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ANO XXVIII N° 1254 R$ 31,90

12 DE ABRIL DE 2023

BRASIL REVISTAS
EDIÇÃO ESPECIAL

100 dias
BRASIL REVISTAS

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Sua contribuição vai ajudar famílias e crianças
em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
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Índice 12 de abril de 2023 • Ano XXVIII • N° 1254

6 Mino Carta
Com a casa-grande de pé e intacta, A aprovação de Lula está
o atual desafio de Lula não é muito aquém da de seus mandatos
diferente daquele de 20 anos atrás anteriores, mas é superior
àquela de Bolsonaro. Pág. 30
10 Maria Rita Kehl
O Brasil respira melhor, sobretudo
sem a presença de Jair Bolsonaro

12 Débora Diniz
Governo e Judiciário podem avançar
na garantia dos direitos das mulheres

16 André Barrocal
Lula apoiou a reeleição de Arthur
Lira, mas o “aliado” não se cansa de
criar obstáculos para a gestão petista

20 Heloísa Starling
É preciso restabelecer o diálogo em
prol de um novo projeto de nação

24 Cláudio Couto
Não se pode analisar Lula 3
sem ter em perspectiva que
vivemos em um país fraturado

26 Esther Solano
Há uma janela de oportunidades
BRASIL REVISTAS
para “desbolsonarizar” a política

30 Aldo Fornazieri
O nó górdio do sucesso ou fracasso
do governo será definido pelo
incerto desempenho da economia

32 Maurício Thuswohl
Com acesso a crédito internacional,
a equipe de Lula começa a semear
um futuro mais sustentável

36 Pedro Serrano
O STF não pode se furtar a revisar
os acordos de leniência da Lava Jato

38 Marjorie Marona 48 Matilde Ribeiro 58 Gilberto Maringoni


Há inegáveis avanços, mas a A diplomacia do terceiro mandato
A reconstrução do País passa Igualdade Racial ainda carece é mais reativa que propositiva
pela despolitização do Judiciário de um orçamento adequado

40 Janine Ribeiro 60 Ana Paula Sousa


52 Carlos Drummond O novo marco legal e o retorno
As intenções são boas, mas a pasta A área econômica precisa ir simbólico do “cultura para todos”
da Ciência e Tecnologia tarda a agir além das ações de curto prazo

44 Fabíola Mendonça 64 Sidarta Ribero


A lua de mel dos nordestinos 56 Luiz Gonzaga Prefiro sonhar com o futuro a dar
com Lula não terminou Belluzzo ouvidos às críticas precipitadas
RICA RDO ST UCK ERT/PR

Está refeito o pacto entre os


cosmopolitas das finanças e 66 Charge
CAPA: PILAR VELLOSO. FOTO: EVARISTO SÁ/AFP as velhas oligarquias regionais Por Venes Caitano

CE NTR AL DE ATENDIM ENTO FAL E CON OSCO: HTTP: //ATEN DIMENTO. CARTACAPITAL .COM.BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Cartas Capitais
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) taxe o setor e destine os valores arreca-
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
dados para a educação e a saúde. 
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis Assim, até os viciados em apostas pode-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
rão receber tratamento.
REVISOR: Hassan Ayoub Antônio Mattar
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, O SONHO DOS
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, ESCRAVAGISTAS
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., Ao propor a extinção da Justiça
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
do Trabalho, Luiz Philippe de
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo Orleans e Bragança revela-se mais um
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
deputado empenhado em piorar a triste
CARTA ONLINE
e nefasta realidade do País. O “príncipe”
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira dos bolsonaristas deveria recolher-se à
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
própria insignificância e voltar ao esgoto
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana O CORONEL DO CAPITAL moral de onde saiu.
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) Arthur Lira é um homem autoritá-
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
Nair Odete
REDES SOCIAIS: Caio César rio e, por ser um representante do
SITE: www.cartacapital.com.br capital na Câmara, sente-se empodera- ESQUELETO NO ARMÁRIO
do e onipotente. Desde Bolsonaro, Lira Não, professor Pedro Serrano, o
manda e desmanda. Agora, diante de um deputado Deltan Dallagnol e o sena-
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
governo autônomo, abusa das manobras dor Sergio Moro não pagaram nem vão pa-
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 regimentais para atender às vontades e gar o preço da ambição desmedida. Se o
determinações de seus patrões. Infeliz- débito ficasse só por conta da “ambição
PUBLISHER: Manuela Carta
DIRETOR EXECUTIVO: Marcelo Romão mente, Lula terá de levá-lo em banho- desmedida”, vá lá! Mas há muito mais que
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene -maria, assim como o chefe do Banco isso: mau-caratismo, falta de escrúpulos,
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
ANALISTA DE CIRCULAÇÃO: Ismaila Alves
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios
BRASIL REVISTAS
Central, Roberto Campos Neto. Duas
pedras no sapato do presidente.
desonestidade, ignomínia. Dois seres de
conduta perniciosa, até ontem, infelizmen-
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, Paulo Sérgio Cordeiro Santos te, reverenciados como heróis nacionais.
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva
Elisabeto Ribeiro
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: DE ROLEX E DIAMANTES
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
enio@gestaodenegocios.com.br
Por décadas, a Justiça dormiu, en- DESCASO INTOLERÁVEL
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, quanto Bolsonaro assaltava verbas O Brasil tem uma sociedade pro-
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
de gabinete. Em 2018, os ingênuos caí- fundamente racista, fruto de mais
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
agholanda@Agholanda.com.br ram na sua balela anticorrupção, mas os de três séculos de escravidão sem repa-
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com trambiques não tardaram a aparecer. ração para os afrodescendentes. Promo-
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br
Além das joias sauditas, tivemos de engo- ver o ensino de História e Cultura Afro-
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda. lir o escândalo do Ministério da Educação, -Brasileira é um caminho para combater
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001.
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 o avanço das milícias, a Amazônia entre- o racismo, assim como a política de co-
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se gue ao crime organizado, os atos golpis- tas nas universidades, a legalização de
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
tas e as mortes dolosas na pandemia de terras para os quilombolas e combate à
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel Covid-19. Esses crimes ficarão impunes? violência policial contra o povo preto, po-
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584, João Bosco bre e periférico. Só teremos democracia
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de
acordo com a Lei de Imprensa. com mais equidade e diversidade.
JOGO VICIADO Rosa Carmina Couto
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) Muito oportuna a reportagem
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos sobre os sites de apostas. Inacre- DAS MASMORRAS
ditável que o Brasil não ganhe um centa- PARA AS RUAS
vo com esse mercado bilionário. Inacei- Desalentador o cenário do nosso
tável que essa farra prospere em um país sistema carcerário. Entra ano, sai
que proíbe jogos de azar. Risível ver a po- ano, e tudo só piora. Quando vamos cons-
lícia atrás de apostadores do jogo do bi- truir prisões dignas, para seres humanos,
MISTO
cho, mas tolerar que esses sites de apos- em vez de jaulas para animais? Aliás, nem
tas transitem em todos os veículos de os animais merecem tal tratamento.
comunicação. Espero que o governo Lula José Carlos Gama

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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remetidas pelo e-mail redacao@cartacapital.com.br
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100 dias

BRASIL REVISTAS
Não faltam razões a mover a Justiça contra os criminosos acima e o energúmeno abaixo

E D U A R D O M AT Y S I A K / F U T U R A P R E S S / E S TA D Ã O
C O N T E Ú D O E PAT R I C K T. F A L L O N / A F P

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Especial

Lula enfrenta
a dura realidade
A situação escapou do controle como areia
filtra entre os dedos da mão pretensamente fechada
POR MINO CA RTA

BRASIL REVISTAS

A
bri uma gaveta es- suas atuações na República de Curitiba, soçobra em intermináveis problemas.
quecida e encontrei não esqueçamos o apoio entusiasmado O povo está com fome e vive em gran-
uma carta, escrita que receberam da mídia nativa, à frente de parte ao relento, enquanto o gover-
de próprio punho, do espanto de juristas de fama mundial. no é ameaçado pelo próprio líder da Câ-
que Lula me man- Até Cesare Beccaria, autor, em meados mara dos Deputados, Arthur Lira, ra-
dou ainda da prisão de 1700, de uma obra fundamental, ain- zão de um sobressalto ao escrever seu
de Curitiba, vítima da chamada Lava da válida, intitulada Dos Delitos e das nome. O conjunto da obra é assustador,
Jato, obra famigerada de dois crimino- Penas, revirou-se em seu túmulo. o Judiciário é um poder inconfiável, co-
sos chamados Sergio Moro e Deltan Lembrei daqueles tempos e logo veio mandado pelo STF, que se sobressai em
Dallagnol. Dizia Lula: “A história irá um velho sonho, a evocar os dias de ho- pompa inútil e desfaçatez sem limites,
mostrar ao mundo o crime, a sandice e je, quando a nossa terra desmesurada sentinela falida da Constituição Cidadã
as mentiras do Ministério Público de do doutor
dout Ulysses Guimarães.
Curitiba, as mentiras de Moro na sen-
tença e também as mentiras do TRF 4”. contexto, única exceção a do minis-
No con
Prossegue, inclusive, com elogios ao INESQUECÍVEL Alexandre de Moraes, ao passo que
tro Alex
meu comportamento “como jornalista O APOIO MACIÇO o resto dda turma empolada se exibe dia-
e como homem”. Termina dizendo: “Pa- DA CASA-GRANDE riamente na televisão, na contramão dos
riament
rabéns a você, à CartaCapital e a todos E DA MÍDIA comportamentos discretíssimos e silen-
compor
que, juntos com você, resistem para não NATIVA À ciosos aaos ouvidos populares a distinguir
deixar o Brasil afundar”. Assina: “O Cortes dos países democráticos e
as altas C
LAVA JATO E
companheiro de sempre”. civilizados. As soluções destinadas a sa-
civiliza
AO ADVENTO DE
Quanto a Moro e Dallagnol, elege- near e rrecompor a situação não são to-
ram-se covardemente, o primeiro pa- JAIR BOLSONARO madas, a começar por um definitivo e fa-
ra o Senado, o outro para a Câmara, processo para nos livrar de vez de um
tal proc
com a intenção evidente de evitar con- energúmeno demente como Jair Bolso-
energúm
tra ambos a ação da Justiça, à qual cabe- naro. E não é que faltem excelentes ra-
ria condenar os criminosos. À época de para acioná-lo, em primeiro lugar
zões pa

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100 dias

BRASIL REVISTAS

o genocídio do povo Yanomâmi. No en- gundo p país mais desigual do mundo...


tanto, o ex-capitão hoje lidera a oposição, Pior só a África do Sul do apartheid.
a contar, inclusive, com o próprio apoio A MULETA Mais bem
be cotados na nossa frente ou-
do já citado Arthur Lira e de alguns no- DO PODER tros países
paí africanos, como Serra Leoa
táveis da casa-grande, ainda de pé e bru- e Moçambique.
Moçam Em compensação, nos-
MODERADOR
talmente aguerrida. sa bandeira
band triunfa pelos estádios do
SERGIO LIM A /A FP E NELSON A L MEIDA /A FP

AINDA SUSTENTA
mundo,
mundo em caso de vitória ou de der-
Perco-me em esperanças oníricas,
AS FORÇAS rota, com
co sua referência positivista pre-
mas até hoje um personagem menor ARMADAS, gada no “auriverde pendão”, conforme
como Anderson Torres, embora preso, COM O APLAUSO escreveu
escreve Castro Alves.
nem sequer foi condenado, no país on- DO POVO Patética escrita tanto mais na compa-
Patét
de tudo se apura ad infinitum, e tudo fi- IGNORANTE uma promessa de progresso que,
nhia de u
ca sem a mais pálida chance de altera- conforme vemos, é palavra ao vento. So-
conform
ções. As coisas ficam como estão e há vítimas de carências que medeiam
mos vít
até quem enxergue nisso uma prova da aterradora ausência de um Estado do
na aterr
democracia. Mas que democracia no se- Bem-Estar Social à falta de saneamento
Bem-Es

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Especial

BRASIL REVISTAS

básico em mais de 50% do território. Não Bethânia, como convém. Em outras para- Todos sabem da crise e da
atuação maligna dos militares
é que tenha faltado ao País uma alma va- gens, Chico Buarque, versejador refinado,
liosa. Se flores logram nascer em matos e Antônio Carlos Jobim, renovador inspi-
espinhentos, já me permito imaginar radíssimo. Em outros campos das artes exemplo mundo afora. Hoje, o exemplo
uma florada produzida pela excelente mais apuradas, nunca entenderei por que se dá ao contrário. A situação degringo-
música popular, desde a época distante o Nobel não premiou Guimarães Rosa, lou miseravelmente, como areia a filtrar
de Pixinguinha, padroeiro de uma gloriosamente preferido pelo derradei- entre os dedos da mão pretensamente
estirpe a incluir, de saída, Noel Rosa, ro aluno de Lawrence Terne, Machado fechada. A população dá-se conta da cri-
Lupicínio Rodrigues, Lamartine Babo, de Assis, a não desfigurar diante de Lima se, apontada do Oiapoque ao Chuí. So-
Ary Barroso e, enfim, Dorival Caymmi, Barreto, Euclides da Cunha, Gilberto mente em São Paulo, a locomotiva, os
o cantor do dia 2 de fevereiro e de rosas Freyre, Celso Furtado, Graciliano Ramos moradores de rua começam a passar de
diversas, nosso Teócrito, o poeta grego. e o pensador Raymundo Faoro. Material 50 mil. É apenas o começo de uma tra-
Aí temos, a circular pelo bairro das rico, como se vê. gédia de maior porte. Fique firme e cla-
fontes coloniais, o precursor dos baia- Já houve o tempo em que Lula era “o ro, contudo: minha amizade por Lula e
nos mais recentes, um deles sem lenço e cara” aos olhos do presidente dos EUA o apoio de CartaCapital são sempre os
sem documento, sempre a lembrar Maria Barack Obama, para tornar-se belo mesmos, em qualquer circunstância. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 9
100 dias

Três meses
uma “jornalista de calcanhar sujo” (apud
Nelson Rodrigues) que, depois de assistir
a um tremendo comício dele, conseguiu
entrevistá-lo para o jornal Movimento, um

depois...
dos pequenos jornais de oposição à dita-
dura que surgiram naquele período. A en-
trevista deve estar nos arquivos online do
extinto Movimento, se é que existem (na
época o que não existia era a internet). 
Voltamos a ter um governo para todos Outro momento importante foi quan-
do, depois de três tentativas de se tornar
P O R M A R I A R I T A K E H L*
presidente, Luiz Inácio Lula da Silva di-
vulgou a “Carta ao Povo Brasileiro”, onde
prometia não mexer nos juros dos ban-

A
cos. Boa parte da esquerda revoltou-
ntes mesmo de o pre- te será detido sem provas. Isso se chama -se. Lula, o negociador, nos convocou –
sidente Lula tomar justiça. Assim se faz numa democracia.  eu sempre na rabeira da fila, com mui-
posse, Bolsonaro es- A diferença que o Brasil sentiu nos pri- ta honra – para explicar as razões de sua

30 de dezembro o pri-
BRASIL REVISTAS
cafedeu-se. Foi no dia meiros dias do governo Lula começou na
posse. Nem mesmo ele, nas duas vezes an-
negociação. Ele tinha um projeto simples
e revolucionário para o Brasil, que man-
meiro benefício do teriores em que foi eleito, tinha planejado tém até hoje: “Que cada brasileiro tenha
novo governo eleito: o País respira melhor uma posse tão bonita quanto a do primei- direito a café da manhã, almoço e jan-
na ausência do ex-presidente. Só que no ro dia de 2023. A pergunta sobre quem ha- tar”. Foi o que o levou a criar o Bolsa Fa-
dia 8 de janeiro ficamos sabendo que, veria de passar a faixa ao novo presiden- mília, cujo recebimento estava condicio-
mesmo com o Bozo fugido, o bolsonaris- te foi respondida com o cortejo de repre- nado a que as crianças estivessem na es-
mo continua vivo em sua forma mais pri- sentantes de todas as etnias e tipos hu- cola – assim se diminuía, também, a prá-
mária: o vandalismo. Foi o dia da invasão manos que compõem a sociedade brasilei- tica criminosa do trabalho infantil. 
bárbara no Palácio do Planalto. Como dis- ra. Negros, indígenas, quilombolas, uma
se o governador de Brasília, Ibaneis Ro- criança, um cadeirante... o Brasil entre- Depois de dois mandatos revolucioná-
cha: o Palácio do Planalto dispunha de um gou a faixa ao seu novo – e já tão consagra- rios, diante do atraso e do patriarcalismo
batalhão para defendê-lo, mas houve um do – presidente, a mostrar na prática, des- brasileiro, – me desculpe, presidente, pela
“relaxamento geral”. Nem a Força Nacio- de o primeiro dia, seu projeto de inclusão.  palavra “revolucionário”, com a qual você
nal entrou em ação. Se tal descaso não é Conheci o ainda-não-presidente Lu- nunca se identificou –, Lula ainda conse-
sintoma de bolsonarismo, não sei o que é.  la em 1976. Era o presidente do Sindica- guiu eleger e reeleger sua sucessora: uma
Preso desde o dia 14 de janeiro, o ex- to dos Metalúrgicos de São Bernardo e eu ex-presa política que havia sido torturada
-ministro da Justiça de Bolsonaro prisão e, por conta disso, foi a primeira
na prisã
Anderson Torres admitiu que houve “fa- chefe de Estado brasileira desde o fim da
lha grave” na proteção do Palácio no dia ditadura que se empenhou junto ao Con-
ditadur
8. Por acaso, ou não, o projeto de Torres O BRASIL RESPIRA gresso ppara criar uma Comissão Nacional
era remover o acampamento dos golpis- MELHOR, Verdade. Não podemos nos queixar de
da Verd
tas no dia 10. Alguém avisou os vândalos PRINCIPALMENTE nosso trabalho não tenha sido bem
que o no
para se adiantarem? SEM A PRESENÇA divulgado. Por duas vezes, ocupamos até
divulga
Poderíamos dizer: assim começou o go- DE BOLSONARO noticiário do Jornal Nacional. Mas a re-
o noticiá
verno Lula. Só que não. O vandalismo não cepção à CNV não foi unanimidade nacio-
foi iniciativa do novo governo, mas a apli- Criou-se, à época, a famigerada “teo-
nal. Crio
cação justa e rigorosa da lei, sim. Nenhum dois lados”. Pessoas nos paravam
ria dos d
culpado ficará impune, nenhum inocen- ruas para perguntar se não iríamos
nas rua

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Perspectiva

investigar o “lado dos terroristas”. Não


adiantava explicar que os “terroristas”
BRASIL REVISTAS
car. Confio que, apesar da pequena mar-
gem de votos a seu favor, Lula consiga re-
A diversidade
brasileira sobe
a rampa
defendiam a volta da democracia. A CNV tomar o que sempre fez: governar para e
incomodou os incautos. Ninguém ouvia comunicar-se com todos os brasileiros. 
nosso argumento. Além disso... Já começou. O novo Bolsa Família de organizadores do laço social. A democra-
Além disso, durante a reunião da Câ- 600 reais inclui um adicional de 150 por cia é um deles. A lei é outro. O pressuposto
mara que aprovou o impeachment de criança. O trabalho escravo, que desde o da gentileza, ou do respeito, acima da bru-
Dilma Rousseff, um deputado do “baixo século XVI nunca deveria ter acontecido, talidade e do desrespeito, é um dispositivo
clero” foi elogiar o livro do mais cruel den- está sendo erradicado. O programa “Mais civilizador. Bolsonaro não conseguiu des-
tre os torturadores: Carlos Alberto Bri- Médicos”, bem recebido pela população truir todos eles – a democracia brasileira é
lhante Ustra. Tal deputado veio a se eleger pobre e execrado pelos ressentidos sólida, mesmo tocando pouco no elemen-
presidente em 2018. Sabemos o que o País (inclusive aqueles médicos que jamais to de nossa brutal desigualdade. Mas des-
passou, então – se eu começar a enumerar se dispuseram a trabalhar onde os moralizou a todos, o quanto pôde, do jei-
as maldades e irresponsabilidades de Bol- cubanos aceitavam ir) foi relançado. E, de to que pôde. Isso implica um trabalho a
sonaro este artigo não terá fim.  Mas vale forma geral, grande parte da população mais para o novo presidente. Não bastam
comemorar que foi o primeiro presiden- brasileira voltou a sorrir. “Não acredito leis e ações políticas para diminuir a de-
te, desde o fim da ditadura, que, com to- em pessoas, acredito em dispositivos”, sigualdade, o racismo, a violência. É pre-
da a máquina do Estado a seu dispor, não disse certa vez o psicanalista Jacques ciso pacificar os discursos. Sei que Lula é
conseguiu se reeleger. Bem feito.  Lacan. Bolsonaro muniu-se de disposi- capaz disso. Nunca ouvimos dele um “dis-
tivos de ódio. “Só não te estupro porque curso de ódio”. Mas, depois do desmonte
O primeiro “efeito Lula” foi o mes- você é muito feia”, dirigiu-se à deputada da civilidade que o Brasil sofreu nos últi-
mo de seus governos anteriores: pacifi- Maria do Rosário, por uma divergência mos quatro anos, Lula e sua grande equi-
cou o País. Não governou contra seus ini- qualquer. Referiu-se a quilombolas co- pe terão algum trabalho para devolver a
RICA RDO ST UCK ERT/PR

migos, nem a favor de seus apoiadores. O mo se fossem gado ao comentar que de- paz não só aos seus apoiadores, mas à so-
País voltou a ter um governo para todos veriam ser pesados em arrobas.  ciedade brasileira como um todo.
os brasileiros. Respira-se um clima me- Penso que o mal praticado pelo ex-pre- Bom trabalho, presidente. •
lhor. Depois do 8 de janeiro, com Bolsona- sidente não se resume ao seu mau gover-
ro na Flórida traindo os vândalos que lu- no, nem às quebras de decoro menciona- *Psicanalista, jornalista, ensaísta,
taram por ele, o Brasil começa a se pacifi- das nos exemplos acima. Dispositivos são poetisa, cronista e crítica literária.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 11
100 dias

Lei e vontade
Governo e Judiciário podem avançar na garantia
dos direitos das mulheres, diz a antropóloga Débora Diniz
A FABÍOLA MENDONÇA

U
ma das primeiras ações do aborto, em caso de risco de vida, de proteção dentro do marco legal existente.
do Ministério da Saú- estupro e de anencefalia. É um sinal cla- CC: De modo mais amplo, como a se-
de foi revogar a porta- ro de que esta é uma necessidade de saú- nhora avalia as políticas para as mulhe-
ria que criava obstácu- de e tem de ser protegida. A eliminação res anunciadas pelo governo Lula até
los ao aborto garanti- dos obstáculos, a remoção das decisões o momento?
do por lei em caso de
anencefalia, estupro e risco à saúde da
BRASIL REVISTAS
anteriores do governo Bolsonaro, é um DD: Uma das prioridades explícitas da
sinal claro de que os limites de atuação ministra Cida (Gonçalves), recentemen-
mulher. A medida, embora positiva, não dos ministérios das Mulheres, da Saúde, te ela foi à Universidade de Brasília e eu
representa necessariamente um avanço, da Igualdade Racial avançaram em di- tive acesso ao que ela disse, é o enfrenta-
mas recoloca o Brasil em um estágio an- reção à proteção a essa mento à violência contra
terior, ou seja, o de cumprir a legislação. necessidade. Também as mulheres e meninas
Avanço mesmo seria o Executivo implan- é um sinal de que os mi- e à população trans no
tar no País políticas públicas que repre- nistérios não vão esca- Brasil. São apenas três
sentem a garantia de direitos para as mu- par desse tema nos limi- meses de governo, menos
lheres, independentemente do aval do Le- tes do que a lei permite. ainda de ministério, mas
gislativo, uma vez que o Congresso Nacio- Outros limites, no entan- há uma afirmação explí-
nal tem forte bancada antigênero. A ava- to, dizem respeito ao que cita de um compromisso.
liação é da antropóloga e pesquisadora fe- o Legislativo e o Executi- Medidas como a saída do
minista Débora Diniz. Na entrevista a se- vo podem realizar. Tra- Consenso de Genebra e a
guir, ela analisa os cem primeiros dias do tou-se de um avanço ou revogação das portarias
governo Lula em relação à pauta das mu- de um retorno à situação são exemplares da nova
lheres, diz alimentar esperança no julga- anterior? É uma pergun- orientação. Agora, pre-
mento do STF sobre o aborto e analisa os ta difícil, pois a respos- cisamos analisar o prag-
mais recentes dados da pesquisa nacio- ta depende do ponto de matismo dos programas,
Diniz: Rever as portarias de
nal a respeito do assunto. perspectiva. Ele é toma- Bolsonaro foi um primeiro passo precisamos de pesqui-
do como um avanço por sas, de atuação concreta
ISTOCKPHOTO E ACERVO PESSOA

CartaCapital: O Ministério da Saú- conta dos retrocessos anteriores, e isso em nível comunitário, precisamos sensi-
de revogou as portarias que dificulta- faz com que as medidas seguintes possam bilizar o Judiciário e os profissionais de
vam o aborto legal. Qual a importân- ser mais cautelosas, mas, na verdade, não saúde. Foi um período de estrago muito
cia da medida? é exatamente um avanço. É apenas o res- rápido das garantias de proteção às mu-
Débora Diniz: A revogação reafirma a peito a um dispositivo legal e de uma polí- lheres, às meninas e à população trans no
necessidade de garantia e da proteção à tica pública. Então, ele se transforma em Brasil. Estas pessoas são as que sofrem o
saúde fundamental das meninas e mu- avanço num campo político muito rea- efeito do fanatismo antigênero.
lheres nos três excludentes de punição cionário. Mas, na verdade, é um dever de CC: Quais iniciativas o governo po-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Gênero

BRASIL REVISTAS

Metade das mulheres que abortaram tomaram a decisão muito jovens, entre 16 e 19 anos

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 13
100 dias

BRASIL REVISTAS

deria adotar para garantir os direitos as políticas públicas vão dar? Poderia fa- é justo. E não venham chamar de idealis-
das mulheres sem precisar recorrer ao zer uma lista de ao menos duas páginas de mo. A necessidade das mulheres passa pe-
Congresso? medidas que não dependem do Congres- la distribuição de renda, pela discussão de
DD: É possível apostar em avanços de ou- so. Atrelamos os dois poderes, governo e gastos e passa por saúde reprodutiva. Vo-
tra forma. Primeiro, o Executivo não or- Congresso, mas parece uma maneira er- cê fez a pergunta sobre o Congresso e eu
bita em torno do Legislativo, é um poder rada de olhar o problema e talvez, inclusi- dei a resposta sobre o Executivo, mas po-
independente. O processo legislativo de- ve, de apequenar o Executivo. Talvez o go- demos falar sobre o Judiciário. Na Justiça
manda tempo. É importante dar ao Exe- verno dependa do Legislativo para a apro- tramitam algumas ações, mas, em parti-
cutivo a magnitude do seu poder e, por- vação de outras pautas, como o arcabouço cular, uma que pede a descriminalização
tanto, da sua responsabilidade na prote- fiscal, e se veja impelido a não avançar em do aborto nas 12 primeiras semanas e que
ção de direitos. Na Pesquisa Nacional do outros temas. Mas não é assim que deve- pode avançar independentemente do Le-
Aborto, mostramos que uma em cada duas ria ser a política sobre a definição do que gislativo, com igual legitimidade.
mulheres fez seu primeiro aborto na ado- CC: Como
C a senhora avalia o núme-
RICA RDO ST UCK ERT/PR E NELSON JR./STF

lescência. Há uma interpolação explícita. mulheres nos ministérios no go-


ro de m
Como o conjunto de ministérios pode al- “O ABORTO Lula?
verno L
cançar a população adolescente, especial- CONTINUA A SER DD: Temos
Tem uma representatividade no
mente a mais vulnerável, ou seja, pobre e governo Lula como nunca tivemos na po-
UM EVENTO COMUM
negra? Com políticas integradas de saúde inclusive com composições muito
lítica, in
NA VIDA DA MULHER
na adolescência, educação sexual nas es- diversas de mulheres abaixo do nível mi-
colas? Duas em cada três mulheres, mos-
BRASILEIRA” nisterial. A minha principal preocupa-
nisterial
tra o levantamento, não planejaram a gra- neste momento, se me permite en-
ção nes
videz. Não sabemos se essas mulheres so- quadrar a pergunta, é com a nomeação
frem ou sofreram violência. Que respostas ministros do Supremo. São duas vagas
de mini

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Gênero

o tema nas Cortes constitucionais. Será


uma surpresa se assim não for no Brasil.
O STF saiu fortalecido da pandemia de
Covid-19, por ter sido uma Corte que to-
mou para si uma questão constitucional,
o direito à saúde. O aborto perpassa uma
questão constitucional, que é o não cabi-
mento do Código Penal à luz da Constitui-
ção. Ou seja, o Código Penal, de 1940, não
espelha a ideia do direito à saúde como a
Constituição prevê e como a Corte reafir-
mou durante a crise sanitária.
CC: De acordo com recente pesquisa
do Datafolha, somente 18% dos brasi-
leiros são favoráveis ao aborto.
DD: Este é um assunto de crença priva-
da, de preferências individuais, não é um
tema para se medir em pesquisas de opi-
nião. Fazem uma pergunta sobre gostos
e preferências em relação ao que deve ser
BRASIL REVISTAS sobre práticas, eventos. Por isso a nossa
pesquisa nacional pergunta se a mulher já
fez aborto. Uma em cada sete já fez. Então,
todas as vezes que levamos temas morais
para pesquisas de opinião, o que fazemos
é movimentar o fanatismo. “Você é con-
abertas e acho que a pergunta não é só so- A antropóloga celebra o aumento do tra ou a favor de casamento inter-racial?”
número de mulheres no governo e torce
bre equidade. Seria um insulto a não no- Isso tem nome, é racismo. Isso é uma per-
para Rosa Weber levar adiante a ação
meação de mulheres. Trata-se de uma re- que pede a descriminalização do aborto gunta de moral. Uma pergunta que fala so-
paração histórica sobre a não representa- bre aborto tem um nome, misoginia. En-
tividade, ao apagamento das mulheres na tão fazemos perguntas que movimentam
Corte, em particular de mulheres negras. a misoginia da moral patriarcal. Por isso
CC: Existe uma grande expectativa ela é uma má ciência e deve receber o seu
de que a ministra Rosa Weber, antes de nome, o de perguntas misóginas.
sua aposentadoria, em outubro, pau- CC: A Pesquisa Nacional sobre Aborto
te o julgamento da ação que pode le- acaba de ser publicada. Em linhas ge-
var à descriminalização do aborto com rais, o que o levantamento identificou?
consentimento da mulher nos primei- DD: A PNA de 2021 nos mostra que o abor-
ros três meses de gestação. A senho- to continua a ser um evento comum na
ra acha possível o STF dar, de fato, es- vida da mulher brasileira. Uma em cada
se passo na atual conjuntura? sete mulheres aos 40 anos fez ao menos
DD: Acredito que sim. Com a reforma do um aborto. Também identificamos, pela
regimento do Supremo, o tempo de jul- primeira vez, que uma em cada duas fez o
gamento ficou mais célere. A ação sobre primeiro aborto quando era muito jovem,
a descriminalização do aborto tramita entre 16 e 19 anos. Há uma concentração
há quatro anos. Seria muito importante do aborto entre as mulheres negras do
o País tomar uma decisão favorável, em Norte e do Nordeste, mas isso não signifi-
consonância com o que se passa na Amé- ca que não esteja em todas as regiões, clas-
rica Latina. México e Colômbia decidiram ses sociais, raças e faixas educacionais. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 15
100 dias

Um andar
acima
Depois de priorizar os mais pobres em
cem dias, Lula prepara medidas voltadas
a quem ganha entre 2 e 10 salários
POR ANDRÉ BARROCAL

L
ula chega aos cem dias de
governo disposto a mos-
BRASIL REVISTAS
na eleição e continua a ter. O governo é ava-
liado como “bom ou ótimo” por 40% dos
trar ter cumprido pro- brasileiros, na média de duas pesquisas de
messas eleitorais feitas a março, Ipec (ex-Ibope) e Datafolha. É um
quem não desistiu dele nível similar ao obtido por Lula nas urnas,
durante o cárcere curiti- 38% dos votos totais no segundo turno.
bano e foi responsável por seu triunfo nas Votos totais incluem brancos, nulos e abs-
urnas em 2022: o povão. Desde janeiro, o tenções, ou seja, todos os 156 milhões de
governo botou na rua um Bolsa Família brasileiros com título de eleitor. Quando
turbinado, ressuscitou os programas de se considera apenas a classe média, a situ-
moradia popular (Minha Casa Minha Vi- ação piora. A avaliação “bom e ótimo” cai
da), de oferta de médicos (Mais Médicos) a 30% entre quem ganha de 2 a 5 salários
e de estoques públicos de alimentos mínimos, e a 26% entre quem tem renda
(PAA), corrigiu o salário mínimo acima de 5 a 10 mínimos, conforme o Datafolha.
da inflação e o repasse de verba à meren- No primeiro grupo, 36% acham o gover-
da escolar. Não deu tempo de relançar um
projeto para disseminar o acesso à água
em regiões secas, o Água Para Todos, mas
na reunião ministerial que o presidente A ISENÇÃO DE
fará na segunda-feira 10 para prestar con- IMPOSTO DE RENDA
tas do mandato até aqui, o plano estará na NA FAIXA DE 5 MIL
mesa. Com a reunião e o balanço, Lula REAIS, PROMESSA
quer dar início a uma nova etapa de gover- DE CAMPANHA,
no. “Temos que nos dirigir um pouco à ESTÁ PRESTES
classe média brasileira, porque, no fun- A SER ANUNCIADA
do, ela tem sofrido os desgovernos deste
País”, discursou em 20 de março. 
Com enraizado sentimento antipetista,
a classe média tinha má vontade com Lula

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Governança

de 1.320 reais. Cerca de 1,3 milhão de as-


salariados vão se livrar do “Leão”, nos cál-
culos da Unafisco, associação dos audito-
res fiscais. Com isenção até 5 mil, a Una-
fisco estimava na eleição que 17 milhões
de contribuintes seriam favorecidos. Cada
um embolsaria 370 reais a mais por mês
(4.440 anuais), ao deixar de pagar IR. No
ano passado, 36 milhões de trabalhadores
entregaram declarações ao Fisco.
O governo, diz Costa, quer aliviar a
vida das faixas de renda que “sofreram
com os desgovernos”. Aposta na Com trocas no conselho de adminis-
redução de IR e dos combustíveis
tração da Petrobras previstas para o fim
de abril, Lula espera que a estatal comece
no “ruim ou péssimo”. No segundo, 47%. a baratear a gasolina, ao enterrar a polí-
A desaprovação geral, não importa a ren- tica adotada, desde Michel Temer, de se-
da, é de 28%, na média de Datafolha e Ipec. guir a cotação internacional. O presiden-
No Palácio do Planalto, o resultado das te só autorizou a volta da cobrança de im-
BRASIL REVISTAS
pesquisas foi encarado de maneira rósea.
Acredita-se que o petista quebrou parte
postos federais no comércio de gasolina
e álcool a partir de março, pois a compa-
da rejeição eleitoral, que era de 40% a nhia topou reduzir um pouco seus pró-
50%. Parcela da turma anti-Lula vê agora prios preços, o que atenuaria o impacto
o governo como “regular” (30%, na média final na bomba. Na comparação com fe-
de Ipec e Datafolha). É o que diz o minis- vereiro, a gasolina encareceu perto de 9%
tro da Casa Civil, Rui Costa. A aprovação nos postos em março, em média.
do petista é menor agora do que quando O presidente deseja satisfazer a clas-
ele havia deixado o poder, em 2010 (80%, se média rural também. Em uma reu-
85%). Um auxiliar presidencial diz que o nião com ministros na segunda-feira 3,
mundo mudou muito de lá para cá, e não orientou Carlos Fávaro, da Agricultu-
só no Brasil. A política está mais polari- ra, e Paulo Teixeira, do Desenvolvimen-
zada, dividida. É difícil ostentar altos ín- to Agrário, a olhar os produtores de por-
dices de popularidade. Nos EUA, a apro- te médio. São pastas que, historicamen-
vação ao governo Biden é de cerca de 40%. te, se concentraram em dois “extremos”,
No México, Andrés Manuel López segundo Rui Costa: o agronegócio e os as-
Obrador, um dos dois líderes mais po- sentados, respectivamente. Enquanto Lu-
M A RCELO CA M A RGO/A BR E NELSON A L MEIDA /A FP

pulares do mundo (o outro é o indiano la dava a orientação, o MST ocupava uma


Narendra Modi), tem cerca de 60%. fazenda tida como improdutiva em Tim-
De volta à classe média. Lula diz querer baúba, cidade de 50 mil habitantes 100
melhorar o poder aquisitivo dessas faixas. quilômetros ao norte do Recife. Foi a ter-
Uma das medidas preparadas para anun- ceira ocupação do ano. As outras haviam
ciar ainda neste ano é o aumento da isen- sido na Bahia, em março. São atos prepa-
ção de Imposto de Renda, para 5 mil reais, ratórios do “abril vermelho”, manifesta-
promessa de campanha do petista. O pri- ção periódica dos sem-terra em defesa da
meiro passo foi dado em fevereiro, com o reforma agrária. A de agora será entre os
reajuste de 11% na isenção, agora em 2.112 dias 17 e 20. Pepino à vista para o governo
reais mensais. Valerá a partir de maio, e o movimento. No Congresso, bolsonaris-
quando entra em vigor o salário mínimo tas e ruralistas tentam criar uma CPI do

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 17
100 dias

MST, motivada pelas ocupações na Bahia.


Já conseguiram o número mínimo de as-
sinaturas de deputados, e agora é com o
presidente da Câmara, Arthur Lira. 
Após Lira ter sacudido Brasília com de-
safios ao Senado e ameaças de que o go-
verno pagará o pato, tudo por causa de
uma disputa de poder em torno da for-
ma como os parlamentares examinam
Medidas Provisórias, o Planalto acredi-
ta que as MPs mais urgentes serão votadas
conforme manda a Constituição. O cabe-
ça da articulação política lulista, ministro
Alexandre Padilha, diz que, após a Páscoa,
MPs como a do Bolsa Família e a do Minha
Casa Minha Vida serão debatidas em co-
missões mistas de deputados e senadores,
rito constitucional contra o qual Lira ha-
via se insurgido. Nos bastidores, o Planal-
to admite que algum troco dará Lira, em
parceria com aquele pessoal do dito “Cen-
trão” até hoje descontente com os cargos
BRASIL REVISTAS Os brasileiros estão mais apreensivos.
O Palácio do Planalto tenta mediar as
oferecidos pelo governo. Troco que pode diferenças entre Lira e Pacheco
ser, entre outros, tirar a Companhia Na-
cional de Abastecimento do ministro Tei-
xeira e devolvê-la à pasta da Agricultura, do manejo das emendas pelos ministérios.
como era com Jair Bolsonaro. O petista que não sabe se o governo tem
maioria no Congresso e um deputado co-
A criação das comissões das MPs e lega de bancada, Lindbergh Farias, do Rio
as futuras votações dessas medidas serão de Janeiro, compartilham uma preocu-
o teste definitivo sobre o tamanho da ba- pação comum: a economia. Farias acre-
se governista no Congresso. Passados cem dita, desde a dura campanha, que o ibo-
dias de governo, um importante deputado pe de Lula será essencial à sobrevivência
do PT diz: “Eu até agora não sei se o gover- política do presidente e do PT, para pro-
no tem maioria aqui”. Um parlamentar do teger o mandatário da hostilidade e das
PSB, partido do vice-presidente Geraldo chantagens congressuais. E a populari-
Alckmin, acha que Lula ainda não enten- depende da melhora das condições
dade dep
deu que a forma de o governo se relacionar de vida dda população, expectativa que ali-
com o Congresso está bem diferente da- A ECONOMIA mentou o voto em Lula. O Datafolha iden-
quela de 2010. O Legislativo não depende PREOCUPA OS tificou ccerta queda no otimismo dos bra-
tanto de cargos quanto antes, pois tem um sileiros com a economia. Em dezembro,
PETISTAS. ALIÁS,
caminhão de dinheiro para emendas par- achavam que ela ia melhorar, ago-
49% ach
A CONFIANÇA
lamentares, obras incluídas no orçamen- 46%. Antes, 20% achavam que iria
ra são 46
to federal pelos congressistas. Até a opo-
DA POPULAÇÃO piorar, aagora são 29%. Dá para entender. A
sição consegue emendas, graças ao seu ca- NESSE QUESITO inflação em 12 meses até fevereiro (5,6%)
ráter “impositivo”. Com tempo e paciên- ESTÁ MENOR estava qquase igual àquela do ano passado
cia, diz um articulador político do gover- (5,7%). O desemprego no período subiu de
no, o Planalto terá mais influência sobre para 8,6%, sazonalidade típica dessa
7,9% par
os parlamentares, justamente em razão época ddo ano. O salário médio dos traba-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Governança

cação digital. Recebeu uma pesquisado-


ra que faz pós-doutorado no Instituto Na-
O SENTIMENTO DOS cional de Ciência e Tecnologia em Demo-
BRASILEIROS COM cracia Digital, Nina Fernandes dos San-
100 DIAS DE LULA tos. O doutorado dela, premiado em Pa-
ris em 2019, foi sobre o Twitter e as mar-
Sobre o governo*
chas de junho de 2013 que chacoalharam
o governo Dilma. Recebeu ainda um ad-
vogado, Humberto Ribeiro, que está por
trás do Sleeping Giants, grupo de ativis-
tas que combate mentiras e discursos de
ódio propagados no Twitter. 

Outro que passou pela sala de “Marco-


40% 30% 28% la” foi um antropólogo que estuda tanto as
redes sociais quanto o protestantismo, Ju-
Bom ou ótimo Regular Ruim ou
péssimo liano Spyer. Em 2021, Spyer publicou um
livro intitulado Povo de Deus – Quem São
Sobre a economia** os Evangélicos e Por Que Eles Importam.
Bolsonaro satanizou Lula nas igrejas e os
BRASIL REVISTAS
lhadores era de 2.841 e em fevereiro esta-
efeitos continuam presentes, mesmo de-
pois de cinco meses da campanha. Entre
va praticamente igual, 2.853. os evangélicos, a avaliação do governo é
E ainda há as redes sociais a fomentar pior. Na média das pesquisas Ipec e Data-
o mal-estar, com seu discurso agressivo, folha, 29% acham o governo bom ou óti-
de ódio. Campo dominado pelo bolsona- mo, 33% regular e 33%, ruim ou péssimo.
rismo e a direita, como se sabe. Conforme Outro sinal do tamanho do estrago causa-
46% 26% 26%
uma pesquisa do instituto Quaest, dos cin- do pelo capitão: 44% dos brasileiros acre-
co temas mais comentados nas redes so- Vai melhorar Vai ficar igual Vai piorar
ditam que há risco de o Brasil virar um pa-
ciais neste ano, quatro eram de interesse ís comunista. Entre os crentes, o temor
*Fonte: média das pesquisas de março
dos antilulistas. O único assunto de inte- feitas por Ipec (ex-Ibope) e Datafolha bate em 57%. Para alterar essa realidade,
resse governista na lista foi o caso das joias **Fonte: pesquisa de março do Datafolha cem dias é pouco, muito pouco. •
sauditas para Jair e Michelle Bolsonaro, a
respeito do qual o capitão teria de depor à
Polícia Federal na quarta-feira 5. A propó- REDES SOCIAIS, “ABACAXI”
sito, Lula foi aconselhado a ignorar a volta
T O M A Z S I LVA /A B R E E D I L S O N R O D R I G U E S /A G . S E N A D O

PARA O GOVERNO*
de Bolsonaro ao Brasil e deixar que minis-
tros reajam ao antecessor, quando neces-
sário. Dos dez deputados mais influentes
4 dos 5 temas mais discutidos das redes
nos últimos 90 dias eram de interesse da oposição.
nas redes sociais, oito são bolsonaristas, Governistas só emplacaram na lista o caso das joias sauditas
conforme a Quaest. Entre os senadores,
todos os dez do ranking são bolsonaristas.
Para ter uma visão mais aprofundada
8 dos 10 deputados mais influentes
nas redes são da oposição. O único governista é o mineiro
sobre o abacaxi das redes sociais, Lula va- André Janones (há outro na lista que se diz “independente”)
le-se de seu chefe de gabinete, o sociólo-
go Marco Aurélio Santana Ribeiro, de 37
anos. Colaborador do petista desde 2015,
10 senadores da oposição são os
dez mais influentes nas redes. Não há governista nesse ranking
“Marcola”, como é conhecido, tem feito
reuniões com especialistas em comuni- *Fonte: Índice de Popularidade Digital, criado e medido pelo instituto de pesquisa Quaest

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 19
100 dias

Futuro em
disputa
É preciso restabelecer o debate público
e encontrar um novo projeto comum
de nação, diz Heloísa Starling
A S E R G I O L I R I O 

BRASIL REVISTAS

A
historiadora Heloísa CartaCapital: Esta não é uma per-
Starling não se deixa gunta à historiadora, mas à cidadã. Que
levar pela esperança sentimentos resumem os primeiros
e pelo otimismo, em- cem dias?
bora não esconda um Heloísa Starling: É um grande alívio,
e outro sentimento antes de tudo. Quando vi a posse do presi-
ao analisar os primeiros cem dias do go- dente Lula, a simbologia da rampa, foi uma
verno Lula, liderança, segundo ela, essen- sensação de esperança, ou melhor, de ex-
cial, talvez única, no processo de recons- pectativa. Por outro lado, o Brasil vive uma
trução do País. O relançamento de pro- conjuntura completamente diferente, iné-
gramas sociais consagrados, entre eles o dita na sua trajetória. Ao mesmo tempo,
Bolsa Família e o Mais Médicos, diz a pro- há essa possibilidade de respirar e dizer
fessora da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais e autora de livros seminais, é
um piso, a base para que se ergam coisas “NÃO HÁ
novas e se recupere o ideal de um proje- REFERÊNCIA
to de nação. “Perdemos a dimensão de fu- NA HISTÓRIA DE
turo”, lamenta. Sua maior preocupação UM PROCESSO
está no combate ao bloqueio do debate
DE DEGRADAÇÃO
público e na solidão dos indivíduos, que
COMO AQUELE
alimenta o medo e a impotência. “É pre-
ciso abrir a janela da internet para o pen-
QUE VIVEMOS NOS
samento entrar”, afirma. Entre as tare- QUATRO ANOS
fas urgentes? Estimular, enfim, uma cul- DE BOLSONARO”
tura democrática, única maneira de
transformar uma sociedade hierárquica,
racista, desigual e violenta.

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Dialética

CC: Lula, a esta altura, continua a


ser a liderança capaz de conduzir es-
sa reconstrução?
HS: O presidente Lula é a liderança políti-
ca essencial neste processo. De qualquer
forma, obviamente, precisamos também
de novas lideranças. Mas para enfrentar
a reconstrução é o Lula. Não há outro no-
me. Lembremos: o presidente teve pela
frente no primeiro mês de mandato o 8
de janeiro e o genocídio Yanomâmi. Não é
pouca coisa. Lula tem uma experiência de
vida distinta daquela de 2003 a 2010, e is-
A solidão do indivíduo so faz diferença. Minha esperança é gran-
atomizado alimenta o medo, diz
a historiadora Heloisa Starling de. A esperança, você sabe, é uma certeza
incerta sobre um bem que virá.
CC: O governo, nestes primeiros
“agora vamos poder reconstruir o País”, cem dias, até como parte da recons-
BRASIL REVISTAS
mas a tensão política continua. Logo em
seguida à posse veio o 8 de janeiro, a reve-
trução, relançou projetos bem-sucedi-
dos de mandatos petistas anteriores:
lação do genocídio Yanomâmi e a evidên- Minha Casa Minha Vida, Bolsa Famí-
cia, mais uma vez, do problema militar. Eu lia, Mais Médicos. É este o caminho?
me pergunto: o que se passa no Brasil? Co- HS: É um conjunto de iniciativas impor-
mo vamos enfrentar essa realidade nova? tantíssimo. Trata-se de refazer as bases, o
CC: O que é novo? chão. A partir desse chão erguem-se coi-
HS: As instituições e as estruturas têm si- sas novas. A gente dançava na beira do
do, ou foram até três meses atrás, destruí- abismo. Demos alguns passos para longe
das por dentro. Nunca tivemos um presi- dele. Mas há duas coisas que precisamos
dente da República legitimamente elei- enfrentar, a partir dessas políticas. Uma:
to que passasse a usar o poder para des- nesse processo de destruição, o espaço
truir a democracia por dentro. Antes, ela público para o debate se esgarçou. Existe
só caiu à força de golpes de Estado. Não uma solidão muito grande e é preciso en-
há referência na história de um processo frentá-la, trazer o debate público de volta.
de degradação como aquele que vivemos Os brasileiros precisam se reencontrar. A
nos quatro anos de Bolsonaro. O objetivo solidão é péssima para a democracia, pois
agora deve ser construir ferramentas para alimenta o medo e a impotência. A ideia de
enfrentar esse processo e impedir que ele comunidade está desgastada e os indiví-
volte a acontecer. Aliás, Bolsonaro nun- duos estão cada vez mais solitários, e isso
ca mentiu a esse respeito. Em um evento é caldo de cultura do medo. Você entende?
REDES SOCIAIS E ISTOCKPHOTO

para empresários em Nova York, ele dis- CC: Entendo. Mas essa interação
se que tinha vindo para destruir, não pa- não passou para as redes sociais, que
ra construir. Se a gente olha para o pano- muitos consideram a nova ágora?
rama, é assustador. Não há uma área ou HS: Isso não é ágora, não, viu...
lugar em que essa política de destruição CC: ... Certo. Mas como lidar com o
não tenha sido ao menos iniciada. Os bra- fato de que as redes sociais predomi-
sileiros hoje sabem como morre uma de- nam nessas interações, no comparti-
mocracia. Mas como ela renasce? lhamento de informação?

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 21
100 dias

BRASIL REVISTAS
HS: Nas redes, não me parece que os usuá- na questão da defesa das instituições e da projeto de Brasil desejamos? Perdemos
rios procurem informação. As bolhas ali- prática formal da democracia, eleições re- a dimensão do futuro nos últimos quatro
mentam o vazio do pensamento. E se você gulares etc. Deixamos de lado, porém, a anos. Reinou a destruição.
não pensa, não questiona. É preciso abrir a nossa ficção engenhosa de nação. Não nos CC: Quando Bolsonaro venceu as
janela da internet para o pensamento en- preocupamos em estimular uma cultura eleições, muitos analistas vaticinaram
trar. O vento entrar e desarrumar tudo. Na democrática para enfrentar uma socieda- o fim da Nova República. Quatro anos
hora em que se rearruma, criam-se as co- de com essas características. Além disso, depois, Lula, um produto da Nova Re-
nexões para ser crítico. Outra coisa funda- qual a nossa imaginação de futuro, que pública, está de volta ao poder. Aquele
mental é como criar as ferramentas para projeto iiniciado nas Diretas Já e que de-
gerar uma cultura democrática no Brasil. saguou na Constituição de 1988 ainda
O Joaquim Nabuco, lá no século XIX, diz dá conta das urgências do País?
uma coisa que parece que ele olhava para “NUNCA NOS HS: A grande
gr transformação no fim da di-
o Brasil atual. É o seguinte: este é um Es- PREOCUPAMOS tadura ffoi o fato de que o ideal da democra-
tado nacional fundado sobre uma única EM ESTIMULAR deixou de ser encarado como um meio
cia deixo
estrutura, a escravidão. E em volta de um UMA CULTURA alcançar outra forma política. Nos
de se alc
projeto fundado na escravidão, dizia o Na- DEMOCRÁTICA 1960, os progressistas viam no com-
anos 196
buco, vai florescer uma sociedade hierár- PARA ENFRENTAR ditadura o caminho para se chegar
bate à di
quica, racista, desigual e muito violenta. UMA SOCIEDADE socialismo. Depois, a busca pela demo-
ao socia
Como lidamos com isso? Ele fala: recobri- HIERÁRQUICA, passou a ser um fim em si mesmo. É
cracia pa
mos essa sociedade com uma epiderme ci- RACISTA, DESIGUAL grande herança do fim do regime mili-
a grand
vilizatória, mas é uma epiderme. Corta fá- isso marca nossa Constituição, que
tar. E iss
E VIOLENTA” 
cil e o fundo recessivo brota. E essa, afir- várias falhas, mas é forte no campo
tem vár
mava, é a nossa ficção engenhosa de nação. direitos civis e das políticas públicas.
dos dire
Quando acaba a ditadura e vem a Consti- Ela não eestá ultrapassada. É como nos ver-
tuinte de 1988, colocamos muita energia Paulinho da Viola: quando penso no
sos do Pa

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Dialética

Nem no impeachment de Dilma


Rousseff percebemos a profundidade
da fratura social, cujo estopim
se deu nos protestos de 2013.
Nabuco era visionário

BRASIL REVISTAS
futuro, não esqueço do passado. Toda a lu- Angela Alonso vai lançar um livro sobre tado mais atenção, essa ascensão do ex-
ta dos anos 80, a Constituinte, oferece os a pesquisa que ela fez sobre o tema logo, tremismo de direita acabasse contida na-
padrões, o repertório, para a gente pensar logo. Havia duas coisas estranhas naque- quele momento. Subestimou-se o que es-
no Brasil que queremos fazer juntos. Não le movimento. O reacionarismo sai da to- tava acontecendo.
à toa, o governo Lula tem se dedicado a re- ca e vai da margem para o centro, até to- CC: Caso a senhora e a Lilia
lançar programas sociais destruídos por mar as ruas das forças progressistas. Falo Schwarcz atualizassem o livro Brasil,
Bolsonaro. É preciso um chão. especificamente de 2015 e 2016. Lembro Uma Biografia, como seria?
CC: O extremismo de direita veio pa- de uma imagem simbólica, no dia da vota- HS: Até conversei com a Lilia a respei-
ra ficar, será uma força constante na ção do impeachment de Dilma Rousseff, to. Certamente, voltaremos a falar do as-
disputa política e eleitoral? quando em frente ao Congresso se for- sunto. Não sei ainda exatamente o que
HS: A sociedade brasileira tem uma fatia mam dois grupos, contra e a favor. Se- ela pensa, mas esse nosso biografado é
reacionária muito grande. Tem um texto parados por uma espécie de muro. Foi muito surpreendente e difícil. Faz coi-
M O R I YA M A / G E T T Y I M A G E S / A F P E J U C A VA R E L L A / A B R

muito bom do Felipe Nunes, da Qaest, no sintomático. Ao mesmo tempo, o movi- sas que não daria para imaginar que ele
ACERVO/FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, VICTOR

qual ele chama atenção para o fato de que mento de reivindicações também era di- fosse capaz de fazer. Tenho me assustado
essa força, surgida nas franjas das mani- ferente, por não ter criado interlocução muito nos últimos tempos. O que a Lilia
festações de 2013, se calcificou. Se for as- fora daquele ambiente. Era uma pauta me chamou a atenção, e eu concordo, é
sim, o objetivo de quem almeja uma de- difusa, vaga, embora englobasse temas que precisamos esperar um pouco para
mocracia deve ser quebrar essa calcifi- importantes, entre eles o direito às cida- ver os desdobramentos deste período ini-
cação. O desaparecimento de um centro des, novas formas de viver. Foi formula- ciado em janeiro. Até para entender es-
político é ruim. Aconteceu algo parecido do de maneira caótica, mas enviou um re- sa reconstrução, senão o biografado fica
em 1964. Do jeito que está, não tem deba- cado ao governo que a Dilma não consi- em suspenso. Posso dizer apenas que é
te. É só enfrentamento. derou, a importância das políticas públi- o biografado mais difícil da história das
CC: Dez anos depois, como interpretar cas e sociais. O que aconteceu foi ignora- biografias no mundo (risos)...
as chamadas jornadas de junho de 2013? do pelo governo e, talvez, se a presidenta CC: ... Quiçá do universo...
HS: Vamos saber melhor em breve. e seus assessores diretos tivessem pres- HS: ... Quiçá, olha... Como é difícil (risos). •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 23
100 dias

Tempos
lo bolsonarismo: Minha Casa Minha Vi-
da, Mais Médicos e Bolsa Família. Embo-
ra tais políticas sejam marcas de gover-
nos petistas, a retomada não se resume a

anormais
elas. Toda uma construção institucional
e de políticas iniciada desde o fim da dita-
dura – ou mesmo antes dela – precisou ser
retomada. O desmonte produzido em áre-
Não se pode avaliar o início do as como educação, cultura, ciência e tec-
mandato de Lula sem a noção de que nologia, meio ambiente e direitos huma-
nos pôs a perder avanços que precedem as
vivemos em um país fraturado gestões petistas. Portanto, não se trata de
Lula retomando Lula, mas de um governo
POR CLÁUDIO COUTO* que precisa corrigir a solução de continui-
dade que o precedeu para levar o País de

A
volta à normalidade, assegurando o pros-
lgo precisa ser consi- mistas – para pilhar e destruir o País. Qui- seguimento do processo cumulativo e in-
derado em qualquer çá o fracasso da intentona de 8 de janeiro cremental que caracteriza programas go-
avaliação dos cem pri-
meiros dias do tercei-
BRASIL REVISTAS
de 2023 marque o fim desse ciclo nefas-
to de uma década e o início da reconstru-
vernamentais, fazendo com que eles, ao
longo do tempo, sejam mais políticas de
ro governo Lula: se- ção e da volta do Brasil aos trilhos. Quiçá. Estado do que de governo.
guimos sem viver Seja como for, qualquer governo que su-
tempos normais. Embora, com o fim da cedesse ao descalabro bolsonaresco pre- Esse é um dos fatores a ser conside-
Presidência de Jair Bolsonaro, um gover- cisaria ser de reconstrução nacional. Cou- rados quando se observam os resulta-
no normal tenha se instalado em Brasí- be a Lula III essa tarefa. É com base nela dos de recentes pesquisas, do Ipec e do
lia, o contexto em que tal governo opera que este início de gestão deve ser entendi- Datafolha, sobre a popularidade do pre-
ainda é marcado pelo descarrilamento da do. A reconstrução começou, mas de que sidente e de sua administração. Ambos
democracia brasileira, iniciado em 2013. forma? Primeiramente, é preciso lembrar os levantamentos trouxeram uma infor-
As malfadadas jornadas de junho, em que o óbvio. Por se tratar de um governo de re- mação que recebeu bastante destaque na
o MPL pariu o MBL, originaram também construção, é inescapável ter de reorga- mídia: Lula tinha a pior avaliação de seus
a crise de legitimidade de nosso sistema nizar as coisas antes de produzir entre- três mandatos ao completar três meses
político, culminando no desgoverno fas- gas. Isso fica claro na retomada de pro- no cargo, assim como um resultado pior
cistoide capitaneado por um boçal e no gramas anteriores, descontinuados pe- do que seus antecessores – à exceção de
qual militares partidarizados e lumpem- Bolsonaro.
Bolsona O Ipec apontou Lula com 41%
políticos se locupletaram. de ótimo/bom
ótim e 24% de ruim/péssimo; o
A boçalidade entronada destroçou o QUALQUER Datafolha
Datafolh apontou, respectivamente, 38%
País, desorganizando a administração GOVERNO QUE e 29%. Para
P fins de comparação, em seus
pública, desestruturando políticas lon- SUCEDESSE AO primeiros
primeir mandatos, FHC, Lula e Dilma
gamente construídas, tornando-nos pá- DESCALABRO Rousseff
Roussef obtiveram no Datafolha, respec-
rias internacionais, devastando o meio tivamente,
tivamen 39%, 43% e 47% de ótimo/bom
BOLSONARESCO
ambiente, produzindo um genocídio in- e apenas
apena 5%, 7% e 12% de ruim/péssimo.
PRECISARIA SER
dígena, deixando morrer centenas de mi- Ocorre que aqueles não eram tempos
Ocor
lhares na pandemia e aprofundando o fa- DE RECONSTRUÇÃO marcados
marcad pela radicalização da polariza-
natismo na sociedade. Se, em 2013, a di- NACIONAL ção, iniciada
inic em junho de 2013. Tanto é
reita saiu do armário e a extrema-direita assim que
q os números de ruim/péssimo
emergiu do esgoto, entre 2019 e 2022 am- foram, para
p Dilma II, de 60% (pressagian-
bas se uniram – sob a liderança dos extre- do o imp
impeachment) e, para Bolsonaro, de

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Conjuntura

BRASIL REVISTAS
30%, quebrando o padrão anterior. Hoje, formance dos mandatários de turno. A tentativa de golpe de 8 de janeiro
é o epílogo ou mais um capítulo de
os 24% a 30% que julgam negativamente Se uma dificuldade provém da socie-
um período tenebroso?
o governo Lula equivalem ao piso de ava- dade, outra está no próprio sistema polí-
liações positivas mantidas durante todo o tico. Desde o fim da ditadura, os sucessivos
quadriênio bolsonarista, mesmo em seus governos funcionaram na lógica do presi- lideranças partidárias no Congresso o pa-
momentos mais funestos. Por mais atro- dencialismo de coalizão: presidente insti- pel de fazer andar a pauta legislativa. Por
cidades que cometesse, o capitão refor- tucionalmente forte, Congresso Nacional isso, durante seu mandato, se tornaram
mado manteve sempre a aprovação des- fragmentado, impondo a necessidade não impositivas as emendas orçamentárias de
se contingente, que oscilou entre um ter- só da construção de coalizões multiparti- bancadas estaduais, tirando do Executivo
ço e um quarto dos eleitores. dárias, como da atuação diligente do pre- um poder institucional importante, que
sidente da República na gestão de sua base lhe permitia barganhar com o Legislati-
Pois a polarização remanesce e difi- de sustentação legislativa. Foi o que fize- vo. Antes dele, Dilma já se havia impingi-
cilmente será revertida – ao menos sig- ram sucessivos governantes: José Sarney, do as emendas individuais impositivas.
nificativamente – durante os próximos Itamar Franco, Fernando Henrique e E foi também com Bolsonaro que se eri-
quatro anos, a despeito das entregas que Lula. Fernando Collor e Dilma fracassa- giu o mostrengo do “orçamento secreto”,
o atual governo possa vir a fazer. O ciclo ram: um por prepotência, outra por inape- a consumação desse processo de enfra-
de uma década, iniciado em junho de 2013 tência para as transações parlamentares. quecimento presidencial perante o Con-
e (talvez) fechado em janeiro de 2023, le- Michel Temer, que entendia do assunto (e, gresso. Eis mais uma herança maldita do
gou-nos uma sociedade fraturada, em que não à toa, presidiu por três vezes a Câma- quadriênio bolsonarista: é com esse Con-
uma parcela não desprezível da popula- ra), precisou ocupar-se mais do salvamen- gresso, institucionalmente empoderado,
ção foi radicalizada à direita. A radicali- to de sua pele do que da implementação de politicamente irresponsável e adernado à
M A RCELO CA M A RGO/A BR

zação faz com que, para tal segmento, per- uma agenda legislativa – que, não obstan- direita, que Lula precisa lidar. Não à toa,
cepções positivas ou negativas acerca de te, avançou durante seu início de manda- sua agenda legislativa só agora começa a
governos e governantes sejam postuladas to, antes do “Joesley Day”. sair da gaveta e nada temos para falar dela
a priori, definidas antes por identidades, Bolsonaro, simplesmente, abdicou da nestes primeiros cem dias de mandato. •
crenças e afetos arraigados do que por tarefa de gerir sua coalizão, deixando a
avaliações objetivas e racionais da per- cargo dos presidentes das duas casas e das *Cientista político e professor da FGV-SP.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 25
100 dias

Chance única
Com Lula no poder e Bolsonaro afastado de sua
base, o campo progressista tem condições reais de
“desbolsonarizar” a política, defende Esther Solano
A MARIANA SERAFINI

A
chegada de Lula à Pre- CartaCapital: O escândalo das joias errou, deve pagar. Existe um caminho
sidência e a pouca ha- sauditas produziu algum efeito entre os possível de desconstrução da imagem do
bilidade de Jair Bolso- apoiadores de Jair Bolsonaro? Ou a tur- ex-capitão. Por outro lado, houve muita
naro de se manter co-
nectado à sua base
BRASIL REVISTAS
ma é imune a qualquer denúncia?
Esther Solano: Teve efeito, sim. Este
confusão sobre a volta de Bolsonaro ao
Brasil, não há uma narrativa clara sobre
abrem caminho para o escândalo teve um impacto negativo, so- os motivos que o levaram a retornar ao
campo progressista reconquistar os elei- bretudo naquela base bolsonarista cha- País. Ele não está aqui para liderar opo-
tores que se deixaram iludir pelo bolsona- mada de “moderada”. Ou seja, os apoia- sição alguma. Precisou se apresentar pa-
rismo, defende Esther Solano, doutora em dores que não estão hiper-radicalizados. ra a Justiça, para responder aos numero-
Ciências Sociais pela Universidade O que conseguimos capturar nas entre- sos processos nos quais é alvo. É preciso
Complutense de Madri e professora de Re- vistas com esses eleitores? Basicamen- explicar isso melhor aos devotos do capi-
lações Internacionais da Unifesp. No mar- te, a ideia de que Bolsonaro errou. E, se tão, porque eles estão desorientados, não
co dos cem dias do governo Lula, a soció- sabem por que Bolsonaro deixou o País
loga explica como os bolsonaristas se or- nem a razão de estar voltando somente
ganizam para continuar emplacando um agora. Essa confusão dá a oportunidade
discurso intolerante, capaz de mobilizar de o campo progressista assumir as ré-
uma massa insatisfeita com a política. deas da narrativa.
Na avaliação da especialista, há uma CC: Os bolsonaristas não estão mais
crise de representatividade no campo sendo municiados de narrativas distor-
conservador. Este seria, portanto, o mo- cidas e informações falsas nos grupos
mento ideal para o campo progressista de Telegram e WhatsApp?
tomar as rédeas da narrativa. “Agora Lu- ES: Em nossos estudos, dividimos me-
la deveria, de fato, se posicionar de acor- todológica e politicamente os bolsona-
do com o slogan do seu governo: união e ristas entre os radicalizados, que são
reconstrução, há um anseio legítimo pe- quantitativamente minoritários, mas
lo retorno da ordem”, aconselha. Nes- mobilizam os outros, contaminando, di-
ta entrevista, Solano esmiúça temas co- gamos assim, a ala moderada, mais nu-
mo família, fundamentalismo religioso merosa. Mas parte expressiva dessa ba-
e os possíveis caminhos de diálogo que se radical se desmobilizou quando Bol-
o campo progressista pode aproveitar. A sonaro deixou o Brasil e, sobretudo, após
íntegra em vídeo está disponível no canal Há anos, a socióloga faz entrevistas com a fracassada tentativa de golpe em 8 de
de CartaCapital no YouTube. bolsonaristas “radicais” e “moderados” janeiro, que resultou na prisão de mais

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Extrema-direita

BRASIL REVISTAS

de 2 mil pessoas. São os radicais que es- O escândalo das joias to da base radical com os moderados,
sauditas caiu como uma
tão atuantes no Telegram e em outras re- que votaram no ex-capitão nas últimas
bomba na base do ex-capitão
des sociais, arquitetando toda a campa- eleições, mas não estão absolutamente
nha de desinformação e de ódio. Só o ní- identificados com o bolsonarismo. Mui-
identifi
vel de engajamento caiu muito. O bolso- desses bolsonaristas moderados vo-
tos dess
narismo sofre com uma espécie de efeito taram eem Lula no passado. Podem, por-
“OS DEVOTOS DO
sanfona. Em momentos decisivos, como tanto, vvoltar a se identificar com proje-
as eleições, os moderados colaram nos
CAPITÃO ESTÃO democráticos.
tos dem
radicais. Após a derrota nas urnas, eles DESORIENTADOS, CC: QQual foi o impacto do 8 de janei-
NÃO SABEM POR QUE
PA R T I D O L I B E R A L /A F P E T V G A Z E TA

se afastaram, com um discurso que faz ro entre os bolsonaristas moderados?


todo sentido: “Olha, o Lula ganhou, bo- ELE DEIXOU O PAÍS ES: Muito
Mu negativo. O bolsonarismo ra-
la pra frente... Quero que o País dê certo, NEM A RAZÃO DE dical é ccaracterizado pela violência, pe-
quero estabilidade, não posso me dedi- ESTAR VOLTANDO intolerância, pela baderna. Esponta-
la intole
car só a temas políticos”. SOMENTE AGORA” neamente, os moderados começaram a
neamen
CC: Esta seria a brecha para virar dizer: ““Eu não me identifico com isso”.
o jogo? repúdio é muito grande, e aí houve
O repúd
ES: Sim, é um momento muito interes- grave falha do campo progressista.
uma gra
sante. Existe, de fato, um descolamen- Com o b bolsonarismo radical nesse lugar

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 27
100 dias

de rejeição, poderíamos reforçar o papel


de Lula como pacificador, um estadista
que consegue deixar as diferenças de la- “POR QUE UMA
do para unir o povo novamente. Nas en- MULHER NEGRA
trevistas que faço, os moderados dizem E PERIFÉRICA SE
esperar que Lula assuma esse papel. Não SENTE AMEAÇADA
faz mais sentido instigar a polarização. PELA ESQUERDA?
CC: Bolsonaro estendeu as férias na PRECISAMOS
Flórida, passou 89 dias fora do País, e
DECIFRAR ISSO”
retornou dois dias antes do aniversário
do golpe de 1964. Como os bolsona-
ristas radicais lidaram com a ausência
de seu líder por tanto tempo?
ES: Ficaram desmotivados. Um movi-
mento tão psíquico, afetivo e libidinal, da, como representada pelo governador
como é o bolsonarismo, não consegue li- paulista, Tarcísio de Freitas?
dar bem com a ausência do líder. A carên- CC: Em meio a esta disputa, como fi-
cia afetiva é notória, assim como a falta de ca o público movido pelo pânico moral?
rumo. Existe uma grande incerteza sobre ES: Temos a tarefa urgente de entender
quem vai, de fato, herdar o espólio polí- como funciona esse pânico moral, como
tico desse grupo. Por isso, tenho insisti-
do que o campo progressista está diante
BRASIL REVISTAS
ele consegue mobilizar tanta gente pe-
lo medo. Hoje, esse público se sente ór-
de uma oportunidade única, de isolar os fão, mas ele continua a existir. Estamos
radicais e descontaminar os moderados. falando de brasileiros das classes C e D,
CC: Em um artigo recente, a senhora muitas vezes ligados às religiões neopen-
observa que o bolsonarismo veio para tecostais, ao fundamentalismo religioso.
ficar. Essa crise de representatividade Esse bolsonarismo religioso está presen-
não pode ferir de morte o movimento? te nas periferias e tem muita força. Pre-
ES: Quando escrevo que o bolsonaris- cisamos ser cuidadosos no trato com es-
mo veio para ficar, quero dizer que esse
movimento foi magistral ao radiografar
uma série de valores estruturantes da so-
ciedade brasileira. Quando a gente fala,
por exemplo, de fundamentalismo reli-
gioso, ele está lá. Quando se fala de radi-
calização dos estamentos de segurança
pública ou do arquétipo de autoridade no
Brasil, ele também se mostra presente.
Há, ainda, um profundo mal-estar de se-
tores da sociedade contra os avanços das
pautas identitárias. Há tempos isso vem
TON MOLIN A /A FP E ISTOCK PHOTO

crescendo na esteira do antipetismo, mas


foram os bolsonaristas que conseguiram
aglutinar todas essas manifestações. O
que está em disputa, agora, é o futuro do
bolsonarismo. Ele vai manter a aposta no
radicalismo, talvez em torno de uma fi-
gura como Michelle Bolsonaro, ou ten-
de a assumir uma feição mais modera-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Extrema-direita

BRASIL REVISTAS

O fracasso de 8 de janeiro desanimou Bolsonaro ficará inelegível. Na verdade, ES: Na verdade, Bolsonaro represen-
os “patriotas”. Já a esquerda não sabe
como lidar com os evangélicos
eles dão como certa a prisão do ex-ca- ta dois tipos de anseios: os de nature-
pitão, vivem um momento de apocalip- za fascista e o desejo da ordem. O fas-
se. E por quê? Eles acreditam que o Su- cismo é inaceitável, mas o segundo an-
se grupo, composto também de muitas premo Tribunal Federal é o grande vi- seio é legítimo. Muitas pessoas estão
mulheres. Se a gente não entender esse lão da história. Até o fim, vão apresen- incomodadas com a insegurança pública,
fenômeno, estamos perdendo potencial tar o ex-presidente como vítima de uma com a corrupção endêmica. Essas pautas
de comunicação com pessoas que natu- grande conspiração judicial. Por isso, a precisam ser “desbolsonarizadas”. É mui-
ralmente poderiam estar no nosso cam- esquerda não pode descuidar da dispu- to legítimo a população desejar uma polí-
po, por estarem em condição de vulne- ta de narrativas. Há o risco de eles cria- tica mais honesta, e cabe ao campo pro-
rabilidade social, racial ou de gênero. rem um falso mártir. gressista mostrar que o lavajatismo nun-
Por que uma mulher negra e periférica CC: Há algum tempo, a senhora ob- ca contribuiu, de fato, para isso. Da mes-
se sente ameaçada pela esquerda? Pre- servou que Bolsonaro não representa ma forma, a ideia da ordem é uma pauta
cisamos decifrar isso. só os interesses da elite, que ele conse- legítima, mas, se for tomada pelo ponto de
CC: Como os bolsonaristas enxer- guiu aglutinar os anseios legítimos da vista da lógica bolsonarista, torna-se ex-
gam a possibilidade de o ex-presiden- população mais pobre. Como mostrar cludente, pois acaba imposta por um pa-
te tornar-se inelegível e sofrer conde- aos menos favorecidos que a solução triarcado branco e heteronormativo. To-
nações criminais? de seus problemas não está na agenda dos anseiam o mínimo convívio ordeiro,
ES: Os radicais não têm dúvida de que neoliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes? mas é preciso requalificar esse debate. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 29
100 dias

Crescer
tos de ambiente negativo sobre si. Desta-
cam-se as declarações de Lula sobre Ser-
gio Moro e as investidas de natureza pes-
soal que ele e Gleisi Hoffmann travaram

ou crescer
contra o presidente do Banco Central.
O próprio BC, ao manter uma elevada
e injustificável taxa de juros, contribui
para azedar o humor dos brasileiros. So-
O governo coleciona iniciativas positivas, ma-se a isto a inflação alta, o desempre-
mas o nó górdio do seu sucesso ou fracasso go persistente, a fome e a miséria, retra-
tadas principalmente pelos moradores de
será definido pelo incerto rumo da economia rua que chegam aos 50 mil na capital pau-
lista. Ruídos causados por decisões equi-
POR ALDO FORNAZIERI*
vocadas de alguns ministros acresceram
esses desgastes. Ainda no plano da econo-
mia, somente aos 90 dias de governo hou-

E
ve uma sinalização clara do que se vai fa-
mbora cem dias não seja Da mesma forma, refletem duas rea- zer nessa área. A apresentação das linhas
um número cabalístico,
BRASIL REVISTAS
parece que para os gover-
lidades igualmente ambivalentes. A pri-
meira é caracterizada pela série de even-
gerais da política fiscal de Haddad abre a
porta para uma virada positiva.
nos assumiu essa dimen- tos negativos que marcam esse período,
são. Trata-se de um mar- quase todos fora da capacidade de inter- O governo contrabalançou os aspec-
co temporal arbitrário venção do governo: o golpe frustrado de 8 tos negativos com uma série de medidas e
sem que se saiba bem a origem. Pode ter de janeiro, a tragédia dos Yanomâmis, o iniciativas que geram repercussão posi-
se originado no “governo dos cem dias” de desastre em São Sebastião, a violência do tiva. Destacam-se a decretação da Emer-
Napoleão Bonaparte, de 20 de março a 8 crime organizado em Natal, a revelação gência em Saúde e as medidas de socor-
de julho de 1815, quando ele fugiu de Elba das práticas de trabalho escravo em di- ro para os Yanomâmis, a união dos Três
e retomou o governo. Então foi derruba- versas regiões do País, com destaque pa- Poderes, com a participação dos gover-
do por uma coalizão de países e confina- ra o caso da Serra Gaúcha, e o assassina- nadores, em repúdio à tentativa de gol-
do até a morte na ilha de Santa Helena. to da professora em uma escola paulista. pe de 8 de janeiro, a recomposição de po-
Quando Franklin D. Roosevelt lançou, no Esses eventos carregaram as pautas do líticas sociais destruídas por Bolsonaro,
centésimo dia de sua gestão, um pacote de noticiário negativamente, contaminan- como o Bolsa Família, o Minha Casa Mi-
medidas para combater a Grande Depres- do a percepção da sociedade. O governo nha Vida, o incentivo à cultura, a valori-
são nos EUA, nos anos 1930, a efeméride também contribuiu na atração de elemen- zação do salário mínimo etc.
entrou de vez no calendário político. As in
iniciativas de política externa, com
Lula chega aos cem dias de seu terceiro as viagens
viage aos EUA, Argentina, Uruguai e
mandato com avaliações de dois institutos HADDAD DEMOROU China, também
t produziram saldos posi-
de pesquisa, o Ipec e o Datafolha. Pela or- EXCESSIVAMENTE tivos. Lula,
Lu com sua diplomacia presiden-
dem, o governo obtém 41% e 38% de bom e PARA APRESENTAR cial, está
est conseguindo debelar a imagem
ótimo; 32% e 30% de regular: e 32% e 29% negativa e desastrosa, de pária, que o Bra-
A SUA POLÍTICA
de ruim ou péssimo. São números aquém sil havia assumido no governo Bolsonaro.
ECONÔMICA
dos dois mandatos lulistas anteriores e do Positivo também é o movimento de su-
Posit
primeiro mandato de Dilma, mas superio- E ATRAIR peração do mal-estar do governo com os
res aos de Bolsonaro no mesmo período INVESTIMENTOS militares
militare por conta do 8 de janeiro. Para
de 2019. Os dados apontam para uma con- que esse processo se conclua, é preciso ins-
clusão ambivalente: não são satisfatórios, titucionalizar
titucion ordenamentos que coíbam
mas também não são desastrosos. a participação
partic política dos militares, que

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Balanço geral

Se o ministro tivesse apresentado seu


arcabouço fiscal antes, talvez o cenário
político estivesse menos tumultuado agora

o governo precisa melhorar sua comuni-


cação. Ela depende, contudo, dos objetivos
claros que o governo pretende alcançar e
BRASIL REVISTAS da capacidade de direção política para con-
duzir o conjunto dos ministérios e a base
de apoio, no Congresso e na sociedade, na
direção desses objetivos. Comunicação
e política são interdependentes. Mas em
comunicação política, a política deve co-
mandar o processo, dar a última palavra.
Lula também deve calibrar melhor o
modelo de presidente que quer seguir. Não
pode seguir o exemplo de Bolsonaro, um
presidente faccioso, que agiu para favore-
cer sua facção. Convém resgatar o mode-
estabeleçam a passagem automática para O governo demorou excessivamente lo de estadista que imprimiu seus manda-
a reserva e com quarentena para aqueles para apresentar a sua política econômica. tos anteriores. Lula deve ser o símbolo da
que pretendem seguir a carreira política. Essa falta de virada de chave para o am- unidade do País, da representação do povo
Do mesmo modo, é preciso afastar de vez biente de confiança indica que Lula deve- como chefe de governo e chefe de Estado.
a interpretação do artigo 142 da Constitui- ria ter escolhido seu ministro da Fazenda Como símbolo da unidade do povo,
D I O G O Z A C A R I A S / M F E R E N AT O L U I Z F E R R E I R A

ção como autorizativo da tutela das Forças logo após a vitória eleitoral, autorizando-o não significa que Lula governará sem
Armadas sobre a República. a formar sua equipe e definir o programa prioridades, tampouco que não haverá
econômico. Se o programa tivesse sido luta política. Mas os palcos principais de-
O nó górdio do sucesso ou do fracas- apresentado no início do governo, o am- la serão as casas legislativas e os espaços
so do governo será definido, porém, pelo biente econômico já seria outro neste mo- públicos da sociedade e de expressão da
desempenho da economia. O governo, até mento. Agora é necessário acelerar as de- opinião pública. O palco dos espaços das
agora, não conseguiu criar um ambiente finições para superar as incertezas. As ba- ruas e das mobilizações políticas e so-
positivo e de confiança junto aos agentes ses lançadas por Haddad em 30 de março ciais deve ocupar um lugar de destaque. •
econômicos, capaz de mobilizá-los nas são o começo do caminho da estabilidade,
decisões de novos investimentos. Inves- da mobilização de investimentos e da re- *Cientista político, professor da Escola de
timentos necessários para a retomada do dução dos juros e da inflação. Sociologia e Política e autor, entre outros, de
crescimento e geração de emprego e renda. Outra conclusão que se impõe é a de que Liderança e Poder (Editora Contracorrente).

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 31
100 dias

BRASIL REVISTAS

Hora de semear
Com crédito internacional, a área ambiental prepara
o terreno após o período de terra arrasada
POR MAURÍCIO THUSWOHL

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Meio Ambiente

dades de Conservação, e do Instituto Jar-


dim Botânico do Rio de Janeiro, que acom-
panha o cumprimento das metas de biodi-
versidade. “Nestes cem dias foi retomada
a centralidade da agenda ambiental e fo-
ram adotadas medidas importantes para
que o Brasil cumpra seu dever doméstico e
se posicione novamente no âmbito do en-
frentamento à crise climática global”, afir-
ma o deputado federal Nilto Tatto, do PT.

O primeiro sinal positivo dado pelo


governo foi a radical mudança na capa-
cidade – e vontade política – do Ibama
para enfrentar os garimpeiros invaso-

A
res da Terra Yanomâmi. Na sequência,
expressão terra arra- O genocídio Yanomâmi dissipou qualquer apesar do desmontado efetivo que hoje
dúvida sobre o projeto bolsonarista.
sada ganha literalida- As primeiras medidas de Marina Silva
conta com apenas 720 fiscais, veio a reto-
BRASIL REVISTAS
de quando se fala do
meio ambiente. Du-
no ministério foram bem recebidas mada das ações de combate ao desmata-
mento na Amazônia. Até 14 de março, se-
rante os quatro anos gundo o órgão, registra-se um aumento
do governo Bolsona- de 169% nos autos de infração na região,
ro, a Amazônia e o Pantanal arderam em em comparação com o mesmo período
chamas, o genocídio indígena remontou de 2022. A apreensão de bens e equipa-
aos tempos da colonização portuguesa e mentos de infratores ambientais cresceu
o crime organizado virou a força motriz 157%. Mesmo com o quadro de superin-
da economia da floresta. Entende-se, tendentes regionais do Ibama incomple-
portanto, o alívio que a eleição de Lula, to e à mercê das negociações do gover-
ou, por outra, a derrota do ex-capitão pro- no com os partidos da base para o pre-
vocou nos ambientalistas, líderes políti- enchimento das vagas no segundo esca-
cos internacionais e cientistas. Passados lão, a fiscalização voltou a ser realizada
cem dias da nova administração e dian- em outros biomas, com aumento de 42%
te das primeiras medidas, o clima geral nos autos de infração em todo o Brasil.
nesta comunidade é de boa vontade. Pe- Tatto aponta como avanços a reestru-
sam a favor os esforços iniciais do Minis- turação do Conama, a volta do Serviço
tério do Meio Ambiente para o soergui- Florestal Brasileiro à pasta do Meio Am-
mento do Ibama, órgão responsável pe- Ao mesmo tempo, realidades como o biente e a retomada do Plano de Ação para
MINIST ÉRIO DA SAÚ D E, FÁ BIO RO D RIGU ES

las ações de comando, controle e fiscali- enfraquecimento da bancada ambienta- Prevenção e Controle do Desmatamento
zação ambiental no País, e a desobstru- lista no Congresso e a falta de indicati- na Amazônia. “A reestruturação de pro-
P OZ ZEBOM /A BR E ISTOCK PHOTO

ção do Fundo Amazônia, que, além de vos políticos de como será adotada a pro- gramas que deram certo e o fortaleci-
Noruega e Alemanha, receberá dinheiro metida transversalidade da questão cli- mento das instituições do Sisnama são
dos Estados Unidos e promete reavivar mática em um governo de frente ampla essenciais para o Brasil controlar o des-
os projetos de desenvolvimento susten- mostram, segundo as fontes ouvidas por matamento e contribuir no enfrentamen-
tável na região. A restauração da partici- CartaCapital, a extensão dos desafios pela to à crise climática.” Segundo o secretá-
pação da sociedade civil em colegiados frente. Também causa preocupação a len- rio-executivo do Observatório do Clima,
como o Conselho Nacional de Meio Am- tidão na nomeação para os comandos do Márcio Astrini, o governo “começou bem”
biente (Conama) também é celebrada. ICMBio, responsável pela gestão das Uni- na área ambiental: “Temos de considerar

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 33
100 dias

BRASIL REVISTAS

O Ibama volta a cumprir seu te do mundo distinto de 20 anos atrás. presentados diretamente pelos seus mi-
papel, após a mordaça imposta
nos últimos quatro anos
João Paulo Capobianco, secretário- nistros ou secretários-executivos: “Esse
-executivo do ministério, vê as coisas de trabalho transversal teve início. A primei-
outra forma: “Em que pese termos rece- ra versão do Plano irá à consulta pública
que todas essas ações acontecem em um bido uma pasta completamente desmo- em abril. E até agosto todos os biomas de-
cenário de terra arrasada. O governo an- bilizada, sem processos em curso e com vem contar com seus planos de combate e
terior destruiu o orçamento, o gerencia- parte importante dos cargos de chefia va- controle do desmatamento, a partir des-
mento das unidades de conservação, to- gos, conseguimos avançar de forma sig- se trabalho articulado”.
da a política de investigação de crimes nificativa em muitas ações”.  Capobianco Um fator de preocupação é a lentidão
ambientais. Colocou uma série de empe- lembra a recomposição da gestão do Fun- na montagem da estrutura do ICMBio e
cilhos para o funcionamento do Ibama e do Nacional do Meio Ambiente e o forta- das regionais do Ibama: “A demora atra-
do ICMBio, criou uma série de processos lecimento do Programa Pró-Catadores palha. Os dois órgãos darão sustentabi-
administrativos para perseguir os fiscais”. e anuncia novas ações para breve, como lidade ao conjunto de ações que foram
a retomada do Bolsa Verde, o lançamen- encaminhadas. O governo está no rumo
Até quando vai durar a lua de mel? Am- to do Plano de Prevenção e Combate às certo do ponto de vista das ações de co-
bientalistas levantam pontos que podem Queimadas no Pantanal e a homologação mando e controle, mas ainda incipien-
se transformar em arestas. Alguns deles: de novas unidades de conservação e con- te na criação das condições para fazer
1. A influência das ONGs na pasta coman- cessões florestais, além da reestrutura- com que essas ações sejam sustentáveis
dada por Marina Silva tenderia a afastar ção da governança climática com vistas ao longo do tempo”, avalia Tatto. “É pre-
setores produtivos. 2. A agenda climática a cumprir as metas assumidas no Acor- ciso colocar todas as superintendências
transcende a defesa das florestas. 3. A fi- do de Paris. Quanto à transversalidade da regionais do Ibama para funcionar”, re-
lantropia internacional, representada pe- pauta ambiental, o secretário cita a Co- força Astrini, antes de ponderar: “Hou-
lo Fundo Amazônia, não é suficiente. 4. missão Interministerial do PPCDAm, que ve um movimento de sabotagem institu-
Faltaria uma abordagem diferente dian- tem a participação de 19 ministérios re- cional bem executado pelo governo Bol-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Meio Ambiente

sonaro e desmontar a bomba vai demo- cultural. Loja de comércio é desvio


tal e cul
rar um pouquinho. As nomeações têm de função”. Um dos primeiros parlamen-
de funçã
ser feitas com o maior cuidado”. A PRESERVAÇÃO ambientalistas eleitos após a rede-
tares am
Servidor de carreira do ICMBio e su- NÃO SE DESCOLA mocratização, Vieira avalia que “o minis-
mocrati
perintendente regional do Ibama no go- DO COMBATE À está se saindo bem na reconstru-
tério es
verno Lula, Rogério Rocco saúda a no- FOME, DA GERAÇÃO reativação da política ambiental”.
ção e re
meação do ex-deputado e ex-prefeito de DE OPORTUNIDADES
Bauru Rodrigo Agostinho para a presi- E DA REVITALIZAÇÃO retomada do trabalho nos órgãos
A retom
dência do Ibama: “É um quadro da po- DA INDÚSTRIA ambientais, diz Capobianco, teve iní-
ambien
lítica ambiental que tem experiência no BRASILEIRA partir da recomposição orçamen-
cio a pa
Executivo e larga atuação legislativa co- “Foi um avanço que estabeleceu
tária: “F
mo coordenador da Frente Parlamentar condições mínimas para esse desafio.
condiçõ
Ambientalista. Há certeza quanto a uma lideranças e chefias do ministério e
As lider
gestão de qualidade”, diz. Em relação ao órgãos vinculados são definidas di-
dos órgão
ICMBio e o Jardim Botânico, acrescen- retamente pela ministra Marina Silva a
ta: “Há presidentes interinos alocados e No Jardim Botânico, é grande a ex- partir de critérios técnicos”. No caso do
os órgãos estão desenvolvendo suas res- pectativa quanto à nomeação de um no- ICMBIo, descreve, foi estabelecido um
pectivas missões dentro da normalida- vo comando que possa devolver ao ór- comitê de busca para a presidência do
de”. O processo de busca adotado para a gão o caráter científico e cultural negli- órgão que vai apresentar a Marina uma
escolha do novo presidente do ICMBio, genciado nos últimos quatro anos. Pre- lista tríplice para a tomada de decisão:
BRASIL REVISTAS
acredita Rocco, proporcionará uma pro-
teção em relação à divisão de cargos com
sidente do instituto durante uma déca-
da nos governos Lula e Dilma, Liszt Viei-
“São vários processos em curso, junta-
mente com uma série de prioridades que
a base aliada: “Isso dá garantia de que o ra dá como exemplo do descaso bolsona- estão na agenda, como a regulamenta-
presidente será escolhido por atributos rista a transformação do Teatro Tom Jo- ção da lei de pagamentos por serviços
técnicos e políticos relacionados à mis- bim, onde ocorriam diversas apresenta- ambientais e a criação de um mercado
são da instituição. O processo está lento, ções artísticas, em uma loja de brinque- regulado de carbono”.
mas não significa paralisia. As circuns- dos: “Um absurdo. O Jardim é uma ins- Os maiores desafios na área ambien-
tâncias exigem ampla negociação”. tituição com vocação científica, ambien- tal, prevê Tatto, ainda vêm pela frente. “É
necessário um conjunto de políticas que
dialogue com o enfrentamento da fome,
do desemprego e da miséria no mesmo
patamar do enfrentamento à crise climá-
tica. O Brasil precisa se reindustrializar e
essa agenda positiva precisa ser construí-
da.” Pelo rumo dado à política ambien-
tal, acrescenta Astrini, o governo conta
com apoio interno e crédito na comuni-
dade internacional. Mas todos esperam
resultados. “Só a mudança de narrativa
não vai transformar a situação. Essa re-
BERN A RDO JR./AG.CÂ M A R A E IBA M A

versão vai acontecer quando os números


LUÍS M ACEDO/AG. CÂ M A R A , LÚCIO

do desmatamento começarem a baixar e


o Brasil apresentar de fato uma nova me-
ta de contribuições aos esforços globais
contra as mudanças climáticas.” •

Capobianco e Agostinho: missão


de juntar os cacos e mostrar
resultados o mais breve possível

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 35
100 dias

E os artífices do caos
acabaram premiados
com assentos no
Congresso Nacional

BRASIL REVISTAS

Herança
A
vulgarmente conheci-
da como Operação La-
va Jato, a pretexto de

maldita
combater a corrup-
ção, destruiu merca-
dos estruturantes da
economia, fontes de emprego e renda. O
custo social e o efeito devastador para a
A Suprema Corte não pode mais se furtar a infraestrutura nacional exigem que, em
revisar os acordos de leniência lavajatistas, resposta aos severos desarranjos na eco-
maculados por numerosos excessos e abusos nomia e ao atrofiamento das cadeias pro-
dutivas de setores estratégicos, reconhe-
çamos e desfaçamos heranças malditas.
POR PEDRO SERRANO*
O impacto da Lava Jato para o Produto
Interno Bruto foi estimado pela GO Con-
sultoria na ordem de 3,4%. Ou seja, apro-
ximadamente, 190 bilhões de reais em ri-
quezas foram para o ralo em nome de pou-
co mais de 10 bilhões que se esperava recu-
perar no chamado “combate” à corrupção.
O Departamento Intersindical de

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Lava Jato

Estatística e Estudos Socioeconômicos dos na quantificação de multas e de res- do se constata que recentes licitações fo-
(Dieese), em parceria com a Central Úni- sarcimento ao Erário, além da atuação ram vencidas por fundos de investimento
ca dos Trabalhadores (CUT), estimou institucional, por parte de agentes esta- transnacionais desprovidos de qualquer
que a operação foi responsável pela ex- tais, baseada na coação e no desvio de fi- capacidade técnica. Ademais, o desmante-
tinção de 4,4 milhões de postos de traba- nalidade. As empresas colaboradoras, im- lamento do mercado doméstico de infraes-
lho. Destaquem-se, ainda, as preocupan- buídas de vício de consentimento, foram trutura coloca em intenso risco o próprio
tes estimativas realizadas pelo Instituto forçadas a celebrar acordos de leniência. interesse do Estado brasileiro enquanto
de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás A turbação à livre e desembaraçada von- credor. Só paga quem está vivo. Portanto,
Natural e Biocombustíveis sobre a seve- tade concretizou-se, inclusive, pelo uso de a preservação da empresa é fundamental
ra fragilização da indústria petrolífera e instrumentos de persecução penal em fa- para a própria incolumidade do Erário.
da sua cadeia de fornecedores. ce de pessoas físicas – especialmente pri-
É nessa terra arrasada pós-Lava Jato sões preventivas, mas também buscas e O olhar para o futuro pressupõe o reco-
que o Estado brasileiro – Estado adminis- apreensões e conduções coercitivas – para nhecimento dos nossos fracassos. O avan-
tração e Estado jurisdição, inclusive – de- constranger pessoas jurídicas aos acordos. ço na prevenção, na investigação e na re-
ve assumir responsabilidades constitu- A jornalista Malu Gaspar, no livro A Or- pressão da corrupção no Brasil requer que
cionais prementes. O governo Lula vem, ganização, exemplificou o cenário de vio- olhemos para o passado e, reconhecendo a
corajosamente, respondendo à altura dos lência institucional que permeou a cele- falibilidade das nossas instituições e dos
referidos desafios. Noticia-se, inclusive, bração dos acordos de leniência ao, em es- efeitos deletérios da oportunista substi-
que em breve será lançado um ousado
programa de retomada da infraestrutu-
BRASIL REVISTAS
pecial, descrever uma fala do Procurador
da República Carlos Fernando dos Santos
tuição do código próprio do Direito para
outro eminentemente de exceção, que os
ra nos moldes do bem-sucedido Progra- Lima aos advogados que ali estavam para acordos de leniência sejam revistos.
ma de Aceleração do Crescimento (PAC). iniciar as tratativas autocompositivas: “Se É preciso que tais avenças se sujeitem
a negociação com a Camargo Corrêa foi ao escrutínio da nossa jurisdição consti-
Concomitantemente aos cem primei- um embate entre judeus e palestinos, com tucional, de modo a se compatibilizarem
ros dias de resgate do compromisso com o a Odebrecht será como se os sobreviven- com os preceitos fundamentais violados
desenvolvimento social e econômico pelo tes do Holocausto estivessem negociando pelos senhores do punitivismo.
governo federal, o PSOL, o Solidariedade e com os soldados da Gestapo”. O que espe- Desfaçamos a herança maldita dos
o PCdoB propuseram a Arguição de Des- rar de acordos entabulados nesse cenário? acordos de leniência lavajatistas. A jurisdi-
cumprimento de Preceito Fundamental O efeito devastador para a infraes- ção constitucional brasileira é importan-
de nº 1.051 para, no âmbito do Supremo trutura nacional fica evidenciado quan- te instância de escrutínio e correção, em
Tribunal Federal, tratar dos acordos de le- sede de controle de constitucionalidade,
niência celebrados entre o Estado brasi- abusos e dos excessos do punitivismo.
dos abus
leiro e as empresas no curso da Lava Jato. A for
força contramajoritária da jurisdi-
Objetiva-se, em especial, preservar as PARA RECUPERAR constitucional, para além de tutelar
ção con
autocomposições anticorrupção, mas re- 10 BILHÕES DE projeção da liberdade individual no
a projeç
visar, pela técnica da interpretação con- REAIS DESVIADOS plano d da produção e de apropriação, de-
forme a Constituição, as pesadas e inexe- DA PETROBRAS, ve atuar em nome da proteção dos valo-
quíveis obrigações pecuniárias assumi- A REPÚBLICA DE sociais do trabalho e da erradicação
res soci
das pelas empresas. A anormalidade jurí- CURITIBA CAUSOU pobreza, da marginalização e das de-
da pobr
dico-institucional lavajatista fez com que UM ROMBO DE sigualdades. Isto é, não se trata de tutelar
sigualda
J EF FERSO N RU DY/AG.SEN A D O

as companhias assumissem compromis- 190 BILHÕES NA meros d direitos subjetivos de companhias


sos pecuniários estratosféricos que pre- ECONOMIA, ESTIMA colaboradoras, mas a geração e a circu-
colabor
judicam severamente a própria sobrevi- A GO CONSULTORIA lação de riquezas por elas propiciadas. •
vência, contrariando a própria lógica que
inspira o instituto da leniência. * Advogad
Advogado e professor de Direito Constitucional
Nos autos da referida ação são questio- de São Paulo, é autor de Autoritarismo e
da PUC d
nados, acertadamente, os critérios adota- na América Latina (Alameda Editorial).
Golpes n

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 37
100 dias

Só justiça, nada mais


Há um movimento claro para despolitizar
o Judiciário e reforçar a autoridade do STF
POR FÁBIO KERCHE E MARJORIE MARONA*

BRASIL REVISTAS

P
oucos dias após a aperta- tituição, o novo presidente sinalizava a tantes decisões: autorizou o pagamento
da vitória nas eleições pretensão de fortalecer um dos pilares de do Bolsa Família fora do teto, derrubou
presidenciais, Lula visi- qualquer democracia que se preze: a in- o orçamento secreto, reviu liminarmen-
tou o Supremo Tribunal dependência judicial. O gesto, fundamen- te a Lei das Estatais, validou as novas re-
Federal. Cercado por dez tal em um contexto em que Cortes cons- gras de restrição ao porte de armas, de-
dos 11 ministros – Barro- titucionais têm sido alvo de ataques anti- bruçou-se sobre questões de impostos...
so estava ausente por motivos pessoais –, democráticos por parte de líderes eleitos Ainda afinado com o governo, o Supremo
o presidente eleito sinalizava que de tendências autocráticas, confirmava a assumiu posição firme e célere em relação
eventuais mágoas em relação à postura posição diametralmente oposta do gover- aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro,
da Corte, no mínimo leniente com a Lava no brasileiro, não apenas em relação ao quando centenas foram presos depois de
Jato, se não completamente dissipadas, seu antecessor, como em face das experi- invadir e depredar os prédios da Praça dos
seriam removidas do caminho de recons- ências internacionais que arrebatam Po- Três Poderes. Até mesmo o procurador-
trução de uma relação harmoniosa entre lônia, Turquia, Venezuela e Israel. -geral de Bolsonaro, Augusto Aras, ofere-
os Poderes. Diferentemente do derrota- Passados cem dias da posse, o STF, ze- ceu denúncias por associação criminosa
do Bolsonaro, que ostentava uma agenda loso do papel que desempenha na cons- armada, abolição violenta do Estado De-
de enfrentamento à democracia e à Cons- trução da governabilidade, tomou impor- mocrático de Direito, danos contra o pa-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Poder

trimônio, incitação ao crime por provação nal do/a escolhido/a. Ecoa, no que pare- sível sucessor do presidente em eleições
de animosidade entre as Forças Armadas ce ser mais consensual, a apreensão com futuras. À frente do Ministério da Justiça
e os Poderes Constitucionais, verdadeiro alternativas que possam figurar ímpetos e Segurança Pública, tem conduzido as ar-
cavalo de pau em sua performance. de politização aguda da Corte.  ticulações com o Congresso para aprova-
Na esteira das acusações de supostos A polêmica sobre as indicações presi- ção de medidas que intensificam punições
maus-tratos aos detidos – ironia para denciais extrapola o STF. Aras encerra seu para indivíduos, empresas e plataformas
quem desdenha sistematicamente dos di- mandato em setembro. Não obstante sua digitais que atentarem contra a democra-
reitos humanos –, a ministra Rosa Weber tentativa de aproximação com o governo cia. Em outra frente, promove mudanças
visitou os presídios onde se encontravam Lula, e de haver angariado apoios de peso, estruturais na Polícia Rodoviária Federal
os golpistas, dissipando o burburinho fan- como os de Davi Alcolumbre e Arthur Li- com o objetivo de retomar o foco da corpo-
tasioso sobre tortura e perseguição políti- ra, é improvável que se mantenha à fren- ração às atividades-fim, revertendo o pro-
ca. O presidente Lula caminhou de braços te da Procuradoria-Geral da República. cesso de instrumentalização da institui-
dados com Geraldo Alckmin, ministros Certa é a disposição de Lula de retomar o ção promovido pelo governo Bolsonaro.
e governadores em direção ao STF para modelo constitucional de indicação, rom-
apresentar sua solidariedade. Indicava, pendo com a trajetória que ele mesmo ha- Os esforços de reversão do aparelha-
sobretudo, que o alvo dos ataques terro- via estabelecido de observar a lista trípli- mento das forças de segurança estendem-
ristas não era somente o novo governo, ce elaborada pela Associação Nacional dos -se à Polícia Federal. A tentativa rasteira
mas a própria democracia. A tarefa de evi- Procuradores da República. A avaliação é de instrumentalização do “arroubo de hu-

somente ao Executivo. Demanda engaja-


BRASIL REVISTAS
tar a escalada de atos golpistas não cabe a de que a prática incentivou o corporati-
vismo e deteriorou-se em um mecanismo
manidade” que levou o presidente a exter-
nalizar sentimentos negativos em relação
mento do Congresso Nacional, do Minis- de politização do Judiciário, viabilizando a Sergio Moro, às vésperas da desarticula-
tério Público, das forças policiais no nível os excessos da Lava Jato. Lula aprendeu a ção de um plano do PCC para sequestrar
federal e nos estados, sob o comando dos lição: o viés punitivista de Rodrigo Janot e matar o ex-juiz, é cortina de fumaça. O
governadores e, evidentemente, do Judi- foi tão pernicioso quanto o adesismo de fato é que, sob o comando de Dino, a PF,
ciário, em especial o STF. Aras ao bolsonarismo autoritário.  reforçada ao longo dos governos anterio-
Lula valoriza a relação republicana com res do PT, voltou a colocar a capacidade in-
Não por acaso, parcela significativa da o sistema de Justiça. Dentre seus minis- vestigativa que adquiriu a serviço de uma
atenção do noticiário político está volta- tros, os que estão incumbidos da articula- atuação impessoal, conforme se viu justa-
da para as relações que Lula será capaz de ção amiúde com o Judiciário, o Ministério mente pela condução da Operação Sequaz. 
estabelecer com o sistema de Justiça, de- Público e a Polícia Federal são proeminen- Há muito o que reconstruir no Brasil.
pois de haver sido açoitado pela Lava Jato, tes figuras. Jorge Messias, advogado-geral A retomada da normalidade institucional
em um ambiente no qual é preciso traba- da União, ganhou a confiança do presiden- é, no entanto, condição de possibilidade
lhar pela reconstrução da autoridade do te por sua atuação leal ao longo dos anos. para avançar e passa por esforços de des-
STF como condição para a retomada da Flávio Dino, ex-governador do Maranhão, politização do sistema de Justiça e refor-
normalidade. As futuras indicações que é frequentemente lembrado como um pos- ço da autoridade do STF. Do Planalto, nes-
o presidente tem a incumbência de reali- tes cem pprimeiros dias, o que se viu foi dis-
zar para as vagas abertas no Supremo ao posição e diálogo consciente de que a ta-
longo de seu mandato são objeto de es- refa de aaprofundamento da democracia,
peculação diária pela mídia. A imprensa A RECONSTRUÇÃO desenvolvimento econômico e social,
com des
apresenta candidatos e lhes atribui mais DO PAÍS PASSA embutido o inarredável compromis-
traz em
ou menos chances baseando-se em torci- PELO COMPROMISSO so com a ordem constitucional. •
da e muito lobby. O debate público ora cla- COM A ORDEM
F EL L IP E SA M PA IO/S T F

ma por um tribunal mais representativo, CONSTITUCIONAL *Fábio Ke


Kerche é professor de Ciência Política
acenando com justiça para a necessidade Universidade Federal do Estado do Rio
da Univer
Janeiro (Unirio); Marjorie Marona
de Janeir
de que se indique uma mulher negra, ora professora de Ciência Política da
é professo
ressalva as preocupações com governabi- Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Universid
lidade, dando peso à trajetória profissio- colunista de CartaCapital.
e colunist

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 39
100 dias

Boa intenção,
passos lentos
Renato Janine Ribeiro cobra maior
celeridade do governo na recomposição
de verbas para pesquisas e na definição
de postos-chave da administração federal
A RODRIGO MARTINS

BRASIL REVISTAS

P
residente da Sociedade ção federal. “A Finep passou quase cem esteja a serviço da vida ou esteja alinha-
Brasileira para o Progres- dias nas mãos de um general nomeado da com os valores que o governo Lula diz
so da Ciência e ex-minis- por Bolsonaro, que recentemente conce- defender”, lamenta o ex-ministro. A ínte-
tro da Educação no fim do deu um empréstimo de 175,7 milhões de gra, em vídeo, está disponível no canal de
governo Dilma Rousseff, reais à Taurus, uma fabricante de arma- CartaCapital no YouTube.
o filósofo Renato Janine mentos, que será beneficiada por juros ir-
Ribeiro respirou aliviado ao saber que o risórios e não produz uma tecnologia que CartaCapital: O Ministério da Edu-
negacionista governo de Jair Bolsonaro cação aacaba de suspender o cronogra-
saiu derrotado das urnas em 2022. Agora, implementação do Novo Ensino
ma de im
passados cem dias do governo Lula, ele re- AINDA NAS MÃOS Médio, cconcebido na gestão de Michel
conhece que não será tarefa fácil reerguer DE UM GENERAL Temer. O senhor acredita que Lula vai,
a área de Ciência e Tecnologia, que perdeu NOMEADO POR de fato, revogar completamente a refor-
60% do orçamento destinado às pesqui- como defendem muitos educadores
ma, com
BOLSONARO, A
sas entre 2014 e 2022, segundo o Obser- especialistas?
especia
FINEP LIBEROU UM
vatório do Conhecimento. Ainda assim, Renato Janine Ribeiro: A reforma foi
ressente-se com a demora do governo em
EMPRÉSTIMO DE aprovada por meio de Medida Provisó-
aprovad
cumprir as promessas feitas durante a 175,7 MILHÕES DE ria, um instrumento absolutamente ina-
campanha e no período de transição. “As REAIS À FABRICANTE dequado para tratar de um assunto dessa
palavras são muito claras, os compromis- DE ARMAS TAURUS, relevância. O Plano Nacional de Educação
relevânc
sos são de honra. Agora, aguardamos os DENUNCIA O aprovado em 2014, para citar um exemplo,
aprovad
atos”, diz Ribeiro. EX-MINISTRO DE veio de q quatro anos de discussão no Con-
Na entrevista a seguir, ele detalha as di- DILMA ROUSSEFF gresso, sem mencionar o intenso debate
ficuldades enfrentadas pelo setor e cobra âmbito da sociedade civil. Só que essa
no âmbi
maior celeridade do governo na recompo- Medida Provisória acabou convertida em
sição das verbas para pesquisas e na de- portanto, só pode ser substituída por
lei e, por
finição de postos-chave na administra- lei. Não tenho a menor ilusão de que
outra lei

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Ciência & Tecnologia

BRASIL REVISTAS “Qual é o sentido de usar recursos


da ciência para financiar a indústria de
armas?”, indaga o presidente da SBPC

Lula vai gastar cartucho em negociações CC: Uma das críticas à reforma de Te-
com Arthur Lira para revogar essa refor- mer é que não houve o aporte de recur-
ma completamente. Já está muito difícil sos necessários para que as escolas pú-
a convivência com Lira, a defender inte- blicas se adaptassem e criassem esses
resses contrários aos do governo, como a novos itinerários formativos previstos no
manutenção das altas taxas de juro pra- texto, o que aprofundaria as desigual-
ticadas pelo Banco Central, que compro- dades em relação ao ensino privado, já
mete o crescimento econômico e é um te- acostumado a oferecer disciplinas op-
ma crucial na agenda de desenvolvimento. tativas aos alunos. O senhor concorda
Certamente, Lula está escolhendo a dedo com essa avaliação?
as brigas que pretende comprar, pois sua RJR: Concordo que não houve inves-
base parlamentar é frágil. timentos para a adaptação das escolas,
CC: É possível remendar a reforma? mas não sei dizer se a reforma, de fato,
RJR: Este é o ponto, eu acredito que sim. aprofundou as desigualdades. Vejo mui-
Muito do que está no texto pode ser revis- tas instituições particulares priorizan-
to de forma infralegal, por meio de decre- do disciplinas como empreendedorismo,
tos, normas e portarias. A reforma é algo que não traz um conhecimento tão rele-
TA U R U S A R M A S E A C E R V O P E S S O A L

que foi assumido pelas secretarias esta- vante assim para a vida das pessoas, mas
duais de Educação, hoje a atender 7 mi- que deixam de lado temas estratégicos, co-
lhões dos 8 milhões de alunos do Ensino mo a geração de energia limpa e a substi- ferença entre presidencialismo e parla-
Médio. É possível negociar diretamen- tuição dos combustíveis fósseis. Esse é o mentarismo, como funciona o Legislati-
te com os estados adaptações no modelo, tema do momento no mundo inteiro. Ou- vo. Estou me referindo à formação cida-
ouvindo os principais interessados nesse tra frente negligenciada é o combate às de- dã, e não a uma pregação ideológica. Mais
debate, os professores e alunos, que não fo- sigualdades. Com 16 anos, nossos jovens um exemplo: contratos. Com 18 anos, o ci-
ram consultados à época em que a refor- estão aptos a votar, mas poucos realmen- dadão pode se casar, comprar uma casa,
ma foi apresentada. te sabem o que é direita ou esquerda, a di- constituir uma empresa, mas quem real-

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 41
100 dias

mente sabe o que está fazendo quando co-


loca a sua assinatura em um documento
contratual? Agora, um ponto é indiscutí-
vel: para oferecer novos itinerários forma-
tivos será preciso dividir as salas, contra-
tar mais professores e melhorar a remune-
ração deles. Quem está fazendo isso? Além
disso, há outras discussões de fundo. De
fato, é preciso arejar um pouco o currícu-
lo do Ensino Médio, mas por que priorizar
os investimentos nessa etapa e não na al-
fabetização na idade certa?
CC: O orçamento para pesquisas
científicas despencou 60% entre 2014
e 2022, de acordo com o Observatório
do Conhecimento. No fim do ano passa-
do, os pagamentos de bolsas de mestra-
do e doutorado só foram garantidos com
a aprovação da Emenda da Transição.
Diante desse cenário de penúria herda-
do, como o senhor avalia as primeiras
medidas anunciadas pelo governo Lu-
BRASIL REVISTAS
la para a área de Ciência, Tecnologia e
Inovação?
RJR: A maior parte dos acadêmicos e pes-
quisadores que conheço está com uma
sensação de alívio, eu inclusive. Não pos-
so dizer que estou alegre, exultante, por- A ministra Luciana Santos promete uma tecnologia que esteja a serviço da vi-
recompor o orçamento do FNDCT,
que realmente algumas medidas ficaram da ou esteja alinhada com os valores que o
mas ainda não encaminhou o projeto
aquém do necessário. Reivindicamos a governo Lula diz defender. Qual é o senti-
correção do valor das bolsas de acordo do de aplicar recursos da Ciência e Tecno-
com a variação da inflação desde o último ciana Santos prometeu encaminhar um logia em uma empresa que fabrica arma-
reajuste, que ocorreu há quase dez anos. projeto de lei para recompor os recursos mentos? Estamos particularmente cho-
Vieram 40%, está abaixo. Apesar da pro- do FNDCT, mas, se demorar demais, não cados com isso, tanto que a SBPC e outras
messa de haver reajustes anuais atrelados poderemos usufruir desses recursos em entidades científicas lançaram manifes-
à inflação, não gostaríamos que se consoli- 2023. Será mais um ano perdido. Então, tos de repúdio à iniciativa.
dasse um patamar inferior ao que havia no eu diria que uma de nossas maiores pre- CC: Até pouco tempo, podíamos dizer
R I B A M A R N E T O / U F C E VA LT E R C A M PA N AT O /A B R

primeiro governo Dilma Rousseff. Exis- ocupações é com a rapidez da implemen- que o orçamento da Finep era fictício,
te ainda, no campo das promessas, uma tação das medidas anunciadas pelo gover- pois a maior parte dos recursos acaba-
proposta de recuperação do valor do Fun- no. Veja: a nova diretoria da Financiadora va contingenciada pela área econômica
do Nacional de Desenvolvimento Cientí- de Estudos e Projetos, que detém o maior do governo, impedindo a efetiva aplica-
fico e Tecnológico (FNDCT), que deveria orçamento da Ciência e Tecnologia, só de- ção dos recursos. O governo deu alguma
girar em torno de 8 bilhões de reais hoje, ve ser formalizada em abril. Resultado: a sinalização sobre o fim dessa prática?
mas foi sendo progressivamente cortado Finep passou quase cem dias nas mãos de RJR: Recebemos, sim, a garantia de que
e limitado pelas gestões anteriores, de Te- um general nomeado por Bolsonaro, que isso não ocorreria mais. A ministra Lu-
mer e Bolsonaro. recentemente concedeu um empréstimo ciana Santos falou sobre isso em seu dis-
CC: Qual é o valor disponível hoje nes- de 175,7 milhões de reais à Taurus, uma fa- curso de posse. As palavras são muito cla-
se fundo? bricante de armamentos, que será bene- ras, os compromissos são de honra. Agora,
RJR: Cerca de metade. A ministra Lu- ficiada por juros irrisórios e não produz aguardamos os atos. O contingenciamen-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Ciência & Tecnologia

to de recursos é um problema sério. Va- Mas as bbolsas de estudos são consideradas


mos imaginar que o governo se compro- despesa
despesas discricionárias, um enorme con-
meteu a financiar um congresso científico “AS PALAVRAS SÃO tingente de pesquisadores acabou prejudi-
em maio, mas os recursos estavam bloque- MUITO CLARAS, OS pelos atrasos. Você mesmo mencio-
cado pe
ados na ocasião e o evento aconteceu sem problema em uma de suas pergun-
nou o pr
COMPROMISSOS SÃO
os aportes públicos ou acabou cancelado. tas. No ffim do ano passado, as bolsas ofe-
DE HONRA. AGORA,
De nada adianta haver a liberação dos re- recidas ppela Capes e pelo CNPQ só foram
cursos em novembro, o prejuízo está dado. AGUARDAMOS OS graças à aprovação da Emenda da
pagas gr
Então as sobras vão para os ministérios ATOS DO GOVERNO” Transição. Se Lula não tivesse se mobiliza-
Transiç
com boa tradição de desempenho, capazes do para aassegurar mais recursos, milhares
de fazer uma execução rápida, a exemplo de pesquisadores
pesqu não teriam como pagar
da pasta da Educação, que tem expertise despesas pessoais no fim do ano, às
suas des
na área. Mas essa não é a realidade de to- vésperas do Natal. Na verdade, Lula pou-
dos os ministérios, e aquele recurso de- expressiva da sociedade acha que a univer- pou Bolsonaro de um enorme constran-
veria ter sido destinado à ciência, e não sidade só serve para distribuir diplomas, gimento, e também salvou o Brasil no to-
ao pagamento de outra despesa qualquer. não faz ciência. Na verdade, a maior par- car do bumbo.
CC: Como está a situação das univer- te das pesquisas desenvolvidas no Brasil é CC: Como evitar que a ciência perma-
sidades federais? Em dado momento do feita por universidades públicas, sobretu- neça sempre de pires na mão?
governo Bolsonaro, a UFRJ e outras ins- do pelas estaduais paulistas e fluminen- RJR: Para recompor os orçamentos de
tituições de ensino postergaram o retor- ses e pelas instituições federais de ensi- áreas estratégicas do governo, é preciso
no das aulas presenciais não por caute-
la em relação à pandemia, e sim porque
BRASIL REVISTAS
no. Evidentemente, se faltam recursos pa-
ra o funcionamento básico delas, imagine
aumentar a arrecadação tributária, seja
pelo aumento da cobrança de impostos
não tinham recursos para cobrir despe- para as pesquisas, que necessitam de um sobre as rendas mais altas, pela tributa-
sas básicas, como água, luz, serviços de aporte muito maior. Os salários não cos- ção de lucros e dividendos ou pela taxa-
vigilância e limpeza. Imagino o prejuízo tumam atrasar porque são despesas não ção de iates e jatinhos. Há uma série de
às pesquisas. discricionárias, o governo não pode deixar mecanismos de justiça fiscal em discus-
RJR: O prejuízo é enorme. Uma parcela de pagar sob risco de violar a legislação. são na reforma tributária. Mas também
é preciso melhorar a qualidade dos gas-
tos públicos. Maurício Tolmasquim, que
é um dos maiores entendedores brasilei-
ros de energia e foi braço direito de Dilma
Rousseff quando ela era ministra da Casa
Civil de Lula, uma vez me apresentou um
projeto muito interessante, de geração de
energia solar e eólica nos campi universi-
tários. A iniciativa privada se encarrega-
ria do investimento inicial e o governo iria
pagando ao longo dos anos com o valor que
economizaria de gastos com concessioná-
rias de energia elétrica. Em dado momen-
to, os equipamentos estariam quitados e
as universidades teriam autonomia na ge-
ração da energia que consomem. Quando
chefiei a Capes, propus a substituição das
operadoras de telefonia pelos aplicativos
que permitiam fazer ligações pela inter-
net. Enfim, há uma série de iniciativas que
podem reduzir os gastos públicos ou me-
“As universidades públicas não são apenas fábricas de diplomas, produzem ciência de qualidade” lhorar os seus resultados. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 43
100 dias

Ainda em
lua de mel
Em março, 53% dos nordestinos
consideravam o governo ótimo ou bom,
12% a mais que a média nacional.
Pudera, a região voltou a ser priorizada

Q
uero muito agrade-
BRASIL REVISTAS
cer ao Nordeste por
me pesquisa Ipec de 19 de março, a con-
firmar que 53% dos nordestinos classifi-
ter nos livrado do cam este começo de gestão como ótimo ou
fascismo. O Nordes- bom, 12% a mais que a média nacional. O
te foi incrível, bora entusiasmo pode estar relacionado aos
para a democracia!”, programas sociais recriados nos primei-
afirmou Matheus ros três meses do ano, como o Bolsa Fa-
Nachtergaele, antes mília, o Minha Casa Minha Vida e o Pro-
de entrar na Marquês de Sapucaí para o grama de Aquisição de Alimentos. Desde
desfile da Imperatriz Leopoldinense, que tomou posse, em 1º de janeiro, Lula vi-
grande campeã do carnaval carioca des- sitou pelo menos quatro estados nordes-
te ano, cujo tema foi a história de Lam- tinos e prometeu voltar à região para per-
pião. O ator e diretor referia-se aos 69,34% correr os demais. Em fevereiro, na Bahia,
dos votos da região conferidos ao presi- o presidente entregou mais de 600 imó-
dente Lula em 2022, os quais foram deci- veis do Minha Casa Minha Vida. De Sal- va que fosse feito rapidamente”, avalia a
sivos para derrotar Jair Bolsonaro. Esse vador seguiu para Aracaju, onde pegou um cientista política Luciana Santana, profes-
mesmo agradecimento ele havia feito in helicóptero para conferir as obras da du- sora da Universidade Federal de Alagoas.
loco ao público recifense que prestigiava plicação da BR 101, em Maruim, Sergipe. Com uma base de sustentação pequena no
a peça Molière, espetáculo que o ator le- Em março, além de relançar o PPA em Per- Congresso para aprovar medidas mais ro-
vou à capital pernambucana em janeiro nambuco, esteve na Paraíba, para inaugu- bustas, o presidente optou por revogar re-
passado. Segundo maior colégio eleitoral rar um complexo de energia solar e eólica. trocessos de Bolsonaro, incluindo 83 de-
do Brasil e com histórico político mais cretos presidenciais, e recriar os progra-
progressista que outras localidades, a re- “Os cem primeiros dias são, geralmen- mas sociais desfigurados pela gestão bol-
gião é a mais empobrecida do País, moti- te, de lua de mel. Isso aconteceu no Lula sonarista. “Uma aposta do governo, que
vo pelo qual tem sido a mais contempla- um e Lula dois, mas no Lula três as cobran- tem beneficiado muito o Nordeste, é rea-
da pelo governo nos primeiros cem dias. ças são maiores. Foram cem dias muito tivar programas que foram muito exitosos
Fiel da balança nas urnas, o Nordeste turbulentos. Ele chegou com muita expec- nas gestões anteriores do próprio Lula.”
continua a ser o mais otimista em rela- tativa, com muita demanda, mas com pou- Sérgio Rezende, diretor científico
ção ao terceiro mandato de Lula, confor- co espaço para fazer aquilo que se espera- do Consórcio Nordeste, cita as áreas de

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Nordeste

BRASIL REVISTAS

Educação, Saúde e Desenvolvimento So- A região é a mais confiante em relação “O Nordeste é uma região bastante im-
cial como as de maior relevância nestes ao futuro, e também a que mais se pactada pela pobreza, colocando os nor-
beneficiou das medidas anunciadas
primeiros cem dias de Lula, com gran- destinos em situação de vulnerabilidade
de importância para o Nordeste. “A am- social. Então,
E essas medidas para cons-
pliação da vacinação contra Covid, gripe truir políticas
po públicas de mais longo al-
e doenças infantis contribui para a me- O ENTUSIASMO cance terão
te realmente um impacto bem
lhora da saúde da população. O aumen- TEM RELAÇÃO COM positivo”,
positivo completa Vitor Sandes, cien-
to do valor e da abrangência do Bolsa Fa- OS PROGRAMAS tista político
po da Universidade Federal
mília é particularmente importante pa- SOCIAIS RECRIADOS do Piauí.
Piau “É claro que a gente não pode
ra o Nordeste. Nas áreas de Educação e NOS TRÊS esperar grandes resultados em apenas
RICARDO STUCKERT

Ciência, os aumentos consideráveis nos PRIMEIROS MESES cem dias.


dia A retomada dos programas so-
valores das bolsas de estudo e nos orça- ciais são,
sã porém, um verdadeiro alento
mentos para pesquisa científica vão con- para a maior
m parte dos trabalhadores do
tribuir significativamente para o desen- Nordeste,
Nordest os quais, infelizmente, são de-
volvimento da região”, aposta. pendentes
penden em grande grau desse auxílio

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 45
100 dias

do governo”, pondera José Artigas, cien- la abriu u


um diálogo com os governadores
tista político e professor da UFPB. que não existia há quatro anos”.
Sandes chama atenção para a retoma- EX-GOVERNADORES Prefeita do município de Serra Talhada,
Prefe
da do diálogo do governo federal com os DE CINCO ESTADOS no Sertão
Sertã pernambucano, a presidente da
governadores nordestinos, depois de qua- Associação
Associa Municipalista de Pernambu-
TORNARAM-SE
tro anos de uma difícil relação com Jair co, Márcia
Márc Conrado, do PT, elogia a inter-
Bolsonaro, que nunca escondeu o despre-
MINISTROS DE LULA. locução que o governo federal vem impri-
zo pela região. “O Nordeste esteve distan- “O PRESIDENTE mindo com
c prefeitos da região. “O diálogo
te das prioridades do governo Bolsonaro. TEM REFORÇADO O com as gestões
g municipais teve uma gran-
Não por acaso, a região recompensou Lu- PACTO FEDERATIVO”, de mudança,
muda o que mostra o compromis-
la com uma votação extremamente ex- CELEBRA A TUCANA so de Lula
Lu com as questões que mais afli-
pressiva.” A retomada do diálogo com os RAQUEL LYRA gem o povo
p brasileiro. Sabemos que é no
gestores estaduais foi ressaltada também município
municíp onde as políticas públicas são
pela governadora de Pernambuco, a tu- executadas,
executa é lá onde as coisas acontecem
cana Raquel Lyra. “O presidente tem re- e onde podemos
p melhor entender a neces-
forçado o Pacto Federativo, mantendo a sidade do
d povo. O presidente sabe disso.”
interlocução com os governos estaduais,
a exemplo das recentes reuniões dos go- No Ceará, a prefeita do município de
vernadores ocorridas em Brasília, co- Quiterianópolis, Priscila Barreto, do PSD,
mo o próprio Fórum dos Governadores comemora a retomada dos programas so-
do Nordeste.” Paulo Dantas, governador
de Alagoas, acrescenta: “O governo Lu-
BRASIL REVISTAS
Wellington Dias está à frente do
carro-chefe da gestão petista, o
relançado programa Bolsa Família
ciais e de obras paralisadas. “Agora, o Nor-
deste consegue ter uma expectativa me-
lhor.” O petista Tonho de Anízio, prefei-
to de Itacaré, no Sul da Bahia, vibra com
o incremento de quase 200 mil reais de
repasse do governo federal para o muni-
cípio. “Saímos de 363 mil reais para 532
mil. Estávamos numa situação crítica, o
próprio município tendo de pagar a fo-
lha. Agora vai dar para suprir essa despe-
sa. Precisamos reconstruir este país com
todas as mãos: vereadores, prefeitos, go-
vernadores, deputados, senadores, minis-
tros e o presidente da República.”
A retomada do diálogo com o governo
federal também é apontada como central
para o governador do Ceará, Elmano de
Freias, do PT. “Um dos primeiros atos de
Lula foi convocar todos os governadores,
para ouvir as prioridades de cada estado.
Ato simples de ouvir, tantas vezes esque-
cido pela gestão anterior.” Em viagem à
China para apresentar as potencialidades
da Bahia, o governador petista Jerônimo
Rodrigues destacou o papel que Lula de-
senvolve no cenário internacional e a re-
tomada de parcerias comerciais com ou-
tros países. “Em menos de três meses, o
Brasil volta a ter uma participação no ce-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Nordeste

BRASIL REVISTAS

nário internacional e este é um aspecto sumiu o Ministério da Justiça. Coube a O potencial local de geração de energia
limpa desperta o interesse dos chineses
importante para nós, porque Lula passa Wellington Dias, do Piauí, conduzir o
confiança a quem vai investir de fora do carro-chefe do governo Lula, o Bolsa Fa-
País”, ressalta, lembrando que a Bahia se mília, no Ministério de Desenvolvimen- pontua o cientista político Anderson San-
destaca na produção de energia renová- to Social. Camilo Santana, do Ceará, é o tos, professor da Universidade Federal do
vel eólica e solar. “Não tínhamos linhas de comandante da Educação, e Rui Costa, Rio Grande do Norte. Ele ressalta ainda
transmissão para o mercado produtor de da Bahia, é o todo-poderoso da Casa Ci- que o reajuste do salário mínimo eleva as
energia para abastecer e exportar do nos- vil. Renan Filho, de Alagoas, assumiu a pensões e aposentadorias, com impactos
so estado para o País inteiro. Agora, tem pasta dos Transportes. positivos para a economia nordestina.
leilão aberto para que as empresas pos- Da mesma forma, são filhos do Nordeste
sam concorrer e construir essas linhas “A presença de Camilo Santana na o novo presidente do BNB, o ex-governa-
de transmissão”, diz. “Uma das questões Educação sugere que o governo dará dor de Pernambuco, Paulo Câmara, e o
R I C A R D O S T U C K E R T/ P R E R O B E R TA A L I N E / M D S

que estão colocadas nos bastidores é exa- maior importância ao ensino básico e à presidente da Petrobras, Jean Paul Pra-
tamente a relação do Nordeste com paí- avaliação da educação, numa tentativa tes, senador pelo Rio Grande do Norte. E
ses estrangeiros, sobretudo com a China”, de assimilar as contribuições do Ceará ainda tem o pernambucano André de Pau-
completa o cientista político e professor para a matéria. Flávio Dino, na Justiça, la como ministro da Pesca e Aquicultura,
Cláudio André de Souza, da Universida- já era relevante e ganhou destaque ainda na cota do PSD, e o maranhense Jusceli-
de da Integração Internacional da Luso- maior após os atos golpistas do 8 de janei- no Filho, do União Brasil, ministro das
fonia Afro-Brasileira (Unilab). ro. A presença de Wellington Dias no Mi- Comunicações. O democrata é, porém,
O Nordeste está presente ainda em nistério do Desenvolvimento Social, com um dos calos do governo Lula. Em pou-
cargos importantes no governo Lula, que reajuste do Bolsa Família e a revisão ca- co tempo, Juscelino foi acusado, dentre
convidou cinco ex-governadores para as- dastral, terá grandes impactos para o outras denúncias, de utilizar diárias e o
sumir ministérios, além de outros nomes Nordeste. A Casa Civil, uma das princi- avião da FAB em viagens particulares. •
da região. Do Maranhão, Flávio Dino as- pais pastas do governo, fortalece a Bahia”, - Por Fabíola Mendonça.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 47
100 dias

Vontade não basta


O governo avança em pautas relevantes, mas precisa ter orçamento
adequado para combater as disparidades, avalia Matilde Ribeiro

O
terceiro governo Lula so aumento do número de pessoas em si- hoje. Era tudo novo tanto para Lula quan-
é o que mais conta com tuação de rua, entre outras. Em cem dias, to para seus ministros e gestores. Havia
ministros negros des- seria impossível encaminhar políticas de uma bússola para seguir, criada no perío-
de o fim da ditadura, maneira célere. Mesmo assim, foi reto- do de transição, mas os dados que encon-
dentre eles Sílvio Al- mado o Minha Casa Minha Vida, o Bol- trávamos na realidade eram muito dife-
meida (Direitos Hu- sa Família e políticas educacionais. O go- rentes daqueles que nos foram informa-
manos), Anielle Franco (Igualdade So-
cial), Margareth Menezes (Cultura) e Ma-
BRASIL REVISTAS
verno retomou o trato com o Legislativo
à base do diálogo, as relações internacio-
dos pela gestão anterior. À época, dizíamos
ter recebido do governo FHC uma heran-
rina Silva (Meio Ambiente). Talvez essa nais foram restabelecidas. As coisas es- ça maldita. Não fazíamos ideia da herança
presença negra na gestão tenha levado o tão andando. Políticas públicas não são maldita que iríamos receber agora, após as
governo a apresentar, logo na largada, um construídas em um passe de mágica. gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
conjunto de iniciativas de alto poder sim- CC: A senhora fez parte do primeiro As debilidades são bem maiores. Por outro
bólico, visando minimizar o racismo es- governo Lula. Quais as diferenças e se- lado, hoje, o governo está mais preparado.
trutural enraizado no Brasil. Na entrevis- melhanças que a senhora identifica entre CC: Nos primeiros cem dias, foram
ta a seguir, concedida à repórter Fabíola o atual cenário e aquele de 20 anos atrás? anunciadas diversas iniciativas para ate-
Mendonça, a ex-ministra da Igualdade MR: Assumi a pasta da Igualdade Racial nuar o racismo estrutural no País, come-
Racial, Matilde Ribeiro, avalia os cem pri- em 21 de março de 2003, peguei o bon- çando pelo número recorde de ministros
meiros dias do governo Lula e fala da lu- de andando. O que posso destacar? Bem, negros e a reserva de 30% dos cargos
ta da população negra no enfrentamento naquela primeira gestão não havia tanta de confiança na administração federal
ao racismo. A íntegra em vídeo está no ca- expertise de gestão pública como se tem para pessoas afrodescendentes. O pre-
nal de CartaCapital no YouTube. sidente Lula também sancionou a lei que
equipara
equipar a injúria racial ao crime de ra- ZEROSA FILHO/DEFENSORIA PÚBLICA DO CEARÁ /GOVCE

CartaCapital: Como a senhora avalia cismo. Essas


E ações são suficientes para
os primeiros cem dias do governo Lula? “AS DEBILIDADES abalar uma
u estrutura racista erguida du-
Foi um período bastante turbulento, não? SÃO BEM MAIORES rante três
trê séculos e meio de escravidão
Matilde Ribeiro: Desde que Lula ven- HOJE DO QUE HÁ e que segue
se de pé até os dias de hoje?
ceu as eleições, sabíamos que o novo go- 20 ANOS. POR MR: Essa
Es pergunta é bem interessante,
verno enfrentaria muitas dificuldades, OUTRO LADO, porque eesses encaminhamentos são mar-
porque o estrago deixado pela gestão an- O GOVERNO ESTÁ importantes. Os 30% em relação aos
cos imp
terior foi muito grande. Com Bolsonaro, MAIS PREPARADO”, cargos mmexem com a estrutura, mas não
houve um desmonte das políticas públi- DIZ A EX-MINISTRA mexem imediatamente, porque deverá
cas, um descaso com questões ultraperi- acontecer até dezembro de 2026, o último
acontec
gosas para a população, como a negligên- ano de ggestão. Tem de ser feito um planeja-
cia em relação à pandemia de Covid-19, mento m muito detalhado e, ao mesmo tem-
ao avanço do desemprego e ao vertigino- po, um mmonitoramento eficaz, porque não

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Igualdade racial

As cotas no serviço público


mexem nas estruturas, mas
o efeito não é imediato, avalia

será fácil chegar a esses termos em quatro


anos. Além disso, 30% parece um número
aleatório, considerando que a população
negra soma quase 60% dos habitantes do
País. Então, eu diria que, sim, é possível
inovar em relação ao que foi feito nas ges-
tões anteriores, mas é também necessário
retomar um conjunto das políticas antir-
racistas e assegurar um orçamento ade-
quado, porque sem recursos não adianta
ter vontade política. A questão racial tem
de passar pelo arranjo da transversalida-
de entre os vários ministérios.
CC: Por enquanto, as iniciativas pa-
BRASIL REVISTAS
recem estar muito no plano simbólico,
mas faltam ações efetivas para reduzir
as disparidades raciais. A lei do ensino
obrigatório de História e Cultura Afro-
-Brasileira, por exemplo, acaba de com-
pletar 20 anos, mas ainda não empla-
cou nas escolas. O que falta para que
essa disciplina faça parte da grade cur-
ricular da educação básica e qual é a
importância de projetos como este no
combate ao racismo?
MR: Na verdade, é muito mais que uma
disciplina. A Lei 10.639, de 2003, indica
uma mudança do modus operandi que tem
a ver com a Lei 11.645, de 2008, a indicar
a mesma necessidade de recuperação da
história e cultura do povo indígena. Isso
requer capacitação dos professores, revi-
são de livros didáticos, envolvimento da
comunidade escolar e das famílias. Em
20 anos, o resultado pode ser considera-
do pequeno, mas nenhuma lei é colocada
em prática de maneira a suplantar rapida-
mente as dificuldades. O Brasil é muito ra-
cista. O SUS tem mais de 30 anos e até ho-
je necessita de fortalecimento para aten-
der a população de maneira adequada. A
sociedade civil precisa estar atenta e co-
brar do governo ações efetivas. É impor-

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 49
100 dias

tante ter mais participação da sociedade


e isto se aplica em todas as áreas, sobretu-
do nessa que estamos falando, porque me-
xe com costumes, crenças e estruturas.
CC: Ainda no campo da educação,
gostaria que a senhora fizesse um ba-
lanço dos dez anos da Lei de Cotas nas
universidades públicas.
MR: Hoje, sou professora universitária
da Unilab, uma universidade diferencia-
da, que tem por missão a interiorização e
a internacionalização, uma vez que rece-
be alunos de países de língua portuguesa,
sobretudo estudantes vindos da África.
As cotas mudam a fotografia da univer-
sidade e isso significa ter muito mais ne-
gros e negras nas instituições federais.
Dez anos é um período importante para
implementação, mas insuficiente para se
trabalhar a consciência. Então, é muito
importante que essa política continue e
que pobres, negros e indígenas possam
BRASIL REVISTAS
estar mais e mais nas universidades. maiores escândalos do Brasil. Ele fecha a CC: Em relação à representativida-
CC: Preocupado com o genocídio da ideia dizendo que a gestão pública tem de, de, existe um movimento que defende
juventude negra nas periferias, o minis- muito urgentemente, mexer no seu cor- a indicação de uma mulher negra para
tro Sílvio Almeida sugeriu a descrimina- po de segurança, no sentido de qualificá- o Supremo Tribunal Federal. Qual se-
lização do porte de pequenas quantida- -la, humanizá-la e puni-la. Concordo ple- ria a importância de uma iniciativa co-
des de entorpecentes para acabar com namente. Não acho que qualquer matéria mo essa?
a malfadada política da “guerra às dro- que abale a estrutura das milícias, muito MR: Quando se fala de cargos públicos
gas”. A senhora acha que o presidente bem conhecidas pela extrema-direita, vá pelo olhar conservador da sociedade, a
Lula está disposto a levar esse debate passar facilmente no Congresso. O Bra- visão é de que os negros não estão capa-
adiante, mesmo possuindo uma frágil sil é muito reacionário, temos histórico citados para assumir espaços de poder.
base parlamentar e tendo de enfren- de ditaduras, de coronelismo, de colonia- Isso não é verdade. Já tivemos ministros
tar uma extrema-direita barulhenta no lismo. Não é fácil avançar. no Executivo, no próprio Supremo, como
Congresso Nacional? ministro Joaquim Barbosa, uma figura
o minist
MR: A extrema-direita está cada vez mais muito ccontroversa, mas não por falta de
atenta aos nossos passos e a forma como competência, e sim por motivos ideoló-
compet
tem tratado a existência e a construção de “O BRASIL É MUITO Vejo os indígenas fazendo um mo-
gicos. V
uma gestão democrática e popular tem si- REACIONÁRIO, vimento muito forte para cada vez mais
do vexatória, haja vista o que aconteceu TEMOS HISTÓRICO ocuparem as estruturas de poder. Temos
ocupare
em 8 de janeiro. Não podemos pestane- DE DITADURAS, DE comunidade LGBTQIA+ com deputa-
a comun
jar diante desse grupo. Em relação ao CORONELISMO, DE federais, estaduais. Estamos num
das fed
genocídio e à violência cotidiana contra COLONIALISMO... momento proativo e muito importan-
momen
os pobres e, sobretudo, os jovens negros, NÃO É FÁCIL te. Por iisso, a campanha é mais que jus-
mortos diante da chamada bala perdida, AVANÇAR” necessária. Passou da hora de ter-
ta e nec
o atendimento a essa questão é premen- mos mamais negros e negras em cargos de
te. O sociólogo Emir Sader tem um arti- comando, em outros espaços de poder.
comand
go que diz que a violência e o genocídio S
CC: Sabemos que o racismo está im-
que abatem a juventude negra são um dos pregnado nas instituições e em todas
pregnad

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Igualdade racial

Não é fácil ser negro neste país e transi-


tar no mundo dos brancos. Eu vivi situa-
ções muito palpáveis, desde discrimina-
ções e vetos em elevadores, em salas e ga-
binetes dos donos de jornais, e até mes-
mo dentro do governo. A mídia, por duas
vezes, me colocou na berlinda. Uma vez
por uma fala pública entendida como ra-
cista, mas não era, e a segunda por gas-
tos nos cartões corporativos. Tive de sair
do governo tanto pela pressão midiáti-
ca quanto pelos trâmites dentro do go-
verno, e nem todo mundo entendeu o que
ocorreu comigo. Não roubei o governo, a
honestidade é fundamental. Tanto que
continuo sendo uma trabalhadora, sou
professora, pouco viajo porque não tenho
dinheiro para isso. O que mudou foi mi-
nha estrutura como pessoa, como ativis-
ta, como estudiosa. Fiquei mais huma-
BRASIL REVISTAS na, no sentido de entender as necessida-
des dos brasileiros. Sou uma pessoa mui-
O terceiro governo Lula tem o maior número de ministros negros da história republicana. O avanço to melhor do que era.
simbólico é relevante, mas é preciso atacar as desigualdades que afetam a base da população

Nota da redação: Matilde Ribeiro dei-


xou o governo após a mídia fazer enorme
estardalhaço com seus gastos no cartão
corporativo. Quase a totalidade das despe-
sas era para o aluguel de automóveis usa-
dos por sua equipe. A ministra reconheceu
ter usado o cartão, por engano, no perío-
do de férias, incluindo uma compra de 461
reais em uma loja free-shop, que alimen-
tou as manchetes dos jornais por semanas.
Antes de se demitir, ressarciu os cofres pú-
blicos. Seu colega no Ministério do Espor-
te, Orlando Silva, também foi execrado por
comprar uma tapioca de 8 reais. Passados
LUL A M A RQUES/A BR E NELSON A L MEIDA /A FP

16 anos, os ministros negros de Lula conti-


nuam sendo alvo de ataques rasteiros nas
redes sociais por conta desses gastos ir-
risórios. Já Jair Bolsonaro, adulador de
as relações sociais. Quando ministra, de nenhum colega seu, seja ministro ou torturadores que torrou milhões de reais
a senhora enfrentou algum tipo de di- ministra, porque eu estou te empossan- em hotéis de luxo em suas férias, recebeu
ficuldade pelo fato de ser negra, inclu- do como ministra igual a todos”. E o ou- um tratamento bem mais condescendente.
sive na divisão do Orçamento? tro foi: “Você será uma peregrina na Es- O ex-capitão, como todos podem notar, é
MR: O presidente Lula, no discurso da planada”. Nunca me esqueci disso. Pare- branco. Mas isso deve ser apenas mais uma
minha posse, me deu dois conselhos: cia uma fala sem importância para mui- coincidência no último país das Américas a
“Não peça licença para entrar na sala tas pessoas, mas entendi logo de cara. abolir formalmente a escravidão. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 51
100 dias

Mudança de rumo
Em condições muito desfavoráveis, o novo governo conseguiu
alguns avanços, mas terá de ir além das ações de curto prazo
POR CARLOS DRUMMOND

A
pesar de encontrar o Anual de 2023 foi um dos principais acer- recursos que pode ao menos segurar uma
País estagnado, em- tos do governo, avalia o economista Saulo parte desse movimento de arrefecimento.
pobrecido, com fome Abouchedid, professor da Facamp. “O Or- O gasto projetado com essas iniciativas
endêmica, destituído çamento deste ano estava muito compro- soma cerca de 4 bilhões de reais no pró-
de vários instrumen-
tos de desenvolvi-
BRASIL REVISTAS
metido. O governo antecipou-se na transi-
ção, garantiu recursos para o Bolsa Famí-
ximo trimestre, prevê o economista Jo-
sé Augusto Gaspar Ruas, também profes-
mento e imerso em um processo de radi- lia e anunciou que criaria uma nova regra sor na Facamp. “Não é uma soma expres-
calização política, o governo Lula agiu rá- fiscal. Essa rapidez na identificação da tra- siva, não tem o poder de promover uma
pido e conseguiu acumular feitos rele- gédia anunciada foi um ponto positivo, o retomada do crescimento, mas serve co-
vantes na área econômica em cem dias governo conseguiu ganhar um bom tempo mo um anteparo para evitar que a previ-
de gestão. Além disso, teve sucesso em com isso.” Um segundo avanço a destacar, sível queda da atividade econômica pre-
abortar uma tentativa de golpe e resis- emenda, é o fato de o governo ter começa- judique mais as famílias de menor renda”,
tiu, o tempo todo, ao terrorismo do mer- do com medidas de curto prazo. Quando destaca. Além disso, acrescenta, esses re-
cado financeiro, enquanto negociava percebeu que a desaceleração econômica cursos terão efeito multiplicador macro-
com um Congresso Nacional arredio a no segundo semestre de 2022 ia avançar econômico maior do que seria de esperar,
uma reposição do Orçamento de 2023. com tudo neste ano, o governo conseguiu, porque, provavelmente, o dinheiro vai ser
O governo deveria, e talvez pudesse, com o Bolsa Família e o salário mínimo, gasto inteiramente no País.
fazer mais para desdolarizar o preço dos canalizar para a economia um volume de
derivados de petróleo, coordenar políticas Como o emprego no fim do ano pas-
anunciadas pelos ministérios em relação veio em trajetória positiva, é pos-
sado ve
ao empréstimo consignado e às passagens que essa renda adicional resulte
sível qu
aéreas, além de ter um plano efetivo e bem ALÉM DE em um gasto desejável para evitar uma
estruturado para retomar o crescimento BUSCAR MAIOR queda m mais intensa da atividade econô-
econômico sustentável. Todos reconhe- PROGRESSIVIDADE mica. AAinda assim, esse incremento será
cem, porém, a dificuldade para a tomada NO SISTEMA, A insuficiente para assegurar o crescimen-
insufici
de decisões em um governo de frente am- REFORMA PRECISA sublinha Ruas. Entre as medidas im-
to, subli
pla e alvo de hostilidade por parte do mer- REEQUILIBRAR portantes, o economista destaca a reto-
portant
cado financeiro e da mídia alinhada a es- A TRIBUTAÇÃO mada da política de compra de alimentos
se segmento. Uma hostilidade que se deve, SETORIAL agricultura familiar, que em geral es-
da agric
em parte, ao fato de o sistema financeiro associada ao Bolsa Família e, a par-
tava ass
não ter, pela primeira vez em quase uma governo Temer, foi destruída.
tir do go
década, um dos seus na chefia da Fazenda. preciso levar em conta que o governo
É pre
Corrigir a rota da Lei Orçamentária iniciou sseu mandato em um momento de

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Economia

BRASIL REVISTAS
Os programas de transferência de renda e a tímida valorização do salário mínino não são suficientes para fazer a economia voltar a crescer, mas
protegem as famílias de menor renda. O Minha Casa, Minha Vida deveria incluir a instalação obrigatória de painéis de energia solar fotovoltaica
R O B E R TA A L I N E / M D S E C D H U / G O V S P

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 53
100 dias

baixa do ciclo econômico que teve início


no Brasil no quarto trimestre de 2022,
devido aos efeitos defasados da política
monetária contracionista que começou
em 2021, somados à desaceleração do rit-
mo da economia mundial, destaca a eco-
nomista Júlia Braga, pesquisadora e pro-
fessora da Universidade Federal Flumi-
nense. Nesse contexto, avalia, o governo
está sendo bem-sucedido, pois já foram
anunciadas diversas medidas para rever-
ter essa fase de baixa do ciclo econômi-
co, como o aumento real do salário mí-
nimo, a elevação do limite de isenção do
Imposto de Renda para os que ganham
até dois salários e a facilitação para a re-
negociação de dívidas das famílias, no
programa Desenrola. “Isso tende a fa-
vorecer um aumento da renda real das
famílias , uma perspectiva apontada no
indicador de janeiro da pesquisa do em-
prego do IBGE”, sublinha Braga.
BRASIL REVISTAS
Da mesma forma, a professora da UFF
vê como positiva a adoção do imposto so-
bre exportações de petróleo, pois, mesmo
com toda a crise internacional, o preço em
dólar do barril continua em patamar ele-
vado, o que garante lucro extraordinário
para o setor. Assim, o governo terá uma
elevação importante de receita tributária O Banco Central incorporou a do, essa preocupação com o diagnóstico
hostilidade do mercado contra Lula
para financiar as políticas sociais. correto, é para fazer programas certei-
ros”, aponta Diegues.
Outra iniciativa com algum efeito na de desenvolvimento nacional autôno- Os primeiros cem dias do governo Lu-
dinamização da economia foi a negocia- mo, que passe pela centralidade da rein- la na área econômica foram marcados por
ção, com os sindicatos, de um aumento dos dustrialização, da transformação tecno- uma sensível mudança de rumo em rela-
salários dos servidores públicos, há anos lógica, também é um grande acerto nos ção ao governo Bolsonaro, marcado por
sem reajuste. É importante ressaltar tam- primeiros cem dias de governo, destaca austeridade fiscal, desmonte do Estado e
bém que o receio de diversos analistas, de o economista Antônio Carlos Diegues, submissão aos interesses do mercado fi-
ocorrer uma crise cambial com a posse do professor do Instituto de Economia da nanceiro. “O atual governo buscou rever-
novo governo, não se concretizou. A taxa Unicamp. “Ainda estamos, porém, em ter esse quadro e retomar o papel do Esta-
de câmbio oscilou nesses primeiros cem um momento de diagnóstico. A sensa- do como indutor do desenvolvimento eco-
dias sem tendência de alta. “A percepção ção que tenho é de que há uma monta- nômico”, aponta o economista Rafael Ri-
dos investidores internacionais parece gem de equipe, uma análise a aprofun- beiro, professor do Centro de Desenvolvi-
benéfica ao Brasil”, ressalta Braga. dar, um cuidado muito grande por par- mento e Planejamento Regional da Uni-
Além da retomada da política de valo- te do governo Lula de não errar. As equi- versidade Federal de Minas Gerais. Além
rização do salário mínimo e do progra- pes foram novamente montadas, eles es- do retorno do Bolsa Família, ampliado, ele
ma Minha Casa Minha Vida, o início de tão ouvindo os interlocutores que deba- destaca a suspensão temporária, por meio
uma avaliação sobre quais seriam as di- tem esses temas, cuja discussão foi inter- da PEC da Transição, da Emenda Consti-
retrizes e os limites de uma estratégia ditada nos últimos seis anos. Esse cuida- tucional 95, que congelava os gastos públi-

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Economia

cos por 20 anos e impedia investimentos de nos diversos


d estratos da sociedade, in-
em áreas sociais e produtivas, e a retoma- clusive o empresarial, e seja factível.
da dos investimentos públicos em infra- O BOLSA FAMÍLIA O especialista
esp propõe três pilares para
estrutura, educação, saúde, ciência e tec- E O AUMENTO a política
polític industrial: crescimento da pro-
nologia, estimulando a geração de empre- dutividade
dutivida acima do PIB per capita, des-
DO SALÁRIO
gos, renda e inovação tecnológica. carbonização
carboni e digitalização dos servi-
MÍNIMO DEVEM
O início do diálogo para implantação ços públicos.
púb As medidas para aumentar
de uma reforma tributária progressiva, ACRESCENTAR a produtividade
produ seriam zerar o IPI para
com o objetivo de reduzir a carga tribu- 4 BILHÕES DE REAIS bens de capital
c produzidos no Brasil e ela-
tária sobre os mais pobres e aumentar a À ECONOMIA borar um
u amplo programa de extensio-
tributação sobre os mais ricos e sobre as nismo produtivo
p para pequenas e médias
grandes fortunas, é outro ponto subli- empresas,
empresa casado com crédito do BNDES
nhado pelo professor da UFMG, assim para essa
ess finalidade.
como a reativação do diálogo com o Mer-
cosul e a diversificação das relações co- No que diz respeito à descarboniza-
merciais com outros países e blocos re- neste momento, concordam vários econo- ção, Diegues propõe um programa espe-
gionais. Ribeiro chama atenção ainda pa- mistas, é sair do curto prazo, de medidas cífico do BNDES para financiar empre-
ra a manutenção parcial da desoneração destinadas a reparar ou reduzir os estra- sas, tecnologias e, inclusive, startups na
de impostos sobre combustíveis no início gos promovidos pela gestão anterior, e pas- área, a exemplo do que se fez nos casos do
do governo, que reduziu o custo de vida e sar para o planejamento e a implantação Pró-Soft e do programa de financiamen-
ajudou a conter a inflação, e a revogação
do decreto assinado no último dia do go-
BRASIL REVISTAS
de medidas e programas de longo prazo.
Indispensável para a elevação do salá-
to das usinas eólicas. Outras sugestões do
economista são a obrigatoriedade de to-
verno Bolsonaro, que reduzia pela meta- rio médio da economia e essencial à pe- das as casas e apartamentos financiados
de a tributação sobre receitas financei- renização dessa conquista, a política in- pelo Minha Casa Minha Vida terem pai-
ras das empresas, bem como a suspen- dustrial é o centro das atenções em mais néis solares ou outra tecnologia de maior
são da privatização de estatais como Pe- de uma área do governo. Diegues sugere impacto, criação de um programa de in-
trobras e Correios. uma política industrial que tenha resulta- centivo a carros elétricos nos moldes do
Um dos maiores desafios do governo do em curto prazo, busque ter legitimida- que foi feito com os carros populares, ca-
sado com atração de investimentos e in-
ternalização das capacidades produtivas.
Quanto à digitalização, o econo-
mista propõe a criação de um progra-
ma do BNDES, inspirado no modelo do
Pró-Soft, para financiar atividades de di-
gitalização da área da saúde, segurança,
transporte, agronegócio, duplicar o nú-
mero de egressos de cursos de formação
em Tecnologia da Informação nas uni-
CASA ROSA DA E L EON A RDO SÁ /AG.SEN A DO

versidades federais e fazer com que 20%


das vagas dos novos contratos do Fies do
Prouni sejam para áreas de Tecnologia
da Informação. Para Braga, além de uma
reforma que garanta melhor progressi-
vidade, com mais ênfase em impostos
sobre renda e patrimônio, é necessária
maior equidade na tributação setorial,
hoje a favorecer a mineração, o petróleo
e a agropecuária, mas a punir a indústria
A reativação do Mercosul, em Buenos Aires, foi um dos passos importantes da nova gestão de transformação. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 55
100 dias

O arranjo
por analistas do mercado financeiro, que
se preocupam com a expectativa de um
governo muito interventor na economia”.
Essas manifestações têm sido repeti-

reacionário
das nos cantos e recantos da mídia. São
a expressão político-midiática das diver-
gências lógicas e ontológicas, sempre la-
tentes nas sociedades modernas urba-
Está refeito o pacto entre os cosmopolitas das no-industriais. No Brasil, essas discre-
pâncias foram revigoradas pelo avan-
finanças e as velhas oligarquias regionais ço do atraso das classes dominantes e de
seus seguidores. É isso mesmo, o avanço
POR LUIZ GONZAGA BELLUZZO do atraso. Essas manifestações do retro-
cesso ocorrem, mesmo depois dos fracas-
sos e tropeções do capitalismo tutelado

S
pelo ideário neoliberal. Em todas as re-
ábado, 1° de abril, leio na sileira. No discurso de posse, Lula asseve- giões do planeta é intenso o debate críti-
Folha de S.Paulo o artigo de rou: “Compreendi, desde o início da jor- co que reavalia as concepções e procedi-
Rodrigo Zaidan, professor
na New York University de
BRASIL REVISTAS
nada, que deveria ser candidato por uma
frente mais ampla do que o campo políti-
mentos das políticas econômicas.

Xangai. Zaidan avalia os cem co em que me formei, mantendo o firme Lula voltou a exercitar a política como
primeiros dias do governo compromisso com minhas origens. Esta vocação e mediação. Mediação entre os
Lula: “Resta a pergunta: qual o principal frente se consolidou para impedir o re- dois sistemas de vida que regulam os mo-
eixo de políticas deste governo? Ainda não torno do autoritarismo ao País”. vimentos nas sociedades capitalistas: as
sabemos a resposta. Esse é o problema de A mediação democrática sugerida nas necessidades e aspirações dos cidadãos e
viver em um país onde candidatos à Pre- linhas e entrelinhas do discurso de pos- os interesses dos senhores que realizam
sidência não lançam programas robustos, se de Lula sofreu imediatamente o assé- o valor de suas riquezas nas apostas do
mas sim plataformas ideológicas. dio das falanges conservadoras e midiáti- mercado. Nos subterrâneos desse jogo
Detalhes importam e, para variar, va- cas. Matéria da Folha de S.Paulo, edição de de mediação rasteja o contraditório en-
mos ver um governo com políticas cons- 2 de janeiro de 2023, adverte os leitores: tre os interesses contrapostos. Isto exi-
truídas atabalhoadamente. Se a conjun- “Os discursos de posse do presidente Luiz ge um exercício permanente de media-
tura permitir e houver criatividade, sai- Inácio Lula da Silva (PT) no domingo (1º ção dos governos comprometidos com a
rão políticas decentes. Mas ser governa- de janeiro) foram recebidos com ressalvas soberania popular.
do ao sabor dos ventos macroeconômi- Keynes
Keyn introduziu na teoria econômi-
cos só traz uma certeza: os passageiros ca as relações
rel complexas entre estrutura
saem enjoados. e ação, entre
e papéis sociais e sua execução
Se em vez de caçar bodes expiatórios o AS DISCREPÂNCIAS pelos indivíduos
ind convencidos de sua auto-
governo buscar reformar o governo brasi- FORAM determinação,
determi mas, de fato, enredados no
leiro para o século 21 (sic), Lula poderá sair REVIGORADAS PELO movimento
movime das estruturas. Na esteira de
de novo como o pai dos pobres. O presiden- AVANÇO DO ATRASO Freud, Keynes
K introduz as configurações
te já deveria ter resolvido a tensão entre po- DAS CLASSES subjetivas
subjetiv produzidas pelas interações
pulismo econômico e as reformas neces- DOMINANTES E DE dos indivíduos
ind no ecúmeno social das
sárias à sociedade. O primeiro trimestre SEUS SEGUIDORES “economias
“econom de mercado”. A âncora que
já passou. Quando saberemos a resposta?” sustenta
sustent precariamente as ariscas sub-
Diante de certezas tão peremptórias, jetividades
jetivida está lançada nas areias move-
resta aos brasileiros lamentar a ausência diças das
da apostas no futuro. Sempre ator-
de Zaidan no comando da economia bra- mentados
mentad pelas incertezas que gravam

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Sociedade

Onde está Wally, ou


melhor, Arthur Lira?

realização do inaceitável. Pouco impor-


ta se ganharam muita grana e abastece-
ram generosamente seus cofres com inú-
teis e danosas apostas nos mercados de
derivativos de câmbio e juros, sempre e
cada vez mais respondendo aos movi-
mentos dos mercados financeiros glo-
balizados. Com esses ingredientes, está
montado, mais uma vez, o arranjo con-
servador que atormenta o Brasil ao lon-
go de sua história. Nesse pacto juntaram-
-se os cosmopolitas da finança e dos ne-
gócios, uma fração das classes médias
– ilustrada, semi-ilustrada e deslustra-
da –, as velhas oligarquias regionais e a
BRASIL REVISTAS cambada da tripa forra que quer sempre
se locupletar sem esforço.

Desde a eclosão da crise da dívida ex-


terna dos anos 80 do século passado, es-
se bloco de poder recuperou seu protago-
nismo e produziu o “enxugamento” libe-
ral da economia brasileira. Destruíram
empresas, amofinaram a indústria, tudo
em nome da modernidade e da globaliza-
ção. Os resultados todos sabem: o desem-
prego, a deterioração das grandes cida-
des, a violência, que não para de aumen-
tar, a falência do exercício pelo Estado do
monopólio da força.
Na política brasileira, nada mais velho
do que o novo. Há um empenho edifican-
o amanhã, agarram-se ao corrimão das teresses classistas, visões do mundo, mo- te na troca de máscaras, enquanto o rosto
certezas improváveis. Nesse percurso, o dos de vida, preconceitos, ancestralidades do poder real permanece esculpido em sua
comportamento mimético dá origem, em meritocráticas e escravagistas. pétrea solidez. Os disfarces de maior su-
suas conjecturas imitativas, a situações As engrenagens impessoais da abs- cesso no momento são confeccionados por
AURÉLIO DE FIGUEIREDO/MUSEU

nas quais a busca coletiva do enriqueci- tração real e da homogeneização das in- toscas mãos que manejam os teclados e al-
mento culmina na decepção de todos. dividualidades são explicitadas nas ig- goritmos das redes sociais. Nos tempos da
Entre vitórias e malogros, convém con- norâncias e grosserias das redes sociais, supremacia da civilidade, os Instagrams,
siderar os processos de abstração real que nos acarpetados escritórios ocupados por Facebooks e Twitters seriam considera-
DA REPÚBLICA /RJ

comandam a vida dos homens e mulheres mesas de operação das instituições finan- dos simplesmente fábricas de narcisismo
nas sociedades contemporâneas. As cor- ceiras. Daí espalham suas toscas convic- e exibicionismo, mentirosos e grotescos.
poreidades, identidades e individualida- ções para outros segmentos da sociedade. O grotesco, dizia Machado de Assis, é o ri-
des estão aglutinadas em um bloco de in- Para essa turma, a eleição de Lula foi a dículo tomado a sério. •

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 57
100 dias

Enquanto o
sequências planetárias, é tratada de pas-
sagem, como fator secundário. 
Nos dois primeiros governos de Lula,
a política externa foi comandada por

mundo gira
um triunvirato formadoo pelo ministro
Celso Amorim, pelo secretário-geral do
Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e
pelo assessor presidencial Marco Aurélio
A diplomacia do terceiro mandato, por Garcia. Os três teorizaram e expressaram
com clareza um projeto que tinha nas re-
enquanto, mais reage às circunstâncias lações Sul-Sul e na diversificação de par-
globais do que propõe alternativas cerias globais suas pedras de toque, em
meio à agressividade de Washington, em-
POR GILBERTO MARINGONI* balada na guerra ao terror.
Nesses três meses, o Itamaraty pare-
ce cumprir senda quase reativa a impul-
sos externos. O mesmo não ocorre, no en-

S
tanto, com a ação pessoal do presidente
e confrontarmos os primei-
BRASIL REVISTAS
ros cem dias da política ex-
vantes, como “recuperar a política ex-
terna ativa e altiva”, “defender a integra-
da República. Sua atividade começou an-
tes da posse, em novembro, na COP-27,
terna do novo governo com ção da América Latina” e construir “uma a conferência da ONU voltada às pautas
a diplomacia da gestão Bol- nova ordem global comprometida com o climáticas, realizada no Egito. Apesar da
sonaro, o contraste é brutal. multilateralismo”. Quem buscar esclare- presença de mais de 80 chefes de Estado,
Saíram de cena a gestão alu- cimentos no discurso de posse do chan- Lula foi a atração principal. 
cinante de Ernesto Araújo e o reaciona- celer Mauro Vieira tampouco encontra-
rismo soft de Carlos Alberto França. A is- rá definições claras para um mundo mais Em sua primeira viagem oficial, em 23
so se soma a exuberante diplomacia pre- complexo do que aquele encontrado pe- de janeiro, o ex-metalúrgico foi à Argenti-
sidencial exercida pelo presidente Lula, lo Partido dos Trabalhadores em 2003. A na e ao Uruguai, o que materializou a volta
desde antes da posse. Diante do quadro, retórica diplomática exalta platitudes co- do Brasil à Comunidade de Estados Lati-
pode-se dizer sem exagero que “o Brasil mo “reinserir o Brasil em sua região e no no-Americanos e Caribenhos (Celac). Em
voltou”, como repetem os governistas. mundo”, ou “atravessamos um momento entrevista coletiva na Casa Rosada, ao lado
Ambiguidades na condução dos negócios (...) dos mais conturbados no cenário in- do presidente Alberto Fernández, traçou
externos colocam em dúvida, porém, a ternacional”. O principal tema da políti- ao menos duas grandes linhas de atuação
existência de um projeto definido na área. ca global, a guerra na Ucrânia e suas con- para a região: a volta do Banco Nacional
Se tomarmos por base as diretrizes Desenvolvimento Econômico e Social
de Dese
emanadas pela chapa vencedora antes da (BNDES) como financiador de empresas
(BNDES
eleição ou da posse, perceberemos a au- brasileiras no exterior e a defesa da sobe-
brasileir
sência de um plano de voo que vá além da O PRESIDENTE rania de Venezuela e Cuba. A essas ini-
retomada de linhas de duas décadas atrás. APROVEITA PARA ciativas se somaram o retorno à União de
O exame do programa de campanha ou do RECONSTRUIR Nações Sul-Americanas (Unasul) e a re-
relatório final do gabinete de transição go- AS PONTES constituição da Organização do Tratado
constitu
vernamental, divulgado no fim de dezem- DINAMITADAS Cooperação Amazônica (Otca), além
de Coop
bro, pouco esclarece sobre o tratamento a POR BOLSONARO reforço ao Mercosul.
do refor
ser dado a problemas concretos, apesar de Uma ssemana depois, em visita ao Brasil,
enfatizar o fim do isolamento internacio- primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz,
o prime
nal e a defesa do multilateralismo. fez um iincômodo apelo de alcance global.
Há generalidades sobre temas rele- Acabou p por ouvir constrangido, numa co-

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Política Externa

importantes postos de representação no


exterior. Nunca teve, porém, uma ativida-
de destacada como formulador político. Os
deslizes ministeriais têm sido corrigidos
na prática em ações que envolvem de algu-
ma maneira Lula e o ex-chanceler Celso
Amorim, atual assessor presidencial. 
A primeira delas ocorreu no Conselho
de Segurança da ONU, em 29 de março.
Em pauta, uma proposta da Rússia, apoia-
da pela China e pelo Brasil, pela abertura
de uma investigação independente sobre
o atentado aos gasodutos Nord Stream,
que conectam Alemanha e Rússia pelo
Mar Báltico. Doze países comandados
pelos Estados Unidos se abstiveram, en-
tre eles Grã-Bretanha, França, Suíça, Ja-
pão e Equador. A iniciativa foi rejeitada. 
BRASIL REVISTAS A segunda foi a discreta visita de Amo-
rim a Moscou no mesmo dia, sendo rece-
letiva de imprensa, uma recusa enfática Amorim continua a ser o formulador. bido por Vladimir Putin, algo raríssimo
Vieira precisa mostrar a que veio
do anfitrião: “O Brasil não tem interesse em se tratando de representantes oci-
em passar munições para serem utiliza- dentais. A terceira foi a indicação da ex-
das entre Ucrânia e Rússia”. Em seguida, à paz, em deferência à sugestão de Lula, -presidenta Dilma Rousseff para a pre-
condenou a invasão por parte de Moscou mas a diretriz geral emanou do Depar- sidência do Novo Banco de Desenvolvi-
e propôs a formação de um grupo de paí- tamento de Estado: qualquer proposta mento (NDB), o banco dos BRICS. 
ses que pudesse funcionar como mediador de cessar-fogo só será viável caso a Rús- No 101º dia de governo, em 11 de abril,
em busca da paz. Consta que houve ruí- sia recue para posições anteriores a 2014, o presidente Lula embarcará com nume-
dos internos no tratamento do principal época do golpe da Praça Maidan, quan- rosa delegação para a China. O périplo de
foco de tensões internacional. Vieira, em do um governo pró-Moscou foi derruba- quatro dias e intensa agenda no campo
entrevista à Veja, em 10 de fevereiro, apa- do em favor de um aliado de Washington. dos investimentos e negócios deverá con-
rentemente fez uma interpretação livre da Em 21 de março, numa demonstração trastar com os magros resultados do ba-
condenação presidencial à ação russa: “Ao de inabilidade, o diplomata voltou à car- te e volta de pouco mais de 24 horas fei-
contrário do governo Bolsonaro, agora o ga em entrevista ao portal Metrópoles, lo- to a Washington em 10 de fevereiro, com
Brasil saiu de cima do muro”. A afirmação go após o controverso mandado de prisão direito a duas horas de conversa com Joe
materializou-se em votação na Assem- de Vladimir Putin expedido pelo Tribunal Biden. Não à toa, democratas e republica-
bleia-Geral da ONU, duas semanas depois.  Penal Internacional. Segundo ele, uma vi- nos queixam-se abertamente da aproxi-
O Brasil somou-se abertamente à Otan sita do presidente russo ao Brasil “pode le- mação Brasília-Pequim, não faltando vo-
contra a Rússia, numa resolução em que a var a complicações, eu não tenho dúvidas”. zes exaltadas a clamar por sanções con-
opção prudente para um país neutro seria Detalhe: o chanceler fez a afirmação às tra o Brasil. Ao que parece, o projeto de
a abstenção. Foram 141 votos contra Mos- vésperas da data em que o presidente Lula política externa de Lula 3.0 está de fato
M Á R C I O B AT I S TA / M R E

cou, 7 a favor e 33 abstenções. Quatro dos visitaria a China, aliada estreita da Rússia.  sendo construído a quente. •
países dos BRICS não escolheram nenhum Vieira é um diplomata experiente,
dos lados. Na América Latina, Argentina, com quase cinco décadas de atividade no *Professor de Relações Internacionais da
Chile, México e Colômbia somaram-se à Itamaraty. Foi embaixador em Buenos UFABC e coordenador do Observatório de
maioria. A medida incorporou um apelo Aires, Washington e na ONU, três dos mais Política Externa Brasileira (Opeb).

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 59
100 dias

Volta agigantada
As Leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo fazem com que um MinC
em reconstrução lide com o maior volume de recursos da história
POR ANA PAULA SOUSA

O
Ministério da Cul- política cultural; e pela criação de instru- traz nada de exatamente novo. Mas per-
tura voltou.” Ao mentos destinados a destravar os empe- mite a reorganização do setor.
pronunciar esta cilhos legais e institucionais criados pe- E aqui é importante que se tenha cla-
frase, durante o lo governo anterior. reza da dimensão do setor cultural neste
lançamento do no- Não por acaso, o terceiro nome de des- momento. O impacto das medidas de iso-
vo decreto de fo-
mento cultural, no Theatro Municipal do
BRASIL REVISTAS
taque no evento do Rio, ao lado do de Lu-
la e Margareth Menezes, foi o de Jorge
lamento social sobre as atividades artísti-
cas somado aos danos causados pelos ata-
Rio de Janeiro, no dia 23 de março, a mi- Messias, advogado-geral da União, cum- ques bolsonaristas à cultura acabaram fa-
nistra Margareth Menezes foi interrom- primentado pela ministra na sua fala. É zendo com que, antes da volta do PT ao go-
pida por uma ovação. Emocionada, dis- que o novo decreto, embora emoldurado verno federal, fossem aprovadas, no Con-
se na sequência: “Àqueles que nos quise- festivamente e tratado como a volta do fo- gresso Nacional, duas leis que mudam de
ram mortos, pois bem, sobrevivemos”. mento, busca, sobretudo, devolver a segu- forma importante o cenário do fomento:
O evento de assinatura do decreto, pri- rança jurídica não só aos produtores, mas a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo.
meiro ato formal de impacto da pasta ex- aos próprios gestores da área. O texto não
tinta por Bolsonaro e recriada por Lula, As duas leis tramitaram envoltas no
levou cerca de 2 mil pessoas ao suntuo- tema da “emergência cultural” e vão dis-
so teatro inaugurado no início do sécu- ponibilizar, respectivamente, 3 bilhões
lo XX. Os discursos e apresentações ar- de reais (ano a ano, durante cino anos)
tísticas ali reunidos procuraram, em seu e 3,8 bilhões de reais. Esses recursos, a
conjunto, dar à cultura uma centralida- serem distribuídos por meio de estados
de política. “Estou aqui para dizer que a e municípios, vêm do próprio orçamen-
cultura voltou de verdade ao nosso País”, to da União, e dizem respeito, especial-
disse, rapidamente, o presidente que, na- mente, a valores antes contingenciados.
quela mesma noite, seria diagnosticado Trata-se de uma escala de investi-
com pneumonia. “Vão dizer que a mama- mentos inédita. Pela primeira vez, des-
T O M A Z S I LVA /A B R E R E D E S S O C I A I S

ta voltou. Mas, desta vez, vocês não de- de que a Lei Rouanet foi criada, no início
vem ficar quietos. A gente não pode dei- dos anos 1990, o mecanismo de incenti-
xar que a pauta de costumes derrote a po- vo fiscal deixará de ser o principal mo-
lítica cultural neste País.” tor do setor. As novas leis também leva-
Os cem primeiros dias de governo fo- rão à descentralização de recursos – al-
ram marcados, na área cultural, pela vol- go difícil de ser alcançado no mecenato.
ta da simbologia do sonho da “cultura pa- “A gente passa a ter uma estrutura que
ra todos”; pelo restabelecimento das ins- Márcio Tavares, secretário-executivo da pasta, irriga o Sistema Nacional de Cultura do
tâncias de participação da sociedade na tenta recuperar funcionários e abrir concurso ponto de vista do financiamento”, diz,

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Cultura

BRASIL REVISTAS

“(Sobrevivemos) graças aos nossos servidores e servidoras que resistiram nos últimos anos”, afirmou, em fala emocionada, a ministra Margareth Menezes

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 61
100 dias

em entrevista a CartaCapital, Márcio Ta- trução também do estado de espírito.


vares, secretário-executivo do MinC. “O mesmo tempo que muitos servido-
Ao mes
desafio da execução é gigantesco e, pa- “VÃO DIZER QUE res da ppasta e das entidades vinculadas
ra isso, instituímos uma assessoria téc- A MAMATA VOLTOU, pediram para sair, outros tantos ficaram
nica para estados e municípios, com su- MAS, DESTA VEZ, sofreram diferentes formas de pressão
e sofrer
gestões de minutas, propostas de editais VOCÊS NÃO DEVEM – não apapenas do bolsonarismo, mas do
etc. O segundo desafio está nas estrutu- FICAR QUIETOS”, próprio meio cultural, que passou a vê-
ras. Muitos municípios sequer têm uma APREGOA O ideologicamente, como “suspeitos”.
-los, ide
Secretaria de Cultura.” PRESIDENTE LULA
As leis levarão à ampliação significa- Não fo foi, portanto, pouco significati-
tiva do número de produtores e artistas vo que MMargareth tenha dito, no Theatro
atendidos pelo fomento. Isso implica Municipal do Rio, que, se estavam todos
Municip
também novos desafios relativos à pres- porque houve quem mantivesse as
ali, é po
tação de contas – uma sombra que ainda instituições funcionando: “(Sobrevivemos)
paira sobre a política cultural no País – e definhou. “A gente chegou num espaço graças aos nossos servidores e servidoras
ao risco de uso político desses recursos. de trabalho que perdeu mais de um terço que resistiram nestes últimos anos”.
“Trata-se da maior oportunidade e dos servidores nos últimos quatro anos”, O MinC de 2023 se parece em muitas
também do maior desafio já enfrentado relata Tavares. “Muita gente pediu para coisas com aquele de 2003, mas, ao me-
pelo MinC”, diz Alexandre Santini, presi- ir atuar em outras unidades administra- nos neste período inicial, no qual o dis-
dente da Fundação Casa de Rui Barbosa, tivas e, aqueles que ficaram, passaram por curso ainda se sobrepõe à prática, tem
que também já esteve na pasta. “O MinC
está tendo de dar conta da maior execu-
BRASIL REVISTAS
situações muito difíceis. Estamos trazen-
do alguns servidores de volta, mas vamos
se mostrado menos afeito aos enfrenta-
mentos – com o mercado de entreteni-
ção orçamentária da história ao mesmo precisar de um concurso público.” mento e os patrocinadores, por exemplo
tempo que está se reconstruindo.” Estes cem dias, do lado de dentro das – e mais empenhado em angariar aliados
Ao ser extinto, o MinC, obviamente, instituições, têm sido de uma recons- do que inimigos. •

O evento de assinatura do decreto de fomento, no Theatro Municipal do Rio, procurou, por meio de discursos, dar à cultura uma centralidade política

62 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Cultura

“VAMOS DEFENDER A
PRODUÇÃO BRASILEIRA”
O primeiro grande enfrentamento do governo
no setor audiovisual deve se dar no processo
de regulação das plataformas de streaming

D
urante o evento reali- presidente Lula. A agência,
zado no Theatro Mu- além disso, voltou a participar
nicipal do Rio de Ja- dos fóruns de audiovisual e
neiro, a ministra Margareth vem mantendo um diálogo
Menezes anunciou 1 bilhão de respeitoso com o setor.
reais para o setor audiovisual. CC: Durante o proces-
Esses recursos pertencem ao so de transição, falou-se com o retorno que nosso mer- Acima, a série
Fundo Setorial do Audiovisual O Senhor dos Anéis,
na possibilidade de trans- cado dá para as empresas. O
da Amazon Prime
(FSA) e parte deles contem- ferência da Ancine do mercado favorece as plata-
plará os vencedores de editais MinC para o Ministério do formas, mas não ajuda o mer-
lançados ao longo de 2022. Desenvolvimento. Esta é uma cado brasileiro a crescer CC: A cultura como um to-
No caso do audiovisual, um pauta dentro do governo? CC: O governo vai defender do, mas o setor audiovisual
setor que, dado o seu tama-
nho e as particularidades de
BRASIL REVISTAS
MT: Essa discussão nunca
prosperou dentro do governo.
a cota para a produção brasi-
leira no streaming?
em particular, é um terreno de
disputas, no qual diferentes vi-
suas políticas, anda numa tri- Tal debate é inexistente. MT: Sim. Vamos defender a sões a respeito de cinema se
lha paralela às demais áreas CC: O debate mais urgen- produção brasileira no manifestam e no qual nomes
da cultura, os primeiros cem te parece ser a regulação dos streaming. Nosso desejo é ter estabelecidos e iniciantes se
dias de governo acabaram serviços de vídeo sob deman- maior produção e dar maior enfrentam na luta por recur-
por ser, mais que em outras da, ainda não incorporados ao visibilidade para a produção sos. Como essas disputas têm
instituições ligadas ao Minis- arcabouço legal específico do nacional nas plataformas. se dado neste momento?
tério da Cultura (MinC), de audiovisual. Como o governo CC: O governo deve prepa- MT: Não definiria como dispu-
certa continuidade. está lidando com o tema? rar novo Projeto de Lei sobre tas. O setor está se complexi-
A nova cara da política ten- MT: Esse debate é central pa- o assunto ou seguirá com os ficando, e sabemos que não é
de, na Ancine, a ser dada aos ra nós e devemos, no caso do dois projetos em tramitação mais possível pensar em políti-
poucos, a partir das novas no- VoD (Video on Demand, do in- no Congresso Nacional? cas públicas descoladas de
meações do Conselho Supe- glês), manter a toada do nos- MT: Um novo Projeto de Lei é ações afirmativas. A gente, na
rior de Cinema e do Comitê so discurso para a área cultu- uma alternativa, mas tanto o cultura, tem de atuar como um
Gestor do Fundo Setorial do ral como um todo, pois preci- projeto do senador Humberto modelador das desigualdades.
Audiovisual. Segundo Márcio samos de uma legislação que Costa quanto o do deputado Devemos contemplar todos,
Tavares, secretário-executivo valorize a produção brasilei- Paulo Teixeira (ambos do PT) mas ter um olhar para os mais
do MinC, a relação do MinC ra. O grande desafio é equa- têm aspectos interessantes. vulneráveis. Hoje, o setor tem
AMA ZON PRIME VÍDEO E CASA CIVIL /PR

com a agência tem sido, nes- cionar um mercado consumi- Faremos esse trabalho em menos disputas do que já teve.
tes meses, “salutar”. dor amplo com a produção. diálogo com as plataformas, CC: O trauma com o
CartaCapital: Como tem si- CC: O que o senhor quer di- até porque queremos um mo- governo Bolsonaro teve um
do a relação com a Ancine? zer com isso? delo que garanta também que papel nisso?
Márcio Tavares: A gente tem MT: Que é preciso haver in- essas plataformas prosperem MT: Acho que sim. O que pas-
conseguido uma relação bas- vestimento em produção e e, com isso, invistam no País. samos levou o setor a uma
tante salutar com a Ancine. A conteúdo nacional proporcio- CC: Está em discussão a convergência maior. Não é que
diretoria está se adequando e nal ao tamanho do mercado criação de uma plataforma se tenha deixado de cobrar,
buscando instituir uma políti- brasileiro. O investimento das pública de streaming? mas a retomada do MinC tem
ca próxima da gestão do plataformas não é condizente MT: Sim, está. sido, sobretudo, muito bonita.

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 63
100 dias

Sonhar a
tos do tal mercado a ganharem um pou-
co menos sem trabalhar?
Que país é este, em que um presiden-
te recém-empossado – e por um triz não

nossa história
derrubado – precisa gastar mais e mais
capital político para acomodar os interes-
ses de personagens do naipe de Arthur Li-
ra e Roberto Campos Neto?
O capitalismo medíocre desses di-
Prefiro sonhar com o futuro sinalizado rigentes medíocres é totalmente sem
pelos atos, gestos e símbolos iniciais futuro, vazio de qualquer plano, sonho ou
projeto de país que vá além de seus pró-
a dar ouvidos às críticas precipitadas prios umbigos. Dois homens brancos ri-
cos que não enxergam um palmo à frente
POR SIDA RTA RIB EIRO*
do próprio nariz de Pinóquio. E, por trás
deles, uma legião de gente gananciosa e

A
chantagista que continua a agir para limi-
os cem dias do novo gue e sustentar o volume intravascular. tar nossas oportunidades, rebaixar nos-
governo, me choquei
com a saraivada de
BRASIL REVISTAS
Ou será que as pessoas já se esqueceram
de que o Brasil foi humilhado, sabotado,
sos horizontes e amaldiçoar nosso devir.

críticas feita por al- assaltado, estuprado, corrompido, tortu- Prefiro sonhar com o futuro sinalizado
gumas personalida- rado e quase destruído na pancreatite po- pelos inúmeros atos, gestos e iniciativas do
des, articulistas e co- lítica que nos vitimou desde 2016? Será novo presidente, suas ministras e minis-
mentaristas na mídia corporativa e nas que ainda não compreendemos as lições tros, secretárias e secretários. Luís, Mari-
redes sociais. Com todo respeito ao ma- da vandalização da República causada pe- na, Geraldo, Rosângela, Fernando, Nísia,
go Paulo Coelho, o que ele esperava que la Intentona Fascista de 8 de janeiro? Será Camilo, Margareth, Flávio, Luciana, Rui,
Lula e sua equipe tirassem da cartola que não aprendemos nada com a badtrip Simone, Esther, Miriam, Paulo, Sônia,
nestes primeiros três meses? antidemocrática em que nos metemos? Anielle, Alexandre, Isolda, Silvio, Estela,
A verdade é que o Brasil está na UTI, e Que país medíocre é este, em que o pre- Carlos e tantos mais estão sonhando, fa-
quase tudo que o novo governo fez até ago- sidente Lula, corajosamente eleito pelo zendo e curando.
ra foi no intuito de recuperar, regenerar e povo brasileiro numa disputa desigual Mas essa multidão de talentos ainda é
reanimar uma sociedade fragilizada em contra gângsteres golpistas, precisa gas- insuficiente. A responsabilidade é de ca-
muitas frentes. Em três meses Lula e seu tar energia sobre-humana para convencer da um de nós. Será que só conseguimos
time deram sangue, oxigênio e nutrientes a Faria Lima, os agroboys e outros esper- fazer frente ampla para vencer eleições?
ao País combalido, retomando a proteção Quando é que vamos conseguir alinhar
das populações indígenas, a responsabi- nossos vvetores e verdadeiramente trans-
lidade ambiental, o investimento em cul- É PRECISO REPARAR formar n nossa sociedade em alguma coisa
tura e ciência, a construção de moradias OS DANOS CAUSADOS menos d doente? Quando é que vamos con-
populares, o combate à fome, a disciplina seguir ffazer um esforço sustentado para
ÀQUELES QUE
nos quartéis e a posição pacifista na ONU. construirmos como nação?
nos con
CONSTRUÍRAM
Criticar essas ações como mera Como escapar da gigantesca mediocri-
retomada de velhos projetos é uma toli-
QUASE TUDO NO deste país que insiste em desperdiçar
dade des
ce sem tamanho ou, pior, má-fé. Seria co- PAÍS E FICARAM seu povo trabalhador e criativo, na luta re-
mo criticar que um paciente com quadro COM QUASE NADA para manter os privilégios iníquos e
nhida pa
hemorrágico fosse tratado com fármacos descomunal mais-valia? Como desmon-
a descom
eficazes e procedimentos bem conhecidos tar essa máquina horrorosa de moer gen-
para conter o sangramento, repor o san- mais antiga Parceria Público-Privada
te, a mai

64 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Sociedade

BRASIL REVISTAS

do País, que promove a morte dos matá- ra resolver o problema ancestral da opres- Sônia Guajajara faz parte
da reconstrução coletiva
veis desde a aurora do Brasil Colônia? são da maioria é preciso focar na mais efi-
Cadê o nosso sonho? Como vamos caz e estratégica reparação possível: a
construí-lo sem compreender e reparar educação pública de excelente qualidade. co que nos cabe por vocação e necessida-
os danos dessa história em que indígenas, A meta existencial do Brasil é alcan- de neste século XXI: o de potência mul-
pretos, pardos, mulheres, nordestinos e çar ótima escolaridade da população. O tiétnica ambiental, pluricultural, bioin-
favelados construíram quase tudo e não caminho para alcançar essa meta exige formática e global.
ficaram com quase nada? uma contundente valorização material e Se não conseguirmos chegar a isso pe-
simbólica do magistério. Exige também la aplicação inteligente de nossos melho-
Estamos numa encruzilhada perigosa. a adoção da educação em tempo integral, res esforços, continuaremos a ser um po-
Nos últimos 50 anos, a produtividade do voltada para a construção de subjetivida- vo tropical parasitado pelo extrativismo
trabalho estagnou, a pirâmide etária in- de e autonomia num mundo acadêmico e voraz e pelo fundamentalismo cristão,
verteu-se e nos desindustrializamos ao profissional desafiado pela sucessão ca- mero fornecedor de commodities e bar-
mesmo tempo que degradamos nossos da vez mais rápida de tecnologias. báries enquanto estas forem necessárias.
K AT I E M A E H L E R /A P I B C O M U N I C A Ç Ã O

biomas. Sem compreender e curar a he- Todas as nossas outras metas socioe- Para evitar esse destino, precisamos
rança do passado, é cruel o lugar que nos conômicas – piso para investimentos es- sonhar e construir coletivamente uma
cabe no futuro. tatais, fortalecimento do SUS, estímu- nova história. As cem primeiras pági-
Precisamos sair dessa. Temos de acor- los à ciência e à cultura, justiça tributá- nas já estão escritas. •
dar enquanto é tempo e colocar as mãos ria, baixas taxas de desemprego, inflação
à obra. Para implementarmos um projeto e juros – se articulam e contribuem para
*Sidarta Ribeiro é professor titular de
viável de país, precisamos de uma revolu- a revolução educacional que precisamos Neurociência e um dos fundadores do Instituto
ção que mobilize toda a nossa sociedade fazer. Se perdermos o bonde da história, do Cérebro da UFRN. Integra o Centro de
para dar um verdadeiro passo à frente. Pa- deixaremos de ocupar o lugar geopolíti- Estudos Estratégicos da Fiocruz (RJ).

C A R TAC A P I TA L — 12 D E A B R I L D E 2 0 2 3 65
100 dias Venes Caitano

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