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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | MARÇO 2023

FAZ-NOS MAIS HUMANOS


Como os sons mágicos da música
iluminam o nosso cérebro
N.º 264 MENSAL €6,00 (CONT.)
00264

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L Í BA N O, D E Q U E M É A A RT E ? E X P E D I Ç ÃO N A S
R E C O N ST RU I R T U D O A P O L É M I C A DA F LO R E S : O M I ST É R I O
D E N OVO R E PAT R I AÇ ÃO DA E N G U I A
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C MARÇO 2023

S U M Á R I O

2 36
Na capa
Actuações perante multidões
como nesta sessão do DJ
Armin van Buuren na
Califórnia despertam paixões
Repatriação de obras A enigmática e no público. Experiências
de arte: polémica e solução esquiva enguia científicas sugerem que a
O conceito actual de museu é, No extremo ocidental da capacidade para nos
em grande medida, uma Europa, na ilha das Flores, emocionarmos com a música
invenção do século XIX para investiga-se o comportamento é comum a todas as culturas.
exibir os troféus da era colonial. da enguia desde o momento MICHAEL TULLBERG / GETTY IMAGES

Cada vez mais museus optam em que a espécie chega aos


agora por devolver as obras de Açores e dá início a uma
arte aos seus países de origem. odisseia de sobrevivência nas
Muitos curadores esperam ribeiras florentinas, partindo
que seja o início de uma por fim para o mar dos
nova era de cooperação. Sargaços. Como consegue a
T E X TO D E A N D R E W C U R RY
enguia vencer as cascatas?
F OTO G RA F I A S D E T E XTO E F OTO G RA F I A S
RICHARD BARNES DE PEPE BRIX

RICHARD BARNES
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

50
SUMÁRIO

A S UA F OTO

VISÕES
Como a música nos
faz mais humanos EXPLORE
A arqueologia, as neurociências e
Primeiras mandíbulas
a antropologia clarificam o papel
da música na evolução humana. Uma catatua sagaz
Estudos científicos sugerem que o e manhosa
sentido musical poderá estar inscri- O polvo quezilento
to no nosso código genético e
que talvez anteceda a linguagem. E D I TO R I A L
T E XTO D E G O N Ç A LO P E R E I RA RO SA
BASTIDORES

72
O pergaminho Sharrer

N A T E L E V I SÃO

P RÓX I M O N ÚM E RO
A vida continua no Líbano
Esgotados por uma crise económica
e em convulsão devido à explosão
catastrófica que abalou Beirute há
três anos, os libaneses testam o
seu espírito indomável no momen-
to de reconstruir um país que olha
com nostalgia para o passado.
T E XTO D E RA N I A A B O UZ E I D
F OTO G RA F I A S D E R E N A E F F E N D I

94
Segredos das aranhas
Os aracnídeos são singulares, belos
e encantadores. Se conseguirmos
passar além da fobia, deparamos
com um extraordinário mundo
de diversidade e capacidade Envie-nos comentários
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DE CIMA PARA BAIXO: HOSPITAL KING’S COLLEGE / NHS FOUNDATION TRUST; RENA EFFENDI; JAVIER AZNAR; PETER WOITSCHIKOWSKI
A ALTERNATIVA

publirreportagem
QUE NASCE
DO EUCALIPTO
Renovável, reciclável e biodegradável, o papel é uma
solução de embalagem capaz de substituir o plástico numa
ótica de bioeconomia circular.
Através da marca gKraft, a The Navigator Company
apresenta uma gama de papéis para o segmento do
packaging, para utilizar em vez de plásticos de uso único,
cujo elemento diferenciador é a utilização da matéria-prima
Eucalyptus globulus.
A fibra do eucalipto nacional, proveniente de florestas
plantadas e replantadas para o efeito, com gestão
responsável e certificação, atribui várias vantagens a este
papel, sendo a da sustentabilidade ambiental uma das
mais importantes. Por um lado, a celulose é um material de
origem natural, renovável, reciclável e biodegradável. Por
outro, as características particulares do eucalipto globulus
atribuem-lhe benefícios, mesmo em comparação com
outras fibras celulósicas, nomeadamente menor consumo
de madeira para produzir o mesmo papel (com o pinheiro
nórdico, por exemplo, pode chegar a consumir-se o dobro
da madeira), sete vezes mais metros quadrados de
embalagem por hectare de floresta (também comparando
com o pinheiro nórdico), maior compostabilidade (devido
ao menor teor de lenhina), maior reciclabilidade (até 150%
mais, quando comparado com outras folhosas), e geração
de reciclados, à posteriori, de melhor resistência.
O papel gKraft apresenta também o argumento da
segurança e higiene alimentar: na sua produção é utilizada
apenas fibra virgem de eucalipto globulus, o que, ao
contrário da fibra reciclada, evita perigo de contaminações.
É, por isso, uma gama de papéis mais segura e higiénica
para contacto com a pele e com os alimentos.

A Navigator pretende tornar-se uma referência


nesta área, criando produtos de base florestal
para substituição dos artigos de origem fóssil
e contribuindo para a resposta aos
desafios das alterações climáticas.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.
V I S Õ E S | A SUA FOTO

H É L D E R C A R R I L H O Apesar de estar mais focado em fotografia de vida selvagem, o fotógrafo (que seguia o rasto de uma
raposa após o primeiro grande nevão do ano) não ficou indiferente à força e beleza desta paisagem da serra da Estrela.

V Í T O R O L I V E I R A O início da Primavera é uma boa altura para explorar o campo em busca de oportunidades fotográfi-
cas. Num desses dias, o autor captou este retrato intimo de uma belíssima cobra-rateira.
PA U L O M I G U E L C O S TA Na primeira vez que visitou a região do Carvoeiro, no Algarve, o autor foi surpreendido pela forma
como a luz dos raios solares que atravessam a passagem superior iluminava esta piscina de rochas.

M A N U E L A D R I A N O Perto da Ponte da Arrábida, o fotógrafo (que seguia de bicicleta) teve de pedalar com vigor para
“apanhar” o eléctrico e assim captar esta imagem evocativa de um tempo em que a viagem à pendura (ou à guna) era comum.
V I S Õ E S
Espanha
A semana de celebração
de Santo Toríbio em
Mayorga de Campos
culmina com a procissão
El Vítor. Os habitantes
desta vila percorrem as
ruas com tochas feitas de
odres de vinho. Para se
protegerem do “alcatrão”
que cai dos odres em
chama, os participantes
usam roupas velhas,
luvas e chapéus.
JOÃO MAIA

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Portugal
Na última Primavera,
um cachalote arrojou
na praia da Fonte da
Telha. Dezenas de
voluntários tentaram
encaminhá-lo para o
mar, mas os esforços não
foram bem sucedidos.
O grande mamífero
acabaria por sucumbir.
RAMI MOUGHABGHAB
E X P L O R E

PRIMEIRAS MANDÍBULAS
U M A DA S E TA PA Smais críticas na evo- Xiushanosteus mirabilis
lução dos vertebrados foi a evolução da O peixe, cuja cabeça (destaque) era
mandíbula. Da capacidade de morder os composta por numerosas placas dérmicas,
alimentos até à vocalização, a mandíbula pertencia ao grupo dos placodermes.
é essencial para a sobrevivência de 99,8%
dos vertebrados actuais, incluindo os
humanos. Dos peixes sem mandíbulas
que outrora abundavam nos mares da
Terra, restam agora as lampreias e algu-
mas espécies de enguias. Porém, no livro
da história da Terra, faltam há muito as
páginas correspondentes à ascensão dos
gnatostomados, também conhecidos
como vertebrados com mandíbulas.
Agora, na China, fósseis embutidos na
rocha revelaram os mais antigos esque-
letos completos e dentes de gnatosto-
mados alguma vez descobertos.
Em quatro estudos publicados na
revista “Nature”, uma equipa liderada
pelo paleontólogo chinês Min Zhu des-
creveu as colecções de fósseis de duas
formações rochosas (com 436 milhões
e 439 milhões de anos) no Sul da China,
numa região a 97 quilómetros da cidade
de Yongdong. Embora os fósseis sejam
minúsculos, pois correspondem a
esqueletos com escassos centímetros
de comprimento e verticilos dentários
com fracções de centímetro de diâmetro,
estão repletos de pormenores anatómi-
cos e começam a preencher uma lacuna
no registo fóssil.
O DNA dos vertebrados vivos sugere
que os primeiros vertebrados com
mandíbulas surgiram há cerca de
450 milhões de anos, mas não existiam
evidências fósseis para provar essa teoria
até… à descoberta destes fósseis. j

Qianodus duplicis
Os cientistas tiveram de dissolver 300kg de
rocha para encontrar 23 verticilos dentários,
os mais antigos deste tipo já descobertos.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O QUÊ Jazidas de fósseis de peixes
LO C A L Província de Guizhou e
município de Chongqing, a 97
quilómetros de Yongdong
C H I N A
Yongdong
As formações rochosas
D I ST I N Ç ÃO
Jazidas nestas regiões contêm os mais anti-
dos
fósseis gos esqueletos completos e dentes
TAIWAN
de vertebrados com mandíbulas.

Fanjingshania renovata
Os espinhos das barbatanas
(destaque) ajudaram a identificar
este peixe com 90mm de compri-
mento. Embora cartilaginoso, perdia
escamas tal como os peixes ósseos.

Shenacanthus vermiformis
O nome da espécie deve-se aos sulcos
característicos na superfície das suas placas
dérmicas (destaque), semelhantes a vermes.

TEXTO: MICHAEL GRESHKO. NGM MAPS. FOTOGRAFIAS: INSTITUTO DE PALEONTOLOGIA DE VERTEBRADOS E PALEOANTROPOLOGIA,
ACADEMIA CHINESA DE CIÊNCIAS (FÓSSEIS); CORTESIA PALEOVISLAB, IVPP NICE STUDIOS (RECRIAÇÕES) MARÇO 2023
E X P L O R E | ETOLOGIA

UMA CATATUA
SAGAZ E MANHOSA
EXISTEM ESPÉCIES que usam ferramentas de maneira
inovadora, mas apenas duas utilizam conjuntos de fer-
ramentas para resolver determinados desafios. O chim-
panzé, um dos nossos parentes evolutivos mais próximos,
é uma dessas espécies. A outra nada tem que ver com
primatas, nem mesmo com mamíferos: é a catatua de
Tanimbar (Cacatua goffiniana), originária das ilhas
indonésias que lhe deram o nome, entre Timor e a Nova-
-Guiné. Embora já fosse conhecida por ser capaz de usar
ferramentas simples de forma eficaz, um estudo acaba
de mostrar que a catatua consegue identificar problemas
que exigem um conjunto de ferramentas. A ave sabe
recolher ferramentas e transportá-las para atingir um
objectivo, como fazem os chimpanzés quando agrupam
diversos utensílios e se deslocam com eles para os uti-
lizar na “pesca” de térmitas.
Como explica o principal investigador do estudo,
Antonio J. Osuna Mascaró, do Instituto de Investigação
Messerli da Universidade de Medicina Veterinária de
Viena, “alguns problemas não podem ser resolvidos com
uma única ferramenta. Por vezes, são necessárias várias
com diferentes funções que, usadas uma depois da outra,
permitem atingir o objectivo. Os conjuntos de ferramen-
tas são uma parte importante da tecnologia humana e
constituem um dos exemplos mais avançados de tecno-
logia animal.” Mas como descobriram os investigadores
que a catatua é capaz de tamanha proeza?
Inspirado no caso dos chimpanzés e das térmitas, este
biólogo especializado em cognição animal montou três
testes, usando como isco uma castanha de caju – um
fruto seco cujo sabor curiosamente lembra o das térmitas
– colocada numa caixa transparente. Primeiro, colocou
uma fina membrana de papel bloqueando o acesso à
castanha de caju e, ao lado, dispôs duas ferramentas: uma
vareta curta e pontiaguda e uma vareta longa e flexível.
Para “pescar” o caju, era preciso atravessar a mem-
brana, que “só podia rasgar-se com a ferramenta pon-
tiaguda”, explica. Como esta era muito curta para
alcançar a recompensa, tornava-se esssencial utilizar
a outra depois. Para surpresa dos biólogos, as catatuas
resolveram o desafio rapidamente. E também resolve-
ram o segundo: ao substituir aquela caixa por outra
sem membrana, as aves sabiam quando deviam usar
as duas ferramentas combinadas ou apenas uma. No
Para obter a preciosa castanha de caju, esta
terceiro teste, as catatuas aprenderam a transportar as
cacatua, chamada Figaro, combinou habilmente
duas ferramentas ao mesmo tempo quando a caixa o o uso de duas ferramentas: uma para rasgar a
exigia. Não há obstáculo intransponível quando uma membrana que a separava da castanha e outra
deliciosa castanha de caju o espera no final do caminho! para alcançá-la e fazê-la cair pela rampa.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C TEXTO: EVA VAN DEN BERG. FOTOGRAFIAS DE THOMAS SUCHANEK


Já disponível
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o mundo, preocupam-se mais profundamente com ele.»

A National Geographic Society «XPDRUJDQL]D©¥RJOREDOVHPƃQVOXFUDWLYRVTXHSURFXUDQRYDVIURQWHLUDVGD


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M A R Ç O | EDITORIAL

T E X T O D E N AT H A N LU M P FOTOGRAFIA DE RICHARD BARNES

OS MUSEUS TÊM um papel importante na após batalhas, roubos de povos indíge- Estas estátuas são
nossa vida. Em criança, as visitas fami- nas, extracções sob ameaça de força. algumas das 26 obras de
arte que França devolveu
liares ao Museu Público de Milwaukee Uma das reportagens deste mês debate ao Benim, no Outono de
e ao Museu Field de História Natural de o conceito de posse desses artefactos 2021. Este território era
Chicago eram os meus dias favoritos. e analisa a crescente pressão para que conhecido como Reino
de Daomé no final do
Tive a sorte de visitar alguns dos grandes pelo menos alguns sejam devolvidos às século XIX, quando os fran-
museus do mundo e de morar perto de comunidades e lugares de onde vieram. ceses saquearam os tesou-
instituições com colecções ricas. Aliás, a A questão não é nova: a Grécia luta ros dos seus palácios reais.
Há cinco anos, o presidente
minha maneira preferida de terminar a pela devolução dos Mármores de Elgin
francês Emmanuel Macron
semana de trabalho em Nova Iorque era do Museu Britânico há quase duzentos prometeu a “devolução
fazer uma escala, na noite de sexta-feira, anos. O que está a mudar é a resposta, já da herança africana”
que muitos museus e governos ajustam guardada nos museus
no Museu Metropolitano de Arte.
gauleses aos seus países
A apreciação de arte ou de artefac- a sua abordagem aos acervos. No pro- de origem.
tos históricos com os nossos próprios cesso, redefinem quem é o “proprietá-
olhos ajuda-nos a compreender a his- rio” da cultura, bem como o novo papel
tória e a cultura de forma palpável. E os do museu. É um tópico controverso e
curadores mais brilhantes conseguem um debate que pode corrigir os erros
estabelecer ligações entre peças que nos do passado para o bem de todos.
permitem perceber o mundo sob uma Obrigado por ler a revista National
luz totalmente nova. Geographic.
No entanto, muitos museus possuem
peças adquiridas por métodos hoje con-
siderados ilegais ou pouco éticos: saques
v

TEXTO DE ANDREő CURRY FOTOGRAFIAS DE RICHARD BARNES

2
A DEVOLUÇÃO DE BENS SAQUEADOS NÃO ENCERRA MUSEUS. ABRE NOVAS PORTAS.
O sultão Nabil Njoya,
da cultura bamum,
senta-se num trono
encomendado pelo
bisavô (na fotografia
atrás de si). Trata-se
de uma reprodução do
trono obtido pelas
autoridades coloniais
germânicas em 1908,
em circunstâncias hoje
contestadas. Conhe-
cido por Mandu Yenu,
o original está exposto
num museu de Berlim.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
Por volta de 1900,
funcionários coloniais
e comerciantes, como
este mercador
austríaco sentado
junto de Ibrahim
Njoya, governante
dos bamum, vasculha-
ram o planeta em
busca de objectos de
arte e cerimoniais,
levando-os para
museus na Europa.
HELENE OLDENBURG, ARQUIVOS
DA MISSÃO DE BASILEIA
M F E V E R E I RO, P O E I RA S F I N A S D E C O R V E R M E L H A
transportadas pelo vento que sopra das longín-
quas paragens do Saara cobrem por completo
Foumban, uma cidade com cerca de cem mil habi-
tantes nos Camarões. Todos os dias parecem
iguais. O Sol mostra-se entre as nuvens, a atmos-
fera está seca e, da estrada que atravessa a cidade,
ecoa uma cacofonia de buzinas e zumbidos
de motocicletas.
Durante algumas décadas, esta região de Áfri-
ca foi uma colónia alemã, cuja administração,
breve mas brutal, durou de 1884 a 1916. À seme-
lhança de outras potências coloniais, a Alema-
nha criou colecções etnológicas para conservar,
estudar e expor os artefactos culturais dos terri-
tórios ocupados. Embora o coleccionismo seja
um impulso com raízes profundas na história da
Um novo museu
localizado em Foumban
(Camarões) foi projec-
tado a partir das armas
do reino dos bamum:
uma serpente bicéfala
coroada por uma
aranha. Os objectos
sagrados podem ser
emprestados para
uso em cerimónias
tradicionais e
depois devolvidos.

TRONO MANDU YENU


Ornamentado com contas e decorado com búzios
cauris, o trono Mandu Yenu foi um símbolo de
autoridade no reino dos bamum antes de a
Alemanha reivindicar parte dos actuais Camarões
como colónia em 1884. E embora o governante dos
bamum desse tempo fosse aliado dos alemães,
recebendo ajuda militar e produtos das autoridades
alemãs, os seus descendentes afirmam que ele foi
pressionado no sentido de oferecer o seu trono ao
imperador alemão, como presente de aniversário em
1908. Passado mais de um século, querem que seja
devolvido. “O trono não é apenas um objecto”,
afirma Nabil, bisneto de Njoya. “É um objecto
através do qual o rei se liga aos seus antepassados.”

humanidade, os museus, tal como hoje os conhe- então governava a nação camaronesa dos ba-
cemos, foram na sua maioria uma invenção do mum: talvez fosse apropriado oferecer um pre-
século XIX, tendo sido concebidos para partilhar sente ao Kaiser Guilherme II por ocasião do seu
os frutos da exploração e da conquista europeias. 50.º aniversário – mais especificamente, uma re-
O colonialismo transformou o coleccionismo produção rigorosa do admirável trono de Njoya,
numa mania. Da mesma forma que as potências elaboradamente decorado com contas. Herdado
coloniais não enviaram exploradores para carto- do pai do rei, o trono era conhecido como Man-
grafar os quatro cantos do mundo por puro amor du Yenu, devido ao casal de figuras protectoras
ao conhecimento, os objectos também não se li- que ornamentavam o espaldar.
mitaram a aparecer nos museus. Antropólogos, Njoya pediu aos entalhadores e aos artesãos
missionários, mercadores e militares colabora- responsáveis pelo fabrico de contas que cons-
ram com os museus para trazerem maravilhas e truíssem uma cópia do Mandu Yenu. No entan-
riquezas para a Europa. Os curadores chegaram to, quando se tornou evidente que a cópia não
ao ponto de enviar listas de artefactos desejados ficaria pronta a tempo do aniversário do impe-
nas expedições coloniais armadas. rador, Njoya foi convencido a entregar o original
Em 1907, funcionários alemães enviaram no seu lugar. E este permanece desde então na
uma mensagem ao sultão Ibrahim Njoya, que colecção do Museu Etnológico de Berlim.

TESOUROS POLÉMICOS 7
Nabil Njoya, bisneto de Njoya, tornou-se gover- Só no ano passado, a Alemanha transferiu para
nante dos bamum em 2021, após a morte do pai. a comissão nacional dos museus da Nigéria a pro-
Quando me encontrei com ele, diante do palácio priedade de centenas de artefactos, ao passo que
real de Foumban, o monarca de 28 anos puxou do França devolveu 26 artefactos ao Benim e o Mu-
telemóvel e mostrou-me fotografias captadas du- seu Metropolitano de Arte de Nova Iorque nego-
rante os cinco anos em que frequentou a Univer- ciou com a Grécia a transferência da propriedade
sidade em Queens, em Nova Iorque (EUA). de dezenas de esculturas.
Nos Camarões contemporâneos, a realeza é “Por volta de 1900, os países europeus compe-
uma figura tradicional com autoridade legal limi- tiam entre si pela posse de grandes colecções et-
tada, mas confere respeito e poder simbólico. E, nológicas”, afirma Bénédicte Savoy, professora de
segundo o costume dos bamum, o poder de cada história da arte na Universidade Técnica de Ber-
rei é transmitido através dos tronos construídos lim. “Acho que, agora, competem para determi-
para o seu sucessor. Enquanto o Mandu Yenu per- nar quem é o primeiro a devolver os artefactos.”
manecer em Berlim, “há uma quebra na cadeia”. Muitos curadores têm esperança de que esta
Sentado no trono que o pai construiu para si, mudança assinale o início de uma era de coopera-
Nabil afirma não culpar os alemães por actos dos ção entre os museus e as comunidades e países de
seus antepassados há mais de um século. Quer onde as colecções provieram. Entretanto, vozes
apenas que o trono do bisavô seja devolvido. “Ne- críticas mostram preocupação quanto à possibi-
nhum de nós existia nessa época – nenhum de lidade de estas devoluções desencadearem uma
nós”, diz. “Mas creio que estamos obrigados a re- reacção em cadeia que desmantele os museus
solver este problema.” “universais” cujas colecções internacionais ofere-
Nabil tem esperança de que a devolução do cem uma singular visão da forma como o mundo
Mandu Yenu venha a fazer parte do seu legado. se encontra interligado.
“Tenho uma imagem na mente”, afirma. “Vejo-
-me a mim e a esse trono. Vejo muitas pessoas dos
bamum à minha volta. E também vejo, de pé, jun- foi acesa
F A Í S C A D A R E VO L U Ç Ã O
to a mim, o director do Museu de Berlim, ambos
a apertarmos as mãos, e a dizermos um ao outro:
‘Conseguimos! Conseguimos – não por nós, mas
pelos nossos filhos’.”
A em França, país onde tantas revo-
luções começaram. Em Novembro
de 2017, o presidente francês
Emmanuel Macron viajou até
Ouagadougou, capital do Burkina Faso, uma antiga
colónia francesa na África Ocidental. Perante um
O U C A S P E S S OA S na Alemanha ouvi- auditório cheio de estudantes, Macron reconheceu

P ram falar no trono Mandu Yenu.


Menos ainda serão capazes de loca-
lizar Foumban num mapa. Mas
enquanto os artefactos de outros
países —Benim, Egipto, Grécia e Nigéria – domina-
ram os cabeçalhos das notícias nos últimos anos,
os “crimes” do período colonial francês. Depois,
inflectiu por um caminho inesperado.
“Não posso aceitar que uma grande percenta-
gem do património cultural de vários países afri-
canos esteja guardada em França”, disse o presi-
dente francês. “Há explicações históricas para o
este trono de madeira requintadamente decorado facto, mas não existe uma justificação válida, du-
com contas simboliza ainda o futuro confuso, radoura e incondicional.” Dentro de cinco anos,
incerto e, em última análise, esperançoso de um afirmou, “quero que estejam criadas as condições
momento global inédito. para a devolução temporária ou definitiva do pa-
Nas últimas décadas, uma nova geração de trimónio africano a África”.
curadores e directores de museus – frequente- Na sua galeria no Benim, Marie-Cécile Zinsou,
mente espicaçados por activistas e líderes políti- que dirige uma fundação dedicada à arte africana
cos – tem investigado aprofundadamente a forma contemporânea, ficou estupefacta. “Ninguém es-
como os artefactos chegaram aos seus museus. tava à espera”, diz. “Foi como uma trovoada.” Um
E, cada vez mais, estão a dar o passo seguinte: escasso ano antes, um pedido apresentado pelo
num processo conhecido por repatriamento, têm presidente do Benim para devolução dos artefac-
retirado peças de arte, artefactos rituais e restos tos levados pelos soldados franceses na década
humanos das suas vitrinas e armazéns para de- de 1890, fora liminarmente recusado. “A França
volvê-los às respectivas comunidades. recusara sempre”, acrescenta.

8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ESCULTURAS DO PÁRTENON
Empoleirado numa colina, bem acima de Atenas, o
Pártenon era o mais importante templo da cidade antiga,
encontrando-se decorado com estátuas de mármore e
com um friso esculpido que representava uma festividade
em honra de Atena, com heróis e deuses em procissão.
A Grécia estava sob domínio otomano no início do
século XIX, quando Thomas Bruce, embaixador britânico
e conde de Elgin, foi autorizado a retirar “algumas peças
de pedra com inscrições antigas e figuras”. Lord Elgin
subtraiu cerca de metade das esculturas ainda
sobreviventes e grande parte do friso, enviando-as
para Londres num navio. Há muito que a Grécia
exige a sua devolução, argumentando que o negócio
de Elgin com uma potência ocupante foi ilegítimo.

Os Mármores de Elgin
foram adquiridos pelo
Parlamento britânico e
doados ao Museu
Britânico, então em
expansão, ao qual os
visitantes acorreram em
massa em 1817, para
verem os artefactos.
Acabariam por simboli-
zar o impasse em
reivindicações de
repatriamento.
Recentemente, o museu
apelou a uma nova
“Parceria do Pártenon”
e mostrou-se disponível
para conversações com
o governo grego.
“SALA ELGIN TEMPORÁRIA EM 1819”,
POR ARCHIBALD ARCHER, TRUSTEES
DO MUSEU BRITÂNICO

TESOUROS POLÉMICOS 9
Inaugurado em 2009,
o Museu da Acrópole
é uma resposta às
objecções britânicas
de que a Grécia não
possuía um museu
capaz de alojar os
Mármores Elgin. Os
fragmentos expostos
nesta galeria aguardam
a devolução das peças
em falta, detidas pelo
Museu Britânico.
Pouco depois, Macron pediu a Savoy e ao aca- Decidi visitar o homem cujo museu talvez seja
démico senegalês Felwine Sarr que elaboras- o mais afectado pela promessa de Macron. No
sem um relatório sobre as colecções coloniais museu parisiense de Quai Branly, encontra-se a
de França. Os dois investigadores fizeram um maior colecção etnológica de França. O museu
apelo no sentido de o país devolver os artefactos guarda peças recolhidas há quinhentos anos,
subtraídos pelas suas forças armadas durante o pois coincidiu com a época dos gabinetes de
período colonial, bem como as peças subtraídas curiosidades. A colecção abrange todo o tipo de
pelos exércitos de outros países e guardadas em artefactos – de esculturas de madeira polinésias
museus franceses. Exerceram pressão no sentido a crânios humanos decorados das terras altas da
de serem devolvidos artefactos obtidos em expe- Papua Nova-Guiné. Emmanuel Kasarhérou é o
dições “científicas” enviadas a África no início do responsável por tudo isto. A sua nomeação, em
século XX a fim de recolher objectos, muitas vezes 2020, representou um forte sinal de mudança no
sob ameaça de armas, para os museus franceses. mundo dos museus. Natural da Nova Caledónia,
As antigas colónias requeriam a devolução dos um arquipélago do oceano Pacífico, a 17 mil qui-
seus artefactos há meio século ou mais. Os gover- lómetros de Paris, o director do museu pertence à
nos, os museus e a comunicação social começa- nação kanak e é um dos poucos directores indíge-
vam, finalmente, a prestar-lhes atenção. nas em toda a França.

12 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Um grupo de artistas
e investigadores está
a criar réplicas
exactas das esculturas
do Pártenon, para
incentivar o Museu
Britânico a devolver
os originais à Grécia.
Federico Agostinelli
vigia a produção de
uma cabeça de cavalo
numa oficina de
Carrara (Itália).

As antigas colónias
reclamavam a devolução de
artefactos há meio século ou
mais. Por fim, os governos,
os museus e a comunicação
social começaram a
prestar atenção.

Em 2021, Kasarhérou supervisionou a devo- temporâneos do país. Os salões de tectos altís-


lução das obras de arte trazidas pelos soldados simos encontravam-se cheios de embaixadores
franceses em 1892, após o saque do Daomé, um estrangeiros, sacerdotisas de vudu descalças e
reino da África Ocidental que é actualmente o Be- oficiais do exército envergando uniformes ne-
nim. Essas peças (incluindo dois tronos, as portas gros e dourados. A realeza de Daomé, com os
de um palácio e outros símbolos do poder real) seus colares de coral vermelho, passeava lenta-
eram peças centrais das colecções de Quai Branly mente pelas vitrinas onde se guardavam os te-
desde a sua inauguração em 2006. souros ancestrais.
Pouco depois do discurso de Macron, o presi- Durante os quatro meses que se seguiram,
dente do Benim, Patrice Talon, voltou a pedir a quase duzentas mil pessoas visitaram as exposi-
devolução dos objectos. Em Fevereiro de 2022, ções. Algumas esperaram várias horas por uma
as peças foram apresentadas no palácio presi- oportunidade para ver os artefactos devolvi-
dencial, em Cotonou. “O património do Benim dos ou para se deixarem fotografar junto deles.
regressou”, afirmou Talon. A grande maioria dos visitantes era originária
Durante várias horas, a elite do Benim con- do Benim, desmentindo assim a ideia de que os
viveu com os artefactos devolvidos e apreciou africanos não se interessam pela sua história,
uma exposição dos trabalhos de artistas con- nem por museus. (Continua na pg. 22)

TESOUROS POLÉMICOS 13
O museu Pitt Rivers,
da Universidade de
Oxford, acolhe mais de
meio milhão de peças
de todo o mundo.
Já devolveu os restos
mortais de aborígenes
australianos, entre
outros, e decorrem
conversações sobre
repatriamento com
grupos de África, Ásia
e de outras regiões
do planeta. “É nesse
momento que a relação
começa a sério”, diz
a directora Laura
van Broekhoven.
Em 1912, uma equipa
alemã escavou
o busto de calcário
e gesso da rainha
Nefertiti, nas ruínas do
estúdio de um escultor
em Amarna, no Egipto.
Esculpida por volta de
1340 a.C., a beldade de
olhos amendoados
deixou os arqueólogos
boquiabertos. “Inútil
descrevê-la”, escreveu
um deles numa entrada
do seu diário.
“É preciso vê-la.”
Os arqueólogos
levaram o busto para
a Alemanha, onde
permanece até hoje,
apesar de o Egipto ter
repetidamente exigido
a sua devolução.
BPK BILDAGENTUR/MUSEU DO
PRÓXIMO ORIENTE, MUSEUS ESTATAIS,
BERLIM/ART RESOURCE, NOVA IORQUE

BUSTO DE NEFERTITI
Exposto numa vitrina à prova de bala do Neues Museum de
Berlim, o majestoso busto de Nefertiti é, ao mesmo tempo,
um símbolo do Antigo Egipto e uma das peças mais famosas
de museu da capital alemã, atraindo centenas de milhares
de visitantes todos os anos. Foi exposto pela primeira vez
em Berlim, em 1924. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi
escondido numa cave, depois num bunker e, por fim, numa mina
de sal, onde foi encontrado pela “brigada dos monumentos”
das Forças Aliadas. Segundo os seus detractores, o busto foi
levado de forma pouco ética e o chefe da expedição terá
ocultado o valor da peça. A Alemanha insiste que adquiriu
Nefertiti legalmente, afirmando que, segundo os exames
realizados por digitalização, a escultura é demasiado delicada
para a viagem de regresso ao Cairo.

16
Hawai
(EUA)

PARTILHA DO MUNDO
O colonialismo moderno atingiu o auge em 1914, época em
que os europeus governavam a maior parte dos países do
mundo. A descolonização começou após a Primeira Guerra
Mundial e intensificou-se depois da Segunda Guerra Mundial.
Muitas fronteiras actuais foram definidas na época colonial.
Alasca Pe n
(EUA) . Ch Pe n . K a m c h a t k a
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C.R.
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Grã-Bretanha
Legislação pioneira
C A

PANAMÁ Museu
REINO EST.

A
HAITI Etnológico
O activismo dos nativo- UNIDO LET.
R A

REP. DOM.
-americanos na década de 1970 IRLANDA
DIN.
P. BAIX. LIT. P
BIELORRÚSSIA CAZ.
Museu Britânico BÉLG. POL.
O
Í B A S

permitiu a aprovação de leis USB.


Porto
que exigem a devolução das FRANÇA
ALE.
R UCRÂNIA
E U
Rico (EUA)
COL. Museu do Louvre
peças sagradas. O processo das ÁUST. HUNG. TURQUEM.
Museu Quai Branly
reivindicações tribais, contudo, ROM. GEÓ. AZER.
VENEZUELA é lento e complicado. ARM.
PORTUGAL TURQUIA IRÃO
GUIANA ITÁLIA
ESPANHA GRÉCIA SÍR.
SURINAME IRAQUE EAU
MALTA LÍB.
Guiana Francesa Canárias
ISRAEL JORDÂNIA
(FR.) MARROCOS TUNÍSIA
KOWEIT
Saara Ocidental BAHREIN
(MARR.) QATAR
ARGÉLIA
CABO LÍBIA EGIPTO ARÁBIA
VERDE SAUDITA
MAURITÂNIA
AMÉRICA SENEGAL
GÂMBIA MALI Á ERITRE
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DO SUL GUINÉ NÍGER F CHADE
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SERRA LEOA
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Património indígena
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E PRÍNCIPE GABÃO REP. DEM.


BURUNDI
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DO
Museus e universidades têm a CONGO
A

custódia de enormes colecções Cabinda


(ANGOLA)
TANZÂNIA
de artefactos indígenas america-
nos pré-colombianos, adquiridos MALAWI
através de conquistas ou ANGOLA ZÂMBIA
de expedições arqueológicas. Repartindo um continente
Durante a chamada Corrida ZIMB.
a África, entre 1884 e 1914, as MOÇ.
NAMÍBIA BOTSWANA
potências europeias colonizaram
a maior parte do continente e ESWATINI
levaram consigo grande parte LESOTO
do seu património cultural. ÁFRICA DO
SUL
MATTHEW W. CHWASTYK, ALBERTO LUCAS LÓPEZ E PATRICIA HEALY. FONTES: THE CENTURY ATLAS OF THE WORLD (EDIÇÃO DE 1914); FÓRUM HUMBOLDT;
18DO LOUVRE;
MUSEU N A T IMUSEU
O N ADEL QUAI
G EBRANLY;
OGRA P H IMETROPOLITANO
MUSEU C DE ARTE; MUSEU BRITÂNICO; INSTITUTO SMITHSONIAN
COLECCIONISMO COLONIAL
Na época dos impérios e da colonização, durante a qual um punhado de países,
sobretudo europeus, dominava grande parte do planeta, o património cultural
dos povos conquistados foi frequentemente classificado como despojos
legítimos de guerra. Os colonizadores recolheram um elevado número de
artefactos e muitos integraram as colecções dos maiores museus enciclopédicos
da Europa. Porém, à medida que conquistavam a independência, vários
Sacalina territórios começaram a exigir a devolução dos seus tesouros culturais. Essas
J exigências estão agora a ser ouvidas e, nalguns casos, aceites.
A
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COREIA
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LANKA R
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OMAN S Ilha do Norte
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A NOVA ZELÂNDIA
Honrando os antepassados
Há décadas que os grupos indígenas, como Ilha do Sul
os maori da Nova Zelândia e os hawaianos,
exercem pressão junto dos museus Tasmânia
e das universidades para que os restos
mortais dos seus antepassados sejam
repatriados, bem como os seus artefactos
artísticos e espirituais. O sucesso é relativo.

MAURÍCIA Fronteiras e topónimos MODERNOS representados a branco


Reunião 1914: PRINCIPAIS POTÊNCIAS e a sua esfera de influência
(FR.)
Áustria-Hungria França Rússia
MADAGÁSCAR Bélgica Alemanha Espanha
Possesões do Império Britânico Itália Estados Unidos
China Japão Território independente
Dinamarca Império Otomano ou não reclamado

Países Baixos Portugal PROJECÇÃO TRIOPTIMAL


BRONZES DO BENIM
Em 1897, em retaliação por uma emboscada
ocorrida durante uma expedição britânica
anterior, militares britânicos saquearam a Cidade
do Benim, actualmente localizada na Nigéria,
levando consigo uma “safra regular de despojos”,
assim descrita por um funcionário. Entre os
despojos, contavam-se presas de marfim esculpi-
das e placas de latão fundido erradamente
classificadas como “Bronzes do Benim”. Leiloadas
ou oferecidas pelas tropas triunfantes, mais de
cinco mil peças acabaram em museus e colecções
de todo o mundo. Nos últimos dois anos, museus
na Alemanha, no Reino Unido, nos EUA e noutros
países devolveram, ou comprometeram-se a
devolver, os artefactos saqueados à Nigéria.
ROBERT ALLMAN, TRUSTEES DO MUSEU BRITÂNICO

À ESQUERDA EM CIMA

O oba do Benim foi A Escola de Design de


exilado após a derrota. Rhode Island adquiriu
Os britânicos sugeriram esta escultura de bronze
que os rivais tinham de um oba, ou gover-
sacrificado escravos. nante, ao povo edo em
“Quando nos aproximá- 1939. Graças a pressões
mos, vimos seres huma- exercidas por estudan-
nos sacrificados” por to- tes da área e pelo
do o lado, escreveu um. corpo docente, a escola
JONATHAN A. GREEN, TRUSTEES
devolveu-a à Nigéria
DO MUSEU BRITÂNICO no ano passado.
Bénédicte Savoy também assistiu à cerimónia
em Cotonou, de olhos a brilhar enquanto contem-
plava as galerias repletas de gente. “Antes de co-
meçarem todas estas restituições, ouvia-se dizer
com frequência: ‘Se devolvermos um objecto que
seja, os nossos museus vão ficar vazios’”, conta.
A biografia de cada
“Não me parece que isso vá acontecer.” artefacto é um
choque entre
vêem o pro-
E M TO D O S O S M U S E U S
culturas e
N blema desta maneira. O Museu
Britânico, em Londres, tornou-se
um símbolo mundial da recusa de
devolução de artefactos. No pas-
sado, funcionários do museu defenderam que o
influências, um
minicurso de
mundo precisa de museus universais, ou enciclopé-
dicos, capazes de superar as divisões artificiais das
história mundial.
fronteiras contemporâneas e que reúnam obras de
arte e artefactos de culturas, períodos históricos e
lugares diferentes. Trata-se de um conceito nascido
durante o Iluminismo, uma época de florescimento Antes da minha visita a Londres no Verão pas-
da ciência e da filosofia que varreu a Europa nos sado, tentei meses a fio que o museu concordasse
séculos XVII e XVIII. “Haverá mais algum lugar no em conceder-me uma entrevista gravada, mas
planeta capaz de acolher sob o mesmo tecto os frutos sem qualquer sucesso. Enquanto os museus de
de dois milhões de actividade humana?”, afirmou outros países resolveram a questão da restituição,
George Osborne, presidente do conselho de admi- o Museu Britânico parece ter-se escondido.
nistradores do museu, em 2022. “Queremos que este Os velhos defensores do museu parecem ago-
seja o museu da nossa humanidade comum.” ra confusos. Depois de deambular pelas galerias
Esta ideia é fácil de acalentar se tivermos uma do museu, vou tomar chá com a socióloga Tiffany
tarde livre para usufruir do Museu Britânico. Al- Jenkins. Em 2016, ela escreveu uma tese em defe-
guns meses antes do discurso de Osborne, cami- sa do Museu Britânico, intitulada “Keeping Their
nhei pelo vasto salão principal do museu, passan- Marbles”, afirmando que os museus modernos
do pela Pedra de Roseta. Gravada em 196 a.C., a deviam preocupar-se em contar a história dos ob-
estela foi descoberta em Alexandria pelas tropas jectos antigos e das pessoas que os fizeram, man-
de Napoleão, em 1799, e trazida para Londres em tendo-se afastados de qualquer posição política.
1802, depois de os britânicos derrotarem os fran- Para minha surpresa, Jenkins reconhece que
ceses. Imediatamente a seguir, encontram-se os o debate se alterou nos anos decorridos desde a
relevos assírios esculpidos há quase três mil anos publicação do seu livro e que o Museu Britânico
e, depois destes, uma cópia romana de uma está- se deixou ficar para trás. Agora, afirma Jenkins,
tua grega de Afrodite comprada pelo rei britânico os colaboradores do museu raramente defendem
a um duque italiano na década de 1620. A biogra- a existência de museus enciclopédicos. Preferem
fia de cada objecto é um choque entre culturas e refugiar-se em argumentos de natureza técnica,
influências, um minicurso de história mundial. como os acordos assinados na década de 1880 com
Meia dúzia de passos à frente, entramos numa o Império Otomano, que então controlava Atenas,
galeria com relevos de mármore revestindo todo autorizando a retirada dos mármores da Acrópole;
o espaço disponível. Esculpidos há 2.500 anos, ou no facto de muitos objectos terem sido trazidos
decoraram outrora o Pártenon, em Atenas. Seis de África e da Ásia antes de a Grã-Bretanha ter as-
milhões de pessoas visitam o Museu Britânico to- sinado um tratado que proibia a pilhagem, tornan-
dos os anos e pode-se afirmar com segurança que do a sua aquisição legal e até ética; ou mesmo uma
a maioria ouviu falar nas exigências de que esses lei do Parlamento de 1963 que impede o museu de
mármores sejam devolvidos à Grécia – um debate retirar peças da sua colecção. “Não basta aponta-
que se reacende, de tempos a tempos, desde que rem para documentos”, resume Tiffany Jenkins.
as esculturas chegaram a Londres há dois séculos. “Se esse for o seu argumento, vão perder.”

22 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Com 400 anos,
este Bronze do Benim
exposto no Museu
MARKK de Hamburgo,
na Alemanha, repre-
senta um guerreiro
a desmontar um
inimigo do seu cavalo.
Muitos dos bronzes
registam acontecimen-
tos importantes da
história do antigo
reino do Benim.
Os fundidores de bronze
da Cidade do Benim
(Nigéria) pertencem a
uma tradição muito
antiga. No passado,
trabalhavam para o
palácio real. Etinosa
Aigbe e outros artesãos
esculpem peças para
venda – como esta
representação em tama-
nho real de um soldado
português (ao centro).
uma solução inter-
A LV E Z E X I S TA

T média. Hermann Parzinger é pre-


sidente da Fundação do
Património Cultural Prussiano, ou
SPK, uma organização que super-
visiona mais de uma dezena de museus em Berlim
– entre os quais dois sediados no polémico Fórum
“Talvez seja o fim
do museu do
Humboldt, um novo complexo no centro da cidade.
O seu Museu Etnológico acolhe milhares de artefac- século XIX e o início
tos, na sua maioria acumulados durante o apogeu
colonial da Alemanha, no fim do século XIX. de algo diferente.”
A partir de 2018, o SPK começou a devolver
Bénédicte Savoy,
artefactos, entre os quais uma figurinha de deu-
Universidade Técnica de Berlim
sa (Camarões), objectos rituais e culturais devol-
vidos à Namíbia, restos mortais de indivíduos
maori (Nova Zelândia) e restos mortais e peças
funerárias de hawaianos e de nativos do Alasca.
No ano passado, o SPK coordenou uma de- Em Julho, representantes do governo alemão
volução altamente mediatizada de Bronzes do emitiram uma declaração bilateral determinan-
Benim à Nigéria – entre os “bronzes” contavam- do que a propriedade legal dos Bronzes do Benim
-se objectos de marfim, madeira e latão, mas o guardados em museus de todo o país – mais de
nome manteve-se. Em 1897, uma expedição bri- mil objectos, incluindo 500 do SPK – seria trans-
tânica fortemente armada invadira o Reino Edo ferida para a Nigéria. Na cerimónia de assinatura,
(ou Reino do Benim, situado na actual Nigéria), o ministro nigeriano da Cultura classificou a ope-
depôs o seu rei hereditário, ou oba, e saqueou o ração como “o maior repatriamento de artefactos
palácio na Cidade do Benim. Fotografias do epi- de que há conhecimento no mundo”.
sódio mostram os soldados britânicos, de rostos A iniciativa foi simbólica e, segundo Parzinger,
e uniformes sujos e enlameados, sorridentes no vantajosa para todas as partes. Muitos artefactos
meio de pilhas de estatuária de marfim e metal. permanecerão na Alemanha, numa base de em-
Os oficiais legendaram algumas fotografias com préstimo a longo prazo, nos próximos dez anos,
a palavra “DESPOJOS”. enquanto outros ficarão até a Nigéria construir
Na actualidade, mais de cinco mil artefactos sa- novos museus com a ajuda da Alemanha. Depois
queados no decurso da operação de 1897 encon- disso, os funcionários nigerianos emprestarão os
tram-se guardados em museus de todo o mundo, artefactos à Alemanha numa base rotativa. “Que-
mas não no Museu Nacional da Cidade do Benim. ro mostrar a arte do Benim no meu museu”, re-
“Os britânicos levaram um tesouro que estava no sume Parzinger. “Pouco importa se estes objectos
palácio há séculos”, afirma Theophilus Umogbai, pertencem ao museu ou são emprestados.”
antigo director do museu. “Criaram um vazio na Em Agosto, o SPK tornou-se a primeira insti-
nossa história, uma lacuna na nossa biblioteca.” tuição alemã a prescindir dos seus bronzes. Que
As bem documentadas circunstâncias do raide esperanças podemos então depositar na solução
contra a Cidade do Benim, bem como décadas de de casos mais complexos, como o mundialmente
pressão persistente exercida pela realeza edo e famoso busto da antiga rainha egípcia Nefertiti?
pelos funcionários nigerianos, transformaram es- Esta requintada escultura foi escavada por inves-
tes bronzes num caso exemplar de repatriamen- tigadores alemães em 1912 e enviada para Berlim,
to. A forte argumentação moral aliada à pressão de onde nunca mais saiu. Segundo os funcioná-
pública e política parece estar a alterar o debate. rios alemães, a peça foi legalmente adquirida nes-
“Não queremos objectos saqueados nas nos- sa época e os pedidos de repatriamento não foram
sas colecções”, diz Parzinger com firmeza. Doa- recebidos através dos canais adequados.
ções feitas pelo Reino Unido, pela Alemanha e Na opinião de Parzinger, cada pedido precisa
por outros países têm contribuído para financiar de ser avaliado em função dos seus méritos pró-
a construção de um novo museu na Cidade do prios, depois de serem ouvidas as comunidades
Benim, projectado pelo arquitecto ganês-britâ- locais e os governos nacionais e de terem sido
nico David Adjaye. investigadas as circunstâncias de cada aquisição

26 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
individual. “Tem existido difamação dos museus É um eufemismo dizer que tudo isto constitui
e um diálogo áspero do qual resultou uma mira- uma enorme mudança. Agora, os curadores en-
gem de que tudo é roubado e ilegal, mas é preciso contram-se com os seus homólogos das antigas
olhar para as zonas cinzentas”, afirma Parzinger. colónias para discussões frente a frente. “Talvez
“Um museu não é um lugar onde se entra e se tira seja o fim do museu do século XIX”, diz Savoy,
das prateleiras aquilo que se deseja.” mostrando-se despreocupada com essa perspec-
“E o que me pode dizer sobre o trono de Ibrahim tiva. “Talvez seja o princípio de algo diferente.”
Njoya?”, pergunto. “Nenhum governante dos ba-
mum apresentou qualquer pedido de devolução
~
do trono, nem isso foi feito pelo governo dos Ca- ARA TER UMA NOÇ ÃO do que
marões. Mas e se esse pedido fosse apresentado?”
Parzinger franze o sobrolho. Lembra que Njoya
beneficiou da aliança com os colonizadores ale-
mães. O rei dos bamum enriqueceu graças ao
comércio com os mercadores alemães e derrotou
os rivais locais com a ajuda das armas e da assis-
P poderá ser essa visão diferente,
dirijo-me a Suitland, no estado de
Maryland, um subúrbio da cidade
de Washington, onde o Instituto
Smithsonian guarda a maior parte dos seus 157
milhões de artefactos num complexo de armaze-
tência militar alemãs. Do ponto de vista de Par- nagem e investigação com vários hectares. A colec-
zinger, a ideia de que o trono foi uma oferta para ção inclui milhões de peças dos povos nativos da
agradecer a ajuda da Alemanha não é rebuscada. América do Norte recolhidas nos últimos 200 anos.
“Se virmos como eles trabalharam juntos, é difícil O centro de apoio do Museu Nacional de História
dizer agora que Njoya foi uma vítima, na minha Natural (NMNH) é constituído por cinco núcleos,
opinião”, diz. Faz nova pausa para reflectir. “Te- cada um do tamanho de um estádio de futebol e
nho a certeza de que podem ser encontradas so- com três pisos de altura. Em gabinetes de atmosfera
luções. Antes de o trono sair de Bamum, eles fize- controlada, encontram-se guardados os objectos de
ram uma cópia. Talvez seja possível uma troca?” centenas de comunidades indígenas.

Número
AS NOVAS EXPOSIÇÕES DIGITAIS de objectos
da colecção
Alguns dos maiores museus do mundo foram fundados
como colecções universais, destinadas a preservar e mostrar 157
milhões
tesouros etnográficos e naturais, embora em lugares distantes
das suas origens. Actualmente, encontra-se exposta uma mera
fracção destes tesouros, mas estão a ser criados catálogos
pesquisáveis na Internet.
4,4
milhões INSTITUTO
expostos SMITHSONIAN
8M online Fundado em 1846
0,5 M 0,5 M 1,1 M 1,5 M Washington, D.C.

4,5 M

107.000 490.000 1,1 M 490.000

MUSEU MUSEU DO MUSEU MUSEU METRO- MUSEU


ETNOLÓGICO LOUVRE QUAI BRANLY POLITANO DE ARTE BRITÂNICO
1822 1793 2006 1870 1753
Berlim Paris Paris Nova Iorque Londres
AS AHAYU:DA DOS ZUNI
Para os habitantes de Zuni Pueblo, no Novo México, as
estátuas de madeira chamadas ahayu:da representam
irmãos gémeos e protectores sobrenaturais. Nos
séculos XIX e XX, muitas foram roubadas e vendidas a
coleccionadores e museus. Na década de 1970, os
chefes dos zuni exerceram pressões no sentido da sua
devolução, invocando argumentos éticos que se
tornaram um modelo para as reivindicações posterio-
res de repatriamento. Santuários secretos guardam as
ahayu:da em Dowa Yalanne, ou Montanha Velha (em
baixo), um planalto com vista para Zuni Pueblo.

Há muito que o Smithsonian dá as boas-vindas mente artefactos e restos humanos das comuni-
aos estudiosos que aqui vêm investigar as suas dades nativo-americanas. Os locais de sepultura
colecções, mas, nos últimos 30 anos, o centro de foram escavados sem o consentimento dos des-
apoio do NMNH criou espaços para outro tipo de cendentes. “Quando estas peças foram adquiri-
visitantes. Hoje, representantes tribais visitam das, os coleccionadores nem sequer considera-
regularmente as instalações para estudarem as vam os povos indígenas como seres humanos”,
peças feitas pelos seus antepassados e desenvol- afirma Jacquetta Swift, responsável pelo repatria-
verem colaborações com os curadores. Uma sala mento no Museu Nacional do Índio Americano.
de conferências cumpre a dupla função de espa- “As pessoas eram recursos e os restos humanos
ço cerimonial e de gabinete apetrechado com fo- deviam ser preservados junto de vasos”, acres-
lhas secas de sálvia e tabaco que os membros da centa esta descendente dos comanche e dos apa-
comunidade podem queimar em cerimónias de ches de Fort Sill.
purificação realizadas antes ou depois do manu- Nas décadas de 1970 e 1980, activistas nativo-
seamento de objectos sagrados. -americanos exerceram pressão para aprovar le-
Há trinta anos, seria difícil imaginar este ce- gislação que obrigasse os museus a devolver as
nário. Durante séculos, arqueólogos, etnógrafos ossadas dos seus antepassados, juntamente com
e curadores de museus recolheram entusiastica- os artefactos sagrados. Muitos museus resistiram

28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
As ahayu:da colocadas
em santuários ao ar
livre, como este numa
fotografia publicada
em 1904, vão-se
gradualmente
desfazendo como parte
do seu papel espiritual.
JOHN WESLEY POWELL, ALAMY
STOCK PHOTO

com firmeza. As preocupações então levantadas Em 1989, o Congresso norte-americano apro-


soam familiares no debate em curso na Europa. vou a Lei do Museu Nacional do Índio America-
Os antropólogos e os arqueólogos manifesta- no, seguida em 1990 pela Lei do Repatriamento
ram preocupação quanto à entrega das colecções e Protecção das Sepulturas Nativo-Americanas,
de restos humanos, pois isso poderia constituir conhecida como NAGPRA. Estas leis respon-
uma perda irrecuperável para a ciência, impos- sabilizaram o Smithsonian e outros museus
sibilitando o estudo do passado do país. Outros dos EUA pelo desenvolvimento de um processo
afirmaram que as comunidades indígenas não de repatriamento, em colaboração com as co-
seriam capazes de cuidar dos artefactos ou iriam munidades indígenas, reconhecendo direitos
danificá-los em cerimónias tradicionais. Outros que anteriormente não existiam.
ainda sugeriram que estas aproveitariam a lei O Museu Nacional de História Natural (NMNH)
para esvaziar os museus, na mira do lucro. criou um gabinete de repatriamento em 1991.
“Houve muita hostilidade entre os museus e as Desde então, já devolveu mais de 224 mil peças
comunidades”, afirma Kevin Gover, subsecretá- a 200 comunidades diferentes, juntamente com
rio do Smithsonian para os museus e a cultura e os restos mortais de 6.492 pessoas. Este processo
membro da Nação Pawnee do Oklahoma. “Houve repetiu-se em museus mais pequenos localizados
muita resistência à ideia do repatriamento.” em todo o país.

TESOUROS POLÉMICOS 29
Milhares de objectos foram devolvidos, mas
alguns permaneceram onde estavam. Eric
Hollinger, oficial de ligação do gabinete de re-
patriamento do NMNH, detém-se num dos 46
corredores e abre uma porta de par em par, dei-
xando sair o odor pungente a madeira e cabedal
“Muitos pensam que
velho. No interior, encontram-se mantas, colchas
ornamentadas com contas e túnicas de pele de
repatriar significa
bisonte – oferendas depositadas em honra de uma retirar objectos, mas é
criança cheyenne falecida em 1868. Pouco depois,
soldados do Exército dos EUA que perseguiam sobretudo uma trans-
os indígenas descobriram o seu acampamento
abandonado e a sepultura. Encaixotaram as ofe- ferência de controlo.”
rendas e o corpo da criança e despacharam tudo Eric Hollinger,
para o Museu Médico do Exército. O Smithsonian Museu Nacional de História Natural
adquiriu a colecção, mas, em certo momento, os
restos mortais da criança perderam-se.
Em 1996, representantes dos cheyenne e dos
arapaho do Oklahoma negociaram um acordo que
permite a permanência dos objectos no NMNH curadores arrastaram o processo. “Precisamos
“para investigação e formação conduzidas por de fazer melhor”, afirma Kevin Gover. “Isto tem
estudiosos e pelo povo cheyenne”. Fotografá-los de ser uma prioridade para os museus que con-
e apresentá-los em exposição requer autorização servam restos mortais de nativo-americanos.”
escrita. Trata-se de um exemplo de custódia par- Os museus etnográficos tentam agora criar ex-
tilhada que torna as duas partes responsáveis pelo posições que assegurem a participação das comu-
futuro de um espólio. “A comunidade concordou nidades, perguntando-lhes como querem ser re-
em partilhar a sua custódia e ele nunca saiu do presentadas e quais os artefactos que consideram
museu”, afirma Eric Hollinger. “O público pensa importantes. Utilizando equipamento de digitali-
que o repatriamento implica retirar os objectos, zação a laser, Eric Hollinger e uma equipa de es-
mas é sobretudo uma transferência de controlo.” pecialistas desenvolveram uma colaboração com
Alguns gabinetes têm buracos de ventilação o povo tlingit, do Alasca, no sentido de criar répli-
porque, segundo a crença das culturas indígenas, cas 3D de um chapéu cerimonial danificado que
os objectos são espíritos vivos que precisam de representa um peixe-escorpião. Uma reprodução
respirar. Noutros gabinetes, os artefactos encon- ficou guardada no museu, exposta ao lado do ori-
tram-se orientados numa certa direcção, respei- ginal e a outra foi consagrada pelos tlingit como
tando as crenças tribais. objecto cerimonial para uso da comunidade.
O museu ainda recebe, com regularidade, pedi- O Museu Nacional do Índio Americano incen-
dos de informação sobre devolução. Antes de os tiva os curadores a acrescentarem peças con-
aprovarem, os investigadores dialogam com re- temporâneas fabricadas por artistas nativos às
presentantes tribais e analisam minuciosamente suas colecções. Nas suas instalações, o museu
os diários e jornais para descobrirem tudo o que apresenta objectos do século XIX, entre os quais
puderem sobre a maneira como o objecto foi ad- túnicas de pele de bisonte, cintos de missangas
quirido. Quer as comunidades acabem ou não por wampum e toucados de penas de águia dos lako-
reivindicar o objecto, as duas partes costumam ta. Mas também expõe um capacete de protec-
por norma descobrir mais informação. “Aprende- ção pintado por um trabalhador moicano, bem
mos muito sobre essas culturas que anteriormen- como sapatos de salto alto Christian Louboutin
te desconhecíamos”, diz Kevin Gover. revestidos com contas de vidro tradicionais por
Mesmo assim, as ossadas de mais de cem mil Jamie Okuma, uma artista da Califórnia.
indivíduos ainda permanecem dentro de caixas e “O museu etnográfico do passado está de saí-
armazéns fechados à chave em todo o país, mui- da”, diz Eric Gover. “Esforçou-se por imobilizar
tas vezes porque as comunidades não foram ca- estas culturas no tempo, mas nenhuma cultura
pazes de provar uma relação directa, baseada nos pára. Queremos frisar que estas comunidades
registos fornecidos pelos museus – ou porque os estão aqui: estão presentes, vivas e vibrantes.”

30 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Postes altos de madeira
como estes dois ao
lado da curadora
Brooke Morgan, do
Museu Estadual do
Illinois, são esculpidos
pelo povo mijikenda,
do Quénia, para
incorporar os espíritos
dos chefes. O museu
devolveu 37 peças ao
Quénia em 2022 e o
Museu da Natureza e
Ciência de Denver
devolveu 30 em 2019.
Muitos foram rouba-
dos. “Os museus não
têm direitos de
propriedade sobre
eles”, diz o curador
Stephen Nash.
M NENHUM OUTRO LUGAR essa Alemanha. Muitos acalentavam a esperança de

E mudança é tão visível como na


Cidade do Benim, num estúdio ao
ar livre juncado de moldes quebra-
dos e esculturas de latão.
Supervisionando tudo isto, encontra-se Phil
Omodamwen, um fundidor de bronze de sexta
que o repatriamento representasse um futuro
para uma tradição antiga. À sombra de uma pal-
meira de tronco grosso, Phil Omodamwen diz-me
que poderá ser o último fundidor de bronze da
sua família. Um dos seus filhos é contabilista e
outro é consultor de cibersegurança.
geração. Os seus antepassados eram membros A pouca distância de Igun Street, vislum-
de uma corporação que criou placas e esculturas bro um lampejo de um futuro diferente quan-
de bronze para o oba dos edo. Enquanto dois as- do Kelly Omodamwen – de 28 anos, primo de
sistentes atiçam o lume incandescente de uma Phil – me diz ter crescido a observar o pai e os tios
fogueira, Phil explica as técnicas que utiliza, ba- a fundir bronze. Também ele é membro hereditá-
seadas nas práticas dos últimos 500 anos. rio da corporação dos fundidores de bronze. No
Aquando da minha visita em Fevereiro, as entanto, o trabalho mais recente de Kelly é algo
conversas em Igun Street, onde os fundidores de de novo. Depois de observar os homens da sua
bronze vendem o seu trabalho, eram dominadas família a fundirem material de canalização e pra-
por boatos sobre a devolução dos bronzes pela tos metálicos, Kelly vasculhou as garagens locais

32 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Os vigango ainda
são cobiçados pelos
coleccionadores.
Após a sua devolução
às comunidades
mijikenda, terão de ser
resguardados dos
ladrões. Em Chalani,
uma aldeia do Leste do
Quénia, Festus Thinga
construiu uma gaiola
de ferro para proteger
as estátuas dos seus
antepassados.

“Nem todos têm acesso


ao Museu Britânico.
Para pessoas como eu,
a devolução vai mudar
aquilo que é possível.”
Kelly Omodamwen,
Fundidor de bronze nigeriano

em busca de velas de ignição usadas. Durante a minha. Era Phil Omodamwen. O Museu Etnoló-
pandemia, começou a modelar esculturas de ta- gico, explicou, adquiriu uma das suas últimas
manho real com um maçarico de soldadura. “No obras. Com orgulho, aponta para uma placa cin-
essencial, trata-se de transformar os materiais em tilante pendurada numa parede atrás de uma
algo de maior valor, utilizando os mesmos arte- mostra de cabeças históricas de bronze subtraí-
factos para um fim diferente”, afirma. das durante o episódio de 1897.
Kelly já viu o seu trabalho exposto em Nova Poucos dias antes, o seu velho sonho torna-
Iorque, em Londres e em Lagos, na Nigéria. ra-se realidade. Os curadores convidaram-no
Mas nunca saiu da Nigéria, nem teve oportuni- a manusear bronzes que até então só vira em
dade de ver os bronzes antigos de perto. “Vemo- catálogos muito gastos pelo uso. Pôde assim ob-
-los na Internet, através do Google. Nem toda servar a parte de trás das placas e conversar com
a gente tem acesso ao Museu Britânico”, diz. o especialista de restauro do museu sobre a sua
“Para pessoas como eu, a devolução vai mudar técnica e sobre a maneira como ela se compa-
aquilo que é possível.” rava com a dos seus antepassados. “Quando vi
Alguns meses mais tarde, num passeio pelas aqueles trabalhos, senti-me tão feliz”, diz, sus-
galerias do Fórum Humboldt, em Berlim, avistei pirando. “Agora, tenho uma mensagem de espe-
um rosto conhecido, sentado na fila à frente da rança para levar de volta à nossa gente.” j

TESOUROS POLÉMICOS 33
Depois de o museu
francês de Quai Branly
repatriar peças para o
Benim, em 2022, elas
foram exibidas em
Cotonou. “Os artefac-
tos são um pretexto
maravilhoso para criar
ligações humanas”, diz
Emmanuel Kasarhérou,
director de Quai
Branly. “Quando
regressam, criam novos
relacionamentos.”
O complexo ciclo
de vida da enguia
começa no mar, onde
os ovos são largados
e nascem as larvas.
Na fase de "vidro", a
enguia aproxima-se
das águas costeiras.
Já recruta, assume tons
verde-acastanhados
e dourados (fase
"dourada"). Com a
maturidade sexual,
ganha cores negras
e prateadas (fase
"prateada"), regres-
sando ao mar aberto,
onde se reproduz e,
segundo se crê, morre.

36
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE PEPE BRIX

A ENIGMÁTICA
E ESQUIVA ENGUIA
No extremo ocidental da Europa, na ilha das Flores, investiga-se
o comportamento desta espécie desde o momento em que chega
à ilha e dá início a uma odisseia de sobrevivência nas ribeiras
florentinas, partindo por fim para o mar dos Sargaços.
Depois da eclosão dos
ovos no mar dos
Sargaços, as enguias
"de vidro" são ajudadas
pelas correntes oceânicas
e fazem o caminho até
à costa, numa viagem
que se pode arrastar por
dois anos até atingirem
a foz de um rio ou, no
caso açoriano, uma
ribeira. Aqui iniciam o
caminho para montante
desafiando a gravidade
e a corrente. Subsiste
o mistério: como
vencem as jovens
enguias estas grandes
paredes verticais?
E U R O PA
AMÉRICA
Açores
DO
N O RT E
Mar dos
Sargaços

ÁFRICA

OCEANO
AT L Â N T I C O

Em 1923,
o biólogo dinamarquês
Johannes Schmidt
propôs na revista
“Nature” a hipótese
de a enguia encontrar
no mar dos Sargaços
o seu destino de
reprodução.
O trabalho deste investigador nórdico no oceano Atlântico e
no mar Mediterrâneo demonstrou a vastidão da distribuição das
larvas desta espécie e sugeriu que, no mar dos Sargaços, se con-
centrariam as larvas mais jovens. O biólogo propôs que esta re-
gião do Atlântico Norte cercada por correntes atlânticas poderia
ser o lugar de desova da enguia. Embora o estudo de Schmidt te-
nha sido pioneiro para a época, não apresentava evidências des-
sa travessia atlântica, pois não avistara adultos ou ovos naquelas
águas. Durante um século, a comunidade científica que se dedi-
ca a esta espécie ficou sedenta de mais respostas. Em quantos
meses completaria a enguia a sua rota migratória? Em que altura
do ano iniciaria o ciclo? E como resistiria a uma travessia violen-
ta num oceano de predadores vorazes?
Entre todas as espécies deste peixe que suporta variações
acentuadas da salinidade da água, a enguia leva a cabo a mais
longa e complexa migração oceânica. Apesar das tentativas
realizadas para compreender a sua rota migratória, só nos

40 N AT I O N A L G E O G R A P H I C MAPA: NGM-P
últimos 10 a 15 anos se fizeram progressos sig- O planalto onde correm britânica realizou testes
nificativos com a introdução da aplicação de as ribeiras que vão cair de DNA ambiental para
no Poço do Ferreiro é confirmar os avistamen-
transmissores de satélite. Estes pequenos dispo- uma das zonas mais tos populares de enguias
sitivos colocados no dorso das enguias permitem prístinas dos Açores. Há naquelas ribeiras.
aos investigadores receber dados de temperatura alguns anos, uma equipa A hipótese foi validada.
e profundidade, com os quais calculam trajectó-
rias. Programados para se soltarem no final de um
determinado período de tempo, emergem à su- É por isso que hoje o encontramos, num grupo
perfície e enviam por satélite toda a informação focado num pequeno animal. A enguia é um pei-
registada ao longo desse período. xe escorregadio e não é fácil contê-lo para a pe-
Dedicado ao estudo dos grandes predadores pe- quena cirurgia de implantação dos marcadores.
lágicos do Atlântico, Pedro Afonso encontrou nas A equipa aplicou óleo de cravinho como anes-
enguias uma nova linha de investigação: “Grande tesia, permitindo 15 minutos de diminuição do
parte da sua vida é feita nas íngremes ribeiras aço- metabolismo do animal. Com gestos precisos,
rianas, mas a maior prova à sobrevivência da en- implanta-se o transmissor, pesa-se e mede-se a
guia dá-se nas águas profundas do oceano Atlân- enguia da cabeça à cauda, medindo também o
tico, no último momento da sua vida”, diz. diâmetro do olho e da barbatana peitoral.

ENGUIA 41
O estudo, integrado nos projectos EELIAD e
LifeWatch, permitiu marcar centenas de enguias
em cinco regiões da Europa: o mar Báltico, o mar
do Norte, o mar Céltico, o golfo da Biscaia e a cos-
ta oeste do Mediterrâneo. Os Açores são a nova
etapa para a investigação desta espécie. Embora
os transmissores tenham permanecido no dorso
das enguias durante seis meses até ao momento
da sua libertação, a velocidade a que as enguias
se deslocaram não foi suficiente para que chegas-
sem ao fim da sua travessia antes da libertação
dos transmissores, deitando por água algumas
expectativas. Em contrapartida, os dados recebi-
dos mostraram um aspecto revelador: uma con-
vergência nas rotas das enguias marcadas nas di-
ferentes regiões da Europa no momento em que
estas se aproximam do arquipélago dos Açores.
Partindo do pressuposto de que as enguias
que habitam as ribeiras açorianas também deso-
vam no mar dos Sargaços, uma equipa liderada
por Rosalind Wright, da Agência do Ambiente
do Reino Unido, percebeu que as ilhas portugue-
sas poderiam funcionar como ponto de escala e
que se a marcação das enguias fosse feita aí, os
biólogos estariam mais próximos do destino fi-
nal desta travessia atlântica, permitindo que os
transmissores se libertassem apenas quando as
enguias já estivessem no mar dos Sargaços. En-
tre 2017 e 2019 foram marcadas 26 fêmeas em
várias ilhas açorianas. Dos 26 transmissores, 21
comunicaram por satélite com o sistema ARGOS promissor para a investigação do ciclo de vida da
e forneceram informação substancial sobre esta enguia. Ao contrário de outras regiões na Europa
travessia. Com partida dos Açores, alguns trans- continental, onde a acção transformadora humana
missores libertaram-se um ano depois da sua é mais evidente, a ilha é um lugar quase prístino,
colocação, fornecendo o seu posicionamento no com pouca poluição e sem barreiras hídricas que
coração do mar dos Sargaços – a zona intuída por interfiram com a movimentação das enguias ao
Schmidt há 100 anos. O grupo de investigação con- longo das ribeiras. Contudo, estas ilhas vulcânicas
seguiu assim a tão esperada prova. Os resultados oferecem outros perigos ao ciclo de vida das
foram publicados em Outubro de 2022 na revista enguias. Para Pedro Afonso, “as grandes quedas de
“Scientific Reports”. Nesse trabalho de campo, os água e a seca intermitente de algumas zonas das
Açores suscitaram novas questões sobre este fasci- ribeiras durante o Verão terão seguramente
nante comportamento. Cem anos depois, e apesar influência na sobrevivência e na necessidade de
de todos os estudos publicados, a enguia continua adaptação evolutiva das enguias açorianas”.
a mostrar-se enigmática e muitas respostas conti- O território condiciona o movimento das enguias,
nuam a escapar entre os dedos dos investigadores. e também o avanço dos biólogos é difícil nesta
manhã de nevoeiro serrado, junto da ribeira de onde
da Europa ficou bapti-
A Z O N A M A I S O C I D E N TA L corre a água que sai do Poço do Ferreiro. As caracte-
zada pelos portugueses como ilha das Flores. rísticas da vegetação interrrompem a progressão e o
A forma exuberante como os cubres (uma flor ama- mato de criptomérias e conteiras força desvios.
rela) se estendiam pela encosta da ilha determinou O solo húmido abate sobre o peso dos investigadores.
a sua toponímia. Mas esta podia bem ter ficado Para trás, fica a lagoa e a grande dúvida: poderão as
baptizada como a ilha da água. Conhecida pelas enguias sobreviver a uma queda de mais de 80
suas idílicas cascatas, a ilha das Flores é um lugar metros? Até agora, não foi possível confirmá-lo.

42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA
Para evitar a perda
dos receptores, estes
são aparafusados e
amarrados a uma pedra
e colocados em zonas
abrigadas da ribeira.
A colocação dos recep-
tores em zonas de
menor agitação aquáti-
ca torna o sinal acústico
mais claro e evita
interpretações erradas.

EM BAIXO
Os dias curtos de
Novembro obrigam
a equipa a sair cedo
e a regressar ao
crepúsculo. Na imagem,
Jan Reubens, Pieterjan
Verhelst e Kim Aares-
trup analisam dados
recolhidos e procuram
optimizar o plano
para mais um dia
de expedição.

ENGUIA 43
A instalação das redes
é feita em zonas de
afunilamento das
ribeiras para aumentar
a probabilidade de
entrada de enguias.
Na fotografia, Pieterjan
Verhelst e Robert
Priester inspeccionam as
redes para garantir
que estas continuam
amarradas de forma
segura, para retirar
a folhagem e verificar
eventuais buracos
por onde as enguias
possam escapar.
Em Outubro de 2021 a equipa internacional
liderada por Pedro Afonso (e financiada pelos
projectos europeus Mission Atlantic, LifeWatch e
European Tracking Network), juntando investiga- À D I R E I TA
dores do Instituto Okeanos da Universidade dos Não é fácil segurar uma
Açores, do Instituto de Investigação da Natureza enguia. A pele escorre-
gadia dificulta a tarefa e
e Florestas da Bélgica e do Instituto Marítimo da só a anestesia da enguia
Flandres, chegou às Flores pela primeira vez para com óleo de cravinho,
levar a cabo um novo estudo com a ambição de deixando-a emersa na
solução durante cerca
saber mais sobre o comportamento das enguias de 15 minutos, permite
neste habitat de características tão particulares. a pequena cirurgia para
Há alguns anos, uma situação invulgar no cais implantar o transmissor.
da vila da Madalena, na ilha do Pico, despertara EM BAIXO
a atenção do grupo de investigação: uma popula- Na fase dourada, os
ção de enguias estabelecera-se nas águas salgadas olhos das enguias são
do cais, alimentando-se aí durante toda a sua fase pequenos, pois elas
orientam-se sobretudo
de crescimento, contrariando aquele que seria o pelo olfacto. Quando
seu percurso natural: o avanço ribeira acima para crescem e passam à fase
se alimentar nos poços formados ao longo do cur- prateada, o diâmetro
dos olhos aumenta. Isso
so. Poderiam as enguias dos Açores registar um poderá suceder porque
comportamento híbrido na sua alimentação, va- as enguias respondem à
riando entre o mar e as ribeiras, ou seria o caso da luz do sol no Atlântico
para a sua migração
vila da Madalena uma mera excepção? vertical diária: afun-
Para o confirmar, a equipa recorreu a transmis- dando durante o dia a
sores acústicos implantados no abdómen da en- profundidades de
centenas de metros e
guia e comunicando por ultrassons com 12 recep- nadando durante a noite
tores estrategicamente colocados pela equipa ao para perto da superfície.
longo das ribeiras. Trinta e sete enguias douradas
(os indivíduos adultos em fase de crescimento)
foram marcadas nesta primeira expedição. Com
base nos dados recolhidos, concluiu-se que, de- Para o biólogo Pieterjan Verhelst, “a percep-
pois da sua chegada à ilha, as enguias bebés (na ção de como as enguias usam a corrente é cru-
fase “de vidro”) sobem as ribeiras para depois se cial para uma boa gestão das ribeiras, sobretudo
fixarem, preferencialmente, em poços onde exis- na prevenção da poluição”, diz. “Deixar poluir
ta mais habitat permanentemente submerso, por um único poço pode conduzir à morte de um
norma abaixo das quedas de água mais fortes. Aí grande número de enguias.”
permanecem, alimentando-se e crescendo duran- Por fim, com os dados recolhidos na expedi-
te grande parte da sua vida até se transformarem ção de Novembro de 2022, inteiramente consa-
em enguias prateadas (a última fase de desenvol- grada à fase prateada deste animal, a equipa de
vimento, quando atingem a maturidade sexual e investigação analisa os períodos de migração
estão prontas para iniciar o percurso migratório). das enguias dos Açores. Atendendo a que as
A observação no Pico contrariara comporta- várias populações de enguias, dispersas geo-
mentos estudados em populações de enguias no graficamente entre o Norte de África e o Norte
continente europeu e que sugeriam que estas, da Noruega, deverão chegar todas ao mar dos
depois de se estabelecerem, poderiam deslocar- Sargaços numa altura específica do ano, terão
-se até um máximo de quatro quilómetros num de iniciar essa rota em alturas diferentes do
período de 1 a 3 anos. Outro comportamento iné- ano, pois estão a diferentes distâncias do mes-
dito agora observado nas ribeiras açorianas foi a mo destino. Como o arquipélago dos Açores está
competição directa entre enguias que ocupam o mais próximo, a equipa quer perceber em que
mesmo território. Os biólogos encontraram mar- altura do ano as enguias prateadas dão início à
cas em “v” na pele da maioria das enguias, com- rota migratória. Será mais um passo importante
provando ataques – ao que tudo indica, vestígios no longo caminho de descoberta desta enigmá-
da luta por alimento. tica espécie. j

46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ENGUIA 47
Na lagoa do Poço do
Ferreiro, o biólogo
Pedro Afonso interroga-
-se sobre um dos
mistérios da conserva-
ção nos Açores: poderão
as enguias subir e descer
uma queda de água de
mais de oitenta metros?
A enguia é um peixe que
intriga os sábios desde a
Antiguidade. Aristóte-
les postulou que elas
emergiam milagrosa-
mente da lama e da
água da chuva. Freud
dissecou – em vão – mais
de quatrocentas enguias
em busca de gónadas
que não encontrou.
Frustrado, o aspirante a
zoológo concentrou-se
na psicanálise.
Nascemos programados
para responder aos
estímulos do timbre,
do tom e do ritmo da voz
humana, antes mesmo
de começarmos a entender
as palavras. Será isso um
resquício dos tempos em
que os nossos antepassa-
dos comunicavam entre si
com sons musicais?
WESTEND61 / GETTY IMAGES
DA ARQUEOLOGIA
À NEUROCIÊNCIA,
E M E RG E M P I S TA S

SOBRE A ORIGEM
E EVOLUÇÃO DA
MÚSICA NA NOSSA
E S P É C I E . TA LV E Z
E S TA A P T I DÃO

TENHA NASCIDO
ANTES DA

PRÓPRIA
LINGUAGEM.

TEXTO DE
GONÇALO PEREIRA ROSA
No século VII a.C.,
Assurbanípal mandou
fazer uma série de
baixos-relevos num palácio
assírio de Nínive para
relatar a sua vitória sobre
o antigo reino de Elam e a
entronização de Ummani-
gash, filho do rei elamita
Urtak, que governou este
reino durante um curto
ano. Este fragmento é uma
das mais antigas represen-
tações artísticas em
que figuram músicos.
G. NIMATALLAH / DEA / AGE FOTOSTOCK
na Eslové-
G R U TA D I VJ E B A B E ,
nia, é um lugar improvável para
procurar as origens da música.
O nome significa literalmente
“mulheres selvagens”, uma alu-
são às bruxas que, na tradição
local, viviam aqui, a meia
encosta, cerca de 230 metros
acima do rio Idrijca. Os arqueó-
logos, porém, não andam em
busca de bruxas. Desde 1978
que se escava aqui uma página
relevante da história da evolu-
ção humana. Entre várias
camadas de ocupação, destaca-
-se uma, a Camada 8, datada de
50.000 a 35.000 anos, com vestígios evidentes do Homo
neanderthalensis, a espécie que rivalizou com a nossa
no período crítico em que se definiria o caminho para
os nossos antepassados dominarem o mundo.
Em 1995, a equipa de escavação dirigida pelo arqueó-
logo Ivan Turk descobriu um estranho fémur de urso-
-das-cavernas, na Camada 8 – a dos neandertais. O osso
fragmentado de um animal jovem registava quatro ori-
fícios alinhados. Com cepticismo louvável, Turk foi o
primeiro a colocar a hipótese de os orifícios serem meras Embora conheçamos
marcas produzidas por carnívoros. Existiam outras peças instrumentos antigos,
nunca saberemos bem
similares em jazidas com a mesma cronologia e
como soava a música no
nenhuma fora valorizada até então. passado. Isidoro de
Com método, a equipa eslovena tentou replicar os Sevilha lamentou no
século VII que "a menos
furos noutros ossos ou fazê-los corresponder a mordidas
que a memória do
de animais. Nada encaixou. Surgiu então outra hipótese homem os retenha, os
no horizonte: e se as marcas tivessem sido produzidas sons perdem-se porque
não podem ser
por hominídeos com o objectivo de criar uma flauta?
escritos". A partir da
A hipótese era arriscada e controversa – como mais tarde Idade Média, quando as
se viu. Implicava que os neandertais também dispunham notas e o compasso
eram fixados em pautas
de conhecimento simbólico e de pensamento criativo.
(como nesta cópia
A ser validado, este seria o instrumento musical mais guardada na Biblioteca
antigo de sempre… e não pertencia à nossa espécie. de Évora), passou a
existir um registo
Nos fóruns de arqueologia, o tema desencadeou uma
escrito das
tempestade. Os artigos e a equipa foram atacados. Cajus composições.
G. Diedrich atribuiu as marcas da “flauta” à acção de
hienas, cuja dentição se adequaria, embora ainda não
se conheçam vestígios destes animais na região. Outros
autores sugeriram que o próprio urso-das-cavernas

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
poderia ser responsável. Em 2014, dois anos antes
de morrer, o músico macedónio Ljuben Dimka-
roski ajudou a complicar este caldeirão fervi-
1. HISTÓRIA E MÚSICA
lhante. Estudou a flauta de Divje Babe, criou uma O arqueólogo Steven Mithen, da Universidade de
réplica a que chamou TIDLDIBAB (preferindo não Reading, não está convencido de que a flauta eslo-
usar o termo “flauta”) e confirmou que era possí- vena seja a prova decisiva para confirmar que as
vel extrair três oitavas e meia do instrumento e origens da música estão embrenhadas nas pro-
tocar nele qualquer música contemporânea. fundezas da nossa evolução, mas não tem dúvidas
O vídeo está na Internet e soa como um vulgar de que estas vão surgir. “Sem música, o nosso
teste de um aluno de música do primeiro ano. passado pré-histórico é simplesmente demasiado
O debate não terminou. O próprio Turk, que silencioso para ser credível”, diz.
teve o fair-play de nos enviar os seus artigos e os Em 1997, o linguista canadiano Steven Pinker
artigos que rebatem a sua hipótese, é pragmático: desferiu um golpe profundo em todos os melóma-
“Não quero impor uma ou outra interpretação”, nos do planeta. No seu livro “How the Mind Works”,
diz. “Ninguém, incluindo eu, pode estar firme- Pinker argumentou que a música não terá tido
mente convencido de que tem razão.” Na verdade, qualquer função na construção da mentalidade
nada é simples no debate sobre a música e o seu humana. “É muito diferente da linguagem” – escre-
papel na evolução. veu. “É uma tecnologia, não uma adaptação.”

ANTÓNIO LUÍS CAMPOS MÚSICA E EVOLUÇÃO 55


Das fileiras da antropologia, da etnologia musi- domínio do tempo, do ritmo e da melodia em tudo
cal e da linguística, ergueram-se várias vozes cho- o que se transmitia. E seria mimética, pois usaria
cadas, apresentando indícios do papel central da simbolismo sonoro, gestos e uma certa teatrali-
musicalidade nas sociedades humanas, da sua dade. Com criatividade, Mithen chamou-lhe “sis-
transversalidade e da sua autonomia face à lin- tema de comunicação Hmmmmm, algo que não
guagem. No campo arqueológico, Mithen, espe- existia nos primatas não-humanos, mas também
cialista em pré -história e autointitulado bem diferente da linguagem humana posterior”.
“melómano lamentavelmente com pouco talento”, A história da evolução humana é um longo
construiu uma resposta original – um modelo caminho de adaptações não lineares. Há 2,3
teórico no qual a música assume preponderância milhões de anos, o Homo habilis, um dos nossos
na evolução dos hominídeos modernos. Como se antepassados, desenvolveu maior capacidade
isso não bastasse para apimentar o debate, intitu- bucal que, mais tarde, permitiu novas capacida-
lou o seu livro “The Singing Neanderthals” [“Os des de vocalização. O Homo ergaster que se lhe
Neandertais Cantores”]. seguiu, identificado a partir de vestígios fossili-
Para um arqueólogo, a investigação sobre as zados em África, melhorou o tracto respiratório,
origens da música pode ser frustrante. “O acto de que diversificou a expressão oral. A postura
cantar e dançar quase não deixa vestígios e não bípede permitiu uma reconfiguração anatómica,
estou certo de que conseguíssemos sequer iden- melhorando a capacidade expressiva do rosto, o
tificar os instrumentos criados pelos nossos ante- ritmo da marcha e as possibilidades de movi-
passados”, diz. A flauta eslovena é só mais um mento corporal. A linguagem terá surgido em
exemplo. Pedras, conchas, “flautas” de osso ou alguma etapa desta evolução, há cerca de 200.000
marfim e instrumentos de percussão quase não a 70.000 anos, mas a música, como expressão de
deixam rasto. Mithen teve, por isso, de operar comunicação entre indivíduos, pode ter seguido
como um detective, procurando pistas indirectas. um caminho diferente.
Uma delas é morfológica e está dispersa por “Nas sociedades de caçadores-recolectores,
centenas de museus de antropologia humana. formavam-se grupos sociais”, explica Mithen.
Muitos dos nossos primeiros antepassados sim- “Teriam de comunicar as suas emoções uns aos
plesmente não dispunham do aparato morfoló- outros e de criar laços. E isso pode ser feito através
gico para emitir vocalizações elaboradas ou ouvir de sons musicais. Dançando e cantando, cons-
frequências amplas. A capacidade craniana das truímos confiança e cooperação. Tornamo-nos
espécies anteriores ao género Homo não deixaria membros de um grupo, tal como ainda acontece
espaço para mais do que a luta diária da sobrevi- no coro da igreja ou nas bancadas de um estádio
vência. Emitiriam sons, como os primatas actuais, de futebol, quando cantamos para simbolizar a
talvez até uma cantoria colaborativa como os nossa pertença a um grupo.”
gibões modernos, mas dificilmente construiriam A evolução é uma árvore com muitos ramos e
um sistema elaborado de comunicação musical. alguns já se conhecem desde o início do
Há, porém, um momento definidor na nossa século XX. É o caso do Homo heidelbergensis,
evolução: há cerca de dois milhões de anos, surge espécie antecessora dos humanos modernos e do
o Homo ergaster, uma espécie que se agrega em neandertal, que iniciou o seu percurso há 500 mil
pequenos grupos para partilhar a caçada do dia e anos. Durante algum tempo, a mandíbula desco-
talvez para melhorar as suas hipóteses de sobre- berta perto da cidade alemã de Heidelberg e
vivência. Nesses convívios colectivos – por vezes outros fósseis similares motivaram debates sobre
no solo, por vezes na copa das árvores –, Mithen a sua correspondência com fósseis anteriores
acredita que, através de gestos e vocalizações, encontrados em África e com os de espécies euro-
poderia ter nascido um tipo de comunicação dife- peias que lhe sucederam. Em 2019, a Associação
rente. “Não seria uma linguagem porque não Americana de Antropologia Biológica chamou
tinha gramática nem sintaxe”, explica. Seria holís- mesmo “mixórdia do meio” (“muddle in the mid-
tica, na medida em que não poderia ser consti- dle”, na expressão original) a este artifício taxo-
tuída por elementos segmentados. Seria nómico de incluir uma vasta gama de fósseis
manipulativa, pois influenciaria estados emocio- indefinidos no Homo heidelbergensis,
nais e comportamentos do próprio e dos outros. solicitando mais cuidado neste delicado processo
Talvez fosse multimodal (pois usaria som e movi- de arrumaçao das provas morfológicas da
mento) e musical, no sentido em que replicaria o nossa evolução. (Continua na pg. 62)
MIKEL BILBAO GOROSTIAGA /ALAMY / MUSEU NACIONAL DA ESLOVÉNIA (1); NPL / ACI, MUSEU DO LOUVRE, PARIS (2); BRIDGEMAN / ACI, PARQUE DAS CIÊNCIAS DA ANDA-
LUZIA-GRANADA (3); SCALA / MUSEU DE BELAS-ARTES DE BOSTON (4); BRIDGEMAN / ACI, ACADEMIA REAL DE MÚSICA, LONDRES (5); ISTOCK (6); BRIDGEMAN / ACI,
MUSEU METROPOLITANO DE ARTE, NOVA IORQUE (7)
EM BUSCA DE
NOVOS SONS
É possível construir uma história sonora
da humanidade através dos instrumentos
musicais de cada época. Naturalmente,
as fronteiras entre cada instrumento são
ténues e pode afirmar-se que ao século XX
4
RENASCIMENTO
corresponde a invenção da música Os instrumentos de cordas percutidas,
electrónica gerada por computador. como este clavicórdio italiano dos
séculos XVI-XVII, funcionavam a partir
da força com que a tecla era pressionada.
A partir desse mecanismo, foi inventado
o pianoforte. A música profana ganhou
terreno à religiosa.

1
PRÉ-HISTÓRIA
5
Os primeiros instrumentos
seriam adaptações de ossos, BARROCO
frutos ou pedras e imitariam Os séculos de ouro da ópera
os sons da natureza. Esta requeriam outros sons e
"flauta" eslovena, descoberta instrumentos, como esta viola
num estrato de ocupação de Cremona, na Itália. Com o
neandertal, é talvez o Barroco, surgiu a orquestra,
instrumento musical mais que complexificou as peças
antigo da humanidade. musicais e reinventou os
instrumentos musicais.

2
ANTIGUIDADE
Arranhando ou batendo num
objecto com a mão, os nossos
6
CLASSICISMO
antepassados usavam a
Sem pretensões doutrinárias, a
percussão para marcar ritmos e
música do século XVIII rompeu com
melodias. Este tambor de
as tradições dos séculos anteriores.
madeira e couro foi tocado no
O trompete de pistons foi inventado
Egipto no século IV a.C.
por um músico de orquestra vienense.
(Período Baixo) e poderá ter
O intervalo de duas oitavas permitia
tido uma dimensão mágica.
tocar em qualquer tom, adaptando-
-se ao estilo melodioso do classicismo.

3
IDADE MÉDIA
Introduzido na
Península Ibérica pelos
muçulmanos, o alaúde
(exemplar andaluz do
século X) foi um dos
instrumentos de cordas
de onde brotavam os sons
medievais. A música
medieval, muitas
vezes acompanhada
de canto, transmitia ROMANTISMO
7
a doutrina religiosa. Este pianoforte de meados
do século XIX corresponde à
fase em que a música integrava
construções cénicas de maiores
dimensões. Decorado
com motivos mitológicos
ligados à família do barão
de Kidderminster, pretendia
impressionar os visitantes
da casa familiar.
Integrante da Orquestra
Sinfónica da ilha de Wight,
em Inglaterra, Dagmar
Turne foi operada a um
tumor cerebral no Hospital
King's College de Londres.
Durante a cirurgia,
realizada pela equipa do
cirurgião Keyoumars
Ashkan, tocou violino para
garantir que, enquanto
extirpavam o tumor do
lóbulo frontal direito, não
se danificaria a área que
controla o movimento
da mão esquerda.
HOSPITAL KING’S COLLEGE / NHS
FOUNDATION TRUST
COMO O CÉREBRO 5 Esses sinais
chegam ao

PROCESSA A MÚSICA córtex cerebral,


que os processa
e distribui-os
aos sistemas
Nas últimas duas décadas, as neurociências associados.
têm estudado os processos que permitem
que diferentes ritmos musicais
desencadeiem diferentes reacções
emocionais. Concluíram que não
é activada uma única área do
cérebro: tudo depende do
som, do ritmo e do tom.

Soa música na sala e...

A
As ondas sonoras chegam 1
ao ouvido externo e C
percorrem o canal auditivo.

Atravessam a membrana B
2
timpânica e chegam ao
ouvido médio, onde
produzem vibrações nos
ossículos do tímpano.

O ouvido médio transmite 3


essas vibrações ao ouvido
interno, onde a cóclea, com
dezenas de milhares de
minúsculas células ciliadas,
reage de maneira diferente a
cada tom: as que processam
os tons mais graves estão no
vértice do caracol; as mais
agudas, na base.

Os sinais eléctricos são 4


enviados do ouvido interno
para o cérebro através do
nervo auditivo. As células
ciliadas da cóclea ligam-se
aos neurónios do órgão de
Corti, de onde parte um
canal do tronco encefálico
até ao córtex auditivo
do lóbulo temporal.

REACÇÕES NEGATIVAS
Já se interrogou por que motivo um pai ou um avô não suportam a
música ouvida pelos adolescentes? Talvez exista uma razão fisiológica
na base dessa rejeição estética. A perda auditiva pode ocorrer com a
idade e, consequentemente, alguns sons podem ser distorcidos.
A percepção de altas frequências é reduzida e as baixas (como o som
de um baixo ou de uma bateria) ganham proeminência. Um estudo
de 1998 da Universidade de Ohio concluiu que, para muitas pessoas
mais idosas, o hard rock é mais desagradável do que realmente é.

60 N A TANYFORMS.
ILUSTRAÇÃO: I O N A L FONTES:
G E O THE
G RSINGING
A P H I NEANDERTHAL,
C 2007, STEVEN MITHEN; «MÚSICA Y
CEREBRO: NEUROMUSICOLOGÍA», 2014, MANUEL ARIAS GÓMEZ, NEUROSCIENCE AND HISTORY
Actos mais dinâmicos, como "ler" música, tocá-la ou dançar ao
som de música, requerem a acção combinada do cerebelo, do
córtex motor, do córtex sensitivo e do córtex visual.

A O córtex auditivo
distingue volume e tom, Córtex Córtex Córtex
interpretando o ritmo. visual sensitivo motor
Se acompanhar o ritmo
com os pés ou bater
num tambor, o córtex
motor e o cerebelo
também estarão
envolvidos.
Amígdala
B O córtex pré-frontal
realiza uma "audição" Núcleo
do som que recebemos. accumbens
Analisa o ritmo da
melodia e interpreta-a
como um conjunto de
sons que conhecemos
ou como algo novo.
Um padrão musical que
nunca ouvimos antes
desencadeia um
processo cerebral pelo Falta ainda uma última reacção:
qual tentamos associá-lo Hipocampo
a música desperta emoções.
ao "banco de dados" de As áreas cerebrais responsáveis
tudo o que sabemos. pelas respostas emocionais
O processo pode Cerebelo são o núcleo accumbens,
associar uma peça a amígdala e o cerebelo.
musical específica
a um lugar ou evento
significativo para
cada individuo.

C Nesse momento, a
memória, alojada no
hipocampo (uma
estrutura com duas
metades alojada em
ambos os hemisférios
cerebrais), é activada.
Um breve trecho de
uma música conhecida
pode ser suficiente
para identificá-la.
É por isso que os
primeiros segundos de
"We Will Rock You" dos
Queen são suficientes
para antecipar o
que vem a seguir.

O CÉREBRO PARADOXAL DE DOIS COMPOSITORES


Maurice Ravel sofria um degeneração Vissarion Shebalin sofreu um derrame em
cerebral que o tornou incapaz de ler e 1959 que o deixou parcialmente paralisado
escrever música. A perda de faculdades do lado direito e com perda quase total
foi progressiva. A sua última actuação foi das capacidades linguísticas. O compositor
um Bolero, em que se tornou claro que soviético recuperou gradualmente a
a orquestra já tocava sem a ajuda do mobilidade nos seis meses seguintes, mas
maestro. Não houve autópsia ou exame continuou a sentir dificuldade para falar e
dos tecidos, mas o compositor francês compreender o que lhe era dito. Meses
sofreu certamente uma degeneração da antes de morrer, terminou a sua quinta
região posterior do hemisfério cerebral sinfonia, descrita por Shostakovich como
esquerdo, no giro temporal superior brilhante, emocionante e optimista. Para
e no lóbulo parietal inferior. muitos, foi o seu melhor trabalho.
Maurice Ravel Vissarion Shebalin
Seja como for, parece evidente que existiu uma
divergência posterior, como um enxerto, na árvore
dos hominídeos – um ramo gerou o neandertal,
com enorme capacidade craniana, forte complei-
ção física, domínio de ferramentas complicadas,
quase ausência de dimorfismo sexual mas sem
aparente capacidade de pensamento simbólico;
do outro, emergiu o Homo sapiens, inteligente,
criativo, com capacidade de adaptação e que
desenvolveu a capacidade de se exprimir por lin-
guagem e pensamento artístico, bem plasmado
no tecto da gruta de Altamira ou nas paredes de
xisto do vale do Côa.
A proposta mais inovadora de Steven Mithen é
a ideia de que talvez os neandertais desenvolves-
sem uma linguagem musical, ao passo que os
humanos modernos começaram a desenvolver Charles Limb, cirurgião
otorrinolaringologista
uma linguagem verbal. “Suponho que a lingua- e músico amador
gem neandertal imitasse sons da natureza”, diz. da Universidade da
“Há línguas contemporâneas que ainda usam Califórnia, desenhou
um piano especial
onomatopeias para descrever aspectos da natu- que pode ser tocado
reza, como nomes de aves ou de rios. Deveria dentro de um scanner
haver simbolismo sonoro, ou seja, o ritmo expres- de ressonância magné-
tica. Com a colaboração
saria emoções. Seguramente que haveria gestua- de músicos de jazz,
lidade – provavelmente mais do que na nossa registou a actividade
espécie. Penso na linguagem neandertal como cerebral em várias
sessões experimentais
uma pantomima para expressar e transmitir infor- de improviso para
mação – útil e brilhante face aos dispositivos dos descobrir o que
hominídeos anteriores, mas não tão eficiente acontece no cérebro
dos músicos nesses
como a dos nossos antepassados. Talvez isso momentos.
tenha sido um factor decisivo para o desfecho da
jornada humana.”

“Do ponto de vista neurológico, a linguagem e


2. CIÊNCIA E MÚSICA a música têm muitas sobreposições”, explica Arias
Gómez. “As áreas do cérebro activadas quando
Em busca de outros indícios da inscrição da nos expressamos com respeito pelas regras lin-
música no nosso instinto viajamos de Reading guísticas de gramática e sintaxe são semelhantes
para Santiago de Compostela, final do caminho às que usamos quando cantamos, fazemos pausas
dos peregrinos jacobeus e cidade de trabalho do e usamos ritmos.”
neurologista Manuel Arias Gómez. Divertido e As neurociências partiram para esta corrida
com uma paixão contagiante por tudo o que seja sensivelmente na mesma altura em que a arqueo-
galego – incluindo o pequeno cancioneiro galai- logia dava os primeiros passos – na segunda
co-português que chegou à actualidade –, Arias metade do século XIX. “A primeira informação
Gómez estuda o funcionamento do cérebro em que extraímos sobre o funcionamento do cérebro
associação com a música pelo motivo mais óbvio: resultou da observação de pacientes, indivíduos
ele próprio é músico. Tocou no grupo Milladoiro, que chegavam aos hospitais com incapacidades
de folk galego, e integra o Grupo de Música de para falar por força de lesões, mas que mostravam
Câmara da Universidade de Santiago. Já gravou inteligência normal e capacidade de compreender
cinco álbuns, incluindo a transposição para ins- o que se lhes dizia.” Foi assim que Paul Broca iden-
trumentos modernos das enigmáticas cantigas de tificou a área da afasia de Broca em 1861 ou que
amigo de Martim Codax, um trovador medieval, Carl Wernicke percebeu, em 1874, que outra área
talvez de origem galega. (hoje conhecida como área de Wernicke) estava

62 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
associada à capacidade de compreender o que nos também que o acto de cantar e dançar liberta
dizem, pois o paciente que estudou “falava como dopamina, o mesmo neurotransmissor associado
os políticos modernos”, brinca Arias Gómez. a prazeres específicos como a alimentação ou a
“Balbuciava muitas palavras, mas o que dizia não recompensa monetária.
tinha nexo.” Em meados da década de 1960, as tecnologias
Episódios similares permitiram identificar as de imagem revolucionaram o campo das neuro-
áreas cerebrais associadas à memória, ao sentido ciências. “Permitiram-nos passar da observação
de humor, ao respeito pelas regras e… à música. de áreas do cérebro para a análise de redes neu-
A literatura médica está repleta de casos de ronais concretas, que implicam nós (ou hubs).
pacientes sem capacidade de se exprimirem Sabemos hoje que as interferências nesses nós
depois de um AVC, mas que mantinham a aptidão produzem reacções significativas”, diz Arias
musical ou, pelo contrário, de músicos experimen- Gómez. “E estamos mais perto de elaborar um
tados que, depois de lesões, já não conseguiam verdadeiro mapa do processamento da linguagem
lembrar-se das notas a tocar ou não conseguiam musical, que é bastante diferente da linguagem
acompanhar o ritmo de uma orquestra. falada, embora existam pontos de contacto.
As neurociências comprovam hoje que o hemis- Temos consciência de que o próprio cérebro
fério direito favorece o talento musical inato, é plástico – os músicos profissionais apresentam
sobretudo para a melodia e timbre, e o esquerdo alterações notáveis na estrutura funcional do
permite articulação com o ritmo e, claro, o res- cerebelo, do corpo caloso, do córtex motor e do
peito pela estrutura formal da música. Validaram plano temporal.”

PAOLO WOODS / NGM MÚSICA E EVOLUÇÃO 63


Com apoio do Fundo de
Emergência COVID-19 da
National Geographic
Society, a fotojornalista
Ana Palacios documentou
os microconcertos
realizados em vários
hospitais espanhóis pela
Fundação Músicos para a
Saúde. Neste caso, a
harpista Stefany Ramón
Jurenka interpreta uma
peça musical durante
o parto de Marta Santos
no Hospital Quirónsalud
de Valência.
ANA PALACIOS
Em Fevereiro de 2020, dias antes de a Europa
se confinar para se proteger da pandemia, uma
notícia circulou o globo. A violinista Dagmar Tur-
ner fora operada a um tumor no cérebro no Hos-
pital King’s College de Londres. A pedido da
paciente, esta violinista amadora da ilha de Wight
tocou durante o procedimento para garantir que
as áreas cerebrais associadas ao movimento das
mãos e à coordenação não seriam afectadas. Antes
da intervenção, a equipa do cirurgião Keyoumars
Ashkan mapeara cuidadosamente os circuitos
envolvidos enquanto Dagmar tocava violino.
A operação foi bem-sucedida. Cercada de plás-
ticos e de um exército de cirurgiões de bata azul,
Dagmar interpretou excertos de várias peças
musicais, incluindo da conhecida canção Bésame
mucho, da mexicana Consuelo Velázquez, de crâ-
nio literalmente aberto. Não foi uma interpretação
musical virtuosa, mas Dagmar tinha a atenuante
das circunstâncias. E mais importante: preservou
a área cerebral essencial para prosseguir o seu
passatempo preferido.
Manuel Arias Gómez faz questão de lembrar
que a capacidade musical não é uma mera questão
neurológica. “Inclui vertentes artísticas e culturais
e tem forte componente genética”, diz. Envolve
activação de vastas áreas do cérebro, uma sinfonia
de cores que uma electroencefalografia (ou EEG)
de um músico revela com expressividade. “Há
pouco tempo, chegou ao meu consultório uma
paciente com Alzheimer. Mostrava-se incapaz de
recordar eventos recentes, mas, quando trauteei
o fragmento de uma velha música galega, a
senhora acompanhou e cantou-a até ao fim com
genuíno prazer. A música e a memória da música
Em 1993, a revista
têm esse poder, mas ainda só estamos a arranhar
"Nature" publicou um
a superfície para perceber por que motivo a audi- estudo que associava a
ção de uma música agradável nos dá tanto prazer audição de música
clássica a melhores
ou que papel poderá a musicoterapia ter.”
performances em testes
de inteligência espacial:
foi chamado o "efeito
Mozart". Pesquisas
3. CULTURA E MÚSICA subsequentes não
confirmaram esses
Outro indício da inscrição da música no nosso resultados, e essa
hipótese ainda está em
património genético encontra-se nos mais peque- estudo. Pode não ser
nos recipientes da nossa cultura – os bebés huma- possível quantificar o
nos. Em Novembro do ano passado, retido no prazer que um concerto
nos causa, mas a música
aeroporto catalão de El Prat enquanto aguardava continua a exercer
por uma ligação aérea atrasada, pousei os olhos enorme fascínio
numa viajante internacional. Falava uma língua na nossa cultura.
que não entendo, enquanto segurava um bebé
irrequieto ao colo. Para o acalmar, baixou o tom
do que dizia, ritmou mais as palavras e exagerou

66 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
as vogais. Depois, entoou uma canção de embalar Mas reagiremos da mesma forma a músicas
– as palavras escaparam-se-me, mas o acto de com que não estamos familiarizados? Para res-
cantar para um bebé, conferindo-lhe segurança, ponder a essa questão, o investigador alemão
parece inato a todas as culturas. Thomas Fritz, do Instituto Max Planck para a Cog-
Steven Mithen pensou bastante sobre o tema. nição Humana e para as Neurociências, dirigiu-se
“Antes de desenvolverem linguagem, os bebés em 2005 às montanhas Mandara, no Norte dos
humanos vêm ao mundo com a capacidade musi- Camarões. Numa região infestada de doenças e
cal instintiva de reagir aos ritmos, aos tempos e longe da civilização moderna, Thomas procurava
às melodias antes de perceberem o significado das um oásis – uma comunidade que nunca tivesse
palavras”, explica. “Reagem mais à entoação do sido exposta a música ocidental, nem através dos
que à expressão facial de quem canta ou fala coros religiosos, nem de um simples rádio. Encon-
para eles em ‘linguagem de bebé’. Talvez seja o trou-a em alguns povoados mafa.
resquício de um sistema de comunicação dos nos- “O povoado mafa que visitei era muito rural,
sos antepassados – uma capacidade musical ins- tradicional e quase sem recursos – um rádio seria
tintiva para a qual ainda estamos programados um tesouro”, diz. “Na região, vi apenas dois rádios
para reagir.” e ambos pertenciam a chefes de aldeias.”

MARTIN BARRAUD / ISTOCK MÚSICA E EVOLUÇÃO 67


EM CIMA
Thomas Fritz, do
Instituto Max Planck,
realizou experiências
com a comunidade
mafa, no Norte dos
Camarões, onde o
contacto com a música
ocidental era quase
nulo. Estudou as
reacções emocionais
a obras clássicas,
demonstrando
que existem
aspectos inatos na
música comuns a todos.

À D I R E I TA
A música desempenha
um papel social entre
os bayaka na República
Centro-Africana. Vocal
e polifónica, requer a
participação de todo o
grupo. Talvez os
primeiros hominídeos
se expressassem em
sessões colectivas na
savana, antes mesmo
de desenvolverem a
linguagem falada.

68 N AT I O N A L G E O G R A P H I C HILDIKO HETESI (EM CIMA); TIMOTHY ALLEN / GETTY IMAGES (EM BAIXO)
Com paciência extrema, sensibilidade e… oferta emoções ‘certas’ para cada excerto de música.
de cerveja, Fritz conseguiu integrar-se nesta cul- A experiência sugeriu que, mesmo nunca tendo
tura e montar curiosas experiências. O objectivo escutado música ocidental, existe uma capacidade
era grandioso: “Encontrar uma cultura que nunca inata para lhe atribuir emoções que partilhamos
tivesse escutado música ocidental e perceber se em todas as culturas.”
o apelo universal da música é apreciado de forma Numa segunda experiência, Fritz estudou a
inata”, diz este investigador que é também, nas consonância. Imagine um excerto wagneriano que
horas vagas, músico e criador dos seus próprios termina abruptamente com notas fora de tom ou
sons electrónicos. duas escalas abaixo do esperado. O nosso ouvido
Fritz pediu aos aldeãos para escutarem trechos reage de imediato com desconforto, mas será que
de melodias curtas que já tinha utilizado numa o dos mafa também reagiria face a um excerto de
experiência anterior com pacientes pós-AVC para uma composição com regras diferentes das da sua
testar se mantinham capacidade de identificar música? “Comprovou-se que o ser humano prefere
emoções musicais, ritmos e tons. Com um sistema sons consonantes aos dissonantes e isso tanto
fácil de cartões, nos quais reproduzia uma face sucede numa música ocidental com os mafa,
feliz, outra triste e outra assustada, tocou-lhes como sucede connosco se escutarmos um trecho
excertos de Beethoven, Wagner, Rachmaninoff. de música mafa”, conclui o investigador.
Para quem ouvia sons daquela natureza pela pri- Thomas Fritz trouxe dos Camarões várias flau-
meira vez, foi certamente uma experiência radi- tas mafa. Embora esta cultura não disponha de
cal. “Mas a maioria das pessoas identificou as uma palavra para “música”, utiliza-a nos rituais
mais importantes, espaçados no tempo e associa-
dos sempre à fertilidade das colheitas. As flautas
são peculiares. São instrumentos de uma nota só
e exigem do tocador a capacidade pulmonar de
alguém que se predispõe a apagar um incêndio só
com o sopro.
Num evento organizado no Sul da Áustria com
músicos amigos, Fritz pediu-lhes que tocassem
os instrumentos mafa. Queria provar o poder uni-
versal da música, transcendente a cada cultura.
O som produzido é… indescritível, mas não é só
ruído. Para um ouvido europeu, parece uma ou
duas notas produzidas pela sirene de uma ambu-
lância. “Para um mafa, além do riso que lhe des-
pertaria ver tanta gente exótica a tocar mal o seu
instrumento, evocaria experiências importantes”,
explica Fritz. A música depende do ouvinte e do
contexto. “E, no caso dos mafa, valoriza-se porque
tocam juntos durante horas nesses rituais, atin-
gem a euforia, um transe, através da repetição dos
sons das suas flautas.”
Ainda nos Camarões, Thomas Fritz conduziu
uma última experiência. Tocou dezenas de tre-
chos de obras clássicas aos mafa, pedindo-lhes
para os associarem a significados possíveis. “Notei
um aspecto curioso”, conta. “Podia introduzir
‘árvore’, ‘chuva’, ‘rio’ ou ‘sol’ nos cartões, mas sem-
pre que colocava ‘boi’, era esse o significado que
escolhiam para qualquer música. É o animal mais
importante da sua cultura, a sua razão de viver.
Ficou bastante claro para mim que a cultura é
muito poderosa a sobrepor-se ao instinto inscrito
no código genético humano”, diz.

MÚSICA E EVOLUÇÃO 69
de Steven Mithen,
R E G R E S S A M O S AO G A B I N E T E
em Reading. Nas prateleiras, vêem-se réplicas de
crânios de hominídeos, talvez como lembrete do
que nos separa e do que nos une aos nossos ante-
passados. A teoria do autor britânico foi bem
recebida na academia pela sua capacidade de
articular argumentos da arqueologia, com outros
da linguística, da psicologia, da musicologia e
das neurociências.
Mithen não perde a esperança de que algures,
numa escavação presente ou passada, seja des-
coberta “uma flauta muito antiga esculpida a
partir de um osso de ave, uma figura esculpida
alegórica à música ou um crânio bem preservado
de um mamute usado como tambor”, brinca.
“Acho que existem. Talvez já estejam na cave de
algum museu sem que nos apercebamos da sua
importância.”
Em 1871, em “A Descendência do Homem”, Char-
les Darwin intuiu correctamente que a ubiquidade
da música em todas as culturas humanas e o
desenvolvimento espontâneo de capacidades
musicais em cada bebé teriam de corresponder a
uma vantagem evolutiva, pois a vocalização musi-
cal provavelmente antecedeu o desenvolvimento
da linguagem. Propôs que talvez facilitassem a
corte entre machos e fêmeas, o que é facilmente
comprovado numa sala de tango na Argentina ou
numa discoteca em Lisboa. Seriam igualmente
providenciais para estreitar os laços entre a mãe e
o seu bebé, conferindo um cordão umbilical sim-
bólico de conforto entre ambos. E são também,
seja entre os mafa dos Camarões ou um grupo de
mineiros cantando à medida que caminha para as
entranhas da terra, a cola social que gera coopera-
ção e unidade em grupos de humanos.
Nunca saberemos ao certo como soava a música
egípcia, assíria, grega ou romana – muito menos
a dos nossos antepassados pré-históricos, refu-
giados em grutas, cantando para passar o tempo.
As pautas e as notações musicais são um produto
do século X, o que implica que toda a música
criada antes disso pela nossa espécie nos
chegue como um vago eco – um ruído quase
indistinto das profundezas do tempo, mas estra-
nhamente familiar. j

O principal contributo do século XX para a história


da música foi a electrónica. Em "A arte dos ruídos",
manifesto futurista de Luigi Russolo de 1913, já se
previa que o ouvido humano se acostumaria "à
velocidade, à energia e ao ruído da paisagem urbana
industrial". Esta actuação do DJ Armin van Buuren na
Califórnia, um século mais tarde, parece confirmá-lo.

70 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
MICHAEL TULLBERG / GETTY IMAGES MÚSICA E EVOLUÇÃO 71
Colapso económico.
Uma explosão
catastrófica. Política
fracassada. Uma crise
de refugiados. Os
desafios enfrentados
pelo Líbano estão
a pôr à prova
o espírito indómito
do seu povo.

A VIDA
CONTINUA TEXTO DE
RANIA ABOUZEID

FOTOGRAFIAS DE
RENA EFFENDI

Um grupo de mulheres
explora um forte
conhecido como Castelo
do Mar, construído pelos
cruzados no século XIII,
na costa de Sídon,
a terceira maior cidade
do Líbano. Esta área
está desabitada desde
o início da Idade
do Bronze e guarda
um importante
porto fenício. O Líbano
esconde dezenas
de sítios arqueológicos
excepcionais.
A baía de Jounie é um
elemento destacado
na paisagem avistada
do Santuário de Nossa
Senhora do Líbano,
em Harissa, local
de peregrinação
cristã nos montes, a
cerca de meia hora de
distância de Beirute.

74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
~
como
A B R I S A D E J A N E I R O E R A TÃO P E N E T R A N T E
a minha dor. O sol de Inverno reluzia nas monta-
nhas nevadas que abraçam a terra natal da minha
mãe, no Norte do Líbano, enquanto os portões do
cemitério se abriam e eu depositava o retrato dela
ao lado dos seus antepassados. Ela estava em casa,
pelo menos simbolicamente. Morrera inesperada-
mente em Novembro, numa terça-feira de manhã
na Austrália, onde vivia há muitos anos.
O fim da minha mãe fora definido desde o iní-
cio por uma pátria de onde ela realmente nunca
partiu. Há componentes deste país que carrega-
mos dentro de nós, mesmo que, como eu, não
tenhamos nascido aqui: encontramo-las no nosso
nome, na comida, nas histórias e nos laços fami-
liares que transcendem o tempo, a distância e as
gerações, chamando-nos de volta.
Há uma canção de Fairouz, uma das cantoras
árabes mais aclamadas de todos os tempos, que
faz parte da banda sonora da minha infância na
Nova Zelândia e na Austrália durante a guerra ci-
vil do Líbano, que assolou o país entre 1975 e 1990.
Em “Nassam Alayna al Hawa”, Fairouz implora à
brisa que a leve para casa antes que ela envelheça
tanto num lugar estrangeiro que a sua terra natal
já não a consiga reconhecer.

LÍBANO 75
76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA EM CIMA
Manifestantes fazem As irmãs de Hamze
uma pausa nos protes- Eskandar mostram o
tos contra a crise seu retrato e usam
económica do Líbano medalhões com a sua
em Março de 2021. imagem. Eskandar,
Atrás deles, pneus em um soldado, foi morto
chamas bloqueiam uma pela explosão do porto
estrada para a empo- de Beirute em 2020.
brecida cidade de “Hamze era a maior
Trípoli, no Norte. felicidade da minha
O Banco Mundial mãe”, diz a sua irmã
assegura que a crise mais velha, Salam (ao
do país é uma das pio- centro). A sua morte
res do mundo desde despedaçou-a. Ela mor-
meados de 1850. reu dois meses depois.

LÍBANO 77
A minha mãe não mudara desde a sua última Os meus pais regressaram ao Líbano em
visita ao Líbano, no Verão de 2019, mas a sua meados da década de 1990, depois de a guerra
terra natal estava quase irreconhecível. Era um terminar, mas não conseguiram adaptar-se ao
sítio desfeito. Sombrio, deprimido, desesperado, novo Estado. Já não era o Líbano de Fairouz (se
com o espírito indómito ferido por um colap- é que este alguma vez existiu). O idealismo coli-
so económico desastroso que o Banco Mundial dia com a realidade de um país cujos senhores
classificou como um dos piores do mundo desde da guerra tinham lugares no Parlamento e con-
a década de 1850. cediam imunidade a si próprios por crimes de
O Líbano dos almoços de domingo abundantes guerra. Esses líderes, os seus filhos ou os seus es-
e descontraídos e dos engarrafamentos de trânsi- colhidos como herdeiros políticos dão as cartas
to no Verão, quando as pessoas fugiam ao calor desde o fim da guerra em tudo, desde as nomea-
de Beirute rumando às montanhas verdes e fres- ções para o governo aos cargos judiciais de rele-
cas do Mediterrâneo, transformara-se num Líba- vo em nome de uma democracia consensual que
no onde a subnutrição infantil e a insegurança distribui o poder de acordo com a filiação reli-
alimentar aumentavam. O combustível, se dispo- giosa. Isto deveria promover a coexistência, mas
nível, era agora proibitivamente caro para mui- agravou a fragmentação da sociedade e reforçou
tos, dificilmente permitindo as deslocações para uma identidade sectária em vez de nacional.
o trabalho ou para a escola e, muito menos, as es- E assim, após poucos anos em Beirute, os meus
capadelas de fim-de-semana. Um modo de vida pais regressaram à Austrália.
desvanecera-se, esvaziado da vitalidade que, há O Líbano onde me instalei inicialmente estava
cerca de duas décadas, me atraíra de volta, como em alta, embora até 2005 fosse política e militar-
jornalista, à terra dos meus antepassados. mente dominado pela Síria, o seu vizinho muito
“Regressei” para viver num país que conhe- maior. Beirute vivia um frenesi de reconstrução,
cia sobretudo através das recordações pintadas com restaurantes apinhados e a sua lendária
de cor-de-rosa da minha mãe e do meu pai, mas vida nocturna extravagante. Era de novo o re-
também das minhas viagens de infância a um creio do Médio Oriente, a sua válvula de pres-
Líbano que se desfazia a si próprio. Os meus são intelectual e literária. Para os autóctones,
pais nasceram em pontos diferentes do Líbano porém, as linhas vermelhas eram claras: não se
e deixaram-no juntos antes do início da guerra podia criticar os principais líderes políticos ou
civil que eclodiu entre cristãos e muçulmanos. sectários, ou os suseranos sírios do Líbano, para
O Líbano que levaram consigo era o Líbano de mencionar apenas alguns. O país tinha os seus
Fairouz: em parte real, em parte imaginado. problemas, mas o povo irradiava uma alegria
Sempre que podiam, os meus pais levavam a contagiante e inebriante.
família a passar férias durante meses a fio num Era exasperante e vibrantemente caótico, um
Líbano dilacerado pela guerra, tal era a loucura local onde convenções como os semáforos eram
do seu desejo de voltar. As minhas memórias consideradas sugestões e a persuasão de um
dessas visitas são um misto de sensações: a funcionário público com conversa, ou suborno,
suavidade do abraço envolvente da minha avó era prática comum. Uma liberdade indómita e
materna. As dores de barriga de longas tardes doentia florescia na balbúrdia. Apesar dos de-
passadas com os primos no pomar do meu avô, feitos do país, não consegui evitar apaixonar-me
provando demasiados frutos das vinhas, romã- por ele. É difícil não o fazer, com o seu magne-
zeiras, figueiras e árvores de citrinos. A vaga de tismo enraizado na vivacidade de um povo que
calor espalhada pela explosão de um carro-bom- se agarrou determinadamente à esperança num
ba. O medo sufocante, sempre que nos apro- local que com frequência lhe parte o coração.
ximávamos dos postos de controlo da milícia. Actualmente, muitos libaneses anseiam por
Os disparos de projécteis luminosos que dese- aquilo que recordam como os bons velhos tem-
nhavam elegantes arcos vermelhos no céu noc- pos, mas a verdade é que, para muitos, esses
turno (fogo-de-artifício, diziam-me os meus tios). tempos não foram assim tão bons. A memória se-
A descoberta de que a casa de três pisos dos lectiva e a nostalgia são bálsamos apaziguantes
meus avós era a sua terceira encarnação: as duas num país onde ontem costuma ser melhor do que
primeiras tinham sido bombardeadas e destruí- hoje e amanhã pode provocar tanto pavor como
das na guerra, razão pela qual a minha mãe não esperança. Na verdade, a podridão está mesmo
tinha fotografias da infância para me mostrar. abaixo da superfície reluzente de uma sociedade

78 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
que, em alguns bairros, se gabava de organizar
festas ao som das bombas. As estradas para fugir
ao calor do Verão estavam frequentemente a des-
fazer-se, havia zonas do Mediterrâneo poluídas
e um número excessivo de libaneses mal conse-
guia sobreviver. Os cleptocratas que conduziram O país tinha os
o Estado à falência há décadas que não fornecem
electricidade aos seus cidadãos 24 horas por dia,
seus problemas,
obrigando-nos a depender de dispendiosos gera- mas o povo
dores de bairro – quando há dinheiro para com-
prá-los – ou a viver sem electricidade. A maioria
irradiava uma
dos libaneses tem de comprar água a empresas alegria de viver
privadas porque, neste território de abundantes contagiante
rios e nascentes, a má gestão deixou as torneiras
secas. Há muito que a vida no Líbano significa e inebriante.
pagar duas contas para ter o mesmo serviço es-
sencial, um vício normalizado por um povo que
é talvez demasiado hábil a adaptar-se às dificul-
dades. Imtamsahna é um coloquialismo libanês
frequentemente usado para explicar a sobrevi-
vência: significa desenvolver uma pele tão grossa
como a de um crocodilo.

LÍBANO é um território
antigo encaixado entre
Israel, a Síria e o Medi-
terrâneo, uma manta
de retalhos com 18 sei-
tas oficialmente reco-
nhecidas, dividida por
vários ismos – secta-
rismo, classismo, fac-
ciosismo, nepotismo, racismo. Diz-se que sua
população excede seis milhões de habitantes,
embora ninguém saiba ao certo, uma vez que não
é realizado um censo desde 1932, para contornar
a questão da demografia sectária. O Líbano acolhe
também mais de dois milhões de refugiados sírios
e palestinianos, uma das mais elevadas densidades
de refugiados per capita do mundo.
Para mim, acima de tudo, o Líbano é um país
de potencial frustrado e riquezas subaproveita-
das, incluindo uma população trilingue educa- A National Geogra-
da, ruínas arqueológicas majestosas, planícies phic Society,
férteis que o exército romano usava como celei- empenhada em divulgar
e proteger as maravilhas
ro, uma gastronomia requintada capaz de riva- do nosso planeta,
lizar com qualquer outra e uma beleza natural financia o trabalho de
emoldurada pelo Mediterrâneo que, tal como fotografia documental
da exploradora Rena
um companheiro fiel, amplia o tamanho do país Effendi desde 2021.
ao longo de montanhas verdejantes. ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY

LÍBANO 79
EM CIMA À D I R E I TA
Fatme Ghandour, de 16 Os silos de cereais do
anos, e a família porto de Beirute
arriscaram a travessia absorveram o impacte
do mar em Agosto de da explosão, prote-
2020 para chegarem a gendo a metade
Chipre. Foram deporta- ocidental da capital.
dos. “Não tenho futuro”, Os libaneses têm
afirma. “Fiquei muito esperança de que
feliz quando saímos do um inquérito possa
barco, mas, quando levar os responsáveis
regressámos, as nossas a julgamento, mas
preocupações regressa- não acreditam
ram connosco.” que aconteça.

80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
LÍBANO 81
UM PAÍS NO LIMTE
O Líbano entrou numa grave espiral económica
em 2019. Os bancos encerraram, impedindo
os clientes de acederem às poupanças, que
rapidamente perderam valor. Enfrentando uma
violência crescente e serviços públicos incertos,
muitos fugiram da sua terra natal no momento
em que vagas de refugiados chegavam ao país.


LÍBANO
Explosão de Beirute
No dia 4 de Agosto de 2020,
uma pilha de nitrato de amónio
guardada num armazém
portuário explodiu com uma
força equivalente a um milhão
de quilogramas de dinamite,
devastando uma secção da
cidade que já se debatia com o
aumento da violência.

Porto de abrigo para refugiados


A guerra civil da Síria conduziu cerca
de dois milhões de pessoas ao
Líbano desde 2011. Os novos
refugiados juntaram-se a mais de
duzentos mil palestinianos. O Líbano
tem uma das maiores densidades de
refugiados per capita do mundo.

MATTHEW W. CHWASTYK; KELSEY NOWAKOWSKI


FONTES: PROJECTO DE DADOS SOBRE LOCALIZAÇÃO E EPISÓDIOS DE CONFLITOS
ARMADOS; ALTO-COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS;
COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ÁSIA OCIDENTAL;
BANCO MUNDIAL; © OPENSTREETMAP; MERIT DEM
Sente-se um peso, um cansaço, uma humi-
lhação naquilo que se considera a vida quoti-
diana no Líbano moderno. Nos últimos anos,
LÍBANO
os libaneses suportaram duas catástrofes tão
profundas que dividiram o país entre um antes
e um depois. Por ironia, o tempo que antecedeu
o primeiro desastre (o colapso económico) foi
um momento de grande esperança e mudança
genuína. Em Outubro de 2019, dezenas de mi-
lhares de pessoas de todo o país encheram as
ruas para protestar contra a incompetência e a
corrupção de uma classe política que governa no
seu próprio interesse.
Este movimento foi classificado como uma

RIQUEZA EM DEGRADAÇÃO revolução. O governo demitiu-se. Os bancos fe-


charam e, ao reabrirem, tinham retirado aos de-
A crise do Líbano é uma das piores do mundo positantes o direito de acederem às suas contas
desde meados do século XIX. Com o governo
paralisado, os sectores económico e financeiro bancárias, restringindo seriamente os levanta-
têm vindo a deteriorar-se. mentos de dinheiro, excepto às elites com boas
ligações políticas. À semelhança da maioria das
Crateras de produção pessoas com dinheiro num banco libanês, perdi
A produção de bens e serviços do Líbano desceu
67%. Uma contracção tão forte, por norma desenca- as minhas poupanças. Mais de 80% da popula-
deada apenas por conflitos armados, causa uma ção viu-se mergulhada numa pobreza súbita. Se-
perda de riqueza colossal.
guiu-se uma escassez paralisante de tudo, da fa-
Em dólares rinha aos medicamentos, num país que importa
$8.004
8.000 quase tudo o que consome. A revolução sem
Produto líderes falhou depois de o Estado reagir com for-
6.000 Interno
Bruto per ça e a precariedade financeira – exacerbada por
capita
4.000 uma hiperinflação de três dígitos – gerar preo-
$2.670 cupação com a falta de acesso a bens essenciais.
2.000
As ruas de uma capital que nunca dormia es-
2015 2017 2019 2021
tão agora escuras com a ausência de electricida-
Enfraquecimento da moeda de pública, que pode faltar uma hora por dia. Os
A confiança na libra libanesa diminuiu. A dívida geradores privados não dão conta do recado. No
acumulada pelo governo tem causado o aumento meu bairro, em Beirute, os geradores funcionam
da inflação, gerando preços proibitivos de bens
essenciais como alimentos e combustível. intermitentemente 13 horas por dia. Cada um ar-
ranja-se a correr antes de a electricidade colap-
150%
Variação anual % sar durante uma hora às 8h e apressa-se a chegar
120 Taxa de
inflação a casa antes da meia-noite para não ter de subir
90 por ano escadas às escuras. O desemprego sobe em fle-
60 62% cha, o crime aumenta e centenas de milhares de
pessoas estão a fugir… ou tentam fazê-lo.
30
4% Depois, aconteceu a explosão do porto de Bei-
0
2015 2017 2019 2021
rute, no dia 4 de Agosto de 2020, uma das maio-
res explosões não-nucleares da história. Matou
Aumento da privação pelo menos 218 pessoas e causou estragos em
Acesso restrito a cuidados de saúde, educação, mais de 85 mil propriedades na capital e arre-
alojamento, electricidade e outros indicadores de
bem-estar implicam que um número crescente de dores, incluindo no meu apartamento. Milhares
libaneses viva em circunstâncias depauperadas. de toneladas de nitrato de amónio foram impru-
dentemente guardadas num armazém portuário
Taxa de 44% 76%
pobreza a curta distância de bairros residenciais. Alguns
2019 2021
12,8 DÓLARES POR
DIA EM 2011 PPP*
funcionários sabiam da existência do material
perigoso, mas nada fizeram para removê-lo.

* * A PARIDADE DO PODER DE COMPRA (PPP) É UM INDICADOR


UTILIZADO PARA COMPARAR O PODER DE COMPRA DAS MOEDAS.
LÍBANO 83
O Líbano oferece
tão poucos bens
essenciais aos
seus cidadãos
que poderia
servir de cenário
a uma série
televisiva sobre
sobrevivência.
Vilas e aldeias são
geridas sem
apoio central,
como se fossem
uma espécie de
mini-repúblicas.

Abdel Rahman Zakaria


(ao centro) descontrai na
companhia da família em
Tikrit, dias depois de ser
libertado da prisão.
O activista, conhecido
pelas suas façanhas para
ajudar pessoas necessita-
das, foi detido depois de
ajudar uma amiga a
assaltar um banco para
levantar as suas poupan-
ças. “Estou a fazer o que
posso, o que considero
um dever, pela minha
aldeia, pela minha família,
pelo meu povo”, afirma.
“Ainda tenho esperança.
Ela não morrerá.”

84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
LÍBANO 85
Não houve qualquer operação de recuperação A minha irmã, que estava a ajudar-me, foi até à
promovida pelo Estado, nem um plano de emer- rua para ver se alguém podia ajudar-nos a limpar
gência organizado e, por isso, cidadãos de todo os destroços maiores e todo o vidro estilhaçado.
o país acorreram a Beirute armados com pás e Pediu um voluntário. Vinte e três jovens segui-
vassouras. Voluntários e ONG locais montaram ram-na até minha casa.
bancas com comida e água gratuitas. Um ho- Vi muitas vezes esse espírito comunitário e a
mem da minha rua distribuía garrafas de água a determinação individual de não quebrar nem
partir do porta-bagagens do seu carro. Um casal sucumbir às dificuldades. Fiz uma reportagem
doava detergentes de casa em casa, desculpan- no Sul do Líbano em 2006, sob um feroz bom-
do-se por não poder oferecer mais nada. bardeamento israelita. A paisagem estava do-
Conheci uma mãe, Juliana Abou Nader, en- minada pelos destroços cinzentos das casas e
quanto ela empurrava o carrinho do seu bebé infra-estruturas destruídas. Poucas pessoas se
sobre os destroços de antigas lojas. Ela convi- aventuravam nas estradas cheias de crateras
dou-me para visitar o apartamento dos pais. abertas pelos bombardeamentos aéreos, onde
Mudara-se para casa deles cerca de um ano an- tudo o que se mexia era um alvo potencial.
tes com o marido e os quatro filhos, depois de Certo dia, um Mercedes branco, enfeitado
ter perdido o seu trabalho como contabilista. com fitas brancas e uma placa que anunciava
O apartamento minúsculo era também o lar das “Casados de Fresco”, passou por mim. Encarei-o
suas duas irmãs adultas. Agora, o salário mensal como um gesto tipicamente teimoso, um lem-
do marido (electricista na empresa pública de brete de que a vida continua. A alternativa não é,
energia) não era suficiente para pagar um jantar simplesmente, libanesa.
num restaurante comum.
“Crise atrás de crise, onde vai isto parar?”,
perguntou-me Abou Nader. “É tão difícil ver a
padaria onde compramos o pão, o velhote que
costumava estar sentado à porta da loja, o super- LÍBANO OFERECE tão
mercado onde os meus filhos vão, o farmacêuti- poucos bens essen-
co que é nosso amigo, ver as suas casas destruí- ciais aos seus cidadãos
das.” A casa dos seus pais também sofrera danos. que poderia servir de
Abou Nader preocupava-se com o impacte psi- cenário a uma série
cológico da explosão nos filhos e como iria criá- televisiva sobre sobre-
-los num Estado que não protege o seu povo e vivência. Vilas e
que tipo de futuro poderão ter quando pessoas aldeias têm de gerir-se
com formação não conseguem encontrar traba- sozinhas, como se fos-
lho ou receber um salário digno. “Adoramos o sem uma espécie de mini-repúblicas. As atribula-
nosso país. Custa muito pensar em deixar o país, ções de Beirute eram amplamente conhecidas,
mas estou a ponderá-lo”, disse a minha interlo- mas eu quis ver o que se passava numa das áreas
cutora. “Se pudesse partir, ia.” mais negligenciadas do país. Por isso, desloquei-
”Sempre que fecho os olhos, lembro-me da- -me a Akkar, uma província rural empobrecida do
quele momento”, disse-me Giovanna Helou, a Norte do Líbano. Foi ali que conheci pessoas como
irmã mais nova de Abou Nader. ”Qual momen- Abdel Rahman Zakaria, que se ofereceram para
to?”, perguntei. “O som. Ser atirada para o outro ajudar a governar as suas vilas.
lado da sala. O pó. Não conseguíamos ver-nos Um mês antes de Zakaria ser detido pelo seu
uns aos outros. Em poucos segundos, tudo mu- envolvimento no assalto a um banco, ele e os
dou.” Ela continuou. “Manifestei-me na revo- amigos passavam os dias a apanhar lixo da sua
lução. Eles humilharam-nos. Espancaram-nos. terra natal, Tikrit, depois de o conselho munici-
Antes de a explosão ocorrer, eu e o meu pai es- pal se demitir. Foi Zakaria que negociou o valor
távamos na central eléctrica para perceber por a pagar pela eliminação dos resíduos. Os opera-
que motivo não havia electricidade há duas se- dores da lixeira fizeram-lhe um desconto quando
manas. Isto é maneira de viver?” se aperceberam de que era um esforço de cidada-
O apartamento da família dela ficava a curta nia. Zakaria também recolheu donativos pela sua
distância do meu. A minha casa, como todas vila com cerca de onze mil residentes para cobrir
as outras à minha volta, sofrera muitos danos. o pagamento mensal de cerca de 680 euros.

86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O homem de 30 anos não é um ladrão de ban-
cos, mas sim um Robin dos Bosques dos tempos
TEMPOS
modernos. No dia 14 de Setembro de 2022, Zaka- TURBULENTOS
ria, actualmente desempregado, juntamente com
O Líbano foi criado sob controlo
um amigo de Tikrit, pediram dinheiro empresta- francês após a Segunda Guerra
do para abastecer o carro e conduzir até Beirute. Mundial, depois de séculos de
Lá acompanharam outra amiga, Sali Hafiz, en- domínio otomano. Independente
quanto ela entrou no próprio banco, armada com desde 1943, debate-se com um
conflito sectário interno. Um acordo
a pistola de brincar do sobrinho. Exigiu cerca de
de partilha de poder entre cristãos e
11.900 euros do seu próprio dinheiro. Hafiz pre- muçulmanos resultou num governo
cisava dele para pagar o tratamento oncológico que funciona com deficiências.
da irmã mais nova. Conseguiu fugir (embora se
tivesse entregado às autoridades mais tarde), mas
Zakaria e o amigo foram detidos.
Nove dias mais tarde, os homens estavam em
1956 Ascensão do sector bancário
O Parlamento libanês aprova uma lei
de sigilo que transformou o país num refúgio
da banca mundial. As instituições financeiras
casa. “Faria tudo da mesma maneira”, contou alimentam a prosperidade libanesa.
Zakaria um dia depois de ser libertado, anuncian-
do a disposição para ajudar quem precise. “Vou
ter imediatamente seja com quem for.”
Foi nisto que o Líbano se transformou: num lu-
1975 Eclosão da guerra civil
Despontam as lutas sectárias,
dividindo Beirute em sectores cristãos e
gar onde mais de uma dezena de pessoas já recor- muçulmanos. A Síria entra no ano seguinte
sob o pretexto de mitigar a guerra.
reram à força para levantarem as suas poupanças
e os cidadãos têm de organizar o fornecimento de
serviços públicos essenciais. Ouvi com frequên-
cia libaneses, sobretudo da diáspora, criticarem 1982 Invasão por Israel
Conflitos fronteiriços conduzem a
uma invasão por Israel. Três anos mais
aquilo que consideram a apatia das pessoas que tarde, Israel retira para sul do rio Litani.
O Hezbollah emerge como resistência.
vivem na sua terra natal. Porque não protestam?
Como conseguem suportar indignidades? Zaka-

1990
ria tentou protestar. Tornou-se um activista proe- Fim da guerra civil
minente. Ainda tem estilhaços metálicos no cor- O conflito termina um ano depois
do Acordo de Taif, que divide o poder
po. “Ninguém ouviu. Nada mudou”, disse. Agora, entre cristãos e muçulmanos.
ele está demasiado ocupado a ajudar pessoas.
As suas façanhas, que documenta nas redes
sociais, são famosas. Certa vez, durante um epi-
sódio de escassez de combustível, ele e os amigos
1992-97 Desenvolvimento e dívida
O Líbano assiste a uma
explosão construtiva, com projectos de
grande escala em redor de Beirute, mas
bloquearam camiões-cisterna de transporte de contrai grandes dívidas junto de
petróleo, impedindo-os de contrabandear com- investidores internacionais.
bustível para a Síria e redireccionando-os para a
sua terra natal, onde distribuíram o combustível
gratuitamente. Noutra ocasião, entrou numa cen- 2005 Retirada das tropas sírias
O antigo primeiro-ministro Rafiq
Hariri é assassinado, desencadeando
tral eléctrica para perguntar por que Joumeh não
manifestações contra a Síria. O Hezbollah
estava a receber electricidade do Estado. Depois junta-se ao governo libanês.
de ver que o cabo para Joumeh estava desligado,
“liguei o interruptor para restabelecer a luz na
nossa zona” – contou. Houve ainda outras oca-
siões em que juntou amigos e foi a correr para o
2015 Falhas nos serviços públicos
As autoridades encerram o
maior aterro sanitário dos arredores
hospital ao saber que este se recusara a admitir de Beirute, dando origem a protestos
enquanto o lixo enche as ruas.
um paciente sem antes receber um adiantamen-
to avultado. “Subitamente, o hospital disse que
prescinde do pagamento e que a pessoa seria tra-
tada de graça”, disse Zakaria. “Teve medo de que 2019 Desordem crescente
Os bancos congelam o acesso às
contas, a desvalorização da moeda acelera
eu expusesse o sucedido e o transformasse numa e a explosão do porto de Beirute conduz a
motins e a demissões no governo.
controvérsia das redes sociais.”

CHLOE KATTAR, DARWIN COLLEGE,


UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE
88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA EM CIMA
O Templo de Baco Em Batroun, restauran-
ergue-se nas ruínas tes e clubes modernos
romanas de Baalbek, coexistem com ruínas
no vale do Beca, ancestrais e igrejas
no Líbano. Baalbek, a históricas. A cidade do
antiga Heliópolis, Norte do Líbano é uma
está classificada atracção turística
como Património conhecida pela sua
Mundial. O país guarda vida nocturna e pelo
vestígios das diferentes seu quebra-mar do
civilizações que o século I a.C, construído
ocuparam, incluindo os como baluarte contra
persas, os bizantinos, os a fúria das águas e
omíadas e os cruzados. dos invasores.

LÍBANO 89
No entanto, há limites para aquilo que um ho- Beit Mellat depende de uma diáspora ainda
mem e os seus amigos conseguem fazer. O lixo mais antiga: os mexicanos de ascendência libane-
estava a amontoar-se de novo em Tikrit. “Estou sa, cujos antepassados partiram do país no século
cansado, é muito desgastante e não há financia- XIX. Esses primeiros emigrantes ajudaram uma
mento”, disse Zakaria. Ele não queria pedir mais vaga posterior de parentes que fugiram durante
donativos aos residentes da vila, que já tinham a guerra civil libanesa. “Temos sete mil pessoas
grandes dificuldades. Apelou ao governo de na diáspora e a maior parte está no México”, dis-
Akkar, que o ignorou, aconselhando-o a “tirar o se-me Chahine Chahine, presidente do conselho
espinho da sua própria mão”, segundo Zakaria. municipal. Existem tantas pessoas de Beit Mellat
Mas ele foi inflexível, dizendo que não iria ren- no México que até existe uma vila chamada Beit
der-se ao desespero. “Não sou casado e não tenho Mellat perto da Cidade do México.
emprego. O que tenho a perder?”, disse. “Tudo o Em 2021, os libaneses da diáspora ajudaram a
que tenho é a aldeia, e vou sacrificar tudo por ela.” angariar mais de 137 mil euros para instalar pai-
Na vila adjacente de Beit Mellat e mais acima néis solares nas casas de todas as 96 famílias que
no monte, em Memnaa, as condições só são me- residem em permanência na Beit Mellat libanesa.
lhores porque, ao contrário de Tikrit, ambas têm Num dia quente, bebi um café com Toufic
uma diáspora considerável à qual recorreram Geaitani na varanda da sua casa apalaçada em
para ajuda. É costume os libaneses que migram Beit Mellat. Este vendedor de têxteis de 79 anos
ajudarem a família que fica, mas desde 2019 que deixou o Líbano em 1968 e é um de muitos liba-
os libaneses que vivem fora do país organizam neses-mexicanos que ajudam a vila. Passa vários
uma série de iniciativas para ajudar a pagar tra- meses por ano no Líbano. De sua casa, avista-se
tamentos médicos, comida e outras formas de um belíssimo pomar em socalcos com oliveiras e
assistência às famílias, amigos e estranhos, por outras árvores de fruto. Um pinheiro solitário er-
vezes através de acções de angariação de fundos gue-se acima da restante vegetação. “Foi planta-
organizadas nas redes sociais. do pela minha falecida avó em 1880 ou 1890”, dis-
Em Memnaa, visitei Hanna Ibrahim, de 66 se-me. Fiz-lhe uma pergunta que eu própria tinha
anos, mukhtar da aldeia (um cargo mais ou me- dificuldades em responder: Porque estava ainda
nos equivalente ao de presidente da câmara). ligado ao Líbano? O que o impelia a regressar?
Três dos seus quatro filhos vivem no estrangei- “É uma atracção secreta”, disse. “Precisa de
ro, incluindo o mais velho, Charbel. Em 2019, um psicólogo para ser explicada!” Fez uma longa
Charbel fundou o Steps of Hope, uma ONG aus- pausa “O nosso sangue atrai-nos de volta”, disse.
traliana que opera em todo o Líbano através de “Apesar de tudo o que aqui vejo errado e de tudo o
parcerias, financiando “sopas dos pobres”, dis- que não funciona, não consigo evitá-lo. Não con-
tribuição de alimentos, medicamentos e peque- sigo deixar de voltar.”
nos kits solares para ajudar os estudantes a faze-
rem os trabalhos de casa depois do crepúsculo.
O seu primeiro grande objectivo foi reparar 580
casas depois da explosão em Beirute com cerca
de oitocentos mil euros rapidamente angariados DIFÍCIL ADORAR um país
pela organização de caridade. Charbel e cerca de celebrizado por exportar
20 dos cerca de 400 libaneses-australianos cujas os seus filhos. Há muito
linhagens remontam a Memnaa também doam que o Líbano é um lugar
cerca de 91 mil euros por ano à sua aldeia. de onde as pessoas par-
“Se não fossem os nossos filhos que vivem no tem para fugir à guerra,
estrangeiro, a nossa aldeia teria sofrido muito e à instabilidade política,
sido humilhada”, disse-me Joseph Youssef, che- à pobreza e à fome; para
fe do conselho municipal de Memnaa. Os austra- irem em busca de conhe-
lianos ajudaram a comprar um gerador a gasóleo cimento e aprendizagem; para se reunirem à sua
para manter as luzes ligadas e eles pagaram o família na diáspora; e simplesmente para procurar
gasóleo. Angariaram dinheiro para uma bom- uma vida melhor. Os membros da minha família
ba para assegurar que as casas tivessem água. começaram em finais do século XIX.
E proporcionam subsídios mensais para as 24 fa- Um grande número de libaneses debate-se
mílias que não têm parentes no estrangeiro. actualmente com essa questão: devem ficar ou

90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
devem ir? Os pedidos de passaportes aumenta-
ram dez vezes desde 2019, criando um atraso que
implica tempos de espera superiores a um ano
só para marcar uma primeira apresentação dos
documentos. Aqueles que não podem esperar,
ou não têm dinheiro para pagar o passaporte, es- Na maior parte
tão a virar-se para um mar que, desde a Antigui-
dade guarda promessas de terras novas e vidas dos dias, vacilo
novas. Dezenas de pessoas morreram em traves- entre o amor
sias traiçoeiras para a Europa.
Muitos pais que conheço partiram com as suas exasperado e
famílias. Um dos meus amigos que decidiu ficar a raiva latente.
gosta de repetir uma frase comum: “O país não
é um hotel do qual se possa fazer check out.” Dói-me o
Talvez. Porém, ao contrário do Estado libanês, sofrimento
os hotéis dispõem de serviços essenciais.
Na maior parte dos dias, vacilo entre o amor causado pela
exasperado e a raiva latente. Dói-me o sofri- crise económica
mento causado pela crise económica e a falta
de responsabilização de uma classe política que e a falta de
não ajuda o seu povo. responsabilização
Sou filha da diáspora e faço parte da pátria.
E como a minha mãe fez ao longo da vida, nave- de uma classe
go entre dois mundos. À semelhança de muitos política que
libaneses, deixo o país durante longos períodos,
mas nunca consigo esquecê-lo. não ajuda
Quando entrei no meu apartamento devasta- o seu povo.
do pela explosão, em Agosto de 2020, a memória
da minha falecida avó entrou comigo. Lembrei-
-me de ela me dizer que não tinha conseguido
recuperar nem um garfo dos destroços da sua
casa e considerei-me afortunada. Ainda tinha ta-
lheres numa gaveta da cozinha. Fiz obras de re-
paração no meu apartamento, jurando que não
estava a arranjá-lo para o abandonar mais tarde.
Isso pareceria uma traição, uma rendição. Quan-
do um sítio é a nossa casa, é preciso muito para
cortar os laços dos costumes e do afecto, embora
eu saiba que sou privilegiada. Ao contrário de
muitas pessoas, graças ao meu passaporte aus-
traliano e aos dólares que tenho no bolso, tenho
uma saída garantida e posso escolher sair.
Na explosão, todas as janelas do meu aparta-
mento ficaram estilhaçadas, excepto uma an-
tiga janela tripla que eu personalizara e trans-
formara numa instalação para montar numa
parede. Escrita em caligrafia árabe cursiva, a
peça de arte enuncia um desejo que os meus
pais tiveram antes de mim: as letras da canção
de Fairouz descem pelas três janelas arqueadas
em letras pretas gordas, transmitindo a espe-
rança de que, se eu estiver noutro sítio, a brisa
me levará para casa. j

LÍBANO 91
92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Navego entre
dois mundos.
À semelhança
de muitos
libaneses,
deixo o país
durante longos
períodos, mas
nunca consigo
esquecê-lo.

Desde a Antiguidade
que a costa de Jbeil,
também conhecida
como Biblos, é um
ponto de embarque
para viagens para
novas terras. Biblos era
um importante porto
comercial fenício, uma
cidade-estado onde
se diz ter nascido o
primeiro alfabeto.
É uma das mais antigas
cidades continuamente
habitadas do mundo.

LÍBANO 93
SEGREDOS
DAS ARANHAS
TEXTO DE JASON BITTEL

FOTOGRAFIAS DE
JAV I E R A Z N A R

Empoleirada numa flor,


esta aranha aguarda
pacientemente que
um polinizador azarado
passe por ela em
La Maná, no Equador.
Estes aracnídeos são con-
fundidos com frequência
com as armadeiras
(Phoneutria sp.), que
possuem um dos venenos
mais potentes da Terra.
R E T R A T O S Í N T I M O S D E A R A N H A S M O S T R A M A T É Q U E P O N T O
~
E L A S S AO S I N G U L A R E S , B E L A S E E N C A N TA D O R A S .

95
S A R A N H A S S ÃO I N C R I V E L M E N T E D I V E R S I F I C A DA S :
existem mais de cinquenta mil espécies conheci-
das, incluindo a mergulhadora Argyroneta aqua-
tica, que vive maioritariamente na água, a Pardosa
glacialis, que se distribui a norte do Círculo Polar
Árctico, e a Gaius villosus, que atinge a provecta
idade de 43 anos. No entanto, muitos humanos nunca dão uma
oportunidade aos aracnídeos.
“Quando o público pensa em aranhas, imagina algo arre-
piante”, explica Javier Aznar, biólogo e fotógrafo residente
em Madrid que compôs um impressionante caleidoscópio
de imagens de aranhas, sobretudo das florestas húmidas
do Equador, onde viveu durante três anos. “Porém, quando
olhamos mais de perto, observamos um mundo espantoso.”
Analisemos o caso da espécie Phidippus audax, o carismá-
tico aracnídeo que olha fixamente para si na página ao lado.
Segundo o fotógrafo, estas aranhas, que podem ser encontra-
das em toda a América do Norte, pareciam “amigáveis” e não
tinham medo dele. Aliás, tanto quanto se sabe, apenas cerca Um exemplar de
de uma dezena de aranhas são conhecidas por fazerem mal Phidippus audax
às pessoas. Algumas espécies de aranhas saltadoras também descansa num dedo.
Estas aranhas têm
têm excelente visão a cores e, por isso, quando apontam os cores iridescentes nas
olhos na sua direcção, estão realmente a olhar para si. mandíbulas e uma
Depois, existem as fascinantes aranhas que imitam formi- natureza inquisitiva.
Não tecem teias, pois
gas do género Aphantochilus, originárias da América do Sul. preferem capturar as
Os seus rostos largos e com chifres são incrivelmente pare- presas em emboscadas.
cidos com os das formigas que comem, o que lhes permite
aproximarem-se das suas refeições sem darem nas vistas.
Mestras na arte do disfarce, estas predadoras podem ser difí-
ceis de encontrar e de fotografar. Javier Aznar só as viu duas
ou três vezes no Equador.
A investigação das peculiaridades da biologia das aranhas
torna o trabalho desafiante e divertido, explica o fotógrafo,
que passa com frequência noites na selva a tentar captar
aranhas em acção. Para conseguir fotografar exemplares do
género Deinopis no Equador, por exemplo, demorou vários
anos. Em vez de tecerem teias tradicionais, estes aracnídeos
de olhos grandes e patas compridas criam redes quadradas
de seda que seguram com as patas e arremessam contra in-
sectos de passagem. No entanto, estes animais são ariscos e
escondem as suas armadilhas quando sentem algo a apro-
ximar-se. Para captar este comportamento em toda a sua
glória, o fotógrafo foi obrigado a transformar-se, ele próprio,
num paciente predador, passando longos períodos imóvel e
em silêncio. Foi então que, certa noite, uma aranha preparou
o seu ataque e, com um clique e um flash, Javier Aznar con-
seguiu por fim concretizar a sua fotografia. j
NoJason Bittel
Equador, is a science
existe grandejournalist
variedadeand
de National
espécies Geographic
de aranhas. Da esquerda para a direita, a partir
Explorer. He is currently writing a book
do topo: Gasteracantha cancriformis, Psecas forviridipurpureus,
National Freya decorata, Aphantochilus rogersi,
Geographic
Micrathena sp.,about
BredaNorth American
lubomirskii, wildlife.
(Sidusa sp.), Gasteracantha cancriformis (numa variação cromática).
Suspensa por um fio de seda, uma aranha da espécie Micrathena clypeata constrói a sua gaiola
para os ovos na floresta húmida amazónica junto de Tena, no Equador.
A raramente obser-
vada aranha da
espécie Onocolus sp.
confunde-se com a
folhagem na Reserva
Ecológica de Jama-
-Coaque, no Equador.
Esta será a última
imagem que uma
formiga Cephalotes
atratus vê na vida: o
rosto de uma aranha
da espécie Aphanto-
chilus rogersi. Estas
imitadoras conseguem
caminhar no meio dos
insectos sem serem
detectadas, capturan-
do-os em seguida.
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

UM REINO
CRISTALINO

104 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
FOTOGRAFIAS DE
PETER WOITSCHIKOWSKI

TEXTO DE NINA STROCHLIC

UM MICROSCÓPIO EQUIPADO
C OM UM A C Â M A R A E MU I TA
PACIÊNCIA AJUDAM A EXPOR
A FAC E TA D E S LUM B R A N T E D E
ELEMENTOS QUÍMICOS BANAIS.

Numa lamela de vidro


iluminada por luz polarizada,
cristais minúsculos de vani-
lina (essência de baunilha
artificial) revelam uma
cena psicadélica.

105
Derretido e arrefecido
em seguida, o enxofre
forma um desfiladeiro
de microcristais. Peter
Woitschikowski pode
passar semanas a examinar
os seus diapositivos em
busca da imagem perfeita.

106 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O fotógrafo só trabalha
quando se sente descon-
traído. “Em stress,
não conseguimos ver
imagens”, diz. Esta
fotografia representa ácido
ascórbico, ou vitamina C.

107
O ácido salicílico e o ácido
láctico, utilizados em
produtos de cuidados
dermatológicos, colidem
para criar uma imagem
sobrenatural em tons
dourados e índigos.

108 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
109
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

U M F OTÓ G R A F O C R I A U M E X T R AO R D I N Á R I O R E I N O E N C A N TA D O
A PA RT I R D E S U B S TÂ N C I A S B A N A I S .

Uma selva cheia de


O Q U E V Ê N E S TA S I M AG E N S ? maravilhoso invisível a olho nu. As formas sur-
palmeiras? Penas de aves vibrantes? Quando gem em lamelas de laboratório através do aque-
fazem o teste de Rorschach da microfotografia cimento de químicos como o paracetamol (em
de Peter Woitschikowski, os observadores ten- cima) ou misturando-os com água ou álcool.
dem a compará-la com frequência às formas do Quando as substâncias arrefecem ou secam, os
mundo natural. O projecto do fotógrafo requer cristais aparecem. Iluminados por luz polariza-
capacidade de abstracção para que se possa ver da, parecem saltar num bailado de formas e cor.
algo completamente novo. “Tenho esperança de O processo é tão delicado que a mais pequena
reactivar a fantasia”, diz. vibração pode arruiná-lo. É por isso que Peter
Na década de 1980, Peter, que vive na Alema- comanda à distância o obturador e fotografa
nha, comprou um microscópio depois de ver de noite, quando o trânsito na rua do estúdio já
uma fotografia de microcristais numa revista. acalmou. “É uma bela experiência”, diz. “Quan-
Decidiu a partir de então revelar este mundo do começo, nunca sei o que verei.” j

FWhWYWfjWheic_YheYh_ijW_i"F[j[hőe_jiY^_aemia_cedjWWY~cWhW
dkcc_YheiYŒf_e[Z_ifWhWeeXjkhWZehfehYecfkjWZeh$

110 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
MÚSICA | B A S T I D O R E S

O PERGAMINHO SHARRER
O DIA 2 DE JULHO de 1990 entrou para a história da música. O musicólogo
americano Harvey L. Sharrer estava então em Lisboa, investigando docu-
mentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e consultou um livro
dos registos notariais municipais do século XVI. Cosidos ao forro da capa,
encontrou dois fragmentos de pergaminho do século XIV, repletos de
notações musicais e textos vernaculares. Havia inscrições a três colunas
na frente e verso de cada documento.
Sharrer não demorou a identificar sete cantigas de amor do cancio-
neiro galaico-português. Comparando as cantigas que encontrou com
títulos de obras desaparecidas que os arquivos já atribuíam a Dom Dinis,
sexto rei de Portugal, ficou estarrecido: acabara de encontrar cantigas
escritas por um rei, com as respectivas pautas musicais. “Vieram-me
lágrimas aos olhos quando considerei o significado da descoberta”, escre-
veu Sharrer mais tarde. O investigador lograra uma das tarefas mais difí-
ceis da história: recuperou da Idade Média os ecos perdidos da música
e da lírica de um rei. É, além disso, a fonte manuscrita portuguesa mais
antiga de música profana.
Quase não nos chegaram vestígios das canções profanas medievais
galaico-portugueses. Até esta descoberta, conheciam-se apenas as sete
cantigas de amigo do trovador Martim Codax, descobertas em 1914 na
biblioteca privada de Pedro Vindel. Também elas estavam ocultas no
forro de um livro do século XVIII.

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO


N A T I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Ilhas Canárias:
Nascidas do Fogo
E ST R E I A : 1 1 D E M A RÇ O

A 300 milhas a oeste da costa de Marrocos no


oceano Atlântico, La Palma só existe porque um
ponto quente vulcânico elevou há muito tempo
a terra acima das águas, formando o arquipélago
das Canárias. Ao emergir à superfície, a lava soli-
dificou e moldou oito ilhas principais que têm
7 Dias Extenuantes ecossistemas variados. Como a possante e mais

no Planeta Terra recente erupção demonstra, o preço de viver numa


pequena ilha bonita é a submissão à sua história
E S T R E I A : 3 D E M A R Ç O, À S 2 3 H geológica. Em “Ilhas Canárias: Nascidas do Fogo”,
maravilhe-se com o incrível poder da natureza,
Dwayne Fields enfrenta os mundos mais
com imagens exclusivas que documentam a
hostis da Terra durante uma “janela mortal”
em que forças naturais épicas se combinam. mudança evocada pela mais recente erupção do
Dwayne tem apenas sete dias para se orientar vulcão Cumbre Vieja nas ilhas Canárias no último
e regressar à segurança da civilização. trimestre de 2021.

Os Segredos Descubra os bastidores do restauro de


do Castelo de Neuschwanstein e acompanhe peritos e artesãos
Neuschwanstein num processo que produziu conhecimento
inédito sobre o que está por trás das fachadas de
E ST R E I A : 1 8 D E M A RÇ O calcário e da misteriosa personalidade do rei do
“conto de fadas da Baviera”, Luís II.

FOTOGRAFIAS DE NATIONAL GEOGRAPHIC


Secrets of The
Zoo: Tampa 4
E ST R E I A : 1 8 D E M A RÇ O

O Columbus Zoo and Aquarium é um dos mais


populares jardins zoológicos dos EUA. Seriam
necessários dias para ver tudo, mas esta série con-
duz os espectadores aos bastidores, junto dos tra-
tadores que trabalham 24 horas por dia para criar
uma das melhores experiências num zoológico.
Conciliando mais de mil membros da equipa, dez
mil animais, sete mil casos veterinários e mais de
cem nascimentos de animais por ano, “Secrets of
The Zoo: Tampa” conta as histórias dramáticas,
comoventes e hilariantes dos animais e de quem
os adora. Nesta nova temporada, assista a mais
aventuras protagonizadas por elefantes africanos,
panteras da Florida e iguanas cubanas.

Especial: Os domingos de Março são dedicados aos


pequenos répteis. As cobras desempenham um
Snake Month papel fundamental no ecossistema, controlando
roedores e pragas. Mais consciencialização pode
DOMINGOS, ajudar a aumentar o apoio e a compreender
ÀS 18H00 estas criaturas esquivas e denegridas.

NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO E AO CENTRO);


EARTH TOUCH LTD (EM BAIXO)
P R Ó X I M O N Ú M E R O | ABRIL 2023

DOSSIER ESPECIAL: POPULAÇÃO Origami: o futuro As lebres


Já somos 8.000 milhões pode dobrar-se de montanha
Em menos de 50 anos, a população mundial O origami é mais do As lebres de montanha
duplicou. Os peritos acreditam que poderemos que beleza. A arte de adaptaram-se ao frio
chegar ao pico demográfico antes do final deste papiroflexia japonesa extremo, mas a subida
século – o momento em que se prevê que o inspira cientistas de da temperatura cria som-
número global de habitantes comece a diminuir. todo o mundo. bras sobre o seu futuro.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C YAGAZIE EMEZI
SEGREDOS
DOSSIERS D O C É R E B RO V I AG E N S

H I S TÓ R I A FI LO S O FI A

GRANDES GRANDES
P E R S O N AG E N S C U LT U R A MU LH E R E S

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