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Ruas, Carlos
O melhor de um sábado qualquer / escrito
e ilustrado por Carlos Ruas. -- 1. ed. --
São Paulo, SP : Um Sábado Qualquer, 2023.
ISBN 978-85-5606-008-2
23-163936 CDD-741.5
Índices para catálogo sistemático:
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Este livro é uma autêntica missão cumprida. Afinal, registro aqui reflexões e humor
de 15 anos de vida.
Hoje, ninguém cresce sozinho. Nós temos pessoas, amigos e familiares que nos
apoiam e ajudam no complexo caminho da vida. E, se não fosse por eles, talvez
muitas dessas tiras não tivessem existido. Por isso, preciso agradecer a muita gente.
À minha mãe, Cristina Ruas, ao meu pai, Henrique Bon, ao meu irmão, Guilherme
Bon, ao meu avô, Carlos Ruas, e a todos os membros da minha grande família que
sempre me apoiaram.
Clara Gavilan;
Jéssica Veríssimo;
Laís Afonso;
Priscilla Viotto;
Daniela Panisi;
Arthur Afonso e família;
Ketlin Montanari;
Fabiana dos Santos;
Emilio Garcia;
Mila e Helena Massuda;
Pirulla;
Sidney Gusman;
Igor Doppel.
A todos os amigos dos quadrinhos e da ciência que conheci nessa j longa ornada,
que fazem maravilhosos trabalhos, sempre alegrando e transmitindo conhecimento
ao próximo.
E para finalizar, a Deus e Luci. Afinal, se não fosse por eles, eu não estaria aqui hoje.
Literalmente.
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Postei a primeira tirinha de Um Sábado Qualquer (USQ) no Natal de 2009. Eu tinha
23 anos. Naquele tempo, ainda não havia redes sociais, e os blogs estavam no auge.
Comecei a postar uma tira por dia e, dois anos depois, meu blog já estava com 45 mil
acessos diários. Isso que me deu coragem para largar o emprego de designer no Rio de
Janeiro e investir no que mais amava fazer. Meu hobbie passou a ser a minha profissão.
Ganhei independência e me mudei para São Paulo, empreendi, perdi, venci, me frustrei,
me recuperei, e nessas idas e vindas, 13 anos se passaram. O lado empreendedor trouxe
a tão almejada estabilidade financeira e, com ela, a tensão, boletos, responsabilidades,
olheiras e preocupações que acabaram sufocando o autor. Então, resolvi dar um tempo,
pegar mais leve, me mudar para o interior e resgatar o lado artístico, dando-lhe mais
atenção, palco e liberdade.
Hoje, amo fazer minhas tirinhas “pessoais”, Cães e Gatos, os quadrinhos em parceria
com Gui Bon, como Morte e Neco Necromante, além de diferentes conteúdos que
defendem a causa científica. Mas nada disso seria possível se não fosse pelo USQ e por
você, que o acompanha há tanto tempo.
Para retribuir esse carinho, nada melhor que um livro. Mas não poderia ser só mais uma
compilação de tiras. Seria preciso mais que isso, algo maior, uma edição definitiva, o
que há de melhor para oferecer, com as melhores tiras que já fiz desde 2009. Uma
edição de colecionador. Pronto, seria isso! E para ter um diferencial, assim como o Bill
Watterson fez em O Imprescindível de Calvin e Haroldo, pela primeira vez, colocaria
comentários e pensamentos junto das histórias, para o leitor ter mais contato comigo e
conhecer os bastidores da criação.
Assim, reli uma a uma, empolgado e ansioso, e fui selecionando as que mais gostava.
Mas nesse processo, percebi que o tempo passou, e umas estavam datadas, outras, em
baixa resolução, e havia aquelas cujo conceito eu já nem me identificava tanto. Elas
ainda tinham potencial humorístico, mas algumas precisariam de uma nova pincelada,
um leve trabalho de restauração. E como solução, o lado artista perfeccionista resolveu
redesenhar todas! Foi trabalhoso, cansativo, mas muito satisfatório. Consegui recriar o
suco do USQ: a republicação das melhores tiras, com o olhar atual.
Das mais de duas mil tiras, selecionei as minhas favoritas – algumas já publicadas, outras
ainda inéditas –, e comecei um árduo trabalho de repensá-las, reescrevê-las e redesenhá-
las, aplicando o amadurecimento artístico. Atualizei a fonte, o traço, o conceito e as
piadas. Fiz este livro com muito carinho e dedicação, e desejo que você, ao ler, tenha o
mesmo prazer que tive ao (re)criá-lo.
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Este livro possui o selo “Protegido pelos Deuses”.
Enquanto estiver em sua posse, você estará protegido.
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A evolução é a caneta de Deus; o cometa é a borracha.
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O poder da criatividade humana
Uma das minhas histórias favoritas vem da mitologia grega. Ela é uma explicação sobre o
surgimento das quatro estações do ano. Esse mito é conhecido como O rapto de Perséfone.
Após muitas argumentações, ficou decidido que Perséfone passaria uma metade do ano
com o marido e a outra com a mãe. Essa “guarda compartilhada” explica o ciclo das
estações do ano. Na primavera e no verão, a filha está com a mãe, que, feliz, exerce suas
atividades com extremo prazer, fazendo com que toda a vegetação, plantações e flores
cresçam em abundância.
Quando Perséfone passa seis meses ao lado do marido, sua mãe entra em profunda
tristeza. É quando chegam o outono e o inverno; tudo começa a morrer, nada nasce ou
cresce.
E assim, tem-se o ciclo das estações do ano! Que explicação fantástica, não?
Em minha leitura bíblica, notei que não existe uma explicação cristã para as estações do
ano. Uma pena. Logo, tomei a liberdade de criar uma, na qual Deus, com sérios problemas
de memória, intercala o planeta entre o fogão e a geladeira, em um ciclo de temperaturas.
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O primeiro troll, a gente nunca esquece. Na época em que eu postava as tiras no
blog, esse peculiar sujeito entrava todos os dias nos comentários, desrespeitando
e condenando os leitores a queimarem no inferno.
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Ter pets melhora a qualidade de vida e a saúde mental.
Por que você acha que Deus nos criou?
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Eu sempre quis, com o USQ, brincar com aquilo que nunca foi explicado pra valer.
A Bíblia diz: “E Deus criou o homem”. E eu me perguntava: “Mas como ele criou
o homem?” Que infelicidade não existir um livro de receitas de Deus, como esses
que as nossas avós guardam na cozinha com tanto carinho. Odin fez o homem da
madeira; Rá, de lágrimas; Tepeu, do milho; Deus e Zeus, do barro…
O Deus em que você acredita hoje é sorteado baseado na sua época, cultura, tradições
e região. E posso exemplificar isso. Vamos juntos.
Se você tivesse vivido por 5 mil anos, veria de perto a expansão do Império Romano, um
dos maiores que já existiu, pediria a proteção de Zeus e levaria a palavra dele para todos
os cantos da Europa, Ásia e África. Faria oferendas e frequentaria cultos. Porém, também
presenciaria o fim desse Império. Zeus, então, viraria um ser mitológico.
Agora, e se tivesse vivido com os nórdicos? Observaria que a fé deles era tanta que se
matavam em nome de Odin nas batalhas para alcançar a salvação. Passaria a cultuá-lo,
realizaria rituais, sentiria a sua presença e se prepararia para o Reino de Valhalla. Mas,
como o Império Romano, a era nórdica chegaria ao fim. Dessa forma, Odin seria a nova
mitologia do pedaço. O Império Persa, com Ahura Mazda, acabaria; o Egípcio, com Rá,
também. Isso sem contar com outras civilizações, povos, tribos e seus respectivos deuses
ao redor do globo.
Então, pergunto a você: qual é o seu Deus hoje e por que ele é mais importante do que
o de ontem e o de amanhã? Com deuses se tornando mitologia por regra – e não por
exceção –, por que acreditaria no próximo da lista? Lembre-se: nessa loteria divina, você
sempre estará no paraíso de um e no inferno de outro.
Quando se observa as coisas e pessoas por um ângulo histórico, utilizando a régua dos
5 mil anos, é fácil perceber o quanto a sua própria vida é apenas um pixel do todo, e o
Deus em que acredita, mais alguns pixels preenchidos – e só.
Ele é somente mais um em um mar de deuses; e talvez esses deuses sejam apenas formas
de preencher as lacunas do que não sabemos explicar. E quando sabemos, o espaço que
eles ocupam fica menor – a teoria do deus das Lacunas.
A religião oferece um conforto espiritual fantástico, pois responde todas as perguntas que
geram angústia, desvenda e traz os segredos do universo, cria união entre pessoas com
os mesmos interesses e faz você se sentir importante em participar dos “planos divinos”.
Deus é um ótimo substituto ao colo de mãe e preenche a nostalgia que sentimos quando
adultos, pois nos dá a mesma sensação de sermos protegidos por alguém superior.
Então... como negar tudo isso? Como não querer ter Deus na sua vida? Como recusar a
eternidade no paraíso? No entanto, para mim, acima dessas e outras questões, há uma
mais relevante ainda: acreditamos em deuses porque eles são verdadeiros ou somente
porque nos trazem conforto?
Então, convido você a refletir: se tivesse vivido por 5 mil anos, qual seria a sua religião?
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Não é nada fácil produzir pelúcias do Luci em um país cristão. Ainda mais quando
seu slogan é “Durma com Deus ou abrace o capeta”. Já tive costureira devolvendo
as pelúcias por associar seus problemas de vida a estar costurando-as.
A solução foi dizer que, na verdade, não é o Luci, e sim uma linda raposa! A tira
abaixo representa algo que realmente aconteceu.
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Vivo mais no mundo das ideias do que no mundo real. Não consigo ficar mais do que um
minuto atento em uma conversa. Quando dou por mim, estou na garupa de um guaxinim
ciborgue de monociclo rumo à Nárnia, em busca de vingança.
Não é proposital. Sinto-me mal por parecer não estar dando atenção à pessoa que fala;
é involuntário. Isso é péssimo para construir relações, mas ótimo para criar tirinhas. Tento
ver com otimismo. Já me disseram uma vez: “Seus defeitos são suas qualidades”.
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No popular, banalizamos o termo “teoria”, dizendo: “Ah, mas isso é só uma teoria”, como
se fosse apenas uma hipótese. Mas é importante ressaltar que, no campo científico, teoria
é a explicação mais aceita de um fenômeno diante das evidências encontradas.
Imagine, por exemplo, uma cena de crime. Você não estava lá, mas, por meio de uma
investigação, foram obtidas pistas do que pode ter ocorrido. São hipóteses, testadas uma a
uma, até sobrar a mais relevante para resolver o mistério. Isso é uma teoria!
Ela perdura até que futuras tecnologias entrem em cena e façam com que novas evidências
sejam encontradas, acrescentando peças que podem tanto corrigir quanto credibilizar cada
vez mais a teoria vigente.
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Compreendo bem que a reflexão e o humor que faço podem confrontar a moral
e a virtude de alguns que o leem, gerando diferentes reações e comentários.
Então, me ocorreu um pensamento: “O quanto deve ser humilhante para Deus ser
defendido por mortais?” Veja bem, quem criou o universo já é bem grandinho para
saber se defender, não acha?
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A arte de simplificar
O americano Carl Sagan, nos anos 1970, foi pioneiro em levar ciência para o público
leigo com a série televisiva Cosmos. De forma didática e simples, retirou a ciência do
patamar elitizado e incompreensível, como era vista quase sempre, e a trouxe para a
população de um jeito bastante acessível.
Então, eu estudo, aprendo a lição de casa, resumo tudo, tento transformar o texto em
imagem, e começo a enxugar os excessos. Vou me perguntando: “Será que precisa de
tantos quadros? Dá para fazer sem texto?”. Quanto mais simples for para explicar o
complexo, mais valorizada é a arte – pelo esforço, dificuldade e criatividade envolvidos
nessa sintetização –, até alcançar a sua essência: o mínimo necessário de imagem,
mas com o máximo de complexidade de conteúdo. A arte acima é um ótimo exemplo.
Eu a considero uma de minhas melhores charges, pois consegui ilustrar uma complexa
reflexão com o mínimo necessário para a sua compreensão.
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Estamos na era do Deus customizado
Deus já teve várias versões na História. A cada era, a cada mudança, a cada
guerra, a humanidade faz um novo à sua imagem, semelhança e interesse.
O primeiro é o Deus do antigo testamento, o Deus da guerra, que podia ser bom
ou ruim, salvar ou punir, causar um dilúvio e até exterminar toda uma nação. Ele
era a causa do bem e do mal.
Com a vinda de Jesus, Deus sofreu uma repaginada radical: de Deus da guerra,
virou o Deus do amor, piedoso, que perdoa nossos pecados. Graças ao Seu filho,
Deus nunca foi tão hippie em toda a sua história, e o papel de mau foi passado
para o departamento do tio Luci. Bem, alguém precisa levar a culpa…
Já na Idade Média, tornou-se o Deus do medo, pois era o melhor método para
controlar a população pelo temor da punição, do inferno, da tortura eterna. Afinal,
todos estávamos cheios de pecados e dificilmente iríamos para o paraíso, mas
poderíamos comprar uma vaga, se quiséssemos.
Hoje, vivemos a era do Deus customizado. Cada um tem o seu, e Ele é perfeito em
satisfazer nossos interesses, pois foi feito à nossa imagem e imperfeição. Cada um
tem a sua interpretação do divino: “Deus, para mim, é...”
Entendeu o conceito?
Antes, você tinha que se adaptar à visão de Deus que a igreja lhe servia. Hoje,
procuramos uma igreja que se encaixe com a nossa visão de Deus. É praticamente
um politeísmo cristão. As consequências disso são curiosas: agora, todos acham
que vão para o céu, de políticos corruptos a assaltantes, pois Deus compreende seus
pecados. Eles ostentam cruzes de ouro e tornam-se evangélicos, mas continuam
sendo corruptos e assaltantes, algo tão contrastante para a ideologia cristã, porém
que faz completo sentido para esta era de “Meu Deus me entende, meu Deus me
perdoará. Agora, vamos matar o amiguinho, amém!”
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Quão humilhante seria um isqueiro para o deus do fogo? Afinal, quando conseguimos
compreender, controlar e recriar os fenômenos da natureza, os deuses que os representam,
com o tempo, são praticamente extintos.
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Uma coisa é “como aconteceu”; outra
é “como o fã-clube escreveu que foi”.
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Lembremos dos mortos e torturados por ditaduras.
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O Deus das caixas
Imagine pegar uma máquina do tempo, voltar nos tempos bíblicos, conviver com
Jesus e diferenciar fato de ficção. Afinal, são mais de dois mil anos de uma história
sendo contada, recontada, escrita, reescrita, traduzida, manipulada, descartada,
modificada, adaptada...
O quanto da verdade restou? Quantos dogmas e regras seguimos hoje que Jesus
falaria: “Nunca disse isso, e você está parecendo um idiota!”? Não me leve a mal,
mas uma coisa é o que Jesus fez; outra é o que o fã-clube escreveu, entende?
E se eu dissesse que uma nova religião está nascendo, e que, daqui a 2 mil anos,
alguém falará: “Nossa, eu daria tudo para estar lá!”; e você está aqui hoje, tendo
o privilégio de presenciar esse desabrochar? Pois bem, isso está acontecendo, e é
essa a história que contarei: a do Deus das caixas.
A guerra acabou, o homem branco sumiu de lá com a mesma pressa com que
chegou, e 30 anos se passaram…
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Você entendeu o que aconteceu ali? Uma religião foi criada e estava em pleno
desenvolvimento. Isso ocorria em várias ilhas da região. Mesmo sem se comunicarem,
os povos abandonaram seus antigos deuses e passaram a adorar o “Deus das caixas”.
Bem, eu não faria diferente. Se tivesse presenciado o milagre das caixas diante dos
meus olhos, falaria: “Não sei quanto a vocês, mas o Deus do povo ali do lado está
funcionando mais que o nosso. Tudo o que eles pedem cai do céu, pô!”
Na ilha de Tanna, a nova fé possuía até mesmo um Messias, cujo nome era John
From. Acredita-se que devia ser um soldado americano tentando explicar de onde
vinha: “I’m John, from...” Pegou?
Lá, um sacerdote chamado Nambas dizia se comunicar com John From por um velho
rádio sem pilhas. Ele contou que From existiu e foi um enviado do Deus das caixas,
pregou para seu povo e, quando foi embora, prometeu voltar, mas, quando o fizesse,
traria caixas infinitas que acabariam com todo o sofrimento da humanidade.
Attenborough, então, resolveu provocar o sacerdote Nambas: “Faz 19 anos que John
disse que retornaria. Ele prometeu e prometeu, mas não veio. Não é tempo demais
para esperar?”
O sacerdote parou de olhar para o chão e respondeu a Attenborough: “Se você pode
esperar 2 mil anos pela chegada de Jesus Cristo e ele não vem, então posso esperar
mais 19 anos por John.”
Isso não é fantástico? Uma religião foi criada, e não há como explicar o mal-entendido
para esses fiéis. Eles se ofenderiam da mesma forma que um cristão se enfureceria se
alguém falasse que Jesus é uma mentira. É assim que os mitos surgem.
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E assim surgiu o Batatismo
Lembro quando fiz uma tirinha na qual um alienígena de uma galáxia distante apareceu,
trazendo consigo a sua fé: o Batatismo! Esnobava superioridade religiosa: “Então, o Deus
cristão de vocês criou o mundo em seis dias? Hum, pois saibam que a grande Batata Mãe
criou em três!”. A série foi muito bem aceita pelo público, e comecei a me empolgar com
a ideia. Idealizei como seria uma missa batatista: com o latim babatesco, batata chips no
lugar da hóstia, cânticos, exorcismos... Como seria o paraíso da batata? Seus sacerdotes,
virtudes, mandamentos etc.
Fui ficando empolgado com a criação e, depois de desenvolver toda a estrutura da nova
fé e idealizar a sua primeira missa, resolvi oferecer – por que, não? – para os eventos que
contratavam a minha participação. “Posso realizar uma palestra, um workshop, um bate-
papo... ou uma missa!”, dizia. Era divertida a reação dos organizadores.
Até que, um dia, enfim aconteceu. Um evento em Florianópolis me pagou para realizar
a primeira missa batatista do Brasil. E foi maravilhoso! Todos entenderam a brincadeira e
participaram, cantaram, se divertiram. Eu incorporei o profeta João Batatista e comecei
a profetizar (leia na entonação de um pastor): “Alguns fiéis me perguntam por que a
Batata é a verdade, e os outros deuses, não? Você
vê Deus por aí? Você vê Odin ou Zeus por aí? Não.
Mas a batata, você vê! A batata está em todos os
lugares, alimentando barrigas vazias. A batata está
em todos os continentes, em todas as casas, em todas
as cozinhas, e quando você come a batata, ela está
dentro de você! Glória à batata!”
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imagens, como se estivessem dentro dele, retirando todo
o mal que havia em seu corpo, e o fiel estava curado!
O Batatismo foi se tornando uma sátira, uma forma de denunciar tudo o que eu considerava
desonesto em nome da fé alheia. Satirizava, principalmente, os falsos profetas, que criaram
no Brasil um império de máfias legalizadas utilizando o nome de Deus como forma de
controle de massas, com o único intuito de enriquecimento próprio. E o Batatismo era um
caminho para ridicularizá-los.
Naquele ano, a missa se popularizou. Realizei várias em eventos pelo Brasil. A cada
apresentação, eu sempre experimentava algo novo, como a hipnose coletiva, muito
comum nas igrejas. Após vários fiéis terem dado seu testemunho de como a batata mudou
suas vidas, combinei nos bastidores que eles cairiam no chão e se retorceriam.
Quando dei o sinal, batendo com a mão na testa de cada um e berrando “Glória à
batata!”, todos caíram, recebendo a benção da
batata em seus corpos. Aproveitei que a plateia
estava eufórica, berrando e participando, e
instantaneamente direcionei meus braços para
eles, dando um haduken de magia e berrando:
“Recebam a glória da batataaaa!”.
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Senti-me Moisés, e a plateia, o Mar Vermelho. Mesmo sendo uma brincadeira, eles estavam
tão empolgados e unidos que fariam qualquer coisa que eu falasse naquele momento. Ao
mesmo tempo, isso foi me gerando preocupações. Afinal, encerraria os experimentos e
brincadeiras ou continuaria a propagar a palavra da batata?
Recebi um e-mail de um leitor dizendo que queria se casar na igreja da Batata. Ele
realmente estava falando sério. Meu primeiro pensamento foi: “Será que posso fazer
isso?”. E o segundo foi: “O que me impede de fazer isso?” No pior dos cenários, daria
uma boa história para contar.
Topei! Mandei costurar uma roupa para a celebração, estilo das vestes papais, com branco
e dourado, e uma grande coroa em formato de caixinha de batata frita. Criei um monólogo
de cinco páginas sobre a união do casal. O matrimônio de Marco e Talita seria realizado
em uma chácara em São Roque, no interior de São Paulo. Quando cheguei, senti o peso
e a responsabilidade do que estava prestes a fazer. Havia funcionários distribuindo batatas
fritas como aperitivo; amigos e parentes todos bem arrumados. A mãe do Marco chorava,
parecia levar bem a sério a celebração. Não tinha mais como eu voltar atrás. Então,
pensei: “Seja o que a batata quiser.”
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Que alívio! Tudo tinha ocorrido bem. Bebemos, comemoramos, e mantemos contato até
hoje. Era uma celebração séria, a união de um casal, com a benção da Batata!
Os anos foram passando, e o Batatismo foi tomando vida própria. Algumas pessoas
falavam sobre o assunto sem nunca terem me conhecido. Outros até se diziam os reais
fundadores da fé. Cogitei abrir uma igreja física e regulamentada, para satirizar a isenção
fiscal que as igrejas no Brasil recebem.
A ideia seria estimular os jovens sonhadores para abrirem uma filial batatista em vez de
abrirem uma empresa, pois teriam mais chances de sucesso. Minha mãe não entendia
a paródia, achava boba se comparado com o restante do meu trabalho, como meus
quadrinhos. Toninho Mendes, editor da revista Chiclete com Banana, sucesso nos anos
1980, e que editou alguns de meus livros, dizia para eu tomar cuidado, pois seu grande
amigo Glauco, havia morrido por causa de uma seita para a qual resolveu entrar.
Isso me fazia refletir o quanto mais de energia e tempo eu gostaria de investir nesse projeto,
e na época, já não estava dando conta de todos. Resolvi, então, ir diminuindo a intensidade
das missas com o profeta João Batatista. Mas valeu muito a experiência e a diversão.
Hoje, o Batatismo ainda existe. Deuses não morrem. No máximo, viram mitologia. Encontro
fiéis que demonstram sua devoção em eventos, mostrando que a fé segue sendo difundida e
se espalhando pelo país. Mesmo que você não aceite a batata, saiba que, neste momento,
ela está em sua casa, olhando por você, protegendo você, alimentando você e ficando
dentro de cada um de nós. E caso você queira se converter ao Batatismo, basta esfregar
um purê de batata na testa. Esta é a história da fé que criei como um experimento e uma
brincadeira. Fique com os deuses, e que a grande Batata Mãe proteja todos nós.
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Agradeço imensamente a leitura. Em todo conteúdo que crio, tento acrescentar
humor e aprendizado, pois são os ingredientes que nunca podem faltar em minhas
receitas. Consumir humor é bom, mas, com reflexão, fica muito mais gostoso.
O meu primeiro formato de turminha, em 2009, veio com Deus, Adão, Eva e Caim. Pensei
em criar Deus de uma forma humanizada, como uma pessoa com superpoderes. Assim
como nas religiões politeístas, ele poderia cometer acertos e erros. Adão era um bobo
debochado, que falava primeiro para pensar depois. Eva era a mais sensata, tendo que
aguentar dois homens infantis ao seu lado. Na Bíblia, Caim mata seu irmão por inveja.
Então, criei-o com a personalidade de um bebê psicopata.
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O Luci surgiu depois da tira 100 – veja acima a estreia dele. Em algum momento, seria
necessário ter um capetinha na história. Como o monoteísmo trouxe a nova concepção de
um único Deus perfeito, em oposição, seria necessário um vilão que fizesse o mal. E esse
peso caiu nas costas do Luci. Eu quis retratá-lo como um injustiçado. Alguém que sempre
precisa levar a culpa. Acho que é por isso que muitos se identificam com ele. Assim, estava
formada a primeira geração de personagens de Um Sábado Qualquer.
Curiosidade: na época, eu trabalhava em uma empresa, e não sobrava muito tempo para
desenhar. Por isso, precisava otimizar ao máximo a criação das tiras. Então, criei um molde
de Deus no CorelDraw, e passei a ter braços, bocas e olhos prontos para usar nas artes.
Assim, eu mais montava Deus do que desenhava. Só em 2012, quando saí da empresa e
passei a ter mais tempo, comecei a desenhá-lo quadro a quadro.
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Após mil tirinhas, com o passar do tempo, fui tendo mais dificuldade para ter ideias com
essa primeira geração de personagens. Então, resolvi criar um novo ambiente, e, em 2012,
nasceu o Buteco dos deuses, no qual eu focava mais nas divindades pelo mundo e utilizava
suas características para o humor e para defender a diversidade religiosa.
É muito comum você ver Darwin, Freud, Einstein e outras personalidades históricas em
minhas tiras. Isso tem um motivo: compreendo a dificuldade em encontrarmos prazer no
aprendizado escolar. Afinal, é algo obrigatório, imposto diariamente, em um ambiente
às vezes hostil, no qual não temos interesse no assunto e a informação é passada como
“boiada”, sem um acompanhamento especial nas dificuldades individuais de cada um.
Eu passei por isso. Fui um péssimo aluno pela simples falta de interesse em aprender.
Para mim, a matéria era como um jiló intragável. Só após a escola, e por estímulos
de interesse pertencentes à minha realidade, finalmente fui adquirindo prazer no
aprendizado. Comecei a ler e assistir tudo aquilo que precisava e desejava saber. Até
hoje me arrependo pelo tempo perdido.
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Hoje, considero minhas tiras didáticas uma “missão de resgate”, que estendem a mão para
outros possíveis “Carlos” que, assim como eu, tiveram anos de prejuízo intelectual por não
verem interesse em algo tão vital para nossa sobrevivência e desenvolvimento pessoal.
Utilizando o quadrinho, tento trocar a visão do jiló pela de um sorvete, com o constante
desafio de transformar o conhecimento em algo saboroso. A ideia não é explicar toda a
matéria; os livros já fazem isso. O objetivo é gerar um estímulo, uma faísca de interesse
para que o aluno comece a desenvolver o prazer em aprender, o que gerará interesse em
saber e resultará na fixação da informação.
Por isso, considero o meu trabalho um “gerador de faíscas”, que cativa, questiona, estimula
e gera interesse. E pode acreditar: não há satisfação maior do que ver minhas tiras sendo
utilizadas em salas de aula.
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A migração do lápis para o digital foi um divisor de águas para o meu trabalho. Não
devemos combater o progresso tecnológico; mas nos adaptar a ele. Em 2018, o processo,
que antes necessitava de um computador e um scanner, foi reduzido para um tablet que
cabia na mochila. As etapas de desenhar a lápis, passar nanquim, escanear, vetorizar e
pintar estavam todas dentro do mesmo programa. Ganhei não só na economia de tempo,
mas nos recursos que ajudaram a melhorar a qualidade das tirinhas. Passei a experimentar
diferentes fundos e texturas, por exemplo.
A partir daí, o “antes e depois” do meu trabalho ficou bem mais nítido. Observe a tirinha
abaixo, com Jesus. Ela foi a primeira em que utilizei o tablet. Ainda me adaptando, testava
a grossura do pincel. A do Thanos foi a segunda, e eu seguia experimentando texturas de
fundo. Depois disso, um novo formato foi sendo desenvolvido. Fonte, traço, cor, formato,
leitura... As tiras atuais já não se assemelhavam em nada às antigas.
Assim, foi crescendo em mim um desejo de remodelar as tiras antigas para trazê-las à tona
ao público de hoje. O que nos traz até 2023, momento em que escrevo este texto.
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Todo resultado possui um trajeto, no qual se gasta energia, suor, tempo e estresse. Até que
se chega a algo confortável. Por isso, compartilho aqui a minha dura jornada até escolher
a capa final deste livro tão especial.
Como estou em constante mudança e sinto-me em um novo ciclo de vida, pretendo
criar uma nova dinastia de trabalhos que representam mais quem eu sou hoje. Por isso,
não colocarei aqui os livros publicados antes de 2021; mas sim os meus mais recentes e
também os futuros lançamentos.
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Espero que este livro celebrando a história do USQ não pareça uma despedida.
O motivo de fazê-lo neste formato é porque estou muito mais diversificado, desenvolvendo
outros projetos de quadrinhos. Antes, eu só possuía um galho. Hoje, sinto-me uma árvore
frutífera. Isso faz com que o USQ não seja mais o tronco principal. Suas tiras diárias, de
forma muito natural, tornaram-se semanais.
Por isso, vai demorar bastante até termos um novo livro de coletânea. Logo, até lá, este
livro é uma expressão da minha gratidão às pessoas que nutriram essas raízes por todo
esse tempo, fazendo essa árvore crescer e aparecer. E ela continuará crescendo, só que,
agora, dividindo seiva com outros projetos.
Tem nove livros publicados, tanto por editoras quanto de forma independente,
por financiamento coletivo. Seu álbum De onde viemos? é o segundo maior
projeto em arrecadação e apoiadores na categoria Quadrinhos, no Catarse.
Por sua produção artística consistente nas redes sociais, no mercado literário e
em projetos comerciais bem-sucedidos, Carlos Ruas já se consolidou como um
dos principais quadrinistas do cenário nacional.
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