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2 RESUMO DE TESES O CONTATO MUSICAL TRANSATLANTICO: CONTRIBUICAO BANTU NA MUSICA POPULAR BRASILEIRA. . Kazadi wa Mukuna Universidade Nacional do Zaire Durante os trés séculos de atividade escravocratas, dos meados do século XVI até a ultima metade do século XIX, exercida principalmente pela coroa portuguesa ¢ pela monarquia holandesa, intimeros membros de diferentes tribos da Africa ocidental foram introduzidos no Brasil para satisfazer a necessidade de mfo-de-obra em exploragGes agricolas e de minera- go. Entre eles hd: a) 0 grupo sudanes, composto pelos escravos vindos dos paises africanos ocupando o cinto sudinico abaixo do deserto Sahara, notada- mente Senegal, Guiné, Gana, Nigéria, Benim, etc.; b) a familia bantu, incluin- do todos os escravos vindos do espago geogrifico iniciado ao sul do Gabao € terminando ao sul de Angola; e alguns outros, vindos de Mogambique e de certas partes da Africa do Sul. Com cada grupo étnico foram transplantados para 0 Novo Mundo elementos da respectiva prética cultural. Alguns desses elementos inseridos no estilo de vida brasileira variam desde os habitos domésticos e sincyetismos de culto, a literapura e manifestagSes artisticas, dentre as quais o patriménio musical, que constitui o cere da nossa dissertago. Esta dltima, em forma de mise au point sobre a contribvigae africana na misica brasileira, trata dos elementos musicais bantus, oriundos da zona Zaire-Angola, aqui definida como a zona de interagdo cultural, detectéveis na musica popular brasileira. Eles so, basicamente, de duas naturezas: 1) instramentos tais como a cusca, © berimbau, © caxixi, 0 agogd, comumente utilizados no Brasil; e a ja desa- parecida “sanza” ¢ a raramente encontrada “marimba”; 2) padxOes ritmicos, principalmente os de 4 € 16 pulsagdes, todos eles relacionados com suas res- pectivas origens entre os bantus do Zaire ¢ de Angola, revelando também suas fungGes tradicionais nessas tribos. Esses elementos so analisados em termos de mutagdo ¢ persisténcia, conseqiiéncia das varias ages de fend- menos culturais, psicoldgicos ¢ socioldgicos sobre seus portadores, e em termos de sua continuidade no Novo Mundo a7 © primeiro capftulo, dedicado a definig#o do grupo de escravos bantus, para o interesse da dissertago, aborda o problema de diversos pontos sde-vista, histérico € antropolégico, alcangando a conclusio de que este grupo poderia ser concebido como sendo composto basicamente pelos membros das tribos que constituiram © primelro e © segundo Reinos do Kongo; primeiro destes alcangou 0 seu apogeu no século XVI, ¢ o ultimo, foi per- meade pelos migrantes das regiSes do interior da bacia do Zaire, Além da origem comum partilhada pelas tribos bantus espathadas, pode-se postular que a unidade cultural dos povos da bacia do Zaire foi aleangada, pelos vérios processos, acompanhando 0 percurso das migrag6es das tribos do interior, e pelos outros contatos (campos de batathas, reunites temporariss de comércio, assimilagio, etc.), antes das atividades escravo- cratas e/ou dusante © trafico humano. Estes contatos silo responsaveis pela jvansmassio dos elementos tradicionais das reas do interior para as éreas costeiras, ao alcance dos comerciantes de escravos. Entre os elementos trans- plantados do interior para a costa, ha aqueles cuja presenga no Brasil pode ‘ser explicada sem, necessariamente, haver participagdo fisica dos membros das tribos do interior na escravizagdo para o Novo Mundo. Estes elementos incluem os rudimentos ¢ os instrumentos musicais oriundos ida regio do sai, a terra natal dos hubas. O periodo total que os escravos passaram juntos — cerca de dois anos ¢ meio ~, do momento que cles eram captu- rados, até 0 momento que eles cram vendidos nos mercados brasileiros de escravos, era suficienfe para permitir a cristalizag#o dos denominadores culturais comuns na “meméria coletiva” do contingente. Os movimentos de migrag#o dos escravos no Brasil sie estudados ‘em relago aos ciclos econémicos; cana-de-agiicar, mineragdo de ouro © diamante, café, sucessivamente no Vale do Paraiba ¢ no planalto de Sto Paulo, Segundo a metodologia histérica aqui apliceda, certa luz € trazida Sobre as datas quando algumas formas de expansiio popular brasileira foram briadas. Isto é justificade pela concentragaio dos elementos bantus em certas regides do Brasil até aos dias de hoje. O samba carioca, por exemplo, nfo foi introduzido no Rio de Janeiro vindo da Bahia, mas surgiu naquele estado por volta de 1870. A parte Ii esté dividida em dois capitulos, baseados nas considera- ig6es metodoldgicas esbogadas por Nina Rodrigues. Em vez de trés tipos ide civilizagdes Negro-Americanas a ser estudadas, a Negra, a Africana ¢ a Afro-Americana, a segunda parte concentra‘se na civilizagfo Africana, cujo conteddo é composto de elementos puros herdados da Africa ¢ suas variantes, resultando da inculturago € aculturagio no novo meio ambiente, deixando de lado, por enquanto, 2 civilizagio Afro-Brasileira, que pode conter tracos africanos mas que criaram raizes no Brasil, Portanto, a identificagao dos 98 elementos musicais presentes na express¥o musical brasileira (salientando ‘© fondo cultural das formas entre as quais cles aparecem) é colocada no primeiro plano: no segundo plano vem a determinago das origens tribais dos elementos musicais identificados entre os bantus no Zaire e na zona de interagao cultural, pelo método comparativo. No ramo dos instrumentos musicais, ambos os capitulos (1 ¢ Il) sG0 ilustrados com varias fotografias de instrumentos, as vezes revelando suas técnicas de execugdo, So elas: “agogé” na escola de samba, um espé- cime africano dos|ashantis de Gana; “caxixi” relacionado com o conjunto de capoeira; a “marimba” encontrada em S£o Paulo; o “berimbau", da Bahia; “capoeira” danga-luta, com seus instrumentos de acompanhamento, também da Bahia; e a “cufca” brasileira usada nas escolas de samba. Virias situagdes so encontradas em relacionamento com cada cle- mento musical detectado. O agog6, por exemplo, é encontrado com uma maior difusio na Africa, com fungSes nfo tanto diferentes daquelas que desempenha no Brasil. Numa posig4o oposta, a cufca é encontrada na Africa numa drea mais restrita e ainda com fung6es inteiramente diferentes das que desempenha no Brasil. Quanto ao berimbau, embora sua origem africana no possa ser determinada neste trabalho, parece-nos que o modelo brasileiro tirou sua estrutura do modelo ‘encontrado entre os kungs em Angola. Sua associagfo com caxixi nfo é uma prética africana,'mas da capoeira brasi- eira, Considerando os padrdes rétmicos, 0 cabula e 0 congo encontrados no candomblé de Angola e Ketu em Salvador (Bahia), tém suas contrapar- tidas africana. O primeiro € encontrado com suas varjantes entre os bakon- g08 no Zaire e nas tribos das regives no norte e Angola. O segundo ritmo, chamado congo, é muito difundido na Africa. Dois padres ritmicos bésicos do samba brasileiro sfo estudados.O primeiro destes, o mais antigo, 6 composto pela seqiiéncia de colcheia, du- pla colcheia ¢ uma colcheia, seguido por duas colcheias, Embora nflo se possa chegar a nenhuma conclusto sobre a origem deste padrfio, baseada sobre seu primeiro motivo, por ser determinado pela parte poética das lin- guas africanas, o padro inteiro € encontrado como bésico para a maioria de msica tribal na regio de Kasai no Zaire, © segundo padrdo ritmico, que € também o mais recente a ser in- corporado no painel ritmico do samba, é 0 ciclo rftmico de 16-pulsos divi- siveis em dois segmentos (motivos) de sete e nove pulsos, ¢ variante. Este padrfo é encontrado entre o luluwas, em Kasai, em ambas as formas. Devido A sua grande difusto entre as tribos desta regido, este padrio ndo pode ser atribuido a uma tribo lespecsfica, mas a 4rea bantu em geral, e 4 zona de interacdo cultural entre Zaire e Angola, em particular. Mesmo assim, hé ” suficientes evidéucias para ser atribuide a segiio de Kasai, de onde alcan ou a regido costeira eo Novo Mundo A parte UI, também dividida em dois capitulos, é basicamente te6- rica, aprofundando os aspectos sociolégicos relativos a transferéncia dos elementos culturais de um cosmo cultural para um outso, através da muta- gf no nivel conceitual de individuo ov grupo, resultando de uma crise ov de uma ruptura, © ponte de partida para a observagio é a realizago do fendmeno con- éretamente detectado com a persisténcie da estrutura organoldgica dos ins- trumentos musicais e dos ciclos ritmicos, junto com a obliteragfio de seus Valores étnicos. Para que os elementos musicais, cujos valores tradicionais {nas tribos bantus) séo de importéncia proeminente na construgio Ida ex- pressio total de invocagdo (ritual/religioso), viessem a ser elementos de expressiio popular (profana), no Brasil devem ter ocorrido algumas crises ho niicleo da existéncia do jndividuo ou do grupo (nos termos bantus), afetando assim o n{vel conceitual dos portadores, face a estes elementos. No capitulo IV, mutagio é definida como sendo sindnimo de xuptura. Esta Ultima & por sua vez definida como um condicionamento conceitual sultando de uma crise, da qual resulta uma série de mudangas, afetando idiferentemente a sociedade em questiio. Accitando que a sociedade é com- posta de individuos que definem © conjunto de relagdes (normas, valores, etc.) pelo qual seu comportamento & regido, deveria também ser permiti- do olhar este condicionamento como ocorrendo no nivel formal do indi- viduo, do qual é concebido © conjunto de relagSes que estdo na base da sociedade em que ele vive, ao invés de diretamente sobre @ prépria socie- dade. Ao empregasmos “tradicional”, referimo-nos ao que pertence a uma continuidade bem definida, cuja mera existéncia & vitalizada pelos eonceitos ideologicos regulados pelas normas ¢ valores, pertencendo a um grupo fixo, uma familia, uma tribo, um grupo étnico, ete. “Popular”, por outro lado designa 0 novo estado do “tradicional” tirado do seu contexto yital, perdendo, sobretudo, o que tinha de oficial ou pertencendo a uma cultusa especifica de onde tira sua identificago com um grupo determinado. Em outras palavras, 0 “popular” seria o “tradicional” cujo conceito ou bonceitos so dissociados do que lhes dé significado ¢ existéncia, e que no esté em conformidade com as regras prescritas de comportamento sancio- nadas pela sociedade. Ainda, o “popular” & 0 “tradicional” que se tornou lugar-comum entre e/ou dentro de sociedades, nagdes, etc. © capitulo V investiga a persisténcia e « continuidade dos elementos musicais bantus sob consideragao. Para que estes elementos possam sobre- viver na situagdo de despersonalizagdo a que seus portadores foram subme- 100 tidos, deveria haver, @ priori, valores mais profundos: ¢ € a estes primeix valores que, eventualmente, outros valores do nove ambiente sfo junt dos. Os elementos musicais em consideragio sio partes do nticleo de existéncia dos membros das sociedades bantus, © esta pode ser uma das razSes capitais da sua persisténcia na meméria dos individuos. E 0 nucleo de existéncia que sobrevive 4 ruptura e percorre a tiajetéria ndo-existente, Ele alimenta a cristalizag&o dos elementos na memoria individual, © fica mais evidente quando analisado com © conjunto de fatores sociais, cujo efeito 6 também de uma importéncia capital na preservagfio e, especialmente, na continuidade dos elementos culturais dentro da nova sociedade. Apersisténcia de certos tragos musicais pode, ter resultado da mera imposig&o de um grupo sobre outro, devido a uma grande concentrapgo dos elementos numa dada drea, No Brasil, a drea do samba coincide com as regides agricolas onde houve também uma concentrago marcante dos es- cravos orfundos do estoque bantu. E 0 caso do caxixi, do berimbau, ¢ da capoeira, que podem ser considerados como denominadores comuns na zona de interagio cultural, sendo encontrados na Bahia, onde a concentragio dos bantus oriundos de Angola foi marcante no século XVII. Qutras formas de expresséo popular brasileira, tais como 0 bumba-meu-boi, maculelé, maracatu, congada, tambor de crioula, etc, que constitufram expresso loco-regional, atestam o fato de que deveriam ter alguns tipos caracteristicos de concentrago regional das etnias, para justificar a criagdo das formas e/ou para atestar persisténcia dos elementos culturais afticanos que podiam ter subsistido se estes tragos representassem denominadores comuns entre ‘os membros da comunidade. de douroramento em Sociologia, Departamento de Cigncies Sociais de ~ Tes Letras @ Ciéncies Humanas da Universidade de So Peuto. Faculdade de Fitosofi 101 | BS

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