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Os bastidores dos
maiores acidentes
nas usinas.
p. 5 0
O físico que
desenhou a
bomba brasileira.
p. 3 2
Entenda Fusão
como nuclear: como
funciona transformar
um reator. água em
energia.
p. 3 6
p. 4 6
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nuclear
29/11/19 16:38
carta
A volta da
era atômica
M
Filha da Segunda Guerra, a indús-
tria nuclear se desenvolveu mui-
to rápido. A capacidade de romper
átomos para gerar eletricidade e des-
truição era conhecida, na teoria, fazia
pouco tempo quando os avanços da
Alemanha sobre a Europa, da Itália
sobre a África e do Japão sobre a Ásia
aceleraram a corrida armamentista que
marcou o restante do século 20.
Se em 1935 usar nêutrons livres para
atacar átomos pesados parecia coisa de
cientista maluco, em 1945 esse meca-
nismo provocava a destruição absoluta
de Hiroshima e Nagasaki. Menos de 20
anos depois e já havia bombas milhares
de vezes mais poderosas, detonadas até
mesmo no espaço. E também usinas
capazes de gerar eletricidade (e resí-
duos radioativos).
Essa é a história que você vai conhe-
cer nesta edição especial: dos tempos
ingênuos em que os moradores de Las
Vegas pagavam ingresso para assistir
a detonações de bombas atômicas até
a era de Chernobyl, quando a nuvem
radioativa que cobriu a Europa dei-
xou marcas definitivas no imaginário
popular – prova disso é o sucesso de
crítica e de público da série da HBO
sobre o esforço descomunal para conter
o estrago e investigar as causas do aci-
dente que lançou grafite contaminado
sobre as calçadas dos arredores da usina
nuclear de Chernobyl.
Mas essas páginas contam muito
mais do que história: explicam como
funcionam as bombas e as usinas nu-
cleares que estão na ativa hoje (inclu-
sive Angra 1 e 2). Também debatem o
futuro, que promete ser movimentado.
Do ponto de vista militar, as maio-
res nações se aquecem para uma nova
corrida armamentista de consequências
imprevisíveis. Em paralelo, a indústria
de geração de eletricidade luta para
superar os graves acidentes que mar-
caram sua trajetória enquanto batalha
pelo próximo passo, o da fusão nuclear,
que não gera resíduos radioativos.
Boa leitura.
das bombas
Os anos mais
explosivos da
Da teoria
à p r át i ca
18 14 6
As pesquisas que levaram
às primeiras bombas.
A década
indústria militar
da Guerra Fria.
Destruição
além da
imaginação
A maior bomba da
história alcançou
64 km de altura.
A bomba de
Át o m o s
q u e m ata m
de destruir
mundos
hidrogênio usa
uma arma atômica
convencional
como espoleta.
30
50
36
Armas da
at ua l i da d e
Como
se quebra
um átomo
E n e r g i a
N u c l e a r
Angra dos
reis, capital
nuclear
Angra 1 e 2 nunca
registraram acidentes.
Angra 3 está longe
da inauguração.
O s p i o r e s
ac i d e n t e s
18 14 6
Arsenal
46
do século 21
As novas armas
nucleares de China,
Rússia e EUA.
O futuro está
na fusão
É mais eficiente e limpo.
Mas imitar o Sol ainda não
Radiação
à solta
Os bastidores de
Chernobyl, Three
Mile Island, Mayak,
funcionou em larga escala. Fukushima e Goiânia.
A bomba
Quando o brasileira
mundo quase Ela existe: na teoria.
acabou Leia a entrevista
Dez momentos que com o criador.
poderiam provocar
o inverno nuclear.
O perigo
vem do mar
A energia atômica
revolucionou
os submarinos
de guerra.
Os alemães
Einstein e
Oppenhei-
mer em Nova
Jersey.
O
início
de
EN_1_2_3_TeoriaPratica_FINAL.indd 6
tudo 29/11/19 16:44
N
7
O pai da bomba
atômica, Robert
Oppenheimer, ao
lado do chefe, o
A S eg u n da general Groves.
Guerra
ac e l e ro u as
pe s q u i sas
sobre a A contagem regressiva co-
meçou quando ainda estava
e s t ru t u r a escuro. Fumando um cigarro
atrás do outro, o físico america-
d o s áto m o s . no Robert Oppenheimer respirou
fundo no bunker onde os cientistas
e as m e l h o r e s monitoravam o primeiro teste nu-
clear da história. A 9 km dali, no
mentes topo de uma torre de aço de 30 m
de altura, uma bomba de plutônio
estava a ponto de explodir. “A En-
da é p oca genhoca”, como a chamavam, era
um emaranhado de fios e parafusos
u sa r a m e ss e s que destoava da árida e serena paisa-
gem do Novo México, EUA. Oppe- Física quântica
c o n h eci m e n to s nheimer deu mais algumas baforadas A “Engenhoca” não surgiu de repente.
até que, naquele 16 de julho de 1945, a Ela foi fruto de descobertas científicas
pa r a c r i a r contagem regressiva finalmente che- que, nos anos 1920 e 30, provaram que
gou a zero. a bomba nuclear era possível. As pri-
a arma mais Às 5h29min45s, um clarão iluminou meiras pistas vieram em 1900, quando
as montanhas com uma energia equi- o alemão Max Planck lançou as bases
valente a 20 mil toneladas de TNT. O da teoria quântica – que descreve fe-
de s t ru i d o r a rugido da onda de choque estremeceu o nômenos em escalas diminutas, como
bunker e retumbou pelo deserto, onde a atômica. Planck sugeriu que a luz
já v i s ta . seria sentido a 160 km de distância. O emitida por materiais aquecidos podia
calor do ponto zero fez a torre de aço ser medida em “pacotes de energia”. E
evaporar e calcinou a areia num raio chamou cada pacote de quantum.
Por e d uar d o sz k l arz de 700 metros, transformando-a num Em 1905, Einstein aprimorou a te-
lençol de vidro. Os cientistas avistaram oria de Planck ao mostrar que certos
com terror a imensa bola de fogo no materiais emitem elétrons quando
horizonte, que exalava uma nuvem em atingidos por radiações eletromag-
forma de cogumelo de 12 km de altura. néticas (como a luz). Em 1911, o ne-
Petrificado, Oppenheimer murmu- ozelandês Ernest Rutherford deu
rou um verso do Bhagavad-Gita, texto mais um passo ao provar a existência
sagrado do hinduísmo: “Transformei- do núcleo atômico, onde os prótons
me na morte. A destruidora de mun- (partículas positivas) são circundados
dos”. Dias depois, a arma mais letal já pelos elétrons (negativos). E em 1913
construída seria usada contra Hiroshi- o dinamarquês Niels Bohr juntou tudo
ma e Nagasaki, no Japão, causando uma isso num modelo ainda mais preciso,
devastação sem precedentes. propondo que os elétrons giram ao
Getty Images
Os
Tesse-
ract
redor do núcleo em órbitas com ní-
veis de energia quantizados, ou seja,
conhecido, logo atingiu o status de
cult”, diz o escritor Paul Strathern no de
múltiplos de um quantum.
Daí a coisa deslanchou. Nos anos
1920, o físico Max Born transformou
livro Oppenheimer e a Bomba Atômica
em 90 Minutos. “Alto e magro como um
graveto, Oppie escrevia artigos com
Hitler
A Alemanha criou
a Universidade de Göttingen (Alema- Dirac, discutia teoria quântica com cubos de urânio
nha) no templo da mecânica quântica, Bohr, falava oito idiomas e escrevia parecidos com
com a colaboração de cientistas euro- poesia de vanguarda.” Com a ascensão os da Marvel.
peus como Werner Heisenberg, Erwin do nazismo, em 1933, Oppie financiou
Schrödinger e Paul Dirac. Entre eles organizações antifascistas e mergulhou No Universo Marvel, os
havia também um americano: Robert na política de esquerda influenciado Vingadores conseguem al-
Oppenheimer, aluno de doutorado de por uma namorada, embora não te- terar a realidade graças ao
Born. Oppenheimer recebeu seu PhD nha se filiado ao Partido Comunista. cubo cósmico Tesseract,
com louvor em Göttingen e voltou E abriu as portas para gênios da teoria que contém a Joia do Es-
aos EUA em 1929 para quântica que chegavam aos EUA fu- paço. Um dispositivo tão
lecionar física na Uni- gindo de Hitler e Mussolini. poderoso poderia causar
A quinta confe- versidade da Califórnia, Entre esses gênios estavam o ita- estragos se caísse nas
rência de Solvay, em Berkeley. Lá ele liano Enrico Fermi e o húngaro Leo mãos erradas. E algo do
na Bélgica, co- descobriu sua vocação Szilard – que seriam fundamentais tipo quase aconteceu na
locou 17 prêmios para a liderança – e seu para a construção da bomba atômica. Segunda Guerra. Um arti-
Nobel para deba- carisma entre os alunos. Mas ainda faltava uma descoberta para go de cientistas da Univer-
ter física quân- “Oppie, como ficou torná-la viável. sidade de Maryland indica
tica em 1927. que Hitler possuía 664
cubos de urânio com for-
mato parecido ao do Tes-
seract, cada um com 2,2
quilos. O físico Werner
Heisenberg, que recebeu o
Nobel de 1932 pela cria-
ção da mecânica quântica,
tentou construir um reator
com os cubos numa ca-
verna sob um castelo em
Haigerloch, no sudeste da
Alemanha. Heisenberg
submergiu os Tesseract
num tanque de água pe-
sada, unidos por aço en-
trelaçado e cercados por
um anel de grafite. O apa-
relho foi batizado de B-
VIII. Representou o auge
do programa nuclear na-
zista, mas não foi o sufi-
ciente: o equipamento
provocava fissão nuclear
de forma irregular e não se
mostrou capaz de manter
um ciclo sustentável, que
garantisse um funciona-
mento constante.
como obtê-la.
Eletroímã utiliza-
do para enrique-
cer urânio den-
tro do Complexo
de Segurança
Nacional Y-12,
em operação
no Tennessee.
comum na natureza, é estável
demais para reagir. Apenas o
húngaro Leo Szilard farejou o
perigo iminente. “Para evitar
que os alemães produzissem
a bomba, Szilard propôs aos
colegas em fevereiro de 1939
que mantivessem as pesqui-
sas com o urânio em segredo”,
diz o historiador dinamarquês
Helge Kragh no livro Quantum
Generations.
A sugestão foi recebida
com ceticismo. Assim, em
agosto de 1939, Szilard e Eins-
tein escreveram uma carta se-
creta ao presidente Roosevelt,
advertindo que “bombas ex-
tremamente poderosas de um
novo tipo” poderiam ser cons-
truídas em breve. A entrega
da carta foi adiada por causa
do início da Segunda Guerra, em
1o de setembro. Roosevelt só a
recebeu em outubro – e deu sinal
verde para o ultrassecreto Projeto
Manhattan. O objetivo: construir
a bomba atômica americana antes
que os nazistas fizessem a deles.
A iniciativa começou timida-
mente. O governo dos EUA criou
quantidade de energia. Tal como Eins- a Comissão Consultiva do Urânio (co-
tein tinha previsto. Ou seja, Hahn e dinome S-1) para testar a fissão em
Meitner haviam descoberto a “fissão larga escala, e destinou US$ 6 mil (cer-
nuclear” (nome dado pelo físico Otto ca de US$ 100 mil atuais) para que
Frisch, sobrinho de Meitner). Sem per- Fermi e Szilard comprassem material
ceber, eles acabavam de abrir a porta físsil. O programa se expandiu após
para a bomba atômica. E o pior: graças o ataque japonês a Pearl Harbor, em
aos artigos publicados sobre a fissão 1941, que marcou a entrada dos EUA
em 1939, o Terceiro Reich agora sabia na guerra. Fermi construiu então um
reator nuclear numa quadra de squash
Mesmo assim, o mundo científico na Universidade de Chicago. O risco
não achava que havia motivo para alar- era enorme: qualquer erro podia ge-
me. Bohr, por exemplo, considerava rar uma grande explosão. “Felizmente
remota a possibilidade de enriquecer para os inocentes cidadãos de Chica-
urânio em larga escala. Por um moti- go, Fermi sabia o que estava fazendo.
vo simples: como o U-235 (o urânio Dedos cruzados e, em 2 de dezembro
físsil) está presente em apenas 0,7% de 1942, o primeiro reator nuclear do
do urânio natural, seria extremamente mundo produziu a primeira reação nu-
difícil e custoso obtê-lo em quantida- clear controlada e autossustentada”,
de suficiente para uma grande explo- diz Strathern. A partir daí, o Projeto
são. Isso porque o urânio-238, o mais Manhattan entrou numa nova fase.
9
Los Alamos
Em 1942, um platô isolado no meio das
montanhas do Novo México despertou
do silêncio para abrigar o maior grupo
de cientistas já reunido. O Exército dos
EUA comprou o único edifício que ha-
via ali, a pequena escola Los Alamos,
para servir como a primeira instala-
ção do Projeto Manhattan. O local foi
escolhido por Oppenheimer, alçado
a diretor do programa graças às suas
qualidades peculiares: ele dominava a
fissão nuclear, conhecia os pesos-pesa-
dos da ciência e saberia como inspirar
a tropa de pesquisadores que começava
a chegar. Alguns já haviam ganhado o
Nobel, como Fermi; outros o ganha-
riam em breve, como aconteceria com
o físico Richard Feynman.
O comando do Projeto Manhat-
tan ficou a cargo do general Leslie
R. Groves, o engenheiro militar que
tinha construído o Pentágono. Seus
subordinados o descreviam como ás-
pero, exigente e egoísta, mas altamente
capaz. “Groves e Oppenheimer eram
água e vinho. Mas, para a surpresa
geral, o esbelto e brilhante físico e o
corpulento e impetuoso general se de-
ram bem desde o início”, diz
Strathern. Por sua postura
pacifista, Einstein não seria Parte dos mais
informado dos avanços de de 130 mil
Los Alamos. Meitner foi trabalhadores empreitada maior do que toda Outro era produzir o recém-descoberto
convidada a participar, mas envolvidos a indústria automobilística dos plutônio-239, que também poderia ser
declinou: “Não tenho nada a no Projeto EUA na época. usado. E, claro, ainda era preciso bolar
ver com a bomba”, disse ela. Manhattan. Claro que era impossível um jeito de detonar a bomba.
Em poucos meses, o manter tanta gente de boca “As bombas deviam estar prontas
platô se transformou nu- fechada. Portanto, para evitar quando as quantidades necessárias de
ma espécie de Vale do Silício nuclear, que o Japão, a Alemanha e até a então urânio e plutônio também estivessem
com indústrias, laboratórios e edifícios aliada URSS soubessem do segredo, só prontas. Isso provavelmente lhes da-
enfileirados. Outras 30 instalações es- um punhado de cientistas e militares va dois anos”, diz Richard Rhodes no
palhadas pelos EUA ajudavam na bus- conhecia o real objetivo de tudo aquilo. livro The Making of the Atomic Bomb.
ca pela bomba, incluindo a usina de Groves recebeu relatórios de inteligên- Os cientistas primeiro inventaram um
enriquecimento de urânio Oak Ridge cia alertando que Oppie era comunista, detonador do tipo “revólver”: um ex-
(Tennessee) e o complexo de produção mas não deu bola. Confiava que o físico plosivo disparava uma bala de urânio,
de plutônio Hanford (Washington). O e sua equipe dariam conta dos desafios que viajava por um cilindro no interior
Reino Unido e o Canadá também co- titânicos do projeto. Um deles era cal- da bomba até atingir o alvo, também de
laboraram. No total, mais de 130 mil cular a “massa crítica”, ou seja, a menor urânio. Com o impacto, a massa crítica
pessoas trabalharam no projeto. Assim, quantidade de urânio-235 necessária era ultrapassada e a explosão nuclear
o que começou com US$ 6 mil chegaria para uma reação nuclear em cadeia acontecia. Ok, mas em qual velocidade
a mais de 2 bilhões (23 bilhões em va- (que é capaz de se sustentar sozinha, a bala teria de ser disparada? Essa era
lores de hoje) no final da guerra. Uma gerando grande quantidade de energia). só uma das incógnitas.
Getty Images
Vegas
Turistas pagavam
propôs outra solução: rodear a massa foi iluminado por uma luz abrasadora
de urânio com explosivos para “im- muitas vezes mais intensa que a do
plodi-la”. Isso comprimiria o urânio Sol do meio-dia”, escreveu o general
ingresso para ver até que alcançasse a densidade crítica Thomas Farrell, vice-comandante do
os testes nuclea- necessária para desatar a reação em Projeto Manhattan. “Era dourada, roxa,
res de perto. cadeia. “O método da implosão era violeta, cinza e azul.”
mais complexo que o da bala, mas os Os EUA enfim possuíam a bomba,
Em 1951, apenas seis cientistas descobriram que era o único mas fazia sentido continuar com os
anos após a tragédia de que poderia ser usado numa bomba de testes? A Alemanha tinha se rendido
Hiroshima e Nagasaki, os plutônio”, afirma Kragh. Isso porque em maio, Adolf Hitler estava morto.
cogumelos atômicos vira- o plutônio emitia grande quantidade “Oppenheimer foi informado de que
ram a grande atração de de nêutrons “dispersos”, que poderiam nada mudaria. O presidente muda-
Las Vegas. É que o De- provocar fissão prematura caso o mé- ra (Roosevelt morreu e foi sucedido
partamento de Energia todo da bala fosse utilizado. Ou seja: por seu vice, Truman), o alvo mudara
dos EUA inaugurou a a bomba explodiria antes do tempo, e (tornara-se o Japão) – mas nada havia
Área de Testes de Nevada com menos potência. mudado”, diz Strathern.
a 105 km da cidade, e as Oppie gostou da solução de Nedder- Em 17 de julho, ao chegar à Confe-
pessoas descobriram que meyer, e confiou-lhe 50 rência de Potsdam para decidir
podiam acompanhar o homens para encontrar o futuro da Alemanha, Truman
clarão das explosões em um jeito de iniciar uma Cúpula de 200 contou a Stálin que os america-
plena noite –sobretudo do detonação uniforme metros de altura nos tinham o artefato. O líder
alto dos cassinos. A eco- no interior da bomba. registrada 0.016 soviético sorriu, pois já sabia do
nomia local bombou. Os O “grupo da implosão” segundo depois “segredo” graças às informações
turistas pagavam ingres- passou o verão de 1943 da detonação da transmitidas pelo físico Klaus Fu-
so para ver as detonações detonando canos com bomba de Trinity chs, seu espião em Los Alamos.
no deserto e faziam fotos explosivos ao redor de Site, em 16 de “Espero que façam um bom uso
com os cogumelos ao Los Alamos. No início julho de 1945. da bomba contra os japoneses”,
fundo. A Câmara do Co- de 1944, a paisagem es- limitou-se a dizer. Dito e feito.
mércio publicava folhetos tava devastada, e nada
com os horários dos tes- da solução. Impacien-
tes e os melhores pontos te, Oppie contou com
de observação. Os hotéis a ajuda de Bohr (que
organizavam festas com fugira da Dinamarca,
baile, comida farta e “co- ocupada pelos nazis-
quetéis nucleares” para se tas) e do físico alemão
embriagar. A cidade ga- Klaus Fuchs, que che-
nhou até o concurso Miss gara com cientistas bri-
Bomba Atômica, que ins- tânicos. Mas foi graças
pirou uma canção do The aos cálculos do físico
Killers. Cem testes ilumi- Richard Feynman e
naram o céu de Las Ve- do matemático John
gas até 1962, quando o von Neumann que o
show acabou. Quem pa- grupo alcançou uma
gou o pato foi a cidade vi- detonação uniforme.
zinha de St. George, A bomba de plutônio
Utah, para onde o vento estava pronta.
levava as partículas radio- O local da prova, ba-
ativas. Seus habitantes tizado de Trinity Site,
sofreram um aumento da era um ponto ermo a
incidência de câncer que 97 km do município de
durou até os anos 1980. Alamogordo, no Novo
Berlyn Brixner/Los Alamos National Laboratory/Wikimedia Commons
Os escombros
de Hiroshima
dias depois do
primeiro ataque
com bomba atô-
mica da história.
Getty Images, U.S. National Archives and Records Administration/ Wikimedia Commons
alvo. No dia seguinte, o B-29 Bockscar,
pilotado pelo major Charles Sweeney,
jogou a bomba de plutônio Fat Man
sobre Nagasaki, matando cerca de 40
mil pessoas. Arrasado pelos ataques
nucleares e pela ofensiva soviética às
suas colônias, o Japão se rendeu em
setembro e a guerra acabou. O Projeto
Manhattan foi desarticulado aos pou-
cos, até encerrar as atividades em 1947.
Yamaguchi foi a única pessoa re-
conhecida pelo governo japonês que
sobreviveu às duas bombas. Morreu
em 2010, aos 93 anos. Muitos não ti-
veram a mesma sorte. Estima-se que
250 mil pessoas tenham perdido a vida,
imediatamente ou nos anos seguintes,
devido aos ataques.
Sorte, na verdade, é algo relativo
para quem resistiu ao inferno. Os so-
breviventes de Hiroshima e Nagasaki
ficaram conhecidos como hibakusha
(“pessoas afetadas pela explosão”).
Sofreram preconceito e segregação,
pois muita gente não quis se relacio-
nar com eles para não ser “contagiada”
pela radioatividade – um medo sem
fundamento. O governo reconheceu
650 mil hibakusha. Em 2019, 145 mil
deles ainda estavam vivos.
13
A década das
bom
bas
EN_1_2_3_TeoriaPratica_FINAL.indd 14 29/11/19 16:45
↓
15
Getty Images
Detonações no espaço
Réplica da
primeira bomba
atômica desenvol-
vida pela URSS.
Getty Images
1945
1950
1955
1960
1965
1970
1975
1980
1985
Estados
Unidos
299
2.422
18.638
31.139
26.008
27.519
24.104
23.368
União
Soviética / Reino
Rússia
200
1.605
6.129
11.643
19.055
30.062
39.197
Unido
14
42
436
394
492
492
422
França
32
36
188
250
360
China
75
180
205
243
Israel
20
31
42
Índia
0
Paquis-
tão
0
TOTAL
304
2.636
20.285
37.741
38.164
47.454
55.144
63.632
17
* A Coreia do Norte não participa do levantamento porque as informações a respeito de seu arsenal atômico não são
confiáveis.
As bombas
t e s ta da s e m 1 9 6 1
pe l a U RSS e ra m
m i l h are s de v e z e s
m a i s p o de ro s a s d o
q u e a s l a n ça das
c o n t ra o Ja pão.
N e n h u m ar te fato
n u c l e ar s u pe ro u
a ca paci da d e
de provocar
e s t rag o s da m a io r
de l a s , a T s ar .
Destruição
além da
imaginação
Por Tiago Cord eiro
52 km
Teste 219
Proprietário: URSS Até hoje, duas bombas nucleares foram detona-
Quando: 24/12/1962
Onde: Nova Zemlia, Ártico
das durante uma guerra: a Little Boy de Hiroshima
Poder de fogo: 24,2 megatons e a Fat Man de Nagasaki, ambas em 1945. Mas,
a pretexto de realizar testes, oito países (Estados
48 km Unidos, União Soviética, Inglaterra, França, Chi-
Teste 147
Proprietário: URSS na, Índia, Paquistão e Coreia do Norte) detonaram
Quando: 05/08/1962 outros 2.119 artefatos desde então.
Onde: Nova Zemlia, Ártico De todos esses milhares de bombas, a campeã,
Poder de fogo: 21,1 megatons
disparada, é a Tsar: 50 megatons, o equivalente a
46 km 50 milhões de toneladas de dinamite ou a 3.300
Teste 174 bombas de Hiroshima. Some todos os explosivos
Proprietário URSS (atômicos e comuns) detonados durante a Segunda
Quando: 27/09/1962
Onde: Semipalatinsk,
Guerra Mundial inteira e você só vai ter um décimo
Cazaquistão da potência da Tsar. Batizada em homenagem ao
Poder de fogo: 20 megatons czar Ivã, o Terrível, que reinou no século 16, era
difícil de transportar e detonar.
45 km Pesava 25 toneladas, foi lançada em 30 de outu-
Teste 173
Proprietário: URSS bro de 1961, a 10.500 metros do chão, e explodiu
Quando: 25/09/1962 a 4.000 metros de altitude sobre a ilha de Nova
Onde: Semipalatinsk,
Cazaquistão
Zemlia, no Ártico. A detonação formou um cogu-
Poder de fogo: 19,1 megatons melo de 64 quilômetros de altura. O bombardeiro
Tupolev TU-95, que carregou a bomba, estava a
39 km 45 quilômetros do local da detonação, e ainda as-
Bravo
Proprietário: EUA
sim sofreu o impacto da onda de choque e perdeu
Quando: 01/03/1954 mil metros de altitude. O impacto chegou longe:
Onde: Atol de Bikini, Ilhas arrebentou janelas de casas que ficavam a 800
Marshall quilômetros de distância.
radioativa
Altura do
cogumelo de
fumaça
A máquina Detona-
ção em
está-
destruir
mundos As bombas de fusão, que existem desde os anos
1950, são os artefatos explosivos mais perigosos já
criados, sendo a bomba Tsar a mais poderosa entre
todas (mais sobre o tema na reportagem da página 18).
Em geral, ela funciona com dois estágios.
a b o m b a de h i drog ê n io, o u A fusão só se torna viável no calor extremo.
“Para alcançá-la é necessário ter antes um am-
termonuclear, é a arma mais biente com altíssima temperatura, da ordem de
uma dezena de milhões de graus Celsius”, afirma
p o t e n t e já c r i a da . Ta n to q u e Ítalo Curcio. Daí a utilidade de utilizar a quanti-
dade descomunal de energia gerada pela fissão
u t i l i z a u m a b o m b a atô m ica de urânio para alcançar as condições necessárias
para fundir os átomos de hidrogênio.
c o n v e n cio n a l , de f i s s ão, “Por isso, no caso da bomba de hidrogênio, ocor-
re primeiramente uma explosão interna, que pro-
a pe n a s c o m o de to n a d o r . porciona essa temperatura, obtida a partir de uma
bomba atômica convencional”, descreve o professor
da Universidade Mackenzie. “Com isso, consegue-
se a temperatura necessária para provocar a fusão
do hidrogênio, a partir da qual ocorre mais uma
grande liberação de energia.”
No papel, bombas H existem desde os anos 1930.
Na prática, a primeira, a Ivy Mike, foi detonada
pelos americanos em 1952, com a potência de 10
megatons. O experimento marcou uma nova era
"a bomba atômica convencional utiliza a no desenvolvimento de armas nucleares. E levou
energia produzida a partir da fissão nuclear, en- a humanidade ao limite de sua capacidade de pro-
quanto que a bomba termonuclear libera energia vocar destruição. Em alguns casos, como o da Tsar,
produzida a partir de fusão nuclear", explica o físico ao segundo estágio seguiu-se um terceiro, formado
Ítalo Curcio, professor da Universidade Presbite- por uma nova fusão de hidrogênio.
riana Mackenzie, em São Paulo. Em outras pala- Mas por que a fissão serve para fazer tanto
vras: a fissão acontece quando nêutrons atingem bombas quanto usinas nucleares, enquanto que
o núcleo de átomos, geralmente de urânio, e os a fusão ainda não foi aplicada em larga escala para
rompem, liberando energia. A fusão se caracteriza a geração de energia elétrica, apesar de seis déca-
pela junção de núcleos, um feito muito mais difícil das de pesquisas? Essa resposta você encontra a
de alcançar e, principalmente, de controlar. partir da página 48.
1 ?
Pergunta
difícil
1 A bomba de fusão fica na parte traseira,
suspensa por uma espuma de poliestireno.
espuma de poliestireno
Por que até hoje
os terroristas
bomba de fissão espuma de poliestireno bomba de fusão
não tiveram
detonação inicial
acesso a armas
nucleares?
Imagine o estrago que a Al Qaeda,
ou o Estado Islâmico, poderiam pro-
vocar com uma bomba atômica ou
2 de hidrogênio em mãos. Por que
nunca aconteceu? Não foi por falta
de tentativas, certamente: pelo me-
2 Tem início a detonação da bomba nuclear nos 22 países já documentaram ca-
tradicional, com núcleo de urânio ou plutônio.
bomba de fusão sos de contrabando de urânio ou
plutônio. Ou seja: existem contra-
bandistas vendendo a matéria-pri-
ondas ma. Além disso, a receita para fabri-
detonação
bomba inicial
de fissão bombade
de choque
fusão e calor
espuma de poliestireno car uma bomba simples é bastante
conhecida. Se ainda assim os terro-
ristas nunca provocaram uma heca-
tombe nuclear, é porque a quantida-
de mínima de urânio para criar uma
3 bomba é 26 kg, muito acima dos
poucos gramas disponíveis no mer-
cado negro. E essa nem é a maior
dificuldade: mesmo que alguém
conseguisse acumular tanto miné-
3 A radiação e o calor irradiam através da espuma.bomba de fusão rio, o processo de enriquecimento
do urânio, para torná-lo capaz de
fissionar e funcionar como combus-
tível para uma bomba, é longo e
bomba de fissão segunda detonação bomba de fusão complicado. E comprar urânio já en-
riquecido é difícil: até hoje foram re-
gistrados apenas 18 casos de roubo
de material pronto para ser detona-
do, sempre em quantidades muito
5 aquém do necessário. Agora, nada
disso significa que nunca vá aconte-
cer um ataque: afinal, criar uma
bomba suja (que combina explosi-
4 vos comuns com pouco material ra-
ondas de choque e calor
dioativo) é muito mais simples. E
4 A espuma comprime a segunda bomba. sua detonação já faria um estrago
5 Acontece a fusão de deutério, um isótopo do hidrogênio. enorme numa metrópole.
quando
o
Erros fatais
podiam ser co-
metidos dentro
das salas de
comando dos
EUA e da URSS
mundo
quase
acabou
EN_4_5_6_AtomosMatam_FINAL.indd 22 29/11/19 19:21
23
M a l- e n te n di do s , Se não fosse a pre- Duas bombas atômi-
sença do supremo cas Mark 39 foram
c o m p u ta do r e s governante soviético lançadas sobre a cidade
Nikita Khrushchev de Goldsboro, na Carolina
em Nova York, em 5 de do Norte, em 24 de janeiro
da n d o pau, outubro de 1960, a União de 1961. Elas tinham 3 e 4
Soviética possivelmente megatons – somadas, eram
m i l i ta r e s teria sido atacada – e 350 vezes mais poderosas
reagiria, é claro. No auge do que a Fat Man que
n e rvo s o s , o u da construção de ogivas arrasou Nagasaki, em
nucleares de alcance 1945. Não foi um ataque
s i m ple s m e n te u m a destrutivo cada vez maior, inimigo: um bombardeiro
radares instalados em estratégico, Boeing B-52
fe r r a m e n ta ca i n do Thule, na Groenlândia, Stratofortress, fazia um
identificaram um ataque voo de rotina quando um
de mísseis soviéticos na vazamento de combustível
n o c h ão. C o n h eça direção dos Estados provocou uma explosão no
Unidos. O Comando de ar, 2.700 metros acima do
de z m o m e n to s e m Defesa Aeroespacial da solo. Havia oito pessoas
América do Norte entrou dentro dele. Duas delas
q u e a h ecato m b e em alerta máximo. morreram antes de
Acontece que o radar conseguir deixar a
n u c l e a r c h eg o u confundiu o surgimento aeronave e uma faleceu
da Lua nos céus da depois de pular. As
m u i t o pe r to d e Noruega com um disparo bombas foram ejetadas e
de mísseis. Até que o lançadas para o chão com
engano fosse esclarecido, o a queda amortecida por
ac o n t ec e r . único dado que levantou paraquedas de 30 m de
dúvidas sobre a necessida- diâmetro. Em 2013, o
de de reação foi o fato de governo americano liberou
que Khrushchev estava o acesso a documentos até
nos EUA, para participar então confidenciais a
Po r Tiago Cord eiro de uma conferência da respeito do acidente. Eles
05_10_1960
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O escritório de um
dos principais
centros de inteli-
gência militar
americana durante
a Guerra Fria, o Fragata soviética
Comando Estratégico atravessa o Atlântico
a caminho de Cuba.
por Ar, ficou subita-
mente desconectado em
24 de novembro de
1961. Poderia ser sinal O dia em que o mundo mísseis. Em reação à
de um ataque massivo esteve mais perto do instalação de armas ameri-
dos soviéticos, já que, inverno nuclear foi 27 canas de longo alcance na
em tese, as linhas de de outubro de 1962. Turquia, a União Soviética
comunicação eram Três incidentes dife- resolveu enviar seu arsenal
independentes, de rentes, todos de alto nuclear para Cuba. A
forma que a troca de nível de tensão, esquadra soviética que
informações entre os aconteceram num prazo de transportava o arsenal foi
principais centros das poucas horas. Um avião U-2 bloqueada no Oceano
Forças Aéreas dos EUA de espionagem americano Atlântico por navios
nunca fosse interrompi- foi derrubado enquanto americanos. Enquanto o
da em todos os locais sobrevoava Cuba. Outro presidente americano John
simultaneamente. Mas entrou 480 quilômetros Kennedy e o líder soviético
foi o que aconteceu: um dentro do espaço aéreo Nikita Khrushchev negocia-
problema nos equipa- soviético, sobre a península vam, um dos submarinos
mentos de uma central de Chukotka, no extremo russos B-59 estacionados no
telefônica no Colorado leste da Rússia. Foi perse- Atlântico mergulhou para
deixou os principais guido por dois caças MiG dificultar um possível
centros de tomada de soviéticos, que tinham por ataque americano. Quando
decisão sem notícias objetivo escoltar a nave de o destróier USS Beale
dos demais. Sem saber volta para águas internacio- disparou cargas de profun-
de nada disso, o nais. Ao saber que uma didade na direção do B-59,
Comando Estratégico aeronave americana estava para forçá-lo a subir à
por Ar posicionou seus cercada, o comando militar superfície, o comandante
mísseis balísticos mandou dois caças para dar russo Valentin Savitsky
intercontinentais, combate. Os F-102A resolveu disparar um
capazes de alcançar a estavam ambos armados torpedo nuclear de 10
União Soviética. Não com mísseis nucleares e kilotons. Mas os três
se sabe quem decidiu dispostos a dispará-los, mas comandantes da embarca-
esperar para apertar o U-2 deixou o espaço aéreo ção soviética precisavam
o botão, mas a pessoa soviético antes que um concordar com o disparo.
tomou a decisão confronto acontecesse. Mas Um deles, Vasili Arkhipov,
correta: em minutos o incidente mais grave foi convenceu Savitsky a subir
a comunicação foi outro: o mundo observava, à superfície sem disparar.
restabelecida. aterrorizado, a crise dos Assim, salvou o mundo.
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18_09_1980
Com muita frequên-
09_11_1979
cia, os computado-
res do Comando de
Defesa Aeroespa-
cial da América do
Norte entravam em
pane, ou simplesmente
disparavam alertas
falsos. Por isso, boa Policiais de Little
Rock se organizam
parte dos avisos era para patrulhar a região
submetida a uma após o acidente na
rechecagem. Mas, em cidade vizinha.
novembro de 1979, o
alerta parecia detalhado
demais, e assustador
demais, para ser um
simples erro: tudo Eram 18h30 quando vazamento, o míssil, de 31,3
indicava que 250 mísseis dois técnicos faziam m de comprimento, acabou
balísticos haviam sido pequenos reparos no explodindo e arrebentando
lançados em direção aos topo de um míssil a porta de 740 toneladas. Na
Estados Unidos. Pouco balístico interconti- época, o Titan II era uma
depois, a estimativa foi nental Titan II dentro das mais imponentes armas
ampliada: agora eram de uma instalação nucleares do país. A ogiva
2.200 mísseis dispara- militar na vila de que ele carregava era 594
dos. O país tinha de três Damascus, no Estado vezes mais poderosa do que
a sete minutos para americano do Arkansas. Às a bomba que arrasou
iniciar uma retaliação 15h do dia seguinte, uma Hiroshima. Se tivesse sido
antes de ser atingido e explosão arremessou o detonada, poderia ter
perder parte considerá- míssil para o alto e a ogiva varrido boa parte do estado
vel de sua capacidade de nuclear foi cair a 30 metros do mapa – e levado consigo
reação. Enquanto os de distância. O motivo do o governador (e futuro
bombardeiros eram acidente foi assustadora- presidente) Bill Clinton, que
carregados e posiciona- mente banal: um dos discursava em Little Rock, a
dos para partir, o técnicos, Dave Powell, de 21 80 km do local. As Forças
sistema de satélites era anos, manejava (usando Armadas não se deram ao
acionado para confirmar luvas) uma ferramenta de trabalho de reconstruir a
o alerta. Na verdade, 3,6 quilos quando a derru- instalação: ela foi coberta
tudo não passava bou. A peça caiu por 24 por terra e concreto e
de um cenário de testes, metros e, ao chegar ao chão, simplesmente abandonada.
enviado por engano ricocheteou e atingiu a base O acidente provocou a
para o sistema central do míssil, abrindo um furo morte de um funcionário,
de computadores do por onde começou a vazar David Livingston, e deixou
comando. Uma tragédia combustível. Não havia um 21 feridos. Em 1982, o
só foi evitada porque os procedimento padrão a ser presidente Ronald Reagan
radares não confirma- adotado nesses casos. decretou a aposentadoria
ram a informação. Depois de horas de dos Titan II.
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A e n e rg i a
nuclear e os
submarinos
O
de g u e r r a
prova r a m
ser uma
c o m b i n ação
l e ta l (e
i r r e s i s t í v e l)
perigo
pa r a f i n s
m i l i ta r e s .
Reação
Durante a Segunda Guerra Mun-
diaL, uma das providências adotadas
mas limitações orçamentárias (cada
unidade custa US$ 3 bilhões) e o fim em
por Hitler foi reativar a produção dos
U-boats, submarinos que haviam entra-
do em linha na Primeira Guerra. Eram
da Guerra Fria fizeram com que o
orçamento fosse diminuído e apenas
três submarinos fossem construídos,
cadeia
Projetos (nem
armas estratégicas para o Terceiro Rei- todos em atividade hoje. São eles: o sempre executa-
ch porque usavam técnicas de matilha: Seawolf (SSN-21), o Connecticut (SSN- dos) de outros
circundavam os alvos (navios e com- 22) e o Jimmy Carter (SSN-23). “SSN” veículos movidos a
boios) e atacavam juntos. Entre 1939 e não é uma sigla, e sim um código que energia nuclear.
1943, quase 5 mil embarcações foram significa duas coisas: que é movido a
afundadas assim. energia nuclear e que é um submarino
Ótimo para o Führer, péssimo para de ataque. Ford Nucleon
os tripulantes dos U-boats, que não São mais de 8 mil toneladas enco- Seria movido a vapor forneci-
tinham vida fácil. Os submarinos da bertas por um casco de aço capaz de do pela fissão de urânio. Mas
época eram movidos por uma mistura suportar 100.000 psi (ou 6.800 atm) o “carro nuclear” nunca saiu
de motor a diesel (igual ao dos navios) de pressão. No coração de tudo está do protótipo.
e baterias elétricas. Na superfície, usa- um reator nuclear do tipo S6W com
va-se o motor. Quando o veículo sub- 52 mil cavalos de potência, capaz de WS-125
mergia, porém, não havia o oxigênio fazer o veículo andar a 25 nós (37 km/h) Desenvolvido nos anos 1950,
necessário para a combustão e nem uma enquanto submerso. Ele se estende por o avião americano seria
forma de ventilar os gases emitidos. dois terços do comprimento do subma- utilizado para bombardeios
Portanto, era preciso usar as baterias, rino, enquanto a parte da frente contém nucleares. Depois de dois
que duravam apenas algumas horas. os quartos da tripulação (cabem 130 motores serem testados com
Por isso, a estratégia era ficar emerso homens no Seawolf) e os espaços de sucesso, o projeto foi desati-
o maior tempo possível à procura de armazenamento dos mísseis. vado devido ao alto custo.
alvos e só submergir na hora da ação - No meio do submarino fica a sala de
um risco em tempos de guerra. controle, mas não é só de lá que o veícu- Dirigível avançado
Quando os Aliados aprenderam a li- lo pode ser operado: ao todo, espalhados Francis Morse, ex-engenheiro
dar com a ameaça dos U-boats, a reação pelo veículo, há 44 terminais multifun- da Goodyear, criou o protóti-
foi rápida: a partir de 1943 e até o fim da ção conectados ao mesmo computador po mais famoso, um “hotel
guerra, os submarinos nazistas foram central. O capitão consegue controlar voador” com 300 m de
destruídos às centenas. Para cada dez o submarino pelo seu laptop no quarto comprimento, propulsor nu-
U-boats que deixavam os portos, sete se quiser. clear de 6 mil cavalos e capa-
nunca retornavam. Mas o grande diferencial do Seawolf cidade para 400 pessoas.
Mas, depois da guerra, a energia nu- é seu poderio ofensivo. Ele possui oito
clear promoveu uma revolução para os tubos para o lançamento de torpedos NS Savannah
submarinos, porque eliminava as incon- e pode carregar até 50 deles – o Los O primeiro navio mercante
veniências causadas pela combustão do Angeles, classe anterior de submarinos movido a energia nuclear é
diesel e pela vida curta das baterias. As de guerra, só carregava 17. O sistema um dos quatro navios de car-
únicas limitações eram as de suporte de recarregamento dos tubos é auto- ga desse tipo que já existi-
humano, ou seja, os estoques de comida, mático, permitindo ataques rápidos em ram. Ativo de 1962 a 1972.
água e ar para a tripulação. Finalmente sucessão. Um único Seawolf seria capaz
um submarino poderia dar a volta ao de causar a mesma destruição que três Navios quebra-gelo
mundo sem nunca vir à superfície. Los Angeles juntos. Não é qualquer embarcação
Toda essa tática resultou em um que supera a camada de gelo
veículo versátil, capaz de prestar su- de até 2 m de espessura do
Kraken moderno porte a navios porta-aviões, atuar em Mar do Norte no inverno. Os
Os modelos mais avançados de sub- grupos de ataque e realizar destruição russos resolveram o problema
marinos nucleares hoje são os da em terra com seus Tomahawk. E, graças desenvolvendo embarcações
classe Seawolf, desenvolvida nos à energia nuclear, ele pode fazer tudo movidas por reatores nuclea-
EUA. Projetada nos anos 1980, ela isso de forma discreta, agindo a partir res. Algumas são utilizadas
deveria ser composta de 29 veículos, do leito do oceano. como navios de cruzeiro.
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Arsenal
Quase três décadas depois do fim da guer-
ra fria, a rússia está cercada. Se em 1991,
quando a União Soviética acabou, a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tinha 17
países membros, agora são 29, e 11 dos novos sócios
do
são ex-aliados dos russos. A maior parte dessas
nações é alinhada aos EUA, que vêm estimulando
a organização a crescer em número de integrantes
Po r Victor B ianch in e também no orçamento militar, que deve alcançar
US$ 1 trilhão em 2019. Enquanto tantos europeus
se reúnem contra a Rússia, Moscou reage cons-
século 21
truindo novas e impressionantes armas.
Em dezembro de 2018, os russos apresentaram
o míssil hipersônico Avangard, capaz de viajar a 20
vezes a velocidade do som e desviar de obstáculos
em seu trajeto para o alvo - e tudo isso planando,
sem a necessidade de sair da atmosfera e reentrar
para ganhar velocidade. O país também já testou
drones submarinos com o poder de interceptar ou
cortar comunicações. E desenvolveu o míssil R-28
A n ova c o r r i da a r m a m e n t i s ta Sarmat, um colosso de 208 toneladas e 35,5 m de
comprimento, com espaço para carregar dezenas de
dá o r ig e m a a r m as ca pa z e s ogivas nucleares. Também vem testando o míssil
Petrel, capaz de permanecer voando, indefinida-
de t r a n s p o r ta r e de to n a r mente, alimentado por um reator nuclear embarca-
do. Mas nenhum lançamento supera a capacidade
o g i va s n u c l e a r e s até de provocar terror do Poseidon.
Desenvolvido em 2015, ele é um veículo sub-
m e s m o e m b a i xo d’ág ua . marino não tripulado, que pode lançar ogivas de,
estima-se, até 100 megatons. Detonado debaixo da
água, na costa de uma metrópole, tem o poder de
criar um tsunâmi com ondas de 500 m de altura.
Bastaria um único Poseidon para destruir Nova
York inteira, por exemplo.
Adeus,
fat man
Novo arsenal
nuclear é muito
mais potente e
preciso do que
as armas que
apavoraram o mundo
na segunda metade Hwasong-15 B61-12
do século 20. Origem: Coreia do Norte Origem: EUA
Alcance: 13.000 km Alcance: 500 km
Velocidade: 1.000 km/h Velocidade: 800 km/h
Diferencial: Alcançar os EUA. Diferencial: Atingir com precisão.
a bomba
brasi-
leira
EN_7_8_ArmasAtualidade_FINAL.indd 32 29/11/19 16:56
N
33
“Abrir mão de
possuir armas
nucleares é
Ela existe,
n o pa pe l .
uma coisa.
C o n h eça a Não é necessário criar uma bomba abrir mão do
história do
nuclear, mas é estratégico conhecer a
receita. Foi pensando assim que o físico
brasileiro Dalton Ellery Girão Barroso
conhecimento e
pe s q u i s a d o r
publicou uma tese de doutorado tão ex-
plosiva que permanece sob sigilo pelo da capacidade de
b r a s i l e i ro
Instituto Militar de Engenharia (IME)
do Exército. O acesso ao texto, apresen-
tado em 2006 com o nome Simulação
desenvolvê-las
q u e provo c o u Numérica de Detonações Termonucleares
em Meios Híbridos de Fissão-fusão Im-
é outra coisa
u m i n ci de n te plodidos pela Radiação, não é permitido
ao público. Procurados, tanto o IME
quanto o pesquisador confirmaram que
completamente
di pl o m át ic o o acesso à tese é restrito a pesquisado-
res previamente autorizados.
diferente.”
ao d e s e n h a r , A parte não sigilosa da pesquisa foi
utilizada como ponto de partida para
e m de ta l h e s , a publicação, em 2009, de um livro
de 174 páginas chamado A Física dos Custo alto
u m a r t e fato Explosivos Nucleares. Trata-se de uma “Abrir mão de possuir armas nucleares
obra técnica, escrita para especialistas, é uma coisa. Abrir mão do conheci-
n u c le a r e m focada na reciclagem de reatores de mento e da capacidade de desenvol-
geração de energia modelo PWR, os vê-las é outra coisa completamente
mais utilizados no mundo (mais sobre diferente”, explica Dalton Barroso, em
s ua t e s e de eles na página 36). O livro não incluiu a entrevista à SUPER. O pesquisador e
parte polêmica da tese original: a des- professor do IME estuda o assunto há
do u t o r a d o. crição do funcionamento de uma ogiva mais de 35 anos.
nuclear semelhante à W87 americana. Por que o Brasil não tem bombas
Na época, o Brasil foi pressionado, nucleares? Além de ter se compro-
Por Tiago Cord eiro pela Agência Internacional de Energia metido, ao assinar o Tratado de Não
Atômica (AEIA), a censurar a distribui- -Proliferação Nuclear (TNP), a não se
ção do livro. Em visita à Inglaterra na envolver na produção de armamentos
mesma época, o então presidente Luís nucleares - o acordo impede que novos
Inácio Lula da Silva foi questionado países desenvolvam armas atômicas,
pelo então primeiro-ministro Gordon mantendo assim a situação atual -, exis-
Brown sobre as intenções tanto do te também uma dificuldade orçamen-
Brasil quanto do pesquisador. Depois tária. “Essa tecnologia demanda muito
de semanas de negociações tensas en- dinheiro, por ser muito sofisticada, o
volvendo o chanceler Celso Amorim que, de certo modo, faz com que poucos
e o ministro da Defesa Nelson Jobim, governos invistam recursos com essa
o governo decidiu não impedir o lan- finalidade”, explica Ítalo Curcio, pro-
çamento do livro. fessor da Universidade Presbiteriana
Divulgação
/
Mackenzie. “O Brasil possui a matéria-prima básica,
urânio, em abundância. Porém, para enriquecer esse “O Brasil não
urânio e obter o isótopo 235 na proporção necessária
para a produção de uma bomba atômica, é preciso pode ficar
realizar um gasto muito alto.” O dinheiro poderia ser
um problema, mas não faltaria capacidade: o Brasil alheio ao
domina o enriquecimento de urânio e chegou inclu-
sive a desenvolver uma tecnologia própria.
Para Matias Spektor, professor associado e vi-
assunto”
Dalton Barroso explica como
ce-diretor da Escola de Relações Internacionais da desenhou um artefato nuclear.
Fundação Getúlio Vargas, autor do livro As Origens
da Cooperação Nuclear entre Brasil e Argentina, as con-
sequências de um projeto militar envolvendo urânio
enriquecido seriam terríveis. “Se um país da América
Latina construísse um explosivo nuclear, o efeito
seria péssimo no sentido de criar um ambiente de
profunda insegurança.” Do ponto de vista do pro-
fessor, uma corrida armamentista entre os vizinhos
latino-americanos poderia levar a uma guerra nuclear Como o senhor começou
sem limites. Quem discorda costuma apontar que sua pesquisa sobre
deter armas atômicas reduziria os riscos de ataques explosivos nucleares?
inimigos. É a estratégia adotada por Irã e Coreia do
Norte, por exemplo. O estudo dos explosivos nucleares envolve um
Desde o final dos anos 1970, o Brasil manteve conjunto muito grande de áreas multidisciplinares, a
diferentes programas nucleares, todos secretos. maior parte das quais é matéria comum a outros ramos
Henrique Saboia, ministro da Marinha do governo da atividade científica aberta, não necessariamente
de João Figueiredo (1979-1985), conduziu um pro- ligada ao desenvolvimento de explosivos nucleares.
grama de enriquecimento de urânio em Iperó (SP). Não foi à toa que o famoso cientista e dissidente russo
Na época, Brasil e Argentina se envolveram em uma Andrei Sakharov, um dos pais do explosivo termonuclear
corrida armamentista secreta, que se estendeu até russo, afirmou que “o estudo dos explosivos nucleares
o final dos anos 1980. é um paraíso para os teóricos”. Foi essa gama de
O programa brasileiro incluiu a concessão de 700 disciplinas tão diversificadas que me atraiu para o tema.
bolsas, que formaram centenas de especialistas em Na verdade, comecei a estudar o assunto alguns anos
pesquisa nuclear. Em 1990, o presidente Fernando após o início da minha carreira. Foram atividades de
Collor de Mello mandou fechar o Campo de Pro- pesquisa estritamente acadêmicas, visando à aquisição
vas Brigadeiro Velloso, na Serra do Cachimbo (PA). de conhecimento, e não à eventual produção de armas
Dentro da área de 22 mil metros quadrados, havia nucleares, já que não há no país direcionamento nesse
uma série de instalações, incluindo dois buracos sentido. No entanto, a guerra nuclear tem consequências
com 270 metros de profundidade e 6 de diâmetro. globais, e o Brasil não pode ficar alheio ao assunto.
A Aeronáutica utilizava o local desde 1981, e
nunca explicou direito por que precisava dos bu- Como o senhor alcançou os
racos – chegou a alegar que eles seriam usados para resultados apresentados em
armazenar resíduos radioativos, mas a suspeita que sua tese de doutorado?
pairou no ar, na época, nunca mais se dissipou: tudo
indica que ali eram construídos e testados equipa- Já há bastante tempo eu vinha acompanhando os
mentos e componentes utilizados para construir trabalhos sobre fusão por confinamento inercial, matéria
bombas atômicas. em parte desclassificada [que teve o sigilo levantado]
Em 1998, o presidente Fernando Henrique Car- a partir da década de 1970 e que estuda a produção de
doso assinou o TNP. Desde então, oficialmente, o energia da fusão por meio de microexplosões termo-
Brasil não mantém nenhum projeto que envolva a nucleares de esferas de deutério-trítio (DT), altamente
produção de artefatos nucleares. Mas o país ainda comprimidas, utilizando feixes de raios laser ou de
pretende ter submarinos de propulsão nuclear intei- partículas carregadas. Embora inicialmente com motiva-
ramente nacionais. A previsão da Marinha é realizar ções militares (para simular em laboratório as condições
a primeira entrega de veículos em 2029. existentes nas detonações termonucleares), a produção
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Como
se
quebra
um
átomo
EN_9_10_11_EnergiaNuclear_FINAL.indd 36 29/11/19 17:05
37
Vista de longe,
Angra 2, no Rio
de Janeiro, pare-
ce uma indústria
comum. Não é.
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Visão de cima
de um reator Romper átomos de urâ- As varetas ficam posicionadas em
Sistemas em construção nio resulta em muito mais torno do núcleo, e podem ser lançadas
no Canadá. calor, proporcionalmen- para dentro dele sempre que necessá-
de segurança As varetas de te, do que o obtido com a rio. São feitas de materiais que absor-
Todo esse trabalho, da mina controle ficam queima de carvão. Por outro vem nêutrons, normalmente carboneto
de urânio até o forno, tem instaladas nos lado, a fissão produz uma de boro, mas também ligas de prata,
um objetivo, em tese, mui- pontos escuros. série de subprodutos radio- índio e cádmio. Ao entrar no núcleo,
to simples: bombardear as ativos, que têm de ser arma- atrapalham a circulação dos nêutrons,
pastilhas com nêutrons, de zenados com cuidado - por desacelerando a fissão dos átomos.
forma a romper os núcleos dos átomos dezenas, centenas ou até milhares de Mas controlar a quantidade não bas-
de urânio. A quebra desses átomos pro- anos. Além disso, ao fim de três anos, ta: também é preciso regular a veloci-
duz mais nêutrons, que quebram mais 75% do urânio de uma pastilha desa- dade dos nêutrons porque, à medida
átomos, e a reação continua sozinha. parece, e ela precisa ser substituída. que eles reagem, ganham velocidade
A energia decorrente desse processo O ciclo de bombardeamento com e perdem a capacidade de fissionar
gera calor, que aquece água, cujo va- nêutrons, transformação de elementos átomos. Para isso entram em cena os
por movimenta uma turbina, que gera químicos, geração de calor e emissão moderadores, que atuam como freios.
energia elétrica. A partir do momento de radiação precisa ser controlado, de Os moderadores mais encontrados nas
em que a reação acontece, a sequência forma que mantenha a usina em fun- usinas são água, que pode ser comum
de ações não é tão diferente de uma cionamento sem provocar um colapso. (também chamada de leve) ou pesada
usina termelétrica comum, movida a Para isso existem as varetas de controle (ou seja, formada por dois átomos de
carvão: tudo se resume a transformar e os moderadores, componentes fun- deutério e um de oxigênio). Existem
calor em eletricidade. No caso da usina damentais para garantir a segurança usinas que utilizam o grafite – Cher-
nuclear, o diabo está nos detalhes. de qualquer usina. nobyl era uma delas.
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PWR
Pressurized Water Reactor
ou “reator de água
pressurizada” 2
origem Estados Unidos, 1953
onde é utilizado
4 5 9
Brasil, Estados Unidos,
França, Japão, Rússia,
China, entre outros
Unidades ativas 298 6 7 8
Vantagens São tão seguras
que se tornaram padrão de
mercado para as maiores
usinas do mundo.
RBMK
Reaktor Bolshoy
Moshchnosty Kanalnyy
ou “reator canalizado
de alta potência” 2 5
origem União Soviética, 1954 9
onde é utilizado
Rússia
Unidades ativas 10
Vantagens Basicamente, é 4 6 7 8
um modelo mais barato para
construir e mais fácil de operar.
Desvantagens A água
entra em contato direto com
o reator, e se torna radioativa.
Além disso, como Chernobyl
3
comprovou, o grafite é um
moderador muito mais
instável do que a água. 1
1 Fonte de água 4 Grafite 7 Gerador
2 Torre de 5 Núcleo 8 Transformador
resfriamento do reator 9 Rede de
3 Condensador 6 Turbina transmissão
Para
onde vai
o lixo?
Ninguém jamais
conseguiu responder
direito a essa questão.
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Sete décadas
As usinas de geração de eletricidade
a partir da fissão do núcleo de urânio
surgiram pouco depois das bombas atô-
micas. A primeira vez que um reator
nuclear produziu energia elétrica foi
em 3 de setembro de 1948, em Oak Rid-
ge, Tennessee. No início dos anos 1950,
os russos tiraram o atraso e chegaram
na frente ao inaugurar, em Obninsk,
em 27 de junho de 1954, a primeira
usina nuclear a enviar eletricidade para
a rede nacional.
Naquela época, as usinas nucleares
eram vistas como uma fonte de energia
incrivelmente abundante - havia até
quem dissesse que a eletricidade gerada
por elas acabaria sendo distribuída de
graça, ou quase. Não foi o que aconte-
ceu. Muitas das primeiras instalações
já foram abandonadas.
Afinal, usinas nucleares têm vida
útil – são programadas para durar pe-
lo menos 40 anos, mas dezenas delas
foram desativadas com duas décadas
de atividade por culpa dos custos ope-
racionais.
O processo de desmontá-las é deli-
cado e tão caro quanto o de construir.
Prova de que, embora a teoria em si
seja até simples, quebrar átomos acaba
41
Eles utilizam urânio natural e sódio sendo muito mais complicado do que
líquido para transportar o calor. pode parecer à primeira vista.
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angra
dos reis,
capital
nuclear
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as o b r a s
localizada a 150 km da capital do
Estado. Dos 1.746 funcionários De Getúlio
da empresa, 1.320 trabalham
em Angra e os demais no Rio. a Bolsonaro
de A n g r a 3 . Somadas, as duas usinas geram Acompanhe a trajetória do
1.990 megawatts, que equivale programa nuclear brasileiro.
a 40% do consumo do Estado
Por Tiago Cord eiro do Rio de Janeiro e 3% do país.
Angra 1 (inaugurada em
1960
1950
1955
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1985
1965
1970
1975
1961
1968 1979
O programa Tem início o 1984 1988
nuclear ainda Programa Nuclear Começa a cons- É inaugurado
patina quando a Paralelo, patroci- trução de Angra 3. em Iperó (SP) o
CNEN assinou nado pela Mari- 1983 Centro Experi-
um convênio nha, pelo CNEN e Um ano depois da inauguração mental Aramar
com a Eletrobras pelo Instituto de de Angra 1, o presidente João (CEA), mantido
visando à cons- Pesquisas Energé- Figueiredo suspende o acordo pela Marinha e
trução de uma ticas e Nucleares com a Alemanha e paralisa as ainda hoje um
usina nuclear em (IPEN). O objetivo obras das usinas nucleares de dos principais
Angra dos Reis 1975 é construir um Iguape I e II, no litoral de São centros de
(RJ). Para viabili- Sob o governo de Ernesto Geisel, sob sigilo, o Brasil submarino de Paulo, iniciadas três anos antes pesquisa nu-
zar o projeto, em abandona a parceria com os Estados Unidos e assina propulsão nuclear e nunca mais retomadas. clear do país.
1971 o governo um acordo de compra de equipamentos com a Alema- e desenvolver
compra dos nha. Durante as negociações, o país se compromete, tecnologia para
Estados Unidos diante da Agência Internacional de Energia Atômica enriquecer urânio
um reator de (AIEA), a não utilizar energia nuclear para fins bélicos. de forma indepen-
água pressuri- A meta para o ano 2000 (não alcançada) era gerar, dente – objetivo al-
zada (PWR). usando usinas nucleares, 53% da demanda nacional. cançado em 1982.
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H
afirma. “Se o Brasil quer garantir
seu futuro na geração de energia
elétrica, deve ter um programa de
construção de usinas nucleares,
sim, não há dúvidas. Veja o exem-
plo da China, tem 36 reatores nucle-
ares em operação e está construindo
Bahia e Ceará
Além de Angra, outros locais estão
envolvidos com a indústria nuclear
brasileira. A empresa responsável
por minerar urânio e fornecer o
combustível para as usinas nu-
cleares, a Indústrias Nucleares do
Brasil, mantém uma única mina
em operação – fica em Caetité, no
sudoeste da Bahia. Deve iniciar em
2020 a extração na jazida de Itataia,
localizada no município cearense de
2005
Santa Quitéria. Em paralelo, a Agência
Nacional de Mineração (ANM) cobra das
Indústrias Nucleares do Brasil atenção
com a primeira barragem de exploração
de urânio do país, em Caldas (MG).
As instalações ficaram na ativa entre
1982 e 1995, fornecendo urânio para
abastecer Angra 1. A mina está fechada,
mas ainda demanda um cuidado com os
resíduos, que são mantidos em uma bar-
ragem que, segundo a ANM, corre o risco
de se romper.
Outra área demanda manutenção: Aba-
dia de Goiás, cidade próxima a Goiânia
para onde foram enviados os resíduos do
acidente radioativo com césio (leia mais
sobre o caso na reportagem final da edição).
Até hoje, nunca foi registrado nenhum
acidente em Angra 1 e 2. Mas a Eletronu-
clear mantém um plano de contingência
que respeita protocolos internacionais
padronizados. A região do entorno foi
dividida de acordo com o grau de risco
e os moradores da área recebem treina-
mento constante.
Um sistema de alerta da Defesa Civil,
composto por oito sirenes, é testado todo
dia 10, sempre às 10h. Em todos os anos
pares, são realizados exercícios parciais.
Nos anos ímpares, a Defesa Civil realiza
exercícios gerais de emergência.
45
1990
2010
1995
2019
2015
1998 2019
Na gestão de Fernando Hen- O presidente Jair
rique Cardoso, o Brasil assi- Bolsonaro anun-
na o Tratado de Não Prolife- cia a intenção
ração de Armas Nucleares. A de finalizar as
partir desse momento, o país obras de Angra 3
está comprometido a não e construir novas
desenvolver armas nucleares. usinas nucleares.
2001 2004
Depois de 20 anos Durante o governo de Luís Inácio Lula da
de obras, a usina Silva, o país inaugura a Fábrica de Combus-
nuclear de Angra 2 tível Nuclear de Resende (RJ), visando enri-
entra em operação. quecer urânio em escala industrial. O país
barra o acesso total das instalações à AIEA.
O
futuro
está
na fusão
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G
47
é o mesmo os reatores de fusão nuclear, que um longo tempo, pelo processo de de-
começaram a ser desenvolvidos pelos caimento beta, que é quando um núcleo
pro c e s s o russos nos anos 1950, são considerados se transforma em outro ao emitir partí-
a tecnologia do futuro para a geração culas beta, antineutrinos ou raios gama
u t i l i z a d o pe l o de eletricidade. As vantagens da fusão – essa é a famosa e temida radiação.
justificam a empolgação. Afinal, ela uti- Trocando em miúdos: enquanto es-
liza pouquíssimos recursos renováveis, ses átomos não se estabilizarem, eles
s o l e as de m a i s não emite gases causadores do efeito permanecerão emitindo radiação, pre-
estufa – e, principalmente, não gera cisando ser selados e armazenados em
e s t r e l as , e resíduos radioativos. algum lugar seguro.
Mas por que, então, depois de seis
t e m t o das as décadas, ainda não existem usinas de
fusão? Será que é possível acreditar Eficiente e seguro
va n tag e n s que essa situação vá mudar? O futuro A fusão é muito comum no Universo.
anunciado há quase sete décadas vai Nos centros de cada estrela, incluindo
da e n e rg i a chegar em algum momento? nosso Sol, a temperatura é tão absur-
Antes de responder às perguntas, damente alta que os átomos de hidro-
vamos entender do que se trata, afinal, gênio são forçados continuamente a se
nuclear. Com a geração de energia a partir da fusão fundir, transformando-se em átomos
nuclear. Em poucas palavras, trata-se de hélio. O calor viaja pelo vácuo uni-
u m b e n e f ício de imitar o que acontece nas estrelas. versal até penetrar nossa atmosfera e
É um processo muito diferente da fis- aquecer a Terra. Se não fosse a fusão
a dicio n a l são nuclear que é utilizada pelas usinas nuclear, não haveria vida no nosso
nucleares atuais. planeta.
i m p o r ta n te: No processo de fissão nuclear desen- Reproduzir esse processo na Terra
volvido atualmente, átomos de algum seria desafiador em alguns aspectos,
n ão g e r a elemento instável, como o urânio-235, mas não em todos. Começando pelo
são bombardeados por um nêutron li- combustível. O hidrogênio em sua for-
vre. Ele é capturado e a reação gera dois ma mais comum (chamada de prótio)
resíduos átomos mais leves e instáveis, energia não seria muito útil, mas seus isótopos
térmica, radiação gama e mais nêutrons deutério e trítio, por serem muito mais
r a dioat i vo s . livres – esses últimos servem para fis- instáveis, caberiam no papel perfeita-
sionar os próximos átomos de urânio, mente. O deutério tem um próton e um
provocando uma reação em cadeia. nêutron em seu núcleo e o trítio tem
Por Victo r B ia nch in A massa dos subprodutos da fissão um próton e dois nêutrons.
é menor do que a inicial. Para onde Fundindo os dois, temos um átomo
vai essa diferença? Segundo a lei da de hélio-4, que possui dois prótons e
conservação das massas, não é possível dois nêutrons no núcleo, e um nêu-
destruir energia, e sim apenas conver- tron livre em alta velocidade. A energia
tê-la em outra coisa. Portanto, a dife- cinética liberada é o que propulsiona
rença entre os dois números representa esse nêutron, que, por sua vez, irá es-
justamente a massa que virou energia quentar a água que irá movimentar as
(na forma de calor). turbinas com o objetivo de produzir
Mas a fissão nuclear tem suas des- eletricidade.
vantagens. O lixo radioativo, a maior Deutério pode ser extraído com
delas, consiste basicamente em átomos facilidade da água do mar, o que é
instáveis, que passam, no decorrer de um ponto positivo. Já o trítio é bem
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Gasto excessivo
O que acontece é o seguinte: os núcle-
os atômicos têm cargas positivas e, por
Quando estiver isso, se repelem. Para que a fusão acon-
pronto, o ITER mais raro, pois não bombardear átomos de lítio com nêu- teça, é preciso superar essa repulsão.
vai gerar plasma ocorre espontanea- trons. Mas e os produtos da reação? A A única forma de fazer isso é aquecer
a 150 milhões de mente na natureza, fusão nuclear só gera hélio-4, um gás o material a temperaturas altíssimas,
graus Celsius. e criá-lo artificial- inerte. Zero lixo radioativo. da ordem de dezenas a centenas de
mente é caro. Es- Pense no que isso significa: além de milhões de graus Celsius.
tuda-se substituí-lo eliminar o grande problema dos de- O aquecimento é tão violento que os
pelo hélio-3, um isótopo do hélio que pósitos desse tipo de dejeto, também átomos acabam formando o que se
também é raro, mas só na Terra. Na evitaria por completo a possiblidade de chama de plasma de fusão, uma sopa
Lua, em tese, é possível que existam desastres nucleares como o de Cher- em que os elétrons e os núcleos dos
grandes depósitos de hélio-3 devido nobyl e o de Fukushima. átomos se separam e vagam livremen-
à radiação solar. Caso a operação de um reator de te. Apenas obtendo o plasma é que é
Se fosse possível minerar esses de- fusão nuclear desse algum problema, possível realizar fusão nuclear.
pósitos, nós não precisaríamos usar o como o rompimento de uma proteção, Aí está o primeiro grande desafio.
trítio. Mas é claro que, aí, já estaríamos por exemplo, o plasma onde o processo Nas estrelas, o que acontece é um mé-
entrando no campo da ficção científi- ocorre esfriaria e a reação seria inter- todo de força bruta: a massa gigantesca
ca. O trítio, por mais caro que seja, a rompida imediatamente. Não haveria desses corpos celestes gera uma pres-
ciência já sabe como conseguir: basta explosão ou vazamento de radiação. são altíssima em seus núcleos, o que,
Divulgação
V
por sua vez, garante as temperaturas
necessárias para que a fusão ocorra por
ali. Mas, na Terra, criar as condições
para esse plasma se formar é uma tarefa
hercúlea. Manter esse plasma estável
para que as reações ocorram é um
segundo passo mais difícil ainda. E,
mesmo que tudo isso seja alcançado,
ainda existe o fato de que você estará
O modelo de re-
ator mais utiliza-
do para produzir
colocando muito
mais energia den-
tro do sistema do
que retirando dele,
ou seja, o experi-
mento não faria
sentido comercial-
mente. É como se
estivéssemos utilizando 100 baterias
de carro para energizar uma máquina
que, em troca, te dá uma pilha AAA.
Não há benefício ambiental que justi-
fique esse desperdício de energia.
Acontece que ciência existe justa-
mente para enfrentar obstáculos como
esse e, atualmente, não são poucos os
profissionais que estão tentando re-
verter esse cenário – além de dezenas
de startups criadas nos últimos anos
com o objetivo de solucionar detalhes
técnicos das futuras usinas de fusão. A
primeira etapa, que é criar uma máqui-
na que consiga estabilizar o plasma, já
é desenvolvida em vários laboratórios
pelo planeta.
Donut gigante
O ITER (International Thermonuclear
Experimental Reactor), que está sendo
construído na França, será o maior ex-
perimento de fusão nuclear do mundo
e já anunciou seu “primeiro plasma”
para 2025. Trata-se de um colosso em
forma de donut com 16 mil m3 e 30 m
de diâmetro onde o plasma será aque-
cido a uma temperatura de 150 milhões
de graus Celsius, mais de dez vezes a
temperatura do Sol.
A maior concorrente do ITER é a
britânica Tokamak Energy, que con-
seguiu chegar aos 15 milhões de graus
Celsius em um experimento em seu
reator ST40 em 2018. A empresa de-
clarou que pretende começar a explorar
a energia de fusão nuclear comercial-
mente a partir de 2030.
“Tokamak”, além de ser o nome de
uma empresa, é um termo que des-
creve um tipo de tecnologia, já que é
formado pelo acrônimo da expressão
em russo para “câmara toroidal com
bobinas magnéticas”. Trata-se de um
reator que usa campos magnéticos pa-
ra criar e manter o plasma. O ITER e
o ST40 são tokamaks, mas há outras
tecnologias também sendo exploradas.
Os modelos estelarator (como o ale-
mão Wendelstein 7-X) também usam
campos magnéticos, mas têm formato
de anéis retorcidos em vez de donut. Já
os aparelhos de confinamento inercial
consistem, principalmente (mas nem
todos), em usar lasers superpoderosos
para aquecer o combustível, formando
o plasma – o reator mais famoso nes-
se modelo é o NIF (National Ignition
Facility), instalado nos EUA.
Nenhuma dessas máquinas citadas
será capaz de produzir energia elétri-
ca em escala comercial. Todas servem
como experimentos para que os cien-
tistas possam compreender melhor as
diversas complexidades da tecnologia.
São passos seguros (ainda que lentos)
na direção do sonho de abastecer o
mundo com a energia limpa e prati-
camente inesgotável de fusão nuclear.
Divulgação
49
radiação
E n t r e de z e n as
de va z a m e n to s
e e x plo s õ e s
à
r eg i s tr a d o s
de s de a
c o n s tru ção
dA s pr i m e i r as
u s i n as ,
o s p io r e s
solta
ac o n t ec e r a m
na Ucrânia,
n o Ja pão,
n o s E s ta d o s
U n i do s , n o
Ca z aq u i s tão e
n a I n g l at e r r a .
O dia em
vazamentos radioativos. Passados 30
anos, a antiga estrutura de contenção,
erguida em volta do que sobrou do re-
ator que explodiu na madrugada de 26
de abril de 1986, à 1h23min40, duran-
que a Terra
te um teste de segurança, apresentava
rachaduras e ameaçava ruir.
A nova cúpula foi projetada para
durar 100 anos. “Até hoje, os russos
custam a acreditar no que aconteceu.
tremeu
Para eles, seus reatores nucleares esta-
vam entre os mais seguros do mundo”,
afirma o escritor e jornalista britânico
Adam Higginbotham, autor de Mid-
night in Chernobyl: The Untold Story of
the World’s Greatest Nuclear Disaster. “A
hipótese de explosão era algo ridículo,
impensável. Foi esse excesso de con-
E n t e n da o q u e cau s o u o aci de n te fiança que nos levou ao maior desastre
nuclear de todos os tempos.”
n u c le a r m a i s g r av e da h i s tó r i a O roteirista americano Craig Mazin,
de 48 anos, foi um dos telespectadores
e c o n h eça o s b as t i do r e s da que, naquela noite de 2016, assistiram
às imagens transmitidas da antiga re-
s é r i e da HBO s o b r e o cas o pública soviética. Em sua casa em Pasa-
dena, na Califórnia, não parou mais de
e s e u s protag o n i s tas . pensar no assunto: “Se você perguntar
a qualquer um como o Titanic afundou
Po r A nd r é B er na r d o ou como JFK morreu, todo mundo vai
responder. Mas, e Chernobyl?”.
Quando um dos quatro reatores da
usina de Chernobyl voou pelos ares,
lançando pedaços de grafite altamente
radioativo sobre os arredores da usi-
na e liberando uma nuvem tóxica, que
se espalhou por 12 países da Europa e
causou irreparáveis danos à saúde de
seus habitantes, Mazin tinha acabado
No dia 29 de novembro de 2016, de completar 15 anos e cursava o ensino
TVs do mundo inteiro noticiaram médio na Freehold High School, em
a inauguração da nova cúpula de se- Nova Jersey. Do que ele se lembrava?
gurança do reator 4 da usina nuclear Praticamente nada.
de Chernobyl, distante 130 km de Foi quando teve a ideia de escrever
Kiev, a capital da Ucrânia. Apelidada uma minissérie sobre o pior acidente
onde Pripyat, Rússia
quando 1986
de “Arca”, a redoma de aço mede 108 nuclear da história. “Chernobyl é um
vítimas até 100.000 m de altura, 250 m de largura e 150 m misto de falha humana e erro de pro-
nível de gravidade (0 a 7) 7 de comprimento. Orçada em US$ 1,7 jeto. No início, a culpa foi atribuída os
bilhão, a Arca tem espaço para abrigar operadores. Passados alguns anos, o
um prédio de 36 andares. Pesando 36 governo admitiu que uma falha no re-
mil toneladas, o domo foi construído ator RBMK-1000 contribuiu”, explica
sobre o antigo sarcófago de concre- Claudio Ubirajara Couto, da Associação
to, com o objetivo de impedir novos Brasileira de Energia Nuclear (ABEN).
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cerca de 150 pessoas, todas na casa dos Nuclear, da bielorussa Svetlana Aleksi-
Últimos moradores 70 anos, ainda moram lá. São os chama- évitch. Resultado de 20 anos de pesqui-
Daquela noite em diante, Craig Mazin dos samosely. “A evacuação de Pripyat e sas, o livro-reportagem levou a autora
aproveitou o tempo livre para pes- de outros vilarejos vizinhos aconteceu a visitar a região do acidente muitas
quisar sobre Chernobyl. Viajou até a somente 36 horas depois da explosão vezes. Sempre que chegava à zona de
Ucrânia. Na zona de exclusão de 2,6 do reator”, afirma a física nuclear Emico exclusão, ouvia as mesmas recomenda-
mil quilômetros quadrados criada ao Okuno, da Universidade de São Paulo ções: é proibido arrancar flores, sentar
redor da usina, vi- (USP). “Pediram aos moradores que le- na relva ou beber água dos mananciais.
sitou a cidade-fan- vassem apenas documentos, pertences Até os gatos, avisavam, deixaram de
Os nazistas tasma de Pripyat e e, por precaução, alguma comida. Dis- comer os ratos mortos. “A morte está
conduziram em conversou com os seram, também, que a evacuação seria por toda a parte”, descreve a autora.
Prypiat, em 1941, últimos de seus temporária. Eles nunca mais voltaram.” Foi de Vozes de Chernobyl que Mazin
uma operação 48 mil habitantes. Um dos livros que Mazin leu pa- tirou dois dos principais personagens: o
de extermínio Apesar do risco ra escrever a minissérie foi Vozes de bombeiro Vasily Ignatenko, de 25 anos,
de judeus. de contaminação, Chernobyl – A História Oral do Desastre um dos primeiros a chegar à usina, e
sua mulher, Lyudmilla, de 23. Naquele
dia, Vasily não estava de plantão. Ele e
a mulher viajariam para Bielorrússia,
onde moravam os pais dele.
“No meio da noite, ouvi um barulho.
Olhei pela janela. Ele me viu: ‘Há um
incêndio na central. Volto logo’”, relata
a viúva no livro. Vasily nunca voltou.
Da usina, foi mandado direto para
um hospital em Moscou, onde morreu
14 dias depois. Segundo dados oficiais
do governo, Vasily Ignatenko é um dos
31 mortos no acidente nuclear de Cher-
nobyl. Segundo estimativas extraofi-
ciais, o número de mortos varia de 4
mil (segundo a Organização das Nações
Unidas) a 100 mil (para o Greenpeace).
A própria Svetlana perdeu uma ir-
mã, médica, e a mãe, professora, após a
tragédia. Desconfia que as duas foram
vítimas do acidente. Mas a inspiração
para escrever o livro surgiu mesmo em
1988, quando recebeu um telefonema
de Eduard Boríssovitch Korotkóv. Do
outro lado da linha, um dos pilotos de
helicóptero que sobrevoaram a usina,
jogando uma mistura de boro, areia
e chumbo sobre o reator em chamas,
pediu a ela que fosse vê-lo depressa.
“Tenho pouco tempo de vida e gos-
taria de contar o que sei”, adiantou. Al-
guns de seus colegas já tinham mor-
rido. Outros, tirado a vida. Os pilotos
ficaram conhecidos como “Falcões de
Chernobyl”. Não fossem eles, a tragédia
teria sido muito pior.
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fungos radioativos
Exibida entre 6 de maio e 3 de junho
de 2019 pela HBO, a série Chernobyl
arrancou aplausos até mesmo na Rús-
sia. Poucos, verdade, mas arrancou. O
político ucraniano Vladimir Medinsky
é dos que elogiaram a produção. Seu
pai, ainda vivo, foi um dos 600 mil
“liquidadores” que, mesmo trabalhando
em condições insalubres e sem roupas
de proteção adequadas, evitaram o pior.
O ministro da Cultura do governo
Putin, porém, não é regra. É exceção.
Em geral, os russos não gostaram na-
da do que viram. Alegaram, em sua
maioria, distorção dos fatos. Tanto
que pretendem, eles mesmos, contar
declarou que o roteiro
vai girar em torno do
suposto envolvimento
de espiões da agência
de inteligência ameri-
cana (CIA, na sigla em
inglês) na tragédia. “Há
uma teoria de que os
Cena da série da
HBO retrata as
incursões com
helicópteros que
lançavam areia
sobre o reator.
não faz o menor sentido. “A sus-
peita de que há envolvimento
da CIA no acidente tem mais
a ver com a atmosfera política
da Rússia de 2019 do que com
a da antiga União Soviética de
1986”, diz ele.
A vida na região foi trans-
americanos se infiltraram na usina de formada pela tragédia. Em 2008, um
Chernobyl. Muitos historiadores não grupo de pesquisadores identificou 37
descartam a possibilidade de que, no espécies mutantes se desenvolvendo
dia da explosão, um agente dos serviços em Chernobyl, incluindo um fungo que
de inteligência do inimigo estivesse na se especializou em se alimentar de ma-
estação”, discorreu o diretor. teriais contaminados. Apesar de todos
“A KGB chegou a investigar a hipó- os riscos, milhares de pessoas fazem
tese de atentado terrorista, mas nada turismo em Prypiat; só em 2019, a área
descobriu”, afirma o historiador Serhii já recebeu mais de 85 mil visitantes -
Plokhii, da Universidade de Harvard, e que podem, inclusive, entrar na sala
sua versão da história. A missão está a autor do livro Chernobyl – The History de controle onde tudo deu errado. É
cargo do cineasta russo Aleksey Mura- of a Nuclear Catastrophe (ainda inédi- preciso ser maior de 18 anos e não se
dov que, em entrevista ao jornal mais to no Brasil). A verdade é que tentar pode permanecer na sala por mais do
lido da Rússia, o Komsomolskaya Pravda, jogar a culpa em espiões americanos que cinco minutos.
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Tragédia em
três atos
E n t e n da c o m o o e r ro h u m a n o,
“Samurais atômicos”
Quando indagado sobre o fatídico 11
de março de 2011, o engenheiro nucle-
ar Masao Yoshida, que dirigia a usina
nuclear por ocasião do acidente, cos-
tumava citar a Batalha de Iwo Jima, a
mais sangrenta da Guerra do Pacífico,
em 1945. Tal e qual o general Tadami-
chi Kuribayashi, designado para liderar
22 mil soldados contra a invasão de
110 mil fuzileiros navais americanos,
Yoshida arriscou sua vida para defen-
der Fukushima e minimizar os prejuí-
zos causados por explosões, incêndios
e vazamentos. Na época, contrariou a
recomendação da Tokyo Eletric Power
(Tepco), a empresa responsável pela
usina, que, por causa do aumento dos
índices de radiação, mandou os 800
operários da central bater em retirada.
Yoshida permaneceu em seu posto
de comando para ajudar a controlar a
situação. Ou, pelo menos, tentar. Muni-
dos de tanques de oxigênio, os 50 ope-
rários de Fukushima usavam roupas de
chumbo, enganavam a fome com água
e biscoito e enfrentaram uma radiação
estimada de 250 mSv (milisieverts;
uma tomografia de corpo inteiro não
emite mais do que 10 mSv). Mas Yoshi-
da não lutou sozinho. Fazia parte de
um exército de 300 homens que, entre
técnicos, engenheiros e voluntários, se
revezavam na tentativa de resfriar os
reatores superaquecidos das usinas 1, 2
e 3, impedindo seu derretimento e, pior,
o vazamento de material radioativo.
Por seu ato de bravura, eles ganha-
ram status de heróis. Foram
apelidados de “Os 50 sem
rosto” pelo The New York Oito anos após
Times e chegaram a ser re- o acidente, a meio ambiente teria sido mais Inside Story of Fukushima Daiichi (2012),
cebidos pelo primeiro-mi- região ainda elevada”, afirma Luís Antônio de Ryusho Kadota, para os cinemas.
nistro japonês, Yoshihiko é monitorada Terremoto, do IPEN. “Embora seu heroísmo não tenha im-
Noda, em 2012. de perto. Dois anos e quatro meses pedido o derretimento dos reatores, os
“O trabalho deles foi depois do acidente, em julho 50 de Fukushima merecem crédito por
muito importante. Sem os de 2013, Yoshida morreu, aos ter evitado o pior”, pondera Lyman.
50 de Fukushima, o índice de derre- 58 anos, vítima de câncer no esôfago, “Mas a segurança de uma usina não
timento dos núcleos das três usinas possivelmente resultado do contato deve depender dos trabalhadores que
teria sido consideravelmente maior com radiação. Se depender do cine- arriscam suas vidas. É preciso que haja
e, consequentemente, a probabilida- asta Wakamatsu Setsuro, seu heroísmo um planejamento maior para que, mes-
de de escape de uma quantidade ain- não será esquecido. Ele está por trás da mo sob condições adversas, a segurança
da maior de material radioativo para o transposição do livro On the Brink: The não seja colocada em risco.”
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M
Passados oito anos, muitas famílias biológicas, mas nos roubaram nossas
ainda vivem em alojamentos tempo- vidas biográficas”, escreveu Sasaki, pa-
rários. São refugiados em seu próprio rafraseando um de seus autores favo-
país. Minamisoma é uma das muitas ritos, o espanhol Miguel de Unamuno.
cidades assombradas pelo fantasma da
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O bri-
lho da
morte
O acidente mais
grave do Brasil
matou quatro.
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Rotina de
acidentes
De 1 9 4 9 a 2 0 1 7, o C o m pl e xo M aya k
ac u m u l o u catás tro fe s , do de s pe j o
de m at e r i a l r a dioat i vo n u m r io
a e x pl o s õ e s de r e ato r e s . A i n da
a s s i m , o l o ca l c o n t i n ua n a at i va .
O complexo foi
Depósito aquecido da história até então, e perma- construído por Crônica da Radiação, um
Construído para fabricar plutônio-239, neceu no topo do pódio até os prisioneiros problema caracterizado pe-
usado para construir bombas atômicas, anos 1980. Só seria superado de guerra a la exposição a baixos níveis
o complexo mantinha seis reatores. Em por Chernobyl e Fukushima. partir de 1945. de radiação, mas ao longo
29 de setembro de 1957, um dos tan- Parte das vítimas foi retira- de muito tempo. São pesso-
ques subterrâneos onde eram guarda- da de casa, do dia para a noite, as com anemia, problemas
das 70 toneladas de resíduos explodiu. sem aviso prévio – um procedimento digestivos e imunológicos, dores nos
O sistema de resfriamento com base que seria repetido quase 30 anos depois, ossos e falhas musculares. O acompa-
em água corrente parou de funcionar em Chernobyl. Uma das vilas mais pró- nhamento continua, em especial junto
meses antes, ninguém percebeu e o ximas da usina, Satlykovo, virou uma à comunidade de Muslyumovo, que
material superaqueceu, lançando a cidade radioativa abandonada. Estava nunca foi evacuada (possivelmente
tampa de concreto para longe. O mate- dentro da área de exclusão que passou porque os moradores são da etnia asiá-
rial lançado pela explosão atingiu uma a ser monitorada constantemente, e tica Bashkir, discriminada pela maioria
área estimada em 52 mil quilômetros de forma sigilosa, por pesquisado- dos russos). Seus moradores estão na
quadrados, onde viviam 270 mil pes- res que descobriram que muitos dos quarta geração de pessoas expostas à
soas. Era o maior acidente radioativo moradores são vítimas de Síndrome radiação diariamente.
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Fogo na
fábrica
Incidente na In-
glaterra espalhou
fumaça radioativa.
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onde Harrisburg,
Estados Unidos
quando 1979
vítimas 333
nível de gravidade (0 a 7) 5
Fim de
Muitos dos projetos que já haviam
sido liberados foram engavetados e usi-
nas funcionais acabaram fechadas antes
de completar sua vida útil. Se em 1979
havia 177 usinas operacionais ou em
construção, em 1998 o número havia
uma era
caído para 112. Afinal, o que aconteceu
de tão grave na madrugada de 28 de
março de 1979?
O sistema de resfriamento de um
dos reatores do local entrou em pa-
ne. Era um problema previsível, para
o qual havia respostas automáticas: a
O aci de n te da u s i n a a m e r ica n a turbina parou de funcionar e o vapor
acumulado, não radioativo, foi libera-
de Th r e e M i l e I s l a n d n ão foi do para a atmosfera. Os moradores da
região ouviram naquela madrugada o
g r av e . M as d e i xo u o s a m e r ica n o s equivalente ao som de uma chaleira
gigantesca.
c o m a s e n s ação de q u e a e n e rg i a Com a pressão da água reduzida, era
preciso enviar um outro tipo de flui-
n u c l e a r n ão e r a c o n f i áv e l . do para controlar a temperatura. Mas
a bomba que deveria enviá-lo estava
Po r Tiag o Cord eiro em manutenção. Mesmo desligado, o
reator começou a esquentar perigo-
samente, porque as reações atômicas
continuariam ocorrendo por horas. Era
o momento de os operadores agirem.
Mas eles só pioraram o problema.
Níveis
de perigo
A Agência Internacional
de Energia Atômica dá
notas para os acidentes.
Nível 0
Dano não significativo.
Nível 1
Anomalia Problemas de
segurança menores.
Nível 2
Incidente Exposição de indivíduo
não envolvido com funções nucleares
acima de 10 milisieverts (mSv). Níveis
de radiação superiores a 50 mSv/h
em zona de operação não prevista.
exemplos Atucha, na Argentina
(2005), Cadarache, na França (1993),
e Forsmark, na Suécia (2006).
Nível 3
Incidente sério Exposição dez vezes
superior ao limite anual estabelecido
para a exposição dos trabalhadores
com efeitos sanitários não letais
exemplos Vandellos, na Espanha
(1989), Paks, na Hungria (2003), e
Sellafield, no Reino Unido (2005).
1,5 mSv
Raios X da coluna.
2,5 mSv
Mamografia; exposição
média de uma pessoa à
radiação natural em um ano.
10 mSv
Tomografia de 50 mSv
corpo inteiro. Exposição máxima
no acidente da
usina Three Mile
Island, nos EUA.
100 mSv
Limite recomendado
para trabalhadores
expostos à radiação ao
longo de cinco anos. 400 mSv
Nível de radiação
máxima registrada na
central de Fukushima no
dia do acidente, por hora.
1.000 mSv
Dose única que
causa síndrome
radioativa.
5.000 mSv
Suficiente para matar
metade da população
exposta em até um mês.
10.000 mSv
Suficiente para destruir
tecido intestinal, provocar
hemorragia pelos poros da
pele e matar em até 15 dias.
20.000 mSv
Dose suficiente para provocar
dano cognitivo, levar a
pessoa exposta a convulsões
e matar em poucas horas.
300.000 mSv
Explosão do reator de
número 4 da usina
nuclear de Chernobyl.
energia nuclear
ISBN 978-85-69522-97-3
é um livro da Editora Abril S.A., distribuído em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo.
O Dossiê Energia Nuclear não admite publicidade redacional.
C794e
Cordeiro, Tiago
Energia nuclear. / Tiago Cordeiro ; Abril Comunicações.
– São Paulo: Abril, 2020.
66 p ; il. ; 27 cm.
CDD 539.7