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| ESPECIAL |

PSICOLOGIA SOCIAL: CRIATIVIDADE E COLABORAÇÃO


ANO XIII
No 323

PALPITE
Grau de autoconfiança
influi em crenças e
escolhas

DEPRESSÃO
Dificuldade de decifrar
as próprias emoções
pode ser sinal de
fragilidade

PSICANÁLISE
Fotos de terapia de
grupo favorecem
simbolização de
pacientes somáticos

O SUPERPODER DA
AUTOCONFIANÇA
Flexibilidade e tolerância consigo mesmo são fundamentais
para lidar com dificuldades e valorizar nossos pontos fortes
carta da editora

Sim, é possível

S
eja sincero: se você pudesse escolher um superpoder, desses que os super-
heróis ostentam nos filmes de aventuras, qual você escolheria? Voar? Ficar
invisível? Ter uma força descomunal? Certo, tudo isso seria ótimo no mundo
da fantasia. Mas vamos voltar para a vida concreta. Muitos cientistas acreditam que
um dos maiores (senão o maior) trunfos de qualquer reles humano é a autoconfiança.
Ser capaz de acreditar em suas próprias potencialidades parece ser um recurso
extremamente potente para atingirmos nossos objetivos, lidar com fragilidades e
valorizar o que temos de melhor. Isso vale tanto para a vida pessoal quanto profissional
e relacionamentos. Não por acaso, vários pesquisadores têm se dedicado a entender
melhor os processos psíquicos que concorrem para construirmos nossa autoimagem
e manejarmos a linha que separa a sensação de impossibilidade da certeza de que é
possível (e merecemos) atingir nossos objetivos.
Um dos estudos mais recentes nessa área, desenvolvido na Universidade do Estado
de Ohio, dos Estados Unidos e publicado no periódico científico Basic and Applied
Social Psychology, confirmou que a imagem que fazemos de nós mesmos, sobretudo
em relação a propósitos pessoais, tem total relação com resultados obtidos. “Quanto
mais acreditamos que somos capazes, apesar de eventuais dificuldades e falhas,
mais chances temos de sucesso”, ressalta o professor de psicologia Patrick Carroll,
organizador do estudo.
Autoconhecimento, flexibilidade e acolhimento das próprias falhas são fundamentais
para aperfeiçoar a habilidade de confiar em si mesmo. Até a postura física é importante
na construção da autoconfiança. Cientistas da Universidade Estadual de São Francisco
acreditam que a maneira como nos movimentamos afeta não apenas como os outros
nos veem, mas também como nós nos percebemos. Vale conferir. Boa leitura.

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br
@glau_f_leal

3
sumário DEZEMBRO 2019

capa
autoconfiança
especial
psicologia social

13 O superpoder da
autoconfiança
Tudo parece caminhar bem, até que uma
avalanche de dúvidas parece cair sobre nossa
cabeça, minando nossos melhores propósitos. O
que podemos fazer quando isso acontece?

19 Raízes da segurança
Flexibilidade e tolerância consigo mesmo
parecem ser palavras-chaves quando se trata
de suportar as próprias dificuldades e, assim,
ironicamente, valorizar competências

36 A criatividade é coletiva
Mais do que uma expressão individual, a
originalidade toma forma em um contexto; grupos
não só desempenham papel essencial na criação
de ideias e produtos, mas também asseguram sua
valorização, disseminação e impacto

41 O poder da colaboração
A tendência de julgarmos a criatividade de
maneira que reflita nossa identidade no grupo
ajuda a explicar o preconceito de gênero e racismo
– embora não sirva para justificá-los

46 O jogo da reinvenção
Cultivar a ideia de que conhecemos as pessoas
que nos rodeiam ajuda a dissipar o temor
de desestabilização. As contribuições de um
“semelhante”, não raro, são mais bem recebidas
do que as ideias de um “estranho”

4
06 Imagens que favorecem
a simbolização
O uso de fotografias em sessões de grupo
ajuda na construção de narrativas para
além da sensação dolorosa de pacientes
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5
psicossomática

Imagens que
favorecem a
simbolização

6
psicossomática

Sintomas vividos no corpo em forma de dor e


desconforto (como zumbidos e sensação de
formigamento) tendem a afastar o paciente da
possibilidade de elaboração; o uso de fotografias
em sessões de grupo ajuda na construção de
narrativas para além da sensação dolorosa

Por Cristiane Curi Abud

N
A AUTORA
o trabalho realizado pelo Programa de Assistência
CRISTIANE CURI e Estudos de Somatização da Universidade Fe-
ABUD é psicanalista,
membro do deral de São Paulo (Unifesp), nos deparamos fre-
Departamento de
Psicossomática
quentemente com pacientes somatizadores que
Psicanalítica e do apresentam alteração na capacidade de perceber e interpre-
departamento de
Psicossomática tar os estímulos que se apresentam aos órgãos dos sentidos.
do Instituto Sedes
Sapientiae. É mestre Queixas como zumbido no ouvido, dores no corpo, formiga-
em psicologia
clínica e doutora
mento são constantes.
em administração Para alguns pacientes as sensações aproximam-se da alu-
de empresas.
Professora afiliada da cinação – percepção sensorial que se dá na ausência de um
Universidade
Federal de São Paulo estimulo externo e sobre a qual o sujeito não questiona como
(Unifesp), coordena
o Programa de
fruto de sua produção psíquica. Essa condição que dificulta a
Assistência e Estudos construção de uma narrativa afetivamente significada.
de Somatização na
instituição. É autora de Ao vivenciarmos uma experiência somos corporalmente
Dores e odores, distúrbios
e destinos do olfato (Via afetados por estímulos sensoriais que demandam trabalho
Lettera, 2009), coautora
de Psicologia médica:
ao psiquismo. Ocorre uma passagem da sensação para a
abordagem integral do imagem psíquica, que, carregada de afeto, constitui o que
processo saúde-doença
(Artmed, 2012), e denominamos representação-coisa. O passo seguinte à sig-
organizadora de A
subjetividade nos grupos nificação afetiva da experiência é poder falar sobre ela, trans-
e instituições (Chiado,
2015) e O racismo e o
formando-a em representação de palavra.
negro no Brasil: questões Esses pacientes, porém, muitas vezes não conseguem fa-
para a psicanálise
(Perspectiva, 2017). zer a transição da sensação para a imagem psíquica e o que

7
psicossomática

seria insumo para a experiência estética da vida psíquica apa-


rece como algo do qual a pessoa anseia por livrar-se. Cabe
aqui uma diferenciação entre esse estado e a psicose. Para
o psicanalista francês René Roussillon, na psicose o sujeito
toma a atividade representativa por uma atividade perceptiva
– que chamamos de alucinação. A pessoa pensa o objeto na
sua ausência, representa o objeto, mas sem saber que repre-
senta. Ele não completa a simbolização, que é uma atividade
de representação que sabe que é uma representação.
O psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours ressalta que
o paciente somatizador tende a não representar e nem sim-
bolizar. Neste sentido, as parestesias destacadas por Sig-
mund Freud ao estudar as neuroses atuais como uma “ten-
dência a alucinações” podem ser compreendidas como um
movimento do sujeito somatizador em direção a uma tentati-
va de simbolização, dado que a alucinação inclui o mecanis-
mo psíquico de representação do objeto ausente.
Adotamos no trabalho terapêutico realizado no Programa
de Assistência e Estudos de Somatização da Unifesp dinâ-
micas grupais com objetos mediadores. O caso clínico de
uma paciente de 70 anos que frequentou o grupo de fotolin-
guagem, formado por mulheres, ajuda na compreensão da
técnica (veja quadro abaixo).

IMAGEM E PALAVRA
Uma sessão de fotolinguagem acontece em dois momentos. Primeira-
mente, as fotos são escolhidas (entre várias de um dossiê apresentado
ao grupo durante a sessão) com base em uma pergunta enunciada pelo
analista. Num segundo momento o terapeuta convida os participantes a
partilharem no grupo a fotografia escolhida no momento em que deseja-
rem. A proposta é que a exposição seja escutada sem interpretações. Ao
final, cada um diz o que percebe de parecido ou de diferente em relação
ao que a pessoa viu e destacou na imagem.

8
psicossomática

No início do grupo, Joana, disse: “Eu não durmo bem! Cho-


ro de dor, sinto umas agulhadas!” Outras pacientes também
falam a respeito de suas dores e da dificuldade de controlá-
-las. Sugeri então às participantes que respondessem com
uma foto à pergunta: O que é controlar?
Joana escolheu sua imagem (abaixo) “Esta moça está só,
acabou de perder o marido, está com dor.” Notei que a es-
colha da foto não tinha, aparentemente, relação com a per-
gunta feita, e comentei: “Mas a pergunta era sobre controle.
Como será que essas coisas se ligam?” Outra paciente co-
mentou: “Ela está no hospital triste, tentou suicídio. Era tanta
dor que se descontrolou”.

Neste momento em que a paciente associa a imagem es-


colhida à pergunta, Joana arregalou os olhos e sorriu, como
uma criança que acaba de se reconhecer no espelho: “Deu
certo a minha foto, né, doutora?”
Havia um humor depressivo no grupo que, muito aderido
à dor, resistia entrar na brincadeira. Ao propor outra pergunta

9
psicossomática

que não falasse diretamente da dor e fazer uma ligação en-


tre a foto escolhida e a pergunta, tentei promover um deslo-
camento libidinal da sensação dolorosa para a imagem, que
poderia então ser transformada pelo olhar dos outros.
O regozijo de Joana deveu-se à transformação de sua alu-
cinação/dor no sentimento de ilusão de ter encontrado/cria-
do a foto que se tornaria um fenômeno subjetivo, resultado
de sua criatividade e seu encontro com a realidade da foto. O
grupo cumpriu a função de auxiliá-la nesta composição par-
tilhando do prazer da criação. Este movimento no qual Joana
expõe no grupo a dificuldade de habitar a área intermediária
da criação – ela nunca sabia o que sua foto tinha a ver com
a pergunta feita – repetia-se, assim como se repetia o movi-
mento do grupo de resgatar a capacidade de simbolização.
O humor do grupo mudou.
Em outra sessão, pedi às pacientes que
se apresentassem às estagiárias usando
para isso uma foto. Joana escolheu a foto
de uma mulher “enfiando um funil no chão”,
segundo suas palavras (veja ao lado). Já en-
trando no jogo, outra paciente disse rindo:
“O que isso tem a ver com a nossa pergun-
ta?” Joana respondeu: “Eu nunca sei o que
tem a ver, escolho qualquer foto, aí as meni-
nas do grupo me ajudam e dá certo. Ela está
enfiando algo no chão”. As outras pacientes
comentam que não é no chão, mas sim na
garganta do animal. “Na garganta? Nem tinha percebido que
era um animal”, diz Joana. E todos começam a rir.
Este pequeno trecho da cadeia associativa grupal pode
ser compreendido como fruto das alianças inconscientes

10
psicossomática

estruturantes do grupo. Uma pacien-


te havia revelado um abuso sexual que
sofreu e falava muito desse assunto, o
que deixava outra paciente visivelmen-
te incomodada, a ponto de brigarem e
a paciente que foi abusada nunca mais
voltar. O grupo não tocou mais no assun-
to e estabeleceu inconscientemente o
acordo de recusar o episódio e não falar
mais do abuso sexual.
A foto escolhida por Joana figurava uma
situação de abuso onde o animal é alimen-
tado de maneira violenta. De certa forma,
as pacientes sentem seus corpos serem
abusados como nessa foto, onde sua pre-
sença não é percebida e seu desejo não
é reconhecido. A recusa dos abusos sofridos e a decorrente
repressão dos afetos determinam o negativo no grupo, aquilo
que fica fora do campo da consciência, compondo o que o psi-
canalista René Kaës chamou de pacto denegativo.

Ao vivenciarmos uma experiência somos


corporalmente afetados por estímulos sensoriais
que demandam trabalho psíquico; alguns
pacientes, no entanto, não conseguem fazer a
transição da sensação para a imagem

Joana seguiu denunciando a violência no grupo, como um


porta-retrato onde o corpo é tratado com negligência. Suas
imagens eram acolhidas pelo grupo que as usava para meta-
bolizar as próprias situações de abuso. Suas fotos funcionavam

11
psicossomática

como a lucidez da fala delirante de um paciente psicótico,


rompendo gradualmente com o pacto do qual éramos todos
signatários.

Diante do aumento da possibilidade de


representar e simbolizar a violência, o grupo pôde
abrir mão da defesa e refazer suas alianças; as
participantes decidiram que ali poderiam dizer
sobre o que as estivesse incomodando
Diante do aumento da possibilidade de representar e sim-
bolizar a violência, o grupo pôde abrir mão da defesa e re-
fazer suas alianças. As participantes decidiram que ali pode-
riam dizer sobre o que as estivesse incomodando, a ponto de
uma paciente revelar ter sido abusada por seus irmãos e tios
PARA SABER MAIS durante toda a infância.
A subjetividade nos grupos
e instituições, construção,
mediação e mudança.
Quanto a Joana, na última sessão, quando encerrei o gru-
Cristiane Curi Abud (org.).
Chiado, 2015. po, disse: “Sabe, doutora, eu aprendi que eu não tenho ne-
Sobre a sinergia entre nhuma doença, meu pensamento é que é fraco. Eu vou ao
grupo e o objeto mediador.
Vacheret, C.;Gimenez,
G.;Abud, C. C. Revista
médico por causa de um problema que estou sentindo, mas
Brasileira de Psicanálise,
vol. 47, n.º 3., 2013. no caminho eu logo sinto mais dois problemas e então acre-
Um singular plural, dito mesmo que eu tenho três problemas. Agora eu sei que
a psicanálise à
prova do grupo.
René  Kaës. Loyola, 1997.
sou eu que estou pensando isso, e fico num problema só”.
O grupo e o inconsciente: Com essas palavras, Joana conta que aprendeu a “pensar
o imaginário grupal. Didier
Anzieu. Casa do Psicólogo,  o pensamento”, apropriando-se subjetivamente do pensar,
1993.
num movimento simbólico.

12
capa - autoconfiança

O superpoder da
AUTOCONFIANÇA
Tudo parece caminhar bem,
até que uma avalanche
de dúvidas parece cair
sobre nossa cabeça,
minando nossos melhores
propósitos. O que podemos
fazer quando isso acontece?

13
capa • autoconfiança

A
creditar em si mesmo nem sempre é fácil. Os pla-
nos em geral parecem bons: talvez expor uma ideia
interessante durante uma reunião, participar de uma
importante competição esportiva ou simplesmente
abordar o estranho de aparência agradável no café. Mas às
vezes simplesmente não temos a confiança necessária para
decidir dar o passo decisivo. Então, repentinamente, as dúvi-
das nos atormentam: estamos realmente dispostos? Podemos
fazer isso? O que acontece se der errado? E, em meio a varia-
ções de medo, em vez de aproveitar uma oportunidade, pode-
mos deixá-la passar. Ou precisar das palavras encorajadoras
dos outros, que muitas vezes parecem confiar em nós mais do
que nós mesmos.
Mas, afinal, o que realmente significa “confiar em si mes-
mo”? Embora os psicólogos estejam lidando com essa questão
há décadas, não é tão fácil separar a autoconfiança de outros
termos que são frequentemente relacionados. O conceito de
autoconfiança geral se refere principalmente à fé em suas pró-
prias habilidades como um todo. Quando se trata de habilidades
individuais, os cientistas tendem a falar de autoeficácia ou auto-
confiança específica. “Uma pessoa pode ser eficiente em mate-
mática, mas ter baixo desempenho em comunicação”, explica o
psicólogo Qin Zhao, professor da Universidade Western Kentu-
cky, nos Estados Unidos, lembrando que a autoeficácia em uma
área pode mudar com o tempo.
O conceito de autoestima também costuma entrar em jogo

14
capa • autoconfiança

quando se trata de autoconfiança. “Mesmo na literatura cientí-


fica, os dois termos às vezes são confusos, embora eles real-
mente descrevam algo diferente”, diz Qin Zhao. A autoestima
não se refere necessariamente a habilidades, é na verdade o
respeito que você tem por si mesmo, sua própria apreciação.
Em 1990, Jennifer Campbell, então professora da Universidade

“Todo mundo de vez em quando duvida de si


mesmo, isso não é um problema, pode até ser
saudável; mas desconfiar cronicamente das próprias
capacidades afeta a saúde mental e, algumas vezes,
também seu desempenho”, diz o psicólogo

15
capa • autoconfiança

DÚVIDAS SIM, EM
PEQUENAS DOSES
Mas, afinal, o que determina nossas chances de seguir em frente
com confiança sem ajuda externa, partir para manipulação sutil ou
buscar sempre provar que somos capazes? De verdade, ninguém
sabe a resposta exata. Muito provavelmente, como a maioria dos
outros comportamentos e características, existe um componente
genético que determina nossa capacidade de confiar. Observando
crianças pequenas, podemos perceber que algumas simplesmente
fazem o que desejam, por conta própria. 
O ambiente também desempenha um papel importante. O
psicólogo Qin Zhao explica que a autoeficácia é determinada,
entre outras coisas, pela experiência. Os estudos de Zhao
indicam que a dúvida sobre nossas habilidades tende a surgir da
comparação com os outros. “Sempre há alguém melhor que nós.
Se você comparar suas próprias fraquezas com os pontos fortes de
outras pessoas, sempre sentirá dúvida”, observa o especialista. Ele
ressalta que pessoas que se comparam, em geral, foram objetos de
comparações, feitas por adultos (afetivamente importantes para
elas), em relação a outras crianças. As dúvidas, porém, não são
ruins por si só – desde que não assumam o controle.  “Questionar
o próprio desempenho não é um problema, até ajuda a nos
aprimorarmos, mas se colocar cronicamente em xeque prejudica
a saúde mental e o desempenho.

16
capa • autoconfiança

da Colúmbia Britânica em Vancouver, conseguiu mostrar que


a autoestima e a autoconfiança estão frequentemente liga-
das. Para isso, ela selecionou para um estudo 92 alunos com
alta autoestima e 92 alunos com baixa autoestima. Todos pre-
encheram um questionário no qual foram solicitados a decla-
rar em que medida determinados adjetivos se aplicavam a
eles.  Posteriormente, a pesquisadora quis saber dos partici-
pantes quão confiantes estavam em suas respostas. Os volun-
tários com baixa autoestima mostraram menos confiança em
sua própria capacidade de se avaliar.
Mas nem sempre é assim. “Também existem pessoas que
têm baixa autoestima, mas têm muita certeza de como fun-
cionam”, diz o professor de psicologia Richard Petty, da Uni-
versidade Estadual de Ohio. Isso pode ser desfavorável, pois
muitas vezes a pessoa passa a buscar “provas” de que não é
boa o suficiente. Nesse caso, a psicoterapia costuma trazer
ótimos resultados.

INFLUÊNCIAS EXTERNAS
O quanto acreditamos em nós mesmos e em nossas pró-
prias habilidades tem um grande impacto em nosso compor-
tamento. Por exemplo, pode afetar o quanto estamos dispostos
a tomar decisões: aqueles que são atormentados por dúvidas
têm mais probabilidade de procurar informações, muitas vezes
em fontes pouco confiáveis, e hesitam em se comprometer. Às
vezes, nosso comportamento de consumidor também é de-
terminado por nossa autoconfiança. 
Isso foi demonstrado em 2008 por pesquisadores liderados
por Leilei Gao, da Universidade Chinesa de Hong Kong.  Os
cientistas primeiro abalaram a crença dos voluntários em suas
próprias habilidades, pedindo que escrevessem um ensaio
capa • autoconfiança

sobre sua inteligência com a mão não dominante. Os partici-


pantes do experimento deveriam decidir o que gostariam de
receber como agradecimento pela participação no estudo:
uma caneta-tinteiro ou doces. Nesse caso, a maioria escolheu
a caneta, em contraste com os participantes do grupo de con-
trole, que tiveram permissão para escrever sobre suas próprias
habilidades cognitivas com a mão dominante, como de cos-
tume.  Aparentemente, os voluntários tentaram “arrumar” sua
autoimagem com o presente “mais inteligente”!
A falta de autoconfiança também pode bloquear oportunida-
des. Por exemplo, o Relatório de Educação da OCDE de 2015
sugere  que, na escola, as meninas costumam fazer menos
matemática do que os meninos porque têm menos confiança
em sua capacidade de resolver problemas. Se compararmos
apenas os resultados de meninos e meninas que têm um nível
de crença igualmente alto em suas habilidades matemáticas,
nenhuma diferença pode ser vista nos resultados.
Já pesquisadores da Universidade de Witten/Herdecke
foram capazes de mostrar que pessoas que têm mais con-
fiança em suas próprias habilidades se saem melhor nos exa-
mes. Para fazer isso, eles fingiram para os voluntários que as
respostas para um próximo teste de conhecimento geral se-
riam apresentadas a eles em uma tela por uma fração de se-
gundo antes. De fato, apenas palavras completamente insigni-
ficantes tremeluziam no monitor. No entanto, na sequência, os
participantes se saíram melhor no teste do que integrantes do
grupo controle, que tiveram de fazer o teste sem a “prepara-
ção especial”. (Leia mais sobre o tema nas págs. seguintes.)
capa - autoconfiança

Raízes da
SEGURANÇA
Flexibilidade e tolerância
consigo mesmo parecem ser
palavras-chaves quando se
trata de suportar as próprias
dificuldades e, assim,
ironicamente, valorizar
competências

19
capa • autoconfiança

C
laro, todo mundo gosta de se sentir capaz, podero-
so, seguro. E, por vezes, até exagera no empenho
em demonstrar essas características para esconder
a própria fragilidade. Há casos em que as pessoas
se identificam tanto com a “máscara” de força que passam a
transmitir autoconfiança excessiva, o que pode ser igualmen-
te prejudicial a longo prazo. “Isso acontece quando as pesso-
as pensam que sabem mais do que realmente sabem, o que
pode levá-las a tomar decisões que não são do seu interesse,
porque não têm informações suficientes”, diz Richard Petty,
professor de psicologia da Universidade Estadual de Ohio. Ele
alerta para a importância de questionar as próprias convicções
e considerar se de fato vale confiar nelas.  Aliás, a força com
que as pessoas tendem a essa forma de autovalidação não
está diretamente relacionada à crença em si mesmo. Os que
mais receiam a entrar em contato com suas fragilidades, no
entanto, preferem concluir logo que estão certos.

Pesquisador sugere relembrar ocasiões em que


você obteve sucesso ou estava convicto a respeito
de alguma decisão; a recordação pode conectá-lo
com um estado emocional de segurança

Uma pergunta que as pessoas frequentemente se fazem


quando esse assunto surge é: como a autoconfiança pode ser
fortalecida em um nível saudável?  Flexibilidade e tolerância
consigo mesmo parecem ser palavras-chaves quando se trata
de suportar as próprias dificuldades e, assim, ironicamente, va-
lorizar competências.
Uma pesquisa conduzida pelo psicólogo Qin Zhao, da Uni-
versidade Western Kentucky, em conjunto com dois colegas,

20
capa • autoconfiança

POSTURA E ELOGIO
NA HORA CERTA
Andar pela vida afora tanto com a cabeça erguida demais
quanto com uma postura encurvada pode trazer dificuldades. A
conclusão é de um estudo que pesquisadores liderados por Erik
Peper, da Universidade Estadual de São Francisco, publicaram
na revista especializada NeuroRegulation , em 2018. Os
cientistas pediram aos participantes para resolverem problemas
simples de matemática, sentados na vertical ou pendurados
na cadeira. Foi muito mais difícil para os voluntários com
uma postura curvada cumprirem a tarefa. Os pesquisadores
acreditam que a posição ereta incorpora autoconfiança: “A
postura afeta não apenas como os outros nos veem, mas
também como nos percebemos”, afirma Peper.
O nível adequado de reconhecimento também desempenha
um papel importante. O psicólogo Eddie Brummelman,
da Universidade de Amsterdã, adverte particularmente
sobre elogios em excesso e expressões exageradas como
“extraordinário” ou “incrível” em relação a crianças. Isso
pode até deprimir a autoconfiança e a autoestima porque,
com o tempo, elas estabelecem padrões inatingíveis para si
mesmas, tornando-se hipersensíveis à frustração. Há ainda o
risco de a supervalorização constante criar a ilusão narcísica
de superioridade. “O elogio é muito importante para as
crianças, mas tem lugar e hora apropriados”, salienta Ariadne
Sartorius. Mais importante que valorizar o resultado obtido
pela criança é apreciar seu esforço – e comemorá-lo, sem
banalizar a situação. (Por Stefanie Uhrig)

21
capa • autoconfiança

em 2019, oferece pistas interessantes nesse sentido.  Com a


ajuda de um artigo, metade dos voluntários foi inicialmente
informada de que havia pouco que pudesse ser alterado em
suas habilidades. Os demais leram outra versão do texto, que
anunciava as oportunidades de melhorar as habilidades por
meio de aprendizado e esforço. Posteriormente, todos preen-
cheram um questionário de autoavaliação e concluíram várias
pequenas tarefas.
Os participantes que haviam aprendido que suas próprias
habilidades podiam ser alteradas se mostraram menos pro-
pensos a serem perturbados pela dúvida e concluíram melhor
as tarefas. “Se alguém acredita que a competência não é uma
qualidade fixa, as dúvidas não têm efeito tão negativo no bem-
-estar”, afirma Zhao. Richard Petty oferece uma sugestão: re-
lembrar ocasiões em que você agiu com confiança, obteve su-
cesso ou estava convicto a respeito de alguma decisão. Essa
recordação pode conectar a pessoa com um estado emocio-
nal de segurança.

FILHOS INDEPENDENTES
Quando se trata de crianças, pais e outros adultos próximos
são importantes para o desenvolvimento de uma dose saudá-
vel de autoconfiança desde o início da vida. “Não devemos so-
brecarregar constantemente os pequenos ou prestar atenção
ao que fazem de errado”, aconselha a doutora em psicologia
Ariadne Sartorius, especializada no atendimento de crianças e
adolescentes. É melhor discutir em conjunto como será a solu-
ção para um problema do que partir direto para a repreensão.
“É importante que a criança perceba que tem apoio e pode
resolver problemas e tarefas de forma independente.”

22
consciência

Experimentos revelam como o grau de confiança


naquilo que percebemos ou pensamos influi diretamente
em nossas opiniões, apostas e decisões

23
consciência

É
inegável que muitas de nossas ações se passam fora
do alcance da consciência: se ajustamos a postura
corporal durante uma conversa ou se nos apaixona-
mos por determinada pessoa, em geral não temos
ideia – pelo menos não exatamente – de por que ou de como
fazemos essas escolhas. Para a maioria delas encontramos ex-
plicações tão racionais quanto superficiais (“fico mais confortá-
vel nessa posição” ou “gosto do meu namorado porque temos
muito em comum”, por exemplo). Por trás dessas justificativas,
porém, existem mistérios.
Um exemplo simples: “Ao acionar um interruptor, você
conscientemente viu a lâmpada acender?”. Embora pareça
fácil responder à pergunta, mais de um século de pesqui-
sas mostrou que o problema-chave por trás dessa pergunta
é definir a consciência de tal forma que seja possível medi-la
ao mesmo tempo que “captamos” seu caráter subjetivo.
Um experimento comum no campo do estudo da cons-
ciência se baseia na avaliação do grau de confiança naquilo
que percebemos ou pensamos. No teste, um voluntário tem
de julgar se uma nuvem de pontos numa tela de computador
se move para a esquerda ou para a direita. Ele em seguida
relata quão confiante se sente assinalando um número – por
exemplo, 1 para indicar puro palpite, 2 para alguma hesitação
e 3 para certeza completa. Esse procedimento mostra que,
quando o participante tem pouca percepção da direção do
movimento dos pontos, sua confiança é baixa, mas, quando
“vê” claramente o movimento, sua segurança é alta.
Um relatório apresentado pelos pesquisadores Navindra
Persaud, da Universidade de Toronto, e Peter McLeod e Alan

24
consciência

Cowey, da Universidade de Oxford, introduz uma medida mais


objetiva de consciência: o desejo de ganhar dinheiro. Esse
método foi adaptado da economia, em que é usado para ava-
liar a crença a respeito do resultado provável de um evento.
Aqueles que acreditam na informação que têm se mostram
dispostos a apostar nela. Isto é, aceitam pagar para ver.
Pense no investimento em fundos mútuos. Quanto mais cer-
to você estiver de que a alta tecnologia vai render bem no ano
seguinte, mais dinheiro alocará para um fundo destinado a esse

A condição chamada “visão cega” permite que


a pessoa localize, de forma não consciente,
a presença de uma luz ou relate a direção na
qual uma barra se move na tela de computador,
mesmo sem usar a visão
setor. Persaud e seus colegas usam esse tipo de aposta para
revelar a consciência – ou a falta dela. Em seus experimentos,
os participantes não declaram confiança na percepção de ma-
neira direta. Em vez disso, primeiro tomam uma decisão com
base naquilo que perceberam e então apostam uma quantia
em seu grau de confiança na própria decisão. Se a escolha se
mostra correta, o voluntário ganha o dinheiro; caso contrário,
perde. A estratégia ideal é apostar sempre que se sinta segu-
ro. As experiências aplicam essa técnica de apostas para três
exemplos do processamento não consciente.
Um deles foi feito com o paciente G. Y. Devido a um aciden-
te de carro que danificou áreas no seu cérebro responsáveis
pelo processamento visual, ele tem o que se costuma cha-
mar de “visão cega”. Essa condição o deixa com a capacidade
não consciente de localizar uma luz ou relatar a direção na

25
consciência

qual uma barra colocada numa tela de computador está se


movendo, embora G.Y negue ter a experiência visual – curio-
samente, ele insiste que está apenas chutando.
O paciente pode indicar a presença ou ausência de uma
rede fraca e pequena em 70% de todos os testes, bem mais

Usando como estímulo o desejo de ganhar


dinheiro, cientistas encontraram uma forma lúdica
de “medir” a percepção e, assim, entender melhor
processos envolvidos na tomada de decisão
do que uma chance média (50%). Apesar disso, ele falha em
converter esse desempenho superior em dinheiro quando
está apostando; coloca quantias altas em menos da metade
de suas escolhas corretas. Quando está ciente do estímulo, G.
Y. aposta alto – exatamente o que qualquer pessoa faria. Suas
escolhas parecem espelhar a percepção consciente que tem
do estímulo (isto é, a crença de que ele o viu) em vez de sua
detecção real (inconsciente) do estímulo. Isso sugere que as
apostas podem servir de meio para medir a consciência.
As técnicas usadas por Persaud, McLeod e Cowey depen-
dem da capacidade intuitiva de fazer boas escolhas e obter
lucros. Em comparação com a tática de forçar participantes
a se tornar cientes de sua própria consciência – e, nesse pro-
cesso, interferir no próprio fenômeno que se deseja medir
–, as apostas representam uma forma mais sutil de avaliar a
percepção, mostrando-se uma nova maneira mais lúdica –
e reveladora – de estudar processos de tomada de decisão.
Desses passos, aparentemente pequenos, surgem possibili-
dades para ampliar a compreensão de como a consciência
surge da experiência.

26
clima

A estreita
relação entre
clima e empatia
Por que não paramos as mudanças climáticas?
Talvez não estejamos suficientemente preocupados
com o sofrimento de nossos descendentes

27
clima

H
á seis meses, o resultado de uma pesquisa rea-
lizada pelo Datafolha, a pedido do Greenpeace
Brasil e do Observatório do Clima, mostrou que
85% dos brasileiros reconhecem que o planeta
está se aquecendo e 72% afirmam que as atividades humanas
contribuem para o fenômeno. A confiabilidade nos tópicos foi
mais alta entre pessoas com maior escolaridade. Foram ou-
vidas 2.086 pessoas com 16 anos ou mais, em 130 cidades,
entre 4 e 5 de julho. Nos Estados Unidos, aproximadamente
70% dos americanos acreditam que o clima está mudando e
a maioria reconhece que essa alteração é resultado de nos-
sa interferência. Além disso, mais de dois terços pensam que
isso prejudicará as gerações futuras.  A menos que
alteremos drasticamente nosso modo de vida,
partes do planeta se tornarão hostis ou inabitá-
veis  ainda este século – provocando desas-
tres ecológicos, epidemiológicos e sociais. E,
no entanto, a maioria dos americanos
apoiaria políticas de conservação
de energia apenas se elas cus-
tassem  menos de US$ 200 por
ano às famílias – um valor muito
abaixo do investimento necessá-
rio para manter o aquecimento
sob taxas catastróficas. 
No Brasil não há dados
sobre a disposição da po-
pulação em contribuir para
a diminuição dos impactos

28
clima

Jamil Zaki

Para psicólogo Jamil Zaki, nossa imaginação empática não está naturalmente
configurada para se estender ao redor do planeta ou em direção às gerações futuras, o que coloca
nossa própria existência em risco

ambientais. Afinal, o Brasil é o quarto maior produtor de lixo


plástico do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e
Índia. O país também é um dos que menos reciclam este tipo
de lixo: apenas 1,2% é reciclado, ou seja, 145.043 toneladas. Os
dados são do estudo feito pelo Fundo Mundial para a Natureza
(WWF, sigla em inglês). O relatório Solucionar a Poluição Plás-
tica – Transparência e Responsabilização foi apresentado na
Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA-
4), realizada em Nairóbi, no Quênia, em março de 2019.

29
clima

“Os dados a respeito de percepção sobre riscos de destrui-


ção do planeta e atitudes efetivas para impedir a tragédia são
intrigantes”, afirma o pesquisador Jamil Zaki, professor asso-
ciado de psicologia na Universidade Stanford, diretor do La-
boratório de Neurociências Sociais de Stanford.  “Por que hi-
potecamos nosso futuro (e o de nossos filhos e netos) em vez
de moderar nosso vício em combustíveis fósseis? Sabendo o
que sabemos, por que é tão difícil mudar nossos caminhos?”,
pergunta-se o autor de The war for kindness: building empathy
in a fractures world (Crown, 2019), ainda não lançado no Brasil,
em livre tradução, “A guerra pela bondade: construindo a em-
patia em um mundo fraturado”).
Segundo o psicólogo, uma resposta está na natureza da em-
patia, essa capacidade de compartilhar, entender e se importar
com as experiências dos outros. “Pessoas profundamente em-
páticas tendem a ser ambientalmente responsáveis, mas nos-
sos instintos de cuidar são míopes e se dissolvem no espaço e
no tempo, tornando mais difícil lidarmos com coisas que ainda
não aconteceram”, explica.

ANJO TORTO
Ele observa que a atividade humana é, mais do
que nunca, uma força dominante na forma-
ção do ambiente da Terra, mas os sentidos
morais da humanidade não acompanharam
esse poder de destruição.  E res-
salta que nossas ações reverbe-
ram pelo mundo e pelo tempo,
mas não sentimos suficiente-
mente o peso das consequên-
cias.  “A empatia poderia ser um

30
clima

apoio emocional contra um mundo em aquecimento, se nosso


cuidado produzisse ação coletiva, mas parece que evoluímos
para responder ao sofrimento imediato, aqui e agora”, diz.
Segundo Zaki, nossa imaginação empática não está natu-
ralmente configurada para se estender ao redor do planeta ou
em direção às gerações futuras, o que coloca nossa própria

Pessoas atentas às necessidades coletivas tendem


a ser ambientalmente responsáveis, mas nossos
instintos de cuidar são míopes e se dissolvem no
espaço e no tempo, tornando mais difícil lidarmos
com coisas que ainda não aconteceram

existência em risco. Por isso é mais fácil nos mobilizarmos para


ajudar vítimas de uma tragédia ambiental que já ocorreu do
que evitar o consumo de carne e plástico.
Ironicamente, a empatia, “o melhor de nossos anjos”, na opi-
nião do pesquisador, e a maneira como ela opera, pode estar
prejudicando nossa capacidade de fazer o que é melhor para
o mundo. Para o psicólogo, porém, há salvação para esse fun-
cionamento psíquico. Zaki acredita que a empatia não é uma
característica imutável, e sim um sentimento que podemos
fortalecer diariamente. “Felizmente a capacidade de cuidar de
si, do outro e do planeta não é um traço fixo de personalidade,
mas uma habilidade a ser cultivada”, afirma. Portanto, é possí-
vel exercitar e treinar a empatia. As crianças agradecem.

31
depressão

Cegos para
emoções
Pessoas que não conseguem distinguir com
clareza o que sentem têm maior probabilidade
de desenvolver transtornos depressivos

32
depressão

H
á momentos em que sabemos que há algo de
errado: uma tristeza ou aperto no peito, cuja
origem não parece óbvia. É como se os sapa-
tos estivessem apertando nossos pés, mas não
conseguíssemos identificar exatamente em que ponto está
o desconforto. Para algumas pessoas essa sensação de não
saber o que incomoda (embora o mal-estar esteja presente)
é constante. Sensações de frustração, tristeza, raiva e de-
cepção misturam-se e, às vezes, confundem-se até com
cansaço e ansiedade.  Essa confusão costuma indicar uma
séria desvantagem. É o que mostra um estudo publicado há
alguns meses no periódico científico Emotion. 
Segundo os autores, uma boa dose de autoconsciência
pode, portanto, proteger contra a depres-
são, mesmo na juventude. Uma equi-
pe liderada pela psicóloga Lisa
Starr, da Universidade de Ro-
chester, havia submetido cerca
de 200 adolescentes a entrevis-
tas de diagnóstico e pediu que
registrassem humor, estres-
se e eventos relacionados
quatro vezes por dia du-
rante uma semana.  Um
ano e meio depois, os
voluntários relataram sua

33
depressão

condição novamente. Aqueles que


puderam diferenciar vagamente
os sentimentos negativos na pri-
meira pesquisa, 18 meses depois,
tiveram mais probabilidade de so-
frer de sintomas depressivos. 

VER PARA TRANSFORMAR


A relação entre a dificuldade de au-
topercepção e rebaixamento do humor se
fortaleceu quando eventos estressantes do cotidiano ocor-
reram nesse período. “Observamos que os adolescentes
que descrevem seus sentimentos negativos com precisão
e riqueza de nuances estão significativamente mais prote-
gidos da depressão do que os que não conseguem fazer
essa distinção”, escrevem os psicólogos em seu artigo, com
base no acompanhamento dos jovens.  Esses participantes
do experimento se mostraram mais aptos a aprender mais
com suas experiências e desenvolver estratégias eficazes
para lidar com experiências estressantes e sentimentos de
frustração e raiva. 

A psicoterapia é fundamental não só para o


reconhecimento e a nomeação das emoções, mas
também para que a pessoa desenvolva formas
criativas de lidar com elas

“É fundamental saber como nos sentimos até para, even-


tualmente, transformar a sensação de desconforto”, explica
Lisa Starr. Nesse sentido, a psicoterapia é fundamental não
só para o reconhecimento e a nomeação das emoções, mas

34
depressão

também para que


a pessoa perce-
ba sua influência
e desenvolva for-
mas criativas de li-
dar com elas.
Um experimento rea-
lizado com mais de mil
pessoas com mais de 60
anos, por psicólogos da
Universidade de Wis-
consin, nos Estados
Unidos, e publicado em
junho de 2019, mostrou que a auto-
consciência também é um sinal de aler-
ta em adultos.  Quanto menos a experiência
subjetiva do estresse corresponder aos indicadores objeti-
vos, mais comprometido será o bem-estar psicológico e fí-
sico a longo prazo. Não se pode deduzir que a experiência
indiferenciada de emoções necessariamente motive queixas
psicológicas, até porque, quando a pessoa não passa por si-
tuações exteriores que a estressam, tende a manter os incô-
modos emocionais latentes. No entanto, essa característica
é um indicativo de que o equilíbrio emocional pode ser mais
facilmente abalado.

35
especial • psicologia social

A criatividade
é coletiva
36
especial • psicologia social

Mais do que uma expressão individual, a


originalidade toma forma em um contexto;
grupos não só desempenham papel essencial
na criação de ideias e produtos, mas também
asseguram sua valorização, disseminação e
impacto. Mesmo as pessoas mais geniais talvez
não tivessem se destacado se vivessem
em outro momento ou lugar

por Alexander Haslam, Inmaculada


Adarves-Yorno e Tom Postmes

T
odos os anos, alguns dos mais destacados atores,
diretores e roteiristas ganham o Oscar e os maiores
cientistas, o Nobel. Obviamente esses são apenas
dois dos inúmeros prêmios que a cada ano são dis-
tribuídos para comemorar feitos criativos. Esses eventos, po-
rém, reforçam a concepção popular de que a criatividade é
um dom exclusivo de poucos – e favorecem a apoteose da
individualidade. Daí, muitos concluem que grupos e cidadãos
comuns não podem colaborar com ideias originais.
Talvez possamos desafiar a suposição comum de que o
“dono” de uma ideia é o único componente indispensável
do processo criativo. De fato, consideramos que grupos não
só desempenham papel essencial na criação de novos pro-
dutos, mas também asseguram sua valorização e impacto.
Embora essa hipótese possa causar espanto, já recebeu sig-
nificativo apoio científico. No ano passado, publicamos, em
parceria com a psicóloga Lise Jans, um artigo com revisão

37
especial • psicologia social

de grande parte dos dados acumulados sobre concepções


modernas de grupos e originalidade. Concluímos que é pro-
blemático e inútil separar as grandes mentes criativas das
comunidades onde surgem.

TEMPO E CULTURA
Apesar da crença romântica de que a inovação está associa-
da a uma vida dura e isolada, pesquisas científicas sobre cria-
ções individuais ainda não produziram previsões precisas do
comportamento criativo. Muitos pesquisadores vasculharam a
biografia de grandes nomes que colaboraram com o mundo
com sua originalidade na tentativa de encontrar experiências e
traços de caráter relacionados à genialidade.

38
especial • psicologia social

Embora hoje saibamos bastante a respeito de processos ce-


rebrais que propiciam o surgimento de boas ideias, pesquisas
nessa linha falham porque não consideram o importante papel
do contexto social. A natureza e a importância de uma inova-
ção dependem da interação entre as ideias de uma pessoa, da
época e da cultura em que vive. Se Bruce Springsteen tivesse
nascido em 1749 em vez de 1949, seria improvável que ouvís-
semos Born to run. Da mesma forma, se o compositor italiano
Domenico Cimarosa tivesse nascido em 1949 em vez de 1749,
suas 80 óperas, entre elas a obra-prima Il matrimonio segreto,
provavelmente não teriam sido criadas.
De maneira geral, esses exemplos tratam da influência que
os grupos exercem sobre a criatividade. No final da década de
70, os psicólogos Henri Tajfel e John Turner, da Universidade de
Bristol, na Inglaterra, desenvolveram o conceito de identidade
social, levando em conta que o contexto influencia momentos
em que nos percebemos como indivíduos ou membros de um
grupo. Assim, por exemplo, um pintor cubista (vamos chamá-lo
de Pablo) pode, em alguns momentos, pensar em si com base na
identidade pessoal, mas em outras ocasiões, da perspectiva do
cubista, considerando a forma como se reconhece socialmente.
Em outros lugares, somos definidos ainda de acordo com nacio-
nalidade, sexo biológico, religião ou função num grupo.
Tajfel e Turner argumentam que, quando uma identidade so-
cial em particular é psicologicamente proeminente, de tal for-
ma que determina o sentido de quem somos, o grupo – base
do reconhecimento – exerce profunda influência sobre nosso
comportamento. Além disso, a maneira como julgamos uma
ação, independentemente de sermos seus autores, reflete
ideias coletivas compartilhadas. O mesmo vale para o com-
portamento criativo e a maneira como o avaliam. Por exemplo,

39
especial • psicologia social

é provável que Pablo, sendo cubista, se interesse em apreciar


representações abstratas dos objetos; também há grandes
chances de ele produzir pinturas de acordo com as diretrizes e
preferências desse movimento artístico.
Identidades sociais favorecem também uma perspectiva co-
mum, bem como a capacidade e motivação para nos envolver-
mos em influências sociais mútuas. Mas, quando agimos a partir
da perspectiva pessoal, tendemos a ser criativos, nos desviando
da norma. Em um experimento realizado há alguns anos, pe-
dimos a alguns estudantes universitários que trabalhavam em
grupo que produzissem cartazes que falassem sobre “razões
para frequentar a universidade” e a outros que abordassem a
“moda no ambiente acadêmico”. As instruções levaram os alu-
nos, de maneira implícita, a criar certas normas grupais. Os que
deveriam se concentrar em “razões” tendiam a produzir anún-
cios essencialmente com palavras, enquanto aqueles voltados
para a moda optavam por trabalhar com imagens.
Depois de três horas, pedimos que criassem um folheto sobre
a universidade, que poderia ser feito com palavras ou imagens.
Dessa vez, alguns se reuniram em grupo, enquanto outros de-
OS AUTORES cidiram trabalhar por conta própria. Nosso objetivo era saber se
S. ALEXANDER a tarefa criativa seria moldada pelas normas coletivas estabele-
HASLAM é doutor em
psicologia, professor cidas na fase anterior. E foi. Observamos que durante o trabalho
da Universidade
de Queensland, em equipe os participantes geralmente criavam de acordo com
na Austrália.
INMACULADA as regras comuns estabelecidas para o projeto, independente-
ADARVES-YORNO é
psicóloga, professora mente de ser com imagens ou palavras. E, mesmo quando pude-
de estudos sobre
liderança da ram agir individualmente, tendiam a tomar as diretrizes do grupo
Universidade de Exeter,
na Inglaterra. TOM a que pertenceram anteriormente como ponto de partida. Os re-
POSTMES é professor
de psicologia social sultados desse e de outros estudos semelhantes apoiam a hipó-
da Universidade de
Groningen, tese de que a natureza da atividade criativa depende de normas
na Holanda.
coletivas. (Leia mais sobre o tema nas págs. seguintes.)

40
especial • psicologia social

O poder da
COLABORAÇÃO
A tendência de julgarmos a criatividade de
maneira que reflita nossa identidade no grupo
ajuda a explicar o preconceito de gênero e
racismo – embora não sirva para justificá-los

41
especial • psicologia social

H
á quase 50 anos, o psicólogo Irving Janis, pesqui-
sador da Universidade Yale, defendeu a ideia de
que o desejo de se adaptar colabora com a toma-
da de decisões inconvenientes e a falta de pen-
samento crítico, um fenômeno chamado de pensamento co-
letivo, que ele considerava a antítese da criatividade. Ou seja:
a dinâmica grupal pode, em muitos casos, favorecer escolhas
irracionais, o apoio cego a propostas pouco inteligentes.
Normas grupais influem em formas de pensar. Por exemplo,
pintores cubistas podem usar figuras geométricas abstratas de
acordo com os costumes da técnica. Mas nem tudo está per-
dido: essa é apenas uma parte do cenário. A obra de nosso
artista hipotético provavelmente terá características que a di-
ferenciam das demais, como dimensões, cores ou temas não
restritos ao estilo.
Discussões com amigos, colegas ou pares podem favo-
recer novas ideias – desde que se esteja disposto a refletir
sobre outros pontos de vista. A psicóloga Vera John-Steiner,
da Universidade do Novo México, diz em seu livro Creative
collaboration (2000) que pequenos grupos, como os Beatles,
Bauhaus ou Bloomsbury, frequentemente produziam músi-
cas de vanguarda ao ressaltar as ideias uns dos outros en-
quanto procuravam alternativas para resolver problemas ar-
tísticos, teóricos e práticos.
Solidariedade e coesão são essenciais para favorecer o pro-
gresso dos movimentos criativos porque permitem que os pares

42
especial • psicologia social

apoiem uma iniciativa compartilhada. Exploramos essa ideia


em um estudo. Pedimos a pequenos grupos de universitários
que participassem do processo de planejamento (simulado) da
construção de uma inovadora creche municipal. Antes, porém,
algumas equipes passaram por um procedimento que as es-
timulou a um forte senso de identidade social compartilhada,
enquanto outras foram incentivadas a pensar em si mesmas
individualmente. Depois, as equipes se reuniram outras três
vezes, por aproximadamente uma hora e meia, para discutir o
empreendimento fictício, que passou por dificuldades de mon-
tagem. Os custos trabalhistas aumentaram e havia necessida-
de de um estudo de impacto ambiental. Descobriram que a
caixa de areia das crianças continha traços de elementos tó-
xicos e muitos pais ameaçavam processá-los. As autoridades
adiavam a aprovação do edifício.
Observamos que aqueles que inicialmente desenvolve-
ram uma identidade social compartilhada permaneceram
otimistas sobre o projeto e continuaram a apoiá-lo, mesmo
nos momentos difíceis. Os que foram persuadidos a pen-
sar individualmente perderam o entusiasmo e cada vez mais
consideravam abortar o empreendimento. Em outras pala-
vras, a identidade social (mas não a pessoal) reforçou o in-
teresse e encorajou os participantes a encontrar soluções
criativas diante dos desafios. De maneira geral, os resulta-
dos indicam que precisamos de senso de identidade social
compartilhada para buscar estratégias originais e concluir
projetos inovadores – seja na ciência, na tecnologia, nas ar-
tes ou na política.
Além disso, comprometer-se solidamente com o grupo
não nos torna cegos para suas falhas. De fato, o oposto pa-
rece acontecer mais frequentemente. Quando as normas

43
especial • psicologia social

O fenômeno do pensamento coletivo costuma ser


considerado a antítese da criatividade. Ou seja: a
dinâmica grupal pode, em muitos casos, favorecer
escolhas irracionais, o apoio cego a propostas
pouco inteligentes

são prejudiciais, os membros mais empenhados costumam


debater e renegociar as regras.
Os psicólogos Dominic Packer e Christopher Miners, res-
pectivamente pesquisadores das universidades de Queen, em
Ontário, e Lehigh, desenvolveram um estudo no qual pediram
a alguns alunos que escrevessem uma declaração de abertura

44
especial • psicologia social

O psicólogo Irving antes de uma reunião de que


Janis, pesquisador participariam para discutir o uso
da Universidade Yale, de álcool com seus pares, fo-
defendeu a ideia de que cando o aumento do consumo
o desejo de se adaptar em festas. Os pesquisadores
pode colaborar com observaram que, quanto mais
a tomada de decisões se identificavam com o grupo,
mais propunham soluções cria-
inconvenientes e a falta
tivas para o problema, possivel-
de pensamento crítico
mente porque sentiam maior
responsabilidade ou acreditavam ser mais capazes de provo-
car transformações. Os dados apontam que a coesão grupal
pode ajudar a estimular ideias criativas que levam a mudanças,
desde que as pessoas se mostrem abertas à reflexão. (Leia
mais sobre o tema nas págs. seguintes.)

45
especial • psicologia social

O jogo da
REINVENÇÃO

Cultivar a ideia de que conhecemos as pessoas que nos


rodeiam ajuda a dissipar o temor de desestabilização.
As contribuições de um “semelhante”, não raro, são mais
bem recebidas do que as ideias de um “estranho”

46
especial • psicologia social

G
rupos desempenham um papel vital na valorização
das inovações. Sem tocarem na identidade coleti-
va, grandes artistas, escritores e cientistas podem
muito bem passar despercebidos. Em vida, Vin-
cent van Gogh não conseguiu encontrar quase ninguém para
comprar suas pinturas incomuns. Seu trabalho chamou aten-
ção somente após sua morte, quando um círculo de artistas,
os pós-impressionistas, valorizou sua obra como um indicativo
de um estilo distinto que pretendiam imitar. Da mesma forma,
em 1961, as teorias de modelos computacionais do então estu-
dante de graduação Yoshisuke Ueda foram inicialmente impe-
didas de serem publicadas por seu supervisor da Universidade
de Kyoto, porque eram vistas como muito vanguardistas. Assim
que apreciadores de seu trabalho ingressaram na comunidade
científica, porém, suas ideias transformaram o campo emer-
gente da teoria do caos.

Somos mais propensos a apoiar uma inovação


se os envolvidos fazem parte do nosso grupo;
conhecer as pessoas que propõem a novidade
ajuda a dissipar o temor do desconhecido

De fato, somos mais propensos a apoiar um projeto criativo


ou nos esforçar na sua criação se os envolvidos fazem parte
do nosso grupo. A ideia de que conhecemos os que trabalham
conosco ajuda a dissipar o temor de desestabilização. As con-
tribuições de um “semelhante”, não raro, são antagônicas às
ideias de um “estranho”. Costumamos ter preconceito étnico,
por exemplo, quando julgamos a criatividade artística e, não
raro, críticos preferem o trabalho de artistas de seu próprio país.
O prêmio conferido pela Academia de Artes e Ciências Cine-

47
especial • psicologia social

Grupos de músicos, como os beatles, assim como de escrito-


res e cientistas, podem estimular a criatividade entre seus membros com o incentivo mútuo e
comentários positivos

matográficas, o Oscar americano, e Academia Britânica de Ci-


nema e Televisão, o britânico, é destinado a avaliar a qualidade
objetiva de filmes. Mas um estudo inédito feito pelo psicólogo
Niklas Steffens e seus colegas da Universidade de Queensland,
na Austrália, constatou que desde 1968 artistas dos Estados
Unidos receberam o prêmio americano de melhor ator ou atriz
80% das vezes e ganharam o Oscar britânico menos da metade
para a mesma categoria. Ao mesmo tempo, os artistas do Reino
Unido ganharam quase metade dos prêmios correspondentes
em seu país, mas pouco mais de 10% do Oscar americano.
Ou seja, o que entendemos por criatividade – e, portanto,

48
especial • psicologia social

como medimos e recompensamos autores originais – depende


da identidade cultural. Em um estudo de 2008, os psicólogos
Kaiping Peng, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Su-
sannah Paletz, agora na Universidade de Maryland, investigaram
a percepção de mais de 300 estudantes chineses e americanos
a respeito do que tornava um produto criativo. Eles testaram dois
itens bem diferentes: um livro teórico e uma refeição prepara-
da por um amigo. Os cientistas observaram que os voluntários
ocidentais perceberam a originalidade de acordo com a ade-
quação (se o produto era, de alguma forma, útil), enquanto os
orientais tomaram como base o desejo pessoal. Os americanos
encararam a criatividade como uma questão de gosto, enquan-
to os chineses como algo relacionado ao apetite.

O senso de identidade social compartilhada nos


motiva a permanecer em um projeto até concluí-
lo, mesmo quando surgem dificuldades

A tendência de julgarmos a criatividade de maneira a refletir


nossa identidade social ajuda a explicar também o preconcei-
to de gênero e racismo – embora não sirva para justificá-los.
Em um estudo desenvolvido pelo psicólogo Thomas Morton
e seus colegas da Universidade de Exeter, na Inglaterra, rela-
taram que cientistas homens encaravam melhor e como mais
originais as teorias que apontavam superioridade do gênero
masculino em relação ao feminino do que pesquisas que de-
fendiam o oposto. O padrão se inverte no caso de cientistas
mulheres. Curiosamente, ambos os grupos também acredita-
vam que estudos sobre criatividade que apoiavam suas pró-
prias preferências com base na identidade mereciam mais fi-
nanciamento de pesquisa.

49
especial • psicologia social

Autorretrato de Vincent van Gogh: mesmo os mais criativos precisam


de incentivadores; a arte do pintor holandês so teve reconhecimento depois de seu suicídio,
em 1890, quando passou a inspirar pós-impressionistas

50
especial • psicologia social

Por sua vez, criadores de sucesso sabem bem quem é


seu público e orientam seus produtos ou suas respostas a
uma questão para as necessidades percebidas e valoriza-
das por determinado grupo. Aliás, estão bem familiarizados
também com os lugares dos quais não querem fazer parte
com seu trabalho.

O QUE CRIAM
Como membros de um grupo, nosso comportamento criati-
vo e o modo como avaliamos as inovações dos outros refletem

UM DE NÓS, UM DELES
Nossa percepção de criatividade depende de o cria-
dor ser “um de nós” ou “um deles”. Em um estudo,
pedimos a 50 voluntários do Reino Unido que avalias-
sem sugestões sobre o futuro formato de um progra-
ma de televisão que dissemos ter sido retirado de um
site britânico. Dissemos para outros 50 participantes
que as mesmas ideias vieram de um portal holandês.
Na segunda parte do experimento, pedimos a 125 es-
tudantes britânicos que avaliassem obras de arte que
atribuímos a universitários de seu país ou a holande-
ses. Em ambos os casos, embora o conteúdo fosse o
mesmo, aqueles que acreditavam que seus conter-
râneos (ou seja, os membros do grupo) tinham sido
os autores julgavam seu trabalho significativamente
mais criativo do que os voluntários que pensavam se
tratar de uma produção holandesa.

51
especial • psicologia social

nosso desejo de estender os valores do lugar a que pertence-


mos e desafiar as ideias daqueles que estão do lado de fora.
Pessoas inovadoras devem conhecer as normas das quais se
afastam. Eventualmente, também precisam de um público dis-
posto a abraçar as novas formas de enxergar ou de se compor-
tar diante de propostas pelo seu trabalho. Para terem sucesso,
portanto, esforços criativos devem transformar comunidades.
O público recém-conquistado conduz a mudanças culturais
iniciadas por ideias originais.
No entanto, o senso comum tende a valorizar pensamentos
que se aproximam de uma citação que Picasso fez certa vez:
PARA SABER MAIS
“Os discípulos que se danem. Bastam os mestres. Aqueles que
The collective origins
criam”. Porém, curadores de uma grande exposição na Gale-
of valued originality: a
social identity approach ria Nacional de Londres observaram que muito de seu próprio
to creativity. S. Alexander
Haslam, Inmaculada trabalho se deve aos primeiros moldes de pintura que rejei-
Adarves-Yorno, Tom
Postmes e Lise Jans, em
Personality and Social
tou. Além disso, sem admiradores, sua obra teria tido pouca
Psychology Review, vol.
17, no 4, págs. 384-401; influência na sociedade. Suas criações não tratam, portanto, de
novembro de 2013.
um trabalho feito por conta própria para criar tudo de maneira
Your creative brain
at work. Evangelia G.
Chrysikou, em Scientific
inédita. Mas sim, como afirma o pintor galês Osi Rhys Osmond
American Mind; julho/
agosto de 2012. em uma crítica da exposição, de um exercício colaborativo de
At the first sign of “reinventar o familiar”.
trouble or through
thick and thin? When
nonconformity is and
É claro que devemos estudar e comemorar a originalidade
is not disengagement
from a group. Dominic individual. No entanto, a psicologia da criatividade mostra que,
J. Packer e Christopher
T. H. Miners, em Journal além de estarem envolvidos com o processo criativo, os grupos
of Experimental Social
Psychology, vol. 48, no 1,
págs. 316-322; janeiro
procuram estender seus limites, o que cria a base de influência.
de 2012.
“I did it my way” (Fiz do meu jeito) pode ser um hino atraente
The bias against
creativity: why people para grandes autores, como Frank Sinatra, porém, para alcan-
desire but reject creative
ideas. Jennifer S.
Mueller, Shimul Melwani
çar o sucesso é preciso contar com promotores, produtores e
and Jack A. Goncalo, em
Psychological Science, vol. um público que aprove o trabalho. (Por S. Alexander Haslam,
23, no 1, págs. 13-17;
janeiro de 2012. Inmaculada Adarves-Yorno e Tom Postmes.)

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livro | lançamento

Caro Dr. Freud: Respostas do


século XXI a uma carta sobre
homossexualidade. Gilson
Iannini (org.). Autêntica, 2019. 208
págs. Impresso R$ 39,00 (em média).
E-book R$ 21,00 (em média).

Cartas para Freud


Palavras escritas em 1935 são revisitadas;
vários olhares instigam a discussão atual e tão
necessária sobre homossexualidade e outras
formas de identidade sexual

A
homossexualidade certamente não é uma vantagem, tampouco é
algo de que se envergonhar, não é nenhum vício, nenhuma degra-
dação, não pode ser classificada como doença”, escreve Sigmund
Freud, em 9 de abril de 1935. Era a resposta à carta de uma mãe norte-ameri-
cana, muito preocupada com a sexualidade de seu filho. Passado quase um
século, o texto se tornou um poderoso instrumento de luta contra o precon-
ceito e a tentativa de normatizar a vivência da sexualidade. Não por acaso,
a carta circula em redes sociais brasileiras, mostrando a triste atualidade da
discussão sobre algo que, em tempos mais generosos, teria sua importân-
cia como documento histórico.

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livro | lançamento

Oito décadas e meia depois de Freud acalmar o coração daquela mulher


aflita, no livro Caro Dr. Freud: Respostas do século XXI a uma carta sobre
homossexualidade, lançado pela Autêntica, o tema é revisitado e traz uma
provocação. O organizador, o filósofo e psicanalista Gilson Iannini, convoca
mães e filhos de pessoas LGBT, ativistas, psicanalistas, especialistas em lite-

Oito décadas e meia depois de o criador da psicanálise


acalmar a mãe aflita com a orientação sexual de seu filho,
filósofo brasileiro lança uma provocação: “E se as palavras
de Freud fossem endereçadas a você?”

ratura, sociologia, filosofia, direito e gêneros a se questionar: e se a carta de


Freud fosse endereçada a você? O resultado são textos que expressam a diver-
sidade de perspectivas teóricas, políticas, literárias e sexuais dos missivistas.
As cartas (algumas bastante pessoais, outras ficcionais e algumas mais téc-
nicas) apresentam angústias, falam de batalhas, conquistas e da necessidade
de continuarmos a trilhar um caminho que requer não apenas informação e
formação, também exige amplificação de horizontes. E um tanto de humil-
dade. Afinal, como escreve Fernando Pessoa, citado por Iannini, “todos os
homens são exceção a uma regra que não existe”.

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