Você está na página 1de 64

| ESPECIAL

SPEC L DÉJÀ-VU
ÉJA |
A ESTRANHA SENSAÇÃO DE JÁ TER VIVIDO ALGO
ANO XIII
No 308

SILÊNCIO
Exercícios práticos
ajudam a aumentar
o equilíbrio interno
APRENDIZAGEM
A importância
de escrever à mão para
memorizar informações
TELEPATIA
A capacidade de
“ler mentes” não
tem nada de sobrenatural,
basta praticar

RISCOS E BENEFÍCIOS
Usados como medicamento, compostos da
cannabis aliviam sintomas de dor crônica,
depressão, epilepsia e câncer. Mas o uso
excessivo pode causar danos físicos e mentais
carta da editora

Baseado em pesquisas
alar em maconha fora de grupos homogêneos, com formas muito similares de pensar, é quase

F sempre sinônimo de polêmica: raramente há consenso. Nem a ciência nos oferece esse conforto.
O consumo apresenta riscos? Sim, como ocorre com qualquer substância psicoativa, o uso exces-
sivo causa prejuízos à saúde física e mental, em especial na adolescência. Recentemente, pesquisado-
res das universidades Northwestern e Harvard avaliaram o funcionamento neurológico de jovens com
idades entre 18 e 25 anos, divididos em grupos de usuários e não usuários, os submeteram a exames
de ressonância magnética e concluíram que o consumo recreativo de cannabis pode estar associado a
alterações no sistema de recompensa.
Diversos artigos apontam que mesmo o uso casual da droga pode prejudicar o cérebro de jovens, tor-
nando-os pouco interessados em atividades prazerosas que não incluam o uso da erva. Embora muitos
que combatem o uso recorram a estudos como esse para embasar suas opiniões, é preciso considerar que
os pesquisadores não levaram em conta a influência de outras substâncias, como álcool e tabaco.
Aliás, uma pesquisa publicada pelo periódico The Lancet mostra o álcool como a quarta droga mais
perigosa, atrás do crack, da heroína e da metanfetamina. O tabaco aparece em oitava posição e a maco-
nha, em 12ª.
Mas também há benefícios no uso da maconha em determinados casos? Muitos estudos mostram
que sim. Além de diminuir a intensidade e frequência de crises de epilepsia em circunstâncias especí-
ficas, compostos da cannabis estimulam o apetite (um grande benefício para pacientes que precisam
manter o peso) e ajudam a aliviar náuseas que atormentam pessoas com câncer, submetidas à quimio-
terapia. Além disso, a maconha tem propriedades que interrompem a transmissão dos sinais de dor e
ainda podem proteger os neurônios dos danos causados por traumas.
Outra “contradição”. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de British Columbia (UBC)
revelou evidências de outro uso da maconha: a redução de danos para medicamentos com alta capacidade de
dependência, como os analgésicos, muitas vezes usados de maneira desenfreada nos Estados Unidos. “Cons-
tatamos que as pessoas recorrem à cannabis como uma droga de saída para reduzir o uso de substâncias po-
tencialmente mais nocivas, como medicação para dor, os opiáceos”, conta Zach Walsh, professor de psicologia
na UBC. O estudo, publicado no periódico científico Clinical Psychology Review, também indica evidências de
que a cannabis pode ajudar contra sintomas de depressão, estresse pós-traumático e ansiedade social. Porém,
o uso não é recomendado para aqueles que apresentam sinais de transtorno bipolar ou psicose. O problema é
que nem sempre as pessoas sabem que são predispostas a apresentar esses quadros psiquiátricos. Ou seja, faz
mal? Sim. Faz bem? Sim. Depende de quem consome – e de quanto, como e quando se usa.
Boa leitura.

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br

3
sumário | setembro 2018

especial • déjà-vu

16 capa
Como a ciência explica
a estranha sensação de
“reviver” uma situação
38 Você já viu isso!
MACONHA De repente surge aquela impressão de já termos
vivido algo – e a sensação é, quase sempre, de
riscos e estranhamento. Há hipóteses interessantes sobre

benefícios o misterioso fenômeno da percepção temporal

44 Outra forma
de captar a realidade
Cientistas acreditam que, se compreenderem
essa experiência, ampliarão os conhecimentos
sobre o funcionamento da consciência, distúrbios
da memória e a maneira como interpretamos a
realidade

48 Fabrique seu próprio déjà-vu


Pesquisador criou técnica para que voluntários
16 Possibilidades terapêuticas tivessem a impressão de já ter ouvido
da erva determinada palavra, quando na verdade apenas
haviam feito associações
Compostos da maconha podem proteger o
cérebro dos efeitos do trauma, conter lesões
cerebrais, aliviar espasmos da esclerose múltipla
e epilépticos

21 Possíveis relações
biológicas com autismo
Estudo com modelos animais sugere que
sistema endocanabinoide pode estar alterado em
casos de transtorno do espectro autista (TEA)

25 Maconha: um pequeno guia


Contra ou a favor da legalização? Para formar
qualquer opinião, é fundamental ter informações
básicas sobre o assunto
6 Sim, você sabe ler mentes
www.mentecerebro.com.br
A capacidade “telepática” de compreender MENTE E CÉREBRO ON-LINE
intenções e sentimentos alheios requer um Presidente: Edimilson Cardial Visite nosso site e participe de
Diretoria: Carolina Martinez, nossas redes sociais digitais.
processo cerebral complexo, sem nada de Marcio Cardial e Rita Martinez www.mentecerebro.com.br
sobrenatural Editora-chefe: Gláucia Leal
facebook.com/mentecerebro
twitter.com/mentecerebro
Editora de arte: Sheila Martinez Instagram: @mentecerebro
Colaboradores: Maria Stella Valli
30 Vantagens de escrever e Ricardo Jensen (revisão)
Tratamento de imagem: REDAÇÃO
à mão Paulo Cesar Salgado
Produção gráfica:
Comentários sobre o conteúdo
editorial, sugestões, críticas às
Tomar notas de próprio punho pode ser mais Sidney Luiz dos Santos matérias e releases.
redacaomec@editorasegmento.com.br
eficaz para o processo de aprendizagem PUBLICIDADE tel.: 11 3039-5600
Gerente: Almir Lopes fax: 11 3039-5610
do que digitar; especialistas acreditam que almir@editorasegmento.com.br
processo ajuda a reter informações Cartas para a revista Mente e Cérebro:
Escritórios regionais: Rua Cunha Gago, 412
Brasília – Sonia Brandão 1o andar – São Paulo/SP
(61) 3321-4304/9973-4304 CEP 05421-001
34 Idosos buscam respostas sonia@editorasegmento.com.br

sobre sexo na internet Rio de Janeiro – Edson Barbosa


(21) 4103-3846 /(21) 988814514 edson.
Cartas e mensagens devem trazer o
nome e o endereço do autor.
barbosa@editorasegmento.com.br Por razões de espaço ou clareza, elas
Falar sobre o tema costuma ser tabu tanto poderão ser publicadas de forma
para os mais velhos, quanto para seus TECNOLOGIA
Gerente: Paulo Cordeiro
reduzida.

cuidadores e parentes; felizmente, a tecnologia Analista programador: PUBLICIDADE


Diego de Andrade Anuncie na Mente e Cérebro e fale com
pode ser muito útil na hora de procurar Desenvolvedores: o público mais qualificado do Brasil.
Thean Rogério
informações almir@editorasegmento.com.br

MARKETING/WEB CENTRAL DE
Diretora: Carolina Martinez ATENDIMENTO AO LEITOR
52 A arte de ouvir o silêncio Gerente de marketing:
Mariana Monné
Para informações sobre sua assinatura,
mudança de endereço, renovação,
Eventos: Lila Muniz
Monja zen-budista propõe exercícios práticos Coordenador de criação e designer: reimpressão de boleto, solicitação de
Gabriel Andrade reenvio de exemplares e outros serviços
para aquietar a mente e acessar a sensação de Analista de web: Lucas Alberto São Paulo (11) 3039-5666
De segunda a sexta das 8h30 às 18h,
bem-estar e centramento, independentemente atendimento@editorasegmento.com.br
do lugar onde você está ASSINATURAS E CIRCULAÇÃO www.editorasegmento.com.br
Supervisora: Cláudia Santos
Eventos Assinaturas: Simone Melo Novas assinaturas podem ser solicitadas
Vendas telemarketing ativo: pelo site
Cleide Orlandoni
www.lojasegmento.com.br
seções FINANCEIRO
ou pela
Central de Atendimento ao Leitor
Contas a pagar: Siumara Celeste
3 CARTA DA EDITORA Controladoria: Fabiana Higashi Números atrasados podem ser
Recursos humanos/Depto. pessoal: solicitados à
Roberta de Lima
Central de Atendimento ao Leitor
58 LIVRO – LANÇAMENTO pelo e-mail
Câncer – Quando a vida pede um novo ajuste Mente e Cérebro é uma publicação atendimentoloja@editorasegmento.
mensal da Editora Segmento com com.br ou pelo site
conteúdo estrangeiro fornecido por www.lojasegmento.com.br
60 CAIXA LÚDICA publicações sob licença de
Scientific American. MARKETING
A menina feita de nuvens Informações sobre promoções,
eventos, reprints e projetos especiais.
marketing@editorasegmento.com.br

Spektrum der Wissenschaft Editora Segmento


Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 Rua Cunha Gago, 412 – 1o andar
Acompanhe a @mentecerebro 69126 Heidelberg, Alemanha São Paulo/SP – CEP 05421-001
no Instagram Editor-chefe: Carsten Könneker
www.editorasegmento.com.br

Gerentes editoriais: Edição no 308, setembro de 2018,


Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição Hartwig Hanser e Gerhard Trageser ISSN 1807156-2.
Diretores-gerentes:
Markus Bossle e Thomas Bleck

www.mentecerebro.com.br
percepção

Sim, você sabe


ler mentes!
A capacidade, nem sempre consciente, de compreender
tanto a intenção quanto a dor ou a alegria do outro –
mesmo sem que algo tenha sido expresso em palavras
– é um atributo da complexa comunicação humana; os
mecanismos cerebrais envolvidos nesse processo ajudam
neurocientistas a compreender o funcionamento cerebral

6
6
percepção

D
esde pequenos aprendemos uma série de coisas
só observando o mundo que nos cerca. Nos pri-
meiros anos de vida começamos a entender a tris-
teza, alegria, desilusão e ciúmes dos outros como
correlatos emocionais de nossos comportamentos. “Não chora,
mamãe”, provavelmente dirá a garotinha ao ver a mãe emocio-
nada por alguma razão. Por volta dos 4 anos, as crianças dão
os primeiros passos em direção ao domínio das habilidades
sociais: copiam gestos, imitam palavras e atitudes e, geralmen-
te, desenvolvem simpatias. Dessa forma, sinalizam que fazem
parte dos mesmos círculos de que todos nós participamos para
nos tornar “membros da tribo”, capazes de compartilhar com-
portamentos socialmente
Estímulos emocionais que contagiantes como chorar,
captamos e a maneira bocejar, sorrir, gargalhar e
fazer caretas de nojo.
como os interpretamos se
Imaginar o que se pas-
transformam em respostas
sa com a outra pessoa, por
e desencadeiam reações
qual razão alguém fez ou
físicas, como transpiração, disse determinada coisa
taquicardia e aumento da nos confere alguma sensa-
pressão arterial ção de tranquilidade, como
se o mundo a nosso redor
izesse sentido e, contornado pela lógica, se tornasse menos
ameaçador. Esse tipo de intuição surge naturalmente para a
maioria de nós – mas não para todos. Pessoas com autismo
não dispõem desse recurso. O transtorno do desenvolvimento
afeta uma pessoa em cada 500 (essa cifra varia, dependendo
de como deinimos o distúrbio). Atualmente, tem sido adota-

7
percepção

POR VOLTA DOS 4 ANOS, as crianças traçam os primeiros passos em direção


ao domínio das habilidades sociais: copiam gestos, imitam palavras e desenvolvem simpatias

do o termo “transtornos do espectro do autismo” para ressal-


tar que a patologia varia amplamente em grau de seriedade,
mas mantém em comum três sintomas: profunda ausência de
habilidades sociais, baixa capacidade de comunicação e com-
portamentos repetitivos. Independentemente da gravidade da
manifestação, na base dessas características estão os proble-
mas de intuição social.
Autistas têm diiculdade em se aproximar de outras pes-
soas porque não construíram um repertório de habilidades
de desenvolvimento que permite que os humanos se tornem
“especialistas em ler a mente alheia”. Não falamos aqui da
habilidade especial de descobrir pensamentos, mas da capa-
cidade de inferir o que os outros estão pensando e sentindo
em diferentes circunstâncias.
“Existem evidências, com base em estudos de imageamen-
to do cérebro, de que regiões do córtex pré-frontal – principal-
8
percepção

mente o córtex frontoinsular e o córtex cingulado anterior, nor-


malmente ativados por interações sociais – estão praticamente
inativas em autistas”, explica o psicólogo Bruce M. Hood, dire-
tor do Centro de Desenvolvimento Cognitivo de Bristol, da Uni-
versidade de Bristol, Inglaterra. “Dados de autópsias também
indicam que as estruturas do córtex frontoinsular e do córtex
cingulado anterior são alteradas nos casos de autismo.”
O pesquisador John Allman, do Instituto de Tecnologia da
Califórnia, acredita que boa parte desse déicit social pode ser
atribuída à falta de um tipo especial de neurônios fusiformes,
também conhecidos como
neurônios de Von Econo-
Pesquisadores supõem que
mo, em homenagem ao
as informações sobre o seu descobridor, que os
estado corporal são enviadas observou em 1925. Neurô-
em diversas estações de nios fusiformes consistem
processamento cerebral para, em um neurônio bipolar
por fim, serem armazenadas bem desenvolvido encon-
na ínsula como uma espécie trado somente no córtex
de “pacote subjetivo” frontoinsular e no córtex
cingulado anterior, que,
acredita-se, fornece a interconexão entre as áreas do cérebro
ativadas pela aprendizagem e pelo contato social. Essa loca-
lização pode explicar por que neurônios fusiformes só foram
encontrados em espécies particularmente sociais, como todos
os grandes símios, elefantes, baleias e golinhos.
Dentre todos os animais, os humanos são os que têm número
maior de neurônios fusiformes localizados no córtex frontoinsu-
lar e no córtex cingulado anterior – as mesmas regiões que po-
dem ser comprometidas no espectro de transtornos do autismo.
“Acredita-se que os neurônios fusiformes funcionem como ras-
treadores das experiências sociais, levando a uma rápida avalia-

9
percepção

ção de situações similares no futuro”, observa Hood. Segundo


o pesquisador, essas estruturas fornecem a base da aprendiza-
gem social intuitiva quando observamos e copiamos os outros.
“Pode, portanto, não ser coincidência o fato de que a densidade
de neurônios fusiformes nas regiões sociais aumenta desde a
infância até atingir níveis de adulto já por volta do terceiro ou
quarto ano de vida em crianças normais”, ressalta Hood.
Nesta idade, considerada por muitos especialistas em de-
senvolvimento infan-
til o divisor de águas,
ocorre uma mudança
considerável nas ha-
bilidades de intuição
social. Já pessoas com
autismo, que tiveram
atividades de áreas do
córtex frontoinsular e
do córtex cingulado anterior interrompidas, apresentam dii-
culdade de realizar o que o resto de nós sabe fazer sem ter de
pensar muito: descobrir o que se passa com nosso semelhante
– basta prestar atenção. No entanto, não raro, subestimamos
nossa capacidade de percepção a respeito do que as pessoas
sentem e pensam.

Neurônios-espelho
É por meio das interações sociais que aprendemos o que é
importante para nossa sobrevivência e a nos identiicar com
as emoções dos outros, reconhecer seus desejos, perspecti-
vas, intenções. Tudo que nosso semelhante faz ou deixa de
fazer nós podemos compreender, já que nosso cérebro tem
a capacidade de organizar uma representação da vida interior

10
percepção

de outra pessoa, independentemente de nosso próprio estado


mental. Portanto, experimentos neurocientíicos focados em
reações individuais talvez expliquem muito pouco da natureza
humana. É preciso considerar também as vivências grupais.
Evidências neurocientíicas a favor da empatia humana co-
meçaram a surgir na década de 90, na Itália. A equipe lidera-
da pelo neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de
Parma, estava pesquisando o
controle motor em macacos,
e para isso havia implantado
eletrodos em neurônios do
córtex pré-motor. Depois de
realizarem as tarefas, os ma-
cacos recebiam amendoins.
Para dar o petisco, o pesqui-
sador se aproximava do ani-
mal que havia sido testado
até que, de repente, o sensor
ao qual o cérebro de um de-
les  estava conectado come-
çou a registrar alguma coisa.
EMPATIA: compreendemos os sentimentos alheios não só porque nosso
cérebro apreende uma perspectiva diferente, mas porque realmente Os neurônios do córtex pré-
compartilhamos sentimentos ou sensações
-motor estavam sendo ativa-
dos, apesar de o macaco permanecer imóvel.
Os italianos chamaram essas células “neurônios-espelho”,
porque entram em ação não apenas em situações em que
um movimento é executado, mas também quando o indivíduo
observa a mesma ação realizada por outros. Os neurônios-es-
pelho nos permitem internalizar a ação alheia e nos colocar
virtualmente no lugar do outro. Isso signiica que nós não só
compreendemos os sentimentos dos outros simplesmente

11
percepção

porque nosso cérebro apreende sua perspectiva, mas porque


realmente compartilhamos tais sentimentos ou sensações.

A dor alheia
Para aprofundar a pesquisa desse fenômeno, 16 casais volun-
tários participaram de um experimento muito original. A mulher
se submetia à ressonância magnética funcional e o marido ou
namorado sentava-se ao lado dela. A mão esquerda de ambos
estava conectada a eletrodos, pelos quais recebiam descar-
gas elétricas de diferentes intensidades. As mais fortes doíam
como uma picada de abelha, mas duravam apenas um segun-
do e não deixavam marcas. Em um monitor, setas de cores
diferentes mostravam para a mulher se o parceiro estava re-
cebendo os choques e a que intensidade. Um não via o rosto
do outro, guiavam-se apenas pelos sinais do
monitor.
Quando a mulher recebia uma descarga de
baixa intensidade, todo o circuito de assimilação
da dor de seu cérebro era ativado: ínsula, córtex
somatossensorial primário e secundário, córtex
cingular anterior, tálamo, cerebelo e certas re-
giões do tronco cerebral. Essas eram justamen-

GIACOMO RIZZOLATTI: neurocientista


italiano descobriu, por acaso, a existência
dos neurônios-espelho O jogo da imitação
O neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma, pesquisava o controle
de movimentos de macacos e para isso havia implantado eletrodos em neurônios do
córtex pré-motor nos animais. Rizzolatti e sua equipe descobriram, por acaso, a existência
dos “neurônios-espelho”. Essas estruturas microscópicas entram em ação não apenas
quando um movimento é executado, mas também quando o indivíduo observa uma ação
realizada por outros. Os neurônios-espelho nos permitem internalizar a ação alheia e nos
colocar virtualmente no lugar do outro. Isso significa que nós não só compreendemos os
sentimentos dos outros simplesmente porque nosso cérebro apreende sua perspectiva,
mas porque realmente compartilhamos tais sentimentos ou sensações.

12
percepção

“Usamos informações armazenadas em uma


espécie de banco de dados emocional para
antecipar certos eventos, tanto para nós mesmos
quanto para os outros”, diz o pesquisador
Kevin Dutton, da Universidade de Cambridge
te as reações esperadas. Entretanto, quando o parceiro recebia
estímulos doloridos, e a mulher era informada disso pelo monitor,
a maior parte dessas “áreas da dor” do cérebro dela tornava-se
ativa, especialmente regiões emocionalmente relevantes como o
córtex cingular anterior e a ínsula. É como se o cérebro se com-
padecesse da dor do parceiro. Contudo, a magnitude da reação
variava entre as mulheres: as que haviam se mostrado especial-
mente empáticas numa entrevista feita antes do experimento
reagiram de forma mais intensa, com uma nítida elevação da ati-
vidade nos centros cerebrais associados à dor.
Em compensação, duas importantes regiões do cérebro fe-
minino permaneceram em absoluto silêncio: os córtices soma-
tossensorial primário e secundário, relacionados à localização
corporal da dor. O resultado é totalmente plausível, pois inter-
nalizar a dor subjetiva do outro já basta – a informação senso-
rial não é necessária. Mas, se o estímulo doloroso atinge nosso
próprio corpo, temos de saber exatamente onde ele nos afeta
para poder combatê-lo ou fugir dele.
A experiência puramente corporal sempre está acompanhada
de sensações subjetivas que atuam como ameaças e promovem
alterações de humor. Os cientistas supõem que nossa aversão
emocional à dor está relacionada com a atividade de regiões
como o giro cingulado anterior e a ínsula; ambas permaneceram
ativas nas mulheres que sabiam que seus parceiros estavam re-
cebendo uma picada dolorida. Outros estudos têm fornecido in-

13
percepção

formações importantes sobre o possível papel dessas duas es-


truturas na assimilação da dor, bem como de outras sensações.
Estímulos emocionais – mesmo dos negativos, que nos cau-
sam desconforto – desencadeiam alterações e reações em
nosso corpo: transpiração, taquicardia, aumento da pressão
arterial. Os pesquisadores supõem que as informações sobre
o estado corporal são enviadas em diversas estações de pro-
cessamento cerebral para, por im, serem armazenadas na ín-
sula como uma espécie de “pacote subjetivo”.
 
Menos rudes
Outras pesquisas com neuroimageamento mostram que a ati-
vidade na ínsula aumenta até quando as pessoas apenas pen-
sam que alguma coisa vai doer. “Fica evidente, portanto, que
usamos informações armazenadas em algum tipo de banco
de dados emocionais para antecipar certos eventos, para nós
mesmos, e também para os outros”, salienta o pesquisador
Kevin Dutton, do Instituto Faraday da Faculdade St. Edmund, 
Universidade de Cambridge. Para ele, a capacidade de em-
patia deve ter a ver com um sistema que codiica experiências
pessoais. “Nosso próprio universo de sensações torna-se en-
tão matéria-prima para a compreensão das emoções alheias,
o que permite concluir que podemos nos pôr no lugar de outra
pessoa, sentir como ela se sente, se já tivermos alguma vez na
vida experimentado sensações parecidas”, airma.
Portanto, o altruísmo pode ser resultado da arquitetura cerebral.
O fato de que propriedades humanas tão profundas tenham um
fundamento neuronal é o que torna a neurociência social cogni-
tiva uma área tão interessante. Por que a natureza nos dotou de
empatia? Ao que tudo indica, para facilitar a vida em sociedade e,
talvez, nos tornar animais menos rudes – e até mais felizes.

14
capa • maconha

Possibilidades
te
da
Estudos recentes
indicam que compostos
da maconha podem
proteger o cérebro dos
efeitos do trauma, aliviar
espasmos da esclerose múltipla
e reduzir crises epilépticas.
Trabalho preliminar mostra
que as substâncias têm
potencial para retardar
o crescimento de tumores
e reduzir a lesão cerebral
em casos de Alzheimer
capa • maconha

A
polêmica a respeito da Cannabis sativa, a maco-
nha, é antiga, mas vem se tornando cada vez mais
atual, à medida que surgem novos estudos a res-
peito dos efeitos da substância nas funções cere-
brais (como atenção, motivação, memória), bem como dos
riscos da utilização e de seu potencial terapêutico. Inúmeras
pesquisas publicadas nos útimos anos – muitas delas feitas
em tubos de ensaio e animais, mas algumas executadas em
humanos – sugerem que os canabinoides, ingredientes ati-
vos da maconha, podem ter usos medicinais, até além dos
reconhecidos e aprovados legalmente em alguns países.
Alguns
A questão, porém, não se restringe à compreen-
estudos
são dos efeitos neurológicos que o consumo provoca.
sugerem É preciso antes entender alguns pontos importan-
que o THC e o tes. O composto químico da maconha que induz
canabidiol podem a alucinações, o delta-9-tetraidrocanabinol
aumentar o fluxo de (THC), foi isolado em 1964. Vários outros
sangue no cérebro, componentes foram descritos desde
trazendo o oxigênio então, inclusive o canabidiol (com-
e nutrientes para os posto que não provoca euforia),
neurônios em risco; usado por pacientes com epilepsia.
No inal da década de 1980 e início dos
esse mecanismo,
anos 1990, cientistas passaram a identiicar e
porém, não
a mapear dois grupos de moléculas, conhecidos
é totalmente
como receptores, no sistema nervoso central e no
compreendido sistema imune, que ajudam canabinoides a se ligarem
a células. Essa interação parece desempenhar um papel
crítico sobre diversos efeitos da maconha. O cérebro dispõe
de pequenas quantidades de seus próprios canabinoides, os
endocanabinoides, que também se ligam a esses receptores.

17
capa

USO MEDICINAL: Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o derivado canabidiol não seja tratado como
droga; substância tem sido empregada no tratamento de doenças neurológicas e para aliviar sintomas de câncer

CB1, o mais comum dos dois receptores principais,


se distribui amplamente pelo cérebro, com concentrações
elevadas no córtex e no hipocampo (uma região importan-
te para formar novas memórias e mais recentemente reco-
nhecido pela neurociência como uma área importante para
conferir o tom emocional associado a recordações). Recep-
tores de CB1 ocorrem também em partes do cérebro envol-
vidas na percepção da dor. Há níveis baixos de CB1 no tron-
co cerebral, onde as funções cardíacas e respiratórias são
reguladas; sua relativa escassez nessa região pode explicar
por que, ao contrário de opioides, mesmo doses pesadas de
canabinoides não representam ameaças graves ao coração
ou à capacidade respiratória.
CB2, o outro receptor principal de canabinoide, é
encontrado principalmente no sistema imune. A
sua presença lá interessa a cientistas, pois
o sistema imune desencadeia a infla-
mação, e estudos mostram que a
maconha pode ter efeito anti-
-inflamatório.
capa • maconha

No cérebro, quando o componente psicoativo THC se


liga ao CB1, ele interfere na ação de neurotransmissores, que
são moléculas sinalizadoras liberadas pelos neurônios. O re-
sultado é a euforia pela qual a maconha é famosa, muitas
vezes acompanhada do prejuízo temporário da memória de
curto prazo. Dois outros efeitos bem conhecidos da ligação
THC-CB1 são o estímulo do apetite, um benefício para pacien-
tes com aids e outros que precisam manter o peso corporal,
e a supressão de náuseas, excelente para alguns pacientes
com câncer submetidos à quimioterapia. Foi demonstrado
que o THC interrompe a transmissão dos sinais de dor.
Várias pesquisas recentes sugerem que o THC também
pode proteger os neurônios do trauma. Os primeiros es-
tudos em tubos de ensaio apontaram para esse efei-
Diferentemente to, bem como um estudo clínico publicado em
do que ocorre outubro passado. Nele, o cirurgião de trauma
com os opioides, David Plurad e seus colegas izeram uma
mesmo as doses revisão retrospectiva de 446 traumatis-
mos crânio-encefálicos (TCE), casos
pesadas de canabinoides
tratados no Harbor-UCLA Medi-
não representam
cal Center, de janeiro de 2010 a
ameaças graves
dezembro de 2012. Segundo es-
ao coração ou tudo publicado na revista American
à capacidade Surgeon, foi descoberto que 82 desses
respiratória pacientes tiveram teste positivo para THC,
e dois deles morreram, o que representa 2,4%
da amostra. O índice de mortalidade entre os 364
pacientes que não tinham THC em seu sistema foi de
11,5%, quase cinco vezes superior.
Levando em conta outros fatores como idade, gravidade
da lesão e nível de álcool no sangue, pesquisadores concluí-

19
capa • maconha

ram que a relação entre o THC e uma menor taxa de mortali-


dade nesses pacientes era evidente. Embora os mecanismos
não sejam plenamente compreendidos, a investigação ante-
rior sugere que o THC e canabidiol podem aumentar o fluxo
sanguíneo no cérebro, trazendo o oxigênio necessário, bem
como nutrientes para os neurônios em risco. Como eles ini-
bem o glutamato, podem evitar também efeitos tóxicos que
ocorrem após trauma encefálico quando os neurônios po-
dem ser superestimulados pelo neurotransmissor.
Há comprovações de que a maconha prejudica a per-
cepção e o tempo de reação, por isso pode ter contribuído
para os acidentes que Plurad estudou – e, ao mesmo tempo,
talvez tenha ajudado algumas pessoas a sobreviver a eles. A
ironia não passou despercebida pelo cirurgião. “Nunca haverá
uma única resposta para questões sobre maconha”, acredita
Plurad. “É bom para você; é ruim para você. Nunca será um ou
o outro. Ela sempre estará em algum lugar no meio.”

20
capa • maconha

Estudo com modelos


animais sugere que
sistema endocanabinoide
pode estar alterado
em casos
de transtorno do
espectro autista (TEA)
capa • maconha

O
s endocanabinoides se diferenciam dos neu-
rotransmissores clássicos, entre outros fatores,
por terem um sistema de transmissão retrógra-
do, ou seja, se propagam do neurônio pós-si-
náptico para o pré-sináptico. Na prática, isso signiica que os
endocanabinoides e os receptores CB1 influenciam eventos
que ocorrem no neurônio pré-sináptico, como a liberação de
neurotransmissores como GABA e glutamato, envolvidos no
balanço inibitório-excitatório das células.
Assim, os receptores CB1 influenciam de forma indireta a
“O aumento liberação da dopamina, pois “inibem o efeito inibidor” do
de dopamina, GABA sobre a dopamina, de forma que esta é libe-
efeito indireto rada em diversas estruturas do cérebro, incluindo
da droga, afetou as que fazem parte do sistema de recompen-
a busca natural por sa – por isso há aumento de dopamina no
recompensa social; o cérebro quando há aumento da dispo-

mesmo fato foi relatado por nibilidade de canabinoides nas fen-


das sinápticas.
outros estudos em modelos
Em um estudo conduzido
animais que usaram o na Universidade Presbiteria-
canabinoide exógeno THC,
presente na Cannabis
sativa”, diz pesquisadora

22
capa • maconha

na Mackenzie, em São Paulo, a pesquisadora Fernanda Tei-


xeira Ribeiro usou uma medicação para aumentar a quanti-
dades de endocanabinoides no cérebro de ratos e observar
como essa intervenção afetava o desempenho dos animais
em testes sociais. A medicação usada foi um inibidor de enzi-
mas endocanabinoides chamado JZL195. Seu efeito consis-
te em inibir as enzimas FAAH e MGAL (que fazem o catabo-
lismo, respectivamente, dos endocanabinoides anandamida
e 2-AG) e aumentar, assim,
a disponibilidade desses
A síndrome que faz endocanabinoides na fen-
tudo perder a graça da sináptica. Ratos saudá-

U veis e ratos com sintomas


m efeito experimentado por pessoas
que usam maconha com frequência foi
observado clinicamente e chamado por
de transtorno do espectro
especialistas de síndrome amotivacional. Embora autista (modelo animal usa-
sejam necessários mais estudos para documentar do pelo grupo de pesquisa)
esse quadro, o que muitos especialistas ressaltam
é que usuários com esse sintoma deixam de ter foram submetidos a testes
interesse por atividades em geral que causam comportamentais de socia-
prazer, incluindo a socialização. No estudo em
que comparou ratos saudáveis com animais com
bilidade depois de terem
traços de sintomas de autismo, a pesquisadora recebido a medicação.
Fernanda Teixeira Ribeiro analisou os efeitos de A medicação não teve
uma medicação que aumentava a disponibilidade
de canabinoides endógenos no cérebro desses efeito nos animais com
animais. Ela verificou que os roedores saudáveis sintomas de transtorno do
que receberam a medicação apresentaram
comportamentos similares ao que se poderia
espectro autista (TEA). No
descrever como uma síndrome amotivacional, entanto, nos animais saudá-
mostrando pouco interesse em interação com veis, reduziu seu interesse
estímulos sociais, quando submetidos a testes
de comportamento social. Ribeiro explica que a em interagir com estímulos
medicação inibe a ação das enzimas, aumentando a sociais nos testes. “Acredi-
disponibilidade de endocanabinoides. “A memória
estava preservada, mas eles optavam por não
tamos que o aumento de
interagir”, afirma a neurocientista. dopamina, efeito indireto
capa • maconha

da droga, afetou a busca natural por recompensa social. O


mesmo efeito já foi relatado por outros estudos em modelos
animais que usaram o canabinoide exógeno  THC, presente
na  Cannabis sativa”, diz. Na tentativa de buscar uma corre-
lação biológica para a ausência de efeito da medicação
sobre a sociabilidade dos animais com sintomas de autis-
mo, a pesquisadora e colegas analisaram a concentração
de receptores CB1 em diversas estruturas do cérebro dos
animais pesquisados por meio de uma técnica chamada
Elisa, que quantifica proteínas especificas. Foi detectada
uma diferença no hipocampo desses animais, que apre-
sentaram uma quantidade reduzida de receptores CB1
nessa estrutura. O hipocampo tem importância inconteste
na formação de memória emocional e na importância dada
ao que vivemos e sentimos. Em estudos futuros o grupo
de pesquisa pretende explorar esse caminho, ou seja, es-
tudar possíveis  alterações na sinalização canabinoide do
hipocampo nesse modelo animal de TEA e, assim, buscar
correlações neurobiológicas para os sintomas de autismo. 

24
capa • maconha

Maconha:
um pequeno
guia Contra ou a favor? Para
formar qualquer opinião, é
fundamental compreender
informações básicas.
No Brasil, o uso é proibido
tanto para uso recreativo
quanto medicinal
por Fernanda Teixeira
capa • maconha

R
elatos de 2700 a.C. descrevem o cultivo e uso
da  Cannabis sativa, a maconha, como analgésico e
ansiolítico na China. No inal do século 19, cigarros
da planta e extrato líquido eram vendidos em far-
mácia – indicados, por exemplo, para induzir ao sono e con-
trolar a bronquite crônica. Depois de décadas de proibição
da cannabis e seus derivados ao longo do século 20, estados
americanos e alguns países começaram a liberar o uso mé-
dico da planta.
Nesses locais, a prescrição médica se baseia no equilíbrio
das proporções de dois itocanabinoides (os componentes
que interagem com o sistema endocanabinoide do cérebro)
principais: tetraidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD). Ou seja:
variedades padronizadas da planta são receitadas de acordo
com a maior ou menor porcentagem desses canabinoides.

O uso medicinal seguro de cannabis depende da


produção controlada de variedades da planta com
proporções padronizadas; a extração obedece a
procedimentos específicos que, se desrespeitados,
podem alterar as propriedades

26
capa • maconha

Uso medicinal Uso recreativo


Significa tanto o uso de medicamentos derivados Busca os efeitos psicoativos
de componentes da cannabis, sintetizados em da planta, como fluidez de
laboratório, como de compostos feitos de extratos pensamento, relaxamento,
da planta. Ou mesmo o uso por inalação com euforia – sensações que variam
intenção medicinal. As indicações são diversas e de acordo com o indivíduo
as proporções de canabinoides variam de acordo e a qualidade e quantidade
com o efeito desejado. consumida da droga.

Na Holanda, por exemplo, a variedade Bediol (6% de THC


e 7,5% de CBD), produzida de forma padronizada e distribuí-
da em farmácias pela companhia Bedrocan, é indicada para
alívio da dor e combate a processos inflamatórios. Seu uso
não causa as alterações mentais características da maconha
recreativa porque a proporção mais alta de CBD (que tem
propriedades antipsicóticas e ansiolíticas) ameniza a ação do
THC, responsável pelos efeitos psicoativos – confusão men-
tal, euforia, fluidez de pensamentos e outros que variam de
uma pessoa para outra. Assim, é possível se beneiciar das

Política no Brasil
A cannabis é atualmente proibida no Brasil, seja
para qualquer tipo de uso. Portar a droga é crime,
independentemente da quantidade. Os critérios
que definem traficante (revendedor) e usuário
(consumidor) não são objetivos, dependem de
quantidade e circunstâncias de apreensão. Mas as
penalidades são mais brandas no segundo caso.
A exceção vale unicamente para remédios com
maior quantidade de CBD que de THC, obtidos
por meio de importação.

27
capa • maconha

qualidades terapêuticas do CBD e do THC (componentes


que têm efeitos comprovados no controle de dores) sem so-
frer alterações psíquicas como efeito colateral.
Nesse caso, a administração é feita
por inalação, com o uso de um vaporizador,
por exemplo. Como explica o neurocientista
Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cére-
bro da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), é possível usar a maconha
como itoterápico desde que se tenha co-
nhecimento da proporção de canabinoides.
“No caso da inalação com vaporizadores, é
possível ter muito controle da dose. Os efei-
tos são imediatos e o médico pode admi-
nistrar doses bem pequenas, medidas com
precisão, até atingir o efeito desejado.”

Legalização
Regulamentação É importante mudar leis de forma a
É o que vai determinar o controle da venda e permitir o cultivo próprio e produção
acesso à substância. Interferência do Estado de cannabis para comercialização. Pode
pode variar de acordo com cada país. Por contemplar somente o uso medicinal
exemplo: em alguns estados americanos, a ou também o recreativo, dependendo
maconha é vendida apenas para uso medicinal, de cada país ou, no caso dos Estados
em dispensários, com receita médica. Na Unidos, estado. Nesse país, 23 estados
Holanda, o uso recreativo é permitido em locais e Washington permitem o uso medicinal
específicos, que vendem a droga com índices – quatro deles permitem também o
controlados de canabinoides, bem explícitos ao recreativo. Envolve muitas discussões,
consumidor. pois demanda regulamentação.
capa • maconha

Descriminalização
Nesse caso, o porte da droga
para consumo próprio deixa
de ser crime. Mas o tráfico
continua sendo proibido

THC X CBD
SÃO OS COMPONENTES DA
MACONHA MAIS ESTUDADOS.

O tetraidrocanabinol (THC) é o agente


responsável pelos efeitos psicoativos
da planta. Atualmente, no Brasil, está
na lista de substâncias proscritas
da Anvisa. No exterior, é usado
medicinalmente para tratar problemas
como dores crônicas e efeitos colaterais
da quimioterapia.

O canabidiol (CBD) tem efeito


A AUTORA ansiolítico, antipsicótico e
FERNANDA anticonvulsivante. É uma substância de
TEIXEIRA RIBEIRO uso controlado no Brasil, de forma que
é jornalista
especializada em medicamentos cujo CBD é o principal
divulgação científica componente podem ser importados
e pesquisadora.
Desenvolveu com prescrição médica. O Conselho
dissertação de Federal de Medicina (CFM) autoriza
mestrado na linha
de neurociências do o uso compassivo da substância para
desenvolvimento tratar epilepsias refratárias em crianças
na Universidade
Mackenzie. e adolescentes.
cognição

Vantagens de
escreve
à mão
Tomar notas de próprio punho pod
o processo de aprendizagem do qu
acreditam que processo ajuda a ret

m busca de comodidade, cada vez mais deixamos de


lado o papel e optamos por digitar. De fato, parece
mais prático escrever um e-mail do que uma carta.
Mais ainda enviar uma mensagem rápida pelo celular
do que encaminhar um bilhete. Mas como tudo tem seus prós
e contras, nessa área também não é diferente. E, quando se
trata de redigir, um grupo de cientistas alerta que nem sempre
o método mais rápido é, necessariamente, o melhor. Segundo
os pesquisadores da Universidade de Princeton, tomar notas à
mão favorece a capacidade de síntese, ajuda a focar o essen-
cial e – melhor – a reter conceitos com mais facilidade.
30
cognição

O psicólogo Daniel Oppenheimer e sua equipe chegaram a


essa conclusão quando pediram a alguns estudantes que as-
sistissem a uma palestra e izessem anotações – parte deles
à mão e parte usando um notebook. Depois de 30 minutos,
os pesquisadores izeram entrevistas com os voluntários sobre
aspectos fatuais e conceituais do conteúdo visto e descobri-
ram que aqueles que escreveram com papel e caneta se saí-
ram signiicativamente melhor, sobretudo em relação a ideias
abstratas, ainda que o restante tivesse registrado maior quan-
tidade de informações no computador.
Os pesquisadores ressaltam que, quan-
Segundo os do tomamos notas, selecionamos deter-
pesquisadores da minados dados, nós os codiicamos e os
Universidade de recordamos mais tarde, o que favorece o
Princeton, tomar armazenamento e facilita a aprendizagem.
Quando o registro se torna muito fácil,
notas à mão favorece
tendemos a nos dispersar e perdemos a
a capacidade de oportunidade de absorver algo novo, prin-
síntese, ajuda a focar cipalmente quando se trata de conceitos e
o essencial e – melhor não fatos. Escrever à mão, por outro lado,
– a reter conceitos nos obriga a focar o essencial já que, em
geral, não somos isicamente capazes de
com mais facilidade
escrever cada palavra do que é dito, o que
termina facilitando a assimilação.
Os resultados publicados na Psychological Science ajudam
a esclarecer um fenômeno que os psicólogos chamam de “di-
iculdade desejável”, para se referir à necessidade de esforço
e investimento com o intuito de assimilar novos conteúdos. “Às
vezes, os obstáculos que nos frustram nos ajudam a aprender”,
diz Oppenheimer.

31
cognição

A escrita como terapia


Registrar de forma orientada experiências traumáticas pode ajudar pessoas
a refletir sobre si e a superar a dor da perda. Segundo estudo publicado
no Journal of Paliative Medicine, a “escrita terapêutica” ajuda o paciente a
descrever detalhes de experiências negativas, explicitar sentimentos, colocar
os fatos em ordem cronológica e estabelecer nexos. O artigo se apoia
na ideia de que descrever os próprios sentimentos e emoções em uma
narração coerente dos fatos tem utilidade em situações específicas, como
elaborar o luto da morte de uma pessoa querida. Para medir a eficácia da
técnica, os pesquisadores avaliaram os pacientes deprimidos depois desses
voluntários terem passado por uma perda significativa e pediram que
registrassem regularmente seus sentimentos, Curiosamente, foi constatada
melhora no estado geral de humor e ânimo das pessoas após o exercício.
“Estudos recentes com ressonância magnética funcional demonstraram
que nosso cérebro trabalha de forma diferente antes, durante e depois
de escrevermos”, observa o psicólogo James Pennebaker, diretor do
Departamento de Psicologia da Universidade do Texas em Austin. Pioneiro
nesse tipo de pesquisa, ele investiga desde a década de 90 a ligação entre a
capacidade de escrita expressiva e alterações biológicas.
A escrita terapêutica, complementar à terapia da fala, não se contrapõe à
expressão oral. Pelo contrário: permite associações inesperadas, que muitas
vezes levam a questões inconscientes intrincadas – e fundamentais para o
tratamento.
Cientistas reconhecem, porém, que a neurobiologia da escrita terapêutica
ainda apresenta muitos pontos obscuros. Algumas tentativas de registrar
a atividade neural antes e depois de a pessoa escrever renderam poucas
informações, pois as regiões ativas estão localizadas em áreas muito
profundas do cérebro. O que se sabe é que a escrita ativa um conjunto de
vias neurológicas – e vários estudiosos estão comprometidos em descobri-
las. Atualmente na Universidade do Arizona, o neurocientista Richard Lane,
doutor em psicologia, usa técnicas de imagem cerebral para estudar a
neuroanatomia das emoções e a forma como elas são expressas.

32
sexualidade

Idosos
buscam respostas sobre
sexo na internet
U
ma pesquisa sugere que um nú-
Falar sobre o tema
mero crescente de idosos conti-
costuma ser tabu tanto
nua a ter vida sexualmente ativa,
para os mais velhos,
quanto para seus o que colabora com a saúde e a
cuidadores e parentes; felicidade. Embora boa parte hesite em discu-
felizmente, a tecnologia tir questões íntimas com o médico, um novo
pode ser muito estudo revela que muitos têm lançado mão
útil na hora de de comunidades online para ter entre si as
procurar informações respostas e o apoio de que necessitam.
34
34
sexualidade

A atividade sexual entre adultos


com mais idade é comum – mais
de metade dos homens e um ter-
ço das mulheres na faixa dos 70
anos, casados ou não, relataram
fazer sexo pelo menos duas ve-
zes por mês em um estudo publi-
cado na Archives of Sexual Beha-
vior. Mas isso pode ser complicado. Problemas médicos que
costumam surgir com a idade, como diabetes e doenças car-
díacas, podem afetar o desejo sexual e o desempenho. Muitos
viúvos que começam a namorar novamente mais tarde na vida
não sabem como se proteger de doenças sexualmente trans-
missíveis ou abordar alguém por quem têm interesse. Para pio-
rar as coisas, os estereótipos relacionados com a idade – como
a ideia de que idosos são “muito velhos para o sexo” – podem
criar diiculdades para que eles cheguem às respostas.
Uma revisão recente da literatura cientíica mostra que, além
de os idosos raramente conversarem sobre sexo com os mé-
dicos, muitos desses proissionais se revelam hesitantes em
apresentar o tema. “Os resultados, a literatura cientíica e a mí-
dia atual mostram que boa parte dos prestadores de cuidados
de saúde, das equipes de casas de repouso para idosos e das
próprias clínicas que atendem essa população costuma igno-
rar a saúde, a necessidade e os direitos sexuais de seus clien-
tes e moradores”, airma a cientista social Liza Berdychevsky,
da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign.
À luz dessa preocupante tendência, Berdychevsky e sua cole-
ga Galit Nimrod, pesquisadora da área de comunicação da Uni-

35
sexualidade

versidade Ben-Gurion do Negev, em Israel, decidiram investigar


se idosos conseguiam encontrar apoio sobre temas sexuais em
fóruns online. Depois de terem analisado aproximadamente 700
mil mensagens postadas no espaço de um ano em diversas co-
munidades da rede, de vários países, elas encontraram cerca
de 2.500 posts dedicados a discussões de questões relaciona-
das com a sexualidade. Menos de 0,4% do total de mensagens.
Apesar disso, alguns desses tópicos eram muito populares,
com milhares de visualizações, o que sugere que, embora não
participassem dos debates, muitos membros da comunidade
utas.
uisadores identiicaram também evidên-
cias que sugerem que esses lugares
ajudavam a responder a perguntas dos
usuários, deixando-os mais confortáveis
sobre o amadurecimento da sexualida-
de, segundo um artigo publicado em ju-
nho no Journal of Leisure Research.
“As comunidades oferecem aos
membros a garantia de que não estão
sozinhos e de que tudo o que experi-
mentam é enfrentado por muitos outros
em sua faixa etária”, diz Berdychevsky.
Além disso, os fóruns online oferecem “um canal para comparti-
lhar diiculdades, ganhar conhecimento em primeira mão e trocar
conselhos”. Ela e outros investigadores continuam a enfatizar a
importância de melhorar a comunicação face a face sobre sexo,
principalmente em ambientes de cuidados de saúde. No entanto,
à medida que mais idosos ganham acesso à internet, sua vida se-
xual tende a melhorar e, em geral, também seu bem-estar geral.

36
DISPONÍVEL NA LOJA SEGMENTO
especial • déjà-vu

Você já
viu isso!
De repente surge aquela impressão de já
termos vivido algo – e a sensação é, quase
sempre, de estranhamento: é o que chamam
de déjà-vu. Neurologistas e psicólogos
tentam compreender esse misterioso
fenômeno da percepção temporal
38
especial • déjà-vu

V
ocê já se “lembrou” de ter vivido determinado mo-
mento segundos antes de ele ter ocorrido? A sensa-
ção costuma ser acompanhada de certo desconfor-
to. Mas quando foi isso? Será possível? Esse tipo de
experiência de déjà-vu, a sensação difusa de já ter vivido antes
uma nova situação exatamente da mesma forma, é comum.
Algumas pessoas chegam a sentir esse momento como irreal,
como num sonho. O sentimento de poder prever com exatidão
o que vai acontecer no momento seguinte também não é raro.
E, vez por outra, um lugar parece estranhamente conhecido
para uma pessoa, apesar de ela ter certeza de nunca ter esta-
do lá antes. Por isso, desde tempos imemoriais os déjà-vus são
considerados indícios de vidas passadas e de renascimentos.
Para o psicólogo e neurocientista Akira O’Connor, pesquisa-
dor da Universidade de Saint Andrews, na
Há mais de um
Escócia, o fenômeno pode ser resultado
século, Sigmund de uma espécie de “checagem da memó-
Freud levantou ria”, realizada periodicamente pelo cérebro.
a hipótese de Em um estudo, ele e sua equipe procura-
que déjà-vus ram induzir o déjà-vu em 21 voluntários e
resultariam os submeteu a exames de ressonância
do desejo de magnética (veja texto na pág. 48). Ele previa
recapitular eventos que durante os exames de neuroimagem
reprimidos, fossem ativadas as regiões cerebrais as-
sociadas à memória (como o hipocampo),
funcionando
mas o pesquisador se surpreendeu com
como mecanismo
o resultado: o que constatou foi um maior
de defesa contra funcionamento das partes que participam
experiências das tomadas de decisões. Para O’Connor,
traumáticas os resultados apresentados na Conferên-

39
especial • déjà-vu

cia Internacional da Memória, em Budapeste, conirmam que o


déjà-vu ocorre quando áreas frontais do cérebro revisam nos-
sas lembranças em busca de algum tipo de erro na memória, o
que provocaria uma espécie de conflito entre a busca por uma
recordação e a certeza de que não vivemos aquele momento.

Não é alucinação
Também estudioso do assunto, o neurocientista Uwe Wolfradt,
professor do Instituto de Psicologia da Universidade Martin, em
Halle-Wittenberg, na Alemanha, entrevistou mais de 220 estu-
dantes a respeito dessa experiência. Segundo ele, 80% disse-
ram acreditar que, durante um déjà-vu, estavam se lembrando
inconscientemente de um acontecimento que haviam esque-
cido temporariamente. Essa noção lembra a ideia de Sigmund
Freud (1856-1939) de que déjà-vus resultam do desejo de re-
capitular eventos reprimidos. Ou seja, um mecanismo de defe-
sa contra experiências traumáticas.

40
especial • déjà-vu

A psicologia cognitiva também traz à tona processos in-


conscientes para explicar o déjà-vu, os processos da memó-
ria “implícita” ou “não declarativa”. Suponhamos que você veja
um velho armário em uma feira de usados e de repente toda
a situação lhe parece conhecida, mas você se esqueceu de
uma coisa: quando ainda era criança, havia um armário muito
parecido na casa dos seus avós!  

Estímulos subliminares
Uma teoria da psicologia da cognição diz que nós podemos
ter a sensação de que uma pessoa, um local ou um aconteci-
mento nos são familiares mesmo quando já experimentamos
anteriormente apenas um aspecto determinado deles – como
um odor característico – em outro contexto. Esse elemento
unitário – que nós, porém, esquecemos ou percebemos na
época apenas inconscientemente – desencadeia uma sen-
sação de familiaridade que é transferida
Na maioria para toda a “composição”.
dos casos, o Algumas suposições também se baseiam
no processamento inconsciente de infor-
fenômeno ocorre
mações, airmando que falhas de aten-
na sequência de
ção seriam as responsáveis pelo déjà-vu:
uma situação de ao dirigir um carro, por exemplo, você se
tensão, quando, concentra no trânsito. Você vê uma mulher
após o período de blusa vermelha na calçada, com um
de vigilância e cachorrinho na coleira, mas não registra a
depois de cansaço, cena conscientemente. Um instante de-
finalmente pois, você tem de parar no semáforo e tem
relaxamos tempo de olhar em volta com calma. Nes-
se momento, a mulher que atravessa com

41
especial • déjà-vu

o cão lhe parece estranhamente familiar, apesar de você achar


que nunca a viu antes. Expressa de forma generalizada, nessa
situação, a primeira percepção sob distração é imediatamen-
te seguida de uma segunda com atenção total. A informação
pouco antes interiorizada inconscientemente é interpretada de
forma errônea como lembrança.
Estudos sobre a percepção subliminar fornecem supor-
te empírico para essa hipótese. O psicólogo Larry L. Jacoby,
da Universidade de Washington em St. Louis, e seus colegas
mostraram em 1989 aos participantes de seu estudo uma pa-
lavra em um monitor durante tempo tão curto que eles mal pu-
deram percebê-la. No entanto, os voluntários declararam com
mais frequência, mais tarde, durante uma nova apresentação
mais longa da mesma palavra, que já a haviam visto antes. O
processamento inconsciente de estímulos subliminares faz
com que estímulos posteriores semelhantes sejam processa-
dos mais rapidamente – um procedimento denominado pri-
ming (preparação) e hoje já bastante estudado.
Essa e outras hipóteses sobre a atenção impressionam

42
especial • déjà-vu

principalmente porque são bastante ade-


quadas às circunstâncias que acompanham
o déjà-vu. No início do século passado,
Gerhar Heymans, considerado o fundador
da psicologia na Holanda, realizou um es-
tudo com 42 universitários. O pesquisa-
dor lhes pediu que, durante seis meses,
preenchessem um curto questionário
imediatamente após uma experiência de déjà-vu. As-
sim, descobriu que pessoas que sofrem de variações de hu-
mor, fases de apatia ou que têm um ritmo de trabalho irre-
gular são mais afetadas por essas ilusões da memória.  
Vários autores associam os déjà-vus a um grande volume
de viagens, forte cansaço e grande fardo devido ao estresse.
Em um estudo da Universidade de Halle-Wittenberg, 46% dos
estudantes se lembravam de estar mais relaxados na ocasião
do fenômeno; cerca de um terço chegou mesmo a descrever
seu estado de espírito como alegre.
Provavelmente, o déjà-vu não é desencadeado imediata-
mente no momento da tensão por estresse, quando estamos
extremamente vigilantes, mas depois, quando nos tornamos
cansados e relaxamos. Porém, também são plausíveis outras
circunstâncias nas quais nós, por um curto período, não perce-
bemos mais nosso entorno conscientemente. Um de nossos
estudos com mais de 300 universitários mostrou, por exemplo,
que déjà-vus estão fortemente relacionados à capacidade de
mergulhar em fantasias, deixando-se levar pela imaginação.
Hoje os déjà-vus estão incluídos entre os distúrbios da memó-
ria, mas nada indica que pessoas que os experimentam com
frequência sofram de problemas nessa área.
especial • déjà-vu

Outra forma
de captar
a realidade
Durante a vivência, duvidamos da realidade por
uma fração de segundo. Para neurocientistas,
observar o fenômeno pode ajudar a entender
melhor a consciência, os distúrbios de memória
e como o cérebro produz uma imagem contínua
do que experienciamos
44
especial • déjà-vu

Há mais de um século já se especulava sobre o que seria


realmente o déjà-vu. Uma das conquistas recentes da ciência
é a diferenciação entre o fenômeno e distúrbios especíicos.
Por exemplo: alucinações são percepções não associadas a
estímulos externos, enquanto as imagens no déjà-vu são sem-
pre vinculadas à realidade. A ilusão, neste último caso, consiste
no fato de que, por um curto instante, algo desconhecido de-
sencadeia uma sensação de familiaridade.
Atualmente, os fundamentos neuronais do déjà-vu ainda
são conhecidos apenas de forma fragmentada. Durante mui-
to tempo, foi bastante popular a ideia de que uma transmis-
são neuronal atrasada seria responsável por ele. Naturalmente,
nos mais altos centros de processamento do cérebro, as infor-
mações ambientais vindas de diferentes regiões precisam ser
fundidas a qualquer momento em uma impressão coerente.
Seria, portanto, muito plausível que atrasos em um dos cami-
nhos de transmissão causassem uma grande confusão e tal-
vez também um déjà-vu.
O pesquisador Robert Efron já causou sensação em 1963 com
uma teoria detalhada, feita no Hospital Ad-
A vaga ministrativo dos Veteranos em Boston, em
sensação de já Massachusetts. Seus experimentos com a
conhecermos um percepção temporal o levaram à hipótese
local apesar de o de que o hemisfério esquerdo, mais es-
peciicamente o lobo temporal, seria res-
visitarmos pela
ponsável pela organização de tempo das
primeira vez faz
impressões que chegam ao cérebro. Ali,
com que algumas todas as imagens apreendidas pela visão
pessoas vejam chegariam duas vezes, consecutivamen-
aí um indício da te, com um intervalo de poucos milisse-
reencarnação gundos – uma vez diretamente, outra com

45
especial • déjà-vu

um desvio pelo hemisfério direito. Se a transmissão indireta se


atrasasse por algum motivo, então o lobo temporal esquerdo
perceberia a diferença interpretando a cena, na segunda vez,
como algo que já ocorreu.

Conexões com epilepsia


A ideia básica de Efron da dupla percepção até hoje nunca
foi refutada nem comprovada e, por outro lado, sabe-se que
os lobos temporais têm um importante papel. Assim, alguns
pacientes com dano nessa região cerebral relataram experiên-
cias frequentes de déjà-vu. O mesmo ocorreu com pessoas
que sofriam de epilepsia. Foi constatado que o foco epilético
se encontrava no lobo temporal. A partir daí, alguns estudiosos
supuseram que os déjà-vus fossem nada menos que minia-
cessos do cérebro.
Avanços no campo da neurologia logo reforçaram a impor-
tância do lobo temporal. Quando um grupo de pesquisadores,
coordenado pelo neurocirurgião Wilder Penield (1891-1976),
em Montreal, estimulou eletricamente o cérebro aberto de
seus pacientes epiléticos durante uma operação em 1959, al-
guns deles relataram experiências do tipo déjà-vu. O neuroi-
siologista Jean Bancaud (1921-1993) e seus colegas do Centro
Paul Broca, em Paris, izeram um relato semelhante em 1994: a
estimulação do lobo temporal lateral ou medial desencadeou
ocasionalmente em seus pacientes “estados oníricos”, entre os
quais o déjà-vu também está incluído.
Apesar de ser questionável o quanto a experiência desen-
cadeada artiicialmente se assemelhasse à natural, as desco-
bertas são plausíveis: ainal, o lobo temporal medial compro-
vadamente participa da memória declarativa e consciente. O
hipocampo é fundamental para memorização de eventos es-
especial • déjà-vu

Quando vivemos pecíicos, o que nos permite revivê-los


mentalmente mais tarde, como um ilme.
essa experiência,
Ao seu lado estão o córtex para-hipocam-
tendemos a duvidar
pal e o rinal, assim como as amígdalas.
da realidade por
John D. E. Gabrieli e pesquisadores da
um momento; para Universidade Stanford apresentaram na
os cientistas, os Science resultados que sugerem que o
pequenos “erros” córtex para-hipocampal e o hipocampo
ajudam a entender cumprem diferentes funções no processo
o funcionamento da memória: enquanto o último permite a
dos processos lembrança consciente de vivências, o giro
de consciência para-hipocampal poderia distinguir entre
estímulos conhecidos e não conhecidos,
e sem obrigatoriamente recorrer a uma lembrança concreta.
A partir disso, Josef Spatt, do Instituto Ludwig Boltzmann, por
exemplo, formulou em Viena a hipótese de que um déjà-vu sur-
ge quando o para-hipocampo desencadeia uma sensação de
familiaridade sem a participação do hipocampo. Nesse instante,
uma cena momentaneamente percebida seria entendida como
conhecida, mesmo que não possa ter clara referência temporal.
Provavelmente, diversas regiões cerebrais participam do dé-
jà-vu: a intensiva sensação de estranhamento de si mesmo e da
realidade, por exemplo, assim como a noção de tempo às ve-
zes alterada indicam complexos processos conscientes. Duran-
te um déjà-vu, nós duvidamos da realidade por uma fração de
segundo. Ao mesmo tempo, essa pequena falha possibilita aos
neurocientistas observar processos da consciência. Talvez as
próximas pesquisas sobre déjà-vu ajudem não apenas a expli-
car como surgem distúrbios de memória, mas também como o
cérebro consegue produzir uma imagem contínua da realidade. 

47
especial • déjà-vu

Fabrique
seu próprio
déjà-vu
Pesquisador criou técnica para que voluntários
tivessem a impressão de já ter ouvido
determinada palavra, quando na verdade
apenas haviam feito uma associação
com outras de sentido próximo

48
especial • déjà-vu

O
estudo metodológico sobre a sensação de ter
vivido algo que não foi experienciando de fato
não é simples, já que o fenômeno não se anun-
cia, algumas pessoas nunca o têm e outras ra-
ramente o experimentam. Por causa disso, cientistas quase
sempre têm de coniar na memória dos voluntários quando
eles relatam o fenômeno – o que nem sempre garante in-
formações precisas. 
Para driblar essas diiculdades, o psicólogo e neurocien-
tista Akira O’Connor, pesquisador da Universidade de Saint
Andrews, na Escócia, desenvolveu técnicas para estimular
voluntários que participavam de seus experimentos a viver
experiências de déjà-vu. Para induzir os participantes a essa
sensação, O’Connor e sua equipe liam para eles uma lista de
palavras relacionadas, como cama, travesseiro, noite, sono.

Pelo menos uma vez na vida


A expressão déjà-vu – em francês, “já visto sua vida e, em geral, relata que, apesar da
antes” – foi utilizada pela primeira vez familiaridade com o acontecimento, lhe
em 1876 por Émile Boirac (1851-1917). falta a lembrança concreta. O fenômeno
Provavelmente, foi inspirada pelo poema está entre as mais frequentes formas de
Kaléidoscope, do francês Paul Verlaine (1844- paramnésia, entre as quais se incluem
1896); o autor, no entanto, utilizou outra distúrbios de memória como lembranças
expressão, déjà vécu, que tem significado adulteradas, ilusões e alucinações.
aproximado, quer dizer já vivido antes. Com o aumento da idade, os déjà-vus
Em 1896, o médico F. L. Arnaud adotou costumam ser cada vez menos relatados.
a expressão e passou a usá-la no campo Talvez o fenômeno realmente não ocorra
científico. Dados sobre quantas pessoas mais com tanta frequência nas fases mais
têm déjà-vus variam de estudo a estudo. tardias da vida. Mas também é possível que
A maioria das pessoas adultas já teve pelo idosos prestem menos atenção a eles ou os
menos uma experiência desse tipo em esqueçam mais facilmente.

49
especial • déjà-vu

O’Connor e sua
equipe liam uma
lista de palavras
relacionadas,
como cama,
travesseiro,
noite, sono. No
entanto, não
pronunciavam
o vocábulo que
uniria todas No entanto, não pronunciavam o vocábulo
elas: nesse que uniria todas elas: nesse caso, “dormir”.
caso, “dormir” Se nessas circunstâncias alguém per-
guntasse aos participantes se acredita-
vam tê-la ouvido, muitos teriam a falsa
lembrança de que sim. Mas o que O’Connor fazia na verdade
era indagar aos voluntários se tinham ouvido alguma pala-
vra que começava pela letra d, ao que eles respondiam que
não. E depois lhes perguntava se tinham ouvido o vocábulo
“dormir”. Os participantes estavam conscientes de que não
podiam tê-la escutado (pois começa por d).
Simultaneamente, porém, a ideia lhes parecia muito fami-
liar. Segundo reconhece o próprio psicólogo, um problema
desse tipo de método é que os participantes frequentemente
dizem aos pesquisadores o que acreditam que querem ou-
vir. “Com boa intenção, alguns tentam nos convencer de que
realmente tiveram um déjà-vu, embora saibamos que não é
um fenômeno real, e sim um análogo experimental, apenas
similar”, diz O’Connor. Essa constatação não chega a compro-
meter o estudo, mas diiculta alguns aprofundamentos.
50
saúde mental

A arte de ouvir
o silêncio

Autora de um livro recém-lançado no Brasil,


monja zen-budista propõe exercícios práticos para aquietar
a mente e acessar a sensação de bem-estar e centramento,
independentemente do lugar onde você esteja

por Kankyo Tannier


saúde mental

S
ão seis da tarde. Nesta época do ano, a noite cai cedo
e mergulha a floresta numa doce penumbra. O vento
brando nas árvores, o repique dos sinos da igreja ao
longe, depois os do templo protestante, como um eco.
Os pássaros se calam. Um farfalhar e alguns estalos sugerem a
presença de animais selvagens. Aqui na região costumamos to-
par com corças e javalis, sem falar num número impressionante
de aves de rapina, corvos e gatos errantes. O crepúsculo é tran-
quilo, como se o próprio tempo estivesse suspenso. O inverno é
tão relaxante para quem sabe ouvi-lo!
Sim: ouvir o silêncio, o espaço entre as palavras, a calma na
tempestade e a passagem do tempo. Reaprender a provar: o
sabor de um instante,
o aroma de um prato,
Alguns segundos de silêncio
a espuma dos dias e
“roubados” de nossa rotina
o calor do fogo. Rea-
atarefada são como um desvio
prender a sentir: o
da estrada monótona da rotina, contato das mãos, um
podem mudar o estado mental coração que bate, o
e o tom de um dia inteiro espaço que se abre e
o tempo que para...
Mas vale assinalar o fato de que o silêncio não tem nada a ver
com a ausência de barulho. Todo mundo já viveu a experiên-
cia do ilimitado em algum momento: caminhando no coração
de uma floresta; parando subitamente em meio a uma multidão
em movimento; voltando para casa de ônibus no meio da noite;
escutando as conversas de amigos – de longe – sem realmente
ouvi-las... Todas as vezes, o silêncio estava à espreita.
Entre as palavras, entre as imagens habituais, entre as sensa-
ções familiares, existe um universo paralelo, uma calma absolu-
53
saúde mental

ta e benéica, e seu acesso é zelosamente guardado pelas sen-


tinelas da concentração e da atenção plena. Pois então sejamos
claros: o silêncio não tem nada, mas rigorosamente nada a ver
com a ausência de barulho!
Seria simples demais. Se, para saborear o silêncio e a paz in-
terior, bastasse nos trancarmos duas horas por dia numa cápsu-
la de isolamento sensorial, todos fariam isso!
a ra fugir d Muito na moda nos anos 1970, os cha-
sp o
a Em frente ao b mados tanques de flutuação ressur-
giram recentemente nas grandes
tic

computador, fixe um ponto


ar

em qualquer lugar da tela. O


ulh
Prá

cidades. Como essa prática é


importante é focar seu olhar numa
direção precisa. Em seguida, permita desaconselhável aos claustro-
o interno

que surja uma nova percepção do seu fóbicos e inacessível aos orça-
corpo e uma nova percepção do mundo mentos mais modestos, preferi
que o cerca. Respire profundamente
sentindo o ar passar por suas narinas. propor aqui experiências mais
Faça essas pausas visuais de três poéticas completamente gra-
minutos a cada duas horas tuitas.
O universo sonoro é mais rico e
sua busca pelo silêncio, sem dúvida,
bem diferente da nossa. De tanto conviver com esses especia-
listas, aprendi a erguer minhas próprias orelhas com entusiasmo
e curiosidade em todas as direções. Ouvir mais me conecta ao
momento presente e – em última instância – ao silêncio.
Quando volto à agitação da cidade, quase sempre preciso fa-
zer o caminho oposto. É bem difícil, depois de passar horas de-

54
saúde mental

Instale em seu celular


senvolvendo uma sensibili- um aplicativo de “gongo”
dade auditiva, retornar ao ou “sino de mindfulness”.
caldeirão barulhento que Existem vários aplicativos gratuitos,
que podem ser ajustados à frequência
é o centro urbano. Como que você programar. De hora em hora,
por encanto, meu cérebro por exemplo. Quando o alerta soar,
adotou uma técnica bas- relaxe o maxilar e sinta o efeito
de um relaxamento total
tante simples e eicaz para no corpo
lidar com isso: o esquecimento
sonoro. Em meio à correria do dia
a dia, nosso cérebro “se esquece” de escutar. Ou seja: deixa os
sons passarem pelo corpo sem prestar atenção neles. É muito
prático e é o que a maioria das pessoas faz de maneira incons-
ciente para sobreviver à cacofonia do ambiente. Exceto quando
estamos muito cansados, os sons só chegam até nós iltrados,
graças a uma espécie de dessensibilização sonora automática.
Nossa capacidade de adaptação é realmente notável. E a boa
notícia é que, embora não pareça, as cidades também estão
cheias de silêncio e serenidade!

55
saúde mental

Um minuto, por favor


Nada melhor que uma pequena experiência para testar a ma-
gia do silêncio em tempo real. Não importa onde você esteja
neste momento: no ônibus, na sua cama, debaixo de uma ár-
vore, em São Paulo, na Tailândia... Erga os olhos neste
momento. Observe o que há ao seu redor, reto-
Toda manhã,
antes de sair da cama,
me a consciência de seu corpo, de sua respira-
tome consciência de seu ção, e ique exatamente onde está, sem fazer
primeiro pensamento ao nada, por alguns segundos. Um minutinho.
despertar. Deixe-o passar,
Sessenta segundos bem mais agradáveis do
observe o seguinte e
comece o dia de maneira que aquele minuto de silêncio que comparti-
consciente lhamos em caso de luto nacional.
Trata-se aqui de um minuto de silêncio volun-
tário, retirado da marcha do tempo. Um “minutinho”
de silêncio. Nada melhor que uma pequena experiência para
testar a magia do silêncio em tempo real. Tome um tempo
para esse exercício simples. Pode começar.
Você percebeu os segundos se passando? Sentiu o tempo
correndo mais devagar? Um espaço diferente se abre e os con-
saúde mental

Pelo menos
uma ou duas vezes por
semana, almoce sozinho e em
silêncio, sem o celular por perto.
tornos do mundo icam mais níti-
Uma solidão consentida e luminosa.
dos. E isso não é nada se com- Nessa pausa você dedicará tempo a
parado a todas as descobertas mastigar cada pedaço, saboreando com
consciência a sua refeição. Você vai
que você poderia fazer se paras-
perceber que o tempo desacelera e que
se algumas vezes ao longo do dia um imenso espaço de tranquilidade
e olhasse para o céu. Nosso minu- pode surgir mesmo no meio
de um dia agitado.
to de silêncio parece parar o tempo.

É mágico! E mais fácil de constatar quando o corpo também


permanece imóvel. Então tente praticar esse minuto de silêncio
sem se mexer: apenas ique atento ao que muda e acontece.
Para entrar de verdade nessa experiência, pense na seguinte
metáfora: você está dirigindo em alta velocidade na estrada. A
paisagem desila lá fora, familiar, reconfortante; há uma curva
aqui, outra ali, mas a maior parte do caminho segue em linha
reta. Você se sente seguro. Mas é grande o risco de começar
a se entediar. Não há muito que ver, os pontos de parada são
A AUTORA sinistros e o ar dentro do carro parece sufocante. E se você pe-
KANKYO TANNIER
é monja zen-budista,
gasse a primeira saída? E se explorasse uma estrada diferente
autora do recém-
lançado A magia do por alguns quilômetros? E se tentasse pegar a “trilha menos per-
silêncio (Sextante,
2018). Este artigo corrida”? Um minuto de silêncio roubado de nossa rotina atare-
foi adaptado
com base na obra, fada é como um desvio da estrada monótona – pode mudar o
com autorização
da editora. tom de um dia inteiro.

57
livros | lançamentos

Câncer – Quando a vida


pede por um novo ajuste.
Bel César. Gaia, 2018.
371 págs. R$ 49,00.

O câncer revisitado
Autora especializada no acompanhamento de pessoas
com doenças terminais partilha sua experiência
em tom ao mesmo tempo delicado e assertivo

psicóloga Bel César está acostumada a lidar com a realidade da mor-

A te iminente. Com formação em musicoterapia no Instituto Orff, em


Salzburgo, na Áustria, atualmente ela trata de pessoas com quadros de estresse
pós-traumático, seguindo o método Somatic Experiencing (SE), e se baseia em pre-
ceitos e filosofia do budismo tibetano tanto para acompanhar pacientes que se pre-
param para morrer quanto para ajudar famílias a lidar com o luto. No ano passado,
três semanas antes de embarcar para uma viagem ao Tibete, ela recebeu o mesmo
diagnóstico que, só entre 2018 e 2019, aproximadamente 1,2 milhão de brasileiros
tiveram ou ainda terão de enfrentar, segundo estimativas do Instituto Nacional do
Câncer (Inca). Os tumores de tiroide, que acometeram a psicóloga, estão entre os
cinco tipos de câncer mais frequentes entre mulheres. Ela ouviu o médico dizer:
“Seu ultrassom indica nódulos bilaterais à direita, de limites maldefinidos, com cal-
cificações internas e vascularização central”. E decidiu tornar sua experiência signi-
ficativa, de forma que pudesse trazer benefícios para outras pessoas. O resultado
dessa jornada é o livro Câncer – Quando a vida pede por um novo ajuste.
livros | lançamentos
Escrita em tom generoso e pessoal, a obra apresenta informações técnicas,
mas não se furta ao tom emocional. Estão presentes no livro a tristeza inicial com
o recebimento da notícia, a extrema importância do amparo recebido das pessoas
queridas, as dúvidas sobre decisões a serem tomadas, as certezas que surgiram
quando, em meio ao turbilhão, a mente pôde silenciar.
“Escrever foi importante para me manter motivada para buscar novas informa-
ções sobre o câncer da tiroide e os aspectos mais comuns que envolvem esse as-
sunto, como as diferentes opiniões médicas sobre a possibilidade de fazer ou não
cirurgia, a real necessidade de extração total dessa glândula e os tratamentos mais
adequados após a cirurgia, a exemplo da iodoterapia e do uso da levotiroxina com-
binada ou não com outros hormônios naturais bioi-
dênticos”, afirma a psicóloga na abertura da obra.
Além de dar ênfase aos dados científicos, Bel Cé-
sar retoma sua história bem anterior ao diagnóstico.
“Acredito que uma experiência pessoal compartilha-
da beneficia tanto quem escuta como quem relata.
Escutar a narrativa de alguém frente a um desafio
comum e face a face com o desconhecido nos ajuda
a reconhecer e aceitar nossas forças e vulnerabilida-
des; contar o que aconteceu nesse processo amplia
a percepção que temos de nossa própria história.”
“Acredito que uma Autora de vários livros – Morrer não se improvisa
experiência pessoal (Gaia, 2005), O livro das emoções (Gaia, 2004), Ma-
compartilhada beneficia nia de sofrer (Gaia, 2006), Sútil desequilíbrio do estres-
tanto quem escuta como se (Gaia, 2011), e Grande amor (Gaia, 2015), entre
quem relata. Escutar a outros –, a psicóloga partilha também os ensina-
narrativa de alguém frente mentos budistas recebidos e praticados nos últimos
a um desafio comum e face 30 anos, assim como sua experiência clínica com o
a face com o desconhecido método Experiência Somática. E discorre de manei-
nos ajuda a reconhecer
ra direta e cativante a respeito dos caminhos que
e aceitar nossas forças
percorreu no Tibete e na China, acompanhada por
e vulnerabilidades;
seu mestre, Lama Gangchen Rinpoche, e seu filho,
contar o que aconteceu
Lama Michel Rinpoche – um trajeto em busca da
nesse processo amplia a
percepção que temos de cura do câncer, mas não só, também do equilíbrio
nossa própria história” do corpo, da mente e da alma.

59
livros | caixa lúdica

A menina feita de

“Nem-te-ligo” nuvens. Tati Santos de


Oliveira. Estrela Cultural.
26 págs. R$ 19,90.

feito de nuvens
Com delicadeza, livro conta a história de uma garotinha
com vitiligo, uma doença autoimune caracterizada pela
despigmentação da pele

er diferente nem sempre é fácil – principalmente na infância, quando

S os olhares ou atitudes de outras crianças (e até mesmo de adultos)


podem despertar sentimentos de rejeição e, eventualmente, traumas
emocionais. A designer gráfica Tati Santos de Oliveira, mãe de Maria Luiza, de
6 anos, e João, de 3, encontrou uma maneira delicada de lidar com as marcas
do vitiligo que, há aproximadamente dois anos, começaram a aparecer pelo
corpo da filha: criou uma narrativa amorosa sobre a situação.
O resultado é o livro A menina feita de nuvens, no qual Tati conta jus-
tamente a história de Maria Luiza, uma garotinha de cabelos negros que
tem um “segredo”: sua pele é enfei-
tada com manchinhas que lembram
O corpo da menina é enfeitado
nuvens branquinhas (que às vezes se
com manchinhas brancas,
que às vezes se tornam rosadas tornam rosadas como algodão-doce
como algodão-doce ou sorvete de ou sorvete de morango, quando a me-
morango, quando ela se expõe ao sol nina se expõe ao sol).
Algumas formas se parecem com
flores, barquinhos e bichinhos que ga-
nham até nome. Porém, nem sempre é fácil lidar com o preconceito de pes-
soas que não sabem apreciar a beleza de ter nuvens pelo corpo – e às vezes,
Maria Luiza se entristece. Por isso é tão importante ter gente carinhosa por
perto e uma história que a ajude a se lembrar de que não há vergonha ou pro-
blema nenhum em ter vitiligo – ou “nem-te-ligo”, como ela mesma costuma
dizer. (Por Gláucia Leal, editora-chefe de Mente e Cérebro)
livros | caixa lúdica

Para combater o preconceito


O vitiligo é uma doença dermatológica autoimune não transmissível, caracterizada
pela perda da pigmentação natural da pele. Patologicamente, o vitiligo caracteriza-
se pela redução no número ou função dos melanócitos, células localizadas na
epiderme responsáveis pela produção do pigmento cutâneo, a melanina. O próprio
sistema imunológico se desorganiza e o sistema que confere cor à pele falha. O
problema pode surgir em qualquer idade, mas é mais comum entre os 10 e 15
anos e dos 20 aos 40.Embora não haja consenso a respeito da causa, psicólogos e
médicos consideram que fatores emocionais, como estresse e ansiedade, costumam
desencadear ou agravar o quadro. As manchas brancas, chamadas hipocromia,
surgem em variados tamanhos, em qualquer parte do corpo.
O maior problema enfrentado pelas pessoas com a doença (algo em torno
de 1% da população brasileira) é o preconceito. Um estudo desenvolvido no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar) aponta que mulheres com vitiligo apresentam mais risco de
desenvolver baixa autoestima e depressão.
Segundo a pesquisadora Larissa Ruiz, os pacientes se constrangem com o
preconceito em relação à doença, em grande parte provocado pelo medo infundado
de contágio. A psicóloga enfatiza que o impacto psicológico da despigmentação da
pele não pode ser negligenciado. Nesse sentido, A menina feita de nuvens pode ser
de grande ajuda para combater o preconceito.

61

Você também pode gostar