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ENSAIO PAPA FRANCISCO É O ESTADISTA JUSTIÇA O QUE LEVOU LULA A INDICAR

NECESSÁRIO PARA LIQUIDAR A HERANÇA FLÁVIO DINO AO SUPREMO E PAULO GONET


DANINHA DE JOÃO PAULO II, O POLÍTICO BRANCO, EX-SÓCIO DE GILMAR MENDES,
POLONÊS EMPENHADO A FAVOR DE TIO SAM AO COMANDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

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ANO XXIX N° 1288 R$ 31,90


6 DE DEZEMBRO DE 2023

CHUVA OU SOL?
ENTRE BOAS E MÁS NOTÍCIAS, PRESSÕES E LOBBIES,
O TEMPESTUOSO TRAJETO DO MINISTRO HADDAD EM BUSCA
DA RECUPERAÇÃO ECONÔMICA
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DO GOVERNO FEDERAL
É O BRASIL NO RUMO CERTO
O Novo PAC é o maior
programa de investimentos
do Governo Federal.
São investimentos em infraestrutura em todos
os estados do Brasil para acelerar o crescimento
econômico e a inclusão social, promover moradia
digna e saúde, gerar empregos e renda e impulsionar
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o crescimento sustentável do nosso país, melhorando
a vida de cada brasileiro.

O NOVO PAC É O NOSSO PAC:


DA G E R AÇÃO D E E M P R EG O.
DA T R A N S I ÇÃO EC O LÓ G I CA .
D O C R E S C I M E N TO EC O N Ô M I C O.

ACESSE GOV.BR/NOVOPAC E SAIBA MAIS.


6 DE DEZEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1288

Estes senhores
não parecem
preocupados com
o clima. Pág. 42

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6 A SEMANA A venda da
24 S Ã O PA U L O
Sabesp enfretará oposição Nosso Mundo
Ensaio nas Câmaras Municipais O pessimismo
42 C L I M A

Plural
O papa é o único
8 MINO CARTA O Plano
26 A R T I G O marca a abertura da
estadista na atualidade Plurianual contou com COP28 em Dubai, a prever
inédita participação debates para promover

50
Seu País da sociedade na a indústria de óleo e gás
18 J U S T I Ç A O significado das escolha das prioridades 44 JAQUES WAGNER
indicações de Dino para Mário Cabral
28 S O C I E D A D E 4 5 PA U L O N O G U E I R A B AT I S TA J R .
A VIDA SOB
o STF e Gonet para a PGR O VERNIZ
divide-se entre o ofício
21 ALDO FORNAZIERI 46 O R I E N T E M É D I O
de coveiro e o doutorado
Os rumos do conflito
A ANP insiste em
22 A M E A Ç A em História da Arte CAROLINA MARKOWICZ, PREMIADA
na Faixa de Gaza
leiloar blocos de petróleo O Brasil,
30 PA N D E M I A NOS FESTIVAIS DE ROMA E TORONTO,
em Fernando de Noronha após a breve trégua
como outros países, entre Israel e o Hamas OLHA PARA A SOCIEDADE COM
ignora os ainda presentes SARCASMO E COMPAIXÃO
48 H O L A N D A A falaciosa
Capa: Pilar Velloso. Fotos: riscos da Covid-19
Filippo Monteforte/AFP, associação entre 52 L I V R O S Jorge Baron Biza recupera a trágica
32 LUIZ GONZAGA BELLUZZO e violenta história familiar 54 R I TA V O N H U N T Y
Joédson Alves/ABR migração e criminalidade
G I U S E P P E C A C A C E / A F P E C A R LY L E R O U T H

e iStockphoto 41 P E D R O S E R R A N O garante a vitória 55 M Ú S I C A Chico, o cronista de tempos


da extrema-direita difíceis 56 A F O N S I N H O 57 S A Ú D E Por Drauzio
Varella 58 C H A R G E Por Venes Caitano

ESPECIAL PAC O GOVERNO


FEDERAL PLANEJA USAR O PODER DE
CHUVA OU SOL?
COMPRA DO SUS PARA ESTIMULAR O ENTRE BOAS E MÁS NOTÍCIAS, PRESSÕES E
COMPLEXO INDUSTRIAL DA SAÚDE Pág. 33 LOBBIES, O TEMPESTUOSO CAMINHO DE HADDAD
EM BUSCA DA RECUPERAÇÃO ECONÔMICA

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) tina, Milei começa a notar que não
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva tem força no Congresso e tampouco
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis no Judiciário. Seu projeto de poder neo-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich fascista não vai vingar.
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub Paulo Sérgio Cordeiro
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
CANNABIS É DOPING?
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Enquanto isso, o SUS custeia o
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., tratamento de doenças graves
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
causadas pelo cigarro e pela bebida al-
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo coólica. Como não pensar que as restri-
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
ções aos canabinoides se baseiam ape-
CARTA ONLINE
nas em religião e moralidade?
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira César Augusto Hulsendeger
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
REPÚBLICA DAS TOGAS DEVASTAÇÃO VERDE-OLIVA
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) O título do artigo encaixa tão O Complexo do Curado comporta
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
REDES SOCIAIS: Caio César
bem quanto uma mão entrelaça- muito bem essa escola, sem preci-
SITE: www.cartacapital.com.br da a outra. De fato, existem duas sar desmatar uma área de preservação.
repúblicas: a dos togados e políticos, São 300 mil árvores, existem opções.
um verdadeiro paraíso, e aquela da Martins Nitram
grande maioria do povo brasileiro, que
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 não tem mais folga nem aos fins de se- Daqui a algum tempo, o
mana, haja vista a mobilização, no Exército terá de mudar a cor do
PUBLISHER: Manuela Carta
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene
Congresso, para sustar a portaria uniforme, da camuflagem de selva para
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo federal que restringia trabalho aos sá- a camuflagem de deserto.
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NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
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EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
bados e domingos.
José Carlos Gama
Marcelo de Queiroz

Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva GELO AO SOL
Além do alto custo e da autorre- O PSDB ficou desgastado por par-
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: gulação, o Judiciário brasileiro ticipar de um vergonhoso golpe,
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
enio@gestaodenegocios.com.br tornou-se um dos poderes mais fortes após perder a eleição em 2014.
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agholanda@Agholanda.com.br Cortes superiores ainda são aprova- O governador Eduardo Leite é
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com
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dos pelo Senado, mas os juízes da pri- figura rasa, com políticas de saúde
meira instância ocupam seus cargos pífias. Defende a modernização do
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CONSTITUCIONAIS culose no Rio Grande do Sul.
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP O líder populista e ultradireitista Danaide
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL)
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos Javier Milei vai ter, de fato, pro-
blemas com suas promessas de cam-
panha bizarras. Por aqui, Bolsonaro
quase conseguiu o seu intento de es-
garçar a democracia. Graças à resis-
tência do STF, os ovos da serpente fo-
ram quebrados e a democracia restau-
rada, com a eleição de Lula. Na Argen-

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C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 5
A Semana
Incompetência
é crime? Investigação/ O deputado pede
a divulgação do
áudio na íntegra,
Ex-governadora do Rio
de Janeiro e ex-prefeita de
Entre lobos “sem edições
manipuladas”
Campos dos Goytacazes,
Rosinha Garotinho foi alvo e cordeiros
de uma batida da Polícia Gravação indica participação
Federal na terça-feira 28.
A Operação Rebote investiga de André Janones em suposto
um rombo de 383 milhões esquema de “rachadinha”
de reais na PreviCampos,
instituto de previdência dos
servidores do município do

U
norte-fluminense. Segundo m áudio atribuído ao deputado
a investigação, o prejuízo federal André Janones, do Avan-
é decorrente de investimentos te, levanta a suspeita de envol-
de alto risco com baixo
vimento do parlamentar em um
retorno realizados em 2016.
A decisão que autorizou os esquema de “rachadinha”, apropriação inde-
mandados de busca e vida de parte da remuneração dos servidores
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apreensão menciona que a
então prefeita era
de seu gabinete. Na gravação revelada pe-
lo portal Metrópoles, Janones menciona que
responsável por nomear
alguns dos interlocutores “vão receber um
gestores da PreviCampos,
“todos aparentemente sem pouco de salário a mais” para ajudá-lo a pa-
qualquer conhecimento sobre gar dívidas acumuladas na campanha para
investimento para exercício prefeito de Ituiutaba, no interior de Minas
das funções”. Em uma live, Gerais, em 2016, na qual ele terminou em se-
o ex-governador Anthony
gundo lugar. “Eu perdi uma casa de 380 mil
Garotinho, marido de Rosinha,
rebateu as acusações: “Não reais, um carro, uma poupança de 200 mil
existe esse crime de indicar e uma previdência (privada) de R$ 70 mil. À época, a agência estava sob o comando do
incompetente. E aqui nem é Acho justo que essas pessoas também parti- delegado Alexandre Ramagem, homem de
esse o caso, é ‘aparentemente’ cipem comigo da reconstrução disso.” confiança do clã Bolsonaro, e Janones pres-
incompetente”. Rosinha
A reunião teria sido gravada pelo seu ex- tava um auxílio informal à campanha de
emendou: “É mais uma
perseguição contra -assessor Cefas Luiz em fevereiro de 2019, lo- Lula nas redes sociais.
nossa família”. go após o deputado assumir o seu primeiro Janones nega a prática de rachadinha
mandato legislativo. Desde o ano passado, e diz ter solicitado que o conteúdo gravado
antigos servidores acusam Janones de práti- seja divulgado na íntegra, “sem edições ma-
ca de rachadinha, mas até então não haviam nipuladas” e divulgadas “quase simultanea-
apresentado provas de que o parlamentar ti- mente” por lideranças bolsonaristas. “É a se-
nha solicitado repasses indevidos. Provocado gunda vez que trazem esse assunto para ten-
pela Procuradoria-Geral da República, o mi- tar me ligar a crimes. Em 2022, já fizeram is-
nistro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Fede- so durante a campanha, também com áudios
ral, determinou a abertura de um inquérito à fora de contexto. Essas denúncias vazias
Polícia Federal. nunca se tornaram uma ação penal ou qual-
De acordo com Paulo Capelli, colunista quer processo, por não haver materialidade”,
do Metrópoles, agentes da Abin também te- disse. “No mais, repito, eu nunca recebi um
riam se encontrado com um dos denuncian- único real de assessor, não comprei mansões,
tes em setembro do ano passado, pouco antes nem enriqueci, e isso por uma simples
do primeiro turno das eleições presidenciais. razão: eu nunca fiz rachadinha.”

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
6.12.23

rial norte-americano e os democratas costu-


Memória/ Henry
Doutores
mam ser mais beligerantes do que os oposi- da quebrada
tores. Durante sua passagem como secretá-
Kissinger, o rio de Estado de Richard Nixon, deu-se o gol-
pe no Chile, com participação decisiva da es-
O Conselho Universitário
da Unicamp aprovou, na

“controverso” pionagem dos EUA. Kissinger cultivava seus


ditadores de estimação na América Latina,
terça-feira 28, a outorga
do título de Doutor Honoris
Morre aos 100 anos o diplomata Causa para os Racionais
mas as tentativas de levá-lo aos tribunais MC’s. Mano Brown,
onipresente na Guerra Fria nunca prosperaram. Ao contrário, teve uma Ice Blue, Edi Rock e KL Jay,
vida coberta de louros. Ganhou o Prêmio integrantes do grupo de
rap, foram reconhecidos
Nobel da Paz, em 1973, ao lado do vietnamita
como intelectuais que

O
termo “controverso” é uma mu- Le Duc Tho, por conta do acordo que pôs fim dialogam com o pensamento
leta do jornalismo. Em geral, é à guerra. Será lembrado ainda pela aproxi- social brasileiro. “Eles
usado quando falta repertório ao mação de Washington e Pequim, manobra confrontam o racismo
autor do texto ou quando se quer para retirar a China da zona de influência da e as violências sociais que
nos constituem enquanto
esconder a real natureza do personagem em União Soviética. Ironicamente, um lance de
sociedade, incitando
questão. Canalhas e bandidos amigos ou da xadrez que desaguaria na nova “Guerra a atitudes antirracistas
mesma matriz ideológica normalmente são Fria” entre seu país de adoção e os “comu- e solidárias de negros
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descritos como “controversos”. É o caso de
Henry Kissinger. Figura inseparável da polí-
nistas” chineses. Elevado ao patamar de ce-
lebridade internacional, Kissinger dedicou
e não negros, periféricos
e não periféricos, visando
a mudanças sociais
tica externa dos Estados Unidos na segunda as últimas décadas a escrever livros, vários
profundas”, resumiu
metade do século XX, o alemão de origem, best sellers, e aconselhar informalmente inú- Mário Medeiros, professor
denunciado pelo persistente sotaque, serviu meros presidentes dos EUA. Aos 100 anos, de do Departamento de
sobretudo aos governos republicanos, mas cadeira de rodas, continuava a palestrar Sociologia da Unicamp
era admirado pelos adversários democratas mundo afora. As causas de sua morte, na e presidente da comissão
de especialistas que avalizou
– de resto, não há grandes diferenças entre quarta-feira 29, não haviam sido divulgadas
a concessão da honraria.
os dois partidos no exercício do poder impe- até o fechamento desta edição.
B REN DA N SMIA LOWSKI/A FP E R A FA EL L A RIB EIRO/CM B H

Os crimes de
Kissinger foram
esquecidos

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 7
Ensaio

O papa estadista Francisco foi providencial para


desfazer o malfeito por Wojtyla
P O R M I N O C A R TA

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N
em todos os papas
vão para o Paraíso.
Consta até que
muitos deles aca-
bam no Inferno,
com largos méri-
tos. De Alexandre VI, registrado como
Borgia, mas de verdade Borja, pai de
quatro filhos nem todos de bom caráter,
a Pio XII, nobre romano que simpatizou
com Hitler. Alguns tiveram desempe-
nhos historicamente notáveis, embora
voltados para uma atuação por demais
terrena e conveniente para alguns graú-
dos fiéis em detrimento de outros.
Neste atribulado momento, quan-
do o planeta é sacudido pelo tropel dos
cavaleiros do Apocalipse, um pontífice
assume o papel de estadista do mundo
para repor a situação no devido lugar e
Profético,
consertar o malfeito de quem o prece- Giotto:
deu e, certamente, não foi ao Paraíso. Francisco,
Prorrompe a extraordinária figura de o santo,
soergue
um papa capaz de desejar um nome a Igreja,
apenas do santo de Assis, o Poverello enquanto o
Francisco, habilitado a jogar às urtigas papa dorme

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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os privilégios da sua casta para dedicar- Na Praça São Pedro vazia, Francisco chávena de chá servida ao adorme-
-se ao socorro dos desvalidos. prepara-se a confortar os fiéis cer. Consta que Luciani pretendia
atingidos pela pandemia.
Neto de camponeses do Piemonte Abaixo, Wojtyla longe de Giotto ser o papa de todos, bem ao contrário
emigrados para a Argentina, Jorge de Wojtyla, envolvido nas tensões da
Bergoglio assume a cátedra de Pedro, Guerra Fria para dedicar-se à políti-
enquanto o mundo vive o momento ca em lugar da saúde espiritual do seu
mais agudo da pandemia de Covid-19. rebanho. Quando da sua primeira vi-
Em uma Praça de São Pedro insolita- sita ao Brasil, tivemos a oportunidade
mente absorta pela ausência do povo e de vê-lo em ação em todo seu esplen-
batida pela garoa notívaga, Francisco dor. Acompanhava-o na ocasião o car-
ACERVO/BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

arma sua tenda aos pés da escadaria da deal Paul Marcinkus, exímio tenista,
V I N C E N Z O P I N T O / A F P, G E R A R D J U L I E N / A F P E

Catedral e, de lá, conforta os fiéis. Eis a imitador donjuanesco das façanhas de


tarefa que a situação exige naquele exato Casanova. Enquanto Wojtyla fugia do
instante, mas a missão mais imponente debate sobre padres pedófilos, final-
é a de reconstituir a entidade da própria mente chegado à tona, o IOR, Instituto
Igreja dilapidada por Karol Vojtyla, nas- das Obras Religiosas, lavava dinheiro
cido em Cracóvia, a 60 quilômetros de mafioso, de cara igualmente lavada.
Treblinka, esvaziada a Polônia pela fe- Wojtyla foi mestre de encenações
roz perseguição à população judia. inigualáveis, entre elas a santificação
João Paulo II, eleito um mês depois de um notório padre embusteiro, cha-
da morte do papa Albino Luciani, João mado Pio de Pietralcina, a contar com a
Paulo I, vitimado por uma misteriosa aliança do farmacêutico que lhe fornecia

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 9
Ensaio

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ácido para produzir os estigmas de A primeira chegada de a lotar o espaço da Colunata de Bernini,
Cristo, como apurou outro papa notável, João Paulo II ao Brasil arquiteto, escultor e até pintor em 1600.
João XXIII, no quadro de uma deplorá- Francisco está doente há algum tempo,
vel história de exploração da crendice a padecer de uma complicação pulmo-
popular. Papa Francisco teve de se a ver, nar. Este texto não pretende ser, e não
de saída, com a Cúria Romana, liderada é, uma espécie de epitáfio. CartaCapital
pela sinistra figura do cardeal Tarcisio espera que Francisco vença mais esta
Bertone. De sorte a marcar as diferen- refrega. Expõe, porém, o estadista
ças, Francisco, de imediato, recusou a Bergoglio, cuja visão está muito bem
hospedagem no Palácio Apostólico, pa- demonstrada na encíclica Laudato Si,
ra se instalar muito modestamente, en- bem como na correspondência manti-
quanto demolia as hostes inimigas. da por largo tempo entre um grande
jornalista, Eugenio Scalfari, diretor do

F
oi uma longa refrega, da qual La Repubblica, e o pontífice.
Francisco saiu vencedor, a O encontro dava-se aos domingos,
exibir, inclusive, raro talen- Dia do Senhor, para provar ao cabo que
to de estrategista, até a situ- o que mais havia ali era a concordân-
ação sobrar limpidamente sob seu con- cia. A Catedral de Assis, dividida em
trole. Multidões ouviram as falas de três andares, a guardar tesouros. No
Francisco, pronunciadas da costumei- térreo, apresenta nas paredes grandes
ra janela do Vaticano, para uma plateia O temível Marcinkus, tenista e Casanova quadros da vida de Francisco, o santo,

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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primeira manifestação de arte renas- Como sempre, na janela do Vaticano, de lugar marcado na hagiografia cristã.
centista ainda a cavaleiro entre os sé- a fala para a praça e para o mundo Não colhemos nele, em momento algum,
culos XIII e XIV. A Itália dava o primei- a prosopopeia de quem afirma sem ad-
ro passo na modernidade, com a parti- recolocar a própria Igreja na bissetriz mitir eventuais dúvidas de quem o escu-
cipação de Dante, Petrarca e Boccaccio. correta, no sentido de mais auspiciosa. O ta. Tal é o resumo inescapável do pon-
Em uma das obras de Giotto, em Assis, papa argentino foi absolutamente indis- tificado de Francisco: recompor a situ-
São Francisco aparece soerguendo nas pensável para recompor o mundo preten- ação depois do vendaval provocado por
costas a própria Igreja, enquanto o papa dido pelo político Karol Wojtyla, incapaz Wojtyla e suas aspirações de grandeza.
dorme. O pintor recria o cenário para de perceber o imperialismo desenfreado Recordo outro franciscano, Dom
fundir em uma só as duas personagens, da URSS e de Tio Sam, iguais na prepo- Paulo Evaristo Arns, que visitei por lon-
o santo e o Senhor da Igreja. tência e no desmando. go tempo, mesmo depois de sua aposen-
O S S E R V A T O R E R O M A N O / A F P, F A R A B O L A /
L EEM AGE /A FP E A RQUIVO/FOL H A PRESS

De pensamento tosco, o papa polonês tadoria na condição de cardeal-arcebis-

H
averá quem enxergue a pre- enxergava a luz de um lado e a sombra po de São Paulo. Cumpria uma regra de-
sença do Altíssimo na con- do outro, sem levar em conta as inúme- vidamente preestabelecida e foi morar
cepção e no encadeamento ras falhas a caracterizar seu pontifica- em um casarão cercado por árvores. Lá
dos eventos para esclare- do desestabilizador, tanto para a Igreja eu ia com razoável frequência e a nossa
cer o exato papel de Francisco. Nietzsche quanto para a humanidade em geral. conversa nunca deixava de condenar as
pretendia que a natureza seja o centro e Talvez tenha sido este o motivo a le- atitudes do papa polonês. Dom Paulo,
a razão do Universo. No fundo, a questão var o papa argentino a escolher um no- certamente, não imaginava a chegada
é meramente semântica. De todo modo, me solitário, sem ligações com o tempo de Francisco, mas teria entendido a sua
Bergoglio veio na hora certa para presente, como se estivesse fora do rol, necessária condição de estadista. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 11
R EPORTAGEM DE CA PA

Sujeito
a trovoadas
NA LUTA CONTRA A HERANÇA ECONÔMICA RADIOATIVA
DO GOVERNO BOLSONARO, O MINISTRO
FERNANDO HADDAD COLHE VITÓRIAS E DERROTAS

por CA R LOS DRU MMON D


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A
discreta melhora verno foi derrotado na votação de projetos gueira Batista Jr., à pág. 45). Os insuces-
da arrecadação bolsonaristas como o PL do Veneno, apro- sos coincidiram com a divulgação dos re-
federal em outu- vado na véspera da COP28, na aprovação sultados da mais recente pesquisa Atlas,
bro, após quatro da carteira de trabalho Verde Amarela, que apontam a avaliação negativa do go-
meses de queda, anabolizada pelo decreto, pelo Ministé- verno pela primeira vez acima da positiva.
e a alta probabi- rio do Trabalho, depois revogado, do fim A partir desses reveses, parte da mí-
lidade de vitória do trabalho aos sábados e domingos sem dia diagnosticou um desgaste precoce do
no Supremo Tribunal Federal quanto a aprovação de convenção coletiva com os governo Lula, sem mencionar, contudo,
possibilidade de pagamento de precató- sindicatos, e na perspectiva de celebração avanços expressivos como o apoio decla-
rios de 95 bilhões de reais rolados no go- do acordo Mercosul-União Europeia com rado de empresários, banqueiros e inves-
verno Bolsonaro, sem violar as regras fis- base na proposta de Bolsonaro e Guedes, tidores, locais e do exterior, à política eco-
cais, por meio de créditos extraordiná- que, segundo economistas, produziria da- nômica atual, a alta probabilidade de se
rios abertos por Medida Provisória, au- nos irreparáveis à indústria brasileira (a manter a inflação baixa no próximo ano e J EF F ERSO N RU DY/AG. SEN A D O E DIO GO Z ACA RIAS/ M F

mentaram a aposta do governo, com pra- propósito, confira a coluna de Paulo No- de a economia seguir em crescimento em
zo de validade até março, de manter a me- 2024, embora em ritmo menor, e a melho-
ta fiscal em zero, como quer o ministro da ras de indicadores econômico-sociais, en-
Fazenda, Fernando Haddad, apoiado por HÁ DISPUTAS tre vários feitos.
Lula, em oposição à ala liderada pelo mi- A vitória do governo no STF ilustra a
SIMULTÂNEAS
nistro Rui Costa, da Casa Civil. natureza complexa de um jogo disputado
O desgaste é inegável em vários reve- ENTRE POLÍTICA não só entre política fiscal e política mo-
ses recentes do governo. Mais complica- FISCAL E POLÍTICA netária, mas também entre democracia
do é atribuir corretamente o peso relativo MONETÁRIA e bolsonarismo. A origem do imbróglio
desses percalços em um contexto econô- dos precatórios foi a PEC 23, usada dois
E DEMOCRACIA
mico e político complexo, que contempla anos atrás com o objetivo de abrir espaço
diversos avanços e gera uma contabilida- E BOLSONARISMO a um manancial de bondades à custa de
de quase diária de perdas e ganhos. O go- dinheiro público, para alavancar a tenta-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
A aprovação da taxação de offshores e fundos
exclusivos pelo Senado comandado por Pacheco
é uma vitória, ainda que parcial, de Haddad

tiva de reeleição de Bolsonaro. Sem resol-


ver a questão dos precatórios, exemplar da
herança econômica radioativa do gover-
no anterior, entre 2022 e 2026 se acumu-
laria uma montanha de 250 bilhões de re-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ais em dívidas, que ocuparia todo o espa-
ço das despesas discricionárias de 2027 e
praticamente inviabilizaria o governo vi-
torioso nas urnas. “Tivemos de lutar para
podermos pagar dívida do governo”, desa-
bafou Haddad.

N
o ganha e perde per-
manente típico de go-
vernos de frente polí-
tica e minoritários no
Parlamento, destaca-se
a capacidade de negociação e de iniciativa
do presidente Lula, longe de se sentir en-
curralado ou mesmo desconfortável, co-
mo ficou claro na segunda-feira 27, quan-
do vieram à luz detalhes do apoio do líder
do governo no Senado, Jaques Wagner, à
proposta de emenda constitucional que li-
mita as decisões individuais de ministros
do STF. O voto de Wagner desencadeou a
fúria de amplas alas do Executivo incon-
formadas com a “traição” do senador da
Bahia, mas esse apoio a uma emenda do
Senado que melindra o STF, apesar de pa-
recer redundante em relação às normas
internas do próprio tribunal, possibilitou,
segundo o noticiário, o comprometimen-
to dos presidentes do Senado, Rodrigo

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 13
R EPORTAGEM DE CA PA

Pacheco, e da Comissão de Constituição


e Justiça, Davi Alcolumbre, com a indica-
ção do ministro da Justiça, Flávio Dino,
ao STF, a ser confirmada em plenário.
Pacheco, presidente do Senado, é o en-
carregado de conduzir a votação decisiva
da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do
Orçamento de 2024 e ainda de pautar ve-
tos presidenciais como o da prorrogação
da desoneração tributária das empresas,
crucial na cruzada de Haddad em prol da
recuperação de receitas. A inclusão do se-
nador, na última hora, na comitiva de Lula
à COP28, em Dubai, se destinaria a amar-
rar as pontas de um amplo pacote de acor-
dos, com negociação bastante avançada,
para equacionar o emaranhado fiscal. O
pacote inclui a federalização de estatais de
Minas Gerais e a construção do palanque
lulista no estado em torno da candidatura
do presidente do Senado ao governo. Faz
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
parte do mesmo pacote, segundo o noti-
ciário, a indicação de Paulo Gonet Bran-
co, reacionário apoiado pelos ministros
do STF Alexandre de Moraes e Gilmar
Mendes, à chefia da Procuradoria-Geral
da República, em uma espécie de compen-
sação pela PEC das decisões monocráti- análise da Medida Provisória 1185, que ao contingenciamento de despesas. Além
cas, que desencadeou a ira dos dois magis- aumenta a tributação de grandes empre- disso, existiria uma tendência de o STF
trados. Pouco depois do anúncio da indi- sas com benefícios fiscais de ICMS para posicionar-se de modo favorável ao gover-
cação de Gonet, Moraes e Mendes divul- custeio e pode agregar 35 bilhões ao re- no nos julgamentos da correção do FGTS
garam vídeos de apoio à escolha de Dino, sultado fiscal de 2024. O relator da Lei e da revisão de benefícios da Previdência
iniciativa acompanhada pelo presidente de Diretrizes Orçamentárias estaria in- antes de 1999. Somados, os projetos acres-
do STF, Luís Roberto Barroso, e o colega clinado a aceitar uma emenda com limites centariam outros 45 bilhões de reais à ar-
Luiz Fux (detalhes na reportagem de An- recadação do próximo exercício.
dré Barrocal à pág. 18). As dificuldades e obstáculos incluem
O APOIO DE JAQUES as pressões sobre os gastos e o orçamento

O
megapacote engloba a diante do aumento incerto de receita fis-
aprovação, pelo Senado,
WAGNER À EMENDA cal, que depende de batalhas diárias pa-
dos projetos de taxação DAS DECISÕES ra cumprir a estratégia da Fazenda de re-
de apostas online e dos MONOCRÁTICAS cuperar recursos e realizar uma recom-
investimentos offshore e PARECE TER SIDO posição da base de arrecadação, diante de
fundos exclusivos. Nos dois últimos ca- oponentes poderosos como os interesses
sos, o Parlamento cumpriu o combina-
DECISIVO PARA de parlamentares que pretendem aprovar
do na quarta-feira 29. O porcentual de A APROVAÇÃO emendas desvinculadas das políticas pú-
impostos sobre os fundos ficou abaixo DE MEDIDAS blicas, o lobby empresarial e o tornique-
do desejado por Haddad, mas garantirá, DE AUMENTO DA te sem-fim do sistema financeiro contra
em princípio, uma receita extra de 20 bi- o aumento do investimento público. Na
lhões de reais no próximo ano. Não só: o
ARRECADAÇÃO batalha mais recente, Haddad conven-
Congresso instalou uma comissão para ceu o presidente, com o auxílio de eco-

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
no horizonte. Roncaglia considera inevi-
tável “uma confluência muito benfazeja
de uma certa sorte, de um cenário inter-
nacional que tinha uma previsão muito
pior do que agora. Há no momento sinais
positivos vindos de fora, ainda que a con-
juntura seja adversa”, sublinha.

S
uperávit comercial com novo
recorde, apesar de dois terços
das exportações serem com-
postos de commodities, cres-
cimento do PIB em desace-
leração, mas não desprezível, avanço da
reforma tributária, a tendência de o de-
semprego ficar em um nível razoavelmen-
te mais baixo do que no governo anterior e
a inflação em queda contrastam com a es-
tagnação da indústria, em especial do in-
vestimento em máquinas e equipamen-
tos. “Não se sabe em que proporção isso é
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas fruto do ciclo econômico ou resultado de
iniciativas pouco planejadas do governo,
que anuncia medidas e deixa a indústria
um pouco em compasso de espera”, afir-
ma Rocanglia. O acadêmico cita o anún-
cio, pelo Ministério do Desenvolvimento,
nomistas, a manter a meta de déficit ze- O governo vai vetar as desonerações fiscais da depreciação acelerada de investimen-
que beneficiam setores como a construção civil.
ro até março, quando o assunto será exa- tos, seguido de um denso silêncio. “É difí-
Espera-se o plano de investimento da Petrobras.
minado, sob forte pressão, inclusive inter- A União Europeia de Der Leyen força um acordo cil identificar em que medida a indústria
na, para elevar o porcentual para cerca de paralisa parte das suas compras, nos seus
1%. O assunto é controverso. “O ajuste fis- planos de expansão, esperando o governo
cal é muito duro, mais duro que o do go- se decidir, porque é um incentivo muito
verno Temer, no que diz respeito ao cor- importante”, sublinha.
te de despesa em relação ao PIB. Um dé- Há, no entanto muita coisa jogando a
ficit de 1% não machuca, não seria ruim. favor, e aquelas que atuam contra não são
Não teria problema. Não seria tão dano- determinantes, acrescenta o economis-
PA R L A M EN TO EU RO P EU E M A RCEL LO CASA L J R . /A B R

so, porque o mercado já prevê déficit de ta, mas o governo poderia ajudar mais a
0,8%. Colocar um pouquinho acima disso si próprio, ter uma organização um pou-
CL AU DIO N E V ES / P O R TOS D O PA R A N Á /G OV P R ,

e depois entregar 0,7%, 0,6%, seria até me- co mais efetiva. Não deveria, entende
lhor, daria um espaço”, avalia o economis- Roncaglia, anunciar medidas embrioná-
ta André Roncaglia, professor da Unifesp. rias ou incompletas. Isso aconteceu no ca-
O economista entende a proposta de so da depreciação acelerada e em relação
Haddad de querer perseguir a meta de às desonerações fiscais. Se for para vetar,
déficit zero como uma forma de pressio- como é o caso da prorrogação dos incenti-
nar o Congresso a aprovar medidas de vos à folha de pagamento de 17 setores, que
recomposição da base tributária. O mi- o veto venha acompanhado de uma alter-
nistro conseguiu comprar tempo, con- nativa, mas isso ocorrerá apenas depois
vencer o presidente Lula e outros minis- de 12 de dezembro, critica o economista.
tros. Também haveria fatores positivos Felipe Salto, economista-chefe e sócio

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 15
R EPORTAGEM DE CA PA

da corretora Warren Rena, tem outra in- tária restritiva, com taxas de juro muito
terpretação sobre o imbróglio fiscal. Ven- altas e o mercado de crédito afetado não
cida a queda de braço entre os ministros só pelos juros elevados, mas também pela
Haddad e Costa, diz, prevalece o com- crise da Lojas Americanas. A indústria te-
promisso com a regra geral do arcabou- ve desempenho mais fraco por depender
ço. Uma alteração da meta de déficit ze- do mercado de crédito, anêmico.
ro seria precoce, uma vez que a própria A inflação teve queda considerável, em
lei complementar aprovada prevê a pos- especial para as famílias de renda mais
sibilidade de rompimento, desde que acio- baixa, e terminará o ano em torno de
nados os mecanismos de ajuste previstos. 4,6%, sublinha Mello. Mudanças recentes
A motivação, prossegue o economista em no front externo influenciarão positiva-
artigo, seria o não contingenciamento de mente o desempenho do País, mas não se
despesas discricionárias ou não obrigató- trata de uma reversão do quadro negativo.
rias, em especial os gastos do novo PAC, A China tende a desacelerar e fechar nes-
previstos em 61 bilhões de reais na pro- te ano com crescimento entre 5% e 5,5% e,
posta orçamentária para 2024. “Ocorre no ano que vem, o avanço deve diminuir
que o contingenciamento será tanto me- para 4,5%. Os EUA iniciaram um proces-
nor quanto maior o sucesso do governo na so de desaceleração lenta, quando se fala-
agenda de recuperação de receitas. Além va em estagnação ou pequena recessão. A
de que o abandono da meta fiscal dina- Europa deverá crescer muito pouco e tal-
mitaria as reais possibilidades de eleva- vez tenha uma pequena recessão. “O lado
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
ção da arrecadação dos projetos em exa-
me pelo Legislativo, com destaque para a
externo não é, portanto, o que ajudaria a
economia brasileira a ter um dinamismo
tributação das offshores e dos fundos fe- maior”, ressalta o secretário.
chados e a revisão da subvenção baseada O Brasil deverá crescer por volta de 2%
nos benefícios fiscais do ICMS”, sublinha. em 2024. O agro não terá o mesmo peso
deste ano, por conta da queda dos preços

U
m ponto central, omitido e do fator climático. “É preciso conside-
com frequência, é que a rar, no entanto, que as taxas de juro estão
meta zero foi uma condi- caindo, o governo tem uma série de pro-
ção imposta pelo sistema jetos, tanto de investimento público, co-
financeiro para a aprova- mo o PAC, quanto de renegociação da dí-
ção da PEC da Transição, crucial à arran-
cada de uma economia quase em estado
de coma desde 2016, e do novo arcabou- O PIB CRESCERÁ %
ço fiscal. “Acho que assumir a meta zero NESTE ANO E %
foi meio que o preço para aprovar o arca-
bouço fiscal. Comprometer-se com um
EM , MAS SUA
ajuste fiscal bem rápido e sinalizar um COMPOSIÇÃO
ajuste abrupto para poder colocar uma MUDARÁ PARA
regra de crescimento mínimo do gasto MELHOR, COM MAIOR
público”, diz Roncaglia.
Apesar das dificuldades, o governo
PARTICIPAÇÃO
avança, ressalta Guilherme Mello, secre- DA INDÚSTRIA
tário de política econômica do Ministério E OUTROS SETORES
da Fazenda. Neste ano, diz, o País deverá FORTES GERADORES
fechar com crescimento econômico em
torno de 3%, bastante influenciado pela
DE EMPREGO
safra agrícola recorde. Um crescimento li- E TRIBUTOS
mitado, contudo, por uma política mone-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
menor, mas a qualidade desse crescimen-
to será melhor, inclusive para a arrecada-
ção. Os setores que vão crescer mais são
também os que mais contribuem para a
arrecadação de impostos. Portanto, para
a arrecadação, tudo indica que o ano que
vem vai ser melhor”, destaca o secretário.
O crescimento real da despesa ficará
próximo de 10% no próximo ano, núme-
ro “muito forte”, do ponto de vista fiscal,
devido à necessidade de recompor o orça-
mento para viabilizar as políticas públi-
cas e os investimentos. Quanto às recei-
O secretário Mello projeta um crescimento tas, há uma ação sistemática para corri-
mais qualificado, benéfico à indústria. A crise
gir distorções, combater privilégios, pro-
da Americanas afeta o varejo e o crédito
mover justiça tributária, com o objetivo de
que a estrutura tributária seja mais distri-
vida das famílias, com o Desenrola, além butiva, mais justa, mais eficiente, mas que
de medidas de crédito mais barato para seja também capaz de dar conta dos inves-
a indústria, como o Fundo Clima e as li- timentos sociais e em infraestrutura re-
nhas que o BNDES está abrindo. Os se- compostos com a PEC da Transição. “Es-
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tores que dependem mais do mercado de
crédito, como o consumo das famílias, a
se é um movimento que vai prosseguir. Ao
mesmo tempo que a gente está combaten-
indústria, o investimento, esses tendem do distorções, estamos fazendo também
a se recuperar no ano que vem”, ressal- mudanças estruturais como a reforma da
ta Mello. O crescimento será menor, mas tributação sobre o consumo primeiro, e no
ativará setores da economia que geram ano que vem com a reforma sobre a tribu-
renda e emprego mais bem remunerado tação de renda, que tem um potencial im-
e têm maior impacto nas grandes cida- portante para promover justiça tributária,
des e centros urbanos, como a indústria com um sistema tributário mais progres-
e a área de serviços, e contará com uma sivo e mais justo. Neste ano ainda não con-
inflação que vai continuar a cair. “Prova- seguimos corrigir o desequilíbrio fiscal,
velmente, a inflação de 2024 será ainda mas construímos as bases”, garante Mello.
um pouco mais baixa que a deste ano e fi- A probabilidade de o avanço pretendi-
cará entre 3,5% e 4%.” A projeção de in- do pelo governo se concretizar aumenta-
flação de Mello converge com aquela do ria “se o governo se ajudasse mais”, sin-
Banco Central e a do mercado financeiro. tetiza Roncaglia. Vários economistas e
empresários identificam falta de coor-
P L A N E J A M E N T O / PA C 1 E R E N AT O L U I Z F E R R E I R A

O
número agregado do cres- denação das medidas de neoindustria-
cimento será menor, acres- lização, atraso no programa de descar-
W A S H I N G T O N C O S T A / M F, M I N I S T É R I O D O

centa, mas a sua composi- bonização, a começar pelo plano da Pe-


ção vai ser melhor, mais trobras, a empresa candidata à lideran-
equilibrada entre os seto- ça do processo, um silêncio injustificável
res e aponta para um aumento dos inves- em torno da crucial estratégia de investi-
timentos, uma retomada de setores como mentos em infraestrutura, além dos pro-
a construção civil e a indústria manufatu- blemas já apontados acima, de se anun-
reira. O mercado de trabalho deve conti- ciarem medidas antes de as soluções es-
nuar forte, com taxa de desemprego baixa tarem definidas. A reconstrução do País
e massa salarial em ascensão. “O País con- após o desastre bolsonarista continua
tinuará crescendo, a uma taxa um pouco sujeita a chuvas e trovoadas. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 17
Seu País

O xadrez de Lula
JUSTIÇA O que levou o presidente a indicar Flávio Dino
ao STF e o “conservador raiz” Paulo Gonet para a PGR
POR ANDRÉ BARROCAL

N
a manhã de 22 de novem- em 2016, o petista poderia ter sido subs- Barroso haviam sido as vozes publicamen-
bro, o presidente do Sena- tituído por Lula na chefia da Casa Civil te mais duras com o Senado. Queriam sa-
do, Rodrigo Pacheco, rece- de Dilma Rousseff, algo talvez capaz de ber de Lula se Wagner tinha combinado
beu em sua residência ofi- frear o impeachment. A troca havia sido o voto com o presidente. Uma autoridade
cial alguns senadores para proibida por Gilmar Mendes, membro do Palácio do Planalto diz: não combinou.
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discutir uma votação polêmica marcada
para aquela tarde. Na véspera, o plenário
do Supremo dos mais indignados com a
mudança constitucional gestada no Sena-
As tensões entre o Supremo e o go-
verno precipitaram uma decisão adiada
decidira que a proposta de reduzir os po- do. Entre os 52 votos a favor dela, estava o por Lula há meses. Em 27 de novembro,
deres individuais dos juízes do Supremo trio da Bahia (sem os três, seriam 49 vo- o presidente indicou um integrante pa-
Tribunal Federal poderia ser votada sem tos, o mínimo necessário para aprová-la). ra o tribunal e um procurador-geral da
os intervalos de tempo requeridos para República. Foi o desfecho de um xadrez
mudar a Constituição. Dos 81 senadores, O voto de Wagner foi isolado no da realpolitik. Para o STF, Lula escolheu
48 haviam apoiado o rito especial, um a PT. O senador havia conversado antes Flávio Dino, o ministro da Justiça, opção
menos que o necessário para alterações com o líder da bancada petista, Fabiano bem recebida pelo eleitorado progressis-
constitucionais. Um dos presentes na Contarato, e deixado claro: o governo não ta, exceto pelos defensores de uma mulher
reunião com Pacheco era o líder do gover- tinha posição e ele (Wagner) votaria com para a vaga de Rosa Weber, aposentada em
no no Senado, Jaques Wagner, do PT. Ele a própria convicção. Os petistas, prosse- setembro. Para a Procuradoria, outro pos-
e os dois colegas de Bahia (Ângelo Coro- guiu, deveriam fazer o mesmo, ou seja, to vago desde setembro, em razão do fim
nel e Otto Alencar, ambos do PSD, o par- manter a postura contrária àquela defen- do mandato de Augusto Aras, Lula pin-
tido de Pacheco) não estavam entre os vo- dida pelo bolsonarismo. Um dia após o Se- çou um “conservador raiz”, Paulo Gonet
tos a favor do rito especial. nado tirar poderes dos magistrados, o pre- Branco, atual vice-procurador-geral elei-
Wagner fora até Pacheco com a visão sidente do STF, Luís Roberto Barroso, foi toral. Falta saber quem herdará o lugar de
de que a votação do rito mostraria que a a Lula. À noite, mais três juízes estiveram Dino. “Lula indicou quem queria indicar
tentativa de desidratar togados supre- com o petista: Mendes, Alexandre de Mo- há muito tempo. Ele ainda não resolveu
mos, uma bandeira do bolsonarismo, ti- raes e Cristiano Zanin. Os dois primeiros e a equação chamada Ministério da Justi-
nha força para vingar. Na reunião, da qual ça e queria ter resolvido antes de indicar”,
participou Espiridião Amim, do PP, o re- afirma uma autoridade governamental.
lator da proposta, Wagner ouviu de Pa- Com Dino, Lula espera ter uma espé-
checo que houve juiz do STF que tinha si- A Corte é vista no cie de líder do governo no Supremo. É o
do consultado e ajudado a chegar ao re- que diz uma fonte palaciana. O ministro
latório final de Amim, apesar da revolta
Palácio do Planalto possui envergadura política, ao contrário
da Corte com o que o Senado preparava. como essencial de Zanin, o primeiro indicado presiden-
Diante do quadro geral, Wagner resolveu para a estabilidade cial para a Corte. Pela visão progressista
votar a favor da proposta. Caso ela valesse do governo e a proximidade com o presidente, Dino

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 28
NESTA Protagonista. Mário Cabral
SEÇÃO divide-se entre o ofício de coveiro
e o doutorado em História da Arte

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tende a lhe ser fiel. A Corte é vista no Palá- – pela idade ficará no STF até 2043. So- Realpolitik. Gonet contou
cio do Planalto como essencial para o fun- nhava era com a Presidência. Um amigo com o apoio dos ministros
Gilmar Mendes e Alexandre
cionamento e a estabilidade do governo. conta que, desde o início dos rumores so-
de Moraes. Já Dino é uma
O Congresso é direitista e dado ao estilo bre a ida para o STF, Dino precisou se re- opção bem recebida pelo
faca no pescoço, por exemplo. programar interiormente. A propósito, eleitorado progressista
Dino será sabatinado no Senado em 13 em 14 de agosto, o ministro teve uma lon-
RICA RDO ST UCK ERT/PR

de dezembro. Credenciais jurídicas pa- ga conversa com Lula no Palácio da Alvo-


ra exibir, tem. É bacharel em Direito, foi rada, e o presidente não tocou no assunto
juiz federal de 1994 a 2006 e dirigiu a as- “STF”. Dino contou a história a Valdemar
sociação da categoria, a Ajufe. Ao chegar Costa Neto, o presidente do PL de Jair
em Brasília neste ano, eleito senador pe- Bolsonaro, em 19 de setembro. “É pro-
lo Maranhão, não planejava voltar à toga va de que ele vai te indicar”, comentou

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 19
Seu País

Costa Neto. Este, recorde-se, foi aliado Agora falta saber de o Tribunal Superior Eleitoral cassar os
de Lula nos governos anteriores. direitos políticos do ex-presidente por oito
O presidente ficou mais à vontade pa-
quem será o novo anos em dois julgamentos realizados nes-
ra escolher Dino para o STF ao indicar à ministro da Justiça. te ano sob o comando de Moraes. Vale lem-
Procuradoria alguém apoiado por dois Especula-se que será brar, porém, como faz Cláudio Fonteles,
poderosos togados supremos, Mendes uma mulher ou procurador-geral de 2003 a 2005: “O in-
e Moraes. Gonet, teorizava, em junho, a Lewandowski dicado consentiu com a omissão de Augus-
CartaCapital um subprocurador-geral to Aras no governo Bolsonaro”.
aposentado, seria uma escolha puramen-
te “pragmática” da parte de Lula. Indica- Uma carta aberta de 20 de novembro
ção que embute risco também. O procu- da “Coalização em Defesa da Democra-
rador-geral é o único autorizado a proces- imerecida existente em nome de Bolso- cia”, que entre outros reúne a Associa-
sar por crime comum o presidente e seus naro e a tentativa de golpe em 8 de janei- ção Juízes pela Democracia e o MST, cri-
ministros. A tranquilidade de Lula nos ro terão consequência apenas na hipóte- ticava a eventual indicação de Gonet por
próximos dois anos, o tempo de manda- se de o “xerife” encampá-las e transfor- Lula justamente pelo estado do País e do
to do “xerife”, dependerá de Gonet e, por- má-las em denúncia criminal. Idem pa- Ministério Público Federal após Bolso-
tanto, de Mendes e Moraes. Uma dupla ra o relatório da CPI do 8 de Janeiro, que naro e Aras. Para o grupo, o País preci-
togada que, por outro lado, pode ter a in- caracterizou o ex-presidente como “autor sava de um procurador-geral com “sóli-
fluência reduzida por Dino no Supremo. intelectual” do quebra-quebra. do histórico de defesa dos direitos hu-
Gonet será fundamental também no Por ter tido apoio de Mendes e Moraes manos, de atuação efetiva na defesa da
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futuro do antecessor de Lula. Com Aras, o
órgão foi contra a delação do tenente-co-
para ser procurador-geral, é de se supor
que Gonet não aliviará para Bolsonaro.
democracia e atividade coerentemente
orientada pelo projeto constitucional”.
ronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Todos os inquéritos delicados para o ca- Gonet tem mestrado em Direitos Huma-
Cid, ex-ajudante de ordens da Presidên- pitão em curso no Supremo, sob a batuta nos (pela Universidade de Essex, na In-
cia de Bolsonaro. A delação foi selada com de Moraes, têm andado por obra da PF, não glaterra), mas é um “conservador raiz”.
a Polícia Federal em setembro e validada da Procuradoria. Decisões judiciais e ma- A descrição foi feita pela deputada bolso-
pelo Supremo. As informações e provas nifestações públicas de Moraes e Mendes narista Bia Kicis após ela tê-lo levado ao
fornecidas por Cid sobre milícias digitais, os mostram dispostos a punir o ex-presi- capitão em 2019. Gonet tentava ser o es-
comércio de joias, carteira de vacinação dente. Em nome do MP, Gonet foi a favor colhido procurador-geral, contava com
o apoio da ala conservadora do Ministé-
rio Público. É contra o aborto e a deci-
são do Supremo de equiparar homofobia
a racismo. Como nome do MPF na Co-
missão de Mortos e Desaparecidos nos
anos 1990, votou contra (e foi derrotado)
responsabilizar a ditadura por alguns as-
sassinatos, casos de Carlos Lamarca e de
Carlos Marighella.
Na realpolitik lulista, agora falta saber
quem será o novo ministro da Justiça. No
A L E S S A N D R O D A N TA S / P T N O S E N A D O

governo, há quem defenda nomear uma


mulher. Na viagem ao exterior feita no dia
das indicações de Dino e Gonet, Lula tem
em sua comitiva Ricardo Lewandowski,
na condição de conselheiro da Confede-
ração Nacional da Indústria. Desde a elei-
ção de Lula, o ex-juiz do Supremo sonha-
va em ser ministro da Justiça. Até aposta-
Convicção própria. Wagner não combinou com Lula o voto para restringir poderes do STF va que Dino não duraria no cargo. •

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

Leão realojado

O atual quadro de ministros do STF Na polêmica instaurada no canal


► Flávio Dino é mais vem desempenhando suas funções de for- Globo News entre os comentaristas De-
necessário na política do ma eficaz, principalmente no que tange à métrio Magnoli e Gerson Camarotti, o
defesa do Estado Democrático de Direito último tem razão: o exercício de um car-
que no Supremo. O governo
e da guarda da Constituição. Lula teria fa- go público pode indicar notório saber. O
acaba de perder seu mais cilidade de encontrar outros bons nomes simples exercício, em si, é insuficiente.
combativo ministro capacitados a integrar e complementar o Mas o extraordinário desempenho de
tribunal. Em contrapartida, não existe um um sujeito em certa função pode ser qua-
quadro visível na política que possa subs- lificação para o notório saber.
tituir o atual ministro da Justiça à altura. Dizer que Dino não tem conhecimento

O
governo Lula perde com a in- Dino, certamente, preenche os crité- para ser ministro, como alega Demétrio,
dicação de Flávio Dino pa- rios, listados no artigo 101º da Constitui- é desmentido tanto do ponto de vista for-
ra o Supremo Tribunal Fede- ção, para ser indicado como ministro do mal quanto do ponto de vista substan-
ral. A perda maior é de natureza políti- STF. Os preenche tanto no sentido formal cial. Do ponto de vista formal, Dino tem
ca. Dino é o mais combativo dos minis- quanto no sentido substancial. Do ponto os títulos de graduação em Direito e de
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tros de Lula. É o único leão do governo,
no sentido maquiaveliano. Não teme o
de vista formal, tem mais de 35 anos e me-
nos de 70, e possui “notável saber jurídico
mestre em Direito Público, além de ter
sido aprovado em concurso de juiz. Do
embate com os inimigos. Se Dino é a ex- e reputação ilibada”. O que vem sendo pro- ponto de vista substancial, no exercício
pressão da força, Fernando Haddad, o blematizado é o sentido vago desses cri- de suas diversas funções políticas, de go-
ministro da Fazenda, é o melhor arti- térios. O que é o “notável saber jurídico”? vernador a ministro da Justiça, sempre
culador, a expressão do convencimen- evidenciou publicamente conhecimento
to, o lado raposa do governo. Essa noção nasceu no mundo acadê- jurídico, o que é notório saber.
A ala política do governo Lula tem se mico para suprir uma insuficiência for- Por fim, é preciso dizer que os crité-
mostrado frágil e inexpressiva, coadju- necida pelo critério formal do conheci- rios constitucionais para a indicação de
vante tanto do Congresso quanto do pró- mento ou do saber. Isto é, a quantidade ministros para o STF precisam ser mais
prio STF. Os demais ministros da cozinha de títulos de graduação, mestrado e dou- bem definidos. Além dos títulos formais
do Planalto estão mais para tranquilos e torado que um profissional acumula. e do notório saber, precisam considerar o
dóceis, low profile. Dificilmente Lula en- Observou-se que existem pessoas pos- espírito do nosso tempo. E ele traz duas
contrará um substituto de Dino capaz de suidoras de conhecimentos e saberes sem demandas inquestionáveis e crescente-
combinar a competência técnica para to- que sejam portadoras de títulos formais, mente exigíveis: a equidade de gênero e
car a pasta da Justiça com a exuberância e que, muitas vezes, suplantam até mes- a diversidade étnica.
do embate político que vinha exercendo. mo os conhecimentos dos titulados. No caso de um país grande, diverso e
A pergunta que deve ser feita é a seguin- Entendeu-se que essas pessoas estão federativo como o Brasil, há ainda outro
te: Dino é mais imprescindível como ator habilitadas a exercer atividades concer- critério: o de uma equidade de represen-
político do governo ou como ministro do nentes ao seu conhecimento. Para is- tação regional. Se é verdade que Dino
STF? A resposta é óbvia: Dino é mais ne- to, criou-se a expressão “notório saber”. vem do Nordeste, região historicamen-
cessário à política do que na Suprema Cor- Essa expressão indica que é do conheci- te subrepresentada na Suprema Corte,
te. O Brasil vive uma carência de líderes mento público, evidente e notado de que o fato é que Lula perdeu a oportunidade
políticos no sentido forte do termo. Refi- ela é portadora desse saber qualificado. de satisfazer esses outros critérios. Os te-
ro-me aos líderes capazes de imprimir di- Esse saber é evidenciado pela prática ria contemplado se tivesse indicado uma
reção e sentido aos acontecimentos políti- profissional, pelas pesquisas e pelas pu- mulher negra, nordestina, qualificada e
cos. Com a indicação de Dino para o tribu- blicações de artigos e livros. Em alguns comprometida com a garantia dos direi-
B A P T I S TÃ O

nal, ele deixa de ser também uma alterna- casos, as universidades conferem a essas tos, da Constituição e da democracia. •
tiva de candidatura presidencial no futuro. pessoas o título de Doutor Honoris Causa. alfornazieri@gmail.com

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Marcha da
insensatez
MEIO AMBIENTE A ANP insiste em leiloar
blocos de petróleo em áreas próximas de
Fernando de Noronha e Atol das Rocas
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

R
econhecido como Patri- Noronha e da reserva biológica do Atol
mônio Natural Mundial das Rocas sejam retirados do processo.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
pela Unesco, o arquipéla-
go de Fernando de Noro-
De acordo com a nota técnica produzi-
da pela entidade, a proposta de explo-
nha, em Pernambuco, es- ração está sobreposta aos montes sub-
tá sob ameaça de contaminação e da- marinos Sirius, Touros e Guará, forma-
nos irreversíveis nos seus ecossistemas. ções geológicas importantes para a vi-
A Agência Nacional do Petróleo, Gás da marinha não só de Fernando de No-
Natural e Biocombustíveis, conhecida ronha, mas de todo o País. De acordo
pela sigla ANP, pretende leiloar a explo- com o biólogo marinho Vinícius Nora,
ração marítima em blocos localizados gerente de clima e oceanos do Arayara, a
na Bacia Potiguar, em direção ao lito- Bacia Potiguar é conhecida como a por-
ral do Rio Grande do Norte, no chama- ta de entrada, pelo Nordeste, da margem
do Setor SPOT-AP2. Em 2021, no go- equatorial, que abarca também boa par-
verno de Jair Bolsonaro, foram oferta- te da Região Norte, incluindo a foz do
dos 14 blocos na região, mas não houve Rio Amazonas. Todo esse trajeto vem
interessados. Agora, sob a gestão do sendo apontado como o “novo pré-sal”
presidente Lula, 11 blocos voltam a ser e, por isso, tem despertado tanto inte-
disponibilizados no 4º Ciclo da Oferta resse da indústria petrolífera.
Permanente de Concessão, prevista pa- A Bacia Potiguar faz parte de uma
ra 13 de dezembro, poucos dias após a lista de 602 blocos ofertados para ex-
Conferência das Nações Unidas sobre
as Mudanças Climáticas, a COP28, na
qual o Brasil busca recuperar o protago-
nismo no debate ambiental.
O leilão da Bacia Potiguar está sen- A exploração
do questionado na Justiça pelo Institu-
to Internacional Arayara, que moveu
está sobreposta a
uma ação civil pública exigindo que os formações geológicas
blocos localizados nas proximidades importantes para
do Parque Nacional de Fernando de a vida marinha

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Risco. Os danos ao ecossistema podem cifes de corais. O dano maior que se po-
ser irreversíveis, alertam especialistas de causar ao ambiente marinho e cos-
teiro é a retirada ou a destruição desse
ecossistema. Estamos falando de per-
ploração, o que faz do leilão de 13 de furação, de torre, de sísmica, de gran-
dezembro o maior da história do Bra- des embarcações, de poluição prevista
sil. Os investimentos na indústria pe- no licenciamento, da perda e da modifi-
trolífera contrariam, porém, o plano de cação completa desse ambiente”.
transição para uma economia verde, de-
fendida por Lula. Derivados do petróleo, O biólogo ressalta ainda que a explo-
os combustíveis fósseis são os principais ração pode abalar a estrutura de forma-
responsáveis pela emissão de gases de ções rochosas submersas, contrariando
efeito estufa, que provoca o aqueci- uma diretriz ambiental da ANP, que tra-
mento global e tem relação com o agra- ta do risco geológico. “Como vai se furar
vamento dos eventos climáticos extre- um bloco de petróleo em cima de uma
mos. Além dos danos ambientais, a ONG montanha?” Questionado, o Institu-
afirma haver irregularidade no proces- to Chico Mendes (ICMBio) disse que o
so de concessão para exploração de pe- órgão só se manifesta quando acionado
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tróleo em Noronha, informação que é
rebatida pela ANP. O órgão diz seguir
no processo de licenciamento, conduzi-
do pelo Ibama. Mas, em texto publica-
as diretrizes do Conselho Nacional de do pelo Centro Nacional de Pesquisa e
Política Energética, a estabelecer “que Conservação da Biodiversidade Mari-
o planejamento de outorga de áreas le- nha do Nordeste, o analista ambiental
vará em consideração as conclusões de do ICMBio e chefe do Cepene, Leonar-
estudos multidisciplinares de avalia- do Messias, ressaltou o perigo que a ex-
ções ambientais de bacias sedimenta- ploração representaria para as unidades
res. A mesma resolução prevê que, pa- de conservação de Fernando de Noro-
ra as áreas cujos estudos ainda não te- nha e Atol das Rocas. “É um despropó-
nham sido concluídos, as avaliações so- sito, do ponto de vista da geologia, a ex-
bre possíveis restrições ambientais se- ploração de petróleo em áreas vulcâni-
rão sustentadas por manifestação con- cas”, alerta, citando também o risco de
junta do Ministério de Minas e Ener- vazamento de óleo no local. “Seria um
gia e do Ministério do Meio Ambiente”. desastre para os ecossistemas e para as
espécies dependentes para cumprir seus
A manifestação conjunta é aponta- ciclos de vida e suas funções ecológicas
da pelos especialistas como uma espé- no ambiente marinho.”
cie de brecha à avaliação ambiental de A ANP esclarece que a inclusão dos
área sedimentar, que deve estudar a ba- blocos pelos ministérios nas rodadas de
cia para entender o impacto cumulativo licitações não significa a aprovação tá-
e sinérgico. “Na ausência desse estudo, cita para o licenciamento ambiental e
que é complexo e demanda tempo, exis- que todas as atividades que as conces-
te essa manifestação conjunta para ava- sionárias venham a executar nas áreas
lizar o leilão dos blocos exploratórios”, demandarão detalhado processo de
afirma Nora, antes de acrescentar: “Te- levantamento ambiental. Em 2021, o
ISTOCKPHOTO

mos um precedente jurídico ao longo do ICMBio chegou a emitir um laudo não


litoral sobre a necessidade da mudança recomendando o leilão. Procurado pela
do bloco de petróleo, em função dos re- reportagem, o Ibama não deu retorno. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 23
Seu País

Devagar
Na Assembleia Legislativa, o governo
conseguiu avançar com uma série de ma-
nobras. Apresentou um Projeto de Lei que

com o andor
requer maioria simples, em vez de uma
proposta de emenda à Constituição pau-
lista, que exige dois terços dos votos e se-
ria, na avaliação da oposição, o disposi-
SÃO PAULO A venda da Sabesp é dada como tivo adequado para tratar do tema. O PL
certa na Assembleia Legislativa, mas deve deveria ser submetido ao debate e vota-
ção em três comissões diferentes, mas o
enfrentar oposição nas Câmaras Municipais presidente da Alesp, André do Prado, alia-
do de Freitas, determinou que a discussão
POR MARIANA SER AFINI
fosse feita de forma unificada, para acele-
rar o processo. A greve fez a votação no ple-

T
nário ser adiada para a próxima terça-fei-
arcísio de Freitas, do Repu- é uma empresa controlada pelo governo ra, 5 de dezembro. “Estamos conversando
blicanos, pretende obter o estadual, mas a competência de explorar com os deputados da direita, porque sabe-
aval da Assembleia Legisla- água e esgoto é do município”, lembrou o mos que nem todos são favoráveis à priva-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
tiva de São Paulo para pri-
vatizar a Sabesp ainda nes-
vereador, acrescentando ser preciso apro-
fundar o debate sobre a privatização da
tização. É uma pauta impopular e eles te-
rão de prestar contas à sua base nos muni-
te ano. O governador teme que, se deixar companhia, algo que, certamente, deve cípios”, diz o deputado Guilherme Cortez,
a proposta para 2024, ano de eleições avançar para o próximo ano. A declara- do PSOL. Reservadamente, poucos cole-
municipais, deputados da base vacilem ção foi saudada por funcionários da em- gas acreditam que o apelo dará resultado.
diante da impopular medida, sobretudo presa pública, que realizaram uma para-
após a desastrosa atuação da Enel no re- lisação conjunta, ainda na terça 28, com Presidente da Frente Parlamentar
cente apagão que deixou 2 milhões de ci- trabalhadores do Metrô, da CPTM e da Contra a Privatização da Sabesp na Alesp,
dadãos sem luz por mais de 72 horas na Fundação Casa, empresas que também o petista Emídio de Souza acredita, po-
capital. Antes que o debate eleitoral pos- podem ser entregues à iniciativa privada. rém, que a peleja vai tomar novo rumo
sa prejudicar seus planos, Freitas conta nas Câmaras Municipais. Cada cidade tem
com a folgada maioria governista para um contrato de prestação de serviço com a
aprovar, a toque de caixa, o projeto de lei Sabesp e a venda só pode ser concretizada
que autoriza a venda da companhia pau- se a maioria delas topar. “Quem compra-
lista de água e saneamento. ria uma empresa sem clientes?”, indaga
Com o jogo ganho na Alesp, Freitas não Souza. Além disso, boa parte dos contra-
esperava enfrentar a firme oposição ma- tos celebrados com as prefeituras tem uma
nifestada por vereadores de vários mu- “cláusula antiprivatização”, a prever res-
nicípios atendidos pela Sabesp, a come- cisão automática em caso de transferên-
çar pelos da capital paulista, onde a em- cia do controle acionário da companhia à
presa tem mais 3,2 milhões de domicílios iniciativa privada. Essas cláusulas foram
conectados à rede de água e quase 3 mi- incluídas porque apenas empresas públi-
lhões de ligações de esgoto. Em reunião cas e sociedades de economia mista, co-
com empresários na terça-feira 28, o pre- mo é o caso da Sabesp, estão dispensadas
sidente da Câmara Municipal de São Pau- de licitação prévia para assumir esse tipo
lo, Milton Leite, do União Brasil, voltou de serviço, como prevê a Lei das Estatais.
a manifestar contrariedade com o plano Na capital, o contrato acrescenta ain-
de desestatização, além de acusar o gover- Atropelo. O vereador Milton Leite critica da que, com a venda à iniciativa privada,
nador de atropelar o processo. “A Sabesp o açodamento de Tarcísio de Freitas toda a estrutura da Sabesp ficaria para o

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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município. “Enquanto não mudar isso, tiro no pé”, diz Alves. Além de impopular, Juntos. Funcionários da companhia
não tem como privatizar”, avalia a vere- também é um mau negócio. O município se uniram a trabalhadores do Metrô e da
CPTM, outros alvos da sanha privatista
adora Luana Alves, do PSOL, que integra recebe todos os anos 7% do faturamento
a Comissão Especial de Estudos Relati- da Sabesp. No próximo ano, a receita de-
vos à Venda da Sabesp. “O governador está ve ultrapassar 600 milhões de reais. “Co-
tentando aprovar a privatização sem pas- mo justificar a renúncia desse valor aos cionários da Sabesp e de outras empresas
sar pela Câmara Municipal. Nós estamos eleitores?”, pergunta a vereadora. públicas, o deputado federal Orlando Sil-
tentando garantir que passe, porque aqui Indiferente à mobilização dos trabalha- va, do PCdoB, convocou uma audiência
a realidade é bem diferente da Alesp. Te- dores contra a privatização, Freitas afirma pública na Câmara Municipal para deba-
mos chance de barrar esse negócio.” não estar disposto a recuar um milímetro ter o tema e assegurou que a disputa se-
em seu projeto: “Não adianta fazer greve, rá mais longa do que o governador prevê.
De olho no apoio do governador em não tem o que ser negociado, não tem acor- “Temos algumas frentes de batalha
2024, o prefeito de São Paulo, Ricar- do. O governo vai continuar a fazer deses- para barrar a privatização”, afirma Sil-
do Nunes, do MDB, passou o controle tatizações e eles vão continuar discordan- va. “De um lado, existe a mobilização po-
das Unidades Regionais de Serviços de do”. Um dia antes da paralisação dos fun- pular, as manifestações, a pressão sobre
S I N TA E M A / S P E A N D R É B U E N O / C M S P

Abastecimento de Água Potável e Esgo- os deputados estaduais e vereadores. De


tamento Sanitário, conhecidas pela sigla outro, há uma batalha jurídica, porque o
Urae, para o governo do estado. A trans- governo cometeu uma série de irregulari-
ferência, realizada sem alarde em agos- O governador terá dades nesse processo açodado. Até quem é
to deste ano, reduz os poderes do muni- da base governista está relutante. Os par-
cípio sobre a Sabesp. “O prefeito é abso-
de negociar “cláusula lamentares sabem que, se essa proposta
lutamente submisso ao governador por antiprivatização” for discutida em ano eleitoral, dificilmen-
uma questão eleitoral, mas o tempo vai com prefeitos em te conseguirão esconder as digitais na ce-
mostrar que apoiar as privatizações é um pleno ano eleitoral na do crime. Quem votar, não volta.” •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 25
Seu País

O povo no
capita e, entre 1,7% e 1,9% no rendimen-
to domiciliar per capita nas grandes regi-
ões. No ano passado, 6% dos brasileiros

Orçamento
encontravam-se na extrema pobreza. Ou-
tra meta é a redução do desemprego. Era
de 9,25% o porcentual de brasileiros fora
do mercado de trabalho em 2022, e a meta
ARTIGO O Plano Plurianual contou do governo Lula é diminuir para 6,63%. A
com uma inédita participação da previsão de investimentos, públicos e não
públicos, é recorde: 13,3 trilhões de reais.
sociedade na escolha das prioridades A população precisa acompanhar
a tramitação do Plano Plurianual no
P O R E LV I N O B O H N G A S S *
Congresso, para que a peça orçamentá-
ria mantenha a essência do que foi ela-

D
borado nas consultas realizadas pelo go-
epois de quatro anos de des- que mais participaram: 63% do total. verno Lula. A Comissão Mista de Orça-
manche do Estado e das po- Os números do PPA herdado do bol- mento aprovou o relatório preliminar
líticas públicas, o Brasil, sonarismo são desastrosos. Nem 30% do por nós apresentado. Os debates segui-
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com o governo Lula, volta a
ter planificação e estraté-
previsto foi realizado. Fica escancarado o
absoluto desprezo do governo anterior pe-
rão até a votação em Plenário, que deve
ocorrer ainda em 2023.
gia de desenvolvimento econômico e so- la população e pelas políticas públicas. O
cial em bases sustentáveis. O Plano Plu- PPA participativo deste ano, por sua vez, Não há contradição entre a elabora-
rianual para os anos de 2024 a 2027 reto- deu voz àqueles que lançaram um grito de ção do PPA com participação social e as
ma o planejamento, desta vez com inédi- socorro ao País: as plenárias foram mar- funções do Congresso. O papel do Parla-
ta participação da sociedade na formula- cadas por pedidos de moradia para a po- mento, de debater, discutir e ter autono-
ção das prioridades orçamentárias. pulação de menor renda, ações de com- mia para alterar, é constitucional. Mas o
Trata-se de uma revolucionária demo- bate à fome e acesso aos serviços de saú- fato de as consultas terem sido realizadas
cratização do processo de elaboração do de. Isso revela que, no modelo neoliberal nacionalmente aponta o caminho que a
PPA: plenárias em todos os estados da fe- anterior, nem as mais básicas necessida- sociedade brasileira quer seguir. É uma
deração, consultas por meio digital com des do povo foram supridas. síntese da reconstrução da democracia.
envolvimento de mais de 4 milhões de ci- O desafio agora é garantir resultados Como principal instrumento de plane-
dadãos e a participação do Fórum Inter- concretos, com 62 indicadores-chave, en- jamento do governo federal, o PPA define
conselhos, que conta com representantes tre eles a redução de ao menos 20% da ta- investimentos, traça objetivos estratégi-
dos diversos conselhos nacionais e enti- xa de extrema pobreza, 19% da emissão de cos e orienta a elaboração dos orçamentos
dades representativas da sociedade civil. gases de efeito estufa, 75% do desmata- anuais da União. São três eixos básicos:
Resultou numa peça tecida por muitas mento e de 0,8% na diferença entre a ren- desenvolvimento social com diminuição
mãos, incluindo movimentos sociais, sin- da dos mais ricos e os 40% mais pobres. das desigualdades e erradicação da fome,
dicais, universidades e empresas: 76,5% E elevação de, em média, 2,5% no PIB per desenvolvimento econômico com ênfase
das demandas sociais foram atendidas na neoindustrialização e defesa da demo-
na proposta encaminhada ao Congresso. cracia e reconstrução do Estado. E tem
É uma peça com a marca do nosso povo, seis áreas de abrangência: meio ambien-
retratando a realidade da nossa gente, suas O PPA é a base te, combate à fome, educação, saúde, in-
expectativas e esperanças. Entre os par- dustrialização e infraestrutura.
ticipantes, as mulheres foram maioria –
para um país A sociedade mostrou que quer ações
61% daqueles que acessaram a plataforma democrático, concretas na área ambiental. Por isso,
digital Brasil Participativo. Os moradores justo, desenvolvido o PPA prevê 50 bilhões de reais a pro-
das regiões Sudeste e Nordeste foram os e sustentável gramas relacionados à mitigação das

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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mudanças climáticas. E, ainda, foco na Participação popular. As audiências razão entre a frequência de brancos e ne-
neoindustrialização, com menos emissão públicas permitiram assegurar no plano gros, de 18 a 24 anos, no ensino superior.
as principais demandas da sociedade
de carbono. Pela primeira vez na história, O PPA e o Orçamento da União, peças
o PPA permitirá o acompanhamento das centrais na vida do País, estão sob análi-
realizações pelo governo, organizações se do Congresso, num momento em que
sociais e empresariais e o Congresso. Pa- lheres, há uma nítida mudança de visão estão em curso a reconstrução nacional
ra isso, cria-se o Observatório do PPA. O em relação ao PPA do governo Bolsona- e a implementação de políticas públicas
compromisso é monitorar a execução do ro, que as incluía em um conceito genéri- que colocam o Brasil na trilha do cresci-
plano e facilitar a fiscalização popular. co de “defesa da família”. A Igualdade Ra- mento sustentável. O planejamento é es-
cial, que havia sumido no último gover- sencial para inspirar credibilidade e es-
Também é nova a adoção de agendas no, também volta às prioridades. timular investimentos produtivos. Ade-
transversais envolvendo mais de um mi- Alguns indicadores serão usados pela mais, o novo PPA é a base para um país
nistério para a articulação das políticas primeira vez no PPA, como a alfabetiza- democrático, justo, desenvolvido e am-
públicas. São elas: crianças e adolescen- ção na idade certa e o indicador municipal bientalmente sustentável. Lança as ba-
tes, povos indígenas, mulheres, igualda- que passará a ser calculado em âmbito na- ses para uma nação em que a população
de racial e meio ambiente. Na área indí- cional. O Plano Plurianual medirá ainda a tenha mais qualidade de vida, dignidade
gena, vai-se buscar inédita garantia da evolução da igualdade racial, por meio do e esperança de dias melhores. •
ISTOCKPHOTO

participação dessa população como for- monitoramento da taxa de homicídios de


muladora, gestora e avaliadora da políti- negros, da razão entre o rendimento mé- *Deputado federal (PT-RS) e relator do Plano
ca pública que a beneficia. Quanto às mu- dio do trabalho de brancos e de negros e da Plurianual (PPA) para os anos de 2024 a 2027.

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 27
Seu País

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Doutor coveiro
vidor do Necrópole do Campo Santo,
também conhecido como Cemitério Vi-
la Rio, o maior da cidade de Guarulhos,
com cerca 180 mil metros quadrados.
SOCIEDADE Mário Cabral se divide entre o
ofício de agente funerário e o doutorado em Com experiência anterior na constru-
ção civil, Cabral não teve dificuldades de
História da Arte pela prestigiada Unifesp passar no teste físico. Já a prova escrita,
bem... Essa etapa foi ainda mais fácil. Gra-
P O R R O N A L D O L AG ES
duado em História, o servidor coleciona-
va títulos de especialização e estava pres-
tes a concluir seu mestrado em Ciências

C
Sociais na Unifesp quando prestou o con-
ontratado no auge da pan- ridades sanitárias, cada funeral deveria curso público para coveiro, em 2020. Ago-
demia de Covid-19, o agen- ser realizado em até dez minutos, com ra, divide-se entre o ofício e o doutorado
te funerário Mário Cabral poucos familiares autorizados a acompa- em História da Arte pela mesma univer-
passou por um teste de ap- nhar o sepultamento. “Foi um período sidade, com uma pesquisa sobre a difusão,
tidão física antes de ser efe- complicado, fazíamos entre 30 e 35 en- pelas redes sociais, do repente nordesti-
tivado na função. O candidato precisava terros diários. Os números haviam tripli- no, da poesia de cordel e da viola caipira
provar ser capaz de abrir uma cova no cado e cinco colegas desistiram do traba- “Nasci e cresci em Guarulhos. Apesar
tempo exigido pelas contingências do lho, devido às jornadas extenuantes e a do sotaque puxado, não sou nordestino,
momento. Por recomendação das auto- elevada carga emocional”, relembra o ser- mas meus pais vieram do Cariri paraiba-

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Multitalentoso. Cabral é autor de livros de literatura de cordel e não pensa em
trocar de emprego. “O trabalho com a morte me permite que faça tudo em vida”

no. Peguei o gosto pela cultura nordes- sombravam o jovem estudante. Desde o tora. Então nasceu a Letras do Subsolo.”
tina, que virou objeto das minhas pes- ensino médio, precisou conciliar os estu- Sobre o colega ter chegado tão lon-
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quisas”, conta com entusiasmo. Filho de
um motorista de ônibus e de uma auxi-
dos com o trabalho, para ajudar nas des-
pesas da casa. “Aos 24 anos, quando entrei
ge nos estudos, Neves aponta a oportu-
nidade de acesso às universidades que
liar de enfermagem, que migraram para na faculdade com a nota do Enem, traba- a classe trabalhadora teve nos últimos
a região metropolitana de São Paulo no lhava como servente de pedreiro. De dia, anos. “Mário é uma pessoa muito sin-
fim dos anos 1970, desde muito cedo Ca- na betoneira. À noite, na sala de aula, es- gular, pois trafega em diversos espa-
bral ouvia os repentistas e cantadores de tudando a filosofia de Hegel e o materia- ços, do mundo acadêmico ao universo
viola nos discos de vinil do pai. As histó- lismo histórico de Marx”, conta. “A maior da cultura popular, na quebrada. A pe-
rias do povo nordestino, entoadas na voz dificuldade era vencer o cansaço.” riferia tem poucos equipamentos cultu-
de tios, foram assimiladas organicamen- rais, mas possui uma cultura vibrante.”
te em sua memória. Quando se deu con- A paixão pela literatura de cordel o Professor do Instituto Federal de São
ta, já era um escritor de cordel. fez criar, em parceria com alguns cole- Paulo, Vagner Luís da Silva, responsável
“No meu tempo, a molecada gostava de gas, um selo editorial para que pudesse di- por orientar Cabral numa especialização
ouvir Racionais MC’s, Legião Urbana. Já vulgar seus versos, escritos por anos a fio na área de educação, concluída simulta-
eu preferia Tião Carreiro, Tonico e Tino- nos caderninhos de anotações. Deles saí- neamente com o mestrado, atesta o com-
co, Luiz Gonzaga. Esse último era o meu ram Cordéis Dedicados (2016) e Lamentos prometimento do ex-pupilo. “É um sujei-
ídolo máximo”, relembra. “Na época, eu e Memórias em Rimas Simplórias (2018). to esforçado e engajado naquilo que faz.
pensava? Se tiver a chance de fazer uma Um dos companheiros da empreitada poé- Essas virtudes o fazem transpor as bar-
faculdade, quero que fosse de algo que eu tica é Daniel Neves, outro rapaz apaixo- reiras que lhe são impostas”, diz o mestre.
realmente gosto. Minha paixão era a mú- nado por livros. “Nossa amizade é mui- Engana-se, porém, quem acredita que
sica antiga, por isso decidi pela História.” to demarcada pela arte aqui no bairro”, Cabral não gosta do ofício entre as lápi-
RONALDO L AGES E ARQUIVO PESSOAL

Apesar do gosto peculiar, que lhe ren- comenta o amigo. “Temos afinidade por- des. A jornada de 12 horas de trabalho por
deu apelidos pouco lisonjeiros dos colegas que também escrevo cordel. Trocávamos 36 de descanso permite-lhe não apenas
da escola, teve uma infância feliz nas ruas muitas ideias do que cada um escrevia em dar sequência ao doutorado, como tam-
de terra da periferia da cidade. “Asfalto só nossos cadernos e, mais tarde, fomos digi- bém cursar o bacharelado em Filosofia,
fomos ter muitos anos depois”, conta. No tando todo o material. Daí surgiu o desejo outra paixão do mestre coveiro. Entrou
colégio, demonstrava especial predileção de publicar. Notamos que o mercado edi- no curso de graduação por meio do siste-
pelas ciências humanas e certa dificulda- torial é muito concorrido e fechado, não ma de reingresso da Unifesp. “Eu traba-
de para lidar com números - matemática costuma acolher nomes desconhecidos. A lho com a morte, e o trabalho com ela me
e física eram as disciplinas que mais as- saída foi organizar nós mesmos uma edi- permite que faça tudo em vida.” •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 29
Seu País

A pandemia
acabou?
OPINIÃO O Brasil, como outros países, ignora
os ainda presentes riscos da Covid-19
P O R J U L I A N A S TA M M *

cho que fui deputado/Acho Cosmos?” Heymans é uma mente ge-

A
que tudo acabou/Quase nial, cujos estudos são promissores a
que já não me lembro de na- ponto de terem o potencial de mudar o
da/Vida veio e me levou. entendimento até então consagrado so-
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Os versos de O Velho
Francisco, de Chico Buarque, invaria-
bre o universo e sobre algumas leis da fí-
sica. A cientista e sua família contraíram
velmente me vêm à mente quando ouço Covid-19 no começo de 2022. Os fami-
de amigos: “Não sei se já lhe contei isso liares se recuperaram, mas a saúde de
antes, porque minha memória, depois da Heymans se deteriora desde então. Para
Covid, está muito ruim”, ou “Depois da continuar sua revolução da ciência, a as-
Covid, perdi a noção de quando as coisas trônoma tem feito turnos de meia hora
aconteceram”. Rosana Hermann, física, de estudos com longos intervalos pa-
roteirista, escritora, escreveu em janei- ra descanso, deixando lembretes sobre combatemos e que nos habituamos, com
ro: “Como você tá de memória? Sempre o que estava fazendo, para poder se re- razão, a chamar de política genocida.
fui boa. Fui. Pós-Covid não sou mais”. cordar de onde parou. As escassas campanhas estão limita-
Casos de perda parcial da própria das a um reducionismo perigosíssimo, a
constitutividade são os eventos leves de A meu ver, estamos longe de poder uma simplificação cientificamente im-
Covid longa, mas há incontáveis pacien- afirmar que haja no mundo um país a precisa, de que as vacinas são a melhor
tes a viver com sequelas incapacitantes. abordar de forma adequada a pandemia e forma de proteção. Recentemente, hou-
Digo incontáveis, pois o Brasil não conta suas consequências nas diversas esferas. ve a campanha “Vacina É Vida”, encam-
mesmo. Há aqueles que desenvolveram Mas receio que no Brasil prevaleça no ar pada pelo presidente Lula. Ante a omis-
diabetes, desordens gastrointestinais, alguma indiferença cínica quanto ao te- são das autoridades de saúde quanto aos
infertilidade, cansaço crônico, há tam- ma, na melhor das hipóteses. O mais pro- riscos da Covid Longa, quanto aos riscos
bém os que tiveram problemas cardía- vável é que estejamos revivendo o nega- das múltiplas reinfecções, tratadas por
cos e pulmonares e nem sequer cogitam cionismo, o anticientificismo que tanto cientistas como “roleta-russa” – porque,
de relacionar com infecção prévia, por se ao contrário de construírem imunidade
tratar de uma novel síndrome de meca- contra o vírus, agridem o sistema imuno-
nismos ainda por serem desvendados. lógico –, e quanto às limitações da efetivi-
O jornal britânico The Guardian dade das vacinas até então disponíveis, é
revelou o caso da brilhante astrônoma
Estaríamos a reviver legítimo nos perguntarmos: melhor for-
Katherine Heymans, no artigo “The o negacionismo que ma de proteção contra o quê?
Dark Universe: Can a Scientist Battling tanto combatemos De fato, estudos e a própria realida-
Long Covid Unlock the Mysteries of the nos últimos anos? de mostram de forma conclusiva que as

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
À espreita. As vacinas reduziram
os casos graves, mas não eliminaram o
vírus. Além disso, os efeitos prolongados
em infectados não cessaram

transparência, que o que se tem certeza até


o momento é que vacinas reduzem – e não
erradicam – complicações na fase aguda.
Oficialmente, não se fala, porém, em
medidas de prevenção a infecções, pas-
sando a impressão enganosa à popula-
ção de que as infecções e reinfecções são
inofensivas após o advento das vacinas.
Não há campanhas que esclareçam sobre
a importância da ventilação, da filtragem
de ar, do uso correto de respiradores ade-
quados. A Agência Nacional de Vigilância
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas Sanitária, o Ministério da Saúde e outros
órgãos ainda têm em seus materiais reco-
mendações defasadas de higienização das
mãos e de superfícies, e não esclarecem
para a insuficiência da máscara cirúrgica,
notadamente em ambientes hospitalares.
Passamos da hora de termos de falar
séria e comprometidamente sobre medi-
vacinas tendem a proteger contra a forma sabe ao certo, a prevenção a infecções de- das que coloquem um fim de fato à pan-
grave da doença na fase aguda. Mortes veria ser a resposta primordial, com in- demia. Não podemos acabar com a pan-
e hospitalizações foram sensivelmente vestimento em campanhas ostensivas demia deixando de produzir números,
reduzidas, embora não erradicadas. A pelas medidas que têm maior potencial minimizando riscos, amenizando dis-
Covid-19 ainda é uma das causas de mor- de prevenção. A transparência quanto à cursos. Não podemos admitir que um
te das mais relevantes na fase aguda, fi- ausência de respostas científicas não se presidente abuse de seu inegável caris-
gurando dentre as principais no País. confunde com desinformação. A ciência ma popular para transmitir à população
Pouco se sabe, no entanto, da eficácia da sempre terá lacunas e pontos cegos. Mas uma falsa sensação de segurança. Seu pa-
proteção das vacinas ao longo do tempo. a omissão quanto ao que não se sabe, per- pel na persistente pandemia, presiden-
Também não se sabe ao certo o intervalo mitindo que os indivíduos se sintam segu- te Lula, é o de conduzir a sociedade e as
ideal entre as doses, e há incerteza se há, ros onde não há segurança em absoluto, instituições para um pacto de empatia e
de fato, relevante efeito protetivo contra isto, sim, é desinformação. de respeito, notadamente pelos que me-
o desenvolvimento de Covid Longa. Há nos têm condições de se proteger, porque
também sempre o risco do surgimento de Dados robustos indicam que, para ao não há proteção individual que seja su-
novas variantes com grande escape imu- menos 10% dos infectados (de 10% a 30%, ficiente, e não há saída para a pandemia
nológico, a exemplo da BA.2.86. a depender do estudo), talvez as vacinas sem adoção e adesão a medidas coleti-
BRENO ESAKI/GOVDF

A insuficiência de respostas às dúvi- estejam longe de ser eficazes contra seque- vas e não farmacológicas de prevenção. •
das também é um dado científico relevan- las. Dessa forma, deixa de fazer sentido a
te que deveria conduzir políticas e pautar distinção entre proteção contra a doen- *Advogada e orientadora no Departamento
discursos oficiais segundo o princípio da ça e proteção contra infecção. É necessá- Jurídico XI de Agosto da Faculdade
precaução. Em vista do muito que não se rio que se ressalte, com clareza, precisão e de Direito do Largo São Francisco.

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 31
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Economista, consultor editorial de CartaCapital
e ex-presidente do Palmeiras. É autor, entre outras obras,
de Valor e Capitalismo e Os Antecedentes da Tormenta

A mídia e suas liberdades


direito de se desfazer de seus negócios, da liberdade de escolha do indivíduo –
► Lembro Paul Virilio: sejam quais forem os motivos?” consumidor. Não se trata de uma mistifi-
os meios de comunicação Paul Virilio, em sua obra A Arte do Mo- cação vulgar, da intenção de enganar, mas
tor, observando as transformações do pa- de uma ilusão necessária, em que a mani-
são o único poder com a pel dos meios de comunicação na moder- pulação, a construção da notícia, a censu-
prerrogativa de editar suas na sociedade capitalista de massa, não foi ra da opinião alheia e a intimidação siste-
próprias leis e sustentar capaz de evitar uma conclusão drástica: a mática devem “aparecer” aos olhos do pú-
mídia é o único poder que tem a prerroga- blico consumidor como legítimo exercí-
a pretensão de não se tiva de editar suas próprias leis, ao mesmo cio dos direitos de opinar e de informar.
submeter a nenhuma outra tempo que sustenta a pretensão de não se Este, diga-se, é o sentido profundo
submeter a nenhuma outra. Essa reivin- da pretensão dos meios, apontado por
dicação torna-se mais agressiva na medi- Virilio, de não só se alçar acima da lei,
da em que os meios de divulgação e de for- mas de fazer as suas próprias leis. Sob a

LEntre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas


eio no Jornal de Brasília: o em- mação de opinião vêm se concentrando, de aparência da democracia plebiscitária e
presário Luiz Felipe D’Avila, forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos da justiça popular, perecem os direitos
político do partido Novo, admi- da grande finança capitalista. Esse pro- individuais, fundamentos da cidadania
tiu em um podcast gravado dois meses cesso nasce no século XIX, exacerbando- moderna, tais como foram construídos
atrás que ele, André Esteves, Rubens -se no século XX, acompanhando, aliás, as ao longo da ascensão burguesa e conso-
Ometto e Abilio Diniz, sogro de D’Avila, tendências centrais do capitalismo. lidados pelas duas revoluções do século
buscam meios para comprar o jornal O XVIII, a política e a econômica.
Estado de S. Paulo, o Estadão. A ideia No caso da mídia, dada a peculiarida- É tragicamente curioso que os valores
do grupo bilionário seria “juntar todo de da mercadoria colocada à venda, o ob- mais caros ao projeto do Iluminismo,
mundo”: Estadão, revista Oeste, Brasil jetivo natural de ganhar dinheiro formou, as liberdades de expressão e de opinião,
Paralelo, Jovem Pan, em um grupo nos porém, uma unidade inseparável e ame- tenham se transformado em instrumentos
moldes daquele comandado por Rupert açadora com o desejo de ampliar a influ- destinados a conter e cercear o objetivo
Murdoch. A ideia seria combater “este ência e o poder sobre a sociedade e sobre maior da revolução das luzes, o avanço
governo perverso”, falando do PT. a política. Daí a impossibilidade, ampla- da autonomia do indivíduo. Não bastasse
Tempos atrás, o filósofo Jürgen mente reconhecida pelos setores mais isso, os ímpetos plebiscitários autorizados
Habermas escreveu nas páginas do jornal atentos da sociedade, de os meios de co- pelas leis da imprensa colocam em risco o
alemão Die Zeit um artigo que assustou os municação, estruturados sob a forma ca- sistema de garantias destinado a proteger
leitores com o título “O quarto poder corre pitalista, exercerem com integridade a o cidadão das arbitrariedades do poder,
perigo?” Tratava-se da notícia alarmante sua função original de vigiar e criticar os seja ele público ou privado.
de que o Süddeutsche Zeitung rumava para grupos que controlam o dinheiro e o po- Encerro com Barbara Erenreich: “Ima-
um futuro econômico de incertezas. der. A sua função essencial de circulação gine o tipo de mídia que uma sociedade
A maioria dos acionistas queria ver- de informações, do exercício da crítica e democrática merece: mídia que nos traz
-se livre do jornal. Caso as coisas se enca- de estímulo à controvérsia, foi de há muito uma riqueza de opiniões diversas e opções
minhassem para a venda, seria possível abandonada em proveito da mera defesa de entretenimento; meios de comunica-
que um dos bons diários suprarregionais de interesses particularistas e privados. ção social que têm a responsabilidade de
da Alemanha, o outro é o Frankfurter Não é verdade, porém, que esses pro- fornecer a informação de que necessita-
Allgemeine, caísse nas mãos de investi- dutores de ideologia estejam abusando do mos para funcionarmos como cidadãos
dores privados, fundos de investimen- seu direito de informar e de opinar. Eles informados; mídia onde as ideias fluem
to ou conglomerados de mídia. Haverá estão exercendo a sua liberdade privile- em ambas as direções e onde as pessoas
B A P T I S TÃ O

quem diga: business as usual. O que po- giada, com eficiência crescente, nos mar- comuns rotineiramente têm a chance de
deria haver de alarmante no fato de que cos de uma sociedade encantada pela “in- expressar suas preocupações”. •
os proprietários queiram fazer uso de seu versão” de significados e pelo ilusionismo redacao@cartacapital.com.br

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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SHUT TERSTOCK E ISTOCKPHOTO

ESPECIALPAC
Educação, conectividade e o
complexo industrial da saúde
POR
PORGENILSON
ROBERTOCEZAR
ROCKMAN
3
C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 33
Especial PAC

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FEITO EM CASA
FÁRMACOS O governo planeja usar o poder de compra
do SUS para estimular o complexo industrial da Saúde
34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
e biofármacos, e a implantação do polo produção de insumos, entre eles vaci-
fabril da Empresa Brasileira de Hemo- nas e medicamentos, em tempo recor-
derivados e Biotecnologia (Hemobrás), de, para emergências sanitárias.
em andamento, em Pernambuco. A preocupação faz todo senti-
Com novo aporte de cerca de 2 bi- do, afirmou Carlos Gadelha, secretá-
lhões de reais, foi retomado o projeto do rio de Ciência, Tecnologia, Inovação e
Complexo Industrial de Biotecnologia Complexo da Saúde do ministério. Em
em Saúde (CIBS) em uma área de 580 mil 2020, durante a pandemia de Covid-19,
metros quadrados no distrito industrial a importação de matérias-primas, pro-
de Santa Cruz (RJ). O CIBS tem tudo pa- dutos e tecnologias da saúde atingiu 20
ra se tornar o maior centro de produção bilhões de dólares. Como um todo, o se-
de insumos biotecnológicos da América tor de saúde representa 10% do Produto
Latina. A planta contará com capacidade Interno Bruto, que chegou a 9,9 tri-
de produção estimada de 120 milhões lhões de reais em 2022, segundo o IBGE.
de frascos de vacinas e biofármacos por Proporciona a geração de 20 milhões de
ano, em diferentes apresentações (quan- empregos diretos e indiretos e responde
titativo de doses por frasco) e servirá pa- por um terço das pesquisas científicas no
Autonomia. A nova fábrica da Fiocruz ra atender prioritariamente às deman- País. “É, no entanto, a segunda área mais
vai ampliar a produção de vacinas das da população por meio do SUS. dependente de importações, chegamos
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
e medicamentos. Nísia Trindade,
ministra da Saúde, cuida da articulação
No município pernambucano de
Goiana, na Zona da Mata Norte, a 63
a importar quase 90% dos insumos far-
macêuticos ativos”, disse Gadelha.
entre governo, empresas e pesquisa
quilômetros do Recife, a fábrica da
Hemobrás em construção receberá Com o novo PAC, a intenção do gover-

O
aporte adicional de 900 milhões de no federal, segundo explicou Trindade
governo está decidido a reais. A unidade vai ocupar uma área em eventos públicos e entrevistas, é
reduzir, cada vez mais, a de 48 mil metros quadrados e garantir a promover a articulação governamen-
dependência de insumos autossuficiência em derivados de plas- tal e formular medidas para fortalecer
farmacêuticos do merca- ma. “A previsão da Hemobrás é fazer as pesquisa e desenvolvimento, produção
do externo. A retomada primeiras entregas de imunoglobuli- e inovação nacional, em conjunto com o
do Complexo Econômico-Industrial da na e outros importantes derivados de setor privado, para atender a demandas
Saúde, com a produção intensiva de plasma a partir de 2025”, explicou re- estratégicas do SUS. Um dos progra-
materiais básicos para o Sistema Úni- centemente a ministra da Saúde, Nísia mas que devem ganhar mais fôlego são
co de Saúde, é um dos programas prio- Trindade. Segundo a ministra, em di- as Parcerias para o Desenvolvimento
ritários do novo Programa de Acelera- versas declarações públicas, a cadeia Produtivo (PDP), que têm se tornado
ção do Crescimento na área de saúde, produtiva e de inovação do complexo uma ferramenta de desenvolvimento
com investimentos que devem chegar econômico e industrial da saúde sig- da indústria nacional de medicamen-
a 29,3 bilhões de reais até o fim do nificará o envolvimento de 15 insti- tos e do fortalecimento de laborató-
mandato do presidente Lula. Ao menos tutos públicos de ciência e tecnologia rios. A meta, de acordo com a ministra,
8,9 bilhões começaram a ser desembol- visando fortalecer essa capacidade de é obter 70% de produção local de insu-
sados para o fortalecimento de uma ca- mos necessários para o adequado fun-
CAROLINA ANTUNES/MS E RAQUEL

deia de produção em imunobiológicos, cionamento do setor de saúde até 2026.


P ORT UGA L /AGÊNCIA FIOCRUZ

fármacos e equipamentos tanto no se- Há um estímulo Para Ricardo Alban, presidente da


tor público quanto no privado. São duas à cadeia de produção Confederação Nacional da Indústria, a
as principais iniciativas estratégicas: a redução da dependência externa de in-
em imunobiológicos,
construção de uma nova planta indus- sumos e medicamentos e o desenvolvi-
tria l da Fundação Oswa ldo Cruz fármacos e mento desse setor exigem, de fato, um es-
(Fiocruz), no estado do Rio de Janeiro, equipamentos forço conjunto do governo, do setor pri-
destinada a ampliar a oferta de vacinas vado, das instituições de pesquisa e da

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 35
Especial PAC

sociedade em geral. No caso da indús-


tria farmacêutica, trata-se de uma ativi-
dade que tem hoje um valor de transfor-
mação industrial superior a 42 bilhões de
reais. O faturamento atingiu 130 bilhões
em 2022, e o investimento em novas dro-
gas somou 43,2 bilhões (33,9% do total),
o que, segundo Alban, sinaliza a extensa
atividade de pesquisa e desenvolvimen-
to que o setor é capaz de gerar. “A pan-
demia de Covid-19 mostrou a importân-
cia de termos medicamentos e tecnologia
nacionais, reafirmando a natureza estra-
tégica da indústria farmacêutica para to-
da a economia nacional.”

Segundo Marcelo Thomé da Silva


Almeida, presidente da Federação das
Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero),
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
a indústria farmacêutica deve realmen-
te ser estimulada a investir cada vez mais
em pesquisa de novos produtos e desen-
volvimento de soluções biotecnológi-
cas, tendo a biodiversidade como base de
uma produção diferenciada na qualida-
de e referenciada na origem. “O Complexo
Econômico Industrial da Saúde pode se
consolidar e ajudar a consolidar a bio-
economia como esteio da nova indús-
tria brasileira.” A expectativa é de que
os novos investimentos do PAC na saú-
de – 29,3 bilhões de reais até 2026 e mais
1,2 bilhão depois –, além da ampliação
do parque industrial do setor, represen-
tem um salto na expansão da assistência
à população pelo SUS. O Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) deve participar com 6 bilhões
e a Financiadora de Estudos e Projetos
(Finep), com outros 4 bilhões. O governo
federal espera que o setor privado aporte
em torno de 23 bilhões de reais.
A maior parcela dos recursos será di-
recionada à eliminação dos gargalos his-
tóricos na atenção especializada, a come-
çar pela melhora do atendimento oncoló-
gico e o aumento do número de hospitais.
O programa possibilitará, nos próximos

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Retaguarda. A pandemia foi um alerta situações epidêmicas, como a pandemia
à dependência externa. A Hemobrás de Covid-19. Até 2026, estão previstos
terá sua capacidade ampliada.
investimentos em equipamentos para
O ministro Rui Costa aposta nas PPPs
47 novos laboratórios de saúde pública.
O novo PAC prevê ainda mais de 1 bi-
lhão de reais em investimentos na cons-
quatro anos, a universalidade de serviços trução do primeiro Laboratório de Nível
essenciais na rede pública, como o SAMU de Segurança 4 (NB4) do Brasil, primeiro
192. Os investimentos equilibram-se do mundo conectado a uma fonte de luz
em cinco pilares: Atenção Primária, síncrotron, especializado em lidar com
Atenção Especializada, Preparação pa- patógenos que podem causar doenças
ra Emergências em Saúde, Complexo graves. O complexo laboratorial de 20
Industrial da Saúde e Telessaúde. A mil metros quadrados será construído
ideia é retomar os investimentos em pelo Ministério da Saúde, em conjunto
políticas públicas, especialmente em com o Ministério da Ciência, Tecnologia
obras de infraestrutura econômica, so- e Inovação, com recursos garantidos pe-
cial e urbana. Um dos focos é a constru- lo Fundo Nacional de Desenvolvimento
ção de 1,8 mil Unidades Básicas de Saúde Científico e Tecnológico. “A pandemia
(UBS), com investimento de 4,2 bilhões recolocou no centro do debate a impor-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
de reais, de um total de 7,4 bilhões desti-
nados à Atenção Primária à Saúde. Nesse
tância do domínio nacional de uma base
produtiva em saúde, bem como o papel
caso em especial, o objetivo é alcançar do Estado na coordenação de agentes e
outro patamar para as UBS, avaliou investimentos no enfrentamento da cri-
Nésio Fernandes, secretário da APS, do se sanitária”, declarou publicamente a
Ministério da Saúde. “Queremos mu- ministra Luciana Santos, de Ciência e
dar a imagem de postinho dos estabele- Tecnologia. Atualmente, há cerca de
cimentos da atenção primária para uni- 60 laboratórios de máxima contenção
dades de saúde amplas e equipadas, den- biológica no mundo, mas nenhum na
tro de um conceito de alto padrão de qua- América do Sul, Central ou Caribe. “A
lidade para atenção primária do SUS.” implantação do laboratório de biosse-
gurança nível 4, portanto, é estratégi-
Outra iniciativa importante é a pre- ca”, assinalou a ministra.
paração do País para futuras emergên- Uma das diretrizes do novo plano de
cias sanitárias. Além do fortalecimen- investimento do PAC é utilizar o instru-
W A LT E R S O N R O S A / M S , H E N R I Q U E R AY N A L / C A S A C I V I L E
CRISTINE ROCHOL /SMS/PREFEITUR A DE PORTO ALEGRE
to do complexo industrial de saúde, o mento das Parcerias Público-Privadas
novo programa de investimentos deve na construção das unidades básicas de
destinar recursos à expansão da capaci- saúde, laboratórios e outros equipamen-
dade interna de responder às eventuais tos, com a participação direta do gover-
no federal ou em parceria com estados
e municípios. “Esse plano vai reunir os
Reduzir a investimentos diretos federais, de or-
dependência das çamento público da União, os investi-
importações exige um mentos através de concessões do gover-
no federal, e vamos iniciar o que estados
esforço conjunto de e municípios, especialmente estados, já
governo, laboratórios fazem há alguns anos, projetos de PPP”,
e centros de pesquisa explanou em mais de uma ocasião o mi-
nistro Rui Costa, da Casa Civil. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 37
Especial PAC

CONHECIMENTO
É PROGRESSO
ENSINO Os investimentos em educação,
ciência e tecnologia vão passar
de 36 bilhões de reais até 2026

C
om 47,4 milhões de estu- estruturas. Elas precisam ser atrativas,
dantes matriculados nas criativas e acolhedoras”, diz.
178,3 mil escolas de educa- O País exibe, de fato, deficiências crô-
ção básica, de acordo com nicas, históricas, no ensino público. Em-
o Censo Escolar 2022, o bora tenha registrado, em 2022, em tor-
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
governo federal retoma a construção de
obras paralisadas e intensifica os inves-
no de 47,4 milhões de estudantes nas
178,3 mil escolas de educação básica, o
timentos para expandir a rede pública maior número de matrículas desde 2019,
educacional. A previsão é de que, até de acordo com a pesquisa Censo Escolar
2026, os investimentos do Novo PAC na 2022, ao menos 1,04 milhão de crianças
área de educação, ciência e tecnologia e adolescentes de 4 a 17 anos ainda esta-
alcancem o patamar de 36,7 bilhões de va fora da escola, nesse período. Levan-
reais, e mais 8,3 bilhões após 2026. tamento do Instituto Brasileiro de Geo- acentuou a defasagem. Em 2021, segundo
O objetivo, segundo os dirigentes do grafia e Estatística indica que o Brasil relatório do Unicef, a quantidade de alu-
setor educacional, é avançar no cumpri- tem um déficit de 2,5 milhões de vagas nos com idades entre 6 e 17 anos que aban-
mento das metas da Agenda 2030 da Or- em creches e pré-escolas. Para atender, donaram as instituições de ensino foi de
ganização das Nações Unidas, com seus no mínimo, 50% das crianças de 3 anos 1,38 milhão. De acordo com o Censo Es-
Objetivos de Desenvolvimento Sustentá- até 2024, deveriam ser oferecidas em tor- colar 2022, desde 2019 o índice de desis-
vel, em especial o que assegura a educa- no de 5 milhões de matrículas. tência no ensino médio só aumenta, ten-
ção inclusiva e equitativa de qualidade e a do chegado a dobrar de 2020 para 2021.
promoção de oportunidades de aprendi- A evasão escolar é igualmente dra- A intenção do governo com as reformas
zagem ao longo da vida para todos. mática. Reprovação, abandono do ensi- de ensino é minimizar essas discrepân-
Além de universalizar o acesso aos no e distorção entre idade e série escolar cias na rede pública educacional, desta-
cuidados e à educação na primeira in- são problemas recorrentes no ambiente ca o ministro. “Vamos atuar em três eixos:
fância, ampliar o acesso ao ensino téc- educacional, mas a pandemia da Covid-19 alfabetização, tempo integral e conecti-
nico, profissional e superior, o programa vidade”, assinala. Para atingir resultados
de investimentos permitirá a melhora da mais expressivos no plano nacional, se-
infraestrutura das escolas de ensino fun- O governo quer rão retomadas e concluídas mais de 6 mil
damental e médio e a construção de cen- garantir avanços nos obras em creches, escolas e quadras das
tros avançados para pesquisa científica instituições de ensino, com recursos da
Objetivos do
e desenvolvimento tecnológico, afirma ordem de 8,3 bilhões de reais. Também
o ministro Camilo Santana, da Educa- Desenvolvimento serão construídas 3.750 escolas em tem-
ção. “Há escolas e escolas no Brasil. Pre- Sustentável da ONU po integral. Serão 625 numa primeira eta-
cisamos corrigir essas desigualdades nas pa – 560 urbanas e 65 quilombolas, indí-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mudança. O ministro Santana
vislumbra uma escola mais
criativa, atrativa e acolhedora

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políticas que foram desestruturadas du-
rante os últimos anos. “Queremos mui-
to os Institutos Federais como nossos
parceiros diretos em todas as políticas
do Ministério”, destaca o ministro.
Os novos investimentos deverão prio-
rizar, igualmente, a consolidação e a rees-
genas e no campo – com investimentos de ral de Educação Profissional e Tecno- truturação das universidades e dos hospi-
5,24 bilhões. Além disso, serão adquiri- lógica devem aumentar as vagas para o tais universitários. Mais de 1,5 bilhão de
dos 3 mil novos transportes escolares – ensino médio integrado, em tempo inte- reais serão aplicados na retomada, con-
investimentos de 1,5 bilhão –, para incluir gral. Criada em 2008, a Rede Federal é clusão e novas obras de 37 hospitais. O
principalmente estudantes em vulnera- formada por 38 Institutos Federais, dois programa garante ainda melhores con-
bilidade social, moradores da zona rural. Centros Federais de Educação Tecnoló- dições para o funcionamento da rede de
Os processos para seleção de propostas gica (Cefet), a Universidade Tecnológica hospitais universitários e para a forma-
e a celebração futura de parceria entre a Federal do Paraná (UTFPR), 22 escolas ção médica e multiprofissional, com in-
União, por intermédio do Fundo Nacional técnicas vinculadas às universidades cremento na capacidade de assistência e
de Desenvolvimento da Educação, e os en- federais e o Colégio Pedro II. Segundo o qualidade dos serviços no Sistema Único
tes federados foram abertos. Para Fernan- MEC, o novo PAC prioriza a consolida- de Saúde. Segundo Márcia Abrahão, reito-
da Pacobahyba, presidente do FNDE, as ção e a reestruturação dos campi e a ex- ra da Universidade de Brasília e presiden-
áreas de inclusão social e educação vão ser pansão da rede de Institutos e Universi- te da Associação Nacional dos Dirigentes
M A R C E L O C A M A R G O /A B R E K ATA R I N E
A L M E I D A / P R E F E I T U R A D E B O A V I S TA

um grande diferencial para a educação bá- dades Federais. Até 2026, serão aplica- das Instituições Federais de Ensino Supe-
sica no País. “Estamos em um momento dos recursos da ordem de 3,2 bilhões de rior, os investimentos nas universidades e
único para a educação brasileira, o PAC vai reais na consolidação, reestruturação e hospitais “são muito oportunos ao incluir
abranger a retomada de obras paralisadas expansão da rede de Institutos Federais. a educação e as universidades como prio-
de escolas e creches brasileiras e ajudará ridades, especialmente após um período
na inclusão digital, motivo pelo qual esses A intenção do governo, segundo San- de sucessivos cortes orçamentários que
fatores vão contribuir para a definição dos tana, é articular ações conjuntas com as comprometeram a capacidade de manu-
próximos passos”, afirma Pacobahyba. instituições federais em prol do desen- tenção, consolidação e expansão do siste-
Novos investimentos na Rede Fede- volvimento e da valorização da educação, ma universitário federal”. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 39
Especial PAC

BRASIL
cipais e em 1,7 mil pequenas e isoladas
comunidades. O programa vai implan-
tar redes fixas de fibra óptica em 530 se-

CONECTADO
des municipais.
As unidades básicas de saúde próxi-
mas às escolas também terão acesso à

INTERNET Escolas e postos de saúde


internet, e a conexão de alta qualidade
vai permitir o fortalecimento do Progra-
estão no topo das prioridades ma Nacional de Telessaúde, expansão do
uso de prontuários eletrônicos e garan-
tia de acesso à internet por UBS em co-
munidades indígenas e quilombolas em

A
localidades remotas.
s escolas públicas de en- com sinal Wi-Fi em todos os ambientes Outro programa importante é a mo-
sino básico e postos de escolares, possibilitando o uso pedagó- dernização do parque logístico nacional.
saúde preparam-se para gico dos conteúdos, aplicativos e jogos Serão aplicados 856 milhões de reais na
avançar com mais rapi- didáticos na rede. aquisição de novos sistemas automatiza-
dez no acesso à internet. dos de triagem e construção de modernos
Ao menos 6 bilhões de reais serão inves- A intenção é priorizar as áreas com centros de serviços postais. Dois deles, em
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tidos nos próximos três anos para que
todas as mais de 138 mil escolas e, apro-
deficiência em infraestrutura. O progra-
ma vai expandir o sinal do 4G em 7.430
São Luís (MA) e Belo Horizonte (MG),
estão em obras. “O Complexo Operacio-
ximadamente, 24 mil UBS sejam conec- distritos, vilas e áreas rurais e em 34 mil nal dos Correios de São Luís será um dos
tadas por fibra óptica ou via satélite quilômetros de rodovias federais. A co- maiores e mais modernos das regiões Nor-
com uma velocidade de ao menos 1 bertura 5G chegará a 5.570 sedes muni- te e Nordeste”, afirma Juscelino Filho. •
Mbps. Além disso, as unidades de edu-
cação e as UBS contarão com cobertu-
ra completa de rede Wi-Fi.
Os recursos fazem parte do Novo PAC,
que vai destinar 27,9 bilhões de reais em
vários programas de inclusão digital e co-
nectividade. “Precisamos avançar com
rapidez na conectividade dos brasileiros,
principalmente das escolas e unidades de
saúde”, diz Juscelino Filho, ministro das
Comunicações. Segundo ele, o governo fe-
deral tem investido para que todas as esco-
las públicas tenham uma internet de altís-
sima qualidade. “Vamos contribuir com a
aprendizagem digital e com o aperfeiçoa-
mento da gestão dessas escolas.”
Os investimentos nos programas de
inclusão, de acordo com o Ministério das
Comunicações, pretendem criar uma
infraestrutura sólida para levar a cone-
xão com a melhor tecnologia disponível
ISTOCKPHOTO

e com a velocidade adequada aos equipa-


mentos públicos. As escolas serão conec-
tadas com internet de alta velocidade e Conexão. Estão reservados 28 bilhões aos programas de inclusão digital

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PEDRO SERRANO
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Remédio inadequado

ser objeto de resposta em face de casos es- dividuais no âmbito do Supremo que, du-
► A PEC que restringe pecíficos, e jamais abrir caminho para a rante a pandemia, preservaram muitas vi-
as decisões monocráticas fragilização das instituições. O tema não das. Isto é, há situações urgentes diante
deveria servir para enfraquecer o Supre- das quais não se pode aguardar o plenário,
do Supremo e de outros mo na defesa dos direitos fundamentais. colegiado, que, por sua própria natureza e
tribunais é oportunista A proposta de emenda à Constituição pelas funções exercidas em outras instân-
e inconstitucional é materialmente inconstitucional por, cias do mesmo tribunal e em outros órgãos
exatamente, fragilizar a tutela dos di- estatais, tais como o Tribunal Superior
reitos fundamentais. Mesmo diante de Eleitoral e o Conselho Nacional de Jus-
possibilidade de perecimento de direi- tiça, não pode funcionar diuturnamente.

U
ma Proposta de Emenda Cons- to, bem como de grave urgência e de pe- Outro aspecto que se coloca é que o
titucional, aprovada recente- rigo de dano irreparável, inadmite-se a Supremo é um tribunal constitucional
mente no Senado e remetida à concessão de decisão cautelar monocrá- com elevado plexo de competências. O
apreciação pela Câmara dos Deputados, tica. Consequentemente, tolhe-se a pre- expressivo número de processos, inco-
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veda o proferimento de decisões mono-
cráticas nos tribunais, sobretudo no Su-
visão constitucional de inafastabilidade
do controle jurisdicional, bem como da
mum para Cortes dessa natureza, impõe
que os relatores forneçam prestação ju-
premo Tribunal Federal. Mais especifi- previsão, constante do título dos direi- risdicional, submetendo-a, ato contínuo,
camente, os senadores aprovaram um tos e garantias fundamentais da Cons- ao referendo do plenário.
texto que, ao incluir certos parágra- tituição, segundo a qual não se excluirá A despeito da inconstitucionalidade
fos ao artigo 97º da Constituição, proí- da apreciação do Judiciário qualquer le- material da proposição legislativa em
be decisões monocráticas que suspen- são ou ameaça a direito. exame e dos interesses extrajurídicos
dam a eficácia de lei e de atos dos presi- que motivaram a aprovação da propos-
dentes da República, do Senado, da Câ- Com efeito, a pretendida alteração le- ta de emenda constitucional no Senado
mara e do Congresso Nacional. gislativa esvazia a função de guardião da Federal, é incompatível com a posição
A vedação é excepcionada somente no Constituição atribuída ao Supremo, rele- de ministro do Supremo a exterioriza-
período de recesso do Judiciário, hipó- gando-a às hipóteses em que o seu cole- ção da contrariedade individual peran-
tese em que, no caso de grave urgência giado, dentro das limitações materiais de te outras autoridades da República. São
ou de perigo de dano irreparável, admi- funcionamento, for capaz de aferir as hi- indevidos os pedidos de afastamento do
te-se a decisão individual. Neste caso, o póteses concessivas de medidas cautela- senador Jaques Wagner da posição de lí-
colegiado do tribunal deve apreciá-la no res. A inconstitucionalidade material da der do governo na Casa Legislativa. Ain-
prazo de 30 dias corridos após a retoma- PEC decorre, portanto, do fato de serem da que discordemos do seu voto, o par-
da dos trabalhos judiciários, sob pena de insuscetíveis de alteração até mesmo por lamentar possui a prerrogativa consti-
perda de eficácia. emenda constitucional proposições legis- tucional de, livremente, posicionar-se
O diagnóstico quanto ao abuso no uso lativas tendentes a abolir os direitos e ga- quanto às proposições legislativas sub-
de decisões monocráticas é adequado, rantias individuais e, ainda, instabilizar a metidas ao Parlamento.
apontado, inclusive, por estudos cientí- separação dos poderes, bem como o equi- Por fim, o Supremo já vem respondendo
ficos que promovemos nos últimos anos. líbrio no sistema de repartição de fun- às disfunções decorrentes do poder con-
O forte protagonismo do relator é uma ções estatais. Tais cláusulas são pétreas. cedido aos relatores através de reformas
disfunção presente no sistema de Justi- As consequências da vedação de deci- regimentais que, sem vedar decisões mo-
ça brasileiro. Não é, porém, por meio da sões monocráticas para a proteção dos nocráticas, obrigam a submissão ao plená-
inconstitucional proposta de emenda em direitos fundamentais ficam particular- rio. Por todas essas razões, a PEC é desne-
B A P T I S TÃ O

exame que o problema deve ser enfrenta- mente evidenciadas quando se rememo- cessária, oportunista e inconstitucional. •
do. Abuso em decisões individuais devem ra que foram as tempestivas decisões in- redacao@cartacapital.com.br

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 41
Nosso Mundo

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Óleo na fogueira
CLIMA O pessimismo marca a abertura da COP28 em Dubai,
a prever debates para promover a indústria de petróleo
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

A
Terra ferve, mas os líderes aquecimento do planeta a 1,5ºC até o fim cas, cabendo os maiores castigos, como
mundiais, com os olhos em- deste século, iniciativa que os cientistas sempre, à população mais pobre.
botados por guerras e dis- consideram indispensável para evitar o co- Apesar de a locomotiva da humanidade
putas econômicas, pare- lapso climático. Para tanto, as emissões de dirigir-se em alta velocidade para o abis-
cem ignorar os eventos cli- gases do efeito estufa deveriam ser redu- mo, a movimentação dos donos do mundo
máticos extremos, cada vez mais frequen- zidas em 50% até 2030, mas, na prática, os às vésperas de mais uma Conferência das
tes e intensos. Desde 1850, marco da Re- níveis de dióxido de carbono (CO2 ) lança- Nações Unidas sobre as Mudanças Climá-
volução Industrial, a intervenção humana dos na atmosfera só aumentam. São mais ticas, a COP28, beira o escárnio. A des-
provocou uma elevação da temperatura de 60 bilhões de toneladas anuais. Neste confiança inicial com o país anfitrião, os
média global de 1,4ºC, segundo o Painel In- ano, a crise não fez distinção entre Emirados Árabes Unidos, um dos maiores
tergovernamental sobre Mudanças Climá- estações, altitudes ou latitudes. Causou em produtores mundiais de petróleo, deu lu-
ticas da ONU, o IPCC. Há oito anos, o Acor- diversos países desastres que redundaram gar ao pessimismo com a confirmação de
do de Paris estipulou a meta de conter o em mortes, destruição e perdas econômi- que o evento, iniciado na quinta-feira 30,

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 46
NESTA Gaza. A sede de vingança
SEÇÃO de Benjamin Netanyahu
ainda não foi aplacada

Raposa. O evento foi “capturado pelo ano antes, a COP26 credenciou 503 rá números de desmatamento mais bai-
lobby dos combustíveis fósseis”, lamenta lobistas. Na COP28, pela primeira vez, o xos, mas terá de explicar por que as popu-
conselheira da Anistia Internacional
cartel dos países petroleiros terá um pa- lações indígenas correm risco. Se temos,
vilhão no evento”, diz. Coordenador do Fó- por um lado, um governo que quer cons-
rum Brasileiro de ONGs de Meio Ambien- truir uma agenda positiva, por outro, te-
tem na programação uma série de debates te (FBOMS), Rubens Born, presente em mos um Congresso doidinho para aca-
para promover a indústria de óleo e gás. Dubai, aponta outro perigo: “Ao país an- bar com a festa”, resume Márcio Astrini,
Nada mais distante do que pensam os fitrião cabe o privilégio de, em caso de im- coordenador-executivo do Observatório
cientistas e ambientalistas, para quem a passe, sugerir um texto alternativo para do Clima, também presente em Dubai.
substituição dos combustíveis fósseis por um acordo. Há o risco de termos um tex-
fontes de energia renováveis é imperativa. to que fala no uso de tecnologias mais lim- Além de ter de explicar outros reve-
“Com um país petroleiro como anfitrião e pas de produção de combustíveis fósseis”. ses, como, por exemplo, o fracasso até
uma agenda de debates que parece legiti- Na contramão do pessimismo geral, o aqui em reduzir o desmatamento no Cer-
mar o uso de combustíveis fósseis, pode- Brasil tem a pretensão de fazer bonito na rado, o Brasil precisa mudar sua postura
mos dizer que a COP começa mais desco- COP. Liderada por Lula e integrada pelos se deseja de fato assumir o papel de lide-
lada da realidade do que nunca”, lamenta ministros Fernando Haddad (Fazenda) e rança ambiental mundial, avalia Astrini.
o ex-deputado Liszt Vieira, coordenador Marina Silva (Meio Ambiente), entre ou- “Uma coisa é o governo dizer na COP que
do Fórum Global da Rio-92. tros, a delegação brasileira vai mostrar ao fez a lição de casa em relação à Amazônia.
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A polêmica atende pelo nome do pre-
mundo os números que apontam a redu-
ção de 22,3% no desmatamento da Ama-
Mas, se deseja liderar a agenda climática,
é preciso ter um posicionamento duro e
sidente da COP28, o executivo Sultan zônia em um ano e projeções ainda me- exemplar sobre o principal problema da
Ahmed al-Jaber, que também é presiden- lhores para 2024. O governo também pre- questão climática hoje, que são os com-
te da Adnoc, a companhia estatal de pe- tende apresentar suas propostas de tran- bustíveis fósseis.” Para o ambientalista, o
tróleo dos Emirados Árabes. Simpático à sição energética e ecológica e de regula- Brasil peca nesse aspecto: “O governo de-
ideia de “exploração ecológica” dos com- ção do mercado de carbono, mas nem tu- veria dizer que não vai mais abrir novos
bustíveis fósseis, Al-Jaber, segundo do- do serão flores. A realidade interna da po- campos de exploração em áreas sensíveis
cumentos obtidos pelo Centre for Climate lítica brasileira está distante dos compro- como a Amazônia, Abrolhos e outras re-
Reporting e publicados pela BBC, preten- missos assumidos globalmente por Lula. giões. E apresentar um cronograma para
de usar a Conferência para realizar reu- Prova disso foi a aprovação, nesta se- a substituição dos combustíveis fósseis.
niões bilaterais com 27 países, entre eles mana pelo Senado, do “PL do Veneno”, Um líder, para exigir algo de seus pares,
o Brasil, para tratar da exploração de pe- que aumenta a farra dos agrotóxicos no também tem de fazer sua parte”, diz.
tróleo e gás. A revelação a poucos dias do País. Outra novidade que pode constran- Born concorda com a avaliação. “O
início do evento motivou a Anistia Inter- ger o governo brasileiro na COP28 é a Brasil vai falar de florestas, o que é im-
nacional a pedir a renúncia de Al-Jaber: possível derrubada, pela Câmara, do ve- portante, mas tem de esclarecer também
“A COP28 foi totalmente capturada pe- to de Lula ao Marco Temporal. “Em certa se vai interromper a exploração do pré-
lo lobby dos combustíveis fósseis, com medida, esses retrocessos desmontam o -sal, se pretende poupar a Margem Equa-
seus interesses particulares que colocam discurso do Brasil. O governo apresenta- torial junto à costa do Amapá”, diz. Para
em risco toda a humanidade. É o clássi- o coordenador do FBOMS, precisa haver
co caso da raposa cuidando do galinhei- coerência entre o discurso e a prática. O
ro”, diz a norte-americana Ann Harrison, mesmo vale para o programa de transi-
conselheira climática da entidade. No comando da ção ecológica: “Esse plano pode dar maior
A ação dos gigantes do petróleo em Conferência do Clima, visibilidade internacional ao Brasil, mas
causa própria não surpreende Vieira. “As precisa ser consistente e começar a ser
Conferências do Clima têm permitido
Sultan al-Jaber também implementado. A Lei Orçamentária de
preside a companhia
COP29/UAE

uma absurda ingerência da indústria de 2024 tem de incluir recursos para essa
combustíveis fósseis. A COP27 credenciou estatal petrolífera finalidade e considerar os instrumentos
636 lobistas nas delegações oficiais. Um dos Emirados Árabes adequados para que ele saia do papel”. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 43
JAQUES WAGNER
Líder do governo no Senado, foi governador da Bahia
e ministro do Trabalho, da Defesa e da Casa Civil

Desafio histórico

mônios, destruídos pelas águas das chu- É diante desse cenário que chegamos à
► Na COP28, temos vas e das enchentes. COP28. Os desafios ambientais estão so-
a urgente missão de O momento em que vivemos é crítico. bre nós como nunca antes e, neste ano, as
As escolhas que faremos na COP28 terão negociações precisam avançar de manei-
construir um pacto global
impactos sobre um mundo que, lamenta- ra categórica e efetiva. Precisamos não
para proteger a natureza e velmente, segue obedecendo a uma lógi- apenas cumprir promessas antigas, mas
erradicar as desigualdades ca que aprofunda cada vez mais as desi- também estabelecer novos acordos, vi-
gualdades. Um estudo publicado pela re- sando um financiamento climático aos
vista Nature Communications estima um países em desenvolvimento.
prejuízo anual de 143 bilhões de dólares, Outro aspecto importante é entender

O
Brasil chega à 28ª Conferência entre 2000 e 2019, em decorrência das como cada bloco se posicionará sobre a
das Nações Unidas sobre Mu- mudanças climáticas. Desse total, 63% criação do Fundo de Perdas e Danos,
danças Climáticas, realizada são “custos humanos monetários”, como aprovado na última edição pelos países
nos Emirados Árabes Unidos, com uma destruição de casas e equipamentos, tra- em desenvolvimento. Contrária ao fun-
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certeza inconteste: o mundo voltou a en-
xergar nosso país como protagonista no
tamentos de saúde e, infelizmente, a per-
da de vidas. Foram registradas mais de
do, a União Europeia busca, agora, um
acordo sem precedentes para eliminar
cenário internacional e como um player 60 mil mortes durante esse período. Ain- gradualmente o uso de combustíveis fós-
global capaz de mediar avanços impor- da de acordo com o estudo, as ondas de seis. Esse tópico é sensível, uma vez que
tantes para o enfrentamento da crise calor no Brasil aumentaram cem vezes, os investimentos dos países do G-20 em
climática. Sob a liderança do presiden- o que parece se confirmar com as notí- combustíveis fósseis atingiram o recor-
te Lula, estamos hoje prontos para cons- cias de recordes de temperaturas em São de de 1,4 bilhão de dólares em 2022, o do-
truir novas parcerias e acordos, abrir Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. bro dos níveis da pré-pandemia.
mercados e atrair mais investimentos Cerca de três quartos dos subsídios ao
com foco na construção de um modelo A Deloitte, uma das principais empre- setor energético foram para carvão, pe-
de desenvolvimento mais sustentável. sas de auditoria do mundo, segue na mes- tróleo e gás. Aproximadamente, 1 bilhão
Nos últimos meses, todos nós senti- ma linha, projetando que, se os padrões de dólares foi destinado aos consumido-
mos na pele os efeitos das mudanças cli- de emissão de carbono atuais forem res, numa tentativa de protegê-los contra
máticas. Recordes de calor quebrados dia mantidos, até 2070 a economia mundial a crise dos preços da energia de 2022, pro-
após dia no Centro-Oeste e no Nordeste, vai perder 178 trilhões de dólares (mais vocada pela invasão da Ucrânia pela Rús-
chuvas e tufões em cidades do Sul, desli- de 840 trilhões de reais). Há, ainda, uma sia, que catapultou o investimento em
zamentos de terra no Sudeste e secas nun- divisão econômica, como mostra o rela- combustíveis fósseis para novos níveis.
ca antes vistas no Norte. Não há um bra- tório Igualdade Climática: Um Planeta, Seja pelo debate sobre aquecimento
sileiro que não tenha percebido o impac- da Oxfam, segundo o qual as emissões global, seja pelos indicadores científi-
to dessa crise no seu cotidiano em 2023. de carbono do 1% mais rico do mundo cos que mostram um futuro trágico, esta
Da mesma forma, não dá para ignorar são equivalentes às dos 66% mais pobres. COP28 é mais que essencial. Temos a ur-
o fato de que os eventos climáticos ex- Segundo a ONU, o planeta está a cami- gente missão de construir um pacto glo-
tremos castigam, sobretudo, os bairros nho do aquecimento de 3°C até o fim des- bal para proteger a natureza e erradicar
mais pobres, com infraestrutura precá- te século. Já atingimos globalmente 1,4°C, as desigualdades. Este é um desafio his-
ria ou deficiente. A crise do clima apro- apontando que as nações precisam cortar tórico que se tornou inadiável e a confe-
funda as desigualdades. Lembro de visi- 22 bilhões de toneladas de carbono equi- rência chega como uma valiosa oportu-
B A P T I S TÃ O

tar o sul da Bahia entre o fim de 2021 e as valente até 2030. Esse valor equivale à so- nidade para que o Brasil e o mundo pos-
primeiras semanas de 2022, e de ver pes- ma das emissões de China, EUA, Rússia e sam enfrentá-lo. •
soas paupérrimas perdendo seus patri- Japão, os maiores poluidores do planeta. sen.jaqueswagner@senado.leg.br

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de
Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai,
e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Complexo de vira-lata

gual com corporações europeias, que têm mentos europeus aqui? Nunca precisa-
► O que o Brasil ganha com superioridade tecnológica, vantagens de mos desse tipo de acordo para sermos o
o acordo entre o Mercosul escala e acesso a crédito em maior volu- maior receptor de investimento direto
me. Empresas que, ademais, contam com da América Latina e um dos maiores do
e a União Europeia?
subvenções dos seus Estados, com gran- mundo. O acordo com os europeus ten-
Não faz sentido insistir de capacidade financeira para apoiá-las. de, inclusive, a reduzir aportes ou pro-
em uma agenda que só As empresas brasileiras, recorde-se, vocar desinvestimentos no Brasil. Para
sofrem com juros extraordinariamente que investir aqui se eles poderão abaste-
interessa aos europeus
elevados, crédito escasso, flutuação da cer o mercado brasileiro a partir das suas
moeda, deficiências de infraestrutura e matrizes, livres de barreiras tarifárias?
logística, entre outros problemas. As ta- Para agravar o quadro, ainda ficaríamos

A
s negociações entre o Merco- rifas de importação, suprimidas por esse seriamente limitados na possibilidade de
sul e a União Europeia para acordo, são uma compensação parcial pe- controlar e tributar as exportações – algo
um acordo econômico abran- los vários fatores que minam a competiti- que pode ser necessário por vários moti-
gente estão entrando no que parece ser vidade da economia nacional. vos, inclusive de segurança, de desenvol-
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a reta final, com representantes do Ita-
maraty e do Ministério do Desenvolvi-
A indústria e a agricultura familiar se-
riam as grandes derrotadas pelo acordo.
vimento da economia e de proteção de in-
teresses estratégicos. Com poucas exce-
mento, Indústria, Comércio e Serviços Um dos seus principais problemas resi- ções, o acordo proíbe restrições quantita-
ansiosos para chegar a um acerto. O pre- de no fato de liberalizar quase completa- tivas à exportação. E, no seu formato origi-
sidente Lula tem declarado que quer fe- mente o comércio daquilo que é produzi- nal, proibia impostos sobre exportações.
char com os europeus até 7 de dezembro, do pelos pequenos agricultores brasilei- Pelo que sei, os negociadores brasilei-
quando passa a presidência do Mercosul ros, o que prejudicaria a produção e o em- ros estão tentando obter dos europeus a
para o Paraguai, mas acrescentou que, prego na área rural. Eles ficariam expos- concordância para a possibilidade de tri-
se não resolver a questão até lá, abando- tos à concorrência desimpedida com im- butar alguns minerais críticos. Se a lista
nará as negociações que se arrastam há portações de bens europeus produzidos, for pequena, vai apenas arranhar o pro-
20 anos. Espero que elas sejam, de fato, não raro, com altos subsídios estatais. blema. Se for uma lista taxativa, não resol-
abandonadas e vou explicar a razão. ve. Com o rápido desenvolvimento da tec-
Os negociadores de Lula cometeram o A pergunta que não quer calar é a se- nologia, o mineral que será crítico ama-
erro de retomar as negociações com os eu- guinte: o que ganha o Brasil se esse acordo nhã, não é percebido como crítico hoje.
ropeus aceitando como ponto de partida vier a ser concluído? Acesso adicional pa- Veja a que ponto chegamos: não temos
um acordo desastroso herdado de Bolso- ra nossas exportações? Muito pouco. Al- qualquer limitação legal para aplicar im-
naro. Colocaram-se, assim, na posição de gumas das principais commodities que ex- postos de exportação. Mas, agora, ficare-
pedintes de ajustes a uma péssima reso- portamos já não enfrentam barreiras na mos reduzidos à posição de pedir aos euro-
lução. Conseguiram levantar poucos pon- União Europeia. E as cotas oferecidas pa- peus a possiblidade de algumas exceções
tos relevantes, não tocando na essência ra alguns produtos agropecuários em que à proibição de tributar. Em troca de quê?
neoliberal do pacto aceito por Bolsonaro. somos competitivos são pequenas e insu- De novo, é a pergunta que não quer calar.
São tão limitados os pontos levanta- ficientes. Quanto às nossas exportações Francamente, não consigo entender co-
dos pelos negociadores de Lula que mes- industriais, a redução das tarifas de im- mo esse acordo continua em pauta. Deve-
mo se fossem aceitos integralmente pe- portação europeias, prevista no acordo, é ríamos seguir os passos da Austrália, que
la parte europeia não resultariam em al- residual, uma vez que a tarifa média eu- abandonou negociações semelhantes em
go minimamente aceitável. Qual a essên- ropeia já é muito baixa, em virtude do ní- razão da intransigência dos europeus. En-
cia do acordo? A eliminação quase total de vel consolidado na Organização Mundial quanto a Austrália age com soberania, o
B A P T I S TÃ O

impostos de importação, abrindo o mer- do Comércio e de acordos de preferência. Brasil vacila diante da União Europeia. •
cado brasileiro a uma concorrência desi- Será que aumentariam os investi- paulonbjr@hotmail.com

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

Dedo no gatilho
ORIENTE MÉDIO Os rumos do conflito
na Faixa de Gaza após a breve
trégua entre Israel e o Hamas
POR SERGIO LIRIO

S
ob a mediação do Catar e a de tevê Al Arabiya, na terça-feira 28, cen-
pressão dos respectivos tenas de jovens palestinos foram presos
aliados, Israel e o Hamas nas cidades de Beitunia e Kafr Ain, a oeste
ofereceram ao planeta de Ramallah. Houve ao menos duas mor-
uma réstia de esperança tes. Um dos principais jornais de Israel,
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durante seis dias. As cenas de carnifici-
na e destruição foram substituídas, de
feroz crítico de Benjamin Netanyahu, o
Haaretz informou que o primeiro-minis-
um lado e de outro, por imagens de reen- tro não estaria disposto a prolongar a sus- Com a imagem interna abalada pelo
contros familiares. Os relatos comoven- pensão dos ataques para além do domin- apoio incondicional à reação despropor-
tes preencheram os espaços nos jornais, go 3, embora nos termos iniciais do acor- cional do governo Netanyahu, o presiden-
sites e tevês. Houve emoção para todos do tenha prometido um dia de trégua a ca- te dos Estados Unidos, Joe Biden, tem en-
os gostos, das crianças israelenses abra- da dez novos reféns libertados. Diploma- viado sucessivos recados a Tel-Aviv. Em
çadas ao cachorro de estimação à jovem tas envolvidos nas discussões declaram- uma mensagem na plataforma X, o anti-
Marah Bakeer, palestina de 24 anos que -se, no entanto, otimistas. Parte desse oti- go Twitter, Biden praticamente pediu o
não via a mãe desde os 16, quando foi pre- mismo apega-se à disposição do Hamas fim do conflito. “O Hamas desencadeou
sa sem motivo pelas forças de segurança de liberar homens e militares, não só mu- um ataque terrorista porque nada teme
israelenses. Bakeer não era o único caso: lheres e crianças, como nos últimos dias. mais do que israelenses e palestinos a vi-
dos 150 palestinos libertados como par- “Temos esperança de poder prolongar o ver lado a lado em paz”, escreveu. “Conti-
te do acordo, 98 haviam sido detidos sem cessar-fogo por mais tempo, até chegar- nuar no caminho do terror, da violência,
nenhum tipo de acusação formal. Ainda mos ao fim total e completo. Estamos da matança e da guerra é dar ao Hamas o
assim, a mídia ocidental insiste em tra- prontos a libertar mais reféns em troca que ele procura. Não podemos fazer isso.”
tar casos semelhantes de maneira dife- dessa extensão”, garantiu Ghazi Hamad, O tuíte relança ainda uma ideia relegada a
rente. Os judeus em poder do Hamas são integrante do gabinete político do Hamas. segundo plano por Washington, a solução
chamados de reféns, os palestinos não de dois Estados, a coexistência soberana
passam de “prisioneiros”. entre Israel e a Palestina. Bastaria a von-
Os efeitos positivos da trégua parecem tade tardia do presidente dos EUA para
estimular os avanços na negociação de ressuscitar um arranjo vitimado pelo con-
um cessar-fogo, apesar de o Hamas lem- Os resultados positivos flito a caminho de completar dois meses?
brar a todo momento que seus militantes do acordo estimulam
permanecem “com o dedo no gatilho” e de Enquanto se manifestava pelas re-
o exército israelense dar com uma mão e
a negociação de um des sociais, Biden enviava Anthony
tirar com a outra – o clima de terror na cessar-fogo, mas a Blinken, secretário de Estado norte-
Cisjordânia permanece, sob aplauso dos vingança de Netanyahu -americano, a um novo tour, o terceiro
colonos judeus. Segundo relatos da rede ainda não foi aplacada desde 7 de outubro, por países do Orien-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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te Médio em busca de uma solução admi- Lampejos de humanidade. As imagens calmente de discurso e aceitasse um acor-
nistrativa para a Faixa de Gaza se e quan- do reencontro de famílias em Israel do definitivo com os “terroristas”. Qual
e na Palestina tomaram o lugar das cenas
do as tropas israelenses decidirem deixar realidade vai se impor? Em meio a turvas
de destruição, barbárie e desespero
o enclave. Uma das propostas na mesa é a negociações e múltiplas possibilidades, só
gestão compartilhada de nações árabes uma coisa parece cristalina: o fim do con-
vizinhas, reunidas em um consórcio pa- flito marcará o fim do reinado de Bibi, o
ra a reconstrução do território. “Traba- Resta ainda convencer Netanyahu mais longevo líder político desde a criação
lharemos para nos basearmos nos prin- e seus aliados de extrema-direita. Até do Estado de Israel, em 1947.
cípios que estabeleci em Tóquio há algu- agora, a dinâmica do conflito mostra A interrupção dos ataques das forças
mas semanas, para o “dia seguinte” em que Tel-Aviv condiciona o comporta- israelenses ao menos deu às autoridades
Gaza, e para encontrarmos os passos que mento de Washington e não o contrário. palestinas uma pausa para dimensionar
nós e os nossos parceiros podemos tomar os estragos. Em entrevista à rede de tevê
na região agora para lançar as bases pa- O premier israelense opera entre for- Al Jazeera, o prefeito da Cidade de Gaza,
ra uma justiça e paz duradoura”, decla- ças antagônicas e maneja seus próprios in- Yahya al-Sarraj, descreveu a destruição.
rou Blinken na escala em Genebra. A um teresses, a despeito dos alertas do aliado “Estamos agora a descobrir quantos da-
FA D EL SEN N A /A FP E E X ÉRCITO D E ISR A EL /A FP

ano das eleições presidenciais, Biden sen- preferencial. O governo de união nacional nos foram infligidos à infraestrutura,
te o peso de suas escolhas de afogadilho. aprovado após os ataques do Hamas de 7 nos centros culturais, nas bibliotecas e
O democrata perdeu apoio substantivo de outubro é uma sobrevida ao contestado nas praças públicas. A sede do municí-
de eleitores tradicionais do partido, espe- primeiro-ministro, mas, em igual medida, pio foi duramente atingida por dois ata-
cialmente jovens e não brancos. Nas mais o obriga a prestar contas a representantes ques. Milhares de documentos impor-
recentes pesquisas, aparece atrás do re- de parcelas da sociedade israelense defen- tantes de valor histórico acabaram des-
publicano Donald Trump no cômputo soras de um cessar-fogo definitivo e de no- truídos”, afirmou Al-Sarraj. “Os danos
geral e em cinco dos seis estados decisi- vas eleições internas. Ao mesmo tempo, são inacreditáveis em toda a cidade. Cer-
vos na disputa. Trump tripudia: chama depois de prometer exterminar o grupo ca de 60% das unidades habitacionais e
o adversário de “frouxo” e “covarde” e se armado palestino e ocupar por tempo in- apartamentos... esses apartamentos não
declara o único capaz de resolver proble- determinado a Faixa de Gaza, Netanyahu são habitáveis neste momento.” A isso se
mas geopolíticos dessa magnitude. ficaria em maus lençóis se mudasse radi- chama de terra arrasada. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 47
Nosso Mundo

Medo, cabo
prensa e pela moderação, mas nas últimas
duas décadas outra corrente esteve pre-
sente: o apoio aos partidos de extrema-di-

eleitoral
reita. O anti-islâmico Pim Fortuyn, assas-
sinado pouco antes das eleições de 2002,
criou um partido homônimo que conquis-

A associação entre tou 26 assentos e participou do governo


antes de desmoronar. O Fórum para a De-
migração e criminalidade garante mocracia, de extrema-direita, teve um
bom desempenho nas eleições provinciais
a vitória da extrema-direita na Holanda e tornou-se o maior partido no Senado em
2019, antes de ter destino semelhante. De
P O R S E N AY B OZ TA S , D E VO L E N DA M
acordo com o professor Tom Louwerse, do
Instituto de Ciência Política da Universi-
dade de Leiden, a extrema-direita holan-

N
desa obteve, em média, de 15% a 20% dos
um shopping center em de preocupação com a imigração, a habi- votos na última década.
Volendam, um porto de tação, o custo de vida e a desconfiança nos
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
pesc a ao nor te de
Amsterdã, na sexta-feira
governos após uma série de escândalos.
Há uma sensação de que nem todos
Em um café próximo, Arjen, 57 anos,
nos Países Baixos têm as mesmas opor-
24, muitos frequentadores disse: “É um voto contra a ordem estabele- tunidades, especialmente entre aqueles
estavam felizes pelo fato de o extremista cida. Eles bagunçaram as coisas”. Na me- que tiveram menos sucesso no sistema
de direita Geert Wilders ter dominado as sa ao lado, o proprietário de uma pousada, de ensino secundário, altamente seleti-
eleições holandesas. “Isso é ótimo”, disse Vincent Veerman, 55 anos, disse que havia vo. O jornalista Joris Luyendijk identi-
Pieter, que não quis dar seu sobrenome. votado em partidos de direita convencio- ficou recentemente “sete pontos”, entre
“Faltam moradias e os migrantes conti- nais, mas agora queria um governo que re- eles melhor educação, ser de raça bran-
nuam a chegar. As fronteiras têm de fe- prima a imigração de “oportunistas”. Ele ca e filho de holandeses, que aceleram o
char.” Na bonita Volendam, há muito um aprovou a “suspensão de asilo” do PVV, ci- progresso de alguém numa sociedade su-
reduto de Wilders, o Partido para a Liber- tando preocupações sobre a criminalida- postamente não hierárquica. O professor
dade (PVV, na sigla em holandês) recebeu de desde que 160 requerentes de asilo fo- Marcel Lubbers, cientista social da Uni-
42,9% dos votos, aumento de 18,6 pontos ram alojados no hotel Van der Valk local. versidade de Utrecht, concorda: “Entre
porcentuais em relação a 2021. Políticos, “O motivo pelo qual votei no PVV é sim- os eleitores de origem imigrante, a gran-
cientistas políticos e o próprio Wilders fi- plesmente para que o governo não apoie de maioria sente que seus interesses não
caram atônitos quando as primeiras pre- Frans Timmermans.” Timmermans é o estão bem representados na política, mas
visões sugeriram a conquista de 37 assen- líder do segundo maior partido do país, o também vemos isso entre um grupo mui-
tos, cerca de um quarto do Parlamento e conjunto Esquerda Verde/Trabalhistas. to grande sem origem imigrante, que vo-
a maior porcentagem histórica. Os Países Baixos são conhecidos pe- ta em partidos anti-imigração”.
Esse político loiro, às vezes chamado de la baixa corrupção, pela liberdade de im- O professor Matthijs Rooduijn, da
“o Trump holandês” e conhecido por seus Universidade de Amsterdã, diz que vê as
comentários inflamados sobre o Islã, pe- eleições como um “terreno fértil para o
los antecedentes criminais por insultos a populismo de direita”. Muitos partidos
marroquinos holandeses e por ter sua en- Não está claro fizeram campanha sobre a imigração, jo-
trada recusada na Grã-Bretanha, chocou gando a favor de Wilders, que liga os mi-
o país. De acordo com resultados provisó-
se Geert Wilders grantes ao crime e aos problemas habi-
rios, o deputado veterano, que vive com se- conseguirá montar tacionais. A pesquisa de Rooduijn sugere
gurança pessoal 24 horas por dia após re- uma aliança para que 15% dos votos do PVV vieram daque-
ceber ameaças de morte, surfa numa onda governar o país les que abandonaram o Partido Popular

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Wilders,
o “Trump
holandês”

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para a Liberdade e a Democracia (VVD), “Não me importa qual é a sua crença – ca- ses. A opção mais óbvia seria uma coli-
do primeiro-ministro Mark Rutte. tólica, protestante, islâmica –, desde que gação de direita entre PVV, VVD, No-
No início da campanha, a nova líder você respeite todas as outras”, afirmou. vo Contrato Social, de Pieter Omtzigt, e
do VVD, Dilan Yeşilgöz-Zegerius, abriu “Temos uma sociedade multicultural.” Movimento Cidadão Agricultor (BBB).
a porta a Wilders, dizendo que não o ex- Embora Wilders seja extremamente de Mas Yeşilgöz-Zegerius disse que não fará
cluiria de uma coligação, como a maioria direita em termos de imigração, ele tem parte do governo Wilders, embora pos-
dos partidos tradicionais tinha feito, dis- políticas populistas para saúde, aposenta- sa apoiar algumas políticas. Omtzigt, de
suadidos pelo seu extremismo. Wilders dorias, salário mínimo e habitação social. centro-direita, anteriormente descar-
respondeu aparentemente adotando “O eleitorado do PVV em geral é composto tava trabalhar com pontos de vista “an-
um tom mais suave. No programa de te- de pessoas que passam por mais dificulda- ticonstitucionais”, mas agora fala vaga-
vê Nieuwsuur, ele disse que poderia colo- des”, disse Rooduijn. “Elas se sentem negli- mente em “assumir responsabilidades”.
car no gelo seu programa político sobre a genciadas. Têm vidas difíceis, economica- O programa de Wilders, que tem me-
proibição de mesquitas, escolas islâmicas mente, mas também culturalmente. E es- tade da extensão dos pontos do VVD, do
e o Alcorão. “A prioridade está em outras sa é uma das razões pelas quais votam num NSC e do Esquerda Verde/Trabalhis-
coisas, tratando-se do próximo perío- partido que promete mudanças radicais.” tas, não teve, porém, custos oficiais e
do de governo”, afirmou, suavemente. contém uma profunda ironia. Os econo-
Isto claramente teve apelo. No lan- Mas será que essa mudança radical mistas do ING, Marcel Klok e Marieke
çamento de sua campanha na cidade acontecerá? Wilders foi o que conquistou Blom, analisaram uma potencial coli-
de Venlo, no sul do país, os eleitores dis- o maior número de assentos e foi convi- gação Wilders-NSC-BBB apoiada por
seram que gostaram da sua mensagem dado a tentar formar uma coalizão. Mas Yeşilgöz-Zegerius. Descobriram que o im-
nativista, mas que por vezes acharam na democracia representativa holande- pacto na economia seria estimulante: “Da-
que ele foi um pouco longe demais. Cin- sa o resultado da negociação está lon- das as atuais tensões no mercado de traba-
JOHN T H YS/A FP

co semanas depois, aqui em Volendam, ge de ser óbvio. Ele pode não acabar co- lho, prevemos que isto resultaria maior de-
Veerman disse que Wilders adotara um mo primeiro-ministro e, se não conse- manda por trabalhadores estrangeiros”. •
tom mais moderado do que os “extremis- guir construir uma coligação, outro par-
tas de esquerda” em relação ao clima. tido poderá tentar. Isso pode levar me- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 49
Plural

A vida sob
sendo arte, não deixa de ser mercado.
Formada em comunicação social pela
Escola Superior de Propaganda e Marke-
ting (ESPM-SP), Carolina começou a vi-

o verniz
da profissional em uma agência de publi-
cidade, como redatora. Em 2007, decidiu,
com uma amiga, dirigir um curta-metra-
gem sobre as prostitutas idosas da Praça
da Luz, no Centro de São Paulo.
CINEMA Carolina Markowicz, premiada nos Embora feito de forma totalmente
festivais de Roma e Toronto, olha para amadora, 69 – Praça da Luz foi selecio-
nado para festivais brasileiros e interna-
a sociedade com sarcasmo e compaixão cionais e, de alguns deles, como Festival
do Rio e Mix Brasil, saiu premiado. “Essa
P O R A N A PAU L A S O U S A
receptividade despertou em mim a von-
tade de continuar fazendo filmes”, diz.
Outros sete anos se passariam até que

D
viesse o segundo curta-metragem, Edifício
Entreurante
ema adolescência,
nosso emgrupo
Bragança Paulista, no inte-
no Telegram: t.me/clubederevistas
tos... É menos divertido do que parece.”
Cameron Bailey, CEO do TIFF, defi-
Tatuapé Mahal (2014), viabilizado com o
Prêmio Estímulo, do governo paulista. O
rior de São Paulo, Carolina niu-a como “uma das diretoras mais des- filme, narrado por um boneco daquelas
Markowicz carregava em si temidas de sua geração”, com “um futuro maquetes de prédios em construção, da-
o desejo de contar histórias. empolgante à sua frente”. Pedágio, antes ria início à sua relação com o TIFF e, efe-
Fazer isso por meio de filmes estava, po- de chegar às salas brasileiras, nesta quin- tivamente, lhe abriria as portas do cir-
rém, longe do seu horizonte. O cinema, ta-feira 30, passou pelos festivais inter- cuito internacional. Seus quatro curtas-
para ela, era a reunião familiar, aos do- nacionais de San Sebastián, Vancouver, -metragens seguintes viajaram por deze-
mingos, com todos vendo filmes juntos. Bordeaux, Toronto e Roma – onde ganhou nas de festivais e Carolina foi, de lá para
Uma das sessões marcantes foi a de Impé- o troféu de melhor filme. Do Festival do cá, selecionada para os mais concorridos
rio do Sol (1987), de Steven Spielberg. Rio, em outubro, saiu com quatro prêmios. laboratórios criativos do mundo, como a
“Já hoje só penso em cinema”, diz, rin- Neste momento em que o cinema bra- Berlinale Talents e o TIFF Filmmaker Lab.
do, e mais resignada que orgulhosa, no sileiro tenta se reconstruir, aqui mes-
início da conversa com CartaCapital, na mo, reconquistando o público perdido O Órfão (2018), sobre um menino de-
semana anterior à estreia de Pedágio. Pre- desde 2020, e internacionalmente, vol- volvido por diferentes pais adotivos que
miada, há dois meses, na categoria “talen- tando a figurar em seleções de festivais não aceitavam seus modos femininos, foi
to emergente” do Festival Internacional importantes, a trajetória de Carolina selecionado para a Quinzena dos Realiza-
Toronto (TIFF), no Canadá, e apontada, é não apenas significativa, mas tam- dores de Cannes e recebeu a Queer Palm.
em festivais e na mídia, como grande re- bém elucidativa das regras do jogo no À altura, ela já estava trabalhando no pri-
velação recente do cinema brasileiro, Ca- cinema independente – que, mesmo meiro longa-metragem, Carvão (2022).
rolina, de 40 anos, tem experimentado, “De repente, não era mais eu, com meu
no lançamento de Pedágio, um novo lu- caderninho, tentando vender meus pro-
gar dentro do mundo do cinema autoral. jetos e ideias. Vinha gente me pergun-
“É um momento de desfrute”, diz, tão “A ideia de cura tar se eu não tinha projetos para apre-
econômica na fala quanto nos roteiros sentar. Senti, ali, que alguma coisa tinha
que escreve. “Ouvir o que as pessoas acha-
gay faz parte da mudado”, conta. Uma dessas pessoas era
ram é, muitas vezes, tocante. O reconhe- distopia em que Karen Castanho, sócia da Biônica Filmes,
cimento também. Mas tem ainda uma vivemos”, diz ela, que acabou por produzir Pedágio, atrain-
tensão nisso tudo: as entrevistas, os even- sobre o seu filme do para o projeto a Globo Filmes, a Para-

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Livro Jorge Baron Biza
SEÇÃO transforma a tragédia íntima
em literatura de primeira

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mount Pictures e a distribuidora Paris – Premiadas. Pedágio, em cartaz nos pasta da Mulher, da Família e dos Direitos
conhecida pelos sucessos de público. No cinemas, é estrelado pela atriz Maeve Humanos, de que a princesa Elsa, do fil-
Jinkings (acima). Carolina (abaixo) filmou
momento, ela tem engatilhados dois ou- me Frozen, era lésbica e por isso vivia só.
o longa-metragem em Cubatão (SP).
tros projetos – um no Brasil, outro fora. A ideia de distopia é espelhada estetica-
Pedágio, um filme de marca autoral e, mente pela paisagem de Cubatão – que se
ao mesmo tempo, direto e emotivo, tem torna, no longa-metragem, uma cidade es-
como tema central a cura gay e, como ce- tranhamente bonita. “Cubatão tem uma
nário, a cidade de Cubatão, onde Suellen placa em que se lê: ‘Cidade símbolo da eco-
(vivida com brilho por Maeve Jinkin- logia’. E a placa está derretida”, descreve.
gs) trabalha como cobradora de pedá- O olhar de Carolina, tanto como dire-
B I Ô N I C A F I L M E S / L U X B O X E G L O B O F I L M E S E C A R LY L E R O U T H

gio. Assim como acontecia em Carvão, a tora quanto como roteirista, é frequente-
trama envolve a prática de um delito por mente definido como ácido e sarcástico.
“pessoas de bem”. O propósito de Suellen, Mas ele carrega também um quê de com-
aqui, é conseguir financiar a “cura” do fi- paixão. E o que é mais difícil: não só pe-
lho, prometida por um pastor estrangeiro. las vítimas, mas por aqueles que, à som-
bra de suas vidas públicas, cometem deli-
“A ideia de cura gay faz parte da dis- tos e atos de violência, tendo como salvo-
topia que vivemos. Os caras, no Congres- -conduto a religião ou certezas caducas.
so Nacional, professam as coisas mais ab- “Nos laboratórios, me disseram mui-
surdas. São coisas ridículas, que a gente tas vezes que o importante era eu encon-
ouve e não sabe se ri ou se chora. Mas eles trar minha voz, independentemente do
estão lá, foram eleitos”, diz. Em entrevis- que achamos que o outro espera ou do
tas fora do Brasil ela costuma dar como que um festival quer, por exemplo”, re-
exemplo do contexto brasileiro a decla- flete. “E tem de ser assim mesmo, senão
ração da ex-ministra Damares Alves, da é enlouquecedor.” Tem dado certo. •

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 51
Plural

Contar para
médico tinha várias maneiras de obser-
var as feridas: ora as raspava, ora aplica-

compreender
va uma lente sobre suas partes mais con-
gestionadas, mas, por fim, sempre acaba-
va confiando no tato”, descreve. A tôni-
ca dessas passagens é um misto de con-
LIVROS No cultuado O Deserto e Sua fiança e resignação, já que é preciso se-
guir as recomendações médicas mesmo
Semente, Jorge Baron Biza procura, sem garantia de sucesso – a lentidão dos
por meio da escrita, elaborar sua tratamentos é exasperante.
Os momentos de distanciamento clíni-
trágica e violenta história familiar co, contudo, são contrabalançados pelos
excessos vividos por Mario do lado de fo-
P O R K E LV I N FA LC ÃO K L EI N ra: “Alta madrugada, Dina e seu amigo me
carregaram até o carro. Tombei no banco
de trás e toda Milão virou um carrossel.

O
Pedi que parassem. Dei uns passos e me
escritor argentino Jorge e outra, Mario escapa dos quartos e dos sentei na calçada”. Essa passagem contém
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Baron Biza (1942-2001)
publicou seu único ro-
hospitais em direção à rua, acumulando
experiências aleatórias e descontínuas
alguns verbos fundamentais para a tare-
fa de descrever a deriva do protagonista:
mance, O Deserto e Sua – bebe como se não houvesse amanhã, ser carregado, pedir para parar, sentar,
Semente, em 1998, em cruza o caminho de indivíduos os mais tombar. Esse caos noturno é, paradoxal-
uma edição que pagou com o próprio diversos, para os quais mente acerca de mente, o que permite a manutenção de
dinheiro. Nesse livro – tornado cult e suas origens e dos motivos que o levam um mínimo de ordem na vida diurna.
agora lançado no Brasil –, ele tenta ela- até o lugar onde está.
borar de forma artística um trauma fa- O registro romanesco de Baron Biza é, O narrador é o primeiro a reconhe-
miliar autobiográfico: no dia 16 de agos- com frequência, técnico e direto. “Nosso cer a necessidade da oscilação entre or-
to de 1964, durante uma audiência de dem e desordem. “As mudanças bruscas e
divórcio, seu pai, Raúl Barón Biza, jo- inesperadas de espaço durante a noite se
gou no rosto de sua mãe, Rosa Clotilde tornaram os únicos marcadores tempo-
Sabattini, um copo de ácido sulfúrico, rais que assinalavam a passagem do tem-
provocando danos irreparáveis. po naquela cidade fosca”, diz. Existem,
Ainda em 1964, seu pai se suicidou. no entanto, momentos do romance nos
Em 1978, foi a vez de sua mãe. Em 2001, quais essa divisão entra em curto-cir-
Jorge completou a sina familiar, tirando cuito – quando Mario precisa se manter
também a própria vida. Como é possível sóbrio para conseguir depilar, com uma
seguir em frente diante de tamanha vio- pinça, a pele nova enxertada como pálpe-
lência? O livro que chega ao Brasil na ex- bra para sua mãe, por exemplo.
celente tradução de Sérgio Molina apre- A necessidade do protagonista de se
senta algumas respostas – todas incom- afastar da mãe é o dispositivo que garan-
pletas e lacunares – para essa questão. te a manutenção do assombro no leitor. A
Quem narra a história é Mario, filho força estética do romance não está apenas
de Eligia e Arón, que atua como uma es- O DESERTO E SUA SEMENTE na descrição do rosto desfigurado – e nas
pécie de secretário da mãe no período Jorge Baron Biza. Tradução: Sérgio frustrantes tentativas de reconstrução –,
de tentativa de reconstituição cirúrgica Molina. Companhia das Letras mas na construção cuidadosa dos efeitos
(253 págs., 74,90 reais)
de seu rosto, pescoço e mãos, que ocor- secundários dessa situação sobre o filho.
re na Itália. Entre uma consulta médica É por isso que O Deserto e Sua Semente

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA

A mãe de Biza
teve o rosto
desfigurado
pelo marido,
pai do autor
Como isso foi possível? Tal questão nor-
teia Baviera Tropical (Todavia, 384 págs.,
89,90 reais), investigação de Betina
Anton resumida no subtítulo: A história de
Josef Mengele, o médico nazista mais pro-
curado do mundo, que viveu quase vinte
anos no Brasil sem nunca ser pego.

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Bernardo Esteves foi colher nos saberes


indígenas, na genética e na arqueologia
as bases de Admirável Novo Mundo (Cia.
das Letras, 504 págs., 104,90 reais), em
que busca contar outra história dos po-
vos americanos – descolonizada e narra-
da sob um ponto de vista sul-americano.

Banana Yoshimoto escreveu Doce


não se resolve exclusivamente na chave lato, algo que garante a permanência his- Amanhã (Estação Liberdade, 128
RAMIRO PEREYRA

da confissão e da autobiografia, por mais tórica de sua obra e o afasta dos atalhos págs., 59 reais) logo após o terremoto e
o tsunami de Fukushima, no Japão, em
que esses sejam elementos centrais da da recompensa rápida, da fragilidade 2011. A trama, não à toa, gira em torno da
narrativa. Existe uma sutileza nessa di- narcísica e da homogeneização dos afe- busca de reconstrução de uma mulher que
mensão oblíqua que Baron Biza dá ao re- tos, tão comuns em nossa época. • foi vítima de um grave acidente de carro.

C A R TA C A P I TA L — 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 53
RITA VON HUNTY
Rita é a persona drag do ator e professor Guilherme Terreri.
Por meio dos estudos culturais, Rita discute
temas sociais com o horizonte da emancipação radical

Os presídios e o lucro

Entre os anos de 2011 e 2017, por exem- populações jovens, negras e masculinas
► Entre os riscos plo, a letalidade policial do estado de São substitui, de forma perversa, qualquer
envolvidos na Paulo quase dobrou, segundo os dados a política pública de reparação para essas
Secretaria de Segurança Pública, fazendo populações em países que se valeram de
privatização de de 2017 o ano com maior número de homi- mão de obra escravizada para construir
presídios está o retorno cídios cometidos pela polícia, desde que suas economias.
do brasileiro pobre, a série histórica computava esses dados. A privatização dos presídios agrava a
Não chega a espantar que seu entendi- lógica perversa, uma vez que transfere
preto e periférico às mento de progresso inclua, por exemplo, recursos públicos à iniciativa privada,
condições de trabalho o retorno do brasileiro pobre, preto e pe- incentiva a continuidade do encarcera-
análogas à escravidão riférico às condições de trabalho análo- mento desses grupos e abre margem pa-
gas à escravidão. ra a possibilidade de superexploração de
Embora possa parecer um recurso di- sua mão de obra em trabalhos forçados
dático equacionar a privatização de pre- dentro da prisão.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas
D
eve ser recebida como indigna sídios com a escravidão, sinto em infor- No Brasil, o fenômeno do encarcera-
e absurda a realidade que nos mar que a retórica não é meramente alu- mento em massa da população jovem,
força a debater, no Brasil, sob siva, mas também denotativa de um ce- negra e periférica acentuou-se durante
um governo dito progressista, a priva- nário distópico que se vai construindo as gestões petistas. O ano de 2014 marca
tização de presídios. A medida de priva- diante dos nossos olhos. a chegada da população carcerária brasi-
tizar presídios como política pública foi Rios de tinta, anos de pesquisa e as ex- leira à marca de terceira maior do mundo.
definida como “prioridade” pelo nosso periências fracassadas de outras privati- Entre 2002 e 2014, por exemplo, o
vice-presidente, Geraldo Alckmin, qua- zações do sistema penitenciário já ergue- crescimento carcerário foi de mais de
dro histórico da direita no País. ram a compreensão de que esta “solução” 620%, enquanto o populacional foi em
Em decreto assinado em abril deste ano, é uma artimanha para ganhos privados torno de 30%, segundo dados do Con-
Alckmin defende tais privatizações como em detrimento da esfera pública. selho Nacional de Justiça (CNJ). Já o fe-
“projetos de investimento considerados nômeno da privatização, que não havia
como prioritários na área de infraestrutu- Acredito que dentre os trabalhos se concretizado nos governos do golpis-
ra ou de produção econômica intensiva em mais célebres e canônicos desse campo ta Michel Temer e do fascista Bolsonaro,
pesquisa, desenvolvimento e inovação”. estejam aqueles produzidos pela aboli- encontrou na gestão Lula-Alckmin os be-
Talvez valha lembrar àqueles de me- cionista penal marxista Angela Davis e nefícios para acontecer.
mória curta que o vice-presidente esteve pela pesquisadora de Harvard e ativista O diretor do Instituto Brasileiro de
à frente da gestão do governo do estado Jackie Wang, respectivamente em Esta- Ciências Criminais (IBCCRIM), Bruno
de São Paulo durante quase 15 anos, sen- riam as Prisões Obsoletas? (2003) e Capi- Shimizu, ainda aponta o leso aos cofres
do o político que por mais tempo coman- talismo Carcerário (2022). públicos que a privatização representa-
dou o governo paulista desde a redemo- Ambas as autoras dedicaram par- ria. Cada detento chega a custar três ve-
cratização do País. te significativa de suas vidas à pesqui- zes mais ao Estado, quando sua vida é ge-
Durante suas gestões no estado não fal- sa dos sistemas de vigilância e punição rida pela inciativa privada.
taram casos de truculência e violência po- nos Estados Unidos e à demonstração de Causa revolta ver a tragédia perversa e
licial (Pinheirinho), escândalos de cor- que seu funcionamento é indissociável anunciada para a qual o governo da fren-
rupção (merenda escolar), má adminis- das demandas e das lógicas de acumula- te ampla caminha. Depois haverá quem
B A P T I S TÃ O

tração (crise hídrica) e associação com fi- ção dentro do capitalismo. se surpreenda em ver eclodirem os ovos
guras asquerosas do cenário político (Ri- Davis e Wang são enfáticas em defen- da serpente. •
cardo Salles). der que o encarceramento em massa de redacao@cartacapital.com.br

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Plural

Crônicas de
tempos difíceis
MÚSICA O MAIS NOVO DISCO DE CHICO BUARQUE NASCE DE UM Nas plataformas.
SHOW PENSADO COMO UMA FORMA DE RESISTIR À CRISE DO PAÍS Que Tal Um Samba – Ao Vivo
traz o compositor ao lado
POR SÉRGIO MARTINS
da cantora Mônica Salmaso

da é um dos principais cronistas musicais


do País. Seja em canções pontuais como
Bancarrota Blues e Que Tal Um Samba?,
seja na abordagem figurada – casos de Meu
Guri e João e Maria –, ele expressa opiniões
e elabora críticas e demonstra esperança.
Entre em nosso grupo no Telegram: t.me/clubederevistas Historicamente avesso ao palco, Chi-
co teve, em Mônica Salmaso, uma com-
panheira dos sonhos. Embora não negue
a admiração rasgada pelo autor, ela por-
ta-se em pé de igualdade, seja nas inter-
pretações solo – sua versão de Beatriz é
de arrancar lágrimas –, seja nos duos –
caso de Biscate, que acabou por se tornar
um tributo a Gal Costa.

Chico e Mônica são ladeados por uma


banda magnífica, comandada por Luiz
Cláudio Ramos (violão e direção musical),
Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico
Batera e Jurim Moreira (percussão e bate-

Q uando Chico Buarque caiu na


estrada com a turnê de Que Tal
Um Samba?, dia 6 de setembro
de 2022, em João Pessoa (PB), o Brasil vi-
melhores viriam. Logo no início do show,
Mônica cantava: Todos juntos somos for-
tes/ Somos flechas, somos arco/ Todos nós
no mesmo barco/ Não há nada para temer.
ria), Jorge Helder (baixo e bandolim), João
Rebouças (piano e cavaquinho) e Marcelo
Bernardes (saxofone, flauta e clarinete).
E nessa avenida em que nos acostu-
via “uma página infeliz da nossa histó- O disco Que Tal Um Samba? – Ao Vi- mamos a ver passar, entre as agruras da
ria”. Mais que uma performance de um vo, que chegou na sexta-feira 24 às plata- realidade, um samba popular, Mônica,
dos maiores compositores do País, Chico, formas de streaming e em breve terá uma em Maninha, ainda nos oferece o prazer
que dividia o palco com Mônica Salmaso, edição física, foi gravado em tempos me- de ouvi-la dizer: Que um dia ele vai embo-
apresentava um hino de resistência. nos nebulosos, durante as apresentações ra, Maninha/ Pra nunca mais voltar. No
Boa parte das três dezenas de canções do compositor, Mônica e banda em feve- show, o ponto alto era quando ela simula-
enfileiradas durante o espetáculo faziam reiro deste ano, no Rio. Mas o manifesto va um chute ao entoar esses versos. Que
L E O AV E R S A

referência, direta ou indiretamente, à si- político continuava firme. chegue logo a versão em DVD, prevista
tuação política do País. Mas apontavam, Embora o repertório autoral de Chico para o primeiro semestre de 2024, pa-
acima de tudo, para a crença de que tempos tenha se esvaído ao longo dos anos, ele ain- ra que possamos todos ver esta cena. •

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AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Chega de selvageria

to deve ser, para eles, incompreensível. violência, sabe-se que existem episódios
► A violência entre Vale relembrar o recado deixado por anteriores que motivam essas reações.
torcidas pede uma João Saldanha, o mais lúcido dos obser- Daí a necessidade de um pacto nacional
vadores do futebol brasileiro: “Vão acabar entre as torcidas. Chega de selvageria.
urgente tomada de matando a galinha dos ovos de ouro”. Outro tema que se tem mostrado ines-
posição dos dirigentes Outro assunto que é desgastante, mas capável, na seara futebolística, é o das So-
e do Poder Público do qual não podemos escapar, é o do des- ciedades Futebol Empresa (SAFs). Na colu-
crédito nas instituições e a violência fre- na da semana passada, lembrei das posições
brasileiros quente nos estádios. independentes dos dois clubes de maior
Tivemos esta semana a notícia de que torcida entre nós, Corinthians e Flamengo.
a Federação Internacional de Futebol Pois bem, nesta mesma semana, em

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excitação dos torcedores no Associado (Fifa) entrará em campo pa- reunião do Conselho do Flamengo, o
Campeonato Brasileiro, em to- ra apurar as responsabilidades pelas ce- atual presidente, Rodolfo Landim, defen-
das as divisões, vai chegando ao nas violentas presenciadas no jogo Brasil deu a transformação do clube em SAF,
ponto mais alto nestes dias. Vamos, afi- vs. Argentina, pelas eliminatórias da Co- argumentando que foi por esse caminho
nal de contas, chegando às disputas de- pa do Mundo, no Rio de Janeiro. que “ganhou dinheiro”.
terminantes dos primeiros e últimos lu- Este é um tema do qual não se pode De quebra, Landim criticou o forma-
gares – embora alguns times já tenham desviar a atenção porque se trata de al- to das empresas do Vasco e Botafogo, que
decretada a amargura do rebaixamento. go muito grave. Precisamos de um traba- levaram os clubes a perder, por comple-
Nesse contexto, o treinador argentino lho de formação do público. Talvez seja to, a autonomia sobre o futebol.
Eduardo Coudet, do Internacional gaú- o caso até de se estabelecer uma campa- Sabemos todos que o dinheiro sempre
cho, junta-se ao coro dos que têm se ma- nha massiva, feita pelo próprio Estado. acaba por chegar em todas as atividades
nifestado a respeito do calendário insa- que soam como bons negócios. Com o fu-
no do esporte. A abertura da próxima temporada de tebol não será diferente.
Falo com frequência nos efeitos do ex- jogos pode ser uma boa oportunidade pa- Mas isso não significa que as SAFs não
cesso de jogos sobre os jogadores, mas os ra uma tomada de posição. É uma lástima precisem ser debatidas e regulamentadas.
treinadores talvez sejam até os que mais que torcedores de clubes de trajetórias Cabe lembrar, inclusive, que tramita
sangram nesse processo, especialmen- tão semelhantes, como Santos e Botafo- no Senado Federal um Projeto de Lei
te aqueles mais “neuróticos”, que se es- go, tenham desempenhado papel vergo- (PL 2978/23), que altera e acrescenta dis-
falfam feito loucos e, em todos os jogos, nhoso depois do último jogo entre ambos. positivos à lei de 2021, que oficializou es-
são vistos praticamente “à beira de um A briga generalizada entre as duas tor- se modelo no País.
ataque de nervos”. cidas aconteceu na Rodovia Presidente Nada se comenta, no entanto, sobre ou-
É evidentemente o caso do português Dutra, na altura de Belford Roxo (RJ). tras iniciativas ligadas ao funcionamento
Abel Ferreira, à frente do Palmeiras. Mas Até uma viatura da Polícia Militar, que do futebol, como os grupos Liga do Forte
não só o dele. Para aqueles que vêm de fo- fazia a escolta dos ônibus dos santistas, Futebol (LFF) e Liga Brasileira (Libra).
ra e não estão adaptados aos usos e cos- foi atacada. Chegou a ter troca de tiros. Outra problemática ligada ao futebol
tumes brasileiros, deve ser de fato ator- Outra manifestação lastimável foi que merece atenção por parte dos nossos
doante se meterem nessa casa de loucos aquela de torcedores do Vasco, que distri- legisladores é a dos sites de apostas, que
que é o nosso futebol. buíram cartazes, no entorno de São Januá- proliferam em quantidade estarrecedo-
B A P T I S TÃ O

Parte da tensão se deve, inclusive, à rio, com ameaças aos corintianos que vie- ra e que podem ameaçar a credibilidade
troca de treinadores a qualquer sequên- ram ao Rio para ver o jogo da terça-feira 28. dos nossos campeonatos. •
cia de resultados negativos. Esse hábi- Embora não haja nada que justifique a redacao@cartacapital.com.br

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DRAUZIO VARELLA
Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento
da Aids no Brasil. É autor, entre outras obras, de Estação
Carandiru, vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção em 2000

Insegurança alimentar

cazes sejam adotadas para combatê-la. corporações foi responsável por mais de
► Embora sejamos um As guerras agravam a insegurança ali- 40% da inflação, apenas na área do euro.
dos maiores exportadores mentar, não apenas pelas plantações e os No livro Poverty and Famine, publicado
estoques de provisões que são destruídos em 1981, o economista e filósofo Amartya
mundiais de alimentos, ou desapropriados, mas pelas sanções fi- Sen, professor da Universidade Harvard
voltamos a conviver com nanceiras internacionais usadas como escreveu: “A fome não é necessariamente o
a fome, que aflige hoje arma para punir um dos lados e forçá-lo resultado da falta de alimentos, mas é cria-
aceitar negociações de paz. da pela ação e as escolhas da sociedade”.
33 milhões de brasileiros O relatório apresentado às Nações Uni- Somos um dos maiores exportadores
das também analisou os efeitos das crises mundiais de alimentos. Apesar dos avan-
econômicas mundiais no consumo de ali- ços na incorporação de tecnologia nessa

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ONU estima que 220 milhões mentos. O impacto é muito desigual, co- área, nos últimos anos voltamos a convi-
de pessoas vivam em insegu- mo revelaram estudos do Banco Mundial ver com a fome, que hoje aflige cerca de
rança alimentar. que avaliaram os efeitos da inflação de 33 milhões de brasileiros.
No United Nations Summit de 2015, os preços dos alimentos, em abril de 2023. Esse número deixa evidente o aspec-
líderes mundiais reunidos em Nova York Enquanto nos países da OCDE houve to mais cruel da sociedade em que vive-
assinaram um documento no qual assu- queda média de 12% nos preços pagos mos: a insensibilidade diante do sofrimen-
miram o compromisso de acabar com a pelos consumidores, no Líbano, Egito e to alheio. Aceitamos que tantas crianças
desnutrição e a fome até 2030. Esse do- Zimbábue ocorreram aumentos de 81%, e adultos passem fome, como se nada pu-
cumento fez parte dos Objetivos de De- 27% e 30%, respectivamente. desse ser feito para dar fim a essa tragédia.
senvolvimento Sustentável. O combate à fome tem de ser priorida-
Dados do World Food Programme e Essa desproporcionalidade foi agra- de nacional. Não é possível que um país ri-
da FAO mostram com clareza a relação vada por dois fatores principais: a pande- co e desenvolvido como o nosso deixe sem
existente entre dificuldade de acesso à mia de Covid-19 e a guerra da Ucrânia. comer milhões de habitantes. O custo pa-
alimentação e a violência em suas várias Antes da deflagração do conflito, Rússia ra alimentar uma pessoa com os nutrien-
formas: sexual, racial, religiosa, urbana, e Ucrânia eram responsáveis por cerca de tes mínimos para cumprir as necessida-
política ou de gênero. um terço da produção mundial de trigo. des energéticas do organismo é insignifi-
A história da humanidade é repleta O aumento dos preços dos combustí- cante, comparado ao dos gastos que os go-
de exemplos de que os conflitos arma- veis tem impacto negativo no acesso dos vernos e as pessoas esbanjam com o des-
dos são causas primárias de desnutri- mais pobres aos alimentos. No caso do perdício irresponsável e o luxo nababesco.
ção e epidemias de fome. É o que acon- gás de cozinha, a relação é direta: quan- A falta de recursos financeiros é des-
tece neste momento em países como to mais caro, menos famílias conseguem culpa esfarrapada construída para ali-
Etiópia, Sudão, Afeganistão, Mali e Síria. cozinhar em casa. A consequência é que viar nossas consciências: mesmo multi-
A comunidade internacional ainda passam a depender do consumo de in- plicando o preço das três refeições diá-
não se convenceu de que é preciso im- dustrializados. rias por 33 milhões, a conta ainda repre-
plementar políticas imediatas para agir Ao perceber que a população não en- senta uma ninharia para a décima econo-
contra a escassez de víveres, assim que contra outras alternativas por causa do mia do mundo.
as guerras eclodem. Os últimos acon- custo do gás, a indústria alimentícia au- A insegurança alimentar e a fome en-
B A P T I S TÃ O

tecimentos na Faixa de Gaza nos mos- menta os preços e a inflação cresce ainda tre nós não são fatalidades inevitáveis,
tram como a fome se dissemina aos mais. Cálculos do Fundo Monetário Inter- mas escolhas políticas. •
olhos do mundo, sem que medidas efi- nacional (FMI) revelaram que o lucro das redacao@cartacapital.com.br

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VENES CAITANO

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