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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | FEVEREIRO 2021

´ RIOS
OS MISTE

DOS

Podem ser letais.


Sem eles, porém, a vida é impossível.
N.º 239 MENSAL €4,95 (CONT.)
00239

603965 000006

C O S TA R I C A : C I N C O R E L ATO S A E X PA N SÃO
P R E S E RVA R D E MU L H E R E S E U RO P E I A DA
O PA R A Í S O MIGRANTES V E S PA-A S I ÁT I C A
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C FEVEREIRO 2021

S U M Á R I O

2 30
Na capa
Imagem de um Mimivirus,
um dos maiores e mais
complexos vírus que se
conhecem. Os cientistas
Os mistérios dos vírus Costa Rica: preservar acreditam que o estudo
Vivemos num mundo de vírus o paraíso destes agentes infecciosos
e a pandemia recordou-nos A península de Osa, na Costa poderá ajudar a entender as
o seu poder destrutivo. No Rica, é um paraíso de origens e proliferação de
entanto, também há benefícios biodiversidade e um modelo muitos agentes patogénicos.
associados a eles, sobretudo de conservação baseada no ILUSTRAÇÃO DE MARKOS KAY
na capacidade adaptativa. São ecoturismo. A pandemia,
formidáveis para o bem e para porém, colocou a teste este
o mal e aí radica o seu mistério escudo protector.
e o seu interesse para a ciência. T E XTO D E JA M I E S H R E E V E
T E X T O D E D AV I D Q U A M M E N F OTO G RA F I A S D E C H A R L I E
F OTO G RA F I A S D E C RA I G C U T L E R H A M I LT O N J A M E S
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

50
A S UA F OTO

VISÕES

Cinco relatos EXPLORE


de mulheres migrantes As ondas gigantes da
Em 2019, residiam fora do seu país Nazaré
de origem 130 milhões de
mulheres. E dezenas de milhões
foram obrigadas, por desastres GRANDE ANGULAR
naturais, doença, violência ou A vida ainda por estudar
pobreza, a migrar dentro dos
seus países ou para o estrangeiro. E D I TO R I A L
T E XTO D E AU RO RA A L M E N D RA L
F OTO G RA F I A S D E
T H E E V E R Y D AY P R O J E C T S
I N ST I N TO BÁ S I C O
Amor picante entre os
porcos-espinhos

82
A expansão europeia
da vespa-asiática
N A T E L E V I SÃO

P RÓX I M O N ÚM E RO

Chegou a França a partir da China


em 2004 e já colonizou grande
parte da Europa. Esta espécie
invasora compete com os
invertebrados autóctones
por alimento, dizima pomares
e cria um novo problema para a
apicultura. Os especialistas tentam
mitigar o seu progresso imparável.
T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G

94
Lisboa a aguarela
Pelo pincel da artista russa Inna
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DE CIMA PARA BAIXO: THE EVERYDAY PROJECTS; AFP / GETTY IMAGES; INNA KORNEEVA
V I S Õ E S | A SUA FOTO

N O R B E R T O E S T E V E S A coruja-do-nabal é a mais diurna de todas as aves nocturnas, mas é pouco comum em Portugal. “Foi
um privilégio observar esta ave a caçar, embora ela pareça admirada por me avistar”, brinca o fotógrafo.

G O N Ç A L O P O Ç O Com os nevões que se abateram em Janeiro sobre os pontos mais altos do país, o acesso à Torre da serra da
Estrela a partir de Piornos foi fechado ao trânsito. Um túnel rodoviário assumiu este aspecto congelado durante algumas horas.
J O S É V E N T U R A M I N A As escavações sistemáticas na cidade romana de Ammaia, perto de Marvão, começaram na década
de 1990 e têm emergido volumetrias importantes. Já foram identificados o Fórum e o Anfiteatro da cidade. Em Janeiro deste ano,
quando um nevão matinal pintou de branco toda a região, um fotógrafo destemido fez levantar um drone e captou Ammaia como
poucas vezes se viu, sugerindo uma versão impressionista das estruturas que os romanos ali construíram há quase dois mil anos.
DAR ASAS À
CONSERVAÇÃO
DA NATUREZA
O nome científico é Aquila fasciata. Mais conhecida
como águia-de-Bonelli. O nome podia ser qualquer um.
O importante é que continua a voar livre nas florestas
portuguesas. Esteve quase para cair nas garras da
extinção, mas, com a ajuda do Homem, escapou ao
destino de tantas outras espécies. A conservação da
biodiversidade ganha asas quando existe vontade de
defender tudo o que a natureza nos dá.

Só nas últimas quatro décadas, a população mundial


de espécies selvagens diminuiu 60%. Sinais de alerta que
despertam para a urgência na adoção de princípios para
benefício da preservação da biodiversidade. O caso da
águia-de-Bonelli é um exemplo de como este caminho
pode ser invertido. Um sinal de esperança e um incentivo
à procura de soluções.

Ave de rapina classificada em Portugal com o estatuto


de “espécie em perigo”, e com caráter de conservação
prioritária na União Europeia, a também conhecida como
águia-perdigueira nidifica em várias propriedades
da The Navigator Company do sudoeste alentejano
e Algarve, e tem tido um acompanhamento por parte
desta empresa desde 2006.

No âmbito do projeto LIFE “Conservação de Populações


Arborícolas de águia-de-Bonelli em Portugal”,
a Navigator definiu, em conjunto com o CEAI – Centro
de Estudos da Avifauna Ibérica, um plano de conservação
para os 16 territórios de águia-de-Bonelli, ou seja, 16
casais que habitam nos espaços florestais geridos pela
Companhia. A par, existem quatro ninhos, ou locais
de nidificação estáveis, dentro de propriedades, em
redor dos quais foram constituídas áreas de proteção
entre os 3 e os 4,5 hectares, denominadas “áreas de alto
valor de conservação”.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.
Fontes: IUCN Red List | Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal (2005) | WWF, 2019, “Climate, Nature and our 1,5°C Future”
As alterações climáticas estão a
contribuir para a degradação e
transformação de habitats em que
as espécies vivem há milhares de anos.
Estima-se que haja 8 milhões de
espécies de plantas e animais no
planeta, e cerca de 1 milhão estão
agora ameaçadas de extinção, muitas
delas nas próximas décadas.

Em Portugal, mais de 60% das plantas


avaliadas estão em risco de extinção
e 42% das espécies de vertebrados
identificados estão ameaçados.

AS PROPRIEDADES GERIDAS PELA


NAVIGATOR ALBERGAM CERCA DE
740 ESPÉCIES DE FLORA
E 235 DE FAUNA, INCLUINDO
VÁRIAS ESPÉCIES PROTEGIDAS
E ENDÉMICAS.

publirreportagem
V I S Õ E S

Portugal
O cerro de Santa Bárbara,
a norte de Alcoutim, guarda
a ruína do Castelo Velho.
Construído entre os séculos
VIII e IX, este pequeno alcácer
residencial terá sido ocupado
por um grupo familiar de um
muçulmano, talvez da tribo
berbere dos kutama.
PEPE BRIX
Guiné-Bissau
Os bijagós da Guiné-Bissau
têm sempre presente a música
nas suas vidas e em especial
nas cerimónias. Bastante
criativos, transformam
materiais naturais ou reciclados
em instrumentos musicais.
Este jovem usa latas e plástico
como pele para produzir
os seus sons.
PEDRO NARRA
Quénia
O Bogoria é um lago salino e
alcalino. Sazonalmente, acolhe
uma das maiores congregações
de flamingos no mundo.
A alcalinidade, o calor, a activi-
dade vulcânica sob o lago e
as condições geológicas propor-
cionam o habitat ideal para o
desenvolvimento de cianobacté-
rias azul-esverdeadas que, combina-
das com outros elementos, criam
caleidoscópios de cores.
JOSÉ FRAGOZO
E X P L O R E
O S M I S T É R I O S E M A R AV I L H A S Q U E N O S R O D E I A M

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

AS ONDAS GIGANTES DA NAZARÉ

MIGUEL RIOPA/GETTY IMAGES


UMA CONSPIRAÇÃO DE ELEMENTOS
É PRECISO UMA COMBINAÇÃO IMPROVÁVEL DE FACTORES
GEOLÓGICOS, OROGRÁFICOS E METEOROLÓGICOS
para que se formem, na praia do Norte
da Nazaré, as ondas gigantes que têm
corrido o mundo desde que um surfista
norte-americano, Garrett McNamara,
as popularizou. Descubra os No Outono e no Inverno,
“ingredientes” de uma receita as tempestades são
mais frequentes,
quase irrepetível no planeta. produzindo ondulação
com mais energia.

227 km

NAZARÉ

Nazaré

Peniche

5 km

O CANHÃO DA NAZARÉ
É uma depressão profunda no mar e
constitui um dos maiores canhões A IMPORTÂNCIA DO FUNDO A ACÇÃO REGULAR DO CANHÃO
submarinos da Europa continental, Em alto-mar, mesmo Esta depressão tem efeitos
com 227 quilómetros de extensão as grandes tempestades poderosos na ondulação.
Chega a ter 5.000 metros de costumam produzir Quebra as ondas em duas,
profundidade e prossegue até às ondulação constante aumentando a sua velocidade
imediações da costa. O canhão poderá se a profundidade enquanto elas percorrem
estar associado à falha sísmica da Nazaré. for considerável. a zona do canhão.

30metros
Garrett McNamara Rodrigo Koxa Torre de Belém
25 2011 2017 30m
23,70m 24,38m
20

15
Altura média
10 de uma onda.
Menos de 5m
5
0

ILUSTRAÇÃO DE ANYFORMS DESIGN


Perto da costa, a velocidade As ondas que se deslocam sobre Junto do promontório, as ondas
da ondulação reduz, mas, o canhão em direcção à praia do Sul galgam o degrau do canhão
em contrapartida, a altura mantêm a velocidade quase até à e dirigem-se para a praia do Norte,
de rebentação aumenta. praia porque têm cerca de 50 metros encontrando as congéneres que se
de distância até ao fundo. propagavam pela plataforma.

FACTORES METEOROLÓGICOS
Ao contrário do que o senso comum
poderia sugerir, o vento não tem
de soprar com grande velocidade.
O fenómeno da ondulação
de grande dimensão requer vento
fraco e offshore, associado
à ondulação de norte/noroeste.

As ondas encontram dois


fundos diferentes:

Fundo de praia regular a norte;

As duas ondas juntam-se,


acumulam energia e ganham
maiores dimensões.

Nazaré

Canhão a sul

Importante igualmente é O tempo em que a vaga


o promontório que divide a está activa tem de ser
praia do Sul, onde a ondulação de 14 segundos ou mais.
nunca atinge grande altura,
e a praia do Norte. Com frequência,
o mar tem dois comportamentos
diferentes nas duas praias.

Por norma, quando a


previsão meteorológica
antecipa ondulação
com mais de três metros
para a região, os surfistas
sabem que o canhão
tem capacidade para
triplicar esse valor.

A REPETIÇÃO
Quando a onda da praia do Norte recua de novo,
reencontra-se na zona de convergência
com ondas em formação e acentua a energia,
conferindo à onda seguinte muito mais altura.
G R A N D E A N G U L A R | HIPOGÉNICOS

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE
ANTÓNIO LUÍS CAMPOS

A VIDA AINDA
POR ESTUDAR
O QUE PODE RESIDIR NO INTERIOR DE
U M A M I N A O U N U M A G R U TA E S C U R A

NUMA MANHÃ INVERNAL que cobrira de geada as


urzes das encostas vizinhas, o ar gélido penetra nos
pulmões com a mesma resistência com que nos apro-
ximamos do portão de entrada na mina, por onde se
somem, no escuro, homens e máquinas, a um ritmo
alucinante. De coração apertado, descemos ao âmago
das minas da Panasqueira, umas das principais uni-
dades mineiras de Portugal. Das entranhas da terra,
extraem-se valiosos minérios. Destaca-se o volfrâmio
(também conhecido como tungsténio), objecto de
negócios dúbios durante a Segunda Guerra Mundial
e material cobiçado como endurecedor de ligas metá-
licas para armamento. Hoje, é valioso por ser um
importante componente de aplicações eléctricas.
Sob as estruturas mineiras espalhadas pelo ter-
ritório nacional, muitas das quais abandonadas ou
sobre as quais subsistem dúvidas sobre a viabilida-
de financeira e ambiental, abrem-se agora novos
horizontes. Uma equipa conjunta das universida-
des portuguesas de Évora e do Algarve, do Instituto “São, na verdade, nichos de biodiversidade des-
de Recursos Naturais e Agrobiologia de Sevilha e da conhecidos e uma fonte para microrganismos que
empresa Serviços Mineiros da Andaluzia estuda os sobreviveram às mudanças no seu habitat durante
microrganismos existentes em ambientes hipogé- milhares de anos”, explica Ana Teresa Caldeira, a
nicos (onde o oxigénio é deficitário), desvendando coordenadora do projecto naquela unidade acadé-
lentamente um mundo pouco conhecido e para o mica. “Podem esconder a chave para a elaboração
qual, há bem pouco tempo, se avançava apenas com de antibióticos e fármacos antitumorais.”
retroescavadoras e brocas de proporções hercúleas. O projecto em curso tem como objectivo iden-
O HERCULES tem efectivamente uma palavra a tificar organismos biológicos com uso potencial
dizer. Não se trata de uma referência ao semideus para a medicina, agricultura e ambiente, primeiro
grego, mas sim ao laboratório eborense homónimo à escala laboratorial, mas depois com o foco assu-
– que, como integrante do projecto transfronteiriço mido na procura de aplicações viáveis comercial-
ProBioma (Prospecção em Ambientes Subterrâneos mente em grande escala. Parte do pressuposto de
de Compostos Bioactivos Microbianos) busca, em que, nos confins profundos dos ambientes menos
articulação com investigadores espanhóis, plantas, conhecidos e à partida menos favoráveis ao desen-
fungos e animais de dimensões ínfimas em minas volvimento da vida, haverá organismos resistentes
subterrâneas e grutas do Alentejo e Andaluzia. e potencialmente úteis para a ciência.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
No interior das minas
da Panasqueira,
cruzando tecnologia
de ponta com a dureza
de uma profissão
milenar que se
desenvolve a centenas
de metros de profundi-
dade, uma complexa
operação retira valiosos
minérios. No futuro,
grutas e minas como
esta poderão ser
também fonte de
fármacos e cosméticos.
À esquerda, uma
das lagoas multicolores
da mina do Lousal,
alvo de um projecto de
recuperação ambiental.

FEVEREIRO 2021
G R A N D E A N G U L A R | HIPOGÉNICOS

uma linha de investigação


E M B O R A P O S S A PA R E C E R um museu mineiro. De certa forma, conta a história
(literalmente) obscura, a verdade é que pouco se sabe da mineração no Alto Alentejo.
sobre estes habitats subterrâneos. As condições As antigas lagoas de retenção de águas, de cores
ambientais são peculiares devido a regimes de humi- vibrantes devido aos depósitos de óxidos de enxo-
dade e temperatura praticamente constantes ao longo fre, são um lembrete pungente do preço ecológico
do ano. A reduzida ventilação e a consequente baixa a pagar a longo prazo... Porém, ao entrar nas anti-
oxigenação do ar contribuem para o desenvolvimento gas galerias, toscamente escavadas na rocha, na
de propriedades biológicas únicas. companhia de uma vasta equipa de investigadores
Activa ou abandonada, uma mina muito rara- ibéricos, o registo muda por completo. A excitação
mente desaparece da paisagem, como o Centro sente-se na pele à medida que o burburinho em
Ciência Viva do Lousal testemunha com eloquên- “portunhol” cresce, proporcional à escuridão que
cia. Estabelecido numa antiga mina de pirites, no nos envolve, apenas entrecortada pelos movimen-
limite noroeste da Faixa Piritosa Ibérica, este centro tos nervosos dos focos das lanternas frontais.
de educação científica integra-se num esforço mais O grupo espalha-se. Num cruzamento de túneis,
vasto e ambicioso de recuperação ambiental da ex- a investigadora Valme Jurado Lobo pousa a pesa-
ploração, abandonada em 1988, que inclui também da mochila e, cuidadosamente, retira um estranho

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Em pleno século XXI, existe
um nicho pouco explorado
na biosfera, com perspectivas
muito promissoras: os
ambientes subterrâneos.
martelo de geólogo em riste, recolhe amostras de
rocha, auxiliada por uma aluna de bata surpreen-
dentemente branca, dado o entorno barrento e ba-
fiento. Entre investigadores seniores, pós-doutora-
dos e doutorandos, o grupo é constituído por mais
de uma dezena de cientistas, especializados em
diferentes áreas técnicas.

para os
DA S S I N U O SA S GA L E R I A S S U B T E R R Â N E A S
compridos corredores universitários, a comunidade
científica vem sendo confrontada com uma escassez
de novos antibióticos em desenvolvimento para com-
A investigadora
bater os riscos da crescente resistência antimicrobiana.
Valme Jurado De acordo com os investigadores do ProBioma, “só
Lobo faz amostra- oito dos 51 novos antibióticos e produtos biológicos
gens de ar no em desenvolvimento clínico para tratar microrganis-
interior de uma mos patogénicos resistentes a antibióticos são trata-
mina de pirites em mentos inovadores, adicionando valor à oferta actual
Lousal, que serão
de medicamentos”. E uma boa parte dos fármacos
mais tarde analisa-
actuais apresenta apenas soluções imediatas, sendo
das em laborató-
rio. Esta informa- modificações das classes de antibióticos já existentes.
ção é fulcral para a A Organização Mundial da Saúde tem chamado a
compreensão das atenção para a emergência global de saúde que vai
dinâmicas das comprometer seriamente o progresso da medicina
minas e das caracte- moderna: a resistência aos compostos antimicro-
rísticas biológicas
bianos. É fundamental mais investimento na pes-
dos microrganis-
quisa e desenvolvimento de antibióticos capazes
mos em estudo.
de combater infecções resistentes a antibióticos.
Fazendo uma retrospectiva histórica, percebe-se
que a procura por antibióticos inovadores no sécu-
dispositivo, que parece um “Y” amarelo em tama- lo passado se concentrou inicialmente na produção
nho XL. É um amostrador de ar para amostras mi- de compostos bioactivos por organismos do solo.
crobiológicas, que permitirá à equipa conhecer me- Mais tarde, o foco do desenvolvimento e investiga-
lhor as dinâmicas de fluxos gasosos destas galerias. ção passou para o mundo marinho. Em pleno sécu-
A seu lado, um cabelo grisalho desponta do capuz lo XXI, porém, existe um nicho pouco explorado na
do fato biológico completo. Cesáreo Sáiz Jiménez, biosfera, com perspectivas promissoras para a in-
coordenador do projecto no Instituto de Recursos vestigação biomédica: os ambientes subterrâneos.
Naturais e Agrobiologia, fita a parede num local Segundo a equipa do ProBioma, grutas e minas
aparentemente tão vazio como o resto da mina. No são um óptimo ambiente para a descoberta de no-
entanto, olhando bem de perto e com luz rasante e vas substâncias bioactivas. Ainda assim, a investi-
lateral, o motivo torna-se aparente: uma colónia de gação neste ramo não tem sido profunda, consta-
organismos destaca-se do fundo escuro. tando-se que o conhecimento sobre microbiologia
Uma pequena amostra é recolhida para um tubo subterrânea em território nacional é limitado, ex-
Eppendorf. Metros adiante, uma percussão seca e ceptuando alguns estudos em grutas vulcânicas
sincopada ecoa no ambiente sinistro da cavidade. dos Açores, uma realidade com condições distintas
Maria Clara Costa, da Universidade do Algarve, de das grutas do continente, graníticas ou calcárias.

FEVEREIRO 2021
Pormenores de amostras minerais recolhidas na mina da Panasqueira, que em meados do século passado era a maior
e mais importante mina de Portugal e uma das maiores explorações de volfrâmio do mundo. Durante a Segunda
Guerra Mundial chegou a ter mais de dez mil trabalhadores e a processar mil toneladas de materiais por dia.

Não é só na medicina que a procura de compos- ta, Teresa Caldeira estuda dados aparentemente
tos bioactivos acontece. É igualmente pertinente ininteligíveis. Segundo ela, os resultados são aus-
na agricultura. Um exemplo relevante dessa abor- piciosos: “A análise do genoma das bactérias selec-
dagem é o combate a pragas de insectos em produ- cionadas permitiu já encontrar conjuntos de genes
ções hortícolas e de árvores de fruto, sendo a activi- envolvidos na síntese de metabolitos secundários e
dade biocida desses elementos testada em diversas a identificação de mecanismos genéticos associados
bactérias fitopatogénicas. à produção desses compostos bioactivos, que apre-
Cruzando longitudinalmente o Baixo Alentejo, a sentam também actividade antibacteriana e antitu-
Faixa Piritosa Ibérica é uma longa formação geoló- moral.” E acrescenta: “Devido à sua capacidade de
gica que penetra na Andaluzia, quase até Sevilha. degradar compostos xenobióticos, poluentes de so-
E é ali que o ProBioma incide, seguindo uma aborda- los e águas, pela sua produção de lípidos, compostos
gem inovadora, com recurso à biotecnologia e biolo- surfactantes ou polissacarídeos, com propriedades
gia molecular para o estudo da transcriptómica e do de melhoria de solos agrícolas, muitos destes mi-
genoma completo dos microrganismos em análise. crorganismos são benéficos para o ambiente e po-
Ao longo da história, o subsolo desta região, rico dem vir a ser utilizados em grande escala.”
em minerais, tem sido testemunho de múltiplos Dias mais tarde, uma centena de quilómetros
esforços das comunidades locais para a sua explo- a sul, à saída da mina do Lousal, e à medida que
ração mineira. É um território hostil, que imprimiu a proverbial luz ao fundo do túnel cresce, um céu
stress às espécies lá existentes, ao longo da evolu- plúmbeo aguarda os investigadores que terminam
ção, o que as levou ao desenvolvimento de metabo- mais uma campanha de campo. Entre o ribombar
lismos capazes de sobreviver à escassez de nutrien- surdo e distante dos trovões, uma chuvada torren-
tes orgânicos. Ali, só os mais fortes vingam através cial cai e a neblina densa abate-se, fazendo as si-
da produção de compostos bioactivos contra outros lhuetas das torres mineiras parecer os gigantes de
organismos concorrentes, numa luta silenciosa Dom Quixote de La Mancha.
mas implacável pelos poucos recursos disponíveis. Sob os pés, o caminho de regresso rapidamen-
No outro Alentejo, na sombra da austera fachada te se torna um riacho lamacento, mas o aguaceiro
da Sé de Évora, o quartel-general do HERCULES pa- é bem recebido pela equipa após horas na escuri-
rece uma verdadeira Babel. Cientistas de várias na- dão, a respirar ar viciado. Estiveram num ambiente
cionalidades trabalham em conjunto sob os tectos improvável que, nos próximos anos, se espera que
abobadados de tijolo burro, emprestando uma ban- traga à comunidade científica e ao público novas
da sonora multilingue a este centro de investigação. soluções tecnológicas providenciadas pelos minús-
Debruçada sobre um sequenciador de ADN de culos organismos que fazem das húmidas e escuras
nova geração Miseq Ilumina, de aspecto futuris- galerias a sua casa.

FEVEREIRO 2021
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TURQUIA: Nesibe Bat RAMON FORTUNY, Director de Produção
F E V E R E I R O | EDITORIAL

Um exemplo de
conservação
COSTA RICA

pequeno país da América


A C O S TA R I C A , agrícolas ou uso do solo, entre outras A península costa-riquenha
de Osa é uma das regiões
Central com uma população de apenas áreas. A Costa Rica já atingiu a meta de com maior biodiversidade
cinco milhões de habitantes, oferece há produção de 98% da sua energia através da Terra. As histórias de
de fontes renováveis. Também conseguiu conservação deste paraíso
vários anos pistas interessantes sobre as
natural ajudam a entender
estratégias que outras nações podem alcançar uma cobertura florestal de 52% os desafios ambientais
seguir para assegurar um futuro para o do território depois de décadas de des- enfrentados pela Costa Rica
e pelo mundo inteiro.
planeta. Em Setembro de 2019, a Costa florestação no século passado.
Rica recebeu o Prémio Campeões da Terra, Nesta edição da National Geographic,
o galardão ambiental mais importante publicamos uma extensa reportagem
atribuído pela Organização das Nações sobre a Costa Rica para explicar minu-
Unidas. Não foi o reconhecimento de um ciosamente o exemplo de conservação
indivíduo, organização ou iniciativa em oferecido pela península de Osa.
concreto, mas sim do país pelo seu papel Nesta maravilha natural, muitos projec-
na conservação da natureza e pelos esfor- tos de conservação estão ligados às recei-
ços para promover a descarbonização (o tas do turismo, sector que nos últimos
neologismo agora usado para explicar a meses sofreu muito com a pandemia e
redução das emissões de carbono nas colocou fortes constrangimentos na sus-
actividades humanas) da economia e tentabilidade do modelo.
combater as alterações climáticas. Entrevistámos ainda o presidente da
Em Fevereiro do mesmo ano, o governo Costa Rica, Carlos Alvarado, para discu-
lançou o Plano Nacional de Descarboni- tir os desafios ambientais que o seu país
zação (2018-2050), um roteiro ambicioso e o mundo inteiro enfrentam. O líder
que estabelece objectivos de médio e costa-riquenho entende que o exemplo
longo prazo para atingir zero emissões dado pelo seu país pode servir de refe-
líquidas de carbono até 2050, moderni- rência para outros e por isso promove
zando ao mesmo tempo a economia da diversas iniciativas ambientais interna-
Costa Rica. Foi o primeiro país a apre- cionais. Alvarado afirma que as mudan-
sentar um plano deste tipo após a assi- ças climáticas são “o maior desafio da
natura do Acordo de Paris. nossa geração”. Está em jogo o futuro do
O plano inclui medidas para levar a nosso planeta e “estamos a ficar sem
cabo reformas nos transportes, energia, tempo para agir”.
indústria, gestão de resíduos, práticas Obrigado por ler a National Geographic!

CHARLIE HAMILTON JAMES


C o m o

o s v í r u s

m o l d a m

o n o s s o

m u n d o

A C OV I D -1 9 R E C O R DA- N O S O P O D E R D E ST RU T I VO D O S V Í RU S , M A S A
V I D A , TA L C O M O A C O N H E C E M O S , S E R I A I M P O S S Í V E L S E M E L E S .

Texto de David Quammen


Fotografias de Craig Cutler
Embora temidos como
agentes de doença, os vírus
conseguem também operar
maravilhas, moldando a
evolução desde o início dos
tempos. Cerca de 8% do nosso
DNA tem origem em vírus que
infectaram os nossos antepas-
sados há muito tempo,
introduzindo genes virais nos
seus genomas. Alguns destes
genes desempenham agora
papéis fundamentais nas fases
iniciais do desenvolvimento
embrionário e na placenta
que envolve este feto com
13 semanas de idade.
LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO LIBRARY
(COMPOSIÇÃO COM DUAS IMAGENS)

3
Com um tubarão-zebra O Habitat de Recifes
a nadar ao seu lado, um Tropicais e o Jardim de
mergulhador do Corais Moles deste
Aquário do Pacífico, em oceanário contêm
Long Beach, mostra a 1.389.875 litros de água,
imagem de um bacterió- com um número
fago, um tipo de vírus estimado de 5.320
que infecta as bactérias. biliões de vírus.
Inofensivos para plantas Ordenados em fila,
e animais, os bacteriófa- esses vírus dariam quase
gos são essenciais para oito voltas à Terra.
manter os ecossistemas DOMINIK HREBÍK E PAVEL PLEVKA,
marinhos saudáveis. LABORATÓRIO DE VIROLOGIA

Estes vírus pululam nos ESTRUTURAL, CEITEC, UNIVERSIDADE


MASARYK, REPÚBLICA CHECA
oceanos da Terra. (BACTERIÓFAGO)
Um crânio de Neandertal,
um dos mais completos
descobertos até à data,
repousa junto de esquele-
tos humanos no Museu do
Homem, em Paris. Quando
deixaram África, os seres
humanos modernos
cruzaram-se com os
Neandertais e adquiriram
instantaneamente genes
que haviam evoluído ao
longo de centenas de
milhares de anos.
Os cientistas descobriram
152 genes herdados
dos Neandertais que
contribuem para criar
uma resposta imunitária.
Agora, concluíram que
estes genes permitiram
aos nossos antepassados
combater os novos
vírus que encontraram
na Europa.
RÉMI BÉNALI
I m a g i n e m o s

o p l a n e t a

s e m

v í r u s .

Com uma varinha mágica, fazemo-los desaparecer. O vírus da


raiva desaparece de repente. O vírus da poliomielite desaparece.
O letal vírus do Ébola desaparece. O vírus do sarampo, o vírus da pa-
peira e várias gripes deixam de existir. Há uma enorme diminuição
do sofrimento e da morte humana. O VIH desaparece de repente e,
por isso, a catástrofe da Sida nunca aconteceu. O Nipah e o Hendra,
o Machupo e o Sin Nombre deixam de existir e os registos de caos
nunca aconteceram. A dengue? Desapareceu. Todos os rotavírus
desaparecem: uma enorme bênção para as centenas de milhares
de crianças em países menos desenvolvidos cuja morte é causada
por eles todos os anos. O vírus da Zika? Desapareceu. O vírus da fe-
bre-amarela? Desapareceu. A herpes B, que contagia alguns símios
e é frequentemente transmitida aos seres humanos? Desapareceu.
Já ninguém tem varicela, hepatite, zona ou até a constipação co-
mum. A varíola? Esse vírus foi erradicado na natureza em 1977, mas
agora desaparece dos congeladores de alta segurança onde as últi-
mas e assustadoras amostras foram armazenadas. O vírus SARS de
2003, o sinal de alarme que sabemos agora ter assinalado o início
da actual época pandémica? Deixou de existir. E, como é óbvio, o
nefasto vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, com os seus efei-
tos tão surpreendentemente variados, tão complicado, tão perigo-
so, tão transmissível, desapareceu. Já se sente melhor?
As coisas não são tão simples.
Este cenário é mais equívoco do que parece. De facto, vivemos
num mundo de vírus inimaginavelmente abundantes e diversi-
ficados. Só nos oceanos poderá haver mais partículas virais do
que estrelas observáveis nos céus. Os mamíferos podem ser por-
tadores de um mínimo de 320 mil espécies de vírus diferentes.
Quando lhes somamos os vírus que infectam animais não-ma-
míferos, plantas, bactérias terrestres e todos os outros possíveis
hospedeiros, o total é incalculável.

8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O neurocientista Jason
Shepherd, da Universi-
dade de Utah, segura
a imagem de uma
reconstrução tridimen-
sional de uma cápsula
proteica semelhante
a um vírus que
desempenha um papel
fundamental na
cognição e na memória.
O gene ARC, que
contém o código para
criar esta maravilha
esférica, foi adquirido
pelos vertebrados
terrestres a partir
de um antepassado
semelhante a um vírus
há cerca de 400 milhões
de anos. A cápsula,
que se assemelha aos
cápsides que envolvem
os genomas virais,
transporta informação
genética entre os
neurónios do cérebro
humano (em cima), bem
como no cérebro de
muitos outros animais.
SIMON ERLENDSSON, LABORATÓRIO
DE BIOLOGIA MOLECULAR MRC
(CÁPSULA); ROBERT CLARK (CÉREBRO)
Além dos números, existem grandes conse- tânico holandês Martinus Beijerinck, que estu-
quências: muitos vírus trazem vantagens adap- dou o vírus do mosaico do tabaco, conjecturou
tativas à vida na Terra, incluindo à vida humana. que se tratava de um líquido infeccioso. Duran-
Não poderíamos prosseguir sem eles. Não te- te algum tempo, a definição de vírus pautou-se
ríamos emergido do lodo primordial sem eles. maioritariamente pelo seu tamanho: mais pe-
Há duas secções de DNA com origem em vírus queno do que uma bactéria, mas, à semelhança
que residem actualmente no genoma dos seres desta, capaz de provocar doenças. Mais tarde,
humanos e de outros primatas, sem os quais a pensou-se que os vírus seriam agentes submi-
gravidez seria impossível. Aninhado entre os croscópicos, contendo apenas um minúsculo
genes dos animais terrestres, existe DNA viral genoma, que se reproduzia no interior de cé-
que ajuda a embalar e armazenar as memórias lulas vivas. Hoje sabemos que isso foi apenas o
em minúsculas bolhas de proteína. Outros ge- primeiro passo para os perceber melhor.
nes ainda, adoptados de vírus, contribuem para “Vou defender um ponto de vista paradoxal,
o desenvolvimento dos embriões, para a regula- nomeadamente que os vírus são vírus”, escreveu
ção do sistema imunitário e para a resistência ao o biólogo francês André Lwoff em “The Concept
cancro, efeitos importantes que só agora come- of Virus”, um influente ensaio publicado em
çam a ser conhecidos. Na verdade, os vírus de- 1957. Não foi muito útil enquanto definição, mas
sempenharam papéis essenciais na fase inicial serviu de aviso, dizendo, de outra forma, que
das grandes transições evolutivas. Se eliminás- “são singulares”. Estava somente a pigarrear,
semos todos os vírus, como na nossa especula- limpando a voz antes de se lançar numa com-
ção inicial, a enorme diversidade biológica que plexa disquisição.
agracia a vida no nosso planeta, desabaria como André Lwoff sabia que os vírus são mais fáceis
uma belíssima casa de madeira da qual todos os de descrever do que propriamente de definir.
pregos fossem abruptamente retirados. Cada partícula viral é composta por um conjun-
Um vírus é como um parasita, mas, por vezes, to de instruções genéticas (escritas em DNA, ou
esse parasitismo assemelha-se mais a uma sim- nessa outra molécula capaz de conter informa-
biose, uma dependência recíproca que benefi- ção, o RNA), embaladas numa cápsula proteica
cia o visitante e o hospedeiro. Tal como o fogo, (conhecida como cápside). Em alguns casos, o
os vírus são um fenómeno nem sempre exclusi- cápside encontra-se rodeado de um envelope
vamente bom ou mau: podem trazer vantagens, membranoso (semelhante ao caramelo de uma
ou causar destruição. Depende do vírus, da si- maçã caramelizada), que o protege e o ajuda a
tuação, do nosso ponto de referência. São os an- ligar-se a uma célula. Um vírus só consegue co-
jos negros da evolução, formidáveis e terríveis. piar-se a si mesmo depois de entrar numa célula
É isso que os torna tão interessantes. e controlar a maquinaria de impressão tridi-
mensional que transforma a informação genéti-
a diversidade dos ca em proteínas.

P
A R A AVA L I A R M O S
vírus, temos de começar pelos funda- Se a célula hospedeira não tiver sorte, serão
mentos daquilo que são e daquilo que fabricadas muitas novas partículas virais, que
não são. É mais fácil dizer aquilo que irrompem, deixando a célula destruída. Esse
não são. Não são células vivas. Uma célula, do tipo tipo de danos (como os provocados pelo SARS-
que se agrupa em grande número para formar o -CoV-2 nas células epiteliais das vias respirató-
corpo do leitor, ou o meu, ou o corpo de um polvo, rias humanas) é parte da forma como um vírus
contém maquinaria avançada para construir pro- se torna patogénico.
teínas, produzir energia e executar outras funções No entanto, se a célula hospedeira tiver sorte,
especializadas. Varia consoante a célula em ques- talvez o vírus se limite a instalar-se neste con-
tão pertença a um músculo, a um xilema ou a um fortável posto avançado, ficando dormente ou
neurónio. As bactérias também são células e têm integrando o seu pequeno genoma no genoma
atributos semelhantes, embora muito mais sim- do hospedeiro. Aguardará calmamente. Esta
ples. Um vírus não é nada disto. segunda possibilidade tem muitas implicações
A simples tarefa de dizer o que é um vírus tem para a mistura de genomas, para a evolução, até
sido tão complicada que as definições mudaram para a nossa noção de identidade enquanto se-
ao longo dos últimos 120 anos. Em 1898, o bo- res humanos.

10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Num popular livro publicado em 1983, o biólogo britânico Pe-
ter Medawar e a sua mulher, Jean, asseveravam: “Não conhe-
cemos nenhum vírus que faça bem. Alguém disse em tempos,
e muito bem, que um vírus é ‘uma má notícia embrulhada em
proteína’”. Estavam errados.
Muitos outros cientistas dessa época também erraram, mas
esse ponto de vista continua a ser aceite, e compreensivelmen-
te, por qualquer pessoa cujo conhecimento dos vírus seja limi-
tado a notícias tão más como a gripe e a COVID-19. Hoje em dia,
porém, sabemos que alguns vírus fazem bem. Aquilo que está
embrulhado na proteína é uma remessa genética que poderá
originar bons ou maus resultados.

Esta pergunta obriga-nos


D E O N D E V I E RA M O S P R I M E I RO S V Í RU S?
a olhar de relance para o passado, fixando-nos há quase quatro Como contar
mil milhões de anos, num tempo em que a vida na Terra estava a os vírus
emergir de um caldo rudimentar de moléculas longas, compostos
Para contarmos os vírus
orgânicos mais simples e energia. existentes no Habitat
Digamos que algumas das moléculas longas (provavelmente de Recifes Tropicais e
RNA) começaram a replicar-se. A selecção natural darwiniana Jardim de Corais Moles
do Aquário do Pacífico,
deve ter começado aqui, quando estas moléculas (os primeiros pedimos ajuda a
genomas) se reproduziram, entraram em mutação e evoluíram. Alexandra Rae Santora,
Em busca de vantagem competitiva, algumas podem ter encon- uma doutoranda que
trabalha com Jed
trado ou criado protecção no interior de membranas e paredes, Fuhrman, docente da
dando assim origem às primeiras células. Universidade do Sul da
Essas células multiplicaram-se por fissão, dividindo-se em Califórnia. Alexandra
introduziu a amostra
duas. Dividiram-se também num sentido mais abrangente, di- num filtro de 0,02
vergindo entre si de maneira a transformarem-se em Bacteria micrómetros que capta
e Archaea, dois dos três domínios da vida celular. O terceiro, bactérias e vírus,
utilizando um corante
Eukarya, surgiu algum tempo mais tarde. Inclui-nos a nós e a que se fixa no DNA para
todas as outras criaturas (animais, plantas, fungos e alguns mi- os tornar visíveis sob
cróbios) constituídos por células com anatomia interna comple- um microscópio de
epifluorescência.
xa. Estes são os três grandes ramos da árvore da vida, tal como Os organismos maiores
se apresenta actualmente. são bactérias e os
Onde encaixam, então, os vírus nesta narrativa? Serão um pontos são vírus. Com
uma grelha de conta-
quarto grande ramo? Ou uma espécie de visco, um parasita vin- gem, a cientista deter-
do de outro sítio? A maioria das versões da árvore omitem os minou o número de vírus
vírus por completo. no campo visual. Tendo
em conta a dimensão do
Segundo uma escola de pensamento, os vírus não deveriam filtro e volume de água,
estar incluídos na árvore da vida porque não estão vivos. É um foi-lhe possível calcular a
argumento persistente, dependendo daquilo que consideramos população por litro.
“estar vivo”. Para mim, o mais intrigante é incluir os vírus na
grande tenda a que chamamos Vida e depois interrogarmo-nos
sobre como lá entraram.
Há três grandes hipóteses explicativas das origens evolutivas
dos vírus, conhecidas pelos cientistas como "Virus-first" (vírus
antes das células), Escape e Redução. Segundo a hipótese do "Vi-
rus-first", os vírus surgiram antes das células, compondo-se de al-
guma forma a partir desse caldo primordial. Segundo a hipótese
do Escape, houve genes, ou pedaços de genomas, que escaparam
das células, ficaram encapsulados em cápsides de proteína e fugi-
ram ao controlo, descobrindo um novo nicho enquanto parasitas. ALEXANDRA RAE SANTORA
Segundo a hipótese da redução, os vírus sur-
giram quando algumas células diminuíram de
tamanho devido à pressão competitiva (uma
vez que é mais fácil replicar-se quando se é mais
pequeno e simples), perdendo genes até ficarem
reduzidos a um minimalismo tal que só conse-
guiam sobreviver parasitando células.
Existe uma quarta variante, conhecida como
hipótese quimérica, inspirada noutra cate-
goria de elementos genéticos: os transposões
(por vezes designados por genes saltadores).
A geneticista Barbara McClintock deduziu a sua
existência em 1948 e essa descoberta valeu-lhe a
atribuição de um Prémio Nobel. Estes elemen-
tos oportunistas alcançam o seu sucesso darwi-
niano saltando, simplesmente, de uma parte de A imagem de um
uma genoma para outra, em casos raros de uma embrião humano com
apenas oito células
célula para outra e até de uma espécie para ou-
espreita atrás de Joanna
tra, utilizando recursos celulares para se copia- Wysocka, da Universi-
rem sucessivamente. A autocópia protege-os da dade de Stanford.
Joanna e os seus colegas
extinção acidental. Acumulam-se de forma in-
descobriram que um
vulgar. Constituem cerca de metade do genoma retrovírus endógeno
humano. De acordo com esta teoria, os primei- humano (uma sequência
genética adquirida a
ros vírus poderão ter surgido de tais elementos,
partir de uma infecção
pedindo emprestadas proteínas celulares para viral ancestral) é activado
revestirem a sua nudez com cápsides protecto- nesta fase do desenvol-
vimento e produz
res, uma estratégia mais complexa.
proteínas. Segundo a
Todas estas hipóteses têm mérito. Em 2003, equipa, é possível que
novas provas fizeram as opiniões dos especialis- este gene, conhecido
como HERV-K, proteja o
tas tender para a redução: os vírus gigantes.
embrião de infecções
virais e ajude a controlar
no o desenvolvimento fetal.

O
V Í R U S G I G A N T E F O I D E S C O B E RT O
LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO
interior de amebas, que são eucario- LIBRARY (EMBRIÃO); MARK WOSSIDLO,
UNIVERSIDADE DE STANFORD/
tas unicelulares. Estas amebas foram UNIVERSIDADE DE MEDICINA, VIENA
(BLASTOCISTO)
recolhidas em água captada numa
torre de arrefecimento em Bradford, em Ingla-
terra. No interior, havia uma bolha misteriosa. Era
suficientemente grande para ser observada com
um microscópio óptico (supostamente, os vírus 1,2 milhões de letras de comprimento, com-
são demasiado pequenos para tal, sendo visíveis parado por exemplo, com as 13 mil do vírus da
apenas através de um microscópio electrónico), gripe ou as 194 mil da varíola. À semelhança do
e parecia uma bactéria. Os cientistas tentaram RNA, o DNA é uma molécula longa, constituída
detectar genes bacterianos neles contidos, mas por quatro bases moleculares diferentes, que os
não encontraram nenhum. cientistas abreviam usando as primeiras letras.
Por fim, uma equipa de investigadores da cida- Tratava-se de um vírus “impossível”: de natureza
de francesa de Marselha, convidou o vírus a in- viral, mas demasiado grande em termos de esca-
fectar outras amebas, sequenciou o seu genoma, la, como uma borboleta amazónica recém-desco-
reconheceu-o e chamou-lhe Mimivirus, porque berta, com um metro de envergadura de asas.
imitava as bactérias, pelo menos em tamanho. Jean-Michel Claverie era então um membro
Em termos de diâmetro, era enorme, maior do sénior dessa equipa marselhesa. A descoberta
que a mais pequena das bactérias. O seu genoma do Mimivirus “causou muitos problemas”, con-
também era enorme para um vírus, com quase tou-me. A sequenciação revelou quatro genes

12 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
bastante inesperados – genes para codificar enzimas que se pre-
sumia serem unicamente celulares e nunca dantes vistos num
vírus. Estas enzimas, explicou Jean-Michel, encontram-se entre
os componentes que traduzem o código genético de modo a for-
marem proteínas a partir de aminoácidos.
“Por isso, surgiu a pergunta: ‘Para que precisa um vírus da-
quelas enzimas sofisticadas, normalmente activas em células,
se tem a célula ao seu dispor?’”
De facto, qual é a necessidade? A inferência lógica é que o Quando o embrião huma-
no já é um blastocisto
Mimivirus as conserva porque a sua linhagem teve origem na com várias células (em
redução do genoma de uma célula. cima), o HERV-K (tingido
O Mimivirus não era fruto do acaso. Vírus gigantes semelhantes de verde) continua
presente, mas concen-
não tardaram a ser detectados no mar dos Sargaços e o nome inicial trado em células que
tornou-se um género, Mimivirus, incluindo agora vários gigantes. se tornarão um bebé.

VÍRUS 13
Há pelo menos 150
milhões de anos que os
vírus infectam mamíferos,
deixando neles genes
que conduziram a um
avanço evolutivo
extraordinário: a
placenta, que permite
que os nutrientes e o
oxigénio cheguem ao
feto e que os resíduos e o
dióxido de carbono
saiam. Os seres humanos
e outros mamíferos com
placentas podem
deslocar-se com as suas
crias ainda não nascidas,
tornando-as menos
vulneráveis aos predado-
res. Nos seres humanos,
dois genes com origem
em vírus (o sincitina-1 e o
sincitina-2) ajudam a
formar a membrana
placentária que se agarra
ao útero. Esta membrana
também pode ajudar a
impedir que o sistema
imunitário da progenitora
ataque o feto como
objecto estranho.
LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO
LIBRARY (FETO COM 16 SEMANAS).
MODELO: MELODY CARBALLO, COM 35
SEMANAS NA IMAGEM

NOTA DO EDITOR
Esta fotografia de um feto,
nas páginas 2-3, e a
fotografia do embrião da
página 13 foram captadas
pelo fotógrafo sueco
Lennart Nilsson (1922-
-2017). O seu trabalho
pioneiro de documenta-
ção da vida antes do
nascimento foi mostrado
pela primeira vez na
revista Life, em 1965, e
continua a ser insuperável.
Depois, a equipa de Marselha descobriu outros dois gigantes
(mais uma vez, parasitas de amebas): um colhido em sedimen-
tos marinhos de baixa profundidade, ao largo da costa do Chile,
o outro numa lagoa na Austrália. Com o dobro do tamanho do
Mimivirus, ainda mais anómalos, foram atribuídos a um gé-
nero diferente, ao qual Jean-Michel Claverie e os seus colegas
chamaram Pandoravirus, numa evocação da caixa de Pandora
mitológica, como explicaram em 2013, devido “às surpresas que
esperavam encontrar a partir do seu estudo aprofundado”.
O co-autor sénior do ensaio foi Chantal Abergel, virologista e
bióloga estrutural (bem como esposa de Jean-Michel). Referin-
do-se ao Pandoravirus, Chantal disse-me, com uma gargalhada
cansada: “Traziam grandes desafios. Eram os meus bebés.” Ex-
plicou-me como fora difícil dizer o que eram aquelas criaturas
– tão diferentes das células, tão diferentes dos vírus clássicos,
contendo tantos genes em nada parecidos com qualquer coisa
antes vista. “Tudo aquilo torna-os fascinantes, mas também mis-
teriosos.” Durante algum tempo, chamou-lhes NLF: new life-form
[novas formas de vida]. Contudo, ao observar que não se replica-
vam por fissão, Chantal e os colegas aperceberam-se de que eram
vírus. Os maiores e mais desconcertantes encontrados até à data.
Estas descobertas sugeriram ao grupo de Marselha uma va-
riante ousada da hipótese da redução. Talvez os vírus tivessem
origem na redução de células ancestrais, mas células de um tipo
que já não existe na Terra. Este tipo de “protocélula” ancestral
talvez fosse diferente do antepassado universal comum a todas
as células actualmente conhecidas e tivesse competido com ele.
Talvez estas protocélulas saíssem derrotadas dessa competição
e fossem excluídas de todos os nichos disponíveis para as for-
mas de vida independentes. Poderão ter sobrevivido como pa-
rasitas noutras células, reduzindo os seus genomas e transfor-
mando-se naquilo a que chamamos vírus. Desse reino celular
desaparecido, talvez restem apenas os vírus, como as cabeças de
pedra gigantes da ilha da Páscoa.

serviu de inspira-

A
D E S C O B E RTA D O S V Í R U S G I G A N T E S
ção a outros cientistas, em especial Patrick Forterre,
do Instituto Pasteur em Paris, que formularam novas
ideias sobre o que são os vírus e quais os papéis cons-
trutivos que representaram e continuam a representar na evolução
e funções da vida celular.
Patrick argumentou que as definições anteriores de “vírus”
eram inadequadas porque os cientistas confundiam as partículas
virais (pedaços de genoma envoltos em cápsides, devidamente
conhecidos como viriões) com a totalidade de um vírus. No seu
entender, isso estava tão errado como confundir uma semen-
te com uma planta ou um esporo com um cogumelo. O virião é
apenas o mecanismo de dispersão, afirmou. A totalidade do vírus
também inclui a sua presença numa célula, assim que assume o
controlo da maquinaria celular para replicar mais viriões: mais
sementes suas. Ver as duas fases juntas é ver que a célula se tor-
nou efectivamente parte da história da vida do vírus.

VÍRUS 15
Os pulmões preservados
de uma menina com 2
anos, que morreu em 1912
no Hospital Charité, em
Berlim, comprovam que o
vírus do sarampo foi
transmitido de uma vaca
para um ser humano no
século IV a.C., mais de mil
anos antes do que outrora
se pensou. O biólogo
evolutivo Sébastien
Calvignac-Spencer, do
Instituto Robert Koch,
encontrou este espécime
no Museu de História
Médica de Berlim.
Procedeu à sequenciação
deste genoma do
sarampo, o mais antigo
que se conhece, e
utilizou-o (bem como
outros genomas do
sarampo) para determinar
em que momento
divergiu do vírus bovino.
MARKUS BACHMANN
Patrick Forterre reforçou essa ideia inventando um novo
nome para a entidade conjunta: virocélula. Esta ideia também
resolvia o enigma do vivo-ou-não-vivo. Segundo o investigador,
um vírus está vivo quando é uma virocélula, apesar de os seus
viriões serem inanimados.
“A ideia subjacente ao conceito da virocélula era sobretudo
centrar-me nesta fase intracelular”, disse-me numa videocha-
mada a partir de Paris. Trata-se da fase delicada em que a célula
infectada, tal como um zombie, obedece às instruções do vírus,
lendo o genoma viral e replicando-o, mas nem sempre sem fa-
lhas, tropeções e erros. Durante esse processo, “novos genes
podem surgir de um genoma viral. E eu considero isto muito
importante”, acrescentou Patrick.
Os vírus trazem inovação, mas as células reagem com as suas
próprias inovações defensivas, como a parede celular ou o núcleo,
numa corrida rumo a maior complexidade. Muitos cientistas pre-
sumiram que os vírus alcançaram as suas principais alterações
evolutivas através do paradigma do “vírus carteirista”, roubando
DNA a um e outro organismo infectado para, em seguida, usarem
as peças roubadas no genoma viral. Patrick Forterre argumenta
que o roubo pode, com mais frequência, acontecer ao contrário e
serem as células que roubam genes aos vírus.
Uma visão ainda mais arrebatadora, partilhada por Patrick,
Jean-Michel e outros cientistas da área, incluindo Gustavo Cae-
tano-Anollés da Universidade de Illinois, defende que os vírus
são a mais importante fonte de diversidade genética. Segundo
esta linha de raciocínio, os vírus enriqueceram as opções evo-
lutivas das criaturas celulares ao longo dos últimos milhares de
milhões de anos, depositando novo material genético nos seus
genomas. Este processo bizarro é uma versão de um fenóme-
no conhecido como transferência horizontal de genes: genes
fluindo lateralmente e atravessando fronteiras entre diferentes
linhagens. A transferência vertical de genes é a forma hereditá-
ria mais comum: dos progenitores para os seus descendentes.
O fluxo de genes virais para os genomas celulares tem sido
“impressionante”, argumentaram Patrick Forterre e um co-au-
tor num artigo recente. Essa cicunstância pode ajudar a explicar
algumas grandes transições evolutivas, como a origem do DNA,
a origem do núcleo celular nas criaturas complexas, a origem
das paredes celulares e possivelmente a divergência daqueles
três grandes ramos da árvore da vida.

as discussões interessantes com

A
N T E S DA PA N D E M I A ,
cientistas, por vezes, realizavam-se em contactos
directos, face a face. Há três anos, voei de Montana
nos Estados Unidos para Paris porque queria conver-
sar com um homem sobre um vírus e um gene. Esse homem era
Thierry Heidmann e o gene chamava-se sincitina-2. Thierry
e o seu grupo descobriram-no, examinando o genoma humano
em busca de pedaços de DNA que parecessem o tipo de gene
que um vírus usaria para produzir o seu envelope. Encontraram
cerca de vinte. (Continua na pg. 22)

VÍRUS 17
PEQUENOs
E SIMPLES
Os vírus são apresentados
Nilo Ocidental
com 20 mil vezes o seu
Cápside DNA 50nm
tamanho real. A esta escala,
a largura de um cabelo
humano teria 50 vezes a
altura desta página.

Cerca de 55 milhões Zika


de vírus de Zika 50nm
poderiam caber no
Aumentado x10 ponto final desta frase.

Vírus adeno-associado
20 nanómetros (nm) de diâmetro

uso do genoma INSTRUÇÕES VIRAIS


Os cientistas conseguem agora inserir A vacinação é semelhante a um treino para o Gripe
DNA no genoma de muitos vírus sistema imunitário. A exposição a um vírus 80-100nm
rudimentares e, em seguida, utilizá-los enfraquecido, a um vírus morto ou ao componente
para disponibilizar esse material a de um vírus ensina o organismo a reconhecer esse
células específicas. Esta investigação invasor específico e a atacá-lo. Se o vírus for
promissora poderá conduzir a encontrado, o sistema imunitário será capaz de
métodos mais seguros de terapia reagir mais depressa. O sarampo e a gripe são vírus
genética. que as vacinas conseguiram controlar com sucesso.

Sarampo
Vírus marinhos 80-100nm
Estes vírus minúsculos infectam os Vírus fusiforme
Archaea, microrganismos oceânicos de Nitrosopumilus IMPULSIONADORES DA EVOLUÇÃO
que oxidam a amónia e desempe- (NSV) Transmitidos por roedores, os arenavírus costumam
nham um papel fundamental 65nm atravessar a membrana celular, utilizando receptores
no ciclo do carbono e do azoto. que importam ferro para as células. Em resposta aos
As infecções regulares dos Archaea vírus, estes receptores têm sido continuamente
por estes vírus podem contribuir modificados, num exemplo de como os vírus
para regulação destes ciclos, que têm moldam a evolução da vida.
impacte em ecossistemas inteiros.
Arenavírus
80-100nm

O N O S S O
M U N D O V I R A L
Vírus de
Imunodeficiência
Dengue Humana (VIH)
50nm 80-100nm

Vírus transmitidos por mosquitos EDITORES VIRAIS


Os vírus de tamanho médio, como o vírus Os vírus entram numa célula e assumem o controlo
do Nilo Ocidental e o da dengue, são sobre a sua maquinaria para se replicarem, mas os
transmitidos para os seres humanos retrovírus como o VIH fazem-no inserindo os seus genes
pela saliva da picada de um mosquito no DNA da célula. Se o fizerem em células germinativas,
e deslocam-se pelo organismo através o DNA poderá integrar o genoma do hospedeiro.
da corrente sanguínea. Existem milhares de fragmentos de retrovírus ancestrais
no genoma humano. Os cientistas descobriram que uma
membrana fundamental da placenta dos mamíferos
evoluiu com a ajuda destes genes retrovirais ancestrais.

Coronavírus
SARS-CoV-1
São conhecidos sete coronavírus que 80-120nm
infectam os seres humanos: um deles
deu origem à actual pandemia. O seu
nome deve-se às suas proteínas com
espigões que os ajudam a atacar as
células e a propagar-se através de
Espigão de
gotículas respiratórias e aerossóis.
Envelope RNA proteína

SARS-CoV-2
(causa COVID-19)
120nm

MERS-CoV
120-135nm

As células são alicerces da vida, mas os vírus, com toda a sua diversidade
genética, podem partilhar esse papel. Os primeiros vírus e células do nosso
planeta evoluíram provavelmente numa relação simbiótica de predador e
presa. As provas existentes sugerem mesmo que os vírus talvez começassem
por ser células, mas perderam a sua autonomia à medida que foram evoluindo
para prosperarem como parasitas de outras células. Esta relação de dependên-
cia deu início a uma longa história de co-evolução. Vivendo nas células, os vírus
obrigaram os hospedeiros a adaptar-se e essas alterações obrigaram os vírus a
adaptar-se, num ciclo interminável de tentativas de superação mútua.
Bacteriófagos
À medida que os vírus se tornam maiores,
também se tornam mais sofisticados.
Os bacteriófagos são vírus que atacam
bactérias. Este (à direita) infecta a E. coli.
Os bacteriófagos têm cabeças complexas
que transportam DNA e estruturas de
cauda complexas que identificam e se
fixam às células hospedeiras para, em
seguida, injectarem material genético
viral através de tubos especializados.

Varíola
325 x 260nm

Vírus do Ébola
970 x 80 nm

ADAPTADORES letais
Os vírus grandes que infectam os seres
humanos, como a varíola e o Ébola, tendem
a apresentar uma taxa de mortalidade
elevada. Isso deve-se provavelmente ao facto
de muitos vírus maiores transportarem
proteínas virais, além dos seus próprios
genes, que sobrecarregam e desactivam
as defesas do hospedeiro.

Raiva
75 x 180nm

ARCHAEA EUKARYA
Organismos monocelulares que partilham Organismos mono ou
características com Eukarya e Bacteria multicelulares cujas células
e prosperam em ambientes extremos. têm núcleo organizado.
UMA ÁRVORE DA VIDA
MAIS INCLUSIVA?
Há milhares de milhões de anos, a vida
na Terra separou-se em três ramos: Archaea,
Bacteria e Eukarya. Investigações recentes O
sugerem que os vírus devem ser considerados M P
T E
BACTERIA
um quarto ramo. Este diagrama, baseado na Organismos monocelulares
comparação de formas de proteínas de vírus sem núcleo organizado
e organismos celulares, mostra que os vírus de Eukarya
partilham muitas características primitivas com
Organismo celular
antepassados celulares ancestrais e, provavel-
VÍRUS
mente, evoluíram em paralelo com eles.
GRANDES E
COMPLEXOS

Bacteriófago T4
90 x 200nm

Mimivirus
750nm

PISTAS IMPORTANTES SOBRE


AS ORIGENS PRIMITIVAS
A hipótese da redução parte do pressu-
posto de que os vírus diminuíram de
tamanho a fim de conseguirem servir-se da
maquinaria do hospedeiro para se reprodu-
zirem. Novas provas em defesa desta ideia
Neste diagrama, a distância chegaram sob a forma de vírus gigantes da
entre vírus e organismos família Mimiviridae. Eles instalam “fábricas
indica a familiaridade
de vírus” nas células hospedeiras que
entre cada um deles.
podem assemelhar-se a algumas das mais
antigas interacções entre vírus e células.
JASON TREAT E EVE CONANT; MESA SCHUMACHER
ARTE: MARKOS KAY. FONTES: GUSTAVO CAETANO-ANOLLÉS, UNIVERSIDADE DE ILLINOIS;
MYA BREITBART, UNIVERSIDADE DO SUL DA FLORIDA; EDWARD CHUONG, UNIVERSIDADE DO COLORADO
“Dois deles, pelo menos, revelaram-se mui- mais: a gravidez interna. Essa inovação foi muito
to importantes”, disse-me. Eram importantes importante para a história evolutiva, permitindo
porque tinham capacidade para desempenhar que as fêmeas transportassem os seus descen-
funções essenciais à gravidez humana. Eram o dentes de um lado para o outro dentro do corpo,
sincitina-1, descoberto por outros cientistas, e em vez de os abandonarem, vulneráveis, num lo-
o sincitina-2, descoberto pelo grupo de Thier- cal, como os ovos deixados num ninho.
ry Heidmann. A forma como estes genes virais O primeiro gene deste tipo com origem num
se tornaram parte do genoma humano e os fins retrovírus endógeno acabou por ser substituído
para os quais se adaptaram são pormenores de por outros, semelhantes, mas mais adequados
uma história impressionante que começa com o ao desempenho da função. Ao longo do tempo,
conceito dos retrovírus endógenos humanos. a configuração deste novo modo de reprodução
Um retrovírus é um vírus com um genoma de melhorou e a placenta evoluiu. Entre estes ge-
RNA que funciona numa direcção oposta à habi- nes virais adquiridos, encontra-se a sincitina-2,
tual (daí o retro). Em vez de utilizarem DNA para uma de duas sincitinas presentes nos seres hu-
fabricar RNA, que por sua vez actua como mensa- manos que ajuda a fundir células para formar
geiro enviado à impressora 3D para fabricar pro- uma camada placentária adjacente ao útero.
teínas, estes vírus utilizam o seu RNA para fazer Essa estrutura singular, funcionando como
DNA e depois integram-no no genoma da célula mediadora entre progenitora e feto, permite a
infectada. O VIH, por exemplo, é um retrovírus entrada de nutrientes e oxigénio, a saída de re-
que infecta as células imunitárias humanas, inse- síduos e dióxido de carbono, e, provavelmente,
rindo o seu genoma no genoma da célula, onde protege o feto de ser atacado pelo sistema imu-
permanece latente. Em determinado momento, nitário da progenitora. É quase um milagre de
o DNA viral é activado, tornando-se um modelo eficiência de design, no qual a evolução moldou
para a produção de muitos mais viriões de VIH, um componente viral, transformando-o num
que matam a célula à medida que dela irrompem. componente humano.
Eis a grande reviravolta: alguns retrovírus in- Fiz uma pausa para almoçar e depois prosse-
fectam as células reprodutoras (as células que guimos a conversa durante mais duas horas. Por
produzem os óvulos ou o esperma) e, ao fazê-lo, fim, com o cérebro a zumbir e o bloco de notas
inserem o seu DNA no genoma hereditário do cheio, perguntei-lhe: o que diz tudo isto sobre o
hospedeiro. Estas secções inseridas são retroví- modo como a evolução funciona? Ele riu-se com
rus “endógenos” (interiorizados) e, quando incor- gosto e eu ri-me também, maravilhado e cansa-
poradas em genomas humanos, são conhecidas do. “Os nossos genes não são apenas os nossos
como retrovírus endógenos humanos (HERV). genes”, resumiu. “Os nossos genes também são
Se não se lembrarem de mais nada deste artigo, genes retrovirais.”
talvez seja bom os leitores recordarem o seguin-
te: 8% do genoma humano é constituído por este desses retrovírus, que nos deram a
O C O N T R I B U TO
DNA viral, incorporado na nossa linhagem por sincitina-2, é apenas um exemplo, entre outros, de
meio de retrovírus, ao longo da evolução. Cada padrões grandiosos. Outro é o gene ARC, que se
um de nós é 1/12 HERV. O gene sincitina-2 é um exprime como resposta à actividade neuronal em
dos mais importantes dessas secções. mamíferos e moscas. É muito parecido com um
Estive quatro horas no gabinete de Thierry gene retroviral com código para um cápside pro-
Heidmann enquanto ele me explicava a origem teico. Investigações recentes de várias equipas,
e as funções deste gene específico, com o compu- incluindo uma liderada por Jason Shepherd, da
tador ao lado para me mostrar tabelas e gráficos. Universidade de Utah, sugere que o ARC desempe-
A essência é quase simples. Um gene que original- nha um papel essencial no armazenamento de
mente ajudou um vírus a fundir-se com células informação dentro das redes neurais. Dito de outra
hospedeiras conseguiu entrar no genoma de ani- maneira: na memória. O ARC parece fazê-lo empa-
mais ancestrais. Depois, foi reformulado para ge- cotando informação derivada da experiência (incor-
rar uma proteína semelhante, que ajuda a fundir porada como RNA) nas pequenas bolsas proteicas
as células de modo a criar uma estrutura especial que a transportam de um neurónio para outro.
em redor daquilo que viria a ser a placenta, crian- Na Faculdade de Medicina da Universidade
do assim uma nova possibilidade para alguns ani- de Stanford, Joanna Wysocka, juntamente com

22 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
um grupo de colegas, descobriu provas da presença de fragmen-
tos virais produzidos por outro retrovírus endógeno, conhecido
como HERV-K, em embriões humanos na fase mais incipiente,
que poderão desempenhar um papel positivo na protecção do
embrião contra infecções virais, contribuir para o controlo do
desenvolvimento fetal – ou ambos. Além disso, o grupo cen-
trou o seu estudo num transposão específico que parece ter-se
introduzido no genoma humano como uma espécie de secção
de prólogo ao HERV-K e depois descoberto formas de se copiar
e saltar para outras partes do genoma, encontrando-se actual-
mente presente em 697 cópias dispersas. Estas cópias parecem
contribuir para a activação de quase 300 genes humanos.
“Para mim, aquilo que é verdadeiramente incrível é que os
HERV constituem cerca de 8% do genoma humano”, disse Joan-
na. Há uma parte do nosso ser que, no essêncial, é “o cemitério
de antigas infecções retrovirais”. É ainda mais assombroso ver
como, nas palavras da minha interlocutora, “a nossa história de
infecções retrovirais passadas continua a moldar a nossa evolu-
ção enquanto espécie”.
Se 8% do meu (e do seu) genoma é DNA retroviral e metade
deste é composto por transposões, então talvez a própria noção
de individualidade humana (muito menos de supremacia hu-
mana) seja menos sólida do que costumamos pensar.

óbvia desta agilidade evolutiva é que,

A
D E S VA N TAG E M
por vezes, os vírus podem mudar de hospedeiro, sal-
tando de uma espécie para outra, tornando-se pató-
genos bem-sucedidos nesse novo e estranho
hospedeiro. Chama-se a isso zoonose e é assim que surge a maior
parte das novas doenças humanas infecciosas, através de vírus O fluxo de
adquiridos de um hospedeiro animal não-humano.
genes virais
No hospedeiro original (cientificamente conhecido como
hospedeiro reservatório), um vírus poderia ter-se comportado
para os geno-
sossegadamente, mantendo-se pouco abundante e com pouco
mas celulares
impacte, durante milhares de anos. Poderia ter atingido um tem sido
conforto evolutivo no hospedeiro reservatório, aceitando a sua “impressionan-
segurança em troca de não causar problemas. Num novo hospe- te”, dizem os
deiro, porém, como um humano, o acordo prévio não é obriga- cientistas, e
toriamente respeitado. O vírus pode irromper abundantemente, poderá ajudar a
provocando desconforto ou sofrimento na vítima. Se, além de explicar algu-
replicar-se, o vírus conseguir propagar-se, de ser humano para mas grandes
ser humano, contagiando algumas dezenas de outros indiví- transições
duos, teremos um surto. Se contagiar uma comunidade ou um evolutivas,
país, teremos uma epidemia. Se der a volta ao mundo, teremos
como a origem
uma pandemia. E assim voltamos ao SARS-CoV-2.
Alguns tipos de vírus têm mais probabilidade de causar pan-
do DNA, do
demias do que outros. Perto do topo da lista dos candidatos mais
núcleo e das
preocupantes encontram-se os coronavírus, devido à natureza dos paredes celula-
seus genomas, à sua capacidade para evoluir e ao seu historial de res e até a sepa-
causar doenças humanas graves, como a SARS (síndrome respira- ração dos três
tória aguda grave) em 2002-2003 e a MERS (síndrome respiratória grandes domí-
do Médio Oriente) em 2012 e 2015. (Continua na pg. 29) nios da vida.
Os cientistas ainda estão coronavírus dos pangolins próximos do SARS-CoV-2
a tentar descobrir a origem divergiram dos coronavírus ou muito parecidos com o
do coronavírus conhecido dos morcegos. Há 40 a 70 SARS-CoV-2, a circular
como SARS-CoV-2. anos, o vírus SARS-CoV-2 entre morcegos: no entanto,
O morcego-de-ferradura- poderá ter evoluído a partir ainda não fizemos estudos
-grande e o pangolim-chi- dos vírus de morcegos suficientes em morcegos e
nês (à esquerda) foram conhecidos mais estreita- não sabemos.” Este morcego
contemplados como mente aparentados. (morcego-de-ferradura-
possíveis hospedeiros. Vírus “Sabe-se pouco sobre a -grande) foi capturado na
encontrados em ambas as diversidade destes vírus”, região de Tashkent, no
espécies são parentes do disse Maciej Boni, acrescen- Usbequistão, em 1921.
vírus pandémico. Maciej tando que foram identifica- O pangolim (Manis
Boni, professor associado de das dezenas de milhares de pentadactyla) veio
biologia da Universidade genomas de vírus de gripes da província chinesa
Penn State, e uma equipa avícolas, mas menos de cem de Guizhou, em 1945.
internacional, conseguiram são conhecidos como
rastrear o vírus até há cerca coronavírus. “Em princípio, FOTOGRAFADO NO MUSEU DE HISTÓRIA
NATURAL DO CONDADO DE LOS ANGELES
de cem anos, quando os poderá haver vírus mais (MORCEGO E PANGOLIM)

24 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
VÍRUS 25
O funcionamento
interno de um
equipamento de
criomicroscopia
electrónica mostra a sua
complexidade tecnológica.
Capaz de criar imagens de
vírus quase a nível atómico,
a três dimensões, o
microscópio revelou a
familiar estrutura com
espigões do SARS-CoV-2.
Um monitor utilizado como
microscópio (à direita)
mostra uma secção
transversal do vírus e um
modelo informático 3D.
LEO HILLIER, LABORATÓRIO
DE BIOLOGIA MOLECULAR MRC; ZUNLONG
KE, LESLEY MCKEANE E JOHN BRIGGS,
LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR
MRC (IMAGENS DE MONITOR)
Esta fatia da reconstituição
do SARS-CoV-2 a partir de
tomografia crio-electrónica
(em cima) mostra que os
espigões formam ângulos
estranhos. Estes espigões
têm três articulações (anca,
joelho e tornozelo) que
lhes permitem mudar de
posição, talvez para
aumentar a probabilidade
de se fixarem numa célula.
Um modelo molecular com
resolução atómica
(à direita) mostra as
proteínas que compõem o
espigão, com cadeias
idênticas mostradas a
vermelho, laranja e
amarelo, as quais, por sua
vez, estão protegidas por
cadeias de glicanos
(moléculas semelhantes a
açúcar tingidas de azul)
que escondem o espigão
dos anticorpos humanos
quepoderiamdestruí-lo.Acom-
preensão da estrutura do
espigão é fundamental
para a eficácia das vacinas.
MATEUSZ SIKORA, INSTITUTO
MAX PLANCK DE BIOFÍSICA (RENDERIZA-
ÇÃO DO MODELO MOLECULAR); POR
CORTESIA DE BEATA TUROŇOVÁ E MARTIN
BECK, LABORATÓRIO EUROPEU DE
BIOLOGIA MOLECULAR (CORTE
TRANSVERSAL DE SARS-COV-2)
Por isso, quando a frase “novo coronavírus” começou a ser usa-
da para descrever o agente que estava a causar trilhos de doença
em Wuhan, na China, aquelas duas palavras foram suficientes
para que os cientistas de todo o mundo estremecessem.
Os coronavírus pertencem a uma categoria tristemente céle-
bre de vírus, os vírus de RNA de cadeia simples, que incluem as
gripes, o Ébola, a raiva, o sarampo, o Nipah, os hantavírus e os
retrovírus. A sua má reputação deve-se, em parte, ao facto de
um genoma de RNA de cadeia simples ser propenso a mutações
frequentes à medida que o vírus se replica e de essas mutações
gerarem uma enorme variedade genética aleatória com a qual a
selecção natural pode trabalhar.
No entanto, os coronavírus evoluem com relativa lentidão,
para vírus de RNA. Têm genomas relativamente longos (o ge-
noma do SARS-CoV-2 tem cerca de 30 mil letras), mas os seus
genomas mudam menos velozmente do que outros, por pos-
suírem uma enzima de verificação que corrige as mutações. No
entanto, conseguem fazer um truque chamado recombinação,
através do qual duas estirpes de coronavírus, infectando a mes-
ma célula, trocam entre si secções dos seus genomas, dando ori-
gem a uma terceira estirpe híbrida de coronavírus. Pode ter sido
isso que deu origem ao novo coronavírus: o SARS-CoV-2.
O vírus ancestral residiria provavelmente num morcego, pos-
sivelmente um morcego-de-ferradura, pertencente a um género
de pequenas criaturas insectívoras com focinhos em forma de
ferradura que costumam ser portadores de coronavírus. Se ti-
ver ocorrido recombinação, acrescentando alguns novos e fun-
damentais elementos de um coronavírus diferente, isto poderá
ter ocorrido num morcego ou noutro animal. Os pangolins fo-
ram uma das espécies sugeridas, mas há mais candidatas. Os
cientistas estão a explorar estas e outras possibilidades, sequen-
ciando e comparando genomas dos vírus encontrados em vários
potenciais hospedeiros. Até à data, tudo o que sabemos é que
o SARS-CoV-2, tal como hoje existe nos seres humanos, é um
vírus subtil capaz de continuar a evoluir.

os vírus dão e os vírus tiram. Talvez

P
OR CONSEGUINTE,
sejam difíceis de enquadrar na árvore da vida porque,
afinal de contas, a história da vida não tem a forma de
uma árvore. A analogia arbórea é apenas a nossa
forma tradicional de ilustrar a evolução, tornada canónica por
Charles Darwin. Mas Darwin, por genial que fosse, não sabia nada
sobre transferência horizontal de genes. Na verdade, não sabia
nada sobre genes. Não sabia nada sobre vírus. Tudo é muito com-
plicado, percebemos agora. Até os vírus, que parecem tão simples
à primeira vista, são muito complicados. Se, por um lado, os seres
humanos conseguem perceber os vírus em toda a sua complexi-
dade, tendo uma visão mais clara do emaranhado de ligações
existentes no mundo natural, por outro, quando reflectem sobre
os seus próprios conteúdos virais perdem parte do seu distancia-
mento sublime. Deixo então aos leitores a tarefa de decidir se isso
são vantagens ou desvantagens. j

VÍRUS 29
Duas araras-escarlate
pintam de cor um feto
arbóreo (Schizolobium
parahyba) na península
de Osa, na Costa Rica.
A espécie está ameaçada
devido à fragmentação de
habitat, captura e tráfico
para animais de estimação,
mas a população de Osa
tem prosperado. A arara
tornou-se o símbolo de
uma história de sucesso.
DAVID PATTYN
NPL / MINDEN PICTURES
TEXTO DE JAMIE SHREEVE

F O T O G R A F I A S D E C H A R L I E H A M I LTO N JA M E S

PRESERVAR
O PARAÍSO A P E N Í N S U L A D E O S A , N A C O S TA R I C A ,

É UM MODELO DE C O N S E R VA Ç Ã O .

AG O R A , A C OV I D -1 9 E S TÁ A

PÔR À P R O VA O FUTURO

D E S TA M A R AV I L H A N AT U R A L .
A floresta invade a
praia de Cabo Mata-
palo, famosa entre
os surfistas, na extremi-
dade meridional
da península de Osa.
Os esforços de conser-
vação estão associados
ao fluxo de receitas
do turismo, que se
viu reduzido a quase
nada pela pandemia.
Q se mudou para a
Q UA N D O C E L E D O N I A T E L L E Z
península de Osa, na Costa Rica, já tinha cinco
filhos, seis galinhas, um cão e 700 colones, o equi-
valente a cerca de um dólar na altura. Estava então
grávida pela sexta vez. Celedonia lembra-se bem
da razão pela qual veio: terrenos gratuitos. Nessa
época, a península, com a forma de um cotovelo
com 1.800 quilómetros quadrados na costa do
Pacífico Sul da Costa Rica, era uma floresta de
fronteira, separada do continente por uma faixa A botânica Ruthmery
quase impenetrável de mangues e acessível sobre- Pillco Huarcaya recolhe
tudo por barco. Celedonia trouxe também consigo sementes de uma
ucuuba (Virola surina-
o namorado, mas ele “odiava a natureza e fugia mensis) nas secções de
dos insectos”, recorda. Nessa altura, Celedonia floresta de crescimento
pegou num machado e limpou, ela própria, o ter- antigo ainda existentes
em Osa. As novas árvores
reno que escolheu. resultantes das sementes
“Enquanto abatia as árvores, pensava no tem- serão plantadas em
po que teriam demorado a crescer e eu cortei-as zonas degradadas, na
esperança de atraírem
num instante”, diz. “Foi isso que fizemos. Aba- macacos-aranha e outros
temos a floresta para vivermos.” animais que dispersem
Cerca de 40 anos mais tarde, Doña Celedonia, sementes. “As árvores
que plantarmos poderão
como é respeitosamente tratada por todos, ain- morrer, mas as árvores
da vive no mesmo sítio, numa vila chamada La plantadas pelos animais
Palma. Quando a conheci, num dia de Junho de vão recriar a floresta
original”, acredita
2019, vestia calças de ganga e uma blusa branca Ruthmery.
com padrão floral. Mostrou-me o jardim e a casa
e, a avaliar pela sua passada confiante, ninguém
diria que é quase cega.

34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Para Doña Celedonia, era um dia de redenção: Por volta do meio-dia, o grupo desceu até ao
em vez de eliminar a floresta, estava a trazer um riacho para ver Doña Celedonia plantar a última
pouco dela de volta. A seu convite, uma organi- árvore simbólica. O seu neto Pablo escavou um
zação sem fins lucrativos chamada Osa Conser- buraco. Doña Celedonia disse: “Talvez devolva a
vation convocara grupos locais e governamentais minha quinta à floresta.”
para plantar 1.700 rebentos de árvores nativas na
sua quinta de nove hectares. No Dia da Árvore, Osa é uma das áreas mais fér-
H E C TA R E A H E C TA R E ,
efeméride celebrada anualmente na Costa Rica, teis do planeta. Apesar de ocupar menos de 0,001%
muitos dos seus seis filhos, 16 netos e 14 bisnetos da superfície da Terra, alberga 2,5% das suas formas
reuniram-se para comemorar, juntamente com de vida. A variedade de habitats da península (flo-
grande parte da comunidade. Houve espectácu- resta nebulosa, floresta húmida de baixa altitude,
los, discursos, jogos e danças realizadas por crian- pântanos, mangues, lagoas de água doce e lagoas
ças vestidas com os coloridos trajes tradicionais. costeiras) é um refúgio para milhares de espécies,
incluindo populações de araras-escarlate, macacos-
A National Geographic Society, uma organização sem
-aranha e outras espécies cujo efectivo está a dimi-
fins lucrativos, ajudou a financiar esta reportagem. nuir na maior parte do seu território histórico.

P R E S E R VA R O P A R A Í S O 35
Cinco espécies de felinos selvagens deambulam Em meados da década de 1990, porém, o Es-
pela floresta, quatro espécies de tartarugas-mari- tado tomou medidas para inverter a tendência.
nhas sobem desajeitadamente os areais das praias Aprovou uma lei proibindo o abate de árvores
do Pacífico para ali porem os seus ovos. A leste, sem um plano de gestão pormenorizado e criou
tubarões-martelo e baleias-de-bossa sobem o fiorde um programa para pagar aos proprietários de
do golfo Dulce para parirem. terras para as manterem florestadas e plantarem
Contudo, o ecossistema de Osa é frágil. Já es- árvores novas, financiado por um imposto nacio-
teve à beira da destruição duas vezes no passado nal sobre a gasolina. Em apenas 25 anos, o cober-
devido ao crescente impacte das comunidades to florestal da Costa Rica mais do que duplicou e
que abatiam a floresta para viverem, ou garimpa- o país vai bem encaminhado no seu objectivo: ter
vam os rios de Osa em busca de alguns gramas de árvores a revestir 60% do seu território até 2030.
ouro. Nos últimos anos, algumas comunidades Se a companhia de electricidade abater uma
de Osa tornaram-se defensoras apaixonadas da árvore, terá de fornecer fundos para plantar cin-
natureza que outrora exploraram: em vez de aba- co, explicou Andy. Pode ser louvável, mas dificil-
terem árvores ancestrais para obterem madeira, mente é um fim em si mesmo, comentou.
abrem trilhos para ecoturistas e, em vez de abate- “Limitarmo-nos a promover o coberto florestal
rem ilegalmente animais selvagens, perseguem é perigoso. Podemos acabar com uma floresta va-
os caçadores furtivos. zia. Aquilo em que estamos focados é na recupe-
Agora, porém, a região enfrenta uma nova ração de todo o ecossistema.”
ameaça. A pandemia de COVID-19 devastou a Nos últimos anos, uma rede de armadilhas fo-
economia da Costa Rica, fechando a torneira tu- tográficas coordenada pela Osa Conservation e
rística que financiara a mudança para estilos de outros grupos locais, tem revelado como as flores-
vida ambientalmente sustentáveis. Os corações e tas estão pujantes de vida. Um censo da década de
as mentes dos habitantes de Osa estão a virar-se 1990 quase não descobrira animais selvagens em
para uma ética de conservação, mas eles conti- Osa fora do Parque Nacional de Corcovado, que
nuam a ter estômagos. abrange a maior parte da região ocidental da pe-
“Os habitantes locais são próximos da natu- nínsula. Agora, detectam-se animais onde antes
reza”, diz Hilary Brumberg, funcionária da Osa estes tinham sido caçados até desaparecerem.
Conservation que liderou o projecto de reflores- Os pumas, outrora raros no parque e nunca vis-
tação na quinta de Doña Celedonia. “Mas quando tos fora dele, estão a recuperar. Os ocelotes tam-
se trata de alimentar a família ou de proteger a bém estão a regressar em grande força, bem como
natureza, a família vem primeiro.” os jaguarundis, outro felino de pequeno porte. Os
porcos-do-mato abundam em Piedras Blancas,
de 37 anos, juntou-se à organi-
A N DY W H I T WO RT H , um parque nacional no sector mais distante do
zação em 2017, depois de ter passado seis anos golfo. Os pecaris, uma espécie aparentada, não
numa batalha desencorajadora pela conservação estão a ter tanto sucesso fora do Parque de Cor-
na Amazónia peruana. “Quando cheguei a Osa, covado, e talvez não seja de admirar, porque são
voltei a sentir esperança”, contou enquanto tomá- apreciados pela sua carne e por se deslocarem em
vamos o pequeno-almoço na estação biológica da grandes bandos, facilmente visados pelos caçado-
Osa Conservation, no Sudoeste da península. “Na res. Os pecaris são uma das presas preferidas dos
Amazónia, eu via macacos-aranha uma ou duas jaguares e também estes se têm esforçado para re-
vezes por ano. Aqui vejo-os uma ou duas vezes por cuperar fora dos limites do parque.
dia. Foi uma experiência transformadora.” Em última análise, a única maneira de asse-
Andy Whitworth apressou-se a atribuir alguns gurar a saúde do ecossistema de Osa é reflores-
dos louros do sucesso de Osa às políticas de re- tá-lo. Para tal, a Osa Conservation está a ajudar
florestação pioneiras da Costa Rica. Ao longo a preencher a floresta, plantando árvores em
da última metade do século XX, as florestas que quintas privadas estrategicamente posiciona-
outrora cobriram 75% do país foram sistematica- das, como a de Doña Celedonia. A curto prazo,
mente despidas devido à extracção de madeira, à os plantios ao longo de rios e riachos em áreas
criação de gado e à plantação de culturas como a cultivadas fornecem sombra para os animais de
banana e o ananás. Em menos de uma geração, criação, contribuem para prevenir a erosão do
apenas um quinto da terra se encontrava coberta solo e criam um habitat para aves e outros ani-
por árvores. mais selvagens. Mas o objectivo a longo prazo é

36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
criar um corredor de vegetação ininterrupto de Ficava ainda um problema por resolver: retirar
Corcovado a Piedras Blancas e, por fim, até ao do interior do parque cerca de 250 colonos arrei-
vasto Parque Internacional de La Amistad, nas gados, que contemplavam a empresa madeireira,
montanhas de Talamanca, partilhado pela Cos- os vigilantes da natureza e os cientistas com graus
ta Rica e pelo Panamá. Isto não só exigirá polí- de hostilidade idênticos. No final, a maioria acei-
ticas governamentais amigas do ambiente, mas tou mudar-se para as terras que lhes foram ofere-
também a aquisição de terrenos a agricultores e cidas no lado oriental da península, incentivada
a criadores de gado. por uma indemnização agregada superior a um
“As estratégias nacionais deram início a esta milhão de dólares para “melhorias” nas terras,
grande alteração na floresta”, disse Andy. “Mas a como desflorestação, plantações e edificações.
verdadeira ligação à vida selvagem tem de vir de Durante muitos anos, registaram-se poucos
baixo para cima.” conflitos no parque. Foi então que o preço do
Uma das razões para a abundância de espé- ouro começou a subir em flecha. A ideia de ga-
cies em Osa é a escassez de uma em particular. nhar fortuna desencadeou a segunda crise de
Até à década de 1960, a península era habitada Osa. No início da década de 1980, cerca de 1.400
apenas por meia dúzia de garimpeiros de ouro, mineiros trabalhavam ilegalmente no parque.
ocupantes ilegais e foragidos, cuja reputação de “Os danos foram colossais”, contou Dan Janzen,
marginais contribuiu para manter a população um destacado ambientalista sediado na Costa
em geral à distância. Rica, recrutado em 1985 para estudar as repercus-
Nessa época, 80% da península ainda estava sões da actividade mineira. Quase todos os ani-
coberta por floresta de crescimento antigo. Isso mais do terço mais a sul do parque foram caçados
começou a mudar no início da década de 1970, para alimentar as comunidades de garimpeiros.

“As comunidades locais são próximas da natureza, mas quando se trata


de alimentar a família ou de proteger a natureza, a família vem primeiro.”
Hilary Brumberg, Osa Conservation

quando, incentivada pela conclusão da Inter- Em vez de recorrer ao método que designou
-American Highway South, a população du- por “pistolas e estrelas douradas” para expul-
plicou para cerca de 6.000 pessoas, ocupando sar os mineiros, Janzen recomendou que se
principalmente a faixa de terra cultivada do lado dedicasse um ano a conhecê-los para depois
oriental da península. A maior parte da terra de- os convencer a saírem de livre vontade ou a
sabitada pertencia a uma multinacional madei- enfrentarem a possibilidade de serem presos.
reira demasiado distante e mal gerida para exer- A estratégia funcionou, mas, nos anos seguin-
cer controlo. Por isso, quem conseguisse limpar tes, o governo regrediu frequentemente para
um pedaço de terra poderia chamar-lhe seu. uma abordagem mais militarista, que exacer-
Entretanto, um posto de investigação biológi- bou o ressentimento da população local.
ca da península também atraiu outra subespécie Rancho Quemado, perto do centro da penín-
humana: cientistas estrangeiros. Mais de mil es- sula, foi o lugar de aplicação mais catastrófica do
pecialistas visitaram a região na década de 1960. método das “pistolas e estrelas douradas”. O po-
À medida que os colonos se impunham na rica voado fora erguido na floresta na década de 1960
bacia do Corcovado, no lado ocidental da penín- por uma família chamada Ureña, oriunda de
sula, os cientistas ajudaram a fazer soar o alarme: Buenos Aires, na Costa Rica. Os seus habitantes,
se não fosse criado um parque para proteger Osa, como outros da península, subsistiam cultivando
as suas florestas e respectiva biodiversidade de- a terra e caçando animais selvagens. A cada dois
sapareceriam. Liderado por Álvaro Ugalde, o pai anos, um bando de pecaris chegava a Rancho
do sistema de parques da Costa Rica, o governo Quemado, vindo do parque, e os caçadores da al-
negociou uma troca de terras complicada com a deia matavam sempre cerca de 80% dos animais
empresa madeireira, que resultou na criação do – uma matança muito acima de qualquer limiar
Parque Nacional de Corcovado em 1975. de sustentabilidade. (Continua na pg. 42)

P R E S E R VA R O P A R A Í S O 37
LUGAR IDÍLICO PARA
NICARÁGUA
COSTA RICA

A VIDA SELVAGEM
San José
Península COSTA RICA
Nicoya

PANAMÁ
A península de Osa é uma das regiões com maior Península de Osa
biodiversidade da Terra. Os investigadores 100 km PERSPECTIVA
descobriram que o golfo Dulce acolhe uma
variedade excepcional de espécies. Grupos
de conservação e comunidades locais
desenvolvem esforços para preservar esta

ado
rara combinação de árvores de crescimento Terraba

ron
antigo, floresta húmida de baixa altitude
e uma baía com uma configuração singular.

Co
Áreas protegidas Habitats ía
Ba
Parque Nacional Mangues
Reserva florestal Outras florestas
Corredor biológico

A ESCALA VARIA NESTA PERSPECTIVA. A DISTÂNCIA


DE RINCÓN A PUERTO JIMÉNEZ É DE 27 KM.

Ilha Caño Agujitas -182m


18KM DA
COSTA
-45
m

Punta Llorona

A natureza em primeiro
O esforço dos defensores
da natureza na década
de 1990 levou a Costa Rica
a classificar 28% do seu
território para protecção
ambiental. Carate

Punta Salsipuedes

O C E A N O
RICA EM BIODIVERSIDADE
Mais de 140 mamíferos, 460 aves e milhares de plantas e
insectos, muitos dos quais em perigo, foram identificados
nos 1.800 quilómetros quadrados de terra e 200 quilómetros
de orla costeira que constituem este ecossistema vital.

Mamíferos da floresta húmida Mangues


Pumas e porcos-do-mato, entre outros Estas árvores resistentes à água As suas raízes terrestres, que
mamíferos, estão a recuperar nesta salgada revestem as orlas costeiras e reduzem a força das ondas
paisagem tropical. A sobrevivência da zonas pantanosas da região. Refúgio durante as tempestades,
vida selvagem na região depende de para centenas de espécies terrestres também filtram a poluição
um habitat em expansão e de um e marinhas, são igualmente vitais e os detritos que podem
património genético diversificado. para prevenir a erosão costeira. escorrer para o oceano.

RILEY D. CHAMPINE E MANUEL CANALES; ALEXANDER STEGMAIER. ARTE: MATTHEW TWOMBLY


FONTES: HILARY BRUMBERG, NOELIA HERNÁNDEZ E ELEANOR FLATT, OSA CONSERVATION; NASA; CIMAR,
UNIVERSIDADE DA COSTA RICA; GEBCO; ESA CLIMATE CHANGE INITIATIVE LAND COVER PROJECT; WDPA
Das cumeeiras aos recifes
Para sustentar as populações
de animais selvagens,
os voluntários conservam
uma rede de terras privadas
e públicas, criando um
corredor biológico que liga
a península de Osa a zonas
protegidas de grande altitude.

Á
CA

Neily

Baía
Golf
i to
G o l
f o Ameaças persistentes
D C o to
u A agricultura, a construção de
lc estradas e actividades ilegais
Punta Arenitas e como a caça e a mineração
de ouro ameaçam a floresta
húmida. Os escoamentos
agrícolas podem descer para
o golfo, ameaçando os recifes
de coral e a vida marinha.
-45m -45m Baía
Pavón

Pavones

Punta Banco
Cabo Matapalo PA
N AM Á
P A Profundezas raras
C Í ST
CO

A formação semelhante a um
A R I CA
F I fiorde tem uma foz de águas rasas

C O
e um porto abrigado de águas
profundas. Os quatro principais rios
que desaguam na bacia regulam a
temperatura e a salinidade da água.

Tubarões-martelo Baleias-de-bossa
Depois de acasalarem em mar A península de Osa é o único berçário
aberto, os tubarões-martelo têm conhecido das baleias-de-bossa
aqui as suas crias entre Março dos mares do Norte e do Sul.
e Agosto. Os cientistas estudam A temperatura média da água (270C)
aqui as suas deslocações
e comportamento. ajuda-as a conservar o calor corporal.
Um puma olha surpreen-
dido para uma armadilha
fotográfica. Um conjunto
de armadilhas colocadas
por grupos de conserva-
ção, funcionários de
eco-alojamentos e
habitantes locais revela
que as populações de
pumas e de três outras
espécies de felinos
selvagens recuperaram
na península desde
finais da década
de 1990. Continua a
haver poucos jaguares.
Em 2008, porém, os pecaris vieram acompa- do patriarca da família, a migração sazonal dos
nhados por vigilantes da natureza, alguns dos pecaris pela aldeia voltou a ser tema de conversa,
quais armados. Com os seus próprios guardas mas agora a hipótese de trabalho era o melhor
para os protegerem, os pecaris tornaram-se des- modo de proteger os animais.
temidos, devorando as culturas, enquanto os al- Outrora, Enrique fora um dos maiores oposi-
deãos os observavam, impotentes. Foi uma vitó- tores do parque, pois temia que os vigilantes da
ria a curto prazo para a conservação: os aldeãos natureza estivessem demasiado espalhados pelo
mataram apenas cinco pecaris nesse ano. A lon- terreno. Advogou a necessidade de voluntários
go prazo, porém, alargou o fosso que separava o locais para escoltar os pecaris enquanto estes se
parque das pessoas. deslocavam. Marco referiu que a Osa Conserva-
tion implementara um projecto de vigilância de
onze anos
Q UA N D O V I S I T E I RA N C H O Q U E M A D O pecaris colocando coleiras transmissoras em al-
mais tarde, o local tinha uma energia muito dife- guns animais para que os movimentos do grupo
rente. Fui acompanhado por Marco Hidalgo, gestor pudessem ser facilmente acompanhados.
de contacto comunitário da Osa Conservation. No “Quem deve usar as coleiras não são os peca-
restaurante ao ar livre de Enrique Ureña, sobrinho ris”, disse Espiritu, a mãe idosa de Enrique, inter-

42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ao aprenderem que a biodiversidade em seu
redor era um chamariz natural, os moradores
aprenderam também a criar negócios ecoturís-
ticos. Agora, a aldeia monitoriza o movimento
dos pecaris, faz censos de aves, mantém arma-
dilhas fotográficas, recolhe sementes de árvores
e disponibiliza passeios da floresta e programas
educativos para crianças. Marco Hidalgo ajudou
a orientar e a incentivar esta mudança de atitude,
mas não colhe os méritos do seu sucesso.
“Eles pegaram nas ferramentas e mudaram
por si próprios”, afirmou.
Nem todas as comunidades de Osa passaram
por tamanha metamorfose. Marco disse-me que
Los Angeles de Drake, uma aldeia na zona nor-
te da península, se opõe tão encarniçadamente
à conservação que, quando o trabalho o leva até
lá, tem de estacionar atrás do portão fechado da
escola para não lhe vandalizarem o carro. No en-
Dois garimpeiros de tanto, pelo menos em 2019, apercebi-me de uma
ouro trabalham num mudança profunda a favor da protecção da natu-
riacho junto do Parque
Nacional de Corcovado. reza em muitas das pessoas que conheci.
O garimpo de ouro, que Passei dois dias com Tomas Muñoz, que cres-
durante décadas foi um ceu em Dos Brazos de Rio Tigre, outra aldeia
modo de vida em Osa,
é ilegal na Costa Rica outrora dependente da actividade mineira ilegal
porque polui o que apostou no ecoturismo para sobreviver. To-
ambiente, mas o mas começou a caçar quando tinha 10 anos e a
Estado tolera alguma
mineração artesanal. peneirar ouro dois anos mais tarde. Ele calcula
Certas comunidades que tenha passado 25 dias por mês na selva desde
outrora dependentes os 14 anos, idade em que desistiu da escola.
da extracção mineira
conseguiram, com Aprendeu todos os truques da floresta, in-
sucesso, redireccionar cluindo a maneira de fugir aos vigilantes da
a sua economia para natureza e à polícia. Aprendeu que deveria ca-
o ecoturismo.
minhar apenas sobre raízes e pedras para não
deixar pegadas. Não se deveria lavar no riacho
junto do qual acampara, porque a espuma apa-
rece a jusante. E não poderia usar cremes nem
rompendo a conversa a partir do sofá onde estava protector solar porque os cheiros estranhos são
sentada, no canto da sala. “São os caçadores.” fáceis de detectar na floresta.
A transformação de Rancho Quemado foi for- “Certa vez, farejei o óleo multiusos das armas
jada pela necessidade, pois não havia emprego dos vigilantes”, disse-me. “Estavam a 80 metros
suficiente para todos. A sua orientação, porém, de distância. Dispersámo-nos e vimo-los passar
foi determinada pelo ensino. Em 2002, Enrique do outro lado do rio. Nunca me apanharam”,
Ureña e 14 outros conterrâneos, com idades com- acrescenta com um sorriso. “Eu corria demasia-
preendidas entre 14 e 60 anos fizeram um curso do depressa.”
intensivo de biologia florestal. Entre outras lições, Quando tinha 20 anos, Tomas deixou de caçar
os alunos aprenderam como os pecaris actuam porque um dos seus tios, que trabalhava como
como “engenheiros do ecossistema”. Dispersam guia, o convenceu de que estava a desperdiçar
as sementes, criam habitats para animais aquáti- a vida e que poderia viver muito melhor se con-
cos quando chafurdam no solo e alteram a estru- duzisse turistas até aos animais em vez de os
tura da floresta comendo as sementes de plantas matar para consumir a sua carne. Contudo, não
comuns, permitindo assim que outras, mais raras foi fácil superar a atracção atávica pelo modo de
e diversificadas, tenham possibilidade de vingar. vida antigo.

P R E S E R VA R O P A R A Í S O 43
A variedade
de habitats
da península
(floresta
nebulosa,
floresta húmida
de baixa altitude,
pântanos,
mangues, lagoas
de água doce e
lagoas costeiras)
gera refúgios
para milhares
de espécies.

Um grupo de
golfinhos-de-bico-
-comprido nada ao
largo de Isla del Caño,no
oceano Pacífico, cerca
de 24 quilómetros a
oeste da baía de Drake.
Grupos com milhares de
golfinhos reúnem-se
junto da costa de Osa,
atraídos pela previsível
abundância de presas.

44 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
P R E S E R VA R O P A R A Í S O 45
“O meu tio levou-me a um posto de vigilan-
tes da natureza e vi galinhas selvagens e pecaris
mesmo ao meu lado”, recorda. “O meu instinto
foi procurar um pau ou uma pedra para os matar.
O instinto estava na minha cabeça. Precisei de
dois anos para me livrar dessa vontade.”
Tomas contou-me a sua história enquanto ca-
minhávamos numa praia cinzenta, junto da entra-
da meridional do Parque de Corcovado. Passámos
esse dia no parque. Tomas trazia consigo o tripé
para a sua telescópio de observação sobre o ombro
como uma espingarda, parando abruptamente
para atrair alguns macacos-aranha para perto de
nós com um chamamento, para me apontar um
carcará-do-norte, uma família de macacos-capu-
chinhos, uma minúscula rã ou um quati-de-nariz-
-branco a mordiscar um caranguejo.
No dia seguinte, levou-me a visitar a aldeia
de Dos Brazos, que tem um trilho até ao parque
saindo da sua zona oriental. Foi construído pelos
próprios aldeãos, na sua maioria antigos minei-
ros de ouro. Tomas ajudou a formar alguns para
serem guias, enquanto outros aldeãos forneciam
alojamento a turistas, refeições e aulas de culi-
nária. O trilho não tem ligação à rede prévia do
parque, mas o seu acesso é mais fácil e proporcio-
na alguns dos melhores pontos de observação de
aves da península.
“Antigamente, as pessoas só falavam sobre o
ouro que apanhavam”, disse Tomas. “Agora, as
conversas são sobre aves.”

não houve turistas para


N A P R I M AV E R A S E G U I N T E ,
quem cozinhar, nem trabalho para os guias em Dos
Brazos nem em Rancho Quemado. Não houve
voluntários em Osa Conservation para tratar das
árvores, nem para manter os predadores longe das
crias de tartaruga-marinha na praia do Pacífico. tar-se da falta de turistas e da aplicação da lei
A Costa Rica optou por uma reacção agressiva à para organizar caçadas dentro do parque.
ameaça da COVID-19, proibindo todas as viagens Dois caçadores mataram nove pecaris por
internacionais. No final de Novembro de 2020, desporto. Quando contactei Dionisio Paniagua
quando os Estados Unidos já tinham sofrido Castro, guia turístico de longa data e, desde a
264.808 mortes, a Costa Rica registara 1.690. pandemia, activista em prol da conservação da
No entanto, os prejuízos económicos foram península, consegui sentir a sua angústia pelo
catastróficos. A indústria turística desabou, es- telefone. “Tantos animais… para se divertirem!”
tancando o financiamento do sistema nacional disse. “Tínhamos mesmo de fazer algo.”
de parques, obrigando as autoridades a encerrar Os guias alertaram as autoridades, que desta-
Corcovado no mês de Março e a retirar os vigi- caram forças policiais para o local e fizeram algu-
lantes do parque. mas detenções. Contudo, o parque era demasia-
Durante algumas semanas, tudo esteve cal- do grande e a aplicação da lei demasiado dispersa
mo. Foi então que foi lançado o aviso numa con- e esporádica para gerir o crescente desastre.
versa de grupo entre alguns guias turísticos de Não eram apenas os caçadores. Com o desem-
Osa numa rede social: alguém estava a aprovei- prego e o aumento do preço global do ouro devido

46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Nadadores preparam-se
para a prova de natação
Golfo Dulce Open
Water Crossing, no lado
oriental da península,
organizada para atrair
mais visitantes durante
a época baixa do
turismo, no final
do Verão. Os nadadores
irão partilhar o golfo
com baleias-de-bossa
vindas do Pacífico Sul
no Verão para parirem
as suas crias nestas
águas protegidas.

à pandemia, os mineiros estavam a regressar ao guem alertar rapidamente as forças responsáveis


parque em números que não se viam há décadas. pela aplicação da lei quando detectam activida-
Os traficantes de droga e os madeireiros também des ilegais. Grande parte do problema parece ser
estavam a tirar partido da agitação. causado por grupos organizados vindos de fora
No entanto, agora existia outra linha de defe- da península. Porém, dado o colapso da econo-
sa: os próprios habitantes de Osa. Em resposta à mia turística, era inevitável que alguns autócto-
crise, Carlos Manuel Rodríguez, então ministro nes não tivessem muitas escolhas para além de
do Ambiente da Costa Rica, ressuscitou a ideia de pegarem nas pás e nas peneiras e juntarem-se
um grupo de 52 vigilantes da natureza voluntá- aos mineiros ilegais do parque.
rios, constituído por guias e líderes de diferentes “As pessoas têm de encontrar formas de ganhar
comunidades, incluindo Rancho Quemado e La dinheiro e o garimpo de ouro é uma delas”, disse-
Palma, que poderiam receber formação em tecno- -me Tomas Muñoz ao telefone. Perguntei-lhe se
logia de vigilância e ser posicionados no terreno ele próprio sentia essa tentação, uma vez que era
para criar uma zona-tampão em redor do parque. um dos guias que ficara sem trabalho. Ouvi a an-
Não têm armas, mas têm telefones, câmaras gústia na sua voz quando me respondeu.
fotográficas e ligações à comunidade e conse- “Estou a tentar não ir por aí.” j

P R E S E R VA R O P A R A Í S O 47
E N T R E V I S TA C O M O P R E S I D E N T E DA C O S TA R I C A , C A R L O S A LVA R A D O

POR ISMAEL NAFRÍA

“ESTAMOS A FICAR
SEM TEMPO PARA AGIR”
Carlos Alvarado é presidente da Costa Rica desde optou-se pela conservação como forma de prote-
Maio de 2018. Neste país com cinco milhões de ger o ambiente e de desenvolver a economia com
habitantes, que concentra 6% da biodiversidade o ecoturismo. Foram criados os primeiros parques
do planeta, um quarto do território está prote- nacionais, corredores biológicos, áreas protegidas
gido. Em 2019, a Costa Rica recebeu o Prémio Cam- e zonas-tampão. Com impostos sobre os combus-
peões da Terra, o maior galardão ambiental das tíveis fósseis, paga-se aos proprietários de terras
Nações Unidas, pelo seu papel na protecção da por serviços ambientais. Existe um incentivo para
natureza e pelos esforços para promover a descar- que conservem a sua floresta.
bonização da economia e combater as alterações
climáticas. Falei com o presidente em Nova Iorque Considera a crise climática um dos maiores desa-
quando foi receber o prémio na Cimeira da Acção fios da nossa geração?
Climática em Setembro de 2019. A entrevista teve Sim. Disse-o no meu discurso de tomada de posse:
continuidade através de correio electrónico. é o maior desafio da nossa geração. Há muito a
fazer: combater a pobreza, aumentar a inclusão,
Que significado tem para si e para o seu país o reduzir as diferenças de género e combater a dis-
prémio das Nações Unidas? criminação. Temos de fazer tudo isso, mas só a
Deixa-me muito orgulhoso e feliz porque se deve resolução da crise climática dará um futuro à
ao esforço de todo o país e não de uma pessoa, de humanidade. Se não for resolvida, pode tornar–se
um governo ou de uma iniciativa. O que a Costa o fim do jogo. E é por isso que esta geração tem
Rica está a conseguir hoje em matéria ambiental uma responsabilidade enorme. É a geração que
é resultado do trabalho anterior de muitas pessoas. decide se isto continua por mais 50 mil anos ou
Há 70 anos, decidiu-se avançar com energias lim- pára. É um ponto de viragem na história da
pas e renováveis, principalmente hidroeléctricas, humanidade.
geotérmicas e eólicas. Há 50 anos, decidiu-se avan-
çar com um modelo de parques nacionais. Depois, E está optimista? Acha que chegaremos a 2050
na década de 1980, com as áreas de conservação depois de conseguirmos dar passos certos?
e, posteriormente, com sistemas de pagamentos Sim, estou optimista. Mas estou optimista por ter
por serviços ambientais para protecção de flores- os pés assentes na terra. Olho para o meu país e
tas em zonas privadas. Tudo isso permitiu que digo: “Sim, consegue-se, está feito!” Demonstrá-
hoje produzamos quase 99% de energia limpa e mos que é possível.
renovável e tenhamos uma cobertura florestal de
52% do nosso território. O que fazemos hoje terá Que lições devemos tirar da pandemia em relação
impacte decisivo daqui a 20 ou 30 anos. ao futuro do planeta?
Não devemos tomar o planeta como garantido.
Como conseguiram atingir 52% de cobertura O mundo está a alterar-se a uma velocidade cada vez
florestal no país? maior. Agir já é essencial para que nós, os nossos
No século passado, registou-se um forte processo filhos e netos, tenhamos um lar seguro e saudável. É
de desflorestação. O país passou de mais de 70% uma responsabilidade inter-geracional perante a
de cobertura florestal para 20%, devido à criação história da humanidade. A pandemia apanhou de
de gado e à expansão de áreas agrícolas. O processo surpresa o mundo e fez disparar os alarmes da última
estava a destruir os nossos ecossistemas e apostá- oportunidade disponível para reduzir os impactes
mos na reflorestação. Naquela época, dizia-se que do risco iminente produzidos pelas alterações climá-
isso iria destruir a economia agrícola, mas ticas, pelas consequências que estas têm na vida das

48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Carlos Alvarado e a primeira-dama, a arquitecta e efectiva para alcançar uma reconstrução econó-
Claudia Dobles, lideram o Pano Nacional de mica verde e resiliente. Estou certo de que, nessa
Descarbonização da Costa Rica. Foram questão, os Estados Unidos desempenharão um
fotografados no Parque Solar Cooperativo papel importante.
inaugurado em Março de 2019, que fornece
energia eléctrica produzida a partir de fontes
renováveis a 5.000 famílias de Pocosol de De que forma a pandemia afectou os planos
San Carlos, na zona setentrional do país. ambientais da Costa Rica?
Reafirmou a necessidade de trabalhar para que a
Costa Rica alcance uma recuperação económica
pessoas, ecossistemas e sistemas produtivos. Esta- sustentável. Ensinou-nos que os governos devem
mos a ficar sem tempo para agir e a nossa geração dar prioridade às acções que estejam em linha com
não pode continuar a adiar acções urgentes no com- uma recuperação económica verde e azul. Esta
bate contra as alterações climáticas. pandemia revelou as ligações reais entre saúde,
ambiente e bem-estar, e que é possível tomar deci-
O que espera da colaboração internacional sões e fazer políticas públicas centradas no bem-
neste domínio? -estar das pessoas.
A máxima solidariedade e a resposta global do
multilateralismo. A mobilização de recursos dos Quais os principais desafios a que a Costa Rica se
países desenvolvidos para os países em desenvol- propôs em matéria ambiental?
vimento é fundamental, seja através de fundos O nosso roteiro é o Plano Nacional de Descarbo-
não reembolsáveis, através de permutas de dívida nização 2018-2050. Com ele, traçámos o caminho
por natureza, permutas de dívida por descarbo- para uma Costa Rica competitiva, moderna e efi-
nização ou por resiliência e adaptação às altera- ciente, para ter, até 2050, uma nova geração que
ções climáticas. beneficiará por viver num país sustentável, sau-
Numa conversa recente com o novo presidente dável e solidário.
dos Estados Unidos, Joseph Biden, alertei-o para
duas ameaças que a região enfrenta: as devasta-
doras consequências económicas e fiscais da pan-
Excertos da entrevista realizada com
demia e as alterações climáticas, que intensificam o presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado.
os fenómenos migratórios na América Central. Em breve, a versão completa poderá ser lida
Propus-lhe uma abordagem multilateral solidária no site nationalgeographic.pt

ROBERTO CARLOS SÁNCHEZ P R E S E RVA R O PA R A Í S O 49


MULHERES
EM MIGRAÇÃO
M OV I DA S P E L O M E D O ,
PELA ESPERANÇA
O U P E L O D E S E S P E R O,
MILHÕES DE MULHERES MIGRAM
TO D O S O S A N O S E M B U S C A
D E U M A V I DA M E L H O R .

T E X TO D E AU R O R A ALMENDRAL
F OTO G R A F I A S D E T H E E V E R Y DAY PROJECTS

50
Depois de lavar a roupa
num charco à beira da
estrada, uma mulher
caminha para casa na
Somalilândia devastada
pela seca. As alterações
climáticas alteraram por
completo milhões de
vidas no Corno de África.
À medida que vacas,
cabras e camelos vão
morrendo, não resta
outra solução aos
pastores seminómadas
como ela senão muda-
rem-se para outro sítio,
frequentemente para
campos de deslocados
ou para as cidades.
R
I N T R O D U Ç ÃO

Nas últimas décadas, as mulheres têm migrado


para países mais ricos, a fim de garantirem, elas
próprias, o sustento da família e já não para se
reunirem a familiares. Arranjam emprego como
prestadoras de cuidados a crianças e idosos ou
como empregadas domésticas, bem como na in-
dústria e na agricultura. Já se descreveu essa tran-
sição como “feminização das migrações”. Há mais
probabilidades de as mulheres migrantes que vi-
vem no estrangeiro serem sobrequalificadas para
estes empregos e de ganharem menos dinheiro
do que os homens, remetendo uma percentagem
superior dos seus rendimentos para as suas famí-
lias, que permaneceram no país de origem.
Para as mulheres que fogem à violência e à
pobreza, as rotas clandestinas seguidas tornam-
-nas mais vulneráveis ao tráfico sexual, à agres-
são e à violação. E, para as mulheres que partem
para países com quadros legislativos débeis, ou
Raxma Xasan Maxamuud nunca quis abandonar mulheres sem documentos, assegurar os direitos
a sua casa, na Somalilândia. No entanto, um longo fundamentais pode revelar-se impossível.
ciclo de secas transformou os rios em poeira e res- A migração forçada de refugiados e requeren-
secou a erva de que o seu gado se alimentava. Nas tes de asilo cresceu em média 8% por ano entre
Honduras, a violência levou Kataleya Nativi Baca, 2010 e 2017, em comparação com menos de 2%
uma mulher transgénero, a empreender uma via- referente às migrações internacionais. De 33,8
gem perigosa até à fronteira dos Estados Unidos. milhões de pessoas obrigadas a migrar para o es-
As mulheres representam cerca de metade de trangeiro em 2019, cerca de metade eram mulhe-
todas as pessoas que migram a nível internacional res. Nesse ano, outros 33,4 milhões de pessoas,
e dentro das fronteiras dos seus próprios países. mais de metade das quais mulheres, viram-se
Algumas são atraídas por promessas de um futuro obrigadas a migrar dentro dos seus próprios paí-
melhor, mas, para aquelas que enfrentam a fome ses, 75% das quais devido a catástrofes naturais.
ou o perigo no seu país natal, a migração é um ris- Segundo uma estimativa do Banco Mundial,
co corrido para assegurar a própria sobrevivência. em 2020 a pandemia da COVID-19 provocou uma
Para esta reportagem, os fotógrafos de The quebra inédita de 20% nas remessas mundiais
Everyday Projects, uma rede cuja missão consiste de dinheiro enviado para os países de origem.
em desafiar estereótipos apresentando perspecti- O medo, a raiva e a pobreza estão a atiçar o res-
vas diferentes, analisam a maneira como as difi- sentimento e a xenofobia e os migrantes vêem-
culdades e a obrigação, a violência, a pobreza, as -se frequentemente vitimizados como bodes
alterações climáticas e outras forças prejudicam expiatórios, acusados de serem transmissores de
gravemente as vidas das mulheres, empurrando- doenças ou culpabilizados pelos males sociais
-as para viagens que alteram a sua existência. exacerbados pela pandemia.
Segundo a Organização Internacional para as Nas próximas páginas, relatamos as histórias
Migrações, 272 milhões de pessoas (entre as quais de cinco mulheres migrantes que exemplificam
130 milhões de mulheres) não viviam no seu país facetas diversas da experiência de relocalização:
de origem em 2019. Mais de 60% desses migrantes a decisão de partir; a esperança e as dificuldades
vivem na Ásia e na Europa. No entanto, a maior da viagem; a chegada em circunstâncias des-
parte das migrações internacionais acontece a conhecidas; a adaptação a uma nova vida; e a
nível regional, com as deslocações para (e entre) consciencialização de que, por muito traumático
países do Médio Oriente, Norte de África e África que seja o desenraizamento, a migração pode ser
Subsaariana a aumentarem mais depressa. uma via para a liberdade.

52 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Esperança e resiliência
A rede The Everyday Projects usa a
fotografia para desafiar estereótipos e
alargar os seus relatos a todo o mundo.
Oito fotógrafas juntaram-se para
documentar as repercussões da
Nos últimos anos, milhões de mulheres deixaram as suas casas, migração sobre as mulheres no mundo.
atravessando fronteiras em busca de uma nova vida. A COVID-19
Esta reportagem contou com apoio da
abrandou este caudal, mas os factores de pressão que obrigam National Geographic Society.

a migrar (como a violência, a opressão, a seca e a pobreza) sub- Um guia criado pelo Centro Pulitzer
sistem. A esperança de mudar leva muitas mulheres a arriscarem para alunos do segundo e terceiro
ciclos encontra-se disponível em
viagens cujo resultado oscila entre o feliz e o trágico. pulitzercenter.org/womenonthemove.

01 SOMÁLIA
MUDAR OU MORRER
PÁGINA 54

| Depois de a seca matar os seus animais, esta pastora


somali não tem outra alternativa senão juntar-se a milhares de outras pessoas que
vão vendo o tempo passar num campo para deslocados.

02 HONDURAS
A dura VIAGEM
u MÉXICO PÁGINA 60

| A expectativa anima esta mulher transgénero durante a tra-


vessia da fronteira entre o México e os Estados Unidos. Depois, o desespero instala-se.

03 VIETNAME
O CONTRATO
u SINGAPURA PÁGINA 68

| Uma mulher procura segurança financeira para a sua família


assinando um contrato de casamento com um homem na rica cidade de Singapura.

04 MYANMAR
ENCONTRAR a PAZ
u AUSTRÁLIA PÁGINA 72

| Uma mulher rohingya, cuja família fugiu à violência e


à opressão na sua aldeia de Myanmar, saboreia a segurança e a liberdade em Sydney.

05 PAQUISTÃO
NOVAS ESCOLHAS
PÁGINA 76

| Uma jovem mulher nascida na diáspora afegã do


Paquistão deixa a sua casa em busca de mais liberdade através dos estudos.

ZIMBABWE QUIRGUÍZIA IÉMEN


ONLINE

u ÁFRICA DO SUL u RÚSSIA u PAÍSES BAIXOS


A COVID-19 agrava as A xenofobia atormenta Uma fotógrafa fugida do
dificuldades de milhares as mulheres atraídas para Iémen dilacerado pela
de mulheres que mi- a Rússia por promessas guerra sente saudades
gram de países vizinhos de emprego, vindas da família. “Um dia,
para a África do Sul. de países da Ásia Central. voltarei a estar com eles.”

natgeo.com/womenonthemove
SOMÁLIA

01 SOMÁLIA
F OTO G R A FI A S DE NIC HO LE S O BE CKI

Mudar
ou morrer
PERDEU PRATICAMENTE TUDO O QUE
TINHA QUANDO A SECA MATOU OS
SEUS ANIMAIS. AGORA, VÊ O TEMPO
PASSAR NUM CAMPO DE DESLOCADOS.

A s ovelhas foram as primeiras a morrer.


Sem erva para comer, ficaram magras e
apáticas e os seus balidos foram enfra-
quecendo. “Estavam a morrer à nossa volta, como
se tivessem sido envenenadas”, conta Raxma. Pas-
tores na aldeia de Haya, na região central da Soma-
lilândia, um autoproclamado estado da Somália
que ninguém reconhece, Raxma e a sua família
criavam 300 cabras e ovelhas e 20 camelos. Num
espaço de quatro semanas de seca, em 2016, todos
os animais morreram.
Os pastores somalis seminómadas, que contam
a passagem dos anos pela chegada regular das
chuvas, começaram a reparar que, nos últimos 20
anos, as chuvas eram mais erráticas, deixando de
estar alinhadas pelos restantes ritmos da vida. “Se
alguém ainda duvidar das alterações climáticas,
basta vir cá”, resume Sarah Khan, directora da
Subdivisão para os Hargeysa do Alto Comissaria-
do das Nações Unidas para os Refugiados.
Raxma conta-nos que tem cerca de 36 anos.
Durante o seu tempo de vida, as secas graves cos-
tumavam acontecer duas vezes por década, mas
a seca devastadora de 2016 e 2017 destruiu cerca
de 70% da economia pastoril da Somalilândia – a
indústria primária do país.

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Um jovem camelo puxa
pelo hijab de Cadar
Maxamed, em Xinjiinle,
na região setentrional da
Somalilândia. O camelo
recebeu o nome de
Baruud (“duro”) porque
a sua progenitora
sobreviveu a vários anos
de seca, ao contrário da
maior parte dos animais
de Cadar. Os camelos e
outros animais domésti-
cos constituem a base
da riqueza das socieda-
des pastoris da região.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 55
Olhando para o céu,
uma mulher observa
um enxame de
gafanhotos na região
central da Somalilândia.
As condições
climáticas extremas
foram agravadas
pela maior praga de
gafanhotos do deserto
dos últimos 22 anos.
Os rios e lagos alimentados pelas chuvas, ou- Em Haya, o fedor da morte causado por milha-
trora responsáveis pelo sustento de numerosas res de carcaças de animais a apodrecer pairava
gerações de pastores, desapareceram. Em 2016, no ar, mas a família de Raxma conseguiu resistir
os poços da aldeia de Haya secaram pela segun- durante três meses, enquanto a seca de 2016 se
da vez em cinco anos. agravava. As famílias com camelos sobreviventes
A aldeia alugou camiões para trazerem água partilharam o leite com aquelas cujos rebanhos ti-
de outra cidade, mas “sentíamo-nos sedentos”, nham perecido. À medida que a comida escassea-
diz Raxma. Os aldeãos não lavavam a roupa. va, os adultos reservaram as porções maiores para
E, ao contrário do que sucedera no ano de abun- as crianças mais novas. A diarreia generalizou-se,
dância em que Raxma nasceu, não deram nomes conta Raxma, e temeu-se pela vida. Quando os
aos anos maus, na esperança de que esses tempos animais morreram todos, os aldeãos reuniram o
fossem esquecidos. “Antigamente, vendíamos ca- dinheiro disponível e alugaram um camião para
bras e tínhamos carne e manteiga. Não precisáva- serem conduzidos a um campo de PDI (pessoas
mos da ajuda de ninguém. Costumávamos ajudar deslocadas internamente) perto de Burco, na re-
os outros porque tínhamos bens a mais.” gião central da Somalilândia.
Os pastores somalis não medem a riqueza em Segundo estimativas do Banco Mundial, 143
função do que conseguem comprar, mas pela di- milhões de habitantes da África Subsaariana, da
mensão dos rebanhos. A perda de animais equi- Ásia do Sul e da América Latina serão obrigados a
vale a perder a casa, ver o automóvel roubado e a mudar-se dentro dos seus próprios países devido
conta bancária esvaziada – tudo num só dia. às alterações climáticas até 2050.
Raxma encontra-se actualmente num campo, à
semelhança de mais 600 mil habitantes da Soma-
EM CIMA
lilândia, todos dependentes de ajuda humanitá-
Raxma Xasan Maxa- ria para obterem comida e água. Raxma ainda não
muud, de 36 anos, perdeu a esperança. Deu à sua filha mais nova,
encontra-se há três anos nascida já no campo, o nome de Barwaaqo, uma
num campo para desloca-
dos nos arredores de palavra evocativa da prosperidade, abundância e
Burco, na Somalilândia. felicidade vividas quando os rebanhos são saudá-
Tem saudades da veis, as chuvas abundantes e as terras verdejan-
abundância e felicidade
dos seus tempos de tes. Raxma perdeu quase tudo, mas o nome da
pastora, antes de os sua filha exprime a gratidão sentida pelo facto de
rebanhos da família pere- a sobrevivência da sua família ser, em si mesma,
cerem devido à seca.
uma espécie de riqueza. — A. A.
À ESQUERDA

As irmãs Maryan Yusuf,


de 15 anos, e Xaawa

Cerca de seiscentas
Yusuf, de 12, estudam
árabe na residência
da família no Norte

mil pessoas estão


da Somalilândia, sob
o olhar da mãe, Caasha
Jaamac (ao centro), de
40 anos. A família viu-se
obrigada a reconstruir
a vida por duas vezes,
ENCALHADAS
depois de perder tudo:
primeiro, devido à seca
e, mais tarde, devido
na Somalilândia,
a um ciclone. Muitos
somalis encaram os
estudos como forma
dependendo de ajuda
de preparação dos
filhos para um futuro em
que o tradicional modo
humanitária para
de vida pastoril possa
deixar de ser viável. obter comida e água.
MULHERE S EM MIGRAÇÃO 59
MÉXICO

HONDURAS

02 HONDURAS u MÉXICO
F OTOG R A FI A S DE DANIE LLE VILLASANA

A dura
viagem
FUGINDO DO PERIGO, ELA ENFRENTOU O
DESAFIO DA VIAGEM ATÉ À FRONTEIRA ENTRE
OS EUA E O MÉXICO, MAS ENCONTROU ALI
MAIS VIOLÊNCIA E INCERTEZAS.

A ntes de partir de Tapachula, no Méxi-


co, Kataleya Nativi Baca telefonou à
sua irmã do apartamento que partilha-
va com mais duas migrantes da América Central.
“Amanhã, vou estar muito mais longe”, disse.
Kataleya, de 28 anos, uma mulher transgéne-
ro, era tratada como pária na sua terra natal de
San Pedro Sula, nas Honduras. A mãe rejeitou-a.
O irmão espancava-a. Num país onde a espiral de
violência é alimentada pelo machismo, pessoas
homossexuais, bissexuais, transgénero e inter-
sexuais (LGBTQ) são vítimas de assédio, muitas
vezes violento. Uma rede de grupos de direitos
humanos apurou que mais de 1.300 dessas pes-
soas foram assassinadas na América Latina e nas
Caraíbas desde 2014, 86% das quais na Colômbia,
no México e nas Honduras. Para muitas, o desafio
dessa viagem perigosa em busca de asilo nos EUA
é preferível ao perigo sentido no seu país.
Tapachula, uma cidade fronteiriça no Sul do
México, é um local onde acorrem migrantes da
América Central, das Caraíbas e de África. Kata-
leya passou ali quatro meses, enquanto espera-
va que lhe fosse concedido um visto através do
México até Tijuana, na fronteira com os EUA.

60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Kataleya Nativi Baca,
de 28 anos, fugiu
das Honduras depois
de suportar muitos anos
de assédio violento.
Aqui, depois de fazer a
travessia da Guatemala
para o México numa
jangada, prossegue a
viagem até à fronteira
com os EUA.
TRABALHO FOTOGRÁFICO
PARCIALMENTE APOIADO
PELA INTERNATIONAL WOMEN’S
MEDIA FOUNDATION

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 61
Samanta Hilton,
Alexa Smith e Escarle
Lovely descansam
na sua cidade natal
de San Pedro Sula, nas
Honduras. A América
Latina é a região
do mundo mais
perigosa para mulheres
transgénero como elas.
TRABALHO FOTOGRÁFICO
PARCIALMENTE APOIADO
PELA INTERNATIONAL
WOMEN’S MEDIA FOUNDATION
Antes de subir para o autocarro, Kataleya
fez as suas despedidas das pessoas por quem
passava na rua, dos seguranças do seu restau-
rante favorito de comida rápida e das suas com-
panheiras de quarto – estranhas que se haviam
tornado suas amigas, no desafio partilhado
da fuga. “Vou-me finalmente embora de Tapa-
chula”, disse.
Funcionários dos serviços de imigração man-
daram o autocarro parar para verificarem os
documentos dos passageiros – a primeira de 20
paragens e postos de controlo que haveriam de
marcar o ritmo perturbado e angustiado das 72
horas e quatro mil quilómetros seguintes. Mui-
tos migrantes que não conseguem obter os docu-
mentos de trânsito preferem atravessar o México
à boleia ou a pé, de modo a evitarem as autorida-
des e o risco de terem de saltar de um comboio
em andamento. São sujeitos à violência de qua-
drilhas criminosas, agressões sexuais, extorsão,
recrutamento pela criminalidade organizada e
raptos. Kataleya teve sorte: tinha documentos.
Ao terceiro dia de viagem, o fedor da casa de ba-
nho era tão intenso que as pessoas enrolavam len-
ços à volta do nariz sempre que a porta se abria.
As mochilas e as carteiras pareciam rebentar, de
tão carregadas que iam com roupas amarrotadas
e artigos de higiene. Kataleya lavou-se com toa-
lhitas e retocou o batom. Horas depois de parti-
rem de Tijuana, o autocarro irrompeu em grande
agitação. Os migrantes acotovelavam-se contra as
janelas, espreitando uma linha metálica que ser- EM CIMA
penteava pela imensidão de erva amarelada. Era Kataleya permaneceu
a vedação da fronteira com os EUA. quatro meses na cidade
Em Tijuana, Kataleya recebeu o número pelo de Tapachula, no Sul
do México, até obter
qual o seu requerimento de asilo seria avaliado: o visto que lhe permitiu
4.050. Nessa altura, as autoridades estavam a empreender a viagem
avaliar o requerimento número 2.925. Seis meses de autocarro de quatro
mil quilómetros para
mais tarde, e cerca de duas semanas antes da data norte, até à fronteira dos
prevista para a avaliação do seu requerimento, o EUA, em vez de cami-
governo norte-americano encerrou a fronteira nhar ou andar à boleia.
devido à pandemia de COVID-19, suspendendo a À D I R E I TA
apreciação dos pedidos de asilo. Tijuana assinalou o final
Entre a incerteza e a violência na fronteira com da viagem de Kataleya
o México e a rejeição sentida no seu país, Kata- através do México e o
início do seu processo
leya apercebe-se de que a esperança que a impul- como requerente de
sionara a empreender a viagem até aos EUA foi asilo. A espera de um
substituída por um pavor visceral que não con- mês tornou-se perma-
nente para Kataleya
segue evitar. Durante este período, foi assaltada (de T-shirt cor-de-rosa)
e espancada em abrigos para migrantes LGBTQ. quando os EUA
Noutras ocasiões, precisou do apoio financeiro de fecharam a fronteira
a todos os imigrantes
vários homens. O desespero instalou-se. “Da noi- em Março de 2020,
te para o dia, tudo se desmoronou”, diz. — A. A. devido à pandemia.

64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A esperança que
impulsionara Kata-
leya a empreender
a viagem até aos EUA
foi substituída por
um PAVOR que
não consegue evitar.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 65
Transpondo Rastreando as
fronteiras
Canadá
suas deslocações
Um círculo verde indica o
número de mulheres migrantes
Há muito que a guerra, a fome e a procura de em determinado país. Nos EUA,
esse círculo é grande, pois
oportunidades incentivam homens e mulheres
representa 26,4 milhões de
a abandonarem os seus países de origem, AMÉRICA mulheres.
como demonstra este mapa, ilustrativo dos DO NORTE
O enchimento a cor mostra que
milhões de pessoas que viviam no estrangeiro entraram mais mulheres do que
em 2019. Nas últimas duas décadas, as mulheres homens nos EUA.
têm, cada vez mais, viajado sem a companhia de O número de mulheres que
familiares, geralmente para estudar ou trabalhar. saíram do país (2,4 milhões) é
Estados indicado pelo círculo roxo.
Nos seus países de destino, a participação das Unidos
O tom claro significa que
mulheres migrantes na força laboral excede aproximadamente o mesmo
o de mulheres não-migrantes em 15%. número de mulheres e homens
A viagem isolada acarreta riscos de exploração saíram dos EUA.
e de violência de género, mas a decisão de México
partir não é, frequentemente, uma escolha.
Pequenas
Antilhas
DISPARIDADE DE GÉNERO NAS MIGRAÇÕES Honduras
Cinco milhões
Destino Origem de raparigas
e mulheres do
Venezuela†
Mais mulheres do que Mais mulheres do que
homens chegaram homens partiram México vivem no
estrangeiro, 97%
Cerca de metade Cerca de metade das quais nos EUA.
Menos mulheres do Menos mulheres do
que homens chegaram que homens partiram

MIGRANTES DO SEXO FEMININO AMÉRICA


DO SUL
10.000.000 Bolívia
5.000.000 Metade das 1.200 mil
Paraguai
migrantes do sexo
1.000.000 feminino residentes
100.000 na Argentina provêm Argentina
dos vizinhos Bolívia
e Paraguai.
Número de mulheres que vivem fora
do seu país de origem (2019)

DESLOCAÇÃO EM BUSCA DE TRABALHO


Os trabalhadores migrantes representavam quase dois terços dos
271,6 milhões de pessoas que viviam em países estrangeiros em
2019. Quase 48% dos migrantes internacionais eram mulheres.

Migrantes
internacionais*
271,6 milhões
(47,9% mulheres)
Trabalhadores
migrantes MULHERES TRABALHADORAS
164 milhões A maioria das mulheres que deixam
a sua casa, partindo para outro país,
Estudantes
têm 20 a 50 anos de idade.
5,3 milhões
Migrantes femininas internacionais
População mundial feminina

70+ 9,2%
60-69 9,6%
Refugiados
registados† 50-59 12,8%
41,5% 25,9 milhões
Mulheres 40-49 17,4%
(48,3% mulheres)
trabalha- 30-39 20,5%
Crianças
doras
37,7 milhões 20-29 16,5%
Pedidos 10-19 7,9%
de asilo
3,5 milhões 0-9 6,1%

* Categorias não mutuamente exclusivas.


66 † Mais 3,6 milhões de venezuelanos foram deslocados para o estrangeiro, não sendo contabilizados como refugiados.
Na União Europeia, vivem 31 milhões de migrantes do
sexo feminino, quase dois terços dos quais originários
de países fora da UE. Grande parte viaja em busca de
trabalho ou asilo. Dezanove milhões de mulheres
originárias de países da UE vivem no estrangeiro.
Os países com números
quase iguais de origem e
Rússia destino são apresentados
com círculos intersectados.
União
Europeia
Ucrânia
EUROP A
Cazaquistão
Turquia
ÁSIA

Afeganistão China
Síria
Paquistão
Nepal
Bangladesh
Myanmar
(Birmânia)
Egipto
Índia
ÁFR IC A Vietname

Filipinas
Tailândia
Somália

Singapura
A Índia possui o maior
número de cidadãos
residentes no estran-
geiro: 17,5 milhões. As
mulheres e raparigas
representam um terço
desses migrantes, dos
quais 1,3 milhões (a
maior percentagem)
vivem nos EUA.

Os migrantes africanos tendem


a dirigir-se para países vizinhos, OCEÂNIA
especialmente na África Ocidental,
onde 84% dos migrantes do sexo
feminino se deslocaram dentro da região.

DISPARIDADES DE GÉNERO ENTRE OS MIGRANTES


Mulheres
Homens Hiato entre homens e mulheres
0 1 2 3 4 5 6 milhões
Rússia 1,4 milhões Mais mulheres do que homens
China 0,8 Muitas das mulheres que abandonam
Ucrânia 0,6 estes países partem em busca de emprego
ou de estudos. Em muitos países não
Filipinas 0,4 existem barreiras sociais ou jurídicas à
Canadá 0,3 migração com especificidade de género.
Tailândia 0,3
Cazaquistão 0,3
Alemanha 0,3

Nepal -0,5 milhões Menos mulheres do que homens


México -0,8 Em alguns países, existe legislação com especi-
ficidade de género ou normas sociais que
Myanmar -0,9 restringem as viagens das mulheres. Há leis
Egipto -1,0 na Síria, Paquistão e Egipto que dificultam a
Síria -1,4 obtenção de passaporte para as mulheres.
Paquistão -2,0
Bangladesh -2,6
Índia -5,4
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

CHRISTINE FELLENZ E MONICA SERRANO; KELSEY NOWAKOWSKI. FONTES: CLARE MENOZZI, DIVISÃO DE POPULAÇÃO DA UN; OIT; IOM; UNESCO; ACNUR
VIETNAME

SINGAPURA

03 V I E T N A M E u S I N GA P U R A
F OTO G R A FI A S D E AM RITA CH ANDRADAS

O
contrato
EM BUSCA DE SEGURANÇA FINANCEIRA, CORREU
O RISCO DE DEIXAR A SUA CASA, NO VIETNAME,
EM TROCA DE UM CASAMENTO CONTRATADO
COM UM HOMEM DE UM PAÍS MAIS RICO.

N o dia do seu casamento, Ngoc Tuyen


estava rodeada de estranhos. Sentou-
-se num banco do jardim botânico de
Singapura, com um vestido vermelho debruado
a renda preta e uma fita no cabelo bordada com
missangas em forma de margaridas. Conhecera o
noivo há dois meses e a família deste quando ali
chegara, 16 dias antes. O mediador matrimonial
interpretou a cerimónia para vietnamita e selaram
o compromisso com um beijo seco nos lábios. Após
assinar os documentos, o casamento de Tuyen fi-
cou oficializado. “Que bom começo”, disse Tuyen.
“Quero trabalhar o mais depressa possível.”
Tuyen é uma migrante matrimonial – uma de
dezenas de milhares de pessoas originárias do
Vietname na última década. Tudo começa quan-
do os mediadores matrimoniais avisam mulheres
nas aldeias e cidades rurais de que vão receber a Esta mulher vietnamita divorciar-se porque
visita de homens vindos da Coreia do Sul, China, casou-se com um depende do marido
Taiwan e Singapura. Foi assim que Tuyen, de 34 homem singapurense para a renovação
há 11 anos e tem dois do visto de residência,
anos, conheceu Tony Kong, de 45. A sua fotografia filhos dele, mas vive arriscando-se
apareceu publicada no mural de Facebook de um num casamento infeliz. a perder a guarda
mediador, acompanhada por um endereço na ci- Tem medo de dos filhos.
dade de Ho Chi Minh e uma data em que ele viria
ver e conversar com potenciais esposas.

68 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
MULHERE S EM MIGRAÇÃO 69
Os termos eram claros: as mulheres deveriam Tuyen pediu a Tony uma mensalidade de 302
vir preparadas para negociar mensalidades para euros, tendo-lhe ele contraproposto 180 euros, o
si próprias e famílias e os homens deveriam montante que ganharia se tivesse ficado no seu
declarar o seu salário. Em retribuição da sua país a vender comida numa banca de rua. Não é
beleza, juventude e companhia, as mulheres suficiente para sustentar a família, mas ela tem
pretendem estabilidade financeira e, no caso de esperança de conseguir emprego num salão de
Tuyen, a oportunidade de trabalhar e enviar di- manicura, caso a sua licença de trabalho seja
nheiro para casa, para a família. As remessas de aprovada. Poderia assim enviar dinheiro para os
dinheiro são determinantes nas regiões rurais pais e para o seu filho de 5 anos.
pobres do Vietname. Para permanecer e trabalhar em Singapura,
“Não se trata de amor”, explica Mark Lin, casa- uma esposa migrante precisa de apresentar um
menteiro e proprietário da agência matrimonial requerimento para a concessão de um visto de
True Love Vietnam Bride, em Singapura. Mark visitante de longa duração, que é renovado a
sabe que a sua indústria se aproveita da dispari- pedido do marido anualmente ou de dois em
dade económica. Em Singapura, o rendimento dois anos. Se ele não pedir a renovação, a mu-
médio anual é de 75.100 euros; no Vietname, é de lher perde os seus documentos e possivelmente
6.330. Independentemente dos defeitos que impe- a custódia de todos os filhos nascidos do ma-
çam os seus clientes de arranjar mulheres para se trimónio. As mães, que dependem dos maridos
casarem em Singapura, pelo menos têm mais di- para continuarem a viver em Singapura, podem
nheiro do que as suas companheiras vietnamitas. sofrer maus tratos, negligência e infidelidade,
segundo notícias da comunicação social e
relatórios de organizações que disponibilizam
serviços de apoio.
Tuyen, que se exprime rudimentarmente em
mandarim, afirma não saber o que o seu novo
marido pretende de si e, por isso, cozinha para
ele e faz-lhe companhia. Não sabe se, nem quan-
do, conseguirá obter o seu visto de visitante de
EM CIMA longa duração. Isso depende do salário mensal
Ngoc Tuyen e Tony do marido e Tony tem estado desempregado.
Kong convivem no dia
do seu casamento em No entanto, no dia do seu casamento, Tuyen
Singapura, em Novem- mostrou-se disposta a desempenhar o papel
bro de 2019. Um media- de recém-casada. “Estou muito feliz”, disse.
dor matrimonial organi-
zou o seu primeiro E depois, mais uma vez, perguntou ao intérpre-
encontro, no Vietname, te quando lhe seria permitido trabalhar. — A. A.
dois meses antes.

À ESQUERDA

Para trabalharem em
A Agência Matrimonial
Mayle é uma das poucas
que ainda restam em

Singapura, as migrantes
Singapura, depois das
medidas repressivas
tomadas pelo Estado
contra os mediadores,
por delitos e esquemas
financeiros relacionados
DEPENDEM
com imigração e tráfico
de seres humanos.
Muitos mediadores
dos maridos para
transferiram os seus
serviços para a Internet,
onde as jovens mulheres
a renovação dos
podem tentar atrair a
atenção masculina. seus vistos.
MULHERE S EM MIGRAÇÃO 71
MYANMAR

AUSTRÁLIA

04 M YA N M A R u AU S T R Á L I A
F OTO G RA FI A S D E M RID ULA AM IN

Encontrar
a paz
DEPOIS DE FUGIR A PERSEGUIÇÕES RELIGIOSAS
E DE SUPORTAR UMA ATRIBULADA VIAGEM
DE BARCO, ELA E A FAMÍLIA ENCONTRARAM
LIBERDADE E APOIO NUM NOVO LAR.

A princípio, Sajeda Bahadurmia, então


com 26 anos, não sabia se os homens
fardados iriam fazer-lhe mal. Corria o
ano de 2013 e ela iria passar 14 dias, entre 23 de
Abril e 6 de Maio, com o marido e os quatro filhos
numa viagem de barco através do mar de Timor,
partindo de uma cidade portuária na Indonésia
rumo a Darwin, na ponta norte da Austrália.
O navio transportava mais de cem migrantes,
incluindo muitos rohingya, como eles, que fugiam
à opressão no Myanmar, bem como dezenas de
pessoas do Bangladesh e duas da Somália. Sem-
pre que uma onda forte rebentava contra o casco,
ela apertava o filho de 1 ano contra o peito, ao ver
os tubarões nas águas escuras. A filha Asma, então
com 10 anos, perguntou-lhe: “Vamos morrer?”
Quando a Marinha de Guerra Australiana os
recolheu, ela não sabia se os marinheiros iriam
espancá-la, insultá-la ou apalpá-la, como os mili-
tares de Myanmar tinham feito no seu país. Mas
foram simpáticos, conta. Respeitaram os costu-
mes muçulmanos e os exames sanitários às re-
fugiadas foram feitos por mulheres. Em seguida,
as migrantes foram conduzidas a um centro de
detenção em Darwin.

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Sajeda Bahadurmia,
de 32 anos, abraça a
mais velha dos seus seis
filhos, Asma, de 16 anos,
numa praia perto de
Sydney. Sajeda veste
um xaile branco que a
mãe lhe ofereceu como
amuleto de protecção
há seis anos, antes de
ela iniciar a sua terrível
viagem de três meses.
Muçulmanos rohingya,
fugiram às perseguições
em Myanmar, mas o
refúgio encontrado
na Austrália ainda é
incerto, uma vez que
não beneficiam de
residência permanente.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 73
Na Austrália, Sajeda
ouviu as pessoas
DIZENDO
o que pensavam e
sentiu-se à vontade
para fazer o mesmo.

74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Há muito que o governo de Myanmar persegue
os rohingya, uma minoria étnica muçulmana. A
violência começou em 2012, levando Sajeda e a
sua família a fugirem. Em finais de 2017, cerca de
um milhão de rohingya já tinham escapado para
o vizinho Bangladesh e para outros países.
“Não podemos confiar na noite”, recorda
Asma, hoje com 16 anos, referindo-se ao tem-
po em que os militares lhes entravam pela casa
adentro. Violavam as mulheres e arrastavam os
homens para a rua, detendo-os ou obrigando-os
a trabalhos forçados. O governo de Myanmar
proibiu o uso da palavra “rohingya”.
Durante os três meses que passaram no cen-
tro de detenção, Asma e Sajeda sentiram-se
ofendidas por as autoridades as tratarem por
números, consoante o navio em que tinham
chegado: ROM006 e ROM007. Mesmo assim, ra-
pidamente se adaptaram à sua nova vida. Quan-
do começou a frequentar a escola pública, Asma
não sabia falar inglês, mas sorria e ria à mesa
com as suas colegas australianas enquanto co-
miam pão com salsicha.
“Fiquei obcecada com aquela comida em
Darwin”, diz Asma.
Por fim, Sajeda, hoje com 32 anos, e a família
foram reinstaladas em Sydney, ao abrigo de um
programa australiano que lhes pagou as passa-
EM CIMA
gens de avião e subsidiou as suas despesas de
Noor Asma, uma sustento durante os primeiros meses. Na qua-
mulher rohingya de lidade de refugiados, tinham direito a receber
Myanmar, durante uma ajudas do Estado. Sajeda descobriu o ketchup e
aula de inglês em
Sydney, segura ao colo perdeu-se de amores pelo churrasco australia-
o bebé recém-nascido. no. Ofereceu-se como voluntária para trabalhar
A maior parte das numa cozinha comunitária, arranjou um traba-
mulheres rohingya da
turma chegou ali de lho a tempo parcial na escola dos filhos e apren-
barco entre 2013 e deu a conduzir. A família mudou-se para uma
2016, fugindo da casa nova em Lakemba, um subúrbio de Sydney
violência.
onde se falava rohingya nas ruas. Viu a alegria
À ESQUERDA estampada nos olhos dos filhos quando abriram
Sajeda, ao centro, a porta da sua primeira casa.
manifesta-se para “A palavra ‘liberdade’ surgiu, vinda não sei
exigir direitos para os
refugiados na Austrália, muito bem de onde”, diz Asma. “Estava escri-
país onde muitos vivem to que era aqui que eu deveria estar. Esse sen-
com vistos temporários timento de pertença inundava-me por dentro.”
durante longos anos,
sem residência Em Myanmar, quem dizia o que pensava em voz
permanente, e outros alta arriscava-se a ser morto. Na Austrália, Sa-
são retidos em centros jeda ouviu as pessoas a exprimirem em público
de detenção. “Quero
que as nossas mulhe- os seus pensamentos e ela fez o mesmo. No ex-
res, tal como as outras terior da mesquita de Lakemba, vendo os mu-
mulheres, tenham çulmanos espalharem-se pela rua após a oração,
oportunidades”, diz.
“Quero que todos ela maravilha-se com o que vê: “É a primeira vez
possam voar como eu.” que vejo algo assim.” — A. A.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 75
PAQUISTÃO

05 PAQ U I S TÃO
F OTO G R A FI A S DE SAIY NA BAS H IR

Novas
escolhas
DEIXANDO A VIOLÊNCIA DA SUA CIDADE
NATAL, OPTARAM POR PROSSEGUIR OS
ESTUDOS E DESCOBRIRAM UMA CULTURA
MAIS ABERTA QUE INSPIRAVA A CRIATIVIDADE.

A cidade de Quetta, no Paquistão, encon-


tra-se rodeada de altas montanhas co-
bertas de neve, mas Farheen, de 22 anos,
nunca se aventurou lá. Não frequentava os baza-
res da cidade, fazia poucos amigos e evitava os ra-
pazes. Gosta muito de dançar, mas apenas diante
do espelho, em casa: na sua cultura, as mulheres
podem ser envergonhadas por dançarem. “Não
sou conservadora”, diz. “Tenho é muito medo.”
Farheen, que tem apenas um nome, é uma ha-
zara. Pertence a um grupo étnico afegão e a uma
minoria religiosa xiita que há mais de um sécu-
lo é perseguida, discriminada e massacrada por
grupos étnicos rivais e pelos talibã, entre outros
extremistas religiosos. A pobreza e as vagas suces-
sivas de guerra e violência no Afeganistão empur-
raram muitos hazara para longe do país.
Na década de 1960, os avós de Farheen atraves-
saram a fronteira com o Paquistão e instalaram-
-se em Quetta, cidade onde vivem actualmente
cerca de meio milhão de hazara. Desde 2003,
centenas, talvez mesmo milhares, de hazara em
Quetta têm sido assassinados durante ataques
e atentados à bomba. A cultura hazara pode ser
brutalmente patriarcal.

76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Bibi Sabar, de 22 anos, à
esquerda, tira um auto-
-retrato com uma amiga,
no exterior da Mesquita
Faisal, em Islamabad.
Bibi mudou-se para
Islamabad para estudar
Tecnologias de Informa-
ção, incentivada pela sua
família porque a violên-
cia contra raparigas de
etnia hazara, como ela,
na sua cidade natal de
Quetta tornava perigosa
a universidade local.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 77
Em Islamabad, Bibi
apanha um autocarro
com colegas da
universidade para irem
a um centro comercial.
Este passeio teria sido
raro em Quetta, onde
a violência perpetrada
contra as muçulmanas
xiitas hazara por
militantes sunitas
gera receios de sair
dos complexos
residenciais murados.
“Falam em homicídios por honra com imensa
ligeireza”, diz Farheen, referindo-se à prática de
os homens matarem as mulheres que crêem ter
envergonhado a família. “Isso assusta-me.”
Farheen dá a seguinte explicação: “Quando
uma pessoa parte para Quetta, a sua mente co-
meça a fechar-se. Tal como a mente, o coração.”
No entanto, quando alguém se afasta de Quetta,
a mente e o coração abrem-se. Os hazara que se
irritam com os rigores da vida em Quetta podem
decidir que, para terem um futuro, precisam de
migrar para países como a Austrália, o Irão e a
Turquia. Para muitos jovens hazara residentes em
Quetta, os estudos têm sido o seu caminho rumo
a uma nova confiança e à liberdade.
Segundo a interpretação hazara dos valores is-
lâmicos, os estudos são socialmente desejáveis e
um imperativo religioso. Constituem um objecti-
vo para toda a vida, quer para homens quer para
mulheres. Para Farheen, isso implicou deixar
Quetta, em 2017, para estudar literatura na Uni-
versidade Nacional de Línguas Modernas em Isla-
mabad, a capital do Paquistão.
Uma vez ali chegada, Farheen diz que os seus
medos se atenuaram. Começou a viajar de auto-
carro para as aulas e a frequentar locais públicos
cheios de movimento. Ficou com o espírito mais
aberto. Quando pela primeira vez ouviu falar em
K-pop, o género musical oriundo da Coreia do Sul, EM CIMA
desvalorizou-o. “Os rapazes pareciam raparigas e Haleema, de 22 anos, à
usavam maquilhagem”, diz. Mas as canções, fá- esquerda, uma rapariga
ceis de memorizar, chamaram-lhe a atenção. Co- hazara de Quetta, que
só tem um nome,
meçou a ouvir atentamente as letras e, pouco de- conversa com os
pois, estava viciada. Agora diz sentir-se mal pelo colegas durante uma
seu juízo desfavorável. “A K-pop ajudou-me muito aula de poesia. Para
financiar o curso
a aceitar novas ideias.” universitário em
Farheen interessou-se pela cultura coreana. Islamabad, Haleema
Estudou o idioma e praticou danças de K-pop. trabalha como educa-
dora de infância. Planeia
As bandas interpretavam canções sobre homofo- tornar-se professora.
bia, saúde mental e a dificuldade de ser adoles-
cente, o que a ajudou a emergir de vários anos de À D I R E I TA

ansiedade e depressão. Outra rapariga hazara


de Quetta, Farheen,
Ela vê a sua incursão até Islamabad como um de 22 anos, estuda
primeiro passo no sentido de descobrir um mun- literatura inglesa em
do para lá dos limites de Quetta. Depois de se li- Islamabad. Faz os
trabalhos de casa
cenciar, gostaria de visitar o Canadá, estudar dan- num hostel para
ça nos EUA ou fazer uma viagem pelo Afeganistão, mulheres perto da sua
o seu país natal. Consegue imaginar-se a viver na universidade. Sobre
a cabeceira da cama,
Coreia do Sul. Acima de tudo, Farheen segue um vêem-se fotografias
rumo que a libertará do seu passado e do peso da das estrelas de K-pop
história de perseguição da sua cultura. Para onde a cujas canções ela
atribui o mérito de
quer ir? Farheen diz: “Para um sítio onde ninguém terem tornado a sua
me conheça.” — A. A. mente mais aberta.

80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
As hazara vivem em
receio constante da
violência em Quetta.
São frequentemente
obrigadas a decidir
que, para terem
um FUTURO
e prosseguirem os
estudos, têm de partir.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO 81
Vista de frente, a
cabeça é impressionan-
te, mas a vespa-asiática
não é mais agressiva do
que as outras vespas
sociais ibéricas. Só ataca
se sentir que a colónia
está ameaçada.
Ninguém deve aproximar-
-se a menos de cinco
metros dos seus ninhos.
NICOLAS REUSENS/ AGETTY IMAGES

A
VESPA
ASIÁTICA
Chegou a França vinda da China em 2004,
mas instalou-se em grande parte da
Europa, incluindo a Península Ibérica.
Técnicos e cientistas discutem como reagir.

TEXTO DE EVA VAN DEN BERG


Uma Vespa velutina
abate uma abelha-
-melífera.
As vespas adultas
são vegetarianas, mas
caçam invertebrados
para alimentar as larvas.
As abelhas-melíferas
são uma presa tão
abundante e fácil
para elas como as
ovelhas para os lobos.
PASCAL GOETGHELUCK/ AGE FOTOSTOCK
Graças ao relato pormenorizado
dos cientistas do Museu Nacional
de História Natural de Paris,
a rota da invasão da vespa-asiática
é conhecida em pormenor.
86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Os ninhos das vespas-
-asiáticas são sempre
construídos por uma
rainha durante a sua
breve etapa solitária,
durante a qual funda
um pequeno ninho
embrionário para
a primeira postura
de ovos. À medida
que vão emergindo,
as obreiras dedicam-se
a ampliar o ninho, caçar
e alimentar as larvas,
enquanto a rainha se
preocupa exclusiva-
mente com a postura.

O primeiro testemunho oficial remonta ao dia especificamente um exemplar da espécie Vespa


1 de Novembro de 2005, quando Jean-Pierre Bou- velutina. A cerca de 50 quilómetros de Nérac,
guet, entomólogo amador, avistou no seu jardim, outro cidadão francês observava, há meses, o de-
em Nérac, na Aquitânia, uma estranha vespa su- senvolvimento de um grande ninho debaixo do
gando a doce polpa de um dióspiro maduro, fruto alpendre do seu terraço. Em Novembro, devido
que atrai um elevado número de himenópteros, a uma infiltração de água, o ninho descolou-se
sobretudo vespas e vespões, no Outono. Bouguet e caiu no solo, com alguns exemplares mortos
tinha a certeza de que nunca vira outra na zona. no interior. Estes foram levados para o MNHN a
Seria um insecto mutante? Ou talvez uma espé- fim de serem identificados: eram todos machos
cie invasora? Para averiguar, contactou Jean Ha- da mesma vespa-asiática identificada em Nérac,
xaire, entomólogo-adjunto do Museu Nacional ficando assim comprovada a primeira nidificação
de História Natural de Paris (MNHN). Embora a da espécie observada em França. Em 2006, Jean
sua especialidade fossem os lepidópteros, Haxai- Haxaire e os seus colaboradores publicaram a
re identificou o animal, comparando imagens da descoberta no jornal da Sociedade Entomológica
Internet com exemplares recolhidos em armadi- de França, confirmando que a espécie invasora já
lhas para coleópteros. se instalara no país. Nessa data, contabilizavam-
Depois de confirmar com vários especialistas, -se 200 ninhos em 12 departamentos e, desde en-
ficou claro: tratava-se de uma vespa-asiática, mais tão, a sua expansão tem sido imparável.

IVANVIEITO/ GETTY IMAGES A V E S PA-A S I ÁT I C A 87


Um trabalhador controla
vespeiros numa
exploração agrícola
no condado de
Wangmo, no Sudoeste
da província chinesa
de Guizhou. Tanto as
larvas como as pupas
das vespas, altamente
proteicas, são habitual-
mente consumidas fritas.

88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Na gastronomia chinesa, as larvas de algumas vespas são um manjar, incluindo
as da vespa-asiática. Além disso, os ninhos são usados para fins medicinais.

BARCROFT MEDIA/GETTY IMAGES A V E S PA-A S I ÁT I C A 89


A VIAGEM DA VESPA na Primavera, feito com fibras de madeira masti-
gada. Nesse ninho embrionário, a rainha fecunda-
Tudo indica que uma única rainha fecundada da (se não o estivesse, apenas nasceriam machos
tenha desembarcado em 2004 no porto de
Bordéus, oculta no interior de uma peça de cerâmica. dos seus ovos) deposita a sua primeira postura e
Dezasseis anos mais tarde, colonizou grande parte cuida dela até emergir o primeiro grupo de obrei-
do território europeu, onde se fixou em França, ras adultas. “Estas ampliam o ninho embrionário
Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Luxemburgo,
Bélgica, Países Baixos e Suíça. No Reino Unido, os e alimentam as larvas para que a rainha se dedi-
ninhos detectados foram destruídos, mas a espécie que exclusivamente à produção de ovos. A colónia
já deverá estar disseminada pelo Sul das ilhas. iniciada por uma única rainha poderá produzir 15
mil indivíduos entre Abril e Novembro. No Outo-
no, um ninho poderá acolher 2.000 obreiras ca-
pazes de produzir mais de mil futuras rainhas e
machos”, explica Claire Villemant, conservadora
da colecção de himenópteros do MNHN.
No final do Verão, constroem celas para criar
fêmeas e machos férteis, que abandonarão o
Presença da
vespa-asiática na ninho no Outono, quando a vida da rainha já se
Europa em 2020 aproxima do fim, iniciando os voos de acasala-
Permanente
mento. As fêmeas, poliândricas, acasalarão com
Esporádica
vários machos. Em seguida, a maioria dos exem-
plares morrerá com o despontar do Inverno, ex-
cepto as futuras rainhas. Estas empanturram-se
de alimentos ricos em açúcares antes de entra-
rem em hibernação, escondidas nalgum recanto
e, na Primavera, as que tiverem sobrevivido ao
frio (estima-se que apenas 5% do total) saem em
busca de um novo local para reiniciar o seu ciclo
vital que pode ter lugar até 50 quilómetros do
vespeiro onde nasceram, o qual, uma vez aban-
donado, se irá biodegradando.

Mas como chegara esta vespa a França, vinda da sua primeira incursão
H OJ E , 1 6 A N O S D E P O I S
dos seus territórios de origem na Ásia? As pri- em território francês, esta vespa instalou-se confor-
meiras hipóteses foram apresentadas quando o tavelmente na Europa. Além de França, fixou-se na
MNHN conseguiu contactar um horticultor que Alemanha, na Bélgica, no Luxemburgo, nos Países
assegurou ter visto o insecto em 2004 nessa mes- Baixos, na Suíça, em Itália e na Península Ibérica.
ma região. Era possível, disse, que tivesse che- É possível distingui-la por possuir o abdómen negro
gado ao interior das peças de cerâmica chinesa e exibir uma fina linha amarela no início deste e
que importara, a bordo de um cargueiro chinês uma ampla faixa cor de laranja no quarto segmento.
que atracou no porto de Bordéus. Análises mo- As rainhas medem 3,5 centímetros na Primavera.
leculares realizadas pelo CNRS confirmaram as Os machos medem 3 centímetros e as obreiras, 2,5
suspeitas: era a Vespa velutina, da subespécie ni- centímetros. Em Espanha, o primeiro a avistá-las,
grithorax. Outros estudos realizados em França a em 2010, foi o entomólogo Santiago Pagola, em
partir de 2007 revelaram muitos aspectos desco- Amaiur, na comunidade de Navarra. Ele encontrou
nhecidos desta vespa. Conseguiram até determi- uma vespa morta no solo e entrou em contacto com
nar, através de complexas análises genéticas, que Leopoldo Castro. Este especialista em himenópteros
a invasão fora, possivelmente, desencadeada por já previra a entrada iminente do invasor no País
uma única rainha fecundada por um ou dois ma- Basco, a partir de França, e acompanhara, ao por-
chos, proveniente de uma área situada entre as menor, a sua evolução naquele território. Actual-
províncias chinesas de Zhejiang e Jiangsu. mente, a vespa-asiática “está presente de forma
Como muitas outras vespas sociais, a Vespa ve- permanente em zonas da Galiza, Astúrias, Cantá-
lutina gera colónias anuais estabelecidas por uma bria, País Basco, Navarra, La Rioja, Castela e Leão e
única rainha depois de fundar um pequeno ninho Catalunha. De forma esporádica, também foi

90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C MAPA: NGM-E. FONTE: LEOPOLDO CASTRO


Nos ninhos de bútio-vespeiro, os investigadores nha-fundadora e previne-se o nascimento dos
encontraram numerosos restos de vespeiros de
vespa-asiática. Tudo indica que o insecto seja
milhares de obreiras que a sua colónia vai ter.
parte da dieta desta ave de rapina florestal. O problema é que a gestão da situação da vespa-
-asiática tem sido muito diferente e a incapaci-
dade de compreensão e/ou implementação pelas
identificada em certas zonas de Aragão. Esteve pre- autoridades da captura preventiva de fundado-
sente nas ilhas Baleares entre 2015 e 2018, mas con- ras na Primavera é um enigma, tendo em conta
seguiram erradicá-la, e foi avistada na Extremadura que esta abordagem é advogada desde 2015. Não
há uns anos, mas não voltaram a vê-la”, diz. creio que exista, desta forma, hipótese de elimi-
Em Setembro de 2011, dois investigadores por- nar a vespa-asiática em Portugal.”
tugueses confirmaram em Viana do Castelo o que
também já se temia na comunidade de entomólo- consumam
E M B O R A O S V E S P Í D E O S A D U LT O S
gos e apicultores portugueses: era uma questão de quase exclusivamente alimentos de origem vegetal
tempo até a vespa-asiática ser detectada em terri- ricos em hidratos de carbono, as larvas precisam de
tório português. José Manuel Grosso-Silva, cura- proteínas de origem animal para se desenvolverem.
dor das colecções entomológicas do Museu de E essas proteínas são fornecidas pelos adultos, sob
História Natural e da Ciência da Universidade do a forma de um puré constituído por invertebrados
Porto, e Miguel Maia, da Associação Apícola Entre e carcaças de todos os tipos. Entre esses invertebra-
Minho e Lima, de Vila Nova de Cerveira, confir- dos destaca-se a abelha melífera (Apis mellifera),
maram a presença deste insecto invasor em quatro uma presa fácil e superabundante para a vespa.
apiários do concelho minhoto, publicando a sua Por conseguinte, o vespídeo causa baixas signi-
descoberta na revista “Arquivos Entomolóxicos”, ficativas entre os insectos autóctones, mas tam-
no início do ano seguinte. bém afecta as colheitas de fruta e cria mais uma
Nos anos posteriores, perdeu-se uma oportu- dificuldade para a apicultura, já afectada por di-
nidade importante para conter a progressão da versos problemas. Pode haver mil obreiras opera-
espécie invasora. “Teria sido possível atrasar a cionais em cada vespeiro, gerando grande quan-
progressão da espécie se as autoridades tives- tidade de néctar. As vespas atacam furiosamente
sem investido na captura das rainhas fundado- as colmeias das regiões vizinhas. Esses ataques
ras na Primavera, pois cada fundadora captura- causam baixas e provocam alterações comporta-
da equivale a uma futura colónia a menos”, diz mentais na colmeia que podem até causar o co-
José Manuel Grosso-Silva. “Mata-se uma rai- lapso de colónias inteiras.

ARTUR TABOR/NPL/CORDON PRESS A V E S PA-A S I ÁT I C A 91


A vespa-asiática invadiu o nosso território da mesma maneira
que algumas vespas europeias colonizaram outros continentes.

Para a Vespa velutina, as abelhas-melíferas, vespeiro e reagem de forma mais rápida ao que
domesticadas há séculos e omnipresentes na entendem como ameaça, aumentando a probabi-
Península Ibérica, são como as ovelhas para os lidade de picadas”, diz o entomólogo português.
mamíferos predadores: saborosas e desajeitadas. O ciclo de vida da espécie tem sido abundante-
Costumam atacá-las quando regressam do campo mente descrito em França, mas existem diferenças
carregadas de néctar e pólen. Nesse momento são significativas face ao que sucede em Portugal, sobre-
a presa ideal: as vespas-asiáticas caçam-nas e, se- tudo porque um Inverno menos rigoroso pode não
gurando-se num ramo, desfazem-nas até ficarem matar todas as obreiras da colónia, permitindo que
com a parte mais nutritiva, o tórax, que trituram o vespeiro permaneça activo até à Primavera
para as larvas ávidas. “O pânico destes ataques seguinte. “Mas os vespeiros nunca arrancam para
leva as abelhas a deixarem de sair e a optarem por um segundo ano de vida”, esclarece Grosso-Silva.
se alimentar das reservas. No entanto, se isso se Investigadores da Universidade de Alcalá, lide-
prolongar demasiado, quando o Inverno chegar rados pelo ecologista Salvador Rebollo, estudam,
não terão despensa e morrerão”, explica Narcís Vi- na Galiza, o potencial de uma ave de rapina: o bú-
cens, técnico ambiental de Girona, em Espanha. tio-vespeiro, um dos poucos predadores naturais
Não é curiosamente o caso de uma das abelhas dos ninhos de vespas na Península Ibérica. “Até
melíferas da Ásia, a Apis cerana, que sabe defen- 2012, ano em que a vespa-asiática apareceu na Ga-
der-se destes ferozes himenópteros. Quando uma liza, a população reprodutora do bútio-vespeiro
vespa se aproxima da colmeia da Apis cerana, as na nossa área de estudo, as rias Baixas, era espo-
abelhas formam um grupo muito compacto à sua rádica. Contudo, segundo os nossos dados, mul-
volta e batem as asas até aumentarem a tempe- tiplicou-se por dois ou três desde a chegada deste
ratura no interior dessa massa viva: uma bola de insecto”, explica. Os seus resultados provêm da
calor que alcança 45°C, a temperatura máxima su- análise dos restos de presas e fragmentos de favos
portada pela Vespa velutina, que acaba por morrer. de vespeiros localizados no ninho e imediações, e
da análise do registo fotográfico das câmaras ins-
causado pela
PA R A E N F R E N TA R O P R O B L E M A taladas. “Em todos os ninhos de bútio-vespeiro
Vespa velutina, as autoridades dos países afectados estudados, apareceram restos de vespa-asiática,
prepararam conferências e panfletos para divulga- o que demonstra que é uma parte importante da
ção, alertaram as populações, colaboraram com dieta desta ave de rapina e poderá ser um potente
investigadores para proteger as colmeias (utili- aliado no controlo biológico da velutina”, conclui.
zando redes e harpas eléctricas que dificultam a Armadilhas, inserção de biocidas com drones ou
entrada destas vespas nas colmeias). O Serviço de armas, injecção de ar quente, predação e controlo
Protecção da Natureza e do Ambiente da Guarda biológico, destruição de ninhos, equipamentos de-
Nacional Republicana (SEPNA-GNR), as juntas de fensivos para colmeias… São muitos os métodos
freguesia e o Instituto da Conservação da Natureza testados para lutar contra a vespa, mas é consen-
e das Florestas têm registado um número crescente sual que esta espécie veio para ficar. Os especia-
de avistamentos de vespeiros em Portugal. A popu- listas sublinham que a gestão desta invasora deve
lação tem sido alertada para não se aproximar ser acompanhada de medidas que permitam uma
delas. “As vespas-asiáticas têm um comportamento regulação das colmeias. Catalogadas como gado,
mais defensivo e protector das colónias do que as as abelhas melíferas são criadas aos milhões e são
nossas vespas. Surgem mais animais a defender o tantas que roubam o lugar às restantes abelhas (da-
dos recentes apontam para a existência de 1.097 es-
pécies diferentes na fauna ibero-balear) e aos ou-
Um investigador segura um vespeiro tros polinizadores silvestres, sobre os quais não se
de Vespa velutina no Instituto de Investigação fala. Os planos implementados para a vespa-asiá-
de Biologia de Insectos (IRBio), em França.
Estes ninhos podem atingir 80 centímetros de tica e para as abelhas melíferas deverão ter igual-
diâmetro e um metro de altura. mente em conta estas importantes espécies. j

AFP/GETTY IMAGES A V E S PA-A S I ÁT I C A 93


D IÁRIO DE UM A I LU STR ADOR A

94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
LISBOA A AGUARELA
I L U S T R A Ç Õ E S D E I N N A K O R N E E VA

Pelo pincel da artista


Inna Korneeva, a
capital portuguesa fica
gravada em pranchas
repletas de vida e arte,
captando a essência
e cores de uma cidade
cosmopolita.
N OTAS | DIÁRIO DE UMA ILUSTRADORA

Casas de telha laranja, labirintos estreitos de ruas e becos, roupa a secar ao sol, gaivotas grasnando, o céu
sempre azul, ou pescadores a bordo das suas embarcações. A artista russa encontrou inspiração nestes
96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
quadros do quotidiano lisboeta. “Nunca vi um céu tão azul como o de Lisboa”, conta. “É um mundo tão
diferente do que eu conheço que procurei registá-lo nas minhas ilustrações.”
LISBOA A AGUARELA 97
N OTAS | DIÁRIO DE UMA ILUSTRADORA

“Gostava que as pessoas não vivessem sempre a correr”, explica a ilustradora. “Muitas coisas à nossa volta
passam despercebidas porque estamos sempre com pressa.” Nas suas representações, Inna desenha o que
viu e a fez sorrir, como uma mulher que tricota no comboio com a Ponte 25 de Abril no horizonte ou um
vendedor de castanhas na Baixa de Lisboa.

98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A Lisboa destas aguarelas é uma cidade de becos e ruas estreitas, de prédios baixos e garridos, de
fachadas nem sempre bem conservadas, mas onde fervilha o dia-a-dia da cidade e dos seus habitantes.
“Adorei Alfama”, explica a autora. “A partir daí, já não quis correr para ver mais nada. Satisfez-me percorrer
vagarosamente as ruas sinuosas e observar as pessoas no seu quotidiano.”

LISBOA A AGUARELA 99
D I Á R I O D E U M A I L U S T R A D O R A

POR TRÁS DAS PRANCHAS


N S F I L M E S D E A L A I N TA N N E R , L I S B OA É Q U A S E B R A N C A . N A S
T E L A S D E A R PA D S Z E N E S , A C A P I TA L TO R N A- S E A M A R E L A .
Q U A I S S ÃO A F I N A L O S TO N S D O M I N A N T E S D E L I S B OA?

DESDE PEQUENA, InnaKorneevasempre com o pincel as memórias do que


adorou desenhar. A mãe comprava-lhe mais gostou em cada viagem.
álbuns com reproduções de trabalhos Em 2012, Inna visitou Lisboa e ficou
de artistas, avidamente estudados pela cativada com os bairros antigos. Percor-
criança nascida em 1978 na pequena reu as cidades com a lentidão e carinho
cidade de Sosnovoborsk, na região que muitos lisboetas não dedicam à
de Penza (Rússia). Ivan Shiskin, Vasily sua cidade, apressados pelas urgências
Perov e Vincent van Gogh foram as do quotidiano. Desenhou muito nos
influênciasmaisacutilantesdessaépoca. meses seguintes. Com a preocupação
A artista não chegou a seguir um de nunca alterar a arquitectura e de
curso de Artes e especializou-se em manter a fidelidade dos esboços face
engenharia florestal. Acabou, porém, à realidade observada, Inna regressou
por concretizar a sua vocação mais à Rússia e começou a recuperar, a seis
tarde. “O meu trabalho actualmente mil quilómetros de distância, a cidade
é na área de arquitectura paisagística. retida na sua memória.
Continuo a desenhar, mas desenho Desenhando em aguarela “porque o
jardins”, brinca. computador, com frequência, contradiz
Viajante regular, Inna é também o que foi desenhado no papel”, Inna
fotógrafa e ilustradora. Mantém sempre voltou a Portugal noutras ocasiões,
consigo um diário de viajante, ano- enfeitiçada pela luz dos céus de Lis-
tando as impressões sobre cada local boa. E foi na capital portuguesa que
visitado e produzindo ali esboços rápi- concretizou outro sonho, apreciando
dos das formas e silhuetas que mais pela primeira vez quadros originais
captaram a sua atenção. Fotografa tudo de Van Gogh. “Tudo acontece por um
e mais tarde, já na Rússia, recupera motivo”, diz.

A essência de uma cidade pode não estar escondida nos seus monumentos, mostrando-se em
actos tão comuns como uma refeição num restaurante popular.

100 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
INSTINTO BÁSICO | E X P L O R E

há mais de 30 anos, Uldis Roze


O B S E RVA D O R D E P O RC O S - E S P I N H O S
não faz ideia de quantas vezes já ouviu a mesma piada. “Como se

AMOR...
reproduzem os porcos-espinhos? Com muito cuidado.” A resposta
está “correcta, mas não é muito esclarecedora”, diz este professor
emérito de Biologia no Queens College de Nova Iorque. Na reali-

PICANTE
dade, o ritual de acasalamento do Erethizon dorsatum é bastante
elaborado, prolongado e... húmido.
A época anual de acasalamento da espécie acontece no início do

ENTRE OS Outono. Na árvore escolhida, a fêmea sinaliza que está prestes a


procriar, segregando uma substância odorífera. Atraídos pelo cheiro,
os machos lutam entre si nos ramos das árvores e no solo. Aquele

PORCOS- que ganhar a disputa conquista também direitos de acasalamento,


mas a sedução ainda não está completa.
Para induzir o cio na fêmea, o macho esguicha urina para a fêmea:

-ESPINHOS algumas gotas de cada vez. A urina é “impulsionada a uma velocidade


tão elevada que, mesmo que um macho esteja distante da fêmea, a
urina pode alcançá-la “, diz Uldis Roze. O macho continua assim, “em
projecções repetidas ao longo de muitas horas”, até a fêmea entrar
FOTOGRAFIA DE
no “espírito”. Por norma, os dois descem da árvore para acasalar.
J O E L SA RTO R E Os espinhos podem tornar o acto de montar a fêmea numa suges-
tão... espinhosa. Porém, quando esta está pronta, curva a cauda por
cima do lombo coberto de espinhos de forma a que a parte de baixo
da cauda sem espinhos fique virada para cima. O macho pode deste
modo colocar as patas nessa superfície e passar à acção.
Sete meses depois, a fêmea dará à luz uma única ninhada. A cria
nasce já com todos os espinhos, mas também embrulhada no saco
amniótico para facilitar a chegada ao mundo. — PAT R I C I A E D M O N D S

ESTE PORCO-ESPINHO-NORTE-AMERICANO FOI FOTOGRAFADO NO ZOOLÓGICO DAS GRANDES PLANÍCIES EM SIOUX FALL, DAKOTA DO NORTE (EUA).
N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Na Rota do Tráfico
E S T R E I A : 1 3 D E F E V E R E I R O, À S 2 2 H 3 0 .
TO D O S O S S Á B A D O S .

No dia 13 de Fevereiro, o canal National Geographic


apresenta a nova série “Na Rota do Tráfico com
Mariana van Zeller”, apresentada pela jornalista
portuguesa, Mariana van Zeller, vencedora de um
Peabody Award em 2010, pelo documentário “The
OxyContin Express”. Nesta série, a jornalista explora
Tesouros do Egipto 2 o funcionamento dos mercados negros mais peri-
gosos do mundo, conquistando a confiança e
E S T R E I A : 1 D E F E V E R E I R O, À S 2 3 H
entrando nas redes de quem compra e vende bens
Acompanhando os egiptólogos que escavam e serviços interditos. Em cada episódio, Mariana
no vale dos Reis, no Egipto, a segunda explora diferentes aspectos do tráfico clandestino
temporada desta série dá conta das – desde os mercados de drogas aos de armas ou de
descobertas e contratempos vividos por quem
vida selvagem. Integrando-se neste mundo, a série
está no campo. Utilizando tecnologia inovadora
e a intuição para desvendar alguns segredos da dá a conhecer o funcionamento dos negócios e expõe
Antiguidade, a equipa contribui para as circunstâncias geopolíticas e o contexto que
reescrever a história tal como a conhecemos. criaram esta economia paralela e lucrativa.

Especial Este mês, o canal celebra a vida de mulheres

Changemakers fascinantes que fizeram história. Não perca os


documentários sobre a princesa Diana, Jane
Goodall, Dian Fossey, Lisa Ling, Amelia Earhart
1 7 D E F E V E R E I R O, ou a brigada akashinga, as vigilantes de natureza
A PA RT I R DA S 1 3 H 3 0 que combatem a caça furtiva do Zimbabwe.

NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO);


WINDFALL FILMS LTD (AO CENTRO); KIM BUTTS (EM BAIXO)
Big Cat Month
D OM I N G O S A PA RT I R DA S 1 7 H

O National Geographic Wild dedica de novo um


mês à conservação dos felinos da Terra. Em todos
os domingos de Fevereiro, a partir das 17 horas,
dedicaremos programação especial aos fantásticos
felinos do planeta, procurando enfatizar a sua
diversidade, a sua capacidade para viver em nichos
ecológicos em quase todos os continentes e as
ameaças que pairam sobre o seu futuro. Com fil-
magens impressionantes, o National Geographic
Wild fornece uma abordagem mais próxima e inti-
mista de leões, tigres, chitas, panteras e outros
felinos. Entre os vários programas, destacam-se
as estreias de “Leopard & Hyena: Strange Alliance”,
“Serengeti Speed Queen”, “Diary of a Teen Leopard”,
“Cecil: The Legacy of a King”, “A Leopard Legacy”,
“Jade Eyed Leopard” e “Tiger Queen of Taru”.

O Incrível O veterinário mais carismático da National Geogra-


phic está de volta para mais uma temporada.
Dr. Pol No Inverno ou no Verão, a qualquer hora do dia,
há sempre um animal que precisa dos cuidados
E S T R E I A : 1 D E F E V E R E I R O, mágicos do Dr. Pol, o veterinário holandês que se
ÀS 20H15 radicou no estado de Michigan há quatro décadas.

BEVERLY JOUBERT (EM CIMA); EARTH TOUCH (PTY) LTD (AO CENTRO);
NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)
P R Ó X I M O N Ú M E R O | MARÇO 2021

Obcecados Injustamente Uma fronteira A sardinha, tesouro


com Marte condenados nas montanhas natural português
O Planeta Vermelho Em média, todos os Uma pequena mudança A sardinha é o recurso
fascina a humanidade. anos, quatro pessoas num mapa de uma alimentar marinho
Quanto mais conhece- condenadas à morte agência dos EUA mais apreciado em
mos sobre Marte, mais nos EUA são ilibadas desencadeou uma Portugal. O censo
nos atraem os seus misté- das acusações. Depois guerra entre a Índia e o mais recente sobre
rios. As novas missões de passar pelo corredor Paquistão num campo de a população desta
espaciais ajudarão a da morte, não é fácil batalha situado no ponto espécie trouxe
revelar mais segredos. começar uma nova vida. mais alto do mundo. notícias risonhas.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C IMAGEM COMPOSTA, NASA / JPL-CALTECH / MICHAEL RAVINE / MALIN SPACE SCIENCE SYSTEMS
História Juvenil


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