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CARTA AO LEITOR

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MATT WINKELMEYER/GETTY IMAGES

SYLVAIN GABOURY/PATRICK MCMULLAN/GETTY IMAGES


CLAUDIO GATTI

ELENCO Jodie Foster, Sofia Coppola, Jim Allison e Bruce Dickinson


(em sentido horário): personagens entrevistados por VEJA nesta edição

A FORÇA DA
REPORTAGEM
UM DOS SEGREDOS da excelência do jornalismo de
VEJA é a multiplicidade de temas, em riqueza afeita a aten-
der os mais diversos perfis. Na edição da semana passada,
em reportagem de capa, a mais completa entrevista feita
com o ministro Alexandre de Moraes, do STF, gerou intensa
repercussão em outros órgãos de imprensa e nas redes so-

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ciais, e ajudou a esclarecer as tenebrosas transações à som-


bra do movimento golpista de 8 de janeiro do ano passado,
triste capítulo da recente história do Brasil. Esta semana, um
dos destaques é o mergulho nas 4 000 páginas da investiga-
ção que apurou a morte do ex-capitão Adriano da Nóbrega,
o chefe do chamado Escritório do Crime, miliciano acusado
de envolvimento com o jogo do bicho e com o clã Bolsonaro
em alguns episódios nebulosos.
Aos assuntos do escaninho político, por vezes áridos, mas
necessários, fortes e inevitáveis, VEJA sempre somou textos
que visam enriquecer as informações em outros setores do
interesse humano — na medicina, na cultura, no esporte, on-
de houver conhecimento e notícias que mereçam ser explora-
dos e explicados. O editor de saúde Diogo Sponchiato trouxe
para as Páginas Amarelas as respostas sagazes do imunolo-
gista americano Jim Allison, prêmio Nobel por suas desco-
bertas em torno da imunoterapia, o mais moderno recurso
para o tratamento de câncer. “É o exemplo de um cientista
obstinado que mudou a história”, diz Sponchiato.
Refazer a história, aliás, cada qual em sua atividade, foi o
objetivo de outros personagens de relevo da atual edição.
A repórter Kelly Miyashiro ouviu a atriz e diretora Jodie Fos-
ter, estrela da quarta temporada da série True Detective, que
tratou com ênfase das narrativas centralizadas em mulheres.
Em toada semelhante seguiu a diretora americana Sofia Co-
ppola — cujo filme Priscilla acaba de chegar às telas no Bra-
sil —, entrevistada para a seção Conversa pela editora Raquel

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Carneiro. “É nome incontornável do cinema, mas com apelo


especial para espectadores mulheres”, diz Raquel. “Logo, foi
um deleite profissional e pessoal ouvi-la.” Prazer dividido
com o repórter Felipe Branco Cruz, que ouviu o roqueiro
Bruce Dickinson, da banda Iron Maiden, hoje em carreira so-
lo, na música e nos quadrinhos, em bate-papo regado — pas-
mem — a chá com leite. “Grandes estrelas do rock são sem-
pre imprevisíveis, porque há o risco de dar errado sem aviso
prévio”, diz Branco Cruz. “As razões são diversas. Pode ser a
necessidade de poupar a voz para o show, a falta de vontade
de falar com a imprensa, qualquer coisa. Felizmente Dickin-
son não é dessa turma.” VEJA, em sua missão de informar,
entreter e fortalecer a democracia, estará sempre onde há no-
tícia — transportando o leitor para perto de figuras que me-
recem ser levadas à ribalta, com inteligência. ƒ

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ENTREVISTA JIM ALLISON
DADA FILMSA

“PODEMOS
FALAR EM CURA”
Prêmio Nobel de Medicina, o cientista americano que
é um dos pais da imunoterapia para o câncer conta
por que vivemos um divisor de águas contra a
doença — fruto da crença na ciência

DIOGO SPONCHIATO

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QUALQUER LIVRO que pretenda contar a história da


medicina contra o câncer não poderá deixar de dedicar
um capítulo ao imunologista Jim Allison, do prestigiado
MD Anderson Cancer Center, no Texas. Graças às suas
descobertas, hoje contamos com o que já se batizou de
quarto pilar no tratamento do câncer, a imunoterapia,
que veio reforçar o arsenal de cirurgia, químio e radiote-
rapia. As pesquisas deste americano de 75 anos abriram
caminho a uma novíssima classe de medicamentos que
tiram o freio do sistema imune para reconhecer e contra-
atacar tumores — um dos motivos pelos quais a doença,
insidiosa, tapeia o organismo. Não por menos, Allison di-
vidiu o Prêmio Nobel de Medicina de 2018 com o japonês
Tasuku Honjo. No momento em que a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) acaba de aprovar a ter-
ceira categoria de imunoterápicos no Brasil, o professor
falou a VEJA com exclusividade sobre o papel indispen-
sável da ciência básica para trazer à tona inovações e alí-
vios para os males da humanidade. E por que, felizmente,
já podemos falar na cura de alguns tipos de câncer.

Uma série de avanços na medicina é fruto de pesqui-


sas que, à primeira vista, não têm uma aplicação práti-
ca. Por que é crucial investir nelas? Para saber como
funciona qualquer coisa, é preciso descobrir quais são as
alavancas e os botões, o que você pode empurrar ou
apertar, digamos assim. Você realmente precisa saber as

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estruturas em jogo antes de começar a mexer com elas.


No mínimo para perceber se aquela ideia não poderá
trazer danos a alguém. No meu campo, quando desven-
daram lá atrás que havia um fator de crescimento para
as células T (unidades de defesa que reagem contra o
câncer), simplesmente começaram a usar toneladas des-
sa substância nos pacientes para tentar tratar o proble-
ma e não notaram que esses fatores faziam muito mais
do que induzir o crescimento das células, o que deixava
as pessoas tratadas bastante doentes, algumas até che-
garam a morrer. Tempos depois, cientistas tentaram fa-
zer uma vacina terapêutica contra o câncer, e ela tam-
pouco funcionou. Até que, em nosso trabalho, demons-
tramos que o câncer consegue desligar sinais que ativam
as células de defesa. Então poderíamos imunizar os pa-
cientes de outra forma para mudar essa história. Quan-

“Não acredito que um dia iremos


abrir mão totalmente da
quimioterapia ou da radioterapia,
mas teremos vias muito menos
tóxicas de utilizá-las nos pacientes”
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do eu era jovem, havia um pessoal na Universidade do


Texas estudando a vida sexual das moscas — até zomba-
vam disso. Mas, graças a esse conhecimento, eles des-
vendaram um jeito de esterilizar os machos do inseto,
que passavam doenças ao gado, e os soltaram no am-
biente, cortando, assim, o ciclo de reprodução das mos-
cas. Isso salvou a indústria pecuária local naquela épo-
ca. É por essas e outras que a ciência básica é incrivel-
mente importante.

Foi assim que se chegou também à imunoterapia. Qual


o trunfo dela? Bem, quando você intervém no sistema
imunológico, não no câncer em si, pode pensar que esse
seria um tratamento universal para os tumores. É dife-
rente de quando você inventa um medicamento focado
numa mutação específica, que só vai tratar aquele tipo
de câncer. Então, com a imunoterapia, levantamos a
possibilidade de atacar todos os cânceres, porque a dro-
ga não mira o tumor em si. É claro que a estratégia não é
perfeita. Mas é uma abordagem diferente das demais.
O ponto é que o sistema imunológico pode detectar
qualquer mutação genética potencialmente perigosa.
Não importa se ela tenha a ver com o câncer ou não. Se
tem alguma coisa numa célula que não deveria estar lá,
a imunidade pode matá-la. Sabemos, contudo, que os tu-
mores variam muito entre si. E podem apresentar um
grande número de mutações. Os melanomas (câncer de

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pele mais agressivo), por exemplo, são causados por mu-


tações deflagradas pela radiação ultravioleta da luz so-
lar. O câncer de rim pode ser provocado por exposição a
carcinógenos na fumaça... Mas é difícil tratar esses tu-
mores com muitas mutações por meios convencionais.
Só no melanoma pode haver mil mutações diferentes
por célula. Com a imunoterapia, podemos focar o siste-
ma imunológico para acertar o alvo.

E o que isso muda na vida do paciente? O que empolga


hoje é o fato de que podemos curar pacientes. E quero
dizer curar mesmo. Eu costumava ter muito cuidado há
dez anos ao usar essa palavra, mas, agora, com milhares
de pessoas tratadas com sucesso pela imunoterapia, po-
demos falar em cura. Ao menos no sentido de décadas
de vida sem precisar de um tratamento. Ao obter uma
boa resposta imunológica, com a imunoterapia chega-
mos a curar 60% dos casos de melanoma. Antes de
2011, quando não tínhamos esse recurso, a doença era
essencialmente incurável. Atualmente, algo entre 55% e
60% dos pacientes com melanoma em estágio avançado
estão vivos anos após o tratamento. E temos resultados
animadores para câncer de rim, bexiga e pulmão.

Mas essa tática é aplicável a qualquer tipo de câncer?


Estamos trabalhando nisso. O que sabemos hoje é que é
possível promover curas para alguns tipos de câncer, mas

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não para todos eles. Sem dúvida, de qualquer forma, o


cenário é bem melhor do que alguns anos atrás. Então
continuamos a estudar e a pensar em maneiras de atingir
de modo mais eficaz outros tumores, assim como temos
testado a combinação de abordagens: químio mais imu-
noterapia, radiação mais imunoterapia... Veja, não acre-
dito que um dia iremos abrir mão totalmente da quimio-
terapia ou da radioterapia, mas teremos vias muito me-
nos tóxicas de utilizá-las nos pacientes. Pensando na
imunoterapia, é possível que demoremos um pouco para
chegar a alguns tipos de câncer, mas sou otimista quanto
a podermos fazer alguma coisa por esses pacientes.

Que outras fronteiras mais o animam no tratamento


oncológico? Hoje temos a possibilidade de, ao identifi-
car um antígeno nas células tumorais, coletar células de
defesa do paciente e introduzir nelas genes para que
possam buscar esses alvos e atacar o câncer. Isso funcio-
na em leucemias, por exemplo, mas ainda não em tumo-
res sólidos. A questão é que não temos tantos alvos para
essa terapia, a CAR-T. Outra dificuldade é a complexida-
de do processo. Você precisa pegar linfócitos T do pa-
ciente, introduzir genes neles, fazê-los crescer em labo-
ratório e injetá-los no indivíduo. Eu acredito que esse ti-
po de terapia tem seu lugar e vai melhorar no futuro,
mas o desafio é como tratar 5 milhões de pessoas por
ano dessa forma.

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No que o senhor e sua equipe andam trabalhando no la-


boratório? Estamos lidando com os dois alvos principais
da imunoterapia, que até recentemente eram os únicos
utilizados nesse tratamento, o CTLA-4 e o PD-1. Tanto
esses alvos como as drogas que os miram envolvem pro-
priedades e características diferentes. Sabemos, por
exemplo, que os anticorpos para o PD-1 não fornecem
uma resposta tão durável no organismo. Com o CTLA-4
temos uma memória de defesa inerentemente melhor.
Então estamos investigando os mecanismos moleculares
detalhadamente e maneiras de combiná-los para que
funcionem melhor. Mais recentemente, uma terceira mo-
lécula foi desenvolvida, tendo como foco um novo alvo,
o LAG-3. Então, o que me preocupa hoje é como pode-
mos unir melhor esses agentes, sem adicionar tanta toxi-
cidade ao tratamento, para combater o tumor.

“A minha busca partia de uma questão:


o que você precisa fazer para matar o
câncer? Que truques podemos tentar
para sermos bem-sucedidos?
O Nobel foi um reconhecimento”
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O que o fascina tanto no sistema imune? Quando eu co-


mecei na área, só conhecíamos os linfócitos B, os produ-
tores de anticorpos. São células que fabricam aquelas
proteínas que circulam no sangue e, ao ver um vírus,
buscam neutralizá-lo. Naquela época, na imunologia, fa-
lava-se basicamente neles. Até que assisti a uma palestra
de um professor que nos contou das descobertas sobre
novas células, os linfócitos T. Eles se desenvolvem numa
glândula no meio do peito, o timo, e, depois de maturar,
percorrem todo o corpo, procurando literalmente se há
algo de errado pelo organismo, como uma célula infec-
tada por um vírus ou, embora não houvesse certeza na-
quela época, uma célula cancerosa. Foi a coisa mais le-
gal que eu tinha ouvido até então. Daí comecei a imagi-
nar como aquilo funcionava, a tentar descobrir como
uma célula de defesa que percorre toda parte pode ata-
car só células doentes e não destruir as sadias. Como re-
cebi formação em bioquímica, apliquei meus conheci-
mentos ao me mudar para a imunologia no fim dos anos
1960 e início dos 1970. Porque, além do fascínio pelas
descobertas em si, pensei que, se conseguíssemos res-
ponder a algumas perguntas, também poderíamos tratar
melhor o câncer.

Qual a pergunta de 1 bilhão de dólares na imunologia


hoje? Olha, acho que há muitas coisas que ainda não sa-
bemos, como a conexão entre o sistema nervoso e o sis-

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tema imunológico. Estamos investigando, por exem-


plo, como neurotransmissores usados na conversa en-
tre os neurônios também podem participar da comuni-
cação com o sistema imune. Ao entender melhor isso,
poderemos vislumbrar como essa história se encaixa
na saúde mental. Sabemos que a imunidade tem um pa-
pel na doença de Alzheimer. Então essas informações
podem abrir novas perspectivas de tratar distúrbios
neurodegenerativos que se desenvolvem com o enve-
lhecimento.

Em que medida a pandemia turbinou os estudos vol-


tados à imunidade? O coronavírus deu um grande em-
purrão para pesquisas que, na realidade, já vinham
sendo feitas havia pelo menos vinte anos. Com as no-
vas vacinas de RNA, agora podemos pegar apenas um
gene para despertar a resposta do sistema imunológico
— não precisamos mais do vírus inteiro, como no pas-
sado. Também estamos aperfeiçoando o entendimento
e o potencial uso dos linfócitos. Porque, no fim das
contas, a célula T está no centro de toda a história, tan-
to nas infecções como no câncer. Fora os avanços em
genética, uma descoberta interessante nos últimos
anos é a de um componente do sistema imunológico
chamado estruturas linfoides terciárias. Elas reúnem
tanto linfócitos B como T e, quando os pacientes as
apresentam, provavelmente rejeitarão seus tumores.

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Essas estruturas estão relacionadas a uma melhor rea-


ção à doença e à maior sobrevivência, mas temos de en-
tender melhor seu papel no tratamento.

O Prêmio Nobel mudou sua vida? Bem, um pouco (ri-


sos). É divertido estar a caminho da aposentadoria, com
tantas celebrações, e perceber que algumas coisas no
tratamento do câncer teriam sido impossíveis sem o seu
trabalho. No passado, muitas vezes disseram que eu era
um tolo por insistir numa linha de pesquisa. Mas o pon-
to é que a minha busca partia de uma questão: o que vo-
cê precisa fazer para matar o câncer? Que truques pode-
mos tentar para sermos bem-sucedidos nisso? O Prêmio
Nobel foi um reconhecimento por esse trabalho. E há to-
da uma ciência sólida por trás disso. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

A FRANÇA DE CARA NOVA

PONDO o pragmatismo acima da finesse, o presidente da


França, Emmanuel Macron, mandou sua primeira-ministra
renunciar. Ela obedeceu. Na segunda-feira 8, Élisabeth
Borne, tecnocrata no cargo há apenas um ano e seis meses,
apresentou sua ressentida carta de afastamento. “O senhor
me comunicou o desejo de mudar o primeiro-ministro”,
disse, laconicamente. Foi o primeiro passo de uma muito
LUDOVIC MARIN/AFP

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antecipada reforma ministerial. Para o lugar de Borne,


Macron indicou Gabriel Attal, ex-deputado de apenas
34 anos, macronista de primeira hora e o mais bem
avaliado político da atual administração.
Abertamente gay, solteiro após uma relação firme de quase
dez anos, Attal serviu como porta-voz do governo durante a
pandemia e conquistou simpatias pela atitude calma e
decidida. Com a indicação de Attal para primeiro-ministro,
cargo que na França equivale a uma espécie de faz-tudo do
presidente, Macron espera, a poucos meses da abertura da
Olimpíada de Paris, melhorar sua própria imagem e o
prestígio de seu partido, o Renascimento, desgastados por
medidas impopulares. O novo primeiro-ministro, centrista
com um pé na direita, também se encaixa na estratégia do
presidente de agradar aos conservadores e frear a ascensão
de Marine Le Pen, a líder da extrema direita que ele
derrotou na eleição de 2022. Nas pesquisas de intenção de
voto na disputa pelas cadeiras do Parlamento Europeu,
marcada para junho, o Reagrupamento Nacional dela está 8
pontos à frente do Renascimento dele. A França se mexe. ƒ

Caio Saad

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CONVERSA SOFIA COPPOLA

HERDEIRA
Sofia: roteiros
sobre o
amadurecer
de mulheres
em gaiolas
de ouro
WILLY SANJUAN/INVISION/AP/IMAGEPLUS

“CRESCI NUMA CASA


MUITO MASCULINA”
Filha do cineasta Francis Ford Coppola, a diretora de 52
anos fala sobre seus filmes de feminilidade lancinante —
como Priscilla, produção em cartaz baseada na vida da
ex-esposa de Elvis Presley

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Seu filme narra a conturbada relação de Elvis e Priscilla


Presley pelo ponto de vista dela — que iniciou a relação
aos 14 anos. O que mais a atraiu nessa trama real? Fi-
quei surpresa quando li a autobiografia Elvis e Eu. Foi como
descobrir o ser humano por trás do mito. Gosto de saber
como as pessoas se tornam quem são. Principalmente as
mulheres, pois passamos por experiências e cobranças in-
tensas na adolescência, quando ainda estamos descobrindo
quem somos.

A trajetória de Priscilla, jovem que consegue se libertar


da gaiola dourada onde vivia com o marido, foi compa-
rada à de outra personagem de um filme seu, a rainha
francesa Maria Antonieta. Como vê o paralelo? Enten-
do a conexão. Cheguei a pensar se eram histórias parecidas
demais, mas não são. Priscilla conduziu a própria história,
não ficou presa, como Maria Antonieta; ela achou forças pa-
ra se libertar, e isso é fascinante.

Lisa Marie, filha do casal, foi contra o filme, dizendo


que o pai seria retratado como vilão — e impediu o uso
das músicas dele na trilha. Como foi enfrentar esse em-
pecilho? Foi uma pena, já que a intenção não era essa. Eu
queria ter usado músicas do Elvis, mas, por fim, encontra-
mos saídas criativas, reunindo uma ótima trilha sonora fo-
cada na Priscilla. Também construímos do zero uma Grace-
land (mansão do cantor) no set em Toronto.

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Seu pai, Francis Ford Coppola, dirigiu alguns dos filmes


mais masculinos da história, como O Poderoso Chefão.
Já sua abordagem é sob uma ótica feminina. Vocês con-
versam sobre essa distinção? Eu cresci em uma casa mui-
to masculina, era a única garota por parte da família Coppo-
la e sempre tive meu pai como exemplo. Acho que me ape-
guei à feminilidade para me destacar entre tantos garotos.
E, sim, meu pai me apoia e se interessa pelos meus filmes.
Acho que ele aprecia esse ponto de vista feminino.

Você já desabafou sobre as dificuldades de conciliar tra-


balho e maternidade em Hollywood — e sua filha mais
velha viralizou no TikTok com um vídeo no qual ironiza
a ausência dos pais em casa. Como lida com essa pres-
são? Honestamente, ainda não descobri como lidar com is-
so, sempre pergunto para outras mulheres como elas fazem
e aprendo um pouco mais. É desafiador ser mãe e profissio-
nal, mas vale a pena. Felizmente, posso dar bons intervalos
entre meus filmes para ficar em casa mais tempo. ƒ

Raquel Carneiro

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DATAS

O EPÍTOME DA CLASSE
WERNER SCHULZE/ULLSTEIN BILD/GETTY IMAGES

VENCEDOR Beckenbauer ergue a taça de campeão do mundo


de 1974: membro de um seleto grupo de inovadores do futebol

Ninguém é chamado impunemente de kaiser — o termo em


alemão para designar o imperador e que foi emprestado dos
césares da Roma Antiga. Um “kaiser”, no futebol, talvez seja
menos valioso apenas que uma “enciclopédia”, a alcunha do
lateral-esquerdo Nilton Santos, que sabia de tudo, de A a Z.

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Franz Beckenbauer era o Kaiser. Faz parte de uma seleta


galeria de jogadores que inventaram alguma coisa com a bola
nos pés. Zagallo foi o ponta-esquerda que tratou de recuar pa-
ra o meio, pioneiro nesse recurso — que ele depois transporta-
ria para a margem dos gramados, como treinador. Johan
Cruijff era o pião do meio que ora estava de um lado do ata-
que, ora do outro, regido pelo técnico Rinus Michels, e que fa-
ria da posse de bola uma arte no Barcelona. E Beckenbauer?
Ele aperfeiçoou uma posição hoje extinta, a do líbero. É o atle-
ta que atuava atrás dos dois zagueiros. Quando seu time recu-
perava a bola, ele se adiantava — com a elegância de um prín-
cipe — e saía jogando.
Foi assim que conquistou o título mundial com a Alema-
nha em 1974, em casa, vitória do pragmatismo apurado con-
tra a utopia frenética do Carrossel Holandês. Assim foi eleito
o melhor jogador do mundo em duas oportunidades, no iní-
cio dos anos 1970, evento raro para um defensor — ainda
que fosse um defensor com ânsia de atacar. Depois, como
técnico, mais firme do que inovador, levou o bicampeonato
em 1990. E então, ressalve-se, fez o que Zagallo já tinha fei-
to, em 1958 e 1970, e que Didier Deschamps bisaria em 1998
e 2018. “Para mim ele era o epítome da classe”, resumiu o
francês Michel Platini, como se visse a si mesmo no espelho.
Um kaiser, é bom lembrar, vez ou outra precisa dar o san-
gue, sair dos gabinetes para a infantaria — e, nesse aspecto,
Beckenbauer fez história com uma imagem que o marcou,
caso fosse preciso provar a raça de um sujeito cerebral. Foi na

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semifinal de 1970, na derrota da Alemanha para a Itália por


4 a 3, na prorrogação, tida como a mais espetacular partida
de uma Copa até a finalíssima de 2022, no Catar, o 3 a 3 en-
tre a Argentina de Messi e a França de Mbappé, encaminha-
da para os pênaltis. Naquela jornada mexicana do Estádio
Azteca, o craque germânico deslocou a clavícula aos 25 mi-
nutos do segundo tempo. Pôs uma tipoia, franziu o cenho e
seguiu em frente a liderar a Nationalmannschaft — e pela
primeira vez parecia suado. No fim da carreira de chuteiras,
em movimento como o de Pelé, trocou o Bayern pelo Cos-
mos de Nova York. Morreu em 7 de janeiro, aos 78 anos, em
Salzburgo, Áustria. Tinha problemas cardíacos, doença de
Parkinson e sinais de demência. ƒ

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FERNANDO SCHÜLER

NÃO ESTAMOS
EM GUERRA
MEU ÚLTIMO ARTIGO gerou uma boa discussão. Uma
das observações que recebi lembrava de nossa lei antirra-
cismo e argumentava que era correta a ação da Confede-
ração Israelita do Brasil (Conib) contra o jornalista que re-
lativizou o terrorismo do Hamas, fazendo menção à frase
do Deng Xiaoping sobre “não importar a cor dos gatos,
desde que cacem os ratos”. Há um ponto interessante aqui.
A Conib, como qualquer outra organização, tem todo di-
reito de mover uma ação, nos termos da lei. Caberá à Jus-
tiça decidir a questão. Vale o mesmo para os crimes con-
tra a honra. Se alguém se sentir caluniado ou difamado,
pode acionar a Justiça. Ações desse tipo, respeitando o de-
vido processo, não ferem, mas reforçam o princípio da li-
berdade de expressão. Não se deve confundir uma ação
privada, a posteriori, fundada em lei, com atos de censura
prévia e “de ofício”, praticados no Brasil nos últimos anos.
Agradeço às observações feitas ao meu texto e digo aqui
que é do debate de ideias franco e cordial que se faz uma
grande democracia.

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Outra crítica que recebi diz que vejo a liberdade de ex-


pressão como um “direito absoluto”. Não é o que penso. Até
conheço algumas pessoas que defendem essa ideia, mas não
é o meu caso. A liberdade sempre será regulada. A pergunta
real é sobre como isso será feito. A partir de critérios restritos
e bem estabelecidos, com base em lei aprovada no Parlamen-
to? Ou a partir de critérios ad hoc, abertos a todo tipo inter-
pretação e discricionariedade por parte de quem detém o po-
der? Ainda na outra semana vi um exemplo disso. Um minis-
tro declarou que seria crime “comemorar o 8 de Janeiro”. Na
sua opinião, o 8 de Janeiro foi um “golpe”, e comemorar um
golpe seria crime. O exemplo é banal, mas está lá. Não há ne-
nhuma lei no país dizendo que não se possa comemorar a tal
data (seria de péssimo gosto, isso sim). Aquilo é simplesmen-
te a opinião de uma autoridade, feita de um conjunto muito
vago de interpretações. Um pouco a crônica do Brasil recen-
te. Uma postagem, um documentário, um papo no Whats-
App, qualquer coisa pode ser um crime, desde que na opinião
da autoridade aquilo seja um crime. Razões? A “verdade”, o
“ódio”, não importa muito. Trata-se de uma visão com apoio
na sociedade, mas vejo um crescente cansaço. Cada vez mais
gente se dando conta de que a intervenção arbitrária nos di-
reitos individuais e a falta de isonomia nas regras do jogo são
menos uma solução e mais uma causa da tensão política.
Há uma outra tradição que tenta compatibilizar a preser-
vação do mais amplo “mercado de ideias” com os demais
valores que prezamos como sociedade. Sua melhor expres-

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ARGUMENTO O juiz americano Louis Brandeis (1856-1941):


“Mais discurso, não o silêncio”

são (mas não a única) é o longo aprendizado em torno da


Primeira Emenda à Constituição Americana. Sua base é a
clara distinção entre o universo da “opinião” e o da “condu-
ta” das pessoas. Gustavo Maultasch trata disso em seu livro
Contra Toda a Censura, cuja leitura recomendo vivamente.
A distinção vem de longe. Está lá no clássico de John Stuart
Mill, Sobre a Liberdade, quando ele diferencia uma opinião
na imprensa, culpando a propriedade privada e os comer-
ciantes de milho pela fome, e essa mesma opinião em um
BETTMANN/GETTY IMAGES

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“A simples defesa
de uma tese,
por estúpida que
seja, não é crime”
discurso irado, diante da multidão furiosa, ameaçando um
comerciante de milho na frente de sua casa. O ponto de Mill:
a opinião só deve ser punida “se for provável que um ato vio-
lento resulte daquela manifestação”.
No Brasil, poucos traduziram melhor essa distinção do
que o ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto minoritá-
rio no caso Ellwanger, em 2003. A questão era conceder ou
não um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, escritor que
relativizava a história do Holocausto, entre outras barbari-
dades. O ministro Marco Aurélio fez uma dura defesa do di-
reito à expressão, dizendo que ele se prestava precisamente
para as “ideias controversas, radicais, minoritárias, despro-
porcionais”. E acrescentou: “A única restrição deve ser quan-
to à forma da expressão”. E fez a distinção: haveria crime se
Ellwanger “em vez de publicar um livro (...) distribuísse pan-
fletos nas ruas de Porto Alegre” com dizeres do tipo “vamos
expulsar estes judeus do país”. A simples defesa de uma tese,
por estúpida que fosse, não configuraria crime.

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A tese do ministro se aproxima do clássico critério formu-


lado por Oliver Holmes, na Suprema Corte Americana, em
1919: não havendo “perigo real e imediato” em um discurso,
ele deve ser protegido. O argumento seria depois detalhado
pelo juiz Louis Brandeis, em um caso envolvendo a ativista
comunista Charlotte Whitney. “O medo de danos graves”,
diz ele, “por si só, não pode justificar a supressão da liberda-
de de expressão”. E foi direto: “Se houver tempo para expor a
falsidade, para reverter o mal pela educação, o remédio a ser
aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado”.
A tese foi confirmada em um julgamento clássico, no fim
dos anos 60, quando um dirigente da Ku Klux Khan, Cla-
rence Brandenburg, fez um discurso atacando os direitos ci-
vis nos Estados Unidos. Entre outras coisas, disse que os
“negros deveriam ser devolvidos à África” e os “judeus de-
volvidos a Israel”. Seu discurso era odioso, mas seu direito
foi defendido junto à Suprema Corte por um advogado ju-
deu, Allen Brown, e uma jovem advogada negra e progres-
sista, Eleanor Norton. Eles ganharam. Norton se tornou
uma grande ativista. E sempre explicou que não lutava por
esse ou aquele discurso, mas pela preservação de um princí-
pio: que não deve caber ao Estado decidir “quem e o que se
pode falar”. Algo que “por vezes me obriga”, acrescentou, a
“defender pessoas que jamais me defenderiam”.
Na vida americana, a tese de Brandeis e Holmes se tor-
nou majoritária; no Brasil, aquela posição similar do minis-
tro Marco Aurélio, minoritária. Quem teria razão? Não sei.

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É possível que a tradição de Madison, Mill, Brandeis e Oli-


ver Holmes esteja errada, e certos estejamos nós. Com direi-
to a uma pergunta sobre quem somos “nós”. Escrevemos
uma Constituição protetiva de direitos, derrubamos a Lei de
Imprensa, a Lei de Segurança Nacional, vedamos a censura
prévia. Nos últimos anos fomos cedendo, na liberdade de
expressão, a um direito feito de frases vagas e pontos de ex-
clamação. Qual é, no fim do dia, a nossa tradição?
Muita gente pode sinceramente desejar viver em uma de-
mocracia de tutela, oposta ao que disse Eleanor Norton, dele-
gando ao Estado punir com base em critérios abertos, sejam
as “notícias fraudulentas”, os “discursos de ódio”, as “amea-
ças à democracia”. Ou mesmo as “comemorações” dessa ou
daquela data. Ajuda a fantasia de que estamos em uma guer-
ra permanente, que há um grande inimigo a ser combatido e
que não podemos agir como Chamberlain diante de Hitler.
De minha parte, fico com as velhas lições de John Locke. “A
liberdade”, dizia ele, consiste em viver segundo uma “regra
estável”, não sujeito “à vontade incerta, desconhecida e arbi-
trária de outro homem”. Neste mês de janeiro, início de um
novo ano, época tão propícia para dar uma parada e desar-
mar os espíritos, é sobre isso que deveríamos refletir. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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SOBEDESCE

SOBE
AGRONEGÓCIO
Em 2023, o Brasil assumiu a liderança
das exportações mundiais de milho e
farelo de soja, aumentando para dez
o número de produtos agrícolas em
que é o primeiro do ranking.

CÂMERAS EM POLICIAIS
Em meio à polêmica sobre a sua
implantação, os equipamentos
passaram a ser usados pelo Bope
do Rio de Janeiro, a mais célebre
tropa da PM no país.

A SOCIEDADE DA NEVE
Na semana de estreia, o filme
do espanhol J.A. Bayona sobre um
desastre aéreo nos Andes tornou-se
a produção em língua não inglesa
mais vista da Netflix.

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DESCE
DOC
Um dos principais sistemas de
transferência de valores nas últimas
décadas, mas superado pelo Pix,
ele deixará de ser oferecido
pelos bancos no dia 15.

BOEING
Após uma porta se soltar em voo em
Portland, 170 aviões 737 MAX 9 tiveram
operações suspensas, comprometendo
a imagem da fabricante e do modelo,
que é um dos principais da companhia.

“SAIDINHA”
A morte de um policial por um preso
liberado no fim do ano em Minas Gerais
levou o presidente do Congresso,
Rodrigo Pacheco, a sugerir
a revisão do benefício.

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VEJA ESSA
ALEXANDRE SCHNEIDER/GETTY IMAGES

“É a realização de
um sonho pessoal.”
DORIVAL JÚNIOR, ex-São Paulo, novo treinador da seleção
brasileira de futebol. Ele entrou no lugar de Fernando Diniz

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“Máfia da miséria é quem abandona o povo.”


JULIO LANCELLOTTI, padre paulistano respeitado pelo
apoio aos moradores de rua em São Paulo e que pode ser
alvo de investigação de uma CPI politiqueira
costurada na Câmara dos Vereadores

“Está na hora de chegar lá. Estou insistindo,


com apoio dos economistas. O Brasil pode ser
o campeão do mundo em adotar pela primeira
vez a renda básica universal.”
EDUARDO SUPLICY, deputado estadual pelo PT de São Paulo,
há mais de trinta anos batendo na mesma tecla

“A Marta sempre foi de esquerda,


é a praia dela, são os amigos dela.”
VALDEMAR COSTA NETO, presidente do PL, a respeito da
adesão de Marta Suplicy à candidatura de Guilherme Boulos, do
PSOL, para a prefeitura de São Paulo. Ela será a vice na chapa
“Eu vi as imagens. É fake, não sou eu.”
SÉRGIO CABRAL, ex-governador do Rio de Janeiro,
denunciando o vídeo falso que o associava a uma
suposta — e evidentemente falsa — agressão

“Deixe-me esclarecer mais uma vez


que nosso exército já tem
o gatilho desbloqueado.”
KIM YO-JONG, irmã do ditador norte-coreano Kim Jong-un, com
as tolas ameaças de sempre ao Ocidente democrático

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“Considero que a prática da barriga de


aluguel é lamentável, porque prejudica
gravemente a dignidade das mulheres e das
crianças. Espero, portanto, que a comunidade
internacional se comprometa a proibir
universalmente esta prática.”
PAPA FRANCISCO

“Ele não fala muito, isso o cansa ou


o irrita quando o fazemos repetir, porque
sua voz nem sempre é clara ou audível (...)
Há riscos significativos de que este
tenha sido seu último Natal.”
ANTHONY DELON, filho do ator francês
Alain Delon. O comentário deflagrou uma guerra
familiar, com dois irmãos acusando o primogênito de
ter interesses pecuniários na herança do pai

“Somos cada vez mais incapazes


de ouvir uns aos outros.”
MICHAEL SANDEL, filósofo americano

“O tempo inteiro tive que ter uma espadinha


na mão. Escolho o lado da doçura, mas não dá
para ser assim o tempo todo, estando numa
sociedade extremamente machista.”
EMANUELLE ARAÚJO, atriz e cantora,
na coluna VEJA Gente no YouTube

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“Reconectando
com o essencial.”
GISELE BÜNDCHEN,
ao inaugurar o ano em
suas redes sociais
INSTAGRAM @GISELE

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RADAR
VICTOR IRAJÁ

Gustavo Maia, Nicholas Shores


e Ramiro Brites

Oportunidade perdida do. “A politização era inevi-


Ministros do Supremo ava- tável. Temos eleições à vis-
liaram que, apesar de o ta”, diz um ministro.
evento de 8 de janeiro ter ti-
do “bons pronunciamentos” Nada a ganhar
por parte de autoridades, o Aliados de Tarcísio de Freitas
ato perdeu um pouco de seu defenderam a decisão do go-
propósito por ter se politiza- vernador de não ir para Bra-

DESPERDÍCIO Depredação do Supremo: atos de 8 de


janeiro perderam propósito

FELLIPE SAMPAIO /SCO/STF

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sília. “É um ato para requen- então secretário-executivo


tar palanque, que não acres- José Levi como chefe da
centa nada à ação do governo pasta quando indicado por
de São Paulo”, diz um braço- Michel Temer à Corte.
direito do governador.
Fazendo escola
Nem um telefonema… Na ocasião, Temer disse a
Já o presidente da Câmara, Moraes que teria de fazer
Arthur Lira, se sentiu des- concessões políticas e não
prestigiado pelo governo na poderia indicar o nome de
efeméride. Ele reclamou Levi. A comparação é váli-
que foi chamado pelo ceri- da: como se sabe, Levi foi
monial do Palácio do Pla- preterido na ocasião (assim
nalto, e não por Lula pes- como Cappelli agora).
soalmente, para a cerimô-
nia do dia 8. Lira alegou Fogo amigo
motivos pessoais para não Protagonista do maior des-
comparecer ao evento. calabro econômico da his-
tória recente do país, Dilma
Museu de novidades Rousseff se juntou à turba
Ministros do STF fizeram petista na estratégia de difa-
um paralelo entre o traba- mação de Fernando Had-
lho de Flávio Dino para for- dad. Ponto para o ministro.
talecer Ricardo Cappelli pa-
ra sucedê-lo na Justiça com Química perfeita
a tentativa de Alexandre de Haddad, por sua vez, é mui-
Moraes de chancelar seu to benquisto na Esplanada.

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DIOGO ZACARIAS/MF

ALINHADOS Fernando Haddad e Tebet: trabalho em conjunto


entre pastas ariscas

Historicamente problemáti- como presidente, há duas


ca, a relação entre Fazenda e décadas. O petista foi a 27
Planejamento, por exemplo, países, sendo oito deles por
está superafinada. Haddad duas vezes. No ano passado,
e Simone Tebet estão mais ele repetiu três viagens.
próximos do que nunca.
Lula vindo...
Lula indo... Dentro do Brasil, o presi-
Com 24 países visitados, Lu- dente esteve em 36 cidades
la não economizou nas via- no primeiro ano do terceiro
gens ao exterior em 2023, mandato. O número é 35%
mas o número de destinos menor que o dos 56 municí-
internacionais foi ainda pios visitados em 2003.
maior no seu primeiro ano Não à toa, ele promete per-

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correr todos os estados do As preferidas


país ao longo deste ano — Parlamentares ficaram in-
de eleições municipais. comodados com a nova MP
do governo federal de fo-
Injeção de dinheiro mento às montadoras.
Lula deve ter mais uma no- O Programa Mover, que
tícia animadora da econo- prevê 20 bilhões de reais em
mia na semana que vem. incentivos fiscais, tem sido
Comandado pelo ex-gover- chamado de “Bolsa Anfavea
nador de Pernambuco, Pau- 2”, porque é a segunda vez
lo Câmara, o Banco do Nor- que o Executivo promove
deste vai anunciar um volu- benesses para o setor.
me recorde de financiamen-
tos em 2023 — mais de 50 Ano novo, tudo igual
bilhões de reais. Do jeito Todos os ministros conti-
que o presidente gosta... nuam com um temor para-
lisante de Lula. Ninguém
Fiel da balança diz ou faz nada que possa
O entorno de Ricardo Nu- desagradar ao presidente.
nes está convencido de que A única exceção no Palácio
o “cavalo de pau” de Marta permanece sendo a primei-
Suplicy tem a ver com con- ra-dama Janja. Ela manda.
versas entre seu marido,
Márcio Toledo, e o chefe Crise de identidade
de gabinete de Lula, Mar- Na expectativa da assunção
co Aurélio Santana Ribei- da presidência do União Bra-
ro, o Marcola. sil, o advogado Antonio de

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Rueda reclama da falta de Acabando o gás


identidade do partido. Em Passa pela cabeça do secre-
conversas privadas, ele diz tário de Energia do governo
não defender um papel de do Rio de Janeiro, Hugo
oposição, mas uma “agenda Leal, não renovar com a Na-
mais clara” para o partido. turgy, controladora da CEG
e da CEG Rio, a concessão
Apenas um crachá dos serviços de distribuição
Quatro meses depois de ser de gás para mais de setenta
trocado do Ministério de municípios fluminenses.
Portos e Aeroportos para o
do Empreendedorismo, Novos dias
Márcio França anda meio Pesam na avaliação as in-
sumido em Brasília. “Ele vestidas de uma CPI na As-
perdeu um ministério e ga- sembleia Legislativa do Rio
nhou um crachá pra dizer sobre os serviços da Natur-
que ainda é ministro”, co- gy. Fora isso, a visão dentro
menta um aliado. do governo do estado é de
que, com o marco do sanea-
Um hóspede diferente mento, o mercado mudou…
Jair Bolsonaro tomou água
da torneira e não ligou o ar Compras em alta
condicionado em seu perío- As compras pela internet
do sabático, nas festivida- somaram 185,7 bilhões de
des de fim de ano, na pou- reais no Brasil em 2023, se-
sada do ex-ministro do Tu- gundo um levantamento
rismo Gilson Machado. exclusivo da ABComm. A

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THIAGO LARA/RIOTUR

BOLSO CHEIO Sapucaí: escolas terão


120 milhões de reais para desfiles

associação destaca que o Carnaval de 2024. Neste


valor gasto no e-commerce ano, a expectativa é repas-
foi 10% maior que o regis- sar cerca de 120 milhões de
trado no ano anterior. reais às doze competidoras
da Sapucaí. “É o maior re-
Rica folia passe para as escolas de
A Liesa espera arrecadar 80 samba da história”, diz Ga-
milhões de reais apenas briel David, diretor de mar-
com venda de ingresso no keting da Liga. ƒ

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BRASIL EXCLUSIVO

O HOMEM QUE
SABIA DEMAIS
VEJA teve acesso às 4 000 páginas da investigação
que apurou as circunstâncias da morte do
ex-capitão Adriano da Nóbrega, personagem
que transitou entre o crime organizado e a política,
guardava segredos valiosos e foi abatido numa ação
ainda cercada de mistérios

LARYSSA BORGES
REPRODUÇÃO

MISTÉRIOS
Adriano: detalhes
intrigantes, eventos
estranhos e perguntas
ainda sem resposta
sobre o crime
CRISTIANO MARIZ

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TIROS FATAIS Croquis da investigação:


a trajetória de uma das balas, de cima para baixo,
reforçou a hipótese de uma execução

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O
ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega ganhou no-
toriedade nacional depois que se descobriu que ele
chefiava o chamado Escritório do Crime — um gru-
po de matadores de aluguel que atuava no Rio de Ja-
neiro a serviço de bicheiros e milicianos. Ficou mais
famoso ainda quando se soube que ele também tinha uma es-
treita ligação com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Por anos, a mãe, a mulher e um dos melhores amigos do poli-
cial, o também ex-PM Fabrício Queiroz, foram assessores do
gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho
do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, acusado de homicí-
dio e com a prisão decretada pela Justiça, Adriano fugiu. Um
ano depois, foi morto. Esse é o ponto de partida do capítulo fi-
nal de uma história que reúne ingredientes de um thriller de
ação. Havia gente importante entre os “clientes” do Escritório
do Crime que torcia para que o ex-capitão nunca mais apare-
cesse. Havia gente influente ligada às vítimas que queria loca-
lizá-lo a qualquer custo. E havia gente poderosa que temia a
revelação de segredos capazes de fulminar biografias e des-
truir certas carreiras — políticos, inclusive. O destino de al-
guém com um perfil tão singular assim era previsível.
Adriano foi localizado no interior da Bahia. A polícia rea-
lizou uma gigantesca operação para capturá-lo, usando dro-
nes, aeronaves, equipamentos de geolocalização e arma-
mento pesado. No dia 9 de fevereiro de 2020, o ex-capitão
foi cercado no município de Esplanada, a 165 quilômetros
de Salvador. Estava sozinho e, segundo a versão oficial, ar-

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ALBERTO MARAUX/SSP-BA
RECONSTITUIÇÃO Confronto: o ex-capitão teria resistido
à prisão, reagido e acabou morto pela polícia com dois tiros

mado. Ao perceber a chegada dos policiais, reagiu e foi aba-


tido com dois tiros. A família afirma que foi uma execução
sumária, uma queima de arquivo planejada para evitar que
ele comprometesse aquela gente importante, influente e po-
derosa, incluindo políticos. A suspeita se sustentava diante
de fatos que ocorreram antes, durante e depois do suposto
confronto. Quatro anos depois, o Ministério Público final-
mente concluiu a investigação sobre o caso. VEJA teve aces-
so às mais de 4 000 páginas de documentos, perícias, depoi-
mentos, fotografias e relatos de testemunhas que ajudaram a
reconstituir os últimos instantes de vida do ex-capitão. O
trabalho, porém, não foi capaz de elucidar definitivamente o
mistério. Ainda há muitos detalhes intrigantes e perguntas
que ficaram sem respostas.

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LAUDO A versão apresentada


pelos policiais, segundo a perícia,
encontra respaldo nas evidências
recolhidas no local

Antes de encontrado, Adriano havia confidenciado a pes-


soas próximas que sua morte havia sido decretada. Os inte-
ressados, segundo ele, integravam um consórcio formado
por bicheiros, milicianos, policiais e políticos. Citou um deles
em particular: o ex-governador Wilson Witzel. O ex-capitão
revelou que, em 2018, teria arrecadado 2 milhões de reais do
crime organizado para a campanha eleitoral do então candi-
dato ao governo do Rio de Janeiro. Na época, Witzel negou
qualquer tipo de envolvimento com o miliciano e anunciou
que processaria Júlia Lotufo, a viúva, que afirma ter ouvido a
revelação da boca do próprio Adriano. “Meu marido foi en-
volvido numa conspiração armada pelo governador do Rio,
que queria matá-lo como queima de arquivo”, disse ela a VE-
JA, uma semana antes do cerco ao ex-capitão. Confronto ou

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execução? A investigação do Ministério Público da Bahia


afirma que as informações obtidas confirmam, em parte, a
versão da polícia sobre o confronto, mas, ao mesmo tempo,
também aponta uma série de falhas de procedimento, fatos
nebulosos e eventos absolutamente estranhos que alimentam
a segunda hipótese, como se verá a seguir.

A OPERAÇÃO ESPLANADA
Depois de fugir do Rio de Janeiro, Adriano perambulou
durante meses por fazendas no interior do Nordeste. A polí-
cia passou a monitorar os passos dele através de seus fami-
liares e amigos. Em janeiro de 2020, após receber uma visita
da esposa, o ex-capitão foi cercado pela primeira vez na Cos-
ta do Sauípe (BA), mas conseguiu escapar. A sorte o aban-
donaria poucos dias depois. Escondido na chácara de um
amigo na área rural de Esplanada, o miliciano sabia que os
policiais estavam em seu encalço e tinha tudo pronto para
deixar o país. O plano de fuga elaborado contava com um
resgate de helicóptero patrocinado por um grupo ligado à
contravenção do Rio. Não deu tempo. A polícia interceptou
a viúva em uma blitz, e o motorista dela deu pistas sobre a
localização do novo esconderijo. A Secretaria de Segurança
da Bahia preparou então uma das maiores ações de captura
já realizadas pela polícia baiana. Foram mobilizados setenta
homens, além de um drone, um helicóptero, veículos táticos
e armamentos pesados. Para evitar vazamentos, os policiais
convocados para a missão só souberam a identidade do alvo

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EXUMAÇÃO O corpo do miliciano: desenterrado


para a realização de novos exames

às 23 horas da véspera, quando também foram advertidos


sobre a destreza do ex-capitão: ele havia sido o primeiro co-
locado em treinamentos de tiro e sobrevivência na mata, ti-
nha amplo conhecimento operacional e dificilmente se en-
tregaria, disseram os comandantes.
Os militares receberam orientações específicas para ter
cuidado com armadilhas e eventuais emboscadas no trajeto.
Iniciaram ainda de madrugada uma patrulha a pé para ocu-
par posições estratégicas. Viaturas motorizadas cercaram a
propriedade onde o miliciano estaria refugiado. Tudo mili-
metricamente planejado para evitar incidentes. Às 6 da ma-
nhã, o local foi invadido. Granadas com efeito de luz e som

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INVESTIGAÇÃO Ministério Público:


não foi possível chegar à “certeza absoluta”

para dificultar qualquer reação foram jogadas dentro do es-


conderijo. Mas Adriano não estava mais lá. Um vizinho, po-
rém, informou aos policiais ter visto nas proximidades um
homem com as características da pessoa que estava sendo
procurada. As equipes se dividiram para ampliar o raio da
busca. Uma testemunha disse que, às margens de uma rodo-
via, distante aproximadamente 8 quilômetros da chácara,
uma casa com a luz acesa na varanda e uma rede estendida
chamava atenção. Ao se aproximarem do local indicado, um
tenente e dois soldados da patrulha viram quando Adriano
correu para dentro do imóvel. O ex-capitão se recusou a abrir
a porta. Protegidos por um escudo balístico, os PMs arrom-
baram o imóvel, entraram e teriam sido recebidos à bala.

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INSTAGRAM @FABRICIOQUEIROZ_PATRIOTA

INSTAGRAM @WILSONWITZEL
AMIZADE OUTRO LADO
Jair Bolsonaro, Queiroz Wilson Witzel: o
e Flávio: relações governador disse que
próximas com o ex-capitão processaria a viúva

ACUSAÇÃO Júlia Lotufo: “Meu marido


foi envolvido numa conspiração”

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EXECUÇÃO OU CONFRONTO?
Adriano foi abatido com dois tiros — um de carabina e
outro de fuzil. A trajetória de uma das balas, de cima para
baixo, reforçava a hipótese de uma execução. Além disso, o
corpo tinha dois ferimentos intrigantes: um corte na testa e
uma queimadura arredondada no peito. Os laudos das polí-
cias baiana e fluminense atestaram que houve troca de tiros.
A perícia da Polícia Técnica da Bahia projetou que o ex-ca-
pitão estava a cerca de 4,6 metros dos oponentes quando foi
alvejado e concluiu que ele morreu depois de ter recebido o
segundo disparo. Na queda, teria batido a cabeça em um
móvel da casa, resultando na lesão da testa. Já os legistas do
Rio de Janeiro afirmaram que havia indicativos de que o fe-
rimento ocorreu com o ex-capitão ainda vivo. Na versão dos
PMs, Adriano não teria morrido imediatamente e, por isso,
eles o levaram a um hospital que fica a 10 quilômetros do lo-
cal. Os médicos, por sua vez, atestaram que ele já chegou
sem vida. Havia outros pontos mal explicados. Os exames
não identificaram a presença de chumbo nas mãos de Adria-
no, o que normalmente acontece quando alguém faz dispa-
ros, e ninguém conseguiu definir o que seria a queimadura
arredondada no tórax do miliciano.
Diante das dúvidas e divergências, os investigadores pe-
diram ajuda à Polícia Federal, entre outras coisas, para re-
constituir o crime e reexaminar o corpo de Adriano. Quase
quatro anos depois, as etapas que foram previstas para a re-
constituição não foram concluídas, e a exumação do corpo,

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GABRIEL DE PAIVA/ AGÊNCIA O GLOBO


CRIME ORGANIZADO Atentado: Adriano estava envolvido
na guerra pelo controle do jogo do bicho no Rio de Janeiro

realizada em julho de 2021, um ano e meio depois do assas-


sinato, pouco ou quase nada contribuiu para esclarecer a dú-
vida. Ao contrário. A respeito do ferimento na testa, os peri-
tos federais concluíram que “a lesão ocorreu em momento
antecedente ou próximo/imediatamente subsequente à mor-
te”. Ou seja, o corte pode ter acontecido antes ou depois do
tiroteio. Já sobre a queimadura no tórax, o adiantado estado
de decomposição do corpo inviabilizou o aprofundamento
do exame. Os técnicos federais ainda foram instados a es-
clarecer se havia ou não chumbo nas mãos de Adriano. Os
exames não encontraram resquícios do metal. O Ministério
Público anexou depoimentos de 28 testemunhas, entre elas
Júlia Lotufo, que reafirmou que Adriano fugiu porque sabia
que ia ser executado e disse ter certeza de que ele não estava
armado no momento da operação.

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A CENA DO CRIME
Um dos procedimentos elementares que qualquer poli-
cial aprende na academia é sobre a necessidade de preservar
a cena do crime. Os PMs que alvejaram o miliciano admiti-
ram em depoimentos que não houve essa preocupação. Os
projéteis, por exemplo, são provas importantes para deter-
minar se realmente houve troca de tiros, o tipo de armamen-
to envolvido, o trajeto e a distância dos disparos. Um dos
laudos elaborados pela Polícia Federal destaca que foram
encontradas apenas três cápsulas da pistola que teria sido
usada por Adriano, apesar de ele ter supostamente dispara-
do sete tiros. Os peritos levantaram a hipótese de uma mes-
ma bala ter ricocheteado, mas, ainda assim, a conta não fe-
chou. Seria esperado, segundo eles, que fossem encontradas
de cinco a sete cápsulas detonadas. A ausência delas, porém,
não prova que o confronto não existiu, já que elas podem
simplesmente ter sido subtraídas por alguém que entrou na
casa após o crime — e muita gente entrou. Aliás, as cápsulas
das balas usadas pelos PM também não foram localizadas.
Ao longo da investigação, o Ministério Público solicitou

NEGATIVO Exames não encontraram


vestígios de chumbo nas mãos de Adriano

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FERIDAS O corte na cabeça e a estranha queimadura no


tórax do ex-policial alimentaram a tese de tortura e execução

sucessivas vezes que a Polícia Federal prestasse apoio técnico


para novas perícias. Além da reconstituição e da exumação,
os promotores solicitaram uma “missão exploratória” para
sanar dúvidas técnicas que os peritos baianos e fluminenses
não conseguiram. Por considerar que a cena do crime já ha-
via sido completamente devassada, a PF nunca atendeu ao
pedido. Em resposta a um dos ofícios, os federais ainda des-
tacam um fato grave que impedia o trabalho: a arma supos-
tamente utilizada por Adriano — uma pistola Glock, calibre
9 mm — havia desaparecido. Soube-se que ela fora recolhida
pela PM baiana após o confronto, tendo reaparecido tempos
depois em posse da Polícia Civil do estado.

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IRONIA DO DESTINO
O curso da investigação sobre as circunstâncias da
morte de Adriano da Nóbrega foi afetado diretamente por
uma sucessão de descuidos, intencionais ou não, da polícia
baiana. Embora a Operação Esplanada tenha sido executa-
da com o uso de uma aeronave e um drone de observação,
não houve gravação de imagens — ao menos elas nunca
apareceram. O MP, por isso, teve de lastrear suas conclu-
sões essencialmente nas perícias técnicas. O corpo de
Adriano foi submetido a tomografia computadorizada e a
exames, que foram confrontados com os depoimentos e as
poucas evidências colhidas no local do crime. Ficou com-
provado que o ex-capitão foi alvejado por dois tiros, um
que entrou pelo tórax à esquerda e percorreu trajeto de
baixo para cima, provocando uma lesão no pescoço, e ou-
tro que partiu de cima para baixo, entrou pela clavícula di-
reita e saiu pelas costelas — esse que, segundo a família de
Adriano, provaria a execução sumária. Para os peritos

DÚVIDA Trecho do inquérito: lesão pode ter


sido produzida “por um instrumento aquecido”

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PERÍCIA A pistola que teria sido usada


por Adriano: arma sumiu da cena do crime

baianos, o miliciano foi atingido pela primeira vez, se de-


sequilibrou e, enquanto caía, recebeu o segundo disparo. A
Polícia Federal também considerou essa dinâmica como
uma “hipótese válida”.
O Ministério Público reuniu laudos da Polícia Federal,
de uma universidade, de um perito externo, das polícias
técnicas da Bahia e do Rio, investigações da Polícia Civil,
de um inquérito militar e dos próprios promotores da insti-
tuição e concluiu que não se chegou “à verdade real, à ‘cer-
teza absoluta’” do que aconteceu a partir das primeiras ho-
ras da manhã daquele dia 9 de fevereiro de 2020. No fim
do ano passado, os promotores protocolaram na Justiça
parecer em que afirmam não haver “lastro probatório mí-
nimo” para formalizar uma denúncia contra os policiais

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que estiveram frente a frente com o


miliciano, nem tampouco convic-
ção para atestar que eles agiram no
estrito cumprimento do dever, sem
excessos. Por causa disso, pediram
o arquivamento do caso.
Quando era capitão do Bope,
Adriano da Nóbrega tinha em seu
prontuário diversas acusações de
tortura e assassinato. A dinâmica
dos crimes era sempre a mesma. As
abordagens de rotina terminavam
em confrontos, em que o “bandido”
atirava primeiro. Os inquéritos
também terminavam quase sempre
em pedidos de arquivamento, dian-
te da ausência de provas técnicas.
Em Esplanada, a situação se in-
verteu. Adriano era o bandido. O
tenente e os dois soldados que lo- O CORPO FALA
calizaram o miliciano garantem O esqueleto do ex-
que o objetivo era prendê-lo, mas policial: reconstrução
ele resistiu e provocou o confronto. para ajudar no caso
Adriano era um exímio atirador,
mas errou todos os tiros, mesmo estando a uma distância
de menos de 5 metros dos alvos. Em poucos segundos, o
temido chefe do Escritório do Crime caiu morto. O regis-

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tro da pistola que teria sido usada por Adriano, a que su-
miu e reapareceu tempos depois, estava parcialmente ras-
pado. Policiais disseram que o ex-capitão estava de ber-
muda e calção quando o Bope entrou na casa. Os médi-
cos, por sua vez, relatam que ele chegou seminu ao hospi-
tal. A estranha queimadura no peito, um indício de tortu-
ra, também vai continuar sem explicação. Segundo um
dos peritos, ela pode ter sido produzida “por um instru-
mento de bordas circulares, aquecido” — o cano de uma
arma, por exemplo. Mas essa é apenas uma hipótese sem
nenhuma comprovação. Adriano morreu da mesma ma-
neira que matava. Caso encerrado. ƒ

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BRASIL RIO DE JANEIRO

ARQUIVO VIVO
Depois de se entregar à polícia, Zinho, chefe da mais
poderosa milícia carioca, quer fazer uma delação que
pode enredar altos figurões do poder fluminense
MAIÁ MENEZES E SOFIA CERQUEIRA

TUDO DOMINADO Área de milícia:


57,5% nas mãos do crime

FÁBIO ROSSI/AGÊNCIA O GLOBO

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TRATADA como prioridade máxima e realizada sob


enorme sigilo, a operação que resultou na prisão de Luís
Antônio da Silva Braga, o Zinho, o criminoso mais pro-
curado do Rio de Janeiro, não se deu exatamente como
foi divulgado. Informações obtidas por VEJA dão conta
de que, no início da noite de Natal, em vez de se entregar
sozinho na Superintendência da Polícia Federal, como se
anunciou, a rendição do chefe da maior milícia carioca
aconteceu em um território neutro, negociado entre as
autoridades e sua defesa. Temendo uma eventual embos-
cada no deslocamento, agentes da Secretaria de Segu-
rança Pública e da polícia o encontraram em um ponto
preestabelecido, longe do raio de atuação dos seus mui-
tos adversários, lhe deram voz de prisão e o levaram pa-
ra a sede da PF, com escolta fortemente armada. A pre-
caução se justifica: Zinho, 44 anos, é tido hoje como o
maior arquivo vivo das milícias no país, com potencial
de colocar atrás das grades uma horda de políticos, em-
presários, negociantes de armas e policiais envolvidos
com a organização criminosa. Há também a expectativa
de que seu depoimento leve, enfim, ao mandante do as-
sassinato da vereadora Marielle Franco e de seu moto-
rista, Anderson Gomes.
Embora dependa do aval da Justiça, um acordo de de-
lação premiada é dado como certo — tanto os advogados
de Zinho quanto as autoridades, que passaram duas se-
manas em intensas tratativas para a rendição, já deixa-

2|5
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ram claro seu interesse.


“Ele é o bandido que
mais sabe da hierarquia,
da estrutura e dos víncu-
los da maior milícia do
Rio. Tudo passava pelo
Zinho, da lavagem de di-
nheiro aos subornos”,
afirma o secretário de
Segurança do Rio, Victor
dos Santos, à frente da
negociação. De acordo
com Santos, a inteligên-

AFP
cia da polícia, por meio EXPECTATIVA Zinho:
de informantes, identifi- ele pode até ajudar a elucidar
cou há seis meses a dis- o caso Marielle
posição do miliciano a se
entregar. Enquanto os dois irmãos que o antecederam no
comando, Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três
Pontes, e Wellington da Silva Braga, o Ecko, ambos mor-
tos pela polícia, eram conhecidos pelo perfil violento, Zi-
nho se concentrava em ser o cérebro financeiro da qua-
drilha. “Ele sempre teve a visão empreendedora do negó-
cio e não da guerra”, acrescenta o secretário.
Com seu QG na Zona Oeste carioca e ramificações
pela Baixada Fluminense, o “bonde do Zinho”, antes
“bonde do Ecko” e “Liga da Justiça”, fatura ao menos

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300 milhões de reais por ano com a extorsão de mora-


dores e comerciantes, grilagem de terra, construção ir-
regular e exploração ilegal de serviços como transpor-
te, gás e TV a cabo. Mesmo movimentando cifras astro-
nômicas, de acordo com a polícia, o bandido — foragi-
do há cinco anos e com doze mandados de prisão em
vigor — enfrentava uma conjunção de fatores que con-
tribuíram para a surpreendente prisão. “O cálculo do
lado dele foi que suas informações tinham valor e uma
rendição era viável nesse momento”, diz um integrante
da defesa do miliciano.
Pesou fortemente na decisão de se entregar a Opera-
ção Batismo, em dezembro, que mirou a deputada esta-
dual Lúcia Helena de Amaral Pinto, a Lucinha (PSD),
também chamada de “madrinha”, acusada de ser um dos
elos entre o Legislativo e a milícia. Com o cerco se fe-
chando em torno da deputada, Zinho teria perdido parte
do suporte político. “Uma milícia como essa não se esta-
belece no Rio, dominando quase um terço do território
da cidade, sem conexões poderosas”, ressaltou o então
secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo
Cappelli. Outro empurrão teria sido a morte, em uma
operação policial, de Matheus Rezende, o “Faustão”, so-
brinho de Zinho e tido como o líder do braço armado de
seu grupo, no dia 23 de outubro. Zinho vinha ainda en-
frentando a fragmentação de seu bando e disputas com
outras quadrilhas.

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Embora o foco da prisão tenha sido desbaratar o nú-


cleo da principal milícia do país, declarações do ex-
ministro da Justiça, Flávio Dino, reforçam que ela pode
representar muito mais. Em meio às tratativas para que
Zinho se entregasse, das quais Dino tinha conhecimento,
ele declarou: “Afirmo que haverá solução do caso Mariel-
le e Anderson. Demos a diretriz e ela será cumprida. A
Polícia Federal tem uma equipe dedicada a isso”. Recen-
temente, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, foi
mais enfático — garantiu que o caso terá um desfecho de-
finitivo até o fim de março. O PM Antônio João Vieira
Lázaro, suspeito de integrar a gangue de Zinho e alvo de
busca e apreensão em uma operação da PF em dezembro,
é apontado como a conexão daquela milícia com o aten-
tado à vereadora do PSOL, por ter supostamente partici-
pado de um encontro com os líderes do Escritório do Cri-
me — bando de pistoleiros que atuava na Zona Oeste —
para encomendar a morte.
Estima-se que, juntas, todas as milícias que atuam no
Rio controlem 57,5% do território da cidade. “A prisão de
Zinho não põe fim às investigações. Estamos trabalhan-
do para asfixiar financeiramente estas organizações”,
afirma a promotora Letícia Petriz, do MP-RJ. Não será
tarefa fácil: o prefeito carioca Eduardo Paes denunciou na
última semana que integrantes do crime organizado es-
tão exigindo 500 000 reais de empreiteiras para liberar
uma obra no município. Os negócios seguem a toda. ƒ

5|5
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BRASIL ELEIÇÕES

PALANQUES
EM CONSTRUÇÃO
De olho nas prefeituras, Lula quer percorrer o país
com pacote de obras para apoiar aliados, fortalecer
o governo e preparar o caminho para 2026
LAÍSA DALL’AGNOL E VICTORIA BECHARA
INSTAGRAM @RUIFALCAO13

EMPENHO Lula com Marta em Brasília e com Boulos


e ministros em Itaquera, Zona Leste de São Paulo:
esforço do petista para vencer na maior cidade do país

1|8
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NA SEGUNDA-FEIRA, 8, em reunião no seu gabinete, o


presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou o retorno ao PT,
após nove anos, da ex-prefeita Marta Suplicy, convencendo-
-a a deixar a gestão de Ricardo Nunes (MDB), onde era se-
cretária de Relações Internacionais, e apoiar o concorrente
dele, Guilherme Boulos (PSOL), na corrida pela prefeitura
de São Paulo. Três semanas antes, havia colocado num pa-
lanque em Itaquera, na populosa Zona Leste paulistana, um
punhado de ministros, incluindo o ex-prefeito Fernando Ha-

RICARDO STUCKERT/PR

2|8
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ddad (Fazenda), para assinar um contrato para 2 600 apar-


tamentos do Minha Casa, Minha Vida em área ocupada pe-
lo MTST, movimento de sem-teto liderado por Boulos. Os
dois gestos, carregados de simbolismo, revelam o quanto
Lula está decidido a se envolver na campanha deste ano, que
considera estratégica, não só para seu governo, mas para pa-
vimentar a sua reeleição em 2026.
A preocupação de Lula foi deixada clara já em dezembro.
Em reunião ministerial na qual apresentou o balanço do go-
verno em 2023, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afir-
mou aos colegas que em 2024 o presidente vai “colocar o pé
na estrada”. E reforçou que este será acima de tudo um “ano
de entregas”. Ali ficou decidido que tanto Lula quanto os
ministros deveriam ampliar as agendas nos estados, acom-
panhando e inaugurando obras e projetos. No horizonte,
uma meta ambiciosa: Lula quer visitar os 26 estados ainda
no primeiro semestre.
A bagagem do presidente estará pesada. Nela estarão
vultosos programas de considerável potencial eleitoral e que
deverão ser a chave para a construção de palanques regio-
nais. Apenas o Novo PAC prevê 1,7 trilhão de reais em áreas
como infraestrutura, transporte, energia e saúde, com uma
diversidade de investimentos e grandes obras, como a con-
clusão da Ferrogrão (ferrovia que liga o Mato Grosso ao Pa-
rá), a construção do Túnel Santos-Guarujá e a retomada do
programa Luz para Todos, que tem como meta universali-
zar a energia elétrica no Norte e Nordeste. O que brilha aos

3|8
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SECOM/GOVBA

CORRERIA Rui Costa, no metrô em Salvador: ministro


coordena os investimentos pelo país

olhos do governo, porém, são obras menores, mas de impac-


to em eleições municipais, como escolas e postos de saúde.
Só no PAC Seleções, que terá 136 bilhões de reais, há 35 000
projetos em 5 344 cidades.
Outra grande aposta é o Minha Casa, Minha Vida, que
tem priorizado a retomada de obras paradas. Apenas em
2023, cerca de 22 000 unidades habitacionais foram reini-
ciadas. Há empreendimentos em andamento em 1 861 mu-
nicípios — um em cada três cidades do país. A estratégia
tem um cálculo eleitoral: obras paradas podem ser reinicia-

4|8
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das rapidamente e têm potencial de conclusão a curto prazo,


a tempo de servirem como vitrine eleitoral. O governo con-
tabilizava no início do mandato 14 000 empreendimentos
suspensos, dos quais 4 300 eram creches e escolas. “Reto-
mamos muitas dessas obras a partir de forças-tarefas com
prefeitos e governadores, que atualizaram o valor das obras
paralisadas, coisa que nunca tinha acontecido”, afirma An-
dré Ceciliano, secretário de Assuntos Federativos. O pacote
também inclui um razoável “estoque” de recapeamentos de
rodovias federais e mais de cem institutos de ensino superior
— um deles, em Fortaleza, será o novo câmpus do ITA, uma
das mais renomadas instituições de ensino do país, cujo
anúncio será explorado em viagem de Lula.
A estratégia é uma velha conhecida: eventos do governo
casados com a presença de candidatos nas capitais mais co-
biçadas. Além de São Paulo, Lula tem interesse em emplacar
aliados no Rio de Janeiro e Recife, onde apoiará as reelei-
ções de Eduardo Paes (PSD) e João Campos (PSB). Em Sal-
vador, capital nunca comandada pelo partido, que governa
o estado há cinco mandatos, a tendência é apoiar Geraldo
Júnior (MDB), vice do governador Jerônimo Rodrigues
(PT). “Vou apresentar ao presidente Lula a lista de obras do
Novo PAC Seleções. Entre elas, a estação de metrô no Cam-
po Grande, uma demanda antiga”, discursou Rui Costa em
uma estação de Salvador no dia 26 de dezembro. Até o fim
de janeiro, a expectativa é que Lula visite Pernambuco, Bah-
ia, Rio, Minas Gerais e Santa Catarina.

5|8
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RICARDO STUCKERT/PR

UNIÃO Lula entrega moradias em Macapá: agrado a aliados


como Davi Alcolumbre, cujo irmão, Josiel, disputa a prefeitura

As eleições deste ano se mostram importantes para Lula


e o PT não apenas para o partido se recuperar do fiasco de
2020, quando não conquistou nenhuma capital. Um dos ob-
jetivos é usar o grande pacote de investimentos para sacra-
mentar alianças regionais que tenham eco nas relações com
os partidos no Congresso, marcadas por dificuldades. Dis-
tribuição de obras, dinheiro e apoio eleitoral podem aproxi-
mar legendas mais voláteis com o governo, como União Bra-
sil e PP, além de fortalecer a relação com siglas como MDB,
PSD e PSB. Um exemplo é Macapá, onde Lula esteve em 18
de dezembro para entregar mil moradias, ao lado de Davi
Alcolumbre (União), que pode comandar o Senado a partir
de 2025 — seu irmão, Josiel, vai disputar a prefeitura. A elei-
ção de aliados nas capitais é vista como importante para um
bom desempenho nas eleições parlamentares de 2026 —
uma base mais alinhada é tudo o que Lula gostaria de ter em
um eventual quarto mandato.

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O investimento pesado do governo nas eleições é tão


prioridade que gera certo desconforto com a área econômi-
ca. Fernando Haddad (Fazenda) foi bastante cobrado na
Conferência Eleitoral do PT em dezembro, em Brasília, que
deu a largada para a campanha. “Há um problema orça-
mentário. Prometeu-se déficit zero e ao mesmo tempo pro-
mete-se ampliar obras, programas sociais. Como haverá es-
se equilíbrio entre gastos públicos e meta fiscal?”, questiona
Paulo Ramirez, professor de Ciências Políticas da ESPM.
Ele lembra que o governo fechou acordo com o Centrão pa-
ra disponibilizar 53 bilhões de reais para emendas parla-
mentares. “Isso mostra que Lula soube jogar o jogo, mas tem
fragilidade de apoio no Congresso ao mesmo tempo em que
impõe dificuldades para zerar o déficit”, diz.
O esforço de presidentes para eleger prefeitos não é uma
coisa comum. FHC mal apoiou os tucanos em São Paulo em
1996 (José Serra) e 2000 (Geraldo Alckmin) — eles não fo-
ram sequer ao segundo turno. “São mais de 5 000 municí-
pios no Brasil e ele não irá para as ruas participar de qual-
quer campanha. Permanecerá em Brasília governando o
país”, disse Serra. Nos dois primeiros mandatos, Lula subiu
em um ou outro palanque. Em 2008, afirmou que evitaria
“ao máximo possível” para não criar mal-estar na base do
governo. O presidente, porém, discursou no comício de
Marta em São Paulo — ela perdeu para Gilberto Kassab. Em
2012, Dilma Rousseff participou da campanha de Haddad e
subiu em palanques em Campinas e Salvador. Já o seu su-

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CARLOS GIBAJA/CASA CIVIL

TRUNFO Os ministros José Múcio e Camilo Santana (ao


centro) em Fortaleza: anúncio de câmpus do ITA

cessor, Michel Temer, não se envolveu. No último pleito, em


2020, Bolsonaro também manteve distância: externou
apoio a apenas dois candidatos em capitais — Marcelo Cri-
vella (Rio) e Capitão Wagner (Fortaleza), que não se elege-
ram — e não foi a nenhum evento de campanha.
Há um certo consenso de que as eleições municipais são
difíceis de serem nacionalizadas, porque o eleitor tende a se
guiar por questões mais próximas do seu cotidiano. Nesse
ponto, a bagagem que o “mascate” Lula irá levar pelo país
pode agradar à clientela porque inclui escolas, creches, pos-
tos de saúde, quadras esportivas e centros comunitários. Pa-
rece lista de promessas de candidatos a prefeitos, mas é o
pacote com que ele vai colocar a sua popularidade e de seu
governo à prova. Resta ver o que dirão as urnas. ƒ

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MURILLO DE ARAGÃO

A POLÍTICA E A
GAIOLA DE FARADAY
Experimento feito no século XIX
tem aplicação nos dias atuais

NASCIDO EM 1791, o cientista inglês Michael Faraday teve


um papel fundamental no estudo do eletromagnetismo e da
eletroquímica. De família modesta, Faraday começou a carrei-
ra como aprendiz de encadernador, mas seu interesse pela
ciência o levou a tornar-se um dos cientistas mais influentes do
século XIX. Em 1836, Faraday realizou uma série de experi-
mentos que demonstraram a eficácia de uma gaiola metálica
na proteção contra campos elétricos externos, caso dos raios.
No experimento, que ficou conhecido como Gaiola de
Faraday, ele usou uma sala coberta com folha de metal para
mostrar que, quando ela era carregada eletricamente, o
campo elétrico no exterior não influenciava o interior da sa-
la. As cargas elétricas na superfície do lado de fora redistri-
buíam-se de forma a neutralizar os efeitos do campo elétrico
externo, deixando o interior sem influência elétrica. É um
efeito que ocorre quando caem raios nos carros.
Tal descoberta representou um marco na compreensão
do eletromagnetismo e na demonstração prática do funcio-

1|3
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namento dos campos elétricos. Sendo a Gaiola de Faraday


um conceito originário da física, por meio dele faço uma
analogia para refletir sobre certos aspectos do processo po-
lítico. Ao considerar a política um sistema complexo, pode-
mos entender as metafóricas Gaiolas de Faraday como es-
truturas essenciais à manutenção da estabilidade e da inte-
gridade desse sistema. Essas “gaiolas” seriam compostas
por uma série de mecanismos legais e éticos desenhados pa-
ra proteger as instituições políticas de influências externas
que poderiam desestabilizá-las ou corrompê-las.
Exemplos desse mecanismo são as leis anticorrupção, as
normas de transparência e de prestação de contas, os siste-
mas de fiscalização e controle, a separação dos poderes, en-
tre outros. Essa metáfora pode ser estendida ainda para a
esfera da opinião pública e da informação. Assim como a
Gaiola de Faraday impede a penetração de campos elétri-
cos, uma sociedade bem informada e crítica pode funcionar
como uma barreira contra a desinformação e as narrativas,

“É preciso proteger as
instituições de influências
externas que poderiam
desestabilizá-las”
2|3
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que, muitas vezes, visam influenciar indevidamente o pro-


cesso político. A educação cívica, o jornalismo independen-
te e a leitura reflexiva atuam como componentes dessa
“gaiola” metafórica, protegendo o corpo político de manipu-
lações antidemocráticas internas e externas.
Assim, a analogia com a Gaiola de Faraday oferece uma
maneira útil de pensar as estruturas e as práticas que susten-
tam a integridade e o funcionamento saudável do processo
político, enfatizando a necessidade de proteção contra in-
fluências externas que podem ser prejudiciais e a importân-
cia de manter e aprimorar, permanentemente, esses meca-
nismos de defesa. No dia 8 de janeiro de 2023, apesar da
violência dos atos, da cumplicidade do governo que saía, da
leniência do governo local e da grossa incompetência do go-
verno federal que assumia, a nossa Gaiola de Faraday fun-
cionou, nos isolando de consequências mais graves. Longe
de ser perfeita, funcionou também quando testada no dia
7 de setembro de 2021. ƒ

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BRASIL POLÍTICA

APOSTA
DE RISCO
Repetindo o que fez Lula em 2018, Bolsonaro
tenta contornar a inelegibilidade e ser candidato
em 2026, esticando a corda da polarização e da
tensão institucional ISABELLA ALONSO PANHO

POPULARIDADE Bolsonaro em São Miguel dos Milagres


(AL): encontros com eleitores em clima de campanha

FELIPE SOSTENES/ONZEX PRESS E IMAGENS/AGÊNCIA O GLOBO

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NAS ELEIÇÕES de 2018, Luiz Inácio Lula da Silva, inelegí-


vel com base na Lei da Ficha Limpa e preso em Curitiba, lan-
çou a sua candidatura à Presidência. Mesmo com poucas
chances de sucesso, o petista esticou a corda, mantendo o seu
nome no páreo até o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tirá-lo
da corrida a menos de quarenta dias do primeiro turno. A es-
tratégia quase deu certo. Lula transferiu boa parte dos votos
ao vice, Fernando Haddad, que foi para o segundo turno. Oi-
to anos depois, a história poderá se repetir, mas agora com o
vencedor daquele pleito, Jair Bolsonaro. Também inelegível,
ele dá mostras de que vai levar a discussão sobre a sua candi-
datura até 2026 — o que poderá impactar não só o processo
eleitoral, mas todo o ambiente político do país.
A principal frente para recuperar o direito eletivo até
agora é a da Justiça. Condenado pelo Tribunal Superior Elei-
toral (TSE) à inelegibilidade por oito anos em dois processos
(veja o quadro), ele já recorre ao Supremo Tribunal Federal
de uma das decisões: o caso em que foi punido por usar a es-
trutura do Palácio do Planalto para uma reunião com em-
baixadores, em 2022, na qual atacou as urnas eletrônicas. A
sua equipe jurídica é chefiada por um ex-ministro do TSE,
Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, e contratada pelo seu par-
tido, o PL, que tem amplo interesse em travar a disputa pela
candidatura nos tribunais.
A sorte, ao menos nesse início da estratégia, não parece
estar ao lado de Bolsonaro. O ministro escolhido para rela-
tar o caso é Cristiano Zanin, por ironia, ex-advogado de Lu-

2 | 11
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la e da campanha do PT ao Planalto em 2022 — o que deixa


no ar a hipótese de ele se declarar suspeito. Se isso não ocor-
rer, tudo indica que as chances de Bolsonaro são pequenas.
O ministro é “linha-dura” nesse tipo de processo: todos os
recursos eleitorais que passaram pela sua relatoria em 2023
tiveram decisões negativas. O voto dele, de qualquer forma,
precisaria ser submetido à Primeira Turma do STF e, se
houver recurso, ao plenário. Mesmo assim, a chance de Bol-
sonaro pouco muda: a taxa de provimento de recursos no
Supremo no ano passado foi de apenas 4,6%. “A chance dele
é reduzidíssima”, diz Walber Agra, advogado do PDT, res-
ponsável pela ação que levou à inelegibilidade do ex-capitão.
GUSTAVO MORENO/SCO/STF

RIGOR Zanin: rejeição de todos os


pedidos eleitorais que julgou em 2023

3 | 11
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A defesa não tem nenhuma pressa em acelerar os julga-


mentos do ex-presidente no STF por um bom motivo. En-
quanto não existir trânsito em julgado (o fim de todas as hi-
póteses de recurso), há a possibilidade de Bolsonaro tocar
uma candidatura sub judice, igual à de Lula em 2018. Ele
poderá pedir o registro no TSE, o que dará origem a um pro-
cesso judicial — o deferimento ou não só ocorrerá perto do
primeiro turno (no caso de Lula, foi no dia 31 de agosto). En-
quanto o tribunal não tomar uma decisão, Bolsonaro vai
usufruir de todas as prerrogativas dos candidatos: terá tem-
po de TV, poderá ir aos debates e fazer campanha na rua.
Um ponto a favor do ex-presidente é que a Corte eleitoral em

FORA DO PÁREO?
Entenda a situação jurídico-eleitoral do
ex-presidente Jair Bolsonaro

BOLSONARO ESTÁ EM QUAIS PROCESSOS ELE


INELEGÍVEL? JÁ FOI CONDENADO?

O ex-presidente teve a Um deles trata da reunião que


inelegibilidade por oito anos promoveu com embaixadores no Palácio
decretada pelo TSE em dois do Planalto. O outro é sobre os eventos
processos. Nos dois casos, do Bicentenário da Independência. Nas
no entanto, ele ainda pode duas situações, ambas em 2022, ele
recorrer ao STF para tentar usou estrutura pública para promover
reverter a decisão ataques ao sistema eleitoral brasileiro

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2026 estará sob a presidência de Kassio Nunes Marques,


que foi indicado a ministro do STF por Bolsonaro e que vo-
tou contra a sua inelegibilidade nos dois processos. Na che-
fia do TSE, ele terá poderes para conceder liminares que po-
dem ajudar o ex-presidente, como permitir que ele dispute a
eleição enquanto tiver recurso em tramitação.
Mesmo que fadada ao fracasso, uma candidatura sub ju-
dice poderá trazer vários ganhos políticos. O “plano A” é
capitalizar a popularidade de Bolsonaro como candidato e,
se houver um revés judicial, transferir os votos ao vice. Nes-
se caso, será preciso saber qual é o potencial de transferên-
cia de eleitores do ex-presidente — o que também vai de-
pender, claro, de quem será o vice e da ligação que ele tem
com Bolsonaro. O feito de Haddad, que herdou rapidamen-
te o eleitorado de Lula, foi fora da curva — a média de
transposição de votos é em torno de 30%. O potencial elei-

ELE JÁ RECORREU QUEM VAI JULGAR O CASO


DAS CONDENAÇÕES? DE BOLSONARO NO
SUPREMO?
O ex-presidente recorreu Zanin emitirá o seu voto, que será
ao STF no caso da reunião submetido à Primeira Turma. Nesse
com embaixadores. colegiado também estão Alexandre
O processo, um Agravo de Moraes, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
em Recurso Extraordinário, Depois do julgamento da turma, a
teve o ministro Cristiano defesa de Bolsonaro ainda poderá
Zanin sorteado como relator recorrer ao plenário

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toral do ex-presidente ainda é alto. Pesquisa feita pelo Data-


folha em dezembro apontou que 91% dos que votaram em
Bolsonaro em 2022 não se arrependem da sua escolha e
que 82% têm agora confiança nele igual ou maior do que ti-
nham na eleição passada.
Mesmo que não consiga repetir 2018, a estratégia pode tra-
zer ganhos ao bolsonarismo e ao PL. A perspectiva de voltar
ao poder, mesmo que ilusória, ajuda a manter o capital político
de Bolsonaro, a sua capacidade de atrair aliados e o seu peso
para eleger correligionários. Com ele nas ruas fazendo campa-
nha, deve manter-se o ambiente de polarização com o PT,
ocorrido nas duas últimas eleições, o que ajuda o bolsonaris-
mo. “A candidatura dá munição aos apoiadores mais radicais”,
afirma o cientista político Eduardo Grin, professor da FGV.
Há, no entanto, também muitos efeitos colaterais. Um de-
les será dar combustível à animosidade dos apoiadores de

O EX-PRESIDENTE PODERÁ COM O PEDIDO DE REGISTRO


REGISTRAR CANDIDATURA FEITO, BOLSONARO PODERÁ
EM 2026? FAZER CAMPANHA?
Sim. O pedido de registro dá Sim. Enquanto não houver
origem a um processo que decisão sobre o registro,
vai ser julgado pela Justiça ele poderá se apresentar
Eleitoral. Enquanto isso, ele como candidato. O julgamento
pode concorrer sub judice geralmente ocorre em agosto
(provisoriamente) ou setembro, pouco
antes da eleição

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Bolsonaro contra o Judiciário, em especial a Justiça Eleitoral,


um dos principais alvos nos últimos anos. Como ocorreu com
Lula, a militância deve pressionar o TSE antes do julgamento.
Um Bolsonaro impedido às vésperas da votação de concorrer
por causa da Corte eleitoral ou do Supremo poderia ser a faís-
ca perfeita para uma nova onda incendiária contra o sistema
eleitoral. “Existe uma aposta de investir no ataque ao Judiciá-
rio”, avalia Carlos Nascimento Santos, docente da Universida-
de Federal Fluminense e doutor em teoria do Estado.
Outro efeito colateral, igualmente preocupante, é o sufo-
camento de candidaturas do centro à direita, que poderiam
ser uma alternativa até melhor para enfrentar Lula. Bolsona-
ro sempre foi resistente em passar o bastão e, desde que ficou
inelegível, em junho de 2023, não avaliza o nome de nin-
guém enquanto ele próprio puder ser o rosto e a voz do con-
servadorismo no Brasil. Se for candidato em 2026, ele vai re-

COMO FICA A CANDIDATURA O TSE PODE VOLTAR


DE BOLSONARO SE O TSE ATRÁS NA DECISÃO DE
NEGAR O REGISTRO? INELEGIBILIDADE?
O postulante a vice assume Não. As condenações não
a liderança da chapa. É o podem ser desfeitas. Porém,
que aconteceu com Lula em existe a possibilidade de o
2018, quando a candidatura tribunal permitir que o
dele foi indeferida e ex-presidente concorra
Fernando Haddad assumiu enquanto o STF não terminar
a campanha de julgar seus recursos

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duzir sensivelmente o espaço para candidaturas como as dos


governadores Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG),
Ratinho Junior (PR) e Ronaldo Caiado (GO) ou da senadora
Tereza Cristina (MS), todos já especulados como presiden-
ciáveis. O risco para essa turma é naufragar eleitoralmente se
tentarem se descolar do ex-presidente caso ele seja candida-
to. Em 2018, a pretensão de Ciro Gomes minguou depois da
intervenção de Lula, que da cadeia atraiu partidos que o pe-
detista esperava ter ao seu lado. “Além disso, enquanto for o
candidato, Bolsonaro terá o voto anti-Lula”, diz Murilo Hi-
dalgo, diretor do instituto Paraná Pesquisas.
Nas últimas semanas, Bolsonaro tem dado mostras de
que ainda sonha com a volta à Presidência. Desde que dei-
xou o Planalto, viaja pelo país em agendas com pré-candi-
datos e encontros com apoiadores em locais públicos. Nas
redes, gasta parte do tempo com posts sobre feitos da sua
gestão e comparações com o governo Lula — além, claro, de
vídeos e fotos com eleitores em cidades como São Miguel
dos Milagres (AL) ou Angra dos Reis (RJ). Entre os aliados
mais próximos, todos o tratam como candidato. “Não passa
na cabeça de nenhum de nós uma segunda opção. Não tem
outro nome”, afirma o ex-ministro do Turismo Gilson Ma-
chado Neto. “O horizonte mais próximo é 2026. A força do
presidente Bolsonaro no Brasil é indiscutível”, diz Altineu
Côrtes (PL-RJ), líder do partido na Câmara.
Quem mais está interessado em esticar a corda é o PL,
que aposta no prestígio de Bolsonaro para alavancar seus

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BETO BARATA/PL

DE OLHO EM 2026 Valdemar Costa Neto: cacique do PL


afirma que “as coisas no Brasil podem mudar”

candidatos no Senado e na Câmara e repetir o sucesso de


2022, quando elegeu a maior bancada de deputados (99) e
levou oito das 27 cadeiras em disputa no Senado. Além dis-
so, nenhum dos outros presidenciáveis do centro à direita
especulados até agora é do PL. O presidente do partido, Val-
demar Costa Neto, é otimista com relação à reversão da ine-
legibilidade. “Quem diria que Lula, preso todo aquele tem-
po, ia ser candidato? As coisas no Brasil podem mudar. Te-
mos quase certeza de que Bolsonaro vai ser candidato”, exa-
gera. Para o cacique, mesmo que o ex-presidente seja preso,

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SOB NOVA DIREÇÃO


Nunes Marques: indicado por
Bolsonaro ao STF, presidirá
o TSE na próxima eleição
ANDRE BORGES/EFE

em razão das investigações das quais é alvo (incitação ao 8


de Janeiro, venda de joias da Presidência e ataques às urnas,
entre outras), o plano de tê-lo na disputa continuará manti-
do, já que ele acredita que o ex-presidente poderia se tornar
um mártir, vitimado por um suposto autoritarismo do Judi-
ciário. Ele diz que a melhora da popularidade já ocorreu
quando o ex-presidente foi julgado inelegível. “Imagine se
ele for preso então. Vão levar Bolsonaro para o céu”, acredi-
ta. “Pessoalmente, seria uma tragédia para Bolsonaro. Elei-
toralmente, seria muito positivo”, diz Murilo Hidalgo.

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EVARISTO SA/AFP

DÉJÀ VU Apoio a Lula no TSE em 2018:


pressão poderá se repetir em 2026

Embora Bolsonaro não possa ser impedido de buscar seus


direitos, uma estratégia baseada no princípio de esticar a cor-
da com o Judiciário pode gerar instabilidade política, um
processo eleitoral envolto na incerteza e um clima de animo-
sidade institucional indesejado, ainda mais depois do 8 de Ja-
neiro. Além disso, a insistência de Bolsonaro dará sobrevida
a uma estratégia batida de polarizar a disputa eleitoral, redu-
zindo a qualidade do debate público e minando novos nomes
do seu próprio espectro político. O país precisa de mais de
serenidade e racionalidade para discutir o seu futuro. ƒ

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BRASIL GOVERNO

UNIÃO ABALADA
Cerimônia de aniversário do 8 de janeiro mostra
que a pacificação política continua sendo um objetivo
distante e, para alguns, uma mera figura de retórica
MARCELA MATTOS

DISCURSO O ato em favor da democracia:


a solenidade acabou ofuscada pelo tom
de palanque dado pelo presidente

SERGIO LIMA/AFP

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NO FINAL DE 2023, o presidente Lula teve a ideia de pro-


mover em Brasília um megaevento para marcar um ano
dos inaceitáveis ataques às sedes dos três poderes. O roteiro
inicial desenhado para o ato de 8 de janeiro, batizado de
Democracia Inabalada, previa que Lula subisse a rampa do
Congresso e, no topo, fosse recebido pelos chefes da Câma-
ra e do Senado. Do lado de fora, haveria manifestações po-
pulares de repúdio ao golpismo. Ao mesmo tempo, do lado
de dentro, o lustroso salão do Senado seria palco de um
grande aceno à pacificação ao reunir as mais poderosas fi-
guras do país, independentemente de suas posições
político-partidárias, em torno de uma causa nobre. Mas
nem tudo saiu como planejado. Da mesma forma que a po-
pulação não se mobilizou em torno da efeméride, uma sig-
nificativa parcela das autoridades convidadas acabou por
usar as férias ou agendas pessoais como desculpa para não
comparecer. Metade dos 27 governadores faltou ao evento,
incluindo os dos três maiores e mais importantes estados
da federação: Tarcísio de Freitas (São Paulo), Cláudio Cas-
tro (Rio de Janeiro) e Romeu Zema (Minas Gerais).
A ausência do presidente da Câmara, deputado Arthur
Lira, e de quatro dos 11 ministros do Supremo Tribunal Fe-
deral também foi notada. Se um dos objetivos do governo
era mostrar que é possível unir forças, inclusive as mais an-
tagônicas, em defesa de uma causa nobre como a democra-
cia, é temerário considerar que a iniciativa foi bem-sucedi-
da. E quando se sabe ainda que os comandantes militares

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chegaram a cogitar a hipótese de não participar da solenida-


de, fica evidente que o clima não é tão ameno quanto se diz.
A polarização, a intolerância e a estupidez que serviram co-
mo catalisadores da invasão e depredação das sedes dos três
poderes no ano passado continuam deixando o ambiente
turvo. Temia-se que o presidente politizasse a cerimônia — e
foi exatamente o que aconteceu. Quem apareceu, viu de per-
to o furor palanqueiro de Lula, que desferiu ataques a inimi-
gos e rasgados elogios a ele mesmo, tirando o brilho daquilo
que havia de mais importante na cerimônia: o repúdio insti-
tucional às cenas de selvageria protagonizadas na capital fe-
deral que jamais serão esquecidas ou ficarão impunes.

AS AUSÊNCIAS QUE
FORAM NOTADAS
Muitos políticos se
recusaram
TON MOLINA/FOTOARENA

a participar da
solenidade

ARTHUR LIRA
O presidente da Câmara se
irritou com a organização do
evento, coordenado por Janja
da Silva, a primeira-dama

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Antes mesmo de ser oficializado, o ato da última segun-


da-feira já era tratado entre auxiliares palacianos como um
momento “imperdível” para o idealizador da cerimônia.
“Você acha que o presidente ia perder essa oportunidade?
Jamais”, ironizou um ministro, ao comentar o cancelamen-
to compulsório de todas as agendas e férias para aquela da-
ta. No entorno de Lula, sempre foi reconhecido que o petis-
ta, após ser eleito na sua mais difícil campanha, conseguiu
azeitar as relações com os demais poderes depois dos atos
de vandalismo. Em 2023, no dia seguinte aos ataques e com
o país ainda sob estado de choque, os governadores, os pre-
sidentes da Câmara e do Senado e os ministros do Supremo
MÔNICA ANDRADE/GOVERNO DO ESTADO DE SP

TON MOLINA/FOTOARENA

TARCÍSIO DE FREITAS IBANEIS ROCHA


Aliado do ex-presidente O governador de Brasília
Bolsonaro, o governador de foi acusado por Lula de
São Paulo está em viagem ter sido cúmplice de uma
de férias pela Europa tentativa de golpe

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se reuniram em Brasília e caminharam de braços dados em


meio aos escombros. Uma pesquisa do instituto Quaest di-
vulgada na semana passada ajuda a explicar o que mudou
nesse período — ou, na verdade, o que não mudou.
De acordo com o levantamento, 89% continuam conde-
nando os atos golpistas de 8 de janeiro. Há praticamente
um consenso, portanto, de que os ataques devem ser repu-
diados. Lula sabe disso e decidiu aproveitar a onda. A di-
vergência começa quando se pergunta sobre a responsabi-
lidade de Jair Bolsonaro nos atos antidemocráticos. Qua-
renta e sete por cento dos entrevistados acreditam que o
ex-presidente teve algum tipo de influência, enquanto 43%
rechaçam qualquer vinculação. O quadro era diferente — e
mais desfavorável ao ex-presidente — no ano passado. Um
mês depois da baderna, 51% apontaram algum tipo de in-
fluência do capitão, enquanto 38% defendiam o contrário.
A diferença de percentual entre os dois grupos caiu de 13
para 4 pontos. Os governadores e políticos de oposição
também sabem disso e decidiram não comparecer. O país
continua dividido e, ao que parece, não há interesse algum
em qualquer tipo de pacificação.
Diante de governadores, parlamentares, ministros pa-
lacianos e do Supremo, o presidente saudou aqueles que
“se colocaram acima das divergências para dizer um elo-
quente não ao fascismo”, agradeceu a dedicação das for-
ças de segurança e defendeu que haja uma união de esfor-
ços para aperfeiçoar a democracia. Até aí, declarações à

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RANIER BRAGON/FOLHAPRESS
CRÍTICAS Militares: isolados, os comandantes chegaram
a cogitar a hipótese de não participar da cerimônia

altura de um chefe de Estado. Mas Lula aumentou a cali-


bragem e disse que, “se a tentativa de golpe fosse bem-su-
cedida”, e a julgar pelo que “o ex-presidente golpista pre-
gou em campanha”, “adversários políticos e autoridades
constituídas poderiam ser fuzilados ou enforcados em
praça pública”. O presidente ainda se dedicou a atacar os
filhos de Jair Bolsonaro, ao questionar por que eles não
renunciam ao mandato em protesto à alegada fraude das
urnas eletrônicas. A fala para a seleta plateia não difere
dos últimos discursos do petista, quando, acompanhado
por sua claque em eventos oficiais, Lula chamou Bolsona-
ro de “desgraça”, “gente ruim” e “facínora”.
O clima belicoso não incluiu apenas Bolsonaro como al-
vo. Prenúncio de que a pacificação estava longe do horizon-
te, Lula decidiu, em entrevistas, atacar o governador do
Distrito Federal. Em acusações gravíssimas, o presidente
disse que Ibaneis Rocha (MDB) foi cúmplice e conivente

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com os atos golpistas, além de ter firmado um pacto com


Bolsonaro, militares e policiais que resultou nos ataques em
Brasília. “Não tem outra coisa a fazer a não ser prender esse
governador”, afirmou. Por ordem do ministro Alexandre
de Moraes, Ibaneis Rocha ficou afastado por dois meses do
governo do DF logo após os atentados do ano passado. Ele
é investigado pelo STF por uma suposta omissão ao não ter
preparado o esquema de segurança na capital federal — pa-
ra Moraes, a Polícia Militar do DF negligenciou, de manei-
ra proposital, a proteção das sedes dos três poderes, o que
permitiu o quebra-quebra generalizado. Ibaneis, por óbvio,
não compareceu à cerimônia. O emedebista justificou que
está de férias em Miami, na Flórida, com previsão de retor-
nar ao país no próximo dia 15.
Outra ausência notória foi a do presidente da Câmara,
Arthur Lira, que também desistiu de participar de última
hora. Na noite anterior ao evento, o deputado telefonou pa-
ra Lula para justificar a ausência. Disse que estava em Ala-
goas acompanhando um familiar doente. O problema de
saúde é real, mas não o único motivo da falta. Lira se irri-
tou com a organização do evento, coordenado pela primei-
ra-dama Janja da Silva. No convite oficial, Janja incluiu
apenas as assinaturas de Lula e Pacheco. Não foi certa-
mente uma distração. No vídeo institucional gravado para
ser exibido no ato, o presidente da Câmara também não
aparecia. Em um sinal de que seria uma cerimônia gover-
nista, e não de Estado, Janja também escolheu a governa-

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RICARDO STUCKERT/PR
EM 2023 Visita ao STF: defesa institucional
uniu políticos de todos os matizes

dora petista Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte, para


abrir os discursos. Lira decidiu não comparecer.
O evento ainda rendeu cenas de constrangimento aos
três comandantes das Forças Armadas. Sentados na quinta
fileira, atrás de ministros e convidados, eles tiveram de ou-
vir uma sequência de discursos sobre a tentativa de golpe —
o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que “já
não há mais espaço para quarteladas” —, além do coro “sem
anistia” puxado por Fátima Bezerra. Lula, que mantém uma
relação de desconfiança com os militares desde o início do
governo, também não colaborou. Além de não fazer nenhu-
ma deferência ao trio — eles sequer foram mencionados na
extensa nominata lida antes do início do pronunciamento
—, o presidente saudou os “militares legalistas”, reacenden-
do os ataques à corporação, já que, indiretamente, indicou
que há “golpistas” em meio às tropas. Os comandantes
aplaudiram o discurso sem nenhum entusiasmo. ƒ

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O QUE BOLSONARO
NOS DEU DE BOM
O governo anterior expôs as
nossas piores mazelas

FAZ MAIS de um ano que Jair Bolsonaro está fora do po-


der. Todos sabem o que ele nos deu de mau; talvez seja hora
de examinar o que ele nos deu de bom.
O governo Bolsonaro teve algumas conquistas relevan-
tes, como a reforma da Previdência, a autonomia do Banco
Central, a lei de Liberdade Econômica, o Novo Marco Legal
do Saneamento e algumas privatizações. Mas essas realiza-
ções pouco representam diante do desastre que foi sua ges-
tão — o serviço que o ex-presidente nos prestou que é digno
de nota foi nos mostrar quem somos nós, como país e como
cidadãos. E ele mostrou muito.
Ao contrário do que dizem, nossas instituições não
“são fortes”. Durante quatro anos, os ministérios opera-
ram como estafetas para o presidente. O Congresso foi in-
capaz de tirá-lo do poder e a PGR recusou-se a denunciá-
-lo (falhas na legislação dão ao presidente da Câmara e ao
PGR o poder de, sozinhos, impedir, respectivamente, im-
peachment e denúncia). Grandes parcelas das forças de

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segurança se deixaram cooptar. Tantas vezes disfuncio-


nais, o STF e o TSE foram as únicas instituições capazes
de defender a democracia sem titubear.
Nossas Forças Armadas não mudaram nos últimos qua-
renta anos, são as mesmas de sempre. Ainda que não te-
nham embarcado de corpo e alma no golpe, oficiais-gene-
rais se mostraram hostis à democracia incontáveis vezes.
Suas declarações e atitudes antidemocráticas, sua leniência
com oficiais subalternos golpistas (mesmo hoje, são frequen-
tes os relatos de que os generais trabalham para garantir sua
impunidade) e seu acobertamento dos acampamentos estão
na raiz do 8 de janeiro. As FFAA só vão mudar com altera-
ções profundas nos currículos das escolas militares.
Bolsonaro nos mostrou que existe uma enorme quanti-
dade de brasileiros profundamente insatisfeitos com o Esta-
do que temos — que, inchado e caro, entrega serviços de

“O serviço que
o ex-presidente nos
prestou que é digno
de nota foi nos mostrar
quem somos nós”
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baixa qualidade, protege o funcionalismo e prejudica em-


presas e cidadãos — e com um establishment frequentemen-
te corrupto, quase sempre alheio e desinteressado das difi-
culdades cotidianas da população. A parcela efetivamente
fascista é reduzidíssima, mas ela existe e tem enorme capa-
cidade de mobilização e comunicação.
Grande parte de nossa população — em todas as fai-
xas de renda e nível de educação — continua capaz de
apoiar um projeto de poder altamente preconceituoso
contra negros, mulheres, homossexuais e indígenas: o pe-
so de nossa herança patriarcal e escravocrata é bem maior
do que se imaginava.
Particularmente chocante e doloroso é o vasto apoio a
Bolsonaro nas classes mais ricas e instruídas. É assustador
que pessoas viajadas, supostamente cultas e educadas, que
se imaginam comparáveis às elites das nações desenvolvi-
das, possam defender alguém que se opõe frontalmente às
liberdades democráticas, aos pobres, às minorias. Fica claro
por que, depois de 134 anos de República, o Brasil não tem
um sistema público de educação que preste, metade da po-
pulação não tem saneamento e tanta gente vive em favelas.
Bolsonaro pôs um espelho diante de nossa cara. Resta
saber se continuaremos a fazer cara de que não temos na-
da com isso. ƒ

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BRASIL URBANISMO

POLÊMICA NA ORLA
Projeto que permite venda de áreas
verdes de Salvador abre disputa entre
moradores e setor imobiliário e põe
políticos como ACM Neto na mira VALMAR
HUPSEL FILHO E LAÍSA DALL’AGNOL

VISTA AMEAÇADA Área verde no Corredor da Vitória:


possível prédio de 36 andares desperta a oposição de entidades

DIVULGAÇÃO

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UM PROJETO aprovado na Câmara de Salvador e sancio-


nado pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil) provocou a rea-
ção de moradores e entidades da sociedade civil preocupa-
dos com a preservação ambiental no município. Na última
sessão de 2023, sob protestos nas galerias, vereadores de-
ram aval para a prefeitura alienar, trocar, vender e até doar
quarenta terrenos públicos, sendo quinze áreas verdes, o
equivalente a 24 campos de futebol. A iniciativa reacendeu
preocupação antiga em uma cidade cujo poder público tem
longo histórico de flexibilizações no uso do solo para aten-
der ao apetite imobiliário por empreendimentos cada vez
mais altos — que nem sempre respeitam as leis ambientais.
O barulho foi amplificado agora, não só pela dimensão da
flexibilização, mas também pelo tamanho dos personagens
envolvidos na polêmica. Um dos terrenos desafetados (esse é
o termo técnico) — uma área verde de 6 699 metros quadra-
dos numa encosta à beira-mar na Baía de Todos os Santos,
na região nobre do Corredor da Vitória — coloca em lados
opostos figuras proeminentes da capital baiana. A Novonor
(ex-Odebrecht) adquiriu um prédio de dois andares ao lado
do imóvel desafetado e planeja construir lá um edifício em
parceria com um grupo de empresários de curiosa formação
do ponto de vista político, que reúne o ex-prefeito ACM Neto,
o marqueteiro Sidônio Palmeira, responsável pela campanha
de Lula em 2022, e João Gualberto, ex-prefeito de Mata de
São João, entre outros. O projeto prevê 24 pavimentos, mas
os responsáveis querem adquirir o terreno desafetado para

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INSTAGRAM @SOS.BURACAO

MOBILIZAÇÃO Praia do Buracão: sombra na areia


preocupa a comunidade

aumentar o potencial construtivo para 36 andares. Essa pos-


sibilidade acendeu o alerta de entidades de meio ambiente e
urbanismo. “Ali existe uma superposição de legislação que
visa a sua preservação”, diz Daniel Colina, presidente do Ins-
tituto dos Arquitetos do Brasil na Bahia (IAB-BA).
Se os interessados em tocar o projeto são influentes, a opo-
sição a ele não fica atrás. A empresária Flora Gil, mulher do
cantor Gilberto Gil, manifestou preocupação em suas redes.
“Pedindo a Deus e à prefeitura que conserve a Mata Atlântica
da cidade do Salvador”, postou. Em dezembro, o perfil de Gil-
berto Gil comentou. “Os lucros são muito grandes, mas nin-
guém quer abrir mão”, afirmou, repetindo um verso de sua

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canção Nos Barracos da Cidade. Representantes do grupo in-


teressado no projeto dizem que há interesse em adquirir o ter-
reno, mas só para aumentar o potencial construtivo, sem fazer
qualquer intervenção na área protegida.
A flexibilização crescente do uso do solo pôs ACM Neto
na mira. Vereadores de oposição dizem que a Câmara e a
prefeitura agem para atender aos interesses do ex-prefeito
(2013 a 2020) e padrinho de Bruno Reis. Esse foi o quarto
lote de desafetações desde 2014, num total de 113 áreas pú-
blicas. Em dezembro, Reis afirmou que a prefeitura arreca-
dou 9 milhões de reais com a venda de quatorze terrenos.
Sobre o último lote, diz que os espaços classificados como
áreas verdes “não têm mais vegetação nenhuma”. “Não sig-
nifica que serão vendidos”, disse.
Moradores de diversos bairros, no entanto, preferem se or-
ganizar para defender as áreas públicas verdes. Um exemplo é
o do Morro Ipiranga, onde um terreno de frente para o mar
foi desafetado. O receio é que ocorra ali o que já é visto em seu
entorno: a construção de espigões onde antes havia imóveis
de no máximo dois pavimentos. Em outros locais, a comuni-
dade tenta impedir a verticalização desenfreada na orla, co-
mo vem ocorrendo em Stella Maris e pode ocorrer na Praia
do Buracão, no Rio Vermelho, ameaçada de ficar na sombra
com a construção de dois edifícios na faixa de areia. O receio
não é sem fundamento. Dona de uma das maiores orlas do
país, com 105 quilômetros de extensão, a cidade vem experi-
mentando uma mudança drástica em sua paisagem. Os movi-

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mentos tentam evitar o que


é visto em Balneário Cam-
boriú (SC), onde a constru-
ção de espigões encobre o
sol na areia e afeta até a cir-
culação de ar na cidade.
A preocupação ocorre

FACEBOOK@ACMNETOOFICIAL
mesmo com a possibilidade
de troca de comando com a
eleição municipal deste
ano. O principal adversário CONTAGEM ACM Neto:
de Bruno Reis deve ser o desde a sua gestão, prefeitura
vice-governador Geraldo já abriu mão de mais de uma
Júnior (MDB), apoiado pe- centena de terrenos públicos
lo governador Jerônimo
Rodrigues (PT). Ex-presidente da Câmara, ele atuou direta-
mente para a aprovação de vários projetos flexibilizando o
uso do solo. Um exemplo é o da paradisíaca Ilha dos Frades,
que nos últimos vinte anos foi alvo de projetos que chega-
ram ao ponto de proibir a coleta de mariscos ou a pesca pela
comunidade quilombola, enquanto permitiam a construção
de edifícios de até quinze pavimentos, pista de pouso, ater-
ramento de zonas de mangue e muros nas praias. Parte des-
sas leis está suspensa por decisão judicial, mas em dezem-
bro, na mesma sessão em que as desafetações passaram, foi
aprovado um projeto que novamente impõe restrições à co-
munidade marisqueira e pesqueira e flexibiliza o uso do so-

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lo. Para a promotora de Justiça de meio ambiente, habitação


e urbanismo, Hortênsia Pinho, o poder público vem abrindo
mão do controle do desenvolvimento da cidade para atender
interesses privados. “Com isso, fere o chamado direito à ci-
dade, que passa pelo conceito de que ela é um bem coletivo,
e a torna mais elitista, segregadora e antissocial”, diz. A no-
va ofensiva imobiliária em Salvador, no entanto, mal avan-
çou e já provoca forte reação — que é justa diante das preo-
cupações ambientais, sociais e urbanísticas que desperta. ƒ

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RADAR ECONÔMICO
PEDRO GIL

Com reportagem de Victor Irajá,


Felipe Erlich e Diego Gimenes

SILVIA COSTANTI/VALOR ECONÔMICO/AGÊNCIA O GLOBO

UNIDOS Horn (à esq.) e Guedes: em


busca de oportunidades de novos negócios

Parceria bilionária gio Salles, que tem 11 bi-


O fundador da incorporado- lhões de reais sob gestão.
ra imobiliária Cyrela, Elie
Horn, e o ex-ministro da Prospecção
Economia Paulo Guedes Uma das ideias em gestação
uniram forças para dese- é fazer uma sociedade entre
nhar novas frentes de atua- a Legend Capital e o tam-
ção para a empresa de ges- bém bilionário family office
tão de patrimônio Legend de Elie Horn. Nesse contex-
Capital, do empresário Ser- to, Paulo Guedes ficaria en-

1|3
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carregado de prospectar Cartas para o presidente


oportunidades de negócios. Desde que assumiu a presi-
dência da Americanas, em
Não quero ser banco fevereiro, Leonardo Coelho
A fintech Ame terá nova recebeu inúmeras cartas de
função no grupo America- clientes da rede — sim, há
nas. Ela vai continuar ofere- quem envie mensagens es-
cendo crédito, mas em vo- critas em papel ainda. As
lume menor do que é con- missivas pedem principal-
cedido hoje. A ideia agora é mente que a empresa não
refo rç a r o m o de lo de vá à falência.
cashback (devolução de di-
nheiro na compra) e o pro- Acelerando
grama de fidelidade. A japonesa Toyota vai lan-
çar neste ano um novo car-
Prazo de validade ro híbrido no mercado bra-
A nova diretoria da Ameri- sileiro. A proposta é que ele
canas, que assumiu após a seja compacto e, portanto,
revelação do escândalo mais barato do que os atuais
contábil, está desenhando modelos, vendidos na faixa
também uma nova estrutu- de 200 000 reais.
ra de governança corporati-
va. Uma das mudanças é Molho inglês
que os mandatos dos próxi- Os bancos estão batendo ca-
mos CEOs terão prazo de beça para ajustar as suas
validade. É prática comum operações ao limite de 100%
no mercado. de cobrança sobre a dívida a

2|3
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título de juros no rotativo do Ednaldo Rodrigues à presi-


cartão de crédito. O modelo, dência da entidade foi no-
inspirado no que é feito no mear Fernando Cabral Fi-
Reino Unido, deve entrar em lho como advogado da ação
vigor a partir das faturas de no STF. Ele é filho do de-
fevereiro. “Ninguém sabe fa- sembargador aposentado
zer esse molho inglês”, brin- Fernando Marques, do TJ-
ca um banqueiro. -RJ, o mesmo tribunal que
afastou Rodrigues.
Exemplo ao lado
Há um temor de que o limi- Bola dividida
te de cobrança no rotativo A procuração nomeando
venha a reduzir a oferta de Cabral Filho foi assinada
crédito no mercado. Algo p o r J o s é P e r d i z , e x-
parecido ocorreu com o te- interventor na CBF, horas
to do consignado do INSS antes de o ministro Gilmar
após o corte de juros anun- Mendes determinar a resti-
ciado pelo ministro Carlos tuição de Rodrigues à presi-
Lupi, da Previdência. Re- dência da CBF. O pai do ad-
sultado: em 2023, caiu em vogado também é auditor
16 bilhões de reais o volume do Superior Tribunal de
concedido desse emprésti- Justiça Desportiva, do qual
mo consignado. Perdiz é presidente. ƒ

Jogo truncado OFERECIMENTO


A última cartada da CBF
para tentar evitar a volta de

3|3
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ECONOMIA CONJUNTURA

VENTO A FAVOR
Queda de juros no Brasil e nos Estados Unidos, inflação
sob controle e cenário internacional menos adverso
abrem boas perspectivas para 2024. Mas risco de
tempestades permanece
JULIANA ELIAS E LUANA ZANOBIA

COMPRAS EM ALTA Shopping lotado: com queda de


juros, consumo tende a aumentar

CESAR CONVENTI/FOTOARENA/AGÊNCIA O GLOBO

1 | 10
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E
m 2024, o PIB brasileiro talvez cresça menos do que
em 2023, os juros permanecerão boa parte do tempo
na casa dos dois dígitos, as contas do governo possi-
velmente fecharão no vermelho e a dívida pública
tende a aumentar. Ainda assim, observa-se um consi-
derável otimismo entre economistas, analistas e investidores
a respeito dos rumos da economia do país. Como isso é pos-
sível? Há uma explicação por trás do aparente paradoxo: a
largada deste ano se dá em cenário menos nebuloso do que
aquele observado no início de 2023. Em janeiro do ano pas-
sado, as intenções do governo recém-eleito traziam mais dú-
vidas do que certezas, a inflação preocupava e o risco nada
desprezível de recessão pairava sobre os países ricos. Tanto é
assim que as projeções apontavam para um cenário de para-
lisia econômica, o que, afinal, não se concretizou. Agora, o
ambiente é bem diferente — as nuvens carregadas se desfize-
ram, embora não estejam descartadas trovoadas eventuais
no caminho. “Mesmo com o crescimento mais fraco, o oti-
mismo vem das quedas de juros, depois de muito tempo com
taxas elevadas, em um contexto internacional menos turbu-
lento”, diz Carlos Kawall, sócio-fundador da gestora Oriz
Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional.
Se no Brasil a expectativa é de que a Selic, a taxa básica da
economia, encerre 2024 em torno de 9% ao ano, depois de
permanecer em 13,75% durante boa parte de 2022 e 2023,
nos Estados Unidos o ciclo de quedas está prestes a começar.
No fim de dezembro, Jerome Powell, presidente do Federal

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Reserve (Fed, o banco central


americano), sinalizou a possi-
O QUE VEM
bilidade de pelo menos três POR AÍ
cortes de juros em 2024, mais As projeções do mercado
financeiro para a economia
que a expectativa dos econo-
brasileira em 2024
mistas. Taxas menores, res-
PIB
salte-se, estimulam o crédito
e o consumo — elas ajudam, 1,59%
portanto, a mover a econo- IPCA
mia. A redução dos juros só é 3,9%
recomendável em cenários de
Selic
desinflação, algo observado
agora nos Estados Unidos, em 9%
parte da Europa e com certa Ibovespa
intensidade no Brasil. Por
146 100
aqui, os preços anuais aumen- pontos
taram acima de 10% durante Fontes: Boletim Focus
de 5/1/2024 e Valor Investe
a pandemia, e começaram a
declinar após o Banco Cen-
tral elevar prudentemente a Selic. Em 2023, o IPCA, a infla-
ção oficial do Brasil, fechou em 4,5%. Pelas projeções, ela será
menor em 2024, podendo encerrar o ano abaixo dos 4%.
Termômetro relevante da economia, a bolsa de valores
deverá surfar a onda de juros mais baixos. Em 2023, o Ibo-
vespa, principal índice acionário brasileiro, quebrou recor-
des, passando dos 130 000 pontos. Novos avanços estão
previstos para 2024. A maioria dos bancos e corretoras esti-

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SERGIO DUTTI

DESAFIO FISCAL Haddad: governo não corta gastos

ma que o índice chegará aos 140 000 pontos neste ano. Mais
otimista, o banco Santander defende ser possível alcançar
os 160 000, o que seria um salto de 25%. “Apesar do recente
rali, o Brasil continua sendo um dos mercados de ações mais
atraentes da região”, afirmou o banco em relatório.
Com tanto entusiasmo, por que a economia brasileira pro-
vavelmente crescerá menos em 2024? Para responder à per-
gunta, é preciso olhar os resultados anteriores com atenção.

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MELHOR DO QUE
A ENCOMENDA
Os principais indicadores econômicos
superaram as expectativas
em 2023 (em %)
12,25
O QUE ERA ESPERADO
NO INÍCIO DO ANO*
11,75

COMO FOI O
RESULTADO FINAL

5,4
4,6

2,9**

0,8

PIB IPCA Selic

*Estimativas do Boletim Focus em janeiro de 2023


**Estimativa do Boletim Focus em 5/1/2024

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No ano passado, o produto interno bruto subiu perto de 3% —


o resultado fechado será divulgado em 1º de março pelo IB-
GE. Para 2024, a maioria das estimativas fica entre 1,5% e
2%. “Não são projeções otimistas, mas consideram um cresci-
mento significativo”, diz Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor
do Banco Central e presidente do conselho da Jive Invest-
ments, gestora que enxerga uma expansão do PIB de 2,5%
em 2024. “Otimista seria um crescimento maior que 4%.”
Em boa medida, o desempenho mais modesto neste ano
deve ser atribuído ao agronegócio, que encerrou a última sa-
fra com novos recordes de produção e exportação — não à
toa, a balança comercial brasileira obteve em 2023 o melhor
saldo da história, beirando 100 bilhões de dólares. “Foi um
fenômeno inédito, mas o efeito tende a se dissipar”, diz o ex-
ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, sócio da Tendên-
cias Consultoria. Em 2024, com impactos climáticos adver-
sos, o setor projeta safra menor. Se no ano passado o PIB do
agro cresceu em torno de 15%, ainda que os dados finais não
tenham saído, em 2024 a projeção é que avance apenas 1%.
Mesmo se o agro não quebrar novos recordes, o Brasil
poderá aproveitar o cenário global menos adverso. Desde
2021, quando os bancos centrais começaram a elevar os ju-
ros, analistas apostavam em uma conjuntura marcada por
recessões, inclusive em economias centrais como a dos Esta-
dos Unidos e as maiores da Europa. A depressão, entretanto,
nunca chegou. “Esperamos uma desaceleração global em
2024, mas ela deve ser mais fraca do que o imaginado”, diz

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SILVIO AVILA/AFP

NO CAMPO Produção agrícola: safra recorde


impulsionou o PIB em 2023

Manuel Orozco, diretor da agência de classificação de riscos


S&P e analista da América Latina. Foi Orozco quem assi-
nou o relatório da S&P que, no fim de dezembro, elevou a
nota de crédito do Brasil para BB-. Com isso, o país ficou a
dois passos de voltar para o grau de investimento. “Reco-
nhecemos o esforço feito nos últimos sete anos em reformas
estruturais, que dão mais força institucional, e é um fato que,
desde o começo da pandemia, o Brasil vem com desempe-
nho melhor do que as nossas expectativas e as da maioria do
mercado”, diz ele.
Apesar do cenário menos nebuloso, há riscos inegáveis
pairando no horizonte. No contexto global, perigos geopolí-
ticos persistem, como a situação na Ucrânia, as tensões entre
Israel e países muçulmanos, e o temor nunca anulado de

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RANIMIRO LOTUFO NETO/ISTOCK/GETTY IMAGES

NO MAR Plataforma de petróleo: guerras podem elevar


o preço do combustível

uma invasão chinesa em Taiwan. São conflitos que poderão


atrapalhar o fornecimento de petróleo e fazer seus preços
dispararem novamente. Há também dúvidas em torno de
quando o Fed vai começar a baixar os juros americanos, já
que o mercado de trabalho por lá, com sua resistência, pode
prolongar a inflação e atrasar essa agenda.
No campo doméstico, o receio está no âmbito fiscal. A des-
peito das boas intenções do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, até agora o governo Lula tem demonstrado pouca
disposição para cortar gastos. Isso ameaça as contas públicas
e põe em xeque o próprio crescimento econômico. À exceção
de uma breve passagem pelo azul em 2022, sob o comando
de Paulo Guedes, as contas do governo apresentam déficit
desde 2014 — ou seja, há uma década as despesas terminam o

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COPO MEIO CHEIO


OU MEIO VAZIO?
As boas notícias e os desafios que persistem

O que está melhor


INFLAÇÃO SOB CONTROLE NO
BRASIL E NO MUNDO

JUROS EM QUEDA NO BRASIL E INÍCIO


DO CICLO DE CORTE DE JUROS NOS
ESTADOS UNIDOS

RISCO DE RECESSÃO
GLOBAL AFASTADO

O que pode atrapalhar


DESEQUILÍBRIO FISCAL NO BRASIL

GUERRAS NA EUROPA E NO
ORIENTE MÉDIO

AUMENTO DO PREÇO
DO PETRÓLEO

9 | 10
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ano acima das receitas.


Sempre que isso ocorre,

SAMUEL CORUM/BLOOMBERG/GETTY IMAGES


o governo precisa pegar
dinheiro emprestado no
mercado para honrar
seus compromissos,
ampliando o seu nível OLHO NA INFLAÇÃO
de endividamento. Na Powell, do Fed: sinais de que
lóg ica econôm ica , os juros vão cair
quanto mais a dívida
cresce, menor é a credibilidade do país. “Este é o ponto crítico
que a economia brasileira enfrenta”, diz Maílson da Nóbrega,
mencionando a pouca margem de manobra que sobra no or-
çamento público em meio a níveis generosos de gastos. “Os
governos dependem dessa margem para implementar políti-
cas para o crescimento, a redução da desigualdade e a erradi-
cação da pobreza”, diz o ex-ministro.
Na complexa dança entre desafios e oportunidades de
2024, enquanto a queda gradual dos juros sinaliza um cami-
nho promissor, a situação fiscal emerge como o fiel da balan-
ça, determinando não apenas a estabilidade das contas públi-
cas, mas também a confiança dos investidores no Brasil. É
bom também lembrar que o ano é de eleições municipais,
portanto, de mais gastos públicos. E que há um processo de
mudança relevante a caminho: o final da gestão atual do Ban-
co Central. De fato, bons ventos estão soprando de início, mas
não se deve descartar a possibilidade de novas intempéries. ƒ

10 | 10
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ALEXANDRE SCHWARTSMAN

NÓS E O CANADÁ
A economia do Brasil ficou maior
que a do país do norte?

NO FIM DO ANO passado foi publicado que o Brasil teria


superado o Canadá e se tornado a nona maior economia do
mundo, feito devidamente comemorado pelo governo. Ape-
nas não é verdade. Medida da maneira correta, a posição do
país no ranking das economias globais permanece a mesma
desde 2017, com exceção de uma breve queda para o nono
lugar em 2019.
Há uma dificuldade inerente para comparar o valor do
PIB de cada país num determinado período: o produto bra-
sileiro é estimado em reais, o americano em dólares, o cana-
dense em dólares... canadenses. Para começar, o valor do
PIB de cada país teria de ser expresso numa moeda comum,
por convenção o dólar americano.
A questão, porém, passa a ser como faríamos tal conver-
são. O jeito mais fácil, mas que leva ao tipo de erro apontado
acima, seria o uso da taxa de câmbio (o preço do dólar) ob-
servada no período em questão.
O problema é que tal medida não leva em conta as dife-
renças do custo de vida entre países, além de ser afetada pe-
las flutuações do valor da moeda. O dólar custou em média

1|3
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4,99 reais em 2023, comparado a 5,16 reais em 2022. Mes-


mo que o PIB do Brasil tivesse ficado inalterado no ano pas-
sado, apenas o barateamento do dólar no período teria ele-
vado seu valor em dólares em 3,4%.
A forma como economistas lidam com essa questão é o
uso de uma taxa “ideal” de câmbio, denominada “paridade
de poder de compra” (PPC). É menos complicada do que o
nome sugere. Define-se, para começar, um conjunto de bens
e serviços consumidos nos diversos países: certa quantidade
de alimentos, quanto custa para alugar determinado tipo de
imóvel, tantas passagens de ônibus e demais itens consumi-
dos por uma família média.
Digamos que essa cesta custe 100 dólares nos Estados
Unidos, 513 reais no Brasil e 120 dólares canadenses no Ca-
nadá (não estamos muito preocupados com o realismo nes-
te exemplo). No caso, diríamos que a taxa de câmbio de

“A história de termos
superado o Canadá é
apenas barulho.
O nosso PIB per capita
é o 77º do mundo”
2|3
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PPC no Brasil seria 5,13 reais e no Canadá 1,20 dólar cana-


dense. De posse dessas estimativas do câmbio “ideal” po-
demos estimar o valor do PIB brasileiro, canadense, chinês
ou afegão, já devidamente ajustado às diferenças de custo
de vida nesses países e sem preocupação com flutuações de
curto prazo das moedas.
É bom deixar claro que essas estimativas não são perfei-
tas. Dependem, por exemplo, da definição do conjunto de
bens e serviços que usamos para construir o custo de vida
em cada economia. De qualquer forma, são muito melhores
que a mera conversão do PIB doméstico em dólares pelo uso
da taxa de câmbio em certo período.
Feito o ajuste, no caso usando a metodologia do FMI,
descobrimos que o Brasil tem o oitavo maior PIB do mundo
desde 2017 (exceção feita, como notado, a 2019), atrás de
China, Estados Unidos, Índia, Japão, Alemanha, Rússia e In-
donésia (em 2023). E o Canadá? No ano passado, por essa
métrica era a 16ª maior economia do mundo...
A história, portanto, de termos superado o Canadá no
ano passado é apenas barulho, sem maior conteúdo de in-
formação. Além de tudo o que foi apontado aqui, o ajuste da
economia pelo tamanho da população (PIB per capita) nos
colocaria na gloriosa 77ª posição. ƒ

3|3
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ECONOMIA INFRAESTRUTURA

UM CAMINHO
MAIS ILUMINADO
A entrada em vigor da segunda fase do mercado
livre de energia permitirá a mais empresas
reduzir o custo da conta de luz e escolher o
melhor fornecedor para o negócio PEDRO GIL

NAS ALTURAS Torres de transmissão: mudança deverá


gerar 40 bilhões de reais em investimentos por ano no setor

SIDNEY DE ALMEIDA/ISTOCK/GETTY IMAGES

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ENTRE OS INÚMEROS gargalos que reduzem a competi-


tividade brasileira, o custo da energia elétrica ocupa lugar
de destaque. Segundo a Confederação Nacional da Indús-
tria, as tarifas médias pagas pelas empresas do país estão
entre as mais altas do mundo, superando em muito os valo-
res desembolsados por companhias nos Estados Unidos, na
França e no México, para citar apenas alguns exemplos. Ou-
tro estudo, este feito pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Mi-
cro e Pequenas Empresas, constatou que a conta de luz che-
ga a ser responsável por 20% dos custos operacionais das
firmas de porte menor. Novas regras que entraram em vigor
em 1º de janeiro, contudo, poderão aliviar o quadro. Desde
aquela data, passou a vigorar no país a segunda fase do cha-
mado mercado livre de energia. Entre outras vantagens, o
modelo permite às empresas escolher o fornecedor, a quan-
tidade que deseja consumir e o período de recebimento. Se
estiverem insatisfeitas com o serviço, bastará trocar o forne-
cedor por um concorrente.
Até então, o mercado livre estava disponível para clientes
de alta tensão, aqueles que têm capacidade instalada de 500
quilowatts por mês, como indústrias e empreendimentos co-
merciais de grande porte. Agora, poderão aderir ao modelo
empresas com potência mínima de 30 quilowatts, ou seja,
que se enquadram na categoria conhecida como de média
tensão. São, em linhas gerais, pequenas fábricas, shoppings,
restaurantes e lojas que gastam a partir de 10 000 reais men-
sais de conta de luz. Com a iniciativa, estima-se que os clien-

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INTERESSE EM ALTA
Quantidade de empresas no mercado livre
de energia (em milhares)

11,8
10,9
9,9
8,5
7

5,1

2018 2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: Associação Brasileira dos


Comercializadores de Energia (Abraceel)

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DOMINIKA ZARZYCKA/NURPHOTO/GETTY IMAGES

CRÍTICAS Alexandre Silveira: governo


diz que sistema só beneficia empresas

tes participantes do mercado livre possam passar dos atuais


11 800 para quase 200 000. Na prática, o que muda para as
empresas que aderirem ao sistema? A tradicional fabricante
brasileira de brinquedos Estrela migrou para o mercado li-
vre no ano passado e está colhendo os frutos da decisão. Sua
conta de luz ficou 20% mais barata. “Foi uma evolução para
nós”, disse a VEJA Carlos Tilkian, dono da empresa. “Abrir
o mercado é o rumo correto para aumentar a competitivida-
de e dar opções aos consumidores.”
Para especialistas, a queda de preços não é a única van-
tagem trazida pelas novas regras. Uma de suas premissas é a

4|6
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liberdade de escolha. Se o
cliente quiser comprar ener-
gia oriunda de fontes reno-
váveis, ou se busca fornece-
dores mais baratos, caberá a
ele escolher, sem a imposi-
ção de adquirir serviços de
uma única empresa domi-
nante no mercado. Trata-se
de uma guinada no setor,
parecida com a observada
no ramo da telefonia. Desde
a privatização, em 1998, es-
SEBASTIÃO MOREIRA/EFE

se mercado recebeu 1 trilhão


de reais em investimentos.
Na área de energia, a expec- VENTANIA Geração
tativa é de que as mudanças eólica: novas regras
gerem cerca de 40 bilhões permitirão aos consumidores
de reais em novos negócios optar por fontes renováveis
ao ano. “Podemos ter um
modelo livre, equilibrado e discutido por várias associações
e personagens”, diz Sergio Romani, presidente da comercia-
lizadora Genial Energy.
De olho nas oportunidades do mercado livre, as empre-
sas do ramo, de fato, deverão injetar recursos no país. O
Grupo Delta Energia investe atualmente na construção de
fazendas solares em nove estados brasileiros, além do Dis-

5|6
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trito Federal. Quando estiverem prontas, elas terão capaci-


dade para atender a 60 000 unidades consumidoras. Isso é
só o começo. A terceira etapa do mercado livre de energia
deverá representar uma revolução, pois seu objetivo é che-
gar ao cidadão comum, ou seja, a 90 milhões de consumido-
res que pagam contas de luz no país. Não há data prevista
para a abertura total do sistema.
No final de dezembro, o presidente Lula e seu ministro
de Minas e Energia, Alexandre Silveira, criticaram o merca-
do livre sob o argumento de que ele beneficia apenas as em-
presas. Não seria o caso de abrir, sem demora, o modelo pa-
ra as pessoas físicas? Lula disse que é preciso ter uma “dis-
cussão mais criteriosa”. De fato, o setor vive um dilema: de
um lado, os eventos climáticos extremos fazem disparar a
demanda por recursos energéticos. De outro, eles estressam
a infraestrutura do sistema, aumentando o desafio de conse-
guir atender o aumento de demanda. “Existe um purismo
técnico de alguns que defendem que, para ir ao mercado li-
vre, é preciso ter 100% dos problemas equacionados, mas
assim você não abriria o mercado nunca”, diz Luiz Fernan-
do Vianna, vice-presidente institucional do Grupo Delta
Energia. Enquanto o impasse não for resolvido, apenas as
empresas terão um caminho mais iluminado. ƒ

6|6
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INTERNACIONAL EQUADOR

SOB O DOMÍNIO
DAS GANGUES
A espantosa ocupação de um estúdio de TV
por bandidos armados, durante um programa
ao vivo, expôs o alcance dos tentáculos das
quadrilhas de narcotraficantes equatorianos
CAIO SAAD

TROPA NA RUA Estado de emergência:


medida já foi usada e não funcionou

JOSÉ JÁCOME/EFE

1|5
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H
á apenas cinco anos, o Equador era um oásis de se-
gurança na conturbada América Latina. Hoje, é o
contrário: com uma média de 45 homicídios por
100 000 habitantes em 2023, seis vezes mais do que
no passado, a nação à beira do Pacífico se tornou a
mais letal da região, à frente de México e Brasil. O retrato
acabado dessa triste realidade foi ao ar na terça-feira, 9, quan-
do bandidos invadiram um estúdio da TV estatal em Guaya-
quil, maior cidade equatoriana, durante a apresentação de
um noticiário de grande audiência. Armados com metralha-
doras, granadas e explosivos, mascarados e formando com
os dedos símbolos de organizações criminosas, eles rende-
ram a equipe — com exceção dos câmeras, aos quais faziam
questão de se exibir. Atônita e apavorada, a população ouviu
ser aquela uma mensagem sobre as consequências de se “me-
xer com a máfia” — recado dirigido ao estado de emergência
decretado um dia antes pelo governo, no esforço para isolar
a liderança e combater as diversas gangues que espalham o
pânico pelo país.
O estopim para mais essa explosão de violência, situação
recorrente no Equador, foi a constatação na manhã de do-
mingo, durante uma revista, da fuga da prisão La Regional,
de Guayaquil, de Adolfo Macías, o Fito, chefão da quadrilha
Los Choneros (o nome vem de Chone, sua cidade de ori-
gem). Aparentemente, Fito soube por informantes que seria
transferido pela segunda vez para a ala de segurança máxi-
ma e preferiu deixar de vez a cela onde montara o QG de

2|5
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REPRODUÇÃO

OUSADIA Apresentador na mira de


bandido: momentos de terror ao vivo

sua organização — calcula-se que ao menos nove das 36 pe-


nitenciárias equatorianas sejam totalmente controladas por
criminosos. À notícia da fuga seguiram-se rebeliões, se-
questros, explosões e incêndios de carros e tiroteios em vá-
rias cidades. “Não há precedente de um desafio tão brutal à
autoridade do Estado, em um número tão alto de cidades
importantes, desde a guerra de Pablo Escobar na Colômbia,
na década de 1990”, diz o analista político Daniel Zovatto,
do Centro de Estudos Internacionais da Pontifícia Universi-
dade Católica do Chile.

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Com a decretação da emergência por sessenta dias, o


presidente Daniel Noboa, que assumiu o poder em novem-
bro com a promessa de trazer paz ao país em uma eleição
marcada pelo assassinato a tiros de um dos candidatos, im-
pôs toque de recolher e autorizou as Forças Armadas a en-
trar nas prisões e ocupar as ruas — medidas adotadas pelo
governo anterior, sem efeito. Ele tem intenção de convocar
um plebiscito nos próximos dias que lhe dê mais poder para
agir e já recebeu promessas de apoio de vizinhos, como Bra-
sil e Colômbia, e dos Estados Unidos, para a contenção da
violência. A PF brasileira se colocou à disposição. No impé-
rio da barbárie equatoriana, massacres, assassinatos de po-
liciais e funcionários públicos e carros-bomba tornaram-se
ocorrências semanais. Os tentáculos do crime organizado
se infiltram na política e no setor militar — em novembro,
25 oficiais da Força Aérea foram punidos por danificar
equipamentos de radar adquiridos para impedir que narco-
traficantes operassem no espaço aéreo nacional. Dias antes
da convulsão atual, outro chefão do tráfico, Fabricio Colón
Pico, da gangue Los Lobos, foi preso por suspeita de plane-
jar o assassinato da ministra da Justiça, Diana Salazar, em-
penhada em uma investigação sobre os vínculos entre tra-
ficantes e funcionários públicos. Na terça-feira da invasão
da TV, ele aproveitou a confusão e também fugiu.
Especialmente afetado pelos males da pandemia, que ar-
rasou sua economia, o Equador se tornou presa fácil para os
traficantes de cocaína que buscavam um novo corredor de

4|5
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escoamento depois que


as Farcs assinaram um
acordo de paz na Co-
lômbia e desmontaram
as rotas que controla-
ram por décadas. Los
Choneros foi uma das
primeiras quadrilhas a
entrar no novo negócio

ECUADOREAN ARMED FORCES/AFP


e firmou-se nele alian-
do-se ao cartel de Sina-
loa, do México. Atual-
mente, quase um terço FORAGIDO O traficante Fito:
da droga colombiana e fuga deu início à onda de violência
peruana sai da Améri-
ca do Sul via portos equatorianos. “Para os grupos crimino-
sos, a rede rodoviária de boa qualidade do Equador, a econo-
mia dolarizada e a entrada liberada de cidadãos estrangeiros
reduzem os custos do tráfico”, afirma Will Freeman, do cen-
tro de pesquisas Council on Foreign Relations. Resta ver se
Daniel Noboa, novato na política e partidário da linha durís-
sima contra o crime, conseguirá reverter a selvageria em que
o Equador se atola. ƒ

5|5
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INTERNACIONAL ALEMANHA

MOTOR ENGASGADO
A economia alemã, antes a mais pujante da
Europa, sofre com a queda das exportações
e do fluxo de energia e tem em 2023 o pior
resultado entre as grandes CAIO SAAD, de Berlim

FRACO MOVIMENTO Loja anuncia


liquidação: inflação afugenta clientes

JOHN MACDOUGALL/AFP

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ENTRE OS ALTOS E BAIXOS por que passou a União


Europeia nas últimas décadas, um fator permaneceu
constante: o papel da Alemanha como economia mais for-
te e estável do bloco, o motor do continente. Não mais.
Abalada pela queda na demanda por seus produtos que a
pandemia provocou e que a conjuntura internacional não
chegou a reverter, e impactada pelo corte abrupto no su-
primento da energia vinda da Rússia em consequência da
invasão da Ucrânia, a economia do país saiu do lugar de
honra na primeira fila e foi para o fundão da sala. Com in-
flação em alta, consumo em baixa e a indústria estagna-
da, no fim do ano passado o PIB alemão registrava três
trimestres seguidos de queda, o que configura recessão e,
segundo projeção do Fundo Monetário Internacional (ve-
ja no quadro), coloca o motor — agora engasgado — da
Europa na posição de única grande economia do mundo a
ter encolhido em 2023.
Os sinais de crise são visíveis nos cartazes anunciando li-
quidações drásticas nas grandes lojas, vazias de comprado-
res ressabiados pela inflação de mais de 6% ao ano. A alta
dos aluguéis instalou moradores de rua em torno da Alexan-
derplatz, a principal praça de Berlim, e em outras cidades.
Da estação de Mainz, colada a Frankfurt, avista-se uma es-
pécie de acampamento montado para abrigar sem-tetos no
duro inverno europeu — o contingente de pessoas nessa si-
tuação no país quase dobrou no último ano, passando de
268 000 para 447 000. Em meados de novembro, justamen-

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te quando parecia que as coisas não podiam piorar, o Tribu-


nal Constitucional rejeitou um remanejamento do governo
para que 60 bilhões de euros em empréstimos relacionados
com a Covid-19 fossem injetados na modernização da eco-
nomia, impondo cortes drásticos em programas de transi-
ção para a energia verde e em subsídios para diversas áreas.
Aos problemas circunstanciais, de difícil, mas possível,
solução, soma-se na Alemanha uma carência crônica de
mão de obra qualificada, resultado do rápido envelheci-

PIOR DA TURMA
Entre as maiores economias da Europa, a alemã foi
a única que deu marcha a ré no PIB em 2023

A LEM A N HA RE I N O I T ÁL I A F R AN Ç A E S PA N H A
UN I DO
2,4%

1%
0,5% 0,7%

- 0,5% Fonte: FMI (projeções)

3|5
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mento da população e da
baixa taxa de reposição de
trabalhadores — ao con-
trário de Reino Unido, Itá-
lia, França e outros, o país
não tem ex-colônias que
forneçam imigrantes com
domínio do idioma e dos
costumes locais. Segundo
Stefan Hardege, especialis-
ta em mercado de trabalho
da Câmara Alemã de Co-
mércio e Indústria, a escas-
ARQUIVO PESSOAL

sez extrapolou setores es-


pecíficos. “O problema
existe em todas as áreas e CHANCE Os enfermeiros
abarca uma ampla gama Falcão e Fernanda:
de profissões”, afirmou. O imigração facilitada
Ministério do Trabalho
calcula que o país de pouco mais de 80 milhões de habitan-
tes precisará de mais 7 milhões de trabalhadores até 2035.
Tentando amenizar o problema, uma nova lei entrou
em vigor em novembro com o objetivo de reduzir os obstá-
culos à imigração de trabalhadores qualificados. Ela acele-
ra os processos de validação de diplomas e permite que es-
trangeiros qualificados permaneçam no país procurando
emprego durante um ano. Os maiores gargalos estão na

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área social, na qual faltam 130 000 enfermeiros e cuidado-


res de idosos, entre outros profissionais. O enfermeiro ca-
rioca Roger Falcão chegou a Berlim com contrato assinado
para trabalhar em um hospital e está satisfeito com a mu-
dança. “Aqui não há falta de material e equipamentos.
E, claro, o nível de vida e a segurança são excelentes”, diz
Falcão. A mulher dele, Fernanda, também enfermeira,
aguarda o reconhecimento do diploma. O chefe da divisão
de relações com a América Latina do Ministério das Rela-
ções Exteriores alemão, Jens Wagner, vê no Brasil uma
fonte potencial de imigrantes. “São 6 milhões de brasilei-
ros com ascendência alemã e cerca de 1 milhão fala o idio-
ma em algum nível, o que facilita”, ressalta. Sabendo pla-
nejar, os tempos de dificuldades na Alemanha podem se
reverter em uma brecha de oportunidades para outras na-
cionalidades — inclusive a brasileira. ƒ

5|5
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GENTE
VALMIR MORATELLI

PIADA SEM GRAÇA


No tapete vermelho, ela arrasou em um Gucci verde-
metálico — um dos visuais mais elogiados da festa do
Globo de Ouro 2024. Mas na hora do monólogo de
abertura do apresentador Jo Koy (de resto, um
dos momentos mais depreciados da premia-
ção), TAYLOR SWIFT, 34 anos, rainha pop in-
conteste, não disfarçou e fechou a cara quando
ele disse que a maior diferença entre o espetá-
culo em Los Angeles e a NFL, a liga de futebol
americano, é que “o Globo de Ouro tem menos
câmeras focadas em Taylor Swift” — referência
à presença constante dela nas partidas do na-
morado jogador Travis Kelce. Não demorou
muito e Taylor se
mandou do local, dis-
pensando a festa dos
premiados. Entre os
quais, aliás, não esta-
va. Seu filme-concer-
to, Taylor Swift: The
FOTOS MICHAEL TRAN/AFP; REPRODUÇÃO

Eras Tour, indicado


para um novo troféu
focado em bilheteria,
perdeu para Barbie.

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CHRISTOPHER POLK/GOLDEN GLOBES 2024/GETTY IMAGES

PAIXÃO EXPLÍCITA
Protagonizando um dos mais improváveis namoros do showbiz, o ator
TIMOTHÉE CHALAMET, 28 anos, garoto cabeça, muito cool e des-
colado, e KYLIE JENNER, 26, a caçula do notoriamente oportunista
clã Kardashian, estão juntos há um ano, mas raramente engatam ma-
nifestações de afeto em público. Causou, portanto, grande surpresa e
uma infinidade de memes e comentários os abraços e beijinhos e cari-
nhos sem ter fim trocados pelo casal durante a cerimônia de entrega
de prêmios do Globo de Ouro. “Acho que Kris Jenner (a matriarca do
clã) está nos bastidores, dirigindo as câmeras para eles nos momen-
tos-chave”, comentou alguém no X. Detalhe: de cabeça de vento Kylie
não tem nada. Envolvida em vários negócios, acumula patrimônio de
mais de 500 milhões de dólares (o 1 bilhão celebrado pela Forbes em
2019, descobriu-se depois, era lorota armada por mãe e filha).

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VITÓRIA COM ESTILO


Foi com o mais curioso visual da noite, de penteado rubro-negro
e figurino tamanho GG, que BILLIE EILISH, 22 anos, subiu ao pal-
co do Globo de Ouro ao lado do irmão e parceiro de composições,
Finneas O’Connell, para receber a estatueta de Melhor Canção
Original por What Was I Made For?, tema do blockbuster Barbie.
Uma das revelações
musicais de sua gera-
ção, Billie, que não es-
conde os problemas
com a saúde mental,
disse em seu discurso
que passava por uma
fase de “infelicidade e
depressão” na época
e a música a salvou.
“Passado um ano, aqui
estamos. É surreal”,
festejou. Em grande
estilo, aliás: a novata
Billie desbancou con-
correntes de peso,
como Lenny Kravitz,
ROBYN BECK/AFP

Bruce Springsteen e
Dua Lipa.

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BON APPÉTIT
Foi uma semana de vastos aplausos e mostras de admiração pa-
ra JEREMY ALLEN WHITE, 32 anos, ator menos conhecido até
pouco tempo atrás. Primeiro, fez cair queixos planeta afora ao
estrelar a nova campanha de cuecas da Calvin Klein expondo seu
abdome trincado — e aparentemente sem umbigo, detalhe co-
mentadíssimo nas redes. Depois, levou o prêmio de Melhor Ator
em Série de Comédia por O Urso, aclamada produção com cinco
indicações ao Globo de Ouro, que conta a vida de Carmy (papel
de White), chef estressado que assume o pepino de tocar o res-
taurante deixado pelo irmão falecido. “Devo ter feito algo certo
nesta vida para estar na companhia de vocês”, disse, todo fofo,
dirigindo-se aos colegas do elenco.

FOTOS SONJA FLEMMING/CBS/GETTY IMAGES; MERT ALAS/CALVIN KLEIN

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ZERO ESTATUETA
Concorrendo a Melhor Ator em Filme de Drama por Assassinos da
Lua das Flores, LEONARDO DICAPRIO, 49 anos, passou por um
smoking justo ao cruzar o tapete vermelho do Globo de Ouro: por
pouco não esbarrou na ex-namorada CAMILA MORRONE, 26,
atriz da série indicada Daisy Jones & The Six e que minutos antes
posara para os mesmos flashes. DiCaprio terminou com Camila em
agosto de 2022 — segundo os maldosos de plantão, porque ela pas-
sou da idade que ele aprecia. No fim das contas, ambos saíram da
premiação de mãos abanando, enquanto a companheira de elenco
do ator, Lily Gladstone, levava a estatueta de Melhor Atriz — a primei-
ra artista de origem indígena a marcar esse tento. ƒ
STEVE GRANITZ/FILMMAGIC/GETTY IMAGES

STEVE GRANITZ/FILMMAGIC/GETTY IMAGES

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GERAL EDUCAÇÃO

MARCAS QUE
NÃO SE APAGAM
A cultura do castigo físico na criação dos filhos
segue arraigada no Brasil, segundo mostra
uma nova pesquisa. A prática vai na contramão
da ciência e produz estragos perenes

DUDA MONTEIRO DE BARROS

PALMADA, NÃO O velho recurso: o caminho


da violência quebra a confiança e afasta as crianças

LOIC VENANCE/AFP

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A
té o século XVIII, não havia a noção de infância,
algo que a pintura mostra com pinceladas certei-
ras, ao retratar crianças com feições adultas ao
longo dos tempos. Um marco essencial para o
aparecimento da ideia de uma fase da existência
em que os indivíduos demandam cuidados adicionais foi
o advento de instituições de ensino na Europa, onde as
pessoas começaram a ser separadas por faixa etária. Daí
vieram desdobramentos em muitos departamentos, desti-
nando ao pequeno ser em formação atenção voltada para
as necessidades inerentes à pouca idade — da alimentação
à filosofia no modo de criá-lo. Em meio ao vendaval pro-
vocado no pensamento ocidental pelo Iluminismo, Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778) foi a primeira influente fi-
gura a derramar luz sobre uma excrescência que tinha en-
tão contornos de normalidade: a regra à época era educar
filhos na base do castigo físico, o que o filósofo francês
tratou de denunciar. Ele também sugeriu uma linha peda-
gógica com forte pendor à liberdade, cujo objetivo deveria
ser estimular os indivíduos a agirem por interesses natu-
rais, e não por imposição.
Era tudo muito moderno e só aos poucos foi sendo di-
gerido, até que, nas últimas décadas, um conjunto de paí-
ses baniu o mau hábito de punir a prole com palmadas e
outros gestos calcados na violência.
Umas nações avançaram mais rapidamente nesse
campo do que o Brasil, onde ainda circula a crença de

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que a rigidez produz bons


resultados — um ideário
em que a estratégia das pe-
nalidades físicas continua a
ser não apenas tolerada,
como incentivada, mesmo 52%
sem eco na ciência. DOS PAIS BRASILEIROS
RECONHECEM JÁ
Os novos ventos educa- TER APELADO PARA
cionais, com muita gente TAPAS EM MOMENTOS
qualificada defendendo a DE CONFLITO COM
A PROLE
eficácia do bom diálogo,
ajudaram a retirar o bolor
de antigas convicções, mas
não foram suficientes até
agora para virar completa-
mente a página. De acordo
com um recente levanta-
mento sobre o tema condu- 1 DE CADA 4
CONSIDERAM TAL
zido pela Vital Strategies, CONDUTA ACEITÁVEL
uma ONG de projeção in-
Fonte: Vital Strategies
ternacional, 52% dos pais
brasileiros reconhecem já
ter apelado para tapas e afins quando o conflito aperta
com a criançada. Um grupo de 25% diz claramente con-
siderar tal conduta aceitável, enquanto o restante recor-
reu a ela num momento em que, no calor da discussão,
não viu outro caminho. Um equívoco, segundo especia-

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listas, que defendem a demarcação de limites, mas sem-


pre com conversa. “Evidentemente que os pais precisam
promover uma criação que prepare o jovem para receber
nãos e lidar com a realidade. Para isso, no entanto, de-
vem ser firmes sem recorrer a métodos coercitivos”, enfa-
tiza a psicóloga Ciomara Schneider, da Universidade de
Brasília. Desse modo, está provado, a criança conseguirá
expressar-se sem medo, o que é fundamental para seu
pleno desenvolvimento.
Tapas, beliscões, empurrões — tudo isso deixa sua
marca em um horizonte dilatado, ainda que os pais se-
jam impulsionados pela melhor das intenções. O mesmo
estudo revela que quem vivenciou agressões em casa nos
primórdios da vida tende a concordar duas vezes mais
com a prática. Também há, porém, aqueles que, com a
memória tatuada por tais episódios, percorrem justa-
mente a trilha oposta, fugindo a todo custo da violência.
Apesar de ter sofrido diversas formas de castigos físicos
quando pequena, a gerente comercial Paula Bueno, 37
anos, selou um compromisso consigo mesma de que
nunca levantaria a mão para a filha Sofia, hoje com 11.
“Até hoje minha mãe acha que eu deveria bater para edu-
car. Ela não via aquilo como uma violência”, conta Pau-
la, que avalia colher confiança e respeito com seu méto-
do, ainda que não raro exija excessivas doses de paciên-
cia. “Na idade da minha filha, o que eu sentia era medo e
insegurança”, desabafa.

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O candente debate aterris-


sou no Brasil depois de atiçar
as labaredas em muitos paí-
ses. Foi apenas com a pro-
mulgação da Constituição de
1988 que menores de idade
passaram a ser considerados
indivíduos dignos de direitos
— e “a salvo de toda forma de
negligência, discriminação,
exploração, violência, cruel-
dade e opressão”, conforme
dizia o texto. Dois anos mais
tarde seria concebido o Esta-
tuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA), que inaugurou
todo um novo entendimento
sobre a infância. Em 2014, o
governo federal enfim san-
cionou a Lei da Palmada, que
proíbe o emprego de qual-
ARQUIVO PESSOAL

quer espécie de castigo físico


em crianças, embora não es-
tipule penas, que variam de DIÁLOGO A TODA
um caso para outro. Ocorreu Paula com a filha Sofia:
com quatro décadas de atraso “Ela me respeita com
em relação à precursora Sué- conversa”, diz

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KENTAROO TRYMAN/MASKOT/GETTY IMAGES


PRECURSORES Família na Suécia:
primeiro país a instituir a Lei da Palmada

cia, que logo seria acompanhada por Finlândia e Noruega,


o que se explica historicamente. “Durante a colonização,
crianças escravizadas eram postas a trabalhar, como se
fossem miniaturas dos adultos, e isso deixou suas seque-
las. Até uns trinta anos atrás não havia no país sensibili-
dade para entender o que significa essa fase inicial da vi-
da”, explica Lucas Lopes, da Coalizão Brasileira pelo Fim
da Violência contra Crianças e Adolescentes.
Atualmente, já são mais de cinquenta as nações onde a
legislação barra a aplicação de “corretivos” nos filhos.
Quando a medida é abraçada de maneira radical, os resul-
tados são palpáveis e perenes. Um levantamento da Uni-

6|9
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versidade McGill, no Canadá, apontou que em sociedades


onde o castigo corporal foi inteiramente varrido do mapa,
tanto em casa quanto na escola, registrou-se um declínio
de 31% das brigas físicas entre jovens do sexo masculino e
de 42% na ala feminina. No Brasil, apesar da lei, a prática
é perpetuada por uma parcela das famílias que, na imensa
maioria das vezes, acredita que tal castigo é para o bem
da criança. Contribui o fato de pairar um silêncio sobre o
assunto, que é mesmo difícil de cutucar, visto que se trata
de algo de fundo essencialmente pessoal. Na nova pesqui-
sa, 64% dos brasileiros entrevistados admitem que, para
não meter a colher num caldo que não lhes diz respeito,
não tomariam nenhuma atitude ao assistir a uma criança
sendo punida na base da surra.
Após muita investigação, a neurociência reuniu vastas
evidências de que a violência sofrida na infância, mesmo
a mais branda, aparentemente inofensiva, deixa marcas
que podem se refletir no desenrolar da vida. Pois é justa-
mente na etapa inicial que são moldadas as estruturas ce-
rebrais, momento em que a mente funciona como uma es-
ponja a absorver os estímulos em volta. “Na hora em que
a criança apanha, o cérebro entra em estado de alerta e
aumenta a secreção de cortisol, um hormônio de efeito tó-
xico”, explica o neurologista Mauro Muszkat, da Unifesp.
“Com a recorrência dessa situação, a pessoa vai se tornan-
do insensível e mais propensa a reproduzir comportamen-
tos agressivos”, diz.

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DEAGOSTINI/GETTY IMAGES
CADÊ O BEBÊ? Criança de feições adultas:
a ideia de infância é mais tardia

Uma ampla investigação sobre o tema, conduzida pe-


la Universidade do Texas e recém-publicada na presti-
giada revista científica The Lancet, mergulhou no uni-
verso de jovens mundo afora — americanos, canadenses,
chineses, colombianos e japoneses, entre outros. Conclu-
são: os que receberam punições físicas quando pequenos
apresentavam mais gargalos cognitivos e problemas de
socialização. “Em geral, os pais batem nos filhos achan-
do que isso os fará parar para pensar e melhorar o com-
portamento, mas está provado que só piora”, resume Eli-
zabeth Gershoff, estudiosa do desenvolvimento humano
e autora do estudo.

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É verdade que, no ápice do conflito, sobretudo quando


a criança vai aprendendo a desafiar os pais, não é fácil
manter o diálogo em saudável e produtivo tom. Exige-se
aí elevado grau de paciência, algo que o administrador
André Torres, 40 anos, tenta semear ao lado do filho Lu-
ca, de 9. Ele admite que, no passado, recorreu à palmada
em uma hora de tensão. Arrependeu-se. “Não é fácil. O
dia a dia dos pais é muito corrido e estressante, e acabei
descontando no Luca. No mesmo instante, percebi sua ex-
pressão de decepção”, lembra ele, que pediu desculpas. “É
importante mostrar que também erro, externando o que
penso”, reflete. Se a ideia de dar aquele beliscão é fazer a
criança despertar e crescer, o efeito costuma ser exata-
mente o oposto. “Receber um tapa pode desencadear uma
quebra de confiança e produzir insegurança, distancian-
do os filhos dos pais”, alerta Maria Fernanda Peres, pro-
fessora de medicina preventiva da USP. Dito isso, restam
as palavras nesta aventura que é criar filhos para a vida. ƒ

9|9
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GERAL CONSUMO

AO ALCANCE
DAS MÃOS
Na CES, a maior feira de tecnologia do planeta,
a inteligência artificial deixou a sombra e as
incertezas e brotou nos equipamentos de uso
doméstico VALÉRIA FRANÇA
PATRICK T. FALLON/AFP

FASCÍNIO Robô apresentado na CES: no futuro, a IA terá se


infiltrado em todos os aspectos do cotidiano

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NÃO TEM ERRO: se um produto chega aos estandes e vi-


trines da Consumer Electronics Show, a CES, em Las Vegas,
nos Estados Unidos, é porque caiu na real e logo estará nas
lojas — salvo, claro, as derrapagens de sempre e os impre-
vistos comerciais. Agora em 2024, a feira foi amplamente
dominada pela inteligência artificial (IA). A mensagem: a
IA, que decolou tratada como algo etéreo, um tanto escon-
dido, para muitos exageradamente celebrada, deve ser con-
siderada com mais objetividade. Ela chegou aos lares, de-
sembarcou no cotidiano. É incontornável, o que não signifi-
ca absolvê-la de preocupações em torno dos nós éticos. En-
fim, não se trata mais de enxergar apenas algoritmos onde
há concretitude, o mundo como ele é.
Para além da astuciosa engrenagem que governa as esco-
lhas de filmes, músicas e até as postagens que são exibidas
nas redes sociais, a IA já é usada para aumentar a eficiência e
produtividade e diminuir os riscos de acidentes no dia a dia
das empresas. A brasileira Raízen, por exemplo, grande ex-
portadora de açúcar, calcula as safras de cana-de-açúcar com
um ano de antecedência, com a ajuda da Space Time Analyti-
cs. A novidade, esta que bateu tambor na CES, é o jeitão do-
méstico da IA, mais palpável. E palmas para uma vastidão de
boas ideias, como o sistema gerenciador das casas, as bicicle-
tas conectadas a softwares e as geladeiras espertas (veja no
quadro). Bem-vindo, portanto, a uma nova era.
Para o mercado, um produto com IA integrada não re-
presenta, ainda, aumento de vendas. A tecnologia embarca-

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IA

ESTRELAS
DA INTERATIVIDADE
Alguns dos destaques apresentados
pelos 4 000 expositores

GERENCIADOR
DA CASA
LG (Coreia do Sul)

Robô com inteligência


artificial (IA) afeito a gerenciar o
cotidiano do lar, como os cuidados com
segurança, horários de medicamentos
e zelo pelos animais domésticos.
O recurso de leitura facial, segundo
a fabricante, deflagra os aparelhos

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BICICLETAS
CONECTADAS
Urtopia (Alemanha)

O badalado e onipresente
software do ChatGPT foi
associado à e-bike da marca.
Ela “conversa” com o usuário
e ajuda no uso do GPS e de
informações oferecidas via
bluetooth e wi-fi, sem tirar
a atenção da estrada

GELADEIRA
INTELIGENTE
Samsung (Coreia
do Sul)

Avisa quando o
alimento está prestes a estragar e
direciona as informações para uma
tela de 32 polegadas, com detalhes
dos itens comprometidos pelo
passar do tempo

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SEGURANÇA
AO VOLANTE
Volkswagen (Alemanha)

Em parceria com a
Cerence, empresa que
fabrica assistentes virtuais
com IA, e a startup israelense
Cipia, foi desenvolvido um
sistema que monitora sinais
de distração e sonolência
do motorista

AQUELES
MINUTINHOS
SAGRADOS
Instituto de Neurociência da
Universidade Paris-Saclay (França)

Um sensor coleta as ondas cerebrais


durante o sono e, a partir delas, cria
sons que devem ser ouvidos pelos
pacientes 30 minutos durante noites
seguidas, melhorando a qualidade
do descanso noturno

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da, por ficar à sombra, “escondida”, não é traduzida como


algo espetacular, ímã de interesse. Passa quase como solu-
ção evidente dos fabricantes, embora não seja tão simples.
O que a IA transporta é a força de uma marca no mercado,
indício de estar atenta ao novo, de olho nos interesses da so-
ciedade, sempre na crista da onda. “Virou valor agregado”,
diz Diego Senise, CEO da Ilumeo, consultoria de dados do
setor de tecnologia.
Para cativar os consumidores, os fabricantes precisam
oferecer vantagens claras e atrativas. É uma mudança radi-
cal em relação à CES de 2023, em que a IA era apenas um
dos diversos temas abordados pelo evento. Realizada algu-
mas semanas depois do lançamento do ChatGPT, o chatbot
generativo que responde às dúvidas dos usuários com sur-
preendente eficácia, a feira do ano passado não deu conta da
gigantesca transformação que acontecia. Agora sim, a revo-
lução chegou, cavalgando no sucesso do ChatGPT. Embora
a IA exista há muito tempo, rodando em aplicativos como os
do Uber e da Netflix, o ChatGPT mudou o tom da prosa, e
didaticamente a civilização pôde aprender para que poderia
servir o salto para o futuro. “Foi como dormir na era da pe-
dra lascada e acordar na espacial”, diz Cezar Taurion, exe-
cutivo da Redcore, consultoria especializada em inovação.
Afinal, a noção de IA não é exatamente nova. A ex-
pressão “inteligência artificial” foi cunhada em 1956, du-
rante uma conferência na Universidade Dartmouth, nos
Estados Unidos, onde especialistas em neurociência, en-

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genharia, matemática e computação começaram a traba-


lhar juntos na criação de um cérebro artificial. Anos an-
tes, o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) criou
uma máquina, batizada com seu nome, capaz de executar
processos cognitivos, quebrados em etapas individuais,
representados pelos algoritmos.
Suas aplicações, no entanto, evoluíram muito. E pas-
saram a fomentar dilemas éticos e sociais. O mais pre-
mente, sem dúvida, é a coleta de dados dos usuários. É
um problema inerente à era da internet e ganhou ainda
mais relevância com a capacidade de aprendizado das
máquinas. Mas não é o único. Há um receio de que pro-
fissões perderão espaço para robôs — um movimento que
sempre acompanha o surgimento de grandes revoluções.
Teme-se, ainda, que a capacidade dos seres humanos de
controlar as máquinas fique cada vez mais reduzida. Se-
gundo especialistas, a previsão é de que até 2040 elas te-
nham 50% de chance de alcançar o nível da inteligência
humana, e 90% até 2075.
Fala-se muito de IA com fascínio e receio. Mas, assim co-
mo aconteceu com a internet, especialistas acreditam que
ela se tornará algo tão corriqueiro na vida de todos que dei-
xará de despertar tanta atenção — será como o oxigênio que
respiramos. Por isso, a festa da CES tem relevância inédita, a
celebração de um capítulo da civilização. Para quem andava
desconfiado, desdenhando das surpresas feitas de silício, um
aviso: não tem mais volta. Mas pode ser útil e divertido. ƒ

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GERAL CIÊNCIA

UM OÁSIS
NO ESPAÇO
Após décadas de exploração do sistema
solar, a Nasa investigará de perto evidências
da existência de água em Europa, uma das
luas de Júpiter LUIZ PAULO SOUZA

ESPERANÇA
A busca: o satélite
teria elementos
necessários para
a vida

UNIVERSITY OF ARIZONA/ JPL/NASA

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A LUA, todo mundo sabe, está logo ali, ao alcance da civili-


zação. De 1969 a 1972, a humanidade se lançou sobre ela —
foi um pequeno passo para o homem, um grande salto para
a humanidade. Depois, abandonou-a sem choro nem vela,
por mais de cinquenta anos. Agora, ei-la de volta no hori-
zonte. Os Estados Unidos prometem levar uma tripulação
ao redor do satélite natural da Terra em setembro de 2025.
Na semana passada, em movimento inédito, uma missão
americana privada tentava pousar um robô em solo lunar
pela primeira vez desde os anos 1970. Um problema de cap-
tação de energia solar, contudo, frustrou o sucesso da inicia-
tiva, abortada. É evento decepcionante, mas longe de ser
trágico. Parece não haver freio para o que vem por aí, na ex-
ploração espacial.
Viva a busca científica pelo luar, sim. Mas convém acom-
panhar outros movimentos, outras descobertas, ao infinito e
além. Há especial atenção com Júpiter, planeta que leva o
nome do deus do céu e dos trovões da mitologia romana. O
gigante gasoso guarda em suas cercanias uma outra lua, a
Europa, distante e desconhecida, mas mensageira de vastas
esperanças. Com água em abundância, energia e outros in-
gredientes primordiais, pode ser o primeiro local em que en-
contraremos vida fora daqui.
Uma missão da Nasa, a Europa Clipper, deve ser lança-
da em outubro para uma viagem de seis anos e impressio-
nantes 3 bilhões de quilômetros de travessia. O objetivo:
investigar se há mesmo as condições necessárias para que

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POR QUE EUROPA?


Uma das quatro luas mais massivas de Júpiter seria
o lugar mais provável para encontrar vida no nosso
sistema solar

ÁGUA

Um oceano já identificado teria até


150 quilômetros de profundidade

INGREDIENTES ESSENCIAIS

Pode conter carbono, hidrogênio,


nitrogênio, fósforo e enxofre

ENERGIA

A gravidade de Júpiter causa uma fricção na rocha


do satélite, produzindo calor, boa fonte de energia
para iniciar reações químicas que dão origem a
moléculas complexas

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JOHNS HOPKINS UNIVERSITY APPLIED PHYSICS LABORATORY


SONDA Missão ambiciosa: Clipper
investigará de perto a lua joviana

o satélite possa abrigar vida — pelo menos como a conhe-


cemos. O desafio é imenso, já que o satélite está em uma
região perigosa, de excessiva radiação, instável. A solução?
Ir aos pouquinhos, em vaivém. Ao longo de quatro anos,
orbitando Júpiter, a sonda passará pelo satélite natural
quase cinquenta vezes e, de uma proximidade de cerca de
25 quilômetros, captará uma imensidão de dados a respei-
to de Europa. Ao final da missão, ela deve encerrar sua vi-
da útil com um impacto abrupto sobre o solo rochoso de
Ganimedes, a maior lua joviana.
Mas por que tanto interesse? “A Europa pode ter o am-
biente mais propício para vida no sistema solar, além do que
existe na Terra, naturalmente”, disse a VEJA o astrobiólogo
Fabio Rodrigues, professor do Instituto de Química da Uni-
versidade de São Paulo. Há sobejas evidências para o namo-

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ro com as cercanias, digamos assim, de Júpiter. De fora, o


que se vê é um enorme bloco de gelo, mas os pesquisadores
acreditam que sob essa superfície pode haver um imenso
oceano. Isso, por si só, justificaria a busca, mas os cientistas
ainda querem ter certeza de que os elementos químicos ne-
cessários para a vida — carbono, hidrogênio, oxigênio, ni-
trogênio, fósforo e enxofre — podem estar contidos no nú-
cleo rochoso, que é continuamente friccionado e aquecido
pela gravidade descomunal do gigante gasoso. No entanto, a
mera convicção não é suficiente. Por isso, caberá à nave de 5
bilhões de dólares checar de perto se está tudo lá mesmo.
São nove instrumentos que investigarão desde o calor libe-
rado pelo gigantesco mar salgado até as partículas de poeira
que pairam na atmosfera.
A missão representa uma verdadeira mudança de para-
digma para a agência espacial americana. “Até o fim do sé-
culo passado, a Nasa ainda tinha receio das missões de
busca de vida, que eram muito mais focadas em conhecer
o planeta, a geologia, a atmosfera”, afirma Rodrigues.
“Agora, procura-se desenvolver projetos para pesquisar al-
gum tipo de vida, ainda que microscópica e residual.” Não
há certezas, naturalmente, mas eis a graça da ciência, a in-
cessante busca. E se tudo der errado, no infinito passeio
por Júpiter, na permanente dança com sua lua, alguma coi-
sa vamos aprender — nem que seja a revelação de estar-
mos sós, tristemente sós, um pontinho de nada no grande
esquema universal. ƒ

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GERAL CIDADES

PAZ NA SERENÍSSIMA
Nunca, na recente história da civilização, uma
cidade anunciou tantos recursos para
barrar as ondas de turistas. Veneza pode estar
inaugurando uma nova era LIGIA MORAES
DAISUKE TOMITA/THE YOMIURI SHIMBUN/AFP

SUPERLOTAÇÃO Problemas de mobilidade: moradores


reclamam da dificuldade de circular pelas vielas estreitas

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HÁ VÁRIAS versões para o apelido mais conhecido de Ve-


neza, um dos pontos turísticos de maior afluência na Itália.
Uma delas diz que passou a ser chamada de “sereníssima”
graças às características da República que se instalou no ar-
quipélago de 118 ilhas entre o fim do século VII e quase o iní-
cio do XVIII. Governada por uma próspera oligarquia liberal,
a cidade gozava de estabilidade econômica e social, além de

MOMENT/GETTY IMAGES

SOLIDÃO Taxas de acesso: a pandemia adiou a cobrança de


uma espécie de pedágio imposto aos grupos de forasteiros

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ter um sistema de Justiça tão bom que qualquer forasteiro sa-


bia que sua estadia seria “serena” — num clima de total paz e
segurança. Séculos depois, tudo que os turistas menos encon-
tram nas vielas e pontes venezianas é serenidade.
Prova inconteste são os populares vídeos de Monica Polli,
a servidora italiana que ficou célebre por expor os punguistas
que circulam por Veneza atrás de turistas desavisados de to-
das as nacionalidades: “Attenzione, pickpocket!”. Essa super-
população heterogênea de visitantes — entre italianos de ou-
tras regiões e estrangeiros foram quase 30 milhões nos pri-
meiros nove meses do ano passado — e de pequenos larápios
é apenas um dos inúmeros problemas que se empilham diante
das autoridades locais. Não por acaso, em julho do ano passa-
do, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco) recomendou que Veneza fosse
adicionada à famigerada lista de Patrimônio Mundial em Pe-
rigo. De acordo com especialistas, a ação é necessária porque
a Itália não faz o suficiente para proteger a cidade do turismo
em massa e das mudanças climáticas que ajudam a degradar
ainda mais a situação periclitante das ilhas.
Em busca de uma solução, a prefeitura de Veneza anun-
ciou que, a partir do próximo 1º de junho, o número máximo
de membros em um grupo de forasteiro será reduzido para 25
pessoas — metade da lotação de um ônibus usado para esse
fim. A medida, decretada por resolução da Câmara Munici-
pal, dentro do bojo de alteração do Regulamento de Polícia e
Segurança Urbana, faz parte de uma série de modificações

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cujo objetivo é frear a insuportável invasão. É tanta gente, em


caos evidente, que até os comerciantes locais reclamam da di-
ficuldade em vender produtos.
Tenta-se de tudo. As autoridades municipais começarão a
cobrar uma taxa de 5 euros (cerca de 26 reais) pela entrada de
pessoas que visitam a cidade por apenas um dia. Também se-
rá proibido dificultar o fluxo em ruas estreitas, pontes ou lo-
cais de passagem, um clássico quando se trata desses grandes
grupos de pessoas. Além disso, em decisão ruidosa, não será
mais permitido utilizar megafones nas ruas venezianas, outra
cena corriqueira e detestável. Dessa forma, os guias deverão
contar histórias das chamadas “cas” e vielas em voz alta ou
por meio de um sistema de som fechado, acessível apenas por
fone de ouvido.
Não é a primeira vez, ressalve-se, que as autoridades reú-
nem esforços para aplicar uma tarifa regulatória. Em 2019, o
Conselho aprovou a mudança, mas a chegada da pandemia
de Covid-19, em 2020, decretou quarentena compulsória, o
silêncio imposto pelo medo. Parecia bom, mas era triste. Con-
tudo, por óbvio, com o término das restrições, o fluxo de via-
jantes renasceu. A ideia, agora, é garantir maior equilíbrio en-
tre as necessidades dos habitantes, tanto os moradores como
os trabalhadores que vêm de outras cidades, e visitantes. Esse
movimento implica o atendimento simultâneo a um menor
número de turistas, atalho para fazer o passeio sair mais caro.
Mas os serviços, supostamente, podem vir a ter qualidade
mais elevada (pelo menos é o que dizem os defensores da me-

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DAVID LEES/CORBIS/VCG/GETTY IMAGES

POETA Ezra Pound (1885-1972) viveu dez anos


entre as pontes: “As gôndolas estavam muito caras...”

dida). Resta ver se a suposta elitização valerá a pena.


É possível que a vida melhore, mas é improvável que todos
os problemas de Veneza sejam resolvidos, porque o vaivém de
humores é parte de sua indizível beleza. Célebre morador da
cidade, o americano Ezra Pound (1885-1972) a descreveu co-
mo uma “floresta de pedra crescendo da água”, e reclamou:
“Sentei nos degraus da Dogana / Pois as gôndolas estavam
muito caras naquele ano”. As novas exigências podem aquie-
tar a floresta de pedra, eis a esperança — apesar da pressão
econômica da indústria do turismo. Mas Veneza tem uma
chance de olhar para o passado, sereníssima como jamais de-
veria deixar de ser. ƒ

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GERAL MEMÓRIA

TEMOS DE
ENGOLI-LO
Zagallo esteve sempre à frente dos outros — como
jogador e como treinador. Tratado como supersticioso
folclórico, merece página mais relevante na
história do futebol FÁBIO ALTMAN
INSTAGRAM @SANTOSFC

OS MAIORES Com Pelé: parceria de chuteira nos pés, nas


Copas de 1958 e 1962, e depois em 1970, no tri do México

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“EU NÃO PRECISO dizer mais nada! Vocês vão ter que
me engolir!” Antes da Copa do Mundo de 1998, Zagallo
ouvia barbaridades da imprensa e da torcida a respeito da
postura da seleção brasileira em campo. Em junho de
1997, ao conquistar o título de Copa América, na vitória
contra a Bolívia por 3 a 1, ele disparou com dedo em riste,
para as câmeras de televisão, bochechas avermelhadas e
olhos rútilos, a frase debochada e incisiva que se tornaria
epígrafe irrecorrível do treinador. Talvez seja bom não
dizer mais nada, e tanto agora como antes sempre foi pre-
ciso engolir Zagallo — não com o tom colérico daquele
desabafo, mas com a tranquila certeza histórica a confir-
mar a trajetória de um dos grandes nomes da história do
futebol mundial.
Na ponta do lápis: ele foi duas vezes campeão mundial
como jogador, em 1958 e 1962; uma vez como treinador, em
1970; e uma como auxiliar técnico, em 1994, de mãos da-
das com Carlos Alberto Parreira. Zagallo foi o primeiro a
erguer a Jules Rimet como atleta e como técnico, feito que
depois o alemão Franz Beckenbauer (leia na pág. 14) e o
francês Didier Deschamps repetiriam, sem a mesma pom-
pa e circunstância. A estatística o instalou, e já faz tempo,
no panteão da bola — mais celebrado no exterior do que
nas bandas de cá, em irritante movimento atávico. Zagallo
foi quase sempre tratado como o histriônico dado a comen-
tários de efeito, o frasista engraçado e envelhecido que teve
sorte na vida, o supersticioso do número 13, e só por isso te-

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ria ido tão longe. Mas não. Zagallo foi revolucionário de


chuteiras e com a prancheta em mãos. Discreto, reinventou
os esquemas de jogo, viu tudo antes da hora.
Os críticos — todos nós, enfim, e falar mal de Zagallo vi-
rou hábito — diziam ser fácil vencer com Didi, Garrincha e
Pelé ao lado, no gramado. E que moleza foi sentar no banco,
na campanha do tri no México, tendo diante dos olhos o rei,
incomparável, claro, mas também Tostão, Gérson e Rivelli-
no. Sim e sim. Mas faça-se um exercício ao avesso: como ga-
nhar relevo, sair da planície, em tempos tão excepcionais?
Em 1958, na Suécia, o ponta-esquerda Zagallo intuiu que
voltando para ajudar no meio, ofereceria mais segurança
para a seleção — e o equilíbrio necessário ao “brilhantismo
anárquico” de Garrincha, do lado direito, como definiu o
jornalista inglês Jonathan Wilson, autor de A Pirâmide In-
vertida — A História da Tática no Futebol. E então a monta-
gem clássica, o 4-2-4 (quatro defensores, dois meio-campis-
tas e quatro atacantes) virou um 4-3-3, que passaria então a
vigorar internacionalmente. Foi o primeiro e imenso legado
do então botafoguense Formiguinha, com era chamado, da-
da a infindável capacidade de ir e vir, operário da redonda.
Em 1970 ele herdou as “feras do Saldanha”, o escrete fe-
nomenal nas anotações, mas inviável na prática, dada a im-
possibilidade de ter tanta gente boa ao mesmo tempo. A me-
mória engana, mas o Brasil embarcou para o México vaiado
e debaixo de desconfiança. E então Zagallo, vindo do Bota-
fogo, perpetrou uma segunda reviravolta — antes de Cruijff,

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antes de Guardiola. A mágica: pôs no time os gênios — Pelé,


Tostão, Gérson e Rivellino, de posições semelhantes em seus
clubes —, e não foi mera distribuição de camisas, “joguem
aí”, como anota o folclore. Ele sabia o que estava fazendo,
calmo e reflexivo. Tirou Edu, um fenomenal ponta-esquer-
da agressivo, e instalou o armador canhoto Rivellino. Deslo-
cou um volante, o mineiro Piazza, para a zaga — a melhor
maneira de uma equipe sair jogando com precisão, como
aliás intuíra Beckenbauer. Eis o que conta Tostão, que estava
lá e sabe das coisas, na Folha de S.Paulo: “Ele me disse bem
perto do Mundial: ‘Você será o titular, mas não quero que
jogue recuado como faz no Cruzeiro, quero você à frente de
Pelé e Jairzinho. Perguntou-me: ‘Dá para jogar dessa manei-
ra? Respondi: ‘Não há problema’ ”.
Se a explicação da relevância de Zagallo soa árida para
quem não acompanha os detalhes do esporte, cabe um resu-
mo: tudo o que se vê por aí hoje, na Europa, sobretudo, be-
beu um pouquinho do brasileiro. “Zagallo estava à frente do
seu tempo e pensava o jogo de maneira estratégica”, diz Tos-
tão. “Fazia treinos táticos diariamente para defesa e ataque.
A seleção de 1970 foi espetacular porque unia o coletivo
com o individual, como são hoje as melhores equipes.” Mas
dada a imprevisibilidade do futebol — a única modalidade
em que o mais fraco eventualmente vence o mais forte —,
Zagallo foi muitas vezes surpreendido e bebeu do próprio
veneno. Na Copa de 1974, antes da partida contra os holan-
deses do “carrossel”, em permanente troca de posições, ele

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garantiu: “A Holanda é muito tico-tico no fubá, que nem o


América dos anos 50”. Depois da derrota por 2 a 0, corrigiu
a prosa: “Aí, sim, fomos surpreendidos novamente”.
Uma surpresa atrás da outra, boas e más, eis um modo de
desenhar a longa carreira de Zagallo, o “Velho Lobo”. Ao
morrer em 5 de janeiro, aos 92 anos, de falência de múltiplos
órgãos, no Rio de Janeiro, é como se — agora sim — chegas-
se a hora de reverenciar o segundo maior nome do futebol
do Brasil, atrás apenas de Pelé. Com a morte de ambos, a
apenas um ano de distância no tempo, pode-se enfim virar a
página dos pioneiros de 1958 — “O brasileiro, lá no estran-
geiro, mostrou o futebol como é que é”, informa a marchi-
nha. Todos os titulares da primeira Copa já morreram. É o
fim de um tempo que Zagallo ajudou a inaugurar. Com uma
nota irônica: o nome do novo treinador da seleção, Dorival
Júnior, ex-São Paulo, foi anunciado minutos depois do enter-
ro do alagoano. O atual caos da CBF, com vaivém de presi-
dentes e técnicos, não era, certamente, o ponto ao qual o
Formiguinha imaginava chegar. O melhor a fazer: engoli-lo,
simples assim, e, ao modo antropofágico dos poetas do mo-
dernismo, fazer nascer algo novo. ƒ

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GERAL AMBIENTE

A DISCRIÇÃO
QUE GRITA
Novos recursos de rastreamento eletrônico,
por meio de GPS, autorizam pensar em solução
para a chamada “extinção silenciosa” das girafas
em território africano FÁBIO ALTMAN

NATUREZA Os mamíferos no Quênia


(acima) e o dispositivo na orelha: zelo

FOTOS ANTON PETRUS/MOMENT/GETTY IMAGES; INSTAGRAM @GIRAFFE_CONSERVATION

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AS GIRAFAS — sabem os adultos, adoram as crianças —


são animais calados. O senso comum lhes atribui mudez,
mas não é bem assim. O som emitido é muito baixo, e há
uma explicação biológica: a traqueia é mais estreita do que a
dos outros animais, de modo a reduzir a quantidade de ar
parado no enorme e lindo pescoço, o que poderia dificultar
a respiração. Como respirar é prioritário, a emissão de sons
foi relegada a papel secundário na evolução da espécie ma-
mífera. Quietamente, as girafas vivem o que os conservacio-
nistas chamam de “extinção silenciosa”.
Em 1980, a população dos bichões na África era de
155 000. No ano passado, chegou a 117 000, em redução de
25% — ainda que, nos últimos anos, tenha havido alguma
recuperação. Não por acaso, a União Internacional para
Conservação da Natureza e dos Recursos Internacionais
(IUCN, na sigla em inglês) listou as girafas no grupo de ani-
mais da chamada “lista vermelha”, em perigo, à procura de
atenção. As ameaças, induzidas pelo ser humano: a destrui-
ção e fragmentação do hábitat, atalho para doenças, resulta-
do da crescente pressão econômica pela mineração e explo-
ração de petróleo nas florestas e savanas africanas, especial-
mente na Namíbia, Uganda, Quênia e Níger. Além, é claro,
da caça — postura infame que até outro dia era valorizada,
gloriosa, sombra da vergonha praticada com pompa e cir-
cunstância no século XIX e celebrada em ilustrações.
Mas, afinal, por que se considera a extinção silencio-
sa, em comparação, por exemplo, com o sumiço de rino-

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BILDAGENTUR-ONLINE/UIG/GETTY IMAGES

CAÇA Gravura do século XIX: louvação inaceitável


e terrível aos olhos de hoje

cerontes, personagens contumazes em relatórios e repor-


tagens? Porque rastreá-las é um imenso desafio de design
atrelado à fauna. As coleiras com GPS, de monitoramen-
to por satélite, costumam ser postas em volta do pescoço.
Contudo, o pescoço das girafas — que poderia ser dese-
nhado por Amedeo Modigliani, delgado a não mais po-
der, de 1,80 metro, em média — é fino na parte superior e
grosso na porção inferior, inadequado. Os dispositivos
deslizam para baixo quando o animal abaixa a cabeça,
causando desconforto, com risco de o objeto se romper.

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Os pesquisadores experimentaram tornozeleiras, anéis


torácicos e até etiquetas coladas nas protuberâncias ós-
seas em forma de chifre no topo da cabeça. Nada funcio-
nou. Agora — eis a fascinante novidade, o pulo do gato
— a tecnologia permitiu a montagem de minúsculos ras-
treadores do tamanho de uma barra de chocolate, pe-
quenos o suficiente para serem presos na ponta da cauda
ou na orelha.
Os novos marcadores são movidos a energia solar, menos
intrusivos e afeitos a durar de um a dois anos. “Saber onde
estão e para onde se movimentam é extraordinário recurso
de preservação”, disse a VEJA Stephanie Fennessy, diretora-
-executiva da Giraffe Conservation Foundation, dedicada a
zelar pela vida dos adoráveis ruminantes compridões.
O conhecimento dos passos das manadas é fundamental
para um outro movimento crucial de cuidado: a chamada
“translocação”, com o estabelecimento de novas popula-
ções em áreas antes vazias e ainda imunes aos danos da ci-
vilização. É recurso que impõe detalhada logística, realiza-
da pelo acompanhamento eletrônico e com o apoio de
ONGs e governos, em costura feita pela equipe de Fennessy.
“É possível imaginar a África sem girafas?”, indaga a am-
bientalista. “Há preocupação, justificada e real, com rinoce-
rontes e também elefantes, mas elas parecem ter sido es-
quecidas.” Há tempo de salvá-las, com a ciência a favor da
ecologia. A mensagem parece clara: quanto mais informa-
ções, maiores são os caminhos de salvação.

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155 000
RISCO
REAL 117 000
Número de girafas
identificadas
na África 25% DE
REDUÇÃO

Fonte: Giraffe
Conservation
Foundation

1980 2023

Vale sempre lembrar o bonito comentário da escritora


dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962), autora do clássi-
co A Fazenda Africana, que inspirou o filme Entre Dois
Amores, de Sydney Pollack, com Meryl Streep e Robert
Redford: “As zebras são doces, mas, claro, elas se parecem
com cavalos; os gnus parecem perigosos, mas não o são;
uma visão magnífica é a de um grupo de girafas, e a pri-
meira vez que as vemos mal podemos crer em nossos
olhos quando notamos sua altura e esbelteza, como um
bando de grandes serpentes no mais estranho movimento
de balanceio”. As girafas — calmas, tímidas, com um quê
de não estar nem aí — pedem carinho. ƒ

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GERAL COMPORTAMENTO

FESTAS SEM FIM


Quem disse que aniversário se comemora uma
vez por ano? A turma jovem agora festeja
durante dias e com diversos grupos
DUDA MONTEIRO DE BARROS E PAULA FREITAS

PARABÉNS A VOCÊ O apagar das velinhas: data feita para


ser (muito) comemorada, de preferência entre os amigos

ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES

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A TURMA que viveu parte da juventude isolada em casa


por conta da pandemia saiu mudada do confinamento. Em-
penhada em recuperar o tempo perdido, a geração Z — gen-
te que tem hoje seus 20 e poucos anos, mais ou menos —
quer aproveitar cada momento com intensidade, às vezes ul-
trapassando limites. No rol dos novos hábitos está o de cele-
brar o aniversário não com uma, mas com várias festas, ao
longo de diversos dias. Vingando-se dos anos em que não se
podia sequer assoprar velinhas, para não espalhar o vírus
da Covid-19, os festejos de agora envolvem uma meia dúzia
de “parabéns” em diferentes cenários, com inúmeros grupos
de amigos, em encontros que vão de noitadas agitadas até o
sol raiar a piqueniques saudáveis ao pôr do sol. Reflexo des-
ta tendência, a hashtag #birthdayweek (um nó de palavras
em inglês que se traduz por semana de aniversário, em por-
tuguês) soma mais de 150 milhões de visualizações nas re-
des sociais ao redor do mundo.
Essa rotina social agitada, com muitos círculos de amiza-
de se confraternizando, combina perfeitamente com a faixa
etária dos aniversariantes seriais. Segundo uma pesquisa da
Universidade de Aalto, na Finlândia, o pico de sociabilidade
das pessoas se dá exatamente por volta dos 25 anos, quando
cada jovem estabelece, em média, dezessete conexões signi-
ficativas por mês — número que cai para treze depois dos
40 anos e despenca para sete na terceira idade. Junte-se a is-
so o fato de que aniversário é para ser comemorado entre
amigos (nos Estados Unidos, três em cada quatro pessoas

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ARQUIVO PESSOAL
NA ESTRADA Amanda e sua turma: em vez de festa, viagem

passam a data em grupo, segundo levantamento do You-


Gov), e está pronta a receita das festividades estendidas
abraçada pelos hedonistas pós-pandemia. O estudante de
relações públicas Vinícius Alves, 22 anos, não só multiplica
os aniversários como organiza uma agenda que envolva to-
das as amizades. “Sei que é difícil acompanhar o ritmo e
participar de tudo. O importante é que todos consigam com-
parecer a pelo menos uma das comemorações”, explica Al-
ves, que, cariocamente, celebrou a nova idade com roda de
samba, noitada em um bar e festinha convencional.

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Também contribui para o


embalo fracionado o fato de a
geração Z ser a primeira a
crescer em frente a telas e vi-
ciada em redes sociais. Nesse
cenário, comemorar aniver-
sários deixou há um bom
tempo de ser um aconteci-
mento para um punhado de
convidados. Hoje em dia, ca-
da “Parabéns a você” vira um
vídeo imediatamente postado
no Instagram, e o critério pri-
ARQUIVO PESSOAL

mordial na escolha do local,


do bolo e das roupas é ser
“instagramável”. “Tirar fotos ESCOLHAS Ana Júlia:
para publicá-las ficou mais não dá para ir a todas
importante do que a festa. É
como se fosse uma experiência teatral”, observa o psicólogo
Cristiano Nabuco. Mas, atenção: a incansável busca por do-
ses de dopamina e prazer, outra característica dos jovens
que neste caso deságua em sucessivas festas e bebedeiras,
pode render uma frustração com a rotina ordinária depois
que a curtição acaba. “Quanto mais esse hormônio se faz
presente no sistema de recompensa do cérebro, mais vi-
ciante é a experiência”, adverte a psiquiatra americana An-
na Lembke, autora de Nação Dopamina.

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Do outro lado do Save the Date, os convidados dos ani-


versariantes em série se sentem pressionados a marcar pre-
sença em tudo, mesmo sem vontade. A especialista em mí-
dias sociais Ana Júlia Brandão, 22, passou por essa fase,
mas agora se esforça para ser mais seletiva. “É constrange-
dor não ir à festa de alguém próximo. Mas não estava dando
para conciliar”, explica Ana, que faz parte de um badalado
círculo social. O looping de convites também pesa no bolso
de quem acha que não dá para chegar a uma festa dessas de
mãos abanando — sem falar na sobreposição de comemora-
ções quando elas são divididas em vários dias. Uma pesqui-
sa conduzida pela multinacional de finanças Credit Karma
indicou que 36% dos jovens americanos dizem ter algum
amigo que os leva a gastar demais, especialmente nos ani-
versários.
Iniciada por volta de 3000 a.C., a tradição de celebrar ca-
da ano de vida surgiu no Egito Antigo e se alastrou poste-
riormente entre gregos e romanos até dominar a cultura oci-
dental. Vez por outra é reinventada — como agora, com a
multiplicação dos dias. A estudante de jornalismo Amanda
Lopes, 22, usou a criatividade para reunir e aproximar sua
trupe no aniversário: cada um ajustou seus compromissos e
passaram oito dias viajando por São Paulo. “Meus amigos
pararam tudo para estar comigo. Me senti muito especial”,
resume Amanda. Problema vai ser se todos os convidados
dos multianiversários resolverem retribuir na mesma moe-
da — não vai ter dias de folga que cheguem em 2024. ƒ

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GERAL GASTRONOMIA

A NOVA ONDA
Com três restaurantes entre os cinco melhores
do mundo, a Espanha une inovação e tradição
e se mantém na vanguarda da cozinha com
força interminável ANDRÉ SOLLITTO
INSTAGRAM @DISFRUTARBCN

AOS BOCADOS Coral comestível do Disfrutar:


a técnica aliada da tradição

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QUANDO CHEGAM à mesa, as criações de Eduard Xatru-


ch, Oriol Castro e Mateu Casañas, trio de chefs responsável
pelo Disfrutar, em Barcelona, eleito o melhor restaurante da
Europa e o segundo melhor do planeta, chamam a atenção
pela beleza. São pequenas obras de arte comestíveis, colori-
das e criadas com diferentes camadas e texturas. Cada mor-
dida, no entanto, revela a genialidade dos cozinheiros. O que
parecia sólido é macio e aerado, as esferas explodem na bo-
ca e as camadas escondem recheios de sabores surpreen-
dentes. Em tempos em que todas as principais técnicas da
INSTAGRAM @DISFRUTARBCN

TRÊS ESTRELAS Casañas, Castro e Xatruch:


o trio responsável pelo Disfrutar

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gastronomia clássica são requisitos básicos de qualquer um


disposto a comandar uma cozinha e cada novidade ganha o
mundo na velocidade impressionante das redes sociais, é
preciso inventar sempre e cada vez mais. E foi assim, crian-
do novas técnicas e mesclando sabores tradicionais com
apresentações inusitadas, que o Disfrutar se tornou referên-
cia de uma nova era da cozinha espanhola.
Embora recente — a casa abriu as portas em 2014 — o
endereço é parte de uma história bem mais longa, a revo-
lução espanhola de forno e fogão. Os chefs trabalharam
com o lendário Ferran Adrià no El Bulli, o único a se man-
ter no topo do ranking global por cinco anos, entre 2006 e
2010. A química entre eles deu tão certo que decidiram
trabalhar juntos novamente. O trabalho logo recebeu críti-
cas positivas. Foram subindo posições em listas relevantes
e conquistaram a cobiçada terceira estrela do Guia Miche-
lin no ano passado. “Ganhamos um selo de criatividade e
passamos a defendê-lo”, disse a VEJA Xatruch, que esteve
no Brasil no final de 2023 para mostrar suas técnicas a
alunos da escola Le Cordon Bleu, uma das mais respeita-
das da gastronomia. “Mas traduzimos isso em comida. E a
tradição é fundamental, porque é a partir de uma base só-
lida que podemos fazer o que quisermos.” Além das inova-
ções no preparo, o trio adapta receitas clássicas, como a
calçotada, preparada com a cebola conhecida como calçot,
na Catalunha. No Disfrutar, é feita em versão liofilizada e
servida com uma variação do molho romesco. As criações

3|5
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O MAIOR
INOVADOR...
Quando Ferran
Adrià chegou
ao El Bulli,
em 1983, o
restaurante já
tinha duas
estrelas Michelin.
Mas suas técnicas
de vanguarda
alçaram a casa ao
topo do Olimpo —
feito nunca

LLUIS GENE/AFP
replicado por
outro chef

são catalogadas e lançadas em livros, que funcionam co-


mo a documentação de uma jornada criativa. A segunda
edição acaba de chegar ao mercado.
Xatruch, Castro e Casañas não estão sozinhos. Há outros
dois espanhóis entre os cinco melhores restaurantes do
mundo, de acordo com o ranking anual The World’s 50 Best
Restaurants: o DiverXO, em Madri, e o Asador Etxebarri,
em Atxondo, no País Basco. Ao menos desde a década de
1970, quando Juan Mari Arzak usou as técnicas de vanguar-
da da França para adaptar sabores clássicos bascos no mo-
vimento conhecido como “nova cozinha basca”, a Espanha

4|5
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…E OS IRMÃOS
DE TALENTO
Os irmãos Roca
— o chef Joan,
o sommelier Josep
e o confeiteiro
Jordi — são
responsáveis por
uma nova era da
gastronomia
espanhola. Na
década de 2010,
INSTAGRAM @CELLERCANROCA

ofereciam uma
cozinha a um só
tempo inovadora
e afetiva

tem exportado conhecimento gastronômico. Entre o final


dos anos 1990 e começo dos 2000, Ferran Adrià e seu El
Bulli reinaram supremos, graças à capacidade de inovação
do chef, responsável por criar as técnicas de espuma e esfe-
rificação, entre muitas outras. Na década seguinte, a coroa
passou ao Celler de Can Roca, empreendimento dos irmãos
Roca que aliava alta gastronomia com hospitalidade e um
talento para compor uma experiência completa, dos pratos
com ingredientes únicos à harmonização e às sobremesas.
Mais do que um destino certo para quem quer comer bem, a
Espanha é, hoje, epicentro mundial do bom paladar. ƒ

5|5
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PRIMEIRA PESSOA

ARQUIVO PESSOAL

1|4
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É MUITO AMOR
ENVOLVIDO
Denis Ordovás, 46, conta como é fazer parte de um trisal e
ser pai nesta configuração que é alvo de preconceito

ESTAVA HÁ QUASE uma década em um casamento feliz


com a Letícia (Ordovás, de 52 anos, à dir. na foto ao lado)
quando conhecemos a Keterlin (de Oliveira, 32 anos, à esq.),
em 2013. Ela foi contratada no mesmo banco em que traba-
lhávamos, e a amizade logo se estabeleceu. Começamos en-
tão a fazer tudo juntos — passeios, conversas, festas. Poucos
meses mais tarde, nos vimos os três apaixonados, algo ines-
perado, que jamais imaginaria acontecer comigo. Aquilo
surpreendeu também minha mulher, que só ali descobriu
que nutria sentimentos por uma figura feminina. Nenhum
de nós havia engatado um relacionamento a três antes, mas,
após uma boa reflexão, decidimos ver no que daria. Lembro
até hoje a primeira vez que escutei a palavra trisal. Foi um
amigo que, numa festa, nos apresentou dessa forma. Até ri.

2|4
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Para ser honesto, nem familiarizado com o termo eu estava,


tudo era novo. Aí o tempo foi passando e, na pequena comu-
nidade gaúcha de Novo Hamburgo onde morávamos, pas-
samos a agitar a bandeira de que qualquer forma de amor é
válida, desde que fincada em bases verdadeiras.
Passados dez anos, o preconceito e o desconhecimento
ainda pesam sobre esta configuração do poliamor. Justa-
mente por isso, teve tanto significado o ato de selarmos nos-
sa união estável em cartório após a decisão judicial de agos-
to passado, um feito inédito no Brasil. A iniciativa de oficia-
lizarmos o casamento foi motivada por um fato importante:
Keterlin ficou grávida, no início de 2023, uma gestação pla-
nejada. Ao formarmos um casal de três aos olhos da lei, que-
ríamos ter certeza de que, quando o Yan nascesse, nossos
nomes estariam todos na certidão — fato também sem pre-
cedentes no país. E foi o que aconteceu. Apresentamos nos-
so caso no tribunal, encaminhamos um dossiê de evidências
fotográficas e de testemunhos provando que nossa relação
deveria ser levada a sério, e conseguimos. Em outubro, nos-
so filho nasceu, formalmente, com duas mães e um pai.
Conforme nossa história foi se tornando pública, passa-
mos a receber mensagens de apoio e carinho, mas também
viramos alvo de uma enxurrada de críticas nas redes. Di-
ziam: “É injusto sujeitar uma criança a um arranjo desses,
imoral”. Foi a primeira vez que sofremos ataques com esse
grau de violência. Antes, a grande resistência mesmo havia
sido dos pais das duas, que cortaram contato com as filhas

3|4
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ao trazermos o caso à luz. Um baque. Felizmente, ambas


voltaram a ter contato com a família, que aos poucos aceitou
a ideia — os dois filhos do primeiro casamento da Letícia,
aliás, estão entre os que ficaram do nosso lado. Já no am-
biente on-line, não temos como demonstrar que uma união
poliafetiva exige tanto respeito quanto um casamento a dois,
então a discriminação continua firme. Nem olho mais os co-
mentários para evitar me chatear.
Acho que o poliamor não é para todo mundo. Não é fácil.
Costumo brincar que temos carinho em dose tripla, mas
também precisamos de três vezes mais paciência. De resto,
as asperezas e alegrias do dia a dia são as mesmas. Quanto
ao Yan, o apelidamos de Afortunado, porque ele tem o amor
não apenas de dois, mas de três pais. Está aí uma criança que
vai aprender em casa a não nutrir preconceitos e a manter a
mente sempre aberta, em um ambiente repleto de afeição. Na
sentença do tribunal que reconheceu nossa união, o próprio
juiz citou aquela música do Lulu Santos: “Eu quero crer no
amor numa boa, que isso valha pra qualquer pessoa…”. Real-
mente vejo o novo começo de uma nova era, com menos ódio
e mais diálogo na sociedade. Que nosso filho seja uma das
pessoas a fazer parte deste mundo mais tolerante. ƒ

Depoimento dado a Amanda Péchy

4|4
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CULTURA TELEVISÃO

CRIME ABAIXO
DE ZERO
Em sua nova temporada, a série True Detective, da HBO,
promove uma notável retomada criativa ao apostar
numa trama sobre as mulheres — e seus fantasmas
KELLY MIYASHIRO

INVESTIGAÇÃO Danvers e Navarro: xerife e patrulheira


correm atrás de respostas sobre chacina escabrosa

MICHELE K. SHORT/HBO

1|6
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L
ocalizada quase 200 quilômetros acima do Círculo
Polar Ártico, a minúscula Ennis vê uma sina se repe-
tir: toda vez que o Natal está chegando, a noite boreal
instala-se por meses no lugarejo por si só melancóli-
co, tornando tudo ainda mais gélido e soturno. No
perturbador cenário de True Detective: Terra Noturna, que
estreia na HBO neste domingo, 14, a xerife Liz Danvers (Jo-
die Foster) e a policial Evangeline Navarro (Kali Reis) não
passam incólumes aos traumas de cada inverno. E que inver-
no é esse que se anuncia. Ambas, cada qual a seu modo, bus-
cam se distanciar do mal-estar que divide a comunidade fic-
tícia do Alasca, na qual trabalhadores americanos — bran-
cos, negros ou latinos — exploram uma mina e se estranham
com indígenas em luta para sobreviver em meio à poluição
brutal. Mas isso é francamente impossível: Danvers faz o que
pode, em vão, para sua enteada não resgatar as origens nati-
vas do pai morto e se envolver em arriscados protestos políti-
cos; Navarro tenta, mas já não consegue negar suas próprias
ligações de sangue com um povo disposto a brigar até o fim
por suas crenças e direitos. Uma chacina tétrica virá romper
o fiapo de equilíbrio que ainda resta em Ennis — revelando
que a noite boreal, mais que um evento climático, é uma me-
táfora do pesadelo que não só as duas detetives, mas muitas
outras mulheres no mundo, são obrigadas a atravessar.
O crime que permeia Terra Noturna não é menos esca-
broso (e intrincado) do que os casos que deram fama à série.
Pelo contrário: oito cientistas de uma base de pesquisa que

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investiga a origem da vida


em microrganismos cole-
tados das profundezas do
gelo desaparecem; horas
depois, seus corpos são en-
contrados dentro de um
cubo de gelo, em poses di-

MICHELE K. SHORT/HBO
lacerantes. No inóspito la-
boratório, a equipe de
Danvers descobre uma RESISTÊNCIA Leah, enteada
pista lúgubre: o assassino de Liz: luta e busca por suas
deixou lá uma língua hu- raízes indígenas
mana feminina, que Na-
varro acredita ser de Annie K, ativista indígena assassinada
anos antes e cuja morte nunca foi solucionada. Na época, ela
protestava contra a mina que movimenta a economia da ci-
dade, mas contamina os rios que sustentam o povo Inuíte.
A nova True Detective mantém-se fiel, assim, à premissa
que consagrou a série: nas quatro temporadas, a investigação se
imbrica com os tormentos dos protagonistas, cujos fantasmas
pessoais revelam-se tão ou mais apavorantes (e reais) que os
crimes à sua volta. A receita criada pelo roteirista Nic Pizzolatto
rendeu sucesso de público e crítica à primeira temporada, com
Woody Harrelson e Matthew McConaughey. Depois, no en-
tanto, a série foi se fechando num universo masculino previsível
e perdeu voltagem. Agora, sofre uma santa guinada de gênero:
o atributo principal da nova trama é o olhar feminino afiado na

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frente e atrás das câmeras. Além de duas protagonistas mulhe-


res pela primeira vez, a série tem como criadora e diretora a
mexicana Issa López. “A perspectiva feminina é importante pa-
ra lapidar as personagens”, disse Jodie Foster a VEJA.
Apesar de a opressão masculina ser elemento insidioso, e
por vezes escancarado, obrigando Danvers e Navarro a li-
dar com comportamentos machistas, elas não tentam levan-
tar uma bandeira feminista. As protagonistas se unem, mes-
mo se detestando, para chegar à verdade, já que são tão er-
ráticas quanto os homens e ainda carregam traumas. Sagaz,
mas irascível, Danvers dá seus deslizes ao dormir com o
chefe nas horas vagas, em uma relação de poder deturpada;
atormenta o novato Prior (Finn Bennett), a quem ordena ta-
refas nas horas mais inconvenientes; e ainda luta para criar
sua enteada rebelde Leah (Isabella LaBlanc). Já a musculosa
Navarro (Kali é ex-boxeadora na vida real) tem tempera-
mento estourado, vive de caso com um dono de bar e tenta
cuidar da irmã, com crises de bipolaridade.
Enquanto as investigações avançam, com a descoberta
dos corpos nus dos cientistas no bloco de gelo, as relações
interpessoais das parceiras se deterioram — mas, assim co-
mo outras heroínas complicadas da melhor ficção criminal,
como a temerária personagem de Helen Mirren em Prime
Suspect (1991) e a detetive de Olivia Colman em Broadchur-
ch (2013-2017), elas extrairão alguma sabedoria, para o bem
ou para o mal, de suas agruras. O crime abaixo de zero é fi-
chinha perto das complexidades femininas. ƒ

4|6
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“APRENDI A SEGUIR MINHA INTUIÇÃO”


Em entrevista a VEJA, a atriz Jodie Foster, 61 anos, fala sobre os
desafios de protagonizar a série e por que acha histórias de cri-
mes fascinantes.

Essa é a primeira vez que True Detective tem mulhe-


res no protagonismo e na direção. Como foi essa ex-
periência? Foi algo necessário. Conforme começamos a gra-
var, percebemos como a perspectiva feminina é específica e im-
portante para lapidar as personagens e sua relação com o passa-
do. As experiências que elas tiveram afetam suas atitudes no pre-
sente, moldam suas personalidades, e como elas são
pessoas machucadas esse conjunto afeta a forma
como elas lidam com o mundo exterior e como
agem em suas relações interpessoais.
JORGE BISPO/HBO

É diferente da abordagem masculina


de outras temporadas, certo?
Acredito que sim, e isso rendeu uma
experiência rica e complexa. Creio
que essa magia acontece quando

A DAMA DO GELO Jodie Foster:


gravações no Ártico de verdade

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você infunde a psique feminina em uma narrativa que costuma-


va ser do gênero masculino.

O que a atraiu a entrar nesse projeto? Foi um caso de amor.


Tínhamos aqui um roteiro incrível — assim que eu li quis embarcar, e
conhecer a Issa me fez querer trabalhar com uma pessoa com uma
visão tão clara dessa história. Acho que pela minha experiência apren-
di a seguir minha intuição sobre pessoas, e saber quando dizer sim.

O frio potencializa a atmosfera assustadora da série.


Vê esse fator como essencial para a narrativa? Estar
nesse local frio de verdade é muito melhor do que estar em um
estúdio com gente jogando neve de mentira em você. A realidade
de estar congelando, no meio da natureza e no escuro, claramen-
te passa essa sensação para a tela. E tivemos muitos indígenas
do Alasca e da Groenlândia participando disso, sentimos sua his-
tória, que é central nisso tudo.

Na sua visão, por que o público é fascinado por histó-


rias criminais, de ficção ou true crime? Porque é bom.
Não é tanto sobre o gênero, mas porque é baseado na realidade
de certa forma. Dentro dessas histórias, aqueles relacionamen-
tos são verdadeiros, complexos e às vezes fáceis de se identifi-
car: muitos podem tê-los vivido por aí. O público sente isso, é uma
combinação de cinema e verdade.

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CULTURA CINEMA

LIÇÕES DE EMPATIA
Na comédia dramática Os Rejeitados, um trio de
pessoas muito diferentes entre si descobre que
as agruras da vida atingem a todos — e que
apoiar um ao outro é uma saída graciosa e eficaz

NATAL PECULIAR Os atores Da’Vine Joy Randolph, Paul


Giamatti e Dominic Sessa: solidões e traumas compartilhados

SEACIA PAVAO/FOCUS FEATURES

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GOSTAR do professor Paul Hunham é praticamente impos-


sível. Rabugento, ele exala odores estranhos, tem um afliti-
vo olho de vidro desalinhado, bebe mais do que deveria e
não diminui o ritmo nas aulas para esperar os atrasados. E
estes são muitos: os adolescentes da disciplina de História
Clássica, ministrada por ele, raramente atingem a nota C.
Seu jeitão antipático não incomoda só aos alunos: ele tam-
bém é desprezado pelos demais professores da escola, um
internato nos arredores de Boston, nos Estados Unidos, e pe-
lo diretor que tenta, inutilmente, convencê-lo a não reprovar
filhos de patrocinadores ricaços. Com a popularidade nula,
Hunham nem se surpreende quando é eleito para cuidar de
cinco alunos que vão passar as festas de fim de ano no inter-
nato. Eis a premissa da sensível, graciosa e certeira trama do
filme Os Rejeitados (The Holdovers; Estados Unidos; 2023),
em cartaz nos cinemas — e já tido como o azarão que pro-
mete fazer barulho no Oscar.
Apesar de tantos defeitos, Hunham (um primoroso Paul
Giamatti) é um homem inteligentíssimo e com boas inten-
ções: o professor quer educar seus alunos, muitos deles her-
deiros mimados, para torná-los pessoas decentes e cultas. A
missão louvável, mas inglória, reflete a visão humanista do
diretor e roteirista Alexander Payne. Autor de produções cul-
tuadas e irônicas como Sideways (2004) e Nebraska (2013),
o cineasta americano é conhecido tanto por sua artesania
meticulosa nos bastidores — Os Rejeitados, por exemplo, não
só retrata os anos 1970, como parece ser de fato um filme fei-

2|3
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to naquela década — quanto por seu apreço por heróis do co-


tidiano. São aqueles que, mesmo traumatizados e até sem
simpatia, praticam boas ações sem alarde, ganham pouco re-
conhecimento e demonstram uma resiliência invejável.
Eventualmente, Hunham ficará sozinho na escola gigan-
tesca com apenas um aluno, o rebelde Angus Tully (o es-
treante Dominic Sessa), e a cozinheira Mary (Da’Vine Joy
Randolph, excelente). Cada personagem serve de espelho
para as incertezas da época, marcada pela Guerra do Vietnã
e por intrigas políticas que causaram ansiedade generaliza-
da. O trio de perfis diferentões e solitários lida com desafios
particulares — até que a convivência os leva a baixar a guar-
da entre si. Mary é uma mulher negra e pobre, em luto pela
morte do filho militar no conflito. Tully é um rapaz branco
e privilegiado à primeira vista, mas que esconde tristezas ás-
peras. Hunham também tem sua cota de mágoas a serem
reveladas. As tragédias da vida não discriminam cor, idade
e classe social. Uma bela lição de empatia. ƒ

Raquel Carneiro

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CULTURA LITERATURA

ACERVO MASP
DRAMA SOCIAL Os Retirantes, de Portinari: o pintor traduziu
em imagens a tragédia da seca denunciada por Graciliano

INTÉRPRETE
DO BRASIL
Com a entrada em domínio público da obra de
Graciliano Ramos, o autor que expôs as mazelas
do país com sua escrita sem firulas ganha duas
edições excepcionais DIEGO BRAGA NORTE

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NO DIA 20 de março de 1953, o Brasil perdeu um de seus


maiores escritores: o alagoano Graciliano Ramos. Vitimado
por um câncer de pulmão aos 60 anos, o “velho Graça” dei-
xou uma obra que só ganhou relevo desde então: em roman-
ces como Vidas Secas, o autor usou sua prosa enxuta e de
rigor inabalável para expor mazelas do país, da seca no Nor-
deste à hipocrisia nas relações sociais. Agora, Graciliano
prova mais uma vez que continua vivíssimo. De acordo com
a legislação nacional, a obra de um autor entra em domínio
público no ano seguinte ao aniversário de 70 anos de sua
morte. Logo, a partir deste ano, seus escritos estão livres de
direitos de autorais — algo que simplifica negociações com
herdeiros e barateia a publicação. Sem perder tempo, a edi-
tora Todavia está reeditando o autor com a colaboração de
Thiago Mio Salla, professor da Universidade de São Paulo
que é especialista em sua obra.
Os dois primeiros tomos da empreitada são Angústia, de
1936, e o inédito Os Filhos da Coruja, que sai pela Baião, se-
lo infantojuvenil da editora. Mio Salla, que coordena pesqui-
sas no acervo do autor abrigado no Instituto de Estudos Bra-
sileiros da USP, conta que a descoberta do inédito é recente,
do ano passado. O manuscrito, uma poesia de verso livre,
teve sua autenticidade comprovada pela assinatura do pseu-
dônimo J. Calisto, comum nos textos de início da carreira, e
pela caligrafia — Graciliano só escrevia a mão.
O poema reconta a fábula A Águia e o Mocho, popula-
rizada pelo francês La Fontaine. Abrasileirando a história,

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Graciliano faz men-


ções à seca do Nordes-
te e, nas belas pinturas
que ilustram o volume,
o carcará (ave de rapina
comum no sertão) faz o
papel da águia. Em sua ANGÚSTIA E
versão, ele desloca o pro- OS FILHOS DA CORUJA,
tagonismo do título para de Graciliano Ramos (Todavia/
os filhos da coruja e altera Baião; 320 e 36 páginas; 64,90
também a moral da histó- e 66,90 reais;e 29,90 e 39,90
ria. Sai a figura da “mãe- reais em e-book)
coruja”, ultraprotetora e
sempre presente, e entra uma mensagem de libertação das
asas maternas para a possibilidade de uma vida plena.
O texto é mais uma amostra do talento de Graciliano co-
mo escritor. Assim como no restante de seus livros, o autor
narra e descreve os fatos que julga importantes para a nar-
rativa, mas deixa a explicação e o entendimento com os lei-
tores. A opção não é mera generosidade: é respeitosa com a
inteligência alheia e importante para a qualidade da obra. A
aparente simplicidade de sua linguagem é moldura para en-
redos e temáticas duros e nada simplistas — um universo li-
terário tão dramático e poderoso quanto as imagens criadas
por outro modernista de olhar crítico (e também comunis-
ta), o pintor Candido Portinari, em obras como Os Retiran-
tes (1944). “Graciliano sempre teve essa preocupação de dis-

3|5
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cutir o país, tratar de temas que são complexos nos roman-


ces e livros de memórias”, afirma Mio Salla.
É fato que grandes obras se renovam com o tempo — daí
vem a importância e a perenidade dos cânones. Mas o caso
específico de Angústia é exemplar. Os temas abordados re-
velam-se ainda mais atuais e os locais descritos ganham no-
vo interesse por causa de eventos recentes. O protagonista
Luís Pereira da Silva, jornalista sem fama e com aspirações
literárias, conta em primeira pessoa como se deu a paixão
avassaladora e frustrante por Marina, sua vizinha. O parale-
lo com Dom Casmurro é óbvio e, assim como na obra ma-
chadiana, o narrador não é confiável. Ele fala da desilusão a
partir do seu ponto de vista, descrevendo Marina com des-
prezo e alucinando em alguns momentos; sobretudo, no lon-
go solilóquio final, que di aloga com outro clássico, o tre-
cho final de Ricardo III, de Shakespeare.
Atenciosa, a edição atual traz uma profusão de notas de
rodapé explicando a geografia de Maceió, contextualizando
a importância de prédios históricos, cafés e as mudanças
ocorridas na cidade. O ápice do livro, as páginas eletrizantes
do embate entre Luís e seu rival, o comerciante Julião Tava-
res, acontece no bairro Bebedouro, próximo à Lagoa Mun-
daú. É justamente um dos bairros-fantasma que estão afun-
dando devido à exploração de sal-gema pela empresa Bras-
kem. Há ainda muitas menções ao bairro do Farol, reduto
da elite alagoana nos anos 1930 e hoje também esvaziado.
Além dessa nova visão sobre os cenários, a reedição acena à

4|5
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TODAVIA/DIVULGAÇÃO

RIGOR O autor: ele só escrevia a mão e deixou um poema


inédito para crianças

sensibilidade e ao entendimento de hoje ao destacar o ma-


chismo de Silva. “Estúpida. Lia as notas sociais, casamentos,
batizados, aniversários, coisas deste gênero. Estúpida”, diz o
personagem sobre Marina.
Luís da Silva é um pobretão frustrado, herdeiro de fazen-
deiros falidos e subproduto da aristocracia rural decadente.
Já Julião é um novo-rico das camadas urbanas em ascensão.
Enquanto Luís veste-se mal e mora numa casa com ratos,
Julião está sempre impecável e vive numa mansão. Luís cul-
pa o dinheiro de Julião pela perda da amada, mas deixa es-
capar na narrativa possíveis problemas sexuais. Não conse-
gue consumar uma relação com Marina nem com uma pros-
tituta. Por trás da história de amor interrompida, Graciliano
constrói habilmente todo um ambiente social e psicológico
singular. Para além da perícia com as palavras, afinal, ele é
um intérprete contundente — e necessário — do Brasil. ƒ

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CULTURA MÚSICA

O METALEIRO
MÚLTIPLO
Bruce Dickinson, cantor do Iron Maiden, acaba de
ampliar seu impressionante rol de atividades: além de
cantar, pilotar aviões e lutar esgrima, ele agora é
autor de gibi FELIPE BRANCO CRUZ

CLAUDIO GATTI

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HÁ QUATRO ANOS, quando a pandemia da Covid-19 es-


tourou, Bruce Dickinson se viu na mesma situação de tantas
bandas e mortais ao redor do globo: foi forçado a desacele-
rar, dando uma pausa frustrante na turnê do Iron Maiden.
Ídolo mais hiperativo do heavy metal, o vocalista de 65 anos
também teve de deixar de lado outros dois hobbies que ama-
va, a esgrima e a atuação como piloto de aviões. Longe de
pensar em aposentadoria, Dickinson encontrou uma boa ra-

POLÍMATA
O artista em três atos:
no Brasil para divulgar
sua nova história
em quadrinhos
(à esq., de gorro);
nos anos 1980, como
esgrimista; e na pele
AR EN A

de piloto da aviação
D PA /A LA M Y/ FOTO

comercial (abaixo)
ED FO RC E ON E

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zão para não ficar parado: a criação do The Mandrake Pro-


ject, história imaginada por ele dez anos antes do isolamen-
to social chegar, mas que precisou ser engavetada após a
descoberta de um câncer na garganta e na língua.
O audacioso projeto finalizado na pandemia se des-
dobra em uma história em quadrinhos dividida em do-
ze episódios e um disco solo homônimo, o primeiro do
músico em quase vinte anos. A história trata de poder,
abuso e luta por identidade, com pitadas de sexo, vio-
lência e ocultismo. O enredo fala sobre um certo Dr.
Necropolis, suposto gênio que se envolve no projeto em
questão, liderado pelo obscuro Professor Lazarus — e
cujo objetivo é nada menos do que capturar a alma hu-
mana no momento da morte. “O resultado é um disco
solo e uma graphic novel que podem ser consumidas
separadamente, mas que contam histórias relaciona-
das”, diz Dickinson, que falou a VEJA durante viagem
de divulgação ao Brasil.
A escolha do país para o lançamento do gibi, que
chega às bancas em março, não foi aleatória. O músico
considera a América Latina o mercado mais fiel e rentá-
vel do Iron Maiden. Por isso, os dois primeiros shows de
sua turnê solo, em abril, serão no México — e os sete se-
guintes no Brasil. Em dezembro, ele volta ao país, dessa
vez com sua banda famosa, para dois shows em São
Paulo. “O melhor público do Iron Maiden está no Brasil.
Isso é fantástico”, afirma.

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A aposta na graphic novel reforça a aura de polímata —


pessoa que possui inúmeras habilidades — de Dickinson.
Antes de se tornar cantor, ele foi esgrimista profissional e,
nos anos 1980, quase chegou a compor a seleção olímpica
inglesa. Até hoje ele carrega um florete na bagagem para
praticar em meio às turnês. Além de emprestar sua voz de-
moníaco-operística a uma das maiores bandas do heavy
metal, Dickinson também já teve uma segunda profissão.
Apaixonado por aviação, ele aprendeu a pilotar na maturi-
dade e por alguns anos trabalhou como piloto comercial
da Astraeus Airlines. Nos anos seguintes, surpreendeu o
mundo ao pilotar o próprio Boeing do Iron Maiden, o Ed
Force One (que pousou, inclusive, no Brasil). Ele se embre-
nhou ainda na produção da cerveja Trooper, que leva o tí-
tulo de uma das músicas da banda e já vendeu milhões de
latinhas. Entre um trabalho e outro, claro, lançou inúme-
ros álbuns com o Iron Maiden — e três livros. A versatili-
dade também se transformou numa usina de lucros. Atual-
mente, ele faz palestras sobre empreendedorismo e é dono
de uma empresa de manutenção de aviões.
Apesar de tantas frentes, Dickinson não descuida do es-
sencial: zelar pelo legado do Iron Maiden. Após lançar au-
toelogios ruidosos como seus urros no palco, não perde a
chance de cutucar outros gêneros. “Música pop é opcional.
Se você nunca mais ouvir Taylor Swift, nem vai notar. É di-
ferente do heavy metal, que é parte da vida das pessoas”,
diz. O metaleiro múltiplo não brinca em serviço. ƒ

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KEVIN MAZUR/GETTY IMAGES

“ME COMPORTO COMO UM MONGE”


Bruce Dickinson falou sobre suas mil atividades, o amor dos
brasileiros e futebol:

O senhor é piloto, esgrimista e, agora, quadrinista.


Considera-se de fato um polímata? Sou só chato. Fa-
ço tudo isso, mas não ao mesmo tempo. Adoraria ter lançado
esse projeto em 2015, mas descobri o câncer. Na pandemia, a
ideia cresceu e consegui finalizá-la.

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Vai sair também um álbum so-


SOM PESADO
lo, cujos primeiros shows se-
Bruce (à dir.),
rão no Brasil. Qual é a sua rela-
com o Iron
ção com o país? Os brasileiros
Maiden: amor
são enlouquecidos pela nossa músi-
pelos brasileiros
ca. Os shows sempre lotam. Na turnê
— e dica ao Vasco
solo, farei apresentações em lugares
pequenos porque quero que as pes-
soas vejam de perto.

Que cuidados tomou com a


voz após se curar do cân-
cer? Aprendi a ter dias de folga
para descansar. Preparação é fun-
damental para o nível de intensidade dos shows. Me compor-
to como um monge quando não estou cantando.

O mascote Eddie foi adotado pelos torcedores do


Vasco da Gama, mas não impediu o time de quase
ser rebaixado. Que dica daria para o clube? Talvez
ajude escolherem uma nova versão do Eddie, como a de Se-
venth Son ou de Powerslave. Mas não tenho time de futebol, co-
mo o Steve Harris (baixista do Iron). Não entendo como o West
Ham, time dele, pode estar ganhando de 4 a 0 e tomar cinco gols
nos minutos finais. Talvez seja por isso que ele ame o futebol.

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CULTURA VEJA RECOMENDA

FILME
INTRUSO (Foe; Estados Unidos/Austrália/Reino Unido, 2023.
Disponível no Amazon Prime Video)
Em algum canto do interior rural americano, o casal Ju-
nior (Paul Mescal) e Hen (Saoirse Ronan) leva uma vida
pacata em meio à crise ambiental. Vivendo no final do
século XXI, ambos têm um casamento infeliz em uma fa-
zenda isolada, divididos pelos sonhos da mulher e o con-
formismo do homem — problemas para os quais a solu-
ção chega, enfim, com o iminente fim do mundo. Ele é
convocado para testar uma possível ocupação humana

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AMOR ROBÓTICO
Saoirse e Mescal:
romance e
ficção científica

AMAZON PRIME

fora do planeta, enquanto ela deve ficar em casa, conso-


lada por uma réplica robótica do marido. Para a confec-
ção do clone, entretanto, ambos passam por uma espécie
de terapia de casal a fim de ensinar a criatura a ser ho-
mem de carne e osso. Sustentado pelo talento e carisma
dos protagonistas, Intruso dribla comparações a Black
Mirror por seu foco humano, mais dedicado a questionar
convenções provincianas em torno do casamento do que
a especular sobre a inteligência artificial — e se o melo-
drama ocasionalmente peca, as belas paisagens e as ce-
nas românticas não falham.

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SÉRIE
HISTÓRICO CRIMINAL (disponível na Apple TV+)
É tarde da noite quando o telefone toca na central de emer-
gências londrina. Do outro lado da linha, uma mulher que
prefere não se identificar pede para falar com a polícia, ale-
gando que será morta pelo namorado. Desesperada, a anô-
nima revela que o rapaz que a ameaça é responsável por um
assassinato pelo qual outro homem foi preso e condenado.
Protagonizado por Peter Capaldi e Cush Jumbo, e com dois
episódios já disponíveis, o suspense instigante e bem costu-
rado se desenrola em torno do complexo caso antigo, colo-
cando uma investigadora em início de carreira e um vetera-
no determinado a proteger seu nome em rota de colisão.
APPLE TV+

TENSÃO NO AR Peter Capaldi em Histórico Criminal:


investigadores em colisão

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LIVRO
A BIBLIOTECÁRIA DE MEMÓRIAS E OUTRAS HISTÓRIAS
DE DIRTY COMPUTER, de Janelle Monáe (tradução Petê Rissatti;
Morro Branco; 336 págs.; 79,90 reais e 42,40 reais em e-book)
O universo afrofuturista imaginado por Janelle Monáe no
álbum Dirty Computer (2018) é expandido nesse livro de
contos, ambientado em uma realidade distópica sobre um
regime autoritário. Os contundentes textos escritos pela
artista americana, com colaboração de outras autoras, ex-
plora temas como sexualidade e raça — como no conto
que dá título à obra, sobre uma agente responsável pelo
armazenamento de lembranças que passa a questionar a
ordem vigente. ƒ

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CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 a BiBlioteCa Da meia-noite
Matt Haig [1 | 69#] BERTRAND BRASIL

2 é assim Que aCaBa


Colleen Hoover [4 | 121#] GALERA RECORD

3 tuDo é rio
Carla Madeira [3 | 67#] RECORD

4 veritY
Colleen Hoover [9 | 84#] GALERA RECORD

5 antes Que o Café esfrie


Toshikazu Kawaguchi [8 | 8#] VALENTINA

6 é assim Que Começa


Colleen Hoover [5 | 59] GALERA RECORD

7 a revolução Dos BiCHos


George Orwell [10 | 238#] VÁRIAS EDITORAS

8 a emPregaDa
Freida McFadden [0 | 5#] ARQUEIRO

9 a PaCiente silenCiosa
Alex Michaelides [0 | 26#] RECORD

10 o imPulso
Ashley Audrain [0 | 1] PARALELA

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NÃO FICÇÃO
1 aos Prantos no merCaDo
Michelle Zauner [0 | 1] FÓSFORO EDITORA

2 nação DoPamina
Anna Lembke [2 | 25#] VESTÍGIO

3 amigos, amores e aQuela Coisa terrível


Matthew Perry [1 | 7] BEST SELLER

4 em BusCa De mim
Viola Davis [5 | 62#] BEST SELLER

5 Quarto De DesPeJo — Diário De uma favelaDa


Carolina Maria de Jesus [10 | 58#] ÁTICA

6 saPiens: uma Breve História Da HumaniDaDe


Yuval Noah Harari [0 | 352#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

7 BoX BiBlioteCa estoiCa: granDes mestres


Vários autores [9 | 23#] CAMELOT EDITORA

8 mulHeres Que Correm Com os loBos


Clarissa Pinkola Estés [3 | 175#] ROCCO

9 o Diário De anne franK


Anne Frank [0 | 313#] VÁRIAS EDITORAS

10 laDY Killers: assassinas em série


Tori Telfer [8 | 99#] DARKSIDE

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AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Júnior Rostirola [1 | 3#] VÉLOS

2 Café Com Deus Pai: Porções Diárias


De renovação Júnior Rostirola [4 | 41#] VIDA

3 os segreDos Da mente milionária


T. Harv Eker [6 | 444#] SEXTANTE

4 o Homem mais riCo Da BaBilônia


George S. Clason [7 | 150#] HARPERCOLLINS BRASIL

5 HáBitos atômiCos
James Clear [3 | 31#] ALTA BOOKS

6 a PsiCologia finanCeira
Morgan Housel [8 | 19#] HARPERCOLLINS BRASIL

7 Como faZer amigos & influenCiar Pessoas


Dale Carnegie [10 | 112#] SEXTANTE

8 forte
Lisa Bevere [0 | 5#] THOMAS NELSON BRASIL

9 Pai riCo, Pai PoBre


Robert Kiyosaki e Sharon Lechter [0 | 115#] ALTA BOOKS

10 essenCialismo
Greg McKeown [0 | 26#] SEXTANTE/GMT

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INFANTOJUVENIL
1 BoX trilogia Caraval
Stephanie Garber [0 | 1] GUTENBERG

2 Divinos rivais
Rebecca Ross [0 | 1] ALT

3 o PeQueno PrínCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [1 | 400#] VÁRIAS EDITORAS

4 o laDrão De raios
Rick Riordan [0 | 39#] INTRÍNSECA

5 melHor Do Que nos filmes


Lynn Painter [9 | 3#] INTRÍNSECA

6 o CáliCe Dos Deuses


Rick Riordan [0 | 6#] INTRÍNSECA

7 HarrY Potter e a PeDra filosofal


J.K. Rowling [6 | 409#] ROCCO

8 as aventuras De miKe 4 — a origem De roBson


Gabriel Dearo e Manu Digilio [2 | 7] OUTRO PLANETA

9 malala — a menina Que Queria ir Para a esCola


Adriana Carranca [0 | 30#] COMPANHIA DAS LETRINHAS

10 amênDoas
Won-pyung Sohn [0 | 18#] ROCCO

8|9
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[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Travessa, Vozes, Cabedelo: Leitura,
Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila,
Loyola, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim,
Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru:
Leitura, Cascavel: A Página, Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia:
Prime, Um Livro, Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal,
Evangelizar, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Frederico Westphalen: Vitrola, Goiânia:
Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba:
Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Ipatinga:
Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página,
Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina:
A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente,
Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal: Leitura, Niterói: Blooks,
Palmas: Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis: Vozes, Poços de Caldas:
Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Disal, Leitura, Macun
Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho: Leitura, Recife: Disal,
Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Travessa, Rio Claro: Livruz, Rio de
Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci, Odontomedi, SBS, Travessa,
Rio Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, SBS, Santa Maria: Santos,
Santana de Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Leitura, Santos: Loyola, São Bernardo do Campo:
Leitura, São Caetano do Sul: Disal, Livraria da Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página,
Curitiba, São José do Rio Preto: Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba, Leitura, São José
dos Pinhais: Curitiba, São Luís: Hélio Books, Leitura, São Paulo: A Página, B307, Círculo, Cult
Café Livro Música, Curitiba, Disal, Dois Pontos, Drummond, HiperLivros, Leitura,
Livraria da Tarde, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel Brooklin, Santuário, SBS,
Simples, Travessa, Vozes, Vida, WMF Martins Fontes, Serra: Leitura, Sete Lagoas: Leitura,
Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina: Leitura, Uberlândia:
Leitura, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura, Vitória: Leitura, SBS, Vitória da Conquista:
LDM, internet: A Página, Amazon, Americanas.com, Authentic E-commerce, Boa Viagem
E-commerce, Canal dos Livros, Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza, Shoptime,
Sinopsys, Submarino, Travessa, Um Livro, Vanguarda, WMF Martins Fontes

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JOSÉ CASADO

NOVOS CENÁRIOS
O ANO COMEÇOU com um discreto debate partidário sobre o
futuro sem Lula e Jair Bolsonaro. À esquerda e à direita procuram-
se sucessores para os dois políticos brasileiros mais conhecidos,
que atravessaram os últimos seis anos enganando o tempo com
infâmias e intrigas mútuas, para alegria das respectivas torcidas.
Aos 78 anos, Lula está no terceiro governo. Se quiser, poderá
disputar o quarto mandato em 2026. Nessa época, estaria com
81 anos, mesma idade de Joe Biden, que planeja tentar a reelei-
ção em novembro. Por lei, seria sua última chance antes de virar
nonagenário. Já completou 34 anos seguidos no ofício de candi-
dato presidencial do Partido dos Trabalhadores, contados desde
a primeira campanha em 1989.
Dias atrás, num comício em São Paulo, discursou com picar-
dia sobre a voracidade do tempo: “Esse jovem que vos fala quer
viver até 120 anos de idade. Eu peço para Deus todo dia: ‘Se vo-
cê quiser me levar, coloque outro, deixa eu aqui, eu tenho tarefa
aqui, eu tenho muita coisa aqui...’. Eu já vivo com vocês há mais
de cinquenta anos. Tem gente aqui que era meu colega. Eu fui
colega da filha dele, agora sou colega do neto, vou ser colega
dos bisnetos... Para que me levar? Estou tão quieto aqui, sou tão
bonzinho... Leve alguém, mas deixa eu aqui”.

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Jair Bolsonaro, seu antagonista predileto, é uma década


mais jovem. Surfando com habilidade na galáxia das redes
sociais, conseguiu realizar a proeza de tornar-se tão popular
quanto Lula em apenas cinco anos. Mas, fascinado com o
próprio espetáculo de autoritarismo presidencial, acabou
por envenenar seu futuro. Ficou inelegível até 2030 e agora
vagueia na planície, banido dos páreos eleitorais. Pode pen-
sar no retorno aos 75 anos de idade, porém, a rota é longa e
tortuosa. Inclui sete anos no ostracismo e ainda vai depen-
der do êxito na defesa em tribunais, na dezena e meia de
processos pendentes.
Marginalizado na política, Bolsonaro se ressente da perda
da perspectiva de poder e dos efeitos da busca do seu substi-
tuto pelas frações da direita aliadas nas eleições de 2018 e de
2022. Fracassou na reeleição, mas obteve 58,2 milhões de
votos (49,1% do total). Nos oito meses seguintes viu-se con-
denado em dois julgamentos da Justiça Eleitoral sem qual-
quer manifestação de solidariedade nem mesmo do taliba-
nismo tropical e carnavalesco, sua principal obra política.
Sujeito oculto na barbárie do 8/1, agora transparece com
imagem radioativa: oito em cada dez dos seus eleitores desa-
provam a incitação à insurreição, mostra a pesquisa Genial/
Quaest da semana passada. Está nostálgico das multidões:
“Jogaram um balde de água fria nos movimentos de rua”,
admitiu ao repórter Leandro Magalhães no veraneio em
Angra dos Reis (RJ). “Estão manietados e pouco ou nada
pode se fazer (…). Olha o meu caso, meu Deus do céu!”.

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“Partidos já debatem o
futuro da política sem Lula
e Jair Bolsonaro nas urnas”
Bolsonaro começou a ficar isolado no dia seguinte à der-
rota, quando partidos agrupados no Centrão correram para
ajudar o vitorioso. Queriam garantir que, enquanto a esquer-
da estiver no poder, a direita terá o governo em casa, e,
quando a direita voltar a subir a rampa do Planalto, o gover-
no continuará em casa.
O pacto de Lula com essa coalizão dominante no Congres-
so assegurou-lhe estabilidade no primeiro ano de governo. Ela
ficará exposta à natural corrosão nas eleições para prefeituras,
no segundo semestre, e tem chance de sobrevida até a pré-tem-
porada da eleição presidencial na metade de 2025. A partir
daí, intensifica-se a guerra política pelo controle do governo e
pelo poder de decisão sobre o destino dos recursos do Estado.
PT e aliados começaram a antever o horizonte sem Lula
— o “day after”, na definição do ministro Fernando Had-
dad, da Fazenda, ao repórter Alvaro Gribel. Por décadas,
ele tem sido “uma muleta” eleitoral para esse condomínio
partidário, exercendo um “poder moderador” na disputa
entre múltiplas frações de esquerda, reconhece Arlindo
Chinaglia, ex-presidente da Câmara.

3|4
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A aflição com o futuro permeia o debate e tensiona a re-


lação entre petistas. Ela gravita em torno da seguinte ques-
tão: sem Lula, o PT conseguirá ficar unido? A escassez de
alternativas não deixa muita margem para otimismo. Al-
guns dirigentes, como Valter Pomar, acham urgente a reso-
lução de impasses internos. Num cenário sem Lula e com as
atuais divergências, argumenta, “nosso partido corre sério
risco de fragmentação”. Faltam definições elementares,
complementa Haddad. Uma delas é a proposta do PT para o
desenvolvimento do país. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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