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sumário Reunião da redação

nos primeiros anos do


Expresso. À esquerda,
o fundador, Francisco
Pinto Balsemão

Com a edição desta Revista, o Expresso

40 ANOS
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inicia a contagem decrescente para os seus
40 anos. Queremos que a data sirva de
pretexto para lançar um debate sobre o futuro de Portugal nas mais
variadas áreas. Mas não podemos, nem devemos, esquecer o nosso
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passado. As quatro décadas que atravessámos são de uma riqueza extre-
ma, tiveram imenso para contar e ainda têm muito para recordar. Foi
73 A 82 A PRIMEIRA
DÉCADA DO EXPRESSO por isso que decidimos fazer quatro Revistas especiais — cada uma
EM IMAGENS DA ÉPOCA sobre uma década do Expresso —, que vão ser publicadas de dez em dez
semanas, à medida que se aproxima o nosso aniversário. A primeira
Revista — onde a escolha das fotografias é da responsabilidade de Rui
Ochôa, o primeiro editor fotográfico do Expresso — recorda os tempos
que vão do final do Estado Novo até ao fim do Conselho da Revolução
(de 1973 a 1982). Foram dez anos de aceleração da História de Portugal,
com momentos únicos de transição e de implantação da democracia e
da liberdade de imprensa, dois objetivos pelos quais o Expresso sempre
se bateu desde que começou a ser publicado, no dia 6 de janeiro de 1973.

6 8 130 138 140 142 146


PLUMA EM CARTAS
OPINIÃO VINHOS
CAPRICHOSA OPINIÃO MANUTENÇÃO À MESA ABERTAS
MIGUEL JOÃO
CLARA RUI LUÍS JOSÉ COMENDADOR
SOUSA PAULO
FERREIRA RAMOS PEDRO QUITÉRIO MARQUES
TAVARES MARTINS
ALVES NUNES DE CORREIA

CAPA: POUCOS DIAS APÓS O 25 DE ABRIL, MILITARES E POPULARES FESTEJAM O 1.º DE MAIO NO AREEIRO, EM LISBOA. FOTOGRAFIA DE RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
pluma caprichosa

O PREC E A PISCINA
Estava estirada à beira da gritava ‘Acima a Política’ porque durante No verão de 74 toda a gente celebra-
piscina azul a pensar como 50 anos Portugal fugira da política. A va. No verão de 75, quando os comunistas
era bom estar viva: o primeiro política era a subversão, a prisão. Quem queriam apropriar-se da revolução e do
dia do resto da tua vida se metia em política contra a política do país, toda a gente conspirava. Os estudan-
regime, que era um regime que tinha tes conspiravam e bebiam, conspiravam e
morto a política substituindo-a pela comiam, conspiravam e viviam. A classe
ESTAVA SENTADA NUMA CADEIRA AO SOL, à obediência, acabava mal. As pessoas dirigente tinha saído dos berços de juristas,
beira da piscina pública de Coimbra. Sol tinham medo. Se me perguntarem o que e dos bancos de Direito de Coimbra emergi-
de junho. Nos altifalantes, a voz do Sérgio foi o 25 de abril, direi: foi o fim do medo. ra a figura umbrosa e séria de Salazar.
Godinho: ‘Este é o primeiro dia do resto E quando se mata o medo, rompe-se Bancos onde me sentava eu agora a ouvir
da tua vida’. E vem-me à memória uma o silêncio. Não espanta que nas piscinas discorrer sobre inutilidades e sonhos
frase batida: o povo unido nunca mais se ouvissem cânticos revolucionários e se socialistas, aprendendo a destrinça entre
será vencido. avistassem camisetas com a cara do Che kolkhozes e sovkhozes. Ah, ah, ah. Continua
Um dia quente de um verão quente, ou a estrela vermelha. Estávamos na a ser quase impossível fazer humor sobre
estávamos em 75. O verão do PREC. Na América Latina. Estávamos na China de Salazar. Não há anedotas brejeiras. Histó-
piscina, a revolução continuava dentro Mao. Estávamos em Moscovo. Estávamos rias capitosas. Risos. Salazar era uma pren-
de momentos. Um estudante massacrado em Portugal, um lugar onde pela primeira sa da nossa natureza, um português
pela crise e as finanças, ensinado a correr vez se podia estar em todos estes lugares esquisito, um filho de gente pobre criado
como uma lebre ao lado das tartarugas, sem ser interrogado e torturado. A PIDE pelo seminário e os protetores da ordem.
teria dificuldade em compreender o que corrida, os portões de Caxias abertos. Um vinho abafado que azedou. O homem
foi ter 20 anos no 25 de abril. Eu ainda Marcello entrou no tanque no Largo do providencial caíra da cadeira. Ah, ah, ah.
6 não tinha, estava ao portão da idade Carmo, muito preocupado em que “o Portugal nesse verão era como um
adulta, um lugar onde gente barbuda poder não caísse na rua”. Mas a rua não pinhal de caruma seca incendiado pelos
queria poder, a rua queria festa, pá, fósforos das teorias. O miraculado não
cravos vermelhos nas espingardas, todo o andava, saltitava. Essa década prodigiosa,
///CLARA kitsch da alegria. A poesia, como dizia a de 73 a 82, foi a década do 25 de abril. A
///FERREIRA Sophia, estava na rua. A rua podia man- década da história ao vivo e a cores. Os
///ALVES dar urgentemente, como pedia o Chico últimos medrosos tinham emigrado
Buarque, algum cheirinho de alecrim. para o Brasil, acossados pelo desejo de
Estas coisas são difíceis de explicar coletivização e o ódio de classe. Toda a
porque têm de ser entendidas à luz crua gente tinha uma opinião e os partidos
do salazarismo pintado de cinzento, com políticos recém-nascidos canalizavam
homens de óculos de aros grossos e fatos essas opiniões. Só quem não viveu num
de riscas e senhoras de movimentos nacio- regime democrático pode avaliar a bonda-
nais de caridade com cabeleiras lacadas e de da palavra e do sistema da liberdade.
ideias feitas sobre o lugar das mulheres Poder vituperar nos cafés, escrever sem
na família e o lugar dos pobres no país: lápis azul, coçar as costas na missa. Poder
no canto. O regime era uma caricatura do ver os marçanos donos da mercearia.
regime quando caiu mas estas coisas têm Nestes dez anos, apurámos muito do que
de ser entendidas à luz da coragem dos temos hoje, esta carpintaria do regime
capitães que decidiram que a guerra colo- democrático. E deixámos de mandar para
nial não fazia sentido e nós também não. a guerra navios regurgitando soldadinhos
Camões fala num dos sonetos da de chumbo, um proletariado que no
triste e leda madrugada mas a madrugada Natal do soldado mandava saudações
da ‘Grândola Vila Morena’ foi a madrugada choradas para a minha noiva, a minha
da felicidade. O país parecia um daqueles mulher, a minha mãe, a minha madri-
miraculados que de repente se levantam nha. E demais família. Olha que destino
da cadeira de rodas e começam a cami- feminino, ser madrinha de guerra. Mãe
nhar. Passos pequenos e hesitantes, primei- de soldado em cemitério. Mulher sofren-
ro, e depois a corrida com asas nos pés. do de ternura, como diria o O’Neill. R

REVISTA 6/ABR/12
opinião

POR MIGUEL SOUSA TAVARES


Os dez anos que vão entre 1973, quando nasce o Expresso, e 1982,
quando Portugal, arruinado, se prepara para recorrer ao FMI,
são muito mais do que apenas uma década: são o fim de dois ciclos
— o da Ditadura e o da Revolução — o princípio de todas as esperanças
e todas as ilusões e os mais fantásticos anos das nossas vidas

1973-82: DEZ ANOS QUE


VALERAM POR UMA VIDA
O EXPRESSO NASCEU com o fim do Estado rado, de que jamais regressou — em
8 Novo e, de facto, apressou-o, mostrando, corpo ou em espírito.
nas linhas e nas entrelinhas, não só até Depois, veio “a madrugada que eu espera-
que ponto o regime estava podre e pronto va”, esse dia luminoso de 25 de Abril de
a cair, mas também até que ponto Portu- 1974, obra de imprevistos capitães e
gal estava fora de tudo, fora do mundo. O tenentes a quem a Guerra Colonial satura-
país sufocava, preso a uma guerra sem ra e o regime não prestara a devida
solução à vista e a um regime de eunucos atenção. Germinava a revolta nas fileiras
que proibia os filmes, os livros, as revistas, e o patético almirante Tomás ainda recebia
e nos dava em troca uma televisão públi- as juras de lealdade de chefes militares que
ca e única, indigente e desonesta, bem apenas chefiavam a ilusão de comandar um
simbolizada no patético Festival da Can- Exército que iria eternamente defender um
ção — uma espécie de monumento nacio- império sem saída. E, quase sem tréguas
nal ao mau gosto e ao patriotismo parolo. para saborear a liberdade tão longamente
Marcello Caetano governava, envergonha- ansiada, entrámos logo no PREC e logo foi
damente, uma ditadura que ele sabia ser preciso defender essa liberdade, tão recente
uma aberração política, intelectual e quanto preciosa.
cultural, mas que não tinha coragem para Mas alguma coisa de decisivo mudara
abolir. Não quis evitar a batota das elei- entretanto: um povo adormecido e confor-
ções de 73, não quis, ao menos, escutar as mado ao seu destino sem futuro aprendera
vozes da “ala liberal” do partido único de repente o valor da liberdade. E, como
(onde sediava o fundador do Expresso e alguém escreveu um dia, basta saboreá-la
pontificava Sá Carneiro), não teve, ao uma vez para nunca mais lhe esquecer o
menos, a decência de pôr fim aos abusos gosto. Os imprevistos heróis militares do 25
da PIDE ou da censura. Limitou-se a de Abril tinham-se tornado, entretanto
mudar o nome às coisas, convencido de (quase todos, sem excepção), caudilhos
que assim sossegava a sua própria cons- revolucionários, que a extrema-esquerda e
ciência: acabou dentro de um chaimite, o PCP cobiçavam sem pudor. Aqui, no
resgatado do quartel da GNR no Largo do Expresso, habituámo-nos a seguir, semana
Carmo, e remetido para um exílio amargu- a semana, as mais importantes notícias do

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ILUSTRAÇÃO DE HUGO PINTO

Um povo adormecido e conformado


ao seu destino sem futuro aprendera
o valor da liberdade. E, como alguém
escreveu, basta saboreá-la uma vez para
nunca mais lhe esquecer o gosto
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opinião Miguel Sousa Tavares

país: as assembleias militares de cada unida- incríveis que ia vendo e vivendo, com a Portugal ficou a dever-lhe a liberdade,
de onde, de braço no ar, um grupo de premonição de que ninguém iria depois como mais tarde ficou a dever-lhe a Europa.
oficiais de tudo ignorantes se propunha acreditar que tinha sido assim. Aí registei os Entretanto, Portugal desfizera-se, rapida-
decidir o destino da nação. Tínhamos entra- pedidos de todas as empresas do país, mente e em força, do seu império africano:
do no PREC, esse fantástico período de ano incluindo tinturarias e garagens, para que o no espaço de um ano, Cabo Verde e Gui-
e meio, verdadeiro Vietname jornalístico, governo revolucionário as nacionalizasse; né-Bissau, primeiro, Moçambique depois,
onde não havia um dia igual ao outro e os bois de raça charolesa que tinham sido tornaram-se independentes, enquanto que
nenhum era pacífico, e tantas eram as abatidos numa herdade alentejana porque numa Angola mergulhada numa guerra
notícias inadiáveis que os jornais chegavam os ocupantes os classificaram de “bois civil com cubanos e sul-africanos brancos à
a recusar publicidade. Lamento defraudar a burgueses”; os “intelectuais” e artistas “revo- mistura, a independência foi atabalhoada-
geração verde dos jornalistas de agora: lucionários” de várias especialidades que mente entregue ao “povo” angolano e de lá
nada do que se passa hoje se pode compa- engrossavam diariamente um abaixo-assina- nos retirámos à pressa. Restaram, no extre-
rar àqueles tempos incríveis do jornalismo. do pedindo a pena de morte para os impli- mo asiático, Macau (onde os chineses, mais
Tínhamos tudo: golpes de Estado em cados no “golpe contra-revolucionário” do subtis, recusaram a devolução imediata que
directo, Assembleia Constituinte cercada, 11 de Março de 1975, ou o crítico televisivo lhes quisemos fazer), e Timor-Leste, que,
um primeiro-ministro que mandava os oficial Mário Castrim, de alcunha “o camara- instigado por uns aprendizes de revolucio-
manifestantes à merda, herdades ocupa- da sectário-geral”, dissertando sobre o nários militares que para lá enviámos, se
das, bombas da reacção contra as sedes paraíso na terra, que era, segundo ele, a declarou independente num dia e foi invadi-
do PCP no norte, um Otelo que era fonte Bulgária comunista. do pela Indonésia no dia seguinte. Para a
segura de imortais asneiras (com a dife- História ficará, todavia, aquela que talvez
rença de que então ainda lhe ligávamos CHEGÁMOS ÀS PRIMEIRAS eleições livres em tenha sido a maior, mais silenciosa e mais
importância), um país todos os dias na cinquenta anos e, além dos militares do tranquila façanha cometida pelo país, nes-
iminência de uma guerra civil. Lisboa MFA que faziam campanha pelo voto em ses anos em tudo o resto incertos: a forma
10 fervilhava de boatos, de notícias constantes branco, apresentaram-se treze partidos às como, do dia para a noite, um país pobre e
ou por confirmar, de correspondentes urnas, dos quais só quatro não se reclama- à deriva, absorveu 700 mil colonos (cerca
estrangeiros residentes em permanência, vam do marxismo-leninismo. Quem nos de 8% da população residente!), a maioria
de espiões do KGB e da CIA actuando em visse de fora, iria apostar que tudo se resu- deixando para trás gerações de África e
plena luz do dia e, por mais incrível que mia a escolhermos entre o modelo comunis- muitos sem conhecerem sequer o que
hoje pareça, um PCP genuinamente aposta- ta soviético ou o chinês. Mas não: os parti- passou a ser a única pátria que lhes restou.
do em repetir aqui, ponto por ponto e trinta dos das “liberdades burguesas”, como dizia Mobilizaram-se os hotéis, as pensões, as
anos depois, o manual leninista para a Álvaro Cunhal, arrebataram 80% dos votos escolas, os serviços públicos, os empregos
tomada do poder, que tanto êxito teve na e o sinal estava dado para a mudança de criados à pressa, de tal forma que, poucos
instalação das antigas democracias popula- bordo. “A legitimidade revolucionária”, não anos passados, nada distinguia um “retorna-
res do Leste europeu. Não havia tempo para tendo podido evitar a contagem de espingar- do” de um português daqui — excepção
dormir, para pensar na carreira, nem se- das, fora esmagada nas urnas pela legitimi- feita às saudades de África, que, essas, são
quer na família. Vivíamos e adormecíamos dade democrática. E Mário Soares, que incuráveis.
em estado de alerta permanente e desses soubera jogar todos os seus trunfos, inter- Quanto à Revolução, como lhe chamavam,
dias guardo uma prova de que, de facto, nos e externos, na hora certa, emergiu arrastou-se ainda uns seis meses, com dois
existiram, em forma de caderno onde, como o primeiro Kerensky da História a governos chefiados pelo general Vasco
durante uns tempos, fui anotando as coisas conseguir derrotar a fatalidade leninista. Gonçalves — um militar que, para grande

Para a História ficará aquela que talvez tenha sido


a maior, mais silenciosa e mais tranquila façanha
do país, nesses anos em tudo o resto incertos:
a forma como, do dia para a noite, um país pobre
e à deriva absorveu 700 mil colonos
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opinião Miguel Sousa Tavares

desespero de Cunhal (a quem só atrapa- Conselho da Revolução e da tutela militar Belmiro e Amorim, os novos ricos do regi-
lhou), se tomava também pela reincarnação sobre a democracia portuguesa, entrou em me, e apareciam as OPA, através das quais
de Lenine, fardado. A trapalhada entre o decomposição e em guerrilha constante se pretendia ressuscitar e fazer passar por
“camarada Vasco”, o MFA, o atirador solitá- com o Presidente Eanes (de mútuo acordo, saudável uma bolsa onde a riqueza circula-
rio Otelo, as hostes disciplinadas do PCP e o Presidente e o primeiro-ministro, Francis- da não tinha qualquer sustentação na rique-
os grupos de meninos-bem da extrema-es- co Pinto Balsemão, gravavam as conversas za produzida. O FC Porto tinha vindo inso-
querda (mais tarde reconvertidos à grande a sós entre ambos, tamanha era a confiança lentemente intrometer-se na coutada reser-
política, aos grandes negócios e ao liberalis- que tinham um no outro). De “vitória em vada de Benfica e Sporting, assim como o
mo), desembocou no inevitável 25 de No- vitória, até à derrota final”, como então se divórcio e a bendita componente sexual da
vembro — um levantamento militar de dizia, o segundo governo AD iria acabar a Revolução se intrometeram abruptamente
esquerda ao estilo da “Guerra” do Solnado. meio, em Junho de 83, entregando de novo nos pacíficos costumes católicos da nação,
Um simples pelotão de comandos disciplina- o poder ao PS de Mário Soares. Assim se ou o “Memória de Elefante”, do António
dos pôs em debandada as veleidades insur- chegava ao fim de uma década política de Lobo Antunes, tinha definitivamente sepulta-
reccionais da extrema-esquerda militar e tanta agitação como raras vezes Portugal do o execrável neorrealismo a que parecía-
deixou um mal-informado Chico Buarque a terá vivido na sua História. mos condenados para sempre. A Costa de
cantar “Já estragaram a tua festa, pá!”. Caparica era uma festa e um paraíso aos
Depois, tivemos o poder nas mãos dos FORA ISSO, Portugal mudava a uma velocida- fins-de-semana e os voos da TAP e da Varig
vencedores do 25 de Novembro: o esfíngico de incrível. A RTP ainda era única, mas já do Brasil estavam cheios de portugueses de
general Eanes na Presidência e o sempre emitia a cores, fazia debates políticos e os torna, que regressavam da praia de S. Conra-
optimista Mário Soares a governar — primei- apresentadores tinham abandonado os do, no Rio, ou dos Jardins, de S. Paulo, para
ro, sozinho e em minoria, depois em aliança hábitos revolucionários de fumar em direc- onde a certeza de que a pátria tinha acaba-
inesperada com o CDS de Freitas do Ama- to e vestir-se como vendedores de pentes do, os levara, exilados, nos idos do PREC.
ral. Seguiu-se a curiosa experiência de três na feira de Caxias. Víamos “Os Anjos de Já então — e, aliás, como sempre, desde a
12 governos consecutivos “de iniciativa presi- Charlie”, a “Missão Impossível” e, acima noite dos tempos — o desporto favorito dos
dencial” — todos chumbados no Parlamen- de tudo, parávamos o país, literalmente, portugueses era maldizer “isto”, “eles” e
to antes mesmo de entrarem em funções. para ver a “Gabriela”. Ouvíamos o Rui “esta merda”. Mas, no fundo de nós mes-
Os “partidos do regime” aprenderem a lição Veloso e o Bruce Springsteen e andáva- mos, tudo parecia ainda demasiadamente
e, na primeira ocasião de revisão constitucio- mos de Peugeot 205, Volkswagen Golf, novo e remediável, nada parecia sem hori-
nal, trataram de aliviar o Presidente desse e Opel Kadett, Fiat 127 ou Uno e, mais que zonte nem esperança. Vivíamos com muito
de outros poderes e tentações. Veio então a todos, de Renault 5. A A-1, Lisboa-Porto, menos, com muito menos coisas — sem
AD de Sá Carneiro, que ganhou uma e outra ainda estava a cinco anos de ser completa- telemóvel, nem iPad, nem computador,
vez, mas, mesmo antes de finalmente gover- da e, no Verão, o país partia de férias para nem iPod — mas não me lembro de ter
nar em maioria, o centro-direita, o PSD e o o Algarve em longas filas de trânsito com conhecido alguém desempregado mais do
CDS, viram-se decapitados dos seus líderes paragem obrigatória para almoço no que um mês. O mísero valor do escudo face
mais brilhantes: Francisco Sá Carneiro e Canal Caveira. O jornalismo “social” às moedas de referência e a inflação, que
Adelino Amaro da Costa. Um inimaginável ensaiava os seus primeiros passos através tanto nos angustiava, levava-nos a beber
desastre de avioneta, em Camarate, ia inter- da “Olá”, a revista do jornal “Semanário”, whisky Brutus genuíno das destilarias de
romper um ciclo que parecia feito para onde pontificaram Marcelo Rebelo de Sou- Sacavém, a fumar Marlboro e a vestir Levi’s
durar. A AD, que impusera na revisão consti- sa, Victor Cunha Rego, José Miguel Júdice ou de contrabando. Mas ninguém pensava em
tucional e de acordo com o PS, o fim do Daniel Proença de Carvalho. Emergiam fugir daqui. Foi uma década de luxo! R

Vivíamos com muito menos, com muito


menos coisas — sem telemóvel, nem iPad,
nem computador, nem iPod — mas
não me lembro de ter conhecido alguém
desempregado mais do que um mês
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73a82

Uma
década
em
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imagens
REVISTA 6/ABR/12
À descoberta e ao reencontro de momentos
e quadros marcantes da História recente de
Portugal, pela lente do Expresso. TEXTOS DE PAULO PAIXÃO

ALGUMAS FOTOGRAFIAS que o Expresso esco- rias são sempre construídas”, diz. E a memó-
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lheu para revisitar os seus primeiros anos ria fotográfica do Expresso entre 73 e 82 é
de vida já passaram de mão em mão. Desse pontuada pela atualidade de um país ador-
tempo ficaram fotografias em papel, a preto mecido pela ditadura, despertado pelo 25 de
e branco, que enchem as pastas de arquivo abril, sobressaltado pelo PREC e que conti-
— quando o jornal saiu, a cor era para nuou vigilante depois disso. É a memória
outras publicações e o digital uma coisa dos grandes protagonistas desse tempo, da
desconhecida. Feita a seleção das imagens Revolução na rua, dos golpes palacianos,
da década de 73-82, verificou-se que em das primeiras convulsões sociais, da consoli- Rui Ochôa
certos documentos faltavam dados sobre o dação da democracia, dos momentos institu- As imagens da década
lugar, a data exata ou os retratados. Houve cionais que moldaram o regime. Mas é 73-82 foram escolhidas
pelo primeiro editor de
então necessidade de procurar mais elemen- também a memória das tragédias ou dos fotografia do Expresso. Rui
tos. Por mail, enviaram-se fotografias a grandes acontecimentos, das cenas da vida Ochôa, 63 anos, é jornalista
quem nelas aparece. Nuns casos, para nos quotidiana, dos retratos individuais e coleti- desde 1972. Iniciou a carrei-
ra na delegação de Lisboa
contarem histórias dentro da História. vos de um povo. Para os leitores mais novos do “Jornal de Notícias”, ao
Noutros, mais prosaicamente, para nos será certamente uma descoberta, um ponto serviço do qual acompa-
dizerem o nome da pessoa que está ao lado. de partida para quererem saber mais. Para nhou o 25 de abril, os dias
tumultuosos do PREC e os
Houve quem, como Helena Neves (ver págs. os leitores que assistiram aos momentos ou primeiros anos da democra-
18-19), tivesse aproveitado uma reunião são parte das páginas que se seguem é um cia. Publicou o seu primeiro
mais alargada, já aprazada, para organizar reencontro — muitas vezes, a melhor fonte trabalho no Expresso em
1980: uma reportagem
uma espécie de sessão de reconhecimento de descoberta. As imagens vão agora passar sobre o sismo nos Açores,
da fotografia do Expresso. No final, entusias- ainda mais de mão em mão. R destacada nesta Revista.
mada, revelou a satisfação pelo facto de o
nosso pedido lhe ter permitido um “encon-
tro para cruzamento de memórias”. É que Saiba mais em
nem todos se lembram das mesmas coisas, www.expresso.pt/expresso40anos
e por vezes há relatos diferentes. “As memó-

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<
O PRIMEIRO
INSTANTE
A 6 de janeiro de 1973, uma
fotografia destaca-se na
primeira página do nº 1 do
Expresso. É irreproduzível,
pois o original perdeu-se
nos nossos arquivos. Recupe-
ra-se aqui o quadro, captado
dois dias antes, na Casa
Branca: o Presidente dos
EUA, Richard Nixon, curva-
do, apanha do chão a meda-
lha (que antes deixara cair)
para condecorar o general
Alexander Haig, pelos servi-
ços prestados no Vietname.
Henry Kissinger (de óculos),
então assessor de Nixon, e o
secretário da Defesa, Melvin
Laird, observam sorridentes.
Do homem da ponta esquer-
da não reza a legenda da
Associated Press. Quando
nasceu o Expresso, a Guerra
do Vietname pautava as
tensões internacionais;
acabaria por ser um atoleiro
18 para os EUA. Nixon sairia da
política pela porta pequena,
por causa do Watergate. Já
Kissinger chegou a chefe da
diplomacia norte-americana
— cume de uma longa e
bem-sucedida carreira. OPOSIÇÃO FAZ
Sofreu um revés quando o
seu destino se cruzou com
PROVA DE VIDA
Portugal. No calor do PREC,
Em 1973, a Primavera Marcelista está no seu outono e a resistência ao regime é
o período agitado do pós-25
cada vez mais forte. Ao contrário do sucedido em 1969, a oposição comparece
de abril, Kissinger considera-
unida às eleições (haveria de desistir antes da ida às urnas). Numa ação da CDE
va o país perdido para o
(Comissão Democrática Eleitoral), em Lisboa, a mesa é formada (da esq. para a
comunismo, e por isso era
dir.) por Lindley Cintra (professor universitário e linguista, exemplo para várias
deixá-lo à sua sorte, pois
gerações de estudantes, já falecido), Helena Neves (ex-jornalista, hoje professo-
seria uma ‘vacina’ para a
ra universitária), Dulcínio Caiano Pereira (sindicalista, fundador da SEDES e da
Europa. A história mostraria
Intersindical, já falecido) e José Manuel Tengarrinha (historiador, líder do
que estava enganado.
MDP/CDE). Nenhum dos candidatos então na mesa foi agora capaz de identifi-
FOTO HARVEY GEORGES / AP
car o local da sessão ou a data exata (Tengarrinha admitiu mesmo que pudesse
ser 1969); só Helena Neves garante que é mesmo da campanha de 1973. Mais
pormenores só os confirma depois de os ouvir de Vítor Dias, também presente
na sessão: o comício realizou-se a 4 de outubro de 1973, nas Belas Artes. No
exterior, houve carga da polícia de choque. No interior, a PIDE tentou em al-
guns momentos impedir as intervenções (quando havia alusões à guerra colo-
nial). Mas numa sala apinhada, um cordão de segurança, com oposicionistas a
cerrar fileiras, envolvia a mesa, funcionando como escudo protetor. À custa de
empurrões e de cotoveladas aos agentes da polícia política, apoiantes da CDE
impediram que fosse cortada a palavra aos oradores. Assim eram as eleições
em Portugal e os direitos da oposição no final do Estado Novo. Helena Neves e
Tengarrinha foram presos meses depois e viveram o 25 de abril em Caxias.
ARQUIVO EXPRESSO

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Num país fechado ao exterior e sobre si próprio, o Festival


CASCAIS JAZZ, de Jazz de Cascais é um oásis. Por lá passam celebridades
UM SOPRO como Charlie Parker, B. B. King, Dizzy Gillespie ou Duke
Ellington. Em novembro de 1973 atuam os Young Giants
DE LIBERDADE of Jazz, com o saxofonista Joe Henderson (na foto) e, entre
outros, o vibracionista Gary Burton e o trompetista Fred-
die Hubbard. Mas o Cascais Jazz foi também palco de
contestação. Logo na primeira edição, em 1971, o contrabai-
xista Charlie Haden foi detido pela PIDE, por ter apelado
contra a guerra colonial.
ARQUIVO A CAPITAL

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OS ÚLTIMOS
CARTUCHOS
Em 1973, apostando ainda numa
solução militar para as colónias, o
regime continua a enviar soldados
para a guerra. Na foto, em Lisboa, no
Cais da Rocha Conde de Óbidos, mais
um contingente de tropas faz-se ao
mar. Familiares acantonam-se no
cais, esperando voltar lá um dia, no
regresso dos filhos a casa. Muitos
deles, cerca de 8300, nunca voltaram
do ultramar — e 1973 foi o ano mais
mortífero de todos. Em “Menina dos
Olhos Tristes” (poema de Reinaldo
Ferreira), Adriano Correia de Olivei-
ra canta como ninguém um retra-
to-denúncia da violência social,
familiar e psicológica da guerra para
os portugueses: “Menina dos olhos
tristes/ o que tanto a faz chorar/ o
soldadinho não volta/ do outro lado
do mar/ (...) A lua que é viajante/ é
que nos pode informar/ o soldadinho
já volta/ está mesmo quase a chegar/
Vem numa caixa de pinho/ do outro
lado do mar/ desta vez o soldadinho/
nunca mais se faz ao mar.”
ARQUIVO EXPRESSO

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O PRIMEIRO
CHOQUE PETROLÍFERO
Em 1973, o mundo ocidental descobre o que é
um “choque petrolífero” — uma nova realidade
que viria para ficar, como acontece na atualida-
de. Em cartel, numa retaliação pelo apoio
norte-americano a Israel na guerra do Yom
Kippur, países árabes boicotam a exportação
de crude para os EUA e a Europa. Em poucos A 16 de julho de 1973, Marcello
meses, o preço do ‘ouro negro’ triplica. Atestar UMA VIAGEM Caetano aterra em Londres (segui-
o depósito torna-se tarefa concorrida — como
se vê nesta fila em Lisboa — e cara. Daí ser
DE TUDO do por Rui Patrício, ministro dos
Negócios Estrangeiros, nas esca-
comum, sempre que o relevo permitia, o con- OU NADA das). É uma deslocação crucial para
dutor chegar à bomba pelo seu pé. Se os portu- o chefe do Governo, que busca
gueses perderam mais tarde o sentido da extramuros os apoios que em casa
poupança, nessa altura tinham-na bem presen- lhe fogem cada vez mais. Mas, dias
te. Às vezes basta um simples empurrão. antes, o “The Times”, com denún-
ARQUIVO EXPRESSO cias do padre britânico Adrian
Hastings, noticiara o massacre de
Wiriyamu (chacina de 400 civis
moçambicanos por comandos
portugueses). Caetano viveu assim
sob um clima hostil do princípio ao
fim da visita, marcada por protes-
tos contra a política colonial. O que
era para a ditadura uma operação
diplomática de propaganda acabou
em pesadelo.
ARQUIVO EXPRESSO

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O DIA INICIAL
INTEIRO
E LIMPO
A 25 de abril de 1974, o
movimento dos capitães
derrubou a mais velha
ditadura da Europa, com
48 anos. Caiu mansa,
sem resistência, tão
sólida estava que quase
ninguém levantou um
dedo para a defender. A
cavalaria de Salgueiro
Maia desceu de Santa-
rém a Lisboa e romanti-
camente tomou o poder.
Tudo pareceu muito
fácil, tão natural que um
veículo blindado M47
passeia na Rua Augusta,
com o Arco Triunfal ao
fundo, e D. José, na
estátua, observa tudo do
Terreiro do Paço. O povo
está na rua, é sereno — e
aqui, na Rua Augusta,
parece mesmo indiferen-
te, como se fosse apenas
mais um dia, o primeiro
do resto da sua vida. Mas
24
aquela jornada cristalina
só Sophia de Mello
Breyner a viu assim:
“Esta é a madrugada que
eu esperava/ O dia
inicial inteiro e limpo/
Onde emergimos da
noite e do silêncio/ E
livres habitamos a subs-
tância do tempo.”
FOTO RUI OCHÔA

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A sorte do comando político da ditadura joga-se


CONQUISTA no Largo do Carmo, em Lisboa, em cujo quartel
DO CARMO (da GNR) Marcello Caetano se refugia a 25 de
abril. Os militares tomam conta da rua (na foto),
onde logo acorrem muitos populares. Cercado
pelos homens de Salgueiro Maia, o presidente do
Conselho só aceita entregar o poder ao general
Spínola. Feita a transição, Caetano deixará o
Carmo dentro do chaimite “Bula”. Após escala na
Madeira, o exílio no Brasil, de onde nunca voltaria.
FOTO RUI OCHÔA

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UMA VITÓRIA
SEM TIROS
As operações do 25 de abril foram um rotun-
do êxito militar. Salvo disparos esporádicos,
nunca se ouviram as armas. A queda de uma
ditadura de meio século praticamente sem
derramamento de sangue é mesmo um case
study internacional. As poucas forças ainda
afetas ao regime ofereceram ténue resistência
ao MFA — e algumas até mudaram de trin-
cheira. Por isso, cedo se percebeu para que
lado penderia a balança. O momento fica na
história como a Revolução dos Cravos. Mas,
antes de as flores aparecerem no cano das
espingardas, o que aconteceu por iniciativa
de uma vendedora de cravos, numa rua do
Chiado já um soldado canta vitória.
FOTO ALFREDO CUNHA / ARQUIVO EXPRESSO

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LIBERTAÇÃO DOS
PRESOS POLÍTICOS
Só na manhã de 26 de abril os presos
políticos de Caxias sabem com exatidão
o que se passara na véspera — um
golpe. Assim, apesar da sua libertação
imediata ser uma das primeiras exigên-
DESPOJOS
cias, foi com certo atraso, na noite de DA PIDE
26 para 27, que respiraram o novo ar. Já
em liberdade, vieram os banhos de No dia 25 de abril, a princi-
multidão. Alguns dos detidos perten- pal resistência às opera-
ciam à Liga de Unidade e Ação Revolu- ções militares foi protago-
cionária (LUAR), como Hermínio Palma nizada pela PIDE. Ao fim
Inácio (líder da organização, o primeiro da tarde, vendo cercada a
à esquerda). Seguem-se — numa identi- sede, na Rua António
ficação feita por ex-membros da organi- Maria Cardoso, agentes da
zação — José Casimiro Ribeiro (também polícia política do Estado
da LUAR), Eugénio Manuel Ruivo (PCP), Novo abriram fogo sobre
desconhecido, desconhecido (este meio populares, matando qua-
encoberto) e Ramiro Raimundo (da tro pessoas. Mais tarde,
LUAR, de bigode). A última pessoa negociada a rendição,
identificada é António Vieira Pinto militares mostram aos
(segundo à direita, da LUAR). jornalistas algum do
ARQUIVO EXPRESSO armamento em posse da
PIDE.
FOTO RUI OCHÔA

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Mal as coisas ficaram resolvidas no plano militar,


JUNTA e como previa o programa do MFA, o poder foi
DE SALVAÇÃO assumido pela Junta de Salvação Nacional (JSN).
A primeira medida, ainda a 25 de abril, é a desti-
NACIONAL tuição formal, através da Lei nº 1/74, de toda a
cúpula do Estado Novo, de Tomás a Caetano,
passando pela Assembleia Nacional. A Junta
mostrou-se pela televisão, às primeiras horas de
dia 26, quando Spínola leu a proclamação ao país,
e os portugueses ficaram assim a conhecer os
primeiros rostos do novo regime. Na foto, os sete
membros da JSN, representantes dos três ramos
das Forças Armadas: Manuel Diogo Neto, Rosa
Coutinho, Galvão de Melo (de pé, da esq. para a
dir.); Costa Gomes, António de Spínola (presiden-
te), Pinheiro de Azevedo e Jaime Silvério Mar-
ques. Alguns dos militares que estavam à volta da
mesa haveriam, poucos meses depois, de se
situar em lados opostos da barricada.
FOTO MIRANDA CASTELA / ARQUIVO EXPRESSO

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UM DIA
DE BRAÇO
DAD0
A 1 de maio de 1974,
os portugueses
celebram pela pri-
meira vez em liberda-
de o Dia do Trabalha-
dor. No Areeiro, um
povo de braço dado
desfila até ao atual
Estádio 1º de Maio.
Nunca mais se viveu
festa assim. No palco
do comício estive-
ram Mário Soares e
Álvaro Cunhal,
acabados de voltar
do exílio. A ilusão
durou pouco: Soares
e Cunhal nunca mais
se juntaram numa
manifestação; e
desde 1975 as come-
morações do 1º de
maio dividem o
mundo sindical.
FOTO RUI OCHÔA
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OS NOVOS
PILARES
Se à esquerda (PS e PCP,
sobretudo, mas também
uma boa mão-cheia de
outras forças) as máqui-
nas partidárias já estão
no terreno, no outro
hemisfério da política
portuguesa faltam as
organizações. É assim
que nasce o então Parti-
do Popular Democrático
(PPD), fundado a 6 de
maio de 1974. O processo
de legalização só termina Gorada a formação de um único partido à direita,
a 17 de janeiro do ano 0 PARTIDO Freitas do Amaral (de pé) e Amaro da Costa (à direita
seguinte, quando Francis-
co Sá Carneiro entrega
DO CENTRO na foto), entre outros, criam o Centro Democrático
Social (CDS). Fundado a 19 de julho de 1974, teve
as assinaturas no Supre- apresentação no Largo do Caldas. A linha conceptual
mo Tribunal de Justiça. que dividia esquerda e direita estava então muito a
FOTO RAUL NASCIMENTO/ um canto. O CDS correspondeu “ao apelo de amplas
ARQUIVO EXPRESSO correntes de opinião pública, abrindo-se a todos os
democratas do centro-esquerda e centro-direita”.
FOTO RUI OCHÔA

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UM PAÍS
A DUAS
VELOCIDADES
O fim da ditadura acele-
rou a vida das pessoas e
foi a ignição de muitos
novos projetos — políti-
cos, ideológicos, sociais,
culturais, mentais. Mas
longe de Lisboa, e em
parte também de quar-
téis ou fábricas, onde se
acreditava que o futuro
estava à mão de semear,
havia um Portugal
parado no tempo. O
interior era então mais
habitado do que é hoje,
mas também mais
isolado e muito mais
pobre. O quadro destas
páginas — desalento,
tristeza, total ausência
de expectativas a irma-
nar várias gerações
(serão três?, serão qua-
tro?) da mesma família
— parece saído do cine-
ma neorrealista italiano,
montado por Visconti
36
ou Rossellini, logo no
pós-guerra. Mas foi
captado várias décadas
depois, em julho de 1974,
numa aldeia perdida no
concelho de Vila Flor,
Trás-os-Montes. Assim
respirava um povo a
quem a Revolução ainda
pouco ou nada dizia.
FOTO RUI OCHÔA

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A MAIORIA
SILENCIOSA
A 26 de setembro de 1974, uma tourada no Campo
Pequeno a favor da Liga dos Combatentes torna-se
manifestação de apoio a António de Spínola e de
repúdio ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves,
vaiado pela assistência. Na verdade, foi um ensaio
geral para a manifestação da Maioria Silenciosa
(os setores da direita que se opunham ao andamen-
to da Revolução e que ainda não tinham assumido
uma posição pública), marcada para dois dias
depois. Mas a corrida — como as expressões de
Spínola e de Vasco Gonçalves parecem prenunciar
— estava muito longe do fim. A concentração foi
proibida, Lisboa esteve sitiada por piquetes que
ergueram barricadas nas entradas e revistaram
quem pretendia entrar. No fim, a Maioria Silencio-
sa não fez ouvir a sua voz; a 30 de setembro, Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, toma posse como
Spínola falou ao país, para se demitir. Com o novo ENTRE ministro (sem pasta) do primeiro governo provisório, a 16 de
Presidente, Costa Gomes, veio o terceiro governo
provisório, igualmente liderado por Vasco Gonçal-
TRINCHEIRAS maio de 1974. Spínola olha-o como se fizesse marcação
cerrada — e a relação caçador-presa podia muito bem ser ao
ves. As coisas iam começar a aquecer. contrário. A situação política foi-se agudizando com o tempo.
FOTO MIRANDA CASTELA / ARQUIVO EXPRESSO Mas a existência de campos e interesses opostos e inconciliá-
veis esteve à vista de todos desde os primeiros momentos.
ARQUIVO A CAPITAL

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<
A REVOLUÇÃO
À VOLTA
DA FOGUEIRA
A Herdade da Lobata, em
Serpa, foi um dos latifún-
dios alentejanos ocupa-
dos por trabalhadores.
Num dia frio do outono
de 75, sentam-se em
círculo, como se quises-
sem abrir uma clareira
para uma sociedade
diferente, mais equalitá-
ria... Entre o final de 1974
e o início de 1976, foi
criada, sobretudo no
Alentejo, cerca de meio
milhar de Unidades
Coletivas de Produção
(UCP), num processo
conduzido pelos sindica-
tos afetos ao PCP e por
vezes apoiado no terreno
por militares. O projeto
de uma “exploração
comum da terra” — o
que deixou muitas vezes
à vista a impreparação
42 da nova ordem na gestão
das empresas agrícolas
— ardeu como palha. No
primeiro governo de
Mário Soares é aprovada
a chamada Lei Barreto,
que foi o princípio do
fim. A revisão da Consti-
tuição de 1982 (seguida
pela de 86) faria o resto.
A Reforma Agrária tem
um lugar único na mitolo-
gia da Revolução, mas a
sua chama aqueceu
durante pouco tempo.
FOTO RUI OCHÔA

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Na Lobata, o proprietário esteve sitiado vários dias por trabalhadores. A GNR


UM CAMPO anda por lá, mas limita-se a observar, sem fazer esforços para intervir. Ao lado
DE CONFRONTOS dos grandes proprietários rurais na repressão dos assalariados durante o fascis-
mo, a força militarizada sentiu esse fardo histórico durante a ocupação das
terras e assumiu uma posição de neutralidade. Sob um chaparro, em redor do
borralho, meia dúzia de soldados deixam correr o tempo. No final dos anos 70,
quando nas planícies alentejanas o vento muda de feição, a GNR volta à ação.
FOTO RUI OCHÔA

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O Verão Quente já estava ao rubro. Numa reação aos avanços da Assembleia do MFA, o
O TRAVÃO documento-guia da “Aliança Povo-MFA”, e já após a demissão dos ministros socialistas
DA FONTE do 4º governo provisório, o PS realiza o célebre comício da Fonte Luminosa. Foi a 19 de
julho de 1975 que os apelos de Mário Soares à demissão de Vasco Gonçalves fizeram
LUMINOSA transbordar a alameda lisboeta. O principal visado era o PCP: o cartaz alude à votação
dos comunistas nas eleições para a Constituinte, muito inferior à preponderância que
tinha na condução do país. A data é um ponto de inflexão no clima de marcações recí-
procas da época. Sem ter a máquina orgânica (partidária e sindical) de Cunhal, Soares
mostrou-se capaz de enfrentar, e até superar, o rival na batalha das ruas.
FOTO LUIZ CARVALHO

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O REGRESSO
DOS RETORNADOS
Ao longo de 1974 já alguns
portugueses que estavam
em África haviam regressa-
do ao continente, mas só no
verão de 75 foi acelerado o
êxodo. No total, quase num
ápice, um país então aos
solavancos teve de encaixar
mais meio milhão de cida-
dãos (na foto, uma das
primeiras levas a aterrar no
aeroporto da Portela, em
Lisboa). Alguns já fugidos de
violências e perseguições,
outros antecipando-se às
guerras prolongadas que
iriam estalar (no caso de
Angola e Moçambique),
chegaram com a casa às
costas, muitos sem quase
nada nas mãos. Poderia ter
sido um terramoto social
negativo, mas o saldo foi
uma integração sem gran-
des traumatismos. E os
retornados tornaram-se um
fator de modernização do
país e de mudança de hábi-
tos e mentalidades.
FOTO RUI OCHÔA

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Após ter perdido o pé com a Maioria Silenciosa,


11 DE MARÇO, o ex-Presidente Spínola tenta recuperar o poder
O INÍCIO e, a 11 de março de 1975, lança-se numa aventura
que lhe sairá cara. Paraquedistas de Tancos
DO PREC atacam o quartel do RAL1, nos Olivais, em Lisboa.
A operação é rechaçada por militares comanda-
dos por Diniz de Almeida, num teatro de guerra
onde a população e os jornalistas se misturam no
terreno com os beligerantes e táxis se cruzam
com carros blindados (na foto). Spínola perde a
jogada e foge para Espanha. Na resposta, a ala
mais radical dos militares sobe a parada. Na
noite de 11 de março realiza-se a chamada “as-
sembleia selvagem” do MFA. Entre muitas outras
importantes decisões, refaz a arquitetura institu-
cional do regime. A Junta de Salvação Nacional é
extinta e é institucionalizado o MFA, com a
criação do Conselho da Revolução e a Assem-
bleia do MFA. Começa o Verão Quente, período
que também ficou conhecido como PREC (proces-
so revolucionário em curso).
FOTO RUI OCHÔA

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Ao longo de oito desvairados meses de 1975, terminados a
25 DE 25 de novembro, Portugal esteve perto da guerra civil.
NOVEMBRO, Houve de tudo no Verão Quente: detenções de militares e
de civis, demissões, intentonas, atentados, barricadas,
O FIM boatos, mais atentados, aceleração da ocupação de terras,
DO PREC nacionalização de empresas, outra vaga de bombas, contro-
lo operário, cerco ao Parlamento, quatro governos, um dos
50 quais, de Pinheiro de Azevedo, entrou em greve (“autossus-
pendeu-se”!). Pelo meio até houve umas eleições — as
primeiras livres e universais, para a Assembleia Constituin-
te, vencidas pelo PS. A vertigem revolucionária passou
quando se deu o triunfo da ala moderada dos militares. Na
foto, já na tarde de dia 27, nos Comandos da Amadora,
Ramalho Eanes faz um briefing da situação, com a presença
de Vasco Lourenço, comandante da Região Militar de
Lisboa (à direita), e Marques Júnior (de pé), entre outros. O
PREC chegara ao fim. Se Eanes teve a alvorada em novem-
bro, Otelo Saraiva de Carvalho teve o ocaso. O estratego do
25 de abril — para uns herói, para outros vilão, uma espé-
cie de sol e sombra da Revolução — é afastado do podero-
so corpo militar Copcon (Comando Operacional do Conti-
nente) e detido pouco tempo depois.
FOTOS RUI OCHÔA

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ABERTURA
AOS CIVIS
A 26 de fevereiro de 1976 é assi-
nado o II Pacto MFA/Partidos —
pelas cinco forças com expressão
parlamentar (PS, PPD, PCP, CDS
e MDP/CDE). O documento muda
as regras do jogo: o Presidente da
República, antes indicado pelos
militares, passa a ser eleito por
sufrágio universal e direto e o
Conselho da Revolução perde
poderes. A poucos meses de duas
eleições cruciais (legislativas e
presidenciais), os militares dão
espaço aos civis.
FOTO RUI OCHÔA

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SABER ANDAR
NOS CARRIS
PORTUGAL PAÍS PO-
BRE STOP MUITA CON-
FUSÃO RUAS STOP
DISCUSSÃO POLÍTICA
COLORIDA STOP RESTO
CINZENTO STOP. Este
podia ser o teor do
telegrama de um estran-
geiro de passagem por
cá em 1976. O telegrama,
hoje peça de museu, era
o meio de comunicação
pessoal escrita mais
rápido. Em Lisboa, para
levar velozmente a carta
a Garcia, o boletineiro
Em outubro de 1976, houve greve dos padeiros. Na altura, as greves eram o pão nosso
da Marconi dava corda
aos pedais e apanhava
A QUIMERA de cada dia, mas nenhuma chegou tão depressa à mesa. Os trabalhadores recusavam o
boleia nos elétricos. DO PÃO horário noturno. Queriam uma “vida normal”, diziam. O protesto fermentou bem e
durante dias o povo esteve à míngua. Por isso, no Bairro Alto, em Lisboa, formaram-se
FOTO RUI OCHÔA
filas para comprar pão. Já no Verão Quente, a indústria panificadora fora lenha no
forno da Revolução. Quando o Governo também fez greve, o primeiro-ministro, Pinhei-
ro de Azevedo, admitiu que uma das causas foi a reivindicação dos padeiros.
FOTO RUI OCHÔA

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EMBALAGEM
SOCIALISTA
Nas primeiras eleições legislati-
vas, em 25 de abril de 1976, o PS
repetiu o triunfo que alcançara
um ano antes, para a Assembleia
Constituinte. Reforçado pelo seu
papel no PREC — uma tenaz
oposição ao PCP e à extrema-es-
querda partidária e militar, o que
o situou no centro do espetro
político —, Soares teve banhos de
multidão, como o que se vê na
foto. Quando a caça ao voto era
feita corpo a corpo, pelos recan-
tos do país, o líder histórico do
PS começou a mostrar-se como o
animal político que o tempo
confirmaria. Vencedor com
maioria relativa, Soares tor-
Sedes de partidos de esquerda (sobretudo do PCP, no centro e norte do nou-se o chefe do I Governo
BOMBA país), ou de quem se identificava com os seus pontos de vista, foram o princi- Constitucional.
PARA pal alvo dos atentados à bomba nos conturbados tempos da Revolução. A
embaixada de Cuba, em Lisboa, um 6º andar da Avenida Fontes Pereira de
ARQUIVO EXPRESSO

CUBA Melo, ficou destruída a 22 de abril de 1976. O embaixador Francisco Astray


Rodriguez olha os estragos da explosão, em que morreram dois funcionários
cubanos. Aparentemente, o retrato de Che Guevara foi poupado.
FOTO RUI OCHÔA

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Para o PS, Alenquer é lugar de romaria pelo 5 de outubro. Nos alvores da democracia, a
UMA VIGÍLIA peregrinação socialista, com jantar comemorativo e discursos à discrição, acabava religio-
REPUBLICANA samente a desoras. Como aconteceu em 1976, data deste flagrante. Nada de estranho,
quando a política se fazia 24 horas por dia, com reuniões e conspirações a começar pela
ceia e a terminar de manhãzinha. No ritual de Alenquer, só coisas transcendentes fariam
despertar Soares. Se há imagens a valer por mil palavras, esta é uma delas: um grande
político saberá sempre mais do que os seus adversários, mesmo com eles acordados.
FOTO RUI OCHÔA

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Com as legislativas de
O PODER JÁ 1976, a condução da vida
PASSA PELO do país passa cada vez
mais pela Assembleia da
PARLAMENTO República. A negociação
entre líderes partidários
(na fotografia, Francisco
Sá Carneiro e Mário
Soares) será uma bússo-
la dos anos vindouros.
Na primeira fila da
bancada do CDS estão
sentados (da esquerda
para a dirreita) Lucas
Pires, Rui Pena, Freitas
do Amaral e Narana
Coissoró. Um quarteto
de luxo! Mas a qualidade
dos deputados era pedra
angular de todas as
bancadas.
FOTO RUI OCHÔA

Vencedor militar do 25 de novembro, Ramalho Eanes


UM GENERAL ganhou assim posição para as presidenciais, realizadas a 27
EM ASCENSÃO de junho de 1976 (na foto, sede de candidatura, na Avenida
da Liberdade, em Lisboa). É o terceiro general que a demo-
cracia coloca em Belém, mas o primeiro consagrado pelo
voto. Apoiado por PS, PPD e CDS, é eleito facilmente à
primeira volta, com 62% dos votos, derrotando Otelo.
FOTO RUI OCHÔA

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O COMEÇO DA
ESTABILIDADE
Até ao verão de 1976, os
portugueses habitua-
ram-se a um corrupio
de líderes políticos
(sobretudo no Governo)
que mal aqueciam os
lugares. Eanes foi uma
novidade. Apoiado por
PS, PPD e CDS, foi facil-
mente eleito Presidente
à primeira volta. Após a
posse, em 15 de julho,
saúda a população da
varanda do Parlamento.
Atrás de si, Vasco da
Gama Fernandes, o
presidente da Assem-
bleia da República.
Eanes seria reeleito
cinco anos mais tarde
(então com o apoio da
esquerda, contra Soares
Carneiro), perfazendo
dez anos em Belém.
Uma longevidade em
democracia como nunca
62 se vira em Portugal.
FOTO RUI OCHÔA

TRAGÉDIA
NO FUNCHAL
Durante muitos anos, só
os pilotos mais experi-
mentados ousavam
aterrar no Funchal. A
exiguidade da pista
(1600 metros) era a
maior fonte de receios.
Na noite de 19 de novem-
bro de 1977, uma sex-
ta-feira de chuva e
vento fortes, um Boeing
727 da TAP falhou a
manobra, despenhou-se
sobre uma ponte e
incendiou-se. Morreram
131 das 164 pessoas a
bordo. Só em 2000 a
pista seria aumentada
para os atuais 2781
metros.
FOTO RUI OCHÔA

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Taberna no Bairro Alto, Lisboa, 1977. Na década de 70 do século XX, o Bairro Alto ainda
BAIRRO ALTO era o quarteirão dos jornais da capital. Além das redações, os edifícios podiam albergar
DE OUTRO TEMPO as tipografias. A toponímia perpetuou essas relações de pertença, como a Rua do
Século ou a Rua do Diário de Notícias. Aos ofícios dos jornais juntavam-se escritores e
artistas. Mas o lugar era também porto de marinheiros e uma das zonas de prostitui-
ção da cidade. No Bairro Alto cruzavam-se assim gentes muito diferentes, vários mun-
do num só, em coexistência pacífica. A taberna era o ponto de encontro de tudo.
FOTO RUI OCHÔA

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Largo do Rato, Lisboa, numa manhã


DESCUBRA de nevoeiro de 1977. No plano social,
O ARCO-ÍRIS mal se vê um palmo à frente do
nariz. A mulher da foto carrega uma
alcofa, e talvez nela leve parte do
“cabaz de compras” — um pacote de
bens essenciais com preços fixos,
criado então para controlar a infla-
ção. Nesse ano, como agora, a mezi-
nha caseira fracassou e o FMI passou
a ditar leis. Mas nem tudo era tão
cinzento como a imagem parece
sugerir. No plano geoestratégico,
Portugal pede a adesão à CEE e a
Coca-Cola, até aí proibida, volta a ser
comercializada. Pela casa dentro,
dando mais cor à vida, deixando
toda a família pespegada à televisão,
ainda a preto e branco, entram uma
vaquinha chamada Cornélia e uma
língua com sotaque: “Gabriela, Cravo
e Canela”.
FOTO RUI OCHÔA

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MORTE
DO CARDEAL
CEREJEIRA
A 1 de agosto de 1977,
morre o cardeal Manuel
Gonçalves Cerejeira, a
figura mais marcante da
Igreja em Portugal no
século XX. Foi patriarca
de Lisboa durante 42
anos (1929-1971), o mais
longo período de um
bispo na diocese. Se o
Estado Novo se confun-
de com Salazar (pelo
menos até à morte
deste), a Igreja portugue-
sa nesse mesmo período
confunde-se com Cerejei-
ra. A relação entre
ambos, pessoal (colegas
em Coimbra e amigos) e
institucional (entre
Igreja e Estado), durante
décadas moldou o país.
Sobretudo na identidade
e nas cumplicidades
evidentes, mas também
nas tensões e divergên-
cias, dimensão que aos
71
poucos a historiografia
vem destapando. As
cerimónias fúnebres
foram presididas pelo
sucessor de Cerejeira, D.
António Ribeiro. O
cardeal ficou sepultado
no panteão privativo
dos patriarcas, no Mos-
teiro de São Vicente de
Fora, em Lisboa (na
foto).
FOTO RUI OCHÔA

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NÃO, NÃO,
NÃO SUBSCREVO
Como muitos outros,
Jorge de Sena emigrou
por razões políticas. Em
1959, para o Brasil. Em
1964, quando outra ditadu-
ra apertava o cerco, novo
salto, para os EUA. Após o
25 de abril, o poeta, ro-
mancista e ensaísta visi-
tou várias vezes Portugal
(na foto, em 1977, pouco
antes da morte, no ano
seguinte). Mas o país já o
desencantava, como
mostra num poema de
fevereiro de 1976:
“Não, não, não subscrevo,
não assino/ que a pouco e
pouco tudo volte ao de
antes,/ como se golpes,
contragolpes, intentonas/
(ou inventonas — armadi-
lhas postas/ da esquerda
prá direita ou desta para
aquela)/ não fossem mais
que preparar caminho/ a
parlamentos e governos
que/ irão secretamente
72 pôr ramos de cravos/ e
não de rosas fatimosas
mas de cravos/ na tumba
do profeta em Santa
Comba,/ (...) E se os puris-
tas da poesia te acusa-
rem/ de seres discursiva e
não galante/ em graças de
invenção e de linguagem,/
manda-os àquela parte.
Não é tempo/ para tratar
de poéticas agora.”
FOTO RUI OCHÔA

A POESIA
ESTÁ NA RUA
Como Sena, também Maria Helena
Vieira da Silva, outro grande vulto da
cultura portuguesa, vivia longe do
país onde nasceu. A pintora fez toda
a vida lá fora, sobretudo em França,
pátria que a adotou e onde morreu.
Pertence a Vieira da Silva uma das
mais belas iconografias sobre a
chegada da democracia. É um cartaz
sobre o “25 abril 1974” e nele se lê: “A
poesia está na rua.”
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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AMOR
À BEIRA TEJO
Cais das Colunas, Lisboa,
1977. A liberdade em
Portugal foi também a
possibilidade de duas
pessoas poderem desta
forma, num espaço públi-
co, mostrar os seus senti-
mentos — indiferentes a
quem passasse. Logo em
1974, os portugueses apren-
deram, na letra de uma
canção então muito popu-
lar, a dar largas aos so-
nhos: “Uma gaivota voava,
voava,/ Asas de vento,
coração de mar./ Como
ela, somos livres,/ Somos
livres de voar.” Quem diz
voar, diz amar. Até as
musas do Tejo ficaram
mais inspiradoras. Linha do Oeste, 1977. A maioria dos portugueses só se desloca de
FOTO RUI OCHÔA O COMBOIO transportes públicos, sendo raro ver uma carruagem assim. Não se
ASCENDENTE sabe que comboio é, mas o cantado por Zeca Afonso, com poema de
Pessoa, não é certamente: “No comboio descendente/ Vinham todos
à janela/ Uns calados para os outros/ E outros a dar-lhes trela.”
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
EM LUTA,
ATÉ AO FIM
Em 1978, data desta
fotografia de Álvaro
Cunhal, tirada em Lis-
boa, Portugal vive,
segundo o discurso do
PCP, uma “contrarrevo-
lução”. Os comunistas
desde há algum tempo
que haviam perdido a
capacidade de determi-
nar o curso das coisas.
Ou, quando conseguem
influenciar, é de forma
reativa, lutando contra a
“brutal ofensiva" inicia-
da pelo Governo de
Soares. Essa luta conti-
nua. Cunhal morreu em
2005, após uma vida de
militância, com 31 anos
(de 1961 a 1992) na
liderança formal. O seu
funeral foi uma cerimó-
nia impressionante.
Muitos não comunistas
renderam “homenagem
à coerência” de Cunhal.
O homem que pregava o
76 primado do coletivo
sobre o indivíduo mol-
dou um partido que
segue à risca a cartilha
do seu líder histórico.
FOTO RUI OCHÔA

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Olof Palme, primeiro-ministro sueco


DIPLOMACIA (assassinado em 1986), foi um dos
SOCIALISTA primeiros governantes europeus a
inteirar-se, de viva voz, do que se
passava em Portugal. Estocolmo foi
uma das escalas do périplo de Mário
Soares, feito logo no início de maio
de 74, a pedido de Spínola, para
explicar a Revolução dos Cravos. O
alemão Willy Brandt ou o britânico
Harold Wilson foram outros líderes
‘brifados’ por Soares. Todos tinham
em comum o facto de pertenceram à
Internacional Socialista, rede de
contactos muito útil à diplomacia
portuguesa em 1974 (ministério
entretanto entregue a Soares). Esta
foto é de 1979, na altura em que
Palme veio ao III Congresso do PS.
FOTO RUI OCHÔA

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CONTOS DE UM
PS CONHECIDO
Em Lisboa, em março de
1979, ao lado de Soares,
num congresso do PS,
uma representação
internacional de peso: o
Presidente senegalês,
Leopold Senghor, e o
futuro Presidente fran-
cês, François Mitterrand
(chegou ao Eliseu em
1981). Mas o que nesta
imagem resiste verdadei-
ramente ao tempo é a
presença, um passo
atrás — nos bastidores,
onde se movimentava
bem —, de Rui Mateus, o
então responsável pelas
Relações Internacionais
do PS. Os caminhos dos
dois homens, ambos
fundadores do PS, have-
riam de separar-se em
1996, quando Mateus
publicou o livro “Contos
Proibidos — Memórias
de Um PS Desconheci-
do”, uma obra com
passagens compromete- 81
doras para Soares.
FOTO RUI OCHÔA

MINA SEM LUZ


AO FUNDO
Lisboa, 1979, junto ao
Parlamento, protesto
dos mineiros do Pejão.
As minas de carvão, no
concelho de Castelo de
Paiva, tinham sido
adquiridas pelo Estado
dois anos antes. A explo-
ração encerraria em
1994, ao fim de mais de
um século de laboração
(registos apontam para
1886, ou até antes). O
Pejão chegou a dar
trabalho a mais de três
mil mineiros. O projeto
de criar no local um
Museu do Carvão não
passou do papel.
FOTO RUI OCHÔA

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<
NÃO HÁ CARNE
SEM OSSO
Os preços estão em escudos,
e assim de repente até
parece barato (pouco mais
de um euro), mas é preciso
fazer a conversão (a perna
de borrego custaria nesta
Páscoa ¤14,20/kg). O que
mais se estranha hoje ao ver
esta foto de um talho em
Lisboa, em 1979, é a forma
como a carne está exposta,
quase sobre a cabeça dos
clientes e do talhante. Man-
ter obrigatoriamente certos
produtos no frio era coisa
desconhecida então. Claro
que a ASAE também! Um
grande salto foi dado nas
normas para o acondiciona-
mentos dos alimentos.
FOTO RUI OCHÔA

86

Em julho de 1979, Maria de Lurdes


UMA MULHER Pintasilgo tornou-se na primeira
À FRENTE mulher (e até agora única) a
chefiar um Governo em Portugal.
DO GOVERNO Foi um Executivo de gestão encar-
regado de preparar umas legislati-
vas intercalares. A condução da
máquina eleitoral ficou nas mãos
de Costa Brás, ministro da Admi-
nistração Interna (ao lado de
Pintasilgo, num debate no Parla-
mento em que Sousa Franco é
orador). Pintasilgo candida-
tar-se-ia às presidenciais em 1985,
sem o apoio de qualquer dos
grandes partidos. Estava bem
colocada no arranque da campa-
nha, mas ficou pelo caminho.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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UM SINAL
PREMONITÓRIO
Freitas do Amaral, Sá Carneiro
e Ribeiro Telles (à frente, da
esquerda para a direita) fazem
uma pausa na descida da Aveni-
da da Liberdade, em Lisboa,
numa ação da campanha para
as legislativas de 1979. É impos-
sível saber de que se riam
(especialmente Freitas), mas é
bem possível que pelo canto do
olho já estivessem a ver o sinal
de trânsito. A 2 de dezembro,
os eleitores portugueses segui-
ram à risca aquela sinalética
rodoviária: impedidos de virar
à esquerda, optaram por uma
guinada para a direita. A Alian-
ça Democrática (AD, coligação
entre o PPD e o CDS) esteve no Na noite de 2 de dezembro de 1979, uma dupla novidade. Pela primeira
poder três anos e meio: um UMA NOVA vez, uma força obtém maioria absoluta numas legislativas. E pela primei-
governo liderado por Sá Carnei-
ro, terminado com a morte
MAIORIA ra vez a direita tem mais deputados do que a esquerda. Francisco Sá
Carneiro (PPD) e Gonçalo Ribeiro Telles (PPM) foram os pilares dessa
deste, e dois chefiados por aliança (o terceiro foi Freitas do Amaral, do CDS). Na foto, ao centro,
Francisco Pinto Balsemão. Francisco Sousa Tavares, o homem que no dia 25 de abril subiu a uma
FOTO RUI OCHÔA guarita no Largo do Carmo, onde reinava o caos, e apelou à calma da
população. Foi dele o primeiro discurso político civil da democracia.
FOTO RUI OCHÔA

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Em novembro de 1979, a capital


PORTUGAL portuguesa foi palco de uma confe-
PELA CAUSA rência internacional — com 750
delegados de uma centena de países
PALESTINIANA — de apoio ao mundo árabe e à
causa palestiniana. A declaração
final exigiu a retirada imediata de
Israel dos territórios árabes ocupa-
dos, incluindo Jerusalém. Na véspera
da cimeira, o líder histórico da OLP,
Yasser Arafat, teve uma audiência
com Ramalho Eanes. Foi um encon-
tro muito importante para Arafat:
pela primeira vez era recebido por
um chefe de Estado europeu.
FOTO RUI OCHÔA

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Lisboa, sessão da Maçonaria, 1979. Ilega-


UMA LOJA lizada em Portugal após o golpe militar
DISCRETA de 1926, também a Maçonaria teve no
25 de abril uma porta para mostrar o
templo aos profanos. Na fotografia,
antes de uma reunião aberta a não-ma-
çons, estão (da esq. para a dir.) José
Mattoso, historiador, Rui Rocha, mais
tarde jornalista do Expresso (já falecido),
e A. H. Oliveira Marques, historiador
(também já falecido), autor da obra “A
Maçonaria Portuguesa e o Estado Novo”.
Ao fundo vê-se o retrato de Magalhães
Lima, grão-mestre entre 1907 e 1928, o
período de maior apogeu da associação
em Portugal. No final da década de 70, a
Maçonaria era uma associação verdadei-
ramente discreta. Hoje, vivendo rodeada
de tantos escândalos, isso só pode que-
rer dizer que por alguns o caminho não
foi traçado a régua e esquadro.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
UM EX-LÍBRIS
CHAMADO
“TOLLAN”
Em fevereiro de 1980,
numa manhã de nevoei-
ro cerrado, o porta-con-
tentores inglês “Tollan”
chocou com um carguei-
ro sueco, em frente ao
Terreiro do Paço. Embo-
ra tenham morrido
quatro tripulantes, o
“Tollan” será sempre
recordado com um
sorriso nos lábios. O
barco encalhou e ficou
com o casco virado para
cima. Assim esteve
quase quatro anos, com
tentativas de salvamen-
to infrutíferas pelo meio.
O “Tollan” tornou-se
poiso de gaivotas e
pasto de anedotas —
organizaram-se bailes
“Tollan” para solteiros
(‘encalhados’). Perfilhado
pelos alfacinhas, até deu
nome a um restaurante
(Tolan, perdendo um ‘l’).
94
Fizeram-se romarias, de
muitos pontos do país,
para ver aquela espécie
de baleia em frente ao
Cais das Colunas. No
final de 1983, com equi-
pamento vindo do es-
trangeiro, o “Tollan” foi
finalmente removido.
Uma pena: com o Cris-
to-Rei ao fundo, já fazia
parte da paisagem.
FOTO RUI OCHÔA

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ARRASTÃO
NO DESERTO
No verão de 1980, deze-
na e meia de pescadores
portugueses, do arrastão
“Rio Vouga”, esteve
sequestrada no deserto
do Sara, pela Frente
Polisario, que considera-
va proibido pescar nas
suas águas. Para não
ferir as suscetibilidades
de Marrocos, Portugal
teve de negociar discre-
tamente. Ao fim de dois
meses, os pescadores
foram libertados — e ao
darem os últimos passos
no deserto usaram as
vestes dadas pelos
captores. Já sem embar-
cação, destruída no
ataque, fazem escala em
Argel, antes da chegada
a Lisboa, a 24 de julho.
Foi o último porto antes
do regresso a casa, em
Matosinhos.
FOTO RUI OCHÔA

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DA CONSAGRAÇÃO
À MORTE
Em novembro de 1979, na zona
de Viseu, Sá Carneiro é vitoriado
por populares, na campanha
para as eleições que dariam a
maioria à AD (e fariam dele
primeiro-ministro). A 4 de dezem-
bro do ano seguinte, na reta final
para as presidenciais, o líder do
PPD está (foto de baixo) junto ao
candidato da direita, Soares
Carneiro (também ladeado por
Diogo Freitas do Amaral), numa
conferência de imprensa em
Lisboa, no Hotel Altis. Foi a últi-
ma aparição pública de Sá Carnei-
ro, que morreria poucas horas
depois, no desastre de Camarate.
O homem que levou a direita ao
poder e queria “um Governo,
uma maioria e um Presidente”
não assistiu à concretização
desse sonho.
FOTOS RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
O MISTÉRIO
DE CAMARATE
A 4 de dezembro de
1980, Sá Carneiro morre
na queda de um avião
em Camarate, junto ao
aeroporto de Lisboa. A
aeronave cai sobre uma
habitação, e os destroços
são depois pisados por
quem chega. Com Sá
Carneiro viaja Adelino
Amaro da Costa, minis-
tro da Defesa, outra
vítima mortal. Falece
também Snu Abecasis,
mulher de Sá Carneiro,
entre outros. Mais de
três décadas passadas,
com uma decisão do
tribunal a concluir pela
tese do acidente e con-
clusões de algumas das
nove comissões parla-
mentares de inquérito a
dizerem que houve
atentado, com a prescri-
ção do caso em sede
judicial e com ele a ser
recorrentemente julga-
100 do nas instâncias políti-
cas e investigado em
trabalhos jornalísticos, o
mistério continua por
resolver. E possivelmen-
te assim ficará para
sempre.
FOTO RUI OCHÔA

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Na tarde do dia de Ano Novo de 1980, o
AÇORES grupo central do arquipélago açoriano é
ARRASADO sacudido por um sismo com magnitude
7,2 na escala de Richter. Faz 71 mortos —
POR 51 na Terceira e 20 em São Jorge — e 400
UM SISMO feridos. O panorama em Angra do Heroís-
mo é desolador: 80% das casas, de traça
renascentista, ficam destruídas. Igrejas,
edifícios públicos, habitações, tudo fica
arrasado. No total, 15 mil desalojados. O
que se passou a seguir é um tributo à
tenacidade dos açorianos — e raras vezes
por cá uma tragédia de tão grande dimen-
são foi aproveitada para realizar obra
digna de nota. Os trabalhos de recupera-
ção e de reconstrução foram exemplares.
Menos de quatro anos depois do terramo-
to, a zona central de Angra do Heroísmo
foi classificada pela UNESCO como Patri-
mónio da Humanidade.
FOTOS RUI OCHÔA

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COM A CASA
ÀS COSTAS
O Mini Ima era uma
carrinha muito popular
na altura. Parte do
atrativo advinha do
preço: concebida como
viatura comercial, paga-
va por isso menos impos-
to. Como se vê na foto,
tirada no verão de 1981,
tinha uma capacidade
de carga generosa. E
muitos portugueses bem
precisavam dela, pois
quando partiam para
férias iam literalmente
com a casa às costas. O
campismo era então
para muitos a única
evasão a que a bolsa
dava direito, para recar-
regar baterias para um
ano de trabalho. Segun-
do uma sondagem do
Expresso publicada em
agosto de 81, mais de
metade dos agregados
familiares da classe
média inferior e 40% da
classe média superior 105
iriam nesse ano ter
férias por um valor que
não excedia os 20 con-
tos (¤100) — e muitos
até fariam a festa por
bastante menos. Mas
havia quem estivesse
pior: mais de um terço
(36,7%) não saberiam o
que era férias.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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Com a morte de Sá Carneiro, Francisco Pinto


REVISÃO DA Balsemão assume a liderança do Governo da AD
CONSTITUIÇÃO — aqui na posse, a 9 de janeiro de 81, com Rama-
lho Eanes. Teve um pesado fardo: o país vivia
EM MARCHA dificuldades económicas, avolumavam-se proble-
mas sociais, a clivagem Balsemão-Eanes foi
crescendo, e a tudo somaram-se divergências no
seio da coligação, que levaram à queda do Execu-
tivo. Balsemão chefiaria um segundo Governo,
em cujo mandato negociou com o PS a revisão
constitucional de 1982. Tratou-se da primeira
alteração ao texto fundamental de 1976, que veio
reduzir a carga ideológica da Constituição.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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Linha do Oeste, 1981. Quando os hipermercados eram coisa por descobrir, e mesmo os supermer-
CASA cados se contavam pelos dedos das mãos, e unicamente nas cidades, os mercados eram o que
AVIADA mais se parecia com um santuário de consumo (a mercearia era a igreja que se frequentava
diariamente). Neles se vendiam sobretudo bens alimentares, além de produtos correntes para o
lar. A oferta ficava-se por aí, e os bolsos dos portugueses pouco mais conseguiam comprar. A
norte de Lisboa, na Linha do Oeste, situa-se a Malveira (onde muito provavelmente esta fotografia
foi tirada). O ambiente espelha fielmente o que era a azáfama nas manhãs de quinta-feira (dia do
mercado) naquela vila. Um vaivém de gente que lá ia todas as semanas aviar a casa.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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No verão de 1981, Portugal descobre uma celebridade. Jorge


O FURACÃO Veríssimo Monteiro, nome de guerra Capitão Roby, começa
ROBY em julho desse ano a ser julgado no tribunal da Boa Hora, em
Lisboa. Um burlão de carteiras e de corações femininos, como
foi apresentado. Num dos cálculos, estima-se que o cavalheiro
tenha enganado 400 damas. O modus operandi era infalível:
Roby colocava anúncios nos jornais, oferecendo a sua amiza-
de. Quem podia resistir — num enredo em que hoje a realida-
de já se mistura com a lenda — a um “cavalheiro na casa dos
40 anos, alto e bem apessoado, senhor de muito saber e dono
de fortuna própria”? O julgamento foi um acontecimento
mediático e social. Aos claustros do antigo convento acorre-
ram muitas mulheres, umas lesadas, outras curiosas.
FOTO RUI OCHÔA

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REVISTA 6/ABR/12
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O encerramento da leitaria Garrett, ao Chia-
OS VENCIDOS do, a 30 de julho de 1981, foi objeto de uma
DA BICA reportagem no Expresso na semana seguinte.
< “Os Vencidos da Bica”, assim se chamava a
peça, de Leonor Pinhão, ilustrada com uma

O ANTEPASSADO fotografia de Vitorino. Freguês da Garrett, o


cantor pegou no acordeão e animou o resto
DA GERTRUDE da tarde. Foi um cantar e bailar com muitos
dos clientes habituais. Por lá passaram Eunice
Sinaleiro em Lisboa, 1981. Já encheram as ruas da cidade, Muñoz e António Victorino d’Almeida, entre
que em 1968 contava com três centenas de polícias-sinalei- outros. No requiem festivo por aquele espaço
ros. Mas em 1981 eram apenas 17, e oito deles atingiriam o art nouveau escreveu-se que “os cafés também
limite de idade no final desse ano. Num trabalho então se abatem em nome da lei do lucro máximo”.
publicado no Expresso, a profissão é considerada uma Vitorino recorda agora que “nos anos seguin-
“espécie em extinção”. Um dos que resistiam era o sinalei- tes, no aniversário do fim da Garrett”, se
ro Inácio, na imagem, cujas coreografias exuberantes em repetia o folguedo e “havia investidas por
cima da peanha lhe valeram a alcunha de “polícia-bailari- outras tascas do Bairro Alto”. Assim se (con)vi-
no”. A abertura do ofício às mulheres era uma hipótese via em Lisboa, antes da chegada dos centros
para combater a crise de vocação, mas tal desagradava a comerciais e dos franchisings.
alguns. Como diz o sinaleiro Manuel: “Acho que não dá FOTO RUI OCHÔA
certo. Vem o vento e levanta-lhes as saias; e as mulheres
não têm os mesmos reflexos dos homens. Nós já ouvimos
coisas desagradáveis; então se for uma mulher...” A ‘vin-
gança’ sobre os sinaleiros de Lisboa, trocados pelos semá-
foros, fez-se com toque feminino. Ou não se chamasse
Gertrude o sistema de controlo centralizado de gestão de
tráfego, existente desde há duas décadas.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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REVISTA 6/ABR/12
JOÃO PAULO II,
O PAPA
DE FÁTIMA
A 12 de maio de 1982,
João Paulo II inicia uma
visita a Portugal, para
agradecer à Virgem ter
sobrevivido ao ataque
que sofrera em Roma —
um ano antes, a 13 de
117
maio. O Papa atribuiu o
seu salvamento a um
“milagre de Fátima”.
João Paulo II teve trans-
bordantes banhos de
multidão, como mostra
esta fotografia, tirada
junto à Sé de Lisboa
Algo só possível pela
devoção dos portugue-
ses e, também, por
regras de segurança
mais permissivas do que
atualmente. Logo à
chegada, entre o aero-
porto e o centro, teve
uma receção apoteótica
(ver página seguinte).
Em quatro dias, o Sumo
Pontífice percorreu o
país, de Braga a Coim-
bra, de Lisboa a Vila
Viçosa — além do ponto
alto, no santuário maria-
no. Foi a primeira visita
de um Papa a Portugal
em democracia.
FOTO RUI OCHÔA

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REVISTA 6/ABR/12
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ATENTADO Por um instante, na noite da procissão das velas, pairou o espec-


tro do atentado do ano anterior, na Praça de São Pedro, que
FRUSTRADO deixou Karol Wojtyla às portas da morte. Em Fátima, um padre
integrista espanhol, Juan Khron, de 32 anos, usando vestes sacer-
dotais, conseguiu aproximar-se do Papa e tentou atacá-lo, usando
uma baioneta com mais de 30 centímetros. O atentado gorou-se
devido à pronta resposta dos seguranças portugueses.
FOTO RAUL NASCIMENTO/ARQUIVO EXPRESSO

REVISTA 6/ABR/12
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A 12 de fevereiro de 1982, o país conhece a


A PRIMEIRA primeira greve geral, convocada pela CGTP,
GREVE GERAL com a oposição declarada da UGT. É o primei-
ro grande embate após o 25 de abril entre um
governo de direita e o movimento sindical. A
11 de maio, a Intersindical realizaria nova
greve geral, “sempre contra a política de
direita, mas também em protesto contra a
provocação montada pelo governo AD e
pelos amarelos da UGT” — assim a descreve-
rá mais tarde o PCP. Da primeira paralisação
ficou um hábito, que se mantém até hoje — as
avaliações díspares dos resultados. Atente-se
na manchete do “Diário de Lisboa”, que dá as
“duas versões”: “A greve geral foi um êxito”,
clama a CGTP; “Foi uma derrota para... o
PCP”, garante o governo. A Intersindical
deixou então o aviso: “Faremos as greves
gerais que forem necessárias para defender a
democracia e os interesses do país.”
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
124

Em 1982 realizou-se a segunda edição do Festival de Vilar


A LIBERDADE de Mouros. Foi a primeira em liberdade. O cartaz não de-
E AS NOVAS fraudou o da primeira edição, em 1971 (com Elton John).
Agora foi a vez dos U2, ainda a darem os primeiros passos,
LIBERTAÇÕES num tiro certeiro da organização. Mas quem se banhou nas
águas do Coura em 82 — como o grupo desta fotografia —
teve um programa eclético: Carlos Paredes, Heróis do Mar
ou The Stranglers, entre outros. Se em 71 os jovens portu-
gueses viveram no Minho uma espécie de Woodstock, em
82 já tinham condições para discutir novos temas. Um deles
era a sexualidade. Num trabalho então publicado na Revista
do Expresso (ilustrado com a imagem desta página) abor-
dam-se abertamente temas como o sexo antes do casamen-
to, o uso de contracetivos, a masturbação, a primeira rela-
ção sexual... E fala-se da afirmação de uma nova moral. “No
25 de abril eles e elas tinham 20 anos e todos os sonhos e
paixões eram possíveis.”
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
126

O ÚLTIMO DIA
DO CONSELHO
DA REVOLUÇÃO
A 29 de outubro de 1982
reúne-se pela derradeira vez
o Conselho da Revolução
(CR), órgão composto por
militares, criado na voragem
do PREC. O CR acabou pela
mão de Balsemão, através
da revisão constitucional de
1982, negociada com o PS. O
CR tinha o enorme poder de
condicionar a atividade
legislativa, pois detinha
competências análogas às
do Tribunal Constitucional
(surgido em seu lugar, de
resto). Com a extinção do Aos poucos, a política perdeu força na praça pública e ganhou nitidez no pequeno
CR, todos os órgãos do A POLÍTICA ecrã. Por um lado, os diferentes governos sempre controlaram o que passava na
Estado ficam à mercê do
voto dos cidadãos.
ATRAVÉS TV (na altura, sinónimo de RTP). Mas, apesar disso, havia um espaço em que todos
estavam em pé de igualdade (ficara célebre o frente a frente maratona entre Soa-
FOTO RUI OCHÔA DA TELEVISÃO res e Cunhal, no Verão Quente): quando enfrentavam as câmaras e os pormenores
passaram a contar. Aqui, Soares, na oposição, prepara-se para uma entrevista na
RTP, a 10 de outubro de 1982.
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
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REVISTA 6/ABR/12
DEITADO
NO CHÃO
A Reforma Agrária foi o
laboratório de vanguar-
da das experiências
cultivadas pela Revolu-
ção. Em 1982, desse
sonho coletivista só
quase se colhem as
silvas e as ervas que
cresceram por entre
alfaias e caixotes abando-
nados, como se vê nesta
paisagem alentejana.
Todo um mundo de
aspirações e de referên-
cias — elevado a condi-
ção superior em “Levan-
tado do Chão”, de Sara-
mago — ficou perdido
no horizonte. Em Portu-
gal, a democracia conso-
lidada enterrou a Refor-
ma Agrária. Mais tarde,
a CEE, a Política Agríco-
la Comum e estáveis
governos constitucionais
encarregaram-se de
destruir a própria agri-
cultura (e pescas). Daí o
défice alimentar do país, 129
que foi engordando. Mas
com novos matizes, a
questão fundiária conti-
nua hoje por resolver.
Como solução, fala-se da
criação de um banco de
terras. Se a Reforma
Agrária tinha como
lema “a terra a quem a
trabalha”, agora, com
uma população envelhe-
cida nos campos e a
polarização nos meios
urbanos, fica uma dúvi-
da no ouvido: “A terra,
ainda há quem a traba-
lhe?”
FOTO RUI OCHÔA

REVISTA 6/ABR/12
opinião

POR RUI RAMOS


Estamos condenados a olhar para o passado a partir do presente.
Não temos outro ponto de vista. Por isso, o passado também muda, no
sentido em que muda a maneira como o lembramos e o examinamos

UM SUCESSO
E TRÊS FRACASSOS

A DÉCADA DE 1973 A 1982 é a da democrati- partidos e eleições livres. Mas em 1982, nas
130 zação em Portugal. O novo regime foi, anos vésperas do segundo acordo com o FMI em
depois, declarado um sucesso. Em 1982, menos de cinco anos, ninguém parecia com
porém, esse sucesso ainda não fizera esque- disposição para autocongratulações.
cer os fracassos da época: o fim do ultra-
mar, que até 1974 justificara treze anos de O FRACASSO DO ESTADO NOVO (1973-1974)
guerra em África; a falência do socialismo, O primeiro fracasso é o fracasso que provo-
que em 1975 animara o PREC; e a limitação cou o advento do atual regime. Em 1973, o
do reformismo, na versão de confronto da país e o mundo mudavam. Mas a ditadura
Aliança Democrática de 1979. No resto do portuguesa, tendo comemorado os 40 anos
Ocidente, a década não foi mais caridosa do seu Estado Novo, só admitia mudar ‘na
para esperanças e expectativas. A partir de continuidade’. Contra tudo e contra todos, os
1973, a inflação e a quebra das taxas de sucessores de Salazar continuavam a conce-
crescimento económico destruíram as ber Portugal a partir do espaço de soberania
ilusões keynesianas e lançaram a primeira intercontinental definido no fim do século
ronda do debate sobre a crise do “Esta- XIX. Falavam de “democracia social”, apenas
do-providência” — precisamente quando para melhor negar a “democracia política” (a
Portugal procurava construir o seu. O Oci- primeira manchete do Expresso, a 6 de
dente viveu os “anos de chumbo”. Entre o janeiro de 1973, lembrava que “63% dos portu-
caso Watergate e a queda do Vietname do gueses nunca votaram”). Havia aqui algo de
Sul, os EUA chegaram ao ponto mais baixo contraditório. O Estado Novo pretendia ser
de confiança e de prestígio desde a II Guer- diferente da Europa ocidental — autoritário,
ra Mundial. A integração europeia, congela- corporativo, ultramarino —, mas integrara
da, deu lugar à ‘euroesclerose’ — de que os o país em todas as organizações ocidentais:
portugueses, à espera de entrar na CEE NATO, OCDE, EFTA, e até, em 1972, a CEE,
durante dez anos, sofreram diretamente. através de uma associação comercial.
Em dezembro de 1979, após anos de détente, De facto, os salazaristas tinham sabido até
a Guerra Fria reacendeu-se com a ocupação então, apesar do lastro fascizante da década
soviética do Afeganistão. Em Portugal, de 1930, mudar com o resto da Europa.
acabara a censura e a polícia política e havia Adaptaram-se à Guerra Fria, fazendo da sua

REVISTA 6/ABR/12
131
ILUSTRAÇÃO DE HUGO PINTO

A partir de 1973, a inflação e a quebra


das taxas de crescimento económico
destruíram as ilusões keynesianas
e lançaram o debate sobre
a crise do “Estado-Providência”
REVISTA 6/ABR/12
opinião Rui Ramos

ditadura um baluarte ocidental; procura- sociedade rural começou a desaparecer eleições fraudulentas, censura à imprensa,
ram criar uma nova cultura de massas, com as migrações para as cidades e para a tortura nas cadeias e um “ultramar” defendi-
promovendo a escola, explorando o despor- Europa, as famílias mudaram com a entrada do à custa dos recrutas metropolitanos, não
to e investindo na rádio e na televisão; das mulheres no mercado de trabalho, o só não impedia, mas era até uma condição
fizeram até a sua ‘descolonização’, riscando catolicismo patrocinado pelo Estado divi- do “progresso”, isto é, do fim ordeiro de tudo
das leis as inferioridades e servidões com diu-se depois do Concílio Vaticano II, e a o que diziam representar. A ditadura oscila-
que liberais e republicanos haviam fulmina- hierarquia das gerações foi abalada pelo va entre os “ultras” e a “ala liberal”, proibia
do os nativos; e, sobretudo, tentaram res- desenvolvimento de uma contracultura partidos e greves, mas permitia a SEDES e
ponder às expectativas de prosperidade e juvenil. O mais claro sinal da disponibilidade tolerava direções sindicais esquerdistas. O
de promoção social que se intensificaram de comunidades inteiras para experimentar Expresso, fundado por um deputado da “ala
na Europa depois da II Guerra Mundial. Foi outra vida foi a emigração, que durante a liberal”, Francisco Pinto Balsemão, viveu de
o crescimento económico, redistribuído década de 1960 retirou do país um milhão testar as fronteiras desta ambivalência.
através do que Marcello Caetano chamou de portugueses. Os salazaristas reagiram Em 1973, já faltava convicção aos salazaris-
“Estado Social”, que acima de tudo prolon- ambiguamente a estas novidades. Por um tas para manter o jogo. O aumento das
gou a ditadura e permitiu até, em conjunto lado, reivindicavam tradições e virtudes despesas públicas e a crise do petróleo
com uma fraca pressão internacional, a heroicas, contrárias ao “espírito do tempo”, ameaçavam os equilíbrios financeiros que
guerra colonial da década de 1960. como as corporizadas pela defesa militar do tinham sido sempre uma das razões de ser
Os salazaristas estavam presos num equívo- Ultramar. Por outro, deram a entender que do regime. A guerra em África exigia opções
co fatal. Tudo à sua volta se transformava. A o seu regime sem partidos políticos, com radicais, num sentido ou noutro, de que os
governantes não pareciam capazes. No depois do golpe de 25 de abril, estavam asa do Movimento das Forças Armadas
princípio de 1974, Caetano e o Presidente interessados numa retirada imediata de (MFA), reencenar em Portugal as revoluções
Américo Tomás deixaram-se envolver em África. As esquerdas defendiam para o a que, de longe, tinha assistido na Europa
intrigas com os antigos comandantes chefes “ultramar” a única solução que podia justifi- durante as décadas anteriores: uns preferi-
de África, os generais Kaúlza de Arriaga, car essa retirada: o trespasse da administra- ram imaginar uma “libertação” como a que
Spínola e Costa Gomes. Acabaram por criar ção colonial aos independentistas armados. a vitória dos aliados havia permitido na
um vazio de poder, finalmente preenchido A elite de esquerda pôde assim, debaixo da Europa ocupada em 1944-1945, assente no
por uma sublevação de majores e de capi-
tães. Nos meses seguintes, o ultramar foi
abandonado a novas ditaduras e a novas
guerras. Restou meio milhão de “retorna-
dos” — e Macau, por vontade da China. O ultramar foi abandonado
O FRACASSO DO “SOCIALISMO a novas ditaduras e a novas
À PORTUGUESA” (1974-1979)
Em 1974, as forças armadas do Estado
guerras. Restou meio milhão
Novo patrocinaram o domínio da metrópo-
le pelas antigas oposições de esquerda. É
de “retornados” — e Macau,
um paradoxo sem mistério. Os militares, por vontade da China
opinião Rui Ramos

estabelecimento de uma hierarquia encabe- de abril de 1975, as eleições para a Assem- continuou a fazer sombra à nova democra-
çada pelos mártires da “resistência”; outros bleia Constituinte — as primeiras livres, cia, também o PREC ficou a pesar nos
optaram pelo carnaval urbano de maio de limpas e com sufrágio universal da história ombros do país, com as suas nacionaliza-
1968 em Paris, com os cabelos compridos e portuguesa — mobilizaram a população em ções, a reforma agrária, os limites à iniciati-
as lendárias “calças à boca de sino”. Ao massa e revelaram o pluralismo do país. A va privada e o Conselho da Revolução, tudo
princípio, parecia não haver, nem em Portu- partir daí, o afã do PCP para ocupar o fixado na constituição votada pelos deputa-
gal nem no Ocidente, meios para poupar o Estado provocou um repúdio maciço, dos constituintes em 1976. Por isso, Álvaro
país a estes ensaios de “história viva”. No sobretudo quando a igreja católica, afronta- Cunhal sempre se recusou a admitir derro-
rescaldo do confronto de 11 de março de da em Lisboa, resolveu mostrar a sua força tas, mesmo depois da eliminação da “es-
1975, em que a esquerda do MFA se impôs, no norte. Mas além da igreja, mesmo à querda militar” a 25 de novembro de 1975:
Marcelo Rebelo de Sousa admitia no Expres- esquerda havia quem, desejando a revolu- Portugal ainda não era, como ele não
so, um dos poucos jornais de Lisboa que não ção, não a desejasse formatada por Mosco- queria nunca que fosse, um país como os
seriam estatizados: “O 11 de março poderá vo. Foi o caso, para danação do PCP, do outros países ocidentais.
ser — tudo o indica — até mais importante chefe do Copcon em Lisboa, o major Otelo Foi Mário Soares quem, a partir de 1976,
do que o próprio 25 de abril”. Saraiva de Carvalho. tentou governar este “socialismo à portu-
Tal como o Estado Novo, também o Proces- Todos se preocuparam em evitar a “guerra guesa”. Correu mal. Recorrentes desequilí-
so Revolucionário Em Curso (PREC) quis civil”. Os EUA, em vez de procurarem um brios financeiros obrigaram desde cedo à
ser ‘original’. A ideia era descobrir um Pinochet, patrocinaram o líder da esquerda revisões das leis e sobretudo à desvaloriza-
regime diferente da Europa ocidental, mas democrática, Mário Soares, aliado à igreja e ção do escudo, como a negociada com o
também da Europa soviética: um “socialis- ao “grupo dos nove” do Conselho da Revolu- FMI em 1978. Foram anos de inflação e de
mo à portuguesa”, que combinasse a estati- ção. O lendário debate televisivo entre empobrecimento, sem o escape da emigra-
zação da economia e o aumento do consu- Soares e Álvaro Cunhal, em novembro de ção. Tudo o que já era comum noutros
mo, o “poder popular” e o pluralismo parti- 1975, definiu as incompatibilidades, mas países europeus demorou então a chegar a
134 dário, o “anti-imperialismo” e a filiação na também a disponibilidade para contactar e Portugal, como a televisão a cores. A autoes-
NATO. Era a quadratura do círculo, impos- negociar. Apesar do furor das assembleias trada do norte continuou em Vila Franca,
ta pela transformação de uma sociedade e das manifestações, tudo se resolveu por onde ficara em 1961. As “despesas sociais”,
onde, de facto, as revoluções à soviética ou meio de rápidos golpes de quartel e discre- depois da expansão, marcelista e revolucio-
à chinesa já só eram plausíveis como refe- tos acordos de bastidores. Significativamen- nária, cresceram menos do que as receitas
rência retórica. Nos primeiros tempos, o te, a rutura revolucionária no Portugal públicas. As desvalorizações e as restrições
recurso às reservas de divisas e de ouro de metropolitano fez muito menos vítimas do às transferências de capitais limitavam
Salazar possibilitou consumos e criou que a transição negociada em Espanha, viagens e acesso a produtos estrangeiros.
expectativas. 1974 foi o ano em que, até onde a ETA e os GRAPO mataram dezenas Havia contrabando de quase tudo, desde
então, mais automóveis foram vendidos de pessoas. Os portugueses preferiram tabaco a divisas. A austeridade, entretanto,
em Portugal. Nunca, como em 1975, houve morrer na estrada: 1975 registou o máximo acabou por criar a atmosfera ácida em que
tantos casamentos (103.125). Mas no verão de mortalidade rodoviária (2676 vítimas). se desfizeram os laços entre o Presidente
de 1975, a fonte salazarista da abundância No fundo, em Portugal, também houve da República, o general Eanes, e Soares,
já se esgotara e o primeiro-ministro, coro- uma transição negociada. Mas enquanto finalmente demitido em agosto de 1978.
nel Vasco Gonçalves, começou a mentali- em Espanha serviu para sair do franquis- A vida política, condicionada pelos compro-
zar a “classe operária” para o regime soviéti- mo, em Portugal serviu para sair do PREC. missos da transição, reduziu-se ao comentá-
co das prateleiras vazias. Entretanto, em 25 E tal como em Espanha o franquismo rio esotérico dos discursos do Presidente e

Foi Mário Soares quem, a partir


de 1976, tentou governar este
“socialismo à portuguesa”.
Correu mal. Foram anos
de inflação e de empobrecimento
REVISTA 6/ABR/12
opinião Rui Ramos

à especulação sobre os “cenários” decorren- em português (1977). Em vez de “apropria- tou-o para satisfazer a “classe média”,
tes das manobras partidárias. Tudo se ção coletiva”, “planeamento” e “classe valorizando o escudo e proporcionando o
pessoalizou. Os ‘ismos’ já não eram o socia- operária”, começava-se a falar de “iniciati- primeiro aumento do poder de compra em
lismo ou o capitalismo, mas o “eanismo”, o va privada”, “sociedade civil” e “classe Portugal desde 1975. O Governo relançou
“soarismo” ou o “sá carneirismo”. A maior média”. ainda o processo de adesão à CEE, iniciado
parte do público preferiu seguir as teleno- A Aliança Democrática — constituída em em 1977, e rompeu com os fumos neutralis-
velas brasileiras, a novidade desta época, e 1979 por Sá Carneiro, Freitas do Amaral e tas herdados da revolução, assumindo a
voltou a interessar-se por futebol. A televi- Gonçalo Ribeiro Telles, líderes do PSD, aliança atlântica. Tudo resultou, com a
são tornou-se o grande meio de entreteni- CDS e PPM, a que se juntaram os dissiden- vitória nas eleições legislativas de outubro
mento, enquanto as audiências das salas tes do PS conhecidos como “reformadores” de 1980; e tudo falhou, com a derrota nas
de cinema e de teatro caíam a pique. De- (António Barreto, José Medeiros Ferreira e eleições presidenciais de dezembro. Sá
pois da revolução, os portugueses optavam Francisco Sousa Tavares) — tornou esse Carneiro apostara contra Eanes. Eanes
por uma existência mais doméstica e ambiente uma força política. Pela primeira tinha o mesmo projeto de sociedade da
atomizada. vez na história de Portugal, o sistema AD, como explicou na apresentação da sua
eleitoral serviu para uma oposição chegar candidatura. Mas contava com o voto do
O FRACASSO DO REFORMISMO ao governo. Mas o poder civil, limitado PCP. O PCP não tinha ilusões sobre as
(1979-1982) pelo poder militar, não bastava. Sá Carnei- ideias do general. Mas via nele o militar
O romance nacional mais vendido nestes ro ameaçou usar o referendo para rever a que, por ser militar, impediria a política
anos foi “O Que Diz Molero”, de Dinis constituição. A AD constituiu o último portuguesa de evoluir no sentido do domí-
Machado. Teve seis edições em 1977. Em grande movimento político assente numa nio dos grandes partidos, como desejavam
vez de tentar documentar a atualidade, rua militante, juvenil. Não desejava ne- o PSD e o PS. Eanes pôde, assim, surgir
como a clássica literatura “engajada”, nhum regresso ao passado, nem sequer como um fator de consenso contra a
recuperava o imaginário de uma infância era doutrinária, no sentido em que o ti- crispação da AD.
136 popular de Lisboa, cheia de referências ao nham sido os jovens politizados que cinco A morte de Sá Carneiro deixou a AD entre-
cinema clássico americano e à banda antes tentavam perceber Lenine em más gue a Francisco Pinto Balsemão. Balsemão
desenhada. A esquerda intelectual, em luto traduções: era uma juventude que, contra reafirmou os princípios do reformismo e
pela revolução, trocava a “ideologia” pela o “socialismo à portuguesa”, aspirava à pôde contar com o conflito entre Soares e
“cultura”. As desilusões e o ressentimento vida da classe média ocidental, como Eanes para negociar com o PS a revisão
favoreceram politicamente aquilo a que a prometia a sempre indefinida e adiada constitucional de 1982. Foi o momento em
esquerda chamava a “direita”, reforçada entrada na CEE. que a elite partidária da democracia, surgi-
agora por vagas de migrantes do PS e da O governo da AD dispôs de duas margens da sob a proteção do MFA em 1974, final-
extrema-esquerda. O ambiente era propí- de manobra. Uma política, outra financei- mente dispensou a tutela militar revolucio-
cio. Começava, num Ocidente atormenta- ra. A primeira derivava das questões de nária e subordinou as forças armadas ao
do pela inflação, o tempo de Thatcher e princípio e das desconfianças pessoais que poder político. Terminava a situação revo-
pouco faltava para o de Reagan. Marx separavam Mário Soares, quer do PCP lucionária. Mas a AD, tal como o “soaris-
passou de moda. A URSS evocava o Gulag quer do Presidente da República. A AD mo” em 1978, não sobreviveu à crise finan-
e, mais tarde, a repressão militar dos nunca teria, assim, de se haver com uma ceira derivada do novo choque do petróleo
sindicatos polacos (dezembro de 1981). “O oposição unida. A margem de manobra e das larguezas eleitorais de 1980. O ano
Caminho da Servidão” de Hayek, Nobel da financeira vinha do reequilíbrio criado à de 1982 acabou com a demissão de Balse-
Economia em 1974, aparecia finalmente sombra do FMI desde 1978. A AD aprovei- mão e a perspetiva de novas eleições. A

No início da década de 80,


a força da democracia no sul
da Europa já não estava ao
alcance de generais conspiradores
nem de guerrilheiros urbanos
REVISTA 6/ABR/12
AD conseguira a revisão da constituição portuguesa reconhecera-se a si própria uma vocação ocidental, tendo como refe-
política e tornara respeitável a linguagem como plural e tornara-se, depois de duas rências a NATO e a CEE. Pela primeira vez
do mercado e da sociedade civil. Mas a décadas de transformações, demasiado em cem anos, havia em Portugal um
reforma através do confronto não pudera complexa. Já não podia ser descrita, como regime que não enfrentava oposições
chegar mais longe. A constituição económi- em 1950, a partir do contraste entre uma revolucionárias. As FP-25 de abril, a partir
ca mantinha-se. E o que se conseguira, minoria de ricos e uma maioria de pobres. de 1980, nunca conseguiram subir acima
conseguira-se através de acordo, não de Havia muito mais gente nas categorias de um caso minoritário de criminalidade
confronto. O Bloco Central PS-PSD, a intermédias ou a aspirar a entrar nelas. violenta. Ao lado, em Espanha, a 23 de
partir de 1983, equilibrou as contas, mas Pouca gente estava disponível para pagar fevereiro de 1981, um golpe militar falhado
poupou-se às chamadas “reformas estrutu- o preço da ‘perfeição’ e do ‘ideal’, fosse esse dava a medida da força da democracia no
rais”. Se o “socialismo” ficou na gaveta, o preço uma guerra em África, uma revolu- sul da Europa, que já não estava ao alcan-
“reformismo” também. Só em 1989, nas ção na metrópole ou uma reforma sem ce, nem de generais conspiradores nem de
vésperas da queda do bloco soviético, a consenso. Preferia o compromisso, aceita- guerrilheiros urbanos. Mas em 1982 ainda
constituição económica seria revista. Mais va a demora, geria a insatisfação. Os gran- estava muita coisa no ar. Cinco anos de-
uma vez, dentro dos limites de um acordo des projetos contra a corrente estavam pois do pedido de adesão à CEE (1977), os
entre o PS e o PSD. condenados ao fracasso. Mas da sobreposi- GNR, um dos grupos de rock que substituí-
A revolução parecia ter servido para vaci- ção desses fracassos resultou aquilo a que ram na rádio o canto de intervenção,
nar os portugueses contra todas as revolu- se chamou democracia: um sistema políti- cantavam “Portugal na CEE”, com o refrão
ções — e mesmo contra todas as reformas co fundado na vontade eleitoral, na legali- “quanto mais se fala, menos se vê”. Ainda
que procedessem por rutura. A sociedade dade, na aceitação do pluralismo e com era assim. R
em manutenção

A GRANDE EPIDEMIA
DO CAVALO
Alguém sabe o dia em que mulheres portuguesas caíram no chão. Ou sapatos não levassem meias-solas ou a
a heroína chegou a Portugal? a gillettização dos buços tipo varetas de camisola de lã fosse colocada de lado ao
arame. Era criança na altura. Mas como fim de ser usada duas vezes.
muitas das crianças de então era politiza- Um dia, ainda na década de 70, come-
HÁ ACONTECIMENTOS CUJO SURGIMENTO é da por osmose e sabia quem era o Presi- çou-se a ouvir que fulano ‘andava na
destituído de data. É unânime que aterra- dente Spínola, o ‘Rolha’, qual usava uma droga’. O mais bizarro, visto de agora, é
ram algures na década mas não é possível camiseta Tebe e patilhas e ainda hoje não que ao meio do Alentejo chegara a heroí-
dizer precisamente o dia ou mês. Ainda sei responder à questão: “O 11 de março foi na. De Londres a Cascais e de Cascais a ali
mais na década de 70 portuguesa que está um golpe ou um golpe e um contragolpe?” tinha sido o pulinho feito de um voo de
cheia de efemérides e siglas e já é difícil E acho que se ouvir a música ‘uma gaivota avião e uma viagem de Alfa Romeu.
colocar mais eventos numa linha tempo- voava… voava’ esta vai acionar-me um Aquela frase ouvida pela primeira vez nos
ral: desde a estreia do "Último Tango em qualquer mecanismo assassino em que meus ouvidos de miúdo — ‘andar na
Paris" e das piadas com manteiga a um irei tentar eliminar alguém do ligado ao droga’ — devia ter uma placa com data.
levantamento dos SUV, a lançamentos de Movimento Reacionário do 28 de setem- Era o início da Grande Epidemia do Cava-
LP de rock sinfónico com guitarras de dois bro. Digam lá que isto não é sincretismo! lo, que durante duas décadas dizimou
braços, à independência de São Tomé, Ser puto durante o 25 de abril, PREC e famílias e hoje parece esquecida, chegou
138 lançamento de singles de Bowie ou do subsequente normalização democrática a ter 150 mil doentes nos anos 90 e dei-
barulho que fez quando os sutiãs das teve muito de gestação inconsistente, de xou uma cor baça de morte nos que
uma culpa incutida pela geração anterior. escaparam. A heroína matou, desfez e
Sim! Sabia lá a sorte que tinha. Sim, por- corroeu como um vírus alien. Só um
///LUÍS que ser criança em liberdade é que era! bicho ET seria capaz de quebrar laços
///PEDRO Será que tinha noção disso? Não, claro entre mãe e filho depois de rebentar
///NUNES que não. As crianças do pós-25 de abril fortunas transformando adolescentes
eram umas ingratas fizessem o que fizes- promissores em farrapos moribundos.
sem nem que fosse apenas ir à escola e E foi algures nos finais dos anos 70 que
jogar ao berlinde como eles tinham feito. tudo começou. A ironia — é sempre possí-
Os tipos com mais 10 e 15 anos continua- vel encontrar ironia até na morte lenta em
ram pela vida a massacrar com esta con- pó — é que a heroína chegou pelas mãos
versa. Quem não ‘viveu’ o 25 de abril não de delfins de famílias ricas. Nos bolsos de
sabe nada. Nada. Não são os que foram à herdeiros de fortunas que tinham escapa-
guerra. São os que quase foram ao Maio do à voracidade do PREC. Em pouco tem-
de 68 e estiverem em 74 (mas Brel é po o esganar do vício iria atirá-los para
sempre Brel... e sous le pavés sabem o que uma miséria material e humana que ne-
está? Não? Googlem que descobrem...) nhum PREC ousou provocar, pois a vingan-
Ou seja ter cinco anos em 1974 fez com ça dos revolucionários foi bem mais doce
que tenha aturado muito chato na vida. que as canalhices dos dealers.
Um sarro! Isto é muita memória de aturar ‘Andar na droga’ não era com a liamba
bêbado. dos retornados ou o haxe que depois
Visto agora éramos todos pobres. Até os também apareceu. Foi um camartelo
ricos eram pobres. Tomávamos banho implacável que arrasava uma família aqui.
uma vez por semana — era o standard. A Outra ali. Outra acolá. Esmagava o filho à
roupa durava. Tinha que durar. Havia condição de semicadáver sem-abrigo e
muito cheiro a suor e a chulé. A caspa era matava os pais por dentro. Em 20 anos
banal. Era mesmo assim. Não se imagina- nenhuma família em Portugal terá ficado
va que podia existir um mundo onde os incólume. R

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Tágide, de onde a então Emissora


Nacional transmitia episodicamen-
te música ao vivo, recordando-se,
entre outros internacionais, atua-
ções do “rei do bolero”, Antonio
Machín, e de Charles Aznavour
enquanto jovem. Com mais certe-
za de datação, em 1973, cinco
distintos profissionais de hotelaria
e restauração resolveram tomar o
estabelecimento de trepasse e,
com o apoio indispensável do
sexto sócio, o financeiro Jorge de
Brito, transformá-lo num restau-
rante de luxo. Aqui está a coinci-
dência desta conceção com o
efetivo nascimento do Expresso.
No caso restaurativo, as obras
demoraram dois anos, pelo que a
inauguração só aconteceu em 16
de junho de 1975 (quando o jornal
já estava próspero e em pleno
combate contra o PREC). Era
agora interessante dar exemplos
do preçário da época, mas mais
140 uma vez se sente a inexistência
do arquivo da casa. Em 1979, Luís
de Sttau Monteiro (“Manuel Pedro-
sa”) considera-o um dos dois
melhores restaurantes de Lisboa
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

(sem dizer se o outro era o Aviz


ou o Tavares). Saibam os adorado-
res do guia da marca de pneus
que em 1981 lhe foi atribuída uma
estrela miquelina. O que importa
é que por mais de duas décadas o
Tágide seria um dos cimeiros e
mais bonitos restaurantes da
///À MESA capital.
Depois de alguns anos de encerra-
mento, o Tágide renasceu em

TÁGICO E EXPRESSIVO setembro de 2007, pela mão de


Manuel de Brito e sua mulher
Susana. Dei aqui público testemu-
nho regozijante por esse regresso
POR JOSÉ QUITÉRIO cauteloso e tenteador. Agora
regressei eu e deparei-me com
NÃO NASCEU PROPRIAMENTE no ano expressiano, ram a mudar-se para Madrid, onde, o retorno do restaurante ao
mas foi concebido (igualmente sem pecado) na em 1943, criou um excelente restau- salão do piso superior, maravi-
mesma altura. A história vem lá detrás. Sabe-se rante com o seu nome, ainda atuante. lha de sobriedade e elegância
(embora se desconheçam datas de princípio e fim) Nas décadas de 1950 e 1960, o que lá refinadas, pontuadas pelos seis
que naquele local funcionou o restaurante Hor- existiu foi uma luxuosa boîte (como se painéis de azulejos do século
cher, fundado pelo alemão Otto Horcher, o mesmo dizia ao tempo, nada de confundir VXIII representando Hércules,
que as vicissitudes da II Guerra Mundial obriga- com dancing e cabaré), já chamada Júpiter, Marte, Plutão, Saturno e

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Vulcano, a fonte de pedra morena de despelado a marcar boa presença. de robalo no forno com legumes, puré e vina-
1677, os lustres de cristal setecentistas “Amêijoas com feijão branco, tomate greta de tomate” (¤16); “bacalhau com presun-
e aquela prodigiosa vista sobre um seco e coentros” (¤11,50) com elas to sobre espargos e puré de grão” (¤16,50);
bom naco da cidade pombalina em cristãs, em combinação (a que o “caldeirada de peixe do Atlântico” (do menu de
ascensão até ao castelo servido seu criador Miguel Castro e terça-feira); “cachaço de porco preto, migas de
com guarnição de Tejo. Silva nos habituou a gostar) grelos” (do menu de sábado); “naco de vitela
A lista de comidas é objeti- TÁGIDE MIA bem executada. No “escalo- com Azeitão, batata gratinada e legumes”
A ACADE
vamente reduzida: 2 LARGO D DE BELAS pe de foie-gras salteado, (¤17,50). Tudo a revelar bom trabalho culinário,
AL
Sopas, 5 Entradas, 5 NACION , 18/20 puré de castanhas e sem dissonâncias (chefe Luís Santos).
ARTES
Peixes, 3 Carnes, 2 Vegeta- LISBOA salada com laranja” Sobremesas regulares. Carta de vinhos a que a
404 010
rianos e 6 Sobremesas. TEL. 213 GO S (¤12,50) haverá mais categoria da casa pede aumento. Serviço cabal.
OMIN
Cresce ao tomar-se em (FECHA D NDAS) felizes companhias, mas o É reconfortante ver o Tágide em rota ascensio-
E SEG U
consideração o Menu do essencial, o foie, brilhou. nal, mantendo preços acessíveis. Voltando ao
Dia, de terça-feira a sábado, Muito bom o conjunto “carpac- símile inicial, a antiguidade, aqui como no
com entrada e prato principal cio de bacalhau, piquillo de grão e jornal (este), justifica-se pela qualidade, expres-
diariamente renovados. folhas verdes” (¤14). Correto (e com o samente virada para o futuro. R
Muito a voo de pássara, só para dar fundamental aneto) e de original e
ideia do teor, nomeie-se o provado. positiva assessoria o “salmão marina-
“Mil-folhas de alheira com tomate do com lentilhas tépidas” (do menu Os leitores podem comentar
confitado, grelos e ovo de codorniz” de sábado). Só é possível a mera e votar este e outros restaurantes
em www.escape.pt
(¤11,50), sem folhas, todavia o enchido menção dos pratos principais: “lombo
logout
///VINHOS

SUGESTÕES
DA SEMANA
*FERREIRINHA
POR RESERVA ESPECIAL
JOÃO PAULO TINTO 1980
MARTINS Região: Douro Castas: Touriga
Franca, Tinta Roriz, Tinta
Barroca Produtor: A. A. Ferrei-
ra Enologia: Fernando Nicolau
de Almeida/José Maria Soares
Franco Preço: ¤80. Este é um
autêntico hino ao Douro que
se mantém em grande forma.
Por ele, os anos não passam.
Deveria ter sido Barca Velha
Dica: Decantação obrigatória,

ERA ASSIM porque apresenta muito


depósito, e copos largos para
mostrar tudo o que tem

NA DÉCADA
142 DE 70
AS NOTÍCIAS CHEGARAM por correio e pirueta foi total. Mas, curiosamente, ao restaurante e não se queria gastar
foram batidas numa máquina de escre- vendo o tema noutro ângulo, algo se muito, o que encontrávamos? Dois
ver HCESAR. Confirmaram o que se manteve intacto: a pisa a pé nos laga- tintos batiam toda a concorrência pela
temia: o ano de 72 ia ser muito fraco res, ainda hoje praticada sobretudo no frequência com que apareciam: Qta. do
em termos vinícolas, sobretudo nas Douro e com os mesmos bons resulta- Convento (Abel Pereira da Fonseca) e
regiões demarcadas; eram as mesmas dos de outrora; de barricas ninguém Romeira (Caves Velhas), ao lado do
desde o início do século: os Verdes, o falava, antes se usavam os tonéis, ano Periquita, Pasmados e Garrafeiras da J.
Dão, a Madeira e as microrregiões à após ano, para estagiar longamente os M. Fonseca (a única empresa de Setúbal
volta de Lisboa. O Alentejo tinha os vinhos. E era por causa desses estágios com expressão no mercado). Touriga
seus ícones de sempre, o Mouchão, a prolongados que se bebiam, e se apre- Nacional? Isso será uma marca de
Qta. do Carmo, a Casa José de Sousa, o ciavam como valiosos, os vinhos ve- bolachas? Maria Gomes? É a nova
Tapada do Chaves e, depois, as adegas lhos. Na década de 70 chegaram ao apresentadora da TV? Pois é, de
cooperativas. Do Douro chegavam mercado os fantásticos tintos velhos de castas ninguém falava, ninguém
poucas notícias, além do vinho do Francisco Ribeiro, de 62 e 66, as Reser- conhecia, vinhos varietais e castas
Porto, que, por sinal, conheceu na vas Ribalta (C. Vinhas) e os néctares das estrangeiras não existiam praticamente,
mesma década a glória (vintage de 1977) Caves São João, além, claro, dos Garra- e sobre os vinhos sabia-se pouco, não se
e a miséria (fraude na aguardente em feiras C. R. & F. de que se estava, à escrevia nada, a imprensa era omissa e
1972 e declaração suicida do vintage de época, a vender a colheita de... 1949! o interesse era reduzido. Mas, há que
1975); de resto, sobravam as velhas Não se bebiam só tintos, alguns brancos dizê-lo com frontalidade, muito se bebia
glórias — o Barca Velha, o Vinha Gran- faziam furor até na restauração — neste país, com o consumo per capita a
de, o Lello e algumas marcas da Compa- Monopólio (da empresa Constantino), aproximar-se perigosamente dos 100
nhia Velha. Gaeiras, Bucellas e os varietais (novida- litros por ano (hoje menos de 40). Os
É possível que estejamos a falar da de para a época) de Francisco Ribeiro, preços? Basta lembrar-me que paguei
pré-história vínica? É sim, senhor! Nas além dos Alvarinho Cepa Velha, pelo primeiro Barca Velha que comprei
modernas adegas não há um ponto de Deu-la-Deu (da Real Vinícola) e da (da colheita de 1966) a bonita soma de
contacto com a tecnologia de então, a Cooperativa de Monção. Quando se ia 220$00, ou seja, ¤1,20. E esta, hem? R

REVISTA 6/ABR/12
*
QTA. DO NOVAL
VINHO DO PORTO
COLHEITA 1974
Região: Douro Castas:
Várias Produtor: Qta. do
*
BLANDY’S VINHO
Noval Enologia: Luis van DA MADEIRA BUAL 1977
Zeller/Frederico van Zeller
Região: Madeira Casta: Boal
Preço: ¤160. Deste célebre
Produtor: Madeira Wine Com-
colheita, a Noval deixou (!)
pany Enologia: João Teixeira
esgotar o stock, o que
Preço: ¤195. Este vinho só foi
tornou o vinho mais raro.
engarrafado na viragem do
A data de engarrafamento
século, porque a lei obriga a
vem no rótulo Dica: Refres-
20 anos de casco. O Boal é
que-o e sirva em sala sem OS PREÇOS DOS
sempre um vinho meio doce VINHOS REFEREM-SE
fumo. Verá o perfume À GARRAFEIRA DE
Dica: Vinho de sobremesa,
delicioso que fica no ar CAMPO DE OURIQUE,
pode ser servido, fresco, após RUA TOMÁS DA
decantação. Este respira ANUNCIAÇÃO, LISBOA.
NOTA: SÃO INDICADOS
saúde e assim ficará por mais OS NOMES DOS ENÓLO-
150 anos GOS QUE, À DATA,
ERAM RESPONSÁVEIS
PELOS VINHOS
logout
Monocromático

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TUDO O QUE O ALZHEIMER


ME DEIXA RECORDAR
DOS IDOS DE 1973 A 1982
militares começaram a conspirar e, pela noite fora, o que resolveu o proble-
///COMENDADOR
quando me vieram falar da ideia de ma de não se poder comer nada em
///MARQUES
fazerem um golpe eu achei mal. E disse Lisboa depois da uma da manhã. E foi
///DE CORREIA
ao Vasco Lourenço, que tinha aprendido bom.
balística comigo: Vou agora explicar o que foi o PREC
Onde o nosso Comendador, — Um golpe? Grandes maricas! Façam (quer dizer Processo Revolucionário Em
seguindo ordens do diretor, uma revolução! Curso). Na verdade, pode resumir-se a
nos dá a sua perspetiva muito Ele achou a ideia tão boa que ainda hoje dois momentos: no primeiro, nacionaliza-
pessoal da história recente... é revolucionário. E lá foi dizer aos outros ram a banca, coisa que irritou o Mário
que uma revolução é que era. Pronto! Soares. No segundo, cercaram o Parla-
LERAM A CLARA? Leram o Sousa Tavares? Feita a revolução, houve um PREC (que mento com uma manifestação. Quando
Leram o Rui Ramos? Viram as fotogra- eu já explico o que foi), as colónias deixa- o então primeiro-ministro, que era o
fias que o Rui Ochôa selecionou? Se não ram de ser nossas e passaram a ser de almirante Pinheiro de Azevedo, me
viram nem leram, façam o favor de ler e uns amigos do senhor Amorim e uma telefonou para o telemóvel a perguntar o
de ver. Pronto! série de retornados voltou à pátria. A que fazer, eu disse-lhe:
Agora que já sabem o que se pas- estes, dei a ideia de comprarem rulotes — Manda-os, de novo, para a outra
sou, vou contar-vos o que eu me lem- para venderem cervejas e salgadinhos banda!
bro... se bem me lembro. Durante Mas, como as ligações eram muito
146 anos fui professor e a maioria dos más, porque os telemóveis ainda
meus alunos chegou longe (alguns não tinham sido inventados, ele
emigraram mesmo para a Nova gritou: “Bardamerda!”. E foi um
Zelândia), pelo que estou muito PREC!
bem posicionado para conhecer Entretanto, o meu aluno Durão
toda a história da década por den- Barroso fazia comícios contra
tro e por fora. Moscovo e Washington, denuncian-
Em primeiro lugar quero do o imperialismo e o social-impe-
dizer-vos que esta década de 1973 rialismo, mas a única coisa que
a 1982 é uma década estranha, corria verdadeiramente mal eram
porque em vez de começar em as camisas aos quadrados, as calças
1970, esteve três anos à espera à boca de sino e os sapatos com
que o Balsemão fundasse o Ex- tacões (além dos bigodes, barbas,
presso para depois, então sim, cabelos compridos por lavar e a
começar. Nesse ano, além da déca- música dos AC/DC).
da e do Expresso, começou também A normalização trouxe o “Breakfast
a crise do petróleo, que levou a in America”, dos Supertramp, o
aumentos de gasolina e à carestia. Mário Soares, o Sá Carneiro, o
Mas não foi isso que provocou o 25 Balsemão, o Mário Soares outra vez
de abril. A verdade é que era preci- e o FMI. E assim acabou a década.
ILUSTRAÇÃO DE CRISTIANO SALGADO

so aumentar as vendas do Expresso, Para o Expresso foi bom. O jornal


pelo que nasceu a ideia de fazer um foi sempre vendendo mais e trei-
golpe de Estado. Na altura, os golpes nou-se a dizer mal de toda a gente,
de Estado não eram transmitidos dizendo mal do seu diretor quando
pela televisão (como hoje acontece este passou a primeiro-ministro.
nos programas da manhã) e por Como ninguém levou a mal, disse
isso os grandes beneficiários desses mal de todos os primeiros-minis-
golpes eram, no geral, um punhado tros que se seguiram. E os que hão
de generais e os jornais. Assim, os de vir ficam já avisados. R

REVISTA 6/ABR/12

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