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| ESPECIAL |

COMO PRESENTES ALEGRAM SEU CÉREBRO


ANO XIII
No 311

Odascontágio
emoções
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RELACIONAMENTO
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História da Pedagogia
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Entenda o que eles pensaram.


E se prepare para pensar
a educação daqui para frente.

j
consultar, debater e aplicar no dia a dia de trabalho.

Conheça e entenda a contribuição de cada pensador para a pedagogia,


saiba identificar suas teses principais e os resultados que suas ideias
geram até hoje nas escolas.

Conte também com extensa bibliografia comentada para ajuda-lo


a organizar os próximos passos e continuar aprendendo. História
da Pedagogia. Essencial para quem quer fazer história na educação.

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carta da editora

O vírus da felicidade
e da depressão

A
maioria das pessoas gosta da ideia de influenciar os outros. Nestes tempos em que redes
sociais têm papel tão preponderante, alguns se esforçam muito e chegam a limites do ri-
dículo para conseguir e manter seguidores. Mas nem precisamos evocar exemplos de in-
fluenciadores “profissionais”. Gente absolutamente comum, que não se expõe na internet, nem pretende
fazê-lo, também encontra prazer em impactar aqueles com quem convive com suas ideias. Fazemos isso
argumentando, comentando, defendendo nossas crenças ou simplesmente expondo opiniões. Certamente
você já experimentou um gostinho bom ao se dar conta de que algo que disse foi absorvido como uma ideia
bastante acertada por outra pessoa e passou a fazer parte da vida dela.
O que a maioria de nós não se dá conta é que somos capazes de “contagiar” outros seres humanos
– que às vezes sequer conhecemos pessoalmente – com nossos estados de ânimo, felicidade, bom (ou
mau) humor e sintomas de depressão. Em outras palavras: a contaminação funciona tanto em relação
ao que faz bem quanto ao que é prejudicial. Mas atenção ao detalhe: também somos sugestionáveis. A
teoria da transmissão de emoções e estados mentais, embasada por inúmeros estudos em renomadas
universidades, é defendida pelos cientistas James Fowler, da Faculdade de Medicina da Universidade da
Califórnia, e Nicholas Christakis, da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard.
Segundo os pesquisadores, tanto o bem-estar quanto a dependência de cigarro e a obesidade se es-
palham mais quando a proximidade é maior. Ter um vizinho de porta feliz – com quem nos relacionamos
frequentemente – aumenta as chances de satisfação geral com a vida em mais de 30%. Um irmão, amigo
ou parceiro afetivo bem-humorado vivendo até 1,6 km de nós incrementa em mais de 20% nossa pro-
babilidade de nos sentirmos satisfeitos. Se a distância diminuir, melhor: ter uma pessoa querida de bem
com a vida num perímetro de até 800 metros favorece em 42% o índice pessoal de satisfação.
Para chegar a essas proporções, os estudiosos recorrem a testes e fórmulas matemáticas também
usadas para acompanhar a propagação de doenças causadas por vírus. Nesta época permeada por
tantas incertezas, depressão e ansiedade, em que a felicidade parece mais uma utopia idealizada do que
uma construção possível, convém estar atento às nossas escolhas, aos grupos nos quais nos inserimos
e às companhias que elegemos. O vírus pode estar no ar, passa por nós e nos transcende.

Boas festas, boa leitura!

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br
@glau_f_leal

3
sumário | dezembro 2018

10 capa 6 Ainda poderemos


festejar juntos?
Com a disputa política, máscaras
caíram e formam destruídos vínculos
de confiança. Para o psiquismo, essa
situação é vivida de forma dolorosa

18 Espaço urbano,
espaço psíquico
As cidades das quais gostamos assumem
o papel de extensões do próprio eu;
investimos afetivamente nelas a ponto de
nos tornarmos parte

26 Efeitos inesperados
dos medicamentos
Algumas drogas usadas há décadas no
tratamento de doenças físicas podem
ter novos (e surpreendentes) usos
psiquiátricos

10 O contágio
das emoções
Pesquisa mostra que o grau de satisfação
daqueles que nos cercam tem
profundo impacto na satisfação
das pessoas. O mais curioso
é que essa “transmissão emocional”
pode ocorrer até pelas redes sociais

24 Matemática explica
como sentimentos se 44 Efeitos da transição
propagam Os momentos de crise provocam algum
O conceito de rede ajuda cientistas a desequilíbrio. Mecanismos de defesa
entender como funcionam as interligações podem não dar conta da angústia – mas a
que nos unem e nos afetam por canais situação também apresenta oportunidades
perceptivos que escapam à consciência de amadurecimento emocional
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grupos

Ainda poderemos
festejar juntos?

A disputa política destruiu muitos vínculos familiares,


de amizade, coleguismo e, principalmente, de
confiança. Máscaras caíram por terra e muitos se
desiludiram com pessoas queridas. Para o psiquismo,
essas situações são vividas como dolorosos impactos

por Pablo Castanho, Fernando da Silveira, Jean-Pierre Pinel,


Georges Gaillard, Luciana Menin Lafraia
grupos

A
s coisas não cabem mais em suas “caixinhas”. Este
ano, o processo eleitoral inundou visceralmente as
famílias, as redes sociais, os ambientes de lazer, tra-
balho e estudo. Muitas vezes as estruturas não re-
sistiram – amizades desfeitas, rupturas familiares, atos de vio-
lência física na rua testemunham excessos disruptivos. Agora,
após a eleição e com a aproximação das festas de final de ano,
muitos se perguntam: que fazer dos laços feridos ou cindidos?
Ainda que cada caso seja único e demande reflexão singu-
lar, alguns eixos vinculares e fatores comuns podem e devem
ser levados em conta. De início, identificamos o esfacelamento
das particularidades dos diversos grupos, com a invasão brutal
e direta da lógica de uma campanha extremamente agressiva
aos espaços privados. O conceito de envelope psíquico grupal,
apresentado pelo psicanalista francês Didier Anzieu, nos ajuda
a entender o fenômeno ao recorrer à metáfora da
membrana celular para descrever
como, para se constituir, os
Para René Kaës, grupos, precisam man-
as instituições são instâncias ter uma separação
antropológicas que organizam relativa de seu meio.
a existência humana e, assim, Sem alguma fronteira
cumprem funções psíquicas não existiriam células,
estruturantes para o sujeito mas, se a membrana
fosse totalmente imper-
meável, essas estruturas tam-
bém não sobreviveriam.
Supondo que exista um filtro poroso entre o meio social e os
grupos que o povoam, seria possível sair do registro do ime-
diato, mantendo ou reconstruindo nas famílias e outros grupos
7
grupos

uma dinâmica que não repetisse tão diretamente os destinos


destrutivos dos vínculos vistos no meio social.
Não falamos aqui de uma membrana impermeável, capaz de
manter os conflitos políticos fora dos grupos, o que seria tam-
bém fonte de adoecimentos para estes vínculos, mas sim de
trabalhar para preservar ou resgatar nos pequenos grupos um
espaço para a conflitualidade, que se tornou tão rara no campo
social. Por este termo, compreendemos a perspectiva psicana-
lítica de grupo francesa que vem se referindo a um atributo fun-
damental para a saúde de pessoas, grupos e da sociedade.
Do ponto de vista do sujeito singular, dizemos que a con-
flitualidade interna implica consentir com o
jogo, por vezes doloroso, entre as po-
laridades pul- sionais (ativo/passivo,
masculino/feminino
etc.) e entre as diver-
sas instâncias psíqui-
cas, representações
e identificações. O
conceito também se
refere à conquista e
manutenção de um
lugar dentro de si
para o outro.
A conflitualidade interpes-
soal apoia-se em uma ambivalência suficientemente boa.
Os afetos e os sentimentos negativos se manifestam como
uma agressividade dotada de contornos, capaz de utilizar as
vias da linguagem e, notadamente, do humor, ou ainda emer-
gir pela via de uma competição bem regrada. Trabalhar para

8
grupos

reconstruir esta conflitualidade nos grupos dos quais participa-


mos é tarefa árdua, incerta e ao mesmo tempo essencial.
Se esse trabalho se apresenta tão difícil, e tão importante,
neste momento, é precisamente porque a conflitualidade está
muito enfraquecida no campo social. Em um mundo de fake
news (notícias falsas), de dúvidas em relação à atuação da
AUTORES
Justiça e ao próprio processo eleitoral, em meio ao relativismo
PABLO CASTANHO generalizado, perdemos progressivamente a posição terceira,
é professor doutor do
Instituto de Psicologia que poderia fazer mediações e nos ajudar na difícil sustenta-
da Universidade de
São Paulo (USP), ção da conflitualidade.
membro do Núcleo
de Estudos de Saúde Para o psicanalista francês René Kaës, uma referência no es-
Mental e Psicanálise das
Configurações Vinculares tudo de grupos, as instituições são instâncias antropológicas
(Nesme), Membro
da International que organizam a existência humana, cumprindo funções psí-
Association of Group
Psychotherapy and quicas estruturantes para o sujeito. Elas precedem e sobrevi-
Group Processes (IAGP).
FERNANDO vem a cada sujeito, sendo por eles vividas no estatuto incons-
DA SILVEIRA
é psicólogo, psicanalista, ciente como figuras da eternidade, como se fossem imortais. É
doutor em psicologia,
professor do curso desta posição de transcendência que emana sua legitimidade
de Psicologia na
Universidade para balizar a conflitualidade na vida social. No entanto, muito
Presbiteriana Mackenzie.
JEAN-PIERRE PINEL de suas forças se perdeu na contemporaneidade.
é professor de
psicopatologia social e Em nossa vida privada, é possível – e desejável – reatar os la-
clinica na Universidade
Paris 13 Sorbonne. ços quando encontramos em nossos pequenos grupos os ras-
É presidente de
Associação Transition, tros destes elementos transcendentes e legitimadores, como
Association Européenne
d’analyse de groupe et o amor familiar, a história passada de uma amizade, valores
d’institutio, responsável
pela rede Internacional compartilhados. E quando, além disso, se vislumbra a possi-
Interuniversitária
de Clínicas bilidade de recuperar a conflitualidade. Afinal, reatar relações
Institucionais (RIICI).
GEORGES GAILLARD rompidas ou esgarçadas pela política nem sempre é “dar o bra-
é psicanalista, professor
de Psicologia Clínica ço a torcer” ou “curvar-se”, mas buscar fortalecer ou reconstruir
da Universidade Lyon
2. É coordenador da um lugar para a diferença no espaço do vínculo. Para muitos,
rede internacional,
interuniversitária talvez ainda seja possível partir desses grupos para reestabe-
Grupos e vínculos
intersubjetivos. lecer as bases da conflitualidade tão necessárias à saúde psí-
LUCIANA MENIN
LAFRAIA é psicanalista. quica e à democracia.

9
capa

O contágio
das emoções
Seus amigos são felizes e mentalmente saudáveis? E
as pessoas com quem eles se relacionam? Pesquisa
mostra que o grau de satisfação daqueles que nos
cercam tem profundo impacto na satisfação das
pessoas. O mais curioso é que essa “transmissão
emocional” pode ocorrer até pelas redes sociais
capa

É
como um surto de gripe, só que no âmbito mental:
a felicidade, a gentileza e o entusiasmo – e também
comportamentos que fazem mal à saúde física e
mental, como irritação, reclamações e até sintomas
de depressão – são transmissíveis. Emoções e hábitos con-
taminam outras pessoas a até “três graus de separação”. Para
entender melhor: o fato de o amigo de um amigo seu ser uma
pessoa alegre, bem-humorada e satisfeita com a própria vida
aumenta em aproximadamente 6% as chances de que você
seja uma pessoa feliz. Isso significa que é fundamental esco-
lher com cuidado os grupos dos quais participamos. Mas vai
além: de alguma forma, temos também responsabilidade so-
bre o bem-estar das pessoas com quem moramos, trabalha-
mos, estudamos. E também sobre a qualidade de vida daque-
les que se relacionam com quem convivemos.
Mesmo de longe é possível influenciar (e ser influenciado)
pelas formas de ver o mundo, se relacionar com os outros e até
com o próprio corpo. Essa interferência torna mais ou
menos frequente, por exemplo, a manutenção
de hábitos que nos fazem engordar ou
emagrecer, fumar e beber. Até
as horas de sono de uma
pessoa podem estar su-
jeitas ao comportamento
alheio. “Mesmo as pesso-
as que não conhecemos
têm influência sobre nosso
humor”, garante o cientista
político James Fowler, pes-
capa

Um irmão, amigo ou parceiro


afetivo bem-humorado
vivendo até 1,6 km de nós
incrementa em até 25% a nossa
probabilidade de nos sentirmos
mais satisfeitos com a vida
quisador da Faculdade de Medicina da Universidade da Cali-
fórnia em San Diego, um dos coordenadores do estudo sobre
a transmissão de emoções e estados mentais.
O cientista não tem dúvida de que, assim como a saúde, a
felicidade e a insatisfação podem ser entendidas como um fe-
nômeno coletivo. Fowler e seu colega Nicholas Christakis, pes-
quisador da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard
de Boston, realizaram estudos para entender esse processo.
Para medir o grau de bem-estar, a dupla recorre a um teste
validado com quatro itens, a CES-D (Center for Epidemiological
Studies Depression Scale, ou Escala de Depressão do Cen-
tro de Estudos Epidemiológicos). A ferramenta considera com
que frequência, na última semana, a pessoa teve problemas
no sono, sentiu-se triste, sem esperanças e outros aspectos
relacionados à depressão.
Em um dos experimentos, desenvolvido ao longo de mais de
20 anos, os autores de O poder das conexões (Elsevier, 2009)
fizeram a conexão de mais de 53 mil ligações sociais entre cerca
de 5 mil pessoas – um número surpreendente para uma pes-
quisa clínica. Os voluntários mantinham os pesquisadores regu-
larmente informados sobre seu estado emocional e de saúde
– além disso, passavam periodicamente por exames médicos e
respondiam a questionários psicológicos para avaliação de seu

20
capa

nível de satisfação. As pessoas que faziam parte de sua rede de


contatos sociais também eram acompanhadas, o que permitiu
que Fowler e Christakis “conectassem os pontos”.
Os dois reuniram informações a respeito de hábitos ligados
ao cuidado de si – como tabagismo, sedentarismo e obesida-
de –, buscando entender como comportamentos são permea-
dos pelas redes de relacionamento num famoso experimento
longitudinal que ficou internacionalmente conhecido como Es-
tudo de Framingham (FHS, do inglês Framingham Heart Stu-
dy). Em 2000, essa pequena cidade em Massachusetts tinha
aproximadamente 70 mil habitantes, vários deles brasileiros,
acompanhados pelos cientistas por três gerações. O desafio
era destacar os principais fatores de risco para doenças car-
diovasculares. Graças a essa pesquisa, nos últimos anos foram
acrescentados muitos conhecimentos ao que se sabia sobre
diabetes, hipertensão, alterações no colesterol, sedentarismo
e tabagismo. Fowler e Christakis se deram conta de que ter
um parente de primeiro grau com alguma dessas doenças é
um fator de risco importante para o desenvolvimento
do mesmo quadro não necessariamente em
razão da genética, mas em grande
parte por causa de hábitos em
comum.

Estudar o funcionamento e o
alcance das influências de uma
pessoa para outra contribui para
combater comportamentos que
prejudicam a saúde e melhora
nosso nível de bem-estar
21
capa

O mapa das relações

N
o diagrama criado por James
H. Fowler e Nicholas A. Christakis
é possível observar, graficamente,
a propagação dinâmica da felicidade
em uma grande rede social. Cada ponto
representa uma pessoa (os círculos
são femininos, os quadrados são
masculinos). Linhas entre nós indicam
relacionamento (preto para irmãos, vermelho
para amigos e cônjuges). A cor do ponto
denota felicidade média do ego e todos
os diretamente conectados (distância 1)
se alteram, com tons azuis indicando
os menos felizes e amarelos mostrando
a maioria feliz (tons de verde são
intermediários). As linhas representam relações
familiares ou de amizade. Quanto mais no
centro do círculo a pessoa se encontra, mais
intensamente está conectada com outras.

De perto é mais fácil


A distância física entre as pessoas também é um fator im-
portante a ser considerado, segundo os cientistas. Tanto a
felicidade quanto a dependência de cigarro e a obesidade
se espalham mais quando a proximidade é maior, de acordo
com os pesquisadores. Ter um vizinho de porta feliz – com
quem nos relacionamos frequentemente – aumenta as chan-
ces de satisfação geral com a vida em 34%. Um irmão, amigo
ou parceiro afetivo bem-humorado vivendo até 1,6 km de nós
incrementa em até 25% a nossa probabilidade de nos sentir-
mos satisfeitos. Se a distância diminuir, melhor: ter uma pes-
soa querida de bem com a vida num perímetro de até 800
metros favorece em 42% o índice pessoal de satisfação.

22
capa

O efeito cai à medida que a rede social se prolonga: a feli-


cidade dos amigos aumenta suas chances imediatas de felici-
dade em aproximadamente 15%, e a dos amigos dos amigos,
em 10%. Tal como acontece com a obesidade e o tabagismo,
os cientistas não detectaram nenhum efeito para além dessa
proximidade. “Embora possa haver até seis graus de separa-
ção entre duas pessoas, detectamos apenas três de influên-
cia”, salienta Christakis. Fowler afirma que para além de três
ligações ocorre uma espécie de dissonância social, como se
interferências influíssem na transmissão do comportamento,
quase como uma onda.
No caso da felicidade, sentimentos sombrios podem con-
ter a disseminação. Fowler e Christakis descobriram que cada
contato feliz aumenta em 9%, em média, as probabilidades de
felicidade de uma pessoa, enquanto um contato infeliz diminui
essas chances em 7% – restam, portanto, apenas 2%. Fowler,
porém, acredita que a felicidade tem mais possibilidades de
se espalhar por ser uma emoção que favorece a coesão social.
Faz sentido: enquanto a tristeza está associada ao isola-
mento e ao encerramento em si mesmo, a alegria
parece “combinar” com a extroversão e a ne-
cessidade de extravasar o sentimento. Na
opinião do pesquisador, ao longo da
evolução a felicidade visível e con-
tagiante pode ter ajudado nossos
antepassados a manter a coe-
são social. Afinal, costuma ser
muito mais agradável estar
perto de gente satisfeita e
bem-humorada que de
pessoas infelizes.

23
capa

O conceito de rede ajuda


os pesquisadores a entender
como funcionam as interligações
que nos unem muitas vezes
de formas insuspeitas
e nos afetam por canais perceptivos
que escapam à consciência

Matemática
explica como
sentimentos
se propagam
24
capa

S
e um amigo seu que mora nas redondezas se sen-
te solitário, a quantidade de dias em que você mes-
mo enfrenta esse estado de ânimo tende a aumentar.
“A solidão é transmitida mesmo entre os conhecidos
sem ligação direta: se o vizinho se sente desanimado durante
dez dias no ano, acrescentam-se dois dias de propensão ao
desânimo ‘do outro lado do muro’”, afirma o cientista político
James Fowler, pesquisador da Faculdade de Medicina da Uni-
versidade da Califórnia em San Diego. “Somente entre pesso-
as que moram a mais de um quilômetro e meio de distância
esse efeito se perde.” Fowler e seu colega Nicholas Christakis,
pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Har-
vard de Boston, desenvolveram um estudo sobre o tema, pu-
blicado no periódico científico PLoS One.
O que parece uma espécie de “magia” é explicado cientifica-
mente: os pesquisadores estão convencidos de que, em redes
sociais, sentimentos e preferências se espalham
segundo uma regularidade matemática. O
que uma pessoa sente não está as-
sociado apenas a parentes di-
retos ou vizinhos, mas também
àqueles com os quais ela não
mantém contato constante. É aí que
entra o conceito de “rede”: as inter-
ligações que nos unem muitas ve-
zes são insuspeitas e nos afetam
por canais perceptivos que esca-
pam à consciência. Um exem-
plo simples? Ver cada vez mais
pessoas usando matizes de roxo na
rua, por exemplo, pode levar alguém a

25
capa

O convívio entre amigos e vizinhos


pode ser mais eficiente que peças
publicitárias com celebridades que
incentivem, por exemplo, a proteção contra
doenças sexualmente transmissíveis

escolher uma peça de roupa dessa cor numa loja, sem notar
que está sofrendo essa influência.
Se por um lado tendemos a nos apropriar de opiniões e
comportamentos alheios com muito mais facilidade do que,
em geral, nos damos conta, por outro, em determinadas oca-
siões realmente buscamos palpites. Uma pesquisa divulgada
recentemente pela Nielsen, empresa especializada em pes-
quisa de mercado, mostrou que os brasileiros levam muito a
sério o que pensam parentes, amigos e conhecidos na hora
de fazer uma compra pela internet. Segundo o estudo, reali-
zado em 53 países, no Brasil, 80% dos internautas recorrem a
sua rede virtual de relacionamentos na hora de escolher prin-
cipalmente eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e entrete-
nimentos (filmes, peças de teatro, shows etc.).

Reforço social
Em tempos de relacionamentos virtuais cada vez mais inte-
grados ao cotidiano, cientistas também se voltam para essa
modalidade de relação. O professor assistente de sociologia
econômica Damon Centola, da Sloan School of Management
do MIT, conduziu um experimento com mais de 1.500 pessoas,
no qual foi criado um fórum de saúde na web, com acesso a
informações sobre saúde. O pesquisador direcionou aleatoria-

26
mente os voluntários para um dos dois
projetos de rede social. Um deles foi es-
truturado como se fosse um bairro residencial,
no qual havia laços entre vizinhos e todos eram cha-
mados “amigos da saúde”. O outro grupo foi criado nos
moldes de uma rede informal, onde as pessoas não partilham
vínculos sociais.
No primeiro caso, embora as pessoas não conseguissem
fazer contato diretamente, recebiam e-mails periódicos do sis-
tema com informações sobre as atividades desenvolvidas pe-
los integrantes do grupo, ligadas à saúde e ao bem-estar físico
e mental. Já a outra equipe não contava com esse recurso,
ainda que também pudesse participar livremente do fórum. Ao
longo do tempo, os participantes da “estrutura de vizinhança” se
mostraram muito mais dispostos a aderir aos debates e a ofere-
cer contribuições, de acordo com o artigo publicado por Cento-
la na revista Science. Importante: quanto mais os participantes
do experimento recebiam informações sobre as atividades de
seus colegas, mais se mostravam interessados no fórum.
No mundo real, isso pode significar que o reforço social me-
PARA SABER MAIS lhora – ou piora – hábitos de saúde, independentemente de
Social networks and
cooperation in hunter-
quem os incentiva. Em outras palavras, uma rede comunitária
gatherers. Nicholas A.
Christakis, James H. de amigos e vizinhos pode ser mais eficiente que peças publi-
Fowler, Frank W. Marlowe
e Coren L. Apicella, em citárias com celebridades que incentivem, por exemplo, a pro-
Nature, 26 de janeiro de
2012.
teção contra doenças sexualmente transmissíveis entre os ado-
O poder das conexões:
a importância do lescentes. O incentivo de uma “rede de apoio”, virtual ou não,
networking e como ele
molda nossas vidas. também pode nos levar a melhores opções de saúde – como ir
Nicholas A. Christakis
e James H. Fowler.
Campus, 2009.
à academia mais vezes, consumir mais vegetais ou mesmo va-
lorizar as pequenas conquistas e alegrias do cotidiano.
psicanálise

Espaço urbano,
espaço psíquico
Há um caráter de idealização e criação imaginária
na relação que mantemos com as cidades que
amamos e habitamos; os lugares assumem o papel
de extensões do próprio eu, investimos afetivamente
neles a ponto de nos tornarmos parte deles e eles,
parte de nossa subjetividade

por Maria Consuêlo Passos


psicanálise

Q
uando falamos de nossas cidades, falamos de
nós mesmos. Usamos a linguagem do afeto, que
nos faz negar parte da experiência, para sustentar
uma posição subjetiva que nos favorece; sem tal
negação seríamos obrigados a reconhecer nossas precarieda-
des. Isso fica bem claro quando indagamos a respeito do ufa-
nismo de certas pessoas quando tratam suas cidades como
extensões do próprio eu.
De modo geral, o espaço que ocupamos e no qual transi-
tamos nos proporciona a sensação de pertencimento e a cir-
culação pelos espaços. Fazer parte de um lugar é adquirir a
possibilidade de transitar e, consequentemente, de estender o
nosso espaço vital. A cidade tem caráter transicional, na medi-
da em que se situa entre o indivíduo e a sociedade, possibili-
tando o trânsito entre o público e o privado, o fora e o dentro.
Com base nessa dinâmica interior/exterior, nos inserimos
em vários lugares, passamos a fazer parte deles, assim como
também os internalizamos. Essa vinculação se dá por meio de
um trabalho psíquico e depende do tipo de investimento que
fazemos em relação ao local que habitamos, às cidades que
amamos ou apenas admiramos. Investir afetivamente em um
lugar depende das identificações – significa que a cidade nos
representa, configurando-se como uma extensão de nós, se
afina com nossas singularidades e demandas, embora nem
sempre essa sintonia se revele concretamente. Há um aspecto
de idealização, de criação imaginária, na relação que mante-
mos com nossas cidades.

19
psicanálise

A mãe-ambiente
Em uma acepção mais geral, o ambiente nos envolve e nos
transmite as bases de uma dada cultura, assim como a mãe,
primariamente, nos oferece, por meio da linguagem e de sua
postura subjetiva, os valores primários do lar e da família. Essas
bases permitem a ampliação do mundo por meio da constitui-
ção psíquica e dos processos de socialização em curso desde
nosso nascimento.
Na concepção do psicanalista inglês Donald Winnicott, o es-
paço simbólico é representado pela mãe (ou substituta) que
acolhe o bebê quando nasce, que deflagra seu processo de
amadurecimento. Desde essa origem o bebê desenvolve con-
dições de autonomia para construir e transitar por diferentes
lugares ao longo da vida. O modo como a criança é inserida
nesse ambiente primário marca suas relações com o outro sin-
gular, mas também com uma coletividade que se organiza e
se sustenta no espaço mais amplo da cidade. Nos primeiros
momentos de vida do bebê, ele e a mãe-ambiente estão fu-
sionados, mas, paradoxalmente, iniciam também, nos primei-
ros meses, o processo de separação, que vai marcar as singu-
laridades de cada membro da díade.

20
psicanálise

Fronteiras geográficas O ambiente “recepciona”


simbolizam a saída para o bebê por meio das trocas
o mundo, para outras sensoriais, permitindo a fusão
com a mãe. Paulatinamente,
experiências afetivas e
o mundo do bebê se amplia e
culturais; pertencer é, em
ele consegue se diferenciar. É,
última instância, construir portanto, a experiência de estar
uma morada com limites colado à mãe que enseja outra,
permeáveis e criar outras fundamental, que é a progres-
posições subjetivas siva separação, indicando que o
processo de amadurecimento
está em curso. Se a criança é bem recebida e reconhecida por
um “ambiente-mãe”, essa experiência vai possibilitar a criação
de novos laços, base para a criação de novos ambientes, nos
quais a criança se diferencia a partir do olhar do outro e dá
continuidade a um processo contínuo de busca da autonomia
no qual ela cria o próprio lugar no mundo.
Na concepção de Winnicott, o ambiente é, antes de tudo, a
mãe. Ela é não só uma metáfora como o ambiente em si, na
medida em que ampara, sustenta e acolhe o bebê, levando-o
a reconhecer progressivamente um espaço que vai além dela
e que se torna a matriz de todos os demais lugares que ocupa-
psicanálise

rá na vida. Poderíamos supor que a cidade representa, na vida


adulta, parte desse espaço de acolhimento, pertencimento e
reconhecimento. Para o autor, a constituição do psiquismo e
seu amadurecimento dependem de uma provisão ambiental
na qual estão contidos os investimentos de afeto, base para
que o sujeito siga criando uma espacialização da vida. Nesse
sentido é que sujeito-espaço-cul-
A ideia de “espaço
tura fazem parte de um mesmo
potencial” permite pensar
encaixe que é ressignificado nas
como a criança diferentes etapas da vida. Assim, à
se movimenta medida que a criança vai se sepa-
em um lugar rando da mãe, o ambiente vai sen-
intermediário entre seu do ampliado e ocupado por outros
mundo interno e externo personagens significativos como
pai, irmãos, família etc. Prosseguirá,
desse modo, como esteio de outros laços de afeto que não
se restringem a uma dimensão singular, mas se estendem ao
coletivo, dimensionando simultaneamente um voltar-se para
si e para o outro, que evidencia, de certo modo, a função am-
biente exercida pela mãe.
Nos primeiros tempos de vida, é fundamental que o am-
biente seja apresentado à criança de forma segura, de modo
que no futuro o externo possa parecer confiável. A partir des-
sa condição, o sujeito poderá enfrentar os conflitos e para-

22
psicanálise

doxos da vida relacional. A confiança no ambiente se cons-


titui com base em algumas condições importantes: além do
acolhimento, é preciso destacar a forma como o cuidado é
oferecido e a constância da presença da mãe. A partir dessa
experiência seguimos enfrentando nossas vulnerabilidades
com mais segurança, em direção a certa autonomia em rela-
ção ao lugar que habitamos.
A confiabilidade inicial enseja outra experiência importante,
que é a circulação em um lugar que Winnicott denominou de
espaço potencial. Aí, sim, trata-se de uma metáfora que ex-
pressa o movimento da criança que transita entre o mundo
interno e o mundo externo, em um processo que pode lhe
assegurar um funcionamento entre esses dois universos. Por
meio da concepção de “espaço potencial”, é possível verificar
como a criança, desde muito cedo, é levada a se movimentar
em um lugar intermediário entre seu mundo interno e exter-
no, entre ela e sua mãe, de modo a criar uma vida na qual os
opostos não se excluem, mas são tensionados, incitando-a a
desenvolver um espaço psíquico entre esses dois elementos
e ter condições de viver criativamente.
Entendemos que esse espaço intermediário nos permite
compreender a relação que a pessoa desenvolve com a so-
ciedade e, de modo mais específico, com a casa que habita
e com sua cidade. Dessa forma, o indivíduo e o espaço vivido
se refletem mutuamente, e nele há compartilhamentos tanto
com uma coletividade mais ampla como com distintos grupos.

23
psicanálise

A confiança na mãe-ambiente pode ser assim considerada


a matriz para a confiança nos demais ambientes a serem con-
quistados e é a base para um viver criativo. De acordo com
Winnicott, a criatividade está relacionada às primeiras expe-
riências do bebê, no momento em que ele acredita que criou
tudo que está ao seu alcance. Mais adiante ele passa a dimen-
sionar melhor a si mesmo e o outro, podendo então assumir
os gestos compartilhados com o outro, mas originado em si
mesmo. Isso significa que adquirimos por meio da criatividade
os meios para criar nossa própria existência e nos vincular a
pessoas e lugares, que, embora tenham realidades próprias,
podem ser subjetivamente percebidos.

Portas para o mundo


Tendo experimentado esse espaço, a criança terá condições
de prosseguir em direção a uma autonomia que implica a
aproximação do outro, sem perder a si mesma, de conceber
relações intersubjetivas e coletivas que lhe permitem ampliar

24
psicanálise

seu universo relacional e constituir uma ética da aproximação


como condição indispensável à vida nas cidades.
Os vínculos estão diretamente associados ao pertencer a
PARA SABER MAIS um lugar, à criação de um hábitat. Constituímos laços primários
O direito à cidade (2001).
H. Lefebvre. Centauro,
2015.
quando somos acolhidos e há o reconhecimento como pos-
Onde coisas e homens sibilidade de habitar determinado lugar. Assim, nos inserimos
se encontram –
Cidade, arquitetura e simbolicamente numa cadeia geracional a partir da qual res-
subjetividade. L. Leitão.
Annablume, 2014. pondemos às diferentes demandas de relação com indivíduos,
A psicanálise nas tramas
da cidade. M. G. Khouri e grupos, coletividades etc. Essa inserção tem caráter dinâmico
Bernardo Tanis. Casa do
Psicólogo, 2009. e muda permanentemente. Talvez seja isso que precisamos
Confiança e medo na
cidade. Z. Bauman. Zahar,
para nos reinventar a nós mesmos e, ao mesmo tempo, nosso
2009.
hábitat, nossas cidades.
Assim como o espaço entre o corpo materno e o da criança
é vivido como espaço transicional, outros espaços adquirem
A AUTORA
MARIA CONSUÊLO
essa qualidade e nos permitem recriar sempre os diversos ti-
PASSOS é psicóloga, pos de espaços existentes no mundo. É essa flexibilidade que
psicanalista,
pós-doutora em abre a porta de entrada para o espaço pessoal e, ao mesmo
psicanálise da família
e professora de tempo, nos conduz às experiências que temos com cidades e
pós-graduação em
psicologia clínica da países. Afinal, percorrer os territórios do mundo é desconstruí-
Universidade Católica
de Pernambuco. -los – e apropriar-se deles.

25
fármacos

Recentemente foi descoberto que


alguns remédios já usados há
muito tempo podem ter novos
usos; dependendo da dose, uma
medicação contra a gripe, por

Efeitos exemplo, pode despertar reações


em pacientes em estado vegetativo

dos medicamentos
fármacos

D
esenvolver um fármaco não é tarefa fácil. Algo em
torno de 95% dos novos compostos é reprovado
antes de eles se tornarem disponíveis para o uso
clínico. Os gastos são especialmente altos quando
o assunto é medicamento para tratar problemas relacionados
ao sistema nervoso central. Remédios que chegam a ser co-
mercializados com sucesso somam um custo médio de US$
1,8 bilhão. Agora, os pesquisadores recorrem cada vez mais
aos produtos já existentes no mercado. Comprovadamente
seguras para o consumo humano e não raro compreendidas
em nível molecular, as já conhecidas pílulas de hoje podem ser
a novidade médica de amanhã. Os efeitos colaterais em uma
pessoa podem ser a cura para outra.

Drogas reinventadas
BEXAROTENO
de quimioterapia de linfomas cutâneos para tratamento de Alzheimer

MIFEPRISTONA
de abortivo para antidepressivo

GABAPENTINA
de prevenção da epilepsia para alívio de abstinência

MINOCICLINA
de medicação contra acne e redutor de artrite
para estabilizador de esquizofrenia

AMANTADINA
de remédio contra a gripe para provocar reações
em pacientes em estado vegetativo

PROPRANOLOL
de alívio de ansiedade para diminuir o racismo

27
fármacos

Como funciona
No organismo, o bexaroteno ativa um receptor químico que
afeta a forma como as células se desenvolvem. Ao ativar esse
receptor no cérebro, o agente estimula a destruição de placas
características do Alzheimer e ajuda a bloquear a ação de pro-
teínas que causam a morte de neurônios.

A mifepristona foi originalmente desenvolvida para blo-


quear o neurotransmissor glucocorticoide para tratar depres-
são. No entanto, cientistas descobriram um interessante efeito
colateral: o fármaco interrompe a ação da progesterona, um
neurotransmissor necessário durante a gravidez. Controvérsias
sobre o aborto interromperam pesquisas sobre a substância
por décadas. Agora, a droga tem sido novamente estudada
para ser utilizada como antidepressivo.

A ação da gabapentina é parecida com a de alguns neuro-


transmissores. Uma de suas funções é normalizar a atividade
da amígdala, o que pode aliviar os sintomas de abstinência de
dependentes químicos. A sonolência, um dos principais efeitos
colaterais, pode ser uma grande aliada no tratamento de adic-
tos, que não raro têm problemas para dormir.

28
fármacos

A minociclina é uma droga anti-inflamatória capaz de


atravessar facilmente a barreira hematoencefálica. Por isso,
cientistas se perguntavam se o agente químico poderia aju-
dar também a proteger as células cerebrais. Eles descobri-
ram que o fármaco diminui alguns sintomas da esquizofre-
nia, incluindo o retraimento social e a apatia. A hipótese é
que a substância bloqueia o glutamato, um neurotransmis-
sor relacionado à psicose.

A amantadina pode atravessar a barreira hema-


toencefálica e provocar alterações nos neurotrans-
missores. Há muito tempo pesquisadores vêm ten-
tando encontrar uma maneira de utilizar a substân-
cia no tratamento de doenças do cérebro. A eficá-
cia da amantadina no tratamento de distúrbios da
consciência levou cientistas a estudar sua ação em
outras lesões cerebrais traumáticas. A novidade é
que eles descobriram que a droga ajuda pacientes
com baixa consciência ou em estado vegetativo a recuperar
a consciência. Eles acreditam que o fármaco eleve gradual-
mente a atividade da dopamina, o que favorece a excitação
cerebral e sua unidade.

O propranolol reduz a pressão arterial e a ansiedade blo-


queando a noradrenalina, responsável por uma parte das res-
postas do organismo ao estresse. Seu efeito calmante também
diminui o juízo preconcebido relacionado à etnia. Cientistas es-
tão interessados em ampliar a compreensão da neurobiologia
relacionada ao preconceito. O trabalho, porém, desperta ques-
tões éticas a respeito de como os efeitos colaterais da medi-
cação podem influenciar atitudes pessoais de forma artificial.

29
especial

Presentes
para o
cérebro
É tempo de trocar lembranças, um gesto com
implicações físicas e mentais. Ações como
desembrulhar pacotes destinados a você, fazer
caridade e até mesmo escolher o mimo mais
adequado para cada amigo ou pessoa da família
são pautadas por uma sofisticada rede de
estruturas em seu cérebro

por Florence Noble


especial

Q
ue atire o primeiro laço de fita quem nunca
ansiou pela alegria de desembrulhar um pa-
cote envolto em papel colorido com seu nome
escrito nele. Por mais que um singelo “Não
precisava” escape de seus lábios, não há como negar: ga-
nhar presente é bom. Ao ganharmos algo que corresponde
às nossas expectativas, sentimos uma onda de bem-es-
tar. Essa sensação é resultado da ação de um conjunto de
neurônios especializados na percepção do prazer. Surgi-
dos ao longo da evolução, eles cumprem uma função cru-
cial: a manutenção da vida. Os sistemas cerebrais que mais
influenciam o comportamento são os que nos levam a sa-
tisfazer as necessidades vitais (comer, beber, reproduzir-se
e proteger-se). O prazer é o meio empregado pela evolução
para que essas funções sejam asseguradas. Para favorecê-
-las foi desenvolvido o sistema
neuronal da recompensa.
As modulações Ao longo dos séculos, o cé-
bioquímicas que rebro humano diferenciou-se
ocorrem durante certas do de outros mamíferos prin-
situações, por exemplo, cipalmente pelo desenvolvi-
no período de festas mento do córtex, o que propi-
ciou um aumento na comple-
que anuncia a chegada
xidade das conexões neurais.
de momentos de
As estruturas mais antigas,
alegria, para muita onde estão as células do sis-
gente, influenciam tema de recompensa no ani-
a predisposição mal, permaneceram inseridas
para determinados no cérebro ancestral, chama-
estados emocionais do de reptiliano.

31
especial

Na década de 50, os fi-


siologistas ingleses James
Olds e Peter Milner fize-
ram uma experiência so-
bre o circuito da recom-
pensa: eles implantaram,
no núcleo accumbens do cérebro de ratos, eletrodos ligados
a uma alavanca que o roedor podia acionar. Observaram que
o animal se apoiava sem cessar sobre o dispositivo, estimulan-
do essa região de seu cérebro, esquecendo-se até mesmo de
comer e beber. Essas experiências foram feitas também em
seres humanos que passavam por operações cirúrgicas.

Eu queria tanto...
No sistema hedônico, principalmente na área tegmental
ventral e no núcleo accumbens o principal mensageiro quí-
mico endógeno é a dopamina. É esta a substância liberada no
cérebro dos ratos estimulados por um eletrodo. A maioria das
drogas reforça a ação da dopamina. Constatou-se, por exem-
plo, que os ratos se autoadministram drogas na área tegmental
ventral ou no núcleo accumbens quando um dispositivo lhes
permite. Todas as drogas lícitas (álcool, tabaco) ou ilícitas (heroí-
na, maconha, cocaína) causam um acréscimo na concentração
de dopamina no núcleo accumbens, embora não diretamente
proporcional à sensação de prazer. As substâncias psicoativas
consumidas parecem ter uma propriedade comparável à dos
sinais naturais de recompensa: elas aumentam a concentra-
ção de dopamina. Há, contudo, uma diferença notável: a mo-
dificação da atividade das células nervosas do circuito, sob a
ação de recompensas naturais, dura apenas um ou dois se-

32
especial

gundos, enquanto as dro-


A sensação de bem-estar
gas exercem uma ação de
experimentada está
várias dezenas de minutos.
Isso foi demonstrado no
ligada ao processo
animal e no homem, gra- de ativação do
ças ao imageamento por sistema hedônico
ressonância magnética e à proporcionado
tomografia por emissão de por substâncias
pósitrons. chamadas dopamina
Uma injeção de morfina e encefalinas, que
provoca no rato uma libe- funcionam como
ração de dopamina que
“neuromediadores”
dura apenas alguns se-
da satisfação
gundos e, no ser humano,
o mesmo efeito pode ser
causado com a visualização de uma imagem agradável (doces
ou cenas eróticas). A oferta de dopamina no núcleo accum-
bens produz o efeito hedônico. Além disso, após aprender, um
animal pode se autoadministrar dopamina de maneira repe-

33
especial

titiva. Da mesma forma, parece que o prazer de receber um


presente corresponde a uma disponibilidade de dopamina no
núcleo accumbens.
Diante dessas descobertas da ciência, seria possível falar em
uma neurobiologia do prazer em relação aos presentes? Sem
dúvida. As modulações bioquímicas observadas durante cer-
tas situações, por exemplo, no período de festas que anuncia a
chegada de presentes e outras ale-
grias, certamente influenciam nos-
sa predisposição neurológica para
determinados estados emocionais.
É importante considerar também
que a sensação de bem-estar ex-
perimentada quando ganhamos um
presente está ligada a uma ativação
do sistema hedônico proporciona-
do por nossos neuromediadores de
prazer (dopamina e encefalinas).
Se, por infelicidade, o presente
não chega, é possível que a ativi-
dade hedônica do circuito diminua,
ocasionando uma baixa momentânea de encefalinas. Essa
reação desencadeia uma sensação de frustração. A realidade,
entretanto, não é assim tão simples, e o prazer costuma estar
mesclado à sensação de alegria, que não pode ser reduzida
A AUTORA aos movimentos neuroquímicos (embora seja fortemente in-
FLORENCE NOBLE
é doutora em
fluenciada por eles) . Esse estado complexo necessita da “in-
neuroquímica,
pesquisadora na área jeção de prazer” para se exprimir, mas também de sua repre-
de biologia celular e
comportamento, na sentação, ou seja, depende da noção adquirida, após diversas
Universidade Paris
Descartes. experiências, do que seja um presente apropriado.

34
especial

“Era
exatamente
o que eu
queria!”
Acertar na compra do presente nem sempre
é fácil. Algumas crenças a respeito dos gostos
alheios podem atrapalhar na hora de escolher o
mimo mais adequado a quem queremos agradar
35
especial

A
lgumas pesquisas recentes sobre o ato de pre-
sentear podem ajudar quem está em busca de um
mimo para agradar pessoas queridas. Salvo exce-
ções e casos específicos, optar por coisas simples
e práticas parece ser mais interessante pelo menos do ponto
de vista da ciência. Um estudo publicado no Journal of Expe-
rimental Social Psychology indica que, embora tendamos a
acreditar que presentes sofisticados (e caros) serão mais apre-
ciados, quem recebe, em geral, fica mais feliz com coisas que
possam ter uma função em suas vidas. No experimento descri-
to no artigo, pares de amigos, todos estudantes universitários,

Cuidado com papéis de embrulho exagerados,


pois, segundo cientistas, pacotes
muito atraentes tendem a aumentar
as expectativas em relação ao conteúdo
e também o risco de decepção

trocaram canetas novas, algo valorizado


entre os estudantes. Quem presenteava
acreditava que o outro iria preferir os modelos mais pesados
ou extravagantes, para ocasiões especiais. Na verdade, aque-
les que receberam o mimo se mostraram mais contentes com
canetas mais leves, ainda que mais baratas.
“Costumamos acreditar que o preço ou o esforço que de-
dicamos em um presente, por exemplo, é o que faz diferen-
ça, mas a pessoa que recebe não sabe desses detalhes, ela
apenas vê o objeto e pensa de que maneira irá encaixá-lo
em sua vida”, diz o doutor em comportamento e marketing

36
especial

Nathan Novemsky, professor da Universidade Yale, que de-


senvolve pesquisas sobre o assunto. Em um de seus estu-
dos recentes, os participantes preencheram um questionário
enquanto imaginavam dar ou ganhar um cartão de presente
de um restaurante. Aqueles que ofertavam acreditavam que
as pessoas presenteadas iriam gostar mais de um voucher
de um estabelecimento de cinco estrelas em alguma cida-
de ao redor; mas, na verdade, eles preferiam um restaurante
próximo. Tanto os homens como as mulheres tendem a va-
lorizar a opção prática.
Outra coisa: cuidado com papéis
de embrulho exagerados. Segun-
do Novemsky, experimentos indi-
cam que fazer embrulhos com um
saco de papel marrom e liso – ou
mesmo entregar sem embalar –
pode ser mais apropriado do que
aparecer com algo deslumbrante
e cheio de fitas. Estranho? A princí-
pio sim, mas a explicação faz sen-
tido: pacotes muito atraentes ten-
dem a aumentar as expectativas em relação ao conteúdo e
também o risco de que a pessoa fique decepcionada, caso
não faça jus à embalagem. Então, a menos que tenha certeza
de que o mimo seja requintado, como uma joia, é indicado
considerar pacotes mais modestos. E também sugerem que
as pessoas não se acanhem em perguntar o que o outro quer
ganhar. Pesquisas feitas nas universidades Harvard e Stanford
mostram que quem recebe um presente, em geral, fica mais
satisfeito com o que solicitou do que com algo atencioso que
não estava em sua lista.

37
especial

A multidão
que fita
o vazio
Quando consumir se torna imposição
social e o prazer de presentear entes
queridos se perde, é hora de questionar
por que nos vemos na obrigação de
comprar o que não precisamos

Por Gláucia Leal


especial

F
im de ano, tempo de merecido descanso, ainda que
por alguns dias – pelo menos para grande parte das
pessoas. Época de rever projetos, avaliar realizações
dos meses passados, se preparar para novas em-
preitadas, abraçar pessoas queridas. Período de paz e alguma
providencial reclusão para recarregar as energias. Certo? Nem
sempre. Quem empreende cansativas jornadas em busca de
presentes (ou lembrancinhas, que sejam), roupas novas (e
acessórios que combinem com elas) e ingredientes para pre-
parar os pratos das ceias nos dias que antecedem o fim do ano
sabe que essa rotina tem bem pouco de reconfortante.
No fim de semana que antecedeu o Natal, presenciei uma
cena emblemática em uma loja num shopping de São Paulo.
Uma mulher visivelmente irritada, carregada de sacolas, co-
mentava com a adolescente com semblante exausto, que a
acompanhava: “Agora só falta comprar três malditos presen-
tes daquela maldita lista!” A jovem
Convém ficarmos respondeu: “Não, mãe, faltam os
atentos para detectar do meu pai e do Júnior”. A mulher
o que precisamos resmungou um palavrão, enquan-
de fato, em vez de to aguardava sua vez de ser aten-
nos curvarmos às dida na fila do caixa. Não pude
deixar de pensar que os “malditos
imposições que
presentes” eram certamente para
nos arrebatam
as pessoas mais próximas daque-
e fazem pensar, la senhora: o cônjuge, parentes e
equivocadamente, que amigos por quem, provavelmente,
demandas fabricadas ela nutre algum afeto. Mas, dian-
por profissionais astutos te da imposição (certamente mais
são anseios nossos subjetiva que externa) de cumprir

39
especial

a lista, os destinatários se tornavam malditos. Vê-se na obriga-


ção de comprar para cumprir exigências o desvirtuamento da
tradição de presentear entes queridos nessa época, inspirada
na lenda dos três Reis Magos, que teriam levado ouro, incenso
e mirra ao Menino Jesus, na noite do nascimento da criança.
Mas de onde vem essa sedução pela compra que afeta mi-
lhões de pessoas e as faz descobrir, semanas depois (ao exa-
minar os extratos da conta bancária e a cobrança do cartão
de crédito), que talvez tenham exagerado no impulso consu-
mista? Não me refiro aqui a pessoas com traços fortemente
patológicos, histéricos graves e principalmente compulsivos,
para quem o consumo desenfreado realmente se caracteri-
za como um sintoma do distúrbio. Falo de pessoas aparente-
mente equilibradas, que sacrificam preciosas horas livres (ou
espremidas entre um afazer e outro) para comprar e comprar,
como se o consumismo tomasse o lugar de uma incontrolável
catarse, que em alguns casos parece impossível evitar.
A ânsia de consumir está relacionada a questões do próprio
sujeito, sua história de vida, as faltas e a maneira como aprendeu
a lidar com elas. Mas não apenas. Há fatores sociais que também
devem ser considerados. Em meados dos século 19, quando
Gustave Flaubert lançou seu romance Madame Bovary, foi pro-

40
especial

cessado por ofensa à moral e à religião. Emma, a protagonista,


foi condenada como se fosse uma pessoa de carne e osso.
Décadas mais tarde surgiu o termo “bovarismo”, proposto pelo
psiquiatra Jules Gaultier, para designar a insatisfação com a vida
e a ilusão de ser uma outra pessoa. No romance de Flaubert,
a atormentada Emma Bovary, assolada pelas dívidas, termina
por cometer suicídio. O surgimento da personagem que bus-
ca refúgio nas compras tem um contexto histórico específico,
marcado pela transformação das formas de produção; é justa-
mente quando nasce o romantismo, movimento que possivel-
mente guarda algum parentesco com o consumismo. Afinal,
ambos podem ser vistos como desencadeadores de ilusões
e mantidos pela “autoestimulação” (seja por meio da emoção
romântica ou da aquisição de bens).
A quantidade de opções disponíveis em lojas de ruas ou
shoppings, prateleiras e balcões de estabelecimentos de con-
veniência abertos 24 horas, bancas de camelô e quiosques,
assim como as apresentadas pela internet, nos anúncios de
nais e revistas nos torna tão acos-
s à “necessidade” de consumir que,
o estivermos atentos, corremos o
o de tomar esse gesto como “na-
ral”. O problema começa quando
os iludirmos com a ideia de que,
comprando, será possível aplacar
angústias, ansiedades, dores que
podemos até “enganar” por algum
empo. Mas o acalanto ilusório é
fêmero. Muitas vezes essa lógica
nciona internamente, mesmo que

41
especial

racionalmente a ideia possa parecer estapafúrdio (afinal, em


sã consciência, quase todo mundo concorda que dar um pre-
sente bonito não compensa lacunas afetivas; tampouco uma
roupa nova muda a vida de alguém, exceto talvez da Cindere-
la, mas essa já é outra história).
Publicitários e empresários, porém, sabem que uma das for-
mas de tornar um produto “necessário” é aproximá-lo tanto do
consumidor em potencial que se torne difícil distinguir se, de
fato, é tão imprescindível. Exemplo disso são determinadas mú-
sicas que nem gostamos nas primeiras vezes que escutamos,
mas de tanto escutá-las terminamos por decorar a letra e cantar
junto. Passado algum tempo, temos até vontade de ouvi-la de
novo. O mesmo acontece com produtos e marcas que nos são
apresentados constantemente. Isso pode nos fazer considerar
que em tempos de tanto assédio convém, mais do que nunca,
ficarmos atentos para detectar em nós o que de fato precisa-
mos, em vez de nos curvarmos às imposições que nos arre-
batam e nos fazem pensar, equivocadamente, que demandas
cuidadosamente fabricadas por profis-
Ao longo da sionais astutos são anseios nossos.
evolução, Uma experiência realizada há mais de
a busca ela”validação 40 anos pelos pesquisadores Stanley
social” garantiu Milgram, Leonard Bickman e Lawrence
Berkowitz, da Universidade da Cidade
a sobrevivência de
de Nova York, tem sido utilizada com
muitos de nossos
frequência por professores de gradua-
antepassados; até ção para abordar o tema da persuasão
hoje um dos aspectos nas aulas de psicologia social. Um vo-
que mais influem luntário foi instruído a ficar parado em
em nossas decisões uma rua movimentada fitando o céu
é a opinião alheia por um minuto. O objetivo era observar

42
especial

a reação das pessoas que passavam


por ele. Os estudiosos constataram
que a maior parte dos pedestres ape-
nas se desviava do voluntário ou trom-
bava com ele, sem sequer se dar con-
ta do que fazia ali parado. Menos de 5% se juntavam ao homem
que fitava as nuvens.
O experimento foi então repetido, mas com uma variação:
em vez de apenas uma pessoa olhar para cima, os pesquisa-
dores pediram que cinco outros colaboradores se juntassem
ao primeiro. Com o aumento do grupo, a porcentagem de
transeuntes que parou e também voltou os olhos para o céu
quadruplicou. Num terceiro momento, quando foram usados
15 colaboradores, 40% dos passantes naquele trecho da rua,
durante 60 segundos, se juntaram aos primeiros, praticamente
parando o trânsito.
O resultado pode ser explicado pelo que se convencionou
chamar de “validação social”. Em linhas gerais, o conceito re-
fere-se à busca de modelos para nossas próprias atitudes no
comportamento daqueles que nos cercam. Ao longo da evolu-
ção de nossa espécie, essa forma de agir com certeza garantiu
a sobrevivência de muitos de nossos antepassados. E até hoje
um dos aspectos que mais influem em nossas decisões é a
atitude dos outros: olhamos para o que os demais fazem (ou
fizeram) em circunstâncias similares e procuramos seguir seu
exemplo, ainda que (felizmente) com alguma dose de criativi-
dade. Tendemos a apostar que se muitos seguem um deter-
A AUTORA
GLÁUCIA LEAL é minado caminho aquele deve ser o mais correto. Mas isso nem
jornalista, psicóloga
e psicanalista, sempre acontece. Às vezes, a multidão pode estar apenas fi-
editora-chefe de
Mente e Cérebro. tando o vazio.

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psiquismo

Efeitos da
transição
Os momentos de crise provocam algum
desequilíbrio. Mecanismos de defesa
podem não dar conta da angústia – mas a
situação também apresenta oportunidades
de amadurecimento emocional
por Erane Paladino

D
esde o início de seus estudos sobre o inconsciente,
Freud apoiou-se no modelo biológico para com-
preender o fenômeno mental. Chamou de princí-
pio da constância a tendência a manter perene a
soma das excitações para evitar o aumento de tensão. O cria-
dor da psicanálise pensava nas organizações psíquicas apoia-
das em mecanismos de defesa como ferramentas na busca
do controle das angústias. A dinâmica tem o propósito de man-
ter o que o fisiologista americano Walter B. Cannon denominou
homeostase, ou seja, o princípio presente em todo organismo
vivo, sob o ponto de vista fisiológico e metabólico. Esse sis-
tema de regulação também tende a manter nosso funciona-
mento mental relativamente estável; reações, rotinas e modos
de relação com o mundo ganham certa previsibilidade e bus-
cam evitar situações inesperadas que provoquem ansiedade.
psiquismo

Sofremos não só com Ao mesmo tempo que a vida traz


a situação presente, transformação, um movimento de
mas com as dúvidas autopreservação nos leva a tentar
quanto ao futuro que, conservar, de alguma forma, aquilo
que conquistamos e conhecemos.
por ser desconhecido,
Os momentos de crise provocam
desperta medo, insônia,
a perda desse equilíbrio. Muitas
ansiedade e medo vezes, os mecanismos de defesa
não dão conta da angústia – e a ansiedade ganha força. Mes-
mo quando a situação de instabilidade tem origem no meio
externo, fantasias adormecidas ligadas ao desamparo e ao
abandono podem surgir com intensidade. É comum, então,
vivenciarmos emoções, às vezes sem nome e sem contor-
nos. As situações da realidade podem remontar experiências
já vividas nos primórdios da infância e essas inseguranças se
mesclam e tornam difusas as percepções sobre nossos limi-
tes e possibilidades reais. Sofremos não só com a situação
presente, mas com as dúvidas quanto ao futuro que, por ser
desconhecido, desperta nossos fantasmas. Nessas ocasiões,
o medo, a ansiedade e a insônia podem nos inundar.
Dependendo do nível de amadurecimento emocional em
que nos encontramos, somos capazes de discriminar melhor
as fantasias e as condições reais. Mas é sempre recomendá-
vel, quando nos sentimos frágeis, evitar deixar os impulsos e as
emoções comandarem nossos atos. A reflexão crítica e cuidadosa
sobre a situação que estamos vivendo, se possível com a ajuda de
A AUTORA um profissional especializado, pode contribuir para que o momento
ERANE PALADINO
é psicóloga, de transição propicie reavaliações e nos conduza a possibilidades
psicanalista,
professora do interessantes. Não raro, surgem soluções criativas nesses momen-
Instituto Sedes
Sapientiae. tos, quando abrimos espaço para a elaboração das angústias.

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cinema

INFILTRADO NA KLAN
128 min. Estados Unidos, 2018.
Direção: Spike Lee
Elenco: John David
Washington, Adam Driver,
Laura Harrier, Topher Graceæ

Precisamos falar
sobre racismo
Em clima que alterna tensão e humor, novo filme de Spike
Lee se passa na década de 70, mas parece extremamente
atual; é difícil chegar ao fim indiferente à história

Necessário. E um tanto desconfortável. Talvez estes sejam os melhores adje-


tivos para definir Infiltrado na Klan. O que não falta no filme dirigido por Spike
Lee é assunto para reflexão e discussão. Exibido na mostra de competição em
Cannes de 2018, o diretor conta a his-
Imagens de arquivo do embate tória (verdadeira) do primeiro policial
ocorrido em 2017 em Charlottesville, negro a conseguir se infiltrar na Ku Klux
nos Estados Unidos, quando grupos Klan, Ron Stallworth. Como não seria
de extrema direita fizeram violentos aceito pelos participantes da organi-
protestos contra negros, judeus zação racista, o jovem faz os contatos
e imigrantes, contrastam com telefônicos, enquanto seu parceiro, Flip
cenas que arrancam risos da plateia Zimmerman, de origem judaica, partici-
pa das reuniões. Há humor e também
tensão no ar, já que possibilidade de explosão do ódio (afinal, trata-se de um filme
de Spike Lee) atravessa todo o longa.
Aproveitando que a trama se passa na década de 70, o diretor faz uma homenagem
ao movimento Blacksploitation, que marca a presença de atores e diretores negros
RS YRMZIVWS GMRIQEXSKVj½GS  )QFSVE GEVEGXIVM^EHSW GSQ ½KYVMRSW HSW ERSW 
EPKYRW QSQIRXSW HIXIVQMREHSW TIVWSREKIRW PIQFVEQ ½KYVEW FEWXERXI JVIUYIRXIW

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no cenário político brasileiro dos últimos tempos. De fato, os temas abordados não
poderiam ser mais atuais: preconceito, hipocrisia e ignorância. E para que não restem
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ocorrido em 2017 em Charlottesville, nos Estados Unidos. Na ocasião, integrantes
de grupos de extrema direita marcharam contra negros, judeus e imigrantes. Numa
sequência provocante, o diretor deixa claro como falas e atitudes do presidente nor-
te-americano Donald Trump autorizaram a expressão escancarada do preconceito nas
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protesto são más”. (Seriam bondosas?) Em meio ao discurso de Trump, cenas reais mos-
tram pessoas atropeladas e um corpo
estendido na rua em consequência das
O trauma da segregação violentas passeatas.
Racismo faz mal à saúde mental. Com base na teoria Em certos momentos pode até pa-
de Sigmund Freud, os seus efeitos nas humilhações
cotidianas são traumáticos e não apenas para recer estranho que -R½PXVEHS RE /PER
quem os sofre diretamente, mas para todos que seja realmente feito com base numa
estão direta ou indiretamente expostos ao clima de história verídica. No entanto, esse é
segregação. Para a vítima, a violência do preconceito
– velado ou explícito, mas igualmente doloroso – NYWXEQIRXI YQ HSW XVYRJSW HS ½PQI
pode provocar crises de autoestima e identidade, o absurdo da verdade, num momento
aparecimento de sintomas de ansiedade, depressão
em que a intolerância e o radicalismo
e somatizações.
“A ideologia do racismo propõe a desumanização de se opõem à legitimação do direito à
um, em contrapartida do privilégio do outro; incide diversidade e à existência – algo ób-
na constituição do negro como sujeito, em seu corpo
e em sua imagem, sistematicamente desvalorizada”, vio, pelo menos para quem estudou
afirma a psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da história ou psicanálise, ou simples-
Silva, uma das organizadoras do livro O racismo
mente leva em conta a possibilidade
e o negro no Brasil – Questões para a psicanálise
(Perspectiva, 2017), junto com as também de respeitar o direito do outro de
psicólogas Noemi Moritz Kon e Cristiane Curi existir. Alguns espectadores talvez
Abud. Silva, que é diretora-presidente do Instituto
AMMA Psique e Negritude e coordenadora geral da saiam um tanto incomodados do ci-
Articulação Nacional de Psicólogas Negras, salienta RIQE3YXVSWUYIQWEFI±RnSIRXIR-
que “o racismo constitui um sujeito que nem dam” a razão de tanto estardalhaço,
sempre consegue se apropriar de suas percepções
e de acreditar nelas, o que estimula a produção de SY WMQTPIWQIRXI GSRWMHIVIQ S ½PQI
marcas e lacunas que afetam toda a sociedade”. ±I\EKIVEHS² 7I JSV IWWI S GEWS ZEPI
avaliar o que de fato incomodou.

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