Você está na página 1de 61

ITÁLIA FINANCIADO PELA MÁFIA, JORNADAS DE JUNHO QUATRO

BERLUSCONI TOMOU DE ASSALTO ESTUDIOSOS DO TEMA ANALISAM


A POLÍTICA ATÉ SER TARDIAMENTE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
CONDENADO À MANEIRA DE AL CAPONE DAS MANIFESTAÇÕES DE 2013

ANO XXVIII N° 1264 R$ 31,90


21 DE JUNHO DE 2023
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

ALCAPAO
O JULGAMENTO DE BOLSONARO NO
TSE E O FUTURO DO BOLSONARISMO
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

Exercite sua solidariedade!


Sua contribuição vai ajudar famílias e crianças
em situação de vulnerabilidade por meio de
25 projetos nas áreas de cultura, esporte,
educação e segurança alimentar.
Conheça a campanha
e faça sua doação!
Aponte a sua câmera para
o QR Code e doe via PIX:
CNPJ 34.267.237/0001-55
Federação Nacional das
Associações do Pessoal CEF
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Ou doe via transferência
bancária: Agência: 1041,
Op.: 003, CC: 50174-4
Federação Nacional das
Associações do Pessoal CEF
21 DE JUNHO DE 2023 • ANO XXVIII • N° 1264

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas


Há quem veja, nesta cena de
2013, o “ovo da serpente” do
bolsonarismo. Será? Pág. 16

6 A SEMANA A disposição
28 L E G I S L AT I V O 3 6 PA U L O N O G U E I R A B AT I S TA J R .

9 PEDRO SERRANO do Senado em barrar os 37 LUIZ GONZ AG A BELLUZ ZO


retrocessos da Câmara será
testada com o PL do Veneno
Seu País Nosso Mundo

Plural
30 E N T R E V I S TA Ministro do
Quatro
16 S O C I E D A D E
38 I TÁ L I ABerlusconi foi um
STJ lança livro para dar delinquente a comandar
acadêmicos analisam visibilidade às mulheres

48
as causas e efeitos das o país por quatro vezes,
transgênero encarceradas com o apoio da máfia
jornadas de junho de 2013
21 ALDO FORNAZIERI
42 C O L Ô M B I A Gustavo Petro O LUGAR DA
Economia mobiliza a população para MEMÓRIA
22 C A M P O Dossiê do site
32 C O M P R A S G O V E R N A M E N TA I S resistir à tentativa de golpe
De Olho nos Ruralistas
expõe as digitais políticas O governo retira da OMC 44 U C R Â N I A A guerra
a abertura a estrangeiros e entra em nova fase,
da grilagem de terras
prioriza empresas nacionais
CAMPANHA DA CINEMATECA
ainda mais sangrenta
2 5 R I TA V O N H U N T Y BRASILEIRA JOGA LUZ SOBRE O
26 S Ã O PA U L O Deputados DELICADO TEMA DOS FILMES COMO
FÁ BIO RO D RIGU ES P OZ ZEBO M /A B R

acionam o STF contra PATRIMÔNIO A SER PRESERVADO


E D A N I E L A M AT I A S / C I N E M AT E C A

lei paulista que permite a


venda de terras devolutas CAMPO MINADO 51 F U T E B O L Capricho da deusa Fortuna
52 T H E O B S E R V E R O dia em que me descobri
BOLSONARO ESTÁ PERTO DE
marrom 54 C I N E M A Billy Woodberry, o
Capa: Pilar Velloso. Fotos:
PRESTAR CONTAS À JUSTIÇA diretor negro ignorado pelos cinéfilos
Tiziana Fabi/AFP, Mauro ELEITORAL. INELEGÍVEL, ELE 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Drauzio
Pimentel/AFP e iStockphoto MANTERÁ A SUA INFLUÊNCIA? Varella 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) CADÊ A PROVA?
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso Demorou, mas aconteceu. Final-
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis mente, a sociedade pôde ver os
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) pés de barro de quem, até pouquíssimo
REVISOR: Hassan Ayoub
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
tempo, demonstrava empáfia e man-
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim, tinha pose de herói nacional. Como diz
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos, o popular adágio, triste do país que pre-
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo, cisa de heróis para enfeitar sua história.
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr.,
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Quando teremos outro à moda de Moro?
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, Elisabeto Ribeiro Gonçalves
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
KIT LIRA
CARTA ONLINE Entre a movimentação ardilosa
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo de Eduardo Cunha, que Dilma
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
AS MAGIAS Rousseff fez bem em peitar, e o assalto
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) DE CALVINO explícito de Arthur Lira, Lula está prefe-
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura rindo a cessão de direitos republicanos
REDES SOCIAIS: Caio César Gratidão à CartaCapital na pessoa
em troca da governabilidade. Tanto uma
SITE: www.cartacapital.com.br de Mino Carta. Esta edição
estratégia quanto a outra são ruins, le-
é para mim, amante dos editoriais,
vam a golpes e derrotas legislativas. No
um perfeito alerta a todos os ocupantes
Brasil, há uma confusão enorme entre
de cargos públicos e, em especial, ao
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
os regimes presidencialista e parlamen-
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 presidente, seus ministros e interlocuto-
tarista, e ninguém parece disposto a re-
res no Congresso. Não conhecemos
PUBLISHER: Manuela Carta formar o sistema de governo.
DIRETOR EXECUTIVO: Marcelo Romão outro governante, senão Lula, capaz
Adilson Roberto
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene de dar uma sacudida neste inferno que
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
ficou nosso país, sobretudo após a che-
ANALISTA DE CIRCULAÇÃO: Ismaila Alves
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
A ex-mulher de Arthur Lira
gada desta “gente” que ainda não
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios tem provas das falcatruas dele
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, aceitou a derrota nas urnas. Vamos,
e ninguém parece dar a devida atenção
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva urgentemente, convocar o Lula sindica-
a esse fato. Pelo visto, o Judiciário assu-
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: lista para arrumar a casa.
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, miu um lado.
Jozelio Mercês
enio@gestaodenegocios.com.br Ana Paula Silveira
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br O “ESPIÃO” FALA
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
Aos poucos, a extrema-direita
ZANIN E AS
agholanda@Agholanda.com.br
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com começa a pagar pelos males cau-
CIRCUNSTÂNCIAS
OUTROS ESTADOS: comercial@cartacapital.com.br De todos os presidentes da Repú-
sados ao País. Dallagnol já foi cassado
blica desde a redemocratização,
ASSESSORIA CONTÁBIL, FISCAL E TRABALHISTA: Firbraz Serviços Contábeis Ltda. e Moro aguarda sua vez, assim como
Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. Lula é o que mais aplica ou tenta aplicar
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 Bolsonaro, que deverão ficar inelegíveis
os ditames da Constituição de 1988.
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se e sujeitos a outras penas. Não bastasse,
O STF é a corte que tem como função
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
os “homens-bomba” Anderson Torres
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou básica a guarda da Carta Magna.
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel e Mauro Cid estarão diante de uma
Na escolha do sucessor de Ricardo
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584, CPMI. Todos devem pagar pelo desres-
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de Lewandowski, Lula optou pelo homem
acordo com a Lei de Imprensa. peito e agressão à democracia.
certo. Cristiano Zanin tem reputação ili-
Sylvio Belém
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP bada, notório saber jurídico e, certamen-
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL)
te, terá a isenção que se espera de
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos É muito interessante que as coisas
um juiz constitucional.
“só funcionavam em Curitiba” e,
Paulo Sergio Cordeiro Santos
do nada, uma avalanche de escândalos
judiciais aparece em torno da Lava Jato.
Tribunais de todo mundo rejeitam provas
frágeis e colhidas de forma ilegal.
MISTO
Antonio Erik

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
Fale Conosco: http://Atendimento.CartaCapital.com.br E-mail: cartas@cartacapital.com.br, ou para a Rua da Consolação, 881, 10º andar, 01301-000, São Paulo, SP.
De segunda a sexta, das 9 às 18 horas – exceto feriados •Por motivo de espaço, as cartas são selecionadas e podem sofrer cortes. Outras comunicações para a redação devem ser
remetidas pelo e-mail redacao@cartacapital.com.br
Edições anteriores: avulsas@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 5
A Semana
Se a estátua de
Ulysses falasse... Justiça Eleitoral/
Na terça-feira 13, Luiz
Carlos Hauly tomou posse
Batata assando
na Câmara dos Deputados, O TRE do Paraná une ações pela
assumindo a vaga deixada por cassação de Sergio Moro e dá aval
Deltan Dallagnol. Momentos
antes, o parlamentar do para depoimentos de testemunhas
Podemos, com 72 anos
e sete mandatos anteriores,

O
protagonizou um insólito
desembargador Mario Helton
encontro com a estátua de
Ulysses Guimarães Jorge, do Tribunal Regional
(1916-1992) no Salão Verde Eleitoral do Paraná, decidiu na
da Casa Legislativa. “Tô de terça-feira 13 analisar em con-
volta. Peço permissão para junto duas ações que pedem a cassação do
voltar ao nosso trabalho, meu
mandato de Sergio Moro, senador eleito pe-
ídolo, meu querido amigo”,
declarou à peça de bronze. lo União Brasil. Uma das peças foi apresen-
“Conto com a sua iluminação.” tada pela federação Brasil da Esperança,
Ao alcançar a tribuna, Hauly
buscou tranquilizar os
Entre emadereunir
nosso PT, PV e PCdoB, e a outra pelo PL
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Jair Bolsonaro. O magistrado autorizou,
eleitores de Dallagnol.
ainda, a produção de provas, incluindo a oi-
Segundo o parlamentar, há
pontos convergentes entre tiva de ao menos dez testemunhas.
ele e o deputado ficha-suja Em linhas gerais, o PL do Paraná sustenta
cassado pelo Tribunal ter havido um desequilíbrio na disputa
Superior Eleitoral, como regional devido à pré-campanha feita por
“a ordem, a legalidade
Moro à Presidência da República, quando ele
e a constitucionalidade”.
E a estátua de Ulysses, até ainda estava filiado ao Podemos. O ex-juiz
por conta de suas limitações, aproveitou-se da exposição obtida na corrida
foi obrigada a ouvir o discurso presidencial para, num segundo momento,
em sepulcral silêncio. “migrar para uma disputa de menor visibili-
dade, menor circunscrição e teto de gastos 20
vezes menor”, queixa-se a legenda. A pré-candidatura à Presidência favoreceu
O pleito da federação encabeçada pelo PT o ex-juiz na disputa regional pelo Senado

parte de uma argumentação semelhante.


A peça sustenta haver indícios de que Moro Não bastassem os percalços na Justiça
utilizou recursos do Fundo Partidário e do Eleitoral, o plenário do Supremo Tribunal
Fundo Eleitoral, além de “movimentações Federal chancelou uma liminar do ministro
financeiras suspeitas”, para projetar sua Luiz Fux, que proíbe a destruição das
imagem de pré-candidato, “independente- provas obtidas no âmbito da Operação
mente do cargo em disputa”. Spoofing, deflagrada para investigar a inva-
O TRE rejeitou os pedidos de quebra dos si- são de celulares de autoridades por um
gilos telemático, bancário e fiscal do senador. hacker. A ação foi apresentada pelo PDT em
Autorizou, porém, a requisição de informa- 2019, em reação à suposta ordem de Moro,
ções e documentos ao Podemos, abandonado então ministro da Justiça, para a Polícia Fe-
por Moro logo após ele ser convidado para deral destruir as comprometedoras mensa-
ingressar no União Brasil, legenda com gens que comprovam o conluio lavajatista
mais recursos para apoiar seu projeto político. para prender Lula a todo custo.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
21.6.23

Zelensky busca
Ditadura/ 50 anos de impunidade reaproximação
Ex-delegado do Dops é condenado por ocultação de cadáveres na ditadura
Depois de constranger Lula
em uma entrevista à Folha

A
de S.Paulo, na qual acusou o
Justiça Federal em Campos dos berto pelo crime de ocultação de cadáveres
líder brasileiro de se esquivar
Goytacazes, no Norte Flumi- de dissidentes políticos. A juíza federal Ma- de convites para discutir a
nense, condenou o ex-delegado ria Isadora Tiveron Frizão estabeleceu, ain- paz, o presidente da Ucrânia,
Cláudio Antônio Guerra, que da, uma multa de 10 mil reais a Guerra, que Volodimir Zelensky, parece
chefiou o Departamento de Ordem Política poderá recorrer em liberdade. disposto a deixar as bravatas
de lado e aproveitar a mão
e Social do Espírito Santo durante a ditadu- Apresentada pelo Ministério Público Fe-
estendida. Na terça 13, seu
ra, a sete anos de prisão em regime semia- deral do Rio de Janeiro em 2019, a denúncia é chefe de gabinete, Andrii
baseada em confissões do ex-dele- Iermak, telefonou para Celso
gado no livro autobiográfico Memó- Amorim, assessor especial
rias de Uma Guerra Suja (2012) e em de Lula para política externa,
e convidou o Brasil para
depoimentos à Comissão Nacional
participar de uma cúpula
da Verdade, em 2014. Durante as oi- internacional visando o fim
tivas, ele admitiu ter incinerado os da guerra. No dia anterior,
o braço direito de Zelensky
Entre em nosso grupo nocorpos de 12 militantes mortos sob
Telegram: t.me/clubederevistas
tortura entre 1973 e 1975. Hoje pas- já havia reforçado, em
entrevista à CNN, a
tor da Assembleia de Deus, Guerra
importância da iniciativa
já sofreu condenações pelo duplo brasileira: “Acreditamos
homicídio da mulher e da cunhada, que a cúpula não estará
em 1980, e por um atentado a bom- completa sem a participação
ba que mutilou o bicheiro Jonathas dos países do Sul Global”.
Bulamarques, em 1982. Ele nega a
autoria desses crimes.

Guerra confessou ter incinerado


os corpos de 12 militantes

Economia/ ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS


LUIZA TRAJANO COBRA REDUÇÃO DOS JUROS AO PRESIDENTE DO BC

Na segunda-feira 12, a empre- lítica monetária lá na frente”, cial é muito grande. É o empre-
CRUZ /A B R E J EF F ERSO N RU DY/AG. SEN A D O
R I C A R D O Y. M A T S U K A W A / S E B R A E - S P, J O S É

sária Luiza Trajano, presidente mas não indicou quando a go que salva as pessoas. Que-
da rede varejista Magazine queda de juros poderia come- ria te pedir, em nome dos bra-
Luiza, fez um apelo para o pre- çar. Pouco depois, Trajano to- sileiros, para dar um sinal. E
sidente do Banco Central, Ro- mou a palavra. Ela observou não é de 0,25 ponto, que é
berto Campos Neto, reduzir a que os juros astronômicos ini- muito pouco. Precisamos de
taxa básica de juros, mantida bem o consumo e a indústria mais.” O presidente do BC pro-
em 13,75% ao ano. Presente não sabe mais o que fazer com meteu, então, retornar ao
em um evento do Instituto pa- os estoques abarrotados. evento em 2024 com a infla-
ra o Desenvolvimento do Vare- “Sem um sinal, não vamos ção controlada e melhores
jo, Campos Neto disse que as aguentar. Quantas lojas aqui já perspectivas para o setor. Se-
ações de responsabilidade fis- foram fechadas? Quantas rá tarde, respondeu de bate-
cal do governo Lula “abrem es- pessoas já foram mandadas -pronto Trajano: “Vai ter muita “Vai ter muita gente quebrada”,
paço para uma atuação em po- embora? A desigualdade so- gente quebrada, já”. alerta a lúcida empresária

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 7
A Semana

Jim Jones
fez escola WikiLeaks/ Jornalismo em perigo
Lula sai em defesa de Assange, mas a extradição para os EUA parece inevitável
Autoridades do Quênia
confirmaram a descoberta

N
de 303 cadáveres em
o sábado 10, Lula disse ver com
valas coletivas na floresta
de Shakahola, onde uma preocupação a possibilida-
seita evangélica costumava de de extradição do jornalis-
se reunir. Líder da Good News ta Julian Assange, fundador
International Church, do site WikiLeaks, para os Estados Unidos.
o pastor Paul Nthenge
“Assange fez um importante trabalho de de-
Mackenzie está preso
desde 14 de abril, quando núncia de ações ilegítimas de um Estado
apareceram os restos mortais contra outro. Sua prisão vai contra a defesa
das primeiras vítimas do da democracia e da liberdade de imprensa”,
chamado “massacre de escreveu o presidente brasileiro em sua con-
Shakahola”. A polícia acredita
ta no Twitter. “É importante que todos nos
que os corpos exumados
são de seguidores de mobilizemos em sua defesa”.
Mackenzie, que incentivava Assange é alvo de 18 acusações por divul-
os fiéis de sua igreja a jejuar gar dados confidenciais de Washington, so-
até a morte “para encontrar
Entre embretudo
nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
na área militar. Atualmente, ele
Jesus”. Mais de 600
aguarda a extradição para os EUA no presídio
integrantes da seita
continuam desaparecidos. de segurança máxima de Belmarsh, em Lon-
Caso as mortes sejam dres. Em 6 de junho, teve mais um recurso re-
confirmadas, Mackenzie pode jeitado pela Suprema Corte do Reino Unido.
superar o feito do reverendo Se for condenado, o jornalista australiano
Jim Jones, que conduziu
pode pegar até 175 anos de prisão. Entre os
918 fiéis para o suicídio
coletivo em Jonestown, documentos vazados pelo WikiLeaks, há pro-
na Guiana, em 1978. vas de que espiões norte-americanos gram-
pearam o telefone da então presidente Dilma
Rousseff e mais 29 ramais do governo, usados
por ministros, diplomatas e assessores. Se condenado, ele pode pegar até 175 anos de prisão

J AV I E R G R A N J A C E D E N O / M R E P R E S I D Ê N C A D O EQ U A D O R
Argentina/ LAWFARE PORTENHO
E M A U R O R I C O / M I N I S T É R I O D A C U LT U R A D A A R G E N T I N A
TRIBUNAL ANULA PROCESSO DE JUIZ PARCIAL CONTRA CRISTINA KIRCHNER

A Justiça da Argentina anulou, cou a polícia para investigar se Kirchner, a principal liderança
na terça-feira 13, um processo aeronaves da Presidência fo- peronista da Argentina,
movido contra a ex-presidente ram usadas para transportar foi condenada a seis anos
Cristina Kirchner, hoje vice de móveis até propriedades da de prisão e à inabilitação
Alberto Fernández. No caso, então presidente na Patagô- política perpétua por supostos
ela foi acusada de fazer uso ir- nia. Agora, a Câmara Federal atos de corrupção cometidos
regular da frota de aviões pre- de Cassação Penal decidiu na concessão de obras rodovi-
sidenciais durante o exercício anular o processo por consi- árias na província de Santa
de seus mandatos na Casa derar que Bonadio não atuou Cruz. A vice-presidente
Rosada, de 2007 a 2015. no caso com imparcialidade, classifica a sentença como
O processo é resultado de uma vez que ele próprio havia um mero pretexto para retirá-
A fragilidade das denúncias contra um inquérito instaurado pelo sido o denunciante. -la, de uma vez por todas,
a ex-presidente é espantosa juiz Claudio Bonadio, que colo- Em outro processo, Cristina do xadrez eleitoral.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PEDRO SERRANO
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Debaixo do tapete

nal Federal que, nos autos da Ação Direta contrariar a sucessão na 13ª Vara Federal.
► O afastamento do juiz de Inconstitucionalidade 4.638, suspen- O magistrado não foi, de longe, aquele de-
Eduardo Appio da 13ª Vara deu a eficácia do § 1º do artigo 15 da Reso- sejado para manter escondidos os abusos
lução de 135/2011, do Conselho Nacional da Lava Jato. Era preciso eliminar o con-
de Curitiba visa eliminar de Justiça, para vedar que o afastamen- traponto, o que ocorreu pelo exercício de
o contraponto aos to cautelar de magistrados com funda- um dever-poder disciplinar enviesado em
desmandos da Lava Jato mento em mera investigação disciplinar. sua finalidade. O desvio de finalidade, nas
O sucessor na 13ª Vara Federal deve- lições básicas de Direito Administrativo,
ria ser aquele eleito para manter intac- macula a expedição do ato administrati-
tas as decisões dos últimos anos. O por- vo de afastamento cautelar.

O
juiz da 13ª Vara Federal de Curi- tal GGN noticiou que “Marcelo Malucelli É preciso restaurar o direito do magis-
tiba, berço da Lava Jato, foi afas- teria articulado com os procuradores da trado ao exercício da prestação jurisdicio-
tado cautelarmente pela Corte Lava Jato a sucessão de Sergio Moro na nal. De todo modo, para além de qualquer
Especial Administrativa da Corregedo- 13ª Vara de Curitiba”. Ademais, o hoje se- direito subjetivo individualmente consi-
ria Regional da Justiça Federal da 4ª Re- nador Moro reconheceu explicitamen- derado, é fundamental que os escândalos
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
gião no âmbito de determinada investi- te que atuou diretamente para obter o do lavajatismo continuem a ser revelados
gação disciplinar. A garantia constitu- afastamento do magistrado: “Recolhe- e investigados pelas instâncias estatais
cional de inamovibilidade foi subtraída mos o material e entregamos ao tribu- de controle e sociais. A Lava Jato orques-
por meio de uma sanção extremamente nal”. Apenas o receio provocado pelo des- trou, em detrimento da própria democra-
drástica e sem oportunidades do exercí- nudamento daquilo que está debaixo do cia e da estabilidade das nossas institui-
cio dos elementares direitos constitucio- tapete justifica tamanha interferência. ções, um projeto de domínio político e de
nais à ampla defesa e contraditório. ascensão messiânica de agentes públicos.
O expediente disciplinar possui finali- Não por acaso, tomamos conhecimen- Ameaçados, a reação veio por meio de mé-
dades distintas daquelas que devem con- to, de veiculações que colocam em xeque todos sabidamente lavajatistas.
duzir o exercício de um dever-poder dis- os bilhões de reais sob responsabilidade A Lava Jato desenhou-se por inéditas
ciplinar. A atuação jurisdicional do ma- da 13ª Vara Federal de Curitiba obtidos e desafiadoras formas e discursos, o que
gistrado Eduardo Appio ocorria como no âmbito da celebração de acordos de nos leva a alertar que a história huma-
contraponto crítico ao lavajatismo. As leniência e de colaboração premiada. A na não ocorre em fases estanques, como
indisposições locais nasceram aí. O que destinação de valores deve ser objeto de às vezes a descrição didática em perío-
podemos chamar de caso Appio, em con- elementar processo de prestação de con- dos transparece. O olhar para o futuro
junto com uma maior transparência so- tas, o que pode ser promovido pela cor- pressupõe o reconhecimento dos nossos
bre os produtos da Operação Spoofing reição extraordinária em curso. fracassos, a insuficiência dos nossos ma-
nos últimos dias, levantou fortes indí- Por todas essas razões, na condição de nuais clássicos em responder aos desa-
cios de práticas ilegais e criminosas da um dos advogados de Appio, formulamos fios contemporâneos e a falibilidade do
Lava Jato nos últimos anos. um pedido de avocação ao Conselho Na- nosso sistema de justiça.
Preocupações quanto aos desdobra- cional de Justiça, medida jurídica que vi- Appio deve, imediatamente, reassu-
mentos investigatórios levaram ao afas- sa, em razão da quebra de imparcialida- mir sua condição de juiz natural da 13ª
tamento cautelar do magistrado. Desta- de, deslocar a apuração da alegada infra- Vara Federal de Curitiba. Trata-se de
que-se, inclusive, que a Corte Especial ção disciplinar para a referida instância honrar um compromisso com aquilo
Administrativa da Corregedoria Regio- superior de controle do Judiciário. Appio que há de mais elementar numa demo-
nal da Justiça Federal da 4ª Região des- foi afastado do exercício da função juris- cracia: acerto de contas com compro-
B A P T I S TÃ O

cumpriu uma decisão liminar referen- dicional não por ter, em tese, praticado missos constitucionais irrenunciáveis. •
dada pelo Plenário do Supremo Tribu- qualquer infração disciplinar, mas por redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 9
R EPORTAGEM DE CA PA

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

Mais pra lá...


BOLSONARO PRESSENTE A PERDA
DOS DIREITOS POLÍTICOS. COMO FICA
O BOLSONARISMO?
por A NDR É BA R ROCA L

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
N
a quarta-feira 14, O apetite excessivo do marido pela re-
o Partido Liberal eleição explica o “mais para lá do que pra
“É UM FESTIVAL DE
filiou em Brasília cá”. O iminente julgamento no TSE de-
Marcelo Queiroga, INELEGIBILIDADES corre de uma ação movida pelo PDT em
um dos ex-minis- NESTA AÇÃO”, agosto do ano passado, já com a campa-
tros da Saúde de RESUME O EX-JUIZ nha em curso. Os autores acusam Bolso-
Jair Bolsonaro. O naro de ter cometido abuso de poder po-
ELEITORAL
médico deseja concorrer no próximo ano lítico, uso da máquina pública em provei-
à prefeitura de João Pessoa, sua cidade na- MÁRLON REIS to próprio e uso indevido dos meios de
tal. O ingresso no PL foi prestigiado pe- comunicação. São acusações baseadas
lo antigo chefe. Algumas palavras ditas em duas legislações: a Lei Complemen-
no evento por Bolsonaro deram motivo trema-direita nacional? O capitão tem tar 64, de 1990, que define certas condu-
para o médico encomendar, digamos, o 68 anos, estaria com 76 quando acabas- tas puníveis por parte de candidatos, e a
atestado de óbito político do capitão. “A se a punição, mesma idade de Lula na Lei 9.504, de 1997, que estabelece regras
vida de candidato ao Executivo não é fá- campanha de 2022. Segundo o depu- gerais para as eleições.
cil”, afirmou o ex-presidente, ao mencio- tado Arthur Lira, presidente da Câma- O ponto de partida da ação foi uma
nar os mais de 500 processos, não apenas ra e do “parlamentarismo à brasileira”, reunião de Bolsonaro com cerca de 60
como candidato, mas como gestor, ou seja, Bolsonaro se sairá melhor como cabo embaixadores estrangeiros em 18 de ju-
por atos dos tempos de Palácio do Planal- eleitoral do que como candidato, ava- lho de 2022, no Palácio da Alvorada. O
to. Em seguida, resumiu a própria situa- liação com a qual alguns analistas polí- então presidente estava uma fera com
ção: “Mais pra lá do que pra cá”. ticos concordam. Dúvida: quem herda- um encontro similar que o TSE havia
É o Tribunal Superior Eleitoral o res- ria o espólio e concorreria a presiden- promovido 45 dias antes para compro-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ponsável por Bolsonaro estar “mais pra te pelo bolsonarismo na eleição presi- var aos olhos do mundo a segurança
lá do que pra cá”. No próximo dia 22, o dencial de 2026? Na corrida pelo posto das urnas eletrônicas. O tribunal que-
TSE começará a julgar uma ação que, em despontam os governadores Tarcísio de ria, aliás, ter contado com observado-
razão do conteúdo e da geopolítica inter- Freitas, de São Paulo, Romeu Zema, de res europeus durante a eleição, mas foi
na da corte, tem tudo para terminar com Minas Gerais, e Ratinho Jr., do Paraná, forçado a retirar o convite por pressão
a proibição de o ex-presidente candida- além de Michelle Bolsonaro, a ex-pri- do Ministério das Relações Exteriores.
tar-se por oito anos, punição que o deixa- meira-dama que, contudo, não demons- Diante dos diplomatas estrangeiros, o
ria fora da próxima eleição presidencial, tra vontade em ser candidata. objetivo de Bolsonaro era oposto àquele
em 2026. Eventualmente até da disputa
de 2030, a depender do calendário eleito-
ral. Espera-se um julgamento longo, não
é certa a conclusão antes de julho, mês de
férias do Judiciário. Dos sete juízes, dois
são vistos como simpáticos ao ex-presi-
dente e podem adiar a decisão com um
A L E JA NDRO Z A MBR A N A / TSE E M AURO PIMEN T EL /A FP

pedido de vistas, aquele que um magis-


trado invoca para estudar um assunto
com calma. O desfecho não passará, no
entanto, deste ano, conforme se ouve nos
bastidores do tribunal, inclusive porque
seu presidente, Alexandre de Moraes, to-
mou providências em fevereiro contra as
protelações em julgamentos. Os pedidos
de vista agora têm prazo máximo de 60
dias (a contagem é interrompida duran-
te as férias do tribunal).
A condenação de Bolsonaro signifi-
caria a morte política do próprio e da ex- Moraes, inimigo número 1 do bolsonarismo, comanda o julgamento

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 11
R EPORTAGEM DE CA PA

da corte: “provar” que as urnas e o sis-


tema de contagem de votos do TSE não
eram confiáveis.
No discurso de 45 minutos, o então
presidente descreveu um inquérito da
Polícia Federal sobre um ataque hacker
ao sistema do TSE na eleição de 2018. O
ataque seria a prova cabal da fragilidade
e motivo para o pleito municipal de 2020
ter sido suspenso, o que não aconteceu.
Bolsonaro aproveitou ainda para criti-
car os três juízes do Supremo Tribunal
Federal que à época compunham o TSE.
Edson Fachin (“o responsável por tornar
Lula elegível”, “sempre foi advogado do
MST”), Luis Roberto Barroso (“foi esco-
lhido pelo governo do PT”) e Moraes (“ad-
vogou no passado a grupos que, se eu fos-
se advogado, não advogaria”). Só este últi-
mo ainda integra o TSE, corte composta
por três magistrados do STF, em sistema
de rodízio, dois do Superior Tribunal de
Entre em nosso
Justiça e dois advogados (estes acabam de
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ser indicados por Lula: Floriano de Aze-
vedo Marques e André Ramos Tavares).
A minuta do golpe encontrada no celular de Anderson Torres foi incorporada

O
à ação do TSE. Costa Neto sai em defesa do ex-presidente e correligionário
encontro com os embai-
xadores foi transmitido
pela TV Brasil, controla-
da pelo governo, e as ima-
gens geradas pela emisso-
ra foram posteriormente replicadas nas
redes sociais de Bolsonaro. Ao mover a
ação, o PDT pedia uma liminar para a
gravação ser retirada de circulação na
web, e o então corregedor-geral do TSE,
Mauro Campbell, concordou, decisão
referendada pelo plenário do tribunal
na semana seguinte. O Youtube havia
excluído o vídeo por conta própria com
base em uma política interna que “proí-
be conteúdo com informações falsas so-
bre fraude generalizada, erros ou proble-
mas técnicos que supostamente tenham
alterado o resultado de eleições anterio-
res, após os resultados já terem sido ofi-
cialmente confirmados”.
Em suma, a acusação pedetista sus-
tenta que Bolsonaro valeu-se do cargo de
presidente para convocar embaixadores

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
No julgamento, Bolsonaro será alvo de
um voto duro por parte do atual correge-
dor-geral do TSE, Benedito Gonçalves,
relator da ação do PDT. Gonçalves é a fa-
vor de condenar o ex-presidente, segundo
CartaCapital apurou. Seu voto tem mais
de 450 páginas e foi enviado previamente
aos colegas de corte. O juiz defende que a
conduta de Bolsonaro diante dos embai-
xadores faz parte de uma história mais
longa, a sabotagem da confiança popular
nas urnas e no sistema eleitoral. Por isso,
ao longo do processo, botou lupa em duas
transmissões em vídeo feitas por Bolso-
naro na web em julho e agosto de 2021,
um ano antes do encontro com diploma-
tas. Nas lives, o então presidente lança-
va dúvidas sobre as urnas. Na segunda,
vazou o inquérito da PF cujo teor seria
descrito aos embaixadores no Alvorada.

O
corregedor aproveitou
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ainda um fato que veio
a público só cinco me-
ses após a ação do PDT.
Lira prefere Bolsonaro no papel de cabo eleitoral do que como candidato Trata-se da “minuta gol-
pista” encontrada em janeiro pela PF na
e fazer um discurso de teor eleitoral, e is- quem vence eleição. E elevou de três pa- casa do ex-ministro da Justiça Anderson
so é abuso de poder político (artigo 22 da ra oito anos o período de inelegibilidade. Torres. A “minuta” era o desenho de um
Lei Complementar 64). A reunião foi or- A punição é contada a partir do primeiro decreto presidencial que faria uma inter-
ganizada com o apoio de órgãos do gover- dia útil após o primeiro turno em que se venção no TSE (metade dos intervento-
no e teve transmissão da TV Brasil, o que deu o “abuso”, daí Bolsonaro, se conde- res seria militar) para anular a eleição
configuraria uso da máquina pública (ar- nado, ter chances de disputar em 2030, de outubro e organizar outra. A inclu-
tigo 73 da Lei 9.504). O teor do discurso quando completará 75 anos. são do documento no processo é contes-
era falso, tinha fins eleitorais e foi disse- tada pelo defensor de Bolsonaro, Tarcisio
minado nas redes sociais, situação que o Vieira de Carvalho Neto. O advogado foi
TSE havia definido no fim de 2021 como O CORREGEDOR- ministro do TSE de 2014 a 2021 e parti-
passível de condenação e cassação de um cipou, em 2017, do julgamento da última
candidato, ao punir um deputado esta-
-GERAL DO TSE E grande ação contra um candidato presi-
RELATOR DO CASO,
C A M PA N AT O /A B R E M A R C E L O C A M A R G O /A B R

dual eleito em 2018 no Paraná, Fernan- dencial. À época, a corte absolveu Dilma
do Francischini. “É um festival de ine- BENEDITO Rousseff por 4 a 3, e Carvalho Neto deu
B R U N O S PA D A /A G . C Â M A R A , VA LT E R

legibilidades nesta ação contra o Bolso- GONÇALVES, um desses quatro votos. Agora no caso
naro”, diz o ex-juiz eleitoral Márlon Reis, de Bolsonaro, espera-se uma condena-
“pai” da Lei da Ficha Limpa.
É A FAVOR DA ção por 5 a 2, caso não haja surpresas. Os
A Ficha Limpa, de 2010, alterou uma CONDENAÇÃO únicos com quem o capitão parece con-
lei de 1990, a Complementar 64, e tem DE BOLSONARO, tar são Kássio Nunes Marques, que che-
dispositivos que agora empurram Bolso- APUROU gou ao Supremo em 2020 indicado pelo
naro ao cadafalso. A norma garante que capitão, e Raul Araújo, do STJ. Em 2022,
um candidato derrotado também seja
CARTACAPITAL Araújo tomou várias decisões a favor do
punido por abusos de campanha, não só candidato à reeleição. Entre elas, proibiu

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 13
R EPORTAGEM DE CA PA

Lula de propagar vídeos em que chama-


va o rival de “genocida” e vetou manifes-
tações de apoio de músicos ao petista no
festival Lollapalooza.
Além de reclamar da inclusão no pro-
cesso de um documento cuja existência
só foi conhecida meses após a ação do
PDT, a defesa de Bolsonaro nega o abuso
de poder político no convite aos embaixa-
dores para uma reunião, pois Bolsonaro
era presidente e podia promover esse tipo
de encontro. Era direito do capitão, acres-
centam os advogados, responder àquela
reunião promovida pelo TSE 45 dias an-
tes. E o candidato não teria mentido so-
bre as urnas, apenas expressado sua vi-
são sobre o tema. O tribunal, argumenta
a defesa, não pode juntar ao processo as
lives bolsonaristas de 2021 e a minuta gol-
pista. De quebra, afirma, ao divulgar um
comunicado após a reunião, o TSE redu-
ziu a influência do presidente em relação
Entre em nosso
às urnas. Será? Em janeiro do ano passa-
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
do, 27% dos brasileiros expressam dúvi-
das sobre as urnas eletrônicas, confor-
me pesquisa do PoderData. Em dezem-
bro, eram 37%, porcentual idêntico àque-
le que Bolsonaro teve dos votos totais.

O
presidente do PL ,
Valdemar Costa Neto, Moro e Dallagnol caíram em desgraça. xada pelo capitão em conversas prelimi-
Os juízes do STF, como prega Costa Neto,
saiu a campo nos últi- tendem a transformar Bolsonaro em “mártir”?
nares. Fechou com o então tucano Ge-
mos dias para tentar sal- raldo Alckmin. A filiação do capitão à le-
var Bolsonaro. Disse ser genda em novembro de 2021 foi um ca-
“impossível” o TSE condená-lo. Mais re- cesso do PL. “Não quero que aconteça samento de conveniência. Um precisa-
centemente, deu declarações em tom de isso com eles, eu não tenho nada contra va de um partido grande para disputar
aviso aos juízes da corte. Em 5 de junho, eles, mas vão pagar caro. E isso vai acon- a eleição, o outro queria um puxador de
inaugurou a sede do PL em São José do tecer com o atual TSE, se tomar uma me- votos para encorpar as bancadas. Quanto
Rio Preto, cidade do interior paulista, dida dessas (com Bolsonaro). É um cri- maior uma legenda, mais dinheiro rece-
e comentou que a derrocada de Deltan me impedir um camarada de ser can- be de dois fundos públicos. Na campanha
Dallagnol e Sergio Moro pode um dia didato”, afirmou. Um dia depois, Costa de 2022, o PL teve 5% dos 4,9 bilhões de
se abater sobre os togados do TSE que Neto foi mais explícito em um vídeo no reais do fundo eleitoral, que financia as
condenarem Bolsonaro. Os mentores Twitter: “As coisas mudam. Como o PT candidaturas. Foi o sexto maior naco. A
da Operação Lava Jato “ultrapassaram mudou, do buraco vieram para presiden- sigla elegeu a maior bancada da Câmara
os limites da lei” com Lula, disse Costa te da República, amanhã nós (bolsona- (99 deputados), e terá neste ano o maior
Neto, e “vão pagar caro”. O primeiro per- ristas) vamos estar na Presidência”. porcentual, 17%, do 1,1 bilhão do fun-
deu em maio o mandato de deputado, Na campanha de 2018, Costa Neto na- do partidário, que custeia as despesas
cassado após ação do PT na Justiça elei- morou a candidatura de Bolsonaro, mas anuais da atividade política.
toral. O outro, senador, tem um encontro desistiu de colocar o PL a serviço do “mi- A eventual cassação dos direitos políti-
marcado com a Corte graças a um pro- to” por causa da péssima impressão dei- cos de Bolsonaro não desanima o coman-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
dante do PL. Na eleição de 2024, para origem a visão de mundo, os valores pro-
prefeitos e vereadores, Costa Neto apos- fessados pelos indivíduos. O bolsonaris-
tará na figura do ex-capitão. Na cidade de PRESIDENTE DO PL, mo seria, antes de tudo, um “movimen-
São Paulo, ele e Bolsonaro ensaiam uma VALDEMAR COSTA to identitário”. “A condenação do Bolso-
aliança com o prefeito Ricardo Nunes, NETO TENTA naro vai gerar um sentimento de revol-
do MDB, sondado para trocar de parti- ta e injustiça entre os bolsonaristas, e is-
do e se filiar ao PL. Pior para o deputa-
SALVAR O so vai fortalecê-lo como líder de massas”,
do federal Ricardo Salles, jogado ao mar. PESCOÇO DE prossegue Nunes. Algo parecido com o
Costa Neto antevê uma disputa difícil BOLSONARO E que aconteceu com Lula após a injusta
com Guilherme Boulos, do PSOL, numa VATICINA UMA prisão na Lava Jato.
cidade em que Lula bateu Bolsonaro no
VOLTA POR CIMA

T
segundo turno (53% a 46%). Sonha, aliás, al análise explica em par-
em conseguir para o PL o espólio deixado te por que um articula-
pelos tucanos no interior do estado. No dor político do Palácio
Rio de Janeiro, há dois generais da reser- nes, da consultoria Quaest. “O Bolsona- do Planalto parecia apre-
va como possíveis candidatos: o deputado ro continuará uma força política mes- ensivo ao comentar o as-
Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saú- mo que tenha os direitos políticos cas- sunto com CartaCapital na terça-feira
de, e Walter Braga Neto, companheiro sados, como parece provável. O bolsona- 13. Segundo a fonte, o TSE irá “vitimi-
de chapa de Bolsonaro. Braga Neto de- rismo é um movimento de massa, cons- zar” Bolsonaro, caso o condene. O mes-
ve escapar da condenação no TSE, na truído em torno de valores, e independe mo articulador enxerga um risco para o
ação movida pelo PDT. O Ministério Pú- de quem seja o candidato”, diz. Nunes de- governo no Congresso, onde o Planalto
blico Eleitoral é a favor da degola do ca- ve lançar em julho um livro sobre o que ainda não conseguiu uma base de apoio
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
pitão, mas pede a absolvição do general. chama de “país calcificado”. A ideia por sólida, especialmente entre os deputados.
A aposta no capitão como cabo elei- trás do conceito é a de que há uma divisão O risco seria uma aglutinação da extre-
toral tem boas chances de dar certo, na política de tal magnitude no Brasil, nun- ma-direita, o que poderia vir a influen-
avaliação do cientista político Felipe Nu- ca vista antes, e que essa divisão tem na ciar o comportamento de Arthur Lira.
Há, no entanto, outras consequências
relevantes do julgamento. “É importan-
te o reconhecimento, por parte da justi-
ça eleitoral, dos abusos de poder político
cometidos por Bolsonaro. Isso tem impli-
cações para o governo e para a democra-
cia brasileira. Constrange novos abusos”,
defende a presidente da Associação Bra-
sileira de Ciência Política, Vanessa Elias
de Oliveira, professora da UFABC. Pa-
ra ela, de fato Bolsonaro poderá funcio-
nar melhor como cabo eleitoral, em ra-
zão da alta rejeição pessoal, o que atra-
palha uma candidatura. “Políticos de di-
reita ocuparão o espaço deixado. No en-
L U C A S P R I C K E N / S TJ E R E D E S S O C I A I S

tanto, políticos menos radicais têm mais


chances de êxito, pois o discurso radical e
conservador gera também muita rejeição.
Há ainda muito espaço para uma direita
moderada e um político com este perfil
tem chances de atrair os bolsonaristas e
muitos outros eleitores para seu lado. Não
podemos nos esquecer que Bolsonaro te-
Gonçalves, relator, preparou um voto com mais de 450 páginas ve 48% dos votos no segundo turno.” •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 15
Seu País

Jornada às
profundezas
SOCIEDADE Quatro acadêmicos analisam,
uma década depois, as causas e efeitos
dos protestos de junho de 2013
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

M
ovimento espontâneo e
Entre em nosso cárias,
popular? Revolta mani-
grupo lojas, equipamentos públicos e, por
no Telegram: t.me/clubederevistas
fim, a invasão do Congresso.
pulada pela elite nativa Desde então, o movimento ensejou
associada a interesses uma série de livros, debates e pesquisas
internacionais? Abre- acadêmicas. CartaCapital ouviu quatro
-alas da ascensão de Jair Bolsonaro e do especialistas que se debruçaram sobre o
extremismo? Passados 10 anos das jor- tema ao longo dos últimos 10 anos. Um
nadas de junho, o País ainda não conse- resumo das principais reflexões dos es-
guiu decifrar a contento as causas e as tudiosos está exposto a seguir:
consequências dos protestos, cujo esto-
pim, na tarde de 13 de junho de 2013, foi O EXTREMISMO
uma reivindicação tão antiga quanto Por Olivia Perez, doutora em Ciência
pueril de estudantes paulistanos: não só Política, professora da Universidade Federal
impedir o aumento de 20 centavos na ta- do Piauí, autora do texto Junho de 2013
rifa de ônibus da capital, mas defender a e a Importância do Coletivo, entre outros.
gratuidade do transporte público.
Capitaneado pelo Movimento Passe Não considero que junho de 2013 tenha
Livre, organização autodeclarada apar- revelado uma direita adormecida, pois a
tidária, as jornadas de junho foram mar- direita sempre esteve presente em cargos
cadas pela violência policial e por uma me- decisórios. O que muda são as configura-
tamorfose ao longo dos dias. Aos poucos, o ções e as pautas. Quando crescem pau-
MPL viu-se alijado dos protestos, enquan- tas como feminismo, antirracismo, a fa-
to os manifestantes, cada vez mais bran- vor dos direitos LGBTQIA+, a direita re-
cos, empunhavam a bandeira da antipo- age. Não era uma direita adormecida em
lítica. O movimento cresceu, alastrou-se junho de 2013 nem o movimento pode ser
pelos demais estados e fez surgir um tipo responsável pelo surgimento de uma di-
de militância incomum no País, os Black reita que sempre esteve bastante presen-
Blocs, encapuzados violentos que promo- te no comando do País. Eu entendo como
veram o quebra-quebra de agências ban- movimentos e contramovimentos.

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 22
NESTA Grilagem. Dossiê
SEÇÃO revela os políticos
invasores de terras

Custou mais de 20 centavos.


Os protestos contra o reajuste da tarifa
de ônibus foram reprimidos com violência

A esquerda, por sua vez, nunca este-


ve ausente das ruas, tampouco a direita.
Entendo os movimentos como relacionais.
Junho de 2013 reuniu muita gente à es-
querda e a direita entendeu que ocupar as
ruas dá certo e também foi. Existe uma lei-
tura de que a direita ganhou e a esquerda
perdeu o protagonismo, o que não se tra-
duz na realidade. Aquelas séries de pro-
testos foram responsáveis por socializar
muitos jovens politicamente que ressal-
tam a importância de organizações cole-
tivas, mais horizontais, menos hierárqui-
cas, com mais possibilidade de inclusão
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
daqueles excluídos no campo de direitos,
nas principais decisões coletivas. A es-
querda não ficou adormecida, o que se vê
é a garotada a falar de feminismo, antir-
racismo e a favor dos direitos LGBTQA+.
A esquerda perdeu em áreas como o meio
ambiente, costumes, porque a gente tinha
avançado em relação a essas pautas.
Existia em 2013 uma insatisfação po-
pular em relação à política e a direita se
apropria dessa insatisfação e se lança co-
mo alternativa, mas não que essa insa-
tisfação seja responsável pela eleição do
Bolsonaro em 2018.
As Jornadas de Junho devem constar
nos livros de história como um ciclo de pro-
testos, assim como houve outros no Brasil,
que juntou gente, organizações com mui-
tas pautas mostrando que as desigualda-
des no Brasil têm relação com várias cli-
vagens sociais, de classe, gênero, raça, re-
gião, e que mostrou que ir às ruas faz efeito
nos ciclos políticos brasileiros. Que a popu-
NELSON A L MEIDA /A FP

lação tem força. Eu descreveria de um jeito


positivo. Isso não quer dizer que desconsi-
dere a diversidade de atores, inclusive de
atores de direita que compartilhavam es-
sas insatisfações com a política.

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 17
Seu País

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

O PARTO DE BOLSONARO tação eleitoral do bolsonarismo. É o pri- nizando um determinado campo. Esse re-
Por Cláudio André de Souza, cientista meiro movimento que funcionou eminen- pertório vai estar presente nas lutas contra
político e professor da Universidade temente no formato digital, numa perspec- Dilma, a partir de 2014, sobretudo ao longo
da Integração Internacional da Lusofonia tiva muito clara de ascensão de um novo ti- de 2015, culminando no impeachment em
Afro-Brasileira, é autor do texto po de mobilização, de um repertório par- 2016. As forças progressistas perderam o
Governabilidade, Movimentos Sociais tindo da internet para as ruas. controle das ruas, pois havia um transbor-
e Sistema Político: A Relevância dos Ciclos Não dá para olhar 2013 sem a conse- damento social no campo da direita. Para
de Protestos no Brasil - 2013-2108. quente perspectiva de 2014, com a Opera- a esquerda, as manifestações de junho sig-
ção Lava Jato. Em 2013, o cerne do antipe- nificaram a reconfiguração de determina-
As manifestações de 2013 trouxeram um tismo se coloca presente, com a identifica- dos grupos que pediam mais inclusão polí-
ciclo amplo na conjuntura política bra- ção contra a corrupção, contra o “Mensa- tica. No campo da direita, eu concordo que
sileira, principalmente quando se anali- lão”. No dia 26 de junho, havia manifestan- “2013 pariu Bolsonaro”.
sa determinada tendência em provocar tes a pedir o Fora, Dilma, Justiça e “mensa- Fernando Haddad publicou um texto
um transbordamento societário, ou seja, leiros” na cadeia, criticando o Lula, orga- em 2017 no qual ele conta detalhes do te-
quando a gente tem a ascensão de novos lefonema que Dilma Rousseff recebeu de
grupos da sociedade civil à cena pública. Vladimir Putin, presidente da Rússia, a
As manifestações foram tensionadas entre respeito do tráfego incomum nas redes so-
grupos ideologicamente distintos, mas re- ciais, na internet, em relação às manifesta-
velaram em especial as reconfigurações da Cláudio André de ções de 2013. Isso abre uma reflexão sobre
direita, levando ao que depois a gente iden- Souza: “2013 pariu interesses internacionais em torno dos pro-
tificou como um movimento de represen- Bolsonaro” testos. A gente não sabe em qual medida is-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

so estava ancorado em uma perspectiva de seguiram depois de a principal deman- Captura. Os Black Blocs surgiram
enfraquecer o governo em relação à agenda da do movimento ter sido atendida pelos do nada e sumiram de repente.
A antipolítica prosperou
do pré-sal. É um enigma. O junho de 2013 governos, diminuindo a tarifa do trans-
abre uma série de legados sócio-históricos porte. Dali em diante as principais pau-
e penso que a gente deve, sobretudo do pon- tas eram contra a corrupção, a favor de
to de vista metodológico, analisar esse pro- mais verbas para o serviço público, con- justamente porque o nosso sistema políti-
cesso como parte de um ciclo único, que co- tra os gastos da Copa e a violência poli- co bloqueia um aprofundamento dos di-
meça em 2013 e se encerra em 2018. cial e outras pautas ligadas à direita. Eu reitos previstos na Constituição. Passa-
não entendo que ali existia uma deman- dos dez anos, isso permanece, mesmo ago-
O JOIO E O TRIGO da clara da direita. O que acabou por se ra, no terceiro governo Lula. Os retroces-
Por Camila Rocha, doutora em Ciência tornar uma herança de junho, e aí pen- sos são muito sintomáticos e as demandas
FERN A NDO FR A Z ÃO/A BR E A RQUIVO/A BR

Política, pesquisadora do Centro Brasileiro sando principalmente no governo do PT, de junho não só foram bloqueadas na épo-
de Análise e Planejamento e autora de foi o crescimento da pauta da corrupção, ca, mas continuam a ser até hoje. Vincular
Menos Marx Mais Mises: O Liberalismo na percepção de ser um dos principais a eleição do Bolsonaro com o junho 2013
e a Nova Direita no Brasil. problemas do País. É importante desta- também não é possível.
car que 2012 foi o ano do julgamento do As manifestações de 2013 devem ser
As repercussões de junho de 2013 acaba- “Mensalão” e, naquela época, no Brasil escritas nos livros como revoltas popula-
ram muito importantes para o que veio inteiro ocorreram vários protestos con- res, horizontais, que não tinham lideran-
depois, mas a gente tem que ter o cuidado tra a corrupção. ças claras, iniciadas não por uma esquer-
de não comparar a atuação do Movimen- Acho também difícil relacionar os retro- da autonomista, o movimento Passe Livre,
to Passe Livre com as manifestações que cessos com junho de 2013, que aconteceu e que foram revoltas descentralizadas. A

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 19
Seu País

Debate. As jornadas de junho abriram


a porteira para o reacionarismo que
levaria ao impeachment de Dilma?

sim como as jornadas em si. O junho que


reivindicava uma mudança social mais ra-
dical e que trazia novas formas de exercício
da política foi perseguido, como se faz de
costume com os movimentos populares. Es-
tou falando aqui de duas coisas distintas,
mas complementares: por um lado, das ba-
las de borracha e gás nos protestos, por ou-
tro, da emergência de novas formas de cri-
minalização do protesto, de securitização
e de militarização da vida que foram im-
plementadas durante a Copa e as Olimpí-
adas. De forma mais ampla, após a catar-
se inicial, começa uma fase de decantação,
que supõe um processo de diferenciação de
agendas e espaços entre os grupos alinha-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas dos mais claramente à esquerda e à direi-
ta. Neste processo, o PT, por estar há dez
anos no governo, foi um dos mais afetados.
Junho de 2013 marcou uma conjuntu-
esquerda estava acostumada a lidar com quele ano e os acontecimentos posteriores. ra crítica, porque supôs o início de uma
protestos com lideranças claras, sindica- Temos de deixar de colocar a conta do re- onda de protestos de alta intensidade que
tos, organizações progressistas das mais trocesso democrático em junho de 2013 e desafiou o ciclo político mais amplo que
diversas. E junho de 2013 rompe com essa olhar para outros elementos de reconfigu- havia reinado no Brasil durante a Nova
lógica. Ideologicamente eram manifesta- ração da sociedade, da cultura, da política, República. Há características importan-
ções ambíguas. Todas essas característi- da economia e das subjetividades nas últi- tes que aproximam o que vivemos dez
cas fazem das jornadas manifestações po- mas décadas. Isso não significa que não po- anos atrás com outros protestos, levan-
pulares muito peculiares. demos relacionar as jornadas com aconte- tes e jornadas da indignação pelo mundo
cimentos prévios ou posteriores, mas deve- nesta última década: indignação difusa,
LINCHAMENTO mos fazer uma análise mais séria do pro- a ambivalência dos discursos, a hetero-
Por Breno Bringel, doutor em Ciência cesso histórico, social e político. Junho pro- geneidade das demandas e a ausência de
Política e professor da Universidade duziu uma “abertura societária”. Isso pro- mediação de terceiros e de atores tradi-
Federal do Rio de Janeiro. Autor vocou um transbordamento da política que cionais, o estranhamento dos movimen-
de Brasil – Cambio de Rra: Crisis, permitia múltiplos futuros possíveis. tos sociais estabelecidos ao ver que não se
Protestas y Ciclos Políticos. O pós-2013 foi diverso e heterogêneo, as- reconheciam nestas mobilizações massi-
vas. Tudo isso faz com que junho de 2013
Junho de 2013 é hoje objeto de um verda- não tenha sido um evento isolado global-
deiro linchamento moral por setores mui- mente, mas parte de uma geopolítica da
to diversos, que veem ali o início de todos os Camila Rocha: indignação. Foi, sem dúvida, um momen-
ROV EN A ROSA /A BR

nossos males. As teses que vinculam junho to de catarse, pois havia uma energia so-
de 2013 com a extrema-direita (e desta for-
“Foram revoltas cial diversa, além de uma dinâmica de ex-
ma, com o impeachment, a Lava Jato e o horizontais, perimentalismo político e uma coexistên-
bolsonarismo) se baseiam em uma causa- populares, sem cia nos mesmos espaços de forças não so-
lidade linear e pobre entre os protestos da- liderança clara” mente distintas, mas antagônicas. •

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

A arrancada da economia
com políticas públicas inovadoras na eco-
gresso proporcionaram maior segurança
► O momento é propício nomia, nas áreas sociais como educação epara investir nas atividades produtivas.
para Lula recuperar pontos saúde, além de promover mudanças do pa- Por fim, a série de programas sociais
radigma energético e produtivo, orienta-restabelecidos pelo governo também
perdidos nas pesquisas de das pelos princípios da sustentabilidade.
contribuirá para o avanço da economia.
avaliação do governo, mas O cenário econômico mostra uma vira- Destaque-se o Bolsa Família, a Farmá-
também é preciso melhorar gem de chave, começando pelo surpreen- cia Popular, o Minha Casa Minha Vida, a
dente crescimento do PIB acima do espe- fórmula de reajuste do Salário Mínimo, e
o desempenho político rado, puxado pelo agronegócio. Se é ver-o Desenrola, que está para ser anunciado.
dade que esse desempenho não se deve ao Além de proporcionarem um mínimo de
consumo das famílias, o fato é que ele aju-
bem-estar aos setores mais aflitos e ne-

U
ma combinação de fatores in- da a melhorar as contas externas, tanto a
cessitados, esses programas têm o méri-
dica que a economia brasilei- conta corrente quanto a balança comer- to de estimular a economia.
ra está no início de um proces- cial. A percepção internacional do cresci- O bônus para a compra de carros novos,
so de crescimento. Com isso, surgem si- mento da economia brasileira deverá pro-embora também possa incentivar a produ-
nais de melhora das expectativas nas di- porcionar também uma retomada mais ção no setor automobilístico, é duvidoso
versas camadas sociais. As mais afeta- forte do Investimento Estrangeiro Direto.
no aspecto ambiental e social, por estimu-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
das, aquelas que sofrem os impactos do lar uma matriz de carbono e por ser regres-
desemprego e da baixa renda, poderão Um segundo fator que favorece a vi- sivo do ponto de vista socioeconômico.
ter uma significativa melhora das con- rada de chave rumo à retomada do cres- O governo vem falando da necessidade
dições de vida. O consumo das famílias, cimento se relaciona ao binômio taxa de de reindustrialização do País, o que é cor-
hoje bastante deprimido, tende a me- juros e inflação. A inflação está com ten- reto. Mas falta especificar o programa e
lhorar ainda no segundo semestre. Os dência de baixa. Deverá continuar com a natureza dessa reindustrialização. Se o
setores econômicos, por sua vez, come- essa tendência também em 2024, para governo optar pelos incentivos a setores
çam a perceber que este é um momen- quando se projeta uma inflação de 4%. específicos e poluentes, como já se fez no
to para a retomada dos investimentos. Com isso, o Banco Central, que adotou passado, optará por um caminho erra-
O momento é propício também para uma dura política de juros altos, sinaliza do. Esse processo deve conectar-se com
que o governo melhore o seu desempe- que a partir do segundo semestre have- a inovação tecnológica e com o paradig-
nho e recupere os quatro pontos perdi- rá o início de um afrouxamento da polí- ma da mudança energética. Precisa estar
dos na última rodada de sondagens do tica monetária. A queda da taxa de juros conjugado com o conhecimento e com as
Ipec. Com efeito, a terceira pesquisa do produzirá uma inequívoca melhora nos novas fases da revolução tecnológica, im-
instituto sobre a avaliação do governo investimentos e no consumo. bricadas com a era digital, com a robótica
mostra que, de março a junho, a avalia- O terceiro fator que favorece a melho- e com a inteligência artificial. Há espaços
ção positiva caiu de 41% a 37%, ao passo ra do cenário econômico diz respeito à e estratégias para que essas inovações, ir-
que a percepção negativa subiu de 24% aprovação da nova política fiscal. O marco reversíveis, se combinem com a proteção
para 28%. Parte dessas perdas pode ser aprovado pode ter algumas insuficiências, de empregos e com o estímulo de novas
debitada a erros evitáveis cometidos pe- mas o fato é que ele afastou o horizonte de atividades ocupacionais.
lo governo e pelo presidente Lula. imprevisibilidade e os temores de que o go- Não podemos depender apenas de
Se a retomada da economia oferece verno viesse a promover um descontrole commodities e do agronegócio. Se estes se-
uma oportunidade para Lula melhorar fiscal, com o aumento da dívida pública. As tores salvaram a economia do País mui-
seu desempenho, é preciso ponderar que travas que ele estabeleceu permitem um tas vezes, é preciso reconhecer que eles
isso não ocorre de forma automática. O go- equilíbrio fiscal sem que os gastos com os são insuficientes para tornar o Brasil um
verno precisa melhorar seu desempenho programas sociais fiquem deprimidos ou país moderno, desenvolvido, socialmen-
B A P T I S TÃ O

político-administrativo, a sua comunica- inviabilizados. Ao criar esta previsibilida- te justo e ambientalmente sustentável. •
ção com a sociedade e as suas iniciativas de com as contas públicas, governo e Con- alfornazieri@gmail.com

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Os reais invasores
CAMPO Dossiê elaborado pelo site De Olho
nos Ruralistas expõe as digitais políticas
e corporativas na grilagem de terras
P O R B R U N O S TA N K E V I C I U S B A S SI E A LC EU LU ÍS
C A S T I L H O, D O D E O L H O N O S R U R A L IS TA S *

A
Comissão Parlamentar de nema, causada por fazendeiros em terras
Inquérito sobre o Movi- devolutas, não é alvo da CPI. Tampouco
mento dos Trabalhado- os milhões de hectares invadidos por gri-
res Rurais Sem Terra leiros, dentro e fora da Amazônia. Mui-
realizou em 29 de maio to menos as invasões criminosas de ter-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
uma diligência ao Pontal do Paranapa- ras indígenas, quilombos e unidades de
nema, no oeste paulista. O requerimen- conservação. Só entra o que ruralistas e
to do deputado bolsonarista Gustavo bolsonaristas consideram “invasão de
Gayer, do PL de Goiás, visava obter “in- propriedades produtivas”. Por trás des-
formações de primeira mão nos estados sa criminalização existe um jogo de cena.
que tiveram invasão de terras pelo MST”.
Um vídeo divulgado pelo portal Metró- Em 19 de abril, Dia dos Povos Indíge- total, 53.601 hectares incidem sobre ter-
poles na terça-feira 13 mostra o deputa- nas, o De Olho nos Ruralistas publicou o ritórios homologados.
do Ricardo Salles (PL-SP), relator da relatório “Os Invasores”, radiografia da A trading estadunidense Bunge ven-
CPI, a invadir sem mandado judicial o face corporativa por trás de 1.692 sobre- deu em 2022 um imóvel incidente sobre
barraco de uma família acampada na Fa- posições de fazendas em TIs homologa- a TI Morro Alto, no Porto de São Fran-
zenda Santa Mônica, em Rosana. O tre- das ou em processo de demarcação. As cisco do Sul, em Santa Catarina. A pro-
cho em que o ex-ministro do Meio Am- áreas foram identificadas a partir de da- dutora de agrotóxicos Syngenta possuía
biente força a entrada e filma o interior dos do Instituto Nacional de Coloniza- uma fazenda de soja sobreposta à TI Por-
da casa viralizou nas redes. “Isso não é ção e Reforma Agrária e da Fundação Na- quinhos dos Canela-Apãnjekra, no Ma-
uma residência”, desdenha. cional dos Povos Indígenas. As sobrepo- ranhão. E um dos sócios do grupo Bom
Salles e o colega Luciano Zucco (Repu- sições ocupam 1.187.214,07 hectares em Futuro, cunhado de Eraí MaggiScheffer,
blicanos-RS) integram a Frente Parla- 213 TIs, área do tamanho do Líbano. Do o “rei da soja”, é dono de uma fazenda que
mentar da Agropecuária. A bancada ru- invade 20,15 hectares da TI Enawenê
ralista comanda a mesa diretora da CPI Nawê, em Mato Grosso. Existem ainda
e detém 28 das 55 cadeiras da comissão. sobreposições diretas de fornecedores
A Fazenda Santa Mônica está sob penho- Multinacionais, do frigorífico JBS, da comercializado-
ra. Mas a mulher que acompanhava o bancos e políticos ra de grãos Cargill, de empresas do se-
deputado falava com as assentadas de ci- tor madeireiro e de exportadores de ca-
ma para baixo, enquanto elas debulhavam
apropriam-se de fé e frutas. Todas essas empresas par-
feijão: “Tem dono aqui, tá. Vai juntando a áreas em territórios ticipam da cadeia de financiamento do
malinha que aqui vocês não vão ficar”. indígenas do Instituto Pensar Agro, braço logístico
A devastação do Pontal do Paranapa- tamanho do Líbano da FPA. O IPA é responsável por captar

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Resta aos indígenas
protestar contra o
Marco Temporal

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

verbas de 48 associações patronais que


SOBREPOSIÇÃO NO AMAZONAS sustentam o lobby ruralista em Brasília,
Terra Indígena Riozinho – Povos Kokama e Tikuna
em mecanismo detalhado no dossiê “Os
Gleba Santa Rosa do Tenquê
Financiadores da Boiada”, recém-publi-
Área: 903.081,91 ha
cado pelo De Olho nos Ruralistas (mais
Quem disputa:
detalhes em www.deolhonosruralistas.
Aplub Agroflorestal
Amazônia S.A. com.br). Fundos bilionários de investi-
Riozinho
mento participam tanto da cadeia quan-
Área sobreposta (segundo Incra):
to das sobreposições.
A G R O N E G Ó C I O N O B R A S I L / D E O L H O N O S R U R A L I S TA S

222.372,52 ha
O Kinea, do grupo Itaú, investe em
uma empresa de serviços agropecuários
M A R C E L O C A M A R G O /A B R E O B S E R VAT Ó R I O D O

Terra Indígena
cujo sócio é dono de um imóvel que avan-
Gleba Santa ça em 53,4 dos seus 715,7 hectares sobre
Imóvel rural
Rosa do Tenquê
a TI Guyraroká, no Mato Grosso do Sul.
Juruá Área de sobreposição
Carauari fé A Gávea Investimentos possui partici-
Te
Divisão municipal pação em duas empresas com sobreposi-
í
Juta ções: a Terra Santa Propriedades Agríco-
Hidrografia
Rio Biá
las, em Mato Grosso, e a Garça Azul Em-
N preendimentos Turísticos, na Bahia. E o
Fonte: Funai (2022); Incra
W O
(2022); IBGE (2021); Mapbiomas
fundo XP Infra III, da XP Investimentos,
0
S
15 30 KM col.7/ Basemap: ESRI/ SRC: tem 52,5% da OXE Energia, proprietária
SIRGAS 2000 da GFP Empreendimentos, cuja unidade

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 23
Seu País

de produção de biomassa em Roraima in- nos de um dos maiores grupos empresa-


cide na TI Malacacheta, lar da presiden- riais de Rondônia, que reúne a transpor-
te da Funai, Joênia Wapichana. O capital tadora, a Rede Catarinense de postos de
que avança sobre os territórios dos po- combustíveis e fazendas de soja e gado.
vos originários é o mesmo que financia Integrante da FPA, contrário à demar-
a investida anti-indígena no Congresso. cação de terras indígenas, o senador ad-
A CPI do MST busca também crimina- quiriu a área em 2011, por meio da penho-
lizar as retomadas indígenas na Bahia e ra de uma dívida contraída pelos antigos
no Mato Grosso do Sul. Enquanto isso, proprietários. Em novembro de 2007,
os ruralistas aprovaram na Câmara o PL um ano após a homologação, a empresa
490, do Marco Temporal, como se antes São José Jacuri Agropecuária, então ti-
da Constituição de 1988 indígenas não tular da área, protocolou novo registro
tivessem sido expulsos por fazendeiros. do imóvel invadindo 2.591,76 hectares
Segundo dados do Tribunal Superior da terra indígena. A investida fundiária
Eleitoral, empresários e fazendeiros com aparece até hoje nos registros do Incra.
imóveis identificados no dossiê “Os Inva- Bagattoli não declarou o imóvel em sua
sores” doaram 3,64 milhões de reais às prestação de contas à Justiça Eleitoral.
campanhas de 18 integrantes da banca- Dois deputados têm sobreposições
da ruralista. A face política das sobrepo- em TIs. O mineiro Newton Cardoso Jr.,
sições em terras indígenas é o tema da se- O senador Bagattoli é sócio de uma empresa MDB, é sócio do pai, o ex-governador
gunda parte do documento, lançada na cujas terras se sobrepõem à TI Rio Omerê Newton Cardoso, na Companhia Side-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
quarta-feira 14 em São Paulo. Entre os rúrgica Pitangui, dona de duas fazendas
agraciados estão doze dirigentes da FPA, (PL-MS). Durante a diligência no Pon- inteiramente sobrepostas à TI Kaxixó,
entre eles o presidente Pedro Lupion tal, Nogueira viu um cartaz com Nelson em Martinho Campos, que somam
(PP-PR), os vices Arnaldo Jardim (Cida- Mandela, que batiza o acampamento da 834,04 hectares. De volta à Câmara após
dania-SP) e Evair Vieira de Melo (PP-ES), Frente Nacional de Luta Campo e Cida- quatro anos, Dilceu Sperafico (PP-PR)
e os coordenadores políticos na Câmara, de, e não teve dúvida: chamou o ex-pre- e seus familiares possuem a Fazenda
Fábio Garcia (União-MT), e no Senado, sidente sul-africano de “bandido” e o as- Maracay. Segundo o Incra, ela tem 3,09
Tereza Cristina (PP-MS). sociou à “igreja do diabo”. de seus 4.418,30 hectares sobrepostos à
Em sua primeira campanha política, TI Iguatemipeguá, em Amambai (MS).
Ex-ministra da Agricultura de Bolso- o senador Jaime Bagattoli (PL-RO) rece- As 1.692 sobreposições em terras indí-
naro, Tereza Cristina obteve 50 mil reais beu no ano passado 3,34 milhões de re- genas abarcam múltiplas esferas de po-
de dois fazendeiros cujas terras confli- ais em financiamentos - 2,98 milhões fo- der. A família do governador paranaen-
tam com a área reivindicada pelos Gua- ram doados por seu irmão, Orlando, de se Ratinho Jr., do PSD, possui uma so-
rani Kaiowá para criação da TI Doura- quem é sócio na Transportadora Giomi- breposição no Acre. Cenário de confli-
dos-Amambaipeguá I. Um deles, Rena- la. A empresa de logística é titular da Fa- tos com os povos Guarani Kaiowá, Gua-
to Eugênio de Rezende Barbosa, dono da zenda São José, imóvel de 1.118,25 hec- rani Nhandeva e Terena, o Mato Grosso
Fazenda Campanário, era até 2019 um tares dedicado à pecuária bovina, em do Sul tem ex-secretários de estado, pre-
dos acionistas majoritários da sucroalco- Corumbiara (RO), dos quais 0,26 hectare feitos, líderes de associações do agrone-
oleira Cosan. O deputado Evair de Melo incide na TI Rio Omerê. Os dois são do- gócio e servidores públicos na lista dos
foi financiado por Adelar Jacobowski, só- fazendeiros com sobreposições. E dois
EDILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO

cio do grupo Jacó Agro e titular de uma deputados estaduais: Pedrossian Ne-
fazenda com 2,58 hectares sobrepostos to (PSD) e Zé Teixeira (PSDB). O dossiê
à TI Menkü, reivindicada pelos Myky em Invasores de TIs são lista ainda outros cinco prefeitos e vice-
Mato Grosso. Outros três deputados da -prefeitos em atividade e 23 ex-prefeitos
comissão são financiados por invaso-
grandes financiadores com sobreposições dessa natureza.
res, integram a FPA e o bloco bolsona- de campanhas de
rista: Domingos Sávio (PL-MG), Mar- parlamentares da *Colaboraram Luma Ribeiro Prado,
cos Pollon (PL-MS) e Rodolfo Nogueira bancada ruralista Tonsk Fialho e Hugo Souza.

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
RITA VON HUNTY
Rita é a persona drag do ator e professor Guilherme Terreri.
Por meio dos estudos culturais, Rita discute
temas sociais com o horizonte da emancipação radical

Blefe contra blefe

nistérios em 31, foi aprovada. O movi- o dobro do atual valor em emendas par-
► As mais recentes mento impediu a volta ao cenário minis- lamentares. A gravidade é que, enquan-
movimentações do terial da gestão bolsonarista e a implosão to se encena o “blefe contra blefe” por di-
do governo, que perderia 14 ministérios. nheiro e cargos, as pautas mais urgentes
Congresso Nacional são Ainda mais indigno é perceber o cinis- para o futuro da humanidade são estra-
um indicativo de que mo do Centrão, o maior interessado na çalhadas pela Câmara e, provavelmen-
o presidencialismo de ampliação dos cargos públicos e nas vias te, seguirão o mesmo passo no Senado.
de acesso para mais desvios de verbas. Refiro-me, em especial, ao Marco
coalização pode estar Este bloco esperou, até o último instante, Temporal que institucionaliza o genocí-
com os dias contados para votar contra a falência ministerial dio contra mais de 200 mil pessoas indí-
pela “bagatela” de 1,7 bilhão de reais – genas, a desidratação das competências
liberação recorde de emendas parlamen- e atribuições do Ministério do Meio Am-

O
termo presidencialismo de coa- tares neste ano. biente e Mudança Climática e a flexibili-
lizão, recorrente no debate pú- Este cenário pode ser analisado sob zação para que prossiga a destruição da
blico, foi cunhado em 1988 pelo um prisma mais ou menos negativo. Con- Mata Atlântica.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
cientista político Sérgio Abranches para duzem ao pessimismo a exposição da fra- É possível perceber, sem muito esfor-
caracterizar o frágil funcionamento de gilidade do governo da frente ampla, o en- ço, como, desde 2019, o Congresso tem
uma República com pouquíssimos par- gessamento da possibilidade de governar aumentado sua participação na tomada
tidos ideológicos e muitos fisiológicos. O e a reencenação da oposição antagônica de decisões do governo. Uma marca im-
modelo daí resultante é, desde a 6ª Repú- entre presidente da Câmara e presiden- portante deste aumento são as chamadas
blica, uma acrobacia de acordões empre- te da República (como quando Eduardo Emendas Impositivas (aquelas contra as
endida pelos líderes do Poder Executivo. Cunha esteve contra Dilma Rousseff). quais o governo não tem poder de veto,
As palavras “dinheiro” e “cargos” tro- apenas controle sobre o fluxo).
cam em miúdos os termos da negociação O que nos deixa uma ponta de otimis- O orçamento a ser executado em polí-
entre os Poderes Executivo e Legislati- mo é a exoneração de Alexsander Morei- ticas públicas tem migrado do Executivo
vo no País. União Brasil, Republicanos e ra, aliado de Arthur Lira (PP), da diretoria para o Legislativo – e, nesta retrospecti-
Partido Progressista são três exemplos do MEC pelos escândalos de superfatura- va de escalada de poder, talvez coubesse
de partidos que receberam aceno favo- mento dos kits de robótica em Alagoas. O voltar a 2013. Essa transferência de poder
rável da frente ampla e que aprofundam episódio volta a expor Lira como um ad- passa a desenhar um cenário de possível
a negociata para dilapidar os ministérios. ministrador do orçamento secreto. “estiramento” da corda do presidencialis-
A aprovação em última hora da Medi- Desde que foi julgado inconstitucio- mo no Brasil. Enquanto Lira chantageia o
da Provisória de reestruturação minis- nal pelo Supremo Tribunal Federal, o Executivo para votar as pautas de seu inte-
terial não deixa dúvida de que o governo orçamento secreto deixou de ser a fer- resse, o custo da política aumenta e o pre-
da frente ampla pagará caro para gover- ramenta de manobra que permitia a Li- juízo recai sobre os elos mais frágeis de so-
nar de forma republicana. Enquanto is- ra mover bases no Congresso. Infeliz- ciedade: os povos originários e a natureza.
so, o “centrão” e seu fisiologismo seques- mente, porém, permaneceram em seu Com um Congresso cada vez mais
tram a parca democracia brasileira em lugar as emendas vinculadas aos minis- conservador, as expectativas de mudan-
troca de um resgate que, mesmo sendo térios, o que explica, em parte, a adesão ça se reduzem. Até que o povo mostre sua
pago, não garante a vida da refém. do centrão à nova configuração minis- insatisfação e sua força nas ruas, seguire-
O teatro todo é bastante indigno. Às terial da frente ampla. mos a ver despontar no horizonte o fim
B A P T I S TÃ O

vésperas de “caducar”, a MP 1154/23, que Vale ressaltar que, no mesmo período de algo velho sem que o novo nasça. Sin-
reestrutura a organização administrati- de 2022, durante a gestão bolsonarista, tomas mórbidos se anunciam. •
va do Executivo e fixa o número de mi- o governo já havia liberado mais do que redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 25
Seu País

Farra bandeirante
do Instituto de Terras de São Paulo, conhe-
cido pela sigla Itesp. Mimetizando o ex-mi-
nistro Ricardo Salles, o ruralista de Pre-
sidente Prudente sugeriu a empresários
SÃO PAULO Deputados acionam o STF do setor celeridade na compra das terras
para derrubar lei paulista que permite devolutas, pois a “a lei pode cair” a qual-
quer momento. Registrada em vídeo, a de-
a venda de terras devolutas no estado claração consta em uma ação interposta
pelo MST e por partidos do campo pro-
POR MARIANA SER AFINI gressista ao Supremo Tribunal Federal,
na qual é questionada a constitucionali-
dade da lei aprovada no ano passado. É a

O
versão bandeirante do “passar a boiada”.
Pontal do Paranapanema, lativa. A manobra começou a ser gesta-
no Oeste Paulista, concen- da pelo então governador João Doria, Na avaliação de Bernardo Mançano
tra uma das maiores por- do PSDB, que apresentou ao parlamen- Fernandes, professor do Departamento de
ções de terras devolutas do to paulista um projeto de lei para auto- Geografia da Unesp, a lei se destina a “gri-
País. São áreas públicas, rizar a venda dessas áreas, ignorando o lar a grilagem”. Para quem não conhece a
pertencentes à União ou ao Estado de São disposto na Constituição. A proposta aca- origem do termo, uma breve explicação.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Paulo. De acordo com o artigo 188 da Cons- bou aprovada na gestão de Rodrigo Gar- No passado, invasores de terras públicas
tituição, a destinação desses territórios cia, sucessor de Doria no Palácio dos Ban- costumavam corromper funcionários de
deve ser “compatibilizada com a política deirantes, quando o tucano abandonou o cartórios para obter títulos de proprieda-
agrícola e com o plano nacional de refor- cargo para disputar a Presidência da Re- de falsos. Para a fraude não ser descoberta,
ma agrária”. Foram, porém, ocupadas ile- pública. Coube a Freitas, eleito em 2022, eles colocavam esses documentos dentro
galmente por grileiros e repassadas a a missão de colocar o plano em prática. de gavetas com grilos, uma forma de con-
grandes latifundiários. Não por acaso, a Para executar a tarefa na ponta, o gover- ferir aspecto envelhecido aos papéis, que
região é recordista de conflitos agrários. nador nomeou Guilherme Piai, assíduo fre- rapidamente ficavam amarelados e com as
Agora, o governador paulista, Tarcísio quentador de clubes de tiro e ardoroso de- bordas corroídas pelos insetos. Agora, pa-
Freitas, demonstra estar disposto a aca- fensor do agronegócio e diretor-executivo ra “esquentar” uma área grilada, os crimi-
bar de vez com a disputa pelas terras nosos contam com a aprovação de leis
devolutas no estado. Em vez de des- que regularizam a posse. Ao permitir
tiná-las à reforma agrária, como de- a compra de terras devolutas, o gover-
termina a Carta Magna, o ex-minis- no paulista dispensa o uso de grilos
tro de Jair Bolsonaro optou por uma para “esquentar” as glebas invadidas.
distribuição às avessas. Passou a Líder da bancada do PT na Assem-
vender essas áreas a grandes fazen- bleia Legislativa de São Paulo, Paulo
deiros por preços módicos, até 90% Fiorilo não hesita em dizer que Tarcí-
abaixo do valor de mercado. Uma vez sio Freitas “institucionalizou o grilo”.
regularizadas, as áreas griladas não “A lei vigente até então possibilitava
poderiam mais ser objeto de reivin- ao grande fazendeiro, que estivesse
dicação dos sem-terra, a menos que em terras devolutas, devolver uma
permaneçam improdutivas, sem parte das terras para a reforma agrá-
cumprir sua função social. ria e regularizar outra parte. Agora,
Como terras devolutas não po- não. O grileiro, o invasor de terras pú-
dem ser vendidas assim, com uma blicas, vai poder comprá-las a preço
simples canetada, foi preciso recor- de banana, sem a necessidade de ce-
rer a uma controversa jogada legis- O diretor do Itesp recomenda celeridade, pois “a lei pode cair” der espaço aos sem-terra”, alerta.

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
O governador
paulista garante a
festa dos ruralistas

Entre em nosso grupo


A Procuradoria-Geral da União e a Ad-
no Telegram: t.me/clubederevistas
Segundo Nepomuceno, as milícias de A venda de terras devolutas tem sido dis-
vocacia-Geral da União já emitiram pare- fazendeiros no Pontal do Paranapanema cutida pela comissão, que em 29 de maio
ceres favoráveis ao reconhecimento da in- foram reorganizadas nos últimos anos. fez uma diligência no Pontal do Parana-
constitucionalidade da lei, e a matéria es- “Recentemente, teve uma operação po- panema. Segundo o deputado Nilto Tat-
tá nas mãos da ministra Cármen Lúcia. licial na região que prendeu uma série to, do PT, que participou da expedição,
Caso a lei seja anulada pelo Supremo, de lideranças de movimentos populares, os deputados ligados ao agronegócio fo-
Fiorilo defende a aplicação dos efeitos da mas também foram encontradas armas ram desrespeitosos com trabalhadores
decisão de forma retroativa, para desfazer de grosso calibre, inclusive fuzis, em pos- rurais acampados e assentados. “Chega-
as vendas que já tenham sido concluídas. se de fazendeiros, mas nenhum deles foi ram a invadir e fotografar a casa dos as-
preso”. Para ela, a venda de terras devolu- sentados sem permissão.”
Para a nova superintendente do Incra tas prejudica a sociedade como um todo. Integrante da coordenação estadual
de São Paulo, Sabrina Nepomuceno, pri- “O agronegócio não produz comida para do MST, Delwek Matheus observa que,
meira mulher a ocupar o cargo, essa ma- a população. Cultiva soja e milho para fa- ao vender as terras devolutas, o governa-
nobra legislativa só foi possível graças ao zer ração de gado, cria boi de corte para ex- dor diminui “o estoque de terras que po-
retrocesso na reforma agrária durante o portação. Mais de 75% dos alimentos con- deriam ser destinadas à reforma agrária”.
governo Bolsonaro. “Como São Paulo tem sumidos pelos brasileiros são produzidos Atualmente, a região do Pontal do Para-
uma presença muito forte do agronegó- por agricultores familiares e assentados.” napanema concentra 117 assentamentos,
SERGIO BARZAGHI/GOVSP E REDES SOCIAIS

cio, houve uma articulação de fazendei- Tarcísio Freitas e Guilherme Piai fo- com mais de 7 mil famílias. Há ainda ao
ros e grileiros do Pontal do Paranapane- ram convidados a depor na CPI do MST. menos sete acampamentos à espera de re-
ma, historicamente representados por gularização fundiária. “O que nós estamos
Nabhan Garcia, para conseguir empla- vendo é um conflito de interesses”, expli-
car essa lei”, denuncia. Antes de assumir ca Zelitro Luz da Silva, que vive no assen-
a Secretaria de Assuntos Fundiários do Tarcísio Freitas tamento São Bento 2, em Mirante do Pa-
Ministério da Agricultura, Garcia foi pre- ranapanema. “De um lado está o latifún-
sidente da União Democrática Ruralista,
está empenhado dio, que tem um lobby poderoso. De outro,
a UDR, grupo paramilitar criado nos anos em “esquentar” os trabalhadores que defendem a prote-
1980 para expulsar os sem-terra que ocu- áreas griladas ção ambiental, a produção de alimentos
pavam fazendas improdutivas. a preço de banana saudáveis e a distribuição justa de terra”. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 27
Seu País

Porteira fechada?
formato em vigor, a decisão passa tam-
bém pelo Ibama e pela Anvisa. A mudan-
ça, defendida por Fávaro e os ruralistas,
mas vista como um retrocesso por Ma-
LEGISLATIVO Ambientalistas confiam que rina e os ambientalistas, está em análise
o Senado barrará os excessos da Câmara. na Comissão de Meio Ambiente.
Segundo a agência das Nações Unidas
O primeiro teste será com o PL do Veneno para Alimentação e Agricultura (FAO, na
sigla em inglês), existem ao menos três
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L maneiras distintas para medir o consu-
mo de agrotóxicos em cada país, levando-
-se em conta aspectos como a quantidade

L
de veneno usada por área cultivada ou pe-
iberação de agrotóxicos, mu- co já sinalizou que tudo será discutido lo volume da produção agrícola, além de
danças nas regras de licencia- “sem açodamento”, o que na prática sig- números absolutos. O Brasil figura com
mento ambiental, regulariza- nifica que os líderes governistas terão nas destaque em todos os itens e, no que diz
ção de terras públicas invadi- próximas semanas tempo para costurar respeito ao gasto absoluto com agrotó-
das, definição sobre o “marco acordos que busquem o difícil equilíbrio xicos, é campeão mundial, relata a FAO,
temporal” para o reconhecimento de entre as forças díspares do governo de com cifras anuais que ultrapassam os 10
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Terras Indígenas. A lista de projetos am- frente ampla. Indagado por CartaCapital, bilhões de dólares. Vale registrar que em
bientais que tramitam no Senado é uma o presidente do Senado disse, por inter- quatro anos o governo Bolsonaro liberou
batata fervente nas mãos do presidente médio de sua assessoria, que as comis- 2.182 novos “defensivos agrícolas”, cerca
da Casa, Rodrigo Pacheco, e a análise de sões têm um largo prazo regimental pa- de 20% deles classificados como extre-
cada um deles em diferentes comissões ra votar os projetos e que este pode durar mamente tóxicos para a saúde humana.
servirá ao mesmo tempo para aferir o meses. “Até a conclusão das votações pe-
grau de fidelidade dos senadores da base las comissões, muita coisa pode ter mu- “Cabe registrar que não se trata de
governista e ampliar o debate sobre as dado”, pondera, com sabedoria mineira. novas substâncias seguras e modernas,
visões divergentes – e por vezes antagô- Promessa de Pacheco em sua campa- como argumenta o agronegócio e a in-
nicas – dentro do próprio governo. nha de reeleição para o comando do Se- dústria química, mas sim de produtos
Bem diferente da realidade hostil vivi- nado, o primeiro item a ser analisado, em ultrapassados, dos quais 30% já estão
da na Câmara, o governo conta hoje com todo caso, será o projeto 1.459/2022, co- proibidos na União Europeia”, diz, em
ao menos 55 dos 81 senadores. Essa con- nhecido como PL do Veneno, a revogar a nota, a Campanha Permanente Contra
ta favorável não dá, porém, a mínima ga- lei que regulamenta o uso de agrotóxicos. os Agrotóxicos e Pela Vida, rede forma-
rantia de que os projetos ambientais te- A proposta centraliza no Ministério da da por movimentos sociais do campo e
nham um debate tranquilo, uma vez que Agricultura a prerrogativa de decidir so- da cidade, organizações sindicais e estu-
os temas analisados no Senado são sen- bre a liberação de novas substâncias. No dantis, entidades científicas de ensino e
síveis e colocam de um lado ministros li- pesquisa, conselhos profissionais, ONGs
gados à agenda ambiental e da reforma e grupos de consumo responsável.
agrária, como Marina Silva (Meio Am- A expectativa nesses setores é que a
biente), Paulo Teixeira (Desenvolvimen- farra nacional dos agrotóxicos, intensi-
to Agrário) e Sônia Guajajara (Povos In- Bolsonaro liberou ficada por Bolsonaro, tenha fim com Lu-
dígenas), e de outro lado ministros liga- 2.182 novos “defensivos la. “O governo federal tem papel central
dos ao agronegócio, como Carlos Fávaro nesta luta. O primeiro passo é romper
(Agricultura) e Alexandre Silveira (Mi-
agrícolas”, 20% deles com a política bolsonarista de liberação
nas e Energia). classificados como indiscriminada de agrotóxicos e propor
Organizar esses debates não é tarefa extremamente tóxicos medidas efetivas para a redução do seu
para principiante. Experiente, Pache- para a saúde humana uso no Brasil”, diz a nota da Campanha.

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
prejuízo ao meio ambiente e à população”.
O Brasil tem sua Política Nacional de
Redução dos Agrotóxicos (Pnara), cria-
da em 2016, mas que jamais emplacou.
Enquanto isso, segundo pesquisas aca-
dêmicas, na última década quase 10 mil
crianças foram contaminadas por agro-
tóxicos e 50 bebês de até 1 ano de idade
sofrem intoxicação aguda por agrotóxi-
cos no País a cada ano. Curiosamente, os
venenos agrícolas gozam de renúncias e
isenções fiscais concedidas pelo gover-
no, para alegria dos gigantes do agrone-
gócio. De acordo com um estudo da As-
sociação Brasileira de Saúde Coletiva, a
Abrasco, com isso cerca de 10 bilhões de
reais deixam anualmente de ser arreca-
dados aos cofres públicos.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Além de não arrecadar, o Estado ain-
da tem de arcar com os custos derivados
dos impactos ambientais e sobre a saúde
humana causados por esses produtos. O
prejuízo parece não incomodar a ala ru-
ralista do governo, mais preocupada em
afastar os técnicos do Ibama e da Anvi-
sa do processo de licenciamento de no-
vos produtos: “Os excessos que vieram
No que depender do relator do PL dos Prudência. O presidente do Senado, da Câmara poderão ser ajustados. Nin-
Agrotóxicos, Fabiano Contarato, do PT, Rodrigo Pacheco, não tem pressa de guém é a favor de produtos cancerígenos.
votar as pautas-bomba da Câmara
o debate terá tempo para amadurecer. Se o projeto for bem adequado, o gover-
“As discussões sobre esse projeto estão no apoia”, diz Fávaro.
sendo feitas com calma e muitos estudos. Saber qual será o real posicionamen-
Só depois dessa etapa vou finalizar o re- to do governo não é tão simples e os líde-
latório”, esclarece. O senador avisa: “Não res governistas procuram ganhar tempo.
vou aceitar pressões e não tenho pressa Por enquanto, nenhum deles procurou
WENDERSON ARAÚJO/SISTEMA CNA/SENAR

para uma votação atropelada porque o a presidente da Comissão de Meio Am-


tema merece responsabilidade e muitos biente, Leila Barros, disse a senadora a
E EDMILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO

debates com as diversas áreas, inclusive CartaCapital. Também procurados pe-


os ministérios interessados”. la reportagem, os líderes do governo no
Contarato sabe que precisará ter jo- Congresso, Randolfe Rodrigues, e no Se-
go de cintura: “O relatório será elabora- nado, Jaques Wagner, não responderam
do após discussões e o máximo de con- até o fechamento desta edição. Nos cor-
senso, entendendo que cada um vai preci- redores da Casa, o senador baiano admi-
sar ceder de alguma forma para que o tex- tiu ser impossível ter um consenso sobre
to siga para votação, com um processo de o tema no governo e sua base: “Vai ser um
análise eficiente e, principalmente, sem estica e puxa”. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 29
Seu País

De olhos abertos
fesso não saber qual é a solução ideal. Tal-
vez quem acompanha o dia a dia nas pri-
sões possa apresentar algumas alternati-
vas, mas a mudança deve ser estrutural.
ENTREVISTA Sebastião Reis Júnior, ministro CC: As mulheres trans por vezes
do STJ, lança livro para dar visibilidade são discriminadas pelos próprios fa-
miliares, expulsas de casa. Como en-
às mulheres transgênero encarceradas tender tamanha rejeição?
SRJ: O preconceito é um fenômeno cul-
A RENÉ RUSCHEL
tural. Infelizmente, não vamos superar
esse problema de um dia para o outro.
É um processo de longo prazo. Precisa-

O
mos discutir e compreender melhor essa
Superior Tribunal de Jus- um texto técnico. Os autores do livro têm questão. A aceitação da diversidade não
tiça irá sediar, em 22 de ju- origens e profissões distintas, e os textos deve ser cobrada só das famílias, e sim de
nho, o lançamento de acabam por refletir essa diversidade. toda a sociedade.
Translúcida, obra coletiva CC: Por que é tão importante dar vi- CC: A falta de oportunidades de
organizada pelo ministro sibilidade às presas transgênero? trabalho leva muitas mulheres trans à
Sebastião Reis Junior. Composto de 35 SRJ: A ideia é instigar o debate. Não que- prostituição. Faltam políticas específi-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
textos, duas ilustrações e 38 imagens de ro assumir o protagonismo das mulheres cas para esse segmento, não?
presas transgênero fotografadas pelo transgênero, não tenho essa legitimidade. SRJ: Os governos deveriam enxergar as
próprio magistrado no Centro de Deten- Por outro lado, várias pessoas trans parti- minorias com olhos diferenciados. Reite-
ção Provisória Pinheiros II, em São Pau- ciparam dessa obra colaborativa, a exem- ro, o preconceito é um fenômeno cultural,
lo, o livro tem como objetivo central pro- plo da deputada Erika Hilton. Mas a ideia também marcado pela desinformação e
vocar um debate sobre direitos humanos, é apenas estimular o debate sobre a situa- pelas deficiências de nosso sistema edu-
cárcere e o direito à própria identidade. ção das mulheres trans encarceradas, um cacional. O Estado precisa assumir suas
Em entrevista a CartaCapital, Reis Jr. ex- tema pouco discutido na sociedade. responsabilidades. À luz do Direito, a mu-
plica as razões de buscar dar visibilida- CC: As prisões estão preparadas pa- lher trans não é diferente da mulher ou do
de às pessoas trans encarceradas. ra receber com dignidade esse grupo? homem cisgênero. São pessoas que mere-
SRJ: Não, elas sofrem preconceito da cem respeito e consideração, cidadãs in-
CartaCapital: Como nasceu o pro- própria população carcerária. Não po- teligentes, preparadas para trabalhar em
jeto Translúcida? demos, porém, exigir que os presos acei- qualquer ramo ou atividade. O fato de ser
Sebastião Reis Júnior: Foi há uns qua- tassem as mulheres transgênero sem que uma pessoa trans não a torna inábil para
tro ou cinco anos, quando fiz uma visi- o próprio sistema, a direção do presídio, exercer a medicina, a advocacia, a docên-
ta ao presídio de Pinheiros, em São Pau- os agentes penitenciários, as aceite. O cia ou qualquer outra profissão. As barrei-
lo, e tive a oportunidade de conversar exemplo deve vir de cima. Há a necessi- ras existentes são fruto do preconceito.
com presas transgênero. Depois, vi o li- dade de uma mudança cultural, de uma CC: Muitas igrejas evangélicas, so-
vro Ausência, da fotógrafa Nana Moraes, nova estrutura no sistema prisional. Con- bretudo as da vertente neopentecostal,
com imagens de mulheres encarceradas, tratam a transexualidade como um grave
sempre acompanhadas do relato sobre o pecado. Isso não reforça essa visão pre-
sentimento de ausência que toma conta conceituosa à qual o senhor se refere?
de cada uma delas. Foi o que me inspirou. “A aceitação da SRJ: São diversos fatores. Seria preci-
Usei as fotos como provocador do sistema so uma reflexão profunda, retroagir no
e distribui para algumas pessoas. Cada
diversidade não deve tempo para saber o que aconteceu, a ra-
uma escreveu o que quis. Algumas escre- ser cobrada só das zão dessa raiva injustificável. Existe uma
veram cartas, outras optaram por contos. famílias, e sim de carga religiosa? Pode ser. Mas quais se-
Teve até quem preferiu desenhar e fazer toda a sociedade” riam as outras razões para isso? Não

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Novo ofício. As fotografias da obra
colaborativa foram feitas pelo próprio
magistrado no Centro de Detenção
Provisória Pinheiros II, em São Paulo

dade laborativa, o mesmo caráter, a mes-


ma dignidade que qualquer outra pessoa.
Não difere em nada. O fato de ser uma
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
pessoa trans não a torna nem melhor
nem pior que qualquer outra.
CC: Qual o maior aprendizado que o fo-
tógrafo Sebastião Reis deixou ao ministro
Sebastião Reis após essa experiência?
SRJ: A fotografia me ensinou a enxergar
as mulheres trans como pessoas comuns,
pessoas que têm medo do futuro, se pre-
ocupam com a reinserção na sociedade,
sofrem com o preconceito e têm dificul-
dades para entrar no mercado de traba-
lho. Ao conhecer suas histórias de vida,
fiquei sensibilizado pelos relatos de aban-
dono familiar, de falta de apoio, de serem
tenho condições de apontar culpados, lugar apropriado é a escola. O debate en- aceitas até mesmo por colegas do cárce-
nem de dizer quem contribui mais ou tre professores, pais, alunos, educadores re. Qual a chance dessas mulheres con-
menos para todo esse preconceito. é extremamente importante, essencial e seguirem se reinserir na sociedade dian-
CC: O enrosco é que grupos conser- oportuno. Deve acontecer. te de tanto preconceito? Uma delas me
vadores têm interditado o debate sobre CC: Nos últimos anos, mulheres trans respondeu: “Tentei sair, trabalhar, não
as questões de gênero e sexualidade passaram a ocupar espaços no Legis- consegui. Fui para a prostituição, não ga-
dentro das escolas, que em tese seriam lativo. O senhor acredita que isso con- nhava o suficiente, voltei a roubar e estou
os locais mais apropriados para discu- tribui para a superação do problema? aqui de novo”. A sociedade erra misera-
tir e combater preconceitos. SRJ: Sem dúvida. A ocupação de espa- velmente ao encarar o presídio como um
R O D R I G O L O P E S / S TJ

SRJ: É verdade. Você só derruba um ços de poder é fundamental para derru- mero instrumento de punição, de casti-
preconceito quando mostra a realidade, bar preconceitos arraigados. Ao ver pes- go. Isso vale para todos os egressos do sis-
quando demonstra que ele não tem razão soas trans nos parlamentos, nos tribu- tema prisional. Mais cedo ou mais tarde,
de existir. Mas para isso é preciso educar, nais, nas escolas, a população começa a todos eles voltarão para o convívio social.
treinar, informar, ensinar as pessoas. O perceber que elas têm a mesma capaci- Será que melhores ou piores? •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 31
Economia

É coisa nossa
COMPRAS GOVERNAMENTAIS O governo retira da OMC a
abertura a estrangeiros e prioriza as empresas nacionais
P O R C A R LO S D R U M M O N D

A
reunião entre Lula e a pre- Inovação em Serviços Públicos. A pasta é acrescenta o assessor. “Em margens de
sidente da Comissão Eu- a responsável pelas compras públicas no preferência é até mais restritiva que aque-
ropeia, Ursula von der governo federal, por implementar a no- la da OMC. É uma questão de coerência,
Leyen, em Brasília, em va lei de licitações e ainda, em coordena- agora que retiramos a oferta feita nes-
torno de uma possível fi- ção com o Itamaraty, pelas negociações de se organismo, modificarmos a oferta do
nalização neste ano do acordo comercial acordos internacionais sobre compras go- Brasil à União Europeia em 2019”, subli-
entre o Mercosul e a União Europeia,
Entre em nosso vernamentais.
aparentemente deixou em segundo pla-
grupo no “Além de extremamente nha Estrela. A margem de preferência as-
Telegram: t.me/clubederevistas
abrangente, por abrir as licitações de es- segura que, em uma licitação vencida por
no um tema crucial ao debate sobre a tados, municípios e estatais e também as fornecedor estrangeiro por uma peque-
reindustrialização do País: o acesso ou concessões, a oferta que o Brasil retirou na margem, dê-se preferência à empresa
não de companhias estrangeiras às com- do Global Procurement Agreement, na nacional com um preço um pouco maior.
pras governamentais. Em seu discurso, Organização Mundial do Comércio, res- O mecanismo visa estimular a indústria
Leyen celebrou a volta do Brasil à diplo- tringia sobremaneira instrumentos im- instalada no País. “Especificamente no
macia internacional, reiterou a impor- portantes para nossa política de neoin- que diz respeito a compras governamen-
tância da Amazônia e dos direitos dos po- dustrialização e transição verde. O uso tais na OMC, o Brasil, ao retirar sua ofer-
vos indígenas e citou as possíveis sanções desses instrumentos, tais como a aplica- ta nas negociações em curso, tem a opor-
que a UE deseja impor no tratado em ca- ção de margens de preferência, compen- tunidade de melhor avaliar como a polí-
so de descumprimento de cláusulas de sações (offsets) comerciais, industriais e tica de compras públicas pode ser empre-
proteção ambiental. Os tópicos parecem, tecnológicas e conteúdo local, ficava proi- gada como uma ferramenta a favor da po-
no entanto, uma cortina de fumaça para bido ou severamente limitado”, explica. lítica industrial, o que, aliás, vários países
dissimular o interesse central dos euro- mundo afora têm feito”, concorda Tatiana
peus, de manter a estrutura de um acor- A oferta do Brasil feita no âmbito do Prazeres, secretária de Comércio Exte-
do benéfico aos setores mais competiti- acordo Mercosul–União Europeia é tão rior do Ministério do Desenvolvimen-
vos dos dois lados do Atlântico, as fábri- restritiva, entretanto, quanto a da OMC, to, Indústria, Comércio e Serviços. Vale
cas europeias e o agronegócio brasileiro, do ponto de vista das políticas públicas, lembrar, acrescenta, que o comércio exte-
em detrimento da indústria local. rior tem um papel fundamental no desen-
O governo está ciente do caráter deci- volvimento econômico, inclusive do se-
sivo da questão, tanto que, dias antes do tor industrial. E que uma política indus-
encontro, anunciou a retirada da oferta, O uso do poder trial bem-sucedida deve contribuir para
feita pelo governo Bolsonaro na Organi- do Estado como a inserção competitiva do Brasil na eco-
zação Mundial do Comércio, da abertu- nomia internacional.
ra a estrangeiros em compras públicas. A
instrumento de Longe de ser uma exceção, portanto, o
decisão está correta, analisa o diplomata política industrial uso do poder de compra do Estado como
Rodrigo Estrela, chefe da Assessoria In- é dominante no instrumento de política industrial é do-
ternacional do Ministério da Gestão e da cenário externo minante no cenário internacional, reforça

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 36
NESTA Paulo Nogueira Batista. Estamos
SEÇÃO diante da maior ameaça de guerra
nuclear desde meados do século XX

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

Rodeios. Ursula von der Leyen, da União Europeia, e o presidente Lula priorizaram outros temas no encontro em Brasília, mas
o acesso de empresas estrangeiras às compras governamentais é um dos pontos críticos do complexo acordo Mercosul–UE
VA LT E R C A M PA N AT O /A B R E A N D R É R I B E I R O /A G Ê N C I A P E T R O B R A S

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 33
Economia

Rafael Cagnin, economista-chefe do Ins- O Brasil não pode


tituto de Estudos para o Desenvolvimen-
to Industrial. Essa prática, especialmente
chegar atrasado
para acelerar inovação e para dar escala na corrida pela
à produção de novos produtos, serviços e reindustrialização
técnicas de produção, está em voga no ce-
nário internacional. “O caso paradigmá-
tico é o dos EUA, que desde 2021 vem re-
forçando a efetividade do Buy American mico-industrial da Saúde, mas também
Act para ampliar o conteúdo nacional das de sua inovação. Não só no setor de saú-
compras governamentais, e no Inflation de, contudo, há necessidade de inovação,
Reduction Act de 2022 voltou a insistir ela é necessária também para se avançar
em exigências de conteúdo nacional, pa- na “transição verde”, nos setores de alta
ra descontentamento dos europeus. Tudo tecnologia, acrescenta Estrela.
isso em um conveniente contexto de esva- O acordo Mercosul–UE é considera-
ziamento do sistema de resolução de con- do muito desequilibrado, desde o início,
trovérsias da OMC pelos EUA.” por partir do pressuposto de que se en-
tregava a indústria brasileira em troca do
As compras governamentais são instru- agronegócio, e piorou desde 2019, ano em
mentos clássicos de políticas de desenvol- que foi formalizado. A equipe de Bolso-
vimento e, como o MDIC acaba de definir naro tinha a ideia de que entrar nos acor-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
sete grandes missões que orientarão as dos conduziria, automaticamente, a uma
políticas de competitividade – industrial, certa eficiência e, portanto, não haveria
comercial e de inovação –, torna-se rele- problema em ceder em todos os pontos
vante contar com a possibilidade de uti- importantes. Essa visão ultrapassada
lizar o poder de compra governamental ainda sobrevive, segundo alguns ana-
para incrementar a industrialização, ou listas, em setores do atual governo.
neoindustrialização, como vem sendo de- A possibilidade do uso de compras
finida, ressalta Antonio Corrêa de Lacer- governamentais para fomentar a indús-
da, professor do Programa de Pós-Gradu- tria local é um dos últimos limites rela-
ação em Economia da PUC de São Paulo e cionados ao mundo das negociações co-
integrante da Comissão de Estudos Estra- merciais internacionais, terreno em que
tégicos do BNDES. “Há claramente uma o Brasil cedeu muito, e há muito tempo,
tendência global no sentido da reindus- em quase todos os outros pontos, ou eles
trialização. A pandemia desnudou a fragi- estão regulados desde a rodada Uruguai,
lidade das supostas cadeias globais de va- apontam especialistas. As compras go-
lor e até os mais liberais admitem a neces- vernamentais são consideradas “a últi-
sidade de uma indústria forte e inovadora. ma muralha” de defesa de um mínimo de
O Brasil não pode chegar atrasado nessa autonomia para o Brasil estimular tan-
corrida”, destaca Estrela. As compras go- to a indústria instalada quanto o Investi-
vernamentais constituem cerca de 15% do mento Externo Direto que inova no País.
PIB, numa estimativa conservadora. “São Primeiro, o Brasil baixou as tarifas de
um dos mais poderosos estímulos para o importação, o que desprotegeu parte sig-
crescimento, inovação e para a relocaliza- nificativa da indústria nacional. Em se-
ção da indústria global no Brasil. Não po- guida, proibiu os subsídios, e depois as po-
demos prescindir de seus instrumentos.” líticas de conteúdo local. Para completar,
O caso do SUS é emblemático, a sua fez concessões ilimitadas em proprieda-
sustentabilidade econômica depende da de intelectual. Não foi uma exclusividade
capacidade produtiva do complexo econô- brasileira e correspondeu a um momen-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
cam mais restritivas ao agronegócio. O
motivo são as seguidas medidas tomadas
pelos europeus para fechar os seus mer-
cados agrícolas, a partir da justificativa
ambiental, para os produtos brasileiros.
Especialistas no tema defendem a re-
avaliação de alguns elementos da nego-
ciação, a exemplo das compras governa-
mentais, tema abordado com frequência
por Lula. O atual formato é considerado
anacrônico, fruto da última fase da gera-
ção passada de acordos comerciais inter-
nacionais. Hoje quaisquer negociações
de um grande acordo de comércio inter-
nacional contemplariam termos mais
propícios à reindustrialização e à cria-
ção de empregos locais, ponderam estu-
diosos do assunto.

O encontro de Lula e Leyen é mais um


episódio da política externa do governo,
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas marcada por multilateralismo, tomada de
posição em favor do Sul global, viagens e
acordos de grande repercussão, mas que
é alvo de críticas, entretanto, da oposi-
ção e até de parte dos apoiadores do go-
verno, que classificam as ações do presi-
Futuro. O poder de compra do Estado dente como desvio de foco, por dispor de
será fundamental na transição da menos tempo para os assuntos internos.
economia verde e na melhora dos Um equívoco, ressalta Lacerda. A inser-
serviços de saúde, cujas fragilidades
ção externa, sublinha o economista, deve
foram escancaradas pela pandemia
fazer parte de um projeto de desenvolvi-
mento. O principal, nesse sentido, é o re-
torno à condição de potência emergente,
to no qual o neoliberalismo anulou os paí- nos campos econômico, geopolítico, am-
ses da América Latina, ao contrário do que biental e social. Essa retomada demonstra
aconteceu com várias nações asiáticas. resultados concretos em poucos meses,
As negociações deverão, contudo, pros- como os aportes internacionais ao Fun-
seguir e talvez a Comissão Europeia aceite do Amazônia e outros efeitos. “No aspecto
RHET T BUTLER E BRENO ESAKI/SS/GOVDF

algumas exigências do governo brasileiro, econômico amplo, tanto do ponto de vis-


mas a chance de o acordo ser assinado pelo ta das exportações, quanto investimen-
conjunto dos países integrantes da União tos e intercâmbio tecnológico, a evolução
Europeia é considerada remota. Na terça- é evidente. Assim, não se trata de priori-
-feira 13, a Assembleia Nacional da França zar os esforços externos em detrimen-
aprovou uma resolução contrária ao acor- to dos internos, pois não é possível esta-
do. Os termos atuais são piores do que no belecer uma clara fronteira entre ambos
início das tratativas, não apenas por conta quando se trata das questões de desenvol-
dos recuos no governo anterior, mas por- vimento em uma economia global em pro-
que a cada dia as condições de acesso fi- funda transformação”, destaca Lacerda. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 35
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de
Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai,
e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Catástrofe nuclear?

a Rússia fosse menos paranoica quanto Um “congelamento” da guerra mante-


► Desde a crise dos às ameaças que vêm do exterior. Mas es- ria vivo o risco de um confronto nuclear.
mísseis nos anos 60 do sas paranoias têm raízes profundas. Os A passagem do tempo multiplicaria os in-
norte-americanos estão acostumados cidentes capazes de levar à sua materia-
século passado, a ameaça
a mandar e desmandar, desde a Segun- lização. Para os países envolvidos, prin-
nunca foi tão real da Guerra Mundial e, em especial, des- cipalmente a Ucrânia, o prolongamento
de o colapso da União Soviética. Os rus- da guerra traria custos enormes em ter-
sos, por outro lado, estão acostumados a mos humanos e econômicos. Severamen-

O
brasileiro é um dos povos mais invasões imperiais ocidentais profunda- te abalada pela invasão, a Ucrânia sofre-
complacentes do planeta. Co- mente ameaçadoras, notadamente a na- ria mais ainda. A Rússia também pagaria
mo todas as nações gigantes, é poleônica e a hitlerista. um preço elevado em termos humanos,
propenso à introversão. Damos atenção políticos e econômicos. O Ocidente arca-
apenas relativa, apenas seletiva, ao que Estamos diante da maior ameaça de ria com uma conta cada vez mais pesada.
ocorre em outros países. Além do mais, guerra nuclear desde a crise dos mísseis O resto do mundo continuaria a sofrer
somos afortunados. Vivemos na Améri- soviéticos em Cuba, no início dos anos as consequências econômicas da guerra.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ca do Sul, região de paz, onde não se vê 1960. É bem verdade que, ao longo das úl- Volto ao Brasil. Lideranças políticas
guerra há muito tempo. Temos boas re- timas décadas, Estados Unidos e União como Lula e outras estão plenamente
lações com todos os nossos vizinhos de Soviética/Rússia se defrontaram em vá- conscientes, tudo indica, dessas ameaças
fronteira, sem exceção. E mais: ficamos rias regiões do mundo sem chegar às vias todas. É compreensível e louvável que es-
razoavelmente preservados dos efeitos de fato. Instalou-se, assim, a complacên- tejam envidando esforços para assegu-
destrutivos das duas Guerras Mundiais cia. A guerra nuclear, impensável por seu rar o fim da guerra. Países como China,
do século XX. Por todos esses motivos, os potencial de destruição mútua, será sem- Índia, Indonésia, Turquia e Brasil, en-
brasileiros estão entre os menos alertas pre evitada, acredita-se. Uma teoria, oti- tre outros, estão buscando a paz. O ca-
para o perigo que o mundo corre desde a mista, postula inclusive que a existência minho talvez seja aquele apresentado ini-
invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. de arsenais nucleares constitui, parado- cialmente pelo Brasil – a formação de um
E, no entanto, os riscos são crescentes, xalmente, uma garantia de paz ou, ao me- grupo de países que atuariam conjunta-
até mesmo o risco extremo de guerra nu- nos, de ausência de guerras diretas e to- mente em prol do fim das hostilidades e
clear. O conflito na Ucrânia envolve, di- tais entre potências atômicas. de uma solução duradoura para os confli-
reta ou indiretamente, as duas principais De fato, há cenários, mais ou menos tos no Leste da Europa. Evidentemente,
potências nucleares. A Rússia, diretamen- plausíveis, em que a catástrofe nuclear se- Brasil e outros podem acabar saindo de
te. Os Estados Unidos, indiretamente, por ria evitada. A vitória da Ucrânia, com ex- mãos abanando. Por maiores que sejam
meio de uma guerra por procuração em pulsão das tropas russas do seu território, seus esforços, só haverá paz se as partes
que os ucranianos lutam e morrem por não parece provável, mas não pode ser in- envolvidas na guerra estiverem realmen-
eles. Para os EUA, o que está em jogo é na- teiramente descartada, dada a extensão te dispostas a negociar. Tendo em vista,
da mais nada menos do que o prestígio da do apoio militar e financeiro do Ocidente. porém, a dimensão dos riscos que corre-
sua hegemonia global, desafiada pela in- A vitória da Rússia, mais concebível, dada mos, vale a pena persistir na busca da paz.
vasão da Ucrânia. A Rússia, por seu lado, a sua superioridade militar, econômica e O Brasil exerce a presidência de turno
enxerga na ação do Ocidente, na Ucrânia e populacional, encontra resistência cerra- do G-20 em 2024, grupo que inclui todos
em outros países, uma ameaça existencial, da do bloco ocidental. Um terceiro cená- os principais países envolvidos no confli-
e tem dito isso aberta e repetidamente. rio, mais provável, seria o assim chama- to, com exceção da Ucrânia. É a oportu-
B A P T I S TÃ O

O ideal seria que os Estados Uni- do congelamento da guerra, um conflito nidade que talvez se apresente para su-
dos fossem menos paranoicos quanto a de longa duração, sem solução no cam- perar a guerra e seus riscos. •
ameaças à sua liderança mundial. E que po de batalha e sem solução diplomática. paulonbjr@hotmail.com

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Economista, consultor editorial de CartaCapital
e ex-presidente do Palmeiras. É autor, entre outras obras,
de Valor e Capitalismo e Os Antecedentes da Tormenta

Sociedade da despersonalização
dade e a igualdade das outras pessoas”. objetivo é a acumulação de riqueza abs-
► O morador de rua e o O mesmo sistema que cria a ideologia trata, monetária. Ou seja, não se trata de
trabalho escravo retratam da pessoa e da personalidade determina produzir e gerar abundância e conforto
condições materiais sob as quais é estru- material para os indivíduos e suas vidas,
a destruição ideológica turalmente impossível que todos se tor- mas de produzir mercadorias concretas,
do conceito de pessoa nem pessoas. Assim, a conquista da per- particulares, úteis ou inúteis, com o pro-
sonalidade e da pessoa não é determina- pósito de acumular dinheiro. Uma coisa é
da por suas condições subjetivas, senão uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. O

O
f ilósofo ita lia no Rober to pelas condições sociais e materiais. Na problema é que, frequentemente, a mes-
Fineschi, no livro Capitalismo verdade, essas determinações da vida so- ma coisa não é a mesma para países, seus
Crepusculare, lança uma inda- cial cuidam de impedir que os indivíduos trabalhadores e suas empresas.
gação crucial. “Na perspectiva do indi- possam desenvolver uma personalidade Não importa onde e o que produzir,
víduo moderno, o que se pode fazer pa- reconhecida socialmente. mas distribuir e organizar a produção nos
ra ser pessoa?” Fineschi responde: “Te- Estamos diante da manifestação escan- espaços que permitam a maximização dos
nha uma renda”. carada do processo de abstração real que resultados monetários ambicionados por
Em meio à leitura das considerações opera nos subterrâneos das sociedades ca- grandes empresas e bancos que contro-
filosóficas de Fineschi, fui informado pitalistas e deforma suas superfícies. Na lam os instrumentos de produção e o di-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
que 62 mil paulistanos sobrevivem co- verdade, diz um outro filósofo, Roberto nheiro. As condições de vida dos habitan-
mo moradores de rua, desprovidos de um Finelli, a abstração real não se opõe ao tes dos espaços fracionados, abandonados
emprego ou atividade que lhes propor- mundo do concreto, não o força ou o obri- ou ocupados, são mera consequência, boa
cione uma renda monetária. ga como força externa, mas o coloniza por ou má, dos movimentos da abstração real.
Não bastassem as dores dos que vivem dentro, o assimila às suas leis. A abstra- Retornamos a Roberto Fineschi:
na rua, o Brasil registra inúmeros casos ção real é um vetor da realidade nem visí- “torna-se uma prática em massa violar
de trabalho escravo. Entre tantos, são vel nem tangível: tão invisível que, em sua a personalidade para impedi-la de ser
chocantes os episódios que registram a construção da realidade, essa força sub- uma pessoa. É uma dinâmica contradi-
escravidão de empregadas domésticas a terrânea só pode produzir o esvaziamento tória que culmina na destruição ideoló-
serviço dos bacanas do pedaço. real do concreto. Isso significa que, simul- gica do conceito de pessoa ou, pelo me-
Fineschi segue perseguindo as agru- taneamente, produz e dissimula realidade. nos, de sua universalidade. As consequ-
ras dos homens que não conseguem al- ências dessa práxis social são fundamen-
cançar a condição de pessoas no capita- Na interioridade da realidade, domi- tais porque ideologicamente elas se tor-
lismo contemporâneo: “Como se pode nada pela abstração, pelo concreto natu- nam o pano de fundo do fascismo ou de
obter um rendimento se as condições de ralizado, o ser humano se perde, pois tudo qualquer ideologia racista.”
emprego não existem? Aqui começa es- se traduz em funções econômicas de pro- É curioso observar como a sociedade na
truturalmente uma dinâmica pela qual dução e reprodução do abstrato. Mas es- qual sobrevivemos, ao transformar os in-
muitos indivíduos estão inclinados a ter sas funções econômicas do abstrato têm divíduos e suas subjetividades em simples
uma renda de qualquer forma; ilegal não a face do concreto, que, em vez de ser ani- coágulos monetários, pretenda, ao mesmo
significa simplesmente trabalhar ilegal- quilado, como uma dialética do negativo tempo, colocar barreiras, ensinando-lhes
mente, mas também significa recomen- gostaria, foi desvitalizado e esvaziado. as virtudes da moderação, da frugalida-
dação, ter uma pensão graças ao primo O conceito de abstração real condensa de, da solidariedade. Como podemos fa-
do ministro etc., etc., todas as dinâmicas com propriedade a natureza do processo lar de honradez, dignidade, autorrespeito,
que permitem que você seja gente tendo de constituição da estrutura e dinâmica em uma sociedade na qual todos os crité-
uma renda. Mas – e este é o ponto decisi- do capitalismo. Vamos considerar as ca- rios de sucesso ou insucesso são determi-
vo – ter este rendimento e ser pessoa viola deias globais de valor. Esse movimento nados pela quantidade de riqueza mone-
B A P T I S TÃ O

o próprio conceito de pessoa porque não ocorre na estrita obediência às normas tária que cada um consegue acumular? •
se respeita, mesmo a nível formal, a liber- do capitalismo enquanto sistema, cujo redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 37
Nosso Mundo

Ele queria
comprar
o mundo Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

ITÁLIA O recém-falecido Silvio


Berlusconi foi delinquente a comandar
a política no país por quatro vezes,
com o dinheiro e o apoio da máfia
P O R M I N O C A R TA

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 42
NESTA Colômbia. O resgate dos
irmãos na selva deixa em
SEÇÃO segundo plano a crise política

E
nredo novelesco: o reme-
diado cantor de boate em
cruzeiros mediterrâneos,
sempre a bordo de luxuo-
sas embarcações, torna-se
empresário, o mais rico de seu país e um
dos mais endinheirados do mundo, gra-
ças ao seu extraordinário tino para os
negócios. O entrecho real, a bem da ver-
dade, é outro, embora não falte a Silvio
Berlusconi, o nosso herói, talento para
negócios escusos. A singular figura de
86 anos acaba de falecer em Milão, vi-
timado por uma leucemia carregada
por 15 anos e, ao cabo, fatal.
Quatro vezes primeiro-ministro da
Itália, ele ganha um funeral com hon-
ras de Estado, a despeito dos veementes
protestos do ex-premier Giuseppe Conte
Entre em nosso
e da ex-ministra Rosy Bindi. Ele, do Mo-
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
vimento 5 Estrelas, e ela, do Partido De-
mocrático, não foram ouvidos pelo pre-
sidente Sergio Mattarella, a cumprir as
demandas da Constituição com a expres-
são beatífica de quem foi reeleito graças a
uma alteração introduzida em outro mo-
mento, que levou à rejeição do comunista
Giorgio Napolitano pela maioria parla-
mentar então de esquerda, a observar em
Napolitano condições para liquidar de O premier pretensamente socialista Bettino Craxi permitiu a Berlusconi a compra
de uma televisão com o dinheiro do Cosa Nostra garantido pelo senador Dell’Utri,
vez com Berlusconi. Tudo o que se con- intermediário do negócio irregular e enfim cassado e preso
seguiu, à época, foi que o alvo fosse atin-
gido por uma prisão domiciliar e a obri-
gação de usar tornozeleira por um ano.
L U C A B R U N O / A P, M A R C E L L O P A T E R N O S T R O / A F P

O herói dessa história tem o vezo de-


terminante de comprar juízes desde o
E ROBERTO SOLOMONE /CON T ROLUCE /A FP

momento em que se ligou ao ex-premier


socialista Bettino Craxi, que fugiu pa-
ra a Tunísia em 1994, após ser conde-
nado por corrupção no curso da Ope-
ração Mãos Limpas. Craxi desempe-
nhou papel importante para a ascensão
de Berlusconi, porque permitiu a ven-
da de três canais de televisão ao grupo
Fininvest, holding de mídia e de insti-
tuições financeiras erguida pelo mag-

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 39
Nosso Mundo

nata. Conclusão inescapável: foi o di-


nheiro mafioso a permitir que um de-
linquente como Berlusconi comandas-
se várias vezes a política italiana.
A polpuda contribuição da Cosa Nostra
foi garantida pela presença, ao seu lado,
de figuras abertamente ligadas à má-
fia siciliana, como Vittorio Mangano,
oficialmente chamado para cuidar do
haras da casa de campo de Berlusconi
em Arcore, a 70 quilômetros de Milão.
Trata-se de uma faustosa mansão, não
menos imponente do que outra construí-
da na Ilha da Sardenha, onde o ex-premier
inaugurou o uso de bandana para escon-
der a calvície, mais tarde entregue a um
implante indisfarçável, tingido de pre-
to, para ostentar uma espécie de eter-
na juventude. Em seu terceiro casamen-
to, tinha como esposa a deputada Marta
Fascina, 24 anos mais jovem do que a sua
Entre em nosso
filha primogênita, Marina Berlusconi,
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
hoje a controlar o império da Fininvest,
secundada por dois irmãos, sempre
prontos a louvar as virtudes do pai.

Determinante na relação com a Cosa


Nostra, o senador Marcelo Dell’Utri,
fundador do partido Forza Italia com
Berlusconi, teve o mandato cassado
e foi preso por associação mafiosa, a
exemplo de outros frequentadores da
corte berlusconiana, entre eles o jor-
nalista Emilio Fede.
A ascensão de Berlusconi deu-se, so- A receita da eterna juventude Andreotti foi ainda quem percebeu
graças à cirurgia plástica
bretudo, por obra da Operação Mãos o peso político da máfia e certa vez foi
Limpas, que devastou o Partido Demo- pego a beijar o rosto de Totò Riina, in-
crata Cristão, majoritário desde o início suspeito como mandante da morte do
do pós-guerra e povoado por figuras he- jornalista Carmine Pecorelli, conhe-
diondas. Um destaque é Giulio Andreotti, cido como Mino, que insistia em con-
primeiro-ministro por três períodos. Se- tar as façanhas do chefe corleonesi. No
cundado pelo então presidente da Re- contexto, falta outra figura deplorável:
pública, Francesco Cossiga, ele era um Bruno Vespa, até hoje presente no co-
consumidor diário de hóstias e um dos mando de um programa da tevê pública
grandes hipócritas da política europeia RAI. Na sua atuação melíflua, em
no século passado, aquele que nada fez proveito sempre das piores orientações,
para impedir a morte de Aldo Moro no é um bajulador de todos, mas sobretudo
cativeiro das Brigate Rosse e odiado pe- de si mesmo.
la família do líder da esquerda do PDC. O único mérito reconhecido de

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Berlusconi foi o de ter proibido o fumo
em locais públicos. Fora isso, o vácuo e a
empáfia. Como primeiro-ministro, ele
também visitou o Brasil, onde se des-
tacou pelas anedotas vulgares e a exi-
gência da pole dance. Aliás, ao longo de
sua trajetória política, tornou-se réu em
mais de 30 processos, de corrupção à
prostituição infantil, uma das facetas
de suas famosas festas “bunga-bunga”.
Evitou-as em Moscou, visitada para um
encontro muito cordial com Vladimir
Putin, outro a enviar condolências.

Em conferências internacionais,
Berlusconi deixou lembranças grotes-
cas, como levantar os dedos indicador e
mínimo, para simular cornos pelas cos-
tas do chanceler espanhol Josep Piqué,
ou ainda gestos peremptórios para imi-
tar as formas abundantes da senhora
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
No Brasil, Berlusconi exigiu um “bunga-bunga”. Na URSS, ganhou amizade de Puttin
Angela Merkel, então premier da Alema-
nha. Trata-se de um conjunto assusta-
dor de micagens primitivas. Há quem di-
ga que Donald Trump deu continuida-
de ao seu estilo, com o perdão, espera-
-se, do ex-presidente norte-americano.
Aficionado pelo Milan, que o inspi-
rou ao escolher o nome de seu partido,
Berlusconi não hesitou em despejar rios
de dinheiro para tornar o clube vitorio-
so em várias Champions League. Chegou
a erguer uma cidade, Milanello, nos ar-
redores de Milão, para abrigar o centro
de treinamento do time e famílias endi-
nheiradas. O magnata investiu pesada-
mente na contratação de reforços impor-
A L B E R T O P I Z ZO L I /A F P E M AT T E O B A Z Z I /A N S A /A F P

tantes para manter o esquadrão milanês


R I C A R D O S T U C K E R T / P R , A L E X E Y P A N O V / A F P,

no topo do mundo, a exemplo do atacante


George Weah, único africano a receber o
troféu Bola de Ouro, ou o excepcional lí-
bero Franco Baresi, que não esqueceram
de enviar telegramas de condolências
pela morte do ex-premier. Baresi, por si-
nal, chegou a visitar a câmara-ardente da
mansão de Arcore. Felizmente, na visão
desta publicação, não compareceu Paolo
Maldini, provavelmente o melhor defen-
sor italiano de todos os tempos. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 41
Nosso Mundo

Bola da vez
COLÔMBIA O ex-guerrilheiro Gustavo
Petro mobiliza as ruas contra as
denúncias que ameaçam seu mandato
POR SERGIO LIRIO

S
ó um “milagre” teria o con- crianças, lideradas pela obstinada Lesly,
dão de arrefecer o clima guarda um paralelo com o esforço de Pe-
tenso e unir uma Colômbia tro para sobreviver à investida da oposi-
dividida e ele aconteceu no ção. Há dez meses no poder, o ex-guerri-
sábado 10. Por ora, a crise lheiro e primeiro líder assumidamente de
política que ameaça o curto mandato de
Entre em nosso esquerda
Gustavo Petro foi suplantada pela como-
grupoa no ocupar o Palácio de Nariño tor-
Telegram: t.me/clubederevistas
nou-se alvo de uma campanha de desesta-
ção nacional diante do resgaste dos qua- bilização semelhante àquela em outros pa-
tro irmãos perdidos na selva durante 40 íses da região. O estopim foi a divulgação
dias. Lesly Mucutuy, de 13 anos, Soleiny, pela revista A Semana de diálogos compro-
de 9, Tien, de 4, e o bebê Cristin, de 11 me- metedores entre Laura Sarabia, chefe de
ses, vagaram pela floresta após a queda gabinete de Petro, e Armando Benedetti,
do avião que os levava ao encontro do pai chefe da campanha eleitoral e embaixa-
e sobreviveram à base de farinha de man- dor na Venezuela – ambos demitidos na
dioca, sementes e frutas silvestres. São esteira do escândalo. Nas conversas, re- do o que sei, o suficiente para acabar com
muitas as camadas da tragédia: as crian- cheadas de palavrões, Benedetti ameaça o seu mundo e o meu. Vamos todos cair.
ças tiveram de mover o corpo da mãe pa- revelar um suposto financiamento ilegal Todos estaremos acabados. Iremos para a
ra salvar Cristin e o voo marcaria o reen- do então candidato de 15 bilhões de pesos, cadeia”. Benedetti nega as acusações e diz
contro da família com o pai, obrigado a o equivalente a 17 milhões de reais. Res- que os áudios foram adulterados. O Minis-
fugir da aldeia amazônica de Araracuara sentido por aparentemente ter sido rele- tério Público abriu investigação. Por conta
para escapar da perseguição de guerri- gado a segundo plano na administração, o das denúncias, o Congresso, onde o Exe-
lheiros, flagelo de difícil solução. Em então embaixador foi direto: “Eu não esta- cutivo perdeu a maioria após partidos de
uma coincidência que só o mais criativo va te ameaçando, mas estou te ameaçan- centro-esquerda abandonarem a coliga-
roteirista poderia imaginar, Petro havia do agora, filho da puta, tanto você quan- ção denominada de Pacto Histórico, de-
assinado em Havana na sexta-feira 9, to o presidente, entendeu? Se você qui- cidiu interromper “até o esclarecimen-
véspera do resgaste, um acordo de ces- ser que eu a ameace, vou sair e revelar tu- to dos fatos” a tramitação das reformas
sar-fogo temporário de seis meses com nas áreas de saúde, trabalho e previdên-
Antonio Garcia, líder do Exército de Li- cia, pilares do projeto de viés progressista.
bertação Nacional, uma das mais anti-
gas guerrilhas – boa notícia para o gover- Petro parece ao menos ter aprendido
no em uma semana turbulenta.
O resgate dos quatro a lição com duas experiências recentes na
De volta ao país e ainda no sábado, o pre- irmãos na floresta vizinhança. No Peru, Pedro Castillo, alvo
sidente colombiano visitou os irmãos em deu uma trégua de três processos de impeachment, afas-
um hospital de Bogotá. A resistência das à crise política tou-se das bases sociais e cedeu à chan-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Resposta. Acuado por um Congresso
hostil e por investigações de corrupção,
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas Petro fia-se no apoio popular

mobilizaram em defesa de Petro. Em uma


carta conjunta, Adolfo Pérez Esquivel,
Nobel da Paz, Jeremy Corbyn, líder do Par-
tido Trabalhista inglês, Gleisi Hoffmann,
presidente do PT, e João Pimenta Lopes,
tagem da direita a cada estocada. Quando nos vivem agora sob a ameaça de aprovar deputado do Parlamento Europeu, entre
percebeu o erro da estratégia e a fome in- uma Constituição mais retrógrada do que outros, denunciaram a tentativa de “gol-
saciável dos adversários, era tarde demais. a atual. E as chances de a esquerda man- pe brando” em curso na Colômbia. “Des-
Castillo tentou virar a mesa em dezembro: ter a presidência em um país sem reelei- de a eleição do primeiro governo progres-
decretou a dissolução do Parlamento no ção tornaram-se escassas. O colombiano, sista do país – encabeçado pelo presiden-
dia da votação de mais uma ação de impe- ao contrário, preferiu apostar na mobili- te Petro, pela vice-presidente Francia
dimento, mas, isolado, acabou destituído zação popular. Na quarta-feira 7, no ápi- Márquez e pelo Pacto Histórico – os po-
e preso. No Chile, o jovem Gabriel Boric, ce da crise midiática, eleitores de Petro lo- deres tradicionais vêm tentando restabe-
em nome de uma pretensa modernização taram as ruas de Bogotá e de mais 200 ci- lecer uma ordem marcada por extrema de-
JUA N BA RRE TO/A FP E R AUL A RBOL EDA /A FP

do pensamento de esquerda, alinhou-se dades e vilarejos. “Há quem ainda não en- sigualdade, destruição do meio ambiente
ao centro-direita e abriu mão de propos- tendeu o significado da decisão eleitoral e violência patrocinada pelo Estado”, ano-
tas caras ao campo progressista e motores do ano passado”, discursou o mandatário tam os signatários. “Querem interromper
das manifestações de 2019 e 2020. A mo- à multidão na capital. “Acham que foi um as reformas, intimidar, derrubar seus líde-
deração não lhe caiu bem. Boric não cor- delírio que passou e deixou um presiden- res e manchar sua imagem internacional”.
re o risco de perder o mandato precoce- te abandonado no palácio. Então hoje di- A Colômbia dará, nas próximas sema-
mente como Castillo, mas amarga índices zemos com toda clareza: não foi assim. O nas, uma resposta ao dilema dos progres-
decepcionantes de popularidade e viu os povo que elegeu o presidente segue com sistas sulamericanos. Os partidos ditos
saudosistas do ditador Augusto Pinochet o presidente e ambos querem colocar em de esquerda ainda têm força de mobili-
conquistarem a maioria das cadeiras da prática o programa eleito.” zação? Mais: as ruas são capazes de fazer
nova Assembleia Constituinte. Os chile- Lideranças internacionais também se frente ao poder dos gabinetes? •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 43
Nosso Mundo

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

Até o momento,
há 27 desaparecidos

Futuro submerso
A
pós o rompimento da bar-
ragem de Nova Kakhovka,
na Ucrânia, na madrugada
de 6 de junho, a escala em
O rompimento da barragem longo prazo do desastre da
em Nova Kakhovka eleva a tragédia inundação fica cada vez mais aparente. Na
estação de Mykolaiv, a primeira cidade pa-
humanitária na Ucrânia a outro patamar ra o interior, a aposentada Olena Lysiuk
diz que não teve escolha a não ser deixar
P O R DA N S A B B AG H E A R T E M M A Z H U L I N ,
seu apartamento em Kherson, embora
E M M Y KO L A I V, E J U L I A N B O R G E R , E M K I E V
fosse muito alto para ser inundado. “Não
é só que não temos água, gás ou eletricida-
de. Também nos acostumamos a não tê-
-los durante a ocupação russa. Mas agora
o esgoto não funciona. Esse é o novo pro-
blema”, diz Lysiuk. Agora ela planeja ficar

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
em Mykolaiv com parentes, enquanto re- Dnipro, uma reação de medo à possibili-
cebe do Estado uma ajuda financeira de A inundação dade de um ataque surpresa de Kiev, do
10 mil hryvnia (1,3 mil reais). coloca em risco outro lado do principal rio do país.
Vasyl Chornyi desce de um vagão de a segurança da Certamente, um ataque naval agora
evacuação de Kherson e acende um ci- usina nuclear é mais difícil para a Ucrânia, e a cons-
garro enquanto o trem se junta a outro. O trução de uma ponte flutuante sobre o
Rio Inhulets inundou parte de sua aldeia,
de Zaporizhzhia Dnipro alargado é praticamente impos-
Fedorivka, 29 quilômetros a nordeste, e sível. Mas se houvesse uma tentativa de
embora sua casa não tenha sido direta- imitar a destruição de Stalin da ainda
mente afetada ele decidiu sair por temer maior barragem de Zaporizhzhia, dian-
uma pandemia. “O cemitério está inun- Norsar da Noruega confirmou até agora, te do avanço do exército alemão em 1941,
dado, os esgotos estão inundados”, diz enquanto a mídia dos Estados Unidos re- as consequências dos acontecimentos se-
Chornyi, que afirma ter visto caixões a lata que satélites espiões também detec- riam suportadas em grande parte por ci-
flutuar na correnteza. “Quando as águas taram uma explosão nessa hora. Espe- vis e, paradoxalmente, soldados russos,
baixarem, vai ter muitos peixes mortos, cialistas acrescentam que teria sido mui- na margem esquerda do Dnipro, ao sul, o
outros apodrecendo. Em Kherson, os po- to mais difícil destruir a barragem por fo- lado dominado pelos invasores.
ços estão arruinados. Os banheiros fora ra do que explodi-la por dentro. Se foi a Um grupo de ativistas russos contra
das casas estão inundados”. Rússia, o que parece mais provável, que a guerra relatou que 1.842 moradores
Entre em nossomotivo
Casas inteiras têm sido arrastadas
grupo poderiam ter suas forças? Uma dentro e ao redor da cidade inundada de
no Telegram: t.me/clubederevistas
explicação: teria sido uma resposta de- Oleshky, no outro lado do Rio Dnipro,
para o Mar Negro. Na sexta-feira 9, um fensiva instintiva à ameaça de um ataque diante de Kherson, “atualmente não são
telhado intacto foi parar numa praia em anfíbio na região de Kherson através do autorizados a sair pelos militares russos”,
Odessa, a 210 quilômetros de distância.
Moradores da cidade foram instruídos a
não tentar remover o lixo, juncos e outros SUBMERSOS
detritos transportados pela água, por Inundação no entorno da barragem em 7 de junho
causa do temor de que minas terrestres,
algumas feitas de plástico leve, possam
flutuar perigosamente entre eles. Mas is-
Rio
so deixa a limpeza para os sobrecarrega- MYKOLAIV
Inhulets
KHERSON
dos serviços de emergência do Estado.
O Ministério do Interior de Kiev con- Barragem
Reservatório
de Kakhovka
tabiliza 27 desaparecidos até agora, em- de Nova
Kakhovka
bora o número real provavelmente seja Rio Dnipro

muito maior, após o desastre ocorrido no Tokarivka


ponto mais crítico da guerra desde que
Korsunka Nova
as tropas russas foram repelidas de Kiev. Mylkiske Krynk Kakhovka
Kherson
Um dia antes, a Ucrânia iniciou, embora
sem alarde, a esperada contraofensiva,
MINISTÉRIO DA DEFESA /UCRÂNIA

Bilozerka
da qual depende o futuro da guerra, da
Oleshky
Ucrânia e talvez até da Rússia. Território controlado
pelos russos
Canal
Norte da
Então, às 2h50 da terça-feira 6, um Crimeia
Extensão da
cataclismo atingiu a barragem de No- inundação
va Kakhovka. Os moradores relataram
ter ouvido uma explosão ensurdecedo-
ra e que “o céu ficou branco” na madru-
gada. A análise sísmica subsequente do Fonte: Institute for The Study of War com AIE´s Critical Threats Project

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

As tropas
ucranianas
encontram
dificuldades
para avançar

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

e que 338 deles precisam de assistência ocupada. “No fim de setembro, início de nas chamam de “zona morta”. Isso sig-
urgente, pois os suprimentos de água e outubro, os trabalhadores ucranianos da nifica que é muito baixa para alimentar
comida ficaram perigosamente curtos. estação perceberam que os russos leva- os quatro sistemas de canais da era sovi-
Eram, porém, os russos os controla- vam muito material explosivo”, disse Ihor ética que abastecem toda a região, par-
dores da central hidrelétrica na barra- Syrota, chefe da Ukrhydroenergo. “Mas ticularmente os distritos de Kherson e
gem. Sob a ocupação, Nova Kakhovka no fim de outubro os trabalhadores ucra- Zaporizhzhia e a Crimeia. Juntas, essas
há muito havia parado de gerar energia nianos foram mandados embora e se tor- regiões representam um dos celeiros
e foi transformada em uma guarnição, de nou um quartel-general militar para os do mundo, e o Ministério da Agricultu-
onde os russos poderiam se defender de russos.” O presidente Volodimir Zelensky ra ucraniano alertou que, sem esses ca-
qualquer tentativa das forças ucranianas disse em uma reunião online com ativis- nais vitais, elas poderão se tornar “deser-
de se aproximar da barragem pela mar- tas ambientais: “Alertamos o mundo so- tos” no próximo ano.
gem direita. Há outros indícios de que a bre os explosivos na barragem e outras A queda dos níveis de água no reserva-
Rússia via a barragem como uma ficha instalações. Era evidente que a Rússia tório também ameaça o abastecimento
num jogo militar, sem levar em conta as tinha a intenção de causar um desastre”. de água potável para cidades e aldeias ao
consequências. Os ocupantes permiti- longo do curso do baixo Dnipro. E há ou-
ram que os níveis de água no reservató- Sejam quais forem os motivos, não há tra ameaça, menos certa, mas potencial-
rio de Kakhovka, atrás da barragem, su- dúvida sobre as consequências. Embo- mente ainda mais catastrófica. O nível
bissem ao máximo em 30 anos, enchen- ra a atenção imediata tenha sido para a do reservatório de Kakhovka está ago-
do a represa com mais de 18 milhões de tragédia humana e ambiental rio abai- ra bem abaixo dos 13,3 metros necessá-
metros cúbicos de água, o tamanho do xo, uma catástrofe ainda maior poderá rios para atingir o canal de captação da
Grande Lago Salgado de Utah, nos EUA. surgir rio acima nos próximos meses e usina nuclear de Zaporizhzhia, cerca de
A empresa de energia ucraniana que anos. O nível da água no reservatório de 200 quilômetros a montante da barra-
administrava a usina hidrelétrica antes Kakhovka caiu para menos de 12 metros, gem. Normalmente, a água seria sugada
de ela ser invadida também estava pre- entrando no que as autoridades ucrania- do reservatório para tanques de pulve-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
rização usados para resfriar os seis nú- A contraofensiva mente aumentaria o risco” de um surto
cleos do reator e o combustível irradia- de cólera ou outras infecções intestinais,
do armazenado na usina. A drenagem
ucraniana tem diz o professor Paul Hunter, professor de
do reservatório não é ameaça imediata, sido malsucedida medicina na Universidade de East Anglia
pois os seis reatores de Zaporizhzhia fo- até o momento e consultor da Organização Mundial da
ram fechados após a ocupação da usina Saúde. “As inundações podem levar o es-
pelas forças russas e sua transformação goto à água extraída para beber. Se não
em guarnição e depósito militar. Um dos for tratada adequadamente, pode causar
reatores foi mantido em “desligamento a situação é complicada pelo fato de que, uma série de problemas, dos quais o mais
quente”, com temperatura mais alta pa- após uma pausa de um dia, o bombardeio assustador é a cólera”. A doença não apa-
ra ajudar no aquecimento da cidade vizi- russo e a retaliação ucraniana recomeça- receu na Ucrânia até agora, acrescenta,
nha de Enerhodar. Este foi colocado ago- ram. Dois socorristas ficaram feridos na mas tem histórico de surgir durante e em
ra em desligamento a frio. As necessida- cidade controlada pela Ucrânia no sába- torno de guerras, mais recentemente na
des de água da planta são muito menores do 10, enfatizando os perigos, enquanto Síria. Para evitar problemas, a Ucrânia
do que quando ela funcionava. a situação de segurança era tão séria que ajudará com vigilância médica e vacina-
Além disso, há uma lagoa de resfria- outro grupo informou a The Observer so- ção e garantirá que, quando os civis fica-
mento considerável para emergências. A bre seus últimos esforços de emergência. rem doentes, possam obter bons cuida-
Agência Internacional de Energia Atômi- As ilhas no delta do Dnipro, antes dos de saúde, acrescenta Hunter.
ca estima que contém água suficiente pa- ocupadas pelos russos, foram submer-
ra manter as operações de resfriamento sas, e imagens de drones mostram anti- Enquanto isso, com um efeito terrível,
por vários meses. Autoridades ucrania- gos assentamentos costeiros, como Hola a destruição da barragem de Kakhovka
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
nas da corporação ucraniana de energia Prystan, também inundados. Um de- aumenta as enormes apostas na contra-
nuclear, Energoatom, acreditam que é sastre humanitário na margem esquer- ofensiva ucraniana. Era assustador o de-
suficiente para vários anos. Estudos en- da controlada pela Rússia “indubitavel- safio enfrentado pelas tropas enquanto
comendados pela Energoatom após o de- tentavam atacar as linhas de defesa rus-
sastre da usina nuclear de Fukushima em sas bem preparadas, e começaram a cir-
2011 descobriram, no entanto, que, sem cular fotos nas redes sociais das primei-
a força contrária das águas do reservató- ras perdas de blindados ocidentais, tan-
rio de Kakhovka, do outro lado, o dique ao ques Leopard alemães e veículos de com-
redor da lagoa de resfriamento poderá es- bate Bradley fabricados nos EUA. “Com
tourar com a pressão da água interna. O exceção dos Estados Unidos, nenhuma
presidente da empresa, Petro Kotin, mi- outra força militar de estilo ocidental po-
nimizou esse cenário e garantiu aos ucra- de conduzir operações sustentadas de ar-
nianos a existência de outras fontes de mas combinadas em escala. Portanto, as
água em caso de emergência para evitar o forças ucranianas tentam fazer no nível
derretimento do combustível radioativo tático o que nenhum outro integrante eu-
na usina. “São unidades móveis de bom- ropeu da Otan é capaz atualmente”, es-
beamento que podem ser implantadas se creveu Franz-Stefan Gady, do Instituto
necessário, e a última fronteira é o uso Internacional de Estudos Estratégicos.
de poços subterrâneos de água potável”. A inundação aprofundou a crise na
A ameaça real, segundo ele, é a sabo- Ucrânia. Os momentos dramáticos nas
tagem deliberada da usina pelos russos. primeiras horas da manhã da terça-fei-
Se eles realmente explodiram a barra- ra 7 significavam que o país não apenas
PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA

gem de Kakhovka, isso aumenta o medo travava uma guerra, mas lutava contra o
de que também possam explodir a usina que é quase com certeza uma catástro-
de Zaporizhzhia, apesar das consequên- Zelensky diz ter fe ambiental e humanitária totalmente
alertado o Ocidente
cias que quase certamente se espalha- das intenções russas
desnecessária, causada pelo homem. •
riam para o território russo. No momen- de explodir a barragem
to, as águas mal baixaram de seu pico – e Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 47
Plural

O lugar da
memória
POLÍTICA CULTURAL Uma campanha lançada
pela Cinemateca Brasileira joga luz sobre
o delicado tema dos filmes como um
patrimônio a ser preservado e mostrado
P O R A N A PAU L A S O U S A

N
Entre em nosso na
os anos recentes, as imagens
grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
quarta-feira 7 inclui o restauro e a mo-
de um incêndio, na Vila dernização do prédio de tijolos aparen-
Leopoldina, e de um prédio tes, no antigo matadouro municipal, pro-
fechado, na Vila Mariana, jetos de recuperação, catalogação e digi-
com latas e mais latas de fil- talização do acervo e mostras itineran-
mes lá dentro, sob risco, se tornaram a fa- tes por 12 cidades do Brasil.
ce mais visível da Cinemateca Brasileira.
Foi por meio do drama que a Cinema- “Estamos perseguindo o objetivo de dois anos atrás, era comum que se ouvis-
teca, ao longo de uma década agonizan- divulgar o que temos aqui. Com isso, es- se a pergunta “por que não se digitaliza
te, ganhou visibilidade na mídia e na so- peramos acabar com a história, às ve- isso tudo?”, como se ela carregasse em si
ciedade. Mas, passado pouco mais de zes repetida, de que ninguém sabe o que a solução. Mas não é simples assim.
um ano da reabertura de sua sede – que tem no acervo da Cinemateca”, diz Ga- A preservação, trocando em miúdos,
permaneceu fechada de agosto de 2020 a briela Sousa de Queiroz, funcionária re- deve assegurar a conservação e o acesso
maio de 2022 –, a instituição veio a públi- manescente das várias crises e hoje di- a conteúdos e documentos audiovisuais
co para dar a ver não apenas suas dificul- retora técnica da instituição. produzidos a partir do final do século
dades, mas seus planos e sua razão de ser. O acervo contém mais de 40 mil títu- XIX, nos mais diversos suportes – como
A campanha Memória em Movimen- los, além de documentos que ajudam a o nitrato, que é inflamável e exala mau
to, feita a partir da iconografia de dez contar a história da produção de imagens cheiro, o acetato, que derrete, e o digi-
produções brasileiras, entre filmes e no- no País. Durante o rescaldo do incêndio tal, que requer constantes atualizações.
velas, procura traduzir algo que tende a ocorrido no galpão da Vila Leopoldina, Entre os projetos de preservação em
soar enigmático: o papel da preservação curso estão o tratamento da coleção de fil-
e do restauro na indústria audiovisual. mes em nitrato, que compõem a coleção
“Lembra daquele filme com uma mulher mais antiga do cinema brasileiro, com re-
que tinha dois maridos?”, pergunta o tex- gistros da primeira década do século XX,
to de uma das peças. “Então, tudo o que
O digital, ao invés e a conservação, duplicação e difusão dos
você lembra do nosso audiovisual, a Ci- de facilitar, tornou cinejornais do Canal 100, o maior acer-
nemateca Brasileira preserva.” ainda mais complexa vo cinematográfico do futebol brasileiro.
O pacote de boas notícias apresentado a tarefa de preservação Só este ano, a Cinemateca gastará 3,5

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Literatura. Mohsin
SEÇÃO Hamid explora as nuances
da pauta identitária

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

milhões de reais na compra de 300 rolos Nitratos, acetatos


e HDs. Um ano após
de filme. “O filme ainda é o suporte mais
sua reabertura,
seguro, e com maior longevidade museo- a instituição anunciou
lógica”, diz Gabriela. “Em uma institui- novos projetos
ção como esta, marcada por tantas crises, de recuperação,
me parece essencial garantir que os fil- catalogação e
digitalização do acervo
mes fiquem em um suporte mais seguro.”
composto por mais
O tema do patrimônio audiovisual, de 40 mil títulos
complexo e sujeito a diferentes inter- produzidos no País
pretações sobre o que e como preservar, desde o início do
foi, desde sempre, um rodapé na histó- século XX até hoje
ria das políticas públicas voltadas ao se-
tor. Começam, porém, a surgir uns pou-
cos sinais de uma mudança nessa sina.
D A N I E L A M AT I A S / C I N E M AT E C A

O decreto presidencial publicado em


janeiro deste ano, que trazia, entre ou-
tras medidas, a reinstituição do Ministé-
rio da Cultura, criou também a Diretoria
de Preservação e Difusão Audiovisual.
“Haver uma diretoria com essa deno-
minação já é um bom sinal”, diz Gabriela.

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 49
Plural

“O tamanho e a velocidade do big data


são incompatíveis com a capacidade hu-
mana de manipulação do volume de ma-
terial audiovisual hoje produzido”, diz
Hernani Heffner, gerente da Cinemateca
do Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio
de Janeiro. “Para dar conta das necessida-
des da preservação teremos de contar com
ferramentas da robótica e das webs 3.0 e
4.0. A preservação, no século XXI, tem
de ser entendida como uma cadeia de va-
lor autônoma, inclusive porque nunca foi
tão grande o uso de imagens de arquivo.”

E o passado que se esvai não é apenas


aquele longínquo. A política estruturada
a partir da Lei do Audiovisual, em 1993, e
Película. Uma cópia da criação da Agência Nacional do Cine-
restaurada de ma (Ancine), em 2001, embora tenha ga-
Quilombo (1984), de rantido a produção de filmes, não garan-
Cacá Diegues, será
tiu nem sua difusão nem sua preservação.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
exibida na Mostra de
Nomes-chave do cinema brasileiro
Ouro Preto. Durval
Discos ((2002), de no século XXI, como Anna Muylaert e
Anna Muylaert, Karim Aïnouz, viram parte sua produ-
até hoje não passou ção tornar-se pouco acessível por não
pela digitalização
ter passado ainda por um processo de
digitalização. Durval Discos (2002) e É
Proibido Fumar (2009), de Anna, e Mada-
me Satã (2002) e O Céu de Suely (2006),
de Aïnouz, são exemplos de obras que
não podem ser vistas no streaming por
ainda terem cópias apenas em película.
O tema também esteve no centro de um A manutenção de arquivos digitais re- Foi, inclusive, a descoberta dessa reali-
encontro voltado ao que se chamou de re- quer, como se lê no documento do Fórum dade que levou Raquel Hallak a fazer a Mos-
construção do audiovisual brasileiro na de Tiradentes, “uma estrutura de conser- tra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), que
Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, vação ativa que implica em infraestrutu- tem os filmes de patrimônio como um de ACERVO/CACÁ DIEGUES E ACERVO/A NN A MU Y L A ERT

no início do ano. O documento final do Fó- ra tecnológica para o armazenamento de seus eixos. “Em 1998, quando criei a Mos-
rum de Tiradentes prega a necessidade de dados e a constante atualização dos for- tra de Tiradentes, quase não havia filmes
se tirar a preservação do lugar de “apên- matos”. Além disso, a vastidão do conte- novos no Brasil, mas havia um acervo enor-
dice” da cadeia produtiva do audiovisual. údo feito para a internet implica em uma me a ser exibido. Só que quando fui ten-
A complexidade da preservação decor- rede de armazenamento hoje inexistente. tar fazer isso, tive uma dificuldade imen-
re da necessidade de altos investimentos sa para encontrar cópias dos filmes”, diz.
financeiros, formação de mão de obra es- Às vésperas da abertura da 18ª edição
pecializada e criação de espaços e condi- da CineOP – na quarta-feira 21, com a pre-
ções para a manutenção do acervo. E a di- sença da ministra Margareth Menezes –,
gitalização, que levou à migração do con-
O novo Ministério da Raquel olha para trás no tempo e intui
teúdo para uma grande nuvem, deve ser Cultura passou a que, enfim, a percepção em torno do te-
entendida mais como um novo desafio do incluir uma diretoria ma da preservação e da memória mudou.
que como uma solução mágica. voltada à preservação E ela não está sozinha nessa percepção. •

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Plural

Capricho
da deusa
Fortuna
FUTEBOL A INTERNAZIONALE
FOI NITIDAMENTE SUPERIOR,
MAS NEM SEMPRE OS
MELHORES GANHAM
POR MINO CARTA

A
despeito da incompreensível tor-
cida da crônica esportiva brasi-
leira, o Manchester City demos-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
trou apenas a desmedida sorte de seu
treinador Pep Guardiola no confronto
contra a Internazionale de Milão. Em
toda a partida, o quadro italiano foi su-
perior e o gol marcado para assinalar a vi-
tória inglesa somente serviu para provar
que nem sempre os melhores ganham.
Enquanto o ataque milanês atingia
o madeirame do gol inglês três vezes ao
longo da contenda, sem contar dois gols
perdidos quando seria mais fácil marcá-
-los, a defesa do clube italiano conseguiu
anular o norueguês Erling Haaland, o go-
leador do Manchester City. Com a tarefa
facilitada pela contusão do belga Kevin
De Bruyne, habilidoso atleta do clube in-
glês que precisou ser substituído ainda
no primeiro tempo, Nicolò Barella domi-
nou o meio-campo, assumindo a condi- Silva jamais alcançaria o gol. O jogador Pep Guardiola teve
ção de melhor jogador do embate. destinado a receber a bolada buscou evi- mesmo motivos para
agradecer aos céus
tar o choque e, por acaso, cedeu o passe
O escore limitado foi atribuído pela que consagrou o resultado final.
torcida dos especialistas nativos ao ar- O gol solitário sagrou o campeão da
guto lance do jogador que se desloca pa- Champions League, mas foi fruto de
FR A NCK FIFE /A FP

ra conseguir o tiro fatal do volante Rodri, um evidente lance de sorte, aleatório.


companheiro mais bem situado. Até a pe- Guardiola, ao terminar o jogo, ergueu os
dra carioca da Gávea percebe que nada braços em direção ao céu. Tinha mesmo
disso aconteceu. O chute de Bernardo motivos para agradecer. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 51
Plural

O dia em que me
O
escritor Mohsin Hamid,
que completa 52 anos em

descobri marrom
julho, divide seu tempo
entre Lahore (Paquistão),
onde nasceu, Nova York e
Londres. Ele trabalhou como consultor
O escritor Mohsin Hamid, administrativo e como redator da agên-
cia de publicidade Wolff Olins.
nascido no Paquistão, faz um romance Seu segundo romance, The Reluctant
sobre a ameaça contida no impulso Fundamentalist (O Fundamentalista
Relutante), narrado por um jihadista
avassalador da identidade de grupo educado no Ocidente, vendeu 1 milhão
de cópias. Tanto esse livro quanto seu
P O R T I M A DA M S quarto romance, Passagem para o Oci-
dente (Companhia das Letras), foram
selecionados pelo Booker.
O último romance de Hamid, O Últi-
mo Homem Branco (lançado no Brasil
na semana passada), é sobre um ameri-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
cano branco que, ao acordar, certa ma-
nhã, descobre ter ficado inegavelmen-
te “marrom”. Ao longo do livro, mais e
mais pessoas brancas passarão por es-
sa mesma transformação.

The Observer: Você já falou algu-


mas vezes sobre o papel da urgên-
cia na escrita, dizendo: “Só escreva
se precisar escrever”. Qual era a
urgência em contar esta história em
particular neste momento?
Mohsin Hamid: Eu me considero um
ser humano completamente híbrido.
Morei em três países durante grande
parte da minha vida – Paquistão, Esta-
dos Unidos e Reino Unido. Alguém co-
mo eu tem dificuldade em pensar em
sua identidade como sendo apenas uma
coisa. Portanto, o impulso atual para a
pureza, para identificar as “populações
verdadeiras” de diferentes países ou re-
ligiões, de ser “britânico” ou “america-
no branco” ou “muçulmano” está fun-
damentalmente em desacordo com
quem sou. Quis escrever um livro so-
bre esse mecanismo de “classificação”,
a maneira como nos colocamos em gru-

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
pos. Acho que o impulso para a identi- “Estamos sendo falta de conseguirmos pensar num
dade de grupo está se tornando avassa- futuro melhor, fetichizamos um pas-
submetidos, pelas redes
lador – e ameaçador para todos. sado imaginário. Acho isso incrivel-
TO: Você falou que o romance es- sociais, a uma leitura mente perigoso.
tá enraizado em sua experiência do do mundo que induz TO: Sua escrita provou ser severa-
11 de Setembro como paquistanês à ansiedade e à política mente profética. Em 2015, você es-
nos Estados Unidos. O que quis di- disso decorrente.” creveu que não demoraria para que
zer com isso? “endurecer as fronteiras e assistir re-
MH: Essa experiência de perda, que o fugiados se afogarem no mar” dei-
personagem principal, Anders, tem no xasse de ser suficiente para os paí-
livro, foi algo que senti com muita for- ses europeus. Você disse então que,
ça naquele momento. Frequentei uni- existe. Mas também estamos procuran- para que os governos justifiquem o
versidades de elite, morei em cidades do a transcendência, que pode ser obtida bode expiatório político dos migran-
cosmopolitas e, embora eu não fosse por meio do amor ou da diversão. tes, “aqueles que parecem refugiados
branco, era, pode-se dizer, branco o su- TO: Essa falta de vontade de es- (precisariam) ser aterrorizados … pre-
ficiente. Mas depois do 11 de Setembro crever uma distopia completa é uma sos, expulsos”.
tudo mudou. Quando vi que as coisas necessidade psicológica para você? MH: Eu tenho uma espécie de hiper-
não voltariam a ser como eram, fiquei MH: Acho que é parte do meu cará- sensibilidade a esse tipo de política. Sou
pensando: o que é essa coisa, a América ter. No nível pessoal, estou tentando profundamente alérgico a esses confli-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
branca, da qual eu costumava ser mem- lutar contra a sensação de desolação tos entre culturas. Sei que quando o pó-
bro probatório? sobre o mundo. O perigo, para nós e len político ficar alto, vou espirrar. O fa-
TO: Parece apropriado, já que o li- para nossos filhos, é cairmos em um to é que hoje vivemos em uma econo-
vro foi escrito durante a pandemia, pessimismo que convida a uma forma mia que monetiza a atenção e que esta-
que também haja um sentido “viral” profundamente nostálgica de política: mos sendo submetidos, pelas redes so-
na mudança que descreve. vamos levar a Grã-Bretanha, os Estados ciais, a uma leitura do mundo que in-
MH: Sim. Trata-se, em parte, de acei- Unidos ou o Islã de volta ao que foi. À duz à ansiedade e à política disso decor-
tar uma nova realidade, uma ruptura. rente. Essa ideia assustadora do mun-
Mas isso vem devagar. Você, primeiro, do está vencendo porque funciona em
ouve à distância e se pergunta se é real, nosso design biológico e em nosso atual
se vai afetá-lo. No livro, Anders é, nesse design de economia digital.
sentido, uma espécie de Paciente Zero. TO: Então, um antídoto para isso,
TO: Seus romances exploram temas para você, é criar o espaço para ima-
muito sérios: pertencimento, imigra- ginar outros futuros possíveis?
ção, raça. No entanto, você os aborda MH: Sim. O que me interessa na ficção,
como uma espécie de brincadeira. Es- e particularmente no romance, é que
sa tensão entre os tons é importante? ela envolve a quebra de fronteiras.
MH: É fundamental. Se você examinar Quando você lê um romance, você pas-
a cultura humana dos textos sumérios sa a conter, dento de você, a consciên-
JILLIAN EDELSTEIN/CAMARA PRESS

em diante, as pessoas tentaram usar his- cia de outra pessoa. Essa possibilidade,
tórias para se divertir e também para li- por sua própria natureza, obscurece a
dar com os medos que estavam enfren- distinção entre as pessoas. Para mim, é
tando. O momento atual não é diferen- muito poderoso criar histórias que não
te. Estamos lidando com questões am- O ÚLTIMO HOMEM BRANCO descartem o medo do outro, que valori-
bientais horríveis, a ascensão do milita- Mohsin Hamid. Tradução: José Geraldo zem a magnitude desse medo, mas que,
Couto. Companhia das Letras
rismo e enormes desigualdades no que (136 págs., 69,90 reais) ao fim, encontrem uma saída.
parecem ser sociedades cada vez menos
tolerantes. Não quero fingir que isso não Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 53
Plural

Vidas negras
importam
CINEMA Uma mostra realizada pelo IMS
revela o diretor norte-americano Billy
Woodberry, ignorado pelos cinéfilos
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S

M
uitos cinéfilos, incluin- alizados por companheiros, como Haile
do os mais bem infor- Gerima e Charles Burnett, em que ele
mados entre eles, farão participa como narrador ou ator. A ou-
cara de paisagem se al- tra é composta por sete curtas de épocas
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
guém perguntar se co- distintas e origens diversas, filmes com
nhecem os filmes de Billy Woodberry. que o diretor teve contato durante seus
O diretor norte-americano é um dos lí- anos de formação e alimentaram nele o
deres do L.A. Rebellion, movimento for- desejo de começar a fazer cinema.
mado por estudantes negros e não bran-
cos que estudavam cinema na Universi- O Carroceiro, realizado em 1963 por
dade da Califónia, em Los Angeles, nos Ousmane Sembene, pioneiro do cinema
anos 1970. Sua obra curta e intensa segue, africano, e Couro de Gato, um registro líri-
porém, ignorada pelo cânone, que gera co do cotidiano de meninos de rua feito por
listas e listas de melhores filmes, repe- Joaquim Pedro de Andrade para o filme
tindo visões uniformes enquanto man- coletivo Cinco Vezes Favela (1962) são al-
tém outros modos de ver na penumbra. guns dos títulos escolhidos que deixaram
Na semana passada, Woodberry, que marcas nítidas no cinema de realizador.
tem 73 anos e nasceu em Dallas, esteve no O curta A Bolsa (1980), de Woodberry,
Brasil para participar da abertura da mos- que reúne três instantâneos no cotidia-
tra que o Instituto Moreira Salles (IMS) no de um garoto negro, deixa clara tan-
Paulista dedica a ele. A mostra, em cartaz to a inspiração colhida no cinema ne-
até 30 de junho, permite descobrir um ci- orrealista italiano quanto no título de
neasta cuja atenção às más condições de
vida dos negros vai além da indignação
e da denúncia. Ela cria um modo de ver.
A mostra reúne os dois longas e A atenção do cineasta
três curtas-metragens dirigidos por às más condições de
Woodberry ao longo de sua carreira e
vida dos negros vai
expande a compreensão de suas influ-
ências e interlocuções com dois outros além da indignação
blocos na programação. e da denúncia. Ela
Uma seleção reúne quatro títulos re- cria um modo de ver

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Este olhar mais preocupado com os fios
do que com a trama alcança um resultado
valioso no longa-metragem Abençoe Seus
Pequeninos Corações, de 1983. Esta ficção
intimista em torno do cotidiano de uma fa-
mília negra é narrada a partir da perspec-
tiva do pai. Charlie é uma versão crescida
do pequeno protagonista de A Bolsa, refém
de um mundo que não oferece escolhas.
O drama social se desdobra em pe-
quenos dramas familiares, que reve-
lam a conversão dos afetos em intran-
sigências, a condenação a papéis e fun-
ções sendo reproduzida entre o homem
e a mulher, entre pais e filhos.

Forma. Woodberry (abaixo) liderou o A fase mais recente da filmografia de


Woodberry reafirma a singularidade de
movimento L.A.Rebellion, nos anos 1970,
sua abordagem da vida dos negros. O lon-
e dirigiu filmes como E Quando Eu Morrer,
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
Não Ficarei Morto (2015) e Abençoe ga-metragem E Quando Eu Morrer, Não
Seus Pequeninos Corações (1983)
Ficarei Morto (2015) esboça um procedi-
mento narrativo que se torna mais elabo-
rado nos dois curtas que se sucedem a ele.
O retrato do poeta beatnik Bob
Kaufman, um perseguido político que
adotou o silêncio como forma de protesto,
desafia as convenções do documentário
biográfico. As faces do personagem são
reveladas menos por meio das entrevis-
tas que do emaranhado musical e sonoro
que Woodberry estende sob as imagens.
O recurso de pontilhismo sonoro pro-
duz resultados ainda mais espetaculares
em Marseille Après la Guerre (2016), sobre
o trabalho de estivadores do porto francês,
e em Uma História da África (2019), cons-
truído a partir de um acervo de imagens da
B I L LY W O O D B E R R Y / M I L E S T O N E F I L M S &

colonização portuguesa em Angola.


VIDEO, JOANA LINDA E JERRY STOLL

Joaquim Pedro. A perambulação de um Nestes, as fotografias desvelam o lu-


grupo de meninos, a tentativa de roubar gar dos corpos nas relações de explora-
uma senhora e um diálogo pleno de ção. Em vez de adotar a forma supos-
aprendizados compõem uma ficção na tamente neutra do relato ilustrativo
qual Woodberry nunca perde de vista o narrado por voz e imagens “objetivas”,
horizonte documental. A fotografia em Woodbury injeta múltiplas camadas de
um preto e branco áspero acentua os con- sensorialidades no som, engajando sub-
trastes, revelando um diretor em busca jetivamente o espectador, levando-o a
de formas que dizem mais que a temática. sentir no corpo, em vez de apenas ver. •

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 55
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Vida de ciganos

destacados para compor a corte do Pe- e avançando em negociações, a ansieda-


► A ida de Messi para o lé. Ou seja, logo devem vir mais novida- de toma conta de todos, principalmen-
Internacional de Miami, des de Miami. te dos interessados diretos, em particu-
Guardadas as devidas proporções, lar, os técnicos.
último colocado do eu mesmo tive de me reerguer no queri- Mas, ao que tudo indica, dificilmente o
campeonato americano, do Olaria para, então, voltar aos clubes escolhido será um treinador “caboclo”. A
faz lembrar as aventuras maiores. Nós, jogadores, sempre tivemos preferência pelos estrangeiros fica explí-
uma vida de ciganos. cita na quantidade incrível dos portugue-
de Pelé e de Zico Ainda no Paris Saint-Germain, Kylian ses que, de novo, descobriram o Brasil.
Mbappé comunicou à direção que não vai Não é só a facilidade da língua que pro-
renovar seu contrato com o clube. porciona a invasão lusitana. Há muito

A
semana que se encerra foi pródi- Dentro do PSG, por outro lado, o que tempo Portugal tem uma escola de
ga em acontecimentos no espor- se ouve dizer é que o clube estaria dispos- treinadores respeitados pela qualidade
te. A começar pela espetacular to a negociar o brasileiro Neymar. Esta- de sua formação.
campanha da tenista Bia Haddad, que en- riam os árabes desistindo da vencer uma Resta saber como ficam os brasileiros
cerrou sua passagem por Roland Garros Champions League? Pouco provável. Ou que estão curtindo uma “bronca” gigan-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
enfrentando, nas semifinais, a núme- seja, vem coisa por aí. te. O que salva nossa reputação é a decla-
ro 1 do mundo, a polonesa Iga Swiatek. Toda essa extraordinária movimen- ração do agitado treinador palmeirense
O brilhante desempenho de Bia no tação dá a dimensão do quanto o espor- Abel Ferreira, que disse ter Telê Santa-
torneio nos fez rememorar a grande Ma- te se valorizou no mundo dos negócios. na como inspiração.
ria Esther Bueno (1939-2018) responsá- Ao que a insistência indica, a preferên-
vel, no tênis feminino, pelo ciclo dourado Temos árabes, americanos e chineses, cia do presidente Ednaldo Rodrigues é
nas décadas de 1950, 1960 e 1970. ou seja, as maiores potências econômicas pelo técnico italiano Carlo Ancelotti, de
Chegando ao fim a temporada do fute- do mundo, disputando passo a passo os comprovada capacidade.
bol europeu, vem a anunciada “janela”, que grandes clubes mundo afora. E não nos es- Embora ele, pelo seu nível de ama-
deixa um fôlego para que a gente consiga queçamos de que, em 2017, o agora falecido durecimento, soe mesmo como o no-
absorver as tantas novidades em curso. Berlusconi vendeu o Milan para a China. me mais indicado, me parece que, difi-
No que diz respeito ao troca-troca en- No principal torneio de futebol cilmente, em sua posição privilegiada,
tre os mais valiosos jogadores do mundo, do mundo, a Champions, a vitória do Ancelotti aceitaria trocar o maior clu-
Lionel Messi surpreende e assina com o Manchester City, apesar da exigência a be de futebol do mundo, o Real Madrid,
último colocado do campeonato ameri- que foi submetido na decisão contra a por uma “aventura” tropical. Mas, obvia-
cano, o Internacional de Miami. Inter de Milão, acabou confirmando o mente, tudo é possível. E o Real não ga-
O craque argentino aproveitou ainda favoritismo do time inglês. nhou o campeonato espanhol.
para avisar que a Copa do Catar deve ter O resultado reflete o trabalho crite- No meio dessa discussão, sou levado
sido a sua derradeira. rioso e longo orientado, em campo, pelo a lembrar a firmeza da Asociación del
Messi faz recordar as aventuras cora- excepcional técnico Pep Guardiola – que Fútbol Argentino (AFA) ao formar a co-
josas do rei Pelé, que foi desbravar o terri- bem poderia passar uns tempos entre nós. missão técnica da seleção que, com to-
tório norte-americano, e também de Zi- Falando nisso, o presidente da Confe- dos os méritos, levantou a taça do mun-
co, quando deixou o Flamengo para ir jo- deração Brasileira de Futebol (CBF), Ed- dial do Catar no ano passado.
gar no Udinese, clube do norte da Itália naldo Rodrigues, acompanha o fim da Ressalto aqui que o treinador do gru-
que tinha investimentos menores que o temporada europeia sondando de perto po, Lionel Scaloni, estava há tempos
B A P T I S TÃ O

time brasileiro. os melhores técnicos para dar início a um orientando a base de onde saiu boa par-
Cabe lembrar que, no passado, os nor- novo ciclo do nosso futebol. te do time campeão. •
te-americanos levaram outros jogadores Enquanto ele vai marcando conversas redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
DRAUZIO VARELLA
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

A genética da dependência

A situação é tão grave que, nos Esta- funciona como gatilho para o aparecimen-
► Enquanto os EUA dos Unidos, país em que as farmácias exi- to dos efeitos euforizantes e analgésicos.
vivem uma epidemia gem prescrição médica até para vender Da natureza molecular da interação
Viagra, o naloxone é comercializado di- entre o opioide e a proteína ao qual ele se
de abuso de opioides, retamente no balcão, sem qualquer exi- liga vai depender a intensidade do prazer
a ciência desvenda os gência, em vários estados. e a duração do efeito euforizante/analgé-
genes envolvidos na Esses medicamentos, no entanto, têm sico. Como existem diversas variantes, a
ação limitada no alívio das crises, e pouca sensação que o opioide provocará não se-
compulsão pelas drogas ou nenhuma utilidade na prevenção das rá igual em todos os que o experimentam.
recaídas que perseguem o usuário pelo Já foram identificados vários genes
resto da vida. Da mesma forma, não dis- envolvidos na vulnerabilidade ao abu-

D
epois de décadas, a expecta- pomos de drogas específicas para reduzir so de álcool, cocaína, maconha e fumo.
" tiva de vida nos Estados Uni- o risco de recidivas entre os dependentes Muitos genes associados à adição es-
dos vem caindo. É uma ten- de maconha, cocaína, anfetaminas, ál- tão concentrados em áreas do cérebro
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
dência chocante, provocada pelas cha- cool, fumo ou os benzodiazepínicos que que regulam a sensação de euforia, bem
madas mortes por desespero que envol- muita gente “de respeito” toma todas as como a de aversão. A genética, dessa for-
vem overdoses, suicídios e doenças atri- noites antes de ir para a cama. ma, não está envolvida apenas na vul-
buíveis ao abuso de drogas e ao estresse.” O que explica o fato de que uma pes- nerabilidade a determinada droga, mas
Assim começa um artigo sobre a neuro- soa experimenta uma droga, sente o pra- à própria arquitetura dos circuitos for-
ciência da dependência química, publi- zer que ela traz, mas depois se desinte- mados pelos neurônios cerebrais. Como
cado na revista Science desta semana. ressa dela ou se torna usuária ocasional, o uso abusivo remodela esses circuitos
Os Estados Unidos vivem uma epide- enquanto outra passa a fazer o uso com- em diversas áreas do cérebro, a depen-
mia de abuso de opioides. Mais de 99% pulsivo que a escraviza? dência química é considerada um trans-
da hidroxicodona e a maior parte do torno da plasticidade neuronal.
fentanil (opioides potentes) produzidos Os estudos mostram que há fatores Para terminar. Em diversos tecidos,
no mundo são consumidos em territó- genéticos envolvidos. O sequenciamento existem receptores aos quais a droga se
rio americano. No país que mais conso- dos genes realizado em grandes números liga: coração, mucosa oral e nasal, pul-
me drogas, as vendas de álcool bem como de usuários e de abstêmios, demonstram mões. Portanto, a interação acontece
o número de testes positivos para detec- que algumas variantes de certos genes antes dela chegar ao cérebro, mecanis-
tar a presença de maconha, cocaína e me- aumentam a probabilidade de desenvol- mo que exerce grande influência sobre
tanfetamina em pessoas no ambiente de ver dependência. Em si, essas variantes o comportamento do usuário.
trabalho nunca foram tão altos. não são patológicas, mas as proteínas A droga adição é, dentro de toda a me-
Nos últimos anos, a nova realidade le- produzidas por elas podem criar a es- dicina, um dos transtornos menos conhe-
vou o FDA – a agência responsável pela trutura molecular que dispara a com- cidos e mais difíceis de tratar. A ignorân-
aprovação de alimentos e medicamentos pulsão, quando o usuário entra em con- cia, o preconceito e o estigma social con-
– a aprovar a buprenorfina e a metadona tato com a droga. tra os usuários só agravam a dificuldade.
para ajudar os dependentes de heroína É o caso do aumento da prevalência de Depois dos mecanismos resumidos na
e outros opioides a suportar as crises de uma variante do gene OPRM1 entre os coluna de hoje, caro leitor, veja como fi-
abstinência. Para a urgência das over- usuários compulsivos de opioides. Esse ca ridículo considerar a dependência quí-
B A P T I S TÃ O

doses que podem levar à morte, há anos gene codifica uma proteína que funciona mica uma questão moral e o dependente
é empregado o naloxone, droga de ação como receptor nas membranas dos neurô- uma pessoa fraca, sem força de vontade. •
heroica quando administrada a tempo. nios, ao qual os opioides se ligam. A ligação redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 2 1 D E J U N H O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CHEGAMOS AOS

INSCRITOS!

Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas


Foram
945 vídeos
publicados, com
1.400.000 horas
de exibição e
20 milhões
de visualizações

* Números dos últimos 12 meses

Comemore conosco!
Inscreva-se em:
www.YouTube.com/CartaCapital
CADA PESSOA MERECE
SER CAPAZ DE EXPLORAR
O MUNDO À SUA MANEIRA.
O SISTEMA BRAILLE AJUDA
A TORNAR ISSO POSSÍVEL.
A alfabetização de crianças
cegas só é possível com o
Sistema Braille!
Por meio do Braille, elas podem ler e
escrever, conquistando o acesso a diferentes
conteúdos, como livros didáticos e literários.
Entre em nosso grupo Ao
no promover
Telegram:at.me/clubederevistas
alfabetização, o Braille
proporciona autonomia e contribui para
a construção de uma sociedade mais
igualitária e inclusiva.
"Sem livros, os
cegos não podem
realmente aprender."
Louis Braille, professor
francês, inventor do
Sistema Braille

*A Fundação Dorina presta diversos serviços às pessoas


cegas e com baixa visão, além de possuir uma gráfica
Braille com grande capacidade produtiva. Apenas em 2022,
produzimos cerca de 12 milhões de páginas em Braille.

Doe pelo QR Code ao lado,


pelo PIX
Canal de Relacionamento com Doadores:
pix@fundacaodorina.org.br (11) 5087-0999 – opção 4
ou via depósito bancário: relacionamento@fundacaodorina.org.br
Banco Bradesco – Agência 3391 –
Conta 27122-5 / CNPJ: 60.507.100/0001-30 www.fundacaodorina.org.br

Você também pode gostar