. – Brasília: CNV, 2014, pp. 64-72.
7 Juiz de Fora, Op. Cit., p. 48.
que uma semana após sua posse no comando da 4ª Região Militar, em agosto de 1963, já
havia iniciado, junto ao governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e ao general Carlos
Luiz Guedes, lotado na 4ª Divisão de Infantaria, em Belo Horizonte, as conspirações
contra o governo Goulart.8 Para tornar efetivo o sistema de repressão de Juiz de Fora
seria necessário o estabelecimento de unidades prisionais, onde os presos políticos seriam
encarcerados e passariam por interrogatórios ultrajantes, muitas vezes sob tortura. A cidade
abrigou quatro unidades de repressão: o 2º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, o 10º
Regimento de Infantaria de Juiz de Fora, a Penitenciária de Linhares e o Quartel General
da 4ª Região Militar. Além dessas, a Delegacia da Polícia Civil e a unidade da Polícia Federal
deram apoio ao sistema prisional, ainda que não se tenha relatos de torturas ocorridas
nesses dois lugares.
Por ter sido sede da 4ª Região Militar naquele período, todos os processos
instaurados em Minas Gerais, Goiás e no Distrito Federal tramitavam em Juiz de Fora. Por
essa razão, presos políticos das mais diversas regiões do país passaram pela cidade, fosse
para serem interrogados ou para cumprirem pena na Penitenciária de Linhares,
transformada em prisão política entre 1967 e 1981. Do mesmo modo, algumas vítimas da
ditadura que posteriormente viriam a ter expressão política nacional foram detidas, julgadas
ou tiveram uma passagem rápida pela cidade, a exemplo de Dilma Rousseff, presidenta do
Brasil entre 2011 e 2016.9
De acordo com a CMV/JF, ocorreram 151 casos de violação dos direitos humanos
que estiveram diretamente ligados à Juiz de Fora, cujo pico ocorreu entre 1968 e 1970, no
início do período conhecido como “anos de chumbo”. As vítimas eram juiz-foranas (nesse
caso, a violação também poderia ter ocorrido em outro município) ou pessoas nascidas em
outras localidades, mas que tiveram alguma passagem pela cidade. Dos 141 presos listados
na Tabela 1 (em anexo, assim como as demais), cerca de 70% foram transferidos para Juiz
de Fora ou processados, interrogados e investigados, o que reforça a importância da cidade
dentro do sistema repressivo articulado durante a ditadura. A maioria dos casos se refere a
prisões ilegais e arbitrárias. Torturas e maus tratos vinham constantemente associados aos
relatos. Do ponto de vista profissional, mais de 50% das vítimas eram estudantes,
profissionais liberais (advogados, médicos, jornalistas, etc.) e operários, conforme dados
apresentados na Tabela 2.
10 Depoimento de Francisco Carlos Limp Pinheiro à CMV-JF em 31de outubro de 2014. Entrevistado por:
Cristina Guerra e Rosali Henriques. Transcrição de: Marcelo Riceputi.
11 BRASIL, Op. Cit., pp. 60-61.
12 JUIZ DE FORA, Op. Cit., pp. 91-92.
elucidado pela CMV/JF, a cidade colocou em prática operações que fizeram inúmeras
vítimas da repressão, especialmente trabalhadores, envolvidos ou não com o meio sindical.
O número de vítimas pode ser muito maior do que as 151 identificadas, visto que, devido
ao sigilo imposto aos documentos produzidos pelo Estado durante a ditadura e à
incineração de arquivos, muitos casos de violação de direitos humanos são difíceis de
serem identificados e acabam ficando no esquecimento.
A mudança de conjuntura marcada pelo golpe de 1964 pode ser percebida através
dos processos da Justiça do Trabalho. A experiência democrática vivida anteriormente, na
qual trabalhadores e sindicatos tiveram grande expressão política, foi, de fato, rompida.
Com a ditadura militar, os trabalhadores, além de terem passado a conviver com a
repressão nos locais de trabalho e fora dele, perderam espaços importantes para a defesa de
seus direitos, senão todos, com exceção da Justiça do Trabalho. O controle do movimento
operário e sindical aliado a um projeto de desmonte do judiciário trabalhista fazia parte de
um projeto político maior, que tinha a área econômica como principal aposta. Ao golpe de
Estado e à ditadura instalada no país incumbia-se a tarefa de resolver os problemas
econômicos, entre os quais a inflação se colocava como um grave distúrbio. A política
econômica traçada a partir de 1964 colocava, assim, a culpa pela alta inflacionária e pela
desaceleração do crescimento econômico sobre os salários dos trabalhadores.
Em julho de 1965 foi sancionada a Lei nº 4.725, conhecida como a “lei do arrocho
salarial”. Apresentando uma nova fórmula de cálculo salarial, extremamente simplificada e
que desprezava o resíduo inflacionário, seriam, a partir de então, levados em consideração apenas
dois fatores: a repercussão dos reajustamentos salariais na economia nacional e a adequação
do reajuste às necessidades mínimas de sobrevivência dos assalariados. Essa lei, ao estender a política
salarial às empresas privadas, aprofundava o teor do Decreto nº 54.018, publicado um ano
antes, que regulamentava apenas os salários no âmbito do funcionalismo público. Os dois
trechos destacados ajudam a explicar a constante desvalorização salarial que os
trabalhadores passariam a ter desde então.
Contra a precarização do trabalho, trabalhadores e sindicatos ingressaram com
processos na Justiça do Trabalho, como forma de conseguirem aumentos salariais e
melhorias nas condições de trabalho. O exemplo trazido por este estudo reside em 25
ações coletivas instauradas pelas representações dos trabalhadores de Juiz de Fora, que
tramitaram entre 1964 e 1974 no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. No entanto,
além de anunciar aquela simplificada fórmula de reajuste à sociedade, a “lei do arrocho”
submetia a Justiça do Trabalho ao seu ordenamento, ou seja, os governos militares
buscavam minar o instrumento normativo que garantia ao judiciário trabalhista “o poder de
criar normas relativas a salário e condições de trabalho por meio das sentenças de seus
juízes”13, sempre que não houvesse acordo entre sindicatos e empregadores. Segundo
Larissa Corrêa, “Os ministros da Fazenda [...] e do Planejamento [...] pareciam ter
encontrado no arrocho salarial e na limitação do poder normativo da Justiça do Trabalho a
fórmula perfeita para a efetivação do controle inflacionário e da aceleração do
desenvolvimento econômico no Brasil”14.
Dentre as categorias de Juiz de Fora, as dos enfermeiros e empregados em
hospitais, tecelões, gráficos e trabalhadores do comércio foram as que mais ajuizaram
processos na Justiça do Trabalho, conforme levantamento feito através do Centro de
Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Esse dado, por um lado, reforça
a atuação desses sindicatos na defesa dos interesses dos seus associados, por outro,
demonstra que as negociações na esfera administrativa estiveram fracassando, ou seja, que
cada vez mais os patrões agiam para que os salários não fossem reajustados ou que o
aumento se desse em bases mínimas, incompatíveis com as demandas dos trabalhadores, o
que tornava o recurso aos tribunais trabalhistas imprescindível.
Ao impetrar um processo trabalhista, os sindicatos reivindicavam aumentos salariais
que corrigissem as perdas inflacionárias, tornando os salários compatíveis com o custo de
vida. Além dos aumentos, outras demandas também foram identificadas, como benefícios
remuneratórios, redução da jornada de trabalho e decretação de piso salarial, conforme
dados apresentados na Tabela 4.
Em grande medida, seriam essas as condições solicitadas pelos trabalhadores
através dos processos coletivos de trabalho, que passariam por uma primeira audiência de
conciliação em uma Junta de Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho (1ª instância)
localizada em Juiz de Fora, as atuais Varas do Trabalho. Nas juntas, os juízes atuavam para
que as partes (de um lado, trabalhadores e suas representações sindicais, de outro, os
13 SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no Tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no
contexto do Golpe de 1964. 2ª ed. São Paulo: Alameda, 2019, p. 32.
14 CORRÊA, Larissa Rosa. “A ‘rebelião dos índices’: Política salarial e Justiça do Trabalho na ditadura civil-
militar (1964-1968)”. In.: GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua
história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2013, p. 265.
15 As ações coletivas poderiam ser submetidas ao colegiado do TRT de duas maneiras: como homologação de
acordo celebrado entre as partes durante a tramitação das ações na esfera administrativa, geralmente na
Delegacia Regional do Trabalho, ou durante as audiências de conciliação ocorridas nas juntas; ou como
dissídio coletivo, situação em que, não havendo acordo entre as partes, os próprios juízes do tribunal definiriam
por meio de julgamento de mérito se as reivindicações dos trabalhadores seriam acolhidas na sua
integralidade, parcialmente ou se seriam indeferidas.
16 SILVA, Op. Cit., p. 143.
dissídios que foram parcialmente deferidos. No entanto, os novos salários definidos pelo
tribunal foram calculados sob taxas que eram equivalentes aos índices informados pelos
órgãos do governo ou pelos prejulgados do Tribunal Superior do Trabalho. Em ambos os
casos, os índices retratavam a porcentagem de elevação inflacionária, o que confirma que a
atuação do TRT3 nos dissídios coletivos visou, na pior das hipóteses, corrigir os salários
com base na inflação, em acordo com os direcionamentos da política salarial dos governos
militares.
Em relação às demais reivindicações presentes nos processos, elas eram mais
difíceis de serem deferidas pelos juízes, conforme demonstra a Tabela 6, sobretudo por
possuírem um teor de modificação de normas e leis.17 O Brasil já possuía, desde 1943, uma
legislação dedicada ao tema dos direitos trabalhistas, a CLT, de modo que, em grande
medida, os juízes entendiam que apenas através do Poder Legislativo seria possível
modificar pontos de tal matéria. Essa era, inclusive, a argumentação do Ministério Público
do Trabalho, que durante os julgamentos opinava para que esses direitos pleiteados,
chamados de “vantagens”, não fossem acolhidos pelo tribunal. A exceção apenas se dava
quando o objeto de reivindicação ainda não estava regulado por lei, visto que o
instrumento normativo garantia aos tribunais trabalhistas o poder de criar normas com
força de lei.
Para indeferir as demandas trabalhistas não associadas às reivindicações salariais, os
juízes baseavam seus argumentos na retórica de que aquela determinada demanda já era
regulada por lei e que, portanto, não poderiam interferir na legislação consolidada, ou que
faltavam nos autos informações suficientes para uma melhor análise dos pedidos e de
suporte legal que corroborasse com o deferimento. Foi assim que o juiz Tardieu Pereira,
relator de um processo impetrado, em 1973, pelo Sindicato dos Trabalhadores da
Construção Civil de Juiz de Fora, posicionou-se contra a fixação de piso salarial, alegando
que sua concessão seria facultada ao tribunal, desde que devidamente justificada, o que, em
sua visão, não havia acontecido. Nesse mesmo processo, os trabalhadores também
reivindicavam um adicional aos salários daqueles profissionais que desenvolviam suas
atividades com o uso de ferramentas próprias, mas, seguindo a mesma lógica, o relator
17 Nesta tabela, as 24 demandas por aumentos salariais e as três identificadas como “outras” não foram
levadas em consideração.
afirmou que a questão não havia sido perfeitamente exposta e debatida com dados e
argumentos que permitissem sua concessão.18
No entanto, há de se destacar algumas reivindicações dos trabalhadores de Juiz de
Fora que foram deferidas pelo TRT3. Apesar de poucas terem sido concedidas, alguns
casos são singulares, nos quais o tribunal sentenciou direitos trabalhistas que modificaram
as condições de trabalho de algumas categorias, concedendo benefícios que iam de
encontro à política salarial da ditadura. Em 1965, os condutores de veículos rodoviários,
por exemplo, conseguiram incluir à sua remuneração uma taxa de 5% do salário por dia
trabalhado fora da sede.19
Já nos primeiros anos da década de 1970, os trabalhadores das empresas de crédito,
financiamento e investimentos, ainda que denominadas associações de poupança,
cooperativas habitacionais, distribuidoras de títulos e valores e similares, empreenderam
uma série de ações trabalhistas através das quais lutavam para que suas atividades
profissionais fossem consideradas idênticas às desenvolvidas dentro dos bancos,
reivindicando o direito de ter todos os benefícios que os bancários possuíam. Depois de
anos de longas disputas na Justiça do Trabalho, os trabalhadores conquistaram, em 1973, a
equiparação profissional à categoria dos bancários, o que lhes permitiu gozar das mesmas
vantagens possuídas por eles, como piso salarial e jornada de trabalho de 6 horas, redução
esta que foi confirmada apenas em dezembro de 1974.20
Considerações Finais
Bibliografia
Anexo:
Tabela 5: Resultado dos processos coletivos de Juiz de Fora no Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região (1964-1974)
Resultado Homologação Dissídio Coletivo
Procedente 5 0
Procedente em Parte 3 16
Improcedente 0 1
Arquivado 0 1
Sem Acórdão 1 0
Total* 9 18
Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
* Algumas ações foram desmembradas em dissídio e homologação, por isso o número de processos julgados
pelo TRT3 (27) é maior do que o número inicialmente impetrado (25).
Tabela 6: Acolhida das demandas trabalhistas de Juiz de Fora no Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região (1964-1974)
Tipo Reivindicado Concedido
Benefícios 5 1
Carreira/vínculo profissional 1 0
Condições de Trabalho 5 1
Remuneração 26 16
Representação coletiva 11 4
Total 48 22
Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
Resumo
1 Pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor do Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), coordena o projeto Ditadura em Prosa, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo Conselho de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo CEFET-RJ. E-mail: samu_oliveira@yahoo.com.br
2 Ditadura em Prosa é uma página de produção de conteúdo histórico na rede social do Instagram. Cf. Ditadura
4 Osvaldo Correa da Costa (1938-1974) foi integrante do Partido Comunista do Brasil e participou da
Guerrilha do Araguaia. Tornou-se um dos ícones da memória da resistência da ditadura civil-militar no Brasil,
sendo objeto inclusive do filme-documentário Osvaldão (2015), dirigido por Ana Petta e André Fernandes.
A História Pública surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970, em vista da expansão
da graduação e pós-graduação em História e da crise do mercado de trabalho nas
instituições acadêmicas para absorver mestres e doutores. Imaginava-se uma formação
híbrida que possibilitasse a inserção em diferentes nichos de mercado: atuar em instituições
de arquivos, museus e patrimônio, analisar e elaborar políticas públicas, escrever para
jornais, produção de mídias em geral, entre outras atividades. Em 1978, Robert Kelly e
George Wesley Jonshon5, respectivamente em artigo e prefácio da primeira edição da
revista The Public Historian, afirmavam a necessidade de criar um campo para o
reconhecimento da ação do profissional de História na “arena pública”, uma vez que os
historiadores “acadêmicos” resistiram à reflexão sobre as diferentes inserções profissionais
com a expansão dos meios de comunicação e das políticas públicas do pós-guerra (Jr.,
1978; Kelly, 1978). Assumia-se claramente um perfil voltado às práticas de história não
acadêmicas e uma preocupação mercadológica em relação às possibilidade de atuação do
historiador na sociedade.
A definição de história pública era (e é) “vaga”, “significava simplesmente qualquer
trabalho histórico feito fora de uma instituição de Ensino, não importa quão diferente ele
fosse” (Smith, 2018, p.293). Se assumir de forma “vaga” e ampla não significou a ausência
de posicionamento estratégico. Na experiência norte-americana, a História Pública
constituiu-se como um curso de especialização na pós-graduação, estabelecendo-se como
uma distinção de graduados em História e áreas afins para atuar fora dos nichos da
“história acadêmica”. Várias ações sinalizam para a construção de um campo de estudo e
ensino na pós-graduação norte-americana: dentre elas, a criação do primeiro mestrado em
História Pública em 1975 e posteriormente doutorados6, a instituição do Conselho
Nacional de História Pública em 1979, a formação de associações profissionais com
conferências anuais, a organização de um mercado editorial de revistas acadêmicas, livros e,
recentemente, manuais de ensino de História Pública (Lindgton, 2011; Smith, 2018;
Santhiago, 2018, 2019; Lontra, 2019).
5 Robert Kelly e George Wesley Jonhson Jr. fundaram o primeiro mestrado em História Pública na
Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, em 1975, e estiveram à frente do processo de institucionalização
da especialização nos Estados Unidos.
6 Em 2019, estimava-se 155 programas de estudo avançado em História Pública nos Estados Unidos e forte
com as histórias realizadas “com o público, para o público e pelo público”, complexificando a
operação da escrita da história e a percepção do ofício do historiador nas sociedades
contemporâneas (Schittino, 2016; Frisch, 2016; Smith, 2018). Nesse movimento
epistemológico, convida-se o historiador a compreender os diferentes lugares de produção
do discurso histórico, reconhecendo que não é somente as credenciais universitárias e
acadêmicas que qualificam um discurso histórico, mas também a capacidade de articular
conhecimentos e saberes sociais complexos (provenientes de diferentes inserções e
configurações sociais e políticas) e de se comunicar com públicos diferentes.
Nesse sentido, o projeto Ditadura em Prosa constitui um grupo e uma articulação
complexa de com e para o público da comunidade escolar do CEFET-RJ no campus
Maracanã. Compõem-se em sua maior parte por estudantes do ensino médio, o público
para o qual nos dirigimos e também os agentes de produção do conteúdo. Os estudantes
do ensino médio selecionados para o projeto realizam leituras, orientação com um
professor-especialista e uma formação específica para a pesquisa histórica da ditadura;
posteriormente, produzem conteúdos que são revisados e divulgados na comunidade
escolar. O alcance do site é majoritariamente de estudantes do Ensino Médio do CEFET-
RJ, circulando nas redes sociais e em jornais estudantis criados em torno do campus
Maracanã.
Outro aspecto importante para a compreensão do Ditadura em Prosa é a
preocupação dos estudantes e do professor-orientador com o negacionismo e revisionismo
da história da ditadura civil-militar. A ascensão conservadora tem politizado e polemizado
consensos historiográficos sobre o Golpe de 1964 e a ditadura civil-militar, articulado
narrativas baseadas em autoridades que rejeitam os historiadores e acolhem influencers em
mídias digitais conservadoras, e criado interdições ao discurso de historiadores no espaço
público para impor uma leitura homogênea e ufanista do regime militar. Essas disputas
transcorrem em meio a mudança da opinião pública que rejeita os governos petistas de
Lula (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016) e às disputas de memória em torno da
Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foram feitas em diferentes escalas nos estados,
municípios e segmentos da sociedade, a partir de 2011 (Napolitano, 2015; Pereira, 2015;
Bauer, 2017).
O projeto e site Ditadura em prosa opera quatro práticas de História Pública numa
escola de ensino médio integrado: (a.) articula o ensino de história de forma específica,
ensinando um grupo de estudantes a compreender o método de pesquisa histórica e
produção de conhecimento; (b.) dialoga através das mídias digitais com estudantes de
diferentes séries, apresentando um conteúdo que estabelece relações com o presente e a
grade curricular do ensino; (c.) potencializa a difusão de conceitos históricos e a fala de
especialistas (através principalmente do IGTV – recurso de vídeo oferecido pela rede social
do Instagram), abordando o período da ditadura civil-militar e desnaturalizando a narrativa
ufanista mobilizada por grupos conservadores; (d.) debate a justiça de transição no Brasil e
os desafios para instituir uma sociedade democrática que supere o autoritarismo na
sociedade brasileira e comunidade escolar do CEFET-RJ.
Considerações Finais
Bibliografia
ALMEIDA, Juniele Rabelo de, MENESES, Sonia (org.). História Pública em debate:
patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo: Letra & Voz, 2018.
BAUER, Caroline Silveira. Breves considerações sobre “Os lugares dos historiadores e da
história na sociedade brasileira”. História da Historiografia, n.23, p.167-175, abr.2017.
BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. Entre a técnica e tática: movimentos estudantis na
Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca (1967-1978). Dissertação de Mestrado (156 fls.).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2017.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Quais as afinidades entre um mestrado profissional em
ensino de história e a história pública? In: MAUAD, Ana Maria, SANTHIAGO, Ricardo,
BORGES, Viviane Trindade (org.). Que história pública queremos?. São Paulo: Letra e Voz,
2018. p.49-59
Resumo
Carlos Lacerda foi uma pessoa de grande importância nas disputas e embates políticos da
República democrática experimentada entre os anos 1945 e 1964. Vinculado à União
Democrática Nacional (UDN) desde sua fundação em 1945, no contexto da
redemocratização pós-Estado Novo, Lacerda se tornou uma referência no partido,
exercendo forte liderança entre seus membros devido à difusão de seu pensamento
político, seu discurso, ideias e valores caracterizados pelo estilo personalista e carismático
que fundamentam o movimento político que leva seu nome, o lacerdismo. Diante disso, o
objetivo do presente trabalho é analisar a trajetória de Lacerda na UDN e a sua crescente
hegemonia no partido, que garantiu a existência de uma ala lacerdista na agremiação.
Introdução
1Doutoranda em História Política (PPGH-UERJ) sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Antonio de Souza
Mendes. Bolsista Faperj. E-mail: tharsylaglessa@hotmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
Ele colocava a prática como ponto central da política. Em relação a isso dizia:
“Venho falar como político, orgulhoso de sua atividade política. Não pretendo encobrir
essa convicção, de natureza eminentemente política, com argumentos e, ainda menos, com
pretensos argumentos de ordem jurídica” 3.
Liberalismo, catolicismo, comunismo surgem a partir dos encontros político-sociais
do Lacerda, causas e consequências de sua visão de mundo. Numa perspectiva dialética, as
ideias se impõem a partir dos embates políticos, porém ajudam a organizá-los. De acordo
com Chaloub4, se muitas vezes Lacerda defendia soluções próximas ao liberalismo
econômico, suas motivações vinham da firme defesa ao alinhamento com os Estados
Unidos, que via o livre mercado como o centro de seu imaginário e, também vinham das
imposições da conjuntura, que não permitiam grande defesa do Estado quando este estava
quase sempre ocupado por alguns dos seus maiores adversários.
Maurício Perez afirma que, dentro do partido Lacerda era elemento de destaque da
“Banda de Música” devido a sua retórica, capacidade oratória. Era o representante máximo
dos golpistas e do bloco que tanto cortejava: os militares.
No entanto, como membro da UDN, praticamente desde a sua fundação,
em 1945, Lacerda foi, ao longo dos anos, adquirindo uma posição acima
da UDN, foi se tornando maior que o partido. Isso advinha do seu modo
personalista de ser: os seus atos geravam um capital político para si
próprio e não para o partido. Lacerda tinha trajetória própria e a UDN
era apenas uma base apropriada, um suporte necessário, dentro do jogo
político da época, para o encaminhamento dos seus projetos . como
resumia o deputado udenista João Cléofas: “a UDN é uma sociedade
anônima; o Lacerda tem 60% das ações” 5.
O papel ocupado por Lacerda no partido se explica pelo fato de que uma liderança
carismática como ele não se enquadra facilmente em estruturas como são os partidos
políticos. Porém, existiam pontos de identificação entre Lacerda e a UDN, de modo que
este era o partido onde ele se encontrava mais a vontade para se vincular. No entanto, com
a ressalva de que Lacerda “mais do que udenista, era essencialmente lacerdista” 6.
Apesar de fazer parte da UDN, sendo um dos principais expoentes do partido,
Lacerda fez muitas e duras críticas a essa instituição. Muitas vezes, a opinião, decisão ou
caminho tomado pela UDN não lhe era o mais conveniente, de modo que as críticas que
3 LACERDA, Carlos. Discursos Parlamentares. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1982.p. 77.
4 CHALOUB, Jorge. O liberalismo de Carlos Lacerda. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol.
61, nº 4, 2018, pp. 385 a 428.
5 PEREZ, Maurício Dominguez. Lacerda na Guanabara. A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960.
Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, onde delegava poderes ao presidente para decidir9.
Sobre o fato de o Brasil estar neutro naquele contexto, Lacerda provocou seus
companheiros de Câmara, questionando-os se conheciam algum país que conseguiu se
preservar de alguma agressão, permanecendo sem alianças poderosas.
Diante de tal contexto, a posição da liderança da UDN estava de acordo com
Lacerda em pensar que tal situação deveria ser discutida pelo Congresso. Desse modo, a
sessão extraordinária começaria ainda naquele mês. Para isso, os partidos começaram a
repensar suas lideranças na Câmara para discussão da questão no Congresso10.
Enquanto isso se pensava em um novo líder da UDN na Câmara, pois Afonso
Arinos já estava cotado para ser líder do bloco da oposição (UDN/PL). No processo de
escolha de um substituto de Arinos, o partido esteve dividido entre João Agripino e
Aliomar Baleeiro. Este, porém, ofereceu outras opções: Carlos Lacerda, Adauto Lúcio
Cardoso, do Distrito Federal e Bilac Pinto, de Minas. Lacerda parecia ser o preferido entre
os deputados, porém Agripino, enquanto secretário do partido, afirmou que Lacerda e
Bilac Pinto estavam empatados. “Quando os deputados da UDN se reuniram a 19 de
março, Bilac e Lacerda ofereceram retirar suas candidaturas a fim de evitar disputa, mas o
sentimento pró-Lacerda era tão evidente que apenas Bilac desistiu” 11 .
Lacerda deixou claro que ele, bem como sua agremiação, eram a favor do Acordo
de Fernando de Noronha, proposto pelos EUA, assim como eram a favor de quaisquer
acordo desse tipo, quaisquer implementações e extensões do Acordo, sendo
obrigatoriamente e previamente debatidas e deliberadas no Congresso.
Diante de tal contexto, a posição da liderança da UDN estava de acordo com
Lacerda em pensar que tal situação deveria ser discutida pelo Congresso. Desse modo, a
sessão extraordinária começaria ainda naquele mês. Para isso, o PSD optou continuar com
o presidente de seu partido, Ernâni do Amaral Peixoto, seu líder na Câmara, Tarcilo Vieira.
Os deputados da UDN, porém, decidiram substituir Milton Campos na presidência do
partido, Prado Kelly da liderança do bloco parlamentar de oposição (UDN e PL) e Afonso
Arinos como líder da UDN na Câmara. Todos que desejavam ser escolhidos para os cargos
em questão deveriam repelir a ideia de colaborar com o governo12.
Diante da agitação que Lacerda provocava no meio político, ele não era muito bem
visto por alguns setores militares, outros deputados e até alguns membros do seu próprio
partido. Essa antipatia que causava, no entanto, poderia ser ruim para seus planos de um
dia ser candidato e ser eleito presidente da República. Apesar de ele ter muitos adeptos aos
seus pensamentos e propostas, seu público ainda era muito concentrado no Rio de Janeiro
apenas e, para uma disputa a nível nacional, precisava construir sua base de eleitores em
todo o país. Então, Lacerda decidiu aderir à proposta de Juracy Magalhães de uma prática
política mais realista, que se apresentasse para as classes populares, visando acabar com a
sequência de derrotas desde 1945.
Diante de seu posicionamento a favor de Juraci Magalhães, Lacerda afirmou que o
partido estava assumindo uma linha realista, o que lhe fez receber uma crítica do líder
católico Gustavo Corção. Este afirmou que Lacerda possuía muitos inimigos, mas que o
mais perigoso era ele mesmo, pois enquanto se apresentava de maneira crítica e firme no
Congresso, nos diretórios do partido adotava uma linha realista, defendendo a candidatura
para uma presidência do partido que o aproximava de João Goulart. Porém, Lacerda não
via esse momento como uma postura negativa, para ele havia vários modos de defender a
democracia:
Há até mesmo aqueles que preventivamente a defendem sufocando-a.
(...) Se se pode defender, às vezes a democracia assumindo o Poder, suas
responsabilidades e prerrogativas; se podem haver, por vezes, dúvidas de
que a democracia se defende melhor ou não quando contam os seus
defensores com as benesses e fontes de poder público, não padece
dúvida, não há sobre isto, na História e no sentimento dos homens,
qualquer hesitação: nas prisões é que a democracia germina; é lá, pelo
sacrifício e pelo exemplo, que a liberdade tem progredido17.
Considerações finais
18 PICALUGA, Izabel F. Partidos políticos e classes sociais: a UDN na Guanabara. Rio de Janeiro: Vozes, 1980.
características essenciais, nesse aspecto, pois é por meio da palavra que se opera a
comunhão entre o líder carismático e a massa, que nele encontra sua face19.
Esses atributos lhe renderam uma posição de destaque dentro e fora do partido,
que contribuiu para sua ascensão na carreira política até o cargo de governador e, naquele
contexto, o fazia vislumbrar a Presidência da República. Entretanto, essa ascensão, mesmo
quando contextualizada no seio do partido se deu sempre em caráter particular, ou seja, o
lacerdismo veio a ser uma corrente para além da UDN, demonstrando que seus
pensamentos e projetos para o Brasil tiveram considerável progressão no partido e no país
como um todo.
Bibliografia
19WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe
Barbosa. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1999.
Resumo
Introdução
1Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor da Prefeitura da
Cidade do Rio de janeiro e da pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (UNESA).
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
administrativa tem sido a cidade de Pretória e o país era dominando principalmente por
elites descendentes de europeus originados das ilhas britânicas e dos Países Baixos. Esses
últimos têm sido conhecidos como africânderes ou bôeres e, juntamente com os demais
segmentos da elite branca sul-africana, começaram a aprovar leis racistas que visavam
segregar as populações africanas e de origem indiana na década de 1920. Os setores
africânderes organizaram o Partido Nacional (PN), chegaram ao poder em 1948 e
implantaram uma série de leis racistas que edificaram o sistema político denominado
apartheid, palavra que em bôer significa separação.
No âmbito da política exterior, as lideranças brancas da RAS se alinharam com os
EUA e defenderam um discurso de que eram europeus nascidos na África e, por
conseguinte, representavam o chamado “Ocidente” na região em oposição ao comunismo.
Assim, adotaram uma postura agressiva em relação à União Soviética (URSS) e demais
países socialistas, opuseram-se às descolonizações que estavam ocorrendo principalmente
nos continentes africano e asiático com o argumento que elas faziam parte da estratégica
comunista de expandir suas áreas de influência e favoreceram o investimento de empresas
capitalistas em seu território a fim de fortalecer o “mundo livre” ao mesmo tempo em que
associava os lucros privados à manutenção do apartheid.
O Brasil e a RAS aprofundaram suas relações diplomáticas na década de 1940 e o
advento da ditadura foi bem recebida pelos bôeres porque eles entendiam o apoio de
Brasília diminuiria o quadro de isolamento internacional pelo qual passava Pretória em
função da vigência do apartheid. Afinal, Brasil e RAS eram administrados por regimes
anticomunistas, alinhados com os EUA e com os valores do chamado “Ocidente”. Seus
líderes e ideólogos compartilhavam de vários aspectos da chamada Doutrina de Segurança
Nacional (DSN) e eram aliados de Portugal, país que estava sob o julgo da ditadura
direitista conhecida como Estado Novo, a qual se opunha aos processos de descolonização
na África e enfrentava movimentos independentistas em colônias como Angola, Guiné,
Cabo Verde e Moçambique.3
3 Consultamos os seguintes trabalhos para elaborar esse resumo da história da África do Sul: COMITINI,
Carlos. África arde. Rio de Janeiro: Codecri, 1980, pp. 119-181 e MENDONÇA, Hélio M. “Política externa
da África do Sul (1945-1999)”. In: GUIMARÃES, Samuel P. África do Sul: visões brasileiras. Brasília:
Instituto de Relações Internacionais/Fundação Alexandre Gusmão, 2000, pp. 14-32. No tocante às relações
diplomáticas Brasil-RAS, ver PENNA FILHO, Pio. “A parceria sul-africana no contexto das relações Brasil-
África”. In: VISENTINI, Paulo G. Fagundes & PEREIRA, Analúcia Danilevicz (Org.). África do Sul: história,
Estado e sociedade. Brasília, DF: FUNAG/CESUL, 2010, pp. 162-164.
4 LECHINI, Gladys. Argentina y África en el espejo de Brasil: ¿política por impulsos o construcción de una política
exterior? 1a ed. - Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2006, p. 192 e
VILALVA, Mario. África do Sul: do isolamento à convivência: reflexões sobre a relação com o Brasil. Brasília: FUNAG,
2016, pp. 79-80.
5 Sobre as posições brasileiras favoráveis à RAS e suas justificativas: BRASIL, Ministério das Relações Exteriores –
Relatório 1964. Brasília: Departamento de Administração: 1964, p. 74-75 e BRASIL, Ministério das Relações
Exteriores – Relatório 1965. Brasília: Departamento de Administração: 1965, p. 122-123.
6 Consultamos as seguintes reportagens dedicadas a reportar a passagem do ministro Muller no Brasil: JB,
13.07.1966, p. 14, JB, “Ministro sul-africano diz que seu país deseja comprar mais” 14.07.1966, p. 07 [a]; O
GLOBO, “Ministro sul-africano visitou Juraci e Negrão”. 14.07.1966, p. 04, JB, “Juraci diz a Hilgard que o
Brasil sempre colabora com países de boa vontade”. 15.07.1966, p. 07 e O GLOBO, “Juraci ofereceu almoço
a Muller”. 15.07.1966, p. 02.
7 Arquivo Nacional: BR_DFABSB_Z4_DPN_ENI_0232. p. 26-40 e BR RJANRIO Q0.ADM, COR.A966.9.
1966.
transição pacífica para uma forma de governo não racista. A outra posição foi defendida
pelos países europeus, pelas delegações latino-americanas e pelo chamado “ocidente”, os
quais procuraram atenuar os termos apresentados pelo grupo anterior, investiram em
bloquear as propostas mais rigorosas apresentados pelos delegados africanos e socialistas e
consideravam que as sanções agravariam a situação dos não brancos residentes na África
do Sul e tornaria os bôeres mais inflexíveis.
Os representantes do Brasil apresentaram um trabalho do sociólogo Gilberto Freire
denominado “Mistura racial e interpenetração racial: o exemplo brasileiro”, apoiaram a
maior parte das posições moderadas em relação a RAS e se empenharam em evitar que o
documento final do seminário incluísse seu país no grupo dos Estados que apoiava o
apartheid. Tal questão surpreendeu a delegação brasileira e foi sugerida por delegados
como Achkar Marof, embaixador da Guiné, Peter Raborokp e Ronald Segal, sul-africanos e
membros da oposição ao apartheid, e por outros que consideravam que o governo
brasileiro demonstrou seu alinhamento com Pretória ao receber membros do governo sul-
africano e ao incrementar as relações comerciais com tal administração. Os brasileiros
contra argumentaram, obtiveram apoio das delegações europeias, latino-americanas e
estadunidenses e concluíram com sucesso a tarefa de evitar que o país sede do seminário
fosse declarado apoiador do regime racista sul-africano.8
As lideranças brasileiras consideraram salutar os resultados do I Seminário
Internacional sobre o problema do Apartheid e sua realização não abalou os vínculos entre
Brasília e Pretória, cujos dirigentes receberam uma missão comercial brasileira que percorreu a
África Austral e Madagascar a fim de examinar e discutir o aumento das exportações brasileiras
para essas regiões. Outro acontecimento que demonstra a manutenção das boas relações entre
o Brasil e a RAS foi o fechamento de acordos comerciais9.
8 BRASIL, Ministério das Relações Exteriores – Relatório 1966. Brasília: Departamento de Administração: 1966, p.
104-112.
9 BRASIL, Idem, pp. 70-71. JB, “General Motors iniciou exportação de blocos de motor para a África”.
10 Essa breve revisão bibliográfica foi elaborada a partir dos estudos das seguintes obras: PENNA FILHO,
Op. Cit e VILALVA, Op. Cit. Autores que trabalham com perspectiva: LECHINI, Op. Cit e DÁVILA, Jerry.
“Ditadura, redemocratização e apartheid no Brasil”. In: História: Questões & Debates, Curitiba, volume 63,
n.2, jul./dez. 2015. Por fim, a premissa geopolítica pode ser lida no seguinte livro: VIZENTINI, Paulo.
Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2012.
11 LECHINI, Op. Cit; p. 193.
12Os últimos dois parágrafos foram elaborados a partir das seguintes fontes: JB, “Caldeira Coelho vê a razão
do eixo Brasil-Portugal no perigo comunista da África”. 02.09.1966, p. 15 e JB, “ONU recomenda à
Inglaterra que use a força contra o regime racista da Rodésia”. 11.11.1966, p. 09.
esforçaram para evitar sanções comerciais contra o governo bôer não apenas porque estas
prejudicariam seus sucessivos superávits comerciais, mas também em razão de que os
embargos poderiam contribuir para a desestabilização do sistema político local.
Considerações finais
Bibliografia
Jornais e Revistas.
Resumo
Introdução
Nesse sentido, pode ser compreendido que as revistas são um lugar de afirmação
coletiva, e para isso acontecer os periódicos devem circular. Além disso, a década de 1950
1 Graduada em licenciatura pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestranda em História pela Universidade
Federal da Paraíba. Membro do grupo PROJETAH – História de mulheres, sertões, gênero e imagens. E-
mail: thedookiedumb@gmail.com
2 (MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revistas: Imprensa e práticas culturais em tempos de republica,
São Paulo (1890 – 1922). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa oficial do
Estado, 2001, p. 39)
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
se encontra após o fim da Ditadura do Estado Novo e da censura que foi imposta pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda. Então, a mídia impressa buscava mais espaço,
pois “Essa oposição deve-se à repressão e censura sofridos por esse veículo de
comunicação durante o Estado Novo (1937-1945)”3.
Como mediadora entre as novidades e os seus leitores, as revistas discursavam e
influenciavam a opinião das pessoas. O objetivo deste trabalho consistiu em analisar como,
através de anúncios de medicamentos, a mídia impressa reproduzia um padrão de beleza
eurocêntrico, e como fonte de pesquisa, a revista que usaremos para a análise será a Revista
da Semana4, que foi uma revista carioca que circulou por todo o Brasil desde o começo do
século XX, com algumas divergências a respeito do ano de sua produção, se foi em 1901
ou 1900, como apontado por Nelson Sodré5 e Dulcília Butoni6, e a revista encerrou suas
atividades no ano de 1959.
A revista possuía em média 64 páginas por edição, e trazia em suas capas,
majoritariamente imagens de mulheres bem vestidas e que dão a impressão de uma beleza
inalcançável, tinha frequência quinzenal e era uma revista que se endereçava mais ao
público feminino. Nesse sentido, faz-se necessário refletirmos que as revistas criam
imagens sobre as mulheres e o feminino;
Nessa direção, a imprensa salta aos olhos não apenas como um
observatório, mas como um corpus que institui regras e condutas
que devem agir sobre os indivíduos, os quais formulam e/ou
subjetivam suas práticas discursivas, adensando-as, e/ou
tencionando-as, produzindo ecos e silêncios. Por ela correm,
atravessam, chocam-se sensações, valores, afetos, que vão
modelando imagens e tecendo efeitos de veracidade, de realidade,
para a época.7
Estas imagens sobre as mulheres dizem mais do que como a sociedade enxerga o
feminino e a feminilidade, são imagens que dizem sobre as mulheres e moldam como elas
mesmas se enxergam, além de ditar o que é belo. Com isso, criavam-se padrões de beleza
3 AREAS, Daiana Maciel. Imprensa e política na década de 1950: o caso do Correio da Manhã. Anais do
XV Encontro Estadual de História, 2012, p. 02.
4 A Revista da semana foi uma revista carioca que passou seus primeiros 15 anos de produção estando
para o corpo feminino, pois; “o corpo, e o conjunto das representações e práticas sobre ele,
tornou-se objeto de reflexão, de conhecimento e de intervenção”.8
Quando falamos sobre padrão, nos referimos ao conceito de padrão usado pelo
dicionário Aurélio, como conceituado por Ferreira; “1. Modelo oficial de pesos e medidas;
2. O que serve de base ou norma para avaliação, medida; 3. Objeto que serve de modelo à
feitura de outro”.9
No século XX, o conceito de beleza foi muito influenciado pelo que vinha de fora e
era anunciado nas revistas, o belo constituía-se também a partir do que as pessoas tinham;
Beleza escrevia-se principalmente no feminino. No raiar do século
XX, a arte de ser bonita se fazia “com quasi nada”, mas dependia
da boa escolha de vestidos, cujos tons precisavam combinar com
os cabelos e a cútis de cada mulher. Era preciso zelar pelo bom
estado dos calçados e ser faceira, lembrando que “em casa (e só
em casa)”, poder-se-ia deixar “entrevêr um braço claro e bem
torneado, de que a manga, mais ou menos curta, revela o
necessário para ser tentador sem chegar a indiscrição.”10
8 SOARES, A. Velhos esportistas: utilidade e estética. Motus Corporis, Rio de Janeiro, v.4, n.2, p.102-120,
1997, p. 106.
9 FERREIRA, A. Novo Aurélio século XXI: O dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
10 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da beleza no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
11 SANT’ANNA, op. cit., p. 19 – 20.
12 Alguns dos exemplos da assiduidade com que o Bél-Hormón aparece na Revista da Semana é que no ano
de 1955, o Bél-Hormón apareceu em 52 dos 53 periódicos produzidos naquele ano e no ano de 1956, o Bél-
Hormón apareceu 51 vezes, de um total de 52 periódicos, por exemplo.
13 Revista da Semana, 05/01/1957, ed. N 1)
Podemos perceber mais uma vez que o produto atrelava saúde a beleza, e a
colocava como primordial para as mulheres, que deviam tratar desde as espinhas até as
rugas. Podemos perceber também que a mulher que aparece ilustrada na discrição do
anuncio do medicamento é branca, o que sugeriu a compreensão de que o produto não se
aplicava a todas as mulheres, estimulando a criação de um padrão de beleza que valoriza
mulheres brancas e de classe alta e média.
No segundo modelo de anúncio do Antisardina, percebemos que apareciam duas
mulheres, uma loira e uma de cabelos pretos. E o texto do anúncio também sofreu
mudanças: “Não importa a côr... Tôdas podem ser belas e atraentes submetendo-se ao
método de beleza do crême ANTISARDINA. Existem três fórmulas distintas, cada qual
oferecendo os melhores resultados. Procure saber qual delas se adapta melhor à sua pele”.17
Neste novo modelo de anúncio, vemos que houve uma preocupação com a
variedade de tons de peles das brasileiras e com a representatividade, mas as duas mulheres
que apareceram desenhadas ainda eram de pele branca, apenas com a cor do cabelo
14 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [tradução Angela M. S. Côrrea]. - 2° edição. 6°
reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2019, p. 50.
15 No ano de 1956 o Antisardina apareceu em cerca de 22 periódicos de 52 que foram produzidos no ano. No
ano de 1955 o Antisardina apareceu em cerca de 18 periódicos de 53 que foram produzidos no ano.
16 Revista da Semana, 01/01/1955, ed. N 1
17 Revista da Semana, 01/10/1955, ed. n° 40.
diferente, o que pode ser compreendido é que essa preocupação com a representatividade
foi uma estratégia de venda do produto.
Durante a análise, pôde ser percebido que muitas vezes o Antisardina apareceu na
mesma página e ao lado do Bél-hormón, o que pode ser compreendido, mas sem
comprovações, que o Antisardina poderia ser utilizado como um cuidado para os efeitos
colaterais dos hormônios do Bél-hormón. Além disso, a revista não trazia o preço do
produto Antisardina, o que tornou difícil o acompanhamento de seu processo de venda.
Todos esses medicamentos com fins estéticos serviram como um degrau para que
as mulheres pudessem se encaixar no perfil de beleza que as revistas da década de 1950
reproduziam. Cada parte do corpo exigia um cuidado e a imprensa usava dessa necessidade
de ser bela, para anunciar e comercializar produtos de diversas marcas; “Cintura fina,
quadris largos, ombros roliços, seios insinuantes, pernas grossas e bem torneadas: o ideal da
beleza feminina durante a década de 1950 sugeria volúpia, mas ao mesmo tempo maciez e
conforto. Isso não era uma novidade” 18 (PINSKY, PEDRO, 2018, p. 114)
Além desses medicamentos com fins estéticos, podemos perceber outros anúncios
de remédios com o mesmo fim, porém com uma produção mais natural. Esses
medicamentos apareceram mais nos periódicos do início da década de 1950 na Revista da
Semana, e vão diminuindo progressivamente ao longo dos periódicos, dando lugar aos de
produção mais sintética, como o Bél-hormón e o Antisardina.
Outros exemplos de medicamentos eram o Leite de Arroz, o Vinho Chico Mineiro e o
Eutrichol Especial, faz-se interessante falar desses três exemplos de forma conjunta porque
seus anúncios apareceram sempre em conjunto, no mesmo quadrante e na mesma página
nos periódicos. Os três apareciam em um único bloco, com o título “O segredo de sua
beleza...” e eram fornecidos pela Multifarma19.
O leite de arroz servia para limpar a pele e era indicado principalmente para as
mulheres manterem a higiene da pele, o anúncio produto explicava o seu modo de usar;
Para manter a higiene e a limpeza da pele, use LEITE DE
ARROZ pela manhã, à tarde antes da maquiagem, e à noite antes
de deitar. Para fixar o pó de arroz não há melhor que o próprio
LEITE DE ARROZ. O seu uso constante remove as partículas
mortas e queimadas da pele, sardas, manchas, panos e cravos
tornando-a lisa, macia, aveludada e eliminando o cheiro
desagradável de suor. Exigir a embalagem verde.20
18 PINSKY, Carla Bassanezi. PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres no Brasil. 1° edição, 3°
reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2018.
19 Multifarma é uma distribuidora de medicamentos e produtos voltados para uso hospitalar.
20 Revista da Semana, 20/02/1950, ed. N 04
Pode ser compreendido que esse produto era mais um cosmético do que um
medicamento, mas a ele foi atribuída a função de curar a pele das mulheres e deixá-las
impecáveis e claras, o que era requisito indispensável na década de 1950; “Durante a década
de 1950, o rosto permanecia o ponto alto da beleza vendida nas propagandas. Nas
fotografias das revistas femininas que retratavam mulheres belas, era comum a presença da
pele branca contrastada com sobrancelha e cabelos escuros.”21
O anúncio dos três produtos não sofreu alterações ao longo da década de 1950, e
logo abaixo do leite de arroz, aparecia o Vinho Chico Mineiro, que servia para a perda de
peso, e atribuía o seu uso a inteligência;
SEJA INTELIGENTE! NÃO ESPERE ENGORDAR
DEMAIS. TOME DE HOJE EM DIANTE VINHO CHICO
MINEIRO QUE CONSERVARÁ O SEU PORTE
ELEGANTE. A perda de pêso é natural, não faz mal e não
provoca rugas. Insista no tratamento e depois do terceiro vidro o
seu corpo tomará linhas firmes e delgadas adquirindo forma
elegante indispensável a mulher moderna.22
Considerações Finais
Bibliografia
Resumo
Este artigo tem como objetivo demonstrar de que forma processos judiciais de desquite
podem ser utilizados para se acessar o cotidiano de famílias envolvidas em litígios. A análise
das fontes foi possível a partir do que está disposto no Código Civil de 1916 a respeito da
dissolução da sociedade conjugal. A fim de exemplificação, analisou-se uma ação judicial
movida por uma mulher, cujo processo pode ser considerado pioneiro na cidade de
Parnaíba/PI.
Introdução
Uma das formas de conhecer o cotidiano das famílias em seu espaço privado é
através de processos de desquite. O desquite, enquanto ato jurídico que dissolve a
sociedade conjugal, está positivado no Código Civil de 1916, mais especificamente no Art.
317: “a ação de desquite só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: I- Adultério;
II-tentativa de morte; III-sevícias ou injúria grave; IV-abandono voluntário do lar conjugal,
por dois anos contínuos”.3
Dentre os vários processos analisados, além das ações que tinham como causa
principal a acusação de adultério, encontrou-se também casos de sevícia e abandono do lar
conjugal, ambos presentes nos incisos mencionados no artigo anterior. Embora forjados
pela Justiça, esses processos permitem o acesso à intimidade dos lares conjugais, e a partir
1 Doutor em História Social (UFF) – professor efetivo do curso de Direito da Universidade Estadual do
Piauí. erasmocarlos@prp.uespi.br.
2 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Bolsista CAPES.
imanotheryou@hotmail.com.
3 BRASIL. LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Código Civil de 1916. Disponível em:
deles pode-se ter a noção de como os papéis sociais eram representados dentro de
determinados recortes temporais.
Os processos analisados compreendem o final da década de 1940, toda a década de
1950 e os primeiros anos da década de 1960. O modelo familiar presente nos anos de 1940
é o mesmo na década de 1950, em que “a sociedade conjugal pressupunha uma hierarquia,
na qual o marido era efetivamente o chefe da família, detentor de poder: discurso
respaldado na natureza dos papéis sexuais, na religião e estado4”, muito embora algumas
práticas sociais estivessem se modificando.
Com relação a esse modelo, permanecia a estrutura do pátrio poder, ou seja, o
homem continuava com o poder sobre as mulheres, mantendo-se como chefe de família,
uma vez que nas referidas décadas, “os homens tinham autoridade e poder sobre as
mulheres, e eram os responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos”.5
Quanto aos anos iniciais da década de 1960, não só os padrões sociais continuavam
sofrendo alterações, mas também a própria forma de constituição da família começava a
apresentar sinais de mudança, haja vista a nova condição assumida pela mulher dentro do
matrimônio.
A redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962, dispunha sobre a situação jurídica da
mulher casada, inovando com relação à sua condição dentro do casamento. O novo texto
trouxe a seguinte redação no Art. 240: “a mulher assume, pelo casamento, com os apelidos
do marido a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família,
cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta”.6
Até então, o papel da mulher no matrimônio era de ser companheira, consorte e
auxiliar nos afazeres familiares. Assim, seu papel era de coadjuvante dentro da hierarquia
familiar, uma vez que o protagonismo era específico de seu marido. Mas cabe ressaltar que
essa condição de subserviência e figurativa tornava-se importante, porque eram as mulheres
as responsáveis pela administração do lar conjugal, cuidando dos filhos e zelando pelo “lar
feliz”.
4 FÁVERI, Marlene de. “Desquite e divórcio: a polêmica e as repercussões na imprensa”. Caderno Espaço
Feminino, 2007, p.340.
5 PINSK, Carla Bassanezi. “Era dos modelos rígidos”. In: PINSK, Carla Bassanezi & PEDRO, Joana Maria
(Orgs). Nova história das mulheres no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Contexto: 2013, p. 608.
6 BRASIL. LEI Nº 4.121, DE 27 DE AGOSTO DE 1962. Estatuto da Mulher Casada. Disponível em:
7 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kuhner, 3ª ed. Rio de Janeiro:
Bestbolso, 2016, p.35.
8 LANGE, Dayse; IOTTI, Luiza Horn. “Processos judiciais e práticas de gênero no Judiciário: estudo de caso
a partir de um Processo de Danos, Caxias do Sul, 1942”. MÉTIS: história & cultura, 2013, p.144.
9 MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo feminino”. In: NOVAIS, Fernando;
SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da belle époque à era do rádio. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 370.
é 1947; esse processo pode ser considerado como demarcador da emancipação da mulher
com relação aos ditames morais que repousavam sobre as mesmas, pois tal atitude
provocou uma fissura, abrindo uma clareira no meio jurídico parnaibano porque, até então,
todas as ações propostas em juízo, na comarca dessa cidade, foram feitas por homens, e as
alegações eram muito semelhantes.
Esse processo pode ser considerado uma novidade dentro do contexto jurídico e
social de Parnaíba. Porém, cabe ressaltar que tal iniciativa, embora tenha sido pioneira para
a realidade dessa cidade no final da primeira metade do século XX, não se mostrou tão
inovadora quando comparada ao contexto da França revolucionária. Segundo Michelle
Perrot, nas cidades francesas desse período, a realidade do rompimento do vínculo conjugal
se dava por meio do divórcio. Em se tratando de Brasil, e mais especificamente da cidade
de Parnaíba, tem-se de forma análoga a presença do instituto do desquite.
Acrescenta-se, ainda, que a referida autora constatou que, na França, o maior
número de divórcios ocorreu no espaço urbano, e em proporção reduzida, no meio rural.
No entanto, evidencia que dois terços dos pedidos de divórcio feitos nas cidades de Lyon e
Rouen, na França, eram feitos por mulheres:
Os casais divorciados provinham de todas as camadas da sociedade
urbana, embora o maior índice de divórcios se concentrasse entre os
artesãos, os comerciantes e os profissionais liberais. As mulheres, ao que
parece, beneficiaram-se com as novas leis; em Lyon e Rouen, dois terços
dos pedidos feitos em acordo mútuo foram encaminhados por iniciativa
das mulheres.10
10 PERROT, Michelle. História da vida privada: Da Revolução à Primeira Guerra. Tradução: Bernardo
Joffily e Denise Bottmann, Vol.4. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.34.
11 Além dessa denominação, é comum encontrar a qualificação “do lar” ou de “lides do lar” nos autos
processuais. Contudo, essas mulheres trabalhavam como costureiras, doceiras, lavadeiras, feirantes, não
reconhecendo nesses ofícios o próprio valor do trabalho. Isso porque esse só poderia ser reconhecido e
autorizado por seus maridos. Assim, por trás da “rainha do lar” existiam mulheres que trabalhavam, e com a
realização de seus ofícios ajudavam a incrementar a renda familiar, visto que apenas o salário do marido não
seria suficiente. Ademais, muito embora isso fosse possível e comum, tais atividades eram realizadas, ainda,
dentro de casa, por isso mesmo a expressão “lides do lar” aparece constantemente, e por vezes pode esconder
o trabalho desses indivíduos.
12 PODER JUDICIÁRIO. 2ª Vara Civil. Fórum Salomon Lustosa, Comarca de Parnaíba, Piauí, Processo de
Desquite Litigioso [s. n.], 10.11.1947, p.2.
13 Op. cit.,p.2.
14 Op. cit.,p.2.
15 Op. cit.,p.4.
Para ela o casamento, enquanto instituição definhou, não representou a união feliz
de duas pessoas que se amam, mas uma convivência violenta, fazendo-a desconstruir a
idealização existente por trás do matrimônio.
Nesse caso, outro ponto precisa ser anotado. O fato da primeira testemunha
colaborar com o processo de destituição da sociedade conjugal. O depoente, do sexo
masculino, confirmava em juízo o comportamento agressivo de seu amigo. Tal postura
ajudaria o juiz a proferir sentença favorável à autora. Essa ação de desquite, em especial,
aponta duas situações inéditas.
A primeira, com relação à parte autora – no caso uma mulher. A outra, quanto ao
papel assumido pelo depoente no curso do processo, mantendo-se fiel aos fatos, mesmo
sabendo que as declarações ajudariam na dissolução da sociedade conjugal, uma vez que o
matrimônio é uma instituição que deve ser preservada sempre, e qualquer tentativa de
destituição dele devia ser combatida.
A análise dos processos de desquite usados para a construção desta pesquisa levou
em consideração o que está disposto no Art. 317, incisos III e IV do Código Civil. Foi
possível notar a presença de temporalidades diversas entre os processos, deixando evidente
que é necessário observar que, no desempenho do ofício do historiador, é preciso estar
atento às peculiaridades presentes em cada temporalidade a fim de que se possa saber o que
permaneceu e o que mudou.
No itinerário de pesquisa, viu-se emergir inúmeras mulheres, com diferentes
histórias e motivações para a dissolução da sociedade conjugal. O cotidiano da família,
esposa e esposo, filhos e agregados foi também sendo acessado por meio das ações
judiciais de desquite. A estrutura familiar nos anos em estudo estava pautada em uma
hierarquia que legitimava a dominação masculina sobre a mulher. Muitas vezes, mesmo
com testemunhas e argumentos sólidos, viu-se a Justiça acatar aos ensejos masculinos em
detrimento dos femininos.
A despeito disso, as mulheres que emergiram dos processos demonstraram que
estavam prontas para se desamarrarem de um enlaço amoroso violento. Ao que parece, a
pecha de ser uma “desquitada” sugeria uma vida menos turbulenta quanto a de estar casada
com alguém que, legalmente falando, detinha poder sobre seu corpo, e consequentemente,
suas sociabilidades e trabalho.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kuhner, 3ª ed. Rio de
Janeiro: Bestbolso, 2016, p.35.
BRASIL. LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Código Civil de 1916. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 15.10.2020.
BRASIL. LEI Nº 4.121, DE 27 DE AGOSTO DE 1962. Estatuto da Mulher Casada.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4121.htm. Acesso
em 15.10.2020.
FÁVERI, Marlene de. “Desquite e divórcio: a polêmica e as repercussões na imprensa”.
Caderno Espaço Feminino, 2007, p.340.
LANGE, Dayse; IOTTI, Luiza Horn. “Processos judiciais e práticas de gênero no
Judiciário: estudo de caso a partir de um Processo de Danos, Caxias do Sul, 1942”. MÉTIS:
história & cultura, 2013, p.144.
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo feminino”. In: NOVAIS,
Fernando; SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil, 3: República: da
belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 370.
PINSK, Carla Bassanezi. “Era dos modelos rígidos”. In: PINSK, Carla Bassanezi &
PEDRO, Joana Maria (Orgs). Nova história das mulheres no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Contexto:
2013, p. 608.
PERROT, Michelle. História da vida privada: Da Revolução à Primeira Guerra. Tradução:
Bernardo Joffily e Denise Bottmann,. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.34.
PODER JUDICIÁRIO. 2ª Vara Civil. Fórum Salomon Lustosa, Comarca de Parnaíba,
Piauí, Processo de Desquite Litigioso [s. n.], 10.11.1947, p.2-8.
Resumo
Introdução
1 Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientada pela Prof.ª Drª Lúcia
Maria Bastos Pereira das Neves. Pesquisa financiada pela Faperj. E-mail:anamarttins.95@gmail.com.
2 PEREIRA, Vantuil. “Ao Soberano Congresso”. Petições, requerimentos, representações e queixas à Câmara
dos Deputados e ao Senado – os direitos do cidadão na formação do Estado Imperial Brasileiro (1822-1831).
2008. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
3 Pereira, op, cit, p. 218.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
4 BRASIL. Constituição política do Império do Brasil (1824). Brasília, DF. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>.
5 SABA, Roberto Nicolas P. F. As vozes da nação: atividade peticionária e a política do início do segundo
A procura pelos direitos civis e políticos das mulheres ganhou força com a eclosão
da Revolução Francesa, especialmente após os escritos de Mary Wollstonecraft6 e Olympe
de Gouges.7 Em seus textos buscavam reivindicar o direito à cidadania e a uma educação
que fosse capaz de emancipar as mulheres do controle masculino. No entanto, mesmo
após tais reivindicações e a participação feminina tivesse sido relevante na Revolução
Francesa, após esse evento, o modelo ideal de mulher postulado por Rousseau em sua
obra Emílio ou da Educação prevaleceu ao longo do século XIX. Ou seja, o pensamento
dominante da época excluía as mulheres das questões relevantes do espaço público,
relegando-as ao âmbito familiar, sendo exaltada como mãe e educadora.8
No início do século XIX, as novidades advindas com a Revolução Francesa
ecoavam e foram reapropriadas em diferentes lugares, inclusive no Brasil. Na Europa, o
processo de mudança dos antigos Estados absolutistas para os modernos Liberais não se
desenvolveu com facilidade. Aos que defendiam o fim do Antigo Regime, tornava-se
essencial assegurar ao indivíduo o direito à liberdade e aos direitos civis, sendo tais
garantias consideradas fundamentais por meio da promulgação de uma Constituição,
única forma de garantir esses direitos e liberdades.
Assim, o surgimento do constitucionalismo no Brasil se deu devido ao
Movimento Liberal do Porto, em 1820. Este transformou a história de Portugal e do
Brasil ao propor a reunião de Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação
Portuguesa, de 1821-1822 para elaborar uma Constituição, sendo proclamada em
setembro de 1822 e posteriormente a Assembleia Constituinte de 1823, no Brasil.
Nesse período, as mulheres não eram consideradas cidadãs plenas, no entanto, é
interessante observar que as transformações políticas geradas pelo movimento
constitucional fizeram surgir tanto na imprensa quanto no Plenário das Cortes de Lisboa
discussões sobre o direito políticos das mulheres. Segundo Lúcia B. Neves, o deputado
6 Mary em seu escrito Reivindicação dos direitos da mulher questiona o modelo de educação proposto pelos
filósofos iluministas, em que exclui o acesso das mulheres nas escolas. WOLLSTONECRAFT, Mary.
Reivindicação dos direitos da mulher. Prefácio Maria Lígia Quintin Moraes. Tradução de Ivania Pocinho
Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
7 Os escritos de Gouges são em protesto à Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789. Assim,
escreve uma versão para as mulheres nos termos de um discurso legislativo. GOUGES, O. Os Direitos da
mulher. In: ROVERE, Maxime (Org.). Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas, séculos
XVII-XVIII. São Paulo: n-1 edições, 2019, p. 245-271.
8 MORIN, Tânia Machado. Práticas e representações das mulheres na Revolução francesa (1789- 1795). Dissertação
9 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.182.
10 Eleito deputado para a Assembleia Constituinte de 1823, Cipriano Barata, era considerado um liberal
radical. Preferiu não participar da Assembleia e assim, defendeu seus ideais por meio da imprensa.
11 Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco. Recife, n°32 jul; n° 39 ago; n°50 set. de 1823.
Disponível em:http://bndigital.bn.br/acervo-digital/sentinella/759961.
12 MOREL, Marco; BARROS, Mariana M. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do
SALLES, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
pp.137-173.
pedindo sua liberdade, tendo em vista que Felizarda já havia recebido outra escrava, conforme o combinado.
No entanto, de acordo com Jaime Rodrigues não se tem registro dessa solicitação nas sessões da Assembleia.
17 Anais da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Tomo 6, 1823. Sessão
15.10.1823 e 27.10.1823.
que pela lei não haveria distinção de patrimônio na recompensa de serviços, e, portanto,
era favorável a remuneração das filhas do Conselheiro, lamentando apenas “que fosse
menos grandiosa do que desejava”18.
Como já mencionado, foi no âmbito das mudanças resultantes do
movimento constitucional no Brasil em 1821 e de seu processo de Independência que as
petições ganharam novos significados, transformando-se em requerimentos em que
os cidadãos reivindicavam seus direitos. Contudo, tal mecanismo peticionário ainda
apresentava um caráter ambíguo, pois combinava valores ligados ao Antigo Regime com
os novos significados políticos. Isto pode ser verificado nas petições das viúvas D. Joana
Maria de Sá e D. Vitorina Rosa Botelho. Estas requerentes ao descreverem seus
sofrimentos e angústias após a perda de seus maridos, na tentativa de comover os
destinatários a sua causa, utilizam de vocábulos como “Soberana Assembleia” e “E
Receberá Mercê” que emergiram com o constitucionalismo por meio da imprensa
periódica, evidenciando as ambiguidades do período. 19
Outra característica presente nessas fontes é a maternidade como papel
de valorização das mulheres na sociedade. Expunham que ao se verem na condição
de viúvas não tinham meios necessários para alimentarem seus filhos e “meios alguns para
lhes promover a educação precisa e indispensável para virem a ser úteis ao serviço da
nação”20. Entende-se que no âmbito familiar, as mulheres conseguiriam melhor instruir os
seus filhos em bons cidadãos, e assim contribuírem para o serviço da nação. Esse
pensamento é salientado pela historiografia francesa sob o termo de maternidade cívica,
modelo ideal da mulher revolucionária que devia se preocupar com a moral e ser
a educadora dos futuros cidadãos da sociedade.21
Além de pedidos de pensões, algumas demandas apresentadas tinham a intenção
de transferir as competências do Judiciário para o Legislativo.22 Para tal situação observa-
se o requerimento de Luísa Tereza do Nascimento em que pede que a Assembleia
Constituinte revisse um processo judicial.
Na sessão de 01 de outubro de 1823 foi apresentado nas sessões o requerimento
de Luísa e outros que pedem a revisão de um processo judicial alegando terem sofrido
injustiças pelos herdeiros do brigadeiro Felicíssimo José Vitorino de Souza. Nas
18 Idem.
19 Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados, requerimento de 07. 10.1823.
20 Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados, requerimento de 09.10. 1823.
21 MORIN, 2009, p.41.
22 PEREIRA, 2008, p. 320.
discussões, o deputado Carvalho Melo informa que após a requerente perder em outras
instâncias, como o Desembargo do Paço, pediu que o Congresso reparasse a injustiça que
havia sofrido. Contudo, mesmo este deputado admitindo que a ela não coubesse mais
nenhum recurso, solicita que seja pedido mais informações ao governo sobre este
processo, alegando que era preciso que se conhecessem “as evidências de injustiças que a
suplicante apresenta”23.
Além dessas petições, existem outras demandas enviadas à Constituinte que
evidenciam que as mulheres agiam e atuavam nesses espaços. No entanto, deve-se
destacar que apesar das petições apresentadas à Assembleia Constituinte de 1823 fossem
analisadas por alguma comissão da Câmara dos Deputados, algumas não foram acatadas,
recebendo “não pertencem a Assembleia’’. Isso pode ser observado pela petição
apresentada por Isabel Maria e Luísa Joaquina. Estas recorrerem ao Congresso pedindo a
anulação de uma venda feita por Francisco Raposo de Vasconcelos alegando que as
pertenciam por direito de herança mas, ao ser analisado pela comissão de petições julgam
que este assunto não é da competência da Assembleia mas que deviam recorrer ao Poder
judiciário24.
Pelo exposto, podemos concluir com esses exemplos que a prática peticionária se
constitui como um interessante objeto de análise, uma vez que estes possibilitam um
entendimento acerca da difusão das ideias dentro de uma sociedade e como ela fazia seu
uso. Desta forma, observa-se que com a passagem do século XVIII para o XIX, o uso das
petições ganharam novos entendimentos que ao enviar não apenas para o soberano, mas
também ao Legislativo evidencia rupturas e permanências com o Antigo Regime. E estas
mudanças possibilitou o envio deste mecanismo por grupos femininos que viram nesses
espaços um meio de assegurar seus direitos e reparar injustiças sofridas.
Por fim, apesar das fontes elaboradas por mulheres serem escassas, é
possível verificar com esses exemplos que houve relativa participação feminina no
espaço público político no período constitucional brasileiro e que embora não
reivindicassem participação política, suas intervenções demonstram que estavam a par
dos acontecimentos políticos.
23 Anais da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Tomo 5, 1823. Sessão
05.09.1823.
24 Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados, parecer de 21. 10.1823
Bibliografia
BRASIL. Constituição política do Império do Brasil (1824). Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>.
GOUGES, O. Os Direitos da mulher. In: ROVERE, Maxime (Org.).Arqueofeminismo:
mulheres filósofas e filósofos feministas, séculos XVII-XVIII. São Paulo: n-1 edições, 2019, pp.
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Brasil do século XIX. Ed: DP&A: Rj, 2003.
MORIN, Tânia Machado. Práticas e representações das mulheres na Revolução francesa (1789-
1795). Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, 2009.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da
Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, 2003.
PEREIRA, Vantuil. “Ao Soberano Congresso”. Petições, requerimentos, representações e queixas à
Câmara dos Deputados e ao Senado – os direitos do cidadão na formação do Estado Imperial Brasileiro
(1822-1831). 2008. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Rio
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RIBEIRO, Gladys Sabina e PEREIRA, Vantuil. O Primeiro Reinado em revisão. In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial. volume I: 1808-1831. Rio
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RODRIGUES, J. (1995). Liberdade, Humanidade e propriedade: os escravos e a Assembleia
Constituinte de 1823. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (39), p. 159-167.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação; tradução de Sérgio Milliet. 3° ed. Rio de
Janeiro: Beltrand Brasil, 1995.
SABA, Roberto Nicolas P. F. As vozes da nação: atividade peticionária e a política do início
do segundo reinado. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, 2010.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Prefácio Maria Lígia
Quintin Moraes. Tradução de Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
Michelle S. Caetano1
Anne Caroline Santos Nunes2
Resumo
Este artigo pretende discutir a atuação política das mulheres na Grécia Antiga,
especificamente, na comédia Lisístrata do poeta ateniense Aristófanes, por meio da análise
da possível maleabilidade dos protocolos sociais entre o universo feminino e masculino. Na
Atenas clássica, o domínio social era personificado, entre outros fatores, por intermédio da
prática sexual. Esse controle orientou os papéis de gênero, reservando à mulher o espaço
privado, enquanto para o homem a atuação nos ambientes públicos. Entretanto, essa
divisão de atuação social não era algo fixo, longe do modelo cultural ideal os papéis sociais
se fundiram em uma fronteira permeável. Neste mesmo contexto, noções como ideário
cultural de Fabio Lessa (2000) e prazer culpado de John Winkler (1990) suscitaram este
debate.
Introdução
A Greve do Sexo, Lisístrata (411 a.C) é uma comédia, escrita pelo comediógrafo ateniense
Aristófanes. Até o momento as fontes nos revelaram cerca de onze peças inteiras de autoria
de Aristófanes, as demais obras são ainda fragmentos. Além de Lisístrata, outras duas peças
produzidas pelo comediógrafo grego apresentam esposas em situações cotidianas fora do
oikos3, são elas: Tesmoforiantes (411 a.C.) e Assembleia de Mulheres (393 a.C). Essas obras trazem
como temática aspectos do universo feminino como ponto de partida para abordar outras
questões, sobretudo, a tônica política. O enredo político nos textos aristofânicos é
constantemente atravessado pelos aspectos religiosos da época, também pela pólis4 e pelo
universo doméstico para ocupar-se da democracia ática5.
As peças aristofânicas estão situadas entre as fases da Comédia Antiga e a Comédia
Intermediária. A comédia antiga abordava críticas aos elementos sociais ao passo que, a
comédia nova, buscava expor sentimentos. Em sua estrutura, o coro desapareceu
completamente e a música aparece apenas como entretenimento, preenchendo o intervalo
entre os atos, a linguagem é simples e pura e o diálogo é encenado com vivacidade, tendo
em vista a expressão dos sentimentos de forma real. Os principais representantes dessa
nova comédia são Filemon e Menandro. “A comédia nova deixa de se preocupar
essencialmente com a vida política e se interessa mais pela vida privada dos cidadãos, mas
como uma importante restrição: não se podia levar à cena a intimidade das famílias”6.
Lisístrata, assim como os outros textos aristofânicos, era apresentada em festivais
dionisíacos, entre eles, os festivais Leneias e as Grandes Dionísias7. A obra conta a história
de um grupo de mulheres que tem como líder a ateniense Lisístrata. As personagens são
esposas legítimas que impõem aos seus maridos uma greve do sexo como tática para cessar
a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta, que se arrastava por anos e, assim, selar a
paz. A guerra foi uma longa disputa pela hegemonia política e territorial da região da Grécia
realizada pelas duas potências da época: Atenas e Esparta, envolvendo também outras
cidades-estados. A Heláde8 depois de anos de conflito sucumbe aos espartanos. Em suas
peças, Aristófanes assiste as consequências da atuação dos demagogos na cidade-estado de
Atenas, expondo de algum modo o cotidiano político e social ateniense daquele momento.
A atmosfera do teatro grego pode ser entendida como um ambiente de expressão e
intervenção social, através do discurso textual dos autores, tanto a política, a filosofia e,
também, as práticas comportamentais podiam ser relativizadas.
Em Lisístrata é levantada a possibilidade do governo das mulheres, em meio a uma
guerra que não parecia ter fim. O autor recorre a uma saída inusitada para a época, o
comando político feminino como crítica à manutenção da Guerra do Peloponeso e a
eminente destruição da cidade de Atenas. Aristófanes expõe uma solução extrema, como a
insurgência das mulheres e a tomada do exercício político como um meio para dar fim ao
primavera – entre março e abril – e tinham como solenidades os concursos teatrais, sacrifícios e procissões.
8 A Heláde corresponde à região que compreende o território central da Grécia, da Tessália e o Peloponeso.
caos da guerra. Ele ambienta uma Ágora9 feminina e vai, ao longo da comédia, expondo
essa reunião feminina em ambientes diferentes da pólis.
Para Andrade, o modelo político proposto pelo comediógrafo Aristófanes
transfiguraria a democracia ateniense em um governo gineocrático, uma espécie de
extensão do oikos10. Andrade pontua que na peça as mulheres usam o modo como
gerenciam a casa para planejar a administração da cidade. Desse modo, a tomada de poder
empreendida pelas esposas aristofânicas tem como referência o modelo de administração
que conheciam: o gerenciamento doméstico. Assistir a ousadia de um grupo de mulheres
tomar a Acrópole e deliberar baseadas em seus interesses e demandas parecia algo
inusitado. Esse caráter incomum atribuía uma carga cômica muito forte à comédia
Lisístrata. A comédia provoca graça ao transportar para o teatro a problemática do
cotidiano ateniense. Portanto, a comédia confrontou o público ao introduzir os meandros
de atuação feminina no espaço político da cidade.
Em seus textos (sobretudo em Lisístrata, Tesmoforiantes e Assembleia de Mulheres)
Aristófanes recorre a partes do universo feminino do século V a.C como instrumento para
pensar o modo como a cidade de Atenas estava inserida nas disputas políticas e territoriais.
O comediógrafo, através de uma linguagem sarcástica e cômica, quebra paradigmas
vigentes ao inverter papéis sociais, localizando a mulher atuando politicamente na pólis.
Mesmo que a implementação de um governo ginecocrático fosse algo distante de ser
concretizado, a obra representa uma sublevação dos princípios tradicionais.
Grande parte dos estudos da antiguidade consideram que os espaços políticos da
pólis eram reservados aos homens e que as mulheres não atuavam ativamente nos assuntos
políticos da pólis, seu papel estava circunscrito à atividade da administração doméstica e aos
rituais religiosos. Entretanto, alguns trabalhos acadêmicos a partir da década de 80
vislumbram uma interpretação alternativa, que localiza a mulher atuando politicamente na
pólis. Dentre eles estão os trabalhos das historiadoras Arlene W. Saxonhouse e Christane
Sourvinou-Inwood.
Saxonhouse pondera a respeito da atuação feminina na história do pensamento
político, sinalizando que “o esvaziamento da mulher no âmbito político é uma premissa
adotada pelo pensamento iluminista em sua releitura naturalizada da antiguidade e não um
11 SAXONHOUSE, A. Women in the History of Political Thought: Ancient Greece to Machiavelli. Westport, CT:
Praeger, 1985, p.7.
12 SOURVINOU-INWOOD, Christiane. “Male and female, public and private, ancient and modern”. In: E.
Reeder (ed.). Pandora. Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 111-121, p.119.
13 WINKLER, J. J.The Constraints of Desire: the anthropology of sex and gender in ancient Greece. New York:
Routledge, 1990, p. 5.
14 Idem.
15 Idem.
16 LISSARRAGUE, François. “A figuração das mulheres”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (orgs).
História das mulheres no Ocidente. Vol. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 203-219, p. 210.
17 LESSA, Fábio de Souza. O Feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p.166.
cogitar que “as práticas sociais femininas não eram completamente alinhadas com os ideais
culturais idealizados daquela sociedade”18.
Compactuando desse entendimento a historiadora Marta Mega de Andrade defende
uma relação fluida entre o espaço privado e o espaço público, sustentando:
Em certa medida, podemos afirmar ainda com base nesta interpretação
do poder político (em sua diferença ao poder baseado no prestígio e na
reciprocidade de famílias aristocráticas) que não há algo como a oposição
do privado ao público na raiz da pólis: a esfera privada virá a ser uma
criação da pólis em crise no século IV a.C., de quando datam, por sinal, a
maioria de nossos textos teóricos de política antiga. Portanto, a
concepção do privado gerou-se ao mesmo tempo em que se gerava a
concepção do público, e não foi sobrepujada por ele. Esta afirmação tem
suas consequências para qualquer estudo sobre a presença feminina na
pólis, na medida em que nos convida a compreender o espaço
feminino/doméstico em sua interação com o espaço cívico/político19.
18 LESSA, Fábio de Souza. Mulheres de Atenas: Mélissa – do gineceu à ágora. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010, p.75.
19 ANDRADE, Marta Mega de. “Os ‘usos’ do feminino ou da participação da mulher na pólis dos atenienses
sociedade ateniense com a greve das reprodutoras dos filhos cidadãos e o temor da Guerra
do Peloponeso, ambas situações parecem ser um temor a extinção da Atenas cívica.
Ademais, a personagem principal Lisístrata parece dialogar com o discurso pacifista
de Aristófanes, uma vez que ela personifica Atenas e o desejo pela paz, as outras esposas
legítimas representariam as outras cidades-estados da Grécia. Aristófanes perpassa toda a
peça apresentando a possibilidade das outras cidades-estados se unirem à Atenas como
alternativa para selar a paz. O pacto entre as esposas legítimas unidas e Lisístrata tem força
para estabelecer a paz, mas essa união como solução apresentada pelo comediógrafo
mostra que Atenas, aqui representada por Lisístrata, comanda a ação. Aristófanes deixa
claro a intenção de enfatizar a posição de liderança da cidade de Atenas, é ela que exerce o
protagonismo sob as demais cidades-estados. Lisístrata é obstinada, audaciosa, centrada e
com grande poder de persuasão, conduz as outras mulheres com clareza e firmeza, e
quando alguma mulher mostra que vai desistir, a protagonista impõe seu discurso de líder e
a resgata para causa novamente. O personagem de Lisístrata é a cidade de Atenas em seu
esplendor, uma cidade que reúne todo o seu poder congregador e de tutela. É a cidade de
Atenas que tem a capacidade de tecer os diferentes fios, dizendo de outra forma, é Atenas
que irá unir as cidades-estados e estabelecer a paz.
Esses aspectos nos fornecem uma interessante chave para perceber que a crítica
aristofânica é contra os anos de guerra, pela continuidade do conflito e a destruição de
Atenas pelos longos anos de batalha. Aristófanes usa como pano de fundo a greve de sexo
realizada pelas mulheres para criticar o contexto das guerras do Peloponeso e a eminente
destruição da produção do corpo cívico ateniense. Restaurar a paz significava o retorno à
normalidade, ou seja, a mulher na posição de geratriz de filhos legítimos e, portanto,
cidadãos-soldados que poderiam servir à cidade-estado, bem como, o retorno dos homens
a sua atuação política na pólis.
Embora boa parte do arsenal historiográfico sobre o tema demonstre que o papel
cívico mais marcante da mulher ateniense era o papel de geratriz de corpos cívicos e,
consequentemente, que o sexo implicaria em um ato de procriação seguindo essa lógica de
raciocínio, podemos inferir que a peça de Aristófanes parece apontar para um outro prisma
sobre essa questão. Os homens tinham o direito de ter relações extraconjugais, esse era um
comportamento usual, e relacionavam-se também com concubinas e mantinham relações
homossexuais. Mas se existia uma gama de ofertas para a prática sexual, por que a reação
dos homens ao descobrirem a greve de sexo é tão expressiva na peça?
A atitude tão desesperada dos homens parece indicar que o sexo matrimonial não
era somente um mero exercício de procriação, mas que também na relação entre esposa
legítima e marido era possível existir um contato prazeroso, bem como, laços sentimentais.
A privação do sexo com as suas respectivas esposas não era só uma ameaça a perpetuação
dos corpos cívicos atenienses, mas também um temor da privação do prazer conjugal.
Aristófanes ao criar uma Ágora feminina, vai ao longo da comédia expondo essa
reunião de mulheres em ambientes diferentes. O desfecho da peça reforça a intenção do
comediógrafo de apresentar uma crítica ao cotidiano que a cidade vivia através do cômico,
da sátira e da ousadia. Entretanto, esse questionamento não é dado pelo caminho da
subversão total da ordem, pois “as mulheres não subvertem completamente a ordem, após
a decisão de selar a paz a esposas legítimas voltam para os seus respectivos papéis sociais.
Retornam a exercer o ideal normativo de mélissa”22. A mulher mélissa era a boa
administradora do oikos, uma geratriz de cidadãos, obediente aos homens, desapegada aos
prazeres do sexo, entre outras coisas. A educação da mulher ateniense era voltada para a
administração do oikos e prepará-la para a função fundamental: ser mãe de cidadãos
atenienses.
As comédias de Aristófanes são uma janela de visibilidade do ambiente em que
foram realizados, é claro que existem inúmeras visões possíveis de interpretar e ver essa
janela, ela não é limitada, não está fechada em si. A análise dessa obra pode declinar para
infinitas ramificações. Uma delas é pensar os textos aristofânicos como um cenário que
aponta para a maleabilidade das posições sociais do feminino e masculino. Onde esses
espaços não são fronteiras intransponíveis, mas sim, lugares de contato e fluidez, e que
muitas vezes se fundem.
Neste debate não consideramos a obra em destaque como uma mera reprodução
ou espelho da vida cotidiana ateniense, mas como uma possível caricatura de uma realidade
passada que foi invertida por situações cômicas e satíricas.
A peça aqui relativizada traz consigo elementos passíveis de montar uma
interpretação que indique que o ideário cultural (concebido pela sociedade ateniense) não
significou uma adesão plena de comportamento produzido por esse mesmo ideário cultural
do período clássico. Por essa razão, a incorporação do feminino na esfera política ratificaria
uma espécie de cidadania não-institucional que afastava a mulher do modelo idealizado do
22O modelo de comportamento feminino idealizado mélissa é um conjunto de qualidades régias, ou seja, uma
reunião de habilidades e virtudes considerados exemplares para a mulher bem-nascida de Atenas.
perfil mélissa. A ateniense Lisístrata de Aristófanes deixou registrado na História que papéis
sociais podem ser fomentados, implementado e idealizados, mas sobretudo, podem ser
questionados via canal cômico e irreverente.
Bibliografia
Cristiane Ribeiro1
Resumo
Introduzindo a discussão
1 Licenciada e Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutoranda em História
Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) E-mail: crisdepaularibeiro@hotmail.com
2 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
6 PINSON, Guillaume. La femme masculinisée dans la presse mondaine française de la Belle Époque. Clio
Historie, femmes et sociétes, 2009, p.211-230.
7 A biografia da jornalista interessou muitos literatos, inclusive Joaquim Manuel Macedo que, em 1876,
publicou o Ano Biográfico Brasileiro em que ela obteve destaque. Ver mais em: MACEDO, Joaquim Manuel.
Ano Biográfico Brasileiro, v. 2. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia do Imperial Instituto Artístico, 1876.
8 “Ocupou funções como comissário para a liquidação das reclamações dos Estados Unidos na questão das
presas marítimas da guerra com as províncias unidas do Rio da Prata e, entre estes, o de lente de Direito
Mercantil e inspetor da aula de comércio do Rio de Janeiro, uma criação de D. João VI, reformada em 1846,
depois transformada no Instituto Comercial da Corte.” Ver mais em: Revista Brasileira. Rio de Janeiro.
1943.Ed.5, p.22-26.
9 MACEDO, Joaquim Manuel. Ano Biográfico Brasileiro, v. 2. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia do Imperial
statut de célibataire ou de separée n’est pas forcément enviable car la Société repose aussi sur um imaginaire
fortemente structurant autor de la vrai féminité”. Ver mais em: THERENTY, Marie-Eve. Femmes de presse,
femmes de letres: de Delphine de Girardin à Florence Aubenas. Paris: CNRS ÉDITIONS, 2019, p.6.
11 LERNER, Gerda. A criação do Patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo:
Cultrix, 2019, p.55-56.
12 Jornal das Senhoras. Rio de Janeiro. 25 jan. 1852. Ed.4/p.4.
Não eram apenas senhoras que escreviam verso para passar o tempo,
mas amigas que se dedicavam intensamente ao culto do espírito, e que o
tinham como projeto de vida. Interessante observar que nos textos que
Beatriz dedicou a elas [Delphina Benigna], escreveu-lhes em tom de
igualdade, dirigindo-se, pois, não a mulheres etéreas, mas a companheiras
que também devotavam a vida aos estudos, à escrita e à publicação de
textos, visando estender a todas as mulheres a possibilidade de igualdade
e liberdade por meio da ascensão intelectual13.
13PEREIRA, Cláudia Gomes Dias Costa. Contestado Fruto: a poesia esquecida de Beatriz Brandão (1779-1868). Tese
(Doutorado em Letras). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2009, p.108.
ou seja, para os padrões da época era uma mulher com certa idade. O seu pai e sua mãe já
haviam falecido nesta data e, ao que as fontes mostram, traduziu obras vez ou outra. O
objetivo do jornal era o de fortalecer o desenvolvimento intelectual das faculdades
femininas, inclusive dedicando um espaço considerável para colocar em discussão a
profissionalização da mulher nas letras junto a pauta da emancipação, em voga no Brasil
desde meados do século. Ao falar da desvalorização do trabalho intelectual de mulheres,
pontuou: “é por isso que as letras não constituem ainda entre nós uma profissão”16. Isso
indica uma preocupação com a condição das mulheres que, assim como ela, dedicavam-se
ao trabalho com as letras.
Neste trabalho como jornalista em meados do século XIX alguns apontamentos
devem ser colocados, relacionados, sobretudo, a assimilação feminina de características de
masculinidade para se imporem e obterem dada aceitação nesse espaço. A indumentária foi
uma estratégia utilizada por muitas, ela, inclusive, estava muito colocada nas discussões de
moda pariense daquele momento e apareceu com destaque também nas páginas do Jornal
das Senhoras em 1852. Foi nele que apareceu pela primeira vez a curiosa novidade - o colete
da emancipação – uma peça que como seu nome indica proporcionaria liberdade para as
mulheres. Segundo foi noticiado: “Mas um colete, um colete de homem (ora, vejam que
diferença!) bem talhado, com sua golinha em pé, ou de rebouço, ou de traspasse,
empregado sob o corpo esbelto e piramidal de uma menina de quinze anos, ou mesmo de
uma senhora até os seus 35 é por certo muito bonito”17.
Segundo Guilherme Gonçales, “o uso de paletó, colete e gravata, junto ao correto
manuseio do relógio, poderia ser compreendido como uma masculinização das moças,
comprometendo-lhe qualquer possibilidade matrimonial”18, isso correlacionado a ideia de
mulheres públicas e profissionais, principalmente, e são várias imagens desse período que
retratam isso. No entanto, as jornalistas trazem outra visão, talvez uma estratégia adotada
no discurso para obterem aceitação, em que tais artefatos funcionariam como dispositivos
de sedução, fazendo com que as qualidades femininas fossem valorizadas, uma vez que eles
seriam acompanhados com o uso das saias. Ao aparecer nas páginas do jornal que Violante
foi redatora responsável, a peça do colete da emancipação, com características masculinas
ao lado do uso das gravatas, é possível apreendermos que a jornalista, mesmo que não
tenha utilizado tais peças, carregava um dado apreço pela sua divulgação, uma vez que ela
não apareceria se a responsável pela folha fosse contrária.
Todas essas questões colocadas foram pontos fundamentais para a inserção de
mulheres nesse universo dos jornais. Violante, por exemplo, adveio de uma família
abastada e com relações privilegiadas na imprensa periódica oitocentista, o que foi
importante em sua notabilidade como mulher das letras; além disso, as outras atividades
que ela desenvolveu no decorrer da vida – como tradutora e censora, por exemplo –
indicam a complexidade desse trabalho no período, no qual mulheres transitaram em
outros espaços como forma de remuneração ou ocupação de seus dias. O magistério, a
música, a tradução e a dramaturgia também foram ofícios que muitas jornalistas ocuparam
no decorrer de suas vidas.
No dia 25 de maio de 1875, acometida por uma hérnia inguinal, Violante de Bivar
veio a óbito na Corte carioca, com apenas 58 anos de idade. A morte inesperada da
jornalista pegou todos de surpresa, uma vez que seu jornal O Domingo circulou até alguns
dias antes de sua partida sem qualquer indicação de término dos trabalhos, mais
especificamente em 9 de maio do mesmo ano, cerca de duas semanas antes. Os jornais logo
noticiaram o pesar como, por exemplo, em A Nação: “Foi hoje sepultada D. Violante
Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco, brasileira de muita ilustração e redatora proprietária
do Domingo, publicação hebdomadária. Compartilhamos os sentimentos de sua desolada
família”19.
Esse acontecimento reverberou em diversos espaços, dos quais instituições
literárias notificaram em suas atas a tristeza pela perda de uma senhora das letras tão
importante como Violante, assim como alguns anos consecutivos a esse acontecimento
jornais destacaram a lembrança em nome de sua memória, inclusive no decorrer de várias
décadas já no século XX. Esses fatos apontam para um reconhecimento da profissão
assumida por Violante, trazendo indícios de que seu nome permaneceu na memória
póstuma de sua vida, possibilitando-nps a construção de um argumento relacionado a
profissionalização (ou busca por) da mulher jornalista no Oitocentos.
20 THERENTY, Marie-Eve. Femmes de presse, femmes de letres: de Delphine de Girardin à Florence Aubenas. Paris:
CNRS ÉDITIONS, 2019.
21 Ver mais em: EVENO, Patrick. Les médias sont-ils sexués? Éléments pour une gender history des médias
Fontes
Bibliografia
Resumo
Natural de Estância, interior de Sergipe, Alina Andrade Leite (Leite Paim depois do
casamento) nasceu em 10 de outubro de 1919. Na juventude, se ligou ao Partido
Comunista Brasileiro, à época, Partido Comunista do Brasil (PCB), e se tornou uma ativa
militante. Formada professora pelo Colégio Nossa Senhora da Soledade em Salvador,
tornou-se escritora. Em 1944 publicou seu primeiro romance - Estrada da Liberdade. Ao
longo de sua trajetória, publicou dez romances, além de livros infantis e novelas para rádio.
Em sua produção literária, chama a atenção o caráter feminista de suas narrativas. Aqui, o
objetivo é analisar o discurso feminista presente na obra Simão Dias, publicada em 1949,
pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, ligada ao PCB.
Introdução
1 Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora substituta do Instituto
Federal da Bahia (IFBA), campus Ilhéus. Pesquisa financiada pela CAPES.
2 As notas biográficas sobre Alina Paim podem ser consultadas em ALVES, Iracélli da Cruz. Feminismo entre
ondas: mulheres, PCB e política no Brasil. 2020. Tese (doutorado em História) – Instituto de História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020, p. 190-191.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
seus familiares, dos quais não sei pormenores, teve uma crise e passou quase três meses
internada no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, antigo Asilo São João de Deus,
localizado na capital baiana. Foi neste ambiente hostil que conheceu o psiquiatra Isaías
Paim com quem se casou em 1943, aos 24 anos de idade. Depois do matrimônio, Alina,
agora Leite Paim, mudou-se para o Rio de Janeiro.
Casada e morando no Rio de Janeiro, ficou um período sem profissão definida. Seu
diploma só tinha validade na Bahia. A saída encontrada foi lecionar em uma escola para
filhos de pescadores em Marambaia, onde atuou por um ano. Nesse ínterim, escreveu seu
primeiro romance. Talvez sem programar, a mulher sem profissão definida que chegou à
Capital Federal acompanhando o marido se projetou no cenário político e nos círculos
literários. Em 1944, pouco mais de um ano após a mudança para o Rio de Janeiro, publicou
seu primeiro romance: Estrada da Liberdade. Segundo declarou em entrevista, o romance já
estava pronto em sua cabeça antes da mudança para a Capital Federal – “Quando vim da
Bahia trazia-o na cabeça, bem escondidinho”.3 Mas a geralmente difícil e tortuosa travessia
da cabeça para a folha em branco aconteceu nos intervalos das aulas que dava em
Marambaia.
No ano seguinte se filiou oficialmente ao PCB, partido com o qual, ao que tudo
indica, ela já se relacionava desde quando morava em Salvador. No partido, atuou no
movimento de mulheres como colaboradora do jornal Momento Feminino e do
Departamento Feminino do Comitê Democrático Botafogo-Lagoa. Fez parte das células
Estivador Santana e Theodore Dreiser, composta somente por escritores.4 Alina Paim
completaria sua agenda política e intelectual escrevendo textos para a imprensa comunista e
não comunista e para o programa infantil no Reino da Alegria, à época, programa da Rádio
do Ministério da Educação e Cultura. Além do jornal Momento Feminino, onde se ocupou da
seção de Puericultura e publicou contos, colaborou com revistas literárias, como Esfera e
Leitura. Também se ocupou das revistas especializadas em “assuntos femininos”, como a
revista Walkyria e O Cruzeiro, além de escrever para os jornais cariocas Correio da Manhã e
Voz Operária (do PCB). Geralmente publicava contos, muitos dos quais fragmentos dos
seus romances já publicados ou inéditos. Também escreveu alguns poucos artigos
analisando os assuntos do momento. Mas seu grande investimento intelectual foi na
literatura romanesca.
3 LIMA, Melo. Leitura descobre uma romancista. Leitura, Rio de Janeiro, n. 19, p. 40-41; 69, jun. 1944.
4 MORAES, Dênis. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 212.
Foi como romancista que a mulher, que parecia uma “menina tímida, novinha e
com jeito de freira à paisana”, se destacou no campo intelectual.5 Ao longo de sua carreira
publicou 14 livros de ficção: 10 romances, entre eles uma trilogia, e 4 livros de literatura
infanto-juvenil.6 Arte e militância partidária se entrecruzaram em seu fazer político. Os seus
espaços de experiência – família, maternidade, escola, religião e PCB – se tornaram cenários
para as invenções.
Estas breves linhas se concentram no romance Simão Dias, uma das obras de Alina
Paim que traz um debate feminista contundente. O artigo é um pequeno fragmento de uma
análise mais ampla realizada na tese Feminismo entre ondas: mulheres PCB e política no Brasil, em
que analiso a militância feminista de mulheres do PCB entre as décadas de 1940 e 1970. O
quinto capítulo é dedicado ao estudo de fragmentos da trajetória de Alina Paim,
especialmente sua produção literária e sua atuação política no Partido Comunista.7
5 Foi assim que Graciliano Ramos a descreveu na orelha de Simão Dias. Além do Velho Graça, Jorge Amado,
no prefácio de Sol do Meio Dia (1961), observou que a modéstia e a timidez eram traços característicos da
autora. Ao entrevistá-la, em 1979, Isolda Gonçalves disse estar diante de uma mulher “miúda” com “jeito
quieto de quase timidez. E uma voz segura, um olhar direto e firme encarando a gente. Assim é Alina Paim”.
GONÇALVES, Isolda. Autora de livros queimados em praça pública rompe silêncio de 12 anos. Diário de
Pernambuco, Recife, ano 154, n. 169, p. 7 (seção D), 24 jun., 1979.
6 Romances: Estrada da Liberdade (1944), Simão Dias (1949), A Sombra do Patriarca (1950), A Hora Próxima
(1955), Sol do Meio Dia (1961), a Trilogia de Cataria (1965) – O Sino e a Rosa, A Chave do Mundo e o Círculo –, A
Correnteza (1979) e A Sétima Vez (1994). Livros infanto-juvenis: O lenço encantado (1962); A casa da coruja verde
(1962); Luzbela vestida de cigana (1962) e Flocos de algodão (1966).
7 Cf. ALVES, Iracélli da Cruz. Feminismo entre ondas: mulheres, PCB e política no Brasil. 2020. Tese (doutorado
195.
9 Ibid.
feita por uma grande referência no campo literário. As palavras do Velho Graça, que
atribuíam ao seu novo romance “um valor que o trabalho da juventude apenas iniciava”10,
certamente deixaram a escritora lisonjeada, além de lhe conferir prestígio no meio literário.
O romance que tanto empolgou Graciliano tem um estilo narrativo diferente do primeiro,
mas é carregado do mesmo tom social.
Narrado em terceira pessoa é intimista e marcado por penetração psicológica. Não
há mocinhas e bandidos, mas pessoas carregadas de humanidade. Situada na pequena
cidade de Simão Dias, como vimos, cidade em que Alina Paim viveu parte da infância,
conta histórias de mulheres a partir dos pontos de vista de quem observava e de quem vivia
a experiência. Neste aspecto, evidencia a complexidade da existência humana, das leituras
que são feitas delas e da impossibilidade de alcançar os “compartimentos da alma”. Os
segredos íntimos, as feridas e frustrações de cada uma foram apresentados como parte de
um terreno impermeável ao olhar do outro. Como descreveu Graciliano Ramos, as
personagens do romance “são criaturas que a fizeram padecer na infância ou lhe deram
alguns momentos de alegria, em cidadezinhas do interior”.11
Nenhum excesso de imaginação. Em geral os homens são vistos a
distância, não se fixam. A escritora julga talvez não conhecê-los bem e
receia apresentá-los deformados; limita-se quase sempre a fazer
referência a eles ou, quando é indispensável, a metê-los na ação em
diálogos curtos, em rápidas passagens. [...] O que surge com intensidade
é a existência das mulheres – complicações, desarranjos, pequeninos
problemas. Há umas admiráveis tias velhas, rendeiras, beatas, calejadas
nos mexericos. E há também a criança atormentada, a melhor criação de
Alina.12
Conforme observado por Ilka Machado, em Simão Dias Alina Paim depurou seu
estilo e expôs com mais firmeza o que elegeu como centro de suas atenções: a condição
social das mulheres. Em tom autobiográfico, desenvolveu uma história em que o coletivo
se sobrepôs ao individual, sem prejuízo de personagens fortes e bem construídas.13 As
personagens centrais são mulheres que tiveram suas potencialidades reduzidas pelo estilo
de vida e pelos valores compartilhados na pequena cidade do interior. Como consequência,
10 RAMOS, Graciliano. Orelha do livro. In: PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, 1949.
11 RAMOS, Graciliano. Orelha do livro. In: PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
uma política cultural do PCB nos anos 50. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. p. 19.
14 PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949. p. 108.
15 Ibid., p. 119.
16 Ibid. p. 80-84.
camadas médias da pequena cidade, observava como a educação era desigual para os
gêneros.
Da mesinha, Luísa observava os alunos: de um lado meninas, do outro
meninos. [...] Os meninos escreviam em silêncio, despreocupados da
presença uns dos outros, entregues unicamente ao que estavam fazendo.
Cedo iam vivendo independentes, firmados nas próprias forças. [...]
Clarita e Inesinha começavam a voltar os olhos para si mesma, ajeitar as
blusas exibindo seios novos e ousados. Viviam cochichando, rindo,
acotovelando-se, fazendo atitudes. [...] Sentada à mesinha, diante dos
alunos, Luísa continuou refletindo sobre a situação. Ali estavam quatro
meninos e três meninas; todos sairiam da cidade pequena para estudar na
capital do Estado; elas voltariam e eles iriam estabelecer-se em outra
parte onde houvesse maiores possibilidades. [...] Voltariam
compreendendo melhor os problemas, exigindo mais e sentindo-se
estranhas entre os seus. Situação intolerável.17
17 PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949. p. 52-54.
18 PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949. p. 38-39.
Luísa deixa entrever que os pilares básicos para a relação sexual e afetiva entre um
homem e uma mulher era o prazer sem angústias, sem peso na alma, sem culpa, sem ciúmes.
Partindo desse ideal e incomodada com as normatizações sociais que criavam desigualdades
entre os sexos, ela se solidarizava com todas as mulheres cujas vidas destoavam do que era
considerado moralmente certo, a exemplo da viúva “mal falada” e da vizinha que engravidou
antes do casamento. Entendia que as pessoas deveriam ser “livres de fazer o que entendem,
de agir como julgarem certo”.21 A personagem é uma evidência de que Alina já nadava contra
a corrente do recato sexual das mulheres. Apesar da educação religiosa que recebeu durante
toda a vida, Luísa subverteu quase todas as regras “da Santa Madre Igreja: a noção de recato
na vida conjugal, e também do dever de ceder sempre à vontade do marido sem jamais se
esquecer do pudor. Ato sexual moderado, dentro da vigilância do Senhor, sob a benção e o
19 Ibid., p. 161-162.
20 PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949. p. 111-113.
21 Ibid., p. 57-59.
olhar da Igreja”.22 Ela não preservou castidade até o matrimônio, não teve filhos, tinha
desejos sexuais e não venerava o marido, embora tenha se violentado para satisfazê-lo
sexualmente, de acordo com o previsto nos ensinamentos religiosos.
Como desfecho, a personagem tem um final libertador. Junto com Maria do
Carmo, não se dobraria às naturalizações relacionados aos destinos das mulheres da
pequena cidade. Juntas, “longe daquelas serras”, encontrariam “o segredo da liberdade da
mulher”.23 Após uma sucessão de tragédias, Luísa foi impulsionada a “abrir os
compartimentos da alma”, processo que lhe possibilitou chegar à conclusão de que a
liberdade das mulheres estava condicionada não somente à conquista da independência
econômica e ao acesso à instrução, mas, sobretudo, à eliminação da “escravidão afetiva”.
“Era preciso começar do princípio, reconstruir a vida nos alicerces cavados com a análise
de si mesma, levantados sobre a compreensão de uma igualdade real entre os sexos”.24
No último período da Escola Normal, discutira muito com as colegas sobre
a liberdade da mulher; naquela época seus planos de independência
reduziam-se à luta econômica, à posse do dinheiro; algumas vezes avançava
também no domínio intelectual, procurando ter percepção lúcida de
problemas humanos. Com surpresa Luísa certificara-se que vencer nos
terrenos econômicos e intelectual não constituía tudo para a mulher, falta
muito para que seja inteiramente livre, senhora de seu destino. [...] Para
quebrar cadeias, fora sacudida pelo sofrimento, atirada no espaço ao sabor
de conflitos, ferira e ensanguentara as mãos. [...] Pela primeira vez,
experimentara independência, tinha consciência de liberdade agora que
rompera com a escravidão afetiva, abandonara as lentes falsas herdadas da
mãe Carolina, partira a continuidade de submissão mantida pelas mulheres
da família através de gerações. Escolhera o caminho, dirigia o voo mesmo
contra o vento, era livre e, sem apoio, começava a conhecer segurança,
compreendia que ela estava dentro de si mesma, nascia da confiança nas
próprias forças. Poderia viver em Simão Dias, em qualquer parte do mundo,
e permanecer independente, mantendo a liberdade conquistada.25
22 Ibid., p. 117-118.
23 Ibid., p. 207.
24 Ibid., p. 206.
25 PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949. p. 203-204.
26 Ibid., p. 206.
Considerações finais
27 Ibid., p. 206.
28 JEAN, Yvonne. Presença da Mulher. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, ano 49, n. 17.347, p. 15, 15 out., 1949.
29 JURANDIR, Dalcídio. Sobre “A Hora Próxima”. Imprensa Popular, Rio de Janeiro, ano 3, n. 1.657, p. 4, 13
nov. 1955.
30 PEREIRA, Astrojildo. O novo romance de Alina Paim. Imprensa Popular, ano 3, n. 1.556, p. 1-2 (3°
Fontes
AMADO, Jorge. Prefácio. In: PAIM, Alina. Sol do Meio Dia. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira do Livro, 1961.
GONÇALVES, Isolda. Autora de livros queimados em praça pública rompe silêncio de 12
anos. Diário de Pernambuco, Recife, ano 154, n. 169, p. 7 (seção D), 24 jun., 1979.
JEAN, Yvonne. Presença da Mulher. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, ano 49, n. 17.347, p.
15, 15 out., 1949.
PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949.
RAMOS, Graciliano. Orelha do livro. In: PAIM, Alina. Simão Dias. Rio de Janeiro: Casa do
Estudante do Brasil, 1949.
Bibliografia
ALVES, Iracélli da Cruz. Feminismo entre ondas: mulheres, PCB e política no Brasil. 2020.
Tese (doutorado em História) – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2020.
MORAES, D. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012.
OLIVEIRA, Ilka. A literatura na Revolução: contribuições literárias de Astrojildo Pereira e
Alina Paim para uma política cultural do PCB nos anos 50. Dissertação (Mestrado em
Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 1998.
Resumo
Na década de 1850 a imprensa era compreendida como responsável por levar o progresso a
diferentes indivíduos e locais. Além de sua capacidade de penetrar lugares distantes,
principalmente, pelas novas linhas férreas, a imprensa promovia a propagação de hábitos,
costumes e conhecimentos vistos como úteis aos novos padrões de corte e civilidade que se
estabelecia e desejava-se que fosse compartilhado à nação que se formava. É nesse sentido
que o presente estudo objetiva analisar as ligações e distanciamentos da imprensa feminina
desse contexto por meio de O Jornal das Senhoras (Rio de Janeiro; 1852-1855) e O Recreio do
Belo Sexo (Rio de Janeiro; 1852-1856). Para isso, utiliza-se da história das mulheres, da
perspectiva dos estudos de gênero e da abordagem da História Política e da História
Cultural, como arsenal teórico-metodológico de compreensão desses impressos.
Introdução
Nos faustos anos de 1850, que marcaram o apogeu do Império de D. Pedro II, a
imprensa mostrava-se produto e agente de um contexto diversificado que buscava o
progresso e novos hábitos culturais. Vivia-se um período de mudanças técnicas e materiais,
de melhorias da imprensa, do aumento do número de leitores e da inauguração de
impressos para públicos distintos e com diferentes temáticas, como os jornais literários,
científicos, comerciais, de religião, satíricos, de imigrantes e aqueles voltados para as
mulheres leitoras1.
Essas publicações que tinham como público alvo mulheres letradas são
inauguradas, no Brasil, desde a década de 1820, lado a lado com a incorporação da
educação feminina na legislação do Império brasileiro. Por isso, nesse período, a imprensa
dedicada às senhoras tomou seus contornos a partir de conceitos e símbolos que remetiam
a ideia de instrução: espelhos, professores, manuais, despertadores e outras referências que
1MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina (Org). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008, p. 52.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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denotavam em seus títulos a ideia que as mulheres deveriam ser guiadas, ensinadas e
mediadas.
A partir de meados do século, o cunho pedagógico permaneceu, mas o número de
folhas dessa “imprensa feminina”2 ganhou volumes diferenciados. Segundo Constância
Lima Duarte, Rio de Janeiro e Pernambuco foram os locais que mais circularam jornais
voltados às leitoras do Império. Ao todo vinte e cinco periódicos dedicados às damas
circularam em Recife e quarenta e cinco na cidade do Rio de Janeiro, ao longo do XIX3. E,
desses quarenta e cinco, somente na década de 1850 pelo menos dez revistas foram
publicadas exclusivamente para o público feminino na corte do Império.
Desses jornais, no presente artigo, busca-se privilegiar as possíveis ligações e
distanciamentos da imprensa feminina da corte do Rio de Janeiro por meio de O Jornal das
Senhoras (Rio de Janeiro; 1852-1855) e O Recreio do Belo Sexo (Rio de Janeiro; 1856).
O Jornal das Senhoras circulou entre os anos de 1852 a 1855, na cidade do Rio de
Janeiro, saindo sempre aos domingos, com exceção do primeiro número. Sua tipografia
localizava-se, inicialmente, na Rua do Ouvidor, já nos mostrando a importância e relevância
de sua atuação no tecido cultural dessa sociedade, uma vez que essa era considerada uma
das ruas mais importantes da Corte imperial. O impresso também apresentou sua tipografia
na Rua da Carioca a partir de março de 1852, logo após a mudança na chefia da redação do
jornal. E somente em 1853 o periódico conseguiu uma tipografia que abrigava o mesmo
nome do jornal. Transformações são marcantes no percurso de publicação dessa fonte,
mas uma de suas principais características foi o fato desse impresso apresentar apenas
redatoras; E, devido a isso, foi por muito tempo, considerado o primeiro periódico
brasileiro dirigido somente por mulheres4. Estudos recentes, porém, mostram que
2 Esse tipo de impresso mostra-se a principal característica das fontes e objetos elencados pela presente
pesquisa e pode ser caracterizada pelo termo “imprensa feminina”, por se distinguir através do sexo de suas
consumidoras. Ver mais em: BUITONI, Dulcília Schoeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Editora Ática AS,
1989, p. 7.
3 DUARTE. Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX: dicionário ilustrado. Ed 1ª. Belo
periódicos como A Esmeralda (1850, Recife) e O Jasmim (Recife, 1850) entraram em cena
com redatoras mulheres alguns anos antes do Jornal das Senhoras5.
Joana Paula Manso de Noronha (1819-1875), primeira redatora do Jornal das
Senhoras (Rio de Janeiro; 1852 a 1855), é destacada pela historiografia como uma das
primeiras mulheres a se manifestar publicamente como redatora de um periódico fundado
na corte do Rio de Janeiro. Noronha visitou outros países identificou diferentes métodos
de ensino entre meninos e meninas e esteve atenta às formas que, nesses lugares, as
mulheres se comportavam e eram tratadas6. Tais questões foram fundamentais, pois
renderam conteúdos diversificados que auxiliaram a preencher as oito páginas do Jornal das
Senhoras.
Juntamente com Joana Paula Manso de Noronha, Violante Atabalipa Ximenes
Bivar e Vellasco e Gevársia Nunezia Pires dos Santos Neves foram as redatoras do Jornal
das Senhoras7. Essas e outras mulheres contribuíram nesse periódico como coautoras,
autoras, assinando com seus próprios nomes ou com pseudônimos, a fim de não sofrer
perseguições ou calúnias. Algo importante de se ressaltar é que todas as redatoras de O
Jornal das Senhoras colocaram a público textos de seus maridos, o que nos faz indagar até
que ponto os homens estavam atuando mesmo nos jornais que estavam sendo redigido por
mulheres no decorrer desse tempo. Enfim, a relação entre os gêneros, de fato, a todo o
momento, entrelaçava-se em cada página dessa imprensa feminina ao mesmo tempo em
que as mulheres estavam atuando, buscando espaço nas brechas, nas “zonas proibidas”
como coloca Michellet Perrot, uma vez que a redação e a própria escrita periodista eram
tradicionalmente vinculadas como próprias dos homens ao longo de boa parte do século
XIX brasileiro8.
O Recreio do Belo Sexo (1852-1856)9, em tese, foi uma publicação contemporâneo ao
Jornal das Senhoras, ao Novo Correio das Modas (1852-1854) e A Marmota (1849- 1864). Ele se
definia como “Jornal de Modas, Literatura e Belas-Artes”. Porém, diferentemente de O
5 BARBOSA, Everton Vieira. A Escrita Feminina Periodista no Brasil em Meados do Século XIX. São
Leopoldo: XII Encontro Estadual de História ANPUH/RS, 2014, p. 6. Disponível em:
http://www.eeh2014.anpuhrs.org.br/resources/anais/30/1405352600_ARQUIVO_AESCRITAFEMININ
APERIODISTICANOBRASILEMMEADOSDOSECULOXIX_completo.pdf. Acessado em: 09/04/2020.
6 BARBOSA; Everton Viera. “Em buscas de (in)formação: estratégias editoriais femininas na corte (1852-
1855)”. In: BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina (et. al.) (Orgs). Imprensa, livros e política nos oitocentos.
São Paulo: Alameda. 2018, p. 200.
7 DUARTE. Constância Lima... Op. Cit... 2016, p. 117.
8 PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2016, p.33.
9Recreio do Bello Sexo: Modas, Literatura, belas-Artes e theatro. Rio de Janeiro, 1852- 1856. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=700070&Pesq=homens&pagfis=1. Acessado em:
06 de junho de 2020.
BOM TOM do Rio de Janeiro e de todas as províncias do Império do Brasil”12. Belo sexo
era o termo utilizado para designar o público-alvo do Jornal das Senhoras e do Recreio do Belo
Sexo. Tal informação nos leva a entender que era comum, em meio as páginas da imprensa
feminina, chamar atenção para o gênero de suas consumidoras logo no título das
publicações ou mesmo, em meio aos seus anúncios.
Ainda em relação aos assuntos desses periódicos, pode-se dizer que há uma
dificuldade de detectá-los devido ao Recreio do Belo Sexo apresentar, conforme mencionamos,
apenas uma edição incompleta disponível na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.
Porém, nesse mesmo número é possível analisar questões semelhantes ao que era impresso
como conteúdo do Jornal das Senhoras. Nas quatro páginas disponíveis para consulta do
Recreio do Belo Sexo observamos, logo na primeira, a descrição de um figurino “de passeio e
de visita”, sob o subtítulo “Moda”13. Depois, encontra-se o subtítulo: “Revista de Paris”.
Nessa seção, buscava-se informar as leitoras sobre o que acontecia nos “24 teatros”
parisienses14, como nos explica o começo do texto:
É bom que conheçais [...] os diversos teatros, a cujo respeito nos teremos
de ocupar todos os meses; que saibais qual é o seu gênero, sua
organização e o público que os frequenta. Pouco a pouco vos levaremos
até ao interior de todos eles, depois falaremos dos atores dramáticos,
classe muita extensa e curiosa da sociedade parisiense [...]15.
Pode-se dizer que tanto no Jornal das Senhoras quanto no Recreio do Belo Sexo existiam
ligações com a cultura da capital francesa, seja nas notícias veiculadas sobre os teatros,
eventos comemorativos, bailes ou mesmo nos figurinos de moda e nos romances
açucarados que eram impressos. Enfim, havia itens acerca dos eventos públicos e privados
que aproximava a corte do Rio de Janeiro ao ideal parisiense na escrita de cada um desses
impressos.
Outro dado importante entre esses periódicos é a semelhança na organização
tipográfica. O Jornal das Senhoras foi inaugurado fixando sua capa até a metade da primeira
folha de impressão, assim como o Recreio do Belo Sexo e de muitos outros periódicos da
corte do Rio de Janeiro “que mantinham um padrão de capa parecido”16. Mas seu modelo,
primeiramente, consistia em colocar o nome do jornal em letras maiúsculas, em negrito e
1855)”. In: BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina (et. al.) (Orgs)... Op. Cit...2018, p. 205.
valorizando o termo “das Senhoras” que se expandia em meia lua e se caracterizava como
ícone central da capa. Abaixo do título apareciam os principais temas veiculados: “Moda,
Literatura, Belas-Artes, teatros e Críticas”. Na parte de cima do título era impresso a data
de publicação. Como se observa na figura 1, em anexo.
Ao longo das publicações do Jornal das Senhoras, as redatoras, de maneira geral,
tentaram manter o padrão visual escolhido na fundação do jornal, com pequenos ajustes.
Uma dessas mudanças é observada no primeiro número de 1853. Nele, a palavra “crítica”,
presente no subtítulo original do periódico, é omitida17. A partir daqui pode-se dizer que os
subtítulos de O Recreio do Belo Sexo e O Jornal das Senhoras passaram a ser exatamente iguais.
A partir da 10ª edição (figura 2), O Jornal das Senhoras inova sua capa, novamente,
com uma pequena modificação em torno da primeira letra do título e as molduras de sua
margem. A mudança se deu em 6 de março de 1853, justamente no primeiro número
impresso na tipografia que acompanhava o próprio nome do jornal: “Ty. do Jornal das
Senhoras de G. Leuzinger, Rua do Ouvidor n. 36”18. Logo, podemos supor que fossem os
ajustes necessários para comportar a tradicional capa do periódico nas técnicas existentes
nesse novo estabelecimento tipográfico.
No primeiro número do ano de 1854, outra mudança na materialidade do Jornal das
Senhoras pode ser notada. Retira-se a tradicional meia lua do título do impresso e mantém-
se a omissão do “O” e da palavra “Crítica”. Em outras palavras, o jornal parece continuar
expor seu nome sem o artigo “O”, dando indícios que, possivelmente, ele era conhecido
somente como “Jornal das Senhoras”. Além disso, quanto à permanência da omissão do
termo “crítica”, podemos supor que ao longo da sua trajetória, o periódico buscou baixar
seu tom áspero e ser uma publicação mais de entretenimento ou “da boa companhia”,
como revela o modelo de capa de seus últimos números, em anexo, na figura 3.
Se, ao longo de seu percurso, o periódico O Jornal das Senhoras precisou reajustar seu
tom crítico, o mesmo foi inaugurado sem tal pudor. Ele tinha o objetivo de “propagar a
ilustração, e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento social e para a
emancipação moral da mulher” sem medir suas críticas àquilo que ia contra ao seu ideal19.
Buscava-se dar publicidade a artigos que cooperassem para os objetivos do jornal.
Almejavam deixar as leitoras informadas e atualizadas acerca da “Moda, Literatura, Belas-
Artes e Teatro”, assuntos esses que O Recreio do Belo Sexo apresentava em comum ao Jornal
das Senhoras, não apenas no conteúdo veiculado, como também, em seu próprio subtítulo
impresso, como aponta a figura 4, em anexo. Isso é, “Moda, Literatura, Belas-Artes e
teatros” se localizava abaixo de O Recreio do Belo Sexo, sem meia-lua, de modo linear, tal
como as últimas edições de O Jornal das Senhoras. Enfim, se compararmos os subtítulos dos
jornais da década de 1850 da corte do Rio de Janeiro percebemos que nenhuma publicação
apresentava o título tão próximo, na verdade idêntico, ao Jornal das Senhoras como o Recreio
do Belo Sexo20.
Tais proximidades tomam maiores relevos ao percebermos que ao fim do Jornal das
Senhoras existiu a promessa de retorno. Em 30 dezembro de 1855, a terceira redatora do
periódico anunciava uma breve pausa nas publicações, não um fim. Embora essa redatora
não explicasse os motivos dessa interrupção, cita o grande número de assinantes que o
jornal veio nutrindo e “ainda não havia esmorecido” desde a antiga redatora, como se
observa abaixo:
ÀS NOSSAS ASSINANTES
Deixarmos de confessar nossa viva e cordial gratidão às nossas boas e
nobres assinantes, em todo o tempo, seria um revoltante crime, perante
Deus e a sociedade, que viu nascer o Jornal das Senhoras sob sua
animadora influencia florescer cultivada por elas, e por elas existentes
para seus cuidados e vida consagrar somente a elas.
Há quatro anos é o Jornal das Senhoras protegido por um crescido
numero de assinantes que constantemente o tem sustentado com as
avultadas despesas de uma publicação de sua ordem.
Ainda não havia esmorecido, nem uma só, sua tão franca e legal
proteção.
Nem tão pouco nós esmorecemos, Senhoras. Não esmorecemos jamais.
Fazemos apenas uma parada, que julgamos necessária, no próximo ano
de 1856; e com o favor de Deus o Jornal das Senhoras reaparecerá em
1857, para prosseguirmos ao honroso fim a que nos propusemos,
cultivando com esmero as imarcescíveis flores do caminho tão
nobremente encetado pela nossa antiga redatora, a Sra. D. Joana Paula de
Noronha.
[...]
Que nossas nobres assinantes nos relevem, pois esta deliberação que
tomamos, e que esperem pelo dia em que lhe revelemos a razão de
suspendermos hoje a publicação do Jornal das Senhoras.
20Dentre os títulos da década, destaca-se: A Marmota na Corte/ A Marmota Fluminense/ A Marmota (1849-
1864), Novo Gabinete de Leitura: Repertório oferecido às Famílias Brasileiras, para seu recreio e Instrução
(1850), Novellista Brasileiro ou Armazem de Novellas Escolhidas: Revista Feminina da Casa Laemmert
(1851), O Jornal das Senhoras: Modas, Literatura, Bellas- Artes, Teatros e Crítica (1852-1855) Novo Correio
das Modas: Novelas, poesias, viagens, recordações históricas, anedotas e charadas (1852 -1854), Recreio do
Bello Sexo: Modas, Literatura, belas-Artes e theatro.( 1852- 1856), A Borboleta (1857), A Violeta
Fluminense: Folhas Críticas e Literárias Dedicada ao Belo Sexo (1857-1858), O Espelho: Revista Semanal de
Literatura, Modas, Industria e Arte (1859-1860) e Figaro-Chroniqueur (1859).
Embora os motivos para a “pausa” das publicações do Jornal das Senhoras sejam
desconhecidos, sabe-se que a defesa pela emancipação da mulher, objetivo principal do
impresso, foi mal interpretada e vista com receio por alguns contemporâneos da corte do
Rio de Janeiro, como se pode perceber em algumas cartas anônimas que foram enviadas a
Joana Paula Manso de Noronha logo no começo da publicação do jornal22. Porém, seja
como for, torna-se visível a promessa de recomeço das publicações, isso é, havia a
expectativa do Jornal das Senhoras voltar ao meio público dando prosseguimento ao quinto
ano de publicação, no mesmo período que o quinto ano de O Recreio do Belo Sexo vinha à luz
pública: janeiro de 1856.
A questão torna-se ainda mais instigante em termos das conexões desses impressos,
quando, ao se pesquisar sobre o periódico O Jornal das Senhoras, detecta-se anúncios de um
possível recomeço das publicações deste periódico em janeiro de 1856 com o nome Recreio
das Senhoras Brasileiras. Tal prerrogativa certamente aproxima O Jornal das Senhoras à data do
quinto ano de publicação do periódico O Recreio do Belo Sexo, haja vista que caso O Jornal das
Senhoras estivesse sendo publicado nessa data também estaria estreando seu quinto número
em janeiro 1856 e, também, mencionando o termo “Recreio” em seu título:
Recreio das Senhoras Brasileiras
Tendo cessado a publicação do Jornal das Senhoras, publica-se-há, em
continuação, o Recreio das Senhoras Brasileiras, com as mesmas
condições daquele jornal, dando os mais modernos figurinos de Paris
todos os domingos, bordados e músicas.
Assina-se no escritório do jornal, rua do S. Jorge n. 35, 1ª andar, ou na
tipografia da rua do Cano. Preço, 3$000 por trimestre. O primeiro
número será distribuído aos Srs. Antigos assinantes do Jornal das Senhoras,
e a sua aceitação será indicativo de que protegem a nova empresa com as
suas assinaturas. O primeiro número saíra domingo, 6 de janeiro23.
Ainda que seja possível achar anúncios, em fins de 1856, acerca da futura
inauguração do O Recreio das Senhoras Brasileiras, periódico que visava continuar com as
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=217280&pasta=ano%20185&pesq=%22O%20Recre
io%20das%20Senhoras%20Brasileiras%22. Acessado em: 27/06/2020.
temáticas e as assinantes do Jornal das Senhoras, não foi possível encontrar nenhuma das
edições dele nas bases da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O que nos faz ter dúvidas
acerca de sua real publicação com esse nome como indicava o anúncio referido. Porém, tal
dado não anula o fato de que esse impresso poderia ter vindo a público sob o título de
Recreio do Belo Sexo, periódico existente na Hemeroteca e que já foi evidenciado pela
historiografia, mas sem vinculá-lo ao Jornal das Senhoras.
A presente pesquisa continua e espera-se que mais números de O Recreio do Belo Sexo
ou outras formas que auxiliem a diminuir as lacunas dessas fontes femininas sejam
encontrados. No entanto, desde já, observa-se que recreio ou entretimento das mulheres
leitoras era uma proposta presente tanto no O Jornal das Senhoras quanto no Recreio do Belo
Sexo. Além disso, pode-se evidenciar, de acordo com os anúncios, que a possível volta das
publicações de O Jornal das Senhoras seria em 6 de janeiro de 1856, um domingo, como
tradicionalmente era publicado O Jornal das Senhoras. Já o terceiro número do Recreio do Belo
Sexo, único disponível para consulta, foi de 17 de Janeiro de 1856, uma quinta-feira. Caso
esses jornais fossem os mesmos, é possível que 13 de janeiro fosse o dia de publicação do
segundo número de O Recreio de Belo Sexo e o terceiro número, uma antecipação da
publicação que sairia, também, em um domingo, haja vista que antecipações dessas
publicações femininas eram comuns no decorrer desse tempo e, inclusive, nas páginas de O
Jornal das Senhoras.
Considerações finais
A partir da breve análise, percebemos que embora a historiografia ainda não tenha
aproximado O Recreio do Belo Sexo e O Jornal das Senhoras, esses apresentam ligações
aparentes ao cotejá-los não apenas entre si, mas com outras fontes. A partir dos anúncios
de promessas de um possível retorno do Jornal das Senhoras, tivemos acesso a informações
que podem ser relevantes para o estudo de O Recreio do Belo Sexo, haja vista que são
periódicos que tinham a mesma datação em termos de ano de publicação. Desbravá-los em
conjunto pode nos levar a compreender as ligações e distanciamentos da imprensa
feminina dos faustos anos do Segundo Reinado Brasileiro, assim como superar as lacunas
que as fontes, sobretudo em relação ao Recreio do Belo Sexo tem vindo a nos oferecer.
Portanto, se o quinto ano do periódico de O Recreio do Belo Sexo é uma continuação
de O Jornal das Senhoras ou não, talvez, seja algo que não podemos afirmar, apenas supor.
Porém, algo que podemos ratificar é que esses impressos da corte do Rio de Janeiro
apresentavam semelhanças em relação a organização tipográfica, público-alvo, subtítulos e
um referencial que exaltava a cultura francesa de modo privilegiado. Enfim, ambas as
publicações davam visibilidade e entretenimento às senhoras letradas da corte imperial,
buscavam ensiná-las atributos como o lazer por meio do teatro, o gosto por meio das
roupas, o prazer pela literatura e belas artes. Veicula-se padrões que construíam a mulher
ideal – letrada, educada e envolvida no processo civilizador – da nação que se almejava
construir no decorrer desse Segundo Reinado brasileiro.
Fontes
Bibliografia
COSTA, Isadora de Mélo. Discutindo a Emancipação Feminina: O Jornal das Senhoras (1852-
1855) e sua recepção na província do Rio de Janeiro. 2019. Monografia (Graduação em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.
BUITONI, Dulcília Schoeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Editora Ática AS, 1989.
DUARTE. Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX: dicionário
ilustrado. Ed 1ª. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
BARBOSA, Everton Vieira.” A Escrita Feminina Periodista no Brasil em Meados do
Século XIX”. São Leopoldo: XII Encontro Estadual de História ANPUH/RS, 2014.
BARBOSA; Everton Viera. Em buscas de (in)formação: estratégias editoriais femininas na
corte (1852-1855). In: BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina (et. al.) (Orgs).
Imprensa, livros e política nos oitocentos. São Paulo: Alameda. 2018.
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina (Org). História da Imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2016.
Anexo
Resumo
Introdução
esses homens deveriam refletir um ideal a ser seguido configurando, assim, a propagação e
firmação de valores e os bons costumes. A honra dessa forma, seria sempre visível, pois
manifesta-se em várias situações do cotidiano masculino. Portanto, assuntos como
difamação, por exemplo, feriam a honra dos indivíduos, atingindo também sua
masculinidade. Ora, o período da primeira república, em Caxias, inspirou nos citadinos
anseios e premissas patrióticas, isso, é claro, na figura masculina de classe abastarda.
Além disso, para que Caxias e seus citadinos estivessem alinhados com a
modernidade, valores e uma boa administração fazia-se necessário um reordenamento
urbano, assim, a parti dessa mentalidade modernizadora, tem-se o “Código de Posturas do
Município de Caxias”, promulgado em 30 de dezembro de 1893, com o intuito de alterar a organização
social”.
O novo código, publicado em 1893, regulava em pormenores as várias
atividades referentes ao cotidiano no município: das infrações e das
penas, do patrimônio municipal, das ruas e praças, das construções e
reconstruções, do asseio das ruas e das praças; dos distritos e das
estradas municipais, da higiene e saúde pública, da alimentação pública,
dos mercados públicos, dos pesos e medidas, da força municipal, da
instrução pública, da biblioteca municipal, do recenseamento e
estatística, das exposições industriais e agrícolas, da criação de gado, da
caça e da pesca, da mendicidade, prostituição e vadiagem3.
3 PESSOA, Jordania Maria. Entre a tradição e a modernidade: a belle époque caxiense: prática fabris, reordenamento urbano
e padrões culturais no final do século XIX. Imperatriz, Ética, 2009, p. 80.
4 MACHADO, Vanderlei. Entre Apolo e Dionísio: a imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em
A luz dessa questão, devemos apontar que, nem só de embates políticos viviam os
jornais, ora se eram usados para disputas políticas por um lado havia um grupo no poder
que usava da produção editorial para divulgar seus feitos na cidade e seus pares e, com isso,
a manutenção do poder fosse ele formal ou apenas a influência a partir do jornal, e outro
que compunha a aposição que usava dos mesmos métodos, tanto para ascensão quanto
manutenção.
Vale ressaltar que a obtenção dessa estima entendida aqui como honra é obtida
pela carreira construída na política e no espaço social frequentado pelo individuo, a
visualização da masculinidade está mais presente nas relações pessoais, por exemplo, gerir
com excelência a família, virilidade e, muitas vezes, o uso da força para impor “respeito”
nos outros indivíduos6.
Voltando nosso olhar para Caxias, nota-se ser uma premissa, pela qual muitos
caxienses, principalmente, os grupos elitizados que faziam parte do poder formal e
instrução. Nessa via, Pessoa, “como membro partícipe da elite letrada caxiense, o lugar de
sujeito [...] dá-nos uma dimensão da relação entre o seu discurso e as representações que o
delineiam”7. Possuíam como uma forma de preservar os chamados valores tradicionais
(mais intensos nesse período estudado por conta dos valores, ideias, ideais e premissas
alinhadas com o patriotismo e avanços econômicos) para se estabelecer tanto dentro do
núcleo familiar, como socialmente falando uma ordem cujos princípios religiosos e legais
detinham como ideal para todos. Portanto, é a partir de Machado, “portanto, tão
5 MACHADO, Vanderlei. Entre Apolo e Dionísio: a imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em
Florianópolis (1889-1930). 2007, p. 173.
6 DÓRIA, Carlos Alberto. A tradição honrada (a honra como tema de cultura e na sociedade iberoamericana). Cadernos
8MACHADO, Vanderlei. Entre Apolo e Dionísio: a imprensa e a divulgação de um modelo de masculinidade urbana em
Florianópolis (1889-1930). 2007, p. 290.
9 Jornal voz do povo, 28 de março de 1931, p. 03.
10 NADER, Maria Beatriz. A condição masculina na sociedade. Dimensões, n. 14, 2002, p. 475.
11 BARBOSA, Marialva. IMPRENSA, PODER E PÚBLICO: os diários do Rio de Janeiro (1880 – 1920), 1997, p.
90.
O papel do jornal exibe como os discursos feitos pelos que possuíam o controle dos
meios que distribuíam, regulavam e tornavam conceitos e comportamentos como um ideal a
ser alcançado, praticado e propagado em todos os espaços da sociedade, era fortemente
presente no imaginário e comportamento dos homens proporcionando a eles prestigio e honra.
Barbosa, “ao difundir pelo mercado de bens simbólicos a língua válida,
entronizavam um poder quase único no que se refere a sociedade civil”12. Ainda sob o
olhar o olhar da autora, esses intelectuais (prefeito, juiz e advogados, alguns desses como,
Joaquim Teixeira Júnior e João Guilherme de Abreu), produziam uma mensagem visando a
criação de um consenso, cujo fim último era perpetuar a dominação. Machado, “a imprensa
colaborou para a divulgação e construção desse modelo de masculinidade pretensamente
hegemônico, o qual pautava-se num ideal de civilidade que a elite urbana procurou
instaurar”13. Machado, nesse sentido, “a imprensa funcionou como um instrumento de
vigilância. Buscou-se, através da divulgação, coibir comportamentos e condutas que
atentavam contra o modelo divulgado pela elite”14.
Assim, a linguagem é elemento primordial para realização das mensagens
implícitas como o uso de determinados termos para identificar os sujeitos. Machado, “o
homem que atuava no espaço público, ou seja, o homem público, era visto como um
modelo de masculinidade, devendo ser imitado por aqueles que desejassem galgar postos
púbicos, eletivos ou não, e serem vistos como “civilizados”15.
ADMINISTRÇÃO QUE SE IMPÕE:
Encontrando a cidade suja e abandonada filha bastarda dos poderes
públicos, cheia de mattos e de grotas, com o erario «liso» e endividado,
logo nos primeiros mezes de sua fecunda gestão conseguiu dar uma
visível transformação ao no seu aspecto, não só no sentido do
embellezamento, como no do estado financeiro. Ao par de muitos
melhoramentos que havia realizado, saldava elle algumas dividas das
gestões antecessoras, mantinha o pagamento dos funcionários em dia e
conservava um saldo animador no cofre municipal. E é assim que, sete
mezes, apenas, se acha o sr. Joao Guilherme de Abreu à frente dos
destines de nossa terra, e já bem crescida e a obra de reconstrução por
elle levada a effeito16.
12 BARBOSA, M. IMPRENSA, PODER E PÚBLICO: os diários do Rio de Janeiro (1880 – 1920), 1997, p. 92.
13 MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um modelo burguês de
masculinidade em Desterro (1850-1884). (Dissertação), Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina,
1999, p. 33.
14 MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um modelo burguês de
A partir desse recorte de uma publicação do Jornal Voz do povo, foi possível
corroborar os aspectos teóricos com a “materialização” da proposta ao analisar os jornais.
Ao noticiar as ações realizados pelos homens públicos os jornais legitimavam o poder
exercido por eles, ora, moldar a imagem desses homens para benefícios próprios era
comum, pois a formação da opinião pública e a aceitação da sociedade ocasionava alcançar
os prestígios e a estima social.
CAXIAS REDIMIDA
Não posso deixar sem e devido registrar o Contentamento que me vai
nalma, pela feliz Ideia que teve o Pe. Astolpho em colocar a frente dos
destinos de Caxias o filho illustre, trabalhador e honrado, que é Joao
Guilherme de Abreu, o qual, sem paixão alguma, tem distribuindo justiça
a quem merece, no número dos quais se acha o signatário destas linhas.
Quem é filho desta terra amada quizer falar a verdade, não poderá deixar
de enaltecer os predicados deste caxiense digno que vem trazer a
tranquilidade almejada ao seio de seus irmãos. Depois da sua posse no
governo do município, lemos visto innumeros melhoramentos, que há
muito se faziam mister e viviam em completo esquecimento pelos
administradores de outrora. Fazendo Preces a Deus, pela sua
permanência no cargo de Prefeito deste munícipio, para completa
felicidade de Caxias e garantia dos filhos, cumprimento o nobre
conterraneo pelo modo honroso com que tem retribuído as esperanças
que os, Caxienses sempre depositaram na sua pessoa17.
Teixeira, com isso, não demorou pouco J. Teixeira Junior, assumiu o cargo de prefeito de
Caxias, de 1919 a 1921. Durante esse período o jornal, explicitamente, assumiu o papel de
divulgar todas as boas ações do prefeito, dedicando colunas e mais colunas para que, dia
após dia, fosse exibido o quão honrado era J. Teixeira Junior.
O governo do município.
“Será inaugurado, amanhã, no aprazível povoado Industrial, a ponte de
madeira que o município fez constrair sob o formoso riacho que
constitui o principal atractivo daquelle pitoresco recanto”.
“A inauguração desse importante serviço público representa para o
ilustre chefe de nossa communa uma grande victoria”19.
Nesse recorte de uma notícia do então prefeito de Caxias, podemos perceber como o
uso das palavras e termos pontuais configuram forte teor de favorecimento, formando uma
imagem de grandioso e honrado político defensor do povo, aquele que trabalha em favor do
povo. Nesse ponto, a divulgação das ações realizadas, pelo prefeito exercia forte papel na
formação da imagem do mesmo tanto publica quanto social de um ideal de homem integro,
possuidor de virtudes admiráveis e um exemplo a ser seguido pelos demais.
Nesse sentido temos outro exemplo de exaltação do senhor Teixeira Junior, nesse
recorte o jornal remete as tensões entre o, à época, atual prefeito (Teixeira Junior) e seu
antecessor o senhor Villa Nova, a manchete estava intitulada de “ESCAPATORIA
VERGONHOSA”. Nela é retratado que o senhor Teixeira Junior foi ao encontro de Villa
Nova para intima-lo pessoalmente para prestar contas novamente sobre as finanças da
prefeitura no período em que esteve no cargo. O desfecho desse embate político não pode
ser encontrado, infelizmente. Para tanto, Machado, “encontravam na imprensa e nos
debates públicos espaços privilegiados para a divulgação de suas ideias e aspirações”20.
A imprensa representou ainda um espaço privilegiado de debate entre os
grupos políticos, muitas vezes com trocas de acusações, porém procurou
demonstrar os limites a que deviam se ater os confrontos. Num
momento em que os grupos buscavam firmar-se no cenário político local
e da província, que poderia reverter-se numa projeção política na corte,
algumas lideranças buscavam ascender construindo um nome
reconhecido como honrado e honesto21.
Considerações finais
22 MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um modelo burguês de
masculinidade em Desterro (1850-1884). (Dissertação), Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina,
1999, p. 68.
23 MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um modelo burguês de
Neste seguimento, seus feitos deveriam ser vistos pela sociedade, para que assim pudessem
o tão almejado prestigio social.
Assim, temos o papel exercido pelos jornais caxienses que, através de seus
discursos, legitimavam figuras do ideal masculino, reforçando os papeis e posturas que os
homens deveriam seguir, assim, moldando o imaginário e a ação desses homens no cenário
social. Desse modo, eram retratados os homens pertencentes as elites locais, pois eram
esses que disputavam e ocupavam os cargos políticos na cidade e, com isso, adquiriam
distinção e prestigio pelo fato de ocuparem cargos que, ao ver da sociedade como um todo,
eram destinados aos homens de grande capacidade intelectual e honradez.
Para que pudessem disputar e, posteriormente ocupar esses cargos era requerido
grande poder econômico, reconhecimento e legitimidade social (anterior a divulgação em
jornais, por exemplo), como gerir com primazia sua família, homem de palavra (cumprir
com acordos ou qualquer tipo de relação que tenha o cumprimento do que foi dito como
valor único). Um dos momentos em que essas características eram postas à prova estava
situado nos embates políticos que, geralmente nesse contexto, aconteciam nas publicações
dos jornais na cidade, já que os jogos de interesse e disputa de poder jamais cessam.
Bibliografia
BARBOSA, Marialva. Imprensa, poder e público: os diários do Rio de Janeiro (1880 – 1920), 1997,
p. 90 e 92.
DÓRIA, Carlos Alberto. A tradição honrada (a honra como tema de cultura e na sociedade
iberoamericana). Cadernos Pagu, (2), 47-111, 2006, p. 49.
MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de atuação masculina: a construção de um
modelo burguês de masculinidade em Desterro (1850-1884), (Dissertação). Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 1999, p. 33, 34, 35, 36-37, 46, 68, 68, 71 e 72.
MACHADO, Vanderlei. Entre Apolo e Dionísio: a imprensa e a divulgação de um modelo de
masculinidade urbana em Florianópolis (1889-1930). 2007, p. 25, 173 e 290.
PESSOA, Jordania Maria. Entre a tradição e a modernidade: a belle époque caxiense: prática fabris,
reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX. Imperatriz, Ética, 2009, p. 32 80.
NADER, Maria Beatriz. A condição masculina na sociedade. Dimensões, n. 14, 2002, p.
475.
Fontes
Resumo
Introdução
Graduada em História no Campus de Ciências Socioeconômicas e Humanas da UEG 2017. Professora
regente de História da Secretaria de Educação do Estado de Goiás. E-mail:julienyoliveira18@gmail.com.
1 Adão (2011) descreve que alguns fatores favoreceram o surgimento deste movimento, entre eles, a
2 Originada na igreja católica da América Latina, a Teologia da Libertação constitui uma tendência do
pensamento teológico que apresenta como teses um posicionamento crítico à exploração de classes,
desigualdades sociais e acumulação de riquezas. Desta forma, iria analisar os ensinamentos de Jesus Cristo
como forma de obter a liberdade das opressões, fossem elas econômicas, sociais ou políticas. Os grupos
oprimidos seriam sujeitos da sua própria liberdade. Sobre a concepção teológica da libertação, ver:
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975.
3 ADÃO, Nilton Manoel Lacerda. “Movimento das mulheres camponesas: a origem religiosa e o “cuidado” na estrutura
familiar”. In: PERETTI, Clélia (Org.). Congresso de Teologia da PUCPR, 10, 2011, Curitiba. Anais
eletrônicos. Curitiba: Champagnat, 2011, p.175.
Movimentos sociais
4MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo:
Martin Claret, 2003, p.19.
7MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo:
Martin Claret, 2003, p.24.
Desta forma, torna-se insuficiente abordar a opressão como fruto somente das
diferenças de gênero, enquanto categoria analítica, pois o cerne do seu conflito surge na
8 Na fala do XX Encontro Estadual do MMC em Xaxim - Santa Catarina, o movimento defende o que
compreende como feminismo, devido justamente às suas condições de mulheres camponesas “ Para nós, do
Movimento das Mulheres Camponesas, o nosso feminismo vai para além das relações de gênero: é uma
proposta, é projeto de sociedade, que enfrenta a cultura patriarcal, a opressão que nós sofremos dos homens
e tudo, e também a luta contra o capital e a construção de um projeto de sociedade com mais igualdade, que é
o nosso sonho. Continuar afirmando que um dia nós queremos uma sociedade socialista, que pra nós a
sociedade socialista é uma sociedade igualitária, distribuição de renda, que todo mundo tenha terra, e os
direitos. Então, nós, na nossa avaliação, é trabalhar um pouco essa questão, que quando falamos de
feminismo, seja o nosso feminismo (Fala de abertura do XX Encontro Estadual do MMC – Xaxim – 21 a 23
de agosto de 2010).
9 SANTOS, Mara de Morais dos; OLIVEIRA, Leidiane. “Igualdade nas relações de gênero na sociedade do
capital: limites, contradições e avanços”. Revista Katál. Florianópolis, v. 13, nº 01, p. 11-19, jan/jun. 2010, pg.
12.
luta de classes, resultado das relações de produção entre os proprietários dos meios de
produção e os trabalhadores. Sendo assim, dentro da sociedade classista não poderá ser
analisada isoladamente. Embora o gênero seja definido por uma determinação biológica – o
sexo –, a forma como homens e mulheres se relacionam é determinada socialmente. O que
significa dizer que é condicionada pelas relações de classes. Isso torna refutável a ideia de
que o gênero é suficiente para unir as mulheres, independentemente da classe social a que
pertencem, e que a sua luta se pauta pela oposição entre os sexos (homem contra mulher).
Isso implica em dizer que a classe irá dividi-las dentro da ordem social estabelecida pelo
capital. Portanto, a compreensão desta totalidade é fundamental, e tomar consciência dessa
relação é essencial.
Por outro lado, é necessário reconhecer que a opressão sobre a mulher é mais
ostensiva do que sobre os homens das classes subalternas. A situação de opressão feminina
é parte de um complexo de determinações presente na totalidade da sociedade, que inclui
os valores. Para compreender como as mulheres desenvolvem a consciência de estarem
submetidas a este tipo de relação opressiva é necessário levar em conta a sua condição
feminina, que não é determinada pela classe social. É certo que não se pode abstrair a sua
condição de classe, todavia, o que serve de elo para o desenvolvimento da consciência
feminina é a sua condição de mulher, que não equivale à condição de classe. Conforme
Viana,
O desenvolvimento de uma consciência feminina e a unificação das
mulheres ocorre tendo uma base diferente da que ocorre no caso do
proletariado. O ponto de partida, neste caso, não é a condição de classe e
sim a condição feminina. Existe uma diferença substancial aí. A condição
de classe possui uma característica específica: existe, de acordo com a
teoria marxista, uma relação necessária entre as classes sociais. Só existe
capital (burguesia) havendo trabalho assalariado (proletariado) e vice-
versa. Mas esta relação necessária é marcada pela dominação e
exploração e, por conseguinte, pela luta. A base da condição feminina
não é a mesma, pois, em primeiro lugar, ela se altera historicamente, pelo
menos em alguns de seus aspectos10.
10 VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia: Editora Alternativa, 2007, p. 18.
11 MARQUES, Edimilson; PEIXOTO, Maria Angélica (org.). “Método dialético e a questão da mulher”. A
questão da mulher: opressão, trabalho e violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.
12 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 12ª
trabalho, na negação da igualdade de direitos com os homens da sua classe e nas obrigações
domésticas social e culturalmente a elas impostas.
A opressão que se mantém nas sociedades capitalistas é decorrente das relações de
classes, atingindo diretamente a mulher no momento em que suas características físicas
ultrapassam o âmbito sexual e atingem as relações sociais determinadas pelo modo de
produção dominante. Por isso, o antagonismo fundamental em que estão envolvidas as
mulheres das classes subalternas não é sexual, mas sim social, embora a sua condição
feminina seja determinante da sua condição social de mais explorada e oprimida do que os
homens da sua classe.
Considerações finais
Bibliografia
ADÃO, Nilton Manoel Lacerda. “Movimento das mulheres camponesas: a origem religiosa
e o “cuidado” na estrutura familiar”. In: PERETTI, Clélia (Org.). Congresso de Teologia da
PUCPR, 10, 2011, Curitiba. Anais eletrônicos. Curitiba: Champagnat, 2011
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de
Leandro Konder. 12ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
MARQUES, Edimilson; PEIXOTO, Maria Angélica (org.). “Método dialético e a questão
da mulher”. A questão da mulher: opressão, trabalho e violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna,
2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
SANTOS, Mara de Morais dos; OLIVEIRA, Leidiane. “Igualdade nas relações de gênero
na sociedade do capital: limites, contradições e avanços”. Revista Katál. Florianópolis, v. 13,
nº 01, p. 11-19, jan/jun. 2010.
VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia: Editora Alternativa, 2007.
VIANA, Nildo. “Marx: história e transformação social”. Revista Possibilidades, Goiânia-GO,
v. 02, nº 05, 2007.
VIANA, Nildo. Os movimentos sociais. Curitiba: Prismas, 2016.
Fontes documentais
Resumo
Introdução
Tais medidas eram implantadas com o intuito de disciplinar e uniformizar uma vida
para toda a população, por isso era tão necessário se atentar as famílias e principalmente ao
papel do homem/pai/provedor, como nota Mary del Priore: “A lei, dentro de casa, era
estabelecida por ele. Espécie de chefe grave e austero, a ele era atribuída a transmissão de
valores patrimoniais, culturais e o patronímico que asseguraria à criança sua passagem e,
depois, sua inclusão na sociedade.”3
Nas palavras da citação é descrito o papel de homem e principalmente pai ideal que
o Brasil republicano desejava; um homem, além de provedor o homem é pai,
consequentemente deveria ser exemplo, o guia, honrado e honesto, assim sendo espelho de
bons exemplos para o filho4e mãe era responsável por um lar harmônico e saudável. O que
impedia de muitos genitores (existia casos de alcoolismo entre as mulheres, mas eram
menos divulgados) excrescerem esse papel era o alcoolismo (doença social), pois ao ingerir
o etílico ocorria um descontrole emocional e das vontades, seguido por uma perda das
habilidades intelectuais e alterações comportamentais.5 Essas perdas que ébrio tinha o
impossibilitava de ser um homem/pai/provedor honrado e com moral, posto que a
bebedeira impedia de exercer atividades laborais.
E acreditava-se ainda que o filho de um alcoólatra recebia o vício de herança, perdia
a moral, abandonava a escola, acabava por virar alcoólatra que levava a quatro caminhos: a
vagabundagem, o crime, o hospício ou para prisão.6Ao perceber essas questões o presente
texto busca fazer uma reflexão de como esses homens desonrados (ébrios) era um
elemento de desmanche da família e nos atentarmos a doença social alcoolismo (se
atentando ao aspecto da hereditariedade).
2 PESSOA, Jordânia Maria. Entre a tradição e a modernidade: A Belle Époque Caxiense: Práticas fabris, reordenamento
urbano e padrões culturais no final do século XIX. Imperatriz: Ética, 2009, p. 82.
3 PRIORE, Mary del. “Pais de ontem: transformações da paternidade no século XIX”. In: História dos homens
Brasil no início do século XX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2010.
6 MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu Lar é o Botequim: alcoolismo e masculinidade. Ed. 2°. São Paulo:
Para alcançar tal objetivo os jornais da Primeira República são essenciais, pois
através deles podemos perceber o discurso da imprensa acerca dos males ocasionados pelo
álcool e todos seus nuances. Essa nova sociedade que acendia nesse período, utilizou a
imprensa, como uma forma de propagar ideias (como os das campanhas antialcoólicas) e
valores necessários para agregar dentro dos objetivos de formalização de uma sociedade
ideal. Tanto que em uma matéria do Jornal de Caxias intitulada “A imprensa protituida” fala
sobre a influência da imprensa.
Ninguém ignora o ascendente que a boa imprensa exerce na sociedade;
constitui ella o principal elemento de civilisação pela divulgação dos
princípios eternos te justiça, pela apotheose aos impulsos generosos dos
sentimentos nobres, e principalmente pela doutrinação do povo à pratica
do bem, a respeito mutuo, à obediência a lei, evitando assim choques de
interesses que sempre trazem como consequencia uma perturbação a
eurythenia social.7
Aqui nesse trecho é possível ver a impressa reconhecendo sua importância para
disseminar ideias mas também de controle da sociedade, visto que, os textos dos realizavam
condenações a práticas, como a ingestão de bebidas alcoólicas e os efeitos ocasionados por
elas.
Com as mudanças na vida que a modernidade estava trazendo, eram novos jeito de
socializar, trabalhar e de viver. Passou-se a olhar para os hábitos principalmente de pessoas
dos segmentos populares, certos comportamentos no mundo capitalista já não eram mais
aceitos, como se embebedar, as pessoas precisavam seguir a disciplina imposta, a nova
noção de padrão ideal e a nova noção de tempo.8 Nesse novo contexto beber era uma
forma de “fugir” da nova realidade, bares e botequins eram frequentados após o trabalho,
prejudicando o desempenho do operariado; foi assim que um simples beber após o
trabalho se tornou alcoolismo.
Como aponta Fernando Dumas:
O ponto de vista científico das falas médicas ajustava-se às necessidades
de construção e manutenção da ordem burguesa e de “invenção” de
novas tradições. No bojo destas transformações, as noções de higiene e
saúde passaram a dirigir o olhar de uma medicina que se organizava
Entendido esse novo cenário que se desenhava, que o termo alcoolismo foi
elaborado por Magnus Huss, termo que se referia o conjunto de lesões e fenômenos pelo
largo consumo de bebidas alcoólicas e também para fazer referência a doença alcoolismo.
Essa percepção de doença levou posteriormente a compreensão de que ela não afetava
apenas organismo, mas também o comportamento social e moral do indivíduo, a ideia de
uma doença social parte desse entendimento10. O indivíduo embriagado perdia a dignidade,
imbecializava-se, perdi a honra e aflorava “certos instintos”11; prejudicando assim o seu
desempenho no trabalho, seu convívio social e com a família.
Observe o trecho da matéria a baixo que trata um pouco do “mal social” que era o
alcoólatra.
Seguramente 90% dos crimes perpetrados em todos os paizes têm
origem no abuso do álcool.
Não menor é a porcentagem das moléstias adquiridas na prática desse
horroroso vício
O homem que se entrega ao vício da embriaguez não só é um
desgraçado; é uma fonte perene de males para a sociedade.
Desmoraliza-se a si próprio e ninguém lhe confia trabalhos donde tire os
meios de subsistência.
Seu destino é a cadêa, ou a enxerga de um hospital.
Não é um homem útil, mas um homem prejudicial.
Si tem família, então maiores são os males que causa á comunidade.
Preso, ébrio ou doente, não pode trabalhar; a miséria aparece-lhes em
casa e os seus descendentes ou imitam-lhe o exemplo ou buscam na
rapina meio fácil de subsistência.
A sociedade se desorganiza e a humanidade retrógada.
O vicio da embriaguez não empolga só a classe proletária. Avassala
também os homens de letras, ou grandes industrias, até os diretores da
policia.
Entre estes, hodiernamente, o alcoolismo toma tanto vulto que faz
perigar o futuro das nações.
O abuso frequente das bebidas alcoólicas por toda a parte toma
assustadoras proporções e ameaça apresenta-se como regra geral.
Mães, esposas e filhas já se embriagam também; e, nesse deplorável e
vergonhoso estado, já de vez em quando se vê em publico.
Triste realidade a embriaguez!
Adeus, honra; adeus, família; adeus, razão humana!
9SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos. “Moderação e excesso; uso e abuso: os saberes médicos acerca das
bebidas alcoólicas”. Clio – Revista de Pesquisa Histórica. Rio de Janeiro, 2006, p. 110.
10 SALES, Eliana. “Aspectos da História do álcool e do alcoolismo no século XIX”. Gênero e História. Recife:
Cadernos de História da UFPE, 2010.
11 MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu Lar é o Botequim: alcoolismo e masculinidade. Ed. 2°. São Paulo:
Fica evidente com a leitura dessa matéria, que o álcool leva a excessos de força e de
paixões, facilitando crimes. O álcool como fator que levasse ao crime foi centro dos
estudos da medicina no período (tinha-se a ideia que o álcool levaria a loucura e ao delírio);
crimes realizados durante a embriagues ficaram conhecidos como “loucura alcoólica”,
muitos especialistas da área queriam que o estado de embriaguez fosse um agravante ao
crime.13 Então crimes como esse relatado abaixo, era recorrente no Jornal de Caxias,
tratando de crimes levados pela embriagues.
Que lastima!
Brasil no início do século XX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2010.
17 MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu Lar é o Botequim: alcoolismo e masculinidade. Ed. 2°. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2001, p. 50.
18 Jornal de Caxias, 21 de novembro de 1903, Ano IX, número 410, p. 02.
19 COSTA, Raul Marx Lucas da. Tensões sociais no consumo de bebidas alcoólicas em Fortaleza (1915-1935):
Por isso a importância de combater esse mal, visto que era uma doença que não
afetava apenas o doente e sim todos os que estavam próximos; dessa forma combate-se o
alcoolismo nas terras brasileiras, desde o final do século XIX, graças as medidas
implementadas pela república, com o intuito de civilizar a nação. Como aponta o escrito do
Jornal de Caxias, cujo o título é “Mandamentos da hygiene” que na sua sexta clausula fala:
“Reduzir, o mais possível toda ingestão do álcool, ou bani-lo completamente, o que è
verdadeiro, o único segredo da saúde.”23
As campanhas antialcoólicas eram de suma importância, pois elas tinham o objetivo
de prevenir a intoxicação, nesse momento não se procurava cura o sujeito, mas sim
prevenir.24 Aqui buscava-se um “alcoólatra em potencial”25, ou seja, as pessoas das classes
trabalhadoras que para as campanhas poderiam ser levadas facilmente ao vício por causa de
suas condições de vida. Como fala Maria Izilda Matos:
As estratégias de ação nas campanhas eram diversificas: palestras e
conferências, propagadas (cartazes, folhetos, etc), Semana Antialcoólica,
voltadas primordialmente às classes populares, as “mais atingidas pelo
mal”, já que os hábitos, o meio e a educação poderiam evitar o
aparecimento e a difusão do alcoolismo.26
As campanhas ainda frisavam os gastos que aquele mal hábito causaria pra a
economia com gastos com a polícia, manicômios e penitenciárias27. Outra forma de
combater a intoxicação alcoólica era as multas aos ébrios públicos; aqueles que bebiam em
ambientes de uso comum da sociedade. Multas como essas foram implantadas em Caxias,
como relata em essa matéria do Jornal de Caxias, “No município de Caxias, no maranhão o
individuo q’ é encontrado em estado de embriaguez, paga imediatamente e sem prejuízo de
outras penas. 2.000 réis como infracção de postura.”28
Quando nenhuma dessas medidas funcionavam, era necessário a reclusão, ou seja, a
internação. Agora não era apenas prevenir ou punição, era necessário vigiar, assim nasce a
UNICAMP, 1995
28 Jornal de Caxias, 9 de novembro de 1901, Ano VII, número 305, p. 02.
necessidade de asilos e manicômios29. Tão importantes eram essas localidades que o Jornal
de Caxias tem uma notícia intitulada “Colonias correcionares” que tem a seguinte informação:
A inauguração da primeira da primeira colonia que brevemente, realizar-
so-ha no núcleo- Maria Custodia- trará como complemento logico o
refreamento da embriaguez a vagabundagem que campoiam sinistra e
infelizmente em quase todas as localidades do Estado, com grande
prejuízo para as nossas lavouras e industrias.30
Por essas razões, a prevenção trabalhava lado a lado com o ambiente familiar,
precisava-se de um ambiente saudável e harmonioso. As famílias para as campanhas era o
centro da sociedade, deveria ser exemplo de civilidade e higienização; para alcançar esses
objetivos um lar ideal deveria ter um pai/provedor e uma mãe/esposa. Era necessário
seguir o novo padrão de sociedade ideal que a ordem republicana impunha, e o trabalho era
um padrão de masculinidade ideal, onde não havia espaço para o ócio e a vagabundagem.31
Considerações finais
29 ROSA, Ana Lúcia Gonçalves. Passos cambaleantes, caminhos tortuosos: beber cachaça, práticas sociais e masculinidades
– Recife/PE – 1920 – 1930. Fortaleza, 2003
30 Jornal de Caxias, 11 de julho de 1896, Ano I, número 37, p. 02.
31 MATOS, Maria Izilda dos Santos de. Meu Lar é o Botequim: alcoolismo e masculinidade. Ed. 2º. São
As famílias ao mesmo tempo que eram os que mais sofriam com essa degenerancia,
eram também muito importantes para as campanhas antialcoólicas obterem êxitos, tendo
em vista que a mulher tinha por obrigação manter um lar higienizado, saudável e com
crianças tranquilas tornando assim um ambiente atrativo depois de um dia de trabalho.33
Assim sendo, o texto demostra a importância de entender o alcoolismo como uma
doença social, para entender que a mesma influencia na perca de moral e honra do
indivíduo; trazendo assim degenerancia, violência e um destino incerto para toda a família
do alcoólatra.
Bibliografia
COSTA, Raul Marx Lucas da. Tensões sociais no consumo de bebidas alcoólicas em Fortaleza (1915-
1935): trabalhadores, boêmios, ébrios e alcoólatras. Fortaleza, 2009, p. 23 – 98.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu Lar é o Botequim: alcoolismo e masculinidade. Ed. 2°. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p. 25 – 71.
PESSOA, Jordânia Maria. Entre a tradição e a modernidade: A Belle Époque Caxiense: Práticas
fabris, reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX. Imperatriz: Ética, 2009, p.
82.
PRIORE, Mary del. “Pais de ontem: transformações da paternidade no século XIX”. In:
História dos homens no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 155.
ROSA, Ana Lúcia Goncalves. Passos cambaleantes, caminhos tortuosos: beber cachaça, práticas sociais
e masculinidade – Recife/PE – 1920-1930. Fortaleza, 2003, p. 37 – 49.
SALES, Eliana. “Aspectos da História do álcool e do alcoolismo no século XIX”. Gênero e
História. Recife: Cadernos de História da UFPE, 2010, p. 167-203.
SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos. “Moderação e excesso; uso e abuso: os saberes
médicos acerca das bebidas alcoólicas”. Clio – Revista de Pesquisa Histórica, Rio de Janeiro,
2006, p. 103- 129.
SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos. O alcoolismo: a invenção de uma doença. Campinas:
IFCH - UNICAMP, 1995, p. 85 – 129.
SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos; VERANI, Ana Carolina. “Alcoolismo e medicina
psiquiátrica no Brasil no início do século XX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, 2010, p. 401-420.
33SALES, Eliana. “Aspectos da História do álcool e do alcoolismo no século XIX”. Gênero e História. Recife:
Cadernos de História da UFPE, 2010.
Resumo
O objetivo desse trabalho é compreender como o uso de roupas masculinas por mulheres
pode ser entendido como uma manifestação política ocasionada no terreno dos fenômenos
culturais. Ao momento que algumas mulheres oitocentistas ousaram usar uma
indumentária que não lhes pertencia causaram tensões sociais que seriam sentidas
posteriormente por gerações futuras e se atualmente as mulheres tem a liberdade de fazer
uso de calças e coletes foi graças a essas atitudes das senhoras do Oitocentos.
Interpretamos essas ações a partir da noção de cultura política e tomamos a imprensa
carioca de meados da década de 1850 como nossa principal fonte de análise.
Segundo Serge Berstein são os fenômenos culturais que preparam o terreno para as
transformações políticas. Dito isso, o objetivo dessa comunicação é perceber como
mudanças culturais concernentes a um estilo de vestuário do Oitocentos foram
fundamentais para posteriores renovações políticas. É também Berstein que afirma que tais
mudanças passam por um processo demorado e que são sentidas a partir de, pelo menos,
duas gerações posteriores.2
Se atualmente as mulheres podem utilizar calças, coletes e paletós não foi sempre
assim. Em meados da década de 50 do século XIX os jornais apontavam que o uso de
calças – traje que pertencia ao guarda roupa masculino – pelo público feminino seria
ultrajante, a exemplo do trecho destacado: “Moisés a qualificou de Bloomer, e por certo é
mais duro para uma mulher ouvir dizer que ela traz calções, do que para um homem o ser
puxado pela barba.”3
1Doutoranda em história política na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista Capes. E-
mail: laurajunqueiramreis@gmail.com
2BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: Jean-Pierre Rioux & Jean François Sirinelli. Para uma história
Fato é que, ultrajante ou não, o começo do uso dessas roupas “masculinas” resultou
em mudanças políticas. Afinal, uma mulher que desafiava as normas sociais desta maneira e
ousava fazer uso de coletes e calças, não estaria realizando um ato político? E se esse uso
causava tensão para os homens ele surtiu o efeito contrário nas mulheres e foi bem
recebido e aclamado pelo público feminino: “há muito que as senhoras inglesas e
americanas, disse ela, reclamavam uma reforma útil e necessária no seu modo de vestir.
Aquelas que tomarão a iniciativa, a este respeito, na América, cabe a honra de se haverem
interessado em abolir vivamente a escravidão.”4
Assim, sustentamos a ideia que o uso de roupas masculinas deve ser encarado como
uma espécie de representação de um jogo de ideais. É necessário considerarmos que as
representações e símbolos tem como função principal dar um sentido as ideias, por isso
precisamos pensar nesses usos como uma espécie de representação de um desejo das
mulheres por mudanças. Afinal, existia um controle feminino através das roupas e utilizar
trajes masculinos representava uma disputa social e cultura diante desse controle. De
acordo com Ribeiro e Nery, “é importante dizer que havia uma necessidade de controle do
comportamento feminino e a roupa tinha importante papel nisso, afinal, ao modelar gestos
e posturas corpóreas, modelam-se igualmente posturas sociais.”5
Em 1851 o periódico Álbum das Senhoras, que apresentava uma coluna sobre as
últimas modas chegadas no Brasil, publicou um artigo a respeito de um colete masculino,
recém chegado da Europa, que deveria ser utilizado por mulheres: “também tive ocasião de
ver os paletós e coletes modernos, que tanto furor estão produzindo na Europa: é
impossível que deixe de ficar elegantíssimo o corpinho que com eles se ataviar.”6
Mas, somente no ano seguinte, quando o Jornal das Senhoras publicou sobre esse
traje, ele ganhou um teor emancipatório não mencionado anteriormente:
O colete de emancipação é uma destas modas distintas e especiais, que
de tempos em tempos Paris oferece ás suas elegantes para nelas produzir
uma revolução e um furor que, como a eletricidade, vai tocar todos os
pontos da França, todos os círculos da sua sociedade, e por fim percorre
vitoriosa a Europa toda, e chega a América para ai fazer outro tanto,
sempre bem acolhida em toda a parte.7
Símbolo da modernidade, o colete foi ganhando cada vez mais espaço no Jornal das
Senhoras que chegou a publicar uma imagem (imagem 1) e enviar moldes para suas leitoras,
para que assim elas pudessem confeccionar os trajes em casa ou enviar para uma costureira
de sua confiança.
Outro traje masculino que chegou a ser incorporado no guarda roupa de algumas
mulheres na década de 50 foram as calças Bloomer (imagem 2). Originária dos Estados
Unidos, as calças prometiam maior conforto e mobilidade para as mulheres, considerando
que, seus trajes usuais, eram incômodos, a exemplo dos espartilhos que chegavam a
prejudicar a saúde das mulheres oitocentistas. Esse modelo de calças e o fato de ser
dedicado às mulheres, não agradava aos homens de então,
Vestem calças, saias curtas, peregrinas, e usam chapéu redondo. Todas as
que encontrei eram magras, velhas, feias e dotadas de uma voz
detestavelmente desagradável. São faladoras, e facilmente se insurgem
contra os homens casados e contra o casamento. Mas em negócio de
casamento é preciso desconfiar sempre da opinião de velhas solteiras,
magras e gritadoras.8
Na conversa destacada acima percebemos que o Periódico dos Pobres tratava dos
coletes como uma brincadeira, a exemplo da fala de uma das senhoras, ao momento que
afirma que não utilizaria tal indumentária pois gostava “de trajar muito séria.” E, além
disso, ainda caçoavam de um futuro uso de calças à emancipação. Reforçando uma
concepção contrária a esse estilo de roupa.
8Correio Mercantil, e Instrutivo, Político, Universal, Rio de Janeiro, ed270, 01 de outubro de 1856.
9Teoricamente porque os artigos não eram assinados, no entanto o jornal afirmava ser uma mulher, fato que
questionamos ao longo da leitura das publicações.
10Periódico dos Pobres, Rio de Janeiro, ed. 08. 24 de janeiro de 1852, p. 02.
Mesmo desagradando – ou mesmo até por isso – o Jornal das Senhoras destaca o uso
desses trajes por algumas mulheres brasileiras. De acordo com o periódico o colete havia
sido muito bem recebido pelas leitoras, uma das senhoras passeava pelo bairro de botafogo
com o traje: “ela passeava com uma das mãos apoiada ao seu colete e com a outra
graciosamente brincava com os sinetes de seu relógio. Era um semi-homem cheio de
feitiços e encantos.”11 Além do mais, a colaboradora afirmava que ele poderia ser utilizado
em qualquer ocasião, dos passeios de dia aos bailes, a depender, apenas, do tecido em que
seria utilizado.
Guilherme Gonçales, em sua dissertação, destaca o uso de trajes masculinos pela
parteira e modista Madame Josephine Durocher. De acordo com o autor, a madame
afirmava que adotou tais trajes pela facilidade que eles lhe proporcionavam em sua
profissão.12 Maria Mott afirma que havia nos livros que ela teve acesso imagens de
Durocher “vestida de homem com casaca e gravata borboleta”13, Durocher foi filha de Ana
Durocher uma modista francesa que chegou no Rio de Janeiro por volta dos anos 1816 e
abriu uma casa de modas na cidade.
Apesar de Josephine não ter seguido inteiramente os passos da mãe, chegou a
cuidar dos negócios de moda da família após a morte da matriarca, logo, Josephine tinha
conhecimento das costuras e, além disso, contato direto com um universo responsável por
produzir roupas; nesse sentido, ousamos imaginar que Durocher tenha costurado seus
próprios trajes masculinizados. Além da Madame Durocher, outras mulheres são
conhecidas por terem adotado trajes masculinos, a exemplo da famosa francesa George
Sand.
Certamente outras senhoras se vestiram seguindo os trajes expostos em periódicos
da época, além do Jornal das Senhoras e do Álbum das Senhoras, esse estilo de indumentária
também apareceu em outros jornais, a exemplo da Marmota e do Periódico dos Pobres.
Acreditamos que após apontar seus usos é preciso considerarmos o que essas mulheres
tinham em comum.
Diante disso, necessitamos destacar de quais mulheres estamos tratando. Por serem
leitoras do Jornal das Senhoras e dos demais jornais mencionados, podemos afirmar que se
tratavam de mulheres que possuíam, se não uma plena condição financeira, uma capacidade
11Jornaldas Senhoras, Rio de Janeiro, ed. 03, 18 de janeiro de 1852, p. 02.
12GONÇALES, Guilherme. Mulheres engravatadas: moda e comportamento feminino no Brasil, 1851-1911. São Paulo:
Dissertação apresentada no FFLCH – USP, 2019.
13MOTT, Maria Lúcia de Barros. Madame Durocher, modista e parteira. Estudos feministas, Florianópolis, ano
Fontes
17CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2006. P. 268. Crane utiliza o termo “alternativo” para se referir aos trajes que pertenciam incialmente
ao guarda roupa masculinos, mas que foram incorporados nas vestimentas femininas.
18BERSTEIN, Serge. Op. cit. P. 356.
19LERNER, Gerda. Placing Women in History: Definition and Challenges. In: Feminist Studies, Autumn, 1975,
Vol. 3, No. 1/2 (Autumn, 1975), pp. 5-14. P. 13. Tradução nossa.
Bibliografia
Anexo:
Imagem 1:
Imagem 2:
https://www.google.com/search?q=cal%C3%A7a+am%C3%A9lia+bloomer&source=lnms&tbm=isch&sa
=X&ved=2ahUKEwiU77ezmYfrAhXOILkGHbtfDaEQ_AUoAXoECAsQAw&biw=1366&bih=625#imgr
c=Y1O-y18KiygIuM. Acessado em: 06/08/2020
Resumo
Ao longo do século XIX, alguns escritos acerca da emancipação da mulher chegaram aos
portos brasileiros, quase sempre vindos da Europa. Isto favoreceu a difusão e as várias
reinterpretações acerca deste tema. Das perspectivas mais conservadoras às mais
progressistas, podemos ver que a imprensa se tornou o principal palco para o embate de
ideias, dando voz à mulheres como Nísia Floresta e Anna Rosa Termacsics.
Introdução
Atualmente, muitos autores trazem como temática a luta por emancipação feminina
no Brasil, mas poucos se aprofundam na multiplicidade de formatos que o discurso
emancipatório pode assumir. Primeiramente, a questão que nos vem à mente é:
emancipação para que mulher? Num país onde “civilizar” era a palavra do dia, certamente a
ideia de emancipar se voltava para mulheres brancas e bem nascidas, capazes de acessar a
instrução, almejar o trabalho qualificado e o direito ao voto. Originalmente excludente, tal
sonho de emancipação não contemplava mulheres livres pobres, tampouco chegava a citar
as escravizadas como iguais. Dito isto, devemos pensar como essa emancipação se delineia,
tomando caminhos mais progressistas ou mais conservadores, se inspirando na realidade
brasileira ou estrangeira.
Para este trabalho, destaco alguns exemplos dos caminhos que o discurso de
emancipação das mulheres tomou no Brasil oitocentista. Assim, utilizo dois escritos de
Nísia Floresta, considerada por muitos o ponto de partida para o feminismo2 no Brasil,
bem como um tratado de Anna Rosa Termacsics.
No repertório de Nísia, selecionei Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832) e
Opúsculo Humanitário (1853). O primeiro é uma tradução livre de uma obra estrangeira,
enquanto a segunda é de autoria da própria Nísia. A comparação entre as duas tem como
finalidade esclarecer quais são as ideias realmente defendidas por Nísia Floresta, ou talvez,
as mudanças de pensamento entre os anos 1830-1850. Ademais, foi selecionado o Tratado
sobre a emancipação política da mulher e direito de votar (1868), de Anna Rosa Termacsics do
Szanto, que possui uma abordagem mais progressista e libertária, especialmente quanto à
participação política feminina, tendo a educação como ponto em comum com a obra de
Nísia e indo muito além desta sobre o que ainda deveria ser conquistado pelas mulheres.
Ambas as autoras foram inspiradas por escritos europeus, por conseguinte, estes
textos se tornam fontes valiosas para balizar a circulação de ideias, suas múltiplas
interpretações e reapropriações. Também é importante ressaltar que vozes como a de Nísia
tinham maior apoio entre o público feminino, ocasionando uma maior reprodução de seus
pensamentos, especialmente via imprensa, apesar de ainda encontrarem bastante resistência
pelo público masculino.
Nísia Floresta
Para analisarmos Direitos das mulheres e injustiça dos homens, devemos primeiramente
estar atentos ao fato de que se trata de uma tradução livre de uma obra de Mary Wortley
Montagu3, Woman are not inferior to man (1739), que é considerada um plágio de Poulain de la
Barre, Da Igualdade entre os dois sexos (1679). Devido a isto, não sabemos exatamente se Nísia
fez acréscimos de outros pensadores ou mesmo exprimiu sua opinião. No entanto,
podemos assegurar que também é notória a aproximação com o pensamento de
2 Ao buscar a etimologia do termo no Centre National de Ressources Textuelles e Lexicales, deparei-me com a
definição de Fourier (1837): “doctrine visant à l'extension du rôle des femmes” (doutrina visando a extensão
do papel/função da mulher). Disponível em: <http://www.cnrtl.fr/>. Acessado em:
3 Recentemente, um estudo mostrou que Nísia Floresta teve contato com a versão francesa da obra de
Montagu, apesar de declarar ser uma tradução de Reivindicação dos direitos da mulher, de Wollstonecraft. Para
saber mais, consultar: COELHO, Catarina Alves. Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens: a tradução utópico
feminista de Nísia Floresta (Dissertação). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em: <<https://www.teses.usp.br/>>. Acessado em:
02/10/2020.
4 Patriarcado é uma palavra criada a partir da junção de pater, que mais do que “pai”, representa também
“genitor”, e arkhe, que significa “origem” ou “comando”. O termo tão utilizado no Direito tinha uma tripla
noção de autoridade, como mostra Christine Delphy: “o pai é forçosamente o primeiro e a origem em relação
às gerações seguintes”, mas, acima disto, a palavra pater estava associada “a todo homem que não dependia de
nenhum outro e que tinha autoridade sobre uma família e um domínio”. Para saber mais sobre o assunto,
consultar: DELPHY, C. “Patriarcado (teorias do)”. In: Dicionário Crítico do Feminismo/HIRATA; LABORIE
(Orgs.). São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 174.
5 FLORESTA, Nísia. “Textos selecionados: Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832)”. In: Nísia
Floresta/DUARTE, Constância Lima (Org.). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010,
p. 83.
Para ela, a maternidade não era um impeditivo para que a mulher atuasse me outras
funções, o real proibitório era a vontade masculina em exercer seu domínio, que não
adivinha de uma ordem natural, mas de uma construção social. Ela segue a mesma linha de
Wollstonecraft e Condorcet ao defender que a razão deveria ser a justa medida para a o
exercício de quaisquer funções e, sobretudo, da autoridade. Todavia, os homens incorriam
no erro de impedir a mulher de desenvolver a razão, a fim de dominá-la.
Segundo a autora, os preconceitos em relação à mulher seriam estruturados em duas
bases: a primeira se refere ao pouco desenvolvimento do raciocínio feminino; a segunda se daria
em relação à fraqueza de espírito. Ou seja, a mulher era vista como um ser frágil e indefeso física,
moral e mentalmente. Ela não possuiria gênio, tampouco capacidade de decidir o que é melhor
para si, o que tornava necessária a tutela de terceiros, legitimando a ideia de dominação.
Nísia Floresta contra-argumenta dizendo que as mulheres são geralmente mais
ternas, generosas e responsáveis do que os homens. Já no que concerne ao
desenvolvimento intelectual, defende que a diferença entre homens e mulheres não está
numa questão biológica, mas que decorre “da educação, do exercício e da impressão dos
objetos externos, que nos cercam nas diversas circunstâncias da vida”6. Para ela, o temor de
que as mulheres se tornassem vaidosas quanto aos seus talentos, ou ainda, que se
mostrassem melhores que os homens em suas capacidades, fez com que eles as privassem
das ciências, governos e cargos públicos.
Ela ressalta que o menosprezo mútuo entre os sexos é o principal fruto da
dominação masculina. Ele, ao se enxergar como superior, não reflete sobre as
consequências de sua dominação; ela, ao percebê-lo como tirano, não consegue nutrir-lhe
estima duradoura. Em suas considerações finais, a autora defende que a solução para isto
não está na destruição da ordem das coisas, seja quanto ao governo, seja quanto à
autoridade, mas sim na equidade entre os sexos. Isto significa que somente com o
desenvolvimento das potencialidades e, principalmente, da razão da mulher, seria possível
uma vida mais feliz e harmônica entre homens e mulheres.
Em 1853, Nísia Floresta lança um livro de sua autoria, chamado Opúsculo Humanitário7,
que traz denúncias e críticas quanto à situação feminina, colocando a educação como via
principal para sua emancipação. Em tom mais conservador, o livro aborda a necessidade de
adequação das mulheres de elite aos novos padrões civilizatórios vindos da Europa. Para a
autora, este processo deveria unir conhecimento e religião8, transformando-se nos pilares da
formação feminina, para que as mulheres atuassem diretamente sobre a moralidade dos povos,
dado que eram responsáveis por educar as crianças.
Ela também se dedica a analisar a situação da mulher na Alemanha, Grã-Bretanha,
França e Estados Unidos da América. Contudo, discorre mais detalhadamente sobre a
situação brasileira, traçando uma comparação entre a instrução oferecida a meninos e
meninas durante o período colonial e o Império.
Apesar de ser uma ferrenha defensora da moral religiosa, a autora aponta o ensino
religioso colonial como violento, rude e limitado, mais propenso à degenerar do que a instruir.
Ademais, reconhece que a vinda da Família Real para o Brasil favoreceu a criação de escolas e
academias, porém, a educação feminina permaneceu, por muito tempo, estagnada, já que era
vista como algo inconveniente a este sexo. Ela ainda destaca que desde a década de 1830 a
situação vinha se alterando e, em 1850, a instrução feminina já era vista como positiva pela
maior parte da população, embora o ensino ainda deixasse a desejar em qualidade.
De acordo com a autora, existia um ciclo negativo que a educação ainda não conseguira
romper. Em primeiro lugar, a maioria das mães não era instruída nem educada (moralmente)
como deveria, não podendo passar este valor adiante; nas escolas, a melhora da criança era bem
pouca. Fora isto, as autoridades competentes pouco se interessavam pelo ensino público,
mantendo-o estagnado e contribuindo para perpetuar essa situação geração após geração.
Numa situação ideal, a mãe deveria atuar como a primeira preceptora dos filhos,
principalmente das meninas. Mesmo se aproximando da ideia de Rousseau acerca dessa função
materna, ela diverge deste autor ao defender uma ampliação nos estudos femininos,
incentivando o cultivo das ciências e artes para a formação de uma mulher civilizada. Todavia,
reconhece a que a educação das mães brasileiras ainda estava muito aquém do ideal, o que
tornava imprescindível que os pais procurassem escolas de confiança para seus filhos e filhas.
Outro ponto importante do Opúsculo é a perspectiva de Nísia sobre a relação criança
branca e escravos. Indo na direção contrária ao tom elogioso feito à abolicionista Harriet
Beecher-Stowe, Nísia demonstra um misto de compadecimento e repulsa pela figura dos
escravizados, quase sempre, culpando-os pela corrupção da criança branca. Primeiramente,
ela afirma ser completamente equivocado deixar o bebê aos cuidados de uma ama de leite
8Não obstante fosse imprescindível a presença dos ensinamentos cristãos, a autora mostra que nem sempre
a religião fora garantia de dignidade para as mulheres. Quando discorre sobre o período medieval, aponta
que a prevalência da religião sobre a razão também pode ser extremamente nociva.
escrava, pois além de poder corrompê-lo moralmente, ainda não teria asseio suficiente para
cuidar dele. Esta deve ser uma exclusividade da própria mãe, até mesmo para criar vínculos
afetivos, exatamente como defende Rousseau. Também é considerada imprópria a
convivência entre a criança e escravos, já que contribuem para que a criança se torne por
demais imperiosa e até mesmo cruel, sendo difícil aos pais impor-lhes limites9.
Outro fator de extrema importância, defendido tanto por Nísia quanto por
Rousseau, é a conservação da inocência. Para os meninos, o convívio com escravas
despertaria muito cedo a sexualidade; já as meninas, estariam expostas às conversas
grosseiras e maliciosas das escravas, além de serem costumeiras vítimas da vaidade das
mães, que as vestiam como adultas prematuramente, expondo-as em demasia aos olhares
masculinos. Nos dois casos, havia uma tendência à perda prematura da inocência.
Somente com retidão moral, apreço pelos valores cristãos e com a conservação da
inocência, uma família conseguiria educar seus filhos. Caso contrário, de nada adiantaria
toda a instrução formal que recebesse, pois jamais se tornaria uma pessoa verdadeiramente
civilizada. Isto não se aplicava somente ao âmbito individual, mas também à coletividade,
sempre imprescindível para o desenvolvimento da nação. Deste modo, podemos ver como
Nísia se aproxima e se afasta do pensamento de Rousseau. Sendo uma conhecedora de sua
obra Emílio, a qual chega a citar algumas vezes, ela destaca a importância da maternidade,
com todos os seus cuidados para a formação do novo indivíduo mas, por outro lado,
combate uma ideia de inferioridade natural da mulher, que atuaria como um limitador
impossível de ser superado. Neste ponto, Nísia Floresta acaba adotando algumas posturas
mais progressistas, flertando com o pensamento de Wollstonecraft e Poullain de la Barre,
deixando-a numa posição intermediária.
Nesta obra, Anna Rosa discorre sobre a situação feminina, tanto no que se refere à
submissão, quanto sobre os caminhos viáveis para romper os grilhões que “escravizavam”
a mulher. Assim como Nísia Floresta, ela defende que a inferioridade feminina não é algo
natural, mas sim uma ilusão amparada na falta de acesso à educação, o que sempre impediu
a mulher de desenvolver todo seu potencial intelectual. Além disso, ressalta a importância
social da mulher, mesmo que ainda restrita à esfera privada, dado que eram muitos os
impeditivos para sua atuação na esfera pública.
Mas, se nestes pontos se aproxima de Nísia Floresta, na maioria dos outros, as
autoras se afastam. A primeira grande divergência se dá em relação à predisposição natural
da mulher para a domesticidade, pois se para Nísia Floresta a esfera privada era o lugar
ideal para as mulheres – até as mais instruídas –, para Anna Rosa, a vida caseira era a
“sepultura dos talentos”11, enquanto o mundo era encarado como um maravilhoso livro
que a mulher se priva de ler, porque dá ouvidos às “doutrinas do sexo egoísta que nos quer
excluir de tudo que possamos fazer sombra a ele”12. Tendo esta ideia como diretriz, a
autora articula seus argumentos em convergência a outros pensadores da emancipação
feminina, como Mill e Condorcet, devidamente citados por ela, mas também Olympe de
Gouges e Wollstonecraft.
No início do livro, afirma que a mais larga e alta esfera de atuação que alguém pode
alcançar é a liberdade de escolha sobre a própria vida. Se todos os homens são iguais, filhos
do mesmo Criador, e dotados de direitos inalienáveis – direito à vida, liberdade e felicidade
–, cabendo a cada um decidir o que fazer sobre sua própria vida, não há motivos que
justifiquem o fato de uma mulher ser privada de seu direito de escolha, dado que é igual ao
homem.
Ela afirma que as limitações no âmbito privado somavam-se às de âmbito público,
demonstrando como as recomendações da Igreja Católica e as leis impediam que a mulher
adquirisse direitos civis e políticos, alegando decoro ou falta de capacidade feminina.
Com auxílio de Condorcet, ela demonstra que as tarefas domésticas não podem ser
justificativas para privar a mulher do direito ao voto e participação em Assembleia, pois se
sua ocupação fosse o verdadeiro motivo, homens com as mais diversas profissões também
Tipografia Paula Brito, 1868, p. 16. Disponível em: <<https://digital.bbm.usp.br/>>. Acessado em: 2 de
junho de 2020
12 Idem.
não poderiam participar politicamente. É do mesmo autor outro argumento utilizado por
Anna Rosa, de que a mulher não tem capacidade intelectual para tal, no entanto, a lei não
priva homens ignorantes do seu direito político, sendo somente mais uma forma de limitar
a atuação feminina. De Olympe de Gouges, faz uso da perspectiva que se a mulher está
sujeita aos tributos e ao cárcere, nada mais justo do que gozar do mesmo direito de
participação política.
Tal qual Nísia Floresta, Anna Rosa também nos aponta quem é seu público leitor:
mulheres brancas bem nascidas, que requeriam direitos civis e políticos, que buscavam
acesso ao ensino secundário e superior, bem como o direito de trabalhar como mão de
obra qualificada. Mais adiante no texto, ela chega a se referir a trabalhadoras livres pobres,
alegando que se submetem a empregos que pagam cerca de um terço do salário de um
homem. A elas, propõe a abertura para a qualificação, que teria como consequência novos
postos de emprego e melhor remuneração. Porém, a autora não aborda como essas
mulheres teriam condições de se dedicar à instrução, já que seu sustento dependia
diretamente de seu trabalho. Por mais que pareça sensível à exploração das classes mais
baixas, Anna Rosa mostra como estava distante daquela realidade e mesmo de pensar
soluções para aquele tipo de problema.
Acerca das funções da mulher na sociedade, ela afirma que os trabalhos domésticos
e cuidados com os filhos convinham à mulher nos primórdios, mas não faziam mais
sentido nos tempos modernos, sendo possível que a mulher alargasse sua expectativa. Isto
não significava abandonar as funções de mãe, tampouco as tarefas do lar, mas lhe sobrava
tempo o bastante para investir no seu desenvolvimento intelectual e profissional. Ela ainda
destaca que era necessário olhar para o elevado número de mulheres solteiras, que não
teriam responsabilidades nem com a casa, nem com filhos, mas mesmo assim ainda tinham
sua instrução limitada.
Para a autora, numa sociedade ideal, a mulher deveria ter direito à educação, a
exercer a profissão que escolhesse, gerir seu próprio dinheiro e propriedade, bem como
participar da vida política – não só votando, mas também se elegendo. Mas, na prática, as
relações eram bem diferentes; ao invés de igualdade e cooperação, Anna nos mostra que o
século da civilização é “o século das injustiças e do abuso de força, de pouca filantropia, de
Considerações finais
Tanto na obra de Nísia Floresta, quanto na de Anna Rosa podemos perceber que a
educação é o ponto inicial e central para a mudança da condição feminina. Ambas citam a
questão da falta de estima, respeito e autonomia; as duas autoras também defendem a
necessidade de uma instrução associada a preceitos morais elevados, bem como
reconhecem a importância da função social feminina como esposa e mãe. Afora estas
semelhanças, o pensamento de Nísia e Anna Rosa tomam caminhos diferentes.
Ainda que Direito das mulheres e injustiça dos homens seja a tradução de um texto um
pouco mais liberal, seguindo a linha do pensamento de Poullain de la Barre, seu Opúsculo
Humanitário demonstra que a perspectiva cristã guiava Nísia Floresta ao defender uma
instrução – mesmo que do mesmo nível dos homens – alinhada com um forte senso de
moral, visando uma mudança de comportamento na sociedade, onde a mulher passaria a
ser digna de estima, mas permaneceria voltada para o lar e a família, sendo a maternidade o
seu mais nobre ideal. Vemos, assim, uma maior aproximação de obras como Emílio, de
Rousseau, mesmo que ela chegue a criticá-lo inúmeras vezes.
Anna Rosa, por sua vez, nos apresenta uma perspectiva bem mais progressista.
Fazendo uso dos ideais iluministas, ela nos apresenta um caminho a ser traçado rumo à
emancipação feminina, tendo como base as ideia de liberdade e igualdade. Partindo destes
preceitos liberais, ela declara a urgência da autonomia feminina, para que a mulher possa
decidir seu próprio destino: casar, estudar, trabalhar; ou seja, tudo isto deve ser fruto da
própria escolha, não de imposição ou proibição masculina.
Segundo a autora, com o pleno desenvolvimento das faculdades mentais, não
haveria porque negar às mulheres a participação nos assuntos públicos. Ou seja, gozando
da mesma razão que os homens, a mulher deveria ter acesso aos mesmos direitos políticos
e civis, bem como arcar com os mesmos deveres. Todas estas ideias nos mostram sua
aproximação com o pensamento de autores mais progressistas como Olympe de Gouges,
Mary Wollstonecraft, Nicolas de Condorcet, conduzindo a questão da emancipação
feminina para um campo muito mais amplo do que aquele defendido por Nísia Floresta,
mostrando que o próprio conceito de emancipação pode ser muito mais abrangente e
complexo do que imaginávamos, assim como a própria noção de submissão ou dominação,
assumindo diferentes nuances de acordo com quem fala e para que público se fala.
Bibliografia
COELHO, Catarina Alves. Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens: a tradução utópico
feminista de Nísia Floresta (Dissertação). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/>.
FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832). In: Nísia
Floresta/DUARTE, Constância Lima (Org.). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora
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FLORESTA, Nísia. Opúsculo Humanitário. Brasília: Senado Federal, 2019, p.18. Disponível
em: <https://www2.senado.leg.br/>.
HIRATA; LABORIE (Orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP,
2009.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Nísia Floresta, O Carapuceiro e outros ensaios de tradução
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Edipro, 2017.
ROVERE, M. (Org.). Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas, séculos XVII-
XVIII. São Paulo: n-1 Edições, 2019.
SZANTO, Anna Rosa T. Tratado sobre a emancipação politica da mulher e direito de votar. Rio de
Janeiro: Tipografia Paula Brito, 1868. Disponível em: <<https://digital.bbm.usp.br/>>.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.
Resumo
e poético ao qual dedicou sua vida, tomando as experiências e leituras da elite e classes
médias como se fossem universais2. Além disso, subsistia na edição aqui mobilizada (1928)
a disputa pelo relato autêntico da experiência de guerra, então dominada pela literatura de
guerra produzida nos principais países beligerantes ao final dos anos 1920.
Abandonando a dimensão factual que as missivas poderiam ter, focalizamos a
forma como os elementos masculinos estão ali dispostos. Não há qualquer intenção de
averiguar se os autores efetivamente acreditavam nas visões masculinas por eles mesmos
mobilizadas. Entendemos que esses elementos são utilizados porque ressoam. Porque são
signos compartilhados socialmente, e que, portanto, são passíveis de manipulação retórica,
sendo esse manejo originado por diferentes causas, mas em especial a situação na frente de
batalha e a manutenção dos laços com o home front.
Destinadas às famílias, não havia nessas cartas uma intenção pública, ainda que a
leitura por mais de um elemento familiar fosse um pressuposto da maior parte delas. O ato
da entrega das cartas pelas famílias à Witkop demonstra uma espécie de acordo tácito, onde
essas memórias são entendidas como possuidoras de relevância social, alcançada apenas
por sua externalização midiática3. Nesse sentido, o trabalho de organização das cartas
funcionaria por uma lógica palimpséstica, onde os elementos privados são eclipsados,
dando lugar às características entendidas como relevantes na dimensão pública alemã do
pós-guerra.
Tentando abarcar essa dupla camada da pesquisa, pensamos aqui a partir de duas
leituras sobre o conceito de masculinidade. Para John Tosh, a masculinidade pode ser
compreendida como possuidora um viés bidimensional: uma psíquica, completamente
integralizada à própria subjetividade dos indivíduos e que se forma desde a infância; e outra
social, que busca de forma constante o reconhecimento de seus pares. A capacidade da
masculinidade de agir sobre um outro, sejam outras masculinidades vistas como não
hegemônicas, ou um outro feminino ocorre pela presença visual e literária de suas
representações nos meios culturais4.
2 WINTER, Jay. Remembering War: The Great War between Memory and History in the 20th Century. New
Haven: Yale University Press, 2006, p. 106.
3 ERLL, Astrid. Wars We Have Seen: Literature as a Medium of Collective Memory in the
“Age of Extremes”. In. LAMBERTI, Elena. & FORTUNATI, Vita. Memories and Representations of War The
Case of World War I and World War II. NY: Rodopi, 2009, p. 31.
4 "By 'culture' here I don't of course mean the explicit and self-conscious culture of manliness, but rather the contingent and
contradictory meanings inscribed in the culture at large, where gendered distinctions abound in popular forms, rangin from
missionary magazines throug travel writing and adventure fiction to popular ballad and music hall." TOSH, John. What
Should Historians do with Masculinity? Reflections on Nineteenth-century Britain, History Workshop Journal, v.
38, n.1, p. 179–202, 1994, p.197.
5 LEVSEN, Sonja. Constructing Elite Identities: University Students, Military Masculinity and the
Consequences of the Great War in Britain and Germany, Past & Present, v.198, n.1, February, p.147–183,
2008, p.149
6 CONNELL, Raewyn W. e MESSERSCHMIDT, James. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.21, n.1, janeiro-abril. p. 241-282, 2013, p. 245.
7 Ibid p. 253.
condições em que são produzidos, mais do que as descrevem8. Nesse sentido, seguimos a
ideia de Levsen9 de que não é essencialmente a experiência das trincheiras que,
primeiramente, explicaria as mudanças e continuidades da representação da masculinidade
nos anos do Pós-Guerra, mas sim as consequências sociais e políticas da derrota e da
vitória.
Como Jason Crouthamel argumenta, o entendimento da guerra como uma “escola
para masculinidade” levava organizações civis, bem como de líderes militares alemães, a
tentar controlar e reforçar imagens dominantes de homens disciplinados e dispostos ao
sacrifício em nome da nação10. Ao que nos parece, em Weimar, a continuidade desse
movimento em torno da masculinidade pode estar ligada ao que Weitz entende como um
questionamento incansável do que significava viver em tempos modernos, ou seja, uma
busca por novas formas de expressar a cacofonia da modernidade11.
Desta forma, nossa hipótese segue a ideia de que Witkop tenta transpor ao pós-
guerra uma construção imaginária de uma masculinidade que subsiste nas trincheiras,
alinhada a termos como Volk, Vaterland etc12. As cartas seriam, na visão de Witkop, um
legado deixado pelos caídos ao povo alemão. Estes homens não seriam vítimas, mas
mártires da nova Alemanha, e suas cartas uma forma de vislumbrar as “profundezas do
espírito alemão”, materializado nas palavras e formas usadas pelos “jovens heróis”13.
Volto-me agora, rapidamente, à prática epistolar e sua presença na historiografia,
pontos que entendo serem cruciais para uma sólida abordagem das fontes epistolares na
produção da subjetividade, e ponto importante de reflexão nesta pesquisa. As
correspondências talvez sejam umas das mais antigas formas escritas de sociabilidade entre
os indivíduos. Como forma de comunicação nos serviços públicos ou como instrumento
de comunicação de questões privadas, as cartas se aprimoraram em direção a uma
normatização desde o período helenístico14. Todavia, a estrutura retórica da intimidade,
originalidade e espontaneidade epistolar foi impulsionada apenas ao final da era moderna e
8 WINTER, Jay. War beyond Words: Languages of Rememberance from the Great War to the Present. New York:
Cambridge University Press, 2017. P. 173.
9 LEVSEN, Sonja. Constructing Elite Identities: University Students, Military Masculinity and the
Consequences of the Great War in Britain and Germany, Past & Present, v.198, n.1, February, 2008,
10 CROUTHAMEL, Jason. Love in the Trenches: GermanSoldiers’ Conceptions of Sexual Deviance and
Hegemonic Masculinity in the First World War. In HÄMMERLE, Christa, ÜBEREGGER, O., BADER-
ZAAR, B. (Org.) Gender and the First World War. London: Palgrave Macmillan, 2014, p.52.
11 WEITZ, Eric. Weimar Germany: promise and tragedy. Princeton: Princeton University Press, 2018, p.253
12 Respectivamente “povo” e “pátria”.
13 WITKOP, Philipp. Kriegsbriefe gefallener Studenten . München: Georg Müller, 1933, p. 6.
14 BOVO, Cláudia Regina. No âmago da epistolografia medieval: tipologia epistolar e política na
correspondência de Pedro Damiano (1040-1072). História, Franca, v. 34, n. 2, p. 263-285, dez. 2015, p. 264.
15 Escrita auto referencial ou Escrita de si “podem ser entendidas como englobando um diversificado
conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita (...), até a da
constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de objetos materiais, com ou sem a intenção
de resultar em coleções”. GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004. p.11.
16 Ibid., p.11
17 Ibid ., p. 6
18 PERROT, Michelle et al. História da vida privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo:
Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 421.
20 LYONS, Martyn. Práticas de Leitura, Práticas de Escritura: Cartas de amor e escritas íntimas — França e
Austrália, século XIX. In LYONS, Martyn. e LEAHY, Cyana. A Palavra Impressa: Histórias da leitura no século
XIX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999, p. 72.
12(3). p. 212.
24 Op. Cit. DOBSON, p. 60.
25 JEANNENEY, Jean-Noël. Les Archives des Commissions de Contrôle postal aux Armées (1916-1918).
Une source précieuse pour l’histoire contemporaine de l’opinion et des mentalités. Revue d’histoire moderne et
contemporaine, vol. 15, nº 1, p. 209–233, 1968. p. 209-210.
26 HIRSCHFELD, Gerhard. Der Erste Weltkrieg in der deutschen und internationalen Geschichtsschreibung,
1914-1920s), French Politics, Culture & Society, 31(1), 2013 1-23, p.10.
Desta forma, a guerra marcou o auge de uma virilidade oitocentista, não trazendo
em si os germens de seu questionamento29. Mais do que isso, ela intensificou certos
padrões de masculinidade ao estigmatizar os sujeitos vistos como mais sensíveis ou mais
frágeis. O que se deve procurar nas cartas, segundo Cabanes, portanto, são as estratégias
usadas pelos soldados para expressar suas emoções, ao mesmo tempo em que buscavam
respeitar um certo modelo dominante de masculinidade30.
Bibliografia
29 AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. Exercitos e guerras: uma brecha no coracao do modelo viril? CORBIN,
Allain (Org.) História da Virilidade: 3. A virilidade em crise? Petrópolis: Vozes, 2013. p. 239.
30 Op. Cit. CABANES, B. p. 10.
PERROT, Michelle et al. História da vida privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
STANLEY, L. (2004). The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences.
Auto/Biography, 12(3), 2004, p. 201-235.
ULRICH, Bernd. Die Augenzeugen. Deutsche Feldpostbriefe in Kriegs- und Nachkriegszeit 1914 -
1933, Essen: Klartext, 1997.
WEITZ, Eric. Weimar Germany: promise and tragedy. Princeton: Princeton University Press,
2018
WINTER, Jay. Remembering War: The Great War between Memory and History in the 20th
Century. New Haven: Yale University Press, 2006.
___________ War beyond Words: Languages of Rememberance from the Great War to the Present.
New York: Cambridge University Press, 2017.
Resumo
O estudo aborda a moda não somente na perspectiva da estética, mas também como um
fator social, apresentando as relações sociais proporcionada pela moda e a elegância, entre
os homens caxienses, foco de nossas análises. Desse modo, a proposta engloba a
perspectiva de gênero e consequentemente compreender como se estabelece a
masculinidade baseado no padrão hegemônico através das vestes trajadas pelos homens no
período republicano. Assim sendo, o estudo da moda e elegância nos permitiu buscar
capturar como essas performances acerca da construção da identidade masculina se
estabelecia no campo das imagens e discursos que circulavam nos manuais de moda na
cidade de Caxias –MA, vindos principalmente da capital maranhense. Dentre estes,
focaremos na Revista Elegante e do Norte.
Introdução
1 Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Bolsista PIBIC/ PIVIC. E-mail: martha.gleiciane123@gmail.com.
2 Professor Adjunto I da Universidade Estadual do Maranhão (CESC/UEMA), Doutor em História Social da
Amazônia (UFPA), Mestre em História Social (UFMA) e Graduado em História (UEMA). E-mail:
noskcajzaionnel@gmail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
A moda era entendida como um fator importante para compreensão das questões
do comportamento do homem. Por exemplo, a cidade, a luz da imprensa da época se
voltava para uma urbe com ares modernos. Notava-se uma busca pela efetivação dessa
nova dinâmica social, onde ocorria a transição para uma sociedade moderna, e a vestimenta
era um fator que representava a modernidade, dessa forma, é importante mencionar que
durante a Primeira República a roupa era a forma de como se percebia o padrão de homem
ideal, devido as novas exigências impostas pela modernidade, como reflete Schup “a
urbanização exige assim uma nova cultura física masculina e feminina, novas atividades e
novas formas de apresentação corporal próprias a cidadania que se institui na cidade[...].” 3
Assim sendo, a moda no contexto proposto será a chave para compreender a formação do
que seria o gênero masculino dos segmentos abastados dos segmentos mais abastados
caxienses.
Quando nos referimos ao campo da moda automaticamente associamos o assunto
a algo exclusivamente das mulheres, no entanto, no decorrer do texto será perceptível que
não é bem assim, pois através dos trajes os homens buscam atingir um ideal de
masculinidade, a masculinidade hegemônica, que segundo Almeida “é um modelo cultural
ideal que não sendo atingível – na prática e de forma consistente e inalterada- por nenhum
homem, exerce sobre os homens e sobre todas as mulheres um efeito controlador”4.
Como dito anteriormente, o senso comum “impõe” que a discussão da temática
moda e elegância deve ser restrita unicamente as mulheres, mas a partir desse assunto
podemos estudar o gênero tanto feminino quanto o masculino, pois a moda não era, nem
é, um assunto exclusivo e pertencente ao gênero feminino, sendo uma relação de
complexidade, além da estética, vale salientar que gênero é muito mais que a determinação
biológica, sendo uma definição socialmente construída, como trata Scott:
O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções
sociais”: a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios
aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social
imposta sobre o corpo sexuado.5
3 SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo:
Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999, págs.126.
4 ALMEIDA, Miguel Vale de. “Gênero, masculinidade e poder: revendo um caso em Portugal”. Anuário
6 SENA, Taísa Vieira; CASTILHO, Kathia. “Moda e masculinidade: Breves apontamentos sobre o Homem
dos séculos XX e XXI”. Moda palavra e-periódico Florianópolis: UDESC/CEART, 2011, p.51.
7 SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo:
8 SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo:
Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999, pág. 126.
9 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. – 11ª Ed -. Rio de Janeiro:
Caxias/Ma durante a Primeira Republica, (Tese dourado) Universidade Estadual do Pará, Belém, 2018, p. 129.
A moda nos proporciona estudar aspectos da sociedade, visto que esse fenômeno
atingia todas as camadas sociais e durante a modernidade não somente na cidade de Caxias,
mas de modo geral, promoveu a efervescência de uma sociedade consumista.
Possibilitando um ambiente de relações sociais fundamentada na exterioridade apresentada
pelo indivíduo.
No decorrer da pesquisa também notamos que além da implantação da fábrica
têxtil, o comercio local foi um fator importante tanto economicamente como para a
demonstração de poder desses homens e suas famílias, fato frisado por Ribeiro:
Em relação ao comercio, notamos que era um dos pontos fortes tanto
para atuação desses homens como também para a constituição
econômica da cidade, nesse momento, mesmo as fabricas impulsionando
uma nova dinâmica para Caxias, nota-se no comercio uma fonte
representativa de poder dos comerciantes e das famílias tradicionais da
cidade.12
Revista elegante
em meio a essas gravuras tem-se objetos que representam os serviços prestados pela
alfaiataria Teixeira como tesoura, linha de costura, tecidos e homens tirando medidas para
novas roupas.
Os produtos que eram anunciados estavam de acordo com o padrão de vestir-se
dos segmentos abastados caxiense da época republicana, a padronização das vestimentas
assim como a busca por uma masculinidade hegemônica estava de acordo com o lema
republicano “Ordem e progresso”, e também pelo fato de sentir-se moderna para
acompanhar o momento fabril da cidade.
Como os homens influentes tinham a obrigação de vestir-se bem e andar
elegantes, tal situação tornou-se algo involuntário para essas masculinidades, exercendo
uma influência aos homens dos segmentos populares.
No decorrer da análise do periódico em questão pode-se observar que nas
primeiras publicações o objetivo maior era divulgar os produtos e serviços oferecidos pela
alfaiataria, enquanto que nas posteriores foi apresentado seus leitores e clientes a grande
variedade desses produtos, já no início do século XX, com denominação de armazém
Teixeira, sendo a distribuição feita mensalmente. No entanto sempre enaltecendo o homem
elegante, suas vestes vindas diretamente da Europa, em razão da importância de levar a seu
público a mais alta sofisticação dos seus produtos, conforme retrata Rainho, “ desde os
primeiros tempos [...], discorriam sobre a importância e a necessidade da moda, discutiam por
que se devia segui-la (ou não), o que caracterizava uma pessoa elegante, entre outros temas,
[...] E tornaram-se importantes divulgadoras dos endereços de lojas, modistas e alfaiates”13.
Em decorrência disso ao adquirir uma peça de roupa, o homem recorria as
revistas de moda ou aos jornais que traziam anúncios similares ou idênticos. A revista
elegante de modo geral foi uma forte influência na formação e difusão na mentalidade dos
indivíduos do que seria o homem ideal através das suas vestes e acessórios, como aborda
Lipovetsky:
Da mesma maneira que a moda não pode ser separada da estetização da
pessoa, a publicidade funciona como cosmético da comunicação. Da
mesma maneira que a moda, a publicidade se dirige principalmente ao
olho, é promessa de beleza, sedução das aparências, ambiência idealizada
antes de ser informação. Toma lugar no processo de estetização e de
decoração generalizada da vida cotidiana, paralelamente ao design
13RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções – Rio de Janeiro, século
XIX. Brasília: Editora UnB, 2002, p. 75.
Revista do Norte
14 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 189.
15SILVA, Amanda da Silva e; JÚNIOR, José Ferreira. “A Typogravura Teixeira e a revelação da imagem na
Revista do Norte”. In: Maranhão: campo e cidade (séculos XX-XXI) – São Luís: Editora UEMA, 2019, págs. 282
16 SILVA, Amanda da Silva e; JÚNIOR, José Ferreira. “A Typogravura Teixeira e a revelação da imagem na
Revista do Norte”. In: Maranhão: campo e cidade (séculos XX-XXI) – São Luís: Editora UEMA, 2019, pág. 283.
temos Olavo Bilac, Luiz Murat, entre outros, pois o objetivo da Revista, segundo, Silva,
Ferreira Júnior, “era registrará sempre, pela palavra e pela imagem, tudo o que seria mais
importante ao que diz respeito a vida social brasileira e, com especialidade, na dos Estados
do Norte da República”17.
Na revista do dia 1º de Fevereiro nos deparamos com a imagem de um senhor
com as roupas adequadas para o verdadeiro “homem” vestir-se perante a sociedade. Uma
outra imagem que depois de alguns estudos sobre a referente temática, fica bem visível a
obrigação dos meninos de desde criança assumirem a sua masculinidade, sua identidade
masculina, o desenho retrata um menino lendo um livro em uma poltrona, vestido com
roupas típicas da burguesia, o título utilizado para tal imagem foi: “Imitando o avô”,
possibilitando o entendimento que a partir da infância era necessário compreender sua
marcação de gênero, ou seja, sua identidade de gênero.
É importante salientar que o periódico em estudo se dedicava com maior enfoque
para literatura, poemas, contos, trechos de novela, crônicas, como também a assuntos da
política e economia, cidadania e saúde, consequentemente ao tratar de tais assuntos vêm a
os homens como representantes dos mesmos, por que modo geral, como afirma Silva;
Ferreira Junior:
As fotografias impressas na revista, no geral, concentravam-se em
retratos de personalidades regionais, políticos, artistas e intelectuais,
embora publicasse também os “tipos populares” com pessoas anônimas
e humildes. As fotografias de paisagens mostravam várias cidades
brasileiras, do norte ao sul do país. De São Luís, destacam-se imagens
dos elementos urbanos, de praças, ruas e monumentos, obras e reformas
públicas na urbe e registros culturais e religiosos. A imagem buscada era
dos cenários da modernidade e civilidade.18
Considerações Finais
17 SILVA, Amanda da Silva e; JÚNIOR, José Ferreira. “A Typogravura Teixeira e a revelação da imagem na
Revista do Norte”. In: Maranhão: campo e cidade (séculos XX-XXI) – São Luís: Editora UEMA, 2019, pág. 295.
18 SILVA, Amanda da Silva e; JÚNIOR, José Ferreira. “A Typogravura Teixeira e a revelação da imagem na
Revista do Norte”. In: Maranhão: campo e cidade (séculos XX-XXI) – São Luís: Editora UEMA, 2019, pág. 306.
ressaltar que a tão almejada masculinidade foi algo construído historicamente e/ou
socialmente, pois o modelo da mesma é variável, que transformando-se de sociedade para
sociedade; de cultura para cultura, tornando-a de certa forma inalcançável.
Percebemos que as revistas traziam anúncios e notícias da última moda para os
homens, tendo como referência França ou Paris, os últimos lançamentos de tecidos,
paletós, chapéus, reforçando o modelo dominante de masculinidade vigente na sociedade,
ou seja, o homem viril, autossuficiente e independente, fortificado não apenas pelos
homens propriamente ditos, mas por todos os envolvidos essa teia de relações sociais, por
outros gêneros, ainda que de modo inconsciente.
Os pequenos homens (criança), seguiam o modelo dos seus pais que diziam
exatamente como um homem de verdade deveria se comportar ou então sonhavam em ser
aqueles homens que eram exibidos diariamente nas revistas e/ou jornais, pois a
masculinidade hegemônica “trabalha em parte através da produção de exemplos de
masculinidades (como as estrelas dos esportes profissionais), símbolos que tem autoridade,
apesar de a maioria dos homens e meninos não viver de acordo com eles”19.
Bibliografia
SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20.
São Paulo: Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999, págs. 21 e 126.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise. Tradução Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila - 2º Ed. Recife: Sos Corpo, 1995, p.3.
SENA, Taísa Vieira; CASTILHO, Kathia. “Moda e masculinidade: Breves apontamentos
sobre o Homem dos séculos XX e XXI”. Moda palavra e-periódico Florianópolis:
UDESC/CEART, 2011, p.51.
SILVA, Amanda da Silva e; JÚNIOR, José Ferreira. “A Typogravura Teixeira e a revelação
da imagem na Revista do Norte”. In: Maranhão: campo e cidade (séculos XX-XXI) – São Luís:
Editora UEMA, 2019, págs. 282, 283, 295 e 306.
Resumo
Introdução
1 Graduanda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciação Científica
financiada pelo CNPq sob a orientação da Profª Drª. Lucia Maria Bastos Pereira das Neves. Email:
nathalia009@yahoo.com.br
2 SIQUEIRA, Júlia Militão. ‘’ A imprensa Feminina do século XIX e a representação da mulher no periódico
5 VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. ‘’ A educação doméstica no Brasil de oitocentos’’. Revista Educação
Em Questão, 2007, 28(14). p.36
6 BASTOS, Lucia Maria Oliveira. A instrução pública e o ensino na Província do Rio de Janeiro: visão oficial
e prática cotidiana (1871-1888). 1985. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense.p.7
7VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. ‘’ Educação doméstica e escolaridade formal no Rio de Janeiro
oitocentista’’. In: Anais do VII Congresso Brasileiro de História da Educação: Circuitos e Fronteiras da História da
Educação no Brasil. Cuiabá, 2013.p.3
8 JINZENJI, Mônica Yumi, op cit, p.13
9 SIQUEIRA, Júlia Militão, op cit, p. 21
Não obstante, para o Estado alcançar o tão almejado progresso – característico dos
países europeus – vinculou-se a educação como forma de atingir a modernização da
sociedade, para isso, havia a necessidade de educar as mulheres, pois as mesmas seriam as
educadoras das novas gerações15, ou seja, ajudariam na construção da cidadania dos
jovens16. A partir disso, começou a circular e a ser defendido – inclusive pela imprensa – o
discurso de que “as mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas’’17, isto significa
que a sua formação deveria ser mais moral, em prol da construção do caráter e menos em
instrução, tendo em vista que “o fim da educação é desenvolver as faculdades morais,
enquanto a instrução visa a enriquecer as faculdades intelectivas.’’18 Destarte, a educação
que a mulher recebia não se baseava nos seus próprios anseios ou demandas, mas sim para
justificar a função social que as mesmas ocupavam, de ser o pilar de sustentação do lar, a
educadora dos futuros cidadãos brasileiros.
19 CARULA, Karoline. ‘’ A Imprensa feminina no Rio de Janeiro nas décadas finais do século XIX’’. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, 24(1): 406, janeiro-abril/2016.p.2
20 Idem
objetivo oferecer aulas secundárias gratuitas para o público feminino. Este ato repercutiu
positivamente e foi celebrado de diversas formas, dentre elas através da publicação de uma
antologia de textos, “na qual os mais distintos homens de letras do Império foram
convidados a redigir textos para comemorar o início da turma para mulheres’’,21 e por meio
de um artigo publicado na A Estação (1879-1904) “intitulado Cherchez la femme, escrito
por Machado de Assis. O texto é uma carta em defesa da boa educação como forma de
independência para as mulheres, e vinha anunciando a abertura de vagas para o sexo
feminino no Liceu de Artes e ofícios.’’22
Isto posto, será analisado o periódico O Aspirante (1881-1882) denotando suas
características, intenções e a forma como o mesmo se relaciona e retrata a criação das aulas
femininas no Liceu e como enxergava o papel da mulher na sociedade brasileira
oitocentista.
21 LELIS, Fracismara de Oliveira. ‘’ As mulheres e a escrita na polianteia comemorativa das aulas para o sexo
feminino do Imperial Liceu de Artes e Ofícios’’. In: Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio:
Saberes e práticas científicas. Rio de Janeiro, 2014.p.2
22 SILVA, Arielle Farnezi. ‘’ Papéis para mulheres: educação e abolição nas ‘’ croniquetas’’ de Arthur Azevedo
(1885-1889)’’. 2018. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal
de Uberlândia.p.51
23NUNES, Aparecida Maria. ‘’ Imprensa e Feminismo do século XIX no sul das Gerais’’ In: XI Congresso
Nacional do Rio de Janeiro. Algumas de suas tiragens têm como redatores Augusto
Quintella e H. Cervantes, figuras que ainda não se dispõem maiores informações.
A partir do seu subtítulo é possível presumir que alguns de seus colaboradores,
talvez até mesmo os redatores, possuíam alguma relação com o Liceu, todavia, cabe
ressaltar que o jornal aceitava e publicava artigos e textos enviados por terceiros conforme
é descrito na décima edição “recebemos e publicamos, gratuitamente, todo artigo que nos
for enviado e que esteja em relação com o nosso programa: - Instrucção as classes
24
operarias.’’ Publicado semanalmente, tinha como público-leitor a classe operária, pois
conforme mencionado acima, objetivava instruir os trabalhadores. Desta forma, assume
um caráter pedagógico expressado no decorrer de suas edições ao abordar temáticas como
construção naval, noções elementares de química e física, artes industriais, química agrícola
e dentre outros temas. Para além disso, algumas tiragens contavam com uma seção
humorística e um folhetim.
Acerca do conteúdo informativo presente no periódico, é possível inferir que
houve resistência, proveniente da falta de compreensão sobre o assunto tratado ou mesmo
ausência de interesse dos seus próprios leitores que estavam acostumados a lerem sobre
assuntos mais leves. Dessa forma, no dia 20 de janeiro de 1882, há o seguinte comunicado:
No fiel desempenho de nossa obrigação, fizemos um estudo com relação
ao modo de apreciação que tem tido nossa folha, e chegamos à
conclusão que devíamos, em prol da aceitação que temos obtido,
amenizar as nossas explicações scientificas, envolvendo na linguagem
árida da sciencia, à doce e amena linguagem da literatura, diga-se em
phrase chula, trinta gramas de sciencia e kilo e meio de literatura. (O
ASPIRANTE, 1882, p.1)
Não obstante, pela falta de uma próxima edição, não é possível saber se a prática
desse novo método agradou mais os assinantes. No que tange a educação feminina, é
válido destacar que o periódico teve a sua primeira publicação realizada no mesmo dia em
que o curso Profissional Feminino, entendido na época como uma educação secundária
profissionalizante, foi inaugurado no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Desta
forma, a edição conta com escritos comemorando a inauguração das aulas secundárias
femininas gratuitas no Liceu e parabenizando Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, o
idealizador deste feito e a Sociedade Propagadora das Bellas Artes, a instituição responsável
por financiar o Liceu.
Acerca dos textos de celebração é possível perceber que a educação que a mulher
deveria receber estava pautada na busca pelo progresso e civilização da nação brasileira,
como pode ser compreendido na fala do colaborador C. E Mendonça de Carvalho onde o
mesmo ressalta que “a iniciativa tomada com o fim de libertar a mulher brazileira do jugo
da ignorancia é digna de applausos. Porque tende à preparar as novas gerações para que
possamos acompanhar as nações cultas no seu caminhar incessante [...] ‘’25
Todavia, a fala do colaborador Felix Ferreira destoa do discurso vigente e traz
alguns questionamentos sobre a instrução que a mulher receberia no curso Profissional
Feminino.
Não se trata da educação banal das nossas escolas comuns, mas da
instrucção, do ensino, de conhecimentos que podem ser aproveitados
como profissões. Assim, pois, trata-se de formar esposas para os artistas,
os operarios, os industriaes e fabricantes; companheiras de trabalho,
socias, cujo capital será a inteligência cultivada e apropriada ao maneio
dos negócios, ao exercício de profissões, tanto como ao governo do lar
doméstico. (O ASPIRANTE,1881, p.)
das aulas serem ministradas por professores e não professoras e que apesar da diferença
curricular, as aulas para o sexo feminino estabelecidas pelo Liceu tiveram uma importância
social, pois “além das poucas escolas normais que atendiam o público feminino, o Imperial
Liceu se tornou uma das raras opções de instituições na corte que ofereciam um ensino de
caráter secundário gratuito para mulheres. ‘’29
Sob esse prisma, é possível perceber que o curso Profissional Feminino foi bem
recebido, uma vez que, no dia 23 de novembro de 1881, ou seja, um mês após a
inauguração das aulas direcionadas para o sexo feminino no Liceu, o colaborador
Guilherme Bellegarde anuncia que “acham-se matriculados nas aulas do Liceu de Artes e
Officios 1.663 alumnos e 806 alumnas’’30. Passados dois anos, em 1883, continuava a se ter
um significante número de alunas no Liceu, 537 no total31, o número de matrículas era
surpreendente se comparado com outras instituições públicas ou particulares.
Por fim, pode-se concluir que as informações encontradas neste periódico acerca da
educação feminina permitem a reflexão sobre a situação da mulher oitocentista brasileira. A
abertura das aulas para o sexo feminino no Liceu de Artes e Ofícios proporcionou uma
oportunidade para que os homens letrados da época pudessem apresentar e defender seus
ideias. Em sua maioria, os discursos estavam atrelados a uma maternidade cívica,
reforçando as diferenças sociais entre os homens (cidadãos) e as mulheres (educadoras dos
futuros cidadãos), porém existiam aqueles, como Felix Ferreira (mencionado
anteriormente) que postulavam uma educação que profissionalizasse as mulheres. Não
obstante, esses dois caminhos tinham em mente um mesmo objetivo, levar a nação ao
progresso.
Pela falta de colaboradoras mulheres neste jornal, não há como saber de que forma
as mesmas enxergaram a inauguração do curso Profissional Feminino, no entanto, esta já era
uma pauta conhecida e defendida nos jornais contemporâneos ao O Aspirante.
Fonte
Bibliografia
Resumo
O presente trabalho, fruto de uma parte de minha dissertação, versa sobre as diversas
maneiras pelas quais são retratadas as mulheres torcedoras na imprensa e através da fala de
integrantes de torcidas ao longo do tempo. Dessa maneira, pretende-se discutir o
preconceito de gênero implícito nas arquibancadas do Rio de Janeiro, lugar que muitos
participantes consideram ainda como masculino. As arquibancadas acabam sendo, desta
forma, lugar de masculinidade exacerbada e de produção e reprodução de preconceitos e
estereótipos. Para cumprir os objetivos, serão analisadas reportagens de jornais impressos e
digitais, bem como mencionadas falas de torcedores no que diz respeito à participação
feminina nas torcidas.
Introdução
2A ideia da maternidade como um papel social da mulher não é uma novidade do século XX, contudo,
durante os primeiros governos Vargas, sobretudo durante o Estado Novo, esse papel foi ratificado e
transformado, inclusive, em política de Estado, como exemplificado no decreto-lei 3.199 de abril de 1941, que
impede a prática do futebol e de uma série de outros esportes, como o pólo e o rugby, que eram considerados
incompatíveis com o físico feminino. Cf: PESSANHA, Nathália Fernandes. Arquibancada feminina. Relações de
gênero e formas de ser torcedora nas arquibancadas do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2020; GOELLNER, Silvana Vilodre.
“Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades”. São Paulo: Revista brasileira de Educação Física e
Esporte, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005.
3 Com a liberação da prática do futebol feminino, em fins da década de 1970 e, sobretudo, no início da década
de 1980, as jogadoras – que já vinham sendo encaradas dessa forma- começaram a ser cada vez mais vistas
pela ótica da erotização, com a percepção de que seus corpos deveriam agradar aos espectadores masculinos.
Cf: GOELLNER, Silvana Vilodre. “Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades”. São Paulo:
Revista brasileira de Educação Física e Esporte, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005.
4 BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. “Representações sobre mulheres nos estádios de
mesmas não entendiam do esporte e que suas manifestações durante o jogo não eram
condizentes com a partida.
Segundo Binello, Conde, Martínez e Rodriguez7 as mulheres sofrem preconceitos
no ato de torcer. É relegado a elas um papel secundário, usando muitas vezes como
argumento de que por não jogar futebol, as mesmas não entendem os aspectos técnicos e
táticos do jogo, ou ainda que não podem ser tão apaixonadas quanto os homens, que vão
para o estádio simplesmente acompanhar namorados, maridos, pais, irmãos ou alguém do
sexo masculino que vai ao estádio realmente torcer pelo seu time. Essa avaliação das
autoras, feitas para o cenário de fins do século XX, nos permite pensar nas décadas
anteriores, de 1960, 1970 e 1980, e perceber que a exclusão de gênero que se apresenta no
esporte e nas torcidas é um fato que se reproduz através do tempo.
Ainda hoje é muito corriqueiro se ouvir dizer que as mulheres entendem menos que
os homens de futebol porque as mesmas não o praticam, muito embora essa afirmação
venha sendo questionada e criticada por fãs do esporte e pesquisadores, como é o caso do
sociólogo Arlei Damo. Damo afirma que o entendimento sobre uma partida de futebol é
resultado da comunicação estabelecida entre o ato e a reação que este suscita. Sem
menosprezar a relevância da experiência, o autor argumenta que, percebendo o jogo como
uma linguagem e considerando os jogadores como emissores e os torcedores como
receptores, cada lance corresponderia a um código que precisaria ser decifrado por quem
está na arquibancada.
Sendo assim, tem-se que, por um lado, determinado lance pode ser
compreendido mesmo por quem não está diretamente envolvido nele ou
ainda, por quem jamais participou de um evento similar. Basta, para
tanto, que ao evento seja atribuído um sentido e isto está ao alcance de
qualquer indivíduo independente da questão de gênero.8
como visto, um espaço de disputa, uma vez que alguns homens queriam afastá-las também
das arquibancadas.
Corroborando a perspectiva de que as mulheres se interessam pelo esporte e por
seu time, independentemente de praticarem ou não o futebol, nasceu em 1973 no Clube de
Regatas Vasco da Gama a torcida feminina Camisa 12. Era formada por sócias do clube que
decidiram assistir aos jogos do campeonato carioca daquele ano juntas em um espaço
determinado da arquibancada levando instrumentos musicais, e que chamou atenção da
imprensa e chegou a aparecer em diversas reportagens no Jornal dos Sports. Em maio do
mesmo ano o periódico reportou que no final de semana seguinte à notícia a torcida iria ao
estádio, determinando, inclusive a localização da mesma. Em reportagem intitulada “Elas
são 30 e a Camisa é 12”, o Jornal dos Sports descreveu como seria a atuação da torcida
feminina, chamada de “luluzinhas vascaínas”, que levariam grande bandeira e instrumentos
de percussão.9
Outra reportagem desse periódico também de 1973 que mencionou a torcida
Camisa 12 discorreu sobre o troféu Mario Filho, prêmio de um concurso promovido pelo
jornal e que costumava ser entregue para aquela que fosse eleita a melhor torcida. Na
disputa, se avaliava diferentes critérios como animação, canto, presença de integrantes,
entre outros. No editorial, intitulado “Na festa do Fla, Vasco teve taça também” o jornal
narrou a entrega do prêmio a Jaime de Oliveira, líder da Charanga Rubro-Negra, que
ganhou a taça ao lado da representante da Torcida Camisa 12. 10
Na década de 1980, após o surgimento de torcidas inteiramente femininas, seguindo
o exemplo da anterior Camisa 12, do Vasco da Gama, aparece de forma mais natural a
presença de mulheres torcedoras nas arquibancadas, tanto é que, em edição de 1983, o
Jornal dos Sports relatou uma nova edição do concurso de torcidas do Clube de São Januário,
que acontecia, como visto, desde a década anterior, com reportagem intitulada “Rainha das
torcidas do Vasco da Gama” que aconteceria no final de semana seguinte à publicação da
reportagem.11 O concurso teria a coordenação de Iara Barros, líder da Camisa 12 e de dona
Dulce Rosalina, à época líder da Renovascão.
12Tipo de agrupamento torcedor, surgido no final dos anos 1960 no Rio de Janeiro, que tinha como
características a permissão à contestação do clube e de seus jogadores, bem como a organização a partir de
estruturas específicas. Essa forma de torcer é comum ainda hoje nas arquibancadas cariocas.
13TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Os perigos da Paixão. Visitando jovens torcidas cariocas. São Paulo: Annablume,
2003, p. 58-59
14 BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma História do Torcer no presente. Elitização, racismo e heterossexismo no currículo
Nesse sentido, é importante observar que as arquibancadas, tidas por muito tempo
como lugar de homem, acabam por traduzir, ou por esperar que se produza uma performance
de masculinidade definida, reproduzindo um padrão entendido como masculino e
heterossexual. De acordo com João Moura, a própria arquitetura dos estádios de futebol,
contribuem com a ideia de serem os mesmos locais de pertencimento masculino. Como
analisa o autor, “o espaço circular (via de regra) dos estádios de futebol remete às
arquiteturas do grande Coliseu romano, no qual, curiosamente ou não, eram encenados
espetáculos de luta que determinavam a virilidade masculina”.16 É importante pensar que os
estádios de futebol podem ser espaços onde a ideia dessa heteronormatividade é formada,
ao mesmo tempo em que são locais de reprodução das mesmas.
A despeito da consideração do estádio e das arquibancadas como masculinos, a
presença e participação feminina cresceu ainda mais até o final do século XX e início do
XXI. Tendo tido apenas uma pequena curva negativa durante a década de 1990, período
analisado por Leda Costa, que afirma que essa queda envolveu ambos os sexos, e não
somente as mulheres, quando houve grande aumento de violência entre as torcidas
organizadas cariocas, e nacionais. 17Culminando, inclusive, em São Paulo, em episódio que
ficou conhecido como Guerra do Pacaembu,18 que deixou muitos feridos. Diante desse
panorama de brigas, além do discurso, já questionado por Costa, de que houve o
afastamento feminino nos gramados, o episódio serviu de ponto decisivo para o início de
uma mudança no tratamento do Estado para com o torcedor, que levou a criação do
Estatuto do Torcedor, em 2003 e a uma consideração, cada vez maior, do torcedor como
consumidor.
Na virada do século, a presença das torcedoras se manteve nos estádios cariocas,
levando à criação de novas torcidas femininas, como é o caso da Flu Mulher, torcida do
Fluminense Footbal Club, criada em 2006. As expressões torcedoras se multiplicaram nos
estádios, criando e recriando identidades e identificações entre as mulheres torcedoras.
Ainda assim, para alguns canais da imprensa, as mulheres continuavam sendo vistas como
acompanhantes dos homens, como demonstra reportagem da extinta Revista Ego, revista
16MOURA, João Carlos da Cunha. Joguem como Homens! Masculinidades, liberdade de expressão e homofobia em estádios
de futebol no estado do Maranhão. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2019, p. 49.
17 COSTA,Leda Maria. “O que é uma torcedora? Notas sobre a representação e auto representação do
final da copa de juniores, realizada em São Paulo no ano de 1995, onde torcedores invadiram o campo,
deixando o saldo de muitos feridos e um morto. Para maiores informações Cf. TOLEDO, Luiz Henrique de.
Identidades e conflitos em campo. A “guerra do Pacaembu”. Revista USP. São Paulo. Dez/ fev. 1996/97.
online que parou de ser publicada em maio de 2017, mas que em 2014, ano de realização da
Copa do Mundo Masculina de Futebol da FIFA no Brasil, lançou uma reportagem
intitulada “Atuais e Ex- “Maria-chuteiras” ensinam como conquistar os gatos da Copa”.19 A
reportagem, assinada por Priscilla Bessa, trouxe dicas dadas por diversas famosas, que se
reconheciam como maria-chuteiras, sobre como conquistar os jogadores que estavam no país
em função do Mundial. A reportagem apresentou ainda uma ilustração contendo um passo
a passo a ser seguido.
O que essa reportagem confirma é que, apesar dos esforços de muitos
agrupamentos de torcedoras para romper com a lógica sexista de que o interesse da mulher
pelo futebol é atrair relacionamentos, muitos meios de comunicação ainda representam as
mulheres como meras acompanhantes, ratificando a percepção de que o futebol é um
esporte de interesse masculino. Além disso, a reportagem ratifica também o estereótipo de
sexualização e erotização que recai sobre as jogadoras e torcedoras, pois traz uma ilustração
onde a “torcedora” exibida vestia roupas curtas e coladas, além de se apresentar em uma
pose sensual, que visa ratificar o estereótipo de mulher com os corpos malhados,
“sarados”, demonstrando, mais uma vez a intenção de agradar ao público masculino que
seria, por natureza, o apreciador do esporte.
19“Atuais e Ex –„Maria-chuteiras‟ ensinam como conquistar os gatos da Copa‟. Revista Ego. Disponível
em:<http://ego.globo.com/famosos/noticia/2014/05/atuais-e-ex-maria-chuteiras-ensinam-como-
conquistar-os-gatos-da-copa.html >. Acesso em 12 de outubro de 2020.
<https://uolesportevetv.blogosfera.uol.com.br/2015/12/03/reporter-da-espn-faz-desabafo-sobre-assedio-
sofrido-em-final-da-copa-do-br/ >. Acesso em 12 de outubro de 2020.
Considerações finais
Bibliografia
Resumo
O presente trabalho intenta realizar um estudo da atuação da primeira-dama Luíza Távora,
buscando entender, a partir de sua figura pública, como ela mobilizava relações entre
gênero, política e religião, entre as décadas de 1960 a 1990, no Ceará. Acreditamos que a
análise dessa personalidade permite problematizar as relações entre passado e presente,
público e particular; bem como as maneiras que empreendeu ações interventivas na área
social. A partir disso, buscaremos entender como são criadas normas de gênero e como são
construídos discursos que mobilizam o gênero (mulher, mãe, caridosa) como estratégia
política. Daí a importância de estarmos atentos ao modo como Luíza aparece como “mãe
dos pobres”, já que estamos diante de uma construção histórica e social ligada a
determinado padrão de gênero que circulava à época, ao mesmo tempo que está ligado a
valores católicos, ao assistencialismo, ao modo de fazer política tradicional.
Conjuntura Política
A ditadura mudou o Brasil. E os custos foram altos. Conforme Daniel Aarão Reis2,
“perdeu-se um tipo de República na qual havia uma democracia limitada, mas em processo
de ampliação. Ganhou-se uma ditadura que se radicalizaria com o tempo": práticas
autoritárias, opressivas e truculentas, supressão de direitos constitucionais, censura,
perseguição política, repressão aos que eram contrários ao regime militar e ausência de
democracia.
No Ceará, a deflagração do golpe ocorreu durante o governo de Virgílio de
Moraes Fernandes Távora, que fora eleito em 1962. O governador, mesmo sendo militar de
carreira (coronel do exército), conservador e herdeiro de tradicional oligarquia cearense,
mantinha relações próximas com o presidente João Goulart, pois visava a obtenção de
verbas federais para a modernização do Ceará.
Tal contexto deixou Virgílio em uma situação delicada naquele momento político
no Brasil, haja vista que a ala mais conservadora reagia diante de toda e qualquer situação
de “ameaça vermelha do comunismo”. É o que podemos perceber nos dois excertos de
matérias produzidas por dois jornais de grande circulação da época, na cidade de Fortaleza,
O Povo e O Nordeste:
A paz alcançada. A vitória da causa democrática abre o país a perspectiva
de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se
pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os
ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim
o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil.3
...uma missa de Ação de Graças pela vitória das forças armadas sobre o
comunismo ameaçador. O expressivo ato religioso foi oficiado por S.
Excia. Revma Dom José de Medeiros Delgado, arcebispo de Fortaleza e
contou com a presença das mais altas autoridades, tendo a frente o
coronel Virgílio Távora, governador do Estado. Grande era o número de
militares de todas as armas e de todos os graus de hierarquia [...] Foi, sem
dúvida, um dos mais comoventes espetáculos ao mesmo tempo de
civismo e de fé cristã o que viveu a Sé em construção[...]4
5 Esse período também chamado “Acordo dos Coronéis” representou a alternância no poder de grupos
oligárquicos liderados por coronéis, sob as bênçãos da Ditadura Militar. Esse revezamento no poder
demonstrava a fragilidade das elites alencarinas, pois não existia um grupo político local forte o bastante para
exercer a supremacia do poder no Estado. Aliás, o próprio poderio que os coronéis ocupavam no estado
cearense, advinham do apoio que recebiam da Ditadura Militar. FARIAS, Op. Cit., p.214.
6 PARENTE, Francisco Josênio C. O Ceará dos “coronéis”. In: SOUZA, Simone de (Org). Uma nova História
mercadoria em troca de vantagens entre o eleitor e o cabo eleitoral. Em geral, ocorre a dominação dos votos
pelo cabo eleitoral (suficientemente poderoso), que os vende ao “político de clientela”. Isto é, caracterizado
por relações de dependência mútua entre os envolvidos. SINGER, Paulo, 1965. A política das classes
dominantes. In : IANNI, O. (org.). Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.77.
8 MALUF, M.; MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: F.A. Novais & N. Sevcenko (orgs). História da
vida privada no Brasil 3 – república: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p.65.
Sob esse viés, Luíza Távora enquanto esposa de um homem público, Virgílio
Távora, que assumiu função no Governo Federal e Estadual, atuou com aspectos
modernizantes, porém com hábitos tradicionais do clientelismo e assistencialismo; o que
nos permite compreender o papel da Primeira Dama sob a perspectiva de gênero,
observando as relações de poder, mas entendendo que tais mulheres não são totalmente
manipuladas pelo poder local, mas constroem espaços e atuam tensionando as condições
de subalternidade.
No tocante ao assunto, mobilização de identidades de gênero fomentou o apoio
ao período de exceção, como forma de identificar as principais formas de construção e
distribuição de discursos relacionados ao gênero, à moral, ao forte apelo religioso com
conotação cristã e ideário anticomunista9. Nesse cenário, Luíza Távora mobilizava os
princípios éticos, morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ideologia
dominante; ao mesmo tempo nos permite entender como a figura da mulher aparece como
constituinte de uma política pautada em novas formas de sensibilidade e emoção, isto é,
aliada no processo de ereção da sociedade autoritária.
Partindo desse pressuposto, Luíza representa uma mudança nas atuações de
homens e mulheres no espaço público? O que, nela, é permanência nos modos de fazer
política? Com quais recursos ela teatraliza sua figura pública? Como sua imagem privada
(de esposa e rainha do lar) é trabalhada no interior dos discursos que querem apresentá-la
como uma mulher moderna? Quais as outras personagens que se alinham ou se
contrapõem a essa imagem erigida de mulher (e mãe dos pobres)? Luíza participou
inicialmente como mediadora e, depois, como encarregada dos projetos de assistência
social de Virgílio Távora, – influenciando em suas decisões e divulgando sua imagem
através das ações sociais que conduzia10, tendo em vista que o Estado passou a possuir o
controle do processo em seu governo, enquanto que anteriormente era a Igreja a
articuladora das atividades de assistência à pobreza11.
A análise dessa figura pública permite problematizar as relações entre passado e
presente, público e particular; assim como as maneiras como essa personalidade
9 DUARTE, Ana Rita Fonteles & LUCAS, Meize Regina (orgs). As mobilizações do gênero pela ditadura militar
brasileira: 1964 -1985. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2014.
10 DUARTE, Ana Rita Fonteles & LUCAS, Meize Regina (orgs). Op. Cit., 2014.
11 ALENCAR JÚNIOR, José Sydrião de. Virgílio Távora: O Coronel modernizador do Ceará. 2006. 325f. Tese
(Doutorado) – Programa de Pós -Graduação em Sociologia, Fortaleza (CE), Universidade Federal do Ceará.
2006
empreendeu ações interventivas na área social – de acordo com o seu tempo – como parte
de políticas públicas. Ao mesmo tempo, questiona o lugar de Luíza Távora como “mulher
de família”, que apesar de exercer um papel de ativismo na esfera social, envolvendo-se
com as comunidades menos favorecidas, fazendo elo de ligação entre estas e o poder
público, não deixou de ser coadjuvante no jogo político cearense12.
As vivências e experiências sociais de Luíza Távora contribuem para que
percebamos as questões de gênero atravessando a política, na medida em que
compreendemos o gênero como categoria de análise histórica13. Como afirma Scott, “o
gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder14”.
Essa perspectiva corrobora com a concepção de que a “diferença sexual foi concebida em
termos da dominação e do controle das mulheres 15” e, na política, encontra terreno fértil
para que o gênero possa ser utilizado para análise histórica.
A partir desta perspectiva, o estudo da figura de Luíza Távora como personalidade
que possui suas experiências e trajetórias de disputas – íntimas, cotidianas e sociais –, bem
como suas múltiplas relações – institucionais e familiares –, contribui para o entendimento
sobre a sociedade então vigente, à medida que é representante do Estado.
É pertinente refletir também que essa “dama da elite” constitui e vivencia relações
entre o público e o privado e que possui suas ideias, crenças, valores, sentimentos e
necessidades; suas práticas cotidianas, sociais e políticas refletem situações envolvidas em
relações de poderio e de gênero, ao mesmo tempo em que exerce/sofre dominação e
resistência. Dessa forma, constitui suas lutas e suas composições de sentidos sociais e
culturais.
Neste sentido, os estudos da historiadora Joan Scott (1995) nos oportunizam
compreender as relações simbólicas e de poder construídas em torno das diferenças entre
os sexos em momentos históricos distintos. A concepção teórica da autora nos esclarece
que o gênero não é somente uma categoria que descreve a mulher, nem tampouco está
ligado apenas ao privado, uma vez que nos possibilita entender sobre a história, e as
relações políticas e públicas; bem como acerca dos conceitos normativos que expressam
12 ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.13.
13 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre,
O maior legado de Luíza, aparece como aquele que a liga ao cuidado com os
filhos e à prática da caridade, de ajuda aos combalidos de toda sorte e do amor cristão ao
próximo, valores de uma família adepta do catolicismo20. A filha de Virgílio Távora e de
Luíza Távora, Tereza Maria, confirma esta construção na sua declaração ao jornal O Povo,
de 11 de maio de 2014, na qual afirma: “o vovô achava que quem não vivia para servir não
servia para viver. Mamãe seguiu isso desde pequena, muito antes de conhecer papai”.
A primeira experiência de planejamento de Virgílio Távora foi marcada pela
aliança da Igreja Católica com o Estado, isto é, o catolicismo cumpriu seu papel com o
voluntariado e a caridade à frente da “contribuição” prestada, enquanto o Estado atua mais
16 Idem. Ibidem.
17 PERROT, Michelle. As mulheres e a história. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
18 CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela. Democracia e a Ditadura
como subsidiário. Essa conexão entre o religioso e o político, segundo assegura Júlia
Miranda (1998), ocorre por diferentes prismas. Aliás, para a autora, é uma questão que:
vai muito além da especificidade da utilização dos símbolos religiosos.
(...) Poder-se-ia perguntar se a expansão do “modelo” proposto estará na
dependência do crescimento religioso ou apenas no seu poder de
convencimento da imensa maioria, silenciosa e não engajada, seja
religiosa ou politicamente21.
Nesse cenário, Luíza Távora, sob a tutela do Estado e das diretrizes da Igreja
Católica, dedicou-se às obras de beneficência “designadas aos desvalidos” e ao
“cumprimento da vontade de Deus”, assumindo a presidência e a execução dos projetos
sociais da Legião Brasileira de Assistência (LBA), em 1963, e, em seguida, criando os
Centros Maternais Profissionalizantes (CEMAPROS)22. Diante do exposto, como seu papel
de mulher caritativa, “mãe dos pobres”, também foi uma estratégia de poder, baseada no
gênero, para difundir a moral e o controle sobre os pobres?
O seu trabalho social foi incrementado com os recursos da máquina estatal e a
manutenção do sistema político vigente sob um forte apelo religioso, moral e de gênero.
Isso porque estas mulheres foram arregimentadas para colaborar na promoção de ações de
relevância social e não apenas para as atividades do lar. Contudo, essas iniciativas também
representam uma estratégia de manutenção e renovação do poder. Aliás, a gestão do social
exercida por Luíza era alicerçada pelo ato de filantropia e de assistência aos pobres, ao
mesmo tempo em que eram efetivadas com base nos pareceres técnico-administrativos da
administração pública do Estado – sobretudo no segundo mandato de Virgílio no posto de
governador –, indicando certa contradição nas práticas de assistência social.
É pertinente frisar que no segundo mandato de Virgílio não houve a participação
da Igreja Católica na prática das obras sociais ao lado do Estado, pois desta vez o órgão
assume o protagonismo na execução das ações de intervenção social, uma vez que foi
gestada sob a égide do planejamento e a técnica. Vários especialistas foram contratados
para atuar em suas áreas específicas e Luíza permanece conduzindo as atividades de
responsabilidade social, conforme atesta a reportagem do jornal O Povo, de 11 de maio de
2014, com a intitulação de “Dona Luíza Távora, ‘a irrepetível’”:
No segundo mandato de Virgílio, (Luíza Távora) presidiu o Centro
Administrativo de Ação Social e o Conselho administrativo da Fundação
21 MIRANDA, Júlia. O Jeito Cristão de Fazer política: Representações, rituais e discursos nas candidaturas
pentecostais e carismáticas. ANPOCS, Caxambu (MG), 1998, p.2.
22 Assumiu a liderança também da Fundação dos Serviços Sociais do Estado do Ceará – FUNSESCE e da
23LIMA, Francisco. As Lavadeiras fizeram os Centros Maternais. Jornal O Povo. Fortaleza, 17 Ago. 1965, p. 10
24Urbanização dos Bairros Operários (URBO): o maior acontecimento do ano em Fortaleza. O Nordeste.
Fortaleza, 10 abr. 1963. p. 5 -6
Daí, conforme advoga Torres, “(...) é possível dizer que, aos poucos, as mulheres
primeiras-damas vão se colocando na esfera pública como sujeitos políticos de decisão e de
gestão, revelando grande potencial de liderança e poder de persuasão junto aos sujeitos
sociais com quem travam relações”26.
Scott (1995), por sua vez, reforça esse pensamento à medida que nos permite
compreender como Luíza Távora evocou as representações simbólicas de gênero, como
manobra de poder para fortalecer a figura pública do marido por meio de suas ações
sociais. Ações estas articuladas e integradas numa análise da construção e consolidação do
poder, evidenciando-se as conexões explícitas entre poder e gênero.
A partir dessa perspectiva, dando atenção aos sistemas de significado, a autora
como as sociedades representam o gênero, utilizando-se dele para articular as regras de
relações sociais. O gênero, assim, constitui-se como uma maneira de dar significado às
relações de poder, uma vez que a mulher atribui significado às suas atividades através da
interação social efetiva.
Daí constata-se como Luíza Távora busca legitimar e erigir as relações sociais, – a
partir das “necessidades” expostas pelo Estado, naquele momento, de manutenção da
ordem do Estado, da família, da moral cristã –, possibilitando-nos perceber também como
há uma relação recíproca do gênero e sociedade. Sob essa ótica, Scott (1995) nos lembra
como o gênero é uma categoria analítica evocada frequentemente pelo poder político,
tendo em vista que “a política constrói o gênero e o gênero constrói a política”27, como
parte do próprio significado de poder movido pelo processo social das relações de gênero.
25 Governo do Estado e L.B.A. serão Papai Noel de doze mil crianças das Paróquias. Jornal O Povo. Fortaleza,
27 Nov. 1963, p. 1 e 5
26 TORRES, Iraildes Caldas. As primeiras-damas e a assistência social: relações de gênero e de poder. São Paulo:
Bibliografia
ALENCAR JÚNIOR, José Sydrião de. Virgílio Távora: O Coronel modernizador do Ceará.
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Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MIRANDA, Júlia. O Jeito Cristão de Fazer política: Representações, rituais e discursos nas
candidaturas pentecostais e carismáticas. ANPOCS, Caxambu (MG), 1998.
28BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.83.
29DUARTE, Ana Rita Fonteles. Memórias em disputa e jogos de gênero: O Movimento Feminino Pela Anistia no
Ceará (1976-1979). 2009. 232 f. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
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TORRES, Iraildes Caldas. As primeiras-damas e a assistência social: relações de gênero e de
poder. São Paulo: Cortez, 2002.
Resumo
O referido estudo apresenta uma reflexão sobre noções de honra através do modelo de
comportamento dos sujeitos do sertão maranhense, busca-se compreender como se
estabelecia o conceito de honra e conduta nas representações masculinas e femininas
impressa no limiar do século XX, em meio as tramas cotidianas. Está análise se volta para
pensar essas questões, nos processos autos-crimes e jornais pertencentes as Comarcas de
Caxias e Codó, do Estado do Maranhão. Para o desenvolvimento da pesquisa será utilizado
as discussões Celeste Zenha (2014) Katy March (2015), Caufield (2000) para compreensão
dos elementos proposta pela temática. A respectiva abordagem evidencia as representações
dos discursos empregada para manter a construção de uma nação republicana, preservando
o perfil de honra e consequentemente a estabilidade da ordem.
Introdução
1Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Bolsista PIBIC/CNPq. Email. veramaattos@mail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
demais regiões do Estado, além do mais, autor destaca a finalidade dos moldes
republicanos envoltos nas esferas sociais, onde essa infiltração silenciosa de novos hábitos
promovessem a nação ideal, tornando-a possível através dos principais agentes, no caso o
povo, pois ao absorverem tais mudanças tornaria a propagação da mesma, de maneira
eficaz. “Tal plano visou abarcar todas as esferas públicas, no sentido de modificar a
estrutura urbana das cidades, a economia e nas relações sociais”2. Permitindo, construir
raízes republicanas, como um modo tradicional, passivo de modelos, conforme o projeto
padrão da Belle Époque.
Nesse caso, quando se trata de questões de honra é fundamental atentar-se para a
definição desse conceito, Thompson3, atribui ao sentimento de honra um conjunto de
valores como algo universal no sentido da palavra, porém as atitudes que são consideradas
desonrosas variam de sociedade para sociedade. “Itens que compõe um sistema de valores,
mas é como uma coleção de conceitos inter-relacionados e utilizados de maneira distinta
pelos vários grupos definidos”. A autora identifica o aspecto de honra relacionado
intrinsecamente à fatores puramente culturais, baseado em sua pesquisa sobre noções de
honra entre classes populares, destacando a importância da defesa da honra, onde
representava um dos bens mais importantes para os gaúchos, especificamente os homens,
atrelando a defesa até mesmo à atos de violência.
É patente que o restabelecimento da honra a partir de brigas e renhas
entre as classes populares. Ao seu modo faziam uso da força do âmbito
social privado para resolver suas contendas de honra, sofrendo com
frequência a criminalização ou com sorte, passando desapercebido pela
autoridade policial. São reparações de honra diferentes daquelas
extremamente ritualizadas pela elite, mas, ao fim, todas são reparações de
honra e independentemente da situação social, aqueles que se valem de
recursos privados de uso de violência para fins de reparação da reputação
, julgando ser uma prerrogativa pessoal e intransferível a defesa e a
reabilitação da honra4.
Nesse sentido, a defesa da honra pelo viés violento vai de encontro a honradez viril,
como apresenta Cezarinho e Sochodolak 5, ambos evidenciaram a ideia de virilidade por
2 SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Ordem social, Polícia Civil e justiça criminal na cidade de São Paulo (1889-
1930) Revista de História. 2010, p. 410.
3 THOMPSON FLORES, Mariana F. da C. “Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil
meio do ser corajoso, heroico, forte, entretanto, também constaram atos de violência ou
demonstração de virilidade expressadas a partir da ameaça em manchar a honra do sujeito.
“A mira da arma ou da faca, será direcionada para qualquer ameaça que possa surgir contra
a honra viril do homem”6. Portanto, a conotação da pré-existência quanto a prática da
violência é condicionada a virilidade exacerbada.
Desse modo, ao pensar a dimensão de honra e virilidade segundo os pesquisadores,
a mesma é um processo histórico social e depende da sociedade masculina, partindo da
formação e da representação do sujeito homem. No caso dos sujeitos analisados pelos
autores, a virilidade é definida como um ponto intocável, que jamais deveria ser
questionada, e sim, sempre almejada, principalmente quando o uso de violência se fazia
presente na resolução dos problemas, além de demonstrarem a predominância da virilidade
masculina no início do século XX, a partir de processos crimes da comarca da cidade,
também esclarece a necessidade da manutenção do protagonismo masculino em defender
sua honra, independentemente de houver sangue ou não, prevalecendo instintos violento
em nome da honra viril.
Kety Carla March7, também coopera nas discussões acerca da construção da
masculinidade correspondendo aos aspectos de virilidade, compartilhando dos mesmos
argumentos defendidos anteriormente. Associando que a moldagem da figura masculina é
coincida entre diferentes características de virilidade, violência de gênero em defesa da
honra. Inclusive, para os homens paranaenses por volta de 1950, deixar transparecer suas
subjetividades, relacionada a sentimentos fora do padrão da época, era considerado louco
por exibiram situações fora do parâmetro viril.
A violência em suas variadas formas no contexto analisado como uma
característica eminentemente masculina. Em os homens que detinha a
força física e coercitiva, possuam uma posição superior diante das
mulheres e exerciam sobre elas e sobre outros corpos a violência muitas
vezes legitimada. A grande maioria acusados por crimes [...] eram
homens. As mulheres também matavam seus parceiros, mas quando os
faziam tinham o discurso social de legitimidade da sua ação. Ainda assim,
essas mulheres eram vistas como exógenas à violência que agiriam por
uma estratégia de sobrevivência8.
6 CEZARINHO, Filipe Arnaldo. SOCHODOLAK, Hélio. Honra e virilidade na Vila de Iraty –PR no século XX.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, 2018. p. 290.
7 MARCH. Kety Carla. “JOGOS DE LUZES E SOMBRA: Processos criminais e subjetividades masculinas no Paraná
Por outro lado, tanto a honradez feminina quanto a familiar é amplamente discutida
no viés do comportamento. Tornando a obra da Sueann Caulfield, uma das principais
referências quanto as perspectivas da mulher e do eixo familiar, envoltos com o advento da
República, analisando como se constituía esses agentes perante as particularidades do
novo sistema.
Na prática, a defesa da “moralidade civilizada” por meio de políticas
urbanas – assim como a defesa da honra da família no direito –
provocava conflitos enormes. E embora as primeiras décadas do século
XX tivessem testemunhado profundas transformações na geografia
social da cidade, nem todo mundo concordava com a avaliação do tipo
de civilização moderna que havia ou deveria ter surgido9.
9 CAULFILD, Sueann. “Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940”.
Campinas, Ed: Unicamp, 2000.
10 CAULFILD, Sueann. “Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940”.
A autora ainda destaca, para a sociedade a mulher era composta por elementos
como o bom comportamento, higienização, que não andassem sozinhas ou conspirassem
más ideias, tudo que fosse contrário a isso, era relacionado a desonra da mulher,
classificadas como ofendidas. Como declara um advogado em uma de suas argumentações
“[...] o fato de estar sozinha implica e, necessariamente está fora da vigilância e, portanto, é
sujeita a ter vários colóquios amorosos”. A mulher que apresentassem esse tipo de
comportamento considerado “inadequado”, era marginalizada, que não merecia a proteção
da justiça. Esses aspectos demonstram a vulnerabilidade no qual estavam postas a
passarem, para provar sua honra e conduta durante a diligencia de um processo de
defloramento.
Assim, determinados esses conceitos, ao voltar-se os olhos para o sertão
maranhense, por se tratar de uma realidade mais próxima, também é possível realizar essa
11 ESTEVES, Martha Abreu. “Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Ripo de Janeiro da Belle
Époque”. Ed. 1° Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989.
12 ESTEVES, Martha Abreu. “Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Ripo de Janeiro da Belle
pesquisa, baseada nos processos judiciais, onde permitem montar o mapeamento do perfil
de mulheres e homens envolvidos em algum tipo de transgressão às normas penais, podem
ser analisado quais valores formavam a conduta do sujeito, por meio de valores morais, em
casos específicos, uns desviavam da lógica determinada, tornando pôr fim uma
característica comum da época, por exemplo, ser um vetor de representação do que seria a
República, características essas, propagadas através de discursos.
Caxias/Ma durante a Primeira Republica, (Tese) Universidade Estadual do Pará, Belém, 2018, p. 297.
cumpriram. Por volta das sete horas da noite do dia 03 de setembro de 1893, durante uma
festa na casa de Francisco Gomes Pereira, ocorreria um crime por encomenda, onde João
Galberto assassina à mando de Jose Luiz, o senhor Teoro José da Luz, o crime foi
planejado. Estavam todos na festa, quando Teoro José Luz recebeu uma punhalada de Jose
Luiz, tornando uma verdadeira confusão, pois os irmãos da vítima interferiram na briga,
dispondo-se a ajudar o irmão. O intuito do mandante foi realmente ocasionar um
matadouro em meio a festa, para humilhar seu inimigo.
De acordo com o inquérito policial, diz que “voaram” bordoadas para todos os
lados, o que antes era festa tornou-se um pesadelo para os convidados. Em meio à
confusão João Galberto prende Teoro José da Luz, preferindo-lhe diversas punhaladas. As
razões que norteou esses atos brutais diz respeito a um acerto de contas, baseado nos
relatos das testemunhas, outrora Teoro José da Luz manchou o nome e honra de Jose Luiz,
o acusado confessou que precisava faze-lo passar pela mesma humilhação que lhe causou, a
vítima recebeu de João Galberto inúmeras bordoadas e punhaladas de facão , desfalecendo
no local, em seguida ambos foram assegurados pelas pessoas do local que esperavam as
autoridades locais, mas antes de serem levados, Jose Luiz gritou “Por minha honra!”.
Os acusados foram presos, aguardaram por julgamentos, ambos receberam suas
sentenças, embora Jose Luiz não matou a vítima propriamente dito, recebeu uma pena
maior por ser o mandante do crime. Esse caos demonstra como era fundamental para um
homem nesse contexto manter seu perfil de honra, no momento em que a sua era
fragilizada e passou a conviver sem ela, buscou de retrata-la, mesmo abdicando de sua
própria liberdade. Baseado nas características do procedimento desse processo e a forma
como sucedeu o assassinato de Teoro, por sentimento de honra. Thompson, caracteriza
esse tipo de conflito era preferível serem resolvidos no âmbito privado e por meio da
violência, justamente para pôr em pauta o sentido da virilidade. O sujeito ofendido no caso
José Luiz buscou do seu modo retratar sua honra que foi ultrajada, vale salientar que em
casos semelhantes a esses a total ausência e interferência da justiça significava e colocava
em cheque ainda mais a confirmação da chamada reabilitação da honra conforme
Thompson, “Os conceitos de honorabilidade estiveram presentes no processo histórico de
formação da sociedade [..] E a defesa da honra aviltada, quer pela via judicial ou pela
satisfação privada, recursos utilizados com frequência”15
16 Inquérito policial. Comarca do 1° distrito do município de Caxias do Estado do Maranhão. Processo Crime
referente ao caso de homicídio. Requerimento do João Francisco Góes e Antônia Vieira. 1924
17 CEZARINHO, Filipe Arnaldo. SOCHODOLAK, Hélio. Honra e virilidade na Vila de Iraty –PR no século XX.
virilidade, onde o ideário da figura masculina é caracterizado por termos de cunho que
formavam o padrão masculino da época através das representações de honra e virilidade.
De acordo com processos crimes de ambas as Comarcas Caxias e Codó, constata-se
a ocorrência de defloramentos no início do século XX no leste do sertão maranhense,
evidenciando que práticas de violação sexual contra mulheres eram presentes nesse
contexto. Posteriormente, será apresentado diferentes casos relacionados à violência contra
mulher, desde de agressões físicas, até casos mais graves como assassinato, casos esses, que
representavam a defesa em nome da honra masculina.
No dia 11 de novembro de 1893 foi aberto o inquérito na Comarca de Caxias
contra o senhor Thomás Ferreira, acusado de deflorar a menina Maria Marquês de
Almeida, sendo tomada todas as providencias cabíveis, esse caso em particular, não há
muitas informações acerca de como prosseguiu o andamento do processo, devido o estado
de conservação do documento, sendo possível identificar as partes envolvidas que no final
do processo o acusado é condenado, provavelmente esse caso, envolvia uma moça com
perfil e comportamento honesto, protegida pelo lar, caso contrário, não seria possível essa
sentença (deixaria de ser vítima para torna-se uma ofendida desonrada, uma vez que, a
honra feminina era considerada por sua virgindade), até porque a própria justiça dava
“brechas” para essas situações, dado as circunstâncias do ano, ainda prevalecia o código
Penal de 1830, que não tinha reparações legais quanto à pratica de defloramento.
Embora o caso anterior obteve senso de justiça com a condenação do acusado, o
caso de defloramento a seguir, evidencia as particularidades da honra sexual da mulher.
Exatamente no dia 08 de fevereiro de 1891, o promotor público da Comarca de Caxias,
deu queixa contra Benedicto José dos Santos Netto, acusado de deflorar à menor Joanna da
Silva. No rol das testemunhas, fica explicita que o sujeito há muito tempo rodeava a família
da menina, chegou até falar em casamento, palavras da testemunha “Luzia de tal”.
Entretanto, a menina foi persuadida com falsas promessas de casamento,
consentindo o ato, logo após a defloração abandonou-a no lugar. Em seguida foi aberto
um inquérito policial contra o acusado, tendo em vista a ausência dele no dia em que o
depoimento foi marcado, fugiu, levando consigo a honra da moça, deixando apenas
manchas de um acontecimento que não houve justiça, devido a omissão de provas, além da
confissão da menor de dezesseis anos que cedeu conscientemente, pois logo se casaria.
Essas situações como estas não eram improváveis, as falsas promessas de casamento,
inclusive era um dos principais fatores da ocorrência de defloramentos, que não importava
a nomenclatura, “defloramento”, “sedução”, “desvirginamento”.
Considerações Finais
Bibliografia
Fontes
Resumo
Esse artigo tem como intuito discutir papel da mulher na educação republicana no Pará, os
debates da intelectualidade local sobre a instrução feminina, e a feminização do trabalho
docente no final do século XIX e primeiras décadas do XX. Se por um lado a formação
feminina para o exercício da docência impõe-se como uma necessidade para a república em
afirmação, possibilitando uma gradativa ocupação feminina da esfera pública e o exercício
profissional, por outro lado, no entanto, mesmo com as modificações operadas e a
feminização do magistério sendo um fato, a educação de mulheres ainda estava relegada a
um plano secundário, bem como seu lugar na instrução, perpetuando velhas práticas de
submissão próprios de uma sociedade patriarcal.
1Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA, linha de pesquisa Currículo
e Formação de Professores; Doutoranda no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal
do Pará (PPHIST) wanakal@yahoo.com.br.
2 FARIA FILHO, Luciano Mendes. “Instrução elementar no século XIX.” In: 500 Anos de Educação no
Brasil/org: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.137.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 XAVIER, Maria Elizabete Sampaio Prado. Poder político e educação de elite, 3. ed., São Paulo: Autores
Associados,1980.
4VILLELA. Heloisa de O.S. “O Mestre Escola e a Professora”. In: 500 Anos de Educação no Brasil/org: Eliane
Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.104.
5SCHUELER, Alessandra Frota De. “De mestres-escolas a professores públicos: histórias de formação de
professores na Corte Imperial.” Educação. Porto Alegre – RS, ano XXVIII, n. 2 (56), p. 333 – 351, Maio/Ago.
2005, p.334.
classes populares, com um padrão de comportamento mais flexível, era uma forma de
salvaguardar os princípios da moralidade e da “conduta decente”.
A instrução para meninas entra no rol dos debates sobre educação com o regime
republicano. Intelectuais paraenses como José Veríssimo, Theodoro Braga, Hygino
Amanajás e Vilhena Alves corroboravam com a ideia de que a educação feminina era
indispensável para formação dos futuros cidadãos republicanos, por ser a mulher
responsável, desde a tenra infância por sua educação. Para Veríssimo, a mulher deve
assumir o papel de cuidadora e educadora (responsável pelos ensinamentos cívico-morais-
religiosos-higiênicos) em todos os âmbitos da vida social, já que naturalmente vem
desempenhando esse papel no âmbito familiar, no cuidado com a casa e com os filhos:
“Não esqueçamos jamais que é ela a primeira e imediata educadora do homem e, para
educar, a primeira condição é saber7.
No âmbito familiar e fora dele, como professora primária, a mulher tem um papel
civilizatório inquestionável na formação desse indivíduo pátrio, muito mais por sua
natureza educadora do que propriamente por sua inteligência. Pelo discurso veiculado pela
intelectualidade e pela oficialidade, a formação da mulher a tiraria da ignorância a qual foi
relegada, fazendo-se necessário a ênfase em uma formação elementar, propedêutica, geral e
simplificada em relação a masculina, com ênfase na moralidade, relegando a mulher às
amarras de um currículo com conteúdos mínimos e ligados as suas tarefas do lar. Segundo
Villela, “o novo estatuto social feminino no magistério fez também emergir mecanismos de
controle e discriminação contra as mulheres e enraizar as ideologias de domesticidade e
maternagem (reforçadas pelo discurso positivista e higienista)”8.
Enfatiza-se a necessidade da educação da mulher para consequentemente fosse
feita uma boa educação nas crianças. A missão civilizatória atribuída às mulheres fez
crescer, entre políticos e intelectuais republicanos como José Veríssimo, o debate sobre a
educação nacional e questões sobre a educação de meninas em particular. Esse importante
papel das mulheres como condutoras morais da ordem social, levara a sua necessária
instrução, primando-se por uma formação moral, física e de higiene, geral e simplificada em
relação a do homem, porém necessária, pelo seu papel e importância no projeto
educacional republicano. 9
7VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985. p.129.
8VILLELA. Heloisa de O.S. “O Mestre Escola e a Professora”. In: 500 Anos de Educação no Brasil/org: Eliane
Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.120.
9VERÍSSIMO, José. Op. Cit.
O papel que deveria ser ocupado pelas mulheres não era consensual visto que sua
formação deveria servir não somente para preparar professoras, mas também para exercer
outras funções esperadas a de esposa e mãe. Melo, ao tratar do periódico Revista Familiar
(1883), afirma que muitos embates e disputas aconteceram no campo intelectual, no que
diz respeito as representações sobre o papel da mulher na sociedade e as práticas de
educação mais adequadas as mulheres paraenses. O periódico, assim como outras vias, foi
utilizado como um campo de disputa, neste contexto, para naturalizar a mulher na escola,
no trabalho e no mundo da rua, e seu lugar social, neste sentido: “Esse embate que no
campo intelectual, discutia a capacidade feminina de lidar com o conhecimento cientifico,
seguiu na controvérsia sobre a pertinência de ampliar escolas para o sexo feminino (...)10.
No Pará, a fundação de uma Escola Normal para formar professores de primeiras
letras, data de 1870, tendo o início de suas atividades somente em 5 de junho de 1871.
Assim como as demais escolas Normais do país essa instituição neste primeiro momento
teve um período curto de existência, sendo reinstalada novamente anos depois. Sem prédio
próprio, atendia alunos do sexo masculino no Liceu Paraense e do sexo feminino no
Colégio Nossa Senhora do Amparo, separação esta, coerente com o que ditava a
moralidade do período. As mulheres, que não precisavam de tanta formação intelectual,
tidas como inferiores, dispunham de currículo e cargas horárias diferenciadas especialmente
no que se refere as disciplinas Aritmética, Pedagogia e Gramática, já que os homens tinham
mais propensão para a compreensão das disciplinas lógicas, enquanto elas ocupavam-se
muito mais com atividades de memorização e com prendas de agulhas.
Com a República, aumenta a necessidade de instrumentalizar o professor, através
de formação em instituições adequadas à sua importância na formação do cidadão
republicano e do estabelecimento do modelo de bom mestre, responsável pelo
desenvolvimento da nação. Evidenciando seu relevante papel em qualquer reforma pensada
do no âmbito educacional. As Escolas Normais, fundada em 1871, ainda na monarquia,
passa por diversas modificações neste período, adquirindo prédio próprio no governo
Lauro Sodré, acompanhando as transformações ocorridas no espaço urbano de Belém
neste contexto da chamada Belle Époque. Frequentemente exaltada nas páginas dos
10MELO, Clarice Nascimento de. “Recolher e Redimir: Figuras de Mulher e sua Educação”. In: História da
Educação no Pará. Clarice Melo e Maria do Socorro Avelino de França Org. Belém: EDUEPA, 2014.p.64.
11 A ESCOLA: revista official do ensino no Estado do Pará. Imprensa oficial. Belém. Anno 1, num.1,maio de
1900.
12FRANÇA, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino. José Veríssimo (18571916) e a Educação
Brasileira Republicana: raízes da Renovação Escolar Conservadora / Maria do Perpétuo Socorro Gomes Souza
Avelino França. – Campinas, SP: [s.n.], 2004.
13 TAVARES, Alexandre. A Instrução Pública em 1900- Prologo da coleção de leis e regulamentos do ensino público
1999.p.111.
16VILLELA. Heloisa de O.S. O.p. Cit.
por muitos, “desde que normatizada e dirigida para não oferecer riscos sociais”17. Se por
um lado, pelo discurso oficial, a inserção da mulher no magistério primário, que já se fazia
realidade no virando século, era uma maneira de possibilitar a participação dessa mulher no
espaço público domesticado, desempenhando uma tarefa que seria quase uma extensão do
lar, por outro lado, acatar esse discurso era uma via de resistência, abrindo caminho para a
rápida inserção feminina no magistério primário. Segundo a autora: “Para as mulheres que
vislumbraram a possibilidade de liberação econômica foi a única forma encontrada para
realizarem-se no campo profissional, mesmo que isso representasse a aceitação dessa
18
profissão envolta na aura da maternidade e da missão” . Dito de outro modo, a
possibilidade de profissionalização feminina, via magistério primário, passou a ser uma
alternativa a mulher, o meio pelo qual poderia romper com as amarras do lar e buscar sua
própria emancipação e autonomia, embora vigiadas e normatizada.
A feminização precoce do magistério tem sido responsabilizada pelo desprestígio
social e pelos baixos salários da profissão, o que fez com que os homens abandonassem o
magistério se deslocando para profissões de melhor prestigio e status social 19. Além desse
fator é necessário considerar, no caso do Pará, a ampliação do espaço urbano e o aumento
populacional gerado pelo surto econômico da borracha, ampliando as diversas formas de
atuação no mundo do trabalho; A necessidade imperiosa da república em afirmação de
ampliação do ensino primário e consequente aumentar a quantidade de professoras aptas
atuar por um baixo salário; A construção de uma concepção da profissão docente associada
a características femininas e a consequente relação entre as funções maternas de gerar e
cuidar das crianças e a inata tarefa de educar; O magistério passa a ser o único caminho
possível as mulheres, sendo uma extensão das tarefas do lar.
No entanto, mesmo com as modificações operadas, em um contexto de maturação
da própria profissão docente, passando a ser uma profissão exclusivamente masculina para
ser prioritariamente feminina, e a feminização do magistério sendo um fato já no final do
XIX no Pará, a condução da educação não era exercida pelas mulheres, a estrutura da
mesma, os cargos administrativos e de liderança, de regulação e controle, como de inspetor,
eram geridos por homens estando ainda a mulher relegada a um plano secundário,
17ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível / Jane Soares de Almeida. - São Paulo:
Editora UNESP, 1998. - (Prismas). p.28.
18 ALMEIDA, Jane Soares de. O.p. Cit. p.28.
19TANURI, L. M. “História da formação de professores”. Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago,
2000, nº 14.
Bibliografia
A ESCOLA. Revista official do ensino no Estado do Pará. Imprensa oficial. Belém. Anno 1,
num.1, maio de 1900.
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FRANÇA, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino. José Veríssimo (18571916)
e a Educação Brasileira Republicana: raízes da Renovação Escolar Conservadora / Maria do Perpétuo
Socorro Gomes Souza Avelino França. – Campinas, SP: [s.n.], 2004.
MELO, Clarice Nascimento de. “Recolher e Redimir: Figuras de Mulher e sua Educação”.
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Belém: EDUEPA, 2014.
MULLER, L. As construtoras da nação: as professoras primárias na Primeira República. Niterói:
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PARÁ. Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Pará, pelo Governador Lauro Sodré. Imprensa
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de formação de professores na Corte Imperial.” Educação. Porto Alegre – RS, ano XXVIII,
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TAVARES, Alexandre. A Instrução Pública em 1900- Prologo da coleção de leis e regulamentos do
ensino público organizado pelo ex-diretor Augusto Olympio de Araujo e Souza, Pará, 1902.
VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1985.
VILLELA. Heloisa de O.S. “O Mestre Escola e a Professora”. In: 500 Anos de Educação no
Brasil/org: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga- 5ª edição, Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.
XAVIER, Maria Elizabete Sampaio Prado. Poder político e educação de elite, 3. ed., São Paulo:
Autores Associados,1980.
Resumo
Neste artigo analisaremos a relação entre a visão elogiosa a Ditadura Militar, por parte do
presidente da República Jair Messias Bolsonaro, e o aumento das mortes de jovens negros
em intervenções policiais, no Brasil. O mês de maio de 2020, registrou o maior número de
mortes de pessoas negras e periféricas no país, esse fato provocou protestos de rua em
todo país sob a bandeira do movimento “Vidas Negras Importam”, inspirado no
movimento internacional, “Black Lives Matter”. Desse modo, analisaremos o tempo
presente, por meio da ideia de “um passado que não passa”, conceito criado por Henry
Rousso, e assim apresentar de que maneira os discursos saudosistas, e o aumento
substancial dos casos de violência policial no Brasil, configuram em uma necropolítica
desenvolvida pelo governo Bolsonaro.
Introdução
1 Mestre em História Social das Relações Políticas, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
membro do Laboratório de Estudos em História do Tempo Presente (LABTEMPO - UFES), e integrante da
gestão da seção Espírito Santo da Anpuh. Contato: acherxes@yahoo.com.br.
2 Especialista em História e Cultura Afro Brasileira, pela Faculdade Luso Capixaba (IESES), membra do
Instituto Histórico e Geográfico de Cachoeiro de Itapemirim (IHGCI), e filiada à seção Espírito Santo da
Anpuh. Contato: kellyoshialves@gmail.com.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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períodos recentes, a busca por elementos que contribuam de forma coletiva no bom
entendimento da conjuntura.
Destaca-se ainda a necessária humildade em negar considerações feitas no calor dos
acontecimentos, caso estejam equivocadas, visto o fato de que a contemporaneidade possui
um caráter variável. É, fato, que o pesquisador deve se debruçar de forma responsável
sobre seu objeto de estudo, pois assim, o empenho intelectual que ele empreendeu,
auxiliará na percepção dos eventos de sua atualidade, e consequentemente, na formação de
concepções políticas que em determinado prazo possam refletir na ordem comum da
sociedade.
Ressaltamos que o uso da expressão “Um passado que não passa”3, popularizada na
historiografia a partir da análise do historiador Henry Rousso, referindo-se a permanência
no imaginário francês de memórias relacionadas a ocupação alemã no país durante a
Segunda Guerra Mundial, nos servirá de base nesse trabalho, pois a expressão utilizada pelo
historiador, indica a ideia que o passado sempre está presente, ou seja, o uso deste termo
denota que remeter-se a práticas obsoletas relacionadas a períodos extremos em nossa
contemporaneidade, em algum momento pode nos trazer consequências sociopolíticas.
Estudar o presente, é algo desafiador. Destarte, as problemáticas encontradas por
quem se dedica a esta área do conhecimento historiográfico são peculiares se comparadas
às outras. Por exemplo, dependendo do campo historiográfico, a qual o historiador se
compromete a explorar, pode ocorrer de não se encontrar fontes palpáveis relacionadas ao
assunto. Todavia, este não é um problema para quem pesquisa o tempo presente, mas sim,
o acúmulo de fontes que podem tornar questionáveis o estudo no sentido de algumas delas
não serem fidedignas. A crítica externa e interna aos documentos, indicadas por Marc
Bloch no livro, Apologia da História, são de grande valia caso o pesquisador passe por este
dilema.
A parcialidade pode ser considerada como um segundo desafio encontrado pelo
historiador ao se debruçar neste campo de estudos, entretanto é válido ressaltar que
ninguém é neutro, decidir-se pela neutralidade corresponde a um posicionamento. Todavia,
cabe a quem estuda os períodos recentes da história, o equilíbrio em suas análises, no
sentido de que as paixões humanas não se sobreponham às suas conclusões,
comprometendo o produto final. Vale lembrar que a parcialidade não é um problema
apenas da história do tempo presente, mas de toda historiografia.
3 ROUSSO, Henri; CONAN, Eric. Vichy, un passé qui ne passe pas. Paris: Fayard, 1994.
Necropolítica à brasileira
4ROUSSO, Henri. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
5Uso da força pelas polícias segue como desafio no Brasil. G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/04/16/uso-da-forca-pelas-policias-segue-como-
desafio-no-pais.ghtml. Acessado em 21 de outubro de 2020.
6MBENDE, Achille. Biopoder, soberania, estado de exceção política da morte. Revista do ppgav/eba/ufrj, Rio
que mostram que pretos e pardos representam 78% dos mortos por intervenções policiais
no Rio de Janeiro no ano de 20197.
Elucidamos que esta realidade é nacional, por exemplo, o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP), divulgou o aumento de 31% nos números gerais da violência no
estado de São Paulo, entre os meses de janeiro e abril de 2020, mostrando um recorde de
mortes pela polícia no mês de abril, um total de 119 casos, 41 a mais do que os registrados
no mesmo período 2019 quando ocorreram 78 casos.8
Esse aumento também foi observado nas demais unidades da federação, sobretudo
nas regiões Norte e Nordeste, onde as taxas também cresceram de modo acelerado.
Devido à falta de transparência nas informações, os dados precisos dos casos de violência
policial ainda são inconsistentes, pois o levantamento dos dados de letalidade policial
realizado pelo Monitor de Violência nas unidades da federação, não registrou os números
do estado de Goiás (GO) que deixou de divulgar os resultados no primeiro semestre de
2019 sob alegação de sigilo das informações, vale lembrar que estes dados são de interesse
da administração pública e da sociedade, fato que põe em evidência a falta de transparência
nos dados oficiais de violência policial na atual gestão presidencial.
Conforme Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança
Nacional: “Além do interesse público, são números que vinham sendo divulgados pelos
governos anteriores periodicamente, o que demonstra a falta de transparência e seriedade
da atual gestão”9.
No documento, além da omissão de dados detalhados por unidade da federação
que eram contemplados nos relatórios anteriores traçando o perfil das vítimas de violência
por idade, raça e sexo, o termo “policial” não é mencionado e a palavra “polícia” é usado
como referência às delegacias que registraram casos de violações aos Direitos Humanos.
A omissão dos dados foi alvo de críticas mediante a nota divulgada pelo Ministério
da Mulher e dos Direitos Humanos (MMFDH) sob gestão da ministra Damares Alves,
7Pretos e pardos são 78% dos mortos em ações policiais no RJ em 2019. G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/06/pretos-e-pardos-sao-78percent-dos-mortos-
em-acoes-policiais-no-rj-em-2019-e-o-negro-que-sofre-essa-inseguranca-diz-mae-de-agatha.ghtml. Acessado
em 22 de outubro de 2020.
8 Entre a vida e a morte sob tortura, violência policial se estende por todo o Brasil, blindada pela impunidade.
Por fim, o defensor público concluiu sua fala, afirmando, que no lugar de dados
concretos o que sustenta o governo atual são as disputas de narrativas que favorecem a
disseminação de notícias falsas.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Helder
Salomão (PT-ES) emitiu nota10 informando que o colegiado faria um comunicado às
Nações Unidas e declarou: “A gente sabe do aumento da letalidade. É absurdo, grave, mas
coerente com o presidente, que comemora e exalta homicídios cometidos por policiais. É
uma prática genocida, assim como esconder os dados da COVID-19”.
Além do exposto, a falta de transparência nas informações de violência policial
também parte das ações do Governo Federal. Desde o ano de 2019, o Governo deixou de
mencionar os casos de violência policial do relatório sobre agressões aos Direitos Humanos
que tem como base as informações recolhidas por meio do Disque 100, telefone da
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, ou seja, órgão que recebe denúncias sobre casos
de graves violações que ocorrem em todo território nacional, e repassa os dados recolhidos
ao Governo Federal, alvo de críticas pelas omissões aos casos de violência policial no
relatório de 2019.
Vale mencionar que esta política de omissão, e encobrimento da realidade,
representa um interesse do bolsonarismo. Durante seu discurso a sociedade, no dia de sua
posse, Jair Bolsonaro firmou o compromisso de autorizar o excludente de ilicitude.
Conforme Batista (p. 144, 2020), Bolsonaro deixou evidente no pronunciamento a sua
prévia autorização [...] para que, em caso de homicídios em serviço, os integrantes das
forças polícias não fossem punidos.
10 Governo Federal exclui dados sobre violência policial de relatório. Estado de Minas. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/06/13/interna_nacional,1156296/governo-federal-
exclui-dados-sobre-violencia-policial-de-relatorio.shtml. Acessado em: 22 de outubro de 2020.
https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/. Acessado em
21 de outubro de 2020.
13 Inquérito conclui que morte de capoeirista na BA teve motivação política. Veja. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/blog/bahia/inquerito-conclui-que-morte-de-capoeirista-na-ba-teve-motivacao-
politica/. Acessado em 21 de outubro de 2020.
14 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
15 Golpe de 64 é ‘marco para a democracia brasileira’ diz defesa. Folha de São Paulo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/golpe-de-64-e-marco-para-a-democracia-brasileira-diz-
defesa.shtml. Acessado em 22 de outubro de 2020.
teria sido levado para o IML de São Gonçalo16. Tal ação desempenhada pelos policiais
chocou pela atrocidade, e a alteração da cena do crime deixou a família da vítima por horas
sem saber do paradeiro do adolescente.
O caso de João Pedro despertou discussões em torno da discriminação racial e
inspirou protestos do movimento Vidas Negras Importam17. Vale lembrar que poucos dias
após a morte de João Pedro, no dia 25 de maio, na cidade de Minneapólis no Minnesota,
região noroeste dos EUA, um policial matou por asfixia George Floyd, homem negro de
46 anos, que foi imobilizado durante uma intervenção policial, e ficou por quase nove
minutos sem poder respirar. A brutalidade do caso movimentou a vida política e social nos
Estados Unidos e gerou novos debates sobre o racismo e a atuação violenta das forças
policiais contra a comunidade negra que foram incorporados no Brasil sob os recentes
casos de violência policial no mês de maio.
Além da impunidade dos militares envolvidos nos casos, indicando um abismo nos
números oficiais de letalidade policial, a legislação brasileira trata de todas as ocorrências
intencionais com mortes como homicídios. Quando acontecem casos envolvendo policiais,
não há o afastamento do tipo penal, para o oficial em questão, mas a caracterização de uma
das excludentes de ilicitudes previstas, e o reconhecimento, por parte Ministério Público e
do Judiciário, de que a morte em casos desse tipo, acontece, por uma ação legítima do
agente envolvido na ação.
Conclusão
A conclusão deste breve artigo nos indica algumas certezas, primeiramente, o fato
de que muito sobre o tema aqui analisado, ainda precisa ser explanado. Além disso,
consideramos serem as ideias aqui expostas uma valiosa contribuição, para o tema em
questão. Por fim, ressaltamos, que o extremismo político bolsonarista, está ligado a uma
16 Entre a vida e a morte sob tortura, violência policial se estende por todo o Brasil, blindada pela
impunidade. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-30/entre-a-vida-e-a-morte-sob-
tortura-violencia-policial-se-estende-por-todo-o-brasil-blindada-pela-impunidade.html. Acessado em 22 de
outubro de 2020.
17“Black Lives Matter” ou “Vidas negras importam” em português, é um movimento ativista internacional,
que luta contra a violência às pessoas negras. O movimento começou no ano de 2013 nos Estados Unidos
através da comunidade afrodescendente, com o uso da hashtag #BlackLivesMatter nas mídias sociais, após a
absolvição do segurança George Zimmerman que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin. O
movimento alcançou notoriedade nacional através das suas manifestações de rua, em 2014, após a morte de
dois afro-americanos. Em maio de 2020, o movimento ganhou proporções maiores com a morte de George
Floyd depois de uma ação policial na cidade de Minneapolis no Minnesota (EUA), e desencadeou uma onda
de protestos de rua a favor da vida de pessoas negras em vários países da América.
visão apologista e elogiosa da Ditadura militar brasileira. Desse modo, as ações que
entendemos fazer parte de um conjunto necropolítico deste grupamento político, podem
ser vistas na atualidade como um elemento do passado que não passa brasileiro.
O conceito de Necropolítica de Mbene se configura nas ações do bolsonarismo,
assim como em sua atuação política, e discursos de enfrentamento a crise sanitária
provocada pela pandemia de COVID-19. O negacionismo ao conhecimento
epistemológico e o saudosismo a Ditadura Militar brasileira, escancaram os problemas de
um país que passa por uma crise de gestão.
Como cidadãos de um país marcado por uma normalidade democrática, de certa
maneira recente, devemos analisar este tipo de pensamento para que os fatos reproduzidos
neste seguimento conservador nem sempre virem verdade. Devemos ter em mente, que a
recuperação do passado é indispensável, o que não significa que o passado deve reger o
presente, pois caso isto ocorra, elementos obsoletos podem mudar o rumo dos
acontecimentos na conjuntura.
Bibliografia
Resumo
Esse artigo é parte da pesquisa sobre a comunidade tradicional caiçara da praia do Bonete e
pretende analisar os caminhos e contradições que levaram às diferentes correntes de
representatividade e inserção social desde antes da chegada do turismo até 2019, quando
uma série de fatores contribuíram para uma disputa por representatividade na comunidade,
assim como para uma série de diferentes representações. Aqui faremos apenas uma breve
análise de documentos publicados por duas associações que disputam o espaço de
representantes da comunidade para analisar os desdobramentos que essa disputa acarreta.
Introdução
pelo projeto Tribuzana3, realizado pelo Ministério Público Federal para organizar e
mobilizar as comunidades tradicionais de Ilhabela a partir de 2016.
O conceito de caiçara engloba grupos que mantiveram sua organização econômica
na “periferia dos ciclos de monocultura do litoral sudeste, fornecendo-lhes gêneros
alimentícios e mão-de-obra”4. O Bonete se enquadra nessa definição e manteve sua
economia baseada na agricultura, na caça e na pesca até 1977 quando foi inaugurado o
Parque Estadual de Ilhabela, visto pelos caiçaras como ameaça, por reduzir o espaço para
roças, proibir a extração de madeira e a caça, além de iniciar a fiscalização da pesca.
Em 1982, uma época de restrições para os boneteiros, foi construída a estrada até o
Bonete, mas ela logo ficou desativada para veículos por falta de manutenção e se tornou a
trilha, vista como forma de inserção social5. A partir de então inicia-se a especulação
imobiliária no Bonete de forma peculiar, pois os veranistas que compraram as terras se
apropriaram, a seu modo, do discurso ambientalista e se firmaram como tutores da
comunidade com o intuito de garantir um turismo elitizado e seletivo. A inserção social foi
privatizada de forma a garantir que a comunidade não precisasse ser ligada à cidade. Os
veranistas doaram gerador a diesel para energia, construíram posto de saúde, reformaram a
escola e contrataram boneteiros como caseiros.
Até 2013 quem mantinha a representatividade da comunidade era a Associação de
Moradores do Bonete, cujo principal objetivo era conseguir a construção da estrada. Em
2013 foi criada a Associação Bonete Sempre6 e em 2014 o Instituto Bonete7, alegando que
defendiam a comunidade da especulação imobiliária, diante da ameaça da prefeitura de
mudar o zoneamento da comunidade para área urbana e reconstruir a estrada até o Bonete.
O Instituto Bonete foi decisivo para impedir a construção da estrada e conseguiu o apoio
da comunidade. Acreditamos que foi com esse movimento contra a construção da estrada
que iniciou-se o processo de reconhecimento dos boneteiros como comunidade tradicional
3 Assessoria de Comunicação Procuradoria da República no Estado de São Paulo. 2019. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/projeto-de-lei-que-cria-o-primeiro-conselho-
municipal-caicara-do-brasil-e-aprovado-por-unanimidade-em-ilhabela-sp>. Acesso em: 10 de outubro de
2019.
4 DIEGUES, Antonio Carlos. “A mudança como modelo cultural: ocaso da cultura caiçara e a urbanização”.
In: Enciclopédia caiçara.1ª edição. São Paulo: Editora Hucitec – NUPAUB- CEC/USP, 2004, p. 21.
5 LIMA, Guilherme Pascoal. Turismo e poder em lugares tradicionalmente habitados por caiçaras: o caso do Bonete,
outubro de 2019.
e da necessidade de manter seu local isolado para manter sua cultura, discurso esse que foi
fomentado pela Bonete Sempre e pelo Insituto Bonete em nome da comunidade, embora
muitos boneteiros ainda desejassem a estrada.
Em três anos como moradora, sendo dois como professora da comunidade, foi
possível observar parte desse processo e perceber que há disputa sobre a
representatividade. Apesar das investidas dos veranistas, a comunidade se enxerga como
representante de seu território e considera o turista como visita. Em relação aos veranistas
há divisão sobre seu papel. Há boneteiros que aderem a suas ideias como se fossem da
comunidade, em outros casos, são vistos como pessoas de fora que querem se intrometer
nas decisões, mas até 2018 o Instituto Bonete e a Bonete Sempre monopolizaram a
representatividade da comunidade em todos os órgãos e junto à prefeitura e ao Projeto
Tribuzana.
A partir de 2016 a comunidade começou a passar por mais uma aceleração de
mudanças, alavancadas pela instalação de placas solares e pelo acesso à internet particular
de melhor qualidade, que deu acesso aos boneteiros a um processo de discussão de
identidade iniciado em Ilhabela e nas redes sociais provavelmente incentivados por
iniciativas da prefeitura, que passou a mandar diretrizes sobre o mundo caiçara para as
escolas e o projeto Tribuzana.
Em julho de 2018 formou-se a Associação Boneteira de Resistência Caiçara, que
denunciou o Instituto Bonete por especulação imobiliária quando um de seus membros
começou a construir em um terreno de aceso à praia e de uso da comunidade. A
Associação de Resistência se valeu de um debate que havia começado na escola e abordou
a definição de caiçara como cultura histórica, ressaltando a importância de seu território. A
Resistência Caiçara teve muitos apoiadores e houve discussão sobre a especulação, mas ela
rapidamente perdeu força e acabou se desfazendo em 2020.
Durante essa disputa as duas associações se valeram de divulgar e exaltar
representações dos boneteiros e seu modo de vida, cada uma com um discurso, mas com
muitas semelhanças, relacionando a disputa por representatividade à construção de
identidades.
Essa pesquisa iniciou-se em 2020 e tinha no projeto o intuito de partir da realização
de entrevistas para coletar relatos de vida com boneteiros e boneteiras que viveram a
comunidade antes da construção do parque e da chegada do turismo, mas devido à
pandemia de Covid 19, a comunidade ficou fechada até agosto e mesmo depois da
reabertura consideramos que não seria ético ir até lá para a realização das entrevistas,
principalmente com pessoas do grupo de risco. Sendo assim, redirecionamos o trabalho e
partimos inicialmente da análise de dados que aparecem em obras publicadas e em sites e
redes sociais. Não consideramos esse o procedimento ideal, mas necessário diante do
adiamento das entrevistas.
Nesse artigo nos propusemos a fazer uma pequena análise de publicações das
associações para podermos ter uma amostra de como são alguns dos discursos presentes e
como se dá a disputa por representatividade nesse âmbito, sabendo que existem ainda
muitos outros fatores e grupos envolvidos.
Representatividades e representações
A identidade caiçara a que ela se refere é presente em toda a ilha, como forma de se
manter fechada ao que é “de fora” em processos bastantes complexos que dependem do
turismo ao mesmo tempo que não querem se abrir. Nessa obra, de 2000, anterior à postura
de se colocar contra a estrada, é possível perceber nas entrevistas que a estrada era ainda
solicitada pela comunidade e vista como forma de inserção social. A representação, nesse
momento era centralizada por uma antiga associação de moradores que foi extinta e a
preocupação era o parque, que havia restringido a vida da comunidade e se apresentava
como ameaça.
O discurso ambientalista do Instituto Bonete aparece então como forma de
proteger a comunidade, defendendo-a da ameaça do parque alegando que os boneteiros são
“os verdadeiros protagonistas e guardiões deste lugar e são eles que vivem em equilíbrio
8 MERLO, Márcia. Memória de Ilhabela: faces ocultas, vozes no ar. 1ª edição. São Paulo: Educ-Fapesp, 2000, p. 347.
com a natureza”9. Essa preocupação é interessante porque não omite que o objetivo é
preservar o local para o turismo em meio à destruição causada pela especulação imobiliária
no litoral norte.
A destruição gradativa torna cada vez mais difícil encontrar refúgios de
paz e preservação. Ainda sobram alguns cantos lindos em Ilhabela,
Ubatuba e outros lugares. Nossa turma ancorou na Praia do Bonete,
lugar de difícil acesso, com natureza abundante e uma rica cultura
caiçara. A ameaça de abertura de estrada pelo litoral sul da Ilhabela quase
se concretizou(...). Caso isto acontecesse, estariam viabilizando um
projeto de especulação imobiliária com loteamentos em
aproximadamente 12 quilômetros de zona costeira ainda totalmente
intocada o que implicaria no fim da vida harmônica e saudável na
comunidade do Bonete.10
12 NASCIMENTO, Alan Faber. A ilusão urbanística: análise crítica sobre a (re) produção do espaço urbano no município
de Ilhabela-SP. Tese (doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro. 2011, p. 09
13 NETO, Paulo Stanich(org). Direito das comunidades tradicionais caiçaras. 1ª edição. São Paulo: Editora Café com
14 NORA, Pierre. “Entre memória e história a problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo: 1993, p.
15 Ibid, p. 14
16ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. 1ª edição. São Paulo: Boitempo,
2015, p. 86.
17 Ibid, p. 83.
Essa abertura constante da “periferia” mantida pela cultura ocidental nos permite a
reflexão final desse artigo em relação a essa disputa de representatividade que aconteceu e
pensar que embora em caminhos diferentes, as duas associações focam em preservar a
comunidade fechada, sem considerar o desejo de inserção e aceitação social que muitos
boneteiros podem trazer. Essa é uma hipótese que só poderá ser considerada após as
realização das entrevistas, mas é um dos enfoques do roteiro tentar entender até que ponto
a representação como comunidade está construída e até que ponto ainda há o desejo de
fazer parte da cultura hegemônica.
Fontes
Bibliografia
DIEGUES, Antônio Carlos (org.). Enciclopédia Caiçara, vol 1: O Olhar do Pesquisador. São
Paulo: Hucitec – Nupaub, 2004.
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LIMA, Guilherme Pascoal. Turismo e poder em lugares tradicionalmente habitados por caiçaras: o caso
do Bonete, Ilhabela, SP. 2015. Dissertação (mestrado em Geografia) – Instituto de
Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
MERLO, Márcia. Memória de Ilhabela: faces ocultas, vozes no ar. São Paulo: Educ-Fapesp, 2000.
NASCIMENTO, Alan Faber. A ilusão urbanística: análise crítica sobre a (re) produção do espaço
urbano no município de Ilhabela-SP.2011. Tese (doutorado em Geografia) – Instituto de
Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio
Claro.
NETO, Paulo Stanich(org). Direito das comunidades tradicionais caiçaras. São Paulo: Editora
Café com lei, 2016
18 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª edição. Rio de janeiro: DP&A, 2005, p. 79.
NORA, Pierre. Entre memória e história a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,
n.10, 1993.
ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. São Paulo:
Boitempo, 2015.
Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a propaganda antissemita produzida pelo
publicitário alemão Julius Streicher (1885-1946). Através de charges veiculadas no jornal
alemão Der Stürmer, publicado semanalmente na Alemanha entre aos anos de 1923 e 1945,
que, por sua vez, tinha como finalidade disseminar o antissemitismo através de imagens e
slogans. A partir da análise do material produzido pelo periódico alemão investigamos a
função da propaganda política nos anos do Terceiro Reich (1933-1945) e de que maneira os
judeus foram representados. Sendo assim, buscamos compreender quais as implicações
dessa produção enquanto instrumentos da propaganda nazista.
Introdução
judeus baseava-se na religião. Temos, a partir do século XIX, um novo termo com novas
premissas, o antissemitismo3, que designa uma nova forma de preconceito tendo por base a
ideia de raça. Toda essa nova abordagem para a perseguição judaica foi possível na
Alemanha nazista, que já possuía uma tradição antissemita que remonta ao século XV,
através da propaganda. O rádio, o cinema, o jornal e os cartazes4 deram essa visibilidade ao
antissemitismo e criaram uma imagem de um judeu traidor da pátria alemã e que deveria
ser combatido com violência.
A propaganda política é um fenômeno marcante na primeira metade do século XX.
Sem ela o fascismo, por exemplo, seria inconcebível. A propaganda atuou com destaque ao
jogar com a mentalidade dos cidadãos da Alemanha no pós-guerra, utilizando como base o
judeu que seria o responsável pela crise, atraía os descontentes. Adolf Hitler (1889-1945)
deve a ela a tomada do poder: “A propaganda permitiu-nos conservar o poder, a
propaganda nos possibilitará a conquista do mundo”5, sendo assim ela se caracterizou
como um elemento essencial na construção e consolidação do Terceiro Reich, entre os
vários recursos propagandísticos.
Ao explorar elementos visuais que chamassem a atenção do público, o cartaz, dessa
forma tornou-se uma tática que movimentou e influenciou as massas. Os temas abordados
pela propaganda nazista propunham a milhões de homens, e no mesmo dia, um único e
conveniente modo de pensar. O mito judaico comprovou a nocividade ao apoderar-se do
homem e transformá-lo em um fanático6.
Com a criação do Ministério do Reich para Esclarecimento Público e Propaganda
Nazista, em 1933, sob a liderança de Joseph Goebbels (1897-1945), as ideias concebidas
por Hitler desde antes de tornar-se chanceler, com base na pureza da raça ariana em
detrimento do judeu, puderam ser exploradas por esses diversos meios de propaganda de
massa, a fim de atrair adultos e crianças. Apelavam para a repetição, a polêmica e linguagem
3 “Termo criado pelo publicista alemão Wilhelm Marr, em 1879, para designar um novo tipo de antijudaísmo
que tomou forma na Alemanha, na França e na Rússia e em outros países da Europa, no final do século XIX”
in: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Enciclopédia das guerras e revoluções: vol I: 1901-1919: a época
dos imperialismos e da Grande Guerra (1914-1919). Francisco Silva. – 1º ed. – Rio de Janeiro: Elsevier,
2015, p. 23.
4 Denominam-se por cartazes por não terem uma utilização somente nas edições do Der Stürmer, aparecendo
ao longo das páginas ou ao lado dos artigos publicados. Durante o Terceiro Reich foram afixados quadros
(murais) em diversos pontos da cidade a fim de afixar os cartazes produzidos pelo cartunista do periódico.
Esta foi uma forma de reforçar a propaganda que poderia estar presente em vários locais e ser vista por um
grande número de pessoas por dia.
5 DOMENACH, Jean-Marie. A propaganda política. Edição eletrônica Ridendo Castigat Mores. Disponível
O periódico semanal alemão Der Stürrmer iniciou suas atividades em 1923 sob a
direção de Julius Streicher, editor e principal disseminador das ideias antissemitas
produzidas pelo jornal. Streicher já possuía o sentimento antissemita desde seus primeiros
anos de vida em Nuremberg, graças à tradição alemã onde os judeus sempre foram vistos
como inferiores, traidores e profanadores, sempre usurpando os bens da nação hospedeira.
Streicher aliou-se ao partido nazista em 1922, tornando-se um “dos primeiros
membros”10. Seu antissemitismo violento atribuía aos judeus as mazelas sofridas pela
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e instalação da democrática República de
Weimar em 1919. Após tornar-se membro do Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães (NSDAP) passou a produzir o Der Stürmer baseado na temática
racial, retórica sexual, envenenamento ideológico e violência.
A oratória de Streicher, aperfeiçoada ao longo dos anos de exercício docente e
envolvimento com a política, lhe possibilitou falar a língua das massas, de forma simples,
adquirindo assim o sucesso para seu periódico que, após o anúncio das leis raciais de
Nuremberg (1935), já contava com a venda de “quinhentos mil exemplares semanais, e sua
editora estava colocando para fora de maneira espalhafatosa livros ilustrados para crianças e
volumes pseudocientíficos sobre a ‘questão judaica’11.
O Der Stürmer esteve em circulação durante vinte e cinco anos (1923-1945) e em
todas as suas edições agredia o judeu com discursos violentos nos artigos que eram
publicados e posteriormente com a incorporação das charges. Seus primeiros números
contaram com poucas páginas e sem ilustrações, que seriam veiculadas somente a partir de
1925. “Seu jornal foi apreendido ou banido mais de trinta vezes entre 1923 e 1933”12,
observou Randall Bytwerk. Contudo conseguiu manter-se firme durante esse tempo e
posteriormente com a tomada do poder por Adolf Hitler, em 1933.
Inicialmente sua circulação ficou restrita a Nuremberg, ampliando-se ao longo dos
anos e por isso podemos perceber a mudança do slogan do jornal, em 1932. De “Um
out garishly illustrated children-books and pseudocientific tomes on the ‘Jewish Question” in: BYTWERK,
Randall L. Julius Streicher: Nazi editor of the notorious anti-Semitic newspaper Der Stürmer/ Randall
L. Bytwerk.- 1st Cooper Square Press ed, 2001, p. 37.
12 “His newspaper was siezed or banned more than thirty times between 1923 and 1933.” IBIDEM, p.24.
semanário de Nuremberg na luta pela verdade” tornou-se “Um semanário Alemão para a
luta pela verdade”13, demonstrando a ampliação da visibilidade e do público que lia
diariamente o Der Stürmer.
Em 1930 o jornal contava com uma equipe considerável, incluindo o cartunista
Phillipe Rupprecht (1900-1975), que assinava suas charges como FIPZ. As mesmas foram
elementos marcantes do periódico ao estabelecer categorias de classificação para o judeu,
tais como: verme, diabo, traidor, ladrão etc.
Além disso, Streicher acreditava que podia-se identificar os judeus por sua
aparência, mesmo os que professavam a fé católica por pertencerem à “raça” judaica
poderiam ser identificados por um simples movimento de mão14, eram todos iguais,
pertencendo a mesma categoria e, independente da religião, deveriam ser combatidos, pois
todos faziam parte do mesmo bloco que caracterizava a “praga judaica”.
Percebemos claramente esse agrupamento categórico dos judeus em um cartaz
publicado no Der Stürmer, em agosto de 1935 (Figura 1), onde o leitor é desafiado a
identificar os judeus que afirmam ser católicos ou protestantes. A partir dessa imagem
percebemos que não importava a religião ao qual se direcionam, sempre estariam
classificados como uma o inimigo que deveria ser combatido.
13 “A Nuremberg weekly in the struggle for truth. Now it became “A German weekly in the struggle for
thruth” IBIDEM, pg. 53.
14 IBIDEM, p.48.
Competição
Há dezoito judeus nesta imagem. Quatro deles são batizados católicos e três são batizados protestantes. Há
pessoas que se declaram judeus batizados, não são judeus, mas os cristãos. Aquele que pode mostrar com
uma cruz para a nossa equipe editorial os judeus batizados receberá uma recompensa.
Afirmando ser um instrumento que forneceria subsídios para facilitar a identificação desses
judeus pelo do cidadão alemão, os cartazes produzidos pelos ilustradores do Der Stürmer
criaram diversos estereótipos que, segundo Streicher e seus associados, caracterizariam os
judeus a partir de suas aparências semelhantes, consideradas “grotescas” com nariz e
orelhas proeminentes, expressões e corpos deformados.
Esses determinismos podem ser vistos nas três representações do judeu em charge
publicada pelo jornal (Figura 2), seja o judeu bajulador, pecuarista ou artista, todos se
pareciam em suas expressões faciais, seus corpos e seus gestos. Em relação ao homem
alemão, além da forma física, eram diferenciados pelas colorações de destaque. Enquanto o
homem ariano era representado como alto, forte, viril e de postura imponente, temos o
judeu com baixa estatura, corpos avantajados (gordo), além de não se enquadrarem nos
padrões estéticos defendidos pelo regime nazista. Nos cartazes do Der Stürmer se destacam
pela utilização de cores marcantes como, por exemplo, o roxo.
No exemplo a seguir (Figura 3) temos uma demonstração dessa diferença de
caracterização que ultrapassava os limites físicos, pois diferente do grupo “constituído por
homens brutais, movidos a ressentimentos e dotados de impulsos violentos”15 destinados
principalmente aos judeus, o soldado alemão da S.A semeia a terra com a suástica nazista16.
Já o judeu, chamado de toupeira, correria do imponente alemão “iluminado” pela
ideologia nazista, ou seja, ali não teria mais o seu lugar. Além disso, eram frequentemente
looks not for new arguments but new evidence, new examples.” IBIDEM, p.26.
19 PEREIRA in HERF, Jeffrey; Inimigo Judeu: propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial
e o Holocausto/ Jeffrey Herf; tradução de Walter Solon. – São Paulo: EDIPIRO, 2014, p.21.
No primeiro cartaz (figura 4), publicado em setembro de 1934, temos três judeus
que atacam uma menina polonesa e tomam seu sangue em um cenário sombrio. Além do
mito do ritual, podemos perceber a retórica sexual, que tornou-se um elemento marcante
no discurso do Der Stürmer, ao representarem a menina indefesa e despida cercada por
judeus, novamente representados em colorações de destaque e que os diferenciam de suas
vítimas.
Imagem 4 DER STÜRMER. The polish Girl slaughtered according to reliigous rites. Setembro,
1934.
A menina polonesa massacrada, abatida de acordo com os ritos religiosos
Eles atraem a menina para a floresta, amarram e amordaçam ela, bebendo sangue de seus pulsos cortados.
20SLOYAN, Gerald S. Christian Persecution of Jews over the Centuries: Introduction. United States
Holocaust Memorial Museum, Washington, DC. https://www.ushmm.org/research/the-center-for-
advanced-holocaust-studies/programs-ethics-religion-the-holocaust/articles-and-resources/christian-
persecution-of-jews-over-the-centuries. Acesso em 09.09.2019 às 23:19.
Conclusão
A partir dessas publicações do Der Stürmer podemos entender o papel que o mesmo
teve dentro do arsenal propagandístico de Hitler. Evidentemente, Julius Streicher não foi o
responsável pela elaboração da Solução Final Judaica, porém suas publicações forneceram
uma significativa contribuição na disseminação e difusão das ideias nazistas e antissemitas
em relação aos judeus. Ao final da Segunda Guerra Mundial em 1945, quando Streicher foi
julgado em Nuremberg por crimes de ódio contra a humanidade21, é inegável a sua
participação no Holocausto, mesmo que indireta, na forma de discursos de ódio.
Seus cartazes violentos reproduziram as formulações do partido nazista e seus
membros acerca dos judeus, promovendo de forma sistemática a repetição de estereótipos
físicos e comportamentais que, segundo Streicher, Hitler e seus associados, descreveriam o
judeu inimigo da sociedade alemã, que deveria ser identificado e combatido por todo
cidadão alemão preocupado com o bem-estar do país. Concluímos que foram elementos
essenciais para a disseminação do antissemitismo nazista dentro do arsenal propagandístico
do Terceiro Reich.
21 Ver mais em: United States Holocaust Memorial Museum. Avaliando a culpa.
https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=1000782. Acesso em 10.09.2019 às 18:37.
Bibliografia
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às 16:38.
___________________. Avaliando a culpa.
https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=1000782. Acesso em
10.09.2019 às 18:37.
Resumo
Introdução
Um partido sem agenda política. Ao longo dos governos petistas, esta máxima
esteve presente na análise de muitos estudos sobre a atuação política do PSDB. O Partido
dos Trabalhadores teria sido responsável por, no governo, capturar as principais bandeiras e
o modo de gestão política dos tucanos, convertendo-se em fiador da ordem capitalista no
Brasil, atuando sobre os bolsões de miséria com políticas assistencialistas que abriam
caminho para o aprofundamento do despotismo do capital no país.
Este processo foi analisado, do ponto de vista da relação entre setores da classe
trabalhadora e o Partido dos Trabalhadores, por Mauro Iasi (2006). Analisando como o PT
progressivamente se transforma em um partido da ordem, o historiador cunha uma noção
importante: a de metamorfose petista. Se a ideia busca dar conta da mudança ocorrida na sigla
entre a década de 1980 e o início dos anos 2000, a crítica que a escolha das palavras abriga é
ainda mais radical do que os juízos comumente formulados sobre o tema. “Metamorfose”,
1 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. A pesquisa faz parte da minha tese de
doutorado, intitulada As contradições da democracia e o Instituto Fernando Henrique Cardoso (2004-2019),
apoiada pelo CNPq. E-mail para contato: dmdpaulo@gmail.com
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_________________________
afinal, é uma mudança de forma, mas que está contida como possibilidade no conteúdo do
objeto transformado.
Aludir à metamorfose tucana, assim, tem objetivo semelhante. Trata-se também de
tentar capturar as transformações na sigla, motivadas por múltiplas forças que se coligem
na determinação de seu posicionamento político, mas que já estavam contidas como
possibilidade desde suas origens. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil tem no
processo sua responsabilidade fundamental, mas não se pode esquecer das disputas com o
petismo – signo de quase 30 anos de história do mais recente sistema partidário brasileiro.
O posicionamento relativo dos tucanos, assim, sempre respondeu à atuação do mais
importante partido da esquerda brasileira. Seu flerte com a extrema-direita, portanto, deve
ser explicado levando em conta estes fatores.
O texto apresenta uma narrativa dos principais eventos da fase mais recente desta
metamorfose, quando, vendo-se relegado à oposição por quatro eleições presidenciais
seguidas, o PSDB ameaça romper com as regras do jogo. Vencido por Dilma Rousseff em
2014, Aécio Neves não reconhece a derrota, buscando judicializar a eleição, no que muitos
viram como tentativa de forçar um “terceiro turno”. O passo do então senador, apesar de
dramático, não deve ser superdimensionado. Trata-se de uma postura partidária, que é
coerentemente seguida por instituições parceiras da legenda, como o Instituto Fernando
Henrique Cardoso, importante centro de articulação política dos peessedebistas. A
ascensão do bolsonarismo e a derrota acachapante em 2018, assim, podem até ter pego o
PSDB de surpresa, mas não foram raios no céu azul dos caciques do partido. Ao contrário,
foram resultados possíveis diante das escolhas assumidas em momentos graves da história
do Brasil recente.
A história de duas derrotas: como o Novo PSDB nasce do velho entre 2014 e 2018
12h43)
11Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/eleicoes/2016/noticia/2016/10/joao-doria-do-psdb-e-
eleito-prefeito-de-sao-paulo.html (acessado em 21/10/2020 às 12h31)
12 Disponível em: https://blogdarose.band.uol.com.br/kim-kataguiri-diz-que-doria-sera-o-candidato-do-mp-
21/10/2020 às 12h32)
14Disponível em: https://istoe.com.br/o-furacao-doria/ (acessado em 21/10/2020 às 12h21)
Enquanto Dória era alçado campeão da direita, Geraldo Alckmin trabalhava nos
bastidores. Sem o mesmo carisma do prefeito de São Paulo, o então governador do Estado
buscava apoio político no seio da burguesia brasileira. Na conjuntura em que a mídia
empresarial trabalhava antecipadamente a candidatura de Dória à sucessão de Temer,
Alckmin apresentava-se como pré-candidato à presidência no Grupo de Líderes
Empresariais (Lide)15. Em meados de 2017, era inegável a disputa entre os dois tucanos em
torno da candidatura pelo partido, conforme reconhecia FHC16.
A peleja pela nomeação tucana encontrou o Instituto Fernando Henrique Cardoso,
importante centro de articulação tucana, ao lado do pré-candidato considerado “mais
moderado”. Se João Dória Jr. se mostrava agressivo em 2017, dialogando estreitamente
com os movimentos da extrema-direita que tinham ocupado as ruas do país desde 2015,
Geraldo Alckmin adotava tom conciliatório, sendo preferido pelos “caciques da sigla”
frente a outros tucanos tradicionais, como José Serra e o próprio Aécio Neves, vistos como
mais expostos à ação da Lava-jato17. Pelo menos assim defendeu o diretor do IFHC, Sérgio
Fausto, para quem o governador de São Paulo iria “bem na partida mesmo jogando sem
bola”, deixando claro o candidato da entidade, mas também do partido.
O Alckmin está na vida política há 40 anos, é um protagonista em São
Paulo há mais de 20 anos. O prefeito tenta reduzir essa vantagem
deliberadamente buscando uma exposição intensa, sobretudo nas mídias
sociais, e viajando pelo país. (...) O fato do governador ser o pole position
do partido obriga o prefeito a fazer manobras arriscadas. Ele acaba se
tornando mais conhecido nacionalmente do que um prefeito novato
seria, mas isso gera um desgaste18.
15 O Grupo de Líderes Empresariais (Lide) reúne os CEO’s e diretores das principais empresas brasileiras,
que juntas somam 50% do PIB nacional Ver: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/03/1864021-
doria-diz-que-e-grato-a-alckmin-e-que-governador-e-seu-candidato-a-presidente.shtml e
http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/alckmin-faz-palestra-aos-empresarios-do-lide-sobre-crescimento-
economico/ (acessado em 12/10/2020 às 4h31)
16Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/fhc-e-natural-disputa-entre-alckmin-e-doria-por-
candidatura-11092017 (acessado em 12/10/2020 às 12h31)
17Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/10/politica/1507647757_113301.html (acessado
em 12/10/2020 às 12h37)
18Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/10/politica/1507647757_113301.html (acessado
em 12/10/2020 às 12h41)
referindo-se ao atentado que, no mesmo mês, foi dirigido contra o candidato da extrema-
direita após um comício no Espírito Santo.
A gravidade de uma facada com intenções assassinas ter ferido o
candidato que está à frente nas pesquisas eleitorais deveria servir como
um grito de alerta: basta de pregar o ódio, tantas vezes estimulado pela
própria vítima do atentado. O fato de ser este o candidato à frente das
pesquisas e ter ele como principal opositor quem representa um líder
preso por acusações de corrupção mostra o ponto a que chegamos25
Comentários finais
PT-SP, e sua aliança com Bolsonaro nas eleições de 2018, com a formação do Bolsodória
em São Paulo, sela o processo.
Que as atuais desavenças com o agora presidente Jair Bolsonaro não façam os
analistas esquecerem da origem de João Dória Jr, líder do “Novo PSDB”. Ali está contido a
substância do atual estágio da metamorfose tucana. De alguma forma, quando o agora
governador se opõe a Bolsonaro, o que é encenada é a tentativa de um partido que busca
representar o processo recivilizador da burguesia rebelada pelo bolsonarismo.
Bibliografia:
CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. A nova direita. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
GUIOT, A. P. Um moderno Príncipe para a burguesia brasileira. O PSDB (1988-2002).
Dissertação de Mestrado, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006.
IASI, M. L. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o
consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
Resumo
O episódio
CODAGRO), 18/mar/1988.
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uma das principais articuladoras das CEBs e da PJMP na paróquia. No final dos anos 1980, foi atuante
militante do MST no estado.
6 Livro de Atas da Câmara Municipal de Itapiúna, 06/fev/1988, fls.186f-187-f.
7 Inquérito Policial, op. cit., fls.10, depoimento de Padre Eudásio, 23/mar/1988.
seus filhos estavam passando fome e que iam arrumar alimentos para levar para casa” e
que, “como nada conseguiram, iam resolver aquela situação”8. Daí em diante, os
esclarecimentos sobre o episódio nas fontes escritas tornam-se cada vez mais
intencionalmente estreitos e evasivos. Nenhuma declaração poderia dar-se ao luxo de ser
escorregadia, transformando-se de alguma forma em prova de que a ação teve “motivação
política” e foi organizada por “aproveitadores”. Neste ponto, os relatos orais, colhidos mais
de quinze anos depois, expressam abertamente os silêncios e preenchem parte das lacunas9.
Num rápido momento de deliberação, o grupo cogitou saquear de um depósito de
merenda escolar, mas decidiu pelo armazém de grãos da Codagro (Companhia de
Desenvolvimento Agropecuário do Estado do Ceará). No mesmo momento, militantes da
Igreja articularam uma nova reunião com o prefeito e pediram a presença de duas
funcionárias da prefeitura que acompanhavam a movimentação do grupo. Conjecturaram
que que caso soubessem que o saque estava prestes a acontecer, tentassem evitá-lo
distribuindo alimentos: avaliavam essa possibilidade “paliativo assistencialista”. Enquanto a
reunião acontecia na prefeitura, Auxiliadora permaneceu no salão paroquial para definir
algumas “estratégias” de ação do saque.
A escolha da Codagro não foi aleatória e diz muito da percepção de usos e limites
da noção de propriedade. Oficialmente ela não era uma empresa inteiramente pública. De
capital misto e controlada pelo Governo do Estado, possuía funções mercantis fornecendo
sementes e material agrícola a preço subsidiado. A distribuição de sementes que realizava
pelo programa Arrancada da Produção (iniciativa do Governo Tasso Jereissati que contava
de grande publicidade) e as atividades de assistência promovidas em parceria com Ematerce
(Empresa de Assistência Técnica e Extensão do Ceará), tornavam-na reconhecida como
instituição pública e, portanto, sujeitas às obrigações morais que recaem sobre este tipo de
entidade. Para além da percepção, havia uma questão mais prática: era de conhecimento
público que o armazém tinha recebido e estocado sementes e já estava distribuindo-as, mas
somente às famílias cadastradas no Arrancada da Produção. A queixa geral era de que havia
muitas famílias não contempladas com o benefício10.
Então, o grupo se dirigiu em caminhada ao armazém, localizado a trezentos
metros do salão paroquial. Na rua, o movimento chamou a atenção e vários moradores da
8 Inquérito Policial, op. cit., fls.10-11, depoimentos de Padre Eudásio e Auxiliadora Beserra, 23/mar/1988.
9 Entrevistas com Auxiliadora Beserra (13/out/2004), Padre Eudásio (18/out/2007), Valdízia Freitas
(02/07/2007).
10 Inquérito Policial, op. cit., fls.12, depoimento de Zé Paulo, 23/mar/1988.
cidade se juntaram ao grupo, sentido ou sabendo o que estava por vir. Aglomerados e
indignados, protegidos pela solidariedade coletiva e por um certo anonimato, homens e
mulheres começam a assediar o local e passaram a ameaçá-lo de invasão caso as sementes
não fossem entregues. Joaquim Almeida, ex-presidente do Sindicato Rural e funcionário do
Posto, tentou controlar a situação prometendo conseguir pelo telefone autorização com
seus superiores em Baturité. Com a promessa, os que assumiam a dianteira da negociação –
Zé Paulo, Bigá e outro rapaz não identificado nos depoimentos – “esfriaram um pouco”.
Mas “as pessoas presentes”, várias mulheres, pressionaram e estimularam o arrombamento
através de falas impetuosas denunciando a promessa do funcionário como estratagema. Ao
meio-dia, o ato foi consumado: oitenta pessoas abriram caminho, mas o número de
envolvidos(as) chegou a centenas11. Tudo foi levado: três toneladas de sementes (arroz-
com-casca, milho, algodão) e também enxadas, ferramentas e inseticidas. Rapidamente a
multidão se dispersou levando consigo os despojos da ação tumultuária.
Noções de justiça
11 Inquérito Policial, op. cit., fls.08, depoimento de Joaquim Almeida Bezerra, 23/mar/1988.
12 Inquérito Policial, op. cit., fls.09, depoimento de José Gomes Furtado, 23/mar/1988.
na sua própria aceitação da economia moral13 que legitima a justiça popular dos saqueadores14.
Em cada depoimento, o interrogatório seguia essa linha de arguição: encontrar testemunhas
que delatassem possíveis “incentivadores” para comprovar se o saque fora realmente
“justo”, ou seja, se os camponeses – e somente a eles era dada essa permissão – foram
impulsionados pela “necessidade”.
Na cidade, espalhou-se o boato de que Padre Eudásio e Auxiliadora eram
responsáveis por incentivar e organizar o arrombamento. Ele e ela tornaram-se os alvos
preferenciais da investigação, sento intimados a depor diversas vezes. Apesar de terem
insistindo em conseguir provas dos eventos acima narrados em nenhum dos depoentes –
saqueadores, expectadores e o funcionário do armazém – disse acreditar no boato sempre
reforçando que a fome era a causa única da revolta. Por falta de provas, impossibilidade
jurídica de condenação e pressão dos movimentos de luta articulados pela Igreja, a ação foi
declarada pela polícia, e aceita pelo judiciário, como motivada pela “fome e desespero”.
Confirmava-se um lugar-comum na repressão política contra movimentos camponeses no
Ceará na segunda metade do século XX: tentativas de julgar supostos saqueadores
esbarravam sempre na silenciosa solidariedade social para com os famintos e na
permanência de mecanismos jurídicos que impedem a criminalização de ações motivadas
pela necessidade de sobrevivência15.
Narrando o percurso de mobilizações nas secas no município, Seu Alberto,
camponês militante da pastoral da terra, constrói um argumento que enfatiza a fome e a
carência como causa direta do motim e ao mesmo tempo demonstra a complexa rede de
negociação e expectativas construídas diante do aviltamento das condições de vida dos
pobres.
A gente se reunia lá no prefeito para falar um plano de emergência para
os trabalhadores. Chegava lá, marcava pra semana-que-entra, “semana-
13 THOMPSON, EP. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
14 NEVES, Frederico de Castro. A Multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000.
15 NEVES, Frederico de Castro. A Seca na História do Ceará. In: SOUZA, Simone de (org.). Uma Nova
História do Ceará. 3.ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p.99. O Código Penal de 1940, e sua
reformulação parcial de 1984 (Lei n.º 7.209), incorporaram a noção de “estado de necessidade”, abrangendo
aqueles que praticam “o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de
outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-
se”(art.24). Dentre as situações características do “estado de necessidade” está o “furto famélico”, onde há
“subtração de alimentos para salvar alguém de morte por inanição. Neste caso, seu praticante é absolvido de
culpa criminal já que a fome como situação-limite o levou a agir em nome da vida”. NEVES, Frederico de
Castro. A Multidão e a História, op. cit., p.115.
Conclusão
bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947. Revista Brasileira de História, v.25, n.50. São Paulo jul/dez
2005, p.50.
era concebida como dádiva: ela carregava a dinâmica da reciprocidade desigual. Eleitos, os
políticos ganhavam uma dívida que deveria ser saldada através da promoção do bem-estar e
da justiça, uma dada cultura política19 que mesclava referências de uma ordem social
paternalista em crise20 e da crescente e imperfeita incorporação da noção dos direitos como
esfera da cidadania plena21. O rompimento dessa retribuição foi o estopim da revolta.
Então, colocou-se em cena a aspiração camponesa por um “tratamento digno, respeitoso e
que reconhecesse a legitimidade da sua fala, a justeza das suas demandas e a propriedade
dos seus direitos”22. Nesse sentido, o arrombamento se configura como o que Adriano
Luiz Duarte nominou de adensamento de conflitos latentes, um momento de impasse nas
contradições sociais, que não puderam mais ser contidas pela formalidade da política. As
tensões oriundas de uma profunda exclusão social e da ausência de reciprocidade se
expressaram no assalto ao posto da Codagro.
Por outro lado, a atenção às motivações que escapam ao argumento famélico não
significa que as condições materiais dos saqueadores tenham pouco valor na compreensão
do episódio. Elas pontuam, por suposto, a necessidade de avaliação das circunstâncias
materiais por onde os trabalhadores lançaram seu protesto. Dão pistas valiosas sobre a
utilização de mecanismos de significação simbólica na legitimação de suas ações. Nelas
estão as bases por onde se reproduziram a ação dos movimentos populares, em Itapiúna
articulados às pastorais católicas. As condições socioeconômicas responsáveis pela
vulnerabilidade da classe pontuam a urgência de entendimento da forma peculiar pela qual
são constituídas táticas e estratégias de sobrevivência. Assim, pensar a noção de insegurança
implica ver que “toda sorte de rede comunitária (assim como a formação de identidades
locais em geral) vem a ser uma ferramenta decisiva para lidar com a incerteza inerente à
vida cotidiana”23. Estas mesmas práticas de resistência foram parte constitutiva das relações
vividas por estes sujeitos e tornaram-se vitais na constituição de redes sociais e de um
espaço público onde eles puderam construir identidades e lutar por direitos24, criando um
Trilhos e Atalhos do Poder: conflitos sociais no sertão. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992.
21 BESERRA, Bernadete de L. Ramos. Movimentos Sociais no Campo do Ceará (1950-1990). Fortaleza: Imprensa
Universitária, 2015.
22 DUARTE, Adriano Luiz. O dia de “São Bartolomeu”, op. cit., p.51.
23 SAVAGE, Mike. Classe e História do Trabalho. In: BATALHA, Cláudio H. M., SILVA, Fernando T. da e
1966). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da Unicamp: Campinas, 2002, p.13.
campo de reconhecimento coletivo sobre quais práticas eram legítimas para o exercício da
atividade política25.
Bibliografia
BARREIRA, César. Trilhos e Atalhos do Poder: conflitos sociais no sertão. Rio de Janeiro: Rio
Fundo Editora, 1992.
BESERRA, Bernadete de L. Ramos. Movimentos Sociais no Campo do Ceará (1950-1990).
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2015.
DUARTE, Adriano Luiz. O dia de “São Bartolomeu” e “o carnaval sem-fim”: o quebra-
quebra de ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947. Revista Brasileira de
História, v.25, n.50. São Paulo jul/dez 2005.
FONTES, Paulo Roberto R. Comunidade Operária, Migração Nordestina e Lutas Sociais: São
Miguel Paulista (1945-1966). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História
da Unicamp: Campinas, 2002, p.13. (mimeo)
KUSCHNIR, K. e PIQUET CARNEIRO, L. As Dimensões Subjetivas da Política: Cultura
Política e Antropologia da Política. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro:
CPDOC/FGV, n. 24, 1999, p. 227-250.
NEVES, Frederico de Castro. A Multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará.
Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000.
NEVES, Frederico de Castro. A Seca na História do Ceará. In: SOUZA, Simone de (org.).
Uma Nova História do Ceará. 3.ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
PACHECO, Ricardo de A. Cidadania e Identidade Social: uma aproximação teórica para o
entendimento das representações e práticas políticas. MNEME: Revista de Humanidades. v.1,
n.1, ago/set 2000.
SAVAGE, Mike. Classe e História do Trabalho. In: BATALHA, Cláudio H. M., SILVA,
Fernando T. da e FORTES, Alexandre. Culturas de Classe. Campinas: Editora da Unicamp,
2004.
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Revisão técnica: NEGRO, Antonio,
NEGUELLO, Cristina, FONTES, Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
25PACHECO, Ricardo de A. Cidadania e Identidade Social: uma aproximação teórica para o entendimento
das representações e práticas políticas. MNEME: Revista de Humanidades. v.1, n.1, ago/set 2000, p.1.
Resumo
Entre os anos de 2007 e 2014, a cidade do Rio de Janeiro recepcionou alguns megaeventos
esportivos e para atender as demandas apresentadas pelas instituições internacionais
esportivas, as cidades- sede passam por uma reestruturação e série de intervenções, que
deixam marcas profundas na cidade. É nesse cenário que a comunidade Vila Autódromo
num processo de luta pela moradia e pelo direito à cidade instrumentalizou a memória na
ação combativa, a partir da criação do museu das remoções, se voltando para as percepções
emancipatórias de cultura e memória que diversos grupos manifestam nos dias atuais. O
presente trabalho pretende relacionar a discussão acerca da história do tempo presente com
o uso político da memória, na construção da identidade desse grupo social.
Introdução
A cidade do Rio de Janeiro, nas duas primeiras décadas do século XXI, obteve o
status de “cidade dos megaeventos esportivos”2, em decorrência de ter recepcionado os
Jogos Pan-Americanos de 2007, os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Verão em 2016 e
por ter sido uma das cidades- sede da Copa do Mundo de 2014. A realização desses
grandes eventos internacionais não se restringiu apenas ao ramo esportivo, mas foi nele que
teve maior repercussão, abrangência e impacto no espaço urbano. A ascensão do modelo
neoliberal de gestão urbana, sobretudo a partir da década de 1990, baseada num
planejamento mercadológico do espaço traz consigo um urbanismo olímpico que deixa
marcas profundas decorrentes da reestruturação e das intervenções realizadas nas cidades-
sede3. A aliança entre “a nova economia do esporte e o novo paradigma de planejamento e
1Mestranda do Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS/UFRJ). E-mail para contato: igomes020@gmail.com.
2 VAINER, C. et al. O plano popular da Vila Autódromo, uma experiência de planejamento conflitual. Anais: Encontros
4 MASCARENHAS, Gilmar et al (orgs.). O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011. p. 36.
5 HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no
capitalismo tardio. Espaço & Debates, 1996, n. 36, pp. 48- 64.
6 GALIZA, Helena R. dos S.; VAZ, Lilian F.; SILVA, Maria L. P. da. “Grandes eventos, obras e remoções na
cidade do Rio de Janeiro, do século XIX ao XXI”. Anais da II Conferência Internacional Megaeventos e a
Cidade, 2014, Rio de Janeiro. p. 10.
7 Cf. BRUM, Mario. Cidade Alta: História, memória e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de
Discussão Teórica
8 FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de
Janeiro: Mórula, 2015. p. 54.
9 Cf. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
10 Cf. DE PAOLI, Paula Silveira. Crônicas de uma cidade em obras. O projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro
das Olimpíadas 2016 – maio/agosto.2016. A entrega das obras e as Olimpíadas. Rio de Janeiro: Rio Books –
1ª edição, 2018.
patrimônio cultural nas favelas”11. Ao fazerem uma breve revisão bibliográfica sobre a
temática da habitação popular e o seu estudo pelas ciências humanas e sociais, demonstram
que a produção científica é majoritariamente proveniente da sociologia, geografia e
antropologia, enquanto que a perspectiva histórica passa a ser ampliada a partir da visão
contemporânea que adota uma postura de “compromisso com a afirmação dos habitantes
das favelas, suas formas de organização e pensamento, como sujeitos sociais do processo
histórico”12.
Diante dessa demanda, a História Oral, a História Social e a História do Tempo
Presente caminham paralelamente, em relação intradisciplinar, na tentativa de responder as
novas perguntas feitas pelo/ao historiador. Assim, de acordo com Voldman “se a História
oral é entendida como um método, ela deve incluir-se na História do Tempo Presente”13,
visto que essa metodologia seria empregada no processo de estudo das problemáticas
discutidas em virtude de acontecimentos passados que estão ligados ao presente. Partindo
da premissa que “toda história depende, basicamente, de sua finalidade social”14, a adoção
da metodologia, teoria e técnica da História Oral permite uma abordagem inovadora no
sentido de servir-se da oralidade e da memória como uma fonte documental e,
principalmente, atribuir protagonismo aos grupos frequentemente silenciados, tal como se
pretende realizar no desenvolvimento desta pesquisa com os moradores de favela que
passaram por processo de remoção. Portanto, esse viés ocasiona uma nova relação do
historiador com o sujeito histórico gerando uma reflexão acerca da “pertinência social da
história”15.
Dessa maneira, a lente da História Social está sendo empregada ao tratar da
dimensão social que constituiu o movimento de bairro em prol da luta pela moradia, e um
interesse na constituição, seleção e uso de sua memória, por meio do estudo específico
voltado para este grupo social. Especialmente, enquanto História do Tempo Presente,
Marieta Ferreira chama a atenção para o tratamento metodológico de testemunhos diretos
que dever receber os mesmos critérios e cuidados que são dedicados à produções do
11 KNAUSS, Paulo; BRUM, Mario Sergio. “Encontro marcado: a favela como objeto da pesquisa histórica”.
In: MELLO, Marco Antônio da Silva et al. (orgs.). Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond,
2012. p. 121.
12ibid.,p. 130.
13 VOLDMAN, Danièle. “Definições e usos”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.).
Usos e abusos da História Oral – 8ª ed – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 34.
14 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 20.
15 FRANÇOIS, Etienne. “A fecundidade da história oral”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína (org.). Usos e abusos da História Oral – 8ª ed – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 10.
campo da História sobre tempos pretéritos. Ferreira chama a atenção, ao citar Pollak, que
“essa abordagem possibilitou uma abertura para a aceitação do valor dos testemunhos
diretos, ao neutralizar as tradicionais críticas e reconhecer que a subjetividade, as distorções
dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova
maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte adicional para a pesquisa”16.
Abrindo uma discussão interdisciplinar com o ramo da Geografia Histórica e dos
Ativismos Sociais, Rodrigues expõe a importância da atribuição do protagonismo aos
ativismos sociais na ampliação da discussão acadêmica, visto que tomando essa ação
conjunto como princípio da análise “estamos nos descolando do olhar de sobrevoo e
partindo diretamente das formas concretas através das quais homens e mulheres vivenciam
e experimentam as contradições e os conflitos”17.
Entendendo por ativismo social o conceito elaborado pelo geógrafo Marcelo Lopes
de Souza18 que o observa numa posição intermediária entre o movimento social e a simples
ação coletiva. Portanto, assumindo um caráter amplo de ação coletiva enquanto que o
movimento social, não deixando de ser um tipo de ativismo, possui características
elementares como: uma profunda consciência crítica e ansiosa por mudar o status quo, estar
aberto ao público, ser organizado e possuir uma extensão cronológica. Em sua dissertação
de mestrado O que pode o ativismo de bairro? Reflexões sobre as limitações e potencialidades do ativismo
de bairro à luz de um pensamento autonomista, o geógrafo entende que tomando como ponto
inicial a luta pelo bairro, envolvendo tanto os referenciais políticos quanto os afetivos, há
uma expansão dos horizontes das reivindicações por melhores condições de vida no espaço
urbano, promovendo uma ação coletiva ampla que gera uma transformação do simples
ativismo de bairro para o movimento de bairro, ressaltando que “nestas circunstâncias, não
estaremos diante de uma simples luta de bairro, mas de uma luta a partir do bairro, ou,
mesmo, de uma luta também do bairro”19.
A luta da Vila Autódromo por sua ação de resistência pela permanência no local de
origem extrapola o âmbito do ativismo social de bairro e passa a ser compreendido como
16 FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3,
maio/jun., 2000. p. 110.
17 RODRIGUES, Glauco Bruce. Geografia histórica e ativismos sociais. GeoTextos, vol. 11, n. 1, julho 2015. p.
234.
18Cf. SOUZA, Marcelo Lopes de. A “nova geração” de movimentos sociais urbanos e a nova onda de interesse acadêmico
Considerações Finais
Diante de tudo o que foi exposto neste trabalho, nas seções anteriores, é notória a
luta coletiva da comunidade Vila Autódromo pela permanência num território que vem se
20 Cf. OLIVEIRA, Fabrício Leal de. “Introdução”. In: TANAKA, Giselle et al (orgs.). Viva a Vila Autódromo:
o plano popular e a luta contra a remoção – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. pp. 18- 22.
21 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. “Os museus e a cidade”. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário
(orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª edição – Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.p. 136.
22 Cf. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Centauro: 2006.
23 Cf. NORA, P. “Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux”. In: NORA, P. Les lieux de mémoire.
colocando numa posição confluente com a criação das novas centralidades econômicas na
cidade do Rio de Janeiro. A estratégia da instrumentalização da memória como ferramenta
de ação combativa na dinâmica da disputa pelo território é o que caracteriza o surgimento
do museu das remoções e faz surgir a proposta uma pesquisa científica que atue nas lacunas
das obras já existentes. Articular os campos da História do Tempo Presente, da História
Oral e da Memória se fazem necessários para pensar a dinâmica da construção de diversos
grupos sociais, que atuam como agentes produtores do espaço e da história urbana.
Bibliografia
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habitacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.
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33- 41.
Anexo:
Lisia Cariello1
Resumo
Introdução
3 FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 3ed. Rio de Janeiro: EPSJV/UFRJ, 2010. p.
149.
4 LENIN, V. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 2011.p.124
(Orgs). Empresariado Brasileiro: história, organizações e ação política. Rio, Consequência, no prelo.
8 O debate sobre a melhor maneira de qualificar as frações da burguesia é, ao mesmo tempo, necessário,
porque ajuda-nos a refinar nossas análises, e espinhoso, porque a imbricação das diferentes formas de capital
torna essa tarefa mais difícil a cada dia. Nicos Poulantzas é um dos autores que nos ajuda a pensar sobre o
tema. Argumenta ele em Poder Político e Classes Sociais (2019) que podemos identificar as frações da burguesia
É na década de 1980, então, que Jorge Paulo Lemann vai dar seu passo para entrada
na produção de cerveja. A aquisição da Brahma, através da Braco aconteceu em 1989, ano
da primeira eleição direta para o executivo federal pós-ditadura. De um lado, Fernando
Collor de Mello, político alagoano que vinha como candidato do Partido Trabalhista
Cristão e que prometia acabar com a corrupção “caçando os marajás”. Do outro lado, Luiz
Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, líder sindicalista, o que não agradava os
empresários brasileiros da época. Temendo o resultado das eleições os sócios do Banco
Garantia julgaram que seria uma boa hora de expandir seus negócios. Compraram, então,
através da Braco, as ações da Brahma dias depois do primeiro turno das eleições. Lemann,
Beto Sicupira e Marcel Telles assumiram o controle da empresa com 57,7% do capital.
As informações sobre a história da Brahma até a AB InBev têm como base,
fundamentalmente, o livro De um gole só: a história da AmBev e a criação da maior cervejaria do
mundo que foi publicado em 2019 fruto de um trabalho de três anos e de mais de 170
entrevistas da jornalista paulista Ariane Abdallah. Vale dizer, entretanto, que ela levou o
livro antes de publicá-lo para o setor de comunicação da AB InBev que, quando soube do
projeto, contribuiu com ele. O caso de crescimento de Jorge Paulo Lemann e, mais
pela função do capital (comercial, industrial, bancária), pela escala de atuação, ou seja, pelo grau de
concentração e centralização (grande, média e pequena burguesia), ou pela sua relação com o imperialismo
(compradora, interna, nacional). É, entretanto, necessário dizer que não é um pensamento estanque, já que
dinâmica capitalista faz com que esses sistemas de funcionamento se entrecruzem.
9 Ibidem, p.4
10 Em busca rápida no site da justiça brasileira, em que é possível rastrear os processos que citam o nome de
Jorge Paulo Lemann, encontramos 19, dentre os quais apenas um é da vara do trabalho. Disponível em <
https://www.jusbrasil.com.br/processos/nome/29058284/jorge-paulo-lemann > Acesso em 12 jul.2020.
11 ABDALLAH, Ariane. De um gole só: a história da AmBev e a criação da maior cervejaria do mundo. São
O comando da AmBev ficou nas mãos de sujeitos que vinham da Brahma, como
Magim Rodrigues, que havia sido por muitos anos o braço direito de Marcel Telles na
cervejaria. O modus operandi permaneceu: demissões. Antes da fusão, as duas empresas
totalizavam 18,5 mil funcionários, sendo aproximadamente 10 mil da Brahma e 8 mil da
Antarctica. Em 2002 eram 17 mil os funcionários da AmBev.
Na zona administrativa, a AmBev nasceu com cinco diretorias regionais: norte,
nordeste, sul, sudeste e centro-oeste. Cada uma delas tinha dois núcleos, um fabril e um de
vendas. Havia, em cada núcleo, uma área para suporte – financeiro, compras, gente e
gestão. Mas este modelo não durou muito tempo, pois Magim encontrou uma solução para
enxugar esta estrutura. Em parceria com Vicente Falconi, criaram o Centro de Serviços
Compartilhados (CSC), que visava concentrar os trabalhos de apoio às principais áreas que
até este momento estavam diluídas nos cinco escritórios regionais.
Estão, atualmente no catálogo da AmBev, de acordo com o site, as cervejas:
Adriática, Antarctica, Beck’s, Bohemia, Brahma, Budweiser, Caracu, Colorado, Corona,
Franziskaner, Goose Island, Hertog Jan, Hoegaarden, Leffe, Legítima, Löwenbräu,
Magnífica do Maranhão, Norteña, Nossa, Original, Patagonia, Polar, Quilmes, Serralmalte,
Serrana, Skol, Stella Artois, Três Fidalgas e Wals. O chopp Brahma, o chopp Brahma black
e a Skol Beats também fazem parte das marcas. Dentre os não-alcoólicos estão o Guaraná
Baré, Citrus, Guaraná Antarctica, H2OH!, Pepsi, Soda, Sukita, Tônica, o energético Fusion,
o chá Lipton e a água Ama14.
Se no Brasil a expansão da Brahma – em sua fusão com a Antarctica – se deu no
fim da década de 1990, no exterior este movimento começou no início da década.
Facilitada por acordos comerciais – como o Mercosul e o Pacto Andino – a Brahma,
escolheu expandir seu mercado em direção à Argentina e à Venezuela, já que eram os dois
mercados de cerveja com maior possibilidade de crescimento que eram dominados por
uma marca de cerveja, respectivamente, Quilmes (73% do mercado argentino) e Polar (com
75% do mercado venezuelano).
13 Ibidem, p.116.
14 AMBEV, s/d, disponível em em < https://www.ambev.com.br/marcas/cervejas/ > Acesso 01 mar. 2020.
15 É um acordo entre duas ou mais empresas que estabelece alianças estratégicas por um objetivo comercial
comum, por tempo determinado.
16 ABDALLAH, op.cit., p. 189.
17 Ibidem, p.207.
Considerações finais
18 Ibidem, p.208.
19Disponível em < https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2016/09/28/fusao-da-
sabmiller-com-ab-inbev-gera-maior-cervejaria-do-mundo.html > Acesso em 01 mar. 2020.
Bibliografia
Resumo
Introdução
blusa regata preta que mostrava os cabelos do peito; segurando o microfone com uma mão
e com a outra saudando a audiência presente. Naquele dia, os jovens e homens estavam
atentos a apresentação que tinha elementos sonoplásticos remetentes ao período medieval,
efeitos que lembravam espadas se chocando, flechas e gritos de homens sendo mortos no
campo de batalha, tudo aquilo encantava todos presentes que curtiam as músicas da banda
que cantava em português falando sobre coragem, força e poder.
Quando frequentava eventos de Heavy Metal na cidade de Campina Grande-PB,
observei que este era um campo social de maioria do gênero masculino, com que os
membros compartilhavam um ar de amizade e fraternidade, alguns membros diziam
quando estavam nos shows que se sentia “entre iguais”. No entanto, para ser considerado
um “igual”, identifiquei membros interessados na situação identitária do outro, se era um
indivíduo de confiança e respeito, esta ação não era despretensiosa, pois o conhecimento
gerado a partir disso eles qualificariam o indivíduo com qualidades desejáveis e indesejáveis
a identidade Headbanger2.
Entretanto, durante o período em que estive acompanhando esta comunidade,
percebi algumas particularidades, na prática à identidade, mais especificamente, a
masculinidade em diversas formas representativas dos Headbangers, muitas vezes esta
prática é dissimulada (em tempo e espaço) na interação social. Por exemplo, é costumeiro
ouvir-se alguns membros chamando outros de falsos (poser3) por não estarem
comprometido com a identidade, angariando para si com esse enunciado a posição de
verdadeiro (truer) como sendo um comportamento expressivo deles.
Portanto, este artigo tem como objetivo principal analisar a prática da representação
masculina no Heavy Metal, a partir da realidade de pesquisa que estou desenvolvendo ao
longo dos anos em Campina Grande, João Pessoa-PB e Recife-PE, locais pelos quais os
membros se reúnem para assistirem aos shows de bandas nacionais e internacionais. Para
apresentar o que almejo nesse trabalho, dividi em duas partes o texto, o primeiro trata de
aspectos formativos da identidade e na segunda parte trato, mais especificamente, da
prática masculinizada dos Headbangers, pois identifiquei que a masculinidade está para
além do show, está na ação de ser Metal e, portanto, a proposta é não se limitar a dimensão
representativa mais tê-la como farol pelo qual vou desdobrando situações.
2 Estas características esperadas pela comunidade do Heavy Metal são notáveis com maior regularidade nos
espaços de sociabilidade dos shows, em que os membros que compõem e formam a comunidade se reúnem e
provam ser Metal (SANTOS, 2018).
3 Categorias nativas: poser (falso) e truer (verdadeiro).
mulheres com piadas de cunho machistas e sexistas. Por outro lado, usem do tom
cavaleiresco que bandas de Heavy Metal projetam constantemente nas músicas, para
representar um homem adulto, fiel e honrado7 para aqueles que assistem sua
representação8.
Esta prática dos homens em campo pode ser referente a maneira com que eles se
relacionam e se veem na comunidade. Para melhor explicar a situação, apresento o caso do
membro Marcelo9 que por muito tempo esteve envolvido nesse estilo de vida e se tornou
“figura estereotipada” do que é ser Headbanger pelos seus amigos, pois eles sabiam que
tudo que Marcelo fazia envolvia Metal. Em certa ocasião na cidade de Recife-PE, Marcelo
moldado nesse arquétipo foi chamado por colegas para tentar aproximação de uma mulher
(que tinha segundo eles um estilo Metal de ser masculinizado no modo de si vestir), os seus
amigos sabiam do risco que isso poderia gerar, afinal para eles a mulher tinha “cara de
poucos amigos” e Marcelo com vocabulário que ia de Sócrates a pior piada machista, no
fim, a mulher sinalizou com a cabeça negativamente para Marcelo e se retirou do ambiente
em que estavam, isso ocorreu quando esperava na fila de entrada da casa de show. Os
membros promoveram isso para dar “esperança” ao outro, cujos resultados eles já sabiam
previamente, eles projetam uma imagem do que é ser Headbanger e enfatizam essas
práticas como reais, enquanto não se permitem revelar a real natureza de tais ações, desse
modo, se garante a todos que essa performance masculina seja reproduzida socialmente.
Como falei anteriormente, estes dois aspectos, de um lado a exacerbação e do outro
a cordialidade masculina nesse ambiente é uma prática que nos guia a perceber que cada
membro da comunidade tem uma forma de se comportar, assegurar e responder aos
estímulos da interação com os outros. Não é à toa que eles enunciem constantemente
consideração ao outro como irmãos ou brothers, uma concepção que forma o que são e
projetam ser – isso atravessa as características que formam identidade dos membros da
comunidade a saber: escutar, aprender e reproduzir o estilo de vida.
Nos últimos anos acompanhando a comunidade Heavy Metal, observei alguns
membros iniciantes nesse estilo de vida participarem com mais efetividade dos shows.
7 Não pretendo com isso generalizar os indivíduos do campo ao apresentar que existem membros que
participam dos shows apenas com essas finalidades como forma de enaltecer o seu ego masculino, porém não
se pode negar que isso se apresente com frequência nos shows.
8 SANTOS, M, M. Como se faz um Headbanger? entre conversas e narrativas dos jovens Headbangers em Campina Grande.
(Monografia). Campina Grande: Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande,
2018.
9 Todos os nomes presentes nesse artigo são pseudônimos como forma de guardar a privacidade dos
mesmos.
Desde o início como, por exemplo, Franco deixou de lado a sua concepção sobre o que
não é o Metal, segundo sua visão, Metal não é para gente fraca e que isso deveria ser levado
a frente, apresentando para mim, uma prática enquanto masculinizada, enquanto isso se
dava, percebi que alguns que fazem parte desse universo social se tornaram menos
exacerbados e mais “cortês” do que apresentavam, transformando em membros
“cavaleiros” e cada vez mais devotos de atributos como a honra, autoemulada por músicos
e fãs dessa música10.
Em algumas situações observadas também pude perceber membros seguindo esse
caminho não somente pelo que agrada à comunidade imaginada11, porque podem se servir
desse meio prático do campo para resguardar o seu self dos demais. Como pude perceber
antes de conceber estes aspectos, os indivíduos têm várias experiências com os estilos
musicais dentro do Heavy Metal e suas representações do que o Headbanger deve fazer
para crer em si e com que acreditem nele12. Assim como eles não esperam nada do recém-
chegado, pois não incorporou o habitus do campo; nos anos seguintes o indivíduo passa a
obter conhecimento e ser inculcado a prática; para depois participando e demonstrando
que está frequentando é que este indivíduo passará a ser chamado e afirmado enquanto
pertencente da comunidade.
A prática da representação
10 PERISTIANY, J. G. Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrânicas. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1971.
11 ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas. Tradução: Denise Bottman. 3 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008
12 BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: O que Falar Quer Dizer. Tradução: Sergio Miceli. 2 ed. São
que seja importante de forma analítica apresentar essa dimensão da prática nos shows de
Heavy Metal.
Primeiramente, os shows de Heavy Metal, são desenvolvidos em locais que os
indivíduos ficam em pé a maior parte do tempo assistindo os shows, raras foram as casas
que realizaram esses eventos que tinham acento; o palco geralmente espaçoso para os
músicos se movimentarem com certa liberdade na hora da perfomance; ao fundo há
banners das bandas, no qual se encontra símbolos bélicos (espadas, escudos e lanças) e
“profanos” (pentagrama e cruz invertida); instrumentos (com ritmos agressivos, fortes e
tensos) e vocais (canções que tratam de mitologia, história dentro do aspecto guerreiro,
aventureiro e místico), com membros (homens e mulheres) (vestidos de preto, roupas
camufladas ou medievais. Estou resumindo os aspectos centrais que identifiquei em campo
e que foram utilizados pelos homens para realçar sua masculinidade nos momentos de
maior expressão representativa14.
Este ambiente se torna fundamental para a representação dos membros, pois é
nesse local em que tanto músicos quanto, audiência expressam-se e marcam as posições
(não quero dizer que este seja o único espaço da representação mais que nele se
potencializa a performance com vigor). Quando comparecia a estes eventos e aguardava na
frente da casa de shows, sempre observava eles chegando ao local acompanhados, o que
sempre me pareceu uma broderagem (aportuguesando o termo inglês brother) que se
tornaram simbolicamente “irmãos”15.
Refletir sobre esses aspectos da representação costumeiramente expressada nos
shows, me levou a investigar quais mecanismos possibilitam os indivíduos fazerem o que
fazem em determinadas ocasiões de interação social16. Assim, foi característico observar
nos shows a institucionalização de um espaço de domínio masculino entre eles, possuírem
e oferecerem o palco a bandas para superenfatizarem a masculinidade por meio das
canções; formas de cantar e tocar; de posicionar e legitimar quem toca ou participa da
celebração masculina nos palcos.
Ao analisar as ocasiões em que ocorrem os shows, percebi esses elementos
expressivos da representação em que cada membro espera que o outro siga aos mesmos
14 WEINSTEIN, D. The empowering masculinity of British heavy metal. In: BAYER, Gerd. Heavy Metal
Music in Britain. Farnham: Ashgate, 2009.
15 SANTOS, M, M. Como se faz um Headbanger? entre conversas e narrativas dos jovens Headbangers em Campina
Grande. (Monografia). Campina Grande: Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina
Grande, 2018.
16 GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana. Tradução: Maria Célia. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1959.
passos. Acredito que seja importante informar dois pontos que estimula a transmissão
dessa prática no ambiente da música alternativa e “subversiva”. Primeiramente, no
processo de pesquisa me deparei com o status social, isto é, percebemos que as motivações
para reproduzir a prática também era carregada do qual o indivíduo está disposto a entregar
de sí, a importância dada pelos homens a incorporação da identidade por completo. Assim,
entro no segundo ponto, se este apresentar características próxima do que a maioria espera,
será bem aceito, o homem que se compromete a exercer a atividade deve mostrar domínio
sobre a maneira de ser Headbanger e tem que ser provado aos demais membros no
momento da representação17.
Por muitos anos, escutei dos membros relatos que apresentavam esforços deles
para manterem a coerência Headbanger, este aspecto da representação pode ser explanado
da seguinte forma através dos shows. Cinco músicos sobem ao palco e ficam de costa ao
público até o vocalista entrar no palco com o braço erguido e pegar o microfone, todos
ficam finalmente de frente a audiência, os músicos encaram o público transmitindo um ar
de superioridade e poder que emana da performance. O vocalista maquiado com corpse
paint18 olha para os membros de forma implacável, ríspido e firme, como estivesse diante
um batalhão de guerreiros pronto para ir à guerra. Este ar austero é comum de se assistir
nas apresentações de Metal, mais especificamente, este que descrevi foi da performance da
banda Sueca de Black Metal Marduk que realizava uma turnê no Brasil em 2016, passando
por Recife-PE. No qual após, esse momento a audiência gritava em exaltação ao ver a
banda enquanto os músicos apenas recebia a energia com seriedade. Como pode-se
observar há uma sintonia entre o espaço onde ocorre os shows, o status e maneira de ser
Headbanger, o que mostra a conexão entre os ideais da comunidade.
A partir das relações que tive a oportunidade de compartilhar em campo e observar
dos membros a representação social executada, do qual identifiquei destacar a dimensão
subjetiva da representação masculinizada no Heavy Metal. Por exemplo, muitas bandas
apresentam a performance da masculinidade em palco e muitos membros idolatram esses
músicos ao ponto de reproduzir estas práticas, embora em outros contextos sociais, se faz
necessário que o Headbanger tenha domínio sobre o idioma social da representação.
19 LEACH, E. Antropologia. Tradução, Alba Zaluar Guimarães. São Paulo: Ática, 1983, p. 164.
20 LEACH, E. Antropologia. Tradução, Alba Zaluar Guimarães. São Paulo: Ática, 1983, p. 166.
21 GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana. Tradução: Maria Célia. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1959.
Além disso, as práticas compartilhadas por eles podem ter diversas formas de se
expressar, no entanto, a representação se torna institucionalizada na medida que gera
expectativa coletiva, isto é, a representação masculina identificada nesse campo se torna um
fato compartilhado. Quando um recém-iniciado, por exemplo, entra nesse campo social,
ele já encontra uma representação já modelada, pois se sabe o que se deve vestir, escutar e
falar, o Headbanger deve estar ciente de manter a postura identitária. De fato, isso também
passa outra dimensão verificada na pesquisa, ao passo que o recém-chegado se depara com
um mundo novo, passará a assumir uma nova posição na sociedade abrangente22 mais
masculinizada, inspirada no que incorporou na comunidade alternativa. Pois, o que
encontrei geralmente nessas representações é que esta são inspiradas em indivíduos que
tem status social, isso coloca em jogo a questão da escolha de uma dentre várias
representações feitas no estilo musical, em que há diversos estilos com diversas propostas
de mundo masculinizadas. Dependendo da escolha de subgênero em quem este
Headbanger esteja se espelhando, isso pode no ato da representação expressar traços
masculinizados, especialmente, no caso dos músicos que tem o papel de entreter a
audiência com a performance em palco, demonstrando: treinamento para esta
performando; controle da atenção do público23; postura valente e séria.
Posso citar um exemplo nessa direção até aqui discutida da representação masculina
no Heavy Metal que é incorporada e desejada pode ser identificada entre músicos e o
exercício de tocar Metal. Foi identificado nos shows que o ato de tocar não pode ser
executado por “qualquer um” membro da comunidade – algo que tenderia a redenção dos
“músicos iniciantes” aos mais experientes, com intuito de instituir ao ato de tocar uma
formação necessária antes de subir aos palcos, o que geralmente também é impresso pelos
músicos para caçoarem de outros e informar ao “iniciante” que tocar é uma atividade
complexa sendo necessário deixar “isso para gente grande”.
Não desejo com isso essencializar as relações que ocorrem na comunidade, muito
menos fora dela, os indivíduos que compõem esse mundo social são responsáveis por suas
ações que os leva tanto ao desejado quanto ao indesejável, depende do quanto ele está
preparado para lidar com as adversidades da vida social. Como já ocorreu de presenciar
numa das excursões a Recife-PE, quando a sociabilidade é marcada pelo oferecimento de
22 Historicamente, desde os anos 1980, os Headbangers sofrem com perseguições e preconceitos de várias
ordens, marcados precisamente pelo político e religioso.
23 Por exemplo: Power Metal, retoma a imaginação do épico ao modelo de Senhor dos Anéis, Heavy Metal,
resgata a ideia dos motoqueiros rebeldes que andam em motos Holy Davison, sempre acompanhado por
outros motoqueiros barbudos e cabeludos.
bebida destilada (cachaça) ao brother que não bebe muito, o que eles ironizam chamando
“geração saúde”. Nesta situação em especial, estava acompanhado de Franco, um membro
que sempre demonstrou engajamento na causa do Metal. Desse modo, sabendo da imagem
que Franco apresenta alguns de seus amigos, costumeiramente brincam ou desafiam com
alguma atividade para testá-lo. Ora, mesmo que esta ação possa ser entendida, apesar da
brincadeira, como um gesto cordial, esta seria a forma de caçoar apropriada por eles no
dado contexto. No entanto, tendo em vista a posição representada pelo membro e sua
coragem para tomar toda bebida (como fora feito) é uma forma de demonstrar o lugar de
superioridade que este ocupa, ao mesmo tempo que revela a obrigação do jogo masculino
entre eles. De um lado, ao invés de Franco ficar tenso sobre o fato de tomar uma bebida
consideravelmente forte para ser ingerida sem nenhum aperitivo ou mistura, não parece ter
causado desconforto nele, de outro lado, o mecanismo utilizado por seus amigos para
provar o quanto ele era “macho” foi limitante e ineficaz.
Considerações Finais
Realizei nesse artigo um esforço analítico cujo foco era explorar as dimensões ou as
formas da representação masculina no Heavy Metal. Apresentei que os espaços em que esta
masculinidade opera permite ao indivíduo status e possibilidade de ser Headbanger a
maneira convencionada. Não quero dizer com convenção algo estático mais dinâmico
próprio das relações que se constituem na interação com os indivíduos e suas negociações,
estratégias de contato com o outro. Por isso estou pensando a exploração, o esmiuçamento
da representação como se evidenciou um caráter mais fluido e socialmente compartilhado
pelos membros do Metal. Desse modo, se fez necessário observar a prática social
desenvolvida por eles, com trabalho de campo, acompanhando a realidade social de
músicos e audiência em shows locais e através de excursões aos eventos em outros estados
vizinhos.
Assim, a masculinidade Headbanger empreendida nos shows pode ser instituída
cujo foco seria o entretenimento e lazer, no entanto, as ideias, os valores sociais políticos e
morais, também podem e devem ser acionados em outras ocasiões extracotidianas por seus
participantes. Portanto, como falei, esta prática social do Headbanger tem que ser nítida aos
outros, por isso, durantes as situações: antes, durante e depois dos shows eles precisam
mobilizar uma série de arranjos de tal forma que o ajude a expressar como ele compreende
Bibliografia
PERISTIANY, J. G. Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrânicas. Lisboa: Fundação Calouste
24
Gulbenkian, 1971.
Resumo
1Professor Ms. Atua na Docência nas Redes Públicas de Educação (SEEDUC/RJ) e (SME/Rio de Janeiro) e
é pesquisador associado do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Decolonialidade do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. coutinhopg3@gmail.com
2 ARONOWITZ, S. “O homem radical e democrático de Paulo Freire”. In, Paulo Freire: Poder, desejo e Memórias
sempre tomam o poder com uma voracidade monstruosa. Mostram a cara. O Estado de
direito é, na verdade, o Estado da direita, de privilégios.
De tão (totalmente) empobrecidas, pessoas justificam a força bruta, o autoritarismo.
Somos levadas a confundir ordem com ditadura, firmeza com violência, somos induzidas a
trocar a liberdade pela segurança (vigilância) embrutecida, policial. A defesa dos valores e
princípios do sistema que oprime, nas bocas e vozes empobrecidas, nasce, cresce, reproduz
e sobrevive porque é apresentado como consumado, naturalizado.
Desidratado de história, apagados os processos, o protagonismo humano, e em
particular da gente do povo, o mundo é apresentado como um dado, dado, pronto e
acabado. É a apatia ensinada, a cidadania restrita ao voto que delega poder ao outro.
Herdeiro forçado do ‘sebastianismo’, ao povo é imposto o esperar por um ‘Sassá Mutema’,
um Salvador da Pátria.
É como se houvesse uma pedagogia dos opressores a nos ensinar e repetir por
décadas, séculos, de forma impositiva, formando gerações de depositários de valores
alheios, alienantes, nos transformando, de humanos em indivíduos individualistas isolados,
egoístas: números. Números de votos, números de mercadorias produzidas e vendidas, e
etc.
Paulo Freire nunca foi tão atual. Nunca foi tão necessário.
Partimos do princípio de que a sociedade na qual vivemos é dividida em classes
sociais com interesses antagônicos: enquanto um pequeno grupo domina os meios de
produção e o capital (materiais e imateriais), o outro grupo – grande – vende ou aluga suas
forças (intelectual e física) de trabalho produzindo e reproduzindo as riquezas, o sistema
que estabelece e mantém esta dinâmica cristalizada. Há tensões? Sim. E é aqui onde agem
forças conservadoras e forças transformadoras.
As palavras de Moacir Gadotti nos provocam:
A educação não pode orientar-se pelo paradigma da empresa [capital]
que dá ênfase apenas à eficiência. Este paradigma ignora o ser humano.
Para esse paradigma, o ser humano funciona como puro agente
econômico, um “fator humano”. O ato pedagógico é democrático por
natureza, o ato empresarial orienta-se pela “lógica do controle”. O
neoliberalismo consegue neutralizar a desigualdade. “É assim mesmo”,
“Não há outra coisa a fazer”, ouve-se. Por isso Paulo Freire chama nossa
atenção para a necessidade de observarmos o processo de construção da
subjetividade democrática, mostrando, ao contrário, que a desigualdade
não é natural3
3McLAREN, P.; LEONARDO, P.; GADOTTI, M. Paulo Freire: Poder, desejo e Memórias da Libertação. Porto
Alegre: ArtMed, 1998. p. 29.
Buscar uma pedagogia que, driblando o paradigma controlador do capital, sirva para
construir a ‘subjetividade democrática’ e nos ajude a desnaturalizar as relações historicamente
construídas e nos capacite a fazer opções por esta ou aquela prática pedagógica. Eis o
desafio. Eis a tarefa.
Concordando com esta premissa, nos colocamos diante de um dilema simples, mas
profundo: em qual lado da desigualdade eu estou? E mais, entender, assumir e optar em
viver as dores e delícias desse reconhecimento não é fácil pois se tratando de opção
política, os compromissos hão de se apresentar como cotidianos e permanentes.
Barbara Feitag em sua obra Escola, Estado e Sociedade nos lembra que “O sistema
educacional consegue reproduzir as relações sociais, ou seja, a estrutura de classes,
reproduzindo de maneira diferenciada a “cultura”, (...) e a ideologia da classe dominante”4.
Entender ou não a escola e a educação como espaços de reprodução de estruturas e das
relações sociais, determina como será minha ação pedagógica, minhas relações educativas.
Optar por uma ação educativa é tanto uma escolha por um método didático, quanto
uma escolha política e ideológica, é uma escolha por uma ideologia contra-hegemônica.
Optar por relações horizontais respeitosas é nas palavras de Freire, radicalizar:
A radicalização, que implica no enraizamento que o homem faz na opção
que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e
amorosa, humilde e comunicativa. O homem radical na sua opção, não
nega o direito do outro de optar. Não pretende impor a sua opção.
Dialoga sobre ela. Está convencido de seu acerto, mas respeita no outro
o direito de também julgar-se certo. Tenta convencer e converter, e não
esmagar seu oponente. Tem o dever, contudo, por uma questão de amor,
de reagir à violência dos que lhe pretendam impor o silêncio.5
4 FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade. 4ª ed. rev. São Paulo: Moraes, 1980. p. 25
5 FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967 p. 49
6 BRANDÃO, C. R. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 338.
Como sugere a citação, esta consciência vai transcender a pedagogia, vai nos
catapultar para o mundo, para a história sem nos tirar, impressionantemente, da escola. O
entendimento de que escola e sociedade não estão dissociadas nos impele para outro
conceito importante: como aborda Louis Althusser7, a escola pode ser entendida como um
aparelho ideológico do Estado. Nesse mesmo caminho de não dissociar escola de
sociedade e alargando o conceito althuseriano, vamos perceber a escola também como um
espaço em disputa, como nos propôs Antonio Gramsci8. Assim a práxis educativa passa a
ser processo de construção de criticidade, de reconhecimento da escola/educação como
um aparelho ideológico e que este deve ser disputado.
Um diferencial pode ser, justamente, como fazer. É quando surge de maneira
desafiadora, a dialogicidade como ferramenta: dialogando, há a possibilidade de
percebermos criticamente o papel da escola, as contradições da sociedade, as permanências
e as possibilidades de transformações históricas. Ao perceber tal dinâmica, poderiam os
sujeitos vislumbrar as possibilidades de disputar e conquistar a escola, a sociedade, e, por
que não, a história? Perceber as contradições da sociedade que a escola expressa e as
disputas existentes ali, nos remetem à Bárbara Freitag:
A contradição que aqui (na escola) se expressa pode ser explorada de
maneira consciente pela classe oprimida. Mediante seus intelectuais
orgânicos ela pode lançar no âmbito da sociedade civil sua contra-
ideologia. Esta procurará realizar-se através das próprias instituições
privadas, os AIS [Aparelhos Ideológicos do Estado], refuncionalizando-
os; ou criando contra-insituições que divulguem a nova concepção do
mundo, procurando corroer o senso comum. É obvio que dentro dessa
visão a escola e as doutrinas pedagógicas assumem uma importância
estratégica.9
7Louis Althusser: Filósofo estruturalista marxista franco-argelino nascido em Biermandreis, Argélia. (...) Sua
obra exerceu explosiva influência no movimento estudantil de março (1968) e caracterizou-se por rejeitar o
humanismo em benefício de um socialismo científico. Disponível em:
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/LouiAlth.html. Acesso em 15 ago. 2017.
8Antonio Gramsci: Intelectual e político italiano nascido em Ales, Sardenha, um dos fundadores do Partido
Comunista Italiano (1921). (...) Estabeleceu uma unidade entre a teoria e a prática do marxismo e criticou o
elitismo dos intelectuais e exerceu profunda influência sobre o pensamento marxista. Disponível em:
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/AntGrams.html. Acesso em 15 ago. 2017
9 FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade. 4ª ed. rev. São Paulo: Moraes, 1980. p. 39
Uma educação que se quer assim libertadora precisa pensar práticas e metodologias
onde os sujeitos envolvidos possam se tornar intelectuais, na qual uma pedagogia
libertadora possa se concretizar como uma pedagogia contra-hegemônica. É nesta ciranda
que vai sendo construída e consolidada a pedagogia do oprimido e vai-se substituindo a
pedagogia do opressor.
Em sua obra Pedagogia do Oprimido de 1967, Freire nos brinda com a historicização
do método que desenvolveu e aplicou baseado no diálogo. No prefácio feito pelo Professor
Ernani Maria Fiori afirma que “O monólogo enquanto isolamento é a negação do homem”
e amplia e marca o diálogo como condição humana:
O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade
humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os
dialogantes ‘admiram’ um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele
coincidem; nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se
existência e busca perfazer-se. O diálogo não é um produto histórico, é a
própria historicização.11
10 BLASS, L. M. S.; MANFREDI, S. M.; BARROS, S. P. Educação popular: desafios metodológicos. In,
Cadernos do CEDES. São Paulo, Ano I – nº 1. São Paulo, Cortez Editora, 1984. p. 39.
11 FIORI, E. M. “Aprender a dizer a sua palavra”. In, Pedagogia do oprimido:, 7ª edição. Rio de Janeiro: Paz e
Concordando com Freire, como “sujeitos de relações” que somos, podemos admitir
que este jogo de relações seja a matéria-prima da nossa cultura humana, da nossa história
humana que, nas palavras do autor, é a forma de estarmos “no” e “com” o mundo, vivendo-
o, lendo-o, transformando-o.
Pressupondo o diálogo como o exercício necessário para estar com o mundo e
também o processo interativo “entre duas ou mais pessoas”, vale lembrar que estas pessoas
não precisam concordar, nem estar no mesmo lado. Porém, como está colocado na
definição, é preciso interagir (inter-agir), agir com, estar em ação. E é na ação (na práxis
freireana) que percebemos nossas diferenças, nossas limitações e, assim, construímos
nossas identidades e tomamos consciência do nosso lugar no mundo como indivíduo
individual e como indivíduo coletivo. Dialogar pode transformar. Transformação sem
diálogo é imposição.
Mais uma vez Freire14, nos ilumina: “ensinar exige a convicção de que a mudança é
possível”. A formação dessa consciência, desse pertencimento individual e cidadão, dessa
possibilidade de dialogar, de ler, escrever, entender e romper com este jeito de mundo
podem ser detonados a partir da prática docente. Nicodemos ajuda nessa reflexão ao
afirmar que:
determinadas práticas docentes (...) (assentadas em determinada
concepção de mundo e de educação) colocam o professor num lugar em
que, juntamente com o aluno jovem e adulto trabalhador, podem-se
estabelecer ações/reflexões para o explicitamento das contradições e, a
partir delas, a materialização da conscientização na horizontalidade da
relação aluno e professor. Assim, considero que a possibilidade da ação
dialógica deve estar no cerne da relação educador/educando (...).15
O que está posto é que a ação pedagógica, estabelecida de forma horizontal, simétrica e
dialógica, provoca/afronta o mundo assimétrico, coisificado, impessoal e desigual no qual
13 FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. p. 39-40)
14 FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. p.85
15 NICODEMOS, A. Práticas docentes na educação de jovens e adultos: conscientização ou conversão? Periferia, Revista de
vivemos e somos ensinados a viver. E ainda mais do que isso, é preciso propor o diálogo com
esse mundo ‘não-dialógico’, para questioná-lo, fazê-lo refletir e, quem sabe, transformá-lo.
Com relação a esta percepção de estar e intervir no mundo, da capacidade de
perceber o outro, de alteridade, Maturana afirma que:
colocando a objetividade entre parênteses, me dou conta de que não
posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer referência a uma
realidade independente de mim, e quero me fazer ciente disto na
intenção de entender o que ocorre com os fenômenos sociais do
conhecimento e da linguagem, sem fazer referência a uma realidade
independente do observador para validar meu explicar.16
Bibliografia
Resumo:
1Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História Política (PPGH/UERJ). Graduada em História
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: roberta.rmoreira95@gmail.com
2 Neste trabalho irei tratar do programa Brasil Urgente, ainda em exibição na televisão aberta brasileira.
3Conceito elaborado a partir de um giro lingüísticodecolonial que mobilizou estudos durante a década de
1990 na América Latina (Grupo Modernidade/Colonialidade). Ver: BALLESTRIN, Luciana. “América Latina
e o giro decolonial”. Revista Brasileira de Ciencia Politica. Brasília: UNB, 2013, p. 89-117.
4 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução de Célia Berrettini. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
melancolia”5. É desta melancolia do homem moderno que surge o terreno fértil para que o
grotesco se desenvolva enquanto categoria estética.
Enquanto essa teorização do grotesco a partir de Victor Hugo seja um dos pilares
deste trabalho, tais escritos se inserem em uma lógica europeizada que não contempla
totalmente esta pesquisa, por seu foco ser o contexto brasileiro. Com isto em mente é
interessante pensar as particularidades das conseqüências da modernidade no contexto além
Europa. A proposta é buscar um grotesco inserido na realidade latino-americana, a partir
dos programas de jornalismo policial brasileiros, ocorrendo assim um deslocamento
daquilo que seria uma concepção “universal”, que na realidade se mostra eurocêntrica,
sobre o tema. Com estas questões norteadoras cabe uma aproximação com teorias do
pensamento decolonial, no sentido de procurar referências para pensar o grotesco desde o
Sul, através da desobediência epistêmica proposta por Walter Mignolo6.
A modernidade, pensada sob a ótica européia ocidental, marginaliza os “não
incluídos nos fundamentos dos pensamentos ocidentais”7. Com o intuito de pensar a
modernidade a partir da América Latina, este trabalho se norteia pela corrente teórica que
propõe que a modernidade européia só existiu por causa da colonialidade8, ao passo que estes
países não teriam o capital necessário para se modernizar sem a implantação de um sistema
de exploração colonial nas Américas, África e Ásia, sendo então a colonialidade a face oculta
da modernidade9.
Se Victor Hugo teoriza que o Grotesco é um produto da modernidade, pode-se
considerar que no caso brasileiro ele seja um produto da colonialidade. Neste sentido é a
partir da herança colonial que se constrói o imaginário sobre os diferentes corpos presentes
na sociedade brasileira, sendo então o corpo negro categorizado como o grotesco.
[...] o que constitui a civilização ocidental como oposta às demais,
abrindo as portas para o racismo, é o repúdio à emoção e a negação do
animal interior, ameaçador e tenebroso. Isso significou a animalização do
Outro [...].10
5 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução de Célia Berrettini. São Paulo:
Perspectiva, 2014, p.27.
6 MIGNOLO, Walter D. “A opção de-colonial: desprendimento e abertura. Um manifesto e um
política”. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade. Niterói:UFF, 2008, p.305.
8 QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder y clasificación social”. Journal of world-systems research. Pittsburgh:
p. 89-117
10 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “A modernidade negra”. Teoria e Pesquisa. São Carlos: UFSCAR,
2013, p. 47.
11FILHO, Enio Walcácer de Oliveira. “A criminalização do negro e das periferias na história brasileira”.
Vertentes do Direito. Palmas: UFT, 2016, p. 62-53.
Se estes processos tiveram sua origem no contexto colonial, é bem verdade que eles
perduraram para além do fim da escravidão. Não houve um acompanhamento do processo
pós-abolição, ou seja, o antes escravizado não teve acesso a uma política pública de Estado
para que pudesse adentrar na sociedade como liberto, e isto por si só escancara a
orientação política de continuar não integrando o negro totalmente na sociedade. A
população negra após a abolição começou a povoar os morros e subúrbios, que viriam a se
tornar as favelas, e durante este processo o discurso permanece, servindo como meio de
justificar a falta de serviços oferecidos a esta parcela da população e perpetuando seu local
à margem da sociedade, esta tática se enquadra no que se entende como o mito da
marginalidade13 das populações faveladas, “isola o gueto ou a favela como um espaço
fisicamente delimitado, dentro do qual todo mundo é marginal [...]”14.
Com a saída da senzala este negro ainda não tinha conseguido status de
humanidade, tinha sido retirado das senzalas e jogado nas periferias,
distanciados de sua terra natal, da África, alijados de suas raízes, cultura,
famílias, em uma terra em que eram considerados como animais. Viram-
se assim entregues à própria sorte nas periferias, nos guetos, distantes do
homem branco ocidental dos centros de desenvolvimento da nação que
se erguia.15
Neste contexto o negro continua a ser vítima de violência, sendo ela física e
simbólica. Física, pois estes corpos eram os mais atingidos pela violência, com a contínua
perseguição feita pelos aparatos policiais do Estado, que foram criados para acossar negros
e proteger a “boa sociedade”, e simbólica, pois qualquer tema relacionado à cultura africana
era perseguido, e por vezes até criminalizado16 por lei.
Este novo cenário forjado pelos contornos republicanos – é preciso de
imediato relembrar, imerso no medo branco das possíveis insurreições
negras – trata de reinventar o argumento da desumanização para a massa
liberta. A inferioridade jurídica do escravismo será convertida, portanto,
numa inferioridade de tipo biológico, a partir de um discurso que vem
tomando forma desde os debates abolicionistas do século XIX. Dentro
17 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado Brasileiro”. Dissertação (Dissertação em direto) – UNB. Brasília. 2006, p. 97. Disponível em:
<http://repositorio.unb.br/handle/10482/5117>. Acesso em: 20 ago. 2020.
18 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado Brasileiro”. Dissertação (Dissertação em direto) – UNB. Brasília. 2006, p. 71. Disponível em:
<http://repositorio.unb.br/handle/10482/5117>. Acesso em: 20 ago. 2020.
19 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
20 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 17-18.
influenciam o país para além da mídia, na medida em que estas programações são utilizadas
enquanto ferramentas de discursos políticos para reforçar os locais imaginados para o
corpo negro no Brasil. Entende-se, portanto, que os programas de jornalismo policial não
significam algo fora do comum na sociedade brasileira, com o corpo negro ocupando o
lugar do grotesco, mas sim expõem de maneira recorrente uma construção que já faz parte
das estruturas mais profundas da construção deste país, as estruturas coloniais que não
foram superadas.
[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do
modo “normal” com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e
nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.
Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de
uma sociedade cujo racismo é regra, não exceção.21
É importante abordar ainda outra faceta do racismo no Brasil, na qual ele se mostra
enquanto algo que pode ser fonte de entretenimento, de riso. Isto dialoga diretamente com
o grotesco, na medida em que o escárnio a custa do corpo considerado “outro” é uma
característica da categoria estética. Sendo assim, o racismo passe por muitas vezes de forma
despercebida, travestido como humor. Esta é uma prática recorrente nos programas de
jornalismo policial que abordamos nesta pesquisa, onde os repórteres entrevistam os
supostos criminosos com um tom de deboche, recorrentemente fazendo pouco de sua
condição social, educação e pedidos por um julgamento de fato, reforçando o local do
corpo grotesco destas pessoas através do dito humor.
[...] o humor não é mero produto de idéias que surgem espontaneamente
nas cabeças das pessoas. As piadas que elas contam são produtos
culturais, são manifestações de sentidos culturais que existem em dada
sociedade. Por esse motivo, o humor não pode ser reduzido a algo
independente do contexto social no qual existe. [...] Pensamos que o
racismo recreativo é uma política cultural característica de uma sociedade
que formulou uma narrativa específica sobre relações raciais entre negros
e brancos: a transcendência racial. Esse discurso permite que pessoas
brancas possam utilizar o humor para expressar sua hostilidade por
minorias raciais e ainda assim afirmar que elas não são racistas,
reproduzindo então a noção de que construímos uma moralidade pública
baseada na cordialidade racial.22
21ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. 1ª Edição. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019, p. 50.
22MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. 1ª Edição. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019, p. 94-
95.
continua no ar, sendo exibido de segunda a sábado às 16h00min. Todos os programas têm 3 horas e 20
minutos de duração.
as características grotescas presentes e como este tipo de mídia televisa reforça o “outro”
dentro da sociedade brasileira.
A imagem, como se percebe na Figura 1 em anexo, faz parte de uma reportagem26
veiculada pelo programa Brasil Urgente no estado da Bahia em 2012. No vídeo a repórter
Mirella Cunha “entrevista”, o ato se apresenta mais como uma espécie de interrogatório do
que entrevista, Paulo Sérgio Silva Souza, um jovem acusado de estupro. Além da chamada,
que já evoca a sátira, a repórter mantém este tom por toda a matéria, zombando da maneira
de falar do rapaz que clama alegando sua inocência. A tática tendenciosa ainda é reforçada
pela edição do programa que insere sons de bebês chorando, ressonando com o choro do
rapaz. Isto demonstra o grotesco neste tipo de mídia televisiva, com a presença da sátira e
da paródia de certos indivíduos.
Nesta reportagem fica evidente também como o mito da marginalidade aparece nestes
programas, um homem negro, ou seja, pertencente à categoria do “outro”, é vítima de
exposição e deboche em rede nacional. O motivo é de que ele supostamente cometeu um
crime, seu direito à justiça é negado e sua sentença é automaticamente de culpado,
simplesmente pelo seu local na sociedade. A animalização também se mostra quando a
repórter classifica o rapaz como incapaz de se controlar sexualmente, como um animal, no
momento em que afirma “se não estuprou queria estuprar” após o rapaz afirmar sua inocência,
colocando seu corpo como aquele que naturalmente poderia cometer um crime.
Posteriormente foi comprovado que o rapaz era de fato inocente, assim o programa
foi processado por violação dos diretos humanos e teve que pagar uma multa de 60 mil
reais e a repórter foi demitida. Apesar da punição não há como reparar a exposição à qual o
rapaz foi submetido, que poderia resultar em diversas violências além da simbólica, como
ocorre corriqueiramente no país com linchamentos de supostos criminosos, em sua maioria
negros. Assim vemos como a sátira com certos corpos permanece como uma característica
grotesca, sendo que deste modo define-se um alvo de comentários irônicos colocando-o
como ridículo, com o intuito de provocar o riso. Para além do caráter satírico, a mídia ajuda
a reforçar o local destes mesmos corpos como aqueles que apresentam perigo, pois são
categorizados sempre como criminosos em potencial.
grotesco chocante que prende a atenção, “o chocante vende”, é usado como meio de
perpetuar velhas amarras sociais e morais. Ao mesmo tempo em que estes programas
divulgam em massa estes padrões, eles reforçam a imagem daqueles tipos considerados
como um problema para a sociedade, o mito da marginalidade se perpetua por meio destas
programações, sendo usado como justificava para a incessante violência sobre os corpos
dos “outros”.
Bibliografia
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. 1ª Edição. São Paulo: Pólen Produção Editorial
LTDA, 2019.
BALLESTTIN, L. “América latina e o giro decolonial”. Rev. Brasileira de Ciência Política.
Brasília: UNB, 2013, p. 89-117.
FILHO, EnioWalcácer de Oliveira. “A criminalização do negro e das periferias na história
brasileira”. Vertentes do Direito. Palmas: UFT, 2016, p. 60–75.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto
genocida do Estado Brasileiro”. Dissertação (Dissertação em direto) – UNB. Brasília. 2006.
Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/5117>. Acesso em: 20 ago.
2020.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “A modernidade negra”. Teoria e Pesquisa. São
Carlos: UFSCAR, 2013, p. 41-61.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução de Célia
Berrettin, 3ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 2014.
MIGNOLO, Walter D. “A opção de-colonial: desprendimento e abertura. Um manifesto e
um caso”. Tabula Rasa. Bogotá: ARCCA, 2008, p. 243-282.
________“Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política”. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade. Niterói:UFF, 2008,
p. 287-324.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 5ª Edição. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. 1ª Edição. São Paulo: Pólen Produção Editorial
LTDA, 2019.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder y clasificación social”. Journal of world-systems
research. Pittsburgh: ULS, 2000, p. 342-386.
PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Mauad,,
2014.
Anexo:
Resumo
O primeiro apontamento feito por Engelhardt na última parte de seu relatório diz
respeito à crença que a negociação acerca das ocupações efetivas introduziu no direito
público moderno novas regras que, mesmo tendo uma aplicação imediata restrita, criaria no
futuro um importante precedente.
A questão humanitária
Outro aspecto que merece destaque no que tange o direito internacional debatido
em Berlim são implicações teóricas e práticas da eclosão de um conflito bélico entre nações
da Europa.
Uma vez que a Conferência tratava em grande medida da liberdade de trânsito nos
rios Congo e Níger, foi estabelecido que as potências beligerantes desfrutariam das mesmas
imunidades que aquelas reconhecidas como neutras e Engelhardt, ao redigir seu relatório,
declara o aspecto excepcional e liberal dessa determinação. Os plenipotenciários se
preocuparam em excluir desse direito de imunidade as nações que procedessem o
transporte de mercadorias que fossem considerados como contrabando de guerra.
De acordo com Engelhardt, durante a sessão de 19 de novembro de 1884, o
representante dos Estados Unidos da América, expondo o posicionamento de seu governo
sobre o caráter da ação das potências civilizadas região central da África, teria manifestado
o desejo que essa área fosse protegida de qualquer conflito armado. Para esse fim era
necessário que a Conferência pronunciasse a neutralização da África central. Corroborando
essa ideia, o plenipotenciário da Alemanha ressaltou que uma guerra na região do Congo
poderia pôr em risco os dispendiosos investimentos feitos na região.
Desse modo, considerando os possíveis conflitos, seria de fundamental importância
assegurar a neutralidade da região sobre a qual se deliberava. Ao fim dos debates, a ideia de
uma neutralidade definitiva e absoluta deu lugar a uma concepção mais modesta e concreta
que se propunha a proteger os territórios situados na zona comercial contra os ataques de
uma guerra externa, sem incluir a eventualidade de uma guerra local.
Para entender um pouco melhor de que maneira as decisões acordadas em Berlim
acerca dos procedimentos em caso de guerra eram um ponto importante em relação ao
Direito Internacional, pode-se recorrer ao jurista Carl Schmitt. Em seu livro O nomos da
Terra no direito das gentes do jus publicum europæum, ele aponta uma implicação fundamental
na forma como os territórios situados fora das fronteiras da Europa eram percebidos em
caso de conflitos.
Comparando diferentes momentos históricos, Schmitt mostra que:
[…] enquanto as linhas de amizade dos séculos XVI e XVII convertiam
o espaço não europeu em palco de uma luta irrefreável entre os
europeus, a linha da amizade da Ata do Congo, ao contrário, propunha
Conclusão
Para finalizar esta breve análise das colocações de Edouard Engelhardt sobre a
importância da Conferência de Berlim para o Direito Internacional, cabe mencionar as
considerações finais feitas por ele sobre o caráter geral do evento.
Aos olhos de Engelhardt, a Conferência africana passaria a ocupar um grande lugar
na história diplomática da segunda metade do século XIX. Ela ganharia destaque, antes de
tudo, pela quantidade de membros presentes. Isso porque, de acordo com o representante
francês, exceto os três reinos orientais e a Suíça, todos os Estados da Europa tomaram
parte em suas deliberações nas condições de uma inteira igualdade.
O caráter econômico dos acordos estabelecidos em Berlim seria, para ele, não
apenas liberal, mas também previdente, preparando a conquista comercial de um território
1 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum euroæum, p. 236.
2 Ibidem, p. 237
3 Ibidem, p. 237
4 Ibidem, p. 241
Bibliografia
Fonte
Rapport Adressé au Ministre des Affaires Étrangères par M. Ed. Engelhardt, Ministre Plénipotentiaire
Délégué à Berlin, pour la Conferénce Africaine (Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5613094q/f11.image.r=lettres%20baron%20de%2
0courcel%20afrique. Acesso em: 05 de setembro de 2020)
Resumo
Durante todo o século XIX constavam nas páginas dos jornais de grande circulação, no Rio
de Janeiro, inúmeros pedidos de mão de obra. Com o fim da escravidão, houve um
aumento considerável de pedidos de crianças para o trabalho. No Jornal do Commercio, na
seção de anúncios, alguns anunciantes buscavam trabalhadores do sexo feminino ou
masculino, crianças ou adultos, para realizar os mais variados serviços. O presente texto
utilizará como fonte de pesquisa esses anúncios que requisitavam menores, verificando a
incidência após a abolição analisando padrões de sexo, idade, cor, nacionalidade e tipos de
trabalho. Trata-se de compreender o cenário no qual liberdade, pobreza e mercado de
trabalho se articulam nos marcos da nascente República.
1 Possui bacharel e licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Concluiu o
mestrado no ano de 2017 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro tendo como o título a dissertação Precisa-se de um pequeno: o trabalho infantil no pós-abolição no Rio de
Janeiro (1888-1927), sob orientação da Professora Dra. Cláudia Regina Andrade dos Santos. Atualmente é
doutoranda do mesmo programa e bolsista CAPES. E-mail alinesoares2003@hotmail.com
2 Jornal do Commercio, 7 de dezembro de 1890.
3 Jornal do Commercio, 20 de dezembro 1891.
4 Jornal do Commercio, 17 de dezembro de 1893.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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campo e nas cidades com o fim a escravidão e com o governo republicano? Como pôde
haver a redefinição de uma hierarquia racial e social, e em paralelo à existência de um
espaço em que o ambiente republicano exalava discussões sobre o ideal de cidadania, de
liberdade, civilização e de garantias dos direitos? É nesse cenário que esteve presente o
cotidiano de crianças submetidas ao árduo trabalho.
Os três anúncios trazem algumas pistas de como a infância pobre, que precisava
trabalhar, estava inserida nos múltiplos universos dos mundos do trabalho. No primeiro
anúncio a ideia é oferecer um emprego com intuito de aprender um ofício – de alfaiate –
dizendo que o empregador ou empregadora forneceria casa, comida e roupa, sem tocar na
questão do ordenado. No segundo uma menina é requisitada sem ordenado. E o último
não indica que haveria ordenado, mas afirma que os serviços seriam leves e a preferência
por uma menina órfã que seria como se fosse membra da família.
O presente texto busca desenvolver alguns questionamentos, de modo que aponte
para uma história social do trabalho infantil tendo como ponto referencial o pós-abolição e
os anos iniciais da República, momento no qual o terreno das transformações materiais,
sociais e econômicas molda a experiência de homens e mulheres da condição de
escravizados a libertos. Ainda que o 13 de maio alterasse juridicamente tal condição, o
resultado desse processo e o grau de autonomia que deveria ser alcançado pelos libertos
dependia de uma série de relações de poder a partir das reformulações das hierarquias
raciais no final do século XIX.
No cenário republicano do pós-abolição no Rio de Janeiro, é importante a
compreensão de como o poder político foi empregado numa tentativa de nova
configuração das relações de classe, de raça e de hierarquias sociais, já que a liberdade e
seus significados foram constantemente redefinidos. Com o fim do Império e o fim
também da hegemonia monárquica, a República carregava consigo a reprodução de
oligarquias. Conforme aponta Salles, o Estado republicano acaba com o domínio de uma
classe, no entanto a classe dominante tinha nostalgia do tempo do Império. Nesse sentido,
ainda que novas relações raciais e de trabalho estivessem sendo colocadas para os sujeitos,
“a nostalgia do Império carregava historicamente consigo, mesmo que de forma indireta, a
nostalgia da escravidão”5. Sendo assim, como conciliar resíduos costumeiros patriarcais e de
uma sociedade recém-saída da escravidão, mas com seus hábitos totalmente escravocratas,
5SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial. Escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013, p.10.
6 De acordo com os mecanismos legais do período, como o Código Penal de 1890, a Constituição de 1891 e
o posteriormente no século XX com o Código de Menores de 1927, são denominados menores aqueles cujas
idades fossem inferiores a 18 anos. Tais medidas legislativas não dão conta da noção de infância dentro do
recorte temporal em estudo, apenas indicam o que é a menoridade. Nos mundos do trabalho desse período
não havia critérios que distinguem maiores e menores de 18 anos, não existia a menor correspondência entre
menoridade civil e menoridade da força de trabalho. Para discutir a noção de infância, foi preciso mergulhar
nas fontes e refletir sobre os termos utilizados nos anúncios do Jornal do Commercio no final do século XIX.
Adotamos o critério de examinar de que forma apareciam os pedidos de trabalho e de que forma esses
anúncios representaram uma maneira determinante para entender a infância pela visão dos patrões e patroas.
Nos classificados dos jornais, as expressões que se referem à infância quase sempre vinham acompanhadas de
termos como menina, menino, pequeno, pequena, rapazinho, entre outros, e da idade exigida pelos anunciantes,
como é o caso desse anúncio publicado no Jornal do Commercio, 22 de dezembro de 1895, que demonstra a
utilização dos termos seguidos da idade: “Precisa-se de uma menina de 12 a 15 anos, branca ou de cor, para
fazer companhia a uma senhora só e ajudá-la nos serviços domésticos; na rua do Senado nº27, sobrado, paga-
se bem”.
7 MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008, p.166-167; e MUAZE, Mariana. A descoberta da infância. A construção de um habitus civilizado na boa sociedade
imperial. Dissertação. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 1999, p.17.
8 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Crianças na recém-industrializada São Paulo. In: PRIORE, M. Del
10 GUIMARÃES, Elione Silva. Tensões remanescentes das senzalas: análise de tutorias de menores afrodescendentes (Juiz de
Fora, MG, final do século XIX e início do século XX). Revista Justiça & História, 2005.
11 Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Disponível em
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leicom/2015/leicomplementar-150-1-junho-2015-780907-
publicacaooriginal-147120-pl.html Acesso em: 25 de outubro de 2020.
12 VELLOSO, Mônica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-30): mediações, linguagens e espaços.
final do século XIX. (Dissertação) Mestrado em História. São Gonçalo, UERJ, 2009, p. 116.
21 GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910).
designado ao antigo escravo e para o qual os “negros e negras” levavam mais jeito, como era costume no
período. Dentro do universo dos anúncios levantados ao longo da pesquisa de mestrado, que abarcou um
recorte temporal entre os anos de 1888 e 1927, não localizamos um número muito alto de pedidos
mencionando a cor. No entanto, sabemos que essa foi uma prática muito comum e que os serviços
domésticos eram naturalmente associados aos negros, como nos tempos do cativeiro. Além disso, para o
comércio, não encontramos nenhum pedido sequer com as informações “prefere-se de cor”. A ausência de
preferências raciais para o comércio poderia caracterizar a ideia de que os meninos de cor não poderiam, ou
melhor, não deveriam trabalhar no comércio, indicando, de certa maneira, como a cor operava como
princípio seletivo numa sociedade recém-saída da escravidão. A classificação pela cor – o racismo – foi uma
das práticas que permaneceram no pós-abolição e que perduram até os dias atuais. Muito já foi conquistado,
mas ainda existe o racismo entranhado estruturalmente na sociedade. Cf SOARES, Aline Mendes. Precisa-se de
um pequeno: O trabalho infantil no pós-abolição no Rio de Janeiro (1888-1927). Dissertação de mestrado. Rio de
Janeiro: Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2018,
p.173.
26 Não localizamos nenhum anúncio com pedido de mão de obra infantil feminina para o comércio, tal
atitude reforça a rua simbolizava um espaço de desvio e de tentações, como aponta Rachel Soihet em
Mulheres pobres e violência no Brasil Urbano. Cf. PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. 7
Ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 365. Lógica também que se aplicava para a preferência em contratar
meninos para as atividades do comércio e para as pequenas domésticas trabalharem no limite que não
ultrapassasse a porta de casa, portanto não eram contratadas para sair às ruas.
acompanhado da ideia de que “o lugar de mulher é no lar”, não existindo, dessa forma, outro
ambiente possível para mulheres fora de casa. As idades mais requeridas nesses anúncios se
encontravam na faixa etária entre 10 e 15 anos e os serviços domésticos eram os mais
variados como “amas secas”; cuidar de crianças; lavar e passar roupas; “serviços leves”; entre
outras atividades. Nas atividades exercidas pelos meninos, com faixa etária mais solicitada
também entre 10 e 15 anos, encontramos uma gama de possibilidades, de atuações já que eles
não se restringiam apenas ao serviço doméstico. Concentravam-se, em sua maioria, no
comércio e as atividades requisitadas eram para caixeiros do comércio em geral; copeiros;
entregador de pão em sacos; balconista de padaria, botequim; taverna; operários de fábricas;
ajudante de cozinha; aprendizes de diversos ofícios e outras atividades.
O trabalho infantil sempre existiu. A concepção de trabalho era inserida de forma
precoce na vida de crianças de famílias pobres, que iniciavam suas vidas aprendendo
trabalhos domésticos dentro do seio familiar. Em tempos de cativeiro, as relações eram
regulamentadas de acordo com o senhor, e o aproveitamento dessa mão de obra era
inevitável para certas tarefas do cotidiano. Ao longo do século XIX, para as famílias
pobres, a concepção de trabalho ocorria de maneira prematura e quase natural na vida das
crianças, a começar pelos serviços domésticos na esfera familiar. Com o fim da escravidão
e com a modificação das relações de trabalho, houve um aumento dos pedidos de mão de
obra infantil por parte de anunciantes que requisitavam os mais variados serviços, mais
especificamente para o âmbito doméstico e para o comércio. No pós-abolição a busca
desenfreada por esse tipo de mão de obra indicava um mundo do trabalho à parte: o
trabalho infantil, sem garantias de direito, muitas vezes sem receber ordenado, com
alegações como “pegar pra criar” ou “educar o cidadão do futuro”, foram formas análogas
à escravidão e que estiveram muito presentes no cotidiano dessas pequenas e desses
pequenos trabalhadores. O trabalho nas ruas se mostrava como um grande espaço de
atuação para vender seus jornais, oferecer doces, engraxar sapatos, vender bilhetes de
loteria, etc. Em algumas ocasiões, a infância que era tachada como menor das ruas ou
menor de rua misturando-se com a infância trabalhadora, ou seriam a mesma categoria?
Nas ruas os “menores abandonados” e que muitas vezes eram abandonados à própria sorte
também faziam suas “virações”; tratava-se, portanto, também de trabalhadores.
A utilização da mão de obra infantil no ambiente doméstico, no comércio e também
nas fábricas foi fundamentada a partir da ideia de se conceder oportunidade para aprender um
ofício e não deixar que os menores ficassem soltos pelas ruas, sujeitos à ociosidade e à
Fontes
Legislação
Bibliografia
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro
(1860-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 1999
GUIMARÃES, Elione Silva. Tensões remanescentes das senzalas: análise de tutorias de menores
afrodescendentes (Juiz de Fora, MG, final do século XIX e início do século XX). Revista Justiça &
História, 2005.
MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Crianças na recém-industrializada São Paulo. In:
PRIORE, M. Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
MUAZE, Mariana. A descoberta da infância. A construção de um habitus civilizado na boa sociedade
imperial. Dissertação. Departamento de História. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade
Católica, 1999.
_______________. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial. Escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do
Segundo Reinado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.
SOARES, Aline Mendes. Precisa-se de um pequeno: O trabalho infantil no pós-abolição no Rio de
Janeiro (1888-1927). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação
em História/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2018.
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil Urbano. Cf. PRIORE, Mary Del
(org). História das mulheres no Brasil. 7 Ed. São Paulo: Contexto, 2004.
SOUZA, Flavia Fernandes. Para casa de família e mais serviços: O trabalho doméstico na cidade do
Rio de Janeiro no final do século XIX. (Dissertação) Mestrado em História. São Gonçalo,
UERJ, 2009.
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Volume II. Rio de Janeiro: Paz e
Terra: 1987.
VELLOSO, Mônica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-30): mediações,
linguagens e espaços. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2004.
Resumo
Introdução
3 FARIA, Regina Helena Martins de. Trabalho escravo e trabalho livre na crise da agroexportação escravista no
Maranhão. 1998. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História Econômica Regional)
Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 1998.
4 FARIA, Regina Helena Martins de. Trabalho escravo e trabalho livre na crise da agroexportação escravista no
Maranhão. 1998. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História Econômica Regional)
Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 1998, p. 11.
1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 95.
7 ALMEIDA. Alfredo Wagner Berno de. A ideologia da decadência: leitura antropológica a uma história de agricultura
do Maranhão. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa 8; Fundação Universidade do Amazonas, 2008, p. 62.
9 MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura. Biblioteca Pública Benedito Leite. Catálogo de jornais
maranhenses do acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite: 1821-2007. São Luís: SECMA, 2007, p. 33.
10 MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura. Biblioteca Pública Benedito Leite. Catálogo de jornais
maranhenses do acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite: 1821-2007. São Luís: SECMA, 2007, p. 49.
11 PEREIRA, Josenildo de Jesus. As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de
1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
12 PEREIRA, Josenildo de Jesus. As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de
1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 118.
13 MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura. Biblioteca Pública Benedito Leite. Catálogo de jornais
maranhenses do acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite: 1821-2007. São Luís: SECMA, 2007, p. 41.
14 REFLEXÕES SOBRE A AGRICULTURA. Diário do Maranhão. São Luís, 26 de fevereiro de 1874, p. 01.
15 O ARADO. O Paiz. São Luís, (sem data), p. 01.
“Convém que seja decretado um imposto que faça privar essa torrente de
emigração para as províncias do sul”
1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 112.
18 PEREIRA, Josenildo de Jesus. As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de
1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 114.
19 JACINTO, Cristiane Pinheiro dos Santos. “Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e funcionamento
do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885)”. In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís:
Editora da UEMA, 2009.
20 JACINTO, Cristiane Pinheiro dos Santos. “Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e funcionamento
do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885)”. In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís:
Editora da UEMA, 2009, p. 182.
21 CENAS DE ESCRAVIDÃO. Diário do Maranhão. São Luís, 12 de maio de 1874, p. 01.
22 TESOURO PROVINCIAL. Diário do Maranhão. São Luís, 15 de abril de 1875, p. 02.
23 EXPORTAÇÃO DE ESCRAVOS, ALGODÃO E AÇUCAR. Jornal da Lavoura. São Luís, p. 6, 15 de
julho de 1875.
agrícola definha cada vez mais, autores de artigos como esse tentam convencer a opinião
pública a defender a criação de um imposto maior sobre essa prática comercial ou o
estabelecimento de medidas mais rigorosas.
Da mesma forma, os articulistas ao tentarem frear o tráfico interno, e fazer com
quem fossem aprovadas novas ementas acerca desse comércio procuravam sensibilizar
proprietários de escravos. Recorriam a princípios éticos, de sensibilidade e humanitários,
demonstrando que esse tipo de atividade poderia separar famílias, e que a sua conservação
na província poderia manter esses laços familiares. Pois esse comércio separava famílias,
separava cônjuges, separava filhos de suas mães. No diz respeito a manutenção da unidade
familiar, Cristiane Jacinto pontua que esses casos na maioria das vezes necessitavam da
interferência dos proprietários, contudo “viajar juntos não significava que todos seriam
mantidos dessa forma”, pois “o destino desses escravos era incerto e é difícil saber se essas
mães continuaram próximas dos seus filhos”24.Como demonstra a autora, “a mudança de
mentalidade que se operava com relação à escravidão fazia que se levantassem vozes que
discordavam de tal comércio”, e aqueles que se “posicionavam contra o tráfico
interprovincial viam-no como a reprodução dos horrores que se caracterizam o tráfico
transatlântico”25.
Nota-se uma correspondência dos discursos que tentavam tocar o lado sensível dos
leitores e senhores dos escravos. Por exemplo, o uso de adjetivos como “triste”, “infelizes”,
“repugnantes” para descrever a natureza desse arranjo comercial e para convencê-los a
serem contra essa prática. Com o aumento do tráfico interprovincial, a população escrava
da província do Maranhão continuou decrescendo. Por esta razão, esses articulistas ligados
a tradição da economia mercantil e escravista consideravam necessário defender seus
interesses por dificultar a saída de escravos. Pois enquanto não surgisse outra solução para
sua substituição, a província ficaria num estado precário, visto não terem trabalhadores
livres, ou colonos que os substituíssem.
24 JACINTO, Cristiane Pinheiro dos Santos. “Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e funcionamento
do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885)”. In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís:
Editora da UEMA, 2009, p. 189.
25 JACINTO, Cristiane Pinheiro dos Santos. “Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e funcionamento
do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885)”. In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís:
Editora da UEMA, 2009, p. 190.
“Quanto a nós somos de opinião que em vez de entraves, seja a saída inteiramente
livre”
No que se refere aos artigos favoráveis a esse comércio, e provavelmente contra o
imposto, defendem que tal prática é reflexo dos lavradores com dívidas que não
conseguem pagá-las somente com os resultados de suas colheitas. Por esta razão os
mesmos vendem seus escravos para outras províncias que podem comprá-los por um alto
preço. Contestam que em vez de entraves a saída e o tráfico interprovincial de escravos seja
livre. E se a província sofre de um mal, o valor para o remédio deve sair do bolso de todos.
Ao contestar os argumentos utilizados por aqueles que são contra o tráfico
interprovincial reconhecem que possuem certa validade, contudo é dever do homem
pensar mais do que sentir, que é chamado na sociedade a dirigir negócios e interesses
públicos e não se apegar a ideias superficiais ou sentimentos. E não encaram o tráfico
interprovincial como a causa da crise, e sim como sua consequência. Também alguns
afirmam que os escravos não são a força necessária para tirar a província do estado que se
encontra.
Um desses articulistas termina seu texto de forma positiva, acreditando no lado
bom da exportação dos escravos e defendendo-a. Argumenta que o comércio
interprovincial dos escravos é uma coisa boa, pois a permanência dos escravos poderia
resultar em mais um minuto de incerteza e ilusão, e que tais coisas não são necessárias26.
Por fim, haviam os que encaravam o imposto sobre a exportação dos escravos não
como um empecilho, mas como sua promoção em maior escala, e com maiores prejuízos
para as finanças da lavoura. Além de afirmar ser ilegal, porque ataca o direito da
propriedade27.
Afirmam que não é por meio de um imposto proibitivo que será impedida a
exportação de escravos, mas que a única solução será por meio da criação de bancos de
crédito real. Pois dessa forma o mal será atacado diretamente, que é a falta de recursos.
Considerações finais
Bibliografia
ALMEIDA. Alfredo Wagner Berno de. A ideologia da decadência: leitura antropológica a uma
história de agricultura do Maranhão. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa 8; Fundação Universidade do
Amazonas, 2008.
CENAS DE ESCRAVIDÃO. Diário do Maranhão. São Luís, 10 de abril de 1875, p. 01.
CENAS DE ESCRAVIDÃO. Diário do Maranhão. São Luís, 12 de maio de 1874, p. 01.
EXPORTAÇÃO DE ESCRAVOS, ALGODÃO E AÇUCAR. Jornal da Lavoura. São Luís,
15 de julho de 1875, p. 06.
EXPORTAÇÃO DE ESCRAVOS. Jornal da Lavoura. São Luís, 30 de julho de 1875, p. 01.
FARIA, Regina Helena Martins de. Trabalho escravo e trabalho livre na crise da agroexportação
escravista no Maranhão. 1998. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História
Econômica Regional) Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 1998.
JACINTO, Cristiane Pinheiro dos Santos. “Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e
funcionamento do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885)”. In: O
Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís: Editora da UEMA, 2009, p. 169-194.
MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura. Biblioteca Pública Benedito Leite. Catálogo
de jornais maranhenses do acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite: 1821-2007. São Luís: SECMA,
2007.
O ARADO. O Paiz. São Luís, (sem data), p. 01.
O IMPOSTO PROIBITIVO DE EXPORTAÇÃO DE ESCRAVOS. Jornal da Lavoura.
São Luís, 30 de março de 1876, p. 07-08.
PEREIRA, Josenildo de Jesus. As representações da escravidão na imprensa jornalística do Maranhão
na década de 1880. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
REFLEXÕES SOBRE A AGRICULTURA. Diário do Maranhão. São Luís, 26 de fevereiro
de 1874, p. 07-08.
SEM TÍTULO. Jornal da Lavoura. São Luís, 13 de setembro de 1876, p. 03.
TESOURO PROVINCIAL. Diário do Maranhão. São Luís, 15 de abril de 1875, p. 02.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo apresentar a relação da Moda e da Saúde com a sociedade
brasileira no século XIX. Mostrando de que forma elas interagiam e conflitavam na
sociedade, as consequências da moda para a saúde como o uso dos espartilhos e também
do caráter machista dos jornais e revistas da época quanto a esse fenômeno. Apresentando
a relação de como uma tendência europeia podia funcionar como catalizador de grandes
mudanças nas áreas sociais, dos costumes e urbanísticas do Rio de Janeiro.
No início do século XIX com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, fugindo
das invasões francesas, fez com que essa região buscasse se desenvolver mais rapidamente
para acompanhar o padrão de uma Corte europeia. Fazendo com que houvesse uma grande
importação de artigos europeus e a realização de obras que se alinhassem com uma ‘’boa
sociedade’’ que já estava formada aqui desde do período colonial, embora a historiografia
costumasse a se referir a ela como "homens bons" anteriormente. Foi nesse momento em
que a moda estrangeira ganhou um enorme destaque no Brasil, fazendo com que fosse
desenvolvido a importação de peças como também a cópia de alguns modelos que eram
destaque na Europa, sendo adaptados para o clima tropical do Brasil.
Sendo assim é possível afirmar que o vestuário no Brasil do século XIX seguia o
padrão do vestuário europeu, em especial o francês, sendo possível identificar mudanças
entre as modas ao longo do século. Dentre um dos grandes destaques e bastante polêmico
foi o espartilho. A Moda tinha uma influência muito grande sobre a sociedade e todas as
relações sociais presentes nela no século XIX, das festas, dos bailes, dos passeios pelas
áreas da cidade onde eram frequentadas pela ‘’boa sociedade’’. A moda passou a ser um
meio onde a mulher começou a ganhar aos poucos uma voz própria, onde ela pudesse
mesmo que de forma ainda restrita escolher o que vestir, qual acessório usar. E com todas
1 Graduando em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista no programa de
transcrição de arquivos do fundo Conde das Galvêas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
E-mail: bryanwilli2@gmail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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essas mudanças ocorrendo foi nesse momento em que surgiram estudos, artigos e matérias
de revistas, como o Jornal das Senhoras fundado em 1852 sobre Moda e Saúde voltada para o
público feminino em especifico.
A saúde das mulheres estava sob um forte controle da moda, de acordo com os
médicos da época, esses que teciam inúmeras críticas quanto ao uso do espartilho. Peça que
surgiu por volta do século XVI, período esse que foi onde o espartilho ganhou forma e se
expandiu devido as ideias renascentistas, dentre elas o culto ao corpo. Segundo Laver o
espartilho foi rapidamente absorvido como um novo padrão de beleza, o que resultou em
severas e imponentes modificações na peça ao longo dos anos desde que ela adentrou ao
vestuário feminino no período feudal2. E pode se dizer que acabou se tornando uma peça
presente ao longo dos séculos no vestuário feminino.
No século XIX, a maioria das peças eram compostas por materiais de metal ou
barbatana de baleia, envoltos em tecidos resistentes que era fechada por laços que
passavam por ilhoses, que iam comprimindo o tronco. Cujo o papel era de afinar a silhueta
e marcar a cintura, fazendo com que aumentasse o volume dos seios. Tendo um caráter
muito simbólico da feminilidade da época. Entretanto essa peça prejudicava a saúde e sua
utilização poderia causar consequências, consequências essas que eram resultado de um
comportamento nocivo adotado que fazia com que as mulheres se adequassem a um
determinado padrão de beleza da época.
Durante o século XIX, as feministas e os médicos ingleses entravam em
alinhamento quanto as críticas acerca do espartilho, embora o motivo da crítica tivesse
motivos diferentes. As feministas defendiam a emancipação feminina e se queixavam do
espartilho por trazer todas as questões que levaram para a estereotipização da figura
feminina3, principalmente durante o período vitoriano, onde começou a surgir essa imagem
da mulher como delicada e frágil. Já os médicos apresentavam inúmeras queixas contra a
questão da saúde feminina, desde doenças como náuseas, constipação, desmaios, dores
musculares como também deslocamento de órgãos internos, doenças respiratórias, abortos
e traumas nas costelas decorrente a grande pressão que era exercida pela peça ao corpo da
mulher.
2 LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. Português. 3° Edição. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
3 RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. ‘’Imagens da Moda no Rio de Janeiro: Uma Leitura dos Jornais e dos
Manuais de Etiqueta e Civilidade’’. In: A Cidade e a Moda. Português. 1° Edição. Brasília: Editora UNB, 2002.
De acordo com a autora Valerie Steele, através de diários anotações ela pode
analisar de forma anatômica e detalhada as questões acerca do espartilho no século XIX,
constatando que de fato ele afetava os pulmões, o coração, o fígado e o estômago, todos os
órgãos que ficam localizados na região da cintura eram afetados devido a grande pressão
que era exercida pela peça e apresentava consequências distintas para cada tipo de órgãos.
O fígado, por exemplo, era puxado para baixo causando deformação. O deslocamento e
recorte do estômago eram responsáveis pelos distúrbios alimentares e pela constipação,
mas não haveriam indícios de que causasse doenças digestivas mais graves como era
constantemente vinculado nos periódicos de moda e saúde da época. A autora ainda aponta
que a anemia que era vinculado na época ao uso do espartilho de forma errônea, ela estaria
ligada a questão nutricional e não apresentava nenhuma relação com o uso da peça, mas
sim de um transtorno alimentar como podemos constatar hoje.
Contudo, as críticas médicas e as pesquisas reveladas e divulgadas na época através
dos periódicos e das revistas quanto ao mal provocado pelo espartilho não convenceram as
mulheres a se livrarem da peça que continuou sendo utilizada, devido à falta de
unanimidade da comunidade médica quanto ao uso do espartilho. Alguns abominavam
completamente seu uso, já outros recomendavam para algumas faixas etárias e permitia o
uso desde que seguissem algumas regras e eles não fossem utilizados em casos específicos
como o uso durante a gravidez ou em meninas.
Porém as restrições dos médicos não se resumiam somente ao espartilho no século
XIX. Os cosméticos e os perfumes amplamente divulgados nas colunas de moda dos
jornais também eram alvos de críticas4.Um dos manuais de etiquetas chamado Novo manual
do bom-tom afirmava ‘’o uso de tintas para pintar o rosto é ridículo, e só é tolerável a uma
atriz. Quase nas mesmas circunstâncias está o de pintar o cabelo’’5. Nesses manuais também
haviam indicativos quanto aos perfumes que as mulheres deveriam usar, definindo que
certos perfumes só se compreendem em ’’cômicas’’ ou em atrizes, nunca em senhoras
honestas, outros só em mulatas, nunca em senhoras brancas. A autora Maria do Carmo
Rainho aponta ainda um grande teor racista e machista nos apontamentos e nas críticas
médicas da época, onde eles afirmavam que determinadas idades e pessoas de determinadas
cores não deveriam se inserir nesse universo da moda. Mas uma das principais críticas eram
4 RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. ‘’Imagens da Moda no Rio de Janeiro: Uma Leitura dos Jornais e dos
Manuais de Etiqueta e Civilidade’’. In: A Cidade e a Moda. Português. 1° Edição. Brasília: Editora UNB, 2002.
5 VERARDI, Luís. Novo manual do bom-tom. Português. 6° Edição. Rio de Janeiro: Laemmert, 1900.
que as mulheres se tornariam ‘’fúteis e relapsas’’, mais preocupadas com a vida mundana e
se distanciaria das tarefas ligadas à sua família.
Com o advento do avanço cientifico, os médicos passaram a apontar para as
questões higiênicas, afirmando que elas eram a resposta para epidemias, febres e para o
contágio de doenças causadas pela água e do ar que afetavam a população. Fazendo com
que fosse feitas obras de saneamento no Rio de Janeiro para tornar a cidade mais moderna
e alinhada com essas novas ideias, torná-la em uma espécie de modelo, uma cidade na
América no ‘’padrão’’ Francês. Um dos exemplos foi a obra de ampliação da rede de
distribuição de água, que ocorreu na década de 1880, marca da modernização e das
demandas dos médicos que pediam higienização das casas. A água era um privilégio de
poucos e por conta disso a lavagem das roupas e a higiene corporal no século XIX era algo
atribuído a uma determinada classe social.
Como o autor Roberto Machado aponta em sua obra Danação da norma: medicina
social e constituição da psiquiatria no Brasil, a medicina brasileira do século XIX está diretamente
ligada a medicina europeia de forma subordinada, especialmente a francesa. Por isso
medidas que eram tomadas na França eram implementadas aqui no Rio de Janeiro como
uma tentativa de inseri-las na realidade local. Essa questão está diretamente ligada a questão
da moda, apontada por Gilles Lipovestky como uma força efetiva na produção e
reprodução social. Ela serviu como catalizador das mudanças tanto sociais como culturais
do Rio de Janeiro do século XIX. Fazendo com que os hábitos mudassem e que fossem
adotadas medidas higiênicas mais rígidas quanto ao corpo e as vestimentas que serviu
também para caracterizar uma sociedade que ficou intitulada como ‘’boa sociedade’’, que se
afastava das classes mais baixas do Rio de Janeiro. Essa sociedade estava ligada ao que
tinha de mais sofisticado, de mais moderno e fazia questão de explicitar essas diferenças
frente aos outros estratos sociais. Um dos grandes modelos de homem moderno foi o
monarca Dom Pedro II que se adaptou aos novos tempos adotando vestimentas da moda
na época. Na nova visão da sociedade, se vestir como um aristocrata deixou de ser elegante
ou até mesmo inteligente. Para eles a perfeição do vestuário consistia numa simplicidade
absoluta através da alta qualidade dos tecidos e da excelência da modelagem dos cortes.
O comércio foi um dos setores influenciado por essas tendências vigentes da época,
fazendo com que houvesse uma grande demanda de trajes e acessórios da Europa.
Atraindo tanto homens e mulheres com o mesmo interesse, seguir a cartilha do requinte
francês. Pois para eles está praticava significava estar na frente, significava estar na moda.
Com isso esse seleto grupo pretendia causar furor na sociedade do Rio de Janeiro.
Adotando todos os conceitos civilizatórios que permeavam a época, podendo ser
percebidos através das roupas e dos novos hábitos adquiridos nesse século que
representam um indicativo dessa nova postura. O ser e o parecer tiveram um grande
destaque nesse período, a grande parcela dos bem nascidos, da ‘’boa sociedade’’6, utilizava a
indumentária como uma forma de marcar distância entre eles e os despossuídos de renda e
com os que não possuíam uma posição de destaque dentro da sociedade.
A diferenciação entre o vestuário entre homens e mulheres também bastante
percebida através dos matérias que eram utilizados para ambos nas roupas, para os homens
era feito algo mais despojamento, mais leve e mais confortável, para as mulheres o foco era
a beleza então essas mesmas tendências não eram aplicadas na maioria dos casos. Embora
houvessem casos em que exagerassem na tentativa de implementação das roupas europeias,
sem que fosse feita uma adaptação para a realidade local, como na questão dos homens que
faziam questão de circular no Rio de Janeiro de casaco cruzado com três botões,
confeccionado com tecido inglês para o inverno europeu. As mulheres também eram alvo
desse anseio em adentrar nas tendências da moda francesa, se vestindo da cabeça aos pés
com todos os modelitos mais recentes de Paris. Mesmo que para isso tivessem que
enfrentar a alta temperatura carioca para serem incluídas em um anseio da época.
Esse período da modernidade é representado por grandes mudanças, pelas novas
ideias e principalmente devido as novas tecnologias, demostrando a nova faceta que o
homem empregava frente ao grande mundo em que ele ia explorando cada dia mais. E isso
ficava nítido através dos novos hábitos que iam sendo inseridos nas sociedades, hábitos
urbanísticos e sociais, resultados de uma sociedade pós-industrial. Embora a França como
um todo já fosse uma referência cultural, nesse período, Paris se tornou o centro cultural
do mundo. Cidade essa que foi bastante remodelada, sofrendo inúmeras reformas
urbanísticas e culturais, respondendo ao grande anseio crescente das necessidades por
higiene e salubridade dos espaços públicos e privados, da iluminação, das vias, do lazer
com seus parques e suas áreas verdes, os diferentes meios de transportes que começaram a
surgir. Todas essas mudanças fizeram com que ocorressem um movimento mobilizador
com transformações urbanísticas em outras metrópoles, como foi o caso de Londres, Viena
e Barcelona, chegando até mesmo ao Rio de Janeiro.
6RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. ‘’Representações da Roupa e da Moda’’. In: A Cidade e a Moda.
Português. 1° Edição. Brasília: Editora UNB, 2002.
Essas mudanças sociais e urbanas, podem e devem ser inseridas como uma forma de
moda que percorreu ao longo do século XIX. Moda é um elemento que caracteriza os
indivíduos, elemento marcante e distinto de cada época. É o que possibilita a contemplação de
diferentes trajes, diferentes estilos, diferentes formas de pensar, diferentes regras morais e
diferentes intencionalidades quanto ao que deseja obter ou expressar com suas roupas. A partir
da moda vigente homens, mulheres, crianças espelham todos seus interesses e principalmente
sua posição social. Fazendo com se evidencie a diferença social entre as escalas de poder
econômico, definidos pelos detalhes, como no tipo de tecido, na costura, no modelo, nos
acessórios. A indumentária que anteriormente era usada para diferenciar nobres de plebeus e de
cargos na sociedade passou por uma ressignificação nesse período, com a revolução industrial a
moda passou a se tornar um movimento mais amplo nunca antes visto na história. A vontade
individualista presente na Idade Moderna é facilmente observada através da ascensão da moda
nesse momento, onde é possível notar o pensamento individualista por trás desse desejo pela
modernidade, fazendo com que espalhasse essa cultura individual do bem-estar, da paixão
pelos matérias, pelo desejo de liberdade. Quebrando as barreiras e não se resumindo apenas na
indumentaria, mas em todo um pensamento cultural que foi exportado e difundido para o
mundo. Representando a ascensão da burguesia, do seu poder e de sua influência a partir daí,
criando um o mercado consumidor gigantesco a partir desse século, que iria aumentar cada vez
mais ao longo dos anos.
Bibliografia
LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. Português. 3° Edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Português.
1° Edição. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da
norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Português. 1° Edição. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1978.
O Jornal das Senhoras, Typographia Parisiense. Português. Rua Nova do Ouvidor, Rio de
Janeiro, n.20, 1852.
RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A Cidade e a Moda. Português. 1° Edição. Brasília:
Editora UNB, 2002.
STEELE, Valerie. The corset: a cultural history. Inglês. c. New Haven & London: Yale
University Press, 2007.
VERARDI, Luís. Novo manual do bom-tom. Português. 6° Edição. Rio de Janeiro: Laemmert,
1900.
Resumo
4OLIVEIRA, Almir Leal de. “Universo letrado em Fortaleza na década de 1870”. In: SOUZA, Simone;
NEVES, Frederico de Castro (Orgs). Intelectuais... Op. Cit.,p. 25.
5 Ibidem, p. 27.
6 Ibidem.
7 Ibidem, p. 28.
8 Ibidem, p. 30.
9 Libertador, nº 02, 15 de janeiro de 1881, p. 1.
10 OLIVEIRA, Almir Leal de. Op. Cit., p. 35.
acreditamos ter sido adotada também em relação aos escravos, na década seguinte. Uma
postura paternalista, mas que também se apresentava como missão cientificista.
A imprensa maçônica foi o principal meio de divulgação de suas ideias. O jornal
Fraternidade, onde publicaram João Brígido, Thomás Pompeu de Sousa Brasil, Tristão de
Alencar, Araripe Júnior e Xilderico de Farias, era permeado pelo ideário liberal/ilustrado e
positivista, e defendia as bandeiras da liberdade religiosa, Estado e ensino laicos, casamento
civil, educação popular, entre outras. A Academia Francesa chegou ao fim em 1875, mas
no mesmo ano alguns de seus antigos membros, em conjunto com outros estudantes
fundaram o Gabinete de Leitura, com o objetivo de manter uma biblioteca e difundir as
leituras cientificistas na província. A partir desta agremiação, outras foram surgindo, entre
elas as literárias e abolicionistas da década de 1880. Neste período, segundo Almir Leal
Oliveira, entre os temas marcantes dos movimentos sociais no Ceará estavam a
reorganização após a seca, a abolição, o movimento republicano e o desejo de inserir a
província nas mudanças que trariam o progresso material típico da civilização europeia.
Segundo Gleudson Passos, no momento de passagem da Monarquia para a
República, esses intelectuais atuaram em “jornais partidários, revistas científicas e
periódicos literários”11, disseminando visões políticas e científicas do que deveria ser a nova
nação. Nesse contexto, no Ceará, a imprensa local se dividia em duas frentes: o jornalismo
político e o literário/científico. Assim, defendiam seus princípios filosóficos e atuavam na
opinião pública, informando-a dos debates políticos e intelectuais da época. Sobre a
atuação desses homens, Passos diz que:
Percebe-se que, seja na literatura ou na imprensa partidária, esses
intelectuais conviveram no período de intensos debates sobre diferentes
projetos sociais e políticos para o Brasil, marcado pelas transições do
escravismo para o trabalho livre, pelas discussões econômicas a optar
entre agroexportação e industrialismo, bem como pelos debates sobre
quais os modelos políticos a serem aplicados durante a passagem da
Monarquia para a República. (...) deve ser entendido que estavam
interpretando uma realidade em transformação, daí a multiplicidade de
suas ideias (...)12.
Estes se baseavam em sua vivência cotidiana, em sua origem social, nas leituras que
faziam; uns se fascinando com as transformações da época, outros as temendo. Dividiram-
se em duas gerações. Uma foi a Mocidade Cearense, composta por aqueles que
11 CARDOSO, Gleudson Passos. “Literatura, Imprensa e política (1873-1904)”. In: SOUZA, Simone;
NEVES, Frederico de Castro (Orgs). Intelectuais... Op. Cit.; p. 41.
12 Ibidem, p. 43.
participaram dos movimentos pelo “racionalismo filosófico”13 e pela abolição, entre 1870-
80, na Academia Francesa, na Sociedade Cearense Libertadora, no Centro Abolicionista e
no Clube Literário. Parte destes fundou o Instituto do Ceará, a Academia Cearense e o
Centro Literário. A segunda geração foram os Novos do Ceará, inspirados no movimento
abolicionista, composta por camponeses e imigrantes e pelas classes suburbanas; foram
inspirados também pelas ideias democráticas e republicanas e fundaram a Padaria Espiritual
e o Centro Literário. A origem social dos componentes da Mocidade era, em sua maioria,
das classes abastadas, com poder na política local, e também de camadas médias que
emergiam com o desenvolvimento algodoeiro. Uma exceção seria Justiniano de Serpa, de
origem popular, mas que acabou por aproximar-se dos grupos políticos oligárquicos. A
Academia Francesa, então, foi uma iniciativa da Mocidade, que procurou se engajar nas
questões políticas e sociais nas décadas de 1870 e 1880.
Percebemos então que os mesmos intelectuais agiam em várias agremiações, como
é o caso dos citados acima, reunindo-se na Sociedade Cearense Libertadora e no Clube
Literário e escrevendo no jornal Libertador e, posteriormente, na revista A Quinzena. Alguns
iriam também participar da fundação do Instituto do Ceará e escrever em sua revista, como
Paulino Nogueira, Guilherme Studart e Antônio Bezerra, que participaram de sua
fundação, e João Lopes, Abel Garcia, Justiniano de Serpa, entre outros, que escreveram na
Revista do Instituto do Ceará. Vemos que os mesmos homens participaram de diferentes
movimentos intelectuais naquela província e assim disseminavam suas ideias por diversos
meios. Já na década de 1890, no momento de organização do novo regime, a Mocidade cria
duas novas agremiações, ambas em 1894: a Academia Cearense, que tinha como órgão a
Revista da Academia Cearense (1894-1922), possuindo o mesmo pensamento cientificista e
evolucinista; e o Centro Literário, que através da revista Iracema (1895-1900) declarava
apoio ao governo republicano. Neste novo contexto histórico, esses intelectuais atuaram na
sociedade visando legitimar seus interesses e dos grupos dominantes aos quais se
vinculavam.
Destacando os Novos do Ceará, já na década de 1890, percebemos que seus
membros tinham origem nas classes populares urbanas e do interior. Fundaram o Centro
Republicano Cearense, onde iniciaram a carreira pública. Com eles, surgiram novas
posturas diante das transformações sociais do período, oscilando entre aqueles que
acreditavam nos ideais civilizatórios em voga; aqueles que desejavam preservar as tradições
13 Ibidem, p. 44.
14 Ibidem, p. 62.
15 SILVA, Ana Paula Barcelos R. da. Diálogos sobre a escrita da história: Ibero-americanismo, catolicismo,
(des)qualificação e alteridade no Brasil e na Argentina (1910-1940). Tese de Doutorado. Niterói: Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, 2010, p. 11.
deveriam ficar marcados para a posteridade, entre eles a abolição da escravidão em 1884,
que teria sido sua maior glória.
É importante perceber também a finalidade política por trás da atuação do Instituto
que, ao mesmo tempo em que buscava legitimar uma identidade regional, contribuía
também para a legitimação de uma história nacional, em contribuição com o IHGB. Assim,
com o objetivo de tornar conhecida a história da província e a produção destes intelectuais
neste sentido, foi criada a Revista do Instituto do Ceará em 1887, no mesmo ano da fundação
do Instituto. São abordados assuntos referentes à história do Ceará, e em um contexto mais
amplo, sua relação com outras províncias e a história nacional. Assim, temas como a
participação do Ceará na Revolução Pernambucana, na Confederação do Equador e no
movimento abolicionista aparecem como contribuições do Ceará para a história nacional.
A libertação dos escravos em 1884, porém, seria o evento mais importante a ser destacado.
No artigo “Uma história da Abolição” de Mozart Soriano Aderaldo, vemos como ele
coloca a abolição acima de todos os outros eventos ocorridos no Ceará:
(...) A libertação dos escravos é, sem sombra de dúvida, o mais
empolgante feito de tôda a nossa evolução político-social, superando
mesmo o movimento em favor da República e, até, a Revolução de 1817
e a Confederação do Equador, em 1824, que tantas glórias acrescentaram
à substancial soma de sofrimento por que já havia passado e haveria
ainda de passar o povo cearense.16
16 ADERALDO, Mozart Soriano. “Uma história da abolição”. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1956, pp. 160-162.
17CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política (1873-1904).
transição política”19. Ideário fundamentado em três bases: a chegada das “Luzes” e as ideias
eurocêntricas que norteavam o progresso rumo à civilização, que conquistavam espaço
entre os intelectuais cearenses naquele período; as secas, que foram interpretadas como
uma fase evolutiva, dentro dos conceitos evolucionistas também em voga entre os
intelectuais naquele momento; e a libertação dos escravos em 1884, tida pelos intelectuais
da Mocidade Cearense como uma conquista institucional perante o restante do país.
Assim, cria-se a imagem do cearense forte, que supera todas as adversidades do
meio, e que apesar das dificuldades ainda se preocupou com seus semelhantes, no caso os
cativos, possuindo por isso uma personalidade especial20. Imagem esta que foi fortalecida
pelo Instituto do Ceará, como se pode constatar em seus artigos que tratam da abolição,
onde se afirma que logo após a seca de 1877 a 1879, após muito sofrimento, o cearense
teria se engajado na luta pela libertação dos escravos, mostrando sua abnegação e coragem.
No artigo “Uma data cearense”, de Alba Valdez, presente no Tomo comemorativo dos
cem anos da abolição no Ceará, em 1984, vemos esta ideia de que o sofrimento moldaria a
personalidade do cearense, e como esta teria contribuido para a abolição:
E o mesmo dinheiro, producto do braço escravo, queimava-lhe as mãos
válidas e honradas, afigurando-se-lhe criminosa extorção. Pois elle sabia
trabalhar, combater pela vida. Sua enfribatura mais de uma ocasião fôra
posta à prova (...). Nascido sob o céo mais ingrato do Brasil, o cearense
nunca foi um predilecto da fortuna. (...) Familiarizado desde cedo com a
adversidade, sciente de quanto um minuto de amargura entoxica uma
existencia inteira, desolava-o a excrescencia abjecta do captiveiro.
Tornava-se mister um movimento que acabasse com aquella vergonha
social. (...) E aconteceu que naquelle dia 25 de março, para sempre
memorável, o sol offuscante dos trópicos saudava a primeira terra
brasileira onde todos eram livres, a qual um negro de genio por justos
motivos cognominou – Terra da Luz.21
19 Ibidem.
20 CARDOSO, Gleudson Passos. Op. Cit., p. 12.
21 VALDEZ, Alba. “Uma data cearense”. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal
sciencias”22. Este trabalho seria feito a partir da coleta de documentos, que abordassem
todos os temas referentes à história da província, desde o período colonial, para que essa
história se tornasse conhecida, podendo assim alcançar a civilização. Essa história deveria
ser conhecida não apenas no Ceará, mas também pelo país e pelas demais nações ditas
civilizadas.
Dessa forma, esses intelectuais que participaram desses movimentos e até mesmo
do movimento abolicionista, iriam escrever sobre a abolição no Instituto do Ceará
posteriormente, no final do século XIX e ao longo do século XX, como podemos ver nos
artigos da Revista do Instituto que tratam sobre o tema. Falando sobre o movimento
abolicionista e os intelectuais que nele atuaram, Eusébio de Souza, no artigo “O Ceará e a
abolição”, de 1923, diz que
Todo mundo sabe como se travou esse porfiado prélio abolicionista,
entre nós, tão cheio de episódios interessantes, alguns de verdadeiro
estoicismo, denotando muito arrojo e não menos audácia dessa meia
dúzia de homens que jurando trabalhar pela sympathizada causa até a
morte, em um período assás diminuto conseguiram gritar ao mundo: O
Ceará está livre.23
Assim, vemos como a abolição foi destaca no Instituto do Ceará como o maior feito
daquela província, que deveria ficar marcado em sua História. Inclusive, no Tomo Especial da
Revista, de 1984, em comemoração aos cem anos da abolição vemos, já no final do século XX,
como esse fato ainda era exaltado e considerado um marco na História do Ceará, sendo
reafirmado pelo Instituto do Ceará cem anos depois. Dessa forma, buscamos neste trabalho
abordar o desenvolvimento de uma intelectualidade no Ceará, nas últimas décadas do século
XIX, que teria uma importante atuação em associações e grêmios literários da época. Essa
atuação culminaria na fundação do Instituto do Ceará, onde esses intelectuais continuariam
desempenhando sua atividade intelectual a partir da escrita da História daquele estado. Nessa
História, a abolição da escravidão em 1884 apareceria como fato mais importante e glorioso;
contribuindo assim para a História e identidade regional cearense.
Fontes
ADERALDO, Mozart Soriano. “Uma história da abolição”. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1956, pp. 160-162.
22 “Estatutos do Instituto do Ceará”. Revista Trimensal do Instituto do Ceará, Fortaleza: Tipografia Econômica,
Tomo I, 1887, p. 9.
23 SOUZA, Eusébio de. “O Ceará e a abolição”. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipogradia Minerva,
Bibliografia
Resumo
4 NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. “A Vida Política”. In: Crise colonial e independência: 1808-1830, vol.1.
Coordenação Alberto da Costa e Silva. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. (História do Brasil Nação: 1808-2010),
p.104-105.
Desse modo, o trabalho legislativo ocorria em meio a muito debate, lembrando que
a Câmara era composta por deputados oriundos de diferentes regiões do império, com
posicionamentos e pertencimentos políticos distintos. Conforme destacou Rodrigues, no
Parlamento se viu as províncias, por meio de seus representantes, em comunicação política
direta; se viu o estabelecimento de alianças políticas, e, também, deputados promovendo
fortes oposições, seja aos seus colegas de tribuna, à ordem do dia ou às determinações do
governo imperial que chegavam à casa legislativa.6 Todas estas situações produziram um
universo politicamente rico, confuso e conflituoso na Câmara dos Deputados – instituição
de natureza eletiva e temporária, considerada um espaço oficial de representação política,
uma vez que integrava o Poder Legislativo e, assim, a estrutura política do Estado.
Esse labirinto da política imperial foi apontado por Marco Morel, que afirmou não
ser tarefa fácil classificar as tendências políticas do Brasil da primeira metade do século
XIX, tendo em vista a diversidade de fronteiras e de pertencimentos políticos, os quais nem
sempre foram precisos.7 Ainda assim, tradicionalmente, a historiografia dedicada ao período
divide os grupos políticos atuantes entre 1826-1840 em liberais exaltados, moderados e
restauradores.
5 RODRIGUES, José Honório. O Parlamento e a Evolução Nacional. Introdução Histórica. 1826-1840. Senado
Federal. Brasília, DF. 1972, p.169.
6 O termo ordem do dia representa o momento da sessão em que eram lidas, discutidas e votadas as indicações
e propostas apresentadas pelos deputados, as quais foram incluídas na pauta de debates, normalmente, em
sessões anteriores. Definição do termo disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-
publicacoes/glossario/-/definicoes/termo/ordem_do_dia>. Acesso em: 12 de out. de 2020.
7 MOREL, Marco. As Transformações dos Espaços Públicos: Imprensa, Atores Políticos e Sociabilidades na Cidade
A expressão “exaltado” foi caracterizada como excesso político, e tem relações com
o período pós Revolução Francesa. Inaugurada a modernidade política, associada à ideia de
racionalidade, os exaltados eram considerados aqueles que perdiam a razão, os que se
deixavam guiar pelos sentimentos e paixões em prejuízo da racionalidade da coisa pública.
No Brasil, os liberais exaltados constituíram uma tendência política específica entre as
décadas de 1820-1830. No que se refere às ideias políticas, suas tentativas eram de impor ao
poder do monarca limites mais precisos. Para este grupo, o Parlamento e não o rei era
quem deveria controlar o governo. Sonhavam em um dia propor o fim da monarquia e a
instituição de uma república federativa aos moldes do governo norte-americano.
Desejavam a democratização da propriedade e estavam mais abertos à ampliação dos
direitos de cidadania, tanto civil como política, a todos os elementos livres da sociedade.
Não deixavam de denunciar, nos seus jornais, por exemplo, as violências sofridas pelas
camadas mais pobres da população. Queriam, também, mudanças na estrutura social,
defendendo o fim paulatino da escravidão. E, em geral, suas propostas tinham o objetivo
de reduzir as desigualdades existentes na sociedade imperial. Frequentemente envolviam-se
em motins, clubes secretos e lojas maçônicas.8
Os liberais moderados buscavam um equilíbrio entre a autoridade monárquica e o
Parlamento. Eles propunham uma modernização estável, sem rupturas na ordem social, o
que os tornava, nesse sentido, conservadores. Este ponto os diferenciava dos exaltados,
visto que os moderados regulavam suas ações “evitando os excessos”, e a quebra da ordem
social seria um exemplo do excesso. Na ordem política, defendiam a repartição dos
Poderes e os direitos individuais, como a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e a
liberdade de se expressar. No Brasil, apesar de alguns indivíduos identificados com esta
posição terem protagonizado o movimento de 1822, eles só começaram a se definir como
agrupamento político a partir de 1826. Chamamos atenção para que se acompanharmos
historicamente as posições deste grupo, centrado na noção de equilíbrio, perceberemos
como ela se transformou nos debates políticos de acordo com o contexto:
em 1821 indicava guardar a unidade entre Brasil e Portugal; após 1822
colocava-se como a defesa da independência do Brasil associada ao
imperador; durante o Primeiro Reinado a preocupação era distanciar-se
dos absolutistas e exaltados. Em 1830 cuidava-se de mudar o ministério e
8 BASILE, Marcello. “O laboratório da Nação: a era regencial (1831-1840)”. In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2014, p.55-119.
diferentes grupos que caminharam pelo labirinto da política imperial, seja nas ruas, através
dos jornais que circulavam na Corte e nas províncias, seja nos debates nas Assembleias
provinciais, na Câmara dos Deputados ou no Senado, seja nos ministérios ou, ainda, no
Conselho de Estado, ao lado do imperador.
No clássico A construção da ordem: a elite politica imperial, publicado em 1980, José
Murilo de Carvalho apresentou um estudo sobre os grupos que constituíram a elite política
nacional do Brasil no oitocentos. O autor analisou o perfil do grupo, sua composição, os
cargos que ocuparam no cenário político – entre os quais estão os ministros, considerados
o grupo mais importante, pois eram agentes do Poder Executivo, os senadores, os
deputados gerais e os conselheiros de Estado – as sociabilidades, os comportamentos
políticos que desenvolveram durante todo período imperial. Desta forma, compreendendo
por elites políticas nacionais os homens que tomavam decisões dentro do governo central,
o autor mostrou como as ideias e atitudes destes grupos moldaram a construção do Estado,
definindo, assim, a ordem política no império. Sendo assim, Carvalho nos revelou toda
uma conjuntura política e social da gestação até a consolidação do Estado imperial. Logo,
suas considerações, em particular aquelas acerca do grupo de deputados gerais, irão nos
guiar no decorrer de nossa reflexão sobre o cenário da Câmara dos Deputados e os atores
(os parlamentares) que lá atuaram durante os anos de 1826-1831.
A publicação de A Construção da Ordem pode ser considerada um marco
interpretativo importante. A partir dela, a historiografia se dedicou ao estudo dos
pensamentos políticos e seus desdobramentos práticos no Brasil do século XIX. Se
dedicou, também, a análise mais aguçada das facções e partidos políticos, inclusive os
grupos das elites políticas locais – e não somente aquelas que Carvalho chamou de
nacionais, as quais ocuparam o governo central –, e os mecanismos e estratégias que
acionaram para obtenção e extensão de cabedal político e como o exerceu.
Com foco em temáticas de história política das décadas de 1820 e 1830,
relacionando a história intelectual e cultural, o trabalho de Marco Morel, As transformações
dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840),
publicado em 2006, mas resultado da sua tese de doutorado defendida no ano de 1995 na
Université Paris I, apontou questões relacionadas ao processo de surgimento de novos
espaços de atuação política e social, como a imprensa e as lojas maçônicas, e as formas de
sociabilidade derivadas desses espaços. Segundo o autor, essas formas de sociabilidade
influenciaram na formação de identidades e grupos políticos, os quais tornaram-se
13SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780-
1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p.37.
Conclusão
Bibliografia
14POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideario político/ J. G. A. Pocock; Sergio Miceli (org.); tradução Fábio
Fernandez – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p.24.
Resumo
Na Marinha do Brasil, até a revolta dos marinheiros de 1910, não se teve notícia de
movimentos coletivos que partissem da suboficialidade. Do nosso ponto de vista, esses só
puderam ocorrer daquela forma e naquele momento graças a fatores tais como o
desenvolvimento de instituições da organização política republicana e o fim do escravismo.
Assim, entendemos que a revolta não foi puramente resultante de causas endógenas à
estrutura das Forças Armadas e, especificamente, da Marinha. Situações anteriores e mais
abrangentes a precederam. Especialmente, as transformações políticas, econômicas e
culturais ocorridas, sobretudo, a partir de meados do século XIX.
No Brasil, só tardiamente, em comparação com os países europeus, no final do
século XIX, se instaurou um regime de governo republicano e, no regime de produção e
1 Graduado e Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia em Ciências Sociais, Professor de EBTT do
Instituto Federal de Goiás - Anápolis, e-mail: claudio.sousa@ifg.edu.br
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2 Ao analisar a acumulação primitiva, Marx já chamava a atenção para o fato de que esse processo disciplinar
era fortemente coercitivo e se valia muitas vezes de métodos violentos que preparavam os indivíduos para o
trabalho regular, transformando expropriados em suas bases fundiárias em proletários. Ver MARX, Karl. O
capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, esp. livro I, cap. XXIV. Sobre os
métodos de disciplinarização rígidos e violentos que afetavam o corpo dos marinheiros por intermédio do
trabalho e da imposição das fainas na organização de bordo, ver BANDEIRA. Fabiana Martins.
Disciplinando homens, fabricando marinheiros: relações de poder no enquadramento social da Corte (1870-
1888). Dissertação (Mestrado em História) ─ CCH ─ UniRio, Rio de Janeiro, 2010, esp. cap. 3.
Disponível em <http://historiaunirio.com.br>. Acesso em 4 maio 2011.
3 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal,
1982. Duas obras tornadas clássicas enveredaram pelo estudo dos homens livres na sociedade brasileira nos
tempos da escravidão. Ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3. ed. São
Paulo: Kairós, 1983, e DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século São Paulo:
Brasiliense, 1984.
4 Marcos Silva buscou estabelecer uma aproximação entre o movimento contra a chibata e os movimentos
operários, utilizando como uma de suas fontes de pesquisa periódicos da imprensa operária. Segundo o autor,
“a historiografia brasileira que analisou a Revolta da Chibata, embora partindo de diferentes perspectivas
teórico- ideológicas, não atribuiu maior importância à visão operária sobre o movimento.” SILVA, Marcos A.
da. “Nossa classe” – Revolta da Chibata na imprensa operária. Revista Brasileira de História, v. 2, n. 3, São
Paulo, mar. 1982, p. 34. Disponível em <http://www.anpuh.org/revistabrasileira/view?>. Acesso em 17 ago.
2011. Nesta dissertação me valho de periódicos da imprensa operária pesquisados por esse historiador, que
também se preocupou em não analisar a Revolta da Chibata fora do âmbito da luta de classes.
5 Antes mesmo da instauração oficial da República no Brasil, os debates que se desenvolveram na Câmara dos
Deputados em 1888 apontavam para a necessidade da repressão à “ociosidade” após o fim da escravidão, em
meio à exaltação das virtudes do trabalho. Partia-se do pressuposto de que “a vadiagem é um ato preparatório
do crime, daí a necessidade de sua repressão”. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 47 (ver a respeito, o tópico
Trabalhadores e vadios; imigrantes e libertos: a construção dos mitos e a patologia social).
8 Cf. BATALHA, Cláudio. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões
em torno da formação da classe operária. Cadernos AEL, v. 6, n. 10/11, 1999. Acrescente-se ainda que
muitos operários reclamavam veementemente do alistamento obrigatório e compreendiam a importância de,
estando empregados, se beneficiarem da rede de apadrinhamento que os poupava do serviço nas Forças
Armadas.
9 Apud idem, ibidem, p. 44.
10 Como sublinha Bourdieu, “os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e
o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas
classificações objetivas”. Bourdieu, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre-São Paulo:
Zouk/Edusp, p.13.
em um quadro mais amplo de lutas pela cidadania, por um lado e a intensa disciplinarização
do trabalhador assalariado, no processo histórico da luta de classes no Brasil, por outro.
Contraditoriamente, este mesmo ideário provindo do mundo burguês da livre iniciativa, do
direito à propriedade, do individualismo, do direito a cidadania e a liberdade era usado
tanto pelo movimento operário, inclusive o movimento dos Marinheiros de 1910, para
reivindicar tais direitos, como era também usado pela burguesia que lançou mão desses
discursos e práticas violentas com a finalidade de adestrar coercitivamente as classes
trabalhadoras, neutralizando e reprimindo duramente os movimentos populares e
operários, disciplinando as pessoas para o trabalho nos moldes capitalistas, embora,
evidentemente, fossem distintas as posições assumidas pelo movimento operário e pela
burguesia.
11 Sobre essas concepções, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
12 Como frisa Adalberto Paranhos, ao se fixar no contexto político-social dos anos 1930 e 1940 no Brasil,
“nessa utilização de metáforas organicistas, para a perpetuação da dominação social, obviamente não sobraria
espaço para a contestação senão como ação doentia”, pois caberia aos trabalhadores (equiparados a
músculos), obedecer, sem qualquer discussão, a voz de comando dos empresários e seus prepostos
(identificadas como cérebro). PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala, op. cit., p. 172.
reles marujo, como o líder da revolta João Cândido, pretendia assumir a condição de oficial.
Essa era a crítica formulada por meio dos traços de uma charge de J. Carlos que figurou,
em dezembro, na capa da revista Careta. Nela, sob o título de “A disciplina do futuro”, ele
aparecia caricaturado, usando trajes de oficial, caminhando pelo convés de um navio,
passando por dois marinheiros brancos, descalços, caracterizando assim suas baixas
patentes e sua precária condição social.
O desenho mostrava João Cândido como oficial, com característicos galões nas
mangas, mas com clara aparência simiesca (como se fora bem próximo, fisicamente, de um
gorila amestrado), recebendo continência de marinheiros subalternos. Seus traços físicos
nada tinham de “fino”: orelhas de abano, queixo avantajado e pernas arqueadas. Estiliza-se,
nessa caricatura, uma espécie de “tipo-ideal” lombrosiano de criminoso13, o mais temido
deles, ou seja, o criminoso nato, que possuiria estigmas físicos muito aparentes. Como se
isso tudo não bastasse, o título da charge, “A disciplina do futuro”, fazia uma referência
invertida ao evolucionismo e à teoria da origem do homem. Por essa via, ao noticiar a
revolta, a revista reforçava estigmas, vinculando os atores a características depreciativas e
raciais.
De fato, naquele tempo era quase impossível a um negro ascender a oficial em
função do racismo na Marinha e outras barreiras hierárquicas, praticamente intransponíveis,
existentes entre oficiais e subalternos. Indo além, isso retratava as dificuldades para a
ascensão do negro na sociedade mais abrangente, ele que vivia nas margens sociais na
Primeira República. O progresso, por assim dizer, tinha cor: era, fundamentalmente,
branco. É suficiente pensar na política de importação de mão de obra não-negra para
substituir os escravos libertos, ou nas teorias do branqueamento debatidas na época para
avaliar a absurdidade cômica, se não fosse trágica, da charge.
Daí não ser nada surpreendente que o discurso racial emergisse nesse desenho, cujo
sentido era de que os “vícios” do desrespeito à hierarquia e à ordem eram inatos e inerentes
à condição genética dos indivíduos. Evidentemente, ao se referir aos marinheiros, em sua
maioria negros, a charge denunciava os males próprios da raça, que teriam causado a
revolta, de acordo com os valores raciais vigentes14. Quando João Cândido foi
13 César Lombroso foi um médico do século XIX, natural da Itália, pertencente à escola italiana de Direito
Penal. Influenciado pelo positivismo e pelo darwinismo, elaborou “cientificamente” um estereótipo de
criminoso baseado no tipo físico e associava o crime à inferioridade física e moral.
14 Ao discutir as representações presentes nos jornais, Lilia Schwarcz já demonstrou que correu solta a
vinculação estabelecida entre violência e negros. Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e preto:
solto/transferido da prisão subterrânea da Ilha das Cobras, ainda abatido por haver
testemunhado, quatro meses antes, a morte por asfixia dos seus companheiros no mesmo
calabouço, ele acabou sendo enviado ao Hospital Nacional de Alienados em 18 de abril de
1911. Sintomaticamente, uma das alas do hospício destinada a “loucos criminosos” se
chamava “seção Lombroso”.
Tido como louco indigente, João Cândido foi submetido a mecanismos de
vigilância, controle e correção, mediante técnicas de observação da psiquiatria,
psicopatologia e criminologia. Em sua ficha hospitalar, nota-se que, no exame da
anamnese, a primeira pergunta formulada foi sobre os seus antecedentes familiares. Tudo
indica que as respostas ali encontradas foram concatenadas em função de um
direcionamento prévio muito claro. Trata-se de uma peça que pode ajudar a pensar o
discurso cientificista e o determinismo biológico, bem como sua penetração social.
A avaliação psiquiátrica do comportamento de João Cândido foi produzida, pois, a
partir de suas características biopsicológicas. A investigação procurou nos genes da família
comportamentos desviantes, conectando moralidade a doenças mentais geneticamente
determinadas. Pela conclusão lógica do exame, João Cândido não era louco, e sim imoral, e
essa característica provinha de uma herança genética. Conforme as ideias vigentes, o que
diferenciaria a loucura do crime, o louco do criminoso, consistia no fato de que o louco era
tido como inculpável; o criminoso, ao contrário, tinha a imoralidade inata como fator de
degeneração, perversidade e criminalidade, sendo passível de sanção. Afinal, “na sua família
nunca houve doenças nervosas ou mentais”15. Cabe ainda realçar alguns detalhes: João
Cândido figura no exame de anamnese como natural de Corrientes, República Argentina,
supostamente uma influência ruim vinda do exterior; ele foi descrito como pardo, um
mestiço, portanto e, de acordo com aquelas teorias raciais, mais propenso a fraquezas e
“anomalias”, notadamente morais, como a de desrespeitar os códigos vigentes e as normas
da sociedade16.
jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
parte 2.
15 BARBOSA, Paulo Corrêa. Almanaque histórico ─ João Cândido: a luta pelos direitos humanos. Brasília:
Basta recordar que, apesar de alimentar simpatia pelo movimento contra a chibata e, principalmente, por João
Cândido, Edmar Morel, em sua obra clássica sobre o tema, chega a aludir aos baixos escalões da Marinha de
Guerra como gente perversa, que comporia “a escória da sociedade”, ou seja, “gente da pior espécie: ladrões,
assassinos, portadores das mais diversas taras”. MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata: subsídios para a
história da sublevação da Esquadra pelo marinheiro João Cândido em 1910. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1979, p. 64 e 68.
coração”, era um “negro bondoso que poupara a vida de milhares de pessoas”, “generoso”,
“leal”, o verdadeiro bom selvagem do humanista Rousseau. Os valores da Revolução
Francesa rejeitados pela República brasileira, principalmente em relação aos princípios da
igualdade e da liberdade, eram utilizados para explicar João Cândido, destacando-se as
atitudes que o elevavam à condição de sujeito da história17.
Logo se vê que os periódicos socialistas e anarquistas projetaram nos
acontecimentos seus preceitos ideológicos e políticos. Enquanto as revistas e os jornais
mais conservadores evitaram vincular a revolta à estrutura político-social do país, esta foi
considerada como a principal causa do movimento pela imprensa operária, que não
poupou críticas ao governo e à classe burguesa.
Episódio incômodo, se encarado sob a lente das ideias dominantes, seria preferível
esquecê-lo de uma vez por todas. Pelo menos era o que, no editorial “Apelo à Câmara”, O País
pregava, ao falar sobre “o levante da marinhagem”. O jornal batia insistentemente na tecla da
necessidade de se esquecer aqueles lamentáveis eventos. Esse esquecimento que O País desejou
que ocorresse foi a tônica da ação da censura e de parte da historiografia que praticamente
relegou ao ostracismo os acontecimentos que assinalaram a Revolta da Chibata.
Fontes jornalísticas
Bibliografia
17 Haveria, dessa maneira, como que a passagem dos marinheiros de uma condição própria dos animais para a
de homens propriamente ditos. Isso foi estampado, por exemplo, nas páginas de outro jornal dirigido aos
operários, La Bataglia, que, no texto A revolta da esquadra brasileira – A eloquência do movimento, de autoria
de Mestre Antônio, apresentou os trabalhadores pobres como um “grupo que recuperava sua dimensão
humana através da evolução de sua consciência”. SILVA, Marcos. Contra a chibata, op. cit., p. 71. Na mesma
linha de reflexão ia também o socialista A Vanguarda, que, no artigo Justiça de classe, identificou, nesse
momento histórico, a transformação dos marinheiros em seres humanos A Vanguarda, 13 de maio 1911.
Denise G. Porto1
Resumo
1 Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em História da Universidade Salgado de
Oliveira (PPGH – UNIVERSO). E-mail:denisegporto@gmail.com
2 GRAHAM, Maria. Diário de uma Viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
Itatiaia,1990.
3 GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.).
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997.
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Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
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Desde pequena, sua educação dividiu-se, por um lado, nos estudos da literatura, botânica,
história, geografia, desenho e pintura, e, por outro, nos conhecimentos náuticos e de
navegação ligados a linhagem masculina e militar de seu pai. Quando adulta, casou-se com
o capitão Thomas Graham, que pertencia também a Marinha de Guerra de S.M.B. Dentre
certas características marcantes da personalidade da escritora, Tomas Lago, um de seus
biógrafos, sublinha que no conjunto de sua obra, “o que chama a atenção em Maria
Graham, é a coragem para afrontar os temas mais diversos, e isso é verdade. Ela não hesita
em escolher um assunto e sempre que o faz, se trata de algo do interesse para um europeu
ou um inglês”4. De fato, concordamos com o autor, pois Maria Graham embora tenha
protagonizado uma biografia marcada pela solidão e por uma doença incurável, que por
diversas vezes, a impedira de seguir adiante, elegera a coragem para ser a companheira
inseparável na aventura de sua vida. Entre tempos de acertos, e de muitos outros em
avessos, ela construíra uma obra abrangente, cujas sensibilidades expressas pelo seu olhar e
a intensidade narrativa de sua pena, lhe confirmaram um lugar na vanguarda intelectual
feminina da Inglaterra oitocentista. A escritora viera na tripulação da Doris, tendo como
função, ser a professora e instrutora dos jovens Guardas-Marinha, candidatos a futuros
oficiais ingleses, que realizavam uma longa viagem de instrução. A fragata que saíra de
Portsmouth na Inglaterra, em 31 de julho do mesmo ano, rumava para o Atlântico Sul em
missão diplomática oficial. Tendo como destino final a cidade de Valparaiso, no Chile, a
Doris costearia o Brasil, ancorando temporariamente nos portos das províncias de
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro.
No Oitocentos, o espirito liberal se avolumava na grande onda do imperialismo
britânico, que se espraiava em novos continentes para além dos horizontes marítimos
conhecidos. Consequência do progresso advindo em decorrência das conquistas científicas
do Século das Luzes, esse foi o tempo em que a observação do mundo natural, o registro
das cenas cotidianas, e as experiências testemunhadas in situ, seduziram gerações de
escritores e viajantes, homens e mulheres. Desde então, os viajantes tornaram-se
importantes agentes históricos. Desenharam, e escreveram sobre seus testemunhos e
descobertas no novo mundo tropical, legando aos futuros historiadores e pesquisadores das
terras visitadas, valiosos acervos documentais.
4 LAGO, Tomás. La Viajera Ilustrada- La vida de Maria Graham. Santiago: Editorial Planeta, 2000.p77.
Como uma representante de seu tempo, logo no Prefácio da fonte Diário de uma
Viagem ao Brasil5, Maria Graham ao declarar sua profissão de fé como escritora, evidenciou
a expectativa que nutria quanto à relevância de suas anotações para os estudiosos da nossa
História. Em razão de haver testemunhado e atuado presencialmente em importantes
negociações diplomáticas, sobretudo, durante a Revolução Constitucionalista de 1821 e
anos mais tarde, na Confederação do Equador em 1824, Mrs. Graham deixou-nos o legado
de uma vasta documentação textual e iconográfica, contribuindo inquestionavelmente para
a reconstituição da História Social e Cultural dos anos da Independência. Ao percorrermos
as páginas da fonte, constatamos que a escritora construiu a sua narrativa, consciente da
importância dos acontecimentos históricos ocorridos durante sua estada nas terras
brasileiras. Enfatizamos aqui, o pioneirismo de Maria Graham diante do reduzido elenco de
mulheres que, longe de ser reconhecido, produziu por meio da escrita, fontes fidedignas
sobre a História do Brasil:
Não é com pequena ansiedade que este Diário é lançado ao mundo.
Espero que desperte interesse pelo país, tornando-o mais bem
conhecido[...]Confia ela em que, se toda a verdade não for encontrada
em suas páginas, não haverá ali senão a verdade 6 .
5 GRAHAM, Maria. Diário de uma Viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
Itatiaia,1990.
6 GRAHAM, Maria. Diário de uma Viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
Itatiaia,1990, pp.20-21.
7 DIAS, Maria Odila da Silva. O Fardo do Homem Branco: Southey, o historiador do Brasil. São Paulo: Companhia
afirmo”9. Tal declaração é confirmada por Ana Maria Belluzzo: “de um lado [Maria
Graham] revelou-se historiadora empenhada em conhecer o Brasil, que esboçou um
resumo de Southey, de outro, autora que deixou depoimentos subjetivos, envolveu - se nos
assuntos tratados”10.
Observamos, igualmente, que historiadores que se debruçam sobre os anos da
Independência, a exemplo de Oliveira Lima11 e Evaldo Cabral de Mello12 , recorreram aos
depoimentos de Maria Graham como fontes relevantes, sobre os acordos que resultaram
no desfecho da Confederação do Equador em 1824. Nesse sentido, a incontestável
historicidade da escritora lança luz aos debates contemporâneos, acerca dos papeis que
inúmeras mulheres desempenharam na História do Brasil e que são frequentemente
eclipsados pela historiografia, pois que as vozes masculinas, ainda são dominantes.
Entretanto, na contramão desta tendência, ouçamos a autora:
Não há nada mais interessante que a situação atual de toda a América do
sul[...]foram fatos, e não leis, que abriram os portos do Atlântico Sul e do
Pacífico. Foram também indivíduos e não nações, que prestaram auxílio
aos patriotas do Novo Mundo[...]A Família Real de Portugal ali se
refugiou; e o pais passou, assim de colônia a sede do governo, e da
condição de escravo à de um Estado soberano[...]tudo mudou, porém
desse que o rei voltou para Lisboa e desde que as Cortes, esquecendo as
mudanças operadas pelas circunstâncias da mentalidade do povo,
tentaram forçar o Brasil a voltar ao estado abjeto do qual se havia
libertado. Irrompeu então a luta, parte da qual teve a autora
oportunidade de testemunhar e a respeito da qual pôde colidir com
alguns dados, que poderão servir no futuro como fontes para a
História13.
Nos anos desde 1821 a 1825, quando, por três vezes Maria Graham esteve de
passagem pelo Brasil, a análise histórica sobre a realidade política brasileira, ocupou papel
relevante na escrita da inglesa. Partindo de tal pressuposto, acentuamos a singularidade do
discurso crítico construído pela escritora. Nada escaparia à sua pena; escreveu o que viu e
viveu na Corte do Palácio de São Cristóvão, enquanto ocupou no curto espaço de um mês,
o cargo de governanta das princesas imperiais no ano de 1824; da mesma forma, descreveu
9 GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 1990, p.23.
10BELLUZZO, Ana Maria. O Viajante e a paisagem brasileira. PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, [S.l.],
p.92.
12MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824.2.Ed. São Paulo:
com desenvoltura sobre os ardis políticos que movimentaram os interesses das elites
econômicas, tanto no Rio de Janeiro, como nas províncias do Norte nos anos de
1821,1823, e 1824; denunciou os abusos cometidos pelo regime escravocrata, e o
consequente comércio de escravos africanos no Império do Brasil. A alteridade presente na
escrita da autora abordando a problemática da escravidão, é a chave para entendermos a
dimensão crítica de suas denúncias sobre a sociedade escravocrata brasileira, como
observado no excerto:
Não tínhamos dado cinquenta passos no Recife quando ficamos
inteiramente perturbados com a primeira impressão de um mercado de
escravos. Era a primeira vez que tanto os rapazes quanto eu estávamos
num pais de escravidão e por mais que os sentimentos sejam penosos e
fortes quando em nossa terra imaginamos a servidão, não são nada em
comparação com a visão tremenda de um mercado de escravos. Estava
pobremente abastecido, devido às circunstâncias da cidade[...]eram cerca
de cinquenta jovens criaturas, rapazes e moças, com todas as aparências
da moléstia e da penúria, consequência da alimentação escassa e do
longo isolamento em lugares doentios[...]O espetáculo nos fez voltar ao
navio com o coração pesado e com a resolução[...]de que tudo que
pudéssemos fazer no sentido da abolição ou da atenuação da escravatura
seria considerado pouco 14 .
Na fonte Escorço Biográfico de Dom Pedro I 15, Maria Graham traçou incansáveis linhas
sobre a convocação da Assembleia Constituinte por determinação de D. Pedro I, e sobre o
agravo político causado pela efêmera vigência da mesma; analisou criticamente, os
desastrosos impactos econômicos e sociais, advindos sobretudo, das reivindicações
oligárquicas regionais na manutenção de seus poderes locais, contra o governo central do
Rio de Janeiro 16:
Nunca tive muita fé em novas constituições, feitas para se despirem
como vestidos, sempre que os homens se sentem cansados das antigas
formas[...]Contudo, pensei ser possível que livre das ordenações
Portuguesas e do direito colonial costumeiro[...]uma tal constituição
pudesse ser mantida[...]e pudesse regular tudo o que o país estava
necessitando: criação de tribunais imparciais, impulsionamento da
14 GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
Editora Itatiaia, 1990, p.134.
15 GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.),
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997.
16 Emília Viotti da Costa elucida que: “Outro tema central das discussões liberais seria o federalismo, a revelar
outro nível dos conflitos: a luta entre as várias oligarquias regionais pelo poder local e contra as tendências
centralistas”. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. 5. ed. São Paulo: Editora
Brasilense,1987, pp.126-127.
17 GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.).
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997, pp.78-79.
18 LEITE, Miriam. Livros de Viagem.1803-1900.Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1997, p.21.
19 LEITE, Miriam. Livros de Viagem.1803-1900.Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1997, p.21.
20 GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
23 LEITE, Miriam Moreira. A condição Feminina no Rio de Janeiro - Século XIX. São Paulo: Hucitec-EDUSP,
1993, p.29.
24 Nas palavras de Ana Maria Belluzzo: “a formação dos cientistas europeus que se deslocaram em expedições
científicas pelo território brasileiro desde o século XVIII, é, em linhas gerais, sustentada por, no mínimo, dois
modelos científicos baseados em dados da observação visual, com correspondentes concepções de desenho e
pintura.” BELLUZZO, Ana Maria. A propósito D’ O Brasil dos Viajantes. Revista USP, São Paulo, (30):8-19,
junho/agosto,1996. p.18.
25 Miriam Moreira Leite cita que “naturalistas e artistas muitas vezes vieram juntos, integrando expedições
científicas que, através de viagens de circunavegação e roteiros mais delimitados, seguiram as pegadas e a
orientação de Humboldt (1789-1859).” LEITE, Miriam. Livros de Viagem.1803-1900.Rio de Janeiro: Editora
UFRJ,1997, p.18.
26 Rousseau defendia a liberdade onde o “estado de natureza divina da natureza” seria a condição inata do
homem.” SAHD, Luís. A noção de Liberdade no Emílio de Rousseau. Revista de Filosofia/UNESP, v.28
n.1.p.101,2005.
27 GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Américo Jacobina Lacombe (trad.), Belo Horizonte:
Johann B. von Spix[...]publicada em 3 volumes (1823,1828, 1831), foi resultado de quase quatro anos de
viagem em que Martius e Spix percorreram o interior do Brasil por cerca de 10.000 KM.[...]A monumental
Flora Brasiliensis (1840-1906)[...]também foi fruto dessa viagem.” CANDIDO, Luciana de Fátima. Carl Fr. Ph.
Von Martius: Estudo e registro da Flora brasileira. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em:
htpp://www.bbm.usp.br/node/83.
29 GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.).
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997, p.21.
30 GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.).
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997.
espécimes secos para o Dr. Hooker, de Glasgow, ainda que não tivesse
muitas instalações convenientes, sendo a minha casa muito úmida31.
Considerações Finais
Para concluir este breve estudo, evidenciamos ao longo das reflexões expostas, a
mentalidade crítica da autora, quanto à originalidade de sua escrita histórica sobre os anos
da Independência do Brasil. As plurais elaborações narrativas de Maria Graham, tecem
tramas, onde o olhar aguçado da escritora sobre as questões sócio-político-culturais do
Brasil, imbrica-se às subjetividades especificas daquelas sociedades provinciais, nas
primeiras décadas do século XIX. A autora, num constante esforço em dar voz autoral às
suas palavras, erigiu a sua obra literária e pictórica afirmando sua identidade enquanto
escritora, pintora e herborista. E este olhar singular de Maria Graham, legou à historiografia
brasileira, documentos onde são conhecidas desde particularidades relativas aos matizes
identitários e políticos da população, às peculiaridades da flora e das paisagens tropicais das
províncias brasileiras que visitou, naqueles primeiros anos do século XIX.
Bibliografia
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Tradução de Américo Jacobina Lacombe.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.
GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo
Jacobina (trad.). Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1997.
BELLUZZO, Ana Maria. O Viajante e a paisagem brasileira. Revista Porto Alegre: Porto
Alegre, v.15, nº25, nov. 2009, p.8.
_____. A propósito D’ O Brasil dos Viajantes. Revista USP, São Paulo nº (30):8-19,
junho/agosto, 1996, p. 18.
CANDIDO, Luciana de Fátima. Carl Fr. Ph. von Martius: Estudo e registro da Flora brasileira.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em: htpp://www.bbm.usp.br/pt-
br/. Acesso em:10/09/2020.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos.5.ed. São Paulo:
Editora brasiliense, 1987.
DIAS, Maria Odila da Silva. O Fardo do Homem Branco: Southey historiador do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1974.
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil.3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 3º Ed., 2000.
LEITE, Miriam Moreira. A condição Feminina no Rio de Janeiro - Século XIX. São Paulo:
Hucitec-EDUSP, 1993.
_____. Livros de Viagem-1803-1900.Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
31GRAHAM, Maria. Escorço Biográfico de Dom Pedro I. In: LACOMBE, Américo Jacobina (trad.).
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina e cartas anexas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1997, p.113.
Resumo
sempre a utilizam e a temem; por isso adulam, vigiam, controlam e punem os jornais”3. As
elites políticas encontraram, nas páginas dos periódicos o meio ideal de difusão de suas
posturas em relação ao governo, aos seus adversários e à opinião pública. Os jornais para
além de sua função informativa, ajudou a moldar as estruturas de poder do país pós-
independente, no mesmo sentido em que serviu como base das disputas de grupos cujas
ambições e objetivos algumas vezes se chocavam contra as aspirações do Estado. José de
Alencar em sua obra Sistema Representativo oferece uma outra perspectiva em torno da
influência dos jornais. Contrariando o argumento de uma imprensa operando quase como
um poder paralelo no Império, Alencar a compara com o tipo de poder experenciado pelas
assembleias populares, definindo como uma influência “vaga”:
Sem duvida são poderosos motores de idéas, a imprensa e as assembléas
populares; mas cumpre attender a natureza indirecta e vaga de sua acção.
Obrão em uma esphera estranha ao poder; apenas moralmente influem
na marcha da administração. Um jornal ou uma manifestação do povo
não oppõe resistência effectiva à promulgação de uma lei, ou mesmo a
ura abuso do poder executivo, qual sem duvida exerce a palavra do
representante da nação e seu voto no parlamento. (...) A imprensa não
preenche esta necessidade representativa. Um jornal exprime, como
iniciativa, o pensamento individual da redacção; como opinião, uma
porção vaga e indefinida; os leitores não são sectários.4
dispensa o Procurador da Coroa das funções de Promotor Fiscal dos delitos da liberdade da imprensa e
nomeia para este lugar o Desembargador Promotor das Justiças da Casa da Suplicação, p.67.
8 Idem. Decreto de 22 de novembro de 1823: manda executar provisoriamente o projeto de lei da Assembleia
enraizada na cultura política do império onde a ideia de parcialidade jornalística não era
considerada uma realidade nos escritos da época. Cabia aos partidos, enfatiza o senador
Paula Souza, assegurar a responsabilidade quanto à conduta dos jornais e traçar metas para
evitar que fossem utilizados como “veículos de indignidade” e para que “não servissem só
para ferir a honra e a verdade”. O senador coloca, nesse caso, os partidos políticos como
portadores da solução, os melhores intermediários entre o governo e opinião pública para
não só assegurar a liberdade de imprensa, mas para que ela fosse exercida considerando os
limites impostos pela lei. Assim, para o senador:
Eu estou costumado a ser vítima de jornais desde 1823: rara vez tenho
recebido favores de jornais: é talvez porque, orgulhoso como sou, nunca
procurei captá-los nem posso agradar aos partidos. Nunca tive jornais
para se ocuparem exclusivamente de incensarem-me. Que de injúrias e
calúnias tenho eu recebido de jornais! Mas não me embaraço com elas;
para os que me conhecem nada influem; e para os que me não
conhecem, se são sensatos, espero que indaguem primeiro, e depois
decidam; e nem por isso deixarei de querer abençoar a liberdade da
imprensa. Portanto, a que vem dizer-se que falaram os jornais disto ou
daquilo, emitiram esta ou aquela opinião? O que cumpria era que os
diretores das opiniões ou partidos políticos influíssem para que os
nossos jornais não servissem de veículos de indignidade, não servissem
só para ferir a honra e a verdade, e não dessem ao mundo um
testemunho de nosso atraso e imoralidade.10
10Fala do senador Francisco de Paula Souza e Melo. SENADO IMPERIAL. Anais do Senado. Sessão em 16 de
agosto de 1843, livro 07, p. 290
a não a eliminar mas a enfraquecer os periódicos dos partidos. Nas palavras do senador
Montezuma:
(...) Os jornais, ia eu dizendo, Sr. presidente, não são somente veículos de
instrução política ou científica, são também veículos de notícias
comerciais, são veículos de notícias de interesse particular, que por isso
mesmo se torna de um valor digno de ser apreciado pelo corpo
legislativo. Se nós obstarmos à circulação dos jornais, obstamos também
não só a que as classes a que me refiro tenham o alimento intelectual que
podem ter, como que as notícias particulares e de interesse industrial não
circule. Portanto, eu julgo que obstar-se a esta circulação é
absolutamente inconveniente para o país nas circunstâncias em que se ele
acha. Estou mesmo, posso afirmar ao senado sem receio de errar, que
por este meio nós não evitaremos que os jornais de partido se
estabeleçam e circulem; o que sucederá é que o partido terá de quotizar-
se com mais alguns réis. Ainda por este lado, portanto, não haverá
utilidade alguma resultante da medida. Mas hão de deixar de se publicar
os jornais que são bastantemente úteis, esses é que não poderão fazer
senão aquela despesa que é indispensável, despesa com que eles já
contam hoje; são esses ordinariamente os jornais que precisam do apoio
público, que precisam de que para eles se peça uma ou outra assinatura,
que os interessados na sua publicação escrevam circulares para todas as
províncias, a fim de obterem subscritores; entretanto que os jornais de
partido, esses cuja circulação se desejaria dificultar, hão de ter a mesma
extensão, tendo em seu favor os mesmos subscritores, porque é um
partido quem faz então a subscrição, não é a utilidade do jornal. V. Exª.
sabe como ordinariamente esses jornais se estabelecem, como os
partidos procuram ter uma folha que emita suas opiniões, e os sustente.11
11 Fala do senador Francisco Gê Acaiaba de Montezuma. SENADO IMPERIAL. Anais do Senado. Sessão em
30 de agosto de 1851, livro 04, p. 740
12 BASILE, Marcello Otávio N. de C. O Império brasileiro: panorama político. In: LINHARES, Maria
Yedda. História Geral do Brasil. 9ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 205;218
13 AURORA FLUMINENSE, sexta-feira, 21 de dezembro de 1827, p.02
Fontes
Bibliografia
ALENCAR, José de. Sistema Representativo. Rio de Janeiro: B.L. Garnier Editor, 1868, p. 41-
42
ALVES, Francisco das Neves. Legislação brasileira de imprensa (1823‐1923): um catálogo de leis.
BIBLOS, Rio Grande, p.89‐93, 1999. Acessado em 12/10/2020. Disponível em:
https://www.brapci.inf.br/index.php/article/download/19493
BASILE, Marcello Otávio N. de C. O Império brasileiro: panorama político. In:
LINHARES, Maria Yedda. História Geral do Brasil. 9ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990,
p. 205; 218
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo:
Contexto/EDUSP, 1988, p. 13
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983,
p.20-22
14Fala do senador Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, Marquês de Barbacena. SENADO
IMPERIAL. Anais do Senado. Sessão em 04 de Outubro de 1841. Livro 06, p. 79
Resumo
Desde início do século XVIII, os quilombos constituíram redes de relações, não estando
isolados dos processos produtivos e econômicos, sendo frente de resistência cotidiana à
sociedade escravista. A formação de quilombos propiciou a eclosão de movimentos
insurrecionais, tendo o levante em Viana de 1867, como um dos casos maranhenses mais
proeminentes. Em decorrência da Guerra do Paraguai (1864-1870), o Maranhão ficou com
um reduzido número de força militar, o que provocou instabilidade na província. Dessa
maneira, proponho trazer apontamentos sobre as implicações dessas questões no cotidiano
escravista maranhense. A exploração do tema foi por meio do jornal Publicador Maranhense,
que relatou sobre o episódio na Baixada maranhense, região com grande número de
quilombos.
Introdução
2 GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos/ remanescentes de quilombos.” In: Dicionário da escravidão e
liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 387.
3 GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos/ remanescentes de quilombos.” In: Dicionário da escravidão e
cabeceiras dos rios, nos locais mais afastados das florestas, zonas não
ocupadas pela grande lavoura.4
4 ASSUNÇÃO, Mathias. “Quilombo no Maranhão: um fenômeno endêmico.” In: Liberdade por um fio: história
dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 434.
5 PEREIRA, Josenildo de Jesus. “Na fronteira do cárcere e do paraíso: escravidão, cotidiano e resistência
escrava no Maranhão Oitocentista.” In. Meandros da História: trabalho e poder no Grão-Pará e Maranhão, séculos
XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005, p. 186.
6 ASSUNÇÃO, Mathias. “Quilombo no Maranhão: um fenômeno endêmico.” In: Liberdade por um fio: história
dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 436.
7COSTA, YURI. “Entre escravos.” In: Justiça infame: crime, escravidão e poder no Brasil Império. São Paulo:
Alameda, 2019, p. 110.
Por volta de 1865, já circulava boatos de uma possível insurreição nessas áreas do
vale do Itapecuru, em que se dizia que os grupos aquilombados fariam frente de resistência
perante senhores e autoridades. Na Baixada Maranhense, os senhores começavam a pedir
tropas do governo para sufocar qualquer movimento, mas as comarcas se encontravam
desprovidas de tropas, armamento, munição, dando margem para que os quilombolas
pudesse circular livremente.
No Maranhão, em 1867, o momento da eclosão da insurreição de Viana
coincide com uma efervescência política em várias partes do Império. Na
segunda metade dos anos 1860 aconteceriam diversas discussões e
debates parlamentares sobre a emancipação dos escravizados, existia a
Guerra do Paraguai e o problema do recrutamento militar, sem falar das
“ideias de liberdade” que circulavam. Além disso, chegavam notícias
sobre a guerra civil americana e a libertação dos escravizados nos
Estados Unidos e as disputas diplomáticas entre Brasil e Inglaterra.9
8 GOMES, Flávio dos Santos. VIII. "Nos achamos em campo a tratar da Liberdade A insurreição quilombola
de Viana (1867). In: A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (séculos. XVII-XIX). Campinas, 1997, p.
328.
9 VIANA et al. Escritos insubordinados entre escravizados e libertos no Brasil. Revista Estudo Avançados. São
De início, o jornal era publicado três vezes por semana, até que em 1862 passou a ser diariamente. No seu
cabeçalho, o jornal trazia as quantidades de assinaturas (por ano, semestre e trimestre) na capital e interior.
Essas assinaturas eram pagas adiantadas, abrindo-se em qualquer dia e finalizando-se em março, junho,
setembro e dezembro. Os artigos do jornal versavam sobre vários assuntos, mas a política em geral dominava,
em que abordavam os assuntos que estavam tramitando na Assembleia.
11 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 01645. São Luís, 22 de julho de 1867, p. 2.
Além de Viana, são expedidos para São Vicente Ferrer e São Bento cem
armamentos, mil cartuxos embalados, quatro barris de pólvora e doze arrobas de chumbo
para armar a força. Segundo a matéria, eles devem tomar todas as medidas a seu alcance
para reprimir a insurreição e para capturar os envolvidos nela, sendo devidamente punidos.
O movimento insurrecional foi sufocado, tendo sido acometido por tropas do governo
provincial, mas não significou que a luta dos quilombos fora completamente silenciada.
Em outro número do Jornal Publicador Maranhense, fora feita uma denúncia às
péssimas condições que se achava São Vicente Ferrer e São Bento, sendo esta assinada
pelos deputados Felippe Sá e Pompeo. Segundo estes deputados, as comarcas de S. Vicente
Ferrer e S. Bento estariam em estado “melindroso e assustador”, tendo ocorrido episódios
bastante graves, que mereciam o cuidado e providência eficazes para o sossego do Estado:
Aliciados por agentes dos numerosos quilombos que existem naqueles
municípios e no de Viana, e talvez influenciados pelos absurdos rumores que
12 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 01645. São Luís, 22 de julho de 1867, p. 2.
consta se tem entre eles propalado em relação a causa da guerra com o Paraguai e a
solução da questão servil, os escravos naquelas localidades de tempos, tem-se mostrado
propensos a fuga e a insubordinação, sobretudo depois de acontecimentos
ultimamente ocorridos e que não foram seguidos de medidas prontas e
enérgicas por parte da autoridade pública.13
O rumor que teria se espalhado sobre a motivação da guerra, seria que esta
aconteceu em causa da liberdade escrava, em prol do fim da mão de obra escrava nas
grandes fazendas. Esses rumores logo chegaram aos sujeitos escravizados, tendo esses se
entusiasmado com tal evento14. Sendo assim, cresceu nos fazendeiros e administradores o
medo de que a insubordinação ocorresse em grande escala, o que seria um abalo e perda
para os seus negócios, e isso era tudo que eles não queriam. Logo, a ameaça de insurreição
de escravos fez com que uma organização de expedições oficiais fosse designada para a
destruição dos quilombos que eram um ambiente que juntava um grande número de
escravizados – eles estavam unidos por uma mesma causa: conseguir a liberdade e não ser
mais mão de obra do elemento servil.
Na noite de 20 para 21 de janeiro, escravos fugidos, munidos de armas e pertencentes
ao major Raymundo do Antonio da Costa Ferreira, invadiram a fazenda do mesmo
major, fazendo alarido e dando tiros, dos quais resultou ficarem feridos alguns pretos;
arrombaram o convento ou dormitório das escravas donde tiraram e
levaram consigo seis delas; e alguns, vociferando injurias e ameaças,
chegaram até a querer penetrar no interior da casa habitada pelo major
Costa Ferreira com sua mulher, e se o não realizaram foi por não terem
conseguindo, como esperavam, atear a insurreição na fazenda, e porque
de pronto a ela acudiu com escravos seus o Dr. Manoel Alves da Costa
Ferreira, cuja fazenda fica dali muito próxima.15
13 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 00154. São Luís, 9 de julho de 1867, p. 1.
14 VIANA et al. Escritos insubordinados entre escravizados e libertos no Brasil. Revista Estudo Avançados. São
Paulo, v. 96, 2019, p. 165.
15 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 00154. São Luís, 9 de julho de 1867, p. 1.
Logo, essas tropas irão ser designadas para tomarem providências, resolvendo os
problemas que estão impactando diretamente essa elite maranhense, trazendo a elas
prejuízos. O aparato militar irá justamente garantir o direito de propriedade desses
senhores, reprimindo os sujeitos escravizados que seriam aqueles que estariam saqueando e
destruindo suas propriedades. Com o policiamento enfraquecido por conta da guerra, as
fugas tornaram-se numerosas e frequentes, revelando toda a organização dos escravizados
e sua prática, que geraram desestabilização nas grandes fazendas:
Assim aconteceu ainda ultimamente na fazenda do Sr. Francisco
Raimundo da Costa Homem, cujos escravos a luz do dia fizeram seus
preparativos e saíram todos levando consigo mulheres e crianças,
deixando somente ficar por inválida uma preta velha; o mesmo fizeram
muitos escravos do capitão Mariano Heliodoro da Penha.17
Os remetentes das notícias dizem que o governo não tem tido êxito em tratar os
insurretos, sendo que o mesmo tem trabalhado ativamente pelo recrutamento e a captura
de guardas nacionais – sendo que para o caso, somente a guarda nacional tem feito esforço
para frear os escravos:
Tendo, pois conhecimento desses sérios acontecimentos, não só por
particulares e pelos jornais, mas também por comunicações oficiais, o
governo entretanto contentou-se em enviar algumas granadeiras e
cartuxame para S. Vicente Ferrer, e S. Bento, e com ordenar que nesta
vila destacassem trinta praças e naquela dezoito. [...] Os destacamentos
existentes em S. Bento e S. Vicente Ferrer, além de insuficientes, só tem
sido empregados para captura de recrutas e de guardas nacionais
designados [...] É fácil imaginar o dessossego e que vivem os lavradores.
A gravidade das circunstâncias acresce e nenhuma confiança nas
autoridades locais, pois ali a polícia e o comando da força pública estão
confiados a homens sem habilitações, sem prestígio, sem fortuna, muitos
deles desconceituados e tirados da última esfera social.18
16 FARIA, Regina Helena Martins de. “Gênese do policiamento preventivo no Maranhão: um breve
histórico.” In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís: Café & Lápis, 2015, p. 109.
17 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 00154. São Luís, 9 de julho de 1867, p. 1.
18 PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 00154. São Luís, 9 de julho de 1867, p. 1.
19 ARAÚJO, Mundinha. Insurreição de escravos em Viana, 1867. 2 ed. São Luís: Ed. AVL, 2006, p. 52.
Considerações Finais
20 PUBLICADOR MARANHENSE. Tranquilidade pública, segurança individual e de propriedade. Ed. 00266. São
Luís, 20 de novembro de 1867, p. 2.
21 ARAÚJO, Mundinha. Insurreição de escravos em Viana, 1867. 2 ed. São Luís: Ed. AVL, 2006, p. 52.
eclosão de movimentos como esses foram comuns, sendo o mais significativo o caso de
Viana (1867). As notícias referentes à insurreição de escravos fora bastante explorados pelo
jornal Publicador Maranhense, uma vez que isso implicava diretamente na perda econômicas
dos senhores das grandes fazendas – tanto no quesito perdas dos escravos que se evadiam
como a propriedade que era arruinada. Procurei trazer algumas das colocações e análises do
episódio por meio do jornal, que informava e discutia as medidas tomadas para conter o
movimento – o caso em questão abalou o cotidiano escravista, circulando por meses na
imprensa maranhense. O jornal Publicador Maranhense fora o que mais relatou sobre a
situação da Baixada e atuou tecendo elogios às medidas tomadas por Menezes Doria,
destacando seu ímpeto para conter os insurretos.
Bibliografia
ARAÚJO, Mundinha. Insurreição de escravos em Viana, 1867. 2 ed. São Luís: Ed. AVL, 2006.
ASSUNÇÃO, Mathias. “Quilombo no Maranhão: um fenômeno endêmico.” In: Liberdade
por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 436-441.
COSTA, YURI. “Entre escravos.” In: Justiça infame: crime, escravidão e poder no Brasil Império.
São Paulo: Alameda, 2019, p. 100-128.
FARIA, Regina Helena Martins de. “Gênese do policiamento preventivo no Maranhão: um
breve histórico.” In: O Maranhão oitocentista. 2. ed. São Luís: Editora da UEMA; Café &
Lápis, 2015, p. 81-115.
GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos/ remanescentes de quilombos.” In: Dicionário da
escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 387-393.
GOMES, Flávio dos Santos. VIII. "Nos achamos em campo a tratar da Liberdade: A
insurreição quilombola de Viana (1867). In: A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no
Brasil (séculos. XVII-XIX). Campinas, SP, 1997, p. 327-346.
PEREIRA, Josenildo de Jesus. “Na fronteira do cárcere e do paraíso: escravidão, cotidiano
e resistência escrava no Maranhão Oitocentista.” In: Meandros da História: trabalho e poder no
Grão-Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005, p. 176-190.
PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 00154. São Luís, 9 de julho de
1867, p. 1.
PUBLICADOR MARANHENSE. Expediente do dia. Ed. 01645. São Luís, 22 de julho de
1867, p. 2.
PUBLICADOR MARANHENSE. Tranquilidade pública, segurança individual e de propriedade.
Ed. 00266. São Luís, 20 de novembro de 1867, p. 2.
VIANA, Iamara da Silva; RIBEIRO NETO, Alexandre; GOMES, Flávio. “Escritos
insubordinados entre escravizados e libertos no Brasil.” Revista Estudo Avançados. São Paulo,
v. 96, 2019, p. 155-177.
Resumo
O presente trabalho irá buscar entender como a mudança da experiência temporal ocorrida
no seio da Revolução Industrial, na Inglaterra do Século XIX, deu espaço para o
surgimento da literatura do gênero gótico, utilizando-se dos conceitos de Walter Benjamin
e Reinhart Koselleck de tempo e experiência, focando principalmente na subjetividade dos
personagens que vivenciaram tal mudança de ethos, a partir da ascensão da literatura das
novels como um novo e autêntico veículo cultural. A reflexão feita é possibilitar um diálogo
acerca sobre como essa sociedade pós-industrial repercutiu nos sentimentos internos da
população, em especial, o medo e o terror, e como estes foram as principais fontes para a
construção de uma literatura gótica.
Introdução
possibilitou uma nova abordagem literária, da qual o gótico utilizou-se para consolidar sua
abordagem narrativa.
Os principais teóricos utilizados para compreender essa relação da experiência
temporal e o ser imerso nela, serão Walter Benjamin, com sua reflexão em O Narrador:
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de 1936 (encontrado no compilado de obras do
autor intitulado Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política, 1985 – 4ª edição), onde é abordada a
experiência da narrativa em contraponto com a experiência literária do romance (novels3).
Também será utilizado a obra de Reinhart Koselleck, intitulada Futuro Passado – Contribuições
à semântica dos tempos históricos, publicada no ano de 1979, onde o autor demonstra como o
espaço de experiência e o horizonte de expectativa, possam ser usados numa mediação
histórica, e utilizado aqui para compreender a relação da mudanças sofridas ao longo do
Século XIX, mais precisamente, a mudança de experiência temporal ocorrida após a
Revolução Industrial.
Inicio com as palavras do historiador Walter Benjamin “Hoje a morte é cada vez
mais expulsa do universo dos vivos4”, pois queremos nos manter “limpos”, desta atmosfera
mórbida, que é o fim da vida. Porém, essa realidade, segundo Benjamin, é ligada à ascensão
da burguesia, durante o século XIX, onde esta construiu instituições higiênicas, o que teve -
inconscientemente - o efeito colateral – ou talvez fosse um intuito real – de evitar que as
pessoas assistissem ao espetáculo da morte5. Ora, se havia uma negação tão grande da parte
social para com a condição da morte, como se explica o sucesso do gênero gótico? Cabe
aqui, a missão de ilustrarmos Londres do século XIX.
Uma cidade recém-industrializada, vivendo sob um movimento contínuo, com a
presença das máquinas funcionando sem parar e condicionando o ser humano nesse
movimento, em uma velocidade, até então nunca antes experienciada. Essa série de fatores
vem desencadear a Revolução Industrial, com todas as suas características já exploradas por
diversos autores e historiadores (Como a obra A Era das Revoluções, de Eric J. Hobsbawm e
3 O termo aqui será sempre empregado em inglês, devido ao fato de que sua tradução para o português é,
genericamente, romance, podendo ocorrer uma ambíguação da parte do leitor, para com o termo do romance
romanesco. Decorre daí, a necessidade do uso do termo novel não traduzido -, o qual define o romance
originário do período do Romantismo.
4 BENJAMIN, W. “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: _____. Obras escolhidas I:
magia e técnica, arte e política. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 207
5 Idem
Observa-se outro ponto muito relevante para entender-se esse ethos é essa
“harmonia homem-natureza”, que assim como Benjamin elenca como algo importante,
também encontra ressonância nas falas de Reinhart Koselleck, ao definir o cotidiano pré-
Revolução:
6 Idem. p. 200
7 Idem. p. 201
8 Idem. p. 203
9 Idem. p. 202
10 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Editora: Contraponto. Rio
de Janeiro. 2006. p. 28
11 Idem. p. 30
Esses fatos servem para observar como havia uma negação, em diversos matizes da
humanidade do ponto de vista sentimental, pois almejava-se apenas a racionalidade como
virtude humana, e esta sendo o elemento que desvendaria os mistérios da natureza,
colocando-os a mercê do homem.
Compondo de um modo amplo, as diversas particularidades e modificações
presentes neste período, onde a vida orgânica, em comunidade, com contato holístico com
a natureza (em vez da relação após o industrialismo, onde esta era meramente funcional e
finalista), foi paulatinamente desconsiderado, pois no espaço - tanto físico, quanto social -
que predominava o “ritmo da esteira”, não se poderia mais parar para ouvir uma história,
por isso, que a popularidade dos livros aumentou, privilegiando a prática da diversão
isolada. Essa forma de organização, não encontrava as respostas na Igreja, que não sabia
mais como aconselhar diante das grandes mudanças “sem precedentes”, que se abrigavam
no seio da ciência, a qual não permitia ao homem nenhum resquício de paixões,
justificando que estas turvavam a sua percepção racional.
A negação dos sentimentos humanos, não os impedia de serem sentidos. Ainda
mais num período de transformações tão abruptas e realizadas sem qualquer margem para
o diálogo, repercutindo em temor pelo desconhecido – o que há por vir – e o qual não
permite que suas superstições e sua religião, sejam expostas. Esse caldo de sentimentos
12 BARROS, José D’Assunção. “O Romantismo e o revival gótico no século XIX”. Revista ArteFilosofia. Ouro
Preto, n, 6. Abril, 2009. p. 169-183. p. 173
13DETIENE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Rio de Janeiro: Editora José Olympio. Brasília, D.F.: UnB. 1992.
p. 27
reprimidos, que reside em cada um e de forma não declarada em toda a sociedade pré-
industrial, é a matéria-prima, a fonte, que irá originar, alimentar e disseminar o gênero
gótico na literatura.
Bibliografia
Resumo
Introdução
No início do século XIX foi fundada nos E.U.A. uma instituição que reunia
membros da Igreja Presbiteriana, Igreja Congregacional e Igreja Reformada Holandesa para
enviarem missionários ao exterior: a American Board of Comissioners for Foreign
Missions (ABCFM). Seu objetivo era levar a fé protestante calvinista às regiões do Oriente
onde jamais havia chegado o protestantismo. Eles coletaram dados acerca de uma região
com cerca de 150 mil pessoas, na qual viviam cristãos que não tinham comunhão e nem
ligação com qualquer outra igreja oriental conhecida por eles e nem com o catolicismo
romano: os chamados “nestorianos”. Essa região tinha como centro a cidade de Oroomiah,
na Pérsia (cidade atualmente chamada de Urmia, a capital da província do Azerbaijão
ocidental, no Irã). Era uma fértil região agrícola, povoada em torno do grande lago
Oroomiah, constando de uma população mista de cristãos assírios, muçulmanos e judeus.
Para tanto, a ABCFM designou o missionário reverendo Justin Perkins, o qual, em
1833, se tornou o primeiro missionário protestante com um trabalho fixo entre os cristãos
conhecidos como “nestorianos”. Ele era um professor de teologia dos seminaristas e
futuros missionários do Armherst College, em Massachusetts. Como ordenado pelo comitê
de prudência da ABCFM, seus objetivos eram: “cultivar uma íntima familiaridade com as
opiniões religiosas e sentimentos dos nestorianos”2 e informar corretamente “quanto ao
número de nestorianos, seus locais de residência, suas doutrinas, ritos, costumes, educação
etc.”.3 Seu estabelecimento era fundamental entre os mesmos, dado a escassez de fontes; a
junta de missões informava que tudo o que eles sabiam atualmente sobre os nestorianos
lhes era passado através dos “escritores do papa” e de esparsas informações trazidas por
dois missionários que estiveram por algum tempo, apenas de passagem na região, os
senhores Smith e Dwight.4 A ABCFM também recomendava que ele atravessasse as
montanhas curdas e fosse se encontrar com o patriarca nestoriano, o quanto antes, mas que
2 RUFUS, A. History of the missions of the American Board of Commissioners for Foreign Missions,
to the Oriental churches. Vol. 1. Boston: Congregational Publishing Society, 1872. p. 165.
3 Ibid. Ibidem.
4 Ibid. Ibidem.
isto era algo muito perigoso devido à presença hostil dos “maometanos” que poderiam
impedir seus intentos5.
A ABCFM demonstrava uma esperança muito grande acerca dos cristãos assírios:
“Afirmava-se que seu principal objetivo seria capacitar a Igreja Nestoriana, através da graça
de Deus, a exercer uma influência dominante na regeneração da Ásia”6. Ou seja, utilizar os
nestorianos para uma futura expansão protestante em toda a Ásia, em larga escala. Para
tanto, trabalhar a partir da ótica e da cultura do nativo seria essencial. Em suas
recomendações, Perkins deveria concentrar todos os seus esforços sobre os nestorianos, a
fim de conseguir uma “colheita mais rica e rápida”7, pois trabalhar sobre esse único campo
renderia mais frutos do que se estendesse sua missão a vários lugares.
Quando Perkins apresenta os cristãos assírios, em seu primeiro livro de relatos, ele
inicia sua narrativa afirmando que seu interesse pelos nestorianos é justificável, apesar do
seu pequeno contingente populacional espalhado pela Pérsia:
Os Cristãos Nestorianos são o pequeno, mas venerável remanescente de
uma outrora grande e influente igreja cristã. Eles são os mais antigos das
seitas cristãs; e, em seus melhores dias, foram numerosos em todas as
vastas regiões, da Palestina à China; e eles levaram o evangelho para a
própria China. […] Mas tanto na prosperidade quanto na adversidade,
durante mais de mil anos de sua história, são fornecidos os exemplos
mais brilhantes de trabalho perseverante e de abnegação e muitas vezes,
de martírio heroico, alegremente encontrado na profissão e na
promulgação zelosa do evangelho, que se encontram nos registros do
cristianismo desde os dias dos apóstolos”.8
5 Ibid. Ibidem.
6 Ibid., p. 166.
7 Ibid. Ibidem.
8 Ibid., p.1-2.
Razões e Representações
Como o público que estaria lendo seu livro jamais vira ou conhecera um cristão
assírio – talvez nunca tivesse ouvido falar dos mesmos -, Justin Perkins estabeleceu a
incumbência de descrevê-los, representá-los. Como cita Ginzburg, o ato de representação
“faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna
visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença.”9. Assim, Perkins estava
tornando “visível” uma realidade ausente diante de seu público, através, claro, da literatura.
Dessa forma, seu público conseguiria “ver” um povo jamais visto e também conhecê-lo e
interpretá-lo por meio da leitura de seu livro.
Trabalhamos o conceito, a partir da noção de representação social, na esteira de
Jodelet, na qual “a representação social tem com seu objeto uma relação de simbolização
(substituindo-o) e de interpretação (conferindo-lhe significações)”10. Logo, Justin Perkins,
em seu livro acerca dos primeiros oito anos entre os cristãos assírios, irá transmitir o que
estes são - a partir de sua interpretação pessoal, positiva, nesse caso – através de símbolos
que seriam positivos, honrosos e de bastante qualidade entre seu público.
9 GINZBURG, C. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001. p.85.
10 JODELET, D. (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 27-28.
Logo, se utilizar da autoridade bíblica para dar validade a uma afirmativa histórica, é
estratégia ideal para convencer o público protestante. Em sua análise, ele afirma não ser
possível comprovar com toda certeza que eles sejam puramente descendentes dos judeus;
porém, ainda que deixe em aberto, a hipótese tem o efeito de gerar um convencimento em
favor dessa ideia.
Em segundo lugar, Perkins levanta a hipótese, baseada na própria tradição assíria,
de que eles sejam cristãos por evangelização de um dos doze apóstolos, São Tomé:
Sobre sua conversão ao cristianismo, os nestorianos atribuem-na a
Tomé, um dos doze apóstolos, com quem Addai (Thaddeus) e Mari, do
número dos Setenta, foram associados. A tradição oral e os escritos
antigos dos nestorianos estão unidos em apoio a essa opinião. E como
vários dos padres cristãos nos informam, que Tomé viajou para o leste,
até mesmo para a Índia, pregando o evangelho, como ele avançou,
através dos países intervenientes, podemos considerar as alegações dos
nestorianos, sobre este assunto, como pelo menos prováveis.12
coisa que apareça, eram ortodoxos em sua essência. De fato, vale a pena
investigar se Nestorius pode não ter sido muito mais evangélico que seus
oponentes, e se sua pureza comparativa, na corrupção geral da igreja que
prevaleceu naquele período, pode não ter sido a principal causa do rigor.
com o qual ele foi tratado.13
13 Ibid., p. 3.
14 Ibid., p. 4.
15 Ibid. Ibidem.
16 Ibid., p.11.
17 O Novo Testamento em siríaco não tinha as epístolas de Judas, II e III João, a II de Pedro e nem o livro de
Apocalipse. Também não havia I João 5.7 e nem o relato do evangelho joanino sobre a mulher adúltera, no
capítulo oito. Cf. Ibid., p.14.
18 Ibid., p.15.
Esse trecho diferencia claramente os assírios dos demais cristãos orientais a partir
dos pressupostos sagrados mais caros para a apologética do protestantismo calvinista:
doutrina dos ícones, do purgatório, da confissão, e a sola scriptura. E ao final, afirma que eles
não cometem nenhum tipo de heresia cristológica ou qualquer outra; são falsas acusações
dos “papistas”. O fato de destacar esses detalhes ou, pelo menos, interpretar que os assírios
assim o sejam, afastando-os de qualquer relação com o catolicismo romano, cria uma ideia
de que é um povo “pronto” a ser alcançado pela ação missionária protestante; como um
desígnio ou providência de Deus, ter deixado um “remanescente” que nesse momento
cumpriria sua missão histórica.
19 Ibid., p.17.
20 Ibid., p. 20.
de obter mais recursos necessários para o crescimento da missão. Perkins vive de ofertas e
doações dos americanos, e precisa despertar nos mesmos um desejo de expansão
missionária por aquelas regiões longínquas, das quais não se ouvia falar.
Aqui, temos uma questão de distância e esfriamento emocional. Os missionários,
são uma categoria eclesiástica que necessita o tempo todo tornar presente aquilo que não é,
para seu público sustentador. Isto porque eles próprios não têm como providenciar seu
sustento, dependendo de um grupo de pessoas que os ajude. Por mais que esse missionário
se envolva emocionalmente com determinado povo, geralmente por ter um prévio contato
pessoal com este, é difícil fazer o mesmo com quem não esteve em contato, ou quem
nunca esteve no “campo”. Daí, a necessidade de criar representações úteis - acerca do povo
ou comunidade que o missionário quer alcançar – para que o público que irá financiá-lo
torne aquela realidade presente, e, assim, se envolva emocionalmente ao ponto de
considerá-la em sua existência e queira sustentar todo aquele processo.
Observamos também que todas as narrativas, os “nestorianos” se mostram sempre
gentis, carentes de cuidados e solícitos para ouvir: “Essa gentileza e hospitalidade
característica dos nestorianos, que sempre nos manifestam ao máximo de seu poder,
contribuem muito para tornar agradável e confortável a nossa residência”.21 Não há relatos
de resistência por parte dos assírios. Pela primeira vez um ocidental aparecera naquelas
terras para educar o povo, o qual reagiu muito positivamente quanto a isso. Ao missionário
eles pareceram um campo “pronto para a colheita”, possivelmente preparado por Deus:
Temos agora cerca de quinhentas crianças e jovens em nosso seminário e
escolas, que possuem tão bons talentos nativos quanto um número igual
em qualquer país, e estão estudando com sucesso suas línguas antigas e
modernas; e esperamos, no progresso de nosso trabalho, ter muitos mais
assim empregados.22
Essa “não-resistência” por parte dos assírios dá a entender ao missionário que eles
estavam destinados por Deus a serem alcançados por ele. As fronteiras de identificação em
um campo de missionariedade, se tornam mais fluidas a partir do momento em que surge
cooperação de ambas as partes. Isto é, quando se oferece menos resistência à
missionariedade, há, por parte do colonizador, uma tentativa maior de integração do
colonizado ao seu próprio sistema cultural. Em outras palavras, se o outro aceita de forma
mais passiva a minha colonização, talvez ele não seja tão “outro” assim.
Em um dos livros acerca da missão, escrito para ser uma coletânea das missões
21 Ibid., p. 18.
22 Ibid., p. 17.
orientais da ABCFM, o autor nos diz que apesar da sua “degradação moral” e de infringir
quase todos os dez mandamentos do decálogo, os “nestorianos”:
foram totalmente acessíveis para o missionário protestante, e foram mais
bíblicos em suas doutrinas e rituais, com muito menos de dogmatismo,
do que qualquer outra seita Oriental.23
Conclusão
Bibliografia
GINZBURG, C. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
JODELET, D. (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.
PERKINS, J. Residence of eight years in Persia, among the nestorian christians; with notice of the
muhammedans. Andover, NY: Allen, Morrill & Wardwell, 1843.
RUFUS, A. History of the missions of the American Board of Commissioners for Foreign Missions, to
the Oriental churches. Vol. 1. Boston: Congregational Publishing Society, 1872.
Resumo
A pesquisa busca através da imprensa e dos Anais da Câmara dos Deputados, analisar o
processo de extinção das milícias no Rio de Janeiro, ocorrido em 1831, que se deu em
virtude da Lei de criação da Guarda Nacional, por meio das discussões que surgem nos
periódicos cariocas e nos meios políticos no período de 1830 a 1834. O período anterior à
abdicação de d. Pedro I foi uma época de efervescência política, quando grupos políticos,
com diferentes projetos de governo, buscavam espaço no desenvolvimento do Estado
brasileiro. Tudo isso em meio a uma grande crise política e militar no país, na busca pela
construção de um modelo de Império e de cidadania. Pretende-se analisar o fim dos corpos
milicianos como parte de um projeto político modernizante de um Brasil segregador e
elitista no pós Revolução de 7 de abril.
Introdução
oficiais das forças regulares participaram dos movimentos da abdicação e muitos não
estavam satisfeitos com os rumos que o “carro da revolução” estava tomando. O governo,
por temor dos revoltosos, cada vez mais se fechava no grupo dos moderados, isolando os
exaltados e os excluindo das tomadas de decisões.5
Desse modo, uma grande parcela de população se via excluída das decisões da
Corte e excluída dos direitos políticos. A G.N. vem como uma instituição capaz de agregar
de forma hierárquica, seguindo o padrão dessa sociedade, indivíduos de diferentes regiões
sociais com o objetivo de defender a ordem.6 Cidadãos em armas.
Sendo as milícias segregadas por cor o objeto dessa pesquisa, vamos à elas. Os
principais prejudicados com a extinção desses corpos auxiliares foram os homens membros
das milícias segregadas por cor: os Henriques (pretos) e os batalhões de pardos. A G.N.
nacional nasce com o título de cidadã ao ter seus batalhões não mais segregados de acordo
com a cor, mas sim com medidas bastante integradores e democráticas em seu interior, ao
menos na teoria.7
Considerando as relações hierárquicas militares, regidas por valores compartilhados
pela sociedade como um todo, as instituições militares se tornavam chave, espelhando esses
valores em suas relações internas e, ao mesmo tempo, sendo capazes de manter e
conservar a ordem social excludente e desigual de uma cidadania que não foi pensada para
todos.
Assim, buscamos demonstrar como o fim das milícias estava aliado à um projeto
político desenvolvido pelos liberais moderados no poder, do ser cidadão dentro do Império
brasileiro. Projeto que, ao excluir as milícias e fundar a G.N. gerou problemas para os
homens vindos das milícias segregadas por cor, integrados em suas redes de solidariedade e
sociabilidade dentro de um universo em que eram, quase sempre, comandados por homens
da mesma cor, conseguiam ascender dentro da hierarquia miliciana.
A G.N., por não ser mais segregada, traz problemas práticos quando sua hierarquia
interna e a integração de homens de cor, brasileiros e cidadãos pretos e pardos - na prática
seria impensável um homem branco ser comandado por homens de cor. Na milícia cidadã,
fica a necessidade de saber qual seria o cidadão bem quisto aos postos de oficialidade e se a
integração ocorreu entre os homens de todas as cores.
milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo, Ed. Nacional; Brasília, 1977.
8 MONDAINI, Marco. Revolução Inglesa - O respeito aos direitos dos indivíduos. ,In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla B. (orgs.). História da Cidadania. 6ª ed.São Paulo: Contexto, 2013, p. 130.
9 ODALIA, Nilo. A liberdade como meta coletiva. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (orgs.). História da
16 A pesquisa, que faz parte do desenvolvimento de Dissertação para a obtenção do grau de Mestre, ainda está
em andamento. Sendo assim, aqui somente iremos apresentar a análise dos anais, a análise da imprensa
carioca ainda está em andamento.
17 CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo, Ed.
promulgação da lei, foi a especificação das forças que seriam extintas. No projeto, constava
que seriam suprimidas e extintos os Corpos de segunda linha e Ordenanças do Império.18
Os corpos milicianos foram extintos sem discussão, sem planejamento, o único
artigo que pensava nos ex milicianos era o artigo 141. Este foi modificado pelo decreto de
1832, que modificou a lei de 18 de agosto de 1831. De acordo com o artigo 141, os oficiais
milicianos que recebiam soldo continuariam a recebê-lo, e aqueles que não recebiam
ficariam com as “honras anexas aos seus postos”. Entretanto, não ficariam isentos do
serviço das Guardas Nacionais, caso fossem alistados na conformidade da lei.
A emenda formulada em 1832 acrescenta que aqueles que não recebiam soldo e que
não haviam perdido suas patentes poderiam ser eleitos oficiais da Guarda Nacional, desde
que tivessem “os requisitos acima declarados no artigo 13”.19 Além disso, permitia que,
caso a patente fosse inferior à que já possuíam, estariam livres para não aceitar a eleição.20
A emenda foi apresentada pelo deputado Costa Ferreira no dia 25 de agosto de
1832. Nela temos que os “oficiais de milícias poderão ser eleitos oficiais da guarda
nacional”, desde que tivessem “os requisitos da lei; sendo-lhes livres porém deixar de
aceitar a nomeação quando esta for para posto inferior ao da sua patente” (Anais da
Câmara dos Deputados, 1832).21
Em ambas as situações, seja na elaboração da lei ou das emendas, os artigos não
foram discutidos. Interessante que apenas um ano após a promulgação da lei, os deputados
tenham pensado no que ocorreria com os oficiais milicianos que migrassem para a Guarda
Nacional. Acreditamos que isso se deveu à pressão exercida pelos de ex milicianos na
imprensa da cidade.22
Os cidadãos em armas deveriam ser eleitores, com mínimo de 18 anos e máximo de
60 anos, poderiam ser alistados nas Guardas, para o Rio de Janeiro. O Conselho de
Qualificação, criado no projeto de lei, órgão por meio do qual o juiz de paz e os seis
que podiam ser eleitores e que tivessem renda de 400 mil réis anual no Rio de Janeiro, Bahia, Recife e
Maranhão e nos demais Municípios renda de 200 mil réis. Decreto de 25 de outubro de 1832. Art. 13.
20Lei de 18 de agosto de 1831. Art. 141. Disponível em:
<<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-
publicacaooriginal-88297-pl.html>>. Acesso em: maio 2020.
21 Anais da Câmara dos Deputados, Sessão do dia 25 de Agosto de 1832, Tomo Segundo. Disponível em: <
http://bd.camara.leg.br/bd/discover?query=1829&scope=bdcamara%2F28839&submit=Buscar>. Acesso
em: maio 2020.
22 Ibidem.
eleitores mais votados da freguesia determinavam quem deveria servir na Guarda e quem
ficaria isento do serviço ativo, ficaria responsável por “verificar a idoneidade dos
cidadãos”.23
A emenda aprovada um ano depois, em 1832, em seu artigo 13, trazia uma
novidade: além da exigência de renda de 400 mil réis para moradores do Rio de Janeiro que
pretendesse ser guarda nacional, incluía necessidade de serem eleitores. Tal emenda, excluía
da oficialidade da Guarda Nacional os libertos, ex escravos nascidos no Brasil.
Estes, pelo Art. 94 da Constituição de 1824, apesar de cidadãos brasileiros, não
podiam ser eleitores.24 A emenda que consolidou a impossibilidade do ingresso de ex
escravos na Guarda Nacional, foi questionada duas vezes pelo deputado Antonio
Rebouças, que também solicitou sua retirada da discussão. Nesse momento, o deputado fez
um longo discurso para justificar sua demanda.25
Para Rebouças, a emenda era injusta, incendiária, impolítica e inconstitucional. Para
o deputado, a emenda de Calmon, ao definir “que para oficiais das guardas nacionais
somente possam ser votados os que podem ser eleitores”, acabaria por restringir ou
ampliar a emenda “da ilustre comissão,” que para os guardas nacionais, e em geral nas
capitais mais populosas do império, somente exige das condições de eleitor a renda de
200$”. E destacava como a emenda excluía parcela do antigos oficiais de milícias, aqueles
que eram libertos.
O deputado questiona se “será constitucional, justo, conforme aos nossos costumes
e mesmo político, que nós, agora ampliamos essa exceção odiosa, contraditória e
impraticável”, presente na classificação de eleitor, também para a Guarda Nacional.26
A Constituição – argumentava Rebouças – havia imposto restrições aos brasileiros
que não nasceram ingênuos de serem eleitor de paróquia, conselheiro de província,
deputado, senador e conselheiro de estado. E, deste modo, para Rebouças, ao limitar o
acesso dos ex escravos a determinados cargos, com as exceções “firmou a regra geral em
contrário”, e de acordo com os princípios consagrados na Constituição “de serem todos
cidadãos obrigados a pegar em armas em defesa da pátria, de serem acessíveis à todos os
23 Ibidem.
24 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2000, 40.
25 Anais da Câmara dos Deputados, Sessão do dia 25 de Agosto de 1832, Tomo Segundo. Disponível em: <
http://bd.camara.leg.br/bd/discover?query=1829&scope=bdcamara%2F28839&submit=Buscar>. Acesso
em: maio 2020.
26 Ibidem.
empregos sem outra distinção que à dos seus talentos e virtudes”, não deveriam ser
privados do direito aos cargos de oficial na Guarda.27
Vemos a ideia liberal de que as pessoas devem ser vistas pelos seus talentos e
virtudes em sua relação com a sociedade, não falando em nenhum momento sobre a cor
dos cidadãos. Segundo o deputado, todos os cidadãos deveriam ser considerados como tal
por seus méritos (talentos e virtudes), o dinheiro sendo um bom indício de distinção social
e esse deveria ser o critério de definição de quem seria oficial da Guarda Nacional.
Deste modo, para o deputado os cidadãos libertos poderiam servir todos “os
empregos para os quais se achem habilitados por seus talentos e virtudes”. Rebouças afirma
que Calmon sabia que “as disposições legislativas contrárias aos costumes, à harmonia, à
mútua confiança, à paz, à justiça e aos direitos naturais ou aos adquiridos dos povos não se
cumprem, ou se cumprem para mal e nunca para bem”. Talvez aqui estivesse prevendo ou
mesmo expondo um problema que já estava acontecendo com relação às Guardas,
lembrando a força dos costumes em sociedades como a do Império do Brasil.28
O deputado questiona quando seria possível a um liberto “os sufrágios de seus
concidadãos”, indagando: não deveria ser “pela melhor índole e comportamento cívico”
para desfazer “as desagradáveis impressões da sua infeliz origem?”. O afastamento do
mundo da escravidão – seguia argumentando Rebouças – poderia vir pela ação cívica, algo
que os homens de cor já vinham fazendo nas Milícias desde o período colonial.
Rebouças encerrou seu discurso dizendo que acreditava no caráter da “augusta
câmara e dos sinais mais positivos do uso parlamentar” e que, desse modo, tinha certeza de
que a emenda seria rejeitada por ser inconstitucional, “injusta, nociva e perigosa”. Por fim,
ainda perguntou a Calmon se ele realmente queria que a emenda fosse votada e se ainda
não seria melhor o partido retirá-la.29 Apesar dos contínuas manifestações de apoiado
registrado na ata, a emenda não só não foi retirada como foi aprovada pela Câmara,
associando a condição de eleitor ao ingresso aos postos da oficialidade na Guarda
Nacional.
Ao que parece, a maioria dos deputados não concordou com as declarações de
Rebouças e sua preocupação com a inconstitucionalidade da emenda do deputado Calmon,
e muito menos com aqueles que seriam prejudicados, os homens de cor ex-cativos. Mesmo
esses homens sendo considerados cidadãos do Império, de acordo com a Constituição de
27 Ibidem.
28 Ibidem.
29 Ibidem.
1824, a Guarda Nacional conhecida como guarda cidadã, não lhes permitiria assumir cargos
da oficialidade ainda que provassem a renda mínima.
Com a sua criação e a extinção das forças auxiliares milicianas e diminuição do
Exército, a Guarda Nacional se tornou a principal força auxiliar do período regencial,
elemento de manutenção da integridade nacional e controle social. Assim, exerciam o seu
poder de dominação sobre a sociedade através de um recurso estatal controlado em
máxima instância pelo Ministro da Justiça e, localmente, pelos juízes de paz.
A Lei com seus 143 artigos e parágrafos nunca chegou a ser posta totalmente em
prática, assim como o decreto de 1832. O fato de ter sido feita à cópia deliberada de
princípios estrangeiros e diversos à realidade do Brasil no século XIX fez com que a
Guarda Nacional tal como foi pensada na carta da lei nunca tenha se tornado realidade. A
lei não conseguiu se ajustar à realidade social do país. Assim, vemos o “aparecimento de
um imenso número de avisos, portarias, decretos, decisões, esclarecendo, corrigindo e
resolvendo dúvidas, certamente completadas por soluções e interpretações locais”.30
Conclusão
Partindo do fim das milícias, este trabalho procurou questionar e expor como às
políticas públicas dos liberais moderados interferiram no ingresso e ascensão aos cargos de
oficialidade dos homens de cor. O foco foi o fim das milícias com a criação da G.N., uma
força que nasceu com o status de democrática e cidadã mas que na prática apenas
reafirmaram as práticas racistas e as hierarquias sociais.
A sociedade do período regencial era permeada por tensões, uma sociedade rica em
aspectos raciais e bastante hierarquizada. Uma hierarquia que era imposto de cima para
baixo e buscava colocar as pessoas em categorias pré definidas e prejudiciais às pessoas de
cor, ligadas ao mundo escravocrata.
Aqui privilegiamos o discurso de Antonio Rebouças contrário a associação da
ascensão aos cargos de oficialidade ao ser eleitor e em como isso seria inconstitucional e
prejudicial aqueles que não haviam nascido livres. O ser cidadão dentro dos parâmetros
estabelecidos pela Constituição de 1824 não eram suficientes para ascender dentro da
milícia cidadã dos liberais moderados. Os próximos passos da pesquisa buscam associar as
Bibliografia
Resumo
Introdução
1 Graduada em História pela UFCG, mestranda em História pelo PPGH/UFPB e membro do Grupo de
Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista (GPSCNO/CNPq) – e-mail:
lawrenceelias1996@gmail.com.
2 GINZBURG, Carlo. “Lorenzo Valla e a doação de Constantino”. In: Relações de força: história, retórica, prova.
Tradução: João Batista Neto. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 64-79.
3 SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. Editora
como cajazeiras, em que vaqueiros de passagem paravam debaixo dessas para descansar e matar a sede dos
animais no pequeno açude que ficava próximo.
6 Dados retirados do Recenseamento da Província da Parahyba do Norte de 1872, localizado no site do IBGE
https://www.ibge.gov.br/pt/inicio.html.
7 É importante destacar que as três famílias citadas pertencem à mesma genealogia familiar, iniciada com os
8 Construída por Ana de Albuquerque para que seu filho, Padre Inácio Rolim, pudesse celebrar missas.
9 Diversos jornais que circularam na província do Ceará durante 1870 e 1879, relatavam a incidência de
frequentes tensões sangrentas iniciadas por membros da administração local e provincial em que buscavam
manutenção da clientela, promover fraude e/ou ocupação de cargos administrativos na Assembleia da
Província, um exemplo disso encontra-se no jornal Pedro II, n. 165, 24 de Ago. 1872, disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
10 Sobre as tensões políticas ocorridas em Vila da Telha durante a década de 1860, é importante salientar que
que um dos fatores que colaboraram para tais ocorrências foram os conflitos familiares entre os Montes, os
Feitosas, como também à família Fernandes Vieira, para mais informações ver os trabalhos de Bruno Nojosa
de Freitas sobre a política no Ceará.
11 Ex-Juiz municipal suplente de Cajazeiras.
“ouvir dizer”12, a notícia fora espalhada rapidamente percorrendo as ruas Cajazeiras, bem
como, as províncias do Ceará e Pernambuco e na Corte. Não se contentando com o envio
de bilhetes e cartas aos jornais, Antônio Joaquim do Couto Cartaxo moveu junto com sua
mãe, Ana Josefa de Jesus, uma ação judicial acusando João Pires e João Torquato pelo
assassinato de João Cartaxo. Mesmo sendo matriarca da família, Ana Josefa não pôde
representar-se na ação devido sua condição de analfabeta, restando-lhe recorrer ao filho
que estava como juiz de Direito no termo de Jardim, província do Ceará, para atuar como
representante de seus interesses no caso.
Embora não deva tomá-las de forma literal ou verdadeira, as descrições presentes
nas narrativas dos jornais transmitiam atributos que caracterizavam as “redes de sociabilidade,
entendida aqui como laços que se formam de acordo com afinidade política e que são
produtores de fidelidades”13 (grifo nosso), que fundamentavam a cultura política da época –
“conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas...”14 – um exemplo disto
pode ser percebido nas cartas presentes na sessão “publicações solicitadas”, em que os
autores faziam uso de argumentações que iam além da retórica para conquistar a opinião
pública.
Nesse sentido, questiona-se: como esses meios de comunicação impressos
interagiram na complexidade do contexto político que o “morticínio eleitoral” estava
inserido? Que argumentos eram utilizados para informar e angariar o apoio da opinião
pública? Qual tom os discursos carregavam?
A imprensa, longe de ser neutra, era ao mesmo tempo “arena e agente nos
debates”15. Esta constituía-se “[...] como elemento essencial para a cultura política do século
XIX brasileiro.”16. Nas colunas do jornal Pedro II (1872), bem como A Reforma (1872) existia
mais do que uma tentativa de denúncia ou defesa, no caso específico, as narrativas inseriam
12 Marialva Barbosa discute que o circuito de comunicação era “alimentado” muitas vezes pelos que ouviam
dizer, pois, nem todos tinham estado no momento do fato ou possuíam acesso aos jornais.
13 SIRINELLI, op. cit., p. 249.
14 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia”. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas políticas na história: novos estudos. – 2. ed. – Fino
Traço Editora, Belo Horizonte-MG, 2014 [2009], p. 13-38.
15 GRAHAM, Richard. Richard Graham: a eleição como um drama. 2011. (28m09s). Disponível em:
XVIII e XIX”. In: FRAGOSO, João Luís; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antonio
Carlos Jucá (orgs.). Conquistadores e Negociantes: história das elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos
XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 403-434.
21 BERSTEIN, Serge. “A cultura política”. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 357.
2011, p. 1-32.
26 VARGAS, Jonas Moreira. “Um negócio entre famílias”. A elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889).
In: HEINZ, Flávio M. (Org.). História social de elites. Oikos, São Leopoldo, 2011, p. 28.
27 GINZBURG, Carlo. “Apêndice – Provas e possibilidades (Posfácio a Natalie Zemon Davis, O retorno de
Martin Guerre) [1984]”. In: ______. O fio e os rastros. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2007, p. 311-
338.
28 Ibid., p. 312.
não tenha sido posto à questionamento, manifestações contrárias por parte dos juristas
medievais começaram a tratar como ilegal o documento, sua autenticidade já havia sido
posta em contestação.
O trabalho de Valla surgia mais do que da substância da argumentação, seu tom ao
dirigir-se ao Papa explica o fato de que ele só foi impresso em 1506 e, publicado
novamente, em 1528 com a forma de manifesto político denunciativo das ambições da
Igreja Católica. De acordo com Ginzburg “[...] nos séculos XVII e XVIII, foi considerado
um modelo precoce de investigação crítica.”29 Nesse sentido, o que significa, hoje, o
discurso de Valla sobre a doação de Constanntino?
A presente passagem de Valla atenta ao fato de que, a maneira como percebe-se a
documentação é o ponto de partida e não de chegada, porque o juízo de quem produziu a
narrativa, mesmo que possa representar suas implicações, não pode – por definição –
coincidir com o que problematiza. A auto interpretação de quem construiu a narrativa
presente nos jornais e nos testemunhos do processo-crime e a leitura feita neste artigo são,
inevitavelmente, divergentes.
29 Ibid., p. 65.
aspectos políticos e toma conta do seu perfil pessoal como sendo um conjunto de
representação da desordem e barbárie. Nas palavras de Cartaxo, transcritas no Pedro II,
João Pires Ferreira era coberto de crimes, instinctos perversos, que possue ao mesmo tempo todas as
qualidades nocivas, e que tem tido sempre meios para escapar à acção da justiça criminal. Embora
Cartaxo ressalte que João Pires conseguia escorregar entre os parâmetros da justiça, ele
não aponta quem o protegia. O foco está, frequentemente, em desfigurar seu opositor
mais próximo.
Este procedimento de “pintar” o perfil de João Pires não foi utilizado de forma
desinteressada. Os Couto Cartaxo tinham o interesse em dominar os espaços políticos
para se mantivessem no domínio local e para alçar os altos cargos da Província. Linda
Lewin auxilia nessa leitura ao ressaltar que, as articulações que as famílias desenvolviam
eram em função de uma política que lhes assegurasse “o controle dos cargos municipais,
[...] juízes de paz e chefes políticos a nível local.”30
Ao promover o fato em outras localidades e na Corte, não era só o desejo de
justiça que ecoava nas ideias de Couto Cartaxo. Minando a figura de seu adversário, ele
procurava popularizar-se construindo estratégias discursivas que acionavam apelos e
valores para a época. Esse movimento do então juiz pode ser constatado quando
comparamos com o posicionamento do editorial do jornal A Reforma, órgão que se
propunha democrático, porém, trabalhava na ênfase das ideias do Partido Liberal.
Circulando no Rio de Janeiro, em sua capa da edição de n° 213, o editorial que se
constituiu de denúncias sobre as ações violentas e de fraude ocorridas nas eleições das
províncias do Norte, dá ênfase ao fato político em Cajazeiras sem evocar ou construir um
perfil dos sujeitos envolvidos na trama.
Passando quase um mês do crime, o editorial não enfatizou necessariamente a
reprodução do que disse o jornal Despertador da Parahyba. Embora tenha dado
notoriedade à notícia, dentro do circuito de comunicação dos liberais do jornal, era mais
interessante discutir como o minotauro é insaciável! Os editores enxergavam o caso em
Cajazeiras como parte de uma ação do ministerio que ser diverte, e falsifica actas eleitoraes na
corte, e continúa a correr o sangue liberal nas províncias. Pode-se perceber que o tom da mesma
notícia muda de um jornal para outro, o alvo não é mais uma pessoa, mas,
primordialmente, a máquina administrativa do Império do Brasil e seus agentes.
30LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de Janeiro:
Record, 1993, p. 9.
Considerações finais
Fontes
31 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. “O lugar do impresso revolucionário: dos porões aos arquivos policiais”.
In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (Orgs.). Política, nação e edição. O lugar dos impressos na
construção da vida política. Brasil, Europa e América nos séculos XVIII-XX. Annablume : São Paulo-SP, 2006, p. 159.
32 Segundo Ana Carla Sabino Fernandes (2004, p. 20), “[...] nos momentos de crise partidária ou perda de
poder os redatores do Pedro II arguiam, para si, a condição de liberais.” (Grifos nossos).
33 RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem do século XIX ao século XX”.
In: LESSA, Mônica Leite; DE BRITO FONSECA, Silvia Carla Pereira (Orgs.). Entre a monarquia e a república:
imprensa, pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p. 219.
34 NEVES, Lúcia Maria B. P; MOREL, Marcos; FERREIRA, Tânia Maria B. C. Apresentação. In: NEVES,
Lúcia Maria B. P; MOREL, Marcos; et all (Orgs.). História e Imprensa: Representações culturais e práticas de poder.
Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006, p. 10.
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349-363.
BERSTEIN, Serge. Les cultures politiques en France. Ed. du Seuil, 2003.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O lugar do impresso revolucionário: dos porões aos
arquivos policiais. In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (Orgs.). Política,
nação e edição. O lugar dos impressos na construção da vida política. Brasil, Europa e América nos séculos
XVIII-XX. Annablume : São Paulo-SP, 2006, p. 153-179.
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Brasil, séculos XVIII e XIX”. In: FRAGOSO, João Luís; ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho de e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá (orgs.). Conquistadores e Negociantes: história
das elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 403-434.
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de analisar o relato da passagem pelo Brasil do enviado do
governo dos Estados Unidos da América Henry M. Brackenridge, como parte de sua
viagem pela América do Sul no ano de 1818. Sua missão, registrada posteriormente no livro
Voyage to South America, teve por finalidade investigar o clima político no continente, que
passava por revoluções e movimentos de independência, assim como declarar a
neutralidade estadunidense entre as colônias e ex-colônias americanas e a metrópole
europeia. Sua breve estadia na capital do império português produziu uma narrativa
bastante crítica sobre a sociedade brasileira às vésperas da Independência, que nos permite
observar as tensões, divergências e aproximações entre os norte-americanos e luso-
brasileiros, frutos de culturas, práticas e modelos políticos distintos.
Introdução
1Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Bolsista FAPERJ. E-mail:
mariana.barretopbl@gmail.com
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Editora
Hucitec, 1989, p. 3.
3 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais - a cultura política da Independência (1820-
passou despercebida aos Estados Unidos que, onze dias após o ocorrido, em 27 de
dezembro, reconheceu a nova situação do país como de independência5,Compreender esse
fato é também compreender as mudanças pelas quais o Império português enfrentava
diante das consequências da Revolução Francesa. Entretanto, essa mudança de estatuto não
significava, em absoluto, o estabelecimento de uma identidade ou mesmo de um
sentimento de pertencimento em relação àquele território, como se pode observar no
trecho a seguir:
Capistrano de Abreu afirma que, ao final de três séculos de colonização,
o Brasil estava longe de ser uma nação, apesar das inconfidências do
século XVIII. A América portuguesa foi, portanto, espaço onde os
aspectos arcaicos do Antigo Regime encontraram campo fértil,
conjugando-se valores, privilégios e hierarquias do reino com as
estruturas características do “viver em colônia”, como diria Vilhena,
letrado que ensinava grego na Bahia de Todos os Santos.6
1817 and 1818, in the Frigate Congress. London: T. e J. Allman, 1820, v.1, p. 128
8 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 112 in GAGLIARDO, Vinicius Caneck. A construção do Rio De Janeiro na literatura de viagem
oitocentista. Almanack. Guarulhos, n.12, p.156-183.
O texto acima foi escrito pelo francês Ferdinand Denis, que chegou ao Rio de
Janeiro em 1816. Ele indica que, a partir da abertura dos portos, decretada em janeiro de
1808, após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro do em março do mesmo ano,
marcou não só o fim do exclusivo comercial e a permissão para as transações comerciais
com outros países, mas uma abertura cultural, que permitia o livre acesso de viajantes às
terras brasileiras. Apesar da presença de viajantes de diversas nacionalidades que
documentaram suas passagens por estas terras9, não há muitos registros de viajantes
estadunidenses no Rio de Janeiro entre 1808 e 1831, ou seja, no período chamado joanino e
no Primeiro Reinado. Sérgio Buarque de Holanda atribui o intenso fluxo de viajantes a uma
“curiosidade tão longamente sofreada” que pôde “expandir-se sem estorvo e, não poucas
vezes, com solícito amparo das autoridades”10.
Retornando à Brackenridge, é importante fazer certas considerações para essas
notas de pesquisa. Elas são de grande importância para a compreensão não só de alguns
trechos deste relato de viagem, mas o contexto no qual esse homem está inserido e como
ele observa uma realidade tão distante da sua. Desta forma, tentando não cometer
anacronismos ou determinismos, pode-se analisar esta fonte subjetiva de maneira mais
objetiva. Primeiramente, conceituando a cultura política como “uma construção histórica
que se adapta e se transforma em sintonia tanto com os acontecimentos quanto com as
atitudes dos indivíduos e dos grupos cujos objetivos, por sua vez, ela define.”11 Para
Bernstein12, a cultura política permite e impele que um grupo participe coletivamente de
uma visão comum de mundo, de leituras de passado e expectativas para o futuro.
Brackenridge não estava imune à cultura política de seu tempo e, principalmente, de
seu país. Em rápida pesquisa no Diretório Biográfico do Congresso dos Estados Unidos13
descobre-se que ele foi advogado, procurador, juiz, escritor e congressista pelo estado da
Pensilvânia. Os Estados Unidos, ainda sob o nome das Treze Colônias, possuíram um
modelo de trabalho e exploração da terra que envolvia mão-de-obra livre, assalariada e
liberal, assim como sua política de terras, em um estado moderado, com liberdades de
9 Cf. MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 1999, p. 267-299.
10 HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. tomo II, vol. 3. 13ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Bertrand do Brasil, 2011, p. 17
11 NEVES, L. M. B. Op. Cit, p. 25
12BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François. Por uma história
A fonte tratada aqui aponta para uma aproximação cautelosa entre os dois países - e
aqui adota-se o Brasil como país por este possuir um corpo político relativamente
autônomo, embora os interlocutores sejam portugueses -, numa relação que, apesar de
pouco explorada, não foi absolutamente linear e pacífica. Como afirma Ricupero16, à essa
época os EUA já demonstravam sua “vocação imperial” e um forte senso de superioridade
em relação aos outros países. Como pode ser observado no trecho a seguir,
[...] esse não é o caso com ‘os Brasis’; eles são um e indivisível, e a
probabilidade é que continue assim, a não ser que a Família Real resolva
retornar a Portugal. Então, quando consideramos a vasta capacidade e os
recursos do Brasil, pode-se dizer que esse império está destinado a ser
nosso rival. 1718
p. 24
17 BRACKENRIDGE, H, M. Op cit. p. 156.
18 Como não há versões traduzidas deste livro, para fins de melhor compreensão e análise todos os trechos
aqui transcritos estão livremente traduzidos por mim, na tentativa respeitar ao máximo a integridade do texto.
A resolução deste entrave diplomático se deu através de uma reunião entre D. João
VI e o Sr. Sumter. O ministro foi dispensado da obrigação de fazer reverências à corte, e
ficou com uma boa impressão do rei em relação às liberdades e suas boas intenções , e disse
que há um desejo sincero por parte do monarca de cultivar uma boa relação e amizade
com as pessoas dos Estados Unidos, e nisso ele foi muito mais liberal que seus cortesãos;
“mas pensou que ele estava a mercê de seus ministros”21. Vainfas22 nos diz que,
23 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política Imperial. Teatro das Sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, p. 21
24 CARVALHO, J. M. Op. Cit, p. 33
25 HESPANHA, Antônio Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do
Em outro fragmento do texto, ele afirma que as terras são mais bem cultivadas por
homens em todas as condições climáticas, e que, em letras garrafais, a escravidão é uma
maldição em qualquer lugar. Embora o tráfico de escravizados tenha sido proibido em
1808 nos Estados Unidos, o contrabando ainda era uma prática comum e
institucionalizada. A escravidão encontrou seu fim em 1865, com a promulgação da
Décima Terceira Emenda à Constituição.
Brackenridge assistiu à coroação de Dom João VI em terras brasileiras. A respeito
disso, ele teceu alguns comentários registrados a seguir:
Foi natural para nós fazer uma comparação entre a cerimônia simples e
sem afetação de posse do chefe magistrado escolhido por pessoas livres
para guiar seus interesses, com racionalidade e bom senso, e todo esse
barulho e brilho calculados para intoxicar, deslumbrar e idiotizar o
intelecto humano. Eu não pude deixar de refletir o quão pequeno era o
número de pessoas entre essa turba miserável que podia raciocinar com
justiça e sabiamente sobre a cena diante deles! [...] Quão diferente é o
entusiasmo dos livres, da aclamação externa ruidosa de um povo que,
sem esses artifícios e trivialidades complicadas, continuaria em uma
estupidez imutável. O entusiasmo de um homem livre não precisa dessas
ajudas; ele tem dentro de si "aquilo que passa despercebido" - ele tem
pensamentos, sensações, lembranças, interesses e sentimentos, capazes
de elevar sua mente sem a ajuda de ninharias como essas.28
Ainda sobre este assunto, o viajante afirma que toda a estética que remetia à
monarquia o remetia ao ultrapassado, e que as monarquias são ligadas ao passado. Além
disso, afirma que não consegue falar respeitosamente das coisas que viu em terras brasílias,
mas não pode, por dever a seus compatriotas uma cópia fiel de suas impressões. E termina
questionando se a primeira coroação de um Rei nas Américas seria a última. Essas
colocações de Brackenridge demonstram um pensamento que pode parecer contraditório,
mas que está exposto em diversos momentos de seu panfleto, e que auxilia na
compreensão das relações políticas e diplomáticas entre os dois países na década seguinte,
após a Independência. Como poderia enxergar no Brasil, em suas palavras uma terra
bárbara, um rival em potencial dos Estados Unidos, se desacreditava na capacidade de
administração do monarca? Por que era importante que os países tivessem uma relação
próxima se a imagem da monarquia era de selvageria? O Brasil se apresentava como uma
promessa de potência no continente, agora com liberdade de comércio, mercado interno,
produção de itens para a exportação e uma possibilidade de uma expressiva frota naval.
Apesar do desprezo confesso pelo sistema monárquico de governo, cabia aos Estados
Unidos, “uma república solitária [no continente], e por isso uma tácita reprovação à
monarquia29”, dissimular o sentimento e se dedicar às relações com o Brasil. Para
Brackenridge, o Brasil é o corpo e o coração da América do Sul, e era superior às
possessões espanholas por sua agregação, ser mais coeso e possuir mais facilidades de
comunicação. Segundo o panfleto, uma comparação entre os dois países seria inevitável no
futuro. Com a eclosão das revoluções de independência na América espanhola, a
construção da identidade das repúblicas americanas se articulava com a ideia de ruptura
com o Antigo Regime e, metaforicamente, com a Europa30.
Outro ponto que merece destaque no relato de Brackenridge está relacionado às
condecorações, insígnias e faixas exibidas pelos homens na sociedade brasileira. Segundo
suas palavras,
“[...] não é costume, neste país, deixar de lado qualquer símbolo de
distinção, para ser usado apenas em dias de cerimônia ou desfile. Nada
me surpreendeu mais do que o número de pessoas que eu vi nas ruas
com decorações de um tipo ou de outro. Eu não pude pensar que, por se
tornarem tão comuns e serem tão frequentemente exibidos, elas devem
parar de significar dignidade e importância ao portador.”
humanidades. Por se tratar de um relato pessoal, deve-se atentar para as subjetividades dos
envolvidos, uma vez que seus escritos estão impregnados de suas visões de mundo, e,
portanto, podem ser por vezes tendenciosos, contraditórios e pouco fidedignos.33
Souza34 cita Tocqueville para afirmar que os homens continuavam os mesmos, o
que entrou em crise com a decadência do Antigo Regime foi um sistema. Sendo assim,
cabe pensar quais as crises enfrentadas (ou não) nos dois hemisférios de um mesmo
continente para que houvesse uma mudança. E, sendo o Brasil uma colônia, as crises pelas
quais passou Portugal e que impactaram grandemente as estruturas político-administrativas
dos domínios portugueses.
Assim, não se trata, simplesmente, de opor perspectivas distintas - a do Antigo
Regime, a liberal - sob uma ótica processualista e positivista de progresso ou
temporalidade, mas de demonstrar um momento de volatilidade das instituições e de
multiplicidades não de pensamento e ação na esfera do político e do exercício da política.
Assim como Hespanha postula que a Idade Moderna possui elemento da antiga ordem
medieval assim como novos elementos que se manifestariam no século XIX, as novas
formulações e etapas observadas na história do Brasil nos primeiros anos do século XIX -
elevação a Reino Unido, Independência, movimento constitucionalista - e não respeitando
a rigidez das datas, contêm marcas do período (ou dos períodos) anteriores, porque a
dialética da história acontece permanentemente nas continuidades e rupturas.
Bibliografia
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François.
Por uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 349-363.
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política Imperial. Teatro das
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FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no
império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010
GAGLIARDO, Vinicius Caneck. A construção do Rio De Janeiro na literatura de viagem
oitocentista. Almanack. Guarulhos, n.12, p.156-183. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/alm/n12/2236-4633-alm-12-00156.pdf>. Consultado em
25/10/2020.
33 JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de Seminários de
Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP-FFLCH-Editora Humanitas, 2011. v. 1. 129 p
34 SOUZA, Laura de Mello e. Op cit.
Resumo
1Mestranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: franco-
mft@hotmail.com.
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Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
artístico seguindo as tendências musicais da época. Sua produção, desde o princípio, foi
acompanhada pelo gênero mais popular, mostrando pouca inclinação à música sacra, que
então predominava no ambiente musical de São Paulo e Minas Gerais, dedicando-se mais à
música de salão, como a modinha e pequenas peças sentimentais para piano, casualmente
em dueto com outro instrumento. Mas desde a infância, por intermédio do pai, já estava
iniciado na música erudita europeia.2
Durante a primeira metade do século XIX, enquanto o Império era construído,
muitos intelectuais, influenciados pelas inquietações resultantes do processo de
independência, foram compelidos a refletir e elaborar projetos a respeito dos embates
subjacentes no meio social no qual pertenciam. Muitas produções daí resultante, concebiam
uma identidade, expressando uma aspiração de uma autonomia cultural, marcada pela
busca do “ser brasileiro”, ou seja, de uma identidade nacional. Enquanto uma história
literária brasileira estava sendo gerada, tornando-se imperiosa para a própria nacionalidade
que nascia, representando a autonomia, genuinidade e soberania cultural do Império e seu
lugar no mundo civilizado.3
Portanto, a identidade nacional no Brasil é calcada em características políticas e
culturais, demandando, dessa forma, um esforço político, ainda que subordinado à Europa,
quanto cultural, genuíno, porém, baseado nos modelos europeus, a fim de construir o
Império brasileiro enquanto nação. O romantismo serviu a esse projeto nesse duplo
empreendimento. Além disso, é importante ressaltar que o Brasil está inserido num
contexto de transformações com o nacionalismo em desenvolvimento e a afirmação dos
Estados nacionais, o que é fundamental para compreendermos os investimentos do
Império no campo cultural e as diretrizes que guiaram as artes, inclusive a própria produção
musical.
D. Pedro II ascendeu ao trono em 23 de julho de 1840, aos 14 anos de idade, num
período de muita turbulência, deixando, após um longo reinado, de 49 anos, quando foi
deposto pela Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, e em seguida exilado,
aos 65 anos. Legou ao Brasil a unidade nacional consolidada, o tráfico negreiro e a
escravidão abolidos e, graças à ininterrupta realização de eleições e à liberdade de imprensa
que vigeu por todo Segundo Reinado, terminando por lançar as bases do sistema
representativo. Seu reinado foi mais estável politicamente que o do pai, e mais ainda que o
período regencial.4 D. Pedro II teve como missão finalizar o processo de independência
iniciado em 1822, cortando os laços com a antiga metrópole e consolidando uma nação
com identidade própria, mantendo a ordem social, econômica e política. Também era
importante construir uma identidade cultural o quanto mais genuinamente brasileira fosse
possível embebida do ideal europeu de civilização. Nesse sentido, a cidade do Rio de
Janeiro como sede da Corte foi a maior representante de uma nação civilizada.
O Segundo Reinado adotou políticas que seguiram claramente o objetivo de se criar
uma identidade nacional,5 utilizando-se de artifícios como o ensino primário obrigatório
controlado pelo Estado, propaganda estatal e a produção de uma história oficial. D. Pedro
II tinha como meta formar uma cultura oficial como parte de um projeto civilizacional,
dessa forma, era preciso criar, também, um modelo de elite, de nobreza e refletir acerca da
nação, criando um projeto nacional para moldá-la nos parâmetros de uma cultura calcada
nos ideais de civilidade. Foi nessa conjuntura que se deu a produção da ópera Il Guarany,
um dos produtos artísticos mais bem sucedidos do projeto cultural do Segundo Reinado.
Através do mecenato diversos artistas, cientistas e literatos foram financiados pelo
governo imperial, recebendo auxílios para estudar no exterior, era um sistema de
pensionato, cujas pensões correspondiam ao chamado hoje de bolsas de estudos. Segundo
José Murilo de Carvalho, 151 bolsistas obtiveram pensões, 41 para estudar no exterior6,
Carlos Gomes foi um deles, que, financiado pelo imperador, foi para Itália, onde
frequentou cursos regulares e foi aluno do diretor do Conservatório de Música, Lauro
Rossi e, em 1870, estreou sua ópera Il Guarany.
Um dos instrumentos do Segundo Reinado para colocar em pauta o projeto
civilizador do Império do Brasil rumo ao progresso foi a literatura que, junto com a
política, buscava construir a nação. O Romantismo constituiu-se em um projeto político
oficial. Segundo Antonio Candido havia uma vontade consciente de definir uma literatura
4 CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 9.
5 Segundo Benedict Anderson, a nação é uma comunidade política imaginada como comunidade, concebida
de acordo com uma estrutura de camaradagem horizontal, por um elo coletivo. Enquanto os Estados podem
moldar a imaginação, conferindo legitimidade ao passado. A condição nacional, que é um produto cultural,
consiste no valor de maior legitimidade na vida política. A partir daí, podemos compreender melhor as
políticas adotadas pelo Segundo Reinado no que tange a criação de uma identidade nacional e a produção de
uma história oficial. Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 29 – 39.
6 CARVALHO, José Murilo de. op. cit. p. 100.
7 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. v.1. 4a ed. São Paulo: Martins
Editora, 1971, p. 303.
8 Ibid. p. 303 – 304.
9 RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004,
pp. 18 – 23.
10 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Letras e Terras, 1998, pp. 265 – 267.
11 Cf. ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
12 CANDIDO, Antonio. op. cit. vol.2. pp. 20 – 21.
Marcos Pupo Nogueira, as duas peças da abertura de Il Guarany são distintas, o prelúdio
utilizado na estreia afigura-se como uma introdução à primeira cena da ópera, pois possui
uma curta duração, mas sem uma conclusão tonal e relaciona-se diretamente com a
primeira cena, sendo que a principal diferença entre a duas peças de abertura relaciona-se à
quantidade de temas que encontramos em cada uma e os tipos de processo que se
relacionam e se desenvolvem. O principal motivo das transformações, entre elas, da
abertura, da partitura de Il Guarany trata-se da caracterização de Peri em sua primeira
aparição na cena do I Ato, mais especificamente, refere-se ao recitativo com que Peri se
apresenta, vinculando seu nome ao heroísmo do povo guarani. Enquanto Peri se apresenta,
a orquestra o acompanha, incorporando-se, assim, num discurso musical da temática
central. Dessa forma, a função da orquestra não é de acompanhante do canto, mas de um
membro fundamental no processo de associação do protagonista ao heroísmo do povo
guarani.13
A característica musical de Peri está ancorada no orgulho e nos padrões éticos
característicos do projeto do Segundo Reinado de valorização da pátria a partir das origens
calcadas na figura do índio.14
Foi a partir do sucesso de Il Guarany que Carlos Gomes tornou-se um porta-voz do
Império brasileiro, igualando o compositor aos artistas europeus de maior destaque como
Verdi, Wagner e Gounod. Com libreto de Antonio Scalvini e Carlo d’Ormeville, estreou no
teatro Scala de Milão, na Itália, sob a regência de Eugenio Terziani, em 19 de março de
1870, projetando Carlos Gomes no cenário internacional.15
Il Guarany se estrutura simbolicamente com a união do índio Peri e da filha do
fidalgo português Ceci, que sobreviveram a algumas peripécias para fundar a nação
brasileira. O herói da trama representava a valorização nacional ancorada na figura do índio
aos moldes do indianismo vigente na época, o mito fundador da nação brasileira, enquanto
o compositor da ópera, Carlos Gomes, tornou-se o corolário de uma política que atuava
nas esferas da cultura e estética a fim de construir a identidade nacional. Criava-se, assim, o
mito gomesiano da figura capaz de reproduzir a essência do ser nacional, o herói indianista,
aos palcos do mundo. Il Guarany representa uma síntese do Brasil, de enredo simples, cujo
13 NOGUEIRA, Marcos Pupo. Muito além do melodrama: os prelúdios e sinfonias das óperas de Carlos Gomes.
São Paulo: Editora UNESP, 2006, pp. 149 – 150.
14 Ibid. p. 152.
15 MAMMÌ, Lorenzo. op. cit. pp. 54 – 55.
romance que dera origem ao libreto foi bastante abreviado, mas sintetizou de modo exímio
a realidade que a política imperial tencionava transmitir.
No mesmo ano da estreia de Il Guarany, Carlos Gomes partiu para o Brasil com seu
irmão José Pedro. O compositor chegou ao Rio de Janeiro na data de 8 de agosto de 1970,
e, alguns dias depois, encaminhou-se para Campinas, onde foi recebido com entusiasmo.
Ao retornar ao Rio de Janeiro, começou a tratar das questões a respeito da apresentação de
Il Guarany na cidade. No Brasil Il Guarany estreou em 2 de dezembro de 1870, data do
aniversário de D. Pedro II, no Theatro Lyrico Fluminense, no Rio de Janeiro. 16
Bibliografia
Marllon Alves
Resumo
1 O tema deste texto é um assunto abordado por mim em minha monografia, intitulada Gênero e Literatura:
uma análise do discurso do romance A Escrava Isaura (2016) e tendo a orientação da professora Marilene Rosa
Nogueira da Silva.
Mestrando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:
marllonalves22@gmail.com.
2 Foi uma sociedade estudantil criada no ano de 1845 por estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco (também conhecida como Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP). Os estudantes se
inspiravam no poeta britânico Lord Byron. O movimento foi fundado pelos então estudantes Aureliano
Lessa, Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 TELLES, Norma. Emancipação pelas letras. Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 98, novembro 2013.
p. 50.
4 CASTRO, Luciana Martins. A contribuição de Nísia Floresta para a educação feminina: pioneirismo no Rio de Janeiro
oitocentista. Revista Outros Tempos – Dossiê História e Educação, v. 7, nº 10, dezembro 2010. p. 238.
5 Ibid., p. 238.
6 Ibid., p. 238.
7 Ibid., p. 238.
8 Ibid., p. 238.
9 Ibid., p. 238.
10 Ibid., p. 238.
11 Ibid., p. 239.
12 Ibid., p. 239.
13 TELLES, Norma. Emancipação pelas letras. Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 98, novembro
2013. p. 50.
14 DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e a educação feminina no século XIX. In: FARIA, Lia; LÔBO,
Yolanda. Vozes Femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008. p. 106.
15 Ibid., p. 106.
16 Ibid., p. 106.
que os escritos de Nísia são veementes, com nítidos propósitos panfletários; ao passo que
outros, mais contidos, mostram o tom afetuoso de mãe para com a filha ou da professora
zelosa com suas alunas17. O Opúsculo Humanitário (1853), que se encaixa no primeiro tipo,
traz a síntese de críticas feitas à educação, as propostas de mudanças e os argumentos
importantes da autora em defesa de seus ideais. No segundo tipo, de tom meigo e
persuasivo, se encaixam os seguintes textos: Conselhos à minha filha (1842), Discurso às
educandas do Colégio Augusto (1847), as novelas Daciz ou a jovem completa (1847) e Fany ou o
modelo das donzelas (1847) e o artigo O abismo sob as flores da civilização (1856). Já em A mulher
(1857), há uma afinidade maior com o tom utilizado no Opúsculo humanitário, de denúncia e
de crítica à educação voltada para o sexo feminino18. Vale destacar que Nísia Floresta pode
ser considerada como uma das primeiras mulheres no Brasil a usar a imprensa para divulgar
os ideais protofeministas1920.
17 Ibid., p. 106.
18 Ibid., p. 106.
19 Ibid., p. 110.
20 Termo usado para se referir a uma tradição anterior ao moderno conceito de feminismo, antes do século
XX.
21 GUIMARÃES, Bernardo. (1875). A Escrava Isaura. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 82.
exportação do Brasil, fazendo com que muitos fazendeiros investissem nos cafezais e
fazendo também com que muitos cafeicultores enriquecessem. Assim, se pode concluir
que A Escrava Isaura22 é um romance que aborda questões que eram amplamente discutidas
no Brasil da segunda metade do século XIX.
Já a história de Fany se passa em Porto Alegre durante a Revolução Farroupilha
(1835-1845). A personagem Fany é uma adolescente, filha mais velha de uma numerosa
prole, cujos pais se unem aos “farrapos”. O pai se torna chefe de um grupo e a mãe torna-
se uma entusiasta das ideias liberais e apoia o marido em suas expedições. Apesar do
envolvimento dos pais, Fany não toma partido, permanecendo a “filha exemplar” e
“adolescente estudiosa”, ocupada exclusivamente em obedecer aos pais e em exercer “as
virtudes” que se desejavam em uma moça. Em meio à revolução, Fany assume o comando
da casa e cuidado com os irmãos menores.
Como já foi percebido através da leitura dos tópicos anteriores deste texto, o
romance A Escrava Isaura é uma obra que trata de assuntos que estavam em evidência no
Brasil da segunda metade do século XIX. Através da descrição da escrava Isaura, é possível
identificar o padrão de beleza que se fazia presente no Brasil deste período. Nas primeiras
páginas do primeiro capítulo de A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães apresenta ao leitor o
período em que a história acontece, bem como o local da mesma. Por fim, o autor
apresenta a escrava Isaura, a protagonista cujo romance analisado leva seu nome. Isaura é
uma moça extremamente bonita, dona de uma beleza capaz de fascinar os olhos de quem a
vê, bem como de interromper o pensamento de quem a observa. Além disso, a beleza de
Isaura dialoga perfeitamente com a sala de recepção onde a moça aparece sentada ao piano.
A fisionomia de Isaura se distinguia do ébano da caixa do piano e, além disso, o cabelo da
22 A Rede Globo de Televisão fez uma adaptação do romance para a televisão, que foi exibido entre outubro
de 1976 e fevereiro de 1977 sob o título Escrava Isaura e contou com a atriz Lucélia Santos no papel principal.
A novela fez um sucesso tão grande que foi reprisada cinco vezes pela emissora e o sucesso do folhetim não
se limitou a nível nacional. Escrava Isaura foi exibida em quase 80 países, como por exemplo: África do Sul,
Bulgária, China, Dinamarca, Gana, Hungria, Israel, Luxemburgo, Madagáscar, Nigéria, Polônia, Quênia,
República Tcheca, Suíça, Turquia e Ucrânia. A Rede Record de Televisão também fez uma adaptação do
romance para a televisão, que foi exibido entre fins de 2004 e início de 2005 com o título A Escrava Isaura. A
telenovela contou com a atriz Bianca Rinaldi no papel principal e o folhetim obteve uma média geral de 15
pontos de audiência, índices considerados satisfatórios para a emissora.
moça era ainda mais escuro que a madeira do piano; e a pele da moça é tão branca quanto
o marfim do teclado23.
Bernardo Guimarães descreve também os cabelos de sua protagonista, sendo os
mesmos negros e extremamente ondulados; e no momento em que Isaura tocava piano, os
cabelos da jovem quase escondiam completamente as costas da cadeira onde estava
sentada24. Os longos cabelos das mulheres são um sinal máximo de feminilidade, um
instrumento de sedução que sempre causa problema, como sugerem a longa história do véu
e suas repercussões na atualidade. Vale mais escondê-los do que mostrá-los. As mulheres
que vivem no campo usam uma touca simples e as que vivem na cidade usam um boné, se
livrando dele muitas vezes. As mulheres burguesas usam um chapéu, se sentindo nuas na
ausência deles. As mulheres das classes populares não tinham acesso aos chapéus usados
pelas mulheres da burguesia. É por isso que a filiação de classe redobrará a conotação
sexual25. Os cabelos das mulheres são muitas vezes escondidos em público ou então presos
em tranças, apertados em coques e soltos somente na intimidade. Objeto identitário
feminino, os cabelos das mulheres são a obsessão de certos pintores. O artista Henri de
Toulose-Lautrec (1864-1904) pintou o quadro intitulado Femme se coiffant. A obra se
encontra no Museu de Orsay, em Paris. Os longos cabelos das mulheres são armas de sua
sedução e beleza, como também a sua grande preocupação. Se modernizar e se emancipar
significará frequentemente cortá-los de modo bem curto, prática corriqueira no início do
século XX26.
É preciso destacar que no século XIX irá retornar com um novo vigor o discurso
naturalista apoiado nas descobertas da medicina e da biologia; e que defende a existência de
duas “espécies” com qualidades e vocações peculiares. Os homens usam o cérebro, a razão
com lucidez e a capacidade de decisão. Já as mulheres têm suas ações baseadas no coração,
na sensibilidade e nos sentimentos27. É neste contexto que Hegel fala da “vocação natural”
do sexo masculino e do sexo feminino. O homem tem a sua vida no Estado, na ciência ou
em qualquer outra atividade semelhante28. Já a mulher é feita para a piedade e o interior.
Assim sendo, se uma mulher fica à frente de um governo, o Estado se encontra em risco.
23 GUIMARÃES, Bernardo. (1875). A Escrava Isaura. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 12.
24 Ibid., p. 12.
25 PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Fundação Editora da
Isso porque as mulheres não agem conforme as exigências do coletivo, mas sim segundo os
caprichos de seus pensamentos e inclinação29. Augusto Comte vai além: defende a
“inaptidão radical do sexo feminino para o governo, mesmo da simples família”, por conta
da “espécie de estado infantil contínuo”, uma característica do sexo feminino. O século
XIX acentua a lógica harmoniosa desta divisão sexual. Cada sexo tem a sua função, os seus
papéis, as suas tarefas, os seus espaços e os seus lugares quase predeterminados, até mesmo
em seus detalhes30.
Fany ou o modelo das donzelas deve ser considerada uma novela de cunho didático-
moralista porque é nítida a intensão da autora (que no caso é Nísia Floresta) em fazer com
que a novela em questão sirva de leitura para a juventude feminina em geral e, em
particular, para a juventude do Colégio Augusto. A novela em questão provavelmente deve
ter sido em seu tempo o que hoje se denomina “leitura para didática”, ou seja: uma leitura
indicada para ser realizada como um trabalho escolar. Por muito tempo esta modalidade
literária esteve vinculada à pedagogia, pois tinha o claro propósito de contribuir na
“formação” dos educandos por meio da estereotipia dos “bons exemplos morais” que se
queriam transmitir à juventude31.
A história de Fany, como já dita em tópico anterior, se passa em Porto Alegre
durante o episódio histórico da Revolução Farroupilha (1835-1845), acontecimento em
parte vivenciado por Nísia Floresta, que residia na cidade por causa do início dos conflitos
entre os revoltosos e o Exército Imperial. A personagem Fany é uma adolescente, filha
mais velha de uma numerosa prole, cujos pais se engajam ao lado dos “farrapos”. O pai se
torna chefe de um grupo e a mãe torna-se uma entusiasta das ideias liberais que apoia
incondicionalmente o marido em suas expedições. Apesar do envolvimento dos pais, Fany
não toma partido e permanece a “filha exemplar” e “adolescente estudiosa”, ocupada
exclusivamente em obedecer aos pais e em exercer “as virtudes” que se desejavam em uma
moça. Em meio à revolução, Fany assume o comando da casa e o cuidado com os irmãos
menores32. Longe de ser prenunciada, desejada ou justificada, a revolta chega de repente,
rompendo a harmonia do lugar e da vida das pessoas que ali habitavam. Segundo a
29 Ibid., p. 178.
30 Ibid., p. 178.
31 DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e a educação feminina no século XIX. In: FARIA, Lia; LÔBO,
Yolanda. Vozes Femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008. p. 121.
32 Ibid., p. 122.
narradora, a capital de São Pedro do Sul era um “paraíso” até então com águas cristalinas,
fartura de alimentos, “férteis Campinas” e “prodigiosas flores”33.
Se o pai é repreendido por seguir impulsos patrióticos e por ter se engajado nas
fileiras farroupilhas, a mulher, mais ainda, vai merecer a censura por parte da narradora. A
adesão à política significava simplesmente o esquecimento das “virtudes pacíficas de seu
sexo” e o abandono das funções domésticas. A caracterização da mãe de Fany contém
alguns elementos que marcavam o comportamento das “farrapas”, mulheres guerreiras que
teriam fundado um “partido político feminino” a fim de melhor participarem da revolução.
Segundo o texto, a mãe de Fany segue “a torrente tempestuosa do entusiasmo”, é
“deslumbrada” com os ideais então defendidos, está sempre apoiando os atos do marido e
chega a ir para o campo de batalha com os filhos, pois “delirante, quer ver” o que ali
acontecia. Em um momento de exaltação exclama, “como uma antiga espartana”: “Vai, eu
cuidarei em tua ausência de nossos filhos; repele os inimigos de nossa pátria, e não voltes se
não voltas vitorioso!”34. Fany é a única personagem nomeada e se caracteriza por manter o
mesmo comportamento e as mesmas “virtudes” em quase todo o texto,
independentemente da situação em que se encontra. Fany é descrita aos 13 anos de idade
como uma filha exemplar, jovem modesta, elegante, obediente e laboriosa; aos 15 anos, em
plena revolução, tem a oportunidade de desenvolver “grandemente todas as virtudes de seu
sexo”, animando a mãe, cuidando dos irmãos e dos feridos; e oito anos depois (quando
Fany teria por volta de 20 anos) ela aparece realizando exatamente o que havia sido
antecipado pela narradora, isto é: cuidando da casa, da educação dos irmãos mais novos e
zelando pela mãe viúva, em uma dedicação sempre completa e espontânea. É possível
concluir que Fany é uma personagem tão estereotipada que não muda com o passar dos
anos, se mantendo praticamente a mesma do início ao fim da história35.
A eclosão da Revolução Farroupilha em sua província e mesmo dentro do próprio
lar não foi o bastante para alterar a rotina das obrigações de Fany. Ao insistir na
neutralidade e indiferença de Fany com relação a tudo que acontece à sua volta, a narradora
parece estar precisamente firmando aí sua opinião de como deveria ser o comportamento
ideal de uma moça. A ênfase na exaltação de tais qualidades termina por revelar o que
realmente importava: dar às “virtudes femininas” um estatuto maior do que qualquer outra
questão enunciada. Para compreendê-la (e também justificá-la), basta lembrar novamente
das meninas que estudavam no Colégio Augusto, as leitoras privilegiadas desse texto. O
objetivo era dar a estas jovens um modelo de comportamento que resumisse as virtudes
desejadas em uma mulher. Por isso, os exemplos de abnegação total à família, de
obediência incondicional, de amoroso respeito aos pais e de cuidados maternos para com
os irmãos mais novos. A negação da própria individualidade em nome do bem-estar do
outro parecia se apoiar na expectativa da autora de educação moral e de comportamento
para a mulher36.
Conclusão
Vinte e oito anos separam a novela Fany ou o modelo das donzelas (1847) e o romance
A Escrava Isaura (1875). Entretanto, apesar desta distância temporal, é possível identificar
características psicológicas entre Fany e Isaura. Fany se mantém indiferente à Revolução
Farroupilha (1835-1845) e a instabilidade traga por esta, exercendo as “virtudes do belo
sexo” como se nada estivesse acontecendo. Por sua vez, Isaura não manifesta sua opinião
com relação ao abolicionismo e a república como substituta da monarquia então vigente.
Ao longo de todo o romance, Isaura é uma moça bela e gentil que, assim como Fany,
possuía as “virtudes do belo sexo”. Ao contrário de Nísia Floresta, Bernardo Guimarães
não tinha a intenção de difundir um modelo de “mulher ideal”, embora sua protagonista
tenha tais características. Esta atitude mostra que o modelo de “moça ideal” analisada neste
texto se fazia presente no Brasil do século XIX, fazendo com que muitos reproduzissem tal
perfil, querendo ou não.
Bibliografia
Fonte
GUIMARÃES, Bernardo. (1875). A Escrava Isaura. Porto Alegre: L&PM, 2011. 176p.
Artigos
CASTRO, Luciana Martins. A contribuição de Nísia Floresta para a educação feminina: pioneirismo
no Rio de Janeiro oitocentista. Revista Outros Tempos – Dossiê História e Educação, v. 7, nº
10, p. 237-256, dezembro 2010;
TELLES, Norma. Emancipação pelas letras. Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 98,
p. 48-51, novembro 2013;
36 Ibid., p. 127.
Livros
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª ed. São Paulo:
Editora UNESP, 2010. 524p.;
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e a educação feminina no século XIX. In: FARIA,
Lia; LÔBO, Yolanda. Vozes Femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet:
FAPERJ, 2008, p. 105-144;
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998. – (Prismas). 159p.;
________________. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de
Denise Bottmann. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 332p.;
Introdução
da mulher em comer a língua do boi, Pai Francisco mata o boi mais querido da fazenda criando um conflito
com o fazendeiro, que é branco. Na resolução do conflito aparecem os indígenas, que que capturam Pai
Francisco nas matas, além do pajé, responsável por curar o novilho e ressuscitá-lo. A festa se estende para os
dias atuais sendo uma das maiores festas populares no Maranhão. MARTINS, Carolina C. de Souza. São Luís,
cidade negra; cultura popular e Pós-abolição no Maranhão. In: XXIX SIMPÓSIO DE HISTÓRIA
NACIONAL CONTRA OS PRECONCEITOS: HISTÓRIA E DEMOCRACIA. Anais [...]. Brasília:
Universidade de Brasília. 2017, p. 1-11, p. 9.
3 ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. De caboclos a bem-te-vis: formação do campesinato numa sociedade escravista -
intelectuais do XIX, que se colocaram como expositores da historiografia local, valorizando-a. Portanto, o
enaltecimento se pautaria em uma idealização do passado forjada pelos próprios escritores e literatos do
período. Ver mais em: MARTINS, R. A. F. Atenienses e Fluminenses: a invenção do cânone nacional. 2009 Tese
(Doutorado em História)
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Essa complexidade permeava a sociedade como um todo, visto que mais da metade
da população era negra. Sobre isso, Abrantes nos fala que São Luís era uma cidade “onde a
maioria da sua população era negra ou mestiça devido à forte presença de escravos
africanos e seus descendentes, com uma ordem fundada na exploração e na desigualdade
social”5.
Nos anos iniciais do século XIX, a camada escrava correspondia a 53% da
população do Maranhão6 e nos anos finais, o censo de 1872 indicava que o número de
pardos que chegava 71.662 homens, 72.699 mulheres pardas, 12.780 pretas, e os números de
escravos chegavam há
25.210 escravos pretos e 11.679 pardos7. Assim, a sociedade maranhense como um
todo se constituía a partir das estratificações sociais baseadas na multiplicidade de pessoas
libertas, cafuzas, mulatas.
Nessa sociedade marcada, sobretudo pela população escrava, Maria Firmina dos
Reis, poetisa e escritora negra oitocentista, conviveu com as estratificações sociais do
período e participou tanto da valorização da literatura local quanto das festividades negras,
compondo autos de bumba-meu-boi. Dessa maneira, ao escrever autos de bumba-meu-boi,
a autora maranhense participou e compartilhou das experiências negras desta festa.
Nesse sentido, objetivaremos dimensionar, tendo como fio condutor os autos
produzidos por Maria Firmina dos Reis, as complexidades que giravam entorno deste
evento na província maranhense do oitocentos, bem como entender a participação de Maria
Firmina dos Reis nessas manifestações negras.
A festa do “boi” sob a escrita de Maria Firmina dos Reis: Um diálogo possível
Maria Firmina dos Reis nasceu no dia 11 de março de 1822 em São Luís no
Maranhão, filha de Leonor Fellipa dos Reis, mulata forra8. Aos cinco anos de idade mudou-
se para Villa de Guimarães onde permaneceria até sua morte em 11 de novembro de 1917
aos 95 anos. Ela foi ainda, professora pública de primeiras letras até 1881, poetisa e
feita por mulheres no Maranhão. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza,
2009, p. 13.
12 COSTA, Yuri Michael Pereira. Sociedade e escravidão no Maranhão do século XIX. Revista Brasileira de
História & Ciências Sociais – RBHCS. v. 10, n. 20, 2018, p. 241-262. p. 255.
13 MORAIS FILHO, José Nascimento. Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida. São Luís: Governo do
CUNHA, Maria Clementina P (orgs). Carnavais e outras F(r)estas. Ensaios de História social da cultura. Campinas:
UNICAMP, 2002, p.102.
periódicos, em uma carta enviada para um jornal no final dos anos 1820, que continha uma
descrição na qual o bumba- meu-boi era pintado como uma perigosa assembleia “indígena”
noturna, “tendo tanto um caráter marcial em que as pessoas estavam “armadas com
instrumentos de fogo” quanto um caráter festivo e alegre, e estava explicitamente associada
com a ameaça de ‘revolução’”20.
A elite maranhense se sentia incomodada com os batuques. O desconforto foi tão
grande que teve como consequência uma regulamentação na realização dos batuques, no
qual o bumba estava incluído, ocasionando a proibição destes dentro da cidade após o
toque de recolher21.
De acordo com Carolina Martins, era expressiva a quantidade de notícias nos
jornais da época em que apareceu o bumba-meu-boi incomodando as pessoas,
principalmente as que viviam no centro da cidade22. No Diário do Maranhão, por exemplo,
podemos ler:
O bumba, este brinquedo pouco civilizado que se cifra numa gritaria
infernal tem nessas noites feito o tormento do ouvido dos moradores
de certos bairros, durando a brincadeira até de madrugada para
recomeçar na noite seguinte23.
Sobre isso, Thompson aponta que a cultura popular costumeira, alimentada por
experiências distintas daquelas da cultura de elite, era transmitida por tradições orais que
vinham sendo reproduzidas24. Assim, entendemos a festa do “boi” como pertencente à
uma cultura popular maranhense, que ocasionava episódios de tensões entre a população
mais pobre e negra da elite.
Mediante tudo isso, enfatizamos que a escritora e poetisa maranhense Maria
Firmina dos Reis também participou das manifestações advindas da festa do “boi” em
um momento em que a tensão entre a população negra se exacerbava. Assim, ao
participar de tais manifestações, a autora maranhense validava sua posição social de
reafirmação negra.
20 ASSUNÇÃO, Matthia Rohrig. Cultura popular e sociedade regional no maranhão do século XIX. Revista
de Políticas Públicas, v. 3, n. 1, 1999, p.1-25. Disponível em:
<http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3672/1670>. Acesso
em: 31 de outubro de 2019, p. 18 e 19.
21 MARTINS, Carolina C. de Souza. Op, cit., p. 6.
22 Ibdem, p. 3.
23 Diário do Maranhão. São Luís, nº867. 27 de junho de 1876.
24 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: romance; A Escrava: conto. 6.ed. Prefácio Eduardo de Assis Duarte. Belo
25
Considerações finais
Bibliografia
Fontes
APEM. Autos de justificação de nascimento de Maria Firmina dos Reis. Fundo da
Arquidiocese do Maranhão, caixa nº114, documento n º4171, 1847.
Diário do Maranhão. São Luís, nº867. 27 de junho de 1876.
MORAIS FILHO, José Nascimento. Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida. São
Luís: Governo do estado do Maranhão, 1975.
Bibliografia:
ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação do “bello sexo” em São Luís na segunda
metade do século XIX. São Luís, ed UEMA. 2013.
ASSUNÇÃO, Matthia Rohrig. Cultura popular e sociedade regional no maranhão do
século XIX. Revista de Políticas Públicas, v. 3, n. 1, 1999, p.1–25. Disponível em:
<http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3672/16
0>. Acesso em: 31 de outubro de 2019.
ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. De caboclos a bem-te-vis: formação do campesinato numa
sociedade escravista - MA, 1800-1850. SP: Annablume, 2015.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo explorar a defesa da Igreja Católica e de suas ações
presente nas duas séries de artigos intituladas “Ganganelli Desmascarado ou Os vendilhões
do templo”, escritos por um autor identificado como R. e publicados ao longo do ano de
1874 no periódico “O Apóstolo” e também como livro pela tipografia do mesmo jornal. A
referência à Ganganelli diz respeito ao pseudônimo utilizado por Joaquim Saldanha
Marinho, notório republicano e escritor, que durante a Questão Religiosa publica vários
artigos entre 1872 e 1875. Procuramos aqui estabelecer quais foram as respostas dadas por
“R.” às questões postas por Marinho, bem como situar seu trabalho no contexto dos
conflitos entre a Igreja e o Estado Imperial.
Introdução
Em outra frente, Roque Spencer nos indica que o movimento reformador da segunda
metade do século XIX era “um esforço reformador do liberalismo clássico e do cientificismo,
propondo-se a aproximar o país nominal do real e ambos da humanidade”7. A preocupação
era também colocar o país em um rumo que se considerava civilizatório, adotando a Europa
como um modelo para tal civilização. Dessa forma, tanto Barros como Alonso ressaltam a
importância de valores e leituras estrangeiras para a formação intelectual dos contestadores,
ainda que não tenha sido uma simples absorção de ideias, e sim uma adequação de questões
que diziam respeito também ao Brasil e sua posição no mundo “civilizado” ocidental.
No mesmo período, entretanto, toma corpo o movimento reacionário católico
conhecido como ultramontanismo. Gestado durante o pontificado de Pio IX, esse
movimento ganha expressão também durante as décadas de 1860 e 1870, primeiro com a
publicação da encíclica Quanta Cura e do Syllabus Errorum, e depois durante o primeiro
Concílio do Vaticano em 1870 com a aprovação do dogma da infalibilidade papal. O
movimento é antirrevolucionário e condena o liberalismo, o ateísmo, o indiferentismo como
os erros modernos. No que diz respeito ao Brasil, Tatiana Costa Coelho coloca que “a
participação dos bispos brasileiros no Concílio Vaticano I se tornou vital para a disseminação
4 BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a ideia de universidade. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1959.
5 ALONSO, Op. Cit., p. 100
6 Idem, p. 177
7 BARROS, Op. Cit., p. 191
8 COELHO, Tatiana Costa. Discursos ultramontanos no Brasil do século XIX: os bispados de Minas Gerais, São Paulo e
Rio de Janeiro. 2016. 286f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2016, p. 66.
9 O Apóstolo, 7 de Janeiro de 1866, p. 1
10 Ibidem, p. 2
11 Joaquim Saldanha Marinho nasceu em Olinda, em 1816. Formado pela Faculdade de Direito do Recife,
atuou como jornalista e foi presidente das províncias de Minas Gerais (1865-67) e São Paulo (1867-68) e
deputado geral em cinco legislaturas entre 1848 e 1881. Também foi Grão-Mestre da Maçonaria no Grande
Oriente do Brasil, Vale dos Beneditinos e signatário do Manifesto Republicano. Após o Império, foi senador
da República pelo Distrito Federal entre 1891 e 1895, quando vem a falecer, em 27 de Maio, aos 79 anos.
12 Até o presente momento da pesquisa, não encontramos evidências de quem poderia ser o autor “R.”
13 BARROS, Raphael Garcia Pinto. Anticlericalismo e Questão Religiosa nos escritos de Joaquim Saldanha Marinho
(1872-1875). 62f. Monografia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 2019, p. 50-51.
Conclusão
Após essa exposição, podemos concluir que as disputas travadas no século XIX na
imprensa sobre o conflito entre Igreja e Estado assumem um papel importante na
identificação das oposições do catolicismo reacionário brasileiro em relação à Geração de
1870 e seus valores de contestação do status quo imperial. Entretanto, não devemos
entender o ultramontanismo como uma defesa desse mesmo status quo, sendo também o
governo acusado de não proteger a Igreja e suas prerrogativas. A disputa continua na arena
dos impressos e com o uso de uma retórica que chega por vezes a ser carregada de figuras
de linguagem, ironias e mesmo palavras mais pesadas em relação aos opositores em
debate.
Bibliografia
ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração 1870 e a crise do Brasil-Império. São Paulo:
ANPOCS, 2002.
BARROS, Raphael Garcia Pinto. Anticlericalismo e Questão Religiosa nos escritos de Joaquim
Saldanha Marinho (1872-1875). 62f. Monografia – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2019.
BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a ideia de universidade. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1959.
CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de
leitura”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 1, n.1, Jan./Dec. 2000, p. 123-152.
COELHO, Tatiana Costa. Discursos ultramontanos no Brasil do século XIX: os bispados de Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. 2016. 285f. Tese (Doutorado em História) - Departamento
de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1764.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2020.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A modernidade republicana”. Tempo, Niterói, v. 13, n.
26, 2009, p. 15-31. Disponível em <
https://www.redalyc.org/pdf/1670/167013400002.pdf> . Acesso em: 01 dez. 2020.
O Apóstolo: periódico religioso, moral e doutrinário, consagrado aos interesses da religião e da sociedade
(RJ) – 1866-1901. Disponível em
<http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=343951&pagfis=1>
Acesso em: 01 dez. 2020.
Resumo
1 Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Essa
pesquisa foi feita com apoio da CAPES. E-mail: Thomazsantos2@gmail.com
2 CONRAD, R. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília:
1865), que refletiu no Brasil, sendo de extrema relevância para suscitar a questão do regime
escravista e colocá-lo em debate.
As pressões quanto à emancipação aumentavam4, de modo que D. Pedro II já
demonstrava intenção de colocar em discussão a questão da escravidão. Em 14 de janeiro
de 1864, em suas recomendações para o então novo ministro Zacarias de Góis e
Vasconcellos, o imperador escreveu:
Os sucessos da União Americana exigem que pensemos no futuro da
escravidão no Brasil, para que não nos suceda o mesmo que a respeito
do tráfico de africanos. A medida que me tem parecido profícua é a da
liberdade dos filhos dos escravos, que nascerem daqui a um certo
número de anos. Tenho refletido sobre o modo de executar a medida;
porém é da ordem das que cumpre realizar com firmeza, remediando os
males que ela necessariamente originará, conforme as circunstancias
permitem. Recomendo diversos despachos do nosso ministro em
Washington, onde se fazem mais avisadas considerações sobre este
assunto.5
4 Ibid., p. 93.
5 BARMAN, Roderick. Imperador Cidadão. São Paulo: Editora da UNESP, 2011, p. 284, apud: MARQUESE,
Rafael de Bivar. A guerra civil dos Estados Unidos e a crise da escravidão no Brasil. Afro-Ásia, 51, 2015, p.
37-71.
6NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Nabuco de Araujo: sua vida, suas opiniões, sua época. Rio de
afirmação: “Os filhos de mulher escrava, que nascerem depois da publicação desta lei,
serão considerados de condição livre”8.
Essa discussão que ocorreu no Conselho de Estado foi bastante extensa e durou
duas sessões (2 e 6 de abril de 1867). Ao fim dela, o imperador nomeou uma comissão para
estudo das propostas apresentadas e a produção de um outro projeto a partir do debate
ocorrido naquela casa. O presidente da comissão e responsável pelo projeto era Nabuco de
Araújo, e foi ele quem apresentou e defendeu o projeto no ano de 1868 naquela mesma
instituição.
Com o fim das discussões no Conselho de Estado em 1868, ela entraria em um
limbo até o ano de 1870, quando ela voltaria com bastante força na Câmara dos Deputados
e se desenrolaria até sua aprovação no Senado, em 1871. O processo de gestação, os
projetos de lei e os atores envolvidos no debate foram extremamente importantes para
levantar questões caras à sociedade brasileira, que moldaram o que entendemos hoje
enquanto Lei do Ventre Livre.9
A questão da Ingenuidade
Um tema que, sem dúvida, chamou atenção dos estadistas durante o processo de
gestação da lei foi como seriam considerados os frutos da Lei: livres, libertos, livres e
ingênuos ou libertos e ingênuos? Essa questão havia surgido na primeira sessão de
discussão no Conselho de Estado, trazida pelo conselheiro Jequitinhonha, que afirmava:
“Decretando-se a liberdade dos recém-nascidos, convém definir francamente o estado civil
destes: em sua opinião serão libertos e não ingênuos. Se nascem de mãe escrava, como não
serão considerados libertos? Mas a Lei deve ser explícita a esse respeito”10.
O conselheiro Olinda, também na primeira sessão, disse que “antes de tudo
observarei que a expressão – condição livre – merece dois sentidos: o de ingênuo, o de
8 ARAUJO, J. T. N. de; BUENO, J. A. P; et al. Trabalho sobre a extinção da escravatura do Brasil. Rio de Janeiro:
Typ. Nacional, 1868, 152p. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/185616>.
Acessado em: 28/01/2017. Grafia atualizada para melhor entendimento do leitor.
9 Para saber mais sobre o processo de gestação da lei cf: LEITE. Thomaz Santos. COM A LETRA DA LEI
liberto. Eu estou que o projeto não quis consagrar o primeiro. Mas é necessário, quando se
haja de fazer alguma coisa a este respeito, fugir de expressões dúbias”11.
Semanticamente, ingênuo tinha, segundo o dicionário de língua portuguesa de
Antonio Moraes Silva12, o seguinte significado: “Entre os latinos, dizia-se do filho de pai
livre ou cidadão Romano. § fig. Sincero, singelo, sem dobrez, não refolhado”13. Segundo
Patricia Geremias:
Alguns autores trazem definições diferentes para este termo. Mary Del
Priore, definiu “ingênuo” como sendo “o termo que designava crianças
de até 5 anos”. Já Osvaldo Rodrigues Cabral, historiador catarinense,
definiu “ingênuo” como sendo o “nome dado aos escravos analfabetos.”
Tais definições não foram encontradas em nenhum outro trabalho. Com
exceção destes dois autores, todos os outros trabalhos pesquisados
utilizaram a expressão “ingênuo” como sendo a condição do filho da
escrava nascido livre pela Lei 2040.14
Na discussão política era um pouco diferente. Ingênuo era uma categoria jurídica
que já existia desde a Constituição de 1824 e dizia respeito àqueles que eram considerados
cidadãos brasileiros. O que os conselheiros estavam questionando era a condição civil dos
que se beneficiariam com a lei. Eles seriam livres, como se não tivessem sido escravos, e
teriam direitos civis, ou seriam libertos, ou seja, cativos que ganharam a liberdade,
tornando-se, portanto, incapazes de assumir esses direitos? O tema voltou na segunda
sessão, a partir da fala de Paranhos, que dedicou boa parte de sua locução para pensar essa
questão. Segundo ele, não condicionar esses libertos enquanto ingênuos, como o projeto
apresentado fazia, era inconstitucional. Em suas palavras:
Se eles são livres, segundo a lei, desde o seu nascimento, como podem
ficar na condição de libertos, isto é, na condição daqueles que foram
escravos antes de serem livres? A Lei não restitui a liberdade aos
indivíduos a quem vai beneficiar, estabelece o princípio de que, da sua
data em diante, ninguém nascerá escravo no território brasileiro.15
11 Ibid., p. 101.
12 SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa: 7. ed. melhorada e muito acrescentada. Lisboa
(Portugal): Typ. de Joaquim Germano de Souza Neves, 1877-1878.
13 Ata de 2 de abril de 1867. In: José Honório Rodrigues (Orgs.). Op. Cit., p. 170.
14 GEREMIAS, Patrícia Ramos. Ser “ingênuo” em Desterro/SC: A Lei de 1871, o vínculo tutelar e a luta pela
manutenção dos laços familiares das populações de origem africana (1871-1889). Dissertação (Mestrado em
História) Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Niterói: RJ, 2005, p. 13.
15 Ata de 9 de abril de 1867. In: José Honório Rodrigues (Orgs.). Op. Cit., p. 119.
16 Ata de 9 de abril de 1867. In: José Honório Rodrigues (Orgs.). Op. Cit., p. 128.
17 Ibid., p. 127.
18 BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm
19 Idem.
20 Idem.
caso, logo que a Lei previa que eles nasceriam já livres. Nem poderiam ser considerados
plenamente livres, afinal, eles haviam nascido do ventre de uma escravizada, e, segundo a
máxima romana Partus Sequitur Ventrem, o filho seguia a condição da mãe. Além disso,
enquanto livres, eles possuiriam os direitos concedidos aos cidadãos. Por esses motivos, os
conselheiros optaram por livres e ingênuos, mas, ainda assim, enfrentavam certos dilemas.
Após as modificações de Nabuco no projeto de Ventre Livre, ele voltou a ser
discussão no Conselho de Estado em 1868. Seu primeiro artigo dizia que os filhos de
ventre livre seriam considerados de condição livre e havidos por ingênuos. Por conta
disso, as discussões acerca da condição civil também voltariam àquela casa.
De um lado, Muritiba e Olinda, em princípio, eram contrários à reforma do estado
servil e acreditavam que os libertos deveriam ser caracterizados como ingênuos, para não
serem cidadãos com direitos; de outro, Jequitinhonha, que acreditava que os libertos não
deveriam ser considerados ingênuos, pelo motivo expressamente contrário.
Nabuco optou por deixar a caracterização de ingênuo no projeto, mas explicou suas
motivações junto à comissão. Segundo o conselheiro:
Que a condição de ingênuos é a mais própria e a que compete aos que
vão nascer livres por virtude desta lei. Quem nasce livre é ingênuo –
Naissant libre, il nait ingenu – díz Demongeat. Ingenus est is que statim ut notus
est liber est. – Justin. Inst de ingenus. Não pode ser liberto aquele que nunca
foi escravo. Liberto sunt qui ex justa servitate manumisse o unt. Garo. Coment.
1 § 11. Inst. p. de libertinis. O argumento de que o filho segue a
condição da mãe prova demais, porque prova que a nossa Lei não pode
fazer que nasçam livres os filhos das escravas, os quais devem ser
escravos como elas. Isto é inadmissível. Pois bem, a Lei pode declarar
que nascem livres os filhos das escravas, consequência é que eles são
ingênuos, ainda que a Lei não diga expressamente que eles são ingênuos,
porque são ingênuos os que nascem livres, e libertos os que forem
escravos. A Lei pode derrogar a regra, segundo a qual o filho nascendo
segue a condição da mãe21.
21 Ata de 16 de abril de 1868. In: José Honório Rodrigues (org.). Op. Cit. p. 237.
22 Ata de 23 de abril de 1868. In: José Honório Rodrigues (org.). Op. Cit. p. 237, grifo nosso.
23 MAFRA, Manoel da Silva. Prontuário das Leis de manumissão: índice alfabético das disposições da Lei nº. 2040
de 28 de setembro de 1871, regulamentos n. 4835 de 1º de desembro de 1871, nº. 4960 de 8 de março de
1872, nº. 6341 de 20 de setembro de1876, avisos do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e
da jurisprudência do Conselho de Estado, Tribunais da Relação e Supremo Tribunal de Justiça. Rio de
Janeiro: Tipografia Nacional, 1877, pp. 111 – 113.
24 Ibid., p. 112.
tanto os que não foram matriculados no prazo estipulado e os que, em suas matrículas, não
continham as informações necessárias, também seriam considerados “livres por Lei”. Sem
dúvida, essa foi uma nova categoria jurídica que procurava regulamentar a condição dessas
pessoas. Como mostramos acima, aparentemente, elas eram caracterizadas enquanto
“absolutamente livres”, porém, uma categoria que ligava sua liberdade a uma lei precisou
ser criada. Sem dúvida, esse se torna um tema que merece pesquisas mais aprofundadas
para entender como surgiu e como foi utilizado judicialmente.
Considerações Finais
Fontes
ARAUJO, José Thomaz Nabuco de; BUENO, José Antonio Pimenta; et al. Trabalho sobre a
extinção da escravatura do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1868, 152p. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/185616>. Acessado em: 28/01/2017 às
20:53
BRASIL. Coleção de Leis do Império do Brasil de 1871. Tomo XXXIV, parte II. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional. 1872
BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm
BRASIL. Pareceres do conselho de estado sobre o elemento servil no ano de 1868. Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1871
RODRIGUES, José H. (org.). Atas do Conselho de Estado. Brasília: Senado Federal, 1973-
1978. 13v.
MAFRA, Manoel da Silva. Prontuário das Leis de manumissão: índice alfabético das disposições
da Lei nº. 2040 de 28 de setembro de 1871, regulamentos n. 4835 de 1º de desembro de
1871, nº. 4960 de 8 de março de 1872, nº. 6341 de 20 de setembro de1876, avisos do
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e da jurisprudência do Conselho de
Estado, Tribunais da Relação e Supremo Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1877.
SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa: 7. ed. melhorada e muito
acrescentada. Lisboa (Portugal): Typ. de Joaquim Germano de Souza Neves, 1877-1878.
Bibliografia
BIOGRAFIAS, TRAJETÓRIAS E
PROSOPOGRAFIAS
“Nasci a 10 de agosto desse ano...”: narrativa autobiográfica e
construção de memória em Gonçalves Dias
Resumo
O presente trabalho analisa a nota autobiográfica escrita pelo poeta maranhense Antonio
Gonçalves Dias em 1854, entendendo que este documento registra parte da construção
narrativa da memória que o poeta criou de si mesmo como um dos grandes nomes de
nossa literatura nacional. Memória e representação esta que foi, mais tarde, consolidada por
seus críticos e biógrafos. Estas reflexões fazem parte das pesquisas do projeto de
doutorado “A fabricação do imortal”: uma biografia intelectual de Gonçalves Dias, que desenvolvo
atualmente junto ao PPGH-UERJ.
Philippe Lejeune em seu Pacto Autobiográfico nos lembra que para um autobiógrafo é
muito natural se perguntar “Quem sou eu?”, mas que para o leitor de uma autobiografia
não é menos natural se perguntar quem diz “Quem sou eu?”2. Ao dizer isso, o que o autor
nos propõe pensar é sobre as diferenças existentes entre aquele que diz que nasceu em tal
dia – o autobiógrafo – e o bebê nascido naquele passado distante – o eu biografado – e nas
muitas identidades que pode haver entre esses dois.
Ao analisarmos a nota autobiográfica escrita por Gonçalves Dias, somos levados a
pensar em quem escrevia aquela nota, isto é, que Gonçalves Dias lembrava sua vida ao
narrar-se para o outro, afinal, como nos lembra Paul Eakin, uma narrativa, sobretudo uma
narrativa autobiográfica, não é meramente algo que contamos, “ela é parte essencial de
nossa percepção sobre aquilo que somos”3.
4 DIAS, Gonçalves apud MORAES, Jomar. Gonçalves Dias: vida e obra. São Luís: Alumar, 1998, p. 153.
5 ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografia. Exploraciones en los limites. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Economica, 2013, p. 31.
6 Temos em mente aqui, principalmente, os trabalhos de Lucia Miguel Pereira (1943), Antonio Henriques Leal
condição de mestiço tenha pesado – positivamente, devemos dizer – para sua identificação
como ícone da nacionalidade brasileira, afinal, o poeta que vai ser exaltado como grande
poeta nacional, o autor da Canção do exílio, era o filho das três raças, e nesse sentido
sintetizava em sua vida a constituição do brasileiro que havia sido apontada como o traço
definidor de nossa identidade particular.
Seja como for, ao estabelecer uma relação entre o seu nascimento e o nascimento
da pátria, o poeta firmou para si um pertencimento e uma vinculação particular com seu
país, numa imagem que ajudou a perpetuar o seu nome junto à memória nacional. Como
aponta Marcia de Almeida Gonçalves, ao estabelecer esta relação, Gonçalves Dias, mais do
que um pertencimento, firmava também o compromisso de representar por meio de sua
vida particular – e aqui entendemos também por meio de sua obra – a comunidade
imaginada, sentida e significada como nação14.
De alguma maneira podemos dizer então que Gonçalves Dias decidira proclamar-se
como brasileiro desde o nascimento, identificando-se ao Brasil cuja imagem ajudava a
divulgar e (re)construir, num exercício onde o presente e o futuro pesavam decisivamente
sobre a memória do passado. Ele era brasileiro desde o nascimento, mesmo que ser brasileiro
naquele momento ainda fosse algo em construção.
Operações complexas, a reconstrução de um passado e a conseqüente construção
de sua memória, demonstram alguns dos objetivos não diretamente anunciados e
reveladores desses movimentos. Movimentos que, no caso das narrativas pessoais, buscam
tornar estável, verossímil e previsível os projetos que norteiam ou nortearam a vida daquele
indivíduo. Nesse sentido, Paul Eakin nos lembra, que para o neurologista Oliver Sacks,
“cada pessoa constrói e vive uma ‘narrativa’ e que a narrativa é a pessoa, sua identidade”15,
isto é, a narrativa construída é, na verdade, a maneira como a pessoa se identifica. Nesse
caso poderíamos dizer que Gonçalves Dias seria o brasileiro nascido junto com o Brasil.
Sabendo que a nota foi escrita em 1854, como nos informa o biógrafo Jomar
Moraes16, ficamos sabendo que quem pontuava que nascera junto com a independência de
seu país não era um jovem Gonçalves Dias ainda desconhecido, procurando construir uma
brilhante carreira literária, mas sim um homem cuja fama no cenário letrado já havia
atravessado o oceano e consagrado o seu nome como o iniciador de nossa autêntica, e
14 GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo
brasileiro”. GRINBERG, Keila ; SALLES, Ricardo (Org). In: ______. O Brasil imperial 1831-1889. v.2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 428.
15 SACKS apud EAKIN, Paul John. Op. Cit., p. 17.
16 MORAES, Jomar. Op. Cit., p. 1998.
autóctone, literatura. Nesse sentido, o quem, da questão inicial de Leujeune, nos indica um
homem cuja identidade já estava associada a um projeto literário vitorioso no sentido de
consagrar seu nome entre os mais ilustres do cenário letrado do país.
Aliás, a nota, apesar de pouco informativa sobre sua vida pessoal, pontuando
apenas os trabalhos mais destacados, não deixa de mencionar a fama de poeta
precocemente reconhecido. Diz ele:
Fui para Caxias e publiquei ainda nesse ano [1845] algumas poesias que
despertaram atenção. “É a imaginação de Lamartine com o estilo de
Filinto Elísio”. Escrevia um crítico.
Fui para o Rio em 1846, em cujo ano apareceu o 1º volume de minhas
poesias Primeiros Cantos. Algum tempo se passou sem que nenhum
jornal falasse nesse volume, que apesar de todos os seus defeitos, ia
causar uma espécie de revolução na poesia nacional. Depois acordaram
todos ao mesmo tempo, e o autor dos Primeiros cantos se viu exaltado
muito acima de seu merecimento. O mais conceituado dos escritores
portugueses – Alexandre Herculano – falou desse volume com
expressões bem lisonjeiras – e esse artigo causou muita impressão em
Portugal e Brasil.
Mas já nesse tempo, o povo tinha adotado o poeta, repetindo e cantando
em todos os ângulos do Brasil.17
Como nos lembra Joel Candau, “a memória, ao mesmo tempo em que nos modela
também é por nós modelada” (CANDAU, 2011: 16). Ao lembrar sua vida para narrá-la a
Ferdinand Denis Gonçalves Dias elencou os dados que considerou mais relevantes sobre si
mesmo e sua vida pessoal não mereceu destaque. Era sua vida pública que merecia atenção.
Nesse sentido, como dissemos, destacar a coincidência de seu nascimento era criar para a
sua vida literária um significado particular, era dizer que sua vida e obra eram marcadas pela
trajetória política de seu país, porque, ao que parece, ele havia assumido que essa
coincidência era parte constitutiva de sua identidade pessoal e autoral. Reveladoramente,
Eakin nos diz que “Quando se trata de nossas identidades, a narrativa não é simplesmente
sobre o eu, mas sim, de maneira profunda, parte constituinte do eu”18, e é essa narrativa
constitutiva do eu que entendemos encontrar tanto na nota autobiográfica, quanto nas
cartas mais intimas de Gonçalves Dias.
Na nota, além da coincidência sobre seu nascimento, Gonçalves Dias destacava
também a formação acadêmica em Portugal, a publicação de seus três Cantos e o renome
que estes lhe trouxeram, a publicação de Leonor de Mendonça e os trabalhos no colégio Pedro
II. Lembrava sua vida pública, porque era a sua vida pública que ele queria fazer “brilhar”:
Se como aponta Candau “a imagem que desejamos dar de nós mesmos a partir de
elementos do passado é sempre pré-construída pelo que somos no momento da
evocação”20, fazia sentido para Gonçalves Dias apresentar-se assim uma vez que já estava
consagrado, já havia sido celebrado como o iniciador da nossa literatura e já era respeitado
por seus pares no cenário letrado dentro e fora do Império.
Mas sem deixar de lado a sensação de incompletude que a nota transmite, nos
dando a sensação de que o poeta não chegou a terminá-la, entendemos que a narrativa de
Gonçalves Dias parecia criar um relato estruturado dos fatos de sua vida que ele
considerava significativos e formadores de sua identidade autoral. Estando destinada a um
nome influente do cenário letrado mundial, tal como o era Ferdinand Denis, a nota
autobiográfica de Dias tinha a função de exaltar os pontos mais destacados de sua carreira
no mundo das letras, aqueles pelos quais o poeta gostaria de ser lembrado.
Aliás, Gonçalves Dias alcança renome justamente ao se tornar o expoente daquilo
que seria preconizado pelo seu interlocutor direto nessa nota autobiográfica – a literatura
genuinamente nacional. Lembremos que Ferdinand Denis não foi apenas um estudioso e
divulgador das “coisas do Brasil”, ele foi também o responsável por apresentar o “plano”
que deveria ser seguido para que se fundasse aqui uma literatura de caráter original,
independente da de nossa antiga metrópole.
Muitos foram os escritores românticos brasileiros que trilharam o caminho indicado
por Ferdinand Denis, mas não há dúvida do protagonismo alcançado pelo poeta
maranhense, especialmente no que diz respeito àquela que ficou conhecida como a
expressão máxima de nosso sentimento patriótico, sua Canção do exílio. Não nos resta
dúvidas que este vai ser o poema que mais definitivamente consagrará Gonçalves Dias, e
parece-nos que é pensando na Canção que ele afirma, na mesma nota autobiográfica e em
trecho já citado aqui: “Mas já nesse tempo, o povo tinha adotado o poeta, repetindo e
cantando em todos os ângulos do Brasil”21, afinal ainda no século XIX a Canção servirá de
inspiração a outros poetas, que a parodiaram e parafrasearam, e também será musicada pelo
compositor José Amat.
Mas sabendo que o ato de narrar ao outro a própria vida é um ato repleto de
escolhas significativas na criação de uma identidade narrativa. Nesse sentido, chama
atenção, por exemplo, que na escolha do que lembrar e do que esquecer, o poeta tenha
citado na referida nota a publicação do drama Leonor de Mendonça, em 1847, ressaltando que
este havia sido “elogiado pelo Conservatório Dramático”22, enquanto deixava de lado
Beatriz Cenci, escrito entre 1845 e 1846, e que havia sido recusado pelo mesmo
conservatório sob a alegação de que era um drama imoral.
Beatriz havia lhe criado muitas expectativas, mas a pena de “excomunhão”, imposta
pelo Conservatório, havia lhe atrapalhado os planos, como deixava claro nas cartas ao
amigo Teófilo:
Dinheiro! – dizes tu que se eu precisar... Ora vamos! isso é fazer muito
pouco da minha Beatriz que foi no seu tempo uma espécie de rainha.
Diabos a levem, se ela não me dá das récitas para 1 ou 2 meses.23
***
A minha Beatriz teve pena de excomunhão máxima – isto é – está
interdita de entrar no Santuário das artes (...) no Teatro. O Bivar que
fulminou aquela tremenda exomunhão, encarregou-se da oração fúnebre:
tem invenção, disposição e estilo, disse êle, mas é imoral! – Não lhe
posso querer mal por isso. Deu-me a entender bem claramente que a
publicasse, o que foi sempre a minha intenção, e que é agora mais que
nunca.24
Assim, mais do que uma mera narrativa de sua trajetória de vida, a nota
autobiográfica escrita por Gonçalves Dias se constituiu, a nosso ver, em um ensaio de
construção identitária que parecia querer criar um sentido específico para sua vida.
Vinculando seu nascimento ao nascimento da pátria de alguma forma, o poeta associava a
sua memória a memória nacional, à qual também se fixaria através do alcance de sua obra.
Ao construir essa narrativa ele estabeleceu os marcos que seriam mais tarde
reproduzidos pelos biógrafos que se encarregaram de consolidar sua memória, e de alguma
forma influenciou também seus críticos literários. Marisa Lajolo, por exemplo, que
elaborou trabalho onde o poeta maranhense serviu de eixo para pensar a profissionalização
do escritor brasileiro no século XIX, afirmou que:
Livros escolares, por exemplo, gostam de frisar que o poeta nasceu no
mesmo ano em que a província do Maranhão (de forte influencia
portuguesa) reconhece a independência do Brasil.
Confirmando o que parece ser lido como uma predisposição astrológica de
Gonçalves Dias para a expressão de sentimento patriótico, outros textos
apontam (corretamente) que ele era filho do branco João Manuel
Gonçalves Dias, português, e de Vicência Mendes Ferreira, mestiça de
índio e negro. Ou seja, o poeta sai dessas biografias com uma vida sob
medida para alimentar interpretações bem intencionadas de
coincidências: sua mestiçagem e o ano de seu nascimento não poucas
vezes são convocados para explicar a gênese de certas passagens de sua
Nesse sentido entendemos que esta nota autobiográfica, embora curta, foi um dos
recursos de construção de memória utilizados por Gonçalves Dias, num processo de
construção de si que englobava também a preocupação com a edição de suas obras e seus
registros epistolares, num exercício retórico que transformou uma realidade singular numa
espécie de mito fundador de sua identidade de poeta nacional por excelência. Processo esse
que exprimia o desenrolar de seu projeto pessoal de fazer brilhar o seu nome, como havia
confessado ser seu intento em carta ao amigo Teófilo: “Todo o meu empenho, digo-te
muito em segredo e todo cheio de vergonha, é ser o Primeiro Poeta do Brasil, e, se houver
tempo, o primeiro literato”27.
Dessa forma, o projeto de Gonçalves Dias deve ser entendido dentro de um
contexto maior, que é o da consolidação do escritor no século XIX e o da “construção” da
literatura brasileira28, e é na nessa contextualização que a fixação de sua memória e de sua
obra adquirem importância, pois é a partir desse contexto que podemos pensar quais os
campos de possibilidades que permitiram que seu projeto obtivesse êxito29. A construção do seu
nome se deu como temos visto, através de esforços individuais seus, mas também da
memória que seus críticos e biógrafos ajudaram a consolidar. Nesse sentido, como bem
aponta Abel Barros,
a significação do nome não é o sentido do nome. A significação
transmite-se com o nome próprio, impõe-se, cita-se, trabalha-se,
reformula-se, ou seja, garante um uso competente do nome próprio. O
sentido é outra coisa: é o modo como ele se destina, é uma força que
passa entre o nome e a comunidade que menciona, e de modo sempre
instável, singular e precário; o sentido faz da menção do nome um
acontecimento. O sentido apenas se partilha, e, neste sentido, o sentido
do nome, atuando sobre as significações, é sempre um sentido dos
outros, é aquilo que, no nome, não depende do portador do nome – é a
força que faz com que o sentido do nome caminhe sempre à frente.30
(1994).
30 BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome – Duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas, SP:
Abel Barros tece essas considerações em seu estudo sobre a construção do nome de
Machado de Assis, um autor cujo nome talvez tenha, ainda hoje, um sentido muito mais
tangível que o nome do nosso poeta maranhense, mas não nos parece descabido dizer que
também o nome Gonçalves Dias alcançou esse sentido, que faz do nome um acontecimento,
ou talvez, no caso dele, o que caminhe sempre à frente não seja o seu nome, mas os seus
versos. Talvez. Essa é ainda para nós, uma questão em investigação.
Bibliografia
ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografia. Exploraciones en los limites. Buenos Aires: Fondo
de Cultura Economica, 2013.
BANDEIRA, Manuel. Poesia e vida de Gonçalves Dias. São Paulo: Editora das Américas, 1962.
BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome – Duas interrogações sobre Machado de Assis.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
CORRESPONDENCIA ativa de Gonçalves Dias. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de
Janeiro, v.84, 1964. (impressão de 1971).
EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa.
Tradução Ricardo Santhiago. São Paulo (SP): Letra e Voz, 2019.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no
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imperial 1831-1889. v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
LAJOLO, Marisa. “O preço da leitura: Gonçalves Dias e a profissionalização de um
escritor brasileiro oitocentista”. Revista Moara. Belém. N. 21. p. 33-47. Jan./jun., 2004.
Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/moara/article/view/3275>.
Acesso em: 26 ago. 2019.
LEAL, Antônio Henriques. Pantheon maranhense: ensaios biográficos dos maranhenses ilustres já
falecidos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2014.
MORAES, Jomar. Gonçalves Dias: vida e obra. São Luís: Alumar, 1998.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1994.
Andrea da Conceição1
Resumo
O presente trabalho tem como finalidade apresentar alguns aspectos de uma investigação,
ainda em andamento, acerca do percurso político intelectual da anarquista Emma Goldman
(1860- 1940), centrando a reflexão, em especial, no pensamento goldminiano sobre a
prostituição. Desse modo, espera-se a compreensão das ideias de Goldman, para quem a
imposição de uma dada moral sexual sobre os corpos das mulheres forja, juntamente com a
desigualdade econômica, as amarras que condicionam as mulheres a vender seus corpos.
De fato, para a anarquista, o universo de dominação terminaria apenas com a conquista da
emancipação sexual e intelectual feminina, pautada na defesa da maternidade voluntária, da
livre união e da livre desunião, ecoando, assim, a liberdade da mulher.
Assim, a prisão simbolizava a caça contra aquilo que foi corrompido; “a pureza de
Maria” havia sido exterminada por essas mulheres, por isso, deveriam ser punidas com o
encarceramento, o que garantiria que seu espirito libertino encontrasse o sofrimento e a
remissão do seu erro, uma vez que “para uma garota respeitável, é indecente e imundo
conhecer qualquer coisa da relação marital.”5 E Emma complementa: a “futura esposa e
mãe é mantida na mais completa ignorância”6.
Por outro lado, Goldman também se volta para questionar o que chamava de
“prostituição moral”, referindo-se àquela existente dentro próprio no matrimônio, já que a
Igreja e o Estado legitimavam a “venda” dos corpos femininos a homens que eram
completos desconhecidos, pois quase sempre os casamentos eram arranjos e alianças
urdidos no interior das famílias, considerando-se a concepção formal do casamento. Já que
“Quoi de plus humiliant, de plus dégradant que la promiscuité de toute une vie entre deux
étrangers?”7
2 CORDERO, Laura Fernández. Amor y anarquismo: experiencias pioneiras que pensaron y ejercieron la
libertad sexual. 1 ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuni Editores, 2018,p.63. Vítimas de todas as injustiças, já que
são triplamente oprimidas por causas religiosas, econômicas e políticas. O marido bate nela,os religiosos a
enganam, o juiz a ignora, o Estado manda seu filho para a guerra : ela é vítima por excelência (tradução
nossa).
3GOLDMAN,Emma. Questão feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre;Projeto Emma
Goldman,2019,p.38.
4Ibid, p. 101.
5Ibid, p.30.
6 Ibid, p.10.
7GOLDMAN,Emma. La tragédia de l´ émancipation féminine suivi Du mariage et de l´amour. Paris:
Editions SYROS,p.77. O que poderia ser mais humilhante, mais degradante do que a promiscuidade de uma
vida inteira entre dois estranhos? (tradução nossa).
Emma não só enfatiza, como critica a distinção no trato dado aos sexos,
especialmente a caracterização do casamento a partir da manutenção da castidade feminina.
E para isso era necessário que a mulher internalizasse a crença que a felicidade repousaria
no amor, encontrado por meio do casamento. No entanto, para a anarquista “El
matrimonio y el amor nada tienen em común; se encuentran tan distantes como los polos;
es más, son incompatibles”11. Segundo Goldman, o matrimônio acabava por escravizar a
mulher de modo a garantir uma vida de “dependência, al parasisitimo, a uma completa
inutilidade, tanto individual como social.”12
Ainda para a anarquista, a vida matrimonial normativa é imersa em degradação e
corrupção, na qual o status, somado a falsa moralidade e a legitimidade coercitiva contida
nas normas morais, corroem os pilares do amor degradado. E esse seria esfacelado pelo
“monstro de olhos verdes”, definição utilizada por Emma Goldman para dar vida àquilo
que seduz, engana e mata a alma feminina: o ciúme.
8GOLDMAN, Emma. Questão feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre; Projeto Emma Goldman,
2019, p. 15.
9 Ibid,p.43.
10 Ibid,p.45.
11 GOLDMAN, Emma. Feminysmo y Anarquismo. Tradução de Esther Peñas. Madrid: Enclave de Libros,
2017,p.150. Casamento e amor nada têm em comum; eles estão tão dostantes quanto os pólos; além do mais,
eles são incompatíveis (tradução nossa).
12 Ibid,p.161.Dependência, parasitismo, uma inutilidade completa, individual e social (tradução nossa).
a anarquista, à lei federal dos EUA instaurada em 1910 chamada Mann Act, ou também Lei do Tráfico de
Escravas Brancas, que visava proteger garotas de serem atraídas para a prostituição. Essa questão foi
levantada após a nomeação de uma Comissão em 1907 para investigar a questão da prostituição de
imigrantes. Para mais, ver GOLDMAN, Emma. Questão feminina. São Paulo: Biblioteca Terra
Livre;Projeto Emma Goldman,2019,p.37.
17GOLDMAN, Emma. Questão feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre;Projeto Emma
Goldman,2019,p.38.
18GOLDMAN,Emma. Questão feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre;Projeto Emma
Goldman,2019,p.50
19 Ibid,p. 40
20 Ibid,p.51
21 Ibid,p. 37.
22 Ibid,p.45.
23RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890- 1930. Rio de
Com vigor, Emma clamava para que se fomentassem corpos e mentes libertos,
capazes de criar uma nova moral, pautada na liberdade dos indivíduos, homens e mulheres.
Desse modo, o corpo deve ser entendido como
[...] o instrumento pelo qual a experiência se efetiva, e que não precisa ser
entendido apenas como objeto da cultura, mas também dotado de
agência própria, não apenas como receptáculo de símbolos, mas como
produtor de sentido.29
25Ibid , p.87.
26 Ibid,,p.88.
27GOLDMAN, Emma. Questão Feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre,2019, p.53.
28 GOLDMAN, Emma. A tragédia da emancipação feminina. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da-emancipacao-feminina/. Acesso em: 05 out. 2020,p.5.
29 RIBAS, Ana Cláudia. Corpo, Liberdade e Anarquismo: Perspectiva libertárias nas páginas do jornal
A Plebe durante a primeira metade do século XX. Anais do XXVI Simpósio Nacional da História -
ANPUH. São Paulo, julho 2011,p.6.
30 Ibid,p.8.
de los sexos, o de que el hombre y la mujer representan dos mundos antagónicos.”31 Pois
“no se concretaría la emancipación humana sin la emancipación completa de las mujeres”32.
É contra esse modelo da oposição entre os sexos, com seu duplo padrão moral, que
Emma Goldman se insurge. Em sua perspectiva, homens e mulheres são vítimas de um
sistema que os aprisiona e dita seus comportamentos morais e sexuais, de modo que sejam
impossibilitados de exercerem suas individualidades e, sobretudo, sua liberdade. Assim:
La mezquindade separa; la amplitude de espíritu une. Intentemos ser
pues mentes abiertas y generosas. Nos descuidemos las cosas de vital
importancia por ver um cúmulo de cosas insignificantes em el caminho.
Uma sensata concepción de las relaciones entre los sexos no puede
admitir que exista el conquistador y el conquistado; al contrario, sabe que
hay que prodigarse y entregarse a sí mismo para mejorarse
profundamente.33
De modo que:
Uma madre y um padre igualmente libres, serán la base de la seguridadd
para el niño. Tienen la fuerza, la solidez y la armonía para crear la
atmosfera necessária em donde la planta humana puede germinar em
uma exquisita flor.34
31 GOLDMAN, Emma. Feminysmo y Anarquismo. Tradução de Esther Peñas. Madrid: Enclave de Libros,
2017,p.193.Acabar coma ideia absurda do dualismo dos sexos, ou seja, que homem e mulher representam
dois mundos antagônicos(tradução nossa).
32 CORDERO, Laura Fernández. Amor y anarquismo: experiencias pioneiras que pensaron y
ejercieron la libertad sexual. 1 ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuni Editores, 2018,p.55. A emancipação
humana não aconteceria sem a emancipação completa das mulheres (tradução nossa).
33 GOLDMAN, Emma. Feminysmo y Anarquismo. Tradução de Esther Peñas. Madrid: Enclave de Libros,
2017,p.194. A mesquinhez separa; a amplitude do espirito une.Portanto, procuremos ter uma mente aberta e
generosa, negligenciando coisas de vital importância para vermos um acúmulo de coisas insignificantes no
caminho. Uma concepção sensata das relações entre os sexos não pode admitir que haja o conquistador e o
conquistado; pelo contrário, sabe que deve esbanjar-se e doar-se para se aperfeiçoar profundamente (tradução
nossa).
34 GOLDMAN,Emma. La palavra como arma. Islas Canarias- Madrid: Tierra de Fuego- La Malatesta
Editorial,2008,p.220. Uma mãe e um pai igualmente livres, serão a base da segurança para a criança,pois têm a
força, a solidez, e a harmonia para criar o ambiente necessário onde a planta humana pode germinar numa
flor primorosa (tradução nossa).
35 GOLDMAN, Emma. Feminysmo y Anarquismo. Tradução de Esther Peñas. Madrid: Enclave de Libros,
2017,p.198. O torniquete e a mordaça, mas mantém uma influência cada vez mais mortal e perniciosa na
mentalidade (tradução nossa).
coacción que se ejerce sobre su pensamento para reprimir sus manifestaciones sexuales.”36
Assim, a suposta inferioridade feminina faz parte de um discurso que pretende acorrentar
as mulheres a um sistema que insiste em escravizá-la.
Assim, para Emma Goldman:
La historia nos cuenta que toda classe oprimida obtuvo la autèntica
libertad de sus señores por sus propios esfuerzos. Es preciso que la
mujer aprenda esa lección, que sse dé cuenta de que su libertad alcanzará
el tamanõ de su deseo. Por conseguinte, es mucho más importante que
empiece por su regeneración interior, que abandone el lastre de los
prejuicos, de las tradiciones y de las costumbres. La exigência de la
igualdad de derechos em todos los aspectos de la vida professional es
muy justa, per, después de todo, el derecho más importante es el derecho
a amar y ser amada.37
36 Ibid,p. 200. Freud, a inferioridade intelectual das mulheres ou de muitas delas em relação aos homens se
deve à coerção que é exercida sobre seus pensamentos para reprimir suas manifestações sexuais (tradução
nossa).
37 Ibid,p.86. A história nos dz que cada classe oprimida obteve a verdadeira liberdade de seus mestres por
meio de seus próprios esforços. A mulher deve aprender essa lição, perceber que sua liberdade vai atingir o
tamanho de seu desejo. Portanto, é muito mais importante que você comece com sua regeneração interior,
que você abandone o peso dos preconceitos, tradições e costumes. A exigência de direitos iguais em todos os
aspectos da vida profissional é muito justa, mas, afinal, o direito mais importante é o de amar e ser
amado(tradução nossa).
38 GOLDMAN,Emma. La tragédia de l´ émancipation féminine suivi Du mariage et de l´amour. Paris:
Editions SYROS... O elemnto mais forte e profundo de toda a vida,arauto da esperança, da alegria, do êxtae,
amor que desafia todas as leis e todas as convenções, o amor mais livre, o cadinho mais poderoso do destino
humano, como pode uma força tão poderosa ser sinônimo dessa erva daninha miserável semeada pelo igreja
e pelo Estado? Amor livre? Como se o amor pudesse ser outra coisa senão livre (tradução nossa).
são reprimidas na sua sexualidade, educadas para o casamento mas não para o amor, as
mulheres se fazem escravas.”39 Por isso, “rejeita a armadilha de restringir a opressão das
mulheres a uma questão de Estado, e ataca seus fundamentos nas práticas da sociedade, na
sexualidade como na divisão do trabalho e na reprodução familiar”.40
Considerações finais
A anarquista Emma Goldman foi uma mulher pioneira na defesa da liberdade dos
corpos e mentes das mulheres, bem como na crítica à prostituição dentro e fora do
casamento. De fato, prostituição era uma ocupação bastante antiga e conhecida pelos
falsos moralistas41, que pregavam no seu discurso hipócrita a moralidade inexistente
diante de mulheres que possuíam o seu íntimo aniquilado de forma quotidiana pela
invisibilidade daqueles que permitiam que o “tráfico de mulheres brancas” continuasse a
ser perpetuado de forma tão lucrativa. Goldman, afirma que as raízes do problema da
prostituição estão contidas “na inferioridade econômica e social da mulher” 42, já que o
rosto da prostituição é pintado com a pobreza de mulheres trabalhadoras e a figura pálida
das mulheres casadas.
Segundo Emma Goldman, isso só era possível porque às mulheres era negado
absolutamente tudo, especialmente acesso à educação libertária, por meio da qual as
mulheres se dariam conta do próprio corpo, tornando-se donas de si mesmas e defensoras
do amor livre, da maternidade voluntária e sobretudo, da sua emancipação sexual e
intelectual.
Buscando romper com o sistema de dominação, Emma Goldman utilizou de seu
corpo e da sua voz como arma para travar uma batalha contra um sistema que insistia em
silenciar as vozes e corpos das mulheres. A anarquista foi presa por diversas vezes, mas
cada vez que era arrastada ao cárcere, fortaleceu-se moralmente, solidificando sua certeza
em combater pela liberdade dos corpos e das mentes das mulheres, de modo a
emancipação feminina pudesse ser uma possibilidade de existência.
39GOLDMAN, Emma. Vivendo Minha Vida. Tradução: Nils Goran Skare. Curitiba,PR: L. Dopa, 2015, p.
37
40Ibid, p.37.
41Ibid, p. 5
42GOLDMAN, op. cit., p. 3.
Bibliografia
CORDERO, Laura Fernández. Amor y anarquismo: experiencias pioneiras que pensaron y ejercieron
la libertad sexual. 1 ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuni Editores, 2018
GOLDMAN, Emma. Feminysmo y Anarquismo. Tradução de Esther Peñas. Madrid: Enclave
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GOLDMAN, Emma. Vivendo Minha Vida. Tradução: Nils Goran Skare. Curitiba, PR: L.
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GOLDMAN, Emma. Questão Feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre,2019.
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GOLDMAN, Emma. A tragédia da emancipação feminina. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da-emancipacao-feminina/. Acesso em: 05 out.
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GOLDMAN, Emma. Ciumes: causa e uma possível cura. Disponível em:
https://amoryanarquia.wordpress.com/2012/01/19/ciumes-causas-e-uma-possivel-cura-
emma-goldman/. Acesso em 15 out. 2020,
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890- 1930. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RIBAS, Ana Cláudia. Corpo, Liberdade e Anarquismo: Perspectiva libertárias nas páginas do jornal A
Plebe durante a primeira metade do século XX. Anais do XXVI Simpósio Nacional da História -
ANPUH. São Paulo, julho 2011,p.1-11.
Resumo
Introdução
Em 1966, dois anos após o golpe militar que cerceou as liberdades democráticas no
Brasil, a professora e assistente social Violeta Campofiorito Saldanha da Gama deixava a
direção da Escola de Serviço Social de Niterói (ESSN), instituição que, ao lado de D. Alzira
Vargas, ajudou a fundar e que dirigiu por mais de quinze anos. Conhecida por seu espírito
libertário, característica confirmada no depoimento da professora Suely Gomes Costa,
aluna da escola no período em que Violeta a dirigiu: “Pelo menos nessa escola, eu não tive
cerceamento de liberdade, quando nela estudei.”. Sua saída ocorre logo após a invasão e o
fechamento do Diretório Acadêmico Maria Khiel (DAMK) pelo Departamento de ordem
política e social (DOPS), dando início aos “anos de chumbo” na ESSN.
1 Doutora em Política Social pela UFF. Assistente Social nas Prefeituras de Niterói e São Gonçalo. e-mail:
ledigandrea@gmail.com
2 Pergaminho assinado por professores servidores e alunos em homenagem recebida por Violeta
3 DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
4ECAR, Ariadne Lopes. Conhecimentos pedagógicos como orientação para a" missão docente": a formação na Escola
Normal de Niterói na Primeira República (1893-1915)." (2011). Dissertação de mestrado em Educação -
PROPED/UERJ. 2011
5 SIRINELLI, Jean François. Os Intelectuais. In: REMOND, René. Por uma história política. 2ª. ed. Cap. 8, Rio
6 Quirino destacou-se como pintor, crítico de arte, jornalista e professor da Escola Nacional de Belas Artes,
no Rio de Janeiro. Em sua homenagem, a galeria térrea do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno,
inaugurada em 1975, recebeu o seu nome, enquanto a galeria do andar superior recebeu o nome de Hilda
Campofiorito, sua esposa. Orlando, arquiteto e engenheiro de hospitais e escolas, consolidou sua carreira
como professor da Faculdade de Engenharia da UFF. Stella, pianista e concertista, atuou ao lado de Villa
Lobos.
7 Violeta frequentou a Escola Nacional de Belas Artes e Stela, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico,
da Gama foi noticiado na edição de 23 e 24 de junho de 1930 no Jornal “o Paiz”, p. 6. Disponível em: .
Acesso em: 01 out. 2015.
9 GAMA, Violeta Campofiorito Saldanha da. Violeta Campofiorito (depoimento, 2001). Rio de Janeiro,
12 COSTA, Suely Gomes. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Estudos
feministas, v. 301, p. 2, 2002.
13 GAMA, op. cit.
14 COSTA, op. cit.
15 GAMA, op. cit.
dos comitês de alunos que formei lá. Sempre tive vontade de fazer comitês, comissões.”16.
Decididamente, as ações assistenciais realizadas pela professora ajudaram-na a
compreender que era preciso superar a dor da pobreza.
Suas ações de “assistência social voluntária”, levam essa filha do artista e arquiteto
Pedro Campofiorito a ganhar, agora, uma crescente e contínua visibilidade e
respeitabilidade pessoais. Isso a aproxima, mais e mais, do centro do poder político e de
decisões voltadas para o reconhecimento da relevância da cobertura assistencial de
iniciativa pública nesse antigo Estado do Rio de Janeiro. Sob o comando de Amaral
Peixoto, o Estado do Rio de Janeiro vivia, desde 1937, a exemplo do que ocorria no
governo federal, um novo modelo de gestão do Estado: intervencionista, antiliberal, mas
também empenhado em fazer-se promotor da justiça social17
As ações de “assistência social voluntária” - desempenhadas por Violeta - vão,
então, se aglutinar aos interesses políticos de Alzira, compondo uma afinidade eletiva18. À
frente do Serviço de Assistência Social da Escola Industrial Henrique Lage, as ações de
Violeta, professora de desenho, vão consubstanciar uma forte base política de apoio ao
casal Amaral Peixoto. Registra D. Violeta: “Eles eram verdadeiros líderes e por isso é que
havia uma comunhão em que todo mundo queria colaborar, como voluntário. Então foi
muito da personalidade do casal. É claro que o pai de dona Alzira estava por trás de todas
essas conquistas”19.
Alguns anos depois, na esteira de suas ações assistenciais e das relações com Alzira
Vargas, Violeta irá participar da fundação da L.B.A Fluminense criada em consonância com
as ações da LBA nacional para atender as famílias dos pracinhas enviados para lutarem na
II Guerra,20. A professora Violeta Campofiorito é, então, indicada para representar a Escola
Industrial Henrique Lage. D. Violeta informa: “Nós todos, diretores e professores de
projeção, fomos chamados para uma reunião”21
Violeta Campofiorito logo se torna elemento de destaque no curso de visitadoras
sociais promovido LBA Fluminense. Eis mais um de seus depoimentos: “Eram umas 40 ou
aniversário da LBA fluminense, que havia sido criada em 08 de outubro de 1942. Fonte. Hemeroteca digital
site: <http://memoria.bn.br> acesso em 15 de janeiro de 2016.
21 GAMA, op. cit.
50 senhoras, tinha de tudo. Mas como eu já tinha uma experiência de Serviço Social na
Henrique Lage, é claro que logo fiquei dirigindo grupos, aquela coisa toda”22
Na montagem das estruturas assistenciais da capital e do interior do Estado, a LBA
contou com o apoio das prefeituras, através das comissões municipais23. Mas
foram visitadoras sociais como Violeta – “mulheres que tinham em comum todas as
certezas quanto ao caráter humanitário de suas muitas atividades e aos retornos políticos
dessas ações sociais em todo o Estado”24 - que executaram uma série de trabalhos
assistenciais: “Nos todas fizemos o curso, visitamos as favelas levando correspondências,
ajuda, mantimentos e apoio às famílias dos pracinhas”25, afirma Violeta. Em entrevista
concedida ao CPDOC, Dona Violeta, em 2002, situa a natureza dessas ações e os
“encontros com a dor do outro” no projeto inicial desenvolvido pela LBA26.
A LBA fazia muito trabalho social, precisando desse grupo de pessoas
que foi alertado para o bem estar social, fazendo serviço social
voluntário. Niterói tem muitos morros, muitas favelas e um grande
número de pracinhas foram para a guerra. E os pracinhas foram todos
das regiões mais pobres de Niterói, do Estado do Rio, onde também
estávamos. Eu ficava mais em Niterói, mas muitas eram de outros
municípios. Então, essas pessoas foram chamadas pela LBA, como um
voluntariado, recebendo pró-labore para ajudar no trabalho de assistência
aos pracinhas. Eu, por exemplo, subi morros para levar cartas para a
família dos pracinhas: eu e todas as minhas colegas voluntárias. Estou
falando não do tempo de formada, mas do tempo em que era
voluntária27.
22 Ibidem
23 Em 1944, dos 1.740 municípios existentes em todo território nacional, havia a efetiva presença legionária
em 1.562, portanto mais de 90% do total. “Número muito significativo, sobretudo considerando-se as
dificuldades de rápida comunicação, as distâncias físicas, as variantes gerenciais.” Memória da Assistência:
Origens da LBA. 1977. p 8. Acervo CPDOC. AVAP. vpu. (lba) 1977.03.29.
24 COSTA, Suely Gomes. Signos em transformação: A dialética de uma cultura profissional em cinco ensaios.
28Ibidem.
29 FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e Médicos: Discursos maternalistas no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009.
30 GAMA, op. cit.
31 Ibidem.
32 Ibidem.
de Janeiro ( ESSERJ) inaugurada em 1945 : Dr. Adelmo Mendonça (Secretário de Saúde), de Rubens Falcão
(Secretário de Educação), de Maria Esolina Pinheiro (Assistente Social responsável pelo curso de Visitadoras
Sociais) e da professora Maria Pereira das Neves (Diretora da Escola Profissional Feminina Aurelino Leal).
36 FREITAS, Rita de Cássia Santos, et al. "Construindo uma profissão." Serviço social e sociedade, 97, 2009,
p.57.
democrática a ESSN37. Violeta, assim como seu pai, que diante do fascismo renunciou, em
1938, à cidadania italiana, não aceita compactuar com o regime autoritário e, em 16 de
dezembro de 1964, entrega a direção à sua prezada colaboradora e amiga Nilda de Oliveira
Ney, vice-diretora da escola. Questionando uma corrente de pesquisa histórica que
magnifica o potencial das políticas públicas e do Estado e reduz as filantropas a uma
posição conservadora, a experiência de Violeta demonstra o estabelecimento da aliança
entre filantropas e poder público na redefinição da assistência social como função do
Estado e via de consolidação de direitos.
Bibliografia
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37GOMES, Leila Maria Afonso. Assistência Social no Estado do Rio de Janeiro: significado da Escola de Serviço
Social da UFF no período de 1945/1964. Tese de Doutorado em Serviço Social. São Paulo; PUC-SP,
Faculdade de Serviço Social, 1994.
Resumo
Esta comunicação tem como principal objetivo explanar o estudo do conde de Assumar,
D. Pedro de Almeida, num cenário em que reino de Portugal encontrava-se fragmentado
politicamente. Além disso, o país ibérico se via ameaçado pela pressão exercida pela França
e pela Espanha no contexto das guerras napoleônicas em que dinastias eram depostas, em
que a qualidade do “ser nobre” passava a ser contestado, em que o Antigo Regime
começava a ruir. D. Pedro, fazendo uso das suas artes – a pena e a espada – tentava
aproximar-se do Príncipe Regente e aconselhá-lo pelo seu bem, pela “pátria” e pela defesa
do “Trono e do Altar". Na análise de suas cartas, verificamos não só a situação política de
sua época como também as mudanças sociais e ideológicas que despertavam na aurora do
século XIX e, da mesma forma, o papel da missiva como mecanismo de sociabilidade,
propagação de ideias, formação de alianças e subjetividade.
É verdadeiro afirmar que a ideia de “nação” e “Estado” começa a tomar uma forma
distinta em finais do Antigo Regime europeu ocidental e interessa-nos, portanto,
compreender como estes grupos de indivíduos detentores do poder pensavam, sentiam e
agiam diante destas transformações. Isto é, pois, um dos intentos da presente comunicação
tendo como personagem do estudo de caso D. Pedro de Almeida Portugal. Em Portugal,
contudo, os tremores iniciar-se-iam muito antes da Revolução Francesa. O terremoto de
1755 permitiu ao futuro marquês de Pombal fortalecer o seu poder pessoal, o que resultou
também no alargamento de intervenção da Coroa, com uma notável afirmação das
2 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. II PARTE – IDADE MODERNA (SÉCULOS XV-XVIII). In: RAMOS,
Rui (coord.); SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa:
A Esfera dos Livros, 2009. 364-377 pp.
3MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. O Crepúsculo dos Grandes – A casa e o patrimônio da aristocracia
império e imaginário social. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2., p. 4-20, 2005. 12 p.
5 ALVES, Patrícia Woolley Cardoso Lins. D. João de Almeida Portugal e a Revisão do Processo dos Távoras:
conflitos, intrigas e linguagens políticas em Portugal nos finais do Antigo Regime (c.1777-1802). 2011.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense. 159-160 pp.
6 Idem. 155 p.
7 BOLAMA, Marquês d’Avila e de. A Marqueza d’Alorna – Algumas noticias authenticas para a historia da
muito illustre e eminente escriptora, que os poetas seus contemporaneos denominaram ALCIPE. Imprensa
de Manuel Lucas Torres: Lisboa, 1916. 17-23 pp.
8 BRAGA, Paulo Drumond. Preces públicas no reino pela saúde de D. Maria I (1792). Revista da Faculdade
Rui (coord.); SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa:
A Esfera dos Livros, 2009. 394-430 pp.
12 RAMOS, Luís de Oliveira. D. Maria I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007. 17-20 pp.
mudanças gradativas no sistema político e social: a ideia corporizada na fidalguia antiga deu
lugar, por um lado, a uma noção ampla de uma nobreza de serviços e, por outro lado, a
concepção de uma “Grandeza”, identificada com a aristocracia de corte. Desde as últimas
décadas do século XVII, os chamados Grandes tendiam a ser identificados com a única
nobreza, concentrando quase todas as distinções e fontes de rendimento nobilitantes
emanados da Coroa. O período pombalino não modificaria drasticamente a composição de
tal grupo, apesar das inúmeras perturbações que introduziria. Esta seria uma etapa essencial
para a modificação da estrutura e do funcionamento da administração central. Apesar da
aparente reversão na Viradeira, os representantes das velhas casas seriam, paulatinamente,
remetidos para funções decorativas. O reforço das secretarias de Estado continuaria e
tenderia a esvaziar os polos tradicionais de decisão. Um pouco mais tarde, a elite titulada e
cortesão tornar-se-ia também alvo das críticas reformistas e liberais precisamente no
momento em que a complexificação da administração central tendia a afastá-la dos centros
de decisões13.
As reverberações portuguesas
13 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José
(dir.). História de Portugal – Quarto Volume. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. 363-374 pp.
14 MONTEIRO, N. G. A Vida Política. In: MONTEIRO, N. G. et al. O Colapso do Império e a Revolução Liberal
Catalunha. Em Lisboa, via-se que o Tratado de Basileia lançou Madrid para o controle
francês. Portugal seria, assim, excluído como parceiro válido e deixado à mercê do interesse
britânico ou sendo completamente isolado do jogo das alianças das grandes potências. Esta
política foi levada muito à frente por D. Manuel Godoy, conhecido mais tarde como
“Príncipe da Paz”. Seu intento era ferir a Inglaterra, obstruindo o acordo entre Lisboa e
Paris15. Em uma carta datada de 27 de Julho de 1797, o conde de Assumar discorre para
com o Príncipe Regente sobre as suas preocupações acerca das movimentações suspeitas
de tropas espanholas na fronteira. Alerta o regente sobre um possível ataque e relembra-o
das antigas intenções belicosas dos espanhóis e da influência francesa sobre este reino. Assim
o conde iniciava a missiva:
Cada hum fala nas couzas conforme o conhecimento que tem delas, e
quem não vê se não o que tem apparecido em publico, julga que no
Estado actual das negociasções da Europa, he mais siguro calcular sobre
os factos que vão sucedendo, do q[ue] sobre as palavras, ou escriptos dos
Gabinetes com quem há relação? Debaicho d’este principio, não
sabendo quais são as relações particulares que há entre o Gabinete de
Madrid, eo de Lisboa, nem o grau de confiança q[ue] deva ter hum no
outro, sendo-me licito discorrer, porqu[e] me interessa muito que o
Estado se conserve tal qual se acha, discorro e pelo que se me aprezenta
assento q[ue] deve haver sempre da nossa parte huma observação muito
reflectida sobre todos os movimentos dos Hespanhoes16.
15 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal – Volume VI. Lisboa: Verbo, 1982. 317-324 pp.
16 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo Casa de Fronteira e Alorna, 131.
1801, o conde de Assumar continua a expressar as suas opiniões sobre o estado geral da
Europa e a aconselhar o seu Príncipe:
Não há nada mais natural do que a alegria q[ue] se tem seguido da noticia
da paz geral: a humanidade tem sofrido tanto, que a mais leve esperança
de descanço faz parecer evidente que se ponha já termo as disgraças da
Europa [...] Huma fatal experiencia, tem mostrado q[ue] os pertubadores
do socego publico forão proselyttos do discurso em que Hirminius quis
provar no principio da Revolução Franceza que a verdade, a
humanidade, a boa fé, a amizade, a honra, e a justiça, e todas as bazes
fundamentaes da regencia dos Estados: o direito das gentes, as
indemnidades estabelecidas, e a Religião, devião ser repeitadas [sic] como
preocupações que era precizo desvanecer para o solido estabelecimento
da nova seita. Comefeito isso se tem visto praticar, e o peor hé que
muitos d’aquelles q’inda serião susceptiveis de atender à vós interior,
precindem dela com a desculpa de ser precizo uzar de armas iguaes às do
innemigo que ataca17.
Assim como demonstrava sua desconfiança para com o governo francês, D. Pedro
também não manifestava confiança na aliança inglesa. Para ele, se fosse do interesse
britânico, este poderia facilmente reduzir a França ao governo “correto” e reestabelecer,
desta maneira, o equilíbrio natural da Europa. Ele escreve ainda na mesma carta:
Mas não hé isso que quer a Inglaterra: quer dividir, quer distruir; quer
aniquilar aquella grande força junta no centro da Europa [...] a contra
revolução tem feito os maiores progressos; se ella vence torna a França a
ser Monarquia, e torna a Europa ao seu Estado natural. Que melhor
occazião q[ue] esta para ajudar e socorrer efficasm[en]te o partido que
intenta restabelecer com a Monarquia a Ordem, a justiça, o socego e a
Religião? Mas em lugar disso presta-se Inglaterra à paz por um
momento, tendo conseguido a ruina da Marinha dos seus inimigos [...] E
17 Idem.
18 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo Casa de Fronteira e Alorna, 131.
Em uma terceira carta sem datação, o conde de Assumar alertou o Príncipe sobre a
fragilidade da paz de Amiens. Para ele, este tratado era apenas uma ferramenta utilizada
pela França para romper ainda mais a harmonia entre as potências europeias que, somente
unidas, poderiam salvar o continente da ruína. Discorre sobre a situação inglesa, alemã,
russa e italiana frente aos avanços franceses. Amiens seria propositalmente causadora de
desordem para se tirar proveito do cansaço e do desfalque das finanças alheias. Para o ele,
Portugal deveria se aliar com Espanha secretamente para defender os Pirineus. O conde
enumera os motivos pelos quais o Príncipe não deveria confiar na paz de Amiens:
As Pazes Parciaes oferecidas pela força, e adoptadas pela debilidade, hão-
de achar-se incoherentes, distituidas de bazes certas nocivas aos
interesses das Potencias, que as asignarão, e vantajozas somente aos
projectos ulteriores do Chefe do Governo Francez, de sorte que as
mesmas Pazes acabarão de romper a armonia entre as Potencias, cuja
união somente poderia salvar a Europa da ruina de q[ue] se acha
ameaçada [...] O equilibro da Europa está roto e bem se vê q[ue] o
Colosso que se levantou no centro deste Continente tende a alterar rodas
as autoridades conhecidas athe agora, a reduzilas à escravidão, ou
distruilas. À proporção da velocidade comq[ue] temos visto correr a
sucessão de Cathastrofes da Europa, pode-se inferir, q[ue] esta operação,
ainda q[ue] vasta, não tardará muito a effectuar-se e não será possivel
q[ue] similhante torrente deiche de incluir no seu curso a Hespanha,
ePortugal [...] O rezultado das Pases parciais que o Governo Francez
quiz absolutamente fazer sanccionar em Amiens, não hé mais que huma
cementeira de dezordem e de confusão p[ar]a d’ella se tirar partido ao
19 Idem.
20 Idem.
Em uma quarta carta datada de 14 de Abril de 1801, o conde diz ter largado o
governo da Beira com desgosto ao ouvir que o Príncipe não tinha como se defender dos
Espanhóis que ameaçam a nação portuguesa. Relembra ao Regente que o rei da Prússia
quando se engrandeceu à custa da Casa de Áustria não era este tão poderoso como o
Príncipe e não era esta casa tão poderosa como a Espanha. Relembra ao soberano os
números com os quais contava o exército português e afirma ser muito possível se
defender. Relembra também todas as defesas que planejou e realizou na Beira e da vontade
de suas tropas de lutar e defender seus lares22.
Antes de analisarmos a quinta e última carta enviada pelo conde de Assumar ao
Príncipe Regente sobre o “estado da Europa”, precisamos avançar um pouco no tempo e
mudar de destinatário. Em carta datada de 23 de novembro de 1801, D. Pedro escreve à
sua irmã – D. Leonor, a condessa de Oeynhausen. Além das notícias familiares e pessoais,
o conde informa à sua irmã que teria recebido ordem para ir até o “Valle”. Chegando lá,
entregaria ao Regente duas cartas nas quais fazia um “painel da ciência militar” que lhe
tocava como Príncipe. Tinha como finalidade provar ao Príncipe que este poderia entender
por si só aspectos militares e, assim, tomar decisões sem as interferências de seus
secretários. Dava notícia que dali marcharia para Portalegre e mais terras ocupadas pelos
espanhóis que tinham sido evacuadas. Pede para que a irmã fique sossegada e alerta que
tentar fazer predições em demasia pode atrapalhar os intentos. Afirma que fará sempre
tudo quanto for bom para seu príncipe, não lhe faltando conhecimento nem energia para
fazer o que fosse preciso. Assim D. Pedro escreve:
Esta carta estava p[ar]a partir quando me chegou ordem para ir ao Valle.
e como la estava o Principe intregueilhe eu mesmo as duas cartas, em q
eu fazia hum painel da siencia melitar q lhe toca como Principe. E emq
lhe provava q elle a intende e q pode decedir por si m[ui]ta coiza – os
secretarios la estavaõ, mas naõ me fizeraõ imbaraço [...] Peçote q
sucegues hum bocado e q naõ des entrada a tanta idea, porq as vezes se
atrazaõ as coizas por demasiado prever, e eu ainda q ando longe, trago o
olho a mira, e p[ar]a tudo quanto for bem p[ar]a o Principe, naõ me falta
nem conhecim[en]to das coizas actuaes, nem energia p[ar]a fazer valer oq
for precizo [...]23.
Atentemo-nos agora para uma parte interessante do trecho acima: “os secretários lá
estavam, mas não me fizeram embaraço”. Por agora pode parecer-nos irrelevante, mas
levanta uma questão: por que os secretários lhe fariam algum embaraço? Estariam eles
impedindo o conde de se reunir com o Príncipe? D. João foi educado ao modelo dos
costumes tradicionais do “rei temperado” e não nas práticas do rei intangível que
governava através de um valido – como alguns de seus antecessores. Anos mais tarde, na
verdade, foi criticado pelo próprio conde de Assumar (na época já marquês de Alorna) e
outros nobres por ouvir pessoas demais e por demasiado tempo. Se aparentemente a
monarquia procuraria o apoio aristocrático, valorizando a opinião de um conjunto de
homens da primeira nobreza, pelo menos nos primeiros anos, as secretarias de Estado
permaneceram como os verdadeiros centros de decisão. A situação da regência foi uma
situação de fragilidade da monarquia: a interinidade suscitava uma maior dificuldade em
dirimir os conflitos e as rivalidades. As ordens que ministros davam ao Príncipe para
assinar ganhavam uma força superior às ordens emanadas de um regente. Até mesmo a
formalização da regência seria palco de disputas e discordância.
As tensões políticas portuguesas não existiriam somente de forma interna, mas
também na externa. No campo diplomático, como chegamos a comentar anteriormente,
confrontaram-se duas correntes que tradicionalmente são chamados como “partido inglês”
e “partido francês”. O conflito entre as correntes incluía a sugestão de que seus adversários
eram agentes das chancelarias estrangeiras. D. Rodrigo de Sousa Coutinho representou as
posições do partido inglês, enquanto Antônio Araújo de Azevedo as do partido francês. O
duque de Lafões e Seabra da Silva encontraram-se entre os defensores desta segunda
posição, enquanto o marquês de Ponte de Lima estava do lado da aliança inglesa. Estas
divisões, contudo, não coincidiam com a clivagem entre “puritanos” e “pombalinos”. Os
chamados partidos eram grupos heterogêneos e sem nenhuma organização formal,
correspondendo, na verdade, apenas a pessoas com alinhamentos e inclinações parecidos e
que se opunham a outros indivíduos com opiniões distintas. A posição dos “francófilos”
guiou-se pelo princípio de evitar a guerra e manter a neutralidade. A sobrevivência do
Estado dependia da preservação da neutralidade24. Apesar de ser cunhado como membro
do partido francês, vemos que o conde de Assumar, D. Pedro, mostrava-se desconfiado
tanto da aliança inglesa quanto às cessões à França revolucionária. Seu intento, na verdade,
Conclusão
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo Casa de Fronteira e Alorna, caixas número
131; 133; 172 & 175.
BOLAMA, Marquês d’Avila e de. A Marqueza d’Alorna – Algumas noticias authenticas para a
historia da muito illustre e eminente escriptora, que os poetas seus contemporaneos denominaram
ALCIPE. Imprensa de Manuel Lucas Torres: Lisboa, 1916. 300 p.
Bibliografia
ALVES, Patrícia Woolley Cardoso Lins. “D. João de Almeida Portugal e a Revisão do
Processo dos Távoras: conflitos, intrigas e linguagens políticas em Portugal nos finais do
Antigo Regime (c.1777-1802)”. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
História, Universidade Federal Fluminense.
BRAGA, Paulo Drumond. “Preces públicas no reino pela saúde de D. Maria I (1792)”.
Revista da Faculdade de Letras, Historia. Porto, n. 11, 1994. 215-226 pp.
25 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo Casa de Fronteira e Alorna, 131; 170; 172; 175.
Resumo
Introdução
3 FILHO, Antonio Nóbrega. HUMBERTO, Mauro Mendonça Machado (org.). Vida e Obra Dr. Bezerra de
Menezes. Fortaleza: INESP, 2008.
4 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
trajetória de Adolfo Bezerra de Menezes. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
a divisão entre um sujeito antes e após sua conversão, exercício semelhante – ou inspirado
– nas suas biografias, a qual comentamos anteriormente.
De acordos com as informações biográficas apresentadas no jornal O Paiz, na
edição do dia 14 de abril de 1900, em alusão a sua morte naquele mês, Bezerra depois de
formado, ingressou como cirurgião-tenente no exército. Permanecendo até sua renúncia,
em 1861, para ocupar a cadeira no plenário municipal da corte. A partir de então, inicia-se a
sua carreira enquanto político imperial, atuando como vereador e deputado, entre os anos
de 1861 a 1886, pelo Partido Liberal, este que:
Por motivo da ascensão do partido conservador, em 1868, foi a Câmara
dos Deputados dissolvida, e durante 10 anos de decadência do partido
liberal procurou o Dr. Bezerra de Menezes elevá-lo, quer em
conferências, quer pela imprensa onde com talento dirigiu A Reforma,
órgão do partido liberal6
A Pérola Negra (1880-1890). Monografia (Graduação em História) – Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte, Mossoró, 2018, 57p.
10 VALLE, Daniel Simões do. Intelectuais, Espíritas e Abolição da Escravidão: os projetos de reforma na
imprensa espírita (1867-1888). Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2010.
vida. O texto lido nessa conferência foi dissolvido nas edições do Reformador entre setembro
e novembro daquele ano. Mas uma outra fonte que nos possibilita imergir nesses primeiros
contatos com Allan Kardec, encontra-se na coluna Inquérito, publicada entre 1892 a 1893,
também no Reformador. Nessa sessão, alguns membros do movimento espírita carioca,
respondiam questões relacionadas a sua conversão.
Em sua participação na coluna, Menezes afirmou a influência dos seus colegas da
faculdade, “livres pecadores”, “ateus”, nas suas reflexões sobre os dogmas católicos, fato
esse decorrente da crença “não firmada em fé racionada”11, mergulhando no ceticismo. A
sua conciliação com o cristianismo se deu com o presente de um colega do consultório,
uma bíblia de tradução do padre António Pereira de Figueiredo.
Após a leitura da obra, onde afirmou ser uma “vergonha para um homem de letras
dizer que nunca lera”12, sentiu a necessidade de inserir-se naquela crença novamente, mas
de maneira racional. Registrou ainda, outro presente recebido; a tradução do Livro dos
Espíritos, começando a ler para distrair-se no seu translado de bonde para a Tijuca, bairro
em que morava na época. Daniel Valle13, aponta esse processo como fruto do contato com
o também médico, Joaquim Carlos Travassos, responsável por criar uma rede de
sociabilidade possibilitadora da fundação do Movimento Espírita carioca, sobretudo da
Federal Espírita Brasileira-FEB, em 1884.
Outro fato destacado por Bezerra de Menezes em seu inquérito, respondendo à
pergunta “Que foi que o convenceu do espiritismo?”, está no âmbito bastante pessoal.
Epiléptico, afirmou ter recorrido ao médium receitista, João Gonçalves do Nascimento,
após ter submetido a um tratamento falho, da “medicina oficial”, por cinco anos. Com o
tratamento recomendado pelo médium, seguido à risca, apresentou resultados: “[…] em
menos de um ano, achei-me bom.”14. Semelhante fato ocorreu a sua esposa. Diagnosticada
com tuberculose, mas mediante o mesmo médium receitista, foi apontada com uma doença
uterina. Após ambos os fatos, Bezerra afirmou começar a estudar os vários pontos da
doutrina Espírita. Para além disso, pontuou que foi nos escritos Kardecistas onde
encontrou conforto após a morte de seus filhos.
11 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Inquérito. Reformador, Rio de Janeiro, 15 de jul. 1892, p. 02.
12 Ibidem.
13 VALLE, Daniel Simões do. Intelectuais, Espíritas e Abolição da Escravidão: os projetos de reforma na
imprensa espírita (1867-1888). Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2010, p.82.
14 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Inquérito. Reformador, Rio de Janeiro, 01 de ago. 1892, p. 03.
Portanto, o seu contato com o Livro dos Espíritos foi um divisor de águas, no
fornecimento de um apaziguamento interno, entre um sujeito educado sob a égide da
doutrina católica e o que, a partir da vinda à capital imperial, absorveu a atmosfera
cientificista dos bancos da academia médica, como também dos espaços de sociabilidade
carioca. O seu “espírito”, disse Bezerra em sua conferência, “ressurgiu das trevas do
ceticismo, por obra daquela leitura.”15.
15 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Reformador, Rio de Janeiro, 15 de out. 1886, p. 03.
16 CUNHA, André Victor Cavalcanti da. A invenção da imagem autoral de Chico Xavier: uma análise
histórica sobre como o jovem desconhecido de Minas Gerais se transformou no medium espírita mais
famoso do Brasil (1931 – 1938). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2015, p.40.
17 ARAUJO, Augusto César Dias de. Espiritismo, esta loucura do século XIX: Ciência, Filosofia e Religião nos escritos de
p.02.
do modelo dessa comunicação, não será possível abordar todos eles. Todavia, as críticas ao
regime imperial aparecem diversas vezes ao longo da narrativa. Por exemplo, coloca-se em
questão a política de concessão de títulos de nobreza no contexto brasileiro:
A sociedade, onde o cidadão de real merecimento fosse
espontaneamente galardoado pelo chefe, e, nem mesmo comprando-as
a peso de ouro, pudesse obter graças de qualidades negativas ou
duvidosas seria um modelo e teria uma força impulsiva admirável. […]
Se um, se alguns brasileiros dignos são devidamente apreciados, seus
nomes se perdem na massa informe dos fidalgos por dinheiro, por
adulação, por misérias mesmo.22
Chegando a citar um exemplo de cidadão que deveria receber as honrarias por seus
serviços prestados ao Estado:
Se este país fosse realmente cristão e civilizado, Barbosa Rodrigues já
teria recebido, com um título de marquês ou duque, amplos recursos
para chamar à civilização as tribos indígenas que ocupam a vastíssima
extensão que vai do Pará e Amazonas à província de Goiás e muitas
outras. O homem, porém, não toma largura no passo, e o Tesouro está
tão vazio para serviços que não entendem com a política, que será
injusto condenar o que o nosso governo tem feito, ou não tem feito,
sobre catequese.23
22 MENEZES, Adolfo Bezerra de. A Pérola Negra: Bezerra de Menezes sob o pseudônimo Max. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2011, p.139.
23 Ibidem, p. 357-358.
24 FERREIRA, Lúcio Menezes; NOELLI, Francisco Silva. “João Barbosa Rodrigues: precursor da
Conclusão
25 MENEZES, Adolfo Bezerra de. A Pérola Negra: Bezerra de Menezes sob o pseudônimo Max. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2011, p.188-189.
26 BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. “Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos:
correspondência, 1880-1905”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 23, n. 65, p. 207- 229, jan. 2009. P.208.
27 MENEZES, Adolfo Bezerra de. A Pérola Negra: Bezerra de Menezes sob o pseudônimo Max. Rio de
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_____. Inquérito. Reformador, Rio de Janeiro, 15 de jul. 1892, p. 02.
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_____. O dr. Bezerra de Menezes ao público. Jornal do Commercio, 20 de nov. 1889, p.02.
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out. 2020.
_____. Reformador, Rio de Janeiro, 15 de out. 1886, p. 03.
Isabella Nogueira1
Resumo
foi um trabalho singular empreendido por Alexandre Dumas e Giuseppe Garibaldi no ano
de 1860 entre a França e a Itália, tendo sido publicado em Paris. Sua singularidade reside
na impossibilidade de um exato posicionamento em um gênero de escrita. De imediato,
pode-se pensar que é um livro de memórias, ou uma autobiografia ou uma biografia, no
entanto, não se encontra em sua textualidade e em seu mecanismo de produção apenas um
gênero. O título leva ao engano.
Apesar da pouca clareza do processo de produção das Mémoires de Garibaldi, de
acordo com autores como Budillon4 e Campanella5, é ela que possui uma circulação
acentuada. Brum provoca – assim como diz direcionar sua escrita, em seu artigo –
questionando as proporções do impacto dessa obra. Muito se falou sobre os personagens
Garibaldi e Dumas desde a segunda metade do século XIX, porém pouco se questionou
sobre esse conúbio e nada se disse sobre a circulação dessa obra. O objetivo é pensar a
circulação transatlântica dessa obra. Produzida por um italiano em italiano, publicada por
um francês em francês que ganha sua celebridade com feitos de Garibaldi na América do
Sul. É importante lembrar que antes de qualquer livro, as memória editadas por Dumas
foram publicadas no jornal Le Siècle a partir do dia 30 de maio de 1860 até o dia 5 de
setembro do mesmo ano.
Brum nos orienta sobre uma possível pesquisa sobre as memórias publicadas por
Dumas. Foi através do método comparativo que a autora interessou-se pelo estudo do
elemento biográfico presente nas Memórias de Garibaldi, considerando os campos de
interpretação a partir dos estudos de Orlandi, além daqueles sobre polifonia, de Bakhtin.
A autora inicia o texto nos dizendo:
A provocação é uma forma prazerosa de “fazer andar” os textos. E
inicia-se com uma “confissão”: como muitos de nós, conheci Giuseppe
Garibaldi pela literatura. Mais precisamente pela “pluma” de Alexandre
Dumas, na sua obra Memórias de Garibaldi (DUMAS, Tradução de
Antonio Caruccio-Caporale, 1998). (...) Dentre as biografias existentes,
optou-se por prestar muita atenção à mais divulgada para o público
brasileiro, a Memórias de Garibaldi, do escritor francês Alexandre
Dumas. A recepção da cultura italiana a sua circulação devem muito a
essa tradução. E o imaginário construído em torno de Dumas terá
4BUDILLON, Pascale Puma. Giuseppe Garibaldi, quelles vies, quelles Mèmoires? In: GUILLAUME,
Marche; VINCENT, Broqua (Org.). L’épuisement du biographique? Newcastle Upon Tyne: Cambridge Scholars
Publishing, 2010. p. 55-66.
5CAMPANELLA, Anthony P. Giuseppe Garibaldi e la tradizione garibaldina: una bibliografia dal 1807 al 1970.
A autora ainda nos diz que “a estratégia estabelecida, pois, foi retratar esse
Garibaldi não pelas vertentes historiográficas, mas embaralhar com jogos de interpretação
uma biografia consagrada e que deixou para trás sua oralidade original.” A história se
preocuparia apenas com as “faces possíveis de Garibaldi, a projetiva e a construída” que
ressaltam os “rastros”, no sentido sugerido por Paul Ricoeur, “para o entendimento da
materialidade possível em História, dessa personagem investida de distintos papéis
simbólicos de alta apreciação social no século XXI”, sugere ainda que esses “rastros”
poderiam ser estudados em “biografia e mais biografia de autores intervindo nos distintos
momentos de sua longa vida, no século XIX, ou os demais, que, como nós, conformam-se
com as fontes secundárias”. O interesse de Brum é portanto apresentar uma proposta que
se aproxima da literatura. Pois, a textualidade nos aproximaria até mesmo do mundo de
Alexandre Dumas – importante literato francês do século XIX – a literatura. Através dela
poderíamos entender mecanismo de interesses de sua produção e circulação. Começamos
então por utilizar Brum que trazendo as colocações de Bakhtin, questiona: “Para quem a
autobiografia é dirigida? Quem é o autor dessas Memórias de Garibaldi? É um livro de
aventura, de história ou ambos? É um livro de memórias? Como é realizada a troca dos
papéis entre o herói e o autor (quem é o autor?)?” Assim ela cita Bakhtin: “como me
represento a mim mesmo? Pergunta esta que se distinguirá desta outra: quem sou? No que
particulariza o autor em sua relação com o herói”, Bakhtin continuou “a posição do outro
tem autoridade sobre mim, ele pode conduzir a narrativa da minha própria vida”. É nesse
momento que este pensa na figura do autor, interrogando o papel individual que
costumamos atribuir a este. Utilizamos então dos conceitos de polifonia e de
plurilinguismo do mesmo autor, Bakhtin. E através de sua orientação percebemos como a
presença de Dumas era evidente na obra.
A polifonia presente na obra escolhida não é identificada pela sua simples estrutura
de escrita sugerida em seu título. A voz de Dumas, a voz de Garibaldi e a voz da sociedade
relacionam-se constantemente ao longo dos dois volumes. Para notar-se isso foi necessário
realizar um estudo de outras edições que não carregam o nome de Dumas. Neste trabalho
utilizou-se a edição Bàrbera de 1888, publicada em Florença e a edição de 1859 publicada
6BRUM, Rosemary Fritsch. “Dumas e Garibaldi: a dupla autoriza(ação)”. In: CONSTANTINO, Núncio
Santoro; FAY, Claudia Musa(Org.). Garibaldi, História e Literatura: perspectivas internacionais. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2011. p.299-300
E subjetividade contemporânea:
Uma espécie de macrogênero, que albergaria simplesmente uma coleção
de formas mais ou menos reguladas e estabelecidas, mas antes um
cenário móvel de manifestação – e de irrupção – de motivos, talvez
inesperados. Dito de outro modo, não só a autobiografia, a história de
vida ou a entrevista biográfica, performadas temática e
compositivamente enquanto tais entrariam em nossa órbita de interesse,
mas também aos diversos momentos biográficos que surgem, mesmo
inopinadamente, nas diversas narrativas, particularmente nas mídias.8
Sendo assim a narrativa, o tempo e espaço que envolveu esse projeto terá que ser
estudado em conjunto com a obra das memórias e os vários momentos biográficos. Ou
seja, com esse olhar mudou-se o ponto de analise não se procura mais definir o gênero ou
o sujeito/autores, mas a relação entre esses diversos momentos biográficos.
Outro questionamento central a partir da noção de Arfuch é sobre a construção
do personagem Garibaldi como herói e mito. O herói que Dumas nos apresenta não
precisava mais ser buscado na imaginação, ele estava ali, presente. O herói nesse sentido
7ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p.80
8ARFUCH, Op. Cit. p.74.
não possuía somente as características do que era um herói na antiguidade, aqui fala-se
principalmente de um homem que tem consciência de seu tempo e de suas ações e que
supera, vence e modifica a natureza, que, como ele, é instável. Como que um só órgão
gerenciado por uma força divina, ou seja, o herói romântico.
Em sua obra prima sobre o assunto, Garibaldi: invention of a hero, publicada em
2007, Riall propôs-se a demostrar o “culto político em torno de Garibaldi como herói
italiano”9 por meio do “modo como isso foi concebido, construído e aprovado nos anos
cruciais de transição do Risorgimento e da Unificação italiana”.10 Para a autora, a imagem de
Garibaldi não passa de uma construção política porque o campo político necessitava dessa
criação.
Um ponto particularmente significativo deste mito [Garibaldi] era a livre
mistura, aparentemente perfeita, entre fatos e ficção, e a reelaboração da
luta política para traduzi-la em entretenimento popular. Não parece que
possam ter-se dúvidas sobre o fato que esta imagem [Garibaldi] foi um
produto especificamente construído e atentamente «gerenciado», que
pegava emprestado os estilos das histórias de aventura, explorava as
técnicas de representação teatral e assumia o aspecto litúrgico e ritual
típico das práticas religiosas. Deste modo, na criação do mito de
Garibaldi operam seja a nova possibilidade de explorar para fins políticos
as modernas técnicas de comunicação de massa, seja a modalidade
operativa própria da retórica nacionalista, que para construir uma
ideologia política popular e persuasiva se apoiava na recuperação,
apropriação e reelaboração de elementos retirados de discursos e práticas
preexistentes.11
Dito isso, a autora demonstra que o mito de Garibaldi pode não corresponder à
realidade, mas que sua eficácia foi extraordinária, ele mostrou como foi possível fare gli
9 “Culto político per Garibaldi como eroe italiano” (RIALL, Lucy. Conclusione: il mito di Garibaldi. In:
_______. Garibaldi. L'invenzione di un eroe. Roma-Bari: Laterza, 2007, p.473)
10 “Modo che venne concepito, costruito e promosso nei cruciali anni transizione del Risorgimento e
tra fatti e finzione, e la rielaborazione della lotta politica per tradurla in generi di intrattenimento popolare.
Non sembra possano esserci dubbi sul fatto che questa immagine fu un prodotto appositamente costruito e
attentamente “gestito”, che prendeva a prestito gli stilemi delle storie di avventura, sfruttava le tecniche della
rappresentazione teatrale e assumeva l’aspetto liturgico e rituale tipico delle pratiche religiose. In questo
modo, nella creazione del mito di Garibaldi operano sia la nuova possibilità di sfruttare per fini politici le
moderne tecniche di comunicazione di massa, sia le modalità operative proprie della retorica nazionalista, che
per costruire un’ideologia politica popolare e persuasiva si appoggiava sul recupero, l’apparizione e la
rielaborazione di elementi tratti da discorsi e pratiche preesistenti.” (RIALL, op. cit., idem)
italiani12e como sua imagem como forma de encorajamento foi importante para a
sustentação do radicalismo político e do nacionalismo:13
Mostrando-nos que os mitos vencedores não são nem autênticos nem
inventados, mas surgem de uma convincente síntese de ambas as coisas;
e que não são nem espontâneos nem impostos, mas podem ser muito
mais apropriadamente definidos como o produto de um intricado
processo de negociações entre «atores» e «público», do qual resulta difícil
descobrir quem é o autor (ou a fonte de autoridade).14
Mas também considera que a difusão e memorialística deu-se além de uma elite
política, já que o nome Garibaldi estendeu-se até à literatura popular:
Sua popularidade reflete também as mudanças ocorridas na esfera
pública, e em particular a passagem de um mundo dominado de literatura
de elite a um contexto mais democrático, caracterizado pela emergência
de uma literatura mais popular, usufruída também por um público
feminino. Se levarmos em consideração as crônicas jornalísticas, as
biografias populares, as imagens e músicas que têm por preocupação
Garibaldi, e o modo pelo qual essa multiforme produção veio a ser
acolhida, podemos ver o delinear-se de um romantismo popular, e a sua
parcial fusão com a cultura política.15
O historiador francês Antoine Lilti nos traz mais um ponto de vista intrigante para
pensar a imagem de Garibaldi em meio ao seu contexto. Ele diz que deveríamos pensar o
personagem através a cultura da celebridade “que é um conjunto de práticas e, ao mesmo
tempo, uma série de discursos, de lugares-comuns, de argumentos” em relação à exaltação
de uma imagem. Aqui, de certa forma, ele tem por alvo a perspectiva de Riall, discordando
da ideia de culto ao herói, ou seja, de invenção de um herói e seu mito. Lilti argumenta:
Muitas vezes, o entusiasmo internacional provocado por Garibaldi ao
longo de sua existência aventureira é interpretado em termos de “culto
do herói”, e mesmo de “mito”. Mas esse vocabulário é impreciso, mais
sugestivo do que descritivo e, sem dúvida, impróprio. Deveria estar
claro, a esta altura, que existe uma outra maneira de dar conta da extrema
difusão de uma figura, que foi tão fortemente contestada quanto
apaixonadamente defendida. Se Garibaldi era, para uma minoria de
12 “Fazer os italianos”.
13 “In tutta la sua vita aveva creduto nel nazionalismo come solvente universale dei mali del mondo” [Em
toda sua vida tinha acreditado no nacionalismo como solvente de todos os males do mundo]. (SMITH, op.
cit., p.233)
14 “Mostrandoci che i miti vincenti non sono né autentici né inventati, ma scaturiscono da una convincente
sintesi di entrambe le cose; e che non sono né spontanei ne imposti, ma possono essere molto più
appropriatamente definiti come il prodotto di un intricato processo di negoziazione fra «attore» e «pubblico»,
nel quale risulta difficile scoprire chi sia l’attore (o la fonte dell’autorità)”. (RIALL op. cit., p.479)
15 “La sua popolarità riflette inoltre i mutamenti avvenuti nella sfera pubblica, e in particolare il passaggio da
un mondo delle lettere dominato da un elite a un contesto più democratico, caratterizzato dall’emergere di
una letteratura più popolare, fruibile anche da un pubblico femminile. Se prendiamo in considerazione le
cronache giornalistiche, le biografie popolari, le stampe e le canzoni che riguardano Garibaldi, e il modo con
cui questa multiforme produzione venne recepita, possiamo vedere il delinearsi di un romanticismo popolare,
e la sua parziale fusione con la cultura politica”. (RIALL, op. cit., p.474)
trazendo à tona que nesse contexto, onde diziam que tudo era revolução como foi
apresentada por Koselleck, a polifonia (várias vozes presentes em um texto de forma
explicita) torna-se fato ao mesmo tempo em que o plurilinguismo (várias vozes e formas de
um texto de forma implícita) a acompanhava. Com a comunicação mais ativa, todos
influíam na produção da obra Mémoires de Garibaldi não procurando um mito, mas um meio
de divulgação inserido em diversos momentos biográficos. Por Dumas, havia um interesse
principalmente propagandístico/publicitário e por que não também axiológico, como
pensado por Bakhtin, por parte do literato A literatura com seu mundo ganhava os
corações e as mentes, ela também era um meio de compreensão das notícias rápidas e
fugazes, ela aprofundava a discussão sobre os sentimentos que agora ganhavam mais
campo. Nesse sentido concorda-se com Milza18 quando diz que Garibaldi não interessou a
um público só pelas suas ações políticas, mas também por sua visibilidade quase que
disponibilidade para o mundo da imagem da celebridade, assim como nos diz Lilti.19
Bibliografia
Resumo
Este artigo tem como objetivo a análise de duas biografias escritas durante os primeiros
anos da República brasileira – Um Estadista do Império2, de Joaquim Nabuco (1897), e Dom
João VI no Brasil3, de Oliveira Lima (1908) – situando-as no cenário marcado por disputas
políticas e simbólicas entre elementos republicanos e monárquicos. A partir disso,
pretende-se examinar o papel da biografia como escrita histórica em um momento de
reconstrução de ideais de nacionalidade, além de estabelecer as aproximações e
distanciamentos entre as duas obras, principalmente no que concerne à caracterização
destas como “biografias monárquicas” e as especificidades narrativas e documentais que as
colocam como dois marcos da historiografia acerca do período monárquico brasileiro.
Introdução
5 “No dia 17 de novembro de 1889, um domingo, às três da madrugada, a família real partiu acompanhada
por alguns poucos autoexilados. Dizem que os novos dirigentes acharam por bem evitar a luz do dia e
impedir qualquer reação da população”. Cf.: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa. “A Primeira
República e o povo nas ruas”. In: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 318. A Lei
do Banimento foi um decreto do governo provisório de 23 de dezembro de 1889 que, além da expulsão,
destinava uma ajuda financeira à família real (que foi recusada pelo monarca destituído); foi revogada pelo
decreto nº 4.120, de 3 de setembro de 1920.
6 Cf.: BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico”. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil
psicológico, pode-se citar a reação demonstrada por ele ao surgimento do jornal A República em fins da
década de 1870, em carta a José Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente: “se os Brazileiros não
me quiserem para seu Imperador, irei ser professor”. C.f: NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. 3 vols.
Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1898-1900, p. 191 (tomo III).
8 Cf.: ALONSO, Angela. “Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década
nova ordem, tendendo a alusões à Revolução Francesa de 1789 aliadas às revoltas coloniais
e regenciais e ao positivismo.
Esses personagens e a disputa travada por eles, representados em clássicos da
literatura do período, como A capital federal9 de Coelho Neto e Esaú e Jacó10 de Machado de
Assis, por exemplo, movimentam a intelligentsia e o debate público dos primeiros anos da
República. Homens como Olavo Bilac, Pardal Mallet, Raul Pompeia, Silva Jardim, dentre
outros, representavam o lado republicano, enquanto Joaquim Nabuco, Afonso Taunay,
Rodolfo Dantas, André Rebouças e, em menor grau, Oliveira Lima, defendiam o legado
monárquico. Os instrumentos de batalha eram, além de propostas políticas, a produção
literária, jornalística e histórica.
No que diz respeito a essa última, é importante destacar a posição do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro, arauto da produção histórica no século XIX e tradicional
instituição monárquica, nessa questão. De acordo com Alexandre Avelar11, apesar de abalado
pela ausência de seu protetor – o Imperador Dom Pedro II – o IHGB deu continuidade a seus
trabalhos com o propósito de produzir e disseminar, através de sua tradicional revista12,
conhecimentos históricos que agora seriam úteis para a reinvenção da nação. Apesar da
melancolia imperial e de certa resistência inicial a elementos republicanos, a instituição tentou
manter-se imparcial de forma a garantir sua sobrevivência em um contexto em que qualquer
ícone que remetesse ao antigo regime era brutalmente visado pelo novo governo. A biografia,
que sempre fez parte da produção historiográfica do IHGB, consolidou-se como uma
importante escrita histórica nesse momento de reinvenção.
9 COELHO NETO, H.M. A capital federal. Porto: Livraria Chardon, 1915. (Originalmente publicado em
1893).
10 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacó. Porto Alegre: L&PM, 1998. (Originalmente publicado
em 1904).
11 Cf.: AVELAR, Alexandre de Sá. “Entre a tradição e a inovação: o IHGB e a escrita biográfica nas primeiras
décadas republicanas”. História da Historiografia. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, v., 13, n. 33,
maio-ago., 2020, p. 400.
12 A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) circula desde 1839 e é um dos
Ronaldo [org.]. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 190.
14 SCHMIDT, Benito Bisso. “História e Biografia”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo
[org.]. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 187, defende, assim como outros
especialistas de Teoria e Historiografia, que o gênero biográfico surgiu em conjunto com o gênero histórico
na Grécia do século V.
15 Cf.: PRIORE, Mary L. M. “Biografia: quando o indivíduo encontra a História”. Topoi Revista de História.
ao autor Octávio Tarquínio explicitar seus pontos de vista, em um momento (1939) em que o autoritarismo
do regime estado-novista se manifestava…” (p.65). Cf.: GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Fisionomias em
construção”. In: Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2009, p. 65.
17 Cf.: LYNCH, Christian E.C. “O Império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim
A crítica especializada recebeu muito bem a obra, que foi publicada pela Editora H.
Garnier em três tomos, após ampla e prévia divulgação pela Revista Brasileira. O maior
crítico, não da qualidade artística e historiográfica da biografia, mas sim de sua propaganda
monarquista de caráter eufemista, foi Eunápio Deiró20, do Jornal do Commércio, como
demonstra trecho abaixo:
Neste capitulo, porém, tenta como historiador estabelecer as causas, que
determinárão a revolução de 7 de abril de 1831. Os elementos de que
servio-se para apurar a verdade historica – uns resultão da tradicção –
outros de meras conjucturas; raros procedem de documentos authenticos
e de justa apreciação dos factos, que constituem o primeiro reinado. Em
muitos pontos os juizos do autor exigem contestação, não podem passar
como fundados na verdade. A tradicção alterou a realidade, porque foi-se
formando como expressão dos sentimentos dos differentes interesses,
dos grupos e dos partidos politicos. Até os nossos dias a critica historica
ainda não os apurou, verificando a parte imaginativa e a parte real. Não
ha que estranhar ter o autor seguido a versão, que naturalmente está de
accôrdo com o ponto de vista em que se collocou21.
Essa é a reação de Deiró à versão narrada por Nabuco de que o 7 de Abril de 1831
havia sido um “desquite amigável” entre Dom Pedro I e o Brasil, mesmo à revelia de
determinados setores caracterizados como ingratos. Aqui, tanto o autor tentou heroicizar a
figura polêmica do primeiro imperador, quanto o crítico tentou vilanizá-la, a fim de
estabelecer que a monarquia também possuiu uma face “ditatorial” às expensas do caráter
que Nabuco recorrentemente atribuía à República.
A crítica acerca da utilização - ou não - de documentos autênticos não foi repetida
por nenhum outro crítico, tendo nomes como José Veríssimo22e J. Dos Santos23 elogiado o
rigor documental de Nabuco que, além do arquivo pessoal de seu pai, buscou diversas
outras fontes e extensa bibliografia, chegando a recolher depoimentos e memórias de
estadistas contemporâneos de seu pai, em um esforço que hoje é muito repercutido no
âmbito da História Oral.
A obra consagrou-se por seu estilo narrativo extremamente descritivo e por sua
contribuição para o entendimento dos bastidores da política imperial, além de seu valor
20 Eunápio Deiró (1829-1909) foi um jornalista, escritor, político e advogado republicano. Uma das
curiosidades sobre Deiró é que ele advogou a favor do português Adriano Augusto Valle que, na noite de
15/07/1889, atentou contra Dom Pedro II após dar “Vivas ao Partido Republicano” na saída do espetáculo
no Teatro Sant’anna. Cf.: VIDIPÓ, George. “Um processo criminal nos jornais do século XIX: o atentato
contra Dom Pedro II”. In: MOTTA, Maria Marcia; PEREIRA, Raquel; REIS, Thiago [org.]. Anais do Encontro
Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias, jul. 2018, Niterói. Rio de Janeiro:
Anpuh-Rio, 2018, p.5.
21 Jornal do Commercio, ed. 317, de 14 de novembro de 1898, p. 1.
22 Revista Brasileira, ed. 14, 1898, p. 153-177.
23A Notícia, ed. 249, 1898, p. 3.
Dom João VI no Brasil de Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) é uma década mais
jovem do que a obra de Joaquim Nabuco e ainda assim guarda com ela algumas
semelhanças importantes. No início do século XX, as últimas ondas de resistência
monárquica afloravam o debate público e intelectual, enquanto uma série de
comemorações cívicas eram organizadas – o 4º Centenário do Descobrimento do Brasil e o
1º Centenário da Chegada da Família Real Portuguesa e da Abertura dos Portos – os
“monarquistas de pena” se compraziam em verificar como a República ressignificaria datas
estreitamente relacionadas ao passado monárquico e à herança portuguesa.
Já “convertido” a ideais monarquistas, Oliveira Lima participa de um concurso
promovido pelo IHGB, idealizado em 1903, a fim de comemorar o 1º Centenário da
Chegada da Família Real ao Brasil e a Abertura dos Portos, o qual deveria contar a história
da permanência do príncipe - depois rei - em terras brasileiras. O trabalho diplomático
facilitou o acesso de Lima a diversos arquivos, tanto brasileiros ou portugueses, quanto
franceses, estadunidenses e ingleses. No prefácio da obra, o autor tece agradecimentos a
uma série de chefes e presidentes de arquivos, embaixadores e diplomatas que tornaram
possível o acesso a um amontoado de documentos originais e inéditos.
24Cf. PESQUISA FAPESP. O quixote liberal da República. São Paulo: FAPESP, ed.73, mar. 2002, p. 90-91.
Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/03/90-diplomacia.pdf>.
25 Cf.: FONTES, Renan P. A biografia como forma de escrita historiográfica: D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, p. 72.
26 Cf.: LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil. Edição fac-similar. 2 v.:il. Brasília: FUNAG, 2019, p. 3.
27 Cf.: PESQUISA FAPESP. O quixote liberal da República. São Paulo: FAPESP, ed.73, mar. 2002, p. 90-91.
Considerações finais
Fontes
Bibliografia
ALONSO, Angela. “Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na
primeira década republicana”. Novos estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 85, 2009, 131-148.
Resumo
Este artigo apresenta uma análise das condições históricas específicas que iniciaram os
processos de designação eletiva no Brasil e possibilitaram membros do clero católico que
ocuparem cargos do Poder Legislativo durante a Assembleia Geral Constituinte de 1823 e a
1ª Legislatura do Império (1826-1829). Destaca ainda as propriedades sociais dos agentes
envolvidos, vinculações regionais, partidárias, familiares, as trajetórias políticas, bem como
os condicionantes de solidificação e rotatividade nas carreiras.
(Orgs.). Norbert Elias: a política e a história. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 188.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Reino do Brasil, e daquelas que ainda viriam a se formar nos territórios ultramarinos
portugueses, em prol da regeneração de Portugal3.
O objetivo desse decreto, ao validar a formação desses governos,
independentemente da aprovação do Rio de Janeiro, foi de esvaziar politicamente a
Regência de D. Pedro, ao que este reagiu articulando-se às Juntas instaladas no centro-sul, e
pressionando as do norte4 com uma fiscalização no âmbito político e econômico, a
presença de tropas militares e funcionários da Fazenda Real.
As Juntas, então, constituíram-se em dois direcionamentos básicos: as
revolucionárias, formadas à revelia da Corte do Rio de Janeiro; e as oficiosas, formadas já
com o aval e dentro da legalidade do que foi estabelecido entre a Corte brasileira e
Portugal. A partir disso, a formação de algumas Juntas como, por exemplo, a de São Paulo,
ocorreu por aclamação e em meio às eleições para as Cortes de Lisboa, ampliando as
disputas por poder entre forças sociais dominantes, mas também rivais, que se enfrentavam
(até mesmo por meio de conflitos armados) pela conquista e manutenção de cargos
eletivos, nas novas esferas de poder que iam se constituindo no Brasil.
As Juntas Provisórias de Governo provinciais tiveram uma curta, mas intensa
existência, entre os anos de 1821 a 1823. Elas foram significativas para os desdobramentos
políticos e institucionais ocorridos entre a Revolução do Porto e a Independência do Brasil,
contribuindo para a construção do Império a partir de princípios constitucionais e de
representatividade política, uma vez que esse período tem como característica um acirrado
enfrentamento político e rearticulação entre poderes locais e regionais, no interior das
províncias, e entre diferentes províncias.
Essas disputas em torno da manutenção da adesão ao Império Luso-brasileiro ou
reconhecimento da legitimidade do Rio de Janeiro, promoveram um amplo debate sobre as
possibilidades de futuro político para o Reino do Brasil, calcadas não só, mas
principalmente, em concepções e práticas liberais, que também tinham largo alcance junto
ao clero5.
3 BERBEL, Maria Regina. A nação como artefato: os deputados do Brasil nas cortes portuguesas (1821-1822). São Paulo:
HUCITEC, 1999. p. 57.
4 Fora os deputados brasileiros que abandonaram as Cortes, ou que não tomaram assento, 28 dos 36
presentes, que votaram a aprovação da Constituição portuguesa em 23 de setembro de 1822, eram oriundos
das províncias do norte. Os deputados de São Paulo não assinaram ou juraram a Constituição portuguesa.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial.
Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.
5 VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: Editora
Esses governos provisórios foram definidos por Barman6, como pátrias locais, pois
possuíam demandas específicas frente ao conflito de poderes entre as Cortes lisboetas e o
governo do Rio de Janeiro. Carvalho7 retoma essa perspectiva, mas demonstrando que as
Cortes buscaram, desde o primeiro momento da organização desses governos, articulá-los a
um novo modelo administrativo, herdeiro do movimento vintista e do constitucionalismo.
Entretanto, foi a partir delas que se pactuou uma adesão em torno de um projeto
americano, como um contrato social promovido pelas elites, sobretudo do eixo centro-sul,
em torno da manutenção das autonomias políticas que se julgavam ameaçadas pela
preponderância portuguesa, garantindo assim uma soberania própria.
Os membros das Juntas deveriam ser escolhidos entre os “Cidadãos mais
conspícuos por seus conhecimentos, probidade e aderência ao Sistema Constitucional”, o
que funcionava, na concepção de Phélippeau8, tanto como uma ratificação pública da
qualidade social dos indivíduos, quanto atestava o lugar que ocupam na hierarquia social,
em um contexto ainda muito permeado pelas lógicas do Antigo Regime.
Nessa política de notáveis inseriu-se fortemente parte do clero católico, participando
tanto das Juntas quanto das deputações às Cortes, podendo ser eleitos por qualquer
Província, não sendo levado em consideração seu domicílio, residência ou naturalidade.
Isso demonstra o poder e influência política, social e econômica desses agentes junto aos
poderes regionais, não somente nos seus locais de origem, mas naqueles nos quais
constituíram carreira eclesiástica, como, por exemplo, o padre Antônio Marques Sampaio,
natural do Rio Grande do Sul, mas eleito deputado por Minas Gerais, onde era vigário
colado na vila de Barbacena.
Essa inserção do clero católico em cargos eletivos foi possível porque, no Brasil, a
Igreja ocupou um lugar privilegiado na formação social, cultural e política desde o
empreendimento colonial, desempenhando um papel fundamental tanto na produção de
reconhecimento e obediência à autoridade monárquica, quanto como parte do corpo
burocrático do Estado por meio do regime do Padroado9. Esse fator, somado as
dificuldades de Constituição de uma estrutura burocrática e administrativa ampla e
6 BARMAN, Roderick J. Brazil: The Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University Press, 1988.
7 CARVALHO, op. Cit.
8 PHÉLIPPEAU, op. Cit.
9 SILVA, Joelma Santos da. Entre a Política e a Religião: Os Padres Deputados na formação do Estado nacional brasileiro.
10SEIDL, Ernesto. “Sociologia histórica do Estado: igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina”.
TOMO, ano IX, n.º 09, 2006, p. 30-61.
Outro elemento que pode explicar o grande número de clérigos nas deputações de
algumas províncias, em relação a outras, é a distribuição desigual de deputados por
Província. Pelas Instruções, de 1822, referentes as nomeações dos deputados para a
Assembleia Geral Constituinte do Brasil, as maiores e mais populosas províncias teriam
mais deputados.
Dentre os 22 padres deputados eleitos para a Assembleia Geral Constituinte de
1823, 7 haviam participado das Cortes de Lisboa, perfazendo 1/3 da representação total:
Belchior Pinheiro de Oliveira, Francisco Pereira de Santa Apolônio, José Custódio Dias e
Manoel Rodrigues Costa, de Minas Gerais; Francisco Agostinho Gomes (BA); Francisco
Muniz Tavares (PE); José Martiniano Pereira de Alencar (CE).
Os deputados mineiros Antônio da Rocha Franco, José Custódio Dias e o mártir da
Inconfidência, Manoel Rodrigues da Costa, foram os únicos eleitos tanto para a deputação
de 1823, quanto a de 1826, tendo os dois últimos também participado das Cortes de
Lisboa. José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro, e Dom Nuno Eugênio
Lóssio e Seiblitz, ouvidor e juiz desembargador em São Paulo, primeiro presidente da
província de Alagoas, em 1824, com a tarefa de pacificar os ânimos após a Revolução de
1824, e em 1826 presidente da província da Bahia, participaram da Legislatura de 1826
como senadores.
Sobre os colégios eleitorais mineiros, Oliveira11 chama a atenção para o fato de que,
como os eleitores da época não votavam em candidatos isolados, mas em listas com o
número total de membros da bancada provincial, é possível observar padrões de escolha e,
consequentemente, grupos prévios a serem votados. Isso possibilitava membros da
comissão eleitoral como juízes, ouvidores e clérigos, favorecerem candidatos alinhados com
os diferentes projetos das elites locais. Isso fazia, por exemplo, a bancada mineira ter em
duas eleições seguidas padres deputados de posições políticas diferentes, como o
governista, Antônio da Rocha Franco, e o oposicionista, José Custódio Dias.
O padre José Custódio Dias, que além de padre foi administrador de fazendas da
sua família, foi escolhido deputado em mais três Legislaturas, até se tornar Senador em
1835. Era membro da elite liberal moderada do sul de Minas, formada por grandes
proprietários de terra, comerciantes, proprietários-comerciantes, homens poderosos
socialmente, como seu pai, o fazendeiro português Custódio José Dias, grande criador de
11OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais
na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823 – 1834. 416 fls. Tese (Doutorado em História Social) –
Universidade de São Paulo: São Paulo, 2014. P. 53.
gado na região de Alfenas. Seu irmão, o capitão-mor Custódio José Dias, foi membro da
Junta do governo provisório de Minas Gerais em 1822, deputado da 1ª Legislatura de 1826
e da sessão legislativa de 1833.
Já o padre Antônio da Rocha Franco estava ligado aos colégios eleitorais de Ouro
Preto, São João Del Rei, Sabará e Paracatú, nos quais o Executivo provincial era pró D.
Pedro, como o próprio padre, que foi advogado dos auditórios de Vila Rica. Mas após a 1ª
Legislatura Nacional só obteve mandatos nas deputações estaduais.
Em Pernambuco, das 13 vagas disponíveis para deputados, 6 eram ocupadas por
clérigos. É possível perceber uma relação entre os movimentos revolucionários que
antecederam a Independência e a eleição desses agentes, pois metade dos deputados
constituintes eleitos participou diretamente da Revolução de 1817: Francisco Muniz
Tavares, Inácio de Almeida Fortuna e Venâncio Henriques de Resende12.
Quanto ao Ceará, que de 8 vagas, 5 eram ocupadas por clérigos, Hoornaert13
afirmou que “[...] no século XIX e na primeira metade do século XX, o Ceará era
considerado o Estado mais católico do Brasil”, tendo os padres uma grande capacidade de
domínio sobre a população, ainda mais quando estavam ligados a importantes clãs
familiares, ou ainda quando eram os próprios chefes desses clãs. Esse era o caso do
diácono José Martiniano de Alencar, que chegou a Senador do Império em 1832, e foi
chefe do Partido Liberal naquela província até 1860. Isso acontecia porque as forças
políticas daquela região tinham como característica a existência de uma sólida estrutura
patriarcal que mantinha o controle do mecanismo eleitoral sob o poder de determinados
clãs familiares.
A Bahia, província que sediava a Arquidiocese brasileira, por sua vez, dispunha de
um número significativo de cadeiras, 13, e teve proporcionalmente a menor representação
de clérigos na Assembleia, somente 1. Isso se deve, possivelmente, ao fato de que a
província possuía uma estrutura eclesiástica complexa, com cargos atrativos aos sacerdotes
que, por sua vez, tinham mais possibilidades de ascender na elite eclesiástica, bem como
uma disciplina sacerdotal mais próxima ao modelo tridentino, desde o estabelecimento das
12 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo:
Editora 34, 2014.
13 HOORNAERT, Eduardo. “Aldeamento e catequese”. In: CHAVES, Gilmar (Org.) Ceará de Corpo e Alma:
um olhar contemporâneo de 53 autores sobre a terra da luz. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002. p. 269.
14SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: SCT, EDUFBA,
2000.
Considerações Finais
15 SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do Altar a Tribuna. Os padres políticos na formação do Estado Nacional
brasileiro (1823–1841). 2010. 438 f. Tese (Doutorado em História política) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Bibliografia
Anexo:
N.º DE
Nº DE
PROVÍNCIA PADRES NOME
VAGAS
ELEITOS
5 Francisco de Assis Barbosa
Alagoas 2
Luiz José de Barros Leite
Antônio Marques Sampaio
Francisco Agostinho Gomes (não tomou assento)
Bahia 13 5 José Cardoso Pereira de Melo
José Ribeiro Soares da Rocha
Marcos Antônio de Sousa
20 Antônio da Rocha Franco
José Bento Leite Ferreira de Mello
Minas Gerais 4
José Custódio Dias
Manoel Rodrigues da Costa (não tomou assento)
Pará 3 1 Romualdo Antônio de Seixas
Galdino da Costa Vilar
Paraíba 5 2 Amaro de Barros de Oliveira Lima (não tomou
assento)
Pernambuco 13 1 Miguel José Reinaut
Piauí 1 1 Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago
8 Francisco Corrêa Vidigal
Rio de Janeiro 3 Januário da Cunha Barbosa
José de Sousa Azevedo Pizzarro e Araújo
Rio Grande do 1 Inácio Pinto de Almeida e Castro (morre em
1
Norte 1827)
Rio Grande do Sul 3 1 Antônio Vieira da Soledade
9 Diogo Antônio Feijó
São Paulo 2
João Chrysostomo de Oliveira Salgado
Resumo
Um intelectual esquecido
chamados “resquícios feudais”, foi contestado por cada vez mais amplos setores
intelectuais.
Ainda que justas críticas às formulações propostas por APG, o processo se
desenvolveu, no entanto, no sentido de caricaturizar o intelectual e sua contribuição como
um todo. Resultante que compreendemos como consequente do forte antagonismo
político que rivalizavam esses diversos setores intelectuais em meio aos debates sobre a
realidade brasileira e a estratégia de uma Revolução Social. Destaca-se, a exemplo dessa
caracterização, a formulação feita por Caio Prado Jr. em seu A Revolução Brasileira –
originalmente publicado em 1966 – onde afirma que o programa de luta contra os
“resquícios feudais” defendida pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), partido em que
APG atuou e teve influência significativa, tratava-se apenas de um decalque das teses
stalinistas aplicadas dogmaticamente ao país durante 36 anos, sem que fosse refletida por
dirigentes e teóricos durante todo esse período3.
A formulação acima referida tem grande repercussão para interpretações e análises
especializadas da história do PCB e de seus intelectuais ainda hoje. Ainda que não se deva
descartar a influência do marxismo stalinista e do dogmatismo ao longo da história do
PCB, acreditamos que a sua influência definida desta forma apresenta certa tendência a
fortes reducionismos das diversas experiências e do significado histórico dos agentes que
estiveram na construção daquela instituição política e daquele campo político-ideológico,
como é o caso de APG. Não raro, é possível observar que importantes trabalhos sobre a
história do PCB não se detenham em analisar as diferentes configurações que atravessam a
construção política e intelectual do programa dos comunistas.
Sobre APG, especificamente, a situação apresenta-se ainda complexa. José Paulo
Netto nos fala que:
“(...) fora desses círculos especializados e no campo exterior à polêmica
sobre a questão fundiária brasileira, nos meios acadêmicos pouco se leu e
se debateu seriamente a obra de Alberto Passos Guimarães. E,
especialmente entre os mais jovens, o desconhecimento acerca de sua
trajetória é assombroso”4.
produziram a atuação do PCB num período histórico em que o partido possuía projeção
nacional no movimento progressista.
Buscando investigar a formulação/trajetória de Passos Guimarães, adotamos as
indicações apresentadas pelo historiador argentino Horacio Tarcus (2018) sobre os
métodos de construção de uma História Intelectual. A investigação sobre a contribuição
intelectual de um determinado personagem não se dá apenas pela análise de suas principais
obras, característica de uma História das Ideias, mas seguindo os rastros de contribuições
secundarizadas, “nesses textos, tributários ou derivados – às vezes marcadamente modestos
– o investigador da história intelectual encontra as nuances mais reveladoras de uma
época”5.
Na elaboração da dissertação de mestrado Um Intelectual Incontornável: o pensamento
político de Alberto Passos Guimarães (1956 – 1964), buscamos realizar um amplo levantamento
da produção jornalística de APG, inquéritos policiais com citação ao personagem, textos de
intervenção política, relatos de memórias de companheiros, artigos teóricos do autor em
revistas acadêmicas, além de fragmentos biográficos recolhidos em literatura dispersa.
7 MORAES, Dênis. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Editora Boitempo, 2012.
8 LEBENSZTEYN, Ieda. Graciliano e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. Tese (doutorado
em Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
9 Os textos foram reunidos em anexo em ALBUQUERQUE, Leonardo César de. Um Intelectual Incontornável: o
pensamento político de Alberto Passos Guimarães. Dissertação (mestrado em Ciência Social), Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
10 ALMEIDA, Luiz Sávio de. Chrônicas Alagoanas II: notas sobre poder, operários e comunistas em Alagoas. Maceió:
EDUFAL, 2006.
Dissertação (mestrado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; MELO, Ana Amélia
M. C. de “Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa”, Varia História, Belo Horizonte, vol.
27, n. 46, jul. /dez. 2011, pp. 711-732.
Tese que deve ser compreendida no seu contesto de disputa entre comunistas e
liberais por qual conceito de democracia seria retratado com anseio da intelectualidade
brasileira, mas que a nosso ver revela um diálogo de APG com perspectivas pluralistas com
relação a luta política, que entendemos que pode ser observado em formulações posteriores
do próprio autor.
Começaria a trabalhar no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no
ano de 1949. Nessa instituição ganharia grande renome por sua contribuição em reiteradas
vezes de renovação dos objetivos do serviço de recenseamento do instituto. Destaca-se sua
proposta inédita de recenseamento das favelas, que colocava deslocou decisivamente esses
espaços do “universo mítico” para tornar-se “objeto de análise socioeconômica
sistemática”16.
Como consequência da pesquisa pioneira do IBGE das favelas do Distrito Federal,
realizada em 1953, APG elabora relatório avaliando a existência de uma crise habitacional
produzida pela grande pressão inflacionária. A solução dessa crise se daria ou pelo
rebaixamento dos preços dos imóveis ou pela subida do poder aquisitivo dos trabalhadores
urbanos. Destaca-se também o caráter revelador da formação sociológica das favelas em
oposição as visões higienistas que possuíam grande penetração junto a sociedade. Concluía
que:
17 GUIMARÃES, Alberto Passos, “As Favelas do Distrito Federal”, Revista Brasileira de Estatística, Ano XIV,
n. 55, jun./set. de 1953, pp. 250-278, p. 261.
18 SANTOS, Raimundo. A Primeira Renovação Pecebista: reflexos do XX Congresso do PCB (1956-1957). Belo
Horizonte: Oficina de Livros, 1988; SEGATTO, José Antônio. Reforma e Revolução: as vicissitudes políticas do PCB
1954-1964. São Paulo: Civilização Brasileira, 1995.
19 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Expressão Popular: Editora Fundação Perseu Abramo,
2014.
20 ALBUQUERQUE, op. cit..
21 ALBUQUERQUE, op. cit.
Considerações finais
22 Id., 2019.
simplesmente associar sua produção com as teses stalinistas de etapas e vislumbra-se uma
construção intelectual singular e coerente com sua prática política.
Bibliografia
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar a censura durante o período joanino no
Brasil, 1808 a 1821. Para isso, serão apresentadas as práticas da censura assim como os
censores que aturam nas esferas censórias existentes: Mesa do Desembargo do Paço, no
Rio de Janeiro e Comissão da censura, na Bahia. Além disso, por meio de um estudo
prosopográfico pretende-se apresentar os censores que eram encarregados pela censura e
traçar um perfil do grupo. O perfil dos censores será analisado com a finalidade de
identificar características comuns ao grupo e compreender melhor a ação de tais homens.
Introdução
1 Doutoranda em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aluna
pesquisadora no Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (REDES) e associada a Sociedade
Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO). O presente trabalho é um estudo em andamento da pesquisa
desenvolvida no doutorado, sob orientação da Profa. Dra. Lucia Maria Bastos Pereira das Neves (UERJ). E-
mail: maira.villares@hotmail.com.
2 Para saber mais sobre a suspensão do decreto e a ação da censura, ver: NEVES, Guilherme Pereira das.
“Censura.” In VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva,
2000, p. 112 -114.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
A inexistência de tipografias no Brasil até 1808 pode ser analisada como um dos
fatores que contribuíram para ausência de mecanismos censórios no território. Conforme
apresentado anteriormente, a chegada da corte alterou a relação com os impressos e
consequentemente contribuiu para o surgimento de processos censórios. A Historiografia5
3 Para mais informações sobre o funcionamento da censura em Portugal, ver: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos
do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte, Fino Traço, 2015.
4 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. “Censura, circulação de ideias e esfera pública de poder no Brasil, 1808-
moralidade: a censura de livros no Brasil de D. João VI (1808-1821) In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci
(org.). Minorias Silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: pp.91-118; NEVES, Lúcia
Maria Bastos e FERREIRA, Tania Maria Bessone da Cruz. O medo dos “Abomináveis princípios franceses”:
a censura dos livros no início do século XIX no Brasil. In: Acervo: revista do arquivo nacional. n. 4, p. 113-119,
1989.
6 NEVES, Lucia Bastos Pereira das, GARCIA, Lucia Maria Cruz. Impressão Régia. In: VAINFAS, Ronaldo
& NEVES, Lucia Bastos Pereira das. (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.
7 MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na Capitania da Bahia
(1811-1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p. 203-236. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020.
8 Ibidem. p. 207.
9 Os censores foram agrupados nas três categorias conforme foram identificados nas nomeações para o cargo
e nas assinaturas nos pareceres. Para mais informações, ver: VIANNA, Maíra Moraes dos Santos Villares.
Censores em cena: atores dentro da Mesa do Desembargo do Paço na Corte Joanina. Dissertação (Mestrado em História)
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019,
p. 29-31.
10 MAGALHÃES. MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na
Capitania da Bahia (1811-1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p. 208. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020.
Tavares de Azevedo Castelo Branco, Antônio Vieira da Soledade, Francisco Corrêa Vidigal,
Francisco de São Paio (Frei), Francisco de São Carlos (Frei), Francisco de Borja Garção
Stockler, Antônio D’Arrábida (Frei), Inocêncio Antônio das Neves Portugal (Frei), José
Doutel (Frei), Emigádio do Rosário (Frei), José Policarpo de Santa Gertrudes (Frei), José
de São Boaventura Benevente (Frei), Januário da Cunha Barbosa, João Francisco e Braga,
José Caetano Ferreira de Aguiar, José da Silva Lisboa, José Feliciano de Castilhos, Luís José
de Carvalho e Mello, Manoel Loreto Bastos, Manoel Luiz Alvares de Carvalho, Mariano
José Pereira da Fonseca, João Manzzoni (Padre), Antônio Pereira de Sousa Caldas (Padre) e
Thomé da Madre de Deus Coutinho. Sendo os sete primeiros censores na Bahia e dos
demais no Rio de Janeiro. A seguir, os censores serão analisados através dos dados
biográficos coletados e expostos no Quadro: Informações biográficas sobre os
censores (em anexo). Será realizado um estudo prosopográfico do grupo, utilizando-se
como aporte teórico e metodológico o estudo desenvolvido por Lawrence Stone.11
11STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia Política. Curitiba, V. 19 nº39, p. 115-137, jun. 2011.
12 O quadro foi composto após o levantamento dos dados presentes nos estudos desenvolvidos por:
MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na Capitania da Bahia (1811-
1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p. 203-236. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020.
VIANNA. Maíra Moraes dos Santos Villares. Censores em cena: atores dentro da Mesa do Desembargo do Paço na Corte
Joanina. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019, p. 34-37.
seja, aqueles responsáveis pela censura religiosa e os que se ocupavam de todos os demais
assuntos. Na Bahia, conforme destaca Magalhães13, dois censores foram indicados pelo
Prelado Metropolitano: o Conego José Fernandes da Silva Freire e o Padre Mestre João
Machado. Enquanto no Rio de Janeiro, o Ordinário nomeou onze os censores14, sendo
eles: Antônio de Sousa Tavares Azevedo Castelo Branco, Antônio Veira da Soledade, Frei
Emigádio do Rosário, Frei Francisco de São Paio, Frei Francisco de São Carlos, Francisco
Corrêa Vidigal, Frei Inocêncio Antônio das Neves Portugal, Frei José de São Boaventura
Benevente, Frei José Policarpo de Santa Gertrudes, João Francisco e Braga e José Caetano
Ferreira de Aguiar. Assim, ao todo eram trezes religiosos para realizarem a análise das obras
de teor religioso. Entretanto, observa-se que havia um número bem maior de religiosos
entre os censores.
Dos trinta e quatro censores, trezes foram formados pela Universidade de Coimbra,
em Portugal, quatro eram censores na Bahia e nove no Rio de Janeiro. Tal constatação
reforça a importância da formação letrada pelos censores, pois almejava-se que tais homens
fossem detentores de conhecimentos variados para que pudessem realizar a leitura e análise
das obras que eram encaminhadas.
O cargo de censor não foi o único ocupado por tais homens, muitos deles
desempenharam outras funções como será exposto a seguir. Em relação aos censores da
Bahia, José Francisco Cardoso de Moraes foi escrivão da chancelaria da Bahia; Pedro
Gomes Ferrão Castelbranco foi diretor da Biblioteca da Bahia; Francisco Carneiro de
Campos ocupou o cargo de juiz de Fora dos Órfãos de Salvador (1819), Desembargador da
Relação da Bahia e da Casa da Suplicação, Ministro dos Negócios Estrangeiros; João
Rodrigues de Brito foi Desembargador da Casa da Suplicação em Lisboa (1820); Antônio
Luiz Pereira da Cunha foi Ouvidor na Bahia e Desembargador em Pernambuco (1792),
membro do conselho da Fazenda, fez parte do governo interino da Bahia (1809), Deputado
da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (1818), Fiscal das Mercês
(18019), Intendente Geral da Polícia (1821), Ministro da Fazenda, do Império e dos
Estrangeiros (1823) e foi eleito por Pernambuco para o senado do Império do Brasil (1823
13 MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na Capitania da Bahia
(1811-1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p.211. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020. Apud:
Almanach. Almanach para a Cidade da Bahia anno 1812. Bahia: na Typ. De Manoel Antonio da Silva Serva,
1811, p. 234-235.
14 VIANNA. Op. Cit., p. 29-31.
a 1837).15 Entre os censores na Bahia, Brito foi o que mais teve atuação em outros cargos
régios, prolongando a ação política até o governo Imperial de d. Pedro I.
Os homens que ocuparam o cargo de censor no Rio de Janeiro também
desempenharam outras funções régias conforme será apresentado a seguir: Antônio de
Santa Úrsula Rodovalho foi Ministro provincial do Convento da Corte em 1808, mas
renunciou ao caro em 1811 e foi Pregador Régio da Capela Real; Antônio Viera da
Soledade foi pregador Régio; o Frei Francisco de São Paio foi pregador Régio e
examinador da Mesa de Consciência e Ordens; Frei Francisco de São Carlos foi
examinador da Mesa de Consciências e Ordens e pregador Régio; Francisco de Borja
Garção Stockler foi o único militar entre os censores e desempenhou a função de Marechal
de Campo reformado dos Exércitos Reais, Tenente General e Governador e Capitão
General das Ilhas de Ações; O Frei Antônio D’Arrábida ocupou funções do período
joanino até o governo de d. Pedro II. Foi diretor da Biblioteca Imperial e Pública e Reitor
do Colégio Pedro II; Januário da Cunha Barbosa teve cargos como: Bibliotecário da
Biblioteca Pública da Corte e lente de filosofia racional e moral da corte; José da Silva
Lisboa foi deputado da junta do comércio Agricultura Fábricas e Navegação do Estado do
Brasil, Desembargador da Relação da Bahia, Desembargador do Paço e Inspetor Geral dos
estabelecimentos literários e científicos do reino; José Feliciano de Castilhos foi médico da
Real Câmara e mordomo mor; Luís José de Carvalho e Mello foi juiz e ouvidor da
alfândega da corte, deputado da real junta do Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação
do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos, Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Corregedor do Crime da Corte e Casa, Desembargador do Agravos da casa da suplicação e
Juiz dos órfãos da vila de Resende; Manoel Luiz Alvares de Carvalho foi médico da Real
Câmara, Diretor Geral dos Estudos Médicos e Cirúrgicos da Corte e do Reino do Brasil e
por fim, Mariano José Pereira da Fonseca se destacou como Deputado da Comissão Junta
da Cidade, Deputado da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado
do Brasil e Domínios Ultramarinos além de Conselheiro de Estado e Ministro dos
Negócios da Fazenda.16
15 MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na Capitania da Bahia
(1811-1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p.210-217. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020
16 Os dados sobre os ofícios régios ocupados pelos censores foram obtidos em: VIANNA. Maíra Moraes dos
Santos Villares. Censores em cena: atores dentro da Mesa do Desembargo do Paço na Corte Joanina. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019, p. 34-37.
Ao todo, dezessete dos trinta e quatro censores estavam inseridos em outros locais
de poder que não fosse a censura, cinco censores na Bahia e doze no Rio de Janeiro. Tal
constatação é importante para se pensar a inserção de tais homens nos governos de d. João
VI, d. Pedro I e d. Pedro II, além de ser possível questionar qual a relação entre o cargo de
censor e a inserção em outras esferas de poder, mas tal questão ficará para uma análise
futura.
Por fim, cabe destacar que alguns homens possuíam ideias contrárias das que
deveriam combater por meio do cargo de censor. Na Bahia, segundo o estudos de
Magalhães, alguns censores foram acusados de estarem inseridos na maçonaria, sendo eles:
José Francisco Cardoso (acusado de introduzir a maçonaria na Bahia), José Fernandes da
Silva Freire, Antônio Luiz Pereira da Cunha e Pedro Gomes Ferrão.17 No Rio de Janeiro
não foram identificados censores relacionados a maçonaria, mas alguns possuíram
pensamentos que não eram compartilhados pela coroa. José da Silva Lisboa era um liberal
nas questões econômicas. Além dele, Francisco de Borja Garção Stockler foi acusado de
ser simpatizante aos franceses, após a invasão de Napoleão a Portugal e MarianoJosé
Pereira da Fonseca foi preso aos 21 por ter sido acusado de participar de uma conspiração
contra as autoridades portuguesas.18 Assim, é possível observar pensamentos que deveriam
ser combatidos inseridos dentro do grupo dos censores.
Considerações finais
17 MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Luzes e Sombras: A Censura de Livros na Capitania da Bahia
(1811-1821). Revista Complutense de História de América, v. 43, 2017, p.211. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020. Apud:
Almanach. Almanach para a Cidade da Bahia anno 1812. Bahia: na Typ. De Manoel Antonio da Silva Serva,
1811, p. 215-217.
18 NEVES. Guilherme Pereira das. As máximas do Marquês: Moral e Política na trajetória de Mariano José da
Fonseca. In: ANPUH. XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina, 2005, p. 01-10.
Bibliografia
Anexos:
Quadro: Informações biográficas sobre os censores:19
L. C O
U P
N A M M L F.
N R
CENSORES A
I
D
O
I É E R
S V L D R É
V F
C. O G20
Antônio Luiz Pereira da Cunha BA C X X
B Francisco Carneiro de Campos BA C X X X
A João Machado BA X X
H João Rodrigues de Brito PT C X X
I José Fernandes da Silva Freire BA C X
A José Francisco Cardoso de Moraes BA X X
Pedro Gomes Ferrão Castelbranco BA X
Antônio D’ Anunciação Avelino X
Antônio de Nossa senhora da Graça RJ X
Antônio de Santa Úrsula Rodovalho SP X X X
Antônio de Sousa Tavares de Azevedo Castelo Branco X
Antônio Vieira da Soledade PT X X
R Francisco Corrêa Vidigal RJ C X
I Francisco de São Paio (Frei) X X
O Francisco de São Carlos (Frei) RJ X X
Francisco de Borja Garção Stockler PT C X X X
D Antônio D’Arrábida (Frei) PT X X
E
Inocêncio Antônio das Neves Portugal (Frei) C X
José Doutel (Frei) X
J
Emigádio do Rosário (Frei) X
A
José Policarpo de Santa Gertrudes (Frei) X
N
José de São Boaventura Benevente (Frei) X
E
I Januário da Cunha Barbosa RJ X X X
R João Francisco e Braga X
O José Caetano Ferreira de Aguiar X
José da Silva Lisboa BA C X X
José Feliciano de Castilhos C X X
Luís José de Carvalho e Mello BA C X X
Manoel Loreto Bastos X
Manoel Luiz Alvares de Carvalho BA C X X X
Mariano José Pereira da Fonseca RJ C X X
João Manzzoni (Padre) X
Antônio Pereira de Sousa Caldas (Padre) RJ C X X
Thomé da Madre de Deus Coutinho X
Fontes: A Censura de Livros na Capitania da Bahia (1811-1821). Revista Complutense de História de América,
v. 43, 2017, p. 203-236. Disponível em:
<https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/view/56732/51285>. Acesso em: 15 nov. 2020.
VIANNA. Maíra Moraes dos Santos Villares. Censores em cena: atores dentro da Mesa do Desembargo do Paço na
Corte Joanina. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
19 Abreviaturas do quadro: L. NASC. Local Nascimento, UNIV – Universidade, ADV -Advogado, PROF –
Professor, MIL – Militar, MÉD -Médico, OF. RÉG. – Ofícios Régios e C – Coimbra.
20 Em tal categoria foram considerados todos os cargos régios obtidos durante a vida pelos homens
Resumo
Esta comunicação visa apresentar alguns pontos de esquecimento nas narrativas sobre a
“Operação mata-mendigos”, um conjunto de homicídios contra pessoas em situação de rua
nos rios Guandu e da Guarda, perpetrados por funcionários do Serviço de Repressão à
Mendicância entre os anos de 1962 e 1963. Recorremos a fragmentos biográficos de dois
personagens com posições dicotômicas – a sobrevivente Olindina Alves Japiassu e o chefe
do SRM, Alcino Pinto Nunes – para problematizar os motivos de tais esquecimentos na
tessitura das narrativas sobre o acontecimento. Em ambos os casos, a periferização do
acontecimento se soma à posição social do indivíduo num momento específico de sua vida
resulta no ocultamento sincrônico e diacrônico de determinadas memórias.
Introdução
1Doutoranda e Mestra em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro do Núcleo de
Estudos Mediterrânicos (NEMED) e do grupo de pesquisa Cultura e Poder. E-mail:
mariana.diasant@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2 Para uma relação nominal das vítimas conforme a grafia mais frequente no jornal Ultima Hora, Cf.
ANTONIO, Mariana Dias. “A ‘Operação mata-mendigos’ e o jornal Ultima Hora (Rio de Janeiro, 1961-
1969)”. Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v. 9, n. 1, p. 85-105, 2019, p. 96. Disponível em:
revistavozes.uespi.br/ojs/index.php/revistavozes/article/view/203. Acesso em: 26 set. 2020.
3 RODRIGUES, Igor de Souza. A Construção Social do Morador de Rua: o controle simbólico da identidade.
2015. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015,
129p. p. 77.
4 ANTONIO, Mariana Dias. “A ‘Operação mata-mendigos’ e o jornal Ultima Hora (Rio de Janeiro, 1961-
1969)”. Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v. 9, n. 1, p. 85-105, 2019, p. 97. Disponível em:
revistavozes.uespi.br/ojs/index.php/revistavozes/article/view/203. Acesso em: 26 set. 2020; BARBOSA,
pelo jornal Ultima Hora, pioneiro nas denúncias sobre o morticínio. Ainda assim, seu nome
é frequente na cobertura jornalística e na literatura sobre a “Operação mata-mendigos”.
Entretanto, sua identidade propriamente dita parece ser irrelevante nas narrativas sobre o
caso, mas uma breve alteração na temática pesquisada revela uma biografia vinculada ao
jornalismo brasileiro e à atividade política local, mas numa localidade bem distante do Rio
de Janeiro.
O livro Minha cidade, minha saudade, de Luís Wilson, discorre sobre a história
política, administrativa e de diversas famílias da cidade pernambucana de Arcoverde. O
povoado de Olho d’Água, posteriormente Olho d’Água dos Bredos, foi elevado à categoria
de vila através da Lei Estadual n. 991, de 1º de julho de 1909; a denominação da vila foi
alterada para Rio Branco, em homenagem ao Barão do Rio Branco, em março de 1912; a
vila foi elevada a município em 1928, incorporando terras dos municípios de Pesqueira e
Buíque; e em 1943, seu topônimo foi alterado para Arcoverde, em homenagem ao primeiro
cardeal do Brasil e da América Latina, D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti,
confirmando uma solicitação dos habitantes de Olho d’Água dos Bredos de 1906. Segundo
Wilson, o coronel Antonio Japiassu foi o primeiro prefeito de Rio Branco entre 1928 e
19305.
Ao abordar simultaneamente a história política, administrativa e de diversas
famílias, a genealogia do coronel oferecida por Wilson nos permite situar Olindina. André
Japiassu, casado com dona Sulina, era pai de Olindina e irmão de Antonio Japiassu.
Olindina vivera muitos anos na casa do coronel, em Rio Branco. Entre os filhos de
Antonio Japiassu, encontramos Neusa Japiassu, casada com Severino Lins Falcão e mãe de
Celso Almir Japiassu Lins Falcão (jornalista, poeta e publicitário), Moacir Japiassu Lins
Falcão (jornalista) e Severino Filho (Bill Falcão, jornalista)6. Não obstante Olindina ser
sobrinha e ter convivido na casa do primeiro prefeito de Rio Branco (hoje Arcoverde),
notamos laços de parentesco com Moacir Japiassu, que viria a ser um grande nome do
jornalismo brasileiro. Todavia, a história por trás da sobrevivente que denunciou seus
algozes e como ela chegou à situação de rua no Rio de Janeiro parece ser de pouca
Adriano. Esquadrão da Morte - um mal necessário? São Paulo: Mandarino, 1971, p. 106; BARBOSA, Adriano;
MONTEIRO, José. Do Esquadrão ao Mão Branca. Rio de Janeiro: Jaguaribe Gráfica e Editora. 1980, p. 77;
DULLES, John W. F. Carlos Lacerda. A vida de um lutador. trad. Daphne F. Rodger. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, v. 2, p. 134.
5 WILSON, Luís. Minha cidade, minha saudade; Arcoverde (Rio Branco), reminiscências e notas para sua
história. 2. ed. Recife: Centro de Estudos de História Municipal / FIAM, 1983, p. 43-52, 135.
6 Ibidem. p. 437-441. Ver também: NORONHA, Solange. Entrevista – Moacir Japiassu. ABI. Brasil, 14 fev.
7 Ariosto Fontana conduziu o inquérito criminal sobre o caso no 36º DP, em Santa Cruz.
8 Demóstenes Japiassu era filho do coronel Antonio Japiassu e irmão de Neusa Japiassu. Desta forma, era
primo em primeiro grau de Olindina e tio de Moacir Japiassu.
9 CORREIO DA MANHÃ. Mendiga que denunciou crimes do Rio da Guarda depôs ontem na Polícia.
BARBOSA, Adriano; MONTEIRO, José. Do Esquadrão ao Mão Branca. Rio de Janeiro: Jaguaribe Gráfica e
Editora. 1980, p. 77.
11 BARBOSA, Adriano. Esquadrão da Morte - um mal necessário? São Paulo: Mandarino, 1971, p. 106.
Pouco tempo após as primeiras denúncias, Alcino Pinto Nunes, então chefe do
SRM, teve sua prisão preventiva ordenada. O encarceramento provisório foi longo, mas a
imprensa e a literatura pouco comentam sobre os acontecimentos no cárcere. Sabemos que
Alcino sofreu alguns infartos e transitou entre o Regimento de Cavalaria Caetano de Faria e
a Penitenciária Lemos Brito. Ele também obteve liberdade provisória para aguardar seu
julgamento em 197412. Na oportunidade, o Jornal do Brasil criticou a morosidade da justiça
brasileira:
Seu caso revela, com uma cruel simplicidade, que a situação atual da
Justiça permite que uma pessoa fique 11 anos presa sêm julgamento. E
assim, das duas uma, ou um inocente pode ficar 11 anos preso ou um
culpado de homicídios é capaz de driblar o julgamento por mais de uma
década.
É óbvio que nenhuma das duas alternativas pode ser lisonjeira à
sociedade13.
12 ANTONIO, Mariana Dias. “A ‘Operação mata-mendigos’ e o jornal Ultima Hora (Rio de Janeiro, 1961-
1969)”. Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v. 9, n. 1, p. 85-105, 2019, p. 94. Disponível em:
revistavozes.uespi.br/ojs/index.php/revistavozes/article/view/203. Acesso em: 26 set. 2020.
13 JORNAL DO BRASIL. Alcino e a reforma. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1974. p. 10. Disponível
15 LORENZETTI, José. [Relato]. Nossa vida em comum: Boletim informativo da província Imaculada
Conceição, RS, Brasil. Passo Fundo, n. 02, 1982, p. 4-9. p. 9. Disponível em:
http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_v8/mic/gnc/ggg/82004799/br_dfanbsb_v8_
mic_gnc_ggg_82004799_d0001de0001.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.
16 ULTIMA HORA. Coração. Ultima Hora (Matutino), Rio de Janeiro, 28 dez. 1964. p. 7. Disponível em:
suicídio do ex-presidente. Foi preso devido à comprovação de seu envolvimento no atentado da rua Tonelero
em 1954, que visava eliminar Carlos Lacerda, mas culminou na morte do major Rubens Vaz, da Aeronáutica.
Gregório Fortunato foi assassinado na Penitenciária Lemos Brito em 1962.
convívio com Alcino ser posterior18. Em 22 de janeiro de 1965, o Ultima Hora anuncia um
novo infarto de Alcino, após sua transferência do Hospital Souza Aguiar para a
Penitenciária Lemos Brito, e seu advogado novamente ressalta que a transferência visava
eliminá-lo19. O retorno de Alcino ao Regimento de Cavalaria Caetano de Faria é noticiado
pelo Ultima Hora em 26 de março de 1965, na coluna de Mário Augusto. Comenta-se que a
transferência fora realizada após o deferimento da petição do advogado ao juiz Gama
Malcher, do I Tribunal do Júri, alegando de que seu cliente sequer fora julgado para ser
transferido a uma penitenciária, além de ter ocupado um cargo de destaque na polícia, com
direito a cela especial20.
As narrativas de comiseração sobre o ex-chefe do SRM prosseguem até a década
seguinte, quando o julgamento de Alcino por júri popular é remarcado diversas vezes entre
1970 e 1971. Em 7 de outubro de 1971, o repórter Amado Ribeiro publica o texto “UM
POBRE DIABO ENFRENTA A LEI” na sua coluna em O Jornal. Ribeiro foi pioneiro em
denúncias contra o SRM já em 1962, quando trabalhava para o Ultima Hora21, mas nessa
coluna o jornalista enfatiza o contraste entre a posição hierárquica de Alcino na época dos
crimes e sua atual fragilidade:
[...] após três enfartes e nove anos de prisão, arruinado física e
financeiramente, abandonado pela própria família que nunca mais o
procurou, Alcino é apenas um retrato esmaecido do policial garboso e
cheio de pose que serviu à uma época de intrigas de bastidores22.
1969)”. Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v. 9, n. 1, p. 85-105, 2019. Disponível em:
revistavozes.uespi.br/ojs/index.php/revistavozes/article/view/203. Acesso em: 26 set. 2020.
22 RIBEIRO, Amado. UM POBRE DIABO ENFRENTA A LEI. O Jornal, Rio de Janeiro, 7 out. 1971. p. 9.
Considerações Finais
24 Rastreamos 289 fotografias, ilustrações ou fac-símiles que se relacionam direta ou indiretamente à “Operação
mata-mendigos”, distribuídas entre as pastas ICO-UH-1030, ICO-UH-1033, ICO-UH-1034, ICO-UH-1035,
ICO-UH-1038, ICO-UH-1083, ICO-UH-1084, ICO-UH-1085 e ICO-UH-1086.
25 GUANABARA. Tribunal de Justiça da Guanabara. Recurso nº 5.977. Acórdão. Relator: Roberto Medeiros.
Guanabara, 03 dez. 1964; Sentença. Prolator: Roberto Talavera Bruce. Guanabara, 18 jul. 1963. Revista Forense,
Guanabara, v. 212, p. 333-355, 1965, p. 342, 353.
26 Cf. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Quatro histórias, duas colônias, uma ilha. Rio de Janeiro: Garamond, 2018.
Referências
CORREIO DA MANHÃ. Mendiga que denunciou crimes do Rio da Guarda depôs ontem
na Polícia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 mar. 1963. p. 8. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/37595. Acesso em: 06 out. 2020.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. SALVOU-SE NO RIO DA GUARDA POR SER CAMPEÃ
DE NATAÇÃO. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 7 mar. 1963. p. 13. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/093718_04/28084. Acesso em: 06 out. 2020.
DULLES, John W. F. Carlos Lacerda. A vida de um lutador. trad. Daphne F. Rodger. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000. v. 2.
GUANABARA. Tribunal de Justiça da Guanabara. Recurso nº 5.977. Acórdão. Relator:
Roberto Medeiros. Guanabara, 03 dez. 1964; Sentença. Prolator: Roberto Talavera Bruce.
Guanabara, 18 jul. 1963. Revista Forense, Guanabara, v. 212, p. 333-355, 1965.
JORNAL DO BRASIL. Mendiga confirma massacre no rio e deputado denuncia prisões
ilegais no Abrigo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 mar. 1963. p. 12. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/37308. Acesso em: 06 out. 2020.
JORNAL DO BRASIL. Alcino e a reforma. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 mar. 1974. p. 10.
Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/030015_09/102039. Acesso em: 26 set. 2020.
LORENZETTI, José. [Relato]. Nossa vida em comum: Boletim informativo da província
Imaculada Conceição, RS, Brasil. Passo Fundo, n. 02, 1982. p. 4-9. Disponível em:
http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_v8/mic/gnc/ggg/82004799/
br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ggg_82004799_d0001de0001.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.
NORONHA, Solange. Entrevista – Moacir Japiassu. ABI. Brasil, 14 fev. 2006. Disponível
em: http://www.abi.org.br/entrevista-moacir-japiassu/. Acesso em: 26 set. 2020.
O PASQUIM. FOI UM RIO QUE PASSOU. O Pasquim, Rio de Janeiro, n. 318, 1º a 07 ago. 1975.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/124745/10595. Acesso em: 26 set. 2020.
RIBEIRO, Amado. UM POBRE DIABO ENFRENTA A LEI. O Jornal, Rio de Janeiro, 7
out. 1971. p. 9. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/110523_06/97196.
Acesso em: 06 out. 2020.
RODRIGUES, Igor de Souza. A Construção Social do Morador de Rua: o controle simbólico
da identidade. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015. 129p.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Quatro histórias, duas colônias, uma ilha. Rio de Janeiro:
Garamond, 2018.
ULTIMA HORA. Polícia Encontra “Solução Final” Para Mendigos: Mata e Joga no Rio
da Guarda. Ultima Hora (Vespertino), Rio de Janeiro, 23 jan. 1963. p. 1. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/386030/86581. Acesso em: 10 out. 2020.
ULTIMA HORA. Coração. Ultima Hora (Matutino), Rio de Janeiro, 28 dez. 1964. p. 7.
Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/386030/104998. Acesso em: 04 out. 2020.
ULTIMA HORA. ADVOGADO DENUNCIA: -MATA-MENDIGO ALCINO VAI
MORRER COMO GREGÓRIO E O GUARDA MOTA. Ultima Hora (Vespertino), Rio
de Janeiro, 05 jan. 1965. p. 7. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/386030/106191. Acesso em: 04 out. 2020.
ULTIMA HORA. Mata-Mendigo. Ultima Hora (Vespertino), Rio de Janeiro, 22 jan. 1965. p. 7.
Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/386030/106627. Acesso em: 04 out. 2020.
WILSON, Luís. Minha cidade, minha saudade; Arcoverde (Rio Branco), reminiscências e notas
para sua história. 2. ed. Recife: Centro de Estudos de História Municipal / FIAM, 1983.
Resumo
Nesse artigo trabalhamos com a escritora piauiense Amélia de Freitas Bevilaqua (1860-
1946), traçando uma pesquisa voltada para importantes fases da sua trajetória: infância,
iniciação na vida literária e casamento. Observamos que a base da sua formação enquanto
escritora ocorreu em dois ambientes, ou seja, em casa e na escola, esse último é
considerado por Amélia de Freitas Bevilaqua um espaço conturbado e confuso.
Destacamos momentos cruciais como o processo de instrução e a inserção no mundo das
letras, sendo acontecimentos vinculados ao incentivo familiar. Como fontes recorremos as
suas memórias que se encontram divididas em livros e periódicos, a exemplo de
BEVILAQUA (1935) e BRITTO (1978). Para compreender essas relações dialogamos com
alguns autores que dialogam com o assunto: ARÌES (2011); GOULEMOT (2011);
HAHNER (1981); PERROT (2016).
vasta produção literária publicada em jornais, revistas e em livros. Entre suas principais obras, se destacam:
Alcione (1902), Silhouettes (1906), Angústia (1913), Jeanette (1928), A Academia Brasileira de Letras - documentos
histórico-literários (1930). Foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Piauiense de Letras. Faleceu
em 17 de novembro de 1946, no Rio de Janeiro. PERIS FEMININOS. O Lírio, Recife, ano 2, n. 8, 5 jun.
1903, p. 7-8. FALECEU A SRA. Amélia Bevilaqua. Diário de Pernambuco, Recife, ano 122, n. 273, 19 nov.
1946, p. 4.
3 FALCI, Miridan Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no
nascimento da primogênita foi bem recebido.4 A sociedade da época ansiava que o filho
primogênito fosse um menino, para que pudesse auxiliar o pai e ocupar o seu lugar na sua
ausência, e para dar prosseguimento aos negócios da família. A mulher era considerada
frágil e acreditavam que dificilmente teria pulso para atuar nessas áreas em caso da morte
do provedor da prole, o pai ou homem responsável pelo sustento da casa. Michelle Perrot
realça esse acontecimento:
Comecemos pelo começo, o nascimento: a menina é menos desejada.
Anunciar: ‘É um menino’ é mais glorioso do que dizer: ‘É uma menina’,
em razão do valor diferente atribuído aos sexos, o que François Héritier
chama de ‘valência diferencial dos sexos’.5
Para essa pesquisa foi consultado uma variedade de textos publicados por Amélia
de Freitas Bevilaqua: crônicas, contos, romances e outras produções voltadas para a sua
escrita. Nota-se que a autora se mantém ligada às suas memórias, para construir narrações
em forma de realidade ou ficção. Sua escrita permite ao leitor compreender parte de sua
vida e, ao mesmo tempo, conhecer os lugares e personagens que são descritos
minuciosamente seguindo os aspectos reais da sociedade em que a escritora está inserida.
Sua escrita é interligada com a sua vida e suas lições. Seu modo de escrever aguça o
imaginário do leitor, “[...] procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”.7
4 BRITTO, Bugyja. Quatro escorços biográficos. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1978.
5 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2016, p. 42.
6 BEVILAQUA, Amélia. Divagações sobre a consciência. In: BEVILAQUA, Clóvis; BEVILAQUA, Amélia
de Freitas. Divagações sobre a consciência: formação Constitucional. Rio de Janeiro: Mundo Médico – Borsoi & C,
1931, p. 17.
7 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 471.
Amélia de Freitas Bevilaqua pouco permaneceu em sua terra natal devido aos
cargos públicos e políticos ocupados pelo seu pai. Assim, sua infância se dividiu entre o
Piauí e Maranhão, entre idas e voltas. Na Província do Piauí conheceu as primeiras letras,
saber ler e escrever seriam os primeiros passos para a sua instrução. Entre os papéis, tintas
e penas também aprendeu outros deveres considerados propriamente de meninas: bordar e
costurar, mas isso não lhe encantou muito, preferiu a leitura e a escrita. Bugyja Britto,
evidencia que a educação de Amélia de Freitas Bevilaqua, teria sido da seguinte forma:
Ela estudara com professores particulares, que vinham à sua residência, o
português, o francês e o inglês, o pai, homem preparado e de uma
bondade irradiante, superintendia a educação dos filhos, interessando-se
vivamente por Amélia, que dava amostra de uma sadia inteligência.
Amélia era filha mimada; atrás do Dr. Freitas estava a D. Teresa (na
intimidade Teresinha) que secundava a vontade do marido nos gostos à
filha; os pais tinham, portanto, a Amélia em subido apreço [...].8
Em 1867,10 aos sete anos de idade, Amélia de Freitas Bevilaqua entrava para o
colégio. Em suas memórias o ambiente escolar era semelhante ao de um cárcere, o que lhe
presidente interino, em 1867 ocupou o cargo de vice-presidente da Província do Piauí, em 1868 voltou a
causava tamanha tristeza. Segundo seus escritos, ela que foi uma criança inquieta e travessa,
depois do ingresso na escola não podia mais atuar em suas peraltices como antes, agora
tinha a responsabilidade de estudar. Os objetivos eram outros, o mundo se tornava
diferente, distante de seus brinquedos. Eram as flores, as árvores, as folhagens dos
coqueiros que ainda prendiam sua atenção, se mantendo ligada a natureza, que muito lhe
fazia pensar.11
June Hahner, ao estudar esse período, identifica que a educação feminina
permanecia atrasada em relação a dos meninos. As meninas ricas aprendiam a cozinhar,
fazer bolos, bordar, tocar piano e também estudar o francês.12 Amélia de Freitas Bevilaqua
recebeu esses ensinamentos, mas foi na escrita que ela se aprofundou.
Sua predileção também eram as brincadeiras cotidianas, porém, com a sua admissão
na escola sentia saudades de suas traquinagens praticadas diariamente.
Minhas travessuras eram assombrosas. Atormentava os pássaros, os
criados, as flores...
No meu rosto, pelo corpo inteiro, estavam os sinais das quedas... Num
minuto, pulava tantas vezes quanto era possível. Dançava com perfeição
todas as danças da moda.13
ocupar o cargo de presidente interino na mesma província. BASTOS, Cláudio de Albuquerque. Dicionário
Histórico e Geográfico do Estado do Piauí. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994, p. 232.
11BEVILAQUA, Amélia, op. cit., p. 210.
12 HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981, p.
32.
13 BEVILAQUA, Amélia, op. cit., p. 209.
14 Idem, p. 227.
italiano, gramática e literatura, enquanto as atividades de agulha eram vistas como algo sem
muita importância. Outro aspecto relevante trata-se da quantidade de alunas: sua
idealizadora visava pela qualidade e não pela quantidade. Nísia Floresta recebeu diversas
críticas pelo rumo que seu estabelecimento de ensino tomou, sendo difamada diversas
vezes.15 Distante do Rio de Janeiro, crescia Amélia de Freitas Bevilaqua, em um mundo a se
transformar, onde havia um choque de pensamentos entre o que era certo e errado ensinar
a uma mulher.
No Brasil havia um conjunto de mulheres que lutavam pela educação feminina, e
defendiam que elas deveriam frequentar a escola e receber um ensino de qualidade. Nísia
Floresta, em 1853 advogava que: “a mulher é como o homem, conforme se exprime o
sublime Platão, uma alma servindo-se de um corpo”.16
A volta de Amélia de Freitas Bevilaqua à Escola Infantil dirigida pelo professor
Jucelino, considerado por ela um homem muito sábio e ao mesmo tempo muito rigoroso,
ao ponto de se tornar bruto com seus alunos, consistia na tentativa da escritora em
formação mostrar a sua resistência. Mesmo reclamando do ensino e das perversidades do
mestre, guardava para si os sentimentos que lhe atordoavam, não queria incomodar os pais,
nem mesmo desperdiçar a oportunidade de frequentar o colégio. Em uma educação nada
avançada, prosseguia a jovem estudante.
Sobre a educação feminina, Duarte ressalta que:
Desde seu início, a educação feminina foi concebida a partir de uma
visão romântica: precisava ser uma educação calcada na religião e na
moral, necessária apenas para estimular a dignidade e preparar a futura
mulher para assumir suas funções de mãe e de esposa junto a família. Tal
projeto ficava bem distante, portanto, de um projeto de formação
intelectualizada, reservada ao segmento masculino da população.17
Segundo Philippe Arìes, os colégios no século XIII eram como asilos para
estudantes pobres, e apenas com o passar dos anos se transformou em uma importante
instituição que acompanhava a evolução das idades e da infância,18 se tornando primordial
no processo educacional, mesmo com uma educação diferenciada entre meninos e
meninas. Para Amélia de Freitas Bevilaqua esse era um dos problemas que lhe causava
inquietações, considerando que com a educação diferenciada as mulheres não podiam se
15 DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: EDUFRN, 2008, p. 185-190.
16 FLORESTA, Nísia. Opúsculo Humanitário. Rio de Janeiro: Tipografia de M. A. Silva Lima, 1853, p. 63.
17 DUARTE, Constância op. cit., p. 189-190.
18 ARÌES, Philipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2011, p. 110-111.
aprofundar em outras áreas, além de terem algumas leituras vetadas. Por qual razão um
ensino tão diferente? Qual objetivo? Sobre isso, é possível observar que:
O papel de esposa e a responsabilidade de educar a prole, por exemplo,
exigiam no máximo a alfabetização e uma educação dentro dos
parâmetros vigentes, para que demonstrasse comportamento ideal para
sua condição social. Esse comportamento era baseado nos ensinamentos
cristãos. Nesse sentido, o conteúdo do ensino limitava-se aos rudimentos
de leitura e escrita, noções de gramática nacional e cálculo. Maior tempo,
entretanto, era dedicado aos trabalhos com agulha, leitura da doutrina
cristã e das horas marianas.19
A citação acima sobre o ensino primário faz referência aos anos anteriores a 1853,
onde Nísia Floresta se refere a esse estilo de escola e ensino como algo do passado.
Levando em consideração o ponto de vista de Nísia Floresta, reputamos que em 1867
Amélia de Freitas Bevilaqua vivia em um atraso educacional, onde um professor recorria
aos castigos físicos para obter resultados positivos, que por fim acabavam resultando em
um baixo rendimento escolar.
A partir das memórias, observa-se que o professor da Escola Infantil se tornou um
verdadeiro transtorno para a inexperiente criança que já tinha inúmeros objetivos, a escola
se caracterizava como degredo. Amélia de Freitas Bevilaqua ressalta que “tinha sido um
monstro aquele Jucelino! Com toda a certeza, reviveu um dos mais puros herdeiros da raça,
que fez, na arte da pedagogia, o triunfo universal de suas crueldades...”.22 Em 1906, Amélia
de Freitas Bevilaqua participou do Terceiro Congresso Científico Latino Americano, no
Rio de Janeiro, onde apresentou parte de suas memórias, ainda carregadas de mágoas pela
19 COSTA FILHO, Alcebíades. A escola do sertão: ensino e sociedade no Piauí, 1850-1899. Teresina: Fundação
Cultural Monsenhor Chaves, 2006, p. 98.
20 BEVILAQUA, Amélia, op. cit., p. 234-239.
21 FLORESTA, Nísia, op. cit., p. 57.
22 BEVILAQUA, Amélia, op. cit., p. 232.
June Hahner destaca que os membros da elite tinham por hábito educar suas
crianças no lar, empregando tutores.29 Amélia de Freitas Bevilaqua cresceu nesse meio, com
23 BEVILAQUA, Amélia de Freitas. Instrução e educação da infância. Recife: Imp. Industrial, 1906.
24 FREITAS, Clodoaldo. Aos domingos. Escritos de Clodoaldo Freitas, Belém, v. 1, 7 set. 1904, p. 173.
25 HAHNER, June E. Honra e distinção das famílias. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria
(org.). Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 57.
26 LIRA, José Luís (org.). De Clóvis para Amélia: correspondência inédita do jurista Clóvis Bevilaqua para sua
mulher, a escritora Amélia de Freitas Bevilaqua. Sobral: Academia Sobralense de Estudos e Letras/
Universidade Estadual Vale do Acaraú, 2011, p. 38.
27 BRITTO, Bugyja, op. cit., p. 55.
28 BEVILAQUA, Amélia, op. cit., p. 213.
uma escola dentro de casa, cercada por mestres e livros, apesar da sua educação ser um
pouco diferenciada dos seus irmãos, isso não lhe impediu de se tornar uma pensadora, de
escrever suas inquietações, de ler o que gostava, e provavelmente as vezes mantendo uma
leitura escondida dos livros que eram considerados impróprios para uma menina, boa parte
eram livros de filosofia ou romances literários.30 Assim, foi se constituindo a formação
dessa piauiense. A informação do ensino doméstico também é apontada por seu primo,
Clodoaldo Freitas que, ao redigir a biografia de João Alfredo de Freitas, evidencia que:
Na casa paterna começou a estudar as primeiras letras com o seu
parente, o Sr. Juvêncio Sarmento tendo por companheiros sua irmã
Amélia, hoje casada com o Dr. Clóvis Bevilaqua, e outros meninos da
família ou da amizade de seus pais.31
Cercada por uma família letrada, cresceu nesse âmbito. Diante da vida, tudo lhe
gerava indagações, pensamentos e perturbações. Amélia de Freitas Bevilaqua questionava:
porque nos separamos de quem gostamos? Qual o significado da vida e da morte? Ser
pobre, ser rico, classes sociais diferentes, não poderiam todos amar, independente das
classes? Devemos em tudo acreditar ou confiar?32
Amélia de Freitas Bevilaqua residia no Maranhão quando se casou com o recém
formado bacharel em Direito Clóvis Bevilaqua.33 Vivendo um namoro por
correspondência, o remetente no Recife e a destinatária no Maranhão, o conjunto de cartas
documentais possibilitam investigar a vida privada do casal. Na leitura das missivas é
possível encontrar assuntos voltados para a família ou para temas intelectuais.34 O
casamento ocorreu em São Luís, no Maranhão, na Igreja de Santo Antônio, em 5 de maio
de 1883.35
Residindo na Província de Pernambuco, Amélia de Freitas Bevilaqua colaborava
nos periódicos locais, assinando suas publicações com pseudônimos. Sua atuação pela
Entre suas obras estão: A filosofia positivista no Brasil (1883); Direito da família (1896); Juristas filósofos (1897), entre
outras. ROMÉRO, Lauro. Clóvis Bevilaqua. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.
34 LIRA, José Luís (org.). De Clóvis para Amélia: correspondência inédita do jurista Clóvis Bevilaqua para sua
mulher, a escritora Amélia de Freitas Bevilaqua. Sobral: Academia Sobralense de Estudos e Letras/
Universidade Estadual Vale do Acaraú, 2011.
35 NA IGREJA de Santo (...). Pacotilha. Maranhão, ano 3, n. 3, 4 maio 1883, p. 3.; REALIZOU-SE hoje (...).
Pacotilha. Maranhão, ano 3, n. 122, 5 maio 1883, p. 2.; NOTICIÁRIO. A Imprensa, Teresina, ano 18, n. 777, 23
maio 1883, p. 4.
imprensa é informada por Miridan Lima, que em suas pesquisas identificou que em 1888
Amélia de Freitas Bevilaqua já colaborava no jornal O Arrebol, de caráter literário e
científico, onde em maio do mesmo ano publicou o texto As coisas que vi.36 Em 1898
iniciou as suas publicações na Revista do Brasil, publicada em São Paulo, onde assinava
apenas A.F.B.37 Não assinar uma publicação com o próprio nome, e sim com pseudônimos
é uma característica predominante comum para a época, em várias regiões do Brasil essa
era uma prática adotada por homens e mulheres.38 Para a mulher o motivo estava
relacionado ao receio de agressões que poderiam sofrer ou mesmo por ter uma família com
opinião contrária à sua.39
Amélia de Freitas Bevilaqua passou por um processo de formação intelectual,
recebendo instrução nos primeiros anos de sua vida. As relações familiares foram de
fundamental importância para essa formação. Suas atividades literárias surgiram cedo, por
meio da sua atuação na imprensa, precocemente redigiu o seu próprio jornal. A partir disso
podemos observar as suas intenções, que mais tarde lhe permitiu o ingresso na imprensa
feminina, questionando sobre os direitos da mulher por meio da sua atuação como redatora
chefe da revista pernambucana O Lírio (1902-1904), revista redigida e dedicada para a
mulher, abordando assuntos como instrução, família, casamento e divórcio, entre os vinte e
um números que circularam pelo Brasil e no exterior, é possível identificar a sua inserção
como escritora de nível nacional.40
Sua escrita, de fácil compreensão, denunciava e alertava para as questões sociais;
seus livros circularam, foram lidos e receberam críticas em diversas regiões do Brasil. Para
Monsenhor Chaves: “Amélia de Freitas Bevilaqua, no mundo das letras, honrou
sobremaneira o Piauí, sua terra-berço. Sua vida foi um prodígio de labor literário. Possuía
sólida cultura e falava várias línguas”.41 Foi por meio da literatura que Amélia de Freitas
36 LIMA, Miridan Rejane Soares. Aos encantos do lar: amor e companheirismo entre Amélia Bevilaqua e Clóvis
Bevilaqua. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – PPGHB – UFPI, Teresina, 2016, p. 89.
37 PERIS FEMININOS. O Lírio, Recife, ano 2, n. 8, 5 jun. 1903, p. 7-8
38 ROCHA, Olívia Candeia Lima. Escritoras piauienses, pseudônimos, flores e espinhos. 2003. Disponível em
de Freitas Bevilaqua como redatora chefe da revista pernambucana O Lírio (1902-1904). In: NASCIMENTO,
Francisco de Assis de Sousa; SILVA, Rodrigo Caetano; SILVA, Ronyere Ferreira da (org.). História e Cultura:
trajetos singulares. Teresina: EDUFPI, 2016, p. 129-150.; BARROS, Nino Cesar Dourado. A revista feminina
pernambucana O Lírio e a participação das mulheres maranhenses (1902-1904). In: SANTANA, Jucey dos
Santos; CANTANHEDE, João Carlos Pimentel (org.). Púcaro Literário II: Itapecuru Mirim, 200 anos. São
Luís: AICLA, 2018, p. 261-268.
41 CHAVES, Monsenhor. Obra Completa. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998, p. 527.
Bevilaqua se inseriu no mundo das letras, onde surgiram diversos outros nomes de
escritoras contemporâneas a seu tempo. Foi considerada por Matias Olímpio como uma
piauiense notável,42 deixou escrito diversos livros que contribuem para a literatura brasileira
e para a história da escrita fermina.
Bibliografia
ARÌES, Philipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
BARROS, Nino Cesar Dourado; QUEIROZ, Teresinha. Entre a pena, o tinteiro e a
escrivaninha: Amélia de Freitas Bevilaqua como redatora chefe da revista pernambucana O
Lírio (1902-1904). In: NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa; SILVA, Rodrigo
Caetano; SILVA, Ronyere Ferreira da (org.). História e Cultura: trajetos singulares. Teresina:
EDUFPI, 2016, p. 129-150.
BARROS, Nino Cesar Dourado. A revista feminina pernambucana O Lírio e a participação
das mulheres maranhenses (1902-1904). In: SANTANA, Jucey dos Santos;
CANTANHEDE, João Carlos Pimentel (org.). Púcaro Literário II: Itapecuru Mirim, 200
anos. São Luís: AICLA, 2018, p. 261-268.
BEVILAQUA, Amélia de Freitas. Instrução e educação da infância. Recife: Imp. Industrial,
1906.
BEVILAQUA, Amélia. Divagações sobre a consciência. In: BEVILAQUA, Clóvis;
BEVILAQUA, Amélia de Freitas. Divagações sobre a consciência: formação Constitucional. Rio
de Janeiro: Mundo Médico – Borsoi & C, 1931.
BEVILAQUA, Amélia de Freitas. Alma Universal, Rio de Janeiro: Mundo Médico –
BORSOI & Cia, 1935.
BEVILAQUA, Amélia de Freitas. Jornadas pela infância, Rio de Janeiro: J. Borsoi, 1940.
BRITTO, Bugyja. Quatro escorços biográficos. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1978.
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela
imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summuns, 2009.
COSTA FILHO, Alcebíades. A escola do sertão: ensino e sociedade no Piauí, 1850-1899.
Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2006.
CHAVES, Monsenhor. Obra Completa. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
1998.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: EDUFRN, 2008.
FLORESTA, Nísia. Opúsculo Humanitário. Rio de Janeiro: Tipografia de M. A. Silva Lima,
1853.
FREITAS, Clodoaldo. Vultos piauienses: apontamentos biográficos. Teresina: Tip. de O
Estado, 1903.
FREITAS, Clodoaldo. Aos domingos. Escritos de Clodoaldo Freitas, Belém, v. 1, 7 set. 1904.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo:
Brasiliense, 1981.
HAHNER, June E. Honra e distinção das famílias. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO,
Joana Maria (org.). Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
42 OLÍMPIO, Matias. Uma piauiense notável. Rio de Janeiro: Tipografia Bernard Fréres, 1914.
LIMA, Miridan Rejane Soares. Aos encantos do lar: amor e companheirismo entre Amélia
Bevilaqua e Clóvis Bevilaqua. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – PPGHB –
UFPI, Teresina, 2016.
LIRA, José Luís (org.). De Clóvis para Amélia: correspondência inédita do jurista Clóvis
Bevilaqua para sua mulher, a escritora Amélia de Freitas Bevilaqua. Sobral: Academia
Sobralense de Estudos e Letras/ Universidade Estadual Vale do Acaraú, 2011.
OLÍMPIO, Matias. Uma piauiense notável. Rio de Janeiro: Tipografia Bernard Fréres, 1914.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2016.
PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
ROCHA, Olívia Candeia Lima. Escritoras piauienses, pseudônimos, flores e espinhos.
2003. Disponível em <http://www.mafua.ufsc/oliviacandeia.html>. Acesso em 4 mar.
2010.
ROMÉRO, Lauro. Clóvis Bevilaqua. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.
Resumo
Introdução
3 Diversos autores analisam a trajetória da História das mulheres no Brasil, entre estes destacamos: RAGO,
Margareth. As Mulheres na Historiografia Brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Cultura Histórica em Debate.
São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
4 Idem.
5 MUZART, Zahidé Lupinacci. A questão do cânone. In: SCHMIDT, Rita Terezinha. (Trans)formando identidades.
alheias aos acontecimentos, que não viviam na sombra de homens, ao contrário, lutavam e
se dedicavam pela ampliação de seus direitos, pelo acesso à educação, indo de encontro à
imagem feminina que lhes era imposta socialmente.
Narcisa Amália de Campos nasceu na cidade de São João da Barra no ano de 1852,
estado do Rio de Janeiro, e residiu por um longo período de sua vida no município de
Resende, local enaltecido com melancolia e saudosismo inúmeras vezes em sua poesia 6.
Encontramos poucos trabalhos consistentes que se dediquem a biografia de Narcisa; na
verdade, a maior parte desta produção existente se localiza no campo dos estudos literários,
com trabalhos que analisam a obra lírica de Narcisa, sobretudo em Nebulosas.7 Suas
publicações na imprensa e outros momentos de sua trajetória, entretanto, são menos
exploradas8.
De origem relativamente humilde, o pai de Narcisa, Joaquim Jácome de Oliveira
Campos exerceu papel fundamental que possibilitaria sua inserção no campo das letras e da
imprensa. Educador e jornalista, Joaquim realizou colaborações em periódicos locais, tais
como O Parahybano e Resendense, estabelecendo vínculos de amizade que seriam
importantes para Narcisa ao longo de sua trajetória. Destacamos também a influência de
sua mãe Narcisa Ignácia Pereira de Mendonça, que também era educadora. Neste sentido,
Anna Faedrich afirma que “Narcisa cresceu em meio a muita cultura”9 e que a origem
“simples” de Narcisa precisa ser relativizada, pois embora sua família não desfrutasse de
condições tão boas, seu pai teria sido fundamental para a construção de sua rede de
sociabilidades, possibilitando sua inserção no mundo das letras.
Ainda segundo Anna Faedrich, Narcisa começou a desenvolver suas atividades
intelectuais precocemente. Ainda bem nova, aos 13 anos de idade, auxiliando sua mãe na
prática docente e se dedicando ao aprendizado de música, literatura e de línguas. Iniciou
6 AMÁLIA, Narcisa. Nebulosas. 2 ed. - Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2017. Pp. 80-81
7 Entre os trabalhos sobre Narcisa Amália, destacamos: PAIXÃO, Sylvia Perlingeiro. Narcisa Amália. In:
MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX. 2. ed. rev. Florianópolis: Editora
Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 534-552.; RAMALHO, Christina. Um espelho para
Narcisa. Reflexos de uma voz romântica. Rio de Janeiro: Elo, 1999.; REIS, Antônio Simões dos. Narcisa
Amália. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1949.
8 Entre os diversos jornais com os quais Narcisa Amália colaborou entre as três últimas décadas do século
suas atividades públicas atuando como professora e também de tradutora de obras escritas
em língua francesa. É importante destacar que esta última Narcisa continua exercendo ao
por longo período. O campo das letras como também na imprensa se caracterizavam por
serem espaços predominantemente masculinos no período e de difícil acesso à mulheres.
Na contramão desses fatores, com apenas 20 anos de idade, a poetisa conseguiu publicar
através da editora Garnier, sua primeira de poesias intitulada “Nebulosas” em 1872. Nos
anos seguintes, Narcisa se dedicou a escrever textos e também poesias em periódicos
diversos, principalmente da Corte.
A publicação de “Nebulosas” é um divisor de águas na trajetória de Narcisa,
possibilitando alcançar um certo reconhecimento no universo das letras, espaço restrito à
mulheres na segunda metade do século XIX. Para que isto fosse possível, conforme
observamos em sua trajetória, a autora utiliza mecanismos que permitiram a ela este acesso.
Contando com 44 poesias líricas, a obra se enquadra na corrente literária do romantismo
brasileiro. As temáticas são variadas, de caráter saudosista, melancólico e exaltação da pátria
até mesmo a duras críticas sociais defendendo a abolição da escravidão. É importante
lembrar que década de 1870 consiste num momento delicado para o sistema Imperial tanto
em aspectos políticos com instabilidades e surgimento de novos partidos 10 quanto
reivindicações sociais a partir do fim Guerra do Paraguai e o problema da questão servil no
Brasil11, conforme já mencionado acima. É um momento de profundas transformações e a
produção de Narcisa, bem como de outras mulheres da época, não ficou alheia a este
contexto. Outras temáticas como reivindicação de direitos das mulheres e defesa da
República aparecem nas publicações de Narcisa nos jornais com os quais colaborou nos
anos posteriores a 1872. Diversas eram suas reivindicações, podendo ser destacada como
central a educação como um direito que deveria ser garantido às mulheres, sendo uma
importante “arma” transformadora a ser utilizada. É interessante observar que por mais
que exista toda uma noção de feminilidade imposta ao período, Narcisa busca justamente
construir uma imagem oposta, isto é, conforme o título do artigo sugere, a mulher como
uma ameaça, um perigo. Observemos:
A educação da mulher! Mas tem a mulher por acaso necessidade de ser
educada? Para quê? Cautela! A mulher representa o gênio do mal sob
10 Sobre a crise imperial conferir: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. In: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. 3ª ed. t. 2, v.7. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.; CARVALHO, José Murilo. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2003.
11 Idem.
Interessante destacar que a imprensa faz menção às críticas sociais defendidas por
Narcisa13 e as reconhece como legítimas. Isto pode ser observado através do seguinte
trecho publicado no jornal A Reforma: “Si a illustre escriptora renunciando á poesia
individual consagrar seu talento esplendido á evangelização das doutrinas liberaes,
conquistará uma laurea e perdurável e dará vasto impulso á literatura brasileira.”14
Personagens centrais ligados ao mundo das letras também se manifestaram em
relação à publicação de Nebulosas, demonstrando que Narcisa tinha alcançado uma certa
visibilidade. Um exemplo que cabe ser destacado o de Machado de Assis, que afirma:
Com este título acaba de publicar a Sra. D. Narcisa Amália, poetisa
fluminense, um volume de versos, cuja introdução é devida à pena do
distinto escritor de Pessanha Póvoa. Não sem receio abro um livro
assinado por uma senhora. É certo que uma senhora pode poetar e
filosofar, e muitas há que neste particular valem homens e dos melhores.
Mas não são vulgares as que trazem legítimos talentos, como não são
raras as que apenas pagam de uma duvidosa ou aparente disposição, sem
nenhum outro dote literário que verdadeiramente as distinga. A leitura
das Nebulosas causou-me a este respeito excelente impressão. Achei uma
poetisa, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de
muito vigor, reinando em todo o livro um ar de sinceridade e modéstia
que encanta, e todos estes predicados juntos, e os mais que lhe notar a
crítica, é certo que não são comuns a todas as cultoras de poesia. [...] São
tristes geralmente os seus versos, quando não são políticos (que também
os há bons e de energia não vulgar) [...] Termino as transcrições e a
notícia, recomendando aos leitores as Nebulosas.”.15
12 RAMALHO, Christina. Um espelho para Narcisa. Reflexos de uma voz romântica. Rio de Janeiro: Elo, 1999. pp.
129
13 Localizamos em diversos periódicos do período referências realizadas tanto a “Nebulosas” quanto às
críticas denunciadas nas publicações da autora, entre eles destacamos: Diário do Rio de Janeiro, O Mosquito,
A Reforma, entre outros.
14 A Reforma. Rio de Janeiro. 21 de agosto de 1873.
15 Semana Ilustrada. Rio de Janeiro. 29 de dezembro de 1872.
fato de iniciar seu comentário alegando que o prefácio de Nebulosas tinha sido escrito por
Pessanha Póvoa, e que não começaria a ler uma obra de autoria feminina sem receio. Isto
nos permite afirmar que Machado de Assis reforça a importância de se ter um homem
como “mentor” por trás de uma obra escrita por uma mulher. Cabe relembrar que como já
mencionado, o papel desempenhado pelo pai de Narcisa, visto que Pessanha Póvoa havia
sido seu aluno anos antes e por isto ele teria realizado o prefácio de Nebulosas. Além disto,
Anna Faedrich destaca que a fala de Machado revelava que embora a obra de Narcisa se
enquadrasse dentro do compreendido como uma boa obra literária, ainda tinha sido escrita
por uma mulher, e portanto demandava a recomendação de algum homem com
influência16. Embora a citação pareça criar uma ideia de pertencimento de mulheres ao
universo das letras, é preciso pontuar que na verdade o espaço ainda era restrito e precisava
de mediação masculina. Além disso, demonstra um mecanismo pelo qual as mulheres
conseguiam acessar vias públicas.
Outro fator que destacamos é o de que Narcisa havia sido casada duas vezes, o que era
algo muito incomum, e há relatos17 de que após ter se separado pela segunda vez, seu ex-
marido teria espalhado boatos não só sobre ela como o de que a poetisa não teria escrito nem
sequer uma palavra de Nebulosas, que na verdade teria copiado de outro autor. A situação
tomou grandes proporções e Narcisa se viu obrigada a mudar para a cidade do Rio de Janeiro,
onde residiu até sua morte em julho de 1924. Importante pontuar que cerca dessa questão
ainda não localizamos nas fontes registros que de fato comprovem estes fatos, isto é, de que a
mudança de cidade realizada pela poetisa teria se dado em função deste possível boato.
Narcisa recebeu diversas premiações por conta da publicação de Nebulosas, entre
eles o Lyra de Ouro em 1872 e o Mocidade Acadêmica em 1874. No último, fez um longo
discurso em resposta ao orador do evento, Saldanha Marinho, afirmando que as mulheres
eram escravas do homens. Ambas as premiações foram noticiadas pela imprensa periódica,
selecionamos abaixo a publicação realizada pelo jornal A Reforma acerca da Lira de Ouro
recebida por Narcisa:
A distinta poetisa e literata brasileira, a exm. Sera. D. Narcisa Amalia,
além de aplausos da imprensa, vai receber novas provas de homenagens
devidas aos seus talentos.
Está exposta, na rua do ouvidor n. 75, em casa do Sr. José Vicente de
Souza, uma lyra da qual pende uma coroa de louros, premio que lhe
ofereceram alguns dos seus conterrâneos residentes nesta corte.
16 FAEDRICH, Anna. Narcisa Amália, poeta esquecida do século XIX. Rio de Janeiro: REVISTA SOLETRAS , v. 2,
p. 237-252, 2017. pp. 245
17 OSCAR, João. Narcisa Amália. Vida e poesia. Campos: Lar Cristão, 1994.
Anna Faedrich pontua também que alguns autores estabelecem paralelos da poesia
de Narcisa com a do autor consagrado Castro Alves em Navio Negreiro. Além disso, a
poetisa teria servido como inspiração para músicos brasileiros:
Se por um lado a presença encantadora de Narcisa imperou poetas como
Raimundo Correia e Fagundes Varela, sua obra lírica inspirou
compositores como Antônio Martinho da Silva e João Gomes Araújo,
com músicas homônimas aos seus poemas “recordação de Itatiaia” e “o
africano e o poeta”, respectivamente.20
Conclusão
Acerca dos anos finais da vida de Narcisa Amália, sabe-se ainda muito pouco. É
provável que ela tenha continuado a exercer a função de professora e de tradutora21.
que Narcisa Amália exerceu atividades como professora entre os anos de 1891-1901. Conferir: Almanak
Rastros de publicações de sua autoria na imprensa cessam em anos iniciais do século XX,
caindo em esquecimento. Há movimentos de resgate de sua memória por parte de autores
recentes, sobretudo ligados à crítica literária como mencionamos acima, mas muito ainda
precisa ser estudado não somente sobre Narcisa como tantas outras mulheres dos
oitocentos que se dedicaram a ir contra uma sociedade excludente. É um campo vasto, com
possibilidade diversas.
Embora nosso objetivo fosse explorar maior parte da trajetória da poetisa, neste
artigo restringimo-nos aos anos iniciais de sua atuação, citando pouco suas publicações
posteriores na imprensa. Este intervalo também é o mais abordado por estudiosos da
literatura. Diversas questões que envolvem Narcisa Amália ainda estão em aberto, como
seus referenciais teóricos e com quem mantinha vínculos. Neste sentido, encontramos
referências de textos da autoria da mesma teriam sido publicados em jornais que circularam
em Portugal, com colaboração de diversas outras escritoras, e publicações biográficas sobre
Narcisa na Revista Sud-America em Santiago no Chile. Essas informações ainda são
preliminares e necessitam de maior aprofundamento, mas sugere que talvez seja possível
estabelecer paralelos entre a produção feminina no Brasil do século XIX com outros países,
sobretudo com a América Latina.22
Dessa forma, gostaríamos de salientar que o presente trabalho é fruto de uma
pesquisa ampla, ainda em fase inicial e de levantamento das fontes que visa basicamente a
reconstrução da trajetória de atuação política desenvolvida por Narcisa Amália no final do
século XIX, levando em consideração diversos fatores, tais como suas principais ideias
defendidas, seus referenciais teóricos e sua rede de sociabilidades. Desta forma, este é um
primeiro contato com Narcisa Amália e também com o universo das mulheres de letras do
século XIX, buscando sobretudo compreender como elas se articulavam neste movimento
de buscar sair da esfera privada .
Concluímos, portanto, através da trajetória de Narcisa Amália que as mulheres não
eram alheias aos diversos acontecimentos políticos e sociais, ao contrário. Muitas vezes
utilizavam os próprios mecanismos de exclusão para alcançar seus objetivos, dentre os
quais destacamos: uma retórica de inferiorização de sua fala, uma suposta aceitação da
inferioridade feminina e sua essência, utilização da imagem masculina onde se fazia
Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ). Rio de Janeiro. 1891-1901. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
22 PERES, Maria de Fatima; GÓDOI, Vera Lucia. Três escritoras especiais: Agnez Sabino, Narcisa Amália e Júlia
Lores de Almeida. In: PINHEIRO, Luiz da Cunha (org). As mulheres e a imprensa periódica. Lisboa: Literaturas e
Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras de Lisboa, 2014
necessária o uso da mesma, entre outros. Dessa forma, se torna cada vez mais importante
compreendermos o papel da mulher na História e como as disputas que envolvem a relação
dos gêneros ocorrem, pois muitos destes discursos excludentes do século XIX ainda são
atualmente defendidos, sobretudo em torno da ideia da família patriarcal.
Fontes:
Periódicos:
Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ). Rio de Janeiro. 1891-1901.
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
A Reforma. Rio de Janeiro. Tipografia da Reforma. 1872-1875. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Diário de Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Tipografia do Diário do Rio de Janeiro. 1872-1874.
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
O Mosquito. Rio de Janeiro. Tipografia Fluminense de Domingos Luiz dos Santos. 1872.
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
O Sexo Feminino. Minas Gerais/Rio de Janeiro. Tipografia Montenegro. 1872. Disponível
em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Revista Semana Ilustrada. Rio de Janeiro. Tipografia Americana. 1872. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Bibliografia
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século XIX. 2015. Disponível em: < http://www.elfikurten.com.br/2015/06/narcisa-
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(Trans)formando identidades. Porto Alegre: PPGLetras, 1997.
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PERES, Maria de Fatima; GÓDOI, Vera Lucia. Três escritoras especiais: Agnez Sabino, Narcisa
Amália e Júlia Lores de Almeida. In: PINHEIRO, Luiz da Cunha (org). As mulheres e a imprensa
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Lisboa, 2014.
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Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
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Janeiro: Elo, 1999.; REIS, Antônio Simões dos. Narcisa Amália. Rio de Janeiro:
Organizações Simões, 1949.
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Latina do século XIX: invisíveis ou inexistentes. Ameríndia, v. 3, n. 1. 2007.
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (org.) A Escrita da História:
novas perspectivas. 4 ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
Anexos
Figura 1 – Narcisa Amália c. 50 anos de idade, em bico de pena
do desenhista M. J. Garnier, datado de 1906
Fonte: FENSKE, Elfi Kürten. Narcisa Amália de Campos - poeta, republicana, abolicionista e feminista do
século XIX. 2015.23
Resumo
Mariano Garcia foi um operário da indústria cigarreira que lutou pelo fim da escravidão
como uma das formas de valorização do trabalho, e pela República como melhor forma de
representação política. Como militante da corrente socialista reformista participou de
diversas greves em diferentes categorias de trabalhadores. Ao longo de sua trajetória lutou
pela criação de um partido operário que possibilitasse a participação da classe trabalhadora
na política formal, contribuindo para a construção de uma identidade coletiva para o
trabalhador operário. Lutou pela criação de direitos sociais tais como: direito à educação,
moradias salubres, jornada de 08 horas diárias, salários dignos, e uma legislação que
regulamentasse o trabalho infantil e das mulheres. Como jornalista lançou o Gazeta
Operária, e também contribuiu para diferentes jornais da época.
Introdução
Não seria exagero a afirmação de que Mariana Garcia foi uma das mais
expressivas lideranças do movimento operário na Primeira República. Seu nome está
presente em quase todos os textos referente à organização de trabalhadores no período
acima citado, não só em obras da historiografia tradicional1, mas também em estudos mais
recentes que propõem um novo olhar para as complexas e diferentes formas de
*Doutoranda em História Política pelo PPGH - UERJ. ssisquim@gmail.com Bolsista CAPES, sob
orientação: Profª. Dra. Érica Sarmiento.
1 Em sua tese de doutorado, Paulo Terra indica que o nome de Mariano Garcia é encontrado em
praticamente todos os textos que trataram do socialismo no Brasil da Primeira República. De acordo com o
autor, mesmo não sendo muito estudado, Mariano Garcia foi julgado como “burocrata sindical” por Boris
Fausto e como “oportunista” por Lígia Osório, no sentido de que teria usado a classe operária como
trampolim para seus objetivos políticos. Ver: TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: Cocheiros e
carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese de doutorado. 2012. p.260. Disponível em:
https://www.historia.uff.br/stricto/td/1404.pdf.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
2 A tese de doutorado de Alfredo Cesar T. de Oliveira aborda a questão da moradia operária com ênfase na
criação do Bairro de marechal Hermes, e em vária passagens cita Mariano Garcia. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=151983.
3 A tese de doutorado de Marcos Vinícius Pansardi aborda os primeiros anos do movimento socialista no
Brasil, procurando redefinir algumas ideias chaves sobre esse período, principalmente no que diz respeito a
corrente socialista reformista, ao abordar o socialismo Mariana Garcia aparece em várias passagens.
Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/281702.
4 O mesmo acontece com a dissertação de Lucas Oliveira Goulart, ao fazer um estudo sobre as leis
trabalhistas postas em prática no governo Vargas, mas que foram gestadas na Primeira República, ele cita o
nome de Mariano Garcia como militante operário na luta por direitos dos trabalhadores. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-16032016-133752/pt-br.php.
5 BATALHA, Cláudio. H.M. O Socialismo no Brasil na época da II Internacional: uma revisão de algumas interpretações
correntes. – XV Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu. 1991. p.18.
6 Idem.
7 Antônio Mariano Garcia que também respondia pelo pseudônimo de Margar, M. G. Operário, começou a
trabalhar na indústria cigarreira aos 11 anos. Jornalista laçou o jornal A Gazeta Operária em 1902, escreveu
para colunas de vários jornais como: A Época e O Paiz. Como militante socialista lutou para fundar um
partido operário no início da República. (Ver Dicionário do movimento operário, p.70).
8 O Jornal A Época em 06 e 07 de novembro de 1913 traz em sua primeira página, fotos de crianças saindo
do trabalho em duas importantes fábricas da Industria têxtil, a Corcovado e a Carioca, respectivamente. Nas
imagens podemos notar crianças e adolescentes de diferentes idades. Disponível na Hemeroteca Digital da
BN.
defesa da social democracia no Brasil.9 Vale a pena chamar a atenção para o ano de
lançamento do livro, em 1897, poucos anos após a Proclamação.
Mariano Garcia além de operário e militante socialista, também foi um ativo
jornalista. No pós-abolição escreveu para diferentes jornais tanto para os considerados
como Grande Imprensa10 a exemplo do Gazeta de Notícias e do O Paiz bem como para
diferentes jornais operários tais como Echo popular, A Época, Gazeta Suburbana e para
colunas em vários periódicos, não só na capital federal como também em outros estados, a
exemplo do Questão Social de Santos e do Recife.
Como editor, em 28 de setembro 1902 lança o Gazeta Operária, um jornal operário
semanal que tinha como programa: a organização do proletário em um partido de classe, o
Partido Socialista Brasileiro. O nome do jornalista aparece como diretor, e a redação ficava
situada à Rua Barão de São Felix, n.º 163. Garcia apresentou assim o seu periódico:
“Aí têm os companheiros a Gazeta Operária”.
Ela não é minha, representa o meu esforço auxiliado poderosamente por
um grupo de companheiros que, como eu são dedicados à causa da
nossa emancipação; seu programa, seu ideal, é o ideal de todos nós, é
franquear as suas colunas a todos os propagandistas emancipados e
conscientes de que nosso caminhar só pode ser para o socialismo (...)
Não pretendemos doutrinar, mais [sic] ceder as colunas aos
doutrinadores.11
Segundo Gomes12, seu jornal foi pensado para “defender e divulgar o programa do
Partido Socialista Brasileiro, este, gestado no I Congresso Socialista Brasileiro realizado em
1892”. O papel do jornal era de fundamental importância para o movimento, pois cabia a
ele incentivar as articulações para a formação da Federação do Partido Socialista da Capital,
porém, assim como a maioria dos jornais operários da época, teve vida curta com
aproximadamente um ano de duração.
Anos depois, em 1906 embalado pelo que viria a ser o I Congresso Operário da
Capital, Mariano Garcia relança o jornal Gazeta Operária. E em 1909 procurou organizar um
9 O livro de Augustin Hamon citado por Batalha seria o “Le Socialisme et le congrès de Londres” publicado em
1897. Ver: BATALHA, Cláudio Henrique. O Socialismo no Brasil na época da II Internacional: uma revisão
de algumas interpretações correntes. – XV Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu. 1991. Disponível em:
https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/15-encontro-anual-da-anpocs/gt-15/gt27-8/7076
claudiobatalha-o-socialismo/file.
10 É considerado Grande Imprensa os 5 grandes jornais da época: Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Correio da
Manhã, Jornal do Commercio e o Paiz. Ver: BARBOSA. Marialva. BARBOSA, Marialva. “Imprensa, Poder e Público:
Os diários do Rio De Janeiro (1880 -1920).2007, p.91. Disponível em:
http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/945/848
11 Gazeta Operaria, 28/09/1902, p. 1- O jornal encontra-se microfilmado na Biblioteca Nacional.
12 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p.87.
outro jornal, A Tribuna do Povo, e em 1912 contribui para o jornal Echo Popular. Todas essas
iniciativas se apresentavam como um grande esforço na divulgação das suas ideias e na
busca de se criar uma identidade para a classe trabalhadora, entendendo que a classe
trabalhadoras deveria ser representada, na política formal, por um partido político que
pudesse garantir o primordial direito de participação no cenário político e eleitoral.
A sua atuação como jornalista está relacionado à consciência do militante em ser o
jornal operário uma ferramenta de luta e também um importante agente formador da
opinião pública. Levando-se em conta a conscientização dos trabalhadores, e com relação
à militância, o jornal passa a ser um privilegiado espaço político de contatos, conexões e
interações para o ativismo operário, sendo entendidos como verdadeiras “estruturas de
sociabilidades”.13 e como destaca Luca “um instrumento essencial de politização e
arregimentação”14.
Assim como Mariano Garcia, os militantes do socialismo reformista entendiam a
importância da difusão das concepções dos pensadores revolucionários tais como: Benoît
Malon, Ferri, Magalhães Lima ou o próprio José Ingenieros, e utilizavam bem os jornais
operários como ferramenta de difusão das suas ideias entre os trabalhadores.
Com relação às estruturas de sociabilidades, Serinelli, defende que todo grupo de
intelectuais se organiza em torno de uma “sensibilidade ideológica ou cultural comum e de
afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um
gosto de conviver”15, e com relação a difusão dessas ideias, o militante socialista fazia parte
de um grupo de ativistas bem heterogêneo.
Composto por indivíduos política e intelectualmente esclarecidos, o grupo possuía
representantes de vários segmentos da sociedade, tendo os tipógrafos José Veiga e França e
Silva, operários assim como ele, mas em sua maioria, os militantes eram oriundos das
camadas médias urbanas, como os professores Vicente de Souza e Eugênio Borba, os
jornalistas Gustavo de Lacerda e Pinto Machado, o advogado Evaristo de Moraes e os
médicos Estevam Estrela, Silvério Fontes, Soter de Araújo, Carlos Escobar, além do militar
16GOMES. P.67.
17 Ver Batalha. C. H. Cpdoc. Fgv. br – Verbetes. SINDICALISMO AMARELO. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/SINDICALISMO%20AMARELO. pdf
No início da República, um dos temas fulcrais para o movimento operário era com
relação à greve como ferramenta de luta. É importante assinalar que todo o movimento
organizado dos trabalhadores entendia a greve como a principal instrumento de luta do
operariado, inclusive os militantes reformistas, mas a falta de entendimento entre os grupos
estava na ocasião em que a greve deveria ser usada. Para os militantes da ação direta (ao
anarco-sindicalistas e os anarquistas) a greve deveria ser sempre utilizada como forma de
pressão visando o atendimento das suas reivindicações.
Mas, diferentemente da práxis de enfrentamento do sindicalismo revolucionário, os
reformistas defendiam que a greve deveria ser vista como a última saída a ser empregada,
sua utilização deveria vir depois de se esgotar todas as formas de pressão e negociação.
Era justamente essa forma de enfrentamento que contribuiu para as desavenças
entre os grupos de trabalhadores no campo da luta. Entretanto, é importante assinalar que
tal posicionamento dos reformistas não deve ser entendido como contrário à greve, mas
sim, uma das formas de resistência dentro das complexas configurações de trabalho que
coexistiam na época.
Outro fator de discordância entre os socialistas e os militantes da ação direta e a
questão da participação política através do partido operário. Os anarquistas não
concordavam com a opção de formação de partidos operários como defensores dos
interesses dos trabalhadores junto ao Estado. Na verdade, os anarquistas defendiam a
extinção do Estado, para eles a sociedade deveria ser guiada pela ideia de solidariedade, de
fraternidade universal entre os indivíduos para assim se chegar ao socialismo através da
revolução, e o povo, seria o motor dessa mudança.
Já os socialistas reformistas buscavam garantir “sem a anuência de métodos
revolucionários [...] conquistas garantidas em lei que conduziriam ao socialismo,”18 mas
assim como os anarquistas, os reformistas consideravam o povo como o propulsor da
mudança.
Na luta operária, se os anarquistas buscavam a distinção das ações reformistas, o
que se faz evidente ao denominá-los de “amarelos”, os reformistas também procuravam se
destacar das práticas dos anarquistas ao defender que, na luta operária por direitos, agiam
“dentro da legalidade.” Em seus jornais e discursos sempre procuravam demonstrar a ação
anarquista como “tendência revolucionária e perturbadora da ordem”, tal posicionamento
18OLIVEIRA, Alfredo Cesar T. O bairro de Marechal Hermes: da moradia operária à habitação social (1910 -1956).
P.39. Tese de doutorado em Geografia pela UFF. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=151983.
fica evidente quando Mariano Garcia, ao defender as práticas reformistas, aproveita para
criticar os anarquistas escrevendo na coluna operária do jornal O Paiz:
“Como Venceremos
(...) por que não reunimos tudo isso em um único fim, organizando
cooperativas de consumo, primeiro, as de produção depois, a eleição de
nossos companheiros, ainda depois, porque esta ultima parte é
secundária? (...)Querem que façamos a emancipação do operariado, sem
política, sem auxílios mútuos?
Em vez de perder esforços em pregar a greve e o ódio a tudo e a todos
esses recursos, esse dinheiro tão mal empregado, em uma propaganda
ilógica, formem suas cooperativas de consumo.”19
Conclusão
Bibliografia
BARBOSA, Marialva. “Imprensa, Poder e Público: Os diários do Rio De Janeiro (1880 -1920).2007,
p.51. Disponível em:
http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/94
5/848BATALHA, Cláudio Henrique. O Socialismo no Brasil na época da II Internacional:
uma revisão de algumas interpretações correntes. – XV Encontro Anual da ANPOCS,
Caxambu. 1991. Disponível em: https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/15-
encontro-anual-da-anpocs/gt-15/gt27-8/7076-claudiobatalha-o-socialismo/file.
__________________________ Sociedade de Trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX:
Algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos da Ael, v.6, n.10/11, 1999.
p.44. Disponível em: file:///C:/Users/Windows/Downloads/2478-
Texto%20do%20artigo-6732-1-10-20161122%20(11).pdf
_________________________Cpdoc. Fgv. br – Verbetes. SINDICALISMO
AMARELO. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/SINDICALISMO%20AMARELO.pdf
20SCHMIDT, Benito Bisso. “Os partidos socialistas na nascente República”. In: Jorge Ferreira; Daniel Aarão
Reis (orgs.). As esquerdas no Brasil 1. A formação das tradições (1189-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.p. 140.
21 Idem
Resumo
Introdução
Este livro não é romance. Nem biografia. Não é retrato. Nem caricatura
de João Ribeiro. É apenas um pouco de seu cepticismo voltariano, de
sua maliciosa jovialidade, de sua intima e anedótica, enfim de sus virtudes
defeituosas e de seus defeitos virtuosos.1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGH- UERJ). Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). E-mail: veversilva86@gmail.com
1 RIBEIRO, Joaquim. 9 mil dias com João Ribeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 1934. p.7.
2 GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores. 1 ed. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas, 1996.
p.108.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Entretanto, a relação com Silvio Romero e a literatura não seriam a única porta de
entrada para João Ribeiro. Como escritor de jornais da época, o sergipano integra-se ao
grupo abolicionista e republicano de Quintino Bocaiuva3 e Alcindo Guanabara4. Como
salienta Rogério Rosa Rodrigues, a vida na capital federal impunha posicionamentos. Na
atividade de jornalista manteve contato com homens para quem a convicção política era
expansiva. Através da atividade na imprensa, estreitou laços de amizade com jornalistas e
políticos.5
Em 1887, realizou o concurso para o Colégio Pedro II para a cadeira de português
ficando em segundo lugar. Apesar de não conseguir a vaga, três anos depois foi chamado
em regime de emergência para a cadeira de História Universal dando início as pesquisas
sobre história. Ao formar-se em direito em 1894, já era figura conhecida e respeitada sendo
indicado a diferentes agremiações.
O letrado sergipano compôs o núcleo da Academia Brasileira de Letras (ABL),
dos Institutos Históricos e Geográficos do Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe, da
Academia de Letras de Sergipe, além da participação na Academia de Ciências de
Lisboa. No início do século XX colaborou em diversos jornais do Rio de Janeiro, entre
eles Correio da Manhã em 1903, o Imparcial em 1912 e Gazeta de Notícias em 1923. Entre
os anos de 1926 e 1934 assumiu a coluna de crítica literária do Jornal do Brasil e
colaborou na imprensa paulista. 6
No âmbito de sua vida pessoal, casou-se em 1889 com Maria Luiza da Fonseca
Ramos tiveram dezesseis filhos dos quais apenas oito chegaram a vida adulta7. Entre os
3 Quintino Bocaiúva (1836-1912) foi um político e jornalista brasileiro, um dos mais importantes
propagandistas do regime republicano. Foi nomeado Ministro das Relações Exteriores do Governo
Provisório. Ver em: https://www.ebiografia.com/quintino_bocaiuva/
4 Alcindo Guanabara, jornalista e político (1865-1918) em 1886 fundou o jornal acadêmico Fanfarra.
Trabalhou também na Gazeta da Tarde, ao lado de José do Patrocínio e Raul Pompeia, escrevendo crônicas
políticas sob o pseudônimo Aranha Minor. A experiência então adquirida lhe abriu portas em diversas
revistas e jornais do Rio e de São Paulo, onde passou a escrever textos literários e a debater as grandes
questões colocadas na agenda política do momento, como a Abolição e a República. Considerado um dos
maiores jornalistas brasileiros da Primeira República, entre 1887 e 1914 colaborou e trabalhou como redator
nos jornais Cidade do Rio, Novidades, Correio do Povo, Jornal do Comércio, a Tribuna, a Nação e o País.
Em 1897 foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde passou a ocupar a cadeira nº 19.
Ver em: PINTO, Surama Conde Sá. Biografia Alcindo Guanabara. Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/GUANABARA,%20Alcindo.pdf
5 RODRIGUES, Rogério Rosa. “Traços biográficos de João Ribeiro ou as muitas faces de João. Viva a São
quatro filhas: Vera Marta, poetisa e colaboradora do pai em diversos trabalhos; Betty; Ema e Haviera; e
quatro filhos: João, funcionário da central Brasil, Manuel, funcionário da Sul América, Joaquim, fiscal de
herdeiros encontra-se Joaquim Brás Ribeiro, nascido em 1907 e um dos filhos mais
dedicados a seguir a vida multifacetada do pai. Falecido em 1934, aos 74 anos de idade,
João Ribeiro teve como primeira obra biográfica dedicada à sua trajetória de vida, publicada
meses antes de sua morte, por Joaquim Ribeiro e intitulada Nove mil dias com João Ribeiro. O
intelectual carioca tornou-se um grande defensor da imagem do pai dedicando-se à
preservação de sua memória, buscando apoio para reeditar publicações esgotadas e para
publicar estudos inéditos.8
Rogério Rosa Rodrigues afirma, que as fontes as quais Joaquim Ribeiro recorreu
para construir o livro foram recolhidas de frases dispersas capturadas na obra de João
Ribeiro, em sua própria memória e, mesmo, do folclore criado a respeito do escritor.9 São
lembranças de sua infância ao lado do pai, histórias contadas sobre particularidades de João
Ribeiro como o medo de andaimes e o prazer em colecionar borboletas, além da
publicação de notas de jornais que reverenciavam as qualidades intelectuais de seu
progenitor.
Como o próprio autor deixa claro em seu posfácio, este tipo de abordagem
memorialista ainda não era comum na década de 1930, período no qual surge uma
“explosão” de trabalhos de cunho biográfico, porém de aspecto cronológico baseado em
fatos.
Este livro, talvez seja o único aparecido entre nós no gênero.
Embora na França sejam comuníssimos os livros desses jaez, aqui no
Brasil não sei de livro algum desse feitio.
Certamente o ‘9.000 dias com João Ribeiro’ há de ser um trote para os
que esperavam uma biografia com datas e genealogias ou algum ensaio
crítico sobre a obra do meu querido Mestre e progenitor.
[...]
O livro é por finalidade um livro alegre.10
ensino, e Antônio João, estudante de veterinária e jogador do clube flamengo. Ver em: LEÃO, Múcio. João
Ribeiro: ensaio biobibliográfico. 1 ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1954, p.20-23.
8 RODRIGUES, op.cit. p.381.
9 Ibid.p.382.
10 RIBEIRO, op.cit. p.134-135.
11 GONÇALVES, Márcia. A. “Retratos Poliédricos do Brasil”. In: ______. Em Terreno Movediço. Biografia e
História na Obra de Octavio Tarquínio de Sousa. 1ed.Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p.104.
12 RAMOS, Alessandra. “Livros e Mosaicos: João Ribeiro do jornal ao livro”. RODRIGUES, Rogério Rosa
(org). Nos desvãos da História: João Ribeiro. 1 ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p.170.
13 Entre eles a autora destaca: Alceu Amoroso Lima, Humberto de Campos, Álvaro Lins, Agripino Grieco,
Brasil, e que daria origem ao seu manual didático sobre a História do Brasil em 1900,
teriam suas raízes na crítica literária.15
No capítulo de Nove mil dias intitulado Os livros de Poesias, Joaquim Ribeiro relata
como as críticas do mestre chegavam aqueles cujo as obras eram avaliadas:
Quase sempre os poetas moços reclamam junto a mim, contra as
‘antologias’ apressadas e demasiadamente sintéticas que João Ribeiro, de
quando em quando, soe fazer nas suas críticas literárias do ‘Jornal do
Brasil’.
- Ele fala muito pouco de nós (queixava-me um deles) quase nada diz a
respeito, e às vezes até transcreve a pior poesia do livro...
São inúmeras as queixas dessa ordem que tenho recebido como se eu
pudesse interceder junto de meu pai num assunto dessa natureza. Claro
está que apenas as transmito sem comentário.
Lembro-me bem que numa dessas vezes, ele me respondeu:
Não são eles poetas? Pois diga-lhes que os livros de poesias são como as
rosas. Basta gente sentir o perfume. Ninguém jamais desfolharia uma
rosa para cheirar folha a folha.16
O mestre acadêmico
Como visto anteriormente, João Ribeiro foi membro das principais associações
acadêmicas do país, entre elas a Academia brasileira de letras (ABL) e o Instituto Histórico
e Geográfico brasileiro (IHGB). A historiadora Ângela de castro Gomes argumenta que,
para os homens nascidos no século XIX e dedicados a história, era comum encontrá-los
reunidos nos IHGB e produzindo publicações para a sua revista. O IHGB é uma das mais
antigas instituições oficiais de produção de saber.20
Segundo a historiadora Lilia Schawarzch, o instituto possuía a tarefa de unificar a
nação a partir da construção de um passado, que se pretendia singular, embora influenciado
pelo perfil dos influentes grupos econômicos e sociais que participavam do IHGB, assim
como, os institutos históricos regionais que surgiram posteriormente. Formado a partir do
modelo das academias ilustradas europeias, os sócios eram escolhidos por suas relações
sociais.21 Ainda de acordo com a historiadora, o perfil dos sócios abrangia desde políticos e
proprietários de terra até literatos ou pesquisadores de renome: “ o instituto tinha como
função a consagração da elite local e de uma história basicamente regional”.22
18 Ibid.p.124-125.
19 RODRIGUES, op.cit. p.383.
20 GOMES, op.cit. p.52.
21 SCHAWARZCH, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil .1 ed. São
Entretanto, Angela de Castro Gomes argumenta que, por ser uma instituição com
tradição assentada e com laços diretos de mecenato com o poder político central, nos fins
do século XIX, o IHGB perde parte de sua posição significativa para a Academia Brasileira
de Letras. “O IHGB guardou por razoável tempo um aroma monarquista, estando em fins
do século XIX, com seus quadros ocupados. Para ser bem específica, para os homens da
geração de 1890, era mais difícil entrar no IHGB do que na ‘sua’ ABL.”23 Portanto, a
Academia Brasileira de Letras surge como grande realização da geração intelectual deste
período, no qual os historiadores possuíam uma posição reconhecida e de destaque.
Conforme salienta Maurício Silva, assim como entidade reconhecida oficialmente, a
Academia Brasileira de Letras agrupava em seu meio nomes ligados não apenas à
oficialidade literária, mas sobretudo à oficialidade burocrática nacional e à sociabilidade
burguesa. Ter o nome associado à principal entidade cultural do país, oficializada sob a
aprovação do poder constituído, representava a inserção nos principais círculos letrados e
sociais do Brasil.24
De acordo com Mucio Leão em sua biografia publicada em 1954,25 quando fundada
a Academia Brasileira de Letras em 1896, João Ribeiro estava ausente do Brasil, realizando
sua primeira viagem à Europa. Este teria sido o motivo pelo qual não fosse incluído no
quadro de fundadores da instituição. Dois anos depois, porém estando de volta ao Brasil,
ocorre uma oportunidade de inserção na Academia. Com o falecimento de Luís Guimarães
Júnior, o intelectual sergipano é escolhido para a primeira vaga disponível da instituição
sendo eleito em 8 de agosto de 1898.26
A entrada para o IHGB surge anos depois, coincidentemente após sua terceira e
última tentativa de residir no continente europeu. Em 1914, ao retornar ao Brasil
novamente após o início da Primeira Guerra Mundial, João Ribeiro aos 55 anos de idade
entra para o quadro do Instituto Histórico, eleito sócio efetivo da instituição em 12 de
maio. Segundo Ângela de Castro Gomes, o seu discurso de posse é concomitantemente
Leão, discípulo e amigo pessoal de João Ribeiro, a obra foi patrocinada pela academia Brasileira de Letras
em homenagem aos 20 anos de sua morte.
26 LEÃO, Múcio. João Ribeiro: ensaio biobibliográfico. 1 ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1954.
p.28.
uma peça exemplar do que entende ser o saber histórico e de como se pode usá-lo para
responder a questão do sentido mais profundo da nossa identidade nacional.27
Em Nove mil dias, Joaquim Ribeiro dedica seu nono capítulo intitulado, No Jardim de
Academo a relatar como era a relação do pai com o cotidiano e as normas de membro da
Academia Brasileira de Letras:
Como se sabe os acadêmicos se reúnem as quintas-feiras. Ora, acontece
que sempre que a quinta-feira cai em dia santo, é quase sempre adiada a
reunião.
Houve, certo ano, que propusesse que a reunião fosse realizada na terça-
feira, que por acaso, era de carnaval.
Meu pai votou contra e explicou:
- Eu não troco o carnaval por uma sessão da Academia.28
[...]
Conversando com um acadêmico recém-eleito disse-lhe João Ribeiro,
que achava o fardão dos acadêmicos supinamente ridículo.
E logo após, ao correr da conversa, aconselhou-o a mandar fazer o trajo
oficial.
-Porem V. não acha ridículo? disse L.F.
João Ribeiro:
- Acho. Mas tenho pra mim que o ridículo faz parda da gloria
acadêmica.29
O capítulo sugere ao leitor que apesar das titulações e honrarias dentro das
principais instituições do saber, João Ribeiro não era adepto ao cerimonialismo que exigia
tais espaços intelectuais. A imagem transmitida através do conjunto de histórias, é de um
letrado que preza pela simplicidade e avesso aos ritos exigidos dentro do Jardim de Academo.
Nas primeiras linhas do capítulo, Joaquim Ribeiro descreve através de uma metáfora a falta
de apropriação do pai ao círculo da Academia tão influenciada pelo modelo das Academias
francesas.
O nosso jardim de Academo está metaforseado na reconstituição do
‘Petit Trianon’ com que a França – concubina de nossas letras –
presentou ao Brasil.
De acordo com Mucio Leão, na Academia, João Ribeiro fez parte de inúmeras
comissões, sendo um dos principais promotores da reforma ortográfica de 1907. Nos
últimos anos, fez parte da comissão de dicionário e da comissão de gramática.32 O mestre
sergipano também teve diversas vezes seu nome apresentado como presidente da
instituição, negando em todas as vezes o convite. Em 1927, entretanto, foi eleito
presidente, o qual, o intelectual apresentou imediatamente sua renúncia ao cargo.33 Joaquim
Ribeiro traz uma curta anedota sobre este episódio:
Já diversas vezes meu pai tem sido eleito Presidente da Academia e
sempre tem renunciado.
É por isso que ele diz:
- Os acadêmicos só me elegem por que sabem, de antemão, que eu
renuncio. A minha eleição afinal, serve para dar tempo de arregimentar
as cabalas...34
Embora, como visto no início deste tópico, a participação de João Ribeiro como
membro do IHGB tenha sido relevante, tanto quanto na Academia Brasileira de Letras,
Joaquim Ribeiro restringiu-se a narrar apenas os feitos e o cotidiano do pai no interior da
ABL, não citando em nenhum momento sua passagem pelo Instituto histórico. Talvez a
escolha tenha sido feita devido ao recorte dado ao perfil do biografado, dando mais
destaque a sua função de gramático e crítico literário do que a de homem ligado a História.
Tal hipótese pode ser confirmada, a partir da ausência de citações referentes aos manuais
31 Ibid. p.95-96.
32 LEÃO, op.cit. p.31.
33 Ibid.p.31.
34 RIBEIRO, op.cit. p.143.
didáticos de História do Brasil35 produzidos por João Ribeiro desde 1900 e que
continuaram sendo referência de ensino no país após a sua morte em 1934.
Considerações finais
Assim como seu mestre e progenitor, Joaquim Ribeiro incumbiu-se de trilhar uma
trajetória intelectual, no qual atuou em diferentes atividades letradas. Entretanto, tornou-se
reconhecido ao longo de sua vida pela atuação como historiador e principalmente como
folclorista, devido aos diversos livros publicados sobre o tema. Entretanto, o jovem e
entusiasmado homem das letras da década de 1930, aos 27 anos de idade, aventurou-se em
escrever e publicar uma homenagem ao homem que lhe serviria de referência intelectual
durante toda a sua vida. “Afinal de contas, neste vale de lágrimas, só venero um Papa: o
modelador de minha carne e de meu caráter.”36 Testemunha ocular da fragilidade da saúde
do pai nos últimos tempos, Joaquim Ribeiro garantiu que o velho mestre, ainda tivesse a
chance de ler sua visão de filho, além de provavelmente avaliá-la assim como fizera por
anos em tantas obras literárias.
O trabalho de memória de Joaquim Ribeiro tem como finalidade evidente trazer ao
público leitor uma imagem humanizada, afastada dos títulos e nomeações que os cercavam.
Um filho dedicado aos estudos; um homem apreciador da pintura e das artes; distraído e
bem-humorado, características diferentes das lendas que circulavam ao redor da figura do
mestre. “Nada expressa melhor os indivíduos que as suas pequenas frases, os seus defeitos
e predileções menos graves”37. A proposta de Joaquim Ribeiro, antes de escrever uma obra
biográfica de seu mestre, era reaquecer a memória acerca de quem era de fato João Ribeiro,
aproximando-o como indivíduo da sociedade e o retirando-o do pedestal de imortal do
Jardim de Academo.
Bibliografia
LEÃO, Múcio. João Ribeiro: ensaio biobibliográfico. 1 ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 1954.
35 Para Ângela de Castro Gomes: “o grande trabalho de João Ribeiro como historiador foi justamente seus
compêndios escolares, escrito com o aval da cátedra do Colégio Pedro II: História do Brasil – 1900 – logo
por ocasião do IV Centenário do Descobrimento – e que continuaria sendo editada e revista pelo autor até
sua morte; e sua História Universal, publicada em 1919 e que teria também outras edições” (GOMES,
op.cit. p.113.)
36 RIBEIRO, op.cit. p.9.
37 RIBEIRO, op.cit., p.9.
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academicismo no Brasil do final do século XIX”. O eixo e a roda. Minas Gerais: UFMG,
v.14, 2007, pp.69-84.
Resumo
O presente trabalho busca apresentar uma proposta de análise e de reflexão sobre a relação
entre a culinária africana, sua fusão com aspectos indígenas e a construção de saberes,
técnicas e fazeres que constituem a culinária brasileira, como um patrimônio imaterial. Os
patrimônios imateriais que compõem essa relação são os ofícios das baianas de acarajé;
ofícios das paneleiras de goiabeiras e a cajuína do Piauí. Além disso, pretende-se discutir a
relevância do saber gastronômico, ou seja, desses conhecimentos e práticas voltadas para a
culinária e a arte de cozinhar, em sua influência sobre a construção identitária e a memória
ancestral relacionada às atividades turísticas voltadas ao paladar da comida brasileira.
Introdução
comida foram e ainda são partes vitais do capitalismo, sendo o açúcar um dos exemplos de
alimentos do velho e do novo mundo.
A difusão do milho, da batata, do tomate e da pimenta-do-reino, da
mandioca e do pimentão, do amendoim e da castanha, tanto no Novo
quanto no Velho Mundo, não precisaram de transporte aéreo, de
cientistas de aventais brancos, do McDonald’s, nem de engenharia
genética – nem tampouco de propaganda, e muito menos de
antropólogos – e começou a acontecer há quinhentos anos. O milho, o
tomate e o pimentão, no Mediterrâneo; a introdução do cultivo da batata
pela Europa Central, da Irlanda à Sibéria; o rápido sucesso da pimenta-
do-reino em Szechwan, África Ocidental e Índia; em seguida, a
popularização de chá, café, açúcar e chocolate pela Europa (só o último
sendo nativo do Novo Mundo) são algumas lembranças da
transformação revolucionária dos hábitos alimentares, para o leste e para
o oeste, há cinco séculos5.
5 Ibid., p. 33.
6 POULAIN, Jean-Pierre; PROENÇA, Rossana. “O espaço social alimentar: um instrumento para os estudos
dos modelos alimentares”. In: Revista de Nutrição, Campinas, v. 16, nº 3, jul-set., 2003, pp. 245-256.
7 QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Org. e prefácio de Raul Lody; apresentação de Thales de
Azevedo. 2ª ed. revista e ampliada. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, FUNARTE, 1988.
8AZAMBUJA, Marcelo. “A gastronomia como produto turístico”. In: CASTROGIOVANNI, Antonio
12FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997.
Paulo, 2000.
16 LEAL, Cláudia Feierabend Baeta. As missões da Unesco no Brasil: Michel Parent. Rio de Janeiro:
IPHAN/COPEDOC, 2008, p. 16.
17 POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. Estudos Históricos. 1992, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p.5.
18 BARRETO, Margarita. Turismo e Legado Cultural: As Possibilidades do Planejamento. 6 ed. Campinas, SP:
Papirus, 2006, p. 8.
Considerações Finais
19 WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. “As estratégias da memória social”. (In: Brasilis: Revista de
História Sem Fronteiras). Rio de Janeiro: Editora Atlântida, Ano 1, n°1, 2003.
20 MOLETTA, Vânia Florentino. Turismo Cultural. Porto Alegre: SEBRAE/RS. 1998, p. 9-10.
21 ALBANO, Celina; MURTA, Stela Maris. Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
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WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. “As estratégias da memória social”. In,
Brasilis: Revista de História Sem Fronteiras). Rio de Janeiro: Editora Atlântida, Ano 1, nº1,
2003.
Resumo
Introdução
É necessário que se diga que tal vinculação não era uma novidade, mas sim uma
recuperação de antigas tradições: a Catedral de Santa Sofia, em Kiev (1011-1037),
construída por Yaroslav, filho do Príncipe Vladimir, batizador dos russos, é um exemplo
disso. Também templos dedicados à Natividade da Virgem e a Todos os Santos, em
diferentes ocasiões e lugares, serviram para celebrar tais vitórias. Um importante exemplo
disso é a construção da Igreja de Nossa Senhora de Kazan, celebrando a vitória dos russos
contra os invasores polaco-lituanos, com a libertação de Moscou. Em certa medida – e
pode, obviamente, conter exageros – forjavam-se duas ideias que perduram até o presente:
a “Grande Rússia” e a “Santa Rússia”.
A construção
Assim, abria-se a porta para não apenas demolir a Catedral, mas igualmente
apropriar-se de seu tesouro, recolhendo-o aos Armazéns do Estado. No final da década de
1920 praticamente o destino da Catedral já estava selado.
A morte da Catedral
A ressurreição
Política e patrimônio
patrimônio religioso era desprezado e associado aos valores tidos como decadentes da
Rússia Imperial.
Somente com o final do comunismo e o despertar de uma “nova Rússia”, que
visava a recuperar as glórias do tempo imperial e grandeza da “Mãe Rússia”, tempos nos
quais a Igreja se presta ao papel de aliado importante, face à religiosidade católica ortodoxa
que permeia a sociedade russa, o resgate de um símbolo é quase que a equivalência de uma
aliança entre poder secular e poder religioso, o que, desde o início deste milênio, tem
ocorrido.
Bibliografia
Anexos
Resumo
1Este artigo faz parte de um trabalho maior de pesquisa que culminou em meu doutoramento, intitulado: A
ACLAMAÇÃO DAS LETRAS: O Instituto Nacional do Livro e a pedagogia literária no Brasil do século XX,
supervisionado pela professora Giselle Martins Venancio com financiamento da Capes e FAPERJ e realizado
na Universidade Federal Fluminense.
2Professora substituta da Universidade Federal de Mato Grosso de Sul (UFMS). Doutora em História Social
Decretos originais.
4SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992. Sobre o Decreto-
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
Todas estas atribuições tiveram em sua origem o espelho do que era o antigo
Instituto Cayrú, predecessor do Instituto Nacional do Livro. Por iniciativa do então
ministro da Educação Gustavo Capanema, o presidente Getúlio Vargas decretou a
transformação do Cayrú em Instituto do Livro, tendo o novo órgão a mesma sede de seu
antecessor, a Biblioteca Nacional. Suas funções descritas no já citado Decreto Lei, a partir
deste momento, foram ampliadas e para alcançar os seus objetivos, o INL dispôs de três
seções técnicas: Seção da Enciclopédia e do Dicionário cuja responsabilidade foi a organização e
a publicação da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário de Língua Nacional; a Seção de
Publicações cujo encargo era a “edição de obras raras ou preciosas”, de interesse para a
formação cultural do povo brasileiro, além de adotar medidas para o barateamento,
aumento e melhoria das edições de livros, e igualmente promover a importação de livros e
por fim a Seção de Bibliotecas cujo dever era incentivar, organizar e auxiliar a manutenção de
bibliotecas públicas em todo o território brasileiro5.
Boa parte das obras publicadas pelo Instituto Nacional do Livro manteve uma
profunda relação com o gênero ensaio6 apresentado em publicações nas quais se destacavam
movimentos analíticos de compreensão dos tipos nacionais, de seus objetos culturais, de
sua arquitetura, etc.
Deste modo, o que se pretende apontar tem em muito o exercício historiográfico
proposto por Michel de Certeau ao se considerar que “a operação histórica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita”7. Assim sendo,
assume-se nesta pesquisa o intuito de construir uma história da circulação dos impressos
pautada nas considerações de uma prática social que considere os agentes envolvidos, tanto
os do passado quanto os do presente, e o próprio espaço social desempenhado pelo
Instituto Nacional do Livro.
De maneira geral, considera-se que o programa de publicações do Instituto
Nacional do Livro foi, ao longo tempo, bastante variado. Tendo como meta zelar pela
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
6A respeito do gênero “ensaio” ver, entre outros: VENANCIO, Giselle Martins; WEGNER, Robert. Uma
vez mais, Sérgio e Gilberto. Debates sobre o ensaísmo no suplemento literário do Diário de Notícias (1948-
1953). Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 34, n. 66, p. 729-762, set/dez 2018. Ainda acerca do gênero ensaio
ver: PÉCORA, Alcir. O ensaio na época da morte do ensaio. Limiar | volume 5 | número 10 | 2. semestre
2018.
7CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 1982.
melhoria, pelo fomento e pelo barateamento do livro, além de cuidar das questões relativas
à facilidade de importação de obras necessárias ao desenvolvimento técnico dos
profissionais brasileiros, o Instituto do Livro esbarrou na problemática da indústria livreira
e do reduzido parque gráfico do país. Neste sentido, o INL teria colaborado para a busca
de soluções para a questão do livro nacional a partir de contatos com editores e livreiros, da
organização de debates, além de ter optado uma via que barateasse a publicação dos livros
a preços reduzidos com o intuito de divulgar obras expressivas da literatura brasileira.
Visando atender esta finalidade foi criada em novembro de 1943, a Coleção Biblioteca Popular
Brasileira que seria seguida, posteriormente, por outras congêneres8.
A chamada Coleção Biblioteca Popular Brasileira, foi também conhecida por Biblioteca
Brasileira. Por meio dela, Sérgio Buarque de Holanda9, chefe da Seção de Publicações do
INL, visava estabelecer uma iniciativa editorial que levasse à população obras de qualidade
literária a preços exíguos, mas primando pela qualidade das edições. Para Américo Facó10
(1944), então diretor do Instituto, o critério para a inserção de uma obra numa coleção do
INL era a sua raridade, fosse pelo elevado custo, fosse pela escassa compensação financeira
para as editoras que não se interessavam por suas reedições. Em suas palavras “considerou-
se algumas obras clássicas sobre o Brasil, sua história, sua geografia, sua vida social no
passado, que se tinham tornado sumamente raras nas livrarias e bibliotecas”11. Sendo assim,
até a data de 1945 estabeleceram-se as seguintes coleções, além da Coleção Biblioteca Popular
Brasileira12:
8SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
9Até este momento, isto é, entre 1937-1944, Sérgio Buarque de Holanda foi chefe da sessão de publicações do
Instituto Nacional do Livro e diretor de divisão da Biblioteca Nacional até 1946. Também foi presidente da
Associação Brasileira de Escritores. Mais tarde, isto é, ao longo dos anos 1950-60 sua trajetória se deslocaria
para São Paulo, local onde iniciou e cristalizou sua carreira no magistério, transformando-se num cânone dos
estudos históricos brasileiros.
10Américo de Queirós Facó (1885-1953) foi um poeta e jornalista cearense. No ano de 1910 transferiu-se
para a cidade do Rio de Janeiro a fim de ingressar nos principais círculos literários e intelectuais do Brasil.
Trabalhou no INL, no Senado Federal e foi diretor da Revista Fon Fon. Na década de 1950 ingressou como
membro do Instituto Histórico e geográfico do Ceará tendo falecido pouco tempo depois. Em contato com o
Instituto do Ceará foi possível localizar as Revistas do órgão que contém a ata de ingresso. No entanto nada
mais em referência ao INL e à Enciclopédia Brasileira foi localizado.
11SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
12SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
Mais tarde, além das coleções acima, o Instituto Nacional do Livro responsabilizou-
se pelo lançamento de outras “bibliotecas” como a de Divulgação Cultural, a Filológica e a
Biblioteca Histórica13. Somadas a essas, estiveram também as obras de José Bonifácio de
Farias Brito, de Capistrano de Abreu, de Epitácio Pessoa e a História da Companhia de
Jesus lançada em 10 volumes. Ao final dos anos 1980, o Instituto Nacional do Livro
contava com a cifra de mais de 300 títulos lançados contando com os vários volumes e
coedições.
Ao se pensar na História editorial brasileira, é preciso considerar o caráter político
marcado, não só, pelas redes de sociabilidades intelectuais quanto pelos aspectos de ordem
13Não foi possível encontrar informações acerca da coleção Biblioteca Histórica publicada pelo Instituto
Nacional do Livro. O que se sabe é que nesse período – de 1940 a 1952 - a Livraria Martins Editora, de São
Paulo, publicou uma coleção intitulada Biblioteca Histórica Brasileira. No entanto, não foi possível
comprovar qualquer relação entre esta última e o INL. A coleção da Livraria Martins nasceu de um projeto
elaborado pelo editor José de Barros Martins. Sua publicação foi suspensa antes do lançamento do vigésimo
título que seria o Diário de Minha Viagem ao Brasil do Príncipe Adalberto da Prússia, com a tradução de Sérgio
Buarque de Holanda. A coleção foi dirigida até o décimo quinto título pelo professor Rubens Borba de
Moraes e daí em diante pelo próprio José de Barros Martins. Nos anos 70, durante a vigência do programa de
coedições, o INL reeditou os títulos desta coleção, tais como Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret;
Brasil pitoresco de Ribeyrolles; Viagem pitoresca através do Brasil de Rugendas e Dez anos no Brasil de Seidler. Para
maiores informações sobre a Biblioteca Histórica Brasileira ver: Revista do Livro. Órgão do Instituto Nacional
do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Ano I - n.I – Junho de 1956 [Rio de Janeiro]. Instituto
Nacional do Livro, 1956. Ano de 1969, pp. 151-162.
14SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo
(1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) –
Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
15Esta expressão faz uma alusão ao conto de Jorge Luís Borges intitulado “A Biblioteca de Babel”. Para
maiores detalhes ver: BORGES, Jorge Luís. A Biblioteca de Babel. ___________. Ficções. Trad. Carlos Nejar.
Porto Alegre: Editora Globo, 1970. p. 61- 70.
16De acordo do Suely Braga, nesse período houve um incentivo de publicações na área de Biblioteconomia,
pois nestes anos, estava ocorrendo a consolidação e estruturação dos seus primeiros cursos. SILVA, Suely
Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo (1937-1945):
Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Programa de
Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
17A principal intenção de Augusto Meyer residiu na tentativa de se criar no INL uma rede de bibliotecas tal
como postulava as iniciativas de Paul Otlet em fins do século XIX e que, posteriormente, serviram de base
para a estruturação das bibliotecas ao redor do mundo. Além disso, desde 1938 defende-se a ideia de uma
enciclopédia universal que conteria a memória planetária completa para toda a humanidade. Para maiores
informações ver: CUNHA, Murilo Bastos da. Das bibliotecas convencionais às digitais: diferenças e
convergências. Perspectivas em Ciência da Informação, v.13, n.1, p.2-16, jan./abr. 2008.
Mesmo com tantos projetos a ideia não vingou e a ação do Instituto permaneceu apenas,
como se afirmou, no registro de bibliotecas.
Houve uma classificação adotada por Meyer para a categorização das bibliotecas.
Esta era definida pela possibilidade de acesso dos usuários. Assim foram utilizados os
seguintes termos: Bibliotecas públicas e franqueadas que permitiam o livre acesso aos usuários e,
não obrigatoriamente, uma vinculação aos poderes públicos; as que tinham restrição de
acesso eram denominadas de privativas; as particulares eram definidas exclusivamente por se
caracterizarem como bibliotecas pessoais e havia ainda as bibliotecas populares, isto é,
destinadas a toda população.
Os dados anteriores tratam, exclusivamente, do período até 1940, mas o fato é que,
ao longo dos anos 1950, o Instituto Nacional do Livro concedeu registro a mais de 5.000
bibliotecas em todo território brasileiro, dos quais 4.285 eram públicas ou franqueadas.
Delas contavam-se 2.895 bibliotecas populares. Além destes dados, há de se ver a atuação
do Instituto do Livro na distribuição dos livros pelo país, assim como no exterior. Na
publicação intitulada Registro de bibliotecas, de 1950, afirmava-se que haviam sido remetidos
6.839 livros para a Argentina, 966 para a França, 962 para Portugal e 612 para a Inglaterra,
para citar alguns exemplos. Além disso, como forma de auxiliar a distribuição da produção
do Instituto, sabe-se que, desde 1949, o INL havia criado o Serviço de Assistência Técnica
Regional (SATR) pertencente à Seção de Bibliotecas.
Segundo o Guia das Bibliotecas Brasileiras, publicado em 1955, havia 7.000 de
bibliotecas registradas, sendo 1.000 delas consideradas apenas “modestas sala-de-livros”18.
Neste Guia, incluíam-se todas as bibliotecas cadastradas de 1938-52, nas quais o Instituto
do Livro categorizava as instituições do seguinte modo: bibliotecas privativas; bibliotecas
escolares de nível primário, escolar secundária ou de nível médio; escolar especial; indígena;
pública infantil; pública estadual; pública municipal; franqueada especializada, franqueada
com seção infantil, católica e operária; especial; biblioteca escolar e popular. Estas eram
geridas pelo INL que as apresentava, nesta edição, com os seus respectivos nomes,
endereços e números de cadastro. Além disso, responsabilizava-se por encaminhar as
edições do órgão e a supervisionar as disposições físicas destas.
Alguns anos mais, em 1967, a edição de um novo Guia de Bibliotecas Brasileiras
apresentava novas incorporações do Instituto Nacional do Livro. A principal mudança
desta para outras publicações foi a inclusão das bibliotecas não registradas pelo Instituto. À
época, o INL tinha o registro de 9.743 bibliotecas. A partir desta data, o órgão adotou a
classificação das bibliotecas em categorias, de acordo com o critério estabelecido pela
UNESCO e pela IFLA (Federação Internacional de Associações de Bibliotecários). Além
disso, o Guia estabeleceu um novo critério que definia a concepção de biblioteca
considerando-se o acervo, a densidade demográfica da região, organização técnica e
qualificação dos profissionais. As páginas continham as estatísticas das bibliotecas
selecionadas pelo INL para a pesquisa segundo a unidade da federação.
Cerca de um ano depois, mediante a criação do Decreto-lei 62.239 de 08 de
fevereiro de 1968 foi realizada a incorporação do Sistema Nacional de Bibliotecas ao
Instituto Nacional do Livro, adotando como meta prioritária a biblioteca pública. Assim
sendo, os objetivos almejados buscavam implantar em cada Unidade Federada um Sistema
Estadual de Bibliotecas Públicas, visando à criação do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas. Os princípios básicos tocavam os seguintes pontos: a) planejar a criação do
Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas; b) prestar cooperação técnica e financeira aos
Estados, no que se refere à organização de bibliotecas públicas e à implantação do Sistema;
c) redigir normas técnicas e procedimentos de serviço destinados a bibliotecas públicas; d)
realizar inspeções técnicas e sindicâncias junto às bibliotecas públicas; e) desenvolver
atividades de treinamento e aperfeiçoamento de recursos humanos em diferentes níveis em
parceria com as instituições de ensino; f) promover e edições adequadas de obras de
recursos humanos; g) manter o cadastro de bibliotecas e publicar o Guia das Bibliotecas
Brasileiras19.
Em 1983, poucos anos antes do fim do Instituto Nacional do Livro, um novo Guia
de Bibliotecas foi lançado. Recapitulando os anos antecedentes, assim como as outras edições
do Guia, o então diretor do Instituto, Herberto Sales, fez um apanhado do trabalho do
Instituto, especialmente, o de convênios e de distribuição de bibliotecas em cada região do
país. Abaixo, segue a reprodução de um quadro contendo a tabulação dos dados de
investimentos, número de bibliotecas, entre outros aspectos. O ano de referência é o de
198120:
elaborado pelo Instituto Nacional do Livro em 1983. O quadro em questão está na página 341.
Ao analisar toda a documentação referente à gestão das bibliotecas, mais uma vez a
tese da retórica da educação endossa a própria história do Instituto Nacional do Livro. Ao
mapear-se a hemeroteca brasileira, percebe-se que havia um incentivo do Instituto do Livro
para a criação e até mesmo para a manutenção das bibliotecas populares. O Diário de
Notícias de 1949 noticia a participação do INL na Biblioteca Demonstrativa Castro Alves a qual
se subdividia em duas seções, uma dedicada ao público adulto e outra ao universo juvenil.
Além desta, há de se acrescentar outros projetos como aqueles identificados no decorrer
Bibliografia
BORGES, Jorge Luís. A Biblioteca de Babel. ___________. Ficções. Trad. Carlos Nejar.
Porto Alegre: Editora Globo, 1970. p. 61- 70.
21 Algumas destas iniciativas puderam ser localizadas a partir do trabalho realizado com a documentação
inédita do arquivo do Instituto Nacional do Livro localizado no prédio anexo da FBN. Nela, identificam-se
os planos de gestão, capacitação de bibliotecários, originais de publicações e o material para a implantação
dos já citados carros-bibliotecas.
22REVISTA BRASILEIRA DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO. Federação Brasileira de
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 1982.
CUNHA, Murilo Bastos da. Das bibliotecas convencionais às digitais: diferenças e
convergências. Perspectivas em Ciência da Informação, v.13, n.1, p.2-16, jan./abr. 2008.
Decreto-lei nº93 de dezembro de 1937, ver:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-93-21-dezembro-
1937-350842-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 22 nov.2018.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO. Guia das
Bibliotecas. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1952.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO. Projeto para a
implantação do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas. Brasília: MEC/INL, 1968.
PÉCORA, Alcir. O ensaio na época da morte do ensaio. Limiar | volume 5 | número 10 |
2. semestre 2018.
REVISTA BRASILEIRA DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO. Federação
Brasileira de Associações de Bibliotecários. São Paulo, 1973. Disponível em:
https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/viewFile/350/410. Acesso em 22. Nov.2018.
SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais
no Estado Novo (1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado
em Ciência da Informação) – Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT –
UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.
VENANCIO, Giselle Martins; WEGNER, Robert. Uma vez mais, Sérgio e Gilberto.
Debates sobre o ensaísmo no suplemento literário do Diário de Notícias (1948-1953). Varia
Historia, Belo Horizonte, vol. 34, n. 66, p. 729-762, set/dez 2018.
Resumo
O presente trabalho tem como proposta investigar sobre o papel da nascente crítica
cinematográfica carioca (1926-1932) em sua instrumentalização para auxiliar tanto no
desenvolvimento do cinema nacional quanto na formação de um corpo intelectual com
vistas a apoiar iniciativas do Estado perante uma maior promoção do cinema. Para tal
intento, utilizaremos duas das principais revistas de cinema da época, a saber: Cinearte e O
Fan. Cada uma dessas revistas desempenhou um papel muito além da mera divulgação das
produções cinematográficas, pois, sob perspectivas diferentes e voltadas para públicos
distintos, as mesmas serviram como atores intelectuais de um novo projeto cultural
articulado para a ascensão da nova modalidade artística.
Introdução
Uma obra de arte nunca nasce da sua própria solidão. Epidérmica em seu tempo,
qualquer produto realizado e divulgado pelo ser humano necessariamente passa pelo crivo
e crítica das pessoas daquela época. E se é assim na literatura, arquitetura ou música, não
seria diferente com a nova modalidade que surgia tardiamente. O cinema, até por ser uma
arte industrial feita em conjunto, não fica atrás dessa percepção.
Do ponto de vista acadêmico, é dos anos 1990 que ocorre uma pulverização dos
trabalhos historiográficos em relação ao cinema. No Brasil, pesquisadores como Alceu
Freire Ramos2, Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino3 e Cláudio Aguiar Almeida4
1 Bacharel e Licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, possui formação em
Cinema com especialização em Montagem e Edição na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e é mestre em
História Social da Cultura pela PUC-RJ. Atualmente é doutorando em Economia Política: Doutoramento
Interdisciplinar pelas Universidades de Lisboa, Coimbra e Instituto Universitário de Lisboa. E-mail:
mauriciordias19@gmail.com
2 Em sua tese de doutorado no departamento de História da USP, Ramos em 1996 defendeu O canibalismo dos
fracos: história/cinema/ficção – um estudo de Os inconfidentes (1972) na qual procura pensar a produção de Joaquim
Pedro de Andrade sobre a Inconfidência Mineira.
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
3 Produziu a tese História e Cinema: uma imagem do Brasil nos anos 30 na Universidade Federal Fluminense em
1995, na qual procurava refletir sobre a formação de uma imagem própria de nação na produção
cinematográfica dos anos 1930.
4 Com o título O cinema como “agitador de almas”: argila, uma cena do Estado Novo, Cláudio Aguiar Almeida
defendeu sua tese no departamento de História da USP em 1999 sobre a análise de dois longas-metragens
produzidos durante o Estado Novo.
Cinearte
A diferença estabelecida pela Cinearte era fazer uma grande revista exclusiva de
cinema, que fosse consideravelmente maior em tamanho, artigos e jornalistas, em relação as
demais revistas do mercado editorial de cinema6, e assim concentrar as grandes questões
pertinentes ao cinema em suas páginas. A proposta era tornar-se uma referencia na área.
A redação da revista foi produzida por uma diversidade bastante significativa de
intelectuais. Jornalistas, historiadores, burocratas, educadores, etc. Contudo, mesmo com a
farta mão de obra utilizada na revista, dois nomes se sobressaem em um primeiro
momento da empreitada: Adhemar Gonzaga (1901-1978) e Mário Behring (1876-1933). Os
dois amigos que compartilhavam o mesmo gosto em relação ao cinema foram
fundamentais para o surgimento de tal revista. Ambos trabalharam na revista ParaTodos,
onde formalizou-se a ideia da Cinearte.
Dentro do período que abarca a pesquisa, de 1926 a 1932, Cinearte contou com uma
média de 40 páginas por edição, e todos contendo editoriais, porém sem serem assinados.
Nesse sentido, não se sabe quem definia o editorial, se era Mário Behring ou Adhemar
Gonzaga.
Em relação aos estudos, Ismael Xavier foi o primeiro a tentar elucidar alguns
aspectos da revista, dedicando um capítulo do livro Sétima arte: um culto moderno para tal
projeto. Em seu capítulo sobre a Cinearte, Xavier destaca que:
Longe de representar a iniciativa de um pequeno grupo que procura
expor sua visão crítica, em nova arte ou valores sociais, pondo no banco
dos réus um determinado mundo de exploração dominante da nova
técnica, Cinearte é a manifestação integral e contraditória da
industrialização triunfante e da colonização cultural.7
7 Xavier, Ismael. A sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p.172-173.
O Fan
A revista O Fan surgiu em agosto de 1928 e teve o seu nono e último número em
dezembro de 1930. Seus um pouco mais de dois anos tiveram origem no Chaplin-Club, um
cineclube fundado no Rio de Janeiro, dois meses antes da primeira edição de O Fan, por
quatro amigos cinéfilos que tinham a intenção de contribuir para o debate cinematográfico
8 Gomes, Ângela de Castro. Essa gente do Rio... Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1993, p. 70.
9 Expressão muito famosa em vários textos de Adhemar Gonzaga na revista.
que se formara até então. Com ideias bastante destoantes para a época, os quatro jovens
amigos Almir Castro, Claudio Mello, Plinio Sussekind Rocha e Octavio de Faria, que
haviam se conhecido no colégio, passaram a compartilhar de forma mais profissional o
gosto do cinema em si, na busca tanto por uma renovação no campo da crítica
cinematográfica quanto na adesão de novas pessoas ao cineclube, auxiliando na formação
de um corpo de pessoas que passaram a prestigiar o cinema enquanto arte propriamente
dita.
Nos noves números que compuseram a revista, que teve uma grande irregularidade
nas suas publicações, há um conjunto de textos diversos que o caracterizam: desde
resenhas de filmes que passavam no circuito cinematográfico do Rio de Janeiro, passando
por traduções, debates que transpassavam várias edições da revista, até crônicas literárias e
ensaios filosóficos sobre o cinema. Holística na sua fundação, tal perspectiva formava um
ambiente para os quatro se colocarem e se posicionarem no debate cultural existente sobre
o cinema. Como motor do debate, havia um consenso: a negação do cinema falado, que
teve origem no momento da circulação da revista.
Para além da crítica em relação à sonoridade no cinema, talvez a grande
particularidade de O Fan esteja em refletir sobre o cinema sob uma perspectiva claramente
artística, e que procurava não apenas transmitir novas ideias e saberes sobre o cinema, mas
em formar um público capaz de adquirir tais conhecimento. A ideia do cineclube, longe de
ser fechado, era a cada momento congregar mais pessoas para o universo do cinema.
Mesmo com as dificuldades financeiras e distâncias com viagens, havia uma clara intenção
de profissionalizar e expandir cada vez mais tal empreitada.
Há alguns estudos que abordaram sobre a revista. Embora apareça em alguns
ensaios sobre a crítica cinematográfica nacional10, o primeiro estudo mais aprofundado da
revista ocorreu no livro A sétima arte: um culto moderno de Ismael Xavier. Na obra, Xavier
dedica um capítulo inteiro para O Fan, comparando as suas abordagens com a de muitos
pensadores da época como Jean Epstein, Germaine Dulac e Louis Delluc. Xavier busca
analisar a perspectiva ideológica que estaria contida na revista, apontando os
distanciamentos e limitações de seus argumentos estéticos frente ao seu contexto social e
político vivenciado pelos seus integrantes.
10 Entre os estudos, vale destacar o de Walter da Silveira na revista Tempo Brasileiro em 1966. No estudo,
Silveira analisa O Fan de acordo com a abordagem esteticista e como seus representantes foram os primeiros
críticos a abordarem a figura do diretor como central no processo de consecução de um filme.
Existe também o ensaio escrito por Saulo Pereira de Mello, publicado em 1991 e
intitulado O Fan, o Chaplin Club & Limite. Amigo de Mário Peixoto e conhecido de alguns
dos integrantes da Chaplin-Club, Mello aborda a consecução da obra Limite a partir da
experiência dos debates ocorridos em O Fan e no cineclube. Permeado de informações
importantes sobre os personagens que compuseram tal organização, o texto comenta e
analisa alguns pontos de discussão que ocorreram na revista.
Caminhando para a pesquisa acadêmica, há um estudo mais atual chamado O debate
do Chaplin Club: do grupo de cinema á teoria literária, tese de doutorado de Constança Hertz
Rodrigues apresentada á faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em
2006. Em resumo, a pesquisa identifica conceitos da literatura no pensamento do Chaplin-
Club e propõe uma aproximação comparativa entre os textos de O Fan e os de teóricos e
escritores do formalismo russo.
Os estudos apontam um direcionamento das pesquisas em torno de O Fan que
saíram da discussão do campo ideológico e estético discutido pelos articuladores para
pensar em reconsiderações sobre as questões internas da revista e influências externas que
auxiliaram na sua promoção.
O Fan queria se notabilizar de forma diferente das demais revistas de cinema.
Como vanguarda para um novo pensamento sobre o cinema, a revista procurava mostrar
um outro lado do mundo do cinema que até então era ignorado pelo mercado editorial da
época. A importância do diretor nos filmes, debates e divergências de análises sobre os
filmes11, a importância do roteiro, a questão da câmera, etc. Dando preferencia à técnica
cinematográfica em detrimento do mundo dos atores e atrizes, O Fan procura analisar sob
um novo front o cinema.
Tal perspectiva visava ressignificar todo uma produção editorial do cinema ainda
calcada em aspectos que os jovens cineclubistas consideravam menos importantes. Nesse
sentido, a busca por uma cooptação de mais pessoas do mundo intelectual era parte
fundamental de uma mudança de rumo na reflexão sobre o cinema no Brasil. Penetrar nos
debates intelectuais que ocorriam na cidade e angariar pessoas de tal núcleo para o cinema
era o intento fundamental do grupo.
Note-se que o cinema, mesmo no final dos anos 1920, muitas vezes ainda era
encarado como um lazer, um divertimento fortuito e ainda era visto como menor por
11A querela sobre o filme Aurora de Murnau pode ser um ótimo exemplo disso. O debate ocorreu em sete
das nove edições do jornal.
muitos intelectuais que trabalhavam mesmo que no campo artístico. A busca por uma
inserção do cinema em tal meio, bem como a entrada de tais jovens intelectuais no meio
dos debates intelectuais da época, era o âmago do projeto que permeava O Fan.
Conclusão
Ratificamos que a crítica cinematográfica carioca, na sua formação mais profícua nos anos
1920, mesmo com todas as divergências e diferenças inerentes nos seus articuladores e revistas,
buscou ser a promotora do cinema nacional, na tentativa de ser o elo que dignificaria e promoveria
o circuito nacional de cinema. Ela não apenas teria o papel de publicidade e análise dos filmes, mas
seria o grande funil que desenharia as diretrizes necessárias para a incipiente produção
cinematográfica no país. Seria cria dos seus autores para recriar uma visão do país nos moldes
pretendidos para o novo tempo que estava por vir. E o Estado teria função primordial nessa
realização, ao atribuir e facilitar o processo de industrialização do país.
Assim, os críticos da época se colocavam como mediadores intelectuais do processo, tendo
a crítica carioca na época um papel artístico e político bem mais relevante do que se poderia pensar
à primeira vista.
Periódicos
Bibliografia
Resumo
Introdução
1 Graduada em Arquitetura e Urbanismo pelo Centro Universitário de João Pessoa – Paraíba (UNIPÊ),
mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal da Paraíba (PPGH – UFPB)
e membro do grupo de pesquisa Saberes Históricos – Ensino de História, Historiografia e Patrimônios - E-
mail: vieiracnatalia@gmail.com
2 LONDRES, Cecília. “O Patrimônio cultura na formação das novas gerações: algumas
considerações.” In. TOLENTINO, Átila Bezerra (Org.) Educação patrimonial: reflexões e práticas. João Pessoa:
Superintendência do Iphan na Paraíba, 2012
Anais do
Ciclo Virtual Internacional de Comunicações de História Política
_________________________
aquele relativo a um povoado, a uma cidade, no que diz respeito à sua história, sua
memória, sua cultura.
Com a ampliação da ideia de patrimônio cultural observou-se, o início do processo
de desconstrução do pensamento tradicional, baseado nas discussões entre material x
imaterial, presente x passado, as quais passaram a ser questionadas e discutidas na sua
essência. Constatou-se também a discussão sobre a imaterialidade do patrimônio cultural,
suas particularidades e conteúdo.3
Todavia, o conceito de patrimônio cultural pressupôs um valor atribuído aos bens
culturais que podem ser materiais ou imateriais no universo simbólico de um determinado
grupo social, que se deu através da Constituição Federal de 1988, nos seus artigos 215 e
216.4
O conceito de patrimônio se associou ao de monumento, que pode ser
correlacionado às lembranças, de natureza afetiva, fazendo aproximar o passado e o
presente, fundamentando os conceitos de memória e identidade, os quais desde o século
XIX esteve em parte ancorada na arquitetura,5 pois John Ruskin retrata que “podemos
viver sem a arquitetura de uma época, mas não podemos recordá-la sem sua presença.”6
Porém, Jacques Le Goff traz a ideia que:
O que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas
uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade. (...) estes materiais da memória
podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos,
herança do passado, e os documentos, escolha do historiador7
3 FONSECA, M. C. L. “Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural.”
In: Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Freire, volume I. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria
da Cultura do Estado do Ceará, 2003.
4 BRASIL. Constituição Federal (1988). Seção II, Artigo 216, caput, incisos, parágrafos.
5 CHOAY, Françoise. “A alegoria do patrimônio.” São Paulo: Estação Liberdade/Ed.UNESP, 2001.
6 RUSKIN, John. “A lâmpada da memória.” Ateliê Editorial, 2008, p. 59
7 LE GOFF, Jacques. “História e Memória”. Ed. UNICAMP, Campinas, 1992, p. 535
Michel de Certeau ressalta a temática das “práticas de espaço”, que colaboram para
construir uma alternativa entre uma relação entre os organismos de cultura, a preservação
do patrimônio cultural e a vivência dos habitantes. Diante disso, o autor retrata que é só é
possível habitar em lugares repletos de lembranças, lugares equiparáveis a relatos
fragmentários de tempos embaralhados, como narrativas à espera de releituras e novas
interpretações:
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados
roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se
desdobrar, mas que estão ali como histórias à espera e permanecem no
estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na
dor e no prazer do corpo.8
Nesse sentido, Stuart Hall afirma que a cultura é responsável pelo aspecto
agregador da identidade nacional, sendo resultantes de um processo de identificação que
permite posicionar-se no interior das definições fornecidas pelos discursos culturais. Desse
modo, as subjetividades são produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico.
Nessa perspectiva, a identidade emerge do diálogo entre os conceitos e definições
representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo de responder
aos apelos feitos por estes significados.
[...] O que denominamos “nossas identidades” poderia provavelmente
ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo
daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e
procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida,
são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias,
sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como
sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas
culturalmente.9
8CERTEAU, Michel de. “A invenção do cotidiano: artes de fazer”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 189
9 HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade?” In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p.26
10 VOLKMER, José Albano. “Memória cultural e o patrimônio intangível.” ArquiteXtos 009 – fevereiro,
2001. CEBRAP: Novos Estudos, p. 2. Disponível em: www.vitrivius.com.br. Acesso em: 05 set. 2020
11 SALES, Ticiana Oliveira de. “A representação da economia na construção da identidade potiguar no
cidades – Parte II” In: Curso Formação de Mediadores de educação para Patrimônio, Universidade Federal
do Ceará, 2020.
13 NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos; FILHO, Vagner Silva Ramos. “Afinal, o que é patrimônio?
Conceitos e suas Trajetórias”. In: Curso Formação de Mediadores de educação para Patrimônio, Universidade
Federal do Ceará, 2020.
14 Idealizado pelo Designer Aloísio de Magalhães que tinha como objetivo, traçar um sistema referencial
básico a ser empregado na descrição e análise da dinâmica cultural brasileira.
15 FILHO, Antônio Luiz Macedo e Silva. “A cidade e o patrimônio histórico.” Cadernos Paulo Freire, volume
na cidade de João Pessoa (1987-2002).” João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2004.
Nesse sentido, encontra-se o caso de João Pessoa, capital do estado da Paraíba, que
durante a década de 1960 começa a estabelecer um processo de degradação e
“marginalização” de sua área central como demonstra Scocuglia ao analisar as ações de
intervenção e revitalização desenvolvidas no centro histórico de João Pessoa e as questões
sociais frente a esse panorama de mudanças, pois a cidade da Parahyba correspondia,
então, a um aglomerado tipicamente colonial, menor que outras cidades paraibanas.
Ressalta-se que a Delimitação do Centro Histórico de João Pessoa, iniciou em
1975 com o primeiro plano diretor da cidade, no Diário oficial de 03 de dezembro de 1976
onde foi publicada a Lei n° 2.0102 de 31 de dezembro de 1975, constituindo o Código de
Urbanismo integrante do Plano Diretor Físico do Município de João Pessoa. Em 1970,
surgiu o IPHAEP e a partir de 6 de dezembro de 2007 que o Centro Histórico de João
Pessoa é reconhecido com patrimônio nacional pelo IPHAN.19
Conforme Castro, a cidade era reduto dos grandes senhores, sobretudo, na região
do Varadouro.20 É compreensível que no século XIX, devido a legislação do Governo
Brasileiro, que trazia a higiene como ponto fundamental para a urbanização espacial, com a
17 VARGAS, Heliana Comin, CASTILHO, Ana Luisa Howard de. (org.). “Intervenções em centros
urbanos: objetivos, estratégias e resultados.” Barueri, SP: Ed. Manole, 2006, p.4
18 SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. “Imagens da cidade: patrimonialização, cenários e
CIA.: UM ‘SABER FAZER’ PERDIDO”. In: Anais do X Fórum Mestres e Conselheiros - Agentes Multiplicadores
do Patrimônio. Anais. Belo Horizonte (MG) Universidade Federal de Minas Gerais, 2018. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/xmestres/105511-FABRICA-DE-VINHO-DE-CAJU-TITO-SILVA--
CIA--UM-SABER-FAZER-PERDIDO>. Acesso em 5 set. 2020.
20 CASTRO, A. M. “Centro Histórico de João Pessoa: ações, revitalização e habitação”, Dissertação de
Parahyba através dos anúncios da imprensa da segunda metade do século XIX.” Colóquio
Internacional de História. 2007.
23 AGUIAR, Wellington, “Cidade de João Pessoa: a memória do tempo” João Pessoa: Idéia, 1993, p.139
24 TINEM, N. (Org.). “Fronteiras, marcos e sinais: Leituras das Ruas de João Pessoa”. Editora
Considerações Finais
26 LAVIERI, J.R.; LAVIERI, M.B. “Evolução da estrutura urbana de João Pessoa.” João Pessoa:
UFPB/NDHIR, 1992.
27 SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. “A política habitacional do BNH no Brasil pós-64 e seus
reflexos na expansão urbana de João Pessoa.” João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.
28 CERTEAU, Michel de. op. cit. p. 188
29 ARGAN, Giulio Carlo. “História da arte como história da cidade”: 4ª ed., São Paulo, Martins. Fontes,
1998
as áreas litorâneas na cidade, fazendo com que o núcleo central da cidade, que no século
XIX era considerada uma área valorizada e frequentada pela elite pessoense, sofresse o
processo de despovoamento da área, onde o uso residencial começou a desaparecer,
obtendo novos usos.
Considerando que a discussão estabelecida leva a um campo interdisciplinar, nota-
se a importância de atrelar o Patrimônio Cultural às práticas urbanísticas, com o intuito de
condicionar a caracterização da sociedade brasileira, influenciando diretamente no
sentimento de pertencimento do lugar, contribuindo para o reconhecimento e salvaguarda
do Patrimônio, da cultura e memória.
Salienta-se a carência da Educação Patrimonial para o Brasil, bem como para a
cidade de João Pessoa, enfatizando a necessidade do envolvimento da população. Tais
iniciativas, tornam-se apenas uma dentre diversas possibilidades para corroborar com o
pleno desenvolvimento cultural, observando as deficiências, carências e potencialidades as
quais a cidade de João Pessoa apresenta, a fim de que a grande população possa ser
conscientizada e sensibilizada acerca da valorosa riqueza patrimonial que, sobretudo,
necessita ser salvaguardada bem como debatida.
Bibliografia
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FONSECA, M. C. L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In:
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Resumo
1 Mestra em História, Política e Bens Culturais – CPDOC – FGV, especialista em História e Cultura no Brasil
(UNESA) e em História e Cultura Afro-brasileira (UCAM). Contato: varaujo80@gmail.com
2 AZEVEDO, André Nunes. A grande reforma urbana do Rio de Janeiro: Pereira Passos, Rodrigues Alves e as ideias de
diversas formas, e uma delas foi a coibição de elementos culturais e religiosos considerados
primitivos – e associados aos escravizados - pelos detentores do poder. Tal ação pode ser
avaliada como produto das ações do Estado brasileiro fundamentadas no racismo
estrutural, que pode ser definido como a aplicação de políticas e decisões que acabam por
subordinar e controlar um determinado grupo racial3. A tipificação criminal de rituais e
práticas de culto de origem africana, sob a alegação de feitiçaria e magia negra, é um dos
retratos desse racismo estrutural. Needel4 destaca que os paradigmas culturais da elite,
baseados em costumes e modelos culturais derivados das sociedades europeias, foram
adaptados ao meio carioca com o fim principal de perpetuar e promover os interesses desta
própria elite.
A reforma foi também um instrumento de legitimação política da República, ainda
em seus primeiros anos de existência, e que tendo nascido sem nenhum apoio ou
participação popular necessitava de ações e símbolos que fossem associados a ela de forma
positiva5. Com o advento da República em 1889, o governo pretendia afastar-se cada vez
mais dos elementos e símbolos imperiais, associados a um passado indesejado, e uma das
formas de realizar tal tarefa foi a atualização de legislações, como a Constituição de 1891 e
a publicação do Código de Posturas de 1890, que foram sinais simbólicos da transformação
do regime imperial para o republicano. É necessário consideramos, no entanto, que o
Código de Posturas começou a ser elaborado ainda na vigência tanto do Império quanto da
escravidão, a partir de uma discussão sobre a reforma do código criminal de 18306. O
código de posturas republicano, entretanto, foi ainda mais incisivo na questão de controle e
imposição de um modelo civilizatório elitizado. Por meio da perseguição à capoeira e à
feitiçaria, além do incremento da repressão à vadiagem, o poder público cerceava
comportamentos e manifestações culturais que considerava inadequadas e em desacordo
com uma cidade que estava sendo transformada para se alinhar com o padrão moderno
europeu.
Com relação ao Código de 1890, chamam a nossa atenção os artigos 156 e 157, que
versam sobre o exercício ilegal da medicina e a prática do espiritismo e da magia. Embora
3 ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p.12.
4 NEEDEL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura da elite do Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993, p. 38.
5 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das
7 O conceito das “classes perigosas” surgiu na França e na Inglaterra durante o século XIX, referindo-se
principalmente à classe trabalhadora mais pauperizada, habitante de cortiços e áreas insalubres, e que devido
às péssimas condições de vida por vezes se revoltavam contra as condições que eram submetidas. Conforme
Chalhoub e José Murilo de Carvalho o conceito era amplamente utilizado na capital da República
no final do século XIX e início do XX.
8 CHALHOUB, S. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de
determinou que fosse feita diligência investigativa em sua casa, e a matéria relata que foram
apreendidos, entre outros objetos:
Um alguidar de louça vidrada contendo uma figa e azeite de dendê, um
lenço branco com vários nós, tendo em um delles um papel com os
nomes entrelaçados de José Caetano Camello e Francisca Maria de Jesus.
Ainda mais um embrulho de jornal com grande quantidade de bentinhos,
figas da Guiné9, ramos d´arruda....10
A notícia informa ainda que Domingos estava sendo processado, já que várias
pessoas confirmavam “essas babuzeiras e magias, com as quaes tem elle conseguido illaquear11 a boa-fé
de muita gente” (idem). Em seu depoimento na delegacia, noticiado dois dias depois,
Domingos se defendeu dizendo que a acusação era falsa e que os objetos apreendidos em
sua casa pertenceriam “ao creoulo Emygdio, e que delles se utilizava sua sogra, que costuma entregar-se
a estes trabalhos de feitiço”. Domingos afirma ainda ter sido prejudicado pela ação da polícia,
uma vez que alega estarem faltando diversos itens de valor em sua casa, inclusive uma
importância com a qual adquiriria um quiosque no Campo de Sant´Anna12.
Não podemos depreender a partir da matéria qual a etnia de Domingos, apenas a de
Emygdio, negro, alegado proprietário dos itens apreendidos e que provavelmente também
seria preso devido ao depoimento de Domingos pela acusação de feitiçaria. A mesma
acusação pesou sobre a parda Amélia Maria da Glória, moradora do morro do Pinto, na
zona portuária, conforme matéria do Jornal do Commercio também em 1901. Amélia era
acusada de “prolongar a vida, dar fortuna, curar, etc., abusando deste modo daquelles que a procuravão”.
Na diligência à sua casa também foram apreendidos diversos itens julgados de feitiçaria13.
A apreensão de materiais que corroborassem as acusações de feitiçaria pela polícia
era prática comum nas primeiras décadas da República. O Museu da Polícia Civil do Rio de
Janeiro possui ainda hoje uma série de itens denominados “Coleção de Magia Negra”
consistindo em sua maioria de artefatos utilizados em religiões de matriz africana,
associados pelo poder público da época a rituais de magia e feitiçaria e que foram
apreendidos entre 1890 e 1930. A análise da constituição do acervo através dos itens
apreendidos torna evidente que havia uma persistência do aparato policial em coibir as
9 Embora o símbolo seja originalmente italiano, tendo se espalhado com diversos significados ao longo da
Europa, no Brasil a manofico não tardou a ser apropriada como símbolo de proteção e fechamento de corpo
nas religiões de matriz africana, redesignada com o nome de Figa da Guiné. Esta nomenclatura pode ser tanto
devido à madeira com a qual é confeccionada quanto à associação com o país africano.
10 Correio da Manhã, 17 dez 1901, p. 2.
11 Enredar, prender. Michaelis Online http://michaelis.uol.com.br, acesso em 26/02/2020.
12 Correio da Manhã, 19 dez 1901, p. 2.
13 Jornal do Commercio, 02 mar 1901, p. 4.
ou “mandingarias” foi comum durante todo o período em que houve a presença africana
no Brasil, havendo relatos a respeito ainda durante o período colonial20. No Rio de Janeiro
do século XIX, os nomes e endereços dos feiticeiros mais famosos eram públicos e
notórios, e eles eram frequentados tanto pela população mais pobre quanto pelo estrato
social mais alto. Este fato é secundado pelo cronista João Do Rio, que em sua coletânea de
crônicas As Religiões no Rio21 relata diversos feiticeiros e mães de santo22 que atendiam em
lugares conhecidos pela grande maioria da população – embora seja enfático em alegar
charlatanismo e enganação como tônicas de suas práticas.
A criminalização oficial das práticas religiosas ou culturais associadas à população
negra permitia a repressão e perseguição aberta às mesmas. Durante o Império, havia um
certo nível de repressão, mas era necessário apelar para outras razões, como a ameaça de
morte aos senhores brancos proferida pelo “espírito” no caso de Pai Gavião23 ou
estelionato e afronta à moral24, utilizado para Juca Rosa. Com a tipificação criminal, a mera
acusação de feitiçaria era o bastante para o processo e a eventual prisão. Embora as
matérias analisadas comprovem que o exercício de religiosidades de base africana não tenha
sido extinto, muito menos o recurso popular à “feitiçaria” para solução de problemas, a
repressão advinda das denúncias resultava em julgamento e encarceramento pela prática
cultural e religiosa em si, e não eram necessários outros subterfúgios para processar o acusado.
A desqualificação das crenças e práticas era secundada pelos jornais tanto pela terminologia
usada nas reportagens (baboseiras, mandingaria25, etc.) quanto pela associação com a
exploração da fé alheia. Não podemos afirmar que não houvesse realmente pessoas que se
aproveitassem da credulidade alheia, mas a influência exercida pelos jornais na percepção
que a sociedade tinha destas crenças se afigura como negativa.
envolvido com Domingos Feiticeiro – e por diversas vezes faz menção a uma “falsa mãe de santo”
denominada Assiata, que, pela referência ao endereço (Rua da Alfândega 104) concluímos se tratar de Tia
Ciata, ou Hilária Batista de Almeida, figura marcante da comunidade negra emigrada da Bahia para o Rio,
uma das principais da Pequena África, e associada ao surgimento do samba na região (RIO, op. cit. p.19).
23 COUCEIRO, op. cit. p. 47.
24 Juca Rosa também teria atuado como intermediário para a prostituição de suas “filhas”, bem como as
“empurrado” para tal prática pela cobrança das mensalidades e valores de trabalhos, uma vez que era uma das
poucas formas de uma mulher solteira pobre sobreviver caso não tivesse alguém que a sustentasse
(SAMPAIO, op. cit. p. 85).
25 Sampaio cita Rachel Harding e aponta que as “bolsas de mandinga” eram amuletos semelhantes aos
bentinhos ou escapulários, mas por terem origem na crença africana, eram vistos como práticas
supersticiosas, e referiam-se aos mandingos, povos originários da região do Senegâmbia, na África Ocidental
(ibidemt, pp. 216-218).
Cabe observar que a classificação de religião ou feitiçaria era feita pelo próprio
poder público, que poderia a seu bel-prazer classificar um praticante de religiões de matriz
afro como como legítimo religioso, ou como feiticeiro, caso em que seus objetos de
trabalho e culto seriam apreendidos26. A criação da coleção Magia Negra a partir dos itens
apreendidos e o tratamento recebido por este acervo refletem o racismo estrutural presente
na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que mesmo tendo sido tombada em 1938 pelo
SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, a coleção foi exposta
sem nenhum critério museológico de preservação da origem das peças27, e foi “esquecida”
pelo Iphan por cerca de 40 anos, voltando a figurar nas listagens de patrimônio apenas
após 1980. Nesse ínterim, era exibida no Museu da Polícia Civil junto a armas e itens como
bandeiras com suástica nazista. A coleção foi vítima de um incêndio na década de 1980 que
destruiu diversas peças e após isso foi retirada de exibição, com grande parte sendo
colocada em reserva técnica e com a Polícia dificultando o acesso tanto a pesquisadores
quanto a religiosos. Ainda na década de 1970, membros de comunidades religiosas de
matriz africana começaram a pleitear a devolução dos itens ao “povo de santo”, e nos anos
2010 a Comissão de Direitos Humanos da Alerj encampou a demanda, resultando no
compromisso de liberação do acervo em agosto de 202028.
O tombamento da coleção pelo SPHAN teve início em 1938, e notam-se algumas
características no processo: havia o conhecimento, por parte de quem elaborou a listagem
de itens da coleção, da função religiosa e da ligação aos orixás dos itens apreendidos; não
existe, na documentação de tombamento, nenhuma justificativa para o pedido de registro,
apenas a classificação dos itens como “arte popular afro-brasileira”; não há nenhum relato
ou informação de origem ou data de apreensão dos objetos listados; o registro se deu como
patrimônio etnográfico, e não sacro, apesar do conhecimento de que eram itens ligados à
religiosidade de matriz africana. Tal classificação, segundo Corrêa29, é uma evidência de
preconceito, do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, uma vez que os objetos
que remetiam ao culto católico eram registrados nos livros de Tombo Histórico e de Belas
Artes.
26 MAGGIE, Yvonne. O Medo do Feitiço: Relações entre Magia e Poder no Brasil. Rio de Janeiro: ARQUIVO
NACIONAL, 1992.
27 CORREA, Alexandre. “Um museu mefistofélico: museologização da magia negra no primeiro tombamento
etnográfico do Brasil.” Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares (online), 11, 2014.
28 Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/20/apos-100-anos-
policia-devolvera-bens-que-contam-origem-do-candomble-no-rio.htm, acesso em 17 set 2020.
29 CORRÊA, op. cit. p. 8.
Bibliografia
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30PEREIRA, Pamela de Oliveira. Novos Olhares Sobre a Coleção de Objetos Sagrados Afro-Brasileiros Sob a Guarda
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Resumo
Introdução
1 Graduada em História, licenciatura e bacharel, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
mestranda no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) pelo Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas
(CPDOC/FGV). E-mail para contato: vivianehistoria2010@gmail.com .
2 RITTO, Cecília; NEIVA, Paula; PINHEIRO, Leo. Acidente com bonde em Santa Teresa deixa 5 mortos e
4HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução: Jeferson Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2014, p. 28.
aos usuários com o fim do viajar no estribo, haja visto que tal prática propiciava uma maior
interação pela exposição e proximidade entre o dentro e o fora da composição, pois a
carona era uma dinâmica utilizada internamente no bairro entre seus moradores para curtas
distâncias e somente com a gradual redução de bondes em circulação que passageiros de
modo geral passaram a lançar mão de tal técnica para grandes distâncias.
Além disso, um personagem marcante que compunha a fisionomia de Santa Teresa
e promovia um verdadeiro espetáculo a céu aberto e, porque não dizer, a bonde aberto,
desapareceu, trata-se do caroneiro, figura majoritariamente masculina que não pode e nem
deve ser confundida com a do carona, pois apesar de ambos fruírem de equilíbrio no viajar
no estribo, um possui ponto de partida e chegada, um destino específico, enquanto que o
outro segue vadio, como andarilho, em suma, “o caroneiro não tem destino nem roteiro de
viagem: ele pula no bonde, agarra-se ao balaústre, salta nas retas de grande velocidade e
volta a pegá-lo, contorcionista.”5
verdadeira acrobacia, como exposto minunciosamente por Carlos Fortuna em seu livro
Curvas, ladeiras: Bairro de Santa Teresa:
1) Seu corpo, ao saltar, deve correr paralelamente ao bonde em
movimento; sua cabeça deve estar voltada tanto quanto possível para
trás, para que os olhos possam localizar o ponto exato que o corpo
deverá ocupar de volta ao bonde. 2) Ao agarrar o balaústre com os dois
braços, o caroneiro deverá apoiar apenas uma das pernas sobre o estribo
do bonde; a outra estará ainda no ar, servindo para o equilíbrio do corpo,
formando um ângulo reto. 3) Tendo retornado ao bonde, o caroneiro
deverá mais do que depressa voltar à dianteira do veículo, não só para
provocar o motorneiro, mostrando-lhe que ainda está vivo, como
também para saltar uma vez mais, aproveitando a velocidade talvez ainda
maior em que o bonde poderá encontrar-se.9
Todo esse espetáculo promovido pelo caroneiro, ora entendido com deslumbre ora
com receio, configurava à Santa Teresa um dinamismo e sociabilidade particular, o que
endossa a ideia de Pierre Mayol em seu capítulo intitulado O Bairro que “o corpo é na
verdade uma memória sábia que registra os sinais do reconhecimento: ele manifesta, pelo
jogo das atitudes de que dispõe, a efetividade da inserção no bairro, a técnica aprofundada
de um saber-fazer que sinaliza a apropriação do espaço.” (MAYOL, 1996, p. 55), afinal, no
cenário em questão haviam os pedestres na rua, os passageiros no bonde, mas o único
dotado da destreza de escalar, de contornar, de suavizar a subida e a descida era o
caroneiro.
E, por sua ousadia, acabava por cativar uma admiração entremeada de reprovação,
conquistando um lugar ambíguo, um patamar de marginalidade branda, com movimentos
que mesclavam leveza e força, mas isentos de agressividade e violência, marcados
fundamentalmente por sua vagabundagem, irresponsabilidade, conduta desafiadora que
rompiam com as regras práticas e deliberava aspectos subjetivos que iam progressivamente
compondo o caráter e a fama do personagem, pois:
Ele deve provocar medo nos passageiros, ainda que seja o único que se
arrisque; deve enraivecer o cobrador, seja por lhe perturbar o trabalho,
seja por ridicularizar o seu modo correto, profissional e lento de andar
preso aos balaústres, saltando para a rua apenas quando o bonde está
parado; e deve, por fim, inventar frases, slogans, provérbios ou gestos
que caracterizem o seu talento.10
Apesar de, à primeira vista, passar uma imagem um tanto ameaçadora, os usuários
do bonde sabiam que não havia o que temer, o caroneiro era um personagem, dos mais
irreverentes e habilidosos, que poderiam ter a sua volta. Elementos rechaçados pelas
9 Ibidem, p. 29-30.
10 FORTUNA, Felipe. Curvas, ladeiras: Bairro de Santa Teresa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 30-32.
autoridades, fosse o poder estatal fosse a companhia gestora dos sistema de bondes, uma
vez que viam na prática tradicional do bairro uma perturbação a ordem pública e, não
bastasse isso, um prejuízo aos cofres públicos, pois além de não cumprir o pagamento da
tarifa, provocava fascínio em quem tomava o bonde e se encantava pela façanha do viajar
no estribo, já que:
Todo e qualquer passageiro tem de pagar pelo transporte, mas quem
viaja no estribo não precisa pagar. Portanto, é comum vermos o bonde
com os bancos pouco ocupados, mas com pessoas penduradas no
estribo. Em determinados pontos, surge o fiscal para conferir se o
cobrador está registrando no relógio do veículo as passagens que vem
cobrando. Ao avistá-lo, o pessoal do estribo rapidamente salta e se
espalha pelas ruas. O fiscal, sem saber o que fazer, faz a contagem dos
passageiros sentados como se nada tivesse acontecido, como se não
tivesse percebido o ocorrido. (FONTES, 2003, p. 28)
11 MAYOL, Pierre. O bairro. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução. Ephraim Ferreira
Alves, 3ª edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1996, p. 51.
12 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Vol. 1 – Artes do fazer. Tradução. Ephraim Ferreira Alves, 3ª
mais o seu chão, as calçadas, acompanhando com o olhar os trilhos do bonde no asfalto.
Ar, cheiro, chão”13, tudo tomava uma dimensão ainda maior nesse exercício de
contemplação possível durante o trajeto, nada e ninguém escapava aos olhos de quem
estivesse no bonde, sobretudo, viajando no estribo.
Havia, portanto, uma relação toda própria de seus usuários com a cidade e o bairro,
além de fomentar interações impensadas em outros meios de transporte, posto que a
paisagem e sua gente atravessavam os bondes e arrebatavam seus passageiros a olhar o
entorno, tudo passava a estimular uma conversa, uma brincadeira, uma advertência, uma
indicação. Havia conexão entre os passageiros no interior da composição, pagantes e
caronas ou caroneiros e entre passageiros e pedestres que circulavam no momento em que
o bonde passava, havia uma comunicação estabelecida fundada na contemplação e na
interação, assim, o locomover-se tomava uma dimensão significativa e afetiva, o ser e estar
próximo de tudo e todos.
Seguindo os passos de Certeau14, as ruas, o bairro, a cidade são percebidos como
uma linguagem textual que se revela na prática do caminhar nas ruas, eis a retórica
ambulante, atenta às maneiras de fazer, ou seja, às maneiras pelas quais as pessoas se
apropriam do espaço urbano, seja na condição de frequentador, seja na condição de
morador, bem como os motivos de frequentá-lo ou tê-lo escolhido para morar, alcançando
múltiplas perspectivas sobre o lugar em questão, o bairro de Santa Teresa, já que nas
palavras de Pierre Mayol:
O bairro é, quase por definição, um domínio do ambiente social, pois ele
constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na
qual, positiva ou negativamente, ele se sente reconhecido. Pode-se,
portanto, apreender o bairro como esta porção do espaço público em
geral (anônimo, de todo o mundo) em que se insinua pouco a pouco um
espaço privado particularizado pelo fato do uso quase cotidiano desse
espaço.15
A esse propósito, Henri Lefebvre defende que o bairro é “la puerta de entrada y
salida entre espacios cualificados y el espacio cuantificado, el lugar donde se hace la
traducción (para y por los usuarios) de los espacios sociales (económicos, políticos,
13 FONTES, Lilian. Santa Teresa: o lugar do sonho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Prefeitura do Rio, 2003, p.
46.
14 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Vol. 2 – Morar, cozinhar. Tradução. Ephraim Ferreira Alves,
culturales, etc.) en espacio común”16, elo entre o espaço e o tempo que pressupõe aos
usuários, moradores ou frequentadores, tomar a rua, em uma instintiva caminhada que
repercuta em uma dinâmica particular de aprendizagem e repetição para o engajamento dos
mesmos no espaço público.
Passando, portanto, a exercer uma apropriação, uma “privatização progressiva do
espaço público”17 como que uma extensão da morada, visto que “o limite público/privado,
que parece ser a estrutura fundadora do bairro para a prática de um usuário, não é apenas
uma separação, mas constitui uma separação que une”18. Há quem tenha nascido e se
criado no bairro, há quem tenha residido em determinada fase da vida, há quem tenha
frequentado por familiares e amigos que lá habitam, há quem suba diariamente no intuito
de trabalho, há quem tenha feito dele um destino de lazer, todos constroem produções de
sentido e afeto com o lugar que escolher frequentar e morar.
Considerações finais
Bibliografia
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