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Versáteis 31/08/20 12(31

EDIÇÃO 160 | JANEIRO_2020

concurso literário

VERSÁTEIS
O vencedor e os finalistas do mês

VERSÁTEIS
José Correia Torres Neto

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NOVO NOVO

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T
odos a chamavam de Gê. A pouca roupa de Gertrudes – ou
Gervásio – atraía a atenção de homens, mulheres, não mais do
que seus fartos e oscilantes seios. Mulata de quase 40 anos, tinha
por costume acordar em torno das dez da manhã. Não tinha uma
moradia certa, mas estava sempre envolvida e amparada por essa ou
aquela cafetina. Seus poucos dentes mostravam um sorriso meio
insano e despretensioso de alegria. Não existiam desejos ou sonhos na
vida de Gê. Ela contava apenas com aquele dia ou aquela noite.

Suas mãos serviam para tudo. Quando encontrava uma patroa sem
muita delicadeza de caráter era obrigada a mostrar todas as suas
habilidades. O ofício de Gê era o de lavar banheiro, louça, roupa,
chão, de bater colchão, varrer calçada, assar tripa de porco com
cebola, fazer farofa, servir cerveja, cachaça, apartar briga, guiar
bêbado, fazer curativo nas colegas, contar dinheiro, dar troco, levar
cutucão, beliscão, tapa nas ancas e na cara, baforada de cigarro,
charuto ou cachimbo, arrumar mesa, cadeira, ligar e desligar a vitrola,
escolher os melhores discos, fazer feira, pagar água, luz e aluguel.
Gertrudes – ou Gervásio – era pau para toda obra e, quando
terminava os afazeres domésticos, também era obra para todo pau,
desde que o cavalheiro pagasse o quarto e uma dose de Cinzano.

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Quando não, era Gê que quebrava o pau e, em mais de meia dúzia de


vezes, foi arrastada para a delegacia por rachar a cara de muito
valentão. Dormia na delegacia até os seus ânimos se acalmarem.
Nunca foi fichada, nem apanhou ou dormiu dentro da cela, e o
delegado Ambrósio, Ricardo Ambrósio, autoridade local e fazedor de
suas próprias leis, assíduo freguês dos lugares onde Gê trabalhava,
sempre livrava a sua pele. O delegado Ricardo Ambrósio, ou
Ricardinho nos momentos das sofreguidões sexuais, tinha toda a zona
do baixo meretrício em suas mãos. Ricardinho era o rei do pedaço;
mandava soltar, mandava prender. Conhecia todas as prostitutas e
travestis pelos seus nomes de batismo, e Gertrudes – ou Gervásio –
era uma dessas pessoas por quem Ricardinho tinha, digamos, uma
estima particular e, assim, ela seguia a sua vida com um mínimo de
segurança. Os dias continuavam. No mercado central, Gê sempre
buscava uma iguaria para diversificar o tosco cardápio do
estabelecimento da vez. Uma buchada, um resto de peixe para caldos,
um litro de cajá ou algumas azeitonas pretas para acompanhar as
corriqueiras e tão solicitadas doses de aguardentes, e quando sobrava
algum trocado, comprava duas ou três barras de sabão perfumadas
para agradar as outras meninas e, consequentemente, seus fregueses.
Nunca esquecia dos dois volumes do Biotônico Fontoura para os
pinguços misturarem com leite ao desjejum para diminuir os efeitos
da ressaca.

As famílias de Gertrudes se construíam e se desfaziam com uma


impressionante rapidez e a sua ingenuidade, ou a sua falta de
pretensões, não a deixava quieta. Gê jogava a cabeça para o lado
como se quisesse forçar impossivelmente que o cabelo crespo
contornasse o seu pescoço. Sentia-se a fêmea e o macho de muitos
homens e mulheres que buscavam um singular conforto entre seus
braços e pernas.

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Uma blusa enodoada, saia curta ou rodada, boca excessivamente


colorida, unhas e barba por fazer, cabelo desgrenhado, sandálias de
dedo e um perfume emprestado compunham aquela versátil mulata.
Gê guardava em si os segredos da noite; sabia que a ilusão do futuro
não caberia em sua vida e que a morte já era apenas um passar de
horas ao longo daqueles dias.

Agora ela está sentada no colo de um freguês, anotando um pedido,


recebendo um carinho através de uma dose ruim e amarga de uma
bebida qualquer. Levanta-se e atravessa o salão balançando os
quadris magros e sempre consegue se sentir ainda mais bela. A bela
Gê…

ESPAVENTOSO CONCURSO LITERÁRIO


Faça-nos rir e ganhe o próximo Nobel.

Se você acha que leva jeito para a coisa, participe do já antológico


concurso Encaixe a frase.

Todo mês, proporemos uma frase e um ingrediente improvável. Com


coragem e respeito à família cristã, ambos deverão ser incorporados a
uma história com tronco, membros e sistema nervoso central. Envie
um texto de até 5 mil toques ou uma hq de 1 página, até 20 de janeiro,
para concurso@revistapiaui.com.br.

Além de ser publicado na próxima edição da piauí, o vencedor terá


direito a namorar o Brad Pitt ou a Jeniffer Lopez (não pode escolher
os dois).

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FRASE DO MÊS:
– “Quis me matricular no workshop ‘Ensinando pobre a poupar’,
do Paulo Guedes, mas faltou grana.”
Elemento estranho: Baby Yoda

O VENCEDOR DE JANEIRO: A frase a ser encaixada era


“Ricardinho era o rei do pedaço; mandava soltar, mandava prender”,
e o elemento estranho era “Biotônico Fontoura”.

O campeão é José Correia Torres Neto, a quem pedimos que nos


envie a composição química do que anda tomando. Os outros três
finalistas estão abaixo.

Confira aqui as regras do nosso paleolítico certame literário.

Textos finalistas

O HOMEM QUE INTIMIDOU O RICARDINHO


Rodrigo Ortiz Vinholo

— Desliga essa porra!

— Quê?

— Só desliga! Desliga essa merda!

Fernando desligou a TV, sem entender o rebuliço do Delegado


Ricardo. Ou ainda, Ricardinho. Todo mundo chamava ele assim, e
nunca havia desrespeito no diminutivo.

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Normalmente, Ricardinho era controlado. Era difícil vê-lo nervoso e,


se você visse, era certo que alguém sairia perdendo. Mas, daquela
vez, parecia apenas desconcertado. Resmungou em voz baixa,
balançou a cabeça, e saiu da sala pisando duro, batendo a porta com
estrondo e deixando os subordinados se entreolhando.

— Que bicho mordeu ele? — perguntou Fernando, tão logo o


delegado deixou a sala.

— Liga não, — respondeu Sérgio, veterano dentre os policiais da DP.


— acontece às vezes.

— Tá, — admitiu o novato, ainda olhando para a madeira da porta.


— mas nunca vi o Ricardinho assim.

Todo mundo conhecia a fama do delegado. Ricardinho era o rei do


pedaço; mandava soltar, mandava prender. Já tinha idade para se
aposentar, mas nem cogitava sair. Diziam que ele só mantinha o
cargo que tinha por conveniência, porque não queria aparecer,
preferindo uma vida simples. Mas mandava em todo mundo acima,
do mesmo jeito que mandava em todo mundo abaixo.

E “todo mundo” queria dizer “todo mundo”, mesmo. Não faltava


figura, reputável ou desreputável, que não tivesse algum rabo preso
com ele. Fossem assassinos, traficantes, milicianos, empresários,
religiosos, políticos, empresários traficantes, religiosos assassinos ou
políticos milicianos. Obviamente, também era intocável.

Mas o sorriso de Sérgio sugeria um segredo. Uma fissura na


armadura. Aproximou-se de Fernando e começou a falar em voz
baixa:

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— Acho que sei o que foi que ele viu na TV.

— O quê?

— Um cara. Tem só um cara no mundo que consegue incomodar o


Ricardinho. Tirar ele do prumo, mesmo. O cara que não tem rabo
preso com ninguém.

Outros policiais da sala, conhecedores da história, se afastaram


discretamente conforme entendiam o que estava prestes a acontecer.
Fernando via que claramente não queriam ser vistos fofocando, caso
Ricardinho voltasse, e que pareciam conhecer o caso. Pensou em
desconversar, mas a curiosidade era maior.

— Porra, sério?

— Sério, juro — respondeu Sérgio. — Aconteceu há sei lá, uns 40


anos. Naquela época, o Ricardinho era jovem, mas já tinha os truques
dele. Já mandava em todo mundo, sabe-se lá como.

Sérgio se apoiou na mesa para falar, conspiratório, e Fernando se


aproximou mais.

— Na época, ele trabalhava lá no Carandiru. Todas aquelas histórias


que contam, sabe? Ele tava envolvido em tudo. Mas ninguém fala o
nome dele, não oficialmente. Ricardinho garantiu que ninguém
falaria.

— Tá…

— Então, o Ricardinho tinha acordos com todo mundo por lá. Fazia e
recebia favores do diretor, dos guardas, dos presos… E isso ia até em

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coisas banais. Essas coisas de política, de quem conhece todo mundo.


Ele tinha um acordo pra levar pra dentro do presídio um monte de
garrafas de Biotônico Fontoura.

— Oi?!

— É. Biotônico mesmo. Era o que conseguiam levar lá pra dentro com


teor alcóolico. Misturavam com outras coisas e faziam uma bebida
que chamavam de “Maria Louca”.

— Ah. Sei, entendi.

— Aí que o Ricardinho tinha um acordo com os presos, outro com o


médico, outro com o diretor… mas aí chegou o cara. Por conta de
alguma mudança administrativa, acabaram trocando uns
funcionários, e chegou esse sujeito que nunca tinha nem conversado
com o Ricardinho. Todo mundo achou que ele fosse só ficar na
miúda, mas não foi bem o que aconteceu.

O ar na sala estava tenso. Os que fingiam não ouvir também não


conseguiam fingir que estavam trabalhando. Dedos parados em
frente a computadores estáticos. A história era proibida, sabiam.
Ricardinho podia literalmente pedir a cabeça de alguém por aquilo.

Sérgio olhou ao redor, em direção à porta fechada e, por via das


dúvidas, por cima do próprio ombro.

— Se você perguntar por aí, vão contar uma história diferente —


continuou, a voz ainda mais baixa. — Mudando quem pediu o que
pra quem, quem mandou em quem… É tudo parte do acordo com
Ricardinho. Ele tem uma imagem a zelar, e tem gente o suficiente
devendo coisa para ele para a imagem continuar.

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— C-certo.

— Mas a história real é que o cara chegou por lá, e quando soube da
história do Biotônico, ficou furioso. Saiu perguntando pra todo lado,
brigando com todo mundo, até que alguém deu com a língua nos
dentes e falou do Ricardinho, provavelmente achando que o novato
só ia abaixar as orelhas.

— E aí?

— E aí que ele chamou o Ricardinho e os dois entraram em uma


salinha pra discutir. Ninguém conseguiu ouvir nada do que houve lá
dentro, mas dizem que quando Ricardinho saiu, parecia transtornado.
Pálido. Saiu do Carandiru na semana seguinte, e desde então ele não
quer saber do cara. Nunca fez nada contra ele, mas nunca se atreveu
nem a voltar a olhar nos olhos. Foi o único que conseguiu intimidar o
Ricardinho. O único que nunca teve rabo preso.

— Caramba… E quem era esse cara?

Sérgio apertou os olhos, e a voz saiu apenas como um sussurro:

— Era o Drauzio Varella!

* * *

TÉCNICO OU COMENTARISTA?
Mario Gonçalves

Sempre diziam ao Ricardinho que a carreira no futebol é curta, mas

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nunca imaginou que fosse tão minguada.

Por mais que se cuidasse, com alimentação saudável, com preparação


física científica, sem fumo, sem álcool, sem pó, sem noitadas
tresloucadas, sem funk, hip-hop e pancadão, sem porrada nos e dos
torcedores descontentes, o calendário mal programado, os
campeonatos superpostos, os adversários desleais, os juízes
complacentes, os dirigentes corruptos, o atraso nos salários e nos
direitos de imagem iam reduzindo implacavelmente a sua capacidade
profissional, técnica e física.

Logo, logo o fôlego envelhece, os músculos não atendem à cabeça, as


juntas emperram, as contusões são constantes, e por mais Biotônico
Fontoura que se tome, o pretenso maravilhoso jogador não ressurge
dos mortos.

Fazer o quê? Jogar não dá mais. Técnico ou comentarista?

Ainda bem que fez – nas coxas, é verdade! – o curso de Educação


Física e, na ciranda desvairada do perde/ganha das competições,
Ricardinho se transvestiu em treinador.

Ao assumir a função, dúvidas quanto ao perfil a ser adotado,


especialmente com relação aos trajes a serem usados à beira das
quatro linhas. Esportivo ou social? Espelhou-se na elegância europeia
e, como a grana estava curta, comprou um Armani em segunda mão,
com pouquíssimo uso, para exercer sua autoridade com distinção,
galhardia e graça, de maneira requintada e austera.

Durante os jogos, na área técnica ele se realizava com seus pulos,


gestos e gritos de prende a bola e solta a bola, sempre atento aos focos
das câmeras televisivas.

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Ricardinho era o rei do pedaço; mandava soltar, mandava prender a


esférica aos olhos e ouvidos da torcida frenética e dos espectadores do
pay-per-view.

Seus comandados obedeciam às ordens do estrategista, na expectativa


da vitória que raramente acontecia, levando o clube paulatinamente
ao amaldiçoado rebaixamento.

E Ricardinho, com seus botões, pensava: mais uma fria! É melhor ser
comentarista.

* * *

JACA TOTAL
Caio Csermak

Uma madrugada de 1910, redação de um grande jornal paulistano.

Oh Lobatinho, essa vida de redação cansa a gente, não cansa?

Pô, Fontoura, se cansa. Essa madrugada de plantão que nada


acontece.

̶ Pois é Lobatinho, é esse governo do Hermes que não arranca. Eu já


disse, militar e família no poder é uma coisa que não dá certo. Já não
bastava o tio, agora a gente tem que aguentar o sobrinho.

̶ Você que se entenda com seus parentes.

̶ Que parente o quê, Lobatinho, tá doido?

̶ Fonseca, porra.

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̶ FONTOURA, Lobatinho. Eu sou Fontoura. A minha família é


quatrocentona, os Fonseca são de outro ramo, lá do Rio.

̶ Ah é. Mas Fontoura, e essa madrugada que não passa? Já tomei uns


quatro cafés, fumei quase um maço e nada. Ouvi dizer que o
Ricardinho tá com um rapé bom na praça, parece que vem da Bolívia
e até o Freud gosta.

̶ Bolívia, Lobatinho? Depois daquela história do Acre, sei não, ficou


todo mundo melindrado por lá… eu não arriscaria.

̶ Mas como é que a madrugada passa, Fontoura? Como é que é?

̶ Lobatinho, você sabe que minha senhora andava assim meio sem
coragem pra nada, tava pra baixo, aquele olho meio amarelo de
anemia. Fiz um xarope pra ela, Lobatinho. Foi tiro e queda. Ontem
mesmo eu saí de casa e ela cismou que tava na hora de trocar o
telhado da casa, quando vi já tava lá em cima jogando telha pra baixo,
Lobatinho. Deu até a polícia, a vizinhança achou que era confusão.
Anotei a receita. Se quiser, eu faço e te trago no próximo plantão.

̶ Pô, Fontoura, eu quero.

Outra madrugada de 1910, redação de um grande jornal paulistano.

̶ Fontoura, esse xarope aí que você fez é uma porrada. Tô mais


elétrico que o bonde.

̶ Eu falei que era coisa fina, Lobatinho. Bateu certo?

̶ Então, pensa aqui comigo: vamos dar um nome pra isso aí, criar
um rótulo, vender, fazer dinheiro, Fontoura. Você sabe que lá em casa

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tá brabo, segundo filho chegando.

̶ Pode ser. Mas e o Ricardinho, a gente não vai ficar mal com ele
não?

̶ Ricardinho não manda em nada mais, não.

̶ Será? Ricardinho era o rei do pedaço; mandava soltar, mandava


prender.

̶ Não manda mais. Deixa eu te explicar: Ricardinho tava lotado


naquele quartel ali da Luz, então ele começou a cobrar uma taxa para
que a turma do Mercado Municipal, do Mercado da Cantareira e do
comércio todo daquela zona ali, funcionasse em paz. Só que aí o
superior dele descobriu.

̶ Daí parou?

̶ Não, daí o superior que começou a cobrar a taxa, só que mais cara.

̶ Taxa de que?

̶ De segurança, manutenção da tranquilidade do cidadão de bem,


revenda de lenha pra fogão. Essas coisas.

̶ Mas por fora?

̶ Isso, tudo por fora. Mas aí o comandante daquela tropa também


descobriu o esquema.

̶ Daí parou?

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̶ Não, daí o comandante que começou a cobrar e a taxa ficou mais


cara.

̶ Mas e aquele negócio do Freud que vinha da Bolívia e que o


Ricardinho vendia?

̶ Pois é isso, não vende mais. Agora a gente vai vender o teu
negócio, Fontoura!

̶ E não vai dar ruim com o Ricardinho?

̶ Relaxa, Fontoura, a gente se acerta direto com o comandante.

Ainda mais uma madrugada de 1910, redação de um grande jornal


paulistano.

̶ Então, Fontoura, tô pensando no esquema aí do xarope.

̶ Eu acho que aquele negócio do Ricardinho tava pegando mal. A


gente tem que fazer um produto família. Coisa que venda bem, mas
que seja pra família toda, entendeu?

̶ Mas tem álcool etílico na fórmula, você tá ligado, né?

̶ Claro que tô. Mas isso aí não dá nada, não. Minha mãe botava
conhaque na gemada da filharada e todo mundo cresceu viçoso. O
negócio é o nome.

̶ E você pensou em algum? O literato aqui é você, Lobatinho; você


sabe que eu só cuido do obituário do jornal. Essa coisa de versinho é
contigo.

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̶ É o que?

̶ O nome, porra! Xarope Pirlimpimpim.

̶ Tá maluco, Lobatinho? Que nome é esse?

̶ É um nome família, pô.

̶ Isso parece coisa daquela turma que faz poesia bebendo vinho em
cemitério. Os caras têm vinte anos e corpinho de cinquenta. Ninguém
vai achar que é nome de fortificante.

̶ Então tem outro: Biotônico.

̶ Tônico tudo bem, Lobatinho, isso transmite a essência do produto.


Mas e essa porra de bio aí?

̶ Bio tá com tudo, Fontoura, bio é o futuro. No dia em que o jeca


virar bio, finalmente esse país vai ter progresso.

̶ Sei não, Lobatinho, precisa ser mais família eu acho. Esse bio aí é
meio estranho, parece coisa de comedor de alface e alface não dá
sustança.

̶ Então pra ser família, bota teu nome, pô! Biotônico Fontoura.

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