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GEOGRAPHIC
AM E R 1 CA
THE BEAUTIFUL
NARRADO POR MICHAEL B . JORDAN
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N AT I O N A L G E O G R A P H I C SETEMBRO 2022
S U M Á R I O
2
O velho caminho para Roma
A Via Ápia foi um símbolo do
20
A cultura milenar do Iémen
A guerra civil que assola o
42
Longe da vista
O solo é uma rede dinâmica
Império Romano. Legionários, Iémen há oito anos ameaça os de habitats e organismos
comerciantes e peregrinos tesouros do país. Agora, em constante mudança.
caminharam há mais de dois mil arqueólogos e historiadores Visto ao microscópio, um
anos por esta estrada. Agora, o tentam salvar os vestígios dos punhado de terra da Floresta
governo italiano quer criar antigos reinos que estiveram na Negra revela un mundo
uma nova rota de peregrinação. origem da civilização que inimaginável de fantasia.
T E XTO D E N I N A ST RO C H L I C
dominou a península Arábica. T E XTO D E F E R R I S JA B R
F OTO G RA F I A S D E T E XTO D E I O N A C RA I G I M AG E N S D E O L I V E R M E C K E S
A N D R E A F R A Z Z E T TA F OTO G R A F I A S D E MO I S E S SA M A N E N I C O L E O T TAWA
ANDREA FRAZZETTA
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S
60
A S UA F OTO
VISÕES
EXPLORE
Alta tecnologia no Douro Berlengas lotadas
O Douro vinhateiro adapta-se ao À volta do mundo
futuro incerto. Num clima em No rasto dos livros tóxicos
mudança e num mercado de
recrutamento cada vez mais difícil, I N ST I N TO BÁ S I C O
os robots vieram para ficar. Muito A lesma hermafrodita
do que hoje se faz nas encostas já
(quase) dispensa a mão humana. E D I TO R I A L
T E XTO E F OTO G RA F I A S
D E A N TÓ N I O LU Í S C A M P O S BASTIDORES
70
N A T E L E V I SÃO
P RÓX I M O N ÚM E RO
Na capa
Santuário de chimpanzés Um troço da Via Ápia
na África Central Antiga, a mais transitável
A resiliência revelada por crias órfãs e mais bem conservada
de chimpanzés no Centro de estrada romana, na
Reabilitação de Primatas de Lwiro, intersecção com a Rua Tor
na República Democrática do Carbone, em Roma.
Congo, é também um exemplo FOTOGRAFIA DE GIANNI BARONI
84
O laboratório islandês
Há cinco décadas, a Islândia
dependia das fontes de energia
importadas do estrangeiro.
A revolução geotérmica
converteu entretanto o país Envie-nos comentários
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campo da transição energética.
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F OTO G R A F I A S D E S I MO N E T R A MO N T E
96
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O veraneio dos ursos portugal
O fotógrafo Martin Gregus Jr.
revela a faceta menos conhecida
dos ursos-polares durante os
curtos verões do Árctico, altura Assinaturas e
em que os animais abandonam o atendimento
gelo e mudam-se para terra firme. ao cliente
T E X TO D E JA S O N B I T T E L Telefone 21 433 70 36
F OTO G R A F I A S D E (de 2.ª a 6.ª feira)
M A RT I N G R E G U S , J R . E-mail: assinaturas@vasp.pt
N AT I O N A L G E O G R A P H I C DE CIMA PARA BAIXO: ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; BRENT STIRTON; SIMONE TRAMONTE; MARTIN GREGUS, JR
publirreportagem
EMBALAGENS DE PAPEL
MELHOR PARA O AMBIENTE
E PARA A SAÚDE
As embalagens de plástico representam quase metade
da poluição por este material no planeta, num total anual
de mais de 140 milhões de toneladas*. A boa notícia é
que podem ser substituídas por embalagens de papel,
que tem por base uma matéria-prima natural e renovável,
e que é biodegradável e altamente reciclável.
A segurança dos alimentos é uma prioridade de saúde
pública e um importante tema de discussão e reflexão,
gerando preocupações e normas legais apertadas, e
estimulando a indústria a criar novas soluções de
acondicionamento. Mais seguras, limpas e inócuas, além de
manterem um compromisso claro com a sustentabilidade.
Empenhada na procura de alternativas, a The Navigator
Company, empresa de base florestal, lançou uma nova
solução de papel para embalagens, que abre um caminho
importante para a substituição dos plásticos num dos
segmentos de mercado mais dependentes deste material
de origem fóssil, e que, simultaneamente, responde à cada
vez maior preocupação com os perigos de contaminação
dos alimentos pelas embalagens que os transportam.
Desenvolvido e produzido em Portugal, este papel, com a
marca gKraft, tem como grande novidade ser fabricado
apenas com recurso a fibra virgem de Eucalytptus
globulus, o que o torna mais seguro e higiénico para
contacto com alimentos, nomeadamente por
comparação com papéis reciclados, que contêm químicos
nocivos. A inovadora pasta utilizada na produção deste
papel tem ainda como atributo uma menor utilização de
madeira para obter a mesma quantidade de papel.
Os produtos de base florestal, como o papel, são
essenciais na transição de uma economia fóssil e linear,
baseada em recursos finitos e prejudiciais ao meio
ambiente, para uma bioeconomia circular
sustentável, amiga da natureza e neutra em
relação ao clima.
D I O G O N Ó B R E G A Indiferente à presença do fotógrafo, esta jovem raposa explora, à primeira luz da manhã, um campo
florido nos arredores de Vila Real em Trás-os-Montes. O dia vai ser quente e em breve o animal refugiar-se-á na sombra.
VA S C O B A R B O S A Uma pedreira na aldeia de Codaçal, no concelho de Porto de Mós, serviu de tela para a participação do
pintor muralista Jorge Charrua no âmbito do evento de arte pública Stone Art, que captou a atenção do autor.
J O Ã O M O U R Ã O Numa visita em família ao Palácio Nacional de Queluz, o autor deixou-se deslumbrar pela dependência que
passou, a partir de 1794, a ser designada por Sala dos Embaixadores. O espelho ao fundo acabou por produzir um auto-retrato.
V I S Õ E S
Portugal
A oeste da Selvagem Pequena, nas
ilhas Selvagens (o território mais
meridional de Portugal), o ilhéu de
Fora é uma formação invulgar, na
medida em que pode duplicar a
área de superfície, consoante a
maré. Existe um besouro endémico
neste território, que depende de
uma planta igualmente endémica.
LUÍS FERREIRA
Portugal
O afundamento intencional
do navio Madeirense, ao largo
da ilha de Porto Santo, criou
um autêntico oásis de vida
marinha onde anteriormente
pouco mais existia do que areia.
A sua exploração é possível
em mergulho, mas sempre sob
olhar atento de grandes meros,
os guardiões deste naufrágio.
NUNO VASCO RODRIGUES
1
Espanha
A descida do nível do reservatório
de Sau, em Barcelona, deixou a
descoberto o campanário da velha
Igreja de Sant Romà de Sau, a
aldeia tragada pelas águas em
1962. Considerada uma jóia
submersa, Sant Romà de Sau
reemerge como uma lembrança
das opções que tomamos.
WESTEND61 / GETTY IMAGES
E X P L O R E
BERLENGAS
LOTADAS
T E X T O D E A L E X A N D R E VA Z F O T O G R A F I A D E L U Í S Q U I N TA
OS NUMEROS
´
3
TA X A T U R Í S T I C A , E M E U R O S
78,8
Á R E A DA I L H A
E M H E C TA R E S
550
M Á X I M O D E V I S I TA N T E S
E M S I M U LTÂ N E O
80.000
V I S I TA N T E S E M 2 0 1 8
O QUE É? VA L O R E S C O N S E RVA Ç Ã O
Suficientemente distante A Reserva encerra um A necessidade de com-
para que seja desafiante património natural valioso patibilização dos valores
lá chegar mas suficien- tanto em terra como no naturais obrigou à criação
tente perto para que a mar. As ilhas acolhem as de limites de visitantes
sua presença magnética únicas populações repro- diários. Em 2022, depois
se imponha sobre quem o dutoras regulares em Por- de um período de acalmia
avista a partir da costa, o tugal de roque-de-castro imposto pela pandemia,
arquipélago das Berlen- e de pardela-de-bico-ama- foi finalmente possível
gas é constituído pela ilha relo, excluindo os Açores e definir um limite para o
da Berlenga e pelos ilhéus a Madeira. São também o número de visitantes em
das Estelas e dos Fari- reduto de uma subespé- simultâneo (550 em 2022,
lhões-Forcadas. Tem sido, cie endémica de lagartixa pagando 3 euros numa
ao longo de décadas, (Podarcis carbonelli ber- plataforma digital). Foram
o destino de aventuras lengensis) e de plantas também desenvolvidas
de um dia ou de longas autóctones como a campanhas de erradica-
estadas de Verão. Foi clas- magnífica arméria das ção de espécies invasoras
sificado como Reserva Berlengas (Armeria e de melhoria do habitat
Natural em 1981. berlengensis). das espécies protegidas.
JÁ CONHECE
H I S TÓ R I A FI LO S O FI A
AS NOSSAS
EDIÇÕES
ESPECIAIS?
GRANDES GRANDES
P E R S O N AG E N S C U LT U R A MU L H E R E S
AT L A S | E X P L O R E
VIAGEM TURBULENTA
No 500º aniversário da primeira volta ao mundo, a viagem
permanece obscura. Apenas um dos cinco navios completou a
expedição e Fernão de Magalhães não estava a bordo.
T E X T O D E M O N I C A S E R R A N O, S O R E N őA L L JA S P E R ,
PAT R I C I A H E A LY E E V E C O N A N T
um navio decré-
N O O U TO N O D E 1 5 2 2 , zarparam com capacidade para armaze-
pito aportou em Espanha com 18 tri- nar a bordo 550 toneladas de especiarias.
pulantes debilitados. Eram os únicos A viagem prolongou-se por três anos
sobreviventes do grupo de 240 que e os marinheiros sobreviveram com
tinham partido para uma ousada mis- a ajuda de povos indígenas que foram
são. Carlos I, o jovem rei castelhano, não encontrando, tratando alguns com
estava disposto a continuar a depen- justiça e outros com crueldade e vio-
der das rotas comerciais terrestres para lência. Numa ilha das Filipinas, Maga-
obter a noz-moscada e o cravinho tão lhães, aliás, encontrou a morte. O novo
cobiçados na Europa e financiou uma comandante, o navegador basco Juan
expedição liderada por Fernão de Maga- Sebastián Elcano, ficou com a missão
lhães, um marinheiro português que de guiar o Victoria até Sanlúcar de Bar-
acreditava que a Terra era redonda, rameda (em baixo). O navio regressou
uma teoria então ainda não provada. com uma fracção da carga pretendida,
Em Setembro de 1519, cinco navios mas confirmara que a Terra era redonda.
À VOLTA DO MUNDO
A armada foi encarregada de encontrar uma rota mandato, com resultados desastrosos e históricos.
para Ocidente até as Molucas, ou ilhas das Especia- Esta primeira circum-navegação do globo, um feito
rias, e regressar pelo mesmo caminho. Os governan- singular de exploração e ciência, mudou o mundo
tes deveriam honrar as linhas do tratado, aprovadas para sempre, despertando a globalização, a disse-
pelo papa, que dividiam os direitos globais de explo- minação do cristianismo e os abusos da colonização
ração entre Espanha e Portugal. Magalhães violou o nos séculos vindouros.
E U R O PA
PORTUGAL ESPANHA
A M É R I C A PARTIDA 10 AG., 1519
REGRESSO 8 SET., 1522
Sevilha
D O N O R T E Sanlúcar de
Barrameda
O C E A N O Tenerife
Golfo do
TRÓPICO DE CÂNCER
México
A T L Â N T I C O
Linha divisória A tripulação faminta do navio
Nova Espanha
(ESPANHA)
Mar das do Tratado das danificado fez escala nas ilhas
Caraíbas Tordesilhas portuguesas de Cabo Verde
PARA PORTUGAL
Cabo Verde
PARA ESPANHA
O C EA N O Baía de Guanabara
(Rio de Janeiro)
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
pa c íf ic o
Rio da
Prata Após a travessia do Atlân-
tico, a tripulação trocou
provisões frescas com os Cabo da
PATAGÓNIA
Boa Esperança
indígenas e caçou animais
selvagens, incluindo pin-
ILUSTRAÇÕES: MATTHEW TWOMBLY. FONTES: FUNDAÇÃO ELKANO 500; JOSE ELEAZAR R. BERSALES E GEORGE EMMANUEL R. BORRINAGA,
UNIVERSIDADE DE SAN CARLOS; GUADALUPE. FERNÁNDEZ MORENTE, FUNDAÇÃO DA NAU VICTORIA
CINCO PARA UM
Apenas Victoria, o segundo
navio mais pequeno da armada,
regressou — a sua carga, com-
San Antonio* Trinidad Concepción Victoria Santiago posta de 381 sacas de cravinho
Carga (toneladas): 144 132 108 102 90 tornou a viagem rentável.
Mar das
o c e a n o
Á S I A TRÓPICO DE CÂNCER
Filipinas
ÍN D IA
FILIPINASMorte de Magalhães p a c í f i c o Hawai
(PORTUGAL) Goa Guam
Baía de Cebu Homonhon
Mar Arábico Bengala Mactan
Palawan
Limasaua
Balabac
Mindanau Mais de três
Sarangani meses no mar sem
Malaca Baía de Brunei qualquer escala
(PORTUGAL) Molucas
EQUADOR (Ilhas das Especiarias) EQUADOR
SA
BORNÉU Tidore
MA
O C E A N O
TRA
Macaçar NOVA
(PORTUGAL) Wetar GUINÉ
Victoria arrisca uma
Timor
rota por sudoeste em
Í N D I C O
tu
mo
águas portuguesas
a
Mar de
Tu
o
Coral é lag
Após dois anos, a expe- uip
dição encontrou as Arq
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
Molucas. Carregados de
OCEÂNIA especiarias, os dois últimos
navios dirigiram-se para
Espanha, seguindo rotas
opostas: uma por leste,
outra por oeste.
I. Kerguelen
Trinidad ruma a
leste, mas é
Sem tripulação Navios param A tripulação descobre
capturada
suficiente, incendeia-se para reparação que se perdera um dia A expedição
a Concepción dos cascos com os fusos horários regressa a Espanha
1522
JULHO SET. NOV. JAN. MAR. MAIO SET. TOTAIS DA
EXPEDIÇÃO
1.123 DIAS DE
VIAGEM
Baía Balabac Molucas Cabo Sevilha
do Brunei Verde 37.800
Mindanau Sarangani Sanlúcar MILHAS
Balabac Travessia do Sul de Barrameda NÁUTICAS
Palawan Palawan de África VENCIDAS
existentes
O B R A S D E M I S T É R I O E M A N UA I S F O R E N S E S
NO RASTO DOS
em bibliotecas e colecções contêm frequentemente
veneno – veneno enquanto tópico, naturalmente.
No entanto, numa reviravolta recambolesca, tem
LIVROS TÓXICOS
vindo a ser encontrado veneno em livros, como estes
exemplares verdes brilhantes em baixo. As suas enca-
dernações foram tingidas com um pigmento da era
victoriana, conhecido como verde-esmeralda, que
continha arsénico. Melissa Tedone e Rosie Grayburn,
OS SEGREDOS DOS PIGMENTOS cientistas especializadas em conservação do Museu
V E N E N O S O S E M E N C A D E R N AÇ Õ E S Winterthur em Delaware, desenvolvem investigação
DE LIVROS DO SÉCULO XIX para localizar e catalogar estes volumes e para alertar
o público para eles. O Poison Book Project [Projecto do
FOTOGRAFIA DE REBECCA HALE
Livro Venenoso] já descobriu 88 volumes com arsénico,
usando técnicas espectrais avançadas. Os processos
de detecção são cuidadosos para não “danificar peças
de arte”, explica Rosie Grayburn.
A maior parte dos livros onde foi aplicado o verde-
-esmeralda foi produzida na década de 1850 e ainda
podem existir milhares em todo o mundo, dizem
as investigadoras. E o manuseamento sistemático
dos livros envenenados pode deixar um indivíduo
levemente doente, mas seria preciso “comer” um
volume para correr um risco sério. O conselho de
No século XIX, o
pigmento verde vívido Melissa Tedone é simples: “Não é preciso entrar em
nas encadernações destes pânico e deitá-los fora” e “qualquer biblioteca que
livros era popular em coleccione obras de meados do século XIX, encader-
regiões da Europa e dos
EUA, embora a toxicidade nadas com tecido, provavelmente terá pelo menos
do arsénico fosse conhecida. um ou dois exemplares assim”, diz. — J U S T I N B ROW E R
INSTINTO BÁSICO | E X P L O R E
PROCESSO BIZARRO
Estas lesmas apresentam
genitália feminina e um
A LESMA HERMAFRODITA
pénis de duas pontas.
Genitália 1 mm
Cabeça
Pata
DESCRIÇÃO
S. makisig tem menos
de meio centímetro de
comprimento e apresenta
marcas amarelas e verme-
lhas no exterior branco
translúcido. (O azul que
se vê na periferia é água
no fundo da imagem.)
H A B I TAT
A lesma marinha vive em
leitos de areia em profun-
didades oceânicas entre
6 e 27 metros e aninha-se
no interior de microalgas.
DISTRIBUIÇÃO
O molusco foi
identificado em águas
das Filipinas, Austrália
e Indonésia.
nationalgeographic@rbarevistas.pt
Licença de
NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE NATIONAL GEOGRAPHIC PARTNERS, LLC.
EDITOR IN CHIEF Nathan Lump
RICARDO RODRIGO, Presidente
EXECUTIVE EDITOR/HISTORY&CULTURE: Debra Adams Simmons. MANAGING EDITOR/MAGAZINES: David Brindley
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JOAN BORRELL FIGUERAS, Director-geral
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JAPÃO: Shigeo Otsuka. LÍNGUA ÁRABE: Hussain Almoosawi. LITUÂNIA: Frederikas Jansonas.
JOSEP OYA, Director-geral de Operações
POLÓNIA: Agnieszka Franus. PORTUGAL: Gonçalo Pereira Rosa. REPÚBLICA CHECA: 7RP£ģ7XUHÏHN
SÉRVIA: Milana Petrovic. TAIWAN: Yungshih Lee. TAILÂNDIA: Kowit Phadungruangkij. RAMON FORTUNY, Director de Produção
S E T E M B R O | EDITORIAL
DESDE 1888,
ESTA REVISTA
TEVE APENAS
Conheça o novo
11 DIRECTORES
director da revista
EM CRIANÇA, numa pequena cidade do
Wisconsin (EUA), fui um leitor voraz de
gostos eclécticos. Numa semana, inte-
ressava-me por cometas. Depois, baleias.
Herculano. Placas tectónicas. Senegal.
Lia qualquer publicação que me desper-
tasse interesse e procurava na biblioteca
livros que me ajudassem a aprender mais.
Tive a sorte de a minha avó — alguém
que me ensinou muito sobre as vantagens
de me manter curioso ao longo de toda a
vida — oferecer à nossa família uma assi-
natura da National Geographic quando
eu tinha 8 ou 9 anos. Frequentemente, o
catalisador de cada nova obsessão era um
artigo na revista que me expunha a qual-
quer fenómeno que eu não sabia que
existia ou que eu pensava que sabia, mas
que na verdade não percebia realmente.
À medida que crescia, foi a National
Geographic que me abriu os olhos para
as maravilhas do nosso mundo. O mundo
que descobri nas suas páginas ajudou-me
a construir uma imagem mais completa
e matizada do nosso planeta – na sua gló-
ria, nos desafios e, acima de tudo, na
emocionante diversidade de pessoas,
lugares e culturas.
Foi também a National Geographic que
me inspirou a sair para o mundo e a
desenvolver as minhas próprias explora-
ções. Essa experiência do mundo não
aumentou apenas o meu conhecimento
– reforçou a importância e a urgência de
preservar e proteger o nosso planeta.
Embora esta seja a minha primeira
edição como director da National Geo-
graphic, a nossa equipa incrivelmente
talentosa produziu esta edição antes da
minha chegada. Estou muito feliz por
poder apresentar-me aqui e honrado por
estar ligado a uma organização que teve
Na sede da National Geographic, em
uma influência tão grande na minha vida. Washington, o arquivo da revista está repleto
Nos próximos meses, vamos traçar planos de edições que me lembro de ter visto quando
para o futuro da National Geographic, era jovem, incluindo esta edição de Maio de
1986, com uma capa dedicada ao Serengeti.
num esforço para permanecer tão essen-
ciais, relevantes e especializados como
sempre. Estou animado com o caminho
que temos pela frente e espero que se Nathan Lump,
junte a nós nesta jornada. Director
LYNN JOHNSON
TEXTO DE NINA STROCHLIC
FOTOGRAFIAS DE
A N D R E A F R A Z Z E T TA
O VELHO
CAMINHO
PARA ROMA
A V I A Á P I A S I M B O L I Z AVA O P O D E R D O
I M P É R I O RO M A N O. AG O R A , I TÁ L I A E S TÁ A R E S TAU R Á- L A
N A E S P E R A N Ç A D E C R I A R U M A ROTA D E
3
H Á UM McDONALD’S NOS SUBÚRBIOS
de Roma onde, depois de encomen-
darmos um Big Mac, podemos olhar
através do solo envidraçado e ver
metros um pavimento de pedra cin-
zento e plano de uma estrada romana
e esqueletos contorcidos embutidos
na sarjeta com dois milénios de idade.
São vestígios de um desvio da pri-
meira grande auto-estrada da Euro-
pa, a Via Ápia. O caminho, iniciado
em 312 a.C., serpenteia para fora da
cidade e atravessa o Sul de Itá-
lia até chegar à cidade portuária
oriental de Brindisi. Ajudou a inspirar o ditado:
“Todos os caminhos vão dar a Roma” e, em Itália,
ainda lhe chamam Regina Viarum, a Rainha das
Estradas. No entanto, o seu legado está sepultado
com as suas pedras sob milénios de história.
Agora, um projecto do governo italiano visa
transformar a Via Ápia numa rota de peregri-
nação desde a movimentada Roma até Brindisi,
uma cidade tranquila situada no tacão da bota
formada pela península Itálica. Ao longo do seu
trajecto de cerca de 580 quilómetros, esta via
assume muitas formas: um caminho de terra
batida numa floresta, a praça de uma vila, uma
auto-estrada. Nem sempre é pitoresca ou agra-
dável, mas é um mergulho numa parte de Itália
No período romano,
a Via Ápia era a via
de circulação de
mercadorias, soldados,
gado e ideias do Sul de
Itália. Os pastores ainda
conduzem os seus
rebanhos ao longo da
que poucos turistas vêem. estrada naquele que é
Antes de as multidões chegarem, porém, o actualmente o Parque
Arqueológico Appia
governo italiano tem de escavar a Via Ápia e, Antica, em Roma.
em alguns casos, encontrá-la. É por isso que,
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
numa manhã de Outono, dei por mim a obser-
O Arco de Druso,
var a estrada a partir de um ponto avançado construído em Roma
de um império de hambúrgueres. Em Roma, no século III, assinala o
a Via Ápia é um troço com quase 18 quilóme- início de uma rota de
caminhada planeada
tros de parque arqueológico bem preservado. com 580 quilómetros
O último sector deste parque é um caminho ao longo da Via Ápia.
ascendente. Depois, desaparece quase intei- O ponto de partida
original da estrada
ramente sob o asfalto durante 80 quilómetros. permanece
A sua última aparição na Cidade Eterna acon- desconhecido.
tece debaixo do McDonald’s.
4 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ali encontra-se um pequeno desvio da Ápia, Quando um troço da Ápia foi inicialmente des-
um dos raros segmentos que foram recentemen- coberto durante a construção, os habitantes do
te escavados e preservados. Quando pergunto ao local temeram que a cadeia de fast-food estivesse
gerente do restaurante pelas pedras antigas, ele a comprar tesouros romanos antigos. Na verdade,
chama uma mulher que está sentada numa mesa os sítios arqueológicos são frequentemente reen-
lateral. Ela apresenta-se como Pamela Cerino, a terrados para se manterem preservados porque a
arqueóloga que escavou a estrada em 2014. Pame- sua manutenção é muito mais cara. Aprendo que
la encontrava-se de visita para discutir projectos os vislumbres da Via Ápia são poucos e espaçados.
futuros para o sítio arqueológico.
Saímos do restaurante e descemos uma es-
cada até ao antigo pavimento. “O projecto foi
especificamente concebido para se poder ver a
I. O CAMINHO
estrada sem entrar no McDonald’s”, diz a minha aldeias, monta-
A V I A Á P I A I N T E R S E C TA C I DA D E S ,
interlocutora. Há três esqueletos na sarjeta, ré- nhas e terras agrícolas ao atravessar quatro regiões.
plicas dos vestígios ósseos originalmente esca- A maior parte ficou escondida pelo asfalto sob a
vados por ela no local. Acima de nós, através do Strada Statale 7. No entanto, por vezes, as suas
tecto de vidro, podemos ver famílias a delicia- pedras aparecem junto de um bar na praça de uma
rem-se com McNuggets. vila ou dispersos num campo baldio.
O V E L H O C A M I N H O PA R A ROM A 5
Ruínas da rede de
aquedutos de Roma
Antiga estão visíveis no
Parque Arqueológico
Appia Antica. Enquanto
os turistas acorrem aos
lugares mais famosos
da capital, poucos são
os que se dirigem
alguns quilómetros
para sul, permitindo
que os residentes
locais usufruam
deste espaço verde.
6
7
A estrada, tal como foi imaginada pelo admi- tectura encarregados de transformar a Via Ápia
nistrador romano Ápio Cláudio, era uma ferra- num potencial trilho. A sua proposta tem um pre-
menta de domínio militar. Escravos e trabalhado- cedente histórico: os antigos romanos que viaja-
res removeram cerca de 45.300 metros cúbicos de vam pela Via Ápia encontravam uma estação para
terra e pedra por cada 1,6km ou milha (a medida trocar de cavalo a cada 16km e uma estalagem a
da milha foi uma invenção romana) acabados de cada 32km. Costa planeia uma versão actualiza-
pavimentar. Cláudio deu-lhe o seu próprio nome, da disso, com 29 segmentos de caminhada, cada
uma prática rara naqueles tempos e que sugere a qual com cerca de seis horas.
sua importância. Porém, o administrador cegou Os viajantes poderão explorar os anfiteatros
e acabou por morrer antes da conclusão da obra. das famosas batalhas de gladiadores, dormir em
A estrada avançou pelo país numa linha quase estalagens simples e provar iguarias regionais.
recta, transportando o exército romano enquanto As zonas de descanso, alojamento e os monu-
o Império dominava o Sul de Itália e embarcava mentos vizinhos serão assinaladas numa app.
para leste, por via marítima, para alargar o seu do- A abordagem simplista pretende não ocultar os
mínio ao estrangeiro. Foi a primeira de 29 estra- segmentos menos atraentes, proporcionando
das movimentadas que partiam de Roma. uma experiência honesta.
Os relatos de viagens ao longo da Via Ápia co- Começa a formar-se uma rivalidade silenciosa:
meçaram com o poeta Horácio por volta de 35 a.C. o Caminho de Santiago, a rota mais sagrada de Es-
e não lhe têm faltado admiradores desde então. panha, atrai tipicamente 300 mil caminhantes e
Contudo, o apreço pela estrada enquanto feito de o seu destino, Santiago de Compostela, atrai mais
engenharia esmoreceu quando o Império Roma- de dois milhões de turistas por ano.
no começou a desabar no final do século IV d.C. e De Roma a Brindisi, a Via Ápia é uma viagem
a Via Ápia caiu gradualmente em desuso. Num li- secular através da história. No sentido oposto,
vro de 1846, Charles Dickens descreveu “túmulos porém, acompanha os passos de São Paulo na sua
e templos, derrubados e prostrados”. viagem até Roma, vindo de Jerusalém. Compara-
Em 2015, o escritor italiano Paolo Rumiz de- da com o Caminho de Santiago, diz Angelo Costa,
cidiu percorrer a pé a Via Ápia para o jornal “La “a natureza é ainda melhor e a história é 200 vezes
Repubblica”, mas deparou com um problema: melhor. E, no final, chegamos ao papa.”
não existia um mapa moderno da estrada. Con-
tactou Riccardo Carnovalini, um caminhante
proeminente que passou quase quatro décadas a
atravessar Itália. Durante dois meses, Carnovalini
II. O INÍCIO
sobrepôs mapas militares, trilhos de pastores an- eu esperava começar
PA R A P E RC O R R E R A V I A Á P I A ,
tigos e imagens de satélite para delinear a rota da no seu início. Não tardei a descobrir que este ainda
Via Ápia. Depois, inseriu-a num GPS e caminhou, não foi escavado. As primeiras pedras da calçada
acompanhado por Paolo Rumiz. estão provavelmente enterradas perto daquilo que
A viagem chamou a atenção do Ministério do é agora uma rotunda cheia de trânsito no centro de
Património Cultural e, em 2015, o governo italiano Roma. Num esforço de localizá-las sem fazer parar
anunciou um plano para recuperar a estrada. Sé- a movimentada cidade, o Ministério do Património
culos de desenvolvimento desregrado deixaram Cultural tem estado a escavar faixas pequenas e
tesouros arqueológicos em mãos privadas e villae profundas do pavimento – até à data, sem sucesso.
antigas foram remodeladas inconsequentemen- Alguns quilómetros a sul encontra-se o Parque
te. A preservação começara, mas sem visitantes, e Arqueológico Appia Antica, o troço de estrada
a Via Ápia poderia cair de novo no esquecimento. mais bem preservado e possível de percorrer a pé.
“Uma caminhada é o acto mais político que O caminho serpenteia do centro de Roma até aos
podemos fazer para mudar a paisagem”, resume arredores da cidade, com cerca de 400 sítios ar-
Riccardo Carnovalini quando me encontro com queológicos a seu lado: villae romanas cheias de
ele mais tarde. No entanto, ainda há obstáculos mosaicos, uma catacumba cristã semelhante a
que afastam os caminhantes, numa rota difícil de um labirinto com meio milhão de mortos e mau-
encontrar, com pouca oferta de alojamento e uma soléus com escravos e meninas da antiga socieda-
infra-estrutura insuficiente de apoio. de. “Pare, estranho”, implora uma lápide. “E olhe
Eis que entra em cena Angelo Costa, fundador para este montículo de terra à esquerda, onde se
do Studio Costa, um de três gabinetes de arqui- encontram os ossos de uma pessoa de bem.”
8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
CIDADE DO VATICANO L'Aquila
Roma Atri
Villa dei A Via Ápia foi a primeira
PARQUE ARQUEOLÓGICO A
Quintili
APPIA ANTICA das 29 estradas romanas Pescara ROP
a saírem da cidade. EU ÁREA DO
O actual esforço de ITÁLIA MAPA
restauro pretende
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transformá-la num ÁS
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trilho de caminhada. Jerusalém
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meados do século II d.C.
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ambiciosos. Depois de sa
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G o lf o d e Ta r e nto i
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servir de caminho para
tropas, mercadorias e
peregrinos durante Legiões romanas zarpavam
de Brindisi, o local de Lecce
séculos, caiu em desuso.
chegada da Via Ápia, para
Actualmente, grande conquistar novas terras.
parte da via encontra-se Cosenza No seu auge, no século II, o
enterrada sob solos Império Romano governava
um quarto da população
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continentes.
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CHRISTINE FELLENZ. ROB WOOD, WRH ILLUSTRATION. FONTES: MINISTÉRIO DO PATRIMÓNIO CULTURAL;
BARRINGTON ATLAS OF THE GREEK AND ROMAN WORLD; © EUROGEOGRAPHICS 2022
A vida contemporânea passa por nós: casais
mais velhos dão passeios ao pôr do Sol e convi-
dados de uma festa de aniversário fazem visitas
guiadas montados a cavalo. Pastores em peque-
nos carros guardam cabras e ovelhas. Pessoas
jantam travessas de carnes grelhadas na espla-
nada de Qui Nun Se More Mai (“Aqui nunca se
morre”), uma acolhedora trattoria mesmo por
cima da Via Ápia. As pedras afundam-se nos
locais onde dois milénios de passagem de carro-
ças esculpiram sulcos profundos.
O turista típico de Roma está numa correria
para ver tudo o que há para ver, permanecendo
poucos dias antes de partir para Florença ou Ve-
neza. Antes da COVID-19, o parque arqueológi-
co recebia 100 mil visitantes por ano. Cerca de
três quilómetros a norte, o Coliseu atraía mais
de sete milhões.
O novo director do parque organiza um ape-
lativo programa de concertos, festivais e dias
dedicados ao património. Num dia ameno de
Outono, decidi ver o que era a oferta cultural:
pais e filhos faziam piqueniques nos campos em
redor de um hipódromo romano em ruínas, en-
quanto as crianças brincavam, atacando-se com
réplicas de espadas de gladiador.
Existe uma paz neste parque que o torna di-
ferente de todas as outras atracções da Roma
Antiga. À medida que as pedras da Via Ápia se
afastam da cidade, os sítios arqueológicos vão
escasseando até restar apenas uma coluna ou
uma estátua solitária no meio de campos verde-
jantes. Pinheiros-mansos com copas planas mas
cheios de agulhas oferecem sombra e há marcos Quando Riccardo Carnovalini e Paolo Rumiz
históricos e fontes de água aqui e além. No pon- percorreram pela primeira vez a Via Ápia a pé,
to em que o caminho chega ao McDonald’s, po- em 2015, o seu trajecto acabou cerca de 80 quiló-
rém, a Via Ápia desaparece. metros mais à frente da estrada original. A mo-
dernidade consumira grande parte do caminho
inicial, obrigando-os a navegar em redor de au-
III. CAMINHADA to-estradas e zonas industriais.
Já estamos a 225 quilómetros de Roma, mas
ATRAVÉS DO TEMPO Riccardo descreve esta zona como o início de
muita discórdia em relação ao trajecto original
da Via Ápia depois de
P A R A D E C I F R A R A R O TA da Via Ápia. Para criar a rota contemporânea,
Roma, mobilizo a ajuda de Riccardo Carnovalini, ele estudou mapas, ângulos de ruas e materiais
o caminhante que a cartografou em 2015. Encon- de construção e escolheu a opção mais viável.
tramo-nos na pequena cidade de Benevento, num Mesmo assim, linhas cor-de-rosa e azuis traça-
restaurante da praça. Enchemos uma mesa com das no seu equipamento de GPS mostram as teo-
flores de curgete fritas e bacalhau guisado em rias concorrentes.
molho de tomate. Enquanto tomamos um aperitivo “Há outros caminhos, mas são para turistas”,
mentolado, ele cita o autor italiano Italo Calvino diz, enquanto os empregados de mesa começam
que, em tempos, escreveu que um país visitado a fechar o restaurante. “Isto não é um passeio: é
“deve passar entre os lábios e descer o esófago”. história”, explica com eloquência.
10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA
Para os casais,
a Via Ápia significa
“o caminho que têm
de percorrer juntos”,
diz o fotógrafo de
casamentos Angelo
Corbi, que tem um
estúdio junto da
estrada na aldeia de
Terracina. “Haverá
melhor do que a
Via Ápia para isso?”
A praça principal
tornou-se um destino
popular para casamen-
tos e a Via Ápia é
um excelente plano
de fundo histórico.
EM BAIXO
Niccolò Bassotti
treina com a sua
equipa de futebol
em Gerini Quadraro,
um campo famoso por
ter aparecido na cena
de abertura de “La
Dolce Vita”, do
realizador Federico
Fellini. Dista poucos
metros dos antigos
aquedutos de Roma.
O V E L H O C A M I N H O PA R A ROM A 11
Os fãs de James Bond
reconhecerão a Ponte
dell’Acquedotto, em
Gravina in Puglia, do
salto de 007 em “Sem
Tempo para Morrer”.
A atracção do cinema
é uma das formas que
o Sul de Itália reivindica
para melhorar a sua
condição económica.
12
13
EM CIMA
No Instituto Central
de Restauro, em Itália,
Adriano Casagrande
repara um busto conhe-
cido como a Cabeça do
Filósofo. Foi encontrado
durante as escavações
na Villa dei Quintili,
em Roma, na quinta
milha da Via Ápia.
À D I R E I TA
Ilaria Cavaterra,
estudante de conserva-
ção, restaura mosaicos
na Villa dei Quintili.
A residência era tão
cobiçada que se diz que
o imperador Cómodo
matou os seus proprie-
tários e se mudou para
lá no século II. “Este
palácio, se estiver bem
preservado, pode
proporcionar aos
turistas uma experiên-
cia integral da vida na
Roma Antiga”, diz
Serena di Gaetano,
especialista em
conservação de
mosaicos que supervi-
siona o projecto.
14
No dia seguinte, passamos por tractores atra- de Frigento, situada no alto de uma colina, onde
vessando ruidosamente plantações de tabaco, co- descemos para o interior de uma cisterna romana
linas com moinhos de vento e campos devorados e cumprimentamos os pavões residentes, que pas-
por queimadas controladas. seiam livremente pelas ruas.
A Via Ápia foi assimilada por estas aldeias ador-
mecidas e as suas pedras e colunas estão embu-
tidas nas paredes. Em troços longos, a linha ver-
melha do GPS de Riccardo Carnovalini é a única
IV. TURISMO HONESTO
indicação de que ainda estamos no caminho certo. reservou
O M I N I S T É R I O D O PAT R I MÓ N I O C U LT U R A L
Trajectos amarelos curtos indicam desvios para 20 milhões de euros para o desenvolvimento turís-
manter os caminhantes fora das estradas princi- tico da Via Ápia, mas, quando visito os sítios arqueo-
pais. Como assessor do Ministério do Património lógicos ao longo da estrada, torna-se claro que são
Cultural, Riccardo cartografou dezenas destes necessários mais apoios. Em 2020, os arqueólogos
desvios, tanto para contornar segmentos impossí- escavavam um troço com 45 metros da Via Ápia em
veis de percorrer a pé como para conduzir os cami- Passo di Mirabella. Hoje, esse segmento está escon-
nhantes até às unidades de alojamento existentes. dido sob uma grande tela de protecção. É necessá-
Uma caminhada na Ápia nem sempre significa ria outra fase de financiamento para a equipa
caminhar sobre a Via Ápia. Riccardo conduz-me continuar a preservar as suas descobertas.
por um desvio que passa pela encantadora aldeia O mesmo se passa em toda a Itália, onde a re-
cessão obrigou o governo a cortes no orçamento
da Cultura todos os anos ao longo da última dé-
cada e provocando o reenterramento de sítios já
descobertos. A injecção de capital ao longo do tra-
jecto da Via Ápia é bem-vinda, mas exigirá acom-
panhamento constante. Estas regiões tendem a
ser ignoradas, dizem os arqueólogos. Quando há
dinheiro, costuma ir para Pompeia e Herculano.
Riccardo Carnovalini avisou que uma viagem
ao longo da Via Ápia é única devido à sua hones-
tidade. “A experiência tem altos e baixos”, disse.
“Num momento, estamos a admirar a beleza pai-
sagística e depois viramos a cabeça e descobrimos
algo horrível. A Itália não é um postal”, explicou.
Essa verdade cristaliza-se quando me aproxi-
mo de Tarento, uma cidade portuária a cerca de
65 quilómetros do fim da Via Ápia. É o único local
onde Riccardo Carnovalini e Paolo Rumiz foram
obrigados a chamar um táxi durante a sua cami-
nhada. Diante de mim, encontra-se uma área de
16 quilómetros quadrados de produção industrial.
Esta fábrica de aço, com as suas elevadas emis-
sões de poluição, a maior da Europa, transformou
Tarento nas “trincheiras de Itália,” avisou-me um
jornalista italiano antes de eu chegar.
A Via Ápia corre ao lado da fábrica e entra numa
ilha onde se situa a antiga cidade de Tarento.
É como se o tempo tivesse recuado 60 anos. Em lo-
jas minúsculas, homens idosos pintam figurinhas
religiosas para vender aos turistas. Barcos de pes-
ca lutam por espaço junto do passeio marítimo.
Vielas sinuosas conduzem a uma catedral repleta
de mármore. Por cima desta miragem da antiga
Itália, plumas de fumo emergem de chaminés.
O V E L H O C A M I N H O PA R A ROM A 15
Para tornar a viagem
ao longo da Via Ápia
apelativa para os
turistas, a rota inclui
quase cem pequenos
desvios até miradouros
pitorescos, aldeias e
sítios arqueológicos
ao longo do caminho.
O Castelo de Montese-
rico, mesmo ao lado da
Via Ápia, é um deles.
Tarento foi a única cidade fundada pelos espar-
tanos fora da Grécia e uma fila de colunas gregas
ergue-se ainda junto da água. É ali que me encon-
tro com Massimo Castellana, membro de uma co-
ligação activista que pretende encerrar a fábrica.
Em dias de vento, quando partículas de aço são
sopradas sobre a cidade, os residentes fecham as
janelas e não deixam os filhos ir à escola. Estudos
demonstraram níveis elevados de cancro no local,
comparado com o resto de Itália, sobretudo entre
as crianças. Tarento deveria ser conhecida pela
sua beleza e não pela sua indústria, explica Mas-
simo. No entanto, apesar de anos de protestos, a
fábrica permanece aberta.
Uma das esperanças de recuperação da Via
Ápia é a possibilidade de o aproveitamento histó-
rico para efeitos turísticos inverter a sorte do Sul
de Itália, que é há muito estereotipado como uma
zona antiquada e assolada pelo crime. Quando
parto de Tarento para Brindisi, paro na cidade ou-
trora amuralhada de Mesagne onde me encontro
com Simonetta Dellomonaco, chefe da comissão
de cinema regional, que me conta o seu provérbio
orientador: “A cultura é o único combustível que
não polui mesmo quando se consome mais.”
Quando Simonetta era jovem, Mesagne era co-
nhecida como o local de nascimento da quarta
família da máfia italiana: a Sacra Corona Unita.
Hoje, essa imagem está a ser substituída por par-
ticipações pitorescas em filmes de Hollywood, in-
cluindo no último sucesso de James Bond. O in-
vestimento no património tornou Mesagne uma
das finalistas para o título de Capital da Cultura
de Itália em 2024. “Costumava dizer-se que to-
dos os caminhos vão dar a Roma”, diz Simonetta.
“Mas é aqui que o mais importante acaba.” coluna alta e na base da sua gémea (o resto foi ofe-
recido a uma cidade vizinha há séculos). “Estas
colunas são habitualmente consideradas o fim da
V. FIM DO CAMINHO Via Ápia”, diz. “Mas nem todos concordam.”
Em princípio, se o ponto de partida da Via Ápia
no
“ B R I N D I S I AT I N G I U O S E U M A I O R E S P L E N D O R era incerto, o final fora sempre claro: duas colu-
período romano”, diz um guia local a um pequeno nas emoldurando o mar Adriático em Brindisi.
grupo reunido no passeio marítimo de Brindisi. Contudo, a análise do mármore revelou que fo-
“Eles percebiam a importância do porto. A partir ram construídas dois séculos mais tarde.
de Brindisi, era possível partir para o Oriente.” Che- O importante é que a Via Ápia transformou
guei no Dia da Via Ápia, uma comemoração anual, Brindisi numa cidade global, a partir de onde o
e o grupo está a visitar o ponto final da estrada exército romano partia para o Oriente, até cidades
numa tarde soalheira de Outubro. Por volta de como Alexandria e Jerusalém, chegando a gover-
266 a.C., os romanos chegaram aqui, derrotaram a nar um quarto da população mundial.
civilização messápia e concluíram a Via Ápia. Brindisi tornou-se um destino para peregrinos
O guia sobe um lanço de escadas em direcção às da Terra Santa, que aguardavam semanas para
colunas que assinalam o final da estrada. O grupo embarcar para Jerusalém. Agora, algumas cen-
reúne-se para uma fotografia em redor de uma tenas de turistas aparecem todos os anos vindos
18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A Via Ápia iria ao
encontro da entrada
de Brindisi antes de,
provavelmente, se
transformar na sua rua
principal, o decumano.
Duas colunas requinta-
das foram erguidas
acima do porto de
Brindisi e pensa-se que
assinalariam o final
simbólico da Via Ápia.
Hoje, resta apenas uma:
a sua companheira foi
oferecida a uma cidade
vizinha há séculos.
de vários trilhos de caminhada que conduzem à feixe de luz 100 quilómetros sobre a água, atrain-
cidade. A valorização de Brindisi enquanto desti- do navios de cruzeiro e casamentos.
no é uma cruzada pessoal de Rosy Barretta, que Vemos um navio enorme a aproximar-se do
financia uma empresa que organiza visitas para porto. O comandante do nosso rebocador, um
peregrinos. A sua família gere uma grande em- jovem de Brindisi chamado Alessandro di Giu-
presa de rebocadores. “Era um desperdício que lio, abre uma app no seu telemóvel e rastreia o
ninguém tomasse conta desta obra de engenha- local de partida do navio: Moçambique. Trans-
ria”, diz. Ela imagina Brindisi novamente cheia de porta açúcar em bruto, que será descarregado e
viajantes ali chegados pela Via Ápia. refinado localmente. A água está calma quando
Na manhã a seguir à visita guiada, Rosy convi- dois rebocadores de Rosy Barretta correm a dar
da-me para me juntar a ela num rebocador para as boas-vindas ao navio e a rebocá-lo até ao porto.
ver o porto. Estradas estreitas estendem-se da Alessandro conta que voltou recentemente para
cidade até ao mar, criando um círculo protector casa, após uma década no estrangeiro a trabalhar
em redor de Brindisi e dando-lhe a aparência de para a Carnival Cruises. Conheceu o mundo, mas
ter hastes. O Castelo Alfonsino fica num destes sempre sonhou regressar ao porto de Brindisi,
“cornos”, rodeado pelo mar Adriático. Rosy sonha onde os navios descarregam mercadorias e passa-
transformá-lo num museu nacional da Via Ápia. geiros há milhares de anos. “Do meu ponto de vis-
Imagina o seu farol restaurado, projectando o seu ta profissional, este é o centro do mundo”, diz.ഩj
O V E L H O C A M I N H O PA R A ROM A 19
A C U LT U R A M I L E NA R
Num período em que a guerra ameaça milhões de iemenitas, historiadores e arqueólogos
DO IÉMEN
desenvolvem esforços para preservar os símbolos de uma cultura antiga.
T E X TO D E I O NA C R A I G
F O TO G R A F I A S D E M O I S E S SA M A N
Operários em Sana,
a capital do Iémen,
reconstroem uma
residência com 350 anos
que pertence à família
Al Jerafi. A cidade,
controlada pelos
rebeldes Houthi desde
2014, tem sido alvo de
ataques aéreos das
forças da coligação
liderada pela Arábia
Saudita e pelos
Emirados Árabes Unidos.
Em 2015, um desses
ataques causou danos
nesta propriedade
ocupada pela mesma
família há 150 anos.
21
Jovens vendedores de
lembranças aguardam
os turistas enquanto
brincam junto da
entrada em ruínas de
Kawkaban, um popular
destino turístico. Um
ataque aéreo em
Fevereiro de 2016
destruiu a cidadela,
matando sete pessoas.
Aida Ahmed Moham-
med, directora do
Museu Nacional de
Adém (sentada atrás
da secretária), reúne-se
com o pessoal numa
sala de exposições
vazia. Mais de dois
mil artefactos valiosos
encontram-se armaze-
nados no cofre de
um banco na cidade
portuária de Adém.
D de um uádi poei-
E P É́ , N O F U N D O
rento, inclino o pescoço para trás para observar a
enorme estrutura que se eleva acima de mim:
camada sobre camada de pedra meticulosamente
talhada, assente na perfeição, sem argamassa, há
cerca de 2.500 anos, ergue-se a 15 metros de altura,
contra o céu do deserto que vai escurecendo.
Quando a Grande Barragem de Marib foi cons-
truída, naquilo que hoje é o Iémen, os seus mu-
Crianças obrigadas a
abandonarem as suas
casas devido às investi-
das dos Houthi passam
tempo em volta de
uma árvore, num campo
para deslocados situado
no deserto, nos arredores
de Marib. Outrora sede
ros de terra e pedra abrangiam uma área colossal. do poderoso reino
antigo de Sabá, a
As comportas, ainda existentes, faziam parte de Marib contemporânea
um sistema sofisticado que controlava o caudal passou de sonolenta
das chuvas proveniente das terras altas do Iémen, cidade petrolífera
a linha da frente de
correndo para leste e alimentando oásis agríco- uma guerra civil.
las ao longo de 9.600 hectares de terras áridas.
E, no meio de tudo isto, um próspero centro eco-
nómico: Marib, capital de Saba, o reino árabe mais
famosamente associado à sua soberana lendária
Bilqis, imortalizada na Bíblia e no Alcorão como
rainha de Sabá.
26 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Durante o apogeu de Marib, a partir do século areias. Isto transforma a cidade num alvo estraté-
VIII a.C., esta barragem foi uma fonte de pros- gico da guerra entre os rebeldes iemenitas Houthi
peridade para a capital do reino e a razão da sua e a coligação liderada pela Arábia Saudita e pelos
existência como ponto de escala fértil, produtor Emirados Árabes Unidos, que apoia as forças lo-
de alimentos e abundante em água para camelos cais contra a expansão dos Houthis, uma guerra
sedentos e mercadores esfomeados. O reino flo- que assola o Iémen há oito anos. Desde 2020 que
resceu no Sul da Arábia, onde produtos valiosos a antiga capital tem sido a base e um dos derradei-
como o incenso, a mirra e outras resinas eram ros redutos metropolitanos do governo iemenita,
comprados e vendidos neste centro da rota que se reconhecido pela comunidade internacional.
estendia da Índia ao Mediterrâneo. Sabá foi igual- Deambulo pelos muros remanescentes da
mente um ponto crucial da economia caravanei- barragem, interrogando-me sobre a logística
ra, um lugar onde bens valiosos como o marfim, complexa que teria sido necessária para manter
as pérolas, as sedas e as madeiras preciosas paga- uma cidade próspera no Sul da Arábia há milha-
vam taxas, na sua deslocação para o Ocidente. res de anos. Então, o som familiar da artilharia a
A riqueza de Marib assenta actualmente nas ribombar, nas montanhas vizinhas, ecoa através
reservas de petróleo e de gás que jazem sob as do uádi. (Continua na pg. 34)
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 27
TURQUIA TURQUEM.
Teerão
Mar Medit. SÍRIA
A
TERRA FRACTURADA
AFEG.
IRAQUE I IRÃO
JORDÂNIA
S KOWEIT
Á BAHREIN PAQ.
Há muito que o Iémen se encontra dividido. No século VII d.C., os seus
QATAR
M.
EGIPTO
Riade Abu Dhabi
reinos originaram um conflito entre seitas muçulmanas xiitas e sunitas.
Ve
ARÁBIA SAUDITA
rm
ic o
Séculos mais tarde, a sua estratégica localização comercial atiçou os 1.200km, EAU OMAN
Limite máximo dos
áb
interesses competitivos das potências estrangeiras. Actualmente, uma mísseis Houthi
Ar
guerra civil faz o Iémen pagar pelo passado e pelo presente, com as
SUDÃO ar
ERIT. IÉMEN M
riquezas arqueológicas a serem destruídas e as vidas humanas ceifadas. Á F R I C A
Sana
300 km
CO
DO NTR
GO OL h
VE O a rita
CO R h
N NO Al K
HO TRO
Ilhas Sadah
Farasan UT LO
HI Reino de Sabá
Entre cerca de 800 a.C. e
Midi Harad 275 d.C., o reino prosperou
Al Harf graças ao lucrativo comércio
do incenso. Segundo alguns
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Hajjah Amran
I S É
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Kamaran I. t
A
As Salif
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Grande Barragem
Great Dam de Marib
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Kawka SANA Outrora
Once over com mais
2,000 delong,
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metros de comprimento,
eighth-century esta
B.C. engineering
em proeza de Sabaean
engenharia do reino
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o maior número de Al Bayda
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Golfo de Adém Houthi terem capturado Sana.
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As Sayar A al-Qaeda na península Arábica
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Formada a partir das fileiras sauditas e nhas
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iemenitas do grupo militante islâmico, a k
não-alinhada AQAP permanece activa,
Shibam lançando ataques esporádicos na região.
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MAIO DE 1990 OUT. DE 2000 SET. DE 2014 MARÇO DE 2015 ABRIL DE 2022
Unificação Bombardeamento Rebelião Conflito generalizado Demissão
O Sul do Iémen perde do USS Cole Em protesto contra a Uma coligação da O presidente
apoio com o colapso A al-Qaeda ataca o nova constituição e a Arábia Saudita e Abdrabbuh Mansour
da URSS. O Norte navio no porto de subida do preço dos dos Emirados junta-se Hadi, que substituíra
e o Sul unificam-se, Adém. Em 2002, os combustíveis, forças à guerra para apoiar Saleh em 2012, cede o
sob a liderança do EUA retaliam com zaiditas dos Houthi apo- o governo derrubado poder a um conselho
líder do Norte Ali drones, atingindo um deram-se de Sana e do e inicia bombardea- governativo, no âmbi-
Abdallah Saleh. alvo perto de Marib. porto de Al Hudaydah. mentos aéreos. to de uma trégua.
À D I R E I TA
Um jovem residente no
campo para deslocados
de Al Rawdah, situado
nas proximidades,
é fotografado junto
da margem da albufeira
da actual barragem
de Marib. Desde o
início da guerra mais
recente, há oito anos,
mais de 19 mil iemenitas
foram feridos ou
mortos pelos ataques
aéreos das forças da
coligação. Mais de
quatro milhões foram
obrigados a abandonar
os seus lares.
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 33
“Ouviu aquilo?”, sussurra Ammar Derwish, o
meu guia e intérprete iemenita, no meio da escu-
ridão quase completa. O estrondo seguinte é um
pouco mais forte e a resposta surge antes mesmo
de a pergunta ser repetida.
“Sim, ouvi.”
no Iémen acontece
AC T UA L G U E R RA
34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Em vez dos camelos carregados de incenso atingiu as montanhas atrás da antiga barragem
do passado, camiões cheios de sacos de cimen- de Marib, tendo-se intensificado no princípio
to para as casas e hotéis em construção cruzam deste ano. A cidade encontra-se actualmente
agora o deserto até Marib, num incessante vai- ao alcance dos mísseis rebeldes e dezenas deles
vém. A produção petrolífera, interrompida em têm caído sobre zonas onde campos poeirentos
2015, vai sendo gradualmente retomada e sus- para deslocados se estendem a perder de vista,
tenta agora uma economia que torna a cidade reunindo cerca de 200 mil pessoas. Até ao mo-
efectivamente independente do resto do país. mento, o poder de destruição das forças aéreas
A população de Marib e da província em seu da coligação, além de ter matado e ferido mais
redor reunia menos de meio milhão de habi- de 19.200 civis em todo o país desde 2015, tem
tantes antes da guerra, mas cresceu quase sete conseguido manter os Houthis à distância. Com
vezes, engrossada pelos deslocados que fogem as voláteis linhas da frente, os habitantes de Ma-
das áreas controladas pelos Houthi e dos terri- rib aguardam o seu destino, que talvez consista
tórios disputados. Cerca de 85% da população em procurar refúgio noutro local, pela terceira
da província de Marib é constituída por pessoas ou quarta vez nesta guerra. Este ano registou-se
deslocadas pelo conflito. o mais longo período de tréguas. Um cessar-fo-
Embora bafejada pela sorte da mudança, a go negociado em Abril foi prorrogado por dois
cidade está agora de novo sob ameaça. Uma meses em Junho, na esperança de que as con-
ofensiva dos Houthi, lançada no início de 2021, versações políticas possam pôr fim à guerra.
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 35
Que valor podemos linguagem. As suas influências culturais sobre a
arquitectura, a iconografia e a decoração espalha-
ram-se pelo Sul da Arábia e foram levadas ainda
atribuir à história, mais longe pelos mercadores itinerantes.
Muito antes da guerra mais recente, os templos
de modo a reais do Iémen foram alvo de salteadores e vora-
zes arqueólogos estrangeiros que se apropriaram
36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
macias do chão do templo, polidas pelos peregri- Em Timna, os danos causados ao património
nos ao longo dos séculos. Também podem con- cultural do país são visíveis no expoente máxi-
templar as esculturas de caprídeos que montam mo de destruição. Durante a nossa caminhada
sentinela em grandes escadarias cerimoniais, bem através das ruínas da cidade, vemos fragmen-
como inspeccionar os contornos intrigantes das tos de cerâmica com dois mil anos e engenhos
inscrições distintivas que se elevam e serpenteiam mais recentes: cartuchos usados de munições
pelo recinto mais interior do santuário. Awwam de AK-47 e de tanques, e os invólucros de latão
parece místico. No entanto, os artefactos mais das balas de calibre 50 das metralhadoras. Cai-
importantes do templo encontram-se actualmen- xas vazias de munições jazem no chão de trin-
te no Museu Nacional em Sana, controlada pelos cheiras escavadas nas ruínas do templo princi-
Houthi, encerrado devido ao conflito, ou a milha- pal de Timna, consagrado a Athtar, um deus do
res de quilómetros de distância, em museus e co- trovão conhecido por ser vingativo. Os Houthis
lecções particulares no Ocidente e no golfo Pérsico. aproveitaram a vantagem táctica proporcionada
A última expedição ao Templo de Awwam, pela posição elevada em que Timna foi construí-
chefiada pela irmã de Phillips, Merilyn Phillips da, transformando a cidade num posto militar e,
Hodgson, terminou em 2007, depois de um car- inevitavelmente, atraindo as bombas dos caças
ro-armadilhado pela al-Qaeda ter explodido junto aéreos sauditas e dos Emirados.
da entrada do sítio arqueológico, matando dois O coração do Templo de Athtar foi rasgado ao
iemenitas e oito turistas espanhóis. Nos anos se- meio, separando a pedra cinzenta dos tons azuis e
guintes, uma base de estátua de alabastro com vermelhos que costumavam distinguir Timna do
inscrições, com 2.300 anos, foi arrancada do chão calcário jurássico amarelo de Marib. Uma cratera
do templo. Foi mais tarde vista numa leiloeira de com dez metros de diâmetro e três metros de pro-
Paris. fundidade é tudo o que resta do lado esquerdo do
Os últimos 15 anos de negligência arqueológica, santuário. O gigantesco buraco aberto pelo ataque
contudo, foram uma bênção para as antiguidades aéreo da coligação acentua o tamanho diminuto
expostas nos santuários de Marib: no Templo de de duas crianças pequenas que pulam sobre pe-
Awwam, dois a três metros de areia voltaram a en- dregulhos projectados pela força explosiva do
terrar zonas importantíssimas do recinto sagrado. bombardeamento.
“É melhor que esteja tudo enterrado. A areia é se- A Missão Arqueológica Italiana no Iémen fez
gurança”, conclui pesarosamente Sadeq al Salwi, escavações em Timna entre 1990 e 2005 e finan-
director em Marib da Organização Geral das An- ciou o novo museu que ali foi construído e que
tiguidades e Museus (GOAM), um organismo go- se encontrava vazio quando partiram, dada a de-
vernamental iemenita. gradação das condições de segurança. O edifício
apresenta-se juncado de escombros e as paredes
rebentadas pela violência da batalha. Antes do
das caravanas para
E G U I N D O A R O TA mais recente período de instabilidade vivido no
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 37
38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA
À D I R E I TA
Mjaheed Adeeb,
contratado pela
UNESCO para fazer
obras em edifícios na
cidade de Shibam, na
província oriental de
Hadramawt, levanta
duas mãos cheias de
barro. Este lugar, classifi-
cado pela UNESCO
como Património Mun-
dial, ostenta estruturas
de adobe altíssimas,
tendo conquistado o
epíteto de “Manhattan
do Deserto”.
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 39
À semelhança do seu colega Al Salwi em Marib,
há mais de 35 anos que Khyran al-Zubaidi é ar-
queólogo no Iémen, desempenhando as funções
de director das antiguidades de Shabwah desde
1986. A sua paixão pela história revela-se conta-
giosa, enquanto nos mostra o museu de Ataq.
Ahmed, filho do arqueólogo, com 32 anos, ob-
serva que a preocupação com o património cultu-
ral do Iémen ocupa um lugar muito baixo na lista
de prioridades das autoridades. A falta de electri-
cidade e de água, bem como as preocupações com
segurança, são problemas maiores. “Mas isto está
no seu coração”, diz Ahmed, referindo-se à dedi-
cação do pai ao património do Iémen e pondo a
mão sobre o peito. Uma coisa é certa: o arqueólogo
não faz este trabalho pelo dinheiro. Mesmo com
largas décadas de experiência, Al-Zubaidi recebe
aproximadamente 95 euros mensais do governo
iemenita, valor ligeiramente superior ao salário
de um soldado.
Mais de 70% dos iemenitas necessitam de aju-
da humanitária, num país que, antes da guerra,
chegava a importar 90% dos seus alimentos (pa-
gando em dólares). A fome está a ser utilizada Fazendo uma pausa
como arma de guerra e a ONU tem repetidamente na prolongada guerra
chamado a atenção para as crises de fome exis- civil do Iémen, homens
e crianças dançam ao
tentes no Iémen, embora os géneros alimentares som dos tambores no
abundem nos mercados. Um bloqueio efectivo casamento da família
imposto pela coligação anti-Houthi produziu o Al-Taweel, nas ruas da
Cidade Velha de Sana,
colapso das importações, bem como da divisa do em Julho de 2021.
país. Entretanto, os Houthis têm sido acusados de
sabotarem a distribuição da ajuda internacional
e de aumentarem vertiginosamente os impostos
para financiarem o seu esforço de guerra. O pre-
ço de bens essenciais como o trigo, a farinha e o valor pago pelos artefactos, actualmente expostos
arroz aumentou 250%, enquanto o valor do riyal no museu. As pessoas que vendem estes objectos
iemenita caiu quase 80% face ao dólar durante a não conhecem o seu valor, observa o historiador.
guerra. Para agravar a situação, quase metade do Mas que valor podemos nós atribuir à história, de
trigo do país vem da Ucrânia e da Rússia. “As pes- modo a preservá-la para as gerações futuras, se
soas vendem qualquer coisa para encher a barriga as crianças do presente estão a morrer de fome?
e alimentar os filhos. É uma questão de vida ou A sua pergunta fica por responder.
morte”, diz Al-Zubaidi, referindo-se ao crescente
problema do roubo de artefactos.
Nos seus próprios esforços para salvar objec- de
AC H A D O M A I S I M P O RTA N T E
tos, ele tem deambulado pelos mercados locais,
negociando para tentar resgatar para o museu o
máximo de peças antigas que conseguir. No ano
passado, usou o dinheiro do salário que o Estado
lhe paga para oferecer aproximadamente 425 eu-
O Al-Zubaidi, durante os seus anos de
trabalho, ocorreu em Shabwath, capi-
tal do reino de Hadramawt. Foi um
centro de distribuição do incenso ali
produzido, famoso no seu apogeu. O xeque local,
ros de recompensa por cerca de vinte peças que Hassan Rakna, conduz-nos, a mim e a Ammar,
calcula datarem de 700 a.C., incluindo vários re- pelo meio das ruínas de Shabwath, fazendo uma
cipientes completos e figurinhas de alabastro. pausa para descansar no topo de uma escadaria
Ainda está à espera que o Estado lhe reembolse o com dez metros de largura. Descreve então a
40 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
descoberta de um assombroso leão alado com No entanto, pode ser fugaz sonhar acordado so-
chifres de boi e cauda de serpente que foi encon- bre reinos desaparecidos neste lugar, uma vez que
trado no sítio. Juntamente com muitos dos mais caravanas de carros blindados e carrinhas com
preciosos artefactos de Shabwath, a peça foi arma- metralhadoras e combatentes ainda deslizam a
zenada num cofre do Banco Nacional de Adém, a toda a velocidade pelas estradas asfaltadas, cons-
370 quilómetros para sudoeste. truídas sobre os trilhos das caravanas de Sabá.
A oito dias de viagem de camelo para sul de Percorrendo a longa estrada que liga Shabwah
Shabwath, ao longo da antiga rota das caravanas, a Adém, eu e Ammar vamos ao encontro de outra
o pico aplanado de um vulcão extinto eleva-se tempestade de areia e o som solitário de um oud
centenas de metros acima das areias brancas, no faz-se ouvir através do rádio do carro. A melodia
ponto onde a península Arábica se encontra com entrelaça-se com os versos do mais famoso poe-
o golfo de Adém. Subindo ao cume, podemos ta contemporâneo do Iémen, o falecido Abdallah
imaginar como seria este lugar há dois milénios: al-Baraduni, cujas palavras mantêm relevância.
mercadores, carregadores e guardas aduaneiros “Nas cavernas da sua morte, o meu país nem mor-
no buliçoso porto real de Qana; navios com desti- re nem recupera. Esgravata nas sepulturas silen-
no ao Egipto e à Índia, cheios de cargas preciosas ciadas, em busca das suas origens puras”, lamen-
anteriormente descarregadas das caravanas de tou Al-Baraduni. “Da sua promessa de Primavera
camelos para os armazéns de rocha negra, cujos que adormeceu atrás dos seus olhos. Do sonho que
vestígios ainda pontilham a encosta da falésia. virá, em busca do fantasma que se escondeu.” j
A C U LT U R A M I L E N A R D O I É M E N 41
TEXTO DE FERRIS JABR
E N I C O L E OT TAWA
Longe
da
vista
Recém-descoberta
pela ciência, esta é uma
das 1.300 espécies
conhecidas de tardígra-
dos. Foi encontrada
entre o musgo que
cresce sobre troncos
de árvores mortas na
Floresta Negra da
Alemanha. Demasiado
pequena para ser vista
a olho nu, esta criatura
é uma entre milhões
de formas de vida
que habitam o solo da
floresta e são essenciais
para a saúde do planeta.
43
Num único grama de
solo florestal,
chegam a existir mil
milhões de
bactérias, um milhão
de fungos, centenas
de milhares de
protozoários e quase
mil nemátodes.
7.000 X
Escamas siliciosas
revestem o organismo
unicelular de uma
tecameba. Estes tipos de
amebas foram assim
designados devido às
carapaças duras que
criam, talvez para se
protegerem de altera-
ções ambientais entre os
resíduos da floresta.
14.000 X
PEGUE
NUMA MÃO-
-CHEIA DE
TERRA DA
FLORESTA
NEGRA
(ALEMANHA),
DE TONGASS
(ALASCA)
OU DE WAIPOUA
(NOVA ZELÂNDIA).
LEVANTE-A E APROXIME-A DOS OLHOS.
O que vê?
e escura
T E R RA , E V I D E N T E M E N T E . M AC I A , R I C A
como cacau. Agulhas de pinheiro e folhas em
decomposição. Partículas de musgo ou de líquen.
Uma minhoca a contorcer-se para se afastar da luz,
talvez, ou uma formiga assarapantada com a súbita
mudança de altitude. Sue Grayston sabe que existe
muito mais do que isto.
A sua dedicação ao solo começou no seu quin-
tal. Quando era criança, em Stockton-on-Tees
(Inglaterra), ajudava a mãe a semear e a cuidar
48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Charly Ebel, vigilante
da natureza na Floresta
Negra (à direita), ajuda
o fotógrafo Oliver
Meckes (ao centro) e a
bióloga Nicole Ottawa
a recolher amostras de
solo em locais onde a
floresta não é tocada
pelos lenhadores há
mais de cem anos. Este
trabalho procura
revelar a espectacular
biodiversidade que
prospera no solo e
sustenta o ecossistema
acima deste.
ESTHER HORVATH
do jardim. Sue adorava a escritora Beatrix Potter, versidade de Sheffield, trabalhou para uma em-
não só pelos seus livros infantis sobre coelhos, presa de biotecnologia em Saskatoon, na provín-
mas também pelas suas ilustrações científicas de cia canadiana de Saskatchewan, e depois como
fungos e das diversas e maravilhosas formas que investigadora do Instituto de Investigação Agrária
estes assumem ao emergirem do solo. de Macaulay (actual Instituto James Hutton), na
Na faculdade, onde teve acesso a microscópios, Escócia. Ali começou a colaborar com especialis-
ficou fascinada pelas constelações de criaturas tas em ecologia vegetal, lançando as sementes de
existentes no solo, embora fossem demasiado um empreendimento que iria absorvê-la ao longo
pequenas para estudar a olho nu. Sue sabia que de grande parte da sua carreira: as ligações com-
encontrara a sua vocação. Depois de concluir o plexas entre os mais pequenos e os maiores habi-
doutoramento em Ecologia Microbiana na Uni- tantes do solo, os micróbios e as árvores.
LO N G E DA V I S TA 49
COMO CRIÁMOS
ESTAS IMAGENS
As imagens desta
reportagem foram
captadas com um
microscópio elec-
trónico de varrimento,
que usa electrões em
vez de luz para captar
os pormenores mais
delicados. Estes
microscópios geram
imagens em tons de
cinzento, que têm de
ser coloridas para
mostrar as diferentes
formas de vida.
Um único resíduo
de madeira pode ser
um ponto de encontro
cheio de vida para os
micróbios da floresta.
Aqui, um anelídeo
poliqueta (à esquerda)
e dois tipos de ácaros
encontram-se na
camada superior do
solo da Floresta Negra.
Os ácaros são particular-
mente importantes
para os ecossistemas
florestais, decompondo
a matéria morta
e devolvendo os
nutrientes à sua
estrutura elementar.
110 X
Combinando campos de estudo inovadores Outras criaturas são tão minúsculas que só se
com técnicas sofisticadas de sequenciamento deslocam contorcendo-se ou remando sobre as
genético, Sue e outros ecologistas compuseram finas películas de água que rodeiam as plantas
um retrato muito mais rico de uma sociedade se- e as partículas de solo. Entre outros, estes se-
creta que se esconde no solo da floresta – uma res bizarros incluem nemátodes transparentes,
comunidade maioritariamente invisível, sem a com o formato de fios de esparguete; rotíferos
qual aquele ecossistema entraria em colapso. com coroas rodopiantes de fibras semelhantes
“Grande parte da biodiversidade encontra-se a pêlos que puxam alimento para dentro
no solo, mas historicamente não sabemos muito dos seus corpos em forma de jarra; e tardígra-
sobre ela”, diz. “Isso começou a mudar nas últi- dos, que parecem ursinhos de goma com oito
mas duas décadas.” patas, garras e tubos de sucção.
Ainda mais minúsculos são os protozoários,
M
das copas frondosas das
U I T O A B A I XO um grupo diversificado de organismos unicelu-
florestas, teias de fungos filamentosos lares que, por vezes, se deslocam abanando os
ligam raízes em redes de micorrizas atra- seus numerosos apêndices. No solo da floresta,
vés das quais as árvores trocam água, também abundam bactérias e arqueias, que são
alimento e informação. Amebas unicelulares fun- superficialmente semelhantes às bactérias, mas
dem-se em bolhas metamórficas chamadas fungos constituem um reino biológico próprio. Num
mucilaginosos, que exsudam de dentro da terra, único grama de solo da floresta, chegam a existir
ou ao longo dela, caçando bactérias e fungos. mil milhões de bactérias e de fungos, milhares
Artrópodes minúsculos conhecidos como colêm- de protozoários e centenas de nemátodes.
bolos deslocam-se rapidamente, catapultando-se Ao contrário do que se pensava noutros tem-
ocasionalmente até distâncias mais de vinte vezes pos, o solo não é uma substância inerte na qual
superiores ao comprimento do seu corpo numa árvores e outras plantas convenientemente se
fracção de segundo. Os ácaros oribatídeos, cada ancoram para extrair aquilo de que precisam. É
qual com cerca de um décimo do tamanho de uma cada vez mais claro que o solo é uma rede dinâmi-
lentilha, arrastam-se ao longo daquilo que, para ca de habitats e organismos – uma enorme tape-
eles, são montanhas e desfiladeiros, caminhando çaria em constante mudança, tecida com os fios
apenas cerca de metade de uma pista de bowling de inúmeras espécies. O próprio solo está vivo.
durante o seu tempo de vida típico de cerca de um Sue Grayston e outros ecologistas defendem
ano e meio. actualmente que o conhecimento contempo-
râneo requer alterações substanciais na silvi-
cultura. Eles descobriram que a prática comum
do desmatamento causa danos muito mais ge-
neralizados e duradouros do que outrora se su-
punha. Não basta ter em conta a maneira como
ALEMANHA
o abate das árvores altera a floresta do tronco
E U R O PA
para cima. Para ser realmente sustentável, a sil-
vicultura também precisa de considerar as con-
sequências de tudo o que se encontra em baixo.
H
~
a Terra
Á́ M I L H A R E S D E M I L H Õ E S D E A N O S ,
Berlim não tinha solo – apenas uma crosta
rochosa que a chuva, o vento e o gelo des-
ALEMANHA gastaram. Ao povoarem o planeta, micró-
bios, fungos, líquenes e plantas aceleraram a erosão
da rocha, escavando-a, dissolvendo-a com a secre-
ção de ácidos e quebrando-a com raízes.
Enquanto isso, os decompositores enriquece-
FLORESTA NEGRA ram a crosta mineral com matéria orgânica. Solos
Tuttlingen florestais reconhecíveis surgem pela primeira vez
no registo fóssil no Devónico, há cerca de 420 a
360 milhões de anos.
E
diferentes camadas de solo, distribui nutrientes M 2003, Sue mudou-se para Vancouver
e mantém-no arejado. Ao digerir enormes quan- para ocupar o cargo de professora de Eco-
tidades de terra, segregando substâncias viscosas logia Microbiana na Universidade da
e depositando esferas fecais duradouras, as mi- Colúmbia Britânica e trabalha lá desde
nhocas, lesmas e artrópodes imbuem a terra de então. Ganhou carinho pelas altíssimas tuias gigan-
matéria orgânica e ajudam as partículas a man- tes e outras coníferas semelhantes, bem como pelas
terem-se juntas, melhorando a estrutura do solo. morquelas, cantarelos e outros cogumelos delicio-
Em 2000, enquanto trabalhava para o Insti- sos que surgem entre elas como dádivas da floresta.
tuto Macaulay, Sue Grayston viajou até Tuttlin- Aqui, a sua equipa investiga mais aprofundada-
gen, uma aldeia alemã empoleirada sobre o mente a maneira como diferentes tipos de silvicul-
Danúbio, para investigar os solos da Floresta tura alteram as comunidades microbianas do solo.
Negra com os seus colegas. Esta região do Su- Muitos dos seus estudos comparam três tipos
doeste do país, com cerca de 6.000 quilómetros de abate madeireiro: o indiscriminado, que eli-
quadrados, conhecida pelas suas montanhas mina todas as árvores de uma área; a abertura
florestadas, é há muito valorizada pelas indús- de clareiras e a remoção selectiva, que preserva
trias mineira e madeireira. Os investigadores aglomerados de árvores e a retenção dispersa
visitaram alguns sítios distinguidos pela pre- que remove selectivamente árvores individuais,
sença de faias com 70 a 80 anos de idade, com conservando uma distribuição uniforme.
cascas cinzentas e macias e troncos retorcidos. Para testar a saúde do solo, Sue e os colegas en-
Algumas das zonas examinadas pela equipa ti- terraram sacos de rede de nylon cheios de raízes fi-
nham sido bastante exploradas, com muitas ár- nas em zonas da floresta que tinham sido abatidas
vores abatidas, enquanto outras permaneciam de diferentes formas. Deixaram as raízes para de-
relativamente intactas. composição pelos minúsculos animais, fungos e
Sue Grayston usou brocas para extrair peda- micróbios e removeram-nas alguns meses ou anos
ços de solo da floresta de diferentes locais e le- mais tarde. De volta ao laboratório, os investiga-
vou-as rapidamente para a Escócia, para serem dores fizeram vários testes para identificar os or-
examinadas mais pormenorizadamente. Os tes- ganismos associados às raízes e determinar quão
tes laboratoriais e as culturas de células revela- activos tinham sido. (Continua na pg. 58)
LO N G E DA V I S TA 53
Filamentos fúngicos
rodeiam o corpo espi-
nhoso de um rotífero,
um animal comum em
ecossistemas de água
doce. No solo, os rotíferos
propulsionam-se através
das películas de água que
envolvem as diferentes
partes das plantas e as
partículas de terra,
ingerindo detritos
orgânicos pelo caminho.
2.400 X
54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
LO N G E DA V I S TA 55
E M S E N T I D O H O R Á R I O,
A PA RT I R D O
TOPO ESQUERDO
O corpo de um fungo
mucilaginoso liberta
esporos a partir do seu
poleiro sobre detritos de
madeira envoltos em
filamentos fúngicos. Estes
fungos banqueteiam-se
com outros micróbios que
se encontram na matéria
vegetal decomposta.
400 X
Habitualmente conhecidos
como “costas peludas”, os
animais microscópicos do
filo Gastrotricha sobrevi-
vem nas películas finas de
água que permeiam as
partículas do solo.
Deslocam-se através da
terra húmida usando os
cílios semelhantes a pêlos,
procurando bactérias,
microalgas e outros
micróbios para se
alimentarem.
2.500 X
100 X
10.000 X
56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
LO N G E DA V I S TA 57
Em muitos casos, o corte raso diminuíra a abate selectivo para manter uma distribuição
biodiversidade do solo e prejudicara os ciclos uniforme. Nos locais reduzidos a aglomerados
dos nutrientes. O abate em clareiras também al- de árvores, os investigadores descobriram co-
terara frequentemente a demografia das comu- munidades microbianas similarmente robustas
nidades do solo, permitindo o domínio de um e vibrantes apenas na vizinhança imediata des-
pequeno número de espécies. tes aglomerados. Quanto mais os investigadores
No entanto, nem todos os métodos de abate se afastavam dos conjuntos de árvores remanes-
tinham sido igualmente destrutivos. A abun- centes, mais inerte se tornava o solo.
dância, diversidade e actividade dos micróbios Outras pesquisas associadas, acompanhan-
permanecera relativamente alta nas zonas de do o fluxo de carbono através das raízes das
58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
árvores, revelaram que a zona de influência de
uma árvore ou de um aglomerado de árvores – a
área à qual fornecem activamente micróbios e
outros organismos minúsculos com moléculas
ricas em carbono – se estende, em média, cer-
ca de dez metros. Não será suficiente conservar
manchas florestais em zonas de solo nu, mesmo
que sejam manchas grandes. Fora de uma zona
de dez metros em redor destas ilhas vegetais,
as populações microbianas sofrem. A retenção
dispersa é melhor para a saúde do solo, diz a
especialista, porque tipicamente preserva uma
árvore a cada 14 a 16 metros, o que permite a so-
breposição das suas raízes e respectivas zonas
de influência, fornecendo carbono aos micró-
bios que vivem no solo de toda a floresta.
A retenção dispersa e outros métodos de aba-
te selectivo estão a tornar-se mais comuns em
algumas regiões do mundo, embora o corte raso
continue a ser generalizadamente praticado
por ser mais eficiente, menos dispendiosa e exi-
gir menos maquinaria complicada. A retenção
agregada costuma ser favorecida em detrimento
da retenção dispersa por motivos semelhantes.
“Precisamos de reconsiderar as práticas de
silvicultura”, diz Petr Baldrian, do Instituto de
Microbiologia da Academia Checa das Ciências.
“O corte raso é económico, mas tem custos ele-
vados para o solo. Precisamos de encontrar um
equilíbrio entre as necessidades da indústria e
as necessidades da floresta.”
A
das flores-
O R E F L E C T I R S O B R E O F U T U RO
tas do planeta, Sue Grayston mostra-se
entusiasmada e preocupada: entusias-
mada com o mistério de tudo o que per-
manece por descobrir, já que foi essencialmente
por isso que escolheu estudar a vida microscópica
desde o início. Em simultâneo, sente-se alarmada
com o declínio constante das florestas em muitas
regiões do mundo devido ao abate de árvores em
Alguns fungos excesso, ao mau ordenamento do território e ao
micorrízicos criam os
seus lares no interior
stress causado pelas alterações climáticas.
das células das plantas, Tendo em conta como os diferentes ecossiste-
como é visível nesta mas se sobrepõem e interligam e são tão funda-
secção transversal de
uma raiz de mirtilo.
mentais para a sobrevivência da vida complexa,
Esta simbiose permite os danos que infligimos às árvores e aos solos do
a troca de nutrientes planeta acabam por prejudicar-nos também a
entre moradores
do solo de tamanhos
nós. “Estaríamos enterrados em lixo até ao joe-
muito diferentes – lho se não tivéssemos microrganismos no solo”,
um equilíbrio benéfico resume a investigadora. “Sem eles, a vida na
para a floresta.
Terra acabaria. Eles ficariam bem sem nós, mas
2.200 X nós não conseguiríamos muito sem eles.” j
LO N G E DA V I S TA 59
ALTA TECNOLOGIA E
HISTÓRIA ANCESTRAL
O Douro adapta-se ao futuro incerto.
Num clima em mudança e num
mercado de recrutamento cada vez
mais difícil, os robots vieram para ficar.
O protótipo do
VineScout, na sua
última versão, mede um
conjunto de parâmetros
na vinha em tempo real,
que permitirão minimizar
os efeitos das alterações
climáticas. Fornece
informação sobre o
estado da vinha e a
qualidade das uvas.
MIGUEL POTES
61
Do alto da Quinta dos
Malvedos, paredes-meias
com a malograda Linha do
Tua, submersa pelas águas
da barragem homónima,
ainda existem exemplos
clássicos da paisagem
vinícola duriense.
TEXTO E FOTOGRAFIAS
64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
intuição na tomada de decisões que contribui para Na vinha da coleção de castas da Quinta do Ataíde,
a magia da criação dos melhores vinhos do Porto. com a humidade da noite ainda presente, Fernando
Alves usa uma câmara de Scholander para medir o
A alma deste néctar está no coração e na mente des- potencial aproximado de água nos tecidos vegetais.
tes artífices. Numa das curtas pausas, o semblante
de Fernando ensombra-se: “As alterações climá-
ticas estão a acontecer, é inquestionável”, alerta. total. E este dado torna particularmente desafiante
“O aquecimento global é mais notório, mas os a mecanização do trabalho (em particular, a vin-
fenómenos meteorológicos extremos, como a dima), dado o relevo acidentado das encostas e a
precipitação extrema na forma de granizo ou o forma como estas foram domadas pelo homem,
vento, terão tendência a aumentar, em frequência com socalcos que permitiram a plantação de videi-
e intensidade, podendo destruir em minutos anos ras em locais aparentemente impossíveis.
de trabalho.” Actualmente, a vindima continua a ser feita
manualmente, por rogas (grupos de trabalhadores
é, em Portugal,
A P RO D U Ç ÃO V I T I V I N Í C O L A rurais), com pequenos tractores que percorrem os
um sector económico que sustenta milhares de bardos e recolhem as caixas carregadas de uvas.
famílias e empresas. O país afirma-se como um Noutras regiões, muitas produções já se fazem
produtor de qualidade, mas a falta de escala e com recurso a maquinaria, similar à usada nas
de imagem no exterior deixa-o aquém de Itália, produções intensivas de olival. Um grande tractor
França ou Espanha. Por outro lado, têm vindo a passa por cima da linha de videiras, abraçando-as
surgir novos produtores de vinho, como os Estados e, através de um engenhoso dispositivo de varas
Unidos, a Argentina ou a Austrália. Mas o Douro é vibratórias, faz cair os bagos de uva em recipientes
um caso especial. É a maior mancha de vinha de rotatórios que são esvaziados num reservatório na
encosta do mundo, correspondendo a 53% da área parte posterior do tractor.
66 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA
O transporte de vinho
do Porto fazia-se
em barcos rabelos,
no século XIX.
Estas embarcações
movidas pela corrente
conduziam o vinho do
Alto Douro às caves de
Gaia. Subiam depois o
rio numa jornada épica,
à vela, mas também
à força de braços e
de juntas de bois nas
margens (quando o
vento faltava).
EM BAIXO
Um lagar robótico
na Quinta dos
Malvedos marca uma
viragem importante
na mecanização da
produção vinícola na
região, substituindo
a lenta pisa tradicional,
hoje quase uma relíquia
do passado, embora
ainda preservada
por alguns.
68 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
das folhas, a humidade, a temperatura ambiente no Douro, atravesso-o
A O F I M D E VÁ R I O S D I A S
e a temperatura da folha. Estes elementos são num pequeno barco de madeira, da Senhora
fundamentais para o acompanhamento e gestão da Ribeira para a Quinta do Vesúvio, em tem-
eficaz do ciclo vegetativo, em concreto durante pos propriedade da famosa “Ferreirinha”, que
a fase da maturação das uvas. revolucionou a produção de vinho do Porto no
A avaliação minuciosa do estado hídrico da século XIX. Num daqueles raros dias sem vento
vinha permite aos técnicos decidirem interven- e em que a superfície do rio se torna um imenso
ções e avaliarem a qualidade das diferentes uvas espelho, assisto ao ajuntamento da roga junto
dentro da mesma parcela. Após os ensaios com dos enormes lagares. A pisa tradicional, a pé,
três protótipos, o dispositivo está agora pronto começou. Primeiro de forma ordeira e ritmada,
para ser produzido em série. Este robot tem pre- no “corte”, depois ao som de música e garga-
visto um custo relativamente baixo (de 15 a 20 lhada. É uma viagem a um tempo que se esgota
mil euros), com a vantagem de ser modular, com à medida que o mercúrio sobe nos termómetros.
sensores já disponíveis no mercado, intermutá- A mudança está no horizonte e nos próximos
veis e actualizáveis ao longo do tempo. anos saberemos se o Douro se soube adaptar. j
DOURO 69
Salvar chimpanzés
e descobrir
esperança no caos
Num santuário da África Central,
chimpanzés traumatizados são exemplos
de resiliência para quem os salva.
70
Anthony Caere, piloto
do Parque Nacional de
Virunga, leva Felix e
Mara ao colo enquanto
os transporta de avião
até ao Centro de
Reabilitação de
Primatas de Lwiro. As
famílias das crias foram
mortas por caçadores
furtivos. O piloto, que
sobreviveu a um
acidente em 2017, diz
que a participação nas
missões de salvamento
de chimpanzés lhe deu
um propósito na vida.
Itsaso Vélez del Burgo
(à esquerda), directora
técnica do santuário,
brinca com Mara
enquanto Mireille
Miderho Oziba, uma
das tratadoras, tem Felix
ao colo. Os chimpanzés
órfãos são animais
solitários e frequente-
mente traumatizados.
Quando chegam a Lwiro,
são-lhes atribuídos
tratadores para lhes
darem amor e atenção e
ajudarem-nos a curar-se.
ÁFRICA
Centro de Reabilitação
de Primatas
de Lwiro
REPÚBLICA
DEMOCRÁTICA
Itsaso Vélez
DO CONGO
del Burgo
segurava a cria
de chimpanzé
nos braços.
Coxa e inconsciente,
a fêmea não era
muito maior do que
a mão humana.
O seu corpo minúsculo e a ausência de dentes revelavam que
teria cerca de um mês de idade. Sofria de hipotermia e de desi-
dratação e, se algo não fosse feito, o seu coração pararia de bater.
“Foi a chimpanzé mais nova que alguma vez recebemos”, con-
ta Vélez del Burgo, directora técnica do Centro de Reabilitação
de Primatas de Lwiro, na zona oriental da República Democrá-
tica do Congo (RDC). Era o dia 16 de Junho de 2017 e Vélez del
Burgo organizara uma viagem de salvamento de cinco dias, de
moto, barco a motor e carro, para trazer a cria em segurança para A National
Geographic Society,
a aldeia de Lwiro. Um contacto de um grupo contra a caça furti- empenhada em dar
va encontrara o chimpanzé na densa floresta húmida junto da a conhecer e proteger
aldeia isolada de Pinga, a cerca de 300 quilómetros de distân- as maravilhas do
nosso mundo, financia
cia. Depois de entregar a cria, o homem revelou que a irmã mais as reportagens do
nova desta morrera, pouco antes de lhes matarem a progenitora. explorador Brent
No santuário, a luta pela vida desta chimpanzé acabara de Stirton sobre os seres
humanos e o
começar. Vélez del Burgo cobriu rapidamente o corpo iner- ambiente desde 2017.
te com cobertores quentes e administrou-lhe líquidos por ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY
NGM MAPS
via intravenosa. Por fim, a cria estremeceu e os Chimpanzés órfãos e preparam-se para
olhos abriram-se. aprendem a viver no o que existe do outro
recinto de Lwiro. lado da vedação.
“Deixei-a dormir no meu peito para mantê-la Estabelecem uma Lwiro espera libertar
quente”, conta Zawadi Balanda, uma congolesa ordem hierárquica, o maior número
jovem e sossegada, incumbida de vigiar Busaka- alimentam-se, brincam possível de chimpanzés.
ra, o nome que lhe deram naquela noite. Vélez
del Burgo temia que, sem uma progenitora natu-
ral a alimentá-la e a dar-lhe apoio emocional, a O Centro de Reabilitação de Primatas de Lwi-
cria acabasse por morrer. ro foi fundado em 2002, quando a guerra na
RDC desencadeou o fenómeno da caça furtiva
juntamente com os bonobos, são
O S C H I M PA N Z É S , para consumo da carne dos animais do Parque
os nossos parentes vivos mais próximos. Estima-se Nacional de Kahuzi-Biega, nas imediações. As
que, em África, o seu número atinja, no máximo, a autoridades de vida selvagem confiscaram chim-
300 mil indivíduos – muito inferior ao milhão que panzés órfãos a caçadores furtivos e aldeãos,
existiria no início do século XX – devido à caça fur- alojando-os em antigas salas de laboratório num
tiva para consumo de carne, contrabando para o centro de investigação científica belga abando-
mercado de animais de estimação e perda de habitat. nado em Lwiro.
SA N T UÁ R I O D E C H I M PA N Z É S 75
Todas as tardes, os
tratadores alimentam
os chimpanzés com
uma mistura nutritiva de
milho, soja, sorgo, farinha
e proteína. Os chimpan-
zés também recebem
um menu diário de
legumes, fruta e feijões,
vindo de mercados
locais. Esta alimentação
representa cerca
de quatro mil euros
que revertem mensal-
mente para os
agricultores locais.
À medida que o número de órfãos aumentava,
duas instituições fundaram o santuário. Bernard
Masunga, um veterinário sénior que trabalha em
Lwiro desde o início, viu o refúgio crescer e trans-
formar-se num lar para chimpanzés e macacos
em recintos florestados. “Estou muito orgulhoso
dos esforços locais para chegar onde chegámos”,
diz. No entanto, como os primatas continuam a
chegar, Bernard sabe que a estratégia de longo
prazo passará pela libertação de tantos quanto
possível na natureza assim que tenham recupera-
do a saúde e a confiança.
Certo dia de 2020, Vélez del Burgo, sentada com
um grupo de chimpanzés, pôs a câmara do tele-
móvel em modo de auto-retrato e apontou-a aos
símios curiosos. Billi, um macho de 6 anos, olhou
para a imagem do ecrã com uma expressão apa-
rentemente divertida. Outros chimpanzés esprei-
taram sobre o seu ombro. Billi recolheu os lábios
para examinar e limpar os dentes. Depois, apertou
as bochechas com os dedos, como se estivesse a
espremer borbulhas. Vélez del Burgo riu-se en-
quanto Billi enfiava um dedo no seu próprio nariz.
78 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
À ESQUERDA
EM BAIXO
Depois da avaliação
clínica de Shabunda,
Luis Flores (à esquerda),
o veterinário-chefe de
Lwiro, e Vélez del Burgo
(à direita) ajudam a
transferir o animal para
o seu novo recinto.
SA N T UÁ R I O D E C H I M PA N Z É S 79
Vélez del Burgo brinca
com Mara, Felix e Mubaki
(da esquerda para a
direita). Mubaki, que
significa “sobrevivente”
em suaíli, estava quase a
morrer quando chegou
ao santuário. Fora
maltratado por caçado-
res furtivos que mataram
a sua progenitora e
planeavam vendê-lo
no mercado de animais
de estimação. As brin-
cadeiras com outros
chimpanzés contribuem
para a sua recuperação,
enquanto as suas
diferentes personalida-
des vão emergindo.
A tratadora Mireille
senta-se com Mara e
Felix enquanto eles
dormem. À semelhança
dos bebés humanos,
as crias precisam
de cuidados 24 horas
por dia. Se um chim-
panzé acordar assus-
tado a meio da noite,
a mãe substituta tem
de estar por perto
para embalar a cria
até ela adormecer.
Durante a adolescência e já na idade adulta, A princípio, Balanda tinha medo dos chim-
suportou uma sucessão de ataques brutais perpe- panzés, mas foi pouco a pouco descobrindo as
trados por soldados rebeldes que acabaram por suas subtis formas de comunicação, como tra-
levá-la ao hospital, onde foi submetida a cirurgia tam da sua higiene, como se riem histericamen-
reconstrutiva. Foi então que conheceu alguém de te quando lhes fazem cócegas e as vocalizações
Lwiro e lhe foi oferecida a possibilidade de se jun- que significam sim e não.
tar ao santuário como tratadora. Balanda diz que Busakara teve diarreia nos
“Ela chegou a Lwiro devastada”, diz Vélez del primeiros dias passados no santuário. “Eu limpa-
Burgo. “Não falava, não socializava com seres va-a e dormia com ela para a manter quente”, diz
humanos.” O apoio aos colaboradores para que com um sorriso carinhoso. “Por vezes, ela chorava
estes lidem com as suas próprias experiências quando eu me vinha embora de manhã.” O amor e
traumáticas é uma componente do trabalho que a atenção humana foram essenciais nos primeiros
Vélez del Burgo não esperara. “Existe tanto so- meses da recuperação de Busakara, mas uma re-
frimento no Congo, nos animais e nas pessoas”, cuperação ainda mais importante começou quan-
diz. “Sou uma pessoa muito sensível, por isso do ela se juntou a meia dúzia de outros chimpan-
costumo fechar-me em relação ao sofrimento zés jovens num berçário cheio de lutas fingidas.
humano. Acho que não consigo lidar com tudo.” Ali desenvolveu a sua própria personalidade.
82 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
para desenvolver uma hierarquia natural e a uni-
dade familiar. Busakara não tardou a criar boas
relações com os outros chimpanzés. “Tornou-se
muito carinhosa”, diz Vélez del Burgo. “Pusemos
chimpanzés novos e muito traumatizados a seu
lado, por ela ser a mais acolhedora.”
Em 2019, registou-se uma vaga de chegadas
de novos chimpanzés – um recorde de nove.
O Parque Nacional de Virunga, parceiro de Lwi-
ro, ofereceu o custo dos voos e um piloto para
ajudar a fazer as transferências aéreas de órfãos
recuperados em regiões isoladas da RDC. Depois,
em Dezembro, um surto grave de gripe abateu-se
sobre o santuário. Mais de 90% dos chimpanzés
contraíram o vírus e dois morreram. Busakara
ficou muito doente, mas os veterinários de Lwiro
ajudaram-na a sobreviver.
Em Março de 2020, quando o novo coronaví-
rus chegou em força à RDC, Vélez del Burgo ficou
preocupadíssima com os chimpanzés, os maca-
cos e os seus colaboradores. “Os chimpanzés são
altamente susceptíveis a doenças respiratórias”,
diz. “Não sabíamos qual seria o efeito do coro-
navírus.” Houve relatos de vários chimpanzés
órfãos em diversas zonas do país, mas, duran-
te o confinamento, ninguém pôde recolhê-los
para o santuário. A incerteza, associada a uma
diminuição dos donativos recebidos, aumentou
a pressão. Foi então que surgiu um salva-vidas
sob a forma do apoio da Aliança Ivan Carter para
a Conservação de Vida Selvagem, uma organi-
zação de conservação que organizou uma an-
gariação de fundos para manter o santuário em
funcionamento. “Houve dias em que pensei que
já não conseguia fazer isto”, diz Vélez del Burgo.
Em contrapartida, também houve dias grati-
A confiança de Balanda também foi aumentan- ficantes, passados frequentemente na presença
do e ela começou a cuidar dos órfãos mais velhos. de Busakara, que inspirava Vélez del Burgo a ser
A sua nova relação com os chimpanzés estava a perseverante. “Busakara é um dos poucos chim-
ajudá-la a emergir de uma depressão sombria. panzés que vem ter comigo caminhando sobre
“Aos poucos, podíamos vê-la a sorrir e a conversar as patas traseiras”, diz, rindo-se. “Veio ter con-
mais comigo”, diz Vélez del Burgo. “Conseguiu fi- nosco tão nova que aprendeu a caminhar como
nalmente falar mais sobre a sua experiência.” um ser humano.”
A recém-descoberta paixão de Balanda pelos Vélez del Burgo acabou por perceber quão im-
chimpanzés inspirou-a a matricular-se num portante Lwiro é para os seus colaboradores, como
curso de ciência veterinária na Universidade de Balanda, que, ao contribuírem para a recuperação
Lwiro. “Sempre achei que seria veterinária de dos chimpanzés, descobrem que estes também os
animais domésticos”, diz Balanda. “Nunca pen- ajudam na sua própria recuperação. O mesmo se
sei que trabalharia com chimpanzés selvagens!” aplica a Vélez del Burgo. A primeira lição que os
Passados dois anos, Busakara foi libertada chimpanzés lhe ensinaram foi como ser forte face
num dos recintos naturais florestados de Lwiro. à adversidade. “Eles nunca desistem.” A vida aqui
Aprendera a viver com uma família substituta não é fácil, diz, “mas não vou abandonar nem os
de chimpanzés em recuperação, ficando livre chimpanzés, nem a equipa”. j
SA N T UÁ R I O D E C H I M PA N Z É S 83
O fotobiorreactor da
empresa Algalif, localizada
em Reykjanesbaer, a
oeste de Reiquejavique,
produz astaxantina, um
antioxidante natural
utilizado como suple-
mento alimentar, a partir
de microalgas. A empresa
utiliza energia geotérmica
totalmente limpa e
um sistema de iluminação
que permite reduzir
cerca de 50% do
consumo de energia.
N A C O R R I DA C O N T RA
A S A LT E R A Ç Õ E S C L I M ÁT I C A S ,
A T RA N S I Ç ÃO DA I S L Â N D I A
PA R A U M M O D E L O D E
A P R O V E I TA M E N T O D A S E N E R G I A S
R E N O VÁV E I S É U M C A S O
DE SUCE S SO COM O QUAL TODOS
O S PA Í S E S P O D E M A P R E N D E R .
.
O LABORATÓRIO
ISLANDÊS
84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
85
86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O campo de lava que
cobre actualmente as
encostas do vulcão
Hekla, um dos mais
activos da Islândia,
esteve em tempos
coberto de bétulas.
Devido à desfloresta-
ção, o Sudoeste do
país está agora muito
afectado pela erosão.
O projecto Hekluskógar
planeia repovoar a área
com espécies nativas.
O L A B O R ATÓ R I O I S L A N D Ê S 87
T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G
FOTOGRAFIAS DE SIMONE TRAMONTE
Em “Viagem
ao Centro da Terra”,
Júlio Verne imaginou
que a passagem que
levaria os protagonistas
ao centro do planeta se
situaria na Islândia.
situou-a na cratera do Snae-
M A I S C O N C R E TA M E N T E ,
fellsjökull, um estratovulcão coroado por um glaciar
que se encontra no extremo da península de Snaefell-
snes, na zona ocidental deste país insular localizado
abaixo do círculo polar árctico. Embora o escritor fran-
cês nunca tenha pisado solo islandês, imaginou esta
ilha atlântica como a meca dos amantes da geologia.
Não há dúvida de que o solo agreste e primitivo da
Plântulas de alface
Islândia, sulcado por vulcões activos, lagos, géiseres e
crescem na horta
glaciares, possui uma orografia espectacular. Com 106 vertical da empresa
mil quilómetros quadrados de superficie (um pouco Vaxa, em Reiquejavi-
que, 24 horas por dia,
maior do que Portugal) e uma população de 360 mil
sete dias por semana,
habitantes (30 vezes inferior à portuguesa), o calor que à margem de factores
pulsa sob o solo islandês permite que nove em cada externos como as
estações do ano, a
dez casas sejam aquecidas por energia geotérmica e
meteorologia ou as
quase 100% da electricidade provenha da sua enorme pragas. Com o plantio
potência hidráulica e geotérmica. em pisos, é reduzida
a necessidade de
“A conjugação destes factores (actividade vulcâ-
superfície terrestre.
nica e cursos de água caudalosos) cria condições Um sistema de controlo
excepcionais para a produção de energias renová- optimiza o consumo
de água e energia.
veis”, explica Halla Hrund Logadóttir, directora-ge-
ral da Autoridade Nacional de Energia da Islândia
e co-fundadora da Arctic Initiative, uma entidade
que estuda soluções para enfrentar as aceleradas
alterações climáticas que atormentam a região.
88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A ilha fica na Dorsal Meso-Atlântica, entre as placas tar a sua percentagem de energia limpa. “Na década
tectónicas euro-asiática e norte-americana, região de 1960, a maior percentagem do consumo energé-
vulcânica muito activa que alimenta os seus siste- tico do meu país provinha de combustíveis fósseis
mas geotérmicos. “Além disso, os glaciares cobrem importados”, recorda. E aquilo que impulsionou a
11% do território e o degelo sazonal alimenta os rios grande mudança não foi a ecologia, mas sim a eco-
glaciares, que correm das montanhas até ao mar, nomia. “A Islândia não conseguia suportar as flu-
garantindo os recursos hidroeléctricos do país. tuações dos preços do petróleo devido às crises que
Como se isso não fosse suficiente, conta com um agitavam os mercados energéticos mundiais. Isola-
enorme potencial de energia eólica, que ainda está do e à beira do círculo polar árctico, o país precisava
praticamente por explorar”, acrescenta Halla. de um recurso energético nacional estável e viável
Esta natureza privilegiada permitiu ao pequeno do ponto de vista económico.”
país nórdico acelerar a transição energética de que Nesse contexto, graças à acção de empresários lo-
o mundo tanto fala. Para Halla, formada em Ciên- cais e do governo, foram surgindo formas de apro-
cias Políticas e Economia, a transição da Islândia veitamento da água quente que emanava do solo
para as energias renováveis pode ser uma fonte de para aquecer as casas, inicialmente a nível domés-
inspiração para todos os países que tentam aumen- tico, mas logo depois à escala comercial.
O L A B O R ATÓ R I O I S L A N D Ê S 89
Áslaug Hulda Jónsdottir, co-fundadora da Pure North Recycling, posa diante de uma pilha de plásticos que
serão transformados em matéria-prima útil para fabricar novos produtos. A reciclagem é realizada sem
recurso a produtos químicos e com energias renováveis. Há um século, a maioria dos islandeses nunca
tinham visto uma árvore. Agora, o Serviço Florestal da Islândia leva a cabo um plano de reflorestação que
conta com a ajuda de voluntários em toda a ilha (em baixo). O objectivo é arborizar 5% do país em 50 anos.
90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Um investigador trabalha na estufa que a Universidade Agrária da Islândia tem em Hveragerði, no
Sudoeste da ilha, onde se cultivam bananas com fins científicos desde a década de 1950. Há anos
que se usa energia geotérmica nesta região para aquecer as estufas e gerar luz durante o escuro
Inverno islandês. A designer Halldóra Eydís (em baixo) criou uma marca de calçado fabricada com
matérias-primas sustentáveis, como pele de peixe, couro de cordeiro e rena e crina de cavalo.
O L A B O R ATÓ R I O I S L A N D Ê S 91
O potencial hidroeléctrico atraiu indústrias de
todo o mundo e deu o pontapé de saída de um pro-
cesso que diversificou a economia, gerou emprego e
permitiu criar uma rede eléctrica nacional bastante
dispendiosa, dada a baixa densidade populacional
do território. Foi uma aposta que permitiu à Islân-
dia mudar radicalmente de rumo. Considerada um
país em vias de desenvolvimento pela ONU até à
década de 1970, a Islândia começou finalmente a
prosperar, deixando para trás séculos de pobreza. Na exploração
Embora as circunstâncias deste pequeno terri- piscícola da empresa
tório sejam singulares, Halla pensa que a Islândia Ice Fish Farm (à
direita), em Fáskrúðsf-
pode servir de exemplo para os países que enfren- jörður, faz-se uma
tam desafios parecidos com os que enfrentou há 50 piscicultura sustentá-
anos, ajudando-os com especialização técnica em vel que cuida do
ambiente e dos
energias renováveis adquirido. “A indústria ener- trabalhadores. Não
gética da Islândia participou em projectos geotér- são utilizados
micos em mais de 50 países e mantém-se activa em antibióticos, químicos
nem desinfectantes
todo o mundo. Trabalhou por exemplo na constru- nas redes e os peixes
ção do maior sistema de aquecimento central geo- são alimentados com
térmico urbano do mundo, na China, que abastece ração não-genetica-
mente modificada.
mais de um milhão de utilizadores”, comenta. A mesma filosofia
governa Matorka e a
sua fábrica de proces-
A ISLÂNDIA É o cenário de experiências para alcançar
samento (em baixo),
a necessária descarbonização, como o desenvolvido em Grindavík.
pela Carbfix, uma empresa a 20 minutos de Reiqueja- Aqui chegam os
peixes vindos do
vique, que desenvolveu uma tecnologia capaz de trans-
viveiro que se encontra
formar dióxido de carbono em rocha. “Tal como a a poucos quilómetros.
vegetação, as rochas são reservatórios de carbono”,
explica a directora da empresa, Edda Sif Pind Aradót-
tir. “Nós aceleramos o processo natural para capturar 100 mil automóveis das estradas”, explica Benedikt
e eliminar de forma permanente o excesso de CO2”. Stefansson, director de negócios da CRI.
Para tal, o gás é capturado na fonte de emanação ou O objectivo de todos estes projectos é alcançar em
directamente na atmosfera e, em seguida, é dissolvido 2050 um futuro energético sustentável para limitar
em água. O produto resultante é uma espécie de água o aquecimento global abaixo de 2°C. Muitos islan-
gaseificada que se injecta sob a terra, a mais de mil deses estão empenhados nessa tarefa, mesmo que
metros de profundidade, onde o CO2 solidifica após em frentes distintas. Estufas alimentadas a energia
reagir com formações rochosas ricas em catiões, como geotérmica, reciclagem de plásticos sem produtos
o basalto. Na natureza, o processo demoraria milhares químicos, agricultura vertical, aquicultura sustentá-
de anos; a Carbfix consegue realizá-lo em dois. “Espe- vel, roupa confeccionada com cabedal feito de pele
ramos desenvolver esta tecnologia, já comprovada, a de peixe… Múltiplos projectos ajudarão a completar
grande escala na década de 2030”, acrescenta Edda. a mudança de paradigma. Uma das tarefas penden-
Outra iniciativa promissora é desenvolvida na tes consiste em reduzir as emissões dos sectores dos
Carbon Recycling International (CRI). Fundada em transportes e das indústrias pesqueira e metalúrgi-
2006 na capital islandesa, a empresa desenvolve ca. No âmbito ambiental, a Islândia também precisa
desde 2012 uma tecnologia para sintetizar metanol de reflorestar uma terra que perdeu 95% do seu co-
renovável à escala industrial a partir de dióxido de berto vegetal original e recuperar as zonas húmidas,
carbono e hidrogénio, proporcionando assim um comprometidas devido a décadas de má gestão. No
combustível verde e uma matéria-prima química entanto, tudo aponta para que a maioria dos islan-
com aplicações em todo o mundo. “A nossa fábrica deses esteja a favor desta luta por um futuro mais
mais recente transformará o dióxido de carbono em verde. Já existe um farol para orientar os marinhei-
metanol e substituirá a produção à base de carbo- ros nesta rota atribulada para o futuro. Espera-se
no, o que terá um impacte similar à eliminação de que muitos países sigam o mesmo rumo. j
92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O L A B O R ATÓ R I O I S L A N D Ê S 93
94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Nesta fábrica da
Carbfix, em Reiquejavi-
que, o CO2 é capturado
e eliminado de forma
permanente. Esta
experiência revolucio-
nária captura o CO2
e dissolve-o em água
para, em seguida,
injectá-lo sob a
terra, onde solidifica
depois de reagir com
o basalto. Esse
processo demora
milénios na natureza.
BENJAMIN HARDMAN
O L A B O R ATÓ R I O I S L A N D Ê S 95
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO
O VERANEIO
DOS URSOS
DURANTE OS CURTOS
VERÕES DO ÁRCTICO
CANADIANO, OS URSOS
POLARES DIRIGEM-SE PARA
TERRA E O SOLO ASSUME UM
LEQUE VIBRANTE DE CORES.
T E X TO D E JASON BITTEL
FOTOGRAFIAS DE
MARTIN GREGUS, JR.
96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Mesmo com um drone
a pairar sobre si, o
grande urso-polar ao qual
o fotógrafo Martin Gregus, Jr.
chama Scar [ou Cicatriz, em
português] nem se mexeu
na sua cama de flores.
Os nomes atribuídos aos
ursos talvez ajudem o
público a criar relações mais
próximas e a reconhecer
que precisam de protecção.
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imagem faz lembrar Cerbero, o cão com múltiplas cabeças da mitologia grega. Em baixo, à direita: Aurora e a sua cria, Beans,
agacham-se enquanto uma tempestade se aproxima. Com as alterações climáticas, as trovoadas tornaram-se mais frequentes
e os ursos dão sinais de stress e tremem como cães durante um espectáculo de fogo-de-artifício.
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subaquáticas como esta, de um urso-polar a deslocar-se de um pedaço de gelo marinho para terra firme, o fotógrafo
desenvolveu técnicas e dispositivos que lhe permitiram aproximar-se dos animais sem que estes o vissem.
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horizonte em busca de focas para comer ou de outros ursos a evitar. Martin espera regressar a esta costa, onde os ursos ainda
prosperam, mas sabe que, na maior parte dos seus domínios, os ursos-polares estão a sofrer com as temperaturas mais quentes.
UM M Ê S PA S SA D O E N T R E U R S O S P O L A R E S , D U R A N T E O V E R ÃO, R E V E L A UM A
FAC E TA M A I S L I G E I R A D O M A I O R P R E DA D O R T E R R E S T R E D O M U N D O.
“ VEMOS SEMPRE OS URSOS -P OLARE S NO GELO e Wilma, parecia tão à-vontade nas imediações
na neve”, explica o fotógrafo Martin Gregus, Jr. do fotógrafo que amamentava as suas crias,
“Mas eles não param de viver durante o Verão.” Pebbles e Bamm-Bamm, suficientemente per-
Determinado a revelar esta perspectiva menos to para ele as ouvir ronronar. Martin também
conhecida dos ursos, Martin construiu uma esta- assistiu a comportamentos raros, como ursos
ção de campo numa pequena embarcação e pas- a comer plantas e a caçar andorinhas-do-mar,
sou 33 dias a norte de Churchill, em Manitoba perseguindo-as até à água. Este tipo de compor-
(Canadá), nos verões de 2020 e 2021. tamento exótico talvez ajude esta população de
Quanto mais estudava os ursos, mais infor- ursos-polares a lidar com os efeitos das altera-
mação descobria sobre as suas personalidades. ções climáticas, mas outras populações estão a
Encontrou uma cria persistente à qual chamou morrer de fome.
Hércules. Perdera uma pata, mas conseguira so- “Todas estas imagens mostram ursos gordos,
breviver aos dois primeiros verões. Uma fêmea saudáveis e brincalhões”, resume o fotógrafo.
enorme, Wanda (em baixo), parecia ser temida Por isso, embora de uma perspectiva global
pelos outros ursos, mas passava os dias a fazer tudo possa estar a correr mal para esta espécie,
alongamentos entre a vegetação. Outra fêmea, “é evidente que algo está a correr bem aqui”. j
“Olhávamos em redor e perguntávamos onde estava Wanda. Se ela estivesse lá, não nos preocupáva-
mos com os outros ursos”, diz o fotógrafo, referindo-se a esta fêmea grande, mas descontraída.
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B A S T I D O R E S | UMA FOTOGRAFIA
MICROCOSMO
T E X TO D E MARIE-AMÉLIE CARPIO
semelhantes
E ST E S G LO B O S RO SA D O S Os vigilantes da natureza ajudaram Desde 1995, Oliver
Meckes e Nicole
a ovos cozidos são estranhas eflores- Oliver Meckes e Nicole Ottawa a iden-
Ottawa, radicados na
cências ao lado de outros organismos tificarem os fungos, raízes e mixomi- Alemanha, dedicam-se
que se assemelham a ramos de flores cetos mais interessantes, facilitando à exploração
fotográfica do mundo
amarelas. Este mundo paralelo, com- a recolha de amostras de solo que
infinitamente
posto por cogumelos imperceptíveis, foram mais tarde examinadas ao pequeno, dos animais
foi descoberto em pedaços de madeira microscópio. “Estas criaturas são tão às plantas, passando
pelos microrganismos
morta no Parque Nacional da Floresta pequenas que nunca sabíamos o que
e materiais inertes.
Negra na Alemanha (ver pág. 44-45). esperar. Fomos constantemente sur-
“Quando encontrámos estes fungos preendidos”, conta o fotógrafo.
com micélio, só conseguimos discernir A maior surpresa foi a infinita quan-
uma penugem fina, pouco visível na tidade de pequenos organismos que
madeira”, recorda o fotógrafo Oliver operam nesta floresta sem que nos
Meckes. Graças a um microscópio de apercebamos delas. “Pensamos que
varrimento electrónico, foi possível sabemos muito sobre o ciclo de vida
observá-los pormenorizadamente. das árvores, mas esta reportagem
Estes fungos da espécie Resinicium mostra a complexidade dos processos
bicolor possuem dois tipos de cistídios envolvidos. A maioria desenvolve-se
facilmente identificáveis: um redondo a uma escala minúscula, com miríades
e outro em forma de estrela”. de criaturas”, diz Oliver.
Segunda Guerra
Mundial Vista de Cima
E S T R E I A : 2 9 D E S E T E M B RO, À S 2 3 H O R A S
Os primeiros artistas
do Corno de África
As pinturas rupestres
de Laas Geel, um dos
principais sítios de arte
rupestre ao ar livre do
mundo, testemunham
o pensamento simbólico
dos primeiros artistas
do Corno de África.
O mural esquecido
de Almada Negreiros
Em 1946, Almada Negreiros
iniciou uma das grandes
obras da sua vida, produzin-
do dois trípticos para a
gare da Rocha do Conde
de Óbidos, em Lisboa.
Agora, a investigação
está a descobrir um novelo
de informação oculta.
Uma campanha,
duas grutas
Na região cárstica da
Eslovénia, uma cam-
panha espeleológica
identificou duas novas
grutas. No subsolo,
existem "cidades"
inacreditáveis de
rochas e minerais.
Os quilombos
do Brasil
A velha e a nova história
do Brasil cruzam-se
nos quilombolas,
descendentes de
escravos que escaparam
ao cativeiro e fundaram
comunidades livres.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C JORDI MATAS
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
~
ROLE X
O SUBMARINER
Criado em 1953 para os pioneiros da exploração subaquática, o Submariner
é um símbolo universal de estanquidade e fiabilidade. Com a sua luneta giratória
que monitoriza o tempo de mergulho com precisão, é um dos mais famosos
e icónicos relógios alguma vez concebidos.
#Perpetuai