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ÁGUA NO PESCOÇO A DELAÇÃO PREMIADA DO AJUDANTE DE ORDENS MAURO CID

E A QUEBRA DO SIGILO TELEFÔNICO DO GENERAL WALTER BRAGA NETTO EM UMA


INVESTIGAÇÃO DE CORRUPÇÃO FORNECEM NOVAS PEÇAS AO QUEBRA-CABEÇA DO
ASSALTO BOLSONARISTA, DA ELEIÇÃO DE 2018 À TENTATIVA DE GOLPE EM 8 DE JANEIRO

INÊS249

20 DE SETEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1277 R$ 31,90

APOCALIPSE
O PLANETA GALOPA PARA O COLAPSO
Boleto com
dados errados?
Link suspeito?

Pediram a senha?
O BB tem um telefone e um site com dicas de segurança pra ajudar você a evitar golpes.

bb.com.br/seguranca | 4004-0001
20 DE SETEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1277

O sistema eleitoral
está cada vez mais
disfuncional. Pág. 26

6 A SEMANA
9 M A R I A R I TA K E H L Economia Nosso Mundo
34 C R E S C I M E N T O 42 EUA Os trabalhadores
A ditadura dos juros de Ohio, estado-chave
Seu País altos continua nas eleições americanas,

Plural
22 D E L A Ç Ã O Mauro Cid tem a sabotar a economia
farta munição para atingir sentem-se rejeitados
o chefe que o abandonou 38 B E L L U Z Z O O jogo pelos democratas
26 C O N G R E S S O Mais um
de espelhos do 46 U C R Â N I A Nem os

48
remendo à legislação liberalismo versus alarmes de ataques
eleitoral é embalado protecionismo aéreos em Kiev
VIDA DE
EDILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO E REDES SOCIAIS

pelos parlamentares 40 A R T I G O O cartão de freiam o avanço da


29 CÉLIA X AKRIABÁ crédito não é o vilão especulação imobiliária ESCRITOR
30 S Ã O PA U L O A mobilização
de trabalhadores do RAPHAEL MONTES, AUTOR
Metrô, da CPTM
e da Sabesp contra as
DE SUSPENSES DE SUCESSO
privatizações de Freitas E ROTEIRISTA REQUISITADO,
33 JAQUES WAGNER ESTREIA NO SEGMENTO INFANTIL
DISTOPIA
50 M Ú S I C A A fadista Carminho e o Brasil
OS LÍDERES DO G-20 IGNORAM 52 T H E O B S E R V E R Sofia Coppola rememora
Capa: Pilar Velloso.
Fotos : Mateus Bonomi/ A URGÊNCIA CLIMÁTICA, APESAR filmes em livro 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por
Agif/AFP e iStockphoto DAS CATÁSTROFES RECORRENTES Arthur Chioro 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

INÊS249
4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) da imensa maioria da população.
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva Condição que parece estar devidamente
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis planejada para se perpetuar.
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich Temos de quebrar essa amarra.
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub Manoel Albuquerque
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
FACA NO PESCOÇO
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Abrir mão de ministérios para o
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., Centrão é ruim, sem dúvida. Triste
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
até. No entanto, de que outro modo seria
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo possível assegurar apoio no Congresso?
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
Acredito que o povo também tem sua
CARTA ONLINE
parcela de responsabilidade, pois, apesar
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira de ter eleito Lula, também escolheu esse
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
pessoal ávido por cargos no governo.
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
CORPO FECHADO Gislan Souza Ribeiro
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) O bolsonarismo é uma seita,
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
REDES SOCIAIS: Caio César
não tem outra explicação. Não tenho a solução que permita
SITE: www.cartacapital.com.br Vinicius Menezes Massaranduba Pretel
a permanência da ministra Ana
Moser. Ela é perfeita para o cargo
Eles nunca se incomodaram
e demonstrou isso. Sua substituição
realmente com corrupção. Só
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. é desastrosa! O motivo de sua
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 queriam destruir o projeto progressista,
substituição, deprimente.
que tenta diminuir a desigualdade no
Mirian Cintra
PUBLISHER: Manuela Carta País. Tiveram um presidente que repre-
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo sentava a mente mais atrasada deles. OLHA A BANANA!
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos Isso explica o suficiente.
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo Eduardo Leite não é um caso isolado. Sar-
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios João Rodriguez
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, ney, Collor e Dilma, por exemplo, promete-
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva ram coisas na campanha e fizeram outras.
Jair Bolsonaro, por si só, se des-
Infelizmente, não temos recall para presi-
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: trói. É o único presidente que não
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, dentes, governadores e parlamentares.
enio@gestaodenegocios.com.br
conseguiu se reeleger e, até agora, o
Edvaldo Fernandes da Silveira
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, único que se tornou inelegível.
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
José Ivo Nunes de Lima
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
Deveriam iniciar uma investigação
agholanda@Agholanda.com.br
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com ENERGÚMENO DEMENTE nacional, pois há um lobby privatista
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br
Educação nunca foi prioridade pa- com o mesmo modus operandi atuando
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda. ra qualquer governo deste país, em várias unidades da federação. Contra-
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. seja de esquerda, seja de direita. Ela en- tam até as mesmas empresas de consul-
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555
volve não apenas raciocínio lógico e in- toria e auditoria para amarrar os projetos.
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se
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de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de Ricardo Fernandes de Oliveira É inconcebível um país que mal
acordo com a Lei de Imprensa. tem acordos setoriais na indústria
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
INDEPENDÊNCIA SEM POVO importar resíduos sólidos de outros lu-
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) O povo trabalhador não tem tempo gares. Isso quando a tal “importação”
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
para isso. Os eventos com o inele- não é mera fachada para outras nações
gível eram eleitoreiros e financiados. A se livrarem do lixo deles por aqui.
direita sempre precisou de volume para Eduardo V. Torres
dizer que o povo estava do seu lado.
Júnior Lara Mal e porcamente processamos
os resíduos que produzimos, e al-
A raiz está, certamente, no baixo guém tem o disparate de importar lixo!
nível da educação geral e na ética Adamo Soares

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 5
A Semana INÊS249

O último suspiro
Lava Jato/ Tardio despertar
Inconformada com o
despacho de Dias Toffoli que
Leniente com Moro, o TRF4 declara a “suspeição” do juiz Eduardo Appio
invalidou as provas do acordo
de leniência da Odebrecht e
identificou na República de O magistrado
Curitiba o “ovo da serpente” incomodou
dos ataques à democracia, o lavajatismo
a Associação Nacional dos
Procuradores da República
apresentou um recurso no
STF contra a decisão, que
segundo a entidade teria
“extrapolado” os limites legais.
Para a ANPR, o ministro não
poderia entrar em assuntos
disciplinares, que seriam da
competência do Conselho
Nacional de Justiça e do
Conselho Nacional do
Ministério Público.
Dificilmente a Suprema
Corte vai curvar-se ao esbirro
corporativista. Na prática, a
decisão de Toffoli representa

O
uma pá de cal para a maior
parte dos acordos fechados Tribunal Regional Federal da sores ou críticos daquilo que foi levado a efei-
pela finada Lava Jato.
4ª Região declarou a suspei- to desde o início das investigações”, avaliou o
ção de Eduardo Appio e anu- relator Loraci Flores de Lima. “O que se bus-
lou todas as decisões do juiz ca”, emendou, “é um magistrado que atue de
no âmbito da Lava Jato. A Oitava Turma forma equidistante.” Peculiar a repentina
do TRF4 concluiu o julgamento na quar- preocupação do TRF4 com a isenção do Judi-
ta-feira 6, horas após o ministro Dias ciário. Quando Sergio Moro ocupava a 13ª
Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, Vara, o tribunal não enxergou qualquer traço
considerar imprestáveis as provas dos de suspeição no magistrado, depois conside-
acordos de leniência da Odebrecht – no rado parcial e incompetente para julgar os
mesmo despacho, o magistrado reconhe- casos de Lula pela Suprema Corte.
ceu que Lula foi vítima de “um dos maio- A anulação das decisões de Appio não che-
res erros judiciais da história do País”. ga a comprometer investigações que causam
Appio foi afastado da 13ª Vara Federal de enorme dor de cabeça para a República de
Curitiba em maio, após ser acusado de apli- Curitiba. O caso do grampo ilegal na cela do
car um trote no filho do desembargador doleiro Alberto Youssef, revelado em primei-
Marcelo Malucelli, fato negado pela defesa ra mão por CartaCapital, já havia sido trans-
do juiz. Agora, ao julgar uma das 28 recla- ferido para a 23ª Vara Federal. Além disso, o
mações do Ministério Público Federal con- STF avocou para si todos os processos rela-
tra Appio, os desembargadores da Oitava cionados ao advogado Rodrigo Tacla Duran,
Turma elencaram uma série declarações do antigo colaborador da Odebrecht que acusa
magistrado à mídia, com críticas aos méto- Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol de
dos lavajatistas, para apontar sua suspeição. extorqui-lo para evitar sua prisão no curso
“A Lava Jato não precisa de juízes defen- das investigações da Lava Jato.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
20.9.23

Precioso acervo
Fake news/ Mentira grotesca
A Faculdade de Economia
MPF pede que Damares Alves e a União indenizem a população de Marajó e Administração da USP
inaugura, em 22 de setembro,

O
a exposição “Uma Viagem
Ministério Público Federal no sobre abuso sexual e tortura às crianças do Pela História do Pensamento
Pará ajuizou, na terça-feira 12, arquipélago. Os 19 procuradores da Repúbli- Econômico: A Biblioteca
uma ação civil pública para que ca que assinam a petição inicial cobram uma de Delfim Netto”. Em 2011,
a União e a senadora Damares reparação de 5 milhões de reais (metade do o economista e professor
emérito da FEA-USP, hoje
Alves, do PL, indenizem a população de Ma- valor para cada réu), valor que deve ser re-
com 95 anos, doou parte de
rajó. O caso refere-se a uma declaração da vertido em projetos sociais na região. seu acervo para a sua alma
ex-ministra de Jair Bolsonaro em culto Em 8 de outubro de 2022, a recém-eleita mater – mais de 260 mil
evangélico, durante as eleições de 2022, con- senadora afirmou que as crianças de Marajó itens, entre livros, artigos
tendo informações falsas e sensacionalistas tinham os “dentinhos arrancados” para a de compêndios, artigos de
periódicos e outros materiais.
prática de sexo oral e eram obri-
No conjunto, figuram algumas
gadas a comer comida pastosa preciosidades, como
“para que o intestino fique livre as primeiras edições de
para a hora do sexo anal”. Acres- The General Theory of
centou ter tomado conhecimento Employment, Interest and
Money, obra seminal de John
dessas práticas criminosas en-
Maynard Keynes, lançada em
quanto ministra de Estado, mas 1936, e de An Inquiry into the
jamais apresentou provas dessas Nature and Causes of Wealth
denúncias e tampouco esclareceu of Nations, de Adam Smith,
as providências tomadas pelo go- em três volumes, de 1776.
Organizada pela professora
verno. “Isso tudo é falado nas ruas
Maria Dolores Montoya
de Marajó”, esquivou-se, quando Diaz, a mostra estará aberta
a fake news foi exposta. Agora, ve- à visitação pública a partir de
jam só, a pudica parlamentar diz 25 de setembro, de segunda
que só vai se pronunciar nos autos a sexta, das 7h30 às 21h30.
“por se tratar de um assunto que
“Isso tudo é falado nas ruas”, tentou se esquivar a senadora envolve crianças”.

Patrimônio histórico/ PRECIOSO ACHADO


ARQUEÓLOGA QUE REVELOU CAIS DO VALONGO GANHA PRÊMIO INTERNACIONAL

Responsável pela descoberta para o progresso científico em começou a ser construído no


do Cais do Valongo durante as suas áreas de atuação. No ca- fim do século XVIII e só foi con-
ACERVO PESSOAL, ARQUIVO/JUSTIÇA

obras de revitalização da Zona so, Lima será homenageada cluído em 1811. Pela importân-
FEDERAL E WILLIAM MEIRA /MMFDH

Portuária do Rio de Janeiro, a pelos serviços prestados à Ar- cia da descoberta, o sítio ar-
arqueóloga carioca Tania An- queologia, à História e ao Patri- queológico Cais do Valongo foi
drade Lima é uma das vencedo- mônio Cultural da humanidade. declarado Patrimônio Mundial
ras do prêmio Hypatia Award As escavações lideradas por da Organização das Nações
2023. Concedida pela Confe- ela revelaram, em 2011, o anti- Unidas para a Educação, Ciên-
deração dos Centros Interna- go cais de pedra reservado pa- cia e Cultura, a Unesco, em
cionais para a Conservação do ra o desembarque de africanos 2017. A cerimônia de premia-
Patrimônio Arquitetônico, a escravizados. Estima-se que ção do Hypatia será realizada
honraria celebra o trabalho de mais de 1 milhão de cativos te- em 16 de outubro, na cidade A descoberta de Tania Lima agora
profissionais que contribuem nham passado pelo local, que italiana de Florença. é Patrimônio Mundial da Unesco

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 7
A Semana

A queda do
beijoqueiro Ucrânia/
Luis Rubiales renunciou,
no domingo 10, à presidência
Pés de barro
da Federação Espanhola de Zelenski é responsável pela corrupção
Futebol. O dirigente também no país, avaliam 78% dos ucranianos
abandonou o posto de
vice-presidente da Uefa, a

I
federação europeia. Vacilante
na adoção de medidas ncensado como herói da resistên-
para combater o racismo
cia pela mídia ocidental, Volodimir
nos estádios, sobretudo após
os ataques sofridos pelo Zelenski não parece gozar do mesmo
brasileiro Vinicius Jr., prestígio em seu próprio país. Para
atacante do Real Madrid, 78% da população ucraniana, o presidente é
Rubiales caiu em desgraça responsável pelos escândalos de corrupção
por outro motivo. Após a final
que atingem o governo e as forças armadas,
da Copa do Mundo feminina,
deu um beijo à força na revela uma pesquisa realizada pela Funda-
atacante Jenni Hermoso, ção Iniciativas Democráticas, pelo Centro
da seleção espanhola. Razumkov e pelo Instituto Internacional de
Suspenso pela Fifa, Rubiales Sociologia de Kiev. Foram consultados 2.011
foi acusado de violência
eleitores, entre julho e agosto, em todas as A mídia ocidental deve estar
sexual por duas ministras aos prantos com a revelação
do premier Pedro Sánchez. regiões livres da ocupação russa.
O beijoqueiro não resistiu Uma semana antes da divulgação da son-
à pressão e saiu de fininho. dagem, Zelenski viu-se forçado a demitir seu forço de guerra. Não bastasse, Reznikov foi
ministro da Defesa, Oleksii Reznikov. Em acusado de omissão diante da corrupção ins-
parte, devido à pressão das potências ociden- talada nas forças armadas, inclusive a venda
tais, insatisfeitas com o pífio avanço da con- de isenções para o alistamento obrigatório
traofensiva ucraniana. Mas, internamente, no serviço militar. A pesquisa não aferiu, po-
pesavam os escândalos de desvio de recursos rém, o desempenho de Zelenski na condução
dos valores enviados pelo Ocidente para o es- da guerra contra os russos.

Filipinas/ MORDAÇA ARRANCADA


MARIA RESSA, NOBEL DA PAZ DE 2021, É ABSOLVIDA DE OUTRA ACUSAÇÃO PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA E R. OBERHAMMER/DW

Vencedora do Prêmio Nobel da nacional pela cobertura crítica geiros em 2015, o que é proibi-
Paz em 2021, a jornalista à guerra às drogas encampada do pela legislação local. Se
Maria Ressa e o site de notícias por Duterte, que incentivou condenada, Ressa poderia ser
Rappler, do qual ela é cofunda- abertamente execuções extra- sentenciada a mais de 30 anos
dora, foram absolvidos de uma judiciais de suspeitos envolvi- de reclusão. Apesar da absolvi-
acusação de fraude fiscal por dos com o narcotráfico. A car- ção, ela ainda é alvo de uma
um tribunal das Filipinas, na nificina resultou na morte de denúncia por difamação, que
terça-feira 12. Este é o último 10 mil cidadãos, segundo esti- pode custar a ela até sete anos
dos cinco processos judiciais mativas de organizações de de detenção. No poder há 14
por evasão fiscal instaurados defesa dos direitos humanos. meses, o atual presidente do
contra a publicação durante o Para silenciar a jornalista, o país, Ferdinand Marcos Jr.,
governo de Rodrigo Duterte. governo Duterte acusou o site afirma que não pretende inter-
A jornalista denunciou a sangrenta Ressa e o Rappler ganharam noticioso de receber financia- vir nos casos judiciais que re-
guerra às drogas de Duterte prestígio e repercussão inter- mento de investidores estran- montam à gestão anterior.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
MARIA RITA KEHL
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

Quem é o fora da lei?

proprietário de uma gleba rural é (ou deve- boravam seus problemas e se declaravam
► No campo, os verdadeiros ria ser) obrigado a cumprir com as seguin- “curados” certamente tinha a ver com o
criminosos são os "donos" tes responsabilidades: 1. Favorecer o bem- fato de viverem em uma coletividade que
-estar dos proprietários e dos trabalhado- os amparava nos momentos difíceis.
de terras griladas, e não
res que nela labutam, assim como de suas Outra evidência do forte sentimento
os agricultores do MST famílias. 2. Manter níveis satisfatórios de de pertencimento à coletividade é o mo-
que desejam cultivá-las produtividade. 3. Assegurar a conservação do como ninguém tenta levar vantagem
dos recursos naturais. 4. Observar as dis- sobre os companheiros. Na longa fila do
posições legais que regulam as justas rela- almoço, de vez em quando alguém resol-
ções de trabalho entre os que a possuem e a via conversar com um amigo na dianteira.

C
ontra a intolerância dos ri- cultivem. Quem cumpre essas regras? Pro- Pensei que era pretexto para furar a fila,
" cos, a intransigência dos po- vavelmente, muito poucos, sobretudo en- até perceber que cada um que deixava seu
bres.” Não, caro leitor, a fra- tre aqueles que usam a posse da terra com a lugar para falar com alguém lá na frente
se acima não é de Che Guevara nem finalidade de especulação. São estes os ver- dizia, bem alto: “Último!” Depois da con-
de Fidel Castro. O autor é o grande dadeiros fora da lei, não os sem-terra que versa, recomeçava do zero, no fim da fila.
Florestan Fernandes, sociólogo, an- ocupam glebas improdutivas para cultivar. Presenciei a mesma consideração pe-
tropólogo, professor e, o mais impor- lo coletivo em uma viagem a Cuba, em
tante, estudioso do racismo. A cita- Voltemos ao MST. Escrevi acima que os 2005, por ocasião da Feira Internacional
ção está gravada na pedra fundamen- camponeses que se filiam ao MST não se do Livro de Havana. Ninguém furava fila,
tal da escola nacional do MST, no mu- beneficiam apenas da conquista de um lo- mesmo que deixasse seu lugar para falar
nicípio paulista de Guararema, batiza- te no qual possam viver e plantar. Benefi- com alguém lá na frente. É bonito pensar
da com o nome de Florestan, um dos in- ciam-se, ainda, de todas as medidas eman- que parte dos dispositivos de convivência
telectuais mais influentes do século XX. cipatórias compartilhadas entre os inte- solidária encampados pelos militantes
Foi na inauguração da Escola Nacio- grantes do movimento. A Escola Nacional do MST advém do socialismo cubano. E,
nal Florestan Fernandes, em 2006, que Florestan Fernandes, por exemplo, cum- por falar nisso, ao desembarcar no aero-
vim a conhecer de perto o movimento. Ali pre uma função que deveria ser do Estado, porto de Havana, os turistas se depara-
se cultivam alimentos orgânicos, consu- a de alfabetizar aqueles que não tiveram a vam com um grande outdoor, no qual se
midos pelos alunos e visitantes da esco- oportunidade de ir à escola na idade certa. lia: “Neste momento, no mundo, milhões
la e também vendidos no Armazém do O segundo propósito mais importante é o de crianças dormem nas ruas. Nenhuma
Campo, no bairro paulistano da Barra de inserir, no campo da cultura e dos de- delas é cubana”.
Funda. Os camponeses filiados ao MST bates relevantes, todas as famílias que lu- No Brasil, um outdoor semelhante,
não se beneficiam apenas de um pedaço tam, dentro da legalidade, por um peda- com apego à verdade factual, teria de re-
de terra, dentre os milhares de hectares ço de terra. Alfabetização é emancipação. conhecer que milhões de crianças brasi-
de terras devolutas no Brasil. Para quem No período em que fui semanalmente à leiras passam fome por aqui. Nenhuma
não conhece o conceito, as terras devolu- Escola Nacional para oferecer escuta psi- delas, arrisco dizer, é filha de integrantes
tas são áreas públicas férteis e não culti- canalítica, percebi o quanto o acolhimen- do MST. Tenho certeza de que o querido
vadas, que quase sempre viram alvo de to oferecido pelo MST era fundamental professor Florestan Fernandes, citado na
grileiros. Esses criminosos buscam “le- para a cura dos transtornos que acome- abertura desta coluna, não se ofenderia
galizar” a posse irregular com documen- tiam os camponeses. O trabalho de aná- de ser colocado aqui, no final do texto,
tação falsa. Aprendi o significado do ter- lise possibilitou que eles entrassem em na insólita companhia de um roqueiro:
mo sem procurar, quando li na adolescên- contato com vivências traumáticas, fan- Raul Seixas. Sonho que se sonha só/ É só
cia a trilogia O País do Carnaval (1931), Ca- tasias persecutórias ou mesmo pequenos um sonho que se sonha só/ Mas sonho que
B A P T I S TÃ O

cau (1933) e Suor (1934), de Jorge Amado. conflitos vividos no tempo atual, mas que se sonha junto é realidade. •
De acordo com o Estatuto da Terra, todo os angustiavam. A rapidez com que ela- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 9
CA PA

DO COMEÇO
AO FIM
O INCÊNDIO DA FLORESTA ABRE CAMINHO PARA
TRANSFORMAR O MUNDO EM DESERTO

por MINO CA RTA

E
stá em jogo o destino da hu-
manidade e do próprio pla-
neta. A pequena bola de ar-
gila que gira elipticamen-
te em torno de uma estre-
la menor chamada Sol cor-
re o grave risco, talvez a es-
ta altura inevitável, de des-
pertar o tropel dos cavaleiros do Apo-
calipse. O homem orgulha-se por ter a
consciência da vida quando frequenta a
situação oposta. Ou seja, a inconsciên-
cia do perigo a que se expõe na perspec-
tiva de ver o mundo transformado em
um deserto fatal, sem a pálida possibi-
lidade de vida para fauna e flora. Será
este o epílogo de uma tragédia há tem-
po engatilhada?
Os grandes da Terra – para o oba-oba
nacional o presidente Lula está entre
eles – reúnem-se para debater os pro-
blemas do mundo sem tocar no mais im-
ponente: a crise ambiental. Quando Jair
Bolsonaro, graças a um enésimo golpe
ISTOCKPHOTO

praticado com a contribuição decisiva do


que chamávamos a República de Curiti-
ba, maciçamente apoiada pela mídia na-

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 11
CA PA

tiva a serviço da casa-grande, foi eleito


presidente e partiu para o desmatamen-
to da Amazônia, CartaCapital combateu
o crime: ao destruir o pulmão da huma-
nidade criaríamos um novo Saara.

C
omo sabemos, a devastação
prosseguiu a bem do espaço
aberto para manter a tradi-
ção da monocultura, no caso
a soja, bem como as mana-
das dos pecuaristas. Um es-
tudo de lavra recente revela que dentro
de 40 anos o mundo será um imenso de-
serto de um polo a outro. Se esta semana
decidirmos encarar a realidade, bastará
abrir a janela para saber que este verão
escaldante acontece em pleno inverno.
Estamos desafiando a natureza, a mes-
ma que Nietzsche tinha como sinôni- Troca de faixa entre desastrados

A República de Curitiba garante sua contribuição ao desastre

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
mo de Deus, e uma forma de desrespeito O presidente não desiste de governar do planeta, onde boa parte da população
em busca da conciliação
deste calibre não poderá ser perdoada. está condenada a morrer de fome, se ar-
A despeito da indiferença dos mais po- vore a defender no mundo a paz ausen-
derosos, porque mais ricos, estes estão te nos seus domínios. Aquele que é cha-
sempre empenhados em omitir a questão mado de “povão” com algum desprezo é
J O S É C R U Z /A B R , R E D E S S O C I A I S E VA N D E R L E I A L M E I D A /A F P

nas suas frequentes reuniões que a na- portador de um dos mais baixos índices
da de positivo levam. Pelo contrário, exi- de escolaridade, sem jamais ter sido be-
bem nitidamente a prepotência de uns e NADA VAI IMPEDIR neficiado por um Estado de Bem-Estar
a resignação de outros. Safam-se os cul- O SUICÍDIO Social, supondo-se que bastariam pa-
pados, os indiscutíveis responsáveis por ra saciá-lo as migalhas caídas da mesa
este crescente envenenamento, enquan-
DO PRÓPRIO dos senhores. Já aconteceu que tão pou-
to as minorias súcubas sofrem em silên- PLANETA, VÍTIMA co fosse suficiente para seduzir o povão.
cio. Uma análise objetiva exibirá a verda- DA GANÂNCIA De fato, por algum tempo, vingou a
de factual, mas nem por isso vai impedir DOS MAIS ideia de que o presidente da República
o suicídio do próprio planeta, vítima da tirara da miséria 30% ou 40% da popu-
ganância e da irresponsabilidade dos de-
RICOS, DONOS lação. Hoje, a ciranda da alegria está ca-
positários do verdadeiro poder. DO PODER lada. Sobram as estatísticas desalenta-
Quanto à presença do Brasil nestas doras, conquanto a propaganda não se
conferências globais, difícil demais en- detenha. Não nos iludamos, o galope do
tender que um dos países mais desiguais Apocalipse está cada vez mais próximo. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 13
CA PA

e Brasil. “Não precisamos de mais avisos.

DISTOPIA
O futuro distópico já está aqui. Precisa-
mos de medidas urgentes agora”, implo-
rou Volker Turk, alto comissário das Na-
ções Unidas para os Direitos Humanos,
na segunda-feira 11, durante conferência
em Genebra. Turk alertava para um dos
OS LÍDERES DO G-20 IGNORAM A aspectos do aquecimento global, a fragi-
lidade dos mais pobres diante dos even-
URGÊNCIA CLIMÁTICA, APESAR DAS tos cada vez mais extremos. “As altera-
CATÁSTROFES RECENTES E RECORRENTES ções climáticas têm empurrado milhões
de seres humanos para a fome. Destroem
esperanças, oportunidades, casas e vi-
das. Nos últimos meses, os alertas urgen-
por SERGIO LIR IO
tes tornaram-se realidades letais repeti-
das vezes em todo o planeta”, acrescentou.
Turk tem razão. Não se trata mais de
discutir projeções ou modelos abstratos

O
número de vítimas das tra- ocorrido nos arredores da estância turís- elaborados por cientistas. A própria natu-
gédias naturais ao redor do tica de Marrakesh, os tremores, na escala reza emite sinais de que as coisas vão de
mundo não para de crescer. Richter de 6.8 graus, foram sentidos no sul mal a pior. Junho e agosto tornaram-se os
No Rio Grande do Sul, o ci- de Portugal, a quase 1,2 mil quilômetros de meses mais quentes no verão do Hemis-
clone tropical, maior inci- distância (reportagem à página 17). Na Lí- fério Norte desde o início das medições,
dente nos últimos 40 anos, bia, as chuvas torrenciais e incomuns pa- no século passado. O mapa publicado à
deixou um saldo até o mo- ra esta época do ano provocaram o rompi- página 18, elaborado pelo grupo de pes-
mento de 47 mortos e nove mento de uma barragem. Saldo: 5 mil mor- quisa norte-americano Climate Central,
desaparecidos, além de milhares de desa- tos e 20 mil desabrigados, segundo as úl- mostra a disseminação das ondas de calor
brigados e prejuízos milionários. No Mar- timas informações. Após o calor no verão pelos continentes. Entre junho e agosto,
rocos, que não enfrentava um terremoto atingir novos recordes na Itália e nos Esta- 98% da população global, quase 8 bilhões
de grandes proporções havia mais de um dos Unidos e os incêndios florestais casti- de indivíduos, foi submetida a temperatu-
século, a última contagem aproximava- garem a Grécia e o Havaí, com dezenas de ras elevadas em uma proporção duas ve-
-se de 3 mil mortes, a mesma quantidade vítimas fatais, as inundações colocaram zes maior que a média histórica. E qua-
de desaparecidos e cerca de 300 mil habi- em estado de alerta países tão geografica- se metade dos seres humanos enfrentou
tantes afetados. Embora o epicentro tenha mente distantes quanto China, Espanha 30 dias ou mais de sol abrasador no mes-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
mo período, situação que passou de rara a No encontro dos líderes das 20 maiores economias, Lula citou as inundações no
Rio Grande do Sul. O Brasil assume em dezembro a presidência provisória do G-20 sob a promessa
corriqueira por conta do aumento da po- de um “planeta sustentável”, mas as divergências entre os países parecem insanáveis
luição. Ao fenômeno os cientistas deram
o nome de “a era da fervura”.
Os alertas assertivos, quase desespera-
dos, dos especialistas ou os gritos de socor-
ro de Pachamama, a Mãe Terra, segundo
os nativos dos Andes, não comovem, no
entanto, os líderes mundiais. Reunidos na
Índia, os representantes das 20 maiores
economias tripudiaram sobre os cadáve-
res no Marrocos, no Rio Grande do Sul e na
Líbia. Sem consenso, o G-20 divulgou um
comunicado vago sobre a emissão de gás
carbônico na atmosfera. O grupo compro-
meteu-se a acelerar os investimentos em
energia renovável, particularmente nos
países em desenvolvimento – 5,4 bilhões
de dólares até 2030, além de 4 bilhões
anuais a partir de então –, mas não estabe-
leceu qualquer meta de redução no uso de
E M B A I X A D A D A F R A N Ç A / I N D I A E S I LV I O AV I L A /A F P

combustíveis fósseis, sobretudo carvão e


petróleo. O texto ignora a principal suges- não passará disso mesmo, de promessa. projetos em construção estão localizados
tão do balanço global do Acordo de Paris, O G-20, responsável por três quar- nesses países, o que torna as acusações in-
uma análise dos oito anos do compromis- tos do PIB planetário e 80% do consumo dividualizadas meras fofocas da geopolí-
so dos signatários de limitar o aumento da de carvão e petróleo, reflete as disputas tica. A invasão da Ucrânia pela Rússia,
temperatura planetária a 1,5 grau Celsius geopolíticas e os conflitos internos dos ressalte-se, não colabora para o consenso.
até 2050. Produzido por uma equipe in- países. Há quem tenha buscado culpados Em seu discurso em Nova Délhi, o pre-
dependente reunida pela ONU e divulga- pelo tom tímido da declaração conjunta sidente Lula, que assumirá o comando do
do às vésperas da reunião na Índia, o ba- – China, Rússia e Arábia Saudita, como bloco em dezembro, associou as enchen-
lanço evita rodeios ou floreios e vai dire- representantes da Opep –, mas a respon- tes do Rio Grande do Sul e o terremoto
to ao ponto: sem a redução gradual e ime- sabilidade pode claramente ser compar- no Marrocos às mudanças climáticas e
diata do consumo de combustíveis fósseis, tilhada. Mais de 90% das usinas à base lançou o lema da presidência rotativa do
qualquer promessa de descarbonização de carvão em atividade e 88% dos novos Brasil no próximo ano: “Construindo um

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 15
CA PA

mundo justo e um planeta sustentável”.


Depois de quatro anos de descaso e des-
truição sob Jair Bolsonaro, o planeta re-
conhece os esforços do petista para pre-
servar o meio ambiente e retornar às ne-
gociações internacionais, mas observa,
preocupado, o avanço de um debate no
País. Lula está diante de um dilema: de-
ve ou não autorizar a exploração de pe-
tróleo na Foz do Rio Amazonas, frontei-
ra com o Suriname? O presidente voltou a
mediar a queda de braço entre a Petrobras
e o Ibama, contrário à iniciativa, e, outra
vez, mostrou-se favorável à demanda da
estatal. “Não foi pesquisado ainda. É im-
possível saber antes de pesquisar”, decla-
rou na segunda-feira 11. “Você pode pes-
quisar, descobrir que tem muita coisa, aí
vai se discutir como fazer.” Explorar ou
não explorar? Para os ambientalistas, per-
furar o leito do rio não só jogaria pela jane-
la os esforços de garantir a influência do
Brasil nos debates climáticos, como tam-
bém apressaria a deterioração da Flores-
ta Amazônica, a caminho do que os cien-
tistas chamam de “ponto de não retor-
no”, degradação profunda e irreversível.
Para os especialistas em energia, entre
eles Guilherme Estrella, “pai do pré-sal”,
a extração de petróleo na margem equa-
torial geraria receitas suficientes para fi-
nanciar a transição sustentável da econo-
mia. “É uma questão de Estado, de políti-
ca pública, de garantir a soberania nacio-
nal. A Petrobras tem todas as condições
de resolver a parada”, declarou Estrella.

O
s europeus, por sua vez, mos-
tram-se incomodados com a
inevitável constatação de que, ANTÓNIO GUTERRES, SECRETÁRIO-GERAL
desde ao menos a Revolução
Industrial, o “Ocidente”, ou DA ONU: “OS PRODUTORES DE
melhor, o Hemisfério Norte COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS DEVEM
é o maior vilão do aquecimento global. COMPREENDER UMA VERDADE SIMPLES.
Atualmente, sete dos dez principais emis- PERSEGUIR MEGALUCROS QUANDO
sores de gás carbônico são considerados
emergentes – a China lidera o ranking e TANTAS PESSOAS PERDEM SUAS VIDAS
o Brasil ocupa a sexta posição. As econo- E DIREITOS É TOTALMENTE INACEITÁVEL”
mias desenvolvidas carregam, porém,
um passivo histórico e seus líderes sa-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Árabes sediarão, em Dubai, a Cop28, reu-
nião anual do clima que o Brasil organi-
zará em 2025. “É uma excelente oportu-
nidade para repensar e reorientar a agen-
da climática. Trabalharemos para rea-
lizar a conferência mais inclusiva pos-
sível”, promete Sultan Ahmed Al Jaber,
presidente do comitê organizador. Os re-
sultados modestos dos encontros passa-
do recomendam cautela.

P
ara quem não se importa com
os direitos humanos, os afoga-
dos pelas inundações do Rio
Grande do Sul e os soterra-
dos em Marrakesh ou nem sa-
be onde fica Vanuatu, ilhota na
Oceania ameaçada de ser engolida pelo
mar, a Administração Nacional Oceânica
e Atmosférica (NOAA, em inglês) dos
Estados Unidos fornece um argumento
econômico. Neste ano, os prejuízos norte-
O verão no Hemisfério Norte, Paris e aos relatórios recentes de outros -americanos com os desastres climáticos
o mais quente da história,
foi marcado por enchentes
cientistas. Apesar de os efeitos das mu- foram os maiores registrados na história,
na China e na Espanha e danças climáticas se espalharem pelo 56,7 bilhões de dólares. A NOAA lista, en-
queimadas no Havaí, entre planeta, os países menos desenvolvidos e tre outros, duas inundações, 18 eventos se-
outros eventos extremos
os Estados insulares, que respondem por veros, uma tempestade de inverno, os in-
menos de 1% das emissões de gases de efei- cêndios no Havaí que devastaram Maui
to estufa, têm sido os mais atingidos pela em agosto, o furacão Idalia, na Flórida, e
elevação das temperaturas e pelos eventos as fortes chuvas de granizo em Minnesota.
naturais extremos. “Enquanto esses paí- De origem grega, Ioanna Stamataki,
ses, o G-20, mantiverem as políticas que professora de Hidráulica e Energia Hídri-
subsidiam os combustíveis fósseis, vão ca da Universidade de Greenwich, descre-
matar as suas populações, matar os vulne- veu de forma didática em um artigo no site
ráveis e tornar as suas vidas extremamen- The Conversationos efeitos das mudanças
te difíceis”, afirmou Friederike Otto, do climáticas no regime de chuvas na Grécia,
Imperial College. António Guterres, se- atingida por dois fenômenos distintos: se-
bem, ou deveriam saber, que soluções cretário-geral da ONU, reforça as palavras ca e queimadas seguidas de inundações. A
individuais não vão resolver o proble- da climatologista: “Os produtores de com- “tempestade bíblica” atingiu a região da
S T R / A F P, S G T . A N D R E W J A C K S O N / N A T I O N A L

ma. Quem expressou o incômodo de for- bustíveis fósseis devem compreender uma Tessália, depois de passar por Bulgária e
GUA RD E OSCA R DEL P OZO CA N AS/A FP

ma mais clara após o encontro na Índia verdade simples: perseguir megalucros Turquia e seguir para o Marrocos. Em 18
foi o presidente da França, Emmanuel quando tantas pessoas perdem suas horas, descreve a acadêmica, caíram 754
Macron. “Estou muito preocupado com vidas e direitos, agora e no futuro, é milímetros de chuva, o equivalente a um
o espírito que começa a prevalecer, um totalmente inaceitável. A menos que ano e meio de precipitações. Fato isolado?
discurso demasiadamente fácil que está a humanidade abandone agora o seu Não, diz a acadêmica. “As inundações re-
a tomar conta de certos países emergen- vício em combustíveis fósseis, os pontos pentinas não se limitam à Grécia. Na ver-
tes para dizer que apenas os países mais críticos do clima vão esmagar os direitos dade, fazem parte de um padrão mais am-
ricos têm responsabilidade”, discursou. humanos de gerações vindouras”. No fim plo de condições meteorológicas extremas
A propósito da declaração de Macron, de novembro, os líderes mundiais terão que se tornou mais intenso e frequen-
voltemos ao balanço global do Acordo de nova chance de ousar. Os Emirados te em toda a região do Mediterrâneo.”

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 17
CA PA

ANOMALIAS NA TEMPERATURA (EM °C)*


Índice de Mudança Climática, de junho a agosto de 2023

-3º -2º -1º 0º +1º +2º +3º

*Média diária de anomalias entre 1° de junho e 31 de agosto de 2023


Análise baseada no EMCWF Era; Temperaturas comparadas ao período 1991–2020
Fonte: Climate Central

Embora uns (os pobres de sempre) so- fo, a realidade distópica do planeta tem, viado mensagens do que pode acontecer
fram mais e primeiro do que outros, as de longe, superado a arte. “Uma das gran- – desta vez, por exclusiva responsabilida-
tragédias constantes não deixam dúvida des lições deste verão”, afirmou Andrew de dos seres humanos. Segundo um estu-
sobre o desfecho dessa história, se nada Pershing, vice-presidente da Climate do publicado recentemente na prestigiosa
for feito imediatamente: cedo ou tarde, Central, na divulgação dos dados sobre revista Science, baseado em trabalhos ar-
todos pagarão o preço. Os cínicos podem o aquecimento global, “é que não há pausa queológicos, a humanidade esteve à bei-
até recorrer a uma constatação espiritu- e não há escapatória. Todos gostaríamos ra da extinção há cerca de 900 mil anos,
osa do economista inglês John Maynard de imaginar que poderíamos nos mudar quando a população global com capacida-
Keynes para desdenhar dos fatos – “no para algum lugar e tudo ficaria ótimo, de reprodutiva se viu reduzida a 1.280 in-
futuro, estaremos todos mortos” –, mas mas todos os lugares estão sentindo esse divíduos. A causa, de acordo com os pes-
viver como se não houvesse amanhã dei- impacto. As mudanças climáticas acon- quisadores: mudanças climáticas extre-
xou de ser uma opção. Por enquanto, o so- tecem muito mais rapidamente do que as mas e secas severas. Naquele momento, a
nho dos bilionários de colonizar Marte ou sociedades mudam.” natureza permitiu a sobrevivência da es-
se mudar para uma estação espacial a ca- Até nossos remotos ancestrais têm en- pécie. Teremos uma segunda chance? •
minho da Lua só rende (mais) dinheiro a
exploradores privados como Elon Musk
ou Richard Branson, que se preparam pa- ANDREW PERSHING, VICE-PRESIDENTE
ra oferecer a preço de ouro viagens regu- DA CLIMATE CENTRAL: “NÃO HÁ PAUSA
lares ao espaço. A quem não pode pagar E NÃO HÁ ESCAPATÓRIA. TODOS OS
para ao menos sentir o gosto de uma fu-
ga momentânea restam os livros e filmes
LUGARES ESTÃO SENTINDO O IMPACTO
de ficção científica, embora, como ressal- (DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS)”
tou Turk nas aspas do primeiro parágra-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CA PA

Marrakesh foi a cidade


mais afetada, mas o tremor
atingiu áreas remotas do país e foi
sentido ao sul de Portugal

U
m forte terremoto nas

SEM CHAO
montanhas do Alto Atlas,
no Marrocos, matou quase
3 mil pessoas até a terça-
-feira 12, número que con-
tinua a aumentar à medida
que as equipes de resgate
vasculham os escombros
O MAIOR TERREMOTO e alcançam as áreas remotas mais atin-
EM 120 ANOS ESPALHA MEDO gidas. O terremoto, de magnitude 6,8 na
escala Richter, é o maior a abalar o país
E DESTRUIÇÃO NO MARROCOS do Norte da África em 120 anos.
A maioria das vítimas estava na tu-
por RUTH MICH A ELSON* rística Marrakesh e em cinco provín-
cias próximas ao epicentro, informou o
Ministério do Interior. O total de feridos
também se eleva exponencialmente. O
FA D EL SEN N A /A FP

número de mortos quase certamente au-


mentará, conforme as equipes de resga-
te lutam para percorrer estradas cheias
de pedras, até as remotas aldeias monta-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 19
CA PA

nhosas mais atingidas. Segundo a Orga- disse Fayssal Badour, de Marrakesh, que
nização Mundial da Saúde, mais de 300 falou à rede de tevê France24. “Parei e
mil cidadãos foram afetados pelos fortes percebi a catástrofe… parecia que estáva-
tremores em todo o país. mos num rio que de repente transbordou.
O Marrocos declarou três dias de lu- Os gritos e o choro eram insuportáveis.”
to nacional, durante os quais a bandei- A maioria das mortes, explicou uma
ra nacional seria hasteada a meio mas- autoridade local, ocorreu em áreas mon-
tro, informou a corte real. As forças ar- tanhosas de difícil acesso. O ministro do
madas marroquinas têm enviado equi- Interior do Marrocos tentou tranquili-
pes de resgate às áreas afetadas, para for- zar o público num comunicado. “As au-
necer água potável, alimentos, tendas e toridades estatais continuam mobili-
cobertores, acrescentou. Moradores de zando todos os recursos humanos e lo-
Marrakesh, a principal cidade mais pró- gísticos necessários, como unidades es-
xima do epicentro, disseram que alguns pecializadas em primeiros socorros, in-
edifícios desabaram na cidade velha, pa- cluindo equipes de busca e salvamen-
trimônio mundial da Unesco. A famosa to”, diz o texto. Separadamente, os mili-
mesquita Koutoubia, do século XII, so- tares marroquinos anunciaram que o rei
freu danos, cuja extensão não foi imedia- Mohammed VI autorizou as forças ar-
tamente definida. madas a intervir e supervisionar os es-
forços de auxílio. “Unidades de resposta

S
egundo relatos iniciais, parte rápida, aviões, helicópteros, drones, cen-
de um minarete que se elevava tros de engenharia e logística foram des-
sobre Djemaa el-Fna, praça do tacados para o local, com o objetivo de le-
mercado e centro turístico, de- var o apoio necessário às áreas e residên-
sabou, ferindo dois pedestres, cias afetadas”, afirmou.
antes que os demais fugissem “A terra tremeu durante cerca de 20
para a área aberta da praça. A televisão segundos. As portas abriam e fechavam
local mostrou pilhas de escombros e ca- sozinhas quando eu desci correndo do se-
nos quebrados a esmagar carros estacio- gundo andar”, contou Hamid Afkir, pro-
nados e bloquear ruas em Marrakesh, fessor numa área montanhosa a oeste do
enquanto os moradores corriam para epicentro, perto de Taroudant, acrescen-
as ruas após o terremoto, que ocorreu tando que houve tremores secundários.
às 23h11 da noite da sexta-feira 8. A te- De acordo com o centro geofísico do Mar-
vê estatal mostrou gente enrolada em co- rocos, o terremoto ocorreu na área de
bertores dormindo na rua, temendo no- Ighil, com magnitude de 7,2. O Serviço
vos tremores secundários. “O problema Geológico dos Estados Unidos estimou
é que, em locais onde os terremotos des- a magnitude do terremoto em 6,8 e dis-
trutivos são raros, os edifícios simples- se que ocorreu a uma profundidade re-
mente não são construídos de forma ro- lativamente rasa, de 18,4 quilômetros.
busta o suficiente para suportar fortes Philippe Vernant, especialista em tec-
tremores do solo. Muitos desabam, re- tônica ativa, particularmente do Marro-
sultando em grande número de vítimas”, cos, na Universidade de Montpellier, na
afirmou Bill McGuire, professor eméri- França, disse à Agência France-Presse
to de Riscos Geofísicos e Climáticos do que, embora o terremoto não tenha As equipes de resgate ainda contam
os mortos, enquanto diminuem as
University College London. “Eu esta- atingido a região sismológica mais ati- chances de encontrar sobreviventes.
va voltando para casa, quando ocorreu va, podem ser esperadas réplicas. “Mes- Cerca de 300 mil cidadãos foram afetados
o terremoto. Meu carro balançava pa- mo que sejam menos fortes, podem levar
ra a frente e para trás, mas não imaginei ao colapso edifícios já enfraquecidos pe-
nem por um segundo que isso queria di- lo primeiro terremoto. Tradicionalmen-
zer que estava havendo um terremoto”, te, tendemos a dizer que os tremores se-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Marrakesh, devido a cortes de energia na
região, de acordo com o monitor global
GRANDE PARTE de internet NetBlocks.
DAS VÍTIMAS O Marrocos sofreu sismos na região
ESTAVA NA norte devido à sua posição entre as pla-
cas tectônicas africana e euroasiática. O
TURÍSTICA país sofreu um grande tremor de mag-
MARRAKESH. nitude 6,3 na cidade de Al Hoceima, na
O GOVERNO costa norte, em 2004, que matou mais
DECRETOU TRÊS de 600 pessoas. O sismo foi sentido na
vizinha Argélia e em lugares tão distan-
DIAS DE LUTO tes quanto Portugal, segundo o Institu-
to Português do Mar e da Atmosfera e a
agência de Defesa Civil da Argélia, que
baram e as pessoas removiam os escom- supervisiona as respostas de emergência.
bros manualmente, enquanto esperavam

L
por equipamentos pesados, disse o mora- íderes e diplomatas de todo o
dor Id Waaziz Hassan. Imagens da mura- mundo expressaram condolên-
lha medieval da cidade mostraram gran- cias e ofereceram apoio, incluída
des rachaduras numa seção e partes que a Turquia, onde poderosos ter-
haviam caído, com escombros na rua. remotos em fevereiro mataram
Outro morador de Marrakesh, Brahim mais de 50 mil. Na Espanha, na
Himmi, disse ter visto ambulâncias sain- outra margem do estreito de Gibraltar,
do da cidade velha e muitas fachadas de o primeiro-ministro Pedro Sanchez ex-
edifícios danificadas. Os cidadãos fica- pressou sua “solidariedade e apoio à po-
ram assustados e do lado de fora para o pulação do Marrocos depois deste terrí-
caso de haver outro terremoto, disse. vel terremoto… A Espanha está com as ví-
Moradores de Rabat, capital do país, timas desta tragédia”. O presidente fran-
cerca de 350 quilômetros ao norte de cês, Emmanuel Macron, disse estar “ar-
Ighil, e na cidade costeira de Imsouane, rasado” e que “a França está pronta para
cerca de 160 quilômetros a oeste, tam- ajudar com os primeiros socorros”.
bém fugiram de suas casas, temendo um A televisão estatal argelina transmitiu
terremoto mais forte, segundo testemu- uma mensagem da Presidência, declaran-
nhas. “Ouvimos gritos no momento do do que o Estado abriria seu espaço aéreo
tremor”, disse por telefone um morador para permitir o transporte de ajuda huma-
de Essaouira, 200 quilômetros a oeste de nitária ao Marrocos, bem como ofereceria
Marrakesh. “As pessoas estão nas praças, recursos. Foi uma mudança após a ruptu-
nos cafés, preferindo dormir ao ar livre. ra completa das relações diplomáticas en-
Pedaços de fachadas caíram.” tre os dois países que durou dois anos.
Alguns vídeos compartilhados nas re- Em 1980, um terremoto de magnitu-
FA D EL SEN N A /A FP E FE T HI B EL AID/A FP

des sociais pareciam mostrar ao menos de 7,3 em El Asnam, na vizinha Argélia,


um prédio desabando e escombros nas matou 2,5 mil pessoas e deixou ao me-
ruas. Outros mostravam pessoas sain- nos 300 mil desabrigados. Um terremo-
cundários diminuem de intensidade.” do de shopping centers, restaurantes e to de magnitude 5,8 também abalou a ci-
Ighil, área montanhosa com pequenas prédios de apartamentos e se reunindo dade costeira de Agadir em 1960, deixan-
aldeias agrícolas, fica a cerca de 70 quilô- do lado de fora. O Serviço Geológico dos do mais de 15 mil mortos. •
metros a sudoeste de Marrakesh. O ter- EUA afirmou que a população da região
remoto ocorreu pouco depois das 11 da vivia em “estruturas que são altamente *Agência France-Presse, Reuters e Associated
noite. Em Marrakesh, algumas casas na vulneráveis a abalos sísmicos”. A conec- Press contribuíram para esta reportagem.
densamente povoada cidade velha desa- tividade à internet foi interrompida em Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Beco sem saída


TRAMOIAS A quebra de sigilo telefônico do general Braga Netto
e a delação premiada de Mauro Cid encurralam Bolsonaro
POR ANDRÉ BARROCAL

J
ovenel Moïse foi assassinado faturamento. Era o primeiro ano do go- 50 mil à vista. O pagamento da parte
a tiros em casa em 2021. Era, verno Jair Bolsonaro e sobravam milita- à vista ocorreu em 18 e 19 setembro de
desde 2017, o presidente de um res em cena. Alguns dispostos a agir nas 2019, uma semana antes da suspensão
dos países mais miseráveis do sombras, em troca de recompensa, para do contrato pelo TCU. Metade para As-
mundo, o Haiti. O ano de sua tentar impedir o TCU de criar problemas sis, metade para um coronel do Exérci-
posse coincidira com o fim da missão da para a empresa de Miami. Foi o caso de to, Robson Queiroz da Mota. O dinheiro
ONU concebida para pacificar uma na- outro general, Paulo Roberto Correa As- seria fornecido por um doleiro, Márcio
ção marcada pelo infortúnio desde a sua sis, conforme mensagens de celular obti- Moufarrege, conhecido como “Maca-
fundação por uma revolução de negros das pela Polícia Federal. co”, denunciado à Justiça em 2022, jun-
escravizados. Coube ao Brasil chefiar a Assis queria 300 mil reais pelo lobby, tamente com militares da Aeronáuti-
chamada Minustah do início, em 2004, ca, no caso dos 39 quilos de cocaína le-
ao fim. Certos estudos apontam-na co- vados à Espanha em um avião da FAB
mo um laboratório para a violência que o que compunha a comitiva do então pre-
Exército adotaria em território nacional sidente Bolsonaro. Ao pagar Assis e Mota,
ao atuar como polícia em operações de Moufarrege agiu em nome de um coro-
garantia da lei e da ordem, as GLOs. Pos- nel da Aeronáutica, Gláucio Guerra, re-
tura vista em incursões em morros ca- presentante da CTU Security no País.
riocas na época das UPPs e durante a in- Guerra havia trabalhado em Washington,
tervenção federal na segurança pública a capital dos Estados Unidos, como che-
do Rio de Janeiro, por exemplo. fe da área de logística (ou seja, de com-
Em 31 de dezembro de 2018, último dia pra de equipamentos) da Força Aérea.
da intervenção no Rio, o chefe da equi-
M A RCOS CORRÊ A /PR E M A RCELO CA M A RGO/A BR

pe, general Walter Braga Netto, assinou Em fevereiro de 2022, último ano
um contrato de 40 milhões de reais pa- de Bolsonaro no poder, a embaixada dos
ra comprar 9 mil coletes à prova de bala. EUA em Brasília enviou um e-mail à PF
Por decisão do oficial, o negócio foi feito com uma dica: valia a pena botar lupa na
sem licitação. O fornecedor beneficiado CTU Security. Ao apurar o assassinato de
era de Miami. A CTU Security LLC re- Moïse, a HSI, agência norte-americana de
cebeu o pagamento em 23 de janeiro de segurança interna, descobrira digitais da
2019, mas seria obrigada a devolvê-lo oi- empresa. O crime havia sido tramado por
to meses depois, por ordem do Tribu- um haitiano-americano, Christian Sanon,
nal de Contas da União, órgão auxiliar interessado na cadeira do morto. A empre-
do Congresso na vigilância do governo. Negociatas. Braga Netto chefiou sa de Miami, parte do plano, recrutou os
A Corte de contas suspeitou de super- uma intervenção suspeita matadores. Os sócios esperavam fechar

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 26
NESTA Congresso. Deputados
SEÇÃO preparam outro remendo
à legislação eleitoral

Segredos de família. Cid filho (ao fundo) aceitou a delação para proteger Cid pai, amigão de Bolsonaro

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 23
Seu País

Hora da verdade. O STF deu início ao ção do tenente-coronel do Exército Mau- delação (9 de setembro). Pelo comércio de
julgamento dos golpistas de 8 de Janeiro ro Cesar Barbosa Cid, principal ajudante joias presenteadas ao capitão na Presidên-
de ordens de Bolsonaro na Presidência. cia. E por conta dos gastos de Michelle. À
Nunca um fardado brasileiro havia to- Folha de S.Paulo, Bolsonaro disse que Cid
gordos negócios em um eventual gover- pado uma delação, circunstância explica- “não participava de nada” e é “decente”.
no Sanon. Ao se meterem dois, três anos da por provas fartas contra ele, por quatro “Ele não vai inventar nada, até porque o
antes com uma companhia capaz desse ti- meses de prisão preventiva e pela enrasca- que ele falar, vai ter que comprovar. Há
po de crime, militares brasileiros também da do pai, o general Mauro Cesar Lourena uma intenção de nos ligar ao 8 de Janeiro
teriam interesses ortodoxos? Cid, amigo de Bolsonaro desde a academia de qualquer forma.” Em viagem à Índia,
Na terça-feira 12, a PF foi às ruas em militar. Cid falou por 14 horas à PF, em três o presidente Lula apontou na mesma di-
busca de pistas e provas de patrocínio de dias diferentes no fim de agosto, antes de reção. “A cada dia nós vamos tendo a cer-
contratação indevida, dispensa ilegal de a delação ser validada por Alexandre de teza de que havia a perspectiva de golpe e
licitação, corrupção e organização crimi- Moraes, do Supremo Tribunal Fede- que o ex-presidente estava envolvido ne-
nosa, por trás daquele contrato assina- ral. O acordo foi selado por policiais, não la até os dentes. É isso que vai ficar claro.”
do por Braga Netto em 2018. Nos pre- por promotores. Os advogados de Jair
parativos da Operação Perfídia, a juíza e Michelle pediram acesso à papelada, Os participantes do quebra-quebra
Caroline Figueiredo, da 7ª Vara Federal Moraes negou. O teor por ora é sigiloso, o de 8 de janeiro em Brasília começaram a
Criminal do Rio, quebrou o sigilo comu- que desperta preocupação em Bolsonaro. ser julgados pelo Supremo na quarta-fei-
nicacional do general. Má notícia para o Seus auxiliares sopram à mídia que estão ra 13. A Procuradoria-Geral da Repúbli-
militar, potencial candidato do PL a pre- no escuro, não sabem do que se defender. ca acusou 1,3 mil golpistas, quatro entra-
feito da capital fluminense em 2024. Pa- Cid é investigado pela PF em várias ram na pauta do tribunal: Aécio Pereira e
ra o Exército, exposto em outra obsceni- frentes. No caso da carteira de vacina fal- Thiago Mathar, de São Paulo, e Matheus
dade. E para Bolsonaro, de quem Braga sa arranjada para o ex-chefe, motivo de sua Lázaro e Moacir dos Santos, do Paraná.
Netto foi ministro e vice na chapa ree- prisão preventiva em 3 de maio, revoga- Pereira havia sido preso no Senado com
leitoral. Um caldo engrossado pela dela- da por Moraes no dia da homologação da uma camiseta em defesa do golpe militar.

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mathar, no Palácio do Planalto. Lázaro, Cid será a fonte ciso olhar debaixo da superfície, ou seja,
no Palácio do Buriti, com um celular em para aquilo que ainda não está tão visí-
que havia a seguinte mensagem à esposa:
que ligará Bolsonaro vel. Aragão arrisca uma hipótese: movi-
“Tem que quebrar tudo para o Exército aos atos golpistas mentações financeiras e imobiliárias do
entrar”. Santos chegou a ser solto poste- de 8 de janeiro? ex-presidente nos EUA. Cid, recorde-se,
riormente (o único dos quatro). O quar- era uma espécie de tesoureiro do capitão
teto era réu por associação criminosa ar- na Presidência. Cabia a ele pagar despe-
mada, abolição violenta do Estado de Di- sas de Michelle, com dinheiro suposta-
reito, tentativa de golpe de Estado, dano te-coronel foi ainda afastado por Moraes mente oriundo da conta pessoal do che-
do patrimônio público e grave ameaça. das funções no Exército, embora tenha fe. Cidão, o pai general, dirigiu o escritó-
Crimes cujas penas somadas chegam a mantido o salário de 27 mil reais. Recor- rio da Apex, a agência de exportação, por
30 anos. Moraes votou por condenar Pe- de-se: sua indicação ao posto de ajudante quatro anos em Miami e colocou sua con-
reira a 17 anos. Nunes Marques, indicado de ordens partiu do comandante do Exér- ta bancária a serviço do amigo.
de Bolsonaro, por pena de 2 anos. O jul- cito em novembro de 2018, o hoje general
gamento prosseguia quando esta repor- da reserva Eduardo Villas Bôas. A PF firmou uma cooperação com o
tagem foi concluída, na quinta-feira 14. De que maneira Cid contribuirá para FBI, congênere norte-americana, na
Os 1,3 mil acusados são os executores as investigações? A PF não fazia questão busca por informações financeiras das
da tentativa de golpe. Mas e o mentor, o de uma delação, por tudo o que havia des- famílias Cid e Bolsonaro. Curioso: o ex-
instigador? Aqui entra Bolsonaro. Após coberto por conta própria e pela descon- -presidente e muitos de seus colaborado-
perder a eleição em outubro do ano pas- fiança de que Bolsonaro dificilmente da- res militares sempre viram o Tio Sam co-
sado, o derrotado recolheu-se por quase va ordens claras, do tipo “batom na cue- mo pátria inspiradora, agora estão cada
um mês no Palácio da Alvorada. Por tu- ca”. Para Eugênio Aragão, ex-ministro vez mais enrolados graças aos EUA. O ca-
do o que se sabe hoje, é possível enxergar da Justiça, subprocurador-geral apo- so de Braga Netto e dos coletes à prova de
aquele período como de conspiração pa- sentado e advogado criminalista, é pre- bala, ressalte-se, foi abastecido por um
ra reverter o resultado das urnas. Em 18 órgão dos EUA, a HSI.
de novembro, Braga Netto foi ao capitão Pela Lei 12.850, de 2013, que trata de
e, na saída do Alvorada, comentou com organizações criminosas e delações, um
fiéis bolsonaristas na porta: “Vocês não alcaguete pode ser beneficiado ou com
percam a fé, tá bom? É só o que eu pos- perdão judicial de até dois terços da pena
so falar para vocês agora”. Dois dias de- ou com sua exclusão de uma denúncia do
pois, surgiram áudios de um ministro Ministério Público. O procurador-geral
do TCU, Augusto Nardes, no qual citava da República, Augusto Aras, declarou-se
“um movimento muito forte nas caser- contra a delação. Está no cargo por indi-
nas” de “desenlace imprevisível”. No ce- cação de Bolsonaro e seu mandato termi-
lular de Cid, a PF encontrou documentos na no dia 26. O substituto será nomeado
que pretendiam dar ares de legalidade a por Lula. Segundo um auxiliar presiden-
L EONOR A BAUM A N /ONU E M A RCELO CA M A RGO/A BR

um golpe militar. O que o tenente-coro- cial, o petista divide-se entre dois nomes:
nel tem a dizer a respeito da conspiração? Antônio Carlos Bigonha, subprocurador-
No acordo de delação, Cid, de 44 anos, -geral de perfil progressista e apoiado por
abre mão do silêncio, aceita responder tu- parte do PT, e Paulo Gustavo Gonet Bran-
do o que lhe for perguntado, além de en- co, conservador próximo a Moraes e a ou-
tregar nomes, pistas e evidências. Ao ser tro juiz do Supremo, Gilmar Mendes, de
solto por Moraes, teve o passaporte e o quem foi sócio no passado. O primeiro
porte de armas cancelados, foi obrigado talvez tenha dificuldade para controlar
a comparecer semanalmente perante um uma corporação bagunçada por dispu-
juiz e proibido de usar as redes sociais e tas internas e pelo lavajatismo. O segun-
de falar com qualquer pessoa, exceto com do talvez deixe Lula na mão de Mendes e
o pai general, a esposa (Gabriela) e as três Conexão. O assassinato de Moïse Moraes. O cálculo do presidente será de-
filhas (todas menores de idade). O tenen- no Haiti leva à intervenção no Rio cisivo no destino de Bolsonaro. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 25
Seu País

Colcha de retalhos
CONGRESSO Os parlamentares preparam
novo remendo à legislação eleitoral
brasileira, cada vez mais disfuncional
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

U
ma reforma eleitoral feita Rubens Pereira Júnior, do PT, afirmou
em prazo exíguo, menos de que só entrariam no seu parecer temas
20 dias, deu origem a um consensuais tanto no Grupo de Trabalho
texto polêmico que passou quanto entre o conjunto dos parlamen-
por várias alterações até tares. Mas não foi bem isso o que se viu.
chegar à versão final e cujo objetivo é re-
mendar a legislação eleitoral em vigor. A cada reunião entravam pontos no-
Paralelo a isso, uma Proposta de Emen- vos e saíam outros polêmicos. Na segun-
da Constitucional pretende abonar uma da-feira 11, na votação do parecer no GT,
dívida bilionária dos partidos políticos o petista precisou retirar do documento
que não cumpriram a lei ao não repassar alguns tópicos que geravam divergência
30% da verba do fundo partidário para as no colegiado e, na terça 12, o colégio de lí-
candidaturas femininas e de pessoas pre- deres voltou a mexer no relatório, apro-
tas e pardas nas eleições do ano passado. vando uma nova versão. Na noite de quar-
As duas matérias formam um combo de ta, a matéria ganhou caráter de urgência
retrocessos que tramita de forma célere e foi encaminhada para o plenário, dis-
na Câmara dos Deputados para que pos- pensando a necessidade de dois turnos de
sa valer no pleito do ano que vem, quan- votação. Fatiada em dois projetos, o PLC
do serão eleitos prefeitos e vereadores dos 192/2023 e PL 4438/2023, a minirrefor-
mais de 5 mil municípios brasileiros. ma chegou a ser retirada da programa- nobra do presidente da Câmara, Arthur
A minirreforma eleitoral entrou ção para ser votada na quarta-feira, de- Lira, a matéria entrou novamente em dis-
na pauta para votação em plenário da vido ao trancamento da pauta por conta cussão. Até o fechamento desta edição, a
Câmara na quarta-feira 13, mesmo dia do PL que trata da regulamentação das votação ainda não havia sido concluída.
em que estava prevista a votação da PEC apostas esportivas, mas, após uma ma- Aprovado em plenário, com 367 vo-
da Anistia, como está sendo chamada, na tos favoráveis e 86 contra, o texto-base
Comissão Especial criada para discutir o do PLC altera a Lei Complementar 64, de
tema. A sessão chegou a ser iniciada, mas, 1990, no ponto que trata especificamente
depois da troca de farpas entre deputa- As mudanças sobre inelegibilidade e desincompatibili-
dos do PL e do PSOL, a votação foi sus- incluem perdão zação. Pela proposta, há uma redução no
pensa e adiada para 19 de setembro – de- prazo de inelegibilidade, flexibilizando a
pois disso, ainda precisa passar pelos ple-
bilionário das Lei de Ficha Limpa. Hoje, quem for cassa-
nários da Câmara e do Senado. Sobre a dívidas de partidos do fica inelegível pelo resto do mandato
minirreforma eleitoral, desde o primei- e retrocessos no e por mais oito anos. Na minirreforma, o
ro momento, o relator do texto, deputado sistema de cotas prazo contaria somente a partir da perda

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Em busca de consenso. O relatório
do deputado petista Rubens Pereira
Júnior foi modificado diversas vezes

chave não seja o CPF do doador. Pela pro-


posta, o Banco Central ficaria responsá-
vel de repassar à Justiça Eleitoral os da-
dos dos financiadores das campanhas.
“Alguns temas polêmicos surgiram e
fizemos questão de afastá-los, como, por
exemplo, a volta do financiamento em-
presarial, a janela partidária extempo-
rânea e a redução dos repasses das cotas
negras e femininas. Demos preferência
do mandato. No caso de políticos indicia- correr da campanha, como é hoje, fican- aos temas mais consensuais a garantir
dos por crimes comuns, eles só ficariam do obrigado a fazê-la apenas ao final do pequenos ajustes de forma a aperfeiçoar
inelegíveis após a condenação final. Atu- processo eleitoral. No relatório de Pe- o modelo político eleitoral brasileiro”, ex-
almente, ficam inelegíveis durante cum- reira Júnior, os partidos que compõem plicou Pereira Júnior. “A minirreforma
primento das penas e por mais oito anos. federações não são obrigados a cumprir tem um erro de origem, que é o tempo de
individualmente a cota mínima de 30% implementação. O GT foi instalado em
No rol da lei ordinária, constam temas de candidaturas femininas, desde que 23 de agosto, muitas reuniões foram fei-
VINÍCIUS LOURES/AG. CÂ M A R A

como federações partidárias, prestação no somatório da agremiação esse por- tas a portas fechadas e ainda circularam
E ZECA RIBEIRO/AG. CÂ M A R A

de contas, propaganda eleitoral, registro centual seja contemplado. Numa lógica várias versões do projeto. O atropelo nas
de candidatura, financiamento de cam- inversa, as sanções para as legendas que discussões e a falta de diálogo são aspec-
panhas, violência política contra a mu- transgredirem a legislação serão espe- tos refletidos no texto, que abre uma série
lher e pesquisa eleitoral. Um dos pon- cíficas para cada partido, não atingindo de brechas”, rebate Arthur Mello, articu-
tos que vêm sendo criticados no PL é o a federação em sua totalidade. Também lador político do Pacto pela Democracia,
tópico que desobriga o candidato a rea- faz parte do projeto a autorização de doa- citando como exemplo a proposta que es-
lizar prestação de contas parcial no de- ção via Pix por pessoa física, mesmo que a tabelecia “multa como sanção alternativa

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 27
Seu País

e menos gravosa à cassação do diploma, a “A regra geral criava-se uma grande desconfiança em re-
depender da gravidade do caso concreto lação às regras do jogo, porque elas pare-
analisado pela Justiça Eleitoral”,
é a opacidade, as ciam invenções de última hora, que não
proposta aprovada no parecer do relator, pessoas comuns atendiam às expectativas das pessoas”,
mas retirada pelo colégio de líderes. não conseguem pondera Coimbra. “Desde a década de
Presidente do Instituto Vox Populi, entender”, critica 1980, pouco se andou na direção de corri-
o sociólogo Marcos Coimbra critica a Marcos Coimbra gir esses problemas da legislação eleitoral.
quantidade de reformas eleitorais que Ficamos inventando, a cada eleição, novas
vem acontecendo ao longo dos anos e regras, discutindo com pressa, gerando
defende uma revisão constitucional pa- um sistema político em que ninguém con-
ra um aprimoramento na legislação. Nos fia em ninguém. É mais um remendo, uma
últimos dez anos, foram feitas 19 refor- com o presidente do Senado, Rodrigo Pa- opacidade que esconde o jogo mais rastei-
mas eleitorais, o que Coimbra define co- checo, seu colega de partido, para garan- ro da política e isso não muda”, completa.
mo um “amontoado de remendos”. A úl- tir a votação da minirreforma e da PEC
tima foi a revisão do Código Eleitoral, da Anistia antes do prazo final. A sobra de votos nas eleições pro-
aprovado na Câmara em 2021, mas que “Vamos tomar como referência a Cons- porcionais foi, de longe, o ponto que ge-
segue pendente no Senado. Há a expec- tituição, que procurou organizar uma le- rou mais divergência dentro do Grupo de
tativa de que os senadores votem o Có- gislação eleitoral confusa que tínhamos Trabalho e deverá ser discutido nos des-
digo juntamente com a minirreforma e leis feitas para cada eleição, um sistema taques durante a votação em plenário.
eleitoral. Interessado na mudança da le- de leis e regras eleitorais cuja caracterís- Atualmente, para disputar essa sobra, o
gislação, o presidente do PSD, Gilberto tica principal era a opacidade, as pessoas partido precisa ter ao menos 80% do co-
Kassab, entrou no circuito e se reuniu não conseguiam entender. Em razão disso, ciente eleitoral e o candidato, 20%. Na no-
va proposta, o cálculo é 100/10, ou seja, a
legenda tem de atingir 100% do cociente e
o candidato, 10%. “O que foi feito no Gru-
po de Trabalho foi observar uma lógica
eleitoral colocada nas eleições de 2020 e
2022. Nesse contexto, pequenas mudan-
ças geram resultados grandes. Essas le-
gislações apresentam problemas e neces-
sitam de ajustes para corrigir questões
que ficaram desreguladas em relação à
regra”, explica o deputado Pedro Campos,
do PSB pernambucano, membro do GT.
A PEC da Anistia, além de abonar a dí-
vida dos partidos, abre brecha para que a
cota de candidaturas de pessoas negras
seja reduzida. Pela jurisprudência do
TSE, o porcentual a ser repassado a es-
sas candidaturas é proporcional ao nú-
mero de pretos e pardos que postulam
uma vaga. Na PEC, esse índice ficaria li-
mitado a 20%. As aberrações da PEC da
ROQUE DE SÁ /AG. SEN A DO

Anistia e da minirreforma devem ser ju-


dicializadas. O PSOL, única agremiação,
juntamente com o Novo, a ser contra a
abonação dos partidos irregulares, pro-
mete entrar com uma ação no STF con-
Senado. Pacheco prometeu colocar os projetos em votação antes de o prazo expirar tra os retrocessos. •

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CÉLIA XAKRIABÁ
Professora e primeira deputada federal
indígena eleita por Minas Gerais

Guerreiras acolhidas

Vamos refletir um pouco: sofremos, todas sos modos de vida e necessidades. Nossos
► Se as brasileiras em nós, violações equivalentes? Sabemos que corpos têm relação direta com a terra que
geral não se sentem não. Se as brasileiras em geral não se sen- habitamos, são corpos territorializados.
tem protegidas pelo Estado, se enfrentam Por isso, também defendemos uma edu-
protegidas pelo Estado, numerosos obstáculos para serem acolhi- cação territorializada, uma saúde territo-
imaginem as mulheres das na rede de proteção, imaginem as mu- rializada, uma segurança territorializada.
indígenas, com todas lheres indígenas, com todas as barreiras O Brasil bateu recorde de violência de
culturais, linguísticas e raciais existentes. gênero em 2022, com uma mulher as-
as barreiras culturais, Somos as guerreiras da ancestralidade, sassinada a cada seis horas, segundo o
linguísticas e raciais jamais fugimos à luta de nossos povos, ge- Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
ralmente travada do lado de fora do Par- Os feminicídios aumentaram 6,1%, totali-
lamento. Precisamos, porém, trazer essa zando 1.437 mortes, enquanto as tentati-
batalha para dentro da Câmara e do Sena- vas cresceram 16,9%, na comparação com

O
s povos indígenas estão fazen- do. É tempo de priorizar as lutas que são o ano anterior. Sabemos que a subnotifi-
do história. Em 2023, nosso essencialmente nossas. Se, em nosso mo- cação de casos é enorme, sobretudo quan-
reflorestar chegou com a força do ancestral de convivência, nos fortalece- do falamos das mulheres indígenas. E é
das mulheres, movimento que fez bro- mos na unidade, aprendemos que a políti- por isso mesmo que, a despeito dos ine-
tar a Bancada do Cocar. Nesta semana, ca também dever ser feita na base da união. gáveis avanços trazidos pela Lei Maria da
nosso mandato protocolou na Câma- Penha, decidimos propor uma legislação
ra dos Deputados o primeiro Projeto Sou do Cerrado. Venho de Minas Ge- que contemple as nossas especificidades.
de Lei traduzido em língua indígena do rais, com suas águas e montanhas. Forta- Desde a Independência, o Brasil de-
Parlamento brasileiro. Recentemente, leço-me, ainda, na luta das mulheres da morou 196 anos para eleger a primeira
há pouco mais de um mês, o Brasil pu- Amazônia, da Caatinga, da Mata Atlân- deputada federal indígena. Demorou qua-
blicou a primeira Constituição em idio- tica, do Pantanal e dos Pampas. É com a se 200 anos para ter uma mulher indíge-
ma indígena. Queremos avançar, ago- força da Mãe Terra que queremos com- na presidindo uma comissão parlamen-
ra, com a tradução de todos os projetos bater a violência contra as nossas. Se, na tar. Mais de dois séculos para ter uma mi-
apresentados no Legislativo. luta dos povos indígenas, falamos que nistra dos Povos Indígenas. Com o apoio
Durante a 3ª Marcha das Mulheres In- nossa relação com a terra e os nossos cor- da Bancada do Cocar e a força de nossas
dígenas, em Brasília, após um amplo pro- pos-territórios são essenciais para salvar guerreiras da ancestralidade, estamos do
cesso de consulta em nossos territórios, a vida no planeta, é igualmente urgente lado de dentro do Congresso Nacional, lu-
protocolamos o Projeto de Lei 4381/2023, pensar em políticas que protejam a vida tando por direitos e reparação.
a prever a criação de uma política nacio- das mulheres indígenas. Da mesma forma, estamos aqui para
nal de combate à violência contra as mu- Nesta mesma Casa em que conquista- lembrar que o futuro é indígena, é ances-
lheres indígenas. Além de pensarmos no mos alguns direitos, também avançam tral e é feminino. Com a força da reza das
atendimento das especificidades desse projetos de genocídio e etnocídio legislado. mulheres Guarani, barramos a PEC 215.
grupo, inovamos no jeito de fazer políti- Precisamos resistir e usar a caneta para Com a voz potente da Articulação Nacio-
ca, com uma proposição baseada em alar- preservar tanto os biomas quanto as mu- nal das Mulheres Indígenas Guerreiras
gada participação popular. Ao traduzir es- lheres indígenas de nosso país. Apresen- da Ancestralidade, fazemos o nosso re-
se projeto, pretendemos alcançar um nú- tamos um Projeto de Lei de combate à vio- florestar. Nossos corpos são raízes que se
mero ainda maior de partícipes. lência contra as mulheres indígenas exa- fincam também nesse chão, na forma de
Hoje, fala-se muito sobre a violência de tamente porque não podemos contar ape- uma legislação que nos contemple. Nossos
gênero e obtivemos reais avanços na le- nas com as leis existentes. Há uma impor- corpos-território coloriram o Congresso.
B A P T I S TÃ O

gislação. As mulheres indígenas perma- tante legislação em defesa das brasileiras Contra violação somente a mulheração! •
necem, porém, à margem desse processo. em geral, mas que não contempla os nos- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 29
Seu País

Devagar
bilizar a população paulista sobre os ris-
cos envolvidos na entrega de serviços es-
senciais à iniciativa privada. Nas plata-

com o andor
formas das estações, sindicalistas bus-
cam envolver os usuários dos trens me-
tropolitanos em uma consulta pública.
Ao convidar os cidadãos para votar a
SÃO PAULO Funcionários do Metrô, favor ou contra a privatização, as enti-
da CPTM e da Sabesp mobilizam-se dades sindicais assumem o risco de co-
lher um resultado diferente do esperado.
para resistir à sanha privatista Mas o objetivo do referendo informal não
do governador Tarcísio de Freitas é exatamente medir a popularidade do
projeto, e sim alertar que o processo es-
POR MARIANA SER AFINI tá em curso e avança de forma acelerada,
sem o devido debate. “É uma oportuni-
dade para disputarmos a opinião pública

E
e informar sobre o que o governador quer
m pouco mais de oito meses cios de irregularidades nos processos de fazer. Está sendo muito bom, as pessoas
de gestão, Tarcísio de Frei- privatização, a começar pela contratação estão interessadas em participar, muita
tas notabilizou-se pela deso- de empresas de consultoria com dispen- gente tem dúvida e é um momento que
rientação. Anunciava medi- sa de licitação e casos explícitos de con- a gente pode esclarecer”, afirma Camila
das num dia, e desistia no flitos de interesse. Para resistir à sanha Lisboa, presidente do Sindicato dos Me-
outro. Entre os numerosos recuos do go- privatista, os servidores buscam sensi- troviários de São Paulo. Na terça-feira
vernador paulista figuram as 12, durante uma ação na esta-
propostas de abandonar o uso de ção Jabaquara, a reportagem de
livros didáticos impressos, de CartaCapital observou alta par-
transferir a Cracolândia para ticipação popular. Em menos de
outro bairro da capital e a pro- duas horas, havia mais de mil vo-
messa de retirar as câmeras das tos depositados nas urnas.
fardas dos policiais militares –
as existentes foram mantidas, Uma das “eleitoras” é a do-
ele só congelou os investimen- méstica Cícera Maria da Silva,
tos. Ao menos um de seus com- que usa o Metrô diariamente
promissos de campanha segue, para se deslocar até o trabalho.
porém, intacto. Em 2022, duran- Mesmo no horário de pico, quan-
te os debates televisivos, o ex-mi- do os carros da composição es-
nistro de Jair Bolsonaro anun- tão cheios, o serviço é rápido e
ciou a intenção de privatizar os eficiente, avalia. “Se privatizar,
principais serviços públicos do a passagem vai ficar mais cara.
estado. Desde então, não recuou Já pagamos impostos demais, o
1 milímetro sequer da decisão. transporte coletivo deveria ser
Azar dos funcionários da gratuito”, opina.
Sabesp, do Metrô e da CPTM, Ao término da votação, pre-
atordoados com a pressa para vista para ocorrer até 4 de ou-
leiloar as lucrativas empresas tubro, as urnas serão abertas e o
públicas a toque de caixa. Eles resultado será revelado à popula-
já colecionam dezenas de indí- Pressa. Freitas não vê a hora de rifar as empresas públicas ção. “A maior parte dos paulistas

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
já percebeu o engodo das privatizações. tor privado está mais avançada. Privati- Mobilização. Os servidores alertam
Com o resultado, vamos seguir pressio- zadas em 2021, as Linhas 8 e 9 são contro- para o risco de aumento das tarifas
nando o governador e buscando o apoio ladas pelo consórcio Via Mobilidade. No
de deputados estaduais e vereadores pa- fim de março, foi publicado o edital para
ra evitar que o pior aconteça”, afirma Alex o leilão da Linha 7, previsto inicialmente condições de trabalho pioraram, afirma
Fernandes, diretor de Imprensa do Sindi- para 28 de novembro. As principais em- Eluiz Alves de Matos, presidente do Sin-
cato dos Metroviários. Com 34 anos de ca- presas interessadas pediram, porém, pra- dicato dos Ferroviários de São Paulo. “A
sa, ele observa que a empresa já viveu mo- zo maior para apresentar as propostas. O jornada de trabalho deles é de 12 horas,
mentos melhores. O número de funcioná- projeto prevê um trem rápido para os des- enquanto a nossa é de 8 horas diárias. E
S I N TA E M A / S P E R O G É R I O C A S S I M I R O / G O V S P

rios tem sido reduzido ano a ano. Muitos locamentos entre as cidades de São Paulo o salário deles é muito inferior.” O líder
se aposentam, mas as vagas não são repos- e Campinas, com uma parada em Jundiaí. sindical teme, ainda, a redução do qua-
tas. Há dez anos, eram cerca de 10 mil tra- Sob o comando da Via Mobilidade, as dro de funcionários. Quando as Linhas 8
balhadores, hoje são 7 mil. “Enquanto is- e 9 foram privatizadas, explica, centenas
so, o número de passageiros só aumentou, de trabalhadores aderiram a um progra-
atendemos, em média, 4 milhões de pes- ma de demissão voluntária. Quem ficou
soas por dia.” Com a privatização, a cate- sofre com o acúmulo de funções e jor-
goria teme uma precarização ainda maior.
Os metroviários nadas exaustivas. “A qualidade do ser-
O Metrô realizou seu último concurso em estão ouvindo os viço também despencou. Toda semana
2019, mas ainda ninguém foi chamado. passageiros em tem descarrilamento de trem, o tempo
Na CPTM, a concessão de linhas ao se- consulta pública de espera aumentou.”

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 31
Seu País

Desculpa. Salcedo usa as metas do


Novo Marco Legal do Saneamento como
pretexto para acelerar a venda da Sabesp

do ano passado. O governo paulista detém


50,3% do controle da companhia, uma so-
ciedade anônima de capital aberto.
A presidente do Sintaema aponta uma
série de irregularidades no processo de
privatização, a começar pela contratação
do atual presidente, que antes era diretor
na Iguá Saneamento, acionista da Sabesp
e que tem interesse em aumentar a sua
participação. Além dele, a diretora Pau-
la Violanti também veio da mesma em-
presa. “Eles não respeitaram a ‘quarente-
na’, o período mínimo exigido para sair de
uma empresa privada para assumir uma
companhia pública do mesmo setor”,
afirma Silva, que encaminhou a denún-
cia para o Ministério Público Estadual.

Não é tudo. A International Finance


Não bastasse, a contratação de funcio- ca: como a empresa vai ampliar os inves- Corporation é, ao mesmo tempo, credo-
nários terceirizados disparou. Recente- timentos, reduzir as tarifas e, ao mesmo ra e responsável pelo desenho do modelo
mente, a S&G, responsável pela venda de tempo, assegurar a lucratividade espera- de privatização da Sabesp. Além do even-
passagens nas Linhas 8 e 9, decretou falên- da pelos acionistas? tual conflito de interesses, a consultoria
cia e dispensou os funcionários sem pagar “Se o Salcedo está dizendo que vai bai- ligada ao Banco Mundial celebrou con-
os salários devidos, bem como os direitos xar a tarifa depois de vender, por que não tratos milionários com o governo do es-
de rescisão. Com as bilheterias abandona- baixa agora? Tem condições de fazer is- tado, com dispensa de licitação, para pre-
das, a CPTM teve de liberar as catracas e, so. Não existe exemplo no mundo de ta- parar estudos do programa de desestati-
em caráter emergencial, deslocar funcio- rifa menor depois da privatização”, aler- zação, como denunciou o deputado esta-
nários que exerciam outras funções pa- ta Helena Maria da Silva, vice-presidente dual Guilherme Cortez, do PSOL.
ra retomar as vendas. “É isso que aconte- do Sintaema, o sindicato dos trabalhado- Por ora, o Legislativo acompanha o
ce quando a empresa privada não dá con- res em água e esgoto. Hoje, a Sabesp aten- debate a distância. “Até o momento, não
ta das suas atribuições. Sobra para o Es- de 375 cidades paulistas e é considerada chegou nenhuma proposta concreta na
tado resolver o problema”, alerta Matos. uma das maiores empresas de saneamen- Alesp, mas estamos atentos ao que es-
No caso da Sabesp, o atual presiden- to do mundo. O lucro líquido no segundo tá acontecendo por fora, como os leilões
te da companhia, André Salcedo, afirma trimestre deste ano foi de 743 milhões de marcados das linhas de transporte so-
que a privatização deve ocorrer já no pri- reais, 73% maior que no mesmo período bre trilhos”, diz a deputada estadual Pau-
meiro semestre de 2024. A venda permi- la Nunes, também do PSOL. A oposição
tiria, segundo o gestor, antecipar o cum- busca o suporte de técnicos e especialis-
primento das metas do Novo Marco Le- tas para resistir em dois fronts: da Fren-
gal do Saneamento, entre elas a promessa te Parlamentar Contra a Privatização da
de entregar, até 2033, água potável a 99%
Os sindicatos Sabesp, presidida pelo deputado Emídio
da população e garantir esgoto tratado a apontam casos de Souza, do PT, e da Frente Parlamen-
SABESP

90%. Salcedo alega, ainda, que o valor da de conflito tar em Defesa do Serviço Público, lidera-
tarifa deve cair. Só não explicou a mági- de interesses da por Nunes. •

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
JAQUES WAGNER
Líder do governo no Senado, foi governador da Bahia
e ministro do Trabalho, da Defesa e da Casa Civil

Orgulho resgatado

de institucional, com a defesa clara e ine- familiar e tudo aquilo que impacta dia-
► O 7 de Setembro voltou gociável de valores como democracia, so- riamente na vida da nossa gente. De to-
a ser um dia de união, berania e união. Foi ainda um momento das as classes sociais, mas especialmente
de confirmação do sucesso da nossa cami- daqueles e daquelas que mais precisam.
em que não medimos
nhada nos primeiros oito meses da gestão O fato é que, mais de dois séculos se pas-
diferenças partidárias, do novo governo Lula. Um breve período saram e o dia 7 de setembro mostrou ser
religiosas, ideológicas em que já conseguimos reestruturar po- novamente para todos nós, brasileiros e
líticas sociais como o Bolsa Família, o Mi- brasileiras, uma data de grande impor-
ou de nenhum tipo
nha Casa Minha Vida, o Mais Médicos e tância na vida nacional. Um dia marcado
o Programa de Aquisição de Alimentos. pelo sentimento de união e pelo orgulho
Além disso, retomamos a Política Na- de sermos brasileiros. Um dia em que não

A
chegada do mês de setembro é cional de Valorização do Salário Mínimo, medimos diferenças partidárias, religio-
sempre marcada como um mo- garantindo aumento real, acima da in- sas, ideológicas ou de nenhum tipo. E uma
mento de celebrarmos a decla- flação, pela primeira vez após seis anos. oportunidade de reafirmar o compromisso
ração da nossa Independência. A histó- Aprovamos no Congresso uma nova re- de que precisamos seguir trabalhando pe-
ria nos mostra, porém, que o famoso gra fiscal, superando as amarras do an- la união e pela reconstrução do nosso país.
grito entoado por Dom Pedro I, às mar- tigo teto de gastos, determinando agora A boa notícia é que esses ideais, de
gens do Ipiranga, em 7 de setembro de que os gastos públicos devem crescer de união e reconstrução, marcam a atuação
1822, não foi suficiente para que ali ti- acordo com o comportamento da arreca- do governo que temos hoje no Brasil. No-
véssemos a nossa libertação definitiva dação do governo. Uma maneira inteligen- vamente, sob a liderança do presidente
dos domínios da Coroa portuguesa. te e sustentável de garantirmos respon- Lula, temos uma gestão federal que, des-
Insisto sempre que a verdadeira in- sabilidade fiscal, sem perdermos a capa- de seu primeiro dia, trabalha comprome-
dependência do Brasil só foi realmente cidade de investir nas áreas prioritárias e tida para trazer de volta a esperança pa-
conquistada quase um ano depois, em essenciais para o nosso desenvolvimento. ra as famílias e devolver um horizonte
2 de julho de 1823, aqui na Bahia. Esta de prosperidade a todo o povo brasileiro.
sim, uma vitória decisiva e determinan- Não bastasse, vivemos hoje um ce- Precisamos, porém, permanecer vigi-
te, que muito orgulha a todos nós, baia- nário extremamente positivo, marcado lantes e conscientes de que ainda há mui-
nos e baianas, mas que resultou na morte pela redução do desemprego, pelo cres- to a ser feito até que conquistemos, de fa-
de muitos irmãos e irmãs que deram suas cimento do PIB e por sucessivas quedas to, uma independência plena. E isso só vi-
vidas para que nos tornássemos um país na inflação, com especial destaque pa- rá quando tivermos um Brasil livre das
independente, livre e soberano. ra a redução do preço dos alimentos que chagas da exclusão, da fome, do ódio, dos
Desde então, a nossa caminhada his- compõem a cesta básica. Essa melhora preconceitos e das desigualdades.
tórica é marcada pela alternância de mo- dos indicadores reflete um sentimento Meu desejo é de que aproveitemos es-
mentos positivos e negativos. Por vezes, geral de que o Brasil verdadeiro voltou. sa atmosfera de orgulho e de união ali-
navegamos em ambientes mais favorá- Prova disso é que a comunidade interna- mentada pelo 7 de Setembro. E que essa
veis, com progressos significativos e com cional passou a novamente nos enxergar data seja sempre capaz de renovar o nos-
grandes avanços para a nossa sociedade. como uma nação capaz de liderar as prin- so ânimo de lutar, como lutaram tantos
Em outros, mergulhamos em cenários cipais discussões no plano global. baianos, baianas, brasileiros e brasileiras
extremamente adversos, marcados por Apesar deste cenário tão positivo, não em capítulos importantes da nossa histó-
muitos retrocessos, além de situações em podemos perder o foco da nossa missão ria. Lutar até que possamos dizer, em al-
que os nossos direitos foram suprimidos de seguir fortalecendo, na nossa agenda to e bom som, que o Brasil pode se consi-
e nossas liberdades cerceadas. nacional, temas como emprego, renda, derar uma nação independente no senti-
B A P T I S TÃ O

O 7 de Setembro deste ano foi marcado inclusão produtiva, justiça social, saú- do mais amplo desta palavra. •
pela retomada do ambiente de normalida- de, educação, segurança, agricultura sen.jaqueswagner@senado.leg.br

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 33
Economia

Ilusão de ótica
CRESCIMENTO A ditadura dos juros continua
e a economia depende de o PAC dar certo
P O R C A R LO S D R U M M O N D

A
melhora significativa da setor industrial”, sublinha Igor Rocha,
economia, na comparação economista-chefe da Fiesp.
com o abismo em que foi Os juros elevados continuam a ser a
lançada nos governos Te- principal amarra da economia, e as pers-
mer e Bolsonaro, e o salto pectivas não são animadoras. “Os fortes
do PIB no primeiro e no segundo trimes- movimentos da curva de juros mostram
tres, assim como a revisão para cima das a deterioração das condições financei-
projeções de crescimento neste ano, ten- ras e quão longe estamos de uma situa-
dem a desfocar a atenção das dificulda- ção que reflita expectativas favoráveis”,
des da situação atual, que não devem ser destaca o Boletim Economia Online, do
subestimadas. O crescimento inesperado Banco Fator. “Os juros mais longos cede-
do PIB tem muito de efeito estatístico, ram bastante, mas ainda estão em pata-
apoia-se principalmente no agronegócio mares proibitivos para a economia: quem
e no gasto público e diz pouco sobre o aguenta pagar juros reais de 8% ao ano
quadro atual e as perspectivas da econo- por dez anos?”, destaca o texto.
mia como um todo.
“Se você junta juro alto, economia fra- “A indústria começa a tomar crédi-
ca, as incertezas sobre o resultado fiscal to a 25% ao ano. Esquece, não tem como
e quanto aos efeitos da reforma tributá- isso dar certo. Não tem como”, ressalta
ria, é uma coisa pesada. Sem o Progra- Rocha. Segundo o Fator, a perspectiva de
ma de Aceleração do Crescimento, fica expansão via crédito é bastante modesta
difícil a economia crescer”, alerta José e assim vai continuar, mesmo com a que-
Francisco Lima Gonçalves, economista- da dos juros. A produção industrial co-
-chefe do Banco Fator. O País já cresceu o meçou no vermelho, com recuo de 0,3%
que tinha para crescer neste ano, porque no primeiro semestre, em comparação
o agro já entregou a produção, a indús-
tria caiu e os serviços estão zerando. “O
PIB foi puxado por ilhas de crescimento,
que ocorreu em nichos. É muito difícil A indústria começa
olhar para a indústria e ver um ambien-
a tomar crédito a 25%
te virtuoso. Infelizmente, não tem. Ca-
so ocorra queda do PIB da indústria de ao ano. “Não tem
transformação, vai ser a sétima em dez como isso dar certo”,
anos. Há uma condição adversa para o diz Rocha, da Fiesp

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 40
NESTA Artigo. O cartão de crédito
SEÇÃO não é o vilão, e sim os juros
praticados pelo mercado

Apostas. O Metrô de São Paulo é um dera Gonçalves. “Ainda teve alguma coi-
exemplo de PPP que deu certo. À frente sa de agro, mas acho que o ponto nem é es-
do banco dos BRICS, Dilma Rousseff
se, porque ninguém imagina que o agrone-
pode agilizar os investimentos chineses
gócio vai contribuir mais até o fim do ano.
A indústria de transformação continua
afundando. A indústria de extração, que
com o mesmo período do ano passado, era a que estava segurando o conjunto do
o setor de bens de capital segue em con- segmento da indústria neste primeiro se-
tração, os licenciamentos de veículos vol- mestre, foi muito mal em julho.” Isso quer
taram a cair. Um quadro que não chega dizer que, se a Petrobras não aumentar a
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A E N D B

a ser contrabalançado pela alta do setor produção, poderá ocorrer queda na extra-
de bens de consumo e a deflação dos ali- ção mineral no segundo semestre. Não é o
mentos, entre outros aspectos positivos que se espera, mas já desacelerou e depen-
da evolução da economia. de, portanto, de a estatal produzir mais.
Apesar de o PIB do segundo trimestre Quanto a serviços de utilidade públi-
ter sido melhor do que o esperado, a com- ca, principalmente energia elétrica, isso
posição dele não trouxe novidades, pon- mudou de patamar pelo efeito da bandei-

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 35
Economia

ra verde da tarifa, que não vai se repetir,


diz o economista. Ou seja, daí não vem
crescimento também. Construção é on-
de pode ocorrer algum dinamismo, mas
isso está na conta. Quando se vê a in-
dústria de transformação caindo, o se-
tor elétrico sem crescer e a extração mi-
neral crescendo menos, significa que o
conjunto da indústria vai cair. “Ou se-
ja, o agro vai cair, a indústria vai cair. Do
lado de serviços, é o que se vê há alguns
trimestres. O mercado de trabalho con-
tinua criando vagas e a renda continua
crescendo, só que isso num ritmo cada
vez menor, que caminha para zero”, cha-
ma atenção Gonçalves.
A piora do setor de serviços é lenta,
mas persistente. O conjunto das situa-
ções apontadas acima sugere que, no se-
gundo semestre, “se não acontecer nada,
se a economia não crescer e não cair, es-
tará muito bom”.

A economia vai crescer de 2,5% a 3%


este ano, apontam as projeções dos eco-
nomistas com as maiores taxas de acerto
nas suas estimativas. “O que me preocu-
pa é se, no fim do ano, a economia estará
desacelerando ou em contração. Porque
isso será a cara do ano que vem, a passa-
gem para 2024. Esse é o risco que vejo.
Efeito de queda de juros, que reverta as
tendências apontadas, não consigo iden-
tificar”, ressalta Gonçalves. O novo PAC assim. Um alívio forte, na lógica dos agen-
O ritmo estabelecido para a queda dos tes do mercado, precisaria ter um juro real
combina melhor
juros está mais para uma redução demo- não de 8%, mas de 4,5%, ou 4%. Isso quer
rada das taxas do que para um declínio os investimentos dizer que ainda restariam 4 pontos para
rápido. “O que está aí no mercado me público e privado cair. Seriam oito quedas de meio ponto
parece que é um meio-termo. Não acho porcentual cada uma. É isso o que o mer-
que a Selic cairá abaixo de 9%. O ritmo da cado enxerga. Uma queda lenta. É muito
queda da inflação é lento e isso é usado co- difícil crescer dessa maneira”, ressalta o
mo justificativa. Eu posso não concordar, tado fiscal se comporta não vai resul- economista do Fator. O que sobra é o PAC.
mas é o argumento dominante e o pessoal tar em grande melhora nas expectativas. “O novo PAC tem elementos positivos,
do mercado gosta desse argumento.” “Os juros tendem a cair no ritmo lento eu gosto da nova roupagem do programa.
A oposição entre a redução de juros e atual. Caíram 50 pontos, mas em termos Acho que houve um aprendizado com o
o orçamento com a expectativa de déficit reais, olhando para a inflação esperada, que aconteceu ao longo do tempo. Ele tem
para o ano que vem é outro ponto para ainda estão em 8%. Essa taxa, em um pro- por base projetos mais bem estruturados,
justificar cautela, dentro do raciocínio cesso de queda de juro, é muito alta. Esse o que é bom. Traz a convergência com a
do mercado. O ritmo com que o resul- ritmo não proporciona um alívio tão forte iniciativa privada, o que é muito positivo”,

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
cações adicionais. Em 2008 e 2009, os
efeitos da crise das hipotecas subprime,
nos EUA, foram rapidamente debelados
no Brasil porque os bancos públicos atu-
aram com firmeza para baixar os juros.
Hoje, essa capacidade está reduzida, por-
que a capitalização dos bancos públicos
está no arcabouço fiscal.
Parte do financiamento do PAC está
no Orçamento, parte virá de crédito via
BNDES. Ainda que o Tesouro não entre
para capitalizar o banco público, ele pode
trazer dinheiro do exterior. O histórico de
investimentos chineses estratégicos re-
levantes em infraestrutura na América
Latina, a exemplo da compra, pela State
Grid, da CPFL, a maior empresa de ener-
gia elétrica da América do Sul, permite
imaginar que a China tende a desempe-
nhar um papel importante, tanto no in-
vestimento direto quanto no crédito.

Movimentos. O aumento da produção da Petrobras aliviaria o cenário. Adquirida pela A presença da ex-presidente Dilma
chinesa State Grid, a CPFL é a maior empresa de energia elétrica da América do Sul Rousseff à frente do Banco dos BRICS
significa, ao menos para uma parte do
mercado, uma ponte de facilitação do fi-
chama atenção Rocha, que destaca a evo- tar a investir. Ele reúne estatais e setor nanciamento chinês. Quanto ao capital
lução significativa dos órgãos de controle privado, no que se refere a Parcerias Pú- privado para infraestrutura, aposta-se
e de fiscalização, no aprendizado quanto blico-Privadas, principalmente. “Há ain- em um regime de investimento privado
à infraestrutura e à melhora na estrutu- da algumas joias em rodovias e portos e de parceria, isto é, em que o risco não seja
ração dos projetos. “Ao fazer convergir in- tem bastante espaço para PPPs urbanas. todo do setor privado. Um exemplo con-
vestimentos públicos e investimentos pri- Em mobilidade urbana, tem muito grin- siderado bem-sucedido é o do Metrô de
vados, de forma bastante pragmática, tal go de olho. Caso se consigam 250 bilhões São Paulo, com linhas que se pagam. Uma
como está sendo apresentado, o PAC tem de reais em investimento por ano, atra- ressalva é que o setor privado costuma
boas perspectivas para dar certo. Claro vés do PAC, haverá alguma chance de, ser muito mais operador do que inves-
que a gente só vai saber o resultado do jo- minimamente, manter a economia em tidor, faz mais operação e manutenção.
go quando ele for jogado. Mas, pelo me- torno de 2% de crescimento”, prevê. De todo modo, isso promove atividade
nos até agora, pelas intenções que estão Até as empresas privadas “se conven- econômica e gera investimento. “Outro
sendo postas, está parecendo fazer sen- cerem e tomarem coragem”, mas será ponto são as garantias. É possível ter ga-
tido”, acrescenta o economista da Fiesp. preciso avançar na queda dos juros e na rantias do Tesouro, para o setor privado,
F. S O U Z A F R E I T A S E A G . P E T R O B R A S

O PAC tem uma característica interes- reforma tributária. “Não dá para imagi- ou para projetos de parceria, e essa con-
sante, destaca Gonçalves, que é trabalhar nar que as empresas brasileiras, que vão versa eu sei que está andando”, destaca
primeiro com crédito e garantias em lu- fechar o orçamento neste mês ou no pró- Gonçalves. “Não é caixa, não tem que pôr
gar de gasto público. É possível manter ximo, e as empresas estrangeiras, que já o dinheiro lá. Dá-se uma garantia e, se o
a participação do governo no programa, fecharam o orçamento para o ano que projeto é bom, não será necessário execu-
em cerca de 50 bilhões de reais por ano, vem, tenham contemplado grandes pro- tar a garantia. Esta é que é a ideia. O passo
mais financiamento para o setor priva- jetos sem saber como será a tributação. decisivo é esse. Se isso ajudar a economia
do fazer investimentos, obras de infra- Seria meio esquisito”, ressalta Gonçalves. a andar, temos chance. Mas não se trata
estrutura e a Petrobras, que deverá vol- Cabe destacar a existência de compli- de algo simples”, sublinha o economista. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 37
Economia

Trombadas
brado liberalismo da Inglaterra pedem
passagem. Na segunda metade do sécu-
lo XIX, depois de suspender, em 1841, a

geoeconômicas
proibição de exportar máquinas e arte-
sãos, revogar, nos idos de 1846, a prote-
ção à sua agricultura protegida pela Corn
Law, o liberal-mercantilismo da pérfida
COMÉRCIO O jogo de espelhos Albion comandou a expansão do comér-
liberalismo versus protecionismo cio e das finanças internacionais.
O liberal-mercantilismo da Inglaterra
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO hegemônica criou as condições para as
políticas intencionais, diga-se protecio-
nistas, de industrialização da Alemanha

E
e dos Estados Unidos. Ironias da história:
m artigo recente publicado no Protecionismo e livre-cambismo convi- uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mes-
Project Syndicate, o econo- vem como cães e gatos. Brigam o tempo ma coisa, ensinam as cartilhas da dialéti-
mista Dani Rodrik discorreu todo, mas são inseparáveis. ca elementar para positivistas teimosos.
a respeito da oposição libera- No fim do século XIX, no apogeu da
lismo versus protecionismo. ordem liberal burguesa, a expansão do Os Estados Unidos, a Alemanha e o
“‘A era do livre-comércio parece ter comércio e das finanças internacionais Japão ingressaram no cenário mundial
acabado. Como a economia mundial se estava fundada nas relações simbióticas fazendo valer a modernidade de suas
sairá sob o protecionismo?’ Esta é uma entre o liberalismo da Inglaterra hege- respectivas estruturas capitalistas, es-
das perguntas mais comuns que ouço mônica e as políticas protecionistas de pecialmente a agilidade de seus ban-
hoje em dia. Mas a distinção entre livre- industrialização dos retardatários euro- cos e a presença ativa de seus respecti-
-comércio e protecionismo (como a entre peus e dos Estados Unidos. vos Estados nacionais. A emergência de
mercados e Estado, ou mercantilismo e A boa história econômica ensina que os novas potências inaugurou um período
liberalismo) não é especialmente útil pa- Estados Unidos têm uma longa e persis- de grande rivalidade internacional. A
ra entender a economia global. Não só de- tente tradição de práticas protecionistas. disputa pela preeminência econômica
turpa a história recente, como também Os primeiros passos da caminhada prote- intensificou a penetração de capitais nas
interpreta mal as transições políticas de cionista estão recomendados no Relatório áreas provedoras de matérias-primas e
hoje e as condições necessárias para uma Sobre as Manufaturas, de Alexandre alimentos, alterando a configuração da
economia global saudável.” Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, chamada periferia do mundo capitalista.
No livro Trade, Development and então secretário do Tesouro dos Esta- No fim do século XIX, os EUA já eram
Foreign Debt, o economista americano dos Unidos, desenvolveu uma brilhan- a economia industrial mais poderosa do
Michael Hudson faz uma avaliação his- te argumentação em defesa da manufa- planeta, além de ostentar – graças à ex-
tórica e crítica das teorias do comércio tura como fonte da ampliação da divisão cepcional dotação de recursos naturais –
e das finanças internacionais, desde os do trabalho, ganhos de produtividade. a posição de grande exportadora de ma-
mercantilistas até os dias de hoje. Pérfidas considerações sobre o cele- térias-primas e alimentos, e de contar
Para Hudson, as palavras “protecio- com Nova York, um centro financeiro e
nista” e “livre-cambista” são etiquetas de negócios, capaz de promover simulta-
ideológicas que ocultam as razões de neamente os investimentos de alto ris-
fundo das divergências. O capitalismo Não seria impróprio co em novos setores e a rápida centrali-
realmente existente conta uma história zação de capitais.
mais ambígua do que aquela narrada
afirmar que o A constituição da hegemonia america-
pelos fundamentalistas – de um lado e poder americano se na não pode ser compreendida sem a ava-
de outro – a respeito do desenvolvimento debilitou no exercício liação dos efeitos das duas grandes guer-
das relações econômicas internacionais. de suas forças ras, a de 1914-1918 e a de 1939-1945. O pe-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Na Conferência de Bretton Woods, Keynes
e White rejeitaram o mercado autorregulado
e a livre movimentação de capitais

ríodo do entreguerras liquidou de vez a eram particularmente negativas em re- as conjecturas e os projetos dos homens.
hegemonia inglesa. lação à livre movimentação de capitais. O exercício do poder americano desenca-
A crise de 1930 agrava a desorganização O arranjo monetário realmente ado- deou transformações financeiras, tecno-
do sistema mundial e leva ao surgimen- tado em Bretton Woods suscitou os so- lógicas, e geopolíticas que culminaram no
to de experiências nacionalistas e estati- lavancos dos anos 70 – a desvinculação enfraquecimento de sua hegemonia.
zantes de vários matizes. Os Estados Uni- do dólar ao ouro em 1971 – e a posterior No outro lado do mesmo processo, as li-
dos tentam a experiência do New Deal. No flutuação das moedas, em 1973. A eleva- deranças chinesas valeram-se da “abertu-
continente europeu, a gravidade do de- ção brutal do juro básico americano em ra” da economia ao investimento estran-
semprego, a deflação e a contração do co- 1979 derrubou os devedores do Tercei- geiro ávido em aproveitar a oferta abun-
mércio internacional decorrente das des- ro Mundo e lançou os europeus na cami- dante de mão de obra. Apostaram na com-
valorizações competitivas levam a um al- nhada para o Euro. binação favorável entre câmbio real com-
to grau de intervenção do Estado. A arregi- petitivo, juros baixos para estimular es-
mentação de massas sem precedentes leva No mesmo passo, a valorização da moe- tratégias nacionais de investimento em
ao surgimento de nacionalismos autoritá- da americana lançou suas empresas à bus- infraestrutura, absorção de tecnologia
rios que reforçam o expansionismo bélico ca de espaços favoráveis aos seus negócios. com excepcionais ganhos de escala e de
das chamadas potências do Eixo e levam à Em mais uma ironia da história, os recém- escopo, adensamento das cadeias indus-
eclosão da Segunda Guerra Mundial. -acolhidos chineses à órbita ocidental fo- triais e crescimento das exportações.
No pós-guerra, Keynes e Dexter White ram bafejados com o afluxo de capitais As manchetes proclamam o paradoxo
apresentam em Bretton Woods as con- americanos, japoneses e europeus em sua contemporâneo: há riscos de guerra co-
cepções que deveriam inspirar a constru- economia reformada por Deng Xiao Ping. mercial entre o protecionismo dos Esta-
ção das instituições e das regras destina- Não seria impróprio afirmar que o po- dos Unidos e a China do livre-comércio.
ARQUIVO/FMI

das a presidir a nova ordem econômica in- der americano se debilitou no exercício de Às ameaças americanas de protecionismo,
ternacional. Essas concepções rejeitavam suas forças. Mais uma vez, no movimen- os chineses responderam com a defesa do
as virtudes do mercado autorregulado e to de suas estruturas, o capitalismo iludiu multilateralismo do livre-comércio. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 39
Economia

O joio e o trigo
ARTIGO O cartão de crédito não é o vilão
do endividamento, e sim as altíssimas
taxas de juro praticadas pelo mercado
P O R N A D I M D O N ATO *

O
Brasil é um dos países com do-se uma ferramenta essencial para as
maior taxa de endivida- classes sociais com renda limitada, co-
mento do mundo e o atra- mo as pertencentes às categorias D e E,
so no pagamento de fatu- que abrangem mais da metade da popu-
ras de cartões de crédito é lação. Impor restrições a parcelamentos
o tipo mais comum de dívida, segundo sem juros poderia resultar na exclusão
a Pesquisa de Endividamento e Inadim- desses estratos sociais do acesso a bens
plência do Consumidor, realizada pela e serviços de maior valor.
Confederação Nacional do Comércio de
Bens, Serviços e Turismo, a CNC. Não Segundo dados do Banco Central re-
há, porém, um vilão nessa história. O lativos a junho de 2023, a taxa média
crédito é o instrumento financeiro que de juros para pessoas jurídicas era de
faz com que os negócios aconteçam, 23,1% ao ano, enquanto pessoas físicas
além de aumentar a renda, gerar empre- arcam com 59,1% a.a., causando uma di-
gos e impulsionar a economia. ficuldade para quem mais necessita de
O acesso ao crédito é vital para a so- crédito. Uma análise mais aprofundada
brevivência da família brasileira e das desses indicadores revela que as tran-
pequenas e médias empresas, reconhe- sações de longo prazo e o crédito rota-
cidas como as maiores empregadoras. tivo permaneceram relativamente es-
Ele impulsiona o consumo, favorece os táveis na última década. O que chama
negócios e permite que as instituições atenção é o crescimento surpreenden-
financeiras conquistem liquidez no te nas emissões de novos cartões. Eram
curto prazo. De acordo com uma pes- 152 milhões, em 2017, e passaram a 431
quisa realizada pelo Serasa, sete em ca- milhões no ano passado.
da dez brasileiros fazem uso do cartão Muito provavelmente, o fenômeno
de crédito. Desses, 91% disseram ter tem como causa a entrada de novos par-
mais de um cartão. ticipantes no mercado, a exemplo das
Quando utilizado de maneira cons- fintechs. Mas o acesso indiscriminado ao
ciente, o cartão de crédito mostra-se um O parcelamento crédito, sem uma análise aprofundada
grande aliado, facilitando os pagamen- da capacidade de pagamento dos clien-
tos e a saúde financeira de quem o utili-
sem juros garante tes, desencadeia uma série de riscos às
za. Atualmente, o pagamento parcelado o acesso a bens de famílias, aumentando na mesma pro-
sem juros, é sem dúvida, um atrativo en- maior valor para porção o endividamento, causado pelas
raizado na cultura de consumo, tornan- as classes D e E altas taxas de juro associadas ao crédi-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Risco. A concessão indiscriminada de
cartões, sem análise da capacidade de
pagamento dos clientes, é outro problema

mento e comprometem a saúde finan-


ceira dos brasileiros. Este é o retrato da
falta de regulamentação que permite às
instituições financeiras determinar, co-
mo bem entendem, as suas taxas, poden-
do ultrapassar 1.000% ao ano, tornan-
do a modalidade a mais cara do País. As
elevadas taxas de juro acabam por gerar
insegurança, impactando negativamen-
te a oferta de crédito, o consumo, os in-
vestimentos e até os gastos do governo.

É de suma importância ampliar o


diálogo com os diversos atores econô-
micos, a fim de encontrar soluções pa-
ra as altas taxas de juro no crédito rota-
tivo, adequando-as para a realidade da
população. Ainda é válido salientar so-
bre a lucratividade extraordinária que
os bancos que atuam no mercado brasi-
leiro têm. É imprescindível que aconte-
çam, com celeridade e muita prudência,
debates e estudos, a fim de elaborar so-
luções que regulem as taxas de juro dos
rotativos, criando condições para as fa-
mílias de baixa renda terem acesso ao
crédito, e, ao mesmo tempo, proporcio-
nar um ambiente de negócios saudável
para as pequenas e médias empresas.
Esta é uma discussão que não pode
ser pautada somente pelo Banco Central
e pelos agentes do mercado financeiro. É
uma discussão que deve ser ampla e pre-
to rotativo nos casos de inadimplência. em sua maioria, são os responsáveis pe- cisa ter a participação dos setores pro-
Para resolver o problema do endivi- las finanças, são alguns pontos impor- dutivos, para encontrar uma solução
damento dos brasileiros, não adianta tantes que impactam a economia e po- equilibrada que não impacte a saúde fi-
impor restrições aos cartões de crédi- dem ser considerados grandes respon- nanceira das pessoas. O cidadão brasi-
to ou ao parcelamento sem juros. Exis- sáveis pelo aumento do endividamento. leiro não suporta mais juros altos. •
tem outros fatores a ser considerados. Por outro lado, as altas taxas de juro
ISTOCKPHOTO

O fácil acesso ao crédito, a falta de en- praticadas no mercado, associadas ao *Presidente do Sistema Fecomercio
sino sobre educação financeira nas es- crédito rotativo em casos de inadim- de Minas Gerais, a incluir Sesc,
colas e para pequenos empresários que, plência, contribuem para o endivida- Senac e sindicatos empresariais.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 41
Nosso Mundo

Mágoas D
avid Cox tenta convencer
seus afiliados de que Joe
Biden fez mais pela classe
trabalhadora do que qual-

passadas?
quer outro presidente dos
EUA, ao menos durante as décadas em que
atuou como trabalhador da construção ci-
vil e líder sindical no oeste de Ohio. Cox
não tem certeza, porém, se os trabalhado-
A classe trabalhadora res sindicalizados querem ouvir isso, so-
de Ohio sente-se abandonada pelos bretudo num estado onde a marca demo-
crata estava em declínio muito antes de
democratas. Biden pode reconquistá-la? Donald Trump vencer em 2016 e, quatro
anos depois, reforçar sua votação por lá.
P O R C H R IS M C G R E A L , D E DAY TO N , O H I O
“Biden tem sido ótimo”, diz o sindica-
lista, destacando a legislação para revi-
talizar a indústria e investir em tecnolo-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 46
NESTA Ucrânia. Em Kiev, o setor
imobiliário não respeita nem
SEÇÃO os alarmes de ataques aéreos

uma pesquisa eleitoral, divulgada pela


CNN na quinta-feira 7, revelou Biden em-
patado nas intenções de voto com Trump
e todos os demais pré-candidatos republi-
canos, com exceção da ex-governadora da
Carolina do Sul, Nikki Haley, 6 pontos à
frente do atual presidente.
Há boas razões para sermos cautelo-
sos em relação a esses números mais de
um ano antes das eleições. Eles são, po-
rém, mais um lembrete aos democratas
das dificuldades para convencer os elei-
tores em regiões como o oeste do Ohio
de que Biden tem sido bom para eles. A
Cenário. A cidade de Dayton tornou-se um cemitério de fábricas abandonadas economia pode parecer mais forte no pa-
pel, mas muitos americanos não se sen-
tem bem em relação aos democratas ou
gia que criou muitos novos empregos na Partido Democrata parecem ter reconhe- ao país profundamente fraturado – mes-
construção. “Resta saber se isso trará de cido o erro de deixar Ohio escapar, mas há mo que não estejam passando por difi-
volta aqueles que perdemos para Trump. desacordo sobre as causas e como reagir, culdades financeiras no momento.
Mesmo que não estejam inclinados a vo- mesmo que vejam razões para otimismo.
tar em Biden, talvez eles fiquem em casa Os democratas ficaram entusiasma- Kim McCarthy, presidente democrata
e não votem. Isso é meia vitória.” dos com o tamanho da vitória no referen- do condado de Greene, ao leste de Dayton,
Metalúrgico e diretor do conselho se- do sobre uma proposta republicana para disse que seu partido luta para refutar a
torial da construção em Dayton, grupo dificultar alterações na Constituição de ideia de que, em nível nacional, não es-
sindical que representa milhares de tra- Ohio. A medida visava impedir, em uma tá comprometido com os trabalhadores.
balhadores, Cox tem bons motivos para votação prevista para novembro, a con- “As pessoas reconhecem que o governo
desconfiar. Ohio já foi um estado indeci- sagração do direito ao aborto na legisla- está falhando conosco como sociedade,
so tão crucial que os presidenciáveis se ção estadual. Mas foi derrotada por 57% como nação. Sou da Austrália, e acho que
embolavam para conquistar eleitores. A a 43%, com uma participação excepcio- uma das coisas mais profundas que per-
partir de 2020, os financiadores nacio- nalmente elevada. Apesar disso, demo- cebi nos meus 25 anos de vida aqui é que o
nais do Partido Democrata decidiram cratas veteranos alertam que há um lon- governo dos EUA não se importa comigo
que não valia a pena investir muito na lu- go caminho a percorrer em Ohio para re- e com a minha vida”, disse ela. “Quando
ta e deixaram Ohio fora da sua lista de al- tomar o terreno perdido. me mudei para cá, desisti de um gover-
vos, cedendo espaço a Trump e aos repu- Pela lógica, Biden deveria estar numa no que estava preparado para me apoiar
blicanos. O único democrata a conquis- posição relativamente forte. A economia e e garantir que eu tivesse as ferramentas
tar um cargo estadual em mais de uma os números do emprego estão crescendo, para viver da melhor maneira possível.
década é o senador americano Sherrod apesar de a inflação ter subido muito. Mas Acho que os americanos, mesmo sem te-
Brown, que deverá enfrentar uma dura rem vivido em outro país, acabam enten-
ISTOCKPHOTO E REDES SOCIAIS

luta pela reeleição no próximo ano. dendo essa diferença. Trump, é claro, não
Em Dayton, cidade do condado de é a resposta para esse problema.”
Montgomery, o voto democrata já foi O estado votou Cox avalia que o Partido Democrata,
forte o suficiente para ajudar a compen- nacional e localmente, tem grande parte
duas vezes em
sar as perdas em outras partes do estado. da responsabilidade pela perda de Ohio.
Trump venceu na província em 2016 por Trump, mas nem “Os trabalhistas sentem que foram deixa-
um triz. Biden o superou quatro anos de- sempre apoiou dos de fora”, afirma. Ele acrescenta que os
pois, por apenas 2%. Os responsáveis do os republicanos democratas sofreram danos em Dayton

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 43
Nosso Mundo

desde que Bill Clinton assinou o Acordo


de Livre Comércio da América do Norte,
o Nafta, e milhares de postos de traba-
lho em fábricas acabaram migrando pa-
ra o México depois de 1994. “Esta era uma
cidade da General Motors. Cada família
tinha alguém que trabalhava lá. Após o
tratado, a GM praticamente nos abando-
nou e mudou-se para o México. Na área
de Dayton, é uma questão delicada até ho-
je. As pessoas venderam casas, venderam
seus barcos, suas motocicletas.”

O legado é visível em edifícios indus-


triais abandonados e espaços abertos on-
de antes existiam fábricas. Dayton per-
deu um quarto de sua população desde
o Nafta, comprometendo a imagem dos
democratas como defensores dos tra-
balhadores americanos. Em sua gestão,
Trump renegociou os termos do Nafta
para favorecer os EUA, o que fez pare-
cer que o republicano estava ao menos
ouvindo os apelos de operários em cida-
des como Dayton. “Esta foi uma de suas
melhores jogadas. As pessoas aqui gosta-
ram”, afirma Cox. “Disso e de realmente
dar um soco no nariz da China.”
Não faltam democratas que admitem os
erros em Ohio, mas o presidente dos de-
mocratas no condado de Montgomery, Mo- Quando você apoia, tudo isso pode sofrer Gratidão. Os trabalhadores se sentiram
hamed Al-Hamdani, encara o problema de uma reação negativa. Estamos do lado cer- apoiados por Trump quando ele adotou
medidas para proteger a indústria nacional
forma diferente. Primeiro muçulmano a to da história, com certeza. Mas fazer a coi-
presidir uma seção do Partido Democra- sa certa nem sempre nos elege.”
ta no estado, ele avalia que o equívoco vai Essa divisão pode ser vista em diferen-
além de ignorar os trabalhadores indus- tes opiniões sobre a razão pela qual o anti- Não há liberdade econômica se não hou-
triais. “Tornamo-nos um país polarizado, go congressista de Ohio Tim Ryan perdeu ver empregos aqui, nos EUA”, discursou o
e penso que parte disso se deve ao fato de a a corrida para o Senado dos EUA no ano democrata num comício eleitoral de 2022.
demografia estar mudando nos EUA. Em passado para o republicano J. D. Vance, Cox, que chama Ryan de “o democrata
1992, quando minha família veio para cá, autor do best seller Hillbilly Elegy – um dos trabalhadores”, acredita que ele per-
não creio que houvesse um muçulmano no relato controverso sobre como crescer deu porque a direção nacional do partido
Congresso. As pessoas negras tinham pou- no meio da pobreza e da dependência não financiou sua campanha adequada-
cas cadeiras no Congresso, as mulheres ti- de drogas. Às vezes, Ryan parecia estar mente. Ryan acusou a cúpula democra-
nham um número ainda menor de assen- concorrendo contra seu próprio partido. ta de descartar estados como Ohio, que
tos no Congresso e no Senado. E você não “Vimos um sistema econômico falido, on- não têm maioria de eleitores com diplo-
podia nem mencionar a sigla ‘LGBTQIA+’”, de ambas as partes se venderam aos inte- ma universitário.
observa. “Em 35 anos, o país mudou rapi- resses corporativos que transferiram nos- Al-Hamdani acha que Ryan estava tão
damente, e algumas dessas mudanças têm sos empregos para a região sul do país, de- concentrado em reconquistar o apoio da-
um custo para um partido como o nosso. pois para o México e então para a China. queles que migraram para Trump, co-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Após o Nafta de áreas urbanas. Fred Strahorn, membro
negro da legislatura de Ohio por um dis-
Clinton, milhares trito de Dayton durante quase 20 anos e
de empregos em que também liderou a bancada democra-
fábricas migraram ta por quatro anos, diz que o partido não
para o México foi apoiado pelos liberais da Costa Les-
te, que rejeitaram os eleitores de Trump
motivados por preconceito. “Alguns des-
ses eleitores consideraram isso um insul-
mo alguns dos sindicalizados de Cox, to, o que os tornou ainda mais firmes em
que negligenciou os eleitores que per- suas decisões. Não creio que seja assim
maneceram com os democratas. “Ainda que se corteja os eleitores. Não acho que
temos uma base diversificada. No con- você possa simplesmente dizer: ‘Ei, por
dado de Montgomery, a maioria dos vo- que você não concordou comigo, há algo
tos destinados aos democratas ainda errado com você’?”
vem de áreas muito diversas, de bairros
negros, inclusive”, avalia. “A equipe de Strahorn avalia que Biden, se deseja
Ryan calculou que esses eleitores já es- ter alguma chance de vencer no estado,
tavam no papo, mas isso não era verda- precisa retornar à estratégia de Obama
de. Eles não votaram nos números que de passar muito tempo em campo, dizen-
queríamos. Acho que muito disso se de- do às pessoas o que ele faria por elas. Mas
ve ao fato de eles se sentirem, com razão, os democratas também precisam entrar
esquecidos ou tidos como garantidos.” no debate de “questões decisivas”, como
Além destes há os eleitores rurais. armas e apoio aos militares, para expli-
Embora as três maiores cidades de Ohio car que o partido não é hostil a nenhum
– Cleveland, Columbus e Cincinnati – deles. “Há maneiras de falar sobre isso,
permaneçam solidamente democratas, mas é preciso envolvê-los.”
isso não é suficiente para compensar o Strahorn não prevê um retorno rápido
enorme afastamento do partido fora das do partido em Ohio. Conquistar a confian-
ça dos eleitores é um jogo demorado. Ele
deseja que os democratas tenham a co-
ragem de abraçar o que ele considera um
dos pontos mais fortes do partido: a defesa
A RQUIVO/CASA BR A NCA E A NDRE W CA BA L L ERO -RE Y NOL DS/A FP

do governo como meio de melhorar a vida


das pessoas. Segundo ele, o partido ficou
com medo de fazê-lo diante dos implacá-
veis ataques republicanos, que culpam o
“grande governo” por todos os males, es-
tratégia reforçada pelos democratas no
Congresso que servem unicamente aos in-
teresses das empresas. “Não defendemos
o governo, não explicamos todas as coisas
que ele faz por todos. Se você não contes-
tar, será realmente difícil para o eleitora-
do vê-lo como alguém que está tentando
ajudá-lo, porque você não explicou como
funciona. Esse é um campo de batalha.” •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

Sem trégua
Nem a guerra freia
a especulação imobiliária em Kiev
P O R E M M A G R A H A M - H A R R IS O N , D E K I E V

C
erca de uma hora depois que em 25 de fevereiro de 2022, um dia depois
as sirenes de ataque aéreo de a Rússia ter lançado mísseis contra a ci-
tocaram na madrugada de dade e enviado suas tropas. “Os respon-
10 de agosto, os moradores sáveis pela obra me disseram: ‘Achamos
da Rua Yaroslavska, no co- que era uma boa ideia, muitos deixaram
ração do badalado bairro de Podil, em Kiev, então não iríamos perturbar o tra-
Kiev, ouviram um prédio desabar. Alguns balho ou o sono de ninguém’.”
olharam pelas janelas, esperando ver os
restos fumegantes de um míssil russo. Em Embora os incorporadores procurem
vez disso, à luz do amanhecer, duas esca- tirar proveito da invasão russa, ela tam-
vadeiras destruíam uma elegante mansão bém estimulou a oposição a seus planos.
de 200 anos. Em poucas horas, a casa de Ao justificar a guerra, Vladimir Putin ne-
1811 virou um monte de escombros. Ma- gou a identidade nacional da Ucrânia, re-
nifestantes reuniram-se na rua atacando forçando o apoio popular aos ativistas que
os incorporadores e a prefeitura. “O que protegem imóveis históricos. “Após a inva-
não foi destruído pelos foguetes russos es- são, quando a Rússia disse que não somos
tá sendo demolido por nossas autoridades um país real e não temos história, o patri- apoiam sua posição, Serhiy Boyarchukov
e construtoras”, dizia um cartaz. mônio cultural tornou-se mais importan- afirma que planeja construir um apart-
A guerra não diminuiu o apetite por te para as pessoas”, disse Semenova. -hotel de quatro andares e um club-house
propriedades de alta qualidade em Kiev, Devido ao apreço pela história ucrania- onde ficava a elegante casa térrea – um
nem conteve a corrida para obter terre- na, a destruição do edifício em Podil, em raro exemplo de construção residencial
nos baldios para construção. Os preços agosto, causou protestos. O prefeito Vitali de madeira na cidade. “Não houve demo-
dos imóveis caíram apenas brevemente, Klitschko prometeu investigar e o pro- lição completa, mas uma desmontagem
quando as forças russas sitiaram a cidade prietário do imóvel postou um vídeo desa- parcial, e o porão e uma parede permane-
na primavera passada, e depois se recu- fiador no YouTube. Relaxado em um sofá ceram no lugar”, disse ele, acrescentando
peraram quando as ruas voltaram à vida. e agitando documentos que, segundo diz, que a obra foi autorizada pelo Ministério
A capital ucraniana tem extensas defesas da Cultura em março. Ele não esclareceu
aéreas e as linhas de frente estão distan- por que a demolição começou às 5 horas,
tes, por isso alguns residentes regressa- durante um alerta de ataque aéreo.
ram e ela se tornou novo lar para as pes- As demolições de Os ativistas estão céticos de que a in-
soas que fogem dos combates mais a leste. vestigação do prefeito possa realmen-
Ksenia Semenova, integrante do con-
prédios históricos te responsabilizar alguém. Dizem que
selho municipal dedicado à proteção da não respeitam nem durante anos as autoridades munici-
Kiev histórica, recebeu a primeira ligação sequer os alarmes pais permitiram que o tecido histórico
pós-invasão sobre uma demolição ilegal de ataques aéreos de Kiev fosse vendido, demolido ou dete-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Armadilha. Autoridades locais usam
os danos causados por bombardeios
como desculpa para desapropriar imóveis
e remover os moradores de áreas centrais

feito?”, indagou. “O sol se pôs logo após os


bombeiros terminarem de apagar as cha-
mas, o toque de recolher era às 21 horas.”
Os sobreviventes foram pressionados
a ceder os direitos de seus apartamentos.
Em troca, seriam colocados numa lista
de espera para novas casas nos arredo-
res de Kiev, a cerca de 20 quilômetros de
distância. Tetiana recusou, marcando o
início de um pesadelo burocrático que a
deixou sem residência por quase um ano,
quando morou com amigos e parentes.

Os moradores do prédio tentaram


constituir uma associação – passo fun-
damental para contratar um novo laudo
e proteger o edifício –, mas o pedido de re-
gistro foi rejeitado 15 vezes pelas autori-
dades municipais por questões técnicas.
Tetiana, que pediu para ser identificada
apenas pelo primeiro nome, acredita que
a prefeitura quer usar os danos causados
riorado para além do ponto de reparação. giu apartamentos do seu prédio na Rua no dia 17 de outubro como desculpa para
Oleh Symoroz era um veterano dessa Zhylyanska, a poucos quarteirões da demolir seu edifício e confiscar o terreno.
luta pacífica antes de se voluntariar para principal estação ferroviária de Kiev. “Mesmo que o nosso edifício não se-
combater por Kiev. Quando a cidade foi Quatro de seus vizinhos morreram, in- ja sólido, não compreendo a razão de
salva e perdeu as pernas na linha de fren- cluindo uma mulher grávida de seis me- não investirem na reconstrução. Por que
te ao leste da Ucrânia, foi para lá. De vol- ses, e o corredor e a escada que levava à querem nos enxotar?” Questionadas so-
ta para um tratamento de reabilitação, sua porta foram destruídos. bre o edifício, as autoridades municipais
o combatente ficou furioso ao descobrir Ela ficou traumatizada com o ataque, de Kiev limitaram-se a dizer: “A casa não
que a cidade estava sendo destruída por mas não se preocupou em ficar sem te- pode ser reconstruída”. Tetiana está de-
dentro. “Sinto-me péssimo por essa des- to. Tinha visto políticos nos noticiários terminada a recuperar seu apartamen-
ERCIN ERT U RK /A N A DO LU AG EN CY/A FP

truição estar acontecendo agora”, afir- visitando outros edifícios atingidos por to histórico, mas sabe que a batalha se-
mou, em entrevista no hospital onde es- ataques russos e prometendo ajudar. rá longa. “Há muitos idosos neste edifí-
tá reaprendendo a andar, com o suporte Tetiana ficou surpresa ao receber uma cio. Talvez as autoridades de Kiev tenham
de próteses. “Estamos fora, lutando pe- mensagem três dias depois, anuncian- pensado: ‘Vamos esperar, talvez eles mor-
la Ucrânia, e eles aproveitam a oportuni- do que seu prédio havia sido declarado ram e o problema será resolvido’. Não le-
dade para devastar a cidade.” estruturalmente inseguro e teria de ser varam em conta que ainda existem jovens
Outra moradora, Tetiana, espera- demolido. O laudo anexado era de 17 de que decidiram lutar por seus direitos.” •
va que as autoridades municipais aju- outubro, o dia do ataque. “Quando o res-
dassem, quando um drone russo atin- ponsável por esse relatório poderia tê-lo Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 47
Plural

Vida de escritor
LITERATURA Raphael Montes, autor de suspenses de sucesso
e roteirista requisitado, estreia também no segmento infantil
P O R A N A PAU L A S O U S A

R
aphael Montes, dono de uma para 14 países e em processo de adap- Vagalume, como Stella Carr e Marcos Rey,
fala animada e de uma ex- tação pelo GloboPlay; Jantar Secreto que o transformaram em leitor.
pressão sorridente, é o cria- (2017), suspense engendrado a partir “Não fui incentivado a ler pelos meus
tivo do século XXI por exce- dos fracassos de sua geração; e Bom Dia, pais e a lista escolar só me afastava da lei-
lência. Menos por objetivo Verônica (2020), transformado em série tura”, diz. Os livros de aventura, nos quais
do que por vocação e persistência, ele tra- pela Netflix, Montes resolveu encarar o estavam incluídas as histórias de Sherlock
fega com desenvoltura e originalidade pe- desafio de escrever para crianças por su- Holmes, chegaram a ele por uma tia-avó.
los diferentes formatos daquilo que, de gestão de Pedro Bandeira, o autor de A
uns anos para cá, passou a ser embalado Droga da Obediência (1984), livro-fetiche Ao criar uma história em que suspense,
com o nome de “escrita criativa”. de várias gerações de leitores no Brasil. aventura e amizade infantil se enlaçam,
Apenas nos últimos meses, Montes, Montes conta que, no fundo, sempre te- seu maior desejo, diz, é contribuir para
nascido no Rio de Janeiro, em 1990, lan- ve vontade de escrever livros infantojuve- que crianças crescidas se tornem leitoras.
çou um envolvente suspense infanto-juve- nis por terem sido, justamente, as obras “Acho que existe um certo vácuo entre o
nil, A Mágica Mortal: Uma Aventura do Es- de Pedro Bandeira e de autores da Coleção infantil e o adulto. E ler tem de ser tão le-
quadrão Zero; apresentou, no Festival de gal quanto ver série, jogar videogame e jo-
Cinema de Gramado, o longa-metragem gar bola com os amigos”, diz. “O que acho
Uma Família Feliz, do qual foi roteirista e mais legal na literatura é que ela nos dá va-
assistente de direção; e viu a primeira no- riação emocional. A literatura me permi-
vela de sua autoria, Beleza Fatal, produzi- tiu entrar em contato com vivências que,
da pela HBO Max, começar a ser rodada. graças a Deus, nunca tive na vida real.”
“Eu era uma pessoa que queria contar Em A Mágica Mortal, seus persona-
suas histórias e viver disso”, diz, de forma gens – e, consequentemente, seus leitores
tão direta quanto escreve, em entrevista – têm, por exemplo, de lidar com a mor-
a CartaCapital, por ocasião do lançamen- te e a vivência do luto. “Meu grande de-
to de A Mágica Mortal. “Sou muito for- safio foi tomar cuidado com a descrição
mado pela televisão. Cresci vendo novela, da violência, com palavrões e questões de
Tela Quente e Sessão da Tarde. Então, pa- sexo. De resto, escrevi como escrevo um
ra mim, era natural a vontade de fazer de livro adulto – se tem uma palavra que a
tudo um pouco. Morro de vontade de es- A MÁGICA MORTAL: criança não conhece, ela pergunta para a
crever letra de música e história em qua- UMA AVENTURA DO mãe, para o pai, para o professor. Tive cui-
drinhos. Cada formato traz desafios que ESQUADRÃO ZERO dados no conteúdo, mas não na forma.”
me interessam.” Raphael Montes. Seguinte E a forma dessa aventura que tem o
(272 págs., 49,90 reais)
Autor de romances policiais de suces- ilusionismo como mote é aquela que tem
so, como Dias Perfeitos (2014), vendido feito a fama de Montes como escritor e

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Memórias. Sofia Coppola
SEÇÃO repassa sua cinematografia
desde Virgens Suicidas

Criativo 360º. Montes está por trás de


séries da Netflix e do GloboPlay; de filmes
da Amazon; de uma novela da HBO Max;
e do longa-metragem Uma Família Feliz

roteirista. “Eu vejo muitas semelhanças


entre fazer mágica e ser um escritor de
suspense”, diz. “O escritor de suspense
trabalha num jogo de mostrar uma coi-
sa e esconder outra. Eu, no final, faço, de
algum modo, um truque de mágica pa-
ra revelar quem é o criminoso. A mágica,
assim como o suspense, parte desse jogo
de atrair a atenção para um lado e ter um
truque escondido de outro.”

Escritor pop, Montes, na Bienal do Li-


vro do Rio, encerrada no domingo 10, este-
ve presente em nada menos que três me-
sas de debates: sobre adaptações de livros
para as telas; sobre A Mágica Mortal; e so-
bre o gênero True Crime, tão em voga. Ele
participou ainda de um bate-papo promo-
vido pela Amazon. É que foi ele quem es-
creveu, para a Amazon Prime Video, os
filmes sobre Susane von Richtofen.
Como bom criativo do século XXI, ele
também percorre, com naturalidade, o am-
biente das redes sociais. Em seu Instagram,
posta vídeos e fotos profissionais e pesso-
ais, dá dicas de livros e, na medida do pos-
sível, interage com os mais de 100 mil se-
guidores. Ele conta que essa vivência di-
gital remonta ao início da carreira, quan-
do ficava surpreso e feliz ao receber retor-
nos de leitores no Orkut e no Facebook.
“O trabalho de autor é solitário. Eu
passo um ano e meio escrevendo, de-
pois tem seis meses de edição e só uns
dois anos depois eu começo a receber
reações das pessoas. E eu adoro saber o
que acharam dos meus livros”, diz, com
REDES SOCIAIS

sincera empolgação. “Antes, havia aquela


ideia do autor como alguém recluso, mas
eu, como você deve ter notado, não sou
nem tímido nem silencioso.” •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 49
Plural

A fadista e o Brasil
PROTAGONISTA A cantora Carminho, descendente artística
de Amália Rodrigues, busca aprofundar as conexões entre
o gênero português, a MPB e a musicalidade africana
POR SÉRGIO MARTINS

Seu novo álbum,


Portuguesa, traz
uma canção de
Marcelo Camelo

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
C
arminho, além da paixão talização do fado. Mas sua conduta não “Estávamos numa casa de shows e to-
pelo gênero português por tem nada de passadista. Sua abordagem cou um fado tradicional. Milton come-
excelência, nutre, há mui- faz, ao contrário, lembrar a de Wynton çou a cantar, achando que era do reper-
to tempo, um culto pela Marsalis, o trompetista e maestro ameri- tório de alguma cantora brasileira. Foi ali
música brasileira. A intér- cano, em relação aos hinos das jazz bands. que reparei que havia influência da músi-
prete de 39 anos já gravou canções do re- “Não sinto isso como preservação, mas ca portuguesa na canção brasileira”, diz.
pertório de Marisa Monte e Chico Buar- sim algo que acontece de maneira natu- E, no fim, os dois estavam certos. Mil-
que, lançou um disco dedicado à obra de ral”, diz, fazendo questão de pontuar que ton havia conhecido a canção pela voz
Tom Jobim e participou de gravações não é o apego à memória que a conduz. de Ester de Abreu (1921-1997), que nas-
com Elba Ramalho e Alceu Valença. Foram, quem diria, os próprios estu- ceu em Lisboa, mas fez carreira no Brasil.
Portuguesa, seu lançamento mais re- dos do fado que conduziram Carminho Uma das pitadas brasileiras presentes
cente, embora esteja recheado de fados, ao Brasil. em Portuguesa deixa-se ouvir em Levo o
traz uma parceria com o compositor ca- O gênero, segundo ela, ao ser trazido Meu Barco no Mar, de Marcelo Came-
rioca Marcelo Camelo. O álbum foi o pon- para cá pelos colonizadores, foi acresci- lo, que Carminho definiu como um fa-
to de partida para uma turnê que a canto- do de uma sonoridade africana. “Muitos do transatlântico. “Quando ele me mos-
ra fez pelo País, entre o fim de agosto e o relatos sobre o fado falam sobre uma mu- trou essa canção, eu já sabia ela era pa-
início de setembro, que incluiu apresen- sicalidade diferente daquilo que conhe- ra mim”, diz.
tações com o cantor e compositor Silva. cemos. Essa musicalidade, trazida pa-
“Quando vim ao Brasil pela primeira ra o Brasil, acabou mesclada àquela das Encerrada a turnê brasileira,
vez, duas décadas atrás, minha gravadora danças africanas. Ou seja, tornou-se uma Carminho, antes de aportar de novo em
perguntou com quem eu gostaria de gra- música muito mais sensual do que era Alcântara, onde vive, esteve na Itália pa-
var. Disse então os nomes de Chico Buar- originalmente”, relata. ra apresentar, no Festival de Cinema de
que, Nana Caymmi e Milton Nascimento. O fado, em Portugal, impôs-se sem os Veneza, Poor Things, filme do diretor gre-
Para minha surpresa, todos aceitaram”, re- elementos da dança, mas manteve forte go Yorgos Lanthimos (de A Favorita), no
memora ela, em entrevista a CartaCapital, as características da herança moura, per- qual fez uma participação especial inter-
por Zoom. “Gosto de fazer essa cone- ceptível no canto chorado que, por vezes, pretando O Quarto, faixa de Portuguesa.
xão entre os dois países pela música.” remete a uma prece. Esse estilo foi refor- “Yorgos me convidou para participar
çado por Amália, o grande nome do fado. de uma cena em que eu cantasse um fa-
O fado sempre se fez presente na casa “Ela vinha da região das Beiras e trazia do. Escolhemos esse tema que tem letra
de Maria do Carmo de Carvalho Rebelo muitos desses cantares lindos de Espa- de minha autoria. Quando nos reuni-
de Andrade, nome pomposo que, na vi- nha” explica a discípula. mos por vídeo, Yorgos me desafiou a to-
da artística, virou esse diminutivo cari- Enquanto tece essas conexões, car guitarra portuguesa. O convite me
nhoso. Sua mãe, Teresa Siqueira, é canto- Carminho chama atenção também para o surpreendeu, mas, depois de muito tra-
ra de fado e foi sua primeira influência. O gosto dos brasileiros pela música feita em balho, fiquei imensamente feliz”, diz. “A
pai trabalhava como economista, mas ad- Portugal. Certa vez, ao ouvir Milton Nas- gravação, feita ao vivo, no set, foi de uma
quiriu uma casa de fados em Lisboa. Ali, cimento, ela notou um quê de fado no mo- emoção ímpar. Na cena, canto e toco nu-
a pequena Maria assistia, embevecida, a do de cantar do ícone do Clube da Esquina. ma intensa troca de olhar com (a atriz)
alguns dos principais nomes do gênero. Emma Stone.”
“Aquelas noites foram determinan- No início do mês passado, antes da
tes para eu escolher essa carreira. Via as turnê brasileira, ela cantara Estrela,
apresentações no colo de meu pai”, diz. A intérprete, de canção do álbum Maria (2018), durante
Amália Rodrigues (1920-1999) foi outra 39 anos, é filha de a Vigília da Jornada Mundial da Juven-
influência óbvia. “Ela é fundamental, um tude, no Parque Tejo, em Lisboa, numa
FERNANDO TOMAZ

ser completo. Ela transformou o gênero


uma fadista e de um cerimônia presidida pelo papa Francisco.
e o levou para um lugar muito mais alto.” economista que E assim vai Carminho fazendo seu
Carminho pertence a uma geração adquiriu uma casa país – e, com ele, um pouco de o Brasil –
de intérpretes que trabalha pela revi- dedicada ao gênero chegar a ouvidos de outras plagas. •

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 51
Plural

A vida por trás


nalista Lynn Hirschberg, na introdução
do livro Archive, publicado pela Mack, que

das câmeras
tem alguns trechos republicados a seguir.

Priscilla (2023)
Quando li pela primeira vez o livro
Sofia Coppola, que acaba de memórias de Priscilla (Beaulieu)
Presley, Elvis e Eu, achei-o muito interes-
de apresentar Priscilla no Festival de sante e fiquei impressionada por ser tão
Veneza, reúne em livro as memórias da pessoal e revelador. Adorei como ela es-
creveu de forma direta e compreensível
realização de cada um de seus filmes sobre como passar por todos os estágios
que a maioria das meninas passa até se
P O R K AT H R Y N B R O M W I C H tornar mulher – mas num cenário único e
excêntrico, Graceland, com Elvis Presley.
Quando a mulher do meu primo, Kate

E
Gersten, me contou que estava traba-
xiste uma estética particu- cinebiografia foi exibida no Festival de lhando num musical sobre a história de
lar que percorre o trabalho Veneza, encerrado no sábado 9, e tem sua Priscilla, resolvi reler o livro. Fiquei en-
de Sofia Coppola, seja quan- estreia marcada pela MUBI, na América volvida com a história dela e seu mun-
do ela volta suas lentes diá- Latina, para o dia 26 de dezembro. do vívido, e com o quanto deve ter sido
fanas e femininas para o gó- Trancada em sua casa em Napa, na Ca- louco frequentar uma escola secundária
tico sulista presente em O Estranho Que lifórnia, durante a pandemia, Sofia come- católica para meninas em Memphis en-
Nós Amamos (2017); para a alienação ur- çou a vasculhar caixas de material anti- quanto vivia com Elvis em Graceland, lu-
bana de Encontros e Desencontros (2003); go: polaroids, roteiros, recortes, cartas, tando para ficar acordada nas aulas e fa-
para os excessos rococós de Maria Anto- rabiscos. Esses objetos descartados ti- zer os trabalhos depois de atravessar as
nieta (2006); ou para os jovens nham adquirido uma qualidade nostál- noites em festas. Apreciei a força que ela
suburbanos insatisfeitos em Bling Ring: gica ao longo dos anos. A cineasta resol- demonstrou ao sair em busca da própria
A Gangue de Hollywood (2013). veu então reunir as lembranças mais sig- identidade, após crescer tentando se en-
Sofia é especialista em criar atmosfe- nificativas de cada projeto e complemen- caixar no ideal dele de mulher.
ras e mundos inebriantes que parecem tá-las com reflexões e memórias pessoais. Em princípio, fiquei preocupada
totalmente reais. Seus personagens os- “Em todos os meus filmes há uma qua- que ficasse muito parecido com Maria
cilam entre o vazio, o desejo e a repressão. lidade comum: há sempre um mundo e há Antonieta, mas, quando conversei com
As cenas de seus filmes têm uma qualida- sempre uma garota que tenta navegar nele. Priscilla, entendi melhor sua perspecti-
de pictórica que ultrapassa a linha entre a Essa é a história que sempre me intrigará”, va e comecei a ver que poderia se tornar
beleza e a claustrofobia. Seu estilo singu- reflete a cineasta em conversa com a jor- um outro filme. Haveria desafios par-
lar influenciou a cultura popular contem- ticulares, como encaixar grande par-
porânea, desde os melancólicos video- te de sua vida em duas horas e como en-
clipes de Lana Del Rey até os romances contrar alguém para interpretar Elvis.
de Emma Cline sobre jovens mulheres “Em todos os meus Jacob Elordi fez exatamente o que eu
GA BRIEL BOU YS/A FP E A 24

solitárias e potencialmente perigosas. filmes há sempre um imaginava: de forma sutil, evocando o


O primeiro livro de Sofia, Archive mundo e há sempre sentimento dele como foi descrito por
(Arquivo), coleta visões dos bastidores de Priscilla em sua vida privada. Fiquei
seus filmes, começando por sua estreia
uma garota que tenta muito feliz em conhecer Cailee (Spaeny),
na direção em 1999, com As Virgens Sui- navegar nele. Essa é com quem Kirsten (Dunst) adorou traba-
cidas, e terminando com seu retrato da a história que sempre lhar. Também foi incrível ver como ela
jovem noiva de Elvis Presley, Priscilla. A me intrigará” podia se transformar de uma garota de 15

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Cinebiografia. Em seu mais
recente trabalho, Priscilla, que estreia
no Brasil em dezembro, a diretora,
de 52 anos, apresenta um retrato
da jovem noiva de Elvis Presley

anos em uma jovem de 28 no mesmo dia.


Nesse set me senti totalmente no meu
elemento, fazendo o que amo. Presenciei
momentos que se pareciam com filmes
passados, mas espero que agora esse se-
ja meu estilo. Fazer a história de alguém
que está vivo, trouxe um novo tipo de
pressão, porque sempre quis que o fil-
me deixasse Priscilla feliz e, ao mesmo
tempo, incluísse minha representação de
NONONON

sua história. Espero que o público pos-


sa sentir como foi essa relação para ela,

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 53
Plural

e ver como todos passamos por muitas


coisas para nos tornarmos quem somos.

Maria Antonieta (2006)


Enquanto trabalhava no roteiro de Encon-
tros e Desencontros, comecei a adaptar a
biografia de Maria Antonieta, de Antonia
Fraser. Eu estava indo e voltando entre os
dois filmes, quando fiquei presa à visão
empática de lady Antonia sobre Maria An-
tonieta. Antes, ela sempre tinha sido tra-
tada como vilã, e aqui, foi retratada como
figura humana: uma adolescente numa si-
tuação avassaladora. Eu quis que o espec-
tador se sentisse vivendo ao lado dela, em
seu mundo, e não olhando para um perío-
do empoeirado do passado. Queria que fos-
se quase como se ela tivesse feito o filme.
Ela não se interessava por política, mas
era totalmente guiada por suas emoções
e prazeres. Pensei na França do século Sua estética singular
XVIII e na forma como ela tinha sido nar-
influenciou parte
rada nos anos 1980 pelos novos român-
ticos. Tudo parecia luxuoso e decadente, da a cultura pop
formando um grande contraste com a cul- contemporêna, dos
tura cinematográfica dos anos 1990, que clipes de Lana Del
era reduzida e suja, com filmes rodados Rey até os romances
em lojas 7-Eleven. Eu sabia que Kirsten de Emma Cline
Dunst tinha todas as qualidades que a
personagem precisava. Isso me ajudou a
imaginá-la enquanto escrevia o roteiro.
Fiquei muito inspirada pela forma co-
mo John Galliano retratou épocas passa- gente achou que não era sério o suficien-
das em suas coleções e por ver peças reais te, ou que a música estava fora de lugar.
de roupas daquela época no Met Costume Mas senti que fizemos o que eu tinha pla-
Institute. As cores eram brilhantes, sem nejado fazer. Não foi um sucesso quando
os tons de terra monótonos que vemos em foi lançado, então é muito bom saber que
muitos filmes de época. Pedi à lendária as pessoas ainda o assistem e se divertem. cultura feminina predominava. Me sen-
Milena Canonero para fazer o figurino e a ti livre! Naquela época, antes das redes
Odile Gilbert, que trabalhou com Gallia- Encontros e Desencontros (2003) sociais, não víamos tanto o mundo pri-
no, para fazer os cabelos. Passei muito tempo em Tóquio nos meus vado das meninas. Com tudo isso na ca-
Conseguimos permissão para filmar 20 anos. Adorei ir para lá trabalhar em beça, sentei-me à mesa de jantar à noite
no Palácio de Versalhes. Nunca me esque- projetos fotográficos e de moda, e aprovei- em Los Angeles e tentei reunir impres-
cerei da chegada, no primeiro dia de fil- tei todas as oportunidades que tive para ir sões que pensei que poderiam se juntar
magem, ao ver todos os nossos caminhões para o Japão. Naquela época, ir da Califór- numa história para um filme.
estacionados na frente. Passei pelo quar- nia para Tóquio era outro mundo, e eu ado- Eu queria captar como era ir a Tóquio
to de Maria Antonieta, onde eles nos dei- rei a mistura de cidade moderna de Blade e todas as coisas que estavam em minha
xaram guardar o equipamento fotográ- Runner com o lado tradicional do Japão. mente e eu tentava entender quando tinha
fico. Quando o filme foi lançado, muita Também parecia ser um lugar onde a quase 20 anos. Também tinha um devaneio

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Atmosferas. A ideia de infância dependentes Chris e Roberta Hanley de-
em As Virgens Suicidas (1999); tinham os direitos e planejavam fazê-lo
a alienação urbana em Encontros
com alguém, pedi que considerassem meu
e Desencontros (2003); e os
excessos rococós presentes nome, caso o outro não desse certo. Uma
em Maria Antonieta (2006) das razões pelas quais escolhi fazer o fil-
me foi porque não queria que alguém o es-
tragasse – e estava convencida, por algu-
ma razão, de que sabia como fazê-lo.
a interpretar Bob, ao lado de uma jovem Inacreditavelmente, eles acabaram me
Scarlett Johansson, que eu tinha visto contratando e, com um orçamento peque-
como atriz mirim. Com o diretor de fo- no, fomos para Toronto e filmamos no ve-
tografia Lance Acord e o resto da equi- rão de 1998. Sou muito grata aos Hanley e
pe percorremos Tóquio à noite, filman- a todos os que me ajudaram a iniciar o que
do. Estávamos em um clima enevoado se tornou minha carreira. O diretor de fo-
de jet lag, encontrando o caminho à medi- tografia, Ed Lachman, me ouviu com mui-
da que avançávamos. Fiquei preocupada ta atenção para me ajudar a fazer o filme
que a história fosse indulgente, mas sen- ficar como eu o queria, juntamente com
recorrente de encontrar Bill Murray no ti que tinha de fazê-la e tirá-la da cabeça. nosso excelente departamento de figuri-
Park Hyatt. Brian Reitzell me fez esses mix no e arte. Nancy Steiner fez as roupas pa-
tapes, que chamamos de Tokyo Dream As Virgens Suicidas (1999) recerem realistas, mas também lhes deu
F O C U S F E AT U R E S , C O L U M B I A / S O N Y
PIC T U R ES E PA R A M O U N T CL AS SIC S

Pop, que ajudaram a criar o mundo do fil- Adorei o livro de Jeffrey Eugenides, As estilo. Tivemos atores maravilhosos que
me. Eu tinha ouvido muito Loveless, do Virgens Suicidas, quando o li, aos 20 anos. me apoiaram muito, com Kirsten Dunst
My Bloody Valentine, quando estava no Eu estudava na CalArts e não conseguia como a lendária Lux Lisbon. Conhecê-la
CalArts (Instituto de Artes da Califór- encontrar uma maneira de fazer o que deu vida às garotas que estavam em mi-
nia) estudando artes plásticas e tentan- queria. Quando li aquele livro, tive uma nha cabeça. Na produção desse filme, fiz
do ser pintora. Isso deu o tom para o resto. imagem tão clara de seu mundo e de como minha primeira tentativa de também dar
Depois de escrever o filme, comecei o via como filme, que tentei a experiência vida à minha ideia de infância. •
a tentar localizar Bill e convencê-lo a ir de adaptar alguns capítulos como rotei-
ao Japão. Eu sabia que tinha que ser ele ro. Quando descobri que os produtores in- Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 55
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

A era pós-Ana Moser

as coisas nos devidos lugares – ponderan- dos Amigos do Menino Patrulheiro da


► A demissão da ministra do tratar-se de “jogo político – e disse que Mangueira – o Camp Mangueira –, exi-
do Esporte deveria continuará trabalhando pelo esporte em toso projeto de responsabilidade social
todas as frentes possíveis. Esta recente da famosa escola de samba.
servir para, de uma manobra política na área do esporte de- Entre os amigos que lá estavam, a
vez por todas, a classe ve servir para orientar os nossos passos maioria deles de vascaínos que discu-
esportiva se organizar a serem seguidos na política nacional co- tiam intensamente a política do clube,
mo um todo. conversei com um que já atuou muito
politicamente em Brasília, sobre a situação da ministra.
Há menos de um mês, neste mesmo Embora soubesse da ganância e da
espaço, sem maior conhecimento, pro- “goela grande” do “Centrão” pelos cargos

A
saída de Ana Moser do Minis- curei esclarecer a importância do espor- mais rendosos, eu não sabia da fragilidade
tério do Esporte continua re- te na sociedade moderna – importância do cargo, muito bem exposta por esse ami-
percutindo e gerando discus- que foi amplificada com o avanço das co- go. A pasta era, no fim, umas das menos
sões acaloradas. A medalhista olímpica municações e das transmissões, e com o sensíveis entre as que podiam ser mexidas.
foi demitida do cargo na semana passa- aumento dos valores envolvidos em vá- E é nesse ponto que reside o tema que
da para que o espaço possa ser ocupado rias modalidades. quero trazer: a carência de representati-
por um nome do “Centrão”. Poucos dias depois da demissão da vidade política coletiva dos esportistas,
Agora que se passaram alguns dias da ministra, voltei a pensar no assunto en- algo que sempre se mostrou difícil e tem,
notícia, é necessário tentarmos dar sen- quanto participava de um encontro em ao longo dos anos, servido de desculpa pa-
tido ao ocorrido, com as justificadas rea- comemoração aos 35 anos do Círculo ra a utilização da pasta com fins políticos.
ções – muitas vezes desencontradas. Per- Mas, como se diz, a necessidade cria a
demos, é certo – e muito –, com a saída ocasião. A primeira providência, a meu
da ministra, que havia sido uma escolha ver, seria juntar um Conselho de repre-
acertada do governo, que agora nos im- sentantes da sociedade civil comprome-
pinge esta derrota dolorosa. tidos com o esporte. Esse grupo poderia,
É comum que, nas primeiras horas de de cara, ser encabeçado pela própria Ana.
uma crise, surjam diferentes análises da O esporte é, afinal de contas, um compo-
situação, de acordo com a qualidade das nente central da nossa sociedade.
informações que se tenha e até mesmo Embora não haja essa atuação coletiva B A P T I S TÃ O E R O N A L D O C A L D A S / M I N I S T É R I O D O E S P O R T E

conforme o perfil emocional de cada bem estruturada, sempre tivemos com-


interessado. panheiros destacados e com atuação po-
É, porém, necessário que tentemos lítica, desde os tempos da sindicalização,
nos aprofundar no ocorrido para, a partir como o ex-goleiro palmeirense Oberdan
da crise instalada, agir com coerência. O Cattani e outros de grande influência,
melhor de tudo até aqui foi a manifesta- como Zico, Pelé e Sócrates, só para fa-
ção de quem foi, no primeiro momento, a lar do futebol. Não podemos, obviamen-
mais diretamente prejudicada: a própria te, esquecer as combativas meninas do
ministra. Ana Moser acabou por demons- vôlei – apenas para citar alguns outros.
trar, definitivamente, o merecimento de O primeiro passo, agora, é fiscalizar
sua escolha para a pasta do Esporte. intensamente a atuação dos novos ocu-
Embora tenha comparado sua demis- Atuação. A medalhista olímpica disse pantes do Ministério do Esporte. •
são à aposentadoria do vôlei, Ana colocou que continuará trabalhando pelo esporte redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ARTHUR CHIORO
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

O caso Faustão e o SUS

secretarias estaduais de Saúde, é mais complexas, envolvidas nos transplantes


► As filas para um exemplo do SUS que dá certo. Somos de órgãos e tecidos, mas somos incapazes
transplantes e a um país populoso e continental. Conse- de proteger os rins de nossos jovens com
guimos com sucesso gerenciar filas des- uma Atenção Primária à Saúde bem-feita.
resistência das famílias
centralizadas, em cada estado, que se- A segunda dimensão do problema é
em doar órgãos e tecidos guem critérios tais como tempo de es- tão relevante quanto a anterior.
devem-se, sobretudo, pera, compatibilidade, prioridade para Para que alguém entre na fila de trans-
crianças e casos mais graves. plantes é preciso que tenha sua doen-
ao fato de não tratarmos
A existência de milhares de brasileiros ça bem diagnosticada. Aí reside o mais
do tema da morte nas filas aguardando por um transplante grave problema do SUS: a dificuldade de
ao longo da vida deve-se muito mais a questões culturais. acesso à atenção especializada. As filas
Pouco falamos sobre a inevitabilidade da para consultas, exames, cirurgias e pro-
morte e como queremos que a família se cedimentos especializados são imensas
porte no momento que um dia todos ire- e funcionam como um “funil”.

F
austão já está em casa. A fase mais mos enfrentar. Enquanto isso, os que vivem em mu-
difícil e perigosa foi ultrapassada, nicípios ou regiões onde o SUS funciona,
ainda que sua luta pela vida conti- As filas para transplantes e a resis- e aqueles que têm planos de saúde ou re-
nue a cada dia. Esse processo só está sen- tência das famílias em doar órgãos e teci- cursos para pagar médicos especialistas
do possível pelo gesto de amor e solida- dos, mais do que falta de solidariedade ou e exames complementares, como uma
riedade de uma família que, em um mo- de outra dificuldade qualquer, devem-se biópsia de fígado, por exemplo, conse-
mento de profunda dor pela perda de um ao fato de que não tratamos do tema da guem “fechar” seu diagnóstico e ser in-
ente querido, teve a generosa decisão de morte ao longo da vida. Não é, portanto, cluídos nas filas de transplantes. Alguns,
permitir que outras pessoas pudessem uma deficiência do sistema de transplan- com mais recursos cognitivos e, princi-
viver, por meio da doação de órgãos. tes. O sucesso do paciente Faustão pode palmente, financeiros, aceleram o seu lu-
No caso de uma celebridade como ajudar a mudar a atitude da sociedade e gar na fila judicializando contra o SUS e
Faustão, não faltaram as “opiniões dos ampliar as doações de órgãos. os planos de saúde.
especialistas” que de tudo entendem, sem Mas é preciso tratar de outras duas di- A iniquidade de acesso aos recursos de
qualquer compromisso com a verdade. mensões relacionadas aos transplantes. saúde é o maior desafio para a garantia do
No meio de tanta desinformação foi A primeira é o que chamo de “parado- direito constitucional a ela. Felizmente, o
possível constatar o quanto o SUS é im- xo do SUS”, que só pode ser explicado pe- Ministério da Saúde está propondo a no-
prescindível e motivo de orgulho para o la forma como os “interesses de mercado” va Política Nacional de Atenção Especiali-
País. Temos o maior programa de trans- se apropriam dos recursos públicos. Sem zada em Saúde, que estabelece as bases da
plantes públicos do mundo, com servi- uma atenção básica disponível para quem atenção especializada que deve ser organi-
ços hospitalares aptos a coletar órgãos e mais precisa do SUS, continuaremos a ser zada, com ênfase na centralidade na Aten-
tecidos, dentro de procedimentos técni- o país campeão de transplantes de rins e, ção Primária, na qualificação da regulação
cos rigorosos e seguros, regidos por crite- paradoxalmente, o que produz doentes re- do acesso, na regionalização, na saúde di-
riosos preceitos éticos. A rede de trans- nais crônicos mais jovens no mundo, que gital e na produção da equidade e justiça.
plantadores, espalhados pelo território sofrem em máquinas de hemodiálise en- Sem isso, os mais pobres, periféricos,
nacional, ainda concentrada na Região quanto aguardam na fila de transplantes. que vivem nas regiões mais necessita-
Sudeste, tem sido capaz de salvar milha- Isto porque não somos capazes de das e desassistidas, seguirão seu curso
res de vida todos os anos. diagnosticar de forma precoce e tratar de adoecimento e desesperança, e muitos
B A P T I S TÃ O

O Sistema Nacional de Transplantes adequadamente nossos hipertensos e continuarão morrendo sem sequer terem
do SUS, coordenado pelo Ministério da diabéticos. Somos vaidosos por liderar chegado à tal fila dos transplantes. •
Saúde e conduzido em parceria com as as dispendiosas tecnologias, altamente redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

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