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ESPECIAL | PSICOSSOMÁTICA PSICANALÍTICA

ANO XIII

PARKINSON
Desenho simples permite
diagnosticar a doença

NEUROCIÊNCIA
O sistema que funciona como
GPS dentro do cérebro
psicologia psicanálise ne r ciência

Mais do que
demonstrar
afeto ou
desejo, gesto
é capaz de
é capaz
de revelar
informações
sobre o DNA
do parceiro

Muito
além
de um be i j o
sumário | dezembro 2017 CAPA: /FVAL

Muito por Chip Waltey

O toque dos lábios desencadeia a liberação de

mais substâncias químicas ligadas à estimulação


sexual e às interações sociais; o mais curioso,
porém, é que este gesto também transmite ao

que parceiro informações sobre o DNA

um

beijo
capa
06 Ciência para mudar hábitos

08 Atingir objetivos aos quais nos propomos traz


ótimos impactos para a mente, mas para isso
é preciso alterar costumes – o que nem sempre
é fácil. Algumas descobertas recentes podem
ser úteis para pessoas que planejam incorporar
novas atitudes a ponto de torná-las automáticas

14 Outras formas de escutar o


sofrimento
por Lédice Lino de Oliveira, Rafael Piccolo
Feliciano e Rosa Junqueira
Muitas vezes, pacientes com manifestações
somáticas procuram a psicoterapia
encaminhados por médicos ou por insistência
de parentes e outras pessoas de seu convívio,
em busca de ajuda para se livrar dos sintomas
do adoecimento físico, mas se mostram
distantes de suas próprias angústias. Cabe ao
analista encontrar maneiras de lidar com dor
psíquica, nem sempre óbvia

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18 Aquém da mente,
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novembro 2017 • mentecérebro 5
comportamento

Ciência para
mudar hábitos
Atingir objetivos aos quais nos propomos traz ótimos impactos para a
mente, mas para isso é preciso alterar costumes – o que nem sempre é
fácil. Algumas descobertas recentes podem ser úteis para pessoas que
planejam incorporar novas atitudes a ponto de torná-las automáticas

C
hega dezembro e, em meio à pressa para en- de muito sacrifício”, diz o psicólogo Richard M. Ryan,
cerrar tarefas ou entre uma comemoração e da Universidade de Rochester. Ele e seu colega Edward
outra, surge uma pergunta quase inevitável: L. Deci desenvolveram um modelo de motivação deno-
quais meus projetos para o próximo ano? Não minado teoria da autodeterminação, segundo o qual
importa as metas – talvez mudar de emprego ou de carrei- as pessoas com necessidades psicológicas se sentem
ra, voltar a estudar, adotar uma dieta saudável, exercitar-se mais satisfeitas, competentes e capazes de manter re-
regularmente, viajar mais, meditar diariamente ou qualquer lacionamentos afetivos saudáveis – e autônomas,
outra. A despeito das boas intenções e por mais louvável com liberdade para escolher o que fazer.
que seja o plano, sua realização exige esforço e às vezes é “Mas se a pessoa simplesmente pensar
frustrante manter a transformação. Intrigados com essa ‘Eu consigo, basta evitar’, é provável
dificuldade tão persistente, cientistas têm pesquisado esse que falhe porque as situações
tema e feito algumas descobertas interessantes. que se apresentam estão
Uma delas é que para aumentar as chances de al- sujeitas a variáveis
cançar um objetivo, em primeiro lugar é preciso desco- mais comple-
brir exatamente por que de fato se almeja algo – e o que xas”, diz
sustenta esse desejo. Desde já é bom ter em mente a pes-
que “por que eu quero” ou “porque me faz bem” não
servem como resposta, é preciso ir mais fundo. “Pen-
samentos do tipo ‘eu deveria’ podem manter a
pessoa firme por um ou até dois meses em
seu propósito, mas em geral não se
sustentam por muito mais do que
isso, ou se o fazem é à custa
shutterstock

6
quisadora Mary Jung, professora da Uni- bro”. No entanto, por mais sensato que isso
versidade da Colúmbia Britânica, que nos possa parecer, as pessoas geralmente fazem
últimos anos tem se dedicado ao estudo o oposto – não raro, entram em dietas ex-
da relação das pessoas com a apropriação tremas ou exageram na prática de exercícios
de comportamentos saudáveis. Ela salienta físicos para os quais não estão preparadas.
que faz toda a diferença o fato de as pessoas Há também aqueles que fazem votos súbi-
compreenderem que “escorregar” de vez tos de praticar piano ou estudar mandarim
em quando é normal, e isso não deve ser in- por uma hora todos os dias.
terpretado como sinal para desistir. A abordagem gradual funciona porque
“Se você perdeu uma etapa de exercí- aumenta um ingrediente essencial para a rea-
cio, não significa que falhou, mas apenas lização do objetivo: a confiança. Apesar das
que terá de tomar algumas providências reais dificuldades, o sentimento é necessário
para deixar seu treino em dia”, afirma Jung. para ter sucesso. Esse tipo de motivação é
Ela enfatiza a importância de dedicar algum muito diferente do otimismo infundado da-
tempo imaginando o resultado do sucesso queles que superestimam sua capacidade de
de seus esforços e os obstáculos específi- resistir a tentações, explica Jung. Conseguir
cos que certamente aparecerão ao longo superar desafios externos tem menos a ver
do caminho. Vamos imaginar que sua meta com força de vontade e mais com habilida-
seja economizar mais dinheiro no próximo des específicas de enfrentamento, como o
ano. Em vez de tentar resolver tudo de for- gerenciamento de problemas e a capacidade
ma abstrata, é possível formar duas ima- de se reerguer depois de contratempos. Aos
gens mentais: a primeira poderia ser a de poucos, o desenvolvimento dessas habilida-
maior saldo bancário e a outra de si mesmo des e a definição de objetivos modestos que
lutando contra a vontade de se juntar com permitam encontrar maneiras de lidar com
os amigos no caro restaurante inaugurado eventuais problemas aumentam a segurança
recentemente. Vários estudos mostram que e as chances de persistir a longo prazo.
a técnica de dois passos, chamada de opo- Pessoas que falham repetidamente na
sição de ideias, ajuda as pessoas a procras- tentativa de alcançar um objetivo tendem a
tinar menos e a enfrentar os desafios com duvidar de sua capacidade de realizar qual-
mais entusiasmo. quer coisa. Por isso, especialistas insistem:
“Uma das chaves essenciais para a con- é preciso ir aos poucos. Se você se esforçar
cretização de nossos planos é descobrir a para manter a casa arrumada, no início deve
motivação certa, aquela que realmente nos focar em um dos quartos – ou até mesmo em
move”, afirma o psicólogo Pedro J. Teixeira, um armário ou gaveta. Se mantiver o espa-
professor da Universidade Técnica de Lis- ço arrumado por uma semana, comemore a
boa. Teixeira, que pesquisa o tema. Ele ob- conquista e, depois, escolha outra área e as-
serva que para firmar mudanças duradouras sim por diante.
é fundamental começar devagar para, gra- Podemos pensar que mudanças dura-
dualmente, chegar a desafios maiores. “As douras requerem incorporar o novo com-
conquistas mais bem-sucedidas são aquelas portamento, torná-lo automático, de forma
em que pegamos o ritmo pouco a pouco que não nos incomode. Uma maneira de co-
durante algumas semanas; com isso é pos- meçar o processo para adquirir um hábito é
sível ir fazendo ajustes e evitar a sensação dizer para si mesmo, de maneira realista, o
frustrante de se esforçar tanto por algo e de- que pretende fazer e de que forma vai se mo-
pois falhar”, afirma Mary Jung. “Em relação vimentar para pôr o plano em prática. Com
ao condicionamento físico, por exemplo, se isso, é possível traçar a estratégia para deter-
não tenho certeza de que alguém pode fazer minar quando, onde e como pretende alcan-
algo, não é uma boa ideia pedir que comece çar seus objetivos. Por exemplo, se você pre-
justamente com essa tarefa; o ideal é que se tende beber mais água ao longo do dia, vale
atinja o propósito em etapas, até para que ter uma garrafinha ao alcance da mão para
esse comportamento se sedimente no cére- facilitar a realização do intento.
dezembro 2017 • mentecérebro 7
8
capa

shutterstock
Muito
mais
que
um

beijo O toque dos lábios


desencadeia a liberação
de substâncias químicas N
os momentos de intensa paixão o beijo na boca pren-
de duas pessoas numa troca de cheiros, sabores, to-
ques, segredos e emoções. Beijamos lascivamente, de
modo gentil, tímido, faminto, intenso, luxuriante ou
ligadas à estimulação furtivo. Em plena luz do dia e na calada da noite. Damos beijos
cerimoniosos, afáveis, polidos, de rostos que não se tocam; a li-
sexual e às interações teratura e a história registram beijos da morte e, ao menos nos
sociais; o mais curioso, contos de fada, beijocas fazem princesas reviver.
Do ponto de vista da ciência, os lábios podem ter evoluído
porém, é que este gesto primeiro para favorecer a alimentação e, mais tarde, para a fala,
também transmite ao mas no beijo eles satisfazem tipos diferentes de apetite. No cor-
parceiro informações po, o toque dos lábios ativa uma sucessão de mensagens neurais
e químicas que transmitem sensações táteis e excitação sexual,
sobre o DNA e desperta sentimentos de intimidade, motivação e até euforia.
Nem todas as mensagens são internas. A fusão de dois cor-
pos transmite sinais intensos passíveis de serem reconhecidos
tanto pela própria pessoa quanto pelo parceiro ou parceira. Beijos
por Chip Walter, podem, inclusive, enviar informações significativas sobre as con-
jornalista especializado dições presentes e futuras de uma relação amorosa. Muitos psi-
em divulgação científica cólogos especializados em terapia de casais garantem que, se o
primeiro beijo não for considerado agradável e prazeroso para os
dois envolvidos, dificilmente o relacionamento evoluirá.
dezembro 2017 • mentecérebro 9
capa

OS LÁBIOS HUMANOS Alguns cientistas acreditam que a união sa maneira, e nossos ancestrais hominídeos,
têm a camada mais fina dos lábios evoluiu porque facilita a seleção provavelmente, também o faziam. A pressão
de pele do resto do corpo
e estão entre as áreas de de parceiros. “O beijo envolve uma troca de lábio contra lábio evoluiu posteriormen-
maior concentração de bem complicada de informações – olfativa, te para uma forma de confortar crianças fa-
receptores e transmissores tátil e ajustes de postura – que costuma acio- mintas em períodos de escassez de comida
sensoriais
nar mecanismos neurológicos sofisticados e e, com o tempo, derivou para um modo de
também inconscientes, permitindo às pes- expressar amor e afeição. A espécie humana
soas determinar subjetivamente até que grau levou esses beijos protoparentais por outros
elas são geneticamente incompatíveis”, afir- caminhos, até criar as variedades mais apai-
ma o psicólogo evolucionista Gordon G. Gal- xonadas que temos hoje.
lup, professor da Universidade de Albany e Mensageiros químicos silenciosos cha-
da Universidade do Estado de Nova York. Bei- mados feromônios podem ter acelerado a
jar pode ainda revelar até que ponto o outro evolução do beijo “íntimo”. Muitos animais
está disposto a se comprometer na relação. e plantas usam os feromônios para se co-
Esse comprometimento significa, em alguns municar com outros membros da mesma
casos, a predisposição para estabelecer par- espécie. Insetos, em particular, são conhe-
cerias, aprofundar o grau de confiança e até cidos por emitir a substância como um alar-
mesmo a intenção de criar filhos – uma ques- me, para sinalizar, por exemplo, a presença
tão central em relacionamentos de longo pra- de alimento ou a atração sexual. Se os seres
zo e crucial para a sobrevivência da espécie. humanos detectam feromônios ou não – e
com que precisão isso aconteceria – é as-
MENSAGEIRO SILENCIOSO sunto controverso. Diferentemente de ratos
Independentemente do que mais esteja acon- ou porcos, não temos um detector de fero-
tecendo quando beijamos, nossa história mônios “especializado”, o órgão vomerona-
evolucionária está incorporada nesse ato ter- sal, entre o nariz e a boca.
no e tempestuoso. Nos anos 60, o zoólogo No entanto, a bióloga Sarah Woodley, da
e escritor britânico Desmond Morris sugeriu, Universidade Duquesne, em Pittsburgh, na
pela primeira vez, que o beijo pode ter evo- Pensilvânia, sugere que podemos captar fe-
luído da prática de algumas mães primatas romônios pelo sistema olfativo. Segundo ela,
de mastigar a comida para seus filhotes e ali- a comunicação química inconsciente expli-
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mentá-los boca a boca, com os lábios com- caria descobertas curiosas, como a tendên-
primidos. Os chimpanzés se alimentam des- cia de os ciclos menstruais de mulheres que
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convivem de forma muito próxima, como
companheiras de dormitório, se sincroniza-
rem, ou como a atração das mulheres pelo
Inclinação à direita
cheiro da camiseta usada por homens cujo O psicólogo Onur Güntürkün, da Universidade Ruhr, de Bochum,
sistema imunológico é geneticamente com- Alemanha, realizou recentemente uma pesquisa curiosa. Observou
patível com o delas. Feromônios humanos 124 casais enquanto se beijavam em lugares públicos dos Esta-
podem incluir androstenol (componente dos Unidos, Alemanha e Turquia e constatou que eles tombavam
químico do suor masculino que, para algu- levemente a cabeça para a direita com o dobro de frequência do
mas mulheres, amplia a excitação sexual) que para a esquerda antes de seus lábios se tocarem. Güntürkün
e hormônios vaginais femininos chamados suspeita que os beijos inclinados para a direita resultem de uma
copulinas (que aumentam os níveis de tes- preferência geral desenvolvida no final da gestação e na primeira
tosterona e o apetite sexual dos homens). Se infância. Essa “assimetria” é relacionada à lateralização das
os feromônios realmente representam um funções cerebrais, tais como a fala e a percepção espacial.
papel na procriação humana, então beijar A educação e a cultura também podem influenciar essa
seria uma maneira extremamente eficiente tendência de curvar-se para a direita. Estudos mostram que
de transmiti-los. até 80% das mães, quer sejam destras, quer sejam canhotas,
Podemos também ter herdado o beijo acalentam do lado esquerdo seus bebês. Bebês aninhados com
íntimo de nossos ancestrais primatas. Bo- o rosto para cima, à esquerda, viram-se para a direita para ser
nobos, que são geneticamente muito seme- amamentados ou se aconchegar. Como resultado, a maioria de nós
lhantes a nós (embora não sejamos seus pode ter aprendido a associar calor e segurança com o inclinar para
descendentes diretos), são especialmente a direita.
apaixonados. O primatólogo Frans B. M. de Alguns cientistas propuseram que aqueles que viram a cabeça
Waal, da Universidade Emory, na Geórgia, para a esquerda quando beijam podem estar mostrando menos
lembra-se de um guarda de zoológico que afeto do os que o fazem para o lado oposto. Um estudo realizado
aceitou de um bonobo o que ele achava que pelo naturalista Julian Greenwood e seus colaboradores da
seria um beijo amigável, até sentir a língua Universidade Stranmillis College, em Belfast, na Irlanda, contrapõe
do macaco em sua boca! essa ideia. Os pesquisadores constataram que 77% de 240
Os lábios humanos têm a camada mais graduandos inclinavam a cabeça para a direita quando beijavam
fina de pele do corpo humano e estão en- uma boneca na bochecha ou nos lábios. Curvar-se para a direita
tre as áreas corporais em que se encontram com uma boneca,
as maiores concentrações de receptores e ato que não denota
transmissores sensoriais. Quando beija- emoção, foi quase
mos, as células da língua e de outras regiões tão predominante
da boca disparam mensagens para o cére- entre os participantes
bro e para o corpo, provocando emoções e como entre os 125
reações físicas intensas. casais observados
Dos 12 ou 13 nervos cranianos que afe- enquanto se beijavam
tam a função cerebral, cinco estão em ação em Belfast que se
quando beijamos, carregando mensagens inclinaram para a
de nossos lábios, língua, bochechas e nariz direita em 80% das
para o cérebro – que capta informações so- vezes. A conclusão:
bre temperatura, sabor, cheiro e movimentos beijar inclinado para a
de toda a situação. Parte dessa informação direita provavelmente
chega ao córtex somatossensorial, faixa de resulta de uma
tecido na superfície cerebral que representa facilidade motora,
a informação tátil no mapa do corpo (veja como Güntürkün
ilustração na pág. 14) Nessa representação sugeriu – e não de
os lábios aparecem desproporcionalmente uma preferência
grandes em relação ao tamanho real porque emocional.
shutterstock

cada região do corpo aparece de acordo com


a densidade de suas terminações neurais.
dezembro 2017 • mentecérebro 11
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Beijar desencadeia um coquetel de subs- precisar de uma atmosfera mais romântica.


tâncias químicas que governam o estresse, a Mas, de fato, uma suspeita das pesquisa-
motivação, as relações sociais e a estimula- doras se confirmou: o estudo reportado por
ção sexual. Em um novo estudo, a psicóloga Hill e Wilson, em novembro de 2007 na re-
Wendy L. Hill e sua aluna Carey A. Wilson, união anual da Sociedade para a Neurociên-
do Lafayette College, compararam os níveis cia, em Nova Orleans, revelou que os níveis
de oxitocina e cortisol, dois hormônios- de cortisol caíam para ambos os sexos, não
chave, em 15 casais heterossexuais antes e importando a forma de intimidade, o que in-
depois de eles se beijarem e antes e depois dica que o beijo realmente reduz o estresse.
de conversarem de mãos dadas. A oxitocina Na medida em que o beijo está ligado
está ligada às relações sociais e o cortisol é à afetividade, pode aumentar a produção
considerado o hormônio do estresse. Hill e de substâncias químicas do cérebro asso-
Wilson supunham que beijar ampliaria os ciadas ao prazer, à euforia e à motivação
níveis do primeiro hormônio, que influencia para estabelecer ligações específicas. A an-
também o reconhecimento social, o orgas- tropóloga Helen Fisher e colaboradores da
mo e o parto. Elas esperavam que esse efeito Universidade Rutgers registraram, por meio
fosse particularmente pronunciado nas mu- de tomografias do cérebro, a reação de 17
lheres participantes do estudo que relataram voluntários enquanto olhavam para fotos de
um grau maior de intimidade em seus rela- pessoas pelas quais diziam estar profunda-
cionamentos. Também previam uma queda mente apaixonados. Os pesquisadores des-
no cortisol, porque, presumivelmente, beijar cobriram uma atividade incomum em duas
aliviaria o estresse. regiões cerebrais que governam o prazer, a
motivação e a recompensa: a área tegumen-
BARÔMETRO EMOCIONAL tar ventral direita e o núcleo caudado direito.
As pesquisadoras, porém, se surpreende- Drogas como a cocaína estimulam de ma-
ram ao descobrir que os níveis de oxito- neira semelhante esses centros de recom-
cina aumentaram apenas nos homens e pensa, por meio da liberação do neurotrans-
diminuíram nas mulheres, tanto depois de missor dopamina. Uma primeira conclusão
beijar quanto ao conversar de mãos dadas. seria, então, a de que o amor funciona, para
Concluíram, então, que elas precisam bem humanos, como um tipo de droga. E o bei-
mais do que um beijo para se sentir ligadas jo evoca reações primais. Pode aumentar a
emocionalmente ou excitadas sexualmente pulsação e a pressão sanguínea; as pupilas
durante o contato físico. As autoras inferi- se dilatam; a respiração fica mais profunda
ram que as mulheres podem, por exemplo, e o pensamento racional recua. Assim como

Homúnculo sensorial:
o mapa do corpo
Informação tátil da pele chega ao córtex
somatossensorial primário do cérebro,
que contém um mapa distorcido do
corpo chamado “homúnculo sensorial”.
Nesta representação, os lábios são
desproporcionalmente grandes porque têm
uma enorme concentração de receptores
sensoriais e, portanto, são muito sensíveis
gehirn&geist

ao toque.

12
o desejo, o ato de beijar suprime (ou pelo
menos torna mais tênue) a prudência e a
inibição. Durante um beijo a maioria das
pessoas fica, provavelmente, encantada de-
mais para se importar com isso. Talvez o
superego (instância psíquica proposta por
Sigmund Freud, guardiã das normas e proi-
bições que aprendemos e adotamos) seja
solúvel em beijos.
Pode mesmo um beijo ser algo tão po-
deroso? Algumas pesquisas indicam que
sim. Num levantamento recente, Gallup e
seus colaboradores descobriram que 59% e para avaliar não apenas se a outra pessoa PRÁTICA AFETIVA pode
de 58 homens e 66% de 122 mulheres admi- seria uma fonte excelente de DNA, mas um ter derivado do hábito
de mães primatas de
tiram que houve ocasiões em que, embora bom parceiro a longo prazo. O encontro mastigar alimentos e
estivessem atraídos por alguém, o interes- dos lábios é, portanto, um tipo de barôme- passá-los direto para a
se logo sumiu depois do primeiro beijo. Os tro emocional: quanto mais entusiasmado, boca dos filhotes
beijos “ruins” não tinham nenhuma falha mais saudável é o relacionamento.
específica; simplesmente não passavam a Como as mulheres têm menores possibi-
“sensação certa”. Resultado: deflagravam o lidades biológicas de perpetuar seus genes,
fim do romance. já que necessitam investir mais energia para
Gallup também acredita que o beijo car- ter filhos, é fundamental que sejam mais
rega tal peso porque transmite informações criteriosas na escolha de seus parceiros – e
subconscientes sobre a compatibilidade ge- não podem se permitir muitos equívocos.
nética de um possível companheiro. Sua hi- Dentro dessa lógica evolucionista, quanto
pótese é consistente com a ideia de que ele mais apaixonado o beijo, maior a chance de
evoluiu como uma estratégia de acasalamen- o parceiro ser um bom companheiro não PARA SABER MAIS
to que ajuda a avaliar potenciais parceiros. só para a procriação – mas suficientemente Sex differences in
Da perspectiva darwiniana, a seleção se- comprometido também para ficar por perto romantic kissing among
college students: an
xual é a chave para a transmissão dos genes. e criá-los. Por outro lado, o beijo talvez não evolutionary perspective.
Para nós, humanos, a escolha do parceiro seja tão necessário do ponto de vista evo- Gordon G. Gallup, Jr.,
Susan M. Hughes e
frequentemente implica apaixonar-se. Fisher lutivo. Afinal, a maioria dos animais não se Marissa A. Harrison, em
escreveu em seu artigo de 2005 que o “meca- beija e, mesmo assim, produz muitas crias. Evolutionary Psychology,
vol. 5, nº 3, págs. 612-631,
nismo de atração nos humanos evoluiu para E nem todos os humanos beijam. Na virada 2007.
permitir aos indivíduos concentrar sua ener- do século 20, o cientista dinamarquês Kris-
gia de acasalamento em pessoas específicas, Adult persistence of
toffer Nyrop descreveu tribos finlandesas headturning asymmetry.
o que facilita a escolha do parceiro – e satis- cujos membros se banhavam juntos, mas Onur Güntürkün, em
faz um aspecto primário da reprodução”. consideravam o beijo indecente. Em 1897, Nature, vol. 421, 13 de
fevereiro de 2003.
Com base em descobertas recentes, Gal- o antropólogo francês Paul d’Enjoy relatou
lup argumenta que o beijo desempenha um que os chineses consideravam o toque das Romantic love: an
fMRI study of a neural
papel crucial na progressão de um relaciona- bocas tão horrendo quanto é o canibalismo mechanism for mate
mento, mas de forma diversa para homens e para a maioria das pessoas. Na Mongólia, choice. Helen Fisher,
Arthur Aron e Lucy L.
mulheres. Num estudo – que teve os resul- por exemplo, é raro que os pais beijem seus Brown, em Journal of
tados publicados – ele e seus colaboradores filhos em vez disso, cheiram a cabeça dos Comparative Neurology,
vol. 493, nº 1, págs. 58-62,
entrevistaram 1.041 universitários de ambos pequenos. O pioneiro da etologia humana 5 de dezembro de 2005.
os sexos a respeito do beijo. Para a maio- Irenäus Eibl-Eibesfeldt escreveu em seu livro
ria dos rapazes ouvidos, acariciar a boca da de 1970 Love and hate: the Natural History of Amor e ódio: história
natural dos padrões
outra pessoa com a língua é uma maneira behavior patterns (Amor e ódio: história na- elementares do
de avançar no relacionamento sexual. Para tural dos padrões elementares do comporta- comportamento.Irenäus
shutterstock

Eibl-Eibesfeldt. Livraria
os pesquisadores, porém, o ato serve para mento), considerado um clássico, que pelo Bertrand, 1987.
conduzir o casal ao próximo nível emocional menos 10% da humanidade não beija.
dezembro 2017 • mentecérebro 13
especial – psicossomática psicanalítica

Outras formas
de escutar o
sofrimento
Muitas vezes, pacientes com manifestações somáticas procuram a psicoterapia
encaminhados por médicos ou por insistência de parentes e outras
pessoas de seu convívio, em busca de ajuda para se livrar dos sintomas do
adoecimento físico, mas se mostram distantes de suas próprias angústias. Cabe
ao analista encontrar maneiras de lidar com dor psíquica, nem sempre óbvia
por Lédice Lino de Oliveira, Rafael Piccolo Feliciano e Rosa Junqueira

A
psicanálise é instigada constantemente a se reinventar. Há mais
de um século, quando criou esse método – para tratar inicialmente
pacientes histéricas –, Sigmund Freud apresentou a escuta como
principal instrumento de trabalho. Ele pedia para que seus pacientes
se deitassem no divã, de forma confortável, e falassem “aquilo que lhes viesse à
cabeça”. Essa técnica, conhecida como associação livre, facilitaria a emergência
para a consciência de conteúdos recalcados.
Quando falamos em recalque, longe de seu significado popularizado,
que se aproxima da inveja, nos referimos a uma defesa bastante elaborada,
própria à neurose. Resumidamente, seu mecanismo se baseia em retirar da
esfera consciente (e manter inconscientes) conteúdos de difícil elaboração,
sentidos como intoleráveis ou incompatíveis com os próprios valores, mas
que emergem, como afirmam os psicanalistas franceses Jean Laplanche e
Jean-Bertrand Pontalis, “sob a forma de sintomas, sonhos, atos falhos etc.”.

OS AUTORES
LÉDICE LINO DE OLIVEIRA é psicóloga, mestre em ciências da saúde, professora do curso de psi-
cologia da Universidade Paulista (Unip). RAFAEL PICCOLO FELICIANO é psicólogo clínico, autor
do livro digital Escritos psicanalíticos da vida. (ePub, 2017). ROSA JUNQUEIRA é psicanalista. Os
três são membros-fundadores do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes
Sapientiae, em São Paulo

14
A psicossomática psicanalítica considera
que apresentamos outras formas de orga-
nização psíquica que diferem da neurose e
podem ser incluídas no campo das desor-
ganizações psicossomáticas. Caracterizadas
pela prevalência de sintomas que incidem
diretamente sobre o corpo, costumam de-
sencadear afecções somáticas crônicas e até
mesmo progressivas, o que torna o manejo
clínico com esses pacientes um desafio a
mais para o método analítico.
Destacam-se aqui particularidades do
campo transferencial, refletindo impasses
na relação terapeuta-paciente, específicos
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ao tratamento de pessoas que apresentam


processos de desorganização psicossomáti-
dezembro 2017 • mentecérebro 15
especial – psicossomática psicanalítica

capacidade de simbolização e conseguem,


das mais variadas maneiras, metabolizar as
angústias. Pacientes que manifestam dire-
tamente no corpo suas questões psíquicas
não parecem entrar em contato com con-
flitos, tampouco com processos de pensa-
mento ou fantasias. O paciente parece estar
movido por seus instintos mais primitivos
e necessita de cuidados que acolham seus
excessos.
Segundo o psicanalista inglês Donald W.
Winnicott, é possível supor que esses adultos
foram crianças que não experimentaram um
ambiente suficientemente bom, nem tiveram
um cuidador devotado, capaz de integrar os
sentimentos infantis de amor e de raiva, algo
fundamental para o desenvolvimento psicos-
somático saudável. Ao contrário: podemos
supor a presença de um adulto preponderan-
temente intrusivo ou ausente (certamente
um reflexo de carências resultantes da histó-
ria de vida do próprio cuidador), incapaz de
se adaptar ao tempo ou ao ritmo das necessi-
dades da criança pequena.
Nesse sentido, podemos pensar sobre os
conceitos de verdadeiro self e falso self pro-
postos por Winnicott. Se o primeiro resul-
ta da aceitação dos gestos espontâneos da
criança por parte de quem cuida, o segundo
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revela uma submissão da criança aos gestos


e vontades do adulto, incapaz de entender e
satisfazer as necessidades do filho. Quando
ca. Inúmeras se apresentam ao terapeuta: isso ocorre pela ausência de reconhecimen-
Como contribuir para que este paciente pos- to, podemos supor que se constrói um falso
sa construir e dar sentido às palavras? Como self como defesa contra o excesso de intru-
se tornar um “outro” diante de um paciente são, impedindo o surgimento de manifesta-
que preserva o investimento maciço em si ções espontâneas.
próprio? Como evitar que o acompanha- Assim, na relação terapêutica, o analista
mento psicoterápico caia no vazio refletido se vê diante da necessidade de um manejo
pela vida psíquica ausente de símbolos, com que, diferentemente da técnica clássica ba-
grandes inconsistências nas relações com o seada na interpretação do material incons-
mundo externo? ciente, se orienta por acolher o paciente e
Com frequência, esses pacientes che- acompanhar cuidadosamente suas expres-
gam aos consultórios encaminhados por sões e comunicações aparentemente mais
médicos e muitas vezes por insistência de singelas e triviais. Nestes casos, a técnica
familiares e outras pessoas de seu convívio. clínica mais clássica poderia contribuir para
Apresentam alguma manifestação somática a manutenção de cisões do ego. O que im-
para a qual buscam auxílio para tratar seus pede a integração dos afetos e facilita a con-
sintomas. Porém, se revelam distantes de sequente desorganização psicossomática.
suas angústias, diferentes dos chamados Isso nos leva a pensar que a interpretação
“neuróticos clássicos” que alcançaram a seja uma forma intrusiva de agir, que po-
16
deria ser comparada aos atos invasivos do Segundo o filósofo e psicanalista
cuidador.
Ciente das defesas primitivas respeitan- Fédida, o corpo do analista pode
do a maneira peculiar de relação objetal, ser comparado a um palco onde
com toda a violência que as identificações se encenam os “fantasmas” do
carregam e das quais o analista é alvo, este
poderá então exercer a escuta por meio das paciente; é nesse campo que o
sensações que impregnam seu próprio cor- diálogo entre paciente e terapeuta
po. Segundo o filósofo e psicanalista Fédi- será inicialmente instaurado
da, o corpo do analista se concretiza como
palco onde se encenam os “fantasmas” do
paciente. Como já observou R. Volich (autor
do artigo na pág. 18), as sensações ocorri- gestos, do olhar, do silêncio, que o analista
das no corpo do terapeuta se põem como vai reencontrar as marcas das imagens in-
caminho importante para a compreensão ternas do paciente. Tudo se passa como se a
da dinâmica do paciente e contribuem para palavra do analista devesse incentivar o pa-
futuras possibilidades de interpretação. Ao ciente a desenvolver seu poder imaginativo
suportar tais desconfortos (a exemplo da de tal forma que o acontecimento que toca
mãe que realiza sua função materna), o tera- o corpo não fique privado de possibilidades
peuta metaboliza os conteúdos agressivos, metafóricas”, escreve a psicanalista Maria
transformando-os em elementos mais “pa- Helena Fernandes, em seu livro Corpo (Casa
latáveis” ao paciente. Há grande importân- do Psicólogo, 2008).
cia na autopercepção do analista em relação É na qualidade do vínculo psicoterapeu-
a sensações corpóreas, com vistas a uma ta-paciente que encontramos as condições
transformação em sua atividade interna de um recomeço. A ideia é que, aos poucos,
como ferramenta construtiva do processo o paciente adquira a possibilidade de expres-
de estruturação subjetiva e da mentalização sar em palavras a parte que foi vivida como
do paciente. má, iniciando um processo de integração
Parece fundamental, portanto, colocar o entre os próprios pensamentos e sentimen-
corpo a serviço da relação analítica, pois, se tos – antes insuportáveis e assustadores –, e
o corpo “fala” por meio dos sinais patológi- que aos poucos adquirem sentidos e signifi-
cos, será por meio do corpo tanto do pacien- cados. É por meio da relação com o terapeu-
te quanto do terapeuta que o diálogo será ta que aparecem novas capacidades, expres- PARA SABER MAIS
Psicanálise e psicossomá-
inicialmente instaurado. A psicanalista Joyce sões menos regredidas, mais espontâneas e tica: casos clínicos, cons-
Mc Dougall traz essa ideia em sua obra: criativas. truções. A. M. Soares, C. R.
Rua, R. M. Volich, M.E.P.
como se fosse um aparelho psíquico com- Após algum tempo de análise, por vezes, Labaki (org). Escuta, 2015.
partilhado, dois corpos tornam-se apenas surgem comentários dos pacientes sobre
um no trabalho conjunto do ato de pensar e como se sentem acolhidos no espaço ana- Psicossomática: de Hipó-
crates à psicanálise. R. M.
buscar significados. lítico. Isso nos lembra Winnicott, quando Volich. Casa do Psicólogo,
Cabe ao terapeuta, portanto, tornar-se in- enfatiza que “na prática psicanalítica, as mu- 2010.
Corpo. M. H. Fernandes.
térprete desses conteúdos, no momento em danças que ocorrem nesta área podem ser Casa do Psicólogo, 2008.
que os identifica, os toma como seus e, deli- profundas. Elas não dependem do trabalho
Hipocondria: impasses da
cadamente, permite a construção de um am- interpretativo, mas sim da sobrevivência do alma, desafios do corpo.
biente acolhedor no qual o paciente poderá analista” a este tipo de relação fragilizada. R.M. Volich. Casa do Psi-
cólogo, 2002.
se sentir, gradativamente, capaz de suportar Não é raro observar a necessidade de o pa- Explorações psicanalíticas.
seus próprios conteúdos agressivos, na me- ciente sentir-se fisicamente próximo ao tera- D.W. Winnicott. Artes Mé-
dida em que abre mão de defesas primitivas peuta. Sobre isso, Fernandes escreve: “Não dicas, 1994.

como a cisão e a projeção para defesas mais é por acaso que esse tipo de paciente tem O ambiente e os
elaboradas. “É por meio da delicadeza da necessidade de constatar a presença viva do processos de maturação.
D.W. Winnicott. Artmed,
escuta, de uma leitura em filigrana das pala- analista; é essa presença que lhe assegura 1983.
vras, na sutileza da busca dos detalhes, dos que o analista não está “morto”.
dezembro 2017 • mentecérebro 17
especial – psicossomática psicanalítica

Aquém da
mente,
para além do
corpo
Todos nós apresentamos marcas físicas e mentais resultantes de
vínculos e experiências acumulados desde o início da vida. Vivências
perturbadoras, conflitos, frustrações, perdas e traumas também
deixam vestígios, causando carência ou empobrecimento de recursos
emocionais, que se expressam por vias psíquicas e somáticas

por Rubens Marcelo Volich

OS AUTORES
RUBENS MARCELO VOLICH é psicanalista, doutor pela Universidade de
Paris VII – Denis Diderot, professor do curso de especialização em psicos-
somática psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. É autor, entre outros
livros, de Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise (Casa do Psicólogo
– Coleção Clínica Psicanalítica, 2000) e coorganizador e autor dos livros da
série Psicossoma (Casa do Psícólogo).

18
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dezembro 2017 • mentecérebro 19


especial – psicossomática psicanalítica

Apesar dos avançados recursos diagnósticos


e terapêuticos da medicina, a dificuldade em
compreender o adoecimento dos pacientes, leva
profissionais a atribuir esse processo a fatores ditos
emocionais, psicológicos ou psicogênicos

A
organização pulsional marca a pregados para compreendê-los e tratá-los.
transcendência do humano da Em alguns casos, há dificuldades para se
condição biológica para a condição chegar a um diagnóstico, apesar de inves-
de sujeito. Atravessada pelo desejo, tigações exaustivas e consultas a vários es-
ela é modulada, desde o nascimento, e talvez pecialistas, comprometendo a definição das
mesmo antes disso, pelas marcas das relações estratégias terapêuticas. Em certos pacien-
da criança com seu semelhante. São também tes, a história da doença ou os prognósticos
essas relações que tecem em torno do corpo a de um tratamento subitamente apresen-
trama entre as pulsões de vida e de morte, for- tam mudanças bruscas e surpreendentes.
jando a diversidade de formas e organizações Dificuldades como essas, evoluções inespe-
que constituem a economia psicossomática, radas e quadros clínicos inespecíficos são
em suas infinidade de expressões normais e frequentemente caracterizados como “psi-
patológicas de dor e de prazer. Fluidez e rigi- cossomáticos”, “somatizações”, quadros
dez, precariedade e consistência, organização “idiopáticos”, “funcionais”, “sem explicação
e desorganização caracterizam a plasticidade médica”, entre outros.
da trama pulsional que pauta a clínica contem- Na clínica médica, a dificuldade em apreen-
porânea, muitas vezes marcada por dinâmicas der e compreender a etiologia do adoecimento
mais primitivas, aquém da linguagem e da dos pacientes, apesar dos avançados recursos
representação. diagnósticos e terapêuticos, leva a atribuir o
Dinâmicas arcaicas, atuações e soma- que lhes escapa a fatores ditos “emocionais”,
tizações revelam pacientes refratários aos “psicológicos” ou “psicogênicos”.
enquadres psicanalíticos e psicoterapêuti- No campo da saúde mental, os profis-
cos clássicos. A clínica médica e a de outras sionais, psicoterapeutas e psicanalistas em
especialidades da saúde também são desa- particular, são desafiados por formas bas-
fiadas por essas dinâmicas na anamnese, no tante desorganizadas de expressão do sofri-
diagnóstico e nas mais diversas modalida- mento humano. Não apenas por manifesta-
des terapêuticas. ções corporais mais graves e distintas dos
Tanto nas instituições de saúde como na clássicos quadros histéricos, mas, também,
clínica particular, profissionais são confron- por expressões onipotentes e indiferencia-
tados com dificuldades semelhantes, que das do narcisismo, manifestações exacerba-
se manifestam por meio de quadros que das do ego ideal e formações primitivas do
vão desde doenças orgânicas até distúrbios superego, e muitas outras que evidenciam a
comportamentais, passando por manifes- carência ou a precariedade dos mecanismos
tações borderlines, adicções, transtornos de do recalcamento, a impossibilidade do re-
caráter e alimentares e inúmeros outros. conhecimento da castração e da alteridade,
Muitos desses sintomas, doenças e pacien- a ausência de transicionalidade que tornam
tes revelam-se inacessíveis aos recursos em- o sujeito dependente e cativo do desejo do
20
outro, impermeável à transferência e à inter-
pretação.
Essas manifestações somáticas e psíqui-
cas são frequentemente acompanhadas por
expressões precárias de recursos psíquicos,
fantasmáticos, oníricos e relacionais, deno-
tando limitações dos recursos de ligação
pulsional, dos afetos e representações, dinâ-
micas que favorecem descargas pelo com-
portamento e desorganizações somáticas,
em casos extremos graves e mortíferas. Elas
revelam uma complexidade que solicita uma
compreensão mais profunda que a dos usos
coloquiais e, algumas vezes, científicos do
termo “psicossomática”, que reduzem essa
concepção a sintomas e doenças orgânicas
que seriam determinadas ou agravadas por
fatores psíquicos.

ORGANIZAÇÃO E DESORGANIZAÇÃO
Tanto doenças como manifestações típicas
do desenvolvimento revelam a existência de
uma continuidade funcional do que deno-
minamos economia psicossomática. Algumas
circunstâncias da vida humana são predo-
minantemente marcadas por expressões e
manifestações orgânicas (como fome, riso,
choro, tremores, dores de cabeça, indiges-
tão ou cardiopatias) e outras, por meio de
funções mentais (como pensamentos, fan-
tasias, sonhos e neuroses). Em ambas, arti-
culadas em diferentes formas e proporções,
estão implicados processos biológicos, fi-
siológicos, comportamentais e psíquicos desenvolvidos ao longo da vida e revelam a
constituindo uma mesma e única economia continuidade evolutiva de diferentes dimen-
psicossomática do indivíduo. sões da experiência de cada indivíduo, que
Desde a concepção, durante a gestação, se expressa, por vias somáticas, psíquicas e
após nascimento e ao longo do desenvolvi- comportamentais, normais ou patológicas.
mento, observamos em cada pessoa movi- A natureza, a qualidade, a consistência
mentos e marcas de integração, organização e a fluidez dos recursos da economia psi-
e hierarquização de funções e vivências cor- cossomática estruturam-se ao longo da his-
porais, relacionais e psíquicas. Quando as tória de cada um, a partir de fatores cons-
pessoas enfrentam vivências perturbadoras titucionais, por meio das interações com
de conflitos, frustrações, perdas (algumas o ambiente e com os outros. Na infância e
vezes traumáticas), é possível constatar no puerpério, principalmente, a mãe e todo
movimentos de sentido oposto, de desin- aquele que cuida da criança tem uma função
tegração, desorganização e precarização de primordial na mediação e promoção desses
funções e hierarquias estabelecidas. Esses processos.
movimentos se manifestam por meio da ca- O equilíbrio psicossomático é fruto da
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rência ou do empobrecimento de recursos relação entre a qualidade, complexidade e


representativos, relacionais e emocionais consistência dos recursos desenvolvidos
dezembro 2017 • mentecérebro 21
especial – psicossomática psicanalítica

pelo indivíduo ao longo de sua vida e a natu-


reza e intensidade de experiências pessoais,
sociais e orgânicas que podem perturbá-lo.
Quando da existência de recursos mais
organizados e complexos da economia psi-
cossomática, de ordem representativa, afe-
tiva e mental, a perturbação causada por
uma vivência pode encontrar um equilíbrio
por meio de manifestações psicopatológicas
(neuroses, psicoses e outras). Quando os re-
cursos mais organizados e evoluídos da eco-
nomia psicossomática não foram suficiente-
mente desenvolvidos ou quando se perdem
em função da intensidade desorganizadora
de uma experiência, um novo equilíbrio pode
ser buscado, por meio de movimentos re-
gressivos no sentido contraevolutivo do de-
senvolvimento, em patamares menos organi-
zados e mais primitivos, por descargas pelo
comportamento (transtornos alimentares,
toxicomanias, descargas impulsivas e outros)
ou no extremo, de desorganizações somáti-
cas (dores, sintomas e doenças orgânicas,
agudos ou crônicos). Apesar de capazes de
colocar em risco a integridade funcional, ana- a idade adulta (escolhas vocacionais, expe-
tômica e mesmo a vida da pessoa, é impor- riências profissionais, casamentos, separa-
tante considerar que mesmo as formas mais ções e parentalidade), e o envelhecimento
desorganizadas e patológicas do fenômeno (mudanças corporais, aposentadoria, morte
psicossomático são ainda tentativas de (re) de pessoas próximas), perdas e outras si-
equilibrar essa economia. tuações que sobrecarregam os recursos da
Assim, é possível compreender e tratar o economia psicossomática.
adoecimento, em suas diferentes formas de
expressão – psíquica, somática ou compor- DESAFIOS TERAPÊUTICOS
tamental –, como um processo multifatorial A teoria e a clínica psicanalíticas há muito
que resulta de uma combinação de fatores revelaram as articulações entre as funções
internos, externos, pessoais, ambientais, corporais e mentais, bem como os desdo-
familiares, de movimentos de desorganiza- bramentos patológicos das perturbações
ção interna da economia psicossomática, dessas articulações. Elas evidenciam dife-
potencialidades somáticas constituídas por rentes aspectos das relações intrínsecas
eventuais fragilidades ou predisposições entre as bases anatômicas e fisiológicas do
somáticas a doenças específicas, rebaixa- organismo e o funcionamento psíquico, des-
mento do tônus vital, falhas transitórias tacando seu papel de mediador de experiên-
ou crônicas nas relações com objetos pri- cias, processos e estímulos oriundos tanto
vilegiados investidos pelo indivíduo. Esses do organismo como do mundo exterior.
processos podem ser potencializados por No corpo originam-se e se articulam os
experiências de vida perturbadoras e trau- instintos, as pulsões, a sexualidade, a libido,
máticas, e também por mudanças próprias as funções psíquicas, assim como as marcas
a diferentes fases da vida como na infância e consequências do encontro do sujeito com
(nascimento de irmãos, mudanças de es- o outro humano e com o mundo, configuran-
cola), adolescência (mudanças corporais e do, assim, as dimensões metapsicológicas
questões de identidade), na passagem para do aparelho psíquico, do narcisismo, das
22
Em certos casos, a descarga
pulsional se dá diretamente
pelas vias corporais, com pouca
ou nenhuma elaboração mental
da excitação, essas dinâmicas,
distintas e mais primitivas que
as dos mecanismos neuróticos,
escapam ao recalcamento

relações de objeto e da economia psicosso- tamento das neuroses atuais (de angústia e
mática. É também a partir da cena corporal traumática, neurastenia e hipocondria), bem
que são vividas as experiências de prazer e como doenças orgânicas, nas quais a des-
desprazer, fundando e delineando a possibili- carga pulsional se dá diretamente pelas vias
dade de subversão e transcendência do corpo corporais, com pouca ou nenhuma deriva-
anatômico para as vivências do corpo eróge- ção ou elaboração mental da excitação, ou
no, passível, em certas circunstâncias, de de- seja, dinâmicas “aquém do recalcamento”,
sorganizar funções fisiológicas e orgânicas. distintas e mais primitivas que as dos meca-
Apesar da riqueza dessas hipóteses re- nismos neuróticos.
ferentes ao corpo, é curioso constatar que Os quadros derivados da neurose atual,
durante muito tempo prevaleceram na psi- descritos por Freud e ainda mais freqüentes
canálise as restrições inicialmente preconi- na clínica contemporânea, são marcados
zadas por Freud para o tratamento de uma pelo vazio, pelo desamparo, pela hipera-
ampla gama de manifestações corporais. daptação à realidade, pela auto-deprecia-
Por um lado, pautada pela perspectiva do ção, por comportamentos de risco e pela
recalcamento e dos mecanismos psíquicos violência larvada ou explícita das anorexias,
de defesa, a clínica freudiana desenvolveu das adicções, das descargas impulsivas e da
recursos importantes para o trabalho de sintomatologia somática, entre outros. Eles
elaboração dos sentidos simbólicos e repre- são frequentemente refratários ao trabalho
sentativos dos sintomas e seus derivados livre associativo e à atenção flutuante, difi-
de uma ampla gama de manifestações psi- cilmente acessíveis ao trabalho de figura-
copatológicas, no campo das psiconeuroses ção, ao discurso e aos enquadres clássicos
(histeria, neurose obsessivas, fobias), psico- e regressivos de uma análise e de muitas
ses e perversões. Porém, ao mesmo tempo, psicoterapias. Nessas condições ficam tam-
Freud evidenciou as dificuldades e, mesmo, bém perturbadas, não apenas em processos
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a impossibilidade da utilização da técnica analíticos, condições diagnósticas, condu-


psicanalítica, tal como a preconizava, no tra- tas terapêuticas e a adesão aos tratamentos,
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especial – psicossomática psicanalítica

clínicos, farmacológicos e de outras ordens.


As contribuições do psicanalista Sándor
Ferenczi foram fundamentais para a su-
peração desses impasses terapêuticos.
Reconhecendo o potencial teórico e clínico
da psicanálise para compreender as relações
entre o corpo e o psiquismo, mesmo em suas
formas não representativas, ele preconizou
mudanças na postura, na forma de observa-
ção e de escuta do analista, e também modi-
ficações no dispositivo clínico para lidar com
traumatismos e dimensões mais primitivas,
pré-verbais e corporais, do funcionamento
dos pacientes com manifestações das neuro-
ses atuais e doenças orgânicas e com dinâ-
micas a elas assemelhadas. Ao mesmo tem-
po, ele convidou os médicos a perceberem a
importância das vivências psíquicas e da his-
tória de vida de seus pacientes, a serem so-
mados aos recursos da medicina para melhor
compreendê-los e tratá-los. Muitos dos pio-
neiros da psicossomática, como Groddeck,
Franz Alexander, Ballint foram inspirados por
essas concepções.
Graças a essa ampliação, e também ao
interesse crescente da psicanálise pela com-
preensão do infantil, das primeiras vivências
do bebê e suas relações com o ambiente,
psicanalistas como D. Winnicott, P. Marty,
L. Kreisler, Ch. Dejours, O. Kerneberg, J.
McDougall, P. Fédida, A. Green, M. Aisenstein
entre muitos outros, dedicaram-se à reflexão
metapsicológica e ao desenvolvimento de re-
cursos clínicos para o tratamento das mani-
festações primitivas e não representativas da
linhagem das neuroses atuais, como trans-
tornos alimentares, impulsivos, ansiosos,
adicções e quadros borderlines.
A partir de novas hipóteses e manejos
clínicos, progressivamente consolidou-se a
compreensão da plasticidade pulsional que
permite vislumbrar e entender a continuidade
funcional e as oscilações entre formas mais
desorganizadas de manifestações da econo-
mia psicossomática (somáticos e comporta-
mentais) e os quadros clássicos da psicopa-
tologia (nos quais predominam expressões
mentais). Fruto de diferentes níveis e formas
de integração entre vivências corporais e o te-
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cido psíquico, esses movimentos podem ser


acompanhados nos processos terapêuticos
24
por meio de suas manifestações transferen- reorganizar os movimentos desorganizado-
ciais e contra-transferenciais. res da economia psicossomática.
Em processos psicanalíticos ou psicote- Apesar das diferenças de enquadre e de
rapêuticos, é possível observar, entre dife- contexto, movimentos semelhantes podem
rentes pacientes e, ao longo do tempo, em ser observados em processos terapêuticos
um mesmo paciente, alterações da consis- com outros profissionais de saúde. Nas for-
tência, da intensidade e dos afetos transfe- mas mais graves e manifestas das desorga-
renciais, moduladas pelo ritmo, conteúdo e nizações psicossomáticas, são naturalmen-
coloração afetiva da associação livre, dos so- te necessárias intervenções e terapêuticas
nhos e de fantasias, reflexos das oscilações específicas, médicas e de outras áreas. A
da economia psicossomática. As mudan- ampliação da observação e da escuta do
ças de padrões associativos, discursivos, médico desses processos pode aumentar a PARA SABER MAIS
afetivos e transferenciais são sinalizadores eficácia de suas estratégias diagnósticas e Psicanálise e
psicossomática. Casos
preciosos para identificar movimentos de terapêuticas. A complexidade de tais desor- clínicos, construções. A.
organização e de desorganização dessa eco- ganizações convida a reconhecer, para além Soares et al. Escuta, 2015.
nomia, indicando tanto avanços no trabalho de técnicas específicas, a importância da re- Psicossoma V: Integração,
terapêutico como alertando para riscos de lação terapêutica com o profissional como desintegração e limites. R.
M. Volich, W. Ranña e M.P.
descargas pelo comportamento e sintoma- instrumento adicional para a reorganização Labaki (orgs). Casa do
tologia somática. e o fortalecimento dos recursos da econo- Psicólogo, 2014.
As dinâmicas mais primitivas, aquém do mia psicossomática do paciente, com vistas Psicossomática:
recalcamento e da resistência neurótica ma- a promover o equilíbrio dessa economia em de Hipócrates à
nifestam-se pelo empobrecimento da trama patamares mais organizados, diminuindo o psicanálise. R. M. Volich.
Casa do Psicólogo, 2010.
transferencial e pelo retraimento libidinal, risco à integridade funcional do paciente.
algumas vezes extremo, “aquém do narci- De forma semelhante, o trabalho tera- A criança e o adolescente:
seu corpo, sua
sismo”, confrontando o terapeuta com des- pêutico adjuvante em uma perspectiva inter- história e os eixos da
cargas pulsionais diretas sem mediação re- disciplinar, com outras especialidades (fisio- constituição subjetiva. W.
Ranña, em Psicossoma
presentativa. Nessas condições o espaço te- terapia, fonoaudiologia, nutrição, psicope- III: interfaces da
rapêutico precisa se constituir como espaço dagogia, e outras, adequadas ao quadro do psicossomática, Casa do
Psicólogo, 2003.
de continência, depositário de experiências paciente) e atividades mediadoras comple-
corporais, perceptivas, sensoriais e motoras mentares (artísticas, esportivas, sociais) po- Psychopathologie e
mais primitivas, para permitir que, por meio dem também contribuir para tais objetivos. somatisation. R. Debray,
em Psychopathologie
da relação terapêutica, elas possam adquirir No contexto institucional, a compreensão de l´expérience du
densidade representativa através de um tra- dos movimentos da economia psicossomá- corps. Dunod, 2002.
balho ativo de figuração, passível de elabora- tica é favorecida pela integração entre os A psicossomática do
ção e de transformação. diferentes profissionais que acompanham adulto. P. Marty. Artes
Médicas, 1994.
Por sua vez, a contratransferência é um o paciente e pela atenção às transferências
importante recurso para a apreensão de paralelas estabelecidas com cada um deles. As neuroses de órgão
e seu tratamento. S.
vivências primitivas não representadas do O reconhecimento da equipe terapêutica Ferenczi, em Psicanálise
paciente que, muitas vezes, mobilizam sen- como caixa de ressonância das vivências do 3: Obras completas, vol.
sações corporais do terapeuta. Uma vez ela- paciente permite a identificação, a elabora- 3, págs. 377-382. Martins
Fontes, 1991.
boradas pelo terapeuta e compartilhadas na ção e a possível transformação dos proces-
relação, elas podem passar a ser representa- sos de desorganização psicossomática. A criança e seu corpo. L.
Kreisler, M. Fain e M.
das pelo paciente. Na trama transferencial, Todas essas experiências revelam que Soulé. Zahar, 1981.
mediadas pela função materna do terapeuta nos processos naturais da vida, do desen-
Sobre os fundamentos
e pelo holding, a elaboração dessas formas volvimento, da saúde e da doença, a com- para destacar da
de comunicação mais primitivas podem preensão da plasticidade pulsional manifes- neurastenia uma síndrome
específica intitulada de
propiciar a reorganização narcísica e objetal ta nas oscilações e diferentes expressões da “neurose da angústia”. S.
do paciente, promovendo os recursos de li- economia psicossomática permite a amplia- Freud, em Edição standard
gação entre as pulsões de vida e de morte, ção dos horizontes não apenas clínicos, mas brasileira das obras
psicológicas completas, vol.
necessários para lidar com conflitos e vivên- também educacionais, sociais e ambientais 3. Imago, 1976.
cias traumáticas, bem como para estancar e do humano.
dezembro 2017 • mentecérebro 25
patologia

A espiral que
ajuda no diagnóstico
precoce de
Parkinson
Sintomas como tremor e enrijecimento muscular são captados quando
paciente traça a figura em uma folha de papel sobre um tablet

D
esenhar uma espiral: uma tarefa bastante fácil quando os pacientes desenham uma espiral em uma folha
para a maioria dos adultos. Esse gesto simples, de papel sobre um tablet. O software foi desenvolvido pela
porém, pode revelar precocemente sintomas equipe de cientistas australianos.
do Parkinson, uma doença neurodegenerativa A proposta era criar um sistema eletrônico para o
que atinge em torno de 4 milhões de pessoas no mundo diagnóstico precoce do Parkinson suficientemente aces-
e, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde sível para ser utilizado por profissionais da área da saú-
(OMS), esse número pode dobrar até 2040. Estudo desen- de. Com esse objetivo, a nova tecnologia foi testada em
volvido por pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia 55 voluntários, 27 deles com a patologia. “Observamos
de Melbourne, na Austrália, e publicado no periódico que a lentidão do gesto e a força exercida sobre a caneta
científico Frontiers of Neurology, mostra que é possível eram consideravelmente mais intensas entre as pessoas
avaliar em que estágio a patologia se encontra com base com o diagnóstico e essas características se tornavam
na velocidade com que a pessoa faz os traços e a pres- mais evidentes entre aqueles em estado mais crítico”,
são que exerce sobre a superfície. Indícios importantes afirmou o pesquisador Dinesh Kuman, principal autor
shutterstock

da doença, como tremores nas mãos e enrijecimento da do estudo. Segundo ele, em 93% dos casos foi possível
musculatura – ainda que em fases iniciais – são captados detectar a doença com precisão.
26
Cansaço e diminuição
do olfato são sinais de alerta
Enquanto a ciência não encontra a cura do surgirem os primeiros sintomas aparentes.
Parkinson ou mesmo maneiras eficientes Especialistas ressaltam a importância
de evitar que a doença se instale, o de que parentes e outras pessoas que
diagnóstico precoce é uma das maiores convivem com idosos fiquem atentos,
armas para evitar efeitos indesejáveis pois antes dos primeiros distúrbios de
da neuropatologia. A boa notícia é que movimento, são comuns o aumento do
os novos conhecimentos oferecem cansaço, depressão ou crises repentinas
esperança de que, nos próximos anos, o de suor. Muitas vezes, nada acontece por
desenvolvimento do quadro seja adiado. muito tempo – podem se passar de nove
Hoje, em geral, são necessários cerca de a 12 anos até a doença se manifestar
dois anos para que o diagnóstico seja feito completamente. Mas, pouco a pouco, fica
com certeza. Nessa fase, entretanto, mais cada vez mais difícil lidar com objetos cujo
da metade das células nervosas das regiões manejo exige habilidade motora fina.
cerebrais afetadas já está atrofiada. Um Às dificuldades motoras somam-se
método certeiro, mas dispendioso, para problemas psíquicos: assim como os
um diagnóstico precoce é a tomografia movimentos, os processos mentais ficam
computadorizada de emissão (PET), mais lentos. O fluxo de pensamentos se
através da qual os processos de troca de torna vagaroso, a fala soa arrastada e baixa.
substâncias do corpo humano podem ser Cerca de um em cada dois pacientes é
observados. Nesse caso, com o uso do depressivo ou tem distúrbios de ansiedade;
medicamento L-Dopa, a atividade cerebral além disso, um em cada três sofre crises
é marcada e acompanhada de forma de demência. Distúrbios olfativos também
radioativa, o que permite avaliar em que costumam anteceder o surgimento
estágio de degeneração os neurônios se completo da doença de Parkinson e podem
encontram. Em quase todos os casos, a ser, portanto, um primeiro sinal de alarme.
doença pode ser diagnosticada antes de

Atualmente, a patologia costuma ser de- musculares em um dos ombros ou braços,


tectada nos casos em que a pessoa apresenta o que faz as pessoas visitarem primeiro o or-
um grau avançado do quadro, quando pro- topedista, e não o neurologista.
blemas neurológicos (em certos casos com Aparentemente, o diagnóstico pelo dese-
aparecimento de comprometimento cogniti- nho da espiral tem várias vantagens. Uma de-
vo), tremores e fraqueza muscular se tornam las é que se trata de um método de baixo cus-
perceptíveis. Quanto mais cedo a doença for to, que não requer treinamento longo ou sofis-
detectada, melhor é o tratamento. ticado para sua aplicação; em segundo lugar,
Se diagnosticada a tempo, a patologia oferece informações bastante fidedignas, além
pode ser bem controlada com medicamen- disso a pessoa recebe pouco depois a devo-
tos em seu estágio inicial. Em um tratamen- lutiva e, diferentemente da escrita, o desenho
to ideal é possível atenuar os sintomas du- da figura não é influenciado pelo grau de ins-
rante oito a 15 anos – e a expectativa de vida trução do paciente. Embora os cientistas acre-
dos afetados permanece quase normal. No ditem que esse seja um avanço para o diag-
entanto, o diagnóstico dificilmente é feito nóstico precoce, é consenso que as pesquisas
em seu início, pois a doença começa com ainda precisam ser aprofundadas para que o
sintomas pouco específicos, como tensões uso do novo software seja difundido.
dezembro 2017 • mentecérebro 27
neurociência

O GPS dentro
da cabeça
Saber onde estamos e para onde vamos é
fundamental para sobreviver. Em geral
não nos damos conta de que a habilidade
de navegação requer do cérebro cálculos
complexos, em frações de segundo. Apenas
quando nos perdemos ou algo compromete
esse mecanismo nos damos conta do
quanto esse sistema é importante

por May-Britt Moser e Edvard I. Moser

OS AUTORES
MAY-BRITT MOSER e EDVARD I. MOSER são professores de psicologia e neurociência
na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, em Trondheim. Os dois são
cofundadores do Instituto Kavli para Neurociência de Sistemas, em 2007, e do Centro
para Computação Neural, em 2013, ambos localizados na universidade. Em 2014,
eles compartilharam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina com John O’Keefe, da
University College London, por sua descoberta do sistema de posicionamento do cérebro.

28
shutterstock

N
ossa capacidade de pilotar um carro ou avião, ou até caminhar pelas ruas de uma
cidade, foi completamente transformada pela invenção do Sistema de Posiciona-
mento Global (GPS). Mas como nos orientávamos antes do advento da tecnologia?
Novos estudos mostram que o cérebro de mamíferos utiliza seu próprio sistema
incrivelmente sofisticado de posicionamento, semelhante a um GPS, para nos nortear e con-
duzir de um lugar para outro.
Assim como o mecanismo instalado em nossos celulares e carros, o sistema de nosso
cérebro determina onde estamos e para onde estamos nos dirigindo integrando múltiplos
sinais relacionados à nossa posição e à passagem do tempo. O cérebro normalmente faz
esses cálculos com um mínimo de esforço, por isso quase não estamos cientes deles. So-
mente quando nos perdemos ou quando nossa destreza de navegação fica comprometida
por uma lesão ou doença neurodegenerativa percebemos o quanto esse sistema de mapea-
mento e deslocamento é crucial para nossa existência.
A capacidade de saber onde estamos e para onde precisamos ir é fundamental para a
sobrevivência. Sem ela, nós, como todos os animais, seríamos incapazes de encontrar ali-
mentos ou nos reproduzir. Pessoas, e, de fato, espécies inteiras pereceriam.
dezembro 2017 • mentecérebro 29
neurociência

A sofisticação do sistema de orienta- dinâmico mapa do espaço local que não


ção de mamíferos se torna particularmen- opera somente no presente, mas também
te evidente quando comparada à de outros pode ser armazenado como uma memória
animais. O simples verme nematódeo Cae- para utilização posterior.
norhabditis elegans, que tem apenas 302
neurônios, navega quase exclusivamente NEUROCIÊNCIA DE ESPAÇO
em resposta a sinais olfativos, seguindo o O estudo dos mapas espaciais do cérebro
caminho de um gradiente crescente ou de- começou com Edward C. Tolman, professor
crescente de odor. de psicologia na Universidade da Califórnia,
Animais com sistemas nervosos mais em Berkeley, de 1918 a 1954. Antes de seu
sofisticados, como formigas do deserto ou trabalho, experimentos laboratoriais em ra-
abelhas melíferas, se orientam com a ajuda tazanas domésticas pareciam sugerir que
de estratégias adicionais. Um desses méto- animais se movem e norteiam ao responde-
dos é chamado integração por caminhos, rem a, e memorizarem, estímulos sucessi-
um mecanismo similar a um GPS, em que vos ao longo do caminho que perfazem. Ao
neurônios calculam a posição de um animal aprenderem a percorrer um labirinto, por
com base em um monitoramento constante exemplo, acreditava-se que elas se lembra-
de sua direção e velocidade de movimento vam das viradas (mudanças de direção) que
em relação a um ponto de partida, uma ta- haviam feito desde seu ponto de partida até
refa executada sem o auxílio de indicadores o final, ou saída do mesmo. Essa ideia, po-
externos, como pontos de referência, ou rém, não levou em conta a possibilidade de
marcos geográficos físicos. Em vertebrados, os animais talvez visualizarem uma “ima-
particularmente em mamíferos, o repertório gem” geral de todo o labirinto, o que lhes
de comportamentos que permitem a um permitiria planejar o melhor caminho, ou
animal se localizar em seu meio ambiente percurso.
expandiu ainda mais. Tolman contradisse radicalmente as opi-
Mais do que qualquer outra classe de niões prevalecentes. Ele tinha observado
animais, mamíferos dependem da capaci- ratazanas tomarem atalhos ou fazerem des-
dade de formar mapas neurais do ambiente; vios, comportamentos que não seriam es-
padrões de atividade elétrica no cérebro em perados se elas tivessem aprendido apenas
que grupos de células nervosas disparam de uma longa sequência de comportamentos.
um jeito que reflete o layout, ou a disposição Baseado em suas observações, ele propôs
do ambiente circundante e a posição de um que animais formam mapas mentais do am-
animal nele. Acredita-se que a formação des- biente, que espelham a geometria espacial
ses mapas mentais ocorre principalmente do mundo exterior. Esses mapas cognitivos
no córtex, as enrugadas camadas superiores faziam mais do que apenas ajudá-los a en-
do cérebro que se desenvolveram bastante contrar o caminho; eles também pareciam
tarde no processo evolutivo. registrar informações sobre acontecimentos
Ao longo das últimas décadas, pesqui- pelos quais haviam passado em lugares, ou
sadores adquiriram um profundo enten- pontos específicos.
dimento de como, exatamente, o cérebro As ideias de Tolman, propostas original-
elabora e depois revisa esses mapas à me- mente por volta de 1930, permaneceram
dida que um animal se move. As pesquisas controversas durante décadas. Sua aceita-
mais recentes, conduzidas principalmente ção ocorreu lentamente, em parte porque
em roedores, revelaram que os sistemas de elas eram baseadas inteiramente na obser-
navegação consistem em vários tipos de vação do comportamento de animais ex-
células especializadas que calculam con- perimentais, que podia ser interpretado de
tinuamente a localização de um animal, a várias maneiras. Tolman não dispunha dos
distância que percorreu, a direção em que conceitos ou das ferramentas para testar se
está se movendo e sua velocidade. Coletiva- um mapa interno do ambiente de fato existia
mente essas diferentes células formam um no cérebro de um animal.
30
Levou cerca de 40 anos para que surgis-
se uma evidência direta de um mapa desses
em estudos de atividade neural. Na década
AS INCRÍVEIS CAPACIDADES DE
de 1950, o progresso no desenvolvimento POSICIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO
de microeletrodos possibilitou monitorar a
atividade elétrica de neurônios individuais A sobrevivência, para qualquer espécie, requer uma
em animais despertos. Esses eletrodos ex- capacidade de levar em conta o meio ambiente circundante e
tremamente delgados permitiram que pes- fazer um cálculo, mesmo que bruto, de onde um animal
quisadores identificassem o disparo de esteve, onde está e para aonde está indo. Em níveis mais altos
neurônios isolados, individuais, à medida da cadeia evolutiva, muitas espécies desenvolveram sistemas
que os animais se comportavam como de de “integração de caminhos” que lhes permitem executar essa
costume. Uma célula “dispara” quando ati- tarefa sem a necessidade de identificar onde estão ao se
va um potencial de ação, uma breve e pas- nortearem por pontos de referência físicos externos.
sageira mudança na voltagem da membrana Mamíferos encontraram uma solução ainda mais requintada,
celular neuronal. Potenciais de ação fazem que utiliza mapas mentais interiorizados.
neurônios liberar moléculas neurotransmis-
RASTREANDO UM ODOR
soras que transmitem sinais de um neurô- O simples verme
nio a outro. Nematódeo nematódeo Caenorhabditis
Gradiente de odor elegans talvez exiba o mais
John O’Keefe, da Universidade College Simples básico e rudimentar sistema
London (UCL), no Reino Unidos, usou mi- de navegação animal.
Seu mundo é organizado
croeletrodos em ratazanas domésticas para de acordo com cheiros.
monitorar potenciais de ação em seus hipo- Equipado com apenas 302
neurônios, ele se empurra
campos, uma área do cérebro conhecida há diretamente para frente,
décadas por sua importância para funções rumo a uma fonte de
de memória. Em 1971, ele relatou que cé- alimento, ao “sentir”, ou
Inseto detectar níveis crescentes de
lulas neuronais ali disparavam quando um Caminho de partida um odor.
animal em uma caixa, ou cercado, passava GPS INTERNO
algum tempo em um determinado local; A evolução equipou até
alguns insetos e outros
por essa razão, ele as chamou “células de artrópodes com elaboradas
localização” (place cells, em inglês), também capacidades de integração
por caminhos. Eles são
conhecidas como “células de posicionamen- capazes de monitorar
Caminho de volta
to”. O’Keefe observou que diferentes células internamente sua
velocidade e direção em
de localização disparavam em pontos, ou relação a um ponto de
lugares distintos no cercado e que o padrão Mamífero Caminho inicial
partida. Isso lhes permite
de disparo das células coletivamente forma- encontrar meios mais
eficientes para percorrer
va um mapa de locais do interior da caixa. uma determinada rota,
A atividade combinada de diversas células como um caminho de
volta direto, em vez dos
de posicionamento podia ser “lida” dos ele- ziguezagues feitos em um
trodos para identificar a localização exata Complexo percurso de ida, ou ponto
Caminho futuro de partida.
do animal a qualquer momento. Em 1978,
O’Keefe e seu colega Lynn Nadel, agora na MAPAS MENTAIS
Mamíferos evoluíram
Universidade do Arizona, sugeriram que cé- habilidades de orientação
lulas de localização eram, de fato, uma parte ainda mais complexas
e intricadas, em que
integrante do mapa cognitivo imaginado por neurônios em seus cérebros
Tolman. disparam em sequências
que espelham as rotas
que perfazem. Essas redes
UM MAPA CORTICAL neuronais compõem
mapas mentais do mundo
A descoberta de células de posicionamento físico. Animais armazenam
abriu uma janela para as partes mais profun- memórias de viagens
das do córtex, nas áreas mais distantes dos passadas e as usam para
planejar jornadas futuras.
córtices sensoriais (que recebem inputs, ou
dezembro 2017 • mentecérebro 31
neurociência

estímulos, informações dos sentidos) e do para o bom funcionamento das células de


córtex motor (que emite os sinais que ini- posicionamento. Mas, para nossa surpresa,
ciam ou controlam movimentos). No final os neurônios no fim desse circuito, em CA1,
da década de 1960, quando O’Keefe come- continuaram disparando mesmo quando os
çou seu trabalho, o conhecimento sobre animais chegavam a locais específicos.
quando neurônios se ligavam e desligavam A inevitável conclusão de nossa equipe
era restrito, em grande parte, a áreas cha- foi que células de localização não dependem
madas córtices sensoriais primários, onde desse circuito no hipocampo para avaliar,
a atividade neural é controlada diretamente ou estimar a direção/posição de um animal.
por estímulos sensoriais (inputs) como luz, Nossa atenção então se voltou para o úni-
som e tato (toque). co caminho neural que havia sido poupado
Neurocientistas daquela época especula- em nossa intervenção: as conexões diretas
vam que o hipocampo estava localizado lon- do córtex entorrinal, uma área adjacente que
ge demais dos órgãos sensoriais para pro- oferece uma interface para o resto do córtex,
cessar suas informações de qualquer manei- para CA1.
ra que pudesse ser facilmente entendida a Ainda em colaboração com Witter, inseri-
partir de um registro de microeletrodos. A mos microeletrodos no córtex entorrinal dos
descoberta da existência de células no hipo- animais e começamos a registrar sua ativi-
campo que criavam um mapa do meio am- dade enquanto eles desempenhavam tarefas
biente imediato de um animal acabou com semelhantes às que havíamos empregado
essa suposição. em nossos estudos de células de posiciona-
Embora isso fosse notável e sugerisse mento. Conduzimos os eletrodos para uma
um papel para as células de localização na área do córtex entorrinal que tem conexões
navegação (orientação), durante décadas diretas com as partes do hipocampo onde
depois de sua descoberta ninguém soube haviam sido registradas células de localiza-
dizer que função poderia ser essa. As células ção em quase todos os estudos anteriores
de posicionamento se localizavam em uma ao nosso. Constatamos que muitas células
área chamada CA1 e esse era o ponto final no córtex entorrinal disparavam quando um
em uma cadeia de sinalização que se origi- animal estava em um determinado ponto,
nava em algum outro lugar do hipocampo. ou lugar do cercado, de um jeito bem pareci-
Foi teorizado que elas recebiam muitos dos do com o das células de localização no hipo-
cálculos, ou registros fundamentais para a campo. Mas, ao contrário de uma célula de
navegação de outras regiões do hipocam- posicionamento, uma única célula no córtex
po. No início dos anos 2000, nós dois deci- entorrinal disparava e não apenas em um
dimos explorar essa ideia mais a fundo no determinado local visitado por um roedor,
novo laboratório que tínhamos montado na mas em muitos.
Universidade Norueguesa de Ciência e Tec- A propriedade mais notável dessas célu-
nologia (NTNU), em Trondheim. Esse em- las, porém, foi o jeito como elas disparavam.
preendimento acabou levando a uma impor- Seu padrão de atividade só se tornou óbvio
tante descoberta. para nós quando, em 2005, ampliamos as
Em colaboração com Menno Witter, ago- dimensões do cercado em que estávamos
ra em nosso instituto, e um grupo de estu- fazendo os registros. Depois de expandi-lo
dantes altamente criativos, começamos nos- até um determinado tamanho, constatamos
so estudo ao usarmos microeletrodos para que os múltiplos locais em que uma célula
monitorar a atividade de células de localiza- entorrinal disparava formavam os vértices
ção no hipocampo de ratazanas domésticas, de um hexágono. Em cada um desses pon-
depois de termos interrompido (bloqueado) tos, a célula, que chamamos uma “célula de
parte de um circuito neuronal que já se sa- grade” (grid cell, em inglês), disparava quan-
bia que repassava informações para essas do o animal passava por cima dele.
células. Esperávamos que o trabalho con- Os hexágonos, que cobriam todo o cer-
firmasse que esse circuito era importante cado, pareciam formar as unidades indivi-
32
COMO O CÉREBRO SE POSICIONA
A ideia de que os cérebros de mamíferos criam um mapa mental que espelha a geometria
espacial do mundo exterior surgiu por volta de 1930. Posteriormente, neurocientistas
identificaram células que trabalham em conjunto para elaborar esses mapas. Um avanço
fundamental ocorreu em 1971, quando um pesquisador americano-britânico [John O’Keefe]
descobriu que “células de localização” no hipocampo de ratazanas domésticas disparavam
em locais específicos do caminho casual, errático, percorrido por um animal. Em 2005, os
autores [May-Britt Moser e Edvard I. Moser] descobriram “células de grade”, que permitem
a um animal “avaliar” sua localização no meio ambiente em que se encontra; por exemplo,
em relação às paredes de um cercado. À medida que ele se move por ali, cada célula de grade
dispara em diversos pontos, ou locais que correspondem aos vértices de um hexágono.

Localização das células


de posicionamento
(hipocampo)

Locais que
provocam o
disparo de
células de
posicionamento

Localização das
células de grade
(córtex entorrinal)
Locais que
provocam o
disparo de
células de
grade

SURGIMENTO DE
UM MAPA COGNITIVO
O disparo de células de grade produz um mapa (à direita)
semelhante a uma carta geográfica (extrema direita). Em
conjunto com as células de localização ou posicionamento,
que identificam a localização do animal em um
determinado ambiente, as células de grade permitem que
ele construa uma imagem mental de seus arredores.

dezembro 2017 • mentecérebro 33


neurociência

Ficamos extremamente empolgados com


Humanos e outros mamíferos criam
as células de grade e sua disposição tão or-
mapas internos do meio ambiente; ganizada. Na maioria das regiões do córtex,
padrões de atividade neural em os neurônios têm padrões de disparo que
que células cerebrais disparam para parecem caóticos e inacessíveis, mas aqui,
em seu interior profundo, havia um sistema
refletir onde um animal se encontra de células que disparavam em um padrão
e onde está posicionado em relação previsível e ordenado. Estávamos ansiosos
ao meio que o cerca. para investigar. Mas essas células e as cé-
lulas de localização ou posicionamento não
eram as únicas envolvidas no mapeamento
duais de uma grade, como os quadrados do mundo de mamíferos; outras surpresas
formados pelas linhas de coordenadas em também nos aguardavam.
um mapa rodoviário. O padrão de disparos Em meados da década de 1980 e no início
levantou a possibilidade de que células de dos anos 90, James B. Ranck do Centro Mé-
grade, ao contrário de células de localização, dico Downstate da Universidade Estadual de
fornecem informações sobre distância e di- Nova York (SUNY) e Jeffrey S. Taube, agora
reção, ajudando um animal a monitorar sua na Dartmouth College, em Hanover, New
trajetória com base em “instruções” inter- Hampshire, haviam descrito células que dis-
nas dos movimentos do corpo, sem depen- paravam quando um roedor virava a cabeça
der de inputs, ou informações adicionais do para uma direção específica. Ranck e Taube
meio (ambiente). tinham descoberto essas chamadas “células
Vários aspectos da grade também muda- de direção da cabeça” (head-direction cells ou
ram à medida que examinamos a atividade HD, em inglês) no presubículo, outra região
celular em regiões distintas do córtex entor- do córtex adjacente ao hipocampo.
rinal. Na parte dorsal, perto do topo dessa Nossos estudos constataram que es-
estrutura, as células geravam uma grade do sas células também estavam presentes no
cercado que consistia de hexágonos muito córtex entorrinal, misturadas em meio às
próximos, pouco espaçados. O tamanho células de grade. Muitas células HD no cór-
dos hexágonos aumentava em uma série de tex entorrinal também funcionavam como
sequências, ou módulos, à medida que fo- células de grade: os pontos, ou lugares no
mos descendo rumo à parte inferior, ou ven- cercado em que disparavam também forma-
tral, do córtex entorrinal. Os elementos he- vam uma grade, mas elas só ficavam ativas
xagonais da grade em cada módulo tinham nesses locais quando o animal estava vol-
um espaçamento único e singular. tado para uma determinada direção. Essas
O espaçamento das células de grade em células pareciam fornecer uma bússola para
cada módulo sucessivo em direção descen- o roedor; ao monitorá-las podíamos deter-
dente podia ser determinado ao se multi- minar para qual direção o animal estava vol-
plicar a distância entre as células no mó- tado a qualquer dado momento em relação
dulo anterior por um fator de cerca de 1,4, ao seu ambiente circundante.
aproximadamente a raiz quadrada de 2. No Alguns anos mais tarde, em 2008, desco-
módulo na parte superior do córtex entorri- brimos outro tipo de célula no córtex entor-
nal, uma ratazana doméstica que ativasse rinal. Essas chamadas “células limítrofes”
uma célula de grade em um vértice de um (border cells, em inglês) disparavam sempre
hexágono teria de se locomover de 30 a 35 que o animal se aproximava de uma parede
centímetros para chegar a um vértice adja- ou margem do cercado, ou de alguma outra
cente. No módulo descendente seguinte, o divisória. Elas pareciam calcular a distância
animal precisaria andar de 42 a 49 centíme- a que o animal se encontrava de um limite,
tros, e assim por diante. No módulo mais ou linha fronteiriça. Essa informação então
baixo, a distância chegava a vários metros podia ser usada pelas células de grade para
de extensão. calcular o quanto o animal tinha se afastado
34
da parede, e também podia ser estabelecida outros laboratórios, e essa pesquisas sem
como um ponto de referência para, poste- dúvida ainda continuará por muitos anos.
riormente, “lembrar” o roedor de onde fica- Um jeito de começar a entender como os
va a parede; ou seja, sua localização. mapas espaciais do córtex entorrinal medial
Por fim, em 2015, um quarto tipo de e do hipocampo se combinam para auxiliar
célula entrou em cena. Esta respondia es- a navegação é perguntar como os mapas di-
pecificamente à velocidade de locomoção, ferem. Na década de 1980, John Kubie e o
independentemente da localização ou dire- falecido Robert U. Muller, ambos então no
ção do animal. As taxas de disparos desses Centro Médico Downtown da SUNY, mos-
neurônios aumentavam proporcionalmente traram que mapas no hipocampo formados
à velocidade de movimentação. De fato, po- por células de localização podem mudar in-
díamos determinar com que rapidez um ani- teiramente quando um animal migra para
mal se movia a qualquer dado momento ao um novo ambiente, mesmo que seja para
olharmos para as taxas de disparo de ape- um cercado de cor diferente no mesmo local
nas algumas poucas células de velocidade e no mesmo recinto.
(speed cells, em inglês). Em conjunto com cé- Experimentos realizados em nosso pró-
lulas de direção da cabeça (HD), células de prio laboratório, em que ratazanas domésti-
velocidade talvez desempenhem o papel de cas forrageiam em até 11 cercados em diver-
fornecer às células de grade continuamente sos recintos diferentes, mostraram que cada
informações atualizadas sobre os movimen- sala, de fato, rapidamente origina seu pró-
tos do animal; sua velocidade, direção e dis- prio mapa independente, sustentando ainda
tância de seu ponto de partida. mais a noção de que o hipocampo forma
mapas espaciais customizados, ajustados a
DECIFRANDO CÓDIGOS ambientes específicos.
Nossa descoberta de células de grade resul- Comparativamente, os mapas no córtex
tou de nosso desejo de desvendar os inputs entorrinal medial são universais. Células de
que permitem às células de localização, ou grade, assim como células HD e limítrofes,
posicionamento fornecer aos mamíferos que disparam juntas em um determinado
uma imagem interna de seu ambiente. Ago- conjunto de localizações no mapa de gra-
ra entendemos que elas integram os sinais de para um ambiente também disparam
de vários tipos de células no córtex entorri- em posições análogas no mapa para outro
nal à medida que o cérebro tenta “mapear” meio, como se as linhas de latitude e longi-
a rota percorrida por um animal e para onde tude do primeiro mapa fossem “impostas”,
este está indo em seu ambiente. Porém nem ou sobrepostas à nova configuração. A se-
esses processos contam toda a história de quência de células que disparam quando o
como os mamíferos navegam. animal se move em direção nordeste em um
Nosso trabalho inicial se concentrou no espaço da gaiola se repete quando o roedor
córtex entorrinal medial (interior). Células caminha nessa mesma direção em outro re-
de localização, ou osicionamento também cinto. O que o cérebro usa para navegar por
podem receber sinais do córtex entorrinal seus arredores é o padrão de sinalização en-
lateral, que retransmite informação (input) tre essas células no córtex entorrinal.
processada de diversos sistemas sensoriais, Esses códigos são então transmitidos do
inclusive sobre odor e identidade de objetos. córtex entorrinal ao hipocampo, onde são
Ao integrarem as informações das partes utilizados para formar mapas específicos de,
medial e lateral do córtex entorrinal, células ou para um determinado lugar. Do ponto de
de localização interpretam sinais de todo o vista da evolução, dois conjuntos de mapas
cérebro. A complexa interação de mensa- que integram suas informações para nortear
gens que chegam ao hipocampo e a forma- animais parecem ser uma solução eficaz
ção de memórias específicas de posiciona- para um sistema utilizado por eles para a
mento que isso possibilita são questões que navegação espacial. As grades formadas no
ainda estão sendo investigadas por nosso e córtex entorrinal medial, que medem dis-
dezembro 2017 • mentecérebro 35
neurociência

DENTRO DO GPS CEREBRAL


O sistema de navegação neural do cérebro humano reside no interior profundo de uma região conhecida como o
lobo temporal medial. Duas áreas dessa região — o córtex entorrinal e o hipocampo — agem como componentes
fundamentais do GPS cerebral. Redes de determinadas células especializadas no córtex entorrinal contribuem para a
complexidade do sistema de posicionamento/localização do cérebro de mamíferos.

Hipocampo
(localização
das células de
posicionamento)
CA3

Córtex entorrinal
(localização das
células de grade) Hipocampo
(verde)

ENVIANDO MENSAGENS AO HIPOCAMPO


O córtex entorrinal transmite informações das
células de grade sobre direção e distância
percorrida. Ele faz isso ao enviar sinais ao longo
de vários caminhos para sub-regiões do
hipocampo (o giro denteado, CA3 e CA1) que
Córtex entorrinal
Corte transversal produzem um mapa mental otimizado para
(amarelo)
da região planejar futuras jornadas (inserção).
hipocampal

UM EXAME MINUCIOSO DA
ORGANIZAÇÃO DAS CÉLULAS DE GRADE… Escala ampliada
... revela que o espaçamento dos elementos hexagonais que
ajudam na criação de um mapa espacial muda quando
estes se deslocam de cima para baixo no córtex entorrinal.
Os intervalos mais largos correspondem a distâncias
maiores que a ratazana doméstica tem de percorrer para
ativar um vértice na grade. Na parte superior do córtex
entorrinal, um animal que ativa uma célula de grade em um
vértice de um hexágono terá de se locomover de 30 a 35
centímetros para um vértice adjacente. Já na parte inferior,
ele terá de percorrer até vários metros.

OUTRAS CÉLULAS ESPECIALIZADAS


DESCOBERTAS RECENTEMENTE…
... no córtex entorrinal de roedores transmitem informações
ao hipocampo sobre a orientação da cabeça de um animal,
Orientação Velocidade Reconhecimento de
sua velocidade de movimento, e a distância até paredes e limites/obstáculos
outros obstáculos detectados. O output, ou as informações
produzidas por essas células é combinado (somado) para
ajudar a criar um mapa composto dos arredores do animal.

36
tância e direção, não mudam de um recinto
para outro. Comparativamente, as células de
posicionamento do hipocampo formam ma-
Ao contrário do que se acredita,
pas individuais para cada recinto separado. cerca de oito em cada dez
usuários de crack são pessoas
MAPAS LOCAIS
Compreender o sistema navegacional neural
com família, trabalham, são
ainda é um esforço em andamento. Quase produtivas e fazem uso recreativo
todo nosso conhecimento de células de po- da droga, o que obviamente não
sicionamento ou localização e grade foi ob- significa que o risco seja baixo
tido em experimentos nos quais a atividade
elétrica de neurônios é registrada quando
ratazanas domésticas ou camundongos ca-
minham sem rumo, aleatoriamente, em am-
bientes altamente artificiais; ou seja, caixas uma determinada área. Porém mesmo es-
(ou cercados) com fundo plano, desprovi- ses experimentos são simplificados demais,
das de estruturas internas para servir como porque os cercados são planos e horizon-
pontos de referência. tais. Experimentos conduzidos em outros la-
Um laboratório difere substancialmente boratórios, para observar morcegos voando
de ambientes naturais, que mudam cons- e roedores que escalam obstáculos em gaio-
tantemente e estão cheios de objetos tridi- las, estão começando a fornecer algumas
mensionais. O reducionismo dos estudos pistas: células HD e de localização parecem
levanta questões sobre se as células de loca- disparar em locais específicos espalhados
lização e de grade disparam do mesmo jeito por qualquer espaço tridimensional, e as cé-
quando animais estão fora do laboratório. lulas de grade muito provavelmente fazem
Experimentos em labirintos complexos, o mesmo.
que tentam imitar o habitat natural dos ani-
mais, fornecem algumas pistas do que pode ESPAÇO E MEMÓRIA
estar acontecendo. Em 2009, monitoramos O sistema de navegação no hipocampo faz
células de grade enquanto os roedores se mais do que ajudar animais a se moverem
moviam por um labirinto intrincado, em que do ponto A ao ponto B. Além de receber in-
encontraram uma curva (virada) muito fe- formações sobre posição, distância e dire-
chada no final de cada caminho que marca- ção do córtex entorrinal medial, o hipocam-
va o início da próxima passagem. O estudo po faz um registro do que está localizado em
mostrou que, como esperado, as células de um lugar em particular, seja um carro ou um
grade formavam padrões de hexágonos para mastro de bandeira, assim como dos even-
mapear distâncias em caminhos individuais tos que ocorrem ali. Portanto, o mapa espa-
do labirinto para as ratazanas. Mas toda vez cial criado pelas células de posicionamento
que um animal virava de uma passagem não contém apenas informações sobre a lo-
para outra ocorria uma transição abrupta, calização de um animal, mas também deta-
em que um padrão de grade separado era lha suas experiências, mais ou menos como
sobreposto ao novo caminho, quase como a concepção que Tolman tinha de um mapa
se a ratazana estivesse entrando em um re- cognitivo.
cinto completamente diferente. Algumas dessas informações adiciona-
Trabalhos posteriores em nosso labora- das parecem vir de neurônios localizados na
tório mostraram que mapas de grade tam- parte lateral do córtex entorrinal. Pormeno-
bém se fragmentam em mapas menores em res sobre objetos e eventos se fundem com
ambientes abertos quando esses espaços as coordenadas de um animal e são “arqui-
são suficientemente amplos. Agora estamos vadas” como uma memória. Quando esta é
pesquisando como esses mapas menores se recuperada posteriormente, tanto o evento
fundem para formar um mapa integrado de como a posição são relembrados.
dezembro 2017 • mentecérebro 37
neurociência

Essa associação de lugar e memória mamíferos sugere que células de grade e ou-
lembra uma estratégia de memorização in- tras células envolvidas em navegação, orien-
ventada pelos antigos gregos e romanos. O tação espacial, surgiram cedo no processo
chamado “método de loci” (loci é o plural de evolutivo de mamíferos e que algoritmos
locus e significa lugar em latim) permite que neurais similares são utilizados para calcu-
uma pessoa memorize uma lista de itens ao lar o posicionamento pelas mais diversas
imaginar colocar cada um deles em um de- espécies.
terminado lugar/posição ao longo de um ca- Muitos dos blocos de construção do
minho bem conhecido através de um espa- mapa de Tolman foram descobertos, e esta-
ço, digamos, uma paisagem ou um edifício; mos começando a entender como o cérebro
uma disposição muitas vezes chamada “pa- os cria, posiciona e emprega. O sistema de
lácio da memória”. Participantes de concur- representação espacial tornou-se um dos
sos de memória ainda utilizam essa técnica circuitos mais bem entendidos do córtex de
mnemônica para memorizar longas listas de mamíferos, e os algoritmos que ele utiliza
números, letras ou cartas de baralho. estão começando a ser identificados para
Infelizmente, o córtex entorrinal está en- ajudar a desvendar os códigos neurais que
tre as primeiras áreas a falhar em pessoas o cérebro usa para navegar, ou determinar
com doença de Alzheimer. A enfermidade localização.
faz com que células cerebrais localizadas ali Como ocorre em tantas outras áreas de
morram, e uma redução em seu tamanho pesquisa, novas descobertas levantam no-
é considerada uma medida confiável para vas questões. Sabemos que o cérebro tem
identificar pessoas que estão em risco de de- um mapa interno, mas ainda precisamos
senvolvê-la. A tendência de vaguear e se per- entender melhor como seus elementos fun-
der também está entre os primeiros sinais cionam em conjunto para produzir uma
da doença. Nos estágios mais avançados de representação coerente de posicionamento
Alzheimer, células morrem no hipocampo, e como a informação é lida por outros sis-
produzindo uma incapacidade de recordar temas cerebrais para tomar decisões sobre
experiências ou de se lembrar de conceitos aonde ir e como chegar lá.
como nomes de cores. De fato, um estudo Há muitas outras questões. A rede es-
recente forneceu evidências de que pessoas pacial do hipocampo e do córtex entorrinal
jovens portadores de um gene que os colo- está limitada à navegação de espaços lo-
ca em elevado risco de Alzheimer podem ter cais? Em roedores, examinamos áreas que
PARA SABER MAIS
deficiências no funcionamento de suas re- têm raios de apenas alguns metros. Células
Grid cells and the
entorhinal map of space. des de células de grade; uma descoberta que de localização e de grade também são utili-
Edvard I. Moser. Palestra pode levar a novas maneiras de diagnosticar zadas para a navegação de longa distância,
Nobel, 7 de dezembro de
2014. a doença. como quando morcegos migram centenas
www.nobelprize.org/ ou milhares de quilômetros?
nobel_prizes/medicine/
laureates/2014/edvard-
UM RICO REPERTÓRIO Por fim, nos perguntamos como células
moser-lecture.html Hoje, mais de 80 anos depois de Tolman de grade se originam, se existe um período
propor originalmente a existência de um formativo crítico para elas no desenvolvi-
Grid cells, place cells
and memory. May-Britt mapa mental de nossos entornos, está claro mento de um animal e se células de posicio-
Moser. Palestra Nobel, que as células de posicionamento, ou loca- namento e de grade podem ser encontradas
7 de dezembro de 2014.
www.nobelprize.org/ lização são apenas um componente de uma em outros vertebrados ou invertebrados.
nobel_prizes/medicine/ complexa representação que o cérebro pro- Se invertebrados também as utilizam, essa
laureates/2014/may-britt-
moser-lecture.html duz de seu ambiente espacial para calcular constatação implicaria que a evolução usou
posição, distância, velocidade e direção. Os esse sistema de mapeamento espacial du-
Grid cells and cortical
representation. Edvard I.
diversos tipos de células que foram encon- rante centenas de milhões de anos. O GPS
Moser et al. em Nature tradas no sistema navegacional do cérebro do cérebro continuará oferecendo uma rica e
Reviews Neuroscience, vol. de roedores também estão presentes em valiosa coleção de pistas para novas pesqui-
15, nº 7, págs 466–481;
julho de 2014. morcegos, macacos e humanos. Sua exis- sas que ocuparão gerações de cientistas nas
tência em todas as ordens taxonômicas de próximas décadas.
38
livros | lançamentos
GRAVIDEZ

Um estado interessante
Um minúsculo óvulo fertilizado tem uma influência de longo alcance no psiquismo da mu-
lher, capaz de acessar poderosas imagens inconscientes. “Na gravidez existem dois corpos,
um dentro do outro, duas pessoas viverem sob a mesma pele – uma estranha união que
retoma a própria gestação da mulher grávida, no útero de sua mãe, muitos anos antes”,
escreve a doutora em psicologia social e psicanalista Joan Raphael-Leff, autora do livro Gra-
videz, lançado pela Blucher. De todas as experiências humanas, o ato de gerar um bebê den-
tro do próprio corpo é a que mais enfatiza as diferenças básicas de gênero. A obra traz um
olhar delicado e inusitado sobre essa fase da vida: em vez de tomar como ponto de interesse
principal o desenvolvimento psicológico, a autora foca a experiência da mãe “como pessoa
inteira”, antes da criança. Esse olhar não é comum, visto que na maioria das vezes, quando
o tema da gestação é abordado na literatura psicanalítica, a mãe é olhada como objeto de ne-
cessidade da criança. De forma instigante, Raphael-Leff vai por outro caminho, partindo da
ideia psíquica da concepção, das repercussões subjetivas e as implicações externas da gra-
videz. A autora opta por não traçar uma narrativa linear, considerando que figuras parentais
são também filhas e filhos – e é o reconhecimento desse lugar psíquico que nos permite cui-
Gravidez. Joan Raphael-Leff.
dar de um bebê. Ela ressalta, ainda na introdução, que hábitos relativos à gravidez revelam
Blucher, 2017. 328 págs. R$ 82,00
crenças e prioridades básicas de uma sociedade, bem como a relação que temos com nos-
sos corpos, crenças, fantasias e desejos. Gravidez discute ainda temas como o lugar do pai,
o nascimento e as terapias tanto no pré-natal quanto nos primeiros tempos após o parto.

Meditação para crianças


Acalmar a própria mente faz bem, não importa a idade. Universidade Candido Mendes, apresenta estratégias para que
Para crianças, tem a vantagem que desde cedo proporcio- as crianças possam enfrentar situações difíceis, emoções in-
na uma série de recursos úteis para toda a vida. “É um gan- tensas, pensamentos e sensações angustiantes de forma me-
ho de tempo ensinar as crianças a meditar”, diz a educado- nos assustadora.
ra americana Susan Kaiser Greenland, uma das pioneiras O livro é dividido em cinco partes: a primeira explica o que
na prática da meditação com criança no Ocidente. Além de é o mindfulness (ou atenção plena) e como utilizar as técnicas
ser uma ferramenta comprovadamente útil no desenvolvi- com os pequenos; a segunda traz exercícios e meditações para
mento da concentração e de habilidades emocionais como diferentes situações; a terceira parte apresenta orientações e
percepção dos próprios sentimentos e capacidade de não exercícios para serem praticados entre pais e filhos. A quarta
se deixar levar por eles e empatia, atenção e inteligência parte é direcionada a profissionais da saúde, trazendo informa-
emocional são ferramentas necessárias para uma rotina ções para o contexto terapêutico e a última propõe um progra-
proveitosa e para lidar com situações de nervosismo. O re- ma de oito sessões de MBCT para adultos por meio de exercí-
cém-lançado Mindfulness para crianças: estratégias de terapia cios estruturados. A obra acompanha um CD com exercícios
cognitiva baseada em mindfulness oferece infor- em áudio para melhor aproveitamento da prática.
mações para que pais, psicólogos educadores, “O objetivo principal é oferecer técnicas acessíveis,
médicos e outros profissionais da área da saúde que tragam bons frutos na vida adulta, inspirando
possam ajudar os pequenos a perceber os pró- desde cedo uma conexão mais amorosa consigo
prios pensamentos, sentimentos e como seu mesmo e com o mundo”, afirma Friary, que é mes-
corpo reage. tre pela Universidade de Londres.
O autor, Vitor Friary, diretor Clínico do Cen-
imagens: divulgação

Mindfulness para crianças: estratégias de terapia


tro de Mindfulness, no Rio de Janeiro e coorde-
cognitiva baseada em mindfulness. Vitor Friary.
nador do curso de pós-graduação em terapia Sinopsys Editora, 2017. 160 págs. R$ 55,00
cognitiva baseada em mindfulness (MBCT) na

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livro | resenha Por que Freud hoje?
Daniel Kupermann
(coord.). Maria Rita Khel,
Joel Birman, Vladimir
Safatle, Gláucia Leal e
outros. Zagodoni, 2017.
294 págs. R$ 69,00

Freud? Hoje e
amanhã também
Time de 14 psicanalistas propõe reflexões sobre questões éticas,
políticas, culturais, sociais e clínicas que permeiam a obra freudiana

D urante a preparação do recém-lançado Por que Freud


hoje?, o editor Adriano Zagodoni insistiu com o pro-
fessor do Instituto de Psicologia da Universidade de São
preender as dinâmicas psíquicas e a cadeia de relações es-
tabelecida tanto de forma subjetiva quanto intersubjetiva.
Mas, afinal, as ideias de Freud ainda têm respaldo
Paulo (USP) Daniel Kupermann, coordenador do livro, que para ser levadas em consideração? Devem ser estudadas,
encontrasse na obra freudiana uma frase significativa, con- consideradas? Existe espaço nos dias de hoje para o mé-
dizente com o teor do projeto, uma epígrafe, que traduzisse todo terapêutico embasado pela teoria freudiana?
a inegável importância do autor, mais de um século depois Essas são algumas das perguntas que os 14 artigos
de o criador da psicanálise ter começado a apresentar ao de Por que Freud hoje? se empenham, se não em respon-
mundo suas teorias. Ambos psicanalistas, Zagodoni e der, ao menos em propor reflexões bastante interessan-
Kupermann sabiam que não seria tarefa fácil. Mas a tarefa tes a respeito. Entre os autores estão alguns dos mais
foi cumprida com êxito. Entre tantas palavras significativas, reconhecidos pensadores da psicanálise hoje. Além de
foram escolhidos os dizeres de Freud: “Compreendi que Kupermann, escrevem: Maria Rita Kehl, Christian Dun-
daquele momento em diante eu passara a fazer parte do ker, Joel Birman, Vladimir Safatle, Gláucia Leal, Nelson
grupo daqueles que ‘perturbam o sono do mundo’ (...) e Coelho Júnior, Pedro de Santi, Sidarta Ribeiro (o único
que não poderia contar com objetividade e tolerância”. neurocientista do grupo), Mário Eduardo Pereira, Maria
De fato, uma coisa é certa: pode-se gostar ou não Lívia Moretto, Tania Rivera, Leandro de Lajoquière e Re-
das proposições de Sigmund Freud, é aceitável discor- nato Mezan.
dar delas, criticá-las ou mesmo repudiá-las, mas é im- Parte da coleção Grandes Psicanalistas, a obra é mui-
possível negar seu papel na construção da subjetividade to mais que uma “ode a Freud”. Trata-se de uma tenta-
contemporânea e ou mesmo ignorar os desdobramen- tiva de discutir a marca do autor em áreas como a neu-
tos que a teoria evoca. rociência a filosofia, a literatura e tantos outros campos
Convém considerar que mais de um século após a da cultura. “O resultado é um livro utilíssimo para uma
publicação dos primeiros textos de Freud, seus conceitos ampla gama de leitores: há textos que, ao construir sua
foram interpretados, questionados, debatidos, ampliados, resposta à indagação do título, oferecem ótimas respos-
contestados, criticados, repudiados – e nem sempre com- tas a diversos tópicos do corpus freudiano, e portanto in-
preendidos. E, ainda assim, se alastraram. Até aqueles que teressarão a quem se inicia nele, enquanto outros, mais
jamais leram um parágrafo sequer de algum de seus textos densos, se dirigem a quem já domina os assuntos de
estão de alguma maneira próximos ao universo do neuro- que tratam”, escreve Mezan. “Mas todos, escorados em
logista vienense, o que pode ser facilmente compreendi- bibliografias atualizadas e redigidos com clareza, ofere-
do, se considerarmos que inúmeros pensadores partiram cem a oportunidade de refletirmos sobre questões que
das construções freudianas para propor formas de com- nos tocam de perto.”
dezembro 2016 • mentecérebro 41

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