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Fundada em 1950

VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


(1907-1990) (1936-2013)

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ENTREVISTA RAQUEL LYRA
JANAÍNA PEPEU

TEMOS DE
FAZER PONTES
A primeira mulher a assumir o governo de
Pernambuco acena para uma aproximação com Lula,
diz que o PSDB se descolou da realidade e conta
como vem enfrentando a súbita morte do marido

MONICA WEINBERG E RICARDO FERRAZ

1|9
A GOVERNADORA eleita de Pernambuco, Raquel Lyra, 43
anos, tornou-se expoente de uma nova geração de políticos ao vi-
rar um jogo que parecia perdido e derrotar Marília Arraes (Soli-
dariedade), apoiada por Lula e integrante do clã que controla a
política do estado. Duas vezes prefeita de Caruaru e duas vezes
deputada estadual, assessora do ex-governador Eduardo Campos
(PSB) e filha de seu vice, João Lyra Neto, Raquel tem o desafio de
ajudar a reerguer seu agora raquítico partido, o PSDB — o que, na
sua visão, vai requerer uma boa dose de autocrítica. No dia em
que avançou para o segundo turno, ela enfrentou um dos momen-
tos mais dolorosos da vida quando o marido, Fernando Lucena,
morreu subitamente, vítima de um infarto. Mãe de dois meninos,
de 10 e 12 anos, Raquel falou sobre o luto, a força das mulheres na
política e a dura missão de unir o país nesta entrevista concedida
minutos antes da missa de um mês da morte de Lucena.

A senhora estava atrás na corrida pelo governo, até que vi-


rou o jogo no segundo turno e venceu Marília Arraes. O que
aconteceu? A política tradicional de Pernambuco, encabeça-
da pelo PSB, imaginava que os arranjos em torno de estrutura
partidária, dos grupos políticos e o apoio de Lula iriam definir
o páreo. Não funcionou. Nos últimos dezesseis anos, o PSB fez
todo tipo de conchavo e foi se encastelando dentro do palácio.
Obteve importantes vitórias, mas a ausência de Eduardo Cam-
pos, morto em plena campanha presidencial de 2014, fez o es-
tado andar para trás sob a gestão do atual governador, Paulo
Câmara. O projeto deles virou o poder pelo poder.

2|9
A senhora era do mesmo PSB. Por que rompeu com o gru-
po? Trabalhei com Eduardo Campos já governador por quatro
anos, como chefe da assessoria jurídica, e aprendi muito. Um
dia, ele me falou: “Já fui o deputado mais e menos votado de
Pernambuco. Quando estava no topo, me cobravam além da
conta e passei pelo mais duro momento da minha vida, en-
quanto em minha pior eleição acabei virando ministro de Lula
e me projetei para a Presidência”. A vida política é cheia de altos
e baixos e imprevistos, ele dizia. O que não aguentei foram as
costuras de Paulo Câmara e, por isso, deixei o partido em 2006.

A senhora se manteve neutra no segundo turno presiden-


cial, mesmo com Simone Tebet (MDB), a quem apoiou no
primeiro turno, subindo no palanque de Lula. Por quê? Não
quis me posicionar para não cair na armadilha da polarização.
Compreendo que é hora de construir pontes. Minha adversá-

“A terceira via se perdeu em uma


discussão no andar de cima sobre quem
se alia com quem. Ficou no campo da
política e se esqueceu de falar com o
povo e discutir problemas concretos”
3|9
ria tentou como pôde nacionalizar a campanha, fugindo do
debate e tentando colar em mim a imagem de bolsonarista, o
que eu não sou. Assim como não sou lulista. Recebi o apoio
de pessoas de ambos os lados da disputa nacional. É vital
unir e pacificar o país, que sai das urnas rachado ao meio.

Como a senhora pretende se relacionar com o futuro pre-


sidente, dado que seu partido, o PSDB, ainda não decidiu
como vai se posicionar? Vou pegar a carteira de projetos de
Pernambuco e bater à porta do presidente. Até já procurei o
Geraldo Alckmin, com quem tenho relação antiga de con-
fiança. Trabalhei na elaboração do plano de governo dele
quando se candidatou à Presidência, em 2018.

E como foi essa conversa? Falamos no telefone, e ele se co-


locou à disposição para ajudar. Achei positiva sua nomeação
para coordenar o governo de transição. Alckmin já foi gover-
nador, sabe dos desafios, e a gente se dá bem. Ele sempre de-
monstrou simpatia à minha candidatura ao governo.

A senhora defende uma relação mais próxima do PSDB


com o PT? O que é certo agora é que buscaremos uma boa
relação institucional com o presidente. Do ponto de vista
dos estados, essa aproximação é crucial para que o gover-
no federal se faça presente. Não haverá boicote nem falta
de diálogo. Estar do mesmo lado de quem comanda o Pla-
nalto, aliás, não é sinônimo de mais verbas. O governador

4|9
Paulo Câmara passou por três presidentes — Dilma, Te-
mer e Bolsonaro — e Pernambuco conseguiu perder re-
cursos para estados em que os mandatários eram seus ad-
versários. No lugar de nos enredar na polarização, temos,
isso sim, o dever de enfrentar a desigualdade. A região me-
tropolitana do Recife é a número 1 no país em pessoas
abaixo da linha da pobreza.

Seu discurso guarda semelhanças com os da esquerda. O


que, afinal, a diferencia desse espectro? A diferença é que
essas promessas precisam acontecer no mundo real. E isso
só será possível expurgando a burocracia e se desfazendo de
preconceitos em torno de temas que são tabus para eles.

A senhora daria um exemplo do que chama de precon-


ceito? Boa parte da campanha para o governo de Per-
nambuco se deu em torno da companhia estatal de sanea-
mento. Eu disse que trabalharia para fazer uma conces-
são, como já ocorreu em Alagoas e no Rio de Janeiro. Mi-
nha adversária, por sua vez, ficava só me acusando de
querer privatizar a empresa, sem esclarecer como faria
para garantir água à população. Não existem soluções
simples para problemas complexos. Há que se analisar
um leque de alternativas.

O que explica a perda de relevância do PSDB, que pela pri-


meira vez desde 1989 ficou de fora do páreo para presi-

5|9
dente e minguou no Congresso? O PSDB que nos trouxe até
aqui, que elegeu FHC duas vezes e polarizou com o PT nas
eleições presidenciais já não existe mais. Na minha avalia-
ção, o partido se afastou da realidade e da vida das pessoas.
É necessário, portanto, olhar para dentro, fazer uma séria
autocrítica e pôr essas questões na mesa, sem individualis-
mos, mirando o futuro. O PSDB precisa ser reconstruído.

E por onde começar? Temos uma reunião prevista para


quarta-feira 9, em que as lideranças se encontrarão justa-
mente para discutir o reposicionamento do partido. Deve-
mos começar do chão, desenhando, com independência,
projetos para municípios, estados e o país.

A senhora tem conversado com seu colega Eduardo Lei-


te, reeleito governador do Rio Grande do Sul? Sem dúvi-
da. Sempre fomos próximos, e ele compartilha das mesmas
preocupações que eu. Sua vitória no Sul é de grande impor-
tância. Ganhou, aliás, uma eleição em que foi atacado até
por ser homossexual, algo inaceitável neste século XXI. O
Brasil precisa discutir o Brasil.

Em um cenário tão polarizado, qual deve ser a estratégia


para a terceira via se tornar verdadeiramente competiti-
va? A terceira via se perdeu em uma discussão no andar de
cima sobre quem se alia com quem. Ficou no campo da polí-
tica e se esqueceu de falar com o povo. A própria Simone Te-

6|9
bet, de quem sou fã e fez uma excelente campanha, não teve
tempo hábil para viajar o país, conversar com as pessoas e
discutir os problemas concretos da população.

Há clima para manter uma relação civilizada com o prefei-


to do Recife, João Campos, do PSB? É o que espero. Se não
tivermos a capacidade de sufocar projetos pessoais temporá-
rios para construir convergências, não sairemos do lugar.

A política pernambucana se concentra em clãs, incluindo


a família Arraes, à qual pertencem Marília e João Campos,
e a dos Lyra, da qual a senhora é egressa. Isso a ajudou na
política? Há mesmo muitas famílias tradicionais em Per-
nambuco, mas é preciso fazer uma distinção entre elas. No
meu caso, entrei na vida pública por concurso. Nunca tive
votos na prateleira para pegar a hora que quisesse.

“Tenho um objetivo, um propósito, e


isso me deixa de pé. Desde a morte do
meu marido, penso nele no presente e
não no pretérito. Se ele estivesse
aqui, me diria: ‘Vai dar tudo certo’”
7|9
A senhora se tornou a primeira mulher a governar Per-
nambuco, tendo como vice Priscila Krause (Cidadania)
e como oponente Marília Arraes. A presença feminina
nos palanques é sinal de avanço na sociedade? Sem dú-
vida. Ao longo de toda a minha carreira, me inspirei em
homens: meu tio e ministro da Justiça na redemocratiza-
ção, Fernando Lyra, Eduardo Campos, meu pai, o ex-go-
vernador João Lyra, além de deputados e senadores. Ho-
je, nossa vitória é um indicador relevante, porque as no-
vas gerações passarão a ter mulheres em que se mirar.
Outro dia, duas meninas de 8 e 10 anos me abordaram na
rua querendo brincar de debate. Elas também podem ser
governadoras. Mas o machismo estrutural ainda impera.
Fui a primeira prefeita de Caruaru em 160 anos de histó-
ria e pesava sobre mim muita desconfiança. Insistiam em
me colocar à sombra do meu pai, do meu marido, como
se eu fosse um mero fantoche.

A senhora enxerga diferença entre homens e mulheres no


exercício do poder? As mulheres costumam ouvir mais. O
que não adianta é ser mulher e agir como homem na hora de
se sentar na cadeira. É preciso se colocar no lugar das outras,
conversar com mães, entender suas reais demandas. Na prá-
tica, quem sabe como os serviços públicos estão funcionan-
do são elas, que levam os filhos ao médico, ao dentista, à es-
cola, e por aí vai. Quando era prefeita, a ala feminina domi-
nava o secretariado, a ponto de a gente brincar: “Precisamos

8|9
implantar cota para representantes do sexo masculino”. Pre-
tendo fazer o mesmo como governadora.

Seu marido morreu no dia da votação no primeiro turno,


aos 44 anos, de um infarto fulminante. Como foi seguir em
uma campanha com essa ferida no peito? Fernando foi
meu primeiro namorado e desde os 14 anos me acompanhou
em todos os passos importantes da minha vida. Os meus so-
nhos eram os dele, que neste momento estava me ajudando
na coordenação da campanha, do panfleto à articulação po-
lítica. No último dia, fizemos uma carreata do Recife a Ca-
ruaru, e meu marido dirigiu o carro. Mais tarde, em um res-
taurante, teve dores no estômago e chegou em casa se sen-
tindo mal. Fui tomar um banho e o encontrei já na cama,
dormindo. Nunca mais acordou.

De onde vem extraindo forças para a maratona da políti-


ca? Meus filhos, de 10 e 12 anos, não saem de perto de mim.
Um teve uma crise de apendicite, o outro, uma virose gigante
depois de perderem o pai. Eu tenho um objetivo, um propó-
sito, e isso me deixa de pé. Penso em meu marido no presen-
te e não no pretérito, sempre me perguntando o que diria se
estivesse aqui, agora que sou governadora.

E o que acha que ele diria? Que vai dar tudo certo. ƒ

9|9
IMAGEM DA SEMANA

QUANDO O DESLEIXO
LEVA À TRAGÉDIA

NO CLIMA de animação que marca o Diwali, o festival das


luzes do hinduísmo, mais de 350 pessoas se aglomeravam
no domingo 30 sobre uma ponte suspensa no estado de
Gujarat, na Índia, aproveitando o fim da tarde para relaxar
e apreciar as águas do Rio Machchhu. De repente, um cabo
de aço se partiu e a tragédia aconteceu — 135 pessoas
morreram, entre elas trinta crianças, enquanto equipes
SAM PANTHAKY/AFP

1|2
de resgate viravam a noite buscando corpos e
sobreviventes. “As pessoas ficaram penduradas,
escorregaram e despencaram no rio. Eu mesmo levei
muitas para o hospital”, descreveu uma testemunha do
horror. A ponte de 143 anos, 230 metros de comprimento e
1,25 metro de largura, passou sete meses fechada para
manutenção e acabara de ser reaberta — a culminação,
sabe-se agora, de uma sequência de erros fatais. O trabalho
de reparo foi entregue, sem licitação, a uma empresa que
fabrica relógios e equipamentos elétricos. A data da
reabertura não foi comunicada à prefeitura, que não realizou
a devida vistoria. Uma antiga recomendação de limitar a
ocupação máxima a vinte pessoas por vez jamais foi
cumprida. Tampouco foi reprimido o costume local de
sacudir os cabos para a estrutura se mover — ela era
chamada de jhoolta pool, ou a ponte que balança. Nove
funcionários foram presos e o governo estadual anunciou
uma “indenização” equivalente a 5 000 dólares para cada
morto. Nada disso apagará a visão da multidão despencando
no rio — mais uma entre tantas tragédias causadas pelo
descaso e pela corrupção na Índia. ƒ

Caio Saad

2|2
ARQUIVO PESSOAL
CONVERSA MILTON STEINMAN

ÚTIL A recompensa de Steinman: ajudar a quem nada


tem dá sentido à vida

“SER MÉDICO DE
DESASTRES É
UM CHAMADO”
Cirurgião-geral no Hospital Israelita Albert Einstein, o
brasileiro é especialista no atendimento a vítimas de
situações extremas. A mais recente na qual atuou foi a
guerra na Ucrânia

1|3
Por que o senhor decidiu atuar em áreas de conflitos
ou de tragédias naturais? Nessas situações, a diferença
que você faz como profissional é pequena, mas para a
pessoa que está sendo ajudada é gigante. Isso me faz bem
e me sinto motivado. Ser médico de desastres é um cha-
mado. Atender no consultório é bacana. Porém, em cir-
cunstâncias difíceis, me sinto útil porque consigo ajudar
quem não tem nada. Parece que a vida tem mais sentido.

Como foi trabalhar na guerra da Ucrânia? Antes de ir,


me avisaram sobre dois problemas lá: havia um surto de
dengue, além da Covid-19, e meu transporte até a Ucrâ-
nia era por conta própria. Consegui uma passagem para
a Polônia e fui.

O que viu por lá? As estradas estavam lotadas com pes-


soas saindo do país e somente eu fazendo o caminho in-
verso. Passei por tanques e caminhões bélicos até chegar
a uma cidadezinha onde montaram um hospital de cam-
panha. Havia oitenta médicos. Recebíamos nossas tare-
fas às 6 da manhã. Passei quinze dias e fiquei mais com o
treinamento de outros médicos porque o sistema de saú-
de lá já era precário antes mesmo de colapsar com a guer-
ra. Foram cerca de 6 000 atendimentos e mais de 600
profissionais treinados. E várias vezes ao dia descíamos
aos bunkers por causa dos riscos. Era sempre uma sensa-
ção de perigo.

2|3
Qual a diferença entre atender vítimas de desastres na-
turais e da guerra? Fui ao Haiti em 2010 após o terremo-
to que destruiu o país. Havia tristeza e uma sensação de re-
construção. Na Ucrânia, é um sentimento que não acaba.
Há a mesma tristeza, mas não o tempo de respiro. Era uma
tensão constante. Os haitianos continuam vivendo na mi-
séria, mas o terremoto acabou. Voltei da Ucrânia com um
sentimento pior, como se faltasse um desfecho.

De que maneira essas experiências o impactaram?


Quando você fica exposto à morte, se lembra da finitude
da vida. Por outro lado, isso nos faz lembrar o que cada
um de nós está fazendo na Terra. Para mim, estamos pa-
ra ajudar um ao outro. Se não é por isso, é pelo o quê? Sa-
be aquela sensação de se sentir útil? Ela me deixa mais
próximo da alma. ƒ

Diego Alejandro

3|3
DATAS

O PIANISTA QUE
INCENDIOU O ROCK
MAURICE SEYMOUR/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES

MATADOR Lewis: ele transformou o


teclado em algo subversivo — e irresistível

1|4
Por muito tempo, quando algum homem branco dizia
ser pianista, a primeira coisa que vinha à cabeça era se
tratar de um músico clássico. O americano Jerry Lee Le-
wis revolucionou essa noção. Autodidata, ele transfor-
mou o instrumento em algo perigoso e incendiário. Em
seu maior sucesso, Great Balls of Fire, de 1957, canção de
letra e ritmo insinuantes, teclava as notas em cadência
vertiginosa e chegava a pisar no instrumento, postura
que lhe rendeu o apelido de The Killer (O Matador). A
carreira do músico começou quase por acaso. Quando ti-
nha 21 anos, soube que Elvis Presley tinha saído da gra-
vadora Sun Records e que ela buscava uma nova estrela
do rock. Com seu jeito impulsivo e irresponsável, bateu à
porta do estúdio. Deu certo.
Seu primeiro lançamento, Whole Lotta Shakin’ Goin’ On,
também de 1957, se tornou um sucesso e ele foi alçado ao
posto de celebridade nacional, rivalizando com o próprio El-
vis. A fama, no entanto, cobrou um preço alto. Aos 23 anos,
a imprensa descobriu que Lewis havia se casado com sua
prima de segundo grau de apenas 13 anos e ele foi acusado
de pedofilia. Nos anos seguintes, caiu no ostracismo, envol-
veu-se com drogas e álcool. Sofreu de depressão, fazendo só
pequenos shows com cachês baixos. Nos anos 1970, porém,
foi redescoberto e devidamente reconhecido como um dos
pioneiros do rock. Com a saúde frágil desde 2019, depois de
sofrer um derrame cerebral, morreu aos 87 anos na sexta-
feira, 28 de outubro, em sua casa, em Memphis.

2|4
ANNIE WELLS/LOS ANGELES TIMES

A TRADUÇÃO DE LOS ANGELES


Centenas de produções de Hollywood iluminaram o
cotidiano de Los Angeles, na Califórnia — metrópole as-
sociada a diversão mas também ao crime. Chinatown
(1974), de Roman Polanski; O Grande Lebowski (1998),
dos Irmãos Coen; e Mullholland Drive (2001), de David
Lynch, são obras-primas que traduziram as contradições
daquele aglomerado urbano repleto de polêmicas, mag-
nético e misterioso. Mas ninguém soube entender melhor

3|4
L.A. do que o sociólogo,
jornalista e ativista políti-
co americano Mike Da-
vis. É dele um livro clás-
sico instantâneo de nosso
tempo, Cidade de Quart-
zo, de 1990, volume com
mais de 400 páginas,
crônica de disparidades e
injustiças. Os vilões são
prefeitos corruptos, che-
fes de polícia racistas e
empreendedores inescru-
pulosos.
Em 1992, quando um
júri popular absolveu um
grupo de policiais bran-
SOCIOLOGIA Mike Davis: cos da acusação de terem
corrupção e violência da usado força excessiva na
cidade californiana prisão de um negro, o
operário de construção
civil Rodney King, houve uma sucessão de protestos — e
não demorou para que os estudiosos daquele momento
histórico bebessem das ideias de Davis, que parecia ter
compreendido a gênese do desconforto social muito an-
tes de seus pares. Ele morreu em 25 de outubro, em San
Diego, aos 76 anos, de câncer no esôfago. ƒ

4|4
FERNANDO SCHÜLER

O REFÚGIO DE
MONTAIGNE
“ACABOU”, teria dito Bolsonaro em sua reunião com os mi-
nistros do STF, depois daquele discurso meio torto, mas que
significava, na prática, o reconhecimento da derrota. Ainda
bem, pensei. A vida de uma grande democracia é assim. Há
eleições, quem ganha faz festa, faz troça, e quem perde fica
de cabeça quente, mas lá pelas tantas “sacode a poeira,
aprende com os próprios erros e volta à arena ainda com
mais força”, como disse o insuperável Barack Obama, depois
de uma grande derrota. No caso brasileiro, digo que faltou
foi grandeza. Aos líderes, em primeiríssimo lugar, e em esca-
las muito diferentes. Em vez de aproveitar o seu discurso pa-
ra “unir o país”, como havia prometido, o futuro presidente
foi à Paulista dizer que havia derrotado o “fascismo”, reto-
mando a velha e conhecida lógica da “herança maldita” e do
“nunca antes neste país”, que lá atrás contaminou o Brasil.
Pior ainda fez o atual presidente. Em vez de fazer a única coi-
sa que lhe cabia, reconhecer a derrota e preparar uma boa
transição, se calou. E pior: assistiu passivamente a seus
apoiadores bloqueando rodovias e pedindo intervenção mili-

1|6
tar à porta dos quartéis. Cumprindo à risca o roteiro patético
que seus inimigos desejavam que eles cumprissem, e come-
tendo o pecado que durante quatro anos escutamos que não
deveria ser cometido: desrespeitar a liberdade das pessoas e
seu direito de ir e vir.
O mais chocante foi a perda de controle. Um quê de aluci-
nação coletiva que em certos momentos parecia ter tomado
conta das eleições. O meio da tarde de domingo talvez tenha
sido seu pico, quando chegavam informações de que “milita-
res haviam ocupado a Ponte Rio-Niterói” e que havia barrei-
ras por toda parte, operadas pela Polícia Rodoviária Federal,
impedindo os eleitores de votar. Um respeitado analista me
escreveu dizendo que o “eleitores da oposição estão sendo
barrados”, e que “estávamos na Venezuela”, com direito a vá-
rios pontos de exclamação. A presidente do PT pediu que
seus deputados fossem até as supostas barreiras e prendes-
sem policiais e influencers digitais paranoicos gritavam que
estávamos diante de um “golpe”. Como de hábito, tudo ter-
minou horas depois com uma calma entrevista do ministro
Alexandre de Moraes dizendo que tudo não passava de con-
versa-fiada e que nenhum eleitor havia sido impedido de vo-
tar. Vi naquilo tudo um flash do que seria um “inferno madi-
soniano” na era digital. O termo vem das desconfianças de
Madison com a democracia das multidões, sujeita à turbu-
lência das “paixões incontroláveis”. A crendice, a mistura de
fatos e realidade, a disposição para o ódio, ao avesso da coo-
peração. Madison falava em “facções”. Hoje falamos em tri-

2|6
MEDITAÇÃO A torre onde o filósofo se fechou:
retiro para manter a calma

bos digitais. Dá na mesma. A bruxa está solta, com sua grita-


ria e irresponsabilidade, e ninguém sabe bem como resolver
o problema.
A política brasileira está doente. E não há muito que cada
um de nós possa fazer. O que está sob nosso controle, ainda
que por vezes esqueçamos, é como cada um vai se compor-
tar. Há um percurso individual a ser trilhado em meio à tor-
menta, e é isso que no fundo importa. Foi pensando nessas
coisas que abri minha velha edição dos Ensaios, do filósofo
francês Montaigne, intuindo que sua releitura poderia nos
ajudar de alguma maneira. Montaigne viveu um tempo bem
JEAN-JÉRÔME BAUGEAN

3|6
“Deveríamos reencontrar a
serenidade e a leveza que
perdemos”
mais complicado que o nosso. Passou por oito guerras civis,
pela Noite de São Bartolomeu, pela peste e pela guerra sem
fim entre católicos e protestantes franceses. Envolveu-se até
o pescoço com as querelas de Bordeaux, e em um certo mo-
mento, no dia exato em que completou seus 38 anos, resol-
veu ir embora. Anunciou que estava abandonando suas fun-
ções e se retirou para o seu castelo. Mais especificamente,
para a sua torre-biblioteca. No alto de uma parede mandou
escrever: “Michel de Montaigne, já cansado das funções na
Corte e honrarias públicas, retirou-se completamente para
conversar com as virgens instruídas”.
A partir dali, Montaigne passa a ensaiar. “Me retirei”, es-
creveu ele, “resolvido a não me preocupar com nada.” Não foi
bem assim. Em meio a sua biblioteca de 1 000 volumes, dei-
xou que a imaginação o levasse. Um livro, em especial, mexeu
com sua cabeça: Hipotiposes Pirrônicas, do mestre do ceticis-
mo grego, Sexto Empírico. Montaigne então dá o seu primei-
ro passo: a aceitação da dúvida. O que fazer diante de um
mundo dogmático? Que critério usar em uma controvérsia re-
ligiosa, ou política, quando há completa certeza em ambos os

4|6
lados? Montaigne é irônico. Mais de 280 seitas teriam nasci-
do da pergunta sobre o sentido da vida. “Uns acham que nos-
so bem supremo está na virtude; outros na volúpia; e ainda
outros na ausência de sofrimento.” Ele diz ser perfeitamente
claro que os homens “não estão de acordo com nada, nem
mesmo em que o céu se encontra acima de nossa cabeça”. É
preciso preservar certa distância. Recusar a paixão, essa
“péssima guia”, e voltar a prestar atenção às coisas simples.
Ele busca a imagem de Pirro, o primeiro dos céticos, que em
meio a uma tempestade, no mar, pede que os homens obser-
vem um porco, a bordo, que permanece perfeitamente calmo.
Montaigne então sugere que era a ignorância que levava à
tranquilidade, ao passo que o excesso de conhecimento, tor-
nado certeza, perturbava o espírito e levava à infelicidade.
Daí seu retiro. Sua decisão de viajar, abrir-se à curiosida-
de e registrar tudo em seus Ensaios. Testemunho de alguém
que recusou a loucura de sua época e se dedicou à busca de si
mesmo. Nas mais de 1 000 páginas de seu livro, há de tudo,
mas sempre me chamou atenção seu elogio da amizade co-
mo algo superior à crença e à política, ou ainda: uma barrei-
ra a seu despotismo. Foi assim que Montaigne sempre enten-
deu sua relação com La Boétie, que ele descreve como a
“mais perfeita” amizade de seu tempo. Aquela que se fazia do
“aprendizado pelo desacordo”, e logo tem na tolerância a sua
condição. Quando vejo hoje velhos amigos transformados
em estranhos, quando não inimigos, em razão da pequena
raiva política, me dou conta de como andamos para trás. De

5|6
como andamos com dificuldade para entender o que é im-
portante nessa vida rápida e o que é apenas passageiro.
Muita gente saiu machucada dessas eleições. O país saiu
arranhado, o ano vai terminando e intuo que o retiro de
Montaigne pode nos instruir de alguma maneira. Ninguém
precisa de uma torre, ou de um castelo, nem escrever um li-
vro de 1 000 páginas. Basta um punhado de atitudes. Rever
os amigos, esquecer certas coisas que dissemos e que agora
fazem bem menos sentido. Largar um pouco os grupos con-
taminados no WhatsApp, retomar alguma moderação, e
procurar coisas diferentes para fazer. Há quem veja Mon-
taigne como o primeiro indivíduo moderno que se pôs a nu.
Alguém que gostava de dizer: devemos apenas “nos empres-
tar aos outros, mas nos dar apenas a nós mesmos”. Um dia
fui lá, visitar sua torre. Era um fim de tarde belíssimo, não
havia ninguém ali, e em meio àquele silêncio entendi perfei-
tamente o sentido do seu gesto, no qual muita gente anda
precisando se inspirar. Ele pode nos custar algum desprendi-
mento, mas pode devolver em dobro a serenidade e a leveza
que eventualmente perdemos e que, não tenho dúvidas, de-
veríamos reencontrar. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
SOBEDESCE

SOBE
URNAS ELETRÔNICAS
A apuração rápida e sem
sobressaltos nas eleições
mereceu elogios de observadores
internacionais, que constataram
a segurança e a eficiência do
sistema brasileiro.

MURILO HIDALGO
O diretor do Paraná Pesquisas
divulgou uma das sondagens de
intenção de voto que ficaram mais
próximas do resultado final, a
exemplo do que já havia ocorrido no
primeiro turno.

TAYLOR SWIFT
A cantora bateu recorde com dez
músicas ao mesmo tempo nas
paradas da Billboard e anunciou
uma turnê mundial.

1|2
DESCE
DEXAMETASONA
O corticoide apresentou resultados
positivos na redução de mortalidade
de casos graves de Covid-19 em
teste no Reino Unido e é objeto de
um estudo clínico também no Brasil.

VAREJO NOS EUA


As vendas do setor no país
aumentaram surpreendentes 17,7%
em maio. Tal resultado reacendeu a
esperança de uma retomada no
pós-pandemia. Em razão disso,
as bolsas subiram

PREMIER LEAGUE
Depois do retorno dos campeonatos
alemão e espanhol, a liga de futebol
inglesa voltou aos campos após mais
de três meses de paralisação.

2|2
VEJA ESSA

BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

“O pássaro foi
libertado.”
ELON MUSK, empresário
sul-africano, ao informar
ter comprado o Twitter
por 44 bilhões de dólares

“Nem todo conservador é fascista.”


ERIKA HILTON, do PSOL, a primeira deputada trans a ser
eleita para a Câmara

“Fazer autocrítica nunca é ruim. No PT,


no PSOE, em qualquer partido.”
JOSÉ LUIS ZAPATERO, ex-premiê socialista da Espanha,
que esteve no Brasil para acompanhar a votação
que elegeu Lula pela terceira vez

1|4
“Sinto que isso é Deus
me humilhando agora.”
KANYE WEST, rapper que fez declarações antissemitas nas redes
sociais e em entrevistas, ao ser abordado por uma multidão de
paparazzi e curiosos evidentemente incomodados

“Vocês acham mesmo que eu não ia beber


água? Ia beber outra coisa em uma apuração?
Pelo amor de Deus.”
WILLIAM BONNER, que minutos antes do anúncio
da vitória de Lula pediu alguns segundos para se hidratar.
Como o som de uma latinha abrindo vazou, as redes
sociais não perdoaram: só poderia ser cerveja

“Acredite em si mesmo e Deus


mostrará o quanto és forte.”
NEYMAR, em suas redes sociais, depois de o Ministério Público
espanhol arquivar denúncias de irregularidades na transação do
craque brasileiro do Santos para o Barcelona, em 2013

“Queridos brasileiros: sou um,


entre tantos milhões, daquela parte do
mundo que cresceu de olhos postos no Brasil,
como num farol. Venho dizer-vos que podem
contar com a força do nosso amor e da nossa fé.
Não é apenas o destino que está em jogo.
É a possibilidade de o Brasil ajudar o
mundo a construir um futuro melhor.”
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, escritor angolano,
na véspera da eleição

2|4
“Espero ver carros voadores
circulando ainda nesta década.”
PETER DIAMANDIS, escritor e empresário americano
especializado em visões do futuro

“Foi um despertar.”
SYLVESTER STALLONE, ator, ao lamentar
o pedido de divórcio feito por Jennifer Flavin,
com quem acabou se reconciliando

“Um ponto baixo inédito para


um presidente bem familiarizado
com debates difíceis (...)
Dia trágico em janeiro.”
MIKE PENCE, vice-presidente dos Estados Unidos quando
Trump incentivou a invasão do Capitólio. A frase está em livro de
memórias que será lançado no fim do mês

“Por vezes, sinto-me


um filho sem mãe. O abandono
é a raiz da paranoia.”
BONO, vocalista do U2, cuja mãe morreu de um aneurisma
cerebral quando ele tinha apenas 14 anos.

“Pode usar à vontade.”


ZICO, o mais celebrado jogador da história do Flamengo, ao
“liberar” o uso da camisa 10 para Gabigol, autor do gol que deu o
tricampeonato da Libertadores ao rubro-negro, na vitória por 1
a 0 contra o Athletico-PR

3|4
INSTAGRAM @LUAPIO

“Hoje eu tenho um namorado mais jovem,


mas estou num relacionamento mais
maduro. E é curioso, porque, quando
disse para ele o que estava sentindo, ele
apenas disse: ‘Ligue o ar-condicionado’.
Ou seja, o preconceito está muito mais
na nossa própria cabeça.”
LUANA PIOVANI, atriz de 46 anos,
ao dizer que entrou na menopausa

4|4
RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Lucas Vettorazzo e Ramiro Brites

Escolta armada do Senado, Rodrigo Pache-


Alvo de um número cres- co, nesta semana.
cente de ameaças de mor-
te, por causa do apoio a Todo o cuidado é pouco
Lula na eleição, Simone Na quarta, a Polícia Federal
Tebet passou a andar com recebeu mais dois pedidos
seguranças armados de investigação sobre os
24 horas por dia. A escolta aloprados que ameaçaram
foi autorizada pelo chefe Lula de morte. A segurança
SEBASTIÃO MOREIRA/EFE

ALVO Simone Tebet: ameaçada por apoiar


Lula, a senadora tem a segurança reforçada

1|6
do petista é feita por uma É bom variar
equipe da Polícia Federal Ex-ministro da Saúde, Ale-
chefiada pelo delegado An- xandre Padilha não quer
drei Rodrigues. nem ouvir falar em voltar
para a pasta. O mesmo é dito
Quadrilha de malucos por Fernando Haddad, que
A PF mira um grupo de comandou a Educação. Am-
Rondônia que promoveu bos gostariam de ter funções
uma vaquinha para “matar novas no futuro governo.
Lula com um tiro na cabe-
ça”, e o prefeito de Iporá Teste de fogo
(GO), Naçoitan Leite, do No PSB, a transição é vista
União Brasil, que ameaçou como uma avaliação do po-
“eliminar” Lula e Alexan- tencial de Geraldo Alckmin.
dre de Moraes. Se ele não for atropelado
por Gleisi e Mercadante,
Vamos aguardar ambos com funções impor-
Para evitar uma disputa de tantes, praticamente carim-
aliados pela vaga de Ricar- ba um ministério para si.
do Lewandowski no STF,
Lula disse que só tratará do Seleção de convidados
assunto depois que o amigo Ex-ministro da Defesa de
se aposentar. “É uma ques- Lula, Nelson Jobim está na
tão de respeito”, diz um in- lista de nomes que pode-
terlocutor do petista. Lewa- riam voltar ao governo. Há
ndowski se aposenta em dúvida, porém, se ele acei-
maio do ano que vem. taria a missão.

2|6
Só com prova Movimento calculado
Lula disse a aliados que Para não melindrar Jair
não vai preterir petistas Bolsonaro, Valdemar Costa
citados nas delações da Neto escolheu Geraldo Al-
Lava- Jato no novo go- ckmin para ser seu interlo-
verno. cutor no governo. Os dois
são amigos.
Em campo
Renan Calheiros tem re- Não colou
cebido líderes partidários Na conversa no STF, Bolso-
para articular a base de naro ensaiou defender o che-
Lula no Congresso. “Que- fe da PRF, Silvinei Vasques,
ro colaborar para que o mas parou assim que viu a
governo tenha maioria e expressão dos ministros.
não precise pagar o preço
das chantagens do presi- Já é Natal
dente da Câmara”, diz. Alvo de múltiplos inquéri-
tos, Bolsonaro não deve ter
O jogo começou problemas no STF. A Corte
O MDB, o Podemos, o Ci- não quer tumultos durante
dadania e o PSDB ava- a transição. “Ano que vem,
liam formar um bloco — tudo desce à primeira ins-
juntos eles têm 72 deputa- tância”, diz um ministro.
dos — para apresentar um
nome à presidência da Final feliz
Câmara. Eunício Oliveira Rosa Weber juntou todos
é um dos cotados. os ministros — só Toffoli e

3|6
Lewandowski não estavam
em Brasília — no gabinete
para assistirem juntos ao

ANTONIO AUGUSTO/SECOM/TSE
pronunciamento de Bolso-
naro na terça. Depois, redi-
giram a nota elogiando a
postura do presidente. “Ro- DAMA Rosa: ela uniu a
sa uniu a Corte nesse jogo Corte no tenso “jogo de
de xadrez”, diz um colega. xadrez” com Bolsonaro

Ninguém o chamou O baile da Ilha Fiscal


Mario Frias bateu no Alvo- Dois dias antes da eleição,
rada na segunda à noite pa- crente na vitória, o ministro
ra ver Bolsonaro. Ao ser in- Luiz Eduardo Ramos pro-
formado da chegada dele, o moveu uma bacalhoada no
presidente foi direto: “Man- Planalto. A festa teve até
da ir embora”. banda do Corpo de Bom-
beiros. Foi o último mo-
Passa no RH mento de alegria do palácio.
Depois de dar o cargo de pre-
sidente de honra do PL a Bol- Tudo novinho
sonaro, Valdemar Costa Neto Bolsonaro acaba de termi-
começou a receber uma lista nar a refinada reforma do
de pedidos de futuros desem- 4º andar do Planalto.
pregados do governo. Braga Os petistas terão um ótimo
Netto, por exemplo, quer ter lugar para trabalhar a par-
sala no partido. tir de janeiro.

4|6
Furou, achou Premonições
A CGU encontrou um mar Num churrasco no Alvora-
de irregularidades num da, em março de 2021, Bol-
contrato de 56 milhões de sonaro interrompeu uma
reais da Codevasf para per- fala de Guedes em defesa
furação de poços artesia- do teto de gastos: “PG, não
nos no Nordeste. Coisa de dá para arrumar o Brasil e
arrepiar ministro do TCU. perder a eleição para o PT”.

Deu ruim Bye-bye, Brazil...


Em agosto, João Martins, Durante diferentes mo-
chefe da CNA — a maior mentos do governo, Gue-
entidade ruralista do país des, segundo um auxiliar,
—, chamou Lula de ladrão dizia que deixaria o país
e pediu votos a Bolsonaro. caso Lula ganhasse a elei-
Agora, terá dificuldades ção. A conferir.
para abrir portas no Pla-
nalto. Cheirinho de dinheiro
A Natura & Co recebeu aval
Novos rumos do BC para operar sua finte-
Boa parte da equipe de ch, a &Co Pay. O capital ini-
Paulo Guedes, que sairá no cial é de 7 milhões de reais.
fim do ano, já começou a
sondar o mercado em bus- Conta salgada
ca de emprego. Alguns te- Ícone do varejo carioca, os
rão lugar no governo de Supermercados Guanaba-
Tarcísio de Freitas. ra têm vivido um pesadelo

5|6
nas últimas semanas. Com
poucos funcionários e
muitos clientes, as filas fi-
caram colossais e os pro-
dutos sumiram das prate-
leiras. Um desastre.

Prejuízo imobiliário
A atriz Monique Alfradi-
que trava uma longa dis-
puta na Justiça do Rio
contra um empresário
que, depois de vender uma
mansão a ela, desistiu do
INSTAGRAM @MONIQUEALFRADIQUE

negócio e embolsou o si-


nal de 100 000 reais pago
na compra. Alega que a
NO TRIBUNAL Monique: musa perdeu os prazos pa-
o sonho da mansão própria ra consumar a transação.
virou pesadelo no Rio Que pecado. ƒ

6|6
CARTA AO LEITOR

UM VOTO
DE CONFIANÇA
“OS PROBLEMAS da vitória são mais agradáveis que os
problemas da derrota, mas não menos difíceis.” O ex-
primeiro-ministro britânico Winston Churchill, que man-

1|4
FOTOS: RICARDO STUCKERT; AFP
SABEDORIA Lula, que obteve mais de 60
milhões de votos, e Winston Churchill: como dizia
o líder inglês, a história não termina depois de
uma grande conquista

teve o Reino Unido de pé durante os momentos mais dra-


máticos da II Guerra, era um grande líder — e também um
excepcional frasista. Bem-humorado, arguto, ele retirava
da sua experiência diária ensinamentos que conseguia sin-
tetizar em palavras com maestria. Churchill sabia que a
glória é quase sempre mais insidiosa e ardilosa do que a
derrocada. Afinal de contas, a história não termina depois
de um triunfo, especialmente para aqueles que conquistam
uma posição de liderança. Em muitos casos, os obstáculos

2|4
ganham, a partir dali, uma incrível magnitude e põem o
vencedor diante de uma sequência de percalços — sim,
muitas vezes mais agradáveis que os da derrota.
Na semana passada, os brasileiros elegeram Luiz Inácio
Lula da Silva como presidente da República. Trata-se de
uma incrível virada na carreira política do ex-líder sindica-
lista, que saiu do Palácio do Planalto com uma invejável
aprovação, elegeu sua sucessora, mas acabou passando
580 dias na cadeia por causa de acusações de corrupção
durante o seu governo. Numa reviravolta digna de clássi-
cos da literatura, recuperou seus direitos políticos graças a
uma decisão do Supremo Tribunal Federal e pôde concor-
rer novamente. Na eleição mais apertada da história, bateu
Jair Bolsonaro por pouco mais de 2 milhões de votos. Com
tal façanha, Lula reescreve sua biografia e volta ao topo da
política nacional, algo que poucos achavam provável há
menos de dois anos. Vale ressaltar que nenhum outro pos-
tulante esteve na condução do país por três mandatos con-
quistados pelo voto popular.
Como dizia Churchill, no entanto, a história não acaba
depois de uma grande conquista. Até porque o Brasil vive
hoje uma situação muito diferente daquela que Lula encon-
trou há vinte anos, quando recebeu a faixa presidencial pe-
la primeira vez. Na reportagem que começa na página 24,
VEJA detalha doze grandes desafios que o próximo presi-
dente enfrentará. Alguns mais imediatos e outros de mé-
dio prazo, mas todos afeitos a exigir ação eficaz do manda-

3|4
tário. São obstáculos que passam pela área econômica, pe-
las relações internacionais, por problemas ligados ao meio
ambiente e também pela política, com um Congresso mais
conservador e, em tese, mais refratário às ideias do líder
petista. Na posição de um veículo a favor do crescimento
democrático e econômico do Brasil, VEJA torce para que o
presidente eleito seja bem-sucedido na resolução dos pro-
blemas nacionais. De nossa parte, continuaremos compro-
metidos com a missão que nos trouxe até aqui: a fiscaliza-
ção de todos os poderes, dentro das práticas de um jorna-
lismo de alto nível, na defesa de valores e princípios, e não
de pessoas ou partidos. Boa sorte, presidente. ƒ

Mauricio Lima, diretor de redação de VEJA

4|4
BRASIL ESPECIAL

DEPOIS DO TRIUNFO,
MÃOS À OBRA
Derrotar Jair Bolsonaro foi apenas a primeira
tarefa de uma complexa e extensa lista de doze
desafios que o presidente eleito terá pela frente
DANIEL PEREIRA

VITÓRIA Luiz Inácio


Lula da Silva: o
presidente eleito tem
pela frente uma série
de obstáculos que
precisam ser
enfrentados
RICARDO STUCKERT

CAPA: FOTO DE DANIEL HOFER/LAIF/IMAGEPLUS

1 | 17
A
sabedoria política ensina que muitas vezes é
mais fácil ganhar uma eleição do que governar.
No primeiro volume de suas memórias, o ex-
presidente americano Barack Obama conta que,
após a vitória nas urnas, ele e sua equipe se ques-
tionaram se, diante da magnitude da catástrofe
econômica, não deveriam ter preparado o país para as difi-
culdades que estavam no horizonte. Obama também lem-
bra que, no dia em que foi empossado, ouviu num sermão
que ele, como novo mandatário, seria lançado às “chamas
da guerra” e da “ruína econômica”. O recado era claro: o
desafio dele estava só começando. O Brasil não está em
guerra, mas saiu da eleição de 2022 dividido, em clima de
hostilidade e com focos de conflagração. O Brasil também
não vive uma fase nova de ruína econômica, mas tem 33
milhões de pessoas com fome, 40 milhões de trabalhado-
res na informalidade e uma série de outros problemas, co-
mo um rombo gigantesco nas contas públicas. Eleito no úl-
timo domingo, Lula terá, portanto, de enfrentar pelo me-
nos doze desafios hercúleos em diferentes frentes, domés-
ticas e externas (veja o quadro que começa na pág. 26). En-
tre eles, o mais urgente é pacificar o país. Não será fácil.
Os sinais de dificuldade apareceram logo após a divul-
gação do resultado do segundo turno, no qual Lula rece-
beu 60 345 999 votos, novo recorde nacional, e Jair Bolso-
naro, 58 206 354 votos, a menor diferença entre dois can-
didatos a presidente desde a redemocratização. Apoiado-

2 | 17
ONOFRE VERAS/THENEWS2/FOLHAPRESS

PRIORIDADE Fome: mudanças e programas


podem acabar com esse flagelo

3 | 17
res de Bolsonaro, que se tornou o primeiro mandatário a
fracassar na tentativa de reeleição, não aceitaram a derro-
ta, bloquearam rodovias e, em alguns casos, passaram a
defender uma intervenção militar a fim de impedir a posse
de Lula, o único brasileiro a conquistar três vezes a Presi-
dência em eleições diretas. Esses focos de insurreição ga-
nharam corpo diante do silêncio do presidente em fim de
mandato. Contrariando uma tradição democrática, Bolso-
naro demorou 45 horas para se manifestar sobre o desfe-
cho da votação e, quando o fez, entoou um discurso pouco
assertivo. Sobre os bloqueios de rodovias, mostrou-se ini-
cialmente compreensivo e solidário. “Os atuais movimen-
tos populares são fruto de indignação e sentimento de in-

OS DOZE TRABALHOS
A lista de desafios que Lula terá de enfrentar

1
REDUÇÃO DA POBREZA
Como em 2002, Lula considera prioridade combater a
miséria e acabar com a fome, que atinge 33 milhões de
brasileiros, segundo estimativa repetida por ele durante a
campanha. Além da preservação do Auxílio Brasil nos moldes
atuais, pretende-se estimular a geração de empregos, por
meio da retomada de grandes obras de infraestrutura, e o
empreendedorismo na base da pirâmide social, com a ajuda
de bancos públicos

4 | 17
justiça de como se deu o processo eleitoral”, declarou, en-
cenando o eterno papel de vítima — sem provas — de frau-
de. Em seguida, ele emendou uma recriminação tímida,
afirmando que “manifestações pacíficas são bem-vindas”,
mas que os atos não podem cercear o direito de ir e vir.
Em público, Bolsonaro não reconheceu a derrota nem
citou nominalmente o presidente eleito. Mesmo assim, ele
determinou, como manda a lei, o início formal da transi-
ção de governo. A partir de agora, a faixa presidencial
passará de forma gradativa do capitão, que tentará se
manter como o principal líder da direita no Brasil (veja a
matéria na pág. 42), para Lula, que escreveu um novo ca-
pítulo de redenção em sua biografia, depois de ter ficado
preso 580 dias e ter sido proibido de disputar a eleição de
2018 em razão de condenação imposta no âmbito da Ope-
ração Lava-Jato (veja a matéria na pág. 32). No discurso
da vitória, como era esperado, o petista fez um apelo pela

2
PACIFICAÇÃO DO PAÍS
O Brasil está rachado, como ficou claro no resultado
do segundo turno, decidido pela menor diferença de votos
desde a redemocratização. Quando governou o país, Lula
adotou a estratégia do “nós contra eles” e falou em exterminar
o DEM. Alvo de retórica parecida, o petista estendeu a mão na
campanha a antigos adversários, como Geraldo Alckmin e
Simone Tebet, com os quais conta para estabelecer um
diálogo entre o futuro governo e setores que rejeitam o PT

5 | 17
união nacional. “A partir de 1º de janeiro de 2023, vou go-
vernar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não
apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem
dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma
grande nação”, declarou. Na campanha, Lula montou uma
coligação de dez partidos e se apresentou como represen-
tante de uma frente ampla em defesa da democracia, em
contraposição a Bolsonaro, que personificaria um projeto
de extrema direita e autoritário.
Um dos desafios do presidente eleito é reproduzir o mo-
delo eleitoral e formar um governo plural, capaz de dialo-
gar com setores que têm resistência ao PT. Não faltam no-
mes para ajudar nessa empreitada, como a senadora Simo-
ne Tebet (MDB), a ex-ministra Marina Silva (Rede Susten-
tabilidade) e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin
(PSB). Quatro vezes governador de São Paulo e candidato
derrotado por Lula no segundo turno da corrida presiden-

3
GOVERNO PLURAL
Eleito por uma coligação formada por dez partidos, de
esquerda e de centro, Lula disse durante a campanha que não
fará um governo do PT, mas em linha com a frente
democrática que representa. O histórico petista, no entanto, é
um dos obstáculos para que esse modelo plural se torne
realidade. Além das brigas internas, em seus governos o
partido sempre ocupou os principais cargos, relegando aos
aliados postos de pouca expressão

6 | 17
SERGIO LIMA/AFP
UM PAÍS DIVIDIDO Discussão no trânsito:
a eleição revelou o tamanho da fissura que
separa petistas e bolsonaristas

4 ORÇAMENTO SECRETO
Lula prometeu acabar com o mecanismo, chamado de
grande esquema de corrupção em sua propaganda eleitoral.
Ele nunca explicou como resolverá a questão, mas adiantou
que tentará reduzir a quantidade de verbas orçamentárias
reservadas para as emendas de relator, de cerca de 19
bilhões de reais em 2023, ou pelo menos obrigar que elas
sejam destinadas a áreas prioritárias, como saúde e
educação

7 | 17
cial de 2006, Alckmin foi escalado para coordenar a transi-
ção de governo em razão de sua notória experiência admi-
nistrativa. Também pesou na decisão a intenção do presi-
dente eleito de dar credibilidade ao discurso de que o go-
verno não será apenas do PT. Correndo contra o tempo,
Lula também delegou ao petista Wellington Dias, senador
eleito pelo Piauí, a negociação com o Congresso do Orça-
mento da União de 2023. O tema é espinhoso. Na quarta-
feira passada, Dias confirmou que o salário mínimo terá re-
ajuste acima da inflação. Outras promessas de campanha
também devem ser cumpridas, como a manutenção do va-
lor de 600 reais do Auxílio Brasil e a isenção do imposto de
renda para quem ganha até 5 000 reais por mês.
O problema é que essas medidas têm custo para os cofres
públicos, e até agora não se sabe como serão financiadas.
Relator da proposta de Orçamento, o senador Marcelo Cas-
tro (MDB-PI), aliado de longa data de Lula, estima que fal-

5
CRESCIMENTO ECONÔMICO
Nos dois mandatos de Lula, o PIB cresceu pouco mais
de 4% ao ano, a melhor média em décadas. Na ocasião, o
cenário externo era favorável, o que não ocorre agora. A
dúvida, ainda não esclarecida, é qual será a política
econômica e o receituário para estimular a atividade
econômica. Poucas pistas foram dadas. Entre elas, a
retomada de grandes obras, o estímulo às micro e pequenas
empresas e a promessa de uma reforma tributária

8 | 17
PEDRO VILELA/GETTY IMAGES
EMPREGOS Indústria: há vários nós que precisam ser
desatados para o Brasil voltar a crescer de maneira sustentável

6 EQUILÍBRIO FISCAL
Lula terá de conciliar o compromisso de governar com
zelo pelas contas públicas às promessas de manter o valor de
600 reais do Auxílio Brasil e de isentar do imposto de renda
quem ganha até 5 000 reais por mês. Uma das ideias em
estudo é aprovar uma regra que permita desrespeitar o teto
de gastos no caso de algumas despesas específicas, como o
programa de transferência de renda. Henrique Meirelles, um
dos cotados para o ministério, é defensor do teto

9 | 17
tem 100 bilhões de reais para fechar a conta de todas as des-
pesas previstas. Este não é o único problema a ser resolvido
por Lula, já que o petista também disse que acabaria com o
chamado orçamento secreto, que prevê 19 bilhões de reais
para deputados e senadores enviarem às suas bases eleito-
rais em 2023. Os parlamentares não aceitam abrir mão des-
ses valores. Ciente disso, o presidente eleito trabalha com a
possibilidade de negociar uma redução da quantia, além de
uma regra determinando que parte do dinheiro seja destina-
da a áreas específicas, como saúde e educação. A forma co-
mo esse nó das emendas de relator será desatado pode defi-
nir as bases da relação entre Lula e o Congresso. “Está dado
que as emendas de relator serão mantidas. Qualquer novida-
de terá de ser fruto de uma ampla negociação do Congresso
com a nova equipe econômica”, disse Marcelo Castro antes
de se reunir pela primeira vez com Wellington Dias.

7
DESCONFIANÇA DOS MERCADOS
Nas poucas vezes em que se manifestou sobre
economia na campanha, Lula desagradou a investidores
por defender a revogação do teto de gastos, a revisão da
reforma trabalhista e rechaçar as privatizações. Numa
tentativa de tranquilizar os mercados, garantiu que
haverá responsabilidade fiscal, como em seu primeiro
mandato. A resposta não é satisfatória, mas há boa
vontade do outro lado do balcão. No dia seguinte à vitória,
o dólar caiu, e a bolsa subiu

10 | 17
Durante a campanha, Lula comparou o orçamento se-
creto a um esquema de corrupção, sem apresentar um ca-
so específico de quem desviou dinheiro para o próprio bol-
so. Fez uma acusação baseada na falta de transparência e
de fiscalização dos recursos, mas genérica. Em seus dois
mandatos sim, conforme processos julgados pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), houve compra de apoio parlamen-
tar por meio do mensalão e do petrolão, os dois maiores
escândalos de corrupção descobertos e punidos na história
do país. O recurso ao suborno foi adotado porque o PT e
seus aliados não tinham sozinhos votos para formar maio-
ria no plenário. Em 2023, eles enfrentarão o mesmo pro-
blema. Na Câmara, por exemplo, as legendas da coligação
eleitoral de Lula só elegeram 122 dos 513 deputados. Para
ampliar a futura base governista, interlocutores do presi-
dente eleito intensificaram conversas com representantes
de siglas de centro, como o MDB de Simone Tebet, o PSD

8
REFORMAS
No seu primeiro mandato, Lula aprovou uma reforma
da Previdência. Mais tarde, ele também tentou votar uma
reforma tributária, mas fracassou. Uma nova ofensiva para
mudar o sistema de impostos é dada como certa, mas há um
projeto mais ambicioso: alguns aliados defendem uma reforma
administrativa, que sempre foi rechaçada pelo PT. Com ela,
dizem, será aberto espaço fiscal para bancar programas
assistenciais dentro do teto de gastos

11 | 17
e o União Brasil. Petistas também dão como certo que par-
cela dos parlamentares do Centrão, grupo que apoiou Bol-
sonaro, aderirá ao governo porque não gosta de ser oposi-
ção nem sabe desempenhar esse papel.
Tudo dependerá dos termos do acerto. “Se o Lula se des-
vencilhar dos ortodoxos do PT, será bem-sucedido. Se segui
-los, será derrotado”, diz um ex-parlamentar influente nas
gestões petistas, que pediu para não ser identificado. “Se o
Lula botar a cabeça no lugar, dividir o Centrão e atrair o cha-
mado centrinho, o quadro será diferente”, acrescentou. Des-
de a sua fundação, o PT sempre foi acusado de ter postura
hegemônica e dificuldade para dividir o poder. A conjuntura
do país, que está rachado e desmantelado, forçou Lula a bus-
car novas alianças. A dúvida é se os novos parceiros de cen-
tro e de direita abraçados durante a campanha eleitoral con-
seguirão impor algumas de suas ideias, sobretudo no campo
da economia. Alguns deles são favoráveis a que o presidente

9 PODERES
O país experimentou um ambiente permanente de
faroeste institucional. Lula promete baixar a temperatura,
apostar no diálogo e aprofundar laços com alguns
representantes das cúpulas do Legislativo e do Judiciário, aos
quais credita a retomada de seus direitos políticos e boa
parte da resistência à pregação autoritária de Bolsonaro. A
meta é consolidar pontes, inclusive com parlamentares e
magistrados que lhe fizeram oposição no passado

12 | 17
eleito tente aprovar uma reforma administrativa, como for-
ma de conseguir uma folga fiscal que permita a ampliação
dos programas sociais e das medidas de combate à fome. O
tema sempre enfrentou a rejeição de servidores públicos e da
base petista, mas esses mesmos grupos foram contrariados
em 2003, quando Lula, em seu primeiro ano de mandato,
aprovou uma reforma da Previdência.
Na época, havia a necessidade de dissipar as dúvidas do
mercado e demonstrar compromisso com a responsabilida-
de fiscal, o que também ocorre agora. Os novos aliados, so-
bretudo economistas liberais, também defendem a manu-
tenção do teto de gastos (veja matéria na pág. 52). “A priori-
dade na área econômica será a volta ao respeito ao teto de
gastos, porque isso é que vai viabilizar a volta da confiança
e, em consequência, um crescimento sustentável”, diz Henri-
que Meirelles, presidente do Banco Central no governo Lu-
la. Além de tentar reduzir a miséria e impulsionar o PIB, que
cresceu em média pouco mais de 4% em seus dois manda-

10
IMAGEM INTERNACIONAL
Lula conta com o prestígio que amealhou em seu
governo para devolver protagonismo no cenário externo ao Brasil,
que se tornou um pária internacional na gestão de Jair Bolsonaro,
conforme definição do ex-chanceler Ernesto Araújo. Presidentes
de países das Américas e da Europa já felicitaram o presidente
eleito, que tem como fragilidade nessa seara a postura — que vai
da benevolência ao apoio explícito — diante de ditadores amigos

13 | 17
RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS
ESPERANÇA EM ALTA O mercado reagiu bem ao resultado
da eleição, apesar das dúvidas sobre a política econômica

11 CORRUPÇÃO
Os governos do PT protagonizaram os dois maiores
esquemas de corrupção da história do país, o mensalão e o
petrolão. Apesar disso, Lula não apenas se recusou a fazer
um mea-culpa sobre escândalos como esgrimiu a tese de que
ambos só foram descobertos porque as administrações
petistas eram transparentes. Controversa, essa retórica
ajuda a entender por que o presidente eleito tem tanta
dificuldade para discorrer sobre o assunto

14 | 17
tos, Lula terá de lidar com outra dezena de missões compli-
cadas. Uma delas é devolver protagonismo no cenário exter-
no ao Brasil, que se tornou um “pária internacional” na ges-
tão de Bolsonaro, conforme expressão cunhada pelo ex-
chanceler bolsonarista Ernesto Araújo. Outra é melhorar a
imagem do país no que diz respeito ao meio ambiente.
Na atual administração, com a benevolência de Bolso-
naro, houve aumento do desmatamento na Amazônia, falta
de empenho para cobrar multas de infratores e esvazia-
mento de órgãos de fiscalização. “O Brasil está pronto para
retomar o seu protagonismo na luta contra a crise climáti-
ca, protegendo todos os nossos biomas. Agora, vamos lutar
pelo desmatamento zero da Amazônia”, prometeu Lula no
discurso da vitória. Ao seu lado, estava Marina Silva, que
pediu demissão do cargo de ministra do Meio Ambiente em
2008, no segundo mandato do petista, por se sentir tratora-
da pela ala desenvolvimentista do governo, liderada pela

12 GOVERNABILIDADE
Os partidos da coligação de Lula elegeram 122
deputados federais e também não fizeram maioria no Senado.
Ele, portanto, terá de negociar no Congresso a fim de aprovar
projetos. As conversas com partidos de centro, como o MDB e o
PSD, já estão em andamento. O desafio será firmar uma parceria
dispensando mecanismos de cooptação de apoio parlamentar,
sejam eles pretéritos, como o mensalão, ou atuais, como o
orçamento secreto

15 | 17
NELSON JR./SCO/STF

BANDEIRA BRANCA Supremo Tribunal e Congresso:


oportunidade para se restabelecer o equilíbrio

MARCOS OLIVEIRA/AG. SENADO

16 | 17
então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Desde que ven-
ceu as eleições, Lula recebeu felicitações de diferentes che-
fes de Estado, como os presidentes dos Estados Unidos, Joe
Biden, e da França, Emmanuel Macron. Ele também foi
convidado para participar da nova rodada da conferência
da ONU sobre mudanças climáticas, neste mês, no Egito.
Será uma oportunidade de ouro para, num só lance, colher
dividendos tanto na política externa como na questão am-
biental. A corte ao presidente eleito foi resumida da seguin-
te forma por seu entorno: o Brasil trocou o papel de pária
pelo de influencer global. Um exagero, obviamente.
Quando deixou a Presidência, em 2010, Lula costumava
se gabar de ser o presidente mais popular da história do pa-
ís. Dez anos depois, ele conquista o direito de retornar ao
cargo apesar de ser rejeitado por pelo menos 40% da popu-
lação, segundo as pesquisas. Boa parte dos apoios que rece-
beu durante a campanha não foi motivada por concordân-
cia com suas propostas, até porque poucas foram apresen-
tadas ao eleitorado, mas por aversão a Bolsonaro e sua retó-
rica autoritária. Com a saída de cena do capitão, a manu-
tenção desses apoios dependerá do desempenho do novo
governo no enfrentamento de problemas tão diversos e
complexos. A volta por cima — do petista e do país — ainda
depende da superação de desafios hercúleos. Perto deles,
ganhar de Bolsonaro foi apenas o começo. ƒ

Colaborou Hugo Marques

17 | 17
BRASIL ELEIÇÕES

A DIFÍCIL VOLTA
POR CIMA
Como Lula relativizou o passado, reescreveu a
biografia, venceu resistências dentro do próprio
PT e construiu o caminho para o seu terceiro
triunfo LARYSSA BORGES E RICARDO CHAPOLA

O DESABAFO Lula: “Eles pensavam que tinham me matado,


pensavam que tinham acabado com a minha vida”

RICARDO STUCKERT

1 | 14
A FESTA que reuniu milhares de pessoas na Avenida Pau-
lista na noite de domingo coroou um projeto de poder que
começou a ser executado há mais de uma década. Em cima
do caminhão de som, Lula, suado e rouco, discursou para
uma multidão visivelmente emocionada. Ao lado dele, Janja,
a futura primeira-dama, pulava freneticamente. Coadjuvan-
tes do espetáculo refletiam, cada um à sua maneira, a eufo-
ria de um momento singular. O vice-presidente eleito Geral-
do Alckmin acenava ao público com as mãos em forma de
coração. O ex-ministro Fernando Haddad nem parecia que
havia acabado de ser derrotado na disputa para o governo
de São Paulo, tamanho era o entusiasmo. A ex-presidente
Dilma Rousseff, numa demonstração de prestígio, ganhou
um “abraço especial”, além de ficar ao lado do futuro presi-
dente. Lula, bem ao seu estilo, disse, entre outras coisas, que
“quase foi enterrado vivo” por uma “avalanche de mentiras”.
“Eu considero que estou vivendo uma ressurreição. Eles
pensavam que tinham me matado, pensavam que tinham
acabado com a minha vida política”, afirmou. Magnânimo,
ressaltou que o resultado da eleição era uma construção co-
letiva que representava o triunfo da democracia e a derrota
do autoritarismo. Nas palavras dele, o fato de um ex-retiran-
te da seca ter ocupado a Presidência da República duas ve-
zes e, aos 77 anos, ainda conquistar o terceiro mandato só
podia ser obra de Deus. “Foi a eleição mais difícil da minha
vida”, admitiu por fim. Não era só retórica.
Antes de se consagrar nas urnas como o 39º presidente

2 | 14
RICARDO STUCKERT

EM ALTA Haddad: mesmo com a derrota,


desempenho foi celebrado por Lula

eleito do Brasil, Lula precisou revisitar a história, se afas-


tar de personagens inconvenientes, reconstruir a imagem e
vencer resistências contra ele dentro do próprio PT. Dri-
blar o passado foi o primeiro desafio. Há exatos vinte anos,
a mesma euforia que se viu na Avenida Paulista concorria
com os prognósticos do que seria um governo conduzido
por um ex-metalúrgico que só completou o ensino funda-
mental, fez carreira no sindicalismo e projetou-se como
um político radical. Havia ainda o espectro do PT. O parti-
do pregava contra o capitalismo, apoiava invasões de terra
e não escondia o apreço por ditaduras comunistas. Em
2002, para afastar todos esses fantasmas, Lula se compro-
meteu a defender a democracia, garantiu que respeitaria

3 | 14
APOSTA Rui Costa: o
governador baiano é um dos
nomes cotados para assumir
o Ministério da Economia

contratos e que não haveria


ruptura dos fundamentos
da política econômica em
vigor. A remodelagem no
discurso deu certo. O petis-
ta foi eleito, reeleito e dei-
xou o governo, em 2010,
JONNE RORIZ

com índices de aprovação


que permitiram a ele consi-
derar a hipótese de disputar uma terceira eleição num fu-
turo que imaginava não muito distante.
Os dois primeiros mandatos do petista não foram marca-
dos apenas pelo sucesso econômico ou pela criação de pro-
gramas sociais como o Bolsa Família. O PT, desde a funda-
ção, atuava como um contrapeso importante aos governos
de turno. A defesa da ética na política era um dogma. Po-
rém, logo no primeiro ano de governo, começaram a surgir
casos que iam de encontro a tudo que o partido e dirigentes
defendiam em público. O ministro da Casa Civil José Dir-
ceu, por exemplo, além de braço direito de Lula, comandan-
te e ideólogo do PT, também chefiava o mensalão, o maior
esquema de desvio de dinheiro público descoberto até en-

4 | 14
tão. De candidato a sucessor de Lula no Planalto, acabou
condenado e preso — destino semelhante ao do terceiro di-
rigente petista na linha sucessória, o ex-ministro da Fazenda
Antonio Palocci, que também acabaria preso por envolvi-
mento num escândalo ainda maior, o petrolão. A corrupção
foi aos poucos corroendo a imagem do PT e de seus líderes,
até atingir o ápice com o impeachment de Dilma Rousseff
em 2016 e a prisão do próprio Lula em 2018.
O petista teve sua morte política decretada diversas ve-
zes — nos três fracassos seguidos antes de chegar à Presi-
dência, na descoberta do mensalão e na condenação e prisão
impostas pelo ex-juiz Sergio Moro. Retornar ao Planalto, de-
pois de todos esses percalços, parecia uma missão impossí-
vel. Não era. Resiliente, Lula foi aos poucos desmontando
um a um todos os obstáculos. O primeiro e mais importan-
tes deles foi a revelação de que Sergio Moro e os procurado-
res encarregados da Lava-Jato atuaram em uma parceria
que feria a lei. Numa reviravolta impressionante, o juiz foi
considerado parcial e as condenações do ex-presidente fo-
ram anuladas. Em outra frente, apoiadores de Lula contra-
taram especialistas renomados, como o advogado australia-
no Geoffrey Robertson, uma das maiores autoridades do
planeta na defesa dos direitos humanos. O caso de Lula foi
levado a cortes internacionais, inclusive às Nações Unidas,
como um exemplo de perseguição judicial. Para dar susten-
tação fática à tese, os petistas também encomendaram uma
biografia de Lula ao historiador americano John French.

5 | 14
JORGE ARAUJO/FOLHAPRESS

PASSADO Lula e José Dirceu: expoente


petista não terá cargo no governo

O trabalho, publicado pouco antes da eleição, conta detalhes


da carreira do petista, descrito como o “Pelé” da política
brasileira e que classifica o impeachment de Dilma Rousseff
como um golpe.
Depois de recuperar os direitos políticos, Lula entrou na
corrida presidencial como líder das pesquisas de intenção de
voto e, portanto, na condição de favorito. A impopularidade,
as trapalhadas do governo e a imensa rejeição a Jair Bolso-
naro impulsionaram o projeto do terceiro mandato. Em
meados do ano passado, o ex-presidente começou a se reu-

6 | 14
CASSIANO ROSÁRIO/FUTURA PRESS

MAU MOMENTO Palocci: preso, ele


acusou o antigo chefe de receber propina

nir sigilosamente com políticos e empresários em busca do


imprescindível arco de apoios para a disputa de 2022. No
escritório do advogado Cristiano Zanin, em São Paulo, fo-
ram costurados apoios que resultaram na aliança com Ge-
raldo Alckmin. A dobradinha dos antigos adversários era
vista pelo entorno do petista como importante para acenar
ao eleitorado mais conservador (manobra tão bem-sucedida
que incluiu até uma declaração de voto de Fenando Henri-
que Cardoso a seu favor). No início de 2022, Lula reatou la-
ços políticos com parlamentares que antes haviam apoiado

7 | 14
HEULER ANDREY/AFP

PERSEGUIÇÃO A prisão de Lula: de acordo com a tese


difundida pelo PT, o objetivo seria impedir a candidatura em 2018

a Lava-Jato, a exemplo do senador Randolfe Rodrigues (Re-


de), e também o impeachment de Dilma Rousseff, como o
senador Renan Calheiros (MDB). Janja ficou incumbida de
reconstruir a ponte da candidatura do marido com a classe
artística — essa uma tarefa mais fácil.
Havia também pequenas rusgas que precisavam ser su-
peradas dentro do próprio PT. Em meados de 2018, quando
ainda estava preso, Lula buscava uma brecha jurídica que
lhe permitisse disputar a Presidência. Foi quando soube
através de um aliado que companheiros do partido estavam

8 | 14
RICARDO STUCKERT

DISTÂNCIA Dilma: o medo do PT era


desempenho da sucessora prejudicar Lula

se articulando para lançar uma candidatura à revelia dele.


Soube também que alguns dos mentores da ideia integra-
vam um grupo que tentava convencê-lo a negociar com a
Justiça a colocação de uma tornozeleira eletrônica em troca
de uma prisão domiciliar. Um interlocutor do ex-presidente
agora presidente eleito contou a VEJA que ele ficou magoa-
do com o que parecia ser uma tentativa deliberada de impe-
dir que ele disputasse a eleição daquele ano — suspeita,
aliás, que ele compartilhou com pouquíssimas pessoas, mes-
mo depois de deixar a cadeia. O ex-presidente citou três no-

9 | 14
mes que estariam por trás dessa suposta conspirata: o go-
vernador da Bahia Rui Costa, o senador Jaques Wagner e o
ex-prefeito Fernando Haddad, que, diante da impossibilida-
de de Lula concorrer, acabou sendo escolhido pelo PT para
disputar a Presidência naquele ano. O episódio, de acordo
com o interlocutor, foi totalmente superado. Aliás, Haddad e
Costa estão cotados para cargos importantes na próxima
gestão.
Antes do início da campanha, havia uma imensa dúvida
sobre o peso que o tema corrupção teria nos embates. Lu-
la, segundo pessoas próximas, tinha receio de ser hostili-
zado nas ruas e pavor de uma eventual ressurreição das
denúncias. Pesquisas encomendadas pelo PT no início do
ano, porém, revelaram que a economia era a principal
preocupação dos eleitores. Nesse terreno, o petista era do-
no de um denso portfólio de realizações — temia apenas a
memória negativa do governo Dilma, algo que Bolsonaro
não soube explorar. No campo ético, os marqueteiros do
partido estavam convencidos de que, como Jair Bolsonaro
tinha seu próprio telhado de vidro, não seria interesse de
nenhum dos dois lados mexer no vespeiro do concorrente.
Não foi o que aconteceu. Boa parte da campanha foi pauta-
da por acusações de lado a lado, o que acirrou ainda mais a
polarização que já se anunciava, indicando que o futuro
presidente da República seria definido nos detalhes. Ape-
sar do esforço, Lula não conseguiu atrair para a sua coliga-
ção eleitoral antigos aliados, como o PDT, que lançou o ex-

10 | 14
RICARDO STUCKERT

ANTIGOS RIVAIS Lula e Fernando Henrique: a sinalização


aos eleitores de centro foi crucial para conquistar votos

ministro Ciro Gomes na disputa. Havia também a espe-


rança de que caciques do MDB minassem a candidatura
de Simone Tebet e levassem a sigla a se juntar ao PT, como
ocorreu em 2010 e 2014. Também não deu certo. Mesmo
assim, com uma aliança formada por dez partidos, Lula
conseguiu o maior tempo na propaganda eleitoral, um ati-
vo que se mostrou valioso ao permitir a apresentação de
algumas promessas e resposta aos ataques dos rivais.
Durante a campanha, os oponentes fizeram recrudescer
o sentimento antipetista, que foi impulsionado principal-
mente por Ciro Gomes e Jair Bolsonaro. A estratégia abalou

11 | 14
KAIO LAKAIO

BASTIDORES Zanin: alianças políticas


foram costuradas no seu escritório

a campanha petista. A rejeição a Lula subiu devagarinho e


superou a casa dos 40%, um pouco abaixo da de Bolsonaro,
que foi caindo ao longo da disputa. Nas pesquisas, o medo
da volta do ex-presidente chegou à reta final do segundo tur-
no praticamente empatado com o medo da reeleição de Bol-
sonaro, o que não ocorria nos primeiros dias da campanha.
Lula enfrentou ainda a desconfiança de setores específicos.
Parcela importante do agronegócio aderiu a Bolsonaro,
inundando a campanha do candidato à reeleição com doa-
ções financeiras. O apoio dos evangélicos ao capitão tam-
bém foi crescendo gradativamente e se tornou tão preocu-

12 | 14
RICARDO STUCKERT

OPERAÇÃO LIMPEZA Geoffrey Robertson: o advogado


australiano levou à ONU a denúncia de perseguição judicial

pante para o PT que obrigou Lula a lançar uma carta volta-


da aos integrantes desse grupo.
No segundo turno, uma de suas principais dificuldades
foi a falta de palanque em Minas Gerais e no Rio de Janeiro,
que reelegeram no primeiro turno governadores aliados a
Bolsonaro. Lula conseguiu superar todas essas adversidades
graças a uma combinação de fatores. Ele foi beneficiado di-
retamente pela imensa inabilidade de Bolsonaro, que, com
jeitão tresloucado e à péssima condução do país durante a
pandemia, perdeu votos no Sudeste que poderiam compen-
sar o apoio do Nordeste a Lula. O petista também conseguiu

13 | 14
PROPAGANDA John French: em seu
livro, Lula é o “Pelé” da política brasileira

convencer setores do eleitorado de que não faria um gover-


no sectário, mas amplo, com a participação de políticos de
esquerda, do centro e até da direita. Anunciou uma gestão
moderada e de pacificação, o que soou como música a seg-
mentos cansados da retórica autoritária do atual presidente.
Ao contrário de 2018, quando tomou uma surra nas redes
sociais, o PT também equilibrou a disputa nessa seara e re-
correu a influenciadores para desconstruir Bolsonaro, im-
pulsionar a popularidade digital de Lula e até para espalhar
fake news. Deu certo. A vitória foi difícil e suada. Agora, é
hora de arregaçar as mangas e trabalhar pelo Brasil. ƒ

14 | 14
BRASIL GOVERNO

UM TIME
EM FORMAÇÃO
A escolha de Geraldo Alckmin para comandar a
transição inicia o esboço da escalação da equipe que
dará as cartas na Presidência do PT LAÍSA DALL’AGNOL
E JOÃO PEDROSO DE CAMPOS

DESTAQUE O vice de Lula: experiência em gestão e tarimba


na articulação política valorizaram o papel do ex-governador

RICARDO STUCKERT

1 | 11
MAL ACABOU de vencer as eleições mais disputadas da
história, o PT não perdeu tempo e já começou a movimen-
tar suas principais peças de olho nos preparativos neces-
sários para assumir o Palácio do Planalto e fazer a aco-
modação de políticos importantes da ampla rede de
apoios na campanha. O primeiro grande passo do novo
presidente contempla essas duas prioridades com a esco-
lha do nome do vice, Geraldo Alckmin, para comandar o
gabinete de transição. A decisão que confirmou o nome
dele como coordenador da comissão de transição foi
anunciada na terça 1º, pela presidente do PT, Gleisi Hof-
fmann. Aliados afirmam que o papel ativo do vice de Lula
ao longo da campanha junto a setores diversos e estratégi-
cos, incluindo o empresariado e o agronegócio, somado à
confiança que o ex-governador conquistou entre a cúpula
petista, foi a chave para a batida de martelo.
Gestor experiente, Alckmin tem também traquejo políti-
co e, como ex-tucano, sinaliza uma disposição do PT em go-
vernar em conjunto com aliados e, de quebra, de fazer ges-
tos concretos em direção ao centro. “A escolha indica que
Lula vai buscar se legitimar mais ainda, abrindo-se a mais
segmentos”, diz o cientista político Marco Antonio Carva-
lho Teixeira, da FGV. O grupo que fará a interlocução com o
atual governo é integrado ainda por Gleisi e pelo ex-minis-
tro Aloizio Mercadante, que acompanham de perto as trata-
tivas desde as primeiras horas após a confirmação da vitória
de Lula. A primeira reunião dos líderes aconteceu na quinta-

2 | 11
CRISTIANO MARIZ

ARTICULAÇÃO Wellington Dias: missão de


construir a base governista

feira 3. Do lado oposto, o representante designado para a ne-


gociação foi o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira.
Outra frente de trabalho já iniciada envolve as peças
encarregadas de fazer a interlocução petista com o novo
Congresso — a Legislatura com início em 2023 tem um
perfil majoritariamente de parlamentares de direita e
que tendem a ser oposição. A configuração, portanto, é
vista como um dos entraves ao principal desafio do no-

3 | 11
vo governo, que é negociar o Orçamento. A tarefa ga-
nha um peso significativamente maior diante da neces-
sidade de se firmar um início de governo forte junto ao
Legislativo, bem como o de cumprir promessas e ban-
deiras de campanha de Lula — como Auxílio Brasil e
aumento do salário mínimo. No Senado, Wellington
Dias (PT-PI) comanda as tratativas e, dando o primeiro
passo na missão, reuniu-se, na quinta 3, com o relator-
geral do Orçamento de 2023, o senador Marcelo Castro
(MDB-PI). Também participam desta frente Aloizio
Mercadante, os senadores Jean Paul Prates (RN), Fabia-
no Contarato (ES) e os deputados federais petistas Re-
ginaldo Lopes (MG), Enio Verri (PR), Rui Falcão (SP) e
Paulo Pimenta (RS). “Estamos começando as conversas
e temos uma preocupação central, que é a de manter o
Auxílio Brasil em 600 reais e o adicional de 150 reais
por filho, bem como garantir o aumento real do salário
mínimo”, diz Reginaldo Lopes. O deputado afirma ain-
da que é intenção da base aliada de Lula dar vazão a
propostas como o Desenrola, programa de renegocia-
ção de dívidas apresentado durante a campanha.
Em paralelo a esse esforço de Wellington Dias no Sena-
do, o deputado José Guimarães (PT-CE) recebeu a incum-
bência de dialogar com o presidente da Câmara, Arthur Li-
ra (PP-AL), sobre as principais pautas a serem tratadas no
Congresso. Embora ainda seja considerado cedo, líderes pe-
tistas afirmam que Lula já está de olho nas articulações para

4 | 11
as eleições que definirão as presidências da Câmara e do Se-
nado, que acontecem no início de 2023. Ao que tudo indica,
o PT deverá apoiar tanto a reeleição de Lira, na Câmara,
quanto a de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado.
A preocupação com o Congresso não é por acaso. Os
partidos coligados na chapa de Lula elegeram 122 deputa-
dos, longe das 257 cadeiras necessárias para aprovar proje-
tos de lei — emendas constitucionais dependem de 308 vo-
tos em dois turnos. Assim, o grupo de Lula mira partidos de
centro, como MDB e PSD, com 42 deputados cada, e dissi-
dentes do Centrão. Nem o PS-
DB está totalmente descar- MEIO
tado. Entre os potenciais AMBIENTE
aliados no Congresso, o Marina Silva:
MDB é o que larga mais guinada nas
perto de ter um integrante políticas
na foto de posse do presi- ambientais
dente com seus mi-
nistros. Terceira
colocada na elei-
ção presidencial e
EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

cabo eleitoral de
Lula no segundo
turno, a senadora
Simone Tebet (MS)
é vista entre petistas
e emedebistas como

5 | 11
nome a compor o primeiro escalão. “Simone se agigantou e
foi muito importante para a vitória”, diz o senador Renan
Calheiros (AL), um dos emedebistas mais próximos a Lula.
A adesão da senadora à campanha petista, um facilita-
dor na reaproximação entre as siglas, foi um dos princi-
pais assuntos de uma conversa entre Gleisi e o presidente
do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), no começo da sema-
na. Rossi, no entanto, tem dito a interlocutores que espera
não haver um alinhamento “automático” do partido ao
governo, mas uma posição “colaborativa” em torno de
pautas no Congresso — o MDB, entende ele, já sofreu de-
mais com a pecha de adesista (merecidamente, aliás). Por
outro lado, lideranças do MDB lulista, como Renan e o
deputado eleito Eunício Oliveira (CE), esperam que a sigla
componha a base aliada. “A lógica e a tendência é apoio
ao governo. Acho mais do que natural, pela grande maio-
ria do partido, que participe da base”, diz Eunício, defen-
sor de uma federação entre MDB, Podemos, Cidadania e
PSDB que encorpe as siglas no Legislativo.
Políticas como a senadora do Cidadania Eliziane Ga-
ma (MA), aliada de Lula no segundo turno e articuladora
do petista entre o segmento evangélico, avaliam que há
uma “margem grande” de ampliação da base do petista
no Congresso. “Vamos conversar com aqueles partidos
que não se manifestaram no segundo turno, ou mesmo
aqueles que o fizeram, mas que têm entendimento de que
há no que se contribuir. Mostrar que é hora de desarmar

6 | 11
FLICKR @SIMONETEBETMS

FAVORITA Simone Tebet, que ganhou enorme projeção durante


a campanha: participação com ou sem acordo com o MDB

palanque e evitar radicalização da oposição”, diz. Aliados


de Lula contam, ainda, até com o diálogo com importan-
tes lideranças que já foram da base de Bolsonaro, como o
Republicanos. De acordo com petistas, há uma conversa
marcada entre Gleisi Hoffmann e o presidente do partido,
Marcos Pereira, já para novembro.
Ainda no centro, aliados do presidente do PSD, Gilberto
Kassab, veem como questão de tempo um ajuste entre ele e
Lula. Uma das prioridades da sigla é manter a cadeira de

7 | 11
CARL DE SOUZA/AFP

GRATIDÃO Fernando Haddad: lugar de honra no novo


governo e reconhecimento pelo esforço feito em São Paulo

presidente do Senado, atualmente ocupada por Rodrigo Pa-


checo (MG). “Kassab tem uma ótima relação com Lula. Na-
da que ele fez em São Paulo não foi conversado com o presi-
dente”, afirma o senador Omar Aziz (AM), lembrando a
aliança entre Kassab e o governador de São Paulo eleito, o
ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Outro que tem piscado a Lula é o deputado Luciano Bivar,
presidente do União Brasil, cujos líderes têm conversado
com interlocutores do petista. “Por que vamos ser oposição?

8 | 11
Não vejo porquê. Temos de ser independentes, podemos
contribuir para uma governabilidade sadia”, avalia Bivar.
Diante do isolacionismo praticado pelo governo Bolso-
naro, que chegou a dirigir hostilidades a líderes europeus,
como o presidente da França, Emmanuel Macron, o cam-
po da política internacional é outra área em que Lula pre-
tende marcar grandes diferenças. O petista já aceitou um
convite para participar da 27ª Conferência das Nações
Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, a
partir da próxima semana — na edição anterior, em Glas-
gow, na Escócia, Bolsonaro não compareceu alegando
“motivos de agenda”, enquanto cumpria compromissos
menos importantes na Itália, e dedicou à conferência cli-
mática um vídeo de apenas três minutos.
Dentro das preocupações de países estrangeiros com o
meio ambiente e as mudanças climáticas — Noruega e Ale-
manha já sinalizam com a retomada do financiamento do
Fundo da Amazônia — é quase certo que Lula contará com
a ex-senadora, ex-ministra e deputada eleita Marina Silva
(Rede-SP) como um símbolo da mudança de rumos na polí-
tica ambiental. Marina, que também deve ir à COP27, tem o
nome fortemente cotado para voltar à pasta do Meio Am-
biente no novo governo. A própria líder da Rede já deu de-
clarações afirmando que deve participar, direta ou indireta-
mente, da terceira gestão do petista.
Além de Marina Silva, outros nomes são tidos como qua-
se certos na formação do futuro governo. Fernando Haddad,

9 | 11
FACEBOOK @FLAVIODINO

ALIADO Flávio Dino: uma das estrelas


do novo time da esquerda

a quem Lula credita uma importância fundamental na sua


vitória ao levar adiante a candidatura ao governo de São
Paulo, terá sem dúvidas um papel importante. Inicialmente,
coordenará a equipe de transição no setor de Educação —
mas não parece muito interessado em voltar a comandar a
pasta, que tem como virtuais postulantes Simone Tebet e o
ex-governador do Ceará e senador eleito Camilo Santana
(PT). Este último faz parte da geração de novas caras da es-
querda que aos poucos vão ocupando o espaço das velhas
lideranças petistas. Wellington Dias também faz parte desse

10 | 11
time, ao lado do ex-governador baiano Rui Costa e do ex-
governador maranhense Flávio Dino.
Com a dança das cadeiras ainda indefinida na disposição
de cargos no futuro governo, incluindo a definição de quem
será o nome forte na economia, uma coisa é certa — a Espla-
nada dos Ministérios será ampliada de 23 para ao menos 26
pastas, de forma a atender aliados e promessas de campa-
nha. As pastas inéditas ventiladas por Lula são a da Igualda-
de Social, a das Pequenas e Médias Empresas e a dos Povos
Originários. Por enquanto, a equipe de transição evita falar
de atribuição de ministérios — recentemente, Gleisi frisou,
inclusive, que ser integrante da transição não é garantia de
que o nome será ministro. Apesar disso, o esboço do novo
governo mostra uma disposição de seguir rumo ao centro,
estabelecer novo relacionamento com o Congresso e escalar
peças com credibilidade e conhecimento técnico para cui-
dar de áreas vitais da terceira presidência Lula. Enquanto
ensaio geral, parece promissor. ƒ

11 | 11
BRASIL POLÍTICA

FUTURO INCERTO
Com mais de 58 milhões de votos, Bolsonaro, o primeiro
presidente a perder uma reeleição, em tese se
credencia para liderar a oposição — em tese
MARCELA MATTOS

LIDERANÇA Bolsonaro: o presidente vai contar com


estrutura para se manter no centro do debate político

JOÉDSON ALVES/EFE

1 | 10
ALIADOS costumam dizer que nem Jair Bolsonaro acre-
ditava, no início de 2018, que conseguiria se eleger presi-
dente da República. Faltava tudo: tempo de televisão, di-
nheiro, partido, apoio político. O resto é história, mas fato é
que, depois de eleito, o improvável presidente se apegou à
cadeira, recuou da promessa de jamais tentar a reeleição e
chegou até a comemorar a soltura do ex-presidente Lula —
na cabeça de Bolsonaro, não havia ninguém melhor do que
o petista para manter vivo na sociedade o sentimento anti-
corrupção que o guindou ao Palácio do Planalto. Depois
dessa metamorfose, o ex-capitão, quando questionado so-
bre o futuro, respondia sempre que vislumbrava apenas três
cenários: ser preso, morto ou alcançar a vitória nas eleições
deste ano. “Somente Deus me tira daqui”, repetia. Apesar
dos variados percalços criados pelo próprio governo nos úl-
timos quatro anos, da pandemia que matou quase 700 000
pessoas no país e da crise econômica que se seguiu, a derro-
ta nas urnas nunca foi considerada opção. Atônito, Bolso-
naro, de início, estava decidido a não reconhecer publica-
mente o resultado. Depois, foi convencido a reconsiderar.
Num pronunciamento que durou pouco mais de dois mi-
nutos, feito 45 horas depois de proclamado o resultado do
segundo turno, o presidente leu uma nota de apenas 22 li-
nhas, na qual agradeceu aos 58 milhões de votos, defendeu
o seu governo, fez críticas indiretas ao Supremo Tribunal
Federal, mas não parabenizou o vencedor como reza a tra-
dição. A fala enxuta foi precedida por uma intensa discus-

2 | 10
SETH WENIG/AP/IMAGEPLUS
ESPELHO Donald Trump: o ex-presidente americano inspira
os bolsonaristas

são sobre como o presidente trataria a derrota sem fazer


nenhuma menção ou aceno a Lula. Bolsonaro havia sido
aconselhado pelo filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, a
permanecer em silêncio. A baderna promovida pelos cami-
nhoneiros, porém, obrigou o presidente a mudar de ideia. O
núcleo político do governo avaliou que o fechamento das
estradas poderia provocar uma confusão de proporções im-
previsíveis. O silêncio seria interpretado como um aval do
Planalto ao movimento e, no final, a responsabilidade pelo
que acontecesse seria toda atribuída ao mandatário. Na no-
ta, o presidente ressaltou que manifestações pacíficas eram
bem-vindas, desde que não prejudicassem o direito de ir e
vir. No dia seguinte, postou um vídeo pedindo aos apoiado-
res que desbloqueassem as rodovias.

3 | 10
Superado o choque inicial da derrota, Bolsonaro come-
çou a cuidar do próprio futuro. Do PL, seu partido, rece-
beu a garantia de que terá todo o suporte necessário para,
caso queira, se consolidar como o principal líder da oposi-
ção. Foi combinado que ele permanecerá em Brasília a
partir de janeiro. O presidente do PL, Valdemar Costa Ne-
to, colocará à disposição de Bolsonaro um cargo de dire-

SEGUNDO LUGAR
Uma montanha de votos nem sempre é
sinônimo de ascensão natural ou sucesso
garantido na carreira dos políticos que já se
candidataram a presidente da República

JOSÉ SERRA

O ex-governador disputou a Presidência da


República duas vezes. Em 2002, obteve 33 milhões
de votos (38% do total). Em 2010, 43 milhões (44%).
Em outubro passado, não conseguiu votos suficientes
para conquistar uma vaga de deputado federal

4 | 10
ção, casa, escritório, além de um salário mensal. Por lei, ex
-presidentes têm direito a oito funcionários, custeados pelo
Estado, e dois veículos oficiais. Bolsonaro também ouviu a
garantia de que não precisará se preocupar com advoga-
dos, caso enfrente processos após o fim do mandato. Di-
nheiro não é problema. Neste ano, o PL elegeu a maior
bancada do Congresso graças à adesão de bolsonaristas, o
que garante à legenda nos próximos quatro anos acesso a
um bilionário fundo partidário e eleitoral. O partido quer
ter o ex-capitão e seus 58 milhões de votos como cacife pa-
ra futuras articulações políticas e, se tudo sair como plane-
jado, também como a principal aposta para enfrentar Lula
e o PT em 2026. É um projeto ousado.

GERALDO ALCKMIN

O hoje vice-presidente de Lula conquistou 37 milhões de


votos em 2006, quando disputou a Presidência contra
o próprio Lula. Depois disso, se elegeu governador.
Em 2018, concorreu novamente ao Planalto, ficando
em quarto lugar, com apenas 5% dos votos válidos

5 | 10
O PL é uma das estrelas do chamado Centrão — partidos
que historicamente se aliam aos governos de turno em troca
de cargos e verbas. Uma importante liderança da legenda,
sob a condição de anonimato, explicou que essa submissão
voluntária ao governo de turno não deve se repetir na gestão
petista. Essas legendas hoje reúnem a maioria dos deputa-
dos e senadores, têm direito a bilhões oriundos dos fundos
partidários, controlam o Orçamento da União e agora con-
tam com um forte candidato a presidente — aliás, não ape-
nas um. O Republicanos, outra estrela do Centrão, elegeu o
bolsonarista Tarcísio de Freitas para o governo de São Pau-
lo, estado que tem o maior colégio eleitoral do país. Os go-
vernadores Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Cláu-

AÉCIO NEVES

Ex-governador de Minas Gerais, em 2014 o tucano


disputou o segundo turno com Dilma Rousseff (PT),
obtendo extraordinários 51 milhões de votos (48%).
Em outubro, Aécio penou para conseguir
85 000 votos e se eleger deputado federal

6 | 10
dio Castro (PL), do Rio de Janeiro, ampliam esse rol de op-
ções. Mas foi o presidente, em tese, quem saiu mais fortale-
cido das urnas. “Quando Bolsonaro se mostrava completa-
mente perdido, a economia em crise, a inflação e a fome vol-
tando, ainda assim uma relevante parcela da população
apoiava o governo. Significa que essas pessoas adoram o
Bolsonaro. Ele, sem dúvida, é uma liderança com raízes na
sociedade. Não será fácil substituí-lo”, afirma o cientista po-
lítico Miguel Lago, professor da Universidade Columbia.
A tradição brasileira, no entanto, mostra que uma mon-
tanha de votos nem sempre é garantia de uma carreira po-
lítica ascendente. Foi assim com quase todos os presiden-
ciáveis derrotados em segundo turno (veja no quadro abai-

FERNANDO HADDAD

Na disputa com Jair Bolsonaro em 2018, o ex-prefeito


de São Paulo conquistou 47 milhões de votos (45%).
O petista concorreu ao governo do estado nas últimas
eleições, obteve 10 milhões de votos (45%),
perdendo para um neófito na política

7 | 10
xo). Foi assim com ex
-presidentes que tenta-
ram voltar à cena políti-
ca. José Sarney, por
exemplo, teve de mudar
seu domicílio eleitoral
do Maranhão para o
Amapá para conseguir
uma vaga de senador.
Fernando Collor, após
ter o mandato cassado,

PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS
conquistou depois de al-
gumas eleições uma va-
ga no Senado por Ala-
goas. Neste ano, tentou CENTRÃO Valdemar:
subir um degrau na car- o PL já planeja ter candidato
reira, candidatou-se a próprio à Presidência em 2026
governador do seu esta-
do, mas foi derrotado. Dilma Rousseff, depois de também
sofrer o impeachment, tentou, sem sucesso, uma vaga no
Congresso por Minas Gerais. Lula, nesse caso, é uma ób-
via exceção, mas o caminho até o retorno à Presidência,
com condenações e prisão, foi tortuoso e absolutamente
inédito até aqui. “Normalmente, políticos populistas como
Bolsonaro, quando ficam sem mandato, começam a defi-
nhar. O esperado é que ele paulatinamente vá perdendo a
influência e a capacidade de agregar interesses”, explica o

8 | 10
RONNY SANTOS/FOLHAPRESS
NOVA ESTRELA Tarcísio de Freitas:
credenciais para voos ainda mais altos

cientista político da FGV Carlos Pereira. “Os próprios


membros do PL vão começar a encontrar novas lideranças
que talvez galvanizem essa direita conservadora brasileira
que é real e é forte no Brasil”, acrescenta.
Os apoiadores que apostam na capacidade de Jair Bol-
sonaro de liderar a oposição e voltar à Presidência da Re-
pública encontram inspiração a milhares de quilômetros
de Brasília. Em 2020, Donald Trump foi o primeiro presi-
dente em trinta anos a disputar e perder uma reeleição nos
Estados Unidos. Surpreendido com a derrota, ele resistiu a
reconhecer a vitória de Joe Biden, apostou no caos ao con-
testar o resultado das eleições, incentivou a insubordina-

9 | 10
GILSON JUNIO/AGIF/AFP
VITRINE Romeu Zema: o governador
mineiro também é opção forte para 2026

ção civil, foi alvo de operações policiais, manteve-se em


evidência e preservou a influência no Partido Republica-
no. Desde que deixou a Casa Branca, organiza comícios,
dedica-se a criticar o adversário, e um de seus filhos já pro-
move até eventos para arrecadar fundos. Rompendo uma
tradição americana, Trump, que teve as contas nas redes
sociais bloqueadas por publicações controversas, não com-
pareceu à posse do sucessor e já anunciou que estuda se
candidatar novamente em 2024. As pesquisas mais recen-
tes mostram que, se as eleições fossem hoje, ele daria o tro-
co e venceria Biden. Por aqui, Lula declarou que não pre-
tende disputar um novo mandato. ƒ

10 | 10
BRASIL SEGURANÇA

ANTIDEMOCRÁTICOS Caminhoneiros e apoiadores de


Bolsonaro: mais de 400 trechos interrompidos no auge da crise

FREIO NA
BADERNA
Instituições são testadas de novo e reagem
à altura em meio a bloqueios de estradas e
manifestações pedindo a volta da ditadura
REYNALDO TUROLLO JR. E SÉRGIO QUINTELLA

ANDRE PENNER/AP/IMAGEPLUS

1|9
RESPOSTA Pacheco, Moraes e Rosa Weber: Legislativo e
Judiciário unidos para enfrentar qualquer tentativa de ruptura

EM UM PAÍS onde o futuro é duvidoso e até o passado é


incerto, um dos resultados possíveis do pleito trazia uma
certeza: uma derrota de Jair Bolsonaro nas eleições por
uma margem muito pequena daria espaço a questionamen-
tos e ameaças institucionais, dado o histórico do presidente
de semear esse tipo de dúvida em meio ao processo. E foi o
que acabou acontecendo. Em vez de tanques nas ruas, o
movimento antidemocrático materializou-se com cami-
nhoneiros e outros apoiadores mais radicais do presidente
ANTONIO AUGUSTO/SECOM/TSE

2|9
bloqueando rodovias país afora. Na segunda 31, havia 421
trechos de estradas fechados, espalhando um rastro de pro-
blemas. Houve cancelamento de voos, risco de desabasteci-
mento de alimentos, atraso na entrega de insumos para a
produção de vacinas e pessoas sofrendo com emergências
médicas dentro dos carros, em filas intermináveis.
O caos acabou sendo alimentado pelo silêncio de Bol-
sonaro, que esperou 45 horas para se manifestar após a
vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e, finalmente, desau-
torizar atos que cerceassem o direito de ir e vir, mas
apoiando movimentos pacíficos que, segundo ele, “são
fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se
deu o processo eleitoral”. No dia seguinte ao pronuncia-
mento, durante o feriado de Finados, ainda se viam mui-
tas rodovias com problemas, embora numa escala já bem
menor. Alguns bloqueios foram desbaratados por carava-
nas de torcidas organizadas de futebol em deslocamento
para acompanhar seus times em jogos do Campeonato
Brasileiro. Influenciada pelas palavras do presidente, par-
te dos apoiadores fez manifestações pedindo a volta da di-
tadura militar em São Paulo e no Rio de Janeiro. No inte-
rior de Santa Catarina, as pessoas reunidas num evento de
protesto fizeram a saudação nazista. Em novo pronuncia-
mento, agora nas redes sociais, Bolsonaro pediu expressa-
mente que as vias fossem desobstruídas.
Ainda que esse tipo de mobilização não tenha contado
com o apoio da maioria da população, o momento testou

3|9
REPRODUÇÃO
VIOLÊNCIA Zambelli: a deputada sacou
a arma após discutir com apoiador de Lula

novamente a capacidade das instituições de reagirem a


ameaças antidemocráticas. Antes de o atual mandatário
se pronunciar na tarde da terça-feira 1º, a Justiça já havia
entrado em campo com a firmeza necessária para come-
çar a desmobilizar o levante. O Supremo Tribunal Fede-
ral rapidamente enquadrou a Polícia Rodoviária Federal,
suspeita de fazer corpo mole diante dos protestos, por
meio de uma liminar do ministro Alexandre de Moraes
que atendeu a um pedido da Confederação Nacional do
Transporte pelo fim dos bloqueios. Instantes depois, a
presidente da Corte, Rosa Weber, levou a decisão para re-
ferendo dos ministros no plenário virtual. Na madrugada

4|9
de segunda para terça, já havia maioria de votos endos-
sando a liminar de Moraes — sinal inequívoco de que a
cúpula do Poder Judiciário estava unida para enfrentar
qualquer iniciativa golpista.
Pela manhã da terça veio a última e a mais eficaz car-
tada: Moraes autorizou as Polícias Militares a também
atuar na desobstrução das rodovias federais, quebrando o
monopólio da PRF, chefiada por um aliado de Bolsonaro.
Não tardou para que governadores como Rodrigo Garcia
(PSDB), em São Paulo, e Romeu Zema (Novo), em Minas,
dessem ordens às suas tropas para encerrar o tumulto.
Garcia disse que os bloqueios eram “inadmissíveis”, e Ze-
ma declarou que “a eleição já acabou” e que ia “cumprir a
lei”. Ambos apoiaram Bolsonaro no segundo turno, mas
foram claros ao se posicionar contra qualquer contestação
às urnas. Tarcísio de Freitas (Republicanos), bolsonarista
que venceu a disputa para o governo paulista, também foi
categórico: “Entendo que eles (caminhoneiros) devem es-
tar chateados, mas o resultado da urna é soberano”.
O levante nas estradas foi só mais um dos percalços
que as instituições precisaram enfrentar durante o longo
processo eleitoral de 2022 — e é um bom exemplo da re-
siliência da nossa democracia. Desde que Lula voltou a
ser elegível por decisão do STF, em abril de 2021, os ata-
ques de Bolsonaro ao Supremo e ao Tribunal Superior
Eleitoral só se intensificaram. Acusações infundadas de
que a contagem de votos era feita em uma “sala secreta”,

5|9
SERGIO LIMA/AFP
CELERIDADE Lira: o presidente da
Câmara correu para reconhecer o resultado

de que houve fraude na eleição de 2014, vencida por Dil-


ma Rousseff, e de que as urnas contêm um “código mali-
cioso” capaz de roubar votos para o PT dominaram o no-
ticiário nos últimos meses, inclusive com o apoio de seto-
res militares. Por duas vezes, o 7 de Setembro foi seques-
trado pelo bolsonarismo, que lotou as ruas com ameaças
aos membros dos tribunais. O próprio presidente chegou
a dizer que não mais cumpriria decisões da Justiça — ten-
do de recuar depois.
Na véspera do segundo turno, a campanha de Bolso-
naro, que estava atrás nas pesquisas, acusou rádios de
boicotarem suas propagandas. Aliados cogitaram pedir

6|9
adiamento da eleição. Comprovou-se que a alegação não
passava de mais uma bravata, pois quem deveria fiscali-
zar a inserção das propagandas era a própria campanha,
e não o TSE. O ministro das Comunicações, Fábio Faria,
que havia encabeçado a “denúncia”, voltou atrás e se dis-
se arrependido.
A lista de ataques às instituições é extensa, mas, de-
pois da totalização dos votos no domingo 30, o desenro-
lar dos fatos foi mostrando a Bolsonaro que ele não teria
apoios relevantes entre seus aliados políticos caso resol-
vesse continuar o embate. O presidente da Câmara, Ar-
thur Lira (PP-AL), beneficiado com o orçamento secreto
e responsável por segurar mais de uma centena de pedi-
dos de impeachment, apressou-se em reconhecer a vitó-
ria do petista. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), que já havia tido papel de destaque na defesa
do processo eleitoral e do Judiciário, apareceu ao lado de
Moraes, presidente do TSE, para anunciar o resultado.
Foi elogiado pelo ministro.
Ao lado dos radicais que fechavam estradas restaram
alguns poucos bolsonaristas mais ferrenhos, como a de-
putada reeleita Carla Zambelli (PL-SP), que um dia antes
do segundo turno havia sacado uma arma nas ruas dos
Jardins, em São Paulo, contra um apoiador de Lula com
quem discutira. O episódio pegou mal na campanha. Na
terça, após fazer postagens que convocavam apoiadores
a ficar nas rodovias, ela teve suas redes sociais suspensas

7|9
por ordem da Justiça. Outro que pregou “resistência ci-
vil” contra o resultado da eleição foi o deputado Coronel
Tadeu (PL-SP), que não conseguiu se reeleger. Grupos no
Telegram, inclusive, foram um dos principais canais de
comunicação entre os radicais, que organizavam por ali
o envio de água e comida aos responsáveis pelos blo-
queios. Na quarta-feira 2, alguns desses canais começa-
ram a ser tirados do ar.
O que não deve acabar tão cedo é o desdobramento ju-
dicial das ações e omissões perpetradas pela Polícia Ro-
doviária Federal nos últimos dias — um bom exemplo de
como a politização das forças de segurança é nociva para
o ambiente democrático. A demora para agir contra os
atos golpistas contrastou com a atuação proativa da cor-
poração no dia do segundo turno, quando foram feitas
centenas de blitze, sobretudo no Nordeste, sob a justifica-
tiva de cuidar da segurança dos veículos que transporta-
vam eleitores. Na ocasião, Moraes disse, com certa ironia,
que os policiais estavam verificando “pneus carecas”. O
episódio foi visto como uma tentativa de dificultar a vota-
ção, reflexo de um processo de bolsonarização da PRF
denunciado há algum tempo por entidades da categoria,
que tem hoje 13 000 agentes na ativa. O diretor-geral da
PRF, Silvinei Vasques, foi indicado ao cargo pelo senador
Flávio Bolsonaro, o filho Zero Um do presidente. Nas re-
des sociais, Vasques se mostra um bolsonarista-raiz. Ele
chegou a pedir voto em Bolsonaro na véspera do pleito,

8|9
mas apagou. Vasques foi ameaçado de prisão por Moraes,
caso não trabalhasse para desobstruir as vias. Foi a partir
daí que os agentes, na ponta, relataram ter recebido orien-
tações coordenadas para atuar.
A Justiça também deve responsabilizar os grupelhos
que fecharam as estradas e seus mentores. Membros do
MPF de todo o país pediram ao procurador-geral, Au-
gusto Aras, que investigue o envolvimento de políticos no
levante, incluindo Bolsonaro. Enquanto isso, promotores
nos estados já começaram a apurar as responsabilidades
dos que foram às ruas. O objetivo é encontrar os líderes e
os financiadores. “Essas pessoas são massa de manobra.
Queremos e vamos conseguir saber quem está organi-
zando”, diz o procurador-geral de Justiça de São Paulo,
Mário Sarrubbo. O MP paulista ainda abriu um inquérito
para apurar a omissão de policiais militares que fizeram
vistas grossas para as manifestações. Em algumas cida-
des, houve lamentáveis cenas de soldados batendo conti-
nência aos manifestantes que bloqueavam estradas. Fe-
lizmente, as instituições, que reagiram à altura diante de
toda sorte de ameaças nos últimos tempos, vão continuar
em estado de alerta, de forma a frear o avanço de uma
minoria barulhenta e baderneira que não aceita as regras
do jogo democrático. ƒ

9|9
MURILLO DE ARAGÃO

GUINADA NA
TOPOGRAFIA POLÍTICA
Lula chega ao poder em um
cenário muito mais complexo

FINDAS eleições presidenciais mais disputadas desde a re-


as

democratização, o Brasil apresenta uma topografia política


complexa. A complexidade do cenário político se evidencia
por aspectos essenciais que mencionamos a seguir.
Destaca-se o fato de o ex-presidente Lula (PT) ter venci-
do com o resultado mais apertado já visto em eleições pre-
sidenciais desde a redemocratização. E sua vitória decorreu
muito mais da rejeição ao atual presidente, Jair Bolsonaro
(PL), do que a uma adesão às suas ideias e programas, que,
no geral, foram escassamente debatidos.
O segundo aspecto é que o novo presidente foi eleito
com um apoio original minoritário do novo Congresso
Nacional, o que implicará amplas negociações com os vá-
rios partidos. Tal aspecto não é novo, mas, por causa do
ambiente de polarização política, é mais desafiador. Espe-
cialmente pelo fato de o perfil do Congresso ser, clara-
mente, de centro e de centro-direita. O terceiro aspecto
refere-se ao fato de o Congresso acumular poderes que

1|3
não existiam na era Lula. Tema que já abordei exaustiva-
mente aqui mesmo.
Como o presidente estará limitado em seus poderes, a
atuação dos presidentes da Câmara e do Senado terá papel
relevante na construção de maiorias no Parlamento. Ter
uma boa relação com ambos será crucial para a governabi-
lidade. Vivemos, na prática, um sistema semiparlamenta-
rista. As eleições dos novos comandantes do Congresso se-
rão o grande acontecimento político do novo ano.
No âmbito institucional, fica claro que o presidente da
República terá o desafio de estabelecer um bom relaciona-
mento entre os Poderes Executivo e Judiciário e, também,
com os governadores. O Judiciário deverá se manter forte,
atuante e ativista. Assim como partidos e entidades asso-
ciativas e sindicais continuarão a provocar a judicialização
de decisões políticas em um ambiente de profusão de deci-
sões monocráticas das Cortes Superiores.

“Ele foi eleito com apoio


original minoritário do
Congresso, o que implicará
amplas negociações”
2|3
Lula volta ao poder em um ambiente de maior multi-
polaridade de grupos organizados de pressão que dispu-
tam poder e recursos. Nesse sentido, Lula terá de cons-
truir pontes de entendimento com os militares, o agrone-
gócio e os evangélicos e, ao mesmo tempo, manter o apoio
de grupos sindicais e da sociedade civil que o apoiam.
Ainda no âmbito institucional, o mapa da governabilidade
impõe construir um entendimento entre a equipe econô-
mica do novo presidente e o presidente do Banco Central,
que terá mandato até fevereiro de 2024.
Por fim, a agenda inicial do novo presidente traz tanto
questões relacionadas à sua pauta quanto questões que já
estão postas, como a extensão do Auxílio Brasil, o debate
sobre o teto de gastos e, ainda, as pressões por reajustes
salariais. Enquanto não houver uma definição clara de
qual será a política econômica do governo e quem será o
seu comandante, as questões fiscais continuarão gerando
incertezas quanto aos rumos do novo governo.
A acidentada topografia política do Brasil em 2023
apresenta características inéditas para o presidente eleito
e que não existiam em seus mandatos anteriores. Tal ce-
nário exigirá, certamente, perícia e busca por consensos
em um ambiente de polarização que não desaparecerá ra-
pidamente. Bem como ativa e qualificada participação da
sociedade civil. ƒ

3|3
BRASIL PARTIDOS

UMA NOVA
ESPERANÇA
Depois da frustração no primeiro turno, novos
governadores eleitos atenuam o desastre
e apontam uma luz no fim do túnel para o futuro
do PSDB DIOGO MAGRI E VICTORIA BECHARA

TRIUNFO Eduardo Leite: vitorioso no Rio Grande do Sul, o


jovem político deve ganhar cada vez mais projeção nacional

MAURICIO TONETTO

1|6
SEM UM CANDIDATO encabeçando uma chapa presi-
dencial pela primeira vez desde a redemocratização, com o
ninho cindido em intrigas internas entre caciques e um de-
sempenho pífio na recente eleição ao Congresso, o PSDB pa-
recia caminhar de forma acelerada para o abismo. O resul-
tado final do pleito trouxe algum alívio. Dos quatro estados
onde foi ao segundo turno, a sigla venceu em três, todos de
virada, consolidando os projetos de Eduardo Leite (RS) e
Eduardo Riedel (MS), e levando a oposição ao governo com
a vitória de Raquel Lyra em Pernambuco (leia entrevista na
pág. 7). Apesar desses triunfos de última hora, eles não fo-
ram suficientes para apagar o saldo negativo da campanha.
Em termos dos Executivos estaduais, o partido ganhou o di-

CREPÚSCULO TUCANO
O partido já chegou a governar
quase um terço dos estados 1990

GOVERNADORES ELEITOS 1
(CE)

POPULAÇÃO GOVERNADA 6,3


(nos estados, em milhões)

2|6
reito de comandar menos da metade da população que go-
vernava quatro anos atrás (veja o quadro abaixo). Fator que
pesou decisivamente para isso foi a derrota de Rodrigo Gar-
cia em São Paulo, que não conseguiu chegar sequer ao se-
gundo turno. O estado mais poderoso da federação era co-
mandado pela agremiação havia quase três décadas e as fe-
ridas abertas pelo fracasso devem mudar o eixo do poder
das decisões nacionais do PSDB, sempre muito influenciado
pelos caciques paulistas que fundaram o partido.
Dentro desse processo, o nome de Eduardo Leite desponta
como a maior liderança nacional do partido. Mesmo com uma
trajetória errática, que incluiu a derrota nas prévias presiden-
ciais para João Doria e a renúncia ao Palácio Piratini ainda as-
pirando a voos maiores, Leite se tornou o primeiro governador
a vencer duas vezes seguidas no Rio Grande do Sul. Ele ocupa-
rá um espaço que ficou vazio com as derrotas de caciques co-

1994 1998

6 7
(SP, MG, RJ, CE, (SP, CE, PA, GO, MT,
PA e SE) ES e SE)

77,3 60,9

3|6
FACEBOOK @EDUARDORIEDELOFICIAL

CONTINUIDADE Riedel: o candidato


garantiu reeleição em Mato Grosso do Sul

mo José Serra, Tasso Jereissati, Arthur Virgílio Neto e Marconi


Perillo, além da saída de cena de Doria. Empoderado pela vi-
tória, o gaúcho passou a ser a primeira voz a defender a mu-
dança no eixo do poder. “São Paulo é força e fraqueza do PS-
DB, porque ao mesmo tempo em que é relevante, também con-
some muita energia. Nas prévias presidenciais, o projeto pau-

2002 2006

7 6
(SP, MG, CE, PA, GO, (SP, MG, RS, PB,
PB e RO) AL e RR)

78,9 78,5

4|6
lista falou mais alto que o nacional dentro do partido. Então a
mudança traz efeitos positivos para compor um novo momen-
to mais abrangente”, afirmou a VEJA Eduardo Leite.
A tentativa de renascimento do PSDB passa ainda por uma
correção de rota e a renovação da Executiva Nacional para re-
pensar a posição do partido em meio a um novo cenário polí-
tico. O mandato do atual presidente da sigla, Bruno Araújo,
termina em junho de 2023. Nos bastidores tucanos, fala-se
em uma disputa pelo comando nacional entre Eduardo Leite
e o deputado federal Aécio Neves, que ainda exerce forte in-
fluência sobre a bancada tucana no Congresso. Independen-
temente de quem assumir o leme, terá de levar o barco pelas
águas incertas do centro democrático, cada vez mais rasas em
meio ao ambiente polarizado. Os tucanos, que já andam de
mãos dadas com o Cidadania, negociam a integração do
MDB à federação. Em nível regional, também há conversas

2010 2014

8 5
(SP, MG, PR, PA, GO, (SP, PR, PA,
AL, RR e TO) GO e MS)

90,3 73

5|6
com outras legendas, como o Podemos, o PDT e o PSB. “Acho
que há uma tendência de unificação de todo o centro demo-
crático”, afirma o deputado Paulo Abi Ackel (PSDB-MG).
Para além de alianças, o partido precisa encarar a crise
ideológica que se arrasta há tempos. “O PSDB S.A. faliu”,
decretou Aécio Neves, em clara alusão ao projeto paulista de
Doria, cuja marca sempre foi fazer uma gestão pública com
espírito empresarial (com resultados positivos, diga-se). Aé-
cio, aliás, contribuiu para o agravamento da cizânia interna,
ao liderar um levante contra a vitória de Doria nas prévias.
Uma das possibilidades aventadas no processo de recons-
trução seria uma volta às origens, tentando resgatar o espíri-
to da social-democracia da época da fundação do partido.
Mas nem os mais otimistas dos tucanos acreditam que será
fácil a tarefa de levantar voo de novo em meio a tantas difi-
culdades do presente. ƒ

2018 2022

3 3
(SP, RS e MS) (RS, PE e MS)

59,2 24
Fontes: TSE e IBGE

6|6
ECONOMIA GESTÃO

EM COMPASSO
DE ESPERA
O governo Lula terá de enfrentar adversidades
fiscais e retomar reformas como a tributária para
conquistar a confiança de investidores e
empresários e fazer o país voltar a crescer
LUANA ZANOBIA, FELIPE MENDES, LUISA PURCHIO
E LARISSA QUINTINO

DUROU QUATRO ANOS Sede do atual Ministério da Economia:


o desmembramento em outras pastas será implementado

VALTER CAMPANATO/AG. BRASIL

1|9
T
ema crucial da agressiva disputa eleitoral protago-
nizada por Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsona-
ro, a situação econômica do país será decisiva para
o sucesso do novo governo do PT que se inicia em
janeiro. Já no primeiro dia após a vitória de Lula, na
segunda 31, o mercado de capitais deu sinais de
quanto está afoito pelas diretrizes econômicas e pelos no-
mes das figuras-chave da área econômica no novo governo.
O pregão abriu nervoso e o dólar disparou e superou os 5,40
reais. No decorrer do dia, o frenesi passou e a moeda ameri-
cana fechou o dia em forte baixa de 2,6%, para 5,16 reais,
com o Ibovespa subindo 1,31%. Apenas a Petrobras mante-
ve baixa de 8,47%, indicando o risco de possíveis interven-
ções petistas na sua gestão. No dia seguinte, o dólar recuou
mais 1% e a bolsa subiu mais 0,77%. Ainda assim, os investi-
dores seguem ansiosos os indicadores — e devem continuar
dessa maneira até que Lula revele o caminho que tomará.
Por enquanto, apesar de algum componente de instabili-
dade, o cenário é otimista, como mostrou a performance do
Ibovespa. As duas gestões anteriores de Lula e a maneira
equilibrada como tratou as questões econômicas na campa-
nha — exceção feita a arroubos antiprivatização e posiciona-
mentos intervencionistas — ajudam a conferir certa estabili-
dade à transição. “O Lula tem uma imagem boa no exterior,
que deve contribuir para atrair investimento, a não ser que
ele faça algo muito ruim, e eu não acredito que ele vai fazer”,
diz o economista Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do

2|9
O QUE ESTÁ POR VIR
Projeções para a economia
brasileira em 2023

CRESCIMENTO
DO PIB
6

4
2,5%
2
0,6% 1%
0

BOLETIM FOCUS, FUNDO GOVERNO


DO BANCO MONETÁRIO FEDERAL
CENTRAL INTERNACIONAL

INFLAÇÃO
8

6 4,94% 4,7% 4,86%


4

BOLETIM FMI GOVERNO


FOCUS FEDERAL

3|9
TAXA DE DESEMPREGO

10
9,5%
8

FMI

DÉFICIT PRIMÁRIO DO
GOVERNO CENTRAL

103 65,9
BILHÕES BILHÕES
DE REAIS DE REAIS

INSTITUIÇÃO FISCAL GOVERNO


INDEPENDENTE, FEDERAL
DO SENADO

Fontes: Governo federal, BC, FMI e IFI

4|9
Banco Central e presidente da Mauá Capital. Voz influente
no cenário global, o economista Robin Brooks, do Instituto
de Finanças Internacionais, escreveu em uma rede social, na
quarta 2, que “tudo que o Brasil precisa é uma transição de
poder pacífica e bem ordenada”.
É unânime entre os economistas mais respeitados do
país que o futuro econômico brasileiro está, num primeiro
momento, interligado à questão fiscal. Lula e sua equipe
econômica terão de provar que serão responsáveis com as
contas públicas para que o otimismo inicial se reverta em
confiabilidade. Depois de aumentar os gastos na pande-
mia, o governo Bolsonaro conseguirá um superávit fiscal
este ano. Segundo o Banco Central, a dívida pública bai-
xou para 77% em relação ao PIB, em setembro. Mas a ex-
pectativa é voltar para o patamar acima dos 80% no próxi-
mo ano, ainda mais com uma bomba fiscal estimada em
280,3 bilhões de reais, sendo 157,7 bilhões de reais prove-
nientes de despesas extras e 122,6 bilhões de reais em per-
das de receitas previstas. No pacote entram desde promes-
sas como manter o Auxílio Brasil em 600 reais e isentar
do imposto de renda todos que recebem menos de 5 000
reais, até a manutenção de medidas como desoneração so-
bre combustíveis feita por Bolsonaro.
Resolver a questão fiscal é apenas o primeiro passo para
Lula começar a governar com estabilidade. Para crescer de
fato, o Brasil precisará de mais. Basicamente, Lula terá de
retomar o que Bolsonaro deixou a meio caminho: as refor-

5|9
RICARDO BOTELHO/MINFRA

UMA DAS PRIORIDADES PETISTAS Viaduto em


Teresina: busca de soluções para retomada de obras

mas estruturantes. “Sem no mínimo uma reforma tributária


o país não tem como avançar. É preciso reduzir a carga tri-
butária em cima de quem produz, trabalha e consome”, de-
fende o investidor Ricardo Lacerda, sócio-fundador da ges-
tora BR Partners. Ex-presidente e membro do conselho de
administração do Itaú Unibanco, Candido Bracher reforça o
raciocínio: “Na área econômica, os grandes desafios do go-
verno são a reforma tributária, a administrativa e medidas
para aumentar a taxa de investimento”.

6|9
Assim como aconteceu na gestão Bolsonaro, Lula e seus
ministros devem se manter distantes da tão necessária redu-
ção do peso do Estado e da administração pública pelo sim-
ples motivo que tal medida contrariaria os interesses políti-
cos da base de apoio do futuro governo. Em termos tributá-
rios, há ideias no PT para compensação dos gastos a partir de
projetos que já trafegam no Congresso, como a tributação de
lucros e dividendos e a criação de uma nova faixa de paga-
mento mais alto do imposto de renda. Também há interesse
na unificação de tributos, para simplificar o sistema fiscal. O
risco, entretanto, é de a solução proposta pelos petistas aca-
bar decepcionando. “Como o governo indica que vai manter
o equilíbrio fiscal, isso pode implicar aumento muito relevan-
te da carga tributária”, alerta Fabio Kanczuk, ex-diretor do
BC e chefe de macroeconomia da ASA Investments.
Em suas promessas de campanha, Lula elenca a retoma-
da e ampliação dos investimentos em infraestrutura. A cam-
panha mapeou 18 000 obras inacabadas e já falou até de um
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2. “Esse no-
me, PAC, é bom para o grupo de pessoas do PT, mas é péssi-
mo para quem não acredita em nova matriz econômica, que
deu tão errado no governo de Dilma Rousseff”, afirma Ele-
na Landau, que liderou as privatizações durante o governo
de Fernando Henrique Cardoso e que coordenava o progra-
ma econômico da candidatura presidencial de Simone Te-
bet. “O grande desafio é que a equipe do PT entenda que
não dá para repetir os mesmos erros do passado. Não dá pa-

7|9
WILIAN OLIVEIRA/FUTURA PRESS

ORDENAMENTO Produção de alimentos em São Paulo:


esforço para a reorganização dos impostos

ra usar o BNDES como indutor de crescimento, não dá para


intervir na Petrobras. A gente precisa de um choque de pro-
dutividade, e ele não virá com políticas atrasadas”, diz ela.
Antigos rivais do PT, Landau, assim como outros econo-
mistas ligados ao Plano Real, Arminio Fraga, Edmar Bacha
e Persio Arida, apoiou Lula no segundo turno. Em retribui-
ção, o presidente eleito afirmou, no discurso da vitória, que
pretende fazer um governo de união e que vai incorporar

8|9
ideias dos novos parceiros. Como vai acomodar ideias tão
diferentes de toda a sua rede de apoios, ainda mais frente a
um Congresso hostil com muitos bolsonaristas, é uma in-
cógnita. Um primeiro evento para debater tais questões, o
Brazil Conference, organizado pelo grupo Lide, vai reunir,
em Nova York, nos dias 14 e 15 de novembro, apoiadores de
Lula, como Henrique Meirelles e Persio Arida, o presidente
do BC, Roberto Campos Neto, o empresário Rubens Omet-
to e ministros do Supremo Tribunal Federal. Espera-se que,
até lá, o presidente eleito já tenha definido o nome de seu
chefe da economia. Tudo o que o país não precisa nesta
transição tão tumultuada politicamente são especulações e
instabilidades econômicas. ƒ

9|9
MAÍLSON DA NÓBREGA

NA HORA
DA VERDADE
O desafio maior será reduzir
a rigidez orçamentária

NO PRÓXIMO GOVERNO, é alto o risco de piora da crise


fiscal, o que vai requerer do novo presidente capacidade de
mobilizar a sociedade e o Congresso em favor de duras re-
formas. Vale recordar Barack Obama, para quem “a capaci-
dade de liderar um país não tem a ver com a legislação, mas
com moldar atitudes, moldar a cultura, conscientizar”.
As sementes da crise foram plantadas na Constituição
de 1988 e nas suas desastrosas consequências no Orça-
mento da União. Nenhuma outra conspirou tanto contra
o equilíbrio macroeconômico e o potencial de crescimen-
to da economia. Era correta a ideia de atacar a desigual-
dade e a pobreza, mas isso foi feito via aumento de despe-
sas, e não por medidas pró-crescimento. Muito ao con-
trário. Mesmo assim, ela continua endeusada pela am-
pliação de direitos civis, políticos e sociais. Pouco se fala
na sua irresponsabilidade fiscal.
Recentemente, o Jornal Nacional, da TV Globo, cele-
brou, em várias edições, as virtudes da Constituição. Nada

1|3
foi dito sobre como seus desatinos fiscais contribuíram para
a atual armadilha do baixo crescimento. O gasto da Previ-
dência saltou de 4% para 14% do PIB, sob a influência tam-
bém do aumento real de 170% do salário mínimo, que rea-
justa três de cada quatro benefícios previdenciários.
Entre 1990 e 2015, em termos reais, a despesa federal
cresceu em média 6% ao ano. Sem rever decisões mal pen-
sadas e sem enfrentar poderosas corporações, optou-se por
acomodar essa expansão via aumento da carga tributária e,
depois, por maior endividamento público. Antes do Plano
Real, a inflação ajudou. No período, a economia cresceu me-
nos da metade (2,5%). Trajetória insustentável.
Vem daí o teto de gastos. Esperava-se que o limite levaria
à revisão de prioridades e, assim, à redução da relação dívi-
da pública/PIB, evitando-se a insolvência do Tesouro. Tal
não aconteceu. Em 2023, os itens obrigatórios atingirão 95%

“Em 2023 os itens


obrigatórios atingirão
95% dos gastos
primários. Não há
paralelo no mundo”
2|3
dos gastos primários. Não há paralelo no mundo. Pior, o
atual governo furou o teto e ampliou despesas com objetivos
eleitorais. Herança maldita. No próximo ano, mesmo que
subestimando os gastos, o Orçamento indica margem insu-
ficiente de apenas 99 bilhões de reais para despesas contro-
láveis. O teto vai estourar de vez.
A saída óbvia é atacar o problema mediante redução da
rigidez orçamentária, restabelecendo a capacidade de ges-
tão de políticas públicas essenciais. Do contrário, como dis-
se Arminio Fraga, “vamos para o brejo”. Isso implica dimi-
nuir ou estagnar por muito tempo as despesas obrigatórias,
que são compostas por gastos de pessoal, Previdência, saú-
de, educação e programas sociais. Muitos concordam com o
diagnóstico, mas ninguém fala como concretizá-lo. A socie-
dade não comprou a ideia, o Congresso pensa apenas em or-
çamento secreto. Tal programa requererá liderança política
transformadora. Tenho dúvida de que ela exista neste mo-
mento. Talvez precisemos da crise que se avizinha para
construir o consenso em torno de ousadas mudanças. ƒ

3|3
INTERNACIONAL AMÉRICA LATINA

MUDANÇA DE RUMO
Com a eleição de Lula, a esquerda toma conta
do mapa do México ao Chile, invertendo a
coloração política da região. Mas os problemas
são tão vastos quanto a onda vermelha

CAIO SAAD

MUY AMIGOS Fernández cumprimenta Lula: corrida para


firmar uma nova — e crucial — parceria

NELSON ALMEIDA/AFP

1|7
A
vitória de Lula acabou de pintar de vermelho o
mapa da América Latina, hoje uma região toma-
da quase que inteiramente por governos de es-
querda. A onda que começou em 2018, no Méxi-
co, com a eleição de Andrés Manuel López Obra-
dor, expoente da velha guarda esquerdista, foi
descendo, inexorável, pelos países das Américas Central e
do Sul, projetando o jovem tatuado Gabriel Boric, no Chile,
e alavancando Gustavo Petro, o primeiro presidente desse
espectro ideológico da Colômbia. Agora se espraia sobre o
Brasil, a maior economia da região, e dá novo fôlego a um
conjunto de líderes interessados em articular uma frente
unida para se livrar da areia movediça de baques econômi-
cos e cobrança popular que ameaça sugá-los. Não por acaso,
mal confirmada a vantagem de Lula, o argentino Alberto
Fernández, engolfado em uma crise abissal, desembarcou
em São Paulo para dar parabéns ao novo colega.
Em geral mais pragmáticas e modernas do que a esquer-
da dogmática dos velhos tempos, as lideranças vermelhas
alçadas hoje ao poder na América Latina estão cientes de
que os votos que receberam são menos ideológicos e muito
mais antissistema. Todas as eleições, de 2019 para cá, se de-
ram em um contexto de múltiplas crises — desaceleração da
economia, seguida pelo flagelo da pandemia de Covid-19,
que acelerou o risco de recessão, e neste ano pela guerra na
Ucrânia, com consequente aumento do custo de vida, pro-
dução agrícola sob ameaça e desvio das prioridades dos paí-

2|7
DA ÁGUA PARA O VINHO
A América Latina* moveu-se da direita
(em azul) para a esquerda (em vermelho)
nos últimos quatro anos

2018
C U BA
HAI T I
M É XI C O
R E P. D O M I NI CANA

NI CAR ÁG UA
GUATE M AL A
V E NE ZU E L A
E L SA LVADO R
H O NDU R AS
C O STA RI CA
PANAM Á
COLÔMBIA

E Q UADO R

B R A S I L
P E RU

BOLÍVIA

PAR AG UAI

C HI L E
ARG E NT I NA U RU G UAI
*As regiões sem cor
(Belize, Guiana, Suriname
e Guiana Francesa) não
fazem parte da AL

3|7
2022
C U BA
HAI T I
M É XI C O
R E P. D O M I NI CANA

NI CAR ÁG UA
GUAT E M AL A
V E NE ZU E L A
E L SA LVADO R
H O NDU R AS
C O STA RI CA
PANAM Á
COLÔMBIA

E Q UADO R

B R A S I L
P E RU

BOLÍVIA

PAR AG UAI

C HI L E
ARG E NT I NA U RU G UAI

4|7
ses ricos para outras regiões do planeta. “As crises aprofun-
daram as desigualdades e a pobreza, aumentando a descon-
fiança do cidadão e aguçando protestos nas ruas e nas ur-
nas”, explica Daniel Zovatto, diretor regional da Idea Inter-
nacional para América Latina e Caribe.
O movimento pendular do eleitorado, que alterna direita
e esquerda no poder, também ganhou impulso com a polari-
zação política, que estimula o voto de protesto contra a or-
dem estabelecida. Uma vez no poder, porém, vários expoen-
tes dessa nova leva de dirigentes latino-americanos estão
provando o gosto amargo do voto “do contra”. Boric, no
Chile, viu sua popularidade desabar diante das falhas em li-
dar com questões sociais e tenta apagar o incêndio provoca-
do pela rejeição, em plebiscito, de uma nova Constituição na
qual apostava todas as suas fichas. No Peru, Pedro Castillo,
político novato saído dos redutos mais pobres e desassisti-
dos do país, enfrenta cinco processos criminais e já passou
por dois pedidos de impeachment em um ano de gestão er-
rática e ineficiente. Na Venezuela e na Nicarágua, bem como
em Cuba, o antigo farol da esquerda latino-americana ainda
imobilizado no passado, governos ditatoriais e repressivos
viraram motivo de constrangimento para líderes que tentam
não escorregar da corda bamba entre condenar os métodos
sem deixar de apoiar os que os praticam.
É nessa América Latina ideologicamente homogênea,
mas fracionada e enfraquecida no contexto da geopolítica
mundial, que Lula surge como a esperança de, no cenário

5|7
JAE C. HONG/AP/IMAGEPLUS

PATINANDO O chileno Boric:


a novidade se desgastou rapidamente

ideal, ressuscitar o agonizante Mercosul, contribuir — inclu-


sive financeiramente — para tirar vizinhos do buraco e re-
verter a irrelevância do bloco. Trata-se de uma tarefa e tan-
to, ainda mais porque o novo presidente terá sua própria
penca de problemas a resolver, e a solução deles requer o
realinhamento de relações com os donos da bola no jogo dos
interesses internacionais.
Felizmente, o cenário tende a melhorar nesse campo.
Maior parceira comercial do Brasil, respondendo por 30%
das exportações e 20% das importações, a China foi siste-
maticamente hostilizada no governo de Jair Bolsonaro, com
ataques à vacina anti-Covid desenvolvida pelos chineses e

6|7
troca de acusações nas redes sociais entre o filho-deputado
Eduardo Bolsonaro e o então embaixador Yang Wanming.
Mesmo assim, o comércio bilateral atingiu o recorde de 164
bilhões de dólares em 2021 e cabe a Lula agora aplainar os
buracos dessa via de desenvolvimento essencial para o país.
Da mesma forma, o presidente eleito precisa aparar as
arestas das relações com os Estados Unidos. Bolsonaro, afi-
nadíssimo com o trumpismo, foi o último chefe de Estado do
G20, o grupo das maiores economias, a parabenizar o de-
mocrata Joe Biden quando ele chegou à Casa Branca, o que
contribuiu para o Brasil ser colocado no pé da lista de priori-
dades americanas. Somando-se essas questões à monumen-
tal demanda interna de conciliação com quase metade dos
eleitores que votou no bolsonarismo, é provável que carre-
gar a América Latina para uma melhor posição no xadrez
mundial tenha de entrar na fila dos problemas que se espera
Lula seja capaz de resolver no seu terceiro mandato. ƒ

7|7
GENTE
VALMIR MORATELLI
INSTAGRAM @GISELE
SOLTEIRA NOVAMENTE
Confirmado: GISELE BÜNDCHEN e Tom Brady
estão divorciados, após treze anos de casamento.
Cada um postou uma mensagem nas redes so-
ciais cobrindo o ex-parceiro de elogios e pedindo
“respeito pela privacidade neste momento delica-
do”. De acordo com o documento legal de divórcio,
o casal completou dois cursos de quatro horas
obrigatórios na Flórida quando há filhos pequenos
envolvidos — de educação parental e estabilização
familiar — e assinou um acordo sigiloso de partilha.
Precavida, Gisele está morando há meses em uma
modesta casinha — três quartos, dois banheiros —
que comprou, em nome de uma empresa, nas vizi-
nhanças de Miami Beach. Ela agora estuda em-
barcar em uma série sobre viagens, enquanto ele
segue jogando — e perdendo — no time de futebol
americano Tampa Bay Buccaneers.
MAURICIO FIDALGO/TV GLOBO

OPÇÃO PELA LAMA


Durante as gravações de Independências, série da TV Cultura em que
vive dom Pedro I, DANIEL DE OLIVEIRA, 45 anos, fez um pedido
inusitado para o diretor Luiz Fernando Carvalho: que o filmasse, em
paralelo, interpretando o Homem Lama, personagem que inventou e
que considera o mais importante de sua carreira. “Disse para ele: é só
rodar a câmera que eu faço uns negócios aqui”, lembra Daniel. Cober-
to de lama dos pés à cabeça e sem texto decorado, o ator já fez suas
performances na Amazônia, na Serra do Cipó e no Jalapão, e pretende
lançar seu “processo de autopsicanálise” nas redes sociais. “Me visto
de lama local, com uma saia, uns cordéis amarrados, e começo a per-
formance. É muito visual, de intensidade interna”, relata.

3|5
DO PALÁCIO
PARA A SELVA
Um dos reality shows de maior au-
diência no Reino Unido — I’m a Ce-
lebrity — Get Me Out of Here! — terá
entre os participantes da nova
temporada um integrante da famí-
lia real. Isso mesmo: MIKE TIN-
DALL, 44 anos, ex-jogador de rú-
gbi que se casou com Zara, filha da
princesa Anne e neta da rainha Eli-
zabeth, vai se embrenhar nos ca-
fundós da Austrália para passar
calor, dormir em rede, comer inse-
tos e fazer jus ao programa em que
celebridades não falam, mas pen-
sam com frequência: “Me tirem
daqui”. “Sei que vou sentir sauda-
de da minha cama”, diz Tindall, pai
de três filhos. Também participa da
empreitada o cantor Boy George —
que disse estar feliz por passar um
tempo sem maquiagem.

ITV

4|5
INSTAGRAM @HEIDIKLUM

INSTAGRAM @HEIDIKLUM

PURA MAGIA
Há anos que a modelo HEIDI KLUM, 49 anos, ostenta o meritório tí-
tulo de rainha do Halloween, pelo empenho em apresentar uma fanta-
sia mais caprichada do que a outra como anfitriã de uma ultrabadala-
da festa de Dia das Bruxas em Nova York. Neste ano, após um hiato
forçado de dois 31 de outubro sem comemoração por causa da pan-
demia, Heidi se superou: apareceu vestida de minhoca, com direito a
performances se arrastando pelo chão. “Queria uma coisa mais má-
gica do que nunca”, explicou, admitindo que sentiu “um pouco de
claustrofobia” e segurou a vontade de ir ao banheiro. Quando cansou
de rastejar, Heidi dispensou a fantasia e surgiu esplendorosa, em
transparências e lantejoulas. Missão cumprida. ƒ

5|5
GERAL IDEIAS

À PROCURA
DA FELICIDADE
Manter-se alegre com a vida e sustentar o bem-estar
emocional nunca foram tarefas simples na história da
humanidade — e assim é nos tempos de hoje, de
pandemia, guerra e pouco dinheiro
PAULA FELIX

REALIDADE Experiências prazerosas: a tônica é ficar menos


no mundo virtual e investir em tempo livre para a diversão

TIM ROBBERTS/STONE/GETTY IMAGES

1 | 12
D
esde sempre, a humanidade tenta alcançar um
estado até hoje difícil de definir. A felicidade, do
latim fertilis, de fértil, ou fructifer, de frutífero,
tem sido ao mesmo tempo o céu e o inferno do
ser humano. Representa o paraíso de uma sen-
sação de plenitude que, de tão perseguida e pou-
cas vezes alcançada, transformou-se em fonte perene de
frustração. Durante séculos, pensadores se debruçaram

DESEJO ANCESTRAL
Conceito evoluiu ao longo dos séculos e
refletiu busca pelo sentimento

3500 a.C.

.Com o avanço da arte,


da escrita e de governos formais,
apareceram os primeiros relatos
sobre felicidade
.O destaque era o antigo Egito,
onde a população desfrutaria maior
bem-estar graças à fartura de
alimentos garantida pelo Rio Nilo

2 | 12
sobre essa questão central. Em A História da Felicidade,
livro de sucesso internacional que acaba de ganhar edi-
ção em português pela editora Contexto, o historiador
Peter Stearns, professor da Universidade George Mason,
nos Estados Unidos, desvela o passado para que possa-
mos vislumbrar o futuro e construir meios de desfrutar
desse sentimento.
A primeira lição da obra, resposta à mais antiga das
indagações, é que a fórmula da felicidade não existe, em-
bora muita gente jure que a tenha encontrado e ganhe al-
guns milhares de reais em cima disso. É impossível ter
um sistema padronizado de como ser feliz porque, como

Séculos VI e V a.C.

.
Começaram as
discussões filosóficas
sobre o que seria e como
alcançar a felicidade
. Sócrates e Platão
afirmaram que o prazer
material não fazia o ser
humano feliz

3 | 12
mostra a história, as concepções mudam de acordo com
os humores de cada tempo e as questões individuais.
“Existem muitos conceitos de felicidade. As definições
religiosas, por exemplo, diferem das seculares”, disse a
VEJA, com exclusividade, Peter Stearns. “Há sempre
uma tensão entre ideias que enfatizam os prazeres sen-
suais, pessoais, e aquelas que ressaltam concepções mais
amplas de realização.”
É difícil determinar quando surgiram as percepções de
um estado de espírito mais ou menos feliz. O mais longe a
que antropólogos e historiadores chegaram foi à fase na
qual os humanos deixaram de ser caçadores e coletores

Séculos XVII e XVIII

. Surgiu um novo conceito na


Europa Ocidental e na América do Norte:
a revolução da felicidade
. Intelectuais defendiam a tese de que ser
feliz estava ao alcance de todos e as pessoas
deviam desfrutar o momento
. A ideia de que a dor pode levar à alegria, como
se pensava na Idade Média, foi deixada de lado

4 | 12
para se reunir em comunidades agrícolas, há cerca de
12 000 anos. Teria ocorrido ali o primeiro registro do que
atualmente seria compreendido por “queda” de felicidade.
O homem passou a trabalhar mais, a comer pior e a se en-
volver em conflitos com maior frequência, criando a tría-
de que até hoje nos rouba a alegria.
Uma elaboração conceitual mais sofisticada só come-
çou a ser feita com a emergência de civilizações intelec-
tualmente notáveis, como a grega e a egípcia. Em meados
de 3500 a.C., um Egito farto em alimentos graças às áreas
regadas pelas águas do Rio Nilo desenvolveu uma cultura
que exaltava o bem-estar coletivo por meio do culto e ri-

Século XIX

. Teóricos argumentavam que o sentimento


deveria ser o principal objetivo humano
.Cresceu o interesse pela alegria, inclusive
com a publicação de manuais para a criação
de filhos sob o conceito de “obediência
alegre” nos Estados Unidos
. Houve o apogeu de cartas
românticas evocando sentimentos felizes

5 | 12
tuais de agradecimento aos deuses e do investimento em
diversões populares. Na Grécia, os filósofos Sócrates (470
a.C.-399 a.C.) e seu discípulo, Platão (428 a.C.-347 a.C.),
foram pioneiros ao introduzir a ideia de que a plenitude só
seria alcançada pela sabedoria, e não por prazeres, espe-
cialmente os materiais.
Essa visão até hoje rivaliza com a que preconiza o al-
cance da alegria em bens e confortos proporcionados pelo
dinheiro. Durante dois séculos, entre os anos 1700 e 1900,
a tônica prevaleceu, caracterizando um período cunhado
pelo historiador Stearns de “Revolução da Felicidade”. Ele
caminhou em conjunto com a Revolução Industrial, quan-

Século XX

. Momento brutal com a eclosão


de duas guerras mundiais
. O mundo ainda foi impactado
pela crise de 1929
. Ocorreu a ascensão da “literatura
de aconselhamento”, os livros de autoajuda
que pretensamente teriam o caminho das
pedras para desfrutar a sensação

6 | 12
do a expansão da produção de bens de consumo e a pers-
pectiva de enriquecimento da burguesia trouxeram a má-
xima de aproveitar o aqui e o agora. Contudo, o hedonis-
mo estava restrito à parcela muito pequena das popula-
ções ocidentais. A grande massa era composta por traba-
lhadores mal pagos e famintos, que obviamente não expe-
rimentavam semelhante ventura.
Marcada por dois conflitos mundiais — a I e a II Guer-
ras —, pela tragédia da pandemia de gripe espanhola
(1918-1920) e pela crise econômica iniciada em 1929,
cujos efeitos foram sentidos em todo o mundo, a primeira
metade do século XX transformou o que se entenderia por

Século XXI

. Cristaliza-se a ditadura da felicidade, com pressão


para que todos sejam felizes o tempo todo
. A ascensão das redes sociais
consolida esse pensamento
. A pandemia de Covid-19 leva a uma nova
reflexão sobre a importância da espiritualidade,
da religião e da segurança financeira
Fonte: livro A História da Felicidade

7 | 12
E+/GETTY IMAGES

PARAÍSO AZUL O alívio das águas: atividades em rios,


lagos e mares elevam a sensação de calmaria

felicidade dali em diante. Os sentimentos predominantes


eram a tristeza e a desesperança, mas até em reação a eles
ganhou força a resiliência, a fenomenal capacidade de
resposta às adversidades manifestada pelo ser humano.
“As pessoas geralmente se mostram surpreendentemente
capazes de encontrar alguma alegria em situações críti-
cas”, diz Stearns. “Em alguns casos, os desastres deixam

8 | 12
ISTOCK/GETTY IMAGES

SEGURANÇA FINANCEIRA Controle de gastos: ter


dinheiro voltou a ganhar mais importância durante a pandemia

muitas delas com o desejo de esquecer o que viveram o


mais rápido possível.”
Foi esse anseio que, nas décadas seguintes, resultou
no estabelecimento da cultura de uma felicidade artifi-
cial, baseada no consumo e obsessão por se mostrar fe-
liz. Datam dos anos 1950, inclusive, as primeiras carti-
lhas para um casamento realizado, sobre como criar fi-

9 | 12
NÃO HÁ RECEITAS,
MAS CAMINHOS
Estratégias para aumentar o bem-estar
segundo pesquisas recentes

. TENHA UM PROPÓSITO
Buscar sentidos para a vida ajuda a enfrentar
adversidades ao dar prioridades aos objetivos

. ESTIMULE O SENTIMENTO
D E G R AT I D Ã O
Ele aumenta a autoestima e a satisfação com o
que se tem na vida, sem cair na armadilha de
querer sempre e sempre mais

. CUIDE-SE
Além das conhecidas recomendações
da prática de exercícios físicos, outra
orientação ganha espaço: cobre-se menos
e pratique a autocompaixão

. NÃO SE ISOLE
Mantenha relações sociais
e afetivas estáveis e saudáveis

10 | 12
lhos alegres e toda uma sorte de movimentos cujos obje-
tivos eram perpetuar a imagem da vida perfeita. Essa di-
tadura da felicidade ganhou dimensões patológicas com
a ascensão das redes sociais, onde todos aparecem ale-
gres — uma falácia, claro. É movimento que priva a hu-
manidade de deparar, metabolizar e fazer as pazes com
suas limitações e tristezas, processo obrigatório para o
amadurecimento emocional.
A pandemia de Covid-19 acentuou as contradições.
Enquanto nas redes a vida seguia impecável, dentro de

. A P O S T E E M AT I V I D A D E S
PRAZEROSAS
Pode ser caminhada, praticar esportes, leitura,
ouvir música ou ter um hobby

. CONECTE-SE COM O QUE TRAZ


S I G N I F I C A D O PA R A S U A V I D A
Isso inclui atividades voluntárias,
ter uma religião ou cuidar da espiritualidade

.
PLANEJE-SE
FINANCEIRAMENTE
Ter segurança financeira é importante.
Fique de olho nas finanças atuais e nas do
futuro. Se precisar, procure um especialista
Fontes: Journal of Happiness Studies; The Conversation

11 | 12
casa o caos emocional impe-
rava. Não por acaso, apenas
em 2020 houve um aumento
de 27% nos casos de depres-
são, segundo a Organização
Mundial da Saúde. Contudo,
o impacto da situação está
fazendo o pêndulo virar na
direção contrária. Cresce um
movimento por mais vida
real e menos virtual e pela
aceitação da diversidade en-
tre os indivíduos. Além dis-
so, pesquisas indicam o re- PASSADO
torno da conexão com a espi- A construção da felicidade:
ritualidade e com a natureza livro recém-lançado relata
— atividades aquáticas estão a busca pela sensação ao
em alta, aliás, porque ali- longo dos séculos
mentam a calma — e a valo-
rização de elementos como tempo livre, autonomia e bus-
ca de um propósito capaz de manter o encantamento pela
vida. Volta-se à essência. Tudo acompanhado, claro, pelo
desejo de segurança financeira. Afinal, atordoado por dí-
vidas, ninguém é feliz. Vale, enfim, lembrar um verso de
John Lennon que Carlos Drummond verteu para o portu-
guês: “A felicidade é um revólver quente”. ƒ

12 | 12
GERAL SOCIEDADE

EM BUSCA
DAS RAÍZES
Consultar sites para montar a árvore genealógica
virou moda entre os jovens, que envolvem toda a
família no projeto e correm para mostrar os
resultados nas redes sociais CAMILLE MELLO
JOHN M LUND PHOTOGRAPHY INC/STONE/GETTY IMAGES

EM FAMÍLIA Sucesso: jovens vão às


redes mostrar seus ancestrais

1|5
REZA UM PRECEITO da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias, a religião dos mórmons, que as famílias voltarão a
se unir na vida depois da morte e, por isso, é essencial identificar
e preservar os laços com todos os ancestrais. Imbuída desse pro-
pósito, a igreja, desde sua fundação, em 1894, se empenha em
buscar todos os dados familiares dos fiéis — e, em varreduras
que vão de certidões de nascimento, casamento e óbito a testa-
mentos e compra e venda de imóveis, acumulou ao longo de
mais de um século cerca de 5 bilhões de documentos digitaliza-
dos, tornando-se o maior acervo genealógico do mundo. Esse
imenso arquivo é aberto a consulta gratuita e alimenta árvores
genealógicas há anos, sobretudo depois que foi organizado no si-
te Family Search. A novidade agora é que reconstituir o passado
familiar virou moda: no TikTok, tambor de tudo o que cai no
gosto dos jovens (de bom e mau), os conteúdos relacionados à
plataforma ultrapassam 50 milhões de visualizações
Foi justamente um dos vídeos que viralizaram na internet
que despertou o interesse da designer curitibana Camila Opieco
Christofis, 33 anos, em construir sua árvore genealógica. “Vi
pessoas que diziam ter encontrado informações sobre ancestrais
na era dos vikings, entre reis e rainhas. Fiquei curiosa em conhe-
cer meu passado também”, explica Camila. A brincadeira aca-
bou virando uma investigação de amplo interesse familiar. “Per-
guntei à minha avó coisas sobre meus bisavós para cadastrar na
plataforma e isso gerou uma comoção no grupo da família. Ago-
ra estamos combinando reuniões com parentes de outras cida-
des para procurar mais dados”, diz. Outro usuário, o corretor de

2|5
ARQUIVO PESSOAL

PASSO A PASSO
A designer Camilla Christofis, 33 anos,
se interessou pela árvore genealógica vendo
vídeos de pessoas que acharam reis e rainhas na sua.
A família se empolgou. “Combinamos reuniões com
parentes de outras cidades para buscar dados”, diz.

3|5
imóveis cearense Carlos Gabriel Lira, 28 anos, afirma que se
sentiu um personagem da história ao deparar com figuras do
século XVI em longínquos ramos de sua linhagem. “Para mi-
nha surpresa, aprendi que sou descendente do rei dom Manuel
I, de Portugal, e também de Branca Dias, uma das primeiras ju-
dias que chegaram ao Brasil fugindo da Inquisição”, relata Lira.
Para facilitar a busca de dados, a equipe de trabalho da igreja
mórmon, em parceria com arquivos nacionais, tribunais de Jus-
tiça e dioceses, instalou 5 700 unidades de digitalização em mais
de 140 países — o Brasil concentra o segundo maior número
desses centros de dados, atrás apenas dos Estados Unidos. A
precisão das árvores genealógicas criadas pelo Family Search é
validada por especialistas, mas requer a colaboração contínua
do usuário. “Quanto mais a pessoa vai alimentando a própria
árvore com nomes, sobrenomes e fotos, mais a inteligência arti-
ficial recomenda documentos e sugere familiares distantes”, ex-
plica Fabio Falcão, gerente-geral do FamilySearch Brasil. A ma-
gia da tecnologia adicionada a um muito ambicionado senso de
pertencimento formaria a base da atração dos jovens pela anti-
quíssima ciência da genealogia. “As novas gerações têm múlti-
plas referências de identidade, mas elas são fragmentadas e flui-
das. É compreensível que busquem raízes sólidas e de confian-
ça”, analisa o cientista social Leonne Domingues.
Além de montar a árvore dos antepassados, os sites ge-
nealógicos prestam outro serviço: facilitam o acesso a antigos
registros de imigrantes nos processos de aquisição de cidada-
nia estrangeira. A frieza do propósito não apaga a emoção

4|5
dos usuários ao deparar com fatos e fotos do passado. A es-
tudante peruana Ivanna Benites, 25 anos, passou a admirar
ainda mais a avó, que faleceu recentemente, ao descobrir que
ela teve outro filho, além de sua mãe, aos 13 anos. “Isso me
fez pensar no quanto ela deve ter sofrido naquela época. O
que contribuiu para ela se tornar a mulher séria e forte que
eu conheci”, diz Ivanna.
Alvo de contínuo fascínio de mórmons e também de não
mórmons, o acervo genealógico da igreja está acondicionado
desde 1965 no Cofre de Registros da Montanha de Granito,
uma série de salas escavadas em uma rocha perto de Salt La-
ke City, no estado de Utah, onde a religião foi fundada. A en-
trada é exclusiva de funcionários, que cuidam, entre outras
funções, da digitalização de uma inestimável coleção de mi-
crofilmes. Tal qual o Family Search, outros sites oferecem
preciosos dados genealógicos, mas a maioria é paga ou se res-
tringe a certas áreas ou grupos de pessoas. Um dos mais usa-
dos, o MyHeritage, oferece o serviço extra de apontar relação
entre as árvores dos usuários. O JewishGen, ligado ao Museu
da Herança Judaica de Nova York, dá acesso a registros ex-
clusivos das famílias judaicas. O britânico FindMyPast tem
um acervo de mais de 2 bilhões de documentos da Inglaterra,
Escócia e País de Gales. O Ancestry oferece um teste de DNA
que revela as origens étnicas do cliente. Nenhum deles, no en-
tanto, conta com a abrangência e a diversidade de informação
do arquivo guardado dentro da pedra em Utah. Acessá-lo é
uma aventura — irresistível, dada a facilidade. ƒ

5|5
GERAL EDUCAÇÃO

FABIO ROSSI/AG. O GLOBO

COMEÇO, MEIO, FIM Roteiro: no texto para o Enem,


apresentação, argumentos e solução em quatro parágrafos

A FÓRMULA PARA
UMA BOA NOTA
Com a proximidade do Enem, acelera-se a
corrida aos cursinhos de redação, que ensinam
os caminhos para vencer um dos mais
desafiantes capítulos da prova CAMILLE MELLO

1|6
ÀS VÉSPERAS do Enem, exame que serve de porta de
entrada para as principais universidades públicas e priva-
das do país, milhões de estudantes buscam caminhos pa-
ra vencer tão angustiante etapa. E, nessa acirradíssima
corrida, dominar as ferramentas para uma boa redação se
tornou um pré-requisito essencial, diante do peso que ela
carrega no conjunto do resultado final da prova, marcada
para 13 e 20 de novembro. Não basta apenas se expressar
de forma clara e objetiva, mas também desenvolver no pa-
pel uma fórmula argumentativa em que não cabem im-
provisos. Daí a elevada procura, impulsionada pelas lacu-
nas deixadas pela pandemia, por cursinhos e plataformas
voltados para ensinar ao aluno como escrever o texto de
que o Enem gosta.
De olho na nova oportunidade de negócio, a Cogna
Educação, a maior empresa brasileira do setor, incorporou
a Redação Nota 1000, plataforma on-line de correção de
textos sob medida para vestibulares. “O número de reda-
ções corrigidas pelo site aumentou 60% no período pós-
-pandemia”, afirma Clayton Dick, criador da startup. Com
franquias espalhadas pelo Brasil, o Colégio e Curso AZ,
que já oferecia aos alunos três aulas semanais de texto,
abriu um módulo extra para estudantes não matriculados
na rede. “Assim como uma ginasta vai para a Olimpíada
com uma coreografia milimetricamente ensaiada, é estra-
tégico que o aluno chegue ao Enem bem preparado para
escrever como se espera”, compara a professora paranaen-

2|6
ARQUIVO PESSOAL

PREPARAÇÃO Ádina, 16 anos, que


quer fazer medicina: desde já, aulas extras

se Luma Dittrich, criadora de um método próprio que pro-


mete guiar os alunos a pontuações acima dos 900 na reda-
ção do Enem, algo extraordinário diante da média de 630.
A fórmula ensinada pelos cursos do gênero é em geral
extraída da estrutura de redações avaliadas com a nota
máxima. Citações, por exemplo, são fundamentais, valen-
do memorizar pensamentos de Platão e Rousseau que se
apliquem a vários propósitos. O bom uso dessas aspas ad-
quiriu tamanha importância que alguns colégios e cursi-
nhos dão “aulas de citação”, que podem ser pinçadas tanto

3|6
O BÊ-Á-BÁ DE UMA
BOA REDAÇÃO
Pontos considerados essenciais
pelos especialistas

Nada de gírias e frases coloquiais.


É preciso seguir a norma culta da língua

Adjetivos que deixam a opinião


bem clara são muito bem-vindos

Valoriza-se o emprego de palavras que


ajudam a costurar os parágrafos, como
“entretanto” ou “com efeito”

Citações de filmes, livros, músicas dão o colorido


esperado — pode ser de Platão a um rap

O enlace no derradeiro parágrafo deve


conter uma proposta de solução da questão
apresentada

4|6
da cultura erudita como da popular — um trecho de um
bom rap sempre faz sucesso. Outros macetes ressaltados
são o bom uso de termos conectivos (todavia, contudo),
para alinhavar os parágrafos, e listas de sinônimos para
ampliar o vocabulário (veja no quadro da pág. ao lado).
“A divulgação dos textos com nota máxima e dos critérios
cada vez mais objetivos de correção do exame favoreceu a
criação de técnicas reproduzidas em escolas”, explica Tia-
go Moreira Gomes, coordenador de língua portuguesa do
Colégio Vital Brazil, de São Paulo.
A prova de redação do Enem não privilegia o melhor
estilo. Mais importante do que escrever com floreios e
metáforas é seguir atentamente o roteiro dividido em pa-
rágrafos nos quais se apresenta o problema, se desenvol-
vem os argumentos e se propõe uma solução. Posto dessa
forma, o texto será julgado em uma leitura rápida pelos
avaliadores, sempre premidos pelo tempo. Na média, a re-
dação representa 20% da nota, mas o critério muda con-
forme o curso escolhido — e o porcentual pode ser bem
mais alto. Um zero nessa prova exclui o candidato da dis-
puta por uma vaga. Determinada a cursar medicina, a
mais concorrida de todas as carreiras, Ádina do Nasci-
mento, 16 anos, decidiu se matricular em um cursinho de
redação para complementar o conhecimento adquirido na
escola de Ariquemes, cidade de Rondônia, onde mora.
“Senti falta de uma correção mais profunda e de um
acompanhamento individualizado no colégio”, justifica.

5|6
Na luta também por um lugar ao sol na almejada facul-
dade de medicina, o potiguar Guilherme Belo, 19 anos, se
diz satisfeito com o investimento nas aulas extras de reda-
ção, que variam de 60 a 400 reais conforme o pacote con-
tratado. “Por ter vindo de escola pública, os efeitos da
pandemia foram avassaladores na minha preparação.
Com o cursinho, minha nota na redação vem aumentando
gradativamente”, comemora. Especialistas, no entanto,
alertam para o fato de que é preciso tomar cuidado com
os milagres em curto prazo. “O ideal é o aluno ser capaz
de dissertar sem se limitar às fórmulas e à decoreba pura
e simples”, lembra o professor Gomes. Fica a dica: treine
bastante a redação do Enem, deixando espaço para a cria-
tividade e a articulação de ideias que, afinal, compõem a
arte de escrever bem. ƒ

6|6
GERAL MEDICINA

JUSTIÇA TARDIA
Demorou, mas surgem iniciativas para
reconhecer a contribuição à ciência de
Henrietta Lacks, cujas células revolucionaram
o jeito de fazer pesquisa CILENE PEREIRA

ABRANGÊNCIA
HeLa: investigações
científicas de peso

NIH/BSIP/AFP

1|6
QUANDO A EQUIPE de cientistas do Instituto de Virolo-
gia de Wuhan, na China, publicou a primeira descrição do
Sars-CoV-2, o coronavírus causador da Covid-19, iniciou-se
uma das mais fascinantes epopeias científicas da história. O
artigo saiu na revista Nature, um dos mais reputados perió-
dico científicos, em fevereiro de 2020. O mundo estava to-
mado de medo de um vírus até então pouco conhecido que
se espalhava rapidamente, levando pânico e morte por onde
passava. As informações divulgadas, contudo, forneceram
aos cientistas de todo o planeta conhecimento para que tes-
tes diagnósticos fossem
criados e vacinas, desen-
volvidas. Hoje, quase três
anos depois do surgimen-
to dos casos iniciais —
acredita-se que tenham
ocorrido em novembro de
2019 —, a pandemia está
perto do fim.
Por trás dessa con-
THE HENRIETTA LACKS FOUNDATION

quista, está a contribui-


ção de uma mulher cujo
nome quase ninguém co-
nhece e que durante dé-
cadas permaneceu de fo- HISTÓRIA Henrietta
ra das listas daqueles a Lacks: ela morreu sem
quem a ciência reveren- saber de sua relevância

2|6
cia apesar de estar associada a alguns dos principais
avanços médicos dos últimos setenta anos. Trata-se de
Henrietta Lacks (1920-1951), a negra americana que teve
células extraídas para exame que acabaram revolucio-
nando a maneira de estudar tecidos humanos vivos em
laboratório. Em boa parte, graças a ela, campos como os
da genética, da oncologia e de doenças infecciosas desen-
volveram-se espetacularmente. A vacina contra a polio-
mielite e remédios antivirais que impedem o avanço do
HIV, o vírus da aids, foram alcançados com a ajuda de
seus corpúsculos.
Até então, em meados do século XX, fazer pesquisas em
laboratório com tecidos humanos era um desafio. Células
normais têm número definido para replicação e, portanto,
não servem de material de estudo de grandes dimensões.
Naquele tempo, no entanto, a sorte da ciência mudou graças
à tragédia particular de Lacks, uma simples lavradora de ta-
baco. Casada, mãe de cinco filhos e residente em Baltimore,
ela foi diagnosticada com um tipo agressivo de câncer de co-
lo de útero por médicos do Johns Hopkins Hospital, à época
um dos poucos realmente competentes no combate da doen-
ça à luz do que havia disponível.
Entre sessões de radioterapia, ela era submetida a bióp-
sias durante as quais os fragmentos eram extraídos e envia-
dos a George Gey, estudioso das relações entre câncer e ví-
rus. Antes de receber as amostras de Lacks, Gey estava frus-
trado. Todas as amostras que lhe chegavam às mãos mor-

3|6
MAGGIE BARTLETT/NHGRI

IMORTAL Matéria-prima de
estudos: linhagem usada até hoje

riam rapidamente. Com as células dela, foi o contrário: do-


bravam de quantidade a cada 24 horas. Estava descoberta a
primeira linhagem de células imortais capazes de se repro-
duzir indefinidamente em tubos de ensaio. Era o que a ciên-
cia precisava para deslanchar nos estudos in vitro. Foi o que
aconteceu. A linhagem HeLa (das sílabas iniciais do nome e
sobrenome da doadora) tornou-se matéria-prima seminal de
investigação médica, atalho para a realização de trabalhos
como os que deram origem às vacinas contra a Covid-19.

4|6
FABULOSA MATÉRIA-PRIMA
Utilização das células HeLa pela ciência
Da década de 50 até hoje, foram
usadas em mais de 75 000 estudos

Alguns dos mais importantes

CRIAÇÃO DAS VACINAS CONTRA O


HPV E A POLIOMIELITE

REMÉDIOS CONTRA O HIV

DIVERSOS TIPOS DE CÂNCER

MEDICAÇÕES CONTRA A COVID-19

Amostras foram inclusive enviadas em missões espaciais


com o objetivo de descobrir o impacto da falta de gravidade
no corpo humano.
Lacks morreria pouco tempo depois do início do trata-
mento. Nunca soube que células suas haviam sido retiradas
e, depois, comercializadas. Sua família só veio a descobrir
muitos anos depois. Na história da ciência, seu caso está gra-
vado como uma das maiores injustiças cometidas contra um
paciente e exemplo de falta de ética. A crescente pressão por

5|6
regras claras e transparentes na execução de estudos cientí-
ficos, no entanto, está obrigando a realização de um mea-
culpa em relação ao que foi feito com a americana. O Johns
Hopkins Hospital já fez uma retratação.
Na semana passada, foi a vez de a Organização Mundial
da Saúde (OMS) anunciar um reconhecimento. A entidade
nomeou integrantes da família como embaixadores nas
ações para eliminar o câncer de colo de útero, a doença que
a matou, até 2030. Na cerimônia, estiveram presentes seu fi-
lho, Lawrence, e quatro netos. O diretor-geral da OMS, Te-
dros Adhanom, justificou a escolha dos descendentes de
Lacks como representantes do movimento dizendo ser uma
forma de corrigir um erro e, ao mesmo tempo, de trabalhar
para que as inovações desenvolvidas com a ajuda das célu-
las HeLa cheguem a todas as mulheres. “Muitas pacientes
pertencentes a minorias raciais ou étnicas enfrentam riscos
desproporcionais para o câncer”, disse Adhanom. “Precisa-
mos fazer com que todas tenham acesso a prevenção, diag-
nóstico e tratamentos, muitos deles criados com a contribui-
ção das células imortais de Lacks.” Demorou, mas enfim a
justiça começa a ser feita. ƒ

6|6
GERAL PATRIMÔNIO

TESOURO REVELADO
A extraordinária coleção de obras de arte de
Paul Allen, um dos criadores da Microsoft,
vai a leilão. Valor estimado do espetacular
lote: 1 bilhão de dólares FÁBIO ALTMAN

PONTILHISMO Les Poseuses, Ensemble, de Georges


Seurat, de 1888: pintura estimada em 100 milhões de dólares

GEORGES SEURAT/THE BARNES FOUNDATION

1|4
AS FOTOGRAFIAS dos anos 1970, na gênese da revolução
promovida pelo computador pessoal, davam pistas do perfil
de dois de seus mais relevantes personagens: Bill Gates, de
sorriso aberto, jeitão típico do que naquele tempo seria um
“nerd”, o sujeito esquisitão apegado a bits e bytes; e Paul
Allen, barba cultivada, entre a tensão e o relaxamento, com
cara de quem gostaria de estar em outro lugar.
Eles eram muito diferentes — e das diferenças brotou a
mais extraordinária parceria da história da tecnologia, a al-
ma da Microsoft. No início da década de 80, os dois criaram
para a IBM um sistema operacional para ser utilizado por
leigos, o MS-DOS, que depois evoluiria para o Windows.
O resto é história. Gates, com o passar do tempo, abandonou
o cotidiano da programação e, multibilionário, se dedicou a
uma nova e interessante persona: a de benemerente, afeito a
abrir caminhos para pesquisas nas áreas de saúde. Allen,
muito cedo, ainda em 1983, deixou a empresa para lutar
contra um linfoma recém-descoberto. Fez também da filan-
tropia um modo de vida — doaria 2 bilhões de dólares até
morrer, em 2018 — e se afeiçoou a excentricidades, como a
compra de um iate avaliado em 200 milhões de dólares, e
interesses pessoais, a exemplo da aquisição de uma equipe
de futebol americano, o Seattle Seahawks.
Mas sempre houve um segredo de polichinelo: seu fascínio
por obras de arte. Algumas peças de seu tesouro particular ti-
nham sido vistas nas raras vezes em que foram mostradas pu-
blicamente. Contudo, apenas agora a coleção se revelou por

2|4
FOTOS CHRISTIE’S

GOSTO VARIADO Floresta de Bétulas, de Gustav Klimt,


a Ponte de Waterloo, obra impressionista de Claude Monet,
e o tríptico de Francis Bacon: são 150 obras-primas de
500 anos de história das artes no Ocidente

completo com o anúncio de um leilão na casa Christie’s de No-


va York, em 9 e 10 de novembro, cujo valor total pode chegar a
1 bilhão de dólares — e renda revertida para ajudar comunida-
des pobres. São 150 obras-primas a atravessar 500 anos, de
Botticelli a Hockney. Há uma tela de Georges Seurat, Les Po-
seuses, Ensemble, estimada em 100 milhões de dólares. Há
também um Gustav Klimt de 1903, Floresta de Bétulas, que
pode bater em 90 milhões de dólares. Tem uma paisagem de
Claude Monet, para mais de 60 milhões de dólares, e um tríp-
tico de Francis Bacon, na casa dos 25 milhões de dólares.

3|4
Um olhar superficial parece
não entregar uma linha que
costure as aquisições de Allen.
Mas há, sim, coerência, e quem
deu a pista foi o próprio cole-
cionador em 2006, ao falar so-
bre uma mostra com parcela
pequena de suas joias. “Estou

BARRY WONG/TNS
sempre tentando descobrir pa-
ra onde o futuro está indo. Tal-
vez seja por isso que eu ache as A GÊNESE DE TUDO
paisagens interessantes. É co- Allen, ao lado de Bill Gates
mo se fossem janelas para reali- (à esq.): almas diferentes
dades diferentes. No Klimt, po-
de-se perceber quietude e calma. Quando você olha para
uma pintura, está olhando para um outro país, para a imagi-
nação de outra pessoa, como ela a viu.”
Quando se observa o lote de Allen, é como se enxergásse-
mos a alma de alguém que soube casar os dois mundos — a
aridez matemática dos programas de computador com a ri-
queza indizível da arte. Jody Allen, executora do espólio do ir-
mão, contou ao The New York Times que ambos cresceram
em uma casa plena de interesses. A mãe era professora e o pai,
bibliotecário. “Fomos encorajados a desenvolver nosso múscu-
lo criativo desde cedo”, disse ela. É um belo legado do homem
que ajudou a inventar a civilização moderna, cuja travessia po-
de ser traduzida também pelas obras que vão a martelo. ƒ

4|4
GERAL AMBIENTE

ALERTA VERDE
A Conferência sobre Mudanças Climáticas, no Egito,
proporá metas mais agressivas de redução de emissões
de gases e terá o Brasil como um de seus protagonistas
ALESSANDRO GIANNINI

QUEIMADAS Amazônia em chamas: apesar do estrago nos


últimos anos, especialistas apostam na recuperação da região
Queimadas Amazônia em chamas: apesar do estrago nos
últimos anos, especialistas apostam na recuperação da região

DOUGLAS MAGNO/AFP

1|5
O MUNDO respira com ansiedade em torno dos resulta-
dos da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas, a COP27, que será realizada em Sharm el-
Sheikh, no Egito, de 6 a 18 de novembro. O encontro, sim-
paticamente batizado de “COP Africana”, marcará os trin-
ta anos da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança
do Clima, assinada na Cúpula da Terra, realizada no Rio
de Janeiro, em 1992, e os sete anos do Acordo de Paris. É,
a um só tempo, um marco histórico, atrelado a efeméri-
des, e um imenso desafio para a humanidade.
A COP27 proporá metas mais agressivas de redução de
gases de efeito estufa, já que no ano passado, na conferên-
cia de Glasgow, na Escócia, as estabelecidas anteriormente
foram consideradas insuficientes. O Painel Intergoverna-
mental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), maior autori-
dade científica global nesse campo, mostra que o planeta
corre perigo e pede que as ações de mitigação e adaptação
sejam implantadas ainda nesta década, sob pena de o
aquecimento causar danos irreversíveis ao clima. As emis-
sões estão aumentando, com níveis atmosféricos de dióxi-
do de carbono, metano e óxido nitroso atingindo novos re-
cordes em 2021. O resultado pode ser o aumento de tem-
peratura global acima de 1,5 grau, rompendo, portanto, a
meta estabelecida pelas autoridades ambientais.
Existe alguma desconfiança do real sucesso da cúpu-
la, premida por interesses do planeta em crise. A sueca
Greta Thunberg, ícone jovem do ambientalismo, por

2|5
EAN GALLUP/GETTY IMAGES
BERLIM Protesto contra o uso de combustíveis fósseis:
preocupação global

exemplo, já avisou que não vai. Ela acusou o evento de


levantar a bandeira ambientalista em vão, mero exercí-
cio de limpeza de imagem — o que, em inglês, ganhou o
nome de greenwashing.
Convém, contudo, prestar atenção no balé diplomático
das próximas semanas — a dança entre as principais po-
tências emissoras de poluentes, como Estados Unidos, e
os grandes afetados, os países mais pobres, na lida com
investimentos e distribuição de fundos de apoio. Nesse
ambiente nervoso, calhou de o Brasil ter recuperado parte
do protagonismo político que havia perdido durante o go-
verno de Jair Bolsonaro, dada a coincidência da proximi-

3|5
dade de datas com a eleição
presidencial. Ao longo da
campanha, amparado na
figura de Marina Silva,
eleita deputada federal, Lu-
la fez questão de ressaltar
os cuidados com a Amazô-

ERIK SIMANDER/TT NEWS AGENCY/AFP


nia e a busca por índice ze-
ro de desmatamento na re-
gião entre as prioridades de
seu governo (leia mais na
pág. 24). Nesse aspecto, o AUSÊNCIA A jovem ativista
antagonismo a Bolsonaro sueca Greta Thunberg avisou
foi como uma estrada livre que não vai: para ela,
de obstáculos. Não por aca- conferência não resolve nada
so, no início da semana, o
presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, convidou o pe-
tista e Marina a participarem da COP27.
O Brasil será representado em três frentes no evento:
com um estande oficial, um da sociedade civil e outro,
inédito, patrocinado pelos governos de nove estados ama-
zônicos. Lula e Marina, aliás, foram convidados a integrar
a comitiva desse grupo. Existe a convicção de que o tema
das florestas e da diminuição das queimadas ganhe os ho-
lofotes, como há muito não ocorria. “Todos os países sa-
bem que não há meio de se atingir as metas do Acordo de
Paris sem a Amazônia”, disse a VEJA Alexandre Prado,

4|5
da WWF Brasil, que estará no Egito. “Daí a importância
de voltarmos ao jogo.” Noruega e Alemanha já anuncia-
ram a retomada do financiamento do Fundo da Amazô-
nia, em valores que podem atingir até 1 bilhão de dólares.
O trabalho a ser feito, aliás, é colossal. Em uma atuali-
zação dos dados sobre uso e cobertura de terras de 1985 a
2021, a rede de controle ambiental MapBiomas mostrou
que a região amazônica perdeu 12% da sua área de flores-
ta ao longo desse período. Resultado: aumento dos extre-
mos do clima, da temperatura e menor precipitação de
chuvas. Em razão disso, o fluxo líquido de carbono do bio-
ma está diminuindo. Há mais de três décadas, absorvia 1,5
tonelada do gás. Agora, esse fluxo é praticamente zero.
Apesar de todas as adversidades, o Brasil apresenta
uma vantagem estratégica, pois pode cortar 44% das suas
emissões de forma rápida e barata, evitando queimadas e
desmatamentos. “Temos todas as ferramentas necessárias
para isso”, diz Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Na-
cional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ressalve-se que ne-
nhum outro país tem potencial tão grande em energia eóli-
ca e solar. “O Brasil tem de explorar essa vantagem estra-
tégica”, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física
da Universidade de São Paulo (IFUSP). Pode-se dizer que,
no Egito, haverá uma Copa do Mundo antes daquela do
Catar — com a sonhada vitória de todas as nações. ƒ

5|5
GERAL NEGÓCIOS

NA FLOR
DA IDADE
Abertura de empresas por menores de 18 anos
dispara em 2022, indicando tanto o interesse pelo
empreendedorismo como a necessidade de
inserção no mercado de trabalho ANDRÉ SOLLITTO

AGILIDADE Digitalização como motor da transformação: maior


facilidade em abrir negócios on-line contribui para o cenário

ISTOCK/GETTY IMAGES

1|6
STEVE JOBS tinha 21 anos quando fundou a Apple ao la-
do de seu eterno parceiro Steve Wozniak, este um “vetera-
no” de 26 anos com boa experiência no mundo da eletrôni-
ca. Bill Gates gestou a Microsoft na garagem de casa quan-
do mal havia chegado aos 20. Com 22, seu sócio, Paul Al-
len, era só um pouco mais velho (leia mais na pág. 70).
Mark Zuckerberg é outro gênio corporativo precoce: o Fa-
cebook começou a nascer quando ele completara apenas e
tão somente 19. A história ensina, portanto, que a juventu-
de é um ingrediente poderoso para o empreendedorismo.
No Brasil, um fenômeno recente mostra que os jovens de-
sejam cada vez mais trilhar o próprio caminho. De acordo
com levantamento da plataforma de análise de dados Da-
tahub, o número de microempresas individuais (MEIs) que
pertencem a pessoas com menos de 18 anos disparou
227% no primeiro semestre de 2022, em relação ao mes-
mo período do ano passado. Ou seja: os muito jovens nun-
ca tiveram tanta disposição para abrir um negócio e seguir
a rota do mundo empresarial.
Em geral, eles se motivam pelas vantagens oferecidas pe-
la nova era da digitalização — que permite, por exemplo,
abrir uma loja on-line na sala de casa — para se aventurar
como empresários, muitas vezes antes mesmo de ter alguma
vivência no mercado de trabalho formal. A pandemia, sem-
pre ela, teve papel importante na aceleração do movimento.
“Ela trouxe uma mudança na geografia dos pequenos em-
presários e proporcionou que novas atividades surgissem no

2|6
WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS

DESEMPREGO Em busca de vagas:


o mercado formal não absorve todos

mercado brasileiro”, afirma André Leão, diretor de produtos


da Datahub.
Houve aumento expressivo do número de microempresas
individuais abertas nas regiões Norte e Nordeste, o que mostra
que o empreendedorismo se espalha por todo o país. Outro
ponto interessante capturado pelo estudo: a categoria de ves-
tuário é uma das que tiveram maior crescimento, indicando jus-
tamente a facilidade com que é possível vender roupas pela in-
ternet e ter o WhatsApp como plataforma de comercialização.

3|6
DB APPLE/DPA/ZUMAPRESS

INSPIRAÇÃO Jobs (à esq.) e Wozniak,


da Apple: empreendedores precoces

Embora existam óbvias limitações, como o faturamento


máximo de 81 000 reais mensais e a possibilidade de ter
apenas um funcionário, o formato MEI pode ser visto como
uma porta de entrada decisiva para o empreendedorismo.
Por ser seguro e ter custo baixo com impostos, é um modelo
eficaz para testar oportunidades de mercado. No momento
de escalar o negócio, há uma grande rede de informações
disponível no Brasil. “O Sebrae tem participação importan-
tíssima no suporte e na educação empreendedora, indispen-

4|6
COPO CHEIO OU VAZIO?
Os motivos para o recorde de
abertura de microempresas

E SPÍRITO EMPREENDEDOR
O Brasil está entre os países mais
empreendedores do mundo e se consolidou
como um dos campeões em abertura de
startups. Isso é ótimo por estimular a inovação

FALTA DE EMPREG O
Os jovens sofrem mais nas crises
econômicas. Sem encontrar emprego, muitos
apostam na abertura do próprio negócio para
conseguir alguma fonte de renda

5|6
sável quando a empresa cresce e passa a participar de um
mercado mais exigente”, afirma Antonio André Neto, coor-
denador do MBA de gestão estratégica e econômica de ne-
gócios da Fundação Getulio Vargas (FGV).
É preciso pontuar, contudo, que o cenário nem sempre é
de pujança. Algumas vezes, o que move o empreendedor é
mesmo a necessidade de sobrevivência. “O mercado não es-
tá absorvendo jovens da forma tradicional, com registros
CLT”, afirma André Leão. Em outras palavras: na falta de
oportunidades, eles partem para o que der e vier, e abrir
uma empresa pode ser o melhor — e talvez único — cami-
nho para ter alguma fonte de renda, para escapar da pobre-
za. Nessa balança, deve-se apontar um fator primordial pa-
ra atrair futuros empresários: a glamorização do empreen-
dedorismo, movida principalmente pela expectativa dos jo-
vens em fundar empresas revolucionárias quando ainda es-
tiverem na flor da idade — e, quem sabe, se tornarem novos
Jobs, Gates e Zuckerbergs. ƒ

6|6
GERAL AVIAÇÃO

VOO INTERROMPIDO
Custo alto e demanda cada vez menor levam
as principais companhias aéreas a extinguir
a primeira classe e investir em melhorias nos
assentos executivos LUIZ FELIPE CASTRO

DIAS CONTADOS Primeira classe da British:


a alta sofisticação será eliminada

AMERICAN AIRLINES/DIVULGAÇÃO

1|8
VIAJAR em confortáveis poltronas que viram camas, com
total privacidade e atendimento exclusivo regado a champa-
nhe, lagostas e caviar sempre foi o maior desejo de consumo
dos passageiros aéreos. O sonho de voar de primeira classe
viveu o seu apogeu entre os anos 1970 e 1990, quando as
companhias aéreas passaram a investir cada vez mais em
espaços marcados pela alta sofisticação. Pois bem, para
quem hoje pode e quer viver essa experiência, cabe o alerta:
é bom realizá-la o mais breve possível, antes que tais rega-
lias desapareçam, ao menos nos moldes tradicionais.
As grandes aeronaves costumam ser divididas entre clas-
se econômica, a mais básica, com espaços apertados e, por-
tanto, a mais barata; classe executiva, projetada para maior
conforto e alguns mimos; e finalmente a primeira classe, o
crème de la crème. No entanto, nos últimos anos, a extinção
dos assentos mais caros vem se tornando uma tendência na
indústria. No fim do mês passado, a American Airlines, a
maior companhia do mundo em tamanho de frota, anun-
ciou o plano de eliminar suas poltronas de primeira classe
em voos internacionais, repetindo o que as principais con-
correntes, a Delta e a United, já haviam feito tempos atrás.
Outros gigantes, como Air France e British, também reduzi-
ram drasticamente a sua oferta.
O motivo é óbvio. “Acho que isso até demorou para acon-
tecer na American Airlines, em virtude da alta demanda
que existia entre rotas dos Estados Unidos para o Oriente,
que caiu com a pandemia”, disse a VEJA Dilson Verçosa Jr.,

2|8
SOBREVIVENTES DE LUXO
As três melhores opções de primeira classe do mundo
em 2022, segundo a consultoria britânica Skytrax

Atrações: suíte dupla de 9 metros


quadrados, cama com espaço para berço,
TV de 32 polegadas e wi-fi ilimitado

Preço*: a partir de 63 000 reais


na rota Hong Kong-Nova York

3|8
Atrações: suítes privativas com camas
totalmente planas, serviço de SPA e
banho, chefs e barmen de renome

Preço*: a partir de 22 000 reais


na rota Paris-Dubai

4|8
Atrações: pijamas e kits de
amenidades de grandes grifes, cozinha
gourmet e restaurante à la carte

Preço*: a partir de 47 000 reais


na rota São Paulo-Zurique

*Preços só de ida para o réveillon deste ano

5|8
que se aposentou em 2021 após três décadas no comando da
empresa americana no Brasil. Ele explica que a maioria dos
viajantes de primeira classe não paga a tarifa total (atual-
mente, um bilhete integral não sai por menos de 15 000
reais), pois utilizam milhas ou outros benefícios de clientes
premium. “É mais uma razão para o provável fim da primei-
ra classe, pois havia um número pequeno de assentos ocu-
pando um grande espaço e com baixa rentabilidade.”
Fechar a primeira classe, que costuma receber no máxi-
mo oito poltronas, e aprimorar a executiva, na casa de trinta
espaços, é, portanto, uma estratégia para maximizar as re-
ceitas que diversas companhias já vinham adotando. Benefí-
cios como atendimento prioritário no check-in e no embar-
que, acesso a áreas VIP de aeroportos, remarcação e cance-
lamento de voo sem taxas, poltronas reclináveis e internet a
bordo, antes restritos ao espaço de luxo, hoje já são ofereci-
dos em classe executiva. “Esses espaços chegaram a um pa-
drão tão bom de conforto, privacidade e entretenimento que
tornou a primeira classe quase que redundante”, diz o con-
sultor de aviação Gianfranco Beting. “O que mais se perde é
a qualidade de comida e bebida, que era um diferencial. As
classes executivas não têm mais a condição de manter refei-
ções tão espetaculares.”
Companhias como Delta, All Nippon Airways, British
Airways e China Eastern estrearam recentemente poltronas
com portas, para preservar a intimidade dos passageiros da
classe executiva. O Brasil acompanhou o movimento. Desde

6|8
MIRRORPIX/ALAMY/FOTOARENA

PARA POUCOS Primeira classe do Jumbo, nos anos 70: na


era de ouro da aviação, conforto era prioridade

2014, a Latam (na ocasião sob o nome TAM) aboliu a pri-


meira classe para melhorar a executiva.
Há, no entanto, quem voe na contramão do fenômeno.
Empresas árabes, asiáticas e até algumas europeias têm in-
vestido em primeiras classes cada vez mais luxuosas (veja o
quadro ao lado). A alemã Lufthansa anunciou em outubro
um investimento de 2,5 bilhões de euros na remodelação de
30 000 assentos de primeira classe, classe executiva, econô-

7|8
mica premium e econômica. A linha First Class terá suítes
espaçosas, com camas grandes e paredes quase na altura do
teto, para maior privacidade. As refeições, que incluem o
bom e velho caviar, podem ser servidas em uma grande me-
sa de jantar, entre diversos outros benefícios.
A consultoria britânica Skytrax elegeu a Qatar Airways
como a melhor companhia aérea de 2022. Já a Singapore
Airlines faturou o prêmio de melhor primeira classe. “Em-
presas como essas realmente investem nesse segmento e
ainda conseguem atrair um público muito específico”, diz
Dilson Verçosa Jr.. Voar nessas condições, portanto, ainda é
um sonho possível, mas cada vez mais distante. ƒ

8|8
GERAL ESTILO

JOGO DE CINTURA
Conhecido como símbolo de opressão às
mulheres, o espartilho volta repaginado e traz
a mensagem oposta: em vez de submissão,
ele agora representa poder SIMONE BLANES
DOLCE & GABBANA

FENDI

SILHUETA As curvas no SUAVIDADE


Dolce & Gabbana: as peças Marcação discreta no
ressaltam colo, quadris e dão modelo da Fendi:
pitada sexy ao visual transparência e leveza

1|4
EM UMA DAS CENAS mais celebradas do clássico ...E o
Vento Levou, de 1939, a protagonista, Scarlett O’Hara (vivida
pela atriz Vivien Leigh), aparece incomodada enquanto uma
escrava aperta os fios do espartilho que usará por baixo de um
vestido de baile. É reação semelhante que salta de um instante
conhecido de Titanic, de 1997: Rose (interpretada por Kate
Winslet) faz cara feia, de protesto, à medida que sua mãe des-
conta a raiva que sente pela rebeldia da filha nas puxadas do
corset. Ao longo da história, iluminada com inteligência pelo
cinema, a peça, de uso compulsório para mulheres que não po-
diam escapar dos padrões estéticos vigentes, foi sinônimo de
opressão física e social ao comprimir o tórax.
Dá-se, agora, uma interessante revolução. O espartilho vol-
tou, mas de modo revisitado. É a um só tempo sexy e ruidoso,
como grito de liberdade feminina. Simples assim: as mulheres,
se quiserem, vestem as peças — ainda que ligeiramente folga-
das — porque elas conferem silhueta mais delgada. E da opres-
são fez-se um jeito de corpo. “O espartilho cria uma feminili-
dade artificial. Dessa forma, quem quer se sentir feminina po-
de simplesmente colocá-lo”, diz a estilista americana Batsheva
Hay. “O que é mais libertador do que isso?”
Os corsets atuais são muito diferentes dos modelos do pas-
sado, feitos de barbatanas de baleia, cordas, ferro — sim, ferro!
— e madeira. Eles estão ressurgindo em tecidos maleáveis. Be-
bem elegantemente de dois movimentos históricos da moda. O
primeiro ocorreu em 1947, quando o estilista francês Christian
Dior trouxe a peça à tona por meio de roupas estruturadas, a

2|4
SÓ AS PODEROSAS Billie Eilish (à esq.), Jennifer Lopez
(acima) e Anitta: musas que aderiram aos corsets, porém feitos
de tecidos confortáveis e sem o exagerado aperto de antes

que se deu o nome de New Look. Ainda havia o visual de mu-


lher recatada, porém não mais oprimida. Depois, o espartilho
viraria item do feminismo na década de 80 pelas mãos de cria-
dores como Vivienne Westwood, Christian Lacroix, Thierry
Mugler, Azzedine Alaïa e Jean Paul Gaultier. É de Gaultier,
aliás, o corset de cetim rosa e seios cônicos usado por Madon-
na em 1989 na turnê Blond Ambition.
Tudo somado, numa aventura que começou como ícone de
submissão e foi arrebentando as algemas, chegamos aos dias de
hoje com pegada um tanto irônica: o espartilho, afeito a conter
os corpos, pode servir a seu avesso, sinônimo de emancipação.
SEAN ZANNI/PATRICK MCMULLAN/GETTY IMAGES; KEVIN WINTER/GETTY IMAGES; INSTAGRAM @ANITTA

3|4
DIVULGAÇÃO

SEM ESPAÇO PARA RESPIRAR


Na cena de ...E o Vento Levou, Scarlett O’Hara,
interpretada por Vivien Leigh, sofre com as ajustadas que
afinam a cintura e comprimem o tórax

Agora em 2022, depois da quarentena compulsória imposta


pela pandemia, a hashtag #corset apareceu nas redes sociais
em mais de 44 bilhões de citações. Explodiu também nas pas-
sarelas. Grifes como Fendi e Dolce & Gabbana, além da Dior,
exibiram com estardalhaço modelos sensuais. Famosos ajuda-
ram a fazer crescer a onda. A cantora Billie Eilish já desfilou
com um majestoso corset da Gucci. Jennifer Lopez exibiu o seu
espartilho, de couro preto, da grife Mônot. E Anitta, sempre ela,
não deixa de apertar a cintura. Parece caminho sem volta — e o
que era aprisionamento do passado é manifesto de um tempo
de mudanças, porque moda é política, é cultura. ƒ

4|4
CULTURA TELEVISÃO

DILEMA REAL
Em sua quinta e penúltima temporada,
a série The Crown, da Netflix, encara a difícil
missão de retratar um período conturbado
da monarquia sob o escrutínio de um mundo
ainda em luto pela morte de Elizabeth II
RAQUEL CARNEIRO

RESPEITO Imelda Staunton e Jonathan Pryce como a rainha


e o príncipe Philip: retrato da soberana em período de luto

NETFLIX

1|7
E
ra uma terça-feira, 20 de setembro, quando Imelda
Staunton retornou ao set de The Crown. Uma pausa
fora decretada em respeito ao período de luto pela
morte da rainha Elizabeth II, no dia 8 anterior, aos 96
anos. Dama do teatro inglês e popular por sua vilã
Dolores Umbridge em Harry Potter, Imelda, de 66, é
a terceira e última atriz a interpretar a soberana na aclamada
série da Netflix — antes, Claire Foy e Olivia Colman carrega-
ram a coroa. Imelda, porém, será a primeira delas a encarar o

TURBULÊNCIA Charles e Diana (Dominic West


e Elizabeth Debicki): o divórcio abalou a monarquia

KEITH BERNSTEIN/NETFLIX

2|7
difícil papel sob o escrutínio de súditos fragilizados pelo luto
— sendo ela mesma um deles. “Foi estranho, muito estranho”,
contou Imelda a VEJA, em entrevista via Zoom, sobre a reto-
mada das gravações da sexta e última temporada da série no
dia seguinte ao funeral da rainha. “A TV foi tomada por espe-
ciais sobre a vida dela. A comoção foi enorme. Nos bastidores,
estávamos bastante emotivos.” Quando entrou no set caracte-
rizada como a soberana, a atriz notou que a equipe a olhou de
um modo diferente. Ela mesma se encarou no espelho e assi-
milou de outra forma a personagem. Sólida, desprovida de
ego e apegada a um forte senso de responsabilidade e dever,
Elizabeth II enfrentou de cabeça erguida os altos e baixos dos
setenta anos de seu reinado. A atriz quis honrar tal posiciona-
mento: aplacou a tristeza e deu seu melhor nas filmagens.
A veterana Imelda estreia no figurino da rainha da Ingla-
terra no dia 9 de novembro, quando a quinta temporada che-
ga à plataforma com elenco renovado. Ambientada na pri-
meira metade da década de 90, a nova leva de episódios vai
retratar uma época conturbada, na qual o auge dos dissabo-
res se deu em 1992 — chamado pela própria soberana de
annus horribilis (ano horrível, em latim). Foi quando teste-
munhou um terrível incêndio no Castelo de Windsor e o es-
candaloso divórcio de três filhos. Entre eles, a turbulenta se-
paração da princesa Diana (Elizabeth Debicki) do príncipe
Charles (Dominic West) — o hoje rei Charles III.
Mais que nas fases anteriores, a quinta temporada vem en-
carando duras críticas de admiradores da monarquia — estri-

3|7
COADJUVANTES DE LUXO
Como The Crown mostra a relação da rainha
Elizabeth II com os inúmeros primeiros-ministros que
ocuparam o poder em seus setenta anos de reinado

ALEX BAILEY/NETFLIX
MENTOR ILUMINADO
Quando Elizabeth II assumiu o trono, Winston Churchill exercia
seu segundo mandato. Ela tinha 25 anos e ele beirava os 80,
diferença que fez dele um mentor para a rainha. Na série, o
premiê é vivido com brilho por John Lithgow

dência ampliada pela proximidade dos fatos históricos retrata-


dos e, claro, pela comoção com a morte da rainha. Com a auto-
ridade de quem já deu vida às monarcas Elizabeth I e Victoria
no cinema, a atriz Judi Dench, 87, mostrou-se ofendida e exigiu
da Netflix um alerta explícito antes dos episódios, esclarecen-
do que se trata de uma obra de ficção. A plataforma, porém,
sempre deixou claro que The Crown é inspirada em fatos e não
um retrato fiel da realidade. O posicionamento não foi suficien-
te para aplacar, ainda, a ira de um figurão retratado na nova
temporada, o ex-primeiro-ministro britânico John Major, vivi-

4|7
SOPHIE MUTEVELIAN/NETFLIX

AMIGO INESPERADO
Político de esquerda, o trabalhista Harold Wilson (Jason Watkins)
chegou ao cargo em 1964 sob desconfiança da rainha. Os dois,
curiosamente, se tornaram amigos — e ele a ajudou a entender os
problemas sociais de seu reino

do por Jonny Lee Miller (leia à esq.). Major ficou indignado ao


saber que um episódio imagina uma conversa privada entre
ele e Charles, na qual o herdeiro do trono especula sobre uma
possível abdicação da mãe em favor dele. O ex-premiê Major
classificou a cena como um “poço de bobagens maliciosas”.
Curiosamente, uma das estratégias de sobrevivência da
monarquia britânica no século XX foi abrir mão da aura de
intocável para se aproximar do povo. The Crown elevou es-
sa tática à enésima potência. Desde seu lançamento, em
2016, a série ajudou a aguçar o interesse pela realeza e enfa-

5|7
DES WILLIE/NETFLIX

A FERRO E FOGO
Margaret Thatcher (Gillian Anderson) não ganhou o apelido
de “Dama de Ferro” à toa. Na série, ela e a rainha se estranham.
As farpas se basearam em rumores: ambas negavam
qualquer rixa, mas também não trocavam elogios

tizou que, por trás da conduta fria de Elizabeth II, havia uma
monarca imbuída de forte consciência institucional. “The
Crown oferece um olhar respeitoso sobre a rainha e expõe
toda a dor e o tumulto que ela suportou”, disse a VEJA Jona-
than Pryce, que encarna o príncipe Philip. “Tenho certeza
de que estamos honrando a memória dela.”
Aos 75 anos, Pryce, um gigante do teatro e do cinema in-
glês, viu se cruzarem ficção e realidade em 2021. Já escalado
como Philip, ele recebeu a honraria de Cavaleiro da Ordem do
Império pelas mãos da princesa Anne, filha de Elizabeth II.

6|7
NETFLIX

ANOS DIFÍCEIS
O conservador John Major (Jonny Lee Miller) ocupou
o cargo entre 1990 e 1997, período de crise para a monarquia.
Major criticou a quinta temporada e disse nunca ter sido
consultado sobre sua experiência

“Ela se recusou a falar sobre The Crown”, contou Pryce. Ma-


duros e consagrados, os novos intérpretes do casal real têm
proximidade natural com o mundinho da série. Imelda e Pryce
perderam as contas de quantas vezes recepcionaram membros
da família real na estreia de uma peça ou filme — inclusive a
princesa Diana. “Você sabe que alguém da realeza chegou
quando todos começam a se curvar. Se não fazem isso, não é a
realeza, é só o George Clooney”, brincou Pryce. “Eu me curva-
ria para o Clooney”, reagiu Imelda, com seu humor sagaz —
qualidade que une a realeza aos plebeus na terra da rainha. ƒ

7|7
CULTURA CINEMA

DIVIDIDA Juliette
Binoche e Vincent Lindon
(à esq.) e Claire Denis
(acima): a dura sensação
de não pertencer

SEM FRONTEIRAS
Em Com Amor e Fúria, a cineasta Claire Denis retrata
um triângulo amoroso embalado por tensões financeiras
e raciais — temas que permeiam a obra dessa francesa
criada na África
CURIOSA FILMS; STEPHANE CARDINALE/CORBIS/GETTY IMAGES

1|3
SARA (Juliette Binoche) transborda de alegria ao lado de
Jean (Vincent Lindon), e o amor entre eles parece inabalável.
Isso, até o dia em que Sara vê na rua François (Grégoire Co-
lin), o homem que ela deixou para viver com o atual parceiro.
A mulher se esconde atrás de uma parede e treme enquanto
repete o nome do ex, entre o tormento e o desejo. A cena do
filme Com Amor e Fúria (Avec Amour et Acharnement,
França, 2022), em cartaz nos cinemas, anuncia o dilema da
personagem dividida entre o refúgio de um casamento está-
vel, mas envolto em problemas financeiros e raciais — Jean
tem um filho adolescente negro —, e a ebulição da paixão ce-
ga sem compromissos. O clima de incerteza que ronda o triân-
gulo amoroso e as cenas de sexo explícitas deram ao filme da
diretora francesa Claire Denis o rótulo de thriller erótico. A
classificação é refutada pela cineasta de 76 anos, premiada no
Festival de Berlim pela obra.
Claire desafia as categorizações de gênero, trafegando do
romance picante a produções de terror ou ficção científica —
é dela o filme High Life, com Robert Pattinson, sobre crimino-
sos enviados ao espaço. Seus trabalhos tratam, acima de tudo,
da busca incansável do ser humano por pertencer — a alguém
ou um lugar. O desejo é frustrante e culmina, muitas vezes,
em violência e solidão: alguns de seus personagens, com sor-
te, encontram a libertação. Sua obra bebe, de forma literal ou
poética, de uma fonte autobiográfica recorrente.
Claire nasceu em Paris, mas cresceu em diferentes países
da África. Seu pai, um funcionário público, trabalhou em co-

2|3
lônias francesas como Senegal e Camarões, e se dedicou a
criar as duas filhas com seu vasto conhecimento geográfico e
político. Aos 12 anos, ela contraiu pólio e voltou à França para
se tratar. Claire, porém, nunca se sentiu de fato francesa. “Sou
uma filha da África”, diz até hoje. Dois de seus filmes mais
elogiados, Chocolat (1988) e Bom Trabalho (1999), são am-
bientados em território africano e mostram o mal-estar cau-
sado pelo colonialismo francês. Com Amor e Fúria aborda o
tema de forma tangenciada.
Em uma cena, Sara, que é radialista, entrevista o ex-joga-
dor de futebol e ativista Lilian Thuram, numa participação
como ele mesmo no filme. O caribenho conta que sua mãe
foi aconselhada a ter filho com um branco, para “clarear” a
pele. Pouco depois, o marido de Sara diz ao filho rebelde,
fruto de uma relação com uma mulher da Martinica, que o
fato de ser negro não pode impedi-lo de sonhar alto. No
mundo de Claire Denis, o amor e o desejo acontecem lado a
lado com questões políticas e de identidade. É um cinema
que não conhece fronteiras. ƒ

Raquel Carneiro

3|3
CULTURA TELEVISÃO

A ERA DA
NOVELA DIGITAL
Com o sucesso de Todas as Flores, João Emanuel
Carneiro mostra que a chegada dos folhetins da Globo ao
streaming faz um bem danado ao gênero — e à
inteligência do público MARCELO MARTHE

AMBIGUIDADE Regina Casé, Ana Beatriz Nogueira e Fabio


Assunção em cena: falas amorais e mais liberdade criativa

ESTEVAM AVELLAR/TV GLOBO

1|7
NA INFÂNCIA, João Emanuel Carneiro ficou marcado pela
história de superação de sua tia-avó Naray, que era deficiente
visual — mas, a despeito disso, educou vários filhos graças
ao dinheirinho que ganhava dando aulas de canto. “Ela me
tocou muito”, disse o autor de folhetins a VEJA (leia a entre-
vista na pág. ao lado). As lições da parente agora rendem fru-
tos na ficção: ela é uma das inspirações de Todas as Flores,
novo melodrama do criador de Avenida Brasil. A protagonis-
ta é a deficiente visual Maíra, uma espécie de “gata-
borralheira pós-moderna”: ela foi abandonada na infância,
amarga a pobreza e, tempos depois, a mãe aparece do nada a
título de “resgatá-la”. Na verdade, a intenção é usar a medula
da garota para salvar a irmã megera dela.
A história alcançou repercussão invejável sem estar na vi-
trine do horário nobre da Globo: Todas as Flores é a primeira
novela concebida para o horário das 9 a ser lançada direta-
mente na plataforma Globoplay — e, mais que isso, formata-
da dentro do espírito do streaming. A migração da TV aberta
para a lógica maratonável é um caminho que a emissora já
vinha testando com séries e inaugurou em suas novelas no
ano passado, com a segunda temporada de Verdades Secre-
tas, sucesso da faixa das 11 do autor e colunista de VEJA
Walcyr Carrasco. Meses atrás, quando veio a notícia de que
Todas as Flores não mais seria exibida na televisão, e sim na
plataforma da Globo, os mais afoitos viram a decisão como
uma forma de rebaixamento. Não é: se há um lugar onde está
o futuro das novelas, esse lugar é o streaming.

2|7
RAFAELA CASSIAN/TV GLOBO

DESBRAVADOR Carneiro: trama


adaptada ao espírito do streaming

“A NOVELA É UM ITEM BÁSICO”


O autor João Emanuel Carneiro falou a VEJA sobre mudanças
nos folhetins.

3|7
Todas as Flores vai bem no streaming, mas a Globo
tem problemas de audiência no horário nobre com
Travessia. As novelas estão fadadas a mudar ou
morrer? Há espaço para as novelas tanto na TV aberta co-
mo no streaming. O folhetim tradicional ocupa um lugar espe-
cial na rotina do brasileiro. Ele é um regulador da vida, do ho-
rário de jantar, dos hábitos em casa. As pessoas precisam
disso como precisam de arroz, feijão, água e saneamento. A
gente percebe que a novela é um item básico quando visita o
interior do Brasil.

Como o streaming mexe nessa equação? Hoje, há


um contingente que prefere consumir novelas no dia e horá-
rio em que puder. Para esses espectadores, elas é que terão
de se ajustar aos horários de sua vida, uma liberdade que
veio com o streaming. A Globo faz a aposta certa ao levar as
novelas para esse novo mundo.

Quando soube que sua novela iria direto para o


Globoplay, teve decepção? Não, eu fiquei feliz. É um
desafio que eu nunca tinha enfrentado, e ao mesmo tempo é
tudo muito mais suave, a pressão é diferente.

A maré conservadora vai frear a tendência pro-


gressista das novelas? O futuro dirá, mas creio que a

4|7
TV e as novelas sempre estiveram à frente do seu tempo de
uma maneira muito natural. É uma tendência irreversível. O
streaming, na verdade, pode aprofundar esse processo.

Como? Na TV aberta, o autor tem de tomar certos cuida-


dos porque sua trama está entrando na casa das pessoas
sem pedir licença. Não dá para ter uma cena de sexo mais
esquisita, porque tem a avó de 95 anos e o neto de 4 vendo
juntos na sala. O streaming é diferente: a pessoa é que vai
atrás do que quer assistir, por sua conta e risco.

Qual seu objetivo ao explorar quebras de expec-


tativas, como fazer de uma paciente de câncer
vilã? Gosto de manipular o espectador nesse sentido.
Personagens multifacetados fazem o público questionar
suas convicções e ideologias. Acho isso importante num
momento em que as pessoas parecem viver cada uma den-
tro da sua própria igrejinha.

Por que tantos atores estão trocando as novelas


pelas séries? Porque novela é uma coisa sacrificante.
Você doa sua vida. A novela das 9 tradicional é tão caudalo-
sa que os atores do cinema americano não dariam conta se
tivessem de atuar nelas. Entendo quando artistas dizem
que não aguentam mais fazer novela.

5|7
A mudança de perspectiva acarre-
tou um banho de loja providencial. To-
das as Flores tem metade dos capítulos
de uma novela das 9 normal (são 85,
ante 180 da TV aberta) e elenco en-
xuto — medidas que reduzem a
famigerada “encheção de lingui-
ça”. Além disso, emulando a táti-
ca das séries, a história tem blo-
cos de cinco capítulos liberados
a cada semana — e será dividida
em duas temporadas.
Um dado irônico ajuda a ilumi-
nar as novas possibilidades abertas
pela chegada das novelas ao strea-
ming: agora, é possível comparar
em tempo real os erros e acertos de
diferentes autores. Ao viralizar no
boca a boca, Todas as Flores se tor-
nou carro-chefe do Globoplay. En-
ESTEVAM AVELLAR/TV GLOBO

quanto a trama de Carneiro ganha


elogios e empolga, sua contraparte na
velha tela da TV, Travessia, de Gloria

HEROÍNA CEGA Sophie como


Maíra: uma gata-borralheira
pós-moderna

6|7
Perez, angaria críticas à trama desconjuntada e pena com
sofríveis 23,1 pontos de audiência.
Mas não pense que a mera substituição de Travessia por
Todas as Flores no horário nobre, como já há torcida nas re-
des, teria grande efeito. O maior ganho do streaming é, afi-
nal, uma liberdade criativa impensável na TV aberta. Livre
das amarras da classificação indicativa, Carneiro pode in-
vestir em cenas de sexo realistas, personagens dúbios e falas
amorais. Além da mocinha cega a que Sophie Charlotte dá
vida, a trama subverte expectativas ao colocar Regina Casé,
conhecida por papéis de pessoa humilde do bem, como don-
doca dissimulada. A história também põe o espectador
diante de um paradoxo: Vanessa, a irmã vivida por Letícia
Colin, deveria inspirar consternação por ser doente — mas
se revela uma vilã. Todas as Flores é, ao mesmo tempo, um
exemplar da modernidade do gênero e um novelão desbra-
gado, digno dos tempos de uma Janete Clair. ƒ

7|7
CULTURA MÚSICA

CORAJOSA Selena: ela fez transplante de rim e ficou


entre a vida e a morte

ESTRELA DESPIDA
Em um documentário impactante, a atriz e cantora
Selena Gomez se abre com franqueza sobre os
problemas físicos e mentais que enfrentou, do lúpus à
bipolaridade AMANDA CAPUANO
INSTAGRAM @SELENAGOMEZ

1|3
EM AGOSTO de 2016, Selena Gomez cancelou a turnê do ál-
bum Revival e se internou numa clínica no estado do Tennes-
see, no sul dos Estados Unidos. Diagnosticada com lúpus, a atriz
e cantora enfrentava não apenas as dores físicas da doença, mas
crises severas de ansiedade, ataques de pânico e uma depressão
profunda ao decidir que deixar os holofotes por três meses era a
escolha certa para se recuperar — e salvar sua vida. A batalha
da estrela em busca da cura para seus males conduz o tocante
documentário Selena Gomez: Minha Mente e Eu, já disponível
na Apple TV+. Dirigida por Alek Keshishian, cineasta responsá-
vel pelo antológico Na Cama com Madonna (1991), a produção
expõe sem anestesia as mazelas físicas e emocionais do período
mais conturbado e assustador da vida da artista.
Gravado nos últimos seis anos, o filme é resultado da parceria
de longa data de Selena e Keshishian, que se conheceram em
2015 na produção do clipe do hit Hands to Myself. “Não vejo isso
como um trabalho. Desenvolvo amizades profundas com os ar-
tistas. É essa confiança que você vê nas telas”, disse o diretor a
VEJA. A relação estreita deu a ele acesso a mais de 200 horas de
gravação e quinze anos de diários da cantora, janelas essenciais
para retratar acontecimentos da vida de Selena que colocariam
medo em qualquer um. Basta lembrar que, em 2017, pouco depois
de se internar para tratar das questões mentais, ela se submeteu a
um transplante de rim por causa de complicações do lúpus, fican-
do entre a vida e a morte. O procedimento em si não é mostrado
no vídeo, mas o espectador acompanha de perto uma recidiva da
doença, que faz a jovem passar por tratamentos dolorosos para se

2|3
recuperar. Também nesse período, a cantora enfrentou um es-
gotamento emocional que a levou à reabilitação, com crises de
psicose e a descoberta da bipolaridade. Tudo isso enquanto li-
dava com o término definitivo com o namorado Justin Bieber,
em 2018 — os dois mantinham um relacionamento de idas e
vindas desde a adolescência. “Sou grata por estar viva”, confes-
sa ela, hoje aos 30 anos.
Lançada à fama ainda criança, no programa Barney e Seus
Amigos, Selena compõe o hall de estrelas infantis que cresce-
ram diante dos olhos do público e lidam com o preço da expo-
sição. Recentemente, cantoras como Taylor Swift e Demi Lo-
vato, que também começaram cedo, expuseram o lado feio do
sucesso em documentários sobre as inseguranças e transtor-
nos por trás da vida glamorosa. Com milhões de seguidores
no Instagram, elas abrem o jogo sobre suas fragilidades diante
das câmeras. “Muitos jovens são famosos na internet, mas têm
vidas sombrias e cheias de tristeza. Selena mostra a eles como
sair disso”, reflete o diretor.
Além de revelar seu sofrimento, a produção é um instru-
mento de Selena para mostrar aos fãs que há, sim, luz no fim
do túnel. Ela vocaliza seu ativismo em prol da saúde mental
e revela como achou um propósito em ações de voluntariado.
Uma das provas de sua volta por cima é a atuação como pro-
dutora e uma das protagonistas da premiada série cômica
Only Murders in the Building, dividindo a cena com as feras
Steve Martin e Martin Short. A estrela viu a cara do abismo
— e sobreviveu para contar a história. ƒ

3|3
WALCYR CARRASCO

PEQUENAS
CORRUPÇÕES
Criticamos o sistema, mas a maioria já
praticou algum delito

E SE EU DISSER que a maioria das pessoas, se não todas, já


entrou num esquema de corrupção, por menor que fosse? A
palavra tem peso: já se pensa em negociatas, milhões. Uma
vez comprei uma pequena adega climatizada. Quando fo-
ram entregar, a nota chegou com 30% do valor pago. Não
aceitei. Disse que chamaria a polícia caso não me fosse en-
tregue a nota correta. Em meia hora, chegou a nota. É osso
ter disposição para brigar todas as vezes que alguém tenta
pular a nota. Certa vez, por exemplo, eu estava em um su-
permercado num bairro chique de São Paulo. Uma senhora
à minha frente deu um dinheirinho para o açougueiro, para
garantir um pedaço de carne melhor. Eu me senti até enjoa-
do. Tem de corromper até o açougueiro?
E amigo que vem do exterior? Nunca vi alguém declarar
uma compra maior. Enfiam tudo na mala e torcem para não
ser pegos pela Alfândega na chegada. Mas é honesto frau-
dar os impostos? Óbvio que não. Só que ninguém se pergun-
ta sobre isso. A mesma pessoa que ataca ferozmente um po-

1|3
lítico bota as roupas de grife compradas no exterior na mala.
E acha que tudo bem.
Carta de habilitação? O termo “comprar carta” me acom-
panha desde adolescente. Nunca comprei. Na minha juven-
tude, fiz exame teórico e prático e passei. Faz um bom tem-
po. Mas durante toda a vida ouvi falar de esquemas. Para
passar no exame de renovação, por exemplo. Eu fiz o curso
exigido na época, acordando cedinho, ui, ui, ui. Tive conhe-
cido que até fez piada de mim. Era muito fácil armar um es-
quema para passar sem aulas. Também é comum alguém
indicar outro nome para levar a multa. Assim não ganha os
pontos nem tem a carteira cassada. Oferecer caixinha para
fiscal de trânsito para evitar multa pesada também é co-
mum. Pela lei, podiam dar voz de prisão ao corruptor.
As pequenas fraudes estão por todo lado. Há quem dê
golpe nos planos de saúde, pedindo recibo médico de outra
pessoa para tascar o reembolso. Nem todos os médicos acei-
tam fornecer. Fraudar é uma atividade que começa bem ce-

“A mesma pessoa que


ataca um político bota
as roupas de grife compradas
no exterior na mala”
2|3
do na vida. Quando um aluno cola na prova, é fraude. Muita
garota ou rapaz entra em uma loja, vai para o provador, ex-
perimenta algumas peças. E troca as etiquetas, para levar a
mais cara pelo preço da barata. Quando contam essas frau-
des, só provocam risos, não indignação.
Há pequenas corrupções que são até estimuladas. O que
me assusta é que as pessoas em geral não veem problema
nesses gestos de corrupção. São parte do cotidiano e, acei-
tos, se tornam um modo de viver.
A gente reclama de políticos enfiados em escândalos. Fala-
se muito das quantias roubadas, dos esquemas maiores. Mas
eu acredito que a corrupção só acabará quando para nenhum
de nós for “normal” estacionar em local proibido. Ou furar
uma fila exercendo influência junto a amigos. Qualquer cor-
rupção é corrupção. Não se pode conviver com ela, em qual-
quer nível. Ou ela continuará como uma doença. Contagia
tanto o dia a dia de cada um de nós, ao país como um todo.
Dizer não à corrupção é uma tarefa necessária. ƒ

3|3
CULTURA VEJA RECOMENDA
ALEX BAILEY/NETFLIX

MODERNINHA Millie Bobby Brown vive Enola Holmes: irmã


de Sherlock segue os passos do detetive famoso

TELEVISÃO
ENOLA HOLMES 2 (disponível na Netflix)
Enola Holmes (Millie Bobby Brown) é uma jovem à frente
do seu tempo. Ambiciosa, ela persegue uma carreira como
investigadora seguindo os passos do irmão famoso, o deteti-
ve Sherlock Holmes (Henry Cavill). Na sequência do longa
que apresentou a personagem ao mundo, lançado em 2020,

1|9
a detetive novata é procurada por uma criança que pede aju-
da para encontrar sua irmã, que desapareceu sem deixar
vestígios (ao menos para os leigos). Determinada a descobrir
o paradeiro da mulher e, de quebra, provar seu faro investi-
gativo, Enola se embrenha em um caso perigoso, que se re-
vela muito maior do que um simples desaparecimento. Para
solucionar o mistério, recebe a ajuda do irmão experiente,
estabelecendo uma parceria divertida e inteligente que in-
troduz no filme, ainda, outro personagem famoso de Arthur
Conan Doyle.

2|9
MEU POLICIAL
(disponível no Amazon Prime Video)
Em 1950, os jovens Tom Burgess (Harry Styles) e Marion
Taylor (Emma Corrin) se apaixonam na Inglaterra. O ro-
mance é balançado pela chegada de Patrick Hazelwood
(David Dawson), curador de arte que se envolve romantica-
mente com Tom. Com a homossexualidade proibida na In-
glaterra, o trio vive uma dinâmica amigável no início, mas
a relação é fadada ao fracasso. Anos depois, já idoso, Pa-
trick retorna à vida de Marion e Tom, desenterrando senti-
mentos abafados. Inspirado no livro de Bethan Roberts, o
drama transita entre duas linhas temporais para narrar o
caso real de uma paixão frustrada pelo preconceito.
PARISA TAGHIZADEH/PRIME VIDEO

AMOR PROIBIDO Dawson, Corrin e


Styles: um triângulo amoroso explosivo

3|9
LIVRO
ELIZABETH FINCH,
de Julian Barnes (tradução de Léa Viveiros de Castro;
Rocco; 192 páginas; R$ 59,90 e 29,90 reais em e-book)
Em seu curso de cultura e civilização, Elizabeth Finch é o tipo
de professora instigante que promete ensinar os alunos a pensar
sozinhos. O estudante Neil, narrador do novo romance do in-
glês Julian Barnes, fica encantado e desenvolve um amor platô-
nico por ela. Quando Elizabeth morre, ele fica com seus diários,
e a história se divide entre as tentativas de Neil de desvendar
aquela figura enigmática e de dar continuidade ao legado dela.
Elegante como sempre, Barnes tempera o livro com reflexões
sagazes sobre história e religião. ƒ

4|9
OS MAIS VENDIDOS
CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 É assiM que cOMeça
Colleen Hoover [1 | 2] GALERA RECORD

2 É assiM que acaba


Colleen Hoover [2 | 64#] GALERA RECORD

3 FOgO e sangue
George R.R. Martin [6 | 17#] SUMA DE LETRAS

4 a reVOluçãO dOs bicHOs


George Orwell [0 | 202#] VÁRIAS EDITORAS

5 VeritY
Colleen Hoover [5 | 30#] GALERA RECORD

6 nas pegadas da aleMOa


Ilko Minev [8 | 31#] BUZZ

7 a Hipótese dO aMOr
Ali Hazelwood [3 | 17] ARQUEIRO

8 tOrtO aradO
Itamar Vieira Junior [0 | 80#] TODAVIA

9 a bibliOteca da Meia-nOite
Matt Haig [7 | 15#] BERTRAND BRASIL

10 tOdas as suas iMperFeições


Colleen Hoover [4 | 47#] GALERA RECORD

5|9
NÃO FICÇÃO
1 MulHeres que cOrreM cOM Os
lObOs Clarissa Pinkola Estés [1 | 130#] ROCCO

2 passapOrte 2030
Guilherme Fiuza [2 | 11#] AVIS RARA

3 eM busca de MiM
Viola Davis [3 | 15#] BEST SELLER

4 cOMO as deMOcracias MOrreM


Daniel Ziblatt e Steven Levitsky [4 | 52#] ZAHAR

5 escraVidãO — VOluMe 3
Laurentino Gomes [0 | 16#] GLOBO LIVROS

6 sapiens: uMa breVe História da HuManidade


Yuval Noah Harari [8 | 296#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

7 O príncipe
Nicolau Maquiavel [0 | 13#] VÁRIAS EDITORAS

8 pequenO Manual antirracista


Djamila Ribeiro [0 | 102#] COMPANHIA DAS LETRAS

9 Mentes perigOsas
Ana Beatriz Barbosa Silva [6 | 130#] PRINCIPIUM

10 Mentes inquietas
Ana Beatriz Barbosa Silva [10 | 45#] PRINCIPIUM

6|9
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 O pOder da cura
Reginaldo Manzotti [3 | 14#] PETRA

2 Os segredOs da Mente MiliOnária


T. Harv Eker [2 | 391#] SEXTANTE

3 Mais espertO que O diabO


Napoleon Hill [1 | 181#] CITADEL

4 O HOMeM Mais ricO da babilônia


George S. Clason [4 | 100#] HARPERCOLLINS BRASIL

5 O pOder da autOrrespOnsabilidade
Paulo Vieira [0 | 81#] GENTE

6 queM pensa enriquece


Napoleon Hill [6 | 106#] CITADEL

7 FOque a açãO, cOleciOne resultadOs


André Heller [0 | 2#] GENTE

8 12 regras para a Vida


Jordan B. Peterson [8 | 37#] ALTA BOOKS

9 dO Mil aO MilHãO
Thiago Nigro [9 | 170#] HARPERCOLLINS BRASIL

10 a raiVa nãO educa. a calMa educa.


Maya Eigenmann [7 | 5#] ASTRAL CULTURAL

7|9
INFANTOJUVENIL
1 atÉ O VerãO terMinar
Colleen Hoover [1 | 38#] GALERA RECORD

2 aMOr & gelatO


Jenna Evans Welch [5 | 67#] INTRÍNSECA

3 HarrY pOtter e a pedra FilOsOFal


J.K. Rowling [3 | 364#] ROCCO

4 as aVenturas de MiKe 3: MudandO de casa


Gabriel Dearo e Manu Digilio [4 | 8] OUTRO PLANETA

5 eu e esse Meu cOraçãO


C.C. Hunter [2 | 7#] JANGADA

6 bOX — O pOVO dO ar
Holly Black [0 | 7#] GALERA RECORD

7 cOleçãO HarrY pOtter


J.K. Rowling [7 | 133#] ROCCO

8 nOVeMbrO, 9
Colleen Hoover [6 | 30#] GALERA RECORD

9 cOraline
Neil Gaiman [8 | 50#] INTRÍNSECA

10 VerMelHO, brancO e sangue aZul


Casey McQuiston [10 | 82#] SEGUINTE

8|9
[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas
o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Saraiva, Balneário Camboriú: Curitiba, Belém:
Leitura, Saraiva, SBS, Barra Bonita: Real Peruíbe, Barueri: Saraiva, Belo Horizonte: Disal,
Leitura, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau: Curitiba, Brasília:
Disal, Leitura, Livraria da Vila, Saraiva, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha:
Santos, Campina Grande: Cultura, Leitura, Campinas: Cultura, Disal, Leitura, Livraria da
Vila, Loyola, Saber e Ler, Vozes, Campo Grande: Leitura, Saraiva, Campos dos Goytacazes:
Leitura, Canoas: Santos, Capão da Canoa: Santos, Cascavel: A Página, Caxias do Sul: Saraiva,
Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma:
Curitiba, Cuiabá: Saraiva, Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar, Livraria
da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Livrarias Catarinense, Saraiva, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Saraiva, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Kunda Livraria
Universitária, Franca: Saraiva, Frederico Westphalen: Vitrola, Goiânia: Leitura, Palavrear,
Saraiva, SBS, Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba: Santos,
Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Livraria da Vila, Leitura, SBS, Ipatinga: Leitura,
Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Saraiva, Joinville: A Página,
Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Saraiva, Vozes, Jundiaí: Leitura, Saraiva, Limeira: Livruz,
Lins: Koinonia Livros, Londrina: A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura,
Maceió: Leitura, Manaus: Leitura, Saraiva, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: Leitura,
Saraiva, Natal: Leitura, Saraiva, Niterói: Blooks, Saraiva, Nova Iguaçu: Saraiva, Palmas:
Leitura, Paranaguá: A Página, Passo Fundo: Santos, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis: Vozes,
Olinda: Saraiva, Osasco: Saraiva, Poços de Caldas: Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre:
A Página, Cameron, Cultura, Disal, Santos, Saraiva, SBS, Porto Velho: Leitura, Recife:
Cultura, Disal, Leitura, Saraiva, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila,
Saraiva, Rio Claro: Livruz, Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Saraiva, SBS, Rio
Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, Saraiva, SBS, Santa Maria:
Santos, Santana de Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Saraiva, Santos: Loyola, Saraiva,
São Caetano do Sul: Disal, Livraria da Vila, São José: A Página, Curitiba, São José do Rio Preto:
Leitura, Saraiva, São José dos Campos: Curitiba, Leitura, São José dos Pinhais: Curitiba, Serra:
Leitura, Sete Lagoas: Leitura, Sorocaba: Saraiva, São Luís: Leitura, São Paulo: A Página,
Blooks, CULT Café Livro Música, Cultura, Curitiba, Disal, Drummond, Leitura,
Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel Brooklin, Saraiva, SBS, Vozes, WMF
Martins Fontes, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina:
Leitura, Uberlândia: Leitura, Saraiva, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura,
Saraiva, Vitória: SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: A Página, Amazon, Americanas.
com, Authentic E-commerce, Boa Viagem E-commerce, Bonilha Books, Cultura,
Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza, Saraiva, Shoptime, Submarino,
Vanguarda, WMF Martins Fontes

9|9
JOSÉ CASADO

A CHANCE
LULA tem a chance de limpar a área nas relações com o Con-
gresso e, ao mesmo tempo, reduzir a margem de risco de im-
passes com o Judiciário.
Ele planeja governar “sem tentativas de exorbitar, intervir,
controlar ou cooptar”. Ou seja, promete seguir a letra da
Constituição, cristalina sobre a separação, independência e
harmonia entre os poderes.
Tomadas pelo valor de face, as palavras sugerem um pre-
sidente eleito disposto a exorcizar assombrações do Planalto,
como aquelas que pariram escândalos do mensalão, do petro-
lão e, sob Jair Bolsonaro, do orçamento secreto, ou paralelo.
Sobram-lhe motivos para esconjurar malfeitorias como
as ocorridas entre 2003 e 2010. Justa ou injustamente, elas
roubaram-lhe 580 dias de vida. Absolvido ou não nas ur-
nas, Lula tem uma bela oportunidade de mudar maus há-
bitos e costumes na política nacional: basta assumir com o
Congresso um compromisso real, efetivo e imediato sobre
o fim da reeleição.
Desastres na história brasileira costumam derivar de cri-
ses econômicas e sociais. O da reeleição é uma exceção. É ruí-
na produzida exclusivamente no jogo político. Há um quarto

1|4
de século intoxica presidentes, governadores e prefeitos, le-
vando-os ao delírio da permanência no poder.
O impacto é crescente nos cofres públicos. Neste ano, o
custo dos projetos de reeleição do presidente, de 509 depu-
tados federais e senadores, e de vinte governadores deve
ultrapassar 200 bilhões de reais. Bolsonaro perdeu, mas
59% dos parlamentares federais e 90% dos governadores
se reelegeram.
Os gastos confirmam a eleição brasileira como uma das
mais caras do planeta. Numa conta de padaria, torrou-se
dinheirama 55% maior que o orçamento anual da Educa-
ção. É paradoxal num país onde metade dos eleitores não
terminou o ensino médio e 35% nem sequer concluíram o
ciclo fundamental.
Isso equivale a 39 bilhões de dólares, ou seja, o dobro do
excepcional lucro da Petrobras no ano passado. Tem a dimen-
são do buraco identificado pela equipe de Lula no Orçamento
de 2023, o primeiro do novo governo.
A reeleição começou a ser parida em 1994, com a redução
do mandato presidencial de cinco para quatro anos. Na épo-
ca, Lula reunia 40% das intenções de voto. Acabou atropela-
do por Fernando Henrique Cardoso, patrono da nova era na
economia de um país exaurido por aguda crise inflacionária.
Com um semestre no poder, o “homem do Real” plantou a
ideia do segundo mandato. Numa noite de inverno em Brasí-
lia, na terça-feira 11 de julho de 1995, viu a proposta florescer
na Praça dos Três Poderes: “Assunto delicado, acho difícil por

2|4
“Se quiser, Lula já pode
liquidar com a reeleição”
causa da cultura política brasileira e não me comprometo a
ser candidato. Vejo uma vantagem: a de que assim os outros
se assustam e não lançam uma candidatura desde já”. Com
três dúzias de palavras, em memórias gravadas, mascarou
seu pecado favorito — a vaidade.
A reeleição adornou a Constituição em 1997. Fernando
Henrique precisou de 23 anos para admitir: “Historicamente
foi um erro”. Ficou oito anos no poder, assim como Lula, o su-
cessor. Dilma Rousseff teve cinco anos, interrompida por im-
peachment. Bolsonaro foi contido pelo efeito de uma novida-
de: a insurgência eleitoral contra o atraso.
Anúncio de fim da reeleição tem sido recorrente em dis-
cursos de candidatos à Presidência. Lula disse que a liquidaria
em 2002. Bolsonaro também: “O que eu pretendo, tenho con-
versado com o Parlamento, também, é fazer uma excelente
reforma política para acabar com o instituto da reeleição, que
no caso começa comigo, se eu for eleito”.
Oito dias depois, estava eleito. Quando um repórter lhe
perguntou sobre o projeto para acabar com a reeleição, mu-
dou de rumo: “A possibilidade de não concorrer à reeleição é
se conseguir fazer um acordo para aprovar a reforma política.
Não é apenas ‘eu não vou concorrer à reeleição’”.

3|4
Lula recauchutou a jura de duas décadas atrás com o argu-
mento da aposentadoria em 2026: “Daqui a quatro anos, a
gente vai ter gente nova disputando eleições. Vai ter gente no-
va sendo candidato a presidente. O que eu quero é deixar o
país preparado”.
Já pode escolher o dia para pagar a promessa. Basta telefo-
nar ao senador Rodrigo Pacheco e apoiar a votação imediata
da emenda constitucional que há meses adormece na mesa da
presidência do Senado. Se preferir, pode anunciar um projeto
e enviá-lo ao Congresso logo na abertura do expediente da se-
gunda-feira 2 de janeiro. Aos 77 anos, seria prudente começar
o terceiro mandato vacinado contra o vírus da SPP, síndrome
de permanência no poder. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

4|4

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