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NATIONALGEOGRAPHIC.

PT | DEZEMBRO 2018

CAÇADORES
DE
BÍBLIAS
E M B U S C A D E A N T I G O S T E X TO S S AG R A D O S

N.º 213 MENSAL €4,95 (CONT.)


00213

603965 000006

CEM ANOS DEPOIS P UM A S DA A CRISE DO


D O F I M DA G U E R R A PATAG Ó N I A Ó L E O D E PA L M A
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C DEZEMBRO 2018

S U M Á R I O

Na capa

2
Caçadores de bíblias
Na fronteira difusa entre
36
Ecos da Grande Guerra
Um século após o fim
Neste rolo de uma Tora
com várias centenas de
anos, vê-se uma
passagem do Êxodo.
PAOLO VERZONE; COLECÇÃO VAN
KAMPEN, EXPOSTA EM THE HOLY LAND
EXPERIENCE, ORLANDO, FLORIDA (EUA).

arqueologia e religião, da Primeira Guerra


cientistas, coleccionadores e Mundial, as marcas da cruel
oportunistas tentam, numa contenda permanecem
corrida vertiginosa, localizar vivas na paisagem e na
textos sagrados antigos memória colectiva dos
e valiosos. cenários onde se desenrolou.
T E X TO D E RO B E RT D R A P E R TEXTO DE VICTOR LLORET BLACKBURN
F OTO G RA F I A S F OTO G RA F I A S D E
D E PA O L O V E R Z O N E MICHAEL ST MAUR SHEIL

PAOLO VERZONE (EM CIMA)


R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

C A R TA D O

56
Os pumas da Patagónia
Para os criadores de ovelhas
PRESIDENTE

A S UA F OTO

VISÕES
desta região do Chile, os pumas
são um pesadelo que ameaça o EXPLORE
gado. Para os turistas, são uma Casa da Medusa em Alter
atracção. Um projecto inovador O poder da saliva
pretende criar condições para que Treino intenso para a vida
estes felinos sejam tão valiosos em Marte
para a economia como o são para
a conservação do ambiente.
GRANDE ANGULAR
T E X TO D E E L I Z A B E T H R OY T E
Jogos de tabuleiro
F OTO G RA F I A S D E I N G O A R N DT

E D I TO R I A L

66
A crise do óleo de palma
O óleo de palma é um dos produtos
I N ST I N TO BÁ S I C O

N A T E L E V I SÃO

mais procurados do mundo, mas a ÍNDICE 2018


sua produção causa desflorestação e
danos ambientais em muitos países P RÓX I M O N ÚM E RO
asiáticos. Em África, o Gabão tenta
pôr em marcha um modelo de
produção que assegure também a
conservação das florestas primárias.
T E X TO D E H I L L A RY R O S N E R
F O T O G R A F I A S D E D AV I D
G U T T E N F E L D E R E PA S C A L M A I T R E

92
Comunidade baleeira
Para os inupiat, uma comunidade Envie-nos comentários
indígena do Alasca, a vida gira em para nationalgeographic
torno da caça à baleia. Esta @ rbarevistas.pt
actividade praticada durante Siga-nos no Twitter em
milénios fascinou o fotógrafo Kiliii @ngmportugal
Yüyan, que passou dez meses Torne-se fã da nossa página
junto desta comunidade para de Facebook: facebook.
documentar as tradições com/ngportugal
ancestrais remanescentes. Mais informação na nossa
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DE CIMA PARA BAIXO: INGO ARNDT; PASCAL MAITRE; KILIII YÜYAN


D E Z E M B R O | C A RTA D O P R E S I D E N T E

TRACY R.
Comprometidos com um
planeta em equilíbrio
WOLSTENCROFT

Jane Goodall cos-


A C O N S E RVAC I O N I S TA
tuma dizer: “Só nos importamos quando
percebemos. Só ajudamos quando nos
importamos.” Há 130 anos que a National
Geographic Society (NGS) inspira gera-
ções a compreenderem e a cuidarem do
nosso planeta.
Esse legado duradouro sublinha o
nosso papel enquanto agentes de
mudança que iluminam as maravilhas
do nosso mundo, identificam as ameaças
e apresentam soluções. Actualmente, o
nosso objectivo é catalisar acções para
equilibrar o planeta.
O mundo que celebramos está agora a
alterar-se de formas que os nossos funda-
dores jamais poderiam imaginar. Quando
a NGS foi criada, em 1888, havia cerca de
1,5 mil milhões de pessoas na Terra. Agora,
existem mais de 7,6 mil milhões. As ques-
tões que enfrentamos são significativas:
uma corrida por recursos para alimentar
a crescente população global, um planeta
em aquecimento e uma perda de biodi-
versidade sem precedentes.
O trabalho rumo a um equilíbrio que
responda às necessidades humanas e dos
incontáveis milhões de outras espécies
com as quais vivemos será o maior desa-
fio do nosso século. Enquanto organiza-
ção global sem fins lucrativos, a National
Geographic Society está comprometida
com o desafio.
Aproveitaremos o poder das parcerias
para apoiar os melhores cientistas, explo- organizações com interesses semelhantes,
radores, conservacionistas, educadores que acreditam na nossa missão, valorizam
e contadores de histórias do mundo, pes- o mundo natural e estão determinadas a
soas ousadas com ideias transformadoras protegê-lo para as gerações vindouras.
que impulsionam a inovação para garan- Como novo presidente e director-geral
tir um futuro saudável e sustentável. da National Geographic Society, sinto-me
Investiremos nas ferramentas, tecnologia profundamente inspirado pela nossa mis-
e formação para capacitar a nossa comu- são. Estou confiante de que, trabalhando
nidade internacional de exploradores e juntos, podemos avançar em direcção ao
inovadores para iniciar a mudança. E, em objectivo final: um planeta em equilíbrio.
conjunto com os nossos parceiros estra- Esperamos que se junte a nós.
tégicos, atingiremos soluções baseadas
na ciência para proteger o nosso planeta.
O nosso sucesso depende da expansão
de um público global informado, cidadãos, Tracy R. Wolstencroft, presidente e
decisores, empresas, fundações e outras director-geral da National Geographic Society

MARK THIESSEN
V I S Õ E S | A SUA FOTO

A SUA FOTO
Entretantoabordo
F OTO G R A F I A S DA N O S SA C OMU N I DA D E

QUEM
Em Março de 2015, Catarina, Jorge e os seus três filhos
Jorge Maria, engenheiro
embarcaram numa aventura: decidiram velejar pelo
mecânico, e Catarina Freitas,
engenheira de ambiente mundo a bordo do El Caracol. Tudo começou em Santa
ONDE Lúcia (Antilhas) sem grandes planos, até porque a expe-
Tetamanu, ilha de Fakarava, riência de estar num espaço tão pequeno era reduzida.
arquipélago das Tuamotu,
Exploraram vagarosamente as ilhas das Caraíbas durante
Polinésia Francesa
EQUIPAMENTO
um ano e meio, seguindo depois para o Panamá, atraves-
Go Pro Hero 3+ sando o canal em 2017. Nesse ano, fizeram uma travessia
de 29 dias no oceano Pacífico até chegarem à Polinésia
Francesa. Sempre em busca dos locais remotos e afastados
dos roteiros, a tripulação viveu uma experiência inigua-
lável na pequena vila de Tetamanu, no arquipélago das
Tuamotu em Novembro de 2017. “É um local conhecido
pela presença constante de centenas de tubarões”, conta
Catarina. “Mal chegámos ao ancoradouro, uma mancha
de peixes aproximou-se do El Caracol para investigar.
Atrás dos peixes, vieram alguns tubarões-cinzentos
curiosos com tanto movimento. Apesar de territorial,
esta espécie não é agressiva para os humanos, de tal
maneira que saltámos para a água.”

Acompanhe a viagem em www.entretantoabordo.com


V I S Õ E S | A SUA FOTO

A SUA FOTO
Adérito Valentim
F OTO G R A F I A S DA N O S SA C OMU N I DA D E

QUEM
Testemunho do engenho e arte da arquitectura popu-
Adérito Valentim, software
lar, o cais palafítico da Carrasqueira, no concelho de
developer, natural da
Figueira da Foz Alcácer do Sal, é um dos locais mais visitados pelos
ONDE fotógrafos. Quase sete décadas depois da sua construção,
Carrasqueira, Alcácer do Sal mantém a função de permitir o acesso dos pescadores
EQUIPAMENTO às suas embarcações, mesmo durante a baixa-mar.
Drone DJI Spark O fotógrafo adquirira recentemente um drone e mos-
trava-se desejoso de o testar. Transportou o engenho
para a Carrasqueira e ficou abismado com as linhas do
local, vistas da perspectiva de uma ave. “Ao passearmos
ao longo do cais, ficamos com a sensação de estarmos
num pequeno labirinto. Visto de cima, porém, este
tem uma estrutura mais simples e geométrica, quase
semelhante às marcações de um estacionamento em
espinha””, diz o autor.

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V I S Õ E S
Quénia
Estes dois leões fazem parte do
grupo Athi do Parque Nacional de
Nairobi. Enquanto caça, a progeni-
tora esconde-os junto de um tronco,
onde estes se podem abrigar de um
eventual predador. As leoas podem
ausentar-se por poucas horas ou por
vários dias. Nesses períodos, as crias
não se separam, nem se afastam do
ponto de encontro.
JOSÉ FRAGOSO
Portugal
Perto de Moura, uma plantação de
melão usa mangas de plástico depois
da semeadura. Gera-se assim mais
humidade para o melão crescer
neste sistema de rega gota-a-gota.
A fotografia faz parte de um
projecto sobre a agricultura das
novas e velhas plantações no
Alentejo após a construção do
sistema de regadio do Alqueva.
ANTÓNIO CUNHA
Portugal
Nos últimos anos, a cratera
submersa do vulcão do monte da
Guia, no Faial (Açores), tem vindo a
revelar-se uma Área Marinha
Protegida de sucesso. Nos limites
deste santuário rico em biodiversi-
dade, um mero de porte impo-
nente patrulha as águas cristalinas
de um desfiladeiro.
JOÃO RODRIGUES
Encontre estas e outras fotografias em nationalgeographic.pt
E X P L O R E

QUE NOS RODEIAM

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

ALEXANDRE E OS GUERREIROS FRÍGIOS


O general é representado com o
inconfundível penacho no capacete
e as proporções exageradas (apesar
de se saber que seria de baixa estatura,
é a figura mais alta do mosaico).

Deus-rio Hidaspes
A divindade que simboliza
o rio onde se travou
a batalha. Ficava então em
território indiano – hoje
é no Punjab paquistanês.

TEXTOS E FOTOGRAFIA: HUGO MARQUES. FONTE: JORGE ANTÓNIO, CÂMARA MUNICIPAL DE ALTER DO CHÃO.
MEDUSA O GUERREIRO VENCIDO
A divindade O semblante de Meroé
marinha que dá (ao centro), amigo de Poro,
nome ao sítio expressa as marcas da derrota.
arqueológico São indeterminados os
soldados que o ladeiam:
poderão pertencer ao exército
de Alexandre ou ao de Poro.

O DEUS OCEANO
Figura igualmente
num mosaico da
mesma época
encontrado em Faro.
Personifica a água
que cerca o mundo
e era o pai de
todos os rios.

O REI INDIANO PORO


Semiflectido, aceita a derrota.
Receberá mais tarde de
Alexandre a devolução do trono.

ALEXANDRE, O GRANDE , É UMA DAS PERSONAGENS HISTÓRICAS que o tempo divinizou. Em 336 a.C., com 20 anos
de idade, foi coroado e perseguiu o sonho do seu pai, Filipe II, de expandir o território macedónio. No
ímpeto de conquista, chegou ao subcontinente indiano, onde travou a batalha de Hidaspes (326 a.C.). Em
2007, o arqueólogo Jorge António, da autarquia de Alter do Chão, descobriu um importante mosaico na
Casa da Medusa, uma villa romana conhecida pelos arqueólogos desde 1954. Datado do século IV d.C.
(Baixo Império Romano), o mosaico está implantado numa casa que pertenceu a um oficial romano que
terá provavelmente participado em campanhas militares na Ásia. É um dos cinco conhecidos no mundo
que retrata Alexandre e é o único ainda in situ. Na batalha, as forças de Alexandre derrotaram o rei indiano
Poro. Apesar da vitória, Alexandre, agora imperador da Ásia, reconhecendo as qualidades guerreiras de
Poro, devolveu-lhe o trono e aumentou o território sob seu controlo. Em breve, a Casa da Medusa exibirá
um filme de realidade virtual sobre este importante mosaico. — H U G O M A R Q U E S
E X P L O R E | C U LT U R A

O poder da saliva
ser a solução para muitos tra-
P O D E R Á U M P R O D U T O C O M O A S A L I VA
balhos de conservação e restauro de obras de arte? A resposta está na
Divisão de Património Móvel, Imaterial e Arqueológico dos Açores. Ali
jaz uma pintura de grandes dimensões, encostada à parede, deixando
um anjo rosado estranhamente de pernas para o ar. A grande tela de
anjos turibulares em restauro, de finais do século XVII, provém da Igreja
do Colégio, em Angra do Heroísmo, e foi retirada na sequência imediata
do grande sismo de 1 de Janeiro de 1980, receando-se réplicas e conse-
quente derrocada dos edifícios mais fragilizados.
Os investigadores Paula Romão, Adília Alarcão e César Viana receberam inesgotável
em 2018 o prémio internacional IgNobel, atribuído na Universidade de A conservadora-
Harvard. Trata-se de um galardão que premeia investigações científicas restauradora Eugénia Silva
bizarras, mas válidas. A equipa provou que a saliva, pelas propriedades humedece o cotonete num
químicas que apresenta (de que se destaca a acção da enzima amílase) pouco da saliva que
actua com eficácia na remoção de sujidade em vários suportes, sem deixar depositara na palma
da mão e começa a
resíduos, sendo particularmente adequada para pinturas a óleo.
desenhar movimentos
Naturalmente, nem todas as salivas são igualmente e capazes. No circulares sobre o rosto do
âmbito do seu projecto de investigação, Paula Romão testou saliva de anjo. A área do queixo
diferentes indivíduos. Uma das conclusões é que a sua adequação para evidencia claramente a
limpeza depende do pH e que, por sua vez, este é bastante variável – com capacidade de limpeza da
a hora do dia, alimentação e consumo de tabaco e álcool, entre outros. saliva natural que, além de
inesgotável e gratuita,
Curiosamente a saliva é um dos compostos orgânicos utilizado para este
apresenta vantagens sobre
fim, mas não o primeiro. Ao longo da história, outros foram aplicados na muitos solventes químicos,
limpeza de obras de arte - com variáveis graus de sucesso – como a urina, prejudiciais a certo tipo
a batata, a cebola, o vinho branco e o óleo de linhaça. de pinturas.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO LUÍS CAMPOS


E X P L O R E | MARTE

treinam em simuladores de voo, recen-


TA L C O M O O S P I L O T O S

Treino intenso temente, futuros exploradores do espaço treinaram técnicas de


sobrevivência durante uma simulação no deserto de Oman. Um
grupo de cientistas austríacos organizou o exercício de três semanas.

para a vida Os seus “astronautas” dispunham de equipamentos de protecção


apropriados à atmosfera de Marte (em cima) e fatos espaciais tão
pesados quanto seriam na gravidade de Marte (cerca de 38% da da
em Marte Terra). A tripulação realizou 15 experiências solicitadas por escolas
e outras instituições em todo o mundo, usando veículos operados
por controlo remoto equipados para procurar água e mapear o
terreno. Em conversas de rádio com o seu “controlo de missão” em
FOTOGRAFIA DE Innsbruck, a tripulação de Oman registou atrasos (propositados) de
ROBERT ORMEROD
dez minutos para aproximar o tempo médio dos sinais de comuni-
cação entre Marte e a Terra. — PAT R I C I A E D M O N D S
G R A N D E A N G U L A R

OS JOGOS ESTÃO
EM TODO O LADO
R E U T I L I Z A D O S E M MO N UM E N TO S O U D I S P E R S O S N A
C A LÇ A DA , H Á E V I D Ê N C I A S P O R TO D O O L A D O D O S J O G O S
Q U E E N C A N TA R A M A S S U C E S S I VA S C I V I L I Z A Ç Õ E S .

F OTO G R A F I A S D E H U G O M A RQ U E S

cionais pela população sénior da cidade. Num tabuleiro


de alquerque, vários jogadores praticaram o Jogo da
Raposa e das Galinhas, durante o qual uma raposa tenta
capturar as aves, ao passo que estas procuram encurra-
lar a predadora. Alguns profissionais de ludoteca e his-
toriadores na audiência não deixaram de sorrir. A cena
poderia ter lugar na Antiguidade.
O alquerque (ou alguergue) é um dos jogos mais
antigos que se conhecem. Praticava-se no Egipto e
tornou-se popular no Norte de África. Foi talvez tra-
zido para a Península Ibérica pelos muçulmanos e
aqui ganhou raízes. Afonso X, o Sábio, dedicou-lhe
vasta reflexão quando, em 1283, mandou escrever o
Livro de Jogos. Hoje, especialistas em jogos de tabu-
leiro encontram-no nos contextos mais díspares, do
Afeganistão ao Sri Lanka, das Ilhas Britânicas à
Noruega. Vem à memória a reflexão de um dos gran-
des investigadores desta área, Roger Caillois: «A esta-
bilidade dos jogos é notável. Os impérios e as
ou, traduzido do latim, os dados estão
A L E A JAC TA E S T instituições desaparecem, os jogos ficam, com as
lançados. Esta frase foi proferida em 49 a.C. por Júlio mesmas regras e, por vezes, com as mesmas peças.»
César nas margens do Rubicão. Como César, gerações Ignorada durante várias décadas, a relação das cultu-
ao longo da história acreditaram que a sorte pode ras humanas com o ludismo vem ganhando força em
mudar o rumo dos acontecimentos tal como quando Portugal nos últimos vinte anos por força dos trabalhos
lançamos os dados num jogo. É possível que o jogo de investigação de uma pequena comunidade de histo-
exista desde as primeiras sociedades neolíticas. Sem riadores. De norte a sul, quando se começou a fazer um
certezas absolutas, alguns achados arqueológicos levantamento rigoroso dos tabuleiros de jogo gravados
sugerem essa possibilidade, nomeadamente fragmen- em pedra ou em suporte cerâmico, rapidamente se cons-
tos de tabuleiros encontrados na Jordânia e no Irão. tatou a riqueza desse material. Muitos estão escondidos
Investigações recentes revelaram maior prudência, à vista de todos, assim se saiba o que procurar.
atribuindo uma possível génese do jogo ao mundo Lídia Fernandes é a coordenadora do Museu de Lis-
copta e, consequentemente atribuindo-lhe uma data- boa – Teatro Romano e investiga o tema dos tabuleiros
ção bastante mais recente, possivelmente entre 300 de jogo. Organiza anualmente um roteiro na capital
e 600 depois de Cristo. A Mesopotâmia e a Fenícia são sobre estes registos.
outros possíveis berços para outros jogos de tabuleiro,
tal como a civilização romana.
José Cardoso Pereira e António Joaquim Lopes
a autarquia local
E M 1 9 9 9, E M M O N T E M O R - O - N O V O , recriam um jogo de alquerque em Monsaraz (no
organizou uma sessão de reconstituição de jogos tradi- topo). À direita, ânfora ateniense do século VI a.C.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C ALBUM ORONOZ
G R A N D E A N G U L A R | JOGOS

Enquanto muitos observam o céu, esta arqueóloga xima-se a medo e, após perceber que o motivo de interesse
especializou-se em olhar para o solo ou para as paredes daquele homem debruçado sobre um degrau de calcário
dos monumentos. Cada parede, cada degrau, podem é o jogo ali desenhado, confidencia com alegria que na
esconder mais um elemento dessa velha narrativa. meninice, no Sabugal, o alquerque era uma das suas brin-
A Igreja do Menino Deus, no bairro lisboeta de Alfama, cadeiras favoritas. Os anos passam, mas os jogos ficam!
é um sítio perfeito para começar um roteiro. Construída Leite de Vasconcelos, pioneiro da arqueologia e da
em 1711, tem acesso limitado ao público, mas o que nos etnografia em Portugal, interessou-se pelos tabuleiros de
interessa hoje é o exterior – mais concretamente os jogo que foi encontrando de norte a sul do país no final
degraus do lado sul de acesso à porta de entrada. Num do século XIX. Cedo intuiu as dificuldades desta área de
espaço ínfimo, encontram-se quatro tabuleiros de jogo, investigação, registando: «Uns considerarão as covinhas
correspondentes ao alquerque de doze e, num caso, ao como meros ornatos, outros como receptáculos do san-
alquerque de três, ou três em linha. Porquê ali? gue de vítimas, como cartas geográficas ou astronómi-
A interpretação deste tipo de registo, quase sempre cas, como relógios de sol, como mesas de jogo; tudo o
afastado de evidências cronológicas que ajudem a bali- que à imaginação humana aprouve!»
zá-lo no tempo, é uma tarefa inglória. Naturalmente, a E, no entanto, de escavação em escavação e de inter-
gravação a estilete tem de ser posterior à data de cons- venção de restauro em intervenção de restauro,
trução do monumento, mas isso permite apenas con- arqueológos e historiadores foram esbarrando com
cluir que as inscrições foram produzidas depois de 1711. esta realidade. No Castelo de São Jorge, surgiram tabu-
Em alguns casos, o tabuleiro sobrepõe-se a inscrições leiros do alquerque e tabuleiros modernos de futebol.
(como sucede com uma estela epigráfica da colecção do Na fachada lateral do Templo Romano de Évora, Lídia
Museu Lisboa – Palácio Pimenta), o que permite tam- Fernandes atribuiu cronologia romana para um tabu-
bém considerar que nunca poderia ter sido anterior à leiro ali identificado. Salete da Ponte documentou
mesma. A partir daí, entramos no jogo das conjecturas. igualmente tabuleiros que emergiram na cidade
O átrio de entrada de uma igreja é o espaço de congre- romana de Conímbriga, provando a popularidade dos
gação da população antes e depois do serviço religioso. jogos lúdicos na Antiguidade.
Ali se juntam os fiéis e é natural que, após a missa, “O mesmo tabuleiro pode ser jogado ao longo do
alguns permanecessem no local, desanuviando a mente tempo, permanecendo em uso por várias gerações”,
e usando a imaginação para testar as possibilidades do diz Lídia Fernandes. Só na cidade de Lisboa foram
alquerque. Enquanto o fotógrafo regista a inscrição, uma identificados 21 tabuleiros de jogo na zona antiga, dis-
freira observa-o à distância, com alguma timidez. Apro- tribuídos entre o claustro da Sé, o Palácio Penafiel, a

N AT I O N A L G E O G R A P H I C FILIPPO COARELLI/ALBUM
Página anterior: um
fresco de Pompeia
dedicado aos jogado-
res de dados; à
esquerda: um tabuleiro
de jogo na Praça do
Comércio em Lisboa.
No topo, pormenor
(vandalizado) do
túmulo de Dom Pedro
no Mosteiro de
Alcobaça, retratado em
frente de um tabuleiro
de xadrez. Em cima,
peças de xadrez da
exposição “O Tempo
Resgatado ao Mar”

Igreja do Menino Deus e outros lugares. No parapeito alguém de fora praticar aquele passatempo. É certa-
da antiga prisão do Castelo de Vila Viçosa, encontra- mente uma actividade comum, desempenhada nas
ram-se igualmente oito tabuleiros de jogo, tal como no horas livres no mosteiro”, comenta Lídia Fernandes.
Mosteiro de Santa Maria do Olival, em Guimarães, nos Estas palavras acorrem à mente na escadaria da Igreja
dois claustros do Convento de Cristo em Tomar, na de Nossa Senhora da Lagoa, em Monsaraz. Ali, a pedido
Domus Municipalis de Bragança ou na Igreja da da National Geographic, dois homens com longa expe-
Senhora do Soveral, em Borba. riência de vida predispõem-se a simular uma partida de
Alguns contam histórias sugestivas. Decerto que o alquerque tal como ele se jogava na sua infância. Com
tabuleiro do Templo Romano de Évora não foi criado um sorriso, antes da partida, confidenciam que aprovei-
para ser jogado na vertical, tal como hoje está. É pro- tavam as ausências do padre local para poderem jogar
vável que a sua idealização remonte à época de esta- sem atiçar a ira do sacerdote, que considerava uma blas-
leiro do monumento e a um momento de lazer entre fémia um jogo tão próximo do adro da igreja.
operários que trataram depois de estucar por cima do “Os jogos são um instrumento de relações sociais e de
seu atrevimento. Noutros contextos de maior clausura, interacções entre pessoas, num tempo em que a sociali-
a narrativa é igualmente sugestiva. No Mosteiro de zação é posta em causa pelo mundo digital”, conclui Lídia
Santa Maria do Olival, em Guimarães, os oito tabuleiros Fernandes. Talvez o regresso ao universo destes passa-
nos corredores do claustro permitem um vislumbre do tempos lúdicos seja um pequeno contributo para a liber-
quotidiano da comunidade religiosa. “Não se trata de tação dos algoritmos que comandam as nossas vidas.

CORTESIA: MOSTEIRO DE ALCOBAÇA/DGPC; MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA DEZEMBRO 2018


«Acreditamos no poder da ciência, da exploração
e da divulgação para mudar o mundo.»

A National Geographic Society «XPDRUJDQL]D©¥RJOREDOVHPƃQVOXFUDWLYRVTXHSURFXUDQRYDVIURQWHLUDVGD


exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável.

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O U T U B R O | EDITORIAL

ECOS DA
GRANDE
GUERRA Versos da trincheira

cumpriram-se
N O D I A 1 1 D E N OV E M B RO, como soldados na “guerra de palavras”, O cemitério nacional de
cem anos sobre o armistício da Primeira esmiuçada pelo autor da reportagem, Douaumont, perto de
Guerra Mundial, assinado num vagão de Victor Lloret Blackburn, através dos Verdun, guarda mais de 16
mil túmulos de soldados
comboio na floresta de Compiègne pelas versos impregnados de horror vivido
franceses caídos na batalha
forças aliadas vitoriosas e pela derrotada pelos jovens poetas que lutaram e mor- homónima, uma das mais
Alemanha. A assinatura selou o fim da reram na frente de batalha; por outro sangrentas da guerra de
contenda, mas foram precisos mais alguns lado, como figurantes nos cenários 1914-18. O ossário contíguo à
meses até se concluir o tratado de paz de bélicos do Nordeste de França e Flandres necrópole contém os restos
Versalhes que, como ficou evidente pos- que o fotógrafo britânico Michael St não identificados de mais
treze mil combatentes
teriormente, não resolveu as velhas que- Maur captou em imagens ao longo de
franceses e alemães
relas entre as potências rivais nem vários anos no âmbito do seu projecto: recuperados no campo de
promoveu a reconstrução da Europa. “Campos de Batalha Terras de Paz: batalha ao longo dos anos.
O tratado exacerbou as graves tensões já 14-18”, lugares que ainda mostram as
existentes, criando condições para uma cicatrizes do seu passado violento.
guerra ainda mais letal. Pouco há para celebrar, na realidade,
O balanço dos dois conflitos, embora mas torna-se inevitável uma reflexão
conhecido, não deixa de horrorizar: numa União Europeia que deu ao conti-
cerca de 18 milhões de mortos entre nente uma indiscutível estabilidade e
1914 e 1918 e 70 a 80 milhões entre 1939 uma prosperidade sem precedentes, mas
e 1945. Como se podem digerir estes que teme hoje o questionamento dos seus
números? Na verdade, o que se celebra alicerces por uma corrente eurocéptica.
hoje, cem anos depois? A história do Velho Continente é uma
Muito se tem escrito sobre a Grande crónica interminável de guerras, mas as
Guerra. Na National Geographic, que- duas últimas registaram uma crueldade
remos prestar homenagem a todas as aterradora. E um olhar sobre essa histó-
vítimas que participaram no conflito ria é uma exortação essencial para apren-
numa dupla capacidade: por um lado, dermos com os erros do passado.

MICHAEL ST MAUR SHEIL / MARY EVANS PICTURE LIVRARY 1


NO MUNDO
ONDE A RELIGIÃO
E A ARQUEOLOGIA
SE ENCONTRAM,
CIENTISTAS,
COLECCIONADORES
E OPORTUNISTAS
COMPETEM
PARA ENCONTRAR
TEXTOS SAGRADOS.

Os
caçadores
de bíblias
2
Texto de R O B E R T DRAPER | F o t o g r a f i a s d e PA O L O VERZONE

Gráficos de F E R N A N D O G. B A P T I S TA e M AT T H E W W. C H WA S T Y K
O padre dominicano
Jean-Michel de
Tarragon estuda
fotografias de arquivo
na École Biblique
Française de Jerusalém.
Os seus especialistas
conduziram a investiga-
ção em busca dos
Manuscritos do Mar
Morto, os mais antigos
textos bíblicos alguma
vez descobertos.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Copiado à mão por


volta de 1400, um
exemplar do Novo
Testamento de Wycliffe,
exposto num parque
temático cristão na
Florida, é manuseado
com luvas brancas.
O teólogo inglês John
Wycliffe foi pioneiro
na tradução da Bíblia
de latim para
vernáculo, inovação
denunciada pelos
responsáveis da igreja.
COLECÇÃO VAN KAMPEN EM
EXPOSIÇÃO NA HOLY LAND
EXPERIENCE, ORLANDO, FLORIDA

4 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 5
6 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Um conservador
da Autoridade das
Antiguidades de Israel
prepara um fragmento
dos Manuscritos do Mar
Morto para exposição.
Invertido na imagem, o
frágil documento está a
ser fixado entre duas
camadas de rede, presas
com alfinetes e depois
cosidas em redor das
extremidades do
fragmento.

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 7
Nas colinas
áridas do
deserto
da Judeia,
junto da costa
do mar Morto,
reina um calor
impiedoso.
Em contrapartida, a temperatura é misericordio- Em busca de mais
samente fresca dentro da gruta onde Randall se Manuscritos do Mar
Morto, o arqueólogo
encontra deitado de barriga para baixo, olhando israelita Oren Gutfeld
fixamente para a fenda onde, no dia anterior, des- espreita para o interior
cobriu uma panela de bronze com dois mil anos. de uma gruta onde
encontrou pedaços
“Esta gruta foi saqueada por beduínos há cerca antigos de pergaminho.
de 40 anos”, explica este arqueólogo norte-ameri- “Estava vazia, mas, para
cano, investigador e professor na Liberty Univer- a próxima, talvez não
esteja”, diz.
sity. “Felizmente para nós, não escavaram muito
fundo. Temos esperança de alcançar o filão.”
Qualquer leitor que já tenha ouvido falar nes-
tas afamadas grutas da antiga povoação judaica
de Qumran sabe bem a que filão se refere Randall
Price. Em 1947, jovens beduínos pastores esprei-
taram para o interior de uma gruta nas proximi-
dades e fizeram uma das maiores descobertas
arqueológicas do século XX: sete rolos de perga-

8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
minho escritos em hebraico antigo, os primeiros Ambos pretendem dar continuidade a uma agen-
daqueles que se celebrizariam como Manuscritos da de investigação elaborada a partir de um exer-
do Mar Morto. Membros da seita separatista de cício anterior e igualmente polémico.
Qumran tinham provavelmente escondido os Em 1993, depois de assinar os acordos de paz de
manuscritos na gruta por volta de 70 d.C., quan- Oslo – que criaram o enquadramento necessário
do as tropas romanas os cercaram para pôr fim à para restituir os territórios em disputa ao controlo
primeira rebelião dos judeus. Outra centenas de palestiniano – o governo israelita lançou a Opera-
manuscritos foram descobertas no mesmo con- ção Manuscrito, um levantamento urgente de todos
texto. Remontando ao século III a.C., são os mais os sítios arqueológicos que o país poderia perder. O
antigos textos bíblicos alguma vez encontrados. inventário foi apressado e superficial e os investiga-
As grutas de Qumran localizam-se na margem dores não encontraram novos manuscritos. No en-
ocidental do rio Jordão, ocupada por Israel, e tanto, cartografaram dezenas de grutas danificadas
muitas pessoas consideram o trabalho de Ran- por sismos e possivelmente ignoradas pelos beduí-
dall Price ilegal ao abrigo do direito internacio- nos caçadores de tesouros. Uma delas, catalogada
nal. As críticas, porém, não dissuadem o arqueó- como Gruta 53, chamou a atenção de Randall Price
logo nem o director israelita da escavação, Oren em 2010 e, mais tarde, de Oren Gutfeld, que a descre-
Gutfeld, da Universidade Hebraica de Jerusalém. veucomo“recheada”. (Continua na pg. 14)
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 9
A conservadora
Emma Nichols examina
um texto hebraico na
Biblioteca da Universi-
dade de Cambridge,
onde se guardam
cerca de duzentos
mil manuscritos
judaicos descobertos
na sinagoga medieval
no Cairo.

10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 11
Autorizado pelo Estado
de Israel a vender
antiguidades, Khader
Baidun visita um
armazém por baixo das
lojas da sua família na
Cidade Velha de
Jerusalém. Numa
tentativa para travar a
venda de objectos
saqueados, os negocian-
tes são agora obrigados a
registar os artefactos
numa base de dados
digital. No entanto,
continua a haver
secretismo, diz um
vendedor. “É um velho
hábito não mencionar
nomes nem valores.”

12 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 13
“Encontraram muitos objectos de cerâmica da- lage Hobby Lobby e é um dos maiores defensores
tados de várias épocas – desde os primórdios de causas cristãs nos EUA. O seu entusiasmo pela
do islão ao período do Segundo Templo e da era caça bíblica é assumido.
helenística”, comenta. “Há razões para crer que “Há muito por descobrir. Imagine tudo o que
possa haver ali algo mais.” poderá existir”, diz-me quando me encontro
Há dois anos, aquando da prospecção inicial com ele no museu de 40 mil metros quadrados
da Gruta 53, os arqueólogos descobriram um pe- que custou a módica quantia de 500 milhões de
queno rolo de pergaminho em branco e jarros de dólares. “Sentimo-nos entusiasmados com cada
armazenamento quebrados, provas intrigantes pedra revirada.” Infelizmente, como Green des-
de que a gruta poderia ter contido manuscritos. cobriu em primeira mão, nem tudo é sagrado no
Agora, após quase três semanas de escavação, as negócio da caça bíblica. A remoção de rochas
suas descobertas estão dispostas sobre uma mesa pode revelar manuscritos inéditos, mas também
no exterior da gruta. Incluem pontas de seta neo- pode destapar cobras.
líticas, uma lâmina de obsidiana da Anatólia e

E
a panela de bronze, mas nenhum manuscrito. NCONTRAR SERPENTES e outros perigos
A escavação, entretanto, prossegue. fazia parte do terreno pisado pelos caçado-
res bíblicos pioneiros do século XIX e do

C
relíquias
R E N T E S D E VÁ R I A S F É S V E N E R A M início do século XX. O Egipto era um dos
religiosas. Contudo, para aqueles que acre- seus destinos preferidos: o clima seco é ideal para
ditam que Deus comunica através das a preservação de manuscritos frágeis. Muitos dos
palavras escritas pelos profetas e apóstolos que desbravaram caminho foram universitários
de tempos passados, os textos antigos são funda- intrépidos e aventureiros e os relatos das suas via-
mentos da fé. Dos manuscritos medievais artisti- gens e descobertas fazem lembrar cenas do filme
camente ornamentados a humildes fragmentos de “Os Salteadores da Arca Perdida”.
papiros, os textos venerados representam ligações Veja-se, por exemplo, o académico alemão
tangíveis aos mensageiros nomeados por Deus Konstantin von Tischendorf que, em 1844, em-
– sejam eles Maomé, Moisés ou Jesus Cristo. preendeu uma longa e perigosa viagem através
A reverência pelas Sagradas Escrituras é funda- do deserto do Sinai, no Egipto, para alcançar o
mental para a fé dos cristãos evangélicos, que se mosteiro cristão continuamente habitado mais
transformaram em força motriz da demanda por antigo do mundo, Santa Catarina. Ali, encontrou
textos bíblicos há muito perdidos em grutas no “o mais precioso tesouro bíblico que existe”. Era
deserto, mosteiros isolados e mercados de anti- um códice, um texto antigo, com a forma de um
guidades no Médio Oriente. Os críticos argumen- livro e não de um rolo, datado de meados do sé-
tam que o apetite dos evangélicos por artefactos culo IV. Conhecido hoje como Codex Sinaiticus, é
alimenta a procura de objectos saqueados, acusa- uma das duas bíblias cristãs mais antigas que so-
ção até certo ponto comprovada por investigações breviveram desde a Antiguidade e o mais antigo
recentes e por relatos de comerciantes legítimos. exemplar completo do Novo Testamento.
“Os evangélicos têm um impacte tremendo no Este achado fez de Tischendorf “o mais famo-
mercado”, diz Lenny Wolfe, vendedor de antigui- so e tristemente célebre especialista em textos da
dades de Jerusalém. “O preço de qualquer peça li- história”, nas palavras do biógrafo Stanley Porter.
gada à época em que Cristo viveu é muito elevado.” Segundo o seu próprio relato dos acontecimen-
Independentemente da sua filiação religiosa, tos, o sábio alemão vislumbrou primeiro algumas
os coleccionadores ricos e os filantropos abas- páginas do códice num cesto de pergaminhos an-
tados há muito que apoiam a busca de objectos tigos que os monges planeavam queimar. Salvou
exóticos. Entre os que contribuíram para a expe- as páginas e pediu autorização para levar o códice
dição de Randall Price e Oren Gutfeld a Qumran completo para a Europa e estudá-lo. Os monges,
encontra-se uma fundação criada por Mark La- alertados pelo entusiasmo do académico, dispen-
nier, um advogado de Houston que colecciona saram-lhe apenas algumas dezenas de páginas.
textos teológicos. Outra escavação arqueológica, Konstantin von Tischendorf empreendeu de
realizada em Tel Shimron, em Israel, tem o apoio novo a árdua viagem até Santa Catarina em 1853,
do novo Museu da Bíblia de Washington. O presi- mas voltou sem nada para mostrar. Em 1859, re-
dente executivo do museu, Steve Green, preside gressou uma terceira e última vez ao local depois
também a gigantesca cadeia de material de brico- de obter o apoio do czar russo, “defensor e pro-

14 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
tector” da Igreja Ortodoxa Oriental, à qual o mos- gado e reutilizado. Estudando o texto sob o texto,
teiro do Sinai pertence. Desta feita, a determina- ficou pasmada por descobrir que era uma tradu-
ção do académico deu frutos. Depois de assinar ção dos quatro evangelhos. Datado aproximada-
um acordo, comprometendo-se a devolver o có- mente do início do século V, o Codex Sinaiticus
dice depois de fazer cópias exactas, entregou o Syriacus, nome pelo qual é actualmente conheci-
artefacto ao seu real cliente em São Petersburgo. do, é um dos mais antigos exemplares dos evan-
Daí em diante, a cadeia de acontecimentos de- gelhos alguma vez descoberto.
senrola-se no meio de Em vez de tentarem “pedir emprestado” o có-
polémicas e acusações dice siríaco – que permanece em Santa Catarina
de jogos de poder im- “Os até à data –, as irmãs fotografaram cada página
perialistas. Os monges evangélicos com uma máquina fotográfica que tinham leva-
acabaram por “doar” do consigo para documentar os seus achados.
o códice ao czar, mas
têm um impacte Também recorreram a uma solução química,
ainda hoje se discu- tremendo tentando (com sucesso) reavivar o esbatido tex-
te se o terão feito de no mercado. to subjacente do palimpsesto. O seu trabalho an-
livre vontade ou sob tecipou em mais de um século o uso da imagio-
coacção. Independen-
O preço de logia multiespectral e de outras tecnologias na
temente do sucedido, qualquer peça revelação de textos bíblicos antigos escondidos
a inestimável Bíblia ligada ao sob escritos mais recentes (Ver “Revelações Digi-
permaneceu em São tais”, página 23).
Petersburgo até 1933,
tempo da vida Os espectaculares manuscritos revelados ao
ano em que o governo de Cristo é mundo por Von Tischendorf e pelas irmãs escoce-
de Estaline, enfrentan- elevado.” sas tinham sido escritos em pergaminho ou velino,
do uma crise financei- materiais dispendiosos. No entanto, a grande maio-
LENNY WOLFE,
ra e um surto de fome, VENDEDOR DE ANTIGUIDADES ria dos textos dos primeiros séculos do cristianismo
a vendeu ao Museu foi escrita em papiro, o papel do mundo antigo.
Britânico por meio mi- Em 1896, Bernard Grenfell e Arthur Hunt, ar-
lhão de dólares. queólogos principiantes da Universidade de Ox-
Von Tischendorf não foi o primeiro caçador ford, andavam à procura de artefactos na cidade
de manuscritos a visitar o isolado mosteiro no egípcia de Oxyrhynchus, há muito enterrada,
sopé do monte Sinai, nem seria o último. Entre quando fizeram uma descoberta extraordinária:
os que lhe seguiram as pisadas, encontram-se as uma lixeira antiga, com camadas sobrepostas de
gémeas escocesas Agnes Smith Lewis e Marga- papiros. Durante a década seguinte, Grenfell e
ret Dunlop Gibson, duas autodidactas que, em Hunt escavaram um poço cheio de papiros com
conjunto, dominavam mais de dez idiomas. Em cerca de dez metros de profundidade e enviaram
1892, as destemidas irmãs presbiterianas, à épo- meio milhão de documentos para Oxford. Desde
ca viúvas de meia-idade, atravessaram o deserto então, os investigadores têm vindo a recompor
do Egipto montadas em camelos e chegaram a meticulosamente os fragmentos.
Santa Catarina. Tinham recebido notícias sobre A maior parte dos papiros representava mera
a existência de obras em siríaco antigo (um dia- documentação prosaica do quotidiano – contas,
lecto do aramaico, o idioma falado por Jesus) cartas, avaliações fiscais, uma escritura da ven-
empilhadas num armário escuro. As irmãs esta- da de um burro. Cerca de 10% do total, contu-
vam ansiosas por investigar. do, eram peças literárias, incluindo excertos de
Com autorização dos monges, examinaram obras de autores clássicos como Homero, Sófo-
vários volumes, incluindo um códice com pó in- cles e Eurípides. Algumas das descobertas mais
crustado que não era aberto há décadas ou mes- dramáticas – como os evangelhos perdidos não
mo séculos. Usando a sua chaleira de campismo incluídos no Novo Testamento – permitiram
para descolar as páginas encardidas com o vapor, conhecer melhor os anos de formação do credo
descobriram que se tratava de uma biografia de cristão. E passado mais de um século sobre a sua
santas datada de 778 d.C. O olhar aguçado de descoberta, ainda falta estudar pormenorizada-
Lewis reparou então na escrita ténue sob a cama- mente milhares de fragmentos. Quantas mais re-
da superior do texto e percebeu que se tratava de velações estarão à espera em todas aquelas caixas
um palimpsesto, manuscrito parcialmente apa- de lixo antigo? (Continua na pg. 31)
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 15
Livro Número de capítulos Textos reconstruídos Texto JOÃO 18:37-38
de outras fontes sobrevivente (Tradução directa)

João (21)
Evento Jesus
relatado julgado por
Pôncio
Pilatos

Século do
fragmento
Séculos II e I a.C.
Séculos I e II d.C.
III d.C. Capítulo 18:
Fragmento do séc. II ou
Início do séc. IV d.C. início do III d.C. (versículos 31–33;
37-38, representados)

ANTIGO TESTAMENTO Escrituras Hebraicas: conclusão da criação dos reinos israelitas


1 Fragmento de pergaminho,
Génesis
Código legal, moral e cerimonial tradicionalmente atribuído a Moisés EUROPA ÁSIA
Século I a.C.
Descoberto: Qumran Génesis (50 capítulos) Êxodo (40) Lev. ´
ÁREA
DO MAPA
Língua: Hebraico
ÁFRICA
LÍBANO
Mar Medit. ISRAEL
CISJORDÂNIA
Jerusalém
FAIXA DE GAZA

Qumran
Cairo
Faium
1 Sinai
Oxyrhynchus
Levítico (cont.) (27) Números (36) Deuterónimo (34) Josué
Ma

N
r

Dishna
il

o
Ve
rm

Nag Hammadi
elh
o

E G I P T O

Descoberta de manuscrito

Ascensão e queda dos reinos israelitas 2

Josué (cont.) (24) Juízes (21) Rute 1 Samuel (31) 2 Samuel (24)
(4)

2 Fragmento de pergaminho 3 Códice Josué, Schøyen


Deuterónimo de Rylands Séculos II e III d.C.
Século II a.C. Descob.: Oxyrhynchus*
Descoberto: Faium* Língua: Grego
Língua: Grego

2 Sam. 1 Reis (22) 2 Reis (25) 1 Crónicas (29) 2 Crónicas (36)


(cont.)

Canções, poesia, provérbios e ensinamentos pastorais


2 Crónicas (cont.) Esdras (10) Neemias (13) Ester (10) Job (42)
4 Fragmento de Job Salmos (150) 5 Grande pergaminho
pergaminho de Job (cont.) dos Salmos
Século I d.C. Século I d.C.
Descob.: Oxyrhynchus Descoberto: Qumran
Língua: Grego Língua: Hebraico

Salmos (cont.) Provérbios (31)

Guarda com toda a


diligência o teu coração,

Eclesiastes
porque dele procedem
as fontes da vida. (12)

5
Mensagens de Deus para os israelitas; profecias
Ecles. Cântico dos Isaías (66) Jeremias (52)
(cont.) Cânticos (8)

6 Fragmento do Códice de 7 Códice Chester Beatty


Jeremias Chester Beatty Ezequiel-Daniel-
Séculos II e III d.C. Susana-Ester
Descoberto: Faium* Séculos II e III d.C.
Língua: Grego Descoberto: Faium*
Língua: Grego
6

Jeremias (cont.) Ezequiel (48) Daniel


(12)

Lamentações
(5)

7
Dan. Oseias (14) Amos (9) Miqueias Zacarias (14) 39

Joel
(cont.) (7)
livros

Ageu

Naum

Jonas
(3)
(2)

Sofonias

Obadias
(4) (3)
Malaquias

Habacuque
(1) (3)
(3) (4)

929
capítulos

8 Códice Bodmer do
NOVO TESTAMENTO Ensinamentos, morte e ressurreição de Jesus. Trabalho dos apóstolos e ensinamentos 9 Códice Chester Beatty
Evangelho de João Epístolas de Paulo
Séculos II ou III d.C. Testemunhos da vida de Jesus Séculos II ou III d.C.
Descob: perto de Dishna Mateus (28) Marcos (16) Lucas (24) João (21) Actos Descoberto: Faium*
Língua: Grego Língua: Grego

Primeiras acções dos apóstolos Cartas de instrução para as primeiras igrejas


8

Actos (cont.) (28) Romanos (16) 1 Coríntios (16) 2 Coríntios (13)


Efésios

Gálatas

Porque o salário do pecado é a (6)


Filipenses

morte, mas o dom gratuito de (6)


Colossenses

(4)
Deus é a vida eterna em Cristo. (4)
1 Tessalonicenses

Romanos 6:23

9 Advento do reino de Deus


Hebreus (13) Tiago Revelação (22) 27
Tito

(5)
livros
Judas

1 João

(3)
2 João
3 João

1 Pedro

Filémon
2 Pedro

(1)
(5) (1) (1)

1 Timóteo
(1) (5)
2 Timóteo

(3)
(6) (4)

1 Tessal. (cont.)
(5)

2 Tessalonicenses
(3)
260
capítulos
REVELAÇÕES DIGITAIS Ora humildes fragmentos de papiro,
Potentes ferramentas de captação de imagem permitem aos
investigadores ver o interior de rolos frágeis para desenrolar e ora livros luxuosamente ilustrados,
recuperar textos demasiado ténues para ler, possibilitando a leitura
de milhares de manuscritos previamente considerados ilegíveis. reflectem a época em que foram cria

LENDO AS CINZAS A GRANDE REVELAÇÃO


Brent Seales concebeu Todd Hanneken combinou
um software para duas tecnologias de
desenrolar virtualmente imagiologia que detectam
um pergaminho vestígios de cor e textura
chamuscado descoberto para melhorar radicalmente
há décadas no sítio de a visibilidade de textos
En Gedi, em Israel. esbatidos.
Imagem
1 Um dispositivo de TAC revela espectral
a estrutura interna do Painéis de luz
pergaminho em fatias finas. colorida
As manchas mais claras são
pontos de maior densidade, Difusor
como tinta com teor metálico. Tecnologia
Reflectance
Câmara
Transformation
Utilizando os dados das TAC, fixa
2 Imaging (RTI)
o software cria um modelo 3D
Luzes brancas
e atribui valores de densidade
a cada ponto. Arco de oscilação

Cor natural

1 dos 5 rolos (a azul)

3 Avalia depois os valores


de densidade para criar
uma reprodução mais nítida
do texto. 1 Espectral A tinta reflecte alguns
comprimentos de onda
4 O modelo tridimensional e da luz melhor do que
os dados do texto são outros, dependendo
mapeados num plano, da sua composição.
criando uma imagem 2D. A imagiologia espectral
utiliza 16 lâmpadas de
cor para acentuar os
contrastes.
5 O processo é repetido para as
cinco voltas, revelando 35 linhas
do Livro do Levítico. Datado 2 A tecnologia RTI
RTI
do século III ou IV, é o mais (Reflectance
antigo texto hebraico Transformation Imaging)
conhecido não incluído nos ilumina um manuscrito
de vários ângulos
Manuscritos do Mar Morto.
para revelar zonas
5 peças brilhantes, sombras
e texturas, mesmo
já sem tinta.

3 A RTI espectral funde as


Espectral RTI
imagens, misturando
texturas e cores numa
única vista amplificada.
EM BAIXO AO FUND O

Esta tradução árabe dos O corte representa a As chamadas Bíblias e à fuga da escravatura
os textos bíblicos Evangelhos foi
publicada em 1590 por
Visitação, o momento
em que Virgem Maria
dos Escravos, como
esta publicada em
foram omitidas e as que
incentivavam a
ados. Fernando de Médici, um
antigo cardeal abas-
vai ver Isabel, mãe de
João Baptista.
1808, incluíam apenas
partes seleccionadas
obediência e a
submissão foram
tado, na expectativa de BIBLIOTECA DE MANUSCRITOS E
do Novo e do Antigo reforçadas.
converter os muçulma- MUSEU DE HILL, UNIVERSIDADE DE Testamento. As COLECÇÃO DA UNIVERSIDADE FISK,
nos ao cristianismo. SAINT JOHN, MINNESOTA
referências à liberdade MUSEU DA BÍBLIA, WASHINGTON

Copiado no Egipto e
datado do século II,
este fragmento de papiro
é um dos mais antigos
textos sobreviventes
conhecidos do Novo
Testamento. Apenas
algumas linhas do
Capítulo 18 do
Evangelho de São
João figuram em
cada lado.
BIBLIOTECA JOHN RYLANDS DA
UNIVERSIDADE DE MANCHESTER

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 25
A Bíblia já foi integral-
mente traduzida para
mais de 670 línguas.
O Novo Testamento
pode ser lido em mais
de 1.500 idiomas
adicionais.

PRIMEIRA FILA
1) Pentateuco, formado
pelos primeiros cinco
livros da Bíblia,
publicado em 1530 e
traduzido para inglês 1 2
por William Tyndale;
2) Livro das Horas e
Saltério (Livro de
Salmos) do século XIV;
3) Bíblia com anotações
impressa na cidade
francesa de Estrasburgo
em 1481;
4) O Codex Climaci
Rescriptus, original-
mente escrito em
aramaico no século VI, e
posteriormente escrito
por cima em siríaco, em
5 6
finais do século IX, ou
princípio do século X.

SEGUNDA FILA
5) Saltério Copta do
século IX;
6) Novo Testamento
em latim, c.1300;
7) Manuscrito ilumi-
nado em latim Morris-
Cockerell, de 1225;
8) Rolo da Torá

TERCEIRA FILA
9 10
9) “Bíblia dos Índios”,
de Eliot, traduzida para
Wampanoag, 1663, a
primeira bíblia integral
completa impressa
nos EUA;
10) Bíblia
de São João, manuscrita
e iluminada, 2011;
11) Bíblia de Sevilha, em
hebraico, 1468;
12) Pergaminho da Torá
asquenaze, finais do
século XIII.
13 14

17 18

26 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
3 4

Q UA RTA F I L A
13) Pormenor do texto
7 8 de uma Bíblia de
Gutenberg, impressa
em 1455;
14) Edição de bolso de
um Novo Testamento
em latim, c. 1300;
15) Tradução alemã
do Antigo Testamento,
1560;
16) Novo Testamento
grego, de finais do
século X, ou princípio
do século XI.

11 12
Q U I N TA F I L A
17) Novo Testamento
grego de 1519, editado
por Desiderius Erasmus,
segunda edição;
18) Fragmentos do
Evangelho de São João,
do século IX;
19) Bíblia Poliglota de
Plantin apresentando o
texto em hebraico,
grego, aramaico e latim,
oriunda da cidade
belga de Antuérpia,
15 16
c. de 1570;
20) Saltério etíope do
século XVIII ou XIX.

Colecção Van Kampen, em


exposição na Holy Land
Experience, Orlando, Florida: 1,
7, 8, 9, 11, 13, 15, 16; Museu da
Bíblia, Washington: 2, 4, 12;
Museu e Biblioteca de
Manuscritos Hill, Universidade
de Saint John, Collegeville,
Minnesota: 3, 5, 6, 14, 17, 18, 19,
20; Universidade de Saint John,
Collegeville, Minnesota: 10
19 20

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 27
A publicação da
Bíblia do Rei Jaime,
em 1611, definiu o
padrão do evangelho
em inglês durante cerca
de trezentos anos. Este
volume do Museu da
Bíblia, em Washington,
é um de apenas dois
sobreviventes da
primeira edição do
Novo Testamento da
Bíblia do Rei Jaime.
OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 29
C
os Manuscritos
OMO D R A M A I N E S P E R A D O, exemplar quase completo do Livro de Isaías da
do Mar Morto ultrapassam todas as outras Bíblia Hebraica. O seu conteúdo era praticamen-
descobertas bíblicas. Segundo uma versão te idêntico ao de outro exemplar de Isaías produ-
da história, os pastores de cabras beduínos zido cerca de mil anos mais tarde. O Grande Per-
venderam os sete pergaminhos que encontraram a gaminho de Isaías tornar-se-ia a prova principal
dois negociantes de antiguidades em Belém. Um para os especialistas que defendem a Bíblia con-
académico de Jerusalém adquiriu três pergaminhos. tra quem afirma ter sido o texto corrompido por
Um negociante chamado Khalil Iskander Shahin, escribas que, ao longo de séculos de cópias feitas
também conhecido como Kando, vendeu os quatro à mão, introduziram uma variedade de erros e al-
pergaminhos remanescentes a um arcebispo sírio terações intencionais.
em Jerusalém, que, alegadamente, lhe pagou o equi-

N
valente a 250 dólares por eles. Em 1949, o bispo con- a artefactos bíblicos,
A H I S TÓ R I A DA C AÇ A
trabandeou os pergaminhos para os EUA, na não existem apenas tesouros escondidos,
esperança de os vender a um museu ou universidade. mas também o chamado ouro dos tolos.
Não conseguindo arranjar compradores, publicou Quando os arqueólogos começaram a esca-
um anúncio no “The Wall Street Journal” de 1 de var as grutas de Qumran, outros beduínos fizeram
Junho de 1954. Um arqueólogo israelita, trabalhando as suas próprias escavações e venderam o que
através de um intermediário americano, organizou encontraram a Kando. A sua maior aquisição foi o
a aquisição dos pergaminhos pelo governo de Israel Pergaminho do Templo, com quase oito metros de
por 250 mil dólares. Os sete pergaminhos originais comprimento, o mais longo dos Manuscritos do
estão actualmente guardados numa ala do Museu Mar Morto. Em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias,
Nacional de Israel, em Jerusalém. funcionários dos serviços secretos israelitas apreen-
Quando a notícia da descoberta dos pergami- deram o Pergaminho do Templo em casa de Kando,
nhos se espalhou, uma equipa liderada pelo ar- confiscando-o como propriedade do Estado. Após
queólogo e padre dominicano Roland de Vaux o incidente, Kando começou, alegadamente, a
dirigiu-se a Qumran em 1949. Em 1956, De Vaux enviar os fragmentos de pergaminho remanescen-
e beduínos locais tinham encontrado mais dez tes para parentes seus do Líbano e, mais tarde, para
“grutas de pergaminhos”, contendo dezenas de um cofre bancário na Suíça.
manuscritos, muitos dos quais desintegrados em Em 2009, Steve Green começou a comprar bí-
milhares de fragmentos. Os estudiosos demora- blias e artefactos raros a um ritmo inaudito, aca-
ram décadas, trabalhando isolados e em segredo, bando por adquirir cerca de quarenta mil objectos,
a reconstituir e a traduzir os pergaminhos esfarra- uma das maiores colecções privadas de material
pados. O longo atraso na sua publicação inspirou bíblico do mundo. A sua maratona de compras
teorias de conspiração, segundo as quais alguém no valor de vários milhões de euros conduziu-o,
– o papa, os sionistas? – andava propositadamen- inevitavelmente, à porta de Kando. William, o fi-
te a suprimir o conteúdo dos pergaminhos. lho de Kando, assumiu o controlo do negócio da
Por fim, em meados da década de 2000, os família após a morte do seu pai em 1993.
tradutores publicaram finalmente a maioria “Steve Green veio ver-me várias vezes”, conta
das suas descobertas. Os pergaminhos incluíam William Kando através de uma nuvem de fumo
textos legais, tratados apocalípticos e rituais, re- de cigarro na manhã em que nos encontrámos na
latos da vida da seita de Qumran e vestígios de sua loja, em Jerusalém. “É um homem honesto,
230 manuscritos bíblicos. Os estudiosos ficaram um bom cristão. Ofereceu-me 40 milhões pelo
entusiasmados por descobrirem entre eles um meu fragmento do Génesis. Recusei. Algumas
pessoas dizem que tem um valor incalculável.”
Através de um assessor, Green contrapõe que
Kando fixou o preço em 40 milhões de dólares e
Cem Bíblias em da NASA que rezavam que, por isso, preferiu não o comprar. Em alter-
miniatura voaram até à pela segurança dos nativa, comprou fragmentos mais baratos.
Lua com o astronauta astronautas. Mais tarde,
Edgar Mitchell na algumas foram coloca- O mercador oferece-me mais café e depois vas-
Apollo 14, em 1971. As das em expositores de culha um livro de registo. “Aqui podem ver”, diz,
“Bíblias lunares” foram ouro e vendidas a apontando para uma nota dizendo que vendeu
criadas pela Apollo coleccionadores.
Prayer League, um sete fragmentos de Manuscritos do Mar Morto a
MUSEU DA BÍBLIA,
grupo de funcionários WASHINGTON Green em Maio de 2010.

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 31
C
Steve Green cometeu vários erros. O mais sig- OMO O S M A N U S C R I TO S D O M A R MO RTO
nificativo foi a importação de milhares de tabui- autênticos são “o maior tesouro cultural
nhas de argila e outros artefactos que, segundo de natureza judaica do mundo”, nas pala-
os especialistas, foram provavelmente saquea- vras do curador Adolfo Roitman, os docu-
dos no Iraque. Como resultado, foi multado em mentos sagrados são preservados com requinte.
três milhões de dólares pelo Departamento da Entretanto, vários outros manuscritos bíblicos
Justiça dos EUA e teve de devolver os objectos. ficam entregues ao bolor em armazéns académicos
“A verdade é que a maioria das antiguidades é ou são consumidos pelo fogo, cheias, insectos,
saqueada e a maioria dos compradores não per- saqueadores ou pela guerra. A sua conservação
gunta qual a sua proveniência”, confessa Eitan antes que os seus segredos desapareçam para sem-
Klein, director-adjunto da divisão anti-saque da pre é “literalmente uma corrida contra o tempo”,
Autoridade das Antiguidades de Israel, quando diz Daniel B. Wallace, director do Centro de Estudo
nos encontrámos no seu gabinete em Jerusalém. dos Manuscritos do Novo Testamento, no Texas.
“Do meu ponto de vista, quando estamos a lidar Daniel Wallace e outros especialistas em tex-
com antiguidades, temos de sujar as mãos de al- tos que percorrem todo o mundo acumularam
guma maneira.” dezenas de milhares de quilómetros viajando

32 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
pelo planeta numa missão urgente: documentar
digitalmente manuscritos bíblicos antigos de ar-
quivos, bibliotecas monásticas e outros repositó-
rios e torná-los acessíveis a académicos de todo o
mundo através da Internet. É uma tarefa colos-
sal. No caso do Novo Testamento, cujos autores
escreveram em grego, já foram encontrados mais
de 5.500 manuscritos e fragmentos gregos, um
número superior ao de qualquer outro texto an-
tigo. No total, há 2,6 milhões de páginas, segundo “Quando
a estimativa e Daniel Wallace refere que a maior
parte ainda não foi estudada pela academia.
lidamos com
“Cerca de 80% dos manuscritos já conhecidos antiguidades,
que seriam úteis para os estudos bíblicos sobre o temos de sujar
Novo Testamento ainda não foram publicados”,
diz o padre Olivier-Thomas Venard da École Bi-
as mãos de
blique et Archéologique Française, um centro alguma maneira.”
de investigação dominicano em Jerusalém. “É EITAN KLEIN, AUTORIDADE
DAS ANTIGUIDADES DE ISRAEL
uma quantidade gigantesca de património”,
acrescenta o padre Anthony Giambrone, colega
de Venard. “Para falar com franqueza, a tarefa é
impossibilitada pelos desafios da crítica textual:
não há, pura e simplesmente, especialistas sufi-
cientes para trabalhá-los.”
O Instituto da Investigação Textual do Novo
Testamento, em Münster (Alemanha), tentou re-
duzir as dificuldades do trabalho classificando os
documentos bíblicos segundo passagens-chave,
mas este sistema ignora por completo vários tex-
tos. Uma solução mais abrangente poderá ser tec-
nologicamente viável, prevê Daniel Wallace, que
espera utilizar software de reconhecimento óptico
de caracteres (ORC, na designação internacional)
para digitalizar cada volume do Novo Testamento
grego. “Neste momento, um académico demora-
ria 400 anos a ler e a compilar todos os documen-
tos conhecidos”, afirma. “Com o ORC, cremos que
esse trabalho pode ser conduzido em dez anos.”

P
Quando uma vaga de
fizer-
E R D OA R- N O S -ÃO S E N E ST E MOM E N TO artefactos bíblicos
mos uma pergunta constrangedora: será apareceu no mercado
que isso é assim tão importante? Para quê após a crise de 2008,
Steve Green, fundador e
tanto alarido em torno de bíblias antigas e director executivo do
pedaços ainda mais antigos de papiros egípcios? Museu da Bíblia, em
Para pessoas como Daniel Wallace, que lecciona Washington, empreen-
deu uma maratona de
num seminário evangélico, e Steve Green, que compras. Não tardou a
investiu grande parte da fortuna da família num descobrir o lado escuro
museu dedicado à Bíblia, tudo se resume numa do comércio de
antiguidades e pagou
questão: a fé baseia-se em factos ou em ficção? três milhões no âmbito
“Quando os visitantes do nosso museu vêem um de um acordo judicial
texto antigo, estão a ver provas de que aquilo em por ter importado
objectos que alegada-
que acreditam não é apenas um conto de fadas”, mente teriam sido
diz Steve Green. roubados do Iraque.

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 33
Mas serão essas provas suficientemente cla- de 5.500 manuscritos gregos do Novo Testamen-
ras? Partindo do princípio de que o Deus da Bí- to, quase 95% deles remonta aos séculos IX a XVI.
blia existe mesmo e que encontrou uma forma Apenas cerca de 125 datam dos séculos II ou III e
de comunicar com os autores dos documentos nenhum do primeiro.
bíblicos antigos – será que temos agora nas mãos Nenhuma destas circunstâncias inquieta Da-
aquilo que eles escreveram na altura? Afinal, ne- niel Wallace, o adversário de Bart Ehrman nesta
nhum dos seus escritos originais, aquilo a que a discussão. “O Bart gosta de salientar que não te-
comunidade científica chama as autografias, foi mos nenhumas autografias, apenas cópias”, diz.
descoberto. As suas palavras só sobrevivem por- “A verdade é que não temos autografias de ne-
que foram copiadas à mão inúmeras vezes até à nhuma obra literária greco-romana, excepto pos-
invenção da imprensa no século XV. E até os aca- sivelmente um fragmento de um autor clássico.”
démicos conservadores admitem não haver dois Daniel Wallace reconhece que os milhares de
exemplares exactamente iguais. manuscritos do Novo Testamento contêm inú-
Poucas editoras acreditariam que tais questões meras diferenças devido a erros dos escribas,
dessem origem a um êxito de vendas a nível nacio- mas argumenta que, como os estudiosos dis-
nal, mas foi isso exactamente que aconteceu em põem de tantos textos para estudar e comparar,
2005, com a publicação da obra inteligentemente conseguiram identificar esses erros e recuperar,
intitulada “Misquoting Jesus: The Story Behind em grande medida, a redacção original. Salienta
Who Changed the Bible and Why”. O autor do livo, também que boa parte da fiabilidade de qualquer
Bart Ehrman, argumenta que os “factos” sobre documento histórico assenta na sua proximida-
Jesus apresentados nas bíblias contemporâneas de cronológica em relação aos acontecimentos
se baseiam em séculos de cópias, todas elas regis- que pretende relatar.
tando factos diferentes, pelo que não poderemos “Em média, as mais antigas cópias sobreviven-
saber ao certo o que diziam os textos originais. tes da literatura greco-romana encontram-se a
Em pessoa, o antigo evangélico de barbicha, meio milénio de distância da sua composição”,
entretanto tornado ateu, assume uma postura afirma. “No caso do Novo Testamento, porém, as
moderada, mas subversivamente cáustica. En- cópias mais antigas estão a poucas décadas do su-
quanto bebemos café na Universidade da Caro- cedido. É uma diferença enorme.”
lina do Norte, onde ele lecciona estudos religio- Apesar disso, a inexistência de escritos cristãos
sos, Bart Ehrman recita uma série de passagens do primeiro século parece ser um argumento a
das Escrituras para as quais olha com algumas favor da teoria de Bart Ehrman, argumento que
suspeitas académicas. Segundo ele, os últimos Daniel Wallace se mostra desejoso de invalidar.
12 versículos do Evangelho de São Marcos foram Talvez demasiado desejoso.
provavelmente acrescentados vários anos após os


acontecimentos, assim como o Evangelho de São com Bart Ehr-
O D E C U R S O D E U M D E B AT E
Lucas, prevendo o nascimento de Jesus em Belém. man, em Fevereiro de 2012, Daniel Wallace
Várias afirmações de Ehrman são rebatíveis, proferiu uma “bomba”. Um fragmento de
mas alguns académicos concordam que os es- manuscrito do Evangelho de São Marcos
cribas cristãos foram corrompendo propositada- fora recentemente descoberto e oficialmente datado
mente certas passagens ao longo do tempo. Esta do século I. Por outras palavras, era anterior em
questão acontece ao nível de corrupção textual. mais de um século ao mais antigo texto conhecido
“Em termos gerais, apoio o que Bart Ehrman do Evangelho de São Marcos. Seria o único docu-
diz sobre isto”, afirma Peter Head, investigador mento do Novo Testamento do século I alguma vez
de Oxford que estuda manuscritos gregos do descoberto e o mais antigo texto cristão sobrevi-
Novo Testamento. “Mas os manuscritos sugerem vente. Um estudo desse manuscrito antigo seria
uma fluidez controlada. Há variantes, mas po- provavelmente publicado em 2013, informou o
demos mais ou menos perceber como e quando. teólogo texano.
O problema é que não dispomos de dados sufi- A revelação alertou os caçadores de Bíblias de
cientes sobre o período primitivo.” todo o mundo. Quem descobrira o manuscrito de
O “período primitivo” referido por Peter Head Marcos? Onde estava guardado? Estaria disponí-
começa com o nascimento de Cristo no primeiro vel no mercado? Quantos milhões custaria? Pas-
século d.C. e acaba no início do século IV. E em- sados cinco anos, porém, o documento ainda não
bora seja verdade que foram encontrados mais vira a luz do dia.

34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Em Dezembro de 2017, comecei a fazer telefo- berta. Na verdade, conhece-se a existência de
nemas. Um mês mais tarde, apareci na Biblio- apenas dois outros fragmentos de São Marcos
teca Sackler, na cidade universitária de Oxford, anteriores a 300 d.C. Daniela Colomo atribui este
que aloja a maior colecção de papiros antigos frenesi à obsessão pelo século I de alguns investi-
do mundo. Uma mulher italiana vestida com gadores que sonham descobrir um evangelho, ou
uma bata de laboratório conduz-me através de epístola, escritos por um apóstolo.
uma área segura. O seu nome é Daniela Colo- “Entre os especialistas no Novo Testamento,
mo, investigadora as- sobretudo nos EUA, existe uma tendência para
sociada de Oxford e procurar os documentos mais antigos, na espe-
curadora da lendária Para quê rança de encontrar uma autografia da autoria de
colecção de papiros de pessoas que conheceram Jesus”, diz a investi-
Oxyrhynchus.
tanto alarido gadora. “Tendem a atribuir datas muito antigas
Daniela mostra-me em torno de aos papiros, baseando-se em semelhanças alea-
um pedaço de papel bíblias antigas e tórias. Isto não é um comportamento científico.”
alcalino, dobrado Daniel Wallace pediu entretanto desculpas a
como se fosse um so-
pedaços ainda Bart Ehrman por anunciar uma descoberta não
brescrito. Lá dentro, mais antigos de verificada. “Assumo toda a responsabilidade.
vejo um fragmento papiros egípcios? Não fiz a verificação adequada. Foi uma atitude
acastanhado de pa- ingénua”, acrescentou.
piro, pouco maior do
Tudo se resume Talvez fosse ingenuidade esperar que um úni-
que o meu polegar. Se- à questão: co pequeno fragmento resolvesse um longuíssi-
micerrando os olhos, a fé baseia-se mo debate sobre a Bíblia. “Iria mudar a manei-
30 centímetros acima ra de vermos as coisas?” pergunta Bart. “Tenho
dele, consigo discer-
em factos ou quase a certeza de que não. Já disse várias vezes
nir uma série de riscos em ficção? que só se encontrarmos três ou quatro manuscri-
no fragmento antigo. tos antigos em sítios diferentes e todos disserem
“Isto é de São Mar- a mesma coisa teremos um argumento defensá-
cos”, diz a minha in- vel. Só que isso não me parece provável.”
terlocutora. “Data provavelmente de finais do

R
século I ou início do III. Nunca tencionámos to- o homem que escavou
A N DA L L P R I C E ,
mar uma posição oficialmente, mas anda por aí Qumran, também terá de resignar-se e
muita gente a escrever em blogues e a espalhar aceitar estas fracas probabilidades. Só
boatos. Por culpa de toda a publicidade anónima, nos casos mais raros é que os feitos
teremos de publicá-lo em breve.” arqueológicos proporcionam filões em vez de
Daniela Colomo e o seu colega Dirk Obbink, aumentos graduais do conhecimento. A equipa
um papirologista norte-americano e professor constituída por alunos, amigos e familiares de
de Oxford, publicaram as suas conclusões em Price e Gutfeld estava a acabar o trabalho na
Maio. Catalogado como P.Oxy. LXXXIII 5345, Gruta 53 certa manhã, em finais de Janeiro,
este era um dos milhares de fragmentos desen- quando alguém deu um grito. Beverlee, a mulher
terrados por Grenfell e Hunt ainda não plena- de Price, emergiu de uma câmara natural, não uma
mente estudado. A Egypt Exploration Society, gruta propriamente dita, descoberta recentemente
patrocinadora da escavação em Oxyrhynchus e pela equipa. Trazia na mão um objecto de argila
proprietária da colecção, emitiu uma declaração com cerca de cinco centímetros de comprimento.
que inclui o seguinte excerto: “Este é o mesmo Price examina-o. “Sim”, murmura lentamen-
texto que o Professor Obbink mostrou a alguns te. “É um rebordo.” Ou seja: o rebordo do que
visitantes de Oxford em 2011/12, referido por poderá ter sido o recipiente de um manuscrito.
alguns deles em conversas e nas redes sociais, O mais provável é que, independentemente da
dizendo que poderia datar do final do século I proveniência do fragmento, o resto tenha sido
d.C., com base numa datação provisória feita à levado pelos beduínos. No entanto, a Bíblia que
época da catalogação do texto, há muitos anos.” Price lê – e na qual acredita – ensina a ter fé, aci-
As expectativas criadas em torno do famoso ma de tudo.
fragmento de São Marcos, e a subsequente de- “Eh, fora daí!”, grita ele, para dentro da Gru-
silusão, obscureceram a importância da desco- ta 53. “Há muito ainda por escavar!” j

OS CAÇADORES DE BÍBLIAS 35
PASSENDALE
FLANDRES OCIDENTAL, BÉLGICA
Com quase doze mil túmulos, Tyne Cot é o maior
cemitério militar da Commonwealth em todo o mundo.
Em 1922, o rei Jorge V de Inglaterra referiu-se-lhe nestes
termos: “Interrogo-me, com frequência, se nos anos
vindouros poderá existir um defensor da paz mais
poderoso do que esta imensa multidão de testemunhas
silenciosas da desolação da guerra.”
Ecos da Grande Guerra
P O E S I A PA R A D E S C R E V E R A B A R B Á R I E
VERDUN
LORENA, FRANÇA
Tudo o que resta do posto defensivo de Thiaumont
é uma cúpula de observação em aço com sete
toneladas de peso, actualmente abandonada e
desfeita em pedaços. Este bastião estratégico
suportou a dura ofensiva alemã de Verdun, a mais
longa batalha da Primeira Guerra Mundial, concluída
com um balanço de mais de 250 mil mortos.
SOMME
HAUTS-DE-FRANCE, FRANÇA
Em Beaumont-Hamel, a geada cobre as trincheiras
abertas durante a sangrenta batalha do Somme, travada
entre Julho e Novembro de 1916. Esta “paisagem de
combate” é uma das mais bem conservadas da frente
ocidental e integra actualmente o Newfoundland
Memorial Park, criado em homenagem aos soldados
vindos da Terra Nova que ali perderam a vida.
T E X TO D E VICTOR LLORET BLACKBURN
F OTO G RA F I A S D E MICHAEL ST MAUR SHEIL

Não é um assunto sobre o qual


pensemos com frequência,
mas deve ser complicado caminhar
em solo europeu e, de súbito, deixar
de o fazer, quando pisamos os restos
mortais dos nossos antepassados.
Este pensamento, contudo, torna-se omnipresen- Known unto God (“Um soldado da Grande Guerra
te em lugares como Thiepval, Vimy, Beaumont- / cujo nome só Deus sabe”). Junto deste cemité-
-Hamel ou Ypres, quatro povoações – três rio, outro quase idêntico acolhe os túmulos de 300
francesas e uma belga – que foram, entre 1914 e soldados franceses assinalados com cruzes, nas
1918, entre muitas outras, cenários de uma das quais leio uma única palavra: Inconnu (“Desco-
guerras mais sangrentas que a humanidade travou nhecido”). Da identidade de uns e outros sobrevi-
contra si própria: a Grande Guerra. veu apenas a nacionalidade, possível de distinguir
Na primeira destas localidades, uma aldeia na graças aos uniformes dos tombados em combate.
Picardia rodeada de prados ondulantes, bosques Enquanto passeio entre as sepulturas dos
e ribeiros, detenho-me sob o arco de um grande soldados, envolto num misto de respeito e de-
monumento comemorativo que se ergue nos ar- sassossego, vem-me à ideia que também eles se
redores. A distância não me permite ler os milha- surpreenderiam se vissem o aspecto actual do
res de nomes gravados neste memorial de pedra lodaçal que os viu morrer. É tristemente irónico
e tijolo. Pertencem a mais de 72 mil homens que que a indústria da morte, que acabou com as suas
perderam aqui a vida durante a Grande Guerra, vidas e arrasou o Nordeste da França entre 1914
72 mil soldados britânicos e sul-africanos enter- e 1918, tenha dado lugar a estes refúgios, mauso-
rados sob a lama durante a sangrenta batalha léus ajardinados e impecavelmente ordenados: é
do Somme. Os seus corpos não puderam ser re- uma paisagem que não pode estar mais distante
cuperados e sepultados de maneira individual. da visão com que estes homens se despediram da
Mesmo nos casos dos que foram recuperados, vida: uma terra destruída pelas trincheiras e pe-
tornou-se impossível identificá-los. Por isso, os las bombas, juncada de cadáveres.
infelizes combatentes tiveram de descansar para
sempre sob esta gigantesca lápide colectiva.
Se o arco nos fornece os nomes de alguns cor- LE LINGE
pos perdidos, o pequeno cemitério que se esten- ALSÁCIA, FRANÇA
de adiante oferece um complemento macabro: os Os violentos combates travados nesta zona da
restos mortais de trezentos ingleses que perderam frente provocaram cerca de 17 mil vítimas: dez mil
franceses e sete mil alemães. O lugar alberga
a vida e o nome. Cada corpo anónimo repousa sob actualmente dois cemitérios diferentes, o francês
uma lápide que diz A soldier of the Great War / de Wettstein e o alemão de Baerenstall (à direita).

TODAS AS IMAGENS (EXCEPTO AS DAS PÁGINAS 54-55): CORTESIA DE MICHAEL


42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C SAINT MAUR SHEIL / MARY EVANS PICTURE LIBRARY
começara dois anos antes da
O C O N F L I TO B É L I C O da pena de Rudyard Kipling, um poeta que sem-
batalha do Somme, atiçado pela crescente rivalida- pre foi um firme defensor do papel providencial
de económica e pela luta pela hegemonia política da Grã-Bretanha no destino do mundo. Foi tam-
entre as principais potências europeias. A agressiva bém ele quem escolheu uma inscrição que vou
política externa do império austro-húngaro – e, encontrando nos diferentes memoriais: Their
sobretudo, da Alemanha – acelerou o rearmamen- name liveth for evermore (“O seu nome vive para
to. As tensões nos Balcãs não se fizeram esperar, sempre”). A frase é uma citação da Bíblia (Ecle-
culminando no assassínio, em Sarajevo, do arqui- siastes 44, 14). O desejo de Kipling era utilizá-la
duque Francisco Fernando, herdeiro do trono aus- tal e qual figura nas Sagradas Escrituras: Their
tro-húngaro, no dia 28 de Junho de 1914. Uma série bodies are buried in peace, and their name liveth
de declarações de guerra, iniciada em Agosto desse for evermore (“Os seus corpos foram sepultados
ano, conduziria à formação de dois blocos, os “alia- em paz e o seu nome vive para sempre”). Toda-
dos” (França, os impérios britânico e russo, a Sér- via, a primeira parte do versículo não conven-
via, o reino de Itália e os Estados Unidos da ceu a Comissão Imperial dos Túmulos de Guer-
América) e as “potências centrais” (os impérios ra. Talvez fosse demasiado irónico falar em paz,
alemão, austro-húngaro e otomano, e o reino da tendo em conta a natureza das mortes que aqui
Bulgária), cujo confronto selou um desenlace ine- se recordam.
vitável: a primeira das guerras mundiais do século É provável que fosse essa a razão, mas os res-
XX ceifaria mais vítimas do que qualquer outro ponsáveis da Comissão tinham outra preocu-
confronto até então travado no continente euro- pação: pensaram que era demasiado fácil que
peu: morreram cerca de 18 milhões de pessoas alguém acrescentasse um “s” a peace (“paz”), de
entre 1914 e 1918, incluindo alguns milhares de por- forma a que soasse igual a pieces (“pedaços”).
tugueses depois de a Alemanha declarar guerra a Nesse caso, os memoriais transmitiriam uma
Portugal no dia 9 de Março de 1916. mensagem de mau gosto, ofendendo algumas
Estamos em meados de Julho, mas o céu ene- sensibilidades, mas indubitavelmente mais rea-
voado disfarça o Verão nesta região de França. Em lista, informando que o que jaz nestes lugares
Novembro, assinalou-se o primeiro centenário do são os corpos despedaçados de milhares de jo-
armistício, mas os vestígios da guerra permane- vens que morreram em combate.
cem na paisagem e na memória de várias cidades
e povoações francesas, belgas e inglesas. Vêm-me E S TA P E Q U E N A H I S T Ó R I A I L U S T R A C O M R I G O R
à memória recordações da minha infância em a outra frente em que se travou a guerra: a das pala-
Inglaterra, com monumentos, mausoléus e lápi- vras. O conflito não teve lugar apenas entre as duas
des comemorativas erigidos à entrada de tantas facções rivais – também deflagrou na imprensa e
povoações que visitava em criança na companhia na literatura “oficial” e nos testemunhos dos solda-
da minha avó, que me lembrava sempre que essa dos que viviam na Frente Ocidental. Para os pri-
guerra lhe levara um tio quando era bebé. meiros, esta guerra era imprescindível para
A frase gravada nas lápides britânicas do ce- defender “Deus e a Pátria” do malvado inimigo.
mitério de Thiepval – ou, melhor dizendo, nas Para os segundos, o epitáfio mais adequado ao seu
lápides dos soldados do império britânico – saiu sacrifício teria sido, sem dúvida, aquele que recor-

INOVAÇÕES MORTÍFERAS E AVANÇOS TECNOLÓGICOS


ARMAS QUÍMICAS L A N Ç A- C H A M A S TA N Q U E S TRINCHEIRAS
A segunda batalha No início de 1915, Foram utilizados Começaram a ser
de Ypres, travada em ouviram-se as pela primeira vez escavadas na batalha
1915, tem a duvidosa primeiras notícias sobre pelos aliados no do Marne e transforma-
honra de ter sido o uso de lança-chamas dia 15 de Setembro de ram-se na posição
a primeira em que foi pelas forças alemãs, 1916 na batalha de estática que definiria
utilizado gás venenoso perto de Verdun. Flers-Courcelette, a Grande Guerra.
como arma bélica. À semelhança do durante a ofensiva do Segundo o historiador
As máscaras antigás sucedido com o gás, Somme. Os primeiros Paul Fussell, foram
tornaram-se uma os aliados não modelos eram lentos escavados quarenta
das imagens hesitaram em utilizar e pouco fiáveis, mas mil quilómetros
idiossincráticas da os seus próprios semeavam o terror de trincheiras durante
Grande Guerra. modelos da arma. à sua passagem. o conflito.

44 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
dasse os seus corpos, os seus sonhos e a sua juven- R.U.
Passendale
tude descansando “em pedaços”. ld
a
Ypres Bruxelas
a na cha Bayernwald
Entre as muitas novidades trazidas pela Pri- C an
M
Lille BÉLGICA
Vimy
meira Guerra Mundial, uma das mais destacadas
Gommecourt
foi a grande quantidade de soldados que partiram Beaumont-Hamel Thiepval
So
m Ovillers
para a frente não só sabendo ler e escrever, como e
m
P I C A R D I A
também possuindo certas referências literárias. LUX.
Aisne
Ironicamente, a geração mais alfabetizada da his- se
Luxemburgo
Oi
tória encontrou-se num cenário bélico que não Reims
Paris Vauquois Metz
poderia ser descrito com palavras utilizadas em Verdun
IMPÉRIO ALEMÃO
conflitos anteriores. Esta nova guerra, moderna

no
a
Sen

Re
FRANÇA Estrasburgo
mas mais desumana e devastadora do que qual-

A
use
quer outra, deixou inúmeras cicatrizes em França

CI
Me


Le Linge
e na Bélgica, não só na paisagem ou no imaginá-

AL
rio colectivo, mas também no idioma. A literatura Frente Ocidental 1918
e as palavras geradas por este conflito atravessa- (Linha do armistício)
Basileia
Frente Ocidental 1914
ram fronteiras e ainda estão presentes na nossa S UÍ ÇA

sociedade. Duas das expressões com origem na


Grande Guerra que ainda continuam em uso são Após a invasão da Bélgica e do Luxemburgo pelo
exército alemão em 1914 e os combates travados
“terra de ninguém” e “guerra de trincheiras”. para controlar militarmente o Nordeste de França,
Durante os dias passados a visitar as povoa- os aliados tentaram impedir o avanço alemão ao
ções que foram testemunhas involuntárias de longo de uma linha que se estendia do canal da
Mancha até à Suíça. A frente ocidental da guerra
tanta destruição, faço-me acompanhar pelos praticamente não se deslocou, enquanto os dois
textos do mais trágico dos autores conhecidos contendores iam posicionando autênticas legiões
em Inglaterra como os “poetas da Guerra”: Wil- numa atroz guerra de trincheiras.
fred Owen. Tanto ele como Siegfried Sassoon,
Edmund Blunden e Robert Graves esforçaram-se
por transmitir aos seus contemporâneos o horror
descarnado que encontraram em França. O fragmento, escolhido pela própria mãe do
Owen foi o único dos quatro poetas que nunca escritor, parece sugerir que o poeta acreditava
regressou a casa. O seu túmulo, no cemitério co- que a vida eterna anularia a sua morte. Porém,
munitário da povoação francesa de Ors, a cerca embora este desígnio correspondesse às crenças
de 90 quilómetros de Lille, é outra amostra de de Susan Owen, mãe do falecido, na verdade não
como é fácil manipular a língua, neste caso, des- correspondia às do filho. Se procurarmos o poe-
pojando-a do seu contexto. Leio as suas próprias ma original completo, veremos que o epitáfio do
palavras na lápide: poeta é seguido por estes versos:

Renovará a vida estes corpos? De uma verdade Toda a morte anulará, todas as lágrimas
Toda a morte anulará. secará?

OS “PEQUENOS CURIE” N E U RO S E D E G U E R R A CAPACETES E UNIFORMES TERRA, MAR… E AR


Pouco depois da Hoje conhecida como No início da guerra, os Embora inicialmente
descoberta da radiogra- transtorno de stress soldados franceses considerada uma
fia e das suas utilizações pós-traumático, foi na envergavam os excentricidade, a
médicas, Marie Curie, Grande Guerra que se uniformes coloridos do aviação foi adquirindo
vencedora do Prémio começou a observar exército colonial do protagonismo ao longo
Nobel que descobrira o uma doença nos século XIX. Os cuiras- do conflito. Libertos da
rádio e o polónio, soldados que tinham siers franceses chega- lama das trincheiras, os
inventou máquinas de sofrido traumas ram a usar armaduras e aviadores eram vistos
raios X portáteis para provocados pelos capacetes com plumas. como os combatentes
fazer radiografias na bombardeamentos Cedo se descobriu que mais parecidos com a
frente: eram os constantes e pelo horror isso tornava-os alvos figura de um cavaleiro
pequenos Curie. do quotidiano. demasiado fáceis. tradicional.

ECOS DA GRANDE GUERRA 45


É uma pergunta extremamente difícil de res- Este doloroso conflito entre a necessidade de
ponder, mas que encontra resposta do próprio uma mãe acreditar num plano superior e a triste-
autor no final da obra (muito adequadamente za do filho, que perdeu toda a fé e está consciente
intitulada «O fim»): de que a sua morte significará o final prematuro
das ilusões, encapsula o abismo que separava
O meu coração valente encolhe-se, magoado. a mentalidade das famílias como a de Wilfred
É a morte. Owen da duríssima realidade suportada pelos
As minhas velhas cicatrizes não serão soldados na frente de combate.
glorificadas, O epitáfio de Owen também torna claro que,
Nem minhas lágrimas titânicas, os mares, tal como acontecera com as palavras de Kipling,
serão secas. nos anos da guerra existia forte consciência so-

46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
BAYERNWALD
FLANDRES OCIDENTAL,
BÉLGICA
Para deter o avanço dos britânicos, os alemães
construíram em Bayernwald, perto da povoação
belga de Ypres, esta rede de trincheiras com cinco
casamatas, dois túneis e poços. Boa parte da
Grande Guerra travou-se em trincheiras como esta,
nas quais os exércitos combatiam abrigados atrás
de linhas de fortificação escavadas no solo.
Combates encarniçados para conquistar terreno
revelavam pouca eficácia e produziam um elevado
número de baixas.

Se pudesses ouvir, a cada impacte, o sangue


Brotando espumoso dos pulmões,
Obsceno como o cancro, amargo como o bolo
De chagas vis e incuráveis em línguas
inocentes,
Não dirias, meu amigo, com tanta força
Aos jovens ávidos de uma glória desesperada,
A velha mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori.

Leio estes versos à sombra de uma das figuras


mais imponentes do memorial de Vimy, chama-
da Luto do Canadá. A esbelta escultura, cabisbai-
xa e coberta com uma capa lânguida, representa
simbolicamente o Canadá como uma mulher jo-
vem e abatida pela perda dos seus filhos, caídos
em combate. Perante tal cenografia, não posso
deixar de sentir uma certa amargura ao ler, no
mesmo monumento, evocações da pátria, da gló-
ria ou da honra, denominador comum destes e
de tantos outros memoriais.

O DEBATE SOBRE A RECORDAÇÃO dos mortos man-


tém-se vivo no Reino Unido. No dia 11 de Novem-
bro, comemorou-se não só o final da Primeira
Guerra Mundial, como o Remembrance Day
(“Dia da Memória”). Neste dia, considera-se um
dever patriótico exibir uma papoila de papel em
homenagem àqueles que deram a vida em defesa
bre a importância da linguagem e o cerimonial da pátria. Este emblema floral, que encontro em
da morte. E esta é uma das inquietações que me todos os memoriais da Commonwealth, deve
acompanham nesta viagem. parte do seu simbolismo a outro poeta: John
Constato que a intenção dos monumentos e McCrae. Médico e soldado canadiano, McCrae
das suas inscrições casa melhor com o discurso compôs “In Flanders fields”, provavelmente o
pró-bélico – que considerava a morte na frente poema mais citado sobre a Grande Guerra. Come-
de combate um desfecho honrado e (por vezes) ça da seguinte forma:
necessário – do que com os versos de Wilfred
Owen. As últimas linhas do poema “Dulce et de- Nos campos da Flandres,
corum est” constituem aliás um exemplo muito florescem as papoilas
claro disso. Entre as cruzes, fila após fila,

ECOS DA GRANDE GUERRA 47


Que marcam o nosso lugar; e no céu cientemente complicado explicar esta guerra no
As cotovias, com o seu canto valente, seu sentido mais global, mais difícil ainda deve
ainda voam ser abordar este episódio específico, que levou ao
Mal sendo ouvidas no meio dos disparos extremo o extermínio quase mecânico de milha-
cá de baixo. res e milhares de jovens recrutas.
Nós somos os mortos. Ainda há poucos dias Até o seu nome, “batalha do Somme”, travada
Estávamos vivos, sentíamos o amanhecer entre 1 de Julho e 18 de Novembro de 1916, é en-
e o calor do sol a pôr-se. ganador, porque uma batalha não costuma durar
Amávamos e éramos amados, quatro meses e meio. O outro termo utilizado é
e agora jazemos, a “ofensiva do Somme”. Pensando neste, a ironia
Nos campos da Flandres. da própria língua sugere-me que, com efeito, há
algo de ofensivo na ideia de enviar vagas de ho-
As papoilas continuam a montar guarda aos mens – e até adolescentes – para uma morte certa
campos da Flandres e à sua vizinha Picardia. Em sob a chuva de balas das metralhadoras alemãs.
todos os memoriais, vejo, além disso, réplicas E só nas primeiras 24 horas de combate morre-
destas flores em papel ou plástico. Também as ram mais de 19 mil soldados da Commonwealth:
vejo em Ypres, uma pequena cidade belga que foi um dia negro, recordado como o pior de toda a
praticamente arrasada e na qual os alemães uti- história do exército britânico. A táctica de bom-
lizaram, pela primeira vez, gás venenoso como bardear durante dias as posições alemãs para de
arma química. No monumento comemorativo seguida mandar a infantaria atacar as linhas ini-
conhecido como Porta de Menin, todos os dias migas produzira resultados desastrosos. As trin-
às 8 horas da noite celebra-se uma cerimónia em cheiras alemãs eram mais sólidas e profundas do
memória dos milhares de soldados que ali mor- que o alto comando britânico imaginara.
reram e cujos corpos nunca foram recuperados. Quando o bombardeamento cessou, os alemães
Após o toque da corneta, alunos da Escola Swey- tiveram tempo de posicionar as suas metralha-
ne Park, no condado inglês de Essex, depositam doras e massacrar os soldados que avançavam na
uma coroa feita com essas papoilas perenes, sua direcção. No entanto, o facto realmente ater-
acompanhadas por um poema, neste caso “For rador foi que durante os quatro meses que durou
the Fallen”, de Laurence Binyon: o ataque dos aliados contra as tropas alemãs no rio
Somme, o marechal de campo Douglas Haig insis-
Não envelhecerão, como envelheceremos nós tiu em repetir a mesma táctica, obtendo resulta-
que fícamos: dos desoladoramente idênticos. Mais de um mi-
A idade não os cansará, nem os anos lhão dos soldados que lutavam sob o seu comando
os condenarão. foram feridos ou mortos: um balanço terrível que
Quando o sol cair e quando amanhecer, lhe granjeou a alcunha de “carniceiro do Somme”.
Recordá-los-emos. Ao analisar esta situação, um século depois dos
acontecimentos, pergunto a mim mesmo o se-
Sinto alguma tristeza ao ler estas palavras e par- guinte: como é possível que estes homens não se
te de mim tem esperança de que os alunos não revoltassem contra a sua sorte? Em busca de algu-
lhes prestem muita atenção. A ideia de não enve- ma resposta, descubro o enorme poder exercido
lhecer pode ser desejável, penso, mas não tenho a pelas palavras, sobretudo na hora de transformar
certeza de que valha a pena se isso implicar mor- os familiares dos soldados em factores de pres-
rer prematuramente em circunstâncias horríveis. são valiosíssimos para assegurar a presença dos
Estariam de facto os homens que descansam nes- jovens na linha da frente ou o seu regresso a ela.
tas terras – alguns dos quais nem 20 anos tinham
quando os mataram – dispostos a pagar um preço
tão alto em troca desta “eterna juventude”?
OVILLERS
Em todas as paragens que faço durante a via- SOMME, FRANÇA
gem, encontro autocarros escolares. Em Beau- Esta pequena aldeia francesa, a cerca de quarenta
mont-Hamel, um dos campos da batalha do quilómetros de Amiens, foi cenário de combates
Somme, há três: dois são de Inglaterra e um veio intensos e prolongados. O cemitério militar
alberga 3.559 túmulos, na sua maioria de soldados
da Escócia. Ao ver os professores tentando pôr britânicos, mas também franceses, canadianos,
ordem nos seus alunos, penso que, se já é sufi- australianos, neozelandeses e sul-africanos.

48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
VESTÍGIOS DO CONFLITO
O rasto da Grande Guerra continua presente na rum britânica hoje utilizada como isolante numa cerca
paisagem e na memória de várias povoações que eléctrica de Ypres, na Bélgica; restos da bota de um
foram palco dos combates. Em sentido horário, a soldado francês encontrada numa trincheira alemã
partir do topo esquerdo: uma vedação de arame em Vauquois, em França. À direita, memórias vivas da
alemã, ainda utilizada cem anos depois, em Passen- batalha aqui travada em 1916: munições (em cima) e
dale, na Bélgica; uma granada de mão em La Main de fragmentos de armas (em baixo) no jardim de uma
Massiges, em França; o gargalo de uma garrafa de casa particular, na região administrativa do Somme.

50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
No magnífico museu da povoação de Péronne, zer, fê-lo o inimigo com grande perícia e cálculos
também uma circunscrição administrativa da brilhantes. Aprendi muito sobre a propaganda de
região do Somme, observo vários cartazes que guerra dos inimigos.”
apelam, sem dissimulação, aos sentimentos dos
implicados. Chama-me a atenção um que mos- APESAR DO SUCESSO DA PROPAGANDA para evitar
tra um pai com dois filhos. A menina pergun- deserções, nas trincheiras ergueram-se vozes de
ta: “Papá, o que fizeste tu na Grande Guerra?” protesto. Uma das mais famosas foi justamente a
O olhar envergonhado do pai parece indicar que de um dos “poetas da Guerra” de maior destaque:
não fez muito. O mais certo seria que um homem Siegfried Sassoon. Foi um dos primeiros a alistar-
que lutasse nessa guerra tivesse uma probabili- -se, antes até do início do conflito. Nos seus pri-
dade assustadoramente elevada de não chegar a meiros poemas, ainda revelava uma concepção
ser pai na vida. Assim sendo, nem o pai nem os fi- romântica e idealista da guerra, mas a realidade
lhos que inspiraram aquele cartaz estariam ali… crua depressa maculou a sua inocência de san-
Adolf Hitler, que combateu na campanha do gue e lama e, pouco depois de chegar às trinchei-
Somme e ali ficou ferido, viu de forma muito cla- ras, começou a sentir-se enjoado e horrorizado
ra a relevância da propaganda aliada na vitória com a indústria da morte na qual estava a parti-
dos seus inimigos. Em “Mein Kampf”, afirmou cipar. Na sua obra, criticou também a atitude dos
ter sido a experiência da Grande Guerra que o compatriotas que não estavam na frente de com-
“motivou a investigar a propaganda com mais bate, como revela o seu poema “A glória das
profundidade […], o que nós não conseguimos fa- mulheres”, de 1917:

52 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
aproveitou uma licença para estabelecer relações
com activistas como o filósofo Bertrand Russell.
Quando chegou a altura de regressar à frente,
Sassoon decidiu que já lhe bastara. Redigiu uma
carta intitulada “Acabei com a guerra: declaração
de um soldado”, que enviou à imprensa para ser
publicada e lida no Parlamento Britânico, onde
a sua declaração antibélica não suscitou grande
simpatia. O texto terminava assim:

“Vi e suportei o sofrimento das tropas e não posso


continuar a ser partidário do prolongamento destes
sofrimentos para fins que considero maus e injustos.
Não protesto contra a direcção da guerra, mas con-
tra os erros políticos e a falta de sinceridade para
com os soldados que estão a ser sacrificados. Do lado
dos que sofrem, faço este protesto contra o engano de
que estão a ser vítimas; também acredito que posso
ajudar a destruir a complacência insensível com a
qual a maioria dos que estão em casa apoiam a con-
GOMMECOURT, tinuação de agonias que não conhecem e que não
SOMME, HAUTS-DE- têm imaginação suficiente para conhecer.”
-FRANCE, FRANÇA
Uma casamata britânica
construída em 1918 nas Enquanto esteve na frente, o poeta britânico
proximidades de ganhou a alcunha de Mad Jack pela sua atitude
Hébuterne parece vigiar
as forças alemãs despreocupada face à sua própria segurança. Em
posicionadas em 1916, foi condecorado com a Cruz Militar pela
Gommecourt. A batalha coragem demonstrada ao recolher feridos e mor-
do Somme travou-se
numa frente com cerca tos sob fogo inimigo. Também foi recomendado
de 40 quilómetros, a para a Victoria Cross, a mais alta condecoração
norte e a sul do rio com militar britânica, por ter capturado uma trinchei-
o mesmo nome.
ra alemã sozinho. No entanto, depois de publicar
o seu apaixonado apelo sobre a futilidade da
Quereis-nos quando somos heróis, guerra, nenhum destes gestos parecia poder im-
de licença em casa, pedir que fosse julgado por um tribunal militar.
Ou feridos em algum sítio mencionável. Só se salvou graças à intervenção de outro poeta,
Adorais as condecorações; credes Robert Graves, que convenceu as autoridades de
Que o cavalheirismo redime que Sassoon não estava no pleno uso das suas fa-
a desgraça da guerra. culdades mentais e não deveria ser julgado.
Fabricais balas para nós. A sua permanência no hospital de guerra de
Escutais com deleite Craiglockhart, perto de Edimburgo, foi providen-
Histórias sujas e perigosas cial para a poesia de Wilfred Owen, que ali recebia
cheias de emoção. tratamento para o stress pós-traumático neste cen-
Exaltais nosso distante ardor tro escocês. Soldados e poetas, tornaram-se amigos
enquanto combatemos, e Owen aperfeiçoou a sua técnica poética graças
E chorais a nossa laureada memória aos conselhos e ao exemplo de Sassoon. Embora
quando morremos. conscientes da barbárie e insensatez que os aguar-
dava em França, ambos acabaram por regressar à
O sentimento de raiva que acometia Sassoon frente. Continuavam a abominar a guerra e tudo
foi aumentando à medida que os seus compa- o que a rodeava, mas o seu sentido de dever, a sua
nheiros e amigos morriam no lodo. Na sua cru- consideração para com os companheiros e o seu
zada pessoal contra a guerra, o poeta interessou- desejo de se tornarem porta-vozes dessa juventude
-se pelos movimentos pacifistas da época e até perdida empurrou-os para a frente, apesar de tudo.

ECOS DA GRANDE GUERRA 53


VIMY
HAUTS-DE FRANCE, FRANÇA
A escultura de uma mulher em pose abatida,
envergando capa e capuz, ergue-se no alto da
colina de Vimy. Representa o Canadá e faz parte do
monumento que presta homenagem aos cerca de
sessenta mil soldados desse país que perderam a
vida nos campos de combate franceses.
JAVIER GONZÁLEZ PRIETO

Sassoon foi promovido a tenente antes de ser


ferido na cabeça e repatriado para a Grã-Breta-
nha. Owen morreu em combate precisamente
uma semana antes de as armas, finalmente, se
calarem. O seu legado literário floresceu, em
grande parte, graças ao empenho do amigo que
ajudou a celebrizar a sua produção.
Quando a guerra terminou, no dia 11 de Novem-
bro de 1918, muitos dos que nela tinham comba-
tido exprimiram a esperança de que se iniciasse
um período de reflexão profunda na Europa e no
outro lado do Atlântico. Esperavam que os sacri-
fícios de quatro intermináveis anos de fogo, san-
gue e destruição servissem para que essa guerra,
que matara mais pessoas do que qualquer outra
na história do Velho Continente, fosse a última
de todas. Queriam, no fundo, que o mundo intei-
ro percebesse que o nacionalismo implicava uma
horrível combinação quando associado à tecnolo-
gia dedicada à morte. Nada disso aconteceu e, es-
cassos anos depois do fim da guerra, já emergiam
em vários países europeus os primeiros sintomas
de uma doença ainda mais virulenta.

na Bélgica, há um
E M C O M I N E S - WA R N E T O N ,
pequeno memorial diferente de todos os outros. Não
está aqui para recordar os mortos, bem pelo contrá-
rio: é a celebração de uma pequena centelha de espe-
rança, que brilhou no dia de Natal de 1914, quando os
soldados das duas trincheiras inimigas deixaram de
lado os seus uniformes para trocar presentes, cantar
juntos e disputarem um jogo de futebol. Muitos deles
nunca tinham visto o inimigo supostamente temível
cara a cara e, quando isso aconteceu, foram obriga-
dos a repensar os motivos pelos quais estavam a ten-
tar matar-se uns aos outros. Temendo este
precedente, os comandos militares proibiram a repe-
tição deste tipo de tréguas espontâneas no futuro.
Enquanto contemplo os balões e lenços que decoram
o monumento que a UEFA aqui erigiu para comemo-
rar esse jogo de futebol, rezo – não sei exactamente a
quem – para que um dia a retórica bélica seja apenas
uma reminiscência do passado… e do futebol. j

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OS
PUMAS
A PROTECÇÃO DOS
GRANDES FELINOS
DO CHILE TEM UM
P R E Ç O MU I T O A LT O

DA
PARA OS CRIAD ORES
DE OVELHAS D O PAÍS.
PODERÁ O TURISMO
SER A SOLUÇÃO?

PATAGÓNIA T E X TO D E ELIZABETH ROYTE


FOTOGRAFIAS DE INGO ARNDT

56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
57
58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Arbustos semelhantes a
almofadas e fragmentos
de rocha não apoquen-
tam a puma conhecida
como Sarmiento (ao
centro), nem as suas
crias de 11 meses,
aninhadas num sítio alto
no final de um dia de
Inverno junto do lago
Sarmiento, nos arredo-
res do Parque Nacional
de Torres del Paine, no
Chile. A matriarca, que
criou várias gerações de
crias, passa a maior
parte do tempo a caçar
e a dormir junto das
margens do lago.
À ESQUERDA

Indiferente aos ventos


fortíssimos que agitam
as águas do lago,
Sarmiento parece
divertir-se e até toma a
iniciativa de brincar com
as crias nas formações
calcárias brancas
conhecidas como
estromatólitos.
As rochas conservam
o calor do sol e as
numerosas grutas
junto da orla do lago
fornecem abrigos
para os felinos, embora
os únicos predadores
dos pumas chilenos
sejam os seres humanos.

A cobertura fotográfica desta


reportagem foi financiada
pela marca desportiva Puma.

P U M A S DA PATAG Ó N I A 59
Ensanduichada entre arbustos, numa
encosta fustigada pelo vento junto da
fronteira meridional do Parque Nacional
de Torres del Paine, observo três crias de
cor castanho-amarelada tropeçarem e
correrem junto da margem de um lago
em tons azulados, testando a sua força,
dentição e estatuto social. De vez em
quando, a progenitora, conhecida como
Sarmiento, pára para avaliar a situação.
Os seus olhos verdes mostram-se calmos.

Quando o quarteto alcança uma península, um enfrentarem a concorrência de outras espécies de


relógio de pumas parece ser activado: a progenitora mamíferos predadores, como os lobos.
e as crias aninham-se no interior de uma rocha em O Parque de Torres del Paine reúne mais de
forma de donut e fazem aquilo que os felinos sabem duzentos mil hectares de picos graníticos, pra-
fazer como ninguém: dormem uma sesta. darias, florestas subárcticas e lagos varridos pelo
Distribuído entre o Sul do Alasca e o Sul do Chi- vento. É o lugar certo para avistar este predador
le, o Puma concolor ocupa o território mais exten- de topo em ambiente selvagem. A paisagem é
so entre todos os mamíferos terrestres no hemis- ampla e aberta e muitos pumas já se habituaram
fério ocidental. Os cientistas suspeitam que exis- à presença humana desde que o turismo aumen-
tem maiores concentrações de pumas na região tou. À semelhança das crias de Sarmiento junto
em redor de Torres del Paine do que em qualquer da margem do lago, os pumas passeiam, caçam,
outro lugar. Isso deve-se sobretudo ao facto de os cuidam da sua higiene, acasalam e brincam, apa-
pumas disporem de bastantes presas (guanacos, rentemente ignorando os visitantes sorridentes
lebres), gozarem de protecção no parque e não que se cruzam com eles.

60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A
Mt. Pietrobelli
2.850m
P.N. DOS

C am p o d e g e lo
GLACIARES O ecoturismo está a
penetrar em ranchos
como Refúgio Laguna
AUMENTO
do S ul d a Amarga, cujos hóspedes
sonham com o avista- DO APETITE
N

mento de um puma em A população de pumas no Parque


Pata g ó ni a ambiente selvagem.
PARQ U E NAC .
Nacional de Torres del Paine
aumentou, mas os felinos estão a
ultrapassar as fronteiras do parque

ARGENTINA
para caçarem ovelhas. As suas
B E RNARD O

CHILE
incursões parecem acontecer ao sabor
do acaso: num inquérito realizado com
D

rancheiros chilenos, a maioria admitiu


O ’ H I GGI NS Paine Grande que já avistara pumas nas suas terras.
2.884m nto
Sarmie
L. Avistamentos de pumas*
PA R Q U E N A C I O N A L
nos ranchos chilenos
T O R R E S D E L PA I N E (Junho 2017 a Junho 2018)
E

Mais de 10
ro 6 a 10
To 1a5 Sem avistamentos
L . De l Cerro Castillo
Cancha
Carrera
S

Distribuição do puma
(Puma concolor)

AMÉRICA
Actual
DO NORTE
Histórica
Rio Turbio
Os territórios rochosos e
protegidos a oeste do
parque são maus
territórios de caça: não
Puerto Prat Veintiocho
existem ranchos e a área de Noviembre
situa-se para lá do
domínio da presa dos
pumas, os guanacos, o que AMÉRICA
mantém os pumas a leste. Incerto
Puerto Natales
DO SUL
Mt. Sarmiento A
1.925m
R
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0 mi 10

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0 km 10

Desejosos de ver mais pumas em acção, eu e o dade a sudeste de Torres del Paine, tirou um raro
meu guia, Jorge Cardenas, acompanhamos os pre- dia de folga para exprimir as suas preocupações.
dadores ao longo de vários dias, com os ouvidos “No início do mês, vendi quatrocentas ovelhas”,
bem atentos aos gritos agudos de alarme dos gua- diz calmamente. “Cinco dias depois, só tinha 370
nacos. É uma indicação segura de que há pumas a para entregar ao comprador. Um puma levou-me
caçar. Não vemos nenhum puma a matar, mas mais 30 numa só noite.” Outros rancheiros acenam
tarde, num encontro organizado pelo grupo de com a cabeça, num gesto de solidariedade.
conservação Panthera, apercebo-me do caos que a Durante mais de um século, homens como
crescente população de pumas da região pode de- Kroeger montaram a cavalo, usaram armas e re-
sencadear. A reunião tem lugar num hotel de Cerro correram a cães de guarda e de caça para contro-
Castillo e reúne funcionários governamentais, bió- lar a população de pumas da região. No entanto,
logos, guias turísticos e criadores de gado. quando o governo chileno criou o Parque de Tor-
Arturo Kroeger Vidal, um criador de ovelhas de res del Paine na década de 1970, interditou tam-
segunda geração que explora uma grande proprie- bém a caça ao puma e ao guanaco.
* DADOS SOBRE AVISTAMENTO DE PUMAS, BASEADOS EM ENTREVISTAS REALIZADAS PELA ORGANIZAÇÃO PANTHERA A 45 RANCHEIROS CHILENOS.
SOREN WALLJASPER. FONTES: MARK ELBROCH, PROGRAMA PUMA, PANTHERA; UICN; INFRA-ESTRUTURA DE DADOS GEOESPACIAIS DO CHILE; SISTEMA DE INFORMAÇÃO
DE BIODIVERSIDADE (ARGENTINA); ©OPENSTREETMAP CONTRIBUTORS, DISPONÍVEL EM BASE DE DADOS ABERTA; GLIMS
O número de animais subiu significativamente local e nem todos dispõem de bom pasto para bovi-
e ambos, predadores e presas, começaram a mi- nos. Também é possível recorrer a cães para pro-
grar para fora do parque em busca de sustento, teger as ovelhas, diz o rancheiro e criador de cães
invadindo ranchos privados. Jose Antonio Kusanovic, que caçou pumas antes
“A criação do parque foi terrível para os ran- de se dedicar ao treino de cães. Só que um cão de
cheiros”, resume Arturo Kroeger. Alguns pu- guarda custa 1.320 euros, acrescidos de despesas
mas, ao saírem do parque, começaram a atacar com alimentação e cuidados veterinários. São pre-
ovelhas. Segundo as estimativas dos rancheiros, cisos vários cães para guardar rebanhos com duas
os pumas devoraram trinta mil ovelhas desde a três mil ovelhas. É muito mais barato contratar
a criação do parque, provocando uma descida um leonero, um caçador de pumas.
substancial nas receitas da venda de carne e lã. O norte-americano Charles Munn, gerente de
Os guias e alguns vigilantes do parque calculam empresas de ecoturismo, levanta-se para falar.
que existem 50 a 100 pumas no parque. Fora do “Criei uma indústria baseada em turismo do ja-
parque, onde ainda não foram contabilizados com guar no Pantanal brasileiro. Os pumas podem ge-
exactidão, os criadores de gado admitem matar rar muito dinheiro para a comunidade.”
cem felinos por ano. “A criação de gado é a nos- Os criadores de gado resmungam. Sabem que
sa actividade económica”, resume Victor Manuel não podem cobrar dinheiro a turistas para segui-
Sharp na mesma reunião. “O que podemos fazer?” rem pumas nas suas terras se continuarem a ma-
tá-los. Aliás, o governo chileno só permite que os
UM A O P Ç ÃO consiste em trocar as ovelhas por rancheiros matem pumas se houver provas de que
vacas, demasiado grandes para os pumas tentarem o animal matou uma ovelha, mas a maioria dos
caçá-las. No entanto, a pastorícia é uma tradição criadores nem sequer tenta obter uma licença.

62 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Paine. Os Goic abriram o seu rancho à observação
de pumas em 2015, quando o parque começou a
aplicar leis que obrigavam os visitantes e os guias
a permanecerem nos trilhos, limitando desse
modo as probabilidades de avistar pumas. “Sen-
tíamo-nos preocupados com a segurança das pes-
soas”, explica o superintendente do parque, Mi-
chael Arcos. Pressionados pelos clientes, alguns
guias independentes seguiam os predadores du-
rante a noite, utilizando luzes, e aproximavam-se
demasiado dos animais. Até hoje, registou-se um
único encontro fatal com um puma em Torres del
Paine, o parque mais visitado do Chile, e as auto-
ridades querem manter esse registo.
O método cauteloso do parque relativamen-
te ao turismo será mantido até que os cientistas
consigam calcular quantos pumas ali vivem,
quais as distâncias que percorrem, os seus há-
bitos alimentares e os seus comportamentos so-
Sarmiento esperou ciais. A investigação demorará anos e implicará
deitada, atrás de
arbustos, durante uma levantamentos com câmaras térmicas, pumas
hora antes de saltar atrás com coleiras GPS, cães de guarda em ranchos
de um guanaco. Depois, particularmente vulneráveis e cães farejadores
perseguiu a presa
ao longo de mais de de fezes (o DNA contido nas fezes pode revelar
cem metros de pradaria quantos pumas vivem na área).
acidentada durante A informação recolhida será utilizada para
outra meia hora.
O macho adulto e forte elaborar planos de conservação e tornar o turis-
vira-se para o lado e mo de observação de pumas mais seguro para os
tenta escapar à sua felinos e para os seres humanos. As receitas tu-
inimiga de garras afiadas.
rísticas poderão até contribuir para indemnizar
os criadores de gado. A ideia é tornar fundamen-
“Está a dizer que temos de alimentar os pumas tais os predadores, pois são eles que mantêm sob
para que o senhor tenha mais pumas para o tu- controlo as populações de presas e são também
rismo”, afirma outro rancheiro, com brusquidão. tão valiosos para a economia da região como o
“Estou demasiado velho para me converter em são para a integridade ambiental.
guia turístico.” Continua a ser mais provável que os pumas
Charles Munn aponta para os irmãos Goic, To- comam guanacos em vez de ovelhas. No entanto,
mislav e Juan, sentados ao fundo da sala. Ao lon- esse é um fraco consolo para pessoas como Jorge
go dos anos, as suas 5.500 ovelhas, que pastavam Portales, criador de gado que conta aos presentes
junto da fronteira oriental do parque, diminuí- na reunião que, numa só estação, perdeu 24% das
ram para cerca de cem. Foram essencialmente suas ovelhas (600 animais) por causa dos pumas.
vítimas de um terrível nevão e da constante per- Passou a criar gado bovino e depois reintroduziu
seguição movida pelos pumas. Agora, cerca de as ovelhas, juntamente com cães de guarda, mas
oitocentos turistas pagam somas generosas aos os pumas continuaram a atacá-las. “É o preço a
Goic todos os anos para percorrerem a sua pro- pagar por viver perto de Torres del Paine”, diz
priedade de 62 quilómetros quadrados, a pé e de com um suspiro. “Agora já deixámos de ter ove-
automóvel, acompanhados por um guia e por um lhas.” Entretanto, vocacionou o rancho para o tu-
batedor e equipados com binóculos potentes. rismo, vendendo passeios a cavalo e churrascos
No rancho dos Goic, é quase garantido que de carne de borrego. O turismo de observação de
os hóspedes avistem Sarmiento e as suas crias, pumas, diz, será o passo seguinte.
o magricela Arlo ou a descontraída Hermanita, Os outros criadores de gado não tecem comen-
que gosta de passear junto da vedação que separa tários. Desafiadores e orgulhosos, vão resistir
a propriedade dos Goic do Parque de Torres del enquanto puderem. j

P U M A S DA PATAG Ó N I A 63
Charqueado (à
esquerda), um filho de
Sarmiento com 4 anos,
corteja e persegue uma
fêmea durante um dia
inteiro, rangendo os
dentes e grunhindo. Já
acasalou com ela cinco
vezes no espaço de uma
hora e num local
relativamente exposto,
segundo o fotógrafo
Ingo Arndt. Depois, em
vez de se retirar para um
local seguro, o casal
passeou até este
promontório numa
propriedade privada.
junto do Parque Nacional
de Torres del Paine.

64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
P U M A S DA PATAG Ó N I A 65
A
CRISE
DO
ÓLEO
DE
PALMA
MALÁSIA
Frutos de palmeira-
-dendém, colhidos à
mão, são transportados
de camião até uma
fábrica para transfor-
mação na Malásia.
As palmeiras-dendém
rendem mais óleo por
hectare do que
qualquer outra cultura,
mas a crescente procura
pelo óleo vegetal mais
popular do mundo
causou desflorestação
generalizada e perdas
de vida selvagem na
Indonésia e na Malásia,
os dois maiores
produtores.
PASCAL MAITRE

O APETITE DO PLANETA POR ÓLEO DE PALMA ASIÁTICO AFECTA O AMBIENTE E A VIDA


SELVAGEM. NO GABÃO, PROCURA-SE DEMONSTRAR QUE É POSSÍVEL CONSTRUIR UMA
INDÚSTRIA AO MESMO TEMPO QUE SE PRESERVAM AS FLORESTAS.

T E X TO D E F OTO G R A F I A S D E
H I L L A RY DAV I D G U T T E N F E L D E R
RO S N E R E PA S C A L M A I T R E

67
68 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
REPÚBLICA
DEMOCRÁTICA
DO CONGO
Trabalhadores de uma
fábrica na República
Democrática do Congo
transferem os frutos da
palmeira de um vapori-
zador que os amoleceu
antes da prensagem.
A palmeira-dendém
é natural da África
Ocidental e Central e
as plantações comerciais
estão agora a expandir-
-se nesta região. Se se
registar um crescimento
acelerado em larga
escala, poderá interferir
em habitats cruciais
para os grandes símios,
os elefantes da floresta
e outras espécies
ameaçadas.
PASCAL MAITRE

Ó L EO D E PA L M A 69
INDONÉSIA
Em 2015, esta floresta
que cresce em zonas de
turfeiras na ilha de
Bornéu foi abatida para
criar espaço para as
palmeiras-dendém.
Nesse ano, a poluição
atmosférica causada na
Indonésia por incêndios
contribuiu pelo menos
para doze mil mortes
prematuras. Quase
metade das emissões
de gases com efeito de
estufa da Indonésia
provém do abate ou da
queima de florestas,
incluindo as que
cobrem turfeiras ricas
em carbono.
KEMAL JUFRI

70 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ó L EO D E PA L M A 71
NO
Sudoeste do
Gabão, a floresta
de crescimento
antigo estende-se
por centenas de
quilómetros.
Numa manhã de
Janeiro, desço de
um barco estreito e desembarco na margem do rio
Ngounié, acompanhado por alguns colaboradores
da Olam, uma empresa agro-industrial sediada em
Singapura. Seguindo trilhos de elefantes, mergu-
lhamos na floresta. Passamos por árvores antigas
e altíssimas, ninhos de chimpanzés e pilhas de
excremento de gorila com menos de 24 horas. Os
macacos fogem de nós nas copas. Um jovem vigi-
lante da natureza da Olam arranca as botas e trepa
por um tronco, de pés descalços, regressando com
as mãos cheias de frutos cor-de-rosa, semelhantes
a ameixas.
Mais adiante, encontramos pelo caminho
mangas selvagens, nozes e casca de árvore que
cheira a alho. Numa clareira pintalgada de man-
chas de sol, vêem-se peixes a chapinhar numa
poça de água. As árvores em redor foram arra-
nhadas por presas de elefante.
Estar aqui, iluminada por esta luz filtrada pe-
las copias, e imaginar que tudo isto possa ser ar-
rasado corta-me o coração.
Este lugar não é um parque, nem faz parte de
qualquer reserva, mas integra a plantação de
palmeiras oleaginosas gerida pela Olam. Se es- BENIM
tivéssemos na Indonésia ou na Malásia (os dois
maiores produtores mundiais de óleo de palma) O óleo de palma é um
produto de primeira
os madeireiros e os bulldozzers poderiam estar necessidade ancestral
prestes a deitar abaixo a floresta e a plantar filas na África Ocidental e as
uniformes de palmeira-dendém. suas origens são
artesanais. No Benim, a
A palmeira-dendém, com cachos gigantes de maior parte do óleo de
frutos vermelhos refulgindo sob as copas desor- palma ainda é produ-
denadas, é uma antiga cultura de subsistência. zida pelas mulheres
para utilização domés-
Durante milénios, os seres humanos ferveram tica. O fruto é fervido e
e esmagaram os seus frutos para extraírem óleo triturado para extrair o
alimentar, queimaram as cascas que envolvem óleo da polpa. Nesta
imagem, uma mulher
as sementes para gerarem calor e teceram as fo- separa as fibras e cascas
lhas para produzirem tudo – de telhados a cestos. dos frutos da mistura
Nas últimas duas ou três décadas, porém, o con- oleosa, que pode ser
fervida de novo para
sumo de óleo de palma aumentou explosivamen- clarificar o óleo.
te, em parte devido à versatilidade e textura cre- PASCAL MAITRE

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
mosa do óleo e em parte devido à produtividade A nível mundial, a procura de óleo de palma
das árvores. Precisam apenas de metade do solo continua a crescer. A Índia é o maior consumi-
exigido por outras culturas como a soja para pro- dor, com 17% do total mundial, seguida pela
duzir a mesma quantidade de óleo. Indonésia, a União Europeia e a China. Neste
O óleo de palma é hoje o óleo vegetal mais momento, os Estados Unidos ocupam a oitava
popular em todo o mundo, representando um posição. Prevê-se que, em 2018, o consumo mun-
terço do consumo global. É um óleo de cozinha dial atinja 65,5 milhões de toneladas. Ou cerca de
vulgarmente utilizado na Índia e noutros paí- nove quilogramas de óleo de palma por pessoa.
ses. Como ingrediente, é quase impossível evi- Para satisfazer esta procura há que pagar um
tar a sua omnipresença. Encontra-se presente, preço elevado. Desde 1973, 41 mil quilómetros qua-
sob múltiplas formas, em bolachas, massa para drados de floresta virgem do Bornéu, a ilha parti-
pizza, pão, batons, loções e sabões. Existe mes- lhada pela Malásia, pelo Brunei e pela Indonésia,
mo no biodiesel supostamente amigo do am- foram abatidos, queimados e arrasados para abrir
biente: em 2017, 51% do óleo de palma consumi- caminho à palmeira oleaginosa. Esta representa
do na União Europeia destinou-se aos motores um quinto do total desflorestado no Bornéu desde
de automóveis e camiões. 1973 e 47% da desflorestação ocorrida desde 2000.

Ó L EO D E PA L M A 73
Estearinas
Margarina

Super oleína Estearina dupla


Óleos de Sopa em pó e Concentrado
fritura fermento para Recheios, óleos
industriais bolos de fritura

Estearina IE
Massa de
pizza e outras

ENTO
gorduras

FRACCIONAM
FRACCIONAMENTO
Óleo de

FR

FR
AC
palmeira

ÃO
AC
Ácidos gordos

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vermelha


C
Comida

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de bebés

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Recheios de

IL
ST
bolachas

DE
GLICER Oleína RBD* Estearina RBD*
ÓLI Pastelaria,
SE Snacks, óleos de
cozinha margarina,
sabões,
manteiga
Emulsificadores clarificada
Margarina, bolachas, INTERESTER
IFIC
bolos, gelados, AÇ
ÃO
pão

Palmeira IE Óleo de palma RBD*


Compostos RE Gelados, sopas,
FIN
secos AÇ recheio de bolachas,
ÃO margarinas

ÃO

Tocotrienóis Óleo de palma RBD*


FIN

Suplementos Gorduras, óleos de


RE

nutricionais fritura

A ÁRVORE
ÃO

Óleo

em
UR

bruto
IT
TR

DA Óleo de

ABUNDÂNCIA
Resíduos do fruto Núcleo
palma em
Biodiesel do fruto
bruto

G E M
O A
O abundante óleo do fruto das M

palmeiras-dendém pode ser


encontrado, sob diferentes designa- Cacho do
Palmeira-dendém
ções, em quase todos os produtos. A palmeira-dendém
fruto

Alternativa natural às gorduras é oriunda de África, mas foi


introduzida em todo o mundo.
transgénicas, tem outras vantagens: A árvore é uma máquina de
é barato, de processamento estável produzir óleo, com cerca
de 20 cachos de frutos
e produz pouco fumo. Além disso, no topo do tronco, cada
possui longa durabilidade. qual contendo um máximo
de três mil frutos de palma.
JASON TREAT E RYAN T. WILLIAMS
ARTE: GABY D’ALESSANDRO * RBD SIGNIFICA ÓLEO REFINADO,
FONTE: CONSELHO DO ÓLEO DE PALMA DA MALÁSIA BRANQUEADO E DESODORIZADO.
Toda essa desflorestação tem sido devastadora
Tocotrienóis Químicos para a vida selvagem. Quase 150 mil orangotan-
Suplementos oleaginosos
nutricionais Detergentes,
gos do Bornéu, espécie em perigo crítico de ex-
cosméticos, tinção, pereceram entre 1999 e 2015 e, embora os
biodiesel
principais culpados fossem o abate madeireiro e
a caça, a cultura da palmeira-dendém foi um im-
Ácidos gordos portante factor. Ela também exacerba as altera-
destilados
Rações animais, ções climáticas, pois quase metade das emissões
Ácidos gordos
detergentes
destilados
de gases com efeitos de estufa da Indonésia é
Rações animais, causada pela desflorestação e por outras altera-
detergentes
ções ao ordenamento do território. É ainda uma
causa grave de poluição atmosférica.
As pessoas que se atravessaram no caminho
Oleína
Gorduras das plantações sofreram de outras maneiras. Têm
ÃO
IL AÇ não-lácteas, sido documentados abusos dos direitos huma-
ST margarinas
DE
nos, entre os quais trabalho infantil e despejos
forçados. Na ilha indonésia de Samatra, as em-
presas produtoras de óleo de palma arrasaram al-
Estearina do fruto
AMEN
TO
de palmeira RBD* deias indígenas inteiras, deixando os moradores
RACCION
F Gorduras de sem abrigo e dependentes de subsídios estatais.
cozinha, recheio de
bolachas, gelados, Esse tipo de violência ecológica de vistas cur-
chocolates tas é precisamente o que o Gabão pretende evitar.
ÇÃO
TILA O paraíso que visitei não será arrasado: a empresa
DES

Olam protegeu-o, no âmbito de um acordo com o


Estado que permite à empresa a plantação de pal-
DESTIL Glicerol

ÃO Emulsifica-
meira-dendém noutros lugares sob sua concessão.
dores, “No Gabão, estamos a tentar descobrir uma
humectantes,
explosivos
nova via de desenvolvimento que não implique
o abate total da nossa floresta e mantenha um
equilíbrio entre a palmeira-dendém, a agricultu-
ra e a preservação da floresta”, afirma Lee White,
Miolo do núcleo o biólogo conservacionista que dirige o organis-
Ácidos
gordos Rações animais mo estatal responsável pelos parques no Gabão.
Álcool,
No momento em que este país, com menos de
amidos
dois milhões de habitantes, se prepara para avan-
çar com a agricultura de grande escala, o governo
recorre a avaliações científicas para decidir que
GLICERÓLISE
Químico

Ligações químicas quebradas com partes da sua vasta extensão florestal possuem
glicerol, para impedir que o óleo se um elevado valor de conservação e quais podem
separe da água
ser abertas à cultura da palmeira-dendém.
Casca INTERE STERIFICAÇÃO (IE)
(mesocarpo) Ácidos gordos reorganizados de Em África, como no Sudeste Asiático, esta cul-
modo a alterar o ponto de fusão tura chegou para ficar. Os países produtores de-
DE STILAÇÃO
Núcleo
Óleo aquecido e arrefecido para
pendem do seu rendimento. O boicote ao óleo de
extrair os ácidos gordos palma não é sensato: as culturas de oleaginosas
FRACCIONAMEN TO alternativas implicariam uma utilização ainda
Óleo separado em líquidos (oleínas) e
sólidos (estearinas)
maior de solo. Também é um combate fútil, por-
REFINAÇÃO que o óleo de palma se encontra omnipresente e
Processamento
da palma
Impurezas retiradas do óleo é frequentemente incorporado em ingredientes
Quer a polpa quer o TRITURAÇÃO como o lauril sulfato de sódio e o ácido esteárico,
caroço (depois de Caroço partido para retirar a casca e
triturados) produzem depois triturado e prensado cujas origens são ocultadas aos consumidores. Não
Me c â n i c o

óleo. Após refinação, MOAGEM é provável que consigamos cortar radicalmente o


os diversos óleos são Fruto da palma vaporizado e prensado
modificados em para separar o óleo do caroço e das
consumo de óleo de palma. A única via para o futu-
produtos variados. fibras ro é tornar a sua produção menos prejudicial.

Ó L EO D E PA L M A 75
76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
INDONÉSIA
A principal cicatriz do
óleo de palma na
Indonésia situa-se na
Nova-Guiné: as florestas
e as turfeiras do Bornéu
e de Samatra já foram
desflorestadas para
abrir caminho às
plantações de palmei-
ras-dendém. Segundo a
Greenpeace, parte
desta plantação na
província da Papua viola
uma moratória indoné-
sia sobre a eliminação
das turfeiras.
ULET IFANSASTI, GREENPEACE

Ó L EO D E PA L M A 77
A INDONÉSIA E A MALÁSIA são actualmente o epi-
centro do óleo de palma, mas a palmeira-dendém
não é natural da Ásia. É oriunda da África Ociden-
tal e Central, onde os arqueólogos encontraram
nozes de palma com três mil anos de idade enter-
radas em leitos de rios nas profundezas da floresta.
Ao longo do século XIX, mercadores britânicos
importaram óleo de palma africano, utilizando-o
num número crescente de produtos, desde sabão
a margarina e a velas. Quando os cientistas desco-
briram como isolar a glicerina do óleo, as suas apli-
cações multiplicaram-se: produtos farmacêuticos,
película fotográfica, perfume e até dinamite.
No início do século XX, as palmeiras-dendém
tinham sido exportadas para a Indonésia e as
plantações comerciais enraizaram-se. No fim da
década de 1930, abrangiam apenas cem mil hecta-
res. Nos cinquenta anos seguintes, os progressos
registados na agricultura (como a criação de árvo-
res resistentes a um agente patogénico comum e a
introdução de um gorgulho africano para polini-
zação) geraram maiores rendimentos e um inves-
timento florescente em palmeiras-dendém.
Mesmo assim, ainda na década de 1970, três
quartos do Bornéu encontravam-se revestidos
com florestas virgens luxuriantes. Perante o au-
mento da procura mundial de óleo de palma, as
empresas queimaram e arrasaram algumas dessas
florestas. As preocupações de saúde com as gor-
duras transgénicas alimentaram esse crescimento
explosivo: o óleo de palma substituiu as gorduras
transgénicas em muitos produtos. E aumentou a
procura global por biodiesel. No início do século
XXI, milhares de quilómetros quadrados de flo-
restas de baixa altitude e turfeiras por todo o Bor-
néu foram plantados com palmeiras-dendém.
Nessa altura, crescia a pressão dos grupos de INDONÉSIA
conservação contra a desflorestação e a WWF
aliou-se aos maiores produtores e compradores Activistas da Fundação
para a Sobrevivência do
de óleo de palma para definir normas mais res- Orangotango do Bornéu
ponsáveis para a produção de óleo de palma. As libertam um orango-
plantações certificadas pela Roundtable on Sus- tango num santuário.
Criado no refúgio de
tainable Palm Oil (RSPO) não podem abater “flo- Nyaru Menteng, depois
restas primárias em zonas que contenham con- de perder o seu lar na
centrações significativas de biodiversidade (por selva, o símio está a ser
reabilitado para poder
exemplo, espécies em perigo) ou ecossistemas ser devolvido à floresta
frágeis”. Têm a obrigação de minimizar a erosão virgem… se ainda existir
e de proteger as fontes de água. De pagar um sa- uma secção suficiente-
mente grande de
lário mínimo e de obter o “consentimento prévio, floresta. A desfloresta-
livre e informado” das comunidades locais. ção e a caça mataram
Actualmente, a RSPO certifica cerca de um quase 150 mil orangotan-
gos no Bornéu entre
quinto da oferta mundial. Muitos fabricantes de 1999 e 2015.
bens de consumo que dependem do óleo de pal- ULET IFANSASTI

78 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ma (como as gigantes Unilever, Nestlé ou Procter perto do limite nordeste do
N U M A TA R D E H Ú M I DA ,
& Gamble) comprometeram-se a mudar as suas Bornéu, pequenos grupos de elefantes pastam
cadeias de abastecimento para o uso exclusivo de junto de um rio de águas turvas. Quando o Sol se
óleo de palma certificado nos próximos anos. É põe atrás das copas das árvores, os grupos juntam-
um grande passo em frente. Mas não é suficiente. -se na margem lamacenta do rio. Pouco depois,
Um passo essencial é a intervenção do Estado mais de 50 elefantes, em fila bem ordenada, atra-
nos países produtores. “Nós, na comunidade da vessam as águas rápidas do largo rio Kinabatangan,
conservação, fomos excessivamente optimistas baloiçando as cabeças, movendo-se para cima e
quando pensámos que as soluções baseadas no para baixo, jorrando água pelas trombas.
mercado bastariam, por si, para resolver o pro- O Kinabatangan é um dos lugares onde mais fa-
blema”, afirma John Buchanan, responsável pelo cilmente se podem avistar animais selvagens em
programa dos mercados sustentáveis da alimen- Sabah, o estado malaio que ocupa o Norte do Bor-
tação e da agricultura da Conservation Interna- néu. Navegando no rio, os turistas podem avistar
tional. “Se o Estado não intervier, se não tiver ca- espécies raras como os elefantes-pigmeus do Bor-
pacidade para fazê-lo ou e não souber o que faz”, néu, os macacos-narigudos, os calaus-bicornes e
afirma, a floresta tropical continuará a sofrer. até os orangotangos sem sujarem as botas.

Ó L EO D E PA L M A 79
É excitante observar estes animais em liberda- ganização de conservação Hutan, que me guiou
de, mas a razão para esta visibilidade é o facto de na subida do Kinabatangan, já plantou mais de
eles não terem mais nenhum sítio para onde ir. cem mil árvores de 38 espécies, numa tentativa
Numa extensão interminável de muitos quiló- de preservar um corredor para animais selvagens
metros em torno do rio, a floresta foi obliterada ao longo do rio.
e substituída por palmeiras-dendém. É possível Ao leme do departamento estadual de flores-
viajar horas a fio de automóvel, cruzando-nos tas, encontrava-se, até há pouco tempo, Sam
com um comboio de camiões-cisterna carrega- Mannan. Sob a sua liderança, na última década,
dos de óleo de palma, quase sem ver qualquer Sabah alargou as suas áreas protegidas de 12 para
outra espécie de árvore. 26% do território total, abrangendo mais de 19
Na década de 1970, o governo de Sabah con- mil quilómetros quadrados. A meta de Mannan
centrou-se na agricultura para ultrapassar a de- consistia em aumentar essa superfície para 30%
pendência excessiva da actividade madeireira, até 2025, interligando parques, reservas de ani-
que durava há muitas décadas. Seleccionou vas- mais selvagens e outros segmentos de floresta es-
tas zonas de planícies férteis nas florestas de bai- taduais por corredores replantados, através dos
xa altitude, incluindo a região do Kinabatangan, quais os animais pudessem movimentar-se.
para colheitas de rendimento. “Partiram do pres- Sam Mannan acreditava na colaboração com
suposto de que os melhores solos deveriam ser os produtores de óleo de palma. “Sem a palmei-
afectados à agricultura”, afirma o biólogo John ra-dendém, Sabah viveria com dificuldades”,
Payne, que vive em Sabah desde 1979. disse-me Mannan no seu gabinete, na cidade
Ao longo da década de 1980, a terra agrícola de costeira de Sandakan, outrora a capital madei-
Sabah foi em grande parte reservada ao cacau. reira da ilha. Só o petróleo proporciona ao go-
Quando esta cultura se tornou menos lucrati- verno de Sabah receitas maiores do que a indús-
va, devido à baixa dos preços a nível mundial e tria da palmeira-dendém. “O dinheiro é devolvi-
a uma praga infestante que afecta as vagens do do à conservação”, resumiu.
cacau, a maior parte das plantações concentrou- Poder-se-ia argumentar, como fiz questão de
-se nas palmeiras oleaginosas. A terra era barata sublinhar, que sem as palmeiras-dendém não
e, por isso, as empresas continentais da Malásia seria necessário tanto dinheiro para a conserva-
começaram a arrebanhá-la, construindo fábri- ção. “Poderíamos defender esse argumento, mas
cas e outras infra-estruturas. Tornou-se mais estaríamos pobres”, retorquiu.
fácil para os produtores comercializarem os seus O crescimento explosivo do óleo de palma
frutos no mercado e a desflorestação em grande trouxe benefícios evidentes a Sabah: estradas as-
escala começou a todo o vapor. Hoje em dia, um faltadas, escolas melhores, televisão por satélite.
quinto do estado encontra-se revestido por pal- Em Kota Kinabalu, capital estadual, marcas de
meiras-dendém. Sabah produz mais de 7% de luxo ocidentais e asiáticas vendem-se em centros
todo o óleo de palma do mundo. comerciais novinhos em folha.
Os custos ecológicos têm sido avassaladores. No passado mês de Agosto, Sam Mannan foi
Muitos fragmentos de floresta sobreviventes es- exonerado pelo novo governo de Sabah, após
tão isolados. São ilhas bravias que parecem in- uma investigação para averiguar negócios ma-
tactas, mas onde a vida animal praticamente não deireiros possivelmente ilegais, feitos pela admi-
existe. “No local que alojava antigamente a maior nistração anterior. Sam incomodara interlocuto-
densidade de orangotangos, existem agora ape- res dos dois lados da barricada no debate sobre
nas palmeiras-dendém”, resume John Payne. o óleo de palma em curso na Malásia durante o
No meio de tanta perda, é difícil haver esperan- seu mandato de quase duas décadas. No entan-
ça, mas em Sabah, um grupo formado por cien- to, muitos ambientalistas consideravam-no um
tistas, activistas, membros da RSPO e funcioná- travão à indústria, um líder “visionário, arrojado
rios públicos tenta corrigir erros passados. John e eficaz” do estado, nas palavras de John Payne.
Payne dirige agora a Palm Oil & NGO (PONGO),
uma coligação entre a indústria e o sector não- EM ÚLTIMA ANÁLISE, segundo o director-geral da
-governamental que pretende reconverter 5% RSPO, Darrel Webber, natural de Sabah, a cultura
das maiores plantações do Bornéu em floresta, da indústria da palmeira-dendém vai ter de
devolvendo-a aos orangotangos. (Pongo é o nome mudar. Com o apoio de Sam Mannan, Webber e
do género deste símio.) Na última década, a or- uma activista malaia, Cynthia Ong, lançaram uma

80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
iniciativa ambiciosa em Sabah para concretizar a
ideia. O objectivo é ensinar desde os pequenos
agricultores e proprietários aos directores-gerais TRÓPICO DE
das grandes empresas os melhores métodos para CÂNCER Á S I A

produzir óleo de palma e as razões pelas quais MALÁSIA


devem usá-los. Depois, a organização pretende ÁFRICA
INDONÉSIA
certificar a sustentabilidade da totalidade da pro- GABÃO Bornéu
dução do Estado. “Com a procura a crescer e Sabah
desejosa de satisfazê-la, vamos ter de definir limi- TRÓPICO DE
CAPRICÓRNIO
tes,” diz Cynthia Ong.
O Estado tem esperanças de conseguir obter
a certificação para a totalidade da sua produção
até 2025, embora ainda não se saiba bem como o
Produto em alta
irá fazer. “Estamos a construir o avião ao mesmo As palmeiras-dendém
tempo que o pomos a voar”, resume a activista. crescem melhor nos
trópicos, onde a pluviosi-
A organização sem fins lucrativos Wild Asia, da dade e a luz solar abundam.
Malásia, está a agregar centenas de pequenos A maior parte do óleo de
agricultores na região de Kinabatangan em gru- palma do planeta provém
do Sudeste Asiático, mas a
pos que possam ser certificados em conjunto e, produção está a expandir-se 60
depois, possam vender o fruto da palmeira a uma em África, continente de
fábrica certificada. origem destas árvores. 85% do óleo
de palma
A Nestlé, uma das grandes consumidoras de 40 é produzido
Indonésia na Indonésia
óleo de palma que não possui plantações, está a e na Malásia.
Produção de óleo de
financiar parcialmente o projecto. Os agriculto- palma por país
20
res conseguem preços melhores e os membros da em milhões de toneladas Malásia
RSPO (nomeadamente a Nestlé) conseguem as-
segurar a rastreabilidade do seu óleo. “Queremos Resto do mundo
garantir a ligação à cadeia de abastecimento”, 1970 1980 1990 2000 2010 2017

afirma Kertijah Abdul Kadir, da Nestlé.


Desde 2011, ela já supervisionou a plantação
de cerca de setecentas mil árvores ao longo das Mais de 83 mil Bornéu na
quilómetros
margens do rio Kinabatangan, abrangendo 2.500 quadrados foram ctualidade
BRUNEI
hectares. Noutros lugares de Sabah, a Wilmar, plantados com s plantações
palmeira. É quase a dustriais da
o maior fornecedor mundial de óleo de palma e área de Portugal
SIA

continental. almeira oleaginosa


IA

igualmente membro da RSPO, está a replantar


A rovocaram a
ÉS

M
esflorestação
ON

florestas para proteger as bacias hidrográficas IN


D
e 47% da ilha
e criar corredores para animais selvagens. A re- BO RNÉU esde 2000.
florestação requer mão-de-obra intensiva, pois rdem-se todos
é dispendiosa e lenta. Gerações sucessivas não s anos 355 mil
ectares.
conseguirão produzir nada que se assemelhe a Plantações 0 mi 200
industriais
uma floresta virgem de crescimento antigo. Mas de palmeira 0 km 200

já é um princípio.
Os críticos da RSPO queixam-se de que a cola- Futuro do Gabão
No Gabão, há
boração com empresas que causaram a perda das poucas plantações
florestas torna suspeitos os esforços. Em resposta, Libreville
de palmeiras-den-
Darrel Webber, da RSPO, outrora colaborador da Plantação e fábrica dém, mas o país
de Awala procura aproveitar
WWF, compara a indústria do óleo de palma à via- esta cultura de
gem do apóstolo Paulo para Damasco. “Devemos forma sustentável,
perdoar um pecador se ele puder tornar-se o nosso Plantação e num esforço de
fábrica de diversificação
mais importante missionário? Poderíamos excluir Mouila
0 km 100 da sua economia
todos os pecadores, mas que mudança consegui- para lá do petróleo.
Sustentabilidade da cultura
ríamos obter? Há que encontrar maneiras de mo-
bilizar todos.” (Continua na pg. 86) Elevada Baixa Inapropriada
MATTHEW W. CHWASTYK E RYAN T. WILLIAMS
FONTES: USDA; DAVID GAVEAU E OUTROS, BORNEO ATLAS, CENTRO PARA A
INVESTIGAÇÃO INTERNACIONAL DA FLORESTAÇÃO; INSTITUTO INTERNACIONAL
PARA A ANÁLISE DE SISTEMAS APLICADOS
82 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
MALÁSIA
m trabalhador
olhe frutos de palma
uma plantação em
rawak, um dos
stados da Malásia
calizados na ilha de
ornéu. Estas árvores
aduras têm cerca de
5 anos, o que significa
ue serão em breve
batidas e substituídas.
palmeira-dendém
roduz menos frutos à
edida que envelhece
a colheita é difícil nas
vores mais altas.
SCAL MAITRE

Ó L EO D E PA L M A 83
84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
MALÁSIA

Uma escavadora
empilha a colheita e
despeja-a sobre um
tapete rolante que irá
conduzi-la a um
vaporizador. A produ-
ção de óleo de palma
está mais mecanizada na
Ásia do que em África.
Esta fábrica malaia pode
processar 40 toneladas
de frutos por hora, ou
seja, duas toneladas de
óleo de palma em bruto.
A unidade funciona 24
horas por dia.
PASCAL MAITRE

Ó L EO D E PA L M A 85
Na última década, segundo Darrel, um nú- terrestre foi protegida por parques nacionais. É um
mero crescente de empresas do sector do óleo país maravilhoso para a vida selvagem.
de palma aceitou a necessidade de mudanças. “É exactamente o tipo de floresta intacta que
“Temos bastantes em estado de aceitação, mas queremos proteger de qualquer tipo de desenvol-
também temos bastantes em estado de negação. vimento”, afirma Glenn Hurowitz, director-geral
A nossa tarefa consiste em empurrar esta longa da Mighty Earth, uma organização ambiental
fila de produtores no sentido da aceitação. Vai sediada em Washington que criticou as explora-
demorar algum tempo.” ções de óleo de palma da Olam no Gabão. “Já há
tanta terra degradada [em toda a região tropical].
mais florestados de
N O G A B Ã O , U M D O S PA Í S E S Porquê instalar plantações de palmeira-dendém
África, o óleo de palma está a regressar a casa, em países que possuem tanta floresta?”
podendo vislumbrar-se no horizonte um cresci- No entanto, o Gabão deseja-as. A antiga coló-
mento explosivo. Situado sobre a linha do equador, nia francesa tem o quarto PIB per capita mais
na costa ocidental do continente, o Gabão é escas- elevado da África subsaariana, mas grande parte
samente povoado. Mais de 76% do país encontra-se das receitas provêm do petróleo. O país precisa
revestido de florestas e 11% da sua superfície de diversificar. Segundo Glen Hurowitz, o Gabão

86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
poderia desenvolver o ecoturismo. País relativa-
mente seguro, com parques e animais selvagens
espectaculares, tem poucas pistas de aterragem,
estradas dificilmente transitáveis e escassez de
alojamentos. Há enormes oportunidades para o
turismo, explorado pelo organismo gabonês res-
ponsável pelos parques, a Agence Nationale des
Parcs Nationaux (ANPN).
O turismo, porém, é apenas uma parte daqui-
lo que o país necessita. O Gabão importa grande
parte dos seus alimentos: o trigo e o leite vêm de
França e a carne de vaca é importada de avião da
Índia e do Brasil. O governo do presidente Ali Bon-
go Ondimba, que venceu as polémicas eleições de
2016, conquistando um segundo mandato de sete
anos, quer acrescentar a agricultura comercial à
economia do Gabão. Isso exige o abate de árvores.
Reconhecendo que existem interesses em con-
flito no seu país, o governo lançou um projecto
tentado por poucos países: um plano nacional de
ordenamento do território.
Lee White, director da ANPN e um dos assesso-
res mais próximos do presidente, supervisionou o
mapeamento da terra e da vida selvagem do país,
definindo as áreas que deveriam ser reservadas
ao desenvolvimento agrícola. O governo atribuiu
duas concessões novas à Olam e, mais tarde, ven-
deu à empresa uma plantação já existente. A Olam
explora actualmente 1.300 quilómetros quadra-
dos do Gabão, ou seja, 0,5% da área terrestre do
país. Cerca de 557 quilómetros quadrados já estão
plantados com palmeiras-dendém.
Numa manhã radiosa de Janeiro, Christopher
Stewart, director do departamento de sustentabi-
lidade da Olam, conduz ao longo de uma estrada
esburacada a sudeste de Libreville, a capital do
GABÃO país. Os camiões passam a assobiar, carregados
com troncos gigantes de okoume, a principal ma-
O gigante agro-indus- deira exportada pelo Gabão, em grande parte para
trial Olam inaugurou
duas novas plantações a China e para a Europa. Fora da área urbana de
de palmeira-dendém, Libreville, a paisagem apresenta-se pontilhada
cada qual com a sua por aldeias minúsculas. Quase todos os aglome-
própria unidade de
processamento, neste rados de casas têm uma banca de venda à beira
país africano. Três da estrada, normalmente composta por um barril
quartos do Gabão estão metálico ferrujento e uma grelha de madeira. Os
revestidos por florestas
e a agricultura comer- barris estão cobertos com bananas ou bananas-
cial quase não existe. -da-terra, alguidares com frutos da floresta, de co-
O governo pretende res garridas, garrafas de plástico cheias com vinho
desenvolver esse sector
com culturas de de palma produzido em banheiras. Pendurados
rendimento como a nas grelhas, vêem-se animais mortos, peludos ou
palmeira-dendém, mas espinhudos: porcos-espinhos-de-rabo-africanos,
sem os danos causados
no Sudeste Asiático. seixas, um ou outro macaco, uma civeta, um cro-
DAVID GUTTENFELDER codilo, os quadris de uma gazela.

Ó L EO D E PA L M A 87
88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
GABÃO
Mais de metade da
plantação de Mouila,
pertencente à Olam,
onde estes trabalhado-
res plantam palmeiras
jovens, situa-se na
savana, a localização
escolhida para evitar
mais desflorestação. O
Gabão desenvolveu um
plano de ordenamento
do território que tenta
“manter o equilíbrio
entre a palmeira-den-
dém, a agricultura e a
preservação da
floresta”, segundo o
director da entidade
gestora dos parques,
Lee White.
DAVID GUTTENFELDER

Ó L EO D E PA L M A 89
Grande parte desta carne é ilegal, mas, em mui- um bloco de floresta e a área restante permanece
tos restaurantes de Libreville servem-se menus como está, em pequenas parcelas, algumas das
com animais selvagens caçados ilegalmente. A caça quais em encostas de colinas íngremes.
furtiva é um problema para a Olam: os habitantes Dentro da plantação, é fácil perder o sentido
locais e os trabalhadores servem-se das plantações de orientação, com tantas filas sucessivas de pal-
como pontos de acesso à floresta, onde é sabido ca- meiras, intercaladas com estradas indistintas. No
çarem espécies em risco. Por isso, os vigilantes da final de cada fila, os trabalhadores empilharam
Olam patrulham as florestas protegidas. ramos frescos de frutos de palma e frutos soltos.
Duas horas e meia depois de sairmos de Libre- Nessa tarde, outros trabalhadores virão atirar a
ville, viramos para uma estrada de terra batida, fruta para os camiões, que a transportarão para
rumo à plantação de Awala. Trata-se de uma área uma fábrica no interior da plantação.
de floresta secundária, um dos locais onde a ac- Na plantação de Mouila, outra propriedade
tividade madeireira começou no Gabão. O gover- da Olam mais a sul, há uma fábrica ainda maior.
no concedeu à Olam cerca de vinte mil hectares e Mais de metade da área plantada em Mouila era
um terço já foi plantado com palmeiras-dendém paisagem aberta de savana. A investigação re-
pela empresa. Outro terço está conservado como velou a presença de um antílope raro, o chango.

90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Fotografado por uma armadilha fotográfica em
2017, o animal está a contribuir para o pedido de
criação de um novo parque nacional na savana,
apresentado por Lee White.
No cume de uma colina, trepamos para o teja-
dilho do camião. Cento e oitenta graus em redor,
as filas de palmeiras-dendém estendem-se quase
até ao horizonte. Sob um sol escaldante, o pano-
rama monocromático provoca tonturas. O mapa
que Christopher me mostra é aflitivo: esta secção
da plantação abrange quase 16 mil hectares e
aquilo que avistamos é apenas 7% do total.
Como ecologista, Christopher detesta a ideia
do abate de árvores. No entanto, reconhece que
“a longo prazo, é de interesse para o Gabão que
estes projectos estejam em curso e que sejam
bem geridos, para se demonstrar o que a agri-
cultura bem planeada pode alcançar.” Lee Whi-
te concorda. A Olam não está a minar as áreas
protegidas, diz. “A Olam está a ajudar-me a criar
mais parques nacionais.”

A SETE HORAS DE LIBREVILLE, situa-se o Parque


Nacional de Lopé, um dos 13 parques nacionais que
Lee White ajudou a criar. Assim que se começa a
abater florestas para a agricultura, torna-se mais
fácil abater ainda mais. Será que isso preocupa o
meu interlocutor? Ele sorri. “A verdade é que eu não
sou o tipo de pessoa receosa”, responde, antes de
reformular o risco: “Se, dentro de 50 anos, não con-
seguirmos alimentar os seres humanos que vivem
no planeta, então os sítios tropicais altamente pro-
dutivos e húmidos onde se podem cultivar grandes
quantidades de alimentos vão estar sob ameaça.”
Nas colinas de Lopé, o arqueólogo francês Ri-
chard Oslisly descobriu vestígios de comunidades
GABÃO da Idade da Pedra e da Idade do Ferro: lascas re-
sultantes do fabrico de pontas de seta de quartzo,
Num viveiro ferramentas de ferro e fornalhas. Há três mil anos,
de palmeiras-dendém os povos banto começaram a migrar ao longo da
no Gabão, os jardineiros
da Olam cuidam dos costa atlântica até ao Gabão, vindos dos Cama-
rebentos. A economia rões, trazendo consigo palmeiras-dendém.
do Gabão depende Esses agricultores primitivos cobriram de pal-
consideravelmente do
petróleo: o país importa mares grandes partes do Gabão e do Norte do Con-
grande parte dos seus go. “A África Central parecia-se talvez com a Indo-
alimentos. O governo nésia de hoje”, diz Lee White. Um choque demo-
considera a agricultura
uma componente gráfico radical varreu do mapa essas comunidades.
importante para o A floresta virgem regressou com toda a sua força.
futuro do país. “Agora estamos a recomeçar o ciclo”, diz Lee.
DAVID GUTTENFELDER
“As nossas acções determinarão se vamos destruir
novamente as florestas ou se conseguiremos man-
ter o equilíbrio.” Para os seres humanos, o equilí-
brio é, por norma, uma meta fugidia. j

Ó L EO D E PA L M A 91
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

F O T O G R A F I A S D E K I L I I I Y Ü YA N
ÉPOCA DA BALEIA
O S I N U P I AT, C O M U N I D A D E I N D Í G E N A D O A L A S C A , P A S S A M S E M A N A S N O G E L O ,
AGUARDANDO AS BALEIAS EM MIGRAÇÃO.

À esquerda: Yugu
Alfred Ningeok é
membro de uma equipa
de baleação inupiat.
À direita: um umiak,
ou barco feito de
pele, transporta uma
pequena tripulação que
persegue uma baleia.
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

Pólo Norte
OCEANO
ÁRCTICO
Utqiaġvik
(Barrow)
AMÉRICA
ALASCA DO NORTE
(EUA)

OCEANO
PACÍFICO

a cultura dos
N A V E RT E N T E N O RT E D O A L A S C A ,
inupiat concentra-se nas baleias. Todas as prima-
veras, homens e mulheres permanecem no tuvaq,
o gelo próximo da água, aguardando a passagem
das baleias da Gronelândia, em migração para nor-
te, do mar de Bering para o Árctico Canadiano.
Quando avistam uma, o grupo empurra um umiak
para dentro de água. Normalmente, têm uma opor-
tunidade para capturar a baleia com o arpão. Se a
caçada for bem-sucedida, cada membro da comu-
nidade receberá uma porção da carne.
Esta história de continuidade cultural fas-
cinou o fotógrafo Kiliii Yüyan. Yüyan também
pertence a um povo indígena: descende dos
hezhe (Nanai, em russo), caçadores e pescado-
res do Norte da China e do Sudeste da Sibéria.
As reportagens que descrevem as comunidades
indígenas como degradadas ou empobrecidas
ignoram a sua complexidade, comenta Kiliii.
“Temos de estar com elas para compreender-
mos toda a sua esperança e alegria.”
Num total de dez meses, ao longo de cinco
anos, Kiliii Yüyan viveu entre os inupiat em Ut-
qiaġvik (localidade antigamente conhecida como
Barrow). Acampou no gelo marinho para obser-
var baleias, oferecendo-se frequentemente como
voluntário para fazer o turno da noite, quando a
escuridão e o silêncio se instalam. Na verdade, o
silêncio é rapidamente quebrado. Quando uma
baleia chega, um batedor emite o alerta a partir
da sua posição, chamando a equipa para lançar
Um caçador escuta as
a embarcação. “Quando estão perto, [o ruído] águas, tentando ouvir as
não é ténue”, comenta. “É notável. Elas cantam. vocalizações das baleias
É como um espectáculo musical.” — Daniel Stone nas proximidades.

94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C NGM MAPS
Uma tradição de caça ainda perdura, mantendo
unida uma comunidade do Norte do Alasca.
ÉPOCA DA BALEIA 95
Uma baleia da Gronelândia cortada pode render milhares de quilogramas de alimento. O ninit (as porções
de carne e gordura pertencentes à comunidade) é dividido equitativamente de modo a garantir que
todos beneficiem da caçada. “A maior ambição na comunidade é chegar a capitão baleeiro”, diz o
fotógrafo Kiliii Yüyan. “É um trabalho que sustenta toda a comunidade.”
Thomas William Kingosak traz sempre uma arma nas caçadas à baleia, mas só a usa em caso de ataque de
um urso polar. Os ursos aproximam-se com frequência dos acampamentos de caça em busca de alimento.
As baleias da Gronelândia adaptaram-se a águas extremamente frias. Na migração pelos mares de Chukchi e
Beaufort, foram observadas a quebrar gelo com meio metro de espessura para abrir espaço de respiração.
ELES GOSTAM DE
PARCEIRAS MAIS
VELHAS. ELAS GOSTAM
DE… OS SABOREAR

c e com fêmeas de
i erentes idades, os machos acasalaram com
menos de metade das fêmeas mais jovens e com
100% das mais velhas. Nenhum dos machos que
acasalaram com as fêmeas mais jovens morreu
devido a canibalismo, mas mais de metade dos que
se acasalaram com as fêmeas mais velhas morreu.
“Realmente não percebemos a luxúria suicida dos
machos por companheiras mais velhas”, diz Shevy
Waner, co-autora do estudo. É possível que as fêmeas
maduras exsudam feromonas sexuais mais fortes,
compensando quimicamente o que lhes falta em
Esta viúva-negra foi
fertilidade e juventude. — PAT R I C I A E D M O N D S E fotografada no Audubon
K AT I E WAT K I N S Nature Institute.

JOEL SARTORE
Í N D I C E | 2018

JANEIRO JULHO
Cassini 2 Os limites do corpo 2
Porque importam as aves? 24 Idade do Gelo 22
A ciência do Bem e do Mal 46 Morcegos carnívoros 44
O último gelo 70 Serra da Estrela 56
Tabaco na Bahia 88 A crise das aves marinhas 72
Padrões de voo 100 Refugiados 102
MAPA-SUPLEMENTO: ESTRELA,
UM LIVRO DE PEDRA

FEVEREIRO AGOSTO
A Idade do Bronze 2 Anfíbios do Mindelo
O cérebro das aves 26 Os segredos do sono 2
Delta do Okavango 48 Baleeiros bascos 38
Espaço-tempo 72 O veneno em África 62
A armadilha dos progenitores 86 Escrita do Sudoeste 86
Mar aberto 92 Porto Rico 90
À procura de empatia 96

MARÇO SETEMBRO
Capela do Fundador O novo rosto de Katie 4
A Terra vista do espaço 2 Eremitérios de Trás-os-Montes 52
A migração das aves 22 Paul Salopek 62
Villa romana na Líbia 48 Calau-de-capacete 78
Lagos em retrocesso 68 Iémen 94
Solidão siberiana 900 As jóias selvagens da Rússia 102
MAPA-SUPLEMENTO: MIGRAÇÃO
DAS AVES

ABRIL OUTUBRO
Lucernas de Castro Verde Grutas terapêuticas no Algarve
Raça e genética 4 As últimas tribos da Amazónia 4
Conlitos inter-raciais 22 O apetite da China 34
Martin Luther King 44
Falcões 60
Jóias do Antigo Egipto 56
Os últimos nómadas do Irão 84
Breve história da vida 68
Incêndios da Beira Alta 90
Ilhas Malvinas 88

MAIO NOVEMBRO
Picasso 2 Focas-monge da Madeira
Os dinossauros que não morreram 30 Londres 6
Elevador de peixes do Mondego 50 Antárctida 32
Frenesi no recife 64 Alimentos insólitos 60
As feridas da Colômbia 82 Uma barragem na Turquia 72
Erupção no Hawai 84
Flores ultravioleta 92

JUNHO DEZEMBRO
Um mar de plástico 2 Jogos de tabuleiro
Entranhas do cabo Espichel 50 Caçadores de bíblias 2
As aves mais humanas 68 Ecos da Grande Guerra 36
Alasca e prospecção de recursos 80 Pumas da Patagónia 56
Primeiros colonos ingleses na América 96 Óleo de palma 66
Baleeiros do Alasca 92
N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Coreia do Norte: a
Viagem de Michael Palin
E ST R E I A : 2 E 9 D E D E Z E M B RO, À S 2 3 H 2 0

Os encontros históricos na Primavera de 2018


entre o líder supremo da Coreia do Norte, Kim
Jong-un, e o presidente da Coreia do Sul, Moon
Jae-In, desencadearam o interesse dos meios de
Presos no Estrangeiro 12 comunicação de todo o mundo. À medida que as
E S T R E I A : 1 1 D E D E Z E M B R O, À S 2 3 H notícias se disseminavam por este país asiático,
TO DA S A S T E R Ç A S - F E I R A S . Michael Palin e a sua equipa filmaram o quotidiano
deste país secreto e pouco compreendido. O docu-
Décima segunda temporada da série mais
mentarista e antigo membro dos Monty Pyhton
tensa da televisão. A nova temporada inclui
as aventuras de um homem que tenta visitou lugares nunca antes explorados numa
traficar 45 quilogramas de droga usando um jornada pelo exotismo de um país fechado ao
Land Rover e a história de um indivíduo exterior. Nos dois primeiros domingos de Dezem-
erradamente preso que se junta a um cartel bro, Michael Palin será o nosso cicerone na Coreia
mexicano para sobreviver. do Norte.

Pesca no Limite: A temporada do atum em Outer Banks, ao largo


da costa da Carolina do Norte (EUA), nunca foi
Norte vs Sul 5 tão dura. Regulamentações mais apertadas e
menos quotas para captura produzem tensões
E ST R E I A : 1 9 D E D E Z E M B RO, entre os pescadores do Sul e do Norte. Quinta
À S 2 3 H . Q UA RTA S - F E I R A S temporada de uma série dramática.

ITN PRODUCTIONS (NO TOPO);


NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO) E PFTV (EM BAIXO)
Into the Okavango
E ST R E I A : 1 5 D E D E Z E M B RO, À S 1 7 H

O delta do rio Okavango, no Botswana, é a fonte


de água insubstituível para cerca de um milhão
de pessoas, para a maior população de elefan-
tes-africanos do mundo e para significativas
populações de leões, chitas e centenas de espé-
cies de aves. No entanto, este oásis intocado está
Africa’s Wild Side agora sob pressão devido à intensa intervenção
humana na região. Produzido pela divisão de
3 D E D E Z E M B R O, À S 1 7 H
TO DA S A S S E G U N DA S - F E I R A S
documentários da National Geographic, “Into
the Okavango” revela uma equipa de explora-
Os rituais de sobrevivência das dores dos tempos modernos na sua primeira
criaturas carismáticas do Botswana são expedição de quatro meses, procurando atra-
tão misteriosos, elaborados e variados vessar três países diferentes para compreender
como os próprios animais que aqui
prosperam. Cada espécie desenvolveu a complexidade do sistema fluvial que alimenta
estratégias para sobreviver e o delta, uma das últimas zonas húmidas bravias
assegurar a descendência. do nosso planeta.

Wild Great A vida selvagem britânica passa muitas


vezes despercebida. Esta série documenta os
Britain comportamentos dissimulados de animais familiares,
mas também das criaturas pouco conhecidas das
E S T R E I A : 2 D E D E Z E M B R O, 1 7 H ilhas. Cada habitat oferece oportunidades e desafios
TO D O S O S D O M I N G O S aos pequenos e grandes organismos britânicos.

JAMES KYDD (NO TOPO); NICON FILMS/NHFUB (AO CENTRO);


PLIMSOLL PRODUCTIONS (EM BAIXO)
P R Ó X I M O N Ú M E R O | JANEIRO 2019

O futuro
da medicina
A medicina de precisão,
baseada nos avanços da
genética e na análise de
dados, desenha agora
tratamentos adaptados
às características bioquí-
micas de cada paciente.

Cirurgia 4.0:
uma revolução
na ciência cirúrgica
A convergência de
tecnologias digitais,
físicas e biológicas, a
chamada “quarta
revolução industrial”,
determinará a cirurgia
do futuro.

Micróbios,
os nossos inquilinos
secretos
Actualmente, a ciência
começa a descobrir o
poder que os micróbios
têm sobre nós e a sua
importância: sem eles,
o corpo humano deixaria
de funcionar.

China, medicina
Calendário 2019
e tradição
Na próxima edição,
Revelamos os segredos publicamos o calendário
de práticas milenares anual, este ano dedi-
que cada vez mais cado ao Aspiring Estrela
ocupam um lugar Geopark. Os assinantes
relevante nos devem reservar o
tratamentos modernos. seu através do telefone
21 433 70 36.

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Matemática Ciência
A inovação para nós
deve ter sempre como
objetivo a funcionalidade.
Por exemplo, subindo o nosso
bisel em 2 mm permitiu-nos
melhorar a aderência.
Apenas um pouco.

Para quem aprecia relógios,


um pequeno detalhe é muito
importante.

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www.torresdistrib.com | tel. 218 110 896

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