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REFORMA
AGRÁRIA
Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA

Volume 34 - Nº 1 • JAN / JUN - 2007 • ISSN - 0102-1184


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REFORMA
AGRÁRIA
Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA

Volume 34 - Nº 1 • JAN / JUN - 2007 • ISSN - 0102-1184


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A Associação Brasileira de Reforma Agrária é uma entidade civil, não governamental, sem fins
lucrativos, organizada para ajudar a promover a realização do processo agro-reformista no Brasil,
bem como contribuir para incrementar o padrão de vida da população rural, melhorando a pro-
dução, a distribuição dos alimentos e produtos agrícolas, aumentando as possibilidades de emprego,
contendo a deterioração ambiental e assegurado o respeito aos direitos fundamentais do homem.

D IRETORIA E XECUTIVA G ESTÃO C ONSELHO E DITORIAL DA


2007/2010 REVISTA "R EFORMA A GRÁRIA "
P RESIDENTE : José Juliano de Carvalho Filho
Plínio de Arruda Sampaio
(Presidente do Conselho e Editor da revista)
V ICE - PRESIDENTE :
Sônia Novaes Guimarães Moraes Ariovaldo Umbelino de Oliveira
Brancolina Ferreira
D IRETORES : Bernardo Mançano Fernandes
Ariovaldo Umbelino de Oliveira Fernando Gaiger da Silveira
José Juliano de Carvalho Filho Guilherme da Costa Delgado
Carlos Frederico Marés
Osvaldo Russo Leonam Bueno Pereira
José Vaz Parente Leonilde Sérvolo de Medeiros
Osvaldo Aly Junior Maria de Nazareth Baudel Wanderley
Abdias Villar Marcelo Goulart
Sabrina Diniz Osvaldo Aly Junior
Marcelo Resende Oriowaldo Queda
Maria da Graça Amorim Pedro Ramos
Vânia P. Araújo Raimundo Pires Silva
Cléia Anice da Mota Porto
Aparecido Bispo Raquel Santos Sant'Ana
Pedro Christóffoli Regina Petti
Sergio Pereira Leite
C ONSELHO D ELIBERATIVO Sonia P. P. Bergamasco
T ITULARES : Sonia Novaes Moraes
João Pedro Stédile Tamás Szmrecsányi
Manoel dos Santos Walter Belik
Marcelo Pedroso Goulart Vera Botta
Raquel Santos Sant'Ana
Bruno Maranhão
Marcos Rochinski DIAGRAMAÇÃO:
Élio Neves Liber Comunicação
Maria Emília L. Pacheco
Raimundo João Amorim
Leonilde Sérvolo de Medeiros É livre a transcrição de matéria original
Regina Bruno publicada nesta revista, desde que citada a
Adalberto Floriano Greco Martins
Gerson Teixeira fonte. A ABRA não se responsabiliza por
Bernardo Mançano Fernandes conceitos emitidos em artigos assinados.
Guilherme C. Delgado
Luiz Norder
Darci Frigo
José Antônio Peres Gediel E NDEREÇO :
Sérgio Sauer Rua Barão de Itapetininga, 255, sl. 506,
Sérgio Pereira Leite República / São Paulo - SP
S UPLENTES : T EL .: (11) 3214-1414
Paulo Alentejano SÍTIO : www.reformaagraria.org
Carlos Mielitz E - MAIL : abrareformaagraria@uol.com.br
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Sumário
Editorial
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO/ JOSÉ JULIANO DE CARVALHO FILHO ....................... 5

Homenagem
Homenagem a Hugo Silveira Herédia
JOSÉ VAZ PARENTE ................................................................................................ 13

Ensaios e Debates
Reforma Agrária a Chile
JACQUES CHONCHOL .............................................................................................. 19

Terra e trabalho na história recente (1930-1985)


da agroindústria canavieira do Brasil
PEDRO RAMOS ........................................................................................................ 35

A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento


LEONAM BUENO PEREIRA ...................................................................................... 67

Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e


territorialização camponesa em São Paulo
LARISSA MIES BOMBARDI ....................................................................................... 91

OCB e Ditadura: um projeto cristalizado pelo direito


EDUARDO FARIA SILVA ......................................................................................... 119

O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP: novos


ânimos no cenário dos movimentos sociais da região de Ribeirão Preto
ROSEMEIRE APARECIDA SCOPINHO / DANIELA RIBEIRO DE OLIVEIRA
JANAÍNA RIBEIRO DE RESENDE / JÚLIA AMORIM SANTOS ................................. 149
Discurso e Resistência na Luta pela Terra
SÔNIA MARIA RIBEIRO DE SOUZA / ANTONIO THOMAZ JUNIOR ........................ 177
Muito além das carabinas: resistência e luta pela terra
nas trincheiras da imprensa - a experiência histórica
dos posseiros de Formoso e Trombas-GO (1950-1964)
CARLOS LEANDRO ESTEVES ................................................................................. 197
O discurso da magistratura fluminense nos conflitos de terra no Rio de Janeiro
MARIANA TROTTA DALLALANA QUINTANS .......................................................... 217
Violência judicial contra os movimentos populares
de luta pelo acesso a terra no Paraná
JOÃO MARCELO BORELLI ..................................................................................... 229

Documento
Manifesto: Tanques Cheios às custas de Barrigas Vazias:
A Expansão da Indústria da Cana na América Latina ............................... 259
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Editorial

Antes da apresentação deste número da revista, a ABRA, como o fez por


ocasião de lançamentos anteriores, vem a público para, novamente, denun-
ciar a situação vivida no campo e informar sobre sua contribuição ao debate
referente à questão agrária atual.

Escrever o editorial da nossa revista no mês de abril - Abril Vermelho - forço-


samente, suscita várias lembranças. Massacre de Eldorado Carajás. Assassinato
encomendado da Irmã Dorothy Stang. Massacre em Felisburgo-MG. Assassi-
natos de fiscais do Ministério do Trabalho em Unaí-MG. Mortes por fadiga dos
trabalhadores da cana-de-açúcar em São Paulo. Impunidade dos mandantes.
Permanência de famílias acampadas na beira das estradas e muitos outros fatos
que comprovam a recorrência da injustiça e da violência no campo.

Também traz à tona a fraqueza covarde e inoperância do governo na imple-


mentação da reforma agrária. A prestidigitação dos números sobre o desem-
penho da política agrária. O apoio ao "agronegócio". A defesa da monocul-
tura. O desprezo pela segurança alimentar de agricultores assentados e fami-
liares. A adesão do governo ao modelo atual de desenvolvimento rural - carac-
terizado pelo aumento da taxa de exploração da mão-de-obra, pela exclusão,
pela violência, pela concentração fundiária e pela degradação ambiental.

Além de tudo isto, cabe registrar a total ausência de mudanças na área


agrária do governo para o próximo mandato. No primeiro houve o esvazia-
mento da reforma agrária, enquanto que, para o segundo, pode-se esperar
"más de lo mismo" - expressão cunhada pelo povo argentino em plena crise
provocada pelas políticas neoliberais e apropriada para descrever a situação
brasileira. Quais os planos do governo para os próximos quatro anos? Afora
as generalidades que constam dos documentos oficiais, até agora, não há
compromissos firmados. Haverá um novo PNRA?

E ainda se pergunta por que os trabalhadores e camponeses promovem o


"Abril Vermelho", "O Grito da Terra", "O Grito dos Excluídos" e outras mani-
festações que certamente virão!

Não podemos esquecer que o "vermelho" que qualifica a palavra "abril" é


o vermelho da luta e, principalmente, do sangue derramado por trabalhado-
res e outros lutadores. Estes sim, heróis do povo e da Nação.

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Editorial

A ABRA torna público o seu apoio aos companheiros que se manifestam e,


com eles, denuncia a situação vivida no campo brasileiro.

O segundo destaque refere-se ao debate atual sobre a Questão Agrária


Brasileira.

Fiel à sua tradição de participar e de proporcionar o debate, a ABRA, através


de um coletivo de pesquisadores, elaborou o documento "Qual é a questão
agrária atual". Esta contribuição, motivada por solicitação da Via Campesina,
tem como destinatários as organizações dos trabalhadores rurais e pequenos
agricultores, o governo da república e a sociedade como um todo.

O documento, hoje já nas mãos das organizações dos trabalhadores, será apre-
sentado e discutido no "Encontro Terra e Cidadania", em Curitiba, patrocinado pelo
O Instituto de Terras Cartografia e Geociência ITCG do Paraná e pela ABRA. Este
evento ocorrerá no próximo mês de maio e terá um dos dias reservado à apresen-
tação e discussão do trabalho. Estão previstas: uma mesa a respeito da temática
geral com a presença de lideranças da ABRA e dos movimentos so-ciais, e três ofic-
inas sobre os principais eixos do documento: Análise do modelo agrícola brasileiro
e políticas; Obtenção e redistribuição de terras para reforma agrária;
Desenvolvimento dos assentamentos. Por fim, haverá sessão dedicada ao tema
Expansão do agronegócio e a ameaça à soberania alimentar.

Desta forma a nossa Associação, em parceria com o ITCG, cumpre a


função de aproximar pesquisadores e movimentos sociais na busca da ação
conjunta para enfrentamento da questão agrária.

Esta edição da Revista Reforma Agrária está dividida em três partes.

A seção homenagem é dedicada à memória de Hugo Silveira Herédia, nosso


grande companheiro de diretoria e de todas as lutas da ABRA. Herédia foi "um
apaixonado e intransigente defensor da luta pela reforma agrária e pela efeti-
vação dos direitos fundamentais dos trabalhadores do campo". Será sempre
referência para todos nós.

A seção Ensaios e Debates está composta pelos seguintes artigos:

• A Reforma Agrária Chilena, de Jacques Chonchol. O autor é


referência fundamental para o estudo da questão agrária na
América Latina e participou da implementação da reforma em
seu país. O trabalho analisa a importante experiência chilena.

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Editorial

O texto abarca a ques-tão em vários governos - Jorge Alexandri,


Eduardo Frei e Salvador Al-lende - até a ação destruidora do
golpe militar. Discute medidas, conseqüências e resultados.

• Terra e Trabalho na História Recente (1930-1985) da Agroin-


dústria Canavieira do Brasil, de Pedro Ramos. O artigo ajuda a
entender a atualíssima questão da cana-de-açúcar no Brasil.
Especificamente, o ensaio aborda "as relações entre a utilização
da terra e do trabalho que são subjacentes à estrutura de produ-
ção da agroindústria canavieira do Brasil, tomando os estados
de Pernambuco e de São Paulo como referências". Destaca as
mudanças e continuidades ocorridas. "A maior mudança se deu
na categoria de trabalho utilizado, e a maior continuidade está
relacionada à es-trutura fundiária herdada do passado, ou seja,
antes de 1930".

• A Questão Agrária: mercado de terras, de trabalho e o desen-


volvimento, de Leonam Bueno Pereira. O texto "trata da articu-
lação entre a realidade agrária e o processo histórico de forma-
ção da economia brasileira, de forma a problematizar as rela-
ções entre o desenvolvimento e os seus entraves". A hipótese ado-
tada "parte da suposição de que a 'absolutização' da propriedade
privada da terra é o feito histórico que marca, desde o seu surgi-
mento, a sociedade brasileira e coloca um estreito espaço para a
ação estatal intervir na questão agrária". O texto destaca a con-
tribuição dos autores clássicos da questão agrária brasileira.

• Reforma Agrária e Campesinato: luta de classes e territoriali-


zação campo-nesa em São Paulo, de Larissa Mies Bombardi. O
artigo apresenta uma re-flexão em três direções: a primeira
aborda a Lei de Revisão Agrária do Es-tado de São Paulo (Lei nº
5994 de 30/12/ 1960) e sua importância histórica; a segunda,
enfoca as trajetórias dos assentamentos então implementados;
e a terceira, resgata as duas anteriores, propondo uma interpre-
tação para o significado da própria reforma agrária, não ape-
nas daquela relacionada à Lei de Revisão Agrária, mas a da re-
forma agrária em si. A autora trabalha com a perspectiva do
campesinato enquanto classe social, considera, portanto, a
ação camponesa reivindicatória, como uma ação de classe. É
importante realçar a importância deste trabalho como resgate e
registro desta experiência de reforma.

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• OCB e Ditadura: um projeto cristalizado pelo direito, de


Eduardo Faria Silva. O texto tem com objetivo "investigar as ra-
zões que levaram à unicidade de representação jurídica, políti-
ca, social e cultural do cooperativismo nacional pela Organi-
zação das Cooperativas Brasileiras - OCB, garantida, no plano
formal, pela publicação da Lei n.º 5.764, de 16 de dezembro
de 1971, e seus desdobramentos até o momento". Nas conclu-
sões, o autor afirma que "resgatar o rumo do cooperativismo
nacional é fundamental para construir-se uma proposta factível
de cooperação coletiva e autogestionária. Libertar-se da neces-
sidade de autorização para constituição de sociedade coopera-
tiva e autodeterminar-se quanto ao interesse de filiação é livrar-
se dos grilhões impostos pelas classes dominantes e usufruir a
alforria que é elemento constitutivo da proposta do autêntico
cooperativismo".

• O Processo Organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


novos ânimos ao cenário dos movimentos sociais da região de
Ribeirão Preto, de Ro-semeire Aparecida Scopinho, Daniela
Ribeiro de Oliveira, Janaina Ribeiro Resende e Júlia Amorim
Santos. Este artigo trás uma seção com subtítulo bastante signi-
ficativo: "Sepé Tiaraju: a reforma agrária abrindo outras picadas
no canavial". Ou seja, relata a importante experiência (MST e
Incra-SP) da implantação de um Projeto de Desenvolvimento
Sustentável - PDS em plena área de domínio da agroindústria
da cana-de-açúcar. As autoras destacam dois aspectos para
discussão: a constituição de "um grupo de apoio formado por
sujeitos e organizações sociais que contribuíram com o MST na
sustentação da iniciativa da ocupação e no processo organiza-
tivo dos trabalhadores, e as expectativas dos trabalhadores em
relação ao assentamento, que vão além de ter a propriedade de
um lote de terra".

• Discurso e Resistência na Luta pela Terra, de Sônia Maria


Ribeiro de Souza e Antonio Thomaz Junior. O texto traça a tra-
jetória do MST e seu discurso veiculado pelo Jornal dos Traba-
lhadores Sem terra (JST). O objetivo dos autores "é demonstrar
o contexto em que Movimento e seu discurso surgem e como a
apropriação feita pela imprensa ajuda a construir sua identi-
dade associada à criminalidade em função da sua 'radicali-
dade'". Ao final, destaca-se a afirmativa: "o Movimento nasceu

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das contradições sociais, isto é, a partir de uma estrutura socie-


tária em que a grilagem de terras, a exploração do trabalho, da
violência, dos assassinatos no campo, das desigualdades e in-
justiças sociais são geradas pelo sistema metabólico do capital".

• Muito Além das Carabinas: resistência e luta pela terra nas


trincheiras da imprensa - A experiência histórica dos posseiros de
Formoso e Trombas-GO, de Carlos Leandro Esteves. Este ar-tigo
apresenta e analisa o episódio de luta pela terra conhecido como
"A revolta Camponesa de Formoso e Trombas". Episódio, cuja
história é "marcada pela obstinação com que famílias de posseiros
se organizaram para repelir a violência de jagunços a mando de
grileiros e fazendeiros locais". O autor também realça outra acir-
rada disputa que lá ocorreu, esta no terreno da representação com
a imprensa aparecendo como palco privilegiado dos conflitos.

• O discurso da Magistratura Fluminense nos Conflitos de Terra


no Rio de Janeiro, de Mariana Trotta Dallalana Quintas. O tra-
balho "investiga o discurso da magistratura fluminense nos con-
flitos possessórios envolvendo o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST. Através da analise de fragmentos de
decisões emblemáticas e do balanço dos julgados realizados no
estado do Rio de Janeiro busca identificar o discurso jurídico
hegemônico e suas possíveis rupturas. Dessa forma, propõe-se
analisar a potencialidade do campo jurídico na resolução dos
conflitos relativos à questão da terra no território fluminense". Ao
final conclui que os movimentos que lutam pelo acesso à terra
não têm encontrado no judiciário um campo propício para a
concretização de suas reivindicações.

• Violência Judicial Contra os Movimentos Populares de Luta


pelo Acesso à Terra no Paraná, de João Marcelo Borelli. Este
estudo trata da importante questão da parcialidade da justiça
contra os movimentos sociais. O autor afirma: "o que se pre-
tende invocar ao debate é a existência de decisões judiciais
exaradas por órgãos do judiciário paranaense que em seu con-
teúdo comportam importantes elementos de inconstitucionali-
dade, ilegalidade ou ilicitude, fatos estes que corroboram a
existência de uma violência judicial que se realiza mediante atos
parciais e que denotam uma referência de classe, no que a
'instrumentalização' dos meios representa uma das mais eficazes

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formas de garantia da prevalência de uma determinada classe


social sobre a sua opositora".

Por fim, na seção Documentos, a Revista transcreve o manifesto


Tanques Cheios: às custas de Barrigas Vazias, resultante do sem-
inário "A Expansão da Indústria da Cana na América Latina".
Este encontro foi promovido pela Rede Social, CPT, Grito dos
Excluídos, Via Campesina e Serviço Pastoral dos Migrantes, em
São Paulo, no final de fevereiro.

Abril de 2007.

Plínio de Arruda Sampaio


Presidente da ABRA

José Juliano de Carvalho Filho


Editor

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Documento
QUAL É A QUESTÃO AGRÁRIA ATUAL?
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APRESENTAÇÃO

ste documento foi elaborado pela ABRA, através de um coletivo de

E pesquisadores da questão agrária, por solicitação da Via Campe-


sina e tem como destinatários as organizações dos trabalhadores
rurais e pequenos agricultores, o governo da república e a sociedade
como um todo.

Trata-se de um levantamento da situação do problema agrário brasi-


leiro, apresentando análise crítica e propostas.

Para a exata compreensão do trabalho realizado, é preciso atentar pa-


ra a natureza da sociedade que José Gomes da Silva, Carlos Lorena,
Plínio Moraes e mais um conjunto de estudiosos do nosso problema
agrário fundaram e mantiveram, contra vento e maré, durante os anos
de chumbo da ditadura: a ABRA é uma entidade da sociedade civil que
congrega cidadãos e cidadãs interessados na solução de um problema
crucial para a transição do Brasil-colônia ao Brasil-Nação.

Enquanto entidade da sociedade civil, a fala da ABRA dirige-se tanto


àquela parcela da população que se mostra sensível ao drama do cam-
po brasileiro como àquela outra, que se preocupa com o desenvolvi-
mento do país, mas ainda não tomou consciência da importância de re-
solver a questão agrária. O discurso, portanto, é o de uma consciência
crítica, subordinada unicamente ao compromisso ético de seus autores
com a verdade que conseguem descobrir a partir das evidências as
quais tiveram acesso.

A importância da terra para o desenvolvimento do país não pode ser


minimizada, pois a extrema concentração da propriedade fundiária cons-
titui o fundamento, e ao mesmo tempo a condição, da reprodução do
atual modelo agrícola do país.

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A impossibilidade de descartar abruptamente esse modelo, em razão


da sua incidência no abastecimento alimentar e na receita de exportação,
limita a busca de alternativas de desconcentração. Para colar na realida-
de, portanto, a analise não pode abstrair o fato de que, enquanto as for-
ças populares não reunirem condições suficientes para romper a política
de ajuste estrutural, o Brasil não poderá prescindir do agronegócio.

Mas, obviamente, ele terá que ser controlado pelo Estado brasileiro,
sob pena de agravamento da já muito grave situação do campo. O Es-
tado dispõe de instrumentos para esse fim, mas não terá condições de
utilizá-los enquanto não houver pressão popular suficientemente forte
para vencer as resistências do "status quo". Logo, a estratégia de um go-
verno comprometido com os interesses populares consiste em fortalecer
o campesinato, a fim de reforçar o pólo camponês da contradição bási-
ca do meio rural.

Concretamente isto significa atuar em dois eixos paralelos: promover


uma efetiva desconcentração da propriedade da terra e transferir recur-
sos públicos em volume suficiente para aumentar a produtividade dos
assentados. Portanto, de um lado, desapropriação de terras, o que de-
mandará modificações, tanto na legislação como no órgão executor da
reforma; de outro lado, assistência técnica, capacitação, crédito, facili-
dades de comercialização, zoneamento e planejamento da produção.

Plínio de Arruda Sampaio


Presidente da ABRA

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Associação Brasileira de Reforma Agrária

QUAL É A QUESTÃO AGRÁRIA ATUAL?

I. APRESENTAÇÃO

1. O futuro e destino dos trabalhadores e agricultores familiares, em


particular, e da sociedade em geral no Brasil estão comprometidos em
suas condições de vida, emprego e desenvolvimento humano pelos pesa-
dos custos sociais impostos pelo sistema agrário dominante - o chamado
agronegócio. Este, pelas relações fundiárias e de trabalho que gera e
reproduz, concentra riqueza, degrada o meio ambiente e restringe cada
vez mais o mercado de trabalho. Como conseqüência, impõem-se estru-
turas de produção e distribuição de renda no meio rural fortemente restri-
tivas ao mundo do trabalho e à economia familiar. Tudo isto ocorre ao ar-
repio do próprio conceito constitucional da terra, definido como um bem
social, sujeito a critérios econômicos sociais e ambientais legitimadores de
direito de propriedade fundiária (Art. 186-CF).

2. Essas condições adversas são fatores de pauperização e exclusão dos


trabalhadores e agricultores familiares dos frutos da modernização da agri-
cultura, constituindo no presente o cerne da Questão Agrária brasileira.

3. Fiel às suas origens e intérprete do pensamento sintonizado com o


mundo do trabalho e com a luta pela terra, a Associação Brasileira de Re-
forma Agrária - ABRA, entidade civil que desde 1967 realiza estudos, pes-
quisas e reflexão comprometidos com o tema, dirige-se à Sociedade Civil
e às instituições públicas mais diretamente envolvidas com as relações
agrárias para legitimamente identificar os termos da atual Questão Agrária
brasileira. Ao assim se pronunciar, a ABRA sente-se responsável por indicar
caminhos para o agir político, coerentes com a Reforma Agrária e o Desen-
volvimento Agrário, na perspectiva daqueles que têm sido historicamente
excluídos do progresso técnico no setor rural brasileiro.

16 ¦ ABRA - REFORMA AGRÁRIA


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Qual a Questão Agrária atual?

4. Terra e trabalho - significando a primeira a própria dotação dos


recursos ambientais providos pelos dons da natureza, à disposição inter-
geracional do povo brasileiro, e o segundo, a dotação natural de capaci-
dades humanas para realizar, mediante esforço consciente a obtenção dos
meios para ganhar a vida - não podem ser tratados como se fossem mer-
cadorias como outras quaisquer. Tratá-los como coisas à disposição da
estratégia do grande capital e da propriedade fundiária, fortemente sub-
sidiados pelo Estado, produz uma sociedade agrária fortemente desigual
e um meio ambiente altamente danificado - sistemas hídricos degradados,
biodiversidade perdida, flora e fauna impunemente devastadas.

5. Entende a ABRA que a sociedade política precisa humanizar as forças


de mercado da autodenominada economia do agronegócio. Ao mesmo
tempo, o Estado precisa prover condições de igualdade de capacidades,
para que os trabalhadores organizados constituam nos assentamentos da
reforma agrária condições para desenvolvimento material, em bases ocu-
pacionais, distributivas e ambientais substancialmente distintas do modelo
agrário dominante. Há certamente outros grupos sociais igualmente cre-
dores de políticas em prol da igualdade - assalariados rurais, povos da flo-
resta, quilombos, faxinais, ribeirinhos, pequenos proprietários etc. -, todos
vitimados pelo processo anti-social da concentração fundiária.

6. A direção estratégica das mudanças com as quais nos identificamos


são rumos éticos para a política que não podemos abandonar, sob pena
de perda de sentido da vida em sociedade. As condições objetivas para
fazer essas mudanças dependem de vários outros fatores, que certamente
não prescindem de diretriz estratégica.

7. A proposta específica de enfrentamento da Questão Agrária que ora


oferecemos à consideração da sociedade e ao Estado, sem prejuízo de
toda uma gama de propostas complementares, compreende basicamente
duas linhas de ação da política agrária:

1) ações para obtenção e redistribuição de terras aos traba-


lhadores sem terra, demandantes por reforma agrária, em
ritmo substancialmente mais forte que o verificado no último
quadriênio; 2) fomento técnico-produtivo e comercial aos
assentamentos de reforma agrária já constituídos, de sorte a
viabilizar seu desenvolvimento em bases de produtividade
social distintas do modelo agrário convencional. Esta pro-
posta é detalhada na seção V deste texto como uma respos-
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

ta à "Questão Agrária" e à crítica ao sistema agrário domi-


nante, de que tratamos nas seções precedentes (II e III).

II. CRÍTICA AO SISTEMA AGRÁRIO DOMINANTE

8. A modernização técnica da agropecuária brasileira, sem mudanças


nas relações fundiárias e de trabalho, de longa data herdadas da ordem
agrária estruturada no século XIX, são a principal construção do regime
militar no sistema agrário brasileiro.

9. Esse projeto da chamada "modernização conservadora" experimentou cri-


ses de crescimento e legitimidade, principalmente com a emergência da nova
ordem constitucional de 1988; a crise fiscal do Estado nos anos 90 é a onda
do livre-comércio que então se forjou. Mas o projeto de modernização técni-
ca sem reformas sociais retornou no início do segundo governo FHC, com ca-
racterísticas estruturais muito parecidas à época do regime militar, acrescido
da novidade de uma maior inserção externa; e aí permanece até hoje.

10. A essência da modernização técnica sem reformas é uma aliança tá-


cita do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária,
sob generoso patrocínio fiscal, financeiro e patrimonial do Estado, promo-
vendo crescimento integrado dos mercados de agronegócios e concentra-
ção da riqueza fundiária.

11. Do ponto de vista do sistema econômico, o agronegócio é um con-


junto de empresas que concentra grande poder financeiro e controla o
desenvolvimento de tecnologias para a agricultura, pecuária e indústria,
induzindo a população ao consumo de alimentos industrializados. Nas
últimas décadas tem contribuído para a baixa qualidade da alimentação,
principalmente pela expansão das monoculturas com uso cada vez maior
de agrotóxicos e recentemente na produção de alimentos transgênicos.

12. Por seu turno, do ponto de vista das relações sociais agrárias, o agro-
negócio também é um conjunto de problemas para o País. Por causa de sua
lógica concentradora de terras, de tecnologia e de riquezas associada às ques-
tões ambientais, gera poluição, destruição de florestas e uso indevido da água
para irrigação. Seu caráter concentrador tem expropriado milhares de famílias
agricultoras e intensificado o desemprego no campo. Mesmo ali onde cria em-
pregos, intensifica a superexploração dos trabalhadores assalariados, criando
tensão social e aumentando o nível de enfermidade no trabalho.
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Qual a Questão Agrária atual?

13. Entre 1967 e 1978, os latifúndios no Brasil ampliaram sua área em


69.939.589 ha e as pequenas propriedades perderam 7.399.875 ha e o
Índice de Gini passou de 0,836 para 0,854. Nem mesmo o crescimento
da luta pela terra na década 1980 fez com que os dados de 1992 conti-
nuassem a revelar o caráter concentrador da terra no Brasil. Havia no Brasil
3.114.898 imóveis rurais e, entre eles, 43.956 imóveis (2,4%), com área
acima de 1.000 hectares, ocupando 165.756.665 hectares (50%). Dez
anos depois, em 2003, os números permitem verificar novas alterações no
processo de concentração, pois as grandes propriedades, que represen-
tavam 1,6% dos imóveis (69.123), ocupavam 43,7% (183.463.319 ha)
das terras, enquanto isso, as pequenas propriedades que representavam
85,2% dos imóveis (3.611.429), ocupavam apenas 20,1% da área.

14. É necessário lembrar, também, que o Brasil possui uma área terri-
torial de 850 milhões de hectares, dos quais as Unidades de Conservação
ocupavam, em 2003, cerca de 102 milhões de hectares; as terras indíge-
nas 129 milhões de hectares; as águas territoriais internas, as áreas
urbanas e as ocupadas por rodovias, outros 30 milhões de hectares. A
área total de imóveis cadastrados no INCRA chega a 420 milhões de
hectares. Além disso, cerca de 170 milhões de hectares são constituídos
por posses irregulares, em terras devolutas cercadas, ilegalmente, por
grandes proprietários, e 120 milhões de hectares compõem as grandes
propriedades improdutivas, segundo levantamento do INCRA, datado de
2003, realizado de acordo com a Lei nº 8.629/93.

15. Essa caracterização geral do sistema agrário brasileiro da atuali-


dade configurou-se como projeto estruturado de Estado sob a égide do
regime militar. Dessa forma, esse projeto, que se fazia sob condições de
crescimento do emprego e do mercado interno nos seus primórdios (anos
70 e parte dos 80), agora se realiza sob o influxo principal de demanda
externa de "commodities", de relativamente baixo valor específico e altos
custos sociais e ambientais de produção.

16. O agronegócio brasileiro é apresentado pelos meios de comunica-


ção hegemônicos, como expoente de produtividade agrícola, fruto da op-
ção por competitividade/produtividade, em razão da implementação da
modernização conservadora no campo e pela adesão ao conceito de livre
mercado, articulado em nível mundial pelos mercados de "commodities".

17. Ao mesmo tempo, o sistema mediático não consegue explicar nem


relacionar o processo intenso da grilagem de terras, da virtual destruição
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

das florestas naturais e da degradação de sistemas hídricos nacionais - do


velho São Francisco, da Bacia do Paraná, do Pantanal Mato-grossense da
Bacia Amazônica, do Aqüífero Guarani - dentre outros, todos sob perma-
nente controle dos senhores da terra e do capital, que os encaram como
se donos fossem da natureza, acima do bom e do mal.

18. Essa vocação predatória está inscrita visceralmente na história


agrária brasileira, e os meios materiais para realizá-la e notificá-la no
plano jurídico estão em constante transformação para atender a essas
novas dinâmicas econômicas, mas também para alterá-las em resposta à
dinâmica social e política.

19. O inciso XXIII do Art. 5º da Constituição de 1988 estabelece que "a


propriedade atenderá sua função social", definindo a seguir no art. 186:

"A função social é cumprida quando a propriedade rural


atende simultaneamente, segundo critérios e graus estabele -
cidos em lei, os seguintes critérios:
I - aproveitamento racional e adequado;
I I - u t iliz a ç ã o a d e q u a d a d o s r e c u r s o s m a t e r ia is d is p o n ív e is e
preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de
trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores."

20. A conceituação constitucional define a terra como um bem social,


sujeito a uma responsabilidade público-privada, inscrita em lei, mediante
a qual se legitima o direito de propriedade.

21. Infelizmente essa concepção do direito constitucional é vítima de


uma orquestrada obstrução dos poderes de Estado, das mídias e dos for-
madores de opinião em geral, que continuam a operar e disseminar o
princípio da "terra-mercadoria", oriunda da ultraconservadora Lei de Terras
de 1850. Mesmo considerando a Constituição Federal um retrocesso em
relação ao Estatuto da Terra de 1964, a realização da Reforma Agrária é
possível, se houver vontade política.

22. O Poder Executivo, que detém competência para cumprir e fazer


cumprir as leis que regulamentam o art. 186 da Constituição Federal, pou-
co esforço dedica à fiscalização fundiária, tendo no governo atual se eximi-
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Qual a Questão Agrária atual?

do completamente da função da tributação do ITR (Imposto Territorial Ru-


ral), passando-o aos municípios. Outro débito notório no cumprimento da
função social é a não atualização - há mais de 30 anos - dos índices de
produtividade que permitiriam aplicar com devido rigor o único item regu-
lamentado do art. 186 - "aproveitamento racional e adequado" da terra.

23. Os demais tópicos do Art. 186 por não terem sido objeto de regu-
lamentação pelo Congresso Nacional, por ocasião da edição da Lei n.º
8.629/93, são até hoje considerados pelo Judiciário como insuscetíveis de
justificar desapropriações. Mesmo quando a polícia desvenda trabalho
escravo no imóvel rural, identifica queimadas clandestinas, cultivo de dro-
gas proibidas ou qualquer outro ilícito no imóvel rural, este não pode ser
desapropriado ou expropriado para fins de reforma agrária, alegada-
mente porque não há lei que o autorize.

24. O sistema agrário dominante precisa também ser avaliado por sua
capacidade de absorção da População Economicamente Ativa (PEA) da zo-
na rural tradicional e dos pequenos municípios (com até 20.000 habitantes),
cuja dinâmica econômica depende fortemente do setor primário. As obser-
vações estatísticas nacionais, a exemplo das PNADs, revelam, ano a ano,
queda da PEA rural, não obstante crescimento do Produto do Agronegócio.

25. A falta de política distributiva efetiva alimenta a violência no campo


e contribui para o agravamento da questão social. Além da macabra roti-
na das mortes e dos desmandos do latifúndio e (ou) "agronegócio", acon-
tecimentos em Unaí, Felisburgo, Ribeirão Preto e Anapu, tornaram-se re-
presentativos do clima e das formas de violência vigentes no meio rural.
Como bem expressa Oliveira: "Qual a diferença entre o proprietário de
terra que comandou friamente os assassinatos de Sem-Terras de Felisbur-
go-MG e aqueles que mandaram matar os funcionários de Ministério do
Trabalho em Unaí-MG? Qual a diferença entre os usineiros paulistas que,
através de seus administradores, levam à morte por excesso de trabalho,
trabalhadores rurais bóias-frias cortadores de cana no interior paulista e
aqueles do "consórcio" que pagaram para assassinar Dorothy Stang?"1.
Ou seja, qual a diferença entre o chamado "agronegócio" e o velho lati-
fúndio? São faces da mesma moeda. A guerra civil de fato que acontece
na Amazônia Legal - especialmente no Pará - entre posseiros sem terra e
grileiros com seus jagunços e pistoleiros é exemplo dessa dupla face.

26. A crítica ao sistema agrário dominante que a ABRA assume neste do-
cumento não é observação de natureza meramente retórica, mas um posi-
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

cionamento sobre estratégias de desenvolvimento econômico, substancial-


mente distintas do equívoco teórico e político que levou o atual governo a
encarar a expansão do agronegócio como desenvolvimento rural. A história
recente nos ensina algo, senão para acertarmos sempre, para não repetir-
mos os mesmos erros. Já sabemos historicamente no que resultou a "moder-
nização conservadora" dos militares. Podemos antever o que implicará o re-
lançamento de uma estratégia de acumulação que agrava os problemas do
emprego, da concentração fundiária e do manejo ambiental. Mas isto tudo
pode ser diferente, se o País pensar em perspectiva histórica, olhando para
a sua população e escolhendo caminhos alternativos, como de resto espera-
mos aqui sugerir aos vários interlocutores a quem nos dirigimos.

III. QUESTÃO AGRÁRIA, PÚBLICO ATINGIDO E POLÍTICA AGRÁRIA

27. A história da Questão Agrária no Brasil, entendendo esta como


problema político, oriundo das relações de posse e uso da terra, explici-
tamente posto na agenda política do País por atores sociais de expressão
nacional (Partido Comunista e Igreja Católica), data dos meados do sécu-
lo passado. Mas os problemas agrários nacionais e regionais subjacentes
remontam ao século XIX, em particular à forma como o Estado brasileiro
constituiu o mercado de terras (Lei de Terras de 1850) e regulou a tran-
sição do escravismo para o trabalho livre (Lei da Abolição de 1888 e pro-
moção da imigração européia e asiática, intensificada a partir de 1870).

28. A maneira como o Estado brasileiro lidou com a Questão Agrária


neste meio século de sua politização pouco contribuiu para enfrentá-la.
Em 1964 descartou-se a existência da necessidade de uma Reforma Agrá-
ria, escapando-se pelo argumento da negação da Questão Agrária - pon-
do-se em movimento a tese de modernização técnica sem reforma. Em
1988, a Constituinte, expressando lutas sociais pretéritas, mediante com-
promisso, definiu a terra como um bem social. Mas a ação concreta dos
poderes da República, desde então, obsta a explicitação dos direitos soci-
ais agrários, aferrando-se ao absurdo conceito da "Terra Mercadoria", re-
cuperado pela onda neoliberal, da velha ordem da Lei de Terras de 1850.

29. O relançamento da tese da modernização técnica sem reformas


no limiar do século XXI - a estruturação da aliança conservadora do
agronegócio - repõe as relações de posse e uso de terra em bases cada
vez mais restritivas e adversas às aspirações legítimas dos trabalhadores
e agricultores familiares.
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Qual a Questão Agrária atual?

30. A resposta política do Estado brasileiro às demandas dos vários


públicos excluídos ou vitimados pelo pacto do agronegócio - pequenos
proprietários, trabalhadores sem terra, indígenas, povos da floresta, qui-
lombolas, comunidade de terras "tradicionalmente ocupadas" etc. - não
consegue ir ao cerne da questão, precisamente porque não se dispõe a
rever as bases desse pacto e a aplicar a regra constitucional que define
a terra como um bem social.

31. A política agrária do denominado "novo mundo rural", posta em


execução desde que se estruturou o pacto do agronegócio no início do
segundo governo Fernando Henrique Cardoso, incide em profunda in-
consistência com o paradigma da igualdade social ao tentar escapar da
Questão Agrária, mediante compromissos puramente retóricos com a
igualdade de gênero, etnias e idades, e com a ilusão de incluir no agro-
negócio os pequenos produtores e trabalhadores, mediante exercícios
de marketing e provisão de crédito subvencionado.

32. Utiliza-se o argumento da heterogeneidade estrutural dos agricul-


tores familiares para justificar políticas agrárias distintas para cada públi-
co - índios, quilombolos, minifundistas, sem terra etc. -, o que em princí-
pio é correto; mas se elude o fato de que os grupos organizados de tra-
balhadores sem terra, demandantes por reforma agrária, mais aqueles
já assentados (aproximadamente 800,0 mil famílias em 53 milhões de
ha, segundo o INCRA), são grupos sociais significativos e legitimamente
credores de ações concretas de reforma e do desenvolvimento agrário.

33. A política agrária é necessariamente complexa, as questões fundiá-


rias, do meio ambiente e das relações de trabalho diferem numa socie-
dade profundamente heterogênea, desigual e marcadamente diferencia-
da em seus aspectos regionais e ecossistêmicos. Isto, contudo, não pode
ser usado como argumento para escamotear os eixos estratégicos para
enfrentamento dessas questões.

IV. CRÍTICA AO GOVERNO LULA

34. A análise comparativa dos principais documentos governamentais


do governo Lula sobre a reforma agrária - desde o texto da campanha
presidencial anterior, "Vida Digna no Campo", passando pela "Proposta de
II Plano Nacional de Reforma Agrária" e pelo próprio "II Plano Nacional de
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

Reforma Agrária" até os documentos relativos à campanha das eleições de


2006, "Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável para Uma Vida
Digna no Campo", nas duas versões: preliminar2 e oficial - mostra a mu-
dança do caráter da reforma proposta: de estrutural para meramente
compensatória tal qual as "reformas" dos governos anteriores. Hoje, não
mais se fala - ou se fala vagamente - de várias questões relevantes que
constavam de documentos anteriores.

35. Não são estabelecidas metas de assentamentos. Não se considera a


área reformada como estratégia de implantação da Reforma. Não se afir-
ma que a desapropriação para fins de reforma agrária se constitui no ins-
trumento principal para a implantação da política agrária - quando muito,
este instrumento figura como auxiliar da compra e venda. Permanece a ên-
fase para os programas de crédito fundiário (aos moldes do Banco da Ter-
ra). A única promessa que estava clara no documento da campanha atual,
em sua versão preliminar, referia-se à tão necessária atualização dos índi-
ces de produtividade. Na versão oficial ela simplesmente desapareceu.

36. A mudança de caráter da política agrária foi sentida e denunciada


pelos trabalhadores e pequenos produtores rurais. Em 6 de março de
2006, na cidade de Porto Alegre, seis organizações ligadas às lutas dos
camponeses e pela Reforma Agrária3 - MPA, MST, MAB, MMC, CPT e
ABRA - manifestaram-se publicamente por meio do texto "Balanço das
medidas do Governo Lula (2002-2006) em Relação à Agricultura
Camponesa e Reforma Agrária no Brasil".

37. O documento descreve trinta e nove medidas. Destas, dez foram con-
sideradas como avanços e acúmulos para a agricultura camponesa e refor-
ma agrária, enquanto vinte e nove foram tidas como derrotas para os cam-
poneses. Dentre as primeiras, excluída a mudança de atitude do governo
ante as lutas camponesas, constam providências pontuais que, por si só,
não significam a concretização da reforma agrária prevista em documentos
oficiais e esperada pelos movimentos sociais. Por outro lado, varias ações
relevantes para um processo de reforma fazem parte das medidas - ou falta
de medidas - que as organizações camponesas consideraram como derro-

2 - Versão preliminar: "Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário para uma Vida Digna no Campo". A ver-
são oficial retirou do título o termo "solidário".
3 - Organizações que assinam o documento: Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA; Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST; Movimento dos Atingidos por Barragem - MAB; Movimento das Mulheres Camponesas - MMC;
Comissão Pastoral da Terra - CPT; Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA.
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Qual a Questão Agrária atual?

tas. Neste caso, trata-se de ações públicas fundamentais para o desenca-


deamento de um processo de reforma agrária capaz de enfrentar o "agrone-
gócio" - eufemismo para a atual fase do capitalismo no campo, marcada
pelo aumento da taxa de exploração da mão-de-obra, pela exclusão, pela
violência, pela concentração fundiária e pela degradação ambiental.

38. A ABRA não tem a pretensão neste texto de expor todo um conjun-
to de providências atinentes a todos os públicos afetados pela Questão
Agrária. Mas não pode se furtar de eleger a Reforma Agrária, o público
por ela demandante e ainda o desenvolvimento dos assentamentos já con-
stituídos, como eixos de enfretamento da Questão Agrária, sem prejuízo
de outras ações complementares da política agrária, que por ora não nos
cabe aprofundar.

39. Mas sobre a proposta específica de Reforma Agrária e Desenvolvi-


mentista dos Assentamentos, a ABRA se dispõe a aprofundar sugestões ao
governo, como se verá na próxima seção.

V. DIRETRIZES PARA REFORMA AGRÁRIA E


DESENVOLVIMENTO DOS ASSENTAMENTOS

40. A ABRA entende que a estratégia de Reforma Agrária no Brasil pre-


cisa enfatizar prioridades simultâneas e equivalentes às linhas de: 1)
obtenção e redistribuição de terras para atendimento de demanda social
por reforma agrária, segundo critérios que viabilizem ganhos de produtivi-
dade; 2) adoção de um conjunto de políticas de fomento técnico-
econômico e comercial dos assentamentos já constituídos, suscetíveis de
elevar a produtividade do trabalho e gerar excedentes monetários. Esta
estratégia, detalhada em seqüência, criaria em médio prazo condições de
igualdade de capacidades aos assentados para alcançar metas de desen-
volvimento econômico com justiça social, consistentes com sustentabili-
dade econômica e ambiental das famílias assentadas.

V.1. OBTENÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS E


ORGANIZAÇÃO DOS ASSENTAMENTOS

41. A reforma agrária deve retomar seu sentido histórico, isto é, ser um
instrumento de alteração da estrutura fundiária e distribuição de riqueza.
A reforma agrária, portanto, há de ser feita em terras aptas para imediata-
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

mente produzir, não só pela sua qualidade, mas também pela sua proxi-
midade com o mercado.

Por sua vez, as terras públicas fora da fronteira agrícola devem ser obje-
to de políticas que assegurem a permanência e reprodução de povos e
populações que tradicionalmente as ocupam de forma ambientalmente
sustentável.

42. Isso posto, a obtenção de terras para fins de reforma agrária há de


ocorrer em regiões onde haja conflitos a serem resolvidos e cuja solução
passe por uma nova adequação da terra. Estes conflitos tanto podem ser
sociais, como o desemprego estrutural ou exploração ilegal da mão-de-
obra no campo, quanto ambientais, quando a forma de ocupação e a
produção rural levam a uma deterioração ambiental, seja pela desertifi-
cação do solo, seja pela erosão, seja pela perda significativa da biodiver-
sidade, seja pelo desrespeito às leis ambientais. Nessas regiões, as terras
ocupadas de forma privada devem ser obtidas pelo Poder Público para
destiná-las a um uso adequado, social e ambientalmente.

43. Para esse fim, os meios jurídicos de obtenção podem ser: desapro-
priação, expropriação de glebas com culturas psicotrópicas (Lei n.
8.257/91), arrecadação de terras devolutas, anulação de títulos que ilegi-
timamente transferiram as terras públicas para o setor privado (grilagem),
arrecadação das terras adjudicadas para pagamento de dívidas públicas
(inadimplência de tributos, multas ambientais e por trabalho escravo, fi-
nanciamento de Bancos Públicos etc.) e compra pelo Poder Público.

44. A primeira coisa a fazer é redefinir o conceito de produtividade. A Lei


n.º 8.629/93, em seu artigo 6º, estabelece que se considera "terra produ-
tiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultanea-
mente, graus de utilização e de eficiência na exploração, segundo índices
fixados pelo órgão federal competente". Portanto, tem cabimento regula-
mentação pelo órgão federal competente destinada a considerar o que se
entende por graus de utilização e de eficiência da terra. Não pode ser con-
siderada exploração econômica e racional aquela que utiliza trabalho es-
cravo, de menores ou em claro desrespeito às normas trabalhistas, bem as-
sim como aquelas que desrespeitam normas ambientais, especialmente as
da reserva legal e de áreas de preservação permanente. Idêntica preocu-
pação deverá haver com as áreas de cultivo de psicotrópicos (Lei n.º
8.257/91). Junto com isto devem ser alterados os índices de grau de utili-
zação e de eficiência na exploração, que hoje são muito baixos.
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Qual a Questão Agrária atual?

45. Definido isso, as terras férteis dentro da fronteira agrícola que não este-
jam sendo produtivas como o determina a lei no largo espectro da função
social da propriedade, conforme define a Constituição, devem ser reformadas.

46. As terras obtidas para a reforma agrária deverão ser mantidas com
natureza pública mesmo depois de transferidas, quando for o caso, ao uso
particular ou comunitário. Apenas o uso deve ser transferido, o domínio
continuará público. Um instrumento jurídico a ser utilizado é a concessão
real de uso, preferentemente coletivo, em instituto similar às reservas extra-
tivistas (Lei n.º 9.985/2000). Isto porque o uso deve ser socialmente rele-
vante para que seja mantido, de tal forma que as áreas reformadas vivam
sob um regime jurídico especial, adequado à natureza das novas relações
fundiárias que estão sendo instituídas.

47. As concessões, preferentemente coletivas, serão entregues após um


processo de definição das formas e dos conteúdos da ocupação, inclusive
quanto aos aspectos cultural e ambiental. Este processo não deverá exced-
er a dois anos.

48. A comunidade que receber a concessão deverá criar entidade de


decisão coletiva para gerir o assentamento, na forma associativa, cooper-
ativa ou outra que escolher e for compatível com a sua administração.

49. É necessário que haja uma apropriação coletiva dos imóveis refor-
mados, de tal forma que haja sua gestão pelas famílias assentadas, de
modo a permitir a substituição de famílias que deixem os assentamentos.
Por outro lado, é necessário criar mecanismos jurídicos e econômicos que
garantam a permanência dos filhos de assentados, para fazer face ao con-
tínuo parcelamento dos imóveis (já titulados individualmente) pela
sucessão hereditária nos moldes do Código Civil. Isto gera conflitos e pro-
duz fragmentação em minifúndios.

V.2. CONDIÇÕES PARA DESENVOLVIMENTO DOS


PROJETOS DE ASSENTAMENTO - ALGUNS
ASPECTOS ECONÔMICOS

50. O assentamento de reforma agrária, objeto de uma ação prévia de


reestruturação fundiária, instituído desde a Lei n.º 4.504 de 30 de novem-
bro de 1964, é uma construção inacabada, carente de projeto viável de
transformação socioeconômica.
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

51. Na verdade, o "Estatuto da Terra" define já no seu 1º artigo a refor-


ma agrária como "O conjunto de medidas que visem a promover melhor
distribuição da terra mediante modificação no regime de posse e uso, a fim
de atender aos princípios de justiça social e aumento da produtividade".

52. Se percorrermos toda a taxonomia de "imóveis rurais" do Estatuto,


não encontraremos o "assentamento", mas a propriedade familiar, a "colo-
nização", a "empresa rural" etc. A Lei atual da Reforma Agrária (Lei n.º
8.629/93) é muito econômica com o conceito de assentamento, citando-
o uma só vez no seu artigo 17, sem defini-lo previamente.

53. Quarenta e um anos depois da promulgação do Estatuto da Terra


de 1964 e treze anos depois da Lei n.º 8.629/93, regulamentadora da
Constituição Federal de 1988 - o assentamento de reforma agrária - uma
unidade de análise distinta do conjunto de "módulos rurais" que o con-
stituem, é hoje um conjunto de projetos territoriais à espera de um proje-
to de desenvolvimento.

54. Na verdade, o princípio básico de direito agrário que orienta e orga-


niza o Estatuto da Terra, e mais tarde é fixado no Art. 186 da Constituição
Federal, é a caracterização da terra (ou dos recursos naturais sob os quais
incidem relação de propriedade) como um bem social (cumpre obrigato-
riamente uma função social). Como tal, esse bem, que não é mais "uma
mercadoria como outra qualquer", no equívoco conceito que se deduz da
Lei de Terras de 1850 e possivelmente do Código Civil de 1915, depende
dos quatro critérios demarcatórios desse bem, previamente citados. A não-
observância de quaisquer deles, e obviamente de todos eles, deveria incidir
na condição de "não-cumprimento da função social".

55. Ora, se tais disposições vigoram para os imóveis rurais em geral,


sob pena de desapropriação por interesse social, com muito mais proprie-
dade aplicar-se-ão aos assentamentos de reforma agrária.

56. Evidentemente não há qualquer obstáculo legal, para pensar-se o terri-


tório do assentamento como espaço de planejamento. O INCRA, de longa
data, planeja a infra-estrutura do Projeto e o faz no conceito de área de as-
sentamento e "Projeto de Desenvolvimento do Assentamento" (PDA). O mode-
lo de exploração econômica do assentamento, que dependerá da opção das
famílias, ali instalados, utiliza-se dos bens públicos criados pela Reforma Agrá-
ria, para transformá-lo naquilo que o "Estatuto" define como sua finalidade:
"atender aos princípios da justiça social e ao aumento da produtividade".
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Qual a Questão Agrária atual?

57. A questão da produtividade social do trabalho no assentamento de


reforma agrária, superada a fase de ação de reestruturação fundiária, é
ao nosso um problema crucial para o desenvolvimento do projeto de re-
forma agrária. Ao lado desse conceito, a criação de empregos, a toda a
força de trabalho atual e das gerações que se estão se constituindo no as-
sentamento, é outro desafio igualmente relevante para criar horizonte in-
tergeracional à reprodução do sistema.

58. Obviamente que temos por suposto que o modelo de produtividade


e de empregabilidade da economia do agronegócio, amplamente domi-
nante no mercado, não serve para desenvolver os assentamentos, na pers-
pectiva da igualdade ou da justiça distributiva, que são princípios subja-
centes ao conceito de desenvolvimento aqui perseguido. Tampouco con-
cordamos com a tese do "novo mundo rural" de que "o processo de refor-
ma agrária somente se completaria quando os beneficiários alcançassem a
condição de agricultores familiares e fossem inseridos de forma competi-
tiva no mercado". A proposta aqui é de sentido inverso: reestruturar parcial-
mente os mercados para viabilizar um novo projeto de desenvolvimento.

59. As propostas de desenvolvimento aqui apresentadas não ignoram o


modelo dominante, nem toda sorte de oponências técnico-burocráticas,
acadêmicas e ideológicas existentes. Mas se colocam como condição de
possibilidade, legitimamente reivindicada, para emergência de novas for-
ças produtivas no sistema agrário brasileiro.

60. O conceito de produtividade social do trabalho, aplicável ao assenta-


mento, precisa ser consistente com os critérios que definem esse espaço, co-
mo território em que prevalece a função social da propriedade fundiária.

61. Por sua vez, o assentado é oriundo de um sistema mercantil em que


o trabalhador, com baixo ou nulo controle de meios técnicos, recursos na-
turais e capital monetário, apresenta produtividade do trabalho, medida
por qualquer critério, em geral muito baixa.

62. O desafio de elevar a produtividade do trabalho no assentamento


não é trivial, nem pode ser respondido por pura ação individual no espaço
mercantil. Se não houver aumento de produtividade, dificilmente o agri-
cultor assentado será capaz de produzir excedentes monetários, que propi-
ciem condições de escapar de uma economia de subsistência (na qual o
assentado não produz excedente monetário, quando confronta o seu valor
de produção e os custos de produção e manutenção familiar).
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

63. Sob os condicionamentos desses fatores histórico-situacionais, o cri-


tério de produtividade social relevante no assentamento precisa conside-
rar custos sociais e não apenas os custos privados de produção, a saber:

a) custos privados de produção, sob a ótica do trabalho familiar;


b) apropriação da renda fundiária diferencial, sob os enfo-
ques locacional e de fertilidade natural;
c) planejamento ambiental tendo em vista evitar as externali-
dades negativas no manejo dos recursos hídricos, do solo,
da flora e da biodiversidade;
d) inovações técnicas do sistema de pesquisa, consistentes
com uma matriz técnica ajustada à função social;
e) formas de financiamento ex-ante à produção; e ex-post à
comercialização, que garantam realização de mínimos mon-
etários, compatíveis com a produção de excedentes;
f) integração técnica e comercial entre assentamentos de
uma mesma zona geográfica (zonas integradas de reforma
agrária), tendo em vista constituir bases para apropriação
das economias do tamanho, exigidos em determinados
ramos produtivos.

64. Salta aos olhos que o paradigma de produtividade, que é pressuposto


ao desenvolvimento do assentamento, não se alcança por geração espon-
tânea, indução do mercado, iniciativa individual etc. Requer planejamento a
partir do espaço público. Mas não precisa ser um planejamento à moda anti-
ga, em que a burocracia do Estado assume todas as etapas de um projeto
de colonização. Vamos a seguir enunciar alguns passos desse planejamento.

65. Um programa de fomento técnico-produtivo e comercial com vistas


à elevação da produtividade de trabalho nos assentamentos precisa con-
siderar vários aspectos que criam viabilidade social ao projeto de desen-
volvimento, e que vão aqui brevemente enunciados:

1. concentrar ações de obtenção de terras em regiões com


adequada dotação de recursos naturais ou em zonas próximas
à perímetros urbanos e (ou) rede de comunicação, de forma
a permitir ao assentado incorporar rendas fundiárias locacio-
nais e de fertilidade natural ao valor de sua produção;
2. definir "ex-ante" ou organizar "ex-post" as zonas integradas
de assentamentos da reforma agrária, onde mediante ação de
planejamento integrado poder-se-ão obter ganhos de escala,
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Qual a Questão Agrária atual?

intensificação de relações técnicas cruzados e ganhos comer-


ciais etc. Esta diretriz pressupõe que: para viabilizar um novo
modelo de desenvolvimento rural e agrícola será fundamental
a implementação do programa de reforma agrária amplo e
não-atomizado, isto é, centrado na definição de áreas refor-
madas que orientem o reordenamento do espaço territorial do
País via o zoneamento econômico e agroecológico4.

3. realizar planejamento integrado do uso sustentável dos re-


cursos naturais e da matriz técnico-produtiva, de sorte a supe-
rar as externidades negativas no uso dos recursos naturais,
presentes na matriz técnica do agronegócio. Para induzir esse
modelo técnico-produtivo, o assentamento se creditaria do pa-
gamento de serviços ambientais patrocinados pelos Programas
Ambientais, já existentes no Min. do Meio Ambiente;

4. estabelecer junto ao sistema EMBRAPA um programa especí-


fico de inovação técnica, direcionada à melhoria da produtivi-
dade nos assentamentos de Reforma Agrária;

5. estabelecer garantias mínimas à comercialização da produ-


ção oriunda dos assentamentos, no nível dos preços institucio-
nais da política agrária, de maneira a assegurar a realização
dessa produção em pólos institucionais de demanda. Isto impli-
ca reforço às iniciativas que deram origem ao Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, instituído no iní-
cio do governo Lula;

6. modificar substancialmente o sistema de crédito de capital


de trabalho (custeio) e crédito de investimento, presentemente
oferecidos pelo PRONAF, às configurações da matriz técnico-
produtiva, ambiental e de desenvolvimento das famílias assen-
tadas, segundo as recomendações aqui apresentadas;

7. concentrar no território do assentamento, mediante ação


planejada, a aplicação das políticas sociais de caráter univer-
sal pertinentes - Postos de Saúde do SUS, escola fundamental
e média para educação básica; e ainda e completa aplicação
dos direitos da seguridade social.

4 - Cf. "Programa de Desenvolvimento ..... para uma Vida Digna no Campo" - op.cit .
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Associação Brasileira de Reforma Agrária

66. As várias ações recomendadas nessas sete sugestões de política são


consistentes com elevação da produtividade do trabalho, incorporação da ci-
dadania social, garantias à comercialização produtiva e indução a manejo
ambiental sustentável. Ao lado da reestruturação fundiária prévia, essas dota-
ções da política pública podem ser eficazes para desenvolver as famílias as-
sentadas dentro um paradigma qualitativo distinto da economia do agrone-
gócio. Permitem ainda gerar um produto/renda potencial, com forte densida-
de ocupacional da força de trabalho, sob condições de manejo ambiental
sustentável e capacidade de gerar excedentes monetárias.

67. As ações de fomento produtivo, comercial, tecnológico e infra-estru-


tural elencadas neste texto são as dotações políticas consistentes com os
princípios de igualdade de oportunidade e igualdade de capacidades que
criam condições para os assentamentos interagirem com os mercados ex-
ternos (ao assentamento), sob novas bases regulatórias de relações so-
ciais e relações mercantis. Fora disto, ou sem esses novos marcos, repro-
duz-se a velha economia política do agronegócio.

V.3. ARRANJO INSTITUCIONAL

68. Supondo que os critérios e as sugestões aqui levantados possam ob-


ter concordância do governo, no sentido de reorientar sua política agrária,
há evidentemente necessidade de mudanças de rumos que demandariam
reorganização institucional. A ABRA não pretende entrar nesta discussão,
que a entenda como interna ao governo. Mas, em tese, as duas estraté-
gias aqui explicitadas - a) obtenção e redistribuição de terras; b) desenvol-
vimento dos assentamentos - requerem reorganização da administração
pública. Em particular esta segunda, demandaria uma concertação de vá-
rios órgãos da administração federal - INCRA, EMBRAPA e CONAB e IBA-
MA principalmente, num estilo de planejamento voltado aos assentamen-
tos que certamente requereria um arranjo institucional próprio. É prematu-
ro avançar sugestões neste campo, sem conhecer o posicionamento do
governo sobre as teses aqui avançadas.
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A luta pela reforma agrária perpassa a história de nosso país.


Através de décadas, intelectuais, entidades e trabalhadores rurais
organizados enriqueceram esta mesma história com a defesa e busca de
uma distribuição justa de terras, meios de produção, alimentos e
produtos agrícolas bem como da dignidade da vida daqueles que da
terra vivem e nela trabalham. A ABRA, em seus 40 anos de existência
acompanha e faz parte desta história agregando pesquisadores,
movimentos, entidades, organizações e pessoas que acreditam na
realização plena dos direitos fundamentais do homem
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Ensaios e
Debates
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O sentido histórico da
reforma agrária como
processo de redistribuição
da terra e da riqueza

Claus Germer*

A reforma agrária é objeto de intensa luta política, que se desenrola entre


um número relativamente pequeno de grandes empresas e fazendeiros indi-
viduais, proprietários da maior parte das terras e dos meios de produção agrí-
colas do país, por um lado, e a grande massa de trabalhadores rurais e
pequenos agricultores pobres sem terra, por outro, expropriados ou em vias
de expropriação em decorrência do processo contínuo de centralização da
terra e da riqueza, promovido pelo desenvolvimento do capitalismo no
campo brasileiro. Nesta luta o Estado coloca-se sistematicamente ao lado
dos proprietários, procurando distorcer os objetivos e os procedimentos da
reforma agrária, mesmo nos aspectos respaldados pela lei. Sendo assim,
atualmente é necessário restabelecer o sentido da reforma agrária e reafirmar
a legitimidade das lutas dos movimentos de sem-terras nos últimos trinta
anos, isto é, na fase contemporânea da luta pela reforma agrária brasileira.
Não se ignora o necessário processo cotidiano de pressões recíprocas, de
avanços e recúos, de pequenas conquistas ou derrotas, mas o que se quer é
restabelecer a essência da questão agrária, que corre o risco de perder-se no
emaranhado dos pequenos entreveros cotidianos. É indispensável também
apontar claramente as distorções continuamente introduzidas pelos suces-
sivos governos na interpretação do significado da reforma agrária e das leis
que determinam a sua realização.

RESTABELECER O SENTIDO DA REFORMA AGRÁRIA

O termo 'sentido' refere-se à tendência histórica que a reforma agrária


expressa, e esta baseia-se na estrutura de classes realmente existente e nas
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da UFPR, Curitiba, PR.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 19


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Ensaios e Debates

oposições de interesses objetivos de classes que a caracterizam. Ou seja,


identifica-se o sentido histórico da reforma agrária através da identificação
das condições sociais objetivas das quais emerge e não com base em inter-
pretações subjetivas. Para isto, o primeiro passo é evidenciar a estrutura de
classes da agricultura brasileira, sem esquecer que as classes agrárias cons-
tituem apenas segmentos de classes de âmbito nacional.

ESTRUTURA FUNDIÁRIA E ESTRUTURA DE CLASSES

A agricultura brasileira apresenta uma estrutura de classes tipicamente capi-


talista, com as suas duas classes fundamentais nitidamente desenvolvidas:
uma próspera burguesia agrária e um numeroso proletariado (Germer,
1990). Esta seção apresenta uma estimativa da estrutura de classes vigente
na agricultura brasileira atualmente com base nos dados dos censos agro-
pecuários de 1985 e de 1995-6 sobre a distribuição da terra entre estabele-
cimentos agropecuários por classes de área total. A Tabela 1 condensa dois
resultados: a estrutura de classes encontrada em 1985 (Germer, 1994) e sua
evolução até o censo mais recente, de 1995-96 (Mauro, 1999).

TABELA 1. BRASIL - ESTRUTURA DE CLASSES NA AGRICULTURA 1985 E 1995 -


961 (número de estabelecimentos em 1000; área em milhões de ha)
ESTABELECIMENTOS ESTABELECIMENTOS
CLASSES 1985 1995
N.º % Área % N.º % Área %
Burguesia
Grande (>100 ha) 568 9,8 295,3 78,8 519 10,6 283,0 80,0
Média (50-100 ha) 438 7,6 30,1 8,0 400 8,2 27,4 7,7

Camada Intermediária
Pequena Burg. (20 -50 ha) 907 15,6 28,1 7,5 814 16,7 25,4 7,19
Produtor Simples (<20 ha) 554 9,6 7,7 2,1 482 9,8 6,7 1,9

Força de Trabalho
Semi-assalariado (<20 ha) 3.326 57,3 13,6 3,6 2621 54,0 10,9 3,1
Proletariado 4.958 3.673

Permanentes 2.191 1.839

Temporários 2.767 1.834

Total Estabelecimentos 5.801 4.859

Sem declaração: 21.682 estabelecimentos (1995 /96)


Fonte da tabela: Mauro, 1999; dados referentes a 1985 obtidos em Germer (1994).
Fonte dos dados: IBGE - Censos Agropecuários de 1985 e 1995/96.

1 - Os critérios utilizados para a elaboração desta tabela encontram-se em Germer (1994).

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O s e n ti d o h i s tó r i c o d a r e f o r m a a g r á r i a c o m o p r o c e s s o d e r e d i s tr i b u i ç ã o d a te r r a e d a r i q u e z a

A tabela 1 mostra que a estrutura de classes permanece essencialmente a


mesma, entre estes dois censos, motivo pelo qual os comentários seguintes
referem-se a 1995-96. Do total das terras situadas no interior dos estabelec-
imentos agrícolas, 80% estavam em poder de 10% dos estabelecimentos do
país, que são os maiores, e que são também os detentores dos meios de pro-
dução nelas instalados, que constituem, também, a maioria dos meios de
produção significativos da agricultura brasileira. Além da terra que estava
sendo explorada e dos meios de produção, encontravam-se também nestes
estabelecimentos terras produtivas não utilizadas, que são reservas para
expansão futura. Estas terras não são utilizadas por dois motivos principais:
ou porque não há mercados suficientes, de modo que a sua exploração cau-
saria superprodução; ou porque não podem ser exploradas a custos competi-
tivos com base nas técnicas atuais.. Mas, se os mercados se ampliarem, ou
se técnicas mais adequadas surgirem, ou se os preços dos produtos que
podem ser produzidos nelas aumentarem, elas poderão passar a ser explo-
radas. É evidente que a ociosidade pode resultar também da insuficiência de
capitais por parte dos seus possuidores, ou pela disposição consciente de
mantê-las em reserva esperando valorização Os médios e pequenos produ-
tores capitalistas, em contrapartida, praticamente não possuem reservas de
terras não utilizadas, de modo que até por este lado as suas possibilidades de
acumulação estão bloqueadas, o que só pode ser superado por intermédio
de compra ou arrendamento de terras adicionais.

Verifica-se também que aproximadamente 17% das terras estavam em po-


der de uma camada intermediária, compreendendo as média e pequena bur-
guesias rurais e os produtores simples de mercadorias, cujos integrantes são
impropriamente chamados de 'produtores familiares', e representadas por
cerca de 35% dos estabelecimentos recenseados. A pequena burguesia rural
é formada, em sua maioria, por pequenos produtores estagnados ou em
decadência. A sua decadência inevitável é determinada, entre outros motivos
acessórios, pelo fato de representarem capitais de pequena escala e tecnolo-
gias parcial ou totalmente ultrapassadas ou incompatíveis com a sua escala
e que, devido a isto, geralmente incorrem em custos unitários superiores aos
dos produtores maiores, o que os leva à derrota na concorrência2. Além disto,
ao contrário dos grandes capitalistas agrícolas, não possuem reservas impor-
tantes de terras produtivas não utilizadas, que permitiriam a expansão da pro-
dução caso pudessem expandir seu capital. Esta maioria de pequenos
agricultores está condenada, portanto, a um processo mais ou menos rápido

2 - Deste ponto de vista os pequenos produtores podem ser divididos em dois grupos: os que sofrem e os
que não sofrem a concorrência de grandes produtores. Os que não enfrentam concorrentes de grande
escala de produção são mais resistentes à falência (Labini, 1983).

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Ensaios e Debates

de inviabilização econômica extinção, ilustrado pela expressiva redução do


seu número entre os dois censos analisados. Uma parte menor dos pequenos
agricultores é constituída por empresas capitalistas ainda viáveis.

Significativo é o fato de que, entre os estabelecimentos recenseados pelos


censos agropecuários, há uma camada, composta, em 1995/96, por 54% do
total de estabelecimentos, cujos dentetores não eram produtores e vende-
dores de mercadorias agrícolas, mas 'proletários com lote' ou semi-assalaria-
dos rurais (Lênin, 1982), condição esta completamente ignorada pela maio-
ria dos analistas da questão agrária brasileira, mesmo daqueles que apóiam
a luta pela reforma agrária. Isto significa que são principalmente vendedores
da sua força de trabalho e não de produtos agrícolas, mesmo que obtenham
uma parte - geralmente muito pequena - da sua renda da venda de pro-
duções diminutas. Estes 'proletários com lote' ocupavam apenas cerca de 5%
do total de terras recenseadas, e possuíam, na média geral, cerca de 4
hectares por estabelecimento, sendo que a maioria deles situa-se em terra
alheia e de má qualidade. Isto quer dizer que dos quase 5 milhões de estab-
elecimentos agropecuários do último recenseamento, cerca de 2,6 milhões
eram assalariados e semi-assalariados rurais, que residiam em um pedaço de
terra que na maioria dos casos não lhes pertencia, e que em certa proporção
se confundem com os milhões de trabalhadores rurais classificados como
assalariados agrícolas puros.

A tabela 1 mostra que, entre 1985 e 1995/6, o número de estabelecimen-


tos de semi-assalariados caiu de 3,3 milhões para 2,6 milhões, reduzindo-se
portanto em 700 mil, ou seja, 21% do contingente inicial, queda que se deve
atribuir ao processo geral de desenvolvimento tecnológico, em especial a
mecanização, em curso na agricultura brasileira desde o início dos anos
1970. Ao perderem o emprego, os semi-assalariados perdem a terra que
ocupavam por contratos de locação com os empregadores (arrendamento ou
parceria) ou por simples ocupação, e deveriam migrar para as cidades3. No
entanto, no período coberto pela tabela, a economia brasileira, especial-
mente os setores industrial e de serviços, portanto o segmento urbano da
economia, encontrava-se em estado de estagnação crônica, não apresentan-
do portanto fatores de atração dos desempregados rurais. Este grande con-
tingente constituiu a base social dos movimentos de sem-terras, conferindo a
estes um caráter proletário, no sentido histórico. A ele pode-se acrescentar,
provavelmente, uma parte dos procedentes dos estabelecimentos extintos na
3 - Deve-se lembrar que a migração para regiões de fronteira é acessível somente a proprietários de um
estoque mínimo de meios de produção, cuja venda financia a migração e a nova instalação na agricul-
tura. Os semi-assalariados convertem-se em bóias-frias residentes nas periferias de cidades do meio rural
ou integram-se ao proletariado urbano.

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O s e n ti d o h i s tó r i c o d a r e f o r m a a g r á r i a c o m o p r o c e s s o d e r e d i s tr i b u i ç ã o d a te r r a e d a r i q u e z a

camada intermediária, pertencentes à pequena burguesia agrária e aos 'pro-


dutores simples de mercadorias', cujo número se reduziu, em conjunto, de
1,46 milhões para 1,3 milhões, ou seja, em nada menos que 160 mil esta-
belecimentos extintos. O represamento no meio rural, devido à crise urbana,
deste grande contingente de trabalhadores rurais expulsos da atividade pro-
dutiva, na maioria sem terra ou com terra insuficiente e de má qualidade,
explica a expansão dos movimentos de sem-terras, ao mesmo tempo que a
falta de alternativas de sobrevivência explica o radicalismo que revelou e a
rápida evolução da sua consciência política e de classe.

Com isto justifica-se a concepção de que a base social dos movimentos de


sem-terra é o semi-proletariado rural e de que a reforma agrária por ele reivin-
dicada possui um caráter não burguês, mas especificamente anti-capitalista e
até mesmo socialista, em perspectiva histórica. Isto explica o equívoco de definir
a revindicação da reforma agrária como uma reivindicação necessariamente
burguesa. As reformas agrárias burguesas situam-se na transição para o capi-
talismo, e consistem na instituição da propriedade burguesa da terra, como ele-
mento constituinte desta transição, sendo para isto necessário que estas sejam
transferidas das mãos dos proprietários pré-capitalistas antigos para as mãos da
burguesia agrária em ascenção. Ou seja, com a reforma agrária burguesa a
burguesia agrária assume a direção da agricultura e esta assume um caráter
especificamente capitalista. No Brasil não se conhece nenhum segmento, pelo
menos em escala socialmente significativa, de classes não-capitalistas proprie-
tárias de terras agrícolas. Ao contrário, estas terras já se encontram em poder
da burguesia agrária, segmento agrário da burguesia brasileira, com elevado
grau de centralização, e a força de trabalho que explora é assalariada. Não há
sentido, portanto, em uma reforma agrária burguesa, cujo sentido histórico é
transferir a propriedade das terras agrícolas para a burguesia, pois esta já as
possui. Se apesar disto há luta pela reforma agrária, o caráter desta não pode
ser burguês. Sendo assim, qual é o caráter da reforma agrária atualmente e que
classe ou classes lutam por ela? O caráter da questão agrária no Brasil atual,
que reflete a situação objetiva da propriedade da terra e da estrutura de clas-
ses, não é burguês. O sentido histórico da questão agrária atual é a superação
da propriedade burguesa da terra e do conjunto dos meios de produção. Dizer
que é o seu sentido histórico não significa que está prestes a ocorrer. Isto expli-
ca o fato de que a proposta de reforma agrária dos sem-terra foi, na origem,
proletária e não capitalista, uma vez que a sua base social não era burguesa,
mas majoritariamente semi-proletária.

No entanto, apesar da ampla superioridade numérica do proletariado, e do


domínio social, econômico e político da grande burguesia agrária, existe

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Ensaios e Debates

ainda na agricultura brasileira uma massa significativa de pequenos agricul-


tores, que constituem o que aqui se denomina pequena burguesia agrária.
Deve-se lembrar que não se trata dos 'proletários com lote', mencionados
acima, pois estes são essencialmente assalariados, isto é, vendedores da sua
força de trabalho, ao passo que a pequena burguesia é essencialmente pro-
dutora e vendedora de mercadorias agrícolas, mesmo que em pequena
escala. Sendo a maioria numérica da classe capitalista rural, a sua precária
situação econômica não impede que tenha uma influência política razoável,
embora sem papel dirigente. Devido à sua situação econômica precária, a
pequena burguesia frequentemente dá origem a movimentos de crítica radi-
cal ao processo de centralização ou monopolização do capital, de que são
exemplos mais típicos os movimentos de pequenos agricultores europeus,
destacando-se os franceses. No Brasil o próprio MST teve a sua origem, em
parte, na radicalização política da pequena burguesia agrária dos Estados do
Sul do Brasil, vítima de expropriação em massa na fase aguda do processo
de centralização do capital agrário e da terra decorrente da acelerada mod-
ernização tecnológica da agricultura nas décadas de 70 e 80. A expropriação
de pequenos agricultores combinou-se com a expulsão de grandes massas de
'proletários com lote' (pequenos arrendatários, parceiros, ocupantes, etc.),
convertidos em bóias-frias. Esta massa de semi-proletários em vias de expul-
são constituiu a base social fundamental dos movimentos de sem-terras, a
cujo inconformismo geralmente menos perceptível a radicalização pequeno-
burguesa forneceu um canal de vazão oportuno e decisivo. Todavia, é rele-
vante que a constituição do MST implicou na autonomização política do seg-
mento proletário dos movimentos reivindicatórios daquela época, libertando-
o, pelo menos em parte decisiva, da direção política das concepções
pequeno-burguesas de reforma agrária. Com isto, o segmento propriamente
pequeno-burguês radicalizado ficou à mercê da burocracia sindical de trabal-
hadores rurais, desde a origem cooptada e caudatária da grande burguesia
agrária e do Estado, burocracia pela qual foi aos poucos reabsorvido e neu-
tralizado. Este processo materializou-se na extinção do DNTR - Departamento
Nacional de Trabalhadores Rurais - da CUT, onde aquele segmento inicial-
mente se abrigou, e na sua substituição, na CUT, pela CONTAG. Parece ser
esta a razão principal da inexistência de um movimento agrário radical
pequeno-burguês no Brasil atualmente.

Por uma curiosa ironia da história, talvez tenha cabido ao processo de


assentamentos conquistado pelos sem-terra o ato, evidentemente involuntário
mas gerado pelas circunstâncias evolutivas do processo histórico, de gerar
uma figura social duplamente artificial, representada pela pequena camada
de assentados mais bem sucedidos: um arremedo de pequena-burguesia

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agrária portadora de uma pseudo-radicalização política. Isto explica-se pela


característica essencial do processo de assentamentos ao qual o confronto
entre os sem-terra e a classe proprietária rural deu origem: o assentamento
em pequenos lotes individuais, através do qual a massa de semi-assalariados
que se concentravam nos acampamentos converte-se em possuidora de lotes
de terra própria. A solidariedade coletivista combativa dos acampamentos,
que espontaneamente fomentava um inconformismo social e político anti-
capitalista bastante consistente, confrontou-se nos assentamentos com o pro-
gressivo isolamento forçadamente conformista nos lotes individuais.
Conformista porque as imensas dificuldades de instalação e sobrevivência
aos poucos canalizam para outras direções as energias combativas desen-
cadeadas no acampamento. A necessidade da sobrevivência cotidiana em
condições extremamente difíceis absorveu gradualmente grande parte das
energias dos próprios militantes das organizações dos sem-terras, forçados a
pressionar e negociar com os governos a fim de obter auxílios que, embora
precários, eram essenciais à sobrevivência dos assentados. Parece ao obser-
vador externo que, aos poucos, a reivindicação central de terra foi submergin-
do no interior de uma maré montante de reivindicações econômicas (subsí-
dios creditícios, mercados e preços preferenciais, renegociação de dívidas,
linhas de crédito especiais, etc.) e técnicas (assistência técnica, linhas especí-
ficas de pesquisa agronômica, tecnologigas alternativas, etc.), próprias de
pequenos produtores de mercadorias e não de assalariados. Pode-se dizer
que a fração bem sucedida dos assentados constitui um arremedo de peque-
na-burguesia porque, a despeito da sua condição de pequenos produtores,
não podem ser considerados tais do ponto de vista estritamente econômico,
dada a sua fragilidade técnica e econômica e o fato de que uma parcela sig-
nificativa da massa de assentados reproduz, nos assentamentos, a condição
anterior de semi-assalariados ou 'proletários com lote'. As reivindicações rela-
cionadas à produção possuem um caráter pequeno-burguês, mas os assen-
tados não podem ser considerados tais materialmente. Daí o caráter de pseu-
do-radizalização das suas reivindicações econômicas, mesmo quando rui-
dosas, pois não objetivam alterar o sistema vigente.

Deste modo, pode-se dizer que as características da evolução dos próprios


movimentos de sem-terras, em termos da estrutura interna de classes que ca-
racteriza o segmento social que representam, explicam as modificações que,
recentemente, parece ter sofrido a sua reivindicação de reforma agrária,
ilustrada, por exemplo, pelo MST4.
4 - A particularização do MST decorre da projeção inegável deste movimento como representativo das
lutas agrárias nos últimos 20 anos no Brasil, e não implica portanto desconhecer a existência de um
número considerável de movimentos idênticos, nenhum dos quais, no entanto, possui a representatividade
nacional do MST.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 25


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Ensaios e Debates

Considerando que a estrutura de classes da agricultura brasileira é tipica-


mente capitalista, o que imprime à questão agrária um caráter proletário, é
historicamente ilógico e irrealista pretender dar um caráter burguês à reforma
agrária, pois isto não teria consequência prática alguma.

A FORMA 'ASSENTAMENTO' COMO ARMADILHA

Desde a sua formação, o MST afirmou, de modo coerente com a realidade


da agricultura, que o único meio de assegurar a sobrevivência econômica e
social dos trabalhadores rurais sem terra é a reforma agrária, entendida como
fim do latifúndio e a redistribuição das suas terras e meios de produção aos
trabalhadores rurais, como parte de um processo de mudança global que
superasse o capitalismo (MST, 1989, p. 9), constituindo este o objetivo em
torno do qual o MST se constituiu. Acreditar, agora, que os mesmos objetivos
possam ser alcançados por intermédio de políticas 'adequadas' de fomento da
produção dos precários assentamentos e demais pequenos agricultores no
contexto da concorrência capitalista, contradiz o entendimento anterior, pois
passa-se a acreditar em duas vias alternativas para assegurar a sobrevivência
dos assentados e pequenos agricultores.

A este respeito continua sendo historicamente coerente com o estado atual


da estrutura das classes agrárias e com o momento evolutivo que expressa, o
entendimento de que não há possibilidade de mudança estrutural favorável
aos pequenos agricultores pobres sem terra, no Brasil, que permita evitar a
sua fatal proletarização, a não ser através da reforma agrária. Também
parece ter estado na base da constituição do movimento sem-terra o entendi-
mento de que esta mudança estrutural não poderia ocorrer através de uma
reforma agrária realizada nos marcos do capitalismo e seguindo concepções
burguesas. Com efeito, como já afirmado, uma reforma agrária de caráter
burguês só é plausível e possui efeitos transformadores no início do desen-
volvimento capitalista. Neste caso a reforma agrária beneficiaria basicamente
os pequenos capitalistas agrícolas em desenvolvimento que, no momento da
revolução burguesa, constituem uma pequena burguesia agrária dinâmica
com caráter progressita e eventualmente até revolucionário, em luta por
mudanças radicais na estrutura agrária. Uma reforma agrária burguesa clás-
sica torna-se possível quando a burguesia agrária em expansão, e a burgue-
sia em conjunto, já é economicamente dominante mas não detém o poder de
Estado. Este não é o caso do Brasil atualmente. O capitalismo já está plena-
mente desenvolvido na agricultura e o processo de proletarização da força de
trabalho rural está extremamente avançado (Germer, 1989, p. 51). A peque-

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na burguesia agrária já não representa uma oposição, menos ainda progres-


sista, ao sistema - potencial ou realmente -, pois este já é capitalista e consti-
tui o ambiente natural de existência de uma pequena burguesia agrária,
integrada à classe burguesa como um todo, mesmo que inconformada, por
vezes de forma radical, com a sua crescente derrota na concorrência.

A partir da década de 1970 a reforma agrária possui outro caráter, um


caráter proletário, em perspectiva histórica (Germer, 1988a). A oposição pro-
gressista à estrutura econômico-social vigente só pode ser atualmente repre-
sentada pelo proletariado do campo e da cidade. Portanto, uma mudança
estrutural que interessa aos explorados e os beneficia só pode advir de uma
superação do capitalismo. Sendo esta a visão que esteve na base da consti-
tuição das lutas dos sem-terra nos anos 1980, tal como a tenho entendido,
parece-me que a concepção de reforma agrária que lhe corresponde não é
burguesa, isto é, representativa das pretensões de uma pequena burguesia
em processo de expansão, mas de uma reforma agrária integrante de um
processo de transformação global que supere o capitalismo. Em suma, nas
condições atuais do capitalismo maduro uma reforma agrária compatível
com as suas contradições de classes parece dever ser concebida como inte-
grante de um processo de superação do capitalismo (MST, 1989, p. 9).

Nas fases de transição social sempre surge um conflito entre os que dese-
jam a via das pequenas mudanças paliativas (tidas equivocadamente como
cumulativas) e os que desejam uma transformação estrutural que altere a
natureza do sistema. Na fase final da escravidão, no Brasil, por exemplo, os
que lutavam contra ela dividiam-se em duas correntes: uma entendia ser mais
sensato procurar melhorar gradualmente as condições de vida dos escravos,
limitando a violência do sistema, enquanto a outra desejava abolir de um gol-
pe a própria escravidão. Esta última corrente foi afinal vitoriosa, mas mesmo
assim o Brasil ainda apresenta sequelas da escravidão, pois a sua abolição
foi em grande parte apenas formal. A discussão atual sobre a reforma agrária
apresenta semelhanças com esta, pois opõem-se duas correntes: uma que
propõe ajustes limitados e progressivos, compatíveis com a estrutura do poder
real, e outra que propõe uma mudança estrutural massiva e integral.

Dentro desta visão, a reforma agrária atual, na forma dos assentamentos


que os sem-terra têm obtido nas suas lutas cotidianas, não corresponde à
concepção da reforma agrária de caráter estrutural que esteve na origem
destas lutas. Deste modo, os assentamentos atuais deveriam ser encarados
não como a reforma agrária pretendida originalmente, mas como uma forma
objetiva ou materialização de um impasse: o impasse entre os sem-terra, por

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um lado, que não conseguem alterar a estrutura agrária e social como dese-
jariam, por falta de força suficiente para tanto e, por outro lado, o Estado e
a burguesia que representa, que não conseguem esmagar os sem-terra, como
desejariam. Os assentamentos personificam assim, na hipótese otimista de
uma evolução favorável da correlação de forças entre as classes sociais em
disputa, uma figura de transição em direção a uma eventual transformação
global. Ou podem ser limitadas a um trunfo na reivindicação ao Estado por
políticas sociais de assistência e proteção dos sem-terra, que apenas atenuar-
iam em certa medida a sua fatal transição à condição de proletariado explí-
cito. Objetivamente as políticas do Estado expressam esta concepção, desti-
nando-se essencialmente a conter temporariamente o fluxo dos expropriados
do campo para as cidades por intermédio de políticas assistencialistas que,
ao mesmo tempo, amortecem o ardor reivindicatório dos mesmos.

Este impasse prolonga-se porque os sem-terra encontram-se isolados, no


que se refere ao conjunto dos movimentos de massas que possuem bases
organizadas efetivas, pois outras importantes entidades de trabalhadores, que
poderiam estar aproximando-se da visão dos primeiros e somando-se a eles,
têm caminhado no sentido contrário, da concessão, da colaboração com as
classes proprietárias, ao invés de se colocarem em confronto com estas em
defesa dos interesses mais fundamentais dos trabalhadores. Tem-se a
impressão de que os sem-terra, à medida que ficam isolados em uma posição
de oposição mais consistente, são levado a concentrar esforços na consoli-
dação dos assentamentos na sua inadequada forma atual, ficando impedidos
de aprofundar o seu caráter inovador. Esta é a situação em que as coisas se
encontram atualmente. Os assentamentos enfrentam grandes dificuldades
para sobreviver, requerendo um esforço sobre-humano para tentar mostrar o
melhor desempenho possível na produção. Mas, nas precárias condições em
que são colocados, essa é uma tarefa árdua e difícil e que consome valiosas
energias. É importante observar que, apesar de toda esta dificuldade, alguns
levantamentos feitos nos assentamentos revelam que os produtores de alguns
deles apresentam um desempenho melhor do que muitos produtores não
assentados equivalentes. No entanto, isto não deve levar à conclusão de que,
pelo fato de alguns conseguirem ser um pouco menos pobres, os assentamen-
tos atuais constituem uma solução satisfatória. Deve-se comparar a sua
condição com a dos capitalistas da agricultura. Não há justificativa para exigir
que os explorados se satisfaçam com apenas um pouco menos de miséria
enquanto os mais ricos não se conformam em ceder sequer uma minúscula
fração da sua riqueza exuberante. O que deve satisfazer os explorados é uni-
camente a igualdade de todos. Neste sentido, a configuração dos assentamen-
tos, tal como têm sido implantados, isto é, como universo de pequenos lotes

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individuais isolados e majoritariamente inviáveis, não corresponde às preten-


sões dos sem-terra, como expressão do semi-proletariado rural, devendo ser
encarada como mal necessário, como apenas uma etapa da luta pela refor-
ma agrária, entendida esta como parte da transformação global da sociedade.

Colocado o problema nesta perspectiva, a pretensão de assegurar a con-


solidação dos assentados e pequenos agricultores por intermédio de políticas
'adequadas' de fomento, constitui claramente uma auto-limitação da preten-
são original dos sem-terra, exposta acima. Parece-me que, de fase transitória
de um processo social mais amplo, os assentados estão passando a ser enca-
rados como unidades produtivas cuja sobrevivência no contexto da concor-
rência capitalista pode ser viabilizada, desde que políticas apropriadas sejam
implantadas por um governo benevolente.

Do exposto decorrem as seguintes diretrizes de política de reforma agrária:

1. O objetivo fundamental da reforma agrária é desconcentrar


a riqueza no meio rural. Como a terra é a forma fundamental
da riqueza no meio rural, a reforma agrária consiste no proces-
so de redistribuição da propriedade da terra. Mas redistribuição
não implica a forma individual privada da nova propriedade,
mas preferencialmente uma forma coletiva ou associativa;

2. o objetivo da redistribuição de terras pela reforma agrária


não é fomentar a exploração de terras mantidas ociosas ou
improdutivas. Este seria o objeto de políticas de fomento
econômico. Em um país como o Brasil, dotado de um grande
território e baixa densidade demográfica, terras mantidas
ociosas são, na maior parte dos casos, terras de qualidade infe-
rior (pela sua constituição natural ou localização) em compara-
ção com as demais, cuja exploração seria anti-econômica nas
condições vigentes da tecnologia e dos mercados. Consequen-
temente, o assentamento em terras ociosas acrescenta aos as-
sentados já sobrecarregados de dificuldades um fator adicional
de fracasso econômico: a exploração de terras de qualidade
inferior e, na maior parte dos casos, incapazes de proporcionar
uma produção competitiva;

3. o objetivo da reforma agrária também não é promover o


aumento da produtividade na agricultura. Este objetivo é natu-

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Ensaios e Debates

ralmente atingido como resultado da concorrência intercapita-


lista, podendo no entanto ser, e geralmente é, complementado
por políticas públicas específicas de geração e difusão do de-
senvolvimento científico e tecnológico. Pretender que o aumen-
to da produtividade econômica seja objetivo da reforma agrária
implica admitir que a convivência de fazendas gigantescas,
desde que apresentem elevados níveis de produtividade, ao la-
do de massas de miseráveis desprovidos de terras, seja com-
patível com a realização da função social da terra;

4. o processo de assentamentos realizado nas duas últimas dé-


cadas (fase contemporânea da reforma agrária) ocorre predo-
minantemente em terras até então mantidas improdutivas devi-
do à sua qualidade relativa inferior. A desapropriação é apre-
sentada enganosamente como punição pela ociosidade da
terra. Este processo de assentamentos não corresponde ao obje-
tivo central da reforma agrária e às reivindicações das massas
de sem-terras, e não pode portanto ser denominado de reforma
agrária. O assentamento de famílias pobres, desprovidas de re-
cursos produtivos e do conhecimento técnico adequado, em ter-
ras deste tipo, além de não corresponder ao conceito de refor-
ma agrária, não constitui sequer uma política de fomento, pois
não viabiliza a produção em condições adequadas pelos assen-
tados. O que esta política produz, na maior parte dos casos,
são assentamentos inviáveis, famílias frustradas nas suas expec-
tativas de melhoria econômica, social e cultural e aplicação
meramente assistencialista dos recursos públicos. É uma política
que atende à pretensão dos representantes dos grandes proprie-
tários de frustrar a realização da verdadeira reforma agrária
através da instalação de assentamentos inviáveis, que são de-
pois apresentados à sociedade como demonstração fabricada
de que a reforma agrária é inviável.

O fomento de uma produção agrícola significativa em tais ter-


ras e/ou regiões só seria bem sucedida se baseada em projetos
de desenvolvimento de alto nível técnico e econômico, que
requeririam investimentos públicos de vulto. Tais políticas e os
vultosos gastos a elas associados, no entanto, já têm sido reali-
zados intensamente, uma vez que a produção agrícola já está
sendo fomentada com recursos públicos gigantescos, mas que
beneficiam o segmento de grandes empresas capitalistas, locali-

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zadas nas terras de melhor qualidade natural e melhor situação


geográfica em relação aos mercados5. De numa perspectiva
social global, a riqueza rural a ser distribuída não necessita mais
ser fomentada, uma vez que já existe, nos grandes complexos
empresariais agrícolas (ou agronegócio) beneficiados larga-
mente por recursos públicos, nos quais já foi fomentada e se
encontra concentrada a riqueza a ser redistribuída por uma
política abrangente de reforma agrária, se o que se deseja é
edificar uma estrutura agrária mais equitativa;

5. disto decorre a conclusão de que, na fase contemporânea da


reforma agrária, o objetivo da redistribuição da riqueza no meio
rural não se atinge mais por mera redistribuição de terras po-
bres e ociosas e em regiões pobres e desprovidas de infraestru-
tura produtiva e social, que são símbolos de pobreza e não de
riqueza6. A riqueza social rural concentra-se na complexa e
diversificada estrutura do agronegócio, e esta concentração foi
e continua sendo amplamente fomentada por recursos públicos
canalizados pelas políticas do Estado brasileiro. Praticamente
não há mais terras aptas a uma produção economicamente
viável nas condições técnicas e econômicas hoje prevalecentes,
que não estejam associadas aos meios de produção desenvolvi-
dos, indispensáveis a uma produção agrícola competitiva e ren-
tável. Promover a função social da terra e redistribuir a riqueza
consiste, portanto, em uma política de reforma agrária aplicada
a estas terras, mas não só a elas, mas também aos meios de
produção nelas instalados. Neste sentido, se reforma agrária é
redistribuição da riqueza no meio rural, ela significa, hoje,
ampliar os espaços de assentamentos no interior dos espaços
tecnicamente avançados ocupados pelo agronegócio. Se isto
parece difícil, é porque a reforma agrária tem sido reduzida,
pelo conluio entre o Estado e a grande burguesia agrone-
gocista, ao processo de jogar irresponsavelmente os sem-terras
em áreas inaproveitáveis, na maior parte dos casos desprovidas
da infraestrutura mínima necessária, e abandoná-los à própria
sorte, ocupado que está o Estado na ingente tarefa de fomentar
indefinidamente o enriquecimento da burguesia agronegocista;
5 - Políticas de fomento dirigidas a regiõe deprimidas com o objetivo de maior equilíbrio interregional con-
stituem outro capítulo da política pública, e podem estar associadas à política de reforma agrária, mas
não constituem o centro desta.
6 - Ironicamente, a desapropriação destas terras tem servido, segundo seguidas denúncias, ao enriqueci-
mento dos seus proprietários, através da fixação de preços astronômicos que sangram os cofres públicos.

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Ensaios e Debates

6. o processo de assentamentos realizado nas duas últimas dé-


cadas também se concentrou amplamente em áreas escassa-
mente povoadas, principalmente na região Norte7. Estes assen-
tamentos associam-se predominantemente a uma política de
colonização, e têm sido realizados do mesmo modo precário e
irresponsável que os assentamentos em terras de qualidade infe-
rior nas demais regiões do país. Assentamentos de colonização
também não constituem iniciativas de reforma agrária;

7. sendo assim, a reivindicação de uma política de governo


realmente comprometida com a reforma agrária, que pressupõe
em primeiro lugar a existência de um governo com ela compro-
metido, deveria basear-se nos seguintes princípios:

I) restabelecer o sentido social e econômico da reforma


agrária como uma política destinada à redistribuição da
riqueza no meio rural, e não de fantasiosa e enganadora
promoção da exploração de terras atualmente inadequadas
e por isto inexploradas, ou do aumento da produtividade
técnica e econômica nas terras já exploradas;

II) reorientar as políticas agrária, agrícola e econômica para


que deixem de funcionar como força auxiliar das grandes
empresas capitalistas do agronegócio e dos grandes fazen-
deiros, e passem a contemplar preponderantemente as ne-
cessidades das massas majoritárias da população rural e,
por via indireta, da totalidade da população brasileira;

III) criar espaços institucionais eficientes para o desencadea-


mento de um processo de avaliação da forma dos assentamen-
tos realizados até hoje, com a participação integral e efetiva
dos representantes dos movimentos de luta pela terra e dos
assentados, a fim de reformular a forma dos assentamentos de
modo que se compatibilizem com os objetivos redistributivos da
reforma agrária e com as aspirações dos assentados;

IV) com base neste processo de avaliação e em comum acor-


do com os interessados, instituir formas de propriedade e de

7 - Segundo dados recentes, os 'assentamentos' na região Norte, de 1969 a 2005, representam aproxi-
madamente 70% da área e 43% das famílias assentadas. Dados referentes a um período mais recente se-
riam preferíveis.

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gestão dos assentamentos de reforma agrária compatíveis


com a realidade da avançada estrutura produtiva agrícola a
ser redistribuída e com as circunstâncias dos sem-terra. As
formas coletiva, cooperativa ou mista de propriedade e de
produção são opções que devem ser consideradas preferen-
cialmente. Estas formas contam com ampla aceitação por
parte dos movimentos, desde que assistidas por formas ade-
quadas de apoio técnico, creditício, contábil, jurídico e políti-
co, pelo menos nos mesmos níveis dos que o Estado tradicio-
nalmente fornece aos setores empresariais do agronegócio.

BIBLIOGRAFIA

GERMER. C. O novo sentido da reforma agrária. Jornal dos Trabalhadores


Rurais Sem Terra, Ano VIII, n. 76, setemtro 1988, p. 17.

GERMER, C. Só os trabalhadores farão reforma agrária. Teoria & Debate,


Ano 2, n. 7, jul/ago/set 1989, p. 49-51.

GERMER, C. O caráter revolucionário da reforma agrária. Jornal dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra, Ano X, n. 92, março 1990, p. 4-5.

GERMER, C.M. (1994). Perspectivas das lutas sociais agrárias nos anos 90.
In: STÉDILE, J.P. (Coord.). A questão agrária hoje. 3a. ed. Porto Alegre :
Editora da Universidade- UFRGS / Assoc. Nac. de Cooperação Agrícola, p.
259-284.

LABINI, P.S. (1983). Ensaio Sobre as Classes Sociais. Rio, Zahar Editores.

LENIN, V.I. (1982). O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. São


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MAURO, R. (1999). A estrutura de classes na agricultura brasileira.


Monografia de conclusão do curso de Graduação em Economia.
Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

MST. Manual da cooperação agrícola - III : Orientações para implantação


de associações de cooperação agrícola. São Paulo : MST, 1989.

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Uma proposta para


desenvolvimento dos
assentamentos

Guilherme C. Delgado

INTRODUÇÃO

A "Questão Agrária" no Brasil como problema político relevante, na leitura


dos partidos de esquerda, da Igreja Católica e de várias organizações civis e
movimentos sociais que tem se mobilizado em torno do tema, ocupa mais
de meio século de lutas sociais, demandas políticas, pressão popular, etc.

Neste meio século, excluída a fase mais dura do regime militar, após o AI
05, as respostas políticas do estado brasileiro às demandas por Reforma
Agrária consistiram na adoção de variadas formas de distribuição de terra,
posses e medidas fundiárias tópicas, cuja resultante nos dias atuais é ainda
precária em termos de desconcentração fundiária nacional. Mas contém
alguns indicadores físicos, dignos de nota:

- cerca de 5,5% do território nacional (47,0 milhões de ha) cor-


respondem atualmente a projetos de colonização e/assenta-
mentos, criados principalmente nos últimos 15 anos (pós-regu-
lamentação da Constituição de 1988);

- nestes projetos estão inseridos +- 12,5% de população rural,


medida pelo Censo Demográfico de 2000 (cerca de 4,0 mil-
hões de pessoas), presumivelmente com toda a respectiva PEA,
ocupada nos assentamentos;

- desconhece-se o volume da produção econômica oriunda dos


cerca de 6.400 Projetos de Assentamentos implantados até fev/
2005 e a respectiva superfície agrícola utilizada nos últimos anos-
safra. (Todos os dados aqui citados são relativos a 6416 Projetos
em fevereiro de 2005 - fonte MDA - INCRA - Relat. 0227).

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Ensaios e Debates

A resposta governamental às demandas por redistribuição de terras, agora


já nos reportando ao período mais recente (depois da Lei Agrária de 1993)
que regulamentou as novas disposições constitucionais sobre a função social
de propriedade), evidenciam uma resistência histórica muito forte do estado
brasileiro a promover mudança efetiva no modelo agrário brasileiro. Postura
histórica semelhante, relativamente à questão do trabalho escravo no século
XIX, caracterizou mais de meio século de campanha abolicionista - que prati-
camente se esgotou com a assinatura da Lei Áurea em 1888;

Cem anos depois da "solução" para a Questão Social do sec. XIX, a


"Questão Agrária" politicamente posta na agenda da segunda metade do
século XX, continua, depois de forte resistência, a ser tratada como problema
de distribuição de terras. E ali onde esta chega a se fazer, mediante ato redis-
tributivo do estado - desapropriação e assentamento, praticamente se encer-
ra o processo de mudança das relações econômico-sociais, presumivelmente
por se julgar que a economia e sociedade envolventes cuidariam da rein-
serção econômico-social dos novos assentados.

Na verdade, os assentamentos de reforma agrária deixados a mercê das


forças do mercado no século XXI, assim como os ex-escravos libertos em 1888,
deixados a mercê da sociedade desigual da época, são posturas de omissão
política conducentes à reprodução da desigualdade social. Não permitem a
criação de condições de igualdade de oportunidade ou de igualdade de ca-
pacidade que viabilizem efetuar mudanças de relações de trabalho e/ou de
reações fundiárias, compatíveis com a idéia força de desenvolvimento com
justiça social. Em razão da omissão política, os assentamentos relegados às
condições dos mercados pré-existentes à redistribuição de terras, em geral ten-
dem a produzir e/ou reproduzir nos moldes de uma economia de subsistência.
Em outra situação marginal, integram-se passivamente à dinâmica da grande
agroindústria, na perspectiva de integração que esta determina.

2. REFORMA AGRÁRIA E
DESENVOLVIMENTO DOS ASSENTAMENTOS

A desapropriação de terras para assentamentos da Reforma Agrária é


processo inicial desta. É condição necessária à Reforma Agrária, como fora a
Lei Áurea à libertação dos escravos. Mas de nenhuma maneira é condição
suficiente para concretização do projeto de desenvolvimento dos assentamen-
tos. Conquanto esta tese seja de aceitação mansa e pacífica em qualquer dis-
cussão teórica sobre o tema, a "praxis" da reforma agrária brasileira, as insti-

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tuições que a executam e o próprio debate político estão fortemente concen-


trados na redistribuição de terras e quase inteiramente deslocados das con-
dições para desenvolvimento do "setor reformado". Este texto é uma proposta
de girar 90 graus a prioridade político-institucional do tema.

2.1. O CONTEXTO SITUACIONAL DOS ASSENTAMENTO


FACE A ECONOMIA DO AGRONEGÓCIO

O debate histórico e teórico sobre desenvolvimento capitalista e reforma


agrária pode e deve ser revisitado na retrospectiva da "Questão Agrária"
brasileira contemporânea1; mas se escolhermos por foco a atualidade da
ação política contemporânea sobre o modelo agrário brasileiro, a questão do
desenvolvimento apresenta matizes concretas às quais precisamos nos ater.

O modelo agrário dominante na atualidade é o chamado sistema agromer-


cantil do agronegócio - um pacto agrário tácito do grande capital agro-indus-
trial com a grande propriedade fundiária, fortemente ancorado na demanda
externa, pelo lado mercantil, e na frouxidão da política agrária e ambiental,
internamente, sob o enfoque político. Conceitualmente é o modelo de capi-
tal financeiro na agricultura, no contexto fundiário brasileiro.

Por outro lado, o "setor reformado", composto por assentamentos de refor-


ma agrária, e a demanda por sua ampliação, manifesta por "acampamen-
tos" e outras expressões sociais de demanda por terras, constituem um pólo
relativamente organizado de forças sociais que operam fora da economia
política do agronegócio.

Este setor não expressa ainda um projeto econômico alternativo. Depara-se


com a disjuntiva de se constituir, positivamente, em pólo alternativo de desen-
volvimento ao modelo do agronegócio, ou negativamente retroagir à
condição de economia de subsistência. O salto da qualidade na linha do pro-
jeto alternativo, é possível e necessário que seja explicitado em termos de
suas condições de possibilidade teóricas. Mas essa discussão não cabe neste
texto, ficando aqui pressuposta. Este texto, está dirigido a uma reflexão bem
próxima à "práxis" política do Poder Executivo Federal, no contexto de uma
política de desenvolvimento dos assentamentos.

1 - Ver a este respeito de minha autoria "Questão Agrária no Brasil: 1950 - 2003" op.cit.

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2.2. CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO DOS ASSENTAMENTOS

Os estoques de áreas desapropriadas e de famílias assentadas para fins de


reforma agrária nos dias atuais constituem um espaço social - uma base
geográfica e de população, onde o desafio do desenvolvimento é crucial para
viabilidade da Reforma Agrária. Esse desenvolvimento, no sentido econômi-
co, requer necessariamente elevação da produtividade do trabalho e pro-
dução de excedente econômico por parte das unidades econômicas do
assentamento. Tal processo solicita um arranjo de organização produtiva ,
relação de trabalho e práticas ecológicas, susceptíveis de gerar um
produto/renda potenciais, inteiramente distintas da economia do agronegó-
cio. Nesse processo, de organização social, protagonizado pelos Movimentos
Sociais, forjam-se as bases ético-políticas de um projeto de desenvolvimento.
Mas para viabilizar este projeto é preciso política pública.

Por sua vez, a pré-existência dessa população nesse território reestruturado é


uma condição material de possibilidade desse projeto de desenvolvimento. Ade-
mais, a geração e realização de um produto econômico potencial neste espaço,
requer ações de fomento produtivo, comercial tecnológico, educacional, etc.,
que propiciem a reinserção econômica dos assentamentos em novas bases. Isto
não está pronto e acabado para ser implantado, mas também não é algo in-
sondável e distante que não possa se traduzir em ação política imediata.

Por outro lado, há os que negam ou desqualificam a necessidade de cons-


trução de um projeto de desenvolvimento alternativo - com organização dos
produtores, bases técnicas e ecológicas próprias e relações de trabalho distin-
tas da economia do agronegócio. Para estes, sequer reestruturação fun-diária
teria que haver, e ali onde esta de fato houve, bastaria adotar o mode-lo pro-
dutivo e tecnológico do agronegócio. Desenvolvimento nesta acepção seria
mera acumulação de capital em regime de competição, com assentamentos
"integrados" de forma marginal aos setores dinâmicos da agro-indústria.

Do nosso ponto de vista é possível e necessária erigir o projeto alternativo,


até mesmo porque não há nenhuma evidência de que o modelo dominante
seja capaz de gerar o padrão ocupacional, distributivo e ambiental que se
almeja para o desenvolvimento dos assentamentos. A ambição imediata
desse projeto, no sentido aqui presumido, não é substituir o sistema agromer-
cantil, mas conquistar-lhe espaço e civiliza-lo.

Sob o enfoque dos fatores que corroboram positivamente para o projeto de


desenvolvimento alternativo, há que considerar três condições relevantes: a)

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já houve uma reestruturação fundiária prévia; b) é possível mobilizar para o


espaço dos assentamentos o conjunto de direitos sociais universais do espec-
tro da política social brasileira, principalmente a educação fundamental e
básica, saúde pública e o exercício dos direitos previdenciários; c) existem
múltiplas iniciativas governamentais e não governamentais de demanda insti-
tucional por produtos agropecuários, ainda sem conexão com a economia
dos assentamentos.

O nó górdio do modelo alternativo são dois conjuntos de fatores restritivos


ora presentes na economia dos assentamentos: 1) uma gama de restrições téc-
nicas, locacionais, infraestruturais e de recursos naturais que bloqueiam a ele-
vação da produtividade do trabalho; 2) dificuldades para comercialização da
produção nos mercados, que obstam a geração do produto potencial dessas
novas forças produtivas. Obviamente estas restrições não são apenas "técni-
cas", mas a expressão técnico-econômica de um certo bloqueio às mudanças
do modelo agrário, impostos pelo sistema de forças políticas conservadoras.

3. NOVA INSTITUCIONALIDADE NA POLÍTICA AGRÁRIA


COM VISTAS AO DESENVOLVIMENTO DOS ASSENTAMENTOS

Considerando as duas restrições básicas supra mencionadas que ora blo-


queiam o desenvolvimento dos assentamentos, no sentido aqui assumido do
projeto de desenvolvimento alternativo, depreende-se de sua leitura à neces-
sidade de adoção de políticas agrárias concernentes para desatar esses nós.
Observe-se que sem ações dessa natureza a tendência normal do sistema e
de se reproduzir de maneira desigual e perversa - comprometendo a possibil-
idade do desenvolvimento alternativo.

Por outro lado, o atual formato institucional da Reforma Agrária no Brasil


não conduz à superação das restrições ao desenvolvimento econômico elen-
cados na seção precedente.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, sob jurisdição do


Ministério de Desenvolvimento Agrário, é o órgão encarregado de coorde-
nação e execução da política de Reforma Agrária. Sua estruturação, exper-
iência e demandas estão fortemente concentradas na redistribuição e fiscal-
ização de terras, no contexto da aplicação dos Arts. 184 a 186 da
Constituição Federal, que tratam da função social da propriedade fundiária.
Porisso, as funções de desenvolvimento dos assentamentos já constituídos,
escapam à competência mais especializada desta instituição, no formato em
que ela está organizada até o presente.

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Se retomarmos a leitura de seção procedente - item 2.2., naquilo que con-


cerne aos nós mal resolvidos que constituem desafios ao modelo de desen-
volvimento alternativo - 1) elevar a produtividade do trabalho para gerar
excedentes; 2) realizar (vender) a produção, sob algum arranjo de demanda
institucional, veremos que tais problemas apresentam muito baixa capacidade
de resposta institucional pelo INCRA atual, no primeiro caso, e no segundo
caso nenhuma capacidade de resposta.

As ações de provisão de progresso técnico e manejo ambiental voltados


aos assentamentos - compreendendo inovações técnicas, assistência técnica,
capacitação etc., não estão bem contemplados no arranjo atual de
atribuições do INCRA e da EMBRAPA. Por vez, as funções de fomento produ-
tivo e comercial dos assentamentos - hoje repartidos entre o MDS, CONAB
(MA) e MDA (INCRA), sob o abrigo do Programa de Aquisição de Alimentos
da Agricultura Familiar e PRONAF (Programa de Fortalecimento da
Agricultura Familiar) não conseguem estabelecer um foco nos assentamentos
e nem na estratégia de desenvolvimento alternativo. Há múltiplos e confusas
disputas de recursos, objetivos e competências institucionais nestes dois
Programas, que combinadas com a fragilidade institucional do INCRA para
formular e executar política de desenvolvimento para os assentamentos -
resultam nessa visível lacuna de ação na política agrária.

Uma reestruturação político-administrativa no aparato de gestão do desen-


volvimento dos assentamentos é necessária, mas seria prematura qualquer
discussão sobre organogramas institucionais, sem que se aprofundasse a
reflexão sobre a mudança de 90º (veja-se que não é de 180 graus) na pri-
oridade da Reforma Agrária. Redistribuição de terras deve continuar a se exe-
cutar no contexto da institucionalidade atual do INCRA, para dar conta dos
fluxos correntes de assentamentos. Mas o desenvolvimento dos assentamen-
tos precisa passar por reestruturação profunda, para dar conta do projeto
alternativo, relativo ao estoque total dos assentamentos.

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12 - Como se pode ver nos dados do Quadro 01, Minas Gerais ocupava a segunda posição em termos de
área de cana no Brasil. Contudo, naquela época esse estado não possuía uma estrutura de produção açu-
careira semelhante à de Pernambuco, Alagoas e São Paulo, marcada pela presença de usinas, mas sim pela
existência de inúmeros pequenos engenhos de açúcar mascavo, rapadura e aguardente.
13 - Estes processos já foram analisados por diversos autores, os quais foram utilizados em RAMOS, 1983 e
RAMOS, 1999. Aqui é feito um exercício de síntese sobre eles.

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14 - Fogo Morto é um dos títulos da obra de José Lins do Rego que, como se sabe, imortalizou na literatura
brasileira os processos ocorridos na agroindústria canavieira de Pernambuco.
15 - Uma outra opção foi apontada por Celso Furtado: "Além da grande corrente migratória de origem européia
para a região cafeeira, o Brasil conheceu no último quartel do Século XIX e primeiro decênio deste um outro
grande movimento de população: da região nordestina para a amazônica" (FURTADO, 1977, p. 129).
16 - Ver DIÉGUES JÚNIOR, 1954. O trecho a seguir é retirado da página 164.

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QUADRO 07 – PERNAMBUCO E ALAGOAS - DISTRIBUIÇÃO DO PESSOAL OCUPADO POR CATEGORIA -


1950 – 1960 (RMNRF = Responsáveis e membros não remunerados da família; E = Empregados)
CATEGORIAS LITORAL E ZONA DA MATA DE PE LITORAL E ZONA DA MATA DE AL
1950 % 1960 % 1950 % 1960 %
RMNRF 39.000 18,76 81.579 30,91 46.204 37,36 57.818 39,00
E. trabalho permanente 92.464 44,47 67.494 25,58 35.394 28,62 25.850 17,44
E. trabalho temporário 73.994 35,59 99.420 37,67 40.811 33,00 54.0238 36,44
Parceiros 2.456 (*) 1,18 888 0,34 1.270 (*) 1,03 992 0,67
Outra condição - - 14.523 5,50 - - 9.559 6,45
TOTAL 207.914 100,00 263.904 100,00 123.679 100,00 148.242 100,00
Fontes: IBGE, Censo econômico de 1950 e Censo Agrícola de 1960.
(*) Inclui o pessoal que trabalha por conta d os parceiros.

17 - Muitas obras já foram escritas sobre isto, entre as quais a da nota anterior e a de SIGAUD, 1979. Outras
serão mencionadas a seguir, quando for tratado o caso de São Paulo.
18 - Ver AZEVEDO, 1982. Embora o autor trate (página 59) como "meia verdade" a versão mais conhecida quan-
to à origem da "Liga Camponesa da Galiléia" como sendo a de "uma associação beneficente, com o objetivo
exclusivo de criar um fundo mútuo de ajuda para financiar caixões mortuários", ela pode ser tomada como um
sintoma da realidade vivida pelos trabalhadores da região.

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QUADRO 08 - BRASIL - DISTRIBUIÇÃO E EVOLUÇÃO DA ÁREA CULTIVADA COM CANA -DE-AÇÚCAR


1932 – 1940 – 1950 – 1960 (em hectares, com médias trienais centradas nos anos indicados)
Estado e Região 1932 (1) 1940 (2) 1950 (3) 1960 (4) Evoluções %
(1)-(2) (2)-(3) (3)-(4) (1)-(4)
NORTE/NORDESTE 223.880 248.915 341.744 505.372 11,2 37,3 47,9 125,7
- Pernambuco 112.827 113.900 153.815 215.253 1,0 35,0 39,9 90,8
- Alagoas 28.027 41.677 53.338 95.202 48,7 28,0 78,5 239,7
- Paraíba 6.837 10.905 28.130 37.452 59,5 158,0 33,1 447,8
CENTRO/SUL 144.910 291.109 491.326 827.177 100,9 68,8 68,4 470,8
- Rio de Janeiro 22.827 51.811 82.439 112.647 127,0 59,1 36,6 393,5
- São Paulo 33.403 77.341 146.722 364.768 131,5 89,7 148,6 992,0
- Minas Gerais 36.827 79.633 136.460 177.529 116,2 71,4 30,1 382,1
- Paraná 2.563 2.122 10.191 24.643 - 17,2 380,3 141,8 861,5
- Goiás 8.773 6.370 18.091 34.574 - 27,4 184,0 91,1 294,1
- Mato Grosso 883 2.580 6.062 11.171 192,2 135,0 84,3 1.165,1
BRASIL 368.790 540.024 833.070 1.332.549 46,4 54,3 60,0 261,3
Fonte: FIBGE, Anuários Estatísticos de vários anos.

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19 - Ver os detalhes disto em RAMOS, 1999, página 107.


20 - Isto é que explica porque alguns desses imigrantes/colonos e seus descendentes puderam vir a ser, depois
de transcorridas poucas décadas, proprietários de negócios fabris e comerciais, cabendo destacar entre eles
muitas usinas paulistas. Ver sobre isto, RAMOS, 1998/1999.
21 - Conforme KAGEYAMA, 1979, p. 139.
22 - Ver FURTADO, 1977, p. 165.

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QUADRO 09 – ESTADO DE SÃO PAULO – DISTRIBUIÇÃO E EVOLUÇÃO DAS CATEGORIAS DE PESSOAL


OCUPADO PELOS ESTABELECIMENTOS AGROPECUÁRIOS – 1940 – 1950 – 1960
Categorias 1940 (1) 1950 1960 (2) Variações % (1) -(2)
Familiares 715.486 38,0 % 607.299 40,1 % 839.300 44,9 % 17,3 %
Permanentes 1.030.113(*) 54,6 % 519.633 34,3 % 455.712(**) 24,4 % - 55,8 %
Temporários 139.858 7,4 % 152.671 10,1 % 434.123 23,2 % 210,4 %
Parceiros - - 234.303 15,5 % 139.471 7,5 % (...)
TOTAIS 1.885.457 100,0 % 1.513.906 100,0 % 1.868.606 100,0 % - 0,89 %
Pes. Ocup./1000 há 712 (***) 562 (***) 605 (***) - 15 %
Fonte: LOPES, 1977, p. 46, com as seguintes notas: (*) “Em 1940 engloba ‘Colonos e Empregados’ (permanentes). Os
parceiros estão, provavelmente, incluídos neste total”; (**) “Em 19 60 adicionamos aos empregados permanentes os de
‘outra condição’”; (***) “Pessoal ocupado por 1000 hectares de área de cultivo temporário”.

23 - Os comentários a seguir devem ser considerados como uma síntese da análise contida em RAMOS, 2005.
24 - Não obstante isso, "Nos centros industriais como São Paulo e Rio de Janeiro, que eram responsáveis por
cerca de 50% do total dos empregos urbanos registrados, o valor do primeiro salário mínimo ficou abaixo da
média dos menores salários, enquanto que no restante das cidades o mínimo legal foi superior à média das
menores remunerações" (conf. POCHMANN, 1994, p. 648). O primeiro salário mínimo foi estipulado para o ano
de 1940. Um estudo sobre saída de trabalhadores agrícolas, por salário diário mais frequente, em 1952, reve-
lou que "os estados do Nordeste que mais tiveram municípios que perderam trabalhadores agrícolas foram os de
Ceará, Pernambuco e Bahia". Uma consulta aos anuários estatísticos do IBGE mostrou que "os salários agrícolas
mais frequentes pagos nos municípios do Nordeste eram, na esmagadora maioria (90%), inferiores ao salário mí-
nimo vigente em Salvador, e que este e aqueles eram bem menores que o salário mínimo médio estipulado para
São Paulo" (trechos extraídos de RAMOS, 2005, pp. 96 e 97).

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25 - Os dados de um trabalho indicam que, em 1955, na "zona rural do Estado de São Paulo" a distribuição da
força-de-trabalho era a seguinte: "colonos"+"parceiros": 510 mil trabalhadores (36,4%); arrendatários: 215 mil
(15,4%); proprietários: 26,4%); "camaradas por dia"+"camaradas por mês": 307 mil (21,8%) (ver ETTORI, 1955,
p. 14). Outro indicador encontra-se em STOLCKE, 1986, p. 236, que mostra que o número de "colonos e suas
famílias" caiu 100% e o de "parceiros e suas famílias" caiu 96,9% nas propriedades cafeeiras paulistas entre 1958
e 1970.
26 - Alguns dados evidenciam este movimento: a importação de tratores e acessórios mecânicos agrícolas no
Brasil passou de 3.100 toneladas na média de 1937/48 para a de 18.200 na de 1949/53 e para 47.600 em
1954. Dados retirados de GNACCARINI, 1980, p. 83. Por sua vez, o número de tratores na agricultura brasileira
passou de 1.706 em 1920 para 3.380 em 1940, para 8.372 em 1950 e para 61.345 em 1960. Dados retira-
dos de SORJ, 1980, p. 35.
27 - Sobre isto ver RAMOS, 2005, páginas 111 e 112. Para ilustrar a afirmação basta destacar que, em 1960,
a relação AL/AT dos estabelecimentos de São Paulo ainda era de apenas 24,7%; a relação AT/AG (ou
AT/Superfície) era de 78%. Em dois estados da fronteira elas eram, respectivamente de 3,4% e 44,8% em Goiás
e de 1,3% e 21% no Mato Grosso.
28 - Não há espaço aqui para detalhes sobre isto. Ver RAMOS, 1999, páginas 159-165.

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QUADRO 10 – BRASIL - DISTRIBUIÇÃO E EVOLUÇÃO DA ÁREA COLHIDA DE CANA -DE-AÇÚCAR


EM ALGUNS ESTADO S - 1960 – 1970 – 1980 - 1985 (em hectares)
REGIÕES/ESTADOS 1959 (1) 1970 (2) 1980 (3) 1985 (4) Evoluções %
(1)-(2) (2)-(3) (3)-(4) (1)-(4)
- Pernambuco 259.183 273.877 380.509 465.463 5,67 38,93 22,33 79,59
- Alagoas 102.487 166.194 380.151 484.451 62,16 128,74 27,44 372,70
- Paraíba (Outras) 40.007 85.455 119.765 (...) 113,60 40,15 (...)
- Sergipe (Outras) 17.540 21.134 26.855 (...) 20,49 27,07 9...)
- Rio de Janeiro 123.343 180.946 199.655 183.220 46,70 10,34 -8,23 48,55
- SÃO PAULO 291.013 580.487 1.073.120 1.694.994 99,47 84,87 57,95 482,45
- Minas Gerais 86.593 168.549 169.124 243.684 94,65 0,34 44,09 181,41
- Paraná (Outras) 30.035 62.092 144.412 (...) 106,73 132,58 (...)
- Goiás (Outras) 9.824 12.572 77.196 (...) 27,97 514,03 (...)
- Mato Grosso (Outras) 3.900 15.250 62.297 (...) 291,03 308,50 (...)
Fonte: IBGE (Censo Agrícola de 1960 e Censos Agropecuários de 1970, 1980 e 1985).
Notas: Os números para o Mato Grosso incluem os dos dois estados – Mato Grosso e Mato Grosso do Sul;
(Outras) significa que o Censo Agrícola de 1960 apresenta a cana entre “outras lavouras temporárias”,
não destacando a área colhida, apenas a quantidade colhida.

29 - Ver PAMPLONA, 1984, p. 9


30 - Ver QUADROS DA SILVA, 1983, p. 46. A área total média dos estabelecimentos paulistas que tinham na
cana sua atividade econômica elevou-se de 128,9 há em 1970 para 186,3 em 1975 e para 220,5 há em 1980
(ver RAMOS, 1999, p. 229).
31 - Notar que a fonte dos dados do Quadro 10 são os censos, a dos do Quadro 08 são os Anuários Estatísticos.
32 - Sobre a expansão da agroindústria canavieira alagoana sugere-se a leitura do trabalho de LIMA, 2001.

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33 - Como pode ser visto no Quadro 13, a cana era, em 1959 a quinta cultura em área colhida no estado; atrás
do café, do milho, do arroz e do algodão.
34 - Ver, para um tratamento aprofundado do caso de São Paulo, STOLCKE, 1986. Na página 233, ela escreveu
sobre a Lei n. 5.889: "Ao invés de eliminar algumas das deficiências observadas no Estatuto, em relação ao estatu-
to legal dos trabalhadores eventuais, a nova lei simplesmente excluía da proteção legal essa categoria crescente
de trabalhadores de modo ainda mais eficaz".

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QUADRO 11 – INDICADORES SÓCIO -ECONÔMICOS DOS QUATROS SISTEMAS DE PRODUÇÃO DA


ZONA DA MATA NORDESTINA – 1950 – 1970 (Densidades da população rural e da PE A Rural em pessoas/km 2).
Variável S. CANAVIEIRO SIST. CACAUEIRO SIST. ARROZEIRO S. COCO/POLICULTURA
1950 1970 1950 1970 1950 1970 1950 1970
o
N PEA agrícola 443.569 447.785 171.746 246.545 30.033 29.596 153.182 140.842
Taxa anual crescimento 0,04 % 1,82 % -0,07 % 0,42 %
PEA agrícola/PEA total 49,7 % 35,2 % 74,3 % 66,5 % 70,1 % 69,2 % 39,7 % 23,4 %
Densidade pop. Rural 66,79 57,32 20,32 18,21 43,89 46,05 47,17 41,44
Densidade PEA rural 94,71 47,34 17,29 12,26 78,63 35,15 72,44 49,44
Área total/tra balhador (1975) 6,50 (1975) 13,37 (1975) 4,80 (1975) 5,64
Área cultivada/trabalhador (1975) 2,89 (1975) 5,53 (1975) 2,59 (1975) 1,76
Fonte: IRMÃO, SA MPAIO, 1984, páginas 47,52 e 53.

QUADRO 12 – INDICADORES DO USO E TRABALHO DO SOLO EM TRÊS REGIÕES CANAVIEIRAS DO BRASIL


(áreas em hectares)
Variáveis MATA NORDESTINA CANAV. FLUMINENSE CANAVIEIRA PAULISTA
1949 1959 1970 1949 1959 1970 1949 1959 1970
Há cultiv. C/cana 209.120 345.856 420.375 101.268 95.616 149.906 70.997 179.326 332.402
Há c/outras cults . 71.847 90.400 62.946 54.534 59.005 37.087 450.018 421.235 334.447
Há c/pastagens 256.102 285.360 281.140 297.072 312.143 404.185 1.340.381 1.250.170 1.269.040
- Núm. tratores por 1.000 hectares 2,0 % de crescimento 6,3 % de crescimento da 13,1
- Núm. há/homem/todas as lavouras 2,19 da área cultivada 4,38 área cultivada com 4,94
- Núm. há/homem da lav. de cana 1,87 com cana entre 4,77 cana entre 1949 e 6,25
- Despesas com insumos – Cr$/há 88,7 1949 e 1970: 48 % 28,2 1970: 368,2 %; entre 122,0
- % do Salário no total das despesas 47,5 (Mata Nordes tina: 43,5 1959 e 1970: 85,4 % 29,6
- % dos insumos agrícolas, idem 15,3 101 %) 8,8 21,2
Fonte: INCRA/U nicamp, 1977, diversas páginas.

35 - As singularidades da agroindústria canavieira desta área foram objeto de primorosas pesquisas publicadas
pela antropóloga Delma Pessanha Neves. Ver NEVES, 1981 e 1997.

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QUADRO 13 – ESTADO DE SÃO PAULO – ÁREA TOTAL (AT) E ÁREA MÉ DIA (AM) COLHIDA
DAS PRINCIPAIS CULTURAS – 1959 – 1970 – 1975 – 1980 – 1985 (área total em mil hectares)
CULTURAS 1959 1970 1975 1980 1985
AT AM AT AM AT AM AT AM AT AM
1. Café 1.285,53 13,25 650,88 8,57 711,26 10,06 821,05 9,29 723,39 9,27
2. Milho 898,65 5,42 1.262,09 7,48 1.076,64 7,44 1.006,10 8,65 1.040,04 9,47
3. Arroz 488,49 3,78 447,73 4,46 446,21 4,24 259,63 3,51 228,70 3,45
4. Algodão 408,30 7,50 531,10 10,81 292,50 12,21 236,69 16,41 325,58 16,82
5. Cana 291,01 29,16 580,49 38,28 689,48 66,12 1.073,12 80,42 1.694,99 108,04
6. Feijão 185,62 1,68 130,18 1,88 145,76 2,37 306,22 3,99 287,02 3,96
7. Amendoim 166,39 4,77 322,55 6,94 159,48 6,52 149,42 8,47 106,24 9,34
8. Banana 43,99 2,64 ... ... 30,48 2,28 29,40 1,82 31,78 1,78
9. Laranja 31,05 1,49 112,06 3,99 188,16 5,28 347,77 8,64 485,76 12,14
10. Mandioca ... ... 35,69 2,80 ... ... ... ... 27,52 2,47
11. Batata ... ... 27,29 4,63 20,53 6,06 17,17 6,92 20,96 7,25
12. Soja ... ... 69,42 47,62 348,77 61,02 485,51 63,72 470,06 63,49
13. Trigo ... ... 12,68 25,41 ... ... ... ... 138,26 52,27
Fonte: IBGE, Censo agrícola de 1960 e Censos Agropecuários de 1970, 1975, 1980 e 1985.
Nota: O uso de ... significa que os censos não destacam a cultura como uma das p rincipais nos anos respectivos.

36 - Dados extraídos de SECRETARIA DA AGRICULTURA, 1972, p. 114 e de RAMOS, 2005, p. 95.

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QUADRO 14 – ESTADO DE SÃO PAULO - DISTRIBUIÇÃO DO PESSOAL OCUPADO


POR CATEGORIA NAS PRINCIPAIS CULTURAS E M 1970
CULTURAS TOTAL PES. DISTRIBUIÇÃO %
OCUPADO RMNRF (1) Es. Ps. (2) Es. Ts. (3) P. e O. C. (4) P.O. p/há colhido (5)
1. Café 310.518 54,62 27,63 9,46 8,29 0,48
2. Milho 188.314 77,17 9,43 9,02 4,38 0,15
3. Arroz 70.412 77,67 8,31 8,45 5,57 0,16
4. Algodão 151.801 68,93 9,58 14,05 7,44 0,29
5. Cana 89.966 25,99 43,44 27,92 2,66 0,15
6. Feijão 16.988 87,60 3,63 6,04 2,74 0,13
7. Amendoim 114.590 79,40 3,70 15,31 1,59 0,36
8. Banana 19.403 62,38 24,00 12,43 1,20 ...
9. Laranja 35.596 48,99 30,56 16,02 4,43 0,32
10. Mandioca 11.471 84,00 6,83 5,11 4,05 0,32
11. Batata 17.269 45,86 17,20 31,58 5,37 0,63
12. Soja (*) 4.756 30,24 33,75 35,43 0,59 0,07
FONTE: SÃO PAULO (ESTADO)..., 1978, p. 113.
Notas: (1)Responsáveis e membros não remunerados da família; (2) Empregados permanentes; (3) Empregados
temporários; (4) Parceiros e outra condição; (5) Pessoal ocupado por hectare de área colhida do Quadro 13.
(*) Refere -se a “trigo e soja em grão” na fonte utilizada.

37 - Ver OLIVEIRA, 1981. Em outro trabalho encontra-se que "A utilização de volantes não implicou na unificação
do mercado de trabalho. Gostaríamos de sugerir aqui uma distinção analítica entre integração do mercado de
trabalho e unificação do mercado de trabalho. Se esta última não se deu, ocorreu, no entanto, grande integração
(...) pela fluidez maior da mão-de-obra rural e pela aproximação dos empregos rurais e urbanos" (CASTRO et.
al., 1979, p. 196).
38 - A distribuição da utilização de mão-de-obra entre as diferentes operações agrícolas nas propriedades das
usinas paulistas apresentou uma queda, durante a década de 1970, na participação da operação "tratos cultu-
rais", de 38 para 20% e, entre 1960/1 e 1981/2, um crescimento de 7 para 18% nas de "preparo do solo e plan-
tio", com a "colheita" absorvendo 61% em 1960/1 e 63% em 1981/2 (conforme dados apresentados por
GRAZIANO DA SILVA, 1997, p. 57). Dados sobre o uso de homens/dia em quatro culturas (algodão, café, cana
e feijão), em São Paulo, em 1974/5, evidenciaram que o algodão era a lavoura que tinha na colheita um nível
igual, 63% (dados de KAGEYAMA et. al., 1981, p. 127). O porcentual na colheita não é maior porque a partir
de 1960/1 passou a se disseminar em São Paulo o carregamento mecânico da cana cortada; sendo que a
queima da cana para o corte manual foi introduzida ainda na década de 1950. Conforme VEIGA FILHO, 1998
(Item 4.1), embora algumas colhedoras automotrizes de cana tenham entrado em operação em São Paulo ape-
nas no início da década de 1970, algumas experiências com máquinas importadas dos EUA haviam ocorrido na
década de 1950. Estima-se que ainda hoje a colheita totalmente mecânica de cana-de-açúcar em São Paulo não
passa de um terço do total colhido, havendo grande variação regional.

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39 - É sabido que maior área média colhida não é indicador direto de grande propriedade, mas é inegável a
relação entre elas. De qualquer modo, o latifúndio canavieiro paulista está demonstrado também em RAMOS,
1999, págs. 229 e 232, em uma comparação com os casos da laranja e da soja, considerando-se as áreas totais
dos estabelecimentos que praticavam estas três culturas. Para dar dois destaques: em 1985, á área média total
dos que tinham na cana sua atividade econômica era de 231,7 hectares, face à 71,7 no caso da laranja e 141,4
no caso da soja. Nesse mesmo ano, os estabelecimentos com 1000 ou mais hectares de área total somaram
43,3% do total de cana colhida, face a 13,1% de toda a laranja e de 13,8% da soja colhida.
40 - HOFFMANN, CLEMENTE DA SILVA, 1986, páginas 153 e 155.
41 - O grande predomínio da cana industrial em São Paulo fica evidenciado com base nos seguintes dados: em
1964/5 e 1974/5, a área com cana forrageira correspondia a 10% da área daquela; em 1984/5, caiu para 4%
(conforme Informações Estatísticas do IEA).

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42 - Ver, sobre este problema, além do mencionado a seguir, os trabalhos de LOPES, 1977, e de GRAZIANO DA
SILVA, 1982, cap. 8.
43 - Ver KAGEYAMA, 1982, página 7. Para o caso de São Paulo, as correções elevaram os números, respectiva-
mente, em 96,4% e em 92,5%. Para o caso de Pernambuco, os percentuais de elevação foram de 26,4 e de 19,7.
44 - Outros trabalhos sobre o tema, além dos já citados, são o do DEPARTAMENTO DE ECONOMIA RURAL-
FCA-BOTUCATU, 1982; o de D'INCAO E MELLO, 1978 e o de SCARFON, 1979.
45 - Trecho retirado de BRANT, 1977, p. 40.

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QUADRO 15 – SÃO PAULO - DADOS DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA, DO USO DA


TERRA E DE OCUPAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA EM ALGUNS MUNICÍPIOS
CANAVIEIROS (AMOSTRA 1) E NÃO -CANAVIEIROS (AMOSTRA 2) – 1970 – 1975 – 1980
Variável AMOSTRA 1 AMOSTRA 2
1970 1975 1980 1970 1975 1980
Áreas total dos estabelecimentos (há) 848.377 n. d. 828.513 703.009 n. d. 661.905
Áreas com lavouras permanentes (há) 51.062 58.180 52.073 55.815 71.857 78.322
Áreas com lavouras temporárias (há) 355.908 416.537 461.086 85.157 82.242 93.078
% da área c/lavouras temps. C/cana 66,4% 64,5% n. d. 4,3% 2,9% n. d.
Número de bovinos em 1980 n. d. n. d. 180.790 n. d. n. d. 360.920
População em 1980 (% da rural) 782.597 (12,8%) 386.946 (16,4%)
Número total de estabelecimentos 9.052 7.195 5.969 8.405 6.685 7.108
Área média total (há) 93,7 121,1 138,8 83,6 99,6 93,1
Estabelecimentos Área total (há) 183.164 152.213 128.335 176.878 153.675 156.859
com menos de Número 7.599 5.822 4.734 7.082 5.395 5.799
100 há Área média (há) 24,1 26,1 27,1 25,0 28,5 27,0
Estabelecimentos Área total (há) 389.790 366.623 327.534 341.215 329.409 343.212
com área entre Número 1.331 1.224 1.080 1.235 1.137 1.218
100 e - 1.000 há Área média (há) 292,8 276,3 303,3 276,3 277,5 281,8
Estabelecimentos Área total (há) 275.423 352.885 372.644 184.916 182.650 161.834
com 1.000 e mais Número 122 149 155 88 103 91
há Área média (há) 2.257,0 2.368,0 2.404,0 2.101,0 1.773,0 1.778,0
Número total de pessoal ocupado 58.854 55.655 60.341 40.747 34.098 38.441
Núm. de trabalhadores permanentes 23.915 27.427 n. d. 9.661 11.353 n. d.
Núm.médio anual de pessoal ocupado n. d. 8.458 n. d. n. d. 4.502 n. d.
como trabalhadores temporários
Número de estabelecimentos que 1.756 2.335 n. d. 572 723 n. d.
usaram empreitada na colheita
Idem, no plantio 1.085 964 n. d. 417 427 n. d.
% de estabs. que usaram empreitada 19,4 % 32,4 % n. d. 6,8 % 10,8 % n. d.
na colheita s/número total de estabs.
Fonte: VILARINHO, 1983, diversas páginas.
Nota: A amostra 1 (“monocultores”) é formada por municípios “onde só a cana responde por um mínimo de 60%
do valor da produção agrícola”; a amostra 2 (“não -monocultores”) considera “municípios em que a lavoura da
cana-de-açúcar representa no máximo 5% do valor da produção agrícola” (Vilarinho, 1983, p. 3).

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QUADRO 16 – BRASIL E ALGUNS ESTADOS – INDICADORES DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA SUBJACENTE


À E CANA MOÍDA PELA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA – 1985
ESTADO/REGIÕES/ COLHEITA DE CANA ESTS.C/ATIV. ECON. CANA CANA MOÍDA(mil t) % (1)
BRASIL N. Ests. Ar. C. Amc. %N.Ests. Atot.ests. Amest. Quantidades % C.P.
Espírito Santo 3.568 42,83 12,00 29,60 119,75 113,40 2.372,08 57,01 98,40
Minas Gerais 70.639 243,68 3,45 15,82 695,80 62,25 10.240,89 74,26 91,26
Rio de Janeiro 19.688 183,22 9,31 57,69 356,44 31,38 8.507,66 36,95 105,94
São Paulo 15.689 1.694,99 108,04 71,36 2.594,23 231,73 121.731,43 66,20 97,38
Paraná 28.480 144,41 5,07 6,49 258,02 139,70 10.567,93 70,46 101,87
Santa Catarina 61.482 32,02 0,52 3,36 62,86 30,23 290,09 96,19 31,95
Rio G. do Sul 122.115 45,83 0,38 3,96 73,81 16,63 83,62 3,55 8,00
Mato G. do Sul 1.649 43,25 26,23 8,19 121,25 898,18 3.190,94 98,83 130,02
Mato Grosso 1.485 19,05 12,83 22,02 95,50 292,05 1.432,02 87,36 131,82
Goiás 4.630 77,20 16,67 11,53 201,76 377,49 4.187,69 74,53 94,33
CENTRO/SUL 329.785 2.526,48 7,66 13,39 4.579,24 103,73 162.604,35 66,38 97,28
Pernambuco 16.441 465,46 28,31 77,40 869,52 68,33 22.887,39 36,38 96,31
Alagoas 7.678 484,45 63,10 92,46 859,35 121,05 24.875,80 56,79 100,13
Paraíba 4.513 119,77 26,54 56,84 279,90 109,12 5.601,10 52,51 100,43
Rio G. do Norte 1.500 50,23 33,49 44,80 136,69 203,41 2.950,46 53,05 115,88
Sergipe 1.133 26,86 23,70 63,02 85,72 120,05 1.665,83 46,31 118,04
Bahia 17.538 50,45 2,88 39,98 252,03 35,95 1.425,33 87,92 70,22
NORTE/NORDESTE 71.031 1.270,53 17,89 57,32 2.982,35 73,24 61.068,40 48,42 93,04
BRASIL 402.542 3.798,12 9,44 21,13 7.575,97 89,08 223.672,75 61,48 97,30
Fontes: FIBGE , Censo Agropecuário de 1985; IAA.
Notas: N. Ests. = Número de estabelecimentos que colheram cana; Ar. C. = Área colhida de cana em mil hectares;
Amc. = Área média colhida de cana; Atot.ests. = Área total dos estabelecimentos com atividade econômica
na cana, em mil hectares; Amest. = Área média dos estabs.; % C.P. = % de cana própria moída, na safra 1985/6;
%(1) = Relação quantidade de cana moída no estado/quantidade de cana colhida no estado.

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46 - Trecho retirado de POCHMANN, 1994, p. 652. Na página seguinte o autor observa que "Desde 1975, o salário
mínimo anual passou a ser inferior à renda per capita nacional" e na página anterior ele mostra que, em 1960 a
relação salário rural/salário mínimo, no Estado de São Paulo, passou dos 51,5% em 1960 para 133,9% em 1974.
47 - Ver, respectivamente, BACHA, 1979 e REZENDE, 1984 e 1985.
48 - BACHA, 1979, p. 592. Sobre a comparação feita entre os níveis e as evoluções dos salários urbanos e
rurais entre 1948 e 1977, conclui que "No final da década de 40, o diferencial entre salários urbanos e rurais
era aproximadamente de 100%. Diminuiu para 50% no início da década seguinte e então aumentou para
150% no final da década de 50 e início da de 60. Daí em diante, caiu regularmente através das décadas de
60 e 70, até atingir 28% em 1977" (p. 598).
49 - Ver ARAÚJO e. al., 1974, páginas 177 e 192, e SECRETARIA DA AGRICULTURA, 1972, p. 119.

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QUADRO 18 - SÃO PAULO - EVOLUÇÃO DA REMUNERAÇÃO DIÁRIA DE CULTURAS QUE


UTILIZAM TRABALHADORES TEMPORÁRIOS NA COLHEITA
(médias dos triênios indicados, exceto quando indicado)
Culturas 1971-72-73 1976-77-78 1981-82-83 1984-85-86 Médias
Algodão 6,76 10,16 8,04 7,03 8,00
Amendoim 8,25 12,29 9,24 7,23 9,25
Café cereja n. d. n. d. n. d. 10,33 (1986)
Café em coco seco n. d. n. d. n. d. 9,94
CANA-DE-AÇÚCAR 7,68 10,79 9,73 8,40 9,15
Laranja n. d. n. d. n. d. 13,55 (1986)
Fonte: IEA, Estatísticas de sa lários agrícolas no Estado de São Paulo, São Paulo, 1992.
Nota: Em R$ de julho de 1994, com os valores corrigidos pelo IGP -DI da Conjuntura Econômica/FGV.

QUADRO 19 - SÃO PAULO - EVOLUÇÃO DO SALÁRIO MÉDIO DO TRABALHADOR VOLANTE, DO


PAGAMENTO DA COLHEITA DE CANA E DO RENDIMENTO DO CORTE DE CANA - 1969 - 1985
Anos Salário diário médio Pagamento da Rendimento médio Remuneração Valor diário do s alário
do trabalhador colheita de cana. do corte de cana. Em diária (2) x (3) mínimo em São Paulo
volante (1) Em R$ por t. (2) t/homem/dia (3) (4)
1969 3,86 (apenas março) 2,73 2,99 8,16 4,94
1970 4,36 2,02 3,05 6,16 4,92
1972 5,11 (apenas março) 2,50 3,00 7,50 4,98
1973 5,90 2,51 3,30 8,28 5,02
1977 7,59 2,57 3,77 9,69 5,33
1980 6,60 2,29 3,97 9,09 6,03
1982 6,23 2,17 4,50 9,77 5,68
1985 5,72 1,92 5,00 9,60 5,51
Fontes: IEA, Estatísticas de salários agrícolas no Estado de São Paulo, São Paulo, 1992;
IBGE, Anuários Estatísticos dos anos selecionados.
(1) Média dos dois dados (o de abril e o de novembro), com as exceções indicadas. Em R$ de julho de 1994;
(2) Em R$ de julho de 1994. Tal como o salário, inflacionado pelo IGP -DI da Conjuntura Econômica/FGV.
(3) Para os anos de 1980, 1982 e 1985, trata -se da média simples dos dois salários mínimos – o de maio e o de novembro,
também inflacionada pelo IGP-DI e em R$ de julho de 1994.

50 - O trabalho de SENDIN, 1972, traz o índice de salários de diferentes categorias de trabalhadores rurais no Estado
de São Paulo entre 1948 e 1968. O do volante apresentou seu pico em 1965 e o do salário mínimo em 1961. Já a
relação percentual entre o número de diárias dos diaristas como um todo e o número de diárias dos volantes, entre
março de 1972 e novembro de 1985, sempre foi maior do que 100 (ver RAMOS, SZMRECSÁNYI, 1996, p. 101).

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51 - Ver sobre isto os trabalhos de ALVES, 1992 e de GRAZIANO DA SILVA, 1997.


52 - Ver RAMOS, LIMA, 2005, p. 22.
53 - A referência é ao livro de CASTRO, 1982.

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A questão agrária:
mercado de terras, de trabalho
e o desenvolvimento
Leonam Bueno Pereira*

Este artigo trata da articulação entre a realidade agrária e o processo


histórico de formação da economia brasileira, de forma a problematizar as
relações entre o desenvolvimento e os seus entraves e permite situar a
questão naquilo que se "convencionou chamar de papel da agricultura nas
sociedades regidas pela dinâmica capitalista" (RAMOS, 1998).

Ressalta que, em um processo de modernização ou transformação nas


estruturas de produção social, nem sempre acontecem transformações tam-
bém no conjunto das relações políticas, institucionais e legais. O que se
procura destacar disso é que a realidade agrária está na base da transfor-
mação da estrutura social e que, dependendo da classe que capitaneia o
processo político e econômico da transformação, configurariam novas estru-
turas mais democráticas ou não. Assim, a estrutura social, política e institu-
cional do país, o nível de bem estar da população e suas possibilidades de
realização futura, serão marcados pela constituição de uma sociedade em
que o substrato é sua estrutura fundiária. É sobre essa constatação que se
baseia. Busca entender como o passado tem-se projetado no presente.

Uma periodização desse processo já foi realizada. LINHARES (1999), RAMOS


(1998) e DELGADO (2001) podem ser pontos de partida. Destacamos, como
fazem esses autores, a existência de um "continuum" em que a ação do Estado
incorpora a polarização das relações sociais de produção no campo e que as
vai solucionando, ora pela linha de menor resistência, ora pela imposição da
força. Ramos e Linhares destacam que a questão agrária é também uma articu-
lação entre a apropriação/propriedade da terra e população, sendo a exclusão
social o resultado mais significativo desse processo histórico.

* Economista e Mestre em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente. O presente texto é uma sín-
tese do primeiro capítulo de minha dissertação de Mestrado defendida em 2004 no IE-UNICAMP sob orien-
tação do Prof. Dr. Pedro Ramos.

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Ensaios e Debates

Parte-se do pressuposto de que a democratização do acesso a terra é uma


intervenção estatal no direito de propriedade, contrariando interesses e fa-
vorecendo outros de forma que se cria um nicho de resistência e oposição,
onde se materializam concretamente os obstáculos à solução da questão
agrária brasileira.

Os obstáculos que são interpostos à questão agrária se manifestam no


âmbito jurídico da propriedade da terra no momento da reforma agrária.
Então, deve existir um elo entre esse âmbito que se manifesta em uma institu-
cionalidade jurídica e a utilização econômica da terra.

Nossa hipótese parte da suposição de que a "absolutização" da propriedade


privada da terra é o feito histórico que marca, desde o seu surgimento, a so-
ciedade brasileira e coloca um estreito espaço para a ação estatal intervir na
questão agrária. Mais ainda, supomos adicionalmente, que a propriedade
privada da terra (um atributo jurídico) e o seu uso (um atributo econômico),
compõem um amálgama, na expressão de FERNANDES (1975), que reflete
uma organicidade entre o campo do direito e o da economia. Assim, capital,
terra e trabalho compõem a fórmula da produção social. São os componen-
tes principais a serem mobilizados para projetar o desenvolvimento nacional.
Representam também categorias sociais, ou seja, reflete-se em uma superes-
trutura de poder, em uma estrutura de classes.

A propriedade privada da terra enquanto substrato da questão agrária está


na origem da constituição do modo de produção capitalista e as análises his-
tóricas do desenvolvimento capitalista dos países, sejam eles originários, tar-
dios ou retardatários, permite observar duas características bem marcantes.
Ou há a constituição do estatuto da propriedade privada por açambarcamen-
to, em geral violento, de terras que pertenciam comunitariamente a determi-
nados estratos sociais; ou, esse estatuto surge definido a priori, a partir do
exercício do poder central de uma entidade absoluta, seja o rei ou o estado.

O que diferencia uma característica da outra está na estrutura de classes


que irá se constituir, mais do que a forma como se realiza, e que suportará as
relações sociais de produção necessárias para por em movimento a produção
material da sociedade.

Nesse sentido, o enclausure e as sesmarias estão inseridas na mesma


relação histórica. Criaram um legado que se transferiu na perpetuação da
propriedade privada da terra.

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

A CONTRIBUIÇÃO DE AUTORES CLÁSSICOS BRASILEIROS

Quando estudamos a estrutura agrária preocupamos-nos muitas vezes em


saber como se encontra essa estrutura. Se ela se apresenta concentrada em
área ou em estabelecimentos, se essa distribuição repercute de forma varia-
da em outros mercados no decorrer do desenvolvimento econômico. Assim,
dois desses mercados podem ser destacados a partir da análise da estrutura
agrária: o de trabalho e o de terras.

Uma leitura de três autores que, em suas análises sobre a realidade agrária
brasileira, estabeleceram e delimitaram marcos teóricos que permitiram iden-
tificar um significado especial para o papel da estrutura agrária no processo
de desenvolvimento sócio-econômico do país é nossa preocupação. Não há
necessariamente um corte cronológico entre eles, de forma a colocá-los li-
nearmente no tempo. Ao contrário, aproveitamos de suas contribuições teóri-
cas, para sustentar uma argumentação, ou seja, o papel da estrutura agrária
na dinâmica sócio-econômica do país e da necessidade de sua modificação
através da Reforma Agrária.

Os autores aqui abordados são Ignácio Rangel, Caio Prado Jr. e Celso
Furtado. São os criadores de uma economia política original dentro do pen-
samento econômico brasileiro e, particularmente sobre a questão agrária,
apresentaram uma contemporaneidade dada pelos anos 60, a partir das dis-
cussões sobre as reformas de base.

A expectativa é mostrar a atualidade dessa discussão e de como, logrado


um profundo processo de industrialização no país, uma das reformas de base
a ser feita permanece apenas como uma promessa.

Rangel viu na modernização das estruturas de produção o principal impul-


so para o desenvolvimento. Para ele, a modernização das relações de pro-
dução vigente no país passaria pela consolidação de um parque industrial
substituindo importações e voltado para abastecer o mercado interno então
em expansão. O papel do comércio exterior, principalmente de produtos
primários (agropecuários), era fundamental porque era o principal gerador de
capitais, na forma de um excedente em reservas internacionais, passíveis de
serem utilizadas no processo de industrialização.

Os entraves a esse processo residiam nas estruturas arcaicas vigentes no


interior da economia latifundiária. Por essa razão, à estrutura agrária lati-
fundiária deveria ser contraposta uma nova estrutura capaz de contrabalançar

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Ensaios e Debates

o esvaziamento que adviria no latifúndio com o surgimento da empresa agrí-


cola mecanizada. Ele irá aprofundar essa visão no ensaio "A Questão agrária
brasileira" de 1962, com os argumentos dos problemas próprios e impróprios
da agricultura brasileira, onde a reforma agrária aparece como um instru-
mento do Estado planejador, necessária para alocar e direcionar os recursos
a serem utilizados no processo de desenvolvimento interno.

Por essa razão ele procura formular um arcabouço teórico que tem como
princípio a dualidade e a formação de relações de produção diferenciadas
que surgem dessa dualidade. Ao mesmo tempo em que tratava da questão
econômica, ele também tratava da superestrutura jurídico-político que essa
questão suscitava. É um clássico da economia política brasileira porque a
originalidade de seu pensamento esta em observar os movimentos contra-
ditórios e os tempos diferentes entre esses movimentos, como partes de um
mesmo processo cíclico de ascensão e crise da acumulação capitalista no
país. É isso que ele pretende enfatizar quando afirma que, em determinados
momentos, a questão torna-se política.

Seu argumento básico apresenta um fundamento sócio-histórico onde a


relação de propriedade de cada um dos fatores que são empregados no
processo produtivo configura um processo social, existindo a circunstância em
que um ou outro fator torna-se estratégico e assim, assume um caráter
hegemônico sobre os demais, configurando inclusive, uma relação jurídica
específica para isto. Esse entendimento da realidade sócio-econômica per-
mite visualizar a existência de um processo dicotômico e conflituoso, na medi-
da em que se funda em dualidades que se tencionam repercutindo em um
processo de desenvolvimento desigual, alternando e combinando estruturas
que, ora se responsabilizam ora obstaculizam o processo social.

Para ele, a nossa história acompanha a história do capitalismo mundial,


ecoando as suas dificuldades, de forma que o "mercantilismo nos descobriu,
o industrialismo nos deu a independência e o capitalismo financeiro, a
república".(RANGEL, 1957: 37).

Porém, essa economia nasce com uma especificidade fundamental. Nossa


evolução, embora apresente uma grande semelhança com a história de ou-
tras sociedades, "não é autônoma, não é produto exclusivo de suas forças in-
ternas", Nossa economia seria regida em todos os níveis, por leis tendenciais
que se manifestam nas relações internas de produção e também nas relações
externas. (RANGEL, 1957: 29-32).

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

Com essa visão dualista é possível identificar pelo menos duas dimensões
econômicas na conformação de um mercado de terras no país. Uma dimen-
são macroeconômica e outra microeconômica. O primeiro componente diz
respeito ao comportamento do sistema capitalista e corresponde ao estado
geral do desenvolvimento das forças produtivas da economia. Corresponde
também, à articulação que esse desenvolvimento engendra entre os diferentes
setores da sociedade, responsáveis pela valorização e acumulação de capi-
tal. Dessa forma, esse componente depende do estágio da técnica e de como
esta se difunde na sociedade. Em última instância, depende do estágio da
divisão social do trabalho existente na sociedade.

É na segunda dimensão, microeconômica, que esse processo de acumulação


e valorização se realiza. É onde se concretiza o lucro, através da materialização
da propriedade do fator de produção que for considerado principal ou estratégi-
co para a dinâmica do processo. Não existindo limites a essa propriedade, ou
seja, não existindo obstáculos ao controle desse fator de produção, "o detentor
do meio de produção fundamental estende seu império aos demais fatores e
sobre essa base se estrutura a sociedade" (RANGEL, 1957: 28).

Assim, a estrutura agrária herdada da fazenda escravista se reproduz no


tempo na forma do latifúndio. Existe nesse processo de reprodução uma troca
de institutos, da fazenda escravista voltada para o mercado externo para o lat-
ifúndio também exportador, mas calcado em uma estratégia diferente, a da
propriedade da terra, porque era a detenção desse recurso que garantia os
ganhos de produtividade necessários para fazer frente ao crescimento do seu
mercado consumidor. O seu caráter extensivo como acumulação de capital
de uma atividade de produção, seja ela cana, café, algodão, cacau ou fumo,
as grandes lavouras, é que irá determinar a estruturação do mercado de ter-
ras, a sua dinâmica, formação e comportamento de seu preço. É então na
acumulação de um patrimônio que se produz e reproduz o instituto jurídico
da propriedade privada da terra.

Sobre esse componente ergue-se uma superestrutura legal e constitui-se o


mercado. Ou seja, sobre a estrutura de propriedade herdada do período
colonial e das relações de produção que se desenvolvem no seu interior, con-
stitui-se formalmente o mercado de terras que tem na institucionalização da
Lei de Terras de 1850, o seu marco legal. Do ponto de vista econômico, essa
formalização atendeu ao processo de transição entre o trabalho escravo e o
trabalho livre, ou seja, a constituição do mercado de terras no Brasil está
articulada com a constituição do mercado de trabalho assalariado.

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Ensaios e Debates

Para Rangel, a taxa de lucro, ou como diz ele a taxa de exploração, exis-
tente na economia regula a taxa de inversão no sistema e possibilita uma
comparação das possibilidades de retorno que diferentes aplicações de capi-
tal encontram disponíveis para realização. Com isso forma-se na economia
capitalista o que ele chama de uma função social básica de produção,
(RANGEL, 1979). Essa função implica em um cálculo que considera os cus-
tos das combinações de dois fatores básicos: capital e trabalho. Assim, o pro-
dutor capitalista alterna a possibilidade de "reduzir seus custos de produção
por unidade de produto, seja reduzindo a participação do fator trabalho e au-
mentando a do fator capital, seja o inverso". (RANGEL, 1990: 35).

Analisando o desenvolvimento da agricultura no país, e também observan-


do o processo de industrialização engendrado a partir dos anos 30, proces-
so designado como substituidor de importação, o autor identifica que ao setor
agrícola cabem "duas ordens de funções" (RANGEL, 1962), que acrescen-
taríamos, nessa função social básica de produção.

A primeira delas, dentro dos marcos de uma economia capitalista e da di-


visão social do trabalho, à agricultura cabe suprir, na quantidade e especifi-
cações necessárias os bens agrícolas - de consumo ou matéria prima - neces-
sários ao sistema. Trata-se de atender a dimensão macroeconômica. A segun-
da função está relacionada à "estrutura interna da unidade agrícola", isto é,
"liberar, reter ou mesmo reabsorver mão de obra, conforme as circunstâncias"
e necessidades do próprio setor e dos demais setores da economia, atingin-
do, portanto, a dimensão microeconômica do sistema.

Os problemas relacionados à necessidade de atender a função macroeco-


nômica geral, isto é, de fornecer os bens agrícolas dentro das necessidades
da demanda social, são classificados como problemas impróprios da questão
agrária. Impróprios porque estão relacionados às atividades agrícolas e de
sua integração e interação com os demais setores da economia.

Os problemas dessa natureza são resolvidos dentro da esfera do mercado,


ou seja, da alocação de recursos, da técnica e principalmente do fator trabal-
ho, permitindo que a agricultura responda à demanda social apresentando os
bens necessários, seja em quantidade seja em qualidade, às necessidades do
contínuo processo de industrialização e urbanização.

O problema nessa categoria estará sempre relacionado à escassez ou não de


produtos agrícolas e ao fornecimento de mão de obra para os setores não agrí-
colas. A solução desse problema passa por ações ao alcance da política ime-

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

diata e respondem como uma solução da crise agrícola e estão dentro da esfera
da política agrícola resolve-los. Mais ainda, a solução de tais problemas inde-
pendem de modificações na estrutura agrária herdada. Nesse sentido, Rangel
antecipa o processo de modernização conservadora por qual iria passar o país.

A existência de uma estrutura agrária herdada possibilita que em determi-


nados momentos ocorram crises de excesso de produção (por exemplo: su-
perprodução do produto exportável) e conseqüentemente, ocorram expulsão
de mão de obra como forma de reduzir seus custos de produção. Como con-
seqüência disso surge um excesso de população que pressiona por um es-
paço para realizar a sua sobrevivência e que não encontra vazão dada a pró-
pria estrutura agrária concentrada e, dado os mecanismos de transferência da
terra então institucionalizados, essa população irá se aproximar das cidades
a procura de trabalho e renda. O autor irá caracterizar tais problemas como
os problemas próprios existentes na questão agrária, permitindo também
identificar o sentido histórico do desenvolvimento das relações de produção.

Para ele o latifúndio também era composto por um caráter dual. Por um lado,
representava o setor moderno da economia, posto que através dele que se inter-
nalizavam bens e serviços do resto do mundo, responsabilizando-se pela susten-
tação do comércio exterior do país. A essa função externa, Rangel identificou ca-
racterísticas capitalistas assentadas principalmente na associação com os capitais
mercantis organizados no comércio de exportação e importação.

No entanto, internamente, o latifúndio apresentava características identifi-


cadas como pré-capitalistas, com relações internas de produção pautadas
por contratos e vínculos de obrigação caracterizados, por exemplo, pela
meação, pela parceria, pela troca de trabalho e moradia, e mesmo pelo
escambo puro e simples. Internamente, o latifúndio remetia a produção agrí-
cola de bens de consumo como atividade secundária à atividade principal de
exportação e, portanto, destituída das relações modernas do modo de pro-
dução capitalista. É somente para fora que o latifúndio corresponde a uma
unidade de produção capitalista. É por isso que as soluções dos problemas
impróprios e mesmo a industrialização podiam se realizar com uma estrutura
agrária concentrada e internamente atrasada. Produtos que revolucionavam
a produção agrícola (enquanto relações técnicas) podiam facilmente ser
incorporados ao sistema sem alterar as relações de produção existentes. Por
exemplo, a semente melhorada, o trator, o adubo químico, etc. Assim, a mod-
ernização interna do latifúndio ocorre na economia do país sem alterações
profundas na sua estrutura. Os ganhos de produtividade decorrentes da
maior inserção acabam influindo na formação dos preços dos produtos agrí-

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Ensaios e Debates

colas. Para Rangel, as elevações dos preços dos produtos agrícolas também
decorriam de estrangulamentos existentes na comercialização, tendo em vista
basearem-se em estruturas oligopsónicas e oligopólicas de distribuição. Estes
elementos constituíam os problemas impropriamente agrários, configurando-
se problemas agrícolas, de solução na esteira do desenvolvimento pleno do
capitalismo no país (RAMOS, 1998: 91).

O desenvolvimento de um mercado de capitais, do sistema financeiro pro-


priamente dito, teria o papel de ir paulatinamente derrubando as barreiras ao
avanço do modo de produção capitalista. Tal avanço, não só alteraria a pro-
dutividade do setor agrícola, principalmente da produção voltada para o mer-
cado interno, como permitiria deslocar a especulação capitalista do mercado
de terras. O avanço da fronteira agrícola, com a incorporação de terras na
produção, teria o papel de atenuar o estrangulamento da questão propria-
mente agrária, isto é, minimizava o conflito da superpopulação agrícola ex-
pulsa do campo, ao mesmo tempo em que permitia uma relativa queda no
preço da terra por ampliar a oferta.

Colocada a questão dessa forma, o autor visualizava que o desenvolvimento das


relações capitalista permitiria o enfraquecimento do latifúndio atrasado interna-
mente em favor das relações modernas, urbanas, ditadas pelos capitais industriais.

No processo de formação de uma agricultura moderna baseada tanto na


expansão extensiva como intensiva da produção, o mecanismo do preço da
terra foi um dos elementos a impedir a solução da crise agrária ao cercear o
acesso dos contingentes rurais à terra. O outro elemento foi, sem dúvida, o
monopólio da propriedade. Esse mecanismo criou condições para que o mer-
cado de terras se instalasse como alternativa para a valorização dos capitais
envolvidos na produção de exportação.

Para ele, o fundamental no mercado de terras é saber que o preço da terra


será uma função inversa da taxa de lucro. Portanto, analisando o movimento
cíclico de acumulação, num momento em que haja queda na taxa de lucro,
o preço irá aumentar. A partir desse movimento, criam-se "expectativas de
subsequente elevação", funcionando ela mesma como uma renda pela posse
do título de propriedade de um período para outro. Ou seja, a 4ª Renda
resulta desse processo especulativo e tende a perpetuar a elevação do preço.

Essa 4ª Renda permite que o título imobiliário se comporte como um título


mobiliário. Ou seja, cria-se um mercado especulativo de ativos calcados na
valorização fictícia do título. Mais ainda, esse mecanismo atrela o mercado

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

de terras às variações do mercado bursátil que, teoricamente, realizaria a


expressão da taxa média de lucro do sistema econômico. Dessa forma, o
mecanismo seria a proteção para os capitais da corrosão inflacionaria. Com
esse raciocínio, RANGEL apresentou uma interpretação inédita e lógica sobre
o comportamento do mercado de terras, além de também apresentar uma
explicação das relações sociais subjacentes nesse mercado.

A contribuição de Caio Prado Jr. encontram-se no conjunto de textos pub-


licados no livro "A Questão Agrária no Brasil" que reúne artigos publicados na
Revista Brasiliense entre os anos de 1960 e 1963. Suas alusões às reformas
estruturais, então discutidas pela sociedade brasileira, colocam-no em con-
temporaneidade com Rangel, muito embora ambos não tenham, naquela
época, debatido pessoalmente a questão da Reforma Agrária.

A preocupação de Caio Prado Jr. é encontrar elementos que permitam


superar a estrutura concentrada e herdada do período colonial, responsável
por manter parte considerável da população em "miseráveis condições de
vida, materiais, culturais, sociais - humanas em suma". (PRADO Jr.,1981: 13)

Seu método aponta para uma mesma direção de Rangel, no sentido de que
são relações sociais que estão no centro do processo de desenvolvimento
sócio-econômico do país. No entanto, a sua contribuição não envereda
somente para a análise econômica. Sua preocupação é apresentar propostas
alternativas que rompam com a situação de miséria que se encontravam as
populações rurais.

Para ele a concentração da propriedade da terra resumia o traço essencial


da questão agrária brasileira ao opor, por um lado, uma minoria de grandes
proprietários e fazendeiros possuidores do monopólio do principal fator de
produção do qual derivava a riqueza material da sociedade e, de outro, uma
imensa maioria da população que, embora exercesse suas atividades de tra-
balho na terra, não dispunham dessa mesma terra em quantidade suficiente
para garantir meios adequados de promover a sua subsistência. E, não dispor
dessa terra significava também não dispor dos meios jurídicos (os direitos de
propriedade) e dos meios sociais (relações de trabalho regulamentadas), ple-
namente estabelecidos, de forma a propiciar a proteção ao trabalhador rural.

Duas referências estão sempre presentes nas suas análises. Primeiro, a


importância quantitativa que essas relações sociais tinham na estrutura exis-
tente e, em segundo, a importância qualitativa que a questão agrária tem no
desenvolvimento sócio-econômico do Brasil.

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Ensaios e Debates

Sua análise pode ser dividida sob dois aspectos. Por um lado, com a concen-
tração fundiária se propiciava uma base territorial para a expansão dos em-
preendimentos agromercantis, através do controle e da disponibilidade de ter-
ras de boa fertilidade e localização, mesmo onde o processo de ocupação ter-
ritorial do país já estivera praticamente completado. Esse argumento é funda-
mental para combater uma expressão obscura e muito veiculada, na época, de
que no país "existe muita terra para pouca gente" e por essa razão estaríamos
vivendo um processo natural de concentração da propriedade da terra devido
à baixa densidade demográfica em algumas regiões. Por outro lado, a expres-
são econômica da concentração da propriedade fundiária permitia "assegurar
ao empreendimento a mão de obra necessária e indispensável", para o proces-
so de expansão e acumulação capitalista. (PRADO JR., 1981: 43)

Dessa forma, a grande exploração agromercantil ao desenvolver mecanismos


de expansão e retração das atividades produtivas vis a vis os rumos do mercado
externo, possibilitava a existência de uma característica em que "o ritmo das ativi-
dades da grande exploração tem papel de relevo na configuração da estrutura
agrária e distribuição da propriedade fundiária".(PRADO JR. 1981: 57)

Em certo sentido, ele propunha uma espécie de teoria inversa de expansão


da atividade da pequena produção vis a vis a atividade da grande. Isso por-
que, para ele "a grande propriedade sempre precedeu a pequena" e assim,
qualquer expansão que ocorresse na pequena produção tinha sua razão ou
na decadência da grande ou na falta de sua implementação.

Nisso consistia a principal herança do período colonial. A ocupação do ter-


ritório brasileiro como um empreendimento mercantil e, portanto, capitalista
desde o seu início e, tanto os escravos como os imigrantes europeus não con-
corriam para a disputa do patrimônio fundiário brasileiro pela razão de não
disporem dos elementos jurídicos e econômicos necessários e reconhecidos
para essa disputa. Isso leva o autor a afirmar que, a disponibilidade de mão de
obra e a relação de trabalho que existia na grande exploração, eram os ele-
mentos que determinavam as relações na economia como um todo e a questão
agrária passava a ser: verificar como funcionava a oferta e a demanda de mão
de obra, no mercado dominado pela grande produção agropecuária.

A concentração fundiária tinha o principal papel de impedir o uso da terra,


a aquisição de terra somente pela compra e venda institucionalizava esse im-
pedimento para a massa trabalhadora. Estas, sem alternativa de produção
dos meios de sobrevivência eram obrigadas a se submeter ao arbítrio das
condições de trabalho e de salário impostos pelos latifundiários. Deve-se ob-

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

servar que, embora as relações de submissão dessa massa assumisse diferen-


tes formas, inclusive com diferentes valores de remunerações, essas relações
eram relações mercantis, explicitadas pelo monopólio da terra. Até mesmo
onde a escassez de mão de obra se manifestava, por exemplo, na região ca-
feeira de São Paulo, não era suficiente para elevar o nível de condições de vi-
da desses trabalhadores.

Essa análise corroborava inclusive para refutar a interpretação de que em


nossa sociedade existiam restos feudais a serem removidos por um processo
de Reforma Agrária1. Pelo contrário, Caio Prado argumentava que, a submis-
são do trabalho ao capital, a sobreexploração da massa de trabalhadores
com níveis baixos de remuneração, a ausência de mecanismos de defesa do
trabalhador aliados com a concentração da terra, eram "fenômenos próprios
do capitalismo e era dentro deste marco que os esforços de mudança deve-
riam ser direcionados".(KAGEYAMA, 1993).

Como Rangel, ele identifica o objetivo da Reforma Agrária enquanto uma


transformação nas relações sociais de produção, elevando o padrão de vida da
população rural e integrando-a em condições mais dignas de sobrevivência.
Uma intersecção de ambos consiste em uma questão metodológica, ou seja, ne-
gar qualquer finalidade para a Reforma Agrária em aperfeiçoar ou elevar o nível
tecnológico da exploração agrária. Para esses autores, uma questão dessa na-
tureza consiste em uma cosmovisão, nem sempre facilmente compreendida e as-
similada. Ele, por exemplo, chega a advertir o extensionismo rural: "o problema
humano e social sobreleva o agronômico, e antes de indagar do nível e padrão
tecnológico da produção, devemos saber que categoria de indivíduos, e em que
proporções, essa produção vai beneficiar". (PRADO JR., 1981: 79).

Para Caio Prado Jr. a intervenção política na questão agrária brasileira con-
sistia, essencialmente, em estabelecer um limite à expansão da propriedade
da terra (leia-se, ao latifúndio), eliminando com isso a concentração e
alterando a estrutura agrária em favor da constituição de pequenas e médias
propriedades e trazer a universalização da legislação trabalhista também para
o campo, de sorte a propiciar ao trabalhador rural as vantagens do trabal-
hador urbano no que concerne, principalmente, na independência sócio-
política, daquelas relações de dependência que ele identificava como
sobrantes do nosso capitalismo colonial.

Caio Prado antecipa assim algumas medidas técnicas que irão aparecer na
concepção do Estatuto da Terra. Medidas que invariavelmente estavam relacio-
1 - Esse foi um debate que Caio Prado Jr envolveu-se juntamente com a direção de seu partido.

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Ensaios e Debates

nadas com formas de intervenção na especulação com a propriedade da terra


através da tributação e com a titulação de posseiros e parceleiros reconhecen-
do-lhes o uso como fundamento e limitador da propriedade privada da terra2.

Ao imprimir tanta ênfase nas relações jurídicas e legais do trabalho dentro


da propriedade agrária e, ainda, ao dar ênfase na submissão completa do
trabalhador rural ao regime de trabalho assalariado como forma de comple-
tar a então submissão formal do trabalho assalariado ao capital, ele está pre-
ocupado em levar ao trabalhador agrícola sobreexplorado as vantagens da
formalização então presentes entre os trabalhadores urbanos. Sua preocupa-
ção também era desconcentrar a propriedade fundiária onde ela se apresen-
tava como entrave ao desenvolvimento pleno das relações capitalistas e, daí
proceder a um parcelamento dessas propriedades para os trabalhadores ru-
rais. Isto permitiria dar um novo equilíbrio no mercado de trabalho e reduziria
a pressão sobre a oferta de mão de obra que tanto vilipendiava os salários.

Em Caio Prado, o vínculo entre o mercado de terras e o mercado de traba-


lho é um vínculo orgânico posto que a organização econômica que se origi-
na da estrutura agrária concentrada relaciona-se com as diferentes formas de
atividades produtivas, formas variadas de uso da terra, e por extensão, de re-
lações entre o proprietário e o trabalhador. Ao tratar das condições em que
se davam as relações de trabalho e assalariamento, o autor chama a atenção
para duas ordens de fatores que estão correlacionados: 1) a residência do
trabalhador assalariado na propriedade do fazendeiro e o conseqüente uso
de parcelas dessa terra para exploração própria; 2) a sazonalidade do traba-
lho agrícola que, dado a cultura principal e oficial, não exige o trabalho per-
manente desse trabalhador na atividade principal. Esse detalhe é como uma
saída tecnológica para a utilização da mão de obra e ao mesmo tempo, uma
depreciação do valor da remuneração do trabalho.

É esse o sistema de colonato na economia cafeeira. Esse processo, juntamen-


te com o relativo isolamento do trabalhador rural, cria uma dependência e um
constrangimento, onde o proprietário exerce seu poder e que para o trabalha-
dor urbano não era colocada. Valendo-nos de Florestan Fernandes existe um
padrão que identifica e singulariza a constituição desse capitalismo agrário bra-
sileiro e a conseqüente formação de uma sociedade de classes, de que:

"esse tipo de economia agrária, que retira seu teor capitalista


mais dos mecanismos de mercantilização dos produtos que das
2 - É o caso do Código Civil quando trata do reconhecimento da posse mansa e pacífica (artigos 485 a
519 do C.C. de 1916).

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

formas de organização da produção e de mercantilização do


trabalho, tem sido, não obstante, um dos eixos estruturais e di-
nâmicos da formação da sociedade de classes no Brasil". FER-
NANDES (1979: 111) (grifamos).

Nesse ponto, o mercado de terras seria o último a ser transformado (mer-


cantilizado), fechando assim o ciclo de expansão e consolidação do capitalis-
mo brasileiro. No entanto, por reproduzir e perpetuar uma estrutura herdada
e concentrada da propriedade fundiária, esse processo mantém a comerciali-
zação de unidades agrária (terras) do lado de fora do aprofundamento do ca-
pitalismo, ou dito de outro forma, da plenitude das relações capitalistas.

Em Celso Furtado, não é possível tratar da questão agrária ou da estrutura


agrária sem subsidiá-la pela sua noção de desenvolvimento. Sua contribuição
é fundamental principalmente pela amplitude e pelo conteúdo que adquire
sua análise do desenvolvimento da economia brasileira. Seu principal argu-
mento para a constituição de um mercado interno e com isso dar um substra-
to para o desenvolvimento econômico, consiste na formação de um mercado
de trabalho pleno capaz de absorver os fluxos de renda gerados a partir das
articulações da economia com o setor externo.

A perspectiva aqui adotada não se debruçará sobre a sua longa e fecunda


análise da Formação Econômica do Brasil onde, com uma periodização exem-
plar, mostrou que o recurso mão de obra sempre estivera no bojo das decisões
estratégicas de geração e acumulação de renda. Ou seja, a concentração fun-
diária refletia uma articulação de fatores que propiciaram a exploração capita-
lista sob um regime de salários baixos e precariedade de relações de trabalho.

No entanto, a questão fundamental é que a concentração da propriedade fundiá-


ria antecede a constituição do mercado de trabalho no país. Com dimensões conti-
nentais e a partir de uma base institucional herdada do período colonial, a concen-
tração da propriedade fundiária permitiu que houvesse uma polarização entre as
regiões do país, tributárias do regime de acumulação principal, seja a economia
canavieira, seja a economia cafeeira. Com isso, ela, a estrutura fundiária concentra-
da, fez muito mais impedir a constituição no país de comunidades camponesas do
que desorganizar e explodir com as relações comunitárias pré-existentes.

Nesse sentido, é didático:

"No Brasil, a comunidade camponesa não chegou propriamente


a formar-se, ou, quando se formou, pouca influência teve no

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Ensaios e Debates

processo de acumulação. É esse um dado da maior significa-


ção, pois praticamente por toda parte as sociedades mais com-
plexas se formaram a partir de comunidades rurais, que pre-
existiam à penetração e generalização do trabalho assalariado.
... Não obstante as múltiplas diferenças, a transformação se fa-
rá, tanto no caso europeu como no africano, mediante a inte-
gração da comunidade em um circuito mercantil. Essa integra-
ção exigirá quase sempre profundas transformações na organi-
zação do trabalho". FURTADO (1982: 98-99).

Esse argumento permite identificar no Brasil que a constituição do mercado


de terras procurou ser a pré-condição para a constituição do mercado de tra-
balho, pelo menos no que diz respeito aos seus aspectos formais e institu-
cionais. Essa situação já vinha sendo tratada desde a independência e foi
uma sinalização para os proprietários de escravos dos limites que o comércio
de escravos encontrava dentro do comércio internacional. A presença ingle-
sa nestas circunstâncias fez aprofundar as dificuldades de manter tal estrutu-
ra mercantil por mais tempo. A Lei de Terras corresponderia a essa perspecti-
va colocada pela burguesia local. Isso porque, como ele chama a atenção,
o progresso técnico que era introduzido nas fazendas brasileiras, principal-
mente no ciclo do café, pouco revolucionava as formas de produção até
então adotadas e, preferencialmente, buscavam o aumento da produção pela
incorporação de novas áreas de terras ao processo produtivo, valendo-se
inclusive da incorporação de terras virgens que apresentavam uma fertilidade
natural maior. O contraponto a isso seriam estruturas fundiárias mais descon-
centradas que assimilariam melhor o progresso técnico elevando a produtivi-
dade do trabalho por unidade de área, dando maior dinâmica no desenvolvi-
mento da nossa economia agrária.

Essa característica do progresso técnico deslocaria o objeto da valorização


e acumulação da riqueza porque alteraria a composição orgânica do capital
aplicado na agricultura. Dessa forma, a expansão da acumulação não neces-
sariamente seria dada por uma expansão territorial, mas pela articulação
básica dada pela relação entre os fatores: capital e trabalho.

RAMOS (1998 e 1999) chama a atenção que esse processo assumiu uma
forma de deslocamento da agricultura, que no Brasil representa uma expan-
são da área cultivada sem muita exigência com a produtividade do trabalho
aplicado nessa terra. Existe um componente político-ideológico muito claro
nesse processo de expansão territorial. Junto com um aumento da produção
de forma extensiva, as relações políticas pendiam para aquele que detinha

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

maior quantidade de terras e, portanto, conformava um poder na dinâmica


social local e regional, o que viria a se configurar o coronelismo na política
brasileira, como também ressaltou entre outros, SILVA (1996).

Assim, a acumulação de capital passou, no início do processo, pela subju-


gação do trabalho na forma da escravidão. Essa possibilidade permitiu que
o capital se materializasse em escravos e meios de produção e não em terra,
por que esta era abundante e distribuída em larga escala e em grandes exten-
sões, utilizada com o fito de propiciar a expansão da cultura e como reserva
de meios para a produção - por exemplo, lenha e madeiras para as con-
struções - (RAMOS, 1999: 38).

Como aponta Furtado "convêm assinalar que, nas condições que prevale-
ciam no início da ocupação, a terra era bem de ínfimo valor. A instalação da
empresa agromercantil dependia principalmente de capacidade financeira".
(FURTADO, 1982: 97). (grifamos).

Isso significava capacidade de mobilizar escravos e não terra. Nesse senti-


do, o escravo não era trabalho, era capital. No entanto, com o surgimento
do controle privado da terra, as alterações no processo de produção (da es-
cravidão para o trabalho assalariado) ocorrem sem que se alterassem as es-
truturas de poder. Além disso, conquanto detivesse o controle da propriedade
fundiária, a transição para o trabalho assalariado era feita pelo latifundiário
mediante a constituição de um mercado de trabalho bastante acanhado, pri-
vilegiando formas alternativas e híbridas de disposição de mão de obra.

Institucionalmente, o papel da empresa agromercantil era atribuir valor


econômico aos recursos que mobilizava no caso terra e trabalho. O capital
lhe era dado externamente, vinha de fora.

"Dada a abundância de terras sob controle da empresa, toda


vez que surgiam condições favoráveis do lado da demanda
(interna ou externa), a oferta de mão de obra constitui o fator
limitante do aumento da produção. Essa escassez relativa de
mão de obra implica no uso extensivo da terra ...".(FURTADO,
1982: 107).

Dessa forma, não é o preço da terra, mas o preço do trabalho que é deter-
minado a partir da concentração da propriedade. Isso explica porque o
empreendimento agromercantil em um regime de escassez de mão de obra
torna-se viável.

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Ensaios e Debates

"Desta forma, a concentração fundiária, ao impor certa forma


de distribuição da renda, ou seja, ao assegurar mão de obra
barata à empresa agromercantil, induz esta ao uso extensivo
das terras, perpetuando práticas agrícolas rudimentares, as
quais constituem a forma mais econômica da empresa usar a
mão de obra".(FURTADO, 1982: 108).

Para ele, o progresso técnico representava um elemento exógeno a ser


introduzido no processo social de produção material, de forma a produzir
reações no sistema que levariam à "modificar alguns parâmetros estruturais".
No entanto, a introdução de inovações suscita resistências que se manifestam
em um "conflito social", colocando em cheque os privilégios de uma classe
que não encontra apoio na nova realidade econômica.

Dessa forma, o marco institucional que é pressionado no questionamento


dos privilégios, "deve, portanto, ser suficientemente flexível e ter a aptidão
necessária para reforma-se toda vez que a pressão gerada pelos conflitos
alcance aquele ponto em que a convivência social se torna inviável" (FURTA-
DO; 1964: 46).

Havendo, no entanto, uma adaptação dessa classe, sem alteração na estru-


tura de propriedade dos meios de produção, a resposta econômica é a cana-
lização e a apropriação de um excedente para essa classe, acirrando a dis-
tribuição desigual da renda.

Por isso, no entender de Celso Furtado, a estrutura agrária concentrada cons-


tituiu-se em um obstáculo ao desenvolvimento econômico, entendido como
sendo a penetração do progresso técnico nas relações de produção, ainda que
incorpore novos padrões de consumo e investimento, caracterizaria a estreiteza
do mercado interno em absorver as novas possibilidades de oferta em bens e
serviços. Para ele, a perpetuação desse quadro mesmo após a depressão dos
anos 30 é um dos motivos para que se perpetuem também os entraves ao de-
senvolvimento do país. Escrevendo no calor da hora de 1964, Furtado identifi-
ca na manutenção de uma estrutura agrária herdada do período colonial e na
sua representação política a perpetuação do subdesenvolvimento.

Dessa forma, ao esgotarem-se os parâmetros de sustentação do desenvolvi-


mento substituidor de importação calcados na expansão de um mercado
interno, associado às exportações de um ou mais produtos primários
agropecuários, deflagra-se uma crise de acumulação em que o setor indus-
trial, classificado por ele como progressista no espectro ideológico que mon-

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

tara o projeto substituidor de importação, nega romper a aliança com os


estratos de origem colonial-agrária. Mantém-se uma aliança espúria que visa
muito mais a preservação de um estoque de poder e privilégios que se mate-
rializam no controle da propriedade fundiária e no controle do processo polí-
tico. Esse é o principal legado de nossa revolução industrial.

No Brasil opta-se sempre por trair a sociedade em nome da manutenção de


uma ordem jurídica abstrata. Não se percebe que o marco institucional em que
se construiu a superestrutura jurídico-politica foi tal que não teve em nenhum mo-
mento qualquer ligação real com as estruturas concretas que se debatiam na
sociedade, a não ser aquela de salvaguardar seus privilégios coloniais.

"Os brasileiros sempre tiveram uma grande opinião sobre o seu


país e ao elaborar suas constituições preocupam-se mais em
não ficar atrás, com respeito aos países mais avançados, do que
com a realidade social e o grau de evolução das estruturas
nacionais".(FURTADO; 1964: 129).

A principal conseqüência disso é fomentar um grande exército de reserva de


mão de obra que permite conter a pressão de custos, principalmente de
salários. É comprometer as finanças públicas em processos de endividamen-
to externo que servem para escamotear, em momentos de expansão da pro-
dução, a limitação do nosso mercado interno, a sua estreiteza e pouca pro-
fundidade de inserção social.

Em suma, a característica fundamental da questão agrária para esses


autores é tratar-se de uma estrutura herdada que se reflete na formação de
nossas relações sociais. Dessa forma, instaura-se um conjunto complexo de
condicionantes ao processo de desenvolvimento econômico e social do país.

Um primeiro condicionante é econômico. O desenvolvimento das forças


produtivas no país sofre uma limitação dada pela estrutura fundiária concen-
trada que, no dizer de Furtado, obstaculiza a constituição de um mercado
interno e, portanto, impede que se incorpore um desenvolvimento tecnológi-
co capaz de expandir a renda nacional e criar articulações na demanda efe-
tiva para frente e para trás.

Além disso, por ser uma estrutura herdada do período colonial pouco trans-
formada pelos diferentes ciclos de expansão econômica, a concentração da
propriedade possibilitava subjugar o trabalho de forma mais precária e vil,
constituindo-se um corolário da forma de exploração e de acumulação primi-

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Ensaios e Debates

tiva e predatória, tal qual descrita por Caio Prado e desenhada por muitos ou-
tros autores, sobre a colonização da América Latina.

No entanto, ainda dentro da condicionante econômica, é possível qualificar


melhor sua natureza e dar-lhe outro sentido, de modo a torná-la mais próxi-
ma de uma invariante, no possível modelo analítico do papel da agricultura
no processo de desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, Rangel demonstra
que, malgrado a estrutura concentrada, as relações pré-capitalistas que se re-
produziam dentro do complexo rural, a absorção de tecnologia moderna -
entendida como a adoção de padrões de produção dados pela chamada re-
volução verde - puderam ser realizadas e com êxito. Dessa forma, a estrutu-
ra fundiária concentrada não se constituía em um obstáculo ao processo de
industrialização. Ou seja, nossa agricultura não era impedimento ao desen-
volvimento econômico como, por exemplo, afirmava Furtado, e por isso, a
questão agrícola poderia (como realmente pode) ser resolvida sem passar pe-
la solução da questão agrária.

Enfim, embora lhe possam questionar uma ou outra afirmação quanto ao papel
do Estado nesse processo, Rangel é um autor a enxergar em nosso desenvolvi-
mento a solução de continuidade em outro condicionante que não o econômico.

Nesse sentido, muito mais próximo de Caio Prado do que de Furtado, para
ele o principal condicionante é político. Por isso sua preocupação com o insti-
tuto jurídico do latifúndio. Sua capacidade de sobreviver ao processo de
industrialização, mormente sua dupla condição no caso brasileiro, ou seja, de
apresentar um lado dinâmico - capitalista na terminologia de Rangel - e,
outro lado atrasado, reproduzindo relações pré-capitalistas de produção, os
chamados "restos feudais".

Sua teoria de um feudalismo interno ao latifúndio brasileiro consiste na ex-


trapolação do mesmo método de dualidades que ele aplica para entender o
surgimento do capitalismo mercantil europeu. Ou seja, para ele, internamen-
te na Europa continental, conquanto passasse por um processo de revolução
na organização do trabalho entre os séculos XV e XVII, mediante a subjuga-
ção do trabalho pelo capital mercantil, constituindo assim uma nova relação
social de produção, externamente apresentava um enquadramento jurídico
que reproduzia os estatutos feudais e por ele exercia a sua hegemonia nas re-
lações com as colônias.

Como aponta RANGEL (1998):

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A questão agrária: mercado de terras, de trabalho e o desenvolvimento

"Ao entrar em contado com o vasto universo subdesenvolvido -


ou melhor, pré-desenvolvido - a Europa o fez pelo seu lado
externo, comunicando-lhe sua natureza feudal, tanto pelo seu
aspecto econômico, como pelo jurídico. Por outras palavras, a
Europa tudo fez para enquadrar a América numa carapaça feu-
dal e o marco mais em vista desse esforço seria o tratado de
Tordesilhas, o qual, ao mesmo tempo que dividia o continente
americano entre as coroas de Espanha e Portugal, estatuía que
todas as nossas terras pertenciam ao rei - um ou outro, pouco
importava, do nosso ponto de vista. E, mesmo quando outros
soberanos europeus - como Francisco I da França, que queria
ver a cláusula do testamento de Adão, legando o mundo à
Espanha e Portugal - puseram em dúvida a validade de
Tordesilhas, foi para reclamar sua parte no espólio, não para
discutir a validade do instituto que fazia de nossas terras, ainda
por descobrir, propriedade de um soberano europeu qualquer e
que, para nós, significava que se firmava um dos princípios
sobre os quais se ergue o edifício do Direito Feudal - "all land is
king's land", isto é toda terra pertence ao rei".

Não deixa de ser interessante esse argumento, na medida em que, real-


mente, o fundamento jurídico dessa medida residia na extrapolação do direi-
to de conquista que já se encontrava incrustado no Direito Romano na figura
do dominiuns senhorial. Ou seja, os dispositivos jurídicos assentavam sobre a
propriedade e sobre um titular do seu domínio útil, que representava aquele
que hegemonicamente, por direito de conquista, detinha o controle da terra
em uso, do meio disponível para a produção material da riqueza. Por isso a
expressão máxima Nulle terre sans seigneur.

Essa institucionalidade do latifúndio ganha força com a capacidade de


adaptação que demonstra quando do processo de industrialização do país e,
sua permanência limita a democratização da propriedade da terra. Nesse sen-
tido, o mercado de terras é um mercado que ainda não se constituiu plena-
mente, não é um mercado que expressa as atividades econômicas concretas
de uma forma social determinada. Dessa maneira, a questão agrária se colo-
ca como uma questão estrutural, da própria organicidade da sociedade bra-
sileira e, representa a última barreira a ser quebrada para o pleno desenvolvi-
mento das forças produtivas, ou seja, uma última barreira para jogar o país no
cenário da competição capitalista internacional na forma de uma economia
madura e integrada, sem entraves internos, capaz de articular a acumulação
de capital a partir da capacidade de absorção de seu mercado interno.

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Ensaios e Debates

É por essa razão que esses autores - Rangel, Caio Prado e Furtado, são
enfáticos em assinalar que é, no Brasil, a constituição do mercado de traba-
lho a expressão mais límpida da manutenção de uma estrutura fundiária con-
centrada. E nesse sentido também, o destravamento dessa questão abriria um
vazadouro para o re-equacionamento da questão urbana no país, de criação
de empregos e capacidade de geração de renda. Esse é o sentido mais pro-
fundo de que a questão agrária se expressa no plano da população.
(KAGEYAMA, 1993).

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90 ¦ ABRA - REFORMA AGRÁRIA


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Reforma Agrária e Campesinato


Luta de classes e territorialização
camponesa em São Paulo

Larissa Mies Bombardi*

"E essa reforma que o Governo quer fazer


agora? Não é assim que ele quer fazer? Lotear
as terras para o pessoal que não tem terra? Mas
se o governo conseguisse fazer isso, ia acabar a
fome do mundo!... Porque todo mundo ia plan-
tar e ia colher!... Tem muita gente que está para
a cidade porque não tem terra para trabalhar."
D. Cida - Faz. do Estado - Marília-SP

1. Apresentação

Como a epígrafe e o título permitem antever, busco discutir o significado da


reforma agrária nesta sociedade e a trajetória dos camponeses em projetos
de assentamento.

Este artigo é fruto de uma parcela das reflexões desenvolvidas ao longo de


minha tese de doutorado intitulada "Campesinato, Luta de Classe e Reforma
Agrária - a Lei de Revisão Agrária em São Paulo"1.

Nela estudei os cinco assentamentos implantados por meio da Lei de


Revisão Agrária, aprovada na década de 60, no Governo Carvalho Pinto.
Trata-se, portanto, de projetos de reforma agrária entre os mais antigos do
estado de São Paulo.

Esta tese foi, de alguma forma, a continuação da minha dissertação de


mestrado "O Bairro Reforma Agrária e o Processo de Territorialização Cam-
ponesa", publicada pela editora Anna Blume em 2004.

* Professora da Faculdade de Geografia da PUC-Campinas. Doutora em Geografia Humana - USP.


1 - Bombardi, 2005.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 91


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Ensaios e Debates

Na dissertação estudei um bairro rural, chamado "Reforma Agrária" que foi


resultado da implantação da referida Lei de Revisão Agrária, no município de
Campinas/Valinhos, através da qual houve a desapropriação de parte de uma
fazenda decadente de café na região de Campinas, que foi dividida em 72 lotes.

A análise deste assentamento envolveu a reconstrução da trajetória de vida


das famílias camponesas antes do acesso a terra e, sobretudo, após tê-la
adquirido. A pesquisa permitiu compreender o processo através do qual os
camponeses do Bairro Reforma Agrária têm construído uma unidade territo-
rial específica, diferente daquela típica da apropriação capitalista, ao longo
de mais de quarenta anos. Esta unidade territorial é resultado da interrelação
de vários elementos: o trabalho camponês, as características do meio natu-
ral, a relação dos camponeses entre si e a relação destes com o mercado.

Após a conclusão da dissertação pareceu-me importante desvendar a trajetó-


ria das outras áreas em que a Lei de Revisão Agrária foi implantada - nos mu-
nicípios de Marília, Jaú, Meridiano e Itapeva - em uma perspectiva de que estas
são as experiências mais antigas de reforma agrária no estado de São Paulo.

Apesar de serem tão antigas, estas áreas foram pouco estudadas. No


desenvolvimento da tese, seja diretamente através do trabalho de campo, seja
nas leituras teóricas realizadas, e no cotejamento de ambos - novas perspec-
tivas foram colocadas.

Assim, além de oferecer uma interpretação para a trajetória desses assen-


tamentos de reforma agrária que, em si, em decorrência de sua longa existên-
cia, têm uma importância muito grande no devir deste país, posto que a refor-
ma agrária é uma grande bandeira dos movimentos sociais organizados no
campo na atualidade, percebi que era fundamental um entendimento mais
profundo sobre a reforma agrária enquanto uma questão para esta
sociedade. Ou seja, fazia-se necessário a compreensão do porquê da existên-
cia de uma proposta de reforma agrária naquele momento histórico específi-
co - início da década de 60.

Entretanto, com o desenrolar da pesquisa, percebi que esse desvendamen-


to não deveria restringir-se ao momento da aprovação da Lei de Revisão
Agrária, porque esta é uma questão que tem atravessado décadas na reali-
dade brasileira e mundial.

Trabalho com a perspectiva do campesinato enquanto classe social e, por-


tanto, da ação camponesa reivindicatória, como uma ação de classe. Enten-

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

do também, como ficará demonstrado ao longo do artigo, que o campesina-


to, enquanto classe, carrega uma peculiaridade que está articulada por dois fa-
tores que se auto-determinam. O primeiro deles é a produção camponesa fun-
dada na relação de trabalho familiar não especificamente capitalista, o que in-
clui essa classe social neste modo de produção, contraditoriamente necessária
à produção e reprodução do capital. O segundo fator diz respeito à ordem mo-
ral dessa classe social, que lhe orienta a prática cotidiana e também a luta pela
terra e na terra. Esses dois fatores devem ser compreendidos conjuntamente
porque eles estão imbricados e um responde pela reprodução do outro.

Desvendar, portanto, a proposição de uma lei de reforma agrária, assim


como a trajetória específica desses assentamentos, diz respeito à compreen-
são de como as classes sociais contraditoriamente contrapõem-se e qual o
processo que leva o campesinato a agir e se mover na história forjando e
transformando frações do território capitalista.

Assim, procurarei neste artigo fazer uma reflexão em três direções, uma
primeira, que aborda a Lei de Revisão Agrária em si e, sua importância; uma
segunda, que aborda as trajetórias destes assentamentos e, finalmente, a ter-
ceira, que resgata as duas anteriores, propondo uma interpretação para o
significado da própria reforma agrária, não apenas daquela relacionada à Lei
de Revisão Agrária, mas a da reforma agrária em si.

A fala da epígrafe que escolhi para dar início a este artigo dá o tom da dis-
cussão que quero fazer. Ela é de autoria de uma camponesa assentada no
município de Marília há mais de quarenta anos.

Ao contrário da voz corrente que enxerga na reforma agrária uma política


pública paliativa, de caráter assistencialista, o estudo dos assentamentos da
Lei de Revisão Agrária indica um caminho avesso a este.

Procurei compreender a trajetória histórica desses assentamentos, buscan-


do captar a reprodução camponesa na sociedade capitalista, particularmente
nos projetos de assentamento. Procurei, por isso, compreender quais fatores
levaram à permanência ou não dos camponeses na terra.

Os fatores relacionados à renda da terra, aos mecanismos desenvolvidos pelo


campesinato de controle sobre a subordinação de sua renda e ao modo de vida
camponês, mostraram-se essenciais na explicação da trajetória positiva dos proje-
tos de reforma agrária, contrariando a concepção de que esta tem possibilidade
de ser efetiva apenas em locais distantes dos grandes centros, como afirma Santos:

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 93


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Ensaios e Debates

Na realidade, hoje não basta produzir, é preciso transformar


esta produção em fluxo, e é quem transforma a produção em
fluxo que tem poder. O produtor por si não tem poder, não tem
poder porque o processo de realização da mercadoria é cada
vez mais subordinado ao processo da circulação. Os lugares da
produção são valorizados em função de sua inserção no
processo de circulação ... A questão da terra, no mundo de
hoje, pode ser encarada através desse prisma. Em outras
palavras, possuir a terra não é em si mesmo, uma solução,
porque possuir a terra e produzir nela não é uma garantia de
uma participação central no processo econômico, já que este é
comandado por quem tem o controle dos processos de circu-
lação, que não se limitam aos transportes, incluindo hoje, o
comércio, a distribuição, a informação e o crédito ... Se isso é
verdade, a questão da Reforma Agrária deve ser vista também
sob esse aspecto. Se há meio século, uma Reforma Agrária iria
trazer remédio para uma muito grande parcela da população e
podia constituir uma garantia de sua correta participação, por
bastante tempo, no processo econômico, nos dias de hoje já
não se pode dizer a mesma coisa ... Na situação atual do Brasil,
onde ainda há áreas que não são completamente desen-
clavadas, onde a "abertura" geográfico-econômica é menor,
onde as relações de proximidade ainda são grandes, a resistên-
cia do agricultor local pode ser maior. O Brasil tem muitas áreas
assim. Nessas áreas, as Reformas Agrárias têm uma possibili-
dade de mais sobrevida. Nas áreas onde o processo de circu-
lação é mais intenso, mais forte, mais presente, a fragilidade do
lavrador se mostra muito maior, o tempo provável de resistência
é menor ... (Santos, 1995:9). (grifos nossos).

O desenvolvimento da tese apontou uma trajetória inversa a esta. A prox-


imidade dos grandes centros e, portanto, do mercado consumidor, assim
como o acesso as grandes vias de circulação, atuam de forma positiva na
relação do campesinato com o mercado, posto que alguns mecanismos de
subordinação da renda camponesa diminuem com esta proximidade. Aí está
uma das chaves para a compreensão da trajetória dos projetos de reforma
agrária: os camponeses não são apenas "produtores", ou seja, não são pro-
dutores capitalistas, isso significa que sua produção e inserção na sociedade
se dão de forma diferenciada e, portanto, não podem ser compreendidas
através do mesmo mecanismo.

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

É esta discussão, que aborda o significado e a trajetória da reforma agrária


que está no eixo das reflexões que quero fazer.

2. A Reforma Agrária em São Paulo:


A Lei de Revisão Agrária Paulista

Ao estudar a Lei de Revisão Agrária, uma primeira pergunta se impôs: por


que uma Lei que tratava de reforma agrária foi proposta em São Paulo no Go-
verno Carvalho Pinto? Considerando ainda que se tratava de uma lei em nível
estadual - antes da criação da SUPRA e da proposta do Estatuto da Terra - a
pergunta a ser feita era justamente esta: o que é que estava acontecendo?

Temos duas esferas de explicação, que sem dúvida estão conectadas. A


primeira é a do contexto geopolítico mundial do auge da guerra fria na déca-
da de 50, sobretudo os planos americanos para a contenção do comunismo.
E, a segunda é, paralelamente, a década de 50 no Brasil marcada por movi-
mentos sociais no campo.

O expoente destes movimentos sociais dos anos 50 são as Ligas Campo-


nesas, que começaram no Nordeste e tiveram um papel importantíssimo; che-
garam a ter cerca de 70 mil associados, e se espalharam praticamente por
todo o Brasil.

Entretanto, em São Paulo, estávamos diante de um campo conflitado e de


movimentos sociais muito importantes. Talvez o mais importante deles tenha
sido o que ficou conhecido como o do Arranca Capim, em Santa Fé do Sul
no Noroeste do estado, em fins dos anos 50.

Este foi um movimento de camponeses-rendeiros que lutavam para prolongar


o contrato de arrendamento. No final do contrato os camponeses deveriam
deixar a área plantada com capim, para formar o pasto das fazendas de gado.

Estes camponeses-rendeiros passaram a ser expulsos com muita violência.


Passaram então a se organizar, através da liderança de um quadro do Partido
Comunista, e decidiram arrancar todo o capim que eles haviam plantado.

O movimento se acirrou muito no ano de 1959, que foi o primeiro ano do


Governo Carvalho Pinto. Este foi o mesmo ano em que Fidel Castro tomou o
poder em Cuba. Isso significa que o auge da Guerra Fria - quando o comu-
nismo ganhava espaço na América Latina, e os movimentos sociais gras-

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Ensaios e Debates

savam não só o campo brasileiro, como também o campo paulista - foi o


momento em que Carvalho Pinto assumiu como governador eleito de São
Paulo, pelo Partido Democrata Cristão.

O exemplo do Movimento do Arranca Capim é importante de ser mencio-


nado, pois talvez ele seja o mais conhecido do período, entretanto, a verdade
é que o campo em boa parte do estado de São Paulo estava conflitado.

Praticamente em todas as regiões do estado de São Paulo havia conflitos,


sobretudo na porção noroeste do estado, a partir de São José do Rio Preto,
que correspondia, naquele período, à frente de expansão transmutando-se
em frente pioneira, isto é, a propriedade privada da terra instaurava-se2. Este
processo de instauração da propriedade privada tem sido marcado por vio-
lentos conflitos no campo, sobretudo contra camponeses posseiros e cam-
poneses rendeiros3.

Os conflitos sociais têm sido, portanto, a grande marca da expansão do


capital no campo, seja através de seu processo de produção, seja em seu
processo de reprodução ampliada. Naquele período histórico, do final dos
anos 50 e início dos 60, vivíamos exatamente este processo.

Neste sentido é que discuto a proposição da Lei de Revisão Agrária em São


Paulo pelo Governo Carvalho Pinto, compreendendo-a como o contraponto
das questões que estavam postas naquele momento histórico. Ou seja, o pro-
cesso através do qual o Brasil se inseriu no capitalismo mundializado provo-
cou alterações no campo, notadamente no modo como o campesinato vinha
se reproduzindo. A ação de classe do campesinato, através de sua organiza-
ção política em oposição à burguesia e aos grandes proprietários de terra, fez
com que essas classes sociais hegemônicas discutissem a forma como a terra
vinha sendo apropriada no estado e no país.

Esta mundialização do capital teve uma faceta específica no campo


brasileiro. Particularmente em São Paulo, a inserção do país neste processo
significou um aumento na expansão da pecuária de corte em detrimento das
lavouras, sobretudo sobre as áreas anteriormente ocupadas por posseiros.
Passou assim, a ocorrer um processo de disputa/luta no e pelo território.
Concretamente, as classes sociais - os grandes proprietários de terra e os
camponeses - estavam em disputa. Tratava-se de conflitos de interesses de or-

2 - Sobre "Frente de Expansão" e "Zona Pioneira" ver, entre outros, Martins (1997) e Chaia (1981).
3 - Na tese, mapeei os conflitos no campo em São Paulo cobrindo um período de meio século: de 1945 a
2005. O primeiro período mapeado foi de 1945 a 1964. Ver Bombardi, 2005.

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

dem diversas e opostas: de um lado havia o mecanismo de expansão do capi-


talismo através da produção do capital (por meio das relações camponesas
não-capitalistas) e de outro, a resistência camponesa à expulsão e à explo-
ração. Havia, portanto, um conflito entre classes sociais antagônicas.

Foi justamente o conflito decorrente dessa oposição de interesses de classe que


levou à formulação e existência de uma Lei de reforma agrária de âmbito estadual
antes, portanto, do Estatuto da Terra de caráter nacional. Aliás, a própria equipe
do Governo do Estado de São Paulo, responsável pela elaboração da Lei de Revi-
são Agrária, foi chamada para participar da elaboração do Estatuto da Terra4.

Neste sentido, a reforma agrária no Governo Carvalho Pinto - para ser bem
breve - vinha naquele momento com duas funções: a primeira de superar o
subdesenvolvimento (o Governo do Estado tinha uma posição extremamente
nacionalista e desenvolvimentista) e, a segunda, nitidamente, a de conter os
conflitos e os movimentos sociais no campo.

Ocorre, entretanto, que a Lei de Revisão Agrária foi frontalmente atacada


pelas classes sociais hegemônicas.

No contexto geopolítico da Guerra Fria, com os movimentos sociais mar-


cando o campo brasileiro, ora reivindicando diretamente a reforma agrária,
ora buscando a permanência na terra em que trabalhavam, esses movimen-
tos foram interpretados como portadores dos germens da revolução comu-
nista internacional, que ocorreram no mundo naquela época.

Por isso, a proposição da Lei de Revisão Agrária foi interpretada como se


fosse uma reforma de cunho socialista. Várias associações de ruralistas posi-
cionaram-se contra a Lei de Revisão Agrária, sob o argumento de que era ela
uma lei de confisco, fundada em princípios socialistas.

Mas, o governo do Estado de São Paulo não tinha, evidentemente, nenhu-


ma postura revolucionária, no sentido de propor um projeto de reforma
agrária que visasse a transformação profunda da estrutura da sociedade; ao
contrário, a Reforma Agrária era entendida como uma medida para conter o
conflito de classe, era, notadamente, um instrumento para a contenção das
ações do campesinato organizado.
4 - O Secretário de Agricultura do Governo Carvalho Pinto, coordenador da equipe de elaboração da Lei de
Revisão Agrária, foi José Bonifácio Coutinho Nogueira. José Gomes da Silva também fez parte da equipe, sua
ligação com a questão agrária tem início nesta experiência. Importante afirmar também que o sub-chefe da
Casa Civil do Governo Carvalho Pinto, responsável direto pelo Plano de Ação do Governo e articulador políti-
co da aprovação da Lei de Revisão Agrária foi Plínio de Arruda Sampaio.

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Ensaios e Debates

Entretanto, o advento da Lei de Revisão Agrária em dezembro de 1960 cau-


sou um grande incômodo à classe dominante. Por isso, foi tão grande a opo-
sição à Lei de Revisão Agrária que, além das alterações realizadas no Projeto
de Lei feitas pelos deputados na Assembléia Legislativa paulista, a continui-
dade da implantação da Lei ficou impossibilitada, pois o Congresso Nacio-
nal, em sua primeira emenda à Constituição de 1946, tirou o recurso do Im-
posto Territorial Rural (utilizado para aplicação da Lei de Revisão Agrária) do
poder dos estados transferindo-o para os municípios. Esta ação do Congresso
Nacional esteve diretamente ligada a estabelecer o impedimento da execução
da Lei de Revisão Agrária em São Paulo, o que, de fato, ocorreu.

3. A trajetória dos Assentamentos


da Lei de Revisão Agrária

A Lei nº 5994 de 30/12/1960, denominada Lei de Revisão Agrária, pro-


mulgada pelo Governo Carvalho Pinto em dezembro de 1960, estabelecia
que deveriam ser assentadas anualmente de 500 a 1000 famílias de agricul-
tores sem terra em terras públicas ou privadas que estivessem sendo subutili-
zadas, adquiridas mediante compra por parte do governo do estado. Esta
compra, e mesmo a implantação dos assentamentos, deveria ser feita com a
verba de recolhimento do Imposto Territorial Rural, que, de acordo com a Lei
de Revisão Agrária, seria cobrado em função do tamanho e da produtividade
da terra, ou seja, quanto maior a área da propriedade e menor sua produ-
ção, maior seria o imposto devido.

Como apontado, com a transferência do ITR para os municípios, meses de-


pois da Lei de Revisão Agrária ter sido aprovada, a continuidade da implan-
tação da lei ficou comprometida.

Mesmo assim, cinco áreas foram adquiridas/destinadas para a implantação


da Lei de Revisão Agrária: a Fazenda Santa Helena, chamada pelos cam-
poneses de Fazenda do Estado, no município de Marília; a Fazenda Capivari
em Campinas; a Fazenda Pouso Alegre, em Jaú; a Fazenda Jacilândia, em
Meridiano e a Fazenda Pirituba, em Itapeva. Os assentamentos dos municí-
pios de Campinas e Marília foram implantados de forma integral (com os
lotes demarcados, as casas, os galpões, a cooperativa e a escola construídos)
ainda no Governo Carvalho Pinto, ou seja, até 1962. O assentamento de
Jaú, que teve os lotes divididos e a terra preparada com curva de nível ainda
em 1962, foi efetivado apenas em 1964, no governo de Adhemar de Barros,
quando as famílias vieram para seus lotes. Entretanto, diferentemente do que

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

ocorreu nos dois casos anteriores, não dispuseram da mesma infra-estrutura


no lote: casa, galpão e centro comunitário.

Os casos da Fazenda Jacilândia em Meridiano e da Fazenda Pirituba em Ita-


peva tiveram uma trajetória completamente diversa dos três anteriores. As duas
Fazendas eram terras públicas que foram designadas para a implantação de
assentamentos pela Lei de Revisão Agrária. A Fazenda Jacilândia estava ocupa-
da por posseiros no momento da aprovação da Lei e a Fazenda Pirituba, além
de também estar ocupada por posseiros, estava sendo "arrendada por grileiros",
que haviam sido prepostos do Estado. Em ambas, os camponeses vivenciaram
um processo intenso de violência na luta por sua continuidade na terra.

Com relação aos assentamentos da Lei de Revisão Agrária, é possível esta-


belecer um paralelo mais direto entre o Bairro Reforma Agrária (Campinas) e
a Fazenda Santa Helena (Faz. do Estado - Marília), posto que foram efetivados
na mesma época e da mesma forma. Neste sentido, busquei compreender
suas trajetórias procurando identificar e explicar as diferenças entre os dois.

Os nomes pelos quais os camponeses se referem ao assentamento são bas-


tante elucidativos, como procurarei mostrar. No caso de Campinas constitu-
iu-se um bairro rural, hoje chamado "Reforma Agrária" e em Marília, diferen-
temente, os camponeses referem-se ao local em que o assentamento foi efe-
tivado como "Fazenda do Estado".

Esta diferença na forma de nomear os locais, deve-se ao modo e aos meca-


nismos com que os camponeses territorializaram-se ou não em suas terras.

Em Marília, embora a Fazenda Santa Helena (Fazenda do Estado) tenha


sido a primeira em que a Lei de Revisão Agrária foi implantada, o número de
famílias que permaneceram na terra até o ano de 2004, quando realizei a
última etapa da pesquisa de campo, não é tão significativo quanto no Bairro
Reforma Agrária em Campinas.

Cerca de oito anos após a implantação do Projeto na Fazenda Santa


Helena, parte dos camponeses se encontrava em grande dificuldade finan-
ceira e muitos deles haviam transferido seus lotes para outras famílias, ou
arrendavam suas terras e trabalhavam como colonos em propriedades vizi-
nhas (TOLENTINO, 1992).

A explicação da permanência ou não das famílias em seus sítios está vincu-


lada, sem dúvida, às características específicas do campesinato. Há assim, den-

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Ensaios e Debates

tre outros, três fatores articulados que apontam um caminho no sentido dessa
explicação: o primeiro é o tipo de cultura que as famílias desenvolveram em
seus lotes, o segundo é a estrutura familiar tal como se apresentava quando
vieram para o lote, ou seja, o número de membros da família e a idade dos fi-
lhos e, o terceiro, é a relação que a família camponesa estabelece com o mer-
cado, tanto no sentido da comercialização, como no da própria distância.

A lógica camponesa é fundamentalmente diversa da capitalista. Assim,


analisar a trajetória de projetos de reforma agrária demanda adentrar com
profundidade no universo camponês, marcado por uma estreita ligação entre
trabalho e família. As observações feitas, por exemplo, por Chayanov (1974)
no começo do Século XX, bem como as de Shanin (1983), foram e são muito
valiosas nesse aspecto.

Desta forma, a relação que as famílias camponesas estabelecem com o


mercado, ou seja, o conflito de interesses do campesinato em relação aos das
classes sociais hegemônicas, bem como o fato de estarem sujeitos às intem-
péries da natureza, a forma como a família está estruturada e a possibilidade
de reterem parte substancial da renda camponesa da terra, são os eixos fun-
damentais para que se possa compreender a trajetória dos projetos de refor-
ma agrária.

Ao serem assentadas, as famílias camponesas imprimem em suas terras


todo o arcabouço de conhecimento de que são portadoras, arcabouço este
que muitas vezes remete às gerações passadas.

Os camponeses, como eles dizem, ao "tomarem posse" de suas terras, pas-


sam a "formar" seus sítios. Esta, aliás, é uma palavra extremamente elucidati-
va, pois significa exatamente "dar forma", ou seja, trata-se da humanização
da natureza através do trabalho camponês. Vale dizer que os camponeses re-
ferem-se às suas próprias terras como "sítio" só após o terem formado, isto é,
quando se remetem ao período em que as propriedades estavam apenas
demarcadas dizem "lote", entretanto, quando a terra tem seu trabalho incor-
porado, torna-se sítio.

Assim, os cultivos a serem introduzidos na nova terra serão aqueles cuja


prática e conhecimento o camponês possui, além, evidentemente, de todos os
instrumentos e ferramentas específicas para determinados cultivos.

O Bairro Reforma Agrária, em Campinas, é hoje um bairro rural marcado


pela produção de frutas, especialmente o figo, a uva e a goiaba, cujas famí-

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lias vivem com um nível razoável de conforto, tendo acesso a bens de con-
sumo que costumamos conceber como exclusivos do meio urbano.

Entretanto, o processo de formação de seus sítios e de reprodução na


própria terra foi extremamente árduo. Por vezes, na realização do trabalho de
campo no Bairro Reforma Agrária (Campinas), minha pergunta era sobre a
não permanência de determinada família no assentamento. As respostas em
geral vinham em torno da dificuldade financeira em assumir as prestações do
lote e concomitantemente manter a família.

Foi perceptível que a estrutura familiar e o tipo de cultivo desenvolvido nos


primeiros anos determinou a permanência ou não nos seus sítios. Assim, de
maneira geral, aquelas famílias que tinham um número de filhos razoável em
idade de trabalho e, paralelamente, vieram produzir frutas, o que permitia
que auferissem maior renda (em oposição àquelas que cultivavam outros
gêneros, principalmente legumes), tiveram mais facilidade para permanecer
na terra. Isto porque esses dois fatores são de fundamental importância: o
primeiro deles, refere-se ao "número de bocas para comer e de braços para
trabalhar" (CHAYANOV, 1974); o segundo refere-se à renda camponesa da
terra e portanto, à relação com o mercado no que tange à subordinação
desta renda ao capital.

Uma pequena parte das famílias assentadas (apenas cinco, das setenta e
duas que foram assentadas) veio para o lote cultivando frutas, que elas já cul-
tivavam nos sítios dos pais e dos avós, ou seja, eram camponeses-proprietários,
cuja propriedade tornava-se exígua para a reprodução de todos os filhos.

Passou a ocorrer que estas famílias que cultivaram frutas obtinham uma
renda da terra maior do que as outras que produziam, por exemplo, algodão,
ou legumes, como apontado.

Entretanto, em uma prática que é típica da sociabilidade camponesa, as famí-


lias passaram a criar uma teia de relações entre si e, a partir daí, partilharam o
conhecimento que tinham com as demais famílias, ensinando o cultivo de frutas.

Passou assim a se constituir uma unidade territorial específica que é o bair-


ro rural: os camponeses formaram um tal amálgama que os cultivos em
pouco tempo tornaram-se os mesmos.

Aquelas famílias, portanto, que tinham uma estrutura familiar conjuntural-


mente positiva, ou seja, um equilíbrio entre produtores e consumidores, como

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Ensaios e Debates

diria Chayanov, e vieram produzindo frutas ou passaram a produzi-las logo


no início, tiveram muito êxito.

Estas famílias, ao longo dos anos, foram também desenvolvendo técnicas


de cultivo que as permitem produzir frutas em períodos do ano em que são
pouco encontradas no mercado, o que lhes garante a extração da chamada
"renda de monopólio"5, ou seja, elas obtêm uma renda significativamente
maior a partir destas práticas. Vale dizer que também estas práticas são socia-
lizadas com as demais famílias do bairro, os "vizinhos". Desta forma constitui-
se o Bairro Rural que é - para usar uma expressão utilizada pelos campone-
ses - como "uma corrente", o que significa que a informação é transmitida
através dos elos que os unem.

É neste sentido que é possível afirmar que o lote se transforma em sítio e o


assentamento em bairro rural. Aliás, o nome oficial do Bairro Reforma Agrária
era Núcleo Agrário Capivari, entretanto, a partir dos laços criados entre as
famílias, elas o passaram a chamar de "Reforma Agrária", o nomearam a par-
tir da identidade territorial que se constituiu.

Como procurarei apontar, no projeto de assentamento da Fazenda Santa He-


lena, em Marília, houve um processo bastante crítico de subordinação da renda
da terra ao capital industrial e comercial e, posteriormente, também ao finan-
ceiro - às vezes as três formas de subordinação estavam ligadas a uma única
figura - o que acarretou a saída de grande parte das famílias de suas terras.

Em Marília, assim como em Campinas, também as famílias imprimiram em


suas terras aquilo que elas já cultivavam, neste caso, provinham da condição
de camponeses-rendeiros, e cultivavam o amendoim. Além disso, o que se
tornou um agravante, as famílias foram em grande parte incentivadas pelo
Estado para que praticamente só cultivassem o amendoim, coibindo o cultivo
de outros gêneros.

Naquele período, no início dos anos 60, uma boa parte do óleo comestí-
vel consumido pela população urbana era feita de amendoim e, na região de
Marília, havia diversas indústrias processadoras. Esta foi a grande justificativa
dada pelo Estado, nos anos de implantação do assentamento, para que as
famílias se dedicassem quase exclusivamente a este cultivo.

Entretanto, este processo acabou virando uma faca de dois gumes, porque

5 - Sobre Renda de Monopólio ver Oliveira (1986).

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os camponeses passaram a ter a sua renda em grande parte subordinada ao


capital6. No caso dos assentados em Marília, o capitalista da indústria oleagi-
nosa era a mesma figura que comprava seus produtos e que "financiava"
parte da produção.

A gravidade deste processo está em que a renda destas famílias ficou amar-
rada ao mesmo tempo nas três pontas possíveis de subordinação: a do cap-
ital comercial, a do capital financeiro e a do capital industrial.

Há um depoimento, de um senhor assentado em Marília que revela este


processo com extrema lucidez:

[Pergunto ao meu interlocutor por que se plantava tanto amen-


doim naquela época.] Ah, era uma coisa que dava dinheiro, era
o plantio da época, porque dava o óleo. Não tinha negócio de
doença, de fungos, nem nada e tinha bastante máquina de
amendoim e era uma coisa rápida, então era a melhor planta,
era amendoim e algodão na época... [Pergunto para quem eles
vendiam.] Olha, a gente vendia mais só para o Velho Novaes,
vendia para o Zilo, para o Velho Novaes, mas aquele que
pagasse melhor era o que a gente levava.
Meu irmão mesmo, uma vez tinha financiamento no Velho No-
vaes, financiou tudo e o meu irmão chegou com o Tonhão, ele
pegou e passou o caminhão de amendoim, passou na balança
da prefeitura, deu um peso. Quando chegou no Velho Novaes
deu outro, ele falou: "Não, você está me roubando! Eu já não
vendo", e o caminhão era do Velho Novaes, que vinha buscar.
[E o irmão dele disse:] "Não, não vou vender o amendoim não!
E outra, a renda que você está dando aí, está pouca, lá no
Ohara deu a renda melhor." Aí acabou brigando com o Velho
Novaes, diz que o Velho Novaes falou assim: "Não, mas eu não
te pago tudo isso" - ele tinha 17 mil réis - [E o irmão falou:] "Não,
lá deu 17, você vai ter que pagar 17, o preço é esse!"
Ele pesou na prefeitura e tirou a renda em outro lugar, a renda
vê se o amendoim está úmido, ou se está bem sequinho, se está
bem granado, aí ele tirou a renda tinha dado 17 de renda,
chegou lá ele queria pagar só 14 de renda, aí ele falou: "Não!"
[Pergunto onde ele foi avaliar. Meu interlocutor explica-me com
detalhes para que eu possa entender:] ... o primeiro foi o
6 - Sobre a subordinação da renda camponesa ao capital ver, entre outros, Etges (1989) e Tavares dos
Santos (1978).

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Ensaios e Debates

Ohara, é outra máquina, aí deu 17 de renda, então não tem


amendoim chocho é tudo granado, só que aí eles tinham a
maquininha de medir tudo, direitinho, mediu, deu 17 de renda,
quando chegou na maquininha do, da máquina que ele vendia
que era do Velho Novaes, que era o dono do caminhão, deu
14 só! O cara que tirava a renda tirou a renda puxando para o
patrão. Ele falou [o irmão de meu entrevistado]: "Não, vira o
caminhão que eu vou levar pro Ohara". Pegou e trouxe, aí ele
[o Velho Novaes] não queria deixar, ele falou [o irmão]: "Não,
aqui não tem boi não, vai virar, senão eu quebro tudo no pau!"
[risos] Aí trouxe para o Ohara, aí a hora que a minha mãe
chegou lá ele falou assim [o Velho Novaes]: "Não manda aque-
le doido vir trazer amendoim aqui mais não, aquilo lá é doido,
é igual ao pai dele, é doido"... [Eu pergunto: nunca mais vendeu
para ele?] Não, vendia, a gente vendia para ele [Eu pergunto:
e o dinheiro que ele tinha arranjado para fazer a colheita?] Aí a
gente pagou. É o que o meu irmão falou: "Nós deve dinheiro
pro'cê, não amendoim!" [risos] "Eu devo dinheiro para você, não
devo amendoim, o amendoim é meu, eu vendo para quem eu
quero! Se você não vai pagar esse tanto, então o outro lá paga,
eu vendo para ele!"7

Esta fala é extremamente reveladora da questão que quero abordar com


relação à trajetória do assentamento na Fazenda Santa Helena. Há nela vá-
rios elementos que merecem ser discutidos com bastante cuidado.

Meu interlocutor começa falando das possibilidades do cultivo do amen-


doim naquele tempo, tendo em vista a inexistência de pragas e a existência
de várias indústrias que processavam a oleaginosa, o que, evidentemente,
revelou-se como uma "armadilha", uma vez que passaram a estar "nas mãos"
das referidas indústrias.

Ele conta que seu irmão financiou "tudo" com a indústria oleaginosa, ou
seja, não emprestou junto à indústria o montante apenas para a colheita. O
camponês foi então pesar e avaliar o amendoim em outros locais antes de
entregá-lo ao cerealista/indústria com quem tinha financiamento. Pesou o
amendoim em outra balança (a da Prefeitura, o que pode revelar que era
mais confiável, por ser uma balança pública) e avaliou sua mercadoria junto
a outro comprador. Ao ir entregar sua colheita na indústria em que havia feito
seu empréstimo, percebeu que foi duplamente usurpado: no peso de sua mer-
7 - Entrevista realizada na Fazenda do Estado (Marília) com o sr. João Teixeira, em setembro de 2004.

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

cadoria e também na avaliação da qualidade que dela foi feita. Ao se dar


conta de que estava sendo lesado, o camponês resolveu entregar sua mer-
cadoria para outro comprador; entretanto, o caminhão que havia buscado
sua colheita era da própria indústria com a qual ele havia feito o financia-
mento "o caminhão era do Velho Novaes". O dono da indústria não queria
deixar que o camponês saísse com sua própria mercadoria de lá, e este só
saiu sob protesto e ameaça.

O episódio é revelador de todo o processo de subordinação da renda da


terra ao capital a que os camponeses do assentamento na Fazenda Santa
Helena estiveram submetidos.

Retornando ao depoimento do camponês: a tomada de consciência de sua


situação faz transparecer o processo de subordinação: "Eu devo dinheiro para
você, não devo amendoim, o amendoim é meu, eu vendo para quem eu que-
ro! Se você não vai pagar esse tanto, então o outro lá paga, eu vendo para
ele!". Foi necessário que o camponês dissesse os "termos do acordo" para o
industrial, "termos" estes que estavam escamoteados na relação de subordi-
nação em que se encontrava. Ou seja, a tal ponto se dava a submissão de
sua renda, que sua colheita estava "moralmente presa" à indústria junto à qual
havia feito o empréstimo, mesmo porque o próprio transporte e embalagem
de sua colheita eram "fornecidos" pela indústria. A palavra "fornecidos" está
entre aspas, pois sua renda era também sugada na embalagem que compra-
va e no transporte realizado, que ficava por conta do camponês.

Este "aprisionamento moral" de sua mercadoria simboliza a subordinação


que era vivenciada; se assim não fosse, sua atitude, ainda que honesta, uma
vez que ele não negava o débito, não seria tomada por uma "insubordi-
nação". Ou seja, o camponês, ao afirmar que devia dinheiro e não amen-
doim se "insubordinou", negou parte da subordinação, também moral, a que
estava atrelado usualmente. Tanto se insubordinou que ao fazê-lo, foi chama-
do de "louco" pelo dono da indústria.

É de se notar que não foi chamado de ladrão ou de desonesto, ou seja,


estava agindo dentro da legalidade, assim a fala do industrial "não manda
aquele doido vir trazer amendoim aqui mais não" para a mãe do rapaz, reve-
la que o que ele fez foi quebrar a regra, e quem quebra a regra é tomado por
"doido"; ele foi "doido" por quebrar parte do elo da subordinação.

Este processo revela que é através do produto de seu trabalho que o cam-
ponês adquire a consciência de sua relação com o capital. Passa, portanto,

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a ver que somente a luta contra o capital abre caminho à sua reprodução e
principalmente à sua liberdade (Martins, 1990).

Com relação ao assentamento de Marília, há também a questão da "dis-


tância relativa" do mercado, que era significativamente maior do que em
Campinas, e, portanto, praticamente não havia formas do camponês comer-
cializar sua própria produção, o que, novamente, significa que sua renda fica-
va subordinada ao capital comercial.

De todo modo, aquelas famílias que estão nas suas terras até hoje, encon-
traram formas de evitar a apropriação de sua renda pelo capital, principal-
mente com a criação de gado ou com cultivos permanentes.

Este aliás, deve ser compreendido como um dos eixos centrais na interpre-
tação das trajetórias dos assentamentos, trata-se da questão da subordinação
da renda camponesa ao capital, e, evidentemente, dos inúmeros mecanismos
encontrados pelo campesinato para driblar esta subordinação.

Ao consultar os arquivos da Assessoria de Revisão Agrária pude verificar o


enorme número de inscritos para a aquisição de lotes por meio da Lei, em
diversos municípios do estado e mesmo de outros estados.

Para os camponeses sem terra, a propriedade familiar era sinônimo de rea-


lização de um sonho de fartura e autonomia8, como retrata um camponês
assentado no Bairro Reforma Agrária em Campinas: "... o meu pai sempre so-
nhou em ter um pedaço de terra dele. A gente sempre trabalhou para os ou-
tros, sempre deu murro em ponta de faca, nunca tivemos regalia nenhu-
ma..."9. Nota-se a valorização da terra "sem patrão", de ter o controle sobre
o processo de trabalho.

A autonomia é recorrente na fala do campesinato ao retratar a busca pela


terra. Associado à autonomia está a realização do sonho de fartura, conforme
indica uma camponesa assentada aos dez anos de idade no Bairro Reforma
Agrária em Campinas:

... daí o meu pai foi trabalhar na roça, ele com a minha mãe
plantaram o sítio inteirinho... algodão e milho, feijão, abóbo-
ra... até formar o figo, plantaram o figo, já quando chegaram

8 - Ver a este respeito D'Aquino (1996).


9 - Entrevista realizada no Bairro Reforma Agrária (Campinas) com o Sr. Luís Antônio Chiquetano, em agos-
to de 1999.

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acho que plantaram três mil pé de figo, e no meio do figo assim,


eles já plantaram algodão e o resto do sítio acabaram de en-
cher, porque o figo demora pra ... dar uma colheita boa, então
eles plantava assim no meio, porque o algodão, o milho no
mesmo ano dá, né? ... Nossa, a minha mãe tirou um caminhão
de abóbora, cada abóbora do meu tamanho, nunca mais eu vi
abóbora daquele tamanho, o porquinho, ela sempre contava a
história que o porquinho se engordou lá no terreiro, arrancou
um monte de abóbora da minha mãe... naquelas barroca ela
encheu tudo de abóbora, cê tinha que ver a coisa mais linda ver
aquelas abóbora rajada!... eu lembro!... Cê sabe que tem horas
que eu falo: ai que saudade que dá daquele tempo.10

Nota-se que as palavras utilizadas são plenas da expressão de fartura que a


nova terra propiciou "minha mãe tirou um caminhão de abóbora, cada abóbo-
ra do meu tamanho, eu nunca mais vi abóbora daquele tamanho!" Esta ima-
gem indica que a terra estava propiciando extrema saciedade para a família.
O porquinho que "se engordou lá no terreiro", ele não apenas engordou, mas
ele "se" engordou no terreiro, a expressão demonstra que a nova terra engor-
dava o porco, ou seja, engordava o alimento da família. A antropomorfização
dos elementos da natureza traduzem o significado desta vivência.

É a busca deste sonho que tem orientado a luta pela terra e na terra. As
falas são reveladoras da impressão que os próprios camponeses assentados
têm da condição conquistada após o acesso a terra.

No caso de Jaú, diferente de Campinas e de Marília, as famílias não tiver-


am os lotes com casa, com galpão, com pocilga, etc. Como a implantação
do assentamento se deu na passagem do Governo Carvalho Pinto para o
Adhemar de Barros, e este era apoiado pelos latifundiários e contra a Lei de
Revisão Agrária, não houve implantação de infra-estrutura no assentamento.

Na região de Jaú, a partir da década de 80, com o Pro-álcool, passou a haver


um intenso processo de valorização daquelas terras roxas e uma forte territoriali-
zação do capital no campo através da implantação massiva da cana de açúcar11.

O título de um dos capítulos da tese em que eu discuto o assentamento em


Jaú é "A cana cerca o sítio". Aliás a maneira como os sitiantes falam do

10 - Entrevista realizada no Bairro Reforma Agrária (Campinas) com a Sra. Maria José de Freitas, em julho
de 2000.
11 - Sobre a territorialização do capital ver, entre outros, Thomaz Jr (1988).

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processo de territorialização deste capital é muito emblemático, eles dizem


que a cana os está "cercando" e que eles estão "presos" no meio da cana.

As palavras utilizadas, novamente, são elucidativas. De fato, a cultura da


cana foi cercando os sítios o que traduz a imagem de um "cerco". Os fazen-
deiros, ano após ano, oferecem somas de dinheiro em troca da terra campo-
nesa. Esta grande expansão do plantio da cana-de-açúcar em toda a região
tem pautado o preço da terra, os camponeses têm sido "tentados" para que
vendam suas terras de modo a serem incorporadas às vastas áreas de cana.

Desta forma, no caso de Jaú, os camponeses vivenciam este processo massivo


de territorialização do capital nas bordas do assentamento e mesmo dentro dele.

Parte das famílias, assim como em Marília, que estavam vivendo um proces-
so de subordinação de sua renda, não resistiu a este processo agressivo de
territorialização do capital e, portanto, não logrou permanecer em suas ter-
ras. O saudosismo com que se recordam dos tempos em que estavam na ter-
ra é unanimidade entre esses camponeses. Eles se lembram da terra e dos fru-
tos dessa terra através dos sons, das cores, dos sabores, dos cheiros e das tex-
turas! Ou seja, as lembranças ficaram impregnadas na memória através dos
sentidos. E isto é muito forte e significativo para pensar o sentido da reforma
agrária, que extrapola em muito o âmbito estritamente das relações econômi-
cas. Essa experiência cria marcas indeléveis nas vidas dos assentados, que ao
experienciarem a fartura e a liberdade jamais querem abrir mão delas.

A migração para uma terra mais distante foi um dos caminhos encontrados
no caso daqueles que não conseguiram ficar em suas terras, como possibilida-
de de realização do sonho da reprodução camponesa na "terra livre". Assim, a
saída da terra nem sempre foi pelo caminho da proletarização, alguns migra-
ram em busca de terras mais baratas. E há, também, aqueles que estão se re-
campenizando, somando as economias para comprar terras no Mato-Grosso.

Além disto, o que é extremamente fundamental, é que ao contrário do que


era de se esperar, em meio ao "mar de cana", em meio ao processo agressi-
vo de territorialização do capital, as famílias camponesas que lá resistem - e
cônscias de sua resistência - reproduzem-se, buscando driblar os mecanismos
de subordinação de sua renda e estabelecem a sociabilidade típica dos bair-
ros rurais, aliás, como em todas as outras áreas estudadas. Neste caso, tam-
bém se referem ao assentamento como "Reforma Agrária".

As famílias que têm resistido à "adulação" - como eles dizem - dos fazen-

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deiros e usineiros, têm conseguido isto com a criação de suínos e gado lei-
teiro. A criação de gado e suínos é uma atividade que a família sempre
desenvolveu paralelamente aos cultivos e, a partir do momento em que os
cultivos ficaram inviáveis, estas atividades que eram complementares, "para o
gasto", quer dizer para o consumo da família, tornaram-se comerciais.

As formas encontradas para sua própria reprodução e o orgulho de estarem


na terceira geração nessas terras, demonstram a vivacidade e a viabilidade
desses projetos. Por isto, não é apenas a cana que cerca o sítio, mas, com a
reprodução camponesa, "o sítio resiste à cana".

A prática da criação como atividade comercial foi adotada em Marília, em


Jaú e também em Meridiano.

Introduzo, assim, a discussão das últimas duas áreas que são as da Fazenda
Jacilândia em Meridiano e a Fazenda Pirituba em Itapeva.

A Fazenda Jacilândia, em Meridiano, área envolta em conflitos de terra no


final da década de 50 e 60, pertencia à Cia. Araraquarense de Estrada de
Ferro nos anos 50, época em que um enorme número de camponeses, espe-
cialmente vindos da Bahia, migrava para o oeste paulista, ora trabalhando
nas fazendas de café, ora em suas "brechas livres mais a oeste". Grande parte
deles trabalhou na abertura de fazendas, no processo de produção do capi-
tal, plantando gêneros para o consumo e cereais que comercializavam, para
posteriormente formar o pasto das futuras fazendas de gado e depois deixá-
las, migrando novamente.

Os camponeses instalaram-se na área da Fazenda Jacilândia em busca da


terra livre, sem patrão. Entretanto, enfrentaram a truculência de jagunços no
processo de grilagem dessa área. Resistiram na terra e, quando a Lei de
Revisão Agrária seria definitivamente implantada na área (na década de 70),
o que legalizaria a condição de posseiros, enfrentaram a prevaricação perpe-
trada pelo agrônomo responsável por assentá-los, tendo que resistir uma vez
mais para permanecerem na terra.

Essas famílias territorializaram-se no oeste paulista, formando "sítios baianos",


marcados, sobretudo, pela prensa e pelo forno de torrar a farinha de mandio-
ca. Evidentemente, também tecem a teia de relações dos bairros rurais, sendo,
em grande parte, parentes e compadres12. Aliás, mesmo o processo migratório

12 - Sobre a discussão de Bairro Rural ver, entre outros, Queiroz (1967), Castro Oliveira (1998) e Bombardi
(2004b).

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é conduzido por essa teia. A migração camponesa só é compreendida se se en-


tende que essa é uma decisão, e "um fio", conduzidos no âmbito da família.

A permanência das famílias nessas terras tem se dado, nos últimos anos,
através da criação de gado leiteiro. Como os lotes não são grandes e o tra-
balho demandado é pequeno, não há um grande número de membros da
família trabalhando no sítio. Entretanto, há casos em que os camponeses têm
procurado superar essa situação através do piqueteamento do pasto, de tal
modo que o número de cabeças que é possível criar na mesma área seja sig-
nificativamente maior.

Os croquis feitos em um desses sítios pelo próprio camponês, revelam -


através do desenho - a dimensão do futuro, desse sonho realizado. Ou seja,
o croqui retrata além do momento presente o sonho/trabalho futuro já incor-
porado na terra

Há portanto, uma recampenização da própria família, filhos que haviam


migrado para a cidade, porque a terra estava "pequena", têm voltado para o
sítio dos pais com esta possibilidade.

Com relação à Fazenda Pirituba, em Itapeva, talvez ela seja o caso mais em-
blemático no que diz respeito à luta pela terra. Essa área era uma fazenda públi-
ca no início da década de 50, quando o Governador Adhemar de Barros (em
sua primeira gestão) cedeu a área para que um agrônomo italiano implantasse
um projeto piloto de cultivo de trigo. Implementos agrícolas foram importados
da Itália para essa implantação e casas foram construídas para que os "colonos
italianos" viessem cultivar o trigo na área. Ocorreu que a Fazenda Pirituba já era
ocupada por camponeses, ora na situação de posseiros, ora na de rendeiros,
quando a área foi destinada ao projeto. Esses camponeses foram forçados a
trabalhar como carpinteiros e pedreiros na construção das casas que os ita-
lianos viriam habitar, em troca da permanência na terra. Os italianos não vie-
ram, o projeto não foi implantado e passou a haver um longo e duro processo
de grilagem dessa área pelo agrônomo e seus descendentes, procurando expul-
sar os camponeses e arrendando a área a terceiros.

Desde então, os camponeses vivenciam tenazmente uma grande resistência


nessas terras, que já dura mais de cinqüenta anos. No final da década de 70,
o mesmo agrônomo que havia implantado a Lei de Revisão Agrária na Fazenda
Jacilândia, prevaricando e expulsando parte das famílias, veio também "implan-
tar" a Lei de Revisão Agrária na Fazenda Pirituba. Entretanto, passou ele próprio
a grilar áreas da fazenda, cedendo enormes porções de terra a outros grupos

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(além daqueles que já a grilavam). Novamente os camponeses se depararam


com um processo de expulsão e de violência. Algumas famílias, naquele mo-
mento, não conseguindo ficar em suas terras, organizaram-se e denunciaram a
atitude do agrônomo que redundou na abertura de uma Comissão Especial de
Inquérito e um processo administrativo contra o mesmo. No início da década
de 80, parte dessas famílias que foram expulsas da Fazenda Pirituba (onde mui-
tos destes camponeses nasceram e cresceram) organizou-se e formou o grupo
que ocupou a área. Esse grupo, que nasceu no interior da própria Fazenda Piri-
tuba, tornou-se, mais tarde, um dos germens do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST, responsável pela continuidade da ocupação da área ao
longo dos anos 80 e 90, via de regra a partir dos laços familiares.

Isto significa que o Movimento Social em Itapeva, se concretiza dentro da


Fazenda Pirituba, a partir dos laços de parentesco e de uma resistência que
já existia há décadas. O movimento não aparece, ele é, portanto, con-
tinuidade de uma luta.

A palavra "resistência", utilizei para nomear, na tese, a discussão dos assen-


tamentos de Meridiano e Itapeva, posto que ela remete a esse longo proces-
so vivenciado pelo campesinato, processo este em busca de sua reprodução
e territorialização.

A busca e a resistência têm sido também as marcas da territorialização cam-


ponesa em cada um dos projetos de assentamento da Lei de Revisão Agrária.

4. Conflito de Classe e Reforma Agrária

Procurei, no desenvolvimento da tese, que deu origem às reflexões trazidas


neste artigo, desvendar/explicar os conflitos no campo em São Paulo e o sig-
nificado da reforma agrária como uma questão para esta sociedade, ou seja,
para o próprio modo capitalista de produção.

Para tanto, mapeei os diversos conflitos no campo em São Paulo, em três pe-
ríodos diferentes: de 1945 a 1964, de 1964 a 1981 e de 1980 a 2005. O
primeiro período compreende justamente a época da elaboração e proposição
da Lei de Revisão Agrária, chegando às vésperas do Golpe Militar, período este
em que os conflitos marcavam o campo em São Paulo, particularmente na re-
gião do Noroeste do Estado. O segundo período, de 1964 a 1981, que cor-
responde à época da ditadura militar, foi também marcado por inúmeros con-
flitos, o que mais surpreende tendo em vista o quanto a repressão esteve pre-

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Ensaios e Debates

sente naquele momento histórico. O terceiro período, que vai dos anos 80 até
a atualidade, sobre o qual há mais dados, está marcado por uma intensa mo-
bilização e conflitos no campo em praticamente todo o estado.

Os dados revelam um campo em conflito há, no mínimo, sessenta anos.


Tais conflitos são conflitos de classe, de uma sociedade que é eminentemente
contraditória; são conflitos pela apropriação e controle do território.

O campesinato luta por sua reprodução na própria terra. É, portanto,


através da compreensão do sentido dos conflitos que se compreende simul-
taneamente, a luta de classes, a luta pela terra e a necessidade da reforma
agrária na atualidade.

Vale dizer que ao nomear este item como "Conflito de Classe e Reforma
Agrária" estou afirmando que o campesinato e o conflito de classe, estão no
centro da interpretação para desvendar a reforma agrária. Desta forma pro-
ponho que a reforma agrária é a apropriação de frações do território que o
campesinato - consciente de sua unidade e de seus interesses - conquista
através da luta e do enfrentamento de classe.

É esta afirmação que, creio, traz uma contribuição para o entendimento do


sentido da reforma agrária, que busco destrinchar nesta parte final do artigo.

O campesinato, enquanto classe, está em conflito com as duas outras


classes sociais hegemônicas no capitalismo: que são os capitalistas e os
proprietários de terra. Esta concepção do campesinato como classe social,
está presente em autores como Shanin, José de Souza Martins, José Vicente
Tavares dos Santos e Ariovaldo Umbelino de Oliveira; que se contrapõem
a outros autores no âmbito do marxismo que negam a existência do cam-
pesinato.

Para a interpretação desta classe social tão específica, que é o campesina-


to, há que se considerar duas questões que estão relacionadas e que não po-
dem ser compreendidas separadamente.

A primeira questão é aquela que diz respeito à ordem moral camponesa,


conforme nos informa o antropólogo Klass Woortmann, entre outros, ou seja,
é a questão da concepção de mundo camponesa que vê a terra vinculada à
vida, à família e ao trabalho.

Entretanto, esta ordem moral só pode ser entendida em conjunto com um

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Reforma Agrária e Campesinato: Luta de classes e territorialização camponesa em São Paulo

outro aspecto, que também caracteriza esta classe social, que é a sua forma
econômica de produzir. Neste sentido, novamente remeto o leitor a autores
como o Ariovaldo U. de Oliveira, ao José de Souza Martins, ao Shanin, e tam-
bém à Rosa Luxemburgo, que mostram que a produção camponesa não-ca-
pitalista é necessária à reprodução do próprio capital.

Quer dizer, contraditoriamente, que o capital faz uso, precisa de relações


não capitalistas para se reproduzir. É isso que explica a presença desta classe
social neste modo de produção.

Mas, ao mesmo tempo, temos uma contradição dentro da outra: o capital


embora precise e permita a reprodução camponesa, também despoja o cam-
pesinato, também o expulsa. Assim, se por um lado é possível compreender
a reprodução camponesa dentro do capitalismo, como um imperativo da pró-
pria reprodução do capital, isto sozinho não explica tudo.

Ou seja, o campesinato, mesmo quando despojado ou expulso, luta para


resgatar sua condição.

Isto quer dizer que temos, duplamente: uma forma econômica não pauta-
da pelo lucro que é informada pela ordem moral camponesa e, ao mesmo
tempo também a informa.

Assim, é no âmbito dessa concepção que este artigo está sendo desenvolvi-
do, em uma perspectiva de que a compreensão do campesinato e sua inser-
ção e reprodução - contraditória - na sociedade capitalista é que possibilitam
uma abordagem profícua da realidade e, especificamente, da realidade dos
assentamentos, desvendando o lugar dos conflitos de classe no país e o sig-
nificado da reforma agrária.

Portanto, a reforma agrária é sempre esta apropriação de frações do ter-


ritório que o campesinato - consciente da sua unidade e dos seus interesses -
conquista através da luta e do enfrentamento de classe.

Isto quer dizer que no âmbito de uma leitura que é marxista, eu estou enten-
dendo que o campesinato dá o salto - que Marx chama de econômico para
político - transformando-se de classe em si em classe para si.

O conjunto de mapas elaborados para a tese (que envolveram o mapea-


mento desde a mobilização política camponesa, passando pela violência
contra camponeses e trabalhadores rurais, trabalho escravo no campo, ocu-

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pação de terra e conflitos por terra)13 demonstra esta questão de uma maneira
absolutamente explícita. Ou seja, os dados revelam que a reforma agrária
está - como sempre esteve - ligada à ocupação de terra, à mobilização políti-
ca camponesa.

Esta reforma agrária, que é buscada através da luta camponesa por sua re-
produção, cria marcas no território. Territorializa-se e transforma a experiên-
cia das famílias que a vivenciam. Essa experiência - quando a família se re-
produz na terra - é traduzida de uma maneira extremamente positiva nas falas
colhidas em trabalho de campo e que são a âncora para a construção de
uma teoria sobre a reprodução camponesa. Um dos exemplos que traduzem
esta afirmação, e que eu retomo, é a fala trazida na epígrafe, gravada em
2003, de uma camponesa assentada em Marília, que me disse o seguinte a
respeito da reforma agrária do Governo Lula: "E essa reforma que o Governo
quer fazer agora? Não é assim que ele quer fazer? Lotear as terras para o
pessoal que não tem terra? Mas, se o governo conseguisse fazer isso, ia aca-
bar a fome do mundo! ... Porque todo mundo ia plantar e ia colher!"

Para finalizar este artigo, há alguns aspectos fundamentais a serem pontu-


ados: o primeiro é que a reforma agrária é a apropriação do território a par-
tir do campesinato organizado enquanto classe. O segundo aspecto é que a
inserção desta classe social é extremamente complexa, o que significa que o
camponês sempre tem de lidar com os mecanismos de subordinação de sua
renda ao capital. Assim, a questão da renda da terra, dos produtos cultiva-
dos, da proximidade ou não com o mercado, e da possibilidade do cam-
ponês vender seus produtos diretamente ou não, são fundamentais na tra-
jetória camponesa. O último aspecto a ser pontuado, e que é fundamental,
é que a reforma agrária é um importante mecanismo de justiça social, como
demonstra a territorialização camponesa dos projetos da Revisão Agrária. Os
camponeses assentados sabem que a reforma agrária tem esse papel de
superação das distorções e injustiças desta sociedade e, por isto, nos depa-
ramos com a afirmação de que a reforma agrária poderia mesmo "acabar
com a fome do mundo".

13 - O conjunto de mapas ao qual me refiro envolve os seguintes mapas: "Geografia dos Conflitos Sociais no
Campo no Estado de São Paulo (1945-1964)", "Geografia dos Conflitos Sociais no Campo no Estado de São
Paulo (1964-1981)", "Geografia dos Conflitos Sociais no Campo no Estado de São Paulo (1980-2004)",
"Geografia das Ocupações de Terra e dos Conflitos Sociais no Campo no Estado de São Paulo (1980-2004)"
e "Geografia dos Assentamentos Rurais no Estado de São Paulo (1980-2004)". Ver Bombardi, 2005.

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Transcrição: Leny Belon Ribeiro e Marcos A. G. Domingues.

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OCB e Ditadura: um projeto


cristalizado pelo direito

Eduardo Faria Silva*

INTRODUÇÃO

A reflexão a ser desenvolvida origina-se da dissertação de mestrado defen-


dida pelo autor no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná, na qual se procurou investigar as razões que levaram à
unicidade de representação jurídica, política, social e cultural do coopera-
tivismo nacional pela Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB1,
garantida, no plano formal, pela publicação da Lei n.º 5.764, de 16 de
dezembro de 1971, e seus desdobramentos até o momento.

O caminho percorrido para se compreender a conjuntura histórica que


propiciou a publicação desse instrumento normativo conduziu a uma série de
questões que possibilitaram ultrapassar o simples texto que estabeleceu a
unidade de representação. Foi possível, com isso, romper com a aparência e
penetrar nas bases da construção normativa que estavam expressas na unici-
dade de representação (e ainda permanecem) e, por conseqüência, na
forçosa adesão das sociedades cooperativas à OCB.

Esse movimento de abertura e verticalização demonstrou que o objeto da


pesquisa tem, por evidente, profundas raízes históricas lançadas no campo da
economia e da política. No entanto, sua amplitude e sua permanência não
poderiam ser bem explicitadas, se não se compreendessem o lugar que o
direito ocupa nas relações econômicas e políticas e a complexidade que a
técnica jurídica engendra para, inclusive interpretativamente, dar o máximo
de continuidade ou durabilidade ao sentido de determinadas regras jurídicas.
* Mestre em Direito Cooperativo e Cidadania pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, pesquisador do
Núcleo de "Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná", coordenado pelo Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel. Endereço eletrônico
eduardo.vogel@uol.com.br
1 - A Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, criada em 2 de dezembro de 1969, é, conforme disposi-
ção estatutária, uma sociedade civil, de natureza privada e sem fins lucrativos, que exerce a representação sindi-
cal patronal das cooperativas, assumindo todas as prerrogativas de Confederação Patronal. Com a edição dos
artigos 105 e 107 da Lei n.º 5.764, de 16 de dezembro de 1971, a OCB foi considerada representante do siste-
ma cooperativista nacional e todas as cooperativas são obrigadas, para funcionar, a se associarem a entidade.

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Ensaios e Debates

A ausência de reflexões teóricas e referências bibliográficas sobre a temática


do cooperativismo, em especial sob o ponto de vista jurídico, levou à necessida-
de de estabelecer-se um diálogo com outras áreas do conhecimento para se ten-
tar compreender as razões que conduziram a publicação da Lei n.º 5.764/71.

A CARTOGRAFIA POLÍTICA DA AMÉRICA LATINA

O final da Segunda Guerra Mundial refundou as estruturas globais de


poder, proporcionando o surgimento e a consolidação de uma nova orien-
tação política internacional, determinada pela polarização de forças entre os
Estados Unidos e a União Soviética.

Ambos os países, na chamada Guerra Fria, em um dos seus vetores, bus-


cavam construir um discurso ideológico capaz de agregar novas nações aos
seus propósitos ou, no mínimo, neutralizá-las, sendo a Europa uma área de
prioridade geopolítica. Nesse sentido, a atuação externa norte-americana es-
tava centrada na necessidade de "negar aos soviéticos a dominação da indús-
tria e dos recursos ocidentais, e preservar a Europa Ocidental da contamina-
ção pela ideologia soviética"2.

A polarização de forças entre essas potências e, por conseqüência, a tentati-


va de atrair novos países às ideologias sustentadas, encontrou, contudo, forte
ressonância na América Latina e determinou que os Estados Unidos atuassem
rapidamente no continente para evitarem revoluções populares de cunho so-
cialista, nos moldes da revolução cubana que ocorrera em 1959, como assi-
nala Michael Löwy, em O Marxismo na América Latina: Uma Antologia de
1909 aos Dias Atuais.

O Presidente John Kennedy, dos Estados Unidos, lança, em Washington, em


março de 1961, as bases do programa denominado Aliança para o Progres-
so, o qual teria por fito promover a cooperação interamericana no campo po-
lítico e econômico, sendo sua teoria estruturante a do desenvolvimento da
América Latina.

A nossa missão no Hemisfério Ocidental ainda não terminou,


porquanto nos resta a tarefa de demonstrar ao mundo que a
aspiração do homem de atingir o progresso econômico e a
justiça social, até agora não foi satisfeita, o que melhor poderá
2 - CAMPOS, R. Falou na conferência das tensões de desenvolvimento no hemisfério ocidental. Apud TORRES,
A. F. Aliança para o Progresso. p.3.

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ser feito dentro da estrutura das instituições democráticas.


[...]
Mas, a fim de enfrentar um problema de tamanha magnitude,
devemos proceder com ousadia, consoante o conceito
majestoso da Operação Pan-Americana. Eis aí a razão pela
qual lancei um apelo a todos os povos do nosso Continente
para que cerrem fileiras em torno da nova cruzada a que
denominei de "Aliança para o Progresso", cruzada que constitui
um esforço a ser levado a efeito em conjunto e sem paralelo em
magnitude e nobreza de propósitos, destinado a satisfazer as
necessidades básicas dos habitantes das Américas, no tocante à
habitação, trabalho, assistência médica, saúde e escolas.3

A plataforma desenvolvimentista da Aliança para o Progresso, aprovado na


Carta de Punta del Este,4 em agosto de 1961, declarava a necessidade de ha-
ver uma "revolução democrática" ou uma "revolução da classe média", deven-
do ser garantida a mudança na redistribuição de rendas, na propriedade pri-
vada, na industrialização e na planificação, em escala suficiente para garan-
tir a realização do projeto.5

Em verdade, tratou-se um projeto econômico-desenvolvimentista que pu-


desse reestruturar as instituições nacionais para elevar o padrão de vida dos
seus cidadãos e aumentar a produção, até o limite permitido pelos seus recur-
sos naturais, como forma de preservar e consolidar a expansão da economia
capitalista no Continente.6

O presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, na II Ses-


são Plenária da Reunião Extraordinária do Conselho Interamericano Econômi-
co e Social, em 7 de agosto de 1961, na qual foi aprovada a Carta de Punta
del Este, ao abordar o ponto sobre desenvolvimento e democracia7, expõe:

A Aliança para o Progresso constitui uma fórmula para uma po-


lítica nova e vigorosa de desenvolvimento acelerado e conjunto
dos países latino-americanos, compatível com a preservação dos
princípios fundamentais da cultura ocidental e permitindo uma
3 - KENNEDY, J. F. Aliança para o Progresso. Washington, Governo dos Estados Unidos, 13 de março de 1961.
IN: Revista Brasileira de Política Internacional. Rio de Janeiro, ano IV, n.º 15, p. 144-145, jun. 1961.
4 - Documento político que oficializa a Aliança para o Progresso.
5 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais no Desenvolvimento da América Latina. São Paulo: Editora
Mestre Jou, 1971, p. 20-21.
6 - WASSERMAN, C. O Império da Segurança Nacional: O Golpe Militar de 1964 no Brasil. IN: GUAZZELLI,
C. A. B.; WASSERMAN, C. Ditaduras Militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 27.
7 - HERRERA, F. O Desenvolvimento da América Latina e seu Financiamento. APEC Editora S.A., 1968, p. 28.

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distribuição mais eqüitativa da riqueza e dos benefícios sociais,


pela modificação, sempre que seja necessário, daquelas carac-
terísticas da estrutura social e econômica que se mostrem com-
provadamente inadequadas para a execução desses propósitos.8

A formulação e concretização do projeto foram aceleradas com a revolu-


ção cubana (1959), circunstância histórica que forçou rompimento das postu-
ras mais conservadoras à teoria do desenvolvimento à América Latina9.

Os Estados Unidos tinham presente que a extensão das medidas adotadas em


Cuba para o restante da América Latina, principalmente, no tocante à transfor-
mação estrutural no campo, com a implementação da reforma agrária, restrin-
giria a possibilidade de controle sobre o Continente. Em 1950, por exemplo,
72,6% das propriedades rurais com extensão inferior a 20 hectares correspon-
diam a 3,7% da América Latina, sendo que 1,5% dos estabelecimentos maiores
do que 1.000 hectares controlavam 64,9% da superfície do Continente10.

A Aliança para o Progresso, na prática, tinha "o caráter de resposta ao de-


safio político - e também ao perigo - constituído pela presença de um país
socialista dentro do Continente."11 O sentido de desenvolvimento construído,
desta forma, estava relacionado a uma condição instrumental de manutenção
da constância política e de controle das ações populares, fato comprovado
ao excluir-se Cuba, um país subdesenvolvido, da Carta de Punta del Este.

As forças conservadoras nacionais aceitaram a "Aliança para o Progresso"


como a última alternativa para conter as revoluções populares. No entanto,
apresentavam resistências aos conteúdos indicados no plano, tendo em vista
a possibilidade real de perda de poder local. De outra parte, as atenções dos
Estados Unidos não estavam direcionadas à preservação do poder das forças
tradicionais, mas à perpetuação "do seu controle estratégico e econômico
sobre a América Latina e o apoio político dos votos dos seus países nas
Nações Unidas."12

O encaminhamento para solução da divergência foi paradoxal, pois, se por


um lado os Estados Unidos falavam em desenvolvimento e democratização, fato
que levaria ao enfraquecimento e substituição das classes tradicionais, por ou-

8 - HERRERA, F. O Desenvolvimento da América Latina... p. 37-38.


9 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 18.
10 - RIBEIRO, D. O Dilema da América Latina: Estruturas de Poder e Forças Insurgentes. 4ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1988, p. 114.
11 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 18.
12 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 19.

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tro, a política estadunidense era realizada com os grupos conservadores, em es-


pecial, porque as forças progressistas emergentes, normalmente, posicionavam-
se contrárias aos seus interesses ou os grupos modernizantes estavam despidos
de poder para o enfrentamento. O elo entre os Estados Unidos e os grupos tra-
dicionais era, apesar de uma aparente contradição, intenso.13

Nos últimos anos, todos os golpes de Estado, dirigidos basicamente contra


grupos modernizantes, principalmente de classe média, no Peru, na Argen-
tina, na Guatemala, foram finalmente 'legitimados' pelo reconhecimento di-
plomático [norte-americano].14

A dificuldade de execução material dos objetivos constantes no plano da


"Aliança para o Progresso", combinados com a crescente mobilização dos
movimentos populares, conduziu o governo americano a deslocar o eixo da
política externa para uma ação preventiva e repressiva, que associava um for-
te financiamento das estruturas militares com a formação de soldados oriun-
dos dos países latino-americanos.15

A política militarista fomentada pelos Estados Unidos para as forças arma-


das dos países da América Latina estendeu-se para além do combate às guer-
rilhas e aos movimentos populares de esquerda e surtiu efeito contra os gover-
nos constitucionalmente eleitos, em um breve espaço de tempo.

No intervalo de, aproximadamente, dois anos - março de 1962 a abril de


1964 - oito golpes militares depuseram os presidentes constitucionalmente
eleitos da Argentina, Peru, Guatemala, Equador, República Dominicana, Hon-
duras, Bolívia e Brasil, três ditaduras foram mantidas e reforçadas no Para-
guai, Haiti e Nicarágua.16

A velocidade das medidas militares em oposição ao discurso democrático


da Aliança para o Progresso17 recebeu especial atenção no caso argentino,
pois o país foi golpeado em 29 de março de 1962, ou seja, apenas oito me-
ses após a assinatura da Carta de Punta del Este. Nesse caso, o Presidente Ar-
turo Frondizi foi deposto e Washington nem cogitou a questão do reconheci-
mento diplomático ou a suspensão da ajuda econômica e militar ao país.

13 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 28.


14 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 28.
15 - AYERBE, L. F. Estados Unidos e a América Latina: A construção da Hegemonia. São Paulo: Editora Unesp,
2002, p. 122 e 123.
16 - LIEUWEN, E. Generales contra Presidentes en America Latina. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965, p. 9-11.

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A inserção estadunidense no continente americano exigia a "deposição de


vários governos civis para garantir a 'calma' necessária ao andamento dos
negócios e o combate à Revolução Cubana."18

A estratégia adotada pelas forças armadas dos países da América Latina e


aceita pelo governo dos Estados Unidos consistia na tomada do poder por
meio de golpes militares, aplicando-se a seguinte fórmula: a) afirmar que o
governo deposto tinha ligações com o comunismo e estava em crise política
permanente; b) afirmar que logo se realizariam eleições e se restabeleceriam,
em "prazo razoável", os processos constitucionais.19

A aplicação da receita para o Continente latino-americano era ratificada


pelos Estados Unidos com o reconhecimento diplomático e, por conseqüên-
cia, com a manutenção da ajuda militar e econômica. Todas as intervenções
militares, que conduziram a deposição dos governos democraticamente elei-
tos, foram avalizadas pelo reconhecimento diplomático estadunidense.20

Não obstante as diversas denúncias realizadas, o movimento golpista des-


encadeado pelas forças armadas dos países da América Latina, com o apoio
expressivo dos Estados Unidos, em oposição ao discurso político democráti-
co e de cunho desenvolvimentista estabelecido na Aliança para o Progresso,
encontrou ressonância, também, no Brasil. Nesse sentido, os fundamentos de
um Estado Democrático começaram a ser desestruturados a fim de que o
golpe militar aparecesse, à sociedade, como a única alternativa para o resta-
belecimento da ordem e do crescimento econômico. Para tanto, era ne-
cessário reformular as estruturas do poder, com base na democracia e legali-
dade formais.

17 - Caio Prado Júnior é preciso ao analisar a forma de atuação dos Estados Unidos na década de 1960. "É
sobretudo depois de 1960, e quando o governo norte-americano, em seguida aos acontecimentos de Cuba,
se lança abertamente em sua política intervencionista na América Latina, que a opinião pública brasileira
começa a tomar consciência mais clara do problema. O presidente Kennedy, com a sua hábil maneira de tratar
os países latino-americanos, conseguiu em parte disfarçar o rumo que a política exterior norte-americana esta-
va tomando. Assim mesmo não impediu que ganhasse corpo a convicção, cada vez mais distinta e generaliza-
da, que as pretensões da política norte-americana se dirigiam francamente no sentido da completa subordi-
nação dos países da América Latina, e naturalmente do Brasil também. A própria dinâmica daquela política,
a sua natureza profunda tendia fatalmente para isso, quaisquer que fossem os disfarces e lenitivos com que se
apresentasse - Aliança para o Progresso ou outro semelhante. E assim quando a situação internacional se
aguça, e as contradições daí decorrentes se agravam - tudo isso acrescido do prematuro desaparecimento do
Presidente Kennedy, o que precipita o deslocamento do eixo político norte-americano para o lado dos setores
mais extremados -, desmascara-se por completo o seu intervencionismo, que, entre outros, tão claramente se
afirmaria no caso de São Domingos. E no que diz respeito em particular ao Brasil, se fez patente, e até mesmo
escandaloso, a partir de 1964." (PRADO JÚNIOR, C. A Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense,
2004, p. 201-202).
18 - COGGIOLA, O. Governos Militares na América Latina. São Paulo: Editora Jaime Pinsky, 2001. p. 19.
19 - LIEUWEN, E. Generales contra... p. 167.
20 - GRACIARENA, J. O Poder e as Classes Sociais... p. 28.

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O DIREITO NA DITADURA E A DITADURA NO DIREITO

A conjuntura política e econômica existente na América Latina e, em parti-


cular, no Brasil, nos anos de 1960, direciona-se à composição de forças, ex-
pressas por um bloco modernizante-conservador, que produziram e susten-
taram a eleição de Jânio Quadros, a qual foi conduzida por uma plataforma
publicitária demagógica que constituiu uma fascinação popular. "O estado de
espírito foi inteligentemente preparado por cartazes mostrando o símbolo de
Jânio Quadros, a vassoura, e sua intenção declarada de 'varrer' o país".21

O resultado do pleito, ao eleger Jânio Quadros como presidente e João


Goulart como vice, demonstrava que a "população brasileira, quando consul-
tada, apoiava uma combinação de reformas populares sociais, de desenvolvi-
mento nacionalista e de austeridade e eficiência administrativas".22

Não obstante a vontade popular, os grupos multinacionais e associados, os


agro-exportadores e a burguesia nacional consideravam que a ordem
econômica deveria ser direcionada para um caminho diverso. Encerrado o
processo eleitoral, Quadros recebeu do Conselho Nacional de Classes
Produtoras - CONCLAP uma declaração escrita, denominada Documento
para uma Política Nacional de Desenvolvimento, que

exigia a reafirmação do papel da empresa privada e do capital


estrangeiro no planejamento do desenvolvimento, o controle da
mobilização popular e da intervenção estatal na economia, a
redefinição das funções do Estado, medidas contra a inflação e
uma readequação da administração Pública.23

As diretrizes apontadas no documento, aliadas a uma composição das


estruturas do Estado com representantes de idêntico pensamento, foram as
medidas adotadas por Quadros na condução de seu governo. Os oficiais da
Escola Superior de Guerra - ESG - destacavam Quadros como a "negação
da demagogia e, conseqüentemente, do populismo; apesar de ter sido ele
mesmo um populista, arriscou suas oportunidades eleitorais contra os
herdeiros dos getulismo, contra a esquerda e a demagogia governamental".24

21 - DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe.
Petrópolis: Editora Vozes, 1981. p. 125-126.
22 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado... p. 126.
23 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado... p. 126.
24 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado... p. 128.

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As medidas econômicas adotadas por Quadros, contudo, num curto espa-


ço de tempo, demonstraram que não conseguiriam atingir as metas de cresci-
mento distributivo que atendessem às necessidades e à expectativa da classe
trabalhadora. De igual forma, as ações econômicas não proporcionavam os
"desejos" do bloco multinacional e do grande capital do país, que pretendiam
que fossem implementadas medidas que flexibilizassem benefícios trabalhis-
tas, diminuíssem vantagens econômicas e políticas a setores da oligarquia tra-
dicional e a interesses industriais locais de médio porte.25

O grupo populista-udenista do bloco modernizante-conservador, que


apoiou Quadros, acreditava, a partir da realidade posta, que não conseguiria
avançar em seus interesses privados, dentro de uma sociedade pluralista e
regida por um sistema eleitoral.26

Jânio Quadros, nesse contexto, acreditava que a governabilidade pela via de-
mocrática esgotava-se naquele momento histórico e considerava que o cami-
nho para manter-se no poder seria mediante um golpe de Estado27. Em 25 de
agosto de 1961, Quadros deu início ao seu plano golpista: renunciou, oito me-
ses após a posse, acreditando que a parte significativa dos trabalhadores, do
empresariado e dos militares lhe conduziria novamente ao poder. Entretanto, o
desdobramento dos fatos direcionou-se de forma diametralmente oposta.28

O Vice-almirante Sílvio Heck, Ministro da Marinha, o Marechal Odílio De-


nys, Ministro da Guerra e o Brigadeiro-do-ar Gabriel Grün Moss, Ministro da
Aeronáutica, contrários à investidura de Jango ao cargo, em 30 de agosto de
1961, publicaram uma carta em que afirmavam "a absoluta inconveniência,
na atual situação, do regresso ao País do Vice-presidente da República"29 e
vinculavam a sua imagem à figura dos comunistas.

No cargo de Vice-Presidente, sabido é que usou sempre de sua in-


fluência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, manifesta-
ções grevistas promovidas por conhecidos agitadores. E, ainda há
pouco, como representante oficial, em viagem à URSS e à China
comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao
regime desses países, exaltando o êxito das comunas populares.

25 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado... p. 128-129.


26 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado... p. 129.
27 - BANDEIRA, A. L. Moniz. Desenvolvimento Econômico e Superestrutura Política. IN: Cadernos de Debate
5. Repensando o Nacionalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, p. 22.
28 - TOLEDO, C. N de. O Governo Goulart e o Golpe de 64. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004, p. 7-8.
29 - O veto dos militares a Jango. Disponível em: <http://www.pdt.org.br/personalidades/jango_historia_4.
htm> Acesso em: 12 de outubro de 2005.

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Ora, no quadro de grave tensão internacional que vive, drama-


ticamente o mundo de nossos dias, com a comprovada inter-
venção do comunismo internacional na vida das nações demo-
cráticas e, sobretudo, nas mais fracas, avultam, à luz meridiana,
os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil. País em
busca de uma rápida recuperação econômica que está exigin-
do enormes sacrifícios, principalmente das classes mais pobres
e humildes; em marcha penosa e árdua para estágio superior
de desenvolvimento econômico-social e tão urgentes proble-
mas, para reparação, até de seculares e crescentes injustiças so-
ciais nas cidades e nos campos - não poderá nunca o Brasil en-
frentar a dura quadra que estamos atravessando, se apoio, pro-
teção e estímulo vierem a ser dados aos agentes da desordem,
da desunião e da anarquia.30

A posição assumida contra a imagem de Jango estava relacionada à con-


cepção de que o Vice-presidente "simbolizava tudo aquilo que havia de 'nega-
tivo' na vida política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da
ordem capitalista".31

Em pouco tempo, nesse período histórico, "duas tentativas de golpe se sucediam:


a de Jânio Quadros e a dos setores militares".32 Todavia, ambas foram barradas.

Superado o impasse no tocante à posse, por meio de uma "solução de


compromisso" que instituiu o parlamentarismo no Brasil, Jango implementa
uma política nacional-reformista, cujos eixos estavam direcionados para a
contenção da inflação e da dívida pública, combinados com o crescimento
da economia e o fortalecimento do setor estatal. No plano internacional
adota posição "solidária com as lutas anticoloniais na África, defende os
princípios da autodeterminação e não-intervenção em relação a Cuba, esta-
belece relações com os países socialistas e se posiciona a favor do ingresso
da República Popular da China nas Nações Unidas".33

As medidas políticas assumidas contavam com o apoio da classe trabalha-


dora, organizada "contra o que cada vez mais parecia ser a formação de um
bloco de poder UDN-PSD," e com frações da pequena e média burguesia
industrial nacional "que visava a atingir mercados de baixo poder aquisitivo,
30 - O veto dos militares a Jango. Disponível em: <http://www.pdt.org.br/personalidades/jango_historia_4.
htm> Acesso em: 12 de outubro de 2005.
31 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 12.
32 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 8.
33 - AYERBE, L. F. Estados Unidos e... p. 140.

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Ensaios e Debates

bem como pelo setor agrário que produzia gêneros alimentícios para o mer-
cado interno".34

Em viagem aos Estados Unidos, Jango procurou "tranqüilizar a opinião públi-


ca e os homens de negócios norte-americanos quanto aos caminhos a serem
trilhados pelo governo"35 e reafirmou que o país era favorável aos prin-cípios
democráticos; "defendeu enfaticamente a participação do capital privado
estrangeiro no desenvolvimento brasileiro; aprovou o princípio da 'justa com-
pensação' nos casos de desapropriação de empresas estrangeiras no Brasil".36

No tocante à Aliança para o Progresso, manifestou-se favorável à iniciativa


de Kennedy e destacou "os perigos que representaria o fracasso deste progra-
ma para os 'povos democráticos'";37 retomando o ideário reformista do presi-
dente estadunidense, declarou: "Aqueles que tornarem impossível a revolução
pacífica, farão inevitável a revolução violenta".38

As palavras de Jango nos Estados Unidos conduziram a um curto período


de estabilidade política, que foi rompido com a sua postura no tocante à
reforma agrária. Em discurso, o presidente afirmava que o § 16 do artigo 141
da Constituição Federal de 1946, que condicionava a desapropriação de
terra à prévia e justa indenização em dinheiro, deveria ser alterado para se
garantir a efetiva reforma agrária.

A reação dos setores conservadores foi imediata, e o desgaste do governo ini-


ciava uma crescente sem precedentes.39 O ápice do confronto político foi viven-
ciado no momento da busca da implementação do Plano Trienal e das Refor-
mas de Base,40 principalmente, quanto ao debate relativo à questão agrária.

O governo entendia que para realização desse projeto era necessário que
fosse implementada, primeiramente, uma real transformação no campo, por
meio da reforma agrária,41 sob duas razões: a) econômica, pois havia neces-
34 - DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista... p. 130.
35 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 29.
36 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 29.
37 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 29.
38 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 29.
39 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 31.
40 - Moniz Bandeira aponta que as Reformas de Base "não eram reformas socialistas; eram inclusive a refor-
ma agrária, reformas burguesas, que visavam viabilizar o capitalismo brasileiro." (BANDEIRA, A. L. Moniz.
Desenvolvimento Econômico e Superestrutura Política. In: Cadernos de Debate 5. Repensando o Nacionalismo.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, p. 22).
41 - O projeto de Reforma Agrária do Governo João Goulart foi configurado no Decreto nº 53.700, de 13
de março de 1964, pelo deputado Plínio de Arruda Sampaio, porém não foi analisado pelo Congresso
Nacional, tendo em vista o golpe militar de 1º de abril de 1964. O Decreto previa, em seu artigo 3º, que as
áreas desapropriadas estavam condicionadas, entre outros fatores, ao estabelecimento e a manutenção de
colônias, núcleos ou cooperativas agropecuárias e de povoamento.

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sidade do aumento da produção de alimentos e matéria-prima, aliados ao


interesse de abertura do mercado nacional para os produtos manufaturados;
b) social, pois havia previsões de que ocorreriam conflitos internos incon-
troláveis, caso não fosse efetivada uma redistribuição de terras.42

As medidas do governo,43 "apesar de não ter nenhum sentido revolu-


cionário, correspondendo, pois, de um lado, às necessidades do capitalismo
industrial e, de outro lado, à estratégia da dominação social burguesa,"44 so-
frem, novamente, forte oposição dos latifundiários, da bancada ruralista no
Congresso e de setores da Igreja Católica. O principal argumento utilizado
era de que a alteração constitucional iria banir o instituto da propriedade pri-
vada no Brasil e, articulada com as outras reformas, poderia gerar uma alte-
ração na correlação de forças nacional.45

O PSD, ao contrário da UDN, num primeiro momento, concordava em


dialogar com o governo sobre o anteprojeto. No entanto, essa perspectiva foi
alterada e o alinhamento com os ruralistas foi reafirmado, a partir do con-
gresso da UDN em que foi defendida "a intervenção das Forças Armadas e
dos EUA a fim de porem termo ao 'comunismo legal' de Goulart".46

A posição política implementada e intensificada pelo bloco modernizante-


conservador fez crescer as pressões internas, "numa tentativa de associar o
governo a posições pró-comunistas."47 A UDN declarava, sistematicamente,
estar sobressaltada "com a 'agitação social', a 'desordem' e a 'comunização
crescente do país' promovidas - segundo estes - por Goulart, pelo PTB e pelas
'forças subversivas' (CGT, UNE, FMP etc.)".48

42 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 54.


43 - "Na conversa que tive com Jango [após o Congresso Nacional dos Camponeses, em Belo Horizonte],
observei que ele estava realmente preocupado, e fez questão de me dizer, de forma bem clara, bem contun-
dente, que não era capaz de chegar ao socialismo; seu ideário chegava até o programa de Vargas. Ele
defendia, com o seu partido, o programa de Vargas e não chegaria mais além. [...] O Jango estava interessa-
do em aplicar o programa Aliança para o Progresso, fazer uma reforma fiscal e democratizar as relações entre
camponeses e senhores de terra, melhorando, por conseguinte, de certo modo, a situação dos camponeses
nas regiões onde havia mais conflitos. Por isso estava disposto a defender um programa para distribuir terras,
mas de forma muito bem pensada, bem moderada, e eu estava em posição naturalmente muito mais conse-
qüente, mais avançada. Eu queria que, de um golpe, se limitasse a quantidade de terra que uma pessoa jurídi-
ca pudesse possuir - e isso era uma resolução do Congresso." (JULIÃO, Francisco. Atividades Durante o
Governo João Goulart. 5 de novembro a 6 de dezembro de 1977. Entrevista concedida a Apásia Carmargo.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas.
Disponível em: < http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/htm/depoimentos/Francisco_Juliao.asp>
Acesso em: 22 de outubro de 2005).
44 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 55.
45 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 55.
46 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 55.
47 - AYERBE, L. F. Estados Unidos e... p. 140.
48 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 58.

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Ensaios e Debates

Por outro lado, Jango não concretizava as medidas de interesses dos grupos
nacionalistas e de esquerda, as quais não dependeriam de reforma constitucio-
nal e, sim, de iniciativa exclusiva do Executivo. Pode-se destacar, por exemplo, a

regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo


Congresso, mas 'engavetada' pelo Executivo); nacionalização
das concessionárias de serviços públicos, moinhos frigoríficos e
indústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros ali-
mentícios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco do
Brasil; monopólio das exportações de café pelo IBC; ampliação
do monopólio estatal do petróleo, etc.49

A decorrência do processo político foi o isolamento e o enfraquecimento do


governo de Goulart50, "que não conseguia o pleno respaldo das classes tra-
balhadoras, nem se legitimava face ao conjunto das classes dominantes".51 52

As crises econômicas e o aumento das agitações populares conduziram o


bloco conservador a acreditar na possibilidade, mesmo que remota, da toma-
da de poder pelos grupos nacionalistas e de esquerda no país. Nesse contex-
to, acelera-se o momento da restauração, ou seja, constrói-se, de forma in-
tensa, o discurso de que a situação socioeconômica nacional não poderia
permanecer "instável" e à mercê de "grupos comunistas", sendo fundamental
a unidade do bloco modernizante-conservador para concretizar uma efetiva
alteração na estrutura de poder estatal.
49 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 58.
50 - "Goulart tentou negociar; entretanto, as contradições de classe se aguçavam cada vez mais. Os
empresários estrangeiros se aliaram prontamente e, através da campanha anticomunista, alimentada, como
todos sabem hoje, pela CIA, conseguiram aliar ao seu lado o empresariado nacional - mesmo aqueles setores
que tinham interesse na política de Goulart. E a reforma agrária, por fim, colocou os fazendeiros, os lati-
fundiários, na linha de frente contra o governo, ao lado dos empresários estrangeiros." (BANDEIRA, A. L. Moniz.
Desenvolvimento Econômico e Superestrutura Política. In: Cadernos de Debate 5. Repensando o Nacionalismo.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, p. 23).
51 - TOLEDO, C. N. de. O Governo Goulart... p. 119.
52 - Quando se dizia que o Jango era um homem que estava levando o país ao comunismo, considero que
era apenas um argumento para justificar-lhe o derrocamento, a caída. Em verdade, o Jango não era um
homem capaz de levar ao país nem sequer ao socialismo. [...] Jango desafiou muitas forças, sem estar em
condições de poder responder a esse desafio. Creio que tocou em muitos problemas que eram, naquele
momento, bastante graves, com uma certa irresponsabilidade. Era muito fácil, num momento como esse, um
grupo, com toda uma estratégia bem planificada, dar o chamado golpe de estado sem necessitar, inclusive,
de chegar a um derramamento de sangue. Eles deviam ter estudado muito bem, conheciam bem a psicologia
do Jango, a sua ambivalência, as suas debilidades, para poder orquestrar o golpe. Eu considero que a
ambivalência do Jango realmente facilitou muita essa... Quer dizer, ele perdia a confiança de um setor e não
adquiria do outro. Essa ambivalência, essas negativas, esse vazio que o Jango foi criando em torno dele
mesmo... Então, o resultado foi esse. Creio que eu não estava errado quando fui me afastando do Jango. É
que eu perdi a confiança. (JULIÃO, Francisco. Atividades Durante o Governo João Goulart. 5 de novembro a
6 de dezembro de 1977. Entrevista concedida a Apásia Carmargo. Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: < http://www.cpdoc.fgv.br
/nav_jgoulart/htm/depoimentos/Francisco_Juliao.asp> Acesso em: 22 de outubro de 2005).

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O processo desencadeado para encontrar uma solução "pelo alto" para o


país é compartilhado com o momento da renovação, pois o bloco moderni-
zante-conservador incorpora em seu discurso as principais reivindicações
populares e afirma que a atual composição de governo, de cunho comunista,
não tinha condições de responder às necessidades emergentes. Fomenta-se,
assim, uma forte atitude popular de oposição a Jango, com o eixo do discur-
so centrado na omissão do governo em apresentar resposta às demandas
populares e de que a alteração de poder no Estado era a única solução capaz
de beneficiar a população.

A tática utilizada para desconstrução do governo, sob o argumento da des-


ordem social, da incapacidade de apresentar respostas às necessidades pop-
ulares e das vinculações comunistas, já era conhecida na América Latina, pois
reproduzia o receituário que legitimava nacional e, principalmente, interna-
cionalmente a ação das forças armadas.

Nesse sentido, as condições objetivas e subjetivas estavam presentes para


o golpe militar que ocorreu em 1.º de abril de 1964, o qual se pode indicar
como algo que Gramsci apontou como próprio do fascismo italiano:

O que importa política e ideologicamente é que ele pode ter, e


tem realmente, a virtude de servir para criar um período de
expectativa e de esperanças, notadamente em certos grupos
sociais italianos, como a grande massa dos pequenos burgue-
ses urbanos e rurais, e, conseqüentemente, para manter o sis-
tema hegemônico e as forças de coerção militar e civil à dis-
posição das classes dirigentes tradicionais."53

Os Estados Unidos consideram a alteração do poder um avanço contra o


comunismo e a certeza da volta da estabilidade política,54 tendo em vista que
os militares e as forças tradicionais que sustentaram o golpe eram antigos a-
liados do governo americano.55

A tônica assumida a partir do golpe foi manter o controle social por meio
da centralização do poder e da repressão. No tocante ao ordenamento jurídi-
co pátrio, foram editadas normas estruturantes para regular setores estratégi-
cos do país, dentre eles o cooperativismo.
53 - GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1, p.299-300.
54 - No dia 02 de abril de 1964, os Estados Unidos já reconheciam a deposição de Jango e felicitavam o
novo Presidente da República, o Deputado Federal, Paschoal Ranieri Mazzilli, Presidente da Câmara, que foi
empossado às pressas, à noite, pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. (GASPARI, E. As Ilusões Armadas:
A Ditadura Envergonhada. 1ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.115).

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Ensaios e Debates

Quer dizer: se, por um lado, o governo editava normas que tinham o
condão de restringir e ceifar os aparelhos que se postavam contrários ao
regime, de outro, conforme se verificará adiante, fomentava a constituição de
espaços de sustentação de sua ideologia na sociedade civil.

A mecânica binária (destruição e construção) demonstra que o Estado apresen-


tava-se como "um organizador político dos setores dominantes e um desorganiza-
dor político dos dominados, organiza principalmente, os interesses daqueles extra-
tos que servem como classe de apoio do modo capitalista de produção".56

O Direito, assim, servia e serve como "a projeção normativa que instrumen-
taliza os princípios ideológicos (certeza, segurança, completude) e as formas
de controle de poder de um determinado grupo social",57 pois

todo Direito é particular, não realiza o verdadeiro interesse geral,


mas apenas o interesse médio de uma classe minoritária; todo
Direito é temporário, apenas transitoriamente constitui a expres-
são legítima das condições adequadas de desenvolvimento da so-
ciedade. Todo Direito é ideológico, porque na sua reivindicação
desconhece sempre seu condicionamento social e histórico.58

A complexa combinação entre política, poder e direito pode ser observada,


nesse contexto, no fenômeno que potencializa a constituição de espaços
autônomos na sociedade civil com identidade umbilical ao regime. No caso
brasileiro, destaca-se, entre outros aparelhos produzidos para ocupar o vácuo
da violência, aquele ao qual foi atribuída a função de representar e cen-
tralizar todas as medidas direcionadas ao setor cooperativo, no caso, a
Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB.

DA UNICIDADE À PLURALIDADE CONSTITUCIONAL


DE REPRESENTAÇÕES NO COOPERATIVISMO

Mesmo a mitificada idéia do cooperativismo moderno, com a cooperativa


originária de Rochdale, e seu arcabouço principiológico, o qual propugna,
ainda que num âmbito mais discursivo que prático, pela emancipação do tra-
balhador frente ao capital,59 permite notar que em suas bases se encontram,
56 - VÉRAS NETO, F. Q. Cooperativismo: nova abordagem sócio-jurídica. Curitiba: Juruá, 2003, p. 110.
57 - WOLKMER, A. C. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 151-152.
58 - FETSCHER, I. Direito e Justiça no Marxismo Soviético. IN: Karl Marx e os Marxistas. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1970, p. 231.
59 - NAMORADO, R. Horizonte Cooperativo: política e projeto. Coimbra: Almedina, 2001. p. 43.

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entre outros, o princípio cooperativo da autonomia e independência, fixado


pela Aliança Cooperativa Internacional. Este princípio recebe importante
destaque, tendo em vista que visa garantir que "as relações das cooperativas
com o Estado não conduzam à sua instrumentalização" e "assegurar que a en-
trada de capitais de fontes externas não ponha em causa, nem a autonomia,
nem o controle democrático das cooperativas pelos seus membros."60

Voltando-se à realidade brasileira, vê-se que o golpe de 1964 exigia que o


movimento cooperativista nacional fortalecesse, internamente, os valores e
princípios do sistema cooperativo para poder, externamente, enfrentar as
investidas produzidas pelo Estado ditatorial.

A fusão da Aliança Brasileira de Cooperativas - ABCOP - e da União Na-


cional das Associações de Cooperativas - UNASCO, realizada no IV Congres-
so Brasileiro de Cooperativismo, em 2 de dezembro de 1969, na cidade de
Belo Horizonte, em Minas Gerais, a qual deu origem à Organização das Co-
operativas Brasileiras - OCB, apresentava-se como uma importante ação em
defesa do cooperativismo nacional.61

Na ata de constituição foi estabelecido que a nova entidade representaria


e defenderia o cooperativismo nacional e que os eixos de atuação estariam
voltados: a) à legislação cooperativa; b) ao Banco Nacional de Crédito
Cooperativo; c) ao Regime Fiscal e Previdenciário; d) aos Serviços Oficiais de
Cooperativismo; e) à Representação Nacional do Cooperativismo.

Não obstante, examinando-se a ata mencionada de forma detalhada, veri-


fica-se que a entidade constituída apresentava sinais de que a nova ordem a
ser instituída ao cooperativismo brasileiro estava estruturada nas bases histori-
camente vinculadas às classes dominantes, que, naquela conjuntura, expres-
savam seu poder por meio do Estado ditatorial.

Três momentos distintos e registrados na ata expõem, de forma contun-


dente, o conteúdo do pensamento sustentado. O primeiro é observado no iní-
cio da sessão de constituição da Organização das Cooperativas Brasileiras -
OCB, em dezembro de 1969, pois a reunião em que se deliberou pela sub-
stituição da ABCOP e da UNASCO foi convocada pelo então Ministro da
Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, e realizada em seu gabinete:

60 - NAMORADO, R. Introdução ao Direito Cooperativo: para uma expressão jurídica da cooperatividade.


Coimbra: Almedina, 2000, p. 190.
61 - Ata de Constituição da Organização das Cooperativas Brasileiras, fl. 1, datada de 2 de dezembro de 1969.

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Ensaios e Debates

Pelo presente protocolo, que será considerado válido após rati-


ficação pelas Assembléias Gerais Extraordinárias da Aliança
Brasileira de Cooperativas - ABCOP - e a União Nacional das
Associações de Cooperativas - UNASCO -, representados neste
ato pelos seus respectivos Presidentes, Drs. Gervário Tadaschi
Inoue e Tertuliano Bofill, respectivamente, reunidos nesta
Capital, no Gabinete do Exmo. Sr. Ministro da Agricultura -
Professor Luiz Fernando Cirne Lima, convocados pelo mesmo,
nesta data, em plena harmonia e com pontos de vistas uni-
formes.62 (sem grifos no original)

O segundo momento em que aparecem evidências de alinhamento do


movimento cooperativista nacional à ideologia de centralização de poder e
controle da ditadura é confirmado na definição dos eixos de atuação da nova
entidade, nos seguintes termos:

Representação Nacional do Cooperativismo. - constituição de


uma nova Entidade, a "Organização das Cooperativas" para
substituir as existentes, destinada a representar o pensamento do
Movimento Cooperativista, falar em seu nome e representá-lo
perante o Governo, mantendo, todavia, independência perante
ele, mas colaborando franca e lealmente com as autoridades.63
(sem grifos no original)

A terceira passagem é observada após a declaração de posse dos membros


da Diretoria Provisória, que teria a responsabilidade de praticar os atos ne-
cessários à legalização da OCB, eis que a mesa diretora dos trabalhos do IV
Congresso foi composta por personalidades como o General de Divisão Iti-
berê Gouveia do Amaral - Comandante da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão
de Infantaria -, o General Gentil Marcondes Filho - Comandante da ID-4 -,
o Senador Flávio da Costa Britto - Presidente da Confederação Nacional da
Agricultura - e por Dom Geraldo Tiganlt - Arcebispo de Diamantina -, sendo
a chamada dos Estados procedida pelo Major João Gilberto e o Hino Nacio-
nal executado pela Banda da Polícia Militar de Minas Gerais.64

O conteúdo do documento mencionado acima, resultado de uma atuação


direta do Ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, e do Secretário
da Agricultura do Estado de São Paulo, Antonio José Rodrigues Filho, que atu-

62 - Ata de Constituição da Organização das Cooperativas Brasileiras, fl. 1, datada de 2 de dezembro de 1969.
63 - Ata de Constituição da Organização das Cooperativas Brasileiras, fl. 2, datada de 2 de dezembro de 1969.
64 - Ata de Constituição da Organização das Cooperativas Brasileiras, fl. 4, datada de 2 de dezembro de 1969.

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aram por quase dois anos na construção da fusão das entidades,65 demons-
tra a concretização formal de uma relação que já era exercida substancial-
mente. A declaração de que a entidade organizada colaboraria de forma
franca e leal com as autoridades constituídas sinaliza o rumo que parcela
quantitativamente importante do movimento cooperativo assume, isto é, de
afirmação do Estado ditatorial.

A OCB, que teve Antonio José Rodrigues Filho como primeiro Presidente ,
emerge, assim, "como produto dos interesses da classe governamental, que
se utiliza destes aparatos privados de hegemonia do Estado, para desarticu-
lar ou organizar determinados setores e frações de classe".67

Com a restrição ou eliminação dos espaços autônomos da sociedade civil


contrários ao regime militar, o governo, no caso específico do campo, trans-
forma o cooperativismo "no único canal político efetivo de representação dos
interesses das massas trabalhadoras rurais",68 reforçado e garantindo o poder
de vigilância pela forma de representação, a qual foi atribuída à OCB.

Conforme consta na publicação comemorativa Cooperativismo Brasileiro -


Uma História, elaborada pela OCB, "como a grande força das cooperativas
estava no campo, passou a ser interessante para o Estado que o movimento
[de constituição da OCB] se consolidasse e ajudasse o governo a realizar sua
política econômica para o setor agrícola".69

Em 8 de junho de 1970, após aprovação em Assembléia Extraordinária da


ABCOP e da UNASCO, a OCB é finalmente registrada em Brasília, Distrito
Federal, no cartório Manoel Ribas, sob o n.º 729 do livro A-5. Surge, segun-
do o entendimento de seus fundadores, "formalmente a entidade una, repre-
sentativa e defensora dos interesses do Cooperativismo nacional. Sociedade
civil e sem fins lucrativos, com neutralidade política e religiosa, nasceu com a
tarefa de organizar o Cooperativismo em todo o território nacional".70

65 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro: uma história. Ribeirão Preto: Versão Br
Comunicação e Marketing, 2004, p. 43.
66 - Antonio José Rodrigues Filho foi o primeiro Presidente da OCB, encabeçando uma diretoria que em 6 meses
deveria constituir a nova entidade. A Assembléia Extraordinária de 30 de junho de 1970 aprovou o Estatuto Social
da OCB e deu posse à diretoria, que de provisória conquistou um mandato completo, permanecendo até 1973
no comando da nova entidade. (Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p. 43).
67 - VÉRAS NETO, F. Q. Cooperativismo:... p. 109.
68 - SEIBEL, J. E. Estado e instituições públicas: caso do cooperativismo. Perspectiva economia, v. 29, n.º 84. Série
Cooperativismo, n.º 35. 1994, nota de rodapé, p. 25. APUD: VÉRAS NETO, F. Q. Cooperativismo: nova abor-
dagem sócio-jurídica. Curitiba: Juruá, 2003. p. 109.
69 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p. 43.
70 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p. 44.

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Ensaios e Debates

O documento referido, que estava acompanhado da Exposição de Motivos


n.º 45, de 1º de abril, elaborada pelo Ministro da Agricultura, submetia à
apreciação do parlamento o Projeto de Lei que definia a Política Nacional do
Cooperativismo, instituía o regime jurídico das sociedades cooperativas e
dava outras providências.

O documento referido, que estava acompanhado da Exposição de Motivos


n.º 45, de 1º de abril, elaborada pelo Ministro da Agricultura, submetia à
apreciação do parlamento o Projeto de Lei que definia a Política Nacional do
Cooperativismo, instituía o regime jurídico das sociedades cooperativas e
dava outras providências.

A iniciativa, conforme estava declarada na Exposição de Motivos, enqua-


drava-se nos objetivos estabelecidos pelo governo de apoio à área rural, a
fim incorporá-la ao processo de desenvolvimento nacional, as quais estavam
fixadas no programa "Metas e Bases para a Ação do Governo", em que se
prometia a "concessão de estímulos ao cooperativismo."71

O conteúdo do material produzido foi o resultado dos trabalhos realizados


por um grupo de estudos "formado entre representantes do Cooperativismo e
do governo,"72 que haviam se reunido para discutir e definir uma política
nacional para o cooperativismo. Antonio José Rodrigues Filho é preciso ao
retratar essa situação na 1ª reunião da Diretoria Provisória da OCB, que foi
realizada em seu gabinete, na Secretaria de Agricultura de São Paulo, verbis:

Indagado sobre um anteprojeto de lei de cooperativismo que


estaria sendo elaborado, o Senhor Presidente [Antonio José
Rodrigues Filho] esclareceu que, de fato, recebera esta solici-
tação por parte do Ministro Cirne Lima. E que, a título de sub-
sídio, havia encaminhado ao referido Ministro, um texto do
Anteprojeto elaborado com base não só na análise da legis-
lação vigente, como também em estudos realizados por associ-
ações representativas de Cooperativas e órgão oficiais, nas con-
clusões do 4º Congresso Brasileiro de Cooperativismo, no pare-
cer do Dr. Walmor Franke, sobre o anteprojeto elaborado pelo
Ministro do Planejamento e nas disposições constantes do pro-
tocolo firmado entre a ABCOOP e UNASCO. Esclareceu tam-
bém que, mediante expressa solicitação do Senhor Ministro,

71 - Exposição de Motivos nº 45 de 1º de abril de 1971, Diário do Congresso Nacional, na Seção I, no dia 25


de agosto de 1971, p. 4275.
72 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p. 47.

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havia discutido o assunto com o Dr. Walmor Franke, o qual per-


maneceu em São Paulo especificamente para esse fim. Ao ter-
minar sua exposição sobre esse assunto, o Senhor Presidente
acrescentou que, no encaminhamento do anteprojeto do
Ministro esclareceu haver nele alguns dispositivos que não coin-
cidiam totalmente com o ponto de vista do Dr. Walmor Franke.73

O Projeto de Lei encaminhado, identificado sob n.º 292, foi lido na 95ª
Sessão da 1ª Sessão Legislativa da 7ª Legislatura, em 24 de agosto daquele
ano, e publicado no Diário do Congresso Nacional, na Seção I, no dia 25 do
corrente mês, juntamente com a Exposição de Motivos.

O Projeto de Lei n.º 292 foi convertido na Lei n.º 5.764, de 16 de dezem-
bro de 1971, a qual substituiu toda a legislação anterior relacionada ao
cooperativismo. O texto aprovado, em cotejo com as disposições fixadas ini-
cialmente no Projeto de Lei, apresentou sensíveis alterações, principalmente,
no tocante à competência decorrente do status de representante do sistema
cooperativista nacional atribuído à OCB e à inovação que tornou cogente a
filiação das sociedades cooperativas à entidade.

A norma publicada, que, praticamente, transcreveu a ata de constituição da


OCB, instituiu efetivamente o sistema nacional do cooperativismo e, dentre
seus comandos, estabeleceu, em seu artigo 105, que a representação do
cooperativismo seria exercido pela Organização das Cooperativas Brasileiras
- OCB - e, no artigo 107, que as cooperativas para funcionarem teriam que
se registrar na entidade.

As duas medidas adotadas em conjunto com as prescrições contidas nos


artigos 17 e 18 da Lei n.º 5.764/71, que tratam da autorização concedida
pelo Estado para que cooperativas possam arquivar a documentação na
Junta Comercial e obtenham personalidade jurídica, possibilitaram o dire-
cionamento das ações do movimento cooperativo e seu total controle.

A presente situação evidencia que houve uma real transposição do modelo


de Estado adotado pelo regime militar à ordem legal que fixou o sistema
nacional do cooperativismo, pois existia uma completa centralidade das
decisões, um total controle da estrutura e uma plena instrumentalidade das
sociedades para se concretizar a política do governo.

73 - Ata da 1ª Reunião da Diretoria Provisória da Organização das Cooperativas Brasileiras, fl. 2, datada de 24
de dezembro de 1970.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 137


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Ensaios e Debates

A combinação normativa instituída apresenta novidades à conduta do gover-


no em tons maquiavélicos, eis que, anteriormente, era possível, na concepção do
regime, em relação aos partidos políticos (MDB e ARENA), desestruturar e recom-
por as organizações em bases binárias e, por conseqüência, maniqueístas.

Agora, do contrário, foi constituído o pensamento único, tendo diversos


mecanismos e técnicas que possibilitavam "moldar" e "docilizar" as sociedades
cooperativas aos interesses desejados. A relação entre o bem e o mal é
"resolvida", nessa situação, antes da efetiva existência jurídica da entidade.

O projeto político que resultou no Projeto de Lei n.º 292 e, posteriormente,


na publicação da Lei n.º 5.764/71,

é um divisor de águas para o movimento. A partir dela organizou-


se e viabilizou-se a OCB, que então pode promover a organização
das entidades estaduais representativas, uma vez que passou a ser
a representante única do Cooperativismo em âmbito nacional.
O Cooperativismo se modernizou e as cooperativas passaram a
se enquadrar num modelo empresarial, permitindo sua expan-
são econômica e sua adequação às exigências do desenvolvi-
mento capitalista agroindustrial adotado pelo Estado.74

Sustentada politicamente pelo regime militar e apoiada no novo regramento


legal instituído, a OCB avança no processo de enraizamento da ideologia que
representa, por meio das organizações estaduais - OCEs, "as quais passaram a
ser os agentes políticos e representativos que zelam e divulgam a doutrina co-
operativista, defendendo os interesses do movimento em seus estados".75

Estruturadas nos 26 Estados da Federação e no Distrito Federal, coube às OCEs


"registrar, orientar e integrar cooperativas, promovendo treinamento, capacitação
e, tornando possível a profissionalização e a autogestão cooperativas".76

A OCB foi constituída e tornou-se, utilizando uma expressão gramsciana, um verda-


deiro "aparelho privado de hegemonia", vinculado aos interesses da classe dominante.

Os efeitos da política construída pela classe dominante no período ditato-


rial conduziram ao atrofiamento do movimento cooperativista brasileiro e a
total falta de diálogo entre as normas vigentes e a realidade social vivida. Os

74 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p.47.


75 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p.51.
76 - Organização das Cooperativas Brasileiras. Cooperativismo Brasileiro... p. 51.

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dispositivos da Lei nº 5.764/71 não atendiam às necessidades das novas for-


mas de organização social no meio cooperativista (camponeses, garimpeiros,
seringueiros, artesãos, etc.) e direcionavam-se contra o processo democráti-
co que se instaurou no Brasil a partir da década de 1980.77

A Constituição Federal de 1988 fez emergir expressamente, ao assegurar o direi-


to à livre associação, nos incisos XVIII e XX do artigo 5º, a contrariedade existente
entre a redação da Lei nº 5.764/71 e as lutas travadas pelos atores sociais contrá-
rios ao intervencionismo estatal exercido e legalmente permitido no cooperativismo.

O novo texto constitucional, inscrito entre os direitos fundamentais regentes


da sociedade e do Estado brasileiro, refundou a estrutura de poder constante
no ordenamento jurídico e, no que se refere à liberdade de organização e as-
sociação para constituição e representação das sociedades cooperativas, po-
de ser entendido nas seguintes dimensões: a) como o direito de livre criação
dessas sociedades e de livre estabelecimento das normas de organização,
funcionamento e representação interna; b) como direito à livre associação
das sociedades cooperativas entre si, para deliberarem sobre a criação de
pessoa jurídica que as congregue e as represente na defesa de seus interes-
ses comuns ou, em sentido oposto, o direito de se desvincular espontanea-
mente da pessoa jurídica a que estavam associadas; e c) em sua vertente neg-
ativa, pode ser compreendido como o direito a não se associar, ou de não
tomar parte de qualquer entidade representativa, como têm ressaltado a dout-
rina e as Cortes Constitucionais de outros países.78

77 - Os agricultores de assentamentos de reforma agrária encontram resistência nas Juntas Comerciais para con-
seguirem arquivar os atos constitutivos das cooperativas criadas, sob argumentos diversos. Cita-se o caso que
ocorreu, no ano de 2004, na Junta Comercial do Estado de São Paulo, em que o arquivamento foi impedido,
pois a denominação social da entidade não poderia conter a expressão "reforma agrária" ou que as profissões
dos cooperados não se compatibilizam com o seguimento cooperativista.
78 - "La STC 5/1996, de 16 de enero, puntualiza que el art. 22.1 CE reconoce el derecho de asociación en su
más amplia dimensión, es decir, proyectado tanto sobre las asociaciones en sentido escricto como sobre las
sociedades, si bien en cuanto expresión de un valor fundamental de libertad tiene una dimensión y alcance "que
sobrepasa su mera consideración imprivatista". En este sentido advierte que: "El art. 22.1 CE reconoce el derecho
de asociación sin referencia material alguna, de modo que este derecho se proyecta sobre la totalidad del fenó-
meno asociativo en sus muchas manifestaciones y modalidades (SSTC 67/1985, 23/1987 y 56/1995). Ahora
bien, este reconocimiento genérico se complementa con otras determinaciones, expressivas de una viva voluntad
histórica de reacción frente a un pasado inmediato de represión de las libertades públicas. Así, el art. 22 CE, lejos
de ser una disposición de mero reconocimiento, es también la expresión de un estatuto mínimo y ordenado a la
garantía de la existencia de determinadas asociaciones sin necesidad de la previa intermediación del legislador.
[...]". En definitiva: "[...]el derecho de asociación, en tanto que derecho fundamental de liberdad, tiene una dimen-
sión y un alcance mucho más amplio, que sobrepasa su mera consideración iusprivatista".
Y, de para cerrar la exposición, de la doctrina del Tribunal Constitucional hasta aquí e de maiofectuada, baste
apuntar que la STC 145/1996 reconoce expresamente la titularidad del derecho de asociación en su vertiente
negativa (derecho a no formar parte de una determinada asociación) a una sociedad anónima." (JIMÉNEZ,
Guillermo J. Libertades y Derechos de las Sociedades Mercantiles Susceptibles de Amparo Constitucional. IN:
Persona e Derecho: Revista de Fundamentación de las Instituiciones Jurídicas y de Derechos Humanos. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 2001. p. 320).

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Ensaios e Debates

Essas dimensões constitucionais do direito à livre associação se relacionam


e determinam o sentido e alcance jurídico dos princípios que regem o coop-
erativismo, especialmente, do princípio da autonomia e da independência e
incidem sobre dispositivos da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971.

Fica evidenciado, assim, que a aplicação do mandamento constitucional


(direito fundamental à liberdade de organização e associação) "não implica,
para nenhum efeito, dependência de autorização de qualquer tipo ou de
qualquer intervenção administrativa",79 na sociedade cooperativa.

No dizer de Vergílio Frederico Perius, o cooperativismo nacional se alinhou


com o cooperativismo dos países desenvolvidos, eis que ficou decretado o fim
da tutela estatal sobre as cooperativas.80 O legislador e o executor da lei
devem agir, com efeito, em estrita observância aos mandamentos constantes
dos incisos referidos, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade,
afrontando o próprio Estado Democrático de Direito.

Para se analisar a coerência entre princípios e regras jurídicas que regulam


a vida das sociedades cooperativas e os direitos fundamentais, é necessário
destacar, novamente, que eles foram constituídos e enunciados em conjun-
turas e a partir de concepções políticas e teóricas distintas e até mesmo
opostas, cabendo aos operadores do direito não só levar em consideração
essas diferenças, mas, principalmente, buscar a harmonização dessas expres-
sões normativas de diversos níveis com a Constituição da República.

O processo de harmonização normativa, visando afirmar a mais ampla


eficácia ao texto constitucional, não é simples nem pacífico e exige o mane-
jo de inúmeros mecanismos, entre outros, a proibição de elaboração de nor-
mas contrárias à Constituição; a adoção de variados procedimentos her-
menêuticos; e o controle judicial da constitucionalidade das leis.

É justamente nessa perspectiva e com essas cautelas e finalidades que cabe


analisar a constitucionalidade do sistema legal de representação "externa" e
de registro das cooperativas previstos, respectivamente, nos artigos 105 e
107 da Lei 5.764/71.

O texto da Lei º 5.764/71, como se vê, opõe-se, frontalmente, aos incisos


XVIII e XX do mencionado artigo 5º da Constituição Federal, os quais deter-

79 - MIRANDA, J, Manual de Direito Constitucional - tomo IV - Direitos Fundamentais, Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 476.
80 - PERIUS, Vergílio Frederico. Cooperativismo e Lei. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001, p. 28-29.

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minam, respectivamente e de forma peremptória que "a criação de associ-


ações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização,
sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento" e que "ninguém
poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado".

A Constituição Federal de 1988, sendo fruto de uma ruptura com o regime


militar instaurado no Brasil, em 1964, e que perdurou até 1985, alterou os
termos da relação entre Estado e sociedade civil. O Estado passou, a partir
daí, a ser pautado por valores e princípios ausentes no período anterior
(momento histórico em que foi publicada a Lei nº 5.674/71) cujo fim último
é o respeito e a realização dos direitos fundamentais, entre eles o direito à
livre associação.

A restauração do Estado de Direito se dá com novos contornos delineando-


se no texto constitucional o Estado Democrático de Direito, no interior do qual
a liberdade ganha conteúdos específicos para se afirmar como liberdade não
só econômica, mas política e social, não só individual, mas coletiva, aí com-
preendidas as formações que os cidadãos instituem na vida em coletividade.
Ou como explicita Canotilho: "O Estado de direito democrático-constitucional
tornou-se, como vimos, um paradigma de organização e legitimação de uma
ordem política. A ' decisão' plasmada na constituição de se estruturar um
esquema fundador e organizatório da comunidade política segundo os
cânones do Estado de direito democrático significa, pelo menos, rejeição de
tipos de estado estruturalmente totalitários, autoritários ou autocráticos".81

Nota-se, desta forma, num primeiro momento, que a ordem constitucional


dos direitos fundamentais está necessariamente vinculada à compreensão
constitucional do Estado Democrático de Direito. Os direitos fundamentais
têm, constitucionalmente, uma função democrática; e, por outro lado, o
Estado Democrático de Direito pressupõe e garante os direitos fundamentais.
O elo entre ambos pode ser sintetizado no seguinte: a) exercício democrático
do poder funcionalmente assegurado pelo reconhecimento de direitos, liber-
dades e garantias de participação política dos cidadãos e de outros direitos
com um alcance eminentemente político como, por exemplo, direito de asso-
ciação; b) reconhecimento e garantia de uma relação de direitos, liberdades
e garantias dos trabalhadores, isto é, direitos individuais ou coletivos das
classes ou estratos sociais socialmente predominantes, que por isso assume
uma posição de legitimação democrática do poder.82

81 - CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva.


82 - CANOTILHO, J. J. G.; MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 99.

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Ensaios e Debates

Em um segundo momento, como ensina Canotilho, a ordem constitucional


dos direitos fundamentais está funcionalmente vinculada à constituição
econômica e ao princípio da democracia econômica e social que a informa.
Logo, a realização da democracia econômica, social e cultural pressupõe a
efetivação dos direitos e liberdades fundamentais, em especial, dos direitos
fundamentais dos trabalhadores e de suas organizações.

Cumpre lembrar, neste sentido, que o parágrafo único do artigo 170 asse-
gura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independen-
temente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
E, mais adiante, no artigo 173, os contornos da intervenção estatal e a explo-
ração direta pelo Estado de atividade econômica estão gizados pelo impera-
tivo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, para, finalmente,
dispor, no parágrafo 2º do artigo 174, que: "A lei apoiará e estimulará o
cooperativismo e outras formas de associativismo".

Nesse ambiente político-constitucional, que conjuga valores, princípios e


normas, a instituição e funcionamento das sociedades cooperativas continu-
am a ser regulados pela Lei nº 5.764/71, mas esta norma não pode, em
hipótese alguma, conter dispositivos que venham ferir ou restringir os direitos
fundamentais afirmados. Assim, a Lei nº 5.764/71 foi recepcionada pela
Constituição Federal de 1988, nos pontos em que é mantida a harmonia com
o sistema constitucional vigente.

Adotando-se essa postura hermenêutica coerente com o programa e a estru-


tura constitucional vigentes, os artigos 17, 18, 105 e 107, da Lei nº 5.764/71,
foram, sob o ângulo material, revogados tacitamente, em virtude da super-
veniência da Constituição Federal, pois os artigos revelam o caráter interven-
cionista e controlador estatal na atividade privada, preconizada em um mode-
lo de Estado claramente refutado, desde 1988, pela sociedade brasileira.83

Como se observa, compõem esse conjunto de dispositivos revogados todos aque-


les que sustentavam a existência de um sistema de intervenção e de controle do
Estado, de forma direta ou delegada, sobre a atividade privada das cooperativas.

83 - Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. PROCESSO - REGIMENTO INTERNO DO SUPREMO TRI-
BUNAL FEDERAL - DISCIPLINA - PERSISTÊNCIA NO CENÁRIO NORMATIVO. As normas processuais insertas no
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, relativas a ações e recursos situados na respectiva competência,
foram recepcionadas pela Constituição de 1988, no que com esta harmônicas (sic). Inexistindo o instituto da
inconstitucionalidade formal superveniente, o conflito entre normas processuais, sob o ângulo material, resolve-se
mediante a consideração da revogação tácita. Agravo regimental nos Embargos de Divergência dos Embargos
Declaratórios do Recurso Extraordinário nº 212455 - Distrito Federal. Arioaldo Salau Pinheiro e União Federal.
Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 14 de novembro de 2002. IN: Diário da Justiça de 11 de março de
2003, v. 02106-04, p. 70.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fatos analisados demonstram que a política, a economia e o direito


sempre estão entrelaçados, sendo necessário situá-los conjuntamente para se
ter uma compreensão global e para se poder moldar as linhas de atuações
que definirão o enfrentamento ideológico.

A visualização do percurso histórico e das inter-relações realizadas teve por obje-


tivo demonstrar que o modelo de representação único adotado no cooperativismo
brasileiro e exercido pela OCB é uma extensão do caráter autoritário das classes
economicamente dominantes, expressas, naquele momento, pelo Estado ditatorial,
e que teve por finalidade o controle da estrutura cooperativa, em um movimento
binário de característica organizadora e desorganizadora de interesses.

Essa mediação realizada pela OCB, legalmente garantida e permitida, pos-


sibilitou organizar um modelo cooperativo empresarial e agro-exportador
que, por outro lado, desorganizou ou impediu a organização das formas
cooperativas de cunho popular e transformador, do meio urbano e rural, que
buscavam alternativas ao modo de produção capitalista.

O êxito obtido pela OCB na implementação das diretrizes políticas e eco-


nômicas dependentes, que permitiu a perpetuação da estrutura agrária nacio-
nal calcada no latifúndio e a instrumentalização plena do sistema cooperati-
vista para atender a esses interesses, foram os fatores determinantes para que
a entidade fosse mantida adiante do sistema ao fim do regime militar.

Nessa perspectiva, o modelo de cooperativismo adotado no Brasil, do pe-


ríodo militar até a presente data, produziu um atrofiamento do sistema, cuja
extensão ainda não foi compreendida em sua plenitude. Alguns efeitos dessa
política, contudo, já podem ser constatados e sintetizados em três dimensões.

A primeira delas pode ser constatada na limitação das potencialidades do


cooperativismo no âmbito nacional, pois a estrutura produzida legalmente foi
direcionada à realidade do campo e para fomentar sociedades empresariais
alinhadas a um modelo agro-exportador.

A segunda dimensão pode ser observada na in-transparência produzida


sob parcela dos trabalhadores, pois eles acabam por constituir e sustentar
uma forma societária que substancialmente não é uma cooperativa e que tem
por finalidade flexibilizar e precarizar as relações de trabalho e maximizar o
lucro, que não é objeto do cooperativismo.

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Ensaios e Debates

A terceira dimensão estendeu-se à educação e à cultura cooperativista, pois


as reflexões existentes limitam-se a efetuar um movimento meramente
mecanicista de leitura da legislação cooperativa já produzida sem avançarem
num debate que questione os fundamentos do sistema jurídico instituído.

Acredita-se, todavia, que a compreensão da construção da realidade políti-


ca e econômica nacional deva ser acompanhada pela percepção do papel
que o Direito exerceu e exerce na adequação desses interesses, por meio das
técnicas jurídicas de elaboração de textos legislativos e hermenêutica, que
permitem a previsibilidade e a segurança da instrumentalização do ordena-
mento jurídico.

Não obstante o quadro legislativo adverso que se apresenta, e suas conse-


qüências em termos práticos e teóricos, há, atualmente, ao contrário do que
existiu no período militar, tendo em vista a atuação repressora do regime,
uma forte mobilização de setores populares que se organizam para o trabal-
ho sob a forma de sociedades cooperativas e que buscam resistir à descarac-
terização do modelo cooperativista e avançar na disputa legislativa para
garantir seus interesses.

Pode-se citar como uma das expressões de resistências ao processo de


cooptação do modelo cooperativista para atender aos interesses do mercado
o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST, que atua em nível nacional
e internacional para manter o cooperativismo sob o manto da classe trabal-
hadora e numa perspectiva de emancipação coletiva.

Nessa conjuntura, a análise de todos os elementos históricos apresentados,


desde a Segunda Guerra Mundial até os dias atuais, pretende desvelar os ele-
mentos que conduziram à publicação da Lei n.º 5.764/71, com as normas
impositivas de um modelo de representação único e de adesão obrigatória à
OCB, e que se perpetua até o momento.

Resgatar o rumo do cooperativismo nacional é fundamental para construir-


se uma proposta factível de cooperação coletiva e autogestionária. Libertar-
se da necessidade de autorização para constituição de sociedade cooperati-
va e autodeterminar-se quanto ao interesse de filiação é livrar-se dos grilhões
impostos pelas classes dominantes e usufruir a alforria que é elemento consti-
tutivo da proposta do autêntico cooperativismo.

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ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 147


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O processo organizativo do
Assentamento Sepé Tiaraju -
SP: novos ânimos no cenário
dos movimentos sociais da
região de Ribeirão Preto

Rosemeire Aparecida Scopinho*


Daniela Ribeiro de Oliveira**
Janaína Ribeiro de Resende***
Júlia Amorim Santos****

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o processo organizativo do


Assentamento Sepé Tiarajú-SP, realizado pelo MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra1. Desde 2003, vimos procurando compreen-
der o processo organizativo deste assentamento, entendendo que o conheci-
mento é uma construção social que se realiza através da criação de espaços
de diálogos interdisciplinares e multiprofissionais, no interior dos quais os tra-
balhadores rurais assentados participam como sujeitos ativos. Valendo-nos
dos princípios da pesquisa etnográfica, utilizamos o diálogo e a convivência
com os trabalhadores como estratégias privilegiadas para compreender os
processos culturais e ideológicos que fundamentam as suas concepções e
práticas, quando se trata de organizar o trabalho e as outras dimensões da
vida cotidiana nos assentamentos rurais de modo cooperado, autogestionário
e agroecológico. Assim, conhecemos as trajetórias sociais dos trabalhadores,
as suas experiências de trabalho e expectativas em relação ao assentamento,
os sentidos que eles atribuem ao trabalho cooperado e à agroecologia, o que
pensam e o que praticam quando se trata do cuidado com a saúde e o meio
* Professora adjunto Departamento de Psicologia/Universidade Federal de São Carlos-UFScar
** Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFSCar
*** Bolsista Pibic/CNPq/Ufscar
**** Puic/UFScar
1 - Baseado em análises parciais do Projeto de Pesquisa Relações de trabalho, condições de vida e subjetividade:
entre o trabalho dividido e o trabalho em cooperação (apoio Fapesp). Agradecemos a contribuição dos estudantes
Cristiane R. de M. Marçal (Bolsista Proex/UFSCar), Débora E.M. Pereira (estagiária), Luiz Rogério de Godoy (bol-
sista Proex/UFScar), Maíra do Val Soares (estagiária), Patrícia I. F. Russo (estagiária) e Thalita Angelucci.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 149


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Ensaios e Debates

ambiente, a educação, entre outras dimensões importantes da vida cotidiana


(Scopinho et al, 2005; 2006).

A experiência organizativa do Sepé Tiarajú está em andamento e ainda não


é possível fazer essas reflexões de modo conclusivo e definitivo. Mas, como
ela tem sido rica de significados para os que a vivenciam, é importante socia-
lizá-la com aqueles que, de um modo ou de outro, participam da luta social
organizada em favor da reforma agrária. Entre todas as possibilidades que se
apresentam para refletir sobre a trajetória organizativa deste assentamento,
destacamos dois pontos para discutir aqui: a formação de um grupo de apoio
formado por sujeitos e organizações sociais que contribuíram com o MST na
sustentação da iniciativa da ocupação e no processo organizativo dos trabal-
hadores, e as expectativas dos trabalhadores em relação ao assentamento,
que vão além de ter a propriedade de um lote de terra. Procuramos mostrar
que tanto a existência deste assentamento contribuiu para dinamizar os movi-
mentos sociais da região, especialmente os do campo que estavam em
refluxo desde que se intensificou a mecanização das lavouras nos anos de
1990, quanto o grupo de apoio que o assentamento mobilizou contribuiu
para impulsionar o seu processo organizativo, criando um espaço educativo
que construiu e alimentou determinadas expectativas nos trabalhadores
assentados, cujas trajetórias sociais são marcadas pelo desenraizamento.

SEPÉ TIARAJÚ2: A REFORMA AGRÁRIA


ABRINDO OUTRAS PICADAS NO CANAVIAL

Escute o que estou dizendo


Seu doutô, Seu coroné
De fome está padecendo
meus fios e minha muié
Meça dessa grande terra uma tarefa para eu
Tenha pena do agregado
Não me deixe deserdado
Da terra que Deus me deu
(Patativa do Assaré)

Na região de Ribeirão Preto-SP, uma das conseqüências sociais mais noci-


vas da reestruturação produtiva intensificada nos anos de 1990 é o desem-

2 - O Acampamento foi assim chamado para homenagear o cacique Guarani que morreu em 1756, na
Guerra dos Guaranis, lutando contra a ocupação de terras indígenas pelos colonizadores portugueses e espan-
hóis na área onde hoje se localiza o estado do Rio Grande do Sul.

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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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prego estrutural e a precarização do trabalho, resultante do processo de ino-


vações tecnológicas e organizacionais em curso, especialmente no setor
sucroalcooleiro que, cada vez mais, se reafirma como o sustentáculo da eco-
nomia regional3. Ao mesmo tempo em que o agronegócio é importante para
a economia regional e nacional e na mesma velocidade em que ele dinamiza
a reestruturação produtiva nas empresas, o modo de organização e gestão
da produção agropecuária gera uma realidade trabalhista e social muito
complexa e contraditória. No setor sucroalcooleiro, é bastante expressivo o
número de trabalhadores que não têm seus direitos de cidadania respeitados,
especialmente os trabalhistas, e, diariamente, muitos se acidentam, adoecem
e até mesmo morrem no exercício das atividades laborais, caracterizando si-
tuações análogas ao trabalho escravo (Alessi & Scopinho, 1994; Scopinho &
Valarelli, 1995; Scopinho et al, 1999; Silva, s/d; 1999; 2006). Os mecanis-
mos de vigilância e controle social desses problemas são frágeis e insuficien-
tes, pois o Estado desenvolve ações fragmentadas e desarticuladas e o movi-
mento sindical encontra-se politicamente fragilizado pelo desemprego estru-
tural (Scopinho, 2003).

Mas, não é de hoje que a sociedade regional vem discutindo alternativas


de geração de emprego e de renda destacando-se, entre elas, a retomada da
discussão e a ação dos movimentos sociais organizados em favor da reforma
agrária4, como forma de garantir as condições de existência dos traba-
lhadores rurais (Ferrante & Bergamasco, 1995; Rosin, 1997; Andrade, 1997;
Ferrante et al, 1998; Baú, 2002; Barone, 2002; Bergamasco, Aubrée &
Ferrante, 2003; Silva, 2003; s/d). Atualmente, entre esses movimentos so-
ciais, o MST destaca-se como um dos principais.

O MST chegou nesta região em 1999, no contexto de uma ocupação de


terras pertencentes ao governo do estado de São Paulo localizadas no municí-
pio de Restinga (nas proximidades de Franca), inicialmente, organizada por
um sindicato que não tinha vínculos com a luta pela reforma agrária e, pos-
teriormente, assumida pelo MST. A partir desta inserção, o MST foi ocupando
espaço no cenário político regional. Instalou a sua Secretaria Regional Nor-
deste e um estabelecimento comercial - a Loja Sabor do Campo para comer-

3 - Nesta região localizam-se as principais usinas-destilarias brasileiras, responsáveis por 45% da produção
nacional de cana-de-açúcar http://www.fenasucro.com.br/new/br/op_regiao.asp, consultado em 07 de
janeiro de 2007.
4 - Em 1989 havia cinco assentamentos na região da Divisão Regional Agrícola de Ribeirão Preto (Ferrante &
Bergamasco, 1995), permanecendo o mesmo número em 1994 (Bergamasco, Blanc-Pamard & Chonchol,
1997). Segundo representantes da Feraesp-Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São
Paulo, em março do ano 2000 havia 12 assentamentos oriundos do processo de reforma agrária e seis áreas
ocupadas em disputa pela posse da terra (Scopinho, 2003). A criação da Secretaria Regional do MST/RP trouxe
mais dois assentamentos e um acampamento para a região de Ribeirão Preto.

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Ensaios e Debates

cializar a produção oriunda dos assentamentos rurais paulistas - na cidade de


Ribeirão Preto, por ser ela o maior centro urbano e uma espécie de pólo po-
lítico e econômico da região, a "Califórnia brasileira" ou "capital do agrone-
gócio" como é mais conhecida. Com o apoio da Arquidiocese de Ribeirão
Preto, o MST inaugurou o Centro de Formação Sócio-Agrícola Dom Hélder
Câmara, onde desenvolve projetos de formação técnica (em agroecologia),
política e cultural (difusão da cultura caipira) voltados para os acampados,
assentados e militantes do MST e de outros movimentos sociais da região e
de outras partes do Brasil5.

O Sepé Tiarajú foi o primeiro acampamento organizado pelo MST na


região, embora não tenha sido o primeiro em terras de usineiros6. Ele é resul-
tado de várias ocupações não originadas na área que hoje o abriga7. A
primeira ocorreu no município de Matão, em 19 de dezembro de 1999,
quando trabalhadores rurais ocuparam a usina da Fazenda Chimbó, que
tinha 1.600 hectares plantados com cana-de-açúcar e cujos proprietários
acumulavam dívidas com o Estado, inclusive trabalhistas, e eram acusados de
usar trabalho escravo. Este acampamento, chamado Dom Hélder Câmara,
iniciou-se com cerca de 400 famílias, porém, depois de dez dias já contava
com mais de 1.200 famílias. Nos primeiros meses do ano 2000, quando se
iniciou a safra da cana e da laranja, o acampamento praticamente esvaziou-
se pois o que motiva uma ocupação é, principalmente, a falta de trabalho,
problema este que é minimizado durante a safra das culturas sazonais. Os
proprietários, apesar das irregularidades que tornavam a área passível de
desapropriação para reforma agrária, obtiveram liminar de reintegração de
posse que foi cumprida. O Estado ofereceu ao MST uma área próxima a
Barretos para ser ocupada pelas famílias retiradas da Fazenda Chimbó. Em
Barretos, cidade considerada conservadora pelo MST, os acampados foram
mal recebidos pela população e enfrentaram diversos problemas, desde
ameaças de agressão física até manifestações contra o ingresso das crianças
nas escolas locais. Em decorrência disto, uma parte dos acampados decidiu
sair do local, a outra parte desligou-se do MST e permaneceu na área onde
ainda nenhuma família foi assentada.
5 - Ali existe uma biblioteca municipal, desenvolve-se um projeto de alfabetização de jovens e adultos, uma
ciranda infantil (espécie de creche existente nos espaços onde o MST desenvolve atividades), um laboratório de
informática e o estúdio da Camponesa Rádio Poste, criada para veicular uma programação especial nos acam-
pamentos e assentamentos.
6 - Desde a década de oitenta, a Feraesp vem organizando acampamentos e assentamentos nestes espaços
(Ferrante & Bergamasco, 1995; Rosin, 1997; Andrade, 1997; Ferrante et al, 1998; Baú, 2002; Barone, 2002;
Bergamasco, Aubrée & Ferrante, 2003; Silva, s/d).
7 - Esta história é longa, nós a ouvimos e registramos em diário de campo em suas várias versões. Seus
inúmeros fragmentos são, constantemente, revividos pelos trabalhadores assentados, no que eles têm de tragé-
dia e também de comédia. Ela será aqui sintetizada para efeito da compreensão do processo organizativo do
assentamento.

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Os que saíram de Barretos deram origem à ocupação da área do Acam-


pamento Sepé Tiarajú, que ocorreu no dia 17 de abril de 2000 por um grupo
de 30 famílias. Dias depois, a elas juntaram-se mais 70 famílias remanescen-
tes das ocupações de Restinga, Matão e Barretos, além de outras, totalizan-
do cerca de 100 famílias. Assim, foram ocupados cerca de 1.000 hectares da
Fazenda Santa Clara, antiga propriedade da Usina Nova União localizada
entre os municípios de Serrana e Serra Azul, terras tomadas judicialmente dos
usineiros pelo governo do Estado de São Paulo, a título de pagamento de dívi-
das trabalhistas e outros tributos sociais. Mesmo transferidas para o Estado,
as terras permaneciam irregularmente ocupadas pela usina, com plantação
de cana-de-açúcar.

Por terem ocupado um território de usineiros localizado no centro da região


canavieira mais importante do país, a primeira liminar de reintegração de
posse não tardou a chegar. As famílias do Acampamento Sepé Tiarajú inicia-
ram, então, uma trajetória de andanças pelo entorno, que durou quatro anos
até a oficialização do assentamento em 20 de setembro de 2004, enfrentan-
do três ações judiciais de despejo sendo duas por liminar de reintegração de
posse. Resumindo as andanças, em junho de 2000, aproximadamente 80 fa-
mílias foram despejadas pela primeira vez e ocuparam um sítio vizinho (cha-
mado pelos acampados de Sítio do Sr. Luiz Português), solidariamente cedido
pelo proprietário para abrigar as famílias. Em setembro do mesmo ano, as
famílias re-ocuparam a Fazenda Santa Clara, mas, no mesmo mês, recebe-
ram a segunda liminar de reintegração de posse que os fez retornar ao mes-
mo sítio onde permaneceram até setembro de 2001, quando o seu proprietá-
rio não mais pode resistir à pressão dos usineiros do entorno e da sua própria
família e o vendeu para os proprietários da Usina Nova União. Despejados
novamente pelos usineiros, os trabalhadores ocuparam a área da antiga Esta-
ção Inhaúma da Ferrobam (local denominado pelos acampados por "linha do
trem"), área esta que se localiza no interior da Fazenda mas é pública. Ali per-
maneceram até dezembro de 2002 quando re-ocuparam a Fazenda Santa
Clara, onde foram assentados.

Desde então, as famílias instalaram seus barracos lado a lado ao longo de


uma única "rua" onde se formou a "Agrovila do Sepé", estrategicamente localiza-
da na descida de um morro onde estão as nascentes da água que a abastece.
No início de 2003, 61 famílias abrigavam-se em 52 barracos, alguns típicos de
pura lona preta, outros mais elaborados combinavam partes de lona com folhas
de madeira ou metal e cobertura de telha. O espaço situado entre a agrovila e
o morro sempre foi uma espécie de "centro" do acampamento, onde se realiza-
vam as reuniões, festas e outras atividades, em baixo de uma mangueira ou de

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Ensaios e Debates

uma grande figueira antiga. Ali havia uma área coletivamente cultivada com
horta orgânica (hortaliças e plantas medicinais) e ruínas de prédios da antiga
fazenda. Um dos prédios tornou-se a Escola Paulo Freire de alfabetização de jo-
vens e adultos e também era utilizado para realização de outros cursos, reuniões
e assembléias; num outro prédio foi instalada uma espécie de secretaria, onde
se guardavam ferramentas e documentos, que também funcionava como cabine
de vigilância, porque dali se avistavam as moradias da agrovila, a escola, a hor-
ta, o morro, a entrada do acampamento e a rodovia que o corta.

O processo organizativo das famílias para ocuparem definitivamente a área foi


acontecendo mesmo antes da oficialização do assentamento, porque o MST con-
sidera que o acampamento é um espaço privilegiado para construir novas regras
de convivência social, novos valores, uma espécie de escola preparatória para viver
no assentamento que, por sua vez, é entendido como "(...) núcleo social onde as
pessoas convivem e desenvolvem um conjunto de atividades comunitárias na esfera
da cultura, lazer, educação, religião, etc (...)" (Concrab, 1998, p. 26).

No ideário organizativo do MST, atualmente, a cooperação e a agroecologia


ocupam lugares importantes como diretrizes organizativas para os acampamen-
tos e os assentamentos. Para não reproduzir o modelo agropecuário tradicional-
mente vigente, responsável pelo êxodo rural porque é concentrador de riquezas
e depredador de recursos naturais e humanos, considera-se que é necessário dar
um outro sentido ao trabalho no campo re-pensando o sistema e o modo de pro-
duzir. No que se refere ao sistema produtivo, a orientação é utilizar uma base téc-
nica que coloque a tecnologia a serviço do homem e não o contrário, ou seja,
que proteja e perpetue os recursos naturais e humanos e diminua os custos de
produção através da utilização de insumos, métodos e tecnologias agroecológi-
cas. Quanto ao modo de produzir, a cooperação - entendida como ação social
nas suas dimensões econômicas, sociais e políticas, que não necessariamente
implica em criação de estruturas do tipo cooperativas, associações etc. (Scopi-
nho, 2007) - tem sido vista como uma saída para enfrentar e superar as dificul-
dades e a escassez de recursos decorrentes da ausência de políticas públicas,
que favoreçam a pequena produção e o desenvolvimento sócio-cultural e políti-
co dos trabalhadores assentados. Agroecologia e cooperação referem-se ao
modo de organizar e administrar a produção e a reprodução da vida, que no
mundo rural não são instâncias separadas.

Organizar o Sepé Tiarajú com base nessas diretrizes, para além de ser uma
questão de seguir as diretrizes organizativas do MST, era essencial para a
sobrevivência dos trabalhadores, dadas as suas condições objetivas, ou seja,
a falta de recursos e a necessidade de produzir para sustentar a ocupação.

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Em agosto de 2003, o Incra - Instituto Nacional de Colonização e Reforma


Agrária comprou a área do governo do estado de São Paulo. Em 20 de
setembro de 2004 a Portaria nº 46 - Incra, oficializou o início do processo de
assentamento de 80 famílias no local trazendo consigo uma proposta de
modelo de assentamento.

Segundo os trabalhadores acampados, a compra da área foi objeto de di-


vergência entre dois grupos distintos de técnicos existentes no interior daque-
le órgão. Baseados em outras experiências desenvolvidas na região8, os que
discordavam da compra alegavam que: 1. devido à localização, o preço da
terra era muito alto; 2. os acampados, futuros beneficiários, não tinham um
perfil de pequeno produtor rural; 3. a proximidade do assentamento de gran-
des centros consumidores, por um lado, facilitaria o escoamento da produ-
ção, mas, por outro, implicaria em enfrentar uma forte concorrência no mer-
cado de produtos agropecuários. Isto poderia acarretar o fracasso do proje-
to, o endividamento dos assentados e, conseqüentemente, a evasão e/ ou o
arrendamento das terras para as usinas da região, tornando-as alvo da es-
peculação imobiliária. A compra somente foi efetivada depois de um acordo
interno firmado no Incra sobre a modalidade de projeto a ser implantado na
área, que deveria ser do tipo PDS - Projeto de Desenvolvimento Sustentável9.
A Superintendência do Incra em São Paulo propunha uma adaptação do mo-
delo PDS, tal como ele foi implantado na região Amazônica, à realidade lo-
cal. As condições essenciais colocadas pelo Incra foram:

1. a concessão de uso de posse da terra (ao invés da titulação


de propriedade lotes), para evitar a venda e o arrendamento;
2. o desenvolvimento da produção cooperada e agroecológica
e o compromisso de recuperação da área degradada pela
monocultura da cana;
3. a criação de uma entidade coletiva para receber os recursos
financeiros e realizar a prestação de contas com o Estado;
8 - Especialmente o Assentamento Bela Vista do Chibarro, localizado em Araraquara que, ilhado pelos canavi-
ais, sempre foi muito assediado pelos usineiros para servir como área arrendada para produzir cana-de-açú-
car. Ver Rosim (1997), Barone (2002), entre outros.
9 - O PDS nasceu de um processo de discussão empreendido por técnicos do MMA - Ministério do Meio
Ambiente, Conselho Nacional dos Seringueiros, do Centro Nacional de Populações do Ibama - Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis e do Incra que foi oficializado pelas portarias Incra
n 477 de 04/12/1999 e n 1032 de 20/10/2000. Criado para atender aos interesses e anseios do governo,
dos movimentos sociais e dos demandantes de terra no sentido de conciliar o assentamento humano e a preser-
vação de áreas de interesse ambiental (como a Amazônia), promovendo o desenvolvimento sustentável, o PDS
é "uma modalidade de assentamento de interesse sócio-econômico-ambiental, destinado às populações que
já desenvolvem ou que se disponham a desenvolver atividades de baixo impacto ambiental, baseado na
aptidão da área" (Brasil, 2000, p. 19). Uma das principais idealizadoras do PDS foi a missionária norte-amer-
icana Dorothy Mae Stang, assassinada em 12 de fevereiro de 2005, na cidade de Anapú (PA), por defender
os direitos humanos e a preservação ambiental em áreas de conflitos agrários na região Amazônica.

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Ensaios e Debates

4. a formação de um comitê gestor do assentamento, compos-


to por representantes dos poderes públicos estaduais e munici-
pais, representantes dos assentados, organizações não governa-
mentais locais e Incra.

Observa-se, que as condições impostas pelo Incra, em linhas gerais, não


são muito diferentes do que já vinha sendo proposto pelo MST, desde que se
dispôs a organizar os assentamentos de reforma agrária na década de oiten-
ta (Concrab, 1998; 2001; 2006). A propósito, as propostas organizativas do
Estado para os assentamentos têm sido, em linhas gerais, construídas ao lon-
go desses anos com base nas experiências organizativas desenvolvidas pelos
movimentos sociais, destacando-se as do MST.

SEPÉ TIARAJÚ: CRIANDO UM GRUPO DE APOIO E DINAMIZANDO


OS MOVIMENTOS SOCIAIS DA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO

No processo organizativo do Sepé Tiarajú, nas fases de acampamento ou


de assentamento, os trabalhadores não estiveram sozinhos. Ao instalar a sua
secreta regional na cidade de Ribeirão Preto, o MST foi apoiado por outros
movimentos sociais, tais como sindicatos e organizações não governamen-
tais; por setores e alguns membros da Igreja Católica, ligados a Pastoral da
Terra; por alguns promotores de justiça que atuam em diferentes comarcas da
região em defesa das causas populares nas áreas de meio ambiente, traba-
lho, infância e juventude; por alguns profissionais liberais e técnicos ligados
à rede de serviços públicos dos municípios do entorno, especialmente nas
áreas de saúde e educação; por ocupantes de cargos políticos nas cidades
do entorno, considerados progressistas; por professores e estudantes univer-
sitários da região. Esta articulação de sujeitos e de organizações sociais for-
mou um grupo de apoio à luta pela reforma agrária denominado Amigos do
MST. Muitos desses Amigos são figuras públicas; outros vivem no anonimato.
Alguns são ingressantes, novos personagens no cenário dos movimentos so-
ciais da região que aderiram às novas e velhas causas por eles defendidas;
outros são personagens antigos, que há décadas constroem alianças para
discutir estratégias de resistência e enfrentar politicamente a hegemonia dos
grandes proprietários de terras da "Califórnia Brasileira" (Ferrante, 1991; Al-
ves, 1991; Scopinho, 2003, entre outros).

O grupo de apoio formado pelos Amigos tem sido fundamental para ga-
rantir a resistência e a permanência das famílias no Sepé Tiarajú, em dois sen-
tidos: fora do assentamento, contribuindo com o MST na mediação das re-

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lações que se estabelecem entre os trabalhadores assentados e a sociedade


regional, e dentro do assentamento, contribuindo com o MST na mediação
das relações que se estabelecem entre os trabalhadores assentados e entre
eles e as diferentes forças sociais, governamentais ou não, encarregadas de
pensar e executar o projeto da ocupação em seus diferentes aspectos.

Do ponto de vista da relação dos trabalhadores assentados com a sociedade


civil do entorno, o apoio dos Amigos tem sido importante porque desde os pri-
mórdios da ocupação, a presença das famílias nesta área sempre foi objeto de
polêmica. Por um lado, elas foram estigmatizadas e vítimas de preconceito por
parte de determinados segmentos sociais, principalmente, ao demandarem
serviços e instituições públicas na busca do direito à educação e à saúde que,
teoricamente, todo cidadão brasileiro, tem. Nestes momentos, as famílias so-
freram a pressão e pagaram o ônus de terem ocupado um território que, tradi-
cionalmente, sempre pertenceu aos grandes proprietários de terra, possuidores
não apenas de um grande poder econômico, mas também político. No entan-
to, por outro lado, elas foram apoiadas pelos Amigos que, além de contribui-
ções na forma de alimentos, remédios, assistência à saúde, à educação e ou-
tros cuidados, garantia o apoio político e até jurídico necessário à resistência
e à permanência das famílias na área. Assim, a existência e a configuração
deste grupo de apoio não só dava visibilidade mas também respaldo à luta pe-
la terra nesta região, onde a reforma agrária parecia ser irrealizável.

Do ponto de vista interno, a passagem da condição de acampamento


para assentamento ocorre através de um processo que envolve muitas
negociações e tomadas de decisões em que a demarcação oficial da área
e a organização das famílias em núcleos para ocupá-la são definidas simul-
taneamente. No Sepé Tiarajú, essas definições não se iniciaram com a ofi-
cialização do assentamento e as discussões foram marcadas por momentos
que ora se traduziam em avanços, ora em recuos do processo organizati-
vo. Mesmo sem ter garantias da posse da terra, o assunto sempre foi obje-
to de debates e reflexões entre os trabalhadores acampados, constituindo
os primórdios do planejamento da ocupação da área - nas palavras dos
acampados, a construção do "sonho". Nas inúmeras assembléias, reuniões,
cursos e conversas informais desenvolveu-se um processo educativo consi-
derado muito importante pelos trabalhadores, porque ensaiou a partici-
pação, resgatou a auto-estima, motivou, assim como possibilitou a criação
de mecanismos de conhecimento mútuo e de identificação entre as pes-
soas. Neste processo, a presença dos Amigos também foi fundamental no
sentido de contribuir, técnica e politicamente, com as discussões e os
processos de tomada de decisão.

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Ensaios e Debates

O grupo de Amigos é o que Novaes (1994, p. 179) chamou de "medi-


adores externos", que se definem pelo comprometimento com os interesses
dos trabalhadores e por serem portadores não só de recursos humanos e
materiais mas também simbólicos, elementos importantes para os movimen-
tos sociais no processo da luta. No caso do Sepé, os mediadores não dis-
putavam a organização do assentamento com o MST, o principal e único
movimento social envolvido no processo organizativo do assentamento, e tin-
ham graus de aproximação muito diferenciados entre si com a causa da refor-
ma agrária. Funcionavam ora apenas como uma espécie de conselheiros do
processo organizativo, ora com o desenvolvimento de ações técnicas e/ou
políticas que favoreciam a manutenção dos trabalhadores na área ocupada10.

Na medida em que se oficializou como assentamento, outros atores sociais


incorporaram-se ao processo organizativo, principalmente o Estado através do
Incra, órgão responsável pela implantação do projeto, da Embrapa/Jaguariú-
na-SP e outros, ampliando a rede de Amigos, implantando ações e trazendo
novas contribuições na forma de cursos, reuniões, entre outras atividades11.

É importante destacar que o MST teve um papel fundamental na articulação


desses sujeitos e instituições sociais e na necessária mediação entre eles e as
demandas dos trabalhadores do Sepé Tiarajú. Apesar das divergências e da
diversidade de interesses e necessidades existente entre os Amigos, tem sido
possível convergir o potencial das contribuições para o atendimento das de-
mandas dos trabalhadores no sentido de realizar o processo organizativo sem
perder de vista os seus princípios norteadores fundamentais: a cooperação e a
agroecologia. Na medida em que o MST planejou a ocupação do Sepé Tiara-
jú a partir desses princípios organizativos ele não somente foi de encontro às
vontades e necessidades populares no que se refere à geração de trabalho e
renda mas, sobretudo, estabeleceu um espaço de disputa que possibilitou in-

10 - A nossa experiência com o processo organizativo do Sepé Tiarajú mostra que, às vezes, a manutenção da
relação exigia o afastamento para não interferir no processo decisório ou criar relações de dependência ou,
ao contrário, exigia um posicionamento e contribuição técnica e/ou política explícita, muitas vezes, documen-
tada e tornada pública.
11 - A partir da oficialização do assentamento no segundo semestre de 2004, foi possível implantar projetos
tais como o Cimas - Centro de Irradiação e Manejo da Agrobiodiversidade, financiado pelo MMA e desen-
volvido através de parceria entre o MST, o Incra, a Embrapa-Jaguariúna e a Associação Ecológica e Cultural
Pau Brasil, ONG localizada em Ribeirão Preto. Criados em vários estados, o objetivo dos Cimas é levar
assistência técnica e apoio à conservação genética de sementes e animais aos assentamentos, reduzir o custo
de acesso à tecnologia, preservar e recuperar as matas nativas e iniciar a transição do modelo convencional
de produção agrícola para um modelo sustentável, através da formação de agentes multiplicadores em ofici-
nas de formação e treinamento, visitas e práticas de campo. As atividades desenvolvidas com os trabalhadores
assentados no âmbito deste projeto foram: cursos de capacitação técnica e política; elaboração de cartilha;
intercâmbio de experiências a partir de visitas realizadas por 50 trabalhadores assentados em três cooperati-
vas rurais localizadas na região sul do país; desenvolvimento de experiências práticas de formação de SAFs -
Sistemas Agro-Florestais, de adubação verde e, principalmente, de produção de sementes.

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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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cluir várias outras lutas sociais que hoje são importantes na região de Ribeirão
Preto, especialmente aquelas que dizem respeito à preservação do meio ambi-
ente tais como a luta contra as queimadas dos canaviais e a de preservação
do aqüífero Guarani. E assim foi se preenchendo um vazio deixa-do pelo movi-
mento sindical rural, que fez papel de vanguarda na década de 1980 (Alves,
1991) mas, perdeu força política no cenário regional para en-frentar os pro-
blemas sócio-ambientais por conta do desemprego provocado pela intensifi-
cação da mecanização das lavouras a partir de meados dos anos de 1990.

Com a chegada do MST na região e a ocupação do Sepé Tiarajú outras mo-


bilizações e ações coletivas foram se desenrolando tais como: o Movimento
Água Nossa, em defesa do Aqüífero Guarani; o Acampamento Mário Lago, em
Ribeirão Preto, resultado da ocupação da Fazenda da Barra localizada em im-
portante área do aqüífero; a ocupação da Fazenda Santa Maria no início de
2006, que criou um fato inédito ao mobilizar um grupo de usineiros, à seme-
lhança dos Amigos do MST, para defender e proteger o arrendatário da área;
além das marchas e inúmeras manifestações políticas e culturais realizadas na
Esplanada Dom Pedro II para distribuir os alimentos produzidos nas terras ocu-
padas para a população de Ribeirão Preto. Vale lembrar também a organiza-
ção dos Encontros Nacionais dos Violeiros organizados pela regional Nordeste
do MST que, em 4 edições sucessivas desde 2003, reuniu mais de 20 mil pes-
soas em torno do objetivo de resgatar elementos da cultura caipira presentes na
música, na dança e na culinária como forma de organização mobilização e or-
ganização dos trabalhadores para a luta em favor da re-forma agrária.

Em resumo, a participação dos trabalhadores nos eventos e nas discussões


e a convivência com os Amigos e com a sociedade, mesmo não sendo homo-
gêneas, em muito contribuíram com o processo de formação - a "formação
em movimento" como refere Caldart (2000). A dimensão e importância des-
sas experiências na vida cotidiana dos trabalhadores podem ser melhor ava-
liadas através do exame das suas trajetórias sociais e expectativas em relação
ao assentamento.

SOBRE AS TRAJETÓRIAS E AS EXPECTATIVAS


DOS TRABALHADORES ASSENTADOS

No Sepé Tiarajú sempre chamou a atenção a diversidade de sotaques, cos-


tumes, tradições e modos diferentes de organizar a vida em geral. Esta con-
statação anunciava que o principal desafio do processo organizativo era o de
como convergir a diversidade sócio-cultural existente para realizar um proje-

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Ensaios e Debates

to de assentamento econômico-social, coletivamente construído com base na


cooperação e na agroecologia, que se viabilizasse sem negar as tradições,
costumes, necessidades e interesses dos assentados. Por entender que o pro-
cesso organizativo cooperado e autogestionário deve levar em conta as ca-
racterísticas sócio-culturais dos sujeitos e convencidos da necessidade da co-
munidade se conhecer para construir um projeto fundamentado na coopera-
ção desenvolvemos um conjunto de pesquisas e ações comunitárias para me-
lhor compreender as características, o pensamento e o cotidiano de trabalho
e de vida das famílias (Scopinho et al 2005; 2006).

Predominava no Sepé Tiarajú uma população adulta e famílias que pos-


suíam entre duas e cinco pessoas, sendo significativo o número de pessoas
sozinhas. Os "sozinhos" eram, na maioria, do sexo masculino e, geralmente,
tinham se separado ou perdido seus parentes no processo de migração e nas
andanças empreendidas em busca de terra e de emprego. Alguns eram muito
jovens, adolescentes que experimentaram a condição de serem moradores de
rua, que mantiveram ligações com o tráfico organizado de drogas como es-
tratégia de sobrevivência e procuravam lidar com as conseqüências e os
agravos à saúde provocados pela dependência; outros eram adultos de meia
idade, que a dependência crônica do uso de álcool havia separado do con-
vívio com a família e excluído do trabalho. As mulheres, geralmente, estavam
sozinhas por viuvez ou separação do marido. Porém, nem todos os que es-
tavam "sozinhos" tinham perdido a família. Havia migrantes nordestinos que
pretendiam trazer os parentes - filhos, genros, noras, netos e agregados - de-
pois da oficialização do assentamento.

Os trabalhadores assentados residiram em 340 diferentes cidades. Eles


eram originários de 106 cidades situadas em 15 estados brasileiros, das quais
37 (35%) estão situadas no interior do próprio estado de São Paulo. As de-
mais cidades de origem estão localizadas, especialmente, em Minas Gerais
(18%), Paraná (16%), Bahia (11,4%), Pernambuco (5,7%), além de vários es-
tados nordestinos. Depois de deixarem as cidades de origens, os entrevista-
dos passaram por 234 cidades localizadas em 20 estados, chegando um de-
les até o Paraguai (sem se lembrar do nome da cidade). Migraram, princi-
palmente, pelas cidades do interior do estado de São Paulo (39%), do Paraná
(15,3%), Bahia (8%) Minas Gerais (7,7%) e Pernambuco (6%). Estes números
são reflexos da dinâmica migratória do Estado de São Paulo. Perillo & Perdi-
gão (2005), baseadas no Censo Demográfico de 2000, mostraram que este
estado concentra grande parte da economia industrial e agroindustrial do
país e por isto, apesar da tendência de diminuição, ainda recebe o maior vo-
lume de migração, o que explica a intensa mobilidade populacional em seu

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território onde predominam mineiros (20,7%), baianos (19,7%), paranaenses


(12,9%) e pernambucanos (12,4%). No interior de São Paulo, no nordeste
paulista, as regiões de Franca, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto são res-
ponsáveis por receber 50% da migração interestadual, cujos deslocamentos
têm origem em Minas Gerais (20,5%), Paraná (19,1%) e Bahia (13,9%); os
que saíram do interior paulista dirigiram-se, principalmente, para Minas Ge-
rais (27,2%) e Paraná (20,6%).

As informações sobre a dinâmica migratória das famílias foram inseridas no


Mapa - Localização das cidades de origem e das cidades de trajetória de
migração de famílias do Assentamento Sepé Tiarajú, Serra Azul-SP, em anexo.
Nem todas as localidades mencionadas foram localizadas no mapa. Muitos
trabalhadores, depois de tanto migrarem, já não se lembravam mais dos
nomes das cidades e dos estados por onde haviam passado. Assim, ressalta-
se que o mapa é apenas uma aproximação da realidade de migração das
famílias, que é muito mais complexa se considerarmos ainda que um mesmo
trabalhador pode ter migrado para uma mesma cidade mais do que uma vez.

A migração dos trabalhadores do Sepé ocorreu, em grande parte, em busca


de melhores condições de trabalho e de vida. Em geral, os imigrantes nordesti-
nos vieram para São Paulo entre os anos de 1970 e 1990 para cortar cana ou
colher laranja e migraram para e pelo interior, trabalhando temporariamente
nas agroindústrias de monocultura. Observa-se no mapa que as cidades de ori-
gem localizam-se, basicamente, nas regiões Sudeste e Nordeste, coincidindo
com aquelas de onde, freqüentemente, vêm os migrantes para trabalhar na
agricultura paulista, especialmente nos setores canavieiro e citrícola (Silva,
1999; Scopinho, 2003). Grande parte das cidades que compõem o traçado
das trajetórias de migração interestadual localiza-se nas áreas de expansão de
fronteiras agrícolas nas regiões Centro-Oeste e Norte do país ou concentram-
se nos estados do Paraná, São Paulo e região do Triângulo Mineiro onde se de-
senvolve, principalmente, a monocultura canavieira. Os itinerários de migra-
ção ocorreram não só do campo para a cidade, mas igualmente de cidade pa-
ra cidade, do campo para o campo, da cidade para o campo. A maioria das
famílias migrou mais do que três vezes, uma delas migrou mais de 11 vezes em
um mesmo ano. Algumas desistiram de tentar a vida fora da cidade de origem,
retornaram a ela12, mas por falta de alternativa tornaram a migrar.

Ocorre que, na década de 1990, intensas transformações espaciais, cultu-


rais, econômicas e sociais atingiram tanto o campo quanto as cidades paulis-
12 - Perillo & Perdigão (2005) mostraram que 62% dos que migraram de São Paulo para o Nordeste entre
1986 e 1991 eram nordestinos na condição de retorno às suas regiões de origens.

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Ensaios e Debates

tas. As mudanças advindas com a internacionalização da economia acelera-


ram a reestruturação da base produtiva provocando forte impacto na oferta
de empregos no estado, especialmente na região metropolitana. No interior,
nas regiões de economia agroindustrial como a de Ribeirão Preto, a intensifi-
cação da mecanização agrícola através do uso de colhedoras mecânicas pro-
vocou desemprego estrutural, especialmente no corte da cana-de-açúcar. O
desemprego, urbano e rural, aliado à ausência de alternativas de geração de
renda e à omissão do Estado no que se refere à situação dos desemprega-
dos, obrigou esta população a sobreviver precariamente do trabalho informal
nas periferias das "cidades-dormitório" de bóias-frias ou a migrar sazonal-
mente para as regiões de monocultura. Como disse Silva (1999), ao analisar
os fluxos migratórios existentes entre a região do Vale do Jequitinhonha (MG)
e a de Ribeirão Preto, nos diferentes espaços, a "modernização" não só levou
à destruição da história objetiva e material e na forma como se estrutura a re-
lação campo-cidade, como também trouxe conseqüências de ordem simbóli-
ca para os moradores destas regiões, promovendo um efeito desagregador
das lembranças e das identidades nos trabalhadores.

A fuga da pobreza e da violência existente nas periferias urbanas estava en-


tre os principais motivos que levou a maioria das famílias do Sepé Tiarajú a
participar de um movimento social em favor da reforma agrária e procurar
romper com a sina da pobreza e da marginalidade. Silva (s/d, p. 290), refu-
tando a tese de que essas pessoas migram porque querem, assim se referiu a
esta população, conhecida por reunir os "excluídos da modernização":

São vidas definidas por um vaivém perene, por uma eterna


migração forçada que lhes impinge a marca de um destino
social. Na luta pelo direito à sobrevivência, resistem à condição
de parias, de mendigos. Os trajetos de suas andanças refletem
a busca de um ponto fixo na escala social. Resistem ao proces-
so descendente imposto pela estrutura social e independente de
suas vontades (grifos meus).

Silva argumenta que há um processo de "exclusão-inclusão precária", ou


seja, a exclusão é relativa e processual, se faz aos poucos através de um
percurso que também encontra possibilidades de inclusão. Entre essas pos-
sibilidades estão a adesão à economia do tráfico de drogas, a mendicân-
cia, a inserção em trabalhos precários e a participação organizada em
movimentos sociais e políticos. A migração é como "(...) uma abertura,
como caminho para novos ciclos que se abrem e se fecham constante-
mente" (idem, p. 290).

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As rotas migratórias e trajetórias sociais das famílias do Sepé Tiarajú


retratam o "vaivém perene" e a tentativa de re-inserção, ou de encontrar "o
ponto fixo" como diz Silva (idem, p. 290), através da participação social e
política. Porém, a opção de ocupar terras para fins de reforma agrária nem
sempre esteve orientada pela clareza do que isto significa em termos de pro-
jeto de vida de longo prazo. Por isto, premidas pelo imediatismo, algumas
famílias desistiram desta alternativa e retornaram para o "vaivém", a exemplo
dos que desistiram de ocupar a área, procurando outras formas de pertenci-
mento que proporcionassem resultados imediatos, porque a alternativa da
luta pela terra encontra obstáculos técnicos, políticos e burocráticos, cuja
superação nem sempre está sob o controle do acampado.

Sempre foi notável não só a diversidade de origens e de trajetórias de migra-


ção, mas também de experiências profissionais existentes entre os assentados. Ao
longo do itinerário, as pessoas nem sempre conseguiram manter a rota profissio-
nal e se transformaram em vários outros tipos de trabalhadores para sobreviver.

As experiências profissionais dos trabalhadores assentados são marcadas pe-


lo desenvolvimento de atividades em diversos setores e ramos da economia for-
mal e informal. A maioria das atividades mencionadas não requer qualificação
formal e indica a inserção dos trabalhadores em relações e condições de traba-
lho que, tipicamente, se caracterizavam pela precariedade, ou seja, eram reali-
zadas sem o mínimo de garantia do cumprimento da legislação trabalhista e so-
cial. Embora tenham sido mencionadas experiências em atividades industriais e
comerciais, os trabalhadores assentados eram, tipicamente, prestadores infor-
mais de serviços, ou seja, viviam de "bicos", na cidade ou no campo.

Na cidade prestaram serviços, geralmente, no âmbito doméstico, tais como:


acompanhante de idosos, babá, cozinheira, costureira, dama de companhia,
diarista, dona de casa, eletricista, empregada doméstica, encanador, faxineira,
lavadeira e passadeira de roupas, trabalhos domésticos em geral, entre outros.
Na indústria, geralmente, eles foram auxiliares de produção em diversos setores
da economia (desde indústrias alimentícias até de chapéu), mas também foram,
por exemplo, mecanógrafos e metalúrgicos, atividades cujo exercício supõe uma
certa especialização e qualificação da força de trabalho. No comércio, trabalha-
ram como vendedores, fixos ou ambulantes, em diferentes contextos e oferecen-
do diferentes tipos de produtos (panelas, roupas, alimentos).

No campo, os trabalhadores exerceram atividades ligadas à prestação de


serviços especializados, ou porque elas apenas são partes do processo produ-
tivo (capina, aplicação de agrotóxicos) ou porque requerem habilidades espe-

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Ensaios e Debates

cíficas (cortador de cana, boiadeiro, garimpeiro e tratorista), as quais os tra-


balhadores qualificam-se ao exercê-las durante a vida profissional. Serviços
gerais na lavoura foi a atividade mais mencionada, exercida em 34 diferentes
tipos de culturas, desde hortaliças, frutas e grãos até as culturais industriais
como cana e laranja.

Essas informações revelam o grande espectro de experiências profissionais


dos trabalhadores assentados, que foram levados a fazer "de tudo um pouco"
para sobreviver diante da instabilidade das relações contratuais. Aparente-
mente, predominavam as atividades urbanas em relação às rurais. Ocorre
que as atividades rurais foram, genericamente, denominadas pelos trabalha-
dores assentados como agricultura familiar, serviços gerais na lavoura, la-
voura de subsistência, profissões que incluem uma grande variedade de ativi-
dades, desde os mais diferentes tipos de agricultura e pecuária, até as dife-
rentes funções que um trabalhador pode exercer nas propriedades rurais. E
ainda, aparentemente, pode causar estranhamento o fato de pessoas com es-
te tipo de trajetória profissional requererem um lote de reforma agrária, pois
a experiência e os vínculos de trabalho na terra são apontados como critérios
óbvios para justificar a demanda. Ocorre que esses trabalhadores possuíram
vínculos com a terra na condição de filhos de trabalhadores rurais, que vive-
ram até a adolescência em fazendas ou sítios e migraram para as cidades na
idade adulta para trabalhar, ou na condição de assalariados temporários,
"bóias-frias" como são mais conhecidos.

Além disso, atualmente, há processos de transformação sócio-espaciais


complexos em andamento no interior do estado de São Paulo, como o cresci-
mento da conurbação e da integração produtiva entre atividades agrícolas
combinadas com as não agrícolas no espaço rural. O tipo de relação que
esses trabalhadores possuem com a terra é um misto do que trazem na
memória da infância e da juventude com a experiência do assalariamento ora
no campo, ora na cidade. Eles são artífices de várias formas de relaciona-
mento entre natureza, terra, migração e trabalho. Herdeiros de uma cultura
do trabalho precário, dividido e heterogerido, eles trazem as marcas da sub-
missão e da exploração, experiências de trabalho e vida orientadas pelo ime-
diatismo na luta pela sobrevivência.

Esta discussão é parte importante da justificativa sobre a relevância de se re-


fletir a formação do assentado como componente fundamental do processo
organizativo de assentamentos com base na cooperação autogestionária, pen-
sados como forma de contribuir para a melhorar as condições de vida no cam-
po. A análise das experiências de trabalho dos assentados no Sepé Tiarajú, ao

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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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mesmo tempo em que é reveladora da precariedade das trajetórias profissio-


nais, aponta também para as potencialidades profissionais inerentes a este co-
letivo de trabalhadores. Por se tratar de trabalhadores com experiências profis-
sionais precárias e marcadas pela exploração, possuem perfis, técnico e políti-
co, que nem sempre os tornam capazes de conceber e executar atividades em
cooperação de modo autogestionário. Ao mesmo tempo, forma-se um coleti-
vo de trabalhadores que pode atender aos vários tipos de necessidades de for-
ça de trabalho na vida cotidiana do assentamento. Contudo, são evidentes os
problemas da inadequação do perfil e a necessidade de investimento em for-
mação para organizar o trabalho e a vida a partir de uma outra lógica. A ques-
tão fundamental que, então, se coloca é: que tipo de formação seria neces-
sário e adequado para atender as necessidades desses trabalhadores?13

A propósito, a partir deste breve retrato das trajetórias de migração e das expe-
riências profissionais dos trabalhadores assentados no Sepé Tiarajú, é possível
pensar que eles sofriam da "doença do desenraizamento" que é imposta aos tra-
balhadores, como referiu Weil (1996). Simone Weil argumentou que a necessi-
dade mais importante e desconhecida da alma humana é o enraizamento, que
ocorre através da participação real, ativa e natural na existência de uma coletivi-
dade, conservando viva a memória do passado e as expectativas em relação ao
futuro. Esta capacidade de participação vem automaticamente da origem, do
nascimento, da profissão e do lugar onde o homem se insere. As influências ex-
ternas e as mudanças são importantes e atuam como estímulos que tornam a vi-
da mais intensa, mas se elas forem coercitivamente impostas promovem a "doen-
ça do desenraizamento". Weil referia-se a um processo não somente geográfico,
mas, sobretudo moral, provocado por um determinado modo como se desen-
volvem as relações sociais e a dominação econômica.

A população do Sepé Tiarajú era desenraizada, porque estava sem empre-


go ou qualquer outra possibilidade de garantir as condições de reprodução
social e sem acesso às suas raízes culturais. Embora a migração seja em si
uma forma de violência que acarreta, entre outras coisas, a perda das rela-
ções que constituem a identidade social, ressalta-se que esses trabalhadores,
mesmo antes da partida ou das várias partidas, já eram vítimas do desenrai-
zamento, que se fazia presente nos lugares de origem. A condição de desen-
raizamento crônico ainda pode trazer implicações para o processo organiza-
tivo. Se o projeto comunitário não for condizente com as expectativas e inte-
resses dos assentados, podem ocorrer novas migrações, a exemplo da desis-
tência de algumas famílias ao longo do processo de ocupação da área.
13 - Seguimos investigando esta questão no projeto de pesquisa Relações de trabalho, condições de vida e
subjetividade: entre o trabalho dividido e o trabalho em cooperação.

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Ensaios e Debates

No entanto, a diversidade sócio-cultural existente também indica flexibilida-


de, criatividade e capacidade de adaptação na busca por melhores condi-
ções de vida. Neste sentido, pode ser grande a possibilidade de vingar a pro-
posta do MST de diversificar a economia e desenvolver atividades produtivas
rurais e urbanas no Assentamento Sepé Tiarajú, porque esses trabalhadores
encontraram na luta pela reforma agrária e na adesão ao MST uma possibil-
idade de enraizamento. Existia entre os assentados uma expectativa geral de
que, junto com a posse do lote de terra, viria a libertação, entendida, princi-
palmente, como o oposto da condição de estar subordinado a um patrão e
ter que sobreviver de um salário que está sempre aquém do necessário ou co-
mo libertação da incerteza da existência de trabalho, tendo em vista o que ele
significa para a sobrevivência. Aparentemente, tratava-se da expectativa da li-
berdade idílica de voltar ao campo e ser dono de si, de realizar o "sonho de
ter a terra". No entanto, um levantamento das expectativas das famílias com
relação ao assentamento revelou mais do que isto, como pode ser visto no
quadro em anexo.

O assentamento era visto como um lugar para satisfazer necessidades so-


ciais básicas, para se fixar, enraizar, onde a família poderia encontrar condi-
ções para superar as dificuldades de reprodução social, principalmente no que
se refere à alimentação, moradia, aglutinação dos membros, educação, saúde
e segurança. Portadores de uma trajetória social marcada pela incerteza e vin-
dos, principalmente, das periferias das cidades, os assentados esperavam ter
seus direitos sociais básicos assegurados, reencontrar e restabelecer os víncu-
los e o convívio com os entes queridos, recuperar a tranqüilidade, a dignidade
e a auto-estima. Destaca-se a preocupação com educação e segurança como
fundamentais, principalmente na fala de algumas mulheres, geralmente das
mães, por serem elas mais diretamente responsáveis pela educação dos filhos
e temerem o envolvimento deles com o crime organizado e o tráfico de dro-
gas, problemas crônicos e generalizados na sociedade brasileira.

O assentamento era visto também como um lugar para trabalhar e produ-


zir. A expectativa de ter trabalho, entendido como única forma de garantir a
sobrevivência e condição fundamental para o enraizamento, esteve presente
em, praticamente, todos os depoimentos, especialmente o das mulheres.
Chama a atenção a diversidade de projetos de atividades produtivas referi-
das, desde o amplo espectro de atividades tipicamente agropecuárias até as
agroindustriais e de comercialização, o que é condizente tanto com a diversi-
dade de experiências profissionais dos trabalhadores quanto se alinha com as
diretrizes da proposta organizativa do assentamento, que é pautada pela
diversificação da produção. Porém, também chama a atenção às várias men-

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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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ções a projetos de trabalho pensados para serem desenvolvidos individual-


mente, o que contraria as mesmas diretrizes.

A categoria participação social e política revelou as mais inequívocas evi-


dências do desejo de enraizamento, porque as falas diziam respeito à vontade
de participar, real e ativamente, não só daquela coletividade, mas também de
ajudar na construção de outras. Ou seja, mais do que um lugar para traba-
lhar e viver, o assentamento representava uma possibilidade de inserção so-
cial e política, de construção de uma sociedade pautada em outros valores.
Revelou-se a necessidade de demonstrar para esta mesma sociedade, espe-
cialmente ao poder público, do que os trabalhadores seriam capazes de fazer
sob determinadas condições. Em algumas falas este desejo aparecia clara-
mente associado à vontade de continuar inserido e militando no MST para
contribuir com a organização de outros acampamentos e assentamentos. Os
trabalhadores assentados também demonstravam sentimentos de gratidão e
de pertencimento e esperavam retribuir ao MST e à sociedade o que obtive-
ram através da inserção no assentamento. Destacam-se ainda as expectativas
relacionadas a organizar a economia e a vida sob os princípios da coopera-
ção autogestionária, de criar estruturas organizativas para viabilizar a vida
comunitária e contribuir no desenvolvimento de valores coletivistas e cívicos.

Os trechos de depoimentos abaixo também são reveladores deste sentimen-


to, porque fazem uma clara referência à totalidade da vida humana, ao que
deve ser valorizado e ao que deve ser mudado na organização da vida social.
A riqueza era pensada não como capacidade de consumo, mas como possi-
bilidade de aprendizado, convivência com os vizinhos e a família.

(...) nós queremos fazer uma coisa bonita. Não assim melhor,
mas agradável, para todo mundo chegar e gostar, não é? [e di-
zer] Ah! Olha o Sepé Tiarajú como é que está, eu nem espera-
va que fosse ser assim.

(...) a gente pensa em produzir porque a gente tem bastante fome.


O que vamos produzir? Uma delas é cultura. Alguém vai ter que dar
aula. Ele vai se afundar lá na terra e deixar as nossas crianças sem
estudar, os demais companheiros que não sabem ler? Por exemplo,
a música, enfim ... é o planejamento: quem encaixa no que. Por que
está tudo precisando ... quiabo, postes, motoristas, estudar.

(...) riqueza... Depende do ponto de vista. No meu caso, riqueza


para mim é bem estar social. Dinheiro não quer dizer... Estrutura

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Ensaios e Debates

não quer dizer... Faz parte, mas isso para mim não é riqueza. A
grande riqueza é o bem de todos, não só a minha família o meu
núcleo, até o país, o mundo. Isso é que é para mim a grande
riqueza e acho que a gente tem que pensar grande mesmo, ser
rico mesmo. Sem fome... Fome não é só de alimento. Isso que
o ser humano precisa. Até o canto dos pássaros, tudo é isso.
Nós temos que lutar por isso, não simplesmente por um pedaci-
nho de terra, um pezinho de mandioca. E para isto tem que ter
unidade. A companheirada tem que estar junto. Veio até agora
junto e tem que continuar mais junto ainda. Para quê? Para
eliminar este afundamento aí de enxada com cavalo atrás e não
sei mais o que [referência à base técnica tradicional da peque-
na agricultura]. Introduzir máquinas para a companheirada pro-
duzir melhor, para sobrar tempo para jogar truco, rezar, tomar
banho no córrego, enfim... Para perceber que os pássaros can-
tam, as folhas balançam para a gente ... Esse é o meu ponto de
vista. Tem que pensar no todo e criar a possibilidade de ser feliz
mesmo. Só assim que a gente vai conseguir, não é?

A expectativa de recuperar o meio ambiente, demonstrou tanto o reviver de


uma antiga relação de amor à terra quanto a incorporação das orientações e
preocupações do MST e do Incra de desenvolver uma produção agroecológica
e de posicionar-se de modo crítico em relação à monocultura extensiva e inten-
siva. Juntamente com uma certa consciência da importância da preservação
ambiental para a humanidade, havia também uma preocupação pragmática
com a recuperação do solo e das águas como condição fundamental para pro-
duzir e manter a família no assentamento. Os trabalhadores entendiam que
combater a monocultura, mais do que um elemento do discurso de ambienta-
listas, é uma condição importante para viabilizar os projetos produtivos de um
assentamento que se localiza no coração da maior área de cultivo de cana-de-
açúcar do mundo. Cercado de cana por todos os lados, Sepé Tiarajú convive
com as queimadas dos canaviais, com a contaminação do ar e das águas pro-
vocada pelo uso de produtos químicos (fertilizantes, agrotóxicos e maturadores)
aplicados nos canaviais vizinhos através do uso de aviões.

Apesar disto, os trabalhadores assentados produzem para o autoconsumo


com técnicas agroecológicas, utilizadas nem tanto por convicção ideológica
mas, sobretudo, por força da falta de recursos para comprar insumos,
sementes e máquinas de grande porte. A falta de capital de giro é uma carac-
terística desta população que se obriga a resgatar antigas técnicas ou inven-
tar um jeito de produzir que prescinda de tecnologia avançada. Sem capaci-

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dade de financiamento e munidos de uma base técnica artesanal (enxada,


podão, foice, arado de tração animal), de sementes e de insumos doados, de
máquinas agrícolas emprestadas e/ou alugadas e orientados pelos cursos de
produção agroecológica ministrados pelo Centro de Formação Sócio-Agríco-
la Dom Hélder Câmara, os assentados desenvolviam uma produção diversi-
ficada e voltada, predominantemente, para a subsistência das famílias.

Sempre chamou a atenção dos visitantes a biodiversidade de plantas e de ani-


mais existente nos pomares e jardins improvisados no entorno dos barracos que,
aos poucos, trouxeram de volta para a Fazenda Santa Clara algumas espécies
de pássaros e de pequenos animais. Os assentados contam estórias que indi-
cam estar havendo a reconstituição da fauna e da flora e que o lugar está se
tornando uma ilha de preservação ambiental, refúgio onde tem sido possível
recuperar várias espécies de plantas nativas e conviver com lobos guarás, pe-
quenas onças e macacos, tatus, répteis, entre outros animais silvestres.

E como na realidade "nem tudo são flores", revelaram-se também as expecta-


tivas assistencialistas, pessimistas e negativistas. A expectativa em relação ao pa-
pel do Estado apenas faz alusão aos recursos que, por força de lei, devem ser
investidos no assentamento. As expectativas incluídas na categoria expressão de
individualismo revelaram que alguns assentados esperavam a oficialização do
assentamento e o repasse dos créditos governamentais para se isolarem ou colo-
carem as propostas coletivistas em segundo plano ao organizarem as suas vidas.

Contudo, pode-se dizer que a maioria dos trabalhadores assentados possuía


expectativas predominantemente otimistas e positivas em relação ao futuro. O as-
sentamento era visto como um local para produzir, para conquistar a estabilidade
da família e melhorar as condições de vida, principalmente em relação à saúde,
ao meio ambiente, à educação e à segurança dos filhos, um espaço próprio para
exercer a participação social e política. Mais do que a propriedade de um pedaço
de terra e renda, os assentados esperavam obter no Sepé Tiarajú moradia, traba-
lho e segurança física e psicológica, possibilidade de participação social e política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo organizativo nos acampamentos e assentamentos rurais é condi-


cionado por múltiplos fatores de natureza técnica, política e cultural. Entre os prin-
cipais encontram-se desde as condições naturais (tamanho dos lotes, tipo de terra,
abundância de água); a existência de uma política agrícola adequada para os
pequenos produtores (linhas de crédito, financiamento e seguro para a produção);

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Ensaios e Debates

as demandas e condições do mercado regional e local; as condições de acesso às


tecnologias de produção e de oferta de as-sistência técnica e extensão rural; a pre-
sença de forças políticas pró ou contra a reforma agrária no entorno do assenta-
mento; o apoio das redes sociais e políticas recebido ao longo da ocupação; a
adequação da região aos costumes e tradições culturais das famílias; a experiên-
cia dos assentados com as atividades agropecuárias; até a disposição dos traba-
lhadores e suas famílias para recomeçarem a vida com base em outros valores.

Na dinâmica cotidiana do processo organizativo, não basta divulgar novas


concepções para organizar o trabalho e a vida, construir canais de articulação
e formação política-ideológica e criar mecanismos de institucionalização das
práticas sociais. Permanece o desafio de superar os obstáculos objetivos e sub-
jetivos, especialmente os culturais e os ideológicos, que se colocam entre o que
se pensa e o que se pratica concretamente, quando se trata de realizar a ocupa-
ção de um território com base em outros valores e práticas sociais.

Por este motivo, o processo organizativo de um assentamento é, essencial-


mente, um processo de formação técnica e política dos sujeitos, que deve ser
coletivamente desenvolvido no sentido de procurar superar esses obstáculos.
Iniciado ainda no acampamento, ele deve levar em conta a complexidade e as
especificidades que hoje existem no trabalho rural, os diferentes contextos eco-
nômicos e políticos onde os assentamentos estão inseridos e, principalmente, as
características psicossociais e culturais dos acampados. Deve realizar-se a par-
tir da compreensão das relações que se estabelecem entre os sujeitos nas ativi-
dades cotidianas de trabalho, do convívio familiar e social mais amplo, levar em
conta as condições objetivas e intersubjetivas existentes, ser coletivamente pla-
nejado e desenvolvido em função das necessidades, dos anseios e dos interes-
ses dos sujeitos, caracterizando-se pela partilha de experiências vividas e pelas
práticas dialógicas. Isto é importante porque, ao organizar o assentamento,
também se criam as condições para que os assentados questionem a própria
resignação ao estado de pobreza, o assistencialismo e o paternalismo com que,
tradicionalmente, a questão social brasileira tem sido tratada, as responsabili-
dades que têm sido transferidas pelo Estado aos cidadãos e vice-versa, entre
outras questões importantes para garantir a autonomia das comunidades.

Este é um desafio que não se enfrenta sozinho. O processo organizativo do


Sepé Tiarajú é uma construção social que tem envolvido um conjunto de su-
jeitos e organizações da sociedade civil constituindo um campo de forças he-
terogêneo, cujos movimentos não são lineares e nem tampouco definem uma
trajetória permeada só de avanços, mas também de retrocessos; não só de
cooperação e harmonia, mas também de contradições e de conflitos.

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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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Apesar das características contraditórias do mundo rural na região de Ribeirão


Preto, ou seja, a pujança política e econômica do agronegócio que coexiste com
a miséria dos trabalhadores rurais, vários segmentos da sociedade civil têm apoia-
do a luta pela terra empreendida pelo MST na região, por entender que ela procu-
ra combinar a produção agroecológica e cooperada, a proteção do meio ambi-
ente, a segurança alimentar de inúmeras famílias, a preocupação com a edu-
cação de jovens e adultos, o cuidado com a saúde e a segurança dos traba-
lhadores, entre outras questões importantes. Configurando a luta pela reforma
agrária para além da propriedade de um lote, o MST teve o mérito de incorporar
nesta causa as várias demandas e lutas que vinham sendo travadas pelos movi-
mentos sociais da região, o que significou o apoio político necessário para enfren-
tar o poder do latifúndio na sua versão agronegócio. Do ponto de vista dos movi-
mentos sociais, o apoio dado ao MST tem se revertido na revitalização das lutas
sociais em defesa do meio ambiente, da água, contra a fome, entre outras.

Do ponto de vista dos trabalhadores assentados no Sepé Tiarajú, apesar da


grande diversidade sócio-cultural que os caracteriza, a participação das famílias
no processo organizativo, o diálogo travado nas reuniões, cursos e outras formas
de participação social e política possibilitadas pelo MST e seus Amigos, têm sido
um espaço educativo importante. Esses trabalhadores, infelizmente, por forças
das circunstâncias de vida, não tiveram oportunidade de aprender e de ensinar,
de experimentar a participação social, de decidir sobre o seu próprio destino
mesmo com pequeno grau de autonomia. Este espaço educativo tem contribuí-
do para minimizar as marcas do desenraizamento e para alimentar expectativas
positivas em relação ao futuro, expectativas estas que não se resumem apenas
na possibilidade de ter propriedade, renda e acesso ao consumo.

Com base na convivência estabelecida com os trabalhadores assentados


desde 2003, é possível atestar a visível transformação ocorrida nas pessoas
ao longo desta experiência. Procurando enfrentar as dificuldades e as contra-
dições de um projeto de assentamento que ainda teima em ficar no papel, os
trabalhadores vêm ganhando auto-estima, confiança em si e nos outros, se-
gurança física e psicológica. Não só aprenderam mas também ensinaram a
falar o que pensam e a ouvir o que os outros pensam, a questionar o ritmo
de uma reforma agrária que não atende as suas necessidades, a planejar a
vida e trabalhar coletivamente, a respeitar a natureza, entre outros valores hu-
manos fundamentais. E até compartilham com outros trabalhadores e sujeitos
sociais o pouco que já obtiveram, sobretudo, a coragem e a disposição para
construir um projeto diferente de trabalho e de vida no campo, em um terri-
tório que, tradicionalmente, tem sido ocupado pela monocultura.

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Quadro 1 – Expectativas dos A ssentados do Sepé Tiarajú – Serra Azul, SP em relação ao assentamento
- construir a casa
- ter um lugar gostoso para morar - se especializar com as aulas
- ter a própria terra - filhos na universidade
- estabilidade, casa para morar - voltar a estudar
- esperar o crédito para construir a casa - garantir o futuro dos filhos e o estudo deles na universidade
- casa simples, mas que tenha as coisas para sobreviver - (...) escola, ciranda
- ter um porto seguro (...) prazer de viver, cuidar da família
- fazer uma casa gostosa, com uma varanda de 40 m - se auto-sustentar
- casa própria, sair do aluguel - ter comida pa ra se alimentar e vender o restante para comprar o
Satisfação de que precisar
Necessidades - ter os filhos por perto - o bom é que não precisa ir para a cidade comprar para comer
Sociais Básicas - deixar algo para a família - ter mesa farta
- trazer a mãe para morar junto - água para beber, comida saudável
- ter qualidade de vida para a família e os próximos
- que os netos se lembrem de mim quando virem o pomar - estar tranqüilo com a cabeça
- realizar os sonhos do marido - uma vida melhor
- expandir a família - voltar a ter dignidade por que lá fora a gente não tem dignidade
- condições para cri ar os filhos. - não é ficar rico... é ter um lugarzinho que seja meu para
- voltar com a esposa, trazer os filhos plantar, para criar o que quiser, construir o que quiser
- fazer tudo para dar certo, pois pretende findar (morrer) no
assentamento
- deve haver harmonia, viv er tranqüilo
- trabalhar bastante - plantar de tudo um pouco: alho, frutas, mandioca, café
- trabalho - ter um lote todo trabalhado, com animais
- produção e renda - criar (vaquinha de leite, uns bichos), progredir, plantar
- deslanchar, progredir: plantar, vender, ter dinheiro para
- investir em animais para o próprio consumo e para comprar comprar algumas coisas
mais animais - plantar tomate, milho, mandioca, ter criação pequena
- criar pequenos animais (galinha, peru, marreco) e plantar - tirar sustento da ter ra no individual , mexer com maracujá
- fazer pasto, criar gado, cavalos, vaca leiteira, aves e porco - mexer com porco, criação
- ter espaço para fazer um pasto - plantar milho, mandioca, ter criação
- que dê para tirar o sustento e pagar o financiamento e ter sobra
Trabalho e - granja e hidroponia para a área individual .
Produção - plantar café, pagar o financiamento, mobiliar a casa, comprar - quer plantar milho, fazer um pomarzinho de laranjas e criar
carro e animais porco
- plantar pimenta, maracujá, feijão, milho, abóbora, quiabo, - trabalhar com abelhas
arroz, horta, mandioca, batata , banana, acerola, frutas
- maracujá, porque usa mais a cabeça e trabalha menos - fábrica de farinha
- ter uma horta, porque sabe que terá retorno na região - agroindústria de doces e compotas
- fazer pomar bem diversificado
- Plantar de tudo um pouco (diversificar a produção) - ter uma mercearia no assentamento
- ter uma plantação e criação de a nimais no individual - vender a produção no próprio acampamento ou na cidade
- ter o lote estruturado com frutas, plantações - vender a produção primeiro para o MST e depois na cidade
- começar com o básico: mandioca, milho. Depois investir em
café, horta, fazer pomar, galinha e porco no lote individual
- sair de zero a duzentos que nem a Ferrari. Ajudar o Lula a - montar e participar da associação
matar a fome do povo - organizar uma associação para todos
- viver num Brasil mais justo, sem fome, violência, sem tantas - ficar só no coletivo [não trabalhar individualmente]
desigualdades - ter o melhor para todos e cada um ter o que sempre desejou
- construir novos valores, como solidariedade, companheirismo, - conseguir trabalhar no coletivo no grupo Dandara para que ele
amor ao próximo, para apagar as marcas do individualismo, da sirva de exemplo
ganância - superar deficiências das pessoas que não entendem o coletivo
- ter um futuro brilhante para provar para o governo que somos - que o assentamento inteiro fosse coletivo, até a comida fosse
Participação capazes coletiva
Social e - ter todo mundo trabalhando unido, as molecadas trabalhando
Política - ajudar o MST em outras ocupações tudo igual
- ajudar em outras ocupações, lutar contra a fome e fazer
parceria com aqueles que lutam pela pr eservação do meio - ter um Centro de Formação no próprio assentamento
ambiente - ter praças, flores, parquinho, bosque com brinquedos
- realizar os projetos que o próprio movimento está propondo - um local mais bacana para as pessoas viverem com
- conseguir demonstrar para a sociedade da região que os tranqüilidade
assentamentos que deram errado não são os que o movimento
idealiza e mostrar um assentamento de acordo com os i deais do
MST

- produção agroecológica - ter as coisas sem veneno, sem agrotóxico


- recuperar a terra desgastada e as nascente s de água. - um assentamento muito bonito, nós vamos ter agrofloresta
Recuperação
- recuperar a terra praguejada - auto-sustentável ... reflorestado ... inclusive o morro
do meio
- agrofloresta:plantas medicinais, frutíferas e nativas - ter cultura toda orgânica. Cuidar do chão
ambiente
- plantar no meio do reflorestamento as frutas e o café (pássaro - discutir contra a monocultura
também come, daí ajuda os animais e a gente)
- assentamento diferente por causa do refloresta mento
Papel do - que o governo libere mais e mais as verbas que precisamos
Estado
Expressão de - cercar o lote - se der tempo, continuar no coletivo
Individualism - quando sair a terra (for assentado) deixar o coletivo - participar do coletivo, se a colheita for repartida de forma justa
o
Expressão de - formar uma cooperativa, mas está difícil - não sabe, porque tem que fazer análise do solo e discutir
Negativismo/p - que o governo ajude - o sonho do pobre é de acordo com o governo, para realizar o
assividade - não tem muitas esperanças para o futuro sonho você tem que ter força de vontade.

Fonte: entrevistas individuais realizadas em 2003 e 2005 .


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O processo organizativo do Assentamento Sepé Tiaraju - SP:


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176 ¦ ABRA - REFORMA AGRÁRIA


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Discurso e Resistência
na Luta pela Terra*

Sônia Maria Ribeiro de Souza**


Antonio Thomaz Junior***

Resumo: Neste texto traçamos a trajetória do MST e seu discurso veiculado


pelo Jornal dos Trabalhadores Sem terra (JST). Nosso objetivo é demonstrar
o contexto em que Movimento e seu discurso surgem e como a apropriação
feita pela imprensa ajuda a construir sua identidade associada à criminali-
dade em função da sua radicalidade.

Palavras-chave: MST, discurso, luta pela terra, imprensa.

1. Introdução

O MST, a partir da década de 1990, ganhou mais espaço na imprensa,


fazendo com que a questão agrária ganhasse mais visibilidade nos centros ur-
banos. Isso se deveu, sobretudo, quando definiu suas formas de luta por meio
das ocupações de terra, marchas, greves de fome, interdição de rodovias, ocu-
pação de bancos e do Incra. Isso o levou a ocupar as páginas dos principais
jornais do país. Entretanto, ao longo desse período, a face mais visível do MST
nos jornais foi a do conflito. Uma vez definida e estruturada enquanto repre-
sentação negativa, o seu poder de fogo e de negociação foi anulado. O con-
flito evidenciado nas ocupações de terra levou à construção e sedimentação de
um discurso que isolou o Movimento de sua principal reivindicação: a luta por
reforma agrária e por uma distribuição mais justa de renda no país.
* Este texto, com algumas alterações, faz parte da nossa Dissertação de Mestrado, intitulada "Discursos em con-
fronto no território da Luta pela Terra no Pontal do Paranapanema: MST e imprensa", defendida em junho de
2005, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação
do Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior.
** Mestre em Geografia, professora da Centro de Ensino Superior de Tupi Paulista, membro do Grupo de
Pesquisa "Centro de Estudos de Geografia do Trabalho" (CEGeT). Endereço: Rua Antonio Onofre Gerbasi, 183.
CEP: 19060-200. Presidente Prudente, SP. Fone: xx (18) 3221-7099
*** Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia/FCT/UNESP/Presidente Prudente;
coordenador do Grupo de Pesquisa "Centro de Estudos de Geografia do Trabalho" (CEGeT); autor dos livros
1) "Por trás dos canaviais os nós da cana". São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002, 2) Geografia passo a passo:
ensaios críticos dos anos 90". Santiago de Compostela: Editorial Centelha, 2005.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 177


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Ensaios e Debates

A reflexão que gostaríamos de trazer é de que existem enunciados para o


MST nos jornais que negam a sua trajetória, que negam que a sua existência
se deve, aos processos de exclusão e desigualdade social e é a este enuncia-
do que buscamos contrapor aqui: os enunciados do discurso do MST que dão
evidência ao espaço da formação de um sujeito social chamado sem-terra.

Assim, buscamos no Jornal dos Trabalhadores SEM TERRA (doravante JST),


do MST, as publicações sobre suas ações desde 1990 até 20041, que tem
como objetivo acompanhar o contexto de produção do discurso do
Movimento, destacando os elementos que põem em evidência, nos seus
enunciados, os seus mecanismos discursivos.

2. Contando a história outra vez

O cenário da luta pela terra construído ao longo do processo histórico de


constituição do Brasil é revelador de um processo que remonta ao período de
colonização do país. Na formação do espaço agrário brasileiro as marcas
dos embates são evidenciadas nos conflitos que vão desde o período da
escravidão (Quilombos, Canudos, entre outros), até hoje, quando os confli-
tos reatualizados pelos movimentos sociais de luta pela terra2 refletem que as
formas de resistência assumidas pelos trabalhadores ao longo de mais de
500 anos no interior da luta de classe.

Hoje, o MST está organizado em praticamente todos os Estados e segue


com os mesmos objetivos definidos em 1984 e ratificados no I Congresso
Nacional realizado em Curitiba, Paraná, em 1985, cuja preocupação foi
reforçar os ideais da luta pela terra, pela reforma agrária e pela construção
de uma sociedade mais justa.

Somente através das mobilizações, da pressão, da luta concre-


ta a classe trabalhadora fará frente a essa política ditada pelo
capital internacional. (JST, abr., 1990, nº 91, p. 3).
Somente grandes mobilizações de massa colocarão esses gov-
ernos contra a parede e arrecadarão as conquistas de melhores
salários, terreno para moradia, terra para trabalhar e melhores
condições de vida (JST, abr.,1991, nº 103, p. 2).
1 - Para este corpus de análise consultamos o arquivo existente no CEMOSi (Centro de Memória e Hemeroteca
Sindical "Florestan Fernandes"), junto à FCT/Unesp/Presidente Prudente.
2 - MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MLT (Movimento de Luta pela Terra), FERAESP
(Federação dos Empregados Rurais do Estado de São Paulo), MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra),
MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra), MUST (Movimento Unificado dos Sem Terra), entre outros.

178 ¦ ABRA - REFORMA AGRÁRIA


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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

O MST contabiliza um número de aproximadamente 6.116 assentamen-


tos e 660.340 famílias assentadas em todo o Brasil3. No Estado de São Pau-
lo, especificamente no Pontal do Paranapanema, são 95 assentamentos,
com 4.985 famílias assentadas. Um número pequeno diante da realidade
existente no país. São conquistas de uma luta coletiva em que muitos per-
deram sua vida, vítimas da violência do latifúndio e da inoperância do Es-
tado em fazer a Reforma Agrária e é assim que tem, ao longo desses anos,
construído sua história e recolocado na pauta política brasileira a questão
da Reforma Agrária.

Ao recolocar em questão a função social da terra e a necessidade da Re-


forma Agrária o MST se tornou um dos movimentos que apresenta maior grau
de articulação interna entre os movimentos de luta, razão porque revela maior
homogeneidade nas formas de luta e também porque, em função da sua for-
ma de atuação, da crítica mais contundente à ordem vigente do capital e do
Estado burguês. Ou, ainda, seguindo seu enunciado:

O MST responde à incompetência política do governo na


Reforma Agrária realizando ocupações massivas em vários esta-
dos. São os trabalhadores cansados de esperar por promessas
de palanque que nunca são cumpridas e por planos que nunca
saem do papel. (JST4, jun/90, nº 94, p.3).

O acontecimento que marca o reinício da luta pela terra no Estado de São


Paulo, foi a ocupação da fazenda Pirituba, em Itapeva (FERNANDES,1996).
Segundo o autor, essa foi a primeira ocupação no Estado em 1980 e essa
experiência resultou no Assentamento Pirituba II. Na seqüência ocorreu mais
um episódio envolvendo ocupação de terra, o qual se originou em Sumaré.
A formação dos assentamentos de Sumaré teve início no ano de 1982.

Depois de um longo processo de negociação, em 1984, o governador


Franco Montoro concede uma área do Horto Florestal de Hortolândia, per-
tencente à FEPASA (Ferrovia Paulista Sociedade Anônima), onde hoje é o
Assentamento I. O chamado Grupo II nasceu do processo de luta do
primeiro, tendo sido formado conjuntamente à fundação do MST.

Algumas lideranças do Movimento dos Sem-Terra de Sumaré


participaram da articulação estadual, coordenada pela CPT e,

3 - Cf. Dados do DATALUTA - Banco de Dados da Luta pela Terra - NERA, 2003.
4 - JST, Jornal dos Trabalhadores Sem Terra. Publicação do MST. Os recortes utilizados nesse texto, são retira-
dos desse jornal de 1990 a 2004, período que recobre o nosso recorte de pesquisa.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 179


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Ensaios e Debates

em janeiro de 1984, estiveram presentes no Primeiro Encontro


Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra,
em Cascavel -PR. (FERNANDES, 1999, p. 122).

É a partir desses episódios que o MST, reunindo filhos de trabalhadores


rurais, arrendatários, agregados, assalariados temporários, expropriados de
barragens e um significativo contingente de trabalhadores rurais, começa a
estruturar-se com o propósito de lutar por uma reforma agrária radical.

Assim, esses trabalhadores organizados e na Luta pela Terra evidenciam as


marcas da estrutura social brasileira, isto é, a heterogeneidade e as desigual-
dades acentuadas pelo distanciamento provocado pelos padrões de acumu-
lação do capital (MARTINS, 1995; THOMAZ JR., 2002).

As resoluções no 1º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem


Terra indicam que os sem-terra depositavam poucas esperanças na Nova
República de Sarney, o que fica evidente na sua pauta de reivindicações:
reforma agrária sob o controle dos trabalhadores; desapropriação de todas
as propriedades com área acima de 500 hectares; distribuição imediata de
todas as terras em mãos do Estado e da União; expropriação das terras das
multinacionais; extinção do Estatuto da Terra e criação de novas leis que con-
tassem com a participação dos trabalhadores e levassem em conta suas práti-
cas de luta. Além disso, as ocupações das terras ociosas foram consideradas
como estratégicas para a realização da Reforma Agrária, com o enunciado
"Terra não se ganha, se conquista".

Essa proposta política do Movimento teve como contrapartida o surgimen-


to, em junho de 1985, da União Democrática Ruralista (UDR) entidade de
direita que congregava os latifundiários e proprietários rurais e se propunha
através de contratação de advogados impedir as desapropriações de terras,
financiar campanhas eleitorais, contratar e sustentar milícias armadas para
defender terras dos membros da organização.

O MST de um lado e a UDR de outro acabaram politizando a luta pela terra


no Brasil, no sentido de que as várias instâncias do aparelho do Estado - execu-
tivo, legislativo e judiciário - não podiam mais ignorar a existência de uma ques-
tão agrária, geradora de conflitos e de violência no campo (BRUNO, 1997).

Ao definir suas formas de luta por meio da ocupação de terras e acampa-


mentos em locais estratégicos, tomadas de prédios públicos, como a sede do
Incra, Banco do Brasil, bloqueios de rodovias, marchas, visitas aos gabinetes

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

de autoridades estaduais e federais, além de greves de fome, essa articulação


e organização do Movimento teve como conseqüência, além da criação da
UDR, a criação de novos espaços de representação e de alianças políticas
que passavam por dentro da máquina estatal, isto é, passam pela criação das
oportunidades políticas e econômicas (BRUNO, 1997).

Sabemos que são várias as formas da representação, organização da


sociedade e, portanto, muitas formas também de confronto. O MST eviden-
cia com a Luta pela Terra e pela Reforma Agrária, momentos em que o con-
fronto se dá em torno de dois oponentes, de um lado os latifundiários e de
outro o Estado e o aparato judicial, sendo o Estado o seu maior oponente.

Frente ao descaso dos governos estaduais e federal, a repressão à luta dos tra-
balhadores sem terra, o MST reafirma sua posição: os problemas sociais no
campo tem causas estruturais, na concentração na terra e do poder, e somente
se resolverão com uma ampla reforma agrária. (JST, jul/ago., 1990, nº 95, p.2).

De forma que sem avançar no projeto de Reforma Agrária, o MST se terri-


torializa e segue nos anos 90 o enunciado - ocupar e resistir - acrescentando
para esta conjuntura o produzir.

3. Ocupar, resistir e produzir:


d is c u r s o e r e s is t ê n c ia n a L u t a p e la T e r r a ( 1 9 9 0 a 1 9 9 4 )

Do final dos anos de 1980 até 1990, o Brasil passou por um processo de
transição democrática, por eleições para presidente e, nessa conjuntura, a
questão agrária colocada em pauta pelo Movimento, não passou de reforma
de papel, se houve avanços estes se deram em função da atuação e organi-
zação dos trabalhadores. O Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), no
Governo Sarney não passou de uma falácia e mostrou que, para que a
democratização do acesso à terra acontecesse, os trabalhadores deveriam
continuar mobilizados.

No início dos anos de 1990, o MST, territorializado se organiza para o seu


II Congresso Nacional:

O II Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem


Terra, pretende ser um marco na luta pela reforma agrária no
Brasil.Pretende ser um impulso para o movimento se fortalecer
nesta nova conjuntura da luta pela terra, porque os inimigos da

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Ensaios e Debates

reforma agrária permanecem com ações cada vez mais fortes


no campo da repressão [...] E se as eleições presidenciais trou-
xeram à tona o debate em torno da reforma agrária como uma
condição para que se diminua as diferenças sociais no Brasil e
para que os trabalhadores tenham melhores condições de vida,
a luta tem confirmado que a reforma agrária somente será reali-
zada se os trabalhadores a fizerem (JST, abr.,1990, nº 91, p. 3).

Nessa conjuntura, o MST havia apostado na eleição de Lula (PT) e, com


sua derrota nas eleições, se tem a legitimação de um projeto de sociedade.
Nesse sentido e no que se refere à Reforma Agrária e o governo Collor, o
MST acentua:

No que diz respeito à reforma agrária, está mais do que claro


que o novo governo não fará nada. Tudo que vier a ser feito de
positivo nesse campo será pela pressão da luta dos trabalha-
dores.[...] Isso demonstra que, apesar da derrota nas eleições
presidenciais e da indisposição do novo governo em tocar na
questão agrária, os trabalhadores estão determinados a fazer
valer os seus direitos através da mobilização de massa, que é a
nossa principal arma (JST, abr., 1990, nº 91, p. 5-6).

O governo de Collor ficou no poder de março de 1990 a novembro de


1992. Nesse período cresceu a repressão ao Movimento:

O governo Collor além de não fazer reforma agrária, resolveu


reprimir o MST. Acionou a Policia Federal, o que é um agra-
vante, pois não é uma tropa de choque, é repressão política
pura. Essa repressão nos afetou muito, muita gente foi presa.
Começaram a fazer escuta telefônica. Tivemos, no mínimo qua-
tro secretarias estaduais invadidas pela Polícia Federal (STÉDILE
e FERNANDES, 1999, p. 69).

Num contexto em que as ocupações eram rechaçadas a força pelo apara-


to policial, o MST enunciava:

Ocupar, resistir e produzir: A luta já nos ensinou que não é pos-


sível ficar esperando pela boa vontade de quem historicamente
já demonstrou que não quer realizar a reforma agrária, segundo
os interesses dos trabalhadores (JST, abr./mai. 1990, nº 93, p.3).

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

Nesse período o MST mais organizado nacionalmente e, com a preocupa-


ção em atualizar e ampliar as bandeiras de luta, se articula com outras orga-
nizações da classe trabalhadora participando das Jornadas Nacionais de Luta:

Avançar em todas as frentes: As jornadas de julho e setembro


demonstram que continuamos com a bandeira da reforma
agrária firmemente empunhada. (JST, set. 1990, nº 96, p.3).
Somente através das mobilizações, da pressão, da luta concre-
ta a classe trabalhadora fará frente a essa política ditada pelo
capital internacional. (JST, jan./fev., 1991, nº 100, p. 2-3).

No II Congresso Nacional, em maio de 1990, o Movimento já estava con-


solidado e o seu perfil marcadamente "sulista" vai modificando e passa a ter
um perfil nacional. Mobilizados e participando de outras frentes de luta, os
trabalhadores definem seus desafios e prioridades, o que expressa a resposta
dos trabalhadores em face dessa nova situação. Organizar, Unir e Lutar é um
dos seus enunciados nesse período. Participam das greves organizadas por
Centrais Sindicais:

Greve geral: contra o governo e contra os patrões: os trabalha-


dores rurais deverão participar com todas suas forças nessa
greve geral. Se mobilizando. Ocupando as cidades. Interrom-
pendo as rodovias. Ocupando os bancos. E juntamente com os
operários da cidade, parar a economia do país, que depende
de nosso trabalho (JST, mai., 1991, nº 103, p.3)

E vai desenhando o perfil de um movimento que tem propostas mais amplas


e que envolvem mudanças para além da conquista da terra e que as impli-
cações políticas dessas alianças poderia ser um ponto de partida para a for-
mação de um novo coletivo político e de uma nova concepção de luta.

Organizar, Unir, Lutar: Apesar de todas as dificuldades econômi-


cas, repressão policial e ataques dos meios de desinformação,
conseguimos aumentar o numero de ocupações de terra.
[...]soma-se a esses avanços as lutas desenvolvidas em conjun-
to com os trabalhadores urbanos, especialmente os sem teto
(JST, nov./dez., 1991, nº 110, p.2).

O Movimento vai traçando os caminhos de luta e compondo no discurso


uma unidade com outras frentes que refletem em sua participação no impea-
chment de Fernando Collor e em outras campanhas e greves gerais:

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Ensaios e Debates

Não à exploração: Vamos dizer NÃO ao Collor!


(JST, fev., 1992, nº 112, p. 2).

Somente a mudanças profundas poderão fazer frente a esse


plano estratégico da burguesia, de acelerar a acumulação de
capital as custas da marginalização da população. (JST, mar.,
1992, nº 113, p. 2)

Assim, em seu discurso o Movimento vai descortinando uma aproximação


maior entre trabalhadores do campo e da cidade em torno de alguns obje-
tivos comuns, como por exemplo, a necessidade de ampliação da prática
política e a organização dos trabalhadores enquanto um processo de unifi-
cação dos explorados e da classe trabalhadora. E, ao mesmo tempo, vai
encaminhando a Luta pela Terra por meio das ocupações. Mas é aí também
que ao adquirir mais visibilidade as especulações sobre sua organização pas-
sam a ser freqüentemente explorada pela imprensa, como acompanhamos
em matérias publicadas nos jornais e em discursos dos ruralistas: quem é que
financia o MST? É importante lembrar aqui, que os discursos produzidos na
imprensa são geradores de saber e poder. Assim, quanto mais informação,
mais saber e controle se tem sobre ele. E a sua forma de organização5 é
estampada nos jornais.

Em São Paulo, no Pontal do Paranapanema, na década de 1990, o


Movimento realiza sua primeira ocupação, em 14 de julho:

1800 famílias sem terra ocupam no Pontal do Paranapanema:


nos diais 13 e 14 de março, as famílias reocuparam a fazenda
São Bento. O poder incontrolável da Policia Militar: armada,
sentindo-se impune e com os meios de comunicação dis-
torcendo os fatos, a PM deu uma demonstração do que é capaz
de fazer, quando o alvo é os trabalhadores. [...]A união do lati-
fúndio com setores da PM completa-se com a participação de
membros do poder judiciário e com o acobertamento da
imprensa. (JST, abr., 1993, nº 124, p. 2).

Um dos maiores obstáculos à Reforma Agrária, e que explica as ocupa-


ções de terra, é a lentidão da Justiça na desapropriação de terras, sendo que
esta lentidão pode ser justificada pelo interesse daqueles que não querem
que ela aconteça. Entre os anos de 1990 a 1995, o Estado impetrou várias
5 - A estrutura da organização do MST foi publicada, por meio de consulta ao MST, no jornal F. de São Paulo
(ALONSO, 24/09/95, p.12).

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

Ações Discriminatórias6 visando incorporar as terras devolutas ao Estado


para fins de assentamento.

A lentidão nesses processos também dá origem a fraudes envolvendo os


valores de desapropriação. O Governo e o Executivo ao não conseguirem
conciliar promessas com ações efetivas, "acabam aprisionados" nas teias de
um aparato judiciário e policial que favorece mais aos interesses dos grandes
proprietários do que aos do Estado, da sociedade e trabalhadores. Dessa
forma, justifica-se o tratamento dispensado aos trabalhadores rurais e a coni-
vência do aparato judicial, no qual o jornal se fundamenta para construir seu
argumento. A esse respeito Bruno (1997, p.11) aponta que:

As leis, as instituições políticas, os tribunais e o direito consubst-


anciam este ethos da grande propriedade fundiária, com o cui-
dado de, ocasionalmente, conceder alguns direitos aos traba-
lhadores rurais e, continuamente, preservar o monopólio e os
privilégios dos grandes. Hoje, a propriedade está mais protegi-
da e cercada pelas leis, pela força, pelo capital territorializado
e pelo Estado.

Mas, as dificuldades não se resumem apenas à lentidão desse processo, se


devem também à acentuação dos problemas internos, os quais os jornais bus-
cam explorar. Os jornais têm enfatizado o conflito entre duas posições que
buscam a hegemonia do MST. Muitas vezes essa disputa termina em dissidên-
cias7, nas quais os jornais aproveitam para evidenciar o radicalismo do
Movimento, seu sectarismo e também sua vinculação à guerrilha, enfim busca
reforçar o perigo que representa8.

No que se refere a essa discussão, acrescentamos que a política neoliberal


implantada no Brasil, a partir do governo Collor, mas principalmente no go-
verno Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo em que não consegue

6 - Segundo Fernandes (1996, p. 159), (...) o Pontal do Paranapanema possui 444.130,12 hectares que estão
com processos de ações discriminatórias a iniciar ou em andamento. A maior parte destas terras estão sob o
domínio dos grandes grileiros-latifundiários. O Itesp tem instaurado diversas ações discriminatórias na região
que se encontram nas seguintes condições: 1) em andamento, são perímetros em que as ações já foram
ajuizadas e aguardam decisão judicial definitiva; 2)concluídas e aguardando conclusão ou reavaliação do
Plano de Legitimação de Posses. 3) processos de legitimação em andamento.
7 - A esse respeito Lima (2002; 2004) tem desenvolvido pesquisas que apontam para os vários fracionamen-
tos das frentes de Luta pela Terra no Pontal. Se até 1994 o MST representava e orientava as ocupações e lutas
pela terra no Pontal, nos últimos anos têm comparecido em público algumas divergências e dissensões, inclu-
sive com o reconhecimento na imprensa da existência de outros grupos: MAST, MSLT, UNITERRA, entre outros.
8 - Em entrevista a um dos dissidentes do MST e publicada no jornal Folha de São Paulo em 17/08/97 e
05/04/94 e no dia 16/04/94, temos exemplos claros da forma como o jornal busca explorar e evidenciar
esses aspectos.

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Ensaios e Debates

desmobilizar a luta pela terra encaminhada pelo MST, acaba contribuindo


para a expansão das bases sociais desse Movimento. O MST não se coloca,
na atual conjuntura política, na defensiva - ao contrário do que ocorre, por
exemplo, com o movimento sindical - porque se alimenta dos efeitos sociais
perversos produzidos pelo neoliberalismo.

Poderíamos dizer que a força política do MST deriva, em grande parte, do


desemprego gerado pela abertura da economia brasileira ao mercado inter-
nacional, da recessão e/ou do baixo crescimento econômico provocados pe-
los juros altos e pela busca a qualquer preço da estabilização monetária, da
importação de maquinário computadorizado que atinge as indústrias de pon-
ta da economia brasileira e que reduz drasticamente o estoque de empregos
nesse setor, da própria mecanização das atividades agrícolas, da impossibili-
dade de ter emprego nesta sociedade do capital, fatores estes que se fizeram
e se fazem presentes como nunca nas políticas econômicas e neoliberais da
atualidade. Ou como afirma Thomaz Jr., (2003. p.18):

As novas territorialidades que estão sendo engendradas pelo me-


tabolismo do capital e que repercutem no processo social como
um todo, especialmente para a esfera organizativa do trabalho
[são] aspectos importantes do processo social que (re)definem o
metabolismo do capital e as mutações no universo do trabalho.

Assim, os conflitos no campo revelam uma face marcada pelas contingên-


cias locais, mas, ao mesmo tempo em que se evidencia que estes se
inscrevem numa dinâmica mais ampla que reflete, em uma escala nacional e
global, uma crise do mundo do trabalho.

Nesse sentido, a estrutura social evidenciada a partir dos mecanismos, ou


dinâmica do capital, seja pela divisão técnica e territorial do trabalho, seja
pelo reflexo dessa divisão, os excluídos da terra, os trabalhadores proletariza-
dos e semi-proletarizados acabam por evidenciar um conflito de classe e,
conforme Thomaz Jr. (2001, p.16) "expressa as contradições das diferentes
faces das desigualdades sociais" .

É também nessa escala que surge o debate sobre novas temáticas, como gê-
nero9, meio ambiente e sustentabilidade10, as quais passam a integrar o coti-

9 - A esse respeito Franco Garcia (2004) e Valenciano (2004) desenvolveram pesquisas sobre os encaminha-
mentos das discussões de gênero no MST.
10 - Oliveira (2003) desenvolveu pesquisa ligada à discussões que envolviam as inovações tecnológicas no
corte de cana de açúcar e as implicações do uso dessas tecnologias no mundo do trabalho.

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

diano das lutas no campo. No geral, observa-se que a luta política, que colo-
ca no cenário nacional os problemas decorrentes das paisagens desiguais da
distribuição fundiária é, sem dúvida, a face mais visível da questão agrária.

Se na conjuntura nacional o discurso do Movimento é de mobilização e de


radicalização11 (no sentido de ir a fundo, na raiz do problema), nos Estados
os trabalhadores, seguindo as orientações e diretrizes tiradas nos Congressos
e Encontros, vão respondendo ocupando terra, prédios públicos, bancos, rea-
lizando marchas e passeatas. De forma que, de 1990 a 1995, no Pontal do
Paranapanema, a paisagem agrária já não é tão homogênea, apresenta uma
configuração territorial não só de latifúndios, tinham sido efetuados 16 assen-
tamentos, abrigando 1.695 famílias, num total de 40.477 hectares de terra12.

Por meio das ocupações dessas terras, griladas e devolutas, o espaço se


transforma e são criadas novas formas de gestão do território. Lugares de in-
vestimentos sociais, políticos e que representam a conquista de um território.

4. Reforma Agrária: uma luta de todos

Organização, novas concepções de luta, construção de novas identidades


políticas. É nessa crença que o Movimento, a partir de 1994 põe em evidên-
cia um novo enunciado: Reforma Agrária: Uma luta de todos!.

O novo enunciado do Movimento, nesse contexto, significa a sua constitui-


ção como um importante debatedor da questão agrária, a partir do segundo
semestre de 1994, embora o cenário dessa luta não possa ser atribuído só a
ele, pois inúmeras ações de ocupação de terras têm sido desencadeadas por
movimentos ligados a Contag/CUT, ou por outros movimentos.

Significa, também, uma tentativa de reforçar ou consolidar um leque de


relações que até então já havia constituído em torno da luta pela terra e pela
Reforma Agrária com a obtenção de vitórias dos trabalhadores, principal-
mente com a mudança da lei de reforma agrária, nesse sentido, comemora:

A luta dos trabalhadores obtém vitórias: A função social na Lei


Agrária: este conceito, fez transcender o conceito de função
social da propriedade apenas para as desapropriações de refor-
11 - É interessante, aqui, esse termo, pois a depender de quem o usa, do lugar em que ele é enunciado,
assume sentidos diferentes. Quando os jornais acusam o Movimento de ser radical, certamente o sentido mobi-
lizado não é esse.
12 - Fonte: NERA - DATALUTA - Banco de Dados de Luta pela Terra, 2003.

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Ensaios e Debates

ma agrária. Agora, temos uma definição de toda PROPRIEDADE


imobiliária rural que não cumprir todos os requisitos que lhe
caracterizam como função social, deixará de ter proteção jurídi-
ca (JST, set., 1993, nº 129, p. 2).

Essa vitória a que se refere o MST diz respeito ao acréscimo, na lei, do con-
ceito de função social da terra e que representou um avanço na questão da
reforma agrária13. Entretanto, na prática, fica a mercê de interpretação de juí-
zes, pois a julgar pelo número de despejos a que os trabalhadores são sub-
metidos e a agilidade em que são impetrados mandados de reintegração de
posse quando uma área é ocupada, significa que não há questionamento se
a função social da terra está sendo comprida. Por essa razão, a necessidade
da ocupação como forma de agilizar o processo.

A definição de novas estratégias de luta incluía, também, apostar na candi-


datura de Lula, do PT, já que como aliados históricos do Movimento, a sua
vitória representaria os interesses dos trabalhadores:

Decidimos apoiar abertamente e nos envolver na campanha do


companheiro Lula, porque acreditamos ser a única que, se vito-
riosa, pode implantar um programa democrático-popular e
realizar a reforma agrária. (JST, jan/fev., 1994, nº 133, p. 2).

Com a decisão de apoiar a candidatura de Lula, o Movimento passou a


sofrer mais ataque da imprensa. Participando ativamente dos embates nesse
período começa a ser representado com todo tipo de qualificações. Este
enunciado "A luta pela terra sobe os palanques" (JST, jul. 1994, p. 2), deixa
claro a posição assumida e a aposta nesta candidatura e avaliação que faz
sobre o papel da imprensa:

[...] Nos acusaram na imprensa dos maiores absurdos: que te-


mos contrabando de armas do Paraguai, que temos centro de
guerrilha, que somos assessorados por estrangeiros de todo ti-
po. Não nos calamos. Nossa luta só tem uma motivação: nossa
necessidade! (JST, jul., 1994, nº 138, p. 2).

Essa forma de ofensiva da imprensa ao Movimento vai se dever em grande


parte a preocupação de vários setores da burguesia em fazer com que a luta
pela terra e pela reforma agrária sejam consideradas pela população como
13 - O direito de propriedade rural era garantido pelo Código Civil, lei de 1804, este garantia o direito abso-
luto sobre qualquer imóvel.

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

um dos entraves à democracia, daí a exploração, na imprensa de enuncia-


dos de radicalização e perigo representado pelo comunismo. E é interes-
sante ressaltar aqui, que essa forma de enunciar o Movimento vai compare-
cer, com mais ou menos intensidade, em períodos eleitorais em que o MST
se posicionou apoiando a candidatura de Lula. Esta é uma das questões
importante: que memória do discurso a imprensa mobiliza quando vincula o
MST ao perigo vermelho?

Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso, em outubro de 1994, ficou


claro o projeto que venceu. Nesse sentido, o Movimento vai atribuir um papel
fundamental aos meios de comunicação:

[...]o controle dos meios de comunicação por parte das oligar-


quias políticas e econômicas brasileiras impede que, dez anos
após o final da ditadura militar, se possa constituir uma vida de-
mocrática no país e determina que a luta política se dê de forma
acentuadamente desigual. O resultado das eleições é a prova
mais cabal das manipulações feitas pela elite para garantir a vi-
tória de seu candidato.(JST, out., 1994, nº 141, p. 2).

Assim, manifesto no discurso do MST, está um embate entre as forças con-


trárias ao projeto de sociedade que garantiria a mudança necessária para se
buscar soluções que visassem uma melhor distribuição de terra e de renda,
que procurasse "varrer do mapa" as paisagens desiguais no campo. No dis-
curso do Movimento sobre o papel da imprensa na eleição de FHC também
está presente uma forma de denúncia, uma vez que argumentam que a im-
prensa é a favor da democracia, mas fazem uso da manipulação para garan-
tir a propriedade.

Desse modo, delineia-se um outro cenário de lutas, com mobilizações, mar-


chas ocupações de prédios públicos etc., e também a posterior criminaliza-
ção da luta pela terra, com prisões de lideranças e a edição da Medida Pro-
visória nº 2027, de 2000, que proíbe o Incra de vistoriar, por dois anos, área
ocupada pelo MST, o que vai provocar uma desarticulação e desmobilização.

No Pontal do Paranapanema, São Paulo, a intensificação das ocupações se


dá na mesma medida em que, em nível nacional, o Movimento reforça as
mobilizações. Embora como já acentuamos, se tenham algumas conquistas,
a morosidade no processo leva a que milhares de trabalhadores se aglome-
rem em torno da busca pela terra. Mas as repercussões das medidas do go-
verno federal atingem em cheio as lideranças no Pontal que começam a ser

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Ensaios e Debates

presos. Essa medida, prender as lideranças, acabou por provocar uma rea-
ção de apoio de vários setores da sociedade, entre Igreja, sindicatos, partidos
políticos (deputados, senador), entre outros. Foram muitas as prisões a partir
daí, agravando a situação de assentados e acampados, mas não diminuindo
a capacidade de dar respostas com marchas, mais acampamentos, ocupa-
ções etc, e também muitas mortes e perseguições a sem-terra no país14.

E, assim, se passa boa parte dos anos de 1990, com poucas medidas con-
cretas por parte dos governos estadual e federal, além das já mencionadas
prisões e perseguição às lideranças e como conseqüência o aumento dos
conflitos no campo. Em 1997, o MST mobiliza as atenções do país com a
Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, sendo esta uma
das maiores mobilizações populares das últimas décadas15:

A marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça


contagiou a sociedade de que é possível mudar a sociedade.
Nós do MST continuaremos a nos organizar e a lutar por Refor-
ma Agrária. Vamos à luta. Mostrar o Brasil real para o Brasil ofi-
cial (JST, abr./mai., 1997, nº168, p. 2; 10, 8 6,)

Nesse momento colocou na agenda nacional a questão da Reforma Agrária,


que em função do modelo de desenvolvimento econômico adotado, e denun-
ciado pelos movimentos organizados, até então não era tratada de forma ade-
quada. Após a Marcha para Brasília, organizada em conjunto com outros mo-
vimentos, o governo federal anuncia e lança o Plano Nacional de Reforma
Agrária, mas nem de longe contemplava as reivindicações dos movimentos. Em
1998, organiza novas marchas, mas sem a mesma visibilidade alçada em
1997. Em 1999, perde popularidade em função dos saques realizados, princi-
palmente na região NE, e de uma orquestração entre o governo e a imprensa.

O discurso do MST, nesta década de 1990, foi construído tendo como um


dos seus princípios as ocupações de terra, como uma das formas de resolver
as desigualdades sociais e, justamente aí que o seu projeto de sociedade
sofreu maior ataque, tanto da imprensa quanto por meio de setores organi-
zados dos proprietários de terra e latifundiários. Em particular, aos enuncia-
dos de seu discurso que referendam, contrapondo-se aos enunciados nos jor-
nais, a atualidade da reforma agrária como possibilidade de formação de

14 - É desse período o massacre de Corumbiara (1996) e de Eldorado dos Carajás (RO), que até hoje estão
impunes os responsáveis.
15 - Neste período, abril de 1997, o MST foi alvo de 163 manchetes só no jornal F. de São Paulo, sendo
manchete principal por quase 15 dias.

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

uma sociedade mais justa. Atualidade legitimada pela luta, pelo conflito e
pelo questionamento do monopólio fundiário.

5 . P o r u m B r a s il s e m la tif ú n d io ( 2 0 0 0 -2 0 0 4 )

Em torno da conjuntura atual (2000-2004) o MST realiza o seu 4º


Congresso Nacional, com o enunciado: Reforma Agrária: por um Brasil sem
latifúndio, em Brasília e define as ações para esse contexto. Denuncia a par-
alisação do processo de reforma agrária, a situação de conflito e aumento de
tensão no campo.

O Governo FHC inviabilizou a pequena agricultura e os assen-


tamentos; beneficiou as grandes propriedades [...] Em diferentes
fóruns e articulações já existem acordos para mobilizações de
massa contra o governo FHC e seu modelo econômico [...] (JST,
jan.,2002; nº 217, p. 2-3; fev., 2002, nº 218, p.2).

A partir de 2000 até meados de 2002, o Movimento sofre um refluxo em


função da perseguição às lideranças. No Pontal do Paranapanema, nesse
período, foram efetuadas as prisões de José Rainha, Diolinda Alves, Felinto
Procópio, e outros tantos ficaram foragidos. Isso, de certa forma, refletiu nos
encaminhamentos e obrigou o MST a rever as estratégias de luta.

Segundo a CPT16, só no ano de 2003, o Poder Judiciário emitiu mais de 30


mil ações de despejo envolvendo 176.484 pessoas. Em relação a 2002,
ainda segundo os dados da CPT, houve um aumento de 263,2% de ações de
despejos. As prisões também giraram em torno de 140% a mais em relação
a 2002. Esses números revelam o papel do poder público, particularmente do
Poder Judiciário, nesse processo. Revelam, ainda, que a atuação do Estado,
no que se refere à questão agrária se explicita na sua forma mais autoritária,
por meio do seu aparato repressivo. Isso evidencia como, pensando o espaço
agrário em sua diversidade, a sociedade brasileira explicita as suas con-
tradições: de um lado, a reprodução de um modelo agrário concentrador,
tanto de poder político quanto social e econômico na figura de grandes lati-
fundiários; e de outro, os trabalhadores que lutam por uma reforma agrária
como forma de democratização e de uma sociedade mais justa. Em 2002, os
governos estadual e federal pouco ou nada fizeram para atender a demanda
de terras e cumprir a Reforma Agrária e o Movimento organiza uma marcha
e realiza novas ações de ocupação:
16 - Conflitos no campo - Brasil 2003, CPT.

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Ensaios e Debates

Sem terra marcham por Reforma Agrária e contra a violência:


mil e duzentos trabalhadores de todas as regiões do Estado (SP)
participaram, de 3 a 8 de março da Marcha por Reforma Agrá-
ria e contra a violência, de Campinas a São Paulo. (JST, mar./
abr., 2002 n. 219).

E mais uma vez decidem o apoio à candidatura Lula. E, nesse contexto te-
mos o mesmo movimento de desqualificação, de desfavorecimento da luta
pela terra, enfim do mesmo deslocamento de sentidos para as ações do MST
já mencionadas. A recorrência desse enquadramento dos jornais já não re-
presenta novidade, senão questionamentos.

Títulos de algumas reportagens e dos editoriais, nesse período são muito


ricos no que chamamos de forma didática de narrar os fatos. Os jornais e,
principalmente a Folha de S. Paulo, destacou, em suas reportagens sempre o
que poderia representar a aliança entre o PT e o MST. Entretanto isso não in-
terferiu no resultado das eleições para presidente e Lula foi eleito. Aí, vamos
ter outro deslocamento no papel que o jornal assumiu ao narrar as ações que
envolviam as reivindicações do Movimento.

Nesta trajetória do MST, de 1990 a 2004, suas reivindicações e os protestos


deflagrados conferem ao Movimento notoriedade tornando-o um referencial
significativo para a classe trabalhadora. Por meio da consolidação de uma
identidade (sem terra), articula, no discurso e na prática, o questionamento
do modelo de "modernização" implantado no Brasil.

O modelo concentrador/modernizador da agricultura, requalifica o perfil dos


trabalhadores rurais sem terra no Brasil, como salienta Thomaz Jr. (2001, p. 20):

A demanda por terra não se restringe tão somente aos trabalha-


dores que já têm ou que tiveram ligação com a terra, mas um
conjunto diversificado de trabalhadores, ex-assalariados urba-
nos, engrossam as fileiras dos sem terra no Brasil, passam a
compor os movimentos sociais afins e as frentes de luta pela ter-
ra, particularmente nas fileiras do MST, portanto, de modo ge-
ral, redefinem o perfil e o conteúdo societal do trabalho envolvi-
do na luta pela terra.

Dessa forma podemos concluir que existem inúmeras facetas ou desdobramen-


tos oriundos do processo de reestruturação que tiveram rebatimentos para o uni-
verso do trabalho. Esses desdobramentos trazem alguns elementos para a reflexão

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

na reorganização territorial da sociedade, isto é, a relação capital x trabalho.

6. Considerações Finais

No que se refere ao discurso evidenciado nos jornais a dinâmica salienta-


da se delineia a partir de ocupações e despejos. Não se revelam as paisagens
que, nesse processo de luta, vão sendo redesenhadas pelo Movimento.

Assim, as paisagens do MST, no Pontal do Paranapanema, não são silen-


ciosas, mas são silenciadas pelos jornais. No entanto, quando se olha o en-
torno, percebe-se as marcas; em todo lugar, há impressões digitais. As paisa-
gens construídas trazem os sinais daqueles que as possuem. Esses sinais são
visíveis quando, num acampamento e num assentamento, observamos seus
arranjos espaciais. Na organização dos lotes, dos barracos de lona, revela
uma forma de organização espacial e territorial, isto é, uma divisão do es-
paço. Na divisão do trabalho, na educação, na distribuição e renda dos pro-
dutos, nas cores, nos instrumentos de trabalho e de luta, nos símbolos religio-
sos e políticos, na solidariedade, na hierarquia, na memória da luta, nas fotos
dos heróis da luta (Che Guevara, Padre Josimo, Oziel Alves, Madre Cristina),
nas palavras de ordem, nas vestes, etc.

Assim, nas passeatas, nas marchas, nos bloqueios das rodovias, esses tra-
balhadores delineiam paisagens que, portadoras de sentido não se revelam
apenas como quadro onde se estampa a trama das práticas sociais: configu-
ram-se em representações de práticas sociais que lhes dão um novo conteú-
do. As paisagens construídas revelam sua estrutura social e conformam lu-
gares, territórios. As paisagens do trabalho e os territórios da Luta pela Terra.

A idéia de lugar nos remete a reflexão de nossa relação com o mundo. Induz
a análise geográfica a uma outra dimensão - a da existência- "pois refere-se a
um tratamento geográfico do mundo vivido" (SANTOS, 1997, p. 32). Isto impli-
ca em compreender o lugar através de nossas necessidades existenciais quais
sejam, localização, posição, mobilidade, interação com os objetos e/ou com as
pessoas. Identifica-se esta perspectiva com a nossa corporeidade e, a partir dela,
o nosso estar no mundo, no caso, a partir do lugar como espaço de existência
e coexistência. Mas o lugar pode também ser trabalhado na perspectiva de um
mundo vivido, que leve em conta outras dimensões do espaço geográfico.

As paisagens do tempo e do espaço tornaram-se então instrumentos para


construírem, além ou aquém da ordem produtiva já estabelecida guiada pelo

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Ensaios e Debates

capital, uma outra ordem produtiva alternativa, sob forma de uma busca de
realização de potencialidades deixadas abertas e de onde as representações
e as idealizações são uma maneira de dar sentido e transformar o mundo das
realidades cotidianas da Luta pela Terra.

Levando-se em conta as considerações já feitas, é possível dizer que o MST


não surgiu de um discurso aleatório. O Movimento nasceu das contradições
sociais, isto é, a partir de uma estrutura societária em que a grilagem de ter-
ras, a exploração do trabalho, da violência, dos assassinatos no campo, das
desigualdades e injustiças sociais são geradas pelo sistema metabólico do
capital. (THOMAZ JR, 2001).

O discurso do MST insere-se no quadro dos discursos sobre a função social


da terra. O seu sujeito é o trabalhador que não fica mais mudo nem mais
repete as "evidências" que promoveram, historicamente, a exclusão social do
homem do campo. Possuindo um discurso próprio, que consiste numa ruptura
com o discurso do poder e das instituições, assume, agora, uma voz, enquan-
to aquele que luta pelo acesso a terra, pela Reforma Agrária, que expõe ou-
tros enunciados como novas evidências.

Ora, a Reforma Agrária num país em que o latifúndio sempre representou


o poder das elites é um objeto-tabu. A questão da terra, desnuda todo um sis-
tema de desigualdades e privilégios e de leis que não se cumprem. Exigir a
Reforma Agrária é exigir que o Estado cumpra o que ele mesmo determinou
em seu discurso como garantias universais a todo cidadão (o Estatuto da Terra
prescreve a Reforma Agrária e a Constituição a confirma). Tabu do objeto,
diria Foucault (2000), parte da interdição da palavra, que compreende, tam-
bém, o ritual da circunstância e o direito privilegiado de quem fala.

Sabe-se que o discurso é controlado, selecionado, organizado e redistribuído


a partir de determinados procedimentos que colocam em jogo seus poderes e
perigos (Foucault, 2000). É preciso, então, controlar os discursos e sua distribui-
ção quando representam qualquer ameaça à permanência do poder instituído.

O que funda, portanto, o discurso do sem-terra é a busca e a posse da


terra. É fugindo da miséria e buscando um lugar que lhe dê dignidade,
através do trabalho, que ele chega. Esta é uma porta de entrada à história do
MST. Isto revela que esse camponês só o é pela posse da terra e sua identi-
dade se constrói por esta relação. Logo, este sujeito não detém aquilo que o
qualifica como tal, ele não existe. Ao ingressar no Movimento, conscientizan-
do-se de sua falta, ele reencontra sua identidade de sujeito que luta por aqui-

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Discurso e Resistência na Luta pela Terra

lo que reconhece ser seu. No duplo sentido: terra que é sua e que lhe susten-
ta, e terra que lhe permite (re)construir sua história. Ou seja, é a perda da
identidade juntamente com a perda da terra que moldam o movimento que
se autodefine pela falta: eles são sem-terra.

6. Referências Bibliográficas

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Ensaios e Debates

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Muito além das carabinas:


resistência e luta pela terra nas
trincheiras da imprensa - a experiência
histórica dos posseiros de Formoso e
Trombas-GO (1950-1964)

Carlos Leandro Esteves*

INTRODUÇÃO

Na década de 1950 ocorreu a meio-norte do estado de Goiás, nas vilas de


Formoso e Trombas, localizadas no município de Uruaçu, a 400 km ao norte
de Goiânia, uma série de conflitos entre pequenos posseiros e grileiros pelas
terras devolutas da região. A resistência dos posseiros às inúmeras tentativas de
expulsão ficou conhecida como "A Revolta Camponesa de Formoso e Trombas",
e sua história é marcada pela obstinação com que famílias de posseiros se or-
ganizaram para repelir a violência de jagunços a mando de grileiros e fazen-
deiros locais, na luta pela permanência nas posses e pelo reconhecimento do
direito à terra. É acima de tudo, um dos capítulos mais expressivos das lutas
populares no Brasil, onde camponeses pobres ousaram organizar-se e conquis-
tar o direito à terra, logrando uma das mais importantes experiências demo-
cráticas onde os próprios camponeses seriam os protagonistas.

Este episódio revelaria ainda outra acirrada disputa, travada no terreno da


representação e que teve a imprensa como palco privilegiado de conflitos.
Nesta arena de luta, os posseiros estiveram presentes através do envio de car-
tas a jornais e revistas, e por meio de entrevistas e depoimentos que revela-
vam seus feitos, perspectivas e aspirações.

Percorrendo as trincheiras da imprensa é possível recuperar um pouco dos


significados atribuídos pelos posseiros à luta pela posse da terra, suas con-
cepções de justiça, as representações que faziam de si e de seus contendores,
além da ampliação de suas demandas e reivindicações, bem como das arti-

* Graduado e mestrando em História pela Universidade Federal fluminense e pesquisador do Núcleo de


Referência Agrária da mesma instituição

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Ensaios e Debates

culações e alianças feitas com diferentes setores da sociedade goiana.

Compreendida como parte de uma estratégia maior de resistência, a luta


travada no espaço da imprensa revelou-se de extrema importância para a
consolidação e legitimidade alcançada pelos posseiros no decorrer dos anos,
caracterizando a experiência em Formoso e Trombas como uma luta amplia-
da de resistência. É dessa ampliação nos espaços de luta que trataremos
aqui. Nesse sentido, estaremos priorizando a imprensa como espaço social
de conflitos e de possibilidades de conquistas.

"Terras sem dono": chegada a Formoso e os primeiros anos de luta

O processo histórico de ocupação da região por famílias de pequenos


lavradores remonta aos primeiros anos da década de 1940. A migração para
o Formoso esteve inicialmente vinculada à chegada de centenas de famílias,
vindas principalmente dos estados do Nordeste e de Minas Gerais, à Colônia
Agrícola Nacional de Goiás (CANG). Criada em 1941 pelo governo de Ge-
túlio Vargas, a CANG seria construída em Ceres, região próxima às terras fér-
teis das matas de São Patrício, no centro-norte goiano.

O governo Vargas, por meio de massiva propaganda feita pelo Departamento


de Imprensa e Propaganda (DIP), anunciava a distribuição de glebas a famílias
de lavradores e a formação de um núcleo colonial onde lhes seriam fornecidos
além das terras, ferramentas e assistência técnica para o cultivo. Entretanto, os
objetivos da CANG foram apenas parcialmente alcançados, sobretudo até fins
da década de 1940 (CUNHA, 1994). As promessas de as-sistência e apoio téc-
nico não se efetivaram, ocasionando crescente insatisfa-ção nas famílias que
atenderam ao chamado do governo em seu intuito de colonizar o sertão1.

A notícia de que em Goiás estavam sendo dadas terras de graça a traba-


lhadores rurais, mobilizou grande contingente de famílias que, na maioria
dos casos, vinham de ser expulsas das terras onde anteriormente trabalha-
vam. Frente à frustração e impossibilidade de permanecerem na CANG,
muitas dessas famílias teriam deixado a colônia com destino às terras devo-
lutas ao norte de Ceres. A chegada às terras férteis e "sem dono" significaria
naquele momento uma verdadeira conquista para inúmeras famílias cam-
ponesas que acumulavam variadas experiências de exploração e miséria.
1 - Ficou conhecida como "Marcha para Oeste" a política estadonovista que, a partir de 1938, visava a incor-
poração de novas áreas, consideradas "vazios demográficos", no processo de expansão da fronteira econômi-
ca. O projeto pretendia ainda, redirecionar a força de trabalho para as terras férteis do Centro-Oeste, objeti-
vando um significativo aumento da produção alimentícia para atender aos centros urbanos em expansão.

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M u i to a l é m d a s c a r a b i n a s : r e s i s tê n c i a e l u ta p e l a te r r a n a s tr i n c h e i r a s d a i m p r e n s a -
a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

A notícia de que em Goiás estavam sendo dadas terras de graça a traba-


lhadores rurais, mobilizou grande contingente de famílias que, na maioria dos
casos, vinham de ser expulsas das terras onde anteriormente trabalhavam.
Frente à frustração e impossibilidade de permanecerem na CANG, muitas
dessas famílias teriam deixado a colônia com destino às terras devolutas ao
norte de Ceres. A chegada às terras férteis e "sem dono" significaria naquele
momento uma verdadeira conquista para inúmeras famílias camponesas que
acumulavam variadas experiências de exploração e miséria.

É, portanto, com a chegada à região do Formoso, seguida da derrubada


das matas, da construção dos ranchos, do início do cultivo e, principalmente,
no momento das primeiras colheitas, que o reconhecimento de que se trata
de uma conquista reforça a obstinação com que as famílias de pequenos pos-
seiros estarão dispostas a defender a permanência em suas posses.

Essa experiência, construída no decorrer do processo de existência dos


sujeitos sociais, elaborada e reelaborada a partir de pressões exercidas pelos
próprios sujeitos em contato com a realidade (THOMPSON, 1978), é termo
de fundamental importância para pensarmos como a posterior resistência e
luta pela terra se dão como processo. Processo que revela sujeitos que têm,
justamente no acúmulo de experiências anteriores, concepções significativas
de valores compartilhados que servirão de base na formulação de respostas
a serem dadas frente às ameaças de expulsão das terras.

A relativa tranqüilidade dos que chegavam ao Formoso, encorajados pela


certeza de que se apossavam de terras devolutas pertencentes ao Estado de
Goiás, foi ameaçada quando fazendeiros da região deram início à tentativa
de cobrança de arrendamento.

No início os fazendeiros da região não tomaram nem conheci-


mento dos posseiros. Mas ao perceber que mais trabalhadores
chegavam, resolveram, embora não fossem donos da terra,
cobrar uma percentagem sobre a produção dos posseiros.
Exigiam inicialmente 25% de tudo que fosse produzido. Mais
tarde, sem receber nada, foram baixando, até pedirem 5%. Os
camponeses lutando(...) resolveram não pagar nada.2

Formoso era nessa época uma pequena vila localizada no município de


Uruaçu, antigo município de Santana, dividido ainda em mais dois distritos,
2 - Depoimento de um morador de Trombas, ex-posseiro, que participou dos anos de luta, em O Movimento,
n. 164, 21 de agosto de 1978.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 199


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Ensaios e Debates

Amaro Leite e Porangatu, a 400Km de Goiânia. Em fins da década de 1940,


segundo depoimento de um morador da região, "Tinha duas fazendas
grandes, uma a Campos Belos, pros lados de Porangatu, e outra de fazen-
deiros de Uruaçu. O mais era tudo terra sem dono."3

As terras férteis, principalmente as da zona da mata, entrecortadas por


grande quantidade de córregos, passam a valorizar-se e despertar o interesse
dos fazendeiros locais quando começam a surgir as primeiras colheitas nas
roças trabalhadas pelos posseiros. Além do trabalho das famílias de
pequenos posseiros, outro fator contribuiu para a valorização daquelas terras
até então sem dono: a construção da estrada Transbrasiliana, que até 1953
chegaria a Uruaçu, passando por Ceres, no trecho que ia de Anápolis a
Porangatu.4

Tem início na região uma verdadeira operação de grilagem de terras, capi-


taneada pelos grileiros Boanerges Veiga e Antonio Capamum, com a ajuda
do Juiz de Direito do cartório de Uruaçu, o Dr. José da Veiga Jardim. A ofen-
siva dos grileiros chegou ao extremo quando foram requeridas como pro-
priedade particular, 75.000 ha de terras, cerca de 15.000 alqueires, cuja
extensão abarcava os imóveis de Formoso, Bonito e Santa Tereza. Munidos
com um requerimento de concessão de sesmarias, datado de 1775, corres-
pondente à área dos três imóveis citados, os grileiros forjaram uma cadeia
sucessória que indicou como herdeira das terras uma família de lavradores
residentes em Pirenópolis.

Esse processo, que ficou conhecido como Usucapião da Fazenda da


"Onça", correu na justiça sem a presença dos posseiros. Entretanto, o julga-
mento da ação de usucapião determinou que da extensão de terras requeri-
das pelos grileiros nos autos, somente 6. 520 alqueires dos quase 15.000
pretendidos seriam reconhecidos. Mas, segundo depoimento de um posseiro,
"(...) acontece que eles[os grileiros] diziam que esse processo tinha dado direi-
to a todas as terras devolutas de Formoso e Trombas e cercaram 14 mil
alqueires de terras."5 O avanço dos grileiros sobre as terras devolutas onde os
posseiros mantinham suas posses, incursões que sempre contavam com a
presença de jagunços fortemente armados e da polícia, desencadeou um
ciclo de violência contra as inúmeras famílias de posseiros, obrigando-os a
3 - Idem.
4 - A construção da rodovia tem início nos primeiros anos da década de 1940 por iniciativa do Ministério da
Agricultura para atender às necessidades da Colônia Agrícola Nacional. Até 1953 seriam construídos 540 km.
Posteriormente este trecho seria incorporado a BR 153 (Belém-Brasília). Fonte: DNER-Ministério dos Transpor-
tes. Histórico das Rodovias Federais em Goiás. Goiás, 1984.
5 - Depoimento do Camponês B, em CARNEIRO, Maria Esperança. A Revolta Camponesa de Formoso e
Trombas. Goiânia, Cegraf, 1981. p. 103.

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M u i to a l é m d a s c a r a b i n a s : r e s i s tê n c i a e l u ta p e l a te r r a n a s tr i n c h e i r a s d a i m p r e n s a -
a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

organizar-se para resistir às insistentes ameaças de expulsão das quais eram


diariamente vítimas.

Baseados numa concepção de justiça que fincava raízes no terreno confli-


tuoso do costume (THOMPSON,1998), os posseiros deram início a uma
complexa rede de relações que visava primeiramente a defesa da permanên-
cia em suas posses, mas que no decorrer do processo de luta, ampliou-se
para além da questão primordial e possibilitou a incursão da importância da
figura social do camponês nos rumos das lutas políticas em Goiás, trazendo
à superfície a questão agrária como fonte permanente de preocupação políti-
ca dos sucessivos governos estaduais.

Assim tinha início a resistência dos posseiros, compreendida aqui como


processo, movimento, ação, articulados tanto quanto práticas de defesa quan-
to de avanço. Esse avanço corresponderia à conquista e atuação em diferentes
espaços que se mostraram eficazes ao longo da luta. Nessa dinâmica de es-
paços conjugados efetivou-se uma ampla estratégia de resistência, o que ca-
racteriza as lutas em Formoso e Trombas como uma resistência ampliada.6

As ações iniciais de resistência ocorreram no próprio local das disputas. Ne-


gando-se a abandonar as terras, seja pela expulsão pura e simples ou pela
assinatura forçada da desistência das posses, e negando-se ainda a pagar às
cobranças de arrendamento, os posseiros começaram a se organizar para re-
sistir às incursões dos jagunços e da polícia a mando dos fazendeiros e gri-
leiros que atuavam na região. Essas ameaças de expulsão eram freqüente-
mente acompanhadas do roubo das colheitas, da queima das casas dos pos-
seiros, e de uma série de violências físicas e morais praticadas contra velhos,
mulheres e crianças7. São muitos os relatos sobre humilhações por que tive-
ram que passar as famílias de posseiros que resistiam em abandonar seus
ranchos ou a pagar o arrendo.

Organizados em mutirões, experiência já bastante conhecida entre as


famílias que migraram para a região, os posseiros agiram coletivamente no
intuito de manterem-se nas terras, seja por meio da tentativa de equaciona-
mento legal, seja na defesa armada das posses.

6 - Ao cunhar o conceito de resistência ampliada procuro entendê-la como ações desencadeadas em difer-
entes espaços de luta, tais como a imprensa, o parlamento, espaços que, conjugados à defesa armada das
terras, constituíram um conjunto de práticas de resistência.
7 - Constam com freqüência nos vários relatos sobre as violências sofridas o episódio no qual grileiros teriam
obrigado posseiros a comerem as fezes um do outro. Outra prática sempre lembrada consistia no uso do
"caixote", uma caixa feita de tábuas e colocada na praça de Formoso. Nela, o fazendeiro João Soares prendia
posseiros que ousassem desafiá-lo e os deixava sem comida até dois dias.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 201


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Ensaios e Debates

É importante assinalar que a atuação dentro da ordem instituída e a


resistência armada conjugaram-se como estratégia maior de luta. Mesmo no
período mais agudo de confronto armado, entre os anos de 1954-1957, o
canal de diálogos aberto pelos posseiros com as autoridades institucionais
não foi abandonado. Esse fato coloca-nos uma importante questão no trata-
mento das formas de resistência dos posseiros de Formoso e Trombas: as
ações conjugadas de defesa da terra lograram não apenas consolidar a orga-
nização e capacidade de luta dos posseiros, mas, sobretudo, ampliaram pos-
sibilidades alternativas de construção social e política.

Formoso e Trombas também podem ser lidos sob a ótica da atuação do Partido
Comunista do Brasil (PCB) no campo. Vista por setores do partido como um im-
portante foco detonador para a implementação de um processo revolucionário, a
luta dos posseiros chamou a atenção do partido, que em 1954 enviaria militantes
para a região. Os comunistas ajudariam os posseiros na luta pela terra, fornecen-
do armas, auxiliando na criação de uma associação rural, além de iniciar uma
importante campanha na imprensa, por meio do jornal O Estado de Goiás.

O PCB atuava no campo nesse período adotando a linha "radical" definida


pelo Manifesto de Agosto de 1950, documento que confirmaria posição
defendida dois anos antes, no Manifesto de Janeiro de 1948, e que seria em
grande parte ratificado no IV Congresso do partido em 1954. Em linhas ge-
rais, tal postura traçava para o campo uma estratégia de ação que, ao de-
fender o confisco de terras em mão de latifundiários, sua distribuição gratui-
ta "aos camponeses sem terra ou possuidores de pouca terra e a todos que
nela quiserem trabalhar", colocava a questão fundiária em primeiro plano,
incorporando-a à luta nacional e antiimperialista (FRIED DA SILVA, 2005).

Entretanto, a atuação dos comunistas nas lutas em Formoso e Trombas deve


ser compreendida a partir do que ela significou para os posseiros, no que ela
contribuiu para a ampliação das estratégias de luta pela terra e ofereceu
alternativas de inserção das demandas camponesas num leque maior de
reivindicações.

A adoção dessa postura se torna possível na medida em que sejam consi-


deradas como válidas as distintas experiências de luta acumuladas pelos pos-
seiros ao longo dos anos, o que nos permite afirmar que a presença dos mili-
tantes comunistas na região dos conflitos significa para os posseiros uma
outra possibilidade de luta, a aceitação de uma nova estratégia que, conju-
gando-se a outras em curso, contribuiu, ainda que permeada por conflitos
quanto a sua execução, para a ampliação da resistência.

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

Fica afastado, portanto, o argumento de que as idéias trazidas "de fora" por
agentes "externos" sejam superiores aos saberes formulados pelos próprios
posseiros como resultante de suas experiências diretas. O que se pode afir-
mar, olhando de perto os eventos em Formoso e Trombas, é que o contato
com militantes comunistas trouxe novas questões que foram sendo incorpo-
radas e transformadas durante o processo de luta, o que contribuiu para a
ampliação do repertório de respostas elaboradas pelos posseiros frente às
contradições vivenciadas, como um amálgama de idéias que, por força das
circunstâncias históricas do momento, complementaram-se (RUDÉ, 1982.).

Mas isso não seria possível se os militantes do PCB não tivessem se depara-
do com um terreno propício e, em grande medida, já preparado pela prática
obstinada de uma resistência construída a partir da percepção de que, o que se
apresentava como ameaça real era a desintegração das condições de repro-
dução de um modo de vida baseado em concepções costumeiras de uso e di-
reito à terra. Experimentado pelas famílias de posseiros como uma conquista, a
certeza de que agiam em nome de um direito reconhecido conferia legitimi-
dade, revestindo de teimosia e coragem as ações em defesa da posse da terra.

Nas trincheiras da imprensa:

Em 30 de janeiro de 1955 foi criada, durante reunião que contou com a


presença de dezenas de posseiros, a Associação dos Lavradores e Trabalha-
dores Agrícolas do Formoso, cuja presidência caberia ao posseiro José Porfírio
de Souza. Na ocasião, além da elaboração do estatuto da Associação, foi
aprovado um primeiro programa de trabalho que apontava como principais
questões a serem efetivadas: a defesa das terras do Formoso contra as investi-
das dos grileiros e seus jagunços, o incentivo ao cooperativismo entre os pro-
dutores e a luta pela construção de escolas e hospitais para a região.

A Associação dos Lavradores do Formoso veio aglutinar diferentes formas de


luta até então empreendidas pelos posseiros. Dentre elas, a prática do mutirão,
realizada pelas famílias de posseiros desde que chegaram à região, e que, entre
outras finalidades, criava uma rede de auxílio mútuo tanto para o plantio, co-
lheita e venda dos gêneros nos mercados locais, quanto para a construção
coletiva da resistência contra as ameaças de expulsão e roubo das colheitas.

Às práticas de mutirão somava-se a atuação dos posseiros nos chamados


"conselhos de córrego". Esses "conselhos" estavam organizados segundo o
local de moradia, ou seja, um determinado número de posseiros cujas posses

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Ensaios e Debates

estavam situadas às margens de um dos inúmeros córregos, abundantes na re-


gião, reuniam-se para organizar a defesa da terra. Sobre a permanência dos
"grupos de mutirão" mesmo após o surgimento dos "conselhos de córrego", um
posseiro assim recupera a importância daquela forma organizativa:

"(...)Mas os grupos de mutirão, organizados espontaneamente


desde o início mais efetivo da luta, continuavam existindo e
desempenhando um papel muito importante, talvez mais impor-
tante mesmo que o dos conselhos de córrego, porque era a par-
tir do mutirão que se organizavam as tropas móveis de cam-
poneses, que circulavam por toda área para enfrentar a polícia
e os pistoleiros."8

Segundo Maria Esperança Carneiro(1981), a Associação dos Lavradores


do Formoso teria surgido da reunião desses inúmeros "conselhos de córrego",
formas de organização inicialmente dispersas e que vincular-se-iam sob a
direção única da associação, o que não teria ameaçado, entretanto, o
caráter democrático das reuniões dos "conselhos". Pelo contrário, ao que
parece, os "conselhos de córregos" continuaram a exercer um importante
papel nas decisões tomadas pelos posseiros mesmo após a criação da
Associação, que aprovaria e tornaria oficiais as resoluções já discutidas nas
reuniões dos "conselhos". Segundo depoimento de um posseiro que participou
da criação da Associação,

A Associação cuidava de tudo. Era formada pelos represen-


tantes dos conselhos de córregos e resolvia todos os problemas:
de terra, de remédio, de festas, de compras de sementes. A
gente ainda dançava nessas matas, apesar dos soldados. A
Associação foi uma coisa muito importante para manter o pes-
soal de Trombas unido e conseguir a vitória.9

A Associação surgiu exatamente no momento de maior tensão vivido pelos


posseiros. A pressão dos grileiros para que as famílias abandonassem as ter-
ras onde mantinham posse aumentava e ganhava cada vez mais o apoio de
tropas policiais. Do lado dos posseiros, a Associação por meio de panfletos
distribuídos às famílias da região e à imprensa, tentava reunir forças e cons-
cientizar a todos a não abandonarem as posses. Num desses "chamamentos",
dirigido às famílias de posseiros de "Coqueiro-de-Galho, Piteira, Lages,

8 - Depoimento de Manoel Porfírio, em O Movimento, op. Cit.


9 - Depoimento do posseiro Nazaré. Idem.

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

Pipoca, Laginha, Sapato, Trombas, Bonito, etc.", datado de julho de 1955, a


Associação de Lavradores do Formoso assim se dirigia:

"Companheiros: Estas terras são nossas. Temos de lutar até a


vitória, pois estamos com o direito e a razão, enquanto os
grileiros só contam com a polícia do Sr. Juca Ludovico(...).
Posseiros do Formoso: nesta nossa luta não estamos sozinhos. A
nosso favor está a maioria do povo goiano. De várias cidades
chegaram notícias de apoio que temos recebido. Enviam
protestos ao Governador, exigem a retirada da polícia, fazem
reuniões a nosso favor. Nas estradas da Colônia Agrícola exis-
tem muitas faixas protestando contra os crimes que estão sendo
cometidos aqui(...).
Companheiros: ninguém deve entregar arrendo, nem sair de
sua posse. Esta terra é nossa. Os grileiros são ladrões. Unidos
garantiremos nossos direitos."10

A percepção de que a situação se agravava era devido, em grande parte,


ao fato de que tropas da polícia goiana estavam sendo enviadas a Porangatu,
onde ficariam acantonadas à espera de ordem do Governador para invadir
o Formoso e pôr fim à anunciada "revolta". A crescente resistência dos pos-
seiros, sua obstinação em não ceder às ameaças dos grileiros, as sucessivas
vitórias nos confrontos armados contra jagunços e soldados da polícia,
começaram a forjar uma imagem de invencibilidade que em pouco tempo
assumiria ares de "lenda" em torno dos posseiros de Formoso e Trombas.

Não demorou para que os grileiros explorassem habilmente a resistência


dos posseiros como uma "revolta comunista" prestes a eclodir e se disseminar
por todo o Estado. A pressão para que a polícia invadisse de uma vez o palco
dos conflitos e restituísse a "ordem" ganhava força nas páginas de jornais
como Folha de Goiás e O Popular. Esses jornais tratavam os posseiros como
"bandoleiros", "invasores", "ladrões de terras", ou ainda como "inocentes úteis",
que assim procediam devido a influência dos "vermelhos".

Essa campanha anticomunista recebeu forte reação contrária de parte da


imprensa goiana favorável à causa dos posseiros. O Jornal de Notícias, perió-
dico ligado aos partidos de oposição11 ao governo pessedista de José Ludovi-
co (1955-1958), sob a direção de Alfredo Nasser, líder do PSP (Partido Social

10 - Documento da Diretoria da Associação Rural do Formoso, em O Estado de Goiás, edição de 10 de julho


de 1955.
11 - A oposição sistemática ao governo do PSD era feita sob a liderança da UDN e do PSP.

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Ensaios e Debates

Progressista), destacou-se como um importante veículo em defesa dos possei-


ros e contra as ações de grilagem de terras no Norte do Estado. Nas páginas
desse jornal foi feita uma ampla campanha de esclarecimento quanto a ques-
tão da disputa de terras no Formoso, campanha que contou com reportagens,
editoriais, e a constante publicação de cartas e entrevistas de posseiros envolvi-
dos na luta pela terra na região, em especial o posseiro José Porfírio de Souza,
apontado pelos grileiros como o "chefe" dos bandoleiros comunistas.

Nesse momento, Formoso e Trombas ganhou as páginas dos principais jor-


nais cariocas e paulistas, além de revistas de alcance nacional, passando a
figurar como preocupação que transcendia aos limites goianos. Uma ver-
dadeira batalha passou a ser travada na imprensa pela legitimidade da luta
dos posseiros, desencadeando um amplo debate acerca da questão das ter-
ras devolutas em Goiás, debate que envolveu políticos de diferentes partidos
e matrizes teóricas em sessões acaloradas na Assembléia Legislativa goiana.

A violência dos confrontos armados entre posseiros e a polícia goiana reper-


cutiu amplamente na imprensa, desencadeando uma intensa batalha travada
no terreno da informação. De um lado, setores conservadores da imprensa
alardeavam que os lavradores goianos, orquestrados por um movimento
comunista previamente articulado, representavam uma verdadeira ameaça à
ordem pública ao responderem violentamente às incursões policiais; de outro,
uma ampla campanha de esclarecimento, que incluía desde publicações de
entrevistas feitas com posseiros até telegramas de políticos goianos ao
Governo Federal, procurava denunciar a violência da polícia e a passividade
do governo diante das graves notícias que vinham do cenário dos conflitos.

Em telegrama enviado ao Ministro da Justiça, Nereu Ramos, Alfredo Nasser


alertava para o perigo de ocorrer no estado um "massacre de pobres pos-
seiros" se a situação não fosse devidamente esclarecida,

"Na qualidade de Diretor do Jornal de Notícias, órgão das


oposições coligadas de Goiás, venho opor perante V.Excia, um
veemente desmentido às informações daqui transmitidas para
todo o país sobre um suposto movimento comunista que teria
irrompido no norte deste Estado. Esse noticiário tendencioso
visa encobrir a operação de massacre de pobres posseiros de
terras, que estão resistindo à polícia no momento em que esta
se encontra a serviço de grileiros, mancomunados com políticos
da situação(...) Os fatos poderão ser facilmente esclarecidos por
um observador desse Ministério. Contra o assassinato bárbaro

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

e frio de humildes lavradores, cujo único crime é pretenderem


defender sua propriedade e sua vida, está se levantando a con-
sciência de todos homens livres de Goiás."12

O governo, por sua vez, buscava minimizar a gravidade do caso informan-


do que tinha tudo sob controle, atribuindo à "imprensa sensacionalista" o
papel de disseminar o caos e a desordem visando obter ganhos políticos com
a situação. O próprio governo agia de forma ambígua em sua intervenção:
se por um lado dizia que se mantinha firme no propósito de dar apoio e
assistência aos posseiros, por outro, enviava novos contingentes da PM, por
terra e pelo ar, atendendo solicitação do comandante encarregado da oper-
ação, o Capitão Silveira, que permanecia baseado em Porangatu.

Enquanto parte da imprensa se posicionava contra os posseiros, denun-


ciando o que consideravam ser uma ação de bandoleiros insuflados por agi-
tadores comunistas, o Jornal de Notícias cedia espaço em suas edições a car-
tas e depoimentos enviados pelo posseiro José Porfírio. Numa dessas cartas,
falando em nome dos posseiros, José Porfírio apresentava a sua versão:

"Temos certeza de que as pessoas honestas de Goiás, quando


tomarem conhecimento da verdadeira situação do Formoso,
irão concluir que os bandidos e invasores não somos nós, pos-
seiros, que há tantos anos desbravamos estas terras e que a
custa de um trabalho duro e muitas vezes heróico a valorizamos.
Invasores e bandidos são os grileiros, que agora tentam outra
vez nos expulsar de nossas posses, que roubam nossas colhei-
tas, queimam nossos ranchos, espancam nossas esposas e filhos
e que só não nos assassinaram ainda porque temos as nossas
carabinas e com elas defendemos nossas vidas.(...) Os grileiros
mandam dizer nos jornais que aqui existe um 'bando de comu-
nistas' armados com armas de guerra querendo invadir as cida-
des. Outros jornais apresentam os posseiros como terríveis e
sanguinários jagunços."13

A postura adotada por Pofírio, a mesma que será delineada em editoriais e


reportagens feitas pela imprensa favorável à causa dos posseiros, é a de contra-
por às acusações de "agitação" e, principalmente, de que se tratava de um
"bando de comunistas", a imagem de trabalhadores honestos, cujo único dese-
12 - Telegrama de Alfredo Nasser ao Ministro da Justiça Nereu Ramos, publicado em Jornal de Notícias, 20
de março de 1956.
13 - Carta de José Porfírio ao Deputado Estadual Misac Ferreira(PSD), publicada em Jornal de Notícias, 29 de
março de 1956.

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Ensaios e Debates

jo era o de cultivar pacificamente suas terras. O objetivo, em princípio, é o de


esclarecer a diferentes setores da sociedade goiana de que a ferrenha campa-
nha anticomunista empreendida no Folha de Goiás, por exemplo, não é mais
do que o desejo de fazendeiros e grileiros em justificar a ação bélica da polícia.

Nessa disputa entre serem "bandoleiros" e "comunistas" ou apenas pacíficos


lavradores, estava em jogo a legitimidade das lutas. Os interessados em expul-
sar os posseiros sabiam que qualificar a resistência como uma operação or-
questrada por elementos comunistas significaria opor a opinião pública ao re-
conhecimento do direito à terra pelas famílias de lavradores. Da mesma forma
que seria importante na pressão exercida sobre o Governo para que retirasse
a polícia do cerco que fazia ao Formoso, a opinião pública, se contrária aos
posseiros, traria sérios riscos de converter o episódio de Formoso e Trombas nu-
ma nova canudos. Os grileiros sabiam disso. Os posseiros também.

Portanto, somada aos confrontos armados com jagunços e à permanência


da necessidade de se organizarem para defender-se da investida policial que
se avizinhava, a luta travada pelos posseiros na imprensa aprofundou-se e
converteu-se em importante estratégia de resistência. Para que a terra fosse
definitivamente conquistada, era preciso, além da vitória nas trincheiras
espalhadas pelas matas, superar os grileiros nas trincheiras da imprensa. Essa
arena de luta ganhou dimensão nacional quando da reportagem, publicada
em abril de 1956, feita pela revista O Cruzeiro.14

Presente no cenário dos conflitos, ao contrário da grande maioria dos jor-


nais que publicavam a versão de agentes do Governo, O Cruzeiro, em
reportagem feita pelo jornalista Jorge Ferreira, levou "aos quatro cantos do
país" a história daqueles posseiros que defendiam à bala o direito de per-
manecerem nas terras onde há décadas trabalhavam. Pela primeira vez, José
Porfírio e outros posseiros tinham a oportunidade de ter a sua história lida por
amplos setores da sociedade brasileira. Formoso e Trombas já eram notícias
em todo o Brasil nesta época. Importantes jornais do Rio de Janeiro, como O
Globo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, e de São
Paulo como O Estado de São Paulo, já haviam publicado matérias sobre as
agitações no norte de Goiás. Entretanto, o coro do anticomunismo fazia eco
nas páginas desses jornais, que na maioria dos casos reproduziam infor-
mações confusas sobre os acontecimentos ou simplesmente transcreviam o
que já fora publicado na imprensa goiana.

14 - A revista O Cruzeiro faria duas reportagens sobre os acontecimentos em Formoso e Trombas. A primeira,
em 14 de abril de 1956, e a segunda em 30 de março de 1957.

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

A reportagem feita em O Cruzeiro trouxe uma nova perspectiva. Já não se


tratavam de informações imprecisas onde os "rebeldes" sequer eram ouvidos.
Atingindo uma quantidade muito superior de leitores em comparação com os
marcos limitados da imprensa goiana, a revista proporcionou aos posseiros
uma significativa ampliação no alcance de suas representações, alargando as
trincheiras ocupadas no espaço da imprensa.

Nitidamente consciente da importância dessa oportunidade, o discurso cons-


truído por José Porfírio procura conciliar trabalho honesto e prosperidade na-
cional, numa tentativa de desmistificar a imagem de "bandoleiros" e "agitado-
res comunistas", atributos pelos quais eram conhecidos fora de Goiás. Indaga-
do a justificar a reação armada, Porfírio seria taxativo, "Sofremos perseguições
durante três anos, até que chegou o momento de dizer 'Chega!'".

Significativo da estratégia de discurso adotado por Porfírio seria sua carta pu-
blicada na segunda reportagem de O Cruzeiro, em março de 1957. Reproduzi-
remos aqui a íntegra da carta tal qual foi escrita pelo posseiro em 12 de feve-
reiro de 1957 e publicada pela revista (conservando a ortografia de Pofírio):

"Por intermédio do Cruzeiro o povo di Vila Dourada[Trombas] i di


Formozo apela para o Sr. Governador e as mais autoridade para
nos deixar nas nossa terra, trabalhando para a prosperidade, do
Brazil. Goiás é tão grande, porque nos querem expulçar di um
piqueno pedasso di terra? Os posseiros aqui, na luta pelo o pão i
pela a terra jamais agridirá ninguém. Respeitam a lei e toudas as
autoridade. Querem so vever em paz. Queremos só isto, não
queremos nem mesmo vingar a queima das nossas cazas, o estra-
go di nossas roças, i a falta di socego destes ultimo 5 anos. Em
causo de ser expulço da terra por qualquer meio estamos cididido
a perder a vida defendendo o quinhão de terra que dar o susten-
to di nossas familias. É mentira, é provocação dizer que nois somos
comunista, isto é bandeira dos grileiros, dos homens maus, para
nos colocar mal. Nois somos brazileiros honestos, temos o direito
di viver. Quem duvidar, venha nos ver. A arma que encontrarão nas
nossas mãos será a enxada. Não transformem em carnificina uma
causa tão justa. Si não for possível vever como gente decente,
então vamos morrer em defesa das nossas terras. Di graça não
tomarão as nossas terras. Não é defeito i nen vergonha o homem
morrer pela a terra que elle quer trabalhar.15

15 - Carta de José Porfírio à revista O Cruzeiro, publicada na edição de 30 de março de 1957.

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Ensaios e Debates

A atitude deferente contida no pedido às autoridades não esconde o ver-


dadeiro objetivo da carta: o diálogo estabelecido visa à construção de uma
imagem oposta àquela transmitida pela imprensa contrária à luta dos pos-
seiros. Estrategicamente levado, por força da posição de quem solicita, a não
revelar por inteiro os seus pensamentos (daí a ambigüidade da carta que ora
exalta a passividade, ora enfatiza a disposição de resistir até a morte), José
Porfírio se utiliza do espaço conquistado na imprensa como mais uma trin-
cheira de luta, e por meio desta, articula uma intensa pressão a favor da per-
manência dos posseiros em suas posses, alterando os rumos tomados pelo
Governo goiano até aquele momento.

A intensa pressão exercida na imprensa, aliada às sucessivas vitórias dos


posseiros nos enfrentamentos armados contra os soldados da polícia e as mi-
lícias privadas de jagunços a serviço de grileiros, acabou por fazer com que
o governo se decidisse por retirar as tropas de Porangatu e desistisse de inva-
dir o Formoso. Segundo Paulo Cunha (1997), naquele momento um confron-
to aberto entre a polícia goiana e os posseiros não era desejado pelas autori-
dades em face das eleições estaduais que se aproximavam. Portanto, um re-
cuo da ação governamental se fazia oportuno.

Contudo, apesar da decisão tomada pelo governo frente a resistência dos


posseiros, a polícia não se retirou por completo da região. No início do ano
de 1957, o governador José Ludovico nomeou um Delegado Especial acom-
panhado de sessenta praças para atuar no Formoso com o intuito de apa-
ziguar os ânimos na região e garantir que as posses e o trabalho dos possei-
ros fossem respeitados e a colheita fosse realizada com tranqüilidade. Entre-
tanto, em acordo firmado com os posseiros no ano anterior, em troca destes
abandonarem as armas, o Governo havia se comprometido em enviar para
a região agrimensores e técnicos incumbidos de fazer a medição das terras
de Formoso e Trombas e dividir a área entre os posseiros.

De fato estiveram na região de Formoso e Trombas o Dr. José Fernandes


Peixoto, Diretor de Divisão de Terras, o Sr. Darwin Rafael, Procurador de Justi-
ça do Estado, e o Sr. Antonio Pinto, agrimensor do Estado. Na ocasião, dis-
tribuíram documento aos posseiros assegurando sua permanência nas terras
e se comprometendo, em nome do Governo de Goiás, a realizar a titulação
das posses. O agrimensor fez o levantamento das terras e cadastrou as famí-
lias de posseiros, prometendo retornar em breve para "cortar" as posses. No
entanto, em lugar do agrimensor chegou a polícia.

A presença da polícia no Formoso trouxe pânico às famílias de posseiros.

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

Ainda que com a promessa do governador de que não haveria qualquer tipo
de violência contra os posseiros, e que a presença policial visava apenas evi-
tar novos confrontos entre posseiros e grileiros, que voltavam a ameaçar os
posseiros no período das colheitas, a população temia uma nova onda de
violência policial como a que ocorrera antes da reação armada, quando
homens eram presos e espancados, mulheres violentadas, representando,
portanto, uma constante ameaça.

Uma nova campanha foi realizada pela retirada das tropas policiais. Dessa
vez, os posseiros puderam contar com um leque mais amplo de apoio. Foi cri-
ada em fevereiro de 1957 a Comissão de Solidariedade aos Posseiros de
Formoso e Trombas. A Comissão era composta por políticos, lideranças sindi-
cais, advogados, jornalistas, estudantes, pequenos comerciantes, e grande
número de simpatizantes. Dentre as finalidades da Comissão estavam o
empenho na promoção de uma "cobertura jornalística" que combatesse no
próprio campo da informação as várias reportagens que procuravam "incom-
patibilizar os posseiros com o governo, com as autoridades e a opinião públi-
ca". A Comissão ainda se comprometia em "facilitar a compra e o escoamen-
to da grande safra da região(...) principalmente agora que uma enorme leva
humana se encaminha para Brasília e precisa comer".16

Ao que parece, mais essa pressão, contando agora com amplos setores da
sociedade goiana, foi capaz de desmobilizar o governo em seu intuito de
manter a polícia na região do Formoso. Entretanto, a obtenção dos títulos de
posse das terras de Formoso e Trombas pelos posseiros seria ainda adiada.

Os enfrentamentos armados cessaram a partir do ano de 1958. A estraté-


gia levada adiante pelos posseiros logrou repelir qualquer ação governamen-
tal que pretendesse intervir com ouso da força na região. A capacidade orga-
nizativa dos posseiros, demonstrando verdadeira unidade de luta quanto aos
objetivos a serem alcançados, mostrou às autoridades goianas que qualquer
solução proposta para o equacionamento dos conflitos tinha que passar pelo
reconhecimento de que os verdadeiros donos das terras em Formoso e Trom-
bas eram os posseiros. Vitoriosos na arena da representação, resistindo bra-
vamente nas trincheiras espalhadas pelas matas, os posseiros dariam um pas-
so fundamental rumo à vitória definitiva sobre os grileiros.

16 - Documento de criação da Comissão de Solidariedade aos Posseiros de Formoso e Trombas, publicado


em Jornal de Notícias, 03 de fevereiro de 1957.

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Ensaios e Debates

A conquista da terra: ampliação das lutas e a experiência


de um projeto alternativo de democracia popular camponesa

Longe de apresentar quaisquer propostas de equacionamento para a ques-


tão, o governo retirou-se da região e nenhuma das promessas anteriormente
firmadas, a medição das terras, sua distribuição aos posseiros, a emissão dos
títulos de posse, nem demandas reivindicadas, como a construção de esco-
las, hospitais, e programas de incentivo à produção, foram efetivadas.

Tanto a ausência de funcionários estaduais quanto ao significativo silêncio


na imprensa sobre o que estava acontecendo em Formoso e Trombas, aju-
daram a fortalecer o mito de que a região havia se transformado num ter-
ritório liberado onde vigoravam as leis do comunista José Porfírio.
Evidentemente excessiva, essa imagem tinha, entretanto, um quê de ver-
dadeira. De fato os posseiros continuaram armados e preparados para uma
eventual investida dos grileiros e seus jagunços. A experiência vivenciada em
tantos anos de luta não permitia que qualquer descuido pusesse em risco sua
vidas e a permanência nas terras onde tanto sangue fora derramado. Além
disso, persistia o temor à polícia, sempre vista como aliada dos grileiros.

A necessidade de organizar-se para resolver questões do dia-a-dia, que iam


desde a colheita até problemas familiares, fez com que os posseiros planejassem
uma administração que desse conta da ausência institucional a que foram rele-
gados. Coube à Associação dos Lavradores do Formoso o papel de instância má-
xima que cumpriria funções de governo. A Associação acumulou funções execu-
tivas, foi eleito pelos posseiros um "prefeito" para a região; legislativas, estabele-
cendo regras para o tamanho que deveria ter cada posse; além de arbitrar ques-
tões de disputas entre posseiros sobre quem tinha direito à determinada posse.

Em maio de 1961, uma comissão de posseiros representando a Associação


dos Lavradores do Formoso, e tendo José Porfírio à frente, foi recebida no
Palácio do Governo do Estado, pelo então governador Mauro Borges(1961-
1964). Os posseiros foram firmar um acordo junto ao Governo do Estado,
onde solicitavam o reconhecimento da legitimidade da ocupação das vilas de
Formoso e Trombas e a distribuição das terras em litígio por meio da
Associação. Segundo Rui Facó, enviado especial do jornal "Novos Rumos" à
região para fazer uma reportagem sobre os desdobramentos das lutas em
Formoso e Trombas, o acordo consistia no "reconhecimento (...) de uma área
de 10 mil quilômetros quadrados da região."17

17 - Jornal Novos Rumos, julho-agosto de 1961.

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M u i to a l é m d a s c a r a b i n a s : r e s i s tê n c i a e l u ta p e l a te r r a n a s tr i n c h e i r a s d a i m p r e n s a -
a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

Rui Facó ainda acrescenta que o acordo incluía, além da distribuição dos
títulos de posse aos posseiros, "a criação de escolas, um posto médico,
estradas e ajuda para a fundação de uma cooperativa de produção e con-
sumo na região." As terras deveriam ser divididas entre os posseiros de acor-
do com os critérios de distribuição adotados pelos próprios posseiros por
meio da Associação dos Lavradores do Formoso. Os títulos de posse seriam
entregues logo após as demarcações feitas pelo governo, seguindo orien-
tação previamente estabelecida pelos posseiros.

O que o aludido acordo revela, além da clara intenção do Governo do


Estado de apaziguar a situação de conflitos na região, é o reconhecimento da
representatividade lograda pelos posseiros através da Associação e suas
atribuições. A legitimidade de uma organização construída ao longo do
processo de luta. Além disso, o reconhecimento pelo Estado da vitória dos
posseiros sobre os grileiros e seus jagunços.

Em 1962, os posseiros iriam mais longe ao conseguirem a emancipação de


Formoso, elevando a antiga vila de Uruaçu a município. A emancipação de
Formoso é conseqüência direta da criação, consolidação e legitimidade
alcançada pela Associação dos Lavradores do Formoso nos anos anteriores.
Também é significativo desse processo, a eleição de José Porfírio nesse
mesmo ano. Porfírio foi eleito Deputado Estadual em Goiás, tornando-se o
primeiro camponês eleito deputado na história do Brasil. Além do significati-
vo fato de ser camponês, Porfírio, por conta do prestígio e liderança que exer-
cia sobre os posseiros, foi nestas eleições um dos deputado mais votado de
Goiás. Agora, fazendo parte da Assembléia Legislativa do Estado, o deputa-
do posseiro dividiria seu tempo entre os compromissos parlamentares e os tra-
balhos na Associação.18

Esse breve período de consolidação de conquistas e de ampliação da par-


ticipação política foi o resultado de anos de intensa mobilização e lutas
travadas em diferentes espaços. O que inicialmente consistia na defesa obsti-
nada das terras, tornou-se ao longo dos anos na construção de um projeto
ampliado de exercício democrático, onde camponeses pobres ousaram
desafiar a ordem dominante e implantaram, a partir de suas próprias expe-
riências, ao menos por um breve período, uma organização de trabalho po-
pular e participativo.

18 - Porfírio, atuando como Deputado, se engajou diretamente na sindicalização dos trabalhadores rurais em
todo o Estado. Durante o Governo Mauro Borges, foi realizada uma massiva campanha pela sindicalização
rural. Essa campanha, que esteve a cargo do Idago (Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás), objetiva-
va converter as inúmeras associações rurais espalhadas pelo estado em sindicatos reconhecidos pelo governo.

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Ensaios e Debates

O golpe militar de 1964, poria fim à Associação e iniciaria uma cruel


perseguição às lideranças em Formoso e Trombas. Um interventor foi nomea-
do pelos militares para a prefeitura de Formoso. Porfírio, Geraldo Marques,
João Soares (Suarão), Bartô, entre outras lideranças de Formoso e Trombas
tiveram que fugir e permaneceram durante algum tempo em total clandes-
tinidade. Porfírio foi visto pela última vez em 1972, antes, cumprira seis meses
de prisão num quartel do exército em Brasília. Seu nome hoje, consta na lista
oficial dos desaparecidos políticos.

Considerações finais:

A história das lutas camponesas no Brasil é repleta de experiências que de-


monstram a determinação com que o campesinato responde ao variado reper-
tório de expropriação ao qual tem sido violentamente submetido. Essas lutas
tem em comum o fato de constituírem-se em ousadas tentativas de subverter o
"curso normal" das relações de dominação consagradas no campo. A expe-
riência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas é um dos capítulos mais
importantes dessa rica história. A capacidade organizativa desses camponeses,
suas variadas respostas frente às ameaças de expulsão, a obstinada resistên-
cia que abarcou estratégias distintas de luta, a irrupção "forçada" no cenário
político goiano, são alguns dos elementos que forjaram a legitimação do cam-
ponês como sujeito social que não podia mais ser ignorado.

Alguns críticos do campesinato dirão tratar-se apenas de uma luta pela pro-
priedade da terra, o que converteria os movimentos camponeses em lutas con-
servadoras, pequeno burguesas, portanto, incapazes de questionar o estatuto de
propriedade privada capitalista. O equívoco dessas análises é não compreender
os significados que assumem a terra para o camponês. Para os camponeses que
dão a vida por um pedaço de terra, lutar por ela equivale a lutar pela vida. O
que está em jogo é o direito de decidir pelo próprio destino, o que o processo
capitalista que expropria o camponês de sua terra se encarrega de aniquilar. Lu-
tar pela terra é, portanto, e não apenas isso, uma luta por autonomia.

Tal luta assume um caráter extremamente ofensivo em face da real ameaça


de expropriação. Essa expropriação é parte permanente da totalidade da ex-
pansão do capitalismo. Nesse sentido, a luta pela reprodução da posse da
terra consiste numa resposta violenta ao avanço do capitalismo e à reprodu-
ção de suas relações no campo. Daí, a defesa da posse da terra e a teimosa
resistência à sua perda significarem, através de uma subversiva manifestação
de defesa de direitos, a negação da propriedade capitalista da terra.

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a experiência histórica dos posseiros de Formoso e Trombas- GO (1950-1964)

A presença do capitalismo no meio rural se dá por diferentes formas: con-


centração acentuada da propriedade; crescente expropriação de pequenos
lavradores, posseiros, frente à expansão da empresa agrícola; grilagens de
terras; subordinação da pequena propriedade aos interesses do capital; cres-
cente proletarização rural. Os efeitos dessa dinâmica lançam o camponês à
imperiosa necessidade de resistir para sobreviver, seja migrando para novas
áreas e iniciando um novo processo de ocupação, seja organizando a
resistência a partir da própria área ameaçada.

Tais alternativas, entretanto, não implicam nem em um isolamento comple-


to num mundo não capitalista, nem, em pólo oposto, no fatalismo de uma
desintegração total. Ao subordinar o rural aos seus interesses, como parte de
sua necessidade de reproduzir-se, o capitalismo recria suas relações dentro
de uma tensa disputa que não elimina, entretanto, as pressões aos seus limi-
tes. E foi justamente dessas pressões que tratamos aqui.

BIBLIOGRAFIA:

ABREU, Sebastião de Barros. Trombas: A Guerrilha do Zé


Porfirio. Goethe, Brasília, 1985.

AMADO, Janaína. Eu Quero Ser Uma Pessoa: revolta campone-


sa e política no Brasil. Resgate n. 5, UNICAMP, Campinas,
1993. pp 47-59.

CARNEIRO, Maria Esperança. A Revolta Camponesa de


Formoso e Trombas. Cegraf, Goiânia, 1981.

CUNHA, Paulo Ribeiro Rodrigues da. "Aconteceu Longe


Demais". A Luta dos Posseiros de Formoso e Trombas e a Política
Revolucionária do PCB no Período de 19850-1964. Dissertação
de Mestrado, PUC, São Paulo, 1994.

____. Redescobrindo a História: A República de Formoso e Trom-


bas. Cadernos AEL n. 7, UNICAMP, Campinas, 1997. pp. 83-103.

FRIED DA SILVA, Carlos Maurício. Conflitos no Campo e


Revolução no Brasil: imprensa e intelectuais comunistas (1954-
1964). Dissertação de Mestrado, ICHF - UFF, 2005.

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Ensaios e Debates

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil.


Vozes, Petrópolis, 1982.

RUDÉ, George. Ideologia e Protesto Popular. Jorge Zahar, Rio


de Janeiro. 1982.

THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos Sobre Cultura


Popular e Tradicional. Cia das Letras, São Paulo, 1998.

____. A Miséria da Teoria, ou um Planetário de Erros. Jorge


Zahar, Rio de Janeiro, 1978.

____. "La Sociedade Inglesa del Siglo XVII: Lucha de Clases sin
Clases?" In.: Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase.
Editorial Crítica, Barcelona, 1989. pp. 13-61.

PERIÓDICOS E OUTRAS FONTES:

O CRUZEIRO, abril de 1956 e março de 1957.

DIÁRIO OFICIAL DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE GOIÁS,


Goiânia, janeiro a junho de 1963.

DNER-MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, Rodovias Federais de


Goiás, 1984.

O ESTADO DE GOIÁS, Goiás, 1951-1955.

O ESTADO DE SÃO PAULO, São Paulo, 1956.

JORNAL DE NOTÍCIAS, Goiás, 1956-1958.

O MOVIMENTO, agosto de 1978.

NOVOS RUMOS, Rio de Janeiro, julho a agosto de 1961.

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O discurso da magistratura
fluminense nos conflitos de
terra no Rio de Janeiro
Mariana Trotta Dallalana Quintans*

INTRODUÇÃO

No presente trabalho iremos investigar o discurso da magistratura flumi-


nense nos conflitos possessórios envolvendo o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra- MST. Através da analise de fragmentos de decisões
emblemáticas e do balanço dos julgados realizados no estado do Rio de
Janeiro buscaremos identificar o discurso jurídico hegemônico e suas pos-
síveis rupturas. Dessa forma, nos propomos a analisar a potencialidade do
campo jurídico na resolução dos conflitos relativos à questão da terra no ter-
ritório fluminense.

1 . Interpretação judicial e ideologia

O entendimento majoritário na processualística brasileira, que ganhou


força na segunda metade do século XIX com o trabalho do jurista italiano
Guiseppe Chiovenda, era do caráter meramente declaratório das sentenças
judiciais. A função do juiz seria a de aplicar a lei ao caso concreto, basean-
do-se na vontade do legislador para por fim ao conflito. Dessa forma, o juiz
dotado de neutralidade declararia o direito já determinado no diploma geral.

As modernas teorias sobre a interpretação judicial relacionadas a teoria da


argumentação apresentaram divergências a esta leitura do caráter unívoco
do texto normativo, aceitando a possibilidade de diferentes interpretações
judiciais para o mesmo dispositivo legal. Entretanto, não buscam entender os
fatores que levam o magistrado a escolha de um entre os possíveis significa-
dos do mesmo texto normativo. Preocuparam-se apenas em elaborar mode-
los interpretativos que possam condicionar a atividade judicial.

* Advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no estado do Rio de Janeiro Professora de
Direito Constitucional

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Ensaios e Debates

A teoria kelseniana introduziu no debate jurídico uma outra leitura sobre o


caráter das decisões proferidas pelos magistrados. Entendendo serem estas,
na realidade, criadoras de direito. O texto normativo como qualquer outro
texto ou palavra permitiria diferentes leituras, cabendo ao magistrado escol-
her um de seus sentidos para solucionar o caso concreto - o texto normativo
seria apenas uma moldura, um limite para a interpretação. A decisão judicial
possui caráter constitutivo do direito, ela é a continuação do processo de pro-
dução das normas jurídicas, ou melhor, ela é uma das etapas do sistema de
criação do direito, assim como a produção legislativa.

Os textos normativos possuem indeterminações em graus diferentes, estas


indeterminações podem ter sido produzidas de forma intencional ou não.
Para oferecer respostas a estas indeterminações os juízes terão de fazer uso
de outros elementos, como as suas noções de justiça, seus juízos de valor
social, e tantos outros (Kelsen, 2000.2).

O magistrado ao interpretar encontra limites a sua liberdade de decisão na


moldura representada pelo texto normativo. Mas ao interpretar o juiz desem-
penha um ato de vontade, escolhe uma das alternativas expressas neste texto
normativo. Desta forma, as decisões judiciais não são meras aplicações da
lei ao caso concreto, ao contrário, o ato judicial é a criação do direito do
caso concreto. O juiz a partir de sua subjetividade - seus valores, sua ideolo-
gia - determina o direito relativo a situação específica trazida ao processo
pelas partes.

A experiência individual é delineada a partir das experiências vividas pelos


sujeitos sociais e, influenciada pela ideologia materializada nos aparelhos da
sociedade civil e política - diretamente relacionada com as lutas e con-
tradições da sociedade. Os sujeitos se desenvolvem e formam sua consciên-
cia a partir das relações sociais em que se inserem. Dessa forma, as relações
vivenciadas pelos magistrados irão influenciar na constituição de sua subje-
tividade e na formação de suas noções de justiça, de certo e errado e, nas
suas convicções político-ideológicas.

Passaremos então a observar os conflitos sociais na luta pela terra e sua


análise pelo judiciário fluminense. Momento em que poderemos demonstrar
melhor como ocorre o processo de produção normativa, ou seja, a opção
pelo magistrado por um dos significados do texto normativo.

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O d i s c u r s o d a m a g i s tr a tu r a f l u m i n e n s e n o s c o n f l i to s d e te r r a n o R i o d e J a n e i r o

2. As decisões da magistratura fluminense


sobre os conflitos pela posse da terra

Devido as lições históricas do movimento camponês, o MST nasce com a


percepção de que a terra não se ganha, mas que é conquistada através da
luta dos trabalhadores organizados. Compreendendo, desta forma, a impor-
tância das ocupações coletivas como forma de pressionar os Poderes Públicos
para a promoção da Reforma Agrária, com o assentamento de famílias sem-
terra e o investimento na agricultura familiar.

No Rio de Janeiro, é em 1997 que o MST passa a promover uma série de


ocupações no interior, tendo como foco a região norte do Estado, onde hoje
encontram-se localizados os assentamentos de Zumbi dos Palmares, Che
Guevara, Ilha Grande, Chico Mendes e Arizona. Neste mesmo período foram
realizadas outras ocupações, como a que deu origem ao pré-assentamento
Sebastião Lan (na região dos Lagos) e Terra Prometida (na Baixada Fluminense).

Nos anos que se seguiram, os Sem Terra continuaram a promover ocu-


pações por todo o estado, realizaram também marchas, ocupações no pré-
dio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA e em
outros prédios públicos, buscando respostas do Poder Executivo a falta de
investimento e vontade política na realização da Reforma Agrária.

Nos dois últimos anos do governo do ex-Presidente Fernando Henrique


Cardoso (2000-2002) o movimento diminuiu o ritmo de suas ocupações, em
grande parte pelo crescente processo de criminalização vivido pelo MST,
impulsionado pelo Governo Federal, que pode ser observado na edição da
Medida Provisória n. 2.027 (de 04 de maio de 2000), que proibia a realiza-
ção de vistorias pelo INCRA em áreas "invadidas".

Após a eleição do atual Presidente da República, o MST manteve sua


estratégia de ocupações de terra improdutivas ou que não cumpram com sua
função social como forma de pressionar o Governo Federal a realizar a
Reforma Agrária. Dos casos de ocupações coletivas promovidas pelos Sem
Terra a maioria foi levada ao judiciário. Passaremos a análise de alguns deles,
buscando verificar o discurso da magistratura fluminense sobre os conflitos
fundiários.

A primeira decisão que vamos analisar é relativa a uma ocupação do MST


no Município de Italva em agosto de 2003, onde foi negada a liminar de rein-
tegração de posse pleiteada pelo latifundiário (ação nº 5018/03), sobre área

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Ensaios e Debates

improdutiva, que já havia sido matéria de decreto desapropriatório emitido


pelo Poder Executivo. Destacamos alguns trechos da decisão:

"(...) Seja quem for, seja quem cumpra a promessa constitu-


cional da função social, é este o protegido pelo Direito e pela
Constituição Federal. A propriedade de terra sem o cumprimen-
to de função social não é propriedade a ser tutelada pelo
Direito, quando em confronto com outros valores (...)"

Nesta decisão paradigmática o magistrado defende que nos casos envol-


vendo famílias de trabalhadores sem-terra e proprietários, estariam em jogo
dois direitos: de um lado o direito patrimonial de propriedade e de outro o
direito à vida e ao trabalho na terra. Vejamos neste outro fragmento retirado
da mesma decisão:

"(...)A bifurcação que se apresenta pode levar a dois caminhos,


e a escolha revelará o quão justa é a sociedade em que vive-
mos ou que queremos viver: o bem patrimonial inexplorado,
moribundo, objeto apenas de uma dominação quase feudal, ou
a atividade vinculada à vida no campo, à fixação da família em
terras e (...) a subsistência (...)."

Neste sentido, o juiz expressou que o texto normativo possibilitaria a esco-


lha pelo magistrado de um de seus significados, tal opção feita pelo juiz seria
um reflexo da sociedade em que estivesse inserido. Dessa forma, a decisão
pela garantia do direito sobre a terra ao proprietário ou pelos sem-terra,
estaria relacionada à ideologia do magistrado e ao discurso hegemônico na
sociedade.

Foi nesse sentido que o magistrado negou a concessão da medida liminar,


mantendo os sem-terra na área. Hoje, as famílias que ocuparam a fazenda
estão sendo assentadas pelo INCRA.

Posição diferente foi a adotada pelo Juiz da 2a Vara Federal de Campos


dos Goytacazes na ação de reintegração de posse nº 2004.5103000888-0,
também ocupada pelo MST, que foi vistoriada sendo considerada improduti-
va, entretanto, como em inúmeros outros casos o latifundiário ingressou com
ação de nulidade do laudo de vistoria, esta lide encontra-se em andamento
e por este motivo o processo de desapropriação encontra-se suspenso. Sobre
este caso o magistrado entendeu pela reintegração de posse e pela ilegali-
dade da ocupação, considerando tal prática como esbulho possessório:

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O d i s c u r s o d a m a g i s tr a tu r a f l u m i n e n s e n o s c o n f l i to s d e te r r a n o R i o d e J a n e i r o

" (...) O esbulho possessório - mesmo tratando-se de pro-


priedade alegadamente improdutivas - constitui ato revestido de
ilicitude jurídica.

Ponderou o magistrado, na mesma decisão, sobre outras práticas do


Movimento Sem Terra - como as ocupações de prédios públicos - consideran-
do-as, também, como ilícitas e autoritárias. Completou:

"(...) Revela-se contrária ao Direito (...) a conduta daqueles que -


particulares, movimentos ou organizações sociais - visam, pelo
emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de prédios
públicos e de imóveis rurais, a constranger, de modo autoritário, o
Poder Público a promover (...) programa de reforma agrária.(...)"

Em outra passagem da mesma decisão, o magistrado faz menção ao direi-


to constitucional de propriedade para justificar sua posição de retirar as famí-
lias da área ocupada. A decisão entende o direito à propriedade como abso-
luto, não levando em conta o dever constitucional de cumprimento da função
social por toda a propriedade, diz:

"O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada


em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso
arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação pos-
sessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdu-
tivos(...)."

Completa o magistrado utilizando-se do dispositivo constitucional, cons-


tante entre as garantias fundamentais da cidadania, sobre o direito de pro-
priedade excluindo de sua análise os demais direitos expressos nos incisos do
mesmo artigo da Constituição Federal de 1988 (art. 5o). Vejamos:

"(...) notadamente porque a Constituição da República ao


amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de
propriedade (CF, art. 5o, XXII) - proclama que ' ninguém será pri-
vado (...) de seus bens, sem o devido processo legal' (art. 5o, LIV)."

Neste sentido, também, foi o entendimento do Juiz de Direito da 1a Vara


Federal da mesma comarca, Campos dos Goytacazes, na ação de reinte-
gração de posse nº 2001.51.03.001441-6 contra o MST, que ocupou qua-
tro fazendas do Complexo Cambayba, de propriedade da Usina falida de
mesmo nome.

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Ensaios e Debates

Nesta ação não foi feita pelo proprietário da área a correta individualiza-
ção do pólo passivo, ou seja, determinado nominalmente a quem ela se des-
tinava. O Ministério Público pronunciou-se pela correção do pólo passivo,
condicionando o segmento da ação ao aditamento da inicial, o autor deve-
ria acrescentar a expressão "a todos os demais invasores" em seu pedido.

" (...) A opinião do MPF baseou-se no fato de que a demanda foi


instaurada, apenas, contra LUIS MACHADO e LUIS VELASCO,
enquanto que o pedido de reintegração de posse foi feito para
retirar, além dessas quatro pessoas, todas as outras que se encon-
trassem ilegalmente nos imóvel rurais da autora (fl. 163 a 167).

O juiz concordou com a posição do Ministério Público requerendo a emen-


da à inicial, para que passasse a constar no pólo passivo a referência aos
demais invasores, devido a dificuldade de identificação de todos os ocu-
pantes. Com a correção autoral o magistrado concedeu a liminar reinte-
gratória da posse. Vejamos:

"(...) pela parte autora, que pediu que no pólo passivo, além
daquelas duas pessoas, também constasse a expressão genéri-
ca 'todos os demais invasores', diante da notória impossibilidade
de se identificar os integrantes do MST que ocuparam as suas
fazendas. (...)"

Entretanto, as normas que regulam a matéria do processo civil no Brasil


determinam expressamente que todos os réus da ação devem ser cuidadosa-
mente indicados pelo autor em sua petição inicial, sob pena de extinção da
ação (art.282, IV do Código de Processo Civil).

Em outra decisão, na ação de reintegração de posse nº 2004.51.11.00096-4,


relativa a ocupação da fazenda Santa Justina em Mangaratiba, o juiz enten-
deu pela reintegração de posse. Mesmo tendo o INCRA ingressado com pedi-
do de assistente do Movimento, alegando o interesse do órgão na desapro-
priação do imóvel em disputa e no assentamento das famílias. O magistrado
entendeu que a discussão sobre a Reforma Agrária não tinha relação com o
conflito possessório em analise na ação. Decidiu:

"(...) Mesmo que a propriedade não esteja adequada à função


social, o que não se sabe e não se saberá neste procedimento,
em virtude da relação entre o objeto de cognição, a situação
não autorizaria a invasão de propriedade privada. (...)"

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Nossa intenção foi de exemplificar, através dos casos concretos apresenta-


dos acima, como ocorre o processo de individualização da norma geral a
situação particular, com toda a valorização por parte do juiz/criador. Nos
casos relativos ao direito de propriedade a visualização da atividade política
realizada pelos juízes torna-se ainda mais nítida.

Podemos acrescentar a esta análise qualitativa, o levantamento de liminares


concedidas pela magistratura fluminense nestes conflitos. Segundo infor-
mações obtidas em outra pesquisa1, das trinta e quatro ocupações de terra
promovidas pelo MST desde sua organização no Estado do Rio de Janeiro,
em vinte e nove delas o proprietário obteve a liminar de reintegração de posse
pleiteada judicialmente e apenas em dois casos sua concessão foi negada
pelo magistrado competente2. Nos demais casos não foi ajuizada a ação de
reintegração de posse pelo proprietário da área ocupada.

As decisões judiciais prolatadas nos conflitos fundiários envolvendo o movi-


mento Sem Terra, apresentam diferentes conteúdos: algumas criminalizam as
ocupações coletivas realizadas pelos sem-terra, outras as consideram como
forma legítima de pressão popular; umas entendem o direito de propriedade
como absoluto e intocável, em outras a propriedade é compreendida a par-
tir do princípio da função social.

Entretanto, pelos dados apresentados nesta pesquisa caracterizamos nossa


magistratura como portadora hegemonicamente do discurso proprietário, que
criminaliza a luta dos sem-terra e assegura os interesses das elites rurais,
entendendo o direito de propriedade como absoluto e intocável. Valorizam o
direito à propriedade privada em detrimento do direito ao trabalho e à vida
digna. Existem juizes, porém, que não compartilham desta ideologia he-
gemônica do judiciário relativa aos conflitos possessórios, rompendo com o
discurso proprietário.

3. A hegemonia do discurso proprietário no Poder Judiciário

Diante deste quadro, devemos investigar a origem deste discurso conserva-


dor ponderando sobre a formação do pensamento jurídico brasileiro. A pro-
fessora Gizlene Neder relata que a ideologia liberal, necessária à emancipa-

1 - QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. A Magistratura Fluminense: seu olhar sobre as ocupações do MST.
Dissertação de Mestrado. PUC-Rio: 2005.
2 - Dessas trinta e quatro ocupações realizadas pelo MST no território fluminense, entre os anos 1996 e 2006, não
temos informações processuais sobre quatro e em dois casos o proprietário não ingressou com ação possessória.

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Ensaios e Debates

ção do país do monopólio político da Metrópole e ligada aos grandes proprie-


tários rurais da época, esteve diretamente vinculada à criação dos primeiros
cursos jurídicos brasileiros. No Brasil, o liberalismo foi adotado pelos grandes
latifundiários e escravistas, garantindo-se, entretanto, os direitos à propriedade
privada de forma absoluta e à utilização da mão-de-obra escrava3.

As primeiras faculdades de direito do Brasil, criadas em 1827, foram insta-


ladas em São Paulo e Olinda, tendo esta última sido transferida para Recife
em 1854. Ambas eram escolas particulares e seus alunos vinham das classes
dominantes. José Murilo de Carvalho chama atenção ao fato de que, "de
modo geral, os alunos das escolas de direito provinham das famílias de recur-
sos. As duas escolas cobravam taxas de matrícula (...) Além disso, os alunos
que não eram de São Paulo ou do Recife tinham que se deslocar para essas
cidades e manter-se lá por cinco anos. Muitos, para garantir a admissão, fazi-
am cursos preparatórios ou pagavam repetidores particulares. Esses custos
eram obstáculos sérios para alunos pobres, embora alguns deles conseguis-
sem passar pelo peneiramento. Menciona-se, por exemplo, a presença de
estudantes de cor já nos primeiros anos da Escola de São Paulo, aos quais,
por sinal, um dos professores se recusava a cumprimentar alegando que
negro não podia ser doutor."4

Vê-se, então, que desde sua origem os cursos de direito no Brasil estiveram
ligados às classes dominantes e à formação das elites políticas do país.
Mesmo com todas as mudanças introduzidas por reformas no sistema univer-
sitário, como a criação de faculdades públicas e diversas alterações curricu-
lares, não se conseguiu alterar significativamente o caráter elitista das facul-
dades de direito.

Desta forma, o pensamento sedimentado nas escolas de direito e adotado


pelos profissionais do direito no campo jurídico tem suas raízes na defesa dos
interesses das elites de proprietário rurais e posteriormente urbano.

Portanto, o judiciário surge ligado a elite dominante econômica e politica-


mente. E, mesmo com as tentativas de democratização deste Poder, como por
exemplo com a adoção de concurso público na seleção de seu corpo técni-
co, não se conseguiu diversificar o discurso jurídico de forma significativa.

3 - NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1995, p. 103.
4 - CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 74-75

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O d i s c u r s o d a m a g i s tr a tu r a f l u m i n e n s e n o s c o n f l i to s d e te r r a n o R i o d e J a n e i r o

Tentamos buscar as explicações para este fato nas teses do filosofo francês
Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico do Poder Judiciário: "(...) por mais
que os juristas possam opor-se a respeito de textos cujo sentido nunca se
impõe de maneira absolutamente imperativa, eles permanecem inseridos num
corpo fortemente integrado de instâncias hierarquizadas que estão à altura de
resolver os conflitos entre os intérpretes e as interpretações. E a concorrência
entre os intérpretes está limitada pelo facto de forças políticas a medida em
que apresentem como resultado necessário de uma interpretação regulada de
textos unanimemente reconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justiça orga-
niza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus
poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apói-
am, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a
essas decisões."5

Dentro deste quadro, a atuação dos juízes de primeira instância encontra


limites na hierarquia dos Tribunais e, portanto, nas decisões dos magistrados
de segunda instância. A promoção dos magistrados depende dos critérios de
antiguidade, merecimento6 e da participação constante em cursos, seminários
e palestras de atualização oferecidos pela Escola de Magistratura, que fre-
qüentemente são ministrados por desembargadores restringindo "o caráter
inovador e crítico desses cursos".7

Por tal motivo, é comum que indivíduos com diferentes vivencias sociais e
oriundos de diversas classes, quando ingressam neste aparelho, passam a
incorporar a postura e o discurso hegemônico nele presente. Pois, "o poder
simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem."8

Desta forma, muitas vezes os magistrados não percebem que sua atividade
profissional lhes permite diferentes interpretações da lei e a descoberta de
novas formas de mediação de conflito. Acabando por reproduzir as posições
majoritárias, adotando-as como "verdades absolutas".

5 - BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, 7ª edição. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2004, p. 213-214.
6 - "Reforçando a adaptação dos novos magistrados à cultura organizacional do Poder Judiciário, o próprio
sentido de hierarquia - estritamente vinculado à política de promoção por mérito - funciona como mecanis-
mo para reduzir a renovação da jurisprudência. Para o juiz preocupado com sua carreira é fundamental estar
de acordo com o Tribunal e estar de acordo com a jurisprudência dominante, de forma a não Ter suas sen-
tenças sistematicamente revogadas." (JUNQUEIRA, Eliane Botelho [et ali] Juízes retrato em preto e branco. Rio
de Janeiro: editora Letra Capital, 1997, p. 164)
7 - DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996, p. 34.
8 - Ibid. p. 7-8.

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Ensaios e Debates

Como explicado por Terry Eagleton, "qualquer campo social é necessaria-


mente estruturado por um conjunto de regras não enunciadas para o que
pode ser dito ou percebido validamente dentro dele, e essas regras, portan-
to, operam como um modo do que Bourdieu denomina 'violência simbólica.'
Como a violência simbólica é legítima, geralmente não é reconhecida como
violência.(...)"9

É neste sentido que percebermos porque juízes novos e de diversas classes


sociais, ao ingressarem na magistratura passam a atuar dentro da dinâmica
do campo judiciário, incorporam o discurso conservador, sem perceber, mui-
tas vezes, que estão sujeitos à violência simbólica, já que tal discurso aparece
dotado de legitimidade.

Também devemos registrar que os magistrados, principalmente nas cidades


do interior, encontram como espaço de socialização as mesmas festas, restau-
rantes, clubes, academias de ginástica das classes e frações da classe domi-
nante. Como destaca Bourdieu, "a proximidade dos interesses e, sobretudo, a
afinidade dos habitus10, ligada a formações familiares e escolares seme-
lhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo."11

Por esse motivo, na maior parte dos casos torna-se mais fácil a adesão dos
magistrados as teses dos proprietários do que a aceitação dos argumentos
que levam trabalhadores sem-terra a promoverem a ocupação de uma pro-
priedade privada.

Conclusão

Nesta pesquisa observamos que as demandas por terra freqüentemente le-


vadas ao judiciário nos últimos anos vêm sendo interpretadas de forma hege-
mônica como uma afronta ao direito de propriedade. A Constituição Federal
de 1988 garantiu importantes conquistas para as classes populares, entretan-
to, nas questões relativas à propriedade privada, foram (e são) poucos os ma-
gistrados que romperam (e rompem) com o discurso proprietário, incorporan-
do o paradigma da função social da propriedade.

9 - EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Ed. UNESP/Boitempo, 1997, p.141.


10 - Lado ativo de um conhecimento adquirido. (BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, 7ª edição. Rio de Janei-
ro: Bertrand Brasil, 2004, p. 61). Terry Eagleton irá explicar o conceito de habitus como a "inculcação nos ho-
mens e nas mulheres de um conjunto de disposições duráveis que geram práticas particulares." (Op.Cit. p.141).
11 - Poder Simbólico, Op.Cit. p. 242.

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O d i s c u r s o d a m a g i s tr a tu r a f l u m i n e n s e n o s c o n f l i to s d e te r r a n o R i o d e J a n e i r o

Dessa forma, os movimentos que lutam pelo acesso à terra não têm encon-
trado no judiciário um campo propício para a concretização de suas reivindi-
cações. Entretanto, estes movimentos continuam atuando no sentido de
democratizar o Poder Judiciário, promovendo o debate com a sociedade,
realizando marchas, ocupações de terra e resistindo a reintegrações de posse
concedidas com base no discurso proprietário.

Bibliografia

BALDEZ. Miguel. Notas sobre a Democratização do Processo. In


Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Gui-
marães. Org: José Carlos Barbosa Moreira, Editora forense, 1999.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, 7ª edição. Rio de


Janeiro: Bertand Brasil, 2004, p. 213-214.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 74-75

DALLARI. Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes, 2a edição.


Editora Saraiva, 2002.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Ed. UNESP/Boitempo,


1997, p.141.

FERNANDES. Bernardo Mançano. A formação do MST no


Brasil. Petrópolis: editora vozes, 2000.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e


história. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

GRAMSCI. Antonio. Introdução ao Estudo da Filosofia e do


Materialismo Histórico (s/d)

JUNQUEIRA, Eliane Botelho [et ali] Juízes retrato em preto e


branco. Rio de Janeiro: editora Letra Capital, 1997, p. 164)

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo:


Martins Fontes, 2000.

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 227


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Ensaios e Debates

____________. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins


Fontes, 2000, capítulo VIII, p. 387-397.

MARX. K. e Engels. F. A Ideologia Alemã. São Paulo: editora


Centauro, s/d.

NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil.


Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 103.

POULANTZAS. Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo, 4a


edição. São Paulo: editora Graal, 2000.

QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. A Magistratura


Fluminense: seu olhar sobre as ocupações do MST. Dissertação
de Mestrado. PUC-Rio: 2005.

STROZAKE. Juvelino José [org]. Questões Agrárias - julgados


comentados e Pareceres. São Paulo: Editora Método, 2002.

VIANNA. Luiz Werneck. [org]. A judicialização da política e das


relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: editora Renavam, 1999.

Outras publicações

Revista no MMFD - Radicalização Democrática, n.1, janeiro a


Junho de 2004, Rio de Janeiro: editora Lumen Juris, 2004.

As lutas pela terra no Estado do Rio de Janeiro, cartilha do


MST/RJ.

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Violência judicial contra os


movimentos populares de luta
pelo acesso à terra no Paraná
João Marcelo Borelli*

Palavras-chave: 1) violência judicial; 2) movimentos populares; 3) luta de


classes; 4) motivações jurídico-ideológicas; 5) direitos fundamentais da hu-
manidade.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por principal objetivo instigar dentro e fora do meio
acadêmico uma discussão necessária, porém pouco enfrentada, sobre a ve-
lada existência da violência judicial contra os movimentos populares de luta
pelo acesso a terra no Estado do Paraná.

Assim, partimos da organização da sociedade civil, que sob a forma dos


movimentos sociais encontra o mais notável modo de exteriorização contem-
porâneo da luta coletiva pela ampliação dos espaços da vida democrática e
de reclamação da cidadania.

Nesse compasso, cumpre lembrar que o conceito de cidadania passa pelas


dimensões dos direitos e deveres dos indivíduos (cidadania individual) e dos
grupos (cidadania coletiva) na sociedade. Na cidadania individual, o que se
destaca é a dimensão civil da luta pelos direitos civis e políticos, ao passo que

a cidadania coletiva privilegia a dimensão sociocultural, reivin-


dica direitos sob a forma da concessão de bens e serviços, e
não apenas a inscrição desses direitos em lei; reivindica espa-
ços sociopolíticos sem que para isto tenha de se homogeneizar
e perder sua identidade cultural.1
* Mestre em Direito pela UFPR, professor substituto da UFPR, professor da FATEB e atua com advocacia e
formação popular. E-mail: borellimachado@gmail.com
1 - GOHN, Maria Glória (org.). História dos Movimentos e Lutas - A Construção da Cidadania dos Brasileiros,
2a ed., São Paulo: Loyola, 2001, p. 195.

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Ensaios e Debates

É exatamente nesta segunda perspectiva, da integração social2 mediante a


reivindicação dos espaços sociopolíticos e socioculturais, que se estruturaram
os movimentos populares de luta pelo acesso a terra.

Essa peleja contínua e crescente pela aquisição e extensão dos direitos soci-
ais, políticos, econômicos e culturais está intimamente associada ao exercício
pleno da cidadania coletiva. No entanto, importante parcela do Poder
Judiciário nacional e em especial o paranaense, tem-se demonstrado exces-
sivamente refratário às demandas populares organizadas, externando em
suas decisões judiciais posições político-ideológicas conservadoras e violen-
tas sob o prisma sociológico.

Os casos concretos selecionados têm por escopo auxiliar a melhor com-


preensão do problema da violência judicial contra os movimentos sociais.
Cumpre ressaltar, que as decisões relatadas neste artigo não foram simples-
mente pinçadas com o objetivo de criticar gratuitamente alguns juízes e de-
sembargadores paranaenses. Definitivamente, o presente trabalho não se re-
duz ao propósito de personificação da violência judicial.

O que se pretende invocar ao debate é a existência de decisões judiciais exa-


radas por órgãos do judiciário paranaense que em seu conteúdo comportam
importantes elementos de inconstitucionalidade, ilegalidade ou ilicitude, fatos
estes que corroboram a existência de uma violência judicial que se realiza me-
diante atos parciais e que denotam uma preferência de classe, no que a instru-
mentalização dos meios representa uma das mais eficazes formas de garantia
da prevalência de uma determinada classe social sobre a sua opositora.

POR UMA REFERÊNCIA SOCIOLÓGICA DA VIOLÊNCIA.

A referência de violência utilizada no presente estudo não guarda identi-


dade com as definições encontradas nos manuais clássicos de criminologia.
Trata-se sim de um referencial sociológico híbrido, derivado das contribuições
arendtianas e da teoria da luta de classes marxista. A combinação destes dois
marcos teóricos, aparentemente remotos, atende o propósito maior de col-
matar eventuais insuficiências de um ou de outro pensamento na proposta de
discussão dos aspectos jurídico-sociológicos da violência judicial contra os
movimentos populares.

2 - Ocurre que se confunde - seguramente - el concepto de masa social con el de integración asociativa, y lo
cierto es que el hombre sin asociaciones mediadoras se masifica, y masificado se desindividualiza. LAVIÉ, Hum-
berto Quiroga. Los Derechos Públicos Subjetivos y la Participación Social, Buenos Aires: Depalma, 1985, p. 96.

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V i o l ê n c i a j u d i c i a l c o n tr a o s m o v i m e n to s p o p u l a r e s d e l u ta p e l o a c e s s o a te r r a n o P a r a n á

A teoria da luta de classes desenhada por Karl Marx e Friedrich Engels é


bastante conhecida no meio acadêmico e, por esse motivo, também é obje-
to de calorosos debates. O "Manifesto Comunista" redigido por esses paxistas
destaca que a história de todas as sociedades que já existiram é a história de
luta de classes e que a sociedade burguesa moderna … não aboliu os antag-
onismos das classes mas os simplificou, dividindo esta sociedade cada vez
mais em dois grandes campos inimigos, em duas classes que se opõem fron-
talmente: burguesia e proletariado3.

Esta acentuada bifurcação de classes deve-se a convivência histórica de seus


autores com a etapa do capitalismo industrial em que o proletariado apresenta-
va-se como a única classe social capaz de se organizar, agitar e comandar o pro-
cesso político de contraposição aos anseios da burguesia em expansão. O méto-
do criado por estes praxistas permitiu à classe trabalhadora conhecer e interpre-
tar a história sob o prisma dos oprimidos, tornando-os aptos a entender os ele-
mentos constitutivos da sociedade em que estavam inseridos, ao passo que o seu
conteúdo materialista histórico conclamou a união universal da classe proletária4
contra a opressão econômica, política e social da burguesia. Para Marx e Engels,
a real força motriz que impulsiona a roda da história é a luta de classes

O marxismo deu o fio condutor que, neste labirinto e caos apa-


rente, permite descobrir a existência de uma lei: a teoria da luta
de classes. Só o estudo do conjunto das tendências de todos os
membros de uma sociedade ou de um grupo de sociedades
permite definir com uma precisão científica o resultado destas
tendências. Ora, as aspirações contraditórias nascem da dife-
rença de situação e de condições da vida das classes nas quais
se decompõem qualquer sociedade5.

No espaço rural brasileiro, a empresa agrícola-comercial6 instalada pelos in-


vasores portugueses sofreu um salto qualitativo com a substituição integral e
definitiva do trabalho escravo pelo livre, colocando o termo final do processo
de mercantilização dos bens e das relações econômicas7 e fazendo com que
todos os elementos estruturais do capitalismo fizessem-se presentes no Brasil.

3 - ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. O Manifesto Comunista, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p.9-10.
4 - o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de uma classe contra outra, luta que, levada
à sua expressão mais alta, é uma revolução total. [...] Não se diga que o movimento social exclui o movimento
político. Não há, jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social. MARX, Karl. Luta de Classes
e Luta Política, 1847, http://www.marxists.org/portugues/marx/1847/04/luta-class-luta-polit.htm.
5 - LENIN, Vladmir Ilich Ulianóv. Karl Marx, São Paulo: Mandacaru, 1990, p.27.
6 - FURTADO, Celso. Análise do Modelo Brasileiro, 6ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.93.
7 - PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira, 3ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1968, p.139.

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Ensaios e Debates

O desenvolvimento do capitalismo no campo nacional pela via prussiana8


culminou na industrialização da agricultura9 e aprofundou a polarização de
classes no meio rural, processo este que se convencionou denominar de "mo-
dernização conservadora"10 e foi marcado pela ampliação da exploração ex-
tensiva e intensiva da agricultura brasileira, o que contribuiu para aumentar a
concentração fundiária, o crescimento do trabalho assalariado (sobretudo
dos jornaleiros), a queda do nível de renda da população rural e a ampliação
das desigualdades regionais.

No que tange o tema da violência judicial contra os movimentos populares,


sua importância passa pela compreensão que importante parcela da magis-
tratura paranaense perfila-se com os interesses das classes dominantes no
campo11 (grandes e médios burgueses rurais e ou latifundiários) e opera a vio-
lência judicial como um instrumento para o alcance de um fim, que será mel-
hor detalhado quando da análise do pensamento de Hannah Arendt e no
desenvolvimento do trabalho.

Dos textos da autora alemã colhemos sua reflexão sobre o problema da vio-
lência, que começa pela distinção terminológica entre os conceitos de "poder"
(power), "vigor" (strenght), "força" (force), "autoridade" e "violência"12. No pensa-
mento arendtiano "poder" consiste na habilidade humana para agir em concer-
to, "vigor" designa algo no singular, uma propriedade inerente a um objeto ou
pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação
com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas13.
8 - Na via prussiana a transformação capitalista não "revoluciona" a realidade agrária pré-existente, mas pro-
move uma evolução ou adaptação dela ao capitalismo: por um lado, transforma paulatinamente o latifundiário
em capitalista (ou seja, promove uma "modernização", em termos econômicos e técnicos, mas raramente em ter-
mos políticos-ideológicos) e os diversos tipos de pequenos agricultores dependentes ou agregados, em trabal-
hadores assalariados. GERMER, Claus Magno. Perspectivas das Lutas Sociais Agrárias nos Anos 90. in STÉDILE,
João Pedro (org.). A Questão Agrária Hoje, Porto Alegre: UFRGS, 1990, p.262.
9 - A 'industrialização da agricultura' caracteriza-se pela passagem de uma atividade de apropriação das
condições naturais existentes para uma atividade de fabricação dessas mesmas condições, quando ausentes.
SILVA, José Graziano da. A Modernização Dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais
no Brasil, Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.126.
10 - Sob o novo projeto, a modernização das áreas rurais aparece como imperativa. Ele contribuirá para a espe-
cialização regional e para a introdução de novos modelos de consumo que possibilitarão a difusão ou a expan-
são de uma economia monetária. A necessidade de capital será aprofundada juntamente com uma tendência
para o assalariamento e com uma diminuição da mão-de-obra rural. A 'Revolução Verde' … implicou a for-
mação ou consolidação de uma burguesia agrária e na proletarização de camponeses. SANTOS, Milton.
Economia Espacial - Críticas e Alternativas, São Paulo: USP, 2003, p.30-31.
11 - Realizamos esta classificação na linha dos trabalhos clássicos de Lênin e Mao, que utilizam o termo campo-
nês para designar os substratos ricos, médios e pobres, especificamente nos textos: LENIN, Vladimir Ilich Ulianóv.
On The Agrarian Question: For the Second Congress of the Communist International, 4th ed., Moscow: Lenin
Collected Works, Vol. 31, 1965, pages 152-164, http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1920/jun/x01.htm e
TUNG, Mao Tse. Como Determinar las Clases en las Zonas Rurales, Obras Escogidas, Pequim, 1976, t.I, 1933,
p.149 e ss. http://www.ucm.es/info/bas/utopia/html/mao.htm.
12 - ARENDT, Hannah. Sobre a violência, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 36.
13 - ARENDT, Op. cit., 1994, p. 37.

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"Força" é um termo reservado ao fenômeno da liberação de energia por movi-


mentos físicos e sociais, não se confundindo com "vigor", enquanto que "autori-
dade" designa algo inquestionável, que não necessita da persuasão ou de
meios externos de coerção para sua exteriorização.

A "violência" aproxima-se fenomenologicamente do "vigor" possuindo, no


entanto, um caráter instrumental. Meios, implementos, instrumentos, ferra-
mentas são alguns dos substantivos usados por Arendt. Além da revisão con-
ceitual de violência, a pensadora desmistificá-a ao analisá-la em três dimen-
sões: desnaturalização, despersonificação e desdemonização.

Ao desnaturalizar a violência como doença da sociedade, confronta as jus-


tificações biológicas de Niezstche e Bergson14, qualificando como perigosos
os pensamentos organicistas em temas políticos. Com isto, recusa-se em as-
sociar a violência ao processo histórico de luta pela sobrevivência no mundo
animal porque isto significa abrir mão do significado da política na determi-
nação da pessoa.

A despersonificação da violência é outro elemento essencial para compre-


ensão do enfoque trabalhado no presente estudo. Isto porque, o que se discu-
te não é a potencialidade do sujeito violento que exara a decisão, mas sim o
caráter instrumental como essa violência se expressa num contexto de luta de
classes, atuando como importante meio de opressão da classe social hege-
mônica. Desta forma, demonstra-se também o caráter não bestial e irracional
da violência, que é desdemonizada e identificada como uma medida eficaz
para se alcançar um fim determinado e racional, o que corrobora também
seu aspecto instrumental e mediático.

Por fim, cumpre realçar a importância que a autora atribui ao poder e a


política como meios eficazes de oposição à violência. Em seu pensamento, o
poder e a violência são mutuamente exclusivos, sendo o primeiro a essência
de todo governo e quando legítimo não comporta a violência15. Com isto, res-
salta que onde existe poder há legitimação, porque derivado da comunidade
política e anterior, e onde existe violência há apenas justificação, por seu ca-
ráter instrumental e posterior.

14 - OLIVEIRA, Waléria Fortes de; e GUIMARÃES, Marcelo Resende. O conceito de violência em Hannah Arendt
e sua repercussão na educação, http://www.educapaz.org.br/html/modules/wfsection/article.php?articleid=19.
15 - Sua argumentação se processa no sentido de refutar afirmações como a de Wright Mills (Toda política é
uma luta pelo poder, a forma básica de poder é a violência), de Max Weber (O domínio do homem pelo
homem baseados nos meios de violência legítima) ou de Bertrand de Jouvenel (Para aquele que contempla o
desenrolar das eras, a guerra apresenta-se como uma atividade que pertence à essência dos Estados).

ABRA - REFORMA AGRÁRIA ¦ 233


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Ensaios e Debates

TRÊS RELATOS DE DECISÕES VIOLENTAS


CONTRA OS MOVIMENTOS POPULARES
DE LUTA PELO ACESSO A TERRA NO PARANÁ.

a) quando a celeridade é seleta e o juízo parcial:

Em 2004 foi ocupada a Fazenda Santa Filomena de 1800,7 hectares, situ-


ada na comarca de Terra Rica - PR, por aproximadamente 350 trabalhadores
rurais sem terra. Prontamente, os dois proprietários ajuizaram uma Ação de
Reintegração de Posse, autos sob n.º 233/2004, instruída com a certidão
explicativa n.º 030/2000, datada de 10 de agosto de 1999, ou seja, defasa-
da em 05 anos!

O juízo de Terra Rica sopesou célere e sinteticamente os bens jurídicos em


conflito e inaudita altera pars, sem requerer qualquer outra diligência com-
plementar para verificar o cumprimento da função social da propriedade,
concedeu em 02 de agosto de 2004 a seguinte liminar reintegratória:

2 - A documentação acostada a inicial é mais do que suficiente,


não havendo porque se fazer a audiência preliminar.
3 - Oficie-se ao INCRA solicitando informações sobre o imóvel. (…)
5 - Determino, pois, a expedição de mandado de reintegração
de posse, e desde já, defiro o reforço policial, se necessário,
pois é inadmissível que as pessoas façam o que bem querem
ofendendo a propriedade privada.16

A oposição dos camponeses ao cumprimento de ordem judicial deferida


para desocupação de fazenda notoriamente improdutiva ocasionou a lavratu-
ra de um Auto de Resistência (p. 85). Posteriormente, mesmo em face da jun-
tada de Ofício encaminhado pelo INCRA (p. 88/91), informando que a pro-
priedade foi declarada improdutiva e que tramitava ação de desapropriação
para fins de reforma agrária perante a Justiça Federal, o magistrado manteve
a ordem liminar de reintegração. Com o parecer do Ministério Público estad-
ual pela incompetência do juízo estadual (p. 260/262) os autos foram remeti-
dos a 9a Vara Federal de Curitiba em razão da provável conexão com autos
de desapropriação sob n.º 2001.70.11.001013-4.

Finalmente, em 24 de janeiro de 2005, a liminar foi revogada pelo juízo


federal por meio do despacho17 transcrito a seguir, in verbis:
16 - Autos sob n.º 233/2004, comarca de Terra Rica - PR, Ação de Reintegração de Posse, p. 83.
17 - Os feitos ainda não foram julgados em definitivo, permanecendo em vigor este despacho e suspensa a
reintegração de posse.

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O imóvel objeto da presente ação, através de processo admin-


istrativo destinado à propositura da desapropriação, foi classifi-
cado pelo INCRA como improdutivo.
(…)
Destarte, diante dos acontecimentos, mencionados na Certidão
de Constatação de fls. 362-363, considerando, em especial, a
situação instalada e a supremacia do interesse social, REVOGO
A LIMINAR anteriormente concedida e, nos termos do artigo
265, IV, "a", do CPC, SUSPENDO O PROCESSO até o julga-
mento da ação declaratória de produtividade pela superior
instância.

b) quando o rito e o quantum indenizatório


variam em razão da classe social do ofendido:

Duas ações ordinárias de indenização por danos materiais e morais


demonstram que para a justiça estadual paranaense nem todos são iguais
perante a lei, principalmente no momento de avaliação dos bens jurídicos
lesionados e na fixação das respectivas indenizações em função da classe
social a que pertencem os ofendidos. Nos dois casos figurou como agressor
o Estado do Paraná.

Em 02 de agosto de 2004, seis meses18 após o recurso ter sido autuado no


Tribunal de Justiça do Paraná19, foi confirmada uma indenização por danos
morais equivalente a R$30.000,00 (trinta mil reais)20 para um fazendeiro e
sua esposa que tiveram suas terras ocupadas pelos trabalhadores rurais sem
terra e cuja ordem de reintegração de posse foi supostamente retardada de
forma injustificada pelo Estado do Paraná. Mas idêntica sorte não contemplou
um trabalhador rural sem terra, que durante a desocupação de uma fazenda
foi violentamente espancado e alvejado por um disparo de arma de fogo em
sua perna, fato este que ocasionou a posterior amputação do órgão.

Adiante, transcrevemos parte da fundamentação da sentença21 monocráti-


ca que aguarda julgamento do Tribunal de Justiça do Paraná:

18 - O recurso foi autuado em 09/12/2003. Sua conclusão ocorreu em 18/03/2004 e em 08/06/2004 foi
feito pedido de pauta. Julgado em 23/06/2004.
19 - TJPR - 2a Câm. Cív. - Ap. Cív. n.º 0148368/3 - Ac. n.º 23982 - Rel. Des. Bonejos Demchuk - unan. -
j.23/06/04 - pub. 23/08/04 - DJ 6691.
20 - Autos sob n.º 425/2000, que tramitaram perante a 2a Vara de Fazenda Pública de Curitiba, PR.
21 - 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, autos sob n.º 35554, sentença de p. 261/272.

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Sem dúvida, a conduta do réu ao realizar a desocupação foi, no


mínimo, imprudente, não existindo qualquer justificativa plausí-
vel para a lesão causado no autor (p. 265).
O autor, … não estava, segundo os autos, praticando atos hostis
aos policiais militares, vale dizer, o Estado do Paraná não demons-
trou ao menos perfunctoriamente, que o autor tivesse causado al-
gum fator apto a justificar os ferimentos que sofreu. (p. 266/267).

E, mais adiante, após determinar a fixação da pensão mensal vitalícia em


liquidação de sentença, decide:

O festejado prof. Clayton Reis, na obra Avaliação do Dano Mo-


ral, Ed. Forense, 2a Ed., pág. 144, esclarece que No Estado do
Paraná, O Tribunal de Alçada vem fixando valores correspon-
dente a 40 salários mínimos no caso de correntista indevida-
mente registrado no Seproc, 100 salários mínimos, em decor-
rência da morte em acidentes de trânsito e filho menor, dano es-
tético em 120 salários, decorrente de deformação estética do
lesionado, dano moral em 12 salários mínimos por causa de ex-
travio de bagagem em viagem para o exterior, dano extrapatri-
monial em virtude de lesões corporais, em 25 salários mínimos.
Assim é que, louvando-me dos preceitos supramencionados, e consi-
derando a idade do autor na época do sinistro, à míngua de outros
elementos, entendo ser razoável fixar-se o dano moral em R$ 6.400,00
(seis mil e quatrocentos reais), em favor do autor. (p. 270/271)

Em suma, a indenização por danos morais devido à postergação da deso-


cupação de uma fazenda gerou a reparação equivalente a 116 salários míni-
mos22, enquanto que a indenização por danos morais decorrente da perda de
um órgão que dificultará a locomoção e impedirá um camponês de trabalhar
na lavoura por toda a vida mereceu uma reparação equivalente a 21 salários
mínimos em valores vigentes23.

c) quando o juízo está acima da lei e da justiça:

Relatórios da Comissão Pastoral da Terra - CPT, apontam que a política agres-


siva do governo do Paraná24 em relação aos movimentos populares transformou
22 - A Lei n.º 10.888, de 24 de junho de 2004 fixava o salário mínimo em R$ 260,00.
23 - A Medida Provisória 248/05, ainda não convertida em lei, fixou o novo salário mínimo em R$ 300,00.
24 - Entre os dias 1o e 2 de maio de 2001 foi instalado o Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio e
da Política Governamental de Violação dos Direitos Humanos no Paraná visando apurar diversas violações aos
direitos fundamentais da pessoa praticadas durante o governo de Jaime Lerner (PFL).

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esse Estado num dos principais focos de violência no campo a partir de 1998.
De 1995 a 2000 foram registrados 16 (dezesseis) assassinatos de trabalhadores
rurais, 31 (trinta e uma) tentativas de homicídio, 07 (sete) casos de tortura, 322
(trezentos e vinte e dois) trabalhadores feridos e 470 (quatrocentos e setenta)
presos, em 130 (cento e trinta) ações de despejo. No período de 2001 a 2003
foram registrados 04 (quatro) assassinatos, 21 (vinte e um) casos de ameaças
de morte, 07 (sete) trabalhadores feridos e 49 (quarenta e nove) presos.25

Aliada a ação opressora do executivo perfilou-se parcela do poder judiciário


paranaense. Em 1999 na comarca de Loanda, região noroeste do Paraná, o
juízo local deferiu liminares de reintegração de posse no atacado e autorizou
a realização de diversas interceptações telefônicas ilícitas de líderes do Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra26. Pelas transgressões perpetradas a
magistrada local não sofreu qualquer sanção penal ou administrativa.

AS CLASSE SOCIAIS NA FORMAÇÃO DOS


QUADROS DOS MOVIMENTOS POPULARES E DOS
ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS PARANAENSES

As razões históricas, sociais e econômicas da formação e evolução dos


movimentos populares brasileiros é ignorada por importante parcela dos
magistrados paranaenses. O desconhecimento desses fatores metajurídicos
está ligado intimamente à origem social e a formação jurídica que essas pes-
soas receberam antes de chegar à judicatura. Esse fato constitui uma das
causas da violência judicial praticada. Da época do Brasil colônia à estrutu-
ração da República, a insensibilidade e o posterior desconhecimento dos dra-
mas sociais transformou o Poder Judiciário em importante instrumento opres-
sor da classe trabalhadora pela elite econômica nacional.

O certo é que, nos horizontes da cultura jurídica positivista e


dogmática, predominante nas instituições políticas brasileiras, o
poder judiciário, historicamente, não tem sido a instância mar-
cada por uma postura independente, criativa e avançada, em

25 - Dados extraídos com base nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra - CPT. Conflitos no Campo no
Brasil, Goiânia: Loyola, 2003, 2003 e 2004.
26 - O caso foi encaminhado à Comissão Interamericana da OEA, vez que na via jurisdicional nacional, além
da demora injustificada das investigações e responsabilizações, a Juíza foi totalmente absolvida de sua condu-
ta criminosa: 'Muito embora se observe condutas funcionalmente censuráveis, não vejo como atribuir pelo que
foi apurado a prática de crime em exame à magistrada …' (Autos de Investigação Criminal n.º82.516-5, de
Curitiba, fls. 384) Relatório de violações de direitos humanos contra trabalhadores rurais sem terra, encami-
nhado em 13 de outubro de 2004 ao Relator Especial sobre Independência dos Juízes e Advogados da
Organização das Nações Unidas - ONU.

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Ensaios e Debates

relação aos graves problemas de ordem política e social. Pelo


contrário, trata-se de um órgão elitista que, quase sempre ocul-
tado pelo "pseudoneutralismo" e pelo formalismo pomposo, age
com demasiada submissão aos ditames da ordem dominante e
move-se através de mecanismos burocrático-procedimentais
onerosos, inviabilizando, pelos próprios custos, seu acesso à
imensa maioria da população de baixa renda.27

Dezoito anos depois do advento da Constituição Federal de 1988, grande


parte dos direitos sociais permaneceram negados a milhões de brasileiros. No
entanto, a brutal realidade nacional e o retorno à democracia política possi-
bilitaram a reativação das lutas sociais colocadas em estado de latência du-
rante os "anos de chumbo" inaugurados com o golpe de 1o de abril de 1964.
Como bem esclarece Maria Glória Gohn:

os anos 80 de nosso século inauguram novos tempos para a


questão da cidadania. Acuados pela conjuntura política do
país, vários militantes de lutas sociais no Brasil nos anos 60 e
70, aliados a novos parceiros, sem tradição associativista ante-
rior, iniciaram várias frentes de articulações, fundaram organi-
zações, lideraram movimentos, apoiaram-se em estruturas tradi-
cionais que estavam se renovando em parte, como a Igreja Ca-
tólica, e foram à luta. Novas bandeiras foram construídas. Direi-
tos sociais tradicionais se misturaram com os direitos sociais
modernos, em busca de mudanças sociais no país. O momen-
to político nacional favoreceu a eclosão das lutas sociais, pois a
insatisfação era generalizada. A dimensão da cidadania foi res-
gatada com ímpeto e vigor, tornando-se a principal bandeira
reivindicatória dos anos 70 e 80. Fortalecida pela conjuntura
internacional, que também destacava a questão dos direitos hu-
manos como básicos, a cidadania tornou-se o móvel e o articu-
lador das lutas sociais ocorridas. O saldo configurado foi a ins-
crição, em leis, de diversos direitos sociais demandados pelos
movimentos sociais daquelas décadas. (…) Em síntese, pode-
mos dizer que as ações coletivas nos anos 70 e 80, no Brasil
foram impulsionadas pelos anseios de redemocratização do
país, pela crença no poder quase que mágico da participação
popular, pelo desejo de democratização dos órgãos, das coisas
e das causas públicas, pela vontade de se construir algo a par-
27 - WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito, 3ª ed., São
Paulo: Alfa Ômega, 2001, p. 100.

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tir de ações que envolviam os interesses imediatos dos indiví-


duos e grupos. Os movimentos sociais, populares ou não, ex-
pressaram a construção de um novo paradigma de ação social,
fundado no desejo de se ter uma sociedade diferente, sem dis-
criminações, exclusões ou segmentações.28

O dito popular "a união faz a força" traduz a forma concreta encontrada
pelos mais fracos para nivelar a correlação de forças decorrentes da luta de
classes.

No entanto, o Poder Judiciário é formado majoritariamente por indivíduos


provenientes da classe social dominante29, o ensino jurídico brasileiro é elit-
ista e instrumental, a ideologia neoliberal permeia os meios de comunicação
e orienta a opinião pública na direção de um comportamento conservador.
Com tudo isto, a jurisprudência dos Tribunais pátrios acaba enveredando-se
pelo tranqüilo caminho da manutenção do injusto status quo30.

Todos esses fatores são fundamentais para que os direitos sociais reclama-
dos pelos movimentos populares acabem tornando-se impraticáveis, seja
pelo exegético respeito de parcela dos direitos constitucionais, seja pela
prevalência da denominada "reserva do possível" sobre o chamado "mínimo
existencial"31, quando as condições materiais mínimas de existência de todos
os brasileiros ficam subordinadas aos compromissos do Estado com os
prestamistas internacionais.

Delimitados por essa visão restrita da realidade social, muitos magistrados


paranaenses passam a interpretar o sistema jurídico sob uma perspectiva em
que o direito absoluto de propriedade (art. 5o, XXII, CF/88) reina soberano,
enquanto que o direito ao cumprimento da função social da propriedade (art.
5o, XXIII, CF/88) permanece sob a penumbra, esquecido pelos operadores
do direito e quase transformado em figura alegórica, como pateticamente o

28 - GOHN, Op. cit., 2001, p. 202/203.


29 - Deve-se notar que a elaboração das camadas intelectuais na realidade concreta não ocorre num terreno
democrático abstrato, mas de acordo com processos históricos tradicionais muito concretos. Formaram-se
camadas que, tradicionalmente, 'produzem' intelectuais; trata-se das memas camadas que, muito frequente-
mente, especializaram-se na 'poupança', isto é, a pequena e média burguesia fundiária e alguns estratos da
pequena e média burguesia das cidades. GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 10.
30 - Pode-se perfeitamente verificar que tanto o Poder Judiciário quanto a legislação civil refletem, tendo pre-
sente a especificidade brasileira, as condições materiais e os interesses político-ideológicos de uma estrutura
de poder consolidada, no início do século XX, no contexto de uma sociedade burguesa agrário-mercantil,
defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídico inserido na melhor tradição liberal-individualis-
ta. WOLKMER, 2001, Op. cit. 97.
31 - BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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fez esse mesmo Poder Judiciário com a antiga redação do § 3o, do artigo
192 da Carta Magna, no que se tornou co-responsável pelo agravamento da
crise da dívida pública brasileira durante a década de 90 do século XX.

Os capítulos referentes à política urbana (arts. 182 e 183 da CF/88) e a


política agrícola e fundiária e da reforma agrária (arts. 184 a 191 da CF/88),
tem recebido reduzida atenção dos Tribunais brasileiros, principalmente quan-
do da reclamação da elaboração ou cumprimento de políticas públicas espe-
cíficas. Esse fato, por si só, ocasiona um excesso de cumprimento de princípios
constitucionais como o direito absoluto de propriedade e traz como contraparti-
da um déficit de eficácia do direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

Despachos açodados, como o descrito no primeiro caso do item II, com-


provam que bens jurídicos disponíveis como o direito à propriedade e indis-
poníveis como o direito à vida ou a dignidade da pessoa humana, não são
devidamente sopesados por alguns membros do judiciário paranaense.

Destarte, se os princípios e preceitos constitucionais fundamentais, os dire-


itos sociais e de direitos humanos não são acatados ou são indefinidamente
postergados pelos elaboradores e executores das políticas públicas, a inércia
ou a resistência do Poder Judiciário em reconhecê-los e dar-lhes a efetividade
negada, somente vem agravar a situação social real e colocar o próprio direi-
to em estado de crise. Como o direito à vida e a dignidade da pessoa huma-
na são direitos indisponíveis e alimentam o ímpeto revolucionário das lutas
populares pelo acesso a terra, as pressões sociais pela satisfação desses direi-
tos são amplificadas e o gradual crescimento do déficit de cumprimento am-
plia a crise do direito32.

32 - No Brasil, gradativamente desarticulam-se as coordenadas ideológicas do modelo político-administrativo


centrado em máximas do individualismo possessivo que permeou o movimento codificador do início do sécu-
lo XIX (Faria, 1988, p.55). O colapso do individualismo jurídico, o esvaziamento da concepção burguesa de
Direito (edificada em torno da noção de Direito subjetivo), a superação da força analítica dos esquemas teóri-
cos da dogmática jurídica, em suma, a crise do saber normativo que não tem conseguido ser metodologica-
mente homogêneo, oportunizou o surgimento de movimentos desafiando a rigidez lógico-formal do sistema
legal e judicial. São organizações populares, sindicais, religiosas e comunitárias que, mediante politização de
questões aparentemente técnicas, procuram criar fatos consumados para reivindicar novos direitos e abrir cam-
inhos para práticas contraditórias, que comprometem a integridade e a plenitude da ordem vigente.
Há uma crescente reivindicação de direitos (o de morar, por exemplo) que emergem das mobilizações e das
organizações comunitárias e populares.
Por isso, verdadeiramente, a crise do Direito envolve indagações pertinentes à Filosofia do Direito, quais sejam:
as que dizem respeito às relações entre o Direito e o poder; ao questionamento da ordem legal injusta; à refor-
ma ou transformação da sociedade orientada pelo critério do justo (Kato, 1989, p.173). PORTANOVA, Rui.
Motivações Ideológicas da Sentença, 3a ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 51/52.

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MOTIVAÇÕES JURÍDICO-IDEOLÓGICAS DAS DECISÕES JUDICIAIS

Toda decisão judicial é reflexo do peculiar modo como o magistrado com-


preende o mundo. É o juiz quem aplica a lei ao caso concreto e

em verdade, lei e direito estão a serviço da ordem capitalista,


que necessita, para garantir a segurança das expectativas, o
cálculo econômico e o jogo do mercado, mediante o reconheci-
mento, a definição e a regulação da propriedade privada, da li-
vre disposição contratual, dos direitos adquiridos e do princípio
pacta sunt servanda (Faria, Op. cit., p. 32). As medidas legisla-
tivas 'sempre chegam ou para reprimir os conflitos sociais ou,
dependendo da correlação política de forças, para moldá-los'
(Pressburger, 1989, p. 03). Nestas condições é plantada a falsa
idéia de ordem, segurança, desenvolvimento e progresso. Na
verdade, o Direito é usado como instrumento de conservação.33

É exatamente essa motivação jurídico-ideológica que impulsiona um magis-


trado a deferir uma liminar de reintegração de posse sem que a exordial este-
ja devidamente instruída com toda documentação correlata e, posteriormente,
sustente a decisão mesmo após comprovado por documento hábil que o princí-
pio da função social da propriedade foi desrespeitado. Neste momento, perece
também o princípio de presunção de validade e eficácia dos atos administrati-
vos diante de um suposto direito absoluto à propriedade privada, simplesmente
porque no entender do juízo é inadmissível que as pessoas façam o que bem
querem ofendendo a propriedade privada.34 Desta forma, a violência opera na
repressão da classe trabalhadora e os direitos sociais e econômicos reclama-
dos não são observados por um órgão parcial do judiciário paranaense.

Parece existir uma hierarquia para alguns magistrados entre o direito à pro-
priedade (art. 5o, XXII, CF/88) e o direito ao cumprimento da função social
da propriedade (art. 5o, XXIII, CF/88), de tal forma que um suposto desres-
peito ao primeiro corolário induz a desconsideração total da existência do se-
gundo. Essa opção ideológica acarreta o esvaziamento das normas constitu-
cionais referentes à política urbana (arts. 182 e 183 da CF/88) e a política
agrícola e fundiária e da reforma agrária (arts. 184 a 191 da CF/88). É a
contenção via repressão da cidadania coletiva para conservação de injustiças
sociais e de estados de fato que acalantam inconstitucionalidades de fato.

33 - PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 67.


34 - Autos sob n.º 233/2004, comarca de Terra Rica - PR, Ação de Reintegração de Posse, p. 83.

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Ensaios e Debates

Desta maneira, os objetivos fundamentais de construir "uma sociedade livre,


justa e solidária" (art. 3o, I, CF/88), capaz de "garantir o desenvolvimento na-
cional" (art. 3o, II, CF/88) e "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir
as desigualdades sociais e regionais" (art. 3o, III, CF/88), promovendo "o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer ou-
tras formas de discriminação" (art. 3o, IV, CF/88), são compelidos a perma-
necer aguardando ad infinitum seu momento de efetivação.

Idêntica situação ocorre quando o magistrado extrapola sua competência


constitucional e passa a legislar em proveito de uma parte no processo, visan-
do garantir o direito absoluto à propriedade e a suposta manutenção da or-
dem constitucional vigente35. Cumpre frisar que

o povo concedeu ao Poder Legislativo, e não aos juízes, a tare-


fa de formular as regras jurídicas que hão de governar a nação
(Guimarães, 1958, p.330). Assim, tendo o Legislativo se pro-
nunciado e declarado um interesse superior a outro, o juiz deve
subordinar o seu juízo pessoal ou subjetivo a estes interesses. O
juízo do bem e do mal das disposições com que a nação pre-
tende ditar critérios para a vida em comum não pertence ao juiz.
O clima de legalidade ditado constitucionalmente no Estado de
Direito repele a institucionalização de sentenças contra legem.
O juiz pode dilatar, completar, melhorar e fazer interpretação larga e
hábil da lei. Também lhe compete ter atuação ativa e participante no
processo, mas não pode esquecer dos limites ditados pelo sistema.
Não é permitido ao julgador desobedecer, anular, subverter, al-
terar, corrigir, substituir, negar a lei e assim decidir o contrário
do que a norma estabelece e alterar os 'desígnios positivados
pelo Estado através da via adequada' (Maximiliano, 1979,
p.79; Dinamarco, 1987, p. 280)36

Portanto, ao atribuir competência para que a Guarda Municipal exerça as


funções da Polícia Militar do Estado, o juiz acaba caindo em total contradição
quando desrespeita uma norma fundamental em nome de outra norma de

35 - A crítica à neutralidade do juiz deu-se a partir do momento em que se começou a investigar a concepção
do Judiciário como instância política. Foram os cientistas políticos que primeiro viram nos tribunais um subsis-
tema do sistema político global. Um e outro partilhavam a característica de processarem uma série de inputs
externos constituídos por estímulos, pressões, exigências sociais e políticas e, através de um mecanismo de con-
versão, produzirem outputs (as decisões) portadoras de impacto social e político nos restantes subsistemas. Desta
constatação advinham duas conseqüências: 1a, as motivações sentenciais variavam conforme a classe, a for-
mação, a idade e a ideologia do juiz e por conseqüência; 2a, restava desmentida a idéia de justiça como função
neutra e eqüidistante dos interesses das partes (Santos, B., 1989, p. 51). PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 72/73.
36 - PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 38.

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mesma hierarquia. Neste momento, a pretensão ideológica do juiz de alargar


o campo de proteção de uma norma que entende absoluta (o direito à pro-
priedade) e a devoção messiânica a uma determinada compreensão de Esta-
do Democrático de Direito, resvalam em indiscutível inconstitucionalidade.

Mas pior que a violência das decisões parciais, açodadas ou manifestamente


inconstitucionais, como as que foram anteriormente descritas, são as decisões
ilícitas deferidas no transcorrer do processo, como as referidas no terceiro rela-
to. Sua violência é aviltante porque transcende as motivações jurídico-ideoló-
gicas do magistrado e campeia pelo prado da ilicitude penal, convertendo em
criminoso aquele que deveria operar como guardião da constituição e das leis
nacionais. Essa é a violência judicial em sua forma plena, porque a preferên-
cia de classe é explícita e a instrumentalização dos meios é voraz.

Ao deferir conscientemente autorização judicial para realização de intercep-


tações telefônicas sem amparo legal, o magistrado incorre na infração penal
descrita no artigo 10 da Lei n.º 9.296/96, gerando enorme prejuízo social em
razão da quebra de sua imparcialidade e no descrédito total do Poder Judiciá-
rio, afetando toda a instituição.

Por fim, deparamo-nos com a violência judicial velada e travestida de eqüi-


dade. Escondendo-se por trás do suposto tratamento desigual aos desiguais,
ocorre a inversão da valoração de bens jurídicos notoriamente desproporcionais.
É a violência instrumentalizada que confere diferentes trâmites a ritos idênticos e
avilta a auto-estima de um trabalhador por ele pertencer a essa classe social.

O segundo relato exemplifica de forma contundente como a classe social


dos lesionados determina celeridades distintas na tramitação de feitos de
mesma natureza e valorações distintas dos bens jurídicos no momento de fixar
as indenizações37. Inexistem recursos lógicos ou éticos que permitam com-
preender porque uma desocupação de terras postergada indevidamente
merece uma indenização em danos morais equivalente a 116 salários míni-
mos vigentes à época da decisão38 e porque a perda de um órgão essencial
a locomoção de uma pessoa e que a impedirá de trabalhar no campo pelo
resto de sua vida, merece uma indenização quase seis vezes menor39. Ainda
mais quando o próprio magistrado na sentença enaltece que esse valor equi-

37 - A divergência entre julgados do mesmo tribunal e entre tribunais diversos contraria a finalidade do proces-
so e da própria jurisdição (Tubelis, 1988, p. 336), além de debilitar a autoridade do Poder judiciário e causar
profunda decepção às partes. (Buzaid, 1985, p. 192) PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 42/43.
38 - Autos sob n.º 425/2000, que tramitaram perante a 2a Vara de Fazenda Pública de Curitiba, PR.
39 - Autos sob n.º 35554, que tramitaram perante a 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, sentença, p.
261/272.

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Ensaios e Debates

vale ao dobro da importância devida por extravio de bagagem e a um quar-


to do quantum indenizatório fixado por abalo de crédito.

O desembargador gaúcho Rui Portanova buscou esclarecer as motivações


ideológicas das sentenças a partir da compreensão da visão tradicional do
direito e das decisões judiciais, desvendando as ideologias que as impregnam
e lançando-se, finalmente, a construção alternativa de uma base teórica e
processual para o magistrado, que deve decidir segundo escopos dos proces-
sos sociais, políticos e jurídicos. Esses são instrumentos de grande valia para
contenção da violência judicial instrumentalizada por meio das decisões aqui
transcritas. Engajado no movimento crítico e alternativo do Direito e do Poder
Judiciário, Portanova defende que:

um Direito do ponto de vista alternativo não nega a existência


do conflito social, a luta de classes e as desigualdades econômi-
cas … e opta pela via pacífica da transformação sociopolítica.
… Por outro lado, não se trata de ignorar e desprezar o sistema
legislativo vigente … Trata-se de fazer uso alternativo do Direito
posto, buscando semiologicamente outras definições para as
mesmas palavras das leis já existentes … em proveito não da
classe e grupos dominantes, mas dos espoliados e oprimidos.40

Na América Latina esse movimento alternativo começou pela defesa Direi-


tos Humanos. Valendo-se de garantias da magistratura como a independência
funcional, diversos juízes brasileiros têm alterado antigos paradigmas secular-
mente consolidados nos tribunais pátrios, seja por meio de uma nova interpre-
tação e aplicação sistêmica das normas constitucionais modernas, seja pela
atribuição de prevalência as normas fundamentais cujo conteúdo notoriamente
contempla direitos humanos internacionalmente reconhecidos, quando em
aparente estado de conflito com outras disposições de mesmo status.

O contradiscurso alternativo fulcra-se em novos paradigmas científicos, co-


mo: o exame da eficácia do Direito positivo e da efetividade do poder político;
o alargamento da análise jurídica e relativização das categorias; o rompimen-
to com o saber jurídico tradicional e abertura; a estimulação da revisão dos
pressupostos metodológicos, como a neutralidade; uma visão do sistema jurídi-
co como produto e condição da existência e da reprodução de uma formação
social determinada; e, a maior negociabilidade e flexibilidade das decisões.

40 - PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 82.

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O CONTRAPONTO DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS DA HUMANIDADE

As decisões judiciais paranaenses analisadas neste ensaio são a expressão


da instrumentalização da violência de classe pela via institucional, cometida
contra os movimentos populares e que somente pode ser eficazmente com-
batida mediante a oposição das normas relativas aos direitos fundamentais
da humanidade, sejam àquelas contempladas pelo texto constitucional pátrio,
sejam àquelas consagradas nos tratados internacionais de direitos humanos
subscritos pela República Federativa do Brasil.

Destaque-se primeiramente, o fato que o Brasil orienta-se pelo princípio da


prevalência dos direitos humanos41 em suas relações internacionais e que a
Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, inseriu o § 3o
no artigo 5o da Carta Magna, disciplinando que "os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

Esses argumentos são trazidos à baila porque são importantes fundamentos


jurídicos para mudança de postura da parcela dos magistrados paranaenses
que permanecem arraigados a tradição autoritária que prevalecia antes da
redemocratização brasileira.

A defesa intransigente promovida por alguns juízes do direito absoluto à


propriedade (art. 5o, XXII, CF/88) desligada da observância do cumprimento
de sua função social (art. 5o, XXIII, CF/88), mascara uma situação fática de
ausência de neutralidade42 e transborda na quebra de imparcialidade do jul-
gador, comprometendo os princípios fundadores do Estado Democrático de
Direito (art. 1o, caput, CF/88), cujo respeito e defesa são freqüentemente
invocados por esses mesmos magistrados.

No entanto, outros princípios e preceitos fundamentais, como: o princípio


da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CF/88); o direito à liberdade
(art. 5o, caput, CF/88); o direito à moradia (arts. 6o, caput, e 182, caput,
CF/88); o direito de acesso a terra (art. 184, caput, CF/88); o princípio de
cumprimento da função social da propriedade (arts. 5o, XXIII e 170, III,
41 - Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princí-
pios: (…) II - prevalência dos direitos humanos;
42 - a idéia de justiça é ideológica, pois traduz os interesses dos grupos detentores do poder e é utilizada para
manutenção dessa relação de poder. Existe uma idéia de justiça que está a serviço da contestação, dos oprimidos,
dos dominados. Uma justiça a serviço da conservação (Aguiar, 1984, p. 59) PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 64.

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CF/88); o direito à vida (art. 5o, caput, CF/88); e, finalmente, o direito as de-
cisões judiciais fundamentadas (art. 93, IX, CF/88); caem por terra quando
apenas parcela do ordenamento jurídico é observada e acatada.

Retomando-se a análise seqüencial dos quatro casos relatados no item II


deste breve ensaio, extrai-se o seguinte:

a) quando a celeridade é seleta e o juízo parcial:

Neste caso a violência judicial é instrumentalizada contra o movimento


popular, por meio da interpretação parcial da ordem constitucional na con-
cessão de uma liminar reintegratória e, posteriormente, em sua conservação,
mesmo diante de um novo elemento documental que passa a integrar o
processo43, qual seja: a prestação de informações pelo INCRA comunicando
que a propriedade sub judice é improdutiva e encontra-se em processo de de-
sapropriação para fins de reforma agrária44.

Cumpre lembrar, que o expediente encaminhado pelo Instituto Nacional de


Colonização e Reforma Agrária - INCRA presume-se válido segundo as nor-
mas de interpretação de Direito Administrativo brasileiro, no que deveria
prevalecer45 o direito público subjetivo de promover a reforma agrária sob a
pretensão individual de absolutização do direito à propriedade. Isto posto,
por contingência do artigo 931 do Código de Processo Civil, que prevê a
aplicação subsidiária do rito ordinário aos procedimentos de reintegração de
posse46, a liminar poderia ter sido revogada pelo mesmo juiz estadual47, com
fulcro no § 4o do artigo 273.

43 - Art. 462. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito
influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte,
no momento de proferir a sentença. Código de Processo Civil.
44 - Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural
que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária,
com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano
de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. Constituição da República Federativa do Brasil.
45 - hay un principio básico de racionalidad que prescribe que cuando un individuo tiene dos o más intereses
que no pueden satistacerse simultáneamente, debe dar preferencia a sus intereses más importantes, cualquiera
que sea el criterio para jerarquizar tales intereses. Lo mismo se debería hacer con los intereses en conflicto de
varios individuos cuando se adopta el punto de vista del observador ideal: deben prevalecer aquellos intereses
de mayor jerarquía. (…) Esta suma de intereses también la debería hacer el observador ideal com los intere-
ses de distintos individuos con los que se identifica, de modo que, siendo los intereses de igual jerarquía,
prevalecen los de mayor número de individuos, no por originarse en una mayoría - lo que es, en sí mismo,
irrelevante, pues implica el cómputo de distintos individuos - sino simplesmente por constituir más intereses.
NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos - Un ensayo de fundamentación, 2a ed., Buenos Aires:
Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1989, p. 255/256.
46 - Art. 931. Aplica-se, quanto ao mais, o procedimento ordinário. Código de Processo Civil.
47 - Art. 273. (…): § 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão
fundamentada. Código de Processo Civil.

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Porém, preferiu o magistrado por suas motivações jurídico-ideológicas


manter uma decisão parcial e que instrumentaliza a violência judicial, negan-
do vigência mesmo em face da documentação acostada aos autos, ao princí-
pio da função social da propriedade (arts. 5o, XXIII e 170, III, CF/88), ao dire-
ito de acesso a terra (art. 184, caput, CF/88); a garantia de acesso à Justiça
(art. 5o, XXXV, CF/88) e o direito à decisão fundamentada (art. 93, IX,
CF/88); o direito social ao trabalho (art. 6o, caput, CF/88); e a garantia de
igualdade de todos perante a lei (art. 5o, caput, CF/88).

b) quando o rito e o quantum indenizatório


variam em razão da classe social do ofendido:

Neste caso a instrumentalização da violência judicial em virtude da classe


social do ofendido que pleiteia indenização aflora em dois momentos. Nota-
se claramente que o ritmo do trâmite processual e a valoração dos bens ju-
rídicos lesionados de um capitalista agrário48 e de um trabalhador rural são
diversos. Não ocorre a valoração dos bens jurídicos lesionados, mas sim uma
estipulação de valores indenizatórios segundo a classe social dos ofendidos.

O fato de se tratar de decisões proferidas por juízos monocráticos diversos


não isenta o Tribunal paranaense do dever de corrigir a desproporcionalidade
valorativa entre as indenizações concedidas em função dos bens jurídicos
lesionados. Inexiste argumento legítimo em direito capaz de justificar que a
perda de um órgão humano mereça um ressarcimento quase seis vezes
menor que a demora do Estado em cumprir uma ordem judicial.

Com esta atitude judicial violenta, os economicamente desiguais são trata-


dos de forma socialmente desigual e as desigualdades de dignidade são am-
pliadas ao invés de serem minoradas. O direito à vida e à integridade física (art.
5o, caput, CF/88); o direito à liberdade (art. 5o, caput, CF/88); a garantia de
acesso à Justiça (art. 5o, XXXV, CF/88) e direito à decisão fundamentada (art.
93, IX, CF/88); a tratamento isonômico perante a lei (art. 5o, caput, CF/88);
o direito à indenização por dano moral (art. 5o, X, CF/88); e, princípio da dig-
nidade da pessoa humana (art. 5o, caput, CF/88), são protegidos pelos órgãos
do poder judiciário paranaense segundo a classe social do ofendido.

48 - Quanto ao arcabouço institucional do capitalismo, a sua peça-mestra é o confinamento da atividade


estatal à proteção da ordem, do contrato e da propriedade privada, como garantias do exercício da liberdade
empresarial. O conjunto das liberdades civis e políticas passa, assim, a exercer um papel secundário nesse
quadro institucional: elas podem ser preteridas diante da liberdade de empresa, como se tem visto amiúde na
Ásia, na África e na América Latina. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos,
3a ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 538.

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c) quando o juízo está acima da lei e da justiça:

A pior forma de violência judicial é o crime praticado no exercício da fun-


ção jurisdicional. Ocorre, quando o aplicador da lei ao caso concreto esque-
ce-se da relevância social do serviço público por ele prestado e passa a rea-
lizar atos que em sua substância caracterizam infrações penais, tal como a in-
terpectação não autorizada de comunicações telefônicas tipificada pelo arti-
go 10 da Lei n.º 9.296/96, conforme o sucintamente relatado no item II.

Diversamente das duas situações anteriores não existe qualquer argumento


jurídico-ideológico capaz de justificar a decisão. O que há é uma conduta
parcial49 do órgão judiciário tipificada pela legislação penal. Sob o prisma so-
ciológico, exterioriza-se a violência judicial em sua forma plena, porque total-
mente instrumentalizada a favor de uma determinada classe social.

Os lesionados, membros de movimento popular cujo sigilo das comuni-


cações telefônicas foi ilegalmente quebrado, são aviltados em seu direito à
intimidade e à vida privada (art. 5o, X, CF/88); à inviolabilidade das comu-
nicações telefônicas (art. 5o, XII, CF/88); a garantia do devido processo legal
(art. 5o, LV, CF/88); ao princípio da legalidade (arts. 5o, XII e 37, caput,
CF/88); o respeito ao Estado Democrático de Direito (art. 1o, caput, CF/88);
a garantia de acesso à Justiça (art. 5o, XXXV, CF/88) e o direito à decisão fun-
damentada (art. 93, IX, CF/88); e, finalmente, o direito à indenização por
dano moral (art. 5o, X, CF/88).

d) Aplicação dos tratados internacionais de


direitos fundamentais da humanidade

No início deste tópico destacamos que algumas normas protetoras dos dire-
itos fundamentais da humanidade foram consagradas pelo texto constitu-
cional brasileiro, enquanto que as demais estão sendo progressivamente
incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio. Destacamos também, que nas
relações internacionais a República Federativa do Brasil defende a prevalên-
cia dos direitos humanos (art. 4o, II, CF/88).
49 - Desinteressado no conflito, subordinado à lei e protegido de influências políticas e outras pressões, o juiz
imparcial faz o Judiciário independente, democrático e baluarte das liberdades individuais. O Judiciário só
existe porque é imparcial e sujeito à lei ('sobre a justiça da lei há outro foro, os plenários dos legislativos em
primeiro lugar'). A justiça consiste num método, e esse método é o das decisões imparciais. O juiz não se deve
comprometer. Sua imparcialidade é seu apanágio. Parcialidade é perversão. 'O ordenamento é, pois, suposto
da justiça. E nele, imparcialmente, não comprometidamente, trabalhará o juiz' (Müeller, 1989, p. 121). É
importante a imparcialidade judicial, dada a natureza secundária e substitutiva de sua atividade, ou seja, a
jurisdição só ocorre nas hipóteses em que os litigantes não realizaram a atividade primária afastadora da ilic-
itude. Age, por isto, o Judiciário, na substituição das partes para lograr a pacificação social (Arruda Alvim,
1975, p. 39). PORTANOVA, Op. cit., 1997, p. 42.

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No entanto, o que realmente compete frisar neste momento é a promul-


gação da Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, que
adicionou o § 3o ao artigo 5o da Constituição Federal de 1988, reconhecen-
do a aplicação dos tratados internacionais de direitos fundamentais da huma-
nidade em condições de equivalência às emendas constitucionais.

Este fato abre um novo leque protetor de direitos e garantias fundamentais


no Brasil, entre os quais destacam-se a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969,
mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.

A aplicação conjugada do artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos


Humanos de 194850 e dos §§ 1o e 2o do artigo 21 do Pacto de São José da
Costa Rica51, que ratificam a efetividade das normas nacionais de direitos fun-
damentais da humanidade, representa mais uma importante trincheira de
resistência à violência judicial.

Mas o Estado Democrático de Direito também pressupõe que continuem in-


gressando na carreira da magistratura juízes de diferentes matizes ideológicas.
Portanto, mesmo essas novas normas de direitos fundamentais da humanidade,
que hodiernamente estão em situação de equivalência com as emendas consti-
tucionais, também continuarão a ser desprezadas pelos magistrados que anco-
ram suas decisões em motivações jurídico-ideológicas diversas. Neste momen-
to, os operadores populares do direito deverão alçar as instâncias superiores es-
sa discussão, ampliando os espaços de debate para adequada integração e
harmonização das normas nacionais e internacionais de direitos fundamentais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A instrumentalização da violência judicial contra os movimentos populares


vem ocorrendo com considerável freqüência no Estado do Paraná. Os casos
citados no item II deste artigo são amostras desta incômoda realidade,
50 - Artigo XXV - 1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a sua família,
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indis-
pensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos
de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
51 - Art. 21 - Direito à propriedade privada. § 1o Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei
pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. § 2o Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens,
salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos
casos e na forma estabelecidos pela lei. Convenção Americana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de
1969, Conferência de São José da Costa Rica, que o Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992, promulgada
pelo Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1992.

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expandindo-se ou contraindo-se conforme o fervor da luta de classes. A prin-


cipal causa da violência judicial ora estudada é a injustiça social.

Na raiz dessa injustiça está um sistema sócioeconômico intrinse-


camente perverso, porque baseado na desigualdade, que pro-
duz cada vez mais riqueza, poder e arbítrio para uns poucos, e
pobreza, submissão e miséria crescentes para a grande maio-
ria. Para manter essa injustiça, cometem-se inúmeras violências,
e a maior delas consiste em retirar do povo a possibilidade de
participar da vida política, econômica e social do País; consiste
em dificultar e, às vezes, em impedir a livre organização dos ci-
dadãos para a defesa de seus direitos mais legítimos, deixando
a brutalidade freqüentemente impune.52

A primeira forma encontrada para reprimir os movimentos populares foi sua


criminalização por meio dos tipos penais da formação de bando ou
quadrilha, dano e esbulho possessório. No entanto, a resposta dos oper-
adores jurídicos populares foi imediata e tecnicamente precisa, ocasionando
inclusive a mudança da jurisprudência sobre o tema no Superior Tribunal de
Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

Mas o problema da violência judicial possui raízes ainda mais profundas e


de difícil solução. Destarte, impressiona o contingente de magistrados
paranaenses que ignoram os fundamentos sociológicos, políticos e jurídicos
dos direitos sociais reclamados pelos movimentos populares e que, nas moti-
vações ideológicas de suas decisões, externam o total desconhecimento que

os movimentos sociais progressistas atuam segundo uma agen-


da emancipatória, realizam diagnósticos sobre a realidade so-
cial e constroem propostas. Atuando em redes, articulam ações
coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela in-
clusão social.53

Como se limitam a conhecer parte da realidade social brasileira, esses juí-


zes carecem de imparcialidade suficiente para sopesar adequadamente os
bens jurídicos em estado de conflito. Diante dessa situação, elegem a prote-
ção dos interesses da burguesia agrária em detrimento dos anseios dos traba-
lhadores rurais, mesmo sabendo que os direitos fundamentais e sociais des-

52 - BICUDO, Hélio. Direitos Humanos e sua Proteção, São Paulo: FTD, 1997, p. 94.
53 - GOHN, Maria Glória (org.). Movimentos Sociais no Início do Século XXI - antigos e novos atores sociais,
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 14/15.

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ses últimos também merecem especial tratamento do texto constitucional e


dos tratados internacionais de defesa dos direitos humanos, incorporados em
posição de equivalência às emendas constitucionais por força do § 3o, arti-
go 5o, da Carta Magna.

Quando isso ocorre, as motivações jurídico-ideológicas das sentenças tradu-


zem não só o reconhecimento da existência da luta de classes no seio da socie-
dade como também refletem a preferência de classe dos julgadores. Assim se
dá a instrumentalização da violência judicial contra os movimentos populares.

Tal situação reclama à pronta e eficaz resposta dos operadores populares


do direito, que devem combater a violência judicial instrumentalizada por
meio de manifestos públicos, valendo-se dos dispositivos legais de correição
parcial54, encaminhar reclamações ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ)55
e, em casos extremos, promover denúncias aos organismos internacionais de
proteção dos Direitos Humanos.

O motor da história escancara todo o antagonismo que repousa no interior do


sistema capitalista. As decisões judiciais violentas freqüentemente externadas pelo
órgão judiciário, nada mais são do que o mais claro sintoma de debilidade de
todo o arcabouço ideológico do capitalismo, incapaz de sustentar-se no tempo
em razão da ação destruidora de seu gérmen interno, a contradição.

52 - BICUDO, Hélio. Direitos Humanos e sua Proteção, São Paulo: FTD, 1997, p. 94.
53 - GOHN, Maria Glória (org.). Movimentos Sociais no Início do Século XXI - antigos e novos atores sociais,
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 14/15.
54 - Art. 14. A Corregedoria-Geral da Justiça, que tem como incumbência a inspeção permanente dos
Magistrados, das serventias do foro judicial e dos serviços do foro extrajudicial, terá sua competência e
atribuições estabelecidas no Regimento Interno.
Art. 16. O Corregedor-Geral da Justiça, além de realizar inspeções e correições permanentes nos serviços judi-
ciários, terá sua competência e atribuições estabelecidas no Regimento Interno.
Parágrafo único. O Corregedor Adjunto terá sua competência e atribuições estabelecidas no Regimento
Interno. In Lei n.º 14277, de 30 de dezembro de 2003 - Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado
do Paraná - CODJ-PR.
Art. 16. Compete à Corregedoria da Justiça a inspeção permanente sobre todos os juízes e auxiliares da justiça,
para instruí-los, emendar-lhes os erros e, em relação a estes, punir lhes as faltas e abusos, devendo manter,
para isso, cadastro funcional próprio.
Art. 20. Ao Corregedor de Justiça compete: (…) VI - receber e processar as reclamações contra juízes, funcio-
nando como relator em seu julgamento pelo Conselho da Magistratura; (…) XI - verificar, determinando as
providências que julgar convenientes, para a imediata cessação das irregularidades que encontrar: (…) d) se
consta a prática de erros ou abusos que devam ser emendados, evitados ou punidos, no interesse e na defesa
do prestígio da justiça; (…) f) os autos cíveis e criminais, apontando erros, irregularidades e omissões havidas
em processos findos ou pendentes; RESOLUÇÃO NORMATIVA nº 04/86, de 08 de maio de 1986, publicada
no Diário da Justiça do dia 23 de junho de 1986, Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
55 - O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), previsto no artigo 103-B da Constituição Federal de 1988, foi
incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio da Emenda Constitucional n.º 45, de 08/12/2004.

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Isto significa dizer, que um modo de produção pautado pela produção so-
cial das mercadorias e a apropriação privada dos excedentes está inevitavel-
mente condenado à superação histórica por um novo modelo, que necessa-
riamente deverá contemplar a substituição do paradigma da concorrência pe-
la solidariedade, da resistência à exclusão pela promoção da inclusão, da
concentração da riqueza pela distribuição de direitos fundamentais da huma-
nidade. Nas palavras do mestre Fábio Konder Comparato:

para conjurarmos o risco de consolidação da barbárie, precisa-


mos construir urgentemente um mundo novo, uma civilização
que assegure a todos os seres humanos, sem embargo das múl-
tiplas diferenças biológicas e culturais que os distinguem ente si,
o direito elementar à busca da felicidade.56

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Nações Unidas - ONU.

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V i o l ê n c i a j u d i c i a l c o n tr a o s m o v i m e n to s p o p u l a r e s d e l u ta p e l o a c e s s o a te r r a n o P a r a n á

_ SAMPAIO, Plinio de Arruda e STEDILE, João Pedro. História,


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Documento
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MANIFESTO
Tanques Cheios às
custas de Barrigas Vazias
A Expansão da Indústria da Cana na América Latina

Nós, representantes de entidades e movimentos sociais do Brasil, Bolívia,


Costa Rica, Colômbia, Guatemala e República Dominicana, reunidos no
seminário sobre a expansão da indústria da cana na América Latina da Via
Campesina, constatamos que: o atual modelo de produção de bioenergia é
sustentado nos mesmos elementos que sempre causaram a opressão de nos-
sos povos: apropriação de território, de bens naturais, de força de trabalho.

Historicamente a indústria da cana serviu de instrumento para a


manutenção do colonialismo em nossos países e a estruturação das classes
dominantes que controlam até hoje grandes extensões de terras, o processo
industrial e a comercialização. Este setor se baseia no latifúndio, na superex-
ploração do trabalho (inclusive no trabalho escravo) e na apropriação de
recursos públicos. O setor se estruturou no monocultivo intensivo e extensivo,
provocando a concentração da terra, da renda e do lucro.

A indústria da cana foi uma das principais atividades agrícolas desenvolvi-


da nas colônias. Permitiu que setores que controlavam a produção e a com-
ercialização conseguissem acumular capital e com isso contribuir para a
estruturação do capitalismo na Europa. Na América Latina, a criação e o con-
trole do Estado, desde o século XIX, continuaram a serviço dos interesses colo-
niais. Atualmente, o controle do Estado por este setor é caracterizado pelo
chamado "capitalismo burocrático". A indústria da cana definiu a estruturação
política dos Estados nacionais e das economias latino-americanas.

No Brasil, a partir dos anos 70, quando houve a chamada "crise" mundial
do petróleo, a indústria da cana passa a produzir combustível, o que justifi-
caria sua manutenção e expansão. O mesmo ocorre a partir de 2004, com
o novo Pró-Álcool, que serve principalmente para beneficiar o agronegócio.

O governo brasileiro passa a estimular também a produção de biodiesel, prin-


cipalmente para garantir a sobrevivência e a expansão de grandes extensões de

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Documento

monocultivo da soja. Para legitimar essa política e camuflar seus efeitos destrui-
dores, o governo estimula a produção diversificada de biodiesel por pequenos
produtores, com o objetivo de criar o "selo social". As monoculturas têm se ex-
pandido em áreas indígenas e em outros territórios de povos originários.

Em fevereiro de 2007, o governo estadunidense anuncia seu interesse em


estabelecer uma parceria com o Brasil para a produção de biocombustíveis,
caracterizada como principal "eixo simbólico" na relação entre os dois países.
Essa é claramente uma face da estratégia geopolítica dos Estados Unidos
para enfraquecer a influência de países como Venezuela e Bolívia na região.
Também justifica a expansão de monocultivos da cana, soja e palma africana
em todo o território latinoamericano.

Aproveitando-se da legítima preocupação da opinião pública internacional


com o aquecimento global, grandes empresas agrícolas, de biotecnologia,
petroleiras e automotivas percebem que os biocombustível representam uma
fonte importante de acumulação de capital. A biomassa é apresentada falsa-
mente como nova matriz energética, cujo princípio é a energia renovável.
Sabemos que a biomassa não poderá realmente substituir os combustíveis
fósseis e que tampouco é renovável.

Algumas características inerentes da indústria da cana são a destruição do


meio ambiente e a superexploração do trabalho. Utiliza-se principalmente da
mão-de-obra migrante. Portanto, estimula processos de migração, tornando os
trabalhadores mais vulneráveis e dificultando ainda mais sua organização. O du-
ro trabalho no corte da cana tem causado a morte de centenas de trabalhadores.

As mulheres trabalhadoras no corte da cana são ainda mais exploradas, pois rece-
bem salários mais baixos ou, em alguns países, como na Costa Rica, não recebem
seu salário diretamente. O pagamento é feito ao marido ou companheiro. É comum
também a prática do trabalho infantil em toda a América Latina, assim como a
exploração de jovens como principal mão-de-obra no estafante corte da cana.

Os trabalhadores não têm nenhum controle sobre a pesagem de sua produção


e conseqüentemente de seu salário, pois são remunerados por quantidade de
cana cortada e não por horas trabalhadas. Esta situação tem sérios efeitos para
a saúde e causa até mesmo a morte de muitos trabalhadores por fadiga, pelo tra-
balho excessivo que demanda o corte de até 20 toneladas de cana por dia.

A maioria das contratações é terceirizada por intermediários ou "gatos". Isso


dificulta a possibilidade de reivindicação dos direitos trabalhistas, pois não

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Tanques cheios às custas de barrigas vazias - A expansão da indústria da cana na América-Latina

existe um contrato formal de trabalho. A figura do empregador é escondida


nesse processo, que nega a própria relação de trabalho.

O Estado brasileiro estimula a utilização de terras dos assentamentos de


reforma agrária e de pequenos agricultores, que atualmente são responsáveis
por 70% da produção de alimentos, para produzir biocombustíveis, compro-
metendo a soberania alimentar.

Portanto, assumimos o compromisso de:

- Ampliar e fortalecer as lutas dos movimentos sociais na América


Latina e no Caribe, por meio de uma articulação entre as organi-
zações dos trabalhadores existentes e as entidades de apoio.

- Denunciar e combater o modelo agrícola baseado no monocul-


tivo concentrador de terra e renda, destruidor do meio ambiente,
responsável pelo trabalho escravo e a super exploração da mão de
obra. A superação do atual modelo agrícola passa pela realização
da Reforma Agrária ampla que elimine o latifúndio.

- Fortalecer as organizações de trabalhadores rurais, assalariados


e camponeses para construir um novo modelo alicerçado na agri-
cultura camponesa e na agroecologia, com produção diversifica-
da, priorizando o consumo interno. É preciso lutar por políticas de
subsídios para a produção de alimentos. Nosso principal objeti-
vo é garantir a soberania alimentar, pois a expansão da produção
de biocombustíveis agrava a situação de fome no mundo. Não
podemos manter os tanques cheios e as barrigas vazias.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2007

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos


Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Grito dos Excluídos
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
Serviço Pastoral do Migrante (SPM)
Via Campesia

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