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INTERESSANTE

EDIÇÃO
BIBLIOTECA

EVOLUÇÃO
Do Ardipithecus
ao Homo sapiens

ALIMENTAÇÃO
A dieta que nos
tornou humanos

ATAPUERCA
Joia mundial
da paleontologia

FUTURO
Como iremos
continuar a evoluir

A origem da
HUMANIDADE
A origem da
humanidade
P. PLAILLY / E. DAYNES

4
A aventura
mais excitante
B
em-vindo a mais uma edição dirigida a todos os leitores que desejam
aprofundar os mais diversos temas da ciência pelas mãos dos melhores
investigadores e divulgadores científicos, sempre com o estilo direto, lúdico,
crítico, compreensível e fiável que caracteriza a SUPER. Nesta revista, abordamos uma
das questões mais fascinantes da ciência contemporânea: a origem e a evolução do
ser humano. De onde viemos? Quem foram os nossos antepassados mais remotos?
Quantas humanidades existiram? Como surgiram a linguagem, a arte, a tecnologia?
O que diz o ADN sobre as nossas origens? Ainda estamos a evoluir? Continuaremos
a fazê-lo? Em que direção? Esperamos que aprenda e, como sempre, que se divirta!
E.C.

> Escultura hiper-realista de uma fêmea de Homo floresiensis, espécie que se caracterizava pela sua pouca altura (apenas
um metro), pelo peso reduzido (cerca de 25 quilos) e pelo cérebro pequeno (400 centímetros cúbicos). A espécie foi
descoberta em 2004 e os paleoantropólogos creem que viveu até há uns doze mil anos na ilha das Flores (Indonésia).
5
História
da linhagem humana .............. 8
Gravado
nos genes ...................................... 18

A criação de um
órgão prodigioso .................. 26

De África
ao fim do mundo .................... 34

A invenção
da infância .................................. 44

Porque
nos erguemos? .......................... 52

O enigma dos
primeiros humanos ................ 60

Tecnologia de ponta
na Idade da Pedra ................... 68

O tesouro
de Atapuerca .............................. 78

Como viviam
os neandertais .......................... 88

As raízes
da linguagem ............................. 98

A aurora
da nossa espécie ..................... 108

Iluminados
pela arte ..................................... 118

A dieta
dos nossos avós .................... 128

Quem és tu,
denisovano? ............................ 138

Chegámos
à América! .................................. 148

Patriarcado:
eles e só eles ............................. 156

Continuamos
a evoluir? .................................. 166

Corrigidos
e melhorados ......................... 174

Os últimos
P. PLAILLY / E. DAYNES

resistentes ................................ 184


IMAGEM DE CAPA: FÊMEA DE HOMO ERECTUS / KENNIS & KENNIS
Sempre nos
perguntámos
de onde viemos.
Graças à genética,
RENÉ CAMPBELL / SHUTTERSTOCK

estamos mais perto


de desvendar
o emaranhado
evolutivo
da linhagem
humana.
8
A linhagem
humana
Foram precisos milhões de anos e uma infinidade
de especiações, cruzamentos, bifurcações e adaptações
evolutivas para os homininos africanos darem origem ao
Homo sapiens. Eis os principais marcos dessa grande aventura.

A
pergunta “de onde viemos?” é uma cons- corresponde ao dos australopitecinos, um grupo diver-
tante do pensamento humano. Todas as sificado de hominídeos africanos que se estende de
civilizações ofereceram uma resposta parti- cerca de 4 Ma a pouco mais de 1 Ma. No terceiro, surge
cular, através dos chamados “mitos de cria- o género Homo, um evento ainda incerto cuja cronolo-
ção”, mas, no século XIX, foi estabelecida uma visão gia oscila entre 2,8 Ma e 1,8 Ma. Por fim, na evolução
científica da natureza que colocou o problema da nossa subsequente do Homo, surgem homininos com grandes
origem na estrutura da evolução biológica. Hoje, sabemos cérebros, como é o caso dos neandertais e das populações
que os símios africanos (gorilas e chimpanzés) são os humanas modernas.
animais vivos evolutivamente mais próximos de nós, e
que os últimos estão ainda mais próximos do que os EVOLUÇÃO NA DIVERSIDADE
primeiros. Os chimpanzés (género Pan) e os humanos De facto, a evolução humana não se ajusta a uma
(Homo) estão intimamente relacionados, o que tem sequência linear de mudança. A velha ideia de uma linha
consequências importantes. Atualmente, usamos o ascendente do macaco ao homem passando por está-
termo “hominino” para nos referirmos aos ancestrais gios intermediários tortuosos tem de ser descartada
mais diretos do ser humano, enquanto o termo “homi- e substituída por esquemas baseados na diversidade.
nídeo” mais clássico abrange todos os grandes símios, Mais do que nunca, a evolução está representada na
incluindo nós. árvore da vida.
Graças ao relógio molecular, que permite que o Entre os primeiros homininos, encontramos os de
tempo seja medido em função de mudanças em certas sítios etíopes classificados sob o nome de Ardipithecus,
moléculas biológicas, estima-se que a idade de diver- cujo representante mais emblemático é um esqueleto
gência das linhagens humana e dos chimpanzés ocorreu parcial chamado Ardi. São semelhantes em tamanho a
há cerca de seis milhões de anos (Ma). Foi nessa época uma fêmea de chimpanzé e viveram num ambiente de
que viveu o antepassado comum, do qual surgiram dois selva há cerca de 4,4 Ma. O seu modo de locomoção é
ramos evolutivos: de um lado, o dos chimpanzés e dos controverso, mas foi definido como o de um quadrú-
bonobos; do outro, a dos homininos, de onde sairá a pede arborícola semelhante aos primeiros macacos do
nossa espécie, o Homo sapiens. Mioceno, de há 20 Ma.
Grosso modo, podemos ordenar a evolução humana Conhecem-se vestígios ainda mais antigos (6 Ma),
em quatro grandes períodos. O mais antigo corresponde descritos sob o nome de Orrorin tugenensis, cronologi-
ao dos primeiros homininos, animais ainda pouco conhe- camente muito próximos do momento da divergência
cidos e muito próximos do último ancestral comum das linhagens chimpanzé e humana. O panorama dos
que partilhamos com os chimpanzés. O segundo período primeiros homininos completa-se com o Sahelanthro-

9
Caminhos
muito cruzados
Esta infografia resume o processo evolutivo que levou ao surgimento
da raça humana, desde os nossos avós, os homininos primitivos
(primatas que começaram a caminhar de forma bípede),
e os seus descendentes até ao aparecimento do Homo sapiens.

Primeiros homininos

Australopitecinos

Parantropos
Ardipithecus ramidus
Localização: Etiópia
Género Homo Volume cerebral:
Ardipithecus kadabba 300-350 cm3

Localização: Etiópia
Volume cerebral:
desconhecido

Australopithecus afarensis
Localização: Quénia e Etiópia
Orrorin tugenensis Volume cerebral: 380-430 cm3

Localização: Quénia
Volume cerebral: desconhecido
Australopithecus bahrelghazali
Localização: Quénia
Volume cerebral: desconhecido
Sahelanthropus tchadensis

Localização: Chade
Volume cerebral: 320-380 cm3 Australopithecus anamensis
Localização: Quénia
Volume cerebral: 350-400 cm3

7 Ma 6 Ma 5 Ma 4 Ma

pus, descoberto no Chade, fora dos ambientes fósseis membros posteriores, libertando assim os membros
clássicos da África Oriental. A sua idade estimada é de anteriores para outras tarefas. Talvez se tenha devido à
cerca de 7 Ma. tendência de carregar objetos com as mãos, o que incen-
Todos têm características muito primitivas, mas parti- tiva o movimento apenas com as pernas. É atraente
lham os dois traços básicos da linhagem dos homininos: pensar que carregar frutas, paus ou pedras pode estar
caninos reduzidos e bipedismo. Falta esclarecer como na base da nossa evolução.
e por que razão começaram a locomover-se com os Quase 200 mil anos após o Ardipithecus ramidus habi-

10
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
Paranthropus robustus

Localização: África do Sul Homo sapiens


Volume cerebral: 400-500 cm3
Paranthropus boisei
Localização: mundial
Volume cerebral: 1350 cm3
Localização: Tanzânia
Volume cerebral: 500-550 cm3

Paranthropus aethiopicus
Homo neanderthalensis
Localização: Eurásia
Localização: Quénia Volume cerebral: 1550 cm3
Volume cerebral: 410 cm3

Homo heidelbergensis
Australopithecus sediba Localização: África e Europa
Localização: África do Sul Volume cerebral: 1250 cm3
Volume cerebral: 420 cm3

Homo antecessor
Australopithecus africanus Localização: Espanha,
França, Reino Unido
Volume cerebral: 1150 cm3
Localização: África do Sul
Volume cerebral: 480 cm3 Homo erectus

Localização: África e Eurásia


Australopithecus garhi Volume cerebral: 990 cm3 Denisovanos
Localização: Etiópia Localização: Rússia e Tibete
Homo gautengensis Volume cerebral: desconhecido
Volume cerebral: 450 cm3

Kenyanthropus platyops
Localização: África do Sul
Localização: Quénia
Volume cerebral: Homo luzonensis
Volume cerebral: 380-430 cm3 Localização: Filipinas
desconhecido
Volume cerebral: desconhecido
Homo ergaster

Homo floresiensis
Localização: Quénia Localização: Indonésia
Volume cerebral: 880 cm3 Volume cerebral: 550 cm3

Homo georgicus
Localização: Geórgia
Volume cerebral: 775 cm3

Homo rudolfensis
Localização: Quénia Homo rhodesiensis
Volume cerebral: 500-600 cm3
Localização: Zimbabwe
Volume cerebral: 1200 cm3

Homo habilis
Homo naledi
Localização: Tanzânia Localização: África do Sul
Volume cerebral: 550-720 cm3 Volume cerebral: 610 cm3

3 Ma 2 Ma 1 Ma

tar as selvas do Mioceno que cobriam a atual Etiópia, radiação adaptativa dos australopitecinos. Entre elas,
um novo desenho corporal apareceu nos ecossistemas distinguem-se tradicionalmente dois padrões morfo-
da África Oriental. Fósseis datados de 4,2 Ma classifica- lógicos: as formas graciosas, agrupadas no género
dos como Australopithecus anamensis começam a mos- Australopithecus, e as formas robustas, caracterizadas
trar características inequívocas de um bipedismo terres- pelo grande tamanho do esqueleto facial e da dentição
tre associado a um aumento do tamanho dos molares pós-canina, hoje classificadas no género Paranthropus.
e da espessura do esmalte, que é a base do sucesso da O género Australopithecus compreende várias espé-

11
O antepassado mais direto do Homo encontra-se
entre o emaranhado evolutivo dos australopitecinos
cies de idade plioplistocénica e distribuição exclusi- tado Kenyanthropus. Todas essas descobertas levaram
vamente africana. Os seus vestígios vêm de 22 sítios a uma reconsideração dos esquemas filogenéticos
africados do sul (África do Sul), do leste (Etiópia, clássicos e ao agrupamento geográfico dos australo-
Quénia e Tanzânia) e da zona central (Chade) e foram pitecinos: por um lado, as espécies da África Oriental
datados de há entre 4,2 e 2 Ma. São homininos bípedes (A. anamensis, A. afarensis e A. garhi); por outro, as
com reminiscências arborícolas, de porte médio, com do sul, em particular a associação evolutiva entre o
altura estimada entre 120 e 150 centímetros e peso entre A. africanus e o A. sediba, com base numa semelhança
30 e 50 quilos. Os seus cérebros ainda são pequenos do esqueleto pós-craniano. Além disso, as chamadas
(375 a 550 centímetros cúbicos), embora maiores do “formas robustas” aparecem no registo fóssil há cerca
que os dos homininos anteriores e um pouco maiores do de 2,6 Ma, com o Paranthropus aethiopicus.
que os dos macacos de tamanho corporal semelhante.
Os primeiros vestígios de australopitecos (Australopi- QUANDO APARECEU O HOMEM?
thecus africanus) apareceram na África do Sul, em 1925. Não é fácil determinar quando surgiu o género Homo
A descoberta abalou a maneira de pensar sobre a nossa e quem foi o seu antepassado mais direto. Sabemos
origem estabelecida na Europa de entreguerras. Mais as que suas raízes estão localizadas num ramo do ema-
recentemente, juntaram-se ao género novos membros, ranhado evolutivo dos australopitecinos, mas não sabe-
como A. barelghazali, A. garhi e A. sediba, além do dispu- mos qual. Historicamente, foi proposto o A. africanus,
pela sua posição cronológica e pela aparência elegante.
Agora, dois novos candidatos concorrem ao lugar de
honra: o A. garhi e A. sediba. Seja como for, os primeiros
Nova peça no puzzle representantes do nosso género viveram em África
há pelo menos 2 Ma, durante um período de aridez e
U ma equipa chinesa publicou no final
de junho, na revista The Innovation,
os resultados da análise de uma desco-
expansão das savanas. Nessa época, ocorreu a tran-
sição evolutiva de um hominino com cérebro e corpo
pequenos, reminiscentes de hábitos arborícolas, para
berta que pode reconfigurar o desenho outro com corpo e cérebro maiores, com marcha bípede
da árvore genealógica da nossa espécie. terrestre a tempo inteiro.
Os dados são tão recentes que não inte- Como identificar o primeiro Homo? Segundo alguns
gram qualquer dos artigos desta edição, autores, a presença de sinais de expansão cerebral e
escritos antes dessa publicação. Resu- de redução da face ou do tamanho dos dentes é evi-
mindo, está em causa um crânio extraor- dência suficiente. Seguindo este critério, o fóssil mais
dinariamente bem conservado, com cerca
antigo conhecido é um fragmento de mandíbula de
Ledi-Geraru (Etiópia), com cerca de 2,8 Ma. A partir
de 150 mil anos, que apresenta caracte-
desse momento, haverá uma grande diversificação
rísticas mais próximas de nós do que os de espécies que se observa há 2 Ma, quando na África
neandertais ou o Homo erectus. Embora oriental e meridional aparecem restos de anatomia
o artigo tenha sido recebido com cau- diversa agrupados sob os nomes de Homo habilis e
tela por alguns paleoantropólogos, que Homo rudolfensis.
afirmam ser necessário estudar melhor o Posteriormente, surgirão os conhecidos como Homo
crânio para fazer afirmações definitivas, a erectus ou Homo sapiens, e os mais exóticos, caso do
maioria dos cientistas aceita a descoberta Homo floresiensis. Observamos neles cérebros maiores
como um achado excecional, capaz de e o uso generalizado de ferramentas, reflexo de uma alta
reescrever a história das nossas origens. capacidade cognitiva, considerada propriedade emi-
Os cientistas chineses chamaram à nova
nentemente humana. No entanto, descobertas recen-
tes em Lomekwi 3 (Quénia) fornecem dados de grande
espécie Homo longi (homem-dragão), por
interesse. As ferramentas de pedra mais antigas conhe-
ter sido encontrado perto do rio Dragão cidas datam de há 3,3 Ma, ou seja, o fabrico de ferra-
Negro. A descoberta vai dar muito que mentas é anterior à origem do Homo, o que significa
falar, mas não veio a tempo desta edição. que criaturas pré-humanas já tinham adquirido capaci-
dades culturais sofisticadas.

12
SPL

Esta é a pegada mais antiga encontrada até agora de um dos nossos antepassados, talvez um Australopithecus
afarensis. Foi encontrada num leito de cinzas solidificadas com 3,7 Ma, em Laetoli (Tanzânia). No local,
há pegadas de dois indivíduos com altura aproximada de 1,65 m, que caminhavam claramente em posição vertical.

No entanto, para outros especialistas, só os fósseis antiga que corresponde aos requisitos. Entre os seus
com datações ligeiramente inferiores a 2 Ma e que par- fósseis emblemáticos, estão o crânio ER-3733 e a man-
tilham aspetos básicos da biologia do H. sapiens podem díbula ER-992, com 1,78 Ma, e o esqueleto de uma
ser considerados Homo, ou seja, esse género seria criança (WT-15000) que viveu perto do lago Turkana
mais recente. As suas características incluem um cére- (Quénia) há 1,5 Ma.
bro de mais de 800 cm3 e uma nova forma de locomo- Até aqui, os mais de 4 Ma de evolução ocorreram em
ção e exploração dos recursos alimentares, o que leva África. Algo aconteceu há cerca de 2 Ma para que alguns
a uma redução acentuada do tamanho dos dentes e membros de uma espécie primitiva de Homo se aven-
a um aumento significativo da altura (160 a 180 cm). turassem além dos confins do continente-mãe e se dis-
O Homo ergaster, a variante africana de H. erectus, é, persassem rapidamente pela faixa tropical da Eurásia
segundo os defensores dessa hipótese, a espécie mais e posteriormente se expandissem para o norte e para

13
outros continentes. Nos 2 Ma seguintes, veremos uma mente pequenos, de cerca de 600 cm3, e característi-
evolução que ocorrerá em diferentes regiões do pla- cas primitivas no esqueleto.
neta, ora interligada, ora isolada, que dará origem a Os primeiros colonos a chegarem a Dmanisi foram
diferentes espécies humanas. a fonte genética de uma rápida dispersão para o
Extremo Oriente que dará origem ao ramo asiático da
ADAPTAÇÃO CULTURAL evolução humana, tradicionalmente conhecido como
A capacidade de adaptação cultural a novos ambientes Homo erectus. Esta espécie e os seus descendentes
parece ser o motor das primeiras saídas de África, impul- habitaram grandes áreas da atual China e dos arquipé-
sionadas pela busca de recursos vegetais e animais lagos indonésio e filipino durante centenas de milhares
em territórios antes desabitados. Os fósseis do sítio de anos. São conhecidos os fósseis do sítio Sangiran
Dmanisi (Geórgia), na região do Cáucaso, são o primeiro (Java), onde os mais antigos têm 1,8 Ma, e os mais
testemunho de uma expansão na Eurásia, ocorrida recentes de Chou-k’ou-tien (China). Novas datações
há 1,9 Ma. São pessoas com cérebros surpreendente- dos restos do sítio Ngandong (Java), de apenas 0,1 Ma,

Recriação da Criança
SPL

de Turkana a partir
dos restos mortais
encontrados naquela
área do Quénia. Foi
um Homo ergaster
que viveu há 1,5 Ma.

14
AGE
Comparação entre o cérebro do Homo naledi (cerca
de 500 cm3) e o do Homo sapiens de Jebel Irhoud
(Marrocos). Este humano anatomicamente moderno
de há 315 mil anos tinha um cérebro de 1300 cm3.

marcam o fim da sequência evolutiva da longa linha- africana imediata e direta, mas a maioria dos autores
gem do H. erectus. acredita que eles vieram do leste.
Duas surpresas recentes da paleoantropologia
situam-se no contexto da evolução humana na Ásia: UMA NOVA ESPÉCIE
o pequeno H. floresiensis (106 cm de altura, 30 kg de De um pouco mais tarde (0,9 Ma) são os abundantes
peso, 417 cm3 de cérebro), da ilha das Flores (Indo- restos recuperados no nível TD6 do depósito Gran
nésia), com características anatómicas únicas, e o Dolina (Atapuerca), que revelam humanos com um
H. luzonenesis, encontrado em Luzon (Filipinas), também cérebro próximo de 1000 cm3 e uma dentição com carac-
pequeno e com uma anatomia que combina caracte- terísticas primitivas. Em contrapartida, a configuração
rísticas modernas com outras muito primitivas. Ambos do rosto mostra uma depressão sob as maçãs do rosto,
são resultado de especiações que surgiram num con- conhecida como “fossa canina”, e um nariz bem proje-
texto insular com uma evolução independente e iso- tado. Essa combinação de características é única entre
lada ao longo de milénios. os homininos e justifica a classificação de uma nova
Entretanto, no Médio Oriente e na Europa, os homi- espécie, o Homo antecessor, com uma posição chave
ninos saídos de África viviam as suas aventuras parti- na árvore da evolução humana.
culares, com um curioso atraso na sequência da colo- Este representaria o último ancestral comum dos
nização. Enquanto na Ásia Oriental as primeiras ocu- chamados “humanos de cérebro grande”: os anatomi-
pações humanas ocorreram há 1,9 Ma, estas são mais camente modernos (Homo sapiens) e os neandertais
recentes, nunca antes de 1,4 Ma. Deteta-se a chegada (Homo neanderthalensis). Uma possível explicação
dos primeiros humanos ao nosso continente nos sítios para comprrender este emaranhado é que, há cerca
Orce, Barranco León e Fuente Nueva 3 (Granada, Espa- de 1 Ma, o H. ergaster evoluiu para uma nova espécie
nha), e na Sima del Elefante, em Atapuerca (Burgos, (H. antecessor), que se espalhou e se diversificou por
Espanha). Isso encorajou a ideia de uma possível origem África e pela Eurásia. As populações de H. antecessor

Alguma coisa aconteceu há dois milhões de anos


para os primeiros humanos decidirem sair de África

15
que chegaram à Europa mudaram a sua anatomia e aos
poucos surgiram as características que identificamos
nos neandertais. Um processo semelhante ocorreu nas
populações do último ancestral comum dos residentes
da África, que eventualmente evoluirá para a linhagem
de H. sapiens.
O surgimento de homininos com cérebros grandes
representa o quarto período da evolução, durante o
qual se desenvolveram capacidades culturais surpreen-
dentes. Neandertais e humanos modernos aumenta-
ram os cérebros para valores que rondavam 1500 cm3
nos primeiros e cerca de 1350 cm3 nos segundos. Hoje,
sabemos que os grandes cérebros do H. sapiens e do
H. neanderthalensis foram alcançados por diferentes vias
evolutivas, com uma expansão diferente de algumas
regiões neuronais, o que é a base anatómica das suas
diferenças psicobiológicas. Na Europa, vários fósseis do
Pleistoceno Médio, datados de há entre 0,6 e 0,2 Ma,
ilustram bem o processo evolutivo local dos neandertais.
Os vestígios encontrados na Sima de los Huesos (Ata-
puerca), com cerca de 0,4 Ma, são fundamentais para
esclarecer a origem desta espécie, um aspeto pouco
conhecido até a sua descoberta, bem como a contri-
buição da paleogenética.
A extração de ADN fóssil de restos mortais da gruta
de Denisova, na Sibéria, mostrou a existência de
uma nova linhagem humana: os denisovanos. As suas
características genéticas tornaram possível estabelecer
que eles partilham um antepassado próximo com os
neandertais, dos quais divergiram há cerca de 0,4 Ma.
O ADN também mostrou que a hibridação entre as
espécies foi uma constante na nossa evolução. Para
entendê-lo melhor, temos de regressar a África.
Paralelamente ao que acontecia na imensa Eurásia,
as populações africanas de H. ergaster continuavam
o seu caminho evolutivo desde a origem, há 1,8 Ma.
Podemos reconhecer os seus descendentes nos crâ- de ir mais longe no tempo para encontrar evidências
nios de Daka (Etiópia) e Buia (Eritreia), com 1 Ma. claras de um aumento no cérebro nos vestígios do
A sua capacidade cerebral ainda não tinha ultrapassado Mesopleistoceno de Bodo (Etiópia) e Kabwe (Zâmbia).
o limiar simbólico de 1000 cm3, e a sua anatomia asse- As evidências sugerem que essas populações africanas
melha-se à dos seus homólogos asiáticos. Tal como na representam as raízes dos humanos anatomicamente
Europa, também em África a data de 1 Ma é crítica para modernos, embora haja discrepâncias no modo de
a evolução humana: é a época em que supomos ter exis- especiação pelo qual surge o H. sapiens. Por outro lado,
tido o antepassado comum dos homininos de cérebro os dados genéticos das populações atuais sugerem
grande. que a nossa espécie se diferenciou num evento rápido
e bem localizado geograficamente. No entanto, des-
INTENSOS MOVIMENTOS POPULACIONAIS cobertas recentes de restos mortais humanos com 315
A verdade é que nenhum representante claro do mil anos, no sítio marroquino de Jebel Irhoud, levan-
H. antecessor foi encontrado em África. Sabemos pouco tam a possibilidade de, tal como os neandertais, o
sobre o que se passou lá entre 1 e 0,6 Ma, e temos H. sapiens ter surgido de uma evolução pan-africana gra-

A nossa evolução não segue uma linha ascendente:


somos o resultado de trocas genéticas complexas

16
AGE
Recriação de um grupo de Homo habilis nas planícies de Olduvai (Tanzânia). Estes primeiros homininos
viveram na África Oriental há entre 2 e 1,6 Ma, durante os períodos Gelasiense e Calabriense, no Pleistoceno.
O tamanho do cérebro do H. habilis, que usava ferramentas, era cerca de metade do dos humanos modernos.

dual e deslocalizada, através de processos complexos África encontraram o H. neanderthalensis ali residente.
de cruzamento. Como resultado, os novos colonos levaram genes
De qualquer forma, a verdade é que, a partir do neandertais na sua posterior dispersão para todos os
momento em que a nossa espécie apareceu, houve confins do planeta. Isso explica porque é que boa parte
intensos movimentos populacionais. Ondas sucessivas da humanidade atual, descendente desses migrantes
de migração conhecidas começaram a partir do con- africanos, ainda conserva dois por cento de herança
tinente onde tudo começou. Tal como há quase 2 Ma, neandertal nos seus cromossomas.
as primeiras colonizações de H. sapiens chegaram à Após esta rápida revisão da história da linhagem
Eurásia, mas, ao contrário dessas, expandiram-se até humana, fica claro que a nossa evolução não pode ser
à Austrália. A chegada às Américas e à Polinésia com- resumida num simples processo ascendente, sinteti-
pleta a expansão global dos homininos. zado numa simples sequência de mudanças. Pelo con-
Investigações da última década revelaram que, trário, o ser humano é fruto de uma rede de processos
nesse fenómeno expansivo, diferentes espécies huma- evolutivos, com especiações locais, extinções e trocas
nas trocaram genes. Chama a atenção a hibridação genéticas que definem uma complexa rede de espécies
ocorrida há cerca de 60 mil anos no Médio Oriente, e interações.
quando as populações de H. sapiens que saíram da A.R.

17
Um investigador
CORDON

do Instituto Max
Planck (Alemanha)
obtém amostras
de um osso neandertal.
A sequenciação
do seu genoma,
em 2010, mostrou
que transportamos
alguns dos seus genes.

18
Gravado
nos genes
A paleogenética (o estudo do passado a partir dos restos de ADN
que se vão recuperando) indica que a evolução humana é muito
mais complexa do que pensávamos e que os cruzamentos
de homininos foram mais frequentes do que se suspeitava.

N
o final do século XX, o campo da evolução desconhecemos parece ser infinito. O que aconteceu
humana, até então amplamente baseado para explicar essa revolução foi o surgimento da genó-
no estudo de fósseis e ferramentas líticas, mica; especificamente, de uma disciplina derivada
estava atolado em controvérsias que pare- dela, a paleogenómica, que estabelece as suas bases
ciam insolúveis. Alguns paleontólogos, chamados em novas tecnologias para a sequenciação em massa
multirregionalistas, argumentavam que as populações de material genético, o ADN. Em essência, consiste na
humanas de cada continente descendiam de antepas- recuperação e análise de genomas de vestígios antigos.
sados arcaicos locais (no caso dos europeus, dos nean- Como veremos a seguir, esta abordagem pode
dertais), enquanto outros postulavam uma origem fornecer informações muito valiosas sobre a história
recente da humanidade, de um grupo que teria saído evolutiva da linhagem humana, as suas adaptações e
de África há menos de cem mil anos. afinidades populacionais, e até sobre a demografia, a
O campo da evolução humana sempre foi contro- estratégia reprodutiva e o processo de extinção dos
verso, em parte porque é difícil abstrair do próprio humanos do passado.
objeto de estudo (ao qual se pertence, no final de contas)
e em parte porque é complicado interpretar relações MILHÕES DE NUCLEÓTIDOS
ancestrais com base em características de esqueletos. O ADN degrada-se em função de fatores ambientais,
Por vezes, nem sequer é fácil ter a certeza se um deter- especialmente a temperatura. Quanto mais quente o
minado fóssil pertenceu a um indivíduo do sexo mas- ambiente onde um vestígio é encontrado, mais curto
culino ou feminino. é o tempo de conservação do seu material genético.
Agora, passados vinte anos, o nosso entendimento A estabilidade térmica também desempenha um papel,
deste assunto avançou tremendamente, e as questões e é por isso que as grutas ajudam a preservá-la. Dentro
científicas que surgem já não estão focadas na com- dos restos do esqueleto, o genoma das células do indi-
preensão da grande estrutura evolucionária, mas víduo quando ele estava vivo é fragmentado em biliões
nos pormenores. No entanto, como costuma aconte- de pedaços de algumas dezenas de nucleótidos, os elos
cer na ciência, cada resposta abre novas questões. químicos que compõem a cadeia de ADN.
Embora muito progresso tenha sido feito, o que O genoma humano é composto por 3200 milhões

19
A análise do genoma
neandertal revelou
que a sua linhagem
e a nossa divergiram
há cerca de  mil anos

desses nucleótidos (3,2 gigabases). Reconstruí-lo na


sua totalidade é uma tarefa difícil, mas possível. Hoje,
as tecnologias de sequenciação são tão poderosas
que podem gerar triliões de sequências a partir de um
extrato de ADN obtido de minúsculas amostras de um
fóssil, tão pequenas quanto algumas dezenas de mili-
gramas. Por outro lado, precisamos de um genoma de
referência atual para mapear todos os fragmentos e
colocá-los na área que lhes corresponde. No caso dos
neandertais, por exemplo, usamos o genoma humano;
no dos mamutes, o do elefante-asiático.
Não sabemos quanto tempo é possível andar assim
para trás no tempo. Neste momento, o record absoluto
da “maratona paleogenómica” é detido por um osso
de cavalo do Canadá datado de há cerca de 700 mil
anos, enquanto para os humanos corresponde a restos
da Sima de los Huesos, em Atapuerca (Espanha), de há
430 mil anos. Em todo o caso, não é algo que novos avan-
ços técnicos possam resolver, simplesmente porque
o ADN se vai degradando até se transformar em fragmen-
tos tão curtos que ficam irreconhecíveis e não podem
ser atribuídos com certeza a um organismo específico.

IDEIA PIONEIRA
A ideia de obter um esboço do genoma neandertal O biólogo sueco Svante Pääbo,
um dos maiores promotores
foi concebida em 2006 por um pioneiro dos estudos da paleogenómica, liderou
paleogenéticos, Svante Pääbo, investigador sueco do o projeto que lançou luz sobre
Instituto Max Planck em Leipzig (Alemanha). Quando o acervo genético neandertal.
o projeto começou, não havia ainda as tecnologias de Na foto, o cientista com
FRANK VINKEN / MPI

sequenciação que permitiram a sua culminação, em a reconstrução de um crânio


2010. Foram analisadas amostras neandertais de dife- dessa espécie.
rentes locais, e no final decidiu-se usar três da jazida
croata de Vindija.
A partir do genoma neandertal, constatou-se que
a sua linhagem e a nossa divergiram há cerca de 600 mos a uma dúzia deles, com diferentes qualidades de
mil anos, e que desde então as mudanças se acumula- sequenciação. Porém, é preciso dizer que serão sempre
ram em cerca de uma centena de genes. As diferenças poucos e que as jazidas que conservam ADN de qualidade
entre os dois grupos humanos, tanto no nível esquelé- suficiente para gerar um genoma, no todo ou em parte,
tico como em outras características que não fossilizam, são extraordinariamente raras.
estavam nesta pequena lista de genes ou, provavel- O ano de 2010 terminou com a publicação, três dias
mente, na forma diferencial como a sua expressão é antes do Natal, do genoma de uns homininos misteriosos,
regulada no plano genómico. sobre os quais nada se sabia e que ainda hoje carecem
Após esse feito científico de valor inegável, foram de uma definição taxonómica convencional: os chama-
publicados vários genomas de neandertal, até chegar- dos “denisovanos”. A gruta Denisova (o nome deriva

20
de Denis, um eremita russo que lá viveu no século XVIII) meses, conseguiram recuperar todo o seu genoma.
está localizada na Rússia, nos montes Altai, perto da Posteriormente, a datação deste fóssil deu uma idade
fronteira entre a Mongólia e o Cazaquistão. de entre 51 e 76 mil anos.
Analisando o genoma de Denisova, ficou claro que
NEM NEANDERTAL, NEM MODERNO era um pouco diferente do dos neandertais, dos quais
Em 2008, um arqueólogo russo descobriu um minús- teria divergido cerca de 450 mil anos antes, e do dos
culo fragmento de osso que correspondia à falange humanos modernos. Além disso, o grupo que represen-
distal de um dedo mínimo. Quando cientistas do Instituto tava tinha deixado vestígios genómicos nos aboríge-
Max Planck o analisaram, descobriram que o seu ADN nes da Austrália e da Nova Guiné de até 4,5 por cento;
estava excecionalmente bem preservado e, em poucos isso, somado aos 2,5% dos neandertais, eleva a fração

21
arcaica do seu genoma para 7%. Além disso, perce- uma linhagem de homininos que ocupou o continente
beu-se um traço residual de menos de 1% nos asiáticos asiático e ali viveu antes de os neandertais colonizarem
atuais, que além disso pareciam provir de um grupo maioritariamente a Europa. Os humanos modernos que
ligeiramente diferente de denisovanos. deixaram África encontraram-se e cruzaram-se com
Desde então, foram recuperados dados genómicos eles, algo que poderá ter acontecido até há apenas
de outros três denisovanos da mesma gruta, mas, para 15 mil anos, na Nova Guiné.
consternação dos paleontólogos, são restos muito Talvez o resultado mais inesperado do projeto do
pequenos e fragmentados, sem capacidade diagnós- genoma neandertal tenha sido a descoberta de que
tica. Em 2019, foi descoberta na gruta Baishiya, no esses humanos arcaicos contribuíram em cerca de 2,5%
Tibete, parte de uma mandíbula que remonta a 160 mil para o genoma de todos os Homo sapiens fora de
anos. Também correspondia a um denisovano, embora África, dos europeus aos aborígenes australianos e aos
desta vez isso tenha sido descoberto por meio de aná- nativos americanos.
lises de proteínas, não genéticas.
Hoje, acredita-se que os denisovanos representem ENCONTROS E CRUZAMENTOS
Até agora, os únicos humanos modernos que pare-
ciam não ter uma marca neandertal no seu genoma
CLAUDIA FEH / ASSOCIATION POUR LE CHEVAL DE PRZEWALSKI
eram, paradoxalmente, os subsaharianos, os mesmos
que os cientistas raciais vitorianos consideravam os
mais primitivos. No entanto, um estudo recente da
Universidade de Princeton (New Jersey) publicado na
revista Cell concluiu que eles também têm vestígios
dos nossos primos evolucionários. De qualquer forma,
o facto de termos uma pequena parte do genoma
neandertal significa que os dois grupos se encontraram
e hibridaram.

Ossos encontrados no Yukon (Canadá) revelaram o genoma


de um cavalo que viveu há 700 mil anos. É o mais antigo
ADN sequenciado, e a partir dele foi possível estabelecer
a relação evolutiva entre os espécimes domésticos
e os de Przewalski (à esquerda), que vivem na Mongólia
e são os últimos cavalos verdadeiramente selvagens.
LUDOVIC ORLANDO / UNIVERSIDADE DE COPENHAGA

22
A hibridação ocorreu em várias regiões e épocas e entre
várias linhagens: é mais um padrão do que um episódio
Não sabemos onde isso aconteceu originalmente, vável que Denisova se localizasse no limite da distribui-
mas poderia ter sido no Médio Oriente, perto da saída ção de ambos os grupos e que a gruta fosse ocupada
da África, há entre 50 e 70 mil anos. Nesse período, pelos dois em momentos diferentes. Esses contactos
encontramos em Israel fósseis que se parecem com seriam muito mais difíceis nas suas respetivas áreas
neandertais e outros que se parecem com humanos A acumulação de hibridações, algumas com repercus-
modernos, embora não no mesmo local. A genética são planetária e outras, como a de Oase, talvez restritas
fornece pistas de quando isso ocorreu, porque, quando a poucos indivíduos, implicou uma mudança no modelo
duas espécies se cruzam, os blocos genómicos resul- de evolução humana. Devem ter sido episódios recor-
tantes são fragmentados a cada geração. Pela sua rentes que ocorreram em diferentes regiões, entre
extensão, pode inferir-se quantas passaram desde a várias linhagens e em diferentes momentos. É mais um
existência do primeiro híbrido, com metade do genoma padrão do que um episódio, e também mostra que
neandertal e a outra metade de Homo sapiens. Um fóssil de nenhum dos modelos evolucionários de há algumas
Homo sapiens com 37 a 42 mil anos encontrado na gruta décadas estava absolutamente certo. Tratava-se de
Oase, na Roménia, revelou que o indivíduo a quem per- simplificações, mas a realidade é mais complexa.
tencia tinha um ancestral neandertal de quatro a seis
gerações atrás, que lhe havia legado 7,5% do genoma. HERANÇA AMBÍGUA
A descoberta de que os denisovanos também hibrida- Embora muitos humanos modernos carreguem uma
ram com os nossos antepassados indica que esse fenó- parte neandertal muito pequena, há alguns genes
meno não era único, mas ninguém estava preparado nela, e vários investigadores exploraram o seu papel.
para o número de tais eventos que foram descritos. Por vezes, é difícil estabelecer exatamente como cada
O próprio genoma denisovano contém vestígios de um um funciona, muito menos as diferenças que podem
hominino mais antigo, localizado numa época de diver- ocorrer se apresenta variantes de neandertal ou não.
gência genética com um milhão de anos, que poderia No entanto, sabemos que há alguns relacionados com
ser o Homo erectus. o metabolismo, com aspetos fisiológicos da pele, com a
pigmentação, com o sistema imunológico ou com os rit-
EXPEDIÇÃO MAL SUCEDIDA mos circadianos. Hoje, vários estão associados a certos
Ao analisar pormenorizadamente o genoma de um distúrbios (por exemplo, cardiovasculares), mas isso
neandertal da gruta Denisova (no caso, de um osso do porque as atuais condições de vida não são como as que
pé), descobriu-se que uma pequena fração provinha de prevaleciam no Paleolítico: os genes que ajudaram os
humanos modernos primitivos que tinham afinidades nossos antepassados a sobreviver como caçadores-
com os africanos modernos. Este encontro correspon- -recoletores acabam por ser prejudiciais hoje, quando
deu a uma partida anterior e desconhecida de África, temos frigoríficos cheios durante todo o ano.
que poderá ter ocorrido há 120 mil anos. É provável Claramente, no passado, esses genes neandertais
que não tenha tido sucesso, mas deixou uma pegada tornaram mais fácil adaptarmo-nos a condições diferen-
genética. Isso só é discernível neste espécime de nean- tes das encontradas em África. Sem dúvida, as regiões
dertal em particular, mas não nos europeus. por onde os nossos antepassados se espalharam eram
O ponto culminante desta história de cruzamentos mais frias (sobreviver exigiria uma dieta mais carní-
recorrentes é a análise do genoma de um fragmento vora e calórica) e apresentavam períodos de escuridão
ósseo também de Denisova (fora digerido por uma acentuados ao longo do ano. Talvez houvesse também
hiena, mas ainda tinha ADN bem conservado) cujo dono diferentes agentes patogénicos, aos quais os neander-
viveu há entre 79 e 118 mil anos. Corresponderia a um tais se tinham adaptado ao longo de milhares de anos.
híbrido de primeira geração, com pai neandertal e mãe As regiões do genoma onde temos genes neandertais
denisovana. são tão interessantes como aquelas onde eles estão
A probabilidade de analisar um remanescente aleató- ausentes, pois isso significa que há genes que aceitam
rio do registo fóssil e encontrar algo semelhante deve muito pouca variação e, portanto, podem ser essen-
ser muito baixa, por isso não sabemos se é um caso de ciais para a definição das nossas peculiaridades como
sorte extrema ou um sinal de que esses eventos eram espécie, isto é, como Homo sapiens. Diferentes grupos
comuns. No entanto, não podiam ser muito, porque as de cientistas estão a estudar esses desertos de herança
linhagens evolucionárias dos neandertais e denisovanos neandertal e descobriram que neles existem genes
são perfeitamente discerníveis ao nível genético. É pro- relacionados com a função reprodutiva e as nossas

23
AGE

O mais antigo genoma humano conhecido tem 430 mil anos. Foi obtido a partir da análise
de vestígios descobertos na jazida de Sima de los Huesos, em Atapuerca (Burgos, Espanha).

habilidades cognitivas. Este tipo de iniciativa exigirá à falta de parceiros alternativos, em grupos progressi-
muitos anos de trabalho, devido às dificuldades técni- vamente isolados e cada vez menos numerosos.
cas que acarreta. Essa falta de diversidade genética tem um efeito
colateral na viabilidade da espécie, pois permite a acu-
DOIS GENOMAS mulação de mutações com efeitos negativos, algumas
Na verdade, não temos um genoma, mas dois, pois das quais podem manifestar-se ao nível esquelético.
recebemos uma cópia de cada cromossoma do pai Outras afetariam aspetos cognitivos ou relacionados
e outra da mãe. Essas cópias não são idênticas, mas com a redução da fertilidade, por exemplo.
podem sofrer alterações que, em última análise, Do ponto de vista genético, os neandertais apresentam
dependem do tamanho da população (ou da espécie) sinais semelhantes aos que observamos em espécies
no passado. Quanto maior for, mais as duas cópias de em plena crise demográfica, como o lince-ibérico. Inde-
cada cromossoma serão diferentes. Quando a popula- pendentemente do efeito que outros fatores possam
ção é pequena, recebemos vários fragmentos em todo ter tido no seu desaparecimento, como a chegada ines-
o genoma que são idênticos nas duas cópias; quando perada de humanos modernos à Europa, há cerca de
os nossos pais são consanguíneos, legam-nos longos 45 mil anos, é possível que os neandertais estivessem
fragmentos cromossómicos sem qualquer variação, de alguma forma condenados à extinção.
porque vêm de um antepassado comum. A própria estrutura social pode ter contribuído para
Nos genomas arcaicos disponíveis, podemos observar exacerbar os efeitos do seu longo declínio. Os dados
uma grande acumulação de pequenas áreas sem variação obtidos em alguns locais indicam que formavam peque-
genética, o que é um sinal óbvio de um longo declínio nos grupos familiares, de dez a quinze indivíduos,
populacional. No caso do neandertal da gruta Denisova, e praticavam a exogamia, ou seja, a troca de mulheres
cerca de um quarto de seu genoma permanece inal- entre grupos organizados por laços familiares mascu-
terado, sugerindo que esse indivíduo descendia de linos. À medida que a população diminuía, essas redes
meios-irmãos, ou talvez de tio e sobrinha. Se ocorreram sociais deixaram de funcionar e as comunidades ficaram
cruzamentos consanguíneos, provavelmente foi devido isoladas, espalhadas por grandes áreas geográficas.

24
NEANDERTHAL MUSEUM
O estudo do fóssil de um indivíduo que viveu na Roménia há 40 mil anos
(esta é a sua possível aparência) mostrou que teve um trisavô neandertal.

Ao contrário, análises genómicas em grupos de Homo À medida que viajamos para trás no tempo, os dados
sapiens do Paleolítico Superior, como os restos do sítio genéticos tornam-se mais escassos, mas também mais
Sungir (Rússia), indicam que havia menos laços fami- impressionantes. A extrapolação da variação desses
liares entre eles e redes de troca social mais extensas, genomas para o passado mais remoto, bem como a
possivelmente associadas a expansão demográfica. escassa informação proveniente da Sima de los Hue-
O facto de não termos detetado genes modernos sos, sugere que a linhagem neandertal saiu de África
nos neandertais europeus de há 40 a 50 mil anos e entrou na Europa há cerca de meio milhão de anos,
sugere que eles talvez fossem menos recetivos a abri- onde substituiu outras de homininos locais que teriam
gar indivíduos resultantes de um cruzamento com o mais afinidades genéticas com os denisovanos. A inte-
Homo sapiens. É possível que este último tenha sido gração desses testes genéticos com outros derivados
mais flexível do ponto de vista social e cultural. da arqueologia e da paleontologia pode ajudar a enten-
der a origem da linhagem neandertal citada e o con-
CADA VEZ MAIS LONGE texto paleoclimático dessa migração.
Sem dúvida, o período de tempo mais interessante Podemos pensar que a paleogenómica já atingiu os
que falta explorar é o dos primeiros neandertais, embora seus limites temporais, e provavelmente é verdade. No
o registo fóssil seja mais escasso e as dificuldades entanto, há boas notícias. Recentemente, descobriu-
técnicas maiores. A recente sequenciação de dois espé- -se que as proteínas do esmalte sobrevivem em alguns
cimes de há cerca de 120 mil anos, de Hohlenstein-Stadel dentes durante pelo menos dois milhões de anos, pro-
(Alemanha) e Scladina (Bélgica), mostrou que eles são vavelmente mais. Isso implica que em breve teremos
muito semelhantes aos últimos representantes da árvores evolutivas baseadas em dados moleculares que
linhagem, de há cerca de 40 mil anos. Por outras pala- chegarão à origem do género Homo e talvez antes.
vras, há pelo menos 80 mil anos de continuidade gené- A revolução do conhecimento baseada em tecnologias
tica no continente europeu, o que coincide com uma impensáveis há dez anos continuará no futuro e exigirá
notável homogeneidade morfológica do registo fóssil uma visão multidisciplinar da evolução humana.
daquela época. C.L.F.

25
26
GETTY
A criação
de um órgão
prodigioso
Temos orgulho no nosso cérebro: define-nos e distingue-nos
dos outros animais. Na realidade, é o resultado de uma longa
evolução que pode ser rastreada estudando fósseis e seres vivos.

A
antropologia pode ser definida como a Na realidade, a mente nada mais é do que o conjunto
disciplina que estuda a história natural da de processos que geram o nosso pensamento. Por isso,
raça humana. Isso gera uma espécie de deve ser acessível à experimentação e aos métodos da
conflito de interesses, pois as pessoas são ciência, mas esses processos são muito complexos, no
ao mesmo tempo objetos e sujeitos da investigação. sentido de que o seu funcionamento geral não pode
Algo semelhante acontece com a neurociência, porque ser compreendido estudando apenas as partes isola-
neste caso é o cérebro que se autoestuda. A integração das. Assim, embora conheçamos todos (ou quase) os
entre antropologia e neurociência ocorre, por isso, sem nossos neurónios, ainda sabemos pouco (ou quase
surpresa, num contexto de expectativas, esperanças e nada) sobre a nossa cognição.
preconceitos, em que laços sociais e culturais podem
distorcer significativamente o nosso conhecimento. CAMINHO EVOLUCIONÁRIO
Além disso, ao investigar a evolução do nosso pode- Para desvendar o complicado caminho evolucionário
roso cérebro, temos de lidar com um órgão de grande que criou os nossos cérebros, temos de basear-nos
complexidade, o que implica limitações, devido às téc- em duas fontes de dados. O primeiro é a investigação
nicas e aos métodos usados. Por exemplo, a nossa ciên- das diferentes espécies de primatas e a comparação
cia funciona muito bem quando trabalha com o que é de umas com as outras. Os humanos são uma delas,
pequeno e tem limites definidos, como células ou e pertencemos a um grupo zoológico que possui mais
moléculas; é muito mais difícil quando é necessário de 250 espécies vivas, pelo que podemos estudar
integrar perspetivas mais amplas e gerais para inter- o nosso cérebro dentro da diversidade desta família.
pretar processos globais e extensos. Sabemos tudo Neste caso, dispomos de muitas informações, pois
(ou quase tudo) sobre os neurónios, mas pouco (ou temos cérebros pensantes e muitas espécies, mas não
quase nada) sobre a mente. A própria palavra “mente” podemos esquecer que esses primatas atuais não são
é usada em esferas muito reducionistas da metafísica, formas primitivas. Chimpanzés ou macacos são fre-
quase confundida com algo abstrato e impalpável quentemente usados como exemplos de formas de
como a alma. vida antigas, mas isso simplifica demasiado o assunto.

27
Este olhar de um chimpanzé
em cativeiro pode ser
perturbador, devido à sua
semelhança com o nosso.
No entanto, os seus olhos
estão ligados a um cérebro
mais pequeno do que
o humano, com menos
GETTY

células e interligações.

Desde que as linhagens desses animais se separaram qualidade, mas tão escassos que muitas vezes não são
das nossas, eles e nós continuámos a evoluir por cami- suficientes para confirmar ou rejeitar hipóteses e teorias.
nhos paralelos e independentes. Portanto, chimpanzés Em resumo, se considerarmos as vantagens e desvan-
e macacos não representam condições primitivas, mas tagens de trabalhar com espécies atuais e com fósseis,
evoluíram à sua maneira. Estudar as espécies atuais ficamos com apenas uma opção: integrar os dois tipos
não nos informa sobre o processo de evolução, mas de informação com muita cautela.
sobre o seu resultado.
A segunda fonte de conhecimento é a análise de fós- OLHOS E VISÃO
seis. Neste caso, investigamos as mudanças evolutivas Como já dissemos, pertencemos à família zoológica
ao longo do tempo. Nem todas as espécies fósseis dos primatas, que possui cerca de 70 milhões de anos
foram nossos antepassados (por exemplo, supõe-se de evolução. Se os compararmos com o resto dos mamí-
que os neandertais representem uma linhagem inde- feros, são animais que se destacam por duas carac-
pendente), mas algumas sim, e podem dizer-nos algo terísticas. Para começar, outros mamíferos tendem
sobre a nossa evolução. Aqui, surge outro problema: a ser noturnos e a funcionar num mundo feito princi-
a informação vem de poucos ossos, poucos indivíduos palmente dos ruídos e cheiros que captam. Em contra-
e poucas espécies. Por outras palavras, temos dados de partida, os primatas investiram muito em olhos e visão.

28
Por isso, o nosso universo é construído com formas e tátil) e as regiões cerebrais correspondentes: por
cores, que avaliamos com notável precisão. Essa inversão exemplo, os lobos parietais, que integram e coordenam
foi realizada com a evolução de órgãos sensoriais o organismo com o ambiente. Em ambas as situações,
apropriados (os olhos) e com o desenvolvimento das o cérebro esteve profundamente envolvido no pro-
regiões cerebrais correspondentes: os lobos occipitais, cesso, e a sua lenta transformação ao longo de milhões
responsáveis pela descodificação dos sinais visuais. de anos tornou-se, com toda a probabilidade, funda-
Em segundo lugar, os primatas desenvolveram mental para o nosso grupo zoológico.
uma habilidade manipulativa muito fina, que resultou
nas nossas excelentes capacidades de interagir com o COMPORTAMENTO COMPLEXO
ambiente. Também neste caso, tiveram de evoluir tanto Alguns primatólogos veem os alimentos como o motor
os órgãos (as mãos, com a sua grande sensibilidade de muitas dessas mudanças, que estariam relacionadas

O mundo entra em nós pelos olhos. Para os primatas,


humanos incluídos, a visão é o sentido mais importante

29
No topo da evolução
Se compararmos os nossos crânios e cérebros com os de espécies humanas arcaicas,
como o Homo erectus ou o Homo heidelbergensis, encontramos algumas diferenças notáveis.

Lóbulo frontal Lóbulo parietal Os moldes endocranianos


permitem confrontar
o cérebro humano moderno
com o de alguns congéneres
antigos, como o Homo
erectus. O nosso é mais
complexo e maior, tanto
em termos absolutos como
em relação ao tamanho
corporal, e possui mais
HOMO ERECTUS HOMO SAPIENS ligações entre os lóbulos
frontal, parietal e temporal.
Lóbulo temporal

A face do Homo sapiens


distingue-se da de
Córtex
pré-frontal homininos arcaicos, como
o Homo heidelbergensis,
HOMO HEIDELBERGENSIS por ter uma testa mais
pequena e uma abóbada
craniana mais volumosa,
principalmente devido
ao desenvolvimento
das regiões parietais.
IMAGENS: EMILIANO BRUNER

Essa mudança aproximou


os olhos do cérebro
Bulbo Córtex
temporal e gerou conflitos espaciais
HOMO SAPIENS ocular
na arquitetura do crânio.

com a ecologia básica dos primatas, a disponibilidade VOLUME CEREBRAL


de recursos alimentares (insetos, frutos e folhas) e A análise dos fósseis sugere que o género Homo evoluiu
as escolhas dietéticas. Outros apostam na estrutura em África durante cerca de dois milhões de anos, pro-
social particular dos primatas, extremamente diversifi- vavelmente a partir de uma das muitas espécies conhe-
cada e complexa. Seja como for, temos de assumir que cidas do genero Australopithecus. Os australopitecinos,
ambos os fatores (dieta e sociedade) desempenharam como os grandes símios africanos de hoje, possuíam
um papel fundamental na evolução do nosso cérebro, um volume cerebral que variava entre 300 e 400 centí-
como primatas em geral e como membros de uma metros cúbicos, enquanto os primeiros humanos, mui-
espécie em particular: o Homo sapiens. tas vezes rotulados de Homo ergaster, poderiam ter
Pertencemos a um grupo que evolui há vinte a trinta uma média de 800 cm3.
milhões de anos, o dos grandes símios. Era muito mais Os esquemas filogenéticos do género Homo pos-
diversificado antes, mas agora só sobramos nós, os suem atualmente um número de espécies que varia
chimpanzés, os gorilas e os orangotangos: um conjunto de três a uma dúzia, mas na realidade temos conhe-
muito reduzido, tanto que nem sempre é claro quem cimento sólido de muito poucas. Há pelo menos um
tem características primitivas e quem tem características milhão e meio de anos, o Homo erectus já existia na
especializadas, mesmo no que diz respeito ao cérebro. Ásia, com um volume cerebral médio de 1000 cm3.
Não há dúvida, porém, de que se trata de um grupo Se viajarmos para trás no tempo durante cerca de
zoológico com duas peculiaridades: um cérebro 800 mil anos, poderemos encontrar em África e na
grande e um comportamento muito complexo. Apesar Europa o Homo heidelbergensis, que atingiu 1200 cm3.
de um histórico genético semelhante, a nossa espécie Nos últimos cem mil anos. encontramos as duas espécies
destaca-se, e de longe, em ambos os aspetos. com o maior cérebro: a nossa (Homo sapiens) e os nean-

30
dertais (Homo neanderthalensis), com valores médios fornecem informações sobre sulcos e curvas, assime-
de 1300 a 1400 cm3. trias e vasos sanguíneos, e a relação espacial entre o crâ-
Em alguns casos, presume-se que o órgão aumentou nio e o cérebro. Antes, os moldes endocranianos eram
de tamanho porque todo o corpo cresceu, mas, em geral, preparados com materiais plásticos para poder recons-
podemos dizer que essas espécies desenvolveram um truir a macroanatomia do cérebro em fósseis. Hoje, são
cérebro proporcionalmente mais volumoso do que o dos usados métodos de anatomia digital, especialmente a
seus ancestrais. No nosso caso, temos um cérebro três tomografia axial computorizada (TAC) e outras técnicas
vezes maior do que o esperado para um primata do de imagiologia biomédica.
mesmo tamanho, algo único na história do nosso grupo Ao integrar os dados obtidos nas duas fontes men-
zoológico. Supõe-se que esse aumento esteja associado cionadas (humanos e primatas vivos e fósseis), os espe-
a um aumento da capacidade cognitiva e, de facto, as cialistas chegaram a uma conclusão: com toda a proba-
espécies com cérebro proporcionalmente maior, ou seja, bilidade, o nosso cérebro não se caracteriza por uma
mais encefalizadas, costumam ser as que apresentam diferença substancial única e específica, mas por uma
comportamentos mais complexos. longa série de mudanças, disseminadas pelas suas dife-
rentes regiões. Não é surpreendente, se levarmos em
CONSUMO DE ENERGIA conta que as áreas cerebrais não funcionam isoladas,
Um processador tão poderoso como o nosso tem mas numa rede que gera um único processo integrado.
desvantagens: mantê-lo requer muita energia, corre o
risco de sobre-aquecimento, implica que o tempo de REGIÕES NEURAIS
crescimento e desenvolvimento do indivíduo é drama- As várias espécies de primatas têm diferenças em
ticamente prolongado e requer um delicado equilíbrio células nervosas e genes, em ligações e bioquímica e
arquitetónico entre o próprio no desenvolvimento das
órgão, os vasos sanguíneos diferentes regiões neurais.
que o regam e o crânio que O volume do cérebro Ao nível macroscópico, são
o abriga. geralmente distinguidas
Com toda a probabilidade, humano é o triplo grandes regiões no cérebro,
a evolução de um cérebro a que chamamos “lobos”
tão grande gerou alguns con- do que seria de esperar ou “lóbulos”. É apenas uma
flitos espaciais relacionados convenção, porque não se
com o desenvolvimento do num primata trata de áreas anatomica-
rosto e da base do crânio, mente separadas, mas o
que nos tornou suscetíveis a do nosso tamanho conceito é útil para compa-
alguns problemas fisiológicos. rar investigações.
Nos últimos tempos, surgiram teorias sugerindo que O lobo frontal inclui várias áreas fundamentais para
doenças tão diversas, em características e gravidade, aspetos importantes como a linguagem, o comporta-
como a miopia, a doença de Alzheimer ou a esquizofrenia mento e a tomada de decisões, pelo que todos espe-
têm a ver com ter um cérebro excessivamente exigente ravam que o dos humanos modernos fosse especial.
do ponto de vista fisiológico, o que abre novos canais Porém, ao compará-lo com o de fósseis e dos grandes
de comunicação entre antropologia e medicina. símios vivos, os cientistas não observaram diferenças
Em qualquer caso, o facto de haver um aumento no muito marcantes. É possível que tenhamos certas áreas
volume do cérebro não nos diz que regiões ou elementos maiores e com toda a probabilidade mais interligadas
específicos do cérebro se desenvolveram. Para saber com o resto do cérebro, mas as proporções gerais são
mais pormenores, não é necessário considerar todo o semelhantes em todas as espécies, e o padrão de sulcos,
órgão, mas sim os seus componentes. Isso é mais fácil curvas e assimetrias parece semelhante em todos os
com espécies vivas, embora ainda não esteja claro se as humanos, tanto correntes como extintos.
suas regiões corticais relacionadas com funções corres- Além disso, o Homo sapiens e o Homo neandertha-
pondem umas às outras num ser humano, num chim- lensis são caracterizados por terem os lobos frontais
panzé ou num macaco, ou até que ponto o fazem, se localizados por cima das órbitas oculares, o que pro-
houver essa relação. Nos fósseis, só podemos usar as voca um conflito espacial entre os olhos e o cérebro, e
informações residuais impressas nos ossos do crânio. esse facto pode influenciar, pelo menos parcialmente,
a anatomia cerebral.
O PAPEL DA PALEONEUROLOGIA
É aqui que entra em cena a paleoneurologia, que estuda DIFERENÇAS INTRIGANTES
a anatomia cerebral de espécies extintas por meio dos Os lobos temporais ocupam a posição mais lateral
traços que o cérebro deixa na sua cavidade craniana: do cérebro. Neste caso, parece claro que os dos huma-

31
SPL

Micrografia
de células
nos são proporcionalmente maiores do que nervosas pam em muitos processos diferentes, como
os dos chimpanzés, embora seja mais difícil do hipocampo, a relação entre o corpo e o ambiente, a
saber quando é que essa característica evo- uma estrutura coordenação entre os olhos e as mãos, a
luiu. Trata-se de áreas críticas para muitas cerebral muito descodificação da linguagem, os cálculos e
funções diferentes, da memória às relações importante a perceção do espaço e do tempo. Parecem
para a memória.
sociais, e ocupam uma região muito frágil do ser muito maiores na nossa espécie do que
crânio e, portanto, subrepresentada no registo fóssil. nos hominídeos fósseis, e, se compararmos a nossa
Os lobos parietais, localizados na região superior e espécie com outros primatas vivos, são tão diferentes
posterior do cérebro, são provavelmente os menos que ainda não sabemos com certeza que áreas se cor-
estudados e os que apresentam as maiores diferenças respondem entre si.
macroscópicas entre as diferentes espécies. Partici- Os lobos occipitais ocupam a região posterior do

A ideia de que temos um cérebro atávico (o subcórtex)


e outro mais evoluído (o córtex) já não é defensável

32
Tecnologia: uma extensão da mente?
E mbora tenhamos estudado células e
moléculas, ainda estamos muito longe
de compreender como funciona a mente.
pretar essas ferramentas como próteses do
nosso cérebro, que lhe acrescentam funções
e capacidades. Embora o cérebro possa ser
Estão a ser avaliadas teorias que propõem o elemento que centraliza as informações,
uma alternativa para ver o cérebro como um seria necessário considerar, ao nível bioló-
computador independente. Em particular, gico e evolutivo, um sistema que vai além
investiga-se se o corpo pode desempenhar dos seus neurónios e inclui esses apêndices
um papel no mecanismo cognitivo e, em caso periféricos externos ao corpo. Se a hipótese
afirmativo, como e em que medida. Especula- for confirmada, a perspetiva mudaria muito, e
-se também com a ideia de que a tecnologia teríamos de rever boa parte das certezas da
não é apenas um produto da nossa cognição, antropologia e das neurociências.
mas um elemento do seu processo de funcio-
namento, ou seja, uma componente do cir-
cuito mental. Nesse caso, teríamos de inter-

Irá o cérebro mudar


com a imersão cada vez
mais precoce na tecnologia?

GETTY

cérebro, e a sua função principal é a integração dos manutenção funcional do organismo ou às emoções,
sinais visuais. Supõe-se que o seu volume não expe- são altamente desenvolvidas ou especializadas no
rimentou um aumento claro no nosso género ou na Homo sapiens, o que invalida definitivamente a ideia de
nossa espécie, embora a sua organização seja um pouco que temos um cérebro atávico (o subcórtex) e outro
diferente se a compararmos com a estrutura de outros mais evoluído (o córtex).
primatas. Alguns autores sugeriram que, numa espécie Também se pensava que o cerebelo estava somente
humana extinta, os neandertais, os lobos occipitais envolvido nas funções de coordenação motora, mas
poderiam ser maiores do que os nossos, embora não agora é suspeito de ser crucial para muitos processos
saibamos se isso poderia estar associado a diferentes cognitivos: apesar do seu pequeno tamanho, contém
habilidades cognitivas. muito mais neurónios do que o resto do cérebro, de
Os lobos representam, de maneira muito aproximada, modo que muitas das suas funções ainda não foram des-
as principais áreas do córtex cerebral. No entanto, cobertas. Finalmente, é preciso dizer que, em muitos
hoje em dia, presumimos que outras áreas cerebrais casos, o que mudou ao longo do tempo não é o desen-
também apresentam traços particulares da nossa volvimento dessas áreas, mas sobretudo o grau e o
espécie. Por exemplo, muitas regiões subcorticais, padrão das ligações entre elas.
associadas a aspetos aparentemente mais básicos da E.B.

33
De África ao
fim do mundo
A partir da nossa terra natal, África, sucessivas ondas
migratórias da espécie humana colonizaram todos os cantos
do globo. O paleontólogo catalão Jordi Agustí faz o ponto
de situação sobre o conhecimento atual desse processo.

Os especialistas creem
que a primeira saída
de grupos humanos
do continente africano
aconteceu há cerca
de 1,8 milhões de anos.
GETTY

34
D
urante grande parte da segunda metade
do século XX, a primeira partida de homi­
ninos do continente africano foi explicada
de uma forma lógica e simples. Os repre­
sentantes primitivos do nosso género tinham um
cérebro maior (200 ou 300 gramas a mais) do que o dos
seus antecessores australopitecinos, mas muito mais
pequeno (600 g a menos) do que os de espécies pos­
teriores da nossa linhagem. Essas espécies ancestrais
estavam associadas a ferramentas ainda muito básicas
(indústria lítica olduvaiense ou modo 1), mas repre­
sentam a primeira evidência inequívoca de elaboração
intencional de ferramentas de pedra.
Mais tarde, em África, há 1,8 milhões de anos, o Homo
habilis deu origem a uma nova espécie, o Homo ergaster
(denominado Homo erectus na Ásia), com um cérebro
mais capaz (800 a 1200 g) e dotado de uma tecnologia
lítica muito mais avançada (indústria acheulense), cujo
elemento mais característico era o biface, uma ferra­
menta polivalente mais sofisticada do que os toscos sei­
xos partidos do olduvaiense. Além disso, o esqueleto do
H. erectus/ergaster, muito diferente do do H. habilis, apre­
sentava proporções corporais semelhantes às nossas.
A conjunção de todas essas características parecia explicar
o primeiro grande êxodo humano.

CENÁRIO DISPUTADO
Este cenário foi disputado no início da década de 1990.
Naquela época, as escavações na cidadela medieval
de Dmanisi, na Geórgia, no sul do Cáucaso, resultaram em
descobertas sem precedentes. Num silo, apareceu uma
mandíbula de rinoceronte, seguida por inúmeros vestí­
gios de uma fauna de grandes mamíferos que parecia
corresponder ao início do Pleistoceno, associado à
indústria lítica olduvaiense. Nenhum sinal de tecnologia
acheulense avançada. Além disso, em 1991, apareceram
em Dmanisi restos humanos, uma mandíbula bem pre­
servada (só os ramos mandibulares estavam ausentes)
que foi imediatamente objeto de controvérsia.
Enquanto a equipa georgiana encarregada da escava­
ção (Leo Gabunia, Abesalom Vekua e o jovem David Lord­
kipanidze) argumentava que se tratava de uma forma
arcaica de Homo, outros cientistas opunham­se. Para
estes, o indivíduo de Dmanisi correspondia a uma popu­
lação de meados do Pleistoceno, há cerca de 600 mil
anos. Baseavam a sua ideia no facto de o terceiro molar
ser menor do que os dois primeiros. A datação de Dma­
nisi também foi questionada, já que, para aquela época,
quase não havia restos de roedores que confirmassem
a sua atribuição ao Pleistoceno Inferior.
Porém, novas descobertas acabaram por dar razão
à equipa georgiana. Em 1999, dois novos crânios foram
acrescentados à mandíbula inicial. De um deles, restava
apenas a caixa craniana; do outro, embora deformado,
conservava­se boa parte da face. A surpresa veio

35
quando se determinou que o primeiro crânio pesaria estava associado à sua mandíbula e apresentava um
775 g e o segundo 650 g. Apesar da sua reduzida capa- estado de conservação excecional, muito melhor do que
cidade cerebral, os autores da descoberta preferiram os anteriores, e mantinha a face e a caixa craniana intac-
atribuí-los à espécie africana Homo ergaster. tos. Com rosto côncavo, sem espinha nasal, ténues
Em 2000, surgiu um quarto remanescente humano. arcos supraciliares e caninos bem desenvolvidos,
Era uma mandíbula diferente, muito mais robusta do que o novo hominídeo de Dmanisi parecia distanciar-se
a primeira. Neste caso, o terceiro molar era maior do ainda mais do Homo erectus e estar na órbita do Homo
que os dois primeiros, confirmando o caráter arcaico habilis, mais primitivo. A reduzida capacidade cerebral
da população de Dmanisi. A análise da maxila intrigou do crânio (600 g) permitiu confirmar a última hipótese.
o paleontólogo georgiano Leo Gabunia (testemunhei Depois, em 2003/04, foi escavado um novo crânio
pessoalmente a sua surpresa com a descoberta), pois com mandíbula na jazida georgiana. Do ponto de vista
apresentava características muito arcaicas, não só na puramente anatómico, não diferia muito dos anteriores,
dentição, mas também na forma. Perante as questões principalmente do espécime encontrado em 2001, com
que abria, os cientistas envolvidos decidiram criar uma a sua reduzida capacidade cerebral de 650 g. O mais
nova espécie a que atribuí-los: o Homo georgicus. surpreendente é que correspondia a um indivíduo que
tinha perdido os dentes em vida, provavelmente
VESTÍGIOS CONTRADITÓRIOS alguém velho ou doente que sobreviveu naquele estado
As surpresas de Dmanisi não se ficaram por aí. Em durante pelo menos dois anos, já que os alvéolos dentais
agosto de 2001, apareceu um terceiro crânio. Desta vez, foram totalmente reabsorvidos. Uma vez que esses

Restos anatómicos
AGE

e ferramentas
de pedra datadas
de há um milhão
de anos foram
encontrados
na gruta francesa
de Lazaret.

36
hominídeos tinham de incluir um componente proteico era olduvaiense, mais parecida com a dos primeiros
importante na sua dieta, talvez derivado de animais mor- membros do nosso género no continente africano. Dma-
tos, a personagem teve de ser alimentada pelo grupo nisi demonstrou mais uma vez que, apesar das nossas
durante pelo menos alguns anos. Comportamento hipóteses lógicas e intuitivas, a realidade pode ser muito
semelhante fora detetado em neandertais, mas não em mais rica e complexa, para sorte dos paleontólogos.
hominídeos cujos cérebros mal ultrapassavam 600 g. Nesse caso, como foi povoada a Europa? Sabemos
Foi a primeira prova de comportamento solidário no que, vindos do Cáucaso, estes hominídeos se espalharam
alvorecer da humanidade. muito rapidamente pela Ásia até ao Extremo Oriente,
Finalmente, em 2005, Dmanisi forneceu a sua última e que chegaram a Java (Indonésia), onde há evidências
pérola: apareceu um quinto crânio, novamente em de presença humana em datas próximas das de Dmanisi.
estado de conservação quase perfeito, mas diferente Pelo contrário, a rota para oeste, que leva à Europa,
dos anteriores. Era muito robusto e encaixava perfei- foi percorrida muito mais tarde. Assim, a mais antiga
tamente na mandíbula do ano 2000 que tinha servido evidência da presença humana no oeste do nosso con-
para definir a espécie Homo georgicus. Apesar da sua tinente encontra-se na bacia do Guadix-Baza (Granada)
robustez, era o indivíduo com o cérebro mais pequeno e na Sima del Elefante, em Atapuerca (Burgos ), ambas
do grupo: pesaria apenas 550 g. em Espanha.
As jazidas de Barranco León e Fuente Nueva 3
CONFIGURAÇÃO MISTA (Guadix-Baza) foram datadas por métodos radiomé-
O que sabemos sobre a locomoção dos homininos tricos e por paleomagnetismo em 1,2 a 1,4 milhões de
de Dmanisi? Associados aos anos. Correspondem a depósitos
restos cranianos, apareceram que se formaram nas margens
outras partes de esqueletos Em Dmanisi, de um grande lago que ocu-
(fémures, várias tíbias, vérte- pou o que hoje é a área de
bras, costelas e ossos dos pés foi descoberta Baza. Ambos apresentam uma
e das mãos) correspondentes fauna abundante de mamífe-
a um indivíduo jovem e três a primeira prova ros de grande e pequeno porte,
adultos. A análise desses vestí- incluindo mamutes arcaicos,
gios revelou uma configuração de comportamento rinocerontes, hipopótamos,
mista: da cintura para baixo, a grandes veados, duas espécies
sua anatomia era moderna, com solidário humano de cavalos e uma grande varie-
fémur e tíbia alongados, que dade de carnívoros, incluindo
podiam facilitar uma marcha parecida com a nossa; uma hiena gigante, ancestrais de lobos, ursos arcai-
da cintura para cima, mantinham caracteres arcaicos, cos e até duas espécies de tigres-dentes-de-sabre.
como a posição da cavidade glenoidal na articulação Associado a esta fauna, há um abundante conjunto de
do ombro e a ausência de torção da cabeça do úmero, ferramentas líticas correspondentes ao olduvaiense
que ocorre nos australopitecinos e em vários antropo- que inclui mais de 5000 peças. Existem inúmeras evi-
morfos atuais. dências, na forma de marcas de corte nos ossos, de
Entretanto, graças ao estudo conjunto dos fósseis de que essas ferramentas foram usadas para descar-
roedores presentes e à técnica do paleomagnetismo, nar herbívoros que se aproximavam da margem do
foi determinado que os hominídeos de Dmanisi tinham lago Baza e foram vítimas de grandes predadores.
1,7 milhões de anos. Porém, no local havia ocupações Barranco León também forneceu um dente de origem
anteriores, já que, em camadas inferiores às que conti- humana.
nham os restos dos hominídeos, surgiram ferramentas
líticas que, pelas mesmas técnicas de datação, terão CONDIÇÕES CLIMÁTICAS
uma idade de 1,8 a dois milhões de anos. A jazida de Sima del Elefante foi datada de há 1,2
milhões de anos e contém uma fauna semelhante à dos
REALIDADE RICA E COMPLEXA sítios de Guadix-Baza. Existem também ferramentas líti-
Dmanisi proporcionou outra surpresa que rompia cas do tipo olduvaiense e restos humanos que incluem
com os esquemas anteriores. Os hominídeos que saíram um fragmento de mandíbula com dois dentes e uma
de África há quase dois milhões de anos estavam mais falange. Embora os autores da descoberta tenham ini-
próximos do Homo habilis do que do H. erectus/ergaster: cialmente atribuído os restos ao Homo antecessor (a
o seu cérebro não alcançava 800 g, andando em torno espécie um pouco posterior descrita em Gran Dolina,
dos 650 g, o seu esqueleto não correspondia ao do outro sítio de Atapuerca), reconheceram posterior-
esbelto H. ergaster e a sua tecnologia lítica também não mente que, dado o estado fragmentário dos vestígios,
explicava a sua expansão para fora de África, já que ainda é melhor deixar a sua atribuição indeterminada.

37
SAIR
SAIRDE
DEÁFRICA
ÁFRICA
As As
três
três
grandes
grandes
migrações
migrações
humanas
humanas

Os povos
Os povos
não africanos
não africanos
atuaisatuais
possuem
possuem
genesgenes
herdados
herdados
de umdecruzamento
um cruzamento
de Homo
de Homo
sapiens
sapiens
com populações
com populações
Beeches
Beeches
Pit Pit de neandertais
de neandertais
originadas
originadas
(400 mil
(400
anos)
mil anos) da segunda
da segunda
migração.
migração.
Sima Sima
de losdeHuesos
los Huesos Homo Homo
heidelbergensis
heidelbergensis
(600 mil
(600
anos)
mil anos)
Homo Homo
heidelbergensis
heidelbergensis

Gran Gran
DolinaDolina Homo Homo
(800 mil
(800anos)
mil anos)
neanderthalensis
neanderthalensis Denisovanos
Denisovano
Homo Homo
sapienssapiens Homo Homo GrutaGruta
de d
Pestera
Pestera georgicus Denisova
georgicus Denisov
Sima Sima
del Elefante
del Elefante
Terra Terra
Amata Amata Cu Oase
Cu Oase Dmanisi(40 mil
Dmanisi (40
anos)
mil anos
(1,2 Ma)
(1,2 Ma) (42 mil
(42anos)
mil anos)
(400 mil
(400
anos)
mil anos) (1,6 Ma)
(1,6 Ma)
Homo Homo
sp. sp.
Barranco
Barranco
León León Homo Homo
heidelbergensis
heidelbergensis
e Fuente
e Fuente
NuevaNueva
RotaRota
(1,3 Ma)
(1,3 Ma) do Médio
do Médio
Oriente
Oriente
Suposta
Suposta
rota rota
JebelJebel
IrhoudIrhoud pelo estreito
pelo estreito
(300 mil
(300anos)
mil anos) de Gibraltar
de Gibraltar
Homo Homo
sapienssapiens
arcaicoarcaico Suposta
Suposta
rota rota
do mar
doVermelho
mar Vermelho

Buia (1
Buia
Ma)(1 Ma)
Possível
Possível
HertoHerto
Bouri Bouri H. antecessor
H. antecessor
(160 mil
(160
anos)
mil anos) HadarHadar
(2,4 Ma)
(2,4 Ma)
Homo Homo
sapienssapiens
idaltu idaltu Ledi Geraru
Ledi Geraru
(2,8 Ma)
(2,8 Ma)
Omo Kibish
Omo Kibish
(195 mil
(195 mil anos) Homo Homo
anos) habilishabilis

A humanidade
A humanidade nasceu
nasceu em em
África,
África,
e láeaconteceu
lá aconteceu
grande
grande
parte
parte
da nossa
da nossa história
história
evolutiva.
evolutiva.
Homininos
Homininos
maismais
primitivos
primitivos
já tinham
já tinhamdeixado
deixado
o continente
o continente
em em
buscabusca
de outros
de outros horizontes
horizontes
e continuaram
e continuaram
a fazê-lo
a fazê-lo
em em
vagas
vagas
sucessivas.
sucessivas.
A migração
A migração
do do
HomoHomosapiens
sapiens
foi afoiúltima
a última
e a emais
a mais
bem-sucedida.
bem-sucedida.

Primeira
Primeira
migração,
migração,
há 1,8
hámilhões
1,8 milhões
de anos
de anos
(Ma) (Ma)
Segunda
Segunda
migração
migração
(Homo
(Homo
ergaster)
ergaster)
Terceira
Terceira
migração
migração
(Homo
(Homo
sapiens)
sapiens)
38
O HomoO Homo
sapiens
sapiens
chegouchegou

J. A. PEÑAS
ao estreito
ao estreito de Bering
de Bering há cerca
há cerca de 15 de
mil15 mil
anos anos
e cruzou-o
e cruzou-o
aproveitando
aproveitando
a descida
a descida
do nível
do nível
do mar,
do devido
mar, devido
às glaciações.
às glaciações.

A presença
A presença
de genes
de genes
denisovanos
denisovanos
os no nosso
no nosso
ADN pode
ADN pode
resultar
resultar
dede umdecruzamento
um cruzamento
entreentre
populações
populações
va da segunda
da segunda
migração
migração
e um enúcleo
um núcleo
s) sobrevivente
sobrevivente
da primeira.
da primeira.
Zhou Zhou
KodianKodian
(700 mil
(700
anos)
mil anos)
Homo Homo
erectuserectus
pekinensis
pekinensis

Daoxian
Daoxian
(100 mil
(100 mil
anos)anos)

Homo Homo
sapienssapiens

Se algo
Se caracteriza
algo caracteriza
o género
o género
HomoHomo
é a sua
é a sua
tendência
tendência
para viajar,
para viajar,
Homo Homo
erectuserectus quasequase
desdedesde
as nossas
as nossas
Homo Homo
floresiensis
floresiensis origens
origens
mais mais
remotas,
remotas,
Trinil -Trinil
Java- (1
Java
Ma)(1 Ma) e a sua
e adisponibilidade
sua disponibilidade
FloresFlores
(150 mil
(150
anos)
mil anos) para os
paracruzamentos.
os cruzamentos.
O Homo
O Homo
floresiensis,
floresiensis,
uma população
uma população
remanescente
remanescente do Homo
do Homo erectus,
erectus,
sobreviveu
sobreviveu
até háaté
40há
mil40anos
mil anos
e coexistiu
e coexistiu
com ocom
Homoo Homo
sapiens.
sapiens.
Os humanos
Os humanos modernos
modernos chegaram
chegaram à Austrália
à Austrália
há cerca
há cerca de 40de
mil40anos.
mil anos. Não
Não há há indícios Lago Lago
indícios Mungo Mungo
de populações
de populações anteriores.
anteriores. A barreira
A barreira (42
marítima
marítima mil
(42anos)
mil anos)
era intransponível
era intransponível sem meios
sem meios de navegação.
de navegação.
Homo Homo
sapienssapiens
39
As migrações dependeram mais do clima do que das
barreiras geográficas ou das habilidades dos migrantes
Portanto, sabemos que há entre 1,2 e 1,4 milhões de aridez. Assim, as migrações não dependeriam tanto da
anos, a Europa Ocidental, especificamente a península ausência de barreiras geográficas ou das próprias apti-
Ibérica, já tinha sido povoada por representantes pri- dões migratórias, como do clima, que condicionava a
mitivos do nosso género, o que levanta uma questão: presença humana em cada momento e região. Disto
enquanto os homininos de Dmanisi cobriram a distân- deduzimos que, ao contrário da Ásia e do Extremo
cia que separava o Cáucaso de Java em pouco menos Oriente, até há 1,4 milhões de anos, não havia as con-
de cem mil anos, levaram cerca de meio milhão de anos dições adequadas para que aqueles homininos se dis-
para cobrir a distância (menor) que os separava do persassem pela Europa Ocidental.
Mediterrâneo ocidental. Como explicar essa anomalia?
Graças ao trabalho realizado pelo meu colega LONGE DALI, EM ÁFRICA...
Hugues-Alexandre Blain, do Instituto Catalão de Entretanto, em África, a evolução seguia o seu curso.
Paleoecologia Humana e Evolução Social (Tarragona), Em meados do Pleistoceno, há cerca de 500 mil anos,
especialista na reconstrução do ambiente e do clima a encontramos uma nova espécie, o Homo rhodesiensis,
partir das associações de anfíbios e répteis fósseis, pro- cuja capacidade cerebral (cerca de 1300 g) era consi-
pusemos em 2009 uma possível explicação. A análise deravelmente maior do que a dos seus predecessores
de Blain revelou que os depósitos do Pleistoceno do início do Pleistoceno. O seu crânio estava dotado
Inferior com presença humana tinham parâmetros de grandes órbitas, coroadas por grossos arcos supra-
climáticos favoráveis: elevadas temperaturas e chuvas ciliares e um orifício nasal muito amplo. É concebível
abundantes. Pelo contrário, há jazidas que, pela sua que fosse descendente de H. erectus/ergaster do Pleis-
cronologia e localização geográfica, também poderiam toceno Inferior. No entanto, entre estes e o H. rhode-
ter sido adequadas para ocupação hominina, que até à siensis mediou quase um milhão de anos. Como seriam
data não forneceram evidência de presença humana. as populações intermédias que deram origem aos
No entanto, a análise dos restos de pequenos ver- homininos do Pleistoceno Médio?
tebrados revelou que as condições climáticas prevale- Infelizmente, o registo africano de há um milhão de
centes nestes enclaves eram piores, com mais frio e anos é muito pobre, ao contrário do que acontece com
períodos anteriores. Conserva-se um crânio em boas
condições com essa idade na cidade de Buia (Eritreia),
com características mistas entre o H. erectus/ergaster
e o H. sapiens, e foi recuperada em Daka (Etiópia), uma
calote craniana de idade e características semelhantes.
Um teste europeu de como deveriam ser essas formas
intermédias foi proposto pela equipa de gestão das
jazidas de Atapuerca em 1994. Oriundos do nível
TD-6 de Gran Dolina, surgiram restos de homininos,
incluindo um fragmento craniano que, embora ao con-
trário dos de Buia e Daka não tivesse a maior parte da
calota craniana, mantinha boa parte do rosto. O mais
significativo era a fossa canina, uma característica
encontrada em populações posteriores de neandertais
e na nossa própria espécie.

ANTEPASSADO COMUM
O Homo antecessor, nome com o qual a nova espécie
foi batizada, deve, portanto, ser o antepassado comum
do H. neanderthalensis e do H. sapiens. Porém, se esta
AGE

interpretação for correta, o H. antecessor seria uma


espécie originalmente africana, a mesma que colonizou
Biface acheulense a Europa há mais de um milhão de anos. No entanto,
encontrado na nenhum vestígio atribuível a ela foi encontrado em
República Checa. África. Além disso, a análise subsequente de uma nova

40
mandíbula do mesmo nível TD6 levou a equipa de Ata- de 600 mil. Tudo sugere, portanto, que, no início do
puerca a repensar a primeira hipótese: o H. antecessor Pleistoceno Médio, ocorreu uma segunda migração
estaria mais relacionado com as populações de H. erectus para fora da África, desta vez realizada pelos afrodes-
da China do que com as populações africanas. cendentes do H. ergaster, com a sua tecnologia acheu-
O facto é que, a partir de há cerca de 600 mil anos, liense. O controlo do fogo também se generaliza nesta
começaram a aparecer na Europa indivíduos que época, como foi verificado em jazidas de meados do
apresentam grande afinidade com o H. rhodesiensis Pleistoceno, como Terra Amata e Menez Dregan, em
africano. Os seus vestígios são atribuídos à espécie França, e Beeches Pit, em Inglaterra. Talvez esse fator
H. heidelbergensis e incluem a maioria dos hominídeos tenha permitido a nova expansão e ocupação das frias
europeus de meados do Pleistoceno, incluindo os estepes europeias.
extraordinários achados de Sima de los Huesos, em Algumas vozes críticas levantaram-se contra este
Atapuerca. Esses homininos espalharam-se pela Europa padrão de substituição humana de meados do Pleisto-
e alcançaram pela primeira vez as altas latitudes do con- ceno. Com base em algumas características comuns nos
tinente. Em termos de tecnologia lítica, este momento molares do H. antecessor e do H. heidelbergensis, esses
coincide com a expansão pela área de indústrias de especialistas argumentam que ao longo do Pleistoceno
bifaces, cutelos e outras ferramentas acheulienses. houve uma continuidade biológica entre as duas espé-
O acheuliense foi comum em África durante 1,5 cies europeias. Por outro lado, não é improvável que a
milhões de anos, mas só surge na Europa há cerca expansão dos acheulienses pela Europa não responda

Lâminas
AGE

de machado
paleolíticas
encontradas
no Reino Unido.

41
SPL
a uma única saída da África, mas que naquele período
tenham ocorrido várias migrações de homininos porta-
dores desse tipo de tecnologia lítica.

PANORAMA MUITO VARIADO


Depois das sucessivas vagas de hominídeos que dei-
xaram África, o mapa da ocupação humana do Velho
Mundo oferecia, há cerca de 200 mil anos, um pano-
rama muito variado. Na Europa, nessa época, o H. hei-
delbergensis deu origem aos neandertais. Ao mesmo
tempo, descendentes do H. erectus da linha Dmanisi
persistiam em Java. O mesmo H. erectus (talvez a
própria população original que colonizou o Extremo
Oriente a partir do Cáucaso) deu origem a uma espécie
insular de hominídeo na ilha das Flores, o Homo flore-
siensis, uma raridade caracterizada pelo seu pequeno
tamanho e por um cérebro extremamente pequeno,
de pouco mais de 400 g. Para complicar ainda mais o
quadro, temos os denisovanos da Ásia Central, conhe-
cidos praticamente apenas pelo seu ADN, que apre-
senta afinidades genéticas com os neandertais e com
a nossa própria espécie.
Entretanto, o que estava a acontecer em África?
Embora as descobertas extraordinárias de Dmanisi ou
de Sima de los Huesos tenham revelado aspetos-chave
da evolução humana, na realidade, os homininos desses
locais nada têm a ver com a origem da nossa espécie,
não fazem parte da nossa história. Sabemos que havia
humanos anatomicamente modernos em África há
O Homo georgicus é uma espécie humana 315 mil anos, em Jebel Irhoud (Marrocos). De facto, é
com 1,8 milhões de anos estabelecida a partir possível traçar uma sequência desde o H. rhodesiensis
de fósseis encontrados em Dmanisi (Geórgia). até ao H. sapiens por meio de formas intermédias da
Etiópia, como a subespécie H. sapiens idaltu.

Da esquerda para a direita, reconstituições faciais


de Australopithecus, Homo erectus precoce (homem
de Java), H. erectus tardio (homem de Pequim),
H. heidelbergensis, H. neanderthalensis
e H. sapiens (nós, humanos modernos).
ALAMY

42
A expansão do Homo sapiens por todo o planeta
foi um sucesso para nós, mas não para outras espécies
Numa primeira fase, essas populações arcaicas de ponte terrestre entre a Ásia e a América permitiu a
H. sapiens chegaram ao Médio Oriente, onde se hibri- primeira colonização deste continente por humanos
daram com os neandertais europeus; por isso, parti- modernos, há entre 13 e 14 mil anos. Chegaram também
lhamos com eles mais de dois por cento de material à América do Sul há cerca de 14 mil anos, deixando ves-
genético. Ao contrário das migrações anteriores, esta tígios na jazida chilena de Monte Verde.
última partida de África (a nossa partida) está docu- Esta terceira saída da África foi a mais bem-sucedida
mentada não apenas por fósseis e ferramentas, mas em termos de espécies, em nada comparável às ante-
também pelos traços genéticos que a hibridação com riores. Porém, o sucesso do H. sapiens tornou-se um
outras populações humanas deixou no nosso genoma desastre para muitos outros seres, a começar pelos
e no delas. neandertais, a primeira vítima da nossa expansão.
O seu desaparecimento foi seguido no final do Pleisto-
VAGAS SUCESSIVAS ceno por muitos outros, como o urso das cavernas na
Graças à análise genética, sabemos que a primeira dis- Europa, mastodontes, cavalos gigantes e alces na Amé-
persão pode ter acontecido numa data precoce, há mais rica do Norte, preguiças gigantes e tatus na América do
de cem mil anos. Porém, essa primeira incursão para Sul e vários marsupiais na Austrália e na Nova Guiné.
fora de África provavelmente não terá ido além do É bem possível que os últimos resquícios da primeira
Médio Oriente. Por outro lado, há provas de que já saída de África, como o Homo erectus e o Homo flore-
havia humanos modernos há cem mil anos na atual siensis, não se tenham saído melhor no contato com os
cidade chinesa de Daoxian. Há entre 40 e 50 mil anos, novos invasores. Os primeiros representantes do nosso
chegaram à Austrália, segundo evidências encontradas género a saírem da África eram mais presas do que
no lago Mungo. Pela primeira vez na história da nossa predadores. Os protagonistas da segunda migração já
família, uma população humana ultrapassara aquilo eram caçadores talentosos que agiam como verdadei-
a chamamos “Velho Mundo” e pisara um continente ros predadores. Os membros da terceira ultrapassa-
nunca antes visitado por outra espécie de hominídeo. vam o estágio de superpredador, tinham literalmente
Na Europa, a primeira evidência de humanos modernos saído da pirâmide ecológica. Desde o Neolítico que não
está localizada na caverna romena de Peștera cu Oase, estamos integrados no ambiente. Pelo contrário, modi-
com cerca de 42 mil anos. No final do Pleistoceno, ficamo-lo para nosso benefício e degradamos irreversi-
durante a última era do gelo, o estabelecimento de uma velmente a natureza que nos deu origem.
J.A.

43
O nosso cérebro
leva muitos anos
a atingir o nível
máximo do seu
desenvolvimento
GETTY

cognitivo.

44
A invenção
da infância
Os humanos têm uma infância muito mais prolongada
do que qualquer outra espécie do reino animal. Os cientistas
tentam descobrir quando surgiu esta característica e que
benefícios evolutivos nos traz, como conta José María
Bermúdez de Castro, codiretor das escavações de Atapuerca.

O
s seres humanos atuais, Homo sapiens, temos uma linguagem articulada de sons estruturada
representam uma das três espécies de em sílabas, palavras e frases.
homininos que sobreviveram a um longo
período de sete milhões de anos. As outras CARACTERÍSTICAS POUCO EVIDENTES
duas são o Pan paniscus e o Pan troglodytes, e incluem No entanto, algumas características que nos distin-
todos os chimpanzés que habitam as regiões flores- guem dos chimpanzés e de outros símios antropoides
tadas da África Ocidental. Partilhamos com eles um não são tão óbvias e requerem uma análise cuidada.
antepassado comum, que divergiu e se diversificou em Neste texto, veremos a grande importância que essas
duas genealogias distintas. É fácil perceber à primeira mudanças evolutivas tiveram durante os últimos dois
vista que a nossa postura e a nossa maneira de andar são milhões de anos. Antes desse período temporal, as
diferentes das dos chimpanzés. Com mais pormenor, espécies da genealogia humana não eram tão diferen-
também notamos que as proporções dos membros tes das do Pan. Os membros dos géneros Ardipithecus
anteriores (superiores) e posteriores (inferiores) são e Australopithecus, bem como os das espécies mais
diferentes. antigas de Homo, eram certamente bípedes, caminha-
O nosso crânio e o cérebro que ele abriga são três vezes vam eretos e os seus rostos eram menos pronunciados
maiores do que os do Pan, e as nossas mãos têm um do que os dos chimpanzés. As espécies africanas Homo
polegar mais desenvolvido, oponível ao dedo indicador. habilis e Homo rudolfensis fabricaram utensílios de
A pinça de precisão que esses dois dedos formam é muito pedra pouco sofisticados, pois as suas mãos (livres da
diferente da dos chimpanzés e de outros primatas, o que locomoção) já tinham desenvolvido a pinça de precisão.
lhes permite agarrar ramos de árvore com muita força. O cérebro dessas espécies tornou-se 50 por cento mais
Graças à ferramenta anatómica formada pelos dedos volumoso do que o dos australopitecinos, mas faltava
indicador e polegar e aos comandos que a mão recebe do um salto importante na nossa longa jornada evolutiva.
cérebro, desenvolvemos uma cultura extremamente Para compreender o seu significado, temos de des-
complexa. Os chimpanzés têm formas de cultura muito crever de forma simples as características do desen-
elementares, mas nada que se compare com as popu- volvimento humano. Nascemos com um cérebro muito
lações mais simples da nossa espécie. A nossa comu- volumoso, que já pesa cerca de 350 gramas e é quase o
nicação é muito diferente da dos chimpanzés, porque dobro do de um chimpanzé recém-nascido. Apesar do

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Ao nascer, o nosso cérebro já é grande, mas não está
preparado para executar movimentos complexos
seu grande tamanho, todos sabemos que a massa cin- nosso cérebro precisa de muita energia para crescer.
zenta de um bebé humano não está preparada para Porém, podemos começar a desmamar sem qualquer
coordenar movimentos complexos, para distinguir problema por volta dos dois anos. Sabemos que a
com clareza objetos ou para realizar qualquer uma das Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda um
habilidades cognitivas que iremos adquirir ao longo período de amamentação não inferior a seis meses,
dos meses e anos subsequentes. que, claro, pode ser prolongado pelo tempo que a mãe
e o filho quiserem. Em qualquer caso, aos dois anos,
SUSTENTAR AS CRIAS ou até antes, o nosso sistema digestivo já amadureceu
Em 1969, o antropólogo suíço Adolf Portmann o suficiente para aceitar certos alimentos. Durante os
cunhou o termo “altricialidade secundária” para defi- primeiros 24 meses, a dieta deveria consistir principal-
nir o estado indefeso do ser humano ao nascer. Os mente de leite materno.
recém-nascidos de outras espécies de mamíferos tam- Porque desmamamos mais cedo do que seria razoável
bém vêm ao mundo muito indefesos, mas não tardam do ponto de vista biológico? O crescimento do nosso
a livrar-se de muitos dos perigos que os rodeiam. A sua cérebro poderia exigir que amamentássemos pelo
altricialidade é primária, comparada com a precocidade menos tanto quanto os chimpanzés. A amamentação
dos neonatos de outros vertebrados. Os chimpanzés intensiva acontece graças à secreção de prolactina,
também nascem com cérebros subdesenvolvidos, mas hormona que é produzida na parte anterior da hipófise
em poucos meses são capazes de correr e brincar com e estimula a produção de leite nas glândulas mamárias.
os pares da mesma idade sob o olhar atento dos pais. A prolactina também tem um efeito inibidor da ovulação,
É óbvio dizer que o crescimento cerebral dos huma- o que elimina a possibilidade de novas gestações.
nos e dos chimpanzés é diferente. Por exemplo, na 32.ª O intervalo médio de nascimentos nos chimpanzés é
semana de gestação, o cérebro do chimpanzé cresce estimado em cerca de cinco anos, enquanto as mães
cerca de quatro centímetros cúbicos por semana, orangotangos têm um filho a cada nove anos. Pense-
enquanto o de um feto humano cresce em média 25 mos na quantidade de descendentes que pode ter uma
cm3 por semana. Após o parto, a taxa de crescimento fêmea dessas espécies, cujo período de fertilidade é
do cérebro dos chimpanzés diminui lentamente muito semelhante ao da mulher. Em teoria, uma mãe
durante os primeiros dois anos de vida. Aos seis anos, o chimpanzé poderia ter até seis crias, enquanto uma mãe
seu cérebro quase atinge o tamanho final de um adulto. orangotango mal poderia dar à luz três. O que sabemos
Na nossa espécie, o cérebro continua a crescer rapi- sobre a mortalidade infantil dessas espécies?
damente durante os primeiros três meses de vida,
inciando então uma redução gradual a partir de taxas MORTALIDADE INFANTIL
muito mais altas do que as dos chimpanzés. Como acon- A esperança de vida à nascença dos chimpanzés na
tece com estes, o órgão pensante humano também natureza é de apenas 19 anos. Este dado implica uma
atinge as suas dimensões finais por volta dos seis ou mortalidade infantil muito elevada. As populações
sete anos de idade. Como consequência da maior taxa podem permanecer estáveis durante anos, desde que
de crescimento, o nosso cérebro pesará, em média, não haja influências externas negativas. Se a genea-
1350 g, em comparação com os 370 a 400 g do cérebro logia dos chimpanzés conseguiu sobreviver durante
de um chimpanzé adulto. sete milhões de anos, podemos inferir que as condi-
Assim, poderíamos deduzir que, com exceção do ções não foram suficientemente desfavoráveis para a
tamanho do cérebro, chimpanzés e humanos partilham continuidade evolutiva. De facto, ainda podemos tes-
um desenvolvimento muito semelhante nos primeiros temunhar e desfrutar da existência de duas espécies
anos de vida, mas há uma diferença muito importante. de chimpanzés. Os orangotangos também alcançaram
Os chimpanzés, como os gorilas, amamentam os seus estabilidade populacional durante milhares de anos,
filhotes durante quatro a cinco anos. O período de lac- apesar de uma taxa de natalidade tão baixa. As mães
tação é ainda mais longo nos orangotangos, que bebem cuidam dos seus filhos até a exaustão. No entanto, a
o leite da mãe até aos oito ou nove anos. atual pressão humana sobre as três espécies do género
Pongo é tão alta que a sua extinção parece próxima.
QUANDO DESMAMAR? Como evitar o perigo de extinção em condições
Em tese, a amamentação humana em condições adversas? A resposta evolutiva da genealogia humana
naturais também deveria ser muito longa, pois o foi decisiva: reduzir o tempo de lactação forçada. Na

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Os orangotangos representam um caso extremo de uma espécie que produz muito poucos descendentes: os pais
têm de dispender muito tempo e energia para criá-los. Cada fêmea de orangotango tem no máximo três filhos.

nossa espécie, o período desde o nascimento até cerca Apesar de tudo, essas populações podem crescer em
dos sete anos de idade pode ser dividido em dois seg- número. Só assim se entende que, há dois milhões de
mentos. A primeira infância dura mais ou menos até aos anos, uma ou mais espécies humanas fossem capazes
dois anos de vida e coincide aproximadamente com a de se espalhar pela Eurásia. Desde há pouco mais de
época da amamentação. Os cinco anos seguintes apre- 120 mil anos, a nossa espécie colonizou, aos poucos, os
sentam características biológicas diferentes. Podemos cinco continentes, e hoje já somos quase 8000 milhões
falar de segunda infância, um novo período que outros de seres humanos, que ocupam praticamente todos os
mamíferos não têm, incluindo os outros primatas. territórios e ecossistemas do planeta.
Se os bebés da espécie humana forem desmamados
precocemente, as mães podem engravidar novamente. CUSTO EVOLUTIVO
O intervalo médio de nascimentos é consideravelmente Claro que essa adaptação das espécies do género Homo
reduzido, e a vida fértil da mãe pode ser usada para teve um custo. Nada é gratuito na evolução. O cérebro é o
ter um grande número de filhos. A mortalidade infantil órgão mais caro do nosso corpo, do ponto de vista da
é muito alta em certas comunidades de caçadores-reco- energia que consome. Num adulto, o gasto de energia do
letores. Em alguns grupos, observou-se que apenas 50% cérebro é responsável por até 20% do metabolismo basal,
dos indivíduos atingem a idade reprodutiva. As causas de a quantidade de energia necessária para manter as nos-
morte durante o parto e nos primeiros anos de vida são sas funções vitais em repouso, incluindo uma tempera-
múltiplas: problemas congénitos, doenças, acidentes, tura corporal constante em torno de 36,5 graus Celsius.
violência... Durante o desenvolvimento embrionário, a percen-

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A infância humana dura vários
A adolescência é anos após o período de lactação.
Na infância, ainda dependemos
uma característica única dos nossos pais para muitas
coisas, mas o cérebro começa
do Homo sapiens a desenvolver capacidades
cada vez mais sofisticadas.
e, aparentemente,
não oferece qualquer
vantagem adaptativa

tagem de gasto de energia aumenta à medida que o


cérebro cresce. Essa despesa é suportada pela grávida.
O parto é obrigatório por volta das 38 semanas de
gestação, embora o nosso cérebro não tenha atingido
ainda a complexidade de outras espécies. O canal de
parto tem dimensões limitadas e o nascimento não
pode ser atrasado sem riscos para a mãe e o filho. Além
disso, o desperdício de energia assumido pela mãe nas
últimas semanas de gravidez já é difícil de suportar.
Porém, nem tudo termina com o parto. O cérebro de um
recém-nascido consome cerca de 50% do seu metabo-
lismo basal. Esse investimento extraordinário também
é assumido pela mãe, através da amamentação.
A percentagem da despesa cerebral continua muito
alta durante o crescimento da criança. Aos sete anos,
ainda excede 30% do metabolismo basal. Uma vez ter-
minada a amamentação, ambos os pais têm de arcar
com o custo de criar filhos, que levarão muitos anos até
poderem defender-se sozinhos. Se a prole for grande,
o custo será muito elevado. Por outras palavras, a nossa
espécie escapou do possível risco de extinção repre-
sentado por uma estratégia K extrema, graças ao pro-
longamento da infância para uma nova fase, na qual a
amamentação já não é necessária.
O termo “estratégia K” foi introduzido em 1970 pelos
ecologistas Robert MacArthur e Edward O. Wilson para
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distinguir as espécies que possuem muitos descenden-


tes aos quais dedicam pouco ou nenhum tempo e gasto
energético de criação (estratégia R), daquelas com pou-
cos descendentes aos quais dedicam muito tempo e CRESCIMENTO LENTO
energia. Já vimos que os orangotangos apresentam um Não é segredo que os filhos crescem muito mais deva-
caso extremo de estratégia K. Na nossa espécie, o custo gar do que alguns pais impacientes gostariam. Na ver-
de criação também é muito elevado, principalmente dade, o gasto de energia das crianças é principalmente
se a prole for grande, mas é compensado pelo facto dedicado ao crescimento do tamanho do cérebro,
de ser partilhado pelos dois pais e por todo o grupo. enquanto o aumento da altura é relativamente lento.
Além disso, um cérebro capaz de abrandar a sua com- Mesmo depois dos sete anos, quando o órgão pensante
plexidade, aumentar a sua plasticidade e permitir-lhe já atingiu praticamente 99% do volume final, a altura
adquirir muito mais informação ao longo de muitos anos ainda não aumentou significativamente. O tempo até
representou uma vantagem adaptativa indiscutível atingir a temida adolescência é equivalente ao vivido
para a nossa espécie e talvez para algumas das espécies por outras espécies de mamíferos desde o final da
que nos precederam. lactação. Esse período juvenil dura mais nessas outras

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espécies, incluindo símios antropoides, até que os indi- das mulheres só atinja o seu apogeu aos vinte anos.
víduos amadureçam o suficiente para começarem a A altura aumenta, especialmente nos rapazes, durante
poder reproduzir-se. Na nossa espécie, o crescimento e o chamado “alongamento puberal”. A aceleração do
o desenvolvimento não terminam com o período juve- crescimento compensa tudo o que não se cresceu
nil: estendem-se por mais de seis anos. A adolescência durante a infância e o período juvenil.
é uma característica única do Homo sapiens e parece Porém, não vemos a olho nu o que está a acontecer
não ter vantagens adaptativas. Será assim? no cérebro. É claro que notamos mudanças substanciais
Durante a adolescência, ocorrem mudanças na nossa no comportamento dos nossos filhos, que aos poucos
aparência que considero desnecessário descrever em se vão desligando do nosso zelo cuidadoso para adquirir
pormenor. Todos sabemos que, aos poucos, vão-se a sua própria personalidade. Essas mudanças têm ori-
manifestando as características sexuais do estado gem na reestruturação do cérebro. A chamada “poda
adulto. A reprodução já é possível, embora a fertilidade sináptica” envolve a separação de centenas de milhares

49
MATT WOOD CHICAGO UNIVERSITY
O cérebro humano (à direita) é consideravelmente maior do que o dos nossos primos mais próximos, os chimpanzés
(à esquerda). Além disso, tem muito mais ligações neurais, o que explica as nossas competências culturais.

de ligações entre as fibras curtas dos neurónios. Essas o planeamento a longo prazo ou a tomada de decisões.
ligações envolvem um gasto considerável de energia Talvez o mais interessante tenha sido a descoberta do
para o cérebro. Aquelas de que necessitámos durante atraso no processo de proteção dos axónios por meio da
os primeiros anos de vida desaparecem e são substi- mielina, estrutura formada por água, lípídos e proteínas.
tuídas por outras que iremos usar no estado adulto. É produzida por dois tipos de células auxiliares do
sistema nervoso: os oligodendrócitos e as células de
O PAPEL DA MIELINA Schwann ou neurolemócitos.
Esta reciclagem neuronal causa muitos desajustes O papel da mielina é protetor e isolante. Graças ao
comportamentais durante os primeiros anos da adoles- invólucro dessa substância, os impulsos viajam muito
cência e apresenta vários perigos na tomada de decisões mais depressa e não se dissipam enquanto viajam pelas
erradas. O corpo caloso que une os dois hemisférios fibras longas de uma parte do corpo para outra. A mie-
cerebrais fica mais espesso e atinge até um quarto de lina começa a envolver os axónios no nascimento e
milhão de axónios, as fibras longas dos neurónios. Com completa a sua formação no final da terceira década de
isso, o órgão pensante adquire mais potência e conec- vida. Poderíamos, portanto, dizer que não somos total-
tividade. Aparecem também milhares de ligações entre mente adultos antes dos trinta anos, pelo menos no que
diferentes regiões do cérebro, como as áreas pré-fron- diz respeito ao cérebro e ao resto do sistema nervoso.
tal e frontal, onde residem aspetos importantes como Além disso, mantemos a capacidade de fazer novas

Poderíamos dizer que só somos totalmente adultos,


do ponto de vista cerebral, depois dos trinta anos

50
Uma lança a favor da amamentação
A proveitando o tema que nos

GETTY
ocupa, sobre a evolução e o
desenvolvimento do nosso cérebro
nos primeiros anos de vida, vale a
pena uma lança a favor da amamen­
tação. Numerosos trabalhos cientí­
ficos bem fundamentados explicam
em pormenor a impressionante
variedade de componentes do leite
humano que são necessários pa­
ra a nutrição e a proteção contra
infeções das nossas crianças.
Basicamente, o leite humano inclui
água, proteínas, hidratos de car­
bono, gorduras, minerais e vitami­
nas. Além disso, contém hormonas e
anticorpos que protegem os bebés
contra infeções e fortalecem o sistema imu­ lógica entre mãe e filho (e vice­versa) durante
nológico. Há dezenas de elementos no leite a amamentação é absolutamente essencial
humano ausentes das alternativas, como o leite para o desenvolvimento mental equilibrado
em pó. O leite das mães muda durante o dia e de ambos. Não me canso de repetir que não
ao longo dos meses de acordo com as neces­ há melhor presente para uma criança do que a
sidades do bebé. Além disso, a relação psico­ amamentação prolongada.

ligações neurais e cortar circuitos ineficazes. Isso é nosso só foi alcançado há cerca de cem mil anos. Talvez
conhecido como “plasticidade neuronal”. Tudo isto o tenham conseguido espécies muito próximas de nós,
pode obrigar a repensar de forma muito mais positiva como os neandertais. No entanto, até ao momento,
o papel da adolescência no nosso desenvolvimento. nenhum estudo permitiu averiguar como se estruturou
o desenvolvimento dessas espécies ancestrais. É um
QUANDO SURGIU A INFÂNCIA PROLONGADA? assunto pendente da paleoantropologia: quando é
Os especialistas em evolução humana perguntam-se que a infância começou a estender-se até aos seis ou
quando surgiram a segunda infância e a adolescência. sete anos? Essas espécies teriam uma adolescência tão
A resposta é complicada. Sabe-se que existe uma corre- longa quanto a nossa?
lação muito alta entre o desenvolvimento da dentição Mesmo que pudéssemos concluir que o Homo sapiens
e o desenvolvimento somático. Como os dentes guardam partilha com elas o seu padrão de desenvolvimento pecu-
a memória do tempo que levam para se formar, graças liar, dificilmente poderíamos descobrir quando surgiu
ao facto de as marcas de crescimento dos seus tecidos a altricialidade secundária. Poderiam os pais dessas
(e em particular do esmalte) permanecerem inalteradas espécies proteger e cuidar das suas crias se elas nas-
ao longo da vida, é possível estimar o tempo de formação cessem tão indefesas como as de hoje? Os fósseis tam-
das coroas dentárias. Também é possível descobrir bém nada nos dizem sobre a maturação completa do
quanto tempo leva a formar a dentina radicular. Esse cérebro e a sua plasticidade. Por enquanto, continuamos
relógio biológico permite estimar o tempo de que os a ser um caso único entre os primatas, em características
indivíduos de espécies passadas precisaram para chegar tão peculiares como a infância, a adolescência e o
à idade adulta. momento em que surgem os eventos que aumentam
Há muito poucos dados, mas tudo parece indicar que a complexidade do nosso cérebro.
um desenvolvimento somático tão prolongado como o J.M.B.C.

51
Porque nos
GETTY / ISTOCK

erguemos?
Ao longo de milhões de anos, as nossas extremidades
inferiores foram-se transformando até darem origem
aos pés, peças chave do bipedismo que nos caracteriza.

C
omparado com o de um chimpanzé, o nosso PERNAS DETERMINANTES
dedo grande do pé é curto, atarracado e, infe- De todas as características distintivas do ser humano,
lizmente, não possui a capacidade de agarrar foi o caminhar sobre duas pernas, e não o grande cérebro,
ramos de árvores. Além disso, temos uma o uso da linguagem ou o fabrico de ferramentas, que o
longa coluna vertebral em forma de S, um arco no pé, colocou no caminho que o separaria dos outros prima-
uma cintura flexível e joelhos grandes, além de muitas tas. Isso mesmo foi afirmado por Charles Darwin no livro
outras características que nos permitem ser excelentes A Origem do Homem e a Seleção Sexual (1871; Reló-
caminhantes de longa distância. gio d’Água, 2009). Século e meio depois, verificamos
Apesar de serem traços normais para nós, distinguem- que tinha razão, conhecendo a fundo como mudou a
-nos dos nossos parentes mais próximos no mundo maneira como os hominídeos se moveram ao longo
animal: os chimpanzés. Para nos tornarmos o que somos, de milhões de anos, um processo que desembocou no
muitas mudanças tiveram de ocorrer ao longo de milhões nosso pé, que Leonardo da Vinci descreveu como uma
de anos, não apenas nos corpos dos nossos antepas- obra-prima da engenharia.
sados, mas também no clima e na geografia do mundo Se quisermos rastrear a origem remota do pé, temos
que pressionaram a sua evolução. de fazer um duplo salto. Primeiro, no tempo, até há
A mudança produz novas contingências e novos 570 milhões de anos, e depois para o interior dos ocea-
desafios. Quando o nosso bipedismo evoluiu pela pri- nos, pois foi neles que, ao lado da coluna vertebral,
meira vez, criou novas condições para a evolução, que apareceram pela primeira vez pequenas dobras que a
foram o tiro de partida para a corrida que nos tornou evolução transformaria em barbatanas. Mesmo nessa
o que somos hoje. época, já tinham cinco “dedos”.

52
53
Os nossos pés são constituídos por  ossos
e dezenas de músculos e ligamentos

Tetrápodes como
o Ichthyostega, que
viveu no Devoniano
Superior, há cerca de
367 milhões de anos,
foram os primeiros
animais a sair do mar
e rastejar para terra,
impulsionando-se com
as suas barbatanas.

54
Para ver como se tornaram apoios do corpo, temos de maravilhas da engenharia da natureza e não procedem
sair da água e saltar novamente no tempo, até há 380 umas das outras”, continua Pablos, “mas possivelmente
milhões de anos, quando surgiram os primeiros seres têm uma origem comum. Cada uma foi efetivamente
vivos que se moviam ao longo das margens do mar desenvolvida para desempenhar uma função no
impulsionando-se com as barbatanas, os tetrápodes. ambiente onde vivem os organismos, o seu nicho eco-
A partir dos tetrápodes, abriram-se vários caminhos lógico. Cada uma delas representa o produto da adap-
evolutivos que acabaram por levar aos répteis, aos tação a esse nicho ecológico da forma mais eficiente
pássaros e aos mamíferos. Fazemos parte deste último possível, e envolve muitas gerações e pequenas
grupo, que evoluiu dos répteis há cerca de 240 milhões mudanças que foram produzidas pela seleção natural.”
de anos, na era dominada pelos dinossauros. Como é
que as patas dianteiras de um mamífero se tornaram as ESTRUTURA COMPLEXA
mãos dos primatas e, depois, as traseiras produziram “Geralmente, tratamos os nossos pés como um único
um pé como o nosso? objeto, mas, na realidade, cada um deles é composto
“Para os cientistas, é difícil imaginar como um casco, por 26 ossos e dezenas de músculos e ligamentos ”,
o pé em forma de mão de um primata e os pés dos explica o paleoantropólogo Jeremy DeSilva, professor
humanos anatomicamente modernos têm uma origem do Dartmouth College (New Hampshire). “É uma estru-
comum”, diz o paleobiólogo Adrián Pablos. Original- tura extraordinariamente complexa, que se torna mais
mente, os membros posteriores dos mamíferos terres- fascinante quando percebemos que é produto de
tres tinham cinco dedos que a seleção natural foi for- milhões de anos de evolução, que transformou um órgão
jando gradualmente, geração após geração, fundindo de preensão, como a mão dos símios, num de propul-
ou eliminando, para se adaptar às diferentes necessi- são.”
dades biológicas e ecológicas como a locomoção e o “Os humanos são os únicos mamíferos na Terra que
custo energético efetivo, entre outras.” andam exclusivamente sobre duas pernas, em vez de
“Todas essas estruturas poderiam ser consideradas quatro”, acrescenta DeSilva, “e os pés são a única parte

Desde quando nos calçamos?

WERNER FORMAN / UNIVERSAL IMAGES GROUP / GETTY


T al como Sherlock Holmes podia dizer
tudo sobre uma pessoa apenas olhando
para ela, aos paleoantropólogos basta obser­
var um osso do dedo do pé para descobrirem
muitas coisas sobre o seu dono. Erik Trinkaus
e Hong Shang, da Universidade de Washing­
ton, estudaram durante anos centenas de
dedos fósseis dos nossos antepassados de
há 30 a 50 mil anos. Compararam­nos com
os de pessoas atuais e com os de caçado­
res­recoletores de tempos recentes, e des­
cobriram que os dedos daqueles que usam
calçado para caminhar são muito diferentes
daqueles que nunca o fizeram. Ao caminhar
descalço, o dedo médio do pé inclina­se em
direção ao chão para dar tração enquanto
empurra o corpo para a frente. Se usarmos
calçado, a pressão passa para o dedo grande
e, ao mesmo tempo, é muito menor. Por isso,
ao analisarem os dedos dos esqueletos anti­
gos, conseguiram determinar que o calçado Estas botas de esquimós do Alasca são feitas
começou a ser usado há uns 40 mil anos. de peles de foca, lobo, cão e caribu.
AGE

55
do nosso corpo que toca o solo, por isso sofreram grandes PÉS ESTRANHOS
mudanças ao longo da evolução da nossa linhagem. Estu- Um dos mais antigos e completos esqueletos fósseis
dando como isso afetou o pé, podemos testemunhar conhecidos é o de Ardi, uma fêmea da espécie Ardipi-
o surgimento e as mudanças do nosso bipedismo.” thecus ramidus que viveu há 4,4 milhões de anos na
DeSilva e outros investigadores publicaram na revista atual Etiópia. O seu esqueleto foi encontrado com os
American Journal of Physical Anthropology um extenso dois pés inteiros. O formato do crânio, com base curta,
estudo comparativo dos pés de todas as espécies indica que se equilibrava na coluna vertebral, o que só
conhecidas de hominídeos, desde há cinco milhões de acontece em animais que andam eretos. Portanto, Ardi
anos até hoje. O estudo revelou que a evolução humana caminhava regularmente sobre as duas pernas. O resto
não é uma linha reta que parte de um animal seme- da sua anatomia aponta nessa direção: os joelhos, as
lhante a um chimpanzé até nós. É melhor imaginá-la pernas, os quadris...
como um arbusto com muitos ramos, em que cada Só os seus pés são estranhos. Embora servissem para
ramo é uma experiência diferente de marcha bípede suportar o peso de todo o corpo, tinham o dedo grande
que evoluiu para se adaptar a diferentes ambientes. separado, como se fosse uma mão. Isso indica que,
“Nos fósseis do pé, vemos a transição de um órgão embora Ardi costumasse passar a maior parte do dia no
preênsil, bem adaptado à vida arborícola, para outro solo, não o fazia com a mesma eficiência do que nós,
mais bem equipado para a vida no solo”, diz DeSilva. e ainda mantinha a habilidade de subir às árvores.
“É um exemplo incrivelmente rico Toda a nossa anatomia está
da evolução. No passado, houve A evolução humana adaptada para andar sobre duas
muitos tipos de pés que eram pernas, mas quem carrega o fardo
benéficos para as espécies de é como um arbusto desse trabalho é o pé, que não
hominídeos no ambiente em que só sustenta o nosso peso como
viviam, mas, depois, essas linha- em que cada ramo é tem a árdua tarefa de nos empur-
gens morreram.” rar para a frente de maneira efi-
uma nova tentativa ciente, ou seja, consumindo a
QUADRO EVOLUTIVO menor quantidade de energia
O intervalo cronológico abran- para chegar possível.
gido pela paleoantropologia Um chimpanzé pode andar
é de muitos milhões de anos. ao bipedismo sobre as pernas, mas o seu pé não
Estuda a história do homem, indo está adaptado para empurrá-lo
muito além do registo da escrita, que só chega até há para a frente, só suporta o peso. O trabalho de empurrar
cerca de cinco mil anos, e vai ainda mais longe do que é feito pelos músculos do quadril e das costas, pelo que
o estudo dos vestígios da cultura material analisados o chimpanzé gasta muita energia para andar erguido. Por
pela arqueologia. A paleoantropologia remonta a isso, não o faz muito: para reabastecer, teria de comer
milhões de anos, a uma época da qual apenas restam muito mais do que o normal.
ossos fósseis.
O pé é uma peça-chave do quebra-cabeça que os DEZENAS DE VESTÍGIOS
paleoantropólogos têm de resolver para saber como Depois de Ardi, a evolução favoreceu o apareci-
obtivemos o corpo atual. Sendo um órgão composto mento de pés que proporcionavam a vantagem da
por mais de duas dúzias de ossos, muitos deles muito economia de energia, o que resultou numa variedade
pequenos, é difícil encontrar fósseis. A maioria dos nos- impressionante de pés, que por sua vez gerou uma
sos antepassados hominídeos morreu presa de algum grande variedade de formas de caminhar. Os protago-
animal. Portanto, geralmente não encontramos pés nistas dessa diversidade foram os australopitecinos,
inteiros. Podemos contar pelos dedos de uma mão um género de hominídeos a partir do qual evoluiu o
aqueles que foram descobertos sem perder nenhum nosso próprio género (Homo). A espécie mais conhe-
dos 26 ossos. Na maioria dos casos, são apenas frag- cida é o Australopithecus afarensis, famosa pelo nome
mentos, um dedo aqui, outro ali. do seu membro mais completo, Lucy.
Atualmente, os especialistas possuem vestígios de O esqueleto de Lucy foi descoberto em 1974, quase
dezenas de pés de muitas espécies diferentes, cobrindo inteiro. Quase, exatamente, porque faltam os seus pés.
um período de 4,4 milhões de anos. Porém, há apenas Felizmente, nas décadas seguintes, foram descobertos
cinquenta anos, não havia mais do que alguns dos tempos dezenas de pés ou fragmentos deles que permitiram aos
recentes da nossa própria espécie e dos nossos primos especialistas saber como os nossos antepassados
neandertais. Por isso, os estudos das últimas décadas andavam e como isso ia mudando, até chegar ao estilo
mostraram um quadro evolutivo do pé mais complicado, eficiente que possuímos, sem lhe dar a importância que
mas também mais interessante. merece. “Em termos gerais”, diz Pablos, “podemos

56
SCIENCE PHOTO LIBRARY
Nesta representação
artística de Ardi,
podem apreciar-se
os seus curiosos pés,
com o dedo grande
separado dos outros.

57
SHUTTERSTOCK

Os pés de um
bebé são muito
arredondados,
pois possuem
uma camada
de gordura
cuja espessura
vai reduzindo
com a idade.

Dar um passo pode parecer fácil, mas há muitos


elementos a interagir para conseguir essa mecânica
dizer que os australopitecinos tiveram um bipedismo dos pés desses nossos antepassados resultou em estilos
incipiente sobre o qual a seleção natural tem atuado particulares de marcha e até na capacidade de continuar
continuamente, adaptando-se às necessidades e ao a trepar às árvores de uma forma muito mais eficiente
nicho ecológico de cada espécie.” do que a nossa.
Ao analisar a forma de um pé, os especialistas podem
dizer se tinha flexibilidade e força suficientes para subir FORMA ESTRUTURAL ÚNICA
a uma árvore com eficiência. Podem também saber a “O pé humano evoluiu para dar origem a uma forma
distância que poderia percorrer sem gastar uma energia estrutural única perfeitamente adequada para o propó-
significativa. Além disso, tendo em conta o clima e o sito de caminhar e correr sobre duas pernas”, diz Domi-
ambiente em que viviam, podem descobrir se viviam nic James Farris, investigador da Universidade do Exe-
numa floresta, em áreas de árvores isoladas ou na vasta ter (Inglaterra), que liderou um estudo recente sobre
savana. É por isso que o bipedismo dos australopite- a evolução do pé publicado na revista Proceedings of
cinos era tão variado. A grande diversidade na forma the National Academy of Sciences. “O arranjo cuida-

58
O problema do pé chato
O pé humano é uma maravilha de engenharia, mas, se não for usado para o que a evolução
o desenhou, começa a falhar, como qualquer outra ferramenta mal utilizada. A bela curva
do nosso pé, a ponte, é uma das engrenagens mais importantes na propulsão para cima e
para a frente que o pé controla. A falta de atividade física que caracteriza o ser humano médio
atual, somada ao excesso de peso e ao conforto excessivo do calçado, leva a que esse arco
enfraqueça. Os músculos do tornozelo que passam pelo arco tentam elevar os ossos do pé,
mas não conseguem. Por isso, entram em colapso, causando dor significativa nos pés e nas
pernas. É o que se chama “pé chato”, resultado de uma desadaptação do estilo de vida para
o qual fomos evoluindo durante mais de quatro milhões de anos.

Nesta
radiografia
colorida do
pé esquerdo
de um homem
de 61 anos com
desmineralização
óssea, pode ver-se
que o arco do pé
colapsou e toda
a planta do pé
entra em contato
com o solo.

ZEPHYR

doso do grande número de ossos e ligamentos que para empurrar para a frente, e os músculos da sola e do
compõem o nosso pé permite muitas funções mecâ- arco empurram para baixo, gerando a alavanca neces-
nicas, desde a absorção da energia do impacto contra sária para obter uma passada longa e eficiente. Nem
o solo até a capacidade de produzir a força necessária para todos os nossos antepassados podiam andar assim:
empurrar todo o peso do corpo para a frente” , explica. alguns não tinham arco, e por isso tinham menos força
O estudo de Farris e da sua equipa revelou como os no pé, enquanto outros tinham dedos mais curtos e
músculos do pé conseguem fazer esse “levantamento menos robustos. Tudo isso levou-os a dar passos mais
do peso”: “Mostrámos”, diz Farris, “que os músculos curtos, que se traduziam em maior cansaço ao percorrer
da planta do pé ajudam a gerar a energia necessária longas distâncias.
para nos impulsionar um passo de cada vez. Antes, Não costumamos pensar na maravilha de engenharia
acreditava-se que esses músculos serviam apenas para que é o nosso pé, mas a verdade é que a sua evolu-
sustentar o arco característico dos nossos pés.” ção foi fundamental para que os nossos antepassados
Dar um passo pode parecer simples, e até óbvio, mas pudessem obter mais e melhores alimentos. Com o
são muitos os elementos que entram em jogo nessa tempo, isso levou a outras mudanças evolutivas que
mecânica para que não acabemos com o nariz no chão. nos levaram por um caminho que conduziu ao fabrico
Enquanto uma das pernas avança no ar, a outra exerce de tecnologia, à linguagem e à criação da cultura. Por
pressão no pé, que se responsabilizará pelo avanço. outras palavras, o pé fez de nós humanos.
A força recai principalmente sobre os dedos dos pés, M.C.

59
HOMO HABILIS E HOMO RUDOLFENSIS

O enigma dos
primeiros
prime humanos
Os cientistas continuam a tentar lançar luz sobre a evolução humana:
no terreno, escavando em áreas novas e antigas, e fora dele,
usando tecnologia de ponta para extrair informações das peças
fósseis encontradas. Ainda há muitas perguntas sem resposta
sobre as espécies mais antigas do género Homo.

60
Fotograma da
minissérie da BBC
Walking With
Cavemen (2003),
BBC / CORTESIA EVERETT COLLECTION

que recriou
o Homo habilis,
a primeira
criatura
do planeta
a produzir
ferramentas.

61
D
urante várias décadas, a espécie Homo cérebros de homininos Ralph L. Holloway fizeram medi-
habilis foi considerada o elemento de liga- ções independentes e concluíram que o OH-7 teria um
ção entre os australopiteos e o Homo erec- volume cefálico de entre 647 e 687 centímetros cúbicos
tus, mais alto e com um cérebro maior. (o dos humanos modernos é de 1300 a 1400 cm3).
Nesse sentido, teve a honra de ser designado como
o primeiro ser humano encontrado no registo fóssil, PROPORÇÕES SIMIESCAS
o antepassado mais antigo da nossa linhagem evolutiva. Outro exemplo importante é o OH-13, apelidado de
Este homem capaz de fazer umas ferramentas de Cinderella. É um crânio muito fragmentado que preserva
pedra primitivas foi encontrado pela primeira vez nos o maxilar e grande parte da mandíbula e cujo volume
sedimentos do desfiladeiro de Olduvai, no norte da Tan- cerebral seria de 650 cm3, segundo Holloway, ou 673
zânia. Os fósseis de homininos desta área têm sempre cm3, segundo Tobias. Também se destaca o OH-24,
as iniciais OH (de Olduvai Hominid) e um número que um crânio relativamente completo, embora muito acha-
segue a ordem por que foram encontrados. tado e deformado, conhecido como Twiggy. Apesar
O OH-7 é o espécime de referência (o holótipo) da da sua desfiguração, Holloway e Tobias estimaram, de
espécie Homo habilis. É uma mandíbula com pequenas maneira muito aproximada, que teria uma capacidade
fraturas e deslocamentos que distorceram muito a sua de entre 590 e 597 cm3. Por fim, vale a pena citar o
forma. Também inclui dois fragmentos parietais de OH-65, uma maxila bem preservada com a parte infe-
ambos os lados do crânio e alguns ossos do pulso e da rior do rosto.
mão que se acredita terem pertencido ao mesmo indi- Além da mão do OH-7, foi recuperado em Olduvai
víduo. Um crânio tão fragmentado é um problema para um pé quase completo (OH-8) que é atribuído a um
estimar a capacidade do cérebro, mas o paleoantropó- Homo habilis. Por outro lado, em 1986, uma equipa de
logo e anatomista Phillip V. Tobias e o especialista em paleoantropólogos liderada por Donald C. Johanson e

Foto de 1977 em Koobi Fora (Quénia), onde se

MARION KAPLAN / AGE


fizeram muitas descobertas importantes de hominídeos.
À esquerda, Kamoya Kimeu, colecionador de fósseis
humanos, com o paleontólogo Richard Leakey, filho de
Mary e Louis Leakey, descobridores do Homo habilis.

62
Tim D. White encontrou os restos altamente fragmen-
tados do esqueleto OH-62. Composto por 302 peças, só
foi possível reconstruir a maxila (com alguns dentes),
partes do crânio, parte do braço e do fémur direitos e
um pequeno fragmento da tíbia esquerda. No entanto,
é uma descoberta muito importante, pois fornece a
primeira prova inequívoca de como era o esqueleto de
um Homo habilis. Johanson e os seus colaboradores
encontraram nele dois aspetos surpreendentes: o seu
tamanho diminuto (seria até um pouco mais baixo do
que Lucy, uma Australopithecus afarensis, e o seu peso
andaria pelos 30 quilos) e o facto de as proporções dos
membros serem tão simiescas quanto as de Lucy.

VIDA ARBORÍCOLA
Essa afirmação foi contestada por um grupo de espe-
cialistas liderados por Philip L. Reno, entre os quais o
próprio White. Argumentaram que não tinham sido
preservadas as peças dos ossos chave para descobrir
a proporção correta. No entanto, Christopher Ruff,
especialista em membros homininos, observou que as
geometrias transversais dos ossos do OH-62 não eram
o que se esperaria de alguém que fosse bípede a tempo
inteiro.
A impressão de que o H. habilis tinha um compo-
nente simiesco e era menos humano do que se supunha
não se baseava apenas nos seus braços e pernas. Na
opinião de Randall L. Susman e Jack T. Stern, a mão do
OH-7 tem algumas características que diferem das nos-
sas: as falanges média e proximal são curvas, robus-
MARKUS MATZEL / GETTY

tas e com uma cortical (o tecido compacto do osso)


espessa, indicativo de uma poderosa força de preensão
e uma configuração semelhante à de chimpanzés e
gorilas fêmeas. É provável que o Homo habilis passasse
parte do seu tempo em árvores. A paleoantropóloga Meave G. Leakey, mulher de Richard
Leakey, contribuiu, com a sua equipa, para ampliar
ACHADOS QUENIANOS o nosso conhecimento sobre o Homo rudolfensis.
Há outro sítio importante que também fornece ves-
tígios deste Homo: Koobi Fora, uma área geográfica
de afloramentos na costa nordeste do lago Turkana, KNM-ER 1813, com um volume cerebral de apenas 509
no Quénia. Os exemplares dessa área levam a sigla do cm3, uma face estreita e a região maxilar projetada
Museu Nacional do Quénia (KNM, da sigla inglesa) para diante. Haveria também, segundo Wood, um
seguida das iniciais ER, que correspondem ao sítio Koobi segundo esqueleto, o KNM-ER 3735, dessa espécie.
Fora, originalmente chamado East Rudolf, uma vez que O pobre 3735 está ainda mais mutilado do que o OH-62,
o lago era conhecido na época colonial como Rudolf. embora algumas características dos seus braços sugiram
O paleoantropólogo britânico Bernard Wood estudou habilidades trepadoras, segundo Ruff.
extensivamente todos os primeiros fósseis de Homo Os espécimes de Homo habilis têm entre 1,9 e 1,65
dali procedentes e fez comparações detalhadas com milhões de anos. Ao nível craniano, caracterizam-se
os Homo habilis de Olduvai. Na opinião de Wood, há um por um acentuado toro supraorbital (a crista óssea
crânio em Koobi Fora que pertence a um H. habilis: o acima das órbitas oculares), ossos delgados da abó-

Devido às suas características, é provável que o Homo


habilis passasse parte do seu tempo nas árvores

63
Brian Villmoare, da Universidade
AARON MAYES / UNIVERSIDADE DO NEVADA EM LAS VEGAS

do Nevada, com o LD 350-1,


uma mandíbula fossilizada
com 2,8 milhões de anos
encontrada na Etiópia que
fez recuar a linha do tempo
das origens humanas.

bada craniana, osso occipital muito angulado e região mo-nos a parte do rosto de um indivíduo juvenil razoa-
maxilar projetada para diante. velmente bem preservado (KNM-ER 62000) e uma
mandíbula praticamente completa (KNM-ER 60000).
ROSTOS E MOLARES O fragmento 62000 foi um impulso definitivo para a cre-
Muitos paleoantropólogos, incluindo Wood, acredi- dibilidade do Homo rudolfensis, pelo que o crânio 1470
tam que em Koobi Fora também existe uma segunda deixou de ser uma criatura rara. Proveniente de um indi-
espécie de seres humanos primitivos, o Homo rudol- víduo jovem, o 62000 é mais pequeno do que o 1470;
fensis. O espécime mais importante é o crânio KNM- no entanto, tem exatamente o mesmo rosto plano.
-ER 1470, com volume cerebral próximo de 750 cm3. Aparentemente, a face peculiar do Homo rudolfensis
A região maxilar do 1470 por baixo do nariz é surpreen- não depende da diferença entre machos e fêmeas
dentemente reta (ortognática) e distinta; nenhuma (dimorfismo sexual) ou de fatores associados ao
outra espécie de humano arcaico tem uma mandíbula desenvolvimento (ontogénese).
desprovida de curvatura. Os ossos zigomáticos (sob a Por outro lado, os molares do 60000 são menores
bochecha) são muito proeminentes e estão posiciona- do que o esperado. Inicialmente, os paleoantropólogos
dos antes do palato. presumiram que o H. rudolfensis teria grandes molares,
Descobertas recentes da equipa de Meave G. Leakey como o Paranthropus boisei, que é outro hominino de
ampliaram o conhecimento sobre esta espécie. Referi- Koobi Fora com uma face muito plana e um poderoso

O H. rudolfensis tinha um rosto muito achatado,


característica independente do dimorfismo sexual

64
aparelho de mastigação dotado de molares enormes. mandíbula muito semelhante à 60000, o que é um
Nesse sentido, Wood atribuiu ao H. rudolfensis uma man- grande avanço e também representa um problema
díbula robusta com dentes grandes, conhecida como sério: talvez tanto o 1802 comoo o UR-501, com os seus
KNM-ER 1802. Pelo mesmo motivo, foi atribuída a esta grandes dentes, não sejam Homo rudolfensis e perten-
espécie outra mandíbula espessa e dentada, UR-501, çam a outra espécie.
encontrada no sítio de Uraha (Malawi). No entanto, o Se descartarmos a mandíbula do Malawi, o H. rudol-
espécime 60000 é um grande achado e deixa claro que fensis tem entre 2,05 e 1,78 milhões de anos. Nada se
um rosto plano não implica necessariamente molares sabe com certeza sobre o seu esqueleto pós-craniano,
grandes. pois ainda não foi encontrado um crânio associado a
parte do esqueleto. Tentativamente, Wood atribui
PROBLEMA SÉRIO ao H. rudolfensis os fósseis KNM-ER 1472 (um fémur
Como o 1470 não reteve os seus dentes, não se sabia direito) e KNM-ER 1481 (um fémur, parte de uma tíbia
como era o seu aparelho de mastigação, embora algu- e a área distal de um peróneo), ambos maiores e com
mas raízes preservadas sugerissem que deveria ter um aspeto mais moderno do que o OH-62.
pré-molares e molares muito grandes. Por esta razão,
Wood assumiu que a mandíbula 1802 era a compa- RECONSTRUÇÃO VIRTUAL
nheira adequada do 1470. No entanto, ela não encaixa Embora muito progresso tenha sido feito no conheci-
com o crânio 1470 ou a maxila 62000. Em contrapar- mento do H. habilis, o exemplar de referência, OH-7, tem
tida, estes articulam-se de forma aceitável (tenha em a mandíbula distorcida, e a abóbada craniana parcial
mente que a última pertence a um espécime jovem) é composta por muitos fragmentos partidos e laborio-
com a mandíbula 60000. Portanto, o 1470 tinha uma samente reunidos, o que dificulta boas comparações

Exploração digital do OH-7


Desvendar o Homo habilis Primitivo e avançado
Os paleoantropólogos do Instituto Max A morfologia facial do OH-7 implica que ele
Planck de Antropologia Evolucionária teria um prognatismo considerável: o seu ros-
(Alemanha) reconstruíram a forma da mandí- to seria muito primitivo e projetado para
bula do OH-7 (o holótipo do Homo habilis ) a frente, como um focinho. Por outro lado,
usando sofisticadas técnicas digitais: o crânio reconstruído (cores vivas) pelos
separaram virtualmente todas as peças par- especialistas do Max Planck indica que seria
tidas da mandíbula encontrada e reconstruí- muito grande e com um cérebro volumoso
ram-na para obter a forma original. (cinzento escuro). Essas duas características
tornam-no um ser humano único. As áreas
Parente de Lucy transparentes correspondem ao hominino
Reconstruída a mandíbula e com o aspeto KNM-ER 1813 de Koobi Foora (Quénia),
imaginário que teria a maxila, os paleoantro- modificado para se ajustar ao OH-7.
pólogos decidiram comparar a boca do OH-7
com a do Australopithecus afarensis. O resul-
tado é impressionante. O Homo habilis tinha
PHILIPP GUNZ, SIMON NEUBAUER E FRED SPOOR / INSTITUTO MAX PLANCK

uma arcada dentária longa e estreita, com


a linha dos incisivos ligeiramente arqueada
na frente. É muito parecido com a mandíbula
de Lucy, e especialmente com dois indivíduos
diferentes de A. afarensis (a mandíbula
AL 400-1 e a maxila AL 200-1). Embora
o H. habilis tenha diferenças anatómicas
importantes, a notável semelhança com
o A. afarensis sugere um parentesco próximo.

65
Uma mandíbula
para um crânio
P odemos finalmente saber como
era a cabeça do Homo rudolfensis.
O crânio na imagem é do KNM-ER 1470
e a mandíbula do KNM-ER 60000.
Têm proporções semelhantes e fornecem
informações valiosas sobre a aparência
desses humanos arcaicos de Koobi Fora,
no Quénia. Durante décadas, o 1470 foi
considerado Homo habilis, embora não tivesse
um nome específico, e foi listado como Homo
sp., a forma científica de indicar que não está
atribuído a uma espécie particular. Em meados
da década de 1980, alguns paleoantropólogos CA Joordens, mostrou que o 1470 tem entre
começaram a duvidar que o 1470 fosse 2,03 e 2,09 milhões de anos, tornando-o,
EFE / FRED SPOOR / NATURE

um H. habilis. Finalmente, em 1992, Bernard até agora, o Homo mais antigo de Koobi Fora.
Wood atribuiu-o à espécie Homo rudolfensis. Já a mandíbula 60000, encontrada por Cipriano
Uma nova datação feita por uma equipa Nyete em 2009, é bem mais jovem: tem entre
de geólogos europeus, liderada por Josephine 1,78 e 1,87 milhões de anos.

66
Muitas vezes, as espécies não podem ser distinguidas
segundo o volume do cérebro, mas pela aparência facial
anatómicas. Para resolver o problema, uma equipa de para 800 cm3, muito mais do que Tobias e Holloway
especialistas do Instituto Max Planck de Antropologia tinham calculado, e coloca o OH-7 na faixa de tamanhos
Evolutiva (Leipzig, Alemanha), liderada por Fred Spoor de cérebro típicos do H. erectus, com características
e Philipp Gunz, usou tomografias axiais computorizadas mais humanas. Um rosto muito primitivo, como o de
e tecnologia de imagens tridimensionais para digitalizar, Lucy, e um cérebro avançado tornam o H. habilis fas-
separar e remontar virtualmente as peças fósseis. cinante pela sua estranha mistura de qualidades mais
Assim, foi possível realizar uma reconstrução simétrica antigas e mais evoluídas.
da mandíbula OH-7, a fim de estudar a sua verdadeira Também é surpreendente a variedade de humanos
morfologia. Os investigadores levaram em consideração arcaicos que viveram na região de Koobi Fora há cerca
o formato da arcada dentária (o arco formado pelos de dois milhões de anos, já que, além do H. habilis, havia
dentes e pela parte frontal da boca), que é um excelente também H. rudolfensis e os primeiros representantes
indicador da aparência do crânio facial de um homi- africanos do H. erectus (sabemos isso graças a crânios
nino e pode oferecer mais informações para classificar como o KNM-ER 42700). Inicialmente, os paleoan-
espécies diferentes. Compararam a arcada dentária tropólogos pensaram que as diferenças no tamanho
da mandíbula OH-7 com a OH-13 (H. habilis), a KNM-ER do cérebro eram importantes na caracterização de
1802 (H. rudolfensis, segundo Bernard Wood), mandí- espécies humanas arcaicas, mas a nova linha de inves-
bulas de Australopithecus afarensis, espécimes do sítio tigação mostra que as três espécies não podem ser
georgiano de Dmanisi (Homo erectus) e Homo sapiens. distinguidas com base no volume craniano, mas sim
nas diferenças da sua aparência facial. A notável seme-
MUITAS SURPRESAS lhança do rosto do H. habilis com o de Lucy sugere um
As surpresas não tardaram a chegar. O OH-7 e o OH-13 parentesco próximo com ela e com outros A. afarensis
têm arcos muito semelhantes, o que era de esperar, mas do sítio etíope de Hadar.
o 1802 é ainda mais semelhante ao OH-7. Portanto, o
1802 deve ser H. habilis e não H. rudolfensis, como Wood MISTURA DE CARACTERÍSTICAS
assumiu inicialmente. Outro aspeto surpreendente Cerca de trinta quilómetros para nordeste, fica
é que as mandíbulas OH-7, OH-13 e 1802 eram muito Ledi-Geraru, onde se descobriu metade de uma man-
semelhantes às do Australopithecus afarensis. díbula (LD 350-1) com entre 2,75 e 2,8 milhões de anos.
A comparação das arcadas superiores trouxe mais É um achado importante, o fóssil de Homo mais antigo
novidades. Embora o OH-7 não tenha um osso maxilar, conhecido até hoje. É muito interessante a sua mistura
os especialistas do Max Planck reconstruíram-no digital- de características derivadas (mais evoluídas), próprias
mente usando duas abordagens: uma predição anató- de um ser humano, e outras típicas do A. afarensis, que
mica baseada na oclusão dos dentes superiores e infe- nada têm de humano. Por exemplo, a forma do corpo
riores, e um modelo estatístico. Quando compararam lateral da mandíbula e o padrão de desgaste da dentição
o arco maxilar digital do OH-7 com o do OH-65, viram são característicos do Homo, enquanto o tamanho dos
que este tem a forma de um grande arco parabólico, dentes e da mandíbula é comparável ao de Lucy.
muito próximo do dos humanos modernos. Portanto, O mais notável, no entanto, é que o LD 350-1 mostra
é pouco provável que o OH-65 seja um Homo habilis. uma arcada dentária estreita e alongada com um con-
Quanto ao pequeno crânio KNM-ER 1813, a sua torno semelhante ao do OH-7, pelo que a geometria
arcada maxilar aproxima-se ligeiramente da do OH-7. mandibular do H. habilis já estava presente neste
No entanto, talvez não seja um H. habilis, porque a sua humano antiquíssimo. Porém, a sínfise mandibular
arcada, muito parabólica, é mais semelhante à do H. (região externa da mandíbula entre os caninos) é muito
erectus de Dmanisi. Tal como a mandíbula, o OH-7 teria semelhante à do A. afarensis, o que denota a sua faceta
um rosto estreito e alongado, no estilo do A. afarensis, primitiva. Por esse motivo, é improvável que o LD 350-1
e distinta das mandíbulas de H. rudolfensis e H. erectus. seja um verdadeiro H. habilis, mas foi certamente um
dos seus antepassados.
VOLUME AMPLIADO Nos sedimentos de Ledi-Geraru e Hadar, reside a
A reconstrução do crânio OH-7 foi outro empreendi- esperança de encontrar o Homo mais antigo, as nossas
mento digital. Originalmente, os fragmentos parietais origens mais remotas. Para isso, os paleoantropólogos
estavam esmagados, pelo que era difícil estimar o têm de continuar a escavar na Etiópia e noutros locais.
volume cefálico. A versão do Max Planck aumenta-o M.G.B.

67
Grande machado

JAVIER TRUEBA / MSF / SCIENCE PHOTO LIBRARY


de mão ou biface
do desfiladeiro
de Olduvai. Este
sítio da Tanzânia
preservou
ferramentas líticas
com mais de dois
milhões de anos.

68 MUY Colección
Tecnologia
de ponta na
Idade da Pedra
Graças à evolução do cérebro e da anatomia da mão,
os nossos antepassados desenvolveram a capacidade de fabricar
um repertório de ferramentas cada vez mais sofisticadas.

O
s utensílios de pedra e osso que aparecem MUDANÇAS PRODIGIOSAS
em sítios pré-históricos são vestígios da Há entre dois e três milhões de anos, os primeiros
interação do homem com o meio natural representantes do nosso género (Homo) estavam a pas-
para obter alguma utilidade. Há mais de sar por mudanças prodigiosas. Através de um processo
dois milhões de anos, podem ter usado pedras com evolutivo sem grandes modificações aparentes, certos
pouca ou nenhuma elaboração, mas, à medida que tendões, músculos e as suas inserções transforma-
evoluíram, os nossos antepassados modificaram e ram-se para gerar muito mais força nas extremidades
adaptaram essas ferramentas de forma cada vez mais superiores. Assim, as mãos tornaram-se verdadeiras
complexa: passavam pela sua mente e pelas suas mãos, pinças de precisão com as quais era possível fabricar
o que mostra um grande aumento das capacidades e manipular objetos. As dos seus predecessores, os
cognitivas. Face aos fósseis de outros seres vivos, australopitecos e os ardipitecos, não tinham essa pre-
testemunhos de morte, o homem também deixou cisão, embora lhes permitissem agarrar-se aos ramos
uma prova de vida, através dos objetos que fez. Cul- das árvores através da pressão.
tura, engenho e criatividade distinguem-nos de forma Os primeiros humanos pegaram em seixos dos rios
extraordinária dos outros animais. Onde e quando e deram uns golpes com outra pedra, removendo uma
começaram a brilhar essas habilidades? ou mais lascas. Às vezes, iam buscar a matéria-prima a
Possivelmente, antes das pedras, os homininos usaram quilómetros de distância. O talhe envolvia um número
outros tipos de materiais, como ossos, chifres, madeira relativamente pequeno de gestos, mas que já apresen-
ou troncos vegetais, mas estes não são tão duráveis e tavam uma dificuldade notável. As marcas de corte
dificlmente se conservam. Alguns restos de ferramen- encontradas em restos de ossos indicam que os bordos
tas de osso, como pontas e furadores encontrados em afiados das lascas serviam para cortar e desossar carne,
grutas sul-africanas, como as de Swartkrans e Krom- e para triturar ossos e aceder ao tutano, que tem grande
draai, foram associados a um possível uso por austra- valor nutritivo. Esta tecnologia é chamada “modo 1” ou
lopitecos, antepassados da linhagem humana com “olduvaiense” (da gargante de Olduvai, na Tanzânia,
qualidades morfológicas que os tornavam bípedes, mas onde foi descoberta) e foi usada pelas primeiras espécies
sem habilidades cognitivas assinaláveis. No entanto, humanas: Homo habilis e Homo rudolfensis. As peças mais
isso não exclui que possam ter usado instrumentos para características são os picadores (seixos trabalhados
recolher térmites ou tubérculos, como fazem os chim- apenas de um lado) e as ferramentas de corte (talhadas
panzés da atualidade. nos dois lados).

69
“Caixa de ferramentas” pré-histórica: da esquerda
GETTY

para a direita, um raspador, um buril e bifaces.

GETTY
O fabrico de um biface, em quatro passos 3. Para afiar o bordo,
pode usar-se um
martelo de madeira,
1. Primeiro, é preciso escolher 2. A forma é iniciada
chifre ou pedra.
uma pedra de bom tamanho. com outra pedra;
por exemplo, sílex.

4. Com um instrumento
afiado, extraem-se
pequenas lascas: Biface terminado
o trabalho está
concluído.

Vista frontal Vista lateral

70
Há ferramentas de há 3,3 milhões de anos,
quando o género Homo ainda não existia
Os vestígios mais antigos da tecnologia olduvaiense,
feitos há 2,6 milhões de anos, foram encontrados em
Ledi-Geraru e Gona, na Etiópia, ao lado de ossos de ani-
mais (zebras, por exemplo) com marcas de corte, mas
Um milhão de anos
há outros vestígios em diferentes locais africanos: no
leste, Omo e Hadar (Etiópia), com 2,35 milhões de anos
(Ma), e Lokalalei (Quénia), com 2,3 Ma; no sul, Sterkfon- A tecnologia acheulese é a mais lon-
geva da humanidade: apareceu em
África há 1,7 milhões de anos – jazidas de
tein e Swartkrans (África do Sul), com 2,2 Ma; no norte,
Ain Boucherit (Argélia), com mais de 2 Ma. Kokiselei e Koobi Fora (Quénia), Konso
Fora de África, os primeiros representantes do Homo (Etiópia), Olduvai (Tanzânia)... – e espa-
também deixaram restos de ferramentas líticas desde lhou-se por África e pela Ásia no milhão
tempos muito antigos e em lugares surpreendente- de anos seguinte. Surgiu há 900 mil anos
mente remotos do continente africano. Há amostras no norte da Ásia – bacia de Sanmenxia
das suas habilidades no norte da China, que datam de (China) – e na Europa – Baranc de la Boella
2,1 Ma e de há 1,6 Ma, revelando a presença de humanos (Espanha). Depois de se implantar no
saídos de África muito mais cedo do que se conside-
Velho Continente de forma generalizada
rava tradicionalmente.
há cerca de meio milhão de anos – Stein-
HOMO TECNOLOGICUS heim (Alemanha), Swanscombe (Reino
Podemos afirmar que é seguro equiparar o género Unido), Gran Dolina e Porto Maior (Espa-
Homo a tecnologia? A antiguidade das primeiras fer- nha)… –, durou até há 190 mil anos na
ramentas líticas conhecidas amplia-se com novas des- península arábica (Saffaqah) e ainda se
cobertas a cada poucos anos, enriquecendo ou des- produzia há cem mil anos em vários lo-
truindo suposições antigas. Em 2015, foi descoberto cais da Europa Ocidental. Os autores des-
um conjunto de ferramentas na jazida queniana de sas ferramentas foram inicialmente Homo
Lomekwi, composto por mais de uma centena de lascas, ergaster, em África, Homo erectus, na Ásia,
núcleos, percutores e bigornas. É uma elaboração tosca, Homo heidelbergensis e os antepassados
com produtos grandes e pesados obtidos principal-
dos neandertais, na Europa.
mente com golpes contra uma bigorna, que envolve
gestos semelhantes aos executados pelos chimpanzés
para partir nozes.
Quem foram os seus autores? É um mistério. Esti-
ma-se que essa indústria, chamada “lomekwiense”, se permitir. Na região de Afar (Etiópia), onde surgem os
desenvolveu há cerca de 3,3 Ma, data que ultrapassa primeiros representantes do Homo na África Oriental,
em muito o registo mais antigo de ferramentas líticas foram encontrados restos de uma espécie de austra-
antes conhecido, de há 2,6 Ma, como visto acima. Nessa lopiteco chamada Australopithecus garhi, associada a
cronologia, não se conhece qualquer representante do vestígios de pedra e restos de antílope com impactos
género Homo; quer dizer, ainda não havia humanos, de ferramentas.
apenas várias espécies de Australopithecus e o enig-
mático Kenyanthropus platyops, que tinha morfologia TENTATIVA E ERRO
semelhante à dos australopitecos, embora com o rosto Em última análise, a invenção da tecnologia não foi
mais achatado, ou seja, mais moderno. Os principais ves- um processo rápido, mas exigiu vários testes ao longo
tígios deste último emergiram precisamente a apenas de um período de milénios com os recursos disponíveis,
um quilómetro da jazida de Lomekwi. como as pedras. Muitas dessas experiências não pro-
Portanto, talvez o desenvolvimento de tecnologia grediram muito, e talvez nunca cheguemos a conhecer
lítica não tenha sido um quadro exclusivamente asso- algumas dessas indústrias incipientes. Outras vezes,
ciado ao surgimento de nossa linhagem. Em vez disso, tiveram sucesso, e os seus autores foram capazes de
talvez a aprendizagem de certas habilidades sociais transmitir o conhecimento dessas técnicas durante
tenha levado diferentes homininos a explorar técnicas centenas de milhares de anos. Assim, as primeiras
que a sua mão anatomicamente moderna começava a vagas de homininos que saíram de África levaram a tec-

71
nologia olduvaiense. Encontramo-la em Dmanisi (Geór- tantes neste continente, o que deu lugar ao chamado
gia), a mais de 5000 km da Etiópia, onde foi usada há “modo 2” ou “acheulense”, nome derivado da jazida
1,8 Ma pelo Homo erectus para processar carne de francesa de Saint-Acheul. É caracterizada pelos bifaces
veado e rinoceronte. Também chegou há entre 1,4 e ou machados de mão, bem como outras ferramentas
1,1 Ma a França (Vallonnet e Bois-de-Riquet) e à penín- de grande formato com lascas ou arestas, feitos com
sula ibérica (Orce, em Granada, e Sima del Elefante, martelos de pedra e percutores moles de osso ou de
em Atapuerca). chifre.
O entalhe de um biface requer muita ginástica mental,
PROGRESSO DECISIVO com etapas intermédias que procuram obter simetria
Na mesma época em que a tecnologia olduvaiense e equilíbrio. Os seus primeiros autores tinham um cére-
começou a ser usada fora de África, o fabrico de ferra- bro com o dobro do tamanho do dos antepassados
mentas líticas estava a conhecer avanços impor- que viveram meio milhão de anos antes. Essas

Mais madeira
O uso da madeira começa
a adquirir relevância
no Paleolítico Médio. Como a
quilómetros de Barcelona,
era um abrigo ocupado por
grupos de neandertais. Há
matéria vegetal apodrece rapi- cerca de 50 mil anos, os seus
damente, são necessárias condições habitantes acenderam dezenas
extraordinárias para a sua preser- de fogueiras para cozinhar veados,
vação: muito frio, um clima muito árido cavalos e bovídeos, e usaram inú-
ou um local saturado de água onde meras ferramentas de madeira, mui-
não haja oxigénio e, portanto, micro- tas delas atestadas pelas marcas deixa-
-organismos que a degradem. das no chão: pedaços pontiagudos
que podem ser pontas de lança, outros
Artesanato neandertal na forma de recipientes ou bandejas;
A produção e o uso de utensílios de sobras de lenha, um possível bastão
madeira durante o Paleolítico foram e um pequeno objeto em forma de pá.
atestados indiretamente pela obser- Objetos desta etapa também foram
vação do desgaste das ferramentas encontrados em África, destacando-se
líticas utilizadas para trabalhá-los. um fragmento de Florisbad (África do
Felizmente, alguns objetos feitos dessa Sul) com marcas de corte, interpretadas
matéria-prima também foram excecio- como parte de uma lança, e uma ben-
nalmente preservados até aos dias de gala e um conjunto de paus de Kallam-
hoje. A tecnologia da madeira deve ter bo Falls (Zâmbia).
sido importante nos grupos humanos
deste período. Por exemplo, os nean- Como construir uma lança
dertais e os seus antepassados monta- As ferramentas de madeira exigiam uma
vam pontas em cabos para fazer lanças. elaboração complexa. Se tomarmos uma
Os mais velhos são de Clacton-on-Sea lança como exemplo, os fabricantes tinham
(Reino Unido), com 420 mil anos, e de Schö- de selecionar um ramo longo e fino. Depois,
ningen (Alemanha), com 300 a 337 mil anos. removiam a casca e os nós e, finalmente,
Também conhecemos peças para outros raspavam e poliam uma das extremidades
usos, como paus para cavar. É o caso dos para obter a ponta. Às vezes, aplicavam
restos mortais encontrados em Aranbaltza fogo e resinas que funcionavam como cola
(Espanha) e Poggeti Vechi (Itália), queima- para fixar a ponta. Resumindo, o processo
dos para endurecê-los. Abric Romaní, a 50 exigia abstração e planificação.

72
Os neandertais

SPL
fabricaram várias
ferramentas para
esmagar, raspar
e cortar. Essa
tecnologia, chamada
“mousteriense”,
produziu peças
tão marcantes
como a de abaixo,
talhada em quartzo.

O biface é o “canivete suíço” da pré-história:


fabricá-lo requer muita habilidade mental

ferramentas adaptam-se bem à mão lasca antes de extraí-la, enquanto o


e são multifuncionais: combinam núcleo adquire um perfil corcunda
uma ponta numa extremidade, característico, semelhante à
um extremo rombo na outra e carapaça de uma tartaruga. No
superfícies de corte nas late- final, a lasca é separada com
rais, que podem ser “afia- um único golpe.
das” novamente quando O controlo sobre o pro-
necessário. cesso de fabrico aumenta
É o “canivete suíço” da notavelmente com este
SPL

pré-história, um robusto sistema, hegemónico em


utensílio usado para cor- muitas indústrias da Europa,
tar, raspar ou cavar. Em da Ásia e de África. Estamos
alguns casos, os bifaces são no chamado “modo tecnoló-
mais toscos, mas em geral são gico 3”.
muito elegantes e é admirável Na Europa, a indústria pre-
o seu belo formato de lágrima. O dominante durante o Paleolítico
acheulense revela um grau de padroni- Médio é o mousteriense, termo retirado
zação, na técnica e na forma dos produtos, da gruta francesa de Le Moustier (Dordo-
que se mantém por mais de milhão e meio de anos. nha). É a tecnologia dos neandertais, que fazem ras-
padores, facas, cutelos, pontas... Embora abundassem
NOVA ESTRATÉGIA DE PRODUÇÃO no seu ambiente, parece que esses homininos extintos
Durante o Paleolítico Médio, houve uma mudança pouco usaram materiais como osso, chifre e marfim,
na estratégia de produção: da redução de um núcleo mais difíceis de trabalhar do que a pedra ou a madeira.
de pedra para obtenção de uma única ferramenta, O Paleolítico Médio africano é conhecido como MSA
passou-se à exploração de múltiplas lascas para a cria- (sigla de Middle Stone Age), que rapidamente sucede
ção de objetos mais pequenos e diversos. Os métodos à cultura acheulense. Embora as ferramentas no norte
de talhe também são variados, e a sua escolha está se assemelhem às dos neandertais, outras áreas ofere-
relacionada com a qualidade e a resistência da maté- cem mais variedade: por exemplo, pontas de Levallois
ria-prima. na África Central e Oriental e lascas alongadas e fer-
Destaca-se a técnica Levallois, inventada há cerca de ramentas do tipo faca no sul. Algumas jazidas mais
300 mil anos e que leva o nome da jazida homónima relevantes são Nasera (Tanzânia), Blombos e Sibudu
francesa. Consiste em criar a forma pretendida da (África do Sul) e Jebel Irhoud (Marrocos).

73
RAUL MARTIN / MSF / SCIENCE PHOTO LIBRARY
A partir do Paleolítico Superior (que começou há entre 40 e 30 mil anos), o Homo sapiens aprendeu a fazer
pontas de flechas e lanças cada vez mais aperfeiçoadas e em materiais muito diversos, como marfim, sílex,
argila e ossos ou chifres de animais. Em baixo, uma coleção dessas armas de caça encontradas na Mauritânia.

SPL

74
Não sabemos se as inovações do Paleolítico Médio
têm uma única origem ou surgiram em vários lugares
Há 300 mil anos, surgiram na África Oriental habili- Segundo a hipótese da convergência cultural, a
dades técnicas inesperadas para aquela cronologia: os MSA apresentava uma complexidade relativamente
seus habitantes faziam pontas e facas cuja tecnologia só baixa nos seus estágios iniciais, e pode ter havido uma
se difundiu mais de cem mil anos depois. Alguns mate- convergência de ideias há cerca de 200 mil anos. Isso
riais estão separados por 25 a 50 km, sugerindo uma contrasta com a maior especialização posterior, que
possível troca entre grupos ralativamente distantes. vemos, por exemplo, nas pontas bifacetadas de Blom-
Sabemos também que manipulavam minérios de man- bos (África do Sul), com 71 mil anos, semelhantes às
ganês e ferro para extrair pigmento em pó. solutrenses que aparecem na Europa 50 mil anos depois.
Tal como na Eurásia associamos o mousteriense à Entretanto, a Ásia também oferece exemplos anti-
linhagem neandertal, quem foram os criadores do MSA quíssimos da técnica de Levallois: 385 mil anos na Índia
em África? O sítio etíope de Gademotta mantém uma (Attirampakkam) e entre 170 e 80 mil anos no sudoeste
coleção de pontas típicas desse período datadas de há da China (gruta Guanyindong). Mais uma vez, os espe-
cerca de 275 mil anos, ou seja, 75 mil anos antes, pelo cialistas debatem se a adoção de técnicas avançadas se
menos, da presença mais antiga do Homo sapiens na deve às migrações humanas do Ocidente, como se pen-
área. Embora a MSA esteja ligada aos primeiros grupos sava até recentemente, ou se foram desenvolvidas nas
de Homo sapiens, talvez também caracterize outros populações locais por convergência cultural. Porém,
homininos arcaicos que evoluíram em África há meio esses criadores não seriam Homo sapiens, presente no
milhão de anos. sul da China há apenas cem mil anos. Terão sido obra
Por outro lado, a nossa espécie pode ser mais antiga dos denisovanos, aquele grupo humano conhecido
do que pensávamos até muito recentemente. As ferra- apenas pelos seus traços genéticos?
mentas líticas de Jebel Irhoud evocam o mousteriense
europeu, o que inicialmente sugeriu que os restos MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS
humanos associados a elas poderiam ser neandertais. A transição do Paleolítico Médio para o Paleolítico
Com a nova datação desses materiais, que aponta para Superior supõe a generalização da mudança no método
entre 280 e 350 mil anos de antiguidade, estão agora de produção de ferramentas. Observamos um fabrico
associados à nossa linhagem. Talvez se tratasse de um sistemático de lâminas alongadas e finas, retocadas
daqueles grupos arcaicos de Homo sapiens que com- para dar origem a diferentes ferramentas: raspadores,
punham a sopa genética da qual iam emergindo os buris, furadores, facas e, sobretudo, pontas de projé-
humanos modernos. teis de diferentes tipos.
Diversidade e especialização caracterizam o registo
COMPORTAMENTO SIMBÓLICO arqueológico desse novo período, que começa há cerca
O Paleolítico Médio, na Eurásia, e a MSA, em África, de 40 mil anos, em África (onde é chamado LSA, sigla
são um importante período de inovações técnicas e inglesa de Idade da Pedra Tardia) e no Médio Oriente.
culturais. Surgem nessa época os primeiros sinais de Depois, espalhou-se pela Europa, onde vigorou até há
comportamento simbólico, simultaneamente e em cerca de onze mil anos. Além das pedras, são usados
diferentes locais. Os neandertais de diferentes partes materiais como ossos, chifres, marfim e argila. Não é
da Europa trabalhavam garras de aves de rapina para raro encontrar ferramentas compostas, como arpões
usar como ornamentos. Em África e no Velho Conti- com pontas destacáveis e propulsores para aumentar
nente, vários grupos humanos perfuraram conchas o alcance dos projéteis.
para usar como contas de colar. Há gravados em ovos Nesta época, ocorre também uma explosão de mani-
de avestruz, em África, e em conchas, na Ásia. festações simbólicas e artísticas, bem como o aperfei-
Há uma coincidência das culturas apresentadas por çoamento de tecnologias pré-existentes: assistimos à
diferentes espécies humanas? O debate é apaixonante. elaboração de tendas com ossos de mamute, pedras,
Talvez alguns dos últimos representantes das espécies madeira e cobertura de pele, ao uso mais eficiente do
arcaicas de pré-sapiens (o Homo rhodesiensis ou o fogo e de arcos e flechas para caçar, assim como à
Homo heidelbergensis) tenham desenvolvido o modo 3 invenção de ferramentas e técnicas de pesca.
ou Levallois em África e transmitido a técnica aos nean-
dertais quando migraram para a Europa, enquanto DIVERSIDADE CULTURAL
em África teriam deixado esse legado aos humanos O Paleolítico Superior e a LSA incluem vários períodos
modernos. tecnológicos, por vezes apenas com alguns milénios de

75
LIONEL BRET / EURELIOS / SCIENCE PHOTO LIBRARY

Durante os períodos solutrense e magdaleniense (há entre 22 e 8000 anos), os humanos modernos tornaram-se
verdadeiros mestres artesãos, com gosto pela ornamentação. Em baixo, algumas amostras dessa habilidade.
SPL

SPL

76
Com a chegada do Neolítico, mudou irreversivelmente
a relação dos humanos com o seu ambiente natural

GETTY
existência. As jazidas também são muito abundantes,
algumas delas com longas sequências de ocupação no
mesmo local: El Castillo (Espanha), Pincevent (França),
Geissenklösterle (Alemanha), Mumba (Tanzânia),
Panga ya Saidi (Quénia), Denisova (Rússia), etc. Há
mais de trinta mil anos, os humanos já viviam a uma
altitude de 4600 metros no Tibete, onde deixaram
milhares de vestígios líticos como testemunho.
Na Europa Ocidental, sucedem-se culturas diferentes.
Geralmente, presumimos que os primeiros grupos de
humanos modernos a chegar ao continente foram con-
temporâneos dos últimos neandertais, criadores há
38 mil anos de uma indústria chamada “chatelperro-
niense”. Presente no oeste e no sul de França e no norte
de Espanha, costuma ser considerada uma transição
entre as tecnologias das duas espécies humanas, talvez
por influência ou intercâmbio cultural. Coincidiu algum
tempo com o período aurignacense, de há cerca de 35
mil anos, a primeira cultura especificamente associada
ao Homo sapiens europeu. Os seus criadores melhora-
ram o talhe das lâminas e a fabricação óssea, dos quais
são muito características as azagaias, pequenas lanças
de arremesso.
Há cerca de 29 mil anos, apareceu em algumas partes
do Velho Continente a cultura gravetense, caracterizada
por um aumento de ferramentas de osso, objetos de
adorno pessoal e lâminas altamente estilizadas com
um bordo retilíneo retocado (pontas de Gravette). No
período solutrense (há 22 mil anos) o talhe da pedra
atingiu elevada qualidade. Foram então fabricadas pon-
tas de projéteis bifaciais, delgadas e aerodinâmicas, Recriação do museu britânico Amesbury History
que revelam grande habilidade no retoque de pressão e Centre em que se vê um caçador do Mesolítico
no uso do fogo para aquecer a pedra. Por fim, o período (período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico)
magdalenense (há 17 mil anos) destaca-se pelo surgi- a amarrar uma ponta de flecha de sílex.
mento de diferentes tipos de ferramentas de osso e chi-
fre, por vezes adornadas com gravações: bastões, lan-
ças, espátulas, cinzéis, punções, arpões... Os humanos diferentes aplicações: pontas de flechas, raspadores,
dessa época criaram abundantes objetos de arte móvel, buris...
peças preciosas de um trabalho manual admirável. O Mesolítico dura cerca de 6000 anos. É a fase de tran-
sição para a revolução económica e social que aconte-
REVOLUÇÃO AGRÍCOLA cerá em vários processos independentes e em diferen-
O Paleolítico termina há cerca de onze mil anos. Na tes geografias. O Neolítico trouxe consigo uma grande
Europa, o gelo recua e desaparecem grandes mamíferos transformação tecnológica, com a invenção de um
como o mamute e o rinoceronte lanudo; outros, como novo conjunto de ferramentas ao serviço da exploração
o bisão e a rena, migram para norte. O Homo sapiens agropecuária e da armazenagem de alimentos: macha-
volta a expandir-se para regiões mais setentrionais, de dos polido, foices, moinhos manuais, cestos, vasos
onde desaparecera desde o Último Máximo Glacial. cerâmicos, espátulas, colheres... É o início de uma
A alimentação diversifica-se e aumenta a pesca no litoral. mudança irreversível na relação do ser humano com
Face a estas novas situações, os humanos usam fer- o seu meio natural.
ramentas pequenas e especializadas (micrólitos) com R.S.

77
Os especialistas
GETTY

chamam-lhe “Crânio 5”,


mas é mais conhecido
como “Miguelón”,
em homenagem ao
ciclista Miguel Indurain.
Este resto de
um pré-neandertal,
encontrado em 1992
em muito bom estado
de conservação,
é a estrela do Museu
da Evolução Humana
de Burgos.

78
O tesouro
de Atapuerca
Nas jazidas desta serra espanhola, foram encontrados vestígios
de cinco espécies de hominídeos. A sua riqueza em fósseis
humanos não tem rival, e ainda há muito por escavar.

É
difícil exagerar a importância das jazidas da da flora e dos humanos que habitavam o local desde
serra de Atapuerca (Burgos, Espanha) para há cerca de 1,2 milhões de anos (Ma) até há cerca de
o conhecimento da nossa evolução. Na ver- cem mil anos. Não muito longe, fica a entrada da Cueva
dade, há apenas cinco outros conjuntos de Mayor, uma imponente gruta em cujas galerias de quase
escavações paleoantropológicas no mundo (três em quatro quilómetros de extensão existem vários sítios
África e dois na Ásia) que partilham com este a distinção que cobrem o último meio milhão de anos de ocupação
de Património Mundial da UNESCO. Dezenas de milhares humana na serra.
de pessoas visitam todos os anos o local e contemplam
no Museu da Evolução Humana de Burgos os fósseis TUDO COMEÇOU EM 1910
mais importantes ali recuperados. A existência de vestígios arqueológicos na área da
Graças às descobertas e investigações feitas em Ata- Trincheira Ferroviária é conhecida desde os anos 1960,
puerca nas últimas quatro décadas, a paleoantropolo- graças às atividades de exploração do Grupo de Espe-
gia espanhola catapultou-se para a vanguarda mun- leologia Edelweiss. Muito antes, em 1910, fora anun-
dial. Atualmente, estão a ser escavados nove sítios, ciada a descoberta de uma pintura rupestre paleo-
cobrindo um período de quase milhão e meio de anos lítica na entrada da Cueva Mayor. Essas descobertas
que abarca toda a história da humanidade na Europa, atraíram a atenção de arqueólogos e paleontólogos,
desde os primeiros colonizadores até a Idade do e foram feitas escavações limitadas em alguns setores
Bronze. Não há outro local do nosso continente que muito específicos da trincheira e da entrada da gruta.
contenha tanta riqueza. Em 1976, aquele grupo de espeleologia, liderado
A maioria dos locais de trabalho está situada em duas pelo paleontólogo Trinidad Torres, realizou uma dessas
partes da serra. Por um lado, há a chamada Trincheira escavações. Procuravam fósseis de urso, mas o que
Ferroviária, a área que pode ser visitada. É uma antiga encontraram foi uma mandíbula humana muito com-
linha férrea construída no final do século XIX para pleta, numa cavidade oculta da gruta, Sima de los Hue-
permitir a passagem de um pequeno comboio mineiro. sos. Essa descoberta levou Emiliano Aguirre, na época
As escavações revelaram um conjunto de grutas repletas o mais importante paleoantropólogo espanhol, a con-
de sedimentos que preservam restos fósseis da fauna, ceber e dirigir, de 1978 a 1990, um ambicioso projeto

79
No nível TD10 de Gran Dolina, acumulam-se
vestígios das últimas fases da ocupação
humana do local, desde há cerca de 500 a 300
mil anos. A escavação de uma área de apenas
cem metros quadrados revelou mais de 118 mil
vestígios de fauna e 35 mil artefactos líticos.

80
GETTY
A jazida
A serra de Atapuerca está localizada
cerca de 15 quilómetros a leste
de Burgos e eleva-se 1085 metros
acima do nível do mar. O local
fica junto a uma pequena via férrea
criada no final do século XIX,
cuja construção revelou a existência
dos vestígios. Os investigadores
têm trabalhado lá sistematicamente
desde 1978.

81
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A paleoartista francesa
Elizabeth Daynès
é a autora desta
reconstrução de
um Homo antecessor,
exibida no Museu
da Evolução Humana.
Esta espécie viveu na
serra de Atapuerca há
cerca de 900 mil anos.

82
A jazida tornou-se famosa com o aparecimento de restos
de uma nova espécie humana: o Homo antecessor
que contemplava a escavação e investigação da Sima Pleistoceno Médio, já que se conheciam poucos fósseis
de los Huesos e da trincheira vizinha. Nascia assim do período (e assim continua). A extraordinária coleção
aquilo a que hoje chamamos “Projeto Atapuerca”, do sítio preencheu essa lacuna e está a permitir des-
dirigido desde 1991 por Juan Luis Arsuaga, Eudald Car- vendar o processo evolutivo que deu origem aos nean-
bonell e José María Bermúdez de Castro. dertais. Os fósseis da gruta foram atribuídos à espé-
Sima de los Huesos é incomparável, tanto pelo local cie Homo heidelbergensis em 1997, mas as evidências
em que se encontra como pela dificuldade de escavar. encontradas desde então neste e noutros sítios europeus
Não existe outro sítio localizado tão longe da entrada levaram a retirar essa atribuição em 2014. Os investi-
de uma gruta (mais de 600 metros) e ao pé de um gadores que trabalham em Atapuerca tentam agora
abismo (sima) com cerca de 13 metros de profundidade. perceber se esses vestígios correspondem a uma nova
Além disso, a atmosfera do local tem muito dióxido de espécie humana ou se podem ser incluídos numa das
carbono, o que dificulta a respiração. No entanto, o local espécies já conhecidas.
foi frequentado durante décadas por visitantes que Entre as descobertas mais notáveis resultantes do
escavaram e remexeram sedimentos e fósseis enquanto estudo dos fósseis de Sima de los Huesos está o facto de
procuravam presas de urso. Essa falta de controlo os cadáveres terem ali sido acumulados de forma deli-
levou a que estivesse totalmente alterado na época da berada, o que seria o primeiro ato fúnebre conhecido.
descoberta da mandíbula humana. Essa circunstância Além disso, em 1998, foi encontrado ao lado dos ossos
reduziu o valor do achado, já que a sua antiguidade não um machado de pedra (chamado “Excalibur”) esculpido
podia ser estabelecida com certeza, e tornou a esca- numa rara rocha vermelha e que, para muitos investi-
vação científica muito difícil, exigindo a remoção de gadores, constitui um objeto simbólico: seria a primeira
várias toneladas de sedimentos misturados e dezenas oferenda conhecida da história.
de blocos de calcário que haviam caído do teto da
gruta ao longo dos séculos. ARQUEOLOGIA IMATERIAL
A maioria dos cientistas que visitaram o local consi- Outra investigação muito relevante relacionada com
derou impossível uma escavação científica. No entanto, esta escavação tenta descobrir se aquelas pessoas
ela foi iniciada em 1984, após uma intervenção mínima podiam falar. Para isso, foi criada uma metodologia que
em 1983, e continua sem interrupção até hoje. O traba- reconstrói a sua audição, levando em consideração que
lho de Sima de los Huesos ao longo destas três décadas a capacidade humana de ouvir difere da de outros pri-
e meia permitiu estabelecer com grande confiança a matas por estar adaptada para perceber os sons da fala
idade da jazida em cerca de 430 mil anos, e descobrir a com grande sensibilidade. Este trabalho mostrou que as
maior acumulação mundial de fósseis do género Homo. capacidades auditivas daqueles indivíduos eram seme-
lhantes às nossas, e claramente diferentes das dos chim-
ESTRUTURA SÓLIDA panzés, indicando que poderiam usar os mesmos sons
Hoje, sabemos que estavam ali depositados os corpos das pessoas modernas para a sua comunicação oral.
de pelo menos 28 pessoas de ambos os sexos e idades A mais recente descoberta de grande alcance feita no
diferentes. É um tesouro científico, pois é a única popu- local é baseada na recuperação de ADN nuclear e mito-
lação conhecida de uma espécie humana fóssil. Através condrial. Os primeiros estudos do material genético
do estudo das mais de 7000 peças fósseis recuperadas confirmaram o diagnóstico dos paleoantropólogos sobre
até ao momento, foi possível conhecer muitos aspetos o estreito parentesco evolutivo dos fósseis ali encon-
da vida e da morte desses indivíduos, muito além do que trados com os neandertais, e também revelaram uma
poderia ter sonhado o paleoantropólogo mais otimista. surpreendente afinidade com os enigmáticos deniso-
Para começar, os restos de Sima de los Huesos estabele- vanos, que viveram na Ásia Central durante o Pleisto-
ceram uma estrutura sólida para a evolução humana na ceno Superior.
Europa no Pleistoceno Médio. Este período da história Além de Sima de los Huesos, dois outros locais foram
do planeta (780 a 120 mil anos) é de grande relevância, escavados na Cueva Mayor. Um é a Galeria das Estátuas,
pois foi então que surgiram duas humanidades moder- localizada hoje no final de um dos túneis da gruta, mas
nas: os neandertais (Homo neanderthalensis) e a nossa que durante a pré-história era uma sala adjacente a
espécie (Homo sapiens). outra entrada que foi selada por um desabamento há
Antes dessas descobertas e investigações, havia milhares de anos. Contém sedimentos que cobrem um
grande confusão sobre a nossa evolução durante o período de tempo de há entre 110 e 70 mil anos atrás.

83
Desde 2008, foram ali recuperados inúmeros vestígios Por sua vez, a jazida de Gran Dolina contém um
de fauna e também indústria lítica do tipo mouste- extenso aterro sedimentar com cerca de 19 metros
riense (ou modo 3), característica dos neandertais. Em de altura. Os seus níveis inferiores têm cerca de um
2017, foi encontrada uma falange do pé de um indivíduo milhão de anos, e os superiores datam de há cerca de
desta espécie, um dos dois únicos recuperados até à 120 mil anos. Desde 1980, está a ser escavada uma área
data na serra de Atapuerca. de cerca de 80 metros quadrados nos níveis superiores,
Por fim, na grande sala de acesso à Cueva Mayor, datando de um período equivalente ao da Galeria. Nesses
onde se situa a pintura rupestre descoberta em 1910, estratos, especificamente no chamado TD10.2 ou nível
encontra-se uma importante jazida para o estudo da dos ossos de bisonte, foi documentado o consumo
pré-história recente, a que chamaram “Portalón”. Entre exaustivo desses animais e encontradas evidências que
1966 e 1983, foi escavada esporadicamente, mas desde apontam para a sua caça coletiva. Nas campanhas de
2000 tem sido trabalhada de forma mais sistemática: 1990 e 1991, foi escavado um pequeno setor dos níveis
cobre um período que vai do final do Pleistoceno Supe- inferiores de Gran Dolina, que resultou na recuperação
rior (há cerca de trinta mil anos) até à Idade Média, e de ferramentas do tipo olduvaiense (ou modo 1). Em
dois dos seus níveis são especialmente interessantes: 1993, foi iniciada uma sondagem, com apenas 6 m2 de
os correspondentes ao Neolítico e à Idade do Bronze, extensão, desde os níveis superiores até a base da jazida.
que terminou por volta do ano 1000 a.C. Estudos O objetivo principal era contrastar a ideia, então difundida
paleontológicos, arqueológicos e de ADN antigo rea- na comunidade científica internacional, de que a colo-
lizados com o material ali recuperado confirmaram nização da Europa ocorrera há meio milhão de anos.
a existência de trocas comerciais com populações do
norte de África há quase 4000 anos, e uma estreita DIA HISTÓRICO
relação genética entre os primeiros agricultores e cria- Assim, nos primeiros dias da campanha de 1994, a
dores de gado que chegaram ao planalto castelhano, escavação atingiu o patamar denominado TD6, cuja
há cerca de cinco mil anos, e a população nativa do idade foi fixada em mais de 780 mil anos. A manhã de 8
atual País Basco. de julho daquele ano entrou nos anais do estudo da pré-
-história, porque nesse dia foi encontrado um fóssil que
TRABALHOS PESADOS atestava que o assentamento humano no continente era
Embora um condicionamento anterior tenha sido muito mais antigo do que se pensava. Juntamente com
realizado em 1978, o trabalho de escavação sistemática esse fóssil do género Homo, foram encontradas ferra-
na Trincheira Ferroviária começou em 1980, em dois mentas líticas do tipo olduvaiense e centenas de fósseis
locais, a Galeria e Gran Dolina. Em ambos os casos, foi de diversos animais.
necessário remover os níveis superiores, estéreis do As descobertas de fósseis humanos continuaram
ponto de vista arqueológico e paleontológico. Além durante as campanhas de 1995 e 1996, e prosseguiram
disso, em Gran Dolina também foi necessário retirar o nas realizadas entre 2003 e 2008. No final da escavação
calcário que cobria parte do depósito. Isso exigiu o uso daquele pequeno setor do nível TD6, tinham sido recu-
de martelos pneumáticos, escavadeiras e detonações perados cerca de 165 restos, correspondentes a todas
controladas, e a colaboração de unidades do exército. as regiões do esqueleto e pertencente a um mínimo de
O sítio da Galeria forneceu abundantes restos de fauna nove indivíduos: três com até quatro anos, dois com
e indústria lítica acheuliense (ou modo 2) em diferentes cinco a nove anos, dois com dez a 14 anos e dois com 15
épocas da ocupação humana que foram datadas em a 19. Os fósseis humanos, assim como os da fauna, apre-
cerca de 450 mil anos. Também foram encontrados sentam marcas de corte produzidas por ferramentas
dois fósseis humanos: um fragmento de mandíbula, de pedra, o que indica que foram esfolados e certamente
descoberto em 1976, e uma pequena parte de um osso consumidos pelos seus congéneres, no primeiro ato
parietal, recuperado em 1995. Embora a pequenez dos conhecido de antropofagia.
restos não permita obter muitas informações sobre Por outro lado, a análise da morfologia dos fósseis
eles, a sua anatomia é totalmente comparável à dos humanos do nível TD6 revelou que não podiam ser atri-
fósseis humanos de Sima de los Huesos. Os investigado- buídos a qualquer das espécies até então conhecidas,
res concluíram que esses indivíduos entraram na gruta o que levou à conclusão de que essas pessoas corres-
por acaso, quando algum grande herbívoro terá caído pondiam a uma nova espécie humana, que foi chamada
por um buraco que liga a gruta à superfície. Homo antecessor. A palavra latina antecessor tem dois

A análise do ADN dos fósseis de Sima de los Huesos


revelou o seu parentesco com neandertais e denisovanos

84
Os restos de Sima
SPL

de los Huesos
foram ali acumulados
intencionalmente,
tornando o sítio palco
do primeiro ato fúnebre
conhecido da humanidade.
No desenho, um hominídeo
atira um machado de pedra
num buraco, antes de fazer
o mesmo com um cadáver.
O triunvirato de Atapuerca

E m 2018, Juan Luis Arsuaga, José María


Bermúdez de Castro e Eudald Carbo-
nell figuraram na lista dos cientistas mais
disciplinas do conhecimento. Este facto ilustra
a grande importância do trabalho deste trio de
codiretores, que há décadas desvendam os
influentes publicada anualmente pela Cla- segredos escondidos nas galerias e grutas da
rivate Analytics, que acompanha o número serra de Atapuerca. Eles e a sua vasta equipa
de citações no portal Web of Science, uma são responsáveis por algumas das descober-
plataforma que recolhe as referências das tas recentes mais notáveis sobre a evolução
principais publicações científicas de todas as humana.
GETTY

Juan Luis Arsuaga, José María Bermúdez de Castro e Eudald Carbonell, codiretores das jazidas de Atapuerca
(a foto foi tirada lá) e vice-presidentes da Fundação Atapuerca. Os dois últimos colaboraram nesta edição.

significados. Por um lado, significa “antepassado”; por seis constituem (juntamente com um molar de leite de
outro, era o nome das tropas especializadas que prece- cronologia semelhante achado na cidade de Orce, em
diam as legiões romanas na sua marcha, explorando e Granada) os mais antigos vestígios humanos conheci-
preparando o terreno. dos no continente europeu e, até ao momento, não
Treze anos após as primeiras descobertas do Homo foram atribuídos a qualquer espécie do nosso género.
antecessor, achados noutro local da Trincheira, locali-
zado 150 metros a sul de Gran Dolina e chamado Sima TAREFA PARA GERAÇÕES
del Elefante, fez recuar ainda mais a idade da coloniza- O último dos grandes sítios de Atapuerca atualmente
ção da Europa. Sima del Elefante é uma antiga entrada a serem escavados está localizado muito perto da Trin-
de uma das galerias da Cueva Mayor e contém um aterro cheira e foi chamado “Gruta Fantasma”. É uma grande
sedimentar com cerca de 18 metros de espessura. entrada para uma cavidade totalmente preenchida por
Os níveis mais baixos da jazida datam de há cerca sedimentos, a julgar pelos trabalhos preliminares rea-
de 1,2 Ma. Foi aí recuperado, na campanha de 2007, um lizados desde 2016, pelo que os investigadores acredi-
fragmento de mandíbula humana. No ano seguinte, tam que o local tem muito potencial científico. Dados
encontrou-se uma falange de uma das mãos. Estes fós- preliminares sobre a fauna fóssil recuperada indicam

86
Esta ilustração recria o ambiente
de Atapuerca há cerca de 400
MAURICIO ANTÓN / SPL

mil anos. Vemos um indivíduo


do género Homo, um leão,
um lobo, um rinoceronte,
um veado, bisontes, cavalos...

Em Atapuerca, foram encontrados os primeiros sinais


de antropofagia, em restos com cerca de  mil anos
que os seus níveis superiores correspondem ao final do var neste lugar extraordinário? Tendo em conta que
Pleistoceno Médio ou início do Pleistoceno Superior (há os trabalhos estão longe de ter atingido a metade da
entre 120 e 80 mil anos). Na campanha de 2016, o tra- duração prevista, que na Gruta Fantasma a tarefa mal
balho de limpeza dos níveis mais superficiais permitiu começou e que existem numerosos outros sítios cata-
encontrar parte do parietal de um indivíduo neandertal, logados na serra de Atapuerca que não foram sequer
o segundo remanescente desta espécie humana sondados, a resposta é clara: há trabalho para muitas
encontrado em Atapuerca, após a falange de um pé gerações de investigadores, e talvez nos aguardem
recuperada na Galeria das Estátuas. surpresas que podem mudar tudo o que sabemos sobre
Uma das perguntas recorrentes de quem visita o a nossa evolução.
local e se interessa pela pré-história é: quanto falta esca- I.M.M. / M.C.V.

87
Os neandertais (Homo
S. ENTRESSANGLE E E. DAYNES

neanderthalensis)
surgiram na Europa há
cerca de 230 mil anos.
Esta reconstrução
foi feita a partir dos
fósseis encontrados em
La Chapelle-aux-Saints
(França).
CREDITO

88
Como viviam
os neandertais
Os nossos antepassados coincidiram no espaço e no tempo com uma
humanidade muito interessante: o neandertal. O paleoantropólogo
Erik Trinkaus explica-nos como era essa espécie próxima da nossa.

E
rik Trinkaus (Connecticut, 1948) é um dos EGOS PROJETADOS
maiores paleoantropólogos do mundo e Durante esta fascinante entrevista telefónica,
nunca se desviou de seu interesse básico: o Trinkaus sugere que a maioria dos investigadores conti-
estudo da biologia e, acima de tudo, do com- nua a projetar o presente (dominado pelo Homo sapiens)
portamento das sociedades humanas do passado. Isso naquele passado. Dito de outra maneira: quando nos
aproximou-o mais dos arqueólogos do que dos seus olhamos ao espelho, projetamos o nosso ego nos nossos
colegas de profissão, muitos dos quais obcecados em antepassados? As perguntas que Trinkaus faz referem-
encontrar o elo perdido nos seres humanos, um con- -se sempre ao comportamento, à linguagem, à tecnolo-
ceito popular, mas errado. gia, à organização social dos neandertais e aos seus cos-
Trinkaus ostenta agora o título de professor emérito tumes. As respostas resumem a sua carreira: uma infi-
do Departamento de Antropologia da Universidade de nita curiosidade e o fascínio pela biologia dos hominí-
Washington em St. Louis. Embora se tenha afastado deos que nos precederam, com os neandertais como
da vida académica, continua a investigar e publicar. peça central. Nos últimos anos, Trinkaus focou o seu
Destacou-se pelo seu trabalho sobre os neandertais e, olhar nas populações humanas do Paleolítico Superior
após mais de meio século de estudos, está convencido e, claro, na destruição dos mitos que ainda dominam
de ter feito as perguntas certas desde o seu início como a perceção que muitos cientistas têm dos neandertais,
paleoantropólogo, na década de 1970. Hoje, já foram e que, curiosamente, não corresponde à do público.
banidos clichés como se os neandertais seriam nossos É impossível listar todos os trabalhos científicos de
antepassados ou se os teríamos feito desaparecer, mas Trinkaus e da sua equipa, embora talvez o mais popular
Trinkaus evitou há muito tempo a armadilha em que seja o estudo do esqueleto de uma criança encontrado,
muitos dos seus colegas caíram: a obsessão de encon- em 1998, no sítio arqueológico do Lagar Velho,
trar traços humanos nos nossos ancestrais, viajando perto de Fátima (o “menino do Lapedo”), que tinha
para trás no tempo. uma mistura de traços de neandertais e humanos

89
ARCHIVO TK

Trinkaus atribui os sinais de canibalismo entre os neandertais


à necessidade de sobrevivência: em períodos de fome sazonal,
consumiam os restos mortais de outros já falecidos.

90
Reconstituição do “menino do Lapedo”, encontrado no abrigo do Lagar Velho, perto de Fátima. Tem cerca de 24 500
anos e apresenta uma mistura de características humanas modernas e de neandertal, sugerindo um cruzamento.

modernos, o que levou a supor que era o produto de um investigação para a minha tese de doutoramento, tinha
cruzamento nunca antes visto entre as duas espécies: acabado de ser descoberto um dos hominídeos antigos
uma bomba inesperada que agitou a comunidade cien- mais completos da África Oriental, o KNM-ER 1470
tífica no início deste século. [achado por Richard Leakey e chamado Homo rudolfensis,
uma espécie que viveu há entre dois e 1,7 milhões de anos].
FUGIR ÀS POLÉMICAS Todo o foco estava lá. Por isso, com os neandertais e os
Porque escolheu estudar o homem de Neandertal? primeiros humanos modernos, poderia dedicar-me a
Fixei-me nele por dois motivos. Havia muitos fósseis responder às perguntas que me interessavam e, além
disponíveis, esqueletos bastante completos, prin- disso, evitar meter-me em polémicas.
cipalmente da Europa Oriental. Assim, foi possível Tudo parece indicar que não havia muitos colegas dis-
responder a várias questões sobre a sua biologia, e postos a segui-lo, não é?
também relacioná-las com a arqueologia. A paleonto- No início da década de 1980, havia apenas meia dúzia
logia humana estava centrada nos australopitecos e de investigadores no mundo a estudar seriamente os
no género Homo. No início de 1973, quando comecei a neandertais. Dávamo-nos bem. Discordávamos por

Para compreender as origens humanas, é preciso


estudar o comportamento, a adaptação e o ambiente

91
girava em torno de se eles eram ou não nossos antepas-
sados. Essa discussão continua hoje. Evitei-a durante
toda a minha carreira.
Talvez porque a maior parte da comunidade científica
não está a fazer as perguntas certas sobre os neandertais?
Estive envolvido nessa discussão com a descoberta do
“menino do Lapedo”, no final de 1998, mas as questões
mais relevantes eram outras. Quem eram esses nean-
dertais? Qual foi o seu comportamento? O que podemos
dizer sobre a sua biologia e a sua arqueologia? Alguns
dos meus colegas mais próximos eram arqueólogos,
como o João Zilhão [n. 1957, atualmente catedrático
da Universidade de Barcelona]. Se, no final de contas,
quisermos entender as nossas origens e entender
porque é que os seres humanos modernos são a única
humanidade que vemos e por que desapareceram os
neandertais, a resposta será encontrada no compor-
tamento, na adaptação, nas mudanças no ambiente.
Insistir no debate sobre se os neandertais eram ou não
nossos antepassados não é uma coisa tão importante.

ESPELHO DA HUMANIDADE
Em 1939, o antropólogo A sua carreira consistiu em estudar o comportamento
norte-americano Carleton
das sociedades do passado, mas a maioria dos paleoan-
Coon fez este desenho
de um neandertal tropólogos parece obcecada em saber o que é humano
para mostrar que eles e o que não é, de onde viemos, ou seja, olhamos apenas
não eram assim tão para nós mesmos, e não para os outros.
diferentes de nós. Embora nem todos pensem assim, a maioria pensa que
existe uma separação entre nós e os menos humanos.
Os neandertais desempenham esse papel desde o
vezes, mas quase sempre colaborávamos. Havia Ber- século XIX. Estavam muito próximos de nós em biologia
nard Vandermeersch, Anne-Marie Tillier e Jean-Louis e comportamento, mas não eram estritamente humanos
Heim, em França, Chris Stringer, em Londres, e Fred no sentido biológico. No início da década de 1990,
Smith e eu. Podíamos fazer paleontologia humana, em escrevi um livro, junto com um divulgador científico, que
vez de andar a discutir com os outros. era basicamente uma história das ideias sobre os nean-
Disse que houve duas razões pelas quais decidiu estu- dertais. O título inicial que considerámos foi Os Nean-
dar os neandertais. Qual foi a segunda? dertais Como Espelho da Humanidade, mas o editor não
Aprendi francês quando era criança. Isso abriu-me gostou. Com esse título, queríamos dizer que os nean-
as portas a uma literatura muito abundante sobre dertais eram um reflexo de nós mesmos, mas, por outro
os neandertais. Pude trabalhar com uma geração de lado, nos vemos no seu reflexo. Por outras palavras,
investigadores franceses que não falavam inglês. Pude é algo que funciona nos dois sentidos. Há muitas
interagir com Bernard [Vandermeersch], que não falava semelhanças e muitas diferenças. Quando publicámos
inglês, de forma muito produtiva. Depois, em meados o estudo sobre o “menino do Lapedo”, no qual ofe-
dos anos 1980, os neandertais atraíram a atenção e o recíamos provas de que havia uma mistura, a reação
foco da controvérsia, o que não foi agradável. da comunidade científica foi mista e, às vezes, muito
negativa. Por outro lado, a reação do público foi extre-
ANTEPASSADOS OU NÃO? mamente positiva. Muitas pessoas até nos escreveram
Uma controvérsia amarga? Porquê? dizendo que, afinal, tínhamos mostrado que eles, os
A maioria das discussões dizia respeito aos antepas- neandertais, faziam parte de nós.
sados e, quando se tratava dos neandertais, a discussão Como explica essas reações?

A aparência dos neandertais era um pouco diferente


da nossa, mas o seu comportamento era muito humano

92
Genes e racismo
T rinkaus fez uma série de comentários
sobre genética e racismo durante um sim-
pósio realizado em dezembro de 2018, pouco
ideias racistas, não no sentido de distinguir
entre brancos e negros nos Estados Unidos,
mas ao falar sobre populações do passado.
antes do 20.º aniversário da descoberta do Não se trata de dizer que alguém é melhor ou
“menino do Lapedo”, o esqueleto de uma pior, mas usa os genes para rastrear os movi-
criança de cerca de quatro anos que reúne mentos das populações, o que serviu no século
características de um humano moderno (a XIX e durante o século passado para justifi-
forma do queixo) e proporções do tronco e car o racismo. Se olharmos para a literatura
das pernas semelhantes às dos neandertais. de 1940, havia naquela época, na Europa,
Segundo Trinkaus, a obsessão de usar genes 200 tipos de raças”, acrescenta Trinkaus. “Na
em estudos sobre as origens humanas leva a península ibérica, havia os catalães e os bas-
atitudes perigosamente racistas e aponta o cos, e as pessoas analisavam os esqueletos e
geneticista David Reich, da Universidade de a linguística para traçar os movimentos dessas
Harvard, como um dos principais impulsio- populações no mapa. Pessoas como o David
nadores desse movimento. “Ele é racista, é fazem o mesmo usando a genética, e já não
simples”, declara. “Usa o ADN para reforçar tenho paciência para isso.“

Em essência, diziam a mesma coisa. O passado é uma pancada, tendo até amputado um antebraço. Ainda
um espelho do presente, mas o que fazemos é usar assim, sobreviveu. Cuidar de alguém que está doente ou
o presente como um espelho do passado. No estudo ferido e tratar de que não morra: há algo mais humano
das origens humanas, os neandertais desempenharam do que isto?
esse papel desde 1880. Não o encontramos em outros animais, e recebi fortes
Quais são os mitos sobre os neandertais que foram críticas por afirmar que os animais com deficiência não
derrubados? sobrevivem.
Mantiveram-se duas perceções extremas. A primeira Nunca teve a intenção de usar os humanos de hoje como
é que eles eram como nós, mas viveram numa época um espelho para olhar para o passado, mas para enten-
em que a tecnologia desenvolvida e alguns aspetos do der a evolução fascinante das sociedades hominídeas
seu comportamento eram mais simples ou mais primi- que nos precederam, incluindo as populações humanas
tivos do que os nossos. A outra visão é que eles eram modernas do Paleolítico Superior...
fundamentalmente diferentes de nós. Essas duas visões É por isso que me cansei das conversas habituais sobre
extremas tendem a persistir, em parte por causa daque- o homem de Neandertal, não as acho agradáveis.
les que as apoiam, mas também porque as visões extre-
mistas são mais fáceis de sustentar. A realidade está EVOLUÇÃO EM CURSO
entre as duas. Os neandertais eram em grande parte Diz que se fala muito sobre a biologia do Homo nean-
como nós, em muitos aspetos, mas isso não significa derthalensis, mas não sobre os humanos modernos do
que fossem idênticos aos humanos modernos em tudo. Paleolítico Superior.
A sua aparência era certamente um pouco diferente. Presume-se que eles eram basicamente humanos
Em relação a tudo isso, o que tenho enfatizado é que modernos e, portanto, deveriam ser como nós. Acre-
o seu comportamento, derivado da sua biologia, era ditava-se que nada havia acontecido na biologia dos
muito humano. humanos modernos nos últimos 30 a 40 mil anos. Envol-
vi-me neste assunto em parte graças à descoberta do
CONVERSAS DESAGRADÁVEIS “menino do Lapedo”, mas também graças ao convite
Nas suas publicações, explica essa humanidade, dos arqueólogos de Dolní Věstonice e Pavlov, na Repú-
deduzida dos estudos fósseis. Os neandertais cuidavam blica Checa, para estudar os restos fósseis. São uma
dos feridos e dos doentes. Os seus esqueletos costumam coleção incrível de restos de um dos maiores sítios do
mostrar cicatrizes e fraturas de uma vida muito difícil. Paleolítico Superior. Aqueles Homo sapiens mantinham
Na jazida de Shanidar, no Iraque, encontraram-se vestí- a robustez dos antepassados, mesmo nos crânios.
gios de um indivíduo que ficou cego em consequência de Há muitos anos, tive a oportunidade de entrevistar

93
JAVIER TRUEBA / MSF
Os vestígios encontrados em Sima de los Huesos (Atapuerca), exibem uma mistura de características neandertais
(nos dentes, mandíbulas e ossos faciais) e outras mais primitivas no crânio, o que sugere que os traços evolutivos
neandertais apareceram primeiro na mandíbula e indica uma especialização do aparelho mastigatório.

Donald Johanson, o descobridor de Lucy, o Australopi- e, no Paleolítico Superior, torna-se muito mais elaborado.
thecus mais popular, e perguntei-lhe o que significava ser Para aquelas pessoas, era algo importante, passavam
humano. Ele respondeu que encontrava a resposta nas muito tempo a fazer pingentes com dentes de animais
pinturas rupestres. Na sua oponião, é possível estudar ou conchas. Porque se importavam em fazer coisas
as populações humanas a partir da sua arte? dessas? Porque é que o vemos com mais frequência
Estudei história da arte na universidade, é verdade, no Paleolítico Superior do que no Médio?
pois queria ver na arte o reflexo das sociedades, princi-
palmente das tradições folclóricas. As questões que me NEANDERTAIS ENTRE NÓS
interessavam eram as interações sociais e o comporta- A humanidade de hoje parece muito homogénea. No
mento desses grupos, e podemos obter informações entanto, se viajarmos 200 mil anos para trás no tempo,
de muitas fontes. Uma delas é a arte, a ornamentação descobriremos que havia várias espécies humanas, uma
do corpo no Paleolítico. Temos provas de que os nean- grande diversidade. Como explica isso?
dertais e os seus contemporâneos decoravam os seus Se fizer essa viagem, o aspeto básico da humanidade
corpos. Isso é um ato social. Se estamos em família, já lá está. Se viajar ainda mais no tempo, talvez meio
não faz sentido decorar o corpo, toda a gente sabe milhão ou um milhão de anos, a biologia e a arqueologia
quem somos. Fazêmo-lo quando queremos impressio- sugerem que reconheceríamos os indivíduos como
nar outras pessoas. Não é algo exclusivo do homem basicamente humanos. Também eram diferentes, não
moderno: o uso de pigmentos remonta a meados do tinham a nossa aparência, mas, em termos de com-
Pleistoceno, está claramente presente nos neandertais portamento, embora com algumas diferenças, eram

94
O consenso atual é que os humanos modernos
absorveram as populações de neandertais
humanos. No final dos anos 1930, o antropólogo nor- descendentes perfeitamente viáveis, mesmo se forem
te-americano Carleton Coon comentou que, se pegás- mantidos separados durante longos períodos de
semos num neandertal, o lavássemos, barbeássemos e tempo. Grande parte das reações que obtivemos é
vestíssemos e o deixássemos no meio de uma cidade explicada por um conceito ultrapassado do que é uma
moderna, as pessoas não lhe prestariam atenção: pas- espécie, que remonta às décadas de 1940 e 1950. Em
saria despercebido, na aparência e no modo de agir. parte, é uma questão de comunicação social. A repor-
Coon fez o desenho de um neandertal de fato e cha- tagem original do jornal que fez eco do “menino do
péu. Essa imagem foi reproduzida várias vezes e ainda Lapedo” usou o termo “híbrido”, o que o fez chegar
permanece connosco. Se viajássemos para o Paleolí- a outros meios e ao público, mas as populações não
tico Superior, descobriríamos que as pessoas viviam de fazem isso: misturam-se e cruzam-se continuamente.
maneira muito diferente, mas eram basicamente pes-
soas. Como o faziam e o que faziam é parte do puzzle. MODELO OBSOLETO
É inevitável comparar os dois modelos quando se
A GENÉTICA DOS FUMADORES trata de uma questão sobre os nossos ancepassados.
Fala-se muito do ADN do neandertal, da baixa contri- O modelo predominante diz que o homem moderno surgiu
buição dos genes do neandertal (entre um e quatro por em África e, em ondas sucessivas, expulsou os outros
cento) para o nosso genoma, do que dizem essas sequências hominídeos da Europa, competindo com eles.
genéticas. Na realidade, encontramos coisas que parecem Esse modelo está morto. O consenso agora é que
anedota, como predisposições genéticas para fumar ou os humanos modernos surgiram na África Oriental e,
sofrer de doenças psiquiátricas. Acha que os cientistas embora não tenhamos a certeza, em períodos sucessi-
estão a interpretar mal os dados genéticos? vos, as suas populações expandiram-se e absorveram
O problema é que eles não entendem a genética as populações de neandertais de África e de várias
médica. Não há genes que nos tornem fumadores. partes da Eurásia. A cronologia exata é desconhecida,
Fumar ou não deve-se a um fenómeno social que leva exceto em alguns lugares na Europa Ocidental, e igno-
à dependência de produtos químicos. Foram identifica- ramos o grau de mistura. Em essência, aceita-se que os
das algumas variantes genéticas que tornam o indiví- humanos modernos surgiram talvez há cem mil anos,
duo mais suscetível a uma doença ou a outra, mas não embora não saibamos a dinâmica dessas populações.
determinam se irá contraí-la ou não. Esse lado da gené- Porém, como comentei num artigo na revista Procee-
tica neandertal parece-me, do ponto de vista científico, dings of the National Academy of Sciences no ano pas-
muito embaraçosa. Fizeram-se trabalhos magníficos sado, as questões sobre os nossos antepassados trans-
em genética médica: por exemplo, como, ao nível mole- formam-se automaticamente em questões racistas.
cular, as pessoas que sofrem de cancro respondem Qual é a razão?
de maneira diferente a um tratamento ou a outro. Quando falamos em antepassados, o que estamos a
Agora, é possível propor quimioterapias personaliza- dizer é que as qualidades de um indivíduo de uma popu-
das em função do perfil genético de cada um. Porém, lação se baseiam no que eram os seus ancestrais. Por
quando se trata da genética do fumador, do autismo, outras palavras, julgamos aquele indivíduo com base
de doenças incrivelmente complexas, não se sabe bem no que a biologia dos seus antepassados presume. Esse
do que se trata. Ainda não sabemos o que é o autismo. tipo de julgamento representa a base do pensamento
É constrangedor ouvir alguém afirmar que os neander- racista. Não importa se falamos de afroamericanos nos
tais tinham o gene do autismo. Estados Unidos ou de bascos em Espanha. Se avaliar-
Quando apresentaram o achado do “menino do mos as pessoas de acordo com a sua ancestralidade,
Lapedo”, alguns começaram a falar de híbridos que esta- estamos a falar sobre a própria raiz do racismo, e isso é
vam num beco sem saída. No entanto, essas populações algo que considero ofensivo. Temos de ser capazes de
cruzaram-se. Se os neandertais fossem tão diferentes ir além dessa obsessão com os nossos antepassados
dos humanos modernos, não poderiam ter filhos, certo? no estudo das origens humanas, parar de considerar
Nunca usamos o termo “híbrido”. Falamos de cruza- os humanos paleolíticos estudando a percentagem de
mentos ou misturas. O conceito de “híbrido” é usado ADN neandertal que possuem. É o tipo de pergunta que
quando temos dois indivíduos que pertencem a gru- muitas pessoas fazem a todos os níveis e que considero
pos e espécies muito diferentes. Há muitos exemplos erradas e ofensivas. Está na hora de superarmos isso.
de espécies intimamente relacionadas que produzem L.M.A.

95
UNS TIPOS
SURPREENDENTES
Os neandertais continuam a surpreender-os. Cada novo achado
deita abaixo um velho mito. Resumimos aqui algumas
das descobertas mais recentes sobre a biologia
e o comportamento dessas criaturas incríveis.
MARTIN HAEUSLER

Erectos e com
um andar elegante
Nos desenhos de neandertais,
eles aparecem com
uma corcunda, em posturas
curvadas, pois pensava-se
que a sua coluna vertebral
não tinha a mesma curvatura
da nossa. A reconstrução
virtual de um dos fósseis de
Neandertal mais característicos,
o de La Chapelle-aux-Saints
(França), realizada por Martin
Haeusler, da Universidade
de Zurique, e por Erik Trinkaus,
mostrou que os neandertais
andavam como nós.

Inventores da cola
O arqueólogo João Zilhão comentou num artigo publicado
na revista Proceedings of the Natural Academy of Sciences
a análise de uma lasca feita por neandertais há cerca de 50 mil
anos e encontrada nos Países Baixos. Estava impregnada com
um alcatrão obtido da casca do bordo. Esse alcatrão pegajoso
pode ser obtido queimando a casca da árvore, mas é preciso
manejar o fogo com habilidade e supervisionar bem
todo o processo para que o alcatrão não seja consumido.
Obter a cola envolve efetuar uma longa observação, controlar
a intensidade do fogo e medir o tempo. Por outras palavras,
os neandertais eram capazes de investigar um fenómeno
natural modificado tecnologicamente para otimizar a produção
desse alcatrão. Há evidências de que os neandertais usaram
colas deste género desde há pelo menos 200 mil anos.

96
Primeiros artistas
As espantosas construções de círculos
de estalagmites da gruta francesa
de Bruniquel (na foto), localizadas a cerca
de 300 metros da entrada, foram criadas
há 175 mil anos e são um grande exemplo
da criatividade neandertal, tal como as mãos
negativas e outros sinais, semelhantes
a uma escada, que podemos ver
nas paredes de três grutas espanholas,
e datados de há mais de 65 mil anos.
Foram descobertos por João Zilhão e pela
sua equipa, e mereceram a capa da revista
Science em 2018 por representarem
o exemplo mais antigo conhecido de arte
rupestre. Para o arqueólogo português,
os neandertais possuíam capacidade
cognitiva e o pensamento simbólico
que reconhecemos em obras posteriores
e noutra escala, como as antas localizadas
no círculo de Stonehenge, do Neolítico,
e as pinturas de Lascaux (França). Esses
trabalhos requerem pensamento abstrato
e mente simbólica, bem como uma grande
capacidade de observação e dedução.

Passeio extraordinário
há 80 mil anos
Há alguns meses, a revista New
Scientist relatou uma descoberta
preservada na areia de uma praia
de Le Rozel, no norte de França:
257 pegadas, presumivelmente
de neandertais de há 80 mil anos,
já que não se conhece outro
hominídeo que andasse por ali
naquela época. Na sua maioria,
são pequenas e parecem ter sido
feitas por crianças, mas há pegadas
de adultos cuja altura poderia chegar
aos 1,75 metros, ou seja, tão altos
como os humanos ocidentais de hoje.

Bons nadadores
O homem de Neandertal conseguiu adaptar-se a muitos
ambientes, incluindo o aquático. A análise de Trinkaus
de 23 restos fósseis de neandertais descobriu que
metade deles tinham desenvolvido uma protrusão
óssea no canal auditivo externo (que surge atualmente
em surfistas), um distúrbio chamado “exostose atrial”.
Trata-se de um estreitamento ósseo que serve
para proteger o tímpano da exposição à água fria
e ao vento (aos quais os surfistas estão continuamente
expostos). Isso não significa, é claro, que os neandertais
praticavam surf, mas que estavam muito mais adaptados
aos ambientes aquáticos do que se pensava.
Talvez passassem muito tempo a procurar comida
na água, o que demonstra a sua grande adaptabilidade.
A investigação foi revelada na revista PLoS One.

97
As raízes
da linguagem
98
Alguns estudos

AGE
defendem que
os neandertais
desenvolveram
uma linguagem
complexa que
teria permitido
a comunicação
com o Homo
sapiens.

A origem de algo tão comum como a fala continua a ser


um enigma. Os restos fósseis parecem indicar que as suas bases
principiaram a estabelecer-se há cerca de 2,5 milhões de anos,
quando os nossos antepassados mais primitivos começaram
a expressar-se de uma forma diferente da dos grandes símios.

99
S
e tivéssemos de destacar o traço que nos torna É provável que
plenamente humanos e que nos distingue
dos outros animais, a fala seria uma das pri- os hominídeos arcaicos
meiras que viriam à mente. Essa capacidade,
característica da nossa espécie, está a ser investigada já emitissem certos sons
em todas as suas facetas há muitas décadas. No
entanto, a sua origem continua submersa numa névoa para comunicar, mas não
misteriosa. “A linguagem não fossiliza”, diz o paleoan-
tropólogo Carlos Lorenzo (doutorado em Madrid, em possuíam uma linguagem
2007), do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana
e Evolução Social.
Para documentar tradições ancestrais, como rituais cordas vocais. Além disso, temos de adicionar outros
fúnebres, recorremos aos restos encontrados nos locais. aspetos que apoiam a fala, como a comunicação não
Que marcas deixa a fala? Segundo Lorenzo, os cientistas verbal. expressões faciais, movimentos do corpo, etc.
possuem pistas indiretas para descobrir quando ela No caso da audição, a jazida de Sima de los Huesos,
poderia ter surgido. Podem ser encontradas na anatomia espécie de pedra de Rosetta da evolução humana loca-
dos indivíduos (nos ossos que aparecem) ou nos utensí- lizada na serra de Atapuerca (Burgos, Espanha), foi
lios feitos pelas comunidades. Por exemplo, certos tra- fundamental para traçar as origens desse sentido tão
balhos não podem ser aprendidos apenas por imitação. relacionado à fala. Lorenzo, juntamente com outros
Para transmitir conhecimentos complexos, como a especialistas, incluindo o paleoantropólogo Juan Luis
construção de uma escultura lítica particularmente Arsuaga, publicou um estudo na revista PNAS, em 2004,
sofisticada, é necessário que haja alguma forma de lin- no qual mostrou que a audição dos pré-neandertais que
guagem. Mesmo assim, como enfatiza o especialista, habitavam Sima de los Huesos era muito semelhante à
não há uma resposta exata para a questão de quando dos humanos modernos e diferia da dos chimpanzés, o
surgiu essa faculdade. que foi interpretado como prova de que esses nossos
Grande parte da comunidade científica está inclinada parentes evolucionários já falavam.
a pensar que os nossos antepassados desenvolveram essa Um ano depois, a mesma equipa decidiu estudar da
habilidade há entre 300 e 400 mil anos. Isso significa que, mesma forma algumas espécies ainda mais antigas de
além dos antigos Homo sapiens (os nossos antecessores África, o chamado “berço da humanidade”. Usando
diretos), os neandertais e os seus ancestrais também fósseis de Australopithecus africanus e Paranthropus
se expressavam de uma forma semelhante à nossa. robustus encontrados na África do Sul, com entre 1,8 e
“Com outras espécies, isso ainda não é claro. Alguns três milhões de anos, os cientistas conseguiram fazer
investigadores tentaram vislumbrar isso em alguns dos uma reconstrução tridimensional da anatomia interna
primeiros representantes do género Homo, como o do seu ouvido. Este árduo trabalho, publicado quase
Homo habilis e o Homo erectus, mas não há muito con- uma década depois na revista Science Advances, revelou
senso”, diz Lorenzo. que essas espécies tinham habilidades auditivas muito
semelhantes às dos chimpanzés, mas exibiam algumas
O QUE É UMA LINGUAGEM? diferenças que as aproximavam dos humanos. Segundo
Antes de continuar nesta viagem milenar, é impor- Lorenzo, os fósseis mostram que os hominídeos mais
tante ser claro sobre o que entendemos por linguagem. primitivos podiam usar sistemas de vocalização seme-
Para muitos, é algo exclusivamente nosso, e define-se lhantes aos usados hoje por alguns grandes símios,
como a capacidade de se expressar e comunicar com os embora seja muito duvidoso que tivessem a capacidade
outros através de sons articulados ou outros sistemas de de produzir uma linguagem complexa como a nossa.
signos. Consequentemente, o que fazem alguns animais
quando comunicam uns com os outros? “É verdade que VARIAÇÕES ANATÓMICAS
os primatas vocalizam, mas não falam, já que isso é Uma coisa é a origem da fala, como é entendida hoje,
específico da linguagem”, diz Simon Townsend (licen- e que poderíamos remontar aos mencionados 400 mil
ciado em Oxford, Inglaterra, em 2005), do Departa- anos, e outra é a base que permitiu o desenvolvimento
mento de Ciências da Linguagem Comparada da Uni- dessa capacidade. Neste último caso, teríamos de viajar
versidade de Zurique (Suíça). no tempo 2,5 milhões de anos para o passaddo. “Isso não
Várias partes da nossa anatomia estão relacionadas quer dizer que os hominídeos daquela época pudessem
com essa habilidade. Não é só o cérebro que intervém falar como nós, mas muitos investigadores consideram
nela. Também são importantes o sistema auditivo e o que esse momento foi o ponto de partida. A partir de
trato vocal, que, em essência, inclui tudo o que usamos então, o que eles faziam começou a distinguir-se real-
para falar: os lábios, a língua, a mandíbula, o palato e as mente do que fazem os chimpanzés”, diz Lorenzo.

100
ROLF QUAM
A reconstrução tridimensional do ouvido do Paranthropus robustus (na imagem, de um espécime com 1,8 milhões de anos
encontrado em 1936, na África do Sul) mostra que o desses hominídeos extintos já tinha semelhanças com o nosso.

Não é apenas o ouvido que participa nesse processo. género Homo em África, há cerca de 2,5 milhões de anos,
Um estudo promovido pelo Instituto Max Planck de o crânio, o ouvido e a mandíbula dos nossos antepassados
Psicolinguística (Países Baixos) e publicado na revista já tinham começado a adotar formas que possibilitavam
Nature Human Behavior revelou que o formato do céu o desenvolvimento da linguagem. Quase ao mesmo
da boca pode influenciar a maneira como as vogais são tempo, os cérebros desses hominídeos começaram a
aprendidas e articuladas, geração após geração. Para tornar-se cada vez mais complexos. Com o tempo, isso
determiná-lo, os cientistas usaram imagens de resso- levou a um importante desenvolvimento cognitivo,
nância magnética e desenvolveram um modelo compu- característico da linhagem humana, que acabou por nos
tacional que mostrou como diferenças subtis na forma afastar permanentemente dos grandes símios. Lorenzo
do palato afetam a maneira como as vogais são emitidas. usa uma comparação informática para explicar: o hard­
“A nossa hipótese é que, independentemente de fatores ware (as partes do corpo envolvidas na linguagem) e
culturais e ambientais, as variações anatómicas nessa o software (as habilidades cognitivas) evoluíram ao
parte do trato vocal têm um papel importante na fala”, mesmo tempo. “Um não aparece antes do outro”, diz.
explica o matemático e linguista romeno Dan Dediu Por sua vez, Michael Corballis (n. 1936) passou toda a
(doutorado em 2006, em Edimburgo), do Laboratório sua vida a tentar desvendar a origem da linguagem. Em
de Dinâmica da Linguagem da Universidade Lumière 2017, este professor emérito do Departamento de Psi-
(França), que coordenou a investigação. cologia da Universidade de Auckland (Nova Zelândia)
publicou o livro The Truth About Language – What It Is and
DESENVOLVIMENTO GRADUAL Where It Came From. Amante de palavras cruzadas muito
Os vestígios fósseis mostram que, praticamente a partir difíceis de resolver, Corballis conta as suas impressões
do momento em que surgiram as primeiras espécies do sobre o puzzle da fala: “É muito mais provável que se

101
tenha desenvolvido gradualmente, talvez nos últimos nesse contexto, um sistema de comunicação vocal era
dois ou três milhões de anos, do que repentinamente.” mais adequado, pois permitia conversar com os outros
Este especialista não partilha a opinião de alguns sem ter de estar ao seu lado. Isso implicaria que, entre
linguistas, como Noam Chomsky (n. 1928), que afir- os primatas, a complexidade vocal é tanto maior quanto
mam que a linguagem surgiu repentinamente, por maior for o grupo que integram.
uma mutação casual, como se os nossos antepassa- Para outros especialistas, a linguagem poderia derivar
dos tivessem passado por algum tipo de recablagem do canto. Em algum ponto da nossa história evolutiva,
repentina do cérebro há entre 200 e cem mil anos. as melodias teriam sido divididas em unidades mais
pequenas (fonemas e palavras) que formaram o que
COLA SOCIAL é a linguagem atual. “O problema é que não há muitos
De qualquer forma, a incógnita temporal não é a única dados que sustentem essa hipótese. Além do mais,
dor de cabeça dos cientistas, que, além de procurarem quase todas as informações que temos a esse respeito
descobrir quando surgiu a linguagem, estão a tentar parecem ir contra ela”, argumenta Townsend, que
perceber como é que isso aconteceu. Uma das hipó- estudou extensivamente a comunicação em animais.
teses propostas sustenta que, à medida que os nossos O especialista lembra ainda que, entre eles, a grande
ancestrais se organizavam em comunidades maiores, maioria dos cantores são do sexo masculino. Que se
era cada vez mais difícil manter as relações sociais ape- passaria com as mulheres dos nossos antepassados?
nas pelo toque, como acontecia até então. Uma terceira hipótese, proposta pelo psicólogo
O antropólogo e biólogo evolucionista inglês Robin evolucionista Michael Tomasello (n. 1950), codiretor
Dunbar (n. 1947), que defende esta ideia, indica que, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva e do

102
Na gruta de Maltravieso

H. COLLADO
(Cáceres, Espanha) podem
ver-se algumas mãos,
talvez impressas por
um neandertal há mais
de 60 mil anos. Para
alguns especialistas,
o facto de poderem
usar representações
abstratas implica que
também podiam falar.

Centro Wolfgang Kohler de Investigação de Primatas estes não teriam evoluído para facilitar a linguagem em
(ambos na Alemanha), sugere que a linguagem surgiu si, mas teria sucedido o contrário: foi a linguagem que
para facilitar a cooperação. Assim, haveria uma ligação emergiu desses processos cognitivos”, diz Townsend.
evolutiva muito estreito entre a fala e o trabalho em O linguista japonês Shigeru Miyagawa, agora no Ins-
equipa. “Ter de colaborar terá levado os nossos ante- tituto Tecnológico do Massachusetts (MIT), apresenta
passados a desenvolver uma comunicação cada vez outro argumento: “Charles Darwin especulou que a
mais sofisticada”, diz Townsend. linguagem pode ter começado como o canto de um
pássaro”, diz. O naturalista inglês (1809–1882) sugeriu
ADAPTAÇÕES COMUNITÁRIAS essa ideia em A Origem do Homem e a Selecção Sexual
Também é possível que a fala tenha surgido como (1871; Relógio d’Água, 2009). Nessa obra, afirma que os
consequência de uma adaptação sociocognitiva. sons que alguns pássaros emitem são, em vários aspe-
O especialista explica: para lidar com as relações cada tos, semelhantes aos da linguagem. Na verdade, alguns
vez mais complexas que ocorriam nos grupos, é pro- estudos descobriram que as criaturas aladas possuem
vável que os nossos antepassados distantes tenham os mesmos genes que, na nossa espécie, estão relacio-
desenvolvido novos mecanismos mentais. “Portanto, nados com o aparecimento da fala. Em 2013, Miyagawa

A fala poderá ter surgido quando os nossos


antepassados começaram a formar grupos complexos

103
Os grandes símios poderão
desenvolver linguagens Na década de 1970, a Universidade de Columbia
(Nova Iorque) lançou o projeto Nim, que mostrou
como a nossa dentro que os chimpanzés podem aprender a usar dezenas
de signos para comunicar de uma forma limitada,
de alguns milhões de anos mas não conseguem construir uma gramática.

apresentou um trabalho em que sugeria que a fala nas-


ceu de uma combinação do canto dos pássaros e dos
sistemas de comunicação dos primatas.

PROCESSO GESTUAL
Outra incógnita é o papel que outros elementos impor-
tantes desempenharam em tudo isso, como gestos,
gritos e grunhidos. Agiram como promotores da lingua-
gem? “O meu palpite é que começou como um processo
puramente gestual, com as mãos”, diz Corballis. Este
especialista acredita que tudo começou com uma espécie
de língua gestual e que o som foi aumentando gradual-
mente até que, por fim, os nossos antepassados domi-
naram por completo a fala.
No entanto, ainda persistiriam vestígios dessa forma
de comunicação, e seria por isso que continuamos a
gesticular quando falamos. Corballis afirma que esses
primeiros gestos foram provavelmente enfatizados por
sopros, mas, como nos grandes símios a maioria dessas
expressões costuma ser involuntária, não acredita que
elas possam ser consideradas propulsoras da fala cons-
ciente e controlada.

EVOLUÇÃO EM CURSO
Os nossos parentes evolutivos sobreviventes mais
próximos são os gorilas, os chimpanzés, os bonobos e
os orangotangos. Tal como nós, todas essas espécies
estabelecem laços sociais, transmitem emoções e usam
gestos ao interagir com os seus pares. A questão inevitável
SUSAN KUKLIN / GETTY

é se eles, como a nossa espécie, possuem uma linguagem.


Os cientistas concordam que não: não falam e, até hoje,
carecem do complexo desenvolvimento cognitivo que
nos caracteriza. No entanto, possuem um sistema de
comunicação muito variado.
Adriano Lameira, psicólogo evolucionista licenciado indicaria que essa habilidade e a fala humana têm as
na Universidade Nova de Lisboa que integra agora o mesmas raízes. O cientista está convencido de que,
Grupo de Linguagem e Aprendizagem da Universidade se puderem sobreviver e continuar a evoluir durante
de Warwick (Inglaterra), passou anos a tentar descobrir mais alguns milhões de anos, é muito provável que os
por que é que esses símios não desenvolveram uma nossos primos evolucionários acabem por desenvolver
capacidade como a nossa. “Tecnicamente, é incorreto uma forma de linguagem semelhante à nossa.
dizer que os animais falam, embora comuniquem de
muitas maneiras diferentes. Podemos verificar isso ENSINAR SÍMIOS A FALAR
com os cães que temos em casa”, diz. Sendo assim, poderiam eles ser ensinados a falar
Múltiplas investigações mostraram que os grandes como nós? Durante décadas, diferentes estudos mos-
símios usam sons que parecem corresponder ao nosso traram que gorilas e chimpanzés são capazes de apren-
uso de vogais e consoantes. Segundo Lameira, isso der a usar centenas de signos. A partir deles, podem

104
construir frases simples. No entanto, infere-se dos estu- MISTERIOSOS GOLFINHOS
dos que eles apresentam dificuldades em transmitir Curiosamente, para encontrar um animal que, embora
conceitos abstratos. “Por exemplo, podem sentir carinho não fale como nós, faz algo muito parecido, é preciso
pelas pessoas com quem convivem, mas, em geral, não mergulhar no oceano. Estamos a falar dos golfinhos.
conseguem expressar isso”, diz Lorenzo. As maravilhosas habilidades de comunicação que esses
Como lembra o investigador, essas limitações cogni- cetáceos exibem representam um verdadeiro desafio
tivas são agravadas pela configuração peculiar da sua para biólogos e etólogos. Um estudo realizado com
laringe: não permite que eles emitam sons rápidos ou golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) concluiu
construam palavras, como nós fazemos. “Ao contrário que os sons que eles emitem quando conversam têm uma
dos humanos, eles não conseguem construir vocalizações estrutura semelhante às nossas palavras e frases. Se
complexas e distinguir todos os fonemas”, compara o fosse realmente assim, teriam desenvolvido uma forma
investigador. de linguagem muito semelhante à que usamos.

105
AGE
Há um gene da fala?
N o complexo puzzle que está na ori-
gem da linguagem, os cientistas
tentam encaixar uma peça importante:
o papel desempenhado pelos genes.
Uma investigação realizada no final da
década de 1990 com uma família inglesa,
cujos membros sofriam
de um distúrbio hereditário
da fala, marcou um ponto
de inflexão: observou-se que
o gene FOXP2, localizado
numa região do cromosso-
ma 7, parecia estar envolvido.
Desde então, diferentes equipas
de especialistas estudaram se
poderia haver uma ligação entre
esse gene e o desenvolvimento da
linguagem. Em 2002, a revista Nature
publicou um estudo sugerindo que o FOXP2
determinava amplamente as nossas habilidades
linguísticas e até ajudava a explicar como
os humanos modernos se desenvolveram tão
rapidamente em África nos últimos cem mil anos.
No entanto, investigações posteriores acabaram
por revelar que esse gene não está presente ape-
nas nos humanos atuais e nos nossos antepassa-
dos diretos: também pode ser encontrado noutros
homininos, como neandertais e denisovanos.
Um trabalho mais recente publicado na revista Cell
mostra que o FOXP2 não pode ter sido o único
responsável pelo desenvolvimento da linguagem,
como explica Elizabeth Atkinson, da Unidade de
Genética Analítica e Translacional do Massachu-
se˜s General Hospital, coautora do estudo.
Mesmo assim, está envolvido em alguns proces-
sos neurológicos relacionados com ela. “É prová-
vel que haja muitos genes envolvidos na lingua-
gem, incluindo o FOXP2, o que significa que temos
um longo caminho a percorrer”, diz a geneticista.

Ilustração de uma molécula de ADN (a amarelo) à qual se ligou um fator de transcrição (vermelho e verde),
elemento chave, neste caso, para a síntese da proteína produzida pelo gene FOXP2, envolvido na fala.

Os sistemas de comunicação são cada vez mais globais;


num futuro próximo, podem perder-se muitas línguas

106
ROY SCOTT / GETTY
É possível que a nossa forma de comunicação tenha nascido num passado remoto, a partir de uma combinação
dos sistemas característicos dos primatas e do canto dos pássaros, com os quais a nossa linguagem se assemelha.

Vyacheslav A. Ryabov, autoridade em mamíferos em fazer previsões. Mesmo assim, Lorenzo atreve-se.
marinhos da Estação de Pesquisa Karadag (Crimeia) que Na sua opinião, caminhamos para uma perda de diversi-
promoveu este trabalho, lembra que os golfinhos têm dade linguística. “Os sistemas de comunicação são cada
cérebros maiores e mais complexos do que os nossos vez mais globais e muitos idiomas vão desaparecer”,
há 25 milhões de anos, e acredita que é necessário alerta. Porém, ao invés de ver o copo meio vazio, pode-
redobrar os esforços para conceber sistemas de comu- ríamos vê-lo meio cheio, pelo menos se interpretarmos
nicação que nos permitam estabelecer um diálogo com esse declínio como um fenómeno natural que permitirá
esses mamíferos. construir pontes entre as comunidades, pois acabarão
O paleoantropólogo Lorenzo sente-se simultanea- por partilhar a mesma língua. “Se comunicássemos
mente fascinado e frustrado com a habilidade dos entre todos, talvez pudéssemos construir uma huma-
golfinhos: “Sabemos que eles comunicam. É claro nidade melhor”, reflete.
que transmitem muita informação entre si, mas, por Outros pesquisadores, como Corballis, são mais
enquanto, não conseguimos entendê-la, nem perceber críticos em relação à evolução da linguagem, espe-
como conseguem construí-la ”, lamenta. cialmente pelas consequências que teve para a nossa
espécie. O psicólogo lembra que, ao longo da nossa
UNIR E DIVIDIR história, a usámos extensivamente para mentir em
Após esta revisão de centenas de milhares de anos em qualquer das suas formas, o que inclui desde inventar
busca das origens da linguagem e da sua posterior evo- notícias até incitar as pessoas à violência, algo que não
lução, não poderíamos terminar sem refletir sobre o que acontece entre os outros animais. Por isso, enfatiza que
nos espera a esse respeito no futuro. Já vimos que alguns é uma força que, ao invés de unir, cria divisões: “Talvez a
cientistas apostam que os grandes símios poderão fala seja simultaneamente uma maldição e uma bênção!”
acabar por desenvolver uma linguagem semelhante Seja como for, e à espera de saber como se desen-
à nossa em alguns milhões de anos, se antes não se volverão as nossas habilidades de comunicação no
extinguirem, basicamente pela ação do homem. E nós? futuro, os cientistas empenham-se em esclarecer o seu
Habituados a estudar o passado para explicar o pre- passado, o que sem dúvida trará muitas surpresas.
sente, os paleoantropólogos costumam ser relutantes L.C.

107
Caçadores recolhem um gnu
SPL

que mataram junto ao leito seco


do lago Eyasi, um corpo sazonal
de água salgada localizado na atual
Tanzânia. Até há cerca de doze mil
anos, os humanos anatomicamente
modernos coexistiram em África com
outros de características primitivas.

108
A aurora da
nossa espécie
Tudo parecia claro: emergimos num canto da África Oriental
e dali saímos para o mundo. Porém, as últimas descobertas de fósseis
e análises de ADN indicam que a nossa origem é mais complexa.
A arqueóloga maltesa Eleanor Scirre explica.

109
UMA HUMANIDADE, VÁRIAS ORIGENS
A ideia de que a nossa espécie evoluiu de uma única população na África Oriental foi abalada por descobertas
recentes em todo o continente africano de crânios humanos com características e datações muito variadas,
sugerindo que somos o resultado da mistura ocasional de numerosos grupos isolados.

Jebel Irhoud, Marrocos


315 mil anos
Omo I e Omo II, Etiópia
195 mil anos

Dar es-Soltan, Marrocos


85 a 75 mil anos
Herto, Etiópia
160 mil anos

Iwo Eleru, Nigéria


12 mil anos
Ishango, República
Democrática do Congo
22 mil anos
NEW SCIENTIST

Florisbad, África do Sul


259 mil anos

I
magine uma visita a um ponto turístico de uma medida que se adaptava à vida em diferentes partes
grande cidade em qualquer parte do mundo. Há do planeta, o Homo sapiens é mais homogéneo hoje do
pessoas de todos os lugares: uma família nige- que na época dos nossos antepassados.
riana, um casal chinês, um grupo de crianças Isto é um enigma. Não encaixa na ideia tradicional
alemãs... Todos parecem muito diferentes uns dos de que provimos de uma única população de algum
outros, o que não é surpreendente, já que os seus local da África Oriental. Na verdade, há cada vez mais
antepassados viveram durante muitas gerações em provas de fósseis, vestígios arqueológicos e análises
partes distintas do mundo. No entanto, as origens de genéticas que apontam numa nova direção. Muitos
qualquer ser humano atual remontam a um passado em investigadores, como eu, estão a tentar descobrir o
África, pelo que teria havido um tempo em que essas que significam todos esses dados: porque é que os
diferenças não existiam. Na verdade, não é assim. nossos antepassados africanos eram tão diferentes
De facto, se pudéssemos voltar atrás no tempo, aos uns dos outros e como é que a nossa espécie perdeu a
primórdios da nossa espécie, e selecionar aleatoria- grande variedade que possuía.
mente um grupo de indivíduos, eles não se pareceriam
com quem vive em África ou qualquer outro lugar atual. FOTO NÍTIDA?
Além disso, apresentariam grandes variações físicas, A história tradicional sobre as nossas origens tem
muito maiores do que as que distinguem as popula- bases aparentemente sólidas. No final dos anos 1980
ções modernas. Longe de aprofundar as diferenças à e início dos 1990, tornou-se possível sequenciar o ADN

110
mitocondrial (localizado nas mitocôndrias, minúsculas siderada um reflexo da capacidade cognitiva avançada,
estruturas dentro das células que lhes fornecem ener- e é a característica distintiva da nossa espécie. Porém,
gia), herdado apenas pela linha materna. Portanto, o ponto é este: há evidências abundantes que tornam
comparando a variação genética entre pessoas vivas, cada vez mais claro que a Idade da Pedra Intermédia
seria possível voltar ao nosso antepassado femi- não surgiu num lugar único, no suposto alvorecer da
nino comum. Segundo os cálculos dos geneticistas, humanidade. O que houve foi uma evolução geral em
essa mulher, por vezes chamada “Eva mitocondrial” direção a essa nova tecnologia, num processo ocorrido
(embora não precise de ser uma única pessoa), viveu há cerca de 300 mil anos e que se estendeu por todo o
em África há entre 150 e 200 mil anos. Pouco depois continente africano.
desta revelação, a datação de fósseis humanos de
dois locais na Etiópia deu uma idade entre 195 e 160 ANOMALIAS BIOLÓGICAS E MATERIAIS
mil anos, o que colocou o primeiro dos nossos ante- Recentemente, surgiram outros elementos que
passados no continente africano. questionam a visão dominante das nossas origens. Fós-
O resultado foi uma foto nítida que também pareceu seis encontrados em Ishango (República Democrática
resolver a controvérsia sobre o aparecimento dos pri- do Congo), com 22 mil anos, têm características deci-
meiros humanos. Hoje, o nosso crânio tem uma forma didamente robustas e arcaicas. Na Nigéria, foi desco-
inconfundível: um neurocrânio arredondado (a cober- berto um crânio com um neurocrânio estranhamente
tura óssea que protege o cérebro, as meninges crania- alongado. Apesar da sua pouca idade (cerca de doze
nas e as camadas membranosas adjacentes), testa alta mil anos), parece-se mais com fósseis de há cem a 300
e lisa, rosto pequeno e queixo. Porém, essas caracte- mil anos do que com o ser humano atual. Na altura, até
rísticas nunca aparecem de uma só vez em qualquer foi descartada a pertença de alguns desses achados à
dos primeiros membros da nossa espécie. O que vemos, espécie Homo sapiens.
em vez disso, é uma variedade de crânios com carac- O quadro criado por estas anomalias biológicas ficou
terísticas modernas misturadas com outras arcaicas, ainda mais complicado em 2014, quando eu mesma
como rostos grandes e robustos, um arco supraciliar descobri ferramentas da Idade da Pedra do mesmo
acentuado ou um neurocrânio alargado. Isso alimen- período tardio na África Ocidental. Numa época em
tou as discrepâncias sobre que conjuntos de caracterís- que a maioria das populações africanas progredira
ticas deveriam ser usados para distinguir os primeiros para fazer minúsculos instrumentos de pedra conheci-
membros da nossa espécie dos homininos extintos. dos como “micrólitos” para coisas tão diferentes como
A investigação mitocondrial forneceu uma solução: tatuar ou fazer armas de múltiplos componentes, um
qualquer fóssil com mais de 200 mil anos pertence a grupo desconhecido manteve a tecnologia associada
outra espécie. aos primeiros Homo sapiens.

DADOS CONTRADITÓRIOS EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS


Ficava por resolver um problema: como conciliar os Há duas explicações possíveis: talvez houvesse outra
objetos que os nossos antepassados fizeram e usaram espécie de hominino a viver em África simultanea-
com a imagem fornecida pelos fósseis e pelos genes. mente e durante muito mais tempo do que se pensava,
Durante cerca de um milhão de anos, os homininos ou talvez esses seres de aparência estranha fossem tão
talharam pedras para fazer machados de mão e outros humanos como nós, levantando a possibilidade de que
instrumentos cortantes de tamanho considerável, alguns fósseis com mais de 200 mil anos, de aspeto
como picadores e grandes facas. Depois, houve uma igualmente estranho, também pertenciam à nossa
evolução para técnicas muito mais sofisticadas. Essa espécie. Além disso, o avanço da análise genética permitiu
tecnologia, que dá origem à Idade da Pedra Intermédia, vislumbrar uma origem mais antiga do Homo sapiens,
baseava-se no uso de lascas arrancadas das pedras, ao pois revelou que o último antepassado que tivemos em
invés da própria pedra. As lascas eram trabalhadas e comum com a nossa espécie irmã, os neandertais, viveu
montadas em cabos de madeira por processos muito há cerca de meio milhão de anos. Essas descobertas
complexos, por vezes com ataduras e colas feitas de levaram alguns cientistas a duvidar da classificação de
acordo com receitas elaboradas. uma grande variedade de fósseis antigos de África.
A capacidade de criar e combinar elementos que não Como se houvesse poucas provas da necessidade de
ocorrem na natureza para realizar várias tarefas é con- rever as teorias sobre a nossa origem, novos fósseis de

O aspeto dos Homo sapiens é muito mais homogéneo


hoje do que era na origem da espécie

111
H. sapiens foram encontrados em 2017, mas não tinham
menos de 200 mil anos e não eram oriundos da África
Oriental. Foram descobertos em Marrocos, e datados
em 315 mil anos. “Isto muda tudo”, diz Philipp Gunz,
do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva
(Leipzig, Alemanha), que analisou os restos. “Estes pri-
meiros indivíduos têm rostos e dentes modernos, mas
neurocrânios alongados, o que sugere que a forma do
cérebro, e talvez até as funções cerebrais, surgiram na
nossa espécie.”

BOMBA ANTROPOLÓGICA
Esta bomba antropológica convenceu 23 investiga-
dores (incluindo Chris Stringer, do Museu de História
Natural de Londres, Mark Thomas, do University
College London, Lounès Chikhi, do Centro Nacional fran-
cês de Investigação Científica e eu mesma) da necessi-
dade de repensar radicalmente o que sabemos sobre
a origem da nossa espécie. Num artigo, propusemos
que uma série de populações de Homo sapiens com um
mosaico de características antigas e modernas viveu
numa área muito grande entre Marrocos e a África do
Sul, há entre 300 e doze mil anos.
Como é possível que populações tão amplamente
dispersas e fisicamente diferentes pertençam à mesma
espécie? Uma maneira de entender isso é pensar na
evolução humana como um rio. Embora haja apenas
um rio (espécie), com o passar do tempo há diversos
braços que se afastam e se juntam novamente. Assim
como as ramificações do rio são separadas por ilhas que
se formam e depois são submersas, barreiras ambien-
tais afastaram os nossos antepassados, que se adapta-
ram a diferentes condições.
Isso encaixa na evidência existente de várias
alterações climáticas em diferentes regiões de
África durante o aparecimento da nossa espécie.
Por exemplo, o Sahara tornou-se verdejante durante
períodos curtos, repetidamente, em ciclos de cerca
de cem mil anos, enquanto a África equatorial sofreu
longas secas. Muito provavelmente, esses processos
(e outros semelhantes) criaram barreiras que fizeram
deslocar as populações humanas e modularam os seus
níveis de isolamento. Estudos de outros mamíferos
africanos indicam que estas condições explicam muitas
diferenças físicas observadas dentro de uma espécie.

NOVA PERSPETIVA
Dessas indicações, emerge uma nova perspetiva, a
que Stringer chamou “multirregionalismo africano”.
A África Oriental continua a ser importante na nossa
evolução. Porém, expirou a hipótese de que a origem da
humanidade está numa única e pequena população da
savana. O que há em seu lugar é um início complicado,
envolvendo uma multiplicidade de populações, regiões
e ambientes. Embora seja um cenário mais complexo,

112
Segundo um trabalho publicado no final de
, os humanos anatomicamente modernos
surgiram no Botswana, há  mil anos

Um homem viaja de
GETTY

barco no rio Lekoli,


que atravessa a selva
do Congo. As florestas
tropicais húmidas
de África podem conter
informações essenciais
para desvendar as nossas
origens, mas são um
terreno difícil, porque
o seu clima degrada o
ADN antigo e os fósseis.

113
torna compatíveis as evidências genéticas, arqueoló- nificaria que a visão tradicional segundo a qual o ser
gicas e fósseis, e explica o início precoce da Idade da humano surgiu numa única e pequena população está
Pedra Intermédia em toda a África como resultado do baseada numa interpretação errada. “Não há provas
nascimento da espécie humana. claras para afirmar isso”, diz Chikhi. O mesmo se aplica
Os primeiros sinais da tecnologia sofisticada usada à ideia de que a evolução da nossa espécie ocorreu
na Idade da Pedra Intermédia datam de há meio milhão na África Oriental. “Por si só, os dados genéticos não
de anos, o que coincide com a época em que os nossos apontam para uma região específica do continente”,
antepassados e os dos neandertais se separaram e acrescenta.
reforça a ideia de que a origem da nossa espécie pode
ser tão antiga como essa data. Depois, as populações MAIS DESCOBERTAS
estiveram repetidamente em contacto umas com as Algumas novas descobertas acrescentam elementos
outras ao longo de períodos de cerca de cem mil anos: ao debate. Em 28 de outubro de 2019, uma equipa lide-
trocaram genes e ideias, e terá sido assim que o processo rada pela geneticista Vanessa Hayes, do Garvan Institute
de modernização morfológica e comportamental se for Medical Research, de Sydney (Austrália), publicou
produziu no tempo e em toda a extensão do conti- na revista Nature um trabalho que argumenta que
nente africano. os humanos anatomicamente
modernos vêm de uma única
MÚLTIPLAS ORIGENS Uma investigação população que viveu há 200 mil
O registo arqueológico tam- anos no norte do atual Botswana.
bém revela como os cérebros recente situa As suas conclusões baseiam-se na
modernos começaram a criar análise do ADN mitocondrial de
uma série de tecnologias em a origem diversos grupos que hoje habi-
diferentes regiões africanas. tam a região, incluindo caçado-
A cultura material experimenta do ser humano res-recoletores nómadas como
um florescimento incrível (vêm os khoisan.
daqui alguns dos exemplos mais em pelo menos No final de janeiro de 2020,
antigos de arte e ornamentação) uma equipa internacional tam-
há entre 130 e 60 mil anos, nos quatro linhagens bém publicou na Nature que a ori-
extremos do continente, quando gem do ser humano moderno se
as regiões centrais eram muito ancestrais encontra em pelo menos quatro
menos habitáveis. Objetos do sul linhagens que viveram em África
e do norte mostram sinais prema- que viveram há entre 200 e 300 mil anos.
turos de sofisticação e complexi- A conclusão deriva do estudo de
dade comparável. Porém, são em África há entre sequências genómicas completas
muito diferentes, tanto uns dos de ADN humano antigo da África
outros como de qualquer coisa 200 e 300 mil anos Ocidental e Central.
que tenha sido vista noutro lugar, Embora a interpretação dos
indicando que as populações que testes genéticos seja menos
os formaram estavam isoladas há muito tempo. Em indiscutível do que se pensava, o estudo do ADN
relação ao norte de África, descobri que grupos de continua a oferecer uma janela privilegiada para o
pessoas que viviam em regiões separadas por barreiras passado e pode responder à questão candente de se
naturais, como rios ou desertos, apresentam diferenças houve cruzamentos em África entre os nossos ante-
na sua cultura material. Por outras palavras, parece que passados mais antigos e espécies de homininos agora
esses grupos permaneceram relativamente isolados extintas. Os primeiros Homo sapiens partilharam o
uns dos outros. continente com alguns deles, incluindo o Homo naledi,
Se a tese do multirregionalismo africano estiver cor- descoberto há pouco mais de cinco anos e que viveu na
reta, terá grandes implicações para a análise genética. África do Sul há cerca de 250 mil anos. O cruzamento
“A diversidade das antigas populações africanas e os com esse ser de aparência muito primitiva parece
seus diferentes padrões de mistura e separação são improvável, mas isso não significa que não tenham
cruciais para interpretar os dados genéticos e recons- ocorrido hibridações com outras espécies. Sabemos
truir a pré-história inicial da nossa espécie”, diz Lou- que as houve muito mais tarde fora de África, entre
nès Chikhi. Os estudos presumem geralmente que o neandertais e denisovanos, e os estudos genéticos
primeiro Homo sapiens trocou genes aleatoriamente e identificaram ramos muito antigos da árvore genealó-
a uma taxa constante ao longo do tempo. O multirre- gica humana que parecem mostrar que isso também
gionalismo africano propõe algo diferente, o que sig- aconteceu em África.

114
Reconstrução de um
SPL

Homo naledi. Esta espécie


viveu no sul de África
há cerca de 250 mil anos.
Coincidiu com os nossos
antepassados, embora os
especialistas considerem
improvável que se tenham
cruzado entre si.

115
GERHARD WEBER / UNIVERSIDADE DE VIENA
Reconstrução da mandíbula do mais antigo Homo sapiens encontrado fora de África. Este fóssil (um fragmento maxilar
esquerdo que preservava a dentição, em cor mais intensa) foi descoberto em 2002 na gruta de Misliya (Israel), mas a sua
idade só foi conhecida em 2018: terá entre 177 e 194 mil anos.

Há grandes áreas neste continente que ainda não observar essa mistura de características antigas e
foram exploradas (ou só muito pouco) em busca de modernas em fósseis e objetos criados até há cerca de
pistas sobre a nossa origem, e nas quais talvez se doze mil anos. Depois, desaparece. O que aconteceu?
encontrem as peças chave do puzzle que constitui o Sabemos quando começou a (pen)última grande
surgimento da espécie humana, como sugerem os cita- revolução. Há doze mil anos, o clima da Terra entrou
dos estudos sobre a possível origem da humanidade no período quente e extraordinariamente estável
moderna no Botswana. conhecido como Holoceno, em que ainda se encontra.
Muito provavelmente, os nossos antepassados sempre
SURGIMENTO DA AGRICULTURA tentaram controlar e alterar o seu ambiente, mas, com
Em concreto, as descobertas que documentam uma o advento da estabilidade climática, essas experiências
antiga presença humana nas florestas tropicais da Ásia foram finalmente bem sucedidas. Foi nessa altura que
indicam que corremos o risco de ignorar estes ambien- surgiu a agricultura, com grandes consequências para
tes. É possível que os nossos antepassados tenham a evolução da nossa espécie. Para começar, as culturas
trocado genes com os últimos homininos sobreviventes sistemáticas acabaram por moldar o nosso genoma.
de outras espécies, que teriam vivido escondidos nas flo- “A intensidade da seleção genética desencadeada
restas. A adaptação a diferentes habitats também pode pela agricultura é diferente de tudo o que aconteceu
ter mantido separadas as populações de África. Esses antes”, diz Mark Thomas. “A persistência no sistema
cenários ajudariam a explicar porque é que os primeiros digestivo adulto da lactase [a enzima que ajuda a digerir
humanos exibiam tal profusão de formas. Podemos o açúcar do leite e que os mamíferos sintetizam durante

116
O caminho que levou ao Homo sapiens começou há cerca de dois milhões
de anos. A imagem demonstra como se talham seixos para os transformar
em ferramentas afiadas, numa imitação do trabalho do Homo habilis que
viveu no que hoje é a garganta de Olduvai (Tanzânia) há 1,85 milhões de
anos. Estes utensílios incluem-se na primeira indústria lítica olduvaiense.
AGE

A mistura de características antigas e modernas existiu


nos humanos até há doze mil anos. Porque desapareceu?
a lactação] evoluiu muito rapidamente nesta época, éramos diferentes uns dos outros no início, e certa-
dando uma grande vantagem às populações que con- mente mais surpresas nos aguardam. Quem sabe que
sumiam leite sobre as dos caçadores-recoletores.” tesouros estão escondidos nas selvas africanas e no
Os agricultores também estavam muito mais bem centro e oeste do continente? Mal arranhámos ainda a
preparados para lidar com várias ameaças ambientais. superfície, e as pistas presas nos genes serão revelado-
Como resultado destas adaptações genéticas e culturais, ras. Não fomos ainda capazes de sequenciar o ADN de
as suas populações cresceram e migraram para novas um dos primeiros membros da nossa espécie, porque
áreas, de modo que a agricultura se tornou o meio de o calor e a humidade africanos o degradam, mas é uma
vida para a grande maioria, durante milénios. O efeito questão de tempo até o fazermos. Em algum lugar,
homogeneizador sobre a humanidade foi tão pronun- talvez uma caverna profunda e fria, está um fóssil
ciado que a antropóloga argentina Marta Mirazón com o “plano genético” de um antigo Homo sapiens.
Lahr, da Universidade de Cambridge (Inglaterra), lhe Quando esse fóssil for descodificado, abrir-se-á um
chamou “o filtro do Holoceno”. novo capítulo na narrativa sobre as nossas origens.
A revelação mais importante nesta história é como E.S.

117
Os especialistas
creem que grutas
como as de Lascaux
(França) foram
pintadas com
a ajuda de andaimes
de madeira
e lamparinas.

Iluminados
pela arte
Tal como a linguagem, o desejo de conceber trabalhos artísticos
(e a capacidade de se entusiasmar com eles) define de certo
modo a nossa espécie. Como e quando é que isso aconteceu?
SPL

118
D
ois santuários europeus da pintura paleolí-
tica constam em todas as listas de sítios para
ver antes de morrer: as grutas de Lascaux,
em França, e de Altamira, em Espanha.
Diz-se que nesses museus naturais deram rédea solta
aos seus dons artísticos os primeiros “picassos” do
mundo, há cerca de vinte mil anos. Surpreendem e
chocam todos os que visitam as suas réplicas, já que os
originais estão fechados ao público. Gillian Morriss-Kay
admite que se apaixonou por Lascaux assim que a viu;
sobretudo, “pelo grande cavalo, um dos mais belos
retratos de animais que já vi”, confessa.
No entanto, esta professora emérita do Departamento
de Anatomia e Genética da Universidade de Oxford
(Inglaterra) ficou ainda mais impressionada com a gruta
de Chauvet, também francesa, uma joia antropológica
que preserva mais de mil desenhos pelos quais o tempo
parece não ter passado. De todos eles, Morriss-Kay retém
especialmente a figura de uma espécie de feiticeiro,
meio homem, meio bisonte, que muge enquanto abraça
uma mulher representada apenas por um par de pernas
e um triângulo de pêlos púbicos. “É uma imagem muito
poderosa, comparável ao minotauro de Picasso”, diz a
cientista.

O HOMEM-LEÃO
Morriss-Kay, que foi diretora da revista Journal of
Anatomy, também é, paradoxalmente, uma das pessoas
que mais se interessaram pela evolução da criatividade
artística na nossa espécie. Aproveitando o seu conheci-
mento, pedimos-lhe que nos indique a obra visual mais
antiga. Remete-nos à figura de um homem com cabeça
de leão feita há cerca de 40 mil anos e encontrado nos
Alpes Suábios (Alemanha). Fabulosa mistura de habili-
dade técnica e fantasia, é uma estatueta esculpida em
presa de mamute. “Provavelmente, a arte portátil apa-
receu antes das pinturas rupestres. Obviamente, não
podemos ter cem por cento de certeza, mas faz sentido
que os trabalhos tridimensionais sejam anteriores aos
bidimensionais, já que o nosso mundo é tridimensional”,
diz Morriss-Kay. De facto, muitas pinturas foram dese-
nhadas nas irregularidades naturais das paredes, para
criar uma sensação de volume.
Embora o homem-leão seja a primeira peça de arte
portátil conhecida, os humanos modernos já estavam
a dar os primeiros passos estéticos muito antes: em
África, por exemplo, foram encontrados restos de pig-
mentos ocre e vermelho com 164 mil anos. Tudo leva a
crer que a tela sobre a qual foram aplicados não eram
pedras, mas a própria pele humana; muito antes de
praticar graffiti em rochas, os humanos deveriam ador-
nar os corpos com diferentes símbolos dependendo da
idade, das habilidades de caça, do grupo étnico a que
pertenciam... Também confecionavam belos colares
de conchas coloridas. Essa joias podem não ser estri-

119
tamente consideradas arte, mas revelam o germe de
uma inclinação estética.

ARTE NEANDERTAL
Os neandertais, nossos primos extintos, não foram
alheios a esse impulso. O paleoantropólogo João Zilhão,
atualmente professor da Universidade de Barcelona,
sabe disso. Recentemente, teve uma grande surpresa
na Gruta dos Aviões, em Múrcia (Espanha). “Encontrá-
mos conchas perfuradas com pigmentos aderidos, e
outras maiores que serviam de paleta, para misturar
tintas”, explica. O surpreendente é que a última data-
ção desses vestígios mostra uma idade de mais de 115
mil anos. “É cada vez mais evidente que subestimámos
os neandertais, porque, do ponto de vista do compor-
tamento e da capacidade cognitiva, eram mais seme-
lhantes a nós do que admitíamos anteriormente”, diz.
“Temos dado muita importância às diferenças de
esqueleto entre esses humanos extintos e o Homo
sapiens, como se fossem indicadores de capacidade
cognitiva, inteligência e cultura, quando tudo indica que
não são.” Segundo Zilhão, o antigo diretor do Instituto
Português de Arqueologia que viu inscrita na lista do
Património Mundial da Unesco as gravuras do Côa e que
dirigiu as escavações do “menino do Lapedo”, o primeiro
Este caso documentado de hibridação entre humanos
homem-leão, modernos e neandertais, os vestígios encontrados mais
esculpido recentemente deixam bem claro que, há cem mil anos ou
em marfim mais, não havia diferenças substanciais entre a nossa
de mamute
linhgem e a deles. “Pelo menos, não mais do que entre um
há cerca de
40 mil anos,
esquimó e um aborígene australiano atuais, que ninguém
é considerado contesta terem a mesma capacidade cognitiva.”
a primeira
escultura MITOS URBANOS ULTRAPASSADOS
a misturar Zilhão não diz isso apenas por causa da Gruta dos Aviões:
características tem também em mente mais dois casos descobertos em
humanas Espanha, um desenho linear em forma de escada feito há
e animais. mais de 64 mil anos na Gruta de La Pasiega (Cantábria),
Foi encontrado e um negativo gravado há 66 700 anos nas paredes
em 1939, na
da Gruta de Maltravieso (Cáceres). Embora isso possa
Alemanha.
ferir o nosso orgulho como espécie, tudo indica que
eles se adiantaram no campo da arte. Por isso, usar a
expressão “não sejas neandertal” num sentido depre-
ciativo baseia-se em mitos obsoletos sobre as qualida-
des desses humanos, sem qualquer suporte científico.
“No século XIX, a antropologia e as ciências naturais
assumiam que evolução era igual a progresso e que,
portanto, um antepassado fóssil não era só primitivo
na sua conformação esquelética (mandíbulas mais
proeminentes, por exemplo) mas também deveria ser
CORTESIA GILLIAN MORISS-KAY

primitivo em relação à inteligência”, esclarece Zilhão.


Seguindo esse raciocínio, como o Homo neanderthalen-
sis deixou vestígios muito mais antigos do que o Homo
sapiens, foi imediatamente considerado o protótipo de
uma humanidade mais primitiva.

120
A primeira narração em imagens

D ois javalis e quatro búfalos anões encur­


ralados por oito figuras semi­humanas
equipadas com lanças, ou talvez cordas: esta
do sueste asiático, há entre 40 e 50 mil anos e,
diga­se de passagem, acreditariam em seres
sobrenaturais, como mostra o facto de terem
é a cena representada no que poderá ser a desenhado caçadores semi­humanos e semi­
mais antiga obra narrativa, uma pintura de 4,5 animais, dotados de cauda e focinho. “Estas
metros de largura numa gruta das Celebes imagens podem ser a prova mais antiga da
(Indonésia). Cientistas australianos que ana­ nossa capacidade de conceber coisas que
lisaram o trabalho estimam que as figuras não existem no mundo natural, a base de
foram pintadas há pelo menos 43 900 anos, todas as religiões modernas”, diz Adam
com base no seu desgaste e na concentração Brumm, coautor do estudo, publicado na
de minerais. Quem as criou? Provavelmente, revista Nature em dezembro de 2019. O pen­
Homo sapiens, que chegaram às ilhas, idos samento espiritual tornava­se pintura.
RATNO SARDI

Pormenor da cena em que se pode ver um dos búfalos anões (à direita) e os caçadores a atacá-lo.

Tudo indica que os neandertais criaram obras


artísticas antes de os nossos antepassados o fazerem

“A imagem do estúpido e do bruto instalou-se com por uma estética, para expressar emoções subjetivas
força não só na opinião pública, mas também na opinião ou transmitir conceitos ou mensagens. Sendo assim,
científica, a tal ponto que, durante décadas, os inves- as manifestações rupestres podem ser enquadradas
tigadores interpretaram mal as evidências materiais. nessa definição de arte? Steven Mithen, arqueólogo
Os neandertais têm dificuldade em se livrar da sua má inglês e autor do livro Singing Neanderthals – The Origins
reputação. Levámos muito tempo a aceitar que eles of Music, Language, Mind and Body (2005), não hesita:
tinham uma organização social muito sofisticada e que “Na minha opinião, há arte quando se criam imagens
praticavam a arte antes de nós”, diz Zilhão. com sentido simbólico, seja na tentativa de representar
a realidade com veracidade ou por meio de signos que se
INFORMAÇÃO ATRAVÉS DE IMAGENS repetem”, afirma.
Arte. Quatro letras carregadas de significado e sobre Na mesma linha, Zilhão alerta: “Desde a pré-história
cuja definição ainda surgem discussões. A maioria dos até ao século XIX, a arte era uma forma de transmitir
dicionários define este substantivo como manifestações informações através de imagens, fossem religiosas ou
da atividade humana por meio de obras orientadas outras.” Isso implica a existência de códigos, de siste-

121
Talento feminino
E m cada quatro pinturas rupestres, três
foram executadas por mulheres. É a con-
clusão do arqueólogo norte-americano Dean
diferentes: enquanto elas tendem a ter o
dedo anular e o indicador de comprimento
semelhante, nas mãos dos homens o dedo
Snow, após analisar as silhuetas de mãos anular é, em geral, visivelmente mais longo.
gravadas nas paredes de oito grutas pré-his- Isso dá uma razão objetiva, a proporção
tóricas do norte de Espanha e do sul de 2D:4D (segundo e quarto dedos, respetiva-
França. Snow critica que até agora a autoria mente), com a qual se podem fazer compa-
exclusivamente masculina fosse tida como rações. Aplicando esse princípio, e acres-
certa: os artistas seriam homens do Paleolí- centando outras referências como o compri-
tico que narravam as suas façanhas ou prati- mento da mão ou a relação entre o indicador
cavam um ritual mágico para atrair boa sorte e o dedo mínimo, Snow concluiu que 75 por
antes de irem caçar. Para refutá-lo, Snow pôs cento das mãos gravadas na pedra eram de
em prática as descobertas de John Manning. mulheres. Provavelmente, elas foram as auto-
Este biólogo britânico mostrou há duas ras da maior parte da arte rupestre que admi-
décadas que as proporções entre certos ramos há anos e presumimos que tinha sido
dedos da mão de homens e mulheres são pintada por homens.

GETTY

Gruta das Mãos, na Patagónia argentina. Muitas são provavelmente de origem feminina.

mas de comunicação gráfica, que por sua vez oferecem não era essencial para a sobrevivência dos nossos ante-
uma prova irrefutável da existência de uma linguagem, passados. Nesse caso, porque surgiu? É uma das grandes
que realmente nos define como espécie. “Temos provas questões que intrigam os antropólogos. Morriss-Kay
materiais de expressão simbólica desde há pelo menos suspeita que tem muito a ver com aquilo a que chama
cem a 150 mil anos. O hardware genético que o torna “olho mental”: permitiu-nos fazer ferramentas, mas
possível tinha de existir no cérebro”, acrescenta Zilhão, também ser melhores caçadores: “Bernd Heinrich [bió-
que considera que a capacidade de abstração caracte- logo, professor emérito da Universidade do Vermont e
rizou a nossa linhagem desde que nos separámos do corredor de longa distância] explicou isso muito bem
resto dos grandes símios. numa ocasião: enquanto os animais predadores desis-
tem ao perder de vista a presa, os humanos continuam a
O OLHO MENTAL correr atrás de um alvo que se esconde atrás das rochas”,
Por esta altura, ninguém contesta que a arte é uma diz. Por outras palavras, as mudanças neuronais que
das manifestações mais felizes da cultura humana, mas deram aos homens das cavernas a capacidade de enten-

122
UNIVERSIDADE DE MÚRCIA
Dois exemplos espanhóis da arte neandertal: conchas pintadas
e perfuradas, encontradas na Gruta dos Aviões (Múrcia),
e restos de pinturas na gruta de Ardales (Málaga). A datação destas

GETTY
últimas ainda é provisória, mas pode remontar a 65 mil anos.

123
Conhecida como “dama de Brassempouy”,
SPL

da cidade francesa onde foi encontrada,


esta cabeça feminina surpreende pela
delicadeza das formas. Foi feito em presa
de mamute e tem cerca de 25 mil anos.

der que algo que deixavam de ver continuava a existir complicar-se. “Acho que foi o aumento da conectividade
também permitiram imaginar e criar obras estéticas. entre as diferentes regiões do cérebro que permitiu o
No entanto, isso foi apenas o começo. Na opinião de surgimento de novas ideias”, diz Mithen, que batizou
Mithen, foram necessários três processos cognitivos esse fenómeno como “fluência cognitiva”.
fundamentais para que surgisse a arte: a capacidade de
conceber imagens mentais (o olho mental), a comunica- O PRAZER DO EXAGERO
ção deliberada e a atribuição de sentido. Embora os três Depois, há a questão do prazer, ou seja, a capacidade
estivessem presentes na mente humana primitiva, só de evocar estados emocionais com estímulos visuais.
surgiram na forma de obras de arte quando a “cabla- Os neurocientistas sabem há muito tempo que, apenas
gem” do cérebro dos nossos antepassados começou a meio segundo depois de perceber uma imagem, o nosso

A capacidade de sentir prazer estético


poderá estar relacionada com a seleção sexual

124
DESENHOS CONSISTENTES
Os símbolos que podem ser vistos nas jazidas da Europa da Idade da Pedra também são encontrados
Uma linguagem universal?
nas grutas do resto do mundo. As semelhanças sugerem que as marcas são mais do que apenas rabiscos aleatórios.

América do Norte Europa Índia Birmânia China

Bornéu

Norte
de África

Celebes

África Central
Nova
Malásia Guiné
América do Sul

África do Sul Austrália


África Oriental

A pós analisar palmo a palmo um total de


146 grutas paleolíticas europeias, a an-
tropóloga canadiana Genevieve von Petzin-
mais numerosos do que as representações
de animais ou figuras humanas. Esses íco-
nes da Idade da Pedra sugerem que as habi-
CARLOS AGUILERA. FONTE: NEW SCIENTIST

ger identificou 32 figuras geométricas que lidades de comunicação gráfica têm raízes
parecem repetir-se em pinturas rupestres dos profundas. “A reiteração dos mesmos sinais
cinco continentes, conforme se vê no mapa sugere que eles devem ter tido algum signi-
acima. De facto, espirais, triângulos, zigue- ficado para as pessoas que os usaram”, diz
zagues, flechas e corações são, via de regra, Von Petzinger.

cérebro já fez o julgamento estético: num piscar de logista indiano Vilayanur S. Ramachandran, professor
olhos, sinal de que está profundamente enraizado. da Universidade da Califórnia em San Diego e coautor
“Provavelmente, o sentido estético tem a ver com a (com Sandra Blakeslee) do livro Phantoms in the Brain
seleção sexual: se somos atraímos por imagens simétri- – Probing the Mysteries of the Human Mind (1998),
cas com cores equilibradas, é porque, na natureza, são diz que tudo responde ao princípio da intensidade
indicadores de boa qualidade genética, um dos critérios máxima. Segundo a sua teoria, os animais atraídos por
para a escolha de um parceiro. Esse imperativo biológico determinada figura serão ainda mais seduzidos por uma
foi explorado por quem praticava a arte”, diz Mithen. versão exagerada. Por outras palavras, mostrar ver-
Simetria e equilíbrio são coisas ótimas, mas como sões desproporcionadas de coisas que nos atraem é
explicar figuras voluptuosas como a Vénus de Willendorf, mais agradável para o cérebro do que uma representa-
com os seus quadris proeminentes e seios enormes, ou ção precisa da realidade. Se, de certo modo, como diz
os bisontes de Altamira, que têm troncos muito maiores Ramachandran, “toda a arte é caricatura”, é porque o
em relação às patas do que os animais que lhes servi- exagero produz um super-estímulo, despertado tanto
ram de modelo? Os artistas da Idade da Pedra tinham pelas pinturas rupestres como pelos nus de Picasso.
problemas com as proporções? Nada disso. O neuro- E.S.

125
MARAVILHAS
DO PALEOLÍTICO
Escolhemos cinco exemplos emblemáticos da chamada “escola
franco-cantábrica”, cujas pinturas podem ser vistas em grutas
do norte de Espanha e do sul de França. Como se vê, os seus autores
eram verdadeiros mestres do desenho e da cor.

Lascaux
(França)
Até 18 600 anos de antiguidade

364 cavalos,
90 veados, touros,
bisões, auroques...
O conjunto
iconográfico
de Lascaux
é considerado,
juntamente
com Altamira,
a obra-prima
da arte rupestre.
Para impedir
a sua deterioração,
as pinturas foram
fechadas em 1963
e copiadas à mão
para o complexo
Lascaux 2.
À esquerda,
pormenor da
GETTY

Sala dos Touros.

El Castillo (Espanha)
Mais de 40 mil anos de antiguidade

Esta gruta cantábrica


preserva cerca de 300
pinturas rupestres,
classificadas entre
as mais antigas da
humanidade. Animais,
mãos e símbolos
enigmáticos como
THE GRANGER COLLECTION

os do Rincón
de los Tectiformes
(na foto) decoram
o seu interior.

126
JEFF PACHOUD / AFP / GETTY

Chauvet
(França)
32 mil anos de antiguidade Altamira
(Espanha)
Com uma técnica Até 38 mil anos de antiguidade
apurada, os artistas
paleolíticos Além dos famosos
representaram bisontes, tem
nesta gruta dezenas muitas outras
de animais (leões, figuras, como mãos
panteras, mamutes, e rinocerontes.
cavalos, bisontes, Recentemente,
WORLD HISTORY ARCHIVE

hienas...) que foram encontradas


o público pode mais três silhuetas
admirar na réplica negativas como
de Pont d’Arc. as da foto.

Marsoulas
(França)
17 mil anos de antiguidade

Localizada
no coração
dos Pirinéus,
possui gravuras
e pinturas
de diversos
tamanhos
(até 2,2 metros
de largura).
Na foto, um bisonte
policromado
e a parte traseira
de um cavalo,
sobrepostos
com linhas,
setas e pontos
de significado
incerto.
SPL

127
A dieta
dos nossos
avós
Reconstrução do homem
de Pequim (Homo erectus
pekinensis), uma subespécie
do H. erectus nativa da China,
que usava varas afiadas
como arpão para pescar.

128
Folhas, raízes, bolbos e frutos
deram lugar a uma nutrição
completa graças à pesca,
à caça e à agricultura.
Os alimentos e a forma como
os preparamos e comemos
moldaram o nosso cérebro.
Eudald Carbonell, codiretor
das escavações de Atapuerca,
explica como e porquê.

O
estudo da evolução da dieta dos homininos
é baseado numa série de métodos de análise
dos registos arqueopaleontológicos que
temos no planeta, tanto em grutas como
a céu aberto. Tudo o que foi preservado e fossilizado
contribui para a memória do que conhecemos como sis-
tema Terra e, portanto, para a memória de como eram
e viveram todos os organismos que o habitaram. O que
nos interessa, neste caso específico, é o registo fóssil
que está associado ao nosso género, principalmente
no que diz respeito à alimentação. Recorrendo à enge-
nharia inversa, recorremos ao estudo da composição
química dos vestígios anatómicos, analisamos as suas
características biológicas, mecânicas e morfológicas,
os impactos ocorridos nas suas superfícies, no caso do
consumo de carne por homininos, e os traços deixados
nos utensílios usados sobre as presas.
A técnica de flutuação com água dos sedimentos
que saem das jazidas ajuda-nos a extrair sementes, car-
vões e todo o tipo de elementos vegetais conservados.
Estas técnicas vêm de disciplinas como a arqueo-
zoologia (análise de restos de animais), a tafonomia
(estudo dos processos de fossilização e formação de
AGE

depósitos fósseis), a traceologia (análise dos vestígios


do uso de ferramentas), a antracologia (identificação
botânica dos carvões e das madeiras recuperadas das
jazidas), a paleocarpologia (estudo das sementes e dos
frutos), a fitolitologia (análise de fitólitos ou minerais
de origem vegetal) e os estudos isotópicos.
A análise dos isótopos estáveis de azoto, oxigénio,
cálcio e estrôncio permite estabelecer empiricamente
a proporcionalidade entre a componente animal e
vegetal que existiu na dieta das espécies do nosso
género durante a sua evolução. As reconstruções
do clima e da ecologia também podem ser feitas cal-
culando a taxa de carbono nos restos do esqueleto,

129
uma vez que a razão entre isótopos indica como era o Nesta primeira fase evolutiva, no final do Plioceno
ambiente e de que se alimentavam: há mais carbono e início do Pleistoceno Inferior, encontraríamos toda
do ciclo C3 em ambientes florestais e mais do C4 em a vasta gama de australepitecos: A. anemensis, A. afa-
savanas abertas e ecossistemas de pastagens. rensis, A. africanus, A. bahrelghazali, A. garhi e A. sediba.
Todos eles têm capacidade craniana inferior a 400 cen-
FASES DISTINTAS tímetros cúbicos, peso corporal inferior a 50 quilos e
Na história dos homininos, há uma série de capítulos altura não superior a 1,5 metros. Poderia ser estabele-
evolutivos ligados às diferentes aquisições e emergên- cida a existência de uma dieta com forte componente
cias que viveram, tanto biológicas como sociais, eco- vegetal, mas dentro do omnivorismo. A anatomia do
lógicas, técnicas e culturais. Essas aquisições e a sua crânio, das mandíbulas e dos dentes indica uma dieta
socialização marcaram o desenvolvimento da nossa com uma forte base de hidratos de carbono e pouca
alimentação e da dieta dos nossos antepassados. proteína de carne.
Nesse sentido, temos de levar em consideração três Por outro lado, havia os Paranthropus, que, para
fases distintas. alguns, nada mais são do que australopitecos do tipo
No início, os homininos começaram por se alimentar robusto, que surgiram num clima mais árido, há mais
de folhas, sementes, caules, raízes, bolbos e frutos. Em de 2,5 milhões de anos, e se extinguiram há um milhão,
síntese, podemos dizer que os nossos antepassados como os australopitecos. Viveram em África e eram
mais distantes do Plioceno, há entre seis e três milhões diversos (temos P. aethiopicus, P. boesei e P. robustus),
de anos, eram folívoros e frugívoros, ou seja, vegeta- com capacidade craniana de 500 cm3, peso corporal de
rianos. Quase 90 por cento da sua ingestão era vegetal. 50 kg e altura de mais de um metro. Caracterizavam-se
O consumo de invertebrados, provavelmente insetos, por uma mandíbula robusta e uma dentição de caninos
complementaria a sua dieta diária. reduzidos e pré-molares molarizados, uma estrutura

Um grupo de humanos pré-históricos despedaça


AGE

a carcaça de um elefante. Várias espécies


de proboscídeos, agora extintas, viveram
em África, na Eurásia e na América do Norte.

130
Depois de uma primeira fase vegetariana, passou-se
a consumir proteína animal de cadáveres e da caça

dentária poderosa para quebrar frutos secos duros, explicar a evolução da dieta e a inclusão da carne, que
caules e raízes. Em relação às suas características anató- fornece proteína de alta qualidade. Além disso, as suas
micas ao nível craniano, o Paranthropus destaca-se pela capacidades técnicas já lhes permitiam partir ossos,
crista sagital, uma protrusão óssea que atravessa o crâ- como fazem outros predadores, e aceder à medula,
nio desde a testa até ao pescoço. Evoluíram em para- que possui alto teor de ácidos gordos. Essas atividades
lelo com o género Homo, e a sua dieta seria básica ou permitiram certamente uma grande retroalimentação
totalmente vegetariana, o que é indicado pela abundante neuromecânica que levou ao aumento da complexi-
proporção de carbono do ciclo 4C nos seus ossos. dade das áreas cerebrais relacionadas com a inteligên-
cia operacional.
PROTEÍNA ANIMAL Portanto, podemos inferir que a inclusão da carne de
A segunda fase, que se sobrepõe à anterior, seria animais mortos ou caçados por outras espécies preda-
caracterizada pela contribuição da proteína animal tórias ou por si próprios, no caso de pequenas presas,
para as dietas, inicialmente constituídas por plantas, do permitiu ao Homo rudolfensis e ao Homo habilis, habi-
género Homo. Em princípio, comeriam tecido de animais tantes do continente africano com capacidade craniana
mortos, provavelmente procurando cadáveres. O hábito, de 600 cm3, peso não superior a 50 kg e altura média
desenvolvido talvez por imitação de outras espécies maior do que a dos australopitecos, iniciar e socializar
de mamíferos e aves que já o praticavam, poderia posteriormente o comportamento omnívoro no nosso

131
O controlo do fogo e a luz que
ALBUM

ele gera produziram mudanças


importantes na evolução
cultural e no comportamento
social dos humanos.

processo de hominização e humanização. Não podemos organizada vertebrados herbívoros, como gnus (Con-
descartar neste primeiro momento, como já dissemos, a nochaetes), gazelas (Gazella) e uma grande variedade
caça de pequenos mamíferos pelas primeiras espécies de antílopes, embora também aproveitem a carne de
do nosso género, como ocorre hoje em primatas não proboscídeos, rinocerontes e hipopótamos. Em alguns
humanos, embora não fosse habitual ou sistemática. casos, o elevado consumo de vísceras e cérebros desses
animais produziu hipervitaminose, um distúrbio orgâ-
CAÇA ORGANIZADA nico causado pela ingestão excessiva de vitaminas,
O salto para a terceira fase é a caça organizada e sis- especialmente A.
temática de animais de grande porte. Essa importante Segundo a hipótese do tecido caro, dos nossos colegas
atividade ocorreu há menos de dois milhões de anos Leslie Aiello e Peter Wheeler, publicada na revista Cur-
com o Homo ergaster e o Homo erectus, homininos rent Anthroplogy, em 1995, é altamente provável que a
com 900 cm3 de capacidade craniana, mais altos e ingestão de carne esteja envolvida em dois processos
pesados do que os seus predecessores. A socialização biológicos fundamentais que se retroalimentam: o cres-
da caça no nosso género marca a nova adaptação dos cimento do cérebro e a redução do comprimento do
primatas a uma atividade que contribui para a mudança nosso aparelho digestivo. O cérebro exige uma grande
de hábitos nutricionais, mas também sociais. quantidade de energia: cerca de vinte por cento do
Além disso, estes novos comportamentos permitem nosso metabolismo. O encurtamento do trato diges-
mudanças biológicas importantes, como o crescimento tivo típico dos carnívoros permitiu que a energia fosse
do cérebro, que se manteve estável em torno de 400 libertada para o crescimento do cérebro.
cm3 nas famílias de hominídeos, até ao surgimento dos Talvez esta remodelação biológica do nosso orga-
homininos. Estes últimos caçam basicamente de forma nismo também esteja relacionada com o uso habitual

132
ALBUM
Arpões de pesca
paleolíticos feitos
com chifres de rena,
conservados
no Museu Nacional
da Dinamarca.

de ferramentas já muito sofisticadas e com o aumento faca (uma terceira mão) teve uma influência decisiva
espetacular da sociabilidade, que provavelmente na nossa alimentação. O achado de marcas de corte
ocorreu em África, há cerca de dois milhões de anos. nos incisivos mostra que essa prática já ocorria em
A prática omnívora permitiu aos homininos tornarem- algumas populações de homininos do Pleistoceno
-se generalistas da dieta, com o consumo de alimentos Inferior e Médio.
variados. Esta estratégia foi essencial para se adaptarem Sem dúvida, nesta história da evolução dos alimen-
a diferentes condições ambientais e muito provavel- tos, temos de introduzir um fator importante que fez
mente permitiu a sua expansão para fora do continente variar a forma de ingestão dos homininos. Trata-se do
africano, nessa época. controlo do fogo por algumas comunidades de Homo
Ao longo da evolução dos homininos, a dentição tam- ergaster e Homo erectus. Usar intencionalmente a
bém sofreu uma modifica- cozedura como elemento de
ção importante desde as pri- transformação e preserva-
meiras espécies até aos dias A dieta omnívora ção dos alimentos permitiu
atuais. Entre as mudanças manter estratégias nutricio-
mais percetíveis que pode- possibilitou nais de outro nível. Começou
mos observar, estão a dimi- assim uma mudança de fase
nuição do tamanho dos que os homininos nos processos nutricionais
caninos, principalmente no dos homininos.
nosso género. O uso dos inci- se adaptassem a todos Há evidências de alimen-
sivos para segurar o tecido tos preparados no sítio
e poder cortá-lo como uma os contextos ambientais arqueológico da Gruta Won-

133
O uso intencional do fogo Pinturas rupestres
como a de Tassili n’Ajjer
(Argélia) mostram
para cozinhar melhorou a atividade pecuária,
que permitia obter
o nível de nutrição leite, carne e peles
sem ter de caçar.
dos nossos antepassados

derwerk, na África do Sul, que remonta a um milhão


de anos, e pouco depois em Gesher-Benot Ya’aqov, em
Israel. Isso indica que, nesse período do Pleistoceno
Inferior, os homininos já possuíam esse elemento para
transformar os produtos que consumiam, mas foi só
há meio milhão de anos que esses comportamentos
foram verdadeiramente socializados.

FORMAS DE CANIBALISMO
O consumo de carne crua e outros produtos que
não foram submetidos a qualquer transformação
técnica tem uma longa história no Paleolítico. Pode-
mos dizer que esses hábitos pouco mudaram até ao
final do Pleistoceno Médio. Há mais de 800 mil anos,
o Homo antecessor, um caçador-recoletor generalista
com 1000 cm3 de capacidade craniana, cerca de 50 kg
de peso e mais de 1,6 m de altura, desenvolveu uma
estratégia de sobrevivência interessante. É uma
característica alimentar desta espécie descoberta na
década de 1990 no nível 6 de Gran Dolina, na Vala Fer-
roviária de Atapuerca. Nada mais é do que a antropofa-
gia, ou seja, a prática do canibalismo. Verificou-se que o
H. antecessor o praticava, pois grande parte dos restos
de esqueletos do registo arqueopaleontológico apre-
sentam fraturas antrópicas, golpes e marcas de corte,
além de traços produzidos pela dentição humana. CAÇADORES ESPECIALIZADOS
O canibalismo nutricional ou gastronómico e o cultural Desde há meio milhão de anos, o Homo heidelbergensis,
faziam parte das estratégias de dominação de um ter- com 1300 cm3 de capacidade craniana, 100 kg de peso e
ritório em que viviam e competiam diferentes grupos 1,7 m de altura, continuou a caçar e recolher. Foi obser-
populacionais. A presença de restos mortais de indiví- vado que a espessura dos seus restos esqueléticos,
duos comidos pelos seus congéneres, principalmente tanto cranianos como pós-cranianos, está intimamente
crianças e adolescentes, mostra que tentaram eliminar relacionada com o consumo maciço de vegetais. Porém,
outros grupos do mesmo território com o canibalismo, a espécie também está associada ao aperfeiçoamento
fazendo desaparecer as gerações mais jovens. Pelo das técnicas de caça. Na jazida de Bilzingsleben (Ale-
menos, foi assim que foi interpretado em Atapuerca manha), foram documentados dardos e lanças em
pela nossa equipa de investigação. magnífico estado de conservação. Esta descoberta
Porém, esses colonos da serra de Atapuerca no final indica que já estavam a ser desenvolvidas estratégias
do Pleistoceno Inferior consumiam todos os tipos de sofisticadas de caça no Pleistoceno Médio, como foi
vertebrados de diferentes tamanhos: proboscídeos, demonstrado em Atapuerca com a prática de caça
equídeos, bovídeos, cervídeos e outras espécies, como comunitária, no nível 10 de Gran Dolina.
atestam as marcas de corte encontradas nos esqueletos De facto, encontramos nesta jazida desde caçado-
cranianos e pós-cranianos desses animais. Deve notar- res-recoletores generalistas, que se abasteciam num
-se que, graças a estudos paleocarpológicos, foi possível amplo espectro, até caçadores especializados, neste
reconhecer a existência de frutos fossilizados de Celtis caso de bovídeos, sobretudo bisontes. Na caça comu-
australis associados a restos de esqueletos da espécie nitária, participariam todos os membros, independen-
Homo antecessor. temente do seu sexo ou da sua idade.

134
AGE
Ainda em Atapuerca, o estudo da dentição forneceu alimentos por parte de algumas comunidades dessa
informações sobre o uso de “palitos” para profilaxia, o espécie seria essencial para a sua sobrevivência, pro-
que denota uma associação de aquisições que explicam vavelmente com base na introdução de mudanças nos
as profundas mudanças ocorridas no comportamento hábitos de caça e na organização social. Os animais mais
dos pré-neandertais. caçados eram equídeos, bovídeos e cervídeos.
O Homo neanderthalensis, hominino com a maior Mais surpreendente ainda é a descoberta de uten-
capacidade craniana da nossa história evolutiva (entre sílios de cozinha, como bandejas de madeira e traver-
1450 e 1700 cm3), pesando entre 60 e 100 kg e com uma tinos (pedras ornamentais) altamente cristalizados,
estatura de quase 1,8 m, já acumula toda uma série de talhados de forma circular, encontrados próximos das
estratégias cognitivas relacionadas com a dieta. É uma lareiras, provavelmente como objetos de depósito de
espécie com comportamentos técnicos e sociais seme- alimentos cozidos. Isso representaria mais um passo
lhantes aos nossos. No Abric Romaní de Capellades em direção a uma maior complexidade da dieta.
(Barcelona), descobrimos que o tratamento térmico
dos alimentos é sistemático e organizado pelo H. nean- COMPORTAMENTO OMNÍVORO
derthalensis. Os lares dos neandertais já tinham autên- O comportamento alimentar omnívoro sobreviveu
ticas cozinhas primitivas que lhes permitiam tratar e até hoje. O Homo sapiens, com uma capacidade cra-
alterar a carne com calor, e talvez até fumá-la. niana média de cerca de 1350 cm3, peso médio entre 50
A descoberta ali de três pedaços de madeira com cerca e 100 kg e altura média entre 1,6 e 1,9 m, continua a inge-
de 50 mil anos e muitos restos de plantas briófitas numa rir animais e vegetais em todas as culturas que conhe-
lareira pode ser uma evidência desse tipo de atividade cemos, de leste a oeste e de norte a sul do planeta.
no Paleolítico Médio. A capacidade de conservação de A nossa espécie e todas as suas civilizações adaptaram-

135
Da pedra primitiva
para esmagar
os grãos (em baixo),
passou-se
a ferramentas
e recipientes
mais sofisticados
para recolher
e armazenar
alimentos.

E
AG
AGE

A cerâmica revolucionou o armazenamento


e o transporte dos alimentos

-se, desde o seu surgimento, a todas as condições cli- tação local, hoje chamada “quilómetro zero”, por não
máticas do planeta, do extremo sul ao extremo norte. possuírem as capacidades técnicas ou mecânicas para
Nesse processo de adaptação, desenvolveram todos os o impedir.
tipos de estratégia, tanto para caçar como para pescar. Como qualquer mamífero omnívoro, o ser humano
No Paleolítico Superior, podemos encontrar artefac- era totalmente dependente da energia fornecida pela
tos como anzóis, arpões e lanças que permitem inferir natureza do seu ambiente próximo. A grande diversi-
a socialização da pesca fluvial e marinha. Essas ativida- dade de plantas e animais era a despensa que os homi-
des, no início do Pleistoceno Médio, eram praticadas ninos poderiam ter na sua jornada evolutiva. Mudanças
continuamente em apenas algumas comunidades. de hábitos e adaptações a diferentes latitudes foram
Propulsores, arcos e flechas representam avanços fundamentais, assim como a novos ecossistemas rela-
técnicos de primeira linha para a caça especializada à cionados com alterações climáticas e, mais recente-
distância de todos os tipos de animais. Nas pinturas e mente, a tabus alimentares e outros comportamentos
gravuras tanto da arte rupestre como da arte móvel e condutas culturais.
(aquela que pode ser transportada, como as estatuetas)
essas ferramentas estão representadas, assim como os EXCEDENTES ALIMENTARES
animais mais caçados. As mudanças fundamentais na evolução da alimen-
Comer carne de animais terrestres primeiro e de ani- tação, uma vez conhecido como foi possível passar das
mais marinhos depois, juntamente com frutas, raízes, práticas adaptativas vegetarianas para as omnívoras,
bolbos e caules, homologou o Homo como um omnívoro ocorreram graças à transformação dos sistemas de
clássico. A alimentação das sociedades humanas produção, na passagem da caça e da recoleção para
será fundamentalmente marcada pelo seu ambiente. estratégias de acumulação e produção de excedentes
A produção de matérias-primas nas estruturas tróficas que podem ser consumidos em qualquer época do ano
do ecossistema onde estão instaladas condicionou e e que são suscetíveis, muitos deles, de serem reprodu-
pode ter determinado a ingestão de certas proteínas e zidos sazonalmente.
hidratos de carbono, uma vez que não tinham escolha. Com efeito, no final do Pleistoceno e no Holoceno, há
Sem capacidade para transportar ou conservar grandes cerca de dez mil anos, ocorreram mudanças drásticas
quantidades de alimentos, os homininos do Pleistoceno que revolucionaram a forma de alimentação, mas tam-
e também do Holoceno tiveram de se adaptar à alimen- bém de organização e da passagem de comunidades

136
AGE
A agricultura permitiu
plantar legumes
de forma controlada
e ter excedentes
alimentares.

nómadas a sedentárias. Nesses tempos, encontramos cional que caracterizou e caracteriza a humanidade até
grupos que consumiam uma grande variedade de aos dias de hoje foi o omnivorismo, baseado na alimen-
organismos marinhos, como ostras (Ostrea), lapas tação de proximidade. Nem a passagem do nomadismo
(Patela) e mexilhões (Mytiliade). Havia comunidades para o sedentarismo mudou o consumo de proximidade.
de mariscadores, tanto sazonais como permanentes. Isso só aconteceu quando os meios de transporte e
O mesmo acontecia com a captura maciça de caracóis navegação foram socializados por meio das trocas e do
terrestres, e a colheita de mirtilos, amoras, groselhas e comércio de matérias-primas e alimentos. Só com a che-
todos os tipos de frutos silvestres já era extensa. gada dos impérios, com a sua macro-organização logís-
No Holoceno, ocorreram as maiores mudanças, tica, é que os alimentos começaram a inter-regionali-
com a adoção da agricultura. Foi nessa época que se zar-se, embora a comida usual ainda fosse local. Foi pre-
ampliou a dieta de hidratos de carbono complexos. Isso ciso esperar pela socialização resultante da revolução
aconteceu com o cultivo de cereais no Médio Oriente, industrial, e principalmente da revolução científico-tec-
de arroz nos países asiáticos e de milho, abóbora e nológica, para ver a mudança do paradigma nutricional
batata na América, entre outras práticas agrícolas. Foi na nossa espécie.
a grande eclosão da domesticação das plantas e do seu Atualmente, cresce uma tendência cultural, de ser
plantio controlado para reprodução artificial. Por outro vegetariano em todas as suas formas, que ainda não
lado, o surgimento e a socialização da cerâmica muda- se generalizou mas pode fazer a humanidade do Homo
ram a organização dos alimentos, tanto do ponto de sapiens entrar noutra fase da nutrição. Seria uma etapa
vista do transporte como do armazenamento. Nesse em que o consumo de carne e a atividade carnívora
período, generalizou-se o tratamento para conservar diminuiriam exponencialmente, tal como a ingestão
alimentos: o fogo e o uso de sais e frio foram funda- de hidratos de carbono simples, o que pressagia uma
mentais neste processo. socialização desenfreada de velhos hábitos. O círculo
poderia ser fechado num futuro não muito distante: um
CÍRCULO FECHADO retorno às origens, não apenas por necessidade, mas
O consumo “quilómetro zero” foi, portanto, uma também pelo desejo de conservar a natureza, respeitar
constante histórica na nossa evolução durante o final as criaturas que vivem à nossa volta e não consumir
do Plioceno e ao longo do Pleistoceno, incluindo o aquilo de que não precisamos.
Holoceno. Podemos dizer que o mais longo ciclo nutri- E.C.

137
A partir dos poucos
MAAYAN HAREL

restos encontrados
e dos estudos
genéticos realizados,
o paleoartista
Maayan Harel recriou
a aparência de uma
jovem denisovana.

138
Quem és tu,
denisovano?
Sabemos da existência deste grupo de humanos extintos
devido um punhado de fósseis recuperados na Rússia
e no Tibete. No entanto, o seu legado genético
ainda perdura em certas áreas da Ásia e da Oceania.

S
vante Pääbo, um dos maiores especialistas Por isso, foi uma sorte que o descobridor da mandíbula
mundiais em paleogenética, está conven- tenha decidido dá-la ao sexto Buda vivo de Gungthang,
cido de que a caverna Denisova, localizada que, por sua vez, a ofereceu a cientistas da vizinha Uni-
nos montes Altai, na Sibéria, é atualmente o versidade de Lanzhou. Lá ficou no esquecimento, até
sítio paleoantropológico mais importante do globo: que, na década de 2010, uma decidida arqueóloga,
não só porque ali foi encontrado um novo membro do Dongju Zhang, começou a estudar o espécime. No
género Homo (o achado foi anunciado em 2010), cujos decorrer da sua investigação, entrou em contacto com
membros são informalmente conhecidos como deni- paleoantropólogos do Instituto Max Planck de Antro-
sovanos, mas também porque os restos recuperados pologia Evolutiva, de Leipzig (Alemanha), que ficaram
no local mostram que houve episódios de hibridação muito intrigados com a peça.
entre eles, os humanos modernos e os neandertais,
algo de grande importância na história evolutiva da PROTEÍNAS ANCESTRAIS
nossa espécie. A verdade é que, à primeira vista, o fragmento man-
Os estudos pormenorizados que foram feitos sobre dibular de Xiahe não apresenta peculiaridades anató-
a estratigrafia da gruta permitiram saber com certeza micas relevantes, à exceção dos seus grandes molares.
quando foi habitada. Assim, o ADN denisovano encon- A sua morfologia é característica dos humanos da era
trado nos sedimentos mais antigos sugere que eles chibaniana (o que até recentemente era conhecido
a ocuparam pela primeira vez há pouco mais de 200 como Pleistoceno Médio), que durou desde há 773 até
mil anos e que estiveram intermitentemente presen- há cerca de 126 mil anos. Assemelha-se, de facto, a dois
tes nela até há pelo menos 76 mil anos, embora alguns espécimes chineses de Homo erectus das jazidas de
estudos avancem essa data para apenas 52 mil anos. Lantian e Zhoukoudian. No entanto, o arco formado
O ano 2019 foi especialmente frutífero para o nosso pelos dentes e pela frente da boca (a arcada dentária)
conhecimento desses humanos extintos. Em maio, foi é menos alongado, mais ou menos como o de humanos
divulgada a existência de parte de uma mandíbula que arcaicos do mesmo período cujos restos apareceram
um monge budista tinha localizado em 1980 na caverna em Tighenif, na Argélia, ou dos modernos Homo sapiens,
Baishiya, a 3280 metros de altitude, perto da cidade chi- ou seja, provavelmente, os denisovanos tinham o rosto
nesa de Xiahe, no Tibete. Baishiya é um lugar sagrado, menos projetado para a frente do que o Homo erectus
reservado para oração e meditação, mas também da Ásia.
é um repositório de ossos fossilizados. Frequentemente, O fóssil de Xiahe não preserva ADN. Nesse caso, como
são moídos para formar vários compostos que mais podemos saber que pertenceu a um denisovano? Para
tarde serão usados na medicina tradicional. determinar isso, os investigadores estudaram o seu

139
A análise genética mostra que eles se cruzaram

BENCE VIOLA / INSTITUTO MAX PLANCK DE ANTROPOLOGIA EVOLUTIVA


com os neandertais e com os nossos antepassados
paleoproteoma, ou seja, analisaram as proteínas ances- como Denisova 2, um dente com cerca de 195 mil anos
trais nele presentes. Para isso, usaram a técnica conhe- que é o espécime mais antigo encontrado nesta gruta.
cida como ZooMS, que decompõe o colagénio (a molé- As grutas Baishiya e Denisova estão localizadas em
cula de proteína mais abundante no osso) em pépti- áreas montanhosas de difícil acesso, embora estejam
dos mais pequenos e usa um espectrómetro de massa separadas por cerca de 2200 quilómetros. A diferença
para estabelecer se o espécime é realmente humano. de altitude é surpreendente: enquanto Denisova está
Felizmente, os geneticistas encontraram dentro de um apenas 700 metros acima do nível do mar, Baishiya
dente proteínas de colagénio suficientes para confirmar está no meio do planalto tibetano, cerca de 2500
essa ideia. metros mais acima. Para conseguir lidar com os rigores
característicos daquele ambiente, o denisovano de
PREPARADOS PARA AS ALTURAS Xiahe precisou de desenvolver diferentes adaptações,
O antropólogo molecular Frido Welker, do Museu de incluindo uma que evitava a superprodução de glóbulos
História Natural da Dinamarca, especializou-se na aná- vermelhos, o que aconteceria com uma pessoa que fosse
lise de proteínas que revelam relações evolutivas. Ao repentinamente exposta a um ambiente com pouco
escrever a sua tese de doutoramento, observou que oxigénio.
denisovanos, neandertais e humanos modernos dife- Essa adaptação é controlada por um alelo específico
rem na sequência de aminoácidos de algumas proteí- do gene EPAS1, que protege da hipóxia os habitantes de
nas-chave, os polimorfismos de um único aminoácido grandes altitudes. Um estudo liderado por Emilia Huer-
(SAP, na sigla inglesa). Graças a isso, é possível saber ta-Sánchez, do Departamento de Ecologia e Biologia
que variedade humana estamos a observar, sem neces- Evolutiva da Universidade Brown (Rhode Island), cons-
sitar de uma amostra de ADN. tatou que essa peculiaridade é praticamente idêntica
A mandíbula de Xiahe contém um SAP chamado em denisovanos e tibetanos, mas não é encontrada no
COL2A1 E583G, que está presente apenas no fóssil resto da população. O trabalho também sugere que
conhecido como Denisova 3 (a falange pertencente foram os denisovanos que o desenvolveram e o trans-
a uma jovem cuja análise confirmou a existência dos mitiram aos humanos modernos quando chegaram ao
denisovanos): não foi encontrado no resto das popu- Tibete, há cerca de 35 mil anos.
lações humanas, arcaicas ou modernas.
Como a descoberta da mandíbula foi totalmente aci- PRIMEIRO PARIETAL
dental, também não existe um contexto estratigráfico Também em 2019, foi anunciada uma notícia extraor-
que nos permita determinar a sua idade do ponto de vista dinária: a descoberta do primeiro osso do crânio de
arqueológico, mas isso não impediu calculá-la, pelo um destes homininos extintos. É conhecido como
menos aproximadamente. Felizmente, durante a sua Denisova 13 e é um fragmento parietal recomposto a
longa e plácida estada na Universidade de Lanzhou, partir de duas peças soltas, que foi identificado graças
ninguém pensou em limpar as crostas de carbonato ao seu ADN mitocondrial. Bence Viola, um paleoantro-
que se lhe colaram ao longo do tempo, algumas bem pólogo que colabora regularmente com o Instituto
espessas, para examinar em pormenor as suas carac- Max Planck de Antropologia Evolutiva, está entre os
terísticas. Isso tornou possível estudar essa camada e especialistas que melhor conhecem os restos mortais
datá-la, usando a técnica da série urânio-tório (U-Th), de Denisova. Durante uma reunião da Associação Ame-
em 160 mil anos. ricana de Antropólogos Físicos, Viola, da Universidade
O urânio-238 é um isótopo radioativo encontrado de Toronto (Ontário), apresentou as primeiras conclu-
na natureza e que é incorporado no esqueleto após a sões sobre este espécime.
morte (por exemplo, nos dentes). Com o tempo, o 238U A sua equipa comparou a reconstrução digital de
divide-se nos isótopos 234U e 230Th, pelo que é possível Denisova 13 com 112 crânios humanos atuais e outros
dizer quanto tempo passou desde que foi adicionado trinta do Pleistoceno. Assim, percebeu-se que Denisova
pela primeira vez. No entanto, há um problema: pode 13 apresenta uma forma intermédia entre o Homo erec-
levar muitos anos entre a morte do indivíduo e a tus, os neandertais e os heidelberguenses. Sobretudo,
incorporação do 238U, pelo que esta técnica de data- lembra o crânio Ngawi 1, da ilha de Java, que tem um
ção radiométrica fornece apenas uma data mínima de volume cerebral de 959 centímetros cúbicos e está clas-
antiguidade. O espécime de Xiahe pode ser muito mais sificado como Homo erectus. Foi encontrado por um
antigo do que se pensa, tal como o fóssil conhecido estudante, em 1987, na margem do rio Solo, perto da

140
Em 2008, uma equipa de arqueólogos russos encontrou os restos de uma falange (o fóssil agora conhecido
como Denisova 3) numa espessa camada de arenito na câmara oriental da caverna de Denisova.

141
O que revelou a mandíbula de Xiahe
D o ponto de vista paleoantropológico, as
características anatómicas do fóssil Xiahe,
atribuído a um denisovano que viveu há cerca
O do Homo sapiens moderno tem um bordo
saliente, popularmente conhecido como
“queixo” (em termos anatómicos, diríamos
de 160 mil anos, são típicas do que pode- “protuberância mentual”). Bem, no espécime
mos encontrar noutros vestígios humanos de Xiahe não há desenvolvimento do queixo
daquela época do Pleistoceno. As mandíbulas e, quando visto de perfil, vê-se como a sínfise
têm um orifício chamado “forame mentual”, mandibular se inclina marcadamente para
que permite a passagem do nervo homónimo trás. Uma recriação digital da peça, construí-
e dos vasos sanguíneos. Na nossa espécie, da por especialistas do Instituto Max Planck
está localizado por baixo do quarto pré-molar. de Antropologia Evolutiva (Alemanha), mos-
O de Xiahe é muito mais robusto e espesso do tra que ela tem uma inclinação de 69 graus.
que o nosso e, embora o forame mentual tam- A mandíbula apresenta também uma anomalia
bém se situe por baixo de onde estaria o quarto chamada “agenesia do terceiro molar”, isto é,
pré-molar (que não foi preservado), tem o terceiro molar nunca se desenvolveu. Esta
dimensões maiores. Na sínfise mandibular malformação está habitualmente associada a
(região externa entre os caninos) também alterações produzidas por fatores genéticos
deparamos com um pormenor importante. ou ambientais.
JEAN-JACQUES HUBLIN / INSTITUTO MAX PLANCK DE ANTROPOLOGIA EVOLUTIVA

A réplica digital da mandíbula permite retirar a camada de carbonato que recobre o fóssil sem danificá-lo
(c, d e e). A metade que falta foi adicionada (a e b, em cinza), com base na imagem espelhada da existente.

142
É possível

BENCE VIOLA / UNIVERSIDADE DE TORONTO


que fósseis atribuídos
ao Homo erectus sejam
de facto denisovanos

aldeia que deu o seu nome. Infelizmente, foi desco-


berto à superfície, pelo que a sua idade é desconhecida.
Agora, tudo poderia mudar.
Se pudesse ser extraído algum colagénio de Ngawi 1
(pode não ter sido bem preservado, devido ao clima
tropical javanês) e acabasse por conter o SAP carac-
terístico denisovano, estaríamos perante o primeiro
neurocrânio completo desses esquivos homininos. No
entanto, por agora, trata-se apenas uma possibilidade
excitante, e a comunidade científica aguarda novos
dados. Pelas imagens que Viola apresentou no encontro,
o que fica claro é que o parietal Denisova 13 é muito
mais espesso do que o nosso. Poderíamos dizer que os
denisovanos tinham cabeças muito duras.

QUE ASPETO TERIAM?


Apesar destas descobertas importantes, os restos
mortais de denisovanos continuam a ser escassos.
Sendo assim, poderemos saber, a partir deles, que
aspeto teriam? É algo que intriga igualmente leigos e
especialistas. Habituados às reconstruções pormenori- O tamanho notável do molar Denisova 4, descoberto
zadas de neandertais e outros homininos exibidas em em 2000 naquele enclave dos montes Altai, levou
muitos museus, estamos ansiosos por que algum os cientistas a suspeitar que os denisovanos deveriam
paleoartista modele finalmente o seu corpo e, acima de ter uma mandíbula muito proeminente, mas descobertas
tudo, nos mostre o seu rosto. Foi precisamente o que posteriores mostraram que talvez não seja assim.
fez a ilustradora israelita Maayan Harel.
Esta especialista em geociências esculpiu um busto
que, com base nos dados científicos, permite ter uma num genoma antigo, os cientistas podem criar uma
ideia muito aproximada da aparência dos denisovanos. espécie de mapa de metilação.
Para isso, baseou-se num complexo método de recons- Os geneticistas Liran Carmel e David Gokhman, da
trução desenvolvido por biólogos computacionais que Universidade Hebraica de Jerusalém, promoveram uma
busca pistas nos genomas dos espécimes antigos para iniciativa que visava aplicar essa técnica ao ADN do fós-
obter um esboço da sua anatomia. O sistema leva em sil Denisova 3. Em essência, compararam o seu mapa
consideração as modificações químicas do ADN que de metilação com outros semelhantes de humanos
podem alterar a atividade dos genes, ou seja, as alte- modernos, neandertais e chimpanzés. Para descobrir
rações epigenéticas. Estas variações influenciam mar- como os padrões únicos dos denisovanos podem ter
cadamente a maioria das características biológicas ao influenciado as suas características físicas, consultaram
longo da vida e, na realidade, podem ajudar a determinar bases de dados de doenças monogénicas atuais, que
diferenças entre células com genomas idênticos. afetam um único gene e causam alterações anatómi-
Uma das alterações epigenéticas mais bem estuda- cas específicas quando estão ausentes ou defeituosos.
das é a metilação do ADN, uma marca que, como um Como os genes metilados são inativos, os seus efeitos
semáforo, informa quais os genes que estão ativos e fisiológicos podem ser comparados com os dos genes
inativos. No ADN metilado, um nucleótido (a citosina) presentes na base de dados, informação que permite
degrada-se ao longo de milhares de anos num produto aos investigadores inferir algumas características da
final diferente do normal. Ao rastrear essa degradação anatomia denisovana.

143
Europeus Asiáticos Asiáticos
orientais do Sul e papuas
(chineses, japoneses, da Nova Guiné
vietnamitas...) (paquistaneses,
tamiles, indianos,
papuas...)

80 %

50 % 50 %

80 % 80 % 80 %

Percentagem de concordância com os haplotipos (variantes genéticas) da população Denisova 1,


aparentada com o fóssil Denisova 3 dos montes Altai

Percentagem de concordância com os haplotipos da população Denisova 2, de origem incerta

Percentagem de concordância com haplotipos neandertais

Duas populações denisovanas diferentes


no genoma asiático
U m estudo coordenado pela matemática
Sharon R. Browning, do Departamento
de Bioestatística da Universidade de Wash-
Quando Browning e a sua equipa começa-
ram a compará-los, observaram que os de
Denisova 3 correspondiam a 80 por cento
ington, revelou que os asiáticos atuais carre- dos presentes no genoma dos chineses da
gam no seu ADN a marca genética de dois etnia han, maioritária no país, e no de outros
grupos diferentes de ancestrais denisova- asiáticos orientais. Além disso, notaram uma
nos. Um está intimamente relacionado com coincidência adicional mais baixa, de 50%,
a jovem cuja falange fóssil, conhecida como que indicava a existência de uma segunda
Denisova 3, foi encontrada nos montes Altai. população denisovana longinquamente apa-
O outro tem um parentesco muito mais dis- rentada com a de Altai. Nos papuas da Nova
tante e a sua procedência é desconhecida. Guiné e noutros povos do sul da Ásia, só
Para chegar a essa conclusão, Browning e os há traços desta última, o que sugere que o
seus colaboradores utilizaram a técnica Spri- segundo grupo de denisovanos viveu prova-
me, que permite localizar segmentos de ADN velmente no sul do continente asiático. Em
que contêm uma série de variantes genéticas contraste, no caso dos neandertais, esse tipo
antigas, muito raras no homem moderno, de impressão digital genética aparece de
que tendem a ser herdadas: os haplotipos. forma semelhante em asiáticos e europeus.

O povo do Tibete tem uma adaptação herdada dos denisovanos que permite viver mais facilmente a grande
altitude. Os seus mastins possuem uma característica semelhante, transmitida por lobos cinzentos.

PRIMOS DOS NEANDERTAIS Assim, a partir do fóssil de Denisova 3, podemos


Até ao momento, o sistema revelou 56 características extrapolar que a jovem à qual ele pertencia se parecia
desses humanos desaparecidos, das quais onze são em certa medida com os neandertais. Tal como eles,
exclusivamente deles. As outras, pelo contrário, também deveria ter uma testa inclinada e uma grande pélvis.
estão presentes no Homo neanderthalensis e no Homo Porém, era muito diferente noutros aspetos: o seu crâ-
sapiens moderno. No entanto, essas características nio era muito largo e tinha uma grande arcada dentária
específicas permitem-nos, por exemplo, ter uma ideia da (grupo de dentes que forma a mandíbula, com a forma
forma do seu esqueleto. de um arco), duas peculiaridades únicas entre os homi-

144
GETTY

ninos. Em essência, podemos dizer que neandertais e


Praticamente denisovanos eram uma espécie de primos evolutivos.
Em algum momento há entre 750 e 550 mil anos, a
não tinham queixo, nossa linhagem separou-se daquela que partilhamos
com ambos; nessa primeira população ancestral de
mas deveriam ter rostos humanos arcaicos, ainda não estavam presentes os
traços morfológicos que mais tarde caracterizariam os
largos e maciços neandertais, os denisovanos e os humanos modernos.

145
CORDON
Como se vê nesta escultura, apresentada em 2019 por especialistas da Universidade Hebraica de Jerusalém,
os denisovanos tinham uma testa inclinada, semelhante à dos neandertais, mas o crânio era mais largo.

Seria assim uma denisovana?


O material genético encontrado no fóssil
conhecido como Denisova 3 (um osso
minúsculo de uma mão) permitiu que investi­
mente semelhante aos neandertais. Como
eles, possuía uma testa inclinada e uma pélvis
grande, mas também apresentava diferenças
gadores do Instituto Max Planck de Antropo­ importantes, como um neurocrânio largo, uma
logia Evolutiva (Alemanha) descobrissem que arcada dentária notável e dentes grandes. Esta
pertencera a uma jovem com pele escura. Com informação permitiu ao paleoartista Maayan
o tempo, apareceram mais restos de deniso­ Harel recriar o possível rosto de uma jovem
vanos e obtivemos novos dados sobre esses denisovana, embora não tenha sido encon­
humanos extintos. Assim, no final de 2019, trado o crânio de um indivíduo específico. Por­
uma equipa de biólogos computacionais lide­ tanto, é uma aproximação. Como os denisova­
rada por Liran Carmel e David Gokhman, da nos e os neandertais têm certas semelhanças
Universidade Hebraica de Jerusalém, revelou genéticas e há evidências de que viviam perto
que a sua configuração craniana tinha algu­ uns dos outros, Harel decidiu incluir traços
mas características muito interessantes. O seu neandertais nas partes em que a sua aparência
trabalho, centrado nos padrões de metilação é desconhecida. A fiabilidade desta represen­
do ADN, mostrou que Denisova 3 era parcial­ tação é, portanto, a mesma de um esboço.

146
INSTITUTO MAX PLANCK DE ANTROPOLOGIA EVOLUTIVA
O ADN preservado no osso de falange Denisova 3 (na foto, uma cópia) revelou que a jovem denisovana a que
pertenceu tinha tez escura e cabelos castanhos. Viveu há cerca de 85 mil anos, num grupo muito endogâmico.

O último denisovano poderá ter vivido


na ilha da Nova Guiné, há apenas 15 mil anos

Depois da divisão, denisovanos e neandertais partilha- uma única população neandertal que transmitiu o seu
ram a mesma linhagem durante pelo menos 170 mil anos, legado de forma semelhante.
após o que se separaram em dois ramos independentes. Embora o estudo da metilação do ADN antigo tenha
Por terem feito parte da mesma linhagem durante muito um futuro brilhante, a verdade é que, de momento,
mais tempo, possuem maiores semelhanças entre os ainda está na sua infância e ainda há muito por fazer.
seus genomas do que com o nosso. Além do mais, nem todas as previsões do estudo
No entanto, o traço genético dos denisovanos ainda Denisova 3 se mostraram corretas. Por exemplo, uma
persiste em diferentes populações atuais da Ásia e da delas determinava que a arcada dentária deveria ser
Oceania, desde o grupo étnico han, maioritário na mais alongada nesses humanos extintos do que nos
China, em Taiwan e em Singapura, até aos papuas da humanos modernos e nos neandertais, mas a man-
Nova Guiné. Há indícios de que poderão ter-se cruzado díbula de Xiahe mostrou que, na verdade, não o era
com humanos modernos neste local há apenas 15 mil tanto quanto se poderia inferir dos modelos preditivos.
anos. Pelo contrário, as suas variantes genéticas típicas Mesmo assim, os especialistas estão convencidos de
são quase inexistentes nos europeus, onde, em compa- que as novas técnicas de análise trarão muitas surpre-
ração com os asiáticos, aparecem numa percentagem sas neste campo, num futuro imediato. Afinal, a evolu-
quase nula. ção humana é um processo extremamente complexo,
As coisas mudam quando se trata de neandertais. um desafio intelectual extraordinário que temos de
A sua herança genética é semelhante nos habitantes estar dispostos a enfrentar.
da Ásia e do Velho Continente, o que indica que houve M.G.B.

147
A pista dos primeiros
CLEARWATER DOCUMENTARY

americanos pode ser


rastreada até ao lago
Baikal, na Rússia,
e à Beríngia, a faixa
de terra que a ligava
à América há milhares
de anos, hoje
em grande parte
submersa. Na foto,
uma imagem
do documentário
Codebreakers.

148
Chegàmos
à América!
O continente americano foi o último
em que a nossa espécie se instalou.
Agora, começamos a saber em pormenor
como foi a jornada dos pioneiros
que ali entraram pela primeira vez.

149
H
á cerca de 15 mil anos, um pequeno grupo
de pioneiros alcançou o limiar de um novo
mundo, no extremo do que é hoje o Alasca.
Para sul, estava toda a América: quarenta
milhões de quilómetros quadrados de território virgem
com vastas planícies, selvas impenetráveis e altas
cadeias de montanhas. Estavam prestes a embarcar
numa jornada épica.
Pouco antes, terminara outra aventura extraordinária.
Os seus antepassados tinham passado milénios na
Ásia, sobrevivendo a duras penas em regiões desoladas
a sul do Círculo Polar Ártico. Tinham acabado de chegar
àquela área quando as temperaturas caíram e o clima
do planeta se tornou atroz. Perante condições cada
vez mais adversas, permaneceram ali durante milhares
de anos, isolados do resto da humanidade.
No entanto, o seu destino está a vir à tona. Assim,
sabemos que durante esses anos perdidos aconteceu
algo excecional: os humanos que iriam conquistar a
América desenvolveram algumas adaptações inusitadas
para sobreviver, um legado genético que pode ajudar
a encontrar os seus descendentes.
Não sabemos ao certo quando é que os humanos
chegaram ao Novo Mundo. Há um certo consenso de
que se trata de um evento recente, que talvez tenha
ocorrido há 15 mil anos. A hipótese mais difundida é
que tenha ocorrido através da chamada “ponte da
Beríngia”, área em torno do estreito de Bering, que
hoje separa a Sibéria do Alasca mas, naquela época,
estava acima do nível do mar. Isso significa que a his-
tória dos primeiros americanos começou com uma
odisseia subártica.

ROUPAS E FERRAMENTAS
ELENA PAVLOVA

Durante centenas de milhares de anos, o Homo erectus,


os neandertais e os denisovanos espalharam-se por dife-
rentes regiões da Ásia e da Europa. No entanto, parece
que não foram muito além do paralelo 55 norte, que
cruza a fronteira norte da atual Irlanda e do Cazaquis- teve muito a ver com isso. Assim, para suportar o frio,
tão. “Há muitas razões para não o fazer”, diz o arqueó- seria necessário que eles tivessem vestimentas ade-
logo Ben Potter, do Departamento de Antropologia quadas, e a solução para a escassez de presas estava
da Universidade do Alasca em Fairbanks. “Não é só por no uso de armadilhas e laços, ou seja, instrumentos
causa do frio: nas latitudes mais altas, não há muitos automáticos de caça como os que ainda hoje usam
animais, o que dificulta a caça.” os habitantes do Ártico, operando 24 horas por dia e
A julgar pelas evidências disponíveis, foram os huma- cobrindo facilmente áreas de milhares de quilómetros
nos modernos, e não os nossos parentes extintos, quadrados.
os primeiros a entrar no norte da Eurásia. John Hoffecker, Alguns investigadores argumentam que as primeiras
especialista em paleoecologia humana da Universidade provas de atividade humana no norte da Eurásia têm
do Colorado em Boulder, suspeita que uma série de cerca de 45 mil anos, algo que não convence todos os
invenções que facilitaram o seu acesso a essas regiões cientistas. No entanto, sabemos que os registos arqueo-

Os ancestrais dos primeiros americanos viveram


isolados na Beríngia durante milhares de anos

150
Os restos mortais
de dois indivíduos
encontrados perto
do rio Yana,
no norte da Sibéria,
são a evidência mais
antiga de presença
humana na área.
Têm 32 mil anos
e, embora não sejam
antepassados diretos
dos primeiros
americanos
(esta linhagem
desapareceu
há 23 mil anos),
a sua descoberta
apoia a ideia
de que os ancestrais
destes últimos
habitaram aquela
região durante
muito tempo.

lógicos mais antigos conhecidos acima do Círculo que preservaram o ADN. Pertenciam a crianças que
Polar Ártico estão numa jazida com 32 mil anos localizada faziam parte de uma população aparentada com os
nas margens do rio Yana, na extremidade oeste da nativos americanos modernos, embora não sejam seus
Beríngia. Foram encontrados no local centenas de antepassados diretos.
utensílios de pedra e uma infinidade de ossos, alguns A descoberta mais importante diz respeito ao tama-
deles usados para fazer agulhas. nho da comunidade a que pertenciam. As crianças eram
As populações que viviam nas proximidades do Yana geneticamente tão diferentes uma da outra que, para
capturavam pássaros, renas e rinocerontes-lanudos, e explicar a sua coexistência, o grupo de Yana deveria
talvez lebres, por causa das peles. Apesar da dificuldade ter mais de 500 membros. “É um achado surpreen-
de viver naquelas condições, os caçadores tiveram dente”, diz Hoffecker. A povoação ficava muito longe
tempo para a expressão artística. É, pelo menos, o que dos centros de atividade humana da época, localizados
parece concluir-se da grande quantidade de contas de mais a sul, pelo que seria de esperar que a sua população
osso e marfim que vão surgindo, juntamente com ban- fosse muito pequena e endogâmica. “No entanto, era
das habilmente decoradas deste material (diademas, uma comunidade muito saudável”, explica o especialista.
provavelmente) e pratos, também de marfim, que Isso sugere que na Beríngia também ocorreram migra-
podem ter sido usados para fins rituais. Também foram ções (pelo menos até certa altura, tanto para o enclave
encontrados restos humanos: dois pedaços de dente como a partir dele), o que manteve a diversidade gené-

151
Os beringianos desenvolveram adaptações únicas,
como ductos mamários mais eficientes
tica dos habitantes. No entanto, embora este grupo como Hoffecker, afirmam que a incubação ocorreu na
possa ter prosperado, não há evidências fortes de que própria Beríngia. Argumentam que, devido à sua posi-
se tenha deslocado para leste, embora a Sibéria e a ção geográfica, é mais provável que uma população
América estivessem ligadas por terra na época. permaneça nela durante muito tempo. Hoje sabemos
Viveram ali durante gerações. Depois, há cerca de 30 que, de facto, foi o que aconteceu com outros mamíferos,
mil anos, a Terra entrou num período de frio intenso, como os alces e os ursos-pardos.
o Último Máximo Glacial. Parte da América do Norte A linguística pode lançar alguma luz sobre o assunto.
ficou coberta por enormes massas de gelo, e o caminho Há semelhanças entre algumas línguas da América e
da Beríngia para o Novo Mundo congelou e deixou de o ket, uma língua paleossiberiana ainda praticada por
ser praticável. Levou cerca de 15 mil anos até que as algumas pessoas a oeste do lago Baikal. As línguas mais
condições melhorassem e a rota se abrisse novamente. antigas da família ket, todas extintas, eram faladas
No início deste período, o assentamento de Yana foi perto da região da Beríngia, sugerindo que foi aí que
abandonado, mas, aparentemente, outros grupos con- surgiu. Os seus falantes podem ser descendentes dos
tinuaram a viver na área. beríngios, que migraram de regresso à Sibéria após o
Último Máximo Glacial.
ROTAS BLOQUEADAS Hoffecker aponta mais duas razões pelas quais faz
Há uma década, descobriu-se que há pequenas dife- sentido uma longa estada na Beríngia. À medida que o
renças genéticas entre os atuais nativos americanos clima da Terra arrefeceu e os mantos de gelo começa-
e os asiáticos orientais que surgiram milhares de anos ram a formar-se, o nível do mar caiu consideravelmente:
antes de os humanos entrarem na América. Ripan Malhi, há 28 mil anos, poderia estar até cem metros abaixo do
um geneticista da Universidade do Illinois que esteve nível atual. A consequência foi que, no centro e no sul
envolvido na descoberta, suspeita que os ancestrais dos da Beríngia, ficaram expostos milhares de quilómetros
primeiros nativos americanos viveram na Beríngia e quadrados de novas terras, que não eram umas ter-
ficaram isolados quando as temperaturas caíram, há ras quaisquer: embora a maioria das áreas subárticas
30 mil anos. se tenham tornado frias e áridas há 30 mil anos, os
Nessa época, os desertos polares, na Eurásia, e os modelos climáticos e os registos de pólen que sobre-
mantos de gelo, na América do Norte, bloqueavam as viveram até hoje indicam que era uma região húmida
rotas para sul, de modo que as populações permanece- e temperada, talvez porque lhe chegassem as cor-
ram separadas do resto da humanidade durante vários rentes de ar quente do Pacífico. “Não há outro lugar
milhares de anos. É tempo suficiente para, devido ao no mundo onde tenha havido uma expansão tão signi-
processo da deriva genética, terem desenvolvido ficativa de habitat viável durante o apogeu do Último
uma série de adaptações, antes de entrarem no Novo Máximo Glacial”, diz Hoffecker.
Mundo. Esta hipótese é conhecida como “modelo de Com base no tamanho da Beríngia e na benigni-
incubação na Beríngia”. dade do seu clima, alguns especialistas calcularam que
Hoje, a maioria dos investigadores apoia esta ideia poderia ter abrigado dezenas de milhares de pessoas
e inclina-se a pensar que essa incubação começou há nesse período. De qualquer forma, prosperar naquele
cerca de 24 mil anos, quando as condições climatéricas enclave teria sido um grande desafio para os seus habi-
começaram a ser realmente más. Os antepassados dos tantes. No inverno, quem vive atualmente acima dos 46
primeiros americanos poderão ter permanecido isola- graus de latitude norte dificilmente recebe a radiação
dos durante nove milénios. Continua por esclarecer solar necessária para sintetizar a vitamina D na pele.
onde é que isso aconteceu. “Mesmo que se despisse, não teria exposição sufi-
Potter está convencido de que eles recuaram para ciente aos raios ultravioleta”, diz Leslea Hlusko, profes-
sul à medida que o tempo piorava, e que passaram sora do Departamento de Biologia Integrativa da Uni-
o Último Máximo Glacial nas proximidades do lago versidade da Califórnia em Berkeley. Podemos resolver
Baikal, a cerca de 53 graus de latitude norte. Os restos parcialmente o problema consumindo alimentos
de uma criança, cujo ADN revelou que ela morreu ricos em vitamina D, como o peixe azul, mas os bebés
naquele local há 24 mil anos, dão credibilidade à sua podem sofrer de deficiência da vitamina, o que enfra-
proposta. Além disso, tal como as crianças de Yana, era quece o sistema imunitário e causa diversos distúrbios,
parente da população americana original, embora não como doenças ósseas. Hlusko pensa que a própria evo-
fosse seu antepassado direto. Outros especialistas, lução encontrou uma solução para esta questão.

152
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
Há 15 mil anos, os primeiros americanos, cujos antepassados viveram na Beríngia durante gerações, à margem
das outras comunidades humanas, penetraram no Novo Mundo. Pouco depois, dividiram-se nos grupos ancestrais
A e B, que ocuparam diferentes regiões. Alguns especialistas acreditam que, antes de entrarem na América,
já haveria diferentes clãs de beringianos, como os que deram origem à População Y, cujo legado genético perdura
na Amazónia e pode ser rastreado até Monte Verde, no Chile, ou a enigmática e antiga população sem amostras A.

Os humanos que conquistaram a América desen- Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Uni-
volveram adaptações atípicas para sobreviver. Uma versidade de São Paulo (Brasil). Em 2017, uma equipa
variante do gene EDAR aumenta a densidade da rami- de investigadores, incluindo Hünemeier, mostrou que
ficação dos ductos mamários. Hlusko acredita que isso muitos nativos americanos atuais possuem versões
terá melhorado a transferência de nutrientes (incluindo invulgares de uma família de genes chamada FADS.
a vitamina D) das mães para os filhos. A mesma Estes desempenham um papel fundamental na forma
variante de ETAR está relacionada com o aparecimento especialmente eficiente como as comunidades subárti-
de uma camada de esmalte surpreendentemente cas processam alimentos ricos em ácidos gordos. Essas
espessa na face lingual dos dentes incisivos. Alguns variantes podem ter-se manifestado durante a estada
indivíduos da Ásia Oriental ainda apresentam essa na Beríngia.
peculiaridade, comum entre os nativos americanos.
Não há vestígios dela no resto do mundo. Para Hlusko, ATÉ À AMAZÓNIA
isso é consistente com a ideia de que os beringianos, Estes estudos permitem imaginar como era a vida
isolados no seu território, desenvolveram essa variante naquela área e naquela época. No entanto, até agora,
da ETAR, que lhes permitiu lidar com a carência de vita- apenas considerámos o prólogo da verdadeira aventura
mina D e lhes deixou aquela camada de esmalte. dos primeiros americanos, que começou há 15 mil anos,
“É uma boa hipótese”, diz Tábita Hünemeier, do quando os mantos de gelo recuaram e uma pequena

153
Os genes que ajudaram
população geneticamente homogénea passou da
os habitantes das regiões
Beríngia para o Novo Mundo. Quatro séculos depois, já subárticas a sobreviver
se tinha dividido em dois grupos. Aparentemente, um há mais de 15 mil anos
deles, denominado Ancestral B, instalou-se principal- ainda permanecem
mente nas regiões setentrionais da América do Norte, na herança dos nativos
onde ainda vivem muitos dos seus descendentes. Com americanos modernos,
o tempo, o segundo, conhecido como Ancestral A, como estes membros
daria origem à cultura Clovis, uma das mais conhecidas da tribo paiute,
e estudadas da pré-história americana. Ao longo dos originários dos atuais
dois milénios seguintes, os seus membros expandiram- estados do Arizona,
do Utah e do Nevada.
-se em direção à América Central e do Sul.

VÁRIOS GRUPOS DIFERENTES


Este era o modelo de colonização mais difundido
entre os especialistas até 2018. Porém, naquele ano,
ficámos a saber que, durante o período de incubação, os
beringianos já se dividiam em ramos diferentes, o que
significa que, na realidade, entraram no Novo Mundo
vários grupos geneticamente distintos. A prova mais
clara está no ADN contido nos ossos de duas crianças
enterradas no Alasca há 11 500 e 9000 anos. Perten-
ciam a um grupo genético de antigos beríngios que se
separou dos outros há cerca de 22 mil anos. Que isso
tenha acontecido na Beríngia e que as duas comuni-
dades não se tenham misturado durante milénios não
é tão implausível como pode parecer à primeira vista.
Segundo Malhi, as espécies arbóreas da área passaram
por um processo de fragmentação semelhante durante
o Último Máximo Glacial. Talvez as populações tenham
permanecido isoladas porque cada uma se adaptou a
um microclima específico dentro da área, sugere Malhi.
De momento, não há indicação de que a contribuição
dos antigos beringianos para o processo populacional
do Novo Mundo tenha sido significativa. Mesmo após
o recuo dos mantos de gelo, parecem ter permane-
cido nos seus territórios ancestrais, desaparecendo
finalmente à medida que as populações nativas ame-
ricanas fizeram o caminho inverso de sul para norte e
entraram no Alasca.
É provável que não tenham sido os únicos a sepa-
rarem-se durante o período de incubação na Beríngia. a outra subpopulação surgida na Beríngia há cerca de
Na verdade, outras populações poderão ter tido um 25 mil anos.
espírito viajante muito mais acentuado. Por exemplo, Como se não bastasse, há também vestígios da
também em 2018, descobriu-se que o povo mixe do enigmática População Y. Em 2015, um grupo de cien-
México tem uma assinatura genética diferente da dos tistas mostrou que havia uma ligação genética entre
seus vizinhos. Alguns especialistas sugeriram que, há as etnias suruí e karitiana da Amazónia e alguns povos
9000 anos, os seus antepassados podem ter-se mis- indígenas da Australásia. A explicação mais simples é
turado com um grupo misterioso, provisoriamente que a origem dessa ligação se encontra num grupo
chamado UPopA (acrónimo de Unsampled Population pré-histórico da Ásia Oriental (a População Y), for-
A, “população sem amostras A”), que corresponderia mado pelos antepassados dos primeiros australasianos

Traços de várias populações sugerem que a colonização


da América do Sul foi um processo complexo

154
ALAMY

que também viveram na Beríngia. Até ao momento, Verde, no Chile, com 14 200 anos, deixaram um legado
nenhum traço do ADN dessa população Y foi encontrado genético que agora só se vê em alguns povos da Ama-
em antigos beríngios ou nativos da América do Norte, pelo zónia. De qualquer forma, isso indicaria que a coloni-
que alguns investigadores duvidam da sua existência. zação da América do Sul foi um processo muito mais
Em 2018 (mais uma vez), o ADN de um indivíduo que complexo do que se pensava até agora.
morreu há 10 400 anos no leste do Brasil foi conside- De uma forma ou de outra, com o tempo, os descen-
rado semelhante ao dos australasianos. Pertenceu ao dentes dos pioneiros que chegaram ao limiar do Novo
Grupo Ancestral A, que acabou por ocupar a América Mundo há 15 mil anos criaram gigantescas obras de
do Sul. Como a assinatura da População Y não foi arte no deserto peruano de Nazca, iniciaram nas selvas
encontrada em vestígios do Grupo Ancestral A na Amé- equatoriais o idílio que a humanidade ainda mantém
rica do Norte, os geneticistas apontam que se cruzaram com o chocolate e fundaram grandes civilizações no
após chegarem ao sul do continente. Isso sugere que os México. As populações nativas americanas de hoje ainda
primeiros humanos a entrar na América do Sul seriam os carregam o legado genético dessas extraordinárias
beringianos da População Y. A ser assim, os habitantes gentes vindas da Sibéria.
de alguns assentamentos sul-americanos, como Monte B.C.

155
Muitos dos principais
deuses das religiões
antigas incorporam os
princípios do patriarcado.
É o caso de Zeus, com
um caráter arrogante,
vingativo, violento
e caprichoso, sucessor
da matriarca Gaia, deusa
que personificava a Terra.
AGE

156
Patriarcado:
eles e só eles
O desequilíbrio de poder entre os géneros e a prevalência
da violência contra as mulheres são um flagelo.
A sociedade em que o masculino tem a supremacia
pelo simples facto de ser masculino não beneficia ninguém.
Como chegámos aqui e para onde deveremos ir no futuro?

A
grande maioria das culturas são patriar- A residência patrilocal (é assim que se chama este
cados, o que significa que os homens têm sistema social) está associada ao patriarcado, como
maior probabilidade do que as mulheres de explica a antropóloga e primatóloga Sarah Hrdy, da
ocupar cargos de poder social, económico e Universidade da Califórnia em Davis.
político. Portanto, é tentador supor que essa situação Durante a maior parte da nossa história, os humanos
seja natural, talvez porque, em média, eles são mais foram caçadores-recoletores, e a residência patrilocal
fortes do que elas. Porém, estudar as raízes da huma- não é a norma nessas sociedades que ainda existem.
nidade e outras espécies sugere que essa resposta é Em vez disso, qualquer um dos cônjuges vai viver com
demasiado simples. os parentes, ou o casal separa-se de ambas as famílias.
Os chimpanzés não são representantes dos nossos Segundo Hrdy, estes sistemas implicam um certo grau
antepassados (evoluíram muito desde que as nossas de igualitarismo. Ao refletir o que os caçadores-recole-
respetivas árvores genealógicas se dividiram, há entre tores pré-históricos faziam, as mulheres dessas socie-
sete e dez milhões de anos), mas as suas estruturas dades primitivas podiam contar com o apoio do grupo
sociais podem dar pistas sobre as condições em que em que cresceram, ou poderiam escapar da opressão.
se desenvolve a dominação masculina. Os grupos de
chimpanzés comuns são manifestamente patriarcais. SEDENTARISMO MISÓGINO
Os machos comportam-se de maneira brutal com as Segundo uma corrente de pensamento, as coisas
fêmeas: tiram-lhes a comida, obrigam-nas a copular mudaram há cerca de doze mil anos. Com o surgi-
quando estão a ovular e até as matam simplesmente mento da agricultura e da criação de gado, as pessoas
por terem passado um tempo longe do grupo. começaram a estabelecer-se e a adquirir recursos que
Além disso, eles passam a vida inteira na comunidade tinham de ser defendidos. Assim, o poder passou para
em que nasceram, enquanto elas se vão embora na os homens, fisicamente mais fortes. Pais, filhos, tios e
adolescência. O resultado é que os machos do grupo avós passaram a viver perto uns dos outros, a proprie-
têm entre si relações familiares mais próximas do que dade foi transmitida pela linha masculina e a autono-
elas, e, como os parentes costumam ajudar-se uns aos mia das mulheres foi reduzida. Foi assim, diz a teoria,
outros, eles estão em posição vantajosa. que surgiu o patriarcado.
O mesmo pode ser dito das sociedades humanas: Esta história das nossas origens baseia-se num
quando as mulheres vão viver com a família dos mari- estudo publicado em 2004. Investigadores da Universi-
dos, os homens tendem a ter mais poder e privilégio. dade de Roma La Sapienza analisaram o ADN mitocon-

157
O patriarcado surgiu em estruturas sociais que
formalizaram a propriedade e a herança masculinas

drial (herdado das mães) e marcadores genéticos no tesco é difícil.” Às vezes, prevalece o instinto compe-
cromossoma Y (herança dos pais) de 40 populações da titivo, ou a colaboração pode falhar. Por exemplo,
África subsahariana. O resultado sugeriu que as mulhe- em tempo de guerra: “As mulheres começam a cuidar
res de populações de caçadores-recoletores, como os da segurança dos seus filhos e maridos”, observa Hrdy.
!kunges e os hadza, ficavam mais com as suas mães após Na verdade, preocupa-a que os conflitos possam cor-
o casamento do que aquelas de grupos produtores de roer as conquistas das últimas décadas. “Nada disto é
alimentos. Com os homens, sucedia o contrário, o que garantido”, diz. “Digo isso às minhas filhas: não tomem
indicaria que a agricultura está realmente relacionada por garantido o que têm agora.”
com as sociedades patrilocais.
É tentador pensar que a dominação masculina é o DADOS ALARMANTES
estado natural das comunidades humanas, mas não Restaurar e fortalecer a igualdade exigirá esforços
é. Para corrigir as coisas, é crucial a solidariedade, diz em muitas frentes, diz. Se o patriarcado surgiu em estru-
Amy Parish, da Universidade do Sul da Califórnia, em turas sociais sedentárias que formalizaram a proprie-
Los Angeles. Parish estuda as sociedades de bonobos, dade e a herança masculinas, então as leis que dão às
que são patrilocais, mas nas quais o poder é exercido mulheres o direito de possuir propriedade em seu
pelas fêmeas. Elas pesam 15% menos do que os machos, nome, por exemplo, podem ajudar. No entanto, elas já
quase o mesmo que se passa em humanos e chimpan- existem em muitas sociedades do século XXI. Então,
zés. Parish explica que, mesmo assim, são as fêmeas porque persiste o patriarcado? Em última análise, as
que mandam, porque fazem alianças. Nisso, vê um verdadeiras mudanças só ocorrem quando as comu-
paralelo com os movimentos feministas: “O objetivo é nidades incorporam os valores defendidos pela lei,
comportar-se com fêmeas que não são da família como argumenta Lise Eliot, neurocientista da Universidade
se fossem irmãs.” Rosalind Franklin de Medicina e Ciência (Illinois). “As
Porém, não é tão fácil como parece. “O movimento leis são o primeiro passo; depois, vem a interiorização
#MeToo defende a cooperação entre mulheres”, diz dos valores.”
Hrdy, “mas alcançá-la quando não há relações de paren- Por falar de legislação injusta, mais de 600 milhões

O surgimento de comunidades
sedentárias de agricultores
e criadores de gado é paralelo
com as sociedades patrilocais.
JOSÉ ANTONIO PEÑAS / AGE

158
Este tipo de

AGE
estatueta feminina
com seios e barriga
proeminentes
é frequentemente
associado
a sociedades
matriarcais.
Essa ligação
nem sempre existe,
como no caso
da Mulher Sentada
de Çatal Hüyük
(Anatólia, Turquia),
um assentamento
neolítico descoberto
em 1958.

159
Sociedades Tribos de caçadores-
-recoletores, como
os hadza da Tanzânia,
em que as mulheres são governados
por sistemas que
são tratadas como envolvem um grau
de igualitarismo entre
propriedade e excluídas homens e mulheres.

da vida pública são mais


propensas a violações

de mulheres vivem em países onde a violência sexual


não constitui crime, segundo a ONU. O número é escan-
daloso, mas, dado que há 3700 milhões de mulheres
no mundo, também podemos concluir que mais de
3000 milhões estão legalmente protegidas contra as
formas mais extremas de assédio sexual.
Apesar disso, os dados sobre crimes sexuais são
alarmantes. Nos Estados Unidos, 15% das mulheres afir-
mam ter sido violadas em algum momento das suas
vidas. Globalmente, 30% sofreram violência sexual nas
suas relações: de 16% na Ásia Oriental a 65% na África
Central subsahariana. Até mesmo as Nações Unidas,
cuja missão declarada é defender os direitos humanos
fundamentais e promover o progresso social, foram
afetadas por numerosas acusações de violação, explo-
ração sexual e abusos.
Uma questão se coloca imediatamente: porque é
que esse tipo de violência é tão universal e, ao mesmo
tempo, tão variável de um lugar para outro? No livro
A Natural History of Rape, o biólogo Randy Thornhill e
o antropólogo Craig Palmer propuseram uma resposta
à primeira pergunta: argumentaram que a violação é
uma adaptação evolutiva que permite aos machos
transmitir um maior número dos seus genes. A tese
causou um escândalo considerável. Tim Birkhead, da
Universidade de Sheffield (Inglaterra), considerou-o Jerry Coyne, da Universidade de Chicago (Illinois), e do
“moralmente irresponsável”. A verdade é que os dados britânico Andrew Berry, de Harvard (Massachusetts), o
parecem negar esta abordagem. Há um estudo segundo livro deturpou os dados utilizados.
o qual as mulheres têm 2,5 vezes mais probabilidade de
engravidar após uma violação do que após uma relação IDEOLOGIAS DE COMPETIÇÃO
sexual consensual (mesmo levando em conta o efeito É possível ter uma melhor perceção dos fundamentos
do uso de contracetivos), mas a ideia não explica a vio- da violência sexual comparando diferentes sociedades?
lação de homens e crianças. No seu Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde, a Orga-
Além disso, como apontou o primatólogo Frans de nização Mundial da Saúde (OMS) alerta que apenas
Waal, da Universidade Emory, de Atlanta (Geórgia), temos dados parciais. No entanto, uma análise cuidadosa
numa resenha do livro publicada no New York Times, se dos que temos revela algumas surpresas. A violência
a violação fosse uma adaptação, os violadores seriam sexual não é mais difundida em sociedades onde os
geneticamente diferentes daqueles que não o são e homens superam as mulheres em número, nem está
teriam mais filhos. “Não há a menor evidência de que associada a atitudes sexuais mais liberais, nem a uma
qualquer desses dois requisitos se cumpra”, escreveu. sexualidade reprimida no género masculino.
De facto, segundo uma análise do norte-americano Para lançar alguma luz sobre as causas subjacentes,

160
BOYD E. NORTON / AGE

a antropóloga Peggy Reeves Sanday, da Universidade matriarcal não é o oposto de uma patriarcal. É uma
da Pensilvânia, e a sua equipa analisaram 156 socie- sociedade igualitária”, afirma. “Quando mulheres e
dades tribais, das quais 18% foram classificadas como homens cooperam em certos aspetos da vida diária, o
“propensas a violação”. Os traços mais proeminentes abuso sexual não ocorre.”
que partilhavam eram altos níveis de violência em geral, Da mesma forma, o relatório da OMS conclui que
falta de envolvimento dos pais na criação dos filhos, a desigualdade de género está no centro da violência
ideologias que exaltavam a dureza masculina, a domi- sexual contra as mulheres. “Na base do assédio sexual
nação e a competição, e baixo respeito pelas mulheres, está sempre o poder”, diz Cynthia Enloe, que se dedica
incluindo tratá-las como propriedades e excluí-las da aos estudos de género e do militarismo na Universidade
vida pública, económica e política. Clark, em Worcester (Massachusetts). “A única forma
Reeves Sanday trabalhou nessa área durante décadas de eliminá-lo é combater a desigualdade.” No seu
com algumas das comunidades menos sexualmente livro Pushing Patriarchy, argumenta que continuamos
agressivas do mundo, como os minangkabau, de a modernizar as ideias que o sustentam, em vez de
Sumatra ocidental (Indonésia). Esse trabalho levou-a a nos livrarmos delas. Para equilibrar a balança, a OMS
acreditar que, se queremos reduzir a violência sexual, defende que os pais se envolvam mais na criação dos
temos de imitar os matriarcados. “Uma sociedade filhos, além de recomendar o ativismo de homens e

161
mulheres e leis mais duras para reduzir a desigualdade interesse dos homens pelo estatuto social leva-os a
em salários, educação, divórcio e direitos de proprie- procurar empregos no setor da tecnologia, argumen-
dade, entre outras áreas. tava, enquanto os níveis mais elevados de ansiedade
das mulheres e a menor tolerância ao stress tornavam
DIFERENÇAS CEREBRAIS essa indústria menos atraente para elas. Como possível
Dizer é mais fácil do que fazer, mas a esperança está causa, citava a influência da testosterona pré-natal no
na certeza de que as culturas podem melhorar. Basta desenvolvimento do cérebro.
ver como o movimento #MeToo está a mudar menta- Infelizmente para Damore, a ciência não é tão clara.
lidades, diz Reeves Sanday, quando já há homens em Por um lado, há diferenças estruturais e anatómicas
posições de poder que também estão a manifestar-se. entre os cérebros de homens e mulheres. Uma meta-
Quando se conheceu, em 2017, o manifesto de James -análise constatou, por exemplo, que o do homem
Damore, no qual esse funcionário da Google perpetuava é aproximadamente 12% mais volumoso do que o da
estereótipos de género, foi um escândalo. Damore, mulher, além de ter maior densidade nos tecidos da
demitido poucos dias depois pela gigante da inter- amígdala esquerda e do hipocampo. Porém, não está
net, argumentou que uma das razões de haver mais claro se essas diferenças são inatas ou adquiridas. Para
homens do que mulheres no setor da tecnologia é que alguns, como Larry Cahill, neurobiólogo da Universi-
os dois sexos são biologicamente diferentes. O maior dade da Califórnia em Irvine, as evidências apontam
SHUTTERSTOCK

Há diferenças estruturais e anatómicas entre os cérebros de homens e mulheres, mas a ciência não tem a certeza
sobre se são inatas ou adquiridas: alguns estudos mostram que cada órgão pensante é um mosaico único de traços.

162
Muitas das diferenças de género não são biológicas,
mas estereótipos assimilados desde a infância

para a ideia de que a natureza governa. “A função homens e mulheres se veem. Para Lise Eliot, essa distân-
cerebral dos mamíferos apresenta diferenças basea- cia deve-se em parte à nossa necessidade inata de cate-
das no sexo em todos os níveis”, diz. Além disso, um gorizar, o que leva a estereótipos. Quando começamos
estudo de 1400 cérebros humanos concluiu que eles a categorizar na infância, produz-se a separação entre
não podiam ser simplesmente classificados como mas- meninos e meninas. “As crianças são grandes gerado-
culinos ou femininos: cada um era um mosaico único ras das suas próprias diferenças. Quando percebem
de traços não específicos de género. que são meninos ou meninas, começam a sentir-se
Sem dúvida, a cultura influencia a formação do nosso motivadas para seguir o estereótipo”, diz Eliot.
cérebro e dos nossos comportamentos. Para ilustrar Podemos nunca conseguir distinguir realmente até
o efeito das experiências da infância, Shannon Davis, da que ponto as diferenças de género são biológicas ou
Universidade George Mason (Virgínia), e Barbara Risman, adquiridas, mas muitos dos nossos estereótipos são
da Universidade do Illinois, estudaram dados recolhidos apenas isso: criações culturais que se tornaram a pedra
ao longo de 50 anos pelo programa Child Health and Deve- angular da justificação do patriarcado. Os estudos
lopment Studies, da Califórnia, que incluía informações sugerem que, se quisermos mudar esse status quo,
de quase 15 mil famílias sobre vários aspetos das suas temos de começar a questionar as ideias que recebemos
vidas, desde os níveis de hormonas das mães durante a desde os primeiros estágios da infância.
gravidez até às memórias infantis e ao comportamento
das crianças depois de se tornarem adultas. PROBLEMAS MASCULINOS
A análise mostrou que os níveis hormonais pré-na- Pode parecer que o patriarcado é, pelo menos,
tais, incluindo os níveis de testosterona, tiveram alguma benéfico para os homens, mas não é verdade, defende
influência sobre se essas pessoas, quando adultas, Enloe, que acredita que, para mudar verdadeiramente o
seriam consideradas masculinas ou femininas, mas sistema, é preciso primeiro entendê-lo. “O patriarcado
experiências de infância (ter de se defender fisica- não é bom para ninguém. Induz em erro os privilegia-
mente, usar vestidos, brincar com bonecas...) eram os dos, fazendo-os acreditar que têm uma boa vida”, diz
melhores indicadores da identidade de género. Davis e a politóloga.
Risman afirmam que os níveis iniciais de testosterona Segundo a OMS, os homens ocidentais têm três
podem moldar o corpo para que as mulheres se adaptem vezes mais probabilidade de cometer suicídio do que as
mais ou menos facilmente aos estereótipos femininos. mulheres. Esta realidade está bem refletida num estudo
“Os mesmos corpos podem originar uma socialização recente sobre a prevenção do suicídio na Irlanda,
que acaba por criar raízes”, escreveram. no qual vários indivíduos considerados de alto risco
Assim se perpetuam os estereótipos. Em 2007, um afirmaram que procurar ajuda poderia ser visto como
estudo envolvendo 80 crianças com idades de três e uma ameaça à sua masculinidade, o que incluía “uma
quatro anos mostrou que os pais (os homens) tendem perda de poder, controlo e autonomia. “
a preocupar-se mais com as atividades de risco das Em todo caso, é óbvio que quem mais perde são as
filhas do que com as dos filhos. Isso ajuda os filhos a mulheres. “Numa sociedade extremamente opressora,
interiorizar as preocupações dos pais. Outra investiga- elas não têm controlo sobre a sua reprodução, pelo
ção, esta realizada apenas com crianças de três anos, que dão à luz filhos atrás uns dos outros”, explica Hrdy.
concluiu que os meninos pensavam que os seus pais O resultado é que, em geral, as condições em que vivem
(homens) os deixavam realizar atividades em que pode- as crianças também são piores do que as de uma socie-
riam fazer mal a si mesmos, enquanto as filhas acredita- dade mais igualitária. Em patriarcados extremos, diz a
vam que os protegeriam das consequências. Segundo especialista, os números da mortalidade de mães e
as cientistas, as meninas podem aprender a esperar crianças são maiores e a saúde infantil é pior.
que os outros pensem que elas têm mais probabilidade A natureza complexa e omnipresente do patriarcado,
de se magoar do que os meninos. “É muito possível que sustenta a sociedade em todos os seus aspetos,
que interiorizem esse sentimento de vulnerabilidade”, torna difícil combatê-lo. Um elemento que complica as
afirmam. coisas é que não são apenas os homens que participam
no sistema. “O patriarcado não duraria se não houvesse
AMPLIFICAÇÃO CULTURAL também algumas mulheres para quem é útil”, diz Enloe.
A amplificação cultural de pequenas diferenças bio- Transmite, para meninos e meninas, comportamentos
lógicas resulta numa grande brecha na maneira como que os ajudam a seguir o seu caminho. Eles podem adotar

163
“Conheci o patriarcado de ambos os lados”
P aula Williams, hoje uma mulher transgéne-
ro que serve como reverenda no Colorado,
passou mais de duas décadas à frente de uma
a ganhar dinheiro. Da mesma forma, quando
falo agora de áreas do conhecimento consi-
deradas tipicamente masculinas, não é muito
organização religiosa conservadora. bem recebido. Estamos mais dispostos a ouvir
informações de homens do que de mulheres.
Acha que temos plena consciência da Normalmente, levam-me menos a sério do que
posição privilegiada que os homens um homem que fala sobre o mesmo assunto.
ocupam? Conheço muitas pessoas trans no mundo
Não há forma de um homem branco com um com experiências semelhantes às minhas: os
elevado nível de estudos compreender como a homens descobrem que são repentinamente
cultura é tendenciosa a seu favor, porque isso é considerados pessoas instruídas, enquanto
tudo o que ele conheceu e conhecerá na sua elas deixam de inspirar o respeito de que
vida, e não há forma de uma mulher enten- gozavam quando eram homens.
der a transcendência do assunto, porque ser
mulher também é a única coisa que conheceu. Como é que isso pode mudar?
Eu estive de ambos os lados. A solução não é as mulheres começarem a
comportar-se como machos alfa. Se pegarmos
Quando é que se deu conta disso? numa empresa da lista mundial Fortune Global
Eu era um homem branco, alto, instruído, com 500 e removermos um macho alfa para colo-
uma boa posição económica. De uma pers- car uma fêmea alfa, conseguimos realmente
petiva norte-americana, gozava de todos os mudar alguma coisa? Estamos a progredir em
privilégios. Sabia disso, mas não o sentia vis- igualdade, mas não em equidade. Posso ter
ceralmente. Tudo isso acabou quando fiz a as mesmas hipóteses de conseguir um cargo
transição. A perda dessa posição privilegiada do que qualquer outra pessoa, mas, se for um
foi imediata e perturbadora. cargo dependente do governo, ganharei 24
por cento menos do que um homem. Temos de
Em que consistiu essa experiência? garantir que as mulheres assumem cargos de
Ao princípio, em não conseguir os contratos responsabilidade em igualdade de condições,
que teria obtido anteriormente. Em alguns para podermos começar a trabalhar pela igual-
casos, aconteceu porque era transgénero; dade a partir de uma posição superior. Muitas
noutros, as pessoas não faziam ideia, era sim- vezes, a linha de que partimos não é a mesma
plesmente uma mulher. Havia também uma da dos homens, por isso ainda temos muito
realidade económica fundamental: não estava terreno para conquistar.

164
Incentivar os homens a ter mais contacto com
os seus filhos poderia ajudar a reduzir o abuso sexual

atitudes tipicamente masculinas que lhes permitem


prosperar num ambiente de trabalho dominado por
homens; para elas, charme e submissão podem repre-
sentar uma espécie de poder.
Mesmo que a pessoa não participe conscientemente
no sistema, há tendências inconscientes que operam
em grande profundidade. Eliot estuda as diferenças
entre o cérebro masculino e feminino, e levou anos a
perceber que estava a prestar mais atenção aos alunos
do sexo masculino, em detrimento das mulheres. “Só
através de uma dolorosa consciência podemos espe-
rar mudar o nosso comportamento”, diz. Isso significa
modificar ideias profundamente arraigadas sobre o
que significa ser homem ou mulher, o que exigirá um
esforço de ambos. “Se conseguirmos homens com
valores mais centrados nas crianças e mulheres com
valores mais profissionais, caminharemos em direção
GETTY / STEVE GRANITZ / WIREIMAGE

a uma sociedade com oportunidades iguais”, diz Hrdy.


Também é difícil para os homens viver de acordo com
os estereótipos estabelecidos pelas sociedades patriar-
cais. Mesmo num mundo em que todos têm oportuni-
dades iguais de estudar engenharia ou enfermagem,
haverá barreiras para a igualdade. Para começar, A irmandade é essencial. Na foto, as atrizes Reese
há obstáculos ocultos que os tornam menos responsá- Witherspoon, Eva Longoria, Salma Hayek e Ashley
veis pelo cuidado das crianças. Um estudo de Jasmine Judd, que usaram preto nos Globos de Ouro 2018
Kelland, da Universidade de Plymouth (Inglaterra), para mostrarem o seu apoio ao movimento #MeToo.
mostrou que os homens que trabalham em part-time
são o grupo considerado menos competente e com-
prometido com as suas tarefas. No entanto, compa- de violência por parte dos maridos. Por isso, em 2015, o
rações entre países indicam que encorajar os homens Centro de Saúde e Justiça Social de Nova Deli organizou
a ter mais contacto com os seus filhos pode ajudar a um programa voltado para adolescentes e jovens de
reduzir a incidência de violações e abusos sexuais. até 25 anos, promovido em trinta aldeias. Em cada uma
delas havia voluntários (uma a duas dúzias) que rece-
EXPERIÊNCIAS BEM SUCEDIDAS beram cursos sobre igualdade de género, sexualidade
Outro problema é a competição entre mulheres. e violência.
Uma série de estudos analisou como isso poderia estar Após um ano, o que aconteceu em sete dessas
a criar barreiras para elas. Segundo uma dessas investi- aldeias foi avaliado, e foram detetadas mudanças sig-
gações, nos Países Baixos, as professoras universitárias nificativas no conhecimento e nas atitudes, bem como
têm maior tendência a criticar os seus assistentes se no comportamento geral da comunidade. Como resul-
forem mulheres do que se forem homens. Um estudo tado do programa, todas as meninas de uma dessas
experimental publicado em 2017 sugere que as mulheres aldeias foram encaminhadas para a escola, juntamente
em cargos diretivos são menos propensas a colaborar com os meninos. Noutra, os habitantes lançaram uma
com as subordinadas do que os homens em cargos campanha contra o casamento infantil. São apenas
semelhantes. Outra análise, usando dados de traba- algumas populações numa região específica, mas o
lhadores norte-americanos, descobriu que, em geral, projeto mostra que a mudança é possível, e também
as mulheres preferem ter um chefe do sexo masculino. que não são necessárias apenas campanhas, conscien-
Por outro lado, diversos casos práticos mostram que, cialização e leis, mas uma profunda transformação dos
por meio de um esforço conjunto, as sociedades podem preconceitos e hábitos aos quais homens e mulheres
aprender a ser menos misóginas. No estado indiano do permanecem apegados.
Rajastão, um quarto das mulheres casadas são vítimas A.A. / K.D.

165
Continuamos
a evoluir?
As teorias que defendem que o ser humano conseguiu escapar
à seleção natural, graças aos avanços tecnológicos, esbarram
nos dados que indicam que continuamos a mudar.

O
astrofísico e divulgador científico norte- notáveis exceções, sustentavam até recentemente
-americano Carl Sagan (1934–1996) costu- que os humanos já não estão a evoluir: culturalmente,
mava dizer: “Somos o produto de 4500 sim; biologicamente, não. Os processos naturais que
milhões de anos de evolução biológica adaptam as populações, as transformam e distinguem,
lenta e fortuita. Não há razão para pensar que o pro- já não nos afetam. A cultura e a tecnologia são, para
cesso evolutivo parou. O homem é um animal transi- muitos pensadores, as culpadas da suposta estagna-
tório.” Somos homens das cavernas com telemóveis? ção evolutiva. A ideia é simples: o principal motor da
Os nossos corpos e cérebros estão presos na Idade da evolução é a seleção natural, mas os humanos já não
Pedra? A medicina neutralizou a seleção natural? estão sujeitos aos caprichos dessa seleção. Como o
O Homo sapiens conseguiu impedir a sua própria evolução? motor não funciona, o veículo pára.
Biólogos, paleontólogos, antropólogos e filósofos, com Os seres vivos estão sujeitos a pressões seletivas.

Crânios de alguns antepassados e outros


PASCAL GOETGHELUCK / SCIENCE PHOTO LIBRARY

parentes do ser humano. Da esquerda para


a direita: Adapis, um animal parecido com
um lémur que viveu há 50 milhões de anos
(Ma); Procônsul, um primata de há 23 a 15
Ma; Australopithecus africanus (3 a 1,8 Ma);
Homo habilis (2,1 a 1,6 Ma); Homo erectus
(1,8 a 0,3 Ma); Homo sapiens sapiens
(humanos modernos) e um Cro-Magnon
francês datado de há 22 mil anos.

166
A seleção natural acumula características adequa- dinária. Resolvemos as dificuldades mortais do parto,
das às condições ambientais, especialmente quando reduzimos doenças e defeitos genéticos, erradicámos
o ambiente varia. Um exemplo clássico: os antigos infeções graves, curamos ferimentos terríveis. Muitos
ursos-pardos trocaram a floresta por tundras e costas de nós não existiríamos se tivéssemos nascido há algu-
geladas. Nesse ambiente, aqueles com pêlos um pouco mas décadas: somos filhos da ciência e da tecnologia.
mais claros camuflavam-se e caçavam melhor; os que O naturalista inglês David Attenborough (n. 1926),
tinham patas mais largas e peludas não se afundavam conhecido pelos seus documentários sobre a vida na
tanto na neve e eram menos escorregadios no gelo; os Terra, acredita firmemente que desligámos o motor.
de maior corpulência ou maior tendência a acumular “Parámos a seleção natural quando fomos capazes de
gordura conservavam melhor o calor, etc. Com a pas- salvar 95 a 99 por cento dos bebés nascidos”, disse
sagem das gerações, os traços que faziam uns ursos numa entrevista, em 2013. “A nossa evolução, agora, é
sobreviverem e reproduzirem-se mais do que outros cultural.” Alguns cientistas, como o escocês Ian Rickard,
foram-se propagando e combinando, até dar lugar ao agora na Universidade Carolina (Praga), consideram
que conhecemos hoje como urso-polar. que Attenborough está errado: “A seleção não se preo-
O que aconteceu quando o Homo sapiens migrou cupa muito com a sobrevivência. O que lhe importa,
para climas frios? Enrolou-se nas peles dos animais que metaforicamente falando, é o número de descendentes
caçava, fez boas botas, construiu abrigos e aqueceu-se de um indivíduo que passam para a geração seguinte.
com o fogo. Estávamos ao abrigo das pressões seletivas? Atualmente, quase todos os bebés sobrevivem, mas as
Os defensores da teoria do motor parado acreditam pessoas não têm o mesmo número de bebés!”
que ele avariou quando a nossa espécie demonstrou De facto, salvar todos esses bebés poderia permitir
capacidades modernas. Há cerca de 50 mil anos, o Homo uma seleção natural muito mais intensa do que nunca.
sapiens espalhou-se pelo mundo. Dominava o fogo, Attenborough esquece que a seleção natural não opera
possuía uma rica cultura de utensílios, vestimentas apenas por meio da morte. A fertilidade é fundamental,
e armas, e plena capacidade de transmitir técnicas e tal como a saúde. Fatores genéticos infinitos podem
conhecimentos através da linguagem. predispor-nos a ter mais filhos. Ser atraente também é
crucial: a seleção sexual, tão importante para Darwin, é
ANIMAIS ESTRANHOS atualmente considerada um subtipo da seleção natural.
O progresso científico, médico e social tornou-nos ani-
mais verdadeiramente estranhos. Parece que violámos BIOLOGIA MOLECULAR
as regras naturais. Podemos tornar férteis os estéreis, Hoje, sabemos que o motor nunca parou realmente.
salvar inúmeras vidas e prolongá-las de forma extraor- Após a revolução na biologia molecular, seguida pelas

167
Apesar de podermos Os inuits não lutam
contra o frio só
cobrir-nos com roupa, com peles, iglus
e bebidas quentes:
têm mutações
a nossa pele adaptou-se evolutivas que
adaptaram os seus
à quantidade de sol corpos às baixas
temperaturas.
que recebemos

revoluções na genómica e na bioinformática, os cientis-


tas são capazes de analisar milhões de dados genéticos
de populações humanas em todo o mundo. Agora, os
sinais da seleção natural e da evolução mais recente
podem ser detetados nos nossos genomas. O que foi
descoberto perturbou o consenso: estamos a evoluir,
e talvez mais depressa do que nunca.
“Durante 40 ou 50 mil anos, não houve mudanças
biológicas nos humanos”, escreveu o paleontólogo e
divulgador científico Stephen Jay Gould (1941–2002).
“Tudo aquilo a que chamamos ‘cultura’ e ‘civilização’ foi
construído com o mesmo corpo e o mesmo cérebro.”
Gould também pensava que parámos de evoluir, mas
não por causa da cultura. Para ele, o mais normal era
que a evolução seja silenciosa em qualquer espécie,
seja girafas, polvos ou carvalhos. É a teoria dos equilí-
brios interrompidos: a evolução ocorre geralmente em
curtos períodos de tempo, e as espécies passam a maior
parte do tempo sem grandes mudanças. Para os defen-
sores dos equilíbrios interrompidos, o Homo sapiens
teria evoluído durante alguns milénios de instabili-
dade genética e teria permanecido assim para sempre,
não porque somos especiais, mas porque somos como
qualquer outra criatura.
Na paleontologia, é comum que as espécies apare-
çam abruptamente e permaneçam com a mesma apa-
rência até à sua extinção, mas as informações que os
fósseis fornecem são limitadas. Quem pode saber se o
TON KOENE

Tyrannosaurus rex não estava a evoluir secretamente,


adquirindo mudanças na sua cor, nos seus órgãos ou
nos seus instintos, sem que isso deixasse uma marca
nos poucos esqueletos encontrados?
pactos, com membros curtos que mantêm melhor a
PRESSÃO NATURAL temperatura corporal. Uma mutação antiga nos seus
Depois de emergir em África, o Homo sapiens migrou genomas faz com que desenvolvam mais gordura cas-
para quase todos os cantos da Terra, adaptando-se aos tanha, capaz de gerar calor. Quase todos têm genes
diferentes ambientes dos territórios em que se esta- que os protegem do excesso de gordura animal que
beleceu. Apesar dos nossos dispositivos e invenções, consomem; esses genes raramente existem nos euro-
nunca estivemos isentos das pressões da natureza. Por peus. Outro exemplo na mesma linha é encontrado
exemplo, os antepassados dos esquimós, nas regiões numa mutação protetora contra o Plasmodium vivax,
árticas americanas, lutaram contra a hipotermia com parasita causador da malária, que também atinge uma
fogo, peles e iglus. Ainda assim, a seleção natural frequência próxima dos cem por cento, desta vez na
transformou o seu físico, como fez com outros mamí- África subsahariana. Esta vantagem genética rara-
feros de climas frios. Os esquimós são robustos e com- mente é encontrada noutras partes do mundo.

168
Embora pudéssemos vestir-nos desde tempos ime- preservou a tonalidade escura perto do equador.
moriais, a nossa pele adaptou-se à quantidade de luz Quando pessoas mais claras nasciam nessas regiões,
solar que recebíamos. Assim, surgiram diferenças de tendiam a ter problemas de saúde e não transmitiam
cores marcantes, coincidindo aproximadamente com os seus genes com tanto sucesso como as outras. Em
os níveis de radiação ultravioleta que banham as dife- áreas com menos luz solar, a pele escura é menos van-
rentes latitudes do planeta. Mantemos a nossa pele tajosa. Os humanos precisam da luz solar para produzir
negra original nos territórios tropicais, onde o Sol brilha vitamina D. É um tipo de fotossíntese, e a pele cheia de
durante todo o ano. A principal função da pele escura melanina torna isso difícil. Em latitudes elevadas, os
não é prevenir queimaduras, mas evitar que os raios morenos eram deficientes em vitamina D e, como con-
ultravioleta destruam o ácido fólico, uma vitamina sequência, tinham ossos, músculos e sistema imunitá-
essencial. A sua escassez causa anemia, diarreia, infer- rio mais fracos.
tilidade e defeitos congénitos graves. A seleção natural Os europeus tornaram-se “brancos” nos últimos dez

169
Os tibetanos vivem a mais de 4500 metros de altitude
graças a genes envolvidos na oxigenação do sangue

milénios. Como explica a paleobióloga Nina Jablonski, metros. A vantagem evolutiva do tipo pigmeu nesses
da Universidade Estatal da Pensilvânia, a pele clara não ambientes é desconhecida. Foram encontrados sinais
evoluiu uma vez, mas várias vezes na história, graças a de seleção em genes ligados ao crescimento nesses
várias combinações de mutações. Os genes que causam grupos étnicos, mas também em genes relacionados
a despigmentação da pele são diferentes na Europa com o músculo cardíaco. Se um tamanho pequeno leva
e na Ásia. Em ambos os continentes se desenvolveram a problemas circulatórios, talvez a evolução tenha con-
gradientes: pessoas mais claras a norte e mais escuras a seguido neutralizá-los.
sul. Na maior parte do planeta, a evolução produziu uma A vida nas alturas também impôs uma pressão sele-
pele adaptável, capaz de se bronzear ou clarear em tiva que a cultura não conseguiu anular. Os povos do
resposta à quantidade de luz, segundo as estações. Tibete, dos Andes e do maciço etíope possuem adapta-
ções genéticas que os ajudam a lidar com a escassez de
QUESTÕES DE TAMANHO oxigénio. O resto dos mortais sofre do chamado “mal
Aqueles que viveram nas selvas durante milhares de da montanha” acima dos 2500 m de altitude, com sin-
anos evoluíram para um tamanho pequeno. Nas flores- tomas que podem ser letais. No entanto, muitos tibe-
tas tropicais de África, da América do Sul ou do Sueste tanos vivem pacificamente a mais de 4500 m, graças a
Asiático, encontramos povos com altura média de 1,5 vários genes relacionados com a oxigenação do sangue.

Os pigmeus não chegam


VERONIQUE DURRUTY / GAMMA-RAPHO / GETTY

a 1,5 m de altura.
A vantagem evolutiva
do seu pequeno tamanho
ainda não é conhecida.
A adaptação tibetana foi muito rápida: levou apenas
3000 anos.
Para minar a crença no motor parado, foi chave o
A mutação do leite
H
livro The 10,000 Year Explosion – How Civilization Acce- á mais de dez mil anos, quase toda a
lerated Human Evolution (2009), dos antropólogos humanidade era intolerante à lactose,
Gregory Cochran e Henry Harpending. Segundo os principal açúcar presente no leite da maio-
autores, a nossa evolução multiplicou por cem a sua ria dos mamíferos. Mais tarde, os benefí-
velocidade graças à agricultura e à passagem do noma-
cios da pecuária foram descobertos por
dismo para a vida em quintas, aldeias e cidades.
O livro foi saudado com uma mistura de aplausos várias sociedades, e algumas delas fize-
e alarme. Algumas das suas propostas eram cientifi- ram do pastoreio o seu principal meio de
camente frágeis ou lidavam com questões delicadas, vida. No norte da Europa, no Médio Oriente
como diferenças de inteligência. Cochran e Harpending e em algumas zonas de África, uma intensa
argumentam que os judeus ashkenazi vencedores do seleção natural propagou mutações que
Prémio Nobel possuem genes de QI mais alto do que permi tem que crianças desmamadas e
outras populações. Durante séculos, foram forçados a adultos digiram a lactose. Os portado-
seguir apenas profissões intelectualmente exigentes, res aproveitaram sem desconforto o leite
criando uma pressão de seleção única nas suas comu- supernutritivo de vacas, cabras e ovelhas, e
nidades. Como efeito colateral desses genes, os ashke- assim tiveram mais filhos do que os outros.
nazi também sofreriam de um excesso de doenças
O leite era também uma fonte de vitamina D,
mentais. Pondo de lado os elementos mais polémicos, a
ideia central foi confirmada: várias análises genómicas que falta muito em áreas com pouco sol, e
detetaram essa recente aceleração da nossa evolução de água, escassa em áreas áridas. Hoje em
nos últimos milénios. Porquê? Voltemos à metáfora do dia, há muitas pessoas que carecem desse
motor. gene e não gostam de lacticínios, principal-
mente em regiões sem histórico de pecuá-
REVOLUÇÃO NEOLÍTICA ria. Uma boa percentagem de europeus, a
Quando a maioria dos humanos passou de caça- maioria dos asiáticos e os povos nativos da
dores-recoletores a agricultores e criadores de gado, América, da Austrália e de parte de África
surgiram muitas pressões seletivas: novas dietas, carecem dessa adaptação que continua
novas doenças, novas formas de trabalhar, viver e a ser benéfica onde o leite é consumido
relacionar-se... Tudo isso trazia vantagens para com-
regularmente. Um estudo com mulheres
binações genéticas antes neutras ou desfavoráveis.
O veículo tinha um novo motor. A vida urbana também britânicas descobriu que aquelas sem a
gerou pressões seletivas. As cidades, com a sua elevada mutação sofrem mais osteoporose, fraturas
densidade populacional e falta de higiene, têm sido ósseas e cataratas.
um paraíso de doenças infeciosas durante milénios. Os
cientistas descobriram que, em áreas com uma longa
história de assentamentos urbanos (Médio Oriente,
Índia, algumas regiões da Europa), são abundantes os
genes de resistência à tuberculose e à hanseníase.
Os autores de The 10,000 Year Blast não tentaram
adivinhar o nosso futuro evolutivo, o que é cientifica-
mente impossível. No entanto, alguns estudos ousa-
ram fazer previsões modestas de curto prazo. Usando
dados médicos de milhares de mulheres norte-america-
nas de 1948 a 2008, a seleção natural foi apanhada em
flagrante: estava a ocorrer uma mudança genética gra-
dual que poderia, com cautela, ser extrapolada. Na pró-
xima geração, as mulheres serão, segundo os investiga-
dores, um pouco mais baixas e atarracadas, com níveis
mais baixos de colesterol, pressão arterial mais baixa
e um período reprodutivo mais longo. Nos Países Bai-
GETTY

xos, a população mais alta do mundo, os homens altos


têm mais filhos do que os baixos, e essa tendência

171
pesistiu pelo menos nos últimos 35 anos. As diferenças
de altura são altamente dependentes de genes, que
podem influenciar características díspares. Ainda não se
sabe se a vantagem reprodutiva da estatura é uma mera
questão de atratividade física ou se há algum benefício
oculto. A seleção não agiu tão claramente a favor da
altura nas holandesas.

MOTOR ATUALIZADO
A evolução humana acelerou graças a um motor
atualizado: as novas pressões seletivas. Além disso, o
motor passou a ter grandes quantidades de gasolina.
O combustível da seleção natural é a diversidade genética.
Sem ela, a seleção não funciona. As migrações, a mistura
entre populações e também, antigamente, o cruza-
mento com espécies vizinhas, como os extintos nean-
dertais e denisovanos, que nos deixaram alguns genes
interessantes, tornaram-nos diversos.
Em última análise, a diversidade genética vem das
mutações aleatórias com as quais nascemos. Há tantas
pessoas vivas hoje que o número de mutações benéficas
que surgem aqui e ali é enorme em comparação com
qualquer outra época. “Numa grande população, não
precisamos de esperar tanto tempo por aquela rara
mutação que melhora a função cerebral ou faz qualquer
outra coisa favorável”, diz o paleoantropólogo John
Hawks, da Universidade do Wisconsin em Madison.
Multiplicámo-nos prodigiosamente graças aos ali-
mentos obtidos da agricultura e da pecuária e à infinidade
de inovações culturais da revolução neolítica. Há dez
mil anos, a população mundial andaria entre um e 15
milhões de pessoas. No ano 1 d.C., já havia cerca de
SHUTTERSTOCK

200 milhões. O crescimento disparou após a Revolução


Industrial. Hoje, somos mais de 7500 milhões.

EVOLUÇÃO CEREBRAL
As estimativas indicam que a evolução humana se adaptativa e acelerada recente. No entanto, os nossos
tornou cem vezes mais rápida nos últimos 40 milé- cérebros ficaram mais pequenos. O tamanho relativo do
nios: cerca de 1500 genes mostram sinais de mudança nosso cérebro diminuiu desde a Idade da Pedra. Talvez
recente devido à seleção. São genes relacionados com tenha ganho eficiência e as grandes cabeças perdessem
a imunidade, a produção de esperma, a digestão, a lon- a vantagem de antigamente, algo parecido com o que
gevidade e o desenvolvimento e a função do cérebro. aconteceu com os microprocessadores. Outros investi-
Até 40% dos genes dos neurotransmissores sofreram gadores propõem que a humanidade passa por um pro-
mudanças recentes, especialmente durante os últimos cesso semelhante ao da domesticação dos nossos ani-
dez milénios. mais de quinta e de estimação. Um cérebro ligeiramente
Ao contrário do que pressupõe a polémica psicologia reduzido seria mais um efeito dessa autodomesticação
evolucionária, provavelmente não temos uma mente que nos teria tornado mais pacíficos e comunicativos,
de homem das cavernas mal adaptada aos tempos e talvez menos inteligentes.
modernos. Parece que o cérebro humano, como o Evoluir não significa progredir ou tornar-se complexo.
resto do corpo, também passou por uma evolução Incontáveis linhagens de animais tornaram-se mais

Desde a Idade da Pedra, o tamanho do nosso cérebro


diminuiu, talvez por se ter tornado mais eficiente

172
Segundo uma hipótese,
a humanidade evolui para
uma inteligência média
inferior, porque as pessoas
inteligentes têm menos filhos.

simples, adaptando-se a uma vida menos exigente e argumentam que a humanidade evolui para uma inte-
perdendo órgãos, mobilidade, sentidos e até mesmo ligência média mais baixa. Alguns estudos mostraram
o cérebro. Terra de Idiotas (Mike Judge, 2006) foi uma que as pessoas com QI mais elevado tendem a ter filhos
comédia de ficção científica que se tornou um filme mais tarde e em menor número. Outros trabalhos
de culto. Os protagonistas, um homem e uma mulher validaram a hipótese da idiocracia genética em países
vulgares, acordam no futuro para encontrar uma socie- como a Islândia. O efeito detetado é, por enquanto,
dade desastrosa em que todas as pessoas são extre- pouco preocupante: a inteligência também depende
mamente estúpidas. Enquanto as pessoas inteligentes de fatores ambientais, como a nutrição e a poluição, e
hesitavam em ter filhos, as de baixa capacidade reprodu- a tendência global tem sido, pelo menos até recente-
ziam-se a toda velocidade há cinco séculos, com a ajuda mente, de aumento do QI.
da medicina. Essa abordagem era apenas um artifício Não só a evolução humana não está estacionada,
para criticar duramente os absurdos da sociedade nor- pode até estar a correr a alta velocidade em direções
te-americana, mas o filme tinha todas as credenciais incontroláveis. As descobertas deixam muitas possibili-
para ser interpretado como ofensivo e perigoso. Foi dades em aberto, mas não justificam a discriminação, o
abandonado após as filmagens e apenas pôde ser visto racismo ou a esterilização imposta, como alguns temem.
nos cinemas. O facto de a diversidade cultural e genética dos humanos
A investigação genética da capacidade intelectual é poder combinar-se e interagir de maneira tão poderosa
sempre polémica e provoca rejeição. Chamou-se “hipó- é, no mínimo, uma ideia fascinante.
tese da idiocracia” à proposta de alguns cientistas que E.C.

173
Versão
revista e
aumentada
Estamos a entrar numa nova fase da evolução humana,
melhorada pela ciência e pela tecnologia.
É uma fase criada pela nossa vontade, não pela natureza.

174
175
SHUTTERSTOCK
N
um recente encontro entre o trans-huma- Kline vinham do mundo da investigação em medicina
nista Anders Sandberg, investigador do e fisiologia, e a sua definição estava enquadrada nesse
Instituto do Futuro da Humanidade, da ambiente: “Um ciborgue é essencialmente um sistema
Universidade de Oxford (Inglaterra), e o homem-máquina em que os mecanismos de controlo
especialista em evolução humana Juan Luis Arsuaga, da parte humana são modificados externamente
codiretor das escavações de Atapuerca (Espanha), este por drogas ou dispositivos de regulação para que o
último deixou Sandberg explicar a tecnologia ciborgue. ser humano possa viver num ambiente diferente do
No entanto, afirmou com confiança que a tecnologia normal.” Assim, por exemplo, os humanos poderiam
aplicada conscientemente ao ser humano para trans- alcançar as estrelas modificando o seu corpo para se
formá-lo, para melhorá-lo, “não vai alterar a natureza adaptar ao espaço sideral e às condições inóspitas dos
humana, pelo menos durante muito tempo”. planetas ou satélites não terraformados.
Um dos principais aspetos que temos de entender é Talvez agora, com a emergência climática e a extinção
que as tecnologias ciborgue já estão direcionadas para em massa da biodiversidade, a humanidade tenha de
dentro de nós, atravessam a epiderme e o córtex cere- tornar-se um ciborgue para sobreviver na Terra, no pla-
bral para se aplicarem no interior do corpo humano, neta inóspito que provavelmente se tornará. O aqueci-
hibridarem com ele e atingirem as emoções e a cons- mento global vai levar a um estado climatérico catas-
ciência. O historiador israelita Yuval Noah Harari escre- trófico e influenciará tanto a evolução natural como a
veu, no livro Homo Deus – História Breve do Amanhã intencional. Por exemplo, o aumento da radiação ultra-
(Elsinore, 2017), que somos a primeira geração que pode violeta pode tornar a pele escura uma vantagem evo-
controlar a sua própria evolução. A incorporação de lutiva. A pele também precisará de ser mais espessa.
tecnologia avançada nos nossos corpos está apenas Alguns especialistas propuseram reduzir o tamanho
a começar. Pela primeira vez na história, a tecnologia humano, para se adaptar ao aumento das temperaturas,
ajuda-nos não só a manipular a realidade física do mundo, ou procurar uma melhor relação entre a superfície do
mas também a nós próprios: pode melhorar e trans- nosso corpo e o seu volume, para melhor dissipar o
formar os processos humanos, incluindo os cognitivos. calor pela pele. Muito provavelmente, não temos tanta
capacidade de decisão ou escolha evolucionária, como
DOIS CAMINHOS PARALELOS pensava Arsuaga, se quisermos sobreviver. Alguns
A evolução intencional será caracterizada por um ritmo aspetos da evolução humana terão de ser dirigidos.
muito mais rápido do que a impulsionada pela seleção
natural, segundo tecnólogos, prospetivistas e paleon- EXTENSÕES TECNOLÓGICAS
tólogos: falamos de décadas ou séculos, não de milhões Estamos habituados, através de séculos de experiên-
de anos. Espera-se, portanto, uma redução radical dos cia, a entender que as tecnologias expandem as nossas
intervalos de tempo a que estamos habituados desde capacidades, tornam-se extensões ciborgues de nós
que Charles Darwin publicou a sua teoria sobre a evo- próprios. Porém, essa experiência, em geral, tem a ver
lução das espécies. com extensões externas ao nosso corpo. Por exemplo,
Quais são os meios tecnológicos e científicos que na forma como comunicamos, através de “extensões
nos permitirão assumir o controlo da espécie humana, ou aceleradores neuroculturais”, nas palavras do cien-
levá-la às últimas possibilidades e até mesmo fazê-la tista norte-americano Marshall McLuhan. Referimo-
evoluir tanto que se torne outra espécie, pós-humana? -nos à imprensa, à internet, à mobilidade inteligente,
Há dois caminhos que seguiremos em paralelo: um será ao telemóvel, à realidade virtual... O telemóvel trans-
traçado pela modificação da herança genética e pela forma-nos em ciborgues primitivos, porque nos liga à
expressão ou supressão de certos genes associados a rede de troca de informações. Também contamos em
capacidades e doenças; o outro será caracterizado pelas todo o lado com a ajuda de máquinas para melhorar o
tecnologias ciborgue, ou seja, a integração homem- nosso rendimento no campo, na indústria...
-máquina, a fusão de ambos ao nível de hardware e Ao longo da sua carreira, o cirurgião cardiovascular
software, organismo e programação. Javier Cabo implantou centenas de pacemakers, ressin-
O termo “ciborgue” foi concebido em 1960 pelos cronizadores, desfibrilhadores e até corações artificiais.
médicos norte-americanos Manfred E. Clynes e Nathan Já na década de 1950, começaram a ser colocadas
S. Kline para referir um ser humano melhorado que próteses mecânicas no coração por meio de cirurgia.
poderia sobreviver em ambientes estranhos. Clynes e Hoje, há elétrodos e implantes cerebrais que permi-

Devido às alterações climáticas, a humanidade


pode ter de tornar-se ciborgue para sobreviver

176
O artista e ativista
ciborgue inglês
Neil Harbisson
tem uma antena
na cabeça que lhe
permite perceber
cores invisíveis
(infravermelhos
e ultravioletas) e
atender chamadas
telefónicas
diretamente
no crânio.

THE WASHINGTON POST / GETTY

177
Elon Musk planeia
criar, na empresa
Neuralink, uma
forma de áreas
específicas do
cérebro poderem
comunicar com
o exterior.

tem controlar os sintomas da doença de Parkinson ou Neil Harbisson, presidente da Fundação Ciborgue,
movimentar braços robóticos, próteses de membros e crê que sim. Harbisson é oficialmente reconhecido
até exoesqueletos completos. Cabo, membro da Aca- pelo Reino Unido como um ciborgue, conforme consta
demia de Ciências de Nova Iorque, explica que se tra- no seu passaporte. O seu trabalho artístico centra-se
balha agora em exoesqueletos biológicos com poten- na incorporação de novos sentidos no ser humano,
cial de crescimento por meio da criação de códigos implantando tecnologia no corpo das pessoas (ante-
semelhantes aos genéticos. É semelhante ao que já nas, detetores de radiofrequência, sismógrafos...) para
está a ser feito na criação de órgãos como os rins: a dar à luz novas espécies. Harbisson ampliou os seus
impressão 4D de materiais orgânicos que se automon- sentidos (na realidade, criou um novo) para superar a
tam e evoluem por si próprios, ou seja, é feita uma deficiência congénita de ver o mundo apenas a preto
impressão 3D com um fator temporário agregado, e branco: agora, vê as cores com uma precisão muito
para que a matéria possa responder ao ambiente (à maior do que o resto da humanidade, graças a um
luz, ao movimento...) e adaptar-se a ele. sensor neuroimplantado das frequências associadas
Para este cirurgião, a implantação de tecnologia no a cada cor.
nosso corpo coloca-nos numa etapa intermediária, a
de humanos amplificados. Para ser ciborgues, teríamos TECNOLOGIAS TRANSFORMADORAS
de integrar muito mais tecnologia dentro de nós. Estes A evolução intencional avançará graças a tecnologias
são apenas os primeiros passos para alcançar a evolu- transformadoras como a realidade virtual, a inteligência
ção intencional da humanidade. Como afirma Arsuaga, artificial ou a internet das coisas, que convergirão para a
esses tipos de melhoras não modificam a natureza criação da inteligência artificial coletiva, cuja linguagem
humana. Criar e adicionar novos significados à nossa será a realidade virtual e depois a telepatia neurodigital,
espécie já seria modificá-la? baseada em redes de comunicação empático-telepáti-

178
A IA pode levar a um crescimento tecnológico
exponencial com consequências inimagináveis

cas. Já temos os primeiros resultados, que permitem que Arsuaga se referia. Por exemplo, separar a mente
ler e escrever no cérebro, e conseguimos transmitir do corpo é uma linha vermelha que, segundo Arsuaga,
imagens em movimento de muito baixa qualidade não pode ser cruzada, ou não deveria ser cruzada.
de um cérebro para outro por meio de interfaces “A engenharia genética permitir-nos-á ser maleáveis
homem-computador. Numa investigação recente do num futuro em que poderemos decidir modificações
Departamento de Cirurgia Neurológica e do Centro de à nossa vontade, para nós mesmos ou para os nossos
Neurociência Integrativa da Universidade da Califórnia filhos ainda não nascidos”, como antecipou na década
em San Francisco, conseguiram recriar algumas frases de 1990 o filósofo extropiano Max More, atual CEO da
lendo diretamente as áreas do cérebro que gerem a Alcor, a maior empresa de criopreservação humana
fala; esses dados, convertidos em áudio, foram parcial- do mundo. More anunciou que “a natureza historica-
mente compreendidos por terceiros. mente fixa do eu humano está a começar a dar lugar
As interfaces homem-computador serão auxiliadas a um eu muito mais flexível do que nunca, graças ao
por inteligência artificial (IA), que as transformará em impulso da tecnologia; a engenharia genética, a neu-
dispositivos que irão integrar a realidade do interior do robiologia e a manipulação hormonal dar-nos-ão cada
nosso cérebro com a exterior, captada por câmaras vez mais capacidade para nos autoesculpirmos”. É
3D em tempo real, e também com a realidade virtual. disso que trata a evolução intencional: atingir a possi-
Além disso, seremos capazes de ligar essa realidade bilidade técnica de a pessoa poder decidir modificar a
ampliada integrada com outros cérebros, através da sua condição e a sua natureza anteriores, afetando a
rede. Um exemplo dessas interfaces seria a ligação sua condição humana.
neural imaginada pelo inventor Elon Musk, graças Novas técnicas de edição de genes, como a CRISPR/
à qual teríamos uma espécie de exocérebro ligado à Cas9, oferecerão possibilidades extraordinárias de
nuvem. A missão de longo prazo da sua empresa Neu- modificação genética, mas também de biohacking e
ralink é amplificar o cérebro humano para competir criação de novos sentidos. O físico e visionário Freeman
com a inteligência artificial, ativando um cordão neu- Dyson anunciou um tempo futuro em que as crianças
ral ou exocórtex, uma amplificação cognitiva localizada “serão capazes de projetar e criar novos organismos
fora do cérebro. tão rotineiramente como as crianças da nossa geração
brincam com jogos de química”. Perfilam-se, portanto,
SINGULARIDADE TECNOLÓGICA grandes dilemas éticos e riscos potenciais de erros
Atualmente, criamos mundos virtuais para serem insuspeitos que podem ser transmitidos a gerações e
habitados. Mais tarde, no futuro intencional, criare- gerações, riscos para a nossa espécie e para o ambiente.
mos a maneira de habitar e fundir as mentes das pes-
soas, talvez como os vulcanos de Star Trek. O desen- ESTABELECER LIMITES
volvimento da inteligência computacional, aliado a Para Arsuaga, o grande problema, o grande debate,
melhorias na engenharia genética (que possibilitam a já urgente, deveria ser estabelecer os limites do que é
transferência de ADN de um organismo para outro), conveniente fazer ou não fazer, independentemente
da farmacogenómica, de computadores quânticos do que se possa fazer. Uma seleção artificial, um projeto
funcionais, da nanotecnologia, da nanorrobótica e da de novas gerações ou indivíduos, significa uma evolução
miniaturização de tecnologias dedicadas à reparação, genética dirigida. Direcionado para onde? Arsuaga acre-
à construção e ao controlo de sistemas biológicos por dita que o limite é que não temos, nem podemos ter,
meio de nanoestruturas e nanodispositivos, aproxi- um modelo ideal de ser humano. A questão fundamen-
mar-nos-ão da singularidade tecnológica. tal é, e será, salvaguardar a liberdade do ser humano e
O termo foi descrito em 1958 pelo matemático e garantir que cada pessoa é única em si mesma, como
físico John von Neumann, autor de contribuições fun- até agora, devido à sua aleatoriedade genética e ao seu
damentais no campo da física quântica e na ciência da posterior desenvolvimento na sociedade. Sandberg,
computação, que afirmava que a inteligência artificial por sua vez, responde que nada há a planear, nenhuma
levaria a humanidade a um ponto de inflexão e a um evolução dirigida ou design de gerações futuras. A prin-
crescimento tecnológico exponencial com consequên- cipal preocupação do trans-humanismo é a escolha, ou
cias inimagináveis para a espécie humana. É claro que melhor, a falta dela. Os nossos corpos, mentes e cultu-
este tipo de evolução intencional trará uma transcen- ras colocam todos os tipos de restrições, limitando a
dência e a modificação radical da natureza humana a nossa capacidade de escolher que tipo de pessoa que-

179
Os nossos corpos, mentes O exoesqueleto Furrion
e culturas impõem todos Exo-Bionics, de 5 m
de altura, responde aos
movimentos corporais
os tipos de restrições, do piloto e é capaz
de evitar obstáculos.
limitando a nossa
capacidade de escolher
quem somos

remos ser. O principal objetivo do trans-humanismo é


desafiar a ideia de que qualquer limite, qualquer restri-
ção, é permanente e inquebrável. Isso não quer dizer
que seja um sistema de crenças que proclama que vale
tudo. Para ser um trans-humanista, deve-se respeitar
os direitos dos outros ao procurar e adotar o seu pró-
prio eu, o seu estilo de vida e a sua comunidade.

OFERTA E PROCURA
Os Homo sapiens foram gerados por um processo
evolutivo. Os genes são a base, os alicerces do edifício.
Com a evolução intencional, o que será feito é conti-
nuar o processo, completá-lo. Ao longo deste século,
a modificação biológica por meio da engenharia gené-
tica será fundamental, quer afete apenas um indivíduo
ou a sua linhagem germinativa, isto é, todos os seus
descendentes.
O desejo natural de qualquer pai é que o seu filho
tenha uma vida muito longa e feliz. Muito provavel-
mente, com o tempo, os pais usarão tudo o que a
tecnologia genética puder oferecer para garantir isso.
Permanecer saudável e jovem por muito tempo será
uma das principais aspirações. A possibilidade de elimi-
nar certas patologias traça um futuro para o genoma
humano modificado, mas até onde irá? Um pai vai
querer que o seu filho (e todos os seus descendentes)
evitem a calvície? Isso é bom, é razoável? Imagine um
mundo em que o mercado oferece novos sentidos,
melhoramentos biológicos como fosforescência à
noite ou acabar com o daltonismo. Haverá um código
ético que controle a oferta e a procura?
Voltemos ao Homo sapiens do futuro. Como será
dentro de centenas ou milhares de anos? Como gosta-
ria que ele evoluísse? Até onde terá a humanidade sido
forçada a evoluir? Segundo o médico e economista
Nate Hagens, do Instituto para o Estudo da Energia e
do Nosso Futuro, o Homo sapiens é uma espécie social
que se organizou em torno dos excedentes e se trans-
formou metabolicamente num “super-organismo”
único, insensato e faminto de energia, que comprome-
teu a sua própria sobrevivência e a da grande maioria
das espécies. Por sua vez, o biólogo Edward O. Wilson

180
MARK RALSTON /AFP / GETTY

181
Conseguirá o homem implantar a sua mente
num corpo robótico ou numa rede de computadores?

afirma que “o verdadeiro problema da humanidade é O cosmólogo Martin Rees, do Instituto de Astrono-
que temos emoções paleolíticas, instituições medie- mia de Cambridge (Inglaterra), é claro: a evolução vai
vais e tecnologia divina”. continuar e, a longo prazo, “os nossos descendentes
serão tão diferentes de nós como nós dos insetos; a
EMOÇÕES PALEOLÍTICAS evolução pós-humana pode demorar tanto como a evo-
No ambiente ancestral, aquele de onde vêm as nos- lução darwiniana e, o que é mais fascinante, mover-se-á
sas emoções paleolíticas, a via da dopamina mesolím- para fora da Terra, até para as estrelas”. Rees acres-
bica estava relacionada com a motivação, a ação e a centa que a evolução intencional também será for-
recompensa. Traduzida para os dias atuais, a tecnolo- çada pelos drásticos desafios ambientais enfrentados
gia “divina” e a possibilidade de abundância/excedente pelos humanos que precisarem de construir os seus
sequestram esse circuito de recompensa e colocam-no habitats longe da Terra.
ao serviço da catástrofe. Hagens explica que “o cérebro
de um corretor de Wall Street que faz uma operação ENXAMES ESPACIAIS
lucrativa ilumina-se num teste de ressonância magnética Seria ótimo se os humanos amplificados se espa-
da mesma forma que um chimpanzé quando encontra lhassem para outros planetas e satélites nos séculos
uma noz ou uma baga”. Quando negociamos ações, vindouros, mas também temos de pensar que talvez
jogamos no computador ou construímos edifícios, não a tarefa de colonizar o universo caiba aos nossos des-
há um sinal instintivo para dizer “missão cumprida” cendentes pós-biológicos. Quando tivermos tecnologia
nos cérebros modernos, pelo que ficamos viciados na de download mental disponível em suportes não bio-
“recompensa inesperada” do “gosto” seguinte nas lógicos, não precisaremos de enviar corpos humanos
redes sociais, na próxima compra na Black Friday ou para as estrelas, porque seremos capazes de enviar
no próximo email, e a um ritmo cada vez maior. “Os mentes de software: por outras palavras, inteligências
nossos cérebros exigem emoções que satisfazemos, artificiais que se baseiam em mindware genérico (hard­
hoje, usando principalmente recursos não renováveis”, ware para descarga mental) capazes de sustentar a
diz Hagens. consciência humana. Tratar-se-á de construir uma nova
O engenheiro do MIT José Luis Cordeiro, que foi pro- inteligência artificial consciente, uma personalidade de
fessor da Universidade da Singularidade nos primeiros software modelada a partir de um ser humano especí-
anos, disse muitas vezes que o principal problema da fico, que pensa e sente como uma continuação do ori-
inteligência (e da tomada de decisões) não é a inteli- ginal, implantada num corpo robótico ou num enxame
gência artificial, mas a estupidez humana. Superar a de computadores quânticos que se movam pelo
estupidez humana parece uma meta razoável para um espaço interestelar.
projeto de evolução intencional. David Pearce, inves- A espécie humana, portanto, parece desempenhar
tigador britânico e colega de Cordeiro na organização um papel único. Certamente, como argumenta Rees, os
trans-humanista Humanity+, está há vários anos a humanos não são o ramo final de uma árvore evolutiva.
desenvolver a abordagem do que chama “imperativo Porém, podemos ter uma importância cósmica, uma
hedonista”, que é a obrigação moral de trabalhar para tarefa fundamental na disseminação da inteligência
abolir o sofrimento em todas as vidas sensíveis. Como pelo universo. Os humanos podem ser o ponto de par-
propõe Manu Herrán, discípulo de Pearce e investiga- tida para uma transição para entidades baseadas em
dor associado do instituto internacional Organização silício (e potencialmente imortais) que podem trans-
para a Prevenção do Sofrimento Intenso, “temos de cender as limitações humanas no espaço: primeiro,
dar origem a uma sociedade/civilização (necessaria- humanos amplificados; depois, ciborgues; a seguir,
mente trans-humana) cujo propósito explícito seja mentes de software em robôs; finalmente, uma espé-
abolir o sofrimento e assegurar-se de que ele nunca cie pós-biológica de inteligência artificial viajando pelo
mais volta a surgir”. Giulio Prisco, físico teórico e trans- vazio interestelar em busca de planetas como a Terra.
-humanista, pensa que a adoção de tecnologias que A evolução intencional vai acontecer. “A única
acabem por nos transformar como espécie será aceite maneira de descobrir os limites do possível é aventu-
de forma suave e progressiva pela grande maioria das rarmo-nos um pouco além desses limites, no impos-
pessoas, como aconteceu anteriormente com todas as sível”, disse o escritor de ficção científica britânico
tecnologias, e que haverá tempo suficiente para discu- Arthur C. Clarke. Estamos a caminho.
tir todas as questões. É, sem dúvida, um otimista. A.S.

182
O fato robótico Guardian XO,
SARCOS

da Sarcos, permite levantar


e movimentar cargas
superiores a 45 kg, seguindo
os movimentos do corpo.
Destina-se a indústrias
de materiais pesados.

183
Os últimos
resistentes
O fotógrafo polaco Adam Kozioł leva-nos a um mundo prestes
a desaparecer. São povos que restaram de uma humanidade
quase tão antiga como a dos fundadores da nossa linhagem.

184
Homem da
cultura naga,
da Birmânia e do
nordeste da Índia.

185
186
As mulheres da tribo
mursi usam placas
de argila ou madeira
embutidas nos lábios
e nas orelhas. Vivem
nas estepes de Jinka
e nas montanhas
da região de Omo
Central, na Etiópia.
Falam uma língua
ancestral, o mursi,
do grupo de idiomas
nilo-saharianos.

187
Cerca de dois mil indivíduos constituem a população total do povo karo, como a família em baixo
e o homem na página oposta. Vivem na Etiópia, em assentamentos ribeirinhos na margem esquerda
do rio Omo. Alimentam-se da pecuária, da pesca e da caça, e também cultivam sorgo, feijão e milho.
São conhecidos pelas suas marcantes pinturas faciais e corporais e pelos elaborados penteados.

188
189
190
Os hamer são
um povo do sul
da Etiópia,
perto da fronteira
com o Quénia.
São pastores
e agricultores
e ostentam
complexos penteados,
tecidos coloridos
e centenas de contas,
tanto homens
como mulheres.
São polígamos
e cada indivíduo
reflete o seu estatuto
social através
dos ornamentos
corporais.

191
Pulseiras, colares e tranças dos cabelos das mulheres himba, que untam a pele com uma mistura de ocre,
manteiga e ervas, pesam cerca de dez quilos. Os himba vivem na Namíbia, na árida região do Kunene,
são pastores seminómadas, praticam a poligamia e estiveram isolados do mundo até à independência do país,
em 1990. Desde então, o turismo e o álcool alteraram muitos dos seus costumes ancestrais.

192
Em cima, um casal da tribo mentawai, da ilha de Siberut (Indonésia). Em baixo, o fotógrafo Adam Kozioł, de 27 anos, nascido
em Poznan (Polónia), com um jovem hamer. Kozioł iniciou-se na fotografia devido ao seu interesse por insetos, que coleciona
desde os doze anos, que o levou a viajar ao Bornéu, em busca de espécies exóticas. A partir daí, apaixonou-se por conhecer
outras culturas e decidiu documentar graficamente a vida das remotas comunidades humanas que visita nas suas viagens.

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Diretor
Carlos Madeira

Coordenador da edição
Enrique Coperías

Colaboraram nesta edição


Alexandro Sacristán, Alfredo
Redinha, Anil Ananthaswami,
Antonio Rosas, Barras Colin,
Carlos Lalueza-Fox, Eleanor
Scerri, Elena Sanz, Emiliano
Bruner, Ernesto Carmena,
Eudald Carbonell, Ignacio
Martínez Mendizábal, Jordi
Agustí, José María Bermúdez
de Castro, Kate Douglas,
Laura Chaparro, Luis Miguel
Ariza, Mario García Bartual,
Martin Cagliani,
Mercedes Conde-Valverde
e Roberto Sáez.

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