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EDIÇÃO ESPECIAL : SEXO E GÊNERO

Outubro 2017 | www.sciam.com.br

ANO 16 | no 177
R$ 19,90 | 4,90 €

m lher
CRIANÇAS
TRANSGÊNERO
E A BUSCA PELAS RAÍZES
Novos estudos
nas áreas de sexo e
A IDOLATR

GÊNIOS
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É UMA CILADA

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DO SENSO DE IDENTIDADE

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ENTRE HOMEN
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E MULHERES

FÊMEA MONOGÂMICA,
00177

MUITOS FATORES ALÉM DOS MACHO PROMÍSCUO?


CROMOSSOMOS BIOLOGIA REFUTA
9 771676 979006
ISSN 1676-9791

INFLUENCIAM A
DETERMINAÇÃO DO SEXO ESTEREÓTIPOS
O U T U B R O 2 0 17

ANO 16

52 Não só para
homens
Pesquisadores e médicos
precisam ir mais fundo
nas diferenças de gênero
para que possam
oferecer melhores
tratamentos às mulheres.
Marcia L. Stefanick
58 O retorno das filhas
desaparecidas
As tradições que dão
preferência a filhos na
Ásia — o que resulta em
milhões de meninas
mortas ou
negligenciadas —
começaram a mudar.
Monica Das Gupta
64 Trabalho de mulher
Quanto mais mulheres
contribuem para a
economia, melhor fica a
vida para todos. Por que
é tão difícil diminuir as
barreiras às
oportunidades para elas?
Ana L. Revenga e Ana
32 Homens promíscuos, 44 Quando sexo e Maria Munoz Boudet
mulheres castas gênero colidem
e outros mitos Estudos com crianças trans- 70 Armadilha do
de gênero gênero estão oferecendo brilhantismo
A noção de que diferenças insights fascinantes sobre Como a ênfase
comportamentais entre os gênero no cérebro. Muitas equivocada em relação à
genialidade sutilmente
sexos são inatas e imutáveis crianças trans apresentam
desencoraja as mulheres
não se sustenta sob identidades surpreendente-
e os afro-americanos de
escrutínio. Cordelia Fine e mente firmes em tenras
entrar em certos campos
Mark A. Elgar idades, por exemplo, e impor-
acadêmicos. Andrei
tantes diferenças separam
38 Existe um cérebro Cimpian e Sarah-Jane
meninas trans de meninos Leslie
“feminino”?
que gostam de cor-de-rosa.
Debate sobre eventuais 76 Efeito tesoura
Kristina R. Olson
diferenças entre cérebros No Brasil, o número de
de homens e mulheres 50 Além do XX e XY mulheres envolvidas
poderá ter profundas Uma infinidade de fatores com a física decresce à
implicações para define se uma pessoa é medida que a carreira
saúde e para mulher, homem ou se está progride. Débora
identidades pessoais. em algum ponto entre os Menezes, Carolina Brito
Lydia Denworth dois. Amanda Montañez e Célia Anteneodo

www.sciam.com.br 3
5 Carta do editor
FÓRUM
7 África pode dar fim à malária
Mas a organização africana que combate a doença
precisa de dinheiro.
Carl Manlan
C I Ê N C I A E M PAU TA
8 Parem de atacar a saúde feminina
Esforços republicanos para desmantelar o sistema de cui-
dados de saúde dos EUA miram, injustamente, num
gênero.

9 Memória
10 Avanços
- O mais velho Homo sapiens?
8 - Sem brilho
- O protetor que imita pele
- No ritmo do coração
- Arco-íris do bebê
- Enxergando na neblina
- Vida de gigante
- A madeira é o novo aço
- Genes de corujões
- Navegando por toque
DE SAFIOS DO COSMOS E CÉU DO MÊ S
18 Fecha-se nosso olho sobre Saturno
Missão Cassini encontrou lagos e oceanos em satélites do
gigante dos anéis. Salvador Nogueira
C I Ê N C I A DA S AÚ D E
22 Apuro pediátrico
Novas iniciativas visam diminuir os obstáculos para a
15 descoberta de tratamentos úteis para as crianças.
Charles Schmidt
OBSERVATÓRIO
24 Do iogurte aos mamutes
A rapidez com que o CRISPR se espalhou e seu impacto
para o futuro da humanidade não tem precedentes.
Stevens Rehen
CÉTICO
25 Pós-modernismo versus Ciência
As raízes da atual loucura na Universidade.
Michael Shermer

81 Livros
CIÊNCIA EM GR ÁFICO
82 O fim
De que morre a maioria dos homens e mulheres?
22 Mark Fischetti

4 Scientific American Brasil, Outubro 2017


CARTA DO EDITOR
Pablo Nogueira é editor da IY_[dj_ÒY 7c[h_YWd 8hWi_b$

Um conhecimento para todos


Durante anos, trabalhei numa outra publicação de divulga- ga, que remonta a 1845. Vejo esse ineditismo como algo positi-
ção científica que possuía uma seção destinada a biografias de vo. Quem mira na ciência de ponta e nas tendências da pesquisa
cientistas. O texto descrevia brevemente o trabalho do biogra- estará sempre fazendo coisas pela primeira vez.
fado, as circunstâncias pessoais com que teve de lidar ao lon- Mas justamente por ater-se à pesquisa que perpassa todas
go da vida e a importância de suas ideias para seu campo de estas questões, esta edição de Scientific American Brasil é,
atuacão. Meu trabalho incluía auxiliar a colaboradora encarre- num certo sentido, igual a todas as outras. Do desenvolvimento
gada de pesquisar as biografias e escrever os textos. Certa vez ela de novos medicamentos ao desequilíbrio demográfico na Ásia,
desabafou comigo: “Não aguento mais. Praticamente só escrevo do impacto da força de trabalho feminina no produto interno
sobre homens brancos!”. bruto das nações ao comportamento reprodutivo dos insetos,
Pois é. Até o século 20, eram poucas as oportunidades para este número está recheado de ciência. Como todo mês, aliás.
que mulheres se envolvessem com a atividade de pesquisa. Levantar tais questões e escrutiná-las com a metodologia
Isso não significa que elas estiveram totalmente ausentes. Por e os recursos da ciência pode trazer benefícios para todos. Por
exemplo, Maria Kirch (1670—1720) foi uma astrônoma ale- exemplo, a pesquisa sobre as diferenças e semelhanças cere-
mã. Esposa de um dos mais famosos astrônomos do seu tem- brais entre os sexos gerou um dos mais interessantes debates
po, Gottfried Kirch, os dois trabalhavam em dupla. Sua atua- das neurociências contemporâneas. A complexa interação entre
ção na área, que incluiu a primeira descoberta astronômica feita natureza e cultura está sendo esmiuçada com crescente rigor,
por uma mulher, o cometa C/1702 H1, lhe valeu uma reputação como o leitor pode constatar no artigo “Existe um cérebro femi-
própria. Escorada nessa reputação, quando seu marido morreu nino?”. Entender mais o papel de uma e de outra é algo que vai
ela candidatou-se a ocupar suas funções junto à Real Academia beneficiar toda a comunidade humana.
de Ciências da Prússia. Mas nem o apoio do filósofo Gottfried Outro exemplo está no artigo “Efeito tesoura”, que aborda a
Leibniz, presidente da academia, foi capaz de superar as restri- presenca feminina no campo da física do Brasil. Vocações cientí-
ções contra mulheres vigentes no ambiente acadêmico à época. ficas são raras. E ciência, lembre-se, é a base do desenvolvimen-
Hoje uma mulher com treinamento científico, a doutora em to econômico. E se aqui no Brasil estivermos desestimulando
química Angela Merkel, é chefe de Estado da Alemanha. Mas a as jovens mulheres a acreditar no próprio potencial intelectual?
integração das mulheres ao campo da pesquisa e produção cien- Não estaríamos abrindo mão de uma preciosa parcela de nosso
tífica ainda tem um longo caminho a percorrer. capital intelectual futuro? Pois é o que parece estar acontecendo.
Talvez a decisão de Scientific American de publicar uma Defintivamente, a ciência que se debruça sobre temas relati-
edição especial inteiramente focada em tópicos de sexo e gênero vos a sexo e gênero não é “assunto de mulher”. Isto é, o conhe-
soe estranha. Afinal, é algo sem precedentes, pelo que pude pes- cimento que ela está produzindo vai beneficiar todos nós. Um
quisar sobre a história de nossa revista — e é uma história lon- abraço e boa leitura!

ALGUNS COLABORADORES

Cordelia Fine é professora de história ÜÍDOD›D§æ¡›”èÍ«Ò«OÍrDZ”ù§Z”D Monica Das Gupta÷µÍ«{rÒÒ«ÍD§« Sarah-Jane Leslie é professora de «µrÍD]ĂrÒ§Dæ§fD]õ«Z«OD§šr
r›«Ò«DfDZ”ù§Z”D§D f«Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü«Ò«Z”D›» frµDÍÜD¡r§Ü«frÒ«Z”«›«†”DfD ”›«Ò«DfDZ›DÒÒrfr®¨ƒÞ§D $r¡OÍ«%ré<«”ZrÒfräð®×f«
7§”èrÍҔfDfrfr$r›O«æͧrræ¡D 7§”èrÍҔfDfrfr$DÍë›D§fr 7§”èrÍҔfDfr0͔§ZrÜ«§» §ÒܔÜæÜ« Òµr§» Ò”fr”DÒr«µ”§”ĂrÒ
{r››«éf«=«¡r§ÊÒ"rDfrÍҐ”µ Kristina R. Olson é diretora do ÜÍDOD›«æZ«¡«fr¡þ†ÍD{DµDÍD« rêµÍrÒÒDÒ§rÒÜrDÍܔ†«Òõ«fr›r»
§ÒܔÜæÜr æÒÜÍD›”D»3ræ›”èÍ«¡D”Ò µÍ«™rÜ«5ÍD§Ò?«æܐdÂær÷Dµ«”Df«
D§Z«$æ§f”D›» Débora P. Menezes÷µÍ«{rÒÒ«ÍD§D
ÍrZr§Ür÷J[ijeij[hed[H[n0Coj^i µr›Dæ§fD]õ«%DZ”«§D›fr ”ù§Z”DÒ» 73 » Charles Schmidt ÷™«Í§D›”ÒÜDfr
e\i[n"iY_[dY["WdZieY_[jo ›D÷µÍ«{rÒÒ«ÍDDÒÒ«Z”DfDfr Ana L. Revenga÷rZ«§«¡”ÒÜD“Zr{r Z”ù§Z”Dr¡0«ÍܛD§fd$D”§r»
·=»=»%«ÍÜ«§däð®Ö¸» µÒ”Z«›«†”D§D7§”èrÍҔfDfrfr Df™æ§ÜDf«Í浫
D§Z«$æ§f”D›» Carolina Brito÷µÍ«{rÒÒ«ÍD§D723»
=DҐ”§†Ü«§» ¡ÒæDZDÍÍr”ÍDfräƒD§«Òdr›DÜr¡ Michael Shermer÷rf”Ü«ÍfDÍrè”ÒÜD
Mark A. Elgar÷µÍ«{rÒÒ«ÍfrO”«›«†”D ›”frÍDf««ÜÍDOD›«fD”§ÒܔÜæ”]õ« Celia Anteneodo÷µÍ«{rÒÒ«ÍD§D 3šrµÜ”Z·ééé»ÒšrµÜ”Z»Z«¡¸r
r諛æܔèD§D7§”èrÍҔfDfrfr r¡ÂærÒÜĂrÒfrµ«OÍrîDr 07 “2”«» µÍrҔfr§Ü”D›{r››«éfD7§”èrÍҔfDfr
$r›O«æͧr»3ræ†Í浫frµrÒÂæ”ÒD Marcia L. Stefanick é professora de rÂæ”fDfr» Dµ¡D§»3ræµÍþꔡ«›”èÍ«
ÒrZ«§Zr§ÜÍDr¡ÂærÒÜĂrÒÒ«OÍr« ¡rf”Z”§Df« r§ÜÍ«fr0rÒÂæ”ÒDfr Salvador Nogueira ÷™«Í§D›”ÒÜDfr ZD¡D“ÒrrDèr§Ò«§DÍܐ»3”†D“«
Ҕ†§”ZDf«r諛æܔè«fr 0Írèr§]õ«3ÜD§{«ÍfrµÍ«{rÒÒ«ÍDfr Ana Maria Munoz Boudet÷Z”r§Ü”ÒÜD Z”ù§Z”DrÒµrZ”D›”îDf«r¡ §«5é”ÜÜrÍ6c_Y^W[bi^[hc[h
Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü«ÒZ««µrÍDܔè«Òrfr «OÒÜrÜÍûZ”Dr†”§rZ«›«†”DfDÒZ«›D Ò«Z”D›Òù§”«ÍfD0ÍñܔZD›«OD›Ò«OÍr DÒÜÍ«§«¡”DrDÒÜÍ«§ñæܔZD»DæÜ«Í
DZDÒD›D¡r§Ü«drrÒÜæfD«µDµr›fD fr$rf”Z”§DfD7§”èrÍҔfDfr 0«OÍrîDrÂæ”fDfrf«Í浫 fr«”Ü«›”èÍ«Òdfr§ÜÍrr›rÒHkceWe Steve Mirsky rÒZÍrèrDZ«›æ§D
Z«¡æ§”ZD]õ«Âæû¡”ZDrè”ÒæD›§D 3ÜD§{«Íf»›DÜD¡O÷¡÷f”ÍrÜ«ÍDf«
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D§Z«» ;njhWj[hh[ijh[i0EdZ[[b[i[ij€e[ æ§Òs¨Z¡frf”ÒÜó§Z”DfrÒæD
Lydia DenworthrÒZÍrèrÒ«OÍr D¡µ›«ÜrÒÜrZ«¡¡æ›rÍrÒ¡D”Ò YeceWY_…dY_Wj[djW[dYedjh|#bei» DÜæD››«ZD›”îD]õ«»
Z”ù§Z”Dr÷DæÜ«ÍDfr?YWd^[Whoek èr›DÒÍr›DZ”«§Df«òµÍrèr§]õ«fr Andrei Cimpian é professor
m^_if[h0Wd_dj_cWj[`ekhd[oj^hek]^ f«r§]DÒZDÍfûDZDÒrD« DÒÒ«Z”Df«fr0ҔZ«›«†”D§D Carl Manlan ÷rZ«§«¡”ÒÜDfD «ÒÜD
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FÓRUM Carl Manlan ÷rZ«§«¡”ÒÜDfD «ÒÜDf«$DÍ¡df”ÍrÜ«ÍZr{r
F R O N T E IR A S DA C I Ê N C I A
C OM E N TA DA S P O R E S PE C I A LI S TA S fr«µrÍD]ĂrÒ§Dæ§fD]õ«Z«OD§šr$r¡OÍ«%ré<«”ZrÒfr
äð®×f«§ÒܔÜæÜ« Òµr§» Ò”fr”DÒr«µ”§”ĂrÒrêµÍrÒÒDÒ§rÒÜr
DÍܔ†«Òõ«fr›r»

o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e


Malária, o Programa de Desenvolvimento das Na-
ções Unidas, a Comissão Econômica para a África
da ONU e o Fundo de Solidariedade África contra o
Ebola, vejo três prioridades necessárias para gerar
um impacto e acabar com a malária:
Primeiro, devemos fortalecer e construir meca-
nismos para coletar dados em tempo real de comuni-
dades em toda a África, para a tomada consciente de
decisões. A expansão de telefones celulares é um mé-
todo importante para conseguir isso, porque conec-
tam pessoas e seus dados de saúde para intervenções
direcionadas a fim de prevenir e deter surtos. O CDC
África e seus cinco Centros de Colaboração Regional
devem liderar a transição que asseguraria a coleta,
a divulgação e a interpretação consistente de dados.
Segundo, devemos proporcionar novos recursos
para apoiar o CDC África. O custo do ebola para Ser-
ra Leoa, Guiné e Libéria, foco do surto, chegou a US$
4 bilhões. O setor privado africano arrecadou US$ 34

África pode dar milhões para acabar com o ebola de vez. Essa dinâmica deve con-
tinuar para o CDC fundado pela África. Alguns países africanos e

fim à malária organizações similares de saúde em todo o mundo forneceram re-


cursos iniciais para que o CDC África fosse lançado, mas não bas-
ta. Os africanos têm a responsabilidade de financiar mais US$ 34
Mas a organização africana que milhões nos próximos dois anos para tornar a África mais segura
e mais forte para o crescimento econômico.
combate a doença precisa de dinheiro Em terceiro lugar, devemos investir de outras formas para aca-
Carl Manlan bar com a malária. O setor privado e a classe média criativa são
a chave para acabar com a doença para sempre. Não conseguire-
Mais de 65 anos atrás, os americanos acharam uma forma de mos isso sem cobertura de saúde universal, através de um CDC
garantir que ninguém mais morresse de malária. A doença su- África totalmente financiado e operacional.
miu dos EUA em 1951, graças às estratégias do Escritório de Já existem sinais positivos de que os recentes aumentos de re-
Controle da Malária em Zonas de Guerra, criado em 1942, e do cursos, a determinação política e os compromissos das comuni-
Centro de Doenças Transmissíveis (hoje Centros de Controle e dades estão levando à possibilidade de eliminação da malária e,
Prevenção de Doenças dos EUA, CDC), fundado em 1946. em última instância, sua erradicação. No Senegal, por exemplo,
A ideia para montar os Centros de Controle e Prevenção de hoje só 3,3% das visitas ambulatoriais estão relacionadas à malá-
Doenças da própria África (o CDC África) foi concebida em 2013 ria, abaixo dos 36% registrados há 15 anos. Apesar de a transfor-
e formalizada após o pior surto de ebola da história, no ano se- mação ser impressionante, a eliminação completa da doença no
guinte. O CDC África, lançado oficialmente em janeiro deste ano, Senegal e em outros países não pode ser alcançada sem esforços
é uma parceria em crescimento, que visa desenvolver a capaci- regionais e continentais apoiados por dados e provas mais fortes.
dade dos países para ajudar a criar um mundo que seja seguro e A malária, assim como outras doenças que podem ser preveni-
protegido contra ameaças de doenças infecciosas. das, continua a desafiar nossa capacidade de transformar nossas
Assim como os americanos tornaram a formação de seus CDC economias no ritmo necessário para dar suporte ao crescimento
uma prioridade, os africanos têm a responsabilidade de assegurar da nossa população. Em última análise, para que a África consi-
o financiamento e o desenvolvimento de nosso CDC, para evitar ga erradicar a malária, é necessário traduzir o mandato do CDC
que as doenças alterem ainda mais o curso de nossa transforma- África dado pela União Africana num mecanismo financiado ca-
ção socioeconômica. O ebola é aterrorizante para muitas pessoas, paz de prover informações para o investimento em saúde.
mas a malária é mais devastadora: as últimas estatísticas da Or- Acabar com a malária foi o ímpeto que levou a um CDC forte e
ganização Mundial da Saúde mostram que mais de 400 mil pes- confiável nos EUA, e agora a África tem a oportunidade de repe-
soas morreram por causa dela em 2015, e 92% das mortes ocorre- tir esse sucesso — idealmente até 2030, quando o mundo se reúne
ram na África subsaariana. Além disso, seis países na África res- para avaliar o progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sus-
pondem por 47% de todos os casos de malária no mundo. tentável da ONU. Temos a oportunidade de salvar muitas vidas
Com base em meus anos de trabalho para organizações como através do CDC África. Vamos tornar isso realidade.

7 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Ilustração de Deshi Deng


CIÊNCIA EM PAUTA
O PINI ÃO E A N Á LI S E S D O C O N S E L H O
D E E D ITO R E S DA SC IENTIFIC A MERIC AN

Parem de atacar
a saúde feminina
Esforços republicanos para desmantelar
o sistema de cuidados de saúde dos
EUA miram, injustamente, num gênero
Pelos editores
por lei a fornecer cuidados de maternidade a mães não seguradas.
Há algo de podre no estado de saúde das mulheres. Enquanto O projeto de lei, em sua forma atual, também bloquearia efe-
este artigo era escrito em julho, republicanos no Congresso tivamente financiamentos para a Planned Parenthood, que for-
faziam um frenético esforço para revogar e substituir a Lei de nece serviços de saúde reprodutiva a 2,4 milhões de mulheres e
Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês), colocada em prá- homens. Suas clínicas já estão proibidas de usar financiamen-
tica pelo governo Obama. Pelo menos 22 milhões de americanos to federal para abortos, exceto em casos de estupro ou inces-
perderiam seu seguro saúde até 2026, pela mais recente versão to, ou quando a vida da mãe está em perigo, de acordo com a
deste plano — que inclui cortes substanciais no Medicaid [o pro- Emenda Hyde, de âmbito federal. Portanto, os cortes da Planned
grama de saúde social para famílias e pessoas de baixa renda e Parenthood afetariam principalmente serviços de saúde de roti-
recursos limitados] — e falta de seguro significa mais doenças e na, tais como exames ginecológicos, exames de câncer, testes de
morte para milhares, como mostram os dados. Esses cortes ame- DSTs e anticoncepção — e essas clínicas às vezes são a única fon-
açam afetar mais mulheres do que homens — seja por remover te para tais cuidados. Independentemente do lado em que você
uma cobertura básica de saúde, reduzir cuidados de maternida- esteja no debate pró-vida/pró-escolha, essas tentativas de remo-
de ou limitar acentuadamente os direitos reprodutivos. ver acesso a serviços tão básicos deveriam alarmar a todos nós.
É hora de tomar posição contra esta guerra à saúde das mu- O governo Trump também vem limitando a autorização da
lheres. Os desdobramentos atuais são só o mais recente insul- ACA para fornecer serviços de controle de natalidade. Uma pro-
to em uma longa história de medicina androcêntrica, muitas ve- posta vazada em maio sugeriu que a Casa Branca trabalhava na
zes impulsionada não por políticos, mas por cientistas e médicos. criação de uma isenção para permitir que quase todo emprega-
Antes da Lei de Revitalização dos Institutos Nacionais de Saú- dor opte por não cobrir a contracepção com base em motivos re-
de, de 1993, que exigiu a inclusão de mulheres e minorias em en- ligiosos ou morais. Em nível nacional, mulheres estão recorren-
saios clínicos em fase final de medicamentos e tratamentos, mu- do cada vez mais a anticoncepcionais reversíveis de longa dura-
lheres eram ativamente excluídas de tais testes porque cientistas ção (LARCs) altamente eficazes, tais como DIUs. A porcentagem
temiam que os ciclos hormonais femininos interferissem nos re- de mulheres com idades entre 15 e 44 anos que usam LARCs qua-
sultados. Essa omissão significou que mulheres não sabiam como se quintuplicou de 2002 a 2013. Uma cobertura menor para anti-
remédios em geral as afetariam. Sua reação a doenças e medica- concepcionais se traduz em um uso menos difundido e provavel-
mentos difere da dos homens, e mesmo hoje essas diferenças são mente significará mais gestações indesejadas e abortos.
pouco compreendidas. Mulheres relatam dores mais intensas do E abortos se tornarão mais difíceis. Depois do caso Roe ver-
que homens em quase todas as categorias de doenças, não se sabe sus Wade, muitos estados tentaram implantar leis para impedir o
por quê. Doenças cardíacas são o assassino número um de mulhe- funcionamento de clínicas de aborto. Esses esforços se intensifi-
res nos EUA; porém, elas são só um terço dos sujeitos de ensaios caram nos últimos anos, à medida que muitos estados promulga-
clínicos em pesquisas cardiovasculares, e menos de um terço dos ram as chamadas leis TRAP, desnecessariamente exigentes, que
ensaios que incluem mulheres relatam resultados por gênero. dificultam a operação dessas clínicas. Reconhecendo este fato, a
A investida republicana contra cuidados de saúde só vai pio- Suprema Corte anulou algumas dessas leis no Texas em 2016, mas
rar as coisas. A legislação proposta inclui disposições que permi- muitas ainda estão em vigor em outros estados. Em vez de tor-
tiriam aos estados eliminar os serviços conhecidos como “bene- narem as mulheres mais seguras, como alegam seus proponen-
fícios essenciais de saúde”, que compreendem cuidados de ma- tes, essas restrições interferem no direito que lhes foi garantido
ternidade. Antes de a ACA tornar a cobertura obrigatória, oito de pela Suprema Corte de interromper com segurança uma gestação.
cada 10 planos de seguro saúde para indivíduos e pequenas em- Tanto faz se a legislação de revogação-e-substituição for apro-
presas não cobriam tal serviço. Os cortes propostos teriam pou- vada ou não este ano, tais ataques são parte de uma guerra maior
co efeito em reduzir prêmios de seguro, e o custo seria transferi- e mais ampla contra a saúde de mulheres que não parece que vai
do para mulheres e suas famílias — que seriam obrigadas a fazer se abrandar em qualquer futuro próximo. Precisamos resistir a
um seguro privado ou entrar no Medicaid (que o projeto de lei li- essa investida. Deixa pra lá o “América Primeiro” — é hora de co-
mita consideravelmente) — ou para hospitais, que são obrigados locar as mulheres em primeiro lugar.

8 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Ilustração de Wenjia Tang


50, 100 & 150 ANOS DE MEMÓRIA
IN OVAÇ Õ E S E D E S C O B E R TA S N A R R A DA S PE L A S C IE N TIFI C A M E R I C A N
 ¸­Çž§Cl¸Ǹß C³žx§_Í2_š§x³¸†

OUTUBRO

1967  Favelas:
estrutura e
evolução invisíveis
ver uma usina elétrica em larga
escala, e três turbogeradores de
3.000 quilowatts foram instala- 1867 Quinina
para malária
“A percepção comum é que os ocu- dos em 1916. O novo empreendi- “Entre os muitos agentes curativos
pantes que povoam as favelas mento provou ser uma bênção na que a química orgânica nos deu, a
peruanas são índios das monta- Toscana industrial, onde o atual quinina ocupa o primeiro lugar e o
nhas rurais que falam apenas qué- preço de guerra do carvão varia clorofórmio o segundo. Sem quini-
chua, que são analfabetos ignoran- de US$ 40 a US$ 50 por tonelada.” na, grandes áreas seriam inabitá-
1967
tes, desorganizados, um fardo eco- veis para europeus. A ‘fome de qui-
nômico para a nação — e também Cavalos de guerra nina’ nas ilhas Maurício mostrou a
que são um grupo organizado de “Como tudo mais, cavalos e mua- milhares quão insignificante uma
radicais que pretendem assumir o res são encontrados nesta guer- coisa, inclusive o ouro, pode se tor-
poder e comunizar as cidades do ra em números nunca vistos. nar em comparação com este sal
Peru. Constatei que, na realidade, Como tem sido necessário exer- salva-vidas. A busca por quinina
o povo das barriadas ao redor de cer um maior escrutínio de recur- artificial, no entanto, tem sido tão
Lima não se encaixa nessa descri- sos, tem se mostrado essencial infrutífera quanto a da pedra filo-
ção. A maioria foi morador urbano que até a última gota de energia sofal. Essa situação induziu certos
1917
por algum tempo (em média nove seja obtida de cada animal, para homens empreendedores a intro-
anos) antes de se mudarem da que nenhuma montaria ou bur- duzir as cinchonas na Índia, e suas
cidade para seus arredores e orga- ro de carga seja descartado até plantações ali agora prosperam
nizar as barriadas. Falam espa- que todos os meios para salvá- de tal maneira que não é preciso
nhol (embora muitos sejam bilín- -lo tenham sido esgotados. Por- haver mais temor de que o supri-
gues) e, de fato, seu nível educa- que cavalos são escassos; o che- mento de quinina algum dia falhe.”
cional é maior do que o do povo fe do exército já não pode aba-
em geral. À primeira vista, as bar- tê-los a tiros ou leva-los à morte Cuidado com o que deseja
riadas parecem coleções amorfas por exaustão de trabalho, nem “Por que toda casa não deve-
1867
de primitivas barracas de palha. ‘desativá-los’ confiando que mui- ria ter seu fio telegráfico? Quan-
Na realidade, porém, os assenta- tos outros serão obtidos. Em vez do o gás foi empregado pela pri-
mentos são configurados de acor- disso, ele precisa conservá-los meira vez para iluminação, só foi
do com projetos, muitas vezes em de todos os jeitos possíveis; por usado em edifícios e ruas públi-
consulta com estudantes de arqui- isso, temos o hospital de cam- cas, e mesmo agora, na Europa,
tetura ou engenharia. À medi- po para equinos, ilustrado aqui.” ele foi introduzido, mas só mode-
da que o tempo passa, a maioria radamente, em casas particula-
dos barracos são substituídos por res. Por que o fio do telégrafo não
estruturas mais permanentes.” pode ser amplamente difundido
como foi a tubulação de gás? Ima-

1917 Energia
vulcânica
“Na região central da Toscana, em
gine uma rede de tais fios instala-
da a partir de um ponto central na
cidade até a biblioteca ou a sala
1906, vapor vulcânico foi usado de estar de toda casa, e um acordo
pela primeira vez em uma máqui- para coletar notícias, semelhan-
na a vapor comum de cerca de te ao controlado pela agência de
quarenta cavalos-vapor de potên- notícias Associated Press. Através
cia, mas os sais de bórax e outras dos fios, então, esta notícia pode
SCIENTIFIC AMERICAN, VOL. CXVII, Nº 15; 13 DE OUTUBRO DE 1917

substâncias químicas contidas ser transmitida instantaneamen-


nele corroíam o maquinário. Em te a cada família. Um incêndio,
seguida, o vapor superaquecido um crime, uma revolta, o resulta-
foi usado numa caldeira multitu- do de uma eleição ficariam sendo
bular comum, no lugar do com- simultaneamente conhecidos em
bustível. Uma usina elétrica expe- todas as partes. É claro que isso
rimental funcionou com êxito, eliminaria os jornais, mas e daí?
dando energia às fábricas assim Tudo tem seu apogeu, seu período
como aos vilarejos ao redor de de sucesso, e por que coisas tão
Lardarello. Seu sucesso levou o efêmeras como jornais deve-
príncipe Ginori-Conti a desenvol- 1917: Cuidados médicos para cavalos de guerra na Frente Ocidental riam ser uma exceção à regra?”

www.sciam.com.br 9
AVANÇOS

Pesquisadores escavam restos mortais de humanos primitivos em


Jebel Irhoud, no Marrocos. A inserção mostra uma reconstrução
compósita de um crânio. [Para saber mais sobre estas descobertas,
D`xääxÿÿÿÍ3`žx³îž‰` ­xߞ`D³Í`¸­êžßš¸øljx­ž³§zäÍ[

10 Scientific American Brasil, Outubro 2017


C O N Q U I S TA S E M C IÊ N C I A , T E C N O LO G I A E M E D I C IN A N ÃO D E I X E D E L E R

• Olhos de insetos poderiam inspirar


îx§Dä³T¸ßx‹xĀžþDäÇDßD`x§ø§Dßxä
• Um marca-passo capaz de manter
DäUDîžlDä`DßlŸD`Dääx­‰¸
• Edifícios altos de madeira podem
ser carbono-favoráveis
_<¸`zyø­Ù`¸ßø¥T¸ÚÕää¸Ǹlx
estar em seus genes

ORIGENS HUMANA S

O mais velho
Homo sapiens?
Fósseis do Marrocos complicam
a história de humanos modernos

O ano era 1961. Uma operação de minera-


ção no maciço de Jebel Irhoud, no Marro-
cos, revelou o fóssil de um crânio humano.
Escavações posteriores trouxeram à tona
mais ossos de outros indivíduos, junto com
resquícios de animais e ferramentas de
CORTESIA DE SHANNON M C PHERRON Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (paisagem); CORTESIA DE PHILIPP GUNZ Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (crânios)

pedra. Originalmente atribuídos a neander-


tais de 40 mil anos, os achados foram
ßx`§Dä䞉`Dl¸ä`¸­¸Homo sapiens — e
acabaram sendo datados de novo como
tendo cerca de 160 mil anos. Ainda assim,
os fósseis de Jebel Irhoud seguem um tanto
misteriosos porque, em alguns aspectos,
eles pareciam ser mais primitivos do que
fósseis de H. sapiens mais antigos.
Agora, novas evidências estão rees-
crevendo a história de Jebel Irhoud outra
vez. Uma equipe liderada por Jean-Jacques
Hublin, do Instituto Max Planck de Antro-
pologia Evolutiva, na Alemanha, recupe-
rou mais fósseis humanos e artefatos líticos,
junto com evidências de que o sítio é mui-
to mais antigo do que a estimativa revisada.
Os pesquisadores descreveram suas con-
clusões recentemente na Nature. Se os fós-
seis, de fato, são de H. sapiens, os achados
fazem retroceder a origem de nossa espé-
`žxx­­Džälx¿ćć­ž§D³¸äxlxäD‰D­Dä
ideias prevalentes de onde e como nossa
linhagem evoluiu. Mas outros cientistas dis-
cordam quanto às novas descobertas. Lon-
ge de resolverem de forma ordenada o que-
bra-cabeça de nossas origens, as descober-
tas de Jebel Irhoud se somam às crescentes
evidências de que o alvorecer de nossa
espécie foi algo complicado.

www.sciam.com.br 11
AVANÇOS

Especialistas há tempos concordam que fósseis revelam uma população que não ÔøxäîÆxää¸UßxÔøxDäÇx`î¸älx‰³x­³¸ääD
o H. sapiens surgiu na África. Até agora, os apresentava alguns de nossos traços carac- espécie”, diz Marta Mirazón Lahr, da Uni-
vestígios mais antigos aceitos eram resquí- terísticos, mas cujas formas anatômicas versidade de Cambridge. “É o crânio globu-
cios de 195 mil anos do sítio de Omo Kibish, poderiam ter evoluído e se transformado lar, com suas implicações para reorganiza-
e fósseis de 160 mil anos de Herto, ambos gradualmente em nossa forma moderna, ção cerebral, que torna um fóssil H. sapiens?
na Etiópia. Mas evidências de DNA e alguns relata o artigo que descreve os fósseis. Neste caso, a população de Irhoud era de
fósseis enigmáticos sugeriram que nossa Hublin diz que as descobertas não impli- primos próximos”, não de membros da nos-
espécie poderia ter raízes mais profundas. cam que a humanidade moderna tenha sur- sa espécie. Mas se um rosto pequeno e a
Em seu trabalho recente, Hublin e seus gido no Marrocos. Em vez disso, tomadas forma da mandíbula inferior forem os tra-
colegas desenterraram fósseis de outros em conjunto com outras descobertas de ços-chave, então os ossos de Jebel Irhoud
indivíduos de uma parte do sítio que os fósseis, sugerem que o surgimento de H. poderiam de fato ser de nossos ancestrais
mineiros não haviam tocado. Os achados sapiens foi uma questão pan-africana. Há — e, portanto, mudar o foco de cientistas
incluem ossos de crânios e de mandíbu- 300 mil anos, o primitivo H. sapiens já se que estudam as origens humanas moder-
las inferiores, artefatos de pedra e restos de espalhara pelo continente. A dispersão foi nas, da África subsaariana para o Mediter-
animais caçados. Várias técnicas datam a auxiliada pelo fato de que a África era bem râneo — diz Mirazón Lahr.
camada rochosa com os fósseis e artefatos diferente então — o Saara era verde, e não De qualquer modo, o achado pode
como tendo entre 350 mil e 280 mil anos. a proibitiva barreira desértica que é hoje. gerar um debate sobre quem criou os arte-
Os pesquisadores concluíram que os Mas nem todos concordam que sejam fatos da Média Idade da Pedra na África,
tamanhos e as formas dos crânios, mandí- fósseis de H. sapiens. John Hawks, da Uni- entre 300 mil e 40 mil anos atrás. Se o H.
bulas inferiores e dentes de Jebel Irhoud se versidade de Wisconsin-Madison, diz que sapiens já existia, ele poderia ser um bom
parecem com os de H. sapiens e não com os Hublin e seus colegas não compararam os candidato. Mas outras espécies humanas
de neandertais ou outros hominíneos. Mas achados com fósseis de 800 mil anos encon- também estavam em cena naquela época,
a caixa craniana, que encerra o cérebro, é trados na Espanha, de uma espécie chama- inclusive o H. heidelbergensis e o H. naledi.
alongada como a de humanos arcaicos, não da Homo antecessor: “Talvez [os fósseis] de Os achados de Jebel Irhoud “tornam
arredondada como a de seus equivalen- Jebel Irhoud estivessem evoluindo para os o quadro bastante complicado”, diz Chris-
tes modernos. Tais variações estão associa- humanos modernos, mas outra possibili- tian Tryon, da Universidade Harvard. Mas
das a diferenças em organização cerebral. dade é que estivessem retendo a morfolo- Dž³`¹³žîDDlž`ž¸³D§䞐³ž‰`DÔøx¸ä`žx³-
A equipe concluiu que os restos mortais de gia facial de uma população parecida com a tistas que estão procurando as origens de
Jebel Irhoud representam “precisamen- de H. antecessor, que pode ter sido o último nossa espécie têm seu trabalho talhado a
te a raiz de nossa espécie, o mais antigo H. ancestral comum de neandertais e humanos sua altura. Às vezes, as coisas mais conheci-
sapiens já encontrado na África ou em outro arcaicos africanos mais tardios”. das e familiares são também as mais miste-
lugar”, Hublin disse em uma entrevista. Os Os novos fósseis “suscitam importantes riosas. —Kate Wong

C I Ê N C I A D O S M AT E R I A I S como quando a luz que se move através do


ar e de repente incide numa vidraça, gran-
Sem brilho lxÇDßîxlD§øąyßx‹xîžlDÍ$D丸§š¸lx
uma mariposa é revestido de diminutas sali-
Globos oculares de insetos inspiram ências uniformes que gradualmente cur-
ø­ ßxþxäx³î¸ ³T¸ ßx‹xĀžþ¸ ÇDßD vam (ou refratam) a luz incidente. As ondas
telas de telefones celulares de luz interferem umas com as outras e se
anulam, deixando os olhos escuros.
É noite de verão, e as mariposas voam em Wu e colegas criaram um molde de dió-
alvoroço. Apesar de banhadas pela luz do xido de silício semelhante à superfície do
§øDßjäxø丧š¸ä³T¸¸ßx‹xîx­xjx­ consomem logo as cargas de baterias, e olho de uma mariposa e o usaram para pro-
breve, esse princípio pode nos ajudar a ver ³x³šø­Dyî¸îD§­x³îxx‰`DąÍ D³DžD duzir um revestimento duro, cheio de dimi-
melhor a tela do celular sob a luz solar do olho da mariposa apresenta uma solu- ³øîDälxÇßxääÆxäjä¸Ußxø­D§F­ž³D‹xĀŸþx§Í
`ߞDcT¸lxäøÇx߅Ÿ`žxälxUDžĀDßx‹x- ção muito mais elegante, diz Shin-Tson Wu, Embora os buraquinhos sejam côncavos em
xividade para monitores tem sido objeto da Universidade da Flórida Central, que vez de convexos, como os do olho da mari-
de intensa pesquisa. Os chamados monito- recentemente descreveu uma técnica para posa, eles impedem brilhos intensos igual-
SUSUMU NISHINAGA Science Source

ßxälx`ߞäîD§§ŸÔøžl¸îßD³ä‹x`îžþ¸ßxløąx­ fazer um revestimento de display inspirado mente. Em testes, o material cravou menos
o brilho intenso ao compensarem tanto a em insetos no periódico Optica. lx¿Ìlxßx‹x`îF³`žDÍÙ Çߞ³`žÇD§UDßßxžßD
iluminação de fundo como a luz ambiente. Quando muda de meio, a luz se cur- é o custo”, diz Stuart Boden, da Universida-
Outra abordagem, chamada controle adap- va e muda de velocidade devido a diferen- de de Southampton, não envolvido no estu-
tativo de brilho, usa sensores para aumen- ças em uma propriedade chamada índice do. Wu procura um parceiro comercial para
tar a luz da tela. Mas ambas as tecnologias de refração. Se a diferença for acentuada, expandir a tecnologia. —Morgen Peck

12 Scientific American Brasil, Outubro 2017


NANOCIÊNCIA queratinócitos e formam Gianneschi, bioquí-
“escudos” bloqueadores mico da Universidade
O protetor de UV ao redor dos Northwestern. Como a
núcleos celulares. Porém, melanina, o material sin-
que imita pele pessoas que sofrem de
males como albinismo e viti-
tético também age como
um pigmento para escurecer a
Melanina sintética poderia ligo têm uma produção falha de pele, mas “não é que ele tenha ape-
proteger células dos raios do sol melanina e são muito suscetíveis aos efeitos nas preenchido as células e as tornado mais
nocivos da radiação UV. escuras”, diz ele. “Ele de fato as estruturou.”
No calor do verão, muitas pessoas sentem Para criar versões sintéticas desses As nanopartículas parecidas com
a necessidade de usar mais protetor solar melanossomos, pesquisadores na Univer- melanina não só foram transportadas e
para evitar que a radiação ultravioleta do sidade da Califórnia banharam dopami- distribuídas por células cutâneas como se
sol queime sua pele. Mas cientistas podem na (uma substância química sinalizado- fossem melanina natural — elas também
ter encontrado um novo jeito de bloquear ra encontrada no cérebro e em outras par- protegeram o DNA das células. Os pes-
esse perigo: nanopartículas que imitam a tes do corpo) em uma solução alcalina. Esse quisadores incubaram células de pele com
melanina, pigmento que protege as células processo produziu nanopartículas pareci- nanopartículas e depois as expuseram a
cutâneas de dentro para fora. Se compro- das com melanina, com escudos e núcleos radiação UV por três dias. Metade das célu-
vada, a abordagem poderia ser usada para feitos de polidopamina, um polímero à base las cutâneas que absorveram as nanopartí-
desenvolver uma proteção tópica melhor e de dopamina. Quando incubadas numa culas sobreviveram, em comparação com
tratamentos para disfunções da pele. placa de Petri com queratinócitos huma- apenas 10% daquelas sem nanopartícu-
O pigmento escurecedor melanina é nos, as partículas sintéticas foram absor- las. Os resultados foram publicados no iní-
Ilustração de Thomas Fuchs

uma das principais defesas naturais do cor- vidas pelas células cutâneas e distribuí- cio deste ano em ACS Central Science. Ago-
po contra danos induzidos por radiação das ao redor de seus núcleos como melani- ra que a equipe sabe que as nanopartícu-
ultravioleta (UV) ao DNA. Sob a superfície na natural. las parecidas com melanina são tratadas do
da pele, células especiais segregam mela- As células “são capazes de processar mesmo jeito que melanina natural e real-
nossomos, que produzem, armazenam e [a nanopartícula sintética] e, então, con- mente protegem células, o próximo passo
transportam melanina. Essas estruturas são vertê-la em uma espécie de tampa sobre será determinar o mecanismo de absorção.
absorvidas por células da pele chamadas o núcleo”, diz o autor do estudo, Nathan —Matthew Sedacca

T E C N O LO G I A DA S AÚ D E complicações”, diz o pesquisador principal 3,8 mm


Aydin Babakhani, da Rice. Marca-passo
No ritmo do 7­ ­Dß`DÇDää¸ äx­ ‰¸ D³îxߞ¸ß ¸Uîx-
ve a aprovação do FDA em abril de 2016.
implantado na
veia cardíaca
magna (ou maior)

16 mm
coração Ele condensava uma bateria e sua placa de
circuito em um implante do tamanho de
$Dß`DÇDää¸ äx­ ‰¸ xþžîD D§ø³ä
Ilustração de Tami Tolpa

um comprimido, ligado à parede interna do


riscos de dispositivos tradicionais coração dentro do ventrículo direito, a única
`F­DßD `¸­ xäÇDc¸ äø‰`žx³îx ÇDßD D ø³ž- Micro-ondas
O mais novo e menor marca-passo é dade. Quando a bateria “morre” a unidade Bateria
ø§îßD`¸­ÇD`î¸ x lžäÇx³äD ‰¸ä lx `¸³xĀT¸Í inteira tem de ser removida cirurgicamente.
Uma equipe com integrantes da Universi- O novo marca-passo combina a aces-
dade Rice, do Instituto do Coração do sibilidade da bateria do dispositivo tradi-
FONTE: MEHDI RAZAVI Instituto do Coração do Texas e Baylor College de Medicina

Texas e do Baylor College of Medicine `ž¸³D§`¸­¸ßx`øßä¸äx­‰¸lDþxßäT¸lx Babakhani diz que seus colegas implan-
recentemente criou um regulador de bati- 2016. Uma bateria inserida abaixo da axila taram com sucesso seu novo marca-passo
mentos cardíacos que obtém sua energia transmite energia via micro-ondas para um em cinco porcos, regulando seus batimen-
øäD³l¸­ž`߸¸³lDäx­þxąlx‰¸äÍää¸ capacitor implantado no coração (ßD‰_¸). tos cardíacos em diversos ritmos sem efei-
䞭ǧž‰`D`žßøߐžDäÇDßDDäøUäîžîøžcT¸lD O capacitor provoca as contrações muscu- î¸äDlþxßä¸ä'äD³ž­Džä…¸ßD­äD`ߞ‰`Dl¸ä
bateria e poderia reduzir as complicações lares que fazem o órgão bombear sangue. após algumas horas, mas ainda neste outo-
associadas a marca-passos convencionais. O dispositivo tem um efeito muito podero- no a equipe iniciará testes de longo prazo.
Quase 190 mil americanos receberam so em vista de seu minúsculo tamanho, diz Mesmo se o implante funcionar bem, ainda
um marca-passo em 2009. Os dispositi- Babakhani. Diversos chips menores do que exige um procedimento invasivo, diz James
vos tradicionalmente exigiam uma bate- uma moeda de dez centavos podem ser Chang, da Universidade Harvard, não
ria compacta, inserida pouco abaixo da cla- inseridos por todo o coração onde quer que envolvido no estudo. Mas ele, por exemplo,
þŸ`ø§Dj`¸­‰¸äÔøxÇDääD­DîßDþyälDä sejam necessários. O marca-passo é como anseia por ver marca-passos recarregáveis
þxžDäxþT¸Dîy¸`¸ßDcT¸Í$Däى¸äÇ߸þ¸- “o maestro de uma sinfonia”, diz Mehdi äx­‰¸ä³DäD§Dlx`žßøߐžDiÙäîxy`xßîD-
cam infecções, e elas são grandes e causam Razavi, que ajudou a criar o dispositivo. mente o futuro”. —Leslie Nemo

www.sciam.com.br 13
AVANÇOS
NEUROCIÊNCIA
cores], mas, dependendo

Arco-íris da cultura e do idioma, cer-


tas distinções podem não

do bebê ser usadas.” Crianças que


aprendem vietnamita, por
exemplo, provavelmente
Biologia é mais importante para
veem o verde e o azul, mes-
percepção de cores do que se mo que seu idioma não use
acreditava no passado
xUzäDÇßx³lx­`¸ßxä­øžî¸D³îxä palavras distintas para as
de aprenderem um idioma. duas cores.
Em inglês, o céu é azul e a grama é verde. O estudo investigou
Mas na língua vietnamita só há uma cor métrica conhecida como tempo de obser- a percepção de cores em
para céu e grama: xanh. Por décadas, cien- vação, de olhar. Primeiro, a equipe mos- bebês, revelando como nós as percebemos
tistas cognitivos apontaram tais casos trou aos bebês repetidamente uma amostra antes mesmo de conhecermos as palavras
como evidências de que a linguagem até que seu tempo de observação diminuiu, para descrevê-las, diz Angela M. Brown, da
determina em grande parte a maneira sinal de desinteresse. Em seguida, os pes- Universidade Estadual de Ohio, que não
como vemos as cores. Mas novas pesqui- quisadores lhes mostraram uma amostra esteve envolvida. Os resultados acrescem
sas com nenês de quatro a seis meses indi- diferente e observaram as reações. Tempos uma nova incógnita ao perene debate ina-
cam que, muito antes de aprender um idio- de observação mais longos foram interpre- to x adquirido, e a assim chamada hipótese
ma, enxergamos até cinco categorias bási- îDl¸ä`¸­¸䞐³ž‰`D³l¸Ôøx¸ä³x³zä`¸³- de Sapir-Whorf — a ideia de que a manei-
cas de matizes . sideravam a segunda amostra como sendo ra como vemos o mundo é moldada pela
O estudo, publicado em Proceedings uma nova cor. As respostas mostraram que linguagem. Em trabalhos futuros, Skelton e
of the National Academy of Sciences USA, eles distinguiam entre cinco cores: verme- seus colegas querem testar bebês de outras
testou as habilidades de discriminação de lho, verde, azul, violeta e amarelo. A desco- culturas. “O modo como idioma e cultura
cores de mais de 170 bebês. Pesquisado- berta “sugere que todos nós trabalhamos a interagem é uma questão realmente inte-
res na Universidade de Sussex, na Inglaterra, partir do mesmo modelo”, diz a autora Alice ressante”, diz ela. “Ainda não conhecemos

GETTY IMAGES
mediram quanto tempo os nenês olhavam Skelton, da Universidade de Sussex. “Somos os mecanismos exatos, mas sabemos como
‰ĀD­x³îxÇDßDD­¸äîßDälx`¸ßxäjø­D pré-programados para fazer distinções [de começar.” —Jane C. Hu

FÍSIC A mas de prevenção de colisões e auxiliar o tadas por um tubo fotomultiplicador no


exército a monitorar alvos ocultados. outro lado da caixa. À medida que o objeto
Enxergando “Rastrear objetos fora da linha de visão
é um assunto quente neste momento”, diz
se moveu dentro da caixa, o padrão de luz
mudou ligeiramente. Com análises estatís-
na neblina Gordon Wetzstein, da Universidade Stan-
ford, não envolvido no novo trabalho. Antes,
ticas e modelagem inteligente, os pesquisa-
dores usam esses lampejos para reconstruir
Uma nova técnica barata poderia pesquisadores haviam desenvolvido meios o movimento do objeto em 3D.
revelar objetos envoltos por de “imagear” objetos invisíveis — mesmo Como o radar, a nova técnica pode
névoa ou poeira ao redor de cantos e atrás de paredes — ao detectar um objeto, mas não determinar
emitirem pulsos de micro-ondas ou laser seu tamanho ou forma, diz Dogariu. Hoje
Radares e seus equivalentes que usam contra eles e cronometrarem o retorno dos ela só detecta objetos até um metro de dis-
laser, os LIDARs, podem detectar objetos sinais. Mas esses métodos requerem equi- tância, mas “estimativas indicam que alcan-
ocultos. Mas neblina, chuva, fumaça e ÇD­x³î¸ä三äîž`Dl¸äx`D߸äÍ ces de quilômetros podem ser viáveis”, diz
poeira desorientam essas ferramentas ao A equipe da Flórida desenvolveu uma ele. Uma limitação é que um alvo estacioná-
dispersarem ondas de luz e de rádio. Ago- abordagem mais simples usando um laser rio não seria notado porque não mudaria o
ra, Milad Akhlaghi e Aristide Dogariu, pes- barato, de baixa energia, e um detector padrão de manchas e o método depende do
quisadores óticos na Universidade da Flóri- comum de luz, chamado tubo fotomultipli- rastreamento dessas mudanças.
da Central, aproveitaram esta propriedade cador, que registra a intensidade total de Daniele Faccio, da Universidade Heriot-
para rastrear um objeto em movimento fótons que incide sobre ele. Para demons- -Watt, que não participou do estudo, qua-
ocultado por uma névoa simulada. trar o método, os cientistas colocaram um §ž‰`DDîy`³ž`D`¸­¸Ùø­­yî¸l¸x§xD³-
Analisando as mudanças que um objeto alvo em movimento (um símbolo impres- te e robusto, que requer recursos mínimos”.
cria num padrão de luz dispersa, os pes- so em uma lâmina transparente) dentro de 0DßDÇ߸þDßäøDx‰`E`žD³¸­ø³l¸ßxD§jäxßE
quisadores conseguem determinar instan- uma caixa de acrílico fosco do tamanho de preciso mostrar que ela funciona quando o
taneamente sua direção e velocidade. A uma torradeira de pão. Eles lançaram luz alvo está em um espaço cheio de névoa, e
técnica, descrita este ano no periódico laser sobre a caixa, cuja parede opaca criou não apenas atrás de uma nebulosa e indis-
Optica, poderia ajudar a aprimorar siste- um padrão randômico de manchas detec- tinta parede bidimensional. —Prachi Patel

14 Scientific American Brasil, Outubro 2017


CORTESIA DE ACTON OSTRY ARCHITECTS, INC.
CORTESIA DE HUGH PEARSON E DAVID REICHERT
Associar a tendência para desenvolver
tamanhos gigantescos ao Plio-Pleistoce-
no descartou outras hipóteses, tais como a
ameaça de predação pelo enorme megalo-
donte, ou tubarão-branco-gigante (Carcha- Edifício Brock
rodon megalodon) — que já existia milhões Commons,
de anos antes da disparada de crescimento Vancouver
das baleias —, ou o advento da alimentação
E VO L U Ç ÃO Ǹ߉§îßDx­jÔøxjDxääDD§îøßDjîD­Uy­¥E ENGENHARIA
existia havia mais de 15 milhões de anos.
Vida de gigante O novo trabalho rastreia o crescente
tamanho de baleias a mudanças na dispo-
A madeira
Teoria poderia explicar quando e
Ç¸ß Ôøx UD§xžDä ‰`DßD­ x³¸ß­xä
nibilidade de alimentos resultante de eras
glaciais. À medida que uma calota de gelo
é o novo aço
se formou no Polo Norte, a água recém-es- Prédios altos de madeira
O animal mais massivo do mundo, a friada afundaria para o fundo do oceano e poderiam reduzir emissões
baleia-azul, é como um avião a jato com depois voltaria a ascender nos lugares onde
capacidade para transportar 100 pas- ¸äþx³î¸äx­ÇøßßDþD­EøDääøÇx߉`žDžä Arranha-céus feitos de madeira podem
sageiros deslizando abaixo da superfície do cálidas para longe das costas em um fenô- parecer uma má ideia. Mas arquitetos de
oceano. Baleias estão entre os maiores ­x³¸äDą¸³D§`¸³šx`žl¸`¸­¸D‹¸ßD­x³- todas as partes do mundo estão continua-
organismos que jamais existiram, e agora øßxääøߐz³`žDÍääxßEǞl¸‹øĀ¸Dä`x³- mente construindo mais prédios altos de
`žx³îžäîDäD‰ß­D­ÔøxîD§þxąäDžUD­ÔøD³- dente de água fria teria levado nutrientes madeira, em parte com o objetivo de
do e por que elas evoluíram para se torna- ÇDßDDäøÇx߅Ÿ`žxjÇxß­žîž³l¸Ôøx‰î¸Ç§F³`- reduzir a poluição por carbono.
rem tão enormes. Em um estudo publicado ‹¸ßxä`xääxxÇßxäDälxUD§xžDäj`¸­¸¸ Edifícios grandes de madeira estão apare-
recentemente em Proceedings of the Royal krill, diminutos crustáceos parecidos com cendo em importantes cidades de Londres a
Society B, pesquisadores modelaram os camarões, prosperassem em densas man- Melbourne, na Austrália. Muitos mais estão
tamanhos de baleias misticetos, ou baleias- chas em certas épocas do ano. em obras — em breve Portland, no Oregon,
de-barbatana (da subordem Mysticeti, que Tais condições teriam constituído uma estará ganhando o seu próprio — e eles con-
no lugar de dentes têm “barbas de baleia”, vantagem evolutiva para o desenvolvi- tinuam quebrando os recordes de altura para
feitas de queratina) que viveram entre mento de uma baleia-de-barbatana maior, modernas construções de tábuas serradas.
aproximadamente 35 milhões de anos atrás xĀǧž`D3§DîxßÍ7­DU¸`D­Dž¸ß䞐³ž‰`DߞD O edifício mais alto e já concluído desse tipo
e o presente. A equipe mediu os crânios ZǸlxß[ä¸ßþxß­DžäEøDx‰§îßDß­DžäÇßx- no mundo, um prédio de 53 metros em Van-
(um conhecido indicador de tamanho cor- sas por gole, e um corpo maior poderia via- couver, chamado Brock Commons, foi inau-
poral) de 63 espécies extintas de baleias da ¥Dßlx­D³xžßD­Džäx‰`žx³îxǸߧ¸³Dälžä- øßDl¸¸‰`žD§­x³îxx­äxîx­U߸Í
coleção de fósseis do Museu Nacional de tâncias entre as pausas para alimentação. Madeira é um material forte, leve e resis-
História Natural do Instituto Smithsonian. Um metabolismo lento também ajudaria a tente a terremotos, diz Russell Acton, um dos
Em seguida, os cientistas compararam essas conservar energia. Çߞ³`žÇDžäDßÔøžîxî¸ä³D‰ß­D `'äîßā
medições com os tamanhos de baleias vivas R. Ewan Fordyce, geólogo na Univer- Architects, que projetou o Brock Commons.
atualmente. Sua análise concluiu que o sidade de Otago, na Nova Zelândia, que E os espessos pedaços de madeira utiliza-
comprimento corporal de baleias variou estudou fósseis de baleias-de-barbata- dos em tais construções são, de fato, surpre-
randomicamente durante cerca de 30 na, mas não esteve envolvido na pesquisa, endentemente resistentes a fogo — quando
milhões de anos antes de dar um salto para concorda com as conclusões. Mas ele acha queimados, eles formam uma camada exter-
mais de 10 metros entre 4,5 milhões e cen- que outros fatores podem estar envolvi- na carbonizada que pode proteger o mate-
tenas de milhares de anos atrás — uma dos. Uma poeira rica em ferro, trazida pelo rial subjacente. A madeira [de construção]
extensão de tempo que abrange as épocas vento, por exemplo, pode ter fertilizado o também tem benefícios ambientais: ela é um
do Plioceno e do Pleistoceno, comumente ‰î¸Ç§F³`¸`xF³ž`¸D§¸ÔøxǸlx- ßx`øßä¸äøäîx³îEþx§lxälxÔøxD䋸ßxäîDä
denominado período Plio-Pleistoceno — o ria valer a pena ser investigado mais a fun- sejam adequadamente manejadas — e pare-
que é mais recente do que pesquisas do, diz Fordyce. ce emitir menos dióxido de carbono ao lon-
anteriores sugeriram. O coautor Graham Em estudos futuros, Slater espera estrei- go de sua produção (de árvore viva a cons-
Slater, da Universidade de Chicago, observa tar o espaço de tempo para o salto das trução acabada) do que materiais tradicio-
que até estudos que produziram estimati- baleias em tamanho corporal. A literatura nais, tais como aço e concreto. Além disso,
vas de tempo semelhantes foram baseados sobre o registro fóssil do Plio-Pleistoceno é árvores sequestram naturalmente carbono
em observação e adivinhação, e não tinham ainda bastante escassa. “Há menos incenti- e, portanto, ajudam a manter gases de efeito
medidas/medições para sustentá-los. Ele e vos para fazer pesquisa em registros fósseis estufa fora do ar.
seus alegam ser os primeiros a usarem uma de idade mais recente. Mas aqueles são fós- Adequadamente, então, a madeira está
äyߞxlx­¸lx§¸äxäîDîŸäîž`¸äÇDßDžlx³îž‰`Dß seis realmente importantes”, observa ele. — ajudando as cidades a “se tornarem verdes”.
o momento da mudança no tempo. Andrea Marks —Annie Sneed

www.sciam.com.br 15
AVANÇOS
SUÉCIA PAÍSES BAIXOS
N A S N OT Í C I A S
Começando em 2019, a montadora automotiva Para reprimir o envio de mensagens de texto

Notas Volvo anunciou planos para construir somente


veículos elétricos e híbridos, com a meta de
ao pedalar, a Associação Holandesa de
Segurança no Trânsito e uma empresa

rápidas vender um milhão de tais carros até 2025. nacional de telecomunicações criaram uma
trava para bicicletas e um aplicativo que
bloqueiam o sinal e a conexão com a internet
enquanto a bicicleta estiver circulando.

ESTADOS UNIDOS CHINA


Um hospital em Boise, O país lançou seu
Idaho, pagou US$ 300 mil primeiro telescópio de
para trasladar a maior raios X ao espaço; em
árvore do gênero sequoia novembro ele começará a
do estado dois quarteirões “varrer”, ou examinar
rua abaixo. Evoluído de uma regularmente a Via Láctea
pequena muda enviada pelo em busca de fontes dos
famoso naturalista John poderosos raios.
Muir há mais de um século,
o gigante, da altura de [um
prédio de] 10 andares, teve
de ser movido juntamente MOÇAMBIQUE EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
com seu solo circundante. Anos de guerra civil tiveram um profundo impacto No início deste verão boreal, Dubai estreou seu primeiro
em populações de vida selvagem. O Parque policial robô, um dispositivo com tela sensível ao toque em
Nacional Zinave agora deu início ao prolongado seu peito para denunciar crimes. Autoridades encarregadas
processo de repovoar seus hábitats com mais de do cumprimento e aplicação das leis esperam que os
7.500 animais de outros parques e países vizinhos. autômatos componham 25% da força policial até 2030.

—Leslie Nemo

CIÊNCIA DO SONO
a têm: se você trabalha Cry1, que também apareceu em membros
como barman ou músico, de sua família que relataram problemas
Genes de talvez jamais procure um lx丳¸Íääxx³x`¸lž‰`Dø­DÇ߸îxŸ³D
diagnóstico ou tratamen- conhecida por suprimir a ação das proteínas
“corujões” to, diz a autora principal mais importantes, fundamentais, do relógio,
do estudo Alina Patke, pes- ou ciclo circadiano CLOCK e BMAL, que
Uma mutação que afeta quisadora na Rockefeller, que ativam uma ampla gama de genes — inclu-
o ciclo circadiano pode äx Dølx³îž‰`D`¸­¸³¸îŸþDDj sive alguns relacionados à vigília — duran-
estar mantendo algumas pessoas mas não tem a mutação. Para outros, no te o dia. A mutação causou a eliminação
acordadas até muito tarde entanto, especialmente estudantes univer- de uma porção da cauda da proteína CRY1,
sitários ou funcionários de escritórios, pode î¸ß³D³l¸DDž³lD­Džäx‰`Dą³DäøÇßxä-
Algumas pessoas não conseguem ador- ser uma tortura. O novo estudo centrou-se são de CLOCK e BMAL. A equipe examinou
mecer até as primeiras horas da madruga- em uma mulher de 46 anos, que teve pro- cuidadosamente um banco de dados gené-
da — e não se sentem descansadas a blemas de sono a vida toda. “Normalmen- tico e encontrou outras 39 pessoas com a
menos que se levantem muito mais tarde te, ela ia para a cama por volta das duas ou mutação. A maioria também tinha horários
do que a maioria de nós. Esses “corujões” três horas da madrugada; às vezes até às 5 relativamente tardios para dormir e acordar.
podem sofrer de uma forma comum de ou 6 horas da manhã”, diz Patke. Daniel Kripke, professor emérito na Uni-
insônia, chamada síndrome do atraso das ­ø§šx߉`¸øx­¸UäxßþDcT¸Ǹß¿ versidade da Califórnia não envolvido no
fases do sono (SAFS), que estudos sugeri- dias num recinto sem relógios nem jane- trabalho, destaca que estudos que exa-
ram ser pelo menos parcialmente heredi- las. Ela não só produzia o hormônio mela- minam grandes grupos em busca de liga-
tária. Agora, pesquisadores na Universi- nina, indutor de sono, de cinco a sete horas ções entre uma característica em particu-
dade Rockefeller descobriram uma muta- mais tarde do que pessoas comuns em lar e uma variante genética não encontra-
ção genética que poderia elucidar o que estudos anteriores, como seu sono também ram nenhuma conexão entre esta mutação
causa esses horários frequentemente incô- era estranhamente fragmentado, às vezes e a SAFS. Ainda assim, diz ele, o novo artigo
modos e complicados de sono. ocorrendo em breves cochiladas. Quando apresenta evidências convincentes de que
É claro que a SAFS não é necessaria- a equipe analisou seu DNA, eles encontra- ela poderia estar por trás de alguns casos
mente algo problemático para todos que ram uma mutação em um gene chamado da disfunção. —Veronique Greenwood

16 Scientific American Brasil, Outubro 2017


$DÇDäîEîxžälxîßE…x¸ǸlxߞD­D¥ølDß
Çxlxäîßxälx‰`žx³îxäþžäøDžäD³DþxDß
por cruzamentos ao indicarem o número
de pistas e a direção do trânsito.

T E C N O LO G I A
tres no trânsito. Se o experimento for bem- de alto contraste, para representar o cru-
Navegando -sucedido, mapas podem ser instalados nos
13 mil semáforos de Nova York, diz o presi-
zamento de uma das oito possíveis pers-
pectivas de alguém que vai atravessá-lo.
por toque dente da Touch Graphics, Steven Landau.
Ele diz que os mapas são importantes
Um círculo saliente, um pouco mais eleva-
l¸jžlx³îž‰`Dl¸`¸­¸Ù<¸`zxäîEDÔøžÚjîD³-
Mapas táteis podem ajudar ǸßÔøx`¸³‰øßDcÆxä`DlDþxą­Džä`¸­- to em braile como em texto padrão, mostra
cegos a atravessar cruzamentos plexas de ruas estão tornando mais difí- o ponto de partida de um pedestre, e uma
`ž§ÔøxÇxlxäîßxälx‰`žx³îxäþžäøDžääDžUD­ linha pontilhada delineia o caminho a ser
Pessoas em muitas cidades arriscam sua o que encontrarão depois de descerem do percorrido. Formas ovais simbolizam veícu-
vida toda vez que atravessam a rua. Em ­xž¸‰¸jlD`D§cDlDÍ îx`³¸§¸žD…¸žxĀÇx- los, com setas levantadas em uma extremi-
Nova York, mortes de pedestres rimentada na Dinamarca e na Suécia, mas dade de cada “carro” para mostrar a dire-
responderam pela maioria das fatalidades o teste de Nova York é inédito na América ção do tráfego em uma pista.
anuais de trânsito desde 2006. Para quem do Norte, segundo Landau. São Francisco e Sile O’Modhrain, que estuda tecnolo-
îx­lx‰`žz³`žDþžäøD§jDäžîøDcT¸y䞳ø- Toronto em breve poderão testar tais siste- gia tátil na Universidade de Michigan e não
larmente perigosa e está se agravando. mas também, acrescenta ele. envolvida no projeto, acredita que esses
No último verão, designers na Touch A equipe de Landau criou os mapas mapas poderiam mudar vidas. O’Modhrain,
Graphics, uma empresa que produz tec- usando o método de impressão ultravio- que é cega, diz que cruzamentos comple-
nologia de navegação que incorpora infor- leta: a tinta é impressa em uma superfície xos em Ann Arbor, Michigan, limitam os
mações de vários sentidos do corpo huma- e depois exposta a uma luz UV que a cura lugares onde ela pode viver. “Acho que esta
no, trabalharam com o Departamento antes que ela possa secar ao ar. Esse pro- seria uma ideia fantástica porque quan-
de Transportes de Nova York para testar cesso permite obter mais detalhes e menos do chego a um cruzamento sempre é difí-
mapas táteis — diagramas com traços tridi- espalhamento de tinta, o que é útil para cil saber quantas pistas terei de atravessar”,
mensionais e texto em braile — num cruza- `ߞDߐßE‰`¸äx­ßx§xþ¸ÔøxäT¸äø‰`žx³- diz. Embora possa escutar o volume do trá-
­x³î¸Çxßî¸lxø­`x³î߸ÇDßDlx‰`žx³îxä temente nítidos e claros para poderem ser fego e sentir de qual direção ele vem, diz
visuais. O projeto faz parte da iniciativa da sentidos por meio do tato. Cada mapa usa O’Modhrain, rotular as pistas poderia ser
cidade para acabar com mortes de pedes- formas tridimensionais e cores brilhantes, uma indicação útil. —Andrea Marks

Fotografia de Liz Tormes www.sciam.com.br 17


DESAFIOS DO COSMOS Salvador Nogueira÷™«Í§D›”ÒÜDfrZ”ù§Z”DrÒµrZ”D›”îDf«r¡
DÒÜÍ«§«¡”DrDÒÜÍ«§ñæܔZD»DæÜ«Ífr«”Ü«›”èÍ«Òdfr§ÜÍrr›rÒHkceWe
_dÒd_je0FWiiWZe[\kjkheZWWl[djkhW^kcWdWdWYedgk_ijWZe[ifW‚e
e ;njhWj[hh[ijh[i0EdZ[[b[i[ij€e[YeceWY_…dY_Wj[djW[dYedjh|#bei»

Fecha-se nosso olho sobre Saturno


Missão Cassini encontrou lagos e oceanos em satélites do gigante dos anéis
Salvador Nogueira

Acabou. No último dia 15 de setembro, a espaçonave Cassini que não deve acontecer tão cedo.
concluiu sua última órbita ao redor de Saturno e mergulhou E é essa a maior angústia do fim da missão, na verdade.
na atmosfera do famoso planeta dos anéis. Foi uma missão Cortaram o cordão umbilical que existia entre a Terra e Satur-
como poucas na história. Praticamente nenhum problema no. Ao longo dos últimos 13 anos, ficamos (mal) acostumados
técnico ao longo do caminho, o que permitiu uma exploração de receber, a qualquer hora do dia ou da noite (espaçonaves
exaustiva — no bom sentido — do sistema saturnino. não dormem!), imagens e dados incríveis do incrível sistema
Ao longo de 13 anos, boa parte da superfície da lua Titã foi saturnino. O plano original era que a Cassini durasse quatro
mapeada com radar, revelando os lagos e mares de metano e anos. Mas as coisas foram caminhando tão bem que os cien-
etano que lá existem — e eram apenas hipóteses depois que tistas puderam ousar sonhar acompanhar a transição entre
a sonda Voyager 1 passou por aquelas imediações, em 1980. as estações saturninas. Manja “o inverno está chegando”?
Mais que isso, o companheiro de viagem da Cassini, o peque- A sonda chegou por lá no outono do hemisfério Sul e teve
no módulo europeu Huygens, realizou um pouso suave na a chance de esperar Saturno dar praticamente meia-volta ao
superfície titânica, revelando detalhes da composição, den- redor do Sol para ver como isso influenciava no clima do pla-
sidade e dinâmica atmos- neta e de suas luas. (Satur-
férica da lua – a única do no leva 29 anos para dar
Sistema Solar a ter invó- uma volta inteira em torno
lucro de ar comparável de nossa estrela mãe.)
ao da Terra. (Como aqui, Agora, tudo isso acabou.
lá também predomina o Novos estudos de Satur-
gás nitrogênio. Mas nada no dependerão de nos-
de oxigênio por lá, e mui- sos telescópios — que, por
to menos vapor d’água, a melhores que sejam, não
uma temperatura apenas chegam nem perto da van-
94 graus acima do zero tagem que é ter uma nave
absoluto.) in loco para estudar as coi-
A Cassini também fez sas —, e todos os detalhes
investigações intensas da que um dia vimos do dinâ-
lua Encélado. Ela era pra- Saturno e seus anéis, uma visão da Cassini que não teremos novamente tão cedo. mico ambiente saturnino
ticamente uma bola de passarão à lembrança.
neve a orbitar Saturno, com modestos 500 km de diâmetro, Os resultados da Cassini ainda impulsionarão pesquisas
até a sonda revelar toda a sua complexidade. Sob uma crosta por anos a fio. Entre as respostas finais que a sonda nos pro-
de gelo nova e cheia de rachaduras, um oceano de água líqui- meteu legar estão a composição detalhada da alta atmosfe-
da, em contato com um leito rochoso. Para completar o cená- ra de Saturno — detecção que a espaçonave fez e transmi-
rio, plumas de água são ejetadas para o espaço através de tiu para a Terra em tempo real durante seu mergulho pela
uma série de fraturas na região polar Sul. A Cassini investi- atmosfera do planeta — e a massa de seus anéis, que por sua
gou a composição das plumas e constatou que elas têm todos vez permitirá descobrir se eles são tão velhos quanto o Siste-
os ingredientes para alimentar um ecossistema microbiano ma Solar, com seus 4,5 bilhões de anos, ou tão jovens quan-
no interior da lua. to os dinossauros, com uns 100 milhões de anos. Ou seja, não
Infelizmente, contudo, o espectrômetro da Cassini não pararemos tão cedo de ouvir falar da missão. Mas, apesar dis-
tinha resolução suficiente para encontrar moléculas de ori- so, é inegável que, depois do dia 15 de setembro, os modestos
NASA/JPL-CALTECH

gem biológica, de forma que seguimos sem saber se Encé- 80 minutos-luz que nos separam do planeta dos anéis volta-
lado, além de habitável, é habitada. Essa é uma questão que ram a ficar do tamanho que realmente são para nós, cerca de
ficará para a próxima espaçonave a visitar o sistema, algo 1,5 bilhão de km.

18 Scientific American Brasil, Outubro 2017


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Um cometa muito estranho


Além da passagem do 96P/Machholz pelo periélio, não perca a oposição
de Urano e os Orionídeos, chuva de meteoros associada ao Halley.

O astrofotógrafo Marcelo Zurita registrou em João Pessoa (PB) o


eclipse solar ocorrido no dia 21 de agosto. O fenômeno causou
frisson³¸ä7 jǸ߸³lx`ßøą¸øD…DžĀDlxî¸îD§žlDlxj­D䳸
ßD䞧
…¸žþžäŸþx§DÇx³Dälx­D³xžßDÇDß`žD§xUx­Çß¹Āž­¸D¸Ǹx³îx͸î¸
foi obtida com câmera Nikon D5100 e Lente Rokinon 800mm F8

O mês de outubro trará um estranho visitante aos céus da das chuvas de meteoros mais fascinantes, os Orionídeos.
Terra: o cometa 96P/Machholz. Trata-se de um astro de cur- Trata-se de uma das duas travessias anuais que a Terra faz
to período, que completa uma volta a cada 5,3 anos. No dia da órbita do famoso cometa Halley. Quando isso acontece,
27, ele atingirá sua máxima proximidade com o Sol, chegan- pequenos detritos deixados pelo astro adentram a atmosfe-
do bem mais perto dele que o planeta Mercúrio. E, felizmen- ra terrestre, produzindo os meteoros.
te, tanto o ângulo de sua órbita quanto a posição da Terra no O máximo da chuva vai se dar no dia 21, um sábado, e
Sistema Solar durante o periélio favorecem uma tentativa de a Lua estará num fino crescente, o que é uma ótima notícia
vê-lo. Ele deve ser visível ao amanhecer, logo antes de o Sol para os observadores. Sem o brilho lunar intenso e a obriga-
nascer, figurando sete graus a oeste do astro rei. ção de acordar cedo no dia seguinte, será uma ótima ocasião
Ou seja, a janela de observação é curta, entre a primeira para ver toda a beleza dos Orionídeos. O radiante — local de
luz da aurora e o despontar do Sol no horizonte. Mas, com onde parecem emanar os meteoros — fica na constelação de
um pouco de sorte e horizonte leste livre, é bem possível que Órion, que deve despontar no céu noturno durante a madru-
ele se torne visível mesmo a olho nu, com 2,9 magnitudes. E gada. Procure-a no horizonte leste após a meia-noite.
uma chance de ver um cometa à vista desarmada nunca deve Por fim, para quem gosta de caçar planetas, Urano é o
ser ignorada. Ainda mais em se tratando de um astro como o alvo preferencial em outubro. Ele entra em oposição no dia
Machholz, cuja composição é diferente de tudo que já se viu 19, e à 0h55 atinge sua menor distância da Terra no ano: res-
em objetos do tipo no Sistema Solar. Observações feitas em peitáveis 2,84 bilhões de quilômetros. Sua magnitude che-
2007 constataram que o cometa tem pouquíssimo carbono e ga a 5,7, perto do limite de acuidade da visão humana (5,5),
cianogênio — traços tão incomuns que já se chegou a aventar mas ainda invisível a não ser com binóculos ou telescópios.
a hipótese de que fosse um cometa extrassolar capturado pela Procure-o na constelação de Peixes.
gravidade do Sol depois de vagar pelo espaço interestelar.
E, por falar em cometa, o mês de outubro também traz uma Bons céus a todos! (S.N.)

www.sciam.com.br 19
VISIBILIDADE DOS PLANETAS N

MERCÚRIO
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DESTAQUES DO MÊS
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“ «¡rÜD¨×0Ø$DZ«›îZ«¡¡ñꔡ«O͔›«»

20 Scientific American Brasil, Outubro 2017


CARTA CELESTE PARA O MÊS DIA HORA EVENTO
$DµD¡«ÒÜÍDZ÷æè”Òûèr›òÒääððfr®³fr Þ ð¨ÞÞ "æDµDÒÒDDðdäi3fr%rÜ槫·«Zæ›ÜD]õ«§õ«è”Òûèr›f«
«æÜæOÍ«dòÒ䮐ððfr®€fr«æÜæOÍ«ròÒ
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€ ®ðää <ù§æÒDðdäi%fr$DÍÜr» «§™æ§]õ«è”Òûèr›D«D¡D§rZrÍ»
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www.sciam.com.br 21
CIÊNCIA DA SAÚDE

Apuro pediátrico Embora os estudos clínicos com adultos sejam feitos nos EUA
há bem mais de cem anos, as empresas farmacêuticas não testa-
vam regularmente seus produtos em crianças até os anos 1990,
Novas iniciativas visam diminuir quando o governo federal começou a oferecer incentivos finan-
ceiros. Em 1997, a Lei de Modernização da Food and Drug Admi-
os obstáculos para a descoberta de nistration (FDA), a agência que controla alimentos e medicamen-
tratamentos úteis para as crianças tos, concedeu às companhias seis meses adicionais de proteção
de patente para cada droga testada em crianças, e, depois disso,
Charles Schmidt uma nascente infraestrutura de testes clínicos pediátricos come-
çou a tomar forma. Leis adicionais ampliaram essas propostas e
Pais que avaliam se devem inscrever um filho doente em testes criaram programas para o desenvolvimento de drogas pediátri-
clínicos costumam enfrentar emoções conflitantes. De um lado, cas nos NIH.
esperam que o experimento leve a um avanço no tratamento. Contudo, o problema das diferenças fisiológicas continua, e
De outro, vivem a incerteza e o medo de expor voluntariamente muitos médicos se sentem, compreensivelmente, receosos de cal-
suas crianças a uma terapia não comprovada que pode se reve- cular as dosagens corretas. Mas essa relutância não é o único de-
lar ineficaz ou mais prejudicial que o tratamento padrão. O que safio. Após excluir os testes que ainda estavam recrutando par-
os pais ignoram é que a contribuição de seus filhos ao conheci- ticipantes ou não tinham aberto as inscrições, a equipe de Har-
mento científico também pode se perder em um estudo que vard descobriu que a maior razão para o fracasso dos estudos é
talvez nunca seja concluído nem apareça na literatura médica que eles não conseguem atrair o número suficiente de crianças. A
O desperdício desse esforço é uma grande possibilidade, se- falta de inscrições costuma ser um problema nos testes com adul-
gundo um estudo de 2016. Pesquisadores da Universidade Har- tos também, mas as pesquisas pediátricas enfrentam desafios sin-
vard revisaram os mais de 550 testes clínicos pediátricos regis- gulares. Os pediatras que exercem a atividade na comunidade po-
trados pelo governo federal dos EUA entre 2008 e 2011 e desco- dem não ter tempo disponível para participar da pesquisa clíni-
briram que mais de 40% nunca foram encerrados ou, apesar de ca, em especial se trabalham longe de hospitais acadêmicos onde
concluídos, não foram publicados mesmo cinco anos depois. No os recursos para sustentar os testes clínicos são logo acessíveis.
total, mais de 77.500 crianças participaram dos estudos que pou- Além disso, simplesmente não há tantas crianças quanto adultos.
co ou nada contribuíram para o desenvolvimento de tratamen- Apenas 20% da população dos EUA têm menos de 14 anos. E as
tos para suas doenças porque a pesquisa sumiu da vista científica. crianças, felizmente, têm muito menos chances do que os adul-
Além da perda de tempo, dinheiro e recursos, essas falhas tam- tos de sofrerem de uma doença grave. “Portanto, por definição, a
bém são “trágicas porque, para começar, temos tão pouca infor- maior parte das doenças da infância é rara”, diz Danny Benjamin,
mação de testes clínicos com crianças”, lamenta Florence Bour- professor de pediatria na Universidade Duke.
geois, professora assistente de pediatria e emergência médica da Ronnie Guillet conhece todas as dificuldades de recrutamen-
Escola Médica Harvard, coautora do estudo. to por experiência própria. Professora da Universidade de Ro-
Estão em curso iniciativas para melhorar a situação. Pesquisa- chester, Guillet teve de encerrar em 2014 testes clínicos que po-
dores em universidades e centros médicos analisam seus proces- deriam ter esclarecido por quanto tempo os recém-nascidos de-
sos de trabalho para descobrir bloqueios ocultos ao cadastramen- veriam ser medicados se apresentassem convulsões. Cerca de um
to em testes clínicos pediátricos. Ao mesmo tempo, os Institutos em cada 200 bebês sofre de convulsões dias após nascerem e não
Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) estão reunindo es- há consenso entre os médicos sobre o período do tratamento. Al-
pecialistas da academia, indústria e governo para tentar tornar guns mantêm a medicação apenas até que as convulsões parem.
os resultados mais amplamente disponíveis. Embora o progresso Outros a prolongam por várias semanas ou mesmo meses numa
seja gradual, os autores da proposta creem estar no rumo certo. tentativa de evitar que as convulsões voltem.
Guillet temia que o tratamento prolongado pudesse prejudi-
BATENDO CONTRA UM MURO car o cérebro da criança, embora ela também saiba que convul-
Por décadas, médicos que queriam prescrever medicações sões repetidas podem causar dano neurológico. A única forma de
para crianças ajustavam a dose para baixo a partir do recomen- saber como equilibrar os potenciais benefícios e riscos é por tes-
dado para um adulto, guiando-se apenas pelo peso delas. Mas os te clínico. Assim, após administrar aleatoriamente uma ou outra
mais jovens não são apenas adultos em tamanho menor. Sua fisio- forma de tratamento às crianças, ela planejava monitorar seu de-
logia muda rapidamente da infância para a adolescência, o que senvolvimento neurológico. Ela precisava inscrever 250 bebês em
significa que várias drogas podem desencadear efeitos imprevisí- dois anos para obter uma amostragem grande o suficiente a pon-
veis. Crianças não metabolizam o anestésico propofol, por exem- to de concluir que os resultados eram estatisticamente confiáveis.
plo, no mesmo ritmo dos adultos, o que leva à acumulação tóxica Mas os pais —e, para alguma surpresa de Guillet, enfermei-
em bebês. Recém-nascidos, crianças e adultos também metabo- ras neonatais — se mostraram céticos. “Alguns temiam colocar as
lizam anticonvulsivos de modo diverso, o que dificulta estimar a crianças em terapias longas e outros se preocupavam com o pla-
dose segura com base apenas em peso e tamanho. cebo”, diz. “Eles tinham receios parecidos, mas por razões opos-

22 Scientific American Brasil, Outubro 2017


Charles Schmidt ÷™«Í§D›”ÒÜDfrZ”ù§Z”D
r¡0«ÍܛD§fd$D”§r»

tas.” Ela teve de cancelar o estudo porque apenas 13 crianças es- cias reguladoras, universidades e outras organizações para au-
tavam inscritas após um ano, e suas questões seguem em aberto. mentar o número de populações carentes — incluindo crianças
Atrair o número exigido de participantes para um estudo, no — que são ajudadas por estudos médicos. Entre os desafios que a
entanto, não garante que ele será publicado nem que seus resul- rede já identificou está a necessidade de melhorar a comunica-
tados serão amplamente compartilhados. Companhias farmacêu- ção entre profissionais que buscam inscrever novos participan-
ticas, por exemplo, têm um bom histórico de recrutar o número tes em pesquisas — os recrutadores — e os cuidadores de crianças.
suficiente de crianças para terminar suas pesquisas. Mas poucos “Os recrutadores não costumam dedicar tempo suficiente a
de seus resultados aparecem, de fato, nas publicações científicas entender as motivações e o dia a dia das populações que eles ten-
na comparação com testes acadêmicos pagos pelos NIH ou ou- tam atrair”, diz Yvonne Joosten, que dirige um dos programas da
tras organização independentes. “As farmacêuticas só se preocu- rede recém-fundada, no Centro Médico da Universidade Vander-
pam com a publicação se os resultados apoiarem seus objetivos bilt. Joosten começou a coordenar encontros da comunidade em
comerciais”, afirma Bourgeois, de Harvard. Em outras palavras, nome dos pesquisadores de testes clínicos antes do lançamen-
elas tendem a publicar apenas os estudos com resultados positi- to de seus estudos. Nas “sessões de escuta”, como ela as chama,
vos. Como ela e seus colegas escreveram em seu estudo de 2016, Joosten conversa com famílias para saber mais sobre as barrei-
eles consideram a não publicação uma “violação dos imperativos ras que podem impedir a participação. O transporte de e para os
éticos de compartilhar resultados de testes que envolvam sujeitos locais de estudo pode ser um obstáculo, ou os pais podem sentir
humanos”. Para pesquisadores em universidades, em contraparti- que será inútil se envolver se suas crianças ficarem em um grupo
da, o histórico de publicações é questão de vida ou morte, explica de controle. “Pesquisadores não são obrigados a ouvir conselhos
Bourgeois, portanto, “esperava-se que os testes acadêmicos gera- de membros da comunidade, mas os que o fazem com frequência
riam mais estudos publicados, e foi isso o que vimos.” ficam satisfeitos com os resultados”, diz ela.
No front de publicações, as agências federais estão se mobi-
UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA lizando para garantir que os pesquisadores tornem seus resul-
Aprimorar um processo complexo como um teste clínico em tados visíveis — seja ou não em publicações científicas. Os pes-
geral exige maior coordenação e colaboração entre diferentes quisadores nos EUA precisam registrar novos testes e colocar os
grupos de pessoas. No outono passado, os NIH lançaram uma resultados finais em um banco de dados dos NIH aberto a con-
nova Rede de Inovação em Testes que reúne a indústria, agên- sultas, que pode ser encontrado em ClinicalTrials.gov. Quem não
o faz enfrenta pesadas penalidades previstas
na lei conhecida como Food and Drug Admi-
nistration Amendments Act, de 2007. A FDA
pode multar farmacêuticas que desrespeitam
a legislação em US$ 10 mil por dia, e os NIH
podem retirar o patrocínio a cientistas. Mas,
na prática, nenhuma companhia ou cientis-
ta financiado pelos NIH jamais recebeu qual-
quer punição. De acordo com Jerry Sheehan,
diretor assistente para políticas de desenvol-
vimento da Biblioteca Nacional de Medicina,
a lei de 2007 é repleta de ambiguidades a res-
peito de quais testes clínicos precisam ser re-
gistrados no site e quais tipos de resultados
devem ser divulgados.
Em uma tentativa de eliminar as brechas
na legislação, o Departamento de Saúde e Ser-
viços Humanos (de que fazem parte os NIH e a
FDA) emitiu extensas normas que esclarecem
em detalhes as exigências. As regras entraram
em vigor em janeiro. Falta saber se elas for-
necem aos clínicos as informações suficientes
para prescrever novas medicações — ou evitar
tratamentos desnecessários ou mesmo perigo-
sos — para crianças. Mas esse e outros esforços
devem, pelo menos, reduzir a chance de que
contribuições feitas pelos participantes mais
jovens de estudos científicos se percam.

Ilustração de Celia Krampien www.sciam.com.br 23


OBSERVATÓRIO Stevens Rehen,f”ÍrÜ«Ífr0rÒÂæ”ÒDf«§ÒܔÜæÜ«Ê'Ífr0rÒÂæ”ÒD
r§Ò”§«rµÍ«{rÒÒ«ÍfD72 »rf”ZD“ÒrDµrÒÂæ”ÒDÒZ«¡Z÷›æ›Dғ
“ÜÍ«§Z«rf”è曆D]õ«Z”r§ÜûZD»3”†D“«§«5é”ÜÜrÍNÒÜrèr§ÒÍrr§»

Do iogurte além de CRISPR — a proteína Cas e uma variante de ácido ri-


bonucleico chamada tracrRNA, funcionava como um sistema
eficiente de edição de DNA.

aos mamutes Na Califórnia, Emanuelle Charpentier e Jennifer Doud-


na logo perceberam a importância de CRISPR para a chama-
da “engenharia genética”. Em 2012, usaram a metodologia para
A rapidez com que o CRISPR se espalhou e “cortar” DNA num tubo de ensaio, primeiro passo para a edi-
ção precisa do material genético.
seu impacto para o futuro da humanidade Em 2013, Feng Zhang transferiu uma versão adaptada do
não tem precedentes que a evolução fez surgir nas bactérias para células humanas
em laboratório. Com a ajuda de seus colegas de Massachusetts,
Stevens Rehen
Zhang gerou mutações e “consertou” genes como nunca antes
na história da biologia.
Como escreveu Carl Sagan em seu livro Os dragões do Éden, Desde então, o tema esteve presente em mais de 6 mil pu-
“a curiosidade e a motivação para solucionar problemas são blicações científicas. Milhares de laboratórios em mais de 80
como características emocionais de nossa espécie”. Por con- países têm modificado o DNA de plantas, formigas, mosquitos,
ta dessa paixão pelo novo, cientistas se interessaram, por diversos mamíferos e células humanas através de CRISPR. Es-
exemplo, por estudar bactérias capazes de suportar concentra- tados Unidos, China, Japão e Alemanha respondem por mais
ções de sal que “secariam” qualquer outra forma de vida. da metade do conhecimento acumulado sobre a metodologia.
Esse foi o caso de Francisco Mojica. Em 1989, o jovem dou- Possibilidades de cura a curto prazo para doenças como
torando identificou sequências repetidas de DNA em Halofe- herpes, HIV e muitos tipos de câncer nunca foram tão reais.
rax mediterranei, uma bactéria halofílica (do grego: “amiga do Por conta disso, há uma enorme batalha judicial em curso
sal”) isolada dos pântanos de Santa Pola, na Espanha. sobre a propriedade intelectual referente ao potencial biotec-
Desvendar por que existiriam sequências repetidas de DNA nológico do CRISPR. No presente momento, a decisão está fa-
em bactérias tornou-se uma obsessão para o espanhol. Nos pri- vorável a Feng Zhang e seu instituto.
meiros 10 anos de sua carreira, Mojica identificou sequências A aplicação eficiente de CRISPR para a eliminação dos cha-
repetidas de DNA em dezenas de espécies de bactérias, assim mados vírus endógenos porcinos desfez a maior barreira sani-
como vários pesquisadores em outras partes do mundo. tária para o transplante de órgãos de porcos em humanos.
Com os avanços da bioinformática, foi possível perceber Em 2015 na China, Junjiu Huang fez a primeira edição de
que esse DNA “misterioso” presente nas bactérias era idênti- DNA por CRISPR em embriões humanos. Este ano um consór-
co a fragmentos de material genético de vírus nocivos a essas cio internacional liderado por Shoukhrat Mitalipov no Oregon
mesmas bactérias. O mais curioso foi perceber que micróbios corrigiu uma doença cardíaca em embriões humanos viáveis.
eram resistentes justamente aos vírus cuja informação genéti- Como se não bastasse, George Church usou CRISPR para
ca haviam incorporado! inserir um pequeno trecho do antigo filme do fotógrafo
Mojica batizou o conjunto das sequências repetidas de DNA Eadweard J. Muybridge chamado The gallop (com um cavalo
de clustered regularly interspaced short palindromic repeats em movimento) no interior de bactérias. Em outras palavras, o
(em português: repetições  palindrômicas  curtas agrupadas e time de Harvard criou um gravador biológico, capaz de arma-
regularmente interespaçadas), e o acrônimo CRISPR (pronun- zenar e propagar informação, seja ela qual for.
cia-se “crisper”) pegou. Para 2019, Church promete ressuscitar um animal extinto
Na mesma época, Gilles Vergnaud estudava armas biológi- há 4 mil anos. Ou pelo menos parte dele, um híbrido de elefan-
cas em seu laboratório na França e identificou CRISPR em bac- te asiático com fragmentos de material genético de mamute.
térias causadoras da peste negra e antraz. Ele propôs que as se- CRISPR também permite a transmissão de mutações dese-
quências repetidas seriam como “memórias de agressões pas- nhadas em laboratório para descendentes, através da manipu-
sadas” que ajudariam bactérias a se lembrar dos vírus com os lação do DNA de espermatozoides e óvulos. Controvérsias e de-
quais tiveram contato prévio. bates éticos à parte, a possibilidade é de matar de inveja Char-
A confirmação de que CRISPR seria parte de um sistema les Xavier e toda a legião de X-Men.
imunitário adaptativo veio de Philippe Horvath também na A principal lição que podemos tirar dessa breve história de
França. Horvath demonstrou que bactérias responsáveis pela um dos maiores avanços da biologia de todos os tempos é que
produção de iogurte incorporavam parte do material genético a geração de conhecimento será sempre fruto da motivação ge-
de vírus quando expostas a eles. Dessa maneira, ganhavam re- nuína daqueles que querem entender a vida e também do in-
sistência valendo-se de um sistema de reconhecimento e com- vestimento constante em ciência. Recado para jovens curiosos
bate a futuros ataques. e, principalmente, para a classe política de países que ignoram
Nos anos seguintes, ficou evidente que o recém-descober- de onde virá o futuro da espécie humana ou um iogurte mais
to mecanismo de defesa imunitária das bactérias, incluindo — gostoso e nutritivo.

24 Scientific American Brasil, Outubro 2017


CÉTICO
Michael Shermer é editor da revista Skeptic (www.skeptic.com) V E N D O O MU N D O C OM
e Presidential Fellow da Universidade Chapman. Seu próximo livro UM O L H A R R AC I O N A L
chama-se Heavens on Earth. Siga-o no Twitter @michaelshermer

Pós-modernismo da Ausência” em que “estudantes, funcionários e docentes bran-


cos são convidados a deixar o campus para as atividades do dia”.

versus ciência
Weinstein colocou suas objeções em um e-mail: “numa universi-
dade, o direito de falar — ou estar — jamais deve se basear na cor
da pele”. Em resposta, uns 50 furiosos estudantes interromperam
sua aula, cercaram-no, acusaram-no de racista e insistiram que
As raízes da atual loucura na universidade ele se demitisse. Weinstein afirma que a polícia do campus infor-
Michael Shermer mou a ele que o presidente da faculdade lhes pediu que recuas-
sem, mas ele foi forçado a se afastar para sua própria segurança.
Em um ensaio de 1946 no Tribune, de Londres, intitulado “Dian- Como a situação chegou a esse ponto? Uma tendência foi
te de seu nariz”, o escritor George Orwell observou que “todos apontada por Weinstein num ensaio em The Wall Street Journal:
somos capazes de acreditar em coisas que sabemos ser inverda- “Os tradicionais campos empírico e dedutivo, incluindo todas as
des, e, então, quando fica provado que estávamos errados, distor- ciências exatas, conviveram lado a lado com ‘teoria crítica’ pós-
cemos os fatos como que para provar que tínhamos razão. Inte- -modernismo e seus parentes baseados em percepção. Desde a
lectualmente, é possível manter esse processo por um longo criação, nos anos 1960 e 1970, dos novos campos orientados por
tempo: o problema é que, cedo ou tarde, a falsa crença se chocará justiça, essas visões de mundo incompatíveis vêm se repelindo
com a dura realidade, em geral em um campo de batalha”. mutuamente”.
Os campos de batalhas intelectuais hoje são as universidades, Em artigo para Quillette.com a respeito dos “Métodos por
onde as profundas convicções dos estudantes sobre raça, etnia, trás da insanidade do campus”, o pesquisador de pós-graduação
gênero e orientação sexual e sua justiça social avessa ao capita- Sumantra Maitra, da Universidade de Nottingham, relatou que
lismo, imperialismo, racismo, privilégio dos brancos, misoginia 12 dos 13 acadêmicos que protestaram contra Yiannopoulos eram
e “heteropatriarcado cissexista” se chocaram com a realidade de de “teoria crítica, estudos de gênero e de formação pós-colonial/
fatos contraditórios e visões opostas, levando ao caos e mesmo à pós-modernista/marxista”. Essa é uma mudança na teoria marxis-
violência no campus. Estudantes da Universidade da Califórnia ta do conflito de classes para conflito de política de identidades;
em Berkeley e agitadores externos, por exemplo, se rebelaram à em vez de julgar pessoas pelo conteúdo de seu caráter, elas ago-
simples menção de que os controversos conservadores Milo Yian- ra devem ser julgadas pela cor de sua pele (ou sua etnia, gênero,
orientação sexual etc.). “Pós-modernistas tentaram seques-
trar a biologia, dominaram grandes partes da ciência polí-
tica, quase toda a antropologia, história e inglês”, prossegue
Maitra, “e proliferaram as autorreferenciais publicações
especializadas, círculos de citações, pesquisas não repli-
cáveis, e o cerceamento do debate matizado por meio de
ativismos e marchas, instigando um grupo de estudantes
ingênuos a intimidarem quaisquer ideias contrárias.”
Estudantes estão sendo ensinados por esses professo-
res pós-modernos que não há verdade, que ciência e fatos
empíricos são meios de opressão do patriarcado bran-
co, e que quase todos na América são racistas e fanáticos,
incluindo seus professores, a maioria dos quais são liberais
ou progressistas dedicados a combater esses males sociais.
Dos 58 docentes de Evergreen que assinaram uma decla-
ração “em apoio aos estudantes”, pedindo punição contra
Weinstein por “colocar em risco” a comunidade ao conce-
der entrevistas à mídia nacional, eu contei apenas sete de
ciências. A maioria tem especialização em inglês, literatu-
nopoulos e Ann Coulter haviam sido convidados a falar (no fim, ra, artes, humanidades, estudos culturais, estudos sobre a mulher,
nunca o fizeram). Os estudantes da Faculdade Middlebury ataca- estudos da mídia e “cotidianos imperialismos, geografia interme-
ram fisicamente o autor libertário Charles Murray e sua anfitriã tropolitana e apropriação indevida”. Um curso chamado “resis-
liberal, a professora Allison Stanger, de quem puxaram o cabelo e tências fantásticas” é descrito como “um dojo para aspirantes a
torceram o pescoço, mandando-a para um pronto-socorro. guerreiros da justiça social”, com foco em “assimetrias de poder”.
Uma causa subjacente dessa situação pode ser vista no que Se alguém ensina estudantes a combater todas as assimetrias
aconteceu no Evergreen State College, em Olympia, Washington, de poder, não se surpreenda quando eles se voltarem contra seus
em maio, quando o professor autodeclarado “profundamen- professores e gestores. É o que acontece quando se separa fatos
te progressista” Bret Weinstein se recusou a participar do “Dia de valores, empirismo de moralidade, ciência de humanidades.

Ilustração de Izhar Cohen www.sciam.com.br 25


QUANDO O MEDO DIRECIONA A
OPINIÃO PÚBLICA SOBRE A CIÊNCIA
É PRECISO EVITAR QUE O ESPAÇO ENTRE O QUE PENSAM OS CIENTISTAS E OS LEIGOS SEJA OCUPADO PELA ESPECULAÇÃO
ADRIANA BRONDANI

Há algumas décadas, a de Michigan, da qual par- em relação aos OGMs pode não
busca por informações so- ticiparam 1.059 pessoas, îxßßx§DcT¸`¸­DxäÇx`ž‰`žlD-
bre as tecnologias usadas Çxß­žîx­Džäø­Dßx‹x- de dessa tecnologia e, sim, com o
para desenvolver alimentos xão sobre o tema. Segun- medo do desconhecido.
era menor. Embora muitos ADRIANA BRONDANI do o trabalho, um percen- A mesma confusão foi observa-
÷ O”þ›«†Dd ¡rÒÜÍr r
fatores possam explicar a f«æÜ«ÍD r¡
”«Âæû¡”ZD tual representativo (38%) da em pesquisa brasileira condu-
procura recente, não pode- r
”«›«†”D $«›rZæ›DÍ» diz conhecer bem como zida pelo Ibope em 2016, na qual
rÒfr äð®® ÷ f”ÍrÜ«ÍD“
mos ignorar o papel central rêrZæܔèD f« «§Òr›« funciona a cadeia global apenas 17% dos participantes con-
que a internet hoje desem- fr §{«Í¡D]ĂrÒ Ò«OÍr da produção de alimentos. cordam que ingerem DNA diaria-

”«ÜrZ§«›«†”D · 
¸»
penha para a democratiza- No entanto, praticamen- mente e 73% revelaram preocupa-
ção do acesso a dados, in- te o mesmo percentual de ção em consumir essa molécula.
clusive sobre o desenvolvimento entrevistados (37%) acredita que Como a preocupação das pes-
do que comemos. Com a atual de- apenas os OGMs possuem genes. soas tem se mostrado, com fre-
manda por informações, é impera- Para estes, não há genes em pro- quência, desproporcional quan-
tivo que a ciência associada a es- dutos convencionais. do comparada aos possíveis ris-
sas inovações se torne acessível. Ainda nos Estados Unidos, ou- cos das tecnologias, a comunidade
As diferenças de percepção en- tro estudo conduzido com meto- `žx³îŸ‰`DjKäþxąxäjäxÔøxä³D
tre cientistas e público leigo a res- dologia semelhante revelou que sobre o quanto a opinião pública é
peito de diversas tecnologias são 84% dos entrevistados são favo- relevante na aceitação de produ-
fortemente evidenciadas no re- ráveis à rotulagem obrigatória de tos decorrentes de avaliações res-
latório Public and Scientists View’s transgênicos. Surpreendentemen- paldadas pela ciência. Entretanto,
on Science and Society, publica- te, quase o mesmo percentual é razoável excluir os consumido-
do pelo Pew Research Center em (80%) demonstrou apoio à hipó- res do debate sobre a produção de
2015. Em temas como vacinação e tese de rotular todos os alimen- alimentos?
alimentos transgênicos, o enten- tos que contenham DNA. Uma Diversos fatores psicológicos,
dimento sobre a segurança dessas vez que quase 100% do que con- culturais e econômicos podem le-
inovações é mais claro entre pes- sumimos têm essa molécula, esse var os consumidores a desenvol-
quisadores do que entre consu- achado sugere que a apreensão verem convicções divergentes
midores não vinculados à ciência.
Dentre os casos citados, a maior COMO VOCÊ AVALIA SEU CONHECIMENTO APENAS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS
diferença se dá quanto aos orga- SOBRE O SISTEMA DE PRODUÇÃO POSSUEM GENES. ESSA AFIRMAÇÃO É
³žä­¸ä x³xîž`D­x³îx ­¸lž‰`D- GLOBAL DE ALIMENTOS? FALSA OU VERDADEIRA?
dos (OGMs). A pesquisa mostra
que 88% dos cientistas membros 80 80

da American Association for the Ad-


60 60
vancement of Science (AAAS) acre-
ditam que os alimentos transgê- 40 40
nicos são seguros para o consu-
mo, enquanto na população leiga 20 20
o percentual é de apenas 37%.
0 0
Em agosto de 2017, uma pes- Alto ou Baixo ou Verdadeiro Falso
quisa de opinião da Universidade muito alto muito baixo

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D§Ü”“«†¡§«Ò7

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¡r›«ÍD¡r§Ü«
†r§÷ܔZ«frµ›D§ÜDÒ

das da ciência e com elevado viés é algo inaceitável.


ideológico. No entanto, esse viés A contradição das respostas
é ainda mais pronunciado quan- dos consumidores revelada nes-
do a falta de informação predomi- ses estudos denuncia o quanto

FOTOS: BIGSTOCK
na nos debates. Se a academia não ³¹äjÇ߸‰ä䞸³Džälx`žz³`žDälD
se preocupar em comunicar suas vida, ainda precisamos avançar em
descobertas para além dos fóruns comunicação para diversos públi-
técnicos, a opinião pública conti- cos e no engajamento da socieda-
nuará refém de visões alarmistas e, de para que as percepções envol- PARA CONHECER MAIS:
sobretudo, infundadas. Com a atu- vendo produtos da ciência não se-
al disponibilidade de ferramentas jam dominadas pelo medo e pela Public and Scientists Views’s on Science and
Society»0ré2rÒrDÍZ r§ÜrÍdä𮀻”Òµ«§ûèr›
de comunicação, a falta de diálogo desinformação. r¡ÜܵcØØéé黵r锧ÜrͧrÜ»«Í†Øäð®€Øð®Øä¨Ø
µæO›”Z“D§f“ÒZ”r§Ü”ÒÜғè”réғ«§“ÒZ”r§Zr“D§f“
16% Ò«Z”rÜëØ
VOCÊ É A FAVOR DE NÃO VOCÊ ACREDITA QUE, AO
What consumers don´t know about
QUE ALIMENTOS SE ALIMENTAR, INGERE: ‘y´yïŸ`D¨¨Ă®¹mŸŠym†¹¹mjD´m›¹Āï›Dï
QUE CONTENHAM D‡y`ïåUy¨Ÿy†å»
ÍD§f«§2$DZDffr§D§f
Vitaminas e
INGREDIENTES 84% minerais 83%
DëÒ«§""æҚ»J^[<7I;8@ekhdWbd<«›Þ𷨸d Þ𨮓
TRANSGÊNICOS SIM
Þð¨×däð®×»
TRAGAM ESSA Carboidratos 76% Estudo de percepção sobre transgênicos
INFORMAÇÃO NO RÓTULO? na produção de alimentos» «§Òr›«fr
Agrotóxicos 74% §{«Í¡D]ĂrÒÒ«OÍr
”«ÜrZ§«›«†”Ddäð®×»”Òµ«§ûèr›
r¡ÜܵcØØZ”O»«Í†»OÍØrÒÜæf«Ò“r“DÍܔ†«ÒØrÒÜæf«“fr“
VOCÊ É FAVOR DE 20% Proteínas µrÍZrµZD«“Ò«OÍr“ÜÍD§Ò†r§”Z«Ò“§D“µÍ«fæZD«“fr“
NÃO 72%
QUE ALIMENTOS D›”¡r§Ü«ÒØ
QUE CONTENHAM Food Literacy and engagement poll.
Gorduras 71%
DNA TRAGAM ESSA $”Z”†D§3ÜDÜr7§”èrÍҔÜëdäð®Ö»”Òµ«§ûèr›
80%
INFORMAÇÃO SIM r¡ÜܵcØØ{««f»¡Òæ»rfæØDÍܔZ›rÒØ
DNA 17%
NO RÓTULO? ¡Òæ“{««f“›”ÜrÍDZë“D§f“r§†D†r¡r§Ü“µ«››

CONTEÚDO OFERECIDO PELO CIB (CONSELHO DE INFORMAÇÕES SOBRE BIOTECNOLOGIA) äÖ


'OÍD¡«ÒÜÍDÂær'$Ò
µ«fr¡Z«¡ODÜr͵ÍD†DÂær
DÍÍDÒDµ›D§ÜD]ĂrÒ§D{͔ZD

A CIÊNCIA CONTRA-ATACA
EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE, FOOD EVOLUTION MOSTRA-SE UM DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO E RELEVANTE
FREDERICO FRANZ

Se você esteve no planeta Ter- §xäxäÍ D‰ß­DcT¸ xßD …D§äDj ­Dä


ra nos últimos dois anos, é prová- fez parte de uma estratégia bem-
vel que tenha se deparado com a -sucedida de apelar para especu-
expressão “pós-verdade”. A pala- lações que despertam aversão e
vra, aliás, foi eleita em 2016 como forçam as pessoas a agirem indu-
o termo do ano pelos especialis- zidas pelo medo.
tas da Universidade de Oxford, no É exatamente por isso que o
Reino Unido. “Pós-verdade” des- documentário Food Evolution é tão
creve circunstâncias nas quais fa- `¸³îx­Ç¸ßF³x¸ x ßx§xþD³îxÍ ' ‰§-
tos objetivos têm me- me de Scott Hamilton
nos importância do que Kennedy aborda o deba-
as crenças pessoais. Isso te sobre os alimentos ge-
aconteceu, por exem- ³xîž`D­x³îx ­¸lž‰`Dl¸ä
plo, quando partidários (OGMs) ou, como são
FREDERICO FRANZ
do Brexit (a saída do Rei- conhecidos popularmen-
÷ ™«Í§D›”ÒÜDd rÒµrZ”D›”ÒÜD
no Unido da União Euro- r¡ ¡ûf”DÒ f”†”ÜD”Ò r te, transgênicos. O tema,
peia) alegaram que fazer Z««Ífr§Df«Í fr embora hoje já seja tra-
Z«¡æ§”ZD]õ« f«
parte do Bloco custava «§Òr›« fr tado com um pouco mais
cerca de US$ 470 milhões §{«Í¡D]ĂrÒ Ò«OÍr de razoabilidade, princi-

”«ÜrZ§«›«†”D · 
¸»
por semana aos cofres in- palmente no Brasil, ain-

äs
da está repleto de hipóteses assus-
tadoras que a ciência não só rejei-
ta, como diz o contrário. Apenas
para mencionar uma fonte de alta
`ßxlžUž§žlDlxÇßxäx³îx³¸‰§­xjD
Academia Nacional de Ciências,
Engenharia e Medicina dos Esta-
dos Unidos atestou, em 2016, que
em nenhum estudo foram encon-
tradas evidências de efeitos ad-
versos derivados do consumo de
transgênicos em seres humanos
ou em outros animais. 3Z«ÜÜ!r§§rfëd%r”›5ëÒ«§r5ÍDZr
Essa publicação se soma a di- 3rrD§d«Ü͔«µ«ÍÜÍñÒf«›¡r
versas que chegaram à mesma
conclusão: os transgênicos apro- transgênicos e fundadora do mo- rização da ciência. Para demonstrar
vados até hoje são tão seguros vimento Moms Across America, essa contradição dos tempos atuais,
quanto outros alimentos, inclusive Bx³ ¸³xā`øîîj D‰ß­D Ôøx `¸³‰D ¸ ‰§­x îßDą îD­Uy­ ¸ä lxǸž­x³-
do ponto de vista ambiental. Ape- mais em outras mães que postam tos de diversos cientistas e pesquisa-
sar disso, não é exatamente inco- nas redes sociais ou em blogs do dores. Para guiar o espectador, con-
mum que apareçam histórias alar- que em médicos ou em agências tamos com a narração de Neil de
mantes sobre o assunto, especial- governamentais. “Elas são reais, eu Grasse Tyson, doutor em astrofísica
mente na internet. É nesse ponto ³T¸ Çßx`žä¸ lx ø­ xäîøl¸ `žx³îŸ‰- e talvez um dos mais conhecidos di-
Ôøx¸‰§­xl¸lžßxî¸ß ž³lž`Dl¸ D¸ `¸Új D‰ß­Dj `Dîx¹ßž`DÍ þø§Dl¸ßxä `žx³îŸ‰`¸ä lD DîøD§žlDlxÍ
Oscar de melhor documentário Vivemos em um período mui- O documentário estreou nos Es-
em 2009 se conecta muito bem à to particular na história da comu- tados Unidos em junho de 2017 e,
nossa realidade. A obra tenta tra- nicação. Com o advento da inter- no Brasil, terá sessões especiais
zer à tona o que, de fato, é ciên- net e das mídias digitais, nunca foi apresentadas pela 3`žx³îž‰` ­x-
cia e o que é crença cega, típica da tão farta a oferta de informações. rican Brasil. As exibições vão acon-
pós-verdade, em meio às discus- Apesar disso, paradoxalmente, esse tecer na semana mundial da ali-
sões sobre os transgênicos. A certo acesso ao conhecimento não veio mentação, dias 18 e 19 de outubro
­¸­x³î¸l¸‰§­xjDDîžþžäîD D³îž- acompanhado de uma maior valo- em São Paulo e dia 20 em Por-
to Alegre e em Goiânia. Para saber
”›¡r ÂærÒܔ«§D æÒ« fD mais sobre alimentos transgênicos
r¡«]õ« Z«¡« rÒÜÍDÜ÷†”D x ä¸Ußx `¸­¸ Dääžäîžß D¸ ‰§­xj UDäîD
f« ¡«è”¡r§Ü« Z«§ÜÍD '$ ‰`Dß §žDl¸ ³D 3`žx³îž‰` ­xߞ`D³
nas redes sociais ou acompanhar as
atualizações do site da revista.

PARA CONHECER MAIS:

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IMDB — 5r §ÜrͧrÜ $«è”r DÜDODÒr v
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Genetically Engineered Crops:
Experiences and Prospects 5r %Dܔ«§D›
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no Brasil u ééé»ÒZ”D¡»Z«¡»OÍ

CONTEÚDO OFERECIDO PELO CIB (CONSELHO DE INFORMAÇÕES SOBRE BIOTECNOLOGIA) ä¨


ESTA NÃO
É UMA

1. 2. 3. 4. 5.
HOMENS PROMÍS- EXISTE UM QUANDO SEXO E ALÉM DO XX E XY NÃO SÓ
CUOS, MULHERES CÉREBRO GÊNERO COLIDEM AMANDA MONTAÑEZ PARA HOMENS
CASTAS E OUTROS “FEMININO”? KRISTINA R. OLSON página 50 MARCIA L. STEFANICK
MITOS DE GÊNERO LYDIA DENWORTH página 44 página 52
CORDELIA FINE E página 38
MARK A. ELGAR
página 32

SEXO DEVERIA SER SIMPLES, pelo menos no nível molecular. As explicações biológicas nos
livros didáticos consistem em X + X = Ƃ e X + Y = ƃ. Vênus ou Marte, rosa ou azul. Mas à medida que a ciência
olha com mais atenção, fica cada vez mais claro que um par de cromossomos nem sempre basta para distinguir
menina/menino, tanto do ponto de vista do sexo (características biológicas) como do gênero (identidade social).
No domínio cultural, essa mudança de perspectiva já foi amplamente aceita. As definições “não dualistas” de
gênero — pessoas transfemininas, não-binários, hijras (transgêneros e intersexuais da Índia, do Paquistão e de
Bangladesh) — entraram no vernáculo. Menos visíveis talvez sejam as mudanças que estão ocorrendo nas ciên-
cias biológicas. A imagem emergente que denota características “de menina” ou “de menino” revela o envolvimen-
to de complexas redes gênicas — e todo o processo parece estender-se muito além de um momento específico, seis
semanas após a concepção, quando as gônadas começam a se formar.
Em graus diversos, muitos de nós são híbridos biológicos em um contínuo masculino-feminino. Pesquisado-
res encontraram células XY em uma mulher de 94 anos e cirurgiões descobriram um útero num homem de 70, pai
de quatro filhos. Novas evidências sugerem que o cérebro consiste em um “mosaico” de diversos tipos de células,
algumas delas mais yin [femininas], outras mais yang [masculinas]. Essas descobertas têm implicações de longo
alcance, bem além de apenas atualizar os livros didáticos de biologia. Elas são relevantes em especial em questões
de identidade pessoal, saúde e bem-estar econômico de mulheres. Isso ocorre porque as discussões sobre diferen-
ças biológicas inatas entre os sexos persistiram muito além da hora em que deveriam ter sido abandonadas.
Em 1895, um artigo na Scientific American, “A mulher e o volante”, indagou se se deveria deixar que mulheres
andassem de bicicleta por causa de sua saúde física. Por fim, o artigo concluiu, o esforço muscular exigido é bas-
tante diferente do que é necessário para operar uma máquina de costura. Just Championnière, o eminente cirur-
gião francês autor do artigo, respondeu afirmativamente à pergunta que ele mesmo havia feito, mas apressou-se

30 Scientific American Brasil, Outubro 2017


& gênero é importante para todos
6. 7. 8. 9.
O RETORNO TRABALHO A ARMADILHA O EFEITO
DAS FILHAS DE MULHER DO TESOURA
DESAPARECIDAS ANA L. REVENGA E BRILHANTISMO DÉBORA MENEZES,
MONICA DAS GUPTA ANA MARIA MUNOZ ANDREI CIMPIAN E CAROLINA BRITO E
página 58 BOUDET SARAH-JANE LESLIE CELIA ANTENEODO
página 64 página 70 página 76

em dizer: “Mesmo quando ela está à vontade, deveria se lembrar de que seu sexo não é destinado por nature-
za para violento esforço muscular... E mesmo quando uma mulher se preparou cautelosamente e treinou para o
exercício, sua velocidade jamais deveria ser a de um homem adulto em pleno vigor muscular”.
É claro, atitudes do século 19 podem ser descartadas de imediato por causa de seu divertido e singular cará-
ter arcaico. Mas, como mostra mais esta atual análise anual aprofundada de um tema de premente interesse fei-
ta por Scientific American, noções enraizadas sobre a inferioridade das mulheres persistem até agora, século 21
adentro. Isso é verdade até mesmo nas ciências, onde alguns campos enfatizam o brilhantismo intelectual, erro-
neamente associado a homens brancos, como pré-requisito para o sucesso, atitude que afasta potenciais candi-
datas femininas nas áreas de física e matemática.
Desde que Championnière escreveu para a Scientific American, o status das mulheres inegavelmente melho-
rou. Pelo globo, mulheres de países ricos e pobres fizeram grandes avanços em educação e saúde reprodutiva,
e assumiram mais papéis no processo de tomada de decisões. Mas não basta. Persistem barreiras econômicas
que impedem mulheres de ganhar acesso a capital e empregos, e serem remuneradas com um salário decente,
pelos empregos que encontram. Mais energia precisa ser investida também em pesquisar como doenças afetam
os sexos de maneiras diferentes — e em adaptar os tratamentos médicos às necessidades das mulheres. Para que
um mundo interligado prospere, mulheres têm de ser mais empoderadas para sustentarem a sua metade do céu
— uma questão que deveria exigir tanta atenção quanto mudanças climáticas e controle de armas nucleares.
A mudança só continuará se as instituições que de fato importam mantiverem-se abertas a ela. A investida dos
legisladores republicanos em Washington contra a saúde feminina é um obstáculo formidável. O bem-estar das
mulheres precisa ser visto como uma questão de interesse geral. A nova ciência de sexo e gênero tem a perspectiva
de ajudar a moldar a percepção pública e a formulação de políticas para reconhecer esta realidade. —Os editores

www.sciam.com.br 31
HOMENS
PROMÍSCUOS,
MULHERES
CASTAS E OUTROS
MITOS DE GÊNERO
A noção de que diferenças comportamentais
x³îßx¸ääxĀ¸ääT¸ž³DîDäxž­øîEþxžä³T¸äx
sustenta sob escrutínio
CORDELIA FINE E MARK A. ELGAR
Ilustrações de Yuko Shimizu
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

M DOS MUSEUS DE ARTE MAIS PROVOCATIVOS DA AUSTRÁLIA,


o Museu de Arte Antiga e Nova, em Hobart, na Tasmâ-
nia, recentemente exibiu uma exposição sobre a evolu-
ção da arte. Três cientistas evolutivos convidados a
organizar a mostra como curadores ofereceram suas
perspectivas sobre como a evolução explica não apenas
as características de amebas, formigas e antílopes, mas
também o esforço único e exclusivamente humano na
arte. Uma dessas explicações vê a arte como um traço
que evoluiu, como a exuberante cauda do pavão, que
aumenta o sucesso reprodutivo de seu dono ao sinali-
zar sua superioridade como parceiro sexual.

Será que este cenário faz você pensar numa artis- desenvolveram características tais como tamanho
ta muito festejada, famosa por desafiar as convenções e avantajado ou galhadas grandes para ajudar a derro-
transitar por uma série de belos jovens? É, achamos que tar a concorrência na luta por território, status social e
não faria. O estereótipo do homem ousado e promís- parceiras. Da mesma forma, geralmente é o macho que
cuo — e sua equivalente, a mulher cautelosa e casta — desenvolveu características puramente estéticas, atra-
EM SÍNTESE
está profundamente enraizado. A sabedoria que nos foi entes para as fêmeas, como uma plumagem deslum-
transmitida sustenta que diferenças comportamentais brante, um canto elaborado ou um odor delicioso.
A clássica explicação
evolutiva frf”{rÍr§“ entre homens e mulheres são inatas e aprimoradas pela Foi, no entanto, o biólogo Angus Bateman que, em
]DÒZ«¡µ«ÍÜD¡r§ÜD”Ò seleção natural ao longo de milênios para maximizar meados do século 20, desenvolveu uma explicação con-
r§ÜÍr«¡r§Òr seus diferentes potenciais reprodutivos. Sob este ponto vincente de por que ser macho tende a levar à competi-
¡æ›rÍrÒÒæÒÜr§ÜD de vista, homens, em virtude de suas tendências inatas ção sexual. O objetivo da pesquisa de Bateman foi tes-
Âærr›DÒÍrrÜr¡æ¡ para competir e correr riscos, estão destinados a domi- tar uma importante suposição da teoria de Darwin.
µDfÍõ«ÂærÒrfrÒr§“ nar no mais elevado nível de todos os domínios de ação Como a seleção natural, a seleção sexual implica que
諛èræd«ær諛æ”ædr÷
humanos, seja na arte, na política ou na ciência. alguns indivíduos são mais bem-sucedidos do que
«OÒrÍèDf«r¡Ü«f««
Mas um olhar mais atento para a biologia e o com- outros. Portanto, se a seleção sexual age mais intensa-
Ír”§«D§”¡D›»$æ”ÜDÒ
frҔ†æD›fDfrÒfr portamento de humanos e outras criaturas mostra que mente em machos do que em fêmeas, então os machos
†ù§rÍ«dfrDZ«Íf« muitas das premissas iniciais criadas para explicar deveriam ter uma variedade maior de êxitos reproduti-
Z«¡rÒÜrµ«§Ü«fr essas diferenças estão erradas. Em muitas espécies, por vos, de fracassos deploráveis a grandes vencedores. Em
è”ÒÜDdÒõ«dµ«ÍÜD§Ü«d exemplo, a fêmea se beneficia por ser competitiva ou comparação, fêmeas deveriam ser muito mais pareci-
ǧDÜæÍD”ÒÈ» polígama. E mulheres e homens muitas vezes têm pre- das em seus sucessos reprodutivos. É por isso que ser
Mas pesquisas mos- ferências similares em suas vidas sexuais. Também está o equivalente animal de um brilhante artista beneficia
tram Âær¡æ”ÜDÒfDÒ
cada vez mais claro que fatores ambientais herdados machos muito mais do que fêmeas.
Ò浫Ҕ]ĂrÒ{æ§fD“
¡r§ÜD”ÒfrÒÜDr굛D“
têm um papel no desenvolvimento de comportamentos Bateman usou moscas-das-frutas para testar esta
§D]õ«rÒÜõ« adaptativos; em humanos, esses fatores incluem nossa ideia. Embora a tecnologia para testes de paternida-
rÂæ”è«ZDfDÒ» cultura de gênero. Tudo isso significa que a igualdade de não existisse à época, ele inferiu a linhagem e o
Fatores ambientais, entre os sexos pode ser mais viável do que se supunha. número de diferentes parceiros de machos e fêmeas o
D›÷¡f”ÒÒ«dµ«fr¡ melhor que pôde. Fez isso de forma bastante engenho-
frÒr¡µr§DÍæ¡ MACHOS RÁPIDOS, FÊMEAS MELINDROSAS sa ao usar moscas-das-frutas com diferentes mutações
µDµr›{æ§fD¡r§ÜD›§« A origem da explicação evolutiva passada e pre- genéticas, inclusive uma que torna os pelos nas asas
frÒr§è«›è”¡r§Ü«fr
sente da desigualdade entre gêneros é a teoria da sele- extralongos, outra que faz as asas se recurvarem para
Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü«Ò
ção sexual de Charles Darwin. Suas observações como cima, e outra ainda que torna seus olhos muito peque-
DfÂæ”Í”f«Òdr諛æûf«Ò»
$æfD§]DÒZæ›ÜæÍD”Ò naturalista o levaram a concluir que, com algumas nos ou ausentes. Essas mutações às vezes são evidentes
µÍ«†ÍrÒҔèDÒ§õ«Çèõ« exceções, na arena do galanteio e acasalamento, o desa- na prole, de modo que Bateman pôde estimar quantos
Z«§ÜÍDÈD%DÜæÍrîDd fio para ser escolhido em geral recai mais acentuada- descendentes cada adulto produziu ao contar o núme-
¡DÒDÍrrÒZÍrèr¡» mente sobre machos. Logo, machos, em vez de fêmeas, ro de diferentes mutantes entre as crias sobreviven-

34 Scientific American Brasil, Outubro 2017


tes. Com esses dados, concluiu que os machos de fato de Bateman-Trivers foram enunciados, muitas de suas
eram mais variáveis do que as fêmeas em seu sucesso suposições fundamentais foram derrubadas. Uma des-
reprodutivo (medido como prole). Bateman também sas mudanças conceituais diz respeito à suposta “bara-
relatou que somente o sucesso reprodutivo de machos teza” reprodutiva para machos. Sêmen nem sempre é
aumentou com o número de parceiras. Este resultado, barato e abundante: insetos machos da ordem Phas-
argumentou, é a razão pela qual machos competem e matodea, por exemplo, podem levar várias semanas
fêmeas escolhem: o sucesso reprodutivo de um macho para recuperar a libido após uma cópula longa. E um
é em grande parte limitado pelo número de fêmeas que escrutínio mais recente da mosca-das-frutas consta-
ele consegue inseminar, enquanto uma fêmea atinge tou que machos nem sempre aceitam oportunidades
seu ápice com um único parceiro que lhe fornece todo de acasalamento. Essa seletividade tem consequências
o sêmen de que ela precisa. para as fêmeas de muitos insetos, porque se elas se aca-
De início, a academia ignorou em grande parte o salam com um macho que copulou muito, arriscam ser
estudo de Bateman. Mas umas duas décadas depois, inseminadas com insuficiente sêmen. Esperma escas-
o biólogo evolutivo Robert Trivers, agora na Univer- so não é um desafio incomum para fêmeas, que podem
sidade Rutgers, o catapultou para a fama científica. se acasalar repetidamente com vários machos precisa-
Ele expressou a ideia de Bateman em termos de maior mente para absorver suficiente sêmen.
investimento da fêmea na reprodução — o ovo gran- De fato, nova análise dos dados de Bateman fei-
de e gordo, em comparação com o esperma pequeno e ta pelo laboratório de Patricia Gowaty, da Universida-
miúdo — e destacou que essa assimetria inicial pode ir de da Califórnia, revelou que o sucesso reprodutivo de
bem além dos gametas para incluir gestação, alimenta- uma mosca-das-frutas fêmea também aumenta com a
ção e proteção. Deste modo, assim como um consumi- frequência de seus acasalamentos, padrão que também
dor é muito mais cuidadoso na escolha de um carro do surgiu para muitas outras espécies. Além disso, estu-
que de uma bijuteria descartável e barata, Trivers suge- dos de campo mostram que o acasalamento para fême-
re que o sexo que mais investe — normalmente a fêmea as não é algo tão garantido como se presumia. Em mui-
— ficará de olho, à espera do melhor parceiro possí- tas espécies, uma proporção significativa de fêmeas
vel com que se acasalar. E é aqui que está a surpresa: o não encontra um macho e, portanto, não se reprodu-
sexo que investe menos — em geral o macho — agirá de Cordelia Fine zem. Nem o acasalamento promíscuo é algo padrão
um jeito que, idealmente, distribuirá sementes baratas é professora de para machos. A monoginia (ou monogamia), em que
”ÒÜþ͔Dr›«Ò«DfD
e abundantes o mais amplamente possível. Z”ù§Z”D§D machos só se acasalam com uma parceira, não é rara e
A lógica é tão convincente que não surpreende que 7§”èrÍҔfDfrfr pode ser eficaz para maximizar o sucesso reprodutivo.
se tenha identificado muitas espécies às quais os cha- $r›O«æͧrræ¡D Insetos não são as únicas criaturas que desafiam
mados princípios de Bateman-Trivers parecem se apli- {r››«éf«=«¡r§ÊÒ os princípios de Bateman-Trivers. Mesmo em mamífe-
car, inclusive espécies em que, excepcionalmente, são "rDfrÍҐ”µ§ÒܔÜæÜr ros, para os quais o investimento em reprodução é par-
æÒÜÍD›”D»3ræ›”èÍ«
os machos que mais investem. Em algumas espécies de ticularmente distorcido devido aos custos de gestação
¡D”ÒÍrZr§Ür÷
catidídeos, por exemplo, o investimento dos machos J[ijeij[hed[H[n0 e lactação para as fêmeas, a competição é importan-
na reprodução é maior, graças a um “pacote” rico Coj^ie\i[n"iY_[dY[" te não só para o sucesso reprodutivo dos machos, mas
em nutrientes que eles fornecem junto com o sêmen WdZieY_[jo também para o êxito reprodutivo das fêmeas. Os filho-
durante a cópula. Por esta razão, as fêmeas lutam entre · =»=»%«ÍÜ«§däð®Ö¸» tes de chimpanzés fêmeas que ocupam posições hie-
si pelo acesso a eles. rárquicas mais elevadas, por exemplo, têm taxas mais
Os princípios de Bateman-Trivers também pare- altas tanto de nascimento como de sobrevivência do
cem oferecer uma explicação plausível da dinâmica de que os de fêmeas hierarquicamente inferiores.
gêneros em sociedades humanas. Considera-se, comu- Em nossa própria espécie, a história tradicional é
mente, que mulheres têm menos interesse em sexo complicada pela ineficiência da atividade sexual huma-
casual com múltiplos parceiros, por exemplo, e que são na. Ao contrário de muitas outras espécies, nas quais
mais afetuosas e menos competitivas e dispostas a ris- o coito é coordenado pelos hormônios em maior ou
cos. Usando a lógica de Bateman-Trivers, essas atitudes menor grau para garantir que a cópula resulte em con-
servem para proteger seus investimentos. Assim, o con- Mark A. Elgar cepção, humanos se envolvem em muito sexo não
÷µÍ«{rÒÒ«ÍfrO”«›«†”D
selho da chefe operacional do Facebook, Sheryl Sand- r諛æܔèD§D reprodutivo. Tal padrão tem implicações importan-
berg, para que as mulheres “façam acontecer” no tra- 7§”èrÍҔfDfrfr tes. Primeiro, significa que qualquer relação sexual
balho para ascenderem ao topo parece ser enfraqueci- $r›O«æͧr»3ræ†Í浫 tem baixa probabilidade de originar um bebê, fato que
do por argumentos de que predisposições para assumir frµrÒÂæ”ÒDÒr deveria moderar suposições muito otimistas sobre o
riscos e competir evoluíram mais em homens do que Z«§Zr§ÜÍDr¡ÂærÒÜĂrÒ provável retorno reprodutivo em propagar sementes.
Ò«OÍr«Ҕ†§”ZDf«
em mulheres devido a um maior retorno reprodutivo. Segundo, sugere que sexo serve a razões além da repro-
r諛æܔè«fr
Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü«Ò dução — fortalecer relacionamentos, por exemplo.
QUEBRANDO AS REGRAS Z««µrÍDܔè«Òrfr Além disso, mudanças culturais e sociais precisam
Ocorre que a Natureza não é nem de longe tão sim- DZDÒD›D¡r§Ü«drrÒÜæfD repensar a aplicação dos princípios de Bateman-Trivers
ples e organizada como essa linha de raciocínio pode- «µDµr›fDZ«¡æ§”ZD]õ« a humanos. A visão dicotômica dos sexos que dominou
Âæû¡”ZDrè”ÒæD›§D
ria sugerir, mesmo para animais não humanos. Nas no século 20 deu lugar a uma que vê diferenças princi-
{DZ”›”ÜD]õ«frÒÒrÒ
décadas que transcorreram desde que os princípios Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü«Ò» palmente em grau, em vez de tipo. A maior autonomia

www.sciam.com.br 35
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

sexual feminina, resultante da pílula anticoncepcio- dos potenciais custos e benefícios de uma ação arris-
nal e da revolução sexual, levou ao aumento das rela- cada em particular, não a sua atitude em relação ao
ções sexuais pré-maritais e do número de parceiros, risco per se, que explica a disposição de correr riscos.
especialmente no caso das mulheres. E tanto mulheres Esses custos e benefícios percebidos podem incluir não
como homens relatam preferências em grande parte só perdas e ganhos materiais, mas também impactos
similares para suas vidas sexuais. menos tangíveis em reputação ou autoconceito.
A segunda Pesquisa Nacional Britânica de Atitu- Essa nuance é importante porque, às vezes, o equilí-
des Sexuais e Estilos de Vida, por exemplo, baseada brio de riscos e benefícios não é o mesmo para homens
em uma amostra randômica de mais de 12 mil pessoas e mulheres por causa de diferenças físicas entre os
com idades entre 16 e 44 anos, entrevistadas por volta sexos ou normas de gênero, ou ambos. Considere, por
da virada deste século, constatou que 80% dos homens exemplo, o risco de um encontro sexual casual. Para
e 89% das mulheres preferiam a monogamia. Enquan- um homem, os ganhos incluem a quase certeza de um
to isso, o movimento feminista aumentou as oportu- orgasmo e talvez um aumento considerável de sua
nidades de mulheres entrarem e se destacarem em reputação como um “garanhão”. Para uma mulher, sen-
domínios tradicionalmente masculinos. Em 1920, só tir prazer sexual é muito menos provável quando se
84 mulheres estudavam nas 12 melhores faculdades trata de sexo casual, de acordo com um estudo em lar-
de direito que admitiam alunas, e para elas era quase ga escala de estudantes norte-americanos, publica-
impossível arrumar um emprego. No século 21, mulhe- do em 2012 por Elizabeth Armstrong, da Universidade
res e homens se formam em faculdades de direito em de Michigan, e seus colegas. E, graças ao duplo padrão
números quase iguais, e mulheres eram quase 18% dos sexual, sua reputação mais do que provavelmente será
sócios das firmas de advocacia, em 2015. prejudicada pelo episódio. Entre jovens australianos,
por exemplo, o sociólogo Michael Flood constatou que
RISCOS E BENEFÍCIOS o rótulo de “vagabunda, promíscua” carrega um “peso
À medida que refinamos nosso foco a partir desta moral e disciplinar mais forte... quando aplicado a
perspectiva mais ampla de padrões de gênero para um mulheres”. Além disso, uma mulher corre maiores ris-
exame mais minucioso das diferenças entre os sexos cos físicos, incluindo gravidez, doenças sexualmente
em comportamento, a familiar história evolutiva tor- transmissíveis e até ataques/agressões sexuais.
na-se ainda mais turva. Tome a disposição de correr A lente de riscos e benefícios distintos também
riscos, antes considerada um traço masculino por seu pode esclarecer a diferente propensão dos sexos de
papel em melhorar seu sucesso reprodutivo. Acontece se impor no trabalho. É difícil ver como uma jovem
que pessoas são bem singulares nos tipos de riscos que advogada, olhando primeiro para as muitas mulheres
estão dispostas a correr. O paraquedista não tem mais jovens do seu nível e depois para as poucas mulheres
chances de apostar dinheiro do que a pessoa que se sócias e juízas, pode ser tão otimista quanto à prová-
exercita na segurança de uma academia. É a percepção vel recompensa por “fazer acontecer” e fazer sacrifícios

36 Scientific American Brasil, Outubro 2017


por sua carreira quanto um jovem advogado homem. E volvimento que resultam em características desenvol-
isso sem considerarmos as evidências de sexismo, assé- vidas. Em nossa espécie, esses inputs de desenvolvi-
dio sexual e discriminação sexual em profissões tradi- mento incluem a rica herança cultural legada a todo
cionalmente masculinas, como direito e medicina. recém-nascido humano. E, embora construções sociais
Ainda assim, a ideia de que uma sociedade não de gênero variem segundo tempo e lugar, todas as
MEU ÚNICO
sexista poderia apagar os efeitos psicológicos de clássi- AMOR? sociedades conferem ao sexo biológico um forte signi-
cas e eternas diferenças entre os sexos em investimen- ficado cultural. A socialização de gêneros começa no
Embora o
to reprodutivo parece implausível para muitos. Um acasalamento nascimento, e faria bastante sentido se o processo de
recente artigo na revista The Economist, por exemplo, promíscuo tenha seleção natural a explorasse. Pode ter sido algo adapta-
equiparou a tradição do anel de noivado de diamantes sido tivo em nosso passado que meninos ou homens corres-
à extravagante cauda de um pavão que se exibe num tradicionalmente sem certos riscos ou que meninas/mulheres os evitas-
considerado uma
elaborado ritual que sinaliza os recursos e o compro- característica sem. Mas quando a cultura muda, criando um padrão
metimento de um homem. O jornalista escreveu que masculina, que muito diferente de recompensas, normas e consequên-
“uma igualdade maior para as mulheres pode parecer evoluiu para cias, então, o mesmo ocorrerá com padrões de diferen-
tornar redundantes os sinais de galanteio masculinos. maximizar seu ças sexuais em comportamento.
sucesso reprodutivo,
Mas preferências de acasalamento evoluíram ao longo cientistas Portanto, o autor do artigo na Economist não esta-
de milênios e não mudarão rapidamente”. documentaram va bem certo ao afirmar que as “preferências huma-
dezenas de espécies nas de acasalamento evoluíram ao longo de milênios
INFLUÊNCIA AMBIENTAL em todo o reino e não mudarão rapidamente”. É verdade que é impro-
animal em que
Embora sexo certamente influencie o cérebro, esse vável que elas mudem tão rapidamente quanto as dos
fêmeas têm
argumento ignora o crescente reconhecimento pela catidídeos, com um salpicar de pólen (embora suspei-
mais
biologia evolutiva de que a prole não herda apenas
descendentes temos de que não fosse este o sentido). Normalmen-
genes, mas também um ambiente social e ecológico te, não há nada de simples e rápido no que diz respeito
quando se
que pode desempenhar um papel decisivo na expres-
acasalam com a criar mudanças culturais. Mas mudanças certamen-
são de características adaptativas. Mariposas machos múltiplos te podem ocorrer, e certamente ocorreram, ao longo de
adultas, por exemplo, que vieram, como larvas, de uma machos. escalas temporais mais curtas do que milênios.
população densa desenvolvem testículos maiores. Tome, por exemplo, as disparidades de gênero na
Esses órgãos maiores são úteis para a intensa com- importância que homens e mulheres dão aos recursos
petição copulativa contra muitos outros machos. Seria financeiros, atratividade e castidade de um parceiro. A
perdoável supor que essas gônadas maiores sejam um própria esquisitice ou obsoletismo do termo “castida-
traço adaptativo geneticamente determinado. Mas, em de” no Ocidente hoje, em comparação a décadas atrás,
vez disso, mariposas machos adultas da mesma espé- atesta rápidas mudanças em expectativas culturais de
cie, criadas enquanto larvas em uma população de bai- gênero. Em termos transculturais, mulheres e homens
xa densidade, desenvolvem asas e antenas maiores, de países com maior equidade de gêneros são mais
que são ideais para procurar por fêmeas amplamente semelhantes em todas essas dimensões de preferências
dispersas. Se o desenvolvimento de traços físicos liga- de parceiros do que os de países com menor igualda-
dos ao sexo pode ser influenciado pelo ambiente social, de entre os sexos, de acordo com um estudo de 2012, de
é lógico concluir que atitudes ligadas ao sexo também Marcel Zentner e Klaudia Mitura. Pesquisas também
AND PROMISCUOUS MALES,” ZULEYMA TANG-MARTÍNEZ, EM JOURNAL OF SEX RESEARCH, VOL. 53, NÚMEROS 4–5; 2016
FONTE: “RETHINKING BATEMAN’S PRINCIPLES: CHALLENGING PERSISTENT MYTHS OF SEXUALLY RELUCTANT FEMALES

podem ser. Um exemplo vem das fêmeas de insetos da mostraram que nos EUA hoje homens valorizam mais
família Tettigoniidae, que competem pelos machos que as perspectivas financeiras, a educação e a inteligên-
lhes trazem tanto sêmen como comida, de acordo com cia de uma parceira — e se importam menos com suas
os princípios de Bateman-Trivers. Porém, quando seu habilidades culinárias e domésticas — do que faziam
ambiente fica rico de pólen nutritivo, sua “natureza” há décadas. Enquanto isso, o clichê da solteirona inte-
competitiva diminui. lectual é uma relíquia: embora mulheres mais ricas e
O ambiente é igualmente importante para o com- mais bem instruídas outrora tivessem menos chance de
portamento adaptativo em mamíferos. Pesquisas se casar, agora elas são mais propensas a fazer isso.
publicadas a partir do final dos anos 1970 constataram Poderíamos, então, ver o dia em que as melhores
que mães de ratos cuidam de filhotes machos e fêmeas galerias de arte do mundo exibirão tanta arte criada
de jeitos diferentes. Os machos são mais lambidos na por mulheres como por homens? Nós certamente não
região anogenital porque as mães são atraídas pelo deveríamos permitir que as moscas-das-frutas de Bate-
nível mais elevado de testosterona na urina dos filhotes man nos dissessem que não.
machos. Curiosamente, o maior estímulo dessas lam-
bidas desempenha um papel no desenvolvimento de
PA R A C O N H E C E R M A I S
diferenças sexuais em partes do cérebro envolvidas no
comportamento básico de acasalamento dos machos. Testosterone Rex: Myths of sex, science, and society. Cordelia Fine. W. W. Norton, 2017.
Inferior: How science got women wrong—and the new research that’s rewriting the story.
Como observou o filósofo da ciência Paul Griffiths, Angela Saini. Beacon Press, 2017.
não deveria nos surpreender que fatores ou experiên- Rethinking Bateman’s Principles: Challenging persistent myths of sexually reluctant females and
cias ambientais que se repetem confiavelmente a cada promiscuous males. Zuleyma Tang-Martínez em Journal of Sex Research, Vol. 53, nos 4–5, págs. 532–
geração sejam incorporados nos processos de desen- 559; 2016.

www.sciam.com.br 37
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

EXISTE UM
CÉREBRO
“FEMININO”?
Debate sobre eventuais diferenças entre cérebros
de homens e mulheres poderá ter profundas
implicações para saúde e para identidades pessoais
LY D I A D E N W O R T H

M 2009, DAPHANA JOEL, NEUROCIENTISTA DA UNIVERSI-


dade de Tel Aviv, decidiu dar um curso sobre psicolo-
gia do gênero. Por ser feminista, há muito tempo ela já
se interessava por questões sobre sexo e gênero, mas
como cientista sua pesquisa tinha sido essencialmente
sobre as bases do comportamento obsessivo compulsi-
vo. Para preparar as aulas, Joel passou um ano revi-
sando boa parte da extensa e polarizada literatura
sobre as diferenças de sexo no cérebro. Centenas de
artigos cobriam praticamente tudo, desde variações
no tamanho de estruturas anatômicas específicas em
ratos até as possíveis raízes da agressão masculina e a
empatia feminina de seres humanos. No início, Joel
compartilhou uma hipótese popularmente aceita: da
mesma forma que as diferenças sexuais quase sempre
produzem dois sistemas reprodutivos diferentes, elas
também deveriam produzir duas formas diferentes de
cérebro — um feminino e outro, masculino.
Nessa fase de leitura, Joel achou um artigo que ia contra essa ideia. Um estudo de Tracey
Shores e colegas da Universidade Rutgers analisava um detalhe do cérebro de ratos: minúscu-
las protuberâncias nas células cerebrais chamadas espinhas dendríticas, que regulam a pas-
sagem de sinais elétricos. O estudo mostrou que quando os níveis de estrogênio eram altos,
fêmeas tinham mais espinhas dendríticas do que machos. Shores também descobriu que
quando machos e fêmeas passavam por eventos estressantes, como choques na cauda, o cére-
bro respondia de formas opostas: os machos criavam mais espinhas e as fêmeas, menos.

38 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Ilustrações de Kotryna Zukauskaite


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

A partir dessa descoberta inesperada, Joel desen- te) para favorecer sua hipótese. Outros críticos foram
volveu uma hipótese sobre diferenças cerebrais entre mais moderados. “Há grande variabilidade entre as
os sexos que suscitou ainda mais controvérsia numa pessoas e ela mostra isso maravilhosamente, mas não
área já saturada. Em vez de analisar áreas do cérebro quer dizer que não existam regiões do cérebro que, em
que diferenciam homens de mulheres, ela sugeriu que média, sejam diferentes em homens e mulheres”, diz
deveríamos considerar nosso cérebro como um “mosai- Margaret M. McCarthy, neurocientista da Universidade
co” (repropondo um termo já proposto por outros) com de Maryland, que estuda diferenças de sexo em ratos.
Lydia Denworth aspectos masculinos e femininos variáveis. Essa pró- Joel, por seu lado, concorda que a genética, hormô-
rÒZÍrèrÒ«OÍrZ”ù§Z”D
r÷DæÜ«ÍDfr?YWd
pria variabilidade e a superposição comportamental nios e o ambiente criam diferenças no cérebro segundo
^[Whoekm^_if[h0Wd entre os sexos — mulheres agressivas e homens empá- o sexo. Ela até concorda que, com informações sobre
_dj_cWj[`ekhd[o ticos e até homens e mulheres que exibem os dois tra- certas características do cérebro de uma pessoa, é pos-
j^hek]^j^[iY_[dY[e\ ços — sugerem que os cérebros não podem ser separa- sível deduzir, com alto grau de precisão, se pertence a
iekdZWdZbWd]kW][d dos em duas categorias distintas ou dimórficas. Essa um homem ou a uma mulher. Mas o inverso, ela desta-
æÜÜ«§dä𮃻
massa de 1.350 gramas alojada dentro do crânio não é ca, não é possível: olhar para uma pessoa, homem ou
ÜæD›¡r§Ürr›D
ÜÍDOD›D§æ¡›”èÍ« nem masculina nem feminina, diz Joel. Com seus cole- mulher, e prever a topografia e cenário molecular do
Ò«OÍrDZ”ù§Z”Df« gas de Tel Aviv, do Instituto Max Panck para Ciências cérebro ou da personalidade, apenas sabendo seu sexo.
Z«¡µ«ÍÜD¡r§Ü« Humanas Cognitivas e Cerebrais, e da Universidade Apesar de o estudo ser muito controvertido, a
Ò«Z”D›» de Zurique, Joel testou sua ideia analisando imagens essência do que Joel propõe está correta, diz Catheri-
de ressonância magnética (MRI) de cérebros de mais ne Dulac, da Universidade Harvard, cujo trabalho com

EM PROCEEDINGS OF THE NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES USA, VOL. 112, N O 50; 15 DE DEZEMBRO DE 2015
de 1.400 pessoas e demonstrou que a maioria delas, de camundongos confirma as descobertas de Joel: “há

FONTE: “SEX BEYOND THE GENITALIA: THE HUMAN BRAIN MOSAIC,” POR DAPHNA JOEL ET AL.,
fato, continha tanto traços masculinos como femini- uma enorme heterogeneidade entre as pessoas”. Defi-
nos. “Todos nós pertencemos a uma mesma população nitivamente, o fato abriu uma nova linha na discussão
altamente heterogênea”, ela observa. sobre o que significa ser macho e fêmea. Para os neuro-
Quando o trabalho de Joel foi publicado em 2015, os cientistas, não é mais suficiente procurar diferenças de
cientistas que partilhavam as mesmas crenças o elogia- sexo no cérebro. O debate agora está centrado na fon-
ram como um importante avanço. “O resultado foi um te, tamanho e significado dessas diferenças. Ele pode
grande desafio às ideias equivocadas vigentes”, escre- ter grandes implicações na forma como sexo e gênero
veu Gina Rippon, professora da Universidade Aston. são tratados dentro e fora do laboratório — e também
“Espero que ele possa revolucionar o século 21.” pode ter efeito relevante ao decidir se terapias e proto-
No entanto, pesquisadores que estudam as diferen- colos de tratamentos que usam drogas devem ser espe-
ças de sexo, há muito tempo, discordam taxativamen- cializados para mulheres e homens. “Nossa socieda-
te, opondo-se à metodologia e conclusões de Joel, bem de se baseia no pressuposto de que nossos genitais nos
como ao seu feminismo declarado. “O artigo é pura ide- dividem em dois grupos não só segundo capacidade ou
ologia mascarada de ciência”, diz o neurobiólogo Larry possibilidade reprodutiva, mas também em termos de
Cahill, da Universidade da Califórnia, que argumenta nosso cérebro ou características psicológicas”, diz Joel.
que os métodos estatísticos de Joel foram “manipula- “As pessoas acreditam que as diferenças se somam, que
dos” (embora não necessariamente conscientemen- se uma pessoa é feminina num traço será feminina em

EM SÍNTESE
Uma suposição
popularmente man-
O cérebro mosaico
tida DÒÒr†æÍDÂær«Ò älž…xßx³cDäx³îßx¸ääxĀ¸äx³`¸³îßDlD䳸`yßxU߸šø­D³¸§xþDßD­KÇxß`xÇcT¸lxÔøx¸`yßxU߸y¸ø­Dä`ø§ž³¸¸ø
Z÷ÍrOÍ«Òfr«¡r§Ò feminino. Um estudo realizado por Daphna Joel e colegas da Universidade de Tel Aviv conta uma história diferente. A
r¡æ›rÍrÒÒõ«§”Ü”“ ÇxäÔøžäDlx ¸x§­¸äî߸øÔøxø­`yßxU߸îŸÇž`¸yø­Ù­¸äDž`¸Új`¸­Už³D³l¸D§ø³äDäÇx`î¸ä­Džä`¸­ø³äx­š¸­x³ä
fD¡r§Ürf”{rÍr§ÜrÒ» x¸øî߸äÔøxDÇDßx`x­`¸­­Džä…ßxÔøz³`žDx­­ø§šxßxäj§xþD³l¸K`¸³`§øäT¸lxÔøx¸ä`yßxU߸äšø­D³¸ä³T¸Çxß-
Novas pesquisas
îx³`x­Dl¸žäîžÇ¸älžäî¸ä`Dîx¸ßžąDl¸äǸßäxĀ¸Í
controversas, §«
r§ÜD§Ü«dÒæ†rÍr¡ Distribuição de volume de substância Regiões do cérebro mostrando as Resultados de scans cerebrais (cada coluna
ÂærD¡D”«Í”Df«Ò cinzenta no hipocampo esquerdo maiores diferenças de sexo
Z÷ÍrOÍ«Ò÷æ¡¡«ÒD”“ 33% na extremidade 33% na extremidade Lóbulo vermiano X
Z«frZDÍDZÜrÍûÒܔZDÒ mais masculina mais feminina Núcleo caudato direito
¡DÒZ曔§DÒr da amostra da amostra Núcleo caudato esquerdo
{r¡”§”§DÒ» Hipocampo direito
O debate que se Hipocampo esquerdo
seguiu ”§Z«¡«f«ær Giro reto direito
›rèD§Ü«æÂærÒÜĂrÒ Giro reto esquerdo
Ò«OÍrZ«¡«Òrê«r Giro frontal superior esquerdo, orbital médio
†ù§rÍ«Òõ«Z«§Ò”fr“ Grito frontal superior direito, parte orbital
rados fora do “Extremidade Intermediária “Extremidade Giro frontal superior esquerdo, parte orbital
›DO«ÍDÜþ͔«» masculina” feminina”

40 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Gráfico de Jen Christiansen


outros. Mas não é verdade. A maioria das pessoas é for- genes nos cromossomos X e Y age no útero, acionan-
mada por um mosaico de gênero.” do o interruptor para feminização ou masculiniza-
ção. Mas, além da reprodução e distinção entre meni-
A FAVOR E CONTRA no e menina, os relatos insistem nas diferenças psico-
No final do século 19, a diferença mensurável pri- lógicas e cognitivas entre os dois sexos. Entre os anos
mária de cérebros masculinos e femininos era o peso 1960 e 1980, a psicóloga Eleanor Macoby da Universi-
(medido após a morte, naturalmente). Como os femi- dade Stanford descobriu menos diferenças que se pre-
ninos pesavam, em média, 140 gramas menos que os via: meninas tinham habilidades verbais mais fortes
dos homens, os cientistas concluíram que as mulheres e meninos se saíam melhor em testes matemáticos e
deveriam ser menos inteligentes. Como relembra a jor- espaciais. Previsivelmente, surgiram críticas. Em 2016,
nalista Angela Saini em Inferior: como a ciência trata Janet Hyde, psicóloga da Universidade de Wisconsin,
as mulheres errado — e a nova pesquisa que está rees- ao analisar os resultados de estudos anteriores veri-
crevendo a história, Helen Hamilton Gardener (pseu- ficou que as mulheres têm desempenho igual ao dos
dônimo) defensora dos direitos humanos das mulhe- homens em matemática e que “homens e mulheres
res, convocou os melhores especialistas da época, argu- são muito semelhantes na maioria das variáveis psico-
mentando que a razão entre o peso do cérebro e o peso lógicas — mas não em todas”. Com base nesses dados,
do corpo, ou tamanho do cérebro em relação ao tama- Hyde desenvolveu a hipótese das semelhanças de
nho do corpo, tinha de ser mais relevante para a inte- gênero, que postula que a constituição psicológica de
ligência que o peso do cérebro isoladamente ou, então, homens e mulheres é mais semelhante que diferente.
“um elefante deveria raciocinar melhor que qualquer Quando a tecnologia permitiu esquadrinhar o inte-
um de nós”. A propósito, Gardener doou seu cérebro rior de um cérebro vivo, surgiu uma longa lista de
para a ciência. Verificou-se que ele pesava 140 gramas diferenças entre os sexos não ligadas a acasalamen-
menos que o peso médio do cérebro masculino, mas to ou fertilidade. Num artigo publicado em 2005 na
tinha o mesmo peso que o cérebro de um eminente Nature Reviews Neuroscience, Cahill descreveu “uma
cientista masculino que fundou a coleção de cérebros onda de descobertas em animais e humanos, relati-
da Universidade de Cornell, onde o cérebro de Garde- vos à influência de sexo em várias áreas e compor-
ner está guardado. (Gardener estava no caminho cer- tamentos do cérebro, incluindo emoção, memória,
to. “Quando se faz a correção do tamanho do cérebro, a visão, audição, processamento do reconhecimento de
maioria das diferenças entre sexos some, ou ficam mui- rostos, percepção da dor, navegação, níveis de neuro-
to pequenas”, observa Lise Eliot, neurocientista da Uni- transmissores, ação de hormônios de estresse no cére-
versidade de Medicina e Ciências Rosalind Franklin). bro e estados patológicos”. Em ratos McCarthy mede
Durante boa parte do século 20, as diferenças con- tudo, do tamanho dos conjuntos de neurônios que for-
cretas nos cérebros dos dois sexos foram tema não dos mam os núcleos das células, até o número de astró-
neurocientistas, mas dos endocrinologistas, que estu- citos e microglia — células que formam o sistema de
davam os hormônios sexuais e o comportamento de sustentação dos neurônios. “Há inegável evidência de
acasalamento. A determinação do sexo é um proces- uma base biológica para as diferenças cerebrais entre
so complexo que começa quando uma combinação de os sexos, desde animais até seres humanos”, ela obser-

ASSINATURAS NEURAIS DOS SEXOS


No estudo que realizou em 2015, Joel examinou MRIs de mais de 1.400 Além disso, cerca de um terço das pessoas tem aspectos nos dois extremos
`zàyUà¹åymyå`¹UàŸùù®DåùÈyàȹåŸcT¹埑´ŸŠ`DïŸÿDy´ïàyEàyDåmyïy`Ÿm¹ de masculinidade e feminilidade, mostrados em verde (\[c_d_b_ZWZ[) ou
neural (matéria cinzenta) mostrando as maiores diferenças entre homens e laranja (cWiYkb_d_ZWZ[) em pontos de diferentes tons. Apenas 2,4 % tinham
mulheres. Em scans cerebrais do hipocampo esquerdo, a maioria das somente aspectos de um dos extremos. A tendência também apareceu em
mulheres e homens tem uma quantidade de matéria cinzenta na direção do outros conjuntos de dados utilizados pelos pesquisadores, e as descobertas
meio de um contínuo de “masculinidade” ou “feminilidade” (]h|ÒYeZW †¹àD®`¹àà¹U¹àDmDå´ù®DD´E¨ŸåyåùUåyÕùy´ïymy`DàD`ïyàyåmy
[igk[hZW[fedjeiXhWdYeiZ[kcikXYed`kdjeZeiZWZei[ijkZWZeiWXW_ne). personalidade, atitudes e comportamentos.

representa um indivíduo)
Femininos (representação de 55 dos 169 indivíduos do estudo original) Masculinos (representação de 37 dos 169 indivíduos do estudo original)

www.sciam.com.br 41
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

va. Mas McCarthy também enfatiza que a fonte das mulheres, como o volume coletivo dos corpos centrais
diferenças entre sexos nos humanos é mais complexa e extensões dendríticas das células nervosas (substân-
que entre os animais que não experienciam o gênero, cia cinzenta) e suas fibras conectoras (substância bran-
aqueles atributos psicológicos e sociais de cada sexo. ca). Eles encontraram um continuum de traços. Carac-
“Nos humanos, o simples fato de sermos criados com terísticas definitivamente feminizadas e masculiniza-
um determinado gênero desde o parto já provoca um das ocupavam as extremidades, e a zona intermediária
impacto biológico no cérebro”, ela comenta. Em seu mostrava uma mistura de traços.
livro Cérebro azul ou rosa, publicado em 2009, Eliot Depois, os pesquisadores avaliavam cada cére-
concorda, argumentando que a plasticidade — a for- bro e codificavam cada traço (veja o quadro nas pági-
ma como o cérebro muda diante da experiência — leva nas anteriores). Eles postularam que se os cérebros são
a mais diferenças entre os sexos no comportamento internamente consistentes, os traços que indicam dife-
do que a herança biológica. renças de sexo podem, com confiança, assumir padrões
Passar do cérebro para o comportamento leva às masculinos ou femininos. E uns poucos poderiam abri-
divergências mais contundentes. O estudo recente de gar traços masculinos e femininos. Mas entre 23% e
maior destaque, acusado de brincar com estereóti- 53% dos cérebros (dependendo do conjunto de dados)
pos, foi um artigo escrito por Ruben Gur, Raquel Gur continham traços das duas extremidades do espectro.
e Ragini Verma, todos da Universidade da Pensilvâ- Cérebros internamente consistentes eram raros — de
nia, publicado em 2014. O grupo utilizou imageamen- 0% a 8% dos casos estudados.
to de tensor de difusão (MRI de difusão), uma técnica Para explicar por que a variabilidade é impor-
que mostra a força das conexões entre neurônios, para tante, Joel cita como exemplo as razões para a prefe-
analisar quase mil cérebros de pessoas entre 8 e 22 rência por classes escolares com um só sexo. “(Clas-
anos. O estudo revelou que eles tinham conexões mais ses assim) assumem que meninos têm um conjun-
fortes dentro dos hemisférios direito e esquerdo, e elas to de traços — por exemplo, são mais ativos e menos
tinham conexões mais robustas entre os hemisférios. pacientes — e as meninas têm outro. Logo, devemos
Os pesquisadores concluíram que “os resultados suge- separá-los e tratar cada grupo diferentemente. O que
rem que os cérebros masculinos são estruturados para estamos mostrando é que, embora isso seja válido no
facilitar a conexnao entre percepção e ação coordena- nível de grupo, não vale no nível individual. Não se
da, enquanto que os femininos são desenhados para pode separar os alunos num grupo que é mais ativo,
facilitar as comunicações entre modos de processa- gosta de esportes, é bom em matemática e não gos-
mento analítico e intuitivo”. (Crítica: o estudo não fez ta de poesia, e outro grupo que é seu oposto perfeito.
a correção para o tamanho do cérebro.) Crianças assim são poucas.”
Para a maioria dos cientistas o trabalho de Joel
EM BUSCA DE VARIABILIDADE de demonstrar essa variabilidade é convincente. “A
Joel entrou nesse turbilhão. Vários estudos pré- contribuição de Daphna foi de mostrar, indivíduo
vios identificaram diferenças numa só caracterís- por indivíduo, a variabilidade dentro de cada gêne-
tica cerebral e depois as usaram para tirar conclu- ro”, diz Eliot. “Ninguém nunca publica esses dados.”
sões sobre populações inteiras — médias para mulhe- Mas muitos consideram problemática a forma de
res e homens. Joel e seus colegas fizeram o oposto: medir a consistência interna. Marco Del Giudice, da
usaram um levantamento de diferenças no nível de Universidade do Novo México, e seus colegas contes-
população, observadas num dado grupo, e pergun- taram o artigo de Joel no PNAS. Eles defendem que
taram o que se poderia afirmar para cérebros indivi- a definição de Joel e colegas, usada para a consistên-
duais. “São duas descrições do mundo”, diz Joel. As cia interna foi tão exagerada que acabou se tornando
duas mostram as mesmas diferenças no nível de gru- biologicamente implausível, se não impossível. Para
po. A questão mais crítica, no entanto, é: qual descre- provar, eles refizeram a análise de Joel usando con-
ve melhor o cérebro humano — a primeira, na qual juntos de variáveis biológicas completamente dife-
há um tipo de cérebro típico de homens e outro de rentes — por exemplo, comparando a variabilidade
mulheres, ou a segunda, na qual os cérebros da maio- entre aspectos faciais de três espécies de macacos de
ria das pessoas são um mosaico de características aparência muito diferente. Se o método de Joel for
masculinas e femininas? válido, pensou Del Giudice, os macacos devem mos-
Objetivamente, o estudo de Joel de 2015 propôs trar diferenças faciais claras (“internamente consis-
duas questões: qual o grau de acoplamento nos aspec- tentes”) entre as espécies.
tos que mostram diferenças entre mulheres e homens? Apesar das aparências nitidamente diferentes das
E os cérebros são “internamente consistentes”? Este três espécies, os aspectos que distinguem faces de qual-
último termo é uma medida que Joel desenvolveu para quer um dos macacos raramente indicaram consis-
determinar se todos os aspectos no cérebro de qual- tência interna como Joel a definiu — daí a visão de
quer pessoa eram masculinos ou femininos. Usando Cahill de que o estudo é “manipulado”. (Em resposta,
quatro grandes conjuntos de dados de MRI, sua equi- Joel argumenta que, embora a consistência interna em
pe identificou, em cada conjunto, vários traços que macacos fosse baixa, não existia variabilidade quando
apresentavam as maiores diferenças entre homens e se avaliava as espécies separadamente, enquanto que a

42 Scientific American Brasil, Outubro 2017


variabilidade — o mosaico — era mais prevalente que a de atenção/ hiperatividade e transtornos do espectro
consistência interna em seu estudo, “confirmando nos- do autismo, são mais comuns em homens, enquan-
sas conclusões de que os cérebros de homens e mulhe- to que os transtornos mais tardios, como depressão
res não são populações distintas”). e ansiedade, são mais comuns em mulheres. “Diante
O debate chega ao ponto de discutir o que é mais disso, somos levados a considerar o cérebro como um
ELE, ELA
importante: a média ou os indivíduos dentro da popu- órgão biológico com características diferentes entre
lação em estudo. A resposta geralmente depende da A ideia de homens e mulheres”, ela comenta. “Não fazer isso seria
que existem
pergunta que está sendo feita. Mas os pesquisadores uma distorção.” Mas Joel, Fausto-Sterling e outras
podem tirar diferentes conclusões partindo dos mes- cérebros temem que o pêndulo possa oscilar longe demais. Eles
mos dados. “O cérebro pode ser um mosaico, mas é um “feminino” defendem uma abordagem que inclui o sexo como uma
mosaico com padrões previsíveis”, escreveu Avram Hol- e variável, com um número igual de indivíduos do sexo
mes, da Universidade de Yale, e seus colegas em respos-
ta a Joel em 2015, e eles acreditam que esses padrões
“masculino” masculino e feminino, mas que ao analisar os resulta-
dos, reconheça que as categorias “machos” e “fêmeas”
diferentes está
requerem validação estatística. A bióloga Anne Fausto- mais enraizada podem refletir variáveis que nada têm a ver com sexo.
-Sterling, professora emérita da Universidade Brown, e na cultura popular Se for para que esse trabalho mude a forma como
crítica da pesquisa sobre diferenças de sexos, defende que na literatura a sociedade pensa sobre sexo e gênero, ele deve come-
`žx³îŸ‰`DÍ
outro ponto de vista. “Falar sobre diferenças médias é çar pela terminologia. “É hora de esquecer a palavra
falacioso, se for feito apenas isso”, comenta. “O cérebro ‘dimorfismo’, diz Eliot. “Uma estrutura dimórfica seria
não é uma entidade uniforme que se comporta como ovários X testículos. Uma diferença de 2% na razão
algo masculino e algo feminino, e ele não se comporta entre substância cinzenta e substância branca não é
da mesma forma em todos os contextos. Daphna está dimórfica, é só uma variância relacionada ao sexo.”
tentando entender as complexidades das atividades Dulac diz que precisamos “definir essas dife-
cerebrais, e como eles funcionam.” renças de forma mais refinada”. Em camundongos,
As implicações dessa controvérsia para a ciência, ela verificou que os circuitos neurais responsáveis
principalmente a pesquisa clínica direcionada para o pelo comportamento de acasalamento de machos
tratamento de doenças, são consideráveis. Entre 1997 também são vistos nas fêmeas, e circuitos de com-
e 2000, dez drogas foram retiradas do mercado dos portamento maternal podem ser encontrados em
EUA porque causavam efeitos colaterais perigosos, e machos. “Seria errado concluir a partir de nosso tra-
até fatais. Oito de dez ofereciam maiores riscos à saú- balho que não há diferenças entre machos e fême-
de de mulheres do que de homens. Em 2013 a Adminis- as”, diz Dulac. “Mas a questão mais interessante
tração de Alimentos e Medicamentos dos EUA reduziu é: como essas diferenças estão surgindo, e até que
para a metade a prescrição da dosagem de zolpidem — ponto são sutis ou significativas?”
nome genérico do Ambien — para mulheres. Depois de No início deste ano, McCarthy e Joel juntaram
receber queixas de pacientes que se sentiam sonolentas esforços para criar uma estrutura mais sofisticada para
ao dirigir pela manhã ao ir para o trabalho, os pesqui- definir o que está sendo medido na pesquisa sobre
sadores descobriram que a droga ainda estava presen- diferenças de sexo e o que isso significa. Eles sugerem
te no organismo de algumas mulheres ao acordar. Aqui quatro dimensões possíveis: se um caractere for persis-
também apareceram queixas contrárias. Eliot e Sarah tente ou transiente, se ele depende do contexto, se ele
Richardson, historiadora da ciência e gênero da Har- assume somente uma de duas formas — e então é ver-
vard, sugerem que boa parte das diferenças nos efeitos dadeiramente dimórfico — ou então cai num espec-
colaterais do zolpidem poderia ser devida a diferenças tro, e se é uma consequência direta ou indireta do
de massa corporal. No entanto, o peso não é tudo, por- sexo. Essa forma de descrever o mundo das diferenças
que níveis mais altos de gordura no corpo das mulhe- de sexo não é tão atraente quanto a metáfora de Mar-
res poderiam fazer as drogas serem metabolizadas de te versus Vênus que vigora há tantos anos, mas prova-
forma mais lenta, mas talvez fosse possível melhorar a velmente é muito mais precisa. De forma geral, a com-
precisão na identificação de variáveis realmente críti- plexidade reflete melhor quem a pessoa realmente é.
cas para a dosagem das drogas. “Minha mãe é muito carinhosa e protetora, mas ela
Em parte para atender a essas preocupações, a par- também é muito melhor em navegação espacial que
tir de janeiro de 2016, o Instituto Nacional da Saú- meu pai”, comenta Eliot. “Isso é o mosaico, certo?”
de dos EUA (NIH) passou a exigir que todas as pesqui-
sas pré-clinicas, a fase anterior aos testes em humanos,
incluam fêmeas. Janine Clayton, diretora do Departa- PA R A C O N H E C E R M A I S
mento de Pesquisa do NIH sobre a Saúde das Mulhe-
Incorporating sex as a biological variable in neuropsychiatric research: where are we now and
res, foi cautelosa ao explicar a nova política, dizen- where should we be? Daphna Joel e Margaret M. McCarthy em Neuropsychopharmacology, vol. 42,
do que incluir os dois sexos nos estudos não necessa- nº 2, págs. 379–385; janeiro de 2017.
riamente significa observar diferenças de sexo. Muitos Sex beyond the genitalia: the human brain mosaic. Daphna Joel et al. em Proceedings of the National
Academy of Sciences USA , vol. 112, nº 50, págs. 15.468–15.473; 15 de dezembro de 2015.
consideram essa diretriz um passo importante. McCar-
thy aponta que vários distúrbios neurológicos ou trans- DE NOS SOS ARQUIVOS
tornos com início precoce, como transtornos de déficit Ele, ela. Larry Cahill; ed. nº 37, junho de 2005.

www.sciam.com.br 43
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

QUANDO
SEXO E GÊNERO
COLIDEM
Estudos com crianças transgênero estão oferecendo insights
fascinantes sobre gênero no cérebro. Muitas crianças trans
CÇßxäx³îC­žlx³îžlClxääøßÇßxx³lx³îx­x³îx‰ß­xäx­
tenras idades, por exemplo, e importantes diferenças separam
meninas trans de meninos que gostam de cor-de-rosa
KRISTINA R. OLSON

O CHEGAR
G À CAS
CA DE AMIGOS PARA JANTAR CERTA
noite no outo
ono
onn de 2008, me juntei ao
m jovem cco
mais onvidado da noite, Noah, de
cinco anos, q
que estava brincando no
sofá. Mal sabia eu que ele, sozinho,
mudariaa o curso da minha carreira.
Como o sou
s professora de psicologia do desen-
volvimento,n não é incomum para mim pas-
sar algguum tempo na mesa das crianças. Estu-
do co ommo crianças pensam sobre si mes-
mas e as pessoas ao seu redor, e alguns dos
meeu
m us insights vieram de conversas como
eesstta. Depois de um bate-papo informal
vi Noah olhar ao redor da sala, pare-
cer notar que ninguém estava olhan-
do e resgatar algo em seu bolso. A
revelação foi lenta, mas o resultado
inconfundível: um amado conjun-
to de bonecas Polly Pocket.
Ao longo dos anos seguintes,
tive a oportunidade de conhecer Noah muito bem e fiquei sabendo mais sobre o seu passado
(todos os nomes de crianças aqui são pseudônimos para proteger sua privacidade). De início,
os pais de Noah só haviam notado que ele era diferente de seu irmão nos anos de pré-escola.
Ele preferia brincar com coleguinhas do sexo feminino e com brinquedos que são mais comu-
mente associados a meninas, mas seus pais não se abalaram. À medida que ficou mais velho,
Noah deixou crescer seu cabelo antes curto e substituiu seu guarda-roupa razoavelmente neu-
tro em termos de gênero por um que dava destaque proeminente a tênis com luzes que bri-

Fotografias de Lindsay Morris www.sciam.com.br 45


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

lhavam em cor-de-rosa quando ele pisava. Ao contrário


do que acontece com muitas crianças similares, a famí-
lia, os amigos e a escola de Noah o aceitaram plenamen-
te como era. Eles até o incentivaram a conhecer outras
crianças iguais a ele, meninos que desprezavam e des-
respeitavam as normas de gênero. Juntamente com os
outros adultos na vida de Noah, não pude deixar de me
perguntar: o que seu comportamento significava? Noah
era gay? Ele poderia ser apenas uma criança que presta-
va menos atenção às normas de gênero do que a maio-
ria? Na época, eu não tinha ideia de que essas perguntas
em breve norteariam minha pesquisa científica.
A vida para Noah começou a mudar quando ele
chegou à terceira e quarta séries. Recentemente, ele
explicou como, naquela época, ficou cada vez mais
óbvio e evidente que, embora as pessoas aceitassem
suas preferências e fizessem amizade com ele mes-
mo assim, a maneira como ele se via a si mesmo —
como uma menina — estava em desacordo com a for-
ma como outros o viam. Quando pessoas usavam o seu
nome e pronomes masculinos, ele se deu conta de que
elas o consideravam naturalmente um menino. Noah
EM SÍNTESE
lembra que perceber isso o deixou cada vez mais infe-
O Projeto Juventude-
liz — um sentimento que era raro nos anos anteriores. -Trans ÷æ¡rÒÜæf«fr
De acordo com sua mãe, o antes alegre e entusiasma- µrÒÂæ”ÒDr¡D§fD¡r§“
do Noah ficou triste e melancólico. Foi aí que sua famí- Ü«ÂærDZ«¡µD§DÍñ
lia, após consultar terapeutas locais, tomou uma gran- µ«ÍäðD§«Ò¡D”Òfr
de decisão que, na realidade, vinha tomando forma ÞððZ͔D§]DÒr™«èr§Ò
há anos. Noah se assumiu como transgênero, e, conse- ÜÍD§ÒrêæD”Òr”§Z«§{«Í“
quentemente, seus amigos, familiares e a comunidade ¡Df«ÒZ«¡ÒræÒ†ù§r“
Í«ÒµDÍDfrÒZ«O͔Í
escolar foram solicitados a usar um novo nome, Sarah,
Z«¡«ÒæD”fr§Ü”fDfr
e a se referir a ela como uma menina. fr†ù§rÍ«Òr
A essa altura, eu já estudava psicologia do desen- frÒr§è«›èr»
volvimento (às vezes chamada desenvolvimental) Os resultados, até
havia uma década, investigando, em grande parte, agora, ¡«ÒÜÍD¡Âær
como crianças pequenas pensam sobre as categorias Z͔D§]DÒÜÍD§ÒÜù¡æ¡
sociais — raça, gênero, classe social — ao seu redor. Òr§Ò«rêDÜD¡r§ÜrÜõ«
Durante meu tempo livre, procurei por pesquisas Í¡rfrÒræµÍþµÍ”«
†ù§rÍ«Z«¡«Z͔D§]DÒ
sobre crianças tais como Sarah. Nenhum único estu- identidade de gênero? São comuns comparações de
§õ«ÜÍD§Òr¡”fDfrÒ
do quantitativo havia investigado crianças pequenas crianças trans que se identificam precocemente com
¡æ”Ü«µÍrZ«ZrÒdÜD§Ü«
que tinham “trocado” de gênero. (“Sexo” se refere às ÂæD§f«Òõ«µr͆æ§ÜD“ as que passam por fases em que acreditam ser gatos
categorias biológicas masculino e feminino, enquan- fDÒf”ÍrÜD¡r§ÜrZ«¡« ou dinossauros, ou que têm amigos imaginários. Essa
to “gênero” indica a identificação de uma pessoa com ÂæD§f«Òõ«ÜrÒÜDfDÒ» comparação é usada como evidência de que nenhu-
os atributos sociais e culturais e as categorias tradi- ›÷¡f”ÒÒ«dZ͔D§]DÒ ma criança em tenra idade conhece sua identidade, ou
cionalmente vinculadas a cada sexo.) Na época, quase ÜÍD§ÒÒr†ær¡ÜÍD™rÜþ“ o que é real ou irreal. Porém, décadas de estudos suge-
todos os adultos transgênero haviam feito a transição ͔DÒf”{rÍr§ÜrÒfDÒfr rem que essas são precisamente as idades em que qua-
Z͔D§]DÒÂærҔ¡µ›rғ
muito mais tarde, e quase ninguém apoiara sua pre- se todas as crianças começam a entender suas pró-
¡r§ÜrµÍr{rÍr¡O͔§“
coce inconformidade de gênero (seu desejo de expres- Âærf«ÒrÍ«æµDÒDÒÒ«“
prias identidades de gênero e as de outros.
sar preferências ou comportamentos que desafiam as Z”Df«Ò D« †ù§rÍ« Em culturas ocidentais (onde a maior parte desta
expectativas da sociedade para o seu sexo). Eu me per- «µ«ÒÜ«» pesquisa tem sido realizada), no primeiro ano de vida,
guntei o que poderíamos aprender sobre gênero de Além de ajudar a des“ bebês começam a distinguir pessoas por sexo, vendo
pioneiros tão jovens como Sarah. Qual era o impac- Z«O͔ÍDÒÍDûîrÒf« indivíduos como homens/masculinos ou mulheres/
to da transição na saúde mental e identidade de crian- †ù§rÍ«dÍrÒæ›ÜDf«Ò”§”“ femininas. À idade de aproximadamente 18 meses, os
ças? O que essa decisão significaria para seu futuro? Z”D”ÒfrÒÒrÒrÒÜæf«Ò nenês começam a entender palavras de gênero como
Òæ†rÍr¡ÂærZ͔D§]DÒ
“menina” ou “homem” e associam essas palavras com
ÜÍD§ÒÂærÒõ«Dµ«”DfDÒ
COMO APRENDEMOS O QUE É GÊNERO rostos correlacionados com sexo. Aos 24 meses, as
ÂæD§f«{Dîr¡ÜÍD§Ò”“
Quando a maioria das pessoas ouve falar sobre ]ĂrÒÒ«Z”D”ÒµÍrZ«ZrÒ crianças conhecem estereótipos sexuais (tais como
crianças trans, ficam surpresas. Como poderia uma Üù¡ÒDăfr¡r§ÜD›r associar mulheres com batom), e antes dos três anos
criança de três anos ter uma percepção tão clara de DæÜ«rÒܔ¡D{«ÍÜrÒ» quase todas elas rotulam a si mesmas e a outros com

46 Scientific American Brasil, Outubro 2017


SARAH, maioria — inclusive aquelas criadas em famílias que
DE 14 ANOS, variam em seu estilo de parentalidade/educação, con-
fotografada em vicções políticas e associação a grupos raciais e étnicos
casa, sabia — exibe o padrão descrito aqui. E a maioria dos pais,
desde tenra professores e outros adultos sequer pensa duas vezes
idade que era — exceto quando uma criança começa a afirmar que
uma menina em seu gênero não é o que outros esperam que seja.
vez do menino
que parecia ser DIFERENÇAS PRECOCES
ao nascer. Quando iniciei o Projeto Juventude-Trans, em
2013, eu queria entender se, quando e por que pessoas
jovens como Sarah se comportam ou não como seus
pares em termos de seu desenvolvimento incipiente
de gênero. O Projeto Juventude-Trans é um estudo em
andamento de centenas de crianças transgênero e não
conformadas com gênero (que se expressam de uma
forma que não se encaixa nas normas convencionais
de gênero masculino ou feminino). Nós nos concentra-
mos em crianças nos EUA e no Canadá que têm entre
três e 12 anos quando começam a participar do estudo
etiquetas de gênero que combinam com seus sexos. e planejamos acompanhá-las por 20 anos.
Nos anos pré-escolares, muitas crianças passam O que mais tem me surpreendido em nossas des-
pelo que as pesquisadoras May Ling Halim, da Uni- cobertas são as inúmeras maneiras em que o desen-
versidade Estadual da Califórnia, e Diane Ruble, da volvimento precoce de gênero de crianças trans é tão
Universidade de Nova York, chamam “estágio do ves- notavelmente similar ao de seus pares. Isto é, crianças
tido de babados cor-de-rosa”: a maioria das meninas como Sarah têm a mesma aparência de outras garotas
fica obcecada por vestidos de princesa, ou roupas simi- em todas as idades, mas não são nada parecidas com
larmente “identificadas por gênero”, enquanto mui- meninos em termos de medidas de identidade e prefe-
tos meninos preferem trajes de super-heróis ou rou- rências de gênero. Da mesma forma, meninos transgê-
pas formais, e evitam ativamente a cor rosa. Por vol- nero (crianças que se identificam como meninos, mas
ta dessa época, crianças também exibem preferências que ao nascerem foram consideradas meninas) têm
pela companhia de amigos do mesmo sexo, participam o mesmo desempenho que outros meninos em nos-
de atividades convencionalmente associadas com seus sos testes. Uma observação comum nos anos pré-esco-
sexos e demonstram um gradual entendimento de que lares, por exemplo, é uma acentuada aparência hipe-
seu sexo é uma qualidade perene, acreditando que rexagerada de gênero — meninas que adoram vestidos
meninas se tornam mulheres e meninos, homens. de princesa; meninos que evitam a cor rosa como se
No decorrer dos anos do ensino fundamental, a fosse a peste. Encontramos a mesma coisa em nossas
maioria das crianças continua a se associar fortemen- mais jovens crianças transgênero. O grau de suas pre-
te com seu grupo sexual quando perguntadas tanto ferências por roupas estereotipadas, assim como sua
direta como indiretamente. Um experimento envolve tendência para formar laços de amizade com crian-
pedir que os participantes classifiquem fotografias de ças do mesmo gênero com que se autoidentificam e o
crianças em uma tela de computador em “meninos” e grau em que se veem a si mesmas como membros de
“meninas”, categorizando, ao mesmo tempo, um con- seu grupo de gênero, é estatisticamente indistinguível
junto de vocábulos como sendo palavras “eu” (como do das respostas de seus pares nas mesmas medições
“me/mim”, “eu mesmo”) ou “não eu” (como “eles”, “a durante todos os anos da infância.
eles” e “deles”). Pesquisadores medem com que rapi- Além disso, quando predizem suas identidades no
dez as crianças conseguem fazer essas categorizações futuro, meninas trans veem-se tornando-se mulheres
quando “meninos” e “eu” compartilham uma só tecla e meninos trans imaginam que serão homens, exata-
de resposta e “meninas” e “não eu” outra, em compa- mente como outras meninas e meninos. Mesmo quan-
ração com quão rapidamente elas são capazes de fazer do apresentamos às crianças medições mais indire-
as associações de pares opostos (“meninas” com “eu” tas de identidade de gênero — as medições que ava-
Kristina R. Olson
e “meninos” com “não eu”). Estudos passados consta- é diretora do projeto liam tempos de reação em vez de palavras e ações mais
taram que a esmagadora maioria das meninas é mais æèr§Üæfr5ÍD§ÒdÂær explícitas — temos constatado que meninas trans se
rápida em combinar “meninas” com “eu”, enquan- ÷Dµ«”Df«µr›D veem como meninas e meninos trans se veem como
to meninos são mais rápidos em associar “meni- æ§fD]õ«%DZ”«§D› meninos, sugerindo que essas identidades são culti-
nos” e “eu”. Embora cientistas debatam quais aspec- fr ”ù§Z”DÒ»›D÷ vadas em níveis mais baixos de percepção consciente.
µÍ«{rÒÒ«ÍDDÒÒ«Z”DfD
tos do desenvolvimento são inatos ou culturalmen- frµÒ”Z«›«†”D§D
Toda essa pesquisa se combina para mostrar que iden-
te construídos, ou uma combinação de ambos, e nem 7§”èrÍҔfDfrfr tidades transgênero, até em crianças muito novas, são
toda criança passe pelo mesmo caminho de gênero, a =DҐ”§†Ü«§» surpreendentemente sólidas e consistentes em todas

www.sciam.com.br 47
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

as medições, contrariando crenças populares de que


tais sensações são passageiras ou que as crianças só
estão fazendo de conta que são do gênero oposto.

AS RAÍZES DE GÊNERO
Mas de onde vem a sensação de gênero para iní-
cio de conversa? A ciência ainda está longe de ser con-
clusiva. Devido à idade precoce em que esse senso de
identidade pode surgir, pesquisadores têm procura-
do por sinais genéticos e neuroanatômicos em pesso-
as transgênero. Uma abordagem muito usada na gené-
tica é o estudo com gêmeos. Uma grande diferença
entre gêmeos idênticos e fraternos é que os primeiros
compartilham mais de seu material genético do que
os últimos. Se pesquisadores encontram mais concor-
dância em identidade transgênero entre gêmeos idên- CHARLIE dos por pares e até por suas próprias famílias tendem
ticos do que em fraternos, eles inferem que a gené- prefere roupas e a ter taxas elevadas de ansiedade e depressão. Esti-
tica desempenha algum papel. E, de fato, isso é exa- brinquedos mativas sugerem que mais de 40% dos adolescentes e
tamente o que os estudos iniciais estão constatando associados a adultos trans, em grande parte sem apoio, tentarão se
(embora gêmeos idênticos também possam comparti- meninas, mas se suicidar. Muitas famílias como a de Sarah relatam que
lhar mais aspectos de sua socialização e meio ambien- žlx³îž‰`D`¸­¸ essas estatísticas devastadoras são a razão por que elas
te). Em uma revisão de 2012 da literatura, por exem- menino. Ele é apoiaram as transições precoces de seus filhos.
retratado aqui Meus colegas e eu estamos constatando — tanto em
plo, Gunter Heylens, da Universidade de Ghent, e seus
aos 10 anos.
colegas analisaram 44 conjuntos de gêmeos do mes- relatos de pais como nos das próprias crianças — que
mo sexo em que pelo menos um gêmeo se identificou jovens trans que fazem a transição social em tenra ida-
como transgênero. Eles descobriram que em nove dos de estão passando muito bem. Suas taxas de depressão
23 pares de gêmeos idênticos, ambos os irmãos eram comparam-se às de seus pares e as taxas de ansiedade
transgênero, mas entre os 21 pares de gêmeos frater- são só um pouco mais elevadas. Eles também demons-
nos do mesmo sexo não houve nenhum caso onde tram uma autoestima muito alta. Se esses indicadores
ambos fossem transgênero, sugerindo que a identida- de saúde mental irão se manter fortes à medida que
de transgênero tem alguma base genética. Apesar des- nosso bando de crianças trans entrar na adolescên-
ses resultados, no entanto, quais variações genéticas cia é algo ainda a ser constatado, e com certeza nossa
específicas estão envolvidas é uma questão em aberto. amostra, composta só por voluntários, não será plena-
Do mesmo modo, embora alguns estudos de neuro- mente representativa de todas as crianças trans vivas
ciência tenham mostrado que as estruturas cerebrais hoje. Porém, quando combinadas com trabalhos que
de pessoas trans se assemelham às de indivíduos com sugerem que intervenções na adolescência (que não
a mesma identidade de gênero, em vez de com as de envolvem apenas transições sociais, mas também tera-
pessoas com o mesmo sexo ao nascerem, essas desco- pia hormonal) estão associadas a uma saúde mental
bertas muitas vezes envolveram amostras pequenas e melhor, essas constatações sugerem que as altas taxas
ainda não foram replicadas. Complicando ainda mais de depressão, ansiedade e suicídio vistas em estudos
a interpretação dos resultados neurocientíficos está o prévios não são inevitáveis. Em vez disso, à medida
fato de cérebros mudarem em resposta a experiências, que o mundo conhece mais sobre pessoas transgêne-
portanto, mesmo quando diferenças aparecem, cien- ro, à medida que a rejeição e o bullying diminuírem, e
tistas não sabem se diferenças cerebrais estruturais ou à medida que esses jovens receberem apoio e interven-
funcionais causam a experiência de uma determinada ção em tenras idades, estamos otimistas de que os ris-
identidade de gênero ou se refletem a experiência da cos de saúde mental diminuirão também.
identidade de gênero. Turvando ainda mais as águas
já turvas, neurocientistas continuam a debater se mes- “MENINOS COR-DE-ROSA” E MENINAS MOLECAS
mo entre pessoas que não são transgênero existem A primeira pergunta que normalmente me fazem
diferenças confiáveis de sexo (ou gênero) em cérebros. quando falo sobre crianças transgênero é algo como:
Assim, enquanto o tema é uma linha ativa de trabalho “Você está dizendo que meninas molecas na realida-
em muitos laboratórios de pesquisa ao redor do mun- de são transgêneros?” ou “Eu costumava ser um meni-
do, conclusões definitivas sobre correlações genéticas no que adorava vestidos de princesa. Você está suge-
e neurais de identidade de gênero continuam difíceis. rindo que eu era transgênero?” É claro que nem todas
Talvez as perguntas mais importantes e decisivas as crianças que desafiam estereótipos sexuais como
sobre crianças transgênero, no entanto, digam respei- Sarah fez são transgênero. De fato, eu me arriscaria a
to ao seu bem-estar. Adultos e adolescentes transgêne- dizer que a maioria delas não é.
ro que não passaram pela transição social precoce de Uma dessas crianças é Charlie. Aparentemen-
crianças como Sarah e que foram muitas vezes rejeita- te, Charlie se parecia muito com Sarah nos primei-

48 Scientific American Brasil, Outubro 2017


A DECISÃO DE distinguir as crianças que se identificam como trans-
SARAH de fazer gênero daquelas que não o fazem — em média, crian-
a transição de ças como Sarah demonstram ainda mais inconfor-
z³x߸…¸ž…xžîD mismo de gênero do que outras como Charlie. Outros
no ensino funda- estudos sugeriram que a maneira como crianças falam
mental. Aqui, sobre sua identidade de gênero — sentir que você é
ela é mostrada uma menina em comparação com sentir que deseja
com seus pais. que o mundo estivesse de acordo e aceitasse que você
é um menino feminino (o que a mãe de Charlie chama
de um “menino cor-de-rosa”) — prediz os diferentes
caminhos de crianças como Sarah versus Charlie.
Pesquisadores também estão reconhecendo e estu-
dando cada vez mais pessoas com identidades não
binárias. Colocado de maneira simples, estes são indi-
víduos que não sentem como se fossem homens ou
mulheres, nem se sentem plenamente masculinos ou
femininos. Em vez disso, muitas pessoas não binárias
se encaixam em algum lugar no meio de um espec-
tro que vai do masculino ao feminino. Até o momento,
nossa equipe de pesquisa trabalhou com várias crian-
ças que se veem desse jeito, mas esse grupo ainda não
é suficientemente grande para podermos tirar quais-
quer conclusões fortes, que se sustentem.
Sem dúvida, cientistas têm muito a aprender sobre
BEBÊ SEM crianças como Sarah e Charlie. O que significa ter o
GÊNERO
ros anos de vida. Ambos foram considerados meninos senso de identidade de um menino ou uma meni-
ao nascerem, e ambos exibiram sinais de serem dife- Em na ou outra coisa? O que torna uma criança mais ou
rentes nos anos pré-escolares. Tal como Sarah, Charlie
adorava tudo o que era feminino. Sua mãe se recorda
de que, aos dois anos, Charlie amava cintilantes rou-
2017
O Canadá emitiu
menos propensa a se identificar assim? E como pode-
mos ajudar todas as crianças a se sentirem confortá-
veis com elas mesmas? Encontrar respostas é especial-
o que pode ser a
pas cor-de-rosa e colocava uma toalha sobre a cabe- mente difícil porque o gênero é definido pela cultura,
primeira carteira
ça, imitando um cabelo longo. De um modo semelhan- que muda sem parar. Em 1948, por exemplo, apenas
FONTE: “PARENT FIGHTS TO OMIT GENDER ON B.C. CHILD’S BIRTH CERTIFICATE,” MARYSE ZEIDLER, EM CBC NEWS. PUBLICADO ON-LINE EM 30 DE JUNHO DE 2017.

de identidade
te ao da família de Sarah, a de Charlie o apresentou a sem registro de 32% dos adultos acreditavam que mulheres deveriam
outros meninos que adoravam coisas femininas. E ao gênero do usar calças em público. É certo que meninos femini-
mundo para um
longo dos anos, algumas dessas crianças, como Sarah, nos e meninas masculinas não são novidade, sendo
bebê nascido
fizeram uma transição social. Mas Charlie não. Recen- para uma mãe amplamente reconhecidos em muitas culturas nativas.
temente, perguntei a ele sobre sua decisão de não fazer que preferiu não Hoje, Sarah, de 14 anos, e Charlie, de 13, são adoles-
a transição. Ele explicou que sua família (às vezes com designar a centes autoconfiantes, inteligentes e muito esforçados.
criança como
a ajuda de um terapeuta) passou muito tempo falando Sarah toca piano, joga hóquei e começou a treinar atle-
sendo do sexo
sobre transições sociais e deixou claro que o apoiaria masculino ou tismo. Charlie toca numa banda e faz teatro. Ambos
feminino.
www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/parent-fights-to-omit-gender-on-b-c-child-s-birth-certificate-1.4186221

se fosse isso o que ele quisesse. Charlie disse que con- são populares e dedicam mais tempo à busca de um
siderou essa possibilidade no fundo de sua mente por bom desempenho na escola e à complexidade das redes
vários anos, mas acabou decidindo que, embora gos- sociais de jovens do que a pensar sobre seus gêneros.
te abertamente e sem se envergonhar de coisas con- Ambos olham para o futuro, empolgados com as possi-
vencionalmente “de menina” (de fato, no próprio dia bilidades que os aguardam na faculdade e mais além.
em que o entrevistei, Charlie usava short cor-de-rosa, Sarah diz que quer criar filhos com seu futuro marido
uma camiseta violeta e uma echarpe cor-de-rosa para e almeja tornar o mundo melhor para jovens pessoas
ir à escola) e mesmo que ocasionalmente use um nome trans como ela. Charlie nutre sonhos de se mudar para
de menina no acampamento, no final das contas, ele Nova York para se apresentar na Broadway. Os dois
sente que é um menino. Conforme explicou sua mãe, adolescentes esperam que algum dia crianças como
Charlie disse que o que ele realmente queria era que o eles sejam aceitas por quem são, independentemente
mundo o aceitasse como ele é — que o deixasse vestir o dos rótulos de gênero que usem. Essa esperança todos
que quisesse e fazer o que quisesse. Mas ele não sentia nós podemos compartilhar e aplaudir.
que era uma menina de verdade.
Meu trabalho está em andamento, mas dados pre-
liminares de outros sugerem que trajetórias de desen- PA R A C O N H E C E R M A I S
volvimento distintas podem diferenciar Sarah e Char- Mental health and self-worth in socially transitioned transgender youth. Lily Durwood et al. em Journal
lie. A intensidade com que uma criança gravita para of the Academy of Child and Adolescent Psychology, vol. 56, nº 2, págs. 116–123.e2; fevereiro de 2017.
brinquedos e roupas associados ao gênero oposto pode The TransYouth Project: http://depts.washington.edu/transyp

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A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

ALÉM DO XX E XY
7­D ž³‰³žlDlx lx …Dî¸ßxälx‰³xäxø­DÇxää¸Dy­ø§šxßjš¸­x­¸øäxxäîEx­D§ø­Ǹ³î¸x³îßx¸äl¸žä
Os seres humanos são socialmente `¸³lž`ž¸³Dl¸äDÇxß`xUx߸äxĀ¸xz³x߸`¸­¸DîߞUøî¸äUž³Eߞ¸äÍxälx¸­¸­x³î¸
x­ Ôøx ³Dä`x­¸ä  ¸øDîyD³îxä中¸älx‰³žîžþD­x³îx߸îø§Dl¸ä`¸­¸Ù­x³ž³¸Ú¸øÙ­x³ž³DÚÍ%¸x³îD³î¸jD`žz³`žD
DǸ³îD ÇDßD ø­D ßxD§žlDlx­øžî¸­DžäD­UŸøDÍ lxîxß­ž³DcT¸lxäxĀ¸Už¸§¹ž`¸yxĀîßx­D­x³îx`¸­Ç§xĀDjx³þ¸§þx³l¸
³T¸ ä¹ D³DžDj ­Dä ø­Dž³îߞ³`DlD`¸ßx¸ßD‰Dlx…Dî¸ßxäx³yîž`¸äxÔøŸ­ž`¸äÔøxäxlxäx³ß¸§DD¸§¸³¸l¸îx­Ç¸Í³lž-
þŸlø¸ä ž³îxßäxĀ¸ä  DÔøx§xäÇDßD¸äÔøDžä¸lxäx³þ¸§þž­x³î¸äxĀøD§äxøxø­DîßD¥xî¹ßžDDîŸÇž`DäT¸`DßD`îxߞąDl¸äǸß
ø­D lžþxß䞉`DlD …DžĀD lxlžäîùßUž¸äj`¸­¸lx‰`žz³`žDlxŠD§…DßxløîDäxÉpontilhado curvo). Uma pequena amostra desses
lžäîùßUž¸ä x ¸ä `D­ž³š¸äÔøxäxøx­äT¸DÇßxäx³îDl¸äDäxøžßÍ0DßD`¸­Ç§ž`DßDž³lD­Džäj¸z³x߸`¸­¸ÔøD§ø­DÇxä-
ä¸D äx žlx³îž‰`D ³x­ äx­ÇßxäxD§ž³šD`¸­¸äxĀ¸Ôøx§šxyDîߞUøŸl¸D¸³Dä`xßxx§DǸlx³T¸äxß`¸­Ç§xîD­x³îxl¸äxĀ¸
­Dä`ø§ž³¸ ¸ø …x­ž³ž³¸Í1øD³î¸­DžäDÇßx³lx­¸ää¸UßxäxĀ¸xz³x߸j­DžäxääxäDîߞUøî¸äÇDßx`x­äxxäîx³lxßÇDßD…¸ß-
mar um espectro. —Amanda Montañez
FATORES QUE
DETERMINAM
O SEXO
Cromossomos 46XX 45X Mosaicismo
CONCEPÇÃO

45X/46XY

Genes Ausência de Gene SRY pode Mutação gênica


genes SRY estar presente CYP21A2

Feminino Distúrbio testicular XX do Hiperplasia adrenal Disgenesia


Condições intersexos Síndrome de Turner
biológico típico desenvolvimento do sexo congênita gonadal mista
Hormônios Níveis elevados de
hormônios masculinos
NASCIMENTO

Órgãos sexuais Estruturas Estruturas internas e Estruturas externas Estruturas externas Clitóris aumentado, Um testículo, uma
internos e genitais internas externas femininas; femininas, femininas, estruturas lábios fundidos, gônada disgênica
externos e externas desenvolvimento estruturas internas internas atípicas; vagina curta, (desenvolvida de
femininas prejudicado masculinas testículos não descem ovários, útero e colo forma anômala);
do ovário (AIS completa) do útero normais genitais feminino,
masculino ou ambíguo

Os genitais podem Gônada e testículos


åyà ®¹mŸŠ`Dm¹å disgênicos podem
para parecer ser removidos
mais tipicamente e os genitais
femininos ®¹mŸŠ`Dm¹å ÈDàD
parecer femininos
PUBERDADE

Características Hormônios femini- Ligeiras variações Possíveis períodos Baixo estrogênio Desenvolvimento Quantidades
secundárias nos (basicamente de feminino típico, menstruais irregu- puberal ausente atípicas de
do sexo estrogênio); carac- como elevados lares, redução da ou limitado testosterona;
(como mamas terísticas femininas níveis de hormônios fertilidade, aumento pode desenvolver
e pelos faciais) secundárias masculinos de pelos no corpo mamas

Controle hormonal Infertilidade; terapia


de natalidade pode hormonal pode pro-
regular efeitos de mover características
hormônios masculinos femininas

50 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Gráfico de Pitch Interactive e Amanda Montañez
O espectro de gênero

myŠ`Ÿ{´`ŸD‹žD¨†DàymùïDåyé uma
Uma mulher transgênero Uma pessoa não binária Um homem transgênero é
`¹´mŸcT¹Ÿ´ïyàåyā¹åÕùyȹmyåy‘ùŸàÿEàŸ¹å
é uma pessoa a quem, com é aquela que não se uma pessoa a quem, com
caminhos ao longo de seu desenvolvimento.
base na sua anatomia, foi Ÿmy´ïŸŠ`D´y®`¹®¹ base na sua anatomia, foi
0yåå¹Då`¹®yååDmyŠ`Ÿ{´`ŸDï{®ù®D`¹´åïŸïùŸcT¹
atribuído o sexo masculino completamente femini- atribuído o sexo feminino
cromossômica de 46XY, como um masculino biológico
ao nascer, mas que se na nem completamente ao nascer, mas que se iden-
típico, mas uma mutação genética provoca uma
Ÿmy´ïŸŠ`D`¹®¹®ù¨›yàÎ masculina. Esse indiví- `D`¹®¹›¹®y®Î
myŠ`Ÿ{´`ŸDm¹›¹à®»´Ÿ¹mŸž›Ÿmà¹ïyåï¹åïy๴DÎ D´D-
mù¹ȹmyåyŸmy´ïŸŠ`Dà
tomia externa dos pacientes pode variar, de modo que
Uma mulher cisgênero é com os dois gêneros ou Um homem cisgênero é
pode ser atribuído à pessoa qualquer dos sexos ao nas-
uma pessoa a quem, com com nenhum deles, ou uma pessoa a quem, com
cer, mas na puberdade uma ressurgência de testoste-
base na sua anatomia, foi ȹmyåyàmy‘{´y์ùŸ- base na sua anatomia, foi
rona promove as características masculinas. Como
atribuído o sexo feminino m¹j¹Õùy埑´ŸŠ`DÕùy atribuído o sexo masculino
resultado, os pacientes que são criados
ao nascer e que também åyù‘{´y์ùïùDy´ïày ao nascer e que também
como meninas geralmente acabam se
åyŸmy´ïŸŠ`D`¹®¹®ù¨›yàÎ feminino e masculino. åyŸmy´ïŸŠ`D`¹®¹›¹®y®Î
Ÿmy´ïŸŠ`D´m¹`¹®¹›¹®y´åÎ
A sexualidade se refere à orientação sexual do indivíduo ou ao tipo de pessoa por quem ele é
atraído. A sexualidade também é um espectro, mas está separada tanto do sexo como do gênero.

47XXY 46XY

Mutação gênica Mutação gênica Mutação gênica Mutação gênica Gene SRY
CYP21A2 AR SRD5A2 AMH ou AMHR2

Síndrome da insensibilidade Síndrome yŠ`Ÿ{´`ŸD my Síndrome do ducto Homem


Condições intersexos
andrógina (AIS) de Klinefelter 5-alfa redutase mulleriano persistente biológico típico
Resistência aos Baixa dihidro-
hormônios masculinos testosterona

Genitais Estruturas internas Estruturas externas Testículos Estruturas Ligeiras variações Estruturas genitais
ambíguos e externas predominantemen- pequenos; internas e externas do sexo masculino internas e externas
(AIS parcial) masculinas; útero, te masculinas ou am- estruturas externas masculinas típico como masculinas
trompas de Falópio bíguas; estruturas masculinas posição anômala
internas masculinas da abertura uretral

Gônadas disgênicas
podem ser removi-
das e os genitais mo-
mŸŠ`Dm¹å ÈDàD ÈDàyž
cerem masculinos

Baixa testosterona; Baixa testosterona; Hormônios mas- Hormônios mascu- Ligeiras variações Hormônios mascu-
testículos pequenos; infertilidade culinos (níveis linos; característi- do masculino linos (basicamente
infertilidade, pelos fa- baixos ou nor- cas masculinas típico, como baixa testosterona); ca-
ciais reduzidos, mús- mais); característi- contagem de racterísticas mascu-
culos fracos, pode cas masculinas espermatozoides linas secundárias
desenvolver mamas

Tratamento hor-
monal pode pro-
mover caracterís-
ticas masculinas

FONTE: PESQUISA POR AMANDA HOBBS; REVISÃO TEMÁTICA POR AMY WISNIEWSKI Centro de Ciências da Saúde da Universidade de Oklahoma, setembro de 2017 www.sciam.com.br 51
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

NÃO SÓ PARA
HOMENS
Pesquisadores e médicos precisam ir mais fundo nas diferenças de
gênero para que possam oferecer melhores tratamentos às mulheres
MARCIA L. STEFANICK

M JANEIRO DE 2013, A FOOD AND DRUG ADMINIS-


tration (FDA), a agência americana que
controla medicamentos e alimentos, cortou
à metade a dose recomendada da mais
popular pílula para dormir dos EUA,
Ambien, para as mulheres, mas não para os
homens. A FDA havia constatado que 15%
dos 5,7 milhões de americanas que usavam
produtos de zolpidem (princípio ativo do
Ambien) sentiam dificuldades para dirigir
oito horas depois de terem tomado o medi-
camento, ante apenas 3% dos 3,5 milhões
de usuários masculinos.

Pesquisadores sabem há tempos que mulheres, na mé-


dia, eliminam zolpidem de seu corpo muito mais lenta-
mente do que homens. De fato, o metabolismo, a tolerân-
cia, os efeitos colaterais e os benefícios das drogas diferem
significativamente entre a média dos homens e das mulhe-
res para muitas medicações de prescrição ampla, e as mu-
lheres apresentam chances 50% a 70% mais altas de uma
reação adversa. O tamanho do corpo, a proporção de gor-
dura em relação aos músculos e uma série de outros fato-
res, incluindo influências hormonais, explicam as diferen-
ças. Mas médicos raramente consideram essas dinâmicas
quando prescrevem receitas. O Ambien, que agora vem em
vidros com rótulos rosa (dose reduzida) e azul (dose origi-
nal), é um raro exemplo de recomendação médica específica para cada sexo.
Problemas de dosagem são só um exemplo de como o sistema de cuidados com a saúde é cego para dife-
renças biológicas entre os sexos. Como resultado, as mulheres são com muita frequência tratadas como ho-
mens. Além disso, o sistema pode ignorar vieses sexistas; alguns distúrbios são considerados “de homem” ou

52 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Ilustração de Anna Parini


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

RESOLVENDO O PROBLEMA
As mudanças nas práticas vêm acontecendo faz
Pesquisa com viés tempo. Em 1990, cientistas, advogados e membros do
Congresso pressionaram os Institutos Nacionais de
Estudos médicos costumam envolver apenas representantes masculinos ou
Saúde (NIH, na sigla em inglês) a criar o Escritório de
não detalham as estatísticas para as mulheres quando elas são incluídas. Por Pesquisa da Saúde das Mulheres. Em 1991, a falecida
exemplo, uma análise de 2012 de terapias para doenças de artérias coroná- cardiologista Bernadine Healy, primeira e única mu-
rias descobriu que 355 de 427 artigos de publicações especializadas (83%) lher a dirigir os NIH, lançou a Iniciativa para a Saú-
não divulgaram dados sobre mulheres ou não analisaram os dados das de das Mulheres, que cadastrou 162 mil mulheres nos
mulheres em relação aos homens. A escassez de pesquisa torna mais difícil EUA. O estudo levou a mudanças importantes; sem
aos médicos a avaliação de tratamentos que poderiam ajudar as mulheres. ele, por exemplo, médicos podiam ainda acreditar que
40 Pesquisas sobre doenças das artérias coronárias deveriam receitar terapia hormonal para a maioria
Número de artigos em publicações

das mulheres mais velhas, o que causaria mais ataques


Com dados sobre mulheres
cardíacos e derrames e câncer de mama. A Lei de Revi-
Sem dados sobre mulheres
talização dos NIH, de 1993, determinou a participação
30 de mulheres (e minorias) em testes com financiamen-
to federal em sua fase III — destinada a apurar como
um novo tratamento funciona em um grupo amplo.
Mas a legislação não prevê a inscrição de um núme-
20 ro suficiente de mulheres para determinar como um
dado tratamento afeta especificamente as mulheres.
Mais mudanças vieram em 2001, quando um re-
latório de referência do Instituto de Medicina (IOM,
10
na sigla em inglês) enfatizou o importante papel que
“sexo” desempenha na biologia básica que fundamen-
ta os cuidados com a saúde. Pelas suas conclusões,
“cada célula tem um sexo”. Mas quase nenhum biólo-
go celular considera, nem sequer sabe, o sexo das célu-
0
1992 1996 2000 2004 2008 2011 las ou tecidos que estuda, ou avalia como os cromos-
somos sexuais afetam os sistemas que pesquisam. O
relatório do IOM definiu sexo como a classificação ou
qualidade biológica de reproduzir sexualmente orga-
“de mulher”, mesmo quando atingem os dois sexos. EM SÍNTESE nismos, em geral masculino ou feminino, derivado de
Esses problemas vêm de uma lacuna grave na nos- Médicos com frequên- cromossomas e hormônios sexuais. Gênero foi defini-
sa compreensão das diferenças entre sexos. A maio- cia avaliam µDZ”r§ÜrÒ do, em estudos humanos, como sociocultural — a “au-
ria das pesquisas com animais é feita apenas em ma- ¡æ›rÍrÒZ«¡«Òr{«ÒÒr¡ torrepresentação como homem ou mulher”.
chos, a maior parte roedores. E as mulheres têm sido «¡r§Òµ«ÍÂærD¡D”«Í”D Esse conceito pode ser expandido para incluir nor-
sub-representadas nos testes clínicos com humanos. fDÒµrÒÂæ”ÒDÒ¡÷f”ZDÒ÷ mas de gênero (expectativas sociais de comportamen-
ODÒrDfDr¡D§”¡D”Ò
Mesmo quando os dois sexos são incluídos, análises tos “masculino” ou “feminino”) e relações de gênero

DE ROWENA J. DOLOR ET AL. COMPARATIVE EFFECTIVENESS REVIEW Nº 66. AGÊNCIA PARA PESQUISA E QUALIDADE
¡DZ«Òr«¡r§Ò»ÒÒ«
específicas para cada sexo geralmente não são divul- (como as pessoas reagem umas às outras devido ao gê-
µ«fr›rèDÍDÜrÍDµ”DÒ
gadas e, como a maioria dos participantes é homem, nero), que inserem influências poderosas na biologia.

FONTE: TREATMENT STRATEGIES FOR WOMEN WITH CORONARY ARTERY DISEASE: FUTURE RESEARCH NEEDS,
{D›DÒ «æ µr͔†«ÒDÒ»
as descobertas podem não ser adequadas para mulhe- Médicos deixam de Por exemplo, homens são geralmente mais fortes que

EM CUIDADOS COM A SAÚDE, DEPARTAMENTO DE SAÚDE E SERVIÇOS HUMANOS, AGOST0 DE 2012


res. Uma revisão de 2003 de 258 testes para tratamen- diagnosticar, «æf”D†“ mulheres não só por fatores biológicos, mas também
to cardiovascular, por exemplo, revelou que só 27% §«ÒܔZD¡”§frè”fD¡r§Ürd por causa de papéis de gênero; em muitas sociedades,
dos integrantes eram mulheres e que apenas um ter- f«r§]DÒZDÍfûDZDÒr¡ eles carregam a maioria dos objetos pesados. Outro
ço dos testes com homens e mulheres divulgou dados ¡æ›rÍrÒµ«ÍÂær«ÒҔ§Ü«“ exemplo pode ser a incidência duas vezes maior de de-
¡DÒ§r›DÒf”{rÍr¡f«Ò
por sexo. pressão em mulheres, que pode ser resultante de uma
ܔµ”ZD¡r§ÜrÒr§Ü”f«Ò
Não surpreende que ninguém entendia por que as interação de fatores biológicos e sociais, como a maior
µr›«Ò«¡r§Ò»'µÍrZ«§“
chances de morte de uma jovem mulher hospitalizada Zr”Ü«÷f”ÒÒr¡”§Df«ÜD¡“ probabilidade de mulheres sofrerem violência sexual.
com ataque cardíaco eram o dobro das de um homem. O÷¡§DDèD›”D]õ«fr Desde a divulgação do relatório do IOM, acadêmi-
A não inclusão das mulheres em pesquisas biomédicas f«r§]DÒ ¡r§ÜD”Ò» cos e defensores de políticas de saúde têm exortado
foi exacerbada pelas diretrizes de 1977 da FDA que im- Está havendo progres- instituições, publicações e agências a incluir mulheres
pediram mulheres com potencial de gravidez de parti- so, ¡DÒµ«fr¡ÒrͧrZrғ e animais fêmeas em pesquisas e estudar as diferenças
ciparem de testes na fase I (segurança) e fase II (eficá- Òñ͔DÒÍr†æ›D]ĂrÒµDÍD dos sexos. Em 2009, o projeto Inovações de Gênero,
†DÍD§Ü”ÍÂærDO”«›«†”D
cia), estivessem elas planejando uma gravidez ou não. da Universidade Stanford, engajou colaboradores nos
{r¡”§”§DÒr™DDfrÂæDfDr
Embora a FDA agora permita a inclusão de gestan- EUA, Canadá e União Europeia para desenvolver mé-
D¡µ›D¡r§Ür”§Z›æûfD§«Ò
tes em pesquisas que não ameacem a gestação, poucas µÍ«Ü«Z«›«ÒfrÜrÒÜrÒd todos práticos para análises de sexo e gênero em pes-
drogas são aprovadas para mulheres grávidas porque f”D†§þÒܔZ«Òr quisas. Em 2010, o Escritório de Pesquisa da Saúde das
não há dados disponíveis sobre segurança e eficácia. ÜÍDÜD¡r§Ü«Ò» Mulheres divulgou um plano estratégico que identifica

54 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Gráfico de Jen Christiansen


a necessidade de integrar perspectivas de sexo e gêne- como diabetes gestacional, quase dobram as chances
ro em pesquisas médicas e ciência básica. de uma mulher ter doença cardiovascular posterior e
No mesmo ano, os Institutos Canadenses de Pes- aumentam o risco de ela desenvolver diabetes tipo 2.
quisa sobre Saúde foram mais longe e começaram a
pedir que candidatos a bolsas indicassem se sexo e gê- DIFÍCIL DE DECIFRAR
CIÊNCIA
nero seriam contabilizados em suas propostas. Em UNIL ATER AL Diferenças de sexo e preconceitos influenciam os
2014, uma nota na edição de maio da Nature, escrita diagnósticos e tratamentos para todos. Osteoporose é
pelo diretor do NIH Francis Collins e Janine Clayton,
diretora do Escritório de Pesquisa de Saúde das Mu-
lheres, revelou medidas para garantir que pesquisas
5,5ante
considerada uma doença de mulher porque mulheres
brancas têm o dobro do risco dos homens brancos de
fraturar um osso ao longo da vida. Testes de prevenção
pré-clínicas financiadas pelos NIH levem em conside-
ração machos e fêmeas, assim como o sexo das células. 1
A relação de
de fraturas incluíram poucos homens. Mas os homens
representam quase um em cada três casos de fraturas
E, em janeiro de 2016, os NIH começaram a exigir que de quadril, e seus resultados médicos são piores.
estudos de Os homens são mais suscetíveis a infecções por ví-
sexo, como uma variável biológica, seja contabilizado
neurociência que
em projetos, análises e divulgação de pesquisas. Caso incorporam rus, bactérias e fungos do que as mulheres, embora as
os candidatos a verbas queiram estudar só um sexo, apenas animais mulheres tenham taxas mais elevadas de infecções se-
devem apresentar justificativa convincente. Diferente- machos xualmente transmitidas como HIV e vírus de herpes
comparados simples tipo 2. Em contrapartida, o sistema imunoló-
mente dos Institutos Canadenses, no entanto, os NIH
com os que usam
não abordaram a influência do gênero na biologia. somente fêmeas. gico mais robusto das mulheres pode explicar por que
Pesquisas com elas perfazem 70% dos 20 milhões de americanos com
DOENÇA DE HOMEM animais doenças autoimunes, em que o sistema imunológi-
Apesar de anos de campanhas do “Vestido Verme- fornecem a base co ataca tecidos do próprio corpo. A gravidez pode de-
para muitas
lho”, muitas pessoas e muitos médicos ainda acham drogas sempenhar um papel aqui também. Algumas células
que doença cardíaca é um mal masculino. Eles ficam psicoativas. fetais passam para o sangue da mãe e são encontradas
surpresos ao saber que doenças cardíacas são a prin- na circulação décadas depois — e elas estão envolvidas
cipal causa de morte feminina nos EUA, superan- em algumas enfermidades autoimunes.
do de longe o câncer de mama. Mulheres mais jovens, Sexo e gênero também dão forma a doenças neuro-
em particular, com frequência não são diagnosticadas lógicas e mentais. Evidências sugerem que a placenta
porque os médicos não consideram tal possibilidade. do feto masculino responde a estresse ambiental pro-
Além disso, mulheres costumam relatar outros sinto- movendo o crescimento do feto, enquanto a placen-
mas além de dores no peito, que é a queixa-chave dos ta feminina promove expressões de genes e proteínas
homens, incluindo dor nas costas, náusea, dor de cabe- que aumentam as chances de sobrevivência. Tais dife-
ça e vertigens. Médicos muitas vezes consideram esses renças podem contribuir para distúrbios de desenvol-
sintomas atípicos porque os homens não os relatam. vimento que são diagnosticados com mais frequência
Embora mulheres mais velhas e homens tenham em garotos, como autismo e dislexia — embora os mé-
chance de ter bloqueio em uma ou mais artérias coro- todos de diagnósticos possam negligenciar as garotas.
nárias de placas localizadas, mulheres mais jovens têm Preconceitos de gênero em torno de doenças men-
maior probabilidade de acumular placas difusas que tais parecem estar disseminados. As sugestões de que
revestem e afinam a artéria inteira. Embora isso dei- meninos e homens manifestam a depressão como rai-
xe o músculo cardíaco com um suprimento inadequa- va, mais do que por retraimento, podem ter sua ori-
do de sangue, nenhum bloqueio específico é detecta- gem em expectativas de que homens exteriorizam
do. Uma mulher pode ser diagnosticada como “livre Marcia L. Stefanick comportamentos e mulheres os internalizam. Alguns
IRVING ZUCKER, EM NEUROSCIENCE AND BIOBEHAVIORAL REVIEWS, VOL. 35, Nº 3; JANEIRO DE 2011

é professora de
FONTE: “SEX BIAS IN NEUROSCIENCE AND BIOMEDICAL RESEARCH”, DE ANNALIESE K. BEERY E

de doença cardíaca” mesmo tendo um risco elevado de profissionais de saúde mental ainda atribuem cer-
um ataque fatal. Felizmente, novos testes podem de- ¡rf”Z”§Df« r§ÜÍ«fr tos sintomas quase só a mulheres, como “histeria”, en-
0rÒÂæ”ÒDfr0Írèr§]õ«
tectar essa doença não obstrutiva e outros problemas quanto homens tendem a ser diagnosticados como
3ÜD§{«ÍfrµÍ«{rÒÒ«ÍD
mais comuns nas mulheres. Mas, para que os testes fr«OÒÜrÜÍûZ”Dr “antissociais”. Esses preconceitos afetam os tratamen-
funcionem, um médico precisa considerar a possibili- †”§rZ«›«†”DfDÒZ«›D tos e os resultados em termos de saúde.
dade de que uma jovem mulher possa ter doença car- fr$rf”Z”§DfD O preconceito é desenfreado quanto se trata do cé-
díaca e solicitar os exames. As pesquisas prosseguem 7§”èrÍҔfDfr3ÜD§{«Íf» rebro. A psicologia popular adora a ideia de que ho-
para descobrir diferenças entre os sexos em riscos e ›DÜD¡O÷¡÷f”ÍrÜ«ÍD mens e mulheres têm cérebros diferentes. Relatórios
f« r§ÜÍ«fr
tratamentos benéficos, mas as diretrizes para preven- ”{rÍr§]DÒfr3rê«r¡ mostram que homens têm mais conexões corticais
ção e tratamento para as mulheres ainda são predomi- $rf”Z”§DrrÒÜñ dentro de cada um dos dois hemisférios do cérebro,
nantemente baseadas em dados masculinos. ÍrD›”îD§f«æ¡D¡µ›« e as mulheres têm mais conexões entre os hemisfé-
A gravidez, agora reconhecida como um importan- ÜrÒÜrZ«¡¡æ›rÍrÒ rios. Mas deixam de mencionar que 86% a 88% de to-
te teste de estresse cardiovascular, também contribui ¡D”Òèr›DÒ das essas conexões combinadas são semelhantes, suge-
Ír›DZ”«§Df«ò
para as desigualdades entre os sexos, embora os pes- rindo que os cérebros de homens e mulheres apresen-
µÍrèr§]õ«frf«r§]DÒ
quisadores só recentemente tenham começado a per- ZDÍfûDZDÒrD« tam mais semelhanças do que diferenças. As pesquisas
ceber as graves consequências de longo prazo. Pré-e- r§èr›rZ”¡r§Ü« também mostram que o desenvolvimento do cérebro
clâmpsia e hipertensão relacionada à gravidez, assim ÒDæfñèr›» ao longo da vida é bastante influenciado pela neuro-

www.sciam.com.br 55
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

Aviso aos médicos: mulheres não são homens


Estudos médicos no passado dependiam pesadamente de homens ou animais machos, o que desacelerou o avanço nos cuidados com a
äDùlx lDä ­ø§šxßxäj lx D`¸ßl¸ `¸­ ¸ ³äîžîøî¸ lx $xlž`ž³DÍ ­U¸ßD ÇxäÔøžäDl¸ßxä xäîx¥D­ ‰³D§­x³îx ­x§š¸ßD³l¸ ¸ ­žĀj ­ø§šxßxä x D³ž-
mais fêmeas ainda são minoria. É preciso a igualdade porque muitas doenças afetam homens e mulheres de forma diferente. A resposta
das mulheres aos tratamentos também difere. Aqui estão apenas alguns exemplos.

Prevalência de osteoporose (de residen- Mortes por mal de Alzheimer


CÂNCER MALES
tes nos EUA com 50 anos ou mais, 2010) (mortes ajustadas à idade nos
5 15 25 15 5 EUA por 100 mil pessoas, 2014)
No geral, células de câncer matam mais Algumas enfermidades autoimunes da
homens do que mulheres, mas as mé- Todos tireoide como as doenças de Hashimoto 15 30 15
Todos
dias mascaram importantes diferenças e Graves atingem de sete a dez vezes
Mulheres Homens Mulher Homem
my åyā¹ y® ïŸÈ¹å yåÈy` Š`¹å mD m¹y´cDÎ mais as mulheres, assim como o lúpus.
Reconhecer as desigualdades pode evi- Negros não hispânicos åŸEïŸ`¹å ¹ù mDå Ÿ¨›Då m¹ 0D` Š`¹
Artrite reumatoide, esclerose múltipla e
tar que médicos ignorem ou diagnosti-
esclerodermia são pelo menos duas a
quem incorretamente alguns sintomas. Brancos não hispânicos três vezes mais frequentes em mulheres. Nativos da América ou Alasca
Mulheres têm um risco mais alto do
Mais mulheres do que homens são infec-
que homens de desenvolverem câncer, Mexicano-americanos tadas por vírus de herpes simples tipo 2. Hispânicos*
um tipo mais agressivamente fatal do
que o câncer de cólon do lado esquerdo. Prevalência de esclerose múltipla
O diagnóstico em mulheres (casos por 100 mil pessoas, 2015) Negros
também tende a demorar mais.
OSSOS E ARTICULAÇÕES 50 100 50
Mais homens que mulheres Global Brancos
morrem de câncer de pulmão, Diferenças de sexo e gênero atuam em M
Mulheres m
Homens
cólon, rins e fígado. Mas, no total, o sentido duplo. Mulheres brancas têm o *Inclui hispânicos negros e brancos
África
risco de câncer é maior para dobro de probabilidade de homens
mulheres de menos de 50 anos. brancos de sofrerem de osteoporose — DOENÇAS MENTAIS
ossos fracos —, mas o risco de morte 0D` Š`¹ '`Ÿmy´ïD¨
A altura maior é um fator de risco
por fratura de ossos frágeis é 50% Duas vezes mais mulheres que homens
para muitos cânceres em homens
maior para os homens. Sudeste da Ásia são diagnosticadas com ansiedade ou
e mulheres e pode responder por
um terço do total mais elevado de Mulheres representam cerca de dois depressão.
risco de câncer em homens. terços de todos os implantes de Leste do Mediterrâneo Quase dois terços dos americanos com
prótese de joelho, mas não há Alzheimer são mulheres. O gene APOE4
†yŸï¹å `¹¨DïyàDŸå m¹ Œù¹à¹ùàD`Ÿ¨j
yÿŸm{´`ŸDå my Õùy Èàºïyåyå ÚyåÈy` Š`Då está mais fortemente ligado à doença
uma droga comum em quimiotera- Europa
para os gêneros”, divulgadas pelos em mulheres. Os cromossomos X e Y
ȟDj åT¹ 埑´ŸŠ`DïŸÿD®y´ïy ȟ¹àyå
fabricantes, melhorem os também podem ter um papel.
em mulheres, assim como os
resultados. Superestimar as Américas
efeitos de muitos ou- O número de mulheres mais velhas nos
diferenças de sexo pode
tros medicamentos EUA que morrem de Alzhei-
ser um problema.
para o câncer. mer é agora maior que o
de americanas mortas
por câncer de mama.

FONTES: “THE RECENT PREVALENCE OF OSTEOPOROSIS AND LOW BONE MASS IN THE UNITED STATES BASED ON BONE MINERAL DENSITY AT THE FEMORAL NECK OR LUMBAR SPINE”, DE
NICOLE C. WRIGHT ET AL., EM JOURNAL OF BONE AND MINERAL RESEARCH, VOL. 29, Nº 11; NOVEMBRO DE 2014 ( osteoporose); “GBD COM PARE”. INSTITUTE FOR HEALTH METRICS AND
EVALUATION, SEATTLE, WASHINGTON. ACESSADO EM JULHO DE 2017 http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare (esclerose múltipla e doença cardíaca); “DEATHS: FINAL DATA FOR 2014”, DE
KEN NETH D. KOCHANEK ET AL., EM NATIONAL VITAL STATISTICS REPORTS, VOL. 65, Nº 4; 30 DE JUNHO DE 2016 ( Mal de Alzheimer); “MECHANISTIC PATHWAYS OF SEX DIFFERENCES IN
56 Scientific American Brasil, Outubro 2017 CARDIOVASCULAR DISEASE”, DE VERA REGITZ-ZAGROSEK E GEORGIOS KARARIGAS, EM PHYSIOLOGICAL REVIEWS, VOL. 97, Nº 1; JANEIRO DE 2017 (ilustrações do coração)
plasticidade — a capacidade de o cérebro se reajustar com o tem-
po. Se as experiências diárias de homens diferem de mulheres, di-
PROBLEMAS DO CORAÇÃO ferenças na estrutura e funções do cérebro devem ser esperadas.
Complicações cardíacas com frequência assumem formas diferentes Esse quadro complexo dificulta apontar causas e tratamentos
y®®ù¨›yàyåy›¹®y´åδåùŠ`Ÿ{´`ŸD`Dàm D`Dy®®ù¨›yàyå®DŸåÈà¹- para doenças cerebrais. Dois terços dos mais de 5 milhões de ame-
vavelmente é resultado do endurecimento e espessamento das paredes ricanos com mal de Alzheimer são mulheres, não só porque muito
do ventrículo esquerdo (_bkijhW‚€e). Entre problemas no sistema elé- mais mulheres do que homens passam dos 65 anos, mas também
trico do coração, batimentos irregulares são mais comuns em homens,
porque mais mulheres adquirem a doença em todos os grupos
enquanto batidas aceleradas são mais comuns em mulheres — e certas
drogas podem tornar essa condição uma ameaça à vida. Doenças nas etários. Nas células femininas em envelhecimento, o emparelha-
ÿE¨ÿù¨Då`Dàm D`DåïD®Uz®ÿDàŸD®Î ¹E‘ù¨¹ååD´‘ù ´y¹ååT¹®DŸ¹àyå mento anormal dos cromossomos X maternos e paternos duran-
em mulheres, o que pode afetar os tratamentos; esse traço pode ter te a divisão das células pode ter seu papel. Nos homens, só o cro-
evoluído para impedir a perda de sangue excessiva durante o parto. mossomo X (materno) pode sobreviver à divisão da célula, e o
cromossomo Y pode não estar mais presente. Sexo certamente in-
fluencia a progressão da doença, e isso deve ser investigado.
eminino
TEMPO DE PERSONALIZAR
Entender mais as diferenças dos sexos vai aprimorar as diretri-
zes de saúde para os homens, também. Em 2015, os NIH lançaram
uma Iniciativa para Medicina de Precisão para enfrentar o proble-
entrículo
esquerdo ma de que a maioria dos tratamentos foi projetada para o “pacien-
te médio” e não para cada indivíduo. Espera-se que a medicina “de
precisão” ou “personalizada” leve em conta a variabilidade de ge-
nes, ambiente e modo de vida de cada pessoa. Mas estudos do ge-
Normal Sobrecarga de pressão noma que tentam apontar variantes genéticas ligadas a doenças
asculino
específicas têm, em geral, excluído os cromossomos X e Y, sugerin-
A adaptação de mulheres a uma condi- do que sexo não é um foco importante da medicina de precisão.
ção chamada sobrecarga de pressão difere A determinação de 2015 dos NIH para que pesquisadores con-
da dos homens. As paredes do coração siderem sexo como uma variável biológica em estudos com ani-
feminino tendem a engrossar, diminuindo a mais e humanos é promissora. No mesmo ano, os Institutos Cana-
entrada de sangue no ventrículo esquerdo.
denses de Pesquisa em Saúde lançaram um curso de treinamento
åÈDàymyåm¹`¹àDcT¹®Då`ù¨Ÿ´¹åyDŠ´D®j
enfraquecendo o poder de bombeamento. sobre sexo e gênero nas pesquisas de saúde. E a Liga das Univer-
sidades Europeias de Pesquisa emitiu um documento sobre como
integrar sexo e gênero na pesquisa. Em outubro de 2015, a Clíni-
Doença cardiovascular e circulatória ca Mayo realizou a Conferência de Educação Médica sobre Sexo e
(casos por 100 mil pessoas nos EUA, 2015)
Gênero. A reunião pediu que os participantes elaborassem um ro-
Prevalência Mortes teiro para integrar as evidências com base em sexo e gênero na
Doenças das artérias educação médica e para aprimorar o currículo nos cinco anos se-
2.500 guintes. Em 2016, uma comissão representando nove países de-
periféricas Mulheres
( , linhas contínuas) senvolvidos apresentou as diretrizes para a Equidade de Sexo e
Fibrilação e Homens Gênero em Pesquisas, prevendo procedimentos para a divulgação
Œùïïyà DïàŸD¨ ( , linhas pontilhadas) de informações sobre sexo e gêneros em projetos, análises de da-
2.000
Doença isquêmica cardíaca 150 dos, resultados e interpretação de descobertas de estudos.
Esses avanços são animadores. É preciso mais. Talvez mais de-
Mulheres e homens têm
taxas diferentes de certas terminações, por meio de políticas e restrições ao financiamento.
condições, em particular Talvez seja necessário exigir a adoção de melhores práticas — pa-
1.500
doença isquêmica cardíaca drões de cuidados que devem seguir o código de ética do “não faça
 `Ÿà`ù¨DcT¹ Ÿ´åùŠ`Ÿy´ïy m¹ 100 mal” — para garantir que clínicos e prestadores de cuidados com
sangue no coração por cau- a saúde considerem diferentes sexos e gêneros em diagnósticos,
sa do estreitamento das ar-
1.000 exames e tratamentos. O benefício para homens e mulheres será
térias. Taxas de mortes cos-
tumam ser semelhantes. enorme. Sem um foco em sexo e gênero, os médicos não poderão
50 oferecer a medicina de precisão que todos esperamos receber.
Doença cerebrovascular
Cardiopatia 500
hipertensiva PA R A C O N H E C E R M A I S

Cardiomiopatia 0 Gendered research and innovation: Integrating sex and gender analysis into the
e miocardite research process. League of European Research Universities, setembro de 2015.
Cardiopatia reumática 0 Ampliação Exploring the biological contributions to human health: Does sex matter? Institute of
Medicine. National Academies Press, 2001.
7j[hc_debe]_WZei]h|ÒYei\e_h[j_hWZWZei[ijkZeiY_jWZei$ Projeto Inovações de Gêneros, Universidade Stanford: http://genderedinnovations.
stanford.edu

Ilustrações de Mesa Schumacher, gráficos de Jen Christiansen www.sciam.com.br 57


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

O RETORNO
DAS FILHAS
DESAPARECIDAS
ĉäîßClžbÆxäÔøxlS¸Çßx…xßz³_žCC‰§š¸ä³C
Ásia – o que resulta em milhões de meninas
mortas ou negligenciadas – começaram a mudar
M O N I C A DA S G U P TA
Ilustração de María Corte
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

ILHAS SÃO INÚTEIS E INDIGNAS!”, gritou uma mulher


idosa em uma aldeia perto de Busan, na Coreia do
Sul, em 1996. Enquanto conversávamos sobre famí-
lias, outras idosas sentadas com ela assentiam com
a cabeça. Por quê?, perguntei. Não era porque as
filhas fossem preguiçosas, disse ela. “Não, as mulhe-
res faziam muito trabalho pesado nos campos e
seus casamentos não custavam praticamente nada.
As pessoas não querem filhas porque elas não são
úteis para a família — elas deixam a família quando
se casam. São os filhos que ficam em casa, herdam
bens e mantêm os rituais de culto aos ancestrais.”

EM SÍNTESE Na China, ouvi histórias semelhantes. Um homem uma queda na proporção de gênero das crianças na
Até muito recente- disse, quando sua filha nasceu: “Minha esposa ficou parte noroeste do país, onde era muito alta. Na China,
mente, ¡æ”ÜDÒZæ›ÜæÍDÒ tão chateada que não queria cuidar da criança, e eu a escalada em tais proporções se estabilizou.
§DҔDdZ«¡«r¡ tive de persuadi-la a amamentá-la”. Essas mudanças coincidem com uma rápida urba-
«æÜÍ«Ò›æ†DÍrÒdèD›«Í”îD“ Essas atitudes causaram efeitos de vida e morte. A nização e com mudanças sociais que ajudaram a tor-
èD¡¡r§”§«Ò¡D”Òf«
taxa natural de nascimento entre homens e mulheres nar as filhas mais valiosas para seus pais. Filhas já não
Âær¡r§”§DÒdrZ͔D§]DÒ
é de apenas cerca de 5% a 6% a mais de meninos do desaparecem de suas famílias biológicas e, em alguns
f«Òrê«{r¡”§”§«rÍD¡
{ÍrÂær§Ür¡r§Ür¡«ÍÜDÒ que de meninas. Mas em 2000, na China, havia 20% a casos, elas trazem homens adicionais de fora. Vin-
«æ§r†›”†r§Z”DfDÒµ«Í mais de meninos nascidos. Este tipo de proporção dis- te anos depois do meu trabalho de campo em Busan,
ÒæDÒ{D¡û›”DÒ» torcida entre gêneros foi encontrada em grande par- uma mulher na Coreia do Sul me disse: “Minha mãe
Gerações com menos te do leste da Ásia, do sul da Ásia, do sul do Cáucaso sofreu abusos quando era jovem porque tinha três
mulheres {«ÍD¡µÍr™æ“ e de partes dos Bálcãs. Nessas áreas, bebês mulheres filhas e nenhum filho. Agora que estamos crescidas,
f”ZDfDÒrÜD›DæÒù§Z”D são abortadas, mortas no nascimento ou morrem por ela está muito feliz porque continuamos perto dela.
D{rÜ«æÒæDÒÒ«Z”rfDfrÒd
negligência. Por quê? Como disse a mulher de Busan, Ela diz que seus genros a tratam melhor do que filhos”.
D›ÜrÍD§f««ÒµDfÍĂrÒfr
ZDÒD¡r§Ü«r¡”†ÍD]õ«
trata-se de economia brutal. Historicamente essas cul-
µDÍDfr§ÜÍ«rµDÍD{«ÍD turas não permitem que as filhas adultas ajudem no EXPULSANDO MULHERES
frÍr†”ĂrÒrµDûÒrÒ» domicílio dos pais ou herdem propriedades, o que Por séculos, a organização social da sociedade rural
Agora, uma igualdade diminui seu valor para a família biológica. na China, na Coreia do Sul e no noroeste da Índia
de sexos rÒÜñZ«¡r“ Mas, recentemente, o viés demográfico contra as afastou as filhas das famílias de seus pais. Quando as
]D§f«DÒr¡D§ÜrÍrd mulheres começou a mudar. Na Coreia do Sul há um mulheres se casavam, eram absorvidas pela família do
ÂæD§f«DÒZæ›ÜæÍDÒZ«§“ reequilíbrio das proporções de gênero entre crian- marido. Mão de obra nova em sua família biológica
Zrfr¡¡D”ÒèD›«ÍrZ«“
ças desde meados dos anos 1990, sendo que a propor- passava a ser fornecida por cunhadas que entravam,
§Ā¡”Z«òҡ曐rÍrÒdDÒ
ção de meninos em relação a meninas caiu de níveis enfatizando ainda mais o valor dos filhos. Uma estru-
µÍ«µ«Í]ĂrÒfr†ù§rÍ«
§«§DÒZ”¡r§Ü«§õ« elevados para os biologicamente normais. Existe mes- tura social similar aparece em outras regiões com for-
¡D”Ò{Dè«ÍrZr¡«Ò mo uma mudança de preferência por filhas na Coreia te preferência por filhos, incluindo o norte do Vietnã e
›«ÒZ«¡ÜD§ÜD{«Í]D. do Sul hoje em dia. Na Índia, o censo de 2011 mostrou países do sul do Cáucaso.

60 Scientific American Brasil, Outubro 2017


rígidos, enquanto o terceiro possui um sistema de

Diferentes lugares e perdas parentesco que não favorece filhos de qualquer gêne-
ro. Em Taiwan e na Coreia do Sul, uma proporção
A Coreia do Sul, a China e o noroeste da Índia perderam muitas meninas substancial de pais vive com filhos casados, mas quase
durante o século 20 — vítimas de infanticídio ou negligência em nenhum deles vive com filhas casadas, segundo estu-
culturas patriarcais. Dados de recenseamento e pesquisas populacionais do a ser publicado que realizo com Doo-Sub Kim, da
FONTES: “‘MISSING GIRLS’ IN CHINA AND INDIA: TRENDS AND POLICY CHALLENGES,” GUO ZHEN, MONICA DAS GUPTA E LI SHUZHUO, EM ASIAN POPULATION STUDIES, VOL. 12, Nº 2. PUBLICADO ON-LINE 6 DE JUNHO DE 2016 ( crianças na Índia, idades 0–6, e crianças na Coriea do Sul e na China, idades 0–4 );

mostram queda no número de bebês e crianças pequenas do sexo Universidade Hanyang, em Seul. Nas Filipinas, os pais
feminino, em comparação com o dos meninos. O efeito não foi visto na têm a mesma chance de viver com filhos casados de
ambos os gêneros. Não surpreende que a proporção de
DADOS DO CENSO NACIONAL (China, Índia, Coreia do Sul ); WORLD POPULATION PROSPECTS: THE 2017 REVISION. EDIÇÃO EM DVD. DIVISÃO DE POPULAÇÃO, DEPARTAMENTO DE ASSUNTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS, NAÇÕES UNIDAS, 2017 ( América do Norte, Europa Ocidental e norte da Europa)

Europa e na América do Norte. Valores culturais recentes mudaram, e


as meninas retornaram. gênero entre crianças seja normal nas Filipinas, mas
desequilibrada em Taiwan e na Coreia do Sul.
Percentagem dos sexos mostra mais homens do que mulheres

Os resultados dessa desvalorização também não


Número igual de surpreendem. Meninas indesejadas foram descarta-
100:100 meninas e meninos das por infanticídio e negligência, distorcendo propor-
ções entre os gêneros a favor dos meninos. A partir dos
anos 1980, ecografias e outras tecnologias para detec-
América do Norte ção pré-natal do sexo permitiram tomar medidas rela-
100:105 Norte da Europa tivas ao sexo das crianças antes mesmo do nascimen-
Europa ocidental to. Os novos métodos facilitaram aos pais evitar filhas
indesejadas através do aborto e a proporção de gênero
Coreia do Sul
no nascimento ficou ainda mais desequilibrada.
Índia Grandes distúrbios, como fome e guerra, aumenta-
100:110
ram a pressão sobre os pais para se livrarem de crian-
ças vistas como supérfluas. A partir de 1937, tropas
japonesas varreram o leste da China e meninas “desa-
pareceram”: 17% mais meninas morreram do que seria
100:115 esperado como resultado de uma taxa de mortalida-
de típica nesta situação. Os pais em regiões devasta-
das pela guerra sentiram que tinham de fazer algu-
China mas escolhas difíceis. Uma mulher na província de
Noroeste da Índia
Zhejiang me contou sua experiência nos anos 1930:
100:120 “Quando tinha seis anos, minha mãe disse que eu
(Punjab e
Haryana) deveria ser vendida. Implorei a meu pai que não fizes-
se isso, que eu comeria muito pouco se me deixassem
ficar.” O colapso das instituições governamentais pode
ter efeitos análogos. Nos países do sul do Cáucaso, as
100:125
proporções de gênero no nascimento, que favorecem
meninos, dispararam quando a URSS foi dissolvida.
1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 A redução no tamanho das famílias também
aumenta a pressão para que pais selecionem filhos.
Em grandes famílias, pais podem se dar ao luxo de ter
várias filhas e, ainda, um ou dois filhos. Em famílias
Para consolidar a transferência de filhas, quando pequenas, há apenas chances limitadas de ter filhos. A
uma mulher se junta à família do marido, seu espa- segunda menina nascida em tais famílias, em culturas
ço em sua família natal é eliminado. Um novo espaço é favoráveis a garotos, tem chance muito maior de mor-
criado para as noivas que chegam. Se as mulheres vol- rer antes do nascimento ou na primeira infância.
tam — algo raro — elas e seus pais precisam se esfor-
çar muito para fazer com que a situação incomum fun- QUANDO HÁ ESCASSEZ DE NOIVAS
cione. Outros membros da família e também da aldeia A morte desses bebês é um resultado chocante da
resistem, devido ao potencial de redução de seus direi- desigualdade de gênero. Os efeitos prejudiciais rever-
tos de propriedade. Quando uma mulher da China beram pela sociedade. No fim, se mostram como escas-
rural se casa e seus direitos à propriedade são realo- Monica Das Gupta sez de mulheres adultas. E, depois de períodos inten-
cados entre moradores da vila, por exemplo, sua volta ÷µÍ«{rÒÒ«ÍD§« sos de seleção de sexo nas décadas anteriores, uma
pode ser encarada com antagonismo. frµDÍÜD¡r§Ü«fr “contração de casamentos” agora amarra a China, a
O impacto dessas normas culturais pode ser vis- Ò«Z”«›«†”DfD Coreia do Sul e o noroeste da Índia. A China apresenta
7§”èrÍҔfDfrfr
to no contraste entre os arranjos de vida de idosos em o cenário mais severo. Em 2010, a Academia Chinesa
$DÍë›D§frÜÍDOD›«æ
países como Taiwan e Coreia do Sul, e aqueles em paí- Z«¡«fr¡þ†ÍD{D de Ciências Sociais estimou que, até 2020, um em cada
ses como as Filipinas. Os dois primeiros têm sistemas µDÍD«
D§Z« cinco homens não conseguirá encontrar uma esposa.
de parentesco patriarcal (comandado pelos homens) $æ§f”D›» A escassez de noivas afeta mais os homens pobres.

Gráficos de Jen Christiansen www.sciam.com.br 61


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

Como relatam Shang-Jin Wei, da Universidade


Columbia, e seu colega, na China os pais mais pobres
O que mudou para melhorar o valor
em áreas com relações de gênero desequilibradas
lutam para melhorar as chances dos filhos no merca-
lDä­x³ž³DäÕlž…Ÿ`ž§ßxäǸ³lxßj
do matrimonial e recorrem a medidas desesperadas mas o aumento da urbanização e da
como aceitar trabalhos perigosos para ganhar mais e
construir uma casa melhor, que atraia essa mercadoria
educação dos pais desempenha um
escassa e valiosa: uma noiva que entre na família. papel importante.
Ao mesmo tempo, o aperto matrimonial pode
beneficiar as mulheres. Em áreas da China com menos
noivas em potencial, um estudo de Maria Porter, da as meninas começou a diminuir. Meu colega Woo-
Universidade Estadual de Michigan, descobriu que as jin Chung e eu documentamos esse fenômeno em um
mulheres têm maior poder de barganha em seu casa- estudo sobre mudança de atitudes em mulheres sul-
mento, permitindo que ofereçam mais apoio a seus -coreanas em relação ao sexo das crianças. Quando
pais do que antes. Mulheres de áreas pobres podem se entrevistadas em 1991, 35% das mulheres nascidas
casar com homens que oferecem padrões de vida mais entre 1955 e 1964 disseram que “necessitavam ter um
elevados, tanto localmente quanto ao migrar para filho”. Mas, em 2003, apenas 19% das mulheres nasci-
outras partes do país. Algumas migram para outros das nesse mesmo período mantinha essa visão.
países para se casar com homens em melhor situação. Alterações nessa atitude tomaram conta da socie-
Na China, na Coreia do Sul e na Índia, vários estu- dade. Mesmo depois de levar em consideração dife-
dos mostram que esses pretendentes de longa distân- renças nos níveis educacionais e residências urbanas
cia são mais desfavorecidos em termos socioeconômi- versus rurais, em 2003 as chances de mulheres entre
cos em comparação com outros homens em sua pró- 15 e 49 anos afirmando que “necessitavam ter um
pria localidade. Eles não conseguem atrair uma esposa filho” eram de aproximadamente um terço do nível
local, mas ainda podem oferecer um padrão de vida de 1991. Mudanças nas normas sociais representam
melhorado para mulheres de regiões pobres. até 73% desse declínio. Somente 27% da queda é cau-
Mas esses casamentos migratórios trazem riscos. sada unicamente pelo aumento em níveis individuais
Algumas pesquisas sugerem que mulheres que vêm
de diferentes grupos étnicos ou linguísticos enfren-
tam problemas de assimilação, são vistas como estran-
geiras, não conhecem a língua e os costumes locais, e
têm redes sociais limitadas em sua nova configuração.
Muitas uniões são feitas com homens que vivem em
Em tempos difíceis,
áreas rurais e a vida rural isola ainda mais as noivas.
As dificuldades podem ultrapassar o isolamento
meninas sofrem
social e mal-entendidos culturais. Em um estudo de Na China, o número de meninas caiu, em comparação com o que seria bio-
2010 sobre noivas vietnamitas em Taiwan, feito por logicamente normal, durante tempos difíceis. As famílias eliminavam crian-
pesquisadores da Universidade Nacional do Vietnã, a ças do sexo feminino, menos valorizadas durante as guerras internas na
maioria das mulheres disse estar feliz porque ajuda- ly`DlDlx¿´öćjø­Dž³þDäT¸¥DǸ³xäD³¸‰³D§lDly`DlDlx¿´ðćj…¸­x³D
década de 1950 e pressão para ter famílias pequenas na década de 1980.

DECLINE,” MONICA DAS GUPTA E LI SHUZHUO, EM DEVELOPMENT AND CHANGE, VOL. 30, NÚMERO 3; JULHO DE 1999
va financeiramente sua família biológica. Mas algu-

FONTE: “GENDER BIAS IN CHINA, SOUTH KOREA AND INDIA 1920–1990: EFFECTS OF WAR, FAMINE AND FERTILITY
mas relataram problemas, como serem humilhadas
Diminuição Percentual de Meninas em Relação a Meninos*

por seus maridos e pela família dele por causa de sua 0


pobreza, sofrendo violência doméstica ou sendo obri-
gadas a trabalhar como escravas. Em Taiwan, um estu-
do de 2006 descobriu que o casamento por migração Guerras internas
se tornou um fator de risco para violência doméstica. –5
E na Coreia do Sul, Kim, de Hanyang, encontrou uma
maior chance de haver divórcio nesses casamentos. Declínio da
Estudiosos também sugeriram que a criação de Invasão fertilidade
–10 japonesa
uma geração de solteiros forçados pode aumentar os
Fome
níveis de criminalidade e de violência, inclusive contra
mulheres. Os níveis de crime cresceram em áreas com
mais homens do que mulheres, segundo estudo na
Índia liderado por Jean Drèze, da Faculdade de Eco- –15
nomia de Delhi, assim como de outro estudo, feito na
China por Lena Edlund, de Columbia, e seus colegas.
*Crianças com
O VALOR DAS MULHERES idades de 0-4 1920 1940 1960 1980 1990
Nas últimas duas décadas, o preconceito contra

62 Scientific American Brasil, Outubro 2017


de educação e urbanização. Quando as atitudes muda-
ram, a proporção de gênero infantil seguiu o mesmo
caminho, como mostrado no quadro na página oposta. Percentuais de gênero
O que mudou para que o valor das meninas aumen-
tasse? É difícil dizer, mas a urbanização e a educa- seguem preferências sociais
ção crescentes dos pais tiveram um papel importante. Na Coreia do Sul, ¸lxäx¥¸lx`§DßDl¸lxîx߉§š¸äx­þxąlx‰§šDä`Džø
A Coreia do Sul, por exemplo, se urbanizou velozmen- `¸­…¸ßcD³¸ž³Ÿ`ž¸l¸äD³¸älx¿´´ćÍ Ǹß`x³îDx­ßxD§lx‰§š¸ä
te, com a porcentagem de pessoas que vivem dentro e nascidos começou a declinar logo depois disso, mostrando o poder de
em torno de cidades indo de 33% para 67% entre 1966 valores em transformação.
e 1986. Em 1991, 75% viviam em áreas urbanas. O efei-

no total de nascimentos
Percentagem de mulheres dizendo Porcentagem do sexo masculino
to da vida urbana sobre a preferência em relação aos 50
filhos é tanto social quanto econômico. Viver numa
40
cidade reduz a centralidade do papel dos filhos na vida
de seus pais. Enquanto aldeões passam seus dias cer-
30
cados por membros do clã, residentes urbanos vivem e
trabalham nas configurações mais impessoais de apar- 20
tamentos e escritórios. A mudança alivia a pressão de
adaptação às expectativas tradicionais de dever filial e 10
de ter filhos para continuar a linhagem.
Nas áreas urbanas, as crianças que sustentam seus
Õùy ØÈày`ŸåD® ïyà ù® Š¨›¹Û 54
pais tendem a fazê-lo menos por causa de regras for-
mais e mais porque acontece de morarem na mesma
53
cidade e de manterem relacionamentos sólidos com
seus pais. Dessa forma, a urbanização ajuda a supe-
rar a lacuna entre o valor atribuído a filhas e filhos. O 52
emprego e a educação feminina também aumentam o
apoio em potencial que elas podem oferecer. E, com o
51
maior acesso a aposentadorias e a sistemas de prote-
1980 1990 2000
ção social, as pessoas se tornam menos dependentes
de seus filhos para obter ajuda financeira.
As políticas governamentais também deram incen-
tivos para que a preferência masculina caísse em declí-
nio, encorajando a igualdade convencional para as para proibir a seleção de nascimentos mostrou pouco
mulheres. A Índia usou a ação afirmativa a fim de resultado sobre a proporção nacional de sexo de bebês.
aumentar a participação política das mulheres, crian- Os países da Ásia ainda estão se urbanizando rápi-
do quotas femininas para candidatos a posições nos do, portanto creio que a preferência por filhos continua-
governos locais. Os cientistas sociais descobriram rá a declinar. Os legisladores podem acelerar o processo
que, após a criação da política, estereótipos de gênero com medidas legais e outras que melhorem a igualda-
enfraqueceram entre a população como um todo, e as de de gênero. Eles também podem expandir o ativismo
aspirações das meninas para si próprias aumentaram. dos meios de comunicação e retratar mulheres ajudan-
O amplo uso dos meios de comunicação também do seus próprios pais idosos (não apenas seus sogros).
foi um aspecto básico dos programas de planejamen- Esses passos ajudam a mudar estereótipos de gênero e a
to familiar na Índia, na China e na Coreia. Cartazes e superar a preferência dos pais por filhos. Para as mulhe-
FONTES: “THE DECLINE OF SON PREFERENCE IN SOUTH KOREA: THE ROLES OF DEVELOPMENT

comerciais incentivam famílias pequenas, mesmo sem res — e para a sociedade em geral —, abordagens assim
DEVELOPMENT REVIEW, VOL. 33, Nº 4; DEZEMBRO DE 2007; DADOS DO CENSO NACIONAL
AND PUBLIC POLICY”. WOOJIN CHUNG E MONICA DAS GUPTA, EM POPULATION AND

filhos homens. Isso promove a visão de que filhas são podem gerar resultados melhores do que a proibição
tão boas quanto filhos para a felicidade familiar. Per- pura e simples de seleção do sexo no nascimento.
sonagens femininas nas novelas da TV indiana agora
trabalham fora e são ativas na vida pública, desafian-
do as visões antigas do lugar da mulher na sociedade. PA R A C O N H E C E R M A I S
Estudos mostram que a exposição a essas mensagens “Missing Girls” in China and India: Trends and Policy Challenges. Guo Zhen, Monica Das Gupta e Li Shuzhuo
está associada à redução na preferência pelos filhos. em Asian Population Studies, Vol. 12, nº 2, págs. 135–155. Publicado online em 6 de junho de 2016.
Também houve tentativas diretas para mudar as Sex Ratios and Crime: Evidence from China. Lena Edlund et al. em Review of Economics and Statistics,
Vol. 95, nº 5, págs. 1520–1534; dezembro de 2013.
proporções de gênero, proibindo-se o uso de tecnolo-
The decline of son preference in South Korea: The Roles of development and public policy. Woojin
gia para detecção e seleção pré-natal do sexo. Essas Chung e Monica Das Gupta em Population and Development Review, Vol. 33, nº 4,
proibições se iniciaram em vários países, mas tem págs. 757–783; dezembro de 2007.
havido pouca avaliação rigorosa sobre seu impacto Crisis of masculinity in Haryana: The unmarried, the unemployed and the aged. Prem Chowdhry
em Economic and Political Weekly, Vol. 40, nº 49, págs. 5189–5198; 3-9 de dezembro de 2005.
devido à falta de dados. A proibição, na Índia, em rela-
Why is son preference so persistent in East and South Asia? A Cross-Country Study of China,
ção à escolha do sexo parece ter tido um efeito modes- India and the Republic of Korea. Monica Das Gupta et al. em Journal of Development Studies, Vol. 40,
to, no máximo. Um esforço vigoroso feito na China nº 2, págs. 153–187; 2003.

www.sciam.com.br 63
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

TRABALHO
DE MULHER
Quanto mais mulheres contribuem para a economia,
­x§š¸ß‰_CCþžlCÇCßCî¸l¸äÍ/¸ßÔøxyîS¸lž…Ÿ_ž§
diminuir as barreiras às oportunidades para elas?
ANA L. RE VENGA E ANA MARIA MUNOZ BOUDET

OS ÚLTIMOS 50 ANOS, MULHERES E


meninas em países em desenvolvimento fizeram enormes progres-
sos. Muitas estatísticas ilustram essa tendência. Veja a expectativa
de vida ao nascer: passou de 54 anos em 1960 para 72 anos em 2008.
EDWIN REMSBERG Getty Images (mercado na Suazilândia)

No mesmo período, registramos o mais rápido declínio em fertilida-


de no mundo. Essas mudanças refletem ganhos para as mulheres em
diversas frentes, incluindo educação, emprego, acesso à saúde repro-
dutiva e poder de decisão, e tudo isso aconteceu muito mais rapida-
mente do que nos atuais países ricos. A Índia precisou de 44 anos e o
Irã de apenas dez anos para que o número de crianças nascidas por
mulher fosse reduzido de seis para três; os EUA levaram 123 anos.

64 Scientific American Brasil, Outubro 2017


SUPERAR A DESIGUALDADE
lxz³x߸³¸x­Çßx¸x§xþDߞD
em 12% a produtividade na
África subsaariana.
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

Dois terços de todos os países conseguiram igualda-


de de gênero em matrículas em educação básica, e
em mais de um terço há mais garotas do que garotos
nas escolas. Em uma impressionante reversão dos pa-
drões históricos, mulheres são agora maioria entre os
graduados em universidade. E mais de meio bilhão de
mulheres entraram para o mercado de trabalho nos
últimos 30 anos, o que significa que, atualmente qua-
tro em cada dez trabalhadores no globo são mulheres.
Mas, em meio a esses avanços, há desigualdades
que persistem. Embora mulheres em geral vivam mais
do que homens, em regiões como a África subsaariana
a chance de morte no parto é igual à das mulheres do
Norte da Europa do século 19, antes da introdução dos
antibióticos. As mulheres ainda detêm menos postos
de poder na política e nas empresas. E, embora muitas
mulheres trabalhem com remuneração, elas o fazem
em condições que consideram seu talento, capacidade SETORES PESADAMENTE “FEMINIZADOS”, como
e educação de modo diferente em relação aos homens. produção de alimentos e ensino, tendem a ter salários
Essas desigualdades são revoltantes e enfrentá-las é ­DžäUDžĀ¸äÍ­î¸l¸ä¸ääxî¸ßxäjš¸­x³äDž³lDD³šD­
tanto uma questão de direitos quanto algo fundamen- mais que mulheres na mesma posição, mesmo após con-
tal ao desenvolvimento. Assim como cremos que de- siderar educação e idade.
senvolvimento se traduz em menos pobreza e maior
acesso a serviços para todos, também o vemos como
um processo de ampliação das liberdades. Para nós, de. Agricultoras têm mais dificuldades para obter fer-
buscar a igualdade de gêneros — especialmente o aces- tilizantes, máquinas e sementes, por isso seus ganhos
so das mulheres a oportunidades de geração de renda são, com frequência, menores. Da mesma forma, em-
— é uma política inteligente que, em si, leva a um de- presárias costumam enfrentar acesso restrito ao ca-
senvolvimento melhor e não o contrário. pital e crédito. Algumas vezes isso acontece porque
Superar os desequilíbrios de bem-estar entre os se- elas têm menos chances de possuir terra e outros ati-
xos exige ações específicas, oportunas e intencionais. vos exigidos como garantias; outras vezes, porque é pr-
Há algumas formas básicas de fazer isso. Primeiro, de- ciso que um homem também assine a solicitação ou
ve-se remover as barreiras que impedem que as mulhe- porque os bancos atribuem uma classificação de ris-
res tenham o mesmo acesso que os homens a oportu- co de crédito maior para elas. Isso significa que negó-
nidades econômicas; isso pode gerar maior produtivi- cios controlados por mulheres são com frequência me-
dade e, assim, maior renda para todas as pessoas. Em nos lucrativos, criando um círculo “ovo ou galinha” di-
EM SÍNTESE segundo lugar, é preciso aumentar os níveis de educa- fícil de quebrar. Quando essas questões são corrigidas,
ção, saúde e os organismos em geral para as mulheres, a produtividade geral aumenta sensivelmente. Um es-
Melhorar o acesso
das mulheres òÒ o que leva a resultados melhores para mães e filhos. tudo recente mostrou que, eliminando-se as desigual-
«µ«ÍÜ槔fDfrÒrZ«§Ā“ Em terceiro lugar, deve-se colocar mais mulheres em dades de gênero no setor empresarial, a produtividade
¡”ZDÒdrfæZD]õ«r postos de comando. Dar às mulheres uma voz repre- e a renda subiriam 12% na África subsaariana e 38% no
›”OrÍfDfrÍrµÍ«fæܔèD sentativa muda a política e os investimentos em áreas Oriente Médio e Norte da África.
›rèDòµÍ«Òµr͔fDfr como saneamento, escolas e saúde. Mas implantar es- Mesmo nos EUA e no Canadá, onde a diferença
µDÍDÜ«f«Ò» sas mudanças não é tão simples quanto identificá-las. de participação na força de trabalho pode estar abai-
Apesar de avanços xo de 15%, outros fatores dificultam a igualdade. Ho-
‘¨¹UDŸå 埑´ŸŠ`DïŸÿ¹å
UMA LACUNA PERSISTENTE mens e mulheres costumam se concentrar em diferen-
§DÍrfæ]õ«fDÒfrҔ“
†æD›fDfrÒfr†ù§rÍ«d O acesso desigual às oportunidades econômicas é tes setores econômicos e elas tendem a trabalhar nas
rÒµrZ”D›¡r§Ürr¡µDû“ um dos principais entraves ao progresso. Esse é um áreas de educação e serviços sociais, enquanto eles têm
ÒrÒr¡frÒr§è«›è”“ problema em todos os países, ricos e pobres, e em to- mais chances de trabalhar em construção e transpor-
¡r§Ü«dDÒf”ÒµD͔fD“ dos os setores, da agricultura ao empreendedorismo. tes. Mas o que é menos perceptível é que as mulheres
A. MAJEED Getty Images (escola de meninas no Paquistão)

frÒr§ÜÍr¡æ›rÍrÒr O primeiro obstáculo é a entrada: as mulheres pre- costumam ocupar postos de remuneração mais baixa
«¡r§ÒÍrҔÒÜr¡òÒ cisam ter acesso ao espaço econômico para participa- não importa em que setores estejam. Por exemplo, mu-
¡æfD§]DÒ» rem dele. Embora a força de trabalho feminina tenha lheres costumam ser professoras, enfermeiras e funcio-
Políticas e progra-
crescido muito na maior parte do mundo, uma subs- nárias de setor administrativo em vez de diretoras, mé-
mas Âærr§{Ír§ÜD¡
§«Í¡DÒÒ«Z”D”Òr§ÍD”“ tancial diferença na participação é visível em todas as dicas e supervisoras. Mesmo como empresárias, elas
îDfDÒÒõ«DÒÒ«›æ]ĂrÒ partes entre homens e mulheres — 53 pontos porcen- tendem a se concentrar em setores tradicionalmente
¡D”ҵͫ¡”ÒÒ«ÍDÒr tuais no Oriente Médio e Norte da África. Mesmo se as femininos como alimentos e produção de roupas.
frèr¡ÒrÍ”§Ür§Ò”ZD“ mulheres conseguissem romper essa barreira, elas pro- Embora possamos discutir as preferências das mu-
f«ÒrrêµD§f”f«Ò» vavelmente não competiriam em condições de igualda- lheres (e homens) por determinados setores, esses pa-

66 Scientific American Brasil, Outubro 2017


drões não são casuais. Essas “preferências” refletem a impressionante é que essas normas não mudam, ape-
influência de ideias e normas sobre “trabalho de mu- sar de as mulheres assumirem uma fatia maior no mer-
lher” e “trabalho de homem”, assim como outros atri- cado de trabalho. Em Gana, a esposa ainda faz mais de
butos de gênero, como a ideia de que mulheres são me- 80% do trabalho doméstico mesmo quando é responsá-
lhores cuidadoras, enquanto homens se adaptam me- vel por toda a renda do lar. Esse desequilíbrio se repe-
lhor ao trabalho físico pesado. O ponto crítico é que te em outros lugares, incluindo os EUA. Até nos locais
setores muito “feminizados” tendem a ter, na média, Ana L. Revenga mais progressistas, esse padrão reflete pressupostos so-
÷rZ«§«¡”ÒÜD“Zr{r
salários menores. E, evidentemente, a diferença de gê- bre a divisão de tarefas, identificando-a como natural e
Df™æ§ÜDf«Í浫
nero nos ganhos é bem conhecida: no mundo, uma
D§Z«$æ§f”D›»¡ não cultural. Assim, vivemos como se isso fosse apenas
mulher ganha cerca de US$ 0,81 para cada US$ 1 rece- ÒæDZDÍÍr”ÍDfräƒ a forma como as coisas são. Os efeitos disso estão em
bido por um homem. Na Jordânia e na Costa do Mar- D§«Òdr›DÜr¡ todo o funcionamento de sociedades, lares e mercados.
fim, a diferença entre as rendas supera 80%. Os países ›”frÍDf««ÜÍDOD›« Veja o horário escolar, que não é coerente com um em-
ricos não estão isentos: a Nova Zelândia tem um míni- fD”§ÒܔÜæ”]õ«r¡ prego de período integral, ou leis que permitem que as
ÂærÒÜĂrÒfrµ«OÍrîD
mo de cerca de 5%, e na Coreia do Sul a diferença é de rrÂæ”fDfr»
mães — mas não os pais — tirem licença para tratar de
36%. Mas essa lacuna reflete as diferentes posições eco- um filho doente. Romper com esses padrões exige a eli-
nômicas ocupadas por elas. Mesmo quando se conside- minação de expectativas predefinidas.
ram fatores como educação, setor e idade que iguala- Infelizmente, as políticas usadas para tratar da
riam homens e mulheres, a diferença de renda persiste. questão do tempo limitado giram em torno dessas nor-
Professoras no Paquistão rural, por exemplo, ganham mas em vez de confrontá-las. Embora os resultados se-
30% menos que seus colegas homens. Entender e en- jam promissores, essa não é uma solução completa. O
frentar as normas sociais por trás dessas persistentes exemplo mais popular é a oferta de maior acesso a ser-
desigualdades é fundamental para eliminá-las. viços de cuidados infantis e o aprimoramento das li-
Ana Maria Munoz cenças parentais. Como era de se esperar, a expansão
NORMAS SOCIAIS RESISTENTES Boudet÷Z”r§Ü”ÒÜD do acesso à assistência à primeira infância e serviços
Uma das principais causas dos ganhos e produti- Ò«Z”D›Òù§”«ÍfD de pré-escola leva ao aumento da participação da mu-
0ÍñܔZD›«OD›Ò«OÍr
vidade menores é a limitação do tempo das mulheres. lher no mercado de trabalho em todos os países. Maior
0«OÍrîDrÂæ”fDfr
Elas dedicam uma parcela muito maior de seus dias f«Í浫
D§Z« acesso aos cuidados infantis (localização, períodos de
aos cuidados e trabalhos da casa, o que por sua vez sig- $æ§f”D›»›D”§Ür†ÍDD funcionamento), barateamento (de custos diretos e re-
nifica que as mulheres têm menos tempo para o tra- 7§”fDfr$r§Ürd lacionados) e capacidade (fim de listas de espera, in-
balho remunerado. Normas sociais muito enraizadas «¡µ«ÍÜD¡r§Ü«r cluindo idades diferentes de crianças) têm um impacto
rÒr§è«›è”¡r§Ü«f«
orientam as diferenças nos papéis “domésticos”. O mais positivo no engajamento da mulher no trabalho.

D§Z«»
Há amplas evidências de que essa mudança de polí-
tica alivia as limitações de tempo da mãe trabalhadora.
No início dos anos 1990, a Argentina iniciou um pro-
Um retorno no emprego grama para expandir a educação na primeira infância.
Isso levou à criação de 175 mil pré-escolas em sete anos.
A participação da força de trabalho feminina tende a ser mais alta durante Pesquisadores observaram os padrões de mão de obra
os estágios iniciais de desenvolvimento econômico, quando os países são enquanto o programa avançava e descobriram um im-
pobres e os lares não podem se permitir ninguém sem trabalho. A produção pacto positivo de sete a 14 pontos porcentuais no em-
agrícola ocupa grande parte da mão de obra. Quando os países se transfor- prego de mães. Ressalte-se que esses efeitos se mantêm
mam de sociedades rurais em industriais ou urbanizadas e mais rendas mesmo quando a escola é apenas de meio período.
`¸­xcD­D‹øžßÇDßDDä`DäDäj¸äîžÇ¸älxx­Çßx¸ä­ølD­jx­Džä Mas políticas como alocar mais tempo para a licen-
mulheres param de trabalhar. Quando os países amadurecem como moder- ça-maternidade — e incluir licença-paternidade ou pa-
FONTE: ANA MARIA MUNOZ BOUDET (dados dos Indicadores de Desenvolvimento Mundial, Banco Mundial)

nas economias de serviços, as mulheres retornam ao trabalho, mas em es- rental para incluir os pais — nem sempre têm tanto su-
paços econômicos diferentes. cesso. Na Alemanha, a expansão das normas e da co-
80 Linha de regressão bertura da licença-maternidade levou mais mulheres a
força de trabalho (entre 15-64 anos, 2013
Porcentagem de mulheres participando da

Noruega retornarem ao trabalho com seus empregadores de an-


República Centro-Africana tes do parto. Mas, quando a vizinha Áustria mudou a
70 duração da licença-maternidade em 1990 de um para
Serra Leoa França dois anos, diminuiu bastante o porcentual de mulheres
Quênia
60
que retornaram ao trabalho.
Bangladesh Ilhas Salomão Grécia Há ainda os programas de licença-parental na Es-
Indonésia Chile
candinávia, que oferecem aos pais um incentivo para
Panamá
50 Guatemala dividirem as tarefas depois do nascimento da criança.
Cada ponto representa um país Quando foram adotados, raramente eram usados pelos
homens. Mas, quando a Suécia implantou uma política
6 7 8 9 10 11
Produto Interno Bruto per capita para dar licença específica e intransferível aos pais, os
(em US$ constantes de 2015, escala logarítmica) resultados foram positivos em termos de levar os ho-
mens a dedicarem mais tempo aos seus filhos. Estudos

Gráfico de Jen Christiansen www.sciam.com.br 67


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

mostraram que esses homens continuam bastante en-


volvidos na criação, mas lentamente abandonam ou-
tras tarefas domésticas quando a licença termina.
De modo similar, diferenças em capital humano
costumam afetar as trajetórias das carreiras das mu-
lheres. A raiz do problema não é uma diferença na ha-
bilidade ou capacidade entre os sexos — são as dis-
crepâncias em como investimos e valorizamos as
mulheres como trabalhadoras. Em países em desenvol-
vimento, essas diferenças aparecem como acesso aos
estudos e à sua conclusão; nos países mais ricos, onde
o grau de instrução é mais alto e tanto homens quan-
to mulheres cursam universidades em grandes núme-
ros, as diferenças aparecem em campos de estudo. Nos
EUA, por exemplo, mulheres são menos de 35% dos
graduados em ciência e áreas técnicas, embora repre-
sentem quase 60% dos diplomados em faculdades.
Para superar as diferenças de capital humano en-
tre homens e mulheres, os governos precisam fazer in-
vestimentos além da educação tradicional para incluir
treinamento, estágio e outras políticas de trabalho. Jo-
vens em busca de emprego são um alvo importante LIMITAÇÕES rem de homens ou mulheres, mostrou evidências subs-
dessas políticas. Um exemplo notável é a série de pro- ao tempo das tanciais de discriminação de gênero quando se trata de
gramas Jóvenes implantada na América Latina no iní- mulheres estão recrutar e contratar. Além disso, o acesso ao emprego
cio dos anos 2000, que englobava uma combinação de disseminadas costuma envolver redes de gênero: quando as mulhe-
treinamento, estágios e incentivos aos empregadores em países ricos res estão pouco representadas em uma ocupação, têm
com o objetivo de impedir preconceitos na contratação e pobres. menos chances de saber das oportunidades e podem
de jovens. Em geral, esses programas ampliaram a pro- não encontrar mentores. Em muitos países, anúncios
babilidade de que jovens mulheres conseguissem em- para empregos especificando o gênero e critérios ten-
prego e aumentassem sua renda. denciosos de seleção ainda são comuns. Em surpreen-
Mas esforços para transferir as lições dos progra- dentes 174 dos 189 países do banco de dados Mulheres,
mas Jóvenes para outros setores deram resultados ir- Empresas e o Direito, os empregadores não são proi-
regulares. Uma avaliação de um programa de treina- bidos de perguntar a candidatos a empregos sobre seu
mento vocacional semelhante no Malauí descobriu que estado civil e planejamento familiar.
obrigações familiares limitavam a participação femini- Instituições governamentais também podem tratar
na. O programa-piloto Novas Oportunidades para Mu- homens e mulheres diferentemente, com frequência
lheres da Jordânia envolveu mais de mil jovens de fa- contrariando o interesse delas. Por exemplo, em 66%
culdades comunitárias. A demanda foi extremamen-
te alta; muitas concluíram com sucesso o treinamento
vocacional e metade delas conseguiu emprego graças
a vales que subsidiavam o salário para o empregador.
Em Gana, a esposa ainda faz mais de
Mas os efeitos tiveram curta duração, e não se cons- 80% do trabalho doméstico mesmo
tataram mudanças no emprego ou nos ganhos. Nova-
mente, parece que as normas sociais e a visão dos em- quando é responsável por toda a
pregadores em relação às mulheres obstruíram pesa-
damente a replicação bem-sucedida da iniciativa.
renda do lar. Esses desequilíbrios
O terceiro fator da desigualdade de gênero nas îD­Uy­xĀžäîx­³¸ä7 Í
oportunidades econômicas é o que tipicamente cha-
maríamos de discriminação; o tratamento diferencia-
THOMAS TRUTSCHEL Getty Images (fazenda em Bangladesh)

do de mulheres por mercados e instituições. Quando dos países mulheres não podem fazer os mesmos tra-
poucas mulheres estão empregadas em um determina- balhos que homens. Muitos países da antiga União So-
do setor, os empregadores podem ter crenças tenden- viética são particularmente restritivos. Na Rússia, há
ciosas quanto às suas qualificações. Eles podem relu- quase 460 ocupações proibidas às mulheres, incluin-
tar em contratar trabalhadoras porque associam cus- do siderurgia, combate a incêndios, poços de petró-
tos extras, como licença-maternidade, com mulheres leo e motorista de ônibus. Outros países exigem que as
ou podem supor que elas não são a fonte principal de mulheres obtenham a permissão masculina para acei-
sustento e, portanto, carecem de motivação. Uma série tar empregos, abrir contas bancárias ou administrar
de estudos que comparam as reações de empregadores negócios. No Chile, os maridos têm o direito exclusi-
diante de currículos idênticos, exceto pelo fato de se- vo de administrar as propriedades do casal, indepen-

68 Scientific American Brasil, Outubro 2017


dentemente de quem forneceu a renda ou poupou para do Recursos entre Comunidades, ofereceu a mulheres
comprar o bem. No Paquistão, uma mulher casada não de 14 a 20 anos treinamento vocacional e capacitação
pode registrar um negócio da mesma forma que um em “clubes de garotas” com a presença de profissional
homem casado. Na Mongólia, muitas mulheres não po- para orientar as atividades. Os clubes também foram
dem trabalhar no período noturno. No Iêmen, um ma- um espaço seguro para as adolescentes se encontrarem
PODER
rido pode se opor a um emprego da mulher. DESIGUAL e socializarem. Um quarto das meninas nas cem comu-
Esses três conjuntos de diferenças entre homens nidades selecionadas para a avaliação participou do
Apenas cerca de

20
e mulheres — no trabalho doméstico, em investimen- programa e os resultados foram impressionantes. As
tos em capital humano e em tratamento pelos merca- jovens apresentaram probabilidade 72% maior de esta-
dos e instituições — não só impedem as oportunidades mulheres rem envolvidas em atividades geradoras de renda qua-
econômicas igualitárias, mas costumam fazê-lo de ma- detêm o posto tro anos mais tarde. Mas, mais importante, o progra-
neira que uma reforça a outra. Dedicar muito tempo à de chefes de ma mudou atitudes e aspirações. Por exemplo, as parti-
casa pode levar a mulher a selecionar ocupações que Estado ou cipantes tinham mais probabilidades de acreditar que
governo no
permitam maior flexibilidade de horários, mas as pren- mundo.
as mulheres devem ganhar dinheiro para suas famílias
dem a salários mais baixos. Isso é especialmente ver- e menos chances de se preocupar quanto a encontrar
dade se as opções de emprego formal têm restrições ao um bom emprego na idade adulta. Surpreendentemen-
trabalho de meio período, como é o caso de muitos pa- Meros te, essas mudanças ajudaram a diminuir 34% da taxa
íses em desenvolvimento. Saber de antemão que será
difícil conseguir um emprego e se adequar em uma 23%
dos assentos
de gravidez na adolescência, enquanto o número de ca-
samentos ou coabitações precoces caiu 62%.
área dominada pelos homens, como engenharia ou As autoridades precisam aprender com seus acer-
parlamentares
construção, pode desestimular meninas e jovens a ob- globais são tos e erros e também com os dos outros. Elas precisam
terem a educação e as competências necessárias para ocupados por articular claramente o que integra essa política e seus
buscar essas oportunidades. E repetidas experiências mulheres. impactos esperados. Tais iniciativas também precisam
de discriminação em disputa de vagas podem levar as ser testadas e avaliadas adequadamente antes de ga-
mulheres ao trabalho autônomo informal ou desenco- Ruanda tem nharem escala. Demasiadas intervenções dependem
rajar a participação no mercado de trabalho, o que rei- a maior apenas de boas intenções e intuições. Embora algumas
nicia todo o ciclo de desigualdades. representação possam apresentar realizações, muitas não chegam
feminina:
ao resultado esperado, que, nesse caso, significa fazer
A JUSTANDO AS SOLUÇÕES
Por que as mudanças continuam tão difíceis se so- 61%
das 80 cadeiras
mais mulheres entrar (e ficar) no mercado de trabalho.
Políticas e programas que demonstram maior poten-
mos capazes de identificar as raízes das desigualdades cial devem ser expandidos e intensificados. Eles não
de gêneros no empoderamento econômico? Para co- da câmara baixa devem parar mesmo quando os objetivos desejados pa-
estão em poder
meçar, a multiplicidade de fatores exige muitas ações de mulheres. reçam ter sido atingidos — acompanhamento de lon-
coordenadas para um mesmo objetivo. E, consideran- go prazo é especialmente importante quando se moni-
do-se que natureza, estrutura e funcionamento dos toram mudanças sociais e logísticas. O progresso exi-
mercados, instituições e normas são amplamente dife- ge ação constante, articulada e coordenada para fazer
rentes de país para país, não é possível adotar uma po- mercados, instituições e sociedades como um todo fun-
FONTES: FACTS AND FIGURES: LEADERSHIP AND POLITICAL PARTICIPATION, U.N. WOMEN www.unwomen.org/en/what-we-do/

lítica que sirva a todos. Conforme demonstramos, me- cionarem de forma mais justa para as mulheres, e mu-
leadership-and-political-participation/facts-and-figures (chefes de estado ou governo); WOMEN IN NATIONAL PARLIAMENTS:
SITUATION AS OF 1ST JUNE 2017, INTER-PARLIAMENTARY UNION www.ipu.org/wmn-e/world.htm (cadeiras parlamentares)

didas que foram bem-sucedidas em um contexto po- dar as antigas normas sobre o papel de mulheres e ho-
dem enfrentar resistências significativas em outro. mens em casa e no trabalho é uma prioridade. Recur-
Mas alguns princípios gerais se mostraram funda- sos para intervenções específicas para questões de
mentais para o sucesso dessas políticas. Para serem efi- gênero competem com outras medidas urgentes de de-
cazes, as políticas e as intervenções precisam mirar nos senvolvimento, como segurança alimentar e redução
múltiplos fatores subjacentes que causam as diferenças da pobreza. E objetivos como esses podem não ter efei-
de gêneros no acesso às oportunidades econômicas. Ou tos específicos para diminuir a desigualdade de gêne-
seja, elas precisam atacar diretamente as limitações ao ros. É por isso que é essencial contar com táticas tes-
tempo das mulheres que são provocadas por normas tadas e comprovadas em vez de depender muito pe-
sociais sexistas a respeito dos cuidados e trabalhos do- sadamente de ativismos e boas intenções. A maior
mésticos, e não tentar contorná-las. Para aumentar a igualdade de gênero pode ser conquistada com uma
produtividade, elas precisam preencher as lacunas em combinação de vontade política e medidas baseadas
informação, capacitação e acesso às redes profissio- em evidências. Mulheres e homens do futuro deverão
nais que limitam as oportunidades às mulheres assala- se beneficiar de uma sociedade mais igualitária.
riadas, agricultoras e empresárias. E precisam ajudar a
criar condições igualitárias em mercados e instituições
ao atacar as preferências discriminatórias. PA R A C O N H E C E R M A I S

Um caso promissor de intervenção dinâmica atin- Breaking the STEM ceiling for girls. Ana Maria Munoz-Boudet e Ana Revenga no blog Future
Development, Brookings Institution. Publicado on-line em 7 de março de 2017.
giu muitos desses objetivos. O programa Empodera-
‘‘ày‘Dïyy‡y`ï幆‘y´myà‘DÈ埴ï›y¨DU¹à®Dà§yïiDÕùD´ïŸïDïŸÿyyåDïyÎDavid Cuberes e
mento e Sustento para Adolescentes (ELA na sigla em Marc Teignier em Journal of Human Capital, Vol. 10, , nº 1, págs. 1–32; primavera 2016.
inglês), implantado em Uganda pela ONG Construin- World Development Report 2012: gender equality and development. Banco Mundial, 2012.

www.sciam.com.br 69
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

ARMADILHA DO
BRILHANTISMO
Como a ênfase equivocada em relação à genialidade
sutilmente desencoraja as mulheres e os afro-
americanos de entrar em certos campos acadêmicos
A N D R E I C IM P I A N E S A R A H -JA N E L E S L I E

A DÉCADA DE 1980, OS FILÓSOFOS ÀS VEZES


falavam sobre “O Dom” — um foco
metafórico sobre o brilhantismo inte-
lectual que poderia iluminar até os
mais complexos enigmas filosóficos.
Somente alguns filósofos sortudos nas-
ciam com o Dom, e seu trabalho repre-
sentava o padrão ouro da área. Qual-
quer um que não tivesse o Dom estava
condenado a caminhar intelectualmen-
te atrás deles para todo o sempre.
Um entre nós (Leslie) contava casos assim sempre uma imagem de dois campos com pontos de vista mui-
que nos encontrávamos em conferências. Fomos trei- to diferentes quanto ao que é importante para o suces-
nados em diferentes disciplinas (Leslie em filosofia e so neles. Muito mais do que os psicólogos, os filósofos
Cimpian em psicologia), mas estudamos tópicos simi- valorizam um certo tipo de pessoa: o superastro bri-
lares, e assim nos reuníamos com regularidade para lhante com uma mente excepcional. Os psicólogos, ao
acompanhar pesquisas e falar de nossas experiên- contrário, têm mais chances de acreditar que as prin-
cias como membros de nossas áreas. Psicologia e filo- cipais estrelas em seu campo cresceram com trabalho
sofia são parecidas em substância (na verdade, a psi- árduo e experiência, até chegar a suas posições.
cologia era um ramo da filosofia até meados dos anos No início, víamos a obsessão da filosofia com o bri-
1800), mas as histórias que contávamos mostravam lhantismo como um capricho — estranho, porém inó-

Ilustrações de Allison Seiffer www.sciam.com.br 71


A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

Como os estereótipos acerca da genialidade


afetam mulheres e minorias na academia
Uma pesquisa com quase 2 mil Ç߸‰ä䞸³Džäx­ðć`D­Ç¸äD`D- ­DžäD§îDäj`¸­¸…Ÿäž`Dj­Dîx­Eîž`Dx‰§¸ä¸‰Dj`¸³`xlx­­x³¸ä
dêmicos determinou quão fortemente eles acreditam que a títulos avançados para mulheres e afro-americanos, em compara-
característica do brilhantismo, como medido pelo assim chamado ção com a neurociência e a psicologia, que têm menor pontua-
Ÿ³lž`xlx`ßx³cD³D`DÇD`žlDlxxäÇx`Ÿ‰`DlDEßxDjšDž­Ç¸ß- ção. Os resultados sugerem que muitos campos equiparam, de
tância para o sucesso em sua disciplina. Áreas com pontuações forma implícita, o brilhantismo aos homens brancos.

80 História da arte Ph.D. para mulheres


(todas as raças e etnias)
Psicologia
Educação Ciências sociais e humanidades
70 Disciplinas STEM
Estudos da comunicação (Ciência, Tecnologia, Engenharia
Literatura inglesa e Matemática)
Percentual de todos os Ph.D. por disciplina (EUA, 2001)

Sociologia Espanhol
60 Antropologia Literatura comparada
Linguística
Biologia molecular Disciplina com mais mulheres
Arqueologia
50 Neurociências Biologia evolucionária Representação igualitária
História Bioquímica Disciplina com mais homens
Estatística Clássicos
40 Ciências políticas
Estudos sobre o Oriente Médio
Química
Ciências da terra Ÿ¨¹å¹ŠD
Economia
30 Ph.D. para afro-americanos
(todos os gêneros) Astronomia Matemática
Ciências sociais e humanidades Engenharia
20 Disciplinas STEM (Ciência, Tecnologia, Ciência da computação
Engenharia e Matemática) Física Composição musical
Neurociências Biologia molecular Estatística
10 Educação Química Bioquímica
Psicologia Engenharia
Física Matemática Ÿ¨¹å¹ŠD
Ciências da Terra
0
Biologia evolucionária Astronomia Ciência da computação
Menos ênfase em brilhantismo como característica Maior ênfase em brilhantismo como característica

3.2 3.7 4.2 4.7 5.2


´mŸ`y my ày´cD ´D DÈD`ŸmDmy åÈy` Š`D mD àyD

ACADEMIC DISCIPLINES”, SARAH-JANE LESLIE ET AL., EM SCIENCE, VOL. 347; 16 DE JANEIRO DE 2015
cuo. Outras coisas pareciam ser problemas maiores Não conseguíamos resolver a questão em tor- FONTE: “EXPECTATIONS OF BRILLIANCE UNDERLIE GENDER DISTRIBUTIONS ACROSS

no campo de Leslie, como a incapacidade de atrair no dessa discrepância. Nossos campos têm tanto em
mulheres e minorias. Apesar de uma atenção cons- comum – filósofos e psicólogos questionam como as
tante para as questões de sub-representação nos últi- pessoas percebem e compreendem o mundo, como
mos anos, e alguns esforços para aliviar a questão, as elas decidem entre o certo e o errado, como aprendem
mulheres ainda são menos de 30% dos doutores em e usam a linguagem, e assim por diante. Mesmo as
filosofia titulados em 2015; os afro-americanos consti- poucas diferenças salientes — como o maior uso, pelos
tuíam apenas 1% dos novos doutores. O campo da psi- psicólogos, de estatísticas e experimentos — estão
cologia, por outro lado, tem sido bem-sucedido em ficando indistintas hoje em dia, com o enorme aumen-
atrair e reter mulheres (72% dos doutorados recém- to da popularidade da filosofia experimental, na qual
-outorgados) e os afro-americanos detinham 6% dos os filósofos fazem pesquisas e experiências para explo-
diplomas de doutorado em 2015, o que certamente rar diferentes perspectivas acerca da moralidade, por
ainda está aquém da sua representatividade na popu- exemplo. Como dois campos tão estreitamente relacio-
lação em geral, mas é, no entanto, seis vezes a propor- nados podiam ser tão vastamente diferentes em rela-
cionalidade que a filosofia mantém. ção a seus participantes?

72 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Gráfico de Jen Christiansen


UMA IDEIA BRILHANTE ou matemática. Será que nossa comparação anedótica
O mais próximo que algum de nós já chegou de um acerca da filosofia e da psicologia tinha algo de novo a
instante tipo “eureca” foi há vários anos, quando liga- dizer sobre a sub-representação de mulheres e mino-
mos dois fios que permeavam os casos que comparti- rias nessas disciplinas?
lhávamos. Estávamos jantando com filósofos e psicó- Quanto mais pensávamos a esse respeito, mais
logos e a conversa passou da paixão dos filósofos pelo percebíamos que nossa hipótese sobre o brilhantis-
brilhantismo para a desigualdade de gênero no cam- Andrei Cimpian mo também poderia explicar algumas das variabilida-
÷ µÍ«{rÒÒ«Í DÒÒ«Z”Df«
po. Isto nos trouxe à mente uma conexão que nun- des nas desigualdades relativas a gênero e raça entre
fr 0ҔZ«›«†”D §D
ca havíamos considerado: talvez a ênfase dos filóso- 7§”èrÍҔfDfr fr diferentes campos científicos. Por exemplo, as mulhe-
fos no brilhantismo seja de fato o motivo pelo qual há %«èD ?«Íš» res compõem quase 50% dos doutoramentos em bio-
tão poucas mulheres ou minorias entre eles. Nós não química, mas apenas 30% dos doutores em química
negamos os benefícios do brilhantismo. Pelo contrá- orgânica. A diferença não pode ser facilmente expli-
rio, nos perguntamos se o gênio não era negligenciado cada pelo conteúdo das áreas, no qual há considerá-
com mais facilidade em mulheres e afro-americanos. vel sobreposição, ou por sua história — a bioquímica
Poderia ser que a insistência acerca da necessidade de surgiu da química orgânica mais ou menos na mesma
um intelecto aguçado em um campo em especial equi- época em que a psicologia se separou da filosofia como
valia a pendurar um sinal de “Entrada proibida”, para disciplina independente. Nos questionávamos se as
desencorajar qualquer recém-chegado que não se assi- diferenças demográficas entre esses assuntos irmãos,
milasse aos membros atuais daquela área? Sarah-Jane Leslie assim como de forma mais geral entre campos científi-
Na superfície, uma ênfase em favor do brilhantis- é professora de cos, poderiam ser explicadas, em parte, pela dimensão
mo não favorece um ou outro grupo; até onde os cien- ”›«Ò«D fD ZñÜrfÍD com a qual o talento intelectual excepcional é enfatiza-
tistas conseguem afirmar, a capacidade cognitiva não Z›DÒÒr fr ®¨ƒÞ §D do como chave para o sucesso.
7§”èrÍҔfDfr
está intrinsecamente ligada a gênero ou a raça. Os filó-
0͔§ZrÜ«§»
sofos procuram uma certa qualidade de mente — inde- MENTALIDADES BEM-SUCEDIDAS
pendentemente de a quem a mente pertença. Essa pre- Nossas primeiras conjecturas logo nos lembraram
ferência aparentemente lógica, no entanto, se torna EM SÍNTESE da rica obra desenvolvida pela psicóloga Carol Dweck,
problemática com bastante rapidez, sob a luz de cer- O autores desco- da Universidade Stanford. Dweck e seus colegas
tas noções sociais compartilhadas, que incorretamen- briram Âær ZD¡µ«Ò demonstraram que as crenças de uma pessoa sobre
te associam intelecto superior a alguns grupos — por DZDfù¡”Z«Ò Âær µÍr“ sua capacidade têm muita importância em relação a
¡”D¡ « O͔›D§Ü”Ò¡« seu sucesso final. Uma pessoa que vê o talento como
exemplo, homens brancos — mais do que a outros.
fr ÒræÒ ¡r¡OÍ«Ò
Mesmo entre os acadêmicos presentes naquela noi- um traço estável (uma “mentalidade fixa” na termino-
Üù¡ ¡D”Ò µÍ«ODO”›”“
te, uma das opiniões expressadas era que homens e fDfr fr ÒrÍr¡ logia de Dweck) está motivada a exibir essa aptidão e
mulheres simplesmente pensam de forma diferente. ¡r§«Ò f”èrÍҔZDf«Ò evitar erros, o que, presumivelmente, reflete os limi-
Alegava-se que as mulheres são mais práticas e anco- r¡ Ír›D]õ« ò ÒæD tes desse dom. Em contraste, uma pessoa que adota
radas na realidade, enquanto os homens estão mais Z«¡µ«Ò”]õ« fr uma “mentalidade de crescimento” vê sua capacidade
dispostos a se envolver no tipo de raciocínio contra- †ù§rÍ« r ÍD]D» atual como um trabalho em andamento. Em outras
factual e abstrato, visto como um sinal de brilhantis- Embora a capacida- palavras, capacidade é uma quantidade maleável que
de ”§DÜD §õ« rÒÜr™D
mo filosófico. Começamos a nos perguntar se tais este- geralmente pode ser aumentada com mais esforço e
›”†DfDd DÜ÷ «§fr «Ò
reótipos, que equivalem a associar o brilhantismo aos melhores estratégias. Para uma pessoa com mentali-
Z”r§Ü”ÒÜDÒ µ«fr¡
homens, poderiam muito bem dissuadir as mulhe- DÍ¡DÍd D †ù§rÍ« «æ dade de crescimento, os erros não são uma acusação,
res de entrarem em um campo que tem essa qualida- D ÍD]Dd ÷ µÒ”Z«›«†”ZD“ mas sim um indício valoroso destacando qual das suas
de em alta estima. Além disso, os membros atuais de ¡r§Ür ¡D”Ò {ñZ”› DÜ͔“ habilidades precisa ser mais desenvolvida.
um campo como esse podem eles mesmos ter expecta- Oæ”Í rÒÒD ZDÍDZÜrÍûғ Embora Dweck tenha inicialmente estudado men-
tivas diferentes acerca das perspectivas de homens e ܔZD D µrÒÒ«DÒ fr talidades em indivíduos, ela e Mary Murphy, ago-
mulheres e podem, como resultado, avaliá-las e enco- †Íæµ«Ò Âær Òõ«d fr ra na Universidade de Indiana, recentemente suge-
{«Í¡D rÒÜrÍr«Ü”µDfDd
rajá-las de forma diferente. A mesma lógica se esten- riram que grupos organizados como empresas e clu-
Z«§Ò”frÍDf«Ò ¡D”Ò
de em relação à raça: os EUA têm uma longa história bes também podem ter esse tipo de visão. Levamos
”§Ür›”†r§ÜrÒ»
de retratar afro-americanos como intelectualmente Mulheres e afro- essa ideia à frente e consideramos que poderiam per-
inferiores, o que provavelmente afeta sua participação americanos µ«fr¡ mear disciplinas inteiras da mesma forma. O fascí-
num campo que foca tanto a qualidade do intelecto. ”§Ür͵ÍrÜDÍd fr ¡«f« nio pelo brilhantismo poderia criar uma atmosfera na
Considerando essas atitudes estereotipadas, que não ÒæOZ«§ÒZ”r§Ürd D qual demonstrações de proeza intelectual são recom-
se embasam na ciência, o fascínio da filosofia por bri- ù§{DÒr fr æ¡ ZD¡µ« pensadas e as imperfeições devem ser evitadas a todo
lhantismo pode ter um impacto real na diversidade. r¡ Ír›D]õ« D« O͔“ custo. Em combinação com os estereótipos sugerin-
›D§Ü”Ò¡« Z«¡« æ¡
Mais tarde, conversamos sobre nossas percepções. do que a genialidade é distribuída de forma desigual
Ҕ§D› Òæܔ› fr ǧÜÍD“
Especulamos se suas implicações se estendiam além entre os grupos, tal perspectiva poderia com facilidade
fD µÍ«”O”fDÈd Âær «Ò
das nossas disciplinas. O discurso sobre o brilhantis- f”ÒÒæDfr fr Òr†æ”“ se tornar tóxica para membros de grupos estereotipa-
mo é comum na academia e — nos parecia — bastante Ír¡ ZrÍÜDÒ f”ÒZ”µ›”“ dos, como mulheres ou afro-americanos. Afinal, é fácil
comum em campos que têm questões parecidas com §DÒ §DÒ Z”ù§Z”DÒ r “ver” imperfeições e inadequações nessas pessoas, já
a diversidade, como ciência, tecnologia, engenharia §DÒ æ¡D§”fDfrÒ» que esperamos que as possuam.

www.sciam.com.br 73
A N OVA C I Ê N C I A D E S E XO E G Ê N E R O

Após várias conversas, tínhamos um plano preli-


minar para colocar nossas ideias à prova. Entraríamos
em contato com acadêmicos de diversas disciplinas e
perguntaríamos se eles achavam que alguma forma de
talento intelectual excepcional era necessário para ser
bem sucedido em sua área. Então analisaríamos esta-
tísticas sobre composição de gênero e raça das pes-
soas que obtêm doutorados nessas disciplinas, o que a
National Science Foundation disponibiliza em seu site.
Se nosso palpite estivesse correto, deveríamos ver que
as disciplinas que colocam mais peso no brilhantismo
tenderiam a ter menos doutores mulheres ou afro-a-
mericanos. Esse padrão deveria se manter não apenas
no nível macro — ao comparar as ciências “duras”, por
exemplo, com as ciências sociais e humanidades —,
mas também dentro dessas esferas amplas — para dis-
ciplinas tão similares quanto filosofia e psicologia.
Mais de um ano e milhares de pesquisas enviadas
por e-mail depois obtivemos resposta para algumas
perguntas. Aliviados e radiantes, vimos que as respos-
tas recebidas de quase 2.000 acadêmicos de 30 áreas
corresponderam à distribuição de doutorados do modo
esperado. Campos que colocavam mais ênfase no bri-
lhantismo também conferiam menos doutorados a
mulheres e a afro-americanos. Quanto maior a ênfa-
se nessa única característica fixa, menor o número de mo simplesmente rastreava diferenças entre os cam-
doutorados atribuídos a algum desses grupos. A pro- pos em sua dependência de matemática? Analisamos
porção de doutores femininos e afro-americanos em a parte referente a matemática no Graduate Record
psicologia, por exemplo, foi maior do que a proporção Examination (GRE, uma prova que postulantes a uma
paralela em filosofia, matemática ou física. vaga de pós-graduação nos EUA precisam prestar)
Em seguida, separamos as respostas relativas às dos alunos novos como indicador. Crenças sobre bri-
ciências biológicas e físicas daquelas em ciências lhantismo ainda previam a representação das mulhe-
sociais e humanidades. As análises desses subgrupos res acima e além dessas pontuações. De modo similar,
indicaram que uma ênfase maior no brilhantismo se não encontramos apoio para a visão comum de que as
correlacionava a menos doutores mulheres e afro-ame- mulheres estão sub-representadas em “campos de alta
ricanos, independentemente se comparássemos físi- potência” porque preferem mais equilíbrio entre tra-
ca com biologia ou filosofia com sociologia. Parecia que balho e família. Perguntamos aos acadêmicos de nossa
tínhamos tropeçado numa explicação geral o suficien- amostra quantas horas trabalhavam por semana, den-
te para descrever a representação de múltiplos grupos tro e fora do campus. No entanto, levar em conside-
estereotipados em todo o espectro acadêmico. ração estas diferenças na carga de trabalho não redu-
ziu o poder explicativo das crenças sobre brilhantis-
IDEIAS ALTERNATIVAS mo; essa variável única ainda previu a magnitude de
Embora os dados nos entusiasmassem, na realidade lacunas de gênero nas 30 disciplinas. Também consi-
tudo o que tínhamos mostrado até então era uma cor- deramos a crença predominante de que as mulheres
relação entre a presumida conveniência de um traço poderiam estar mais interessadas em trabalhar com
fixo — brilhantismo — com uma escassez de mulheres (e ter uma melhor compreensão intuitiva de) pessoas,
ou afro-americanos em dado campo. Ainda não havía- enquanto homens preferiam sistemas inanimados.
mos demonstrado causa e efeito. Com certeza muitas Mas uma análise dos muitos ramos da filosofia, por
outras explicações plausíveis para os desequilíbrios de exemplo, que de fato consideram pessoas e ainda são
gênero haviam sido proferidas com o passar dos anos, dominadas por homens tirou essa ideia da disputa.
de uma carga de trabalho mais pesada que favorecia Como muitas vezes acontece na pesquisa, esse estu-
homens solteiros e aqueles com esposas que não traba- do inicial tornou claro para nós o quanto ainda não
lhavam fora do lar, a uma pretensa preferência femi- sabíamos sobre o que investigávamos. Por exemplo,
nina por trabalhar com organismos vivos, em oposi- percebemos que seria importante saber se as crenças
ção a objetos inanimados. Precisávamos determinar se dos acadêmicos acerca do brilhantismo preveem desi-
nós estávamos apresentando algo novo — talvez nossa gualdades de gênero e raça em estágios anteriores na
explicação se reduzisse a alguma já apresentada antes. trajetória educacional dos estudantes. Estávamos inte-
Examinamos com cuidado as opções mais comuns. ressados em testar nossa ideia no bacharelado, que é
Por exemplo, nossa medida relativa ao brilhantis- a porta de entrada para a carreira posterior dos estu-

74 Scientific American Brasil, Outubro 2017


dantes. Será que mensagens sobre a importância do grupo de crianças de cinco a sete anos a atividades
brilhantismo se relacionam com as áreas que jovens novas, parecidas com jogos, que descrevemos como
mulheres e afro-americanos acabam por seguir? sendo “para crianças que são muito muito inteligen-
A resposta a esta pergunta é sim, como relata- tes.” Em seguida comparamos o interesse dos meni-
mos no PLOS ONE em 2016, quando analisamos ava- nos e das meninas por essas atividades em cada ida-
CAMPOS
liações anônimas de estudantes sobre seus instruto- A M I G ÁV E I S de. Os resultados não revelaram diferenças de gêne-
res de faculdade em RateMyProfessors.com. Desco- ro aos cinco anos, mas um interesse significativamente
Dos 17.505 títulos
brimos que estudantes de graduação eram quase duas de doutorado maior dos rapazes aos seis e sete anos de idade — que
vezes mais propensos a descrever professores do sexo concedidos em é quando vimos os estereótipos surgirem. Além disso,
masculino como “brilhantes” ou “geniais” em compa- ciência e em os estereótipos das próprias crianças previam direta-
ração com professoras. Em contraste, eles usavam ter- engenharia para mente seu interesse por essas novas atividades. Quanto
mulheres nos EUA
mos como “excelente” ou “incrível” igualmente para em 2015, mais a criança associava brilhantismo ao gênero opos-
homens e mulheres. Determinamos que a quantida- to, menos interessado ele ou ela estava em jogar nossos
de total de conversas sobre brilhantismo e genialidade
nas avaliações dos alunos (que é um indicador para a
40%
foram dados
jogos para “crianças muito muito inteligentes”. Essa
evidência sugere um vínculo precoce entre estereóti-
ênfase dada em um campo para essas qualidades) cor- em ciências pos sobre brilhantismo e as aspirações das crianças.
relacionou-se intimamente com uma falta de diversi- da vida. Durante o resto do desenvolvimento infantil, essa liga-
dade em áreas de estudos finalizadas. ção pode afastar muitas meninas capazes para longe
Dos 1.307 de disciplinas que nossa sociedade percebe como sen-
ORIGENS DOS ESTEREÓTIPOS doutorados do principalmente para pessoas brilhantes.
Uma investigação mais profunda mostrou que não deste tipo O difícil trabalho de descobrir a melhor maneira de
acadêmicos compartilham noções similares sobre concedidos a usar todas essas informações — como intervir — está
afro-americanos,
quais campos requerem brilhantismo. A exposição a mais de ainda por vir. Mas algumas sugestões surgem de for-

40%
essas ideias em casa ou na escola poderia desencora- ma bastante direta. Reduzir falas sobre genialidade
jar jovens membros de grupos estereotipados a tentar e brilhantismo com alunos pode ser um jeito relativa-
seguir certas carreiras antes mesmo que coloquem o eram em mente fácil e eficaz de tornar certa área mais acolhe-
pé em um campus universitário. psicologia e em dora para membros de grupos que são estereotipados
Neste ponto, percebemos que precisávamos investi- ciências sociais. de forma negativa a esse respeito. Dados os atuais este-
gar a aquisição desses estereótipos. Por um lado, pode- reótipos, mensagens que retratam essa característica
ria ser que esse estereótipo aparecesse tarde no pro- como muito essencial podem desencorajar de manei-
cesso de desenvolvimento, depois de uma exposição ra desnecessária membros talentosos de grupos este-
contínua a uma contribuição cultural relevante (por reotipados. No entanto, as mudanças podem preci-
exemplo, retratos midiáticos de expectativa de bri- sar ir um pouco mais fundo do que apenas conversar, e
lhantismo e tendências relativas a gênero vindas de abordar alguns dos problemas arraigados e sistêmicos
pais, professores e colegas). Por outro lado, a evidência que acompanham o fascínio de um campo com o bri-
da psicologia do desenvolvimento sugere que as crian- lhantismo. Abster-se de mencionar o Dom não ajudará
ças são esponjas culturais — muito sensíveis aos sinais mulheres jovens na filosofia se o resto das práticas des-
em seus ambientes sociais. Na verdade, os jovens, nos sa área continuar implicitamente ancorado na ideia de
primeiros anos do ensino fundamental, parecem já que o brilhantismo é tudo que importa.
ter absorvido os estereótipos que associam matemáti- Outro ponto importante é que podemos ter de
ca a meninos e leitura a meninas. A partir dessa pers- intervir mais cedo do que se costuma pensar. Nossos
pectiva, poderíamos esperar que os estereótipos sobre dados sobre desenvolvimento indicam que alguns dos
FONTE: RECIPIENTES DE DOUTORADOS DE UNIVERSIDADES AMERICANAS: 2015. CENTRO NACIONAL

brilhantismo também fossem adquiridos no início da processos psicológicos que trabalham contra a diversi-
vida. dade nos campos que valorizam o brilhantismo podem
DE ESTATÍSTICAS EM CIÊNCIA E ENGENHARIA. FUNDAÇÃO NACIONAL DE CIÊNCIA, 2017

A fim de explorar essa ideia, questionamos cente- ser rastreados até o ensino fundamental. Esperar até
nas de meninos e meninas de cinco a sete anos para a faculdade para intervir já não parece ser a ação mais
mensurar se associavam ser “muito muito inteligente oportuna — nós, como sociedade, seríamos sábios
“(nossa tradução infantil de” brilhante”) a seu gênero. se estimulássemos uma perspectiva de crescimen-
Os resultados, publicados em janeiro na Science, foram to, e não uma mentalidade fixa, também em crianças
consistentes com a literatura relativa à aquisição pre- pequenas.
coce de estereótipos de gênero, e ainda assim foram
chocantes para nós. Meninos e meninas de cinco anos
não mostraram diferença em sua autoavaliação. Mas, PA R A C O N H E C E R M A I S

a partir dos seis anos, as meninas estavam menos pro- The frequency of “brilliant” and “genius” in teaching evaluations predicts the representation
pensas que os meninos a pensar que os membros de ¹†Ā¹®y´D´m †àŸ`D´ ®yàŸ`D´åD`à¹ååŠy¨måÎDaniel Storage et al. em PLOS ONE, vol. 11,nº 3,
Artigo e0150194; 3 de março de 2016.
seu gênero são “muito muito inteligentes”. Expectations of brilliance underlie gender distributions across academic disciplines. Sarah-Jane
Encontrar esses estereótipos tão cedo nos fez ques- Leslie et al. em Science, vol. 347, págs. 262–265; 16 de janeiro de 2015.
tionar se eles começam desde então a restringir os On Being an “African American Scientist”. Raynard S. Kington in Scientist, vol. 27, nº 5; maio de 2013.
interesses de meninos e meninas. Apresentamos outro www.the-scientist.com/?articles.view/articleNo/35251/title/On-Being-an-African-American-Scientist-

www.sciam.com.br 75
A NOVA CIÊNCIA DE SEXO E GÊNERO

EFEITO TESO

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ÂærÒÜĂrÒfr†ù§rÍ«
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»

PEESSAAR DAS LEIS VIGENTES NA MAIORIA DOS PAÍSES E DO


dissccuurso de igualdade entre gêneros, a realidade
obbsseervada, ainda nos dias de hoje, mostra um quadro
deesigual e limitador para as mulheres, especialmente
d
qu
q uando o assunto é a escolha da carreira e a posterior
aascensão. Em diversas profissões, a participação das
mulheres, mesmo sendo em alguns casos majoritária
no ingresso aos cursos de graduação, vai se
reduzindo notavelmente à medida que a carreira
progride até os níveis mais elevados.

EM SÍNTESE
A esse tipo de comportamento dá-se o nome de ensino fundamental (EF) e a 3a série do ensino médio
A trajetória que
“efeito tesoura”, numa referência à forma do gráfico (EM) podem participar. As premiações consistem em
homens e mulheres
em que duas curvas complementares (no caso do sexo, medalhas de ouro, prata e bronze, havendo também
Òr†ær¡§DñÍrDfr
correspondentes a homens e mulheres) se afastam ou menções honrosas. Salientamos que os participantes {ûҔZD§«
ÍDҔ›Ür¡
até se cruzam, lembrando uma tesoura aberta. O even- que prestam os exames das OBF não necessariamen- µDfÍĂrÒf”{rÍr§ÜrÒd
tual cruzamento, necessariamente no nível de 50%, te seguem carreiras científicas. Entretanto, essa par- Âærµ«fr¡ÒrÍ
refletiria a inversão da predominância de um grupo ticipação indica um interesse por enfrentar e resolver rêµÍrÒÒ«ÒDÜÍDè÷Òfr
sobre o outro. Mas mesmo quando não há cruzamento desafios da física. 框ÍñZ«Z«¡{«Í“
das curvas, o seu afastamento indica que a situação de Para caracterizar a proporção de mulheres tam- ¡DÜ«Òr¡r›D§ÜrD«
fræ¡DÜrÒ«æÍD»
disparidade se acentua com o tempo de progressão. bém nos diferentes estágios da formação e da carrei-
Entre o ensino
O efeito tesoura com relação aos sexos também ra de física, analisamos os perfis dos bolsistas do CNPq
médio e o
ocorre na área da física, tanto no Brasil como no res- (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e ÍrZ«§rZ”¡r§Ü«
to do mundo. Mas em que idade ele se inicia? E qual Tecnológico) abrangendo a distribuição de bolsas des- Z«¡«µrÒÂæ”ÒDf«Ífr
intensidade ele apresenta nas diferentes etapas da de os níveis de graduação (iniciação científica), pós- rêZr›ù§Z”Dd«§ă¡rÍ«
vida das mulheres ? -graduação (mestrado e doutorado) e de estímulo à fr›rÒDæ¡r§ÜDr«
Para medir a evolução do desempenho das meni- produtividade científica (pesquisadores). fr›DÒf”¡”§æ”»
nas que se interessam por física durante o ensino fun- No box que apresenta as premiações da OBF, o pri- As causas para esse
{r§Ā¡r§«”§Z›ær¡D
damental e médio, utilizamos como indicador o núme- meiro gráfico apresenta o percentual de premiações
ZDÍù§Z”Dfr¡«fr›«Ò
ro de premiações nas Olimpíadas Brasileiras de Físi- na OBF (incluindo medalhas de ouro, prata e bronze,
Or¡“ÒæZrf”f«ÒÂær
ca (OBF) ao longo dos anos de 2006 a 2015. As OBF, e também as menções honrosas) para alunas e alunos µ«ÒÒD¡”§Òµ”ÍDÍ
patrocinadas e organizadas com o apoio da Sociedade de cada ano escolar, sendo mostradas as médias, com- ™«èr§Òr«ÒrÒÜrÍrþܔ“
Brasileira de Física (SBF), ocorrem anualmente e alu- putadas sobre os anos desde 2006 a 2015. Como pode µ«ÒÜÍD§Ò¡”Ü”f«Ò
nos de escolas públicas e particulares entre o 8º ano do ser visto na segundo gráfico do mesmo box, para cada frÒfrD”§{ó§Z”D.

www.sciam.com.br 77
A NOVA CIÊNCIA DE SEXO E GÊNERO

estágio escolar, os valores para os diferentes anos da


década estudada são muito similares, sem grande dis-
Premiações na OBF persão. Isso indica que a situação não tem mudado ao
longo dessa década. O resultado evidencia um declínio
Entre estudantes mulheres (laranja) e homens
no percentual de premiadas desde o 8º ano do EF até o
(lilás) que participam da Olimpíada Brasileira de
3º no EM, e mostra que o efeito tesoura começa antes
Física, entre o oitavo ano do ensino fundamental e
mesmo da decisão por uma carreira científica.
o terceiro ano do ensino médio, a disparidade
Cabe mencionar que o mesmo declínio ocorre
x³îßx Çßx­žDl¸ä l¸ äxĀ¸ ­Dä`ø§ž³¸ x …x­ž³ž³¸
quando acompanhamos no tempo uma mesma tur-
cresce em cada série. Os valores apresentados
ma. Além disso, no gráfico de premiações embaixo à
correspondem à média calculada sobre os anos
esquerda, são exibidos os números totais, que mos-
2006-2015 (exceto de 2012-2015 para o 8º ano) .
tram que não apenas o percentual de premiadas se
reduz gradativamente, mas os números absolutos tam-
bém decaem, enquanto os de meninos premiados
aumentam. Portanto, o efeito tesoura não decorre do
Percentual de premiações OBF caráter complementar dos números percentuais.
O primeiro gráfico no box à direita mostra que o
100
efeito tesoura ocorre a partir do momento em que a
pessoa decide seguir a carreira de física, através do
80
número de bolsas do CNPq concedidas em diferen-
tes estágios da carreira. Incluímos também as bolsas
60
de iniciação científica júnior (ICj), destinadas a des-
pertar vocação científica e incentivar talentos poten-
40
ciais entre estudantes do ensino fundamental, médio e
20
profissional da rede pública. Observa-se que nesta fase
incipiente os percentuais de meninas e meninos são
0
bastante próximos, com 45% de mulheres bolsistas.
8º ano 9º ano 1a série 2a série 3a série Ao ingressar na faculdade, os alunos podem pleitear
bolsas de iniciação científica (IC), e se observa uma
redução no percentual de meninas com relação à eta-
Percentual de premiações OBF pa anterior, que cai para 33%. Essa redução continua
100 na pós-graduação — mestrado (M) e doutorado (D)
— onde esse percentual cai a aproximadamente 21%.
80 Segundo dados acessíveis na página do CNPq, os per-
centuais de bolsas para mulheres na física são sempre
60 mais baixos do que os percentuais médios de bolsas
para mulheres de todas as áreas, que são de 59% para
40 bolsas de IC, 52% para bolsas de M e 51% para D, sem-
pre maiores do que os percentuais de homens.
20 Quando finalmente se tornam pesquisadores em
uma instituição de ensino superior, doutores podem
0 concorrer a uma bolsa da categoria de produtivida-
8º ano 9º ano 1a série 2a série 3a série de em pesquisa (PQ) oferecida pelo CNPq, destinada
a valorizar a produção científica. A Figura 2(a) mos-
tra que o percentual de doutoras que conquistam as
Número de premiações OBF bolsas PQ na área da física fica em torno de 10% (!),
enquanto na média para todas as áreas atinge 36%.
200
Por um lado, estes dados mostram que, na média sobre
as diversas áreas, existe um corte grande com relação
150 aos percentuais em estágios anteriores da carreira e,
por outro lado, que esse corte na física é mais acentua-
100 do que na média. Esse retrato registrado em 2016 não
apresentou melhora em comparação com contagens
feitas em 2005 e 2010, ao menos para a física.
50 O gráfico central à direita mostra que o mes-
mo ocorre na proporção de sócios da SBF em várias
0 categorias.
8º ano 9º ano 1a série 2a série 3a série Mas será que o efeito tesoura deixa de aparecer
neste momento? Podemos olhar em mais detalhe as

78 Scientific American Brasil, Outubro 2017


bolsas PQ. Elas estão organizadas em 6 níveis distintos,
sendo o nível 2 o inicial, subindo para 1D, 1C, 1B, 1A, e
Sênior — este último para pesquisadores que se desta- Na Universidade
caram por vários anos seguidos na sua área de atuação.
Com base nos números mostrados, não é de esperar que e na carreira
as mulheres sejam maioria em nenhum dos casos dis-
Na Universidade e depois as disparidades crescem.
cutidos a seguir, mas o que vemos no gráfico inferior à
' ßE‰`¸ lx `ž­D ­¸äîßD U¸§äDä l¸ %0Ô ÇDßD
direita são números muito inferiores em todas as cate-
ž³ž`žDcT¸ `žx³îŸ‰`D ¥ù³ž¸ß É ¥Êj ž³ž`žDcT¸ `žx³Ÿž‰`D
gorias, e que, a partir do nível 1C, caem até chegar abai-
(IC), mestrado (M), doutorado (D) e produtividade
xo de 6% no nível mais alto da carreira científica (nível
em pesquisa (PQ). Mulheres estão em laranja e os
1A), não havendo ainda mulheres na categoria Sênior, o
š¸­x³ä x­ §ž§EäÍ ' ßE‰`¸ l¸ ­xž¸ ­¸äîßD ¸ä
que reflete uma situação histórica mais aguda do que a
sócios da SBF com graduação, mestrado e douto-
atual. Novamente, este retrato é essencialmente seme-
rado e o inferior, o percentual de bolsistas PQ.
lhante ao observado em 2005 e 2010.
Quais os fatores que impactam diferentemente as
escolhas masculinas e femininas levando a números ini- Percentual de bolsistas CNPq
cialmente inferiores de mulheres e à diminuição da par-
100
ticipação delas, as mulheres, ao longo dos anos de estu-
dos e carreira de física?
80

O ESTEREÓTIPO DA PRINCESA
60
Uma possível causa está nos estereótipos e precon-
ceitos de gênero aos quais as crianças são expostas des-
40
de muito jovens. Alguns exemplos são os filmes da Dis-
ney, nos quais a maioria das personagens femininas são
20
princesas solitárias que não têm profissão e aguardam
a chegada de seus príncipes. Outros exemplos vem dos 0
games para meninas onde os objetivos, em geral, são ICj IC M D PQ
associados à limpeza de locais ou embelezamento pes-
soal, enquanto meninos são estimulados com jogos de
montagem, robótica ou esportes de ação. Percentual de sócios da SBF
Os impactos desses estereótipos têm consequências 100
que já foram quantitativamente medidas, como mos-
tra, por exemplo, um estudo publicado recentemente. 80
O artigo aponta que a autoconfiança das meninas sofre
uma mudança já aos 6 anos de idade. Para chegar a este 60
resultado, os autores contam histórias de pessoas “mui-
to inteligentes” — sem mencionar o gênero da pessoa — 40
a crianças e perguntam a elas qual o gênero dos perso-
nagens recém-apresentados. Aos 5 anos de idade, meni- 20
nos e meninas associam tais personagens inteligentes
ao seu próprio gênero. No entanto, apenas 2 anos mais 0
tarde, quando o mesmo estudo é repetido com crianças G B/M D
de 7 anos de idade, ocorre uma importante mudança: a
maioria já passa a associar um personagem inteligen-
te ao gênero masculino. Os autores discutem as impli- Percentual de bolsistas PQ
cações dessa associação com relação à escolha de profis-
100
sões: como matemática e ciências ditas “duras” são em
geral consideradas difíceis, as meninas desde que são já 80
muito jovens não se sentem aptas a seguir estas carrei-
ras por não se considerarem capazes. 60
Outros estudos apontam que fatores como a fal-
ta de modelos de mulheres de sucesso e a existência de 40
crenças e estereótipos negativos sobre as suas habilida-
des e sobre as suas possibilidades de ascensão podem 20
criar um sentimento de ‘’não pertencer’’ e desestimu-
lar, assim, a participação em áreas específicas. Cabe 0
mencionar que o “preconceito inconsciente” de gêne- 2 1D 1C 1B 1A S
ro se manifesta também na hora de avaliar candida-

Gráficos de Jen Christiansen www.sciam.com.br 79


A NOVA CIÊNCIA DE SEXO E GÊNERO

CADÊ AS
tos, inclusive por parte das próprias mulheres, e que MENINAS?
a participação destas nos processos seletivos é tam- Alunos do
bém desigual. ensino funda-
O primeiro passo para mudar essa realidade é mental e
adquirir consciência do fenômeno e reconhecer que se médio partici-
trata, efetivamente, de um problema, já que diversida- pam da
de é essencial para a ciência e para qualquer ativida- Olimpíada
de criativa e de inovação. O segundo passo é identifi- Brasileira de
car os fatores que levam à disparidade de gênero, para Física na AGRADECIMENTOS – Agradecemos à Profa.
finalmente poder interferir adequadamente nessa rea- UFBA. Ao Belita Koiller, presidente da SBF, pela sugestão de
lidade. Uma tarefa neste sentido seria estimular o inte- lado, as premi- fazermos a análise dos dados da OBF, a Karina Buss
resse das meninas por ciências exatas ainda antes da adas no even- (UFSC), Daniela Hiromi Okido, Sofia Guse (UFRGS),
adolescência, apresentando para elas um cenário aco- to em 2016 e Marlon Ramos (Unicamp) pela contagem de dados
lhedor, no qual as mulheres sintam que podem vir a pela comissão e aos demais membros do GTG-SBF, Andrea Simo-
fazer parte e serem futuramente bem-sucedidas. lxz³x߸l¸ ne Stucchi de Camargo, Antonio Gomes Filho e João
Estudos recentes indicam não haver, nas fases mais evento Plascak por importantes sugestões
avançadas da carreira no Brasil, nenhum viés de gêne-
ro concreto no que concerne aos indicadores utiliza-
dos para a concessão de bolsas PQ. As conclusões des-
tes estudos devem servir de estímulo para que mais PA R A C O N H E C E R M A I S
mulheres aptas a obter as bolsas por produtividade y´myàåïyày¹ïĂÈyåDU¹ùïy¨¨y`ïùD¨DUŸ¨ŸïĂy®yà‘yyDà¨ĂD´mŸ´Œùy´`y`›Ÿ¨mày´Ý埴ïyàyåïåÎL.
resolvam encaminhar suas solicitações ao CNPq. Cabe Bian, S-J. Leslie, A. Cimpian, em Science 355, 389–391 (2017).
salientar porém que essa equidade ocorreu apenas a Bolsistas de produtividade em pesquisa em Física e Astronomia: análise quantitativa da
Èà¹mùïŸÿŸmDmy`Ÿy´ï Š`D my ›¹®y´åy®ù¨›yàyåÎ Menezes, D.P., Brito, C., Buss K., Anteneodo C.
partir da análise mais recente, que se baseou em dados ›ïïÈiëëĀĀĀÀΊåŸ`Dιà‘ÎUàë‘ï‘y´yà¹ëŸ®D‘yåëDàÕùŸÿ¹åë Èàyåy´ïD`¹yåþyþ5yāï¹åë
do ano de 2016. Em estudos anteriores, realizados em mDm¹åþ %0Õþ÷ĈÀêþÿ†ÎÈm†Î
2005 e 2010, ainda eram claramente perceptíveis dife- Produtividade em Pesquisa — CNPq, Física 2005-2010: uma análise comparativa. P. Duarte, M.
renças que demonstravam uma exigência maior para C.B. Barbosa e J.J. Arenzon. Instituto de Física — UFRGS.
Meninas na Ciência: Atraindo jovens mulheres para carreiras de ciência e tecnologia. C.Brito,
mulheres do que para homens situados nos mesmos D.Pavani, P.Lima Jr. — em Revista Gênero, v. 16, p. 33-50, (2005).
níveis de bolsas PQ. Science policies in the European Union, Promoting excellence through mainstreaming gender
Também esperamos que este texto seja útil para equalityj›ïïÈiëë`¹àmŸåÎyùà¹ÈDÎyùëÈùU럮Èà¹ÿŸ´‘ëm¹`åë‘þĀ¹þyïD´þy´þÀµµµĈÀÎÈm†jÎ
que cientistas das áreas ligadas ao estudo de gênero Why Are Some STEM Fields More Gender Balanced Than Others? S. Cheryan, S.A. Ziegler, A.K.
Montoya, L. Jiang em Psychological Bulletin. Advance online publication, doi: 10.1037/bul0000052.
possam formular teses que ajudem a entender melhor Why Europe’s girls aren’t studyng STEM. Microsoft Coorporation.
as escolhas diferenciadas que, desde os ensinos fun- http://www.voced.edu.au/content/ngv%3A76105.
damental e médio, afastam as meninas da física e de Science faculty’s subtle gender biases favor male students. C. A. Moss-Racusina, J. F. Dovidio, V.L.
outras carreiras ligadas às ditas “ciências duras”. Brescoll, M.J. Graham e J. Handelsman — em PNAS 109, 41, 16474–16479, doi: 10.1073/pnas.1211286109.

80 Scientific American Brasil, Outubro 2017


LIVROS
Da redação

Raízes do Brasil Quem você pensa que é?


Quando se fala sobre as grandes socieda- O neurocientista argentino Mariano Sigman apresen-
des que viviam na América antes da che- ta “um resumo da neurociência sob a perspectiva da
gada dos colonizadores europeus, geral- minha própria viagem”. Seu livro passeia por uma lis-
mente se tem em mente povos como os ta abrangente de tópicos, que inclui o desenvolvi-
maias ou os astecas, com suas cidades mento infantil, a tomada de decisões, as bases
com milhares de habitantes, suas pirâmi- biológicas da consciência, os sonhos e muito mais
des colossais e suas redes de caminhos A sensacão que a leitura desperta é que Sigman
com milhares de quilômetros. Mas enga- elegeu os tópicos com que já trabalhou, e, especial-
na-se quem pensa que o território do Bra- mente, aqueles pelos quais nutre interesse especial.
sil pré-cabralino não abrigou, também, Para cobrir uma relação tão extensa o autor abre mão
sociedades numerosas e pujantes. Em de maiores aprofundamentos, mas o resultado é um
1499 — O Brasil antes de Cabral, o jorna- livro introdutório generalista e de fácil leitura.

A vida secreta
lista Reinaldo José Lopes reapresenta os Um de seus tópicos favoritos é a educação. Nos

da mente
brasileiros ao próprio passado, baseando- dois capítulos finais ele apresenta algumas das suas
-se em resultados de mais de 15 anos de hipóteses de pesquisa, entre elas a de que o ser huma-
trabalhos, pesquisas e estudos. Lopes con- no tem uma tendência a compartilhar conhecimen- Mariano Sigman
versou com especialistas de várias áreas to, “inata, como beber, comer ou buscar prazer. (...) Objetiva
— arqueologia, botânica e genômica entre Assim como Chomsky sugeriu que temos um instin- 288 páginas
elas — e foi a campo algumas vezes. Depa- to para a linguagem, eu e meu colega emulamos essa R$ 49,90
rou-se com uma região muito mais rica ideia ao propor que todos temos um instinto docen-
do que a retratada no ensino de História te”, escreve. — Marília Fuller
nas escolas, que abrigava populações den-
sas, tradições artísticas vibrantes, socie-
dades complexas que viviam em super-
aldeias e até mesmo redes de comércio Fórmulas para o cotidiano
em plena Amazônia. — Marília Fuller
Um algoritmo, tal como definido pela ciência
da computacão, é formado por uma sequência
de passos matemáticos destinados à resolução
de um problema. Eles são onipresentes em nos-
so cotidiano digital, fornecendo os resultados de
nossas indagacões nos mecanismos de busca, as
recomendações de filmes no Netflix etc. Mas e se
fosse possível escrever um algoritmo para resol-
ver problemas práticos, tal como encontrar um
apartamento para alugar, organizar uma biblio-
teca, decidir se está na hora de casar ou mesmo
distribuir os convidadoes entre as mesas na fes-
ta de casamento? Aventurar-se na solução des-
te tipo de problemas é o que propõem o jorna- Algoritmos
1499 — O Brasil lista Brian Christian e o psicólogo Tom Griffiths. para viver
antes de Cabral Apoiando-se em entrevistas com especialistas Brian Christian e Tom
Reinaldo José Lopes de diferentes áreas e pesquisas multidisciplina- ߞ‡îšä
Harper Collins res, a obra revela muitos dos processos matemá- Companhia das Letras
246 páginas ticos os quais cada vez mais fazem parte de nos- 528 páginas
R$ 34,90 so cotidiano. — Marília Fuller R$ 69,90

www.sciam.com.br 81
CIÊNCIA
EM GRÁFICO

Mulheres: causas de mortes no mundo (2015)


Porcentual do total de mortes

100 Causas transmissíveis, maternais,


neonatais e nutricionais
80 HIV/aids, tuberculose
Diarreia, doenças respiratórias
60 Malária, doenças tropicais
Distúrbios maternais
40 Distúrbios neonatais
yŠ`Ÿ{´`ŸDå´ùïàŸ`Ÿ¹´DŸå
20 Outras doenças
Causas não transmissíveis
0
Tumores, cânceres
Homens: causas de mortes no mundo (2015) Doenças cardiovasculares
Pneumonia, asma
Porcentual do total de mortes

100 Doenças do fígado


Doenças do trato digestivo
80 Distúrbios neurológicos
Doenças mentais, drogas
60 Diabetes, doenças do sangue
Distúrbios osteomusculares
40
¹y´cDåmDÈy¨yj`¹´‘{´ŸïDå
Ferimentos
20
Ferimentos no trânsito
0 Outros acidentes
0–6 7–27 28–364
2 4 1–4 5–9 10–14 15–19 20–24 25–29 30–34 35–39 40–44 455–49 50–54 55–59 65–69 70–74 75–79 80+ ù﹨yåÇyåyÿŸ¹¨{´`ŸD
Idade: Dias Anos
Guerras e desastres

As cau-
O fim
sas de morte diver-
gem mais entre homens e
De que morre a maioria dos homens e mulheres?
mulheres com idades entre 15 e 45 Pode ser desconfortável pensar a respeito, mas senhoras e senhores mais idosos no mundo morrem de
anos. A disparidade é em grande causas muito parecidas, sobretudo de doenças cardiovasculares. Meninas e meninos também sucumbem a
medida provocada pelas taxas de mor-
talidade em países subdesenvolvidos; uma série semelhante de doenças, principalmente as contagiosas. Mas as diferenças nas causas de mortes
as diferenças em países desenvol- são acentuadas entre mulheres e homens jovens e de meia-idade, de acordo com o Instituto para a Avalia-
vidos são bem menos ção e Métricas de Saúde, de Seattle (gráfico maior). As mulheres têm mais chances de morrer de tuberculose,
pronunciadas. diarreia, doenças respiratórias e deficiências nutricionais. Os homens morrem por abuso de drogas, ferimen-
tos, lesões autoprovocadas e violência. Com tantas questões relacionadas aos sexos, as causas de morte são deter-
minadas muito mais por fatores sociais do que pela biologia (gráficos menores). —Mark Fischetti
Porcentual do total de mortes Porcentual do total de mortes

Mulheres: mortess em países de baixo ISD (2015) Mulheres: mortes em países de alto ISD (2015)
³‹øz³`žDää¸`žDžä 100
Na comparação com as
SAÚDE, UNIVERSIDADE DE WASHINGTON, 2017. ACESSADO EM JULHO DE 2017
FONTE: “GBD COMPARE”, DO INSTITUTO PARA AVALIAÇÃO E MÉTRICAS DE

médias mundiais, muito


mais mulheres e homens
morrem de doenças em
países com Índice
3¹`Ÿ¹my®¹‘àEŠ`¹Ê3Ë
0
baixo — uma combinação
de baixa renda e educação Homens: mortes em países de baixo ISD (2015) Homens: mortes em países de alto ISD (2015)
com alta taxa de fertilidade. 100
http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare

Mais mulheres e homens


morrem de ferimentos e
violência em países com
ISD elevado — níveis mais
altos de renda e educação
e baixa fertilidade. 0
Idade: 0–364 dias 1–4 anos 80+ anos 0–364 dias 1–4 anos 80+ anos

82 Scientific American Brasil, Outubro 2017 Gráfico de Jen Christiansen

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