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PEDRO GUIMARÃES FERREIRA LOPES

ÓRGÃO DE TUBOS E ÓRGÃO


HAMMOND:
Tradição e ruptura

Trabalho de Conclusão de Curso

São Paulo
2016
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PEDRO GUIMARÃES FERREIRA LOPES

ÓRGÃO de TUBOS e ÓRGÃO


HAMMOND:
Tradição e ruptura

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Música da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção
do título de Bacharel em Música.
Orientador: Prof. Dr. Rogério Costa.

São Paulo

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2016
FICHA CATALOGRÁFICA

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Um dia de chuva é tão belo quanto um dia de sol.
Ambos existem, cada um como é.
Alberto Caeiro

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, pelo colo e pela força.


Ao Gustavo e ao Caio e ao Danilo pela presença importante.
Ao meu pai, por ter nos colocado no ambiente da música desde cedo.
Ao Prof. Rogério Costa pela orientação neste trabalho, me chamando das nuvens e
trazendo ideias lúcidas e efetivas.
A todos os entrevistados para essa pesquisa – entrevistas que, ao fim das contas, em
sua maioria, não estiveram presentes nesta versão final do trabalho: Anne Schneider,
Alexandre Rachid, Lee Ward, Felipe Bernardo, Marcio Arruda, Dorotéa Kerr, Matías
Sagreras, Arnaldo Baptista, Pedro Pelotas, Marcelo Jeneci, Henrique Gomide, Giba Estebez,
Daniel Latorre, Ari Borger, Jimmy Pappon, Warwick Kerr e Juan Weinhold.
Ao Prof. José Luís de Aquino por ter me introduzido e ensinado o órgão de tubos e,
em 2012, me levado para Buenos Aires para tocar um concerto.
À Irene Yan e Danilo Mendes, pelos livros e computadores – essenciais para o dia-a-
dia na pesquisa.
Ao Thales Othón, amigo e colega de bandas que há dois anos me convidou para
participar de três conjuntos de música popular – o que me colocou em contato com músicos e
músicas distintas.
Ao Pizza Punk, pelo som, por terem me abraçado e acolhido e pela energia que soará
nesse próximo disco.
Aos colegas da banda Quimbará, com os quais tenho também sempre a oportunidade
de buscar novas e variadas influências sonoras, praticar uma música gostosa e tocar shows por
aí afora.
Aos queridos amigos do Baião da Garoa pelos momentos gostosos e pela sanfona.
Ao Rob Ashtoffen, Gabriel Guedes e Rafael Rosa pelo som que vemos fazendo desde
quando essa pesquisa começou, em agosto de 2015, por, mais uma vez, permitirem um espaço
de atuação musical nunca antes explorado por mim e, a partir disso, terem me ajudado com a
concepção desta ideia de trabalho.
Ao Pedro Rosa, Gordo, por toda a parceria de sempre e, mais recentemente, pelo Duo
Pedrês.

6
Ao Coro Profano, pelo coro e pelo espaço que temos para a prática de atividades
lindas, de muita comunicação e arte.
E também a outras pessoas da vida, que estiveram presentes neste meu processo de
fazer nascer este trabalho: Aline Parra, André Bonani, Thaís Grootveld, Anna Turriani,
Mariana Carvalho, Ana Merchán, André Mourão, Guilherme Bertonzzin, Tomás Bastos,
Carolina Castro, Carlos Eduardo Samuel, Sarah Alencar, João Francisco, Pedro Migué,
Alexandre Gouveia, Jaqueline Guimarães, Dayana Ferreira, Gabriel Stern, Manuela Quesada,
João Vitor, Fábio Carrilho, Tomás Alfaro.
Muito obrigado a todos.

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RESUMO

LOPES, Pedro Guimarães Ferreira. Órgão de Tubos e Órgão Hammond: Tradição e ruptura.
2016, 108p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Música) – Departamento de
Música, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

Resumo: Este trabalho busca apresentar o órgão de tubos e o órgão Hammond como dois
instrumentos distintos que compartilham características. O modo de funcionamento,
diferentes modelos e mecânicas e o repertório durante a história de ambos instrumentos são
apresentados. Depoimentos de organistas Hammond brasileiros sustentam as ideias quanto ao
uso deste órgão elétrico, concebido como sucessor do órgão de tubos.

Palavras-chave: Órgão de Tubos. Órgão Hammond. Organeria.

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ABSTRACT

Abstract: This work aims to present the Pipe Organ and the Hammond Organ as two distinct
instruments that have some similar characteristics. How they work, the different models and
mechanics, and their repertoires through history are presented. Testimonies from Brazilian
Hammond organists sustain the ideas about the use of this electric organ, conceived as the
Pipe Organ's successor.

Key-words: Pipe Organ. Hammond Organ. Organ building.

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SUMÁRIO

Lista de abreviaturas e siglas


p. 13
Lista de figuras
p. 14

Apresentação
p. 16

Capítulo 1: Órgão de Tubos


p. 19
1.1 O mecanismo do instrumento: tubos, teclados, registros, acoplamentos, super e sub, trêmulo,
crescendo, combinações e transposições.
p. 19
1.2 O instrumento no decorrer da história
p. 28
1.2.1 Afinações
p. 28
1.2.2 Foles
p. 30
1.2.3 Trações
p. 30
1.2.4 O ofício de um organeiro e harmonização
p. 32
1.2.5 Repertório
p. 34
1.2.5.1 Bach, “o apogeu de uma era”
p. 35
1.2.5.2 Cavaillé-Coll e a música sinfônica francesa para órgão
p. 39

Capítulo 2: Órgão Hammond


p. 42
2.1 Origem
p. 42
2.2 Mecânica e eletrônica, funcionamento, modelos
p. 46
2.2.1 Caixa Leslie: “Voz de tubos do órgão elétrico”
p. 59
2.3 Repertório
p. 63
2.4 Registração ao órgão Hammond
p. 81
2.5 O Órgão Hammond no Brasil, hoje
p. 91

Considerações Finais
p. 106

11
Referências bibliográficas
p. 108

12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Fig. Figura
R&B Rhythm & Blues

13
LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 - Órgão de Flentrop (1967), no Queen Elizabeth Hall, Londres………………


p. 20

Fig. 2 - Consola Laukhuff do órgão do Mosteiro de São Bento………………………


p. 24

Fig. 3 - Alguns músicos relacionados ao órgão ao longo da história…………………


p. 35

Fig. 4 - O gerador mecânico do órgão Hammond, tonewheel…………………………


p. 47

Fig. 5 - Órgão Hammond Modelo A (1935)…………………………………………..


p. 49

Fig. 6 - Os controladores das “nove cores fundamentais do espectro sonoro”: os


drawbars………………………………………………………………………………
p. 51

Fig. 7 - Cada drawbar e seus respectivos resultados sonoros………………………


p. 52

Fig. 8 - As “combinações fixas” do órgão Hammond, chamadas Presets……………..


p. 54

Fig. 9 - A chave de Vibrato e Chorus do modelo B-2 e os controladores do efeito…..


p. 58

Fig. 10 - Cartaz da Leslie Speaker: “Pipe voice of the electric organ”…………………..


p. 59

14
Fig. 11 - A Caixa Leslie e seus componentes internos…………………………………
p. 61

Fig. 12 - A Caixa Leslie de costas……………………………………………………..


p. 61

Fig. 13 - Cartaz de divulgação do Órgão Hammond Modelo A (1935)………………


p. 64

Fig. 14 - Para acompanhar o jantar, música ao órgão Hammond…………………….


p. 66

Fig. 15 - Estrutura harmônica do blues em 12 compassos…………………………


p. 68

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APRESENTAÇÃO

O órgão é um instrumento musical muito antigo que tem sua concepção atribuida “a
Ctesibius, engenheiro de Alexandria, no século III a.C., cujo Hydraulis era antes uma
demonstração dos princípios da hidráulica do que um instrumento musical propriamente dito”
(Sadie 1994:680). O organeiro1 argentino Juan Weinhold nos diz em uma entrevista que os
'modernos órgãos de tubos' “são instrumentos muito complexos e, mais que instrumentos, são
quase uma instalação fônica, cada um deles. Não é um violino, um violão, é toda uma
instalação muito complexa que abarca muitas disciplinas diferentes” (Weinhold 2015). Ainda
que ao longo desta longa história este instrumento de sopro 2 tenha se feito presente em
distintos lugares e “cantado” em diversas ocasiões, desde há muito tempo está intimamente
relacionado às igrejas cristãs ocidentais.

“O período exato no qual o órgão foi usado para fins religiosos pela primeira vez
não é conhecido, mas de acordo com Julianus, um bispo espanhol que estava vivo
em 450 d.C, o instrumento estava em uso nas igrejas da Espanha nessa época. Um
exemplo é o da mais antiga cidade de Grado, numa igreja de freiras antes do ano
5803”. (Grove 1883:592)

Com o passar dos anos, o órgão foi chegando às catedrais de outros países da Europa
e, em 666, o Papa Vitaliano, em Roma, introduziu o instrumento na Igreja Católica para
melhorar o canto nas congregações. Desde então, o órgão de tubos é quase sinônimo de órgão
de igreja, e é este instrumento musical a referência para o invento mais bem-sucedido da
empresa estadunidense The Hammond Clock Company.

1 Aquele que constrói e/ou repara órgãos.


2 O órgão de tubos consiste de uma ou mais fileiras de tubos individuais que formam escalas cromáticas, os
registros. O ar sob pressão tem acesso aos tubos, que assim se fazem soar, através de válvulas operadas a partir
de um ou mais teclados manuais e, geralmente, um teclado pedal.
3 The exact period at which the organ was first used for religious purposes is not positively known; but
according to Julianus, a spanish bishop who flourished A.D. 450, it was in common use in the churches of Spain
at the time. One is mentioned as existing 'in the most ancient city of Grado', in a church of the nuns before the
year 580.

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O órgão Hammond é um novo instrumento musical. Construído para ajustar-se aos
padrões do órgão de tubos, requer do executante técnica de órgão de tubos e produz
toda a gama do colorido musical necessária para a performance, sem sacrifício, das
grandes obras da literatura organística clássica. Além disso, permite muitos
coloridos tonais jamais ouvidos em qualquer instrumento musical. Funciona ao
plugá-lo em uma tomada e ocupa menos espaço do que um piano de armário. O
órgão Hammond constitui-se de um notável, até revolucionário, desenvolvimento
musical4. (Faragher 2011:16)

A apresentação no cartaz publicitário de lançamento do órgão Hammond, em 1935,


evidencia as qualidades do instrumento que serão detalhadas e explicadas no capítulo
referente a ele. Nos cabe aqui atentar à referência ao órgão de tubos, instrumento de largo
investimento financeiro e que exige uma manutenção extraordinária: “o elementar é manter os
órgãos periodicamente, estar atento a problemas pontuais mecânicos, elétricos e manter a
afinação. Dependendo do lugar, não menos do que a cada cinco ou dez anos, fazer uma
limpeza geral no instrumento, nos tubos principalmente. Especialmente em vésperas de
concerto ou de ocasiões solenes, fazer a afinação.” (Weinhold 2015).
Diante da realidade dos Estados Unidos frente à Grande Depressão econômica, que
teve seu início em 1929, a aquisição e manutenção destas “instalações fônicas” era algo
impraticável, e Laurens Hammond obteve um sucesso imediato por conta disso com a venda
de seu órgão, que “foi originalmente concebido como substituto do órgão de tubos” 5 (Vail
2002:14) e “muito mais barato do que um deles”6 (Vail 2002:14) – além do que “funciona ao
plugá-lo em uma tomada e ocupa menos espaço do que um piano de armário” (Faragher
2011:16). O órgão Hammond “achou seu caminho junto a muitas igrejas ao redor do país,
especialmente no sul”7 (Vail 2002:14) e “vários músicos que tocavam o Hammond nas igrejas
descobriram que ele era bom para outros estilos que não o clássico. Isso foi o que conduziu o
instrumento a ser usado na igreja para outras formas de música, como o jazz. O gospel e o

4“The Hammond Organ is a new musical instrument. Yet it is built to conform to established pipe-organ
standards, requires pipe-organ technique of the musician who plays it, and produces the entire range of tone
coloring necessary for the rendition, without sacrifice, of the great works of classical organ literature. In
addition, it permites many tone colors never before heard on any musical instrument. It is installed by plugging
into an electric light socket. It occupies less space then a upright piano… The Hammond Organ constitutes a
notable, even a revolutionary, musical development.”
5 “Was originally intended as a replacement for the pipe organ.”
6 “Was much cheaper than a pipe organ, so a lot of churches used it.”
7 “Found its way into many churches all over the country, especially in the south. It was used by a lot of black
gospel groups, and it found its way from there into the blues and R&B.”

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R&B (Rhythm & Blues) vieram da igreja negra que tinham um Hammond no começo, e os
organistas encontraram um novo estilo de música que se adaptasse ao som do instrumento
musical”8 (Vail 2002:14). A trajetória traçada durante estes mais de oitenta anos pelo órgão
Hammond já estava anunciada nestes primeiros anos de existência, e, a partir de então,
músicos como Jimmy Smith, Jon Lord e, no Brasil da década de 1970, Arnaldo Baptista,
consolidaram o órgão na música popular.
Para a contextualização da minha motivação a buscar o órgão Hammond como objeto
de pesquisa para o trabalho de conclusão da minha graduação de música com especialização
em órgão de tubos é preciso apontar alguns momentos.
Em 2009, entrei no CMU no curso de licenciatura, enquanto estudava piano na Escola
Municipal. Logo no primeiro ano, comecei a ter aulas de órgão no lugar de aulas de piano
complementar. Tomei gosto pelo instrumento e, no segundo ano, me matriculei em Práticas
Instrumentais para continuar os meus estudos. Em 2011, resolvi mudar de vez, fiz a
transferência interna e me matriculei como aluno de bacharelado em órgão de tubos dentro do
departamento – ao mesmo tempo em que interrompi meus estudos de piano. Mais adiantado
no curso, voltei a me transferir para a licenciatura e, um ano depois – ao perceber que ia
demorar muito mais para terminar a faculdade -, voltei para o bacharelado em instrumento.
A questão da escolha do órgão Hammond como tema desta pesquisa dialoga
profundamente com esta aparente inquietação e falta de clareza durante o curso da graduação.
Os teclados do rock progressivo, o violão do samba, o saxofone e o piano do jazz, o
contrabaixo e a guitarra do rock e algumas outras sonoridades me tomavam a atenção e gosto
desde a adolescência. Percebi há pouco o fato de não ter deixado estes interesses ocuparem
um lugar profissional, e que a música popular não fôra o foco de meus estudos “sérios” - mas
sim o piano erudito, que me traria uma maior “segurança” musical. Essa constatação me
incomoda e me inquieta, já que também percebi que, pelo menos por agora, não quero ser um
concertista erudito – caminho apontado pela natureza dos estudos na faculdade.
Dentro deste contexto, o órgão Hammond representa a música que tenho praticado
nos últimos anos com os conjuntos em que toco e a ponte entre meus estudos eruditos de
órgão e minha prática popular, que me ocupa o lugar mais prazeroso do fazer musical.

8 “A lot of the musicians who played it in church found that it was good for styles of music other than classical.
That's what led it from being used in the church to other forms of music, such as jazz. Gospel and R&B came out
of the black churches that had a Hammond early on, and players found a new style of music that suited the sound
of the musical instrument.”

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CAPÍTULO 1:
ÓRGÃO DE TUBOS

O presente trabalho apresenta uma pesquisa que tem como foco o órgão Hammond,
instrumento elétrico que teve o órgão de tubos como inspiração para seu desenvolvimento, em
1935.
No entanto, este capítulo inicial apresentará características relativas ao órgão original,
de tubos, um instrumento cuja concepção atribui-se “a Ctesibius, engenheiro de Alexandria,
no século III a.C., cujo Hydraulis era antes uma demonstração dos princípios da hidráulica do
que um instrumento musical propriamente dito” (Sadie 1994:680). O mecanismo e as
tecnologias de um instrumento contemporâneo serão apresentados.
A entrevista que o organeiro alemão radicado na Argentina Juan Weinhold concedeu
para esta pesquisa esclarece explicações quanto à estrutura e ao funcionamento do órgão de
tubos ao longo da história, que variam, geralmente, conforme a época em que foram
construídos. Depoimentos acerca do ofício de um organeiro são apresentados, assim como
algo do cânone do repertório para órgão de tubos.

1.1. O instrumento: tubos, teclados, registros, acoplamentos, super e sub, trêmulo,


crescendo, combinações e transposições.

“O órgão consiste de uma ou mais fileiras de tubos que formam escalas cromáticas. O
ar sob pressão tem acesso aos tubos, que assim se fazem soar, através de válvulas operadas a
partir de um ou mais teclados manuais e, geralmente, um teclado pedal. A maioria dos órgãos
tem vários registros que, quando acionados, permitem que uma ou mais fileiras de tubos
sejam usadas” (Sadie 1994:679).

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Fig. 1 – Órgão de Flentrop (1967), no Queen Elizabeth Hall, Londres.

O órgão da ilustração acima é um instrumento relativamente pequeno, com dois


teclados manuais e um pedal - uma consola que apresenta a mesma configuração do órgão
Hammond. Nota-se que neste órgão de tubos há três fileiras de puxadores de registros,

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localizados ao lado dos teclados manuais para que sejam facilmente manuseados pelo
organista: uma com sete, outra com seis e outra com três registros, correspondendo,
certamente, a cada um dos teclados. Cada teclado controla uma certa quantidade de registros.
Os registros são “no órgão e no cravo, os diversos timbres, alturas e configurações
sonoras à disposição do executante e, por extensão, os dispositivos mecânicos utilizados para
controlá-los”. (Sadie 1994:773). A produção do som deste instrumento de sopro é algo que se
dá com ar comprimido – o executante não é responsável pela manipulação dos foles que
fornecem o ar, como num acordeom ou harmônio (pequeno órgão de palheta). Sendo assim, o
organista não tem nenhum controle digital da intensidade do som produzido, ou seja, o som
será o mesmo se a tecla for tocada com a maior força ou a menor intensidade possível. A
dinâmica do som do órgão de tubos é feita através da soma dos registros: quanto mais
registros estão acionados, mais tubos soarão, mais som há. Por exemplo, se toco uma nota de
um determinado teclado e dois registros deste mesmo teclado estão acionados, soarão
simultaneamente os dois tubos respectivos à nota tocada destas duas fileiras de tubos até
quando a tecla deixar de ser pressionada – enquanto há ar passando pelos tubos eles
permanecem soando. Caso toque um acorde com quatro notas enquanto sete registros estão
acionados, soarão 28 tubos simultaneamente. O princípio básico da manipulação e do
“gigantismo” do som do órgão de tubos é este – serão esclarecidas ainda outras características
relacionadas a isso.
Um órgão de tubos de quatro registros, por exemplo, tem, a priori, 15 combinações –
sem contar a combinação na qual nenhum registro está acionado - ou seja, 15 intensidades e
coloridos sonoros diferentes (apenas o 1 o registro, apenas o 2o registro, apenas o 3o, apenas o
4o, a combinação entre 1o 2o 3o e 4o, a combinação entre o 1o e 2o , entre 1o e 3o; 1o e 4o; 1o, 2o e
3o; 1o, 2o e 4o; 1o, 3o e 4o; 2o e 3o; 2o e 4o; 2o, 3o e 4o e, finalmente, 3o e 4o registros). Quanto maior
a quantidade de registros, maior a variedade de sons e intensidades que podem ser produzidos
ao órgão.
Segundo o organeiro Juan Weinhold, “basicamente, os tubos de órgão são de duas
categorias, labiais e lingüetas – que são diferentes, funcionam com princípios diferentes. Os
tubos labiais são como flautas, podem ser abertos ou tapados em cima” (Weinhold 2015) e se
dividem, basicamente, em três famílias com sonoridades diferentes.
Os tubos dos registros de Flauta têm o maior diâmetro dentre os tubos labiais - e
podem ser abertos (Flautas) ou tapados (Bordões). Essa propriedade resulta em um “som mais

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redondo, sem muitos harmônicos9. Tem poucos harmônicos e muita [presença da nota]
fundamental” (Weinhold 2015).
Os tubos labiais de diâmetro médio produzem uma sonoridade conhecida como
Principal, que, diferente dos outros registros, não imitam som de instrumento nenhum, são o
típico som do órgão de tubos, “é a coluna vertebral do som do órgão” (Weinhold 2015).
Os tubos labiais de diâmetro mais estreito têm como característica produzirem um
som semelhante ao som dos instrumentos de Arco – violoncelo, viola da gamba, violino, etc.
Por fim, os tubos de Lingüetas “têm uma palheta na forma de uma lingüeta fina, de
metal flexível” (Sadie 1994:680). Nestes tubos “o processo da produção do som é totalmente
diferente. Têm também um pé com um buraco, onde entra o ar, mas não há lábio inferior nem
lábio superior. O que vibra é uma lingüeta de bronze. (...) O som da lingüeta é enobrecido e
amplificado com um corpo que pode ser cônico ou cilíndrico. Isso amplifica, faz mais nobre e
fortifica o som da lingüeta. A lingüeta não pode não ter corpo (…) porque se não soaria como
um harmônio. Palhetas e lingüetas são a mesma coisa” (Weinhold 2015). Esta espécie de
tubos pode simular os sons do clarinete e do oboé, trompete ou trombone, ou mesmo o da voz
humana.
Os registros que compõem as diversas sonoridades do órgão de tubos não variam
somente pelos timbres que produzem – simulando outros instrumentos ou tendo o som
característico do órgão -, mas também pelas alturas das notas – um mesmo instrumento pode
contar com notas mais graves do que as de um contrabaixo ao mesmo tempo em que dispõe
de registros que soam mais agudos do que um pícolo, por exemplo. A altura indicada de um
registro corresponde ao comprimento do primeiro tubo da fileira e é grafada com um sinal de
apóstrofo (').
Oito pés tem o comprimento de “um tubo labial aberto de principal, num registro em
uníssono em dó” (Sadie 1994:680). Isto é, quando tocada a nota dó3 e um registro de 8' está
acionado, iremos escutar o próprio dó3.
Os tubos de um registro de 4' têm a metade do comprimento dos tubos de 8', portanto
soam uma oitava acima – ou seja, ao tocarmos o mesmo dó3 com um registro de 4' acionado,
escutaremos o dó4.

9 Os sons parciais que normalmente compõem a sonoridade de uma nota musical. Eles se fazem presentes pelo
fato de que tanto uma corda quanto uma coluna de ar têm a característica de vibrar não apenas como um todo,
mas também como duas metades, três terços, etc., simultaneamente. A força relativa de cada harmônico
proporciona a qualidade sonora (timbre) da nota tal como ouvida. (Sadie 1994:408)

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Partindo do mesmo exemplo, escutamos dó também quando ativados registros de 16',
2' e 1' – que soarão dó2, dó4 e dó5, respectivamente.
Os registros de mutação, ou misturas, “são famílias de tubos que reforçam os
harmônicos de um som fundamental 8'”, (Sagreras 2014) . Um exemplo: ao tocarmos,
novamente, o dó3 do teclado e acionarmos o registro Nasardo 2'2/3, escutaremos como
resultado a nota uma quinta acima, o sol4. Outro registro de mutação muito comum é a Terça
1'3/5, que soa a terça duas oitava acima da nota fundamental – no mesmo exemplo, soaria um
mi5.
Um exemplo de mutação composta – aqueles registros de mutação cujo som é
composto não apenas por um tubo a cada nota - é o registro francês Cornet, composto de
cinco, quatro ou três fileiras de tubos, contendo os harmônicos de 5 a e terça. Em Buenos
Aires, o órgão Mutin Cavaillé-Coll da Basílica “Santíssimo Sacramento, por exemplo, tem um
Plein Jeu, que é uma mistura francesa que tem sete fileiras, por cada tecla tem sete tubos.
(…) A composição das misturas é muito diferente em todos os órgãos. A fileira
geralmente, na parte grave, começa... por exemplo, no Plein Jeu do órgão de Santíssimo não
tem diferença, todas as notas têm sete tubos. E nesse caso o tubo mais grave é uma quinta 2' 2/3.
Em geral são quintas e oitavas, ou seja, o primeiro tubo é uma quinta 2' 2/3, depois vem uma
oitava 2', depois uma quinta 1'1/3, depois um 1' , depois uma quinta 2/3'', depois um 1/2'. (…)
Oitavas e quintas, geralmente” (Weinhold 2015).
Um dos recursos que possibilitam um maior “agigantamento” do som do órgão de
tubos é a função de acoplar registros. A soma dos timbres de um determinado som de um
órgão que disponha de tal mecanismo pode contar com os registros de diversos manuais.
Acoplador é um “mecanismo no cravo ou no órgão por meio do qual cordas ou tubos de
determinado manual são acionados a partir de um outro” (Sadie 1994:5). Isto é, a partir do
manual II, por exemplo, há a possibilidade de fazer soar também os tubos do manual III em
um órgão que possua o mecanismo de acoplamento III-II.

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Fig. 2 – Consola Laukhuff do órgão do Mosteiro de São Bento.

O órgão do Mosteiro de São Bento de São Paulo – alemão, da fábrica Walcker,


produzido no ano de 1954 - é um instrumento de “77 registros reais e cerca de 6000 tubos”
(Kerr 2001) controlados a partir de quatro teclados manuais e um pedal. Seu sistema de
acoplamentos inclui
I/P
II/P
III/P
IV/P,
(isto é, os registros de qualquer manual podem ser manipulados também pelo teclado pedal), e
II/I
III/I
IV/I;
III/II
IV/II;
IV/III.

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Nota-se uma “hierarquia” dentre os teclados manuais, visto que o I, responsável por
17 registros, pode também controlar os timbres do II, III e IV manuais. O II, controlador de
outros 15 registros, oferece a opção de acoplar os timbres dos III e IV manuais. O III manual
controla 15 registros e pode agregar os sons do IV manual - o teclado mais distante do
organista e que responde a outros 14 timbres do instrumento. Este manual não acopla registros
de nenhum dos outros.
Portanto, um som tutti10 do órgão só pode ser tocado no primeiro manual, comumente
chamado de grande órgão – dentre outras nomenclaturas, Great, no caso do órgão Hammond.
Este órgão Walcker do Mosteiro de São Bento, o maior e mais sonoro da cidade de
São Paulo, possui estas outras características:
Sub II/I
Sub III/I
Sub III/II;
Sub III;
Super I
Super II/I
Super III/I;
Super II
Super III/II;
Super III.
Esta propriedade com a qual os três primeiros manuais contam servem, mais uma vez,
para o maior aproveitamento simultâneo dos tubos do instrumento.
Por exemplo, ao se tocar uma melodia no primeiro manual com o registro
Weitprinzipal 8' apenas um tubo irá soar por vez. Quando acionado o Super I, o tubo desta
mesma fileira Weitprinzipal 8' correspondente à nota uma oitava acima da que estiver sendo
tocada irá soar simultaneamente, como se estivesse tocando a melodia oitavada ou acionasse o
“registro” Weitprinzipal 4'. As funções Super, portanto, acrescentam a oitava aguda de
qualquer nota tocada ao manual na qual a função estiver selecionada.
Sub, por outro lado, adiciona a nota uma oitava mais grave de cada um dos timbres
do manual. Este Walcker oferece a possibilidade do acoplamento destes super e sub, trazendo
para um determinado teclado, além do uníssono, as oitavas grave e aguda do registro de um

10 “(…) A palavra é usada para indicar um trecho para a orquestra inteira, ou até mesmo o som da orquestra
plena.” (Sadie 1994:971)

25
outro manual. Mais uma vez, nota-se o I como o principal manual, ao qual as funções de
super e sub dos II e III manuais podem ser acopladas.
Evidentemente que, ao tocar um dó3 e um dó4 com um registro de 8', ao acionar do
Super, escutaremos o dó3, dó4 e dó5 – não haverá, teoricamente, o super do dó3, existe
apenas um tubo de dó4 no registro, não há como duplicar o som que já está soando. A mesma
lógica mecânica da não-duplicação dos tubos vale para todos os acoplamentos, de registros ou
de super e sub.
Segundo o dicionário Grove, trêmulo é “um registro acessório do órgão que cria um
efeito vibratório. Os Tremolos foram usados desde cerca de 1500. Alguns baseiam-se numa
válvula de mola, que induz o ar a ser admitido em pulsações intermitentes; outros criam
blocos no fluxo de ar” (Sadie 1994:959). O órgão Walcker do Mosteiro de São Bento tem um
trêmulo em cada um dos II, III e IV manuais que, quando acionados, causam o efeito
tremulante no som do manual, independendo da quantidade de registros que estejam
acionados.
“Em 1712 (…) foi construído um órgão em Londres que merece especial atenção por
ser o primeiro instrumento que contêm um Swell”11 (Grove 1883:536). Sweel é o teclado
manual do órgão sobre o qual o organista controla a intensidade do som não só pelo número
de registros acionados. Os tubos correspondentes ao Swell estão dentro de uma caixa
expressiva, uma caixa com venezianas, que podem ser abertas e fechadas. Quando abertas, o
som dos tubos chega normalmente ao ouvinte. Com a caixa fechada, naturalmente, a
intensidade do som dos tubos é diminuida, e a sensação do timbre varia também. O gradual
abrir e fechar da caixa expressiva é controlado por um pedal – como um pedal de volume -,
localizado na frente da pedaleira, e pode ser visto na figura 1, neste capítulo.
O órgão Walcker do Mosteiro de São Bento tem expressivos o II e III manuais, e essa
expressão é controlada através dos dois respectivos “pedais de volume”, a frente da pedaleira.
A consola atual deste instrumento Walcker foi adquirida no ano de 1997 pelo
Mosteiro de São Bento, “já que a consola original da Walcker, a consola antiga, além dos
sinais de desgaste que já vinha apresentando pelo longo e constante uso, dispunha de um
número limitado de recursos” (Kerr 2001:236). Ainda que a nova consola continue com
alguma natural limitação quanto aos recursos que oferece, o instrumento dispõe atualmente de
outras tecnologias para a praticidade da performance do organista.

11 In 1712 the Jordans built and organ for the church at the opposite end of London Bridge to St. Saviour's,
namely St. Magnus, which deserves special notice as being the first instrument that contained a Swell.

26
Neste Walcker, um terceiro “pedal de volume” está ao lado dos pedais das caixas
expressivas. Chama-se pedal de crescendo e sua função é aumentar ou diminuir o som do
órgão a partir do acionamento ou desacionamento dos registros. Um painel digital acusa as 30
gradações do crescendo, que variam conforme manipulado o pedal - a posição 0 corresponde
à seleção manual dos registros, e a posição 30 ao som tutti do órgão. Conforme o número da
gradação vai aumentando, mais e mais registros vão sendo acionados, e vice-versa.
Esta consola disponibiliza de quatro opções diferentes de crescendo, que se
diferenciam pela ordem de entrada dos registros – em A e B, os sons mais “brilhantes”
(registros agudos) entram antes; em C e D, os timbres de “massa” (8') vêm primeiro. Evidente
que, se partirmos de uma registração muito sonora, o pedal de crescendo só irá fazer efeito em
alguma instância mais próxima do tutti (30) do que da seleção de poucos ou nenhum registro
(0).
Esta nova consola apresenta também outras três funções relativas à manipulação dos
diversos sons deste órgão de tubos Walcker. Há cinco combinações fixas – previamente
programadas pelo organeiro –, correspondentes a cinco dinâmicas graduais no instrumento, de
pianissimo a fortissimo (“pp, com volume sonoro muito reduzido e ff, com muita intensidade
sonora”, Sadie 1994:269), além do botão tutti, que seleciona praticamente todos os registros
do órgão.
O instrumento disponibiliza também outras 2376 possibilidades de combinações
livres, nas quais o organista memoriza as registrações que quiser. Estas funções de seleção de
combinações prévias a partir de botões que estão à mão do organista – sejam fixas ou livres –
representam um grande avanço para a performance organística, uma vez que, por exemplo, a
mudança dos timbres de uma seção para o trecho seguinte dentro de, por exemplo, um
movimento de alguma sonata para órgão não necessita mais do acionar e desacionar de vários
registros, mas apenas o apertar de um só botão. As registrações 12 de qualquer música são
guardadas agora em memória eletrônica e não mais dependem, necessariamente, de algum
ajudante do intérprete.
No Mosteiro de São Bento, o órgão, todos os domingos, acompanha o canto dos
monges beneditinos e, especialmente para esse tipo de ocasião, dispõe de cinco posições de
transpositores. Caso a melodia da partitura seguida pelo organista e pelos monges esteja em
uma altura desconfortável para o canto, a modulação requerida não exigirá esforço extra

12 Registração: na execução do órgão e do cravo, a seleção de diferentes alturas e timbres disponíveis. (Sadie
1994:772)

27
algum do organista, que pode modular meio tom ou um tom para o grave, ou meio tom ou um
tom para o agudo apenas selecionando um dos botões desta função.

1.2. O instrumento no decorrer da história: afinações, foles, trações, harmonização e


repertório.

“Por volta do século II já se ouvia o órgão romano em teatros, arenas e acampamentos


militares; um modelo que sobreviveu, datando do ano 228, de Aquincum, é muito pequeno,
com quatro fileiras de treze tubos labiais de bronze, uma de tubos abertos e três de tampados”
(Sadie 1994:680).
Do mesmo modo que este este órgão milenar apresenta uma disposição fônica muito
distinta ao do Mosteiro de São Bento, por exemplo, outras características do órgão de tubos
passaram por mudanças significativas. Segundo o organeiro Juan Weinhold, os tubos dos
“órgãos da Idade Média, séculos XII, XIII, (…) eram [produzidos] praticamente só de
chumbo e não havia maneira de selecionar o registro, sempre soavam todos juntos. (…) Os
tubos de madeira começaram a ser produzidos no século XV, XVI.” (Weinhold 2015).
Nestes tempos, a personalidade do som de cada registro ainda não era definida como
nos dias de hoje. “Nos órgãos da Idade Média, os primitivos, a largura era a mesma em todos
os tubos, não mudava de diâmetro. (…) Havia variação de altura porque o comprimento dos
tubos mudava, mas não variava o diâmetro, então o resultado disso é que o caráter de cada
registro, em realidade, ia mudando automaticamente. (…) Os tubos mais graves praticamente
eram como se fossem registros estreitos, têm um caráter mais de gamba. Os de altura média
eram quase como principal e os agudos soavam mais como flautas. Como não havia mudança
de medida de diâmetro, havia mudança do caráter do som” (Weinhold 2015).

1.2.1. Afinações

A afinação dos instrumentos, com o passar do tempo, se padronizou. Temperamento é


“a afinação de uma escala em que todos ou quase todos os intervalos resultam ligeiramente
imprecisos, porém sem que fiquem distorcidos. O temperamento igual (ou afinação
temperada), em que a 8a é dividida em 12 semitons uniformes, é o padrão no Ocidente hoje
em dia, exceto entre especialistas em música antiga” (Sadie 1994:938).

28
No trecho a seguir, Juan discorre acerca do temperamento, hoje e no passado.

O temperamento é um tema muito complicado, deu lugar a muitas variantes. Há o


temperamento mesotônico, pitagórico, há uma infinidade de temperamentos.
Werkemeister, Kerlberger, tem muitos temperamentos de órgão diferentes porque
antigamente, no século XVI, XVII, XVIII não se tocava em todas as tonalidades;
cada organeiro tinha sua receita para o temperamento. Porque algumas terças eram
puras, absolutamente, algumas quintas também, enfim, cada organeiro tinha seu
método de fazer o temperamento.
Hoje em dia, para poder tocar em todas as tonalidades, se usa o temperamento
igual, que é o normal. Salvo que seja um instrumento em que somente se toque
música antiga - então se pode apelar a um temperamento antigo, que pode ser
qualquer um, tem muitos, mais de quinze, vinte possibilidades. Tem muitas
maneiras, mas para tocar em qualquer tonalidade, qualquer obra de qualquer período
que soe tolerável para o ouvido humano usa-se o temperamento atual moderno, o
temperamento igual. O temperamento de Bach já permitia tocar o cravo em todas as
tonalidades, por isso ele compôs o “Cravo bem temperado”, dois volumes com doze
prelúdios e fugas cada um, em todas as doze tonalidades. Mas não era exatamente
igual ao temperamento igual atual. Nenhum intervalo, salvo as oitavas, é puro, mas
são toleráveis ao ouvido.
Por outro lado, nos temperamentos antigos havia alguns intervalos que eram
intoleráveis, por isso não se podia compôr em todas as tonalidades - não mais do que
três ou quatro sustenidos e não mais que três ou quatro bemóis. Com o
temperamento igual atual, que é razoável para um órgão de qualquer igreja - num
órgão moderno atual, séculos XX, XXI, onde se pode tocar tudo do Max Reger,
Bach, Praetorius, Buxtehude -, se pode tocar em qualquer tonalidade, e o resultado
vai ser não ótimo, porque nenhum intervalo pode ser puro, salvo as oitavas - mas as
quartas, quintas, terças, sextas se percebe que não são puras, são toleráveis.
Nos órgãos antigos sempre havia algum intervalo que era insuportável. Por exemplo,
a “quinta do lobo”. Não se podia utilizar. Do século XVIII para trás não se
compunham em todas as tonalidades. Se compunha nas tonalidades que não tinham
a “quinta do lobo”. Se ouve essa diferença porque em alguns temperamentos as
quintas e terças são muito puras, e realmente isso é muito bonito. Soa ligeiramente
diferente a afinação atual moderna, mas essa permite tocar tudo, em todas as
tonalidades de forma tolerável para o ouvido”. A “quinta do lobo” aparecia em
escalas nas quais as impurezas notoriamente tinham que ser distribuídas ao longo do
temperamento. (…) Como alguns intervalos eram muito puros (…) isso fazia com
que pelo menos um ou dois intervalos fossem muito impuros e soavam tão mal,
soavam ao ouvido o uivo de um lobo” (Weinhold 2015).

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Quanto ao padrão das afinações, Juan diz que “até o século XIX, segunda metade,
não havia um diapasão normalizado, [a afinação] era uma coisa muito variável. Inclusive cada
região tinha sua altura própria, não havia uma norma internacional, não existia. Na Alemanha
havia o que se chama tono de coro, e kamerton, que era outro. Um era mais agudo que outro,
eu não me lembro, mas tinha muita diferença. Às vezes até havia diapasões muito graves,
como 415Hz e às vezes mais agudo, como 460Hz, 470Hz. (…) Não havia uma norma
internacional. Isso começou a se regular recentemente. Na segunda metade do século XIV,
1870 e tantos, na França, em Paris, se estabeleceu o diapasão universal, uma convenção, um
acordo internacional de afinar as orquestras e os órgãos a 435Hz a 15o de temperatura. Depois,
isso foi mudando e no século XX começou a subir o diapasão a 440Hz, e agora as orquestras
estão afinando a 442Hz, mais ou menos” (Weinhold 2015).

1.2.2. Foles13

O órgão é um instrumento de sopro que é tocado através de um ou mais teclados. Este


princípio se manteve enquanto seu mecanismo de produção de ar e de contato entre os tubos e
as teclas foram, conforme o tempo passou, se desenvolvendo. Séculos atrás não havia ainda
um motor elétrico capaz de sustentar os foles do órgão de tubos, e essa função cabia aos
foleiros. “Os foles eram muito primitivos, eram foles em forma de cunha, não havia uma boa
regulação da pressão do ar, havia não menos do que quatro ou cinco pessoas que estivessem
acionando os foles para dá ar para o instrumento. Dependia de que os foleiros soubessem
controlar para, de forma intuitiva, dar um ar mais ou menos constante. Não havia uma
regulação automática, como atualmente. Mas estou falando da Idade Média, e isso foi
melhorando a partir do século XV, XVI” (Weinhold 2015).

1.2.3. Trações

O dicionário Grove define tração mecânica como “o tradicional mecanismo de teclas


do órgão, em que a tecla está diretamente conectada à válvula de dobradiça no someiro 14 por

13 Dispositivo destinado a fornecer o ar necessário ao funcionamento de certos instrumentos, como o órgão, o


harmônio, o acordeão e a gaita de foles. (Sadie 1994:335)
14 Caixas localizadas no interior do órgão em que estão assentes os pés dos tubos e que faz a distribuição de ar
por eles.

30
meio de um sistema de varetas finas e flexíveis, habitualmente de madeira” (Sadie 1994:957).
“Em um órgão mecânico muito grande as válvulas dos someiros têm de ser grandes, e ao
serem assim exigem um esforço dos dedos do organista que faz realmente da execução algo
muito desagradável e muito difícil” (Weinhold 2015).
O organeiro francês Aristid Cavaillé-Coll, nascido em 1811, arranjou uma solução
para este problema ao conceber “o primeiro órgão muito grande que ele fabricou, em 1840, na
igreja de Saint-Denis, em Paris. Ele havia feito um órgão muito grande, mas se deu conta de
que iria ser praticamente intocável pela dureza. Então aplicou pela primeira vez o invento que
havia feito o inglês Charles Barker, a máquina Barker. O órgão de Saint-Denis foi sua
primeira grande obra, resultou ser um órgão que podia ser tocado humanamente, porque se
não era um suplício, uma tortura de tocar, de dureza. (…) Quando se põe a máquina Barker já
há uma interrupção do mecanismo porque as teclas, na verdade, não atuam diretamente sobre
as válvulas dos someiros, mas em cada tecla há um fole intercalado que, quando você toca a
tecla, o fole é ativo e é ele quem faz a força. Então aí já não é puramente mecânico. A
máquina faz mais leve o toque das teclas e facilita a execução.
(…) O caso dos órgãos pneumáticos - a etmologia é grega, pneumos vem do grego,
significa ar. Comando por ar, vento. Quando começou a surgir a pneumática em países centro-
europeus, especialmente na Alemanha e na Áustria, permitiu-se fazer órgãos gigantescos que
se podiam tocar com muito pouco esforço. Mas o sistema pneumático, em geral, é muito
complexo de manter e, acima de tudo, a resposta é imprecisa e às vezes desparizada, o que é
ainda pior. Tem um atraso nas teclas, (…) e este atraso é irregular, não é constante. A
comunicação entre as teclas e os registros do órgão no caso pneumático já não são
mecanismos, varetas, mas são pequenos canos, de sete ou oito milímetros de diâmetro que, ao
invés de transmitir o movimento mecanicamente ao exterior do someiro, transmitem leves
correntes de ar ao interior dele. E no interior dos someiros se acionam folezinhos, ou
membranas, que necessariamente - como o movimento do ar nos canos de chumbo não é
instantâneo – quase indefectivelmente ocasionam atrasos desagradáveis. O atraso, se fosse
constante, igual em todas as notas, seria mais ou menos tolerável, ao fim das contas se
acostuma, mas se é irregular, é horrível. Algumas notas vêm mais rápidas que outras e isso
realmente é espantoso.
Esse sistema pneumático veio ao fim do século XIX, começo do século XX. Depois
não se fabricou mais. A eletricidade no começo do século XX ainda estava não muito

31
adiantada. À medida em que os anos foram passando, a partir dos anos 1930 por diante, se
apelou ao sistema elétrico-pneumático, então a vinculação da tecla com o someiro era
mediante contatos elétricos – que transmitem eletricidade de corrente contínua
instantaneamente. Não tem atraso” (Weinhold 2015).

1.2.4. O ofício de um organeiro e harmonização

Juan Weinhold desde 1995 vem regularmente para São Paulo para manter o órgão
Walcker do Mosteiro de São Bento e na época desta entrevista estava mantendo ao mesmo
tempo cerca de 40 órgãos na Argentina. A seguir ele descreve o seu ofício:

A organeria abarca muitas disciplinas diferentes. Tem que saber de eletricidade,


mecânica, aerodinâmica, de física, química. Então, bom… aconteceu que eu reunia
quase todas essas condições, além de ser músico. Mas não é imprescindível ser
organista para ser organeiro. Mas, bom, meu caso foi assim.
A função de um organeiro basicamente consiste… o elemental é manter os órgãos
periodicamente, estar atento a problemas pontuais mecânicos, elétricos e manter a
afinação. Dependendo do lugar não menos do que a cada cinco ou dez anos fazer
uma limpeza geral no instrumento, nos tubos principalmente. Especialmente em
vésperas de concerto ou de ocasiões solenes fazer a afinação.
Diferente é o tema quando se encara uma restauração ou reparação. Aí a coisa já é
mais complicada. Tem que estudar caso por caso, porque não existem dois órgãos
iguais, e o que pode ser bom para um pode não ser bom para outro. Então tem que
saber discernir, ou seja, separar o que é conveniente para um órgão e o que é
conveniente para outro e ter a sabedoria necessária para descriminar o que
corresponde e o que é o melhor para cada instrumento em particular. Não se pode
generalizar ou fanatisar, nem ideologizar o tema dos órgãos. Os órgãos são
instrumentos muito complexos e, mais que instrumentos, são quase uma instalação
fônica, cada um deles. Não é um violino, um violão, é toda uma instalação muito
complexa que abarca muitas disciplinas diferentes, que convém conhecer. E eu, por
sorte, conheço. (…) Nesse momento somos três trabalhando: Alejandro Galli, Pablo
Fernandés, e nós três temos conhecimento. Pablo e Ale são técnicos eletrônicos.
Esse é o trabalho do organeiro, basicamente manter e estar atento à afinação e aos
problemas pontuais que normalmente aparecem nos órgãos. (…) Tem que respeitar a
história e manter a essência de cada instrumento, e se necessário fazer alguma
modificação ou uma reforma, aplicar sempre o critério de qualquer restauração, que
é o critério de reversibilidade. Eu sempre respeito o critério de reversibilidade, ou

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seja, toda modificação que se faça tem que poder ser reversível, caso alguma pessoa
futuramente queira voltar ao que era originalmente, mas sempre respeitando o
essencial, que é a parte fônica do instrumento. Isso realmente creio que é muito
importante.
Na organeria lamentavelmente se presta muito à ideologização e ao fanatismo, que é
prejudicial quando se aplica de forma fanática. Tem que tomar uma regra fixa,
analisar caso por caso, não é o mesmo uma coisa que se faça para um órgão da que
se faz para outro, porque não existem dois órgãos iguais. Basicamente, no mínimo, o
organeiro tem que estar a serviço do órgão com certa frequência para reparar as
falhas pontuais – sempre vão haver pequenas coisas, especialmente a afinação e
algum defeito de reparação de rotina.
Existe um tratado de organeria monumental que escreveu um monge beneditinito
francês muito sábio, que se chama A Arte da Construção dos Órgãos, de Dom Bédos
[de Celles], no fim do século XVIII [1766-78]. É um tratado de organeria fantástico,
com textos e ilustrações maravilhosas. Dom Bédos dizia que um órgão, para ser
bom, não somente deve soar bem, mas também deve ser facilmente acessível em
todas as suas partes para reparação e afinação. Não basta que soe bem, tem que
também ser facilmente reparável e afinável, porque é uma loucura, por exemplo,
para fazer uma reparação pontual desarmar metade do órgão para chegar nessa
determinada peça, isso é um disparate. É muito importante essa questão do acesso”
(Weinhold 2015).

Ainda na instância prática relativa ao trabalho com os tubos deste instrumento que se
apresenta como uma “instalação fônica”, Juan Weinhold descreve uma tarefa importante para
os tubos do órgão estarem como uma unidade, a harmonização.
“Harmonizar significa... não é o mesmo que afinar. Afinar é colocar em tom os tubos
quando já estão soando bem. Harmonizar é fazer com que o tubo cante bem, ou seja, que o
ataque seja correto. Harmonizar um registro é fazer com que todos os tubos sejam iguais, que
não haja um mais forte, outro mais débil, que oitave... Que todos sejam como um colar de
pérolas, ou seja, bem igualzinho um ao outro, que só mude a altura, como um coro, que não
tenha um que cante forte. Tudo tem que ser igual. Harmonizar é uma arte, bastante
complicado, afinar é mais fácil. Harmonizar requer muito do bom gosto do organeiro e da arte
de saber como tocar os tubos para que o som não venha tarde, não venha muito rápido, não dê
a oitava ou a quinta, que cante corretamente. Todo o registro harmonizado não é o mesmo que
um registro afinado. Harmonizar significa entonar, ou seja, fazer com que todo o registro seja
igual, ao longo de todo o teclado” (Weinhold 2015).

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Neste ofício “se modifica basicamente o diâmetro do buraco inferior, dos pés dos
tubos, para que o ar seja nem muito nem pouco, seja justo. E também, às vezes, tem que
modificar a posição do lábio superior e do lábio inferior de cada tubo. (...) Isso é harmonizar,
fazer com que todos os tubos cantem corretamente, nem venha o som tarde, nem logo, nem
oitaveie. Isso é bastante difícil às vezes. Especialmente, os mais dificultosos são os [registros]
estreitos, não são tão críticos os principais, flautas e tapados. Os mais críticos são os estreitos
e também muito especialmente as lingüetas. Às vezes é muito difícil harmonizar corretamente
um registro de lingüeta” (Weinhold 2015).

1.2.5. Repertório

O órgão de tubos é um instrumento presente há muitos anos na história da música


ocidental e é especificamente oriundo das tradições europeias. Conseqüentemente, seu
repertório abrange diversas épocas e estilos - ao mesmo tempo em que muitos compositores
tiveram sua atividade musical diretamente vinculada ao órgão.

Fig. 3 – Alguns músicos relacionados ao órgão ao longo da história.

34
Fig. 3 – Alguns músicos relacionados ao órgão ao longo da história.

A figura acima evidencia uma grande contingência de nomes alemães e franceses


relacionados ao instrumento nestes últimos séculos, portanto este sub-capítulo terá a prática
organística dessas duas nações como enfoque, cada uma em seu período mais relevante: os
órgãos e a música do alemão Johann Sebastian Bach e os instrumentos românticos franceses
do construtor Cavaillé-Coll.

1.2.5.1. Bach, “o apogeu de uma era”

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“O órgão alemão (...) a partir do século XVI é caracterizado pelo maior número de
teclados com a presença de todos os grupos de registros, inclusive no pedal, pela ampliação da
pedaleira e de uma grande evolução tímbrica em busca de nuances e variedades sonoras”
(Sadie 1994:682). Segundo o biógrafo Karl Geiringer, “durante a segunda metade do século
XVII, a Alemanha assumiu a liderança incontestada no campo da música de órgão. Isso foi
devido em parte à propensão alemã para o estilo polifônico e, também em parte, à necessidade
de música de órgão independente no serviço religioso luterano, o qual excedia largamente as
exigências feitas ao instrumento nas igrejas católicas ou calvinistas. Entre os grandes
compositores no norte alemão que exerceram uma influência direta sobre Johann Sebastian
Bach estavam Mathias Weckmann (1619-74) e Jan Adams Reinken (1623-1722) em
Hamburgo, Dietrich Buxtehude (1637-1707) em Lübeck, e Georg Böhm (1661-1733) em
Lüneberg. Na Alemanha central residiam Johann Kuhnau (1660-1722), predecessor de Bach
como Kantor15 de Santo Tomás em Leipzig, e Johann Pachelbel (1653-1706), com quem o
irmão mais velho e professor de Sebastian estudou. Pachelbel, que desempenhou funções em
Viena, Nuremberg, Eisenach e Erfurt, formou assim um elo entre a Alemanha meridional, sob
influência italiana, e a área ocupada pelos músicos Bach” (Geiringer 1985:125)
A figura de Johann Sebastian Bach, compositor e organista alemão nascido em
Eisenach no ano de 1685, é, indiscutivelmente, um grande marco na história da música
ocidental. Oriundo de uma família de músicos, numa época em que a produção criativa dos
“artesãos da música” estava na maior parte ligada a fatores externos - ditados por seus
empregadores e locais de trabalho -, a música de Bach esteve intimamente relacionada à igreja
e, consequentemente, ao órgão. “Como um objetivo importante da arte de Bach era a
exaltação do Senhor, o órgão oferecia-lhe o modo mais direto de alcançar essa meta, sem a
cooperação de outros músicos. A maioria das 250 obras, aproximadamente, que escreveu para
órgão destinava-se a fins litúrgicos” (Geiringer 1985:214).
As obras de Bach para órgão dividem-se em dois grupos principais: as livremente
inventadas e as baseadas num coral, hino da congregação na igreja luterana, cujo “significado

15 Termo alemão que designa o diretor de música em uma igreja luterana e também, geralmente, o principal
responsável pelo ensino de música em um estabelecimento educacional anexo à igreja. A partir da Reforma até
meados do século XVIII, o cargo de Kantor, numa cidade do porte de Hamburgo ou Leipzig (onde Bach foi
Kantor da Thomaskirche e sua escola, de 1723 até sua morte), era dos mais prestigiados. Além de se ocupar da
composição e direção da música para o serviço religioso, suas obrigações normalmente incluíam ensaiar o coro,
ensinar prática e teoria musical, bem como outros assunstos, participando também da música municipal sacra e
secular. (Sadie, 1994:487)

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básico para as novas formas de culto foi reconhecido pelo próprio Lutero. Ele percebeu que o
coral habilitava a congregação a participar ativamente no serviço da igreja e que, além disso,
podia ser usado para devoções familiares” (Geiringer 1985:117).
Dentre as mais de 170 peças contabilizadas pelo catálogo BWV 16 escritas para órgão
baseadas sobre um coral, encontram-se partitas corais, fantasias corais e prelúdios corais, que
são uma “pequena composição para órgão, sobre uma estrofe coral, para servir de introdução
ao canto da congregação. Foi desenvolvido por compositores do norte da Alemanha do século
XVII, especialmente Buxtehude, e pode ser admirado em sua melhor forma no Orgelbüchlein
(Pequeno livro de órgão)” (Sadie, 1994:222).
Esta coleção de 45 prelúdios corais para órgão é um trabalho ao qual Geiringer se
refere como “uma das mais importantes obras no campo da música de órgão” e originalmente
inclui arranjos para 4 hinos para o Advento, 13 para o Natal e Ano Novo, 13 para a Semana
Santa e a Páscoa, e 15 para outros eventos do ano eclesiástico. Na capa desta compilação de
corais que fôra escrita pelo músico depois de compor numerosa quantidade de corais
separados, Bach assinala “PEQUENO LIVRO DE ÓRGÃO no qual o estudante de órgão é
instruído sobre como desenvolver de diversas maneiras um coral e, ao mesmo tempo, adquirir
experiência no uso do pedal, o qual, em cada um desses corais, é tratado como inteiramente
obbligato” (Geiringer 1985:222). A saudação escrita em seguida evidencia o contexto no qual
estas peças organísticas estão inseridas na história do órgão: “Para a Glória de Deus nas
Alturas e a instrução dos concidadãos, por Johann Sebastian Bach pro tempore regente de Sua
Alteza, o Príncipe de Anhalt-Cöthen” (Geiringer 1985:222).
Ich ruf' zu dir, Herr Jesu Christ 17 é o coral número 40 da coleção. A única indicação
que Bach prescreve para a execução dessa peça quanto à disposição organística é “a 2 Clav. e
Pedale”, o que sugere a melodia do coral (cantus firmus) em um manual e o
acompanhamento, em outro. Essa composição em três partes tem a melodia com figuras de
semínima para ser “cantada” na mão direita, um contraponto em semicolcheias para a mão
esquerda (agrupadas de 4 em 4, segundo indicação do próprio Bach) e um acompanhamento
pedal em colcheias, que traz os baixos da harmonia.
Por um outro lado, o prelúdio coral número 27, Christ lag in Todesbanden, foi
composto para ser tocado em apenas um manual e pedal. É um contraponto em quatro partes
16 Abreviatura de Bach-Werke-Verzeichnis; os números que se seguem a BWV identificam as obras de acordo
com o catálogo temático da música de J.S. Bach estabelecido por Wolfgang Schmieder em 1950. (Sadie
1994:150)
17 Interpretação do organista Ton Koopman: https://www.youtube.com/watch?v=4etbY3TXnlc

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desenvolvido basicamente por figuras de colcheia e semicolcheia nas três vozes inferiores
(duas manuais e pedal) e por semínimas na voz superior, a mais aguda – o soprano –, que tem
a linha do coral. As notas longas no soprano garantem a distinção da melodia litúrgica por
parte do ouvinte.
O repertório das obras organísticas escritas por Bach que fogem ao caráter litúrgico
inclui transcrições para órgão de concertos para orquestra de antigos mestres, fugas, tocatas,
fantasias, fantasias e fugas e vários prelúdios e fugas. Este último gênero, muito comum aos
compositores do período, tem sua concepção na Áustria: “na modesta tocata em três partes
dos compositores austríacos, a seção improvisadora final degenerou e acabou por desaparecer
completamente. Ao mesmo tempo, a conexão entre a seção improvisadora inicial e a seção
fugal central foi inteiramente cortada. A primeira terminava com uma cadência perfeita, a
segunda começava com um novo tema, sem qualquer relação com as ideias da primeira seção.
Assim, por volta de 1700, surgiu o novo par instrumental que não tardaria em ser conhecido
como “Prelúdio e Fuga” (Geiringer 1985:127). Ainda que o autor aponte que o prelúdio e a
fuga originalmente não estabeleciam qualquer relação de ideias musicais entre si, ouve-se
claramente uma conexão temática entre as partes de muitas das composições de Bach neste
gênero. Um exemplo é o Prelúdio e Fuga em sol menor BWV 535 18, no qual as quatro
primeiras notas do sujeito da fuga já foram anunciadas pelo pedal do início do prelúdio.
As Sonatas BWV 525-530 foram escritas “à 2 Clav. e Pedal” como uma adaptação
para dois teclados e pedal da trio-sonata barroca, “uma sonata para dois instrumentos
melódicos e contínuo – que foi a forma instrumental principal do período barroco, cuja
instrumentacão mais comum era para dois violinos e contínuo” (Sadie 1994:887). A indicação
instrumental destas obras que tiveram por finalidade instruir seu filho mais velho é ambígua,
visto que podem ser tocadas ao órgão, mas também em um cravo ou clavicórdio com
pedaleira.
Outras obras para órgão de Johann Sebastian Bach valem a citação. A Passacaglia em
dó menor BWV 58219 - uma coleção de 20 variações sobre um baixo ostinato de oito
compassos seguida por uma fuga – e a Tocata em ré menor BWV 565, uma das mais famosas
obras de Bach para este instrumento, que finaliza com uma fuga cujo tema “parece ter sido
inspirado pela técnica violinística de tocar em rápida alternação duas cordas vizinhas - um

18 Interpretação do organista Kevin Bowyer: https://www.youtube.com/watch?v=oMSAEQEKWJs


19 Interpretação do organista Karl Richter: https://www.youtube.com/watch?v=_W4PJUOeVYw

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recurso que Bach empregou frequentemente em sua música para instrumento de teclado”
(Geiringer 1985:219).
O equipamento mecânico dos instrumentos deste contexto histórico ao qual Bach
pertenceu “era simples e o organista podia influenciar diretamente a criação do som. Em certa
medida, o toque de seus dedos controlava a qualidade tonal e o fraseado cuidadoso era
facilitado. Assim, o órgão de Bach era um instrumento íntimo e altamente receptivo que se
comparava favoravelmente com os superdesenvolvidos produtos eletropneumáticos de um
período ulterior” (Geiringer 1985:214).
Johann Sebastian Bach morreu em 1750, data estabelecida como o término do
período barroco em música. Matías Sagreras, organista titular da Basílica Santíssimo
Sacramento de Buenos Aires, Argentina, afirma que “a partir deste momento o órgão começou
a sofrer os sinais de uma notória crise. A nova linguagem do classicismo requeria outros tipos
de instrumento, que satisfizessem novas inquietudes, obrigando o órgão a uma nova busca de
sua própria forma de ser; os gostos do homem romântico corriam por outros campos”
(Sagreras 2014:11).

1.2.5.2. Cavaillé-Coll e a música sinfônica francesa para órgão

“O auge da orquestra sinfônica teve especial influência na concepção do órgão do


século XIX, convencendo-se que o organista é uma espécie de homem-orquestra. Deste modo,
o órgão adota um novo rumo em sua concepção sonora, estruturando-se em um instrumento
que imita os grupos sonoros orquestrais” (Sagreras 2014:11).
Paris, França, sediava a fábrica de Aristide Cavaillé-Coll, organeiro nascido em
Montpellier, no ano de 1811, em uma família de construtores de órgãos. Em uma carta de
1846 – seis anos depois de Cavaillé-Coll ter vencido o concurso para a construção do órgão
da igreja de Saint-Denis e, assim, ter consolidado o início de sua carreira –, Aristide afirma
que “dar aos diferentes registros do órgão o timbre e caráter dos instrumentos de orquestra dos
quais levam o nome é tudo o que desejo” (Sagreras 2014:21).
Atraidos pela nova concepção sonora do órgão de tubos – que, aos poucos ia
chegando também às salas de concerto e, assim, deixando de ser estritamente um instrumento
eclesiástico - compositores como César Franck (1822-1890) e Charles-Marie Widor (1844-
1937) desenvolveram grande parte de sua obra musical numa primeira geração destes

39
instrumentos. No ano de 1863, Franck, então organista no órgão Cavaillé-Coll da igreja Saint-
Clotilde, compôs sua “Grand Piece Symphonique”20, a primeira de muitas obras concebidas
durante as próximas décadas para o órgão sinfônico, nas quais os compositores passaram a
indicar as registrações em cada seção da música. Widor, por sua vez, compôs dez sinfonias
para órgão dentre os anos de 1872 e 1900, obras que não seguem a forma da sinfonia de
então, mas variam em extensão, tendo de quatro a sete movimentos. Sua “Sinfonia No.5 para
órgão em fá menor, Op.42 No.1”, composição de 1879, foi apresentada ao público no órgão
Cavaillé-Coll do Palácio do Trocadéro no dia 19 de outubro deste mesmo ano, quando Widor
realizou o primeiro concerto de órgão na França. Essa sinfonia em cinco movimentos abre
com um Allegretto vivace, um tema com variações, e termina com uma Tocata21, em fá maior
– peça que entrou para o cânone do repertório organístico.
Dentre as inovações que Aristide Cavaillé-Coll introduziu ao órgão se encontram: “a
aplicação da alavanca pneumática Baker aos acoplamentos de teclado, como elemento
auxiliar nas transmissões compridas ou difíceis da tecla ao tubo;
a invenção dos pédales de combinaison, que permitiram mudar instantaneamente de planos
sonoros, sem intervenção das mãos do executante, multiplicando esses planos, até então
representado só pelo número de teclados [do órgão] – em cada um dos quais o organista tem
determinados registros colocados e, portanto, determinada sonoridade;
a utilização de pressões de ar variadas para os tubos graves e os agudos, em instrumentos
médios e grandes;
o grande aperfeiçoamento da caixa expressiva, o que permitiu a obtenção de crescendos e
decrescendos, além de duplicar, ao menos, a intensidade de todos os planos sonoros;
a invenção da família de flautas harmônicas e as flautas octaviantes, as quais, junto ao
aperfeiçoamento das qualidades da família das violas e dos registros de linguetas (Trompette,
Hautbois e Clarinette, principalmente) entregaram timbres e sonoridades apropriadas para
uma concepção romântica do uso do órgão e, em alguns casos excepcionais, o uso do
harmônico de sétima, independentes, assim como o uso de terças e quintas nos registros
graves, nos grandes instrumentos, além de, naturalmente, das 5 as (2'2/3), 3as (11/3) e 8as agudas
(2') tradicionais no órgão” (Sagreras 2014:17).
Em 1898, Charles Mutin, um discípulo de Aristide, assume a fábrica e dá início assim
à segunda geração de órgãos Cavaillé-Coll, que conta com algumas diferenças, sobretudo
20 Interpretação do organista Bert van Stam: https://www.youtube.com/watch?v=sAMz_R1faQ0
21 Interpretação do organista argentino Matías Sagreras: https://www.youtube.com/watch?v=UoFKcmFQaq4

40
referentes à parte fônica do instrumento. Registros de lingüeta como Trompete Harmonique,
Clairon ou Bombarde soam levemente distintos nos órgãos desta nova geração. Estes novos
órgãos contam também com uma pedaleira mais extensa, com 32 notas (até o sol) e caixas
expressivas separadas para os teclados positivo e recitativo. Charles Mutin idealizou também
o órgão de salão, um tipo de órgão adequado para ser instalado em mansões, palácios e
residências – construiu 150 exemplares deste em quinze anos.
Dentre os músicos franceses desta geração, Louis Vierne (1870-1937) foi um
compositor cuja inspiração também esteve intimamente vinculada aos órgãos Cavaillé-Coll.
Foi aluno de Franck e Widor e trabalhou como organista assistente deste na igreja Saint-
Sulpice, entre 1892 e 1900, e como organista titular do órgão da Catedral de Notre-Dame,
desde 1900 até sua morte. Dentre 1899 e 1930 escreveu seis sinfonias para órgão sendo a
segunda, escrita entre 1902 e 1903 e dedicada a Charles Mutin, sua primeira grande obra
pensada para o Cavaillé-Coll de Notre-Dame. Algumas de suas interpretações e
improvisações22 ficaram registradas em discos, que logo foram transcritas por um aluno, o
organista e compositor Maurice Duruflé.
1930 é o ano em que aparece o órgão neo-clássico na França por meio do construtor
espanhol Víctor González. Este período se caracteriza pela decadência da qualidade dos
instrumentos, uma época de transição entre o trabalho ainda semi-artesanal e um tipo de
empresa similar às que produzem carros ou outros tipos de produtos em série.
Charles Mutin morreu em 1931, três anos antes de, no novo continente, Laurens
Hammond inventar um outro tipo de órgão e estabelecer também sua fábrica de instrumentos,
agitando o mercado mundial e, assim como Cavaillé-Coll, influenciando gerações de músicos
pelo instrumento que fabricara.

22 Gravação original de Vierne ao órgão, 1929: https://www.youtube.com/watch?v=MZTVqUfr4kM

41
CAPÍTULO 2:
ÓRGÃO HAMMOND

2.1. Origem

O órgão Hammond é um instrumento musical concebido em 1934 nos EUA pela


companhia The Hammond Clock Company. O fato de uma empresa especializada na
construção de relógios elétricos ter inventado o primeiro órgão elétrico bem sucedido da
história envolve um contexto, e alguns pontos deste contexto serão esclarecidos durante o
capítulo.
No princípio do século XX o cinema era uma novidade, filmes mudos começaram a
ser produzidos, o que se estendeu até meados da década de 1920. Neste momento, o órgão de
tubos passa também a estar presente em grandes teatros e o nome de Wurlitzer surge como um
marco na história americana do órgão de teatro. Segundo a professora do Instituto de Artes da
UNESP Dorotéa Kerr, na última edição do programa 'O som do órgão: da catedral ao teatro',
transmitido em 2013 pela Rádio Cultura FM, “em verdade, quem inventou o órgão Wurlitzer
não foi ninguém da fábrica Wurlitzer, foi Robert Hope-Jones, um inventor inglês, que morreu
em 1914. Ele concebeu essa ideia de criar um instrumento, um órgão, que fosse a 'orquestra
de um homem só', que servia para acompanhar filmes mudos. A música era então criada ali,
improvisada de acordo com o que se passava na tela, e esses órgãos foram adquiridos pelos
grandes teatros e pelas grandes cidades da época” (Cultura).
Esse deslocamento histórico do órgão de tubos promoveu também mudanças relativas
à sonoridade do instrumento. O órgão Wurlitzer, que “ficou conhecido como 'poderoso
Wurlitzer' (…) incorporava também tubos chamados diafônicos, que eram uma mistura de
tubos de flautados e de lingüeta, e que geravam um som bastante grave, de 16' a 32'. Esses
tubos eram feitos de madeira e tinham um amplo ressonador. A pressão alta [do ar nos tubos]
do órgão fazia com que seu som fosse muito forte e muito preciso. (...) Ele também tinha
efeitos de percussão, imitava tambores, podia fazer sons de galopes de cavalo, trovões. (…)
Os sons deviam ser claros, graves o suficiente para sacudir o teatro, versáteis, (…) sons de
todos os tipos, uma orquestra de um homem só” (Cultura). A professora afirma também que
“havia até escolas especializadas em ensinar como se acompanhar um filme mudo” e que “a
Tocata e Fuga em Ré Menor [composição de Johann Sebastian Bach] ficou [como] uma

42
marca do som do órgão no cinema. Podia tanto ser utilizada para causar medo, suspense,
como também para evidenciar algumas cenas mais solenes; ou então, para caracterizar bem o
personagem, a importância do personagem” (Cultura).
Conforme os filmes passaram a ser de fato uma produção audiovisual, órgãos de
muitos teatros foram abandonados e poucos se mantiveram em condições de uso. Segundo
Scott Faragher em The Hammond Organ – an introduction to the instrument and the players
who made if famous, “(…) contudo, os americanos sempre amaram a música para órgão, e
isto é evidente desde o início das gravações comerciais, que tradicionalmente venderam bem.
Enquanto os órgãos de tubos continuavam a ser construídos para igrejas e casas de concertos,
o órgão não era - exceto para os muito ricos - um instrumento para uso caseiro. E, ainda
assim, a música para órgão se manteve muito popular. Havia, portanto, um espaço no
mercado, o primeiro pré-requisito para qualquer sucesso comercial, que logo seria preenchido
pelo fabricante de relógios e inventor Laurens Hammond” (Faragher 2011:4)23.
Laurens Hammond nasceu em Evaston, Illinois, EUA, em 1895 e, aos catorze anos,
enquanto vivia um período com sua família na Europa, projetou uma transmissão automática
para carros, mas “descuidou de seguir a sugestão de sua mãe para que apresentasse o projeto
para os engenheiros da Renault Motor Company, em Paris” (Faragher 2011:4) 24. Alguns anos
mais tarde, em 1916, se graduou em engenharia mecânica na Cornell University e, depois de
servir a Força de Expedição Americana, na França, quando da primeira guerra mundial,
trabalhou por dois anos como principal engenheiro da Gray Motor Company, fabricante de
motores para veículos marinhos, em Detroit. Em 1920, Laurens inventou um relógio
silencioso de dar cordas (silent spring-driven clock), cuja bem-sucedida venda lhe garantiu
dinheiro o suficiente para deixar a Gray Motor e alugar um sótão em Nova York, onde, em
1921, desenvolveu um pequeno motor, o 60-cycle synchronous motor, que, anos depois, usou
na manufatura de relógios e órgãos elétricos. Em 1922, desenvolveu um óculos 3D – também
a partir deste motor - e nos anos seguintes ele continuou desenvolvendo invenções e obtendo
patentes. 1925 foi o ano em que Laurens Hammond formou, ao lado de E.F. Andrews, o

23 “But Americans had always loved organ music, and it had been available since the dawn of commercial
recording and had traditionally sold well. While pipe organs continued to be manufactured for churches and
concert halls, the organ was, except for the very rich, not an instrument for home use. And yet organ music
remained highly popular. There thus existed a vacuum in the marketplace, the first prerequisite for any
successful commercial enterprise, one which would soon be filled to an astonishing degree by enterprising
clockmaker and inventor Laurens Hammond”.
24 ”(…) but neglected to follow his mother's suggestion that he present the plan to the chief engineer of the
Renault Motor Company in Paris”.

43
embrião de sua empresa, a “Andrews-Hammond Laboratories” - que foi financiada pelo
fechamento da Andrews Radio Company.
Em 1928, Laurens convidou George Stevens - parceiro que se tornou o principal
engenheiro da futura empresa (posto que ocupou até 1959) – pra se juntar ao grupo de
profissionais que já tinha crescido com a chegada, em 1926, de Emory Penny e Forrest
Redmond. Após um contínuo trabalho de pesquisa em cima do synchronous motor, concebido
sete anos antes, Hammond inventou seu próprio relógio elétrico e fundou a Hammond Clock
Company em Evaston, sua cidade natal. De acordo com Faragher, “ele foi imediatamente
bem-sucedido com seus próprios relógios, vendendo literalmente milhões deles e começou a
autorizar o uso do seu motor patenteado para outras fábricas de relógio” (Faragher 2011:5) 25.
Todos os relógios da fábrica eram elétricos e tinham o ponteiro que marca os segundos. Além
disso, eram oferecidos com uma grande variedade de estilos e preços: relógios de mesa, de
parede, para catedrais, dentre outros modelos.
Depois de algum tempo, a empresa se transferiu para Chicago e, em 1929, enquanto
tudo ia bem para a companhia, a Grande Depressão – ou Crise de 1929, crise financeira
considerada como o pior e mais longo período de recessão econômica do século – começou a
abalar toda a economia do país e do mundo. Em primeira instância, a Hammond Clock
Company se manteve estável, até que a patente do synchronous motor de Laurens Hammond
se invalidou por conta da descoberta de um motor similar previamente concebido na
Alemanha. Neste ponto, a Hammond Clock Company não podia mais contar com o dinheiro
desta patente e as pessoas haviam parado de consumir relógios elétricos, incluindo os seus. Na
prática, a companhia parecia estar fora do mercado.
Em 1932 - ano em que mais de 150 fábricas de relógios elétricos faliram -,
preocupado em manter sua companhia, Hammond colocou no mercado um novo invento, a
Hammond Electric Bridge Table, uma mesa que embaralha e distribui cartas
automaticamente. A fabricação do novo produto se estendeu durante um ano inteiro e, ainda
que tenha rendido dinheiro o suficiente para manter a companhia em atividade por mais um
tempo, Hammond percebeu que esta invenção não seguraria a situação financeira para muito
além daquele período. Decidiu, então, que teria de surgir com alguma ideia nova ou, também,
fechar as portas.

25 “He was immediately successful with his own clocks, selling literally millions of them, and began licensing
the use of his patented motor to other clock manufacturers”.

44
Em 1933, o motor elétrico de Laurens Hammond, inventado doze anos antes, se
tornou a base para o desenvolvimento de seu gerador de sons tone generator. Segundo
Faragher, Laurens estava “apaixonado pela eletricidade e sabia que um motor elétrico poderia
transferir energia a um gerador, e que um gerador poderia produzir sons” (Faragher 2011:6) 26.
Warwick Kerr, técnico de eletrônica especializado em órgão Hammond que nos concedeu
uma entrevista, diz que “na verdade, o que Laurens Hammond inventou foi o geradorzinho de
roda dentada (tonewheel), um motor synchro e um captador. Disso saía um som, uma
frequência, tanto que um vizinho perguntou pro Laurens: “Nossa, que ruído é aquele que eu
ouvi?”. Ele falou: “Ah, eu inventei a flauta elétrica” (Kerr 2015). À época, havia outros
inventores traçando o mesmo caminho de Hammond; John Majeski Junior, proprietário da
revista Musical Trades, observa em passagem da publicação de maio de 1960 o seguinte:
“Com o advento da eletricidade, vários inventores demonstraram que sons musicais poderiam
ser reproduzidos através do controle de sinais de ondas elétricas ao invés de forças mecânicas
(coluna de ar do órgão de tubos, cordas vibrantes...)” (Faragher 2011:6)27.
Finalmente, após trabalhar mais profundamente na ideia de sua “flauta elétrica”,
Laurens concebeu o Órgão Hammond, e depois de uma demonstração do invento feita por seu
datilógrafo e organista Louise Benke, submeteu o instrumento à U.S. Patent and Trademark
Office28 no dia 19 de janeiro de 1934. Essa patente foi concedida no dia 24 de abril, em tempo
recorde, e o próprio governo americano considerou que a invenção de Hammond poderia
fornecer muitos empregos. Cerca de um ano depois, no dia 15 de abril de 1935, o instrumento
foi apresentado em Nova York na 'Industrial Arts Exposition' pelo organista da Catedral de
São Patrick Pietro Yon, e por lá permaneceu por um mês. Segundo o artigo compilado por
Charles Richard Lester chamado A Review of the 1937 Complaint filed with the Federal
Trade Commission by the Pipe Organ Manufacturers Association Against the Hammond
Organ Company, “o sucesso do órgão Hammond foi imediato pelo seu preço baixo, tamanho
compacto, instalação fácil e houve muita propaganda em revistas como Saturday Evening
Post, Good Housekeeping, Life e outras” (Lester). Em agosto, poucos meses depois de seu
lançamento, o instrumento já estava em 567 igrejas por todo o país.

26 “He'd been fascinated with electricity and knew that an electric motor could also power a generator, and that
a generator could produce sounds”.
27 “With the advent of eletricity, scores of inventors had demonstrated that musical sounds could be reproduced
by controlled electrical wavelenghts instead of mechanical force (organ pipe air column, vibrating strings either
struck, plucked, or bowed)”.
28 Agência ligada ao departamento de comércio do governo dos Estados Unidos que emite patentes a inventores
e empresas e registra marcas de produtos e propriedades intelectuais.

45
A novidade no mercado trouxe também desavenças, quando, no dia 2 de fevereiro de
1937, uma associação de fabricantes de órgão de tubos procurou a Federal Trade Comission29
para uma reclamação que questionava o direito de Hammond de chamar sua invenção de
órgão. A queixa explicitava que “o instrumento não é capaz de produzir toda a gama de sons
musicais” nem de produzir “a gama em harmônicos equivalente aos dos órgãos de tubos”
(Lester)30. No mês seguinte, dando continuidade ao processo, uma audição foi promovida na
Universidade de Chicago. Um órgão Hammond com caixas de som (as Hammond tone
cabinets), que valiam ao todo $2 640, desafiaram o órgão de $75 000 da capela da
universidade. As caixas de som foram colocadas atrás dos tubos do órgão e as consolas dos
dois instrumentos estavam escondidas para que os membros presentes não pudessem
visualmente dizer que instrumento estava tocando. Esta audiência, além de ter presente
funcionários da Hammond, advogados e empregados do governo norte-americano, contava
também com dois grupos de jurados - um consistia de quinze estudantes de música e, o outro,
de dez músicos conhecidos, dos quais seis eram significantes organistas da época.
Como resultado do teste, nenhum dos grupos conseguiu distinguir um instrumento do
outro e Laurens Hammond, por fim, ganhou o direito de chamar seu instrumento de órgão.

2.2. Mecânica e eletrônica, funcionamento, modelos

Ao longo destes mais de oitenta anos - desde 1935, quando lançou o modelo A de seu
novo órgão Hammond – a Hammond Clock Company – que, em 1937, passou a se chamar
Hammond Instrument Company e, a partir de 1953, Hammond Organ Company (cessando
sua fabricação de relógios elétricos) - produziu inúmeros modelos de órgão. Cada modelo
lançado apresentava suas novidades; às vezes um dispositivo para um novo som, outras vezes
um móvel diferente, dentre outras mudanças. De tempos em tempos, houve também variação
na maneira como seu som é gerado – em 2002, por exemplo, a Hammond-Suzuki relançou o
modelo B-3, com geradores de som digitais.
Neste sub-capítulo abordaremos a mecânica, eletrônica e o funcionamento dos órgãos
cujo gerador de som é aquele que Hammond desenvolveu baseado no Telharmonium31. Esse
gerador de som é o tonewheel. Ainda que cada modelo dentre os que trabalham através deste
29 Agência independente do governo dos Estados Unidos cuja principal missão é promover o direito ao
consumidor.
30 “The instrument is not capable of producing the entire range of musical tone colors” nor “a range in
harmonics equivalent to the range in harmonics of a pipe organ”.

46
princípio funcione da mesma maneira, alguns deles apresentam novidades significativas
quanto ao som que podem produzir e, por isso, serão esclarecidos mais especificamente. À
Leslie Speaker (caixa acústica inventada por Don Leslie), que acompanha a trajetória do
órgão Hammond de forma quase intrínseca desde os primeiros anos, também dedicaremos
atenção.
Warwick Kerr Junior, técnico de eletrônica que concedeu uma entrevista para este
trabalho, é nascido em São Paulo e seu “contato com o [órgão] Hammond acontece desde que
era criança” (Kerr 2015). Warwick apresentou este órgão como um instrumento
“eletromecânico eletrônico. Ele tem um gerador mecânico – que gera os sons -, mas o restante
é eletrônico” (Kerr 2015).

Fig. 4 – O gerador mecânico do órgão Hammond, tonewheel.

Este gerador mecânico, chamado tonewheel, é uma pequena roda de metal (“rodinha
dentada”) cujo diâmetro se assemelha ao de uma moeda. Por meio do motor síncrono32, o
tonewheel roda numa velocidade constante e, estando localizado junto à ponta de um pequeno
e comprido dispositivo magnético, gera um som. O órgão Hammond contêm 91 geradores de
som como este, cada um para uma nota diferente. Segundo Vail, “o número de marcações [na
circunferência das rodinhas, “dentes”] e a velocidade com que elas rodam determinam o tom
resultante” (Vail 2002:39)33. “Esse som sai por intermédio dos fios conectados aos manuais e
ao pedal. E esse é o princípio básico” (Kerr 2015).

31 Instrumento de teclado, eletromecânico, desenvolvido nos EUA por Thaddeus Cahill nos anos 1890. Usava o
princípio da roda eletromagnética para gerar sons. Foram construídos três modelos (1900, 1906, 1911). A
segunda versão, pesando quase 200 toneladas, foi usada para a transmissão de concertos de Nova York. A
terceira versão era ainda maior. Devido a seu fracasso comercial, não foi mais usado após 1914. (Sadie,
1994:938)
32 Pequeno motor inventado e utilizado por Laurens Hammond em seus relógios elétricos.
33 The number of notches in a wheel and the speed at which it spins determine the resulting pitch.

47
Para tocar os teclados, manuais e pedal, “você faz a registração, puxando os drawbars
ou usando os presets. Esse conjunto de registração passa pelos fios resistivos do manual – que
é uma coisa bem complexa (…) - e daí é que sai o som final. (…) Esse som final sai num
volume muito baixo, é milivolt. Ele passa por um transformador34, que vai amplificar essa
voltagem, pra daí dar entrada no pré-amplificador - onde você tem vibrato, percussão, os
efeitos sonoros. E daqui é que sai o sinal que é possível ser amplificado. Do pré-amplificador
vai para o amplificador, e do amplificador, para os falantes” (Kerr 2015).
Ainda que a geração dos sons e os componentes internos do órgão de tubos e do órgão
Hammond sejam demasiado díspares, o órgão Hammond modelo A - que foi fabricado de
junho de 1935 até outubro de 1938 - assemelha-se muito à consola de um órgão de tubos
tradicional – como lembra o cartaz de apresentação, o instrumento “é construído para ajustar-
se aos padrões estabelecidos do órgão de tubos” (Faragher 2011:16)35.
Além dos três teclados – um pedal e dois manuais –, o móvel conta com uma estante
de partituras, controladores do som – cinco grupo de drawbars e trêmulo - e também um
pedal de expressão.

Fig. 5 – Órgão Hammond Modelo A (1935).

Fig. 5 – Órgão Hammond Modelo A (1935)


Fig. 5 – Órgão Hammond Modelo A (1935)

34 Chamado matching transform - matching porque ele vai compatibilizar o baixo sinal e a baixa impedância do
som que sai dos manuais e do gerador, e vai passar para alta impedância e um sinal de maior intensidade.
35 Yet it is built to conform to established pipe-organ standards.

48
49
A pedaleira do órgão Hammond é uma adaptação de 25 notas da pedaleira padrão dos órgãos
de tubos. Sua tessitura vai do dó1 ao dó3, enquanto os de igreja costumam ter 7 notas a mais,
chegando ao sol3. De acordo com Alan Young36, “em 1933 e 1934, quando Laurens
Hammond estava planejando sua engenhoca na qual punha esperança de que se tornasse o
substituto do órgão de igreja, ele sabia muito pouco sobre órgãos de tubos. Para planejar o
novo modelo A, Laurens recolheu informações básicas para tomar suas decisões. Saiu
examinando algumas consolas de órgão de tubos em igrejas e descobriu que elas tinham uma
pedaleira côncava de 32 notas. Observou também que o verniz nas notas naturais [teclas
brancas] variava: as notas da primeira oitava estavam praticamente desgastadas, da segunda,
um pouco menos, e as notas da terceira oitava – a partir do 26 o pedal – estavam bem
envernizadas. A partir disso se indagou: Por que construir uma pedaleira com 32 notas se os
organistas estão usando principalmente a primeira e parte da segunda oitava?. Outra coisa
que ele se perguntou foi se a pedaleira poderia ser plana, ao invés de côncava. Decidiu que
seria plana. Mais tarde, nós aprendemos, quando começamos a fazer o modelo E - órgão de
concerto com pedaleira côncava de 32 notas - que a manufatura desta pedaleira custava o
dobro do preço da plana de 25 notas” (Vail 2002:51)37.
Existe uma diferença fundamental entre a formação do som do órgão de tubos e do
órgão Hammond: enquanto o órgão de tubos combina de diferentes formas seus registros para
a formação dos sons – como vimos, registros de variadas alturas e sonoridades –, o órgão
Hammond dispõe de “nove cores fundamentais do espectro sonoro” (Irwin 1952:V). As
“cores”, quando combinadas em diferentes níveis, podem simular o som de um violino,
trompete, etc. Cada “cor” corresponde a um harmônico e, para o melhor esclarecimento delas,
cabe aqui uma recapitulação do conceito. Segundo o dicionário Grove, os harmônicos são

36 Alan Young foi contratado por Laurens Hammond em 1946 e trabalhou como engenheiro, pesquisando e
desenvolvendo para a Hammond Organ Company por 30 anos.
37In 1933 and 1934, when Mr. Hammond was about to design this new gadget that he hoped would be accepted
as a church organ substitute, he actually knew very little about pipe organs. In order to design this new Model A,
he gathered basic information to make major decisions. He went out and examined a number of pipe organ
consoles in churches and found that they had 32-note concave pedalboards. He also observed that the varnish on
the natural pedals was in varying degrees of wear. It was practically worn off in the first octave, a little bit less in
the second octave, and the pedals in the third octave – that is, above pedal 25 – were hardly worn at all. From
that he determined, Why build a pedalboard with 32 pedals if organists are mainly only going to use the first
octave and some of the second octave?. The other thing he wondered was whether the pedalboard could be flat
instead of concave. He decided it could be flat. We later learned, when we started to make the model E concert
organ with the curved 32-note pedalboard, that manufacturing the concave pedalboard cost twice as much as the
flat 25-note pedalboard.

50
Os sons parciais que normalmente compõem a sonoridade de uma nota musical. Eles
se fazem presentes pelo fato de que tanto uma corda quanto uma coluna de ar têm a
característica de vibrar não apenas como um todo, mas também como duas metades,
três terços, etc., simultaneamente. A força relativa de cada harmônico proporciona a
qualidade sonora (timbre) da nota tal como ouvida. (Sadie 1994:408)

Cada “cor fundamental do espectro sonoro” que o órgão Hammond disponibiliza


corresponde a algum dos primeiros harmônicos que a série harmônica38 apresenta.
A formação dos diferentes sons no instrumento se dá pela combinação destes nove
harmônicos em diferentes níveis, e cada um deles é controlado através de um harmonic
drawbar, ou, simplesmente, drawbar.

Fig. 6 – Os controladores das “nove cores fundamentais do espectro sonoro”: os drawbars

Ao todo, nove drawbars são responsáveis pela formação do som. Cada um


corresponde a um harmônico da série harmônica ou a uma “cor fundamental do espectro
sonoro” - como ilustra Irwin. Cada drawbar pode estar presente em nove níveis: do 0 –
quando o harmônico está mudo – ao 8 - quando ele soa em sua máxima potência.
Irwin indica em seu dicionário uma forma de notar a “registração” 39 do Hammond, na
qual cada um dos nove algarismos na notação correspondem ao respectivo drawbar, e o
número indicado representa o nível em que cada um está acionado. Um exemplo: a
38 Série dos “sons parciais que normalmente compõem a sonoridade de uma nota musical”.
39 “Na execução do órgão e do cravo, a seleção de diferentes alturas e timbres disponíveis. O potencial musical
do órgão pode ser usado seletivamente por meio de registros independentes que, juntos, produzem a intensidade
e o colorido sonoros do instrumento. Cada um dos registros aciona um série de tubos, agrupados de forma a que
um ou mais tubos respondam a cada tecla em um teclado manual ou pedal” (GROVE). Segundo a definição, o
melhor termo a ser aplicado ao órgão Hammond seria harmonicização, já que seu som é formado a partir da
combinação de harmônicos, não de registros. Contudo, optamos pela utilização deste termo, agora sem as aspas.

51
registração do órgão Hammond no tutti40 pode ser representada como 88 8888 888. Do
mesmo modo, se cada drawbar está abaixado até a metade, o som será menos intenso e a
notação deste é 44 4444 444. O quadro abaixo indica a nota produzida por cada drawbar.

Fig. 7 – Cada drawbar e seus respectivos resultados sonoros.

A imagem apresenta o dó3 - o dó da escala central do piano - como nota fundamental,


que estará sendo tocada para exemplificar cada um dos nove sons. Além dele, faremos uso
também da notação apresentada por Irwin para o esclarecimento da função de cada drawbar.

40 “(…) A palavra é usada para indicar um trecho para a orquestra inteira, ou até mesmo o som da orquestra
plena” (Sadie 1994:971).

52
Comecemos pelos harmônicos “de base” (“foundation” no quadro). Ao tocarmos o
dó3, quando o terceiro drawbar está abaixado em qualquer nível (00 8000 000, 00 7000 000,
até 00 1000 000), ouviremos o próprio dó3, já que este drawbar controla o harmônico relativo
à nota fundamental, o qual é representado também por 8'. Ao experimentarmos 00 0800 000 –
somente o quarto drawbar acionado, 4' – tocando o mesmo dó3, ouviremos soar o dó4, já que
este controlador corresponde ao segundo harmônico da série harmônica. A registração 00
0080 000 indica que apenas o quinto drawbar está abaixado, portanto fará soar o sol4, nota
que corresponde aos 2'2/3. Acionando apenas o sexto drawbar (00 0008 000) escutaremos o
dó5, a nota duas oitavas acima, 2', da fundamental. Os harmônicos superiores, “brilhantes”
(“brilliance”), do órgão Hammond são o quinto, sexto e oitavo da série harmônica e
correspondem aos sétimo, oitavo e nono drawbars. Quando acionado apenas o sétimo
controlador, 00 0000 800, o órgão soará um mi5, a terça duas oitavas acima da fundamental
dó3. O oitavo drawbar (00 0000 080) corresponde à quinta duas oitavas acima da nota
fundamental, um sol5. O nono e último drawbar controla o harmônico que soa três oitavas
acima da nota fundamental, ou seja, um dó6. Os dois harmônicos “sub” são os que soam
abaixo da nota fundamental 8'. Ao tocarmos o dó3 e apenas ativarmos o primeiro drawbar (80
0000 000), ouviremos um dó2, já que esse harmônico 16' corresponde à fundamental uma
oitava abaixo. O harmônico correspondente ao segundo drawbar (08 0000 000) soará uma
quinta acima da fundamental, no caso um sol3. Segundo a lógica apresentada até agora, este
drawbar deveria estar logo depois do terceiro – aquele que controla o harmônico da nota
fundamental 8'. Contudo, esta parcial 5' 1/3, quando combinada com outros harmônicos, resulta
um som mais grave. Esta propriedade física é também usada em alguns órgãos de tubos que
não têm jogos de 32', por exemplo. Para alcançar essa sensação acústica, o organista combina
um registro 16' (nota fundamental uma oitava abaixo) com um 10' 2/3 (quinta logo abaixo da
fundamental 8').
O órgão Hammond tem quatro grupos de nove drawbars, de modo que o organista
pode trabalhar paralelamente com duas registrações para cada manual. Os grupos A e B são os
controladores do manual de cima enquanto os grupos C e D dos drawbars controlam as
registrações para o manual de baixo.
Localizado entre os quatro grupos de drawbars dos dois manuais está um pequeno
grupo de dois drawbars. Assim como acontece na maioria dos órgãos de tubos, a pedaleira
conta com menos opções de som, menos registros, do que os teclados manuais. Cada um

53
destes dois drawbars é responsável por controlar a saída e a entrada não de um harmônico na
pedaleira, mas de um conjunto deles. O primeiro, da esquerda, controla a entrada de um som
formado por dois harmônicos, o da nota fundamental oitava abaixo (16') e o harmônico da
quinta abaixo da nota fundamental (10'2/3). Essa combinação de harmônicos pré-concebida
resulta em um timbre “Principal” 40 de 16'. O primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto e
sexto harmônicos estão todos misturados em diferentes intensidades no som do segundo
drawbar do grupo da pedaleira, o que resulta num timbre “Principal” de 8'.
Estes são os princípios de funcionamento da manipulação dos drawbars e da formação
dos sons do órgão Hammond. Mais atenção será dada aos resultados sonoros em 2.4. deste
trabalho.
Os dois teclados manuais (61 note keyboards or manuals) do instrumento contam com
61 teclas cada, referentes à tessitura que vai do dó1 ao dó6. O manual de baixo (Lower
Manual) chama-se Great, e refere-se ao grande órgão, “expressão que designa o manual
maior e mais importante de um órgão de dois manuais” (Sadie 1994:384). No órgão
Hammond, os dois manuais têm a mesma quantidade de “registros” (aqui, harmônicos),
portanto nenhum é maior do que o outro – mesmo assim, o nome foi herdado pela tradição.
Outro nome originalmente utilizado no órgão de tubos é Swell, “um termo inglês que
designa um dispositivo para graduação do volume em instrumentos de teclado” (Sadie
1994:920). No órgão Hammond, este termo se refere ao manual de cima (Upper Manual), o
único “expressivo”. Assim como em órgãos de tubos, somente manuais expressivos é que
contam com o pedal de expressão (expression pedal), que na prática funciona como um pedal
que controla o volume do som daquele manual específico.
Ao lado esquerdo de cada teclado do órgão Hammond existe também uma outra oitava
- outras doze teclas (dó a si) - cujas cores estão invertidas, ou seja, as teclas brancas são pretas
e as pretas, brancas.

40 No vocabulário organístico, o registro principal “é a voz típica do órgão porque não imita nenhum outro
instrumento” (Sadie 1994:745).

54
Fig. 8 – As “combinações fixas” do órgão Hammond, chamadas Presets.

A função de cada tecla desta oitava de cores invertidas não é soar dó, ré ou mi, mas
cada uma delas ativa um som pré-programado pela fábrica, uma combinação de harmônicos
que resulta como o som de determinado instrumento.São os chamados presets, que
desempenham função semelhante a das combinações fixas dos órgãos de tubos. O organista
Hammond tem para o manual de cima, Swell, os seguintes sons pré-programados:

C Cancel
C# Stopped Flute
D Dulcian
D# French Horn
E Salicional
F Flutes 8 ft. and 4 ft.
F# Oboe Horn
G Swell Diapason
G# Trumpet
A Full Swell
A# Adjust Harmonic Drawbars for Group A
B Adjust Harmonic Drawbars for Group B

O manual debaixo, o Great, conta com os seguintes presets:

C Cancel
C# Cello

55
D Flute and string
D# Clarinet
E Diapason, Gamba 8ft. And Flute 4 ft.
F Great – No Reeds
F# Open Diapason
G Full Great
G# Tibia Clausa
A Full Great and 16 ft.
A# Adjust Harmonic Drawbars for Group C
B Adjust Harmonic Drawbars for Group D

Cada tecla deste conjunto funciona como um botão analógico de rádios antigos: ao
apertar um botão, o que já estava selecionado automaticamente sobe para sua posição inicial.
Nota-se que, das doze notas dos teclados invertidos, apenas nove correspondem a sons
pré-determinados, ou presets. Em cada um deles o dó apenas deixa o teclado mudo - sem
nenhuma tecla acionada, todas na posição inicial -, enquanto o lá# e o si selecionam um dos
dois grupos de drawbars de cada teclado – nos quais o organista combina os nove harmônicos
da forma como quiser. Nota-se também que, com exceção do lá#, os presets das teclas
sustenidos ou bemóis - nesse caso, as teclas brancas -, correspondem a timbres solistas. No
Swell eles são a flauta, trompa, oboé e trompete enquanto que no Great as teclas
correspondem a um violoncelo, clarinete, diapasão aberto e tibia clausa. Não existem presets
para a pedaleira, seu som é somente ajustável pela manipulação dos dois drawbars referentes
a ela.
Ainda que os sons dos presets sejam pré-programados, existe a possibilidade de
reprogramá-los, tarefa que requer um conhecimento técnico eletrônico para reorganizar a
fiação dentro do instrumento. Faragher diz que “antes de 1963, a prática de reestabelecer os
presets se tornou tão comum que foi considerada aceitável por Hammond. O organista Milt
Herth escreveu um artigo na revista Hammond Times intitulado 'Aquele antigo som do órgão
de teatro', em que diz: “Eu tenho constantemente experimentado com os drawbars do órgão,
desenvolvendo novos sons e, assim, os transferindo para os presets.” (Faragher 2002:38)41.
41 By 1963, the practice of rewiring the presets had become só common that it was considered acceptable to
Hammond to the extent that a man as significant as organist Milt Herth had written an article for the Hammond
Times, entitle “That Old Theatre Organ Sound”. Here Herth said: “I have constantly experimented with the
drawbars of the organ, developing new sounds and then transferring them to the presets. I also use the drawbars

56
O órgão Hammond Modelo A, de 1935, conta com apenas um dispositivo de alteração
de seu som, o tremulant (trêmulo). Os trêmulos “foram usados desde cerca de 1500” e é “um
registro acessório do órgão que cria um efeito vibratório” (Sadie 1994:959).
Para criar este efeito vibratório em seu órgão, Laurens Hammond desenvolveu um
dispositivo que fornece uma rápida e constante mudança no volume do som, causando assim
um resultado sonoro trêmulo. Este efeito – que é produzido por um resistor ligado ao motor
principal do instrumento - é ajustável através de um pequeno botão redondo, localizado à
esquerda do grupo A dos drawbars. O botão passa da posição 'desligado' para suas graduais
intensidades conforme manipulado em sentido horário até a outra extremidade. Segundo
Warwick Kerr, no Modelo A “você só variava a intensidade [do trêmulo], mas a velocidade e
a profundidade eram sempre as mesmas” (Kerr 2015). Quando ativado, o trêmulo
complementa o som dos três teclados simultaneamente, pedal e manuais.
O Modelo B, o segundo lançado pela Hammond, foi produzido de dezembro de 1936 a
novembro de 1942 e trouxe consigo uma novidade: o controlador de chorus (coral). Warwick
afirma que “o chorus é um outro gerador paralelo, menor, cujas rodinhas jogam a mesma
frequência um pouco desafinada” (Kerr 2015). O efeito causado pelo soar simultâneo de duas
frequências muito próximas é o de um batimento, uma vibração, um som “ondulante”. “No
órgão de tubos equivale a você usar [o registro] dulciana com voz celeste” (Kerr 2015). A
fileira de tubos dulciana, na analogia, é representada pelos tonewheels originais, enquanto as
rodinhas do gerador de som paralelo representam a voz celeste – que, assim como os tubos
deste registro, emitem notas numa frequência ligeiramente distinta. Essa sensação de
batimento acontece também em outras ocasiões do cotidiano musical, como ao se ouvir um
naipe vocal quase afinado ou quando um afinador de piano está trabalhando - aumentando ou
diminuindo a tensão de uma corda, até atingir o mesmo som da corda cuja afinação é a
referência -, por exemplo. O chorus é controlado através de um drawbar auxiliar, que se
localiza ao lado direito da consola, também em níveis distintos. Ainda que o efeito de trêmulo
do órgão A e de coral do modelo B sejam similares, há uma diferença essencial entre eles: o
trêmulo dos primeiros órgãos consistia basicamente numa rápida mudança de volume, em
contraste com o chorus do segundo modelo, que é causado pela pequena diferença das
frequências sonoras.

of the organ for current novelty effects and sounds.

57
O modelo B-2 do órgão Hammond foi produzido de dezembro de 1949 até dezembro
de 1954 e trouxe consigo uma outra novidade: três botões brancos e uma chave redonda
Vibrato and Chorus, que oferecem novas opções sonoras ao organista. No primeiro botão
selecionam-se duas opções de volume (normal e suave), que afeta os três teclados
simultaneamente.

Fig. 9 – A chave de Vibrato e Chorus do modelo B-2 e os controladores do efeito.

Através da chave redonda, o organista tem agora três opções de Vibrato (V1, V2, V3)
e outras três de Chorus (C1, C2 e C3), que se diferenciam basicamente pela intensidade deste
novo efeito tremulante que se soma ao som. “Vibrato é o vibrato mais forte, e o chorus é um
vibrato tipo coral, bem suave, você quase não percebe que é vibrato” (Kerr 2015). Os dois
outros botões brancos do modelo B-2 ligam ou desligam o efeito em cada um dos manuais.
Em janeiro de 1955, Laurens Hammond e sua equipe introduziram ao mercado o
órgão Hammond B-3, que foi produzido até 1974. Este novo modelo apresentou algumas
mudanças em relação ao modelo anterior B-2, sendo a mais significativa a possibilidade do
acréscimo do efeito de percussão (percussion) ao som. A percussão foi introduzida ao
instrumento “com a intenção de aumentar o número e a variedade de sons que o órgão
Hammond poderia reproduzir, especificamente sons percussivos similares aos da harpa,
xilofone, carrilhão de orquestra e marimba” (Faragher 2002:53)42.
Quatro botões brancos ao lado direito dos drawbars controlam o efeito da percussão,
que é exclusivo ao uso do grupo B de drawbars - tocado pelo manual Swell e selecionado pela
nota si dos presets. O primeiro botão (On/off) seleciona ligar ou desligar o efeito. Quando está
na posição 'ligado', o último drawbar (aquele que controla o harmônico mais agudo) não

42 It was introduced to the Hammond organ in 1955 and was intended to increase the number and variety of
sounds the Hammond organ could reproduce, specifically percussive sounds similar to those of the harp,
xylophone, chimes, orchestra bells and marimba.

58
funciona, pois é usado no sistema de operação da percussão – quando na posição 'off', o nono
drawbar volta a funcionar como os outros. O segundo botão (Soft/Normal) seleciona o
volume do efeito em relação às outras notas, deixando a percussão mais intensa (posição
'Normal') ou menos aparente em relação às notas sustentadas (posição 'Soft'). O organista
pode também determinar o decay do efeito, isso é, a sustentabilidade da percussão. A nota é
atacada e seu som desaparece mais rápido ou mais devagar, de acordo com as opções do
terceiro botão (Fast/Slow). O quarto botão seleciona o harmônico (Second/Third) que irá
percutir referente à nota fundamental. Se toco um dó3, a nota percutida será um dó4 (second,
segundo harmônico) ou um sol4 (third, terceiro harmônico).
“O efeito de percussão existe há muito tempo e tem suas raízes em registros
específicos de órgão de tubos. No caso de um registro destes, cada tecla é percussiva se o
registro está ativado. Este não é necessariamente o caso da percussão “touch-response” do
órgão Hammond (Faragher 2002:53)43. O princípio de funcionamento do efeito de percussão
do órgão Hammond permite que apenas uma nota por vez percuta. Em outras palavras, o
organista tem de tocar nonlegato44, liberando todo o teclado para ter a percussão na próxima
nota também. De outra maneira, as notas seguintes vão apenas soar o som dos drawbars e não
se escutará o efeito percussivo.

2.2.1. Caixa Leslie: “Voz de tubos do órgão elétrico”45

Fig. 10 – Cartaz da Leslie Speaker: “Pipe voice of the electric organ”

43 (…) percussion is a long-standing one and has its roots in specific pipe organ stops. In the case of the pipe
organ percussion stop, each key is percussive if the stop is activated. Such is not necessarily the case with
Hammond's “touch-response” percussion.
44 Não ligado, separar uma nota da outra.
45 ”Pipe voice of the electric organ”, referente à figura 9.

59
Em 1937, um cidadão chamado Donald James Leslie, nascido em Danville, Illinois, no
ano de 1911, adquiriu um órgão Hammond. “Eu comprei um órgão Hammond, número de
série 58, acreditando que soaria como um órgão de tubos, mas soou super mal quando cheguei
em casa. Para economizar dinheiro, não comprei a caixa acústica; percebi que poderia fazer
uma, então eu fiz” (Vail 2002:129)46. Esse descontentamento mudou o rumo que a invenção
de Laurens Hammond tomaria durante a história. A Leslie Speaker, ou Caixa Leslie, é,
segundo Vail, “o melhor complemento ao som do Hammond (…) na forma de um armário
com componentes falantes que rodam” (Vail 2002:11) 47. O som que a caixa acústica
concebida por Don Leslie entre 1937 e 1940 proporcionou ao instrumento de Laurens é algo
intrínseco à história do órgão Hammond.
O primeiro projeto de Don Leslie se baseou em uma das tone cabinets48 de Laurens
Hammond, que possuía dois alto-falantes de 12'' cada. Ainda que tenha sido um fracasso,
Donald continuou a experimentar: “Eu tentei várias coisas. Uma das coisas que percebi é que
a fonte do som do órgão de tubos não está em um único lugar; cada nota toca um tubo
diferente, que estão em localizações distintas. Eu queria criar essa sensação de movimento no
som. Construí um dispositivo que tinha catorze pequenos alto-falantes encaixados em uma
espécie de tambor, que podia ser rodado. Isso soou péssimo. (…) Então, tentei várias
velocidades, e quando cheguei à velocidade de trêmulo, soou bonito. Comecei a desconectar
os fios dos falantes e descobri que um falante sozinho soava melhor” (Vail 2002:129)49.
Estava, então, concebido o protótipo da caixa acústica de Don Leslie que, com outros
experimentos posteriores, conduziram ao advento da Caixa Leslie.

46 “In 1937, I bought a Hammond organ, serial number 58, believing that it would sound like a pipe organ, but
it sounded hopelessly bad when I got it home. To save money, I didn't buy their speaker; I figured I could make
speakers. So I did”.
47 (…) the best complement to the Hammond sound came from outside the company in the form of a cabinet
with rotating speaker components.
48 Para as séries de órgão que não possuiam alto-falantes internos, Hammond construiu diversos modelos de
caixas acústicas de diferentes tamanhos e para distintas finalidades.
49 “I tried various things. One of the things that I realized is that the source of sound from a pipe organ moves;
each note plays a pipe that's in a different location. I wanted to create the feeling of motion in the sound. So I
built a device that had 14 little speakers in a drum that could be rotated. It sounded terrible. Every time a speaker
went by, you'd hear a pulse. Being the experimentative type, I decided to rephase the speakers, half plus and half
minus. Then I tried various speeds, and when I got it up to tremolo speed it sounded beautiful. I started
disconnecting wires to speakers and found that one speaker alone sounded the best”.

60
Figs. 11 e 12 – A Caixa Leslie e seus componentes internos; a Caixa Leslie de costas.

O sinal elétrico enviado por um órgão Hammond – ou algum outro instrumento


elétrico - chega a um amplificador dentro da caixa Leslie e, em seguida, é dividido em dois
caminhos: as frequências abaixo de 800Hz vão para um alto-falante de 15 polegadas (15''
Speaker) - cuja face é voltada para baixo -, enquanto as outras notas, mais agudas, seguem
para o falante de cima, o treble speaker. Cada um dos alto-falantes “fala” diretamente a um
dispositivo denominado 2-speed rotor, que são o que causam o efeito rotativo do som.
O alto-falante das frequências graves está direcionado a um objeto parecido com um
tambor, que roda em duas velocidades. O mesmo acontece com o falante voltado para cima,
treble speaker, que está direcionado a uma “trompa de plástico”, que também roda em duas
velocidades. “Enquanto a “trompa” gira, ela projeta o som horizontalmente em um padrão
circular de 360 graus. A peça 2-speed horn rotor aparenta ser simétrica em sua forma, com
duas “trompas”, e suas duas saídas abertas parecem ser idênticas, mas não são, o som vem de
uma das duas apenas. A outra existe simplesmente para balanço para que a “trompa” ou o
móvel não chacoalhem enquanto o dispositivo está girando” (Vail 2002:130)50.

50 As the horn spins, it projects, or throws, the sound horizontally in a 360-degree circular pattern. The treble
speaker is mounted horizontally in a 360-degree circular pattern. The one-piece treble horn appears to be

61
Em 1940, quando Leslie estava finalmente satisfeito com sua invenção, imaginou que
Hammond poderia se interessar por seu novo invento e o levou até ele. Laurens Hammond
tinha o engenheiro John Hanert em sua companhia como seu “conselheiro musical” e ambos
reconheceram o potencial do primeiro modelo de Leslie, a 30A. A existência do novo invento
significava um risco às vendas das tone cabinets do próprio Hammond que, ainda que fossem
bem construídas, não contavam com esta ideia acústica. Nas palavras do próprio Leslie,
“ainda bem que eles fizeram a coisa certa – eles me desconsideraram. Eu teria vendido a caixa
por uma quantidade razoável de dinheiro e eles teriam simplesmente a destruído. Eles não
queriam o invento, eles só queriam se livrar de mim” (Vail 2002:130) 51. Deste modo, Don
Leslie começou a produção em larga escala da caixa Leslie em sua própria companhia, a qual
deu o nome de Electro Music.
John Hanert - engenheiro da Hammond Instrument Company responsável, dentre
outras coisas, pelo advento do scanner, dispositivo usado pela primeira vez no modelo B-2 e
que gera o vibrato e o trêmulo nos órgãos - pensou que essa invenção, o scanner, por produzir
um trêmulo por meios mecânicos, faria da caixa Leslie um invento desnecessário. Ainda que o
desenvolvimento do vibrato tenha obtido sucesso – e, certamente uma soma considerável aos
órgãos elétricos -, a Leslie ainda era necessária.
O próprio Leslie comenta o som de seu invento: “O modo como a caixa Leslie
funciona, na minha opinião, cria movimento. Nós temos dois ouvidos e isso te permite
entender o movimento. É por isso que os órgãos de tubos soam tão grandes sem te esmagar
com volume. Ele não tem que ferir seus ouvidos. Ele gera essa sensação de gigante por conta
da constante mudança de posição da fonte sonora, e seus ouvidos entendem isso. As
“trompas” que rodam na Leslie Speaker simulam isso. Elas estão constantemente mudando de
posição e isso alivia a sensação de um efeito de posição fixa” (Vail 2002:131)52.
Com o passar dos primeiros anos, a caixa Leslie já foi tomando seu lugar na história
do órgão Hammond e, ainda segundo seu inventor, “a Leslie levou o Hammond em muitos

symmetric in shape, with two actual horns rather than one. While the two ends with their flared openings appear
to be identical, they are not. Sound emanates from only one of the two horns; the other exists simply for balance
so that the horn and cabinet will not shake when the rotor is spinning.
51 “Thank goodness they did the right thing – they brushed me off. I would have sold it for some reasonable
amount and they would have simply squashed it. They didn't want it; they just wanted to get rid of me”.
52 “The way the Leslie works, in my opinion, is that it creates motion. We have two ears, and that lets you
respect motion. That's why pipe organs sound só big without overwhelming you with volume. It doesn't have to
hurt your ears. They generate this big feeling because of the constantly changing position of the source, and your
ears respect that. The rotating horns in the Leslie speaker simulate that. They're constantly changing position, só
it relieves you of that fixed, rigid-position effect”.

62
sentidos diferentes aos quais ele não teria ido. Por exemplo, é possível que ele tivesse se
limitado ao uso na igreja. Hammond projetou seu órgão baseado num órgão de tubos, e esse
foi o caminho ao qual foi introduzido. Meu trabalho foi uma tentativa de fazer o Hammond
soar mais como um órgão de tubos de teatro. Nos demos super bem com relação a isto;
obtivemos um som que era mais versátil. Os músicos adotaram ambos, Hammond e Leslie, e
os usam para criar um tipo totalmente diferente de música, nada relacionada em nenhum
sentido com o que se toca em um órgão de tubos” (Vail 2002:131)53.
A caixa Leslie passou a ser experimentada por outros instrumentistas no decorrer das
décadas que não são, necessariamente, organistas. Em 1968, o guitarrista Eric Clapton foi
convidado por George Harrison para gravar um solo de guitarra em sua música While My
Guitar Gently Weeps, incluida em The Beatles, único álbum duplo da banda britânica. Clapton
– o primeiro músico a gravar ao lado da banda - optou por amplificar o som de sua guitarra
através de uma caixa Leslie. Richard Wright, tecladista da banda Pink Floyd, amplificou o
som de um piano em uma caixa Leslie, ligada na maior velocidade, para a introdução da
canção Echoes, gravada no disco Meddle, de 1972. Sobre esse tipo de prática o inventor
comenta: “Eu tentei de tudo, de gaita a harpa, e por fim decidi que a única coisa que
realmente valia a pena nisso era o órgão. As pessoas às vezes a utilizam para a guitarra, mas
eu acho que soa terrível!” (Vail 2002:132)54.

2.3. Repertório

Escrever um sub-capítulo acerca do repertório de um instrumento musical implica,


implicitamente, na ideia de seleção. Ainda que o órgão Hammond seja um instrumento
relativamente recente, do qual, de início, não se esperava nada além de cumprir com mais
praticidade o papel do órgão de tubos, a história indica a presença do órgão Hammond em
inúmeros contextos musicais.

53 “The Leslie guided the Hammond in a lot of different ways that it wouldn't have gone. For instance, it's
possible that it would have been limited more to church music. Hammond had designed his organ based on a
church organ, and that was the way that it was introduced. My work was an attempt to make the Hammond
sound more like a theater pipe organ. We did pretty well on that count; we got a sound that was more usable.
Musicians embraced both the Hammond and the Leslie and used them to create a totally different kind of music
not related in any way to what you play with a pipe organ”.
54 “I tried everything from harmonica to jaw harp, and finally decided that the only thing it was worth a damn
on was the organ. People used it for guitar for a while, but I thought it sounded terrible.”

63
Apresentemos aqui, novamente, o cartaz de divulgação do órgão Hammond modelo A,
de 1935.

Fig. 13 – Cartaz de divulgaçào do Órgão Hammond Modelo A (1935).

O órgão Hammond é um novo instrumento musical. Construído para ajustar-se aos


padrões do órgão de tubos, requer do executante técnica de órgão de tubos e produz
toda a gama do colorido musical necessária para a performance, sem sacrifício, das
grandes obras da literatura organística clássica. Além disso, permite muitos
coloridos tonais jamais ouvidos em qualquer instrumento musical. Funciona ao
plugá-lo em uma tomada e ocupa menos espaço do que um piano de armário. O
órgão Hammond constitui-se de um notável, até revolucionário, desenvolvimento
musical55. (Faragher 2011:16)

55 “The Hammond Organ is a new musical instrument. Yet it is built to conform to established pipe-organ
standards, requires pipe-organ technique of the musician who plays it, and produces the entire range of tone
coloring necessary for the rendition, without sacrifice, of the great works of classical organ literature. In
addition, it permites many tone colors never before heard on any musical instrument. It is installed by plugging
into an electric light socket. It occupies less space then a upright piano… The Hammond Organ constitutes a
notable, even a revolutionary, musical development.”

64
A descrição deste “revolucionário desenvolvimento musical”, feita pela própria
Hammond, anuncia um novo modo de usar o órgão.
Compreende-se o repertório para órgão Hammond como algo que se extende para
além das tantas gravações de diversos gêneros musicais em que o instrumento foi e ainda é
presente. O fato de poder ser “instalado ao plugá-lo na tomada” e de ocupar “menos espaço do
que um piano de armário” abriu novas possibilidades para o uso cotidiano do órgão. John
Medeski, organista e tecladista do trio Medeski, Martin and Wood, nos lembra que “na década
de 1950, o órgão era muito mais frequente no ouvido de todo mundo. Estava nos rinques de
patinação, nos teatros, nas igrejas. Eles costumavam ter um órgão nos jogos de futebol
[americano] e em estádios de beisebol” (Vail 2002:24)56.
O organista norte-americano Moe Denham, em conversa sobre o uso do instrumento,
diz que “a história do órgão Hammond remonta muito antes da chegada ao jazz. Você
provavelmente já ouviu gente fazendo piada acerca de música para patinação, mas eram todas
tocadas ao Hammond B-3. Ele era usado nos teatros de cinema. Você é velho o suficiente para
se lembrar das soap operas57 no rádio? O órgão Hammond era muito comumente usado em
soap operas nos anos 1940 e 1950 no rádio, e nos anos 1960 na TV. Ele foi sendo menos
usado conforme a tecnologia avançava e trilhas sonoras mais complexas pudessem ser criadas
para tentar fazer o som das soap operas mais como o de filmes” (Vail 2002:24)58.
Faragher cita em seu livro a relevância da televisão como meio de propagação do novo
órgão: “em Nova York e Los Angeles, organistas como Korla Pandit, Earl Grant e Ethel Smith
se apresentavam ao vivo no rádio e na TV tocando órgão Hammond em programas nacionais
do horário nobre – programas de variedades no domingo à noite como The Steve Allen Show,
The Ed Sullivan Show e outros -, assim como se apresentando ao vivo em salas de exposição”
(Faragher 2002: 10)59. Moe Denham se recorda que “Earl Grant ajudou a trazer a

56 Back in the 1950s, organ was far more prevalent in everybody's ear. It was at the skating rinks, it was at the
theater, it was in the church. They used to have an organ at football games and in baseball stadiums.
57 Soap Opera é um gênero de obras de ficção dramática ou ficção cômica difundido pela televisão em séries
compostas por episódios transmitidos regularmente em um período indeterminado de duração.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Soap_opera)
58 The history of the Hammond goes back long before it ever got into jazz. You've probably heard people
joking about roller-skating music, but that was all Hammond B-3. It was used in the movie theaters. Are you old
enough to remember soap operas on radio? Hammond were very commonly used in soap operas in the 1940s and
1950s on the radio, and in the 1960s on TV. They were eventually phased out as technology advanced and more
complex soundtracks could be created to try to make soap operas sound more like movies.
59 In New York and Los Angeles, organists like Korla Pandit, Earl Grant, and Ethel Smith were getting regular
radio and television airtime playing the Hammond organ on 1950s national prime-time Sunday-night variety
shows like The Steve Allen Show, The Ed Sullivan Show, and others, as well as performing live in top
showrooms.

65
popularidade do órgão Hammond para o mainstream americano nos anos 1950 e 1960 no The
Ed Sullivan Show. Ed Sullivan o tinha com muita frequência em seu programa, talvez cinco
ou seis vezes ao longo de dois anos. Eles tinham uma câmera apontando os manuais do órgão,
eu peguei um monte de posições dos drawbars assistindo Earl Grant nos domingos de noite”
(Vail 2002:19)60.
“Poucas pessoas que tocam hoje têm alguma memória de restaurantes onde o órgão
Hammond era tocado enquanto clientes jantavam, mas durante os anos 1950 e 1960 isso era
uma prática comum” (Faragher 2002: xix)61.

Fig. 14 – Para acompanhar o jantar, música ao órgão Hammond.

Ainda que “o mercado de casas funerárias tenha quase deixado de existir, agora com a
maioria delas usando CD player, (…) o órgão Hammond foi logo adotado pelas capelas
memoriais e casas funerárias por todo o país, e um grande número de instrumentos foi
vendido para essas instituições” (Faragher 2002: 26)62.
A venda de partituras para o órgão Hammond foi outro ramo do mercado que trouxe
muito lucro à Hammond Instrument Company. “Durante os anos 1960, essa era uma iniciativa

60 Earl Grant helped bring the popularity of the Hammond organ to mainstream America in the 1950s and 1960s
on 'The Ed Sullivan Show'. Ed Sullivan had this man on quite frequently, perhaps five or six times over the
course of a couple years. They had a camera pointing down at the manuals from straight above, and I got a lot of
drawbar hints from watching Earl Grant on Sunday nights.
61 Few people playing today have any memory of restaurants where live organ music was played while patrons
dined, but during the 1950s and early 1960s it was a common practice.
62 The funeral home market has almost ceased to exist now with most funeral homes now using a high-quality
CD system (…) The Hammond organ was quickly embraced by funeral homes and memorial chapels across the
nation, and large numbers were sold to these institutions.

66
altamente rentável. Dezenas de companhias vendiam partituras especificamente para órgão
Hammond de todos os tipos, de chord organs63 e espinetas a órgãos caseiros e de concerto.
Havia também posições de drawbars e registrações, para todos os Hammonds. Essas
publicações incluiam desde livros com dezenas de standards populares até hits do momento.
Existiam muitas lojas menores que só vendiam partituras, mas estas também eram
comercializadas por lojas maiores e comerciantes de piano e órgão. Tudo isso beneficiava a
Hammond por manter seu nome constantemente frente ao público e por fornecer partituras
para donos de órgãos Hammond. Laurens Hammond encorajou essas companhias de
publicação de partituras produzindo seu próprio catálogo que apresentava estes vendedores,
distribuido gratuitamente e disponibilizado-o através de comerciantes da Hammond. The
Hammond Chord Organ Music Catalog, por exemplo, listou 4000 canções, incluindo hinos,
show tunes, marchas, valsas, polkas e músicas clássicas, e forneceu todas as informações para
encomenda, incluindo preços, nome e endereço dos publicadores” (Faragher 2002: 26)64.
Faragher avalia o advento do órgão Hammond e o consequente movimento mercantil
dizendo que “não é um exagero dizer que Laurens Hammond não só criou o órgão caseiro,
mas também criou um mercado para este órgão, e é, em algum nível, responsável por tudo o
que, na sequência, desenvolveu-se na evolução do teclado elétrico, incluindo modernos pianos
elétricos e sintetizadores” (Faragher 2002: xxiv)65.
A fim de continuar discorrendo acerca do repertório no qual o órgão Hammond se fez
presente, serão apresentados a seguir alguns músicos que fizeram parte da história do
instrumento através de apresentações e gravações em distintas épocas, desde a época de seu
surgimento até décadas mais tarde, quando o uso do órgão Hammond já estava disseminado
63 Modelo mais simples e com menor preço. Chamado assim porque melodias de uma nota podiam ser
facilmente encorpadas através de botões com acordes. “Lower priced and simpler model, and this turned out to
be the chord organ, so named because single-note melody could be easily augmented with chord buttons”
(Faragher 2002:70)
64 Through the 1960s it was a largely profitable enterprise. Dozens of companies published music for specific
Hammond organs of all types, from chord organs and spinets to home and concert organs. There were drawbar
settings for full-size organs and tab and drawbar recommendations for spinets, in short, registrations for all
Hammonds. These publications ranged from full music books with dozens of popular standards to music for
individual hit singles of the day. There were many smaller stores that sold nothing but sheet music, while larger
music stores and organ and piano dealers also sold published music. This benefited Hammond by keeping the
Hammond name constantly in front of the public, and by providing music for Hammond owners. Hammond
understandably encouraged these music publishing companies, even producing its own free catalogs of music
publishers available at Hammond dealers. The Hammond Chord Organ Music Catalog, for example, listed 4000
songs by title, including hymns, show tunes, marches, waltzes, polkas, and classical, and provided full ordering
information, including prices and the name and address of publishers.
65 It's not a stretch to say that Laurens Hammond not only created the home organ, he also created the home
organ market, and is to some degree responsible for everything that subsequently developed in the evolution of
the electric keyboard, including modern electric pianos and synthesizers.

67
mundo afora. Cada maneira de tocar o órgão condiz, como veremos, aos diferentes contextos
em que o organista atuou, refletindo em seu som o entorno musical da época.
Neste ponto, é imprescindível que façamos um breve esclarecimento musical acerca
do blues: “Música popular negra norte-americana do século XX, que tem afinidades com o
jazz. A palavra descreve tanto um estado de espírito quanto as progressões harmônicas em 8,
12 e 32 compassos que formam a base para a improvisação no blues; a mais comum é a de 12
compassos” (Sadie 1994:115). O blues de 12 compassos se estrutura da seguinte maneira:

Fig. 15- Estrutura harmônica do blues em 12 compassos.

Os primeiros 4 compassos estão no acorde da tônica com sétima, I7 (com acordes de


passagem opcionais, dependendo da música). O próximo trecho é mesclado, tem 2 compassos
de IV7, subdominante, e outros 2 na tônica. O último trecho de quatro compassos é uma
cadência, em que aparecem os três acordes - geralmente, 1 compasso na dominante, 1
compasso na sub-dominante e os outros 2 na tônica, todos com o sétimo grau. Às vezes, o
movimento cadencial estrutura uma cadência completa, com sub-dominante-dominante-tônica
(1 compasso para o segundo grau menor, 1 compasso para o quinto grau e 2 compassos para o
primeiro grau – aqui, a sub-dominante é o acorde relativo, ii).
Em geral, durante os doze compassos, são usados estes três acordes. Eles representam
a estrutura harmônica da música tonal, que tem na tônica (I grau) a sensação de
relaxamento/repouso, na sub-dominante (IV grau) a sensação de movimento e na dominante
(V grau), a tensão.
“O blues teve uma influência decisiva sobre a música popular ocidental” (Sadie,
1994:115). Esta característica se revela presente em várias situações. Podemos constatar que
muitas das canções que a banda britânica The Beatles registrou em seus 13 discos de estúdio e
diversos singles, de 1963 a 1969, estão ou contêm a forma do blues; é o caso de Can't Buy Me
Love, Rock'n' Roll Music, Yer Blues e For You Blue. A influência do blues sobre a música
popular ocidental se revela também ao deparar-nos com a palavra blues em inúmeros títulos

68
de canções do século XX. Do repertório escolhido para a ilustração deste sub-capítulo, três
músicas compostas com base no blues receberão atenção quanto à sua estrutura.
Recordemos mais uma vez o trecho do cartaz de 1935 que apresentou o órgão
Hammond modelo A que diz que o instrumento “é construído para ajustar-se aos padrões do
órgão de tubos” (Faragher 2011:16). A invenção foi super bem sucedida: em agosto deste
mesmo ano, poucos meses depois de seu lançamento, o instrumento já estava em 567 igrejas
por todo o país. Um dos músicos que se iniciou ao órgão de tubos na igreja e, na sequência,
conheceu o órgão Hammond, foi Thomas “Fats” Waller.
Fats Waller nasceu em 1904 na cidade de Nova Iorque e, ainda que a maioria de seu
trabalho tenha tido a voz e o piano como instrumentos principais, é constantemente designado
como “pai do órgão moderno”. Os primeiros contatos com o instrumento aconteceram na
Abyssinian Baptist Church, onde seu pai, Reverendo Edwin Martin Waller, era pastor.
Aos dezesseis anos, Waller exercia a profissão de organista no Teatro Lincoln – que
contava com um órgão Wurlitzer - e, em 1926, seis anos depois, gravou “St. Louis Blues” e
“Lenox Avenue Blues” para o selo Victor, em um órgão de tubos. Segundo Faragher, “o
advento do órgão Hammond levou suas gravações organísticas a um novo nível, e foi usado
em seus discos para a RCA tempos depois, especificamente entre 1940 até sua morte, em
1943” (Faragher 2002:376)66.
Seu álbum “Swingin' the Organ with Fats Waller” conta com oito faixas, gravadas em
1935, 1940 e 1941 nos EUA e Inglaterra, das quais apenas duas Waller gravou em um órgão
de tubos - as demais foram gravadas ao Hammond. “Let's Get Away From it All” é um dos
títulos que compõem o repertório, gravada em 1941, na qual Waller toca em uma formação de
trio: órgão, guitarra e bateria – a mesma formação instrumental que se consagrou no decorrer
dos anos seguintes como órgão trio. Leonard Feather, um famoso crítico musical dos anos
1950 e 1960, escreveu estas palavras sobre o disco: “Muito mais do que nostalgia contêm os
dois lados deste disco. Há evidente abundância de entretenimento; se Fats Waller ainda fizesse
parte da cena do jazz, seu pioneiro trabalho de suingar o órgão o teria levado a uma posição
dominante no denso e povoado horizonte do órgão Hammond” (Faragher 2002:376)67.

66 The advent of the Hammond organ took his organ recording to a new level, and it was used on his later RCA
recordings, specifically from 1940 until his death in 1943.
67 Much more than nostalgia is contained in these sides. There is abundantly entertaining evidence that if Fats
Waller were still a part of the jazz scene, his pioneer work in swinging the organ would now have swung him
into a dominant position on the densely populated Hammond horizon.

69
De acordo com o próprio Fats Waller, ele gravou entre 800 e 1000 canções, sendo a
primeira delas “Tain't Nobody's Business if I do”. Dentre os artistas que gravaram suas
músicas estão Whitney Houston, Jimmy Smith e também Louis Armstrong, que dedicou um
disco inteiro às suas canções, “Louis plays Fats”.
Ainda que o trabalho de Fats Waller tenha sido pioneiro, “Wild” Bill Davis, organista
nascido no dia 24 de novembro de 1918 em Missouri, “foi o primeiro a trazer o órgão elétrico,
o Hammond em particular, ao mundo do jazz de modo abrangente” (Faragher 2002:238)68.
John Medeski diz que “o pai do órgão no jazz é Wild Bill Davis. Ele era principalmente
pianista, guitarrista e produziu arranjos para todas essas big-bands69 dos anos 1930 e 1940. No
ano de 1948 que começou realmente a tocar órgão. Ele não tratava o órgão como se fosse um
piano, ele o tocava como se fosse uma big-band ou uma orquestra. Wild Bill Davis tocou com
a banda de Duke Ellington. Você já ouviu April in Paris na versão de Count Basie? Arranjo de
Wild Bill Davis” (Vail 2002:18)70.
Count Basie e Duke Ellington foram dois grandes expoentes da música para big-band,
que teve nos anos 1940 seu apogeu. Os comentários a seguir, de John Medeski acerca da
época das big-bands, elucidam o tratamento de Davis dado ao órgão Hammond.
“Tudo o que você associa com big-bands pode ser completamente transponível ao
órgão, com todos os diferentes registros e vibratos diversos, que trazem à mente um saxofone
ou alguma coisa assim. O órgão é como uma big-band de um homem só, o que é – se você
pensar – o que os instrumentos de teclado têm sido. O piano era o instrumento do compositor.
Uma pessoa pode tocar o baixo, as vozes internas e a melodia, tudo ao mesmo tempo. A
mesma coisa se passa com o órgão, mas com uma coisa a mais: você pode tocar o baixo com
os pés enquanto as duas mãos se ocupam em tocar todas as outras partes” (Vail 2002:18)71.

68 (…) Davis was the first to bring the electric organ, the Hammond in particular, into the jazz world in a big
way.
69 Tipo de conjunto surgido no final dos anos 20, associado ao estilo swing. O número médio de integrantes gira
em torno de 14, incluindo a seção rítmica e os naipes de sopros. A big band também era chamada de orquestra.
Fonte: Coleção Folha: clássicos do Jazz; v.13: 47.
70 The father of jazz organ was Wild Bill Davis. He was mainly a pianist, guitar player, and arranger for all
these old big bands in the 1930s and 1940s. In 1948, he started playing organ for real. He didn't treat the organ
like it was a piano; he played it like it was a big band or an orchestra. Wild Bill Davis played with Duke
Ellington's band. Did you ever hear 'April in Paris' by Count Basie? That was Wild Bill Davis's arrangement.
71 All the stuff you associate with big bands are completely translatable to organ, with all the different stop
changes and the different vibratos, which bring to mind saxophone or something like that. The organ is like a
one-man big band, which is – if you think about it – what keyboards have been about. Piano was the composer's
instrument. One person can play bass, inner parts, and melody all at the same time. The same thing's true with
organ, except you've got one more: you can play the bass with your feet, and then you've got two hands to deal
with all the other parts.

70
Este tratamento dado ao órgão passou a se consolidar principalmente a partir do
período romântico. Matías Sagreras, organista da Basílica Santíssimo Sacramento de Buenos
Aires, Argentina, em sua tese “O órgão de Santíssimo Sacramento e a música sinfônica
francesa para órgão” diz que “o auge da orquestra sinfônica teve especial influência na
concepção do órgão do século XIX, convencendo-se que o organista é uma espécie de
homem-orquestra. Deste modo, o órgão adota um novo rumo em sua concepção sonora,
estruturando-se em um instrumento que imita os grupos sonoros orquestrais” (Sagreras
2014:11).
“Se você reparar no jazz dos anos 1950, é mais comum encontrar uma banda com
órgão do que com seções inteiras de metais e madeiras. Provavelmente você encontraria
órgão, sax e bateria, o que é muito mais econômico do que uma big-band inteira” (Vail
2002:18)72.
Wild Bill Davis, em 1953, gravou o tema de 1940 de Duke Ellington Don't get around
much anymore acompanhado de guitarra e bateria73. Nessa gravação, o tratamento orquestral
dado ao órgão é muito evidente, basta compararmos a parte A - os primeiros quatro versos -
de ambas versões, o trio de Davis e a orquestra de Ellington.
Os trompetes “cantam” o tema em quatro estrofes, e os saxofones respondem uma
melodia complementar a cada uma delas. Cada náipe trabalha sua melodia de forma
homofônica, com notas em paralelo, fazendo soar um acorde inteiro em cada uma das notas
das melodias.
A transposição dessa linguagem orquestral é feita ao órgão Hammond da seguinte
maneira: o manual de cima está registrado para ser o mais sonoro, pois cuidará da melodia dos
trompetes, que vibram e soam brilhantes. O manual de baixo, por sua vez, estará registrado
com menos som, pois se ocupará com as respostas dos saxofones à melodia principal e tocará
as notas graves da orquestra, da linha de baixo. Deste modo, a mão esquerda do organista está
sempre na parte mais grave do manual de baixo, enquanto a direita alterna entre as duas
melodias, dos trompetes e dos saxofones. A sonoridade de big-band se efetua ao ouvirmos na
melodia não uma nota por vez, mas um acorde a cada instante – somado ao fato de o organista
registrar o órgão de forma grandiosa, quase plena.

72 If you went out to see jazz in the 1950s, you were more likely to see a band with organ than entire brass and
woodwind sections. There would very likely be organ, sax, and drums. That was much more economical than a
whole big band.
73 Gravação original no link: https://www.youtube.com/watch?v=pzz-7L6d7gw

71
Nas primeiras gravações de Wild Bill Davis para a Coral Records – que representam,
praticamente, as primeiras incursões do órgão Hammond no campo do jazz - ele passa
majoritariamente a tocar na formação órgão trio, com guitarra e bateria. No disco One More
Time – no qual gravou seu órgão usando três caixas Leslie e duas tone cabinets da própria
Hammond - Davis adiciona tímpano, sax tenor, flauta ou harpa à formação em algumas
faixas.
Dentre os diversos álbuns de órgão de inúmeros artistas que o selo Sunset lançou está
The Swinging Organ of Wild Bill Davis, o qual Faragher considera “um perfeito exemplo do
porquê ele ser chamado de Wild74 Bill ao invés de simplesmente Bill” (Faragher 2002:239)75.
Participam também deste disco um saxofonista tenor, dois guitarristas e um baterista.
Fats Waller foi o primeiro organista a gravar ao órgão Hammond, uma canção de jazz,
gênero que já vinha experimentando nos órgãos de tubos. Wild Bill Davis foi o maior
representante das big-bands transpostas para o órgão. Contudo, o próximo grande expoente do
órgão Hammond é, sem dúvida, o mais conhecido dentre eles. Medeski considera que
“Jimmy Smith elevou o órgão de um instrumento big-band para um instrumento solista, para
um tipo de música mais bebop76. Smith é a linha entre blues e bebop”77 (Vail 2002:18).
James Oscar Smith nasceu na Pennsylvania no ano de 1925 e, ainda criança, começou
a aprender piano com seus pais. Inspirado pela figura de Wild Bill Davis, Jimmy passa a se
dedicar ao órgão Hammond no ano de 1951 e, já em Nova York, começa sua carreira
profissional trabalhando ao lado do trio de Don Gardner.
No mês de setembro de 1955, forma seu primeiro órgão trio, com o qual, já no ano
seguinte, começa a gravar discos para a Blue Note Records – o primeiro chama-se “A New
Sound, A New Star: Jimmy Smith at the Organ, Vol.1”. A partir de então, passa a produzir
inúmeros discos, assinando contrato em 1963 com outra gravadora, Verve. “Sua relação com
esta gravadora resultou em muitos sucessos comerciais, mas sempre álbuns super arranjados e
produzidos, o que destacou sua destreza técnica, mas diluiu seu puro som de órgão” 78

74 Selvagem, em inglês.
75 Perfect example of why he is known as Wild Bill rather than merely Bill.
76 Estilo de jazz desenvolvido em Nova York no início dos anos 40. Representou um considerável aumento de
complexidade em relação aos estilos mais antigos, com uma textura rítmica mais diversificada, um vocabulário
harmônico mais enriquecido e ênfase na improvisação de melodias aceleradas, cheias de frases assimétricas e
padrões de acentuação. (Grove 1994:112)
77 Jimmy Smith elevated the organ from being a big-band instrument into one for playing linear, more bebop
type of music. Jimmy Smith was the line between blues and bebop.
78 His relationship with this label resulted in many commercially successful but often over-arranged and over-
produced albums, which highlighted his technical skill, but diluted his pure organ sound.

72
(Faragher 2002: 346). Monster, álbum de 1965, por exemplo, é composto por arranjos
instrumentais que contam com clarinetes, clarones, saxofones soprano, alto, tenor e barítono,
flauta, flauta em sol e baixo elétrico além do trio - guitarra, bateria e órgão Hammond.
No ano de 1964 Jimmy Smith grava The Cat79, disco premiado com o Grammy
Award80 e que conta com oito faixas – quatro delas tem blues em seu título. A gravação
original da faixa homônima ao disco dura 3'30'' e é feita por um órgão trio acompanhado de
uma orquestra de sopros, cujo arranjo e regência estiveram a cargo de Lalo Schifrin. Para uma
breve análise da forma deste blues, chamaremos chorus cada uma das unidades de 12
compassos.
The Cat se inicia com uma introdução de quatro compassos, antecedida por uma
anacruse81 com toda a instrumentação. Nos primeiros dois chorus, o órgão apresenta o tema,
acompanhado da guitarra e bateria.
No terceiro chorus, Smith inicia um improviso solo que se estenderá até a volta do
tema, mas com algumas intervenções – logo nos primeiros quatro compassos do solo há um
“breque” dos instrumentos acompanhantes, um gesto muito comum, na qual a orquestra
intervêm com uma frase curta. O solo de órgão se estende pelo quarto e quinto chorus, nos
quais Jimmy Smith explora gradualmente as notas mais agudas do teclado. A guitarra
intervêm com alguns comentários localizados no sexto chorus. Os próximos dois, são os
chorus mais barulhentos da música, nos quais a seção de sopros “invade” o solo do órgão que,
para se fazer escutar, tem de “cantar” cada vez mais agudo. O chorus seguinte é o último do
solo, que tem início novamente com o “breque” característico e, só na sequência, o tema de
The Cat volta a ser apresentado – como no início, duas vezes, terminando num fade-out82
conforme a terceira parte do tema de 12 compassos se repete.
Neste mesmo ano de 1964, Jimmy Smith assina um artigo na revista Hammond Times
em que confirma as palavras de John Medeski quanto ao seu estilo de tocar o órgão: “As
pessoas sempre me perguntam sobre este som [do órgão Hammond]. Isso provavelmente pode
ser melhor explicado pela minha abordagem ao órgão. Enquanto outros pensam no órgão

79 Gravação original no link: https://www.youtube.com/watch?v=PaKLB71QE4k


80 Grammy Award é o maior e mais prestigioso prêmio da indústria musical mundial, presenteado anualmente
pela National Academy of Recording Arts and Sciences dos Estados Unidos, honrando conquistas na arte de
gravação musical e provendo suporte à comunidade da indústria musical. O prêmio é considerado o Óscar da
música (https://pt.wikipedia.org/wiki/Grammy_Award)
81 Nota ou grupo de notas que precedem o primeiro tempo forte do ritmo ao qual pertencem; habitualmente, no
último tempo de um compasso. (Sadie 1994:28)
82 Gradual desaparecimento do som.

73
como uma orquestra inteira, eu penso nele como uma trompa. Eu sempre admirei Charlie
Parker… e eu tento soar como ele. Eu queria que a linha melódica soasse como um trompete,
um sax tenor ou alto”83 (Faragher 2002:348).
Jimmy Smith morreu no estado do Arizona em 2005, deixando um trabalho extenso
que “inclui gravações de todos os estilos, desde baladas 84 e grandes arranjos e produções
orquestrais até álbuns ao vivo com uma sonoridade mais crua” 85 (Faragher 2002: 347). David
Amels afirma que o trabalho de Jimmy Smith foi o “que mais trouxe o órgão Hammond para
o mercado de massa, no qual o instrumento foi aceito por músicos que tocavam outros tipos
de música”86 (Vail 2002:19).
Booker T-Jones é um organista nascido em Memphis, Tennessee no ano de 1944. Sua
cidade natal sediava as gravadoras Sun e Philipps – que representaram um forte abalo no
mercado fonográfico - e, por isso, viu surgir vários nomes da música norte-americana, como
os de Elvis Presley e Johnny Cash. Mais tarde, foi a vez da gravadora Stax-Records
acompanhar mais de perto o surgimento de novos artistas e, nesse novo contexto, Booker T. se
juntou ao guitarrista Steve Cropper, baterista Al Jackson e ao baixista Donald “Duck” Dunn
para lançar, no ano de 1962, o disco Grenn Onions - o primeiro do novo grupo Booker T &
the MG's. Faragher aponta o título como “um dos atos mais importantes e comercialmente
bem sucedidos que emergiu da fértil cidade de Memphis” (Faragher 2002:215) 87; seu sucesso
rendeu o Grammy Hall of Fame no ano de 1999. O hit instrumental homônimo ao disco
Green Onions88 também está estruturado na forma de um blues de 12 compassos.
Os primeiros quatro compassos da música são uma introdução do órgão Hammond,
em que Jones, na tonalidade de fá, entoa o tema da música – que, nesse caso, se caracteriza

83 People always ask me about this sound. This probably is best explained in my approach to the organ. While
others think of the organ as a full orchestra, I think of it as a horn. I've always been an admirer of Charlie
Parker… and I try to sound like him. I wanted that single-line sound like a trumpet, a tenor, or an alto
saxophone.
84 Balada - Forma de canção, geralmente em andamento lento e de temática romântica, que faz parte do
repertório tradicional do jazz. Fonte: Coleção Folha: clássicos do Jazz; v.13: 47.
85 Includes every style from down-tempo ballads to heavily arranged and produced full-orchestra records to raw
live albums.
86 Jimmy Smith's work is what mostly brought the Hammond to the mass market, where it was accepted by
musicians who played other types of musics.
87 (…) one of the most commercially successful and important acts to emerge from the fertile Memphis.
88 Gravação original no link: https://www.youtube.com/watch?v=w3Cq1nE6X4I

74
mais como um riff89 do que uma como uma melodia. O primeiro chorus do blues passa a valer
a partir do quinto compasso, quando toda a banda começa a tocar para acompanhar o tema.
A partir do segundo chorus, Booker T. entoa uma melodia que se caracteriza como
extensão do tema, mas muito se assemelha a uma improvisação solo. Desta forma, o tema de
Green Onions se estende até o começo do quarto chorus, quando a guitarra Fender Telecaster
de Cropper assume o solo - também durante dois chorus - e o órgão volta ao riff. No sexto
chorus, Booker T. faz uma seção de improvisação ao órgão, um solo que se estende até o fim
do sétimo chorus.
O que seria o oitavo chorus não se caracteriza como tal porque, como na introdução da
música, Booker T. expõe o riff apenas em fá, enquanto a guitarra volta a solar – mas desta vez,
alguns pequenos comentários apenas. A música se estende até os 3'00, terminando também em
um fade-out.
O organista John Medeski afirma que Booker T & the MG's “é a ponte entre o R&B90 e
o rock” (Vail 2002:21)91, e o órgão Hammond, segundo o organista inglês James Taylor, “se
tornou popular [na Inglaterra] quando artistas como Booker T. & the MG's e outros da Stax
Records vieram tocar em Londres”92 (Vail 2002: 20,21).
O rock, segundo John Mesdeski, “começou com alguns caras brancos que queriam
tocar blues e transformaram isso em uma coisa totalmente diferente. Seus ritmos eram
diferentes dos ritmos pelos quais eles se inspiraram. É como qualquer evolução musical. O
órgão está lá, direto do R&B e música gospel (…). Você pode pensar nos The Doors – não era
exatamente um [órgão Hammond] B-3, mas eles tinham um som de órgão (…). Todos esses
grandes artistas do R&B usaram órgão, e todos os músicos do rock foram realmente muito
influenciados por isso”93 (Vail 2002:21).
89 Em música popular, particularmente no jazz, um curto ostinato (termo que se refere à repetição de um padrão
musical por muitas vezes sucessivas) melódico, geralmente com dois ou quatro compassos de duração. Derivado
provavelmente dos padrões repetitivos de chamada-e-resposta da música da África ocidental, apareceu com
destaque desde os primórdios do jazz (Sadie 1994:785).
90 Rhythm-and-blues. Um estilo de música popular executado principalmente pelos negros norte-americanos do
final dos anos 40 ao início dos anos 60. Essa expressão substituiu “race music” e foi suplantada por “soul”. O
rhythm-and-blues surgiu do blues e estilos correlatos, mas é tocado por um conjunto composto de um cantor ou
instrumentista principal, uma seção rítmica (baixo, bateria e alguma combinação de piano, órgão elétrico e
guitarra elétrica) e um grupo consistindo de vozes, instrumentos de sopro, guitarra ou órgão. (Grove 1994:781)
91 Booker T. & the MG's was the bridge from R&B to rock. Their music was hard-hitting, but definitely more
funk than rock.
92 (…) became popular when people such as Booker T. & the MG's and artists on the Stax Records label came
over to London and played gigs.
93 Rock was started by a bunch of white guys who wanted to play the blues and then turned it into something
totally different. Their rhythms were different than the rhythms they were inspired by. It's like any musical
evolution. The organ got in there, straight out of R&B and gospel music (…) You can go back to The Doors – it

75
De fato, a banda originária de Los Angeles “The Doors carecia de um baixista –
exceto durante as sessões de gravação –, então em performances ao vivo [Ray] Manzarek
tocava as partes do baixo em um Fender Rhodes. Sua assinatura sonora se devia ao Vox
Continental combo Organ, um instrumento usado por muitos roqueiros psicodélicos de seu
tempo. Mais tarde, usou um órgão Gibson”94.
Outro organista que chamou a atenção quanto ao modo de tocar o órgão Hammond foi
Jon Lord, que nasceu em Leicester, Inglaterra, no ano de 1941 e, ainda pequeno, estudou
música clássica e piano. “Em 1963, comprou seu primeiro órgão elétrico e começou a tocar
em bandas de R&B e jazz na Inglaterra e Alemanha” (Faragher 2002:303) 95 - após ouvir
Jimmy Smith e se entusiasmar com o instrumento. “Foi isso que me ligou ao órgão. Eu ouvi
Walk on the wild side e não sabia que instrumento era aquele. Eu descobri que era um
Hammond e também descobri que não podia ter um, então consegui comprar um órgão um
pouco parecido”96.
No ano de 1968, Lord forma – junto do guitarrista Ritchie Blackmore, vocalista Rod
Evans, baixista Nick Simper e do baterista Ian Paice - a banda Deep Purple, que lançou seu
primeiro álbum, Shades of Deep Purple, neste mesmo ano. Ainda que a instrumentação do
grupo britânico não se diferencie muito da do conjunto de Booker T. – exceto pelo acréscimo
do vocalista -, o órgão Hammond, junto da guitarra, começam a formar aqui uma nova
estética sonora, na qual a distorção do som dos instrumentos é muito presente.
A tendência da gradual procura do rock por um som mais “pesado” se evidencia
também, por exenplo, nas linhas de baixo da banda Yes – surgida um ano depois, também na
Inglaterra -, na qual Chris Square teve como carro-chefe um baixo Rickenbaker – instrumento
com uma sonoridade peculiar e forte, popular entre os baixistas da época – e,
esporadicamente, fez também uso de uma pedaleira para reforçar as notas graves.
Jon Lord explica o processo de construção do timbre usado por ele ao órgão
Hammond: “Logo depois de Ian [Paice, baterista] e Roger [Glover, baixista] entrarem na

wasn't exactly B-3, but they had an organ sound (…) All those great R&B guys used organ, and all the rock
musicians were really heavily influenced by that.
94 The Doors lacked a bass guitarist (except during recording sessions), so at live performances Manzarek
played the bass parts on a Fernder Rhodes PianoBass. His signature sound was that of the Vox Continental
combo Organ, an instrument used by many other psychedelic rock bands of the era. He later used a Gibson G-
101 Kalamazoo combo organ. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ray_Manzarek
95 In 1963, he got his first electric organ and began playing in R&B and jazz bands in England and Germany.
96 That's what turned me on to the organ. I heard "Walk On The Wild Side" and I didn't know what that
instrument was. I found out it was a Hammond and I found out I couldn't afford one, so I managed to buy an
organ of sorts. Fonte: http://www.thehighwaystar.com/interviews/lord/jl19741000.html

76
banda, e certamente um pouco antes disso, eu percebi que o som que eu tirava deste
equipamento básico aqui – esse amável [órgão Hammond] C-3 ou B-3 que estava tocando
com a Caixa Leslie –, o lindo som disso não estava dando o que eu queria exatamente… Eu
podia ouvir o som na minha cabeça, alguma coisa mais intensa, mais profunda, e por mais que
amasse o som do duo Hammond-Leslie, ele não estava dando conta de apoiar totalmente
Ritchie [Blackmore, guitarrista] para onde seu som estava começando a ir.
Ritchie não gostava de tocar guitarra rítmica. Por que deveria gostar? Ele tem uma
técnica assombrosa. Só tocar a base das músicas não era a sua praia. Não o culpo por isso,
mas alguém tinha que fazer esporadicamente… e eu estava fazendo no Hammond. O que
tínhamos era um som um pouco desobediente… É um lindo som, tem muita personalidade, e
é um som de órgão Hammond, mas não chega a ser Deep Purple.
Então eu conversei com o técnico com o qual estava trabalhando na época sobre a
possibilidade de colocar o som do órgão Hammond num amplificador comum. (...) O órgão
Hammond é uma linda máquina para se tocar, é uma tranqueira de certo modo, mas é
controlável, ele tem todos os tipos sofisticados de diferenças no som, todas essas minúsculas
graduações que você pode manipular através dos drawbars, que te dão pequenas diferenças
no som, e eles são lindos para se tocar. Você joga o som do órgão para um amplificador liso e
você tem um baita som!
E essa foi a tarefa que dei a mim mesmo, tocar com alguma sensibilidade e sentimento
com esse som”97 (Lord).

97 Just after Ian and Rodger joined the band, and, indeend, slightly before of that, I've become aware that the
sound I was getting from the basic big piece of furniture here - this lovely C or B-3 that I was playing and a
Leslie Speaker - the lovely sound that it was, it wasn't quite giving me what I wanted… I could hear the sound in
my head, something harder, something more throughty, and much as I love the sound of the regular Hammond-
Leslie duo, it wasn't quite supporting Ritchie [Blackmore, guitarrista] to where Ritchie was beggining to go.
Ritchie doesn't like playing rythym guitar. Why should he? He is an astonish technician. Just playing
(tocando órgão) is not really of his treat. I don't blame him for that, but someone had to do it occasionaly so…
and I was doing it on a regular Hammond organ. What we got is (tocando órgão), you know, I little bit naughty.
While this is a lovely sound, it has got plenty of character, and it's a Hammond organ, but it wasn't quite Deep
Purple.
So I discussed with a technician that I was working with at the time the possibility of taping straight in
to the Hammond and put it throught to a straight speaker. That seemed like a (feasable) idea until I realized (…)
because in disguise with the Leslie. The Hammond organ is a beautiful machine to play, it's a great big burly
beast in a way, but it's controlable, and it's got all kinds of sofisticated differences in sound, all this tiny little
gradations that you can get on the drawbars, you know, give you slightly differences in sound and they are all
wonderful to play with. You tap straight in and put it trought a straight speaker and you got a beast (tocando
órgão). And that's the task that I've given myself. Was to play with some sensitivity and feeling with that sound.
Link da entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=4mW9b_KredQ.

77
Com esta nova concepção sonora nascida no fim da década de 1960, Deep Purple
gravou Machine Head, álbum lançado no ano de 1972. Lazy98, penúltima faixa do lado B do
disco, se estrutura sobre um blues de 12 compassos, e será o foco desta última pequena
análise formal.
A canção, que dura em torno de 7'30'', se inicia com uma introdução de órgão
Hammond, que está registrado com poucos harmônicos – um som “suave”, com caminhos
pelas harmonias e gestos organísticos não muito comuns ao rock e sem um pulso
determinado. Durante um curto ostinato rítmico, o órgão vai ganhando pouco a pouco a
dimensão de uma guitarra elétrica, quando seu som se distorce e ganha muito volume e certa
reverberação. As harmonias e gestos do órgão também ganham outra dimensão agora, Lord
parece realmente estar tocando uma guitarra ao ouvirmos as características quintas paralelas
entoadas ao Hammond distorcido. Subitamente, o som fica novamente “limpo” e, logo em
seguida, volta a ficar “sujo”. Essa sonoridade prevalece e, pela primeira vez, no fim do
primeiro minuto, a música pulsa num ritmo constante, no qual Jon Lord explora toda a
tessitura do teclado improvisando na escala do blues.
A introdução acaba, o som do órgão volta à “sobriedade”, a bateria começa a marcar o
pulso, e, em seguida, a guitarra “canta” o tema da canção – mas não inteiro, ao invés de
terminá-lo, a improvisa por alguns compassos. O tema é exposto em sua totalidade quando,
logo em seguida, uma segunda guitarra dá corpo a ele, que termina no início do primeiro
chorus do blues99.
Durante este e os dois próximos chorus a guitarra improvisa um solo. Existe uma
diferença harmônica em um trecho da terceira parte deste blues de 12 compassos em
particular – nono e décimo compassos. Ao invés dos acordes da dominante e sub-dominante
de fá menor, Deep Purple usa aqui o terceiro e sétimo graus maiores - C7 e Bb7 são
substituidos por Ab e Eb. Esta mudança harmônica se faz presente por toda a canção.
Após os três chorus de improviso da guitarra, o tema aparece mais uma vez e, em
seguida, Jon Lord faz um improviso solo que dura também três chorus – aqui, o som do órgão
Hammond novamente se assemelha ao da guitarra pela distorção empregada pelo organista.
Depois de o tema da canção mais uma vez ser entoado, o último trecho é repetido um
tom acima, caracterizando uma modulação, e a música se estabelece agora na tonalidade de

98 Gravação original no link: https://www.youtube.com/watch?v=dqM5L5JQseI


99 Durante a exposição dos temas, a bateria mantêm o pulso de uma maneira mais discreta. Nos chorus, o
acompanhamento ritmico é mais “solto”, levado com um gesto típico do rock.

78
sol menor. Tem início aqui a parte cantada da canção, que se estende pelos próximos dois
chorus e são seguidos por outros dois, nos quais há um improviso solo de gaita. Em seguida,
mais dois chorus vocais, nos quais a voz do cantor aparece com maior intensidade e a música
parece estar se preparando para acabar.
O tema aparece novamente, agora em lá menor (mais um tom acima), mas desta vez
não é apresentado nota-a-nota, há trechos improvisados e a bateria mantêm a mesma
dinâmica de antes. Essa última exposição do tema é seguida de três chorus de solos virtuoses
de guitarra. O fim do terceiro é prolongado e, depois de uma pausa tutti, a banda encerra a
música com uma típica cadência de blues.
A partir de meados dos anos 1970 o horizonte organístico começou a apresentar
notáveis modificações. Segundo Faragher, “o Hammond foi abandonado em favor do disco,
uma música que agora parece estranha, mas na realidade levou as gravações de estúdio para
um outro nível” (Faragher 2002:12)100. Ainda que com o passar dos anos vários músicos de
teclas fossem adotando outros instrumentos para o seu set, Charles Hodges, organista da
banda de R&B Al Green, continou a fazer uso constante de seu órgão Hammond B-3 em suas
gravações, por exemplo. “E haviam ainda Jimmy Smith, Richard Groove Holmes, Jimmy
McGriff e outros organistas old-school para fãs do jazz” (Faragher 2002:12)101.
Ao fim da década de 1980, “estava tudo acabado. A Hammond Organ Company
suspendeu sua produção, fechou as portas e vendeu os direitos do nome. Em geral, o órgão
Hammond foi abandonado por todos, com poucas exceções, em favor dos sintetizadores, e a
música mudou para pior em muitos aspectos. Muitos organistas Hammond de antes,
particularmente os jazzistas, em um esforço para sobreviver às mudanças do gosto musical, às
vezes aumentavam seu set de instrumentos com pianos elétricos e sintetizadores de vários
tipos, quase como envergonhados por serem muito associados ao órgão” (Faragher 2002:
12)102.

100 (…) the Hammond had been largely abandoned in favor of disco, a music which now seems strange, but in
fact pushed the recording studios and techniques to the next level.
101 And there were still Jimmy Smith, Groove Holmes, Jimmy McGriff, and other “old school” organists for
jazz fans.
102 (…) it was all over but for the shoutin'. The once mighty Hammond Organ Company ceased production,
closed shop, and sold the rights to the name. Generally speaking, the Hammond, indeed organ in general, had
been abandoned by all but a few stalwarts in favor of the synthesizer, and music had changed for the worse
overall in many ways. Many formerly exclusive Hammond players, particulary jazz organists, in an effort to
survive changing music tastes, sometimes heavily augmented their organ with eletric pianos and synthesizers of
various types, almost as if ashamed to be overly associated with organ.

79
Durante os anos 1990, surgiu nos EUA um novo interesse pelo órgão Hammond
conforme os organistas antigos, das décadas de 1950 e 1960, passaram a ser novamente
reconhecidos por músicos desta nova geração. Músicos como Joey DeFrancesco, Davell
Crawford e Charlie Wood ao mesmo tempo em que homenageavam organistas clássicos do
jazz e R&B estabeleciam sua própria música, seu próprio repertório. Gravadoras como Verve,
Blue Note e Prestige voltaram a lançar discos clássicos de organistas como Jimmy Smith,
Richard Groove Holmes, Wild Bill Davis e o brasileiro Walter Wanderley em CD. “Ao
mesmo tempo, o desenvolvimento de clones digitais do órgão Hammond continuavam em
rápido ritmo conforme a nova geração de músicos jovens desejava captar e tocar o som
clássico do Hammond (…). A criação de novos instrumentos digitais fez possível, pela
primeira vez, o transporte de maneira fácil do órgão Hammond, ou ao menos alguma coisa
que, pela primeira vez, realmente soasse como um” (Faragher 2002: 12,13)103.
Joey DeFrancesco é um dos músicos que reconheceram o trabalho de antigos
organistas de jazz e, influenciados por estes músicos old-school começaram a trilhar sua
própria carreira durante os anos 1990. Nascido no estado da Pennsylvania no ano de 1971,
Joey desenvolveu seu interesse pelo órgão Hammond desde muito cedo – seu pai, Papa John
DeFrancesco, é também um renomado organista Hammond.
De setembro de 1988 a março do ano seguinte, DeFrancesco integrou, tocando
sintetizador, a banda de Miles Davis, e foi presenteado por ele com um trompete. Em suas
performances, não são raros os momentos em que adota a prática de cantar enquanto toca o
órgão. Em outros temas, Joey, enquanto mantêm o acompanhamento do órgão com a mão
esquerda, entoa a melodia ao trompete com a mão direita. Sua discografia é composta por
inúmeros discos com outros jazzistas e inclui álbuns gravados com os célebres Jack McDuff e
Jimmy Smith.
Quanto ao som do instrumento no qual Joey DeFrancesco “gastou literalmente anos
estudando os vários estilos e técnicas de quase todos os renomados organistas” (Faragher,
2002: 248)104, ele diz que “é o som do órgão, quero dizer, é o som do Hammond… Esse lindo
som. Todo mundo o ama. Ele o faz sentir bem, é suave. As pessoas estão começando a

103 Meanwhile, the development of digital Hammond clones continued at a rapid pace as the new generation of
younger musicians sought to capture and play the classic Hammond sound (...) The creation of the new digital
instruments made it possible, for the first time, to easily transport a Hammond organ, or at least something which
for the first time really sounded like one.
104 (…) has spent literally years studying the various styles and techniques of nearly every significant
Hammond Organist.

80
perceber isso cada vez mais. Eu penso que ele está maior agora do que nunca” 105 (Faragher
2002: 248).

2.4. Registração ao Órgão Hammond

Retomemos o conceito de registração: “na execução do órgão e do cravo, a seleção de


diferentes alturas e timbres disponíveis. O potencial musical do órgão pode ser usado
seletivamente por meio de registros independentes que, juntos, produzem a intensidade e o
colorido sonoros do instrumento. Cada um dos registros aciona uma série de tubos, agrupados
de forma a que um ou mais tubos respondam a cada tecla em um teclado manual ou pedal”
(Sadie 1994:772).
E registro: “no órgão e no cravo, os diversos timbres, alturas e configurações sonoras à
disposição do executante e, por extensão, os dispositivos mecânicos utilizados para controlá-
los” (Sadie 1994:772).
O órgão Hammond, um instrumento musical eletromecânico eletrônico - cujo advento
regularizou a situação financeira da companhia estadounidense Hammond Clock Company,
em 1935 -, foi construído para ajustar-se aos padrões do órgão de tubos.
Contudo, as formas de produzirem as inúmeras intensidades e coloridos sonoros de
ambos os órgãos se divergem. O som do órgão Hammond não é formado por registros
independentes, mas por combinações de harmônicos independentes.
Na analogia a seguir, cada cor corresponde a um harmônico, que é controlado por um
drawbar: o órgão Hammond dispõe de “nove cores fundamentais do espectro sonoro” (Irwin
1952:V), e essas cores, quando combinadas nas diversas proporções, podem simular o som de
um violino, de um trompete, de um oboé, etc. “A força relativa de cada harmônico [dentro do
conjunto] proporciona a qualidade sonora (timbre) da nota como ouvida” (Sadie, 1994:408).
Um órgão de tubos de quatro registros, por exemplo, tem 15 combinações – sem
contar a combinação na qual nenhum registro está acionado - ou seja, 15 intensidades e
coloridos sonoros diferentes (apenas o 1 o registro, apenas o 2o registro, apenas o 3o, apenas o
4o, a combinação entre 1o 2o 3o e 4o, a combinação entre o 1o e 2o , entre 1o e 3o; 1o e 4o; 1o, 2o e
3o; 1o, 2o e 4o; 1o, 3o e 4o; 2o e 3o; 2o e 4o; 2o, 3o e 4o e, finalmente, 3o e 4o registros).

105 It's the organ sound, I mean, it's the Hammond sound… that beautiful sound. Everybody loves it. It makes
you feel good. It's soothing. People are starting to realize that more and more again. I think it's bigger now than
ever.

81
O órgão Hammond não tem registros independentes, mas cada um dos nove drawbars
controla harmônicos diferentes independentes, que podem se apresentar em nove intensidades
diferentes. Ou seja, ainda que por vezes extremamente sutis ao ouvido humano, as
combinações dos nove harmônicos do órgão Hammond em suas nove intensidades são muito
mais numerosas do que as diversas combinações de registros de um órgão de tubos – mesmo
que seja um órgão grande, como o do Mosteiro de São Bento, por exemplo, que possui 77
registros reais.
Com base nessas duas informações – o órgão Hammond pode produzir mais de 387
000 000 de sons diferentes e é um instrumento que foi construído para ajustar-se aos padrões
do órgão de tubos – Stevens Irwin, em 1939 – quatro anos depois do lançamento do
instrumento -, elaborou um “Dicionário para registros do órgão Hammond”, que o caracteriza
como “uma ponte entre os registros do convencional órgão de tubos e o órgão Hammond”
(Irwin 1952)106.
Cada um dos drawbars do órgão Hammond, por manipular harmônicos de diferentes
alturas, traz uma característica diferente para o resultado sonoro, as quais são designadas deste
modo no dicionário:
“I [drawbar, 16'] – acrescenta profundidade a qualquer registro;
II [5'1/3] – acrescenta uma qualidade metálica e abafada ao som, útil em registros de força;
III [8'] – acrescenta força fundamental a qualquer registro (o controlador mais útil);
IV [4'] – acrescenta luminosidade e suporte a qualquer registro;
V [2' 2/3] – acrescenta qualidade de cordas ou palhetas orquestrais a qualquer registro;
VI [2'] – acrescenta brilho a qualquer registro;
VII [1' 3/5] – acrescenta a qualidade de “metais” quando em grandes proporções ao timbre, e
qualidade de “cordas” quando em pequena proporção;
VIII [1' 1/3] – acrescenta a oitava do V (útil para complementar VII, mas geralmente usado
em menores proporções do que o VII drawbar);
IX [1'] – acrescenta grande brilho (para ser usado somente em registrações de organo pleno107,
ou como final de “curvas” de cordas; exceções a essa regra são raras)” (Irwin, 1952:6)108

106 To form a “bridge” between the conventional pipe-organ stops and the Hammond Organ.
107 Expressão para uma registração de órgão usando os coros mais importantes do instrumento (Grove
1997:679).
108 I – adds depth to any stop; II – add a dull, metallic quality useful in powerful stops; III – adds fundamental
power to any stop (the most useful Controller); IV – adds brightness and carrying power to any stop; V – adds
the String and Orchestral Reed quality to any stop; VI – adds brilliance to any stop; VII – adds a “Brass” quality
when drawn in large proportion to the other Controllers, and a “String” quality when in small proportion; VIII –

82
Segundo o autor,

A necessidade de um dicionário para as qualidades de timbre do Órgão Hammond se


tornou cada vez mais aparente conforme o uso do instrumento em residências,
igrejas, escolas, teatros, e auditórios públicos. (Irwin 1952)109.

O dicionário de Irwin “é divido em seis grupos de registros: principais, palhetas,


flautas, cordas, organo pleno e percussões” (Irwin 1952:3)110 - sons de Principal 8', Tuba
Imperial 8', Flauta de acompanhamento 8', Violino Baixo 16', Swell Pleno com palhetas e
misturas, e Glockenspiel 2' são exemplos respectivos às seis divisões. Seu título é seguido da
seguinte explicação: “uma introdução para tocar o órgão elétrico Hammond e uma tradução
dos registros do órgão de tubos em arranjos numéricos do órgão Hammond” (Irwin 1952)111.
Irwin apresenta também seis regras gerais “para aqueles cujo interesse [aos sons do
órgão Hammond] o leva além deste dicionário: 1. Não gaste tempo fazendo arranjos
numéricos que não têm valor musical. Das mais de 387 milhões de possibilidades sonoras,
muitas não trazem interesse nem para o organista tampouco para o ouvinte. Um arranjo como
18 4368 285 tem um timbre distorcido, não-natural e desinteressante. Você não misturaria
azul, amarelo e vermelho em um pote sem tomar cuidado; você tentaria obter delas uma cor
definitiva. Faça o mesmo com as cores fundamentais do espectro sonoro” (Irwin 1952:7)112.
Nota-se, então, a evidente intenção ao qual este trabalho foi elaborado, assim como o
desconhecimento dos rumos que o órgão Hammond iria levar dali em diante – já que Irwin
não contou, por exemplo, com palcos nem estúdios de gravação para a elaboração de outros
sons ao instrumento. A advertência de Irwin quanto à procura por sons sem “valor musical”

adds the octave of V (Useful to supplement VII, but usually in smaller proportion than VII); IX – adds great
brilliance (to be used only in Full Organ Combinations, or as the ending of String “curves”; exceptions to this
rule are rare).
109 The need of a “Dictionary” for the Hammond Organ tone qualities has become increasingly apparent as the
use of the instrument has spread into homes, churches, schools, theaters, and public auditoriums.
110 The Dictionary is divided into six divisions of stops: Foundation, Reed, Flute, String, Full Organs and
Percussions.
111 an introduction to playing the Hammond Electric Organ and a Translation of Pipe-Organ Stops into
Hammond-Organ Number-Arrangements.
112 Some general rules are here set down for those whose interest carries them beyond this Dictionary: 1.Don't
waste time making number-arrangements which have no musical value. Of the more than 387 000 000
possibilities, many have no interest to either the player of the listener. Such an arrangement as 18 4368 285 is
distorted in timbre to the point where it is unnatural and uninteresting. You would not mix blue, yellow, and red
in a paint-box carelessly; you would try to obtain from them a definitive hue, value and saturation. Do the same
with the fundamental colors of the sound “spectrum”.

83
ou “desinteressantes” denota mais uma vez a rigidez quanto à sua concepção do uso do
instrumento.
No dicionário de Irwin encontramos cerca de 3500 possibilidades de combinações de
harmônicos que podem ser experimentadas afim de encontrar timbres que simulam o som de
inúmeros registros do órgão de tubos. Muitos registros do órgão, como sabemos, simulam o
som de outros instrumentos.
O Dicionário Grove especifica as qualidades relativas aos timbres de alguns
instrumentos:

Quanto mais rica em harmônicos superiores, mais brilhante a sonoridade de um


instrumento; o oboé e o violino são instrumentos com muitos harmônicos mais
agudos, enquanto a flauta transversa e a flauta doce têm um som fundamental mais
forte e harmônicos [superiores] mais fracos e em número menor. O som “oco” do
clarinete é criado pela predominância de harmônicos ímpares (Sadie 1994:408).

As qualidades dos timbres apresentadas pelo dicionário Grove estão comprovadas por
Irwin em seus experimentos, visto que, dentre inúmeros sons de oboé e violino, há estes
exemplos:

Orchestal Oboe 8' No.57 - 00 3581 431,


Orchestal Oboe 8' No.58 - 00 3581 241,
Violin 8' No.6 – 00 2364 422,
Violin 8' No.7 – 00 2364 421,
(Irwin 1952:60,87).

Nota-se que os harmônicos agudos, de brilho - relativos aos últimos três drawbars - de
fato estão em abundância nestes exemplos de Irwin. A enorme quantidade de possibilidades
sonoras encontradas no Dicionário de registro do Órgão Hammond se dá por conta da mínima
diferença que pode existir entre o Violin 8' No.6 e Violin 8' No.7, por exemplo – os dois sons
de violino têm apenas um grau de diferença no último harmônico, de 1', o que torna o violino
No. 7, em tese, um pouco mais brilhante. Na prática, é difícil escutar essa diferença. A
variedade de adjetivos aos instrumentos também é grande - além de violin, são encontradas
várias opções de violino baixo, violino eco, grande violino, violino mudo e violino solo.

84
Dentre os sons de flauta selecionados para o dicionário, encontram-se

Flûte d'Amour 8' – 00 4120 000,


Full Flute 8' No.1 – 00 8750 000,
Forest Flute 4' – 00 0601 020,
(Irwin 1952:74).

Mais uma vez os experimentos de Irwin coincidem com a realidade física dos sons; as
flautas do dicionário “têm um som fundamental mais forte e harmônicos [superiores] mais
fracos e em número menor” - já que os drawbars do meio do espectro sonoro são os mais
presentes. Nestes exemplos, a única flauta que apresenta um harmônico de “brilho” é a flauta
4', que, por sua natureza, soa uma oitava acima do que as outras – como um pícolo113.
Para o clarinete, cujo som “oco” “é criado pela predominância de harmônicos ímpares,
o autor apresenta 56 soluções sonoras diversas. Dentre elas

Clarinet 8' No.20 – 00 5160 410,


Clarinet 8' No.40 – 00 4161 211,
(Irwin 1952:50).

Nota-se que em ambos exemplos o terceiro, quinto e sétimo drawbars são os mais
presentes, e correspondem à presença predominante do primeiro, terceiro e quinto harmônicos
da nota fundamental. Ainda que o No.40 pareça ter um som um pouco mais “magro” devido
ao menor índice do primeiro e quinto harmônicos (terceiro e sétimo drawbars), a
predominância dos harmônicos ímpares ainda se faz presente.
O início da introdução do “Dicionário para registros do órgão Hammond” apresenta as
seguintes palavras:

Os controladores de harmônicos do órgão Hammond criam possibilidades sonoras as


quais os organeiros do passado não teriam se atrevido a sonhar. Assim como o artista
plástico tem as três cores primárias – azul, amarelo e vermelho – ao seu comando, o
organista agora tem nove cores fundamentais do espectro sonoro. O som do
trompete e do violino são simplesmente cores diferentes no mundo do som. Eles são

113 Pequena flauta, também chamada “flautim”, que soa uma 8a acima da flauta orquestral (Sadie, 1994:724).

85
obtidos através da mistura das partes que compõem o espectro em certas proporções.
Essas proporções são o assunto deste dicionário. (Irwin 1952)114

As registrações que apontaremos a seguir se referem ao repertório com o qual Stevens


Irwin não contou para o seu dicionário, ou seja, àquele praticado, por exemplo, nas gravações
de discos ou shows de música popular, por artistas que exploraram o órgão Hammond sem se
preocupar com os antigos padrões organísticos. Cada arranjo numérico compõe somente um
timbre dentre tantos que o instrumento apresenta, e nenhum dos músicos se limitou a uma
combinação de harmônicos apenas, mas, por ventura, se identificou mais com algum padrão
sonoro. Aproveitaremos a notação apresentada por Irwin para as registrações do órgão
Hammond.
O modo como Jimmy Smith abordou o órgão Hammond, em uma época em que as
big-bands eram muito presentes, é algo inovador. Segundo ele mesmo revelou em 1964,
“enquanto outros pensam no órgão como uma orquestra inteira, eu penso nele como uma
trompa. Eu sempre admirei Charlie Parker… e eu tento soar como ele. Eu queria que a linha
melódica soasse como um trompete, um sax tenor ou sax alto”115 (Faragher 2002:348).
A intenção deste novo uso do instrumento que conta com uma verstalidade sonora
excepcional por parte de Smith acarretou em um novo padrão de manipulação dos drawbars.
Segundo o organista Joey DeFrancesco, Smith costumava usar essas variações de
registrações:

84 8000 000 ou 85 8000 000 (Vail 2002:186).

DeFrancesco aponta Jimmy Smith como o precursor de um novo modo de usar a


pedaleira: “Você está caminhando com a mão esquerda [fazendo a linha de baixo, walking
bass] e batendo o pé esquerdo em uníssono, bem staccato; então é quase como um pizzicato,
como num contrabaixo. Jimmy começou com isso. Você poderia fazer o walking só com os

114 The Harmonic Controllers of the Hammond Organ create tonal possibilities of which the organ-builder of
the past would not have dared to dream. As the artist has the three fundamental colors – blue, yellow, and red – at
his command, the organist now has nine fundamental colors of the sound “spectrum”. These he can mix in
millions of differente proportions, and thus obtain any shade or hue in a whole immense range of sound. Trumpet
Tone and Violin tone are merely different colors in the sound world. They may be obtained by mixing their
component parts in certain proportions. These proportions are the subject of this Dictonary.
115 While others think of the organ as a full orchestra, I think of it as a horn. I've always been an admirer of
Charlie Parker… and I try to sound like him. I wanted that single-line sound like a trumpet, a tenor, or an alto
saxophone.

86
pés, mas isso não teria aquele som tranquilo – a “carne” do baixo vem da mão esquerda.
Agora, eu posso fazer o walking com os pedais durante o dia inteiro; qualquer organista
deveria saber fazer isso. Mas isso não traz aquele som” (Vail 2002:187)116.
Jimmy Smith conta, em uma passagem de um artigo de 1964 para a revista Hammond
Times, uma outra experiência sonora: “Minha primeira grande gravação com a Blue Note
Records foi Walk on the wild side, para o filme de mesmo nome. Nessa gravação eu usei a
configuração 88 8000 001 no preset B do manual de cima, sem vibrato, e com a percussão
ligada” (Faragher 2002:348)117. Essa registração descrita pelo próprio Smith se diferencia em
pouco da apresentada por Joey. Há mais presença do harmônico da quinta 5' 1/3, o que,
claramente traz um “peso”, uma “agressividade” maior à soma sonora – ou, segundo Irwin,
acrescenta mais da “qualidade metálica e abafada ao som”. A “pincelada” do harmônico mais
agudo, ainda que seja a menor possível, também contribui para a soma, trazendo brilho ao
som.
As sonoridades da trompa ou do sax que Jimmy Smith – admirador de Charlie Parker,
que tenta soar como ele - buscava ao padronizar o som de seu órgão Hammond desta maneira
(tendo como base os três primeiros drawbars) se diferenciam, em muito, das propostas de
Irwin para os sons destes instrumentos.

English Horn 8' No.1 – 00 3682 342 (Irwin 1952:53),


Flügel Horn 8' No. 22 – 00 5777 000 (Irwin 1952:55),
French Horn 8' No. 1 – 00 6554 322 (Irwin 1952:55),
Saxophone 8' No.1 – 01 8762 431 (Irwin 1952:63),
Saxophone 8' No.29 – 02 8761 120 (Irwin 1952:63).

Outro organista Hammond que trabalhou bastante com a sonoridade baseada nos três
primeiros drawbars é Keith Emerson, músico que nasceu na Inglaterra no ano de 1944 e foi
um grande expoente do rock progressivo dos anos 1970. Ao lado de Greg Lake e Carl Palmer,
formava o trio Emerson, Lake & Palmer, no qual cada um dos três não usavam um

116 You're walking with the left hand and you're hitting your left foot in unison, very staccato, só it's almost like
a percussive pluck, like an upright bass. Jimmy started that. You could walk with just your foot, but it wouldn't
have that smooth sound – the meat of the bass comes from the left hand. Now, I can walk the pedals all day; any
organ player should be able to do it. But it doesn't have that sound.
117 My first big record with them [Blue Note Records] was “Walk On The Wild Side”, from the movie of the
same name. On this record I used a sole setting of 88 8000 001 on the upper manual B preset, vibrato off, and
percussion on.

87
instrumento principal, mas eram responsáveis, respectivamente, pelas teclas, cordas
(dedilhadas) e percussão - Emerson usava o órgão Hammond como mais um dos vários
instrumentos de tecla dos quais dispunha em suas gravações e apresentações. Suas
configurações para seu som ao órgão estão descritas aqui por ele mesmo:

88 8000 000

“Às vezes eu punha o drawbar dos 4' também. Normalmente eu mantinha o mínimo
de percussão, um pequeno ataque, no terceiro harmônico; eu nunca usei o segundo. O vibrato
C3 estava geralmente ligado para todas as partes. No manual debaixo, eu usava os drawbars
8' e 4'; para imitar o som das pás de um moinho, eu tinha apenas o 8' todo abaixado” (Vail
2002:174)118.
Booker T. Jones descreve a seguir as registrações com as quais configurou seu órgão
Hammond para o hit instrumental de 1962, Green Onions, o primeiro lançamento do grupo
Booker T. Jones & the MG's.

88 8800 000 (1o chorus)


80 8800 008 (2o chorus)

“Esse é meu som que está em muitas das minhas coisas, com o segundo ou terceiro
registros no manual debaixo para acordes tímidos - dependendo do quão alto ou baixo eu
quero que eles soem. Eu uso a percussão muito raramente porque não gosto dos overtones que
vêm daí. Não uso o disco do vibrato, a não ser que eu tenha a Leslie girando na maior
velocidade; assim, eu o uso para um efeito extra. Desde que comecei a tocar órgão, quando
pequeno, fui atraído pelo som mais reto, mais liso do instrumento. Essa é a real beleza do
Hammond, e ainda é como eu gosto de ouvi-lo” (Vail 2002:174)119.

118 Sometimes I'd have the 4' drawbar pulled out, too. Normally I kept percussion to a minimum, with a very
short attack, on the third harmonic; I never used the second harmonic. The C3 vibrato was usually on for all
parts. On the lower manual, I used the 8' and 4' drawbars; for windmill chops down the keys, I would just have
the 8' all the way out.
119 That's my sound on a lot of my stuff, with the second or third stop on the lower manual for quiet chords,
depending on how high or low I want them to be. I very rarely use a lot of percussion because I don't especially
like the overtones you get from it. And I don't use the vibrato dial either unless I have the Leslie full throttle;
then I'll use it for a little extra effect. Ever since I began playing the organ as a boy, I've been mainly enticed by
the straight sound. That's the real beauty of the Hammond, and that's still how I like to hear it today.

88
Essa configuração de timbre para o primeiro chorus de Green Onions revela-se como
uma opção mais “cheia” e “clara” ao timbre de Jimmy Smith. A diferença é a presença do
quarto drawbar, controlador do segundo harmônico, 4', que “adiciona brilho e poder para
qualquer registro” (Irwin 1952:6). Esse timbre também é o carro-chefe de outros organistas,
como Tom Coster, tecladista norteamericano nascido em 1941: “quando eu tocava com o
[guitarrista mexicano Carlos] Santana, eu costumava usar os 'drawbars de força', os quatro
primeiros, totalmente abaixados” (VAIL, 2002:174)120.
Quanto à registração de Jon Lord, organista da banda Deep Purple, Jimmy Pappon,
membro da banda paulistana Bombay Groove – que é um músico paulistano que foi
entrevistado para esta pesquisa - diz o seguinte: “eu sei que o Jon Lord usava uma coisa bem
parecida com o que eu uso. Vi ele comentando na revista Keyboard Magazine que ele usa
mesmo os quatro [drawbars] puxados e pra solo só acrescenta umas agudas. Existem algumas
variações, lógico, mas no geral é isso” (Pappon 2015).
Voltando ao campo do jazz, Joey De Francesco, organista nascido em 1971, oferece
novas possibilidades para a sonoridade do órgão Hammond:

88 8400 080

“Essa é minha configuração para solos, com o drawbar da quinta agudinha


adicionando um leve assobio. Para fazer um crescendo, eu ponho o órgão no tutti e faço
acordes, em blocos. Geralmente mantenho o manual debaixo com o primeiro e terceiro
drawbars; às vezes ponho um pouco de algum drawbar do meio. Quando estou tocando o
baixo no pedal e realizando o acompanhamento harmônico-rítmico (típico do jazz) no manual
debaixo, eu gosto também de colocar um pouco do quarto e sexto drawbars, que trazem
basicamente o mesmo som do primeiro e terceiro, mas é mais claro na parte grave da
tessitura. Eu mudo a configuração da percussão enquanto toco, mas quase sempre está no
terceiro harmônico e com decay rápido. Eu uso o vibrato C3, e quase sempre deixo o vibrato
no manual debaixo para engordar o som, deixa o baixo mais forte e traz os agudos então você
pode ouvir mais do key click.” (Vail 2002:175)121.

120 When I was playing with Santana, I had to use the 'power drawbars', the first four, all the way out.
121 This is my solo setting, with the 1' 1/3 drawbar adding a little whistle. To build a crescendo, I'll pull full
organ and do block chords. I usually keep the lower manual at first and third drawbars; sometimes I'll pull one of
the middle drawbars a bit. When I'm playing bass on the pedals and comping on the lower manual, I like to also
slighlty pull out the fourth and sixth drawbars; that gives you basically the same sound as the first and third, but

89
Key Click, ou “estalo da tecla”, é um termo aplicável aos órgãos Hammond mecânicos
– cujo som é produzido por tonewheels - que se refere ao som gerado pelos contatos de cada
harmônico conforme cada tecla é pressionada. É uma característica associada aos órgãos
Hammond, que vêm sendo reproduzida em alguns teclados digitais para alcançar uma
sonoridade mais fiel à original.
Dave Amels atribui esta característica como um dos elementos responsáveis pelo rumo
tomado pelo instrumento: “O órgão Hammond foi originalmente destinado a ser um substituto
do órgão de tubos. Houve um grande fracasso nisto porque suas notas têm um ataque muito
rápido. Mas isso o fez útil para outros tipos de música que não estritamente litúrgica.
Entretanto, o Hammond era muito mais barato do que um órgão de tubos, então um monte de
igrejas o usaram “ (Vail 2002:14)122.
Pedro Pelotas, outro músico entrevistado e tecladista da banda gaúcha Cachorro
Grande, diz o seguinte sobre os clicks: “O key click - claro, no Hammond de verdade você não
pode escolher, mas - eu sempre deixo bem evidente o click nos simuladores”.
Joey DeFrancesco, um novo expoente da tradição jazzística do órgão Hammond,
quanto aos presets, diz que “os organistas de jazz realmente não utilizam muito essas coisas. É
o tipo de coisa que as pessoas costumavam usar quando tocavam nos teatros” (Vail
2002:186)123. Para uma balada: “Quanto aos drawbars dos pedais, eu geralmente ponho o 16'
até o fim. Dependendo do órgão e da sala, às vezes você vai preferir ouvi-lo mais suave. Se
você está tocando acordes numa balada, ponha o drawbar 8' no nível 8, e o 4', no 5 [00 8500
000]”124 (Vail 2002:186).

it's clearer in the low range. I change my percussion settings as I play, but mostly it's on third harmonic and fast
decay. I use the C3 vibrato setting, and I almost always leave the vibrato on the lower manual to fatten up the
sound, make the bass stronger, and bring up the highs so you can hear more key click.
122 The Hammond Organ was originally intended as a replacement for the pipe organ. It failed miserably at that
because its notes have such a fast attack. But that made it useful for types of music other than strictly liturgical.
However, the Hammond was much cheaper than a pipe organ, so a lot of churches used it.
123 Jazz organists don't really utilize these things too much, you know? It's the kind of stuff that people would
use when they play [plays cheesy theater organ style].
124 On the pedal drawbars, I usually pull the 16' all the way out. Depending on the organ and the room,
sometimes you might want that to be softer. If you're playing chords on a ballad, pull your 8' drawbar to 8, and 4'
out to 5.

90
2.5. O órgão Hammond no Brasil, hoje.

Não demorou muito tempo, desde seu advento nos EUA em 1935, para que o órgão
Hammond começasse a ser usado também por músicos de outros lugares do mundo. Na
Jamaica, “o mestre do reggae Bob Marley começou [a se popularizar] nos anos 1960, e estava
usando o órgão Hammond naquela época” (Vail 2002:20) 125. Walter Wanderley foi um dos
primeiros organistas Hammond brasileiros a ser reconhecido internacionalmente. “Ele se
tornou famoso nos EUA através da bossa nova126, que chegou lá no começo dos anos 1960”
(Faragher 2002:377)127. “Enquanto muitos dos notáveis organistas de jazz tem um som similar
em certo grau, Walter Wanderley é instantaneamente reconhecível por seu uso intenso da
percussão e reverb ao órgão Hammond” (Faragher 2002:377)128.
Com o propósito de estar a par de algumas atividades musicais nas quais o órgão
Hammond se faz presente nos dias de hoje, foram entrevistados seis músicos brasileiros que
tiveram algum contato com o órgão Hammond em algum momento de suas carreiras. Daniel
Latorre, Marcelo Jeneci, Pedro Pelotas, Henrique Gomide, Jimmy Pappon e Arnaldo Baptista
são estes músicos, que se envolvem com o som do órgão Hammond de distintas maneiras, a
partir de diferentes instrumentos e a fim de diversas ocasiões. Trechos das entrevistas
apresentarão influências, ideias sonoras, registrações e outros aspectos e sensações de cada
músico acerca do instrumento.
O primeiro entrevistado tem o órgão Hammond como seu principal instrumento
musical. Daniel Latorre, músico paulistano, é fundador do Hammond Grooves, um órgão
trio - lendária formação composta por órgão Hammond, guitarra e bateria e estreada nos EUA
por Fats Waller em gravação de 1941. Latorre usa um Hammond B-3, modelo consagrado
pelos organistas mais famosos, lançado em 1955, e tem sua principal atividade ao órgão
Hammond vinculada às práticas com o grupo.

125 Reggae master Bob Marley started in the 1960s, and he was using organ back in that day.
126 Estilo de música popular brasileira que se consolidou no final dos anos 50, e que trouxe profundas
mudanças ao samba urbano do Rio de Janeiro. (…) A bossa nova chegou aos Estados Unidos através do próprio
João Gilberto, em parceria com instrumentistas como Stan Getz e cantores como Astrud Gilberto. Em 1962,
realizou-se no Carnegie Hall o primeiro Festival de Bossa-Nova, que obteve bastante repercussão, e deu início à
divulgação internacional do gênero. (Grove 1994:125).
127 Walter Wanderley rode to fame in America on the popular wave of Brazilian bossa nova music, which
reached our shores in the early 1960s.
128 While many of the great jazz organists sound similar to some degree, Wanderley is instantly recognizable.
He is heavy on both percussion and reverb.

91
O contato de Latorre com o órgão Hammond aconteceu por acaso: “sem querer, estava
assistindo televisão e passou um vídeo do Jimmy Smith” (Latorre 2015). Após o imediato
entusiasmo com aquele som, Daniel conseguiu “descobrir que existia o órgão Hammond, e
consegui associar que as músicas dos discos que eu estava curtindo, todos eles, tinham o tal
do órgão Hammond” (Latorre 2015).
Dentre os organistas de jazz que aprecia estão “Jimmy Smith, Jack McDuff, Jimmy
McGriff, Dr. Lonely Smith - com o qual tenho mais afinidade ainda… Tem um monte, tem o
Richard “Groove” Holmes, tem um montão de caras muito bons que eu acabei indo garimpar,
descobrir e escutar. Todos esses acabaram virando influência porque cada um tinha um estilo
diferente. Eles tinham coisas em comum, mas todos eles tinham estilos diferentes, então era
legal você começar a identificar cada estilo” (Latorre 2015).
As registrações ao órgão que o músico utiliza ao tocar variam “porque cada música é
um sentimento que você muda. A registração do Hammond ela… a música popular permite
uma improvisação bem grande. Para um litúrgico erudito é um pouco mais fixo, você não
troca tanto de registração, a não ser que a peça peça isso. Na música popular, você muda a
registração [conforme] o teu sentimento, o teu momento - até na mesma música, se você quer
tocar um dia de um jeito ou de outro. Então é difícil de falar uma registração fixa, porque na
verdade é o som dos caras que me influenciaram, é a registração deles. Não teria nada de novo
e de diferente pra adicionar. Para o rock, por exemplo - que eventualmente eu toco e gosto
também - a gente é até mais limitado em termos de registração do que no jazz. O jazz é bem
rico em registração, o blues é um pouquinho mais também. Mas, de qualquer maneira, é
difícil de passar uma registração, sendo que ela não é fixa. E outra, de acordo com o ambiente,
com a resposta acústica que você tem, você pode ajustar a sua registração”. (Latorre 2015).
Mark Vail, em seu livro “The Hammond Organ Beauty in the B”, diz que Richard “Groove”
Holmes, uma das referências de Latorre, tinha o som da registração 88 8000 008 com vibrato
C2 como um dos seus preferidos (Vail 2002:175).
Assim como “Wild” Bill Davis - o primeiro organista a trazer o Hammond de
modo mais abrangente para o jazz - e Jimmy Smith – aquele que “elevou o órgão de um
instrumento big-band para um instrumento solista, para um tipo de música mais bebop” (Vail
2002:18)129 -, Daniel Latorre começou suas experiências musicais ao piano e, mais tarde,
quando conheceu o órgão, passou a dedicar seus estudos a este outro instrumento de teclado.

129 Jimmy Smith elevated the organ from being a big-band instrument into one for playing linear, more bebop
type of music. Jimmy Smith was the line between blues and bebop.

92
Sobre essa mudança, Latorre relata que “a adaptação não foi só com a pedaleira não, foi
100%, é outro instrumento, não tem nada a ver. (...) Você senta no Órgão Hammond não sai
nada, não sai nada… A pedaleira é o de menos, não sai nada, você não consegue tocar nada.
Você não está acostumado com uma nota que não tem decay130 – começa por aí: como é que
você toca um negócio que não tem decay e não tem touch131? Se você for parar pra pensar, é
outro instrumento, outra maneira de pensar, inigualável. Demorou algum tempo, a pedaleira
eu acabei estudando como se estuda pedaleira de música erudita – se bem que você acaba não
usando tanto essas técnicas porque é outra “onda” de tocar. O uso da pedaleira é diferente pra
cada tipo de música que você vai tocar ao Hammond. Se for música erudita, você vai usar a
técnica de música erudita. Mas aí é que está, o formato da pedaleira, para o organista erudito -
da pedaleira do Hammond tradicional, B-3, C-3 - já é esquisito, porque ela é reta, curvada,
tem só vinte e cinco notas, e o pessoal começa a ficar bravo. Mas pro repertório popular é
mais do que suficiente. Demorou um tempo ali, fiquei ralando um tempo sozinho porque eu
não conhecia muita gente que podia me ajudar nisso, então a transição foi dolorosa, foi triste,
porque você senta lá achando que vai tocar alguma coisa e não sai nada” (Latorre 2015).
Daniel Latorre usa um órgão Hammond modelo B-3, o mais consagrado lançamento
da Hammond Organ Company, apontado pelo organista de jazz e blues Moe Denham como “o
instrumento, além do piano acústico, que quase todas os fabricantes de teclados eletrônicos
constantemente tentam emular” (Vail 2002:10)132. “Com ele que eu consigo fazer o som que
eu gosto, minhas referências também usavam, né? Não só eu, todos os organistas mesmo
concordam que o ápice, o instrumento que a Hammond fabricou de maior perfeição e beleza,
é o B-3. Então não tem jeito. Eu tentei até ir pra outros modelos e não satisfaz. Pra mim. Isso
é uma coisa pessoal” (Latorre 2015).
Algumas companhias fabricaram diversos modelos de simuladores do órgão
Hammond modelo B-3. É o caso, por exemplo, da Clavia Nord, Hammond Suzuki, Korg e
Roland – alguns modelos terão mais atenção ao fim deste sub-capítulo. Segundo Latorre,
“todos são muito legais, cada um com uma característica, são bem legais. Mas não substituem
o Hammond de verdade ainda” (Latorre 2015).

130 A nota gradualmente perde intensidade após seu ataque nos instrumentos com Decay. O órgão não conta
com esta propriedade, já que, enquanto pressionada a tecla, passará ar pelo tubo correspondente e, então, alguma
nota soará.
131 O órgão não possibilita nenhuma dinâmica manual, pelo toque, touch.
132 (…) the one instrument, besides acoustic piano, that almost every electronic keyboard company is
constantly trying to emulate.

93
“A referência das pessoas [do órgão Hammond] não existe mais. Então um dos
motivos de eu criar o trio é exatamente esse, pôr no cenário – se é que ele existe – a
oportunidade de uma pessoa falar: “Puxa, eu quero escutar um Órgão Hammond, nunca vi”.
Vá lá no Hammond Grooves que você vai ouvir. Eu me empenho pelo menos o máximo que
eu consigo em tocá-lo de acordo, pelo menos pra pessoa ouvir legal o som. Eu faço o
máximo. Claro, sempre a gente pode melhorar - e esse é um objetivo - , mas esse tipo de
comprometimento eu não conheço quem tenha. Aliás, com nenhum outro instrumento, sabe,
de você levar pra mostrar a referência pras pessoas. Isso seria maravilhoso, por exemplo, da
mesma forma que você me achou, um monte de gente fala “Putz, nunca vi e ouvi um Órgão
Hammond de verdade. Aí o cara acha que aquele teclado vai fazer som de Órgão Hammond...
Até faz, é legal pra caramba, mas é aquela coisa, não é. É e não é, entendeu? O cara não
conhece. E o cara não conhecendo de verdade, não estar acostumado a ouvir de verdade, não
tem como julgar se é ou não é. Então esse é um ponto. É inigualável o Hammond acústico,
você ouvir ele na realidade não tem nada a ver com nada do que você já ouviu! É muito
difícil, nem em gravação você consegue. Gravação é apenas uma foto, mesma coisa do que
você estar num lugar vendo uma paisagem e pegar uma foto. Se a foto for muito bem tirada,
muito bem tratada, vai ficar bonita, mas vai continuar uma foto. É isso. O Hammond é
tridimensional, joga o som pra tudo quanto é lado, é harmônico pra caramba. Com todos os 48
bits dos recursos de gravação você não consegue registrar a quantidade de harmônicos que ele
tem ao vivo, entendeu? Então não adianta, tem que se prezar pela referência de você ouvir
isso” (Latorre 2015).
“O órgão Hammond foi originalmente destinado a ser um substituto do órgão de tubos.
Houve um grande fracasso nisto porque suas notas têm um ataque muito rápido. Mas isso o
fez útil para outros tipos de música que não estritamente litúrgica. Entretanto, o Hammond era
muito mais barato do que um órgão de tubos, então um monte de igrejas o usaram” (Vail
2002:14)133. Este ataque rápido das notas ao qual Dave Amels se refere no livro “The
Hammond Organ Beauty in the B” é um dos defeitos do órgão Hammond comentados por
Latorre: “você tem que lidar com uma série de “defeitos” que ele tem e transformar isso em
qualidade (…) São defeitos, ninguém disse que é ruim. Ruim é uma qualidade, é um tipo.
Não. É um defeito, e era considerado como defeito para, por exemplo, um purista de órgão de

133 The Hammond Organ was originally intended as a replacement for the pipe organ. It failed miserably at that
because its notes have such a fast attack. But that made it useful for types of music other than strictly liturgical.
However, the Hammond was much cheaper than a pipe organ, so a lot of churches used it.

94
tubos. São os defeitos elétricos dele. O Órgão Hammond tem mais defeitos do que você
imagina. O key-click dos contatos é um defeito, a interação harmônica das notas, chamada de
fouldback, é um defeito. (…) A resposta do pedal de expressão é diferente, era considerada
um defeito… Então tudo isso você tem que considerar como som, não como defeito, porque
acabou ficando parte do instrumento. Se você tirar essas características que eram consideradas
como defeito – e hoje são características – acabou o instrumento. Você precisa lidar com isso,
é diferente, e é uma coisa que você não tem controle, não tem um botão “quero menos isso,
mais isso”. Isso está lá presente, você tem que usar, descobrir como usar, isso aí é uma
descoberta.” (Latorre 2015)
A interação harmônica entre as notas se “chama fouldback (…). O órgão é mecânico,
eletromecânico e eletrônico, e as notas interagem entre elas, elas tem uma sobra quando você
toca notas junto. Essa sobra cria um sub-harmônico que você na verdade não considera, mas
ele está lá, ele faz parte do som. Tem milhões de coisinhas, detalhezinhos do órgão Hammond
pra descobrir que pouca gente sabe, pouca gente vai atrás, isso que é uma coisa muito
interessante” (Latorre 2015).
Ainda que o órgão Hammond não seja, como para Latorre, o carro-chefe do músico
Marcelo Jeneci, a sonoridade deste instrumento também se faz presente em seu trabalho.
Jeneci, músico paulistano, gravou em 2013 seu segundo disco, “De Graça”, no qual, além de
cantar seu trabalho autoral, se reveza entre o piano, cravo, órgão de tubos, sanfona e outros
instrumentos musicais.
O contato de Marcelo com o órgão Hammond aconteceu “através da música
progressiva que meu pai me apresentava. (…) Estive desde a infância ouvindo isso e com a
vontade de ter aquele som. Foi através da música progressiva, Led Zeppelin, Yes, Genesis,
Rick Wakeman, Jean Michel Jarre, esses caras assim. Nisso tudo eu tinha cinco, seis, sete
anos de idade, quando ficava adorando escutar. Meu pai que foi apresentando isso pra mim.
Foi assim, através da música que ele fazia. E já dava a leitura que ele fazia “Isso aqui é muito
bom, isso aqui é o melhor, isso aqui tem que escutar”. Então veio aí, de querer reproduzir
aquele som que eu escutava nessas gravações maravilhosas de que eu acabei de comentar”
(Jeneci 2015).
Desde pequeno, Marcelo é influenciado musicalmente por diversos artistas, como
Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Tom Jobim. “Depois veio a sanfona, então comecei a
mergulhar no universo mais regional, pernambucano e nordestino de um modo geral” (Jeneci

95
2015). “Em seguida vieram os sintetizadores e a guitarra, e comecei recentemente a mergulhar
no universo da música indie, internacional - com essa variação muito rica de resultados
sonoros, de espectro sonoro muito bem manipulado, com efeitos e essas canções expandidas
em que você fala uma frase, pinta um mega instrumental, depois volta... Então é difícil de
dizer o que eu gosto, eu acho que eu gosto de tudo um pouco” (Jeneci 2015).
Com isso, “quando eu estou no Hammond, no órgão, o que eu gosto mesmo é de trazer
aquela sensação de nave decolando rumo aos céus, aquele som que parece uma coisa mais
emotiva mesmo, e acho que no piano também, algo mais ascendente, sempre pensando em
melodias que vão de maneira imprevisível assim ascendendo. Isso está ligado ao trato da
música que eu consumi e à música que eu faço. Eu até brinco dizendo que eu tenho complexo
de 'épico', porque a maioria das músicas que eu faço tem uma coisa meio épica assim que é
um ARGH: se deixar, ao invés de manter aquela elegância da coisa estável, aquela corrente
que não altera muito, se eu não me cuidar, eu estou sempre levando para um lado mais épico o
som. (…) Agora, amo James Blake, amo os organistas que criaram bastante esse caminho da
música feita nos órgãos. Tanto a música gospel, a música mais pop, o braço que se estende da
liturgia com a música popular através dos Hammond portáteis nas igrejas norte-americanas - a
variação daquele negócio para uma coisa muito mais africana ao mesmo tempo, sabe, através
de um suingue pouco misturado antes. Eu gosto, na verdade, das misturas, mais do que dos
ingredientes ou das purezas, da mistura que dá” (Jeneci 2015).
O compromisso com a novidade de Jeneci está presente também na escolha dos sons
que o músico procura no órgão Hammond: “eu parto da não rigidez estética pra manipular os
drawbars, sem nenhum destino claro. “Ah, eu quero chegar nesse timbre, quero chegar
naquele...”. Geralmente eu vejo o que combina mais com a música e vou timbrando pensando
no espectro sonoro de tudo o que já está gravado da base, que harmônicos faltam para
preencher aquele quadro todo. Eu vou mais por aí, pelo espectro sonoro. Por isso que eu gosto
dele, você pode perceber uma base que tá faltando um pouco da região tal, da região tal, da
região tal, e você vai chegando com ele e vai deixando tudo mais redondo. Além de ser muito
bom como instrumento de nota lisa, de nota branca, de nota contínua pra inclusive afinar todo
o resto. Normalmente quando se grava baixo, instrumentos de cordas, guitarra, você afina e
tal, a pessoa vai e canta. Se não tem um lance de uma nota lisa, não fica aquela harmonia do
afinado e, dentro disso, o charme da desafinação; fica um pouco solto. Então eu acho ele
também muito bom pra cimentar uma base de notas contínuas, notas esticadas, notas longas.

96
Uso bastante pensando nisso também, pra causar a afinação que ainda falta numa base ou
outra em que eu sou chamado pra gravar” (Jeneci 2015).
“Eu acho o timbre do órgão Hammond magnífico porque ele mexe com a parte de
cima e de baixo (…), seja a área celestial, seja a área do chacra sexual, de botar a galera pra
dançar, sabe? E ferver. E o negócio mais da música quente, calorosa, e ao mesmo tempo essa
coisa mais celestial, com esses harmônicos todos, com essa onda senoidal muito bem
reproduzida nele. O que eu acho é isso, um instrumento magnífico e muito versátil, podendo
atuar na maioria dos gêneros musicais que eu conheço com resposta efetiva. Se eu quiser
fazer uma música safada eu posso timbrar um órguinho safado lá; se eu quiser fazer uma coisa
próxima da liturgia, de música erudita, de organista, pra fazer aquela sensação de que o céu
esta descendo e a terra esta subindo, dá pra fazer no Hammond. Se eu quiser fazer um lance
mais rock, com a Leslie gritando, fazendo o drive134 (…) dá pra ir também. (…) E ao mesmo
tempo aquela música da soul music romântica, em que você faz aquele timbre meloso, (…)
também dá pra fazer. Então eu acho que é um instrumento que facilmente comunica com o
coração das pessoas se for bem usado. O timbre eu acho magnífico, é um instrumento
magnífico e muito rico nas possibilidades de timbre. Mais do que um piano, por exemplo”
(Jeneci 2015).
“Nem sempre o Hammond é a melhor opção, às vezes os mais safadinhos resolvem
mais pra chamar a atenção de uma melodia ou outra. Fiz algumas gravações na vida com o
Hammond, mas porque também já tinha a vontade da pessoa. Acho que o Hammond foi mais
famoso no meu imaginário musical e minha memória musical. O Hammond na minha vida
vem muito daí, mais do que a minha certeza de que é ele o melhor pra eu usar. Em algumas
situações é, e em outras, não. Isso depende de cada música. Por exemplo, compondo [o álbum
“De Graça”] eu percebi que caberia o órgão de tubos porque eu queria fazer algo mais
próximo de flautas. Então fui pro órgão de tubos em um das músicas que eu usei no “De
Graça”. Teve bastante dele por causa dessa vontade de ter um órgão que responda mais
naquele registro das flautas, e menos do que o Hammond responde.
(…) Eu sinceramente acho o B-3 um tanto difícil de tirar som, no sentido de tirar um
som com personalidade. É mais fácil ficar naquele som padrão já tanto explorado com a caixa
Leslie pra usar em músicas um pouco mais rock. Nunca estive muito tempo em um B-3 pra
ficar domando ele, então recorria a vários órgãos que já traziam a personalidade no som

134 Efeito que controla a quantidade de saturação, distorcendo o sinal elétrico do instrumento, podendo causar
“sujeira” ao som.

97
imediato, por exemplo tem um nacional… tem o Gambitt, que eu acho legal, um ou outro…
enfim, são os órgãos que eu tenho. Eu tenho um Saema, um Gambitt, usei bastante um outro
nacional chamado Digitone, pensando nesses timbres um pouco mais próximos dos timbres
iê-iê-iê135 - apesar de que o Saema eu achei legal porque ele manipula sete notas a cada tecla,
tem sete agulhas pra cada tecla, então simula bastante a abertura das quintas todas dos
drawbars do Hammond. Eu gostei desse Saema que eu peguei, achei ele interessante nesse
lugar e tal. Qual outro? Tem um que eu não lembro o nome agora. Eu fiquei com muito desejo
– e ainda tenho – de ter um Philicorda, que é um órgão da Philips pequeno” (Jeneci 2015).
Em passagem de seu livro, Scott Faragher diz que “Laurens Hammond não só criou o
órgão caseiro, mas também criou um mercado para este órgão, e é, em algum nível,
responsável por tudo o que, na sequência, desenvolveu-se na evolução do teclado elétrico,
incluindo modernos pianos elétricos e sintetizadores” (Faragher 2002: xxiv) 136. Estes
instrumentos citados por Jeneci são apenas alguns exemplos de outros órgãos elétricos que
surgiram depois da ideia de Laurens e, como outros que ainda serão citados, terão maior
atenção ao fim deste sub-capítulo.
Pedro Pelotas é um músico gaúcho que também mantêm presente a sonoridade do
órgão Hammond em seu trabalho que, assim como o de Marcelo Jeneci, está envolto no
âmbito da canção popular, e não da música instrumental. “Eu vivo de música, eu só trabalho
com música, eu sou o tecladista do Cachorro Grande e também eventualmente faço coisas por
fora, mas basicamente meu sustento é a banda mesmo. É o piano que paga minhas contas, o
teclado” (Pelotas 2015).
Quanto às suas influências musicais, “basicamente o que eu mais gosto de ouvir é
rock. Claro que as principais influências estão dentro do rock. O cara que eu mais amo no
mundo era na verdade mais pianista do que organista; é o Nicky Hopkins, que tocava com os
Rolling Stones. Ele também gravava órgão de vez em quando, mas os Stones preferiam gravar
órgão com o Billy Preston, que é pra mim um dos maiores organistas da história.
Principalmente porque ele trouxe essa coisa do gospel pro rock'n'roll, pro blues. E como ele
era um cara bastante presente nos discos das outras pessoas – ele tocava nos discos do John
Lennon, George Harrison, tocou com os Beatles – então ele teve oportunidade de aplicar

135 Iê-iê-iê foi usado como denominação do rock'n'roll brasileiro na década de 1960. O termo surgiu a partir da
expressão yeah, yeah, yeah, presente em algumas canções dos Beatles, como “She Loves You”, por exemplo.
136 It's not a stretch to say that Laurens Hammond not only created the home organ, he also created the home
organ market, and is to some degree responsible for everything that subsequently developed in the evolution of
the electric keyboard, including modern electric pianos and synthesizers.

98
coisas das músicas gospel e clássica no rock. Billy Preston é um dos organistas de maior
referência pra mim. Mas tem centenas, poderia ficar falando sobre referências aqui contigo
horas. O Rod Argent do Zoombies acho muito legal como organista, o cara do Procol Harum
também é um organista muito legal, adoro o Arnaldo Baptista d'Os Mutantes – pra mim é um
gênio sagrado aqui do Brasil – enfim, tem centenas de referências” (Pelotas 2015).
Diferente de Daniel Latorre e Marcelo Jeneci, que já haviam travado contato com o
som do órgão Hammond desde cedo, Pedro Pelotas diz que “quando eu comecei a tocar não
existiam muitos simuladores e os que existiam não eram bons. E eu tinha uma resistência
forte com simuladores, eu usava o piano Rhodes, Fender Rhodes, e levava ele em todos os
shows. Então eu não usava nem pra sons de piano elétrico, nem de órgão e nos primeiros
shows da Cachorro Grande eu só usava som de piano elétrico. Depois eu descobri os
sintetizadores - mais ou menos na mesma época eu descobri o órgão e o sintetizador, que foi
na gravação do terceiro disco, em que gravei pela primeira vez com som de órgão emulado.
Mas eu nunca tinha tocado num Órgão Hammond de verdade, eu estava recém começando a
transitar nesse terreno, com esse tipo de timbre e essa linguagem de órgão, que é diferente. A
dinâmica toda você faz no pedal de volume, ainda estava muito pouco acostumado com esse
ambiente. Mas a partir do quarto disco eu fui me aprofundando mais e o cara da gravadora
comprou um Hammond B-3 (…). Antes de a gente gravar o disco, fomos comprar esse órgão
e aí que eu realmente vi o potencial do instrumento mesmo.
Realmente do lado dos emuladores é uma comparação bem complicada - apesar de
que de 2007 pra cá as coisas mudaram bastante. Nos shows eu comecei a usar um emulador
pra ter o som de Hammond. Eu tinha um TX3, da Korg, que é muito bom e tal, mas agora eu
até vendi ele porque comprei um Nord 4, e o sistema de Hammond da Nord tá realmente
muito impressionante, uma coisa que… antigamente eu não diria isso, mas hoje em dia estão
cada vez mais perfeitos os samplers137. Então, claro, tu bota do lado de uma caixa Leslie – é o
que mais faz diferença na minha opinião, a Leslie do que o próprio órgão... Ligando o Nord
ou um Hammond numa Leslie vai ser bem difícil, no meio de uma gravação, distinguir um do
outro. Mas com certeza do lado, testar um, testar outro, é evidente a diferença. Mas, enfim,
(…) foi lá por 2007 que eu fui transitar confortavelmente nesse ambiente organístico” (Pelotas
2015).
137 Em música, é um software ou um hardware feito para armazenar amostras de áudio de arquivos em diversos
formatos, de origem digital (WAV, flac, mp3, etc) ou analógica (LP, fita magnética), que são alocados em uma
memória usualmente digital, com a finalidade de poder serem reproduzidas e/ou reprocessadas posteriormente
(…). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sampler

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As registrações usadas por Pedro Pelotas ao órgão Hammond variam. “Como as
possibilidades são muitas, a gente procura sempre não se repetir. Mas na maioria dos casos eu
uso bastante a percussão, eu adoro o som da percussão. O key click - claro, no Hammond de
verdade você não pode escolher, mas - eu sempre deixo bem evidente nos simuladores. E o
vibrato é o que eu uso menos, menos da metade dos casos, mas de vez em quando eu uso
também. Pra maior parte dos casos eu parto dos três primeiros drawbars abertos e daí vou
abrindo os outros, às vezes mais, às vezes menos – claro que em alguns casos não, não uso os
primeiros registros, uso mais os agudos. Por exemplo, tem uma música que chama “A Hora
do Brasil”, do disco “Cinema”, em que eu uso no teclado debaixo os três primeiros registros
[drawbars], depois os da terça e quinta [sétimo e oitavo drawbars], e, no refrão, só a
percussão, sem nenhum registro aberto. Isso também é um recurso legal de usar, tem aquele
decay, não tem sustain. Eu uso pra fazer um picotadinho, um stacatinho, então… Sei lá,
procuro explorar o máximo possível as possibilidades”. (Pelotas 2015). Quanto ao harmônico
da percussão: “depende, eu vario. Mas, por exemplo, nessa música a percussão é no terceiro
harmônico.
(…) Eu tenho gostado muito também dos órgãos transistorizados, o Vox, o Farfisa...
Existe um órgão Gibson, que Ray Manzarek do The Doors usava. Mas eu estou com um
Farfisa em casa, que é um órgão que tem um outro som, também é muito interessante. O Vox
também é muito legal - tem no Nord e agora eu descobri numa livraria de samplers do “Pro
Tools”138 também. Os Mutantes, por exemplo, ligavam o Vox numa Leslie e fazia um som
parecido, mas diferente do Hammond. (…) Eu também acho muito legal outros tipos de
órgão. E até esses órgãos brasileiros que imitam os italianos, o Gambitt, Saema, também são
legais, cada um pra sua coisa, cada um pra sua área. Mas mesmo sendo um instrumento com o
mesmo nome, teoricamente pra mesma função, diferentes marcas te levam para diferentes
timbres e diferentes resultados. Ultimamente eu tenho procurado também explorar esses
outros órgãos. No começo, eu só conhecia o Hammond, mas agora na Cachorro Grande e nas
minhas coisas que tenho composto em casa também tenho procurado utilizar esses órgãos
transistores, que também são muito legais. O Pink Floyd usava bastante, The Animals usava o
Vox, então são referências que eu amo também (...)” (Pelotas 2015).
Henrique Gomide é músico, pianista, compositor e arranjador, tecladista do conjunto
instrumental Caixa Cubo. “Nasci dia 7 de Janeiro de 1988 em São Paulo (…). Eu

138 Estação de áudio digital que integra hardware e software para a produção de áudio.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pro_Tools

100
sinceramente, apesar de ter um grande interesse por Órgão Hammond e órgão também, eu
nunca me aprofundei na parada. Eu sou do piano, toco um pouco de sanfona e uso o
Hammond geralmente de uma maneira bem roots e tosquera, assim com tecladeras, achando
meus próprios sets. Tenho um Nord Electro 3 HP” (Gomide 2015).
Suas primeiras influências musicais vieram pelos estudos de piano clássico, em que
travou contato com um repertório que inclui Bach, Beethoven, Chopin e Haydn, por exemplo.
Mais tarde, Henrique entrou para uma banda em que tocava canções de bandas de rock como
The Doors e Deep Purple “e durante uma boa fase sem baixista. Então eu fazia como o Ray
Manzarek a linha do baixo na mão esquerda do teclado. (…) A estória da música brasileira
veio mais tarde. Apesar de sempre ter ouvido um pouco, ter aprendido um choro139 ou outro
quando eu era moleque, foi na USP mesmo que eu comecei a enveredar bastante para a
pesquisa de música brasileira. Com o Pedro Bruschi e o André Bachur começamos a Roda de
Choro, começamos a aprender os temas juntos (…).” (Gomide 2015).
A partir dessa pesquisa do choro mesclada à prática ao órgão Hammond, Henrique
concebeu uma sonoridade: “Tem um lance com o Hammond, (...) mais uma concepção que eu
consigo visualizar e consigo imaginar que é uma parada sensacional, só que eu ainda não
dediquei um tempo da minha vida pra fazer isso (...). Chama Jimmy Smith no Choro. O
Hammond pode ser tão bem usado num Regional 140, tenho feito experiências dessas.
Hammond e Regional de Choro. (…)
Dependendo de como a pessoa toca violão (...) você pode dividir o groove de uma
maneira muito legal com o Hammond. Se o cara tá tocando aquele violão de 7 cordas
tradicional, você vai embolar. Agora, se você deixa a mão esquerda do Hammond só tocando
as notas da cabeça do compasso, (...) seco, sequinho, e na mão direita, quando o outro está
solando, você deixa (…) um pouco mais baixo, fazendo só acordes - whaca whaca como eles
chamam, eles falam whaca whaca man quando você toca essas paradas. Uns whaca whaca,
um tamborinzinho no Nord com esse grave assim e o violão fazendo harmonia às vezes seco
também. Quando eu estou mais seco ele solta um pouco mais, quando ele está tocando mais,

139 Gênero de música popular urbana do Rio de Janeiro, que se referia inicialmente, no século passado, aos
músicos que o praticavam – os Chorões. (…) Os grupos de “chorões” usavam habitualmente flauta, clarinete,
oficleide, trombone, cavaquinho, violão e alguma percussão. O repertório apoaiava-se nas danças européias
então em voga – polcas, valsas schottisches. Das adaptações desses gêneros começou a surgir o repertório
característico do choro, que reservava amplo espaço à improvisação e à virtuosidade instrumental, mas também
às inflexões melancólicas que justificam o nome. (Grove 1994:194).
140 Termo utilizado à época do surgimento do choro pelos grupos cariocas que praticavam essa música regional
(Sadie 1994:194).

101
eu tiro a mão, mais baixo, um contraponto aqui, uma parada que dá muito certo. Eu tenho
experimentado isso, (…) fizemos alguns shows em Tiradentes (…) e um cara da plateia veio e
falou “Que formato louco essa mistura dos sons vintages com Regional, me lembrou Walter
Wanderley” (Gomide 2015).
Quantos aos drawbars que Henrique usa no órgão Hammond, “geralmente eu nem
invento muito. O timbre basicão do qual eu partiria seria ou alguma coisa assim [88 8000
000], ou ainda assim [88 8000 022]. E às vezes com uma banda maior (...) eu ponho um
delayzão141 e faço isso aqui [00 0000 888]. Com a Banda do Canil às vezes eu uso. É meio
órgão fantasma, ele quase que não tem a superfície, ele tem só a sombra, e com o delay rolou
uns lances interessantes. (…) Mas, sinceramente, eu não tenho um preset – uso isso ou uso
isso. Os que você viu agora são bem como eu começo, mas às vezes eu vou mudando meio na
raça e aí eu acho um timbre que tá legal e páro. Não tenho técnica nenhuma na parada e nem
entendo. Adoraria e quero uma época da minha vida, com certeza, me dedicar pra isso”
(Gomide 2015).
Dentre inúmeras referências citadas por Henrique Gomide no decorrer da entrevista,
ele comentou a respeito do tecladista John Medeski, organista do trio Medeski, Martin &
Wood. “Muito legal, isso aqui é riqueza pura. Eles têm vários CDs. É um trio, banda mesmo,
não é um trio de músicos Hãã, eu chamei aquele músico bom e aquele músico bom. É uma
banda. Tinham uma van e ficavam viajando os EUA inteiro, tocando em qualquer quebrada
pra ganhar qualquer coisa e tem um som de trio. Eles têm tanto umas coisas mais groove, um
pouco mais pop, como umas coisas super contemporâneas. Eles têm uns sets de Hammond
sensacionais, é muito legal o que ele usa. Eu vi um show deles no Bourbon Street, ele com um
Fender Rhodes e três ampli, um puta Hammond com a caixa Leslie, piano, uma escaleta
Hammond daquela que tem uma oitava a mais. Ele é muito criativo” (Gomide 2015).
Quanto ao uso da caixa Leslie, “eu sempre experimento usar o Hammond sem a Leslie
no choro também, no acompanhamento, porque se não ele fica às vezes muito protagonista. E
ele sem, numa banda, num contexto legal, entra como um acompanhamento massa, pode
entrar na música brasileira” (Gomide 2015).
Outro organista nascido em São Paulo que tem o órgão Hammond como seu principal
instrumento é Jimmy Pappon, integrante da banda Bombay Groovy, cuja formação

141 Delay é um efeito que cria um atraso no som em relação ao sinal original.

102
instrumental conta com órgão Hammond, bateria e sitar 142. “O grupo soma especiarias
orientais e esoterismo indiano ao rock inglês e psicodelia, estreitando a ponte entre o ocidente
e o oriente”143.
“Meu primeiro contato com o órgão Hammond foi ouvindo Deep Purple. Eu não fazia
idéia de que som era aquele, eu não sabia nem que era teclado. Quando ouvi o solo de “Black
Night”144 eu jurava que era uma guitarra com drive. Jon Lord não tocava com Caixa Leslie
nesse disco, meu pai que falou “Isso aí é órgão, é teclado”. “Mas como assim é órgão, tipo de
igreja?”. Aí ele me falou pra escutar o disco “Burn” e me deu de natal no mesmo ano.
“Beleza, teclado pode fazer isso, pode ficar na linha de frente com uma guitarra”, e a partir
daí eu comecei a ir atrás de órgão mesmo. Lógico que não consegui comprar um Hammond
logo de cara, eu dava meus pulos, pegava os timbres que tinha no meu tecladinho. Depois
comprei o Tokai - que é o nacional que simula Hammond, tem bastante defeito. Chegou um
momento em que procurei um negócio sério e uns dois anos atrás eu comprei o Hammond que
você me viu usando” (Pappon 2015).
Inspirado na estética sonora de Jon Lord, Jimmy diz que costuma “deixar no manual
de baixo uma configuração fixa de drawbars, quase sempre está igual; são as quatras
primeiras drawbars puxadas até o talo, e só. No manual de cima, as quatro puxadas e talvez as
duas últimas - eu vou variando essas que geram harmônicos agudos de acordo com a acústica
do lugar, às vezes pode apitar, ou qualquer coisa do tipo, embolar o som. Quando é pra fazer
solo eu coloco o chorus C3, que dá uma ajuda no ganho e fica um efeito interessante. Drive
eu uso bastante, pelo menos com a Bombay Groovy - já que, de certa forma, eu faço o papel
da guitarra… e do baixo também, ultimamente. Eu brinco também com os efeitos embutidos
no instrumento quando dá, tem um ring modulator, então dá pra brincar, fazer barulho. Por aí,
eu sou até bem simplista, às vezes nem a caixa Leslie eu uso. Dependendo do lugar o efeito
não fica legal. Às vezes, quando eu quero fazer uma coisa mais guitarrística, eu tiro a Leslie.
Acho que fica interessante também”.

142 Sitar: Alaúde amplo, de braço longo, trasteado, importante na música clássica da Índia, Paquistão e
Bangladesh. (…) Assumiu os contornos de sua forma moderna durante o final do império mongol, no séc. XVIII,
quando era utilizado como instrumento solista na música erudita. (…) Tem 20 trastes móveis, permitindo assim
variadas afinações modais. (Grove 1994:876)
143 http://www.azoofa.com.br/show/2016/04/30/7496-bombay-groovy (Acessado às 20h14, 22 de abril de
2016).
144 Gravação original em: https://www.youtube.com/watch?v=Et3AJIry4iI (Acessado à 01:09, 23 de abril de
2016). Solo de órgão Hammond aos 1:54.

103
O último organista Hammond entrevistado é Arnaldo Baptista, músico nascido em
São Paulo no ano de 1948 e um dos membros fundadores da banda Os Mutantes. Concebida
durante o cenário tropicalista nacional no ano de 1966, o conjunto teve seu primeiro álbum,
Os Mutantes, lançado em junho de 1968 e sua formação inicial foi composta por Arnaldo, seu
irmão Sérgio Dias e Rita Lee.
O primeiro instrumento de Arnaldo Baptista foi um contrabaixo elétrico. Em 1969,
comprou um órgão Vox e passou a usá-lo constantemente com Os Mutantes. A influência de
Arnaldo aos instrumentos de tecla acontece desde cedo; sua mãe, Clarisse, era pianista - foi a
primeira mulher a compor um concerto para piano e orquestra no Brasil.
Arnaldo diz por que comprou o órgão: “foi sentindo o seguinte: eu com o contrabaixo
atingia os tons graves, mas não era o total da tessitura - no sentido em que o teclado dava o
colorido e a harmonia que o contrabaixo não dava. Nesse sentido eu me vi levado a comprar
um órgão Vox, que era o que tinha no exterior ao meu alcance monetário. Então fiz assim,
comprei um Vox. Ele era um pouco pior que o Hammond porque ele não tinha percussão”
(Baptista 2015).
Os primeiros contatos de Arnaldo com o órgão Hammond aconteceram “quando a
gente, Mutantes, ia no estúdio de gravação. Lá tinha um Órgão Hammond. Então eu tocava no
Órgão Hammond, ouvia o som. A diferença entre o órgão do ensaio e o órgão do estúdio era
total. Então nas gravações eu usava o órgão Hammond da gravadora e não conseguia o
mesmo som nos ensaios e nem nos shows com Os Mutantes. Então eu comprei um assim,
entrei em contato com ele nas gravadoras. Isso foi interessante. Quando a gente entrou em
estúdio, lá por 1970 mais ou menos, então eu comecei a entrar em contato com o Órgão
Hammond naquela época” (Baptista 2015).
A respeito de suas influências, Arnaldo Baptista cita Jimmy Smith: “eu me lembro que
quando era pequeno o primeiro vinil que comprei era do Jimmy Smith, com aquela música
“What'd I Say”145. Então eu tirava essa música no teclado e achava bonito, tinha um som
gordo, era gostoso. Assim que eu me identifiquei. Ele tem um lado de improviso que é tão
incansável, em todos os tons, ele faz maravilhas no teclado em improviso e vai longe
improvisando, é maravilhoso” (Baptista 2015)
“Eu uso o som que... o Hermeto Pascoal uma vez me falou assim: “Esse é o som que o
Jimmy Smith usa!”, então eu passei a usar. Eu uso a percussão e boto os três primeiros

145 Gravação original no link: https://www.youtube.com/watch?v=Z19Rarw5Lfw (Acesso à 01:43, 23 de abril


de 2016).

104
drawbars no talo, no máximo. E só isso, sem nada a mais além disso. E fica aquele som bem
do Jimmy Smith que é PÚ PÚ PÚ PÚ PÚ, é gostoso” (Baptista 2015).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O órgão. Esta pesquisa reuniu informações acerca deste instrumento – algo previsível,
já que em minha graduação me especializei em órgão de tubos. O Hammond está incluido
aqui – no qual faz o papel de protagonista - porque minha prática musical fora da igreja –
quero dizer, praticamente toda a prática musical, visto que fui organista de uma igreja por
pouco tempo - certa vez me conduziu a escutar, tocar e conhecer o som do órgão em grupo,
música de câmara, de banda. Este órgão que atua fora da igreja costuma ser o órgão
Hammond, que está presente no blues, jazz, rock e em tantos outros ritmos populares.
Esta pesquisa acabou, portanto, por abarcar informações sobre as duas vertentes
organísticas, o órgão que toco na minha faculdade e o órgão que toco nas minhas bandas –
como se pudéssemos separar o órgão de tubos, litúrgico, como erudito e o órgão Hammond
como popular. Questões a respeito do funcionamento, componentes e do repertório de ambos
instrumentos foram apresentadas e músicos que tocam o órgão Hammond contribuiram com
depoimentos acerca do uso deste instrumento.
Na ocasião em que comecei a realizar essa pesquisa, de imediato percebi que
entrevistar pessoas que conhecem o assunto é uma saída interessante e muitas vezes efetiva
para a elaboração do trabalho. Depois de alguns dias da entrevista com Matías Sagreras,
organista argentino, em outubro de 2015, fui convidado por ele para participar, em 2016, do
Terceiro Ciclo de Concertos de Órgão da Basílica Santíssimo Sacramento, em Buenos Aires,
onde há um órgão Mutin-Cavaillé-Coll lindo, o maior da Argentina. A resposta foi imediata,
SIM. Passei uma semana em Buenos Aires, em maio deste ano, conhecendo o instrumento e
preparando o concerto, que contava com peças difíceis do repertório, e que não saiu
facilmente. Não foi uma experiência agradável, foi uma ocasião em que percebi que esta
atividade de concertista não está fazendo sentido para mim agora – é desagradável a sensação
de que um 'ufa!' após o concerto é a única sensação boa de toda a experiência.
Dentro deste mesmo contexto pessoal de fim de curso, – uma graduação que durou
oito anos e incluiu três transferências internas - poucas semanas depois de voltar, me juntei ao
Guedes (guitarrista), Rafa (baterista) e Rob (baixista) para ensaiar e tocar no dia seguinte um
repertório com rock, rhythm&blues e funk. O órgão Hammond, simulado no meu teclado

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Nord Electro 3, é o meu instrumento desta vez. E a sensação... É outra. Por algum ou alguns
motivos é outra. Me senti menos preso.
Ao fim das contas, dentro do âmbito organístico, esta atividade em grupo com a
música popular é o que mais me satisfaz hoje em dia. Percebo assim que, dentro do possível,
encontrei uma forma de encerrar a graduação que dialoga com minha prática musical atual.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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em outubro de 2015.
CULTURA O som do órgão: da catedral ao teatro. Apresentado por Dorotéa Kerr. São Paulo:
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http://culturafm.cmais.com.br/o-som-do-orgao-da-catedral-ao-teatro
FARAGHER, Scott. The Hammond Organ: an introduction to the instrument and the players
who made it famous. USA: Hal Leonard Books, 2011.
GOMIDE, Henrique. São Paulo/Buenos Aires, 2015. Entrevista concedida por telefone para
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GROVE, George. A Dictionary of Music and Musicians: Vol. III. London, Macmillan and
Co., 1883.
GEIRINGER, Karl. Johann Sebastian Bach: O apogeu de uma era. 2a edição. Rio de Janeiro,
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Hosmil: Fapesp, 2001
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outubro de 2015.
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Ed., 1994.
SAGRERAS, Matías. São Paulo/Buenos Aires, 2015. Entrevista concedida por Skype para
essa pesquisa em outubro de 2015.
. El órgano de la Basílica del Santíssimo Sacramento y la música sinfónica
francesa para órgano. Tese (Licenciado em artes musicais), Departamento de Artes
Musicais, Instituto Universitario Nacional del Arte, Buenos Aires, Argentina, 2014.
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Backbeat Books, 2002.
WEINHOLD, Juan. São Paulo/Buenos Aires, 2015. Entrevista concedida por Skype para essa
pesquisa em outubro de 2015.

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