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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | JULHO 2023

135
ANOS DE EXPLORAÇÃO

A G RU TA
S U L-A F R I C A N A
Q U E MU D O U A
N O S SA H I STÓ R I A

E X P E D I Ç ÃO AO
A M A ZO N A S : V I AG E M
AO C O RAÇ ÃO D O R I O

O RA STO I N V I S Í V E L
D O S G OV E R N A D O R E S
DA Í N D I A E M G OA

DESAFIANDO
OS
A S D E S C O B E RTA S I N C R Í V E I S
D O S N OVO S E X P L O R A D O R E S
DA N AT I O N A L G E O G R A P H I C

LIMITES
N.º 268 MENSAL €6,00 (CONT.)
00268

603965 000006
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C JULHO 2023

S U M Á R I O

Na capa
A oceanógrafa Gádor
Muntaner explora una
caverna no Noroeste de
Menorca (Espanha). É uma
entre centenas de grutas
criadas pela acção do mar.

2 16 34
RAFAEL FERNÁNDEZ CABALLERO

Porque ainda exploramos Narradores do Amazonas A Gruta dos Ossos


Desde tempos remotos que Uma expedição da National Dez anos depois de descobrir
sentimos o impulso de romper Geographic penetra na selva numa gruta sul-africana uma
novas fronteiras. Ao longo dos colombiana em busca dos nova espécie de hominídeo, o
seus 135 anos de história, a murais de arte rupestre paleontólogo Lee Berger volta
National Geographic tem sido mais extensos do mundo, ao mesmo sistema de grutas à
o farol das grandes implantados no Parque procura de pistas adicionais
explorações humanas. Nacional de Chiribiquete, na sobre este estranho
T E XTO D E N I N A ST RO C H L I C
bacia do Amazonas. antepassado dos
C O L AG E N S F OTO G R Á F I C A S T E XTO E F OTO G RA F I A S
humanos modernos.
D E N E I L JA M I E S O N DE THOMAS PESCHAK T E XTO D E L E E B E RG E R

NEIL JAMIESON
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

44
SUMÁRIO

A S UA F OTO

VISÕES
Um plano ousado
Poucas espécies marinhas foram EXPLORE
tão dizimadas como os tubarões. O legado da lagosta
Uma aliança internacional tem
um plano para os salvar, Fogo e gelo
reproduzindo-os em cativeiro e Uma nova experiência
reintroduzindo-os no seu habitat. digital
T E XTO D E C RA I G W E LC H Anéis no banho
F O T O G R A F I A S D E D AV I D D O U B I L E T
É um parceiro ou a
E J E N N I F E R H AY E S
barbatana de um

62
mergulhador?

GRANDE ANGULAR
A banda sonora do Verão

E D I TO R I A L
National Geographic na
vanguarda da exploração BASTIDORES
Os exploradores emergentes
da National Geographic abordam N A T E L E V I SÃO
alguns dos problemas mais
acutilantes do planeta. O seu P RÓX I M O N ÚM E RO
trabalho abre caminho a novas e
prometedoras investigações.
T E XTO D E N I N A ST RO C H L I C
F O T O G R A F I A S D E PA R I D U K O V I C

76
Os palimpsestos de Goa
Tecnologia de ponta revela
novas camadas dos quase
quinhentos anos de história
partilhada entre Portugal e a Índia.
Um projecto lançou nova luz sobre Envie-nos comentários
as representações pictóricas dos para nationalgeographic
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vice-reis da Índia.
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90
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Contos de fadas reimaginados revistaportugal
Apreciadas pelas lentes
da história, da cultura e da
política da Nigéria, as narrativas
europeias clássicas ganham novos
significados na Nigéria no projecto Assinaturas e
fotográfico de uma exploradora atendimento ao cliente
da National Geographic. Telefone 21 433 70 36
T E XTO E F OTO G RA F I A S (de 2.ª a 6.ª feira)
D E YA G A Z I E E M E Z I E-mail: assinaturas@vasp.pt

DE CIMA PARA BAIXO: DAVID DOUBILET E JENNIFER HAYES; PARI DUKOVIC; ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; YAGAZIE EMEZI
O PAPEL QUE

publirreportagem
TEM MAIS VIDAS
Encontrar alternativas para o plástico de origem fóssil é um objetivo
incontornável no esforço que governos, empresas e organizações estão a
desenvolver no caminho da descarbonização e da transição para uma
bioeconomia circular. Neste contexto, o papel — natural, reciclável,
biodegradável e com origem em florestas certificadas e geridas de forma
responsável — assume um protagonismo crescente, nomeadamente no
setor da embalagem, dominado pelos plásticos de uso único.
A taxa de reciclagem do papel é um dos fatores que faz dele um aliado nas
estratégias para enfrentar as crises climática e ambiental. No entanto, as
suas fibras vão perdendo propriedades a cada novo ciclo de reciclagem e,
por isso, o número de vezes que pode ser submetido a esse processo é
limitado. Mas há boas notícias. Mesmo do ponto de vista das várias vidas que
pode ter, o papel não é todo igual. Segundo um estudo recente, papel e
cartão produzidos à base de fibras de Eucalyptus globulus são capazes de
suportar, no mínimo, cinco vezes mais ciclos de reciclagem do que os que
têm na sua origem fibras de outras espécies. Isto sem comprometer as
características de alto desempenho.
Com o título “Recycling performance of softwood and hardwood unbleached
kraft pulps for packaging papers”, o estudo foi desenvolvido por investigadores
da Universidade da Beira Interior (UBI), com o apoio do RAIZ – Instituto
de Investigação da Floresta e Papel (Laboratório de R&D detido pela
The Navigator Company, Universidade de Aveiro, Universidade de Coimbra
e Universidade de Lisboa, através do Instituto Superior de Agronomia), e
publicado na Tappi Journal, revista científica reconhecida internacionalmente
há mais de 60 anos. E confirmou conclusões anteriores a que a Tokyo
University of Agriculture and Technology já tinha chegado em 2001.
A maior reciclabilidade do eucalipto português
e a sua excelente aptidão para os papéis de
embalagem — como os que são produzidos a
partir de pasta não branqueada de Eucalyptus
globulus pela The Navigator Company — ficou
assim, mais uma vez, demonstrada.

O papel produzido à base de


fibras de Eucalyptus globulus
é capaz de suportar, no
mínimo, cinco vezes mais
ciclos de reciclagem do que
aquele que tem origem em
fibras de outras espécies.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.
V I S Õ E S | A SUA FOTO

A B Í L I O D A S N E V E S Numa visita ao Convento de Cristo em Tomar, classificado como Património Mundial, o fotógrafo teve
o privilégio de captar a luz sublime que incidia no oratório privado dos cavaleiros templários — a charola.

N U N O V I E I R A No concelho de Baião, a linha do Douro atravessa o viaduto de Pala-Ribadouro. O relevo acidentado da


paisagem, a neblina, o rio e o charme do antigo comboio abrem um portal para um tempo mais recuado.
M A N U E L V E L O S O Apaixonado por fotografia nocturna, o autor não perdeu a oportunidade de captar o navio-escola
Sagres no Dia da Marinha. A Ribeira do Porto serviu de pano de fundo ao espectáculo de luzes.

J O S É M A U R Í C I O Ao raiar do dia, no ancoradouro do Portinho da Arrábida, o fotógrafo captou este instantâneo em que
um bando de gaivotas se agitava perante a chegada de um elemento retardatário.
V I S Õ E S
Indonésia
Uma mulher com o traje
tradicional e as mãos
tatuadas com hena posa
durante o seu casamento
na província de Aceh,
onde o uso desta tinta
natural feita a partir
das folhas da planta
Lawsonia inermis é uma
tradição arreigada.
RIZA AZHARI / GETTY IMAGES
Países Baixos
Quarenta e um jardins
zoológicos em todo
o mundo, incluindo
os dos Países Baixos,
juntam esforços num
extenso programa de
reprodução em cativeiro
com o objectivo de
reintroduzir o ameaçado
mico-leão-dourado no
seu habitat brasileiro.
RAIMUND LINKE / GETTY IMAGES
Reino Unido
A observação minuciosa
de um favo revela a
extraordinária precisão
com que as abelhas
o constroem. Todas as
células têm exactamente
o mesmo tamanho
e espessura e todos
os ângulos medem
o mesmo: 120°.
JONATHAN KNOWLES / GETTY IMAGES
E X P L O R E

10

FOTOGRAFIA DE ANNIE O’NEILL

das armadilhas para lagostas de Virginia Oliver têm


A S B Ó I A S D E M A R C AÇ ÃO
um número de identificação que ela herdou do pai. Usou-as durante nove
décadas — tem agora 102 anos. E passou entretanto o legado e os materiais
do ofício ao seu filho, Max. A controvérsia sobre a influência da pesca sobre as
baleias-francas ameaçadas custou à lagosta do Maine a classificação de marisco
sustentável. Durante a estação de pesca da lagosta, mãe e filho ainda saem
para o mar, cumprimentando os outros pescadores com um aceno ou grito.
“Talvez continue até morrer”, diz Virginia. “Só nessa altura desistirei.” — T E D G U P

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
5

1. Armadilha para lagosta


As armadilhas mais
antigas eram feitas à mão
com ripas de madeira.
Hoje, a maioria usa arame
revestido de plástico.
2. Aro
As lagostas entram
na armadilha através
de um aro de metal.
3. Ferro do isco
Ferramenta longa usada
para colocar e pren-
der sacos de isco nas
armadilhas.
4 4. Saco de isco
Saco de malha de rede
com três ou quatro peixes
que atrem as lagostas para
a armadilha.
5. Corda
Usada para ligar, localizar,
levantar e baixar as arma-
dilhas para lagostas. O seu
emaranhamento prejudica
e mata espécies marinhas
6
e, em 2022, uma decisão do
tribunal federal criou novos
regulamentos para prote-
ger as baleias-francas.
A indústria assegura que
nunca foi registada qual-
quer morte de uma baleia-
-franca devido a este
equipamento. Novos regu-
lamentos, ainda à espera
de aprovação, vão exigir
limites ao uso de cordas,
áreas e temporadas de
pesca à lagosta.
6. Bóia
As bóias vermelhas e ama-
relas de Virginia assinalam
os locais das armadilhas,
algumas a profundidades
até 36 metros.
7. Medida ou bitola
Garante que cada lagosta
capturada tem a dimensão
exigida por lei.
8. Elásticos para pinças
Evita que as lagostas belis-
quem os manipuladores ou
se magoem umas às outras
durante o armazenamento

O LEGADO DA LAGOSTA
e o transporte.
9. Alicate para elásticos
Usado para colocar os
elásticos nas pinças.
10. Flutuador
Prende-se ao utensílio
para ser mais fácil recupe-
rá-lo se cair à água.

JULHO 2023
E X P L O R E | AV E N T U R A

´
EM NUMEROS

0
RESIDENTES PERMANENTES

750
ESPESSURA MÁXIMA
E ST I M A DA D O G E LO E M
MÝ R DA L S J Ö KU L L , E M M E T RO S

40.000 D I M E N SÃO A P ROX I M A DA


D A S T E R R A S A LTA S , E M
QUILÓMETROS QUADRADOS

AMÉR.
NORTE
A
S I

Á
ISLÂNDIA
EUROPA

A
ÁFRIC

N AT I O N A L G E O G R A P H I C NGM MAPS
O terreno acidentado mantém o interior da Islândia
isolado e protege a sua beleza sobrenatural.

MAIS ALÉM A MELHOR FOTO A ORIGEM


As paisagens vulcânicas da Quando o pico do vul- O nascimento
Islândia atraem multidões, cão Mælifell e o glaciar incandescente da Islândia
mas o isolamento das ter- de Mýrdalsjökull surgi- a partir da Dorsal Atlântica
ras altas mantém-nas fora ram, o fotógrafo Matthew é visível nos campos
dos roteiros mais frequen- Borowick reclinou-se no de lava, areias negras,
tados. Estão acessíveis ape- interior de um pequeno caldeiras e nas cíclicas
nas no Verão e com recurso Cessna. “Coloquei a erupções strombolianas,
a veículos de tracção às câmara de fora e tentei como quando o vulcão
quatro rodas por estradas não a deixar cair”, conta. Eyjafjallajökull lançou a
não pavimentadas. Ali, os A fotografia aérea permi- sua nuvem de cinzas com
visitantes podem caminhar tiu captar imagens mag- quilómetros de altura em
pelo trilho Laugavegur níficas, mas a natureza 2010. Para lá da geologia,
com 55 quilómetros através tem a última palavra: a os contos folclóricos
das montanhas de riólito, meteorologia agravou-se islandeses descrevem
explorar túneis de gelo sob e o piloto Haraldur Diego outro fenómeno: os
o glaciar Langjökull e mer- brincou, dizendo que algo trolls que saem das
gulhar nas águas termais irritara o deus das tem- cavernas das montanhas
de Hveravellir. pestades, Thor. a coberto da noite.

TEXTO DE JEN ROSE SMITH F O T O G R A F I A S D E M AT T H E W B O R OW I C K

JULHO 2023
E X P L O R E | D I G I TA L

UMA NOVA
EXPERIÊNCIA
DIGITAL nationalgeographic.pt
No dia 7 de Junho,
inaugurámos o novo site.

N U M A A LT U R A fintar estas tendências com um


P O D E PA R E C E R U M PA R A D OXO
E M Q U E A D I S P E R S ÃO, novo site, mas não é. Queremos que todos os artigos, vídeos e
A FA D I GA E O E XC E S S O fotogalerias que publicamos sejam relevantes e suculentos, guar-
DE NOTÍCIAS DESAFIAM dados para reler mais tarde ou para servir de mote a uma conversa
Q UA LQ U E R Ó RGÃO
ao almoço ou ao jantar, quer contem histórias locais ou globais,
D E C O M U N I C AÇ ÃO S O C I A L ,
A E D I Ç ÃO P O RT U G U E S A sobre Animais, Meio Ambiente, Ciência, História ou Viagem (as
D A N AT I O N A L G E O G R A P H I C portas de entrada temáticas).
P R O C U R A R E I N V E N TA R - S E . A nationalgeographic.pt tem, a partir de agora, um design mais
consentâneo com a exigente cultura visual dos leitores – presentes
e futuros – e procura estar à altura da imagem de excelência da
revista que tem em mãos. Enriquecemos os artigos com mais
conteúdos multimédia e, acima de tudo, planeamos ser mais
do que um substituto do papel. Vamos, por isso, desenvolver as
rubricas da edição nas bancas e relançar artigos de arquivo com
um novo prisma.
Estamos cientes de que a leitura em dispositivo móvel – o tele-
móvel, sobretudo – está a ganhar espaço face a outras plataformas
digitais e tradicionais, mas desejamos que, em todos os formatos
disponíveis, a experiência do leitor seja o mais possível agradá-
vel e compensadora. Utilizámos, para isso, as ferramentas de
optimização de navegabilidade web ao nosso dispor para tornar
a jornada no site uma viagem mais simples, mais lúdica, mais
actual, ainda que sempre credível e responsável, como não podia
deixar de ser num projecto da National Geographic.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C SHUTTERSTOCK
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para desfrutar sob o chapéu-de-sol,
sozinho ou acompanhado.
E X P L O R E | ARTEFACTOS

ANÉIS NO BANHO
U M B A N H O C U S T O U A A B A S TA D O S
ROM A N O S A S P E D RA S DA S S UA S J Ó I A S

Àqueles que já perderam um anel pelo ralo, podemos


dizer que ainda há esperança... na história. Recente-
mente, arqueólogos de Carlisle (Inglaterra) descobri-
ram um tesouro de jóias antigas que pertencia aos
proprietários de uma luxuosa villa nas fronteiras do
Império Romano. Os investigadores descobriram um
sistema de drenagem que continha dezenas de ágatas,
jaspes e outras pedras preciosas gravadas que enfeita-
vam anéis dos séculos III e IV d.C., até a humidade e o
calor fazerem-nas soltar-se, acabando ali aprisionadas.
Os 36 entalhes revelam um instantâneo único das
crenças da elite romana desta época, diz Frank Giecco,
arqueólogo principal do projecto. Alguns têm figuras
como a deusa Fortuna ou Diana, que protegia as mulhe-
res durante o parto; outras, encontradas neste local
de fronteira militar, retratam Marte, deus da guerra.
Os arqueólogos estão actualmente a escavar a
área sul da área termal, onde secções adicionais do
sistema de canalização podem revelar ainda mais
achados. Frank Giecco diz que gosta especialmente
do entalhe de um rato, mas “é difícil escolher um
preferido”, admite. “Provavelmente, encontrarei
outro daqui a um mês.” — K R I S T I N R O M E Y

FOTOGRAFIAS DE ANNA GIECCO


INSTINTO BÁSICO | E X P L O R E

É UM PARCEIRO
tentativa e erro para as cobras-marinhas-oliváceas.
O S E XO E N VO LV E
Estes répteis têm pouca fraca e sabe-se que os machos confundem
as potenciais parceiras com pepinos-do-mar, pedaços de corda e

OU A BARBATANA
até barbatanas de mergulhadores. Quando um macho consegue
por fim localizar uma fêmea, bate-lhe ao de leve na cabeça como
se pedisse consentimento. Estes pedidos são por norma rejeitados,

DE UM obrigando o pretendente a iniciar de novo a busca por parceira.


Se a fêmea aceitar a oferta, o macho tem de encontrar uma forma
de inserir um dos seus dois pénis na cloaca da fêmea, o que para

MERGULHADOR? uma criatura com fraca visão e sem membros é “complicado”, diz
Claire Goiran, bióloga marinha da Universidade da Nova Caledónia.
Os machos enrolam-se em torno das parceiras e contorcem-se até
que tudo encaixe: “Demora muito até o macho ficar na posição
correcta”, diz Claire. Como consequência, o sexo subaquático desta
espécie pode durar horas e um casal não pode separar-se até o acto
estar concluído. Quando a fêmea precisa de emergir para respirar,
arrasta o companheiro com ela... pelo pénis. É mais uma indignidade
TEXTO DE ANNIE ROTH que ele suporta pela oportunidade de transmitir os seus genes. j

IA
ÁS
Nova-Guiné

O CE A NO
PA C Í F I C O
OCEÂNIA

D I ST R I B U I Ç ÃO
As cobras-marinhas-oliváceas
encontram-se na costa
norte da Austrália e nas
águas a sul da Nova-Guiné.
Passam a maior parte
do tempo em águas pouco
profundas, mas já foram
encontradas a mais de
100 metros de profundidade.

O U T R O S FAC T O S
Tal como todas as cobras
marinhas, as fêmeas parem
cinco a sete crias após nove
meses de gestação.
As cobras marinhas
atingem 2 metros de
comprimento e podem
pesar 3 quilogramas.

FOTOGRAFIAS: BRANDON COLE MARINE


PHOTOGRAPHY, ALAMY STOCK PHOTO. NGM MAPS JULHO 2023
E X P L O R E | NEUROCIÊNCIA

MAPA NEURONAL
DE UMA PEQUENA MOSCA
por menor e simples que seja, é uma
A C A RT O G R A F I A D E U M C É R E B R O ,
odisseia: não é à toa que a descrição do conectoma humano ainda é um A imagem recria o
cérebro da larva da
sonho inatingível. Até agora, só tinham descritas as conexões neurais de
mosca-da-fruta,
três animais: o minúsculo filtrador marinho da classe dos asidáceos Ciona também conhecida
intestinalis, cujo sistema nervoso é formado por 177 neurónios; o verme por mosca-do-vina-
nematóide Caenorhabditis elegans, com 302, e a larva do verme marinho gre, com os seus 3.016
Platynereis dumeri, com cerca de 1.500. Agora, uma equipa de investiga- neurónios, especiali-
dores do Laboratório de Biologia Molecular do Conselho de Pesquisa Médica zados nos sentidos do
olfacto e do paladar.
de Cambridge, em Inglaterra, alcançou um novo marco.
As moscas adultas (em
Liderada por dois neurobiólogos, o catalão Albert Cardona e a croata baixo) têm um
Marta Zlatic, a equipa reconstruiu todos os neurónios e os respectivos cérebro com 100 mil
dendrites em forma de árvore, da larva da famosa Drosophila melanogas- neurónios, dois terços
ter, a mosca-da-fruta, um organismo amplamente utilizado pelos labo- dos quais constituem
ratórios de genética em investigações que permitiram grandes avanços o sistema óptico.

científicos. "Localizámos todas as sinapses (os pontos de interligação


entre os neurónios), bem como os caminhos que a informação percorre
quando é emitida pelos sentidos deste insecto (visão, audição, olfacto,
paladar e tacto, mas também a dor, a temperatura e o nível de oxigénio)
até atingirem os neurónios responsáveis pelas respostas motoras”, explica
Albert Cardona.
Estes 3.016 neurónios divididos igualmente entre os dois hemisférios
podem inspirar futuros designs de redes neurais artificiais e aumentar o
conhecimento de doenças neurodegenerativas. "Acreditamos que o conhe-
cimento do mapa do território cerebral da larva de Drosophila nos permi-
tirá investigar as disfunções motoras e cognitivas dos doentes de
Alzheimer ou de Parkinson e, consequentemente, que alguém possa um
dia desenvolver um medicamento para aliviar os seus sintomas ou mesmo
curá-los", diz o neurocientista. Em breve, outros conectomas animais
serão decifrados. No horizonte, estão uma lula, um lagarto e um rato.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C TEXTO: EVA VAN DEN BERG. GRÁFICO: ALBERT CARDONA.


FOTOGRAFIA: ARLINDO71 / ISTOCK
SEGREDOS
DOSSIERS D O C É R E B RO V I AG E N S

H I S TÓ R I A FI LO S O FI A

GRANDES GRANDES
P E R S O N AG E N S C U LT U R A MU LH E R E S
G R A N D E A N G U L A R | CIGARRAS

A BANDA
SONORA
DO VERÃO
A P O I A D A P E L A N AT I O N A L
G E O G R A P H I C S O C I E T Y, U M A
E Q U I PA P O R T U G U E S A I N V E S T I G A
A S C I GA R RA S D E M A R RO C O S.

E N S A I O D E G O N Ç A LO J. C O S TA

CIGARRA. CHICHARRA. SARSSOURA. TYIAB


Llanab. Bourjois. Estes são apenas alguns dos
nomes dados a estes pequenos insectos conhe-
cidos por animar os verões do Mediterrâneo, até
porque o Verão só começa realmente depois de
a primeira cigarra cantar.
Existem mais de três mil espécies de cigar-
ras espalhadas pelo planeta, com formas e
dimensões que vão desde a enorme Pomponia Os ouvidos treinados
e a mão ágil de Tatiana
imperatoria, que habita no Sudeste Asiático e que Moreira, membro
pode medir 20 centímetros de envergadura, até da equipa de campo
à portuguesa e muito ameaçada Euryphara con- do projecto, são
essenciais para
tentei que cabe na ponta de um dedo mindinho. capturar estes ágeis
Só o macho da cigarra canta, fazendo da sua e discretos insectos.
TERESA PAMPLONA
performance musical a melhor estratégia para
atrair a atenção das fêmeas. Na verdade, o som
inconfundível é produzido com recurso a um
conjunto de membranas no abdómen do macho
— os tímbalos. algumas incursões exploratórias a Marrocos,
Cada cigarra tem uma canção única e é ine- as canções gravadas pelo grupo revelaram que,
gável a sua presença no imaginário colectivo, na outra margem do estreito de Gibraltar, as
expresso em provérbios populares, fábulas ou canções eram, no mínimo, curiosas… O conhe-
como fonte de inspiração para obras artísticas. cimento de cigarras marroquinas era quase
Curiosamente, apesar da sua conspíqua canção, inexistente e alicerçava-se num punhado de
do seu mimetismo e da sua capacidade de inter- descrições antigas, sem registo e descrição dos
romper a sinfonia quando uma ameaça poten- seus cantos únicos.
cial se aproxima, milhões de pessoas conseguem Em teoria, a extraordinária diversidade de
ouvi-las, mas poucos as viram ou lograram iden- habitats em Marrocos deveria poder albergar
tificar cada espécime. mais espécies de cigarras do que as conheci-
Com o desejo de registar, analisar e transmi- das e foi com esta teimosia científica que, em
tir este legado de património natural, musical 2017, se descreveram duas novas espécies de
e etnográfico à ciência e ao público, nasceu o cigarras para Marrocos. Posteriormente, com o
Grupo das Cigarras da Faculdade de Ciências apoio da National Geographic Society, lançou-
da Universidade de Lisboa. Na sequência de -se o projecto “The Final Cries of The Unheard

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Moroccan Cicadas” que serviu de base para o seca em muitos anos, uma grande emergência
doutoramento do autor. A proposta da inves- médica e perseguições por traficantes, mas nem
tigação é simples, mas extraordinariamente tudo foram espinhos e em breve novas espécies
ambiciosa: descrever e listar todas as cigarras de cigarras serão formalmente descritas e as suas
marroquinas e atribuir-lhes estatutos de conser- canções, antes conhecidas de poucos, poderão
vação adequados. Para o projecto chegar a bom ser escutadas por todos.
porto, seria também necessário estreitar laços Cada nova espécie descrita ajuda a contar uma
com investigadores marroquinos, guardas-flo- longa história com milhões de anos de evolução.
restais e decisores locais. A Tettigettalna afroamissa é uma das duas espé-
Em Junho de 2022, com o apoio do Centro de cies descobertas em 2017, cujo nome significa
Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da “a perdida em África”. É a única cigarra africana
Faculdade de Ciências de Lisboa, uma equipa de um género que se pensava ocorrer exclusi-
partiu para o Norte de África munida de redes vamente na Europa. Foi a ajuda da informação
entomológicas e gravadores para explorar o terri- codificada no DNA desta cigarra e da relação
tório. A missão trouxe desafios inesperados que dela com as suas congéneres que permitiu che-
incluiram a deportação de uma bióloga, a pior gar a esta descoberta.

CIGARRAS
G R A N D E A N G U L A R | CIGARRAS

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
todo o nosso conhecimento sobre cigarras advém
Muitas espécies passam
destes breves e fugazes momentos acima do
anos debaixo da terra como solo, tornando o resto da sua vida um mistério à
ninfas, alimentando-se de espera de ser revelado. Mesmo estando no local
raízes e, numa noite e na estação certa, um investigador pode falhar
a emergência das cigarras, já que estas podem
quente de Verão, emergem
permanecer no subsolo quando as condições cli-
do solo, largam a pele máticas não são as ideais. O estudo das cigarras
antiga e ganham asas pode ser uma verdadeira penitência.
durante escassas semanas. Em Marrocos, há espécies de cigarras que só
vivem em pradarias, outras preferem arbustos
e outras ainda só cantam nos cedros mais altos
do Médio Atlas. Todos estes habitats estão a ser
severamente afectados por processos de deser-
O ancestral desta espécie terá vivido durante o
tificação. Este é um país na linha da frente das
Messiniano, altura em que o mar Mediterrâneo
alterações climáticas e o ano de 2022 foi o mais
esteve quase seco e formaram-se extensas pon-
seco em três décadas. O Saara expande-se cada
tes de terra entre a Europa e África, permitindo
vez mais para norte.
o fluxo de fauna e flora entre os dois continen-
Ironicamente, a maior ameaça para as cigarras
tes. De súbito, há cerca de 5,3 milhões de anos,
não parece ser o apocalipse climático, mas sim as
o oceano Atlântico irrompeu entre Gibraltar e
simpáticas ovelhas que comem o coberto vegetal
Ceuta, deixando a T. afroamissa isolada em África
e as cabras que, empoleiradas em árvores raquíti-
e separada das suas irmãs na Europa, não havendo
cas à procura dos últimos vestígios de clorofila, se
evidências genéticas de reencontros posteriores.
tornaram uma atracção turística. Nas montanhas
Infelizmente, estas fascinantes histórias de evo-
do Atlas, os rebanhos limpam a parca vegetação
lução e sobrevivência poderão ser apenas notas de
herbácea que sobrevive a um clima cada vez mais
rodapé da história, num futuro que parece cada vez
seco e quente, acelerando a erosão do solo. As
mais dramático. Os insectos estão a desaparecer a
cigarras que necessitam das raízes como sustento
uma velocidade alucinante. É difícil identificar
podem ver as suas vidas encurtadas, e as poucas
uma única causa. As mudanças no uso do solo e da
que chegam a adultas cantam numa paisagem
paisagem, a industrialização da agricultura e o uso
sem vegetação ao som dos badalos dos rebanhos.
de pesticidas, bem como as alterações climáticas,
Uma solução de emergência pode passar pela
têm vindo a modificar equilíbrios delicados. Um
criação de micro-reservas, pequenas zonas cer-
terço das espécies de insectos estão ameaçados e
cadas que impeçam a entrada do gado, prote-
as cigarras não são imunes a esta tendência. É por
gendo plantas, cigarras e toda a comunidade
isso urgente saber o que está a perder-se e como
de animais. Contudo, o sucesso das mesmas
estão elas a reagir a um mundo em vertiginosa
depende da articulação da comunicação entre
mudança para se poder reverter ou no mínimo
todas as partes interessadas, desde os pastores
abrandar esta tragédia com implicações… bíblicas.
aos decisores locais.
Afinal o castigo não é uma praga de gafanhotos,
Além das descobertas científicas, o contacto
mas sim o desaparecimento de muitos insectos.
com os locais tornou-se uma ajuda preciosa.
Existe potencial para usar a ciência colaborativa
é complexa e isso
A E C O LO G I A DA S C I GA R R A S
e cidadã no mapeamento das cigarras de Mar-
não facilita o seu estudo. Muitas espécies pas-
rocos. A premissa é simples, requerendo apenas
sam anos debaixo de terra como ninfas, ali-
um smartphone para gravar a canção da cigarra
mentando-se de raízes e, numa noite quente de
e o ponto GPS inseridos numa plataforma como
Verão, emergem do solo, largam a pele antiga e
o iNaturalist. Com este conhecimento, preten-
ganham asas durante escassas semanas. Quase
de-se criar um guia das cigarras de Marrocos,
publicado em francês, árabe e amazigh para
A espécie Psalmocharias plagifer é uma ser entregue aos locais, tornando-os também
cigarra com um canto peculiar que inclui embaixadores na protecção das cigarras. Se uma
sons que parecem palmas e vocalizações
de aves barulhentas. cigarra se extinguir e ninguém estiver lá para
PEDRO PIRES ouvir o silêncio, será que ela realmente existiu? j

CIGARRAS
«Acreditamos que, quando as pessoas compreendem melhor
o mundo, preocupam-se mais profundamente com ele.»

A National Geographic Society «XPDRUJDQL]D©¥RJOREDOVHPƃQVOXFUDWLYRVTXHSURFXUDQRYDVIURQWHLUDVGD


exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável.

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EDITORIAL | J U L H O

T E X T O D E N AT H A N LU M P FOTOGRAFIA DE THOMAS PESCHAK

em 1888, a Natio-
D E S D E A S UA F U N DAÇ ÃO exploração, apresentando os novos explo- Em Chiribiquete, a maior
área protegida da Colômbia,
nal Geographic tem sido sinónimo de radores da National Geographic, cujo
os tepuis erguem-se por
exploração. Estamos empenhados em trabalho marcará novas fronteiras neste cima da floresta tropical.
explorar o que nos é próximo e os mun- século. Nas páginas seguintes, encontrará Os murais pictográficos nas
perfis de alguns desses indivíduos encostas das montanhas
dos distantes, não apenas pelo prazer de
fazem deste parque “o Louvre
o fazer, mas porque esse trabalho faz extraordinários e histórias aprofundadas da arte rupestre das
avançar o conhecimento colectivo e a sobre alguns dos projectos mais emocio- Américas”, diz Thomas
compreensão do mundo. É mais do que nantes: Thomas Peschak relata notícias Peschak. Este fotógrafo e
explorador protagoniza uma
um exercício académico. Acreditamos da linha da frente na sua expedição de expedição que percorrerá os
que, ao promover a compreensão do dois anos pelo Amazonas. Lee Berger 6.750 quilómetros do rio
mundo, inspiramos o desejo de cuidar conta as últimas descobertas sobre os Amazonas, dos picos dos
Andes ao oceano Atlântico.
dele. Num momento em que a fragilidade antepassados humanos. David Doubilet
do ambiente nunca foi tão evidente, e Jennifer Hayes relatam o projecto ino-
a exploração é mais vital e relevante do vador de reintrodução de tubarões no
que nunca. mar. E, em Marrocos, Gonçalo J. Costa
Celebrando o 135.º aniversário da Natio- dedica os seus esforços a conhecer e pro-
nal Geographic Society e desta revista, a teger as cigarras do Norte de África.
nossa edição de Julho reflecte sobre os Espero que goste desta edição.
grandes exploradores que fizeram parte
da família National Geographic e sobre o
ímpeto que, ao longo da história, nos
motivou a explorar. Nesta edição, con- Nathan Lump,
centramo-nos no presente e no futuro da Director
~
A E X P L O R A Ç ÃO É I N T R Í N S E C A A O S H U M A N O S . A V E N T U R A M O - N O S

N O D E S C O N H E C I D O PA R A D E S C O B R I R LU GA R E S I N E S P E R A D O S O N D E

P O S S A M O S P R O S P E R A R . T E S TA M O S L I M I T E S E D E C I F R A M O S F E N Ó M E N O S

M I S T E R I O S O S . H Á M I L É N I O S Q U E O F A Z E M O S … E S Ó E S TA M O S N O I N Í C I O.

JULHO 2023
R E P O R TA G E N S Os primeiros narradores do
Amazonas .................................. P. 16
Regresso à Gruta dos Ossos ........ P. 34
Recuperação de tubarões . . . . . . . . . P. 44
Os palimpsestos de Goa. . . . . . . . . . . . P. 76
Contos de fadas reimaginados . P. 90
N AT I O N A L G E O G R A P H I C

3
Um mergulhador
explora um cenote com
a área de uma catedral
sob a península do
Iucatão, no México,
junto das ruínas maias
de Tulum. Há 135 anos
que a National
Geographic envia
arqueólogos, antropó-
logos e mergulhadores
para todos os pontos
do mundo em busca de
conhecimento sobre
civilizações perdidas.
PAUL NICKLEN
(TAMBÉM NAS PÁGINAS ANTERIORES)
E

O
M O M E N T O S

D E D E S C O B E R T A
E

H Á 1 3 5 A N O S Q U E A N AT I O N A L G E O G R A P H I C D O C U M E N TA A S

M A R AV I L H A S D O M U N D O E A P O I A E X P LO R A D O R E S Q U E , C O M

I M AG I N AÇ ÃO A R ROJA DA , P R E PA RAÇ ÃO C U I DA D O SA E

C R I AT I V I DA D E E X P E R I M E N TA L I S TA , VÃO M A I S LO N G E , M A I S

A LTO E M A I S F U N D O D O Q U E A L G U É M I M AG I N A R A .

COLAGEM FOTOGRÁFICA POR NEIL JAMIESON


2
5 13. A exploradora
6 8 9
11 14 Tara Roberts conta
4 7 12
10 16 as histórias de alguns
1 3 18 19 13 dos milhares de navios
15
esclavagistas que se
afundaram no oceano
17 23 Atlântico. Dando
20 21 25
22 24 voz ao passado, ela
espera reenquadrar
30 31
28 29 32 33
as narrativas dos
26 africanos no continente
34
27 35 americano.
40
36
39 41 14. Alex Honnold foi
o primeiro a concluir
37 38
uma escalada a solo
integral — sem cordas,
1. Sylvia Earle sorri num A estação era ocorreu décadas após o nem equipamento
submersível enquanto alimentada por painéis único outro espécime ter de segurança — na
um mergulhador solares e transmitia sido destruído durante formação rochosa
desenrola a bandeira dados por satélite. a Segunda Guerra El Capitan, no Parque
da National Geographic Mundial. Nacional de Yosemite.
Society. Sylvia já 5. Financiado pela A sua ascensão do
passou mais de sete National Geographic 9. Pentre Ifan, uma monólito granítico com
mil horas debaixo de Society, o botânico câmara funerária da 914 metros de altura em
água, trabalhando Robert Griggs explorou Idade da Pedra no Oeste 2017 exigiu mais de um
para inspirar o público o rescaldo da erupção do País de Gales, esteve ano de planeamento.
a proteger a vida vulcânica do Novarupta outrora coberta por
marinha: “Se as pessoas em 1912, a maior de que um monte de terra. 15. A exploradora
não conhecerem, não se há registo na história É provável que as rochas Jess Cramp ajudou a
importam”, diz. do Alasca. Robert já se encontrem neste restringir o comércio
descobriu e baptizou o local há 5.000 anos. de tubarões nas ilhas
2. Na década de 1930, recém-criado Vale das Cook em 2012. A zona
a National Geographic Dez Mil Chaminés, uma 10. Na Abecásia de protecção tem dois
colaborou com o Corpo bacia coberta de cinzas (Geórgia), uma milhões de quilómetros
Aéreo do Exército dos e repleta de fumarolas. expedição ao fundo quadrados e é um dos
Estados Unidos para de Veryovkina (a maiores santuários de
enviar balões de gás 6. A ilha da Páscoa, um gruta mais profunda tubarões do mundo.
até à estratosfera. dos lugares habitados do mundo) quase se
Estabeleceu então mais isolados do tornou fatídica quando 16. Luzes de um
o recorde de maior planeta, acolhe mais uma inundação forçou submersível iluminam
altitude alcançada num de mil monólitos de a evacuação da equipa. a proa do RMS Titanic
voo tripulado (22.066 múltiplas toneladas Com a subida das águas pela primeira vez.
metros) e captou a chamados moai. por baixo e uma cascata Em 1985, o fotógrafo
primeira fotografia da intransponível por Emory Kristof documen-
curvatura da Terra. 7. Digitalizando cima, a equipa ficou tou a descoberta
ossos fossilizados, retida durante 16 horas do transatlântico
3. Desde 1974 que os o paleoartista John num acampamento amaldiçoado para
arqueólogos põem a Gurche passou 700 intermédio. esta revista.
descoberto milhares horas a reconstituir a
de soldados de cabeça de um parente 11. Antes de ser 17. Xaverine Mwamini
terracota, no monte nosso com 300.000 anos assassinada em 1985, a Biriko é uma entre
de enterramento do chamado Homo naledi. primatóloga Dian Fossey dezenas de mulheres
primeiro imperador da A descoberta deste passou duas décadas que trabalham como
China. Há 2.200 anos, parente numa gruta da a estudar o compor- vigilantes da natureza
os escultores chineses África do Sul, em 2013, tamento dos gorilas de no Parque Nacional de
deram a cada guerreiro reconfigurou a árvore montanha no Ruanda. Virunga, na República
uma configuração única genealógica dos nossos Democrática do
de cabelo, capacetes e antepassados. 12. Em 1934, a Congo. Xaverine ajuda
fisionomia. aviadora Anne a defender a área
8. Utilizando ossos Lindbergh já percorrera protegida com maior
4. Em 2019, uma recém-encontrados no quase 64.000 quilóme- biodiversidade de
expedição instalou uma deserto marroquino, tros em cinco continen- África, num período
estação meteorológica o explorador Nizar tes ao lado do marido, de agitação civil.
(à época, a mais alta Ibrahim e a sua equipa Charles. Foi a primeira Mais de vinte vigilantes
do mundo, a 8.430 reconstituíram um mulher a receber a da natureza foram
metros de altitude) esqueleto completo do mais alta distinção da mortos, incluindo o
imediatamente sob o predador Spinosaurus. National Geographic, a seu pai, Faustin (à
cume do Evereste. Este feito inovador Medalha Hubbard. esquerda), em 2018.

FONTES FOTOGRÁFICAS DAS ILUSTRAÇÕES: (1) NATIONAL GEOGRAPHIC TELEVISION (2) RICHARD HEWITT STEWART (3) IRA BLOCK (4) MARK FISHER (5) ROBERT F. GRIGGS
(6, 35) JIM RICHARDSON (7) MARK THIESSEN (8) MIKE HETTWER (9) ANDREW HENDERSON (10) ROBBIE SHONE (11) ROBERT I.M. CAMPBELL (12) CHARLES E ANNE LINDBERGH
N A T LAWRENCE
(13) WAYNE
8 I O N A L (14)
GE O G CHIN
JIMMY R A P(15)
H ANDY
I C MANN (16) EMORY KRISTOF (17) BRENT STIRTON, GETTY IMAGES (18, 19) ROBERT E. PEARY (20) CHARLIE HAMILTON
JAMES (21) GERLINDE KALTENBRUNNER (22) BEVERLY JOUBERT (23) KENNETH GARRETT (24) HUGO VAN LAWICK (25) RODNEY BRINDAMOUR (26) BLACK STAR
18. Em 1909, Robert no vale dos Reis, no 29. A arqueóloga 36. O explorador J.
Peary liderou aquela Egipto. Mais de cinco Elizabeth Greene segura Michael Fay demorou
que, durante décadas, mil artefactos, incluindo uma ânfora enquanto 456 dias a atravessar
se pensou ter sido a estátuas, jóias e armas, o explorador George 3.200 quilómetros de
primeira expedição de foram encontrados no Bass e a sua mulher, Ann, floresta húmida na bacia
sucesso ao Pólo Norte. interior do túmulo. observam a partir de do Congo, em África.
A campanha foi um submersível. Bass foi Realizada entre 1999
polémica. Estudos 24. Em 1960, a pioneiro da arqueologia e 2000 e conhecida
posteriores concluíram primatóloga Jane subaquática, como Megatransect, a
que Peary ficou, no Goodall foi a primeira desbloqueando o viagem ajudou a fundar
mínimo, a 48 quiló- a observar chimpanzés nosso conhecimento da os primeiros parques
metros do objectivo. usando ferramentas história submarina. nacionais do Gabão.
como paus – um
19. O explorador afro- comportamento que 30. Barbara Washburn, 37. Quando o Endurance
-americano Matthew se pensava exclusivo que escalava com o embateu no gelo e
Henson trabalhou em dos seres humanos. seu marido, Brad, foi naufragou ao largo da
regiões polares com A investigação sobre a primeira mulher a costa da Antárctida
Peary ao longo de mais os chimpanzés no alcançar o cume do em 1915, a tripulação,
de duas décadas, mas Parque Nacional de monte Denali. O casal liderada por Ernest
os seus contributos Gombe mudou o nosso dedicou 40 anos à Shackleton, sobreviveu. E
foram desvalorizados. entendimento destes cartografia de paisagens Em Março de 2022, o
S
Foi postumamente inteligentes símios. desafiantes, incluindo o navio foi redescoberto
distinguido com a Grande Canyon, para a quase três mil metros P
Medalha Hubbard. 25. Com o apoio do National Geographic. abaixo do nível do mar,
paleoantropólogo Louis bem preservado pelo E
20. A maioria dos Leakey, que também 31. O sonho da frio e pela escuridão. C
elefantes do Parque ajudou Goodall e Fossey, astrónoma Munazza
Nacional de Gorongosa, a antropóloga Biruté Alam é encontrar um 38. A jornalista Harriet I
em Moçambique, foi Galdikas passou anos a “gémeo da Terra”: um Chalmers Adams A
abatida para a extracção estudar orangotangos, planeta fora do nosso escreveu e fotografou
do seu marfim durante uma espécie até então Sistema Solar com um 21 reportagens para a L
a guerra civil que pouco conhecida. clima semelhante ao National Geographic no
assolou o país. Agora, a nosso e potencial para início do século XX. Nas
ecologista Dominique 26. Entre as décadas de acolher vida. suas viagens, atravessou
Gonçalves desenvolve 1950 e 1970, os geólogos (sobretudo a cavalo) a E
esforços no sentido Marie Tharp e Bruce 32. Dickey Chapelle, América Latina.
X
de proteger os quase Heezen criaram mapas colaboradora da
mil elefantes que minuciosos do leito National Geographic, 39. Richard Leakey e P
deambulam pelo parque oceânico. A descoberta foi a primeira mulher a sua futura mulher,
L
e pela área em redor. da dorsal meso- a saltar de pára-que- Meave, examinam
-atlântica por Tharp das no Vietname. Em fósseis numa encosta O
21. A austríaca Gerlinde ajudou a provar a teoria 1965, morreu enquanto rochosa junto do lago
Kaltenbrunner foi a das placas tectónicas. integrava uma patrulha Turkana. As descobertas R
primeira mulher a atingir com os fuzileiros. comprovaram a origem A
o cume de todos os picos 27. Eugenie Clark humana em África
com mais de oito mil começou a trabalhar 33. Com o projecto Photo e revolucionaram o Ç
metros do mundo sem em biologia marinha Ark, Joel Sartore quer conhecimento sobre os Ã
oxigénio suplementar. após a Segunda fotografar o máximo nossos antepassados.
Em 2012, um ano após Guerra Mundial. de espécies animais em O
conquistar o K2 (o Participou em mais de cativeiro. Acumula mais 40. Em 1930, Otis
seu último pico) foi setenta mergulhos de de 14 mil registos, mas Barton e William
nomeada exploradora submersível a grande luta contra o tempo. Beebe desceram 240
do ano da National profundidade e tornou- Muitas extinguir-se-ão metros no oceano
Geographic. -se especialista em entretanto. Atlântico, numa esfera
tubarões, contribuindo de aço a que chamaram
22. Dereck e Beverly para desfazer o medo 34. Paul Salopek batiscafo. O mundo que
Joubert lançaram em que o público sente reconstitui a jornada viram era “quase tão
2009, com a National destes animais. humana que saiu de desconhecido como o
Geographic, a Big Cats África, percorrendo de Marte ou Vénus”,
Initiative para travar o 28. Arqueólogos o globo a pé. Actual- escreveu Beebe.
declínio destas espécies. anunciaram em 2014 a mente, está na China.
O projecto ajudou a descoberta dos vestígios 41. Um grupo de
proteger felinos de “Naia”, uma rapariga 35. As misteriosas mulheres assegurou o
em 28 países. que morreu há mais de Callanish Standing sucesso da missão do
12 mil anos depois de Stones erguem-se nas batiscafo. A técnica
23. Em 1922, o cair numa gruta com 30 ilhas Ocidentais da Jocelyn Crane ajudou a
arqueólogo Howard metros de profundidade Escócia. terão identificar vida marinha.
Carter descobriu o nos arredores de sido erguidas entre Mais tarde, especializou-
túmulo de Tutankhamon Tulum (México). 2900 e 2600 a.C. -se em caranguejos.

(27) DAVID DOUBILET (28) PAUL NICKLEN (29) COURTNEY PLATT (30) BRADFORD WASHBURN (31) JACQUELINE FAHERTY (32) GEORGE F. MOBLEY (33) COLE SARTORE
(34) MATTHIEU PALEY (36) MICHAEL NICHOLS (37) IMAGEM DE VÍDEO DO TRUST FALKLANDS HERITAGE MARITIME, NATIONAL GEOGRAPHIC (38) HARRIET CHALMERS
ADAMS (39) BIANCA LAVIES (40) JOHN TEE-VAN (41) M. WILLIAMS WOODBRIDGE
ENCONTRANDO O
E S TA M O S A V I V E R N U M A N OVA E R A D E E X P L O R AÇ ÃO.

TEXTO DE NINA STROCHLIC

COLAGENS FOTOGRÁFICAS POR NEIL JAMIESON

Desde que Alexander


Graham Bell, um dos
primeiros presidentes
da National Geogra-
phic, testou os seus
engenhos voadores
nas colinas da Nova
Escócia (em cima, à
esquerda) que a
aviação cativa a nossa
atenção. À medida que
o espaço se tornava
uma fronteira cientí-
fica, ajudámos a
recolher amostras da
estratosfera (ao
centro) e oferecemos
uma pequena bandeira
da National Geogra-
phic Society ao
astronauta Neil
Armstrong para que
ele a levasse consigo
na Apollo 11, a primeira
missão tripulada à Lua
(em baixo, à esquerda).

FONTES FOTOGRÁFICAS DAS ILUSTRAÇÕES: JAMES P. BLAIR (BALÃO, NO TOPO, À DIREITA); DAVIDE MONTELEONE (AVIÃO); OTIS IMBODEN (LANÇAMENTOS DOS
FOGUETES); RICHARD HEWITT STEWART (BALÃO DE EXPEDIÇÃO ESTRATOSFÉRICA); BELL COLLECTION (BELL E COLEGA COM PAPAGAIO EXPERIMENTAL)
NOSSO CAMINHO

11
XISTE APENAS UM museu no antigo Trilho do Oregon que conta
a história da expansão americana para Oeste do ponto de vista
dos que acolheram essa expansão. Num canto do Oregon deli-
mitado pelos estados de Washington e do Idaho, este labirinto
de galerias e exposições interactivas forrado a madeira celebra
o legado dos povos indígenas e lamenta o que foi destruído pela
chegada dos pioneiros.
Descendo uma rampa comprida, os visitantes entram na
fachada de tijolo de uma réplica de uma “escola de formação
índia”, onde as crianças indígenas eram convertidas à força e
assimiladas. Uma imagem em tamanho real dos estudantes
devolve-lhes o olhar a um século de distância. Os seus unifor-
mes fazem-nos parecer pequenos soldados.
“Disseram-nos para escrevermos a nossa própria história
se quiséssemos que esta fosse bem contada”, explicou Bob-
bie Conner. Ela estava sentada numa sala de conferências do
Instituto Cultural Tamástslikt, o centro que dirige na Reser-
Caminhadas
va Umatilla e que acolhe membros das comunidades cayu- extenuantes, escaladas
se, umatilla e walla walla. “E esta história é tão velha como o e travessias marítimas
tempo: resume-se à conquista.” abriram novos caminhos
no globo, cartografaram
A história da exploração é frequentemente contada de fenómenos naturais e
forma binária. Explorador e montanha. Explorador e ilha ligaram culturas. Dando
distante. Explorador e tribo isolada. O conquistador e o con- continuidade a uma
tradição de explorado-
quistado. A definição actual de exploração é mais abrangen- res do passado, aqui
te. Exploramos os nossos corpos, os nossos antepassados, a temos o escritor Paul
capacidade do nosso cérebro, a ideia de lar. Exploramos a his- Salopek, que tem
passado os últimos
tória e quem a conta. O explorador tornou-se um aventureiro, 10 anos a caminhar
um artista, um cientista e agora existe um novo arquétipo: o ao longo da rota
reconciliador, alguém que nos ajuda a compreender como de 38.500 quilómetros
percorrida pelos
aqui chegámos. Estes pioneiros estão a questionar os nossos migrantes humanos
livros de história, reescrevendo-os e têm a esperança de im- quando saíram de África
pedir que o passado se repita. e povoaram o mundo.
Quando me sentei com Bobbie Conner naquela sala de
conferências, passara seis meses no Oregon, o meu estado
natal, aguardando o fim da pandemia de COVID-19. Durante
anos, remeti reportagens para esta revista de locais como os

12 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
pântanos isolados do Sudão do Sul, a fronteira colidiram, interagiram e adaptaram-se umas às
entre os Estados Unidos e o México e as monta- outras, em viagens alimentadas pela ganância,
nhas da região oriental do Congo. Agora, diante pelo imperialismo, pela religião e pela ciência.
de mim, encontrava-se a banalidade de um lar É como se, durante milhares de anos, tivésse-
pelo qual eu nunca tivera grande interesse. Sem mos tentado inverter a distância imposta pelos
ter para onde ir, tentei compreender os meus nossos antepassados primitivos para o bem e
novos limites. Não tardei muito a encontrar-me para o mal.
na fronteira do estado, questionando a minha Foi este objectivo que agregou os cientistas,
própria ideia de exploração. académicos e militares que fundaram a Natio-
No entanto, convém primeiro recuarmos nal Geographic Society em 1888. Nos últimos
cerca de sessenta mil anos até à época em que 135 anos, sondámos o céu, o mar, a terra e o
“uma pequena colónia em África partiu para o espaço “para aumentar e difundir o conheci-
mundo e perdeu o contacto”. São as palavras de mento geográfico”. Por vezes, a exploração
Felipe Fernández-Armesto, historiador e pro- que financiámos e documentámos pareceu ser
fessor da Universidade de Notre Dame, que pas- menos sobre estabelecer contacto e mais sobre
sou quase seis décadas a estudar a forma como o chegar em primeiro lugar. E não houve falta de
mundo foi transformado por um processo a que marcos: da ascensão ao cume do Evereste à car-
chama descoberta de rotas. Diferentes culturas tografia do leito do oceano Atlântico.
FONTES FOTOGRÁFICAS DAS ILUSTRAÇÕES: NEIL M. JUDD (CHACO CANYON SURVEYOR); LEAKEY FAMILY COLLECTION (LOUIS LEAKEY, AO CENTRO, E COLEGAS COM OSSOS
DE ELEFANTES PRÉ-HISTÓRICOS); HARRIET CHALMERS ADAMS (ADAMS COM CAMELO); RICK SMOLAN (ROBYN DAVIDSON COM CAMELO NUMA VIAGEM DE 2.700
QUILÓMETROS NA AUSTRÁLIA); JOHN STANMEYER (SALOPEK E O GUIA ETÍOPE AHMED ELEMA); CORY RICHARDS (EVERESTE); STEPHEN ALVAREZ (PETRA)
A ciência, o espaço e o mundo natural foram Câmaras, submersíveis
espremidos para revelarem os seus segredos. Os e veículos comandados
à distância desvendam
Leakey escavaram os nossos antepassados fossi- as profundezas do
lizados, Jane Goodall viveu com chimpanzés e o oceano. Uma das
conservacionista J. Michael Fay cartografou um primeiras reportagens
subaquáticas da
trilho com 3.200 quilómetros através das florestas National Geographic
da África Central. Os exploradores de hoje podem mostrou descobertas
nem ser humanos: estará uma câmara a explorar feitas com o batiscafo
(em baixo, à direita), o
quando é descida ao fundo do oceano para foto- primeiro veículo de
grafar profundidades que os seres humanos ainda exploração do mar
não alcançaram? Ou um robot microscópico no in- profundo. Descido por
um cabo de aço com
terior do nosso corpo enquanto realiza cirurgias? cerca de mil metros de
Há centenas de anos que a exploração é ali- comprimento, sondou
mentada por narrativas. Durante a era europeia as águas ao largo
das Bermudas na
de exploração, entre os séculos XV e XVII, a ficção década de 1930.
popular disseminou heróis que empreenderam
viagens audaciosas e esses romances de cavalaria
podem ter inspirado Colombo ou Magalhães a fa-
zerem-se ao mar. As narrativas foram repovoan-
do o planeta com novas gerações de explorado-
res, uma após outra. Talvez as fotografias e mapas
publicados pela revista National Geographic te-
nham levado o leitor a sair para ver o mundo. Mas
as histórias também serviram para propulsionar
um mito ocidental do explorador que não corres-
ponde inteiramente à verdade.
“Existe uma falha na literatura no que toca aos
exploradores de outros países e esta história tem
sido dominada por homens brancos mortos nos
últimos 500 anos”, diz Felipe Fernández-Armes-
to. “Isso criou a impressão de que é uma activida-
de exclusiva do homem branco… e não é de todo.”
Um dos primeiros possíveis mapas foi pintado
na parede de uma gruta na Índia há cerca de oito
mil anos e o primeiro explorador cujo nome co-
nhecemos é Harkhuf, que liderou uma expedição exploradora que publicou sob o nome de Adam
do Egipto faraónico à África tropical por volta de Warwick para relatar a sua exploração na China
2290 a.C. No oceano Pacífico, marinheiros em ca- na década de 1920, e Reina Torres de Araúz, uma
noas escavadas em troncos seguiram as estrelas antropóloga panamiana que realizou a primeira
e as correntes oceânicas e colonizaram a Nova- expedição de automóvel do Sul ao Norte da Amé-
-Guiné e o Hawai, a partir de cerca de 1500 a.C. No rica. Uma pilha de recortes sobre Harriet Chal-
século VII, um monge chinês chamado Xuanzang mers Adams (que na transição para o século XX
atravessou a China, a Índia e o Nepal em busca de atravessou milhares de quilómetros na América
escritos budistas originais. Nesse mesmo século, Latina) revela que ela refez a rota de Colombo e
exércitos árabes marcharam da península Arábi- fotografou as trincheiras da linha da frente da Pri-
ca até à Ásia Central e ao Norte de África, motiva- meira Guerra Mundial. Os cabeçalhos noticiosos,
dos pela conquista santa. A era do homem explo- porém, demonstravam mais interesse pelo velho
rador branco chegou muito depois e o arquétipo estereótipo feminino: “Uma Mulher Que Não
dominou a narrativa ocidental. No entanto, os Tem Medo de Ratos”, escrevia um.
outros exploradores sempre existiram. À medida que escavamos a história para con-
Nos arquivos da National Geographic, encon- duzir novas pessoas ao panteão dos exploradores,
tro exemplos mais modernos, ignorados pela so- reavaliamos narrativas antigas: o que significou a
ciedade da sua altura: Juliet Bredon, uma mulher exploração para as pessoas que se encontravam

14 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
do outro lado e que foram frequentemente explo- era observada há meio século. A tribo nez perce
radas ou exterminadas? Poderá algum sítio ser adquiriu 130 hectares de terras ancestrais para
realmente descoberto? E quem devemos conside- os seus descendentes se reunirem, enterrarem
rar um explorador? Eva por trincar o fruto proi- os seus mortos e organizarem festivais. Os nomes
bido, embora renunciasse ao Éden? Ou Pandora, tribais estão a regressar aos mapas e à sinalética.
compelida pela curiosidade de abrir a caixa, sol- A princípio, a noção de contar a sua própria his-
tando desgraças sobre o mundo? tória num museu deixou as comunidades da Re-
A história da exploração está a ser reescrita serva Índia de Umatilla perplexas, contou Bobbie.
para preencher lacunas por historiadores como o Não havia nada para celebrar na destruição do
palestiniano Yazan Kopty, que “desenterra” foto- seu povo e da sua terra. Contudo, pensaram de-
grafias centenárias de palestinianos nos arquivos pois sobre como a narrativa da exploração no Ore-
da National Geographic, servindo-se das redes gon ainda é glorificada por uma bandeira onde
sociais para completar as suas histórias. figura uma carroça de pioneiros. E pensaram no
No Centro Cultural Tamástslikt, Bobbie Con- que seria mais importante: a sua história ou a ter-
ner usou a palavra “recuperar” para descrever ra onde tudo aconteceu e como pessoas de todo o
esta nova forma de exploração. Recentemente, mundo poderiam identificar-se com isso. “Este é
dançarinos reproduziram uma dança cerimonial o centro do nosso universo, mas liga-se a todos os
de remoção do escalpe após uma batalha que não outros universos”, diz. j
FONTES FOTOGRÁFICAS DAS ILUSTRAÇÕES: EMORY KRISTOF (SUBMERSÍVEL); WINFIELD PARKS (BARCOS À VELA); JOHN TEE-VAN (BATISCAFO); IMAGEM DE VÍDEO DO
TRUST FALKLANDS HERITAGE MARITIME, NATIONAL GEOGRAPHIC (ENDURANCE); ROBERT B. GOODMAN (MERGULHADOR COM CÂMARA); LUIS MARDEN (GRUPO DE TRÊS
MERGULHADORES); ANDY MANN (MERGULHADOR COM TUBARÃO)
O S

S
P R I M E I R O S
P

L
N A R R A D O
O

D O A M A Z
U M A V I AG E M É P I C A AO M A I O R

C O N J U N TO D E A RT E R U P E S T R E D O

C O N T I N E N T E A M E R I C A N O A S S I N A L A O

I N Í C I O D E U M A E X P E D I Ç ÃO D E D O I S

A N O S AO L O N G O D O R I O A M A Z O N A S ,

D E S D E O S A N D E S AT É AO AT L Â N T I C O.

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE
THOMAS PESCHAK

R E S

Chiribiquete, a área

O N A S protegida da Colôm-
bia, distingue-se pelos
seus tepuis, monta-
nhas coroadas por pla-
naltos que se erguem
abruptamente da flo-
resta húmida. O par-
que é uma das regiões
com maior biodiver-
sidade do mundo,
acolhendo muitas
espécies endémicas.

17
17
Jaguares atiram-se a
pacas enquanto pira-
nhas nadam num mural
conhecido como “La
Hojarasca”. Foram des-
cobertas mais de 75 mil
pinturas em Chiribi-
quete. Algumas têm
20.000 anos: é a mais
antiga arte rupestre
conhecida no conti-
nente americano.
Os pictogramas repre-
sentam fauna e flora,
pessoas e padrões
geométricos. Jagua-
res de grande porte e
animais aquáticos são
motivos comuns.
Na cosmologia dos
tikuna, um dos maio-
res grupos indíge-
nas da Amazónia, os
botos do Amazonas
são espíritos traquinas
e guardiões do reino
aquático. As anciãs
Nuria Pinto e Pastora
Guerrero juntam-se
a dançarinos enver-
gando máscaras de
boto feitas com casca
da árvore yanchama.
para garantirmos o nosso regresso em segu-
X A M Ã AV I S O U - N O S :
rança e apaziguarmos os espíritos, deveríamos fazer uma ofe-
renda de tabaco, considerado sagrado por muitos grupos
indígenas da Amazónia.
Na base de um penhasco de arenito do Parque Natural Na-
cional da Serra de Chiribiquete, na Colômbia, o arqueólogo
Carlos Castaño-Uribe distribuiu charutos grossos que não
pareceriam deslocados num jogo de póquer. Inalámos vigo-
rosamente, banhámo-nos em fumo, colocámos as palmas das
nossas mãos na rocha e manifestámos as nossas intenções
com sinceridade. Como medida complementar, Carlos soprou
fumo sobre cada uma das nossas cabeças.
Só depois começou a exploração.
Viajo com uma equipa pequena, da qual fazem parte Carlos,
Fernando Trujillo, biólogo e explorador da National Geogra-
phic, e alguns montanhistas e especialistas para garantir que
não nos perdemos nesta região bravia sem trilhos e interdita
ao público. Somos a nona expedição autorizada a explorar o
maior parque da Colômbia, que protege uma paisagem es-
pectacular de floresta húmida densa, montanhas altíssimas
coroadas por planaltos (os famosos tepuis) e mais de 75 mil
pinturas rupestres, desenhadas com um óxido de ferro ver-
melho-sangue chamado hematite. O helicóptero é um
Estou aqui para ver os pictogramas, as mais antigas histórias meio essencial para
visuais descobertas neste continente. Os primeiros narradores chegar a Chiribiquete
e viajar pela região.
do Amazonas pintaram fauna e flora, pessoas e padrões geo- O terreno é aciden-
métricos sobre íngremes paredes rochosas. Os jaguares são um tado e difícil de
dos motivos mais comuns – muitos deles apresentam padrões percorrer a pé. Para
conseguirmos alcançar
únicos de linhas ou rosetas. Sou fotógrafo, mas os meus tra- as pinturas rupestres
balhos costumam conduzir-me ao mundo subaquático. O que em alguns dos sítios
faço, então, aqui, a escalar montanhas numa floresta húmida mais inacessíveis,
precisamos de descer
isolada? Vim ver tartarugas, caimões, anacondas e peixes. penhascos em rappel,
abrir caminho pela
floresta húmida densa
A National Geographic Society, e enfrentar abelhas
empenhada em divulgar e proteger inclementes.
as maravilhas do nosso planeta,
financia o trabalho de documentação
do mundo natural do explorador
Thomas Peschak desde 2017.
Descubra mais sobre o apoio concedido
pela NGS aos Exploradores em
natgeo.com/impact.
ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY

22 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Com dezenas de milhares de anos, estes retra- Em minha defesa, Chiribiquete é um local incri-
tos vívidos da vida aquática são uma prova da velmente difícil de explorar e os artistas antigos
longa relação da humanidade com o Amazonas, pintaram em alguns sítios quase inacessíveis.
o maior ecossistema de água doce do mundo. Du- Para chegar às pinturas rupestres nas paredes
rante dois anos, irei fotografar a região, acompa- íngremes dos penhascos, teríamos de partir de
nhando o rio das montanhas até ao mar, no âm- helicóptero e prosseguir a pé, atravessando em es-
bito da expedição National Geographic and Rolex forço a floresta húmida, recorrendo a cordas e es-
Perpetual Planet Amazon. Ao iniciar esta viagem, cadas para escalar, descendo em rappel encostas
tinha como objectivo compreender da melhor e penhascos e calcorreando desfiladeiros escuros.
maneira possível a vivência destes misteriosos po- Numa subida, quase desmaio depois de me
vos pré-históricos no mundo aquático. Há 25 anos ter vestido como um cavaleiro medieval. Visto
que documento os mares mais bravios do nosso calças grossas, duas camisas, luvas, uma rede na
planeta, primeiro como biólogo marinho e, mais cabeça e um par de polainas para me proteger
tarde, como fotojornalista. Sei como evitar ser das mordeduras de serpente. Farei tudo o que for
mordido por um tubarão ou esmagado por uma preciso para me proteger dos inimigos reais ou
baleia enquanto come, mas sou neófito na selva. imaginários.

OS PRIMEIROS NARRADORES DO AMAZONAS 23


A picada feroz do formigão-preto, correspon-

Serra da
GUIANA
dente a um colossal 4 na escala de dor de Sch- VENEZ. SURINAME
COLÔMBIA GUIANA
midt, é descrita como algo semelhante a pisar FRANCESA
ÁREA DO MAPA

Macarena
EQUA
carvão em brasa com um prego de sete centíme- DOR
EQUADOR
tros espetado na cabeça. A potencialmente mor- Região da
PERU
tal jararaca (Bothrops atrox) é responsável pela BOL. Amazónia
AMÉRICA BRASIL
maioria das mordeduras de serpente na região
DO SUL
amazónica. A picada de uma mosca de flebóto-
mo poderá infectar-me com uma desfiguradora
leishmaniose. A cada passo dado sob este calor
sufocante, pergunto a mim mesmo o que ando
aqui a fazer.

~
IMENSIDÃO AMAZÓNICA
começa no
N O S S A E X P E D I Ç ÃO

A
Esta região de sete milhões de La Tunia
aeroporto de San José del Gua- quilómetros quadrados, com a
viare, no Centro-Sul da Colôm- sua flora e fauna únicas, é moldada
bia. L evantamo s vo o em pelo rio de 6.750 quilómetros que
corre dos Andes ao Atlântico.
helicóptero e sobrevoamos
uma manta de retalhos formada por pastagens de
gado e pradarias. Por fim, um tapete de floresta
húmida verdejante estende-se até ao horizonte. Cartagena
del Chairá
Quando surgem as primeiras montanhas, o piloto
desce e navegamos entre desfiladeiros tão estreitos La Tigrera
que talvez conseguisse tocar nos penhascos se
estendesse a mão. Aterramos sobre um pedaço de
rocha irregular. O helicóptero mal cabe ali.
O lugar tem um aspecto idílico, mas sentimo-
-nos como se estivéssemos dentro de uma forna-
Cristales
lha. À medida que o Sol aquece a rocha, a atmos-
fera no interior das tendas ultrapassa 37ºC. Tento
adormecer, desesperando por uma brisa. O suor
alaga o meu colchão.
Somos acordados pelo som de dezenas de mi-
Peneyita Puerto
lhares de helicópteros minúsculos. As abelhas Argentina

do suor chegaram. Pouco depois, todo o acampa-


mento – estojos fotográficos, botas, roupa, pratos,
talheres, tudo o que esteja lá fora – está coberto
de abelhas. Cometo o erro de deixar ligeiramente
aberto o fecho da minha tenda e, pouco depois, Huitora Puerto Huitoto
tenho dezenas de colegas de quarto. Deixo as
abelhas matarem a sua sede no suor que forma
uma poça no meu umbigo. A resistência é fútil.
As abelhas subjugam-nos. Rastejam para o inte-
Aguas
rior do nariz e orelhas. Uma desliza para baixo da Negras
Peña Roja
minha pálpebra. La Tagua
Praticamente não existem abelhas do suor nas Puerto
Zábalo
terras baixas adjacentes aos rios que correm no Puerto Leguízamo
parque, mas somos aconselhados a não perma-
Pr
necer nesses locais. Dizem que alguns elementos COL
ÔM
ed
io
das forças rebeldes FARC ainda andam pelos rios B Pu
PER
tum
IA

ayo
quando a água está suficientemente alta. Prefiro U

abelhas a AK-47. MATTHEW W. CHWASTYK


FONTES: NASA/JPL; ESA; WWF; RUNAP; RAISG; USGS; AGÊNCIA
NACIONAL DO SOLO, COLÔMBIA; GREEN MARBLE; OPENSTREET-
24 N AT I O N A L G E O G R A P H I C MAP; CARLOS CASTAÑO-URIBE
PARQUE NACIONAL
DA SERRA DE
LA MACARENA
San
José del
Guaviare
TESOUROS ISOLADOS
Os tepuis, vestígios de um planalto ancestral
erodido, pairam sobre a selva protegida no
Parque de Chiribiquete, na Colômbia. As suas
paredes verticais, utilizadas como telas por
povos indígenas, foram decoradas com pictogra-
mas ornamentais que testemunham a presença
humana no local há milénios. Distinguido como
Património Mundial, o parque está vedado ao
turismo, mas as visitas não autorizadas e a
327m
Calamar desflorestação ilegal são ameaças crescentes.

Llanos Génova
del Yarí- La Yuquera Fronteira de parque nacional
Yaguará II
La Aguada Limite de reservas indígenas
Estrada/Caminho
Mural pictográfico seleccionado

Barranquillita
Serra de Chiribiquete 15 km
762m San Luis

Foram documentados es
mais de 75 mil pictogra- aflor
Mir Lagos del Dorado,
mas em mais de setenta Lagos del Paso,
S

murais do parque. El Remanso


A maioria encontra-se nos El Rosal Puerto Nare
E

tepuis da zona norte.


R

re

Cerro Quemado
vio
Na

2,192 ft
el Ali
Cayali 668 m
lta d
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R

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V
Pu
A

Arara, Bacati, Cararu,


Lagos de Jamaicuru
PARQUE NACIONAL NATURAL Cubeo
D

Yavilla II
E

Patio Bonito
DA SERRA DE CHIRIBIQUETE
Cachiporro
C

Mesas Vaupés
H

de Iguaje
I

610m Cuñaré
R I

Caserío
Cúcuta
B

Puerto
Peñalito
I

Caserío ra
Salado Hachuela
Maraya cua
Q

ara
Salado Cerros de Ar
U

Barreto
E

El Guamo
T

As reservas indígenas
visam proteger os
E

direitos territoriais dos Aduche Mirití-Paraná


povos com laços 387m
históricos à região e
promover a conservação. Monochoa Puerto
Mesa Benjamín
García
Araracuara Nunuya de Villazul
Puerto
Pizarro
Fernando Trujillo,
cientista e explorador
da National Geographic
(à esquerda) e a sua
equipa examinam um
boto do Amazonas,
uma espécie fundamen-
tal do grande rio.
As suas avaliações,
realizadas segundo
protocolos de segu-
rança, fornecem
informações essenciais
sobre a saúde das
populações de
golfinhos e dos rios.
As zonas dos rios principais do parque a mon-
tante são igualmente o lar dos povos indígenas
carijona, murui-muina e urumi – que vivem sem
contacto, ou em isolamento, desde que tiveram
encontros violentos com seringueiros nos sécu-
los XIX e XX. Certa vez, numa expedição em 2017,
Fernando Trujillo acordou de madrugada com o
som de alguém a movimentar-se nas proximida-
des. Pensando que era outro investigador, voltou
a dormir. Na manhã seguinte, descobriu pegadas
descalças ao lado das marcas deixadas pelas suas
botas. Mais de 80 quilómetros de terreno difícil se-
para-os do nosso acampamento, mas todas as noi-
tes presto atenção ao ruído das folhas e dos ramos.
Não é improvável que, tal como nós, os povos
indígenas venham ver a arte rupestre. Os picto-
gramas continuam a ser importantes para a sua
cosmologia e actividades cerimoniais. Carlos
Castaño-Uribe descobriu, em tempos, uma pe-
quena fogueira com ossos de animais e pigmen-
tos por baixo de pinturas. Segundo datação por
radiocarbono, as mais antigas têm 20.000 anos,
mas as mais recentes são da década de 1970.
Carlos chamou a atenção do mundo para as
pinturas, que configuram mais de setenta mu-
rais, transformando o parque no Louvre da arte
rupestre do continente americano. Em 1986, uma
tempestade obrigou o seu Cessna a desviar-se da
rota. Numa paisagem desconhecida, ele avistou
os tepuis, que não constavam em mapas. Re-
gressou para explorá-los cinco anos mais tarde
e encontrou os pictogramas. Na verdade, não foi
o primeiro cientista a vê-los, mas sim Richard
Evans Schultes, etnobotânico da década de 1940.
Contudo, esse pioneiro não percebeu que estava Abelhas formam um
rodeado de um dos maiores centros de arte ru- enxame em torno do
pestre do mundo. Isso só se tornou evidente com videógrafo Otto
Whitehead. Em poucos
a investigação de Carlos Castaño-Uribe, que de- minutos, centenas de
dicou a vida a Chiribiquete e à sua arte. Publicou abelhas pousaram
as primeiras descrições minuciosas das pinturas sobre ele para sorver
os nutrientes da sua
e associou-as à cosmologia indígena, desempe- transpiração. Cerca
nhando um papel fundamental na criação do de uma dezena de
parque em 1989, nas suas extensões em 2013 e espécies de abelhas
sem ferrão abundam
2018, e na sua selecção como Património Mundial nos tepuis de Chiribi-
reconhecido pela UNESCO em 2018. quete. As redes de
protecção da cabeça
são essenciais.

deixa-nos no alto
M H E L I C Ó P T E RO

U de um tepui e, munidos de cata-


nas, avançamos entre a folhagem
densa durante horas até entrar-
mos num desfiladeiro escuro.
Percorrendo com dificuldade o terreno e usando

28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
escadas e cordas nas secções mais difíceis, conse- sigo-o, e, apesar de ser 15 anos mais novo, tenho
guimos sair. Lutamos contra mais vegetação e, por dificuldade em acompanhar-lhe o passo.
fim, chegamos a um beiral na vertente de um tepui. Este é apenas um capítulo da minha viagem.
Acima de nós, na parede vertical, vemos as pin- Em breve, estarei de volta ao meu elemento
turas. Estamos em “Los Gemelos”. A arte rupestre – dentro ou debaixo de água. O Amazonas cor-
representa raias, lontras e tartarugas, mas está re ao longo de 6.750 quilómetros, dos Andes ao
também protegida por abelhas. Desta vez, não Atlântico, e é a artéria principal de uma rede com
são abelhas do suor, mas abelhas melíferas mais mais de mil afluentes. Já fotografei o seu ponto
agressivas. Em menos de meia hora, a equipa so- de partida geográfico, o pico do Nevado Mismi,
fre mais de cem picadas. Retiramo-nos, mas as no Sul do Peru, o local mais distante da foz do
abelhas seguem-nos e uma vertente que exige a Amazonas, onde as águas correm sempre ao lon-
fixação de uma corda para escalar cria um engar- go do ano. Segui o curso da água para jusante em
rafamento. Eu e Carlos esperamos até ao momen- busca do urso-de-lunetas nas florestas nebulosas
to em que ele decide que está farto de ser picado. de Wayqecha e escalei o sagrado glaciar Colque
Avança, saltando agilmente de raiz em raiz. Não Punku com peregrinos vestidos de Ukuku, um ser
querendo ficar à mercê das beligerantes abelhas, mítico, parte urso, parte humano.

OS PRIMEIROS NARRADORES DO AMAZONAS 29


Rios e ribeiros transpa-
rentes fluem a partir
dos planaltos rochosos.
Acolhem plantas e
animais únicos.
Na serra da Macarena,
uma cordilheira
a noroeste de
Chiribiquete, a planta
endémica Macarenia
clavigera fica vermelha
quando exposta ao
sol, mas permanece
verde à sombra, junto
das vias fluviais.
Ao contrário da maioria dos narradores que se exploradores da National Geographic que vêm
aventuraram na Amazónia, vou descer abaixo da aqui fazer investigação na esperança de assegu-
superfície para revelar um mundo aquático ra- rar o futuro deste reino aquático, que cientistas
ramente vislumbrado. Botos do Amazonas que e jornalistas tendem a desvalorizar. As florestas
utilizam sonares para navegar em florestas inun- húmidas, contrapesos essenciais e ameaçados
dadas. O arapaima, um peixe com carapaça que das alterações climáticas, ofuscaram o ambiente
pesa tanto como um gorila-de-dorso-prateado aquático criado pelo poderoso rio.
e dá saltos fora de água como se fosse um espa- Os meus colaboradores são alguns dos mais res-
darte. Enguias eléctricas, semelhantes a baterias peitados cientistas especializados na Amazónia:
nadadoras, que dão choques de 600 volts, sufi- além de Fernando Trujillo, acompanham-me João
cientemente fortes para matar um ser humano. Campos-Silva, Ruthmery Pillco Huarcaya, Angelo
Vou trabalhar em estreita colaboração com outros Bernardino, Thiago Silva, Baker Perry e Hinsby
Cadillo-Quiroz. Todos fazem trabalho inovador
Esta reportagem foi financiada pela Iniciativa Perpetual Pla- sobre botos do Amazonas, arapaimas, ursos-de-lu-
net da Rolex, que se associou à National Geographic Society
para realizar expedições científicas e explorar, estudar e docu-
netas, mangues, florestas inundadas, alterações
mentar mudanças ocorridas em regiões únicas do planeta. climáticas e poluição causada por mercúrio.

32 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
como
AT U R A L I S TA S F A M O S O S

N Alfred Russel Wallace e Alexan-


der von Humboldt produziram
ilustrações belíssimas daquilo
que viram nas suas explorações
do Amazonas. Contudo, as obras de arte rupestre
mais antigas da região são hipnóticas.
Nos cinco dias que passámos em Chiribiquete,
vimos centenas de pictogramas. São minuciosos
e foram pintados com penas e paus. Um dos mu-
rais, conhecido como “La Hojarasca”, comoveu-
-me particularmente. É uma cena cativante, pin-
tada no alto de uma vertente de um tepui gigante.
Dois jaguares saltam para um rio, atirando-se a
pacas, roedores conhecidos pela sua agilidade na
água. Atraídas pela confusão, piranhas pairam por
perto. A forma como estes animais estão pintados
num beiral fez-me lembrar a sensação de estar de-
baixo de água a ver uma cena desenrolar-se acima
de mim. Será um simples registo visual de criatu-
ras encontradas pelos artistas ou as pinturas con-
tam uma história? Carlos Castaño-Uribe acha que
foram produzidas por xamãs e usadas em rituais
religiosos. Alguns animais desempenham papéis
importantes na cosmologia indígena. Os xamãs
baniwa acreditam que podem transformar-se em
jaguares através da ingestão de plantas sagradas
e falam com os espíritos. Para os tikuna, os botos
do Amazonas são sagrados, participam nas suas
danças e vivem em malocas, casas compridas, no
fundo do rio. As anacondas são frequentemente
consideradas as criadoras do universo e uma len-
da desano refere-se a uma serpente gigante que
subiu o Amazonas, transportando às costas os an-
Os tapires alimentam- tepassados de toda a humanidade.
-se de plantas É provável que os xamãs pintassem para co-
aquáticas e caminham
debaixo de água como municar com seres sobrenaturais, procurando o
os hipopótamos. equilíbrio entre os seres humanos e a natureza. Eu
Os juvenis têm riscas e conto histórias porque a nossa relação com a bio-
manchas que os
ajudam a camuflar-se. diversidade da Terra precisa de ser recalibrada.
Este é um órfão O esplendor do mundo aquático do Amazonas en-
resgatado que será contra-se ameaçado por barragens, explorações
devolvido à natureza.
Entre as refeições, mineiras, pesca excessiva, poluição e alterações
explora à sua vontade climáticas. Provavelmente, nunca saberemos o
a floresta e o mato de significado destas pinturas, excepto se um dia os
um rancho ganadeiro
na serra da Macarena. povos isolados do parque entrarem em contacto
com o mundo exterior. Mesmo sem o saber, po-
rém, sinto uma ligação profunda com as pinturas
e com estes xamãs artistas. Acho que eles estavam
a tentar contar-nos histórias parecidas. Espero
que as minhas imagens resistam à passagem do
tempo, nem que seja apenas por uma fracção do
tempo que as suas resistiram. j

OS PRIMEIROS NARRADORES DO AMAZONAS 33


R E G R E S S O

À
G R U T A
D O S
O S S O S

U M A D É C A DA D E P O I S

D E D E S C O B R I R U M N OVO H O M I N Í D E O

P R I M I T I VO, L E E B E R G E R D E S C E À S

P R O F U N D E Z A S D E U M T R A I Ç O E I R O

S I S T E M A E S P E L E O L Ó G I C O PA R A

A P R E N D E R M A I S S O B R E U M

A N T E PA S S A D O R E C U A D O D O S

H U M A N O S .

Fósseis do sistema espeleológico Rising Star


circundam o esqueleto do Homo naledi. Tendo em
conta o tronco primitivo e as extremidades
semelhantes às dos humanos modernos, “é como
se a evolução estivesse a moldar-nos de fora para
dentro”, diz o paleoantropólogo John Hawks.
ROBERT CLARK

34
E

35
interromper a escavação”, disse eu.
“AC H O Q U E D E V Í A M O S
Enquanto gesticulava diante do monitor do computador, olhei para Kenei-
loe Molopyane, uma arqueóloga e cientista forense conhecida na nossa equipa
como “Bones” [“Ossos”]. Estávamos a ver uma transmissão de vídeo em directo
de duas colegas, as arqueólogas Marina Elliott e Becca Peixotto, que escavavam
mais de 35 metros abaixo do local onde nos encontrávamos. “Bones” debruçou-
-se para observar o ecrã enquanto a luz dos frontais das arqueólogas se deslocava
rapidamente pela câmara da gruta. “Porquê? O que se passa?”, perguntou.
Era Novembro de 2018 e estávamos no “centro de comando” da nossa equi-
pa, no sistema espeleológico de Rising Star, na África do Sul, que abrange quase
quatro quilómetros de passagens entrelaçadas, ultrapassando 40 metros de pro-
fundidade nalguns locais. Em alguns pontos, é possível encontrar uma câmara
onde um indivíduo consegue sentar-se ou até pôr-se em pé, mas os restantes
espaços abertos são exíguos. Marina e Becca, as nossas duas escavadoras mais
experientes, trabalhavam num desses espaços, Dinaledi.
Os sedimentos destas grutas resultam da poeira e detritos que se soltaram len-
tamente das paredes e cobriram o solo em camadas quase invisíveis. No entanto,
os sedimentos removidos por Marina e Becca não apresentavam esse nível de
uniformidade. Pareciam ter sido remexidos. “Parece que há um buraco no solo
da gruta”, disse eu a “Bones”. “Acho que não é uma depressão natural. Parece-me
típica de um enterramento”, concluí.
“Bones” arregalou os olhos: “Pois parece.” Voltou a examinar a imagem do
monitor. “Concordo com a tua decisão”, disse. “Temos de parar.”

mas aquela decisão conduziria a uma revelação cien-


E U N ÃO S A B I A N A A LT U R A ,
tífica e a um dos momentos mais assustadores e maravilhosos da minha vida.
O nosso trabalho anterior em Dinaledi, em 2013 e 2014, fora impressionante.
Em menos de dois meses, a equipa recuperara mais de 1.200 fósseis (sobretudo
ossos e dentes) numa área de Rising Star com menos de um metro quadrado.

36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Nesta imagem
de 2010, Lee Berger,
explorador residente
da National Geogra-
phic (à esquerda)
trabalha na Reserva
Natural de Malapa,
perto de Joanesburgo,
na África do Sul, onde
encontrou uma nova
espécie de hominídeo.
Três anos mais tarde e
a quase 13 quilómetros
de distância, a sua
equipa descobriu o
Homo naledi.
BRENT STIRTON

Como descrevemos em mais de uma dezena de artigos científicos, nunca


tal se vira em paleoantropologia. Os fósseis representavam uma nova espécie
de parente primitivo dos humanos a que chamámos Homo naledi: Homo, por-
que pertencia ao género partilhado por outros seres humanos, e naledi, que
significa “estrela” em sesotho, um idioma comum na região da África do Sul
onde se encontra este sistema espeleológico, a cerca de 50 quilómetros para
noroeste de Joanesburgo. Demos à câmara o nome de Dinaledi, a “câmara das
estrelas”.
O achado mais importante das campanhas de 2013 e 2014 fora um crânio
de H. naledi que se encontrava num conjunto complexo de restos ósseos ín-
tegros e fragmentados de pernas, braços, mãos e pés. Chamámos a este ema-
ranhado a “Caixa do Puzzle”. Escavá-lo era como jogar uma versão arriscada
de Mikado, na qual cada peça tinha de ser cuidadosamente extraída sem tocar
nas outras. A “Caixa do Puzzle” ocupava uma área com cerca de um metro de
comprimento e estava repleta de restos fossilizados.
Regressámos à “Caixa do Puzzle” em Novembro de 2018 para comprovar se
Dinaledi continha uma camada contínua de ossos. Abrimos dois novos qua-
drados de escavação: um a sul da “Caixa do Puzzle” e outro a norte. O quadra-
do norte revelou uma concentração de fragmentos que pareciam pertencer a
um único indivíduo. Ao prosseguirmos as escavações, descobrimos uma área
estéril e, em seguida, outra concentração de ossos contendo uma mandíbula
e ossos de membros desordenados.
Enquanto Marina e Becca removiam pouco a pouco os sedimentos da área
que eu e “Bones” observávamos na transmissão de vídeo, descobriram uma
concentração de ossos com o tamanho aproximado de uma mala de viagem.
Estranhamente, os sedimentos em redor continham apenas fragmentos ou
nem sequer continham nada. Não fazia sentido. Se os ossos tivessem caído
dentro da câmara, porque estariam os fósseis aglomerados? Por que motivo
havia espaço vazio entre eles?

R E G R E S S O À G R U TA D O S O S S O S 37
Há anos que trabalhávamos em Rising Star sabendo que o H. naledi ocupara
estes espaços e tínhamos razões para suspeitar que tivesse usado Dinaledi como
repositório para os seus restos. Contudo, um “descarte deliberado do corpo” (a
expressão cuidadosa que usáramos nas publicações anteriores) é diferente de
um “enterramento”. Nos artigos publicados em 2015, em que descrevemos o
H. naledi, sugerimos que os corpos encontrados em Dinaledi teriam sido trans-
portados até à gruta, ou deixados cair no interior, talvez através da passagem
semelhante a uma chaminé a que chamámos “Conduta”. Um enterramento é
algo mais intencional: um corpo propositadamente enterrado e tapado.
Os arqueólogos encontraram surpreendentemente poucas provas de enter-
ramento entre os membros mais antigos da nossa espécie. Os casos evidentes
mais antigos foram descobertos em Israel e pensa-se que terão 120.000 a 90.000
anos de idade. Os neandertais também enterravam ocasionalmente os seus
mortos, embora a melhor evidência deste comportamento date de uma fase re-
lativamente tardia da sua existência, há menos de 100.000 anos. As nossas me-
lhores estimativas quanto à idade do H. naledi são mais antigas: entre 335.000
e 241.000 anos.
O H. naledi possuía um cérebro com um terço do tamanho do nosso e estava
longe de ser humano. Os arqueólogos reconhecem que hominídeos com cére-
bros maiores, como os neandertais, podem ter comportamentos complexos,
mas a ideia de o H. naledi ser capaz de algo do género é mais difícil de aceitar.
A ideia de que Rising Star poderia ter sido um local de enterramento era mais ra-
dical. O enterramento é uma actividade demasiado humana: exige planeamen-
to, uma intenção partilhada por um grupo social e conhecimento do carácter
definitivo da morte.

NO INÍCIO DE 2022, a possibilidade de estarmos a descobrir enterramentos de


H. naledi tornara-se mais forte. Dispúnhamos de fósseis de H. naledi provenientes
de muitas áreas diferentes de Rising Star, incluindo da “Caixa do Puzzle”, Dinaledi
propriamente dita e de outra câmara situada a mais de cem metros de distância.
Ao analisarmos um bloco removido do sistema espeleológico, encontrámos o corpo
de uma criança, quase certamente H. naledi, enrolada num espaço mais pequeno
do que um cesto de roupa, com os restos de dois ou três outros corpos descartados
no mesmo buraco ou junto deste. Um objecto em forma de crescente mais denso
do que um osso (uma possível ferramenta lítica) estava mesmo ao lado da mão
mais completa do esqueleto.
Agora, precisávamos de responder a perguntas importantes e fundamentar
um argumento radical e polémico: uma espécie não-humana, com um cérebro
pouco maior do que o de um chimpanzé, enterrara os seus mortos.
Eu e a equipa fizemos todos os esforços para garantir que apresentávamos ao
mundo todos os dados disponíveis de uma forma clara e compreensível. Apesar
de todas as nossas descobertas em Rising Star, menos de 50 dos meus colegas
tinham descido pela “Conduta” de Dinaledi. O seu sector mais estreito tinha

38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
apenas 19 centímetros de largura. Eu próprio explicara os perigos deste espaço a
milhares de pessoas ao longo dos anos.
Apesar de liderar esta investigação há quase uma década, eu só conseguia ver
este espaço na minha imaginação. Absorvia os pormenores observando outras
pessoas no monitor através de cabos esticados no sistema espeleológico, exami-
nando mapas e maravilhando-me com os fósseis. Agora, Dinaledi revelara a sua
maior surpresa e vê-la à distância não seria suficiente. Se isso exigisse arriscar a
vida e os membros para descer e interpretá-la de perto, assim seria.
Antes de pensar em descer pela conduta, porém, tinha de me preocupar com
caber lá dentro. Para ser franco, teria de perder peso. Estava a aproximar-me do
meu 57.º aniversário. Não teria muitos mais anos para tentar. Fiz o meu próprio
plano de dieta e exercício e, embora a minha família me encorajasse, não lhes
contei os meus planos – nem a mais ninguém. Nos meses seguintes, perdi 25
quilogramas e recuperei a melhor forma das últimas décadas.
No dia da minha tentativa, em Julho, acordei às 5 horas e vesti o macacão
azul. Passei meia hora a verificar as baterias do frontal do meu capacete e outros
equipamentos que iria levar na mochila. Em seguida, sentei-me na cama para
atar as minhas botas, que chegavam a meio da minha canela, e olhei para as pa-
redes do quarto, esforçando-me por ter pensamentos positivos. A minha mente
vagueou até à minha mulher, Jackie, que estaria provavelmente a despertar an-
tes de trabalhar. Pensei nos nossos dois filhos, Megan e Matthew. Ambos tinham
descido pela “Conduta”. Ambos sabiam quão difícil e perigoso poderia ser.
Ainda não lhes contara o que estava prestes a fazer. Já tinha dúvidas suficien-
tes sobre a minha capacidade de descer pela “Conduta”. Uma pequena parte de
mim sabia que um familiar próximo não deveria ter grandes dificuldades em
dissuadir-me.

de dúvida antes de fazermos algo perigoso e eu


H Á S E M P R E UM MOM E N TO
sentia-me cheio de dúvidas enquanto os meus pés deslizavam para o interior
do abismo estreito da “Conduta”. Virado para a rocha sólida, o meu macacão
agarrava-se às irregularidades da pedra e as minhas coxas mal cabiam dentro
da fenda. O frontal do meu capacete projectava sombras misteriosas em redor.
Com a metade inferior do corpo dentro da conduta, respirei fundo e imaginei
o buraco estreito no qual estava a entrar. Fiz pressão contra a rocha cinzenta
e antiga. “Bolas, isto é apertado”, pensei. Fiquei pendurado, meio dentro e
meio fora da abertura. Era apenas o começo.
Olhei para Maropeng Ramalepa, membro da minha equipa de exploração
e o “Troll da Conduta”: o meu guia durante a primeira metade da descida.
Ele agachou-se junto da abertura e abriu um sorriso enorme. “O professor
consegue!”, disse. Ripostei com um grunhido. O bafo da respiração já era
visível devido à condensação resultante do contacto com o ar frio da gruta.
Alguns minutos mais tarde, respirei fundo, virei-me de costas e comecei a
descer pouco a pouco.

R E G R E S S O À G R U TA D O S O S S O S 39
12 metros abaixo da superfície

18 Câmara das
Costas do Dragão
A Conduta

24 Passadiço do Super-Homem
(representado em baixo)
Antecâmara
Câmara Hill
Dinaledi
30

Diagrama do sistema da gruta visto de cima

Á F R I C A

NO INTERIOR DA Sistema
Rising Star

GRUTA DOS OSSOS ÁFRICA DO SUL

Em 2013, uma equipa de cientistas


liderada por Lee Berger escavou os
vestígios de um Homo naledi na Câmara Pequeno e estranho
de Dinaledi, no sistema espeleológico de O H. naledi media 1,3 a 1,4
metros de altura e pesava
Rising Star (África do Sul). A nova e 36 a 54 quilogramas.
polémica teoria de Berger defende que As suas dimensões (e
cabeça) mais pequenas
estes hominídeos não se limitaram a permitiram-lhe aceder
descartar os corpos em Dinaledi: a áreas do sistema
espeleológico nas quais a
enterraram-nos. Explorações recentes maioria dos seres humanos
estão a fornecer novas informações sobre modernos não cabe.
como poderão ter percorrido os canais
estreitos do labirinto subterrâneo.
H. naledi H. sapiens

JASON TREAT. ARTE: MATTHEW TWOMBLY

FONTES: LEE BERGER, UNIVERSIDADE WITWATERSRAND, JOANESBURGO;


JOHN HAWKS, UNIVERSIDADE WISCONSIN-MADISON
Centro de
Comando

Extensão da cartografia
da gruta desde o
início das campanhas Câmara
das Costas
Novas do Dragão
áreas
exploradas

3
metros A Conduta

Antecâmara
de Hill

Câmara
Dinaledi Conduta vertical
Inicialmente, a equipa de Lee Berger
pensava que o H. naledi só poderia
ter acedido à câmara de Dinaledi
através de um único canal vertical
ao qual chamou “Conduta”.
Em 2022, descobriu que a
conduta era, na verdade, uma
rede de caminhos estreitos
que conduzia ao interior da
câmara. Também explorou
novas áreas onde descobriu
mais fósseis, incluindo o
crânio de uma criança.

Descida difícil
A deslocação pelas
grutas exige manobras
desconfortáveis. Numa
secção conhecida como
o “Passadiço do Super-
Homem”, os espeleólogos
tiveram de se contorcer
e deslizar através de um
troço com menos de
30 centímetros de altura.
Lee Berger sorri quando sobe
pela primeira vez, vindo da
câmara de Dinaledi, em Julho
de 2022. Teve de emagrecer
25 quilogramas para
atravessar a famosa “Condu-
ta” do sistema espeleológico
– com 19 centímetros no
ponto mais estreito.
CORTESIA DE LEE BERGER

Enquanto revirava as botas para caberem no topo da “Conduta”, o ângu-


lo estranho da entrada obrigou-me a encostar a face à rocha. A gravidade
ajudou até o meu tórax ficar preso. Contorci-me e fiz força até a parede do
túnel ocupar todo o meu campo visual. Não esperava que as paredes fos-
sem tão húmidas. Tive dificuldade em agarrar-me à superfície. Seguindo as
instruções de Maropeng, desci até uma cavidade pequena que se abria nas
minhas costas para a direita. As botas mal cabiam na fenda.
Conseguia ouvir Dirk van Rooyen, deslocando-se na escuridão abaixo de
mim: “Como te sentes?”, gritou. “Até agora tudo bem!”, gritei de volta. Eu
estava prestes a assumir um grande compromisso: se continuasse a descer,
não teria outra escolha senão enfiar a parte mais larga do meu corpo na ca-
vidade. Fiz uma careta. Este caminho poderia conduzir ao meu fim.
Fechei os olhos, contorci-me na fenda com o dedo do meu pé direito à
procura da ponta de uma grande estalagmite que estava ao lado de Dirk.
Com grandes dificuldades, consegui girar sobre o meu apoio, como uma
bailarina. Inspirei e avancei pelo espaço dentro. Aquilo era de loucos.
Agora que o meu corpo alcançara o pináculo da estalagmite, eu estava
literalmente abraçado a ela – com a bochecha encostada à rocha molha-
da. Olhei em volta enquanto recuperava o fôlego. Apercebi-me de que este
espaço não era, afinal, uma conduta. Até era diferente dos desenhos dos
nossos artigos e ensaios científicos. Desde a sua descoberta, em 2013, que a
descrevíamos como uma chaminé: uma passagem vertical. Na verdade, era
uma rede intricada. Imaginei o H. naledi a percorrer estes espaços: adul-
tos e crianças descendo pela passagem mais favorável, ao contrário de nós,
humanos relativamente corpulentos. Era um labirinto de oportunidades.
Continuei a descer e a passagem trazia essas revelações à minha men-
te. As ancas passaram pelo ponto de 19 centímetros de largura. Enquanto
deslizava o peito para o interior da fenda, uma saliência enfiou-se-me no
esterno. Senti o osso vergar. “A saliência não me deixa passar!”, gritei.

42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Pensei nas minhas opções. Olhei para cima e vi Maropeng junto da entra-
da da passagem. De um lado, havia uma corda de escalada, esticada entre
mim e Maropeng e utilizada para descer equipamento até ao interior das
grutas. Enrolei a corda em volta do meu pulso direito. “Maropeng!”, cha-
mei. “Quando te disser, podes dar-me um puxão? Estou a tentar soltar-me!”
Senti a corda apertar-se em torno do meu pulso. “Puxa!”, gritei. A corda
ficou tesa e empurrei com a força que consegui arranjar. Foi o suficiente
para me deslocar alguns centímetros para cima e libertar o peito. Senti uma
picada de dor no ombro. Olhei para a rocha, pensando em mil coisas dife-
rentes. Durante nove anos, presumi que a “Conduta” era um caminho espe-
cial e importante para compreender o comportamento do H. naledi. Estava
enganado. Nada tinha de especial, além do facto de lá caberem seres huma-
nos. Estávamos a tornar esta viagem desnecessariamente difícil para nós.
Tomei uma decisão. “Dirk, consegues tirar esta saliência?”, perguntei-
-lhe. Se Dirk tinha reticências quanto a danificar a passagem, não as mos-
trou. Com golpes rápidos, partiu o pedaço de rocha com um martelo. Cerrei
o maxilar com dores, mas depois libertei-me. Continuei a avançar, contor-
cendo o corpo como se fosse pasta de dentes num tubo amolgado.
Passados alguns minutos, a ponta da minha bota tocou numa escada. Mal
conseguia acreditar. Era a escada que a nossa equipa desenhara para Dina-
ledi. Sempre que alguém chegava aqui, emitia um aviso, um sinal de que a
travessia chegara ao fim: Marina chegou à escada. Kene chegou à escada.
“Berger chegou à escada.”
Pus o pé no solo de Dinaledi e fechei os olhos. Vieram-me lágrimas aos
olhos. Há mais de oito anos que temia nunca pôr os pés neste espaço.
A viagem fora horrível, mas a dor e o medo tinham valido a pena. Agora
precisava de aproveitar ao máximo as próximas horas. Peguei no telefone e
marquei o número da minha mulher para fazer uma videochamada. Quan-
do ela atendeu, sorri, com a cara suja e cheia de suor e uma voz eufórica.
“Adivinha onde estou,” disse-lhe.
“Numa gruta?”, retorquiu.
“Estou na câmara de Dinaledi”, disse-lhe. “Consegui entrar!”
O seu rosto mostrou surpresa. “E sair?”, perguntou.
“Se consegui entrar, também consigo sair”, respondi.
Na verdade, não sabia se conseguiria cumprir a promessa – a saída seria
pelo menos tão difícil, senão mais. j

A National Geographic Society financia o


trabalho do explorador residente Lee Berger
em África desde 1996. Este excerto pertence ao
livro “Cave of Bones”, da autoria de Lee Berger e
John Hawks, agora publicado mas ainda sem
tradução portuguesa.
ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY

R E G R E S S O À G R U TA D O S O S S O S 43
um PLANo
ousado
E

Num berçário
indonésio de
tubarões, um embrião
retroiluminado de
tubarão-zebra
enrola-se no interior
de um ovo com uma
bolsa protectora,
conhecida coloquial-
mente como carteira
de sereia. Quando
eclodir, será libertado
na natureza para
ajudar a revitalizar
as populações de
tubarões em perigo
no arquipélago de
Raja Ampat.
Há aquários em todo o mundo com programas de reprodução
em cativeiro de espécies de tubarão, libertando-os
depois no mar. É uma missão inédita. E poderá resultar.

T E X TO D E 9H7?=ő;B9>
F O T O G R A F I A S D E : 7L ? :  : E K 8 ? B ; J  E  @ ; D D ? < ; H  > 7O ; I

45
Nesha Ichida, uma
cientista marinha
indonésia, conduz com
delicadeza um juvenil
de tubarão-zebra num
recinto marinho do
Centro de Investigação
e Conservação de Raja
Ampat, na ilha de
Kri. Uma equipa de
“amas de tubarão”,
ou cuidadoras, medirá
e pesará o animal no
seu último exame
clínico, no dia anterior
à sua libertação.

46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UM PLANO OUSADO 47
O tubarão-zebra é uma
espécie ameaçada, mas
vários aquários com
animais em cativeiro,
incluindo o Aquário
Shedd, em Chicago,
permitem que os
adultos acasalem e
produzam ovos,
enviando-os depois
para a Indonésia.
;  @ E ; B > E I "  D ; I > 7  ? 9 > ? :7 pegou delicadamente num pequeno
tubarão, numa lagoa azul-turquesa do arquipélago indonésio
de Raja Ampat. A criatura que se contorcia entre os seus dedos
parecia imaginada por uma criança. Fina e com manchas escu-
ras, a sua pele exibia uma mistura de riscas e círculos pálidos
que desenhavam espirais até alcançarem uma cauda que pare-
cia não acabar.
Era um tubarão-zebra com 15 semanas. À semelhança de to-
dos os outros, desenvolvera-se dentro de um ovo, mas esse ovo
fora posto num aquário na Austrália e posteriormente enviado
de avião para a Indonésia, onde eclodira dentro de um tanque,
num novo berçário de tubarões.
Os progenitores da pequena cria tinham sido recolhidos anos
antes ao largo da região setentrional de Queensland, onde os
tubarões-zebra são comuns. No entanto, em Raja Ampat, apro-
ximadamente 2.400 quilómetros a noroeste, os tubarões-zebra
praticamente desapareceram, vítimas do comércio global de
tubarões. Entre 2001 e 2021, apesar de mais de 15 mil horas de
buscas, os investigadores contaram apenas três.
Este tubarão era fruto de uma grande ideia. Cientistas de
dezenas dos aquários mais conhecidos do mundo tinham
concordado que a reprodução em cativeiro de várias espécies
ameaçadas de tubarões e raias e a posterior libertação da sua
descendência pelo mundo fora talvez ajudasse a recuperar os
predadores oceânicos e o próprio mar. Os tubarões-zebra se-
riam os primeiros. Nesha Ichida, uma cientista marinha indo-
nésia, estava aqui para libertar o primeiro.

A National Geographic
Society, empenhada
em divulgar e proteger as
maravilhas do nosso planeta,
financia a fotografia
subaquática do explorador
David Doubilet desde 2012.
David e Jennifer Hayes
documentam tanto a beleza
como a devastação dos oceanos.
ILUSTRAÇÕES DE JOE MCKENDRY

48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
E assim foi que, num dia quente de Janeiro, K C 7  ; C  9 7 :7  E D P ;  ; I F x 9 ? ; I  de fauna e flora mari-
sobre as formações calcárias das isoladas ilhas nhas avaliadas pela União Mundial para a Conser-
de Wayag, a cerca de 140 quilómetros da povoa- vação da Natureza estão em perigo de extinção. Isso
ção mais próxima, vi a jovem criatura bambo- inclui dugongos, abalones, corais, cabozes, canta-
lear-se nas suas mãos. Por norma extrovertida rilhos, atuns e baleias. No entanto, poucas criaturas
e alegre, Nesha mostrava-se reservada. Passara sofrem tanto como os tubarões e as raias. Apesar
meses a preparar este tubarão para uma nova de terem sobrevivido a quatro extinções em massa
vida. Até lhe dera um nome – Charlie. Agora, ao longo de 420 milhões de anos, actualmente,
chegara a altura de lhe dizer adeus. As mãos de entre os animais vertebrados, só os anfíbios estão
Nessa abriram-se e Charlie deslizou para longe, a desaparecer mais depressa. Cerca de 37% das
com a sua longa cauda em movimento enquanto espécies de tubarões e raias enfrentam risco de
mergulhava rumo ao fundo arenoso e a um futuro extinção, segundo um estudo conduzido por Nicho-
inimaginável. Naturalmente, não tinha noção da las Dulvy, um respeitado especialista da Universi-
sua importância simbólica. dade Simon Fraser, na Colúmbia Britânica.

UM PLANO OUSADO 49
O arquipélago das
Wayag é um labirinto
de praias de areia,
lagoas e atóis.
Os barcos de pesca
abundaram em tempos
nestas águas distantes
e quase eliminaram os
tubarões-zebra. Agora,
uma área marinha
protegida patrulhada
por vigilantes serve
de refúgio a tubarões,
raias, tartarugas
e outros animais
marinhos.

50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UM PLANO OUSADO 51
Á́G UA S P ROT E G I DA S Ampat ao longo de dez anos. O seu
Os cientistas esperam que os objectivo é formar uma população
tubarões-zebra reintroduzi- INDONÉSIA
selvagem auto-sustentável e depois
dos permaneçam no seu
habitat junto do primeiro OCEAN aplicar a mesma técnica a outras es-
O
santuário de tubarões e raias EANO PACÍFI
CO pécies – não apenas a algumas, mas
OC ICO
do Sudeste Asiático. Í D
N a tantas quanto possível, disse Lisa
Hoopes, directora de investigação e
conservação do Aquário da Geórgia,
em Atlanta (EUA), parceiro da ReShark.
Santuário Áreas Os cientistas combatem muitas extinções
de tubarões marinhas I. Asia e
e raias protegidas Ayau através da reintrodução de espécies. Já o fizeram
com pandas-gigantes na China, micos-leão-dou-
Ilhas
West rados no Brasil e condores na Califórnia. Contu-
Waigeo
do, as reintroduções marinhas são complexas e
raras. Os oceanos são vastos e a vida marinha é
I. Raja Waigeo difícil de monitorizar. As ameaças são difíceis de
Ampat
Baía Mayalibit gerir. “Tudo é mais complicado quando implica o
Estreito
Dampier oceano”, disse o biólogo David Shiffman.
Em 2017, investigadores tentaram captar vaqui-
Ilhas Fam NOVA-
Salawati
-GUINÉ
tas, uma espécie rara de boto do golfo da Califórnia
I. Kofiau Boo capturada por navios de pesca ilegal. Pretendiam
North Misool realojar os animais em santuários e reintrodu-
zi-los quando o governo mexicano conseguisse
Misool controlar as pescas. Em vez disso, os cientistas
abandonaram o esforço quando a primeira vaqui-
Ilhas Misool ta adulta capturada morreu devido ao stress.
Apesar disso, cada vez mais cientistas reco-
nhecem que os animais de cativeiro podem ser
essenciais para recompor o equilíbrio selvagem
O excesso de capturas é a causa principal. A pes- do mar. Um ano depois da morte da vaquita, uma
ca contribui para os riscos enfrentados por todas comissão da UICN apelou a especialistas para
as espécies ameaçadas de tubarões e é a principal que continuassem a investigar formas seguras
ameaça para dois terços. Todos os anos, são con- de capturar golfinhos porque a sua reintrodução
sumidos milhões de tubarões. E as barbatanas de poderá ser necessária para salvar outras espécies,
tubarão são usadas em sopas, sobretudo na Ásia. como a toninha da América do Sul ou o golfinho-
Os tubarões são essenciais para o mundo ma- -corcunda do Atlântico.
rinho. Mantêm as redes alimentares oceânicas Na verdade, isso já se fez antes. Um aquário de
sob controlo, caçando criaturas mais pequenas Malta cria e liberta no Mediterrâneo pequenos
que poderiam, de outra forma, tornar-se dema- tubarões, que eclodem de ovos removidos de fê-
siado numerosas e destruir sistemas naturais que meas de tubarão mortas vendidas em mercados
alimentam milhares de milhões de pessoas. Para de peixe dos arredores. Outro aquário, na Suécia,
proteger os tubarões, é necessário travar a pesca liberta tubarões-gato num fiorde. Contudo, por
excessiva. Mas será possível reparar alguns danos mais bem-intencionados que sejam, estes esfor-
já causados? Conseguirão os tubarões recuperar ços são mais parecidos com a abertura de jaulas e
se forem criados em cativeiro e, posteriormente, libertação de papagaios em excesso pelos jardins
devolvidos ao ambiente selvagem – não de forma zoológicos do que com programas concebidos
aleatória, mas recorrendo à melhor ciência dis- para recompor populações esgotadas. Têm uma
ponível? Foram essas as perguntas que levaram escala minúscula e, com frequência, nem sequer
Mark Erdmann, cientista da Conservation Inter- envolvem espécies em perigo. Também contor-
national, a agregar vários aquários na ReShark. nam o problema mais grave: enquanto a pesca
Este grupo, constituído por 75 parceiros de 15 excessiva não for travada nos locais onde os tuba-
países, incluindo 44 aquários de renome, preten- rões são libertados, a reposição de mais animais
de libertar 585 alevins de tubarões-zebra em Raja não trará a espécie de volta.
ROSEMARY WARDLEY. FONTES: INSTITUTO DE CONSERVAÇÃO MARINHA, MPATLAS; CARTA GERAL DE BATIMETRIA DOS OCEANOS;
52 GREEN MARBLE; AGÊNCIA INDONÉSIA DE INFORMAÇÃO GEOESPACIAL
CRIAR E LIBERTAR
A organização ReShark pretende reintroduzir
espécies ameaçadas de tubarão e raia nos seus
domínios históricos, o que pode ser uma bênção para
os ecossistemas marinhos. O seu primeiro projecto
é devolver a vida selvagem às águas indonésias.

Como se reproduzem os tubarões?


44% põem ovos 55% parem 1%

Criatura dócil e em perigo, o tubarão-


-zebra é um primeiro candidato ideal para Desconhecido
a reintrodução. Os ovos são mais fáceis
de transportar do que os tubarões vivos.

C I C LO D E V I DA R E I N T RO D U Ç Õ E S
1 Selecção de ovos
Os tubarões acasalam e os ovos são
avaliados com base em indicadores
de saúde e viabilidade genética.

2 Envio
Os ovos são embrulhados,
empacotados e expedidos
legalmente por via postal

3 Eclosão em Raja Ampat


As equipas cuidam das crias em
tanques e transferem-nas para
recintos marinhos.

4 Libertação e monitorização
Os juvenis são identificados com
etiquetas e depois libertados em
áreas marinhas protegidas.

FERNANDO G. BAPTISTA; LAWSON PARKER


FONTES: NICHOLAS K. DULVY, UNIVERSIDADE SIMON FRASER; ERIN MEYER,
AQUÁRIO DE SEATTLE; KADY LYONS, AQUÁRIO DA GEÓRGIA; JENNIFER WYFFELS,
AQUÁRIO RIPLEY; CHRISTINE DUDGEON, UNIVERSIDADE DE QUEENSLAND
Tubarões-de-pontas-ne-
gras-do-recife patrulham
leitos cobertos por ervas
marinhas em águas pouco
profundas, junto da ilha de
Kri. Agora comuns, estes
tubarões eram raramente
avistados antes de Raja
Ampat criar uma rede de
áreas protegidas. Foram
capturados tantos tuba-
rões-zebra que os cientistas
suspeitavam que talvez já
fossem escassos de mais
para encontrarem parceiros.

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UM PLANO OUSADO 55
Foi por esse motivo que Nicholas Dulvy, direc-
tor-adjunto do grupo especializado em tubarões
da UICN durante 11 anos, se mostrou inicialmen-
te céptico quanto ao plano da ReShark. Ele sabia
que a recomposição das populações de tubarões
exigiria mais do que a libertação de animais no
oceano. Já vira demasiadas experiências mal
concebidas. “Estava cansado destes esforços es-
perançosos, mas inúteis”, disse-me. Então fez
perguntas difíceis e ficou surpreendido. “Esta ini-
ciativa é diferente.”
A sua sucessora na UICN, Rima Jabado, con-
corda. Ela diz que lhe parece ser a primeira rein-
trodução de tubarões que “talvez consiga dar à
espécie a oportunidade de não se extinguir”.

7  F7 H J ? H  : E  9 x K "  o
arquipélago de Raja Ampat
parece quase místico. Atóis, bancos de areia e baías
com mangues dão lugar a um azul profundo no
local onde as águas do Índico se encontram com as
do Pacífico. São as águas com maior biodiversidade
no planeta. Acolhem cerca de 1.600 espécies de
peixes e três quartos das espécies de corais duros
conhecidas. “Não só está tudo completamente
coberto e cheio de vida e em movimento, mas tam-
bém a diversidade cromática é arrebatadora”, disse
Erin Meyer, vice-presidente de programas de con- Uma fêmea de tubarão-
servação e parcerias do Aquário de Seattle, que -zebra num recinto
marinho ao largo de
ajuda a gerir o projecto dos tubarões-zebra. Kri come um búzio.
Erin andava de um lado para o outro, junto de Os residentes de Raja
um novo berçário de tubarões instalado ao largo Ampat e as amas de
tubarões colhem búzios
da ilha de Kri, 105 quilómetros a sul de Wayag. Ao em águas próximas, que
seu lado, a sua colega Nesha Ichida, estava enco- são depois pesados e
lhida num recinto marinho, com água ao nível da distribuídos pelo recinto,
de forma a encorajar um
cintura, efectuando o último exame de Charlie comportamento natural
antes da sua libertação, que ocorreria no dia se- de busca de alimento.
guinte. Outro tubarão, Kathlyn, que seria liberta-
do 30 minutos depois de Charlie, rodopiava em
torno das pernas de Nesha.
Erin Meyer e Nesha Ichida vivem separadas crescimento. Foi uma conversa com Mark Erd-
por 16 fusos horários, mas gerem esta operação mann, que trabalhou em Raja Ampat durante
juntas. Nesha, que é também directora de progra- cerca de 15 anos, que a pôs neste caminho.
ma da organização sem fins lucrativos indonésia Os tubarões-zebra deveriam deslocar-se pelo
Thrive Conservation, resolve os problemas no leito marinho da África do Sul à Oceânia, no Pací-
terreno. Os primeiros ovos de tubarão passaram fico, avançando até locais tão setentrionais como
pela alfândega de Jacarta sob os seus cuidados. o Japão, mas, em vez disso, estão em perigo em
Encomendou bombas de água e instalou canos quase todos os lugares, excepto na Austrália e nas
no berçário. Nesha também dirige uma equi- Fiji. No entanto, mais de cem aquários têm-nos
pa de “amas de tubarão”, que zelam para que os em exposição. Mark interrogou se a sua descen-
animais comam búzios e amêijoas. Em Seattle, dência poderia ser reintroduzida. “Pensei que era
Erin Meyer coordena quase tudo o resto. Procura uma ideia fantástica”, disse Erin. Na Primavera
financiamento, encontra aquários que lhe dêem de 2020, liderou uma comissão para transformar
ovos e gere uma lista de parceiros em constante essa ideia em realidade.

56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Havia razões para conjecturar que a iniciativa Apesar da sua reputação de predadores ferozes,
talvez resultasse em Raja Ampat. Os tubarões poucos tubarões são agressivos perante os seres
tinham sido dizimados no local, após anos de humanos e os tubarões-zebra são menos amea-
excesso de capturas. No final da década de 1990, çadores do que a maioria. Mesmo quando as suas
porém, Raja Ampat criou a primeira das futuras populações eram saudáveis, é provável que nunca
nove áreas marinhas protegidas, com cerca de tenham sido numerosos. Os cientistas suspeita-
vinte mil quilómetros quadrados. Em 2012, a vam que a pesca talvez tivesse capturado tantos
pesca de tubarões e raias foi proibida em todo que não existissem suficientes para encontrar
o arquipélago de Raja Ampat. Aldeãos e funcio- parceiros. Após três anos de preparação, chegara
nários armados começaram a fazer patrulhas o momento. No recinto, Nesha pegou em Charlie
em busca de redes de pesca e barcos ilegais. Por e virou-o ao contrário – um truque que sossega
essa altura, algumas populações de tubarões já os tubarões-zebra: “É como um gato que vem ter
tinham começado a recuperar, mas não os tuba- connosco para lhe fazermos festas na barriga”,
rões-zebra. disse Erin. “Fazemos-lhe festas e ele fica assim.”

UM PLANO OUSADO 57
Peixes cardeais e
sardinhas-do-mar
vibram e rodopiam em
redor de uma gorgó-
nia, sob uma saliência
de corais em Wayag.
Raja Ampat acolhe
cerca de 1.600 espécies
de peixes e três
quartos das espécies
mundiais de corais
duros. Wayag é uma
das suas regiões mais
espectaculares.

58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UM PLANO OUSADO 59
Uma cuidadora de tubarão mediu Charlie uma tação. Erin organizou um lanche para a viagem,
última vez: 74 centímetros. Erin e Nesha espera- assegurando-se de que ambos os tubarões ti-
vam que ele já fosse suficientemente grande para nham o mesmo número de guloseimas: 13 búzios.
evitar a captura por um tubarão-de-pontas-ne-
gras-do-recife esfomeado. Já aprendera a caçar andamos a matar os tubarões
; C  J E : E  E  C K D : E"
o seu próprio jantar. Dois transmissores subcu- demasiado depressa para os aquários conseguirem
tâneos permitiriam aos cientistas acompanhar substituí-los. E a reintrodução não funciona para
os seus movimentos. Erin quase chorou: parecia todas as espécies. Muitas, como o tubarão-branco,
uma mãe nervosa a preparar-se para libertar os têm demasiada energia para suportar a vida em
seus pequenos protegidos no mundo. cativeiro. Também precisam de espaço para adqui-
De madrugada, os dois tubarões foram coloca- rir velocidade suficiente para a água entrar nas suas
dos em refrigeradores, a bordo de um navio mo- guelras. Alguns fazem viagens tão longas que seria
torizado com seis metros de comprimento para difícil criar zonas de pesca interdita suficiente-
uma viagem de várias horas até ao local de liber- mente grandes para assegurar que os juvenis

60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Várias semanas depois de partir da Indonésia,
visitei Erin Meyer num recinto de contenção es-
pecial. Nove das criaturas mais estranhas que al-
guma vez vi nadavam em dois tanques enormes.
Tinham cabeças largas, como se fossem raias
anexadas a corpos compridos com duas barbata-
nas. Pareciam tubarões fundidos com um límu-
lo. Eram crias de viola-de-espinhos, uma espécie
em perigo crítico – irmãos, com apenas seis me-
ses de idade. Erin observava as fêmeas nadando
em círculos. “Não é costume na natureza ver
quatro delas juntas, como estas”, disse.
Presentes nas orlas costeiras indo-pacíficas,
as violas-de-espinhos são tão procuradas pela
sua carne e barbatanas que se estima que os nú-
meros da espécie tenham decrescido mais de
80% em 45 anos. Ao contrário dos tubarões-ze-
bra, estas raias são raras nos aquários, existindo
apenas cerca de quarenta em cativeiro. O seu es-
tatuto é tão desesperado que foram dos primei-
ros animais que a equipa da ReShark pensou
reintroduzir, mas parecia demasiado arriscado.
“Não sabemos muito sobre elas”, resumiu Erin.
Os tubarões-zebra são estudados há décadas,
mas a ciência sabe pouco sobre as violas-de-
Nesha Ichida liberta -espinhos, incluindo por onde deambulam, a
um tubarão-zebra em frequência com que se reproduzem, quanta di-
Wayag. Este esforço versidade genética existe entre populações ou o
foi liderado pela
ReShark, um grupo que comem ao longo das suas vidas.
constituído por 44 Foi um golpe do destino que trouxe estas cria-
aquários de 13 países turas até Seattle. As empresas de pesca taiwane-
que espera recompor
muitas populações sas fixam redes no leito marinho e, em Junho do
de tubarões em ano passado, uma fêmea de viola-de-espinhos
perigo através da prenhe nadou para dentro de uma. Um vende-
reintrodução de
animais criados em dor de peixe reconheceu o animal, comprou-o
cativeiro. e ajudou a encontrar-lhe um abrigo temporário.
“Ele queria mesmo manter este animal fora do
comércio alimentar”, disse Erin. A fêmea teve
crias e o vendedor, que conhecia a ReShark, en-
libertados evitem as redes. As reintroduções tam- viou-as para Seattle.
bém podem falhar. Os tubarões jovens podem O plano é preencher as lacunas da sua história
sucumbir a doenças, ser comidos por tubarões e simultaneamente descobrir um local protegido
maiores ou encontrar dificuldades na busca de ali- onde possam prosperar. Os cientistas planeiam
mento. E a maioria das espécies de tubarão parem acasalar as violas-de-espinhos com parceiros ge-
crias vivas, mais difíceis e caras de transportar. neticamente adequados. Têm esperança de que
Contudo, dezenas de tubarões potencialmente as raias comecem a gerar descendentes e que
adequados à reintrodução vivem em locais, de estes possam ser reintroduzidos daqui a vários
Moçambique à Tailândia e às Maldivas, onde esta anos. A equipa de Erin Meyer está a trabalhar de-
abordagem pode funcionar. A equipa da ReShark pressa, dada a situação da espécie na natureza.
já está a pensar noutras espécies que poderá ten- Contudo, por um instante, ela estava feliz só por
tar reintroduzir. As opções incluem o tubarão-an- poder vê-las nadar. “São adoráveis e são lindas.
jo no arquipélago das Canárias e no País de Gales, É aqui que estou agora”, disse. “Se esperarmos,
tubarões-lixa na África Oriental e peixes-serra. poderemos perdê-las.”ഩj

UM PLANO OUSADO 61
A P RÓX I M A G E R AÇ ÃO D E

E X P LO R A D O R E S DA N AT I O N A L

GEOGRAPHIC OLHA PARA O PASSADO

E P ROJ E C TA O O L H A R PA R A A Ó R B I TA

TERRESTRE. REFLECTE SOBRE OS

M A I O R E S P RO B L E M A S D O P L A N E TA

E INVESTIGA ALGUMAS DAS SUAS

C R I AT U R A S M A I S P E Q U E N A S ,

ABRINDO CAMINHOS QUE OUTROS

IRÃO PERCORRER.

N A VA N G

F OTO G R A F I A S D E PARI DUKOVIC


E

UA R DA
L

Ã
“Com frequência, estou Cientista e conserva- O
no subsolo, a escavar cionista, Gibbs Kuguru
fósseis que contam a estuda o DNA de tuba-
história da viagem pro- rões para compreen-
funda da humanidade”, der o modo como os
diz a arqueóloga sul-afri- seres humanos afec-
cana Keneiloe Molo- taram a sua biologia.
pyane (à esquerda). Na juventude, Gibbs
Investigadora principal convivia com tubarões
da Gruta de Gladysvale, todos os dias, algo que
uma importante jazida “ainda parece surreal”,
de hominídeos na África diz. Agora, podemos
do Sul, Keneiloe mos- encontrá-lo em gaio-
tra-se ainda mais entu- las para observação de
siasmada ao recordar o tubarões (o seu "escri-
dia em que encontrou o tório"), recolhendo
fragmento de um crânio, amostras de tecido
seguido de um segundo de tubarões-bran-
e um terceiro no dia cos ou trabalhando no
seguinte até desenvolvimento de
reconstituir um crânio um robot para estudar
quase completo. tubarões em liberdade.

XXXXXXXXXXXXXXXX 63

Uma inundação surpreendeu-nos em Petra [na Jordânia].
A nossa equipa tentou conduzir o carro no meio da chuva, mas
era tão intensa que tivemos de voltar para trás. Petra e a comunidade
em seu redor, Uadi Musa, são cada vez mais afectadas por um
número cada vez maior de dias de chuva e de inundações
repentinas à medida que as alterações climáticas influenciam a
precipitação regional. Estas inundações provocam o encerramento
do sítio arqueológico… e erodem as suas fachadas insubstituíveis.”
— V I C TO R I A H E R R M A N N

Victoria Herrmann
(à esquerda) aprendeu
com os avós, sobrevi-
ventes do holocausto,
que o património
cultural proporciona
resiliência para superar
as ameaças da existên-
cia. Hoje, esta geógrafa
está a aplicar essa lição
às alterações climáticas.
O seu projecto,
"Preserving Legacies",
ajuda líderes locais de
todo o mundo a
compreenderem e a
gerirem os impactes
do clima sobre os seus
sítios e práticas culturais.
“Na sua essência, as
alterações climáticas são
uma história sobre o
potencial de perdermos
aquilo que faz de nós o
que somos”, afirma.

Quando frequentava o
ensino secundário nos
EUA, Sophia Kianni
descobriu que os seus
parentes iranianos nunca
tinham ouvido falar de
alterações climáticas.
Começou a enviar-lhes
artigos científicos que
ela própria traduzia para
farsi. O projecto familiar
cresceu e transformou-
-se na Climate Cardinals,
uma organização sem
fins lucrativos com 9.000
voluntários em 41 países
que já traduziram
informação sobre o clima
para cem idiomas.
Sophia quer que “todos
os humanos, em todos
os lugares, tenham
acesso a adequada
educação climática”.
N A VA N G U A R D A 65
66 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Em pequeno, Samuel
Ramsey (à esquerda)
tinha medo de
insectos, sobretudo de
abelhas. Agora, as
abelhas são a sua
missão. Este entomó-
logo norte-americano
pretende travar aquilo
a que chama “a
próxima pandemia dos
polinizadores”,
documentando
doenças e relações
simbióticas entre as
abelhas na Ásia, o local
com maior diversidade
de abelhas melíferas.
Já viveu momentos
maravilhosos, incluindo
uma noite na Tailândia
em que esteve sob
uma árvore com mais
de 60 colónias de Apis
dorsata, ouvindo o
“hipnotizante zumbido
das abelhas gigantes”.

Aos 13 anos, Gab


Mejia não conseguiu
acompanhar o pai
ao cume do monte
Kinabalu, o pico mais
alto da Malásia. No
entanto, saiu de lá com
uma “paixão inabalável
pela natureza”. Agora,
é um fotógrafo
especializado
em natureza e nos
povos indígenas das
Filipinas, o seu país
natal. Recentemente,
nas montanhas de
Bukidnon, um xamã
indígena baptizou-o
numa cerimónia que
confirmou o caminho
que escolhera
naquela vertente
há tantos anos.


À medida que a noite caía, vi dezenas de homens trepando por
esta árvore enorme, empunhando feixes queimados de erva.
Usando apenas esses defumadores improvisados, conseguiram
acalmar as abelhas e cortar uma pequena secção do favo de
mel… Pareciam gigantescos pirilampos cor de laranja voando
lentamente entre as árvores.”
— S A M U E L RA M S E Y

A progenitora ursa avançou contra nós e golpeou o trenó
com a sua pata enorme. A situação durou poucos segundos,
mas, enquanto fotografava com ambas as máquinas e me
segurava desesperadamente à instável moto de neve, o meu
olhar cruzou-se com o da ursa durante um instante. Vi-lhe
as escleróticas e pensei: ‘Bolas. Estamos demasiado perto’.”
— Á LVA RO L A I Z

O fotógrafo e artista
espanhol Álvaro Laiz
(à esquerda) pretende
estabelecer a ligação
entre o conhecimento
tradicional e a ciên-
cia através da arte. No
âmbito do seu projecto,
The Edge (que explora
a história dos seres
humanos primitivos que
descobriram o conti-
nente americano há
vinte mil anos), viajou
até ao local que o povo
chukchi da Rússia chama
kromka, onde o gelo, o
mar e a terra se encon-
tram. Numa caçada com
descendentes des-
ses migrantes primor-
diais, Álvaro aprendeu
a observar o ambiente
austero à maneira deles
– “estando presente e
escutando”.

A cientista marinha
Imogen Napper
autodefine-se como
detective do plástico.
No âmbito do seu tra-
balho de investiga-
ção sobre poluição,
a sua equipa desco-
briu o maior volume de
microplásticos alguma
vez registado junto
do cume do Evereste.
A descoberta animou
vários países a bani-
rem as microesferas dos
produtos de esfoliação
facial. Agora, a cientista
britânica está a usar
aquilo que aprendeu
no estudo dos oceanos
para investigar a sur-
preendente quantidade
de detritos que flutuam
na órbita terrestre.
N A VA N G U A R D A 69
70 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A conservacionista
Koketso Mookodi,
originária do Botswana,
conduz professores
naquilo a que chama
“expedições ao jardim
de nossa casa”, mas o
seu quintal é o delta do
Okavango, uma vasta
zona húmida repleta de
fauna selvagem. O seu
objectivo é inspirar a
próxima geração de
cientistas e conservacio-
nistas desta região vital
e, para isso, precisa de
recrutar formadores.
Muitos professores
provêm de zonas
urbanas e não estão
habituados a animais
selvagens e à cultura
indígena local. “Nunca
me cansarei de observar
a sua reacção”, diz.

A bióloga Ruthmery
Pillco Huarcaya (à
direita), originária do
altiplano andino, passa o
tempo naquilo a que
chama florestas
nebulosas “mágicas”,
estudando e prote-
gendo o urso-de-
-lunetas. Na sua primeira
expedição pela floresta
para montar armadilhas
fotográficas, Ruthmery e
a sua equipa (incluindo
Ukuku, o seu cão
treinado para a investi-
gação) encontraram
condições meteorológi-
cas extremas. Tiveram
de beber água retida no
musgo das árvores
durante um episódio
de seca grave e de
queimar roupa para
fazer uma fogueira
durante um dilúvio.


Não encontrávamos água [na floresta nebulosa];
os ribeiros estavam secos… Desesperado, um dos guias locais
teve a ideia de espremer a água das barbas das árvores
(‘musgos’) e recolher a acumulada nas bromélias…
Durante quatro dias, continuámos a avançar graças a esta técnica
de sobrevivência até alcançarmos à cota de 1.900 metros
e aí começou a chover sem parar.”
— RU T H M E RY P I L LC O H UA RC AYA
UMA
SHABANA BASIJ-RASIKH, A EXPLORADORA DO ANO

N AT I O N A L G E O G R A P H I C RO L E X , D E U AU L A S A R A PA R I GA S N O

A F E GA N I STÃO AT É O S TA L I B Ã S A E X P U L S A R E M . AG O R A ,

OFERECE ESPERANÇA ÀS CRIANÇAS REFUGIADAS NO RUANDA .

ESCOLA

LONGE
TEXTO DE NINA STROCHLIC

F OTO G R A F I A S D E PARI DUKOVIC

DE

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
E

N
U A S C R I A N Ç A S carregando sacos de compras
saíam de casa, na cidade de Cabul, ocupada
pelos talibãs. A mais velha vestia uma burka e a
de cabelo curto usava calças. Qualquer observador
pensaria que uma irmã e um irmão cumpriam
as tarefas domésticas. Todos os dias seguiam um
caminho diferente. Quando chegavam ao destino,
asseguravam-se de que ninguém os estava a ver,
antes de se agacharem e entrarem por uma porta.
Iam para a escola.
Era o Outono de 1996 e o ensino feminino
acabara de ser ilegalizado. Professores e pais
corriam risco de morte caso se descobrisse que Alunas convivem no
campus de Kigali da
permitiam a presença de raparigas na escola. Escola da Liderança, o
A criança mais nova, Shabana Basij-Rasikh, primeiro e único colégio
de 6 anos, vestia-se de rapaz para fingir ser o interno feminino afegão.
Sob a liderança da
acompanhante masculino obrigatório da irmã. fundadora Shabana
Levavam livros escondidos nos sacos para assis- Basij-Rasikh, alunas e
tirem a aulas leccionadas em segredo. Um dia, colaboradores da escola
foram evacuados para o
suspeitando de que tinham sido seguidas, as ir- Ruanda depois de os
mãs imploraram aos pais para regressar. Os pais talibã tomarem o poder
recusaram: a educação valia o risco. em 2021.
YAGAZIE EMEZI
Há dois anos, quando Shabana tinha 31 anos,
os talibãs voltaram a conquistar o poder no Afe-
ganistão. Ela era então a fundadora do único Mulheres e raparigas estão a ser lentamente
colégio interno feminino do país, a Escola da apagadas, diz Shabana, nomeada exploradora
Liderança, Afeganistão [SOLA, o acrónimo para do ano National Geographic/Rolex devido à sua
School of Leadership], e planeava há meses a coragem, capacidade de liderança e esforços
sua fuga. Queimou os registos escolares e con- incansáveis para assegurar que as raparigas e
seguiu fazer passar 256 funcionários, familiares jovens mulheres afegãs têm acesso à educação.
e alunas pelo caótico aeroporto de Cabul, em- Agora, ela e os seus colaboradores dirigem a
barcando-os num avião rumo ao Ruanda. Foi o SOLA no exílio, no Ruanda, país onde as pessoas
único país que aceitou recebê-los. também viveram muitos anos deslocadas e em
A educação feminina foi combatida pelos ta- guerra, sabendo bem o que significa procurar
libãs mal tomaram o poder. Actualmente, sob o refúgio. O corpo docente da SOLA ensina 61 alu-
novo regime, as raparigas estão impedidas de nas, algumas das quais recém-chegadas de co-
frequentar a escola depois do sexto ano. Me- munidades de refugiados afegãos no Usbequis-
nos de 20% das raparigas em idade escolar vão tão, no Paquistão e no Irão.
à escola. Novas leis retiraram-lhes os direitos Shabana Basij-Rasikh decidiu que uma escola
anteriores, incluindo a possibilidade de visitar física não é suficiente. Os afegãos deslocados,
parques públicos. incluindo o seu marido Mati Amin, que cresceu

74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
num campo no Paquistão – tornaram-se a ter- A SOLA X emitirá um certificado de conclusão
ceira maior população de refugiados do mun- de estudos para cada aluno.
do. O refugiado médio vive deslocado durante Entretanto, a SOLA resolveu fixar-se no Ruan-
10 a 15 anos. Shabana e Mati, que tiveram o seu da, adquirindo terrenos e construindo insta-
primeiro filho em 2022, querem ajudar a com- lações para alojar e ensinar mais de duzentas
pensar esse tempo perdido. “Na nossa casa e na crianças, do 6.º ao 12.º ano. Um dia, quando a
nossa relação pessoal, a SOLA começa quando escola puder regressar ao Afeganistão, este novo
acordamos e dura até irmos para a cama”, diz campus permanecerá aberto – uma casa longe
Shabana, rindo-se. de casa e um santuário, caso o extremismo volte
No terceiro ano da SOLA no exílio, há planos a dilacerar o Afeganistão.
para criar um currículo móvel que permita às Em todo o mundo, o ensino é limitado pela
crianças estudarem nos seus telefones através guerra, pelas alterações climáticas e pela políti-
do WhatsApp. O sistema de lo-fi da SOLA in- ca. Cerca de 244 milhões de crianças em idade
cluirá chats que funcionam como salas de aula, escolar não frequentam escolas. Shabana diz
onde os professores podem publicar lições e que a sua missão é criar um modelo que eduque
atribuir tarefas. As aulas serão acessíveis a par- alunos deslocados dos seus lares. “A SOLA não é
tir de todo o mundo, incluindo o Afeganistão. apenas uma escola”, diz. “É um movimento.” j

UMA ESCOLA LONGE DE CASA 75


O retrato de João de
Saldanha da Gama,
41.º vice-rei da Índia, é
analisado ao pormenor
pela investigadora
Teresa Reis, com
recurso a um microscó-
pio digital portátil.

76
Os palimpsestos de Goa
Tecnologia de ponta revela novas camadas dos quase
quinhentos anos de história partilhada entre Portugal e a Índia.
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO LUÍS CAMPOS
A antiga cidade de Goa,
conquistada pelos
portugueses em 1510, já
não existe, exceptuando
o complexo classificado
como Património
Mundial, que engloba os
edifícios monumentais,
como a Sé Catedral de
Santa Catarina ou a
Basílica do Bom Jesus.
No entanto, os traços
da arquitectura lusa
são omnipresentes
na região, sobretudo
em Pangim.
ÍNDIA

Goa

Conquistada em 1510
por Afonso de
Albuquerque com
muito sangue
derramado, Goa voltou
a mãos indianas em
Dezembro de 1961,
com a operação
militar Vijay.
Foi o final do Estado Português da Índia, mas não da pre-
sença cultural portuguesa nesta região. Só em 1974, após
a revolução de Abril, Portugal reconheceu na Organização
das Nações Unidas a anexação dos territórios de Goa, Da-
mão, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli pela União Indiana. Desde
então, os esforços de aproximação entre os dois países fo-
ram-se sucedendo e a visita de Mário Soares em 1992 foi um
ponto alto desse processo. Mais de seis décadas volvidas so-
bre os eventos daquele Dezembro tenso, um novo projecto
estabelece pontes entre os antigos antagonistas.
No coração da Velha Goa, classificada como Património Mun-
dial pela UNESCO, uma equipa de investigadores portugueses é
recebida calorosamente pelo director do Museu Arqueológico,
Kishore Raghubans, com um cerimonial chá de Para estudar as pinturas, com uma representação
boas-vindas e cumprimentos ritualizados. foi preciso deslocá-las de Luís de Mascarenhas
para o piso térreo, onde esconde "por baixo"
Constituído por técnicos e cientistas das uni- foram submetidas a uma segunda versão
versidades de Évora, Lisboa e Ghent e do Insti- exames de raios X, numa de João Saldanha
tuto José de Figueiredo, bem como dos Serviços sala isolada. Este quadro da Gama.
Arqueológicos da Índia (ASI), este grupo de traba-
lho multidisciplinar tem como objectivo o estudo
da vasta colecção de pintura da Galeria dos Vice- Esta colecção de iconografia é única e tem
-Reis de Goa, que conta com aproximadamente como casa os salões superiores do Museu dos
120 quadros de enorme valor histórico, a grande Serviços Arqueológicos, contíguo à Sé Catedral
maioria dos quais pintados sobre madeira. Estas de Santa Catarina, a maior igreja jamais construí-
obras retratam todos os vice-reis e governadores da por portugueses no mundo, sinal inequívoco
ao longo da ocupação portuguesa, encerrando da importância que Goa tinha para Portugal. Ine-
grande relevância cultural que se pretende agora vitavelmente, ao longo dos quatro séculos desta
estudar no âmbito do projecto Revelações de Ve- colecção, foram feitas múltiplas intervenções
lha Goa, financiado pela Fundação para a Ciência que deixaram até quatro camadas de tinta sobre
e Tecnologia e pela Fundação Oriente. as composições originais dos séculos XVI e XVII.

O S PA L I M P S E STO S D E G OA 81
David Teves Reis,
conservador-restaurador,
analisa um retrato com
múltiplos repintes, com
uma lâmpada de luz
ultravioleta. Esta é
perigosa para o olho
humano, obrigando ao
uso de óculos especiais.
Com um comprimento de
onda diferente, permite
realçar materiais
imperceptíveis sob
luz natural.
Durante o século XIX, foram realizados restau-
ros apressados de má qualidade, que forçaram HÁ MUITO QUE SE SABIA
QUE O FAMOSO RETRATO DE
os investigadores a compará-los com ilustrações
coevas sobretudo do século XVII. Como um pa-
limpsesto muito usado, as primeiras pinturas en-

AFONSO DE ALBUQUERQUE
contram-se fortemente alteradas e desfiguradas.
E para isso também contribuiu uma das persona-
gens da história recente desta colecção, Manuel
Gomes da Costa... mas não pelos melhores motivos.
Militar de carreira, passou por Goa antes de se ERA UMA VERSÃO "FALSA"
E ALTERADA. MAS ONDE
tornar Presidente da República durante 22 dias,
na sequência do golpe de 1926. Era também um
pintor entusiasta e particularmente bom em

ESTARIA O ORIGINAL?
aguarela, mas pouco experiente em pintura a
óleo, o que resultou em intervenções questioná-
veis nas pinturas da Galeria dos Vice-Reis, que
hoje se tentam conhecer com recurso a tecno-
logia de ponta e técnicas não-invasivas. As boas
notícias são que, numa parte dos casos, através impressão digital de cada quadro, que fornece
de análises complementares, é possível capturar informação sobre técnicas e datações. Após dé-
e expor por meio digital o aspecto geral das com- cadas de interrogações, o mistério foi finalmen-
posições presentes nas camadas subjacentes, in- te desvendado: Afonso de Albuquerque esteve
visíveis a olho nu, sem necessidade de remover sempre na Galeria dos Vice-Reis, escondido,
as camadas pictóricas. Por sorte, a maioria das mas à vista de todos! (ver página à direita). E o
camadas atribuíveis aos finais do século XVI e mesmo sucede com outros governadores…
ao século XVII ainda se mantém em bom estado A equipa identificou os vestígios do primitivo re-
de conservação, apesar dos repintes, e apresenta trato, oculto (provavelmente) desde o século XVIII
correspondência com reproduções contemporâ- ou XIX, sob a camada visível da pintura de Nuno
neas da colecção, sendo nestas situações possível Álvares Botelho. Apesar de, numa primeira análi-
distinguir os contornos principais dessas compo- se, ser tentador reverter essas intervenções de qua-
sições. Aliás, o estudo químico demonstrou que lidade dúbia, a realidade é mais complexa. Teresa
os pigmentos detectados nas camadas subjacen- Reis, a investigadora cuja tese de doutoramento foi
tes têm paralelismo com as cores sugeridas nas precisamente dedicada a esta galeria, alerta: ”A ex-
representações mais antigas. periência com o processo de restauro de seis destas
À partida para Goa, uma das principais inter- pinturas em Lisboa, durante a década de 1950, des-
rogações dos historiadores de arte dos Descobri- tacou a complexidade de realizar procedimentos
mentos permanecia: há muito que se sabia que irreversíveis, como a remoção de repinturas, em
o retrato de Afonso de Albuquerque, exposto no objectos de alto valor documental”, explica. ”Sob
Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, era os revestimentos mais recentes, os originais vão
uma versão “falsa” e alterada. Mas onde estaria resistindo ao clima subtropical de Goa.”
o original? António Candeias, mentor e respon- Com genuíno entusiasmo, a conservadora-
sável do projecto, e Ana Teresa Caldeira, micro- -restauradora explica ainda que este projecto
bióloga da equipa do Laboratório HERCULES, colaborativo entre a tutela indiana e as unida-
apontam cumplicemente para a resposta, de des de investigação portuguesas contempla
sorriso nos lábios, semiescondidos atrás de um também acções de formação às equipas locais,
imponente equipamento de macro-XRF de últi- com uma transferência de conhecimento que
ma geração. permitirá maior autonomia e capacidade de
Na verdade, foi este dispositivo que forneceu intervenção in situ pelo ASI. A cooperação en-
a resposta: permitiu o mapeamento químico dos tre Portugal e Índia não se esgota na dimensão
componentes das pinturas, dando a conhecer científica. Em anos recentes, esta relação tam-
os elementos químicos presentes e consequen- bém já trouxe melhores condições à galeria,
temente os pigmentos utilizados em diferentes com novos focos de luz, expositores e plintos
áreas. O equipamento produz uma verdadeira mais adequados para a musealização.

84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ESCONDIDO À
VISTA DE TODOS
Uma das descobertas curiosas do projecto
luso-indiano de averiguação histórica
(re)descobriu a figura de Afonso de
Albuquerque, segundo governador da Índia
Portuguesa. Esta personalidade da história
de Portugal está pintada por baixo do
repinte identificado como Nuno Álvares
Botelho, nobre do século XVII.

Quadro actual Radiografia


O retrato actual na A radiografia revelou
Galeria dos Vice-Reis uma camada mais
está identificado antiga e os escassos
como Nuno Álvares vestígios do retrato
Botelho (1590-1631), original de Afonso de
figura militar Albuquerque. Em cima,
importante na fase a análise por
de defesa no estreito espectrometria de
de Ormuz. microfluorescência de
raios X com mapea-
MUSEU ASI, VELHA GOA. mento 2D identificou
FOTOGRAFIA DE LUZ VISÍVEL:
HERCULES/LJF-DGPC.
as camadas sobrepos-
CORTESIA: ASI tas. O elemento cobre
(a verde) foi identifica-
do na mistura de
pigmentos utilizados
para esta cor no traje
original; o ferro
(a cinza) e o mercúrio
(a vermelho) só estão
presentes nas camadas
superiores de repintes.

MUSEU ASI, VELHA GOA.


HERCULES/LJF-DGPC.

Coloração Gravura de 1646


A coloração digital Em 1646, Pedro
dos vestígios do Barreto Resende
retrato de Afonso de desenhou esta
Albuquerque foi representação de
aplicada na Afonso de Albuquer-
radiografia do que inserida no
retrato identificado "Livro do Estado da
como Nuno Álvares Índia Oriental",
Botelho. Tornou-se tornando-se a
evidente a relação imagem clássica do
com a representação governador.
de 1646.
BRITISH LIBRARY

MUSEU ASI, VELHA GOA.


HERCULES/LJF-DGPC.
CORTESIA: ASI

O S PA L I M P S E STO S D E G OA 85
À D I R E I TA

Nos corredores da
Galeria dos Vice-Reis
da Índia, o público
é ecléctico, entre
turistas e indianos de
todas as gerações e
estratos sociais. Graças
ao projecto "Revelações
de Velha Goa", alguns
dos segredos deste
imenso legado histórico
foram efectivamente
revelados.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Largas dezenas de
alunas indianas
aguardam ordeiramente
diante das portadas da
Igreja de São Francisco
de Assis, contígua à
entrada dos Serviços
Arqueológicos do
Museu da Índia.

Sob o olhar sobranceiro de um vagamente Percorrendo os vastos corredores da Galeria dos


balofo Dom Pedro de Lencastre, governador Vice-Reis, é fácil perceber como as tendências de
entre 1661 e 1662, amplamente repintado ao lon- diferentes épocas estão plasmadas quadro após
go dos séculos, Teresa Reis reforça: “Os nossos quadro. Na época da Restauração, imperavam os
objectivos são a identificação, caracterização e fartos bigodes e as barbas abundantes. Até finais
contextualização das camadas existentes nestas do século XVII, a indumentária com que os mais
pinturas, a avaliação do seu estado de conserva- altos dignitários do Reino na Índia se faziam re-
ção e o trabalho em conjunto com a equipa do presentar era de armadura, sublinhando o carác-
ASI na procura de soluções para a preservação a ter belicista da presença no território. Com a evo-
longo prazo, apoiados por equipamento de exa- lução da sociedade e da postura dos portugueses
me de superfície e análise in situ não destrutiva. naquelas bandas, a partir do século XVIII já sur-
Além disso, outro objetivo será a organização gem vestidos à civil. As próprias pinturas evoluí-
de uma nova mostra onde o público terá acesso ram na forma e na estética.
visual à informação 'escondida' em cada uma O historiador e professor universitário Fer-
destas camadas de tempo, permitindo um novo nando António Pereira, presidente da Faculdade
processo de interpretação do conjunto e dos de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, explica
seus mistérios!”. que a grande maioria das pinturas da Galeria dos

88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
de, facto atestado pela inclusão de plantas no seu
retrato oficial na galeria – à imagem do próprio
marquês, que se fez representar com as plantas da
cidade de Lisboa a seus pés.
Chegado em 1774, Câmara manteve correspon-
dência cifrada com o primeiro-ministro do Reino,
o que demonstra que havia uma missão quase
secreta – com marcado discurso antijesuíta, em
linha com o seu patrono, de quem era muito pró-
ximo. A missão seria tão determinante que até os
sucessores se apresentaram também com plantas
e fortes. O governador manteve-se no cargo até
1779, já depois da morte de Dom José e da demis-
são do marquês de Pombal (as notícias demora-
vam a chegar, com o hiato de tempo da viagem).
Subsiste hoje um assunto espinhoso por resol-
ver, em termos diplomáticos e históricos: perma-
necem em Portugal três pinturas desta colecção,
incluindo a mais célebre, de Afonso de Albuquer-
que, reproduzida em todos os manuais escolares
de História [na verdade, o modelo original é Lopo
Soares de Albergaria, seu sucessor, tema de um
artigo publicado nesta revista em Junho de 2014,
na sequência do trabalho com o conservador-res-
taurador Miguel Mateus]. Na década de 1980, foi
devolvida uma quarta, o retrato de João de Cas-
tro, como gesto de boa-vontade no quadro do
reatamento das relações diplomáticas entre Por-
tugal e a Índia. Agora, levanta-se a questão sobre
se esses quadros deverão, ou não, ser devolvidos
à Índia e reintegrados na colecção original.
Na véspera do regresso a Lisboa, com algumas
horas disponíveis, contemplo nas ruas o movi-
mento incessante característico do subcontinen-
te e a urgência de mergulhar naquele caos orga-
nizado apodera-se de mim. Qual a melhor forma
Vice-Reis é sobre madeira, ainda que na Europa de sentir este pulsar? Sento-me numa scooter
o seu uso já tivesse sido abandonado a partir de e arrisco. À alvorada, negoceio timidamente
1600. Em Goa, porém, manteve-se essa prática, as grandes rodovias que me parecem medusas
provavelmente devido à disponibilidade de maté- ondulantes para logo escapar para estradas se-
ria-prima e ao domínio desta técnica pelos artis- cundárias do Norte, ao longo da costa apinhada
tas locais. A última pintura naquele suporte data de turistas multicolores. Inflicto depois para o
de 1779. Supõe-se que os retratos passaram a ser interior pacato, onde a arquitectura popular e
encomendados em Lisboa, sobretudo os de tela, religiosa me expõe a um quadro estranhamente
a partir de certa altura, enquanto os de madeira familiar, fruto dos séculos de coabitação de cul-
eram executados localmente. turas tão distintas entre si. Através da redesco-
Uma das curiosidades históricas que Velha Goa berta da herança artística comum a Portugal e
apresenta é que a cidade se tornou uma “cópia” à Índia, numa mescla de investigação tradicio-
da Lisboa pré-terramoto de 1755, desenhada em nal com alta tecnologia, a Galeria dos Vice-Reis
“espelho”, por se encontrar na margem sul. O pro- poderá bem ser a metáfora perfeita para uma
jecto arquitectónico até incluiu uma Ribeira das estória dentro da História, onde a cada camada
Naus! O marquês de Pombal enviou José Pedro da desvendada somos confrontados com uma nova
Câmara com a tarefa de assim organizar a cida- e surpreendente narrativa. j

O S PA L I M P S E STO S D E G OA 89
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA

CONTOS DE FADAS
REIMAGINADOS

APRECIADAS PELAS LENTES


DA H I S TÓ R I A , C U LT U R A E P O L Í T I C A
D A N I G É R I A , A S N A R R AT I VA S
EUROPEIAS CLÁSSICAS ASSUMEM
N OVO S S I G N I F I C A D O S N E ST E PA Í S .

T E X T O E F O T O G R A F I A S D E YA G A Z I E E M E Z I

“A ROUPA NOVA DO IMPERADOR”: a minha


TEversão
X T Odeste
D Econto
C A aborda
T H E Ra Icrescente
N E Z Ucrise
CKE daRpoluição
M A N dos plásticos. Reaprovei-
tei saquetas de água purificada para construir o traje do imperador. O meu objectivo é chamar a atenção para uma questão
real do planeta que eu — e muitas outras pessoas — ainda precisamos de ver e abordar de uma forma abrangente.

90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UMA NAÇÃO VINCULADA PELA LIBERDADE , paz e unidade: o título inspira-se no hino nacional da Nigéria e a imagem alude ao
conto “Cachos Dourados e os Três Ursos”. Os ursos tornam-se espíritos de grupos étnicos e a sua aposta na independência der-
rota as remanescências do colonialismo, representadas por uma mulher vestida como Isabel II na sua visita à Nigéria, em 1956.

C O N TO S D E FA DA S R E I M AG I N A D O S 91
Gostaria de vos apresentar
algumas das histórias com
que cresci na Nigéria.
Faziam parte de um programa de televisão chamado “Tales by
Moonlight”, onde um ancião, sentado debaixo de uma árvore,
contava histórias. Era a versão televisiva da antiga tradição oral.
Antigamente, as fontes de luz ideais eram a lua cheia e as estrelas,
que iluminavam rostos de crianças e adultos ansiosos com a sua
luz azul-prateada. Talvez houvesse também o som próximo de
grilos e o da brisa suave agitando as folhas das árvores.
Venho de uma família de contadores de histórias. À noite, o
meu pai contava a história de como, em menino, quase se afogou
num poço quando tentava içar água. Lembrava como fora atingi-
do por um raio na faculdade de medicina e como lutara contra um
agente do KGB com um bastão numa estação de comboios para
se despedir da namorada... Eu acreditei por completo em todas Para criar o seu projecto
“Another Tale by
as narrativas. Talvez essas histórias tivessem o intuito de nos dis- Moonlight”, Yagazie
trair da vida real, tal como as pilhas de livros onde enterrávamos Emezi demorou quatro
anos a conceber,
as nossas cabeças, curvados sobre a mesa de jantar, empoleirados construir e compor
em cadeiras e camas, construindo mundos a partir de palavras. cenários simbólicos.
Recrutou amigos,
Para mim, os contos de fadas eram especialmente emocio- modelos e activistas
nantes. Adorava aquelas histórias grandiosas e impossíveis e como colaboradores.
Criou figurinos, adereços
as imagens fantásticas que criava na minha cabeça de castelos e cenários, utilizando
magníficos, trajes bordados extravagantes, fadas, florestas e, é peças carregadas
de significado e, em
claro, lutas de espadas, enganos e sangue. algumas imagens, utilizou
Ficava encantada com o sangue fictício dessas histórias, mas ferramentas de edição
digital para eliminar
havia uma violência real à nossa porta. Na década de 1990, a imperfeições.
ditadura militar não travava os confrontos étnicos e religiosos.
A justiça da selva muitas vezes resultava em corpos decapitados
e queimados e o fedor impregnava as ruas enquanto as crianças
caminhavam para a escola. Apertávamos o nariz e abríamos os
olhos para absorver tudo.
Quando cheguei à idade adulta, com o coração devastado por
essas memórias, comecei a focar-me na minha infância e na
regra de silêncio que a escondia. Por que motivo não se falaria
dessa violência em casa?
Fui criada sobretudo pelo meu pai em Aba, uma cidade do Su-
deste da Nigéria. Embora ele se identifique com orgulho como um A National
homem de etnia igbo, o legado colonial do país e a hipervaloriza- Geographic Society,
empenhada em destacar e
ção dos costumes europeus levaram a que desse prioridade à lín- proteger as maravilhas do
gua e educação inglesas em detrimento da nossa língua e cultura. nosso mundo, financiou o
trabalho da exploradora
Ao fazê-lo, pensava que teríamos mais hipóteses de sermos bem- Yagazie Emezi desde 2019.
-sucedidos no futuro. (Continua na página 98) ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY

92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
POSSO ESTAR MORTA mas as minhas ideias não morrerão: nesta reinterpretação de “A Pequena Sereia”, a personagem trans-
\ehcW#i[[cCWc_őWjW"kcWZ_l_dZWZ[Wgk|j_YWW\h_YWdWgk[i[[h]k[Z[\ehcWZ[iW\_WZehW"fhej[ijWdZeYedjhWWfebk_-
ção, num leito de algas marinhas e cercada por jerricãs de água suja.

C O N TO S D E FA DA S R E I M AG I N A D O S 93
GUIA BEM OS NOSSOS LÍDERES : Inspirada no “Barba Azul”, transformei a personagem numa mulher rica da etnia igbo que
segura as cabeças de antigos líderes nigerianos. Como seria a nossa história sem corrupção, tribalismo e políticas fracassadas?
Ao abordar esta questão, espero que possamos trabalhar rumo a uma sociedade mais justa.

94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
PARA CONSTRUIR UMA NAÇÃO: Usei “Rumpelstiltskin” para denunciar as práticas eleitorais injustas que contribuem para o
declínio ambiental, económico e político do país. Um homem usa uma T-shirt do Corpo de Serviço Juvenil, cujos membros zelam
para que não existam subornos ou interferências nos processos eleitorais. No cenário, há boletins de voto e nairas, a moeda local.

C O N TO S D E FA DA S R E I M AG I N A D O S 95
“CAPUCHINHO VERMELHO”: estudei os arquivos de fotografia colonial da Nigéria e encontrei referências culturais que usei na
minha forma de interpretar esta história infantil. Substituí a personagem principal por uma mulher igbo envolta pela
bandeira britânica, numa interpretação de como o poder colonialista distorceu e afectou a expressão indígena.

96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
PAGAR AO FLAUTISTA: Esta imagem é uma adaptação de “O Flautista de Hamelin” que ilustra a forma ineficaz como o
governo lida com os bandidos e militantes, aumentando a insegurança geral. Um exemplo são as quase 100 alunas de
Chibok ainda desaparecidas depois de terem sido sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram, em 2014.

C O N TO S D E FA DA S R E I M AG I N A D O S 97
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA

Em 2018, comecei a expressar as minhas laçadas por estas duas culturas, expandindo a
dúvidas e pensamentos através da fotografia. narrativa visual e o que esta pode concretizar
O meu projecto, “Another Tale by Moonlight”, quando ultrapassa os padrões ocidentais.
apoiado pelo programa de bolsas da National O projecto aborda os dramas do nosso passa-
Geographic e atribuído durante a pandemia de do, do presente e do futuro próximo, exploran-
COVID-19, é uma releitura dos contos de fadas do as formas através das quais esses conflitos,
europeus, justapondo as realidades histórica, reenquadrados visualmente, podem confrontar
cultural, ambiental e sociopolítica da Nigéria. a autoridade e exigir mudanças. O regresso às
Com esta série, pretendo destacar as narrati- narrativas europeias é a forma de mostrar a mi-
vas obscuras e as complexidades morais entre- nha história e a do meu país. j

CRIANÇAS DE AMANHÃ: Para destacar a ineficácia do sistema educativo, que pode dar origem
a que alguns alunos faltem à escola durante anos, reinterpretei “A Bela Adormecida”. A per-
sonagem principal representa o corpo estudantil, enclausurado atrás de um vidro à espera
de ser resgatada… algum dia.

98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OS PALIMP SESTOS DE GOA | B A S T I D O R E S

CAMADAS DE HISTÓRIA
TEXTO DE ANTÓNIO LUÍS CAMPOS

A GALERIA DOS VICE-REIS em Velha cativeiro na Índia e de como o agente


Goa concentra uma colecção única de Jorge Jardim recuperou também o Nascido em Coimbra,
iconografia das mais importantes figu- quadro de Afonso de Albuquerque, António Luís Campos
ras portuguesas na Índia entre os sécu- desde então exposto no Museu colabora há duas décadas
los XVI e XIX. Para António Can- com a edição portuguesa
Nacional de Arte Antiga.
da National Geographic,
deias, químico de formação e fundador Com a participação de investigado- especializando-se em
do Laboratório HERCULES da res dos Laboratórios José de Figueiredo temas de conservação da
Universidade de Évora, a galeria e HERCULES, desvendaram-se os natureza, investigação
foi também uma obsessão. Há mais segredos desta colecção de pinturas histórica e aventura.
de uma década que a história deste repintadas e alteradas ao longo da his- Acompanhou em Goa os
curioso património artístico interessa trabalhos de campo do
tória. O prémio desta perseverança,
Laboratório HERCULES
ao investigador que se aliou ao conser- que implicou tanto conhecimento da Universidade de Évora.
vador-restaurador Miguel Mateus, científico como diplomacia ao mais
entretanto desaparecido, e à investiga- alto nível, teve como fruto, entre outras
dora Teresa Reis para explorar a sua descobertas, a identificação da pintura
atribulada história através de fontes original de Afonso de Albuquerque.
documentais e testemunhos orais. Na fotografia, Candeias faz os últi-
A equipa chegou a entrevistar mos ajustes para um exame completo
Adriano Moreira, ministro do Ultramar de macro-XRF ao retrato de Nuno
entre 1961 e 1963, apurando pormeno- Álvares Botelho, sob o qual, na ver-
res minuciosos sobre a operação de dade, está a representação do conquis-
resgate dos soldados portugueses em tador de Goa.

ANTÓNIO LUÍS CAMPOS (NO TOPO); BRUNO PIRES (RETRATO)


N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Europa Vista de Cima 5


ESTREIA: 17 DE JULHO ÀS 22H10

A quinta temporada desta série conduz-nos numa


viagem aérea à região do Mediterrâneo, dando
conta de forma singular de monumentos, edifi-
cações e manifestações culturais. As câmaras
voadoras oferecem um novo olhar sobre a sime-
tria hipnotizante dos emblemáticos guarda-sóis
de Itália e sobrevoam o farol mais solitário da
Alasca: Os Primeiros Croácia, mostrando também a tradição da
Habitantes 2 “torre humana” em Espanha e testemunham a
transformação da capital de Malta enquanto a
E S T R E I A : 2 1 D E J U L H O, À N O I T E
cidade conta os dias até ao Natal. Noutra viagem,
espreite uma panorâmica das ilhas Canárias e
Nesta temporada, Jody Potts-Joseph tenta
Baleares de Espanha e descubra mamíferos mari-
capturar um alce, Tig Strassburg e os seus
filhos perseguem um glutão e John Pingayak nhos espantosos e vinhas únicas, além de
e o neto percorrem a tundra em busca de uma catedral gótica que acolhe um fenómeno
oportunidades de alimentação. luminoso extraordinário.

Como Após ajustar a estratégia nos primeiros dias da


Apanhar pandemia de COVID-19 para responder a um
um Traficante 5 fluxo crescente de narcóticos, o Departamento
de Segurança Interna dos EUA concentra-se nos
E S T R E I A : 4 D E J U L H O, aeroportos, onde as viagens internacionais
ÀS 22H10 recuperam o ritmo de outrora.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C FOTOGRAFIAS DE NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO E AO CENTRO);


DISNEY (EM BAIXO)
Especial Sharkfest
S Á B A D O S E D O M I N G O S , A PA RT I R DA S 1 7 H

Em Julho, o Nat Geo Wild estreia “Sharkfest”, um


especial que mostra de perto alguns dos preda-
dores mais eficazes e incompreendidos do mundo
oceânico — os tubarões. Nesta maratona televisiva,
emitimos duas séries e sete documentários. Não
perca “Return of the White Shark”, “Shark Eat
Shark”, “When Sharks Attack…and Why”, “When
Sharks Attack 360”, “Bull Shark Bandits”, “Shark
Below Zero”, “Saved from a Shark”, “Bull Shark vs
Hammerhead” e “Sharks vs Dolphins: Bahamas
BattleGround”. Não perca ainda a oportunidade
de descobrir as curiosidades mais estranhas, mas
reais, destes fascinantes animais, desde os últimos
desenvolvimentos na investigação e preservação
de tubarões até às novas formas de prevenir os
seus ataques.

Dr. Oakley, Acompanhada pelas filhas adolescentes e com


Yukon um sentido de humor aguçado, Michelle Oakley,
Vet 11 uma veterinária do Yukon, concilia com destreza
a profissão com as tarefas de esposa e mãe a
ESTREIA: 3 DE tempo inteiro, enquanto viaja através de uma das
JULHO ÀS 18H paisagens mais acidentadas e remotas do mundo.

FOTOGRAFIAS DE NATIONAL GEOGRAPHIC


P R Ó X I M O N Ú M E R O | AGOSTO 2023

Vikings entre Um mundo O regresso do A magia do fungo


o mito e a história artesanal quebra-ossos mucilaginoso
Seriam os vikings os Na etapa mais recente Estas aves desaparece- Apesar do seu aspecto
guerreiros sanguinários da sua jornada pelo ram de Portugal e da alienígena, os fungos
das lendas? Tinham de mundo, Paul Salopek Andaluzia há algumas mucilaginosos são
facto capacetes com percorre um recanto da décadas. Do lado de deste mundo, embora
cornos? Revelamos a China onde perdura um lá da fronteira, os tenham mais de amiba
verdade oculta para lá modo de vida anterior centros de reprodução do que fungos e ocul-
dos estereótipos. ao das megacidades. começam a ter êxito. tem grandes mistérios.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C ANDREW J. SHEARER / ADOBE STOCK

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