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ANO XIII
PARKINSON
Desenho simples permite
diagnosticar a doença
NEUROCIÊNCIA
O sistema que funciona como
GPS dentro do cérebro
psicologia psicanálise ne r ciência
Mais do que
demonstrar
afeto ou
desejo, gesto
é capaz de
é capaz
de revelar
informações
sobre o DNA
do parceiro
Muito
além
de um be i j o
sumário | dezembro 2017 CAPA: /FVAL
um
beijo
capa
06 Ciência para mudar hábitos
4
18 Aquém da mente,
para além do corpo
por Rubens Marcelo Volich
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Ciência para
mudar hábitos
Atingir objetivos aos quais nos propomos traz ótimos impactos para a
mente, mas para isso é preciso alterar costumes – o que nem sempre é
fácil. Algumas descobertas recentes podem ser úteis para pessoas que
planejam incorporar novas atitudes a ponto de torná-las automáticas
C
hega dezembro e, em meio à pressa para en- de muito sacrifício”, diz o psicólogo Richard M. Ryan,
cerrar tarefas ou entre uma comemoração e da Universidade de Rochester. Ele e seu colega Edward
outra, surge uma pergunta quase inevitável: L. Deci desenvolveram um modelo de motivação deno-
quais meus projetos para o próximo ano? Não minado teoria da autodeterminação, segundo o qual
importa as metas – talvez mudar de emprego ou de carrei- as pessoas com necessidades psicológicas se sentem
ra, voltar a estudar, adotar uma dieta saudável, exercitar-se mais satisfeitas, competentes e capazes de manter re-
regularmente, viajar mais, meditar diariamente ou qualquer lacionamentos afetivos saudáveis – e autônomas,
outra. A despeito das boas intenções e por mais louvável com liberdade para escolher o que fazer.
que seja o plano, sua realização exige esforço e às vezes é “Mas se a pessoa simplesmente pensar
frustrante manter a transformação. Intrigados com essa ‘Eu consigo, basta evitar’, é provável
dificuldade tão persistente, cientistas têm pesquisado esse que falhe porque as situações
tema e feito algumas descobertas interessantes. que se apresentam estão
Uma delas é que para aumentar as chances de al- sujeitas a variáveis
cançar um objetivo, em primeiro lugar é preciso desco- mais comple-
brir exatamente por que de fato se almeja algo – e o que xas”, diz
sustenta esse desejo. Desde já é bom ter em mente a pes-
que “por que eu quero” ou “porque me faz bem” não
servem como resposta, é preciso ir mais fundo. “Pen-
samentos do tipo ‘eu deveria’ podem manter a
pessoa firme por um ou até dois meses em
seu propósito, mas em geral não se
sustentam por muito mais do que
isso, ou se o fazem é à custa
shutterstock
6
quisadora Mary Jung, professora da Uni- bro”. No entanto, por mais sensato que isso
versidade da Colúmbia Britânica, que nos possa parecer, as pessoas geralmente fazem
últimos anos tem se dedicado ao estudo o oposto – não raro, entram em dietas ex-
da relação das pessoas com a apropriação tremas ou exageram na prática de exercícios
de comportamentos saudáveis. Ela salienta físicos para os quais não estão preparadas.
que faz toda a diferença o fato de as pessoas Há também aqueles que fazem votos súbi-
compreenderem que “escorregar” de vez tos de praticar piano ou estudar mandarim
em quando é normal, e isso não deve ser in- por uma hora todos os dias.
terpretado como sinal para desistir. A abordagem gradual funciona porque
“Se você perdeu uma etapa de exercí- aumenta um ingrediente essencial para a rea-
cio, não significa que falhou, mas apenas lização do objetivo: a confiança. Apesar das
que terá de tomar algumas providências reais dificuldades, o sentimento é necessário
para deixar seu treino em dia”, afirma Jung. para ter sucesso. Esse tipo de motivação é
Ela enfatiza a importância de dedicar algum muito diferente do otimismo infundado da-
tempo imaginando o resultado do sucesso queles que superestimam sua capacidade de
de seus esforços e os obstáculos específi- resistir a tentações, explica Jung. Conseguir
cos que certamente aparecerão ao longo superar desafios externos tem menos a ver
do caminho. Vamos imaginar que sua meta com força de vontade e mais com habilida-
seja economizar mais dinheiro no próximo des específicas de enfrentamento, como o
ano. Em vez de tentar resolver tudo de for- gerenciamento de problemas e a capacidade
ma abstrata, é possível formar duas ima- de se reerguer depois de contratempos. Aos
gens mentais: a primeira poderia ser a de poucos, o desenvolvimento dessas habilida-
maior saldo bancário e a outra de si mesmo des e a definição de objetivos modestos que
lutando contra a vontade de se juntar com permitam encontrar maneiras de lidar com
os amigos no caro restaurante inaugurado eventuais problemas aumentam a segurança
recentemente. Vários estudos mostram que e as chances de persistir a longo prazo.
a técnica de dois passos, chamada de opo- Pessoas que falham repetidamente na
sição de ideias, ajuda as pessoas a procras- tentativa de alcançar um objetivo tendem a
tinar menos e a enfrentar os desafios com duvidar de sua capacidade de realizar qual-
mais entusiasmo. quer coisa. Por isso, especialistas insistem:
“Uma das chaves essenciais para a con- é preciso ir aos poucos. Se você se esforçar
cretização de nossos planos é descobrir a para manter a casa arrumada, no início deve
motivação certa, aquela que realmente nos focar em um dos quartos – ou até mesmo em
move”, afirma o psicólogo Pedro J. Teixeira, um armário ou gaveta. Se mantiver o espa-
professor da Universidade Técnica de Lis- ço arrumado por uma semana, comemore a
boa. Teixeira, que pesquisa o tema. Ele ob- conquista e, depois, escolha outra área e as-
serva que para firmar mudanças duradouras sim por diante.
é fundamental começar devagar para, gra- Podemos pensar que mudanças dura-
dualmente, chegar a desafios maiores. “As douras requerem incorporar o novo com-
conquistas mais bem-sucedidas são aquelas portamento, torná-lo automático, de forma
em que pegamos o ritmo pouco a pouco que não nos incomode. Uma maneira de co-
durante algumas semanas; com isso é pos- meçar o processo para adquirir um hábito é
sível ir fazendo ajustes e evitar a sensação dizer para si mesmo, de maneira realista, o
frustrante de se esforçar tanto por algo e de- que pretende fazer e de que forma vai se mo-
pois falhar”, afirma Mary Jung. “Em relação vimentar para pôr o plano em prática. Com
ao condicionamento físico, por exemplo, se isso, é possível traçar a estratégia para deter-
não tenho certeza de que alguém pode fazer minar quando, onde e como pretende alcan-
algo, não é uma boa ideia pedir que comece çar seus objetivos. Por exemplo, se você pre-
justamente com essa tarefa; o ideal é que se tende beber mais água ao longo do dia, vale
atinja o propósito em etapas, até para que ter uma garrafinha ao alcance da mão para
esse comportamento se sedimente no cére- facilitar a realização do intento.
dezembro 2017 • mentecérebro 7
8
capa
shutterstock
Muito
mais
que
um
OS LÁBIOS HUMANOS Alguns cientistas acreditam que a união sa maneira, e nossos ancestrais hominídeos,
têm a camada mais fina dos lábios evoluiu porque facilita a seleção provavelmente, também o faziam. A pressão
de pele do resto do corpo
e estão entre as áreas de de parceiros. “O beijo envolve uma troca de lábio contra lábio evoluiu posteriormen-
maior concentração de bem complicada de informações – olfativa, te para uma forma de confortar crianças fa-
receptores e transmissores tátil e ajustes de postura – que costuma acio- mintas em períodos de escassez de comida
sensoriais
nar mecanismos neurológicos sofisticados e e, com o tempo, derivou para um modo de
também inconscientes, permitindo às pes- expressar amor e afeição. A espécie humana
soas determinar subjetivamente até que grau levou esses beijos protoparentais por outros
elas são geneticamente incompatíveis”, afir- caminhos, até criar as variedades mais apai-
ma o psicólogo evolucionista Gordon G. Gal- xonadas que temos hoje.
lup, professor da Universidade de Albany e Mensageiros químicos silenciosos cha-
da Universidade do Estado de Nova York. Bei- mados feromônios podem ter acelerado a
jar pode ainda revelar até que ponto o outro evolução do beijo “íntimo”. Muitos animais
está disposto a se comprometer na relação. e plantas usam os feromônios para se co-
Esse comprometimento significa, em alguns municar com outros membros da mesma
casos, a predisposição para estabelecer par- espécie. Insetos, em particular, são conhe-
cerias, aprofundar o grau de confiança e até cidos por emitir a substância como um alar-
mesmo a intenção de criar filhos – uma ques- me, para sinalizar, por exemplo, a presença
tão central em relacionamentos de longo pra- de alimento ou a atração sexual. Se os seres
zo e crucial para a sobrevivência da espécie. humanos detectam feromônios ou não – e
com que precisão isso aconteceria – é as-
MENSAGEIRO SILENCIOSO sunto controverso. Diferentemente de ratos
Independentemente do que mais esteja acon- ou porcos, não temos um detector de fero-
tecendo quando beijamos, nossa história mônios “especializado”, o órgão vomerona-
evolucionária está incorporada nesse ato ter- sal, entre o nariz e a boca.
no e tempestuoso. Nos anos 60, o zoólogo No entanto, a bióloga Sarah Woodley, da
e escritor britânico Desmond Morris sugeriu, Universidade Duquesne, em Pittsburgh, na
pela primeira vez, que o beijo pode ter evo- Pensilvânia, sugere que podemos captar fe-
luído da prática de algumas mães primatas romônios pelo sistema olfativo. Segundo ela,
de mastigar a comida para seus filhotes e ali- a comunicação química inconsciente expli-
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mentá-los boca a boca, com os lábios com- caria descobertas curiosas, como a tendên-
primidos. Os chimpanzés se alimentam des- cia de os ciclos menstruais de mulheres que
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convivem de forma muito próxima, como
companheiras de dormitório, se sincroniza-
rem, ou como a atração das mulheres pelo
Inclinação à direita
cheiro da camiseta usada por homens cujo O psicólogo Onur Güntürkün, da Universidade Ruhr, de Bochum,
sistema imunológico é geneticamente com- Alemanha, realizou recentemente uma pesquisa curiosa. Observou
patível com o delas. Feromônios humanos 124 casais enquanto se beijavam em lugares públicos dos Esta-
podem incluir androstenol (componente dos Unidos, Alemanha e Turquia e constatou que eles tombavam
químico do suor masculino que, para algu- levemente a cabeça para a direita com o dobro de frequência do
mas mulheres, amplia a excitação sexual) que para a esquerda antes de seus lábios se tocarem. Güntürkün
e hormônios vaginais femininos chamados suspeita que os beijos inclinados para a direita resultem de uma
copulinas (que aumentam os níveis de tes- preferência geral desenvolvida no final da gestação e na primeira
tosterona e o apetite sexual dos homens). Se infância. Essa “assimetria” é relacionada à lateralização das
os feromônios realmente representam um funções cerebrais, tais como a fala e a percepção espacial.
papel na procriação humana, então beijar A educação e a cultura também podem influenciar essa
seria uma maneira extremamente eficiente tendência de curvar-se para a direita. Estudos mostram que
de transmiti-los. até 80% das mães, quer sejam destras, quer sejam canhotas,
Podemos também ter herdado o beijo acalentam do lado esquerdo seus bebês. Bebês aninhados com
íntimo de nossos ancestrais primatas. Bo- o rosto para cima, à esquerda, viram-se para a direita para ser
nobos, que são geneticamente muito seme- amamentados ou se aconchegar. Como resultado, a maioria de nós
lhantes a nós (embora não sejamos seus pode ter aprendido a associar calor e segurança com o inclinar para
descendentes diretos), são especialmente a direita.
apaixonados. O primatólogo Frans B. M. de Alguns cientistas propuseram que aqueles que viram a cabeça
Waal, da Universidade Emory, na Geórgia, para a esquerda quando beijam podem estar mostrando menos
lembra-se de um guarda de zoológico que afeto do os que o fazem para o lado oposto. Um estudo realizado
aceitou de um bonobo o que ele achava que pelo naturalista Julian Greenwood e seus colaboradores da
seria um beijo amigável, até sentir a língua Universidade Stranmillis College, em Belfast, na Irlanda, contrapõe
do macaco em sua boca! essa ideia. Os pesquisadores constataram que 77% de 240
Os lábios humanos têm a camada mais graduandos inclinavam a cabeça para a direita quando beijavam
fina de pele do corpo humano e estão en- uma boneca na bochecha ou nos lábios. Curvar-se para a direita
tre as áreas corporais em que se encontram com uma boneca,
as maiores concentrações de receptores e ato que não denota
transmissores sensoriais. Quando beija- emoção, foi quase
mos, as células da língua e de outras regiões tão predominante
da boca disparam mensagens para o cére- entre os participantes
bro e para o corpo, provocando emoções e como entre os 125
reações físicas intensas. casais observados
Dos 12 ou 13 nervos cranianos que afe- enquanto se beijavam
tam a função cerebral, cinco estão em ação em Belfast que se
quando beijamos, carregando mensagens inclinaram para a
de nossos lábios, língua, bochechas e nariz direita em 80% das
para o cérebro – que capta informações so- vezes. A conclusão:
bre temperatura, sabor, cheiro e movimentos beijar inclinado para a
de toda a situação. Parte dessa informação direita provavelmente
chega ao córtex somatossensorial, faixa de resulta de uma
tecido na superfície cerebral que representa facilidade motora,
a informação tátil no mapa do corpo (veja como Güntürkün
ilustração na pág. 14) Nessa representação sugeriu – e não de
os lábios aparecem desproporcionalmente uma preferência
grandes em relação ao tamanho real porque emocional.
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Homúnculo sensorial:
o mapa do corpo
Informação tátil da pele chega ao córtex
somatossensorial primário do cérebro,
que contém um mapa distorcido do
corpo chamado “homúnculo sensorial”.
Nesta representação, os lábios são
desproporcionalmente grandes porque têm
uma enorme concentração de receptores
sensoriais e, portanto, são muito sensíveis
gehirn&geist
ao toque.
12
o desejo, o ato de beijar suprime (ou pelo
menos torna mais tênue) a prudência e a
inibição. Durante um beijo a maioria das
pessoas fica, provavelmente, encantada de-
mais para se importar com isso. Talvez o
superego (instância psíquica proposta por
Sigmund Freud, guardiã das normas e proi-
bições que aprendemos e adotamos) seja
solúvel em beijos.
Pode mesmo um beijo ser algo tão po-
deroso? Algumas pesquisas indicam que
sim. Num levantamento recente, Gallup e
seus colaboradores descobriram que 59% e para avaliar não apenas se a outra pessoa PRÁTICA AFETIVA pode
de 58 homens e 66% de 122 mulheres admi- seria uma fonte excelente de DNA, mas um ter derivado do hábito
de mães primatas de
tiram que houve ocasiões em que, embora bom parceiro a longo prazo. O encontro mastigar alimentos e
estivessem atraídos por alguém, o interes- dos lábios é, portanto, um tipo de barôme- passá-los direto para a
se logo sumiu depois do primeiro beijo. Os tro emocional: quanto mais entusiasmado, boca dos filhotes
beijos “ruins” não tinham nenhuma falha mais saudável é o relacionamento.
específica; simplesmente não passavam a Como as mulheres têm menores possibi-
“sensação certa”. Resultado: deflagravam o lidades biológicas de perpetuar seus genes,
fim do romance. já que necessitam investir mais energia para
Gallup também acredita que o beijo car- ter filhos, é fundamental que sejam mais
rega tal peso porque transmite informações criteriosas na escolha de seus parceiros – e
subconscientes sobre a compatibilidade ge- não podem se permitir muitos equívocos.
nética de um possível companheiro. Sua hi- Dentro dessa lógica evolucionista, quanto
pótese é consistente com a ideia de que ele mais apaixonado o beijo, maior a chance de
evoluiu como uma estratégia de acasalamen- o parceiro ser um bom companheiro não PARA SABER MAIS
to que ajuda a avaliar potenciais parceiros. só para a procriação – mas suficientemente Sex differences in
Da perspectiva darwiniana, a seleção se- comprometido também para ficar por perto romantic kissing among
college students: an
xual é a chave para a transmissão dos genes. e criá-los. Por outro lado, o beijo talvez não evolutionary perspective.
Para nós, humanos, a escolha do parceiro seja tão necessário do ponto de vista evo- Gordon G. Gallup, Jr.,
Susan M. Hughes e
frequentemente implica apaixonar-se. Fisher lutivo. Afinal, a maioria dos animais não se Marissa A. Harrison, em
escreveu em seu artigo de 2005 que o “meca- beija e, mesmo assim, produz muitas crias. Evolutionary Psychology,
vol. 5, nº 3, págs. 612-631,
nismo de atração nos humanos evoluiu para E nem todos os humanos beijam. Na virada 2007.
permitir aos indivíduos concentrar sua ener- do século 20, o cientista dinamarquês Kris-
gia de acasalamento em pessoas específicas, Adult persistence of
toffer Nyrop descreveu tribos finlandesas headturning asymmetry.
o que facilita a escolha do parceiro – e satis- cujos membros se banhavam juntos, mas Onur Güntürkün, em
faz um aspecto primário da reprodução”. consideravam o beijo indecente. Em 1897, Nature, vol. 421, 13 de
fevereiro de 2003.
Com base em descobertas recentes, Gal- o antropólogo francês Paul d’Enjoy relatou
lup argumenta que o beijo desempenha um que os chineses consideravam o toque das Romantic love: an
fMRI study of a neural
papel crucial na progressão de um relaciona- bocas tão horrendo quanto é o canibalismo mechanism for mate
mento, mas de forma diversa para homens e para a maioria das pessoas. Na Mongólia, choice. Helen Fisher,
Arthur Aron e Lucy L.
mulheres. Num estudo – que teve os resul- por exemplo, é raro que os pais beijem seus Brown, em Journal of
tados publicados – ele e seus colaboradores filhos em vez disso, cheiram a cabeça dos Comparative Neurology,
vol. 493, nº 1, págs. 58-62,
entrevistaram 1.041 universitários de ambos pequenos. O pioneiro da etologia humana 5 de dezembro de 2005.
os sexos a respeito do beijo. Para a maio- Irenäus Eibl-Eibesfeldt escreveu em seu livro
ria dos rapazes ouvidos, acariciar a boca da de 1970 Love and hate: the Natural History of Amor e ódio: história
natural dos padrões
outra pessoa com a língua é uma maneira behavior patterns (Amor e ódio: história na- elementares do
de avançar no relacionamento sexual. Para tural dos padrões elementares do comporta- comportamento.Irenäus
shutterstock
Eibl-Eibesfeldt. Livraria
os pesquisadores, porém, o ato serve para mento), considerado um clássico, que pelo Bertrand, 1987.
conduzir o casal ao próximo nível emocional menos 10% da humanidade não beija.
dezembro 2017 • mentecérebro 13
especial – psicossomática psicanalítica
Outras formas
de escutar o
sofrimento
Muitas vezes, pacientes com manifestações somáticas procuram a psicoterapia
encaminhados por médicos ou por insistência de parentes e outras
pessoas de seu convívio, em busca de ajuda para se livrar dos sintomas do
adoecimento físico, mas se mostram distantes de suas próprias angústias. Cabe
ao analista encontrar maneiras de lidar com dor psíquica, nem sempre óbvia
por Lédice Lino de Oliveira, Rafael Piccolo Feliciano e Rosa Junqueira
A
psicanálise é instigada constantemente a se reinventar. Há mais
de um século, quando criou esse método – para tratar inicialmente
pacientes histéricas –, Sigmund Freud apresentou a escuta como
principal instrumento de trabalho. Ele pedia para que seus pacientes
se deitassem no divã, de forma confortável, e falassem “aquilo que lhes viesse à
cabeça”. Essa técnica, conhecida como associação livre, facilitaria a emergência
para a consciência de conteúdos recalcados.
Quando falamos em recalque, longe de seu significado popularizado,
que se aproxima da inveja, nos referimos a uma defesa bastante elaborada,
própria à neurose. Resumidamente, seu mecanismo se baseia em retirar da
esfera consciente (e manter inconscientes) conteúdos de difícil elaboração,
sentidos como intoleráveis ou incompatíveis com os próprios valores, mas
que emergem, como afirmam os psicanalistas franceses Jean Laplanche e
Jean-Bertrand Pontalis, “sob a forma de sintomas, sonhos, atos falhos etc.”.
OS AUTORES
LÉDICE LINO DE OLIVEIRA é psicóloga, mestre em ciências da saúde, professora do curso de psi-
cologia da Universidade Paulista (Unip). RAFAEL PICCOLO FELICIANO é psicólogo clínico, autor
do livro digital Escritos psicanalíticos da vida. (ePub, 2017). ROSA JUNQUEIRA é psicanalista. Os
três são membros-fundadores do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes
Sapientiae, em São Paulo
14
A psicossomática psicanalítica considera
que apresentamos outras formas de orga-
nização psíquica que diferem da neurose e
podem ser incluídas no campo das desor-
ganizações psicossomáticas. Caracterizadas
pela prevalência de sintomas que incidem
diretamente sobre o corpo, costumam de-
sencadear afecções somáticas crônicas e até
mesmo progressivas, o que torna o manejo
clínico com esses pacientes um desafio a
mais para o método analítico.
Destacam-se aqui particularidades do
campo transferencial, refletindo impasses
na relação terapeuta-paciente, específicos
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como a cisão e a projeção para defesas mais é por acaso que esse tipo de paciente tem O ambiente e os
elaboradas. “É por meio da delicadeza da necessidade de constatar a presença viva do processos de maturação.
D.W. Winnicott. Artmed,
escuta, de uma leitura em filigrana das pala- analista; é essa presença que lhe assegura 1983.
vras, na sutileza da busca dos detalhes, dos que o analista não está “morto”.
dezembro 2017 • mentecérebro 17
especial – psicossomática psicanalítica
Aquém da
mente,
para além do
corpo
Todos nós apresentamos marcas físicas e mentais resultantes de
vínculos e experiências acumulados desde o início da vida. Vivências
perturbadoras, conflitos, frustrações, perdas e traumas também
deixam vestígios, causando carência ou empobrecimento de recursos
emocionais, que se expressam por vias psíquicas e somáticas
OS AUTORES
RUBENS MARCELO VOLICH é psicanalista, doutor pela Universidade de
Paris VII – Denis Diderot, professor do curso de especialização em psicos-
somática psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. É autor, entre outros
livros, de Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise (Casa do Psicólogo
– Coleção Clínica Psicanalítica, 2000) e coorganizador e autor dos livros da
série Psicossoma (Casa do Psícólogo).
18
shutterstock
A
organização pulsional marca a pregados para compreendê-los e tratá-los.
transcendência do humano da Em alguns casos, há dificuldades para se
condição biológica para a condição chegar a um diagnóstico, apesar de inves-
de sujeito. Atravessada pelo desejo, tigações exaustivas e consultas a vários es-
ela é modulada, desde o nascimento, e talvez pecialistas, comprometendo a definição das
mesmo antes disso, pelas marcas das relações estratégias terapêuticas. Em certos pacien-
da criança com seu semelhante. São também tes, a história da doença ou os prognósticos
essas relações que tecem em torno do corpo a de um tratamento subitamente apresen-
trama entre as pulsões de vida e de morte, for- tam mudanças bruscas e surpreendentes.
jando a diversidade de formas e organizações Dificuldades como essas, evoluções inespe-
que constituem a economia psicossomática, radas e quadros clínicos inespecíficos são
em suas infinidade de expressões normais e frequentemente caracterizados como “psi-
patológicas de dor e de prazer. Fluidez e rigi- cossomáticos”, “somatizações”, quadros
dez, precariedade e consistência, organização “idiopáticos”, “funcionais”, “sem explicação
e desorganização caracterizam a plasticidade médica”, entre outros.
da trama pulsional que pauta a clínica contem- Na clínica médica, a dificuldade em apreen-
porânea, muitas vezes marcada por dinâmicas der e compreender a etiologia do adoecimento
mais primitivas, aquém da linguagem e da dos pacientes, apesar dos avançados recursos
representação. diagnósticos e terapêuticos, leva a atribuir o
Dinâmicas arcaicas, atuações e soma- que lhes escapa a fatores ditos “emocionais”,
tizações revelam pacientes refratários aos “psicológicos” ou “psicogênicos”.
enquadres psicanalíticos e psicoterapêuti- No campo da saúde mental, os profis-
cos clássicos. A clínica médica e a de outras sionais, psicoterapeutas e psicanalistas em
especialidades da saúde também são desa- particular, são desafiados por formas bas-
fiadas por essas dinâmicas na anamnese, no tante desorganizadas de expressão do sofri-
diagnóstico e nas mais diversas modalida- mento humano. Não apenas por manifesta-
des terapêuticas. ções corporais mais graves e distintas dos
Tanto nas instituições de saúde como na clássicos quadros histéricos, mas, também,
clínica particular, profissionais são confron- por expressões onipotentes e indiferencia-
tados com dificuldades semelhantes, que das do narcisismo, manifestações exacerba-
se manifestam por meio de quadros que das do ego ideal e formações primitivas do
vão desde doenças orgânicas até distúrbios superego, e muitas outras que evidenciam a
comportamentais, passando por manifes- carência ou a precariedade dos mecanismos
tações borderlines, adicções, transtornos de do recalcamento, a impossibilidade do re-
caráter e alimentares e inúmeros outros. conhecimento da castração e da alteridade,
Muitos desses sintomas, doenças e pacien- a ausência de transicionalidade que tornam
tes revelam-se inacessíveis aos recursos em- o sujeito dependente e cativo do desejo do
20
outro, impermeável à transferência e à inter-
pretação.
Essas manifestações somáticas e psíqui-
cas são frequentemente acompanhadas por
expressões precárias de recursos psíquicos,
fantasmáticos, oníricos e relacionais, deno-
tando limitações dos recursos de ligação
pulsional, dos afetos e representações, dinâ-
micas que favorecem descargas pelo com-
portamento e desorganizações somáticas,
em casos extremos graves e mortíferas. Elas
revelam uma complexidade que solicita uma
compreensão mais profunda que a dos usos
coloquiais e, algumas vezes, científicos do
termo “psicossomática”, que reduzem essa
concepção a sintomas e doenças orgânicas
que seriam determinadas ou agravadas por
fatores psíquicos.
ORGANIZAÇÃO E DESORGANIZAÇÃO
Tanto doenças como manifestações típicas
do desenvolvimento revelam a existência de
uma continuidade funcional do que deno-
minamos economia psicossomática. Algumas
circunstâncias da vida humana são predo-
minantemente marcadas por expressões e
manifestações orgânicas (como fome, riso,
choro, tremores, dores de cabeça, indiges-
tão ou cardiopatias) e outras, por meio de
funções mentais (como pensamentos, fan-
tasias, sonhos e neuroses). Em ambas, arti-
culadas em diferentes formas e proporções,
estão implicados processos biológicos, fi-
siológicos, comportamentais e psíquicos desenvolvidos ao longo da vida e revelam a
constituindo uma mesma e única economia continuidade evolutiva de diferentes dimen-
psicossomática do indivíduo. sões da experiência de cada indivíduo, que
Desde a concepção, durante a gestação, se expressa, por vias somáticas, psíquicas e
após nascimento e ao longo do desenvolvi- comportamentais, normais ou patológicas.
mento, observamos em cada pessoa movi- A natureza, a qualidade, a consistência
mentos e marcas de integração, organização e a fluidez dos recursos da economia psi-
e hierarquização de funções e vivências cor- cossomática estruturam-se ao longo da his-
porais, relacionais e psíquicas. Quando as tória de cada um, a partir de fatores cons-
pessoas enfrentam vivências perturbadoras titucionais, por meio das interações com
de conflitos, frustrações, perdas (algumas o ambiente e com os outros. Na infância e
vezes traumáticas), é possível constatar no puerpério, principalmente, a mãe e todo
movimentos de sentido oposto, de desin- aquele que cuida da criança tem uma função
tegração, desorganização e precarização de primordial na mediação e promoção desses
funções e hierarquias estabelecidas. Esses processos.
movimentos se manifestam por meio da ca- O equilíbrio psicossomático é fruto da
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relações de objeto e da economia psicosso- tamento das neuroses atuais (de angústia e
mática. É também a partir da cena corporal traumática, neurastenia e hipocondria), bem
que são vividas as experiências de prazer e como doenças orgânicas, nas quais a des-
desprazer, fundando e delineando a possibili- carga pulsional se dá diretamente pelas vias
dade de subversão e transcendência do corpo corporais, com pouca ou nenhuma deriva-
anatômico para as vivências do corpo eróge- ção ou elaboração mental da excitação, ou
no, passível, em certas circunstâncias, de de- seja, dinâmicas “aquém do recalcamento”,
sorganizar funções fisiológicas e orgânicas. distintas e mais primitivas que as dos meca-
Apesar da riqueza dessas hipóteses re- nismos neuróticos.
ferentes ao corpo, é curioso constatar que Os quadros derivados da neurose atual,
durante muito tempo prevaleceram na psi- descritos por Freud e ainda mais freqüentes
canálise as restrições inicialmente preconi- na clínica contemporânea, são marcados
zadas por Freud para o tratamento de uma pelo vazio, pelo desamparo, pela hipera-
ampla gama de manifestações corporais. daptação à realidade, pela auto-deprecia-
Por um lado, pautada pela perspectiva do ção, por comportamentos de risco e pela
recalcamento e dos mecanismos psíquicos violência larvada ou explícita das anorexias,
de defesa, a clínica freudiana desenvolveu das adicções, das descargas impulsivas e da
recursos importantes para o trabalho de sintomatologia somática, entre outros. Eles
elaboração dos sentidos simbólicos e repre- são frequentemente refratários ao trabalho
sentativos dos sintomas e seus derivados livre associativo e à atenção flutuante, difi-
de uma ampla gama de manifestações psi- cilmente acessíveis ao trabalho de figura-
copatológicas, no campo das psiconeuroses ção, ao discurso e aos enquadres clássicos
(histeria, neurose obsessivas, fobias), psico- e regressivos de uma análise e de muitas
ses e perversões. Porém, ao mesmo tempo, psicoterapias. Nessas condições ficam tam-
Freud evidenciou as dificuldades e, mesmo, bém perturbadas, não apenas em processos
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A espiral que
ajuda no diagnóstico
precoce de
Parkinson
Sintomas como tremor e enrijecimento muscular são captados quando
paciente traça a figura em uma folha de papel sobre um tablet
D
esenhar uma espiral: uma tarefa bastante fácil quando os pacientes desenham uma espiral em uma folha
para a maioria dos adultos. Esse gesto simples, de papel sobre um tablet. O software foi desenvolvido pela
porém, pode revelar precocemente sintomas equipe de cientistas australianos.
do Parkinson, uma doença neurodegenerativa A proposta era criar um sistema eletrônico para o
que atinge em torno de 4 milhões de pessoas no mundo diagnóstico precoce do Parkinson suficientemente aces-
e, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde sível para ser utilizado por profissionais da área da saú-
(OMS), esse número pode dobrar até 2040. Estudo desen- de. Com esse objetivo, a nova tecnologia foi testada em
volvido por pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia 55 voluntários, 27 deles com a patologia. “Observamos
de Melbourne, na Austrália, e publicado no periódico que a lentidão do gesto e a força exercida sobre a caneta
científico Frontiers of Neurology, mostra que é possível eram consideravelmente mais intensas entre as pessoas
avaliar em que estágio a patologia se encontra com base com o diagnóstico e essas características se tornavam
na velocidade com que a pessoa faz os traços e a pres- mais evidentes entre aqueles em estado mais crítico”,
são que exerce sobre a superfície. Indícios importantes afirmou o pesquisador Dinesh Kuman, principal autor
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da doença, como tremores nas mãos e enrijecimento da do estudo. Segundo ele, em 93% dos casos foi possível
musculatura – ainda que em fases iniciais – são captados detectar a doença com precisão.
26
Cansaço e diminuição
do olfato são sinais de alerta
Enquanto a ciência não encontra a cura do surgirem os primeiros sintomas aparentes.
Parkinson ou mesmo maneiras eficientes Especialistas ressaltam a importância
de evitar que a doença se instale, o de que parentes e outras pessoas que
diagnóstico precoce é uma das maiores convivem com idosos fiquem atentos,
armas para evitar efeitos indesejáveis pois antes dos primeiros distúrbios de
da neuropatologia. A boa notícia é que movimento, são comuns o aumento do
os novos conhecimentos oferecem cansaço, depressão ou crises repentinas
esperança de que, nos próximos anos, o de suor. Muitas vezes, nada acontece por
desenvolvimento do quadro seja adiado. muito tempo – podem se passar de nove
Hoje, em geral, são necessários cerca de a 12 anos até a doença se manifestar
dois anos para que o diagnóstico seja feito completamente. Mas, pouco a pouco, fica
com certeza. Nessa fase, entretanto, mais cada vez mais difícil lidar com objetos cujo
da metade das células nervosas das regiões manejo exige habilidade motora fina.
cerebrais afetadas já está atrofiada. Um Às dificuldades motoras somam-se
método certeiro, mas dispendioso, para problemas psíquicos: assim como os
um diagnóstico precoce é a tomografia movimentos, os processos mentais ficam
computadorizada de emissão (PET), mais lentos. O fluxo de pensamentos se
através da qual os processos de troca de torna vagaroso, a fala soa arrastada e baixa.
substâncias do corpo humano podem ser Cerca de um em cada dois pacientes é
observados. Nesse caso, com o uso do depressivo ou tem distúrbios de ansiedade;
medicamento L-Dopa, a atividade cerebral além disso, um em cada três sofre crises
é marcada e acompanhada de forma de demência. Distúrbios olfativos também
radioativa, o que permite avaliar em que costumam anteceder o surgimento
estágio de degeneração os neurônios se completo da doença de Parkinson e podem
encontram. Em quase todos os casos, a ser, portanto, um primeiro sinal de alarme.
doença pode ser diagnosticada antes de
O GPS dentro
da cabeça
Saber onde estamos e para onde vamos é
fundamental para sobreviver. Em geral
não nos damos conta de que a habilidade
de navegação requer do cérebro cálculos
complexos, em frações de segundo. Apenas
quando nos perdemos ou algo compromete
esse mecanismo nos damos conta do
quanto esse sistema é importante
OS AUTORES
MAY-BRITT MOSER e EDVARD I. MOSER são professores de psicologia e neurociência
na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, em Trondheim. Os dois são
cofundadores do Instituto Kavli para Neurociência de Sistemas, em 2007, e do Centro
para Computação Neural, em 2013, ambos localizados na universidade. Em 2014,
eles compartilharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina com John O’Keefe, da
University College London, por sua descoberta do sistema de posicionamento do cérebro.
28
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N
ossa capacidade de pilotar um carro ou avião, ou até caminhar pelas ruas de uma
cidade, foi completamente transformada pela invenção do Sistema de Posiciona-
mento Global (GPS). Mas como nos orientávamos antes do advento da tecnologia?
Novos estudos mostram que o cérebro de mamíferos utiliza seu próprio sistema
incrivelmente sofisticado de posicionamento, semelhante a um GPS, para nos nortear e con-
duzir de um lugar para outro.
Assim como o mecanismo instalado em nossos celulares e carros, o sistema de nosso
cérebro determina onde estamos e para onde estamos nos dirigindo integrando múltiplos
sinais relacionados à nossa posição e à passagem do tempo. O cérebro normalmente faz
esses cálculos com um mínimo de esforço, por isso quase não estamos cientes deles. So-
mente quando nos perdemos ou quando nossa destreza de navegação fica comprometida
por uma lesão ou doença neurodegenerativa percebemos o quanto esse sistema de mapea-
mento e deslocamento é crucial para nossa existência.
A capacidade de saber onde estamos e para onde precisamos ir é fundamental para a
sobrevivência. Sem ela, nós, como todos os animais, seríamos incapazes de encontrar ali-
mentos ou nos reproduzir. Pessoas, e, de fato, espécies inteiras pereceriam.
dezembro 2017 • mentecérebro 29
neurociência
Locais que
provocam o
disparo de
células de
posicionamento
Localização das
células de grade
(córtex entorrinal)
Locais que
provocam o
disparo de
células de
grade
SURGIMENTO DE
UM MAPA COGNITIVO
O disparo de células de grade produz um mapa (à direita)
semelhante a uma carta geográfica (extrema direita). Em
conjunto com as células de localização ou posicionamento,
que identificam a localização do animal em um
determinado ambiente, as células de grade permitem que
ele construa uma imagem mental de seus arredores.
Hipocampo
(localização
das células de
posicionamento)
CA3
Córtex entorrinal
(localização das
células de grade) Hipocampo
(verde)
UM EXAME MINUCIOSO DA
ORGANIZAÇÃO DAS CÉLULAS DE GRADE… Escala ampliada
... revela que o espaçamento dos elementos hexagonais que
ajudam na criação de um mapa espacial muda quando
estes se deslocam de cima para baixo no córtex entorrinal.
Os intervalos mais largos correspondem a distâncias
maiores que a ratazana doméstica tem de percorrer para
ativar um vértice na grade. Na parte superior do córtex
entorrinal, um animal que ativa uma célula de grade em um
vértice de um hexágono terá de se locomover de 30 a 35
centímetros para um vértice adjacente. Já na parte inferior,
ele terá de percorrer até vários metros.
36
tância e direção, não mudam de um recinto
para outro. Comparativamente, as células de
posicionamento do hipocampo formam ma-
Ao contrário do que se acredita,
pas individuais para cada recinto separado. cerca de oito em cada dez
usuários de crack são pessoas
MAPAS LOCAIS
Compreender o sistema navegacional neural
com família, trabalham, são
ainda é um esforço em andamento. Quase produtivas e fazem uso recreativo
todo nosso conhecimento de células de po- da droga, o que obviamente não
sicionamento ou localização e grade foi ob- significa que o risco seja baixo
tido em experimentos nos quais a atividade
elétrica de neurônios é registrada quando
ratazanas domésticas ou camundongos ca-
minham sem rumo, aleatoriamente, em am-
bientes altamente artificiais; ou seja, caixas uma determinada área. Porém mesmo es-
(ou cercados) com fundo plano, desprovi- ses experimentos são simplificados demais,
das de estruturas internas para servir como porque os cercados são planos e horizon-
pontos de referência. tais. Experimentos conduzidos em outros la-
Um laboratório difere substancialmente boratórios, para observar morcegos voando
de ambientes naturais, que mudam cons- e roedores que escalam obstáculos em gaio-
tantemente e estão cheios de objetos tridi- las, estão começando a fornecer algumas
mensionais. O reducionismo dos estudos pistas: células HD e de localização parecem
levanta questões sobre se as células de loca- disparar em locais específicos espalhados
lização e de grade disparam do mesmo jeito por qualquer espaço tridimensional, e as cé-
quando animais estão fora do laboratório. lulas de grade muito provavelmente fazem
Experimentos em labirintos complexos, o mesmo.
que tentam imitar o habitat natural dos ani-
mais, fornecem algumas pistas do que pode ESPAÇO E MEMÓRIA
estar acontecendo. Em 2009, monitoramos O sistema de navegação no hipocampo faz
células de grade enquanto os roedores se mais do que ajudar animais a se moverem
moviam por um labirinto intrincado, em que do ponto A ao ponto B. Além de receber in-
encontraram uma curva (virada) muito fe- formações sobre posição, distância e dire-
chada no final de cada caminho que marca- ção do córtex entorrinal medial, o hipocam-
va o início da próxima passagem. O estudo po faz um registro do que está localizado em
mostrou que, como esperado, as células de um lugar em particular, seja um carro ou um
grade formavam padrões de hexágonos para mastro de bandeira, assim como dos even-
mapear distâncias em caminhos individuais tos que ocorrem ali. Portanto, o mapa espa-
do labirinto para as ratazanas. Mas toda vez cial criado pelas células de posicionamento
que um animal virava de uma passagem não contém apenas informações sobre a lo-
para outra ocorria uma transição abrupta, calização de um animal, mas também deta-
em que um padrão de grade separado era lha suas experiências, mais ou menos como
sobreposto ao novo caminho, quase como a concepção que Tolman tinha de um mapa
se a ratazana estivesse entrando em um re- cognitivo.
cinto completamente diferente. Algumas dessas informações adiciona-
Trabalhos posteriores em nosso labora- das parecem vir de neurônios localizados na
tório mostraram que mapas de grade tam- parte lateral do córtex entorrinal. Pormeno-
bém se fragmentam em mapas menores em res sobre objetos e eventos se fundem com
ambientes abertos quando esses espaços as coordenadas de um animal e são “arqui-
são suficientemente amplos. Agora estamos vadas” como uma memória. Quando esta é
pesquisando como esses mapas menores se recuperada posteriormente, tanto o evento
fundem para formar um mapa integrado de como a posição são relembrados.
dezembro 2017 • mentecérebro 37
neurociência
Essa associação de lugar e memória mamíferos sugere que células de grade e ou-
lembra uma estratégia de memorização in- tras células envolvidas em navegação, orien-
ventada pelos antigos gregos e romanos. O tação espacial, surgiram cedo no processo
chamado “método de loci” (loci é o plural de evolutivo de mamíferos e que algoritmos
locus e significa lugar em latim) permite que neurais similares são utilizados para calcu-
uma pessoa memorize uma lista de itens ao lar o posicionamento pelas mais diversas
imaginar colocar cada um deles em um de- espécies.
terminado lugar/posição ao longo de um ca- Muitos dos blocos de construção do
minho bem conhecido através de um espa- mapa de Tolman foram descobertos, e esta-
ço, digamos, uma paisagem ou um edifício; mos começando a entender como o cérebro
uma disposição muitas vezes chamada “pa- os cria, posiciona e emprega. O sistema de
lácio da memória”. Participantes de concur- representação espacial tornou-se um dos
sos de memória ainda utilizam essa técnica circuitos mais bem entendidos do córtex de
mnemônica para memorizar longas listas de mamíferos, e os algoritmos que ele utiliza
números, letras ou cartas de baralho. estão começando a ser identificados para
Infelizmente, o córtex entorrinal está en- ajudar a desvendar os códigos neurais que
tre as primeiras áreas a falhar em pessoas o cérebro usa para navegar, ou determinar
com doença de Alzheimer. A enfermidade localização.
faz com que células cerebrais localizadas ali Como ocorre em tantas outras áreas de
morram, e uma redução em seu tamanho pesquisa, novas descobertas levantam no-
é considerada uma medida confiável para vas questões. Sabemos que o cérebro tem
identificar pessoas que estão em risco de de- um mapa interno, mas ainda precisamos
senvolvê-la. A tendência de vaguear e se per- entender melhor como seus elementos fun-
der também está entre os primeiros sinais cionam em conjunto para produzir uma
da doença. Nos estágios mais avançados de representação coerente de posicionamento
Alzheimer, células morrem no hipocampo, e como a informação é lida por outros sis-
produzindo uma incapacidade de recordar temas cerebrais para tomar decisões sobre
experiências ou de se lembrar de conceitos aonde ir e como chegar lá.
como nomes de cores. De fato, um estudo Há muitas outras questões. A rede es-
recente forneceu evidências de que pessoas pacial do hipocampo e do córtex entorrinal
jovens portadores de um gene que os colo- está limitada à navegação de espaços lo-
ca em elevado risco de Alzheimer podem ter cais? Em roedores, examinamos áreas que
PARA SABER MAIS
deficiências no funcionamento de suas re- têm raios de apenas alguns metros. Células
Grid cells and the
entorhinal map of space. des de células de grade; uma descoberta que de localização e de grade também são utili-
Edvard I. Moser. Palestra pode levar a novas maneiras de diagnosticar zadas para a navegação de longa distância,
Nobel, 7 de dezembro de
2014. a doença. como quando morcegos migram centenas
www.nobelprize.org/ ou milhares de quilômetros?
nobel_prizes/medicine/
laureates/2014/edvard-
UM RICO REPERTÓRIO Por fim, nos perguntamos como células
moser-lecture.html Hoje, mais de 80 anos depois de Tolman de grade se originam, se existe um período
propor originalmente a existência de um formativo crítico para elas no desenvolvi-
Grid cells, place cells
and memory. May-Britt mapa mental de nossos entornos, está claro mento de um animal e se células de posicio-
Moser. Palestra Nobel, que as células de posicionamento, ou loca- namento e de grade podem ser encontradas
7 de dezembro de 2014.
www.nobelprize.org/ lização são apenas um componente de uma em outros vertebrados ou invertebrados.
nobel_prizes/medicine/ complexa representação que o cérebro pro- Se invertebrados também as utilizam, essa
laureates/2014/may-britt-
moser-lecture.html duz de seu ambiente espacial para calcular constatação implicaria que a evolução usou
posição, distância, velocidade e direção. Os esse sistema de mapeamento espacial du-
Grid cells and cortical
representation. Edvard I.
diversos tipos de células que foram encon- rante centenas de milhões de anos. O GPS
Moser et al. em Nature tradas no sistema navegacional do cérebro do cérebro continuará oferecendo uma rica e
Reviews Neuroscience, vol. de roedores também estão presentes em valiosa coleção de pistas para novas pesqui-
15, nº 7, págs 466–481;
julho de 2014. morcegos, macacos e humanos. Sua exis- sas que ocuparão gerações de cientistas nas
tência em todas as ordens taxonômicas de próximas décadas.
38
livros | lançamentos
GRAVIDEZ
Um estado interessante
Um minúsculo óvulo fertilizado tem uma influência de longo alcance no psiquismo da mu-
lher, capaz de acessar poderosas imagens inconscientes. “Na gravidez existem dois corpos,
um dentro do outro, duas pessoas viverem sob a mesma pele – uma estranha união que
retoma a própria gestação da mulher grávida, no útero de sua mãe, muitos anos antes”,
escreve a doutora em psicologia social e psicanalista Joan Raphael-Leff, autora do livro Gra-
videz, lançado pela Blucher. De todas as experiências humanas, o ato de gerar um bebê den-
tro do próprio corpo é a que mais enfatiza as diferenças básicas de gênero. A obra traz um
olhar delicado e inusitado sobre essa fase da vida: em vez de tomar como ponto de interesse
principal o desenvolvimento psicológico, a autora foca a experiência da mãe “como pessoa
inteira”, antes da criança. Esse olhar não é comum, visto que na maioria das vezes, quando
o tema da gestação é abordado na literatura psicanalítica, a mãe é olhada como objeto de ne-
cessidade da criança. De forma instigante, Raphael-Leff vai por outro caminho, partindo da
ideia psíquica da concepção, das repercussões subjetivas e as implicações externas da gra-
videz. A autora opta por não traçar uma narrativa linear, considerando que figuras parentais
são também filhas e filhos – e é o reconhecimento desse lugar psíquico que nos permite cui-
Gravidez. Joan Raphael-Leff.
dar de um bebê. Ela ressalta, ainda na introdução, que hábitos relativos à gravidez revelam
Blucher, 2017. 328 págs. R$ 82,00
crenças e prioridades básicas de uma sociedade, bem como a relação que temos com nos-
sos corpos, crenças, fantasias e desejos. Gravidez discute ainda temas como o lugar do pai,
o nascimento e as terapias tanto no pré-natal quanto nos primeiros tempos após o parto.
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livro | resenha Por que Freud hoje?
Daniel Kupermann
(coord.). Maria Rita Khel,
Joel Birman, Vladimir
Safatle, Gláucia Leal e
outros. Zagodoni, 2017.
294 págs. R$ 69,00
Freud? Hoje e
amanhã também
Time de 14 psicanalistas propõe reflexões sobre questões éticas,
políticas, culturais, sociais e clínicas que permeiam a obra freudiana