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Bernardo Kucinski

O Que São Multinacionais

1981
O Que São Multinacionais

Ficha Técnica

ISBN 85-11-01026-2

Editoração Digital
EccentricDuo
O Que São Multinacionais

“A necessidade de expandir constantemente os mercados para seus produtos persegue as empresas multinacionais através
de toda a superfície do globo. Elas precisam estar em toda parte, instalar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em
todas as direções. A burguesia, através da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao
consumo em cada país. Para tristeza dos conservadores, ela puxou o tapete das indústrias nacionais. Antigas industrias
nacionais foram ou estão sendo destruídas diariamente. Elas são deslocadas por industrias novas, cuja introdução se
torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, industrias que não mais usam materiais locais,
mas sim matérias-primas trazidas de lugares remotos, e cujos produtos não são consumidos apenas no país, mas em todos
os quadrantes do mundo. No lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção nacional, nós encontramos novas
necessidades, que requerem, para sua satisfação, produtos de países e climas distantes. No lugar da antiga reclusão e auto-
suficiência temos o intercâmbio em todas as direções, a interdependência universal das nações...”.

(Trecho do Manifesto Comunista, (1848), de KarI Marx, em que substituí a expressão original “capitalismo”
por “multinacional”.)

À minha irmã
Ana Rosa Kucinski
vítima do grande capital
O Que São Multinacionais

INDICE

Apresentação.......................................................................................................03
Como Nascem Multinacionais............................................................................10
Trustes, Cartéis e Zaibatsu...................................................................................18
O Paraíso das Multinacionais..............................................................................26
O Futuro das Multinacionais..............................................................................35
O Que São Multinacionais

Apresentação
Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Apresentação

Dos escombros da Segunda Guerra Mundial, em 1945, nasceu o que Em segundo lugar, por terem assumido o papel, antes desempenhado
acabaria se revelando como o mais longo período de crescimento contínuo pelo Estado, de agente principal de todo um capítulo novo na história
do capitalismo em toda a sua história. Um período de quase 30 anos que só da internacionalização da economia capitalista. Em 1971, uma comissão
seria interrompido pela recessão e pela crise do petróleo, em fins de 1973, especial das Nações Unidas analisou o papel das mulíinacionais, estimando
e no qual o valor da produção dos países capitalistas quadruplicou e o valor em 500- bilhões de dólares o valor total por elas adicionado à produção em
de suas exportações sextuplicou. um ano - o equivalente a 1/5 de toda a produção capitalista. Os 3 bilhões
Esse notável ciclo de expansão foi comandado por um conjunto definido de dólares por ano adicionados por cada uma das três maiores, superava o
de cerca de 650 grandes empresas - algumas de dimensões gigantescas - Produto Nacional Bruto de 80 países membros das Nações Unidas.
que ficaram conhecidas como empresas “multinacionais”, ou empresas Nos anos 90, o faturamento da maior delas, a General Motors, supera a
ou corporações “transnacionais”. O adjetivo “multinacional” foi cunhado casa dos US$ 120 bilhões, quatro vezes o valor das exportações brasileiras.
em 1960 por David Lilienthal, o economista norte-americano que dirigiu Vinte cinco outras multinacionais, entre as quais muitas companhias de
o projeto de desenvolvimento do Vale do Tennessee. Três anos depois, o petróleo e automobilísticas, faturam mais do que o total das exportações
adjetivo virava substantivo e ganhava fama mundial com a publicação do brasileiras. Pelo volume de seus recursos, as multinacionais tornaram se
primeiro relatório especial da revista Business Week sobre essas formidáveis mais poderosas que governos. A multinacional típica, detentora de uma
empresas apátridas que adotavam o planeta Terra como seu mercado. Mas, tecnologia de ponta num determinado campo da produção, fatura entre
a maioria delas, apesar da desenvoltura com que atravessavam fronteiras US$ 6 e US$ 20 bilhões e tem subsidiárias em 30 países. São empresas
nacionais, tinham pátria bem definida - a pátria de origem do seu capital. E como a Kodak, Sony, Pfizer, Aicoa, Coca-CoIa, Caterpiliar. Mesmo as
por isso, muitos estudiosos pre ferem chamá-las “empresas transnacionais”. menores, faturam cerca de US$ 3 bilhões por ano, com lucros da ordem de
De fato, não se tratava, em sua maioria, de empresas novas. Nem US$ 300 milhões.
era novidade o caráter multinacional de suas operações. Muitas dessas Metade das 500 maiores empresas multinacionais atuam nos campos do
companhias já eram denunciadas no começo do século por monopolizarem petróleo e seu refino, veículos, eletrônica e alimentos.
setores inteiros da economia de seus países, e pelos acordos secretos para Cortando fronteiras com capital e tecnologia, as multinacionais otimizam
dividir mercados e impor preços. Eram os “trustes” norte-americanos, os mercados, recursos naturais e políticos em escala mundial. Criaram uma
“cartéis” europeus, acusados de promotores da Primeira Guerra Mundial, nova forma de acumular lucros, uma nova “divisão internacional de
os “zaibatsu”, mentores do expansionismo japonês na Manchúria. trabalho”. Agora, não apenas os produtos dessasl empresas, mas também
Por que então uma palavra nova, para designar empresas antigas? Em as suas fábricas espalham-se pelo mundo. Sob a égide das multinacionais,
primeiro lugar, pela nova dimensão alcançada por muitas dessas empresas. o capitalismo assumiu abertamente seu caráter supranacional e criou uma

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ideologia nesse sentido; surgiram o Clube de Roma e a Comissão Trilateral, as empresas multinacionais estão transportando fatores de produção -
em que presidentes de corporações multinacionais discutem os destinos do capital, tecnologia e técnicas de gerência -, além de mercadorias. Procuram
Planeta Terra e o Mercado Comum Europeu resposta das multinacionais crescimento e lucro onde quer que haja boas chances.1
europeias ao gigantismo do mercado norte-americano e a reação americana: Por meio das multinacionais, o capitalismo superou os traumas
o bloco EUA-Canadá-México. Nasce a era dos megablocos económicos. provocados pelas sangrentas guerras mundiais travadas no seu interior
Essa é a época em que Sydney Harold Geneen o superpoderoso chefe da durante a crise dos anos 20 e 30; transferiu para a periferia a crise seguinte
International Telephone & Telegraph Corporation (ITT), a maior empresa (anos 70 e 80), a economia americana.
multinacional do mundo no ramo das comunicações, pode tomar o café Através da cultura do consumismo, seduziu as populações do Leste
da manhã em Nova Iorque, reunir-se com executivos de suas subsidiárias Europeu, contribuindo para a derrocada do Muro de Berlim - símbolo
europeias em Paris na hora do almoço, e estar de volta a Nova Iorque no : de um aparente triunfo do capitalismo sobre o comunismo, da vitória da
mesmo dia, graças ao avião supersônico Concorde fabricado, aliás, por uma concepção neoliberal, isto é: a organização social oriunda da competição
empresa binacional. Essa é a época em que os cosmonautas americanos entre os homens é superior socialização dos meios de produção. Mas, ao
desembarcaram na Lua, epopeia que simboliza o apogeu desse período, contrário do discurso neoliberal, a globalização da economia reduziu cada
a enorme capacidade de acumulação do velho capitalismo, e sua energia vez mais a competição.
e criatividade reagindo a ousadia do comunismo, que lançara o primeiro
satélite artificiai - e simboliza também o salto para fora de um planeta já No final deste milénio, já se delineiam situações em que apenas uma
integrado economicamente. ou duas empresas, como a IBM e a FUJITSU na informática, a EXXON
e a SHELL no petróleo, a BAT nos cigarros, detêm quase a metade do
O capitalismo, sob a liderança das multinacionais vive um período de mercado mundial.
glória, como diz este discurso da revista norte-americana de negócios
Business Week uma das porta-vozes da ideologia das multinacionais.
“Está nascendo uma economia global, mais produtiva e inventiva do que O avanço das multinacionais
tudo o que o mundo já viu até agora. Homens de negócio americanos e Foi tão intensa a expansão protagonizada pelas multinacionais na Europa
seus colegas de outros países industrializados estão criando essa economia no pós-guerra, logo extravasando para países periféricos em busca de
no contexto de um novo tipo de organização - a corporação multinacional. mais matéria-prima, novos mercados ou de mão-de-obra mais dócil e
Centenas dessas empresas estão atravessando as fronteiras nacionais para
produzir bens e serviços no exterior, para clientes de todo o mundo. Ao
contrário de suas predecessoras, as empresas mercantis de séculos atrás, 1. Business Week, 19/12/70.

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barata. Nessa investida, foram derrubando, uma após a outra, as alianças do movimento de Unidade Popular, aliança dos principais partidos
“populistas” de burguesias “nacionalistas” e setores populares, baseadas populares do Chile, o Comunista, o Socialista, o Radical e o Social-
na proposta do desenvolvimento relativamente autónomo com forte Democrata. A plataforma comum desses partidos era ao mesmo tempo
participação estatal. Em seu lugar surgiram regimes de força, oferecendo um incisivo diagnóstico do sistema de exploração implantado no Chile
facilidades de infra-estrutura e incentivos fiscais ao capital estrangeiro. pelas multinacionais e uma resposta a esse sistema, através da disposição de
Algumas alianças populistas foram esmagadas em meio a banhos de socializar os principais meios de produção e recursos naturais do país.
sangue. No Ira, em 1953, o governo da Frente Nacional de Muhammed Havia então mais de uma centena de grandes empresas norte-americanas
Mussadegh foi deposto por uma conspiração organizada pela Agência estabelecidas no Chile, incluindo 24 das 30 maiores multinacionais de
Central de Informações dos Estados Unidos (CIA), que havia origem norte-americana. Entre elas as grandes indústrias automobilísticas,
nacionalizado a multinacional do petróleo Anglo-Iranian Oil Company. quatro das maiores distribuidoras de petróleo, os gigantescos complexos
Na Guatemala, uma invasão de mercenários financiada pela multinacional químicos, Dupont e Dow Chemical, e a International Telephone and
das bananas United States Fruit, derrubou o governo de Jacobo Arbenz, Telegraph (ITT). Havia ainda as duas grandes mineradoras de cobre,
que havia promovido uma extensa reforma agrária e nacionalizado as terras Anaconda e Kennecott, e uma terceira, menor, Cerro, que já haviam
da United Fruit. sido forçadas a ceder formalmente 51% de suas ações ao Estado, durante
Na Indonésia, em 1965, o presidente Sukarno e| seu programa de o governo anterior de Eduardo Frei, mas permaneciam como elos
desenvolvimento NASAKOM - nacionalismo e comunismo - foram importantes na cadeia de .dominação das multinacionais. Com jazidas de
derrubados por um levante militar que procedeu à execução sistemática de alta concentração, o Chile havia se tornado o maior produtor de cobre
todos os conhecidos comunistas e seus descendentes num total estimado ‘do mundo capitalista, após os Estados Unidos. O cobre representava
em 1 milhão de vítimas. Golpes militares deram-se ao longo dos anos 60 80% das exportações do Chile, a maior parte nas mãos da Anaconda e da
e início da década seguinte no Brasil, na Grécia, no Uruguai, Argentina e Kennecott.
Egito, sob o pretexto de “defender o mundo livre contra o comunismo”. Quando Allende assumiu a presidência, o Chile tinha uma dívida externa
Mas os interesses defendidos eram quase sempre os das multinacionais de 3 bilhões de dólares, para um país de apenas 10 milhões de habitantes
norte-americanas. e 8 bilhões de dólares de Produto Interno Bruto. Durante os cinquenta
anos que precederam a eleição de Allende, empresas estrangeiras haviam
investido 1 bilhão de dólares no Chile, e repatriado 7,2 bilhões, dos quais
As multinacionais e o governo de unidade popular no Chile 4,6 bilhões pela Anaconda e Kennecott.2

Em 1970, Salvador Allende é eleito presidente do Chile, candidato A vitória da Unidade Popular no Chile abria caminho para a primeira

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Apresentação

tentativa de instalação de um regime socialista por meios pacíficos e com investimentos de companhias norte-americanas, apenas no exterior, chega
mandato de uma parcela significativa da opinião nacional expresso através a 30 bilhões de dólares. Entre 1950 e 1970, esses investimentos cresceram
do voto, atraindo as atenções de todo o mundo - e a fúria de algumas a uma taxa de 10% ao ano, enquanto as exportações dos Estados Unidos
multinacionais. expandiram-se em apenas 5% ao ano. Elas realizam lucros enormes, e
A ITT e o governo norte-americano tentaram, em primeiro lugar, drenam recursos substanciais dos países em desenvolvimento. Em apenas
impedir a posse de Allende, mobilizando todos os recursos legais e ilegais um ano, essas empresas retiraram lucros do Terceiro Mundo, representando
que julgavam necessários na época, tentativa que fracassou. transferências líquidas, a seu favor, da ordem de 1,7 bilhões de dólares, dos
quais 1,01 bilhão da América Latina, 280 milhões da África, 376 milhões
A 1º de outubro de 1971 a ITT voltou à carga, propondo a derrubada do Extremo Oriente e 74 milhões do Oriente Médio. Sua influência e
de Allende, através de um plano de 18 pontos que incluía “uma ampla seu raio de ação estão desequilibrando práticas comerciais tradicionais de
operação economica de guerra contra o Chile” a ser dirigida por um transferência de tecnologia e de recursos entre países, assim como relações
comando especial criado pela Casa Branca com a assistência da CIA. A de trabalho.
ITT se propunha a contribuir com 1 milhão de dólares, ou mais, para o
fundo de combate a Allende. “Estamos perante um confronto direto entre as grandes corporações
multinacionais e os Estados. As corporações estão interferindo nos
A campanha contra Allende durou dois anos, assumindo a forma de uma fundamentos da atividade política, nas decisões políticas, económicas
onda crescente de agitação interna, promovida pela burguesia chilena, e militares fundamentais dos Estados. As corporações são organizações
lockouts e boicotes, paralelamente a uma violenta barragem de propaganda globais que não dependem de nenhum Estado e cujas atividades não são
contra o “governo marxista do Chile” e um bloqueio económico contra as controladas e nem reportadas a nenhum parlamento ou outra instituição
exportações chilenas de cobre. representativa dos interesses coletivos. Em resumo, toda a estrutura política
Em dezembro de 1972; Salvador Allende proferiu seu famoso discurso mundial está sendo solapada. São negociantes que não têm uma pátria. O
perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, acusando as empresas lugar em que podem estar não se constitui em nenhum tipo de vínculo; a
multinacionais de agressão ao Chile: “O grande crescimento em seu única coisa que lhes interessa é onde fazer lucros...”
poder económico, sua influência política, sua capacidade de corromper, Allende foi derrubado no ano seguinte por um golpe militar desfechado
essas são as razões do alarme que deve atingir a opinião pública. O poder pelo general Pinochet, segundo o figurino do golpe brasileiro - que
dessas corporações é tão grande que atravessa todas as fronteiras. Os forneceu algum know-how aos conspiradores.

2
. Chilean Road to Socialism, Dale Johnson, 1973.

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A crise dos anos 80 Mundial, o petróleo barato substituiu o carvão como fonte energética do
moderno capitalismo das multinacionais, baseado na massificação do uso
Todo esse universo em expansão, capitaneado pelas multinacionais, do automóvel, na urbanização ilimitada, com todas as casas equipadas com
entrou em pane com a crise do seu núcleo, a economia americana, a partir inúmeros bens de consumo duráveis.
dos anos 70. Debilitada pela própria migração de seíores de sua produção
para outros países, pela perda de mercados para a indústria japonesa, pela O consumo de petróleo pela economia capitalista assumira um caráter
obsolescência de suas indústrias básicas, peia exaustão de suas reservas predatório, saltando de 8,34 milhões de barris por dia em 1948, para 44,2
minerais mais produtivas, inclusive de petróleo, o poderio americano milhões em 1972. Somente os Estados Unidos consumiam um terço desse
resumia-se cada vez mais no poder militar e na hegemonia de sua moeda, total. A resposta do governo americano à elevação do preço do petróleo
o dólar. O fato, de que todo o mundo capitalista era obrigado a pagar e foi, com o apoio de todo o centro industrializado, provocar uma profunda
receber em dólar, permitia ao governo americano financiar suas aventuras recessão, que derrubasse o seu consumo e, ao mesmo tempo, estimulasse
militares e até comprar indústrias no exterior com a emissão de dólares que os bancos depositários dos bilhões de dólares ganhos pêlos países
já não tinham lastro em ouro. Esses dólares de propriedade de terceiros produtores de petróleo, a emprestarem esse dinheiro a países periféricos
eram aplicados nos próprios Estados Unidos, em Letras do Tesouro de forma que eles fossem gastos na compra de equipamentos e materiais
americano ou na compra de propriedades ou de empresas americanas, o do centro industrializado. Os preços desses bens seriam inflacionais,
que por muito tempo encobriu no seu balanço de pagamentos o fato de os neutralizando assim a alta original do petróleo. Seguiram-se anos de crise
Estados Unidos gastarem mais do que ganhavam. crónica caracterizada por alta inflação do dólar e estagnação económica, a
estagflação. O número de desempregados no centro industrializado atingiu
Mas, a partir da Guerra do Vietnã, ficou clara a fraqueza do dólar e 20 milhões. Ao mesmo tempo, a periferia se endividava, investindo em
sua falta de lastro. O governo francês detonou uma corrida, exigindo projetos, muitos deles faraonicos, financiados pêlos empréstimos baratos.
em ouro o pagamento de suas reservas dolarizadas. Em 1972, em
meio a crises monetárias convulsivas que afetavam todo os mercados Em 1979, veio o golpe: o Banco Central americano provocou uma
financeiros, o presidente Nixon foi obrigado a desvalorizar o dólar, a anular violenta contração dos meios de pagamentos, fazendo disparar a taxa de
unilateralmente sua garantia em ouro. Com isso, reduziam-se os ganhos juros de uma média de 8% ao ano, para até 20%. Uma taxa anómala que
de todos os países produtores de matérias-primas cotadas em dólar ao arruinou muitos dos projetos industriais financiados com os empréstimos,
comprarem outras moedas ou mercadorias nelas cotadas. Em consequência, e a maioria dos países da América Latina, que haviam se endividado.
precipitou-se a decisão dos principais países produtores de petróleo de Nessa crise, foram caindo os regimes ditatoriais implantados na
elevar substancialmente o preço do barril, de menos de US$ 3,00 para fase anterior. Em Portugal, na Espanha, na Grécia, caíram devido à
cerca de US$ 7,00, depois US$ 13,00. Desde o final da Primeira Guerra contradição provocada pelo desemprego súbito de um lado, e o contato

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dos trabalhadores com o sindicalismo mais avançado da Europa Ocidental,


de outro. Na América Latina a queda nos investimentos e nos salários,
necessária para o pagamento da dívida externa, destruiu a única fonte de
legitimidade dos regimes fortes, o crescimento económico continuado. As
próprias elites que haviam promovido o endividamento viram-se obrigadas
a abrir o regime para socializar a crise.
Assim, se transferiu a crise, do centro do capitalismo para a sua periferia,
através de mecanismos financeiros oriundos da hegemonia do dólar, e
assumindo a forma de uma brutal dívida externa, que no final dos anos
80 somava mais de US$ 1 trilhão, demandando pagamentos regulares de
juros da periferia para o centro, da ordem de US$ 100 bilhões por ano.
A América Latina entrou em compasso de decadência industrial e social
acelerada. Apenas no Ira e na Nicarágua, o capitalismo perdeu o controle
da situação. Na Nicarágua, uma coluna guerrilheira tomou o poder
instalando o regime sandinista de economia mista. No Ira, uma revolução
fundamentalista derrubou o regime opressor do Xá, armado peias
multinacionais. Significativamente, a revolução iraniana, aníiocidental,
anti-multinacionais, acabou liderada pêlos setores mais conservadores do
país, o clero fundamentalista. Era a tradição, reagindo contra a violência
de’um sistema multinacional que havia destruído o tecido social e a cultura
nacional em nome do Produto Interno Bruto.

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Como Nascem Multinacionais


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Como Nascem Multinacionais

Toda multinacional é a sobrevivente vitoriosa de lutas por mercado “truste”, pois a receita de Rockefeller foi copiada por dezenas de grupos
nas quais arruinou concorrentes que depois absorveu - um processo monopolistas formados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha durante
interminável de concentração de capital e monopolização da produção. a primeira metade deste século. Como “truste” tornou-se expressão
Vejamos como nasceu a maior de todas as multinacionais, a Exxon, que pejorativa, esse tipo de gerência adotou o nome holding, em vigor
detêm 15% do mercado mundial de derivados de petróleo, através do atuaimente.
controle acionário de quase 300 empresas em 52 países.3 A história da Em 1890, o Congresso norte-americano baixou a lei antitruste (Sherman
Exxon é típica do modo de formação das multinacionais norte-americanas, Act), para impedir práticas monopolísticas como as adotadas por
que primeiro dominaram o mercado de seu próprio país, em si quase um Rockefeller. E, em 1911, o truste foi finalmente forçado a se dissolver.
continente. Esgotada essa etapa, viram-se naturalmente equipadas para o Mas o grupo Rockefeller sobreviveu em torno de algumas das 38 empresas
domínio dos mercados mundiais. nascidas da partilha, entre elas a Standard Oii de New Jersey, precursora
John Rockefeller, fundador em 1859 de uma peque na empresa da Exxon. Rockefeller já era então o homem mais rico do mundo. E para
petrolífera, descobriu já nos primórdios da era do petróleo que o controle compensar a perda do monopólio nos Estados Unidos, penetrou nos
do transporte desse combustível levava ao controle do seu mercado. O mercados da Europa, atingiu o Peru, o Congo Belga e o Oriente Médio.
risco da descoberta ou não das jazidas milionárias, esse ele deixava aos Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Rockefeller detinha 35% do
“aventureiros”. Durante 32 anos, Rockefeller manteve acordos secretos com mercado de petróleo do mundo capitalista. Além da Standard Oil de New
ferrovias, pagando tarifas menores pelo petróleo de suas refinarias. Um Jersey, a família Rockefeller possuía 16% das ações da Móbil Oil, 11% das
após outro, foi quebrando e abocanhando seus competidores. Em 1892, ações da Standard Oil de Indiana e 12% das ações da Socai (Standard Oil
Rockefeller já detinha o monopólio do petróleo em vasta área dos Estados da Califórnia), todas elas grandes empresas petrolíferas.
Unidos. Os lucros desse comércio propiciaram à família a formação do maior
O grupo Rockefeller é então reorganizado, adotando a forma de conglomerado financeiro-industrial do mundo. Um império económico
“truste”, gerência essencialmente financeira, com uma direção central que inclui o terceiro maior banco comercial do mundo (Chase
para fins de planejamento estratégico (e evasão fiscal), deixando a cada Manhattan), a empresa holding Basic Economic Corporation (IBEC),
empresa componente ampla liberdade de ação tática - traço essencial da holding de dezenas de empresas agropecuárias e de serviços e a própria
multinacional de hoje. Assim nasceu a Standard Oil, e assim nasceu o Exxon.
Em 1984, empresas do grupo Rockefeller absorveram duas outras
multinacionais petrolíferas: a Gulf Oil e a Getty Oil.
3
. Para as ações mais recentes da Exxon leia Dirty Business, de Ovid Demaris, Avon Books, NY, 1974.

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As seis irmãs do petróleo empresas, que não podiam competir num mercado onde apenas operações
muito grandes davam lucro. O preço vil, a exploração predatória, a
A Exxon pertence a uma família de seis empresas, entre as quais a Móbil massificação do consumo, foi a forma específica de domínio de mercado
Oi! e a Socai ligadas também aos Rockefelier, que detém entre si 70% do encontrada pelo truste no setor petrolífero.
mercado mundial de petróleo. Antes da absorção da Gulf pela Socai, essa
família era conhecida como “as sete irmãs do petróleo”. Reduzidas hoje a Quando veio a crise e os preços quadruplicaram em 1973, países como
seis, elas são: Exxon, British Peíroleum, Royal Dutch-ShelI, Texaco, Socai e o Brasil, que haviam atrelado suas economias ao consumo massificado
Móbil Oil. de petróleo importado foram à ruína. As multinacionais, ao contrário,
ficaram ainda mais ricas, pois seu faturamento mais que quintuplicou.
São chamadas de “irmãs” devido às relações “incestuosas” que Há muitos anos, desde 1967, as “sete irmãs”, em antecipação à crise,
mantém entre si, pois cada uma delas participa em graus variáveis, nos vinham investindo pesadamente em prospecções nas águas profundas dos
empreendimentos controlados pelas demais. Através desse emaranhado de oceanos, de custo de extração elevado, devido à necessidade de complexos
participações acionárias, as seis irmãs formam um quase-truste mundial equipamentos submersos e flutuantes.
de petróleo, conciliando interesses estratégicos comuns, sem eliminar
rivalidades regionais. Nesse quase-truste, o capital norte-americano é Inaugura-se assim a era do petróleo caro, na qual seu preço é determinado
hegemónico. pelo custo de extração mais alto, o das jazidas das águas profundas do Mar
do Norte. Pequenas empresas e “aventureiros” continuarão marginalizados,
No início da década de 70, esse quase-truste levou à exaustão parte das desta vez devido à necessidade de capital intensivo para a exploração em
reservas conhecidas de petróleo de baixo custo de extração, pondo fim ao águas profundas. A era dos caçadores de petróleo, dos romanticos, acaba
período de quase trinta anos de comercialização do petróleo ao preço vil de definitivamente. Só com muito capital, da ordem de alguns bilhões de
apenas 2 dólares o barril de 150 litros. dólares, é possível almejar uma fatia desse mercado.
A prática de vendas volumosas de petróleo a baixo custo unitário levanta Ao mesmo tempo, acirrou-se a disputa pelo controle das jazidas de baixo
uma questão teórica interessante: por que empresas com poderes de truste custo ainda existentes no Oriente Médio. Quando o Iraque anexou o
não tentaram otimizar lucros, impondo preços altos para o petróleo Kuwait em fins de 1990, tornando-se dono de 1/3 das reservas de petróleo
que tinham sob controle? Em primeiro lugar, porque era materialmente da região, foi atacado, e obrigado a recuar, por uma devastadora força
possível vender a preço baixo e auferir lucro, graças ao custo quase zero combinada de países do centro industrializado liderada pêlos Estados
de extração nas grandes jazidas do Oriente Médio - da ordem de apenas Unidos e financiada principalmente pelo Japão.
centavos de dólar por barril. Em segundo lugar, porque somente assim
seriam marginalizados os eternos “aventureiros”, as pequenas e médias

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Como Nascem Multinacionais

Os grandes “casamentos” em proporções consideradas justas pelas duas partes, o patrimônio comum
formado pelas centenas de empresas que possuíam espalhadas por todo o
Desde o início, a luta pelo petróleo foi também uma luta entre estados- mundo. Cada empresa continua registrada na sua pátria de origem, como
maiores de potências imperialistas, cada qual apoiando ou apoiando-se em se não tivesse nada a ver com a outra.
algumas grandes empresas. Dessa ligação entre governos e empresas nasceu
uma espécie distinta de multinacional - a empresa binacional. A aliança
circunstancial entre dois estados-maiores propiciou o casamento duradouro O casamento Royal Dutch-Shell
de duas empresas, a Royal Dutch, modesta companhia holandesa que
explorava petróleo nas Índias Holandesas, e a britânica Shell Transport and
Royal Dutch Shell Transport and
Trading Company Limited. Petroleum Company Trading Company Limited
A Royal Dutch sofria pressões crescentes do grupo Rockefeller,
que deixava espaços abertos para que os “aventureiros” descobrissem 60% 40%

novas jazidas de petróleo, mas depois os engolia através de manobras


monopolistas. Para reforçar o seu capital, o proprietário Henri Deterding 100%

promoveu uma abertura de capital, vendendo ações da Royal Dutch a


milhares de pessoas, de forma que nenhuma delas adquirisse poder de voto Shell Petroleum N.V. The Shell Petroleum
Company Limited
(Holanda)
significativo. Em 1902, sempre para fazer frente a Rockefeller, Deterding (Grã-Bretanha)

promove a fusão da Royal Dutch com a Sheii, casamento abençoado pelo


governo brit‚nico, que estende à nova empresa binacional a sua proteção
imperial. Quatro empresas de serviços
Comitê informal de Diretores
A receita do casamento da Royal Dutch com a Shell foi adotada
por outros grupos monopolistas, antigos rivais de mesmo porte que
substituíram a competição pela associação. Surgiu, assim, uma linhagem
de empresas binacionais, nas quais o capital não tem realmente uma pátria Empresas operacionais da Royal Dutch-Shell
definida - mas tem duas pátrias bem definidas.
O casamento Royal Dutch-Shell, consistiu na criação de duas novas
empresas paralelas, uma holandesa e outra brit‚nica, que dividiram entre si,

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Como Nascem Multinacionais

Para resolver o problema da unidade de comando do grupo, foi criado resolveram se amalgamar, após 60 anos de rivalidades... um dos problemas
um comité, sem personalidade jurídica, composto pêlos diretores das das duas empresas era a garantia de suprimentos adequados de matéria-
duas empresas, que se reúne periodicamente para traçar estratégias de prima, e para isso ambas haviam construído vastas empresas auxiliares,
investimentos e analisar resultados globais. A execução das decisões ficou a moinhos e armazéns; também haviam entrado em choque com fabricantes
cargo de quatro empresas de serviço, todas sob controle acionário das duas de sabões, que disputavam as mesmas matérias-primas, especialmente
matrizes do grupo. Mesmo em fusões de empresas de mesma nacionalidade a Lever Brothers... Em 1929, chegou-se a um acordo que permitiu o
tem sido adotada a fórmula de equalização de capital criado pela Royal amálgama entre a Lever Brothers e a Margarine Union.”
Dutch-Shell. Mais de meio século depois, quando os países do Leste Europeu abriram
O segundo grande casamento entre duas empresas monopolistas de suas fronteiras às multinacionais, a Unilever engoliu a Pollena, a maior
nacionalidades diferentes deu origem à Unilever, a maior multinacional, fabricante de alimentos e produtos de higiene da Polónia.
hoje, no setor de alimentos e produtos de higiene pessoal e doméstica, Os casamentos entre grandes empresas europeias de nacionalidades
com vendas da ordem de 19 bilhões de dólares anuais, realizadas por nada diferentes e portes comparáveis voltaram a ser celebrados na década de 60,
menos que 500 empresas, operando em 70 países, num total de 300 mil numa impressionante escalada do processo de concentração do capital e
empregados. Eis a história desta superfusão, o maior amálgama entre duas muitinacionalização das empresas. Em 1964, amalgamaram-se a fabricante
empresas ocorrido até então na Europa, através de um folheto da própria de filmes alemã Agfa e sua congénere belga Gevaert, estabelecendo uma
empresa: empresa conjunta binacional nos moldes da Royal Dutch-Shell; em 1970,
“A elevação do padrão de vida das classes trabalhadoras e médias uniram-se as duas poderosas fabricantes de produtos de borracha, cabos e
britânicas permitiram que a Lever Brother Limited, uma empresa pneus, a Dunlop, de capital brit‚nico, e a Pirelli, italiana. E, também, as
atacadista de secos e molhados de Lancashire, aplicasse métodos de duas multinacionais farmacêuticas, no caso, ambas suíças, a Ciba e a Geigy,
comercialização em larga escala de uma marca registrada de sabão para dando origem à maior empresa do ramo em todo o mundo.
uso doméstico, o “Sun-Light”, o que inexistia até então, porque sabão era Tudo isso era uma resposta dos capitais europeus ao gigantismo das
vendido a granel ou a picado. O enorme sucesso dessa marca consolidou-se multinacionais americanas.
com novas marcas, como Lifebuoy e Lux.”
Mesmo após o “casamento”, o grupo Dunlop-PireIli tinha um
Enquanto isso, nos Países Baixos, duas empresas exploravam, faturamento anual de “apenas” 5 bilhões de dólares em comparação com os
independentes uma da outra, uma nova invenção, a margarina. 7,5 bilhões da GoodYear.
“Em 1927, as condições dos mercados de margarina após a Primeira
Guerra Mundial eram tais que as duas firmas, Van den Berghs e Jurgens,
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Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Como Nascem Multinacionais

Os gigantes da indústria automobilística de perto pela Ford, com quase US$ 100 bilhões de vendas. Há seis outras
multinacionais automobilísticas disputando lugar com as companhias
A indústria automobilística é o espécime mais representativo dessa fauna petrolíferas e de material elétrico, entre as 25 maiores multinacionais:
tão heterogénea que chamamos de empresa multinacional. Em primeiro Toyota, Daimier-Benz, Fiai, Chrysler, Nissan e Volkswagen.
lugar, porque foi essa indústria que combinou de forma mais notável os
processos simult‚neos de concentração de capital e sua multinacionalização. Cada uma dessas empresas engoliu dezenas de outras, que por sua vez já
Pode-se dizer, sem perigo de errar, que 90% de todos os automóveis haviam engolido empresas ainda menores, num processo impressionante
produzidos atualmente no mundo capitalista saem de fábricas pertencentes de concentração que se iniciou nos anos 20. A General Motors já nascera,
a não mais do que dez gigantescas empresas multinacionais, espalhadas nos em 1908, a partir da fusão de cinco empresas, com um capital considerado
cinco continentes. grande na época, e logo depois absorveu 17 outros fabricantes de veículos,
tornando-se assim maior do que a Ford.
Foi também a indústria automobilística, através dos métodos de produção
em série e racionalização do trabalho de Henry Ford, que estabeleceu as A linha de montagem e a produção em série naturalmente favoreciam
bases da atua! divisão internacional do trabalho, característica da empresa as empresas maiores, com mais recursos para a massificação do produto.
multinacional. Ao estabelecer que cada operário apertaria apenas um Mas em 1923, quando ainda existiam nos Estados Unidos 88 fábricas
parafuso, e sempre o mesmo parafuso, na linha de montagem, Ford abriu o de veículos, a General Motors descobriu o ingrediente que faltava para
caminho para o emprego maciço de mão-de-obra não especializada, numa a verdadeira concentração do capital no setor e domínio do mercado: o
produção que em seu conjunto é altamente especializada. Bastava, para lançamento de um novo modelo a cada ano. Somente as grandes empresas,
isso, que um pequeno grupo de especialistas fizesse preliminarmente todos as verdadeiramente gigantescas, podiam se dar ao iuxo de refazer boa parte
os cálculos e projetasse os dispositivos para essa produção em série. Essa de sua linha de montagem, de seus estampes e moldes, de seus desenhos,
forma de fazer as coisas, adotada hoje por todos os setores da indústria, uma vez por ano. O recurso não visava incorporar aperfeiçoamentos
permitiria o estabelecimento de fábricas em praticamente qualquer parte técnicos, pois esses não ocorriam com essa velocidade (os principais
do mundo, tivesse ou não mão-de-obra especializada, tivesse ou não mecanismos de um automóvel, como o virabrequim, a suspensão,
tradição industrial. Finalmente, a própria popularização do automóvel, sua mantêm ainda hoje as características desenvolvidas pêlos seus primeiros
produção em massa - a outra face da produção em série - simboliza, mais inventores). O objetivo era desalojar do mercado as empresas pequenas,
do que qualquer outro aspecto do “consumismo”, a expansão económica que obviamente nem podiam fazer esse investimento anual em projetos e
sob a égide das multinacionais. dispositivos de produção e muito menos investir na publicidade dos novos
modelos. Doze anos depois dessa genial invenção, já em meio à depressão,
A maior empresa multinacional, é a automobilística General Motors, havia apenas dez fabricantes de veículos nos Estados Unidos.
com 850 mil empregados e US$ 126 bilhões de faturamento anual, seguida
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Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Como Nascem Multinacionais

Dominado e repartido o grande mercado norte-americano, as três japonesa, com seus veículos compactos, de baixo consumo de combustível.
grandes voltaram seus olhos para o resto do mundo, especialmente para No início dos anos 90, as multinacionais japonesas já haviam penetrado
a Europa, e passaram a engolir, uma após outra, as fábricas europeias de definitivamente nos mercados americano e europeu. Dos trinta maiores
veículos. À frente dessa corrida esteve sempre a General Motors, cuja fabricantes de veículos, 12 eram japoneses.
história se cruzou, após a Primeira Guerra Mundial, com a de um outro
grupo monopolista gigantesco, a Dupont, que controlava 64 fábricas
Cronologia de uma concentração
de pólvora nos Estados Unidos já no começo do século e que realizou
lucros substanciais durante a Primeira Guerra Mundial como principal
fornecedora dos aliados. Uma forte injeção de capitai da Dupont permitiu
à General Motors comprar a Vauxhall inglesa e a Opel alemã, além de
abrir escritórios de vendas em muitos países e oficinas de montagem British Motor Corp 1966
naqueles países que impunham tarifas proibitivas à importação do veículo
Coventry Climax 1963
já montado. A Ford respondeu a essa ofensiva nos mercados mundiais, Engines Ltd

associando-se minoritariamente a fabricantes locais e reforçando sua infra- Guy Motor Ltd 1962
estrutura produtiva. Um notável exemplo dessa política foi a compra de
Daimler Motor Co.
terras no Pará, em 1928, onde a Ford chegou a produzir 12 mil toneladas Jaguar Cars British Motor
1960
Ltd (1963) Holdings (1968)
de borracha natural por ano. Jaguar Cars Ltd

A ofensiva do carro americano nos mercados mundiais prosseguiu com


Leyland Motors Ltd British Leyland
vigor redobrado no pós-guerra, acelerando a concentração dos fabricantes 1961 Motor Corp
europeus. Na Grã-Breíanha, dez fabricantes foram engolidos um após o Standard-Triumph
International
(1968)

outro, dando origem à British Leyland Motors Corporation, em 1968. Associated Comm. Leyland Motors
1963
Ltd (1968)
Na Alemanha, os dois grandes uniram-se: DaimIer-Benz e Volkswagen Vehicles

associaram-se em alguns projetos comuns, e o mesmo aconteceu na França Rover Group 1966

entre a Peugeout-Citrõen, que já vinha de uma fusão, como indica o nome, Aveling-Barford 1968
e a Renault. Group

Com a crise do petróleo, na década seguinte, começa mais um ciclo


de concentração, tendo como força ascendente, dessa vez, a indústria

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Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Como Nascem Multinacionais

Os fabricantes tradicionais, tendo à frente mais uma vez a General


Motors, reagiram à ofensiva japonesa valendo-se da velha técnica do
modelo anual, agora elevado à dimensão universal: lançaram o modelo
mundial, um veículo só, vendido e montado simultaneamente em todos
os países. Em cada grande mercado é produzido apenas uma de suas
partes, o motor em um país, o girabrequim em outro, a caixa de câmbio
num terceiro. É o sistema da “indústria de prateleiras”, concentrando e,
portanto, elevando a escala da produção a uma nova divisão internacional
do trabalho.
Ao mesmo tempo, deu-se um novo processo de acomodação frente
aos japoneses, com novas fusões, e, principalmente, a multiplicação de
associações entre empresas. A Ford associou-se à Pegeaut na Europa, à
Volkswagen no Brasil, à Aston-Martin, na Inglaterra, à Mazda japonesa,
a fabricantes na Coreia e na Itália. A General Motors associou-se à Izuzu,
à Toyota e à Subam. A Volkswagen, além da fusão com a Ford, no Brasil,
adquiriu a Seat espanhola e a tcheca Skoda. Formou-se, entre os fabricantes
mundiais de veículos, um emaranhado de interesses semelhante ao que
existe entre as companhias petrolíferas.

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O Que São Multinacionais

Trustes, Cartéis e Zaibatsu


Bernardo Kucinski
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Trustes, Cartéis e Zaibatsu

A Rio Tinto Zinc, a grande multinacional de mineração, com vendas


da ordem de 10 bilhões de dólares por ano, descende diretamente das Total Faixas 101 a 200 201 a 300 301 a 400 401 a 500
1 a 100
minerações vendidas pela Coroa de Espanha aos ingleses, no século
passado, para pagar dívidas de guerra. O capitalismo tem sido, desde seu Estados Unidos 167 35 34 34 30 34
Japão 111 17 26 22 28 18
início, um negócio mundial, e de cada uma de suas fases de expansão, de Grã-Bretanha 43 7 7 9 11 9
cada um de seus “imperialismos”, sobrou pelo menos uma grande empresa Alemanha 32 11 7 7 1 6
França 29 9 4 6 5 5
que hoje está na galeria das multinacionais, como exemplar raro de espécie Suécia 15 2 2 1 6 4
já extinta - na verdade, herdeiro fina! do que sobrou daquela fortuna. Canadá 13 0 3 2 6 2
Coréia do Sul 11 2 2 4 1 2
Assim se explica também a presença de capitais holandeses e brit‚nicos Suiça 10 3 1 2 2 2
no património de tantas multinacionais. Mas a multinacional típica, pela Austrália 10 0 2 2 2 4

determinação com que distribuiu peio mundo suas fábricas, e não apenas
seus produtos, pela liderança na criação tecnológica, pelo caráíer global de
suas operações essa multinacional típica é norte-americana. A grande empresa americana cresceu em regime de competição total,
Mas, as multinacionais típicas dos anos 90, pela liderança na criação quase selvagem, e pouca ou nenhuma proteção do Estado. No capitalismo
tecnológica e pelo caráter global de suas operações, são, em sua maioria, americano, os eventuais prejuízos raramente são socializados. A empresa
norte-americanas ou japonesas. Nos anos 90, apesar do declínio do império europeia ou japonesa, ao contrário, é parte integral da sociedade, goza de
americano, ainda havia 167 empresas dos EUA entre as 500 maiores proteção permanente do Estado e, quando vai mal, socializa seus prejuízos.
multinacionais, contra 297, vinte anos antes. O número de multinacionais Muitas foram estatizadas total ou parcialmente, principalmente na França e
japonesas manteve-se quase estável, totalizando 111 empresas, mas elas na Alemanha.
tornaram-se mais poderosas. E surgiram novas multinacionais dos “tigres Nos Estados Unidos, a extensão territorial levou ao desenvolvimento
asiáticos”, como a Coreia do Sul. Há 10 multinacionais japonesas e sul- de uma nova estrutura gerencial, que permite vencer grandes dist‚ncias,
coreanas entre as 50 maiores. Entre as principais da eletrônica, já há tantas sem prejuízo da flexibilidade tática regional. Essa estrutura assemelha-se
japonesas quanto americanas. Menos numerosas são as brit‚nicas (43), as notavelmente à de um exército. O cérebro da empresa funciona como
alemãs (32) e francesas (29), Canadá, Austrália, Coreia do Sul, Suíça e um Estado maior, ocupando-se apenas da orientação estratégica do
Suécia, deram origem a cerca de 10 multinacionais cada. grupo, definindo os grandes objetivos e as prioridades de investimento.
Distribuição das 500 maiores multinacionais por país de origem (dez Nem sempre o objetivo principal é o lucro - apesar de ser quase sempre o
principais países) objetivo último. Numa determinada fase, a empresa pode definir metas
de diversificação, ou de ocupação de mercados, para fazer face a um
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Trustes, Cartéis e Zaibatsu

competidor potencial. Essas decisões, em geral, são tomadas dentro de do próprio governo. Cada país passa a cobiçar colónias, para dar às “suas
horizontes de cinco e até dez anos, em antecipação aos ciclos de expansão e empresas” acesso privilegiado a matérias-primas e um mercado consumidor
contração dos negócios. maior.
A execução das tarefas é delegada às “divisões” como num exército. Nas O primeiro cartel aparentemente foi formado em 1875, no transporte
grandes empresas há tantas divisões quantos são os tipos de produto ou marítimo - as chamadas shipping conferences, que até hoje monopolizam
de modalidades de produção. E ainda serviços auxiliares, especializados cargas em rotas específicas, impondo os fretes e constituindo-se mesmo
que podem ser usados por todo o grupo. Esse tipo de empresa constitui- na forma dominante de organização do transporte marítimo. A partir de
se numa completa estrutura de poder, com sua própria história, suas então, proliferaram os cartéis, de trilhos, de produtos químicos, como o
tradições, sua cultura. Seus objetivos podem coincidir ocasionalmente com do enxofre na Itália, e o do potássio na Alemanha. São, em sua maioria,
os dos países em que atuam - mas não há nenhum motivo especial para que acordos entre grupos de um mesmo país, fixando preços e mercados com
isso ocorra. o objetivo de somar forças no combate a grupos semelhantes de outros
Essa empresa, com comando estratégico centralizado e uma estrutura países. Grande parte são “cartéis de exportação”.
multidivisional, conferindo liberdade tática a cada divisão, - a subsidiárias Mas, formam-se também cartéis que reúnem fabricantes de muitos
espalhadas pelo mundo como extensão natural do mercado norte- países, como o cartel das lâmpadas elétricas incandescentes, ou o cartel da
americano - era a multinacional típica do início do século até o final dos dinamite.
anos 60. No intervalo entre as duas guerras mundiais, era obrigatória a formação
de cartéis na Alemanha - o país clássico dos cartéis. Em vários outros países
Do cartel à multinacional os acordos eliminando a competição, e permitindo a associação entre
empresas para fins de exportação, são incentivados e/ou regulamentados
As multinacionais europeias e japonesas desenvolveram-se no pelo Estado. ” capitalismo monopolista na Europa e no Japão assume nessa
interior de mercados nacionais apertados, pequenos demais para o seu época, nitidamente, a forma do “cartel”, apesar de se formarem também
amadurecimento pleno. A disputa entre empresas tomou a forma de muitos trustes pela fusão completa entre as empresas, como o truste leiteiro
guerra entre estados. Cada governo passou a aplicar barreiras tarifárias Anglo-Suíço Nestlé.
para proteger “suas empresas” contra as estrangeiras. A Rússia ergue
barreiras tarifárias em 1877, a Alemanha em 1879, a França dois anos
depois. Dentro de cada país são promovidos acordos de cartéis, pêlos quais
várias empresas fixam preços e dividem mercados, com a cumplicidade

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O Que São Multinacionais

Trustes, Cartéis e Zaibatsu

Do truste à multinacional da legislação americana, ao impedir acordos de preços e mercados, está em


que ela favorece a formação do truste, a grande empresa que monopoliza
Nos Estados Unidos os grandes monopólios desenvolvem-se em um determinado setor da economia, após absorver suas concorrentes. O crime
ambiente hostil aos acordos de cartéis, por motivos que remontam à de Rockefeller perante a nação americana não foi o de ter criado um
formação política da nação americana, que nasce sob a égide de uma luta truste - foi o de ter violado o princípio da “competição leal”, de ter usado
contra a fixação de preços e privilégios de comércio dos brit‚nicos. O o truque das tarifas secretas para levar seus concorrentes à falência. Na
incidente que fará dessa tradição uma norma foi precisamente a descoberta lei do “faroeste” americano, matar não é crime, desde que a competição
dos acordos secretos entre Rockefeller e as estradas de ferro que lhe tenha sido “leal”, ou seja, o disparo só tenha sido dado após o inimigo ter
permitiram levar à falência seus concorrentes e criar o truste do petróleo. colocado sua mão na arma.
Ao baixar o Sherman Act, em 1890, o Congresso americano eliminou a
possibilidade de formação de cartéis nos Estados Unidos. Tornou-se um Nascem assim os grandes trustes nos Estados Unidos no começo do
crime combinar preços ou dividir mercados, exatamente quando essa século, quando começa a se completar a conquista do território. Além
era uma prática comum dos grupos alemães e franceses para fazer frente das indústrias automobilísticas, já citadas, nascem, por exemplo, os
ao poderio brit‚nico. Em 1914, o Clayton Act reforça essas disposições, dois gigantes do aço, a United States Steei, resultante da fusão de 12
proibindo vendas com desconto e outras práticas que discriminem entre siderúrgicas, e a Bethiehem SíeeI, uma holding de cerca de 50 fabricantes
clientes de uma mesma empresa, e dois anos depois o Shipping Act proíbe de aço. A Dupont, que se tornaria uma das mais expressivas multinacionais
a formação das “conferências de navegação”, cartéis do transporte marítimo americanas pela desenvoltura de seus negócios no exterior, já controlava 64
que predominam até hoje nas principais rotas. Algumas outras leis, como o fábricas de pólvora em 1907. E, ao se tornarem grandes trustes nacionais,
Robinson-Patman Act de 1936, reforçariam ainda mais essa legislação. essas empresas “aprenderam naturalmente a se tornarem multinacionais,
devido à extensão do mercado norte-americano”, nas palavras de Stephen
Mas, à medida que conquistavam o mundo, os americanos percebiam Hymer, um dos grandes especialistas nesse assunto.
a necessidade de usar as mesmas armas dos cartéis europeus. O Webb-
Pomerane Act, de 1918, permitia a formação de “cartéis de exportação”. Para “furar” os cartéis, aos quais não podia se associar de qualquer forma,
Mas, note-se que mesmo essa lei continua proibindo acordos de preços para cortar caminho e estar mais perto de fontes de matéria-prima, para
ou de mercados e outras práticas restritivas à livre competição dentro dos evitar as barreiras protecionistas, os grandes trustes americanos usam o
Estados Unidos. Até hoje, por isso, acordos de preços em que participam investimento direto como forma mais notável de expansão nos mercados
empresas norte-americanas (como o das tarifas aéreas) não são aplicáveis externos. E por um quarto motivo: otimizar a exploração de patentes
dentro do território americano. Pelo mesmo motivo, as “seis irmãs” do e invenções que vão sendo feitas às centenas e milhares nos Estados
petróleo nunca formalizaram suas relações “incestuosas”. A característica Unidos, muito mais do que na Europa, em decorrência da descoberta da

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O Que São Multinacionais

Trustes, Cartéis e Zaibatsu

eletricidade. No começo do século já havia 107 subsidiárias de empresas Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, os americanos ocupavam o
americanas no exterior. lugar de segundo maior investidor estrangeiro no mundo capitalista, mas
O primeiro apogeu do capitalismo americano coincide com o apogeu o total de seus investimentos era ainda metade do que tinham investido
das aplicações práticas da eletricidade. Por esse motivo, o capital os ingleses. É depois da guerra, mais precisamente entre 1950 e 1970, que
americano, através da General Eiectric Company (resultado da fusão em se dá o grande salto nos investimentos americanos no exterior, e o apogeu
1892 das empresas de Edison e Thomson) e da Westinghouse Eiectric das multinacionais americanas. Os fatores específicos desse salto foram,
Company, domina a indústria de material elétrico em escala mundial aparentemente, a capacitação especial das multinacionais americanas para
desde seus primórdios até hoje. A General Eiectric construiu as primeiras operações em escala global, o desenvolvimento das comunicações e dos
centrais elétricas na Itália, e tornou-se sócia dos maiores fabricantes transportes, e, na segunda parte desse período, a necessidade de reagir ao
de material elétrico da Grã-Bretanha, França e Holanda (participando avanço das empresas japonesas e alemãs, detentoras de uma base produtiva
minoritariamente da Philips, grande multinacional por sua própria conta). mais nova e mão-de-obra mais barata. Os investimentos norte-americanos
Apenas a Siemens cresceria como empresa absolutamente independente, no exterior pulam de 11,8 bilhões de dólares, em 1950, para 78,1 bilhões
fundada na Alemanha em 1847, antes, portanto, da era de ouro dos em 1970, quando passam a representar, possivelmente, 80% de todo o
inventores americanos, e que sobrevive até hoje como grupo forte e investimento de países industrializados no exterior de suas economias.
independente (a décima-quinta multinacional em valor de vendas). O capital americano invade e toma de assalto a Europa, os grandes
A segunda grande empresa alemã do ramo, a AEG (Allgemaine mercados desenvolvidos, o Canadá, transformado em seu apêndice
Elektristats Gesseischaff),’ sempre teve vínculos estreitos com a GE e, económico, e alguns países de grandes dimensões da periferia capitalista.
em 1929, em consequência da derrota alemã na guerra, precisou vender Em 1970, empresas norte-americanas haviam acumulado investimentos
um lote de ações à GE. A segunda onda de investimentos americanos totalizando 24,5 bilhões de dólares na Europa, e 22,8 bilhões no Canadá,
no exterior ocorre cerca de 20 anos depois, com o acirramento da em comparação com os 14,7 bilhões investidos na América Latina
competição entre os grandes grupos económicos e o desgaste mútuo dos (concentrados basicamente em cinco países - Venezuela, Brasil, Argentina,
grupos europeus em virtude da Grande Guerra. Os americanos eram os México e Panamá), 2,6 bilhões na África, 2,5 no Extremo Oriente, e 1,6
credores dessa guerra, e abocanham com seus créditos, ou com seus lucros no Oriente Médio.
extraordinários (como a Dupont, que lucrou 266 milhões de dólares
durante os quatro anos de guerra, em comparação com os seis milhões Esses números demonstram que o investimento direto americano tinha
anuais dos tempos de paz), fatias consideráveis do mercado europeu. como uma de suas principais funções combater os grupos que pudessem
Mas a crise de 29 brecou o avanço do capital americano, que ainda era representar risco à sua expansão, e que eram primordialmente grupos
minoritário no espectro de investimentos estrangeiros. europeus. O capitalismo americano virtualmente conquista o mercado

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Trustes, Cartéis e Zaibatsu

europeu. As grandes empresas europeias reagem da mesma forma, atacando linhagens de mercadores que, principalmente através de companhias de
seus competidores no seu interior - o próprio mercado americano. Assim, comércio, as “trading companies”, construíram grandes conglomerados sob
a maior parte dos investimentos de capital no exterior pelas multinacionais direção familiar. Foram eles os principais instrumentos da transformação
europeias e japonesas verifica-se nos EUA. acelerada de uma economia agrária em capitalismo industrial no século
XIX, Era Meiji. Essa transformação, promovida peio próprio poder
imperial, queimou etapas e preservou as características feudais da sociedade
As “zaibatsu” japonesas japonesa que se transferiu quase que totalmente para a organização
A partir dos anos 70, após um notável ritmo de acumulação interna, industrial dos zaibatsu. Esses zaibatsu são: Mitsubishi, Mitsui, Sumitomo,
multiplica-se a escala dos investimentos externos japoneses, passando de Fuyio, Dai-ichi Kangyo e Sanwa.
2,5 bilhões de dólares ao ano, a 34 bilhões em 1988. No início dos anos Aos zaibatsu, que operam em uma gama ampla de ramos da produção
90, os investimentos externos japoneses, já somam 185 bilhões de dólares, e do comércio, incluindo o setor financeiro, juntaram-se 6 grupos mais
em comparação com os 183 bilhões acumulados em quatro séculos de novos, formados durante a militarização do começo do século e a ocupação
imperialismo brit‚nico e de 392 bilhões dos norte-americanos. Quase a da Manchúria. São organizações essencialmente industriais, verticalizadas,
metade dos investimentos japoneses dirigem-se aos Estados Unidos. em geral, especializadas em um ramo da produção, os shinko-zaibatsu,
Além do domínio tecnológico imbatível na produção de bens de mais à moda das multinacionais americanas. São eles: Nippon SteeI,
consumo eletrônicos, as multinacionais japonesas revolucionam técnicas de Toshiba, Hitachi, Toyota, Nissan, Matsushita e Tokyu.
gerenciamento de produção. Como a do “just-in-line” que permite operar As autoridades de ocupação norte-americanas abandonaram sua política
com estoques mínimos, e usam intensamente a microeletrônica nas linhas inicial de dissolver os zaibatsu, quando começou a prevalecer o princípio
de produção. Esses procedimentos altamente produtivos, têm raízes nos da guerra-fria, de que era preciso erguer, uma barreira ao avanço do
códigos culturais japoneses, na sua escala de valores, baseada na hierarquia, comunismo na Ásia. Os antigos zaibatsu se reagruparam. E, mais uma vez,
na lealdade ao grupo e no orgulho pessoal. o Estado japonês organizou com eles uma política de desenvolvimento,
Mas esses mesmos códigos, especialmente o da lealdade absoluta ao erigindo cinco setores, aos quais outorgou proteção tarifária: têxtil, naval,
grupo, dificultam a absorção de uma empresa por outra. No entanto, aço, veículos e química. Posteriormente, já nos anos 80, traçou novas
as multinacionais japonesas também se originam de um processo de prioridades, todas com uso de tecnologias de ponta: informática de alta
concentração do capital. É um dos mais completos, pois apenas 13 grupos velocidade, novos materiais, aviões, energia nuclear e solar. Assim, se
económicos concentram quase todo o poder económico no Japão. Seis construiu o poderio japonês. Nos anos 90 já são mais de 500 as subsidiárias
desses grupos são conhecidos como os Zaibatsu, oriundos de antigas de empresas japonesas espalhadas pelo mundo, a maioria nos ramos de

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Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Trustes, Cartéis e Zaibatsu

máquinas pesadas, utensílios domésticos e de comunicações. Metade delas, Mas isso ocorria enquanto assim o permitiam as condições gerais do
na Ásia, 20% nos Estados Unidos, outros 20% na Oceania e apenas 14 por mercado internacional - alto poder de competição frente ao produto
cento na América Latina. americano ou europeu, ausência de barreiras tarifárias nos grandes
Fenômeno paralelo ao japonês foi o surgimento de 11 poderosas mercados, energia barata. A crise da energia e o endurecimento da disputa
multinacionais sul-coreanas, das quais 4 situadas entre as 200 maiores do por mercados, que se estabeleceu a partir de 1973, mudaram rapidamente
mundo. Ao contrário dos zaibatsu, são de empresas altamente verticalizadas essas condições e cada vez mais as,, poderosas “zaibatsu” japonesas
e integradas, conhecidas na Coreia como “chaebols”, erguidas em décadas transferem etapas da produção para o exterior, como as que exigem
de um regime autoritário. As cinco maiores detém 1/5 do PI B coreano: muita energia, as que são excessivamente poluentes ou as fases finais de
Samsung, Hyundai, Lucky Goldstar, Daewoo e Sanyiong. montagem de bens duráveis de consumo popular. Através do comércio,
as “zaibatsu” continuam estendendo sua esfera de influência em todo o
Os diretores das empresas que constituem o “zaibatsu” reúnem-se todos mundo; através do investimento direto, as mesmas empresas estabelecem
os meses para a tomada de decisões estratégicas, e imperam nas relações importantes unidades de produção no Sudeste Asiático (mão-de-obra
entre empresas de um “zaif‚atsu” as regras mais absolutas de lealdade de barata) e algumas unidades estrategicamente situadas, como cavalos de
grupo, mesmo inexistindo uma empresa holding ou uma matriz, ou um Tróia, no interior dos mercados europeu e norte-americano.
capitalista ou grupo económico que formalmente controle a empresa.
Desses treze grupos, os seis maiores detêm atualmente o controle de As multinacionais japonesas, assim como as dezenas de outras empresas
70% das vendas das 88 companhias atacadistas relacionadas na bolsa de japonesas de menor volume de vendas, são apenas braços de uma das 13
Tokyo, 40% do total das exportações japonesas e 50% de todas as suas zaibatsu que dividem entre si os lucros da acumulação de toda a economia
importações. japonesa. Cada uma das grandes empresas industriais japonesas liga-se
a um dos zaibatsu. Por exemplo, as cinco maiores indústrias químicas
Alguns desses grupos, como a Mitsubishi e a Mitsui, são multinacionais japonesas, assim como, as seis maiores indústrias têxteis, são ligadas ao
típicas, na medida em que possuem número substancial de unidades zaibaísu. Por outro lado, cada zaibaísu procura ter uma forte “írading-
produtivas fora do Japão. Mas, mesmo essas empresas, e, em maior grau company” no seu conglomerado, sua arma estratégica. E tanto o zaibatsu
os outros zaibatsu preferem concentrar o máximo das etapas da produção como o shinko-zaibatsu, apoiam-se num grande banco ligado ao grupo.
no próprio Japão, como empresas genuinamente integrantes de um pacto
sócia! populista - se é que se pode empregar essa expressão para o Japão, Depois do Sudeste Asiático como um todo, e dos Estados Unidos, o
uma sociedade quase fascista, na qual o grande capitai retribuiu a lealdade Brasil é o maior palco de investimentos japoneses, num total de 1,8 bilhões
dos trabalhadores com sua própria lealdade, colocando-se objetivos comuns de dólares - o terceiro maior investidor estrangeiro, depois dos Estados
de manutenção de pleno emprego. Unidos e Alemanha. As empresas japonesas dominaram o mercado de

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Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

Trustes, Cartéis e Zaibatsu

bens de consumo duráveis eletrônicos, aparelhos ópticos, motos e indústria


naval. E estabeleceram uma ponte com o Estado em projetos minerais e
siderúrgicos de grande porte - uma aliança que virtualmente derrotou a
siderurgia americana - conscientemente promovida durante os governos
Mediei e Geisel.
Os capitais japoneses mantêm uma política deliberada de perfil baixo no
Brasil, investindo apenas na medida exata de suas necessidades estratégicas
e retraindo-se a cada sinal de crise. Num total de 500 grandes empresas,
das quais 150 estrangeiras, há apenas 10 japonesas, em comparação com 69
empresas americanas e 21 alemãs.

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O Que São Multinacionais

O Paraíso das Multinacionais


Bernardo Kucinski
O Que São Multinacionais

O Paraíso das Multinacionais

A economia brasileira, desde as primeiras trocas de pau-brasil por tendente a crescer ainda mais, uma grande variedade de matérias-primas,
bugigangas, passando pêlos grandes ciclos do ouro, da cana, do café, do e mão-de-obra abundante e barata, nesse caso, após a crise do café de
comércio de escravos, da borracha, enfim, em todas as suas fases marcantes, 1929. O Brasil sempre foi um “paraíso natural” para as multinacionais.
não tinha lógica por si só, mas sim como parte de mecanismo maior, uma Foi no Brasil que se instalaram algumas das primeiras subsidiárias de
economia internacional cujo centro se localizava na Europa Ocidental, e empresas multinacionais produtivas, dentro já dessa concepção de divisão
que os especialistas, hoje, chamam de “capitalismo agrícola”. internacional do trabalho que encara o mundo como um único mercado.
O interc‚mbio de produtos agrícolas e matérias-primas entre regiões No começo do século, já existiam no Brasil os moinhos de trigo da Bung
temperadas e tropicais, essência da singela divisão internacional do trabalho y Bom, o grupo Sanbra, que hoje controla nada menos que 20 por cento
dos primeiros tempos desse capitalismo, foi se transformando num das exportações brasileiras de algodão e óleos comestíveis. Os cigarros
comércio mais variado, que incluía cada vez mais produtos manufaturados, da Souza Cruz, subsidiária do maior fabricante mundial de cigarros,
como têxteis, e depois as máquinas e o aço das estradas de ferro, a British American Tobbacco, os fósforos da Fiai Lux e os carretéis da
produzidos no centro desse sistema após a revolução industrial, e cada vez linha Corrente, apenas para ficar em algumas empresas que se tornaram
mais minérios e matérias-primas para uso industrial, extraídos dos países monopólios dentro do país.
periféricos. Quando termina a Primeira Guerra Mundial, já havia vinte subsidiárias
Era essa troca de produtos primários por produtos acabados da de empresas norte-americanas na América Latina, boa parte delas no
indústria, supostamente inibindo nossa industrialização, que nossos pais Brasil. Vieram as montadoras de veículos - General Motors, Ford - e
chamavam de “imperialismo”. Mas o “imperialismo”, sob a liderança das as distribuidoras de petróleo, as indústrias químicas de cada um dos
multinacionais, deu a volta por cima e entrou na nossa economia como um monopólios criados por cada um dos imperialismos então em luta: a
cavalo de Tróia, e, inaugurando um novo ciclo, que também só tem lógica Imperial Chemical Industries (ICI), brit‚nica, a Dupont, americana, as
como parte de um mecanismo maior. As multinacionais industrializam empresas do gigantesco cartel alemão da l. G. Farben, que controlava
a periferia, sempre que assim manda a necessidade estratégica da 60 empresas na Alemanha e fora dela.4 Da crise de 1929 até o final
empresa. Essa necessidade, como já vimos, pode ser de três tipos básicos: da Segunda Guerra Mundial - período clássico de “substituições das
abrir ou consolidar mercados; obter mais facilmente matérias-primas importações” através da industrialização - aumenta substancialmente
e recursos naturais; ter mão-de-obra barata. Qualquer uma dessas três
razões, isoladamente, já é bastante forte para levar uma multinacional a 4
. Muitas multinacionais alemãs de hoje, de imagem respeitosa como a Hoechst e a Bayer, nasceram com a dissolução
forçada da l. G. Farben, empresa diretamente engajada na produção de gases para o extermínio dos judeus e outros
instalar uma unidade de produção nova. No Brasil, todas as três razões “povos inferiores”, durante o nazismo. O nazismo morreu, mas os grandes capitais que o alimentaram e floresceram
existiam, para a maioria dos ramos da indústria: um mercado grande e sob sua proteção renasceram como fénix. Outra surpreendente demonstração dessa capacidade de sobrevivência é o
caso da Krupp, o truste do aço, precursor dos “complexos industriais miiitares” de nossos dias

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o número de subsidiárias de empresas estrangeiras no país devotadas à do que as próprias multinacionais, que um futuro espetacular poderia se
produção. O Brasil torna-se mesmo uma arena importante da luta entre abrir, com novas regras do jogo económico. Essas novas regras consistiam,
os vários imperialismos - que chega ao seu apogeu através da guerra basicamente, em abanonar a proteção a indústrias nacionais, com tarifas
mundial - e a necessidade de materiais para essa guerra por si só estimula proibitivas sobre as importações de máquinas, e, ao contrário, trazer os
a instalação de unidades produtivas no Brasil. Ao final da guerra, já havia grandes grupos monopolistas de cada ramo produtivo, para que viessem
42 subsidiárias de empresas norte-americanas no Brasil, incluindo 28 que aqui produzir essas máquinas, se possível, em associação com grupos locais
resultaram da simples aquisição de empresas locais. ou com o Estado. Se necessário, sozinhos. Era a consolidação de uma
tendência que vinha desde a crise de 29, mas que não realizava todo o seu
potencial devido à sobrevivência tanto das concepções de desenvolvimento
Os 50 anos em cinco autónomo, como de leis e tradições. Juscelino talvez tenha sido o primeiro
Mas será no governo de Juscelino Kubitschek, sob o slogan de “50 anos governante de um país periférico a abandonar tudo isso de vez e oferecer às
de desenvolvimento em 5”, que os ramos modernos do capital monopolista multinacionais, de forma organizada e espetacular, um pacote de estímulos,
internacional tomaram o país de assalto, estabelecendo um domínio tão como cancelamento de impostos para importação de máquinas, isenção de
absoluto sobre os setores mais dinâmicos da indústria que nem o golpe impostos durante um período de carência e facilidades de infra-estrutura
militar de 1964 e o subsequente “milagre económico”, liderado peias e créditos do Estado que passaram a se constituir ao mesmo tempo nos
multinacionais, alterariam fundamentalmente. instrumentos de política económica do Estado. O jogo dos estímulos, ao
invés do jogo das restrições, passou a caracterizar as relações do Estado
Ao final do governo Kubitschek, um período de cinco anos em que os com as empresas multinacionais. Não é gratuito o fato de que o principal
investimentos estrangeiros somavam em média 120 milhões de dólares instrumento dessa nova política já existia desde o suicídio de Getúlio, em
ao ano - cinco vezes mais do que era investido anteriormente -, os 1954, e sua substituição por Café Filho e o grupo de militares de direita,
grupos monopolistas multinacionais já dominavam em 100% a indústria e políticos ligados ao comércio exportador e ao capital financeiro, que
automobilística nacional, 90% da indústria do vidro, 86% da indústria assumem o poder transitoriamente. Esse instrumento é a resolução 113
farmacêutica, 80% da indústria da borracha e cerca de 60% da fabricação da Sumoc, que permitia a importação de máquinas, mesmo usadas ou
de máquinas e autopeças. O capital estrangeiro detinha, então, 31% da obsoletas, sem pagamento de taxas, a título de aporte de capital. Getúlio
produção industrial e 8,5% de todo o Produto Nacional Bruto. O que o denunciou as pressões do capital estrangeiro na famosa “carta-testamento”,
golpe militar de 1964 permitiu foi a extensão desse domínio a novas áreas. precursora do discurso que AIlende faria quase vinte anos depois nas
Juscelino assumiu o poder em um dos períodos de contração da Nações Unidas (para morrer com um tiro no peito). Dizia a carta de
economia’ norte-americana (o biénio 1953-54), e pareceu entender, melhor Getúlio:

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“A campanha subterr‚nea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos A crise do populismo
nacionais revoltados contra o regime de garantia de trabalho. A lei dos
lucros extraordinários foi detida no Congresso, contra a justiça da revisão Mas, o crescimento económico promovido pelas multinacionais apenas
do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade levava a uma nova crise. A taxa de inflação ao final do seu mandato pulara
nacional na potencializacão das nossas riquezas, através da Petrobrás; mal para 50 Dor cento ao ano: as cidades incharam com as novas ondas de
esta começa a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi migrantes atraídos pela construção de Brasília, pelas novas indústrias e
obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. pelas novas estradas. O Estado não promovera uma expansão proporcional
Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro dos serviços públicos, de saúde, educação e transporte. Uma classe média
da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros cada vez mais numerosa entrava no jogo político precário do popuiismo,
das empresas estrangeiras alcançavam até quinhentos por cento. Nas assustada com a inflação e a corrupção que se constituíam no caldo de
declarações de valores que importávamos existiam fraudes constatadas de cultura daquela promiscuidade entre o Estado e o grande capital.
maiË de 100 milhões de dólares por ano...” Foi nesse populismo já anacrónico que um demagogo extremamente
Juscelino simplesmente colocou todas essas empresas estatais a serviço talentoso fez carreira meteórica nas urnas, primeiro como prefeito de
da viabilização ao projeto multinacional, e o fez de forma indolor, sem São Paulo, depois governador e finalmente presidente da República,
trair a herança política que herdara de Getúlio, a aliança PTB X PSD, sem desmoralizando nessa trajetória os partidos já anacrónicos e derrotando
penalizar os trabalhadores, ou suas representações sindicais, como queriam facilmente o candidato à presidência que ainda tentava sustentar uma
os antigetulistas, mas também sem tocar nos privilégios dos donos da terra. plataforma convencional de desenvolvimento económico nacionalista (o
Com Juscelino, o projeto de desenvolvimento multinacional ainda coexiste general Lott).
com estruturas políticas herdadas do populismo, inclusive partidos que Eleito com o voto maciço da classe média, de trabalhadores e pequenos
em alguma medida representavam aspirações populares, como o PTB, e funcionários, mas adotado como candidato pêlos grupos mais ligados ao
principalmente os dois grandes partidos burgueses, o PSD populista, e a capital estrangeiro, da antiga UDN, J‚nio Quadros imediatamente traiu o
UDN antipopular. caráter do voto que recebera - um voto revolucionário porque rejeitava as
Ao final do seu mandato, a produção de máquinas no Brasil havia estruturas vigentes. Nomeou um ministério que tinha nos postos-chave da
crescido em 125%, a de equipamentos elétricos em 300%. O produto economia os nomes da maior confiança do capital estrangeiro. E colocou
bruto do país crescera 7% ao ano em média. em ação um plano de austeridade económica que reproduzia fielmente
a receita do capital estrangeiro para as crises periódicas de pagamentos,
geradas pela taxa excessiva de expoliação desse mesmo capital estrangeiro.
J‚nio Quadros, ao mesmo tempo, preparou o terreno para um golpe que
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permitisse o fechamento do Congresso e lhe desse poderes de ditador. quais 120 realmente se elegeram. No inquérito parlamentar, já em meio
Mas o golpe, concebido com ingenuidade, pois dependia para seu sucesso aos tumultos e preparativos do golpe de 1964, ficou provado que o IBAD
das representações políticas que J‚nio toda a sua vida humilhara - o golpe recebera dinheiro de 152 empresas multinacionais, entre elas a Texaco,
fracassou completamente. Essas representações aceitaram sua renúncia, Esso, Shell e Coca-Cola, Ciba, Schering, Bayer, General Electric, IBM.
enquanto as forças armadas, temerosas, endossavam as soluções políticas Uma operação paralela mais pesada, que consistiu na montagem de um
de compromisso, passando a se preocupar exclusivamente em não permitir serviço de espionagem antiesquerdista com oficiais do exército, recebeu
a posse do vice-presidente eleito, João Goulart - de extração populista. também, nessa época, vultosas contribuições de algumas multinacionais,
Da renúncia de Jânio nasceu a conspiração que levou ao golpe militar de através do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES.
1964, ponto final da crise institucional, aberta pela impossibilidade de Mas, apesar de todo o dinheiro gasto, a Frente Parlamentar Nacionalista
convivência entre o regime populista moldado pelo getulismo e a economia se fortalecera, Miguel Arraes se elegera governador de Pernambuco e o
multinacional moderna, implantada por Juscelino. governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que garantira pelas
Nesse período de clímax político, as multinacionais tomam parte no que armas a posse de João Goulart, e ousara encampar uma subsidiária da
foi até hoje, provavelmente, a mais completa operação de interferência multinacional ITT e outra da American & Foreign Power, irritando
coletiva dessas empresas na vida política de um país. No cenário político profundamente o governo americano, foi eleito com expressiva votação
polarizado, os partidos em si perdiam importância, e os políticos se deputado federal pelo Rio de Janeiro, reduto da pequena burguesia
dividiam em dois grandes grupos, a Frente Parlamentar Nacionalista, direitista da UDN. No meio operário, foi formado um Pacto de Unidade
com compromissos populares e nacionalistas, e a Frente Democrática, e ação entre os sindicatos mais expressivos; camponeses haviam realizado
constituída pêlos conservadores e adeptos da total abertura do país ao nessa época seu primeiro congresso nacional, em Goiás. No Nordeste
capital estrangeiro. Foi formado então um Instituto Brasileiro de Acão cresciam as ligas camponesas. Do exterior, vinham os ecos da revolução
Democrática (IBAD), sob cujas fachadas as multinacionais organizaram cubana. Em fins de 1963, as condições para o golpe militar estavam
uma gigantesca “caixinha” destinada a eleger o máximo de parlamentares maduras. As forÁas populares não conseguiam transformar em ação
conservadores e entreguistas. Tinha por objetivo, também, infligir derrota concreta suas aspirações e articulações. A Igreja aderia à conspiração
ao candidato popular ao governo de Pernambuco, Miguel Arraes. A ajuda antipopular, emprestando sua autoridade moral e espiritual aos golpistas.
do IBAD consistia em veículos, material impresso e auxílio operacional. Goulart hesitava entre várias alternativas de sustentação política. Naquele
Os candidatos a serem apoiados eram escolhidos segundo sua absoluta ano, o crescimento do produto foi de apenas 1,5%, metade da taxa de
fidelidade à política de direita, e chances de serem efetivamente eleitos com expansão da população. A inflação chegava à casa dos 80%. Os vários
aquele auxílio. Tratava-se de uma operação executada cientificamente, que setores da burguesia industrial, já associados economicamente ao capital
movimentou 5 bilhões de cruzeiros, distribuídos por 250 candidatos, dos estrangeiro desde a era JK, aderiram em massa à conspiração, que já tinha a
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adesão da oligarquia rural. O golpe não encontrou resistÍncia significativa. desimpedido e o Brasil somou às suas qualidades naturais de paraíso
para a economia multinacional a virtude adicional de paraíso político
também: instalou-se um sistema de dominação conveniente, que conferiu
O golpe militar primazia total ao lucro, ao capital, ao processo de acumulação. Dez anos
Os objetivos políticos do golpe tardaram a se definir, porque muitas depois, a lista das maiores empresas privadas do país parecia uma lista
correntes políticas, e muitos governadores de Estado, com aspirações saída da revista Fortune. O Brasil, como o Canadá, havia-se tornado
mutuamente excludentes, haviam engrossado a conspiração. Foram uma província económica do capital americano e europeu. As empresas
precisos cinco anos de lutas intestinas e depurações para que o regime multinacionais haviam estendido sua hegemonia a novos setores, como a
chegasse à sua “pureza política”, como uma ditadura militar com petroquímica, eletrodomésticos, plástico, o comércio exterior, e penetrado
rotatividade do chefe no poder. Mas os objetivos econômicos do golpe mais profundamente em indústrias de bens de consumo não durável, como
foram desde os primeiros preparativos claros e consensuais: recriar as bebidas, alimentos processados e comércio varejista. Vastas áreas de terra
condições para altas taxas de crescimento econômico, solucionando a crise foram adquiridas a preço vil pelas multinacionais, dentro do esquema
econômica segundo os interesses do capital. As receitas também já estavam de incentivos fiscais, induzindo grupos industriais a investimentos na
prontas, através do “Piano de Ação Econômica do Governo - 1964-66”, agroindústria. Capitais alemães e japoneses aumentaram sua participação
feito por trÍs economistas intimamente ligados às multinacionais e à relativa, em comparação com os tempos de Juscelino. De um total de 13,7
conspiração golpista: Octávio Gouveia de Bulhıes, Roberto Campos e bilhões de dólares em investimento estrangeiro investido e reinvestido
EugÍnio Gudin. Tratava-se de eliminar as garantias de emprego, tanto no Brasil em fins de 1978, 3,8 milhões apenas pertenciam a empresas
no setor privado como no público, abrindo caminho a uma substancial norte-americanas, outrora detentoras de mais da metade do total de
redução de gastos com mão-de-obra; modernizar o aparelho de Estado investimentos. Os capitais alemães totalizavam 2,1 bilhões de dólares e os
para torná-lo um efetivo patrocinador do crescimento econômico do japoneses 1,4 bilhões.
grande capital; promover reformas fiscais que facilitassem a transferÍncia Nos anos 90, cerca de 150 empresas multinacionais detinham um terço
das riquezas a serem expropriadas da classe trabalhadora, canalizando-as do faturamenío total das 500 maiores empresas privadas brasileiras, e a
para o financiamento dos grandes projetos do grande capital. Esse projeto hegemonia na maioria dos setores de alta tecnologia. Detinham mais de
implicava, necessariamente, a repressão do meio operário. 90% dos setores de pneus, veículos e medicamentos, 60% do de material
Em 1968, com a derrota das últimas grandes greves operárias, atos elétrico e eletrônico e de máquinas, e entre 30 e 40% das indústrias
finais e trágicos de resistência contra a ditadura do grande capital, em químicas, de alimentos, mineração e material de construção. Grandes
Contagem, Minas Gerais, e Osasco, São Paulo, o caminho ficou totalmente grupos estrangeiros passaram a atuar também nos setores de serviços, como
supermercados.
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O milagre económico inconformados serão expulsos e privados de seus mandatos. Cerca de 4


680 pessoas perdem seus direitos políticos, incluindo 1 260 militares, 300
O crescimento sob a égide das multinacionais e seus associados, os professores, 50 governadores ou prefeitos, 3 ex-presidentes e dezenas de
capitalistas locais e as grandes empresas do Estado, geridas por uma nova deputados federais, juizes e servidores públicos. Cerca de 150 militantes
e bem paga camada de dirigentes tecnocratas, elevou o Produto Interno políticos “desaparecem” e outros 180 são mortos. Câmaras de tortura são
Bruto do país à casa dos 210 bilhões de dólares, e a renda per capita à casa instaladas em várias capitais e pelo menos em São Paulo elas recebem apoio
de 900 dólares/ano, o dobro da que existia antes do golpe. Mas essa riqueza ativo de algumas grandes empresas.
foi apropriada pela burguesia, pois a participação dos salários na renda
urbana cai de 55% no início dos anos 60 para 52% em 1975, enquanto as O mais profundo e irreversível traço dessa fase de industrialização
rendas dos capitais passa de 45 para 48%. promovida pelas multinacionais associadas ao grande capital doméstico e
garantida pela forca das armas, foi o rompimento das estruturas agrárias
O processo é acompanhado por uma sensível deterioração na em vastas regiões do país - um rompimento que não havia ocorrido na
desigualdade social, medida através da participação das diversas faixas da era de Juscelino. Vários milhões de colonos e trabalhadores rurais foram
população na renda nacional. Os 10% mais ricos, que se apropriavam expulsos das fazendas, perdendo as vantagens marginais da condição de
de 45,4% da renda nacional em 1960, estavam se apropriando de 54% “colono”, mas sem ganhar as compensações de uma força trabalhadora livre
da renda de 1976. Para todo o resto da população, e para cada uma das mas organizada. Surgiram os “bóias-frias” no campo, e as grandes levas
faixas de renda desse resto, houve queda na participação entre 1960 de migrantes nas cidades. O Brasil, após o “milagre”, tornou-se um país
e 1970. As mais espetaculares consequências desse processo foram as urbano com mais de 60% de sua população vivendo nas cidades, e com
grandes epidemias de meningite, encefalite, paralisia infantil; o aumento ocupação na indústria, na construção civil ou nos setores de serviços.
na violência urbana, no número de favelados e de crianças abandonadas,
lado a lado com a opulência dos novos bairros burgueses e a majestade dos Bóias-frias no campo e trabalhadores em constante rotatividade nas
edifícios-sede de multinacionais nas grandes avenidas de São Paulo e do cidades - essa passou a ser a nova ordem em substituição à ordem social
Rio de Janeiro. juscelinista, que não promovia a expulsão do homem do campo e nem
julgou necessário destruir o sindicalismo pelego ou as garantias de
No Brasil, como no Ira, na Coreia do Sul, na Indonésia, o “milagre emprego. A industrialização chegou ao campo principalmente através da
económico” promovido em associação com as multinacionais se dá cultura da soja, que sintetizava todas as prioridades desse ciclo, porque
em condições de estrito autoritarismo e repressão política a todo e consumia insumos industriais em grande escala, liberava mão-de-obra, por
qualquer tipo de dissidência ou contestação. As dissidências da imprensa ser mecanizável, e se destinava, primordialmente, ao mercado externo.
burguesa são reprimidas com a censura; as contestações armadas serão
reprimidas com a tortura e execução sistemáticas; os políticos de carreira Em dez anos, a soja partiu do zero para ocupar um quinto de todas as

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terras aradas do país, provocando na sua esteira não só o êxodo rural, mas investimento estrangeiro reflete-se no que foi chamado de “balanço de
também a queda na produção dos alimentos tradicionais da população, divisas” das multinacionais no Brasil, um estudo realizado pelo Banco
o arroz, o feijão e a mandioca, a banana, a batata e até mesmo o milho - Central com base nos dados de 1974, mostrando que, somadas todas
uma queda que ao final dos anos 70 chegou a 30% para os oito principais as entradas de capitais de empresas multinacionais e mais seus ganhos
alimentos, por habitante urbano. em exportação, mas deduzidas suas importações (em geral das próprias
matrizes), suas remessas de lucros e pagamentos de royalties e de juros de
capital, o que resulta é um enorme déficit.
A crise do milagre
Uma única multinacional, a sueca Ericsson, provocou um déficit de 160
A crise do “milagre” foi basicamente a mesma crise de sempre da milhões de dólares em 1974. Um estudioso de empresas suecas no Brasil5
economia brasileira: inflação e falta de dólares para pagar todas as compras observou que “o balanço de pagamentos entre Suécia e Brasil começa
no exterior e permitir às empresas multinacionais o envio de todos os seus a se deteriorar, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que aumentam
lucros, assim como o pagamento aos bancos de todos os juros devidos. os investimentos suecos no Brasil, a partir de 1969, culminando com o
Mas, dessa vez, a ocorrência simult‚nea de uma violenta alta no preço do deficit-record de 238 milhões de dólares na balança comercial e de 220
petróleo e a própria dimensão da economia brasileira levou a uma situação milhões no balanço geral de pagamentos entre os dois países em 1975.
sem precedentes. A dívida externa de empresas nacionais e multinacionais Esse grande déficit é explicado principalmente pelas importações de
e estatais chegou, em 1980, a 57 bilhões de dólares (1/4 do Produto subsidiárias de empresas multinacionais suecas da própria matriz sueca, que
Nacional), o pagamento de juros dessa dívida consumia cerca de 5 bilhões se constituem em 80 a 90% de todas as importações dessas subsidiárias”.
de dólares, e as importações de petróleo dez bilhões, tomando somente O mecanismo é o mesmo para todas as multinacionais. A Volkswagen
esses dois itens metade de todos os ganhos com as exportações. provocou em 1974 um déficit de 91 milhões de dólares. Outro tanto foi
Crises de pagamentos têm. se repetido na história do Brasil. É uma provocado pela Pirelli. Dezenas de multinacionais provocaram déficits
característica das economias colonizadas permitirem ao capita! estrangeiro da ordem de 10 a 40 milhões de dólares cada uma. Uma consolidação
uma taxa de lucro mais alta do que a que obteriam em seus países de por setores - auto-peças, indústria elétrica e assim por diante - mostrou o
origem. No Brasil, essa taxa de lucro chega a 20 e até 25% do capital. mesmo quadro para os ramos dominados pelas multinacionais. Essa era em
Ao remeterem lucros tão altos, mais os pagamentos por royalties e peios
componentes comprados de suas matrizes, em aeral superfaturados, as
multinacionais contribuem para as crises de pagamentos.
. Claes Brundenius, The Case of Swedish Manufacturing Subsidiaries In Brazil, 1978.
Essa contradição básica no mecanismo económico baseado no
5

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O Paraíso das Multinacionais

parte a resposta das subsidiárias à crise geral do capitalismo6 - a ajuda que em 1982, após a abusiva alta dos juros no mercado do eurodólar, o Brasil
davam à matriz após 1974, aumentando ainda mais suas importações ou quebrou, vendo-se obrigado a decretar a moratória da dívida externa.
remetendo mais juros e lucros. Mas um estudo da Comissão Parlamentar Seguiram-se dez anos de uma política profundamente recessiva e uma
de Inquérito sobre as multinacionais, deixando de lado as importações desvalorização de 30%, para aumentar os excedentes exportáveis.
e exportações, e considerando apenas entradas e saídas de capital de um O Brasil passou a gerar o terceiro maior superavit comercial do mundo,
grupo de 11 gigantescas multinacionais, entre 1965 e 1975, concluiu cerca de 12 bilhões por ano, mas toda essa renda era devolvida ao
que todas elas, sem uma única exceção, tiraram mais dólares do Brasil centro industrializado na forma de juros extorsivos da dívida. A própria
do que colocaram. De novo o exemplo mais extremo é o da Volkswagen dívida não parava de crescer, atingindo 120 bilhões em 1990. a maior
que, somando todos os seus investimentos no Brasil até 1975 e ainda os do mundo. Sem recursos, o país parou de investir em infra-estrutura. A
reinvestimentos (que não representam aporte de moeda de fora, mas lucro taxa de investimento caiu de 25 para apenas 17% do PIB’, enquanto o
gerado internamente), totalizou menos do que remeteu ao exterior no próprio PI B estagnava, apesar do aumento da população. Seguiu-se o
mesmo período, deixando um rombo de 159,6 milhões de dólares. Como desemprego e a miséria em escalas inimagináveis no Brasil. Assim, se deu
todas, em maior ou menor grau, e com raríssimas exceções (uma exceção a “década perdida”, resultado das contradições e do caráter dependente
é a Bungy Bom argentina), funcionam segundo o mesmo mecanismo, não do crescimento trazido pelas multinacionais. A única resposta das elites
há como gerar esses dólares. O Brasil é um exportador de capital - e capital dirigentes à essa profunda crise foi, mais uma vez, oferecer o património
que não tem. A crise periódica de pagamentos é inevitável. A alienação de nacional, oferecendo a preço vil, aos banqueiros e às multinacionais, as
património, para obter esses dólares, previsível. grandes empresas estatais.

A crise da dívida externa


Tentando superar a crise do milagre, o regime militar tomou novos
empréstimos para importar o. petróleo consumido pela classe média, e,
depois, para pagar os empréstimos vencidos e seus juros. Mesmo assim,

6
. Segundo a Gazeta Mercantil, as multinacionais também especularam em grande escala no chamado “mercado
aberto”, após a crise, como forma de remunerar seus capitais, contribuindo assim para o surto de inflação. A Volk-
swagen teve 573 milhões de cruzeiros de lucros “não operacionais” em 1977, em comparação com apenas 9,5 milhões
de lucros operacionais. Todas as multinacionais, virtualmente, apresentaram enormes lucros não operacionais nesse
período, frequentemente superiores aos lucros de suas operações produtivas.

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O Que São Multinacionais

O Futuro das Multinacionais


Bernardo Kucinski
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O Futuro das Multinacionais

As multinacionais estão na vanguarda da criação tecnológica e da 2300 dólares o quilo, por exemplo (sulfato de gentamicina, no caso), foram
renovação dos métodos de produção, pois a concentração do capital importadas por multinacionais, no Brasil, ao custo de 8000 dólares o quilo.
em suas mãos levou também à concentração do saber, da pesquisa, do Na verdade, as multinacionais farmacêuticas controlam a produção e o
conhecimento - e das patentes. À medida que essas empresas foram comércio mundial dessas subst‚ncias, pois é assim que exercem seu domínio,
estabelecendo mais e mais subsidiárias, a transferência dessas patentes foi- especializando-se cada uma em um grupo de produtos. As fontes alternativas,
se restringindo mais e mais a um circuito fechado, entre fábricas de um a custo muito inferior, encontram-se nos países de economia socialista, ou
mesmo grupo, entre as subsidiárias e a matriz. E os pagamentos por essa alguns mercados capitalistas Isolados, como Itália que por motivos específicos
transferência nada mais eram do que remessas disfarçadas-de lucro. não reconhecem as patentes sobre produtos farmacêuticos.
As rendas de royalties das matrizes das multinacionais americanas O monopólio do conhecimento e da tecnologia confere às multinacionais
saltaram de 1,4 bilhões de dólares anuais, em 1966, para 2,6 bilhões, a capacidade de comandar a dinâmica do processo de desenvolvimento
cinco anos depois. Algumas economias periféricas sob domínio das económico - comandar o próprio futuro. Confere também às
multinacionais, como Brasil e México, já dispendiam cerca de 200 a 400 multinacionais, ao lado de sua capacidade financeira, a capacidade de
milhões de dólares por ano, em pagamentos de royalties patentes. Nos usar uma escala de tempo em que a unidade não é o ano, mas a década. A
anos 90, o fluxo líquido de todas as rendas auferidas pelas multinacionais, multinacional pode “perder dinheiro” durante anos em determinado país
da periferia para o centro industrializado, atingia a casa dos 10 bilhões de ou circunst‚ncia, se considerar esse “investimento” necessário.
dólares anuais. O processo é auto-alimentador. pois essas rendas aumentam Por esse seu papel-chave na din‚mica do processo produtivo, as
ainda mais a capacidade de investimento em pesquisas das multinacionais, multinacionais são consideradas descendentes diretas da pequena oficina
mantendo-as sempre na vanguarda tecnológica. Somente frações mínimas que, operando a partir dos interstícios da economia feudal, das pequenas
dessas pesquisas, da ordem de 3 a 6% do total, são realizadas em suas vilas e cidades relativamente independentes do senhor feudal, levaram à
subsidiárias, de forma que a dinâmica do processo de criação permanece revolução industrial e ao capitalismo industrial, destruindo esse mesmo
sob controle da matriz. feudalismo. Note-se que grandes empresas coloniais, as companhias de
Há uma família de empresas multinacionais - as multinacionais merchant adventurers, do século XVII, financiaram em grande parte essa
farmacêuticas - que raramente remetem lucros ao exterior, mas pagam industrialização.
um sobre-preço pelas subst‚ncias básicas que compram exclusivamente de Mas, foi a pequena oficina que a efetivou com sua força motora. Daí a
suas matrizes a preços superiores aos de fontes alternativas. Essa também é permanência da fábrica e o desaparecimento das merchant adventurers
uma forma de exploração do monopólio da patente, através do produto e - muitas delas criadas para levar a cabo uma única e bem proveitosa
não do processo. Estudos recentes mostram que substâncias disponíveis a expedição, o que explica o nome adventurers.

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Bernardo Kucinski
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O Futuro das Multinacionais

Nos interstícios do mundo Mas essas facilidades tinham limites - os limites determinados em
parte pelo papel do Congresso na formulação das leis do país, em parte
As multinacionais modernas também tiveram a necessidade de pêlos efeitos posteriores da maciça transferência de produção para fora
“interstícios”, à medida que sua expansão, atravessando todas as fronteiras, dos Estados Unidos, provocando reações dos sindicatos. Em 1971, o
foi sendo obstaculizada por leis, regulamentos e políticas definidos em Congresso aprova o DISC - Domestic International Sales Corporation -,
escala de países. estendendo a empresas que exportassem toda a sua produção, a partir de
Numa primeira etapa, as leis norte-americanas foram sendo alteradas fábricas instaladas nos Estados Unidos, as mesmas vantagens fiscais dadas
para atender aos interesses crescentes da internacionalização das empresas às operações de multinacionais fora dos Estados Unidos. Era o bumerangue
americanas - principalmente as leis que regem taxação de lucros excessivos, em ação. Era preciso agora estimular empresas multinacionais a manter sua
pois a taxa de lucros das subsidiárias no exterior é sistematicamente maior produção dentro dos Estados Unidos, e a filosofia do sistema oferecido se
do que dentro dos Estados Unidos. Na Europa e no Japão, isso não foi parecia à dos “benefícios para exportação” (BEFIEX), criados no Brasil para
necessário, pois o Estado, nessas áreas, sempre fora o patrocinador da estimular as exportações.
formação dos grandes grupos - inclusive como instrumento de poder do Em 1971, quando o DISC foi implantado, a produção das
próprio Estado. A toler‚ncia desses governos e sua cumplicidade com os multinacionais americanas no exterior era avaliada em 172 bilhões
interesses dos grandes grupos tornaram-se aspectos normais do cotidiano. de dólares, quatro vezes mais do que o valor das exportações feitas
As leis americanas passaram a permitir, por exemplo, que as pêlos Estados Unidos (na sua maior parte oriundas dessas ‘mesmas
multinacionais adiassem pagamentos de impostos, desde que os lucros multinacionais). Os conflitos entre multinacionais e regulamentos
ganhos no exterior ficassem no exterior. Elas estimulavam o reinvestimento aumentavam. As multinacionais dentro dos Estados Unidos passaram a
no exterior. E, quando os lucros são finalmente repatriados, a empresa sistematicamente cometer crimes contra a economia. Um levantamento da
pode deduzir os impostos já pagos aos governos estrangeiros - dentro revista Fortune revelou que uma em cada dez grandes empresas americanas
de limites. Uma lei especial foi baixada em 1942, criando o Western envolveu-se em casos graves de violação das leis, de 1970 a 1980. Esses
Hemisphere Trade Corporation - sistema que omitia a empresas operando
casos incluíam 28 episódios de suborno, ou descontos especiais, 21 de
especificamente na América Latina pagarem menos imposto de renda. E,
contribuições políticas ilegais, 11 de fraude e cinco de evasão fiscal. Além
a partir de 1971, foi criada a Overseas Private Investment Corporation
(OPIC), a única empresa pública americana, em que têm assento disso, as multinacionais exploravam a fundo as falhas jurídicas do sistema
representantes do setor privado - as multinacionais - e cuja finalidade (loopholes), sendo as únicas capazes de pagar salários monumentais aos
era cobrir riscos “políticos” de investimentos americanos no exterior. Em mais atilados escritórios de advocacia e tributação. Episódios de suborno
conjunto, essas e outras leis equiparam as multinacionais americanas para a e corrupção marcam a presença das multinacionais, obviamente em todos
conquista do mundo e acúmulo de lucros em escala grande. os países em que atuam - e apenas chamaram mais atenção porque o poder
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Bernardo Kucinski
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de corrupção dessas empresas era gigantesco, imbatível, e os flagrantes O mercado do “eurodólar”


contrastavam com a imagem cuidadosamente construída dessas empresas
como entidades universais que agem primordialmente em função de um Com o final da Segunda Guerra Mundial, nasceu o que seria o maior
bem-estar social. Mas, nada disso foi suficiente para o desenvolvimento pool financeiro de todo o mundo em todos os tempos, destinado a
pleno e as necessidades de evasão fiscal das multinacionais, que passaram a desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento pleno das
ressuscitar alguns velhos esquemas e criar outros novos, nos interstícios do multinacionais. Tratava-se do “mercado do eurodólar”. Agências de bancos
mundo, a começar pelas contas numeradas na Suíça. europeus começaram a transacionar com alguns saldos de créditos em
dólar, oriundos das aplicações do Plano Marshall - o plano de reconstrução
Os bancos privados suíços surgiram da necessidade que tinham os economica da Europa sob patrocínio americano. Eram créditos que
protestantes ricos, fugidos da perseguição do Rei da França, no século permitiam comprar mercadorias americanas, o que em última análise
XVII, de transferir suas posses para o exterior. Com a dificuldade de permitia comprar qualquer coisa em qualquer lugar, pois seu valor último
contrabandear ouro, foram contrabandeando dinheiro, às vezes através de era resgatável pelo governo americano. Com o passar dos anos, mais e mais
transações comerciais fictícias. saldos de operações eram repassados por mais e mais sucursais de bancos
Esses capitais, obviamente ociosos num pequeno país como a Suíça, americanos ou europeus, em Londres, e aos poucos em outras praças.
acabavam sendo emprestados à França, inclusive ao próprio Rei, para Esse sistema, que foi se tomando mais variado e complexo em formas de
financiar suas aventuras bélicas. As falências e outros escândalos que transação e mais importante em volume de recursos, passou a ser chamado
surgiam ao sabor das derrotas militares levaram ao estabelecimento de uma de “mercado do eurodólar”, um mercado formado hoje por algumas
rígida legislação, até hoje em vigor na Suíça, proibindo a divulgação de centenas de agências de bancos de todo o mundo sediadas na Europa, e
dados sobre as contas bancárias. Uma tentativa dos nazistas de descobrir que captam recursos, em geral de curto prazo, repassando-os a clientes
possuidores alemães dessas contas reforçou ainda mais a legislação, na forma de empréstimos de prazo longo. O juro, mais uma novidade,
nascendo assim a “conta numerada”, cuja identidade só uma ou duas é flutuante, sendo reajustado de seis em seis meses em geral. Esse foi o
pessoas em todo o banco sabem. Esse é um “interstício” típico do período mercado dos dólares com que os Estados Unidos inundaram o mundo,
das guerras interimperialistas, com as mudanças repentinas e brutais na exercendo uma hegemonia que se baseava em grande parte na hegemonia
vida de empresas e das pessoas. Ainda hoje é para a conta numerada da de sua moeda.
Suíça que os ditadores e todos os que podem e temem mandam recursos
para uma emergência, a salvo das leis de seu próprio país, e protegidos Foi desse mercado que surgiram os grandes capitais financiadores da
pelas leis da Suíça. No final dos anos 60, havia 13 bilhões de dólares nessas expansão das multinacionais, especialmente em países como o Brasil,
contas suíças. tradicionais tomadores de empréstimos em moeda forte. Foi nos
períodos de liquidez excessiva nesse mercado que se deram os booms das
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multinacionais. Calcula-se que o mercado do eurodólar totaliza recursos processo produtivo, enquanto o capital financeiro se contenta com o
da ordem de 1 trilhão de dólares. Mas é uma estimativa apenas, pois é papel subalterno e “parasita”, por assim dizer, de viver dos juros de seus
virtualmente impossível discriminar todas as operações e concluir o volume empréstimos. Os bancos do sistema do eurodólar, que deslocaram a um
líquido de recursos. Os bancos do mercado do eurodólar, operando em plano secundário todas as outras instituições financeiras, reciclam capitais
cada país com moedas que não são daquele país, não estão submetidos de terceiros de curto prazo em empréstimos de longo prazo, não sendo em
aos controles financeiros locais. Muitos desses bancos já são associações de sua maior parte donos do próprio dinheiro. Esses capitais de curto prazo
bancos de várias nacionalidades. são os mesmos saldos de créditos, pagamentos, oriundos das transações
Nesse mercado as multinacionais podem levantar empréstimos da entre as multinacionais - são as duplicatas do comércio internacional,
ordem de 100 e até 500 milhões de dólares, com a facilidade com que denominadas, em sua maioria, em “US$ dólar”.
uma empresa nacional faz um empréstimo de 1 milhão de cruzeiros no Quando há uma crise aguda de pagamentos, como a da economia
banco da esquina. O empréstimo é anunciado aos bancos potencialmente brasileira a partir de 1974, as soluções propostas pelo sistema financeiro
interessados, por um ou mais bancos “líderes”, e em questão de poucos dias internacional - basicamente as matrizes dos bancos do mercado do euro-
a operação se completa por telex, com dezenas de bancos entrando cada dólar - divergem das soluções particulares desejadas pelas multinacionais
um com algumas dezenas de milhões de dólares. É nesse mercado que se produtivas. O capital financeiro exige o remédio drástico e clássico da
encontram os grandes credores da dívida externa brasileira. recessão, como forma de liberar excedentes para exportação (que possam
Com o mercado do eurodólar, as multinacionais resolveram o problema assim gerar divisas para pagamento da dívida), e deprimir salários
do gigantismo de seus movimentos de capital, passando por cima das (para baixar o custo dessa produção). Mas o capital industrial, que tem
fronteiras e das leis nacionais. Ao mesmo tempo, confirmaram a liderança património substancial enraizado nesses países, e tem portanto seu destino
do processo produtivo no ciclo da acumulação, na atividade fundamental físico vinculado ao destino desses países, é menos favorável à recessão,
de acumular lucros e investilos cada vez mais, que é a essência do sistema. preferindo soluções de compromisso que preservem ao máximo a atividade
De fato, com a exceção quase que exclusiva da Alemanha, país no qual produtiva e a estabilidade política do regime. O capital financeiro, por
quase toda a grande economia - inclusive as multinacionais - está sob sua natureza, é ainda hoje um capital estritamente aventureiro, “de risco”,
controle de quatro bancos, são as multinacionais produtoras que geram os que pula de oportunidade histórica em oportunidade histórica, deixando,
recursos financeiros que os bancos apenas repassam. E, no caso dos Estados atrás de si, em geral apenas terra arrasada. Não é esse o interesse das
Unidos, foram as fortunas dos trustes que criaram os grandes bancos, e não multinacionais produtivas.
o inverso.
As multinacionais estão aí mostrando que o comando é ainda do

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Os paraísos fiscais O aperfeiçoamento e a proliferação dos paraísos financeiros permitiu o


surgimento de um tipo de empresa multinacional que é ainda exceção no
A muiíinacionalização da economia precisou de muitas outras formas cenário, mas que representa, sem dúvida, um salto na internacionalização
de manuseio, guarida e manipulação de recursos, à margem das leis de do capital - e um indício de crescente interconexão dos vários capitais.
cada país - o que foi obtido através do estabelecimento de uma vasta teia O exemplo típico é a Atlanótic Development Group for Latin América
de “paraísos financeiros”, ou “oaraísos fiscais”, nos quais grandes empresas (ADELA), formada no início da década de 60 com capitais de 235
e seus executivos não pagam impostos proporcionais a seus lucros, mas grandes bancos e empresas industriais dos Estados Unidos, Europa,
apenas uma taxa fixa, como se fosse o aluguel de “um cofre. Gibraltar Japão e grupos locais da América Latina. São sócias da ADELA algumas
e as ilhas brit‚nicas de Guernsey e Man fornecem essas facilidades. No das mais importantes multinacionais, como a IBM, a Ford, a Dupont, e
Caribe, as Bahamas, Bermudas e Ilhas Cayman também tornaram-se bancos como Bank of América e Barklays Bank. A ADELA tem sua sede
sede de grandes multinacionais e grandes bancos, ali instalados com o no Ducado de Luxemburgo, um paraíso financeiro, e controla numerosos
único objetivo de burlar as leis não de um, mas de todos os países. Alguns empreendimentos, especialmente na agropecuária, além de participar
“paraísos fiscais”, como Andorra e Lichtenstein, especializaram-se em minoritariamente em muitos outros. No Brasil, para citar apenas alguns, a
oferecer proteção fiscal à “pessoa física”, aos executivos das multinacionais. ADELA tem participação em Porcelanas Schmidt, Martini Nordeste, Brasil
As Novas Híbridas, ilhas do Pacífico de soberania multinacional - um Safari Tours e cerca de 35 outras empresas. Muitas dessas participações
consórcio entre França e Inglaterra -, oferecem a mais moderna legislação são de caráter exploratório, e visam, principalmente, manter as empresas
fiscal de proteção às multinacionais. participantes informadas de novas tendências e oportunidades.
Completando esse conjunto de facilidades operacionais, foram criados
em alguns países “enclaves” nos quais multinacionais podem produzir
parte de um bem e reexportar o produto final, livre do imposto. Em Hong Os trabalhadores e as multinacionais
Kong, Taiwan, no Brasil (através da Zona Franca de Manaus) há enclaves Um trabalhador da Ford nos Estados Unidos recebe 11 dólares por hora
desse tipo, verdadeiros entrepostos de produção, onde a mão-de-obra é, em de trabalho, duas vezes mais do que recebe um trabalhador da mesma
geral, de custo vil, e as taxas reduzidas a zero. Não se trata, no entanto, de empresa no México ou na Espanha, e dez vezes o que recebe em média
uma modalidade dominante de produção, embora tenha peso em alguns um trabalhador da Ford em São Paulo. Ou seja, o trabalhador paulista da
setores, como o de aparelhos de som e TV, que exigem mão- de-obra não fábrica Ford, em média, precisa trabalhar dez horas para ganhar aquilo que
qualificada em grande escala, tendo sido desenvolvidos em países onde a em uma hora ganha seu companheiro norte-americano. Em graus variados,
mão-de-obra típica é altamente qualificada e cara, como o Japão. Também essa discrep‚ncia se repete em todos os estudos comparativos de salários
a indústria têxtil e de confecção tem procurado essas “zonas francas”. de trabalhadores de unidades diferentes de uma mesma empresa sediada
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em países diversos. E essa está sendo cada vez mais a razão pela qual as a fechar suas fábricas antigas, por encontrarem melhor produtividade no
multinacionais procuram instalar unidades produtivas em países periféricos exterior. Entre outras a Singer, a IBM, a General Electric, a Ford, a Philco
- ao passo que nos primórdios da multinacionalização era a disputa por fecham fábricas nos Estados Unidos. Um estudo de sindicatos americanos
matérias-primas, principalmente, que levava empresas a criar subsidiárias. mostra que, em três anos apenas, 19 empresas fecharam fábricas nos
As multinacionais japonesas, tradicionalmente protecionistas em relação Estados Unidos. Muitas abriram unidades de produção na fronteira do
a seus trabalhadores no Japão, também estão se valendo cada vez mais das México, onde empregam cerca de 200 mil trabalhadores. As exportações
facilidades dessa nova divisão internacional do trabalho, e transferindo de manufaturados de países periféricos, dessa forma, saltaram de 10%
numerosas etapas de seu processo produtivo ao exterior. No começo do total das exportações mundiais, em 1960, para 18% em 1970. Nesses
da década de 70, 20% de um grupo representativo das multinacionais países centrais, a classe operária desenvolveu poderosos sindicatos, mas
japonesas havia transferido etapas do processo produtivo ao exterior com se mostrou impotente frente a essa virtual “traição” das multinacionais,
o objeíivo específico de baratear a produção. O mesmo se deu com a Viciadas na luta meramente economicista, permitindo que os monopólios
indústria alemã, especialmente a indústria têxtil e de confecções que, além tomassem conta de toda a vida nacional sem restrições, participando de um
de importar milhares de guestarbeiter da Turquia, procurou se estabelecer sistema político em que usualmente dois grandes partidos se alternam no
na África do Norte e Sudeste da Ásia, em busca de mão-de-obra mais poder, sem nunca alterar a natureza desse poder, os trabalhadores acabaram
barata. A crise do petróleo, encarecendo a energia para o Japão e Alemanha, dormindo na própria cama que ajudaram a preparar - e hoje se vêem
mais do que para os Estados Unidos, acelerou ainda mais esse processo. O enfraquecidos pela existência de 15 a 20 milhões de desempregados nos
alcance da nova divisão internacional do trabalho pode ser medido pelo países do centro.
fato de que, em 1960, praticamente não havia produção industrial na A transferência de etapas da produção para a periferia não só reduziu
periferia, destinada aos países industrializados do centro. Dez anos depois, custos de mão-de-obra, mas reduziu o próprio poder de barganha da classe
havia fábricas’ em 39 países, produzindo para os países do centro. trabalhadora nos lugares onde esse poder existia em algum grau. Apesar
Nos países industrializados do centro, mas com taxas declinantes de de conscientes do fenômeno da multinacionalização da produção, os
aumento da produtividade - Estados Unidos e principalmente Grã- sindicatos que mais podiam organizar uma frente multinacional também
Bretanha -, instalou-se o desemprego crónico, à medida que ramos de trabalhadores - os sindicatos dos países centrais - não conseguiram
inteiros da indústria manufatureira iam sendo erradicados pelas empresas nunca desenvolver uma ação eficaz nesse sentido. O capital internacional
- como a indústria de calçados na Grã-Bretanha e a indústria de aparelhos uniu-se muito antes que os trabalhadores de todo o mundo se unissem.
eletrônicos nos Estados Unidos. As grandes multinacionais americanas,
que partiram do território americano para conquistar o mundo, passaram

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Novas contradições renegociação de dívida com o capital financeiro, ou numa operação de


“socorro” sob o manto do Fundo Monetário Internacional, interrompe-se
Mas nada disso quer dizer que as multinacionais e esse capital cada vez a lua-de-mel do sistema. Esse problema seria mais facilmente resolvido pela
mais interligado, monopolista e concentrado, descobriram a fórmula da adoção de uma moeda universal que, ao contrário do dólar ou dos Direitos
longa vida. Apenas desenvolveram formas mais complexas de atuação, e Especiais de Saque, criados pelo FMI, fosse também a moeda de circulação
com elas contradições novas. A principal é a contradição entre os interesses interna de todos os países capitalistas.
desse capital multinacional e as aspirações dos povos, que se manifestam
essencialmente no ‚mbito de uma cultura nacional, de uma luta política “O ideal é que o mundo todo fosse um único e grande país, com uma
nacional. As multinacionais só foram capazes de opor resistência a avanços moeda única e estável”, já disse uma vez o responsável pelas operações
decisivos da luta popular quando as burguesias locais, que pertencem à financeiras da Unilever, Hans Osi. Isso não vai acontecer facilmente.
formação local, também eram capazes e estavam dispostas a opor essa
resistência, como ocorreu no Chile com a derrubada de Allende e no
Brasil com a derrubada de Goulart. Mas ocorre que o próprio avanço do
capital internacional e sua interligação com capitais locais dilui a força das
burguesias locais, que passam a ser integrantes de um todo multinacional,
inclusive do ponto de vista de sua identificação cultural. Com isso, elas
perdem sua força política - tornam-se um gigante de pés de barro do
ponto de vista político. Somente os trabalhadores permanecem como
depositários da cultura e dos interesses nacionais, e com isso aumenta a
sua força, a força de suas articulações políticas. O futuro das multinacio
nais ainda depende do futuro de cada país, principalmente dos grandes
países, e do futuro do capitalismo em geral. O domínio da multinacional
sobre a criação tecnológica, sobre os mercados e mesmo sobre aparelhos de
governos é impotente frente à luta política, quando esta sobe ao centro do
palco. Essa foi a grande lição da revolução iraniana.
Finalmente, as multinacionais não conseguiram resolver o grande drama
da incapacidade da maioria dos países periféricos de pagar a taxa de lucro
desse capital em moeda forte. E cada vez que esse drama culmina numa

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Bernardo Kucinski
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AS 30 MAIORES MULTINACIONAIS POR VALOR DE VENDAS MULTINACIONAIS NO BRASIL


Maiores empresas privadas por valor de vendas
US$(bn) Sede
US$ (bn) Sede
1.General Motors 126,9 USA
2.Ford Motor 96,9 USA 1.Volkswagen 3,7 Alemanha
3.Exxon 86,6 USA .2.General Motors 3,3 USA
4.Royal Dutch-ShelI 85,5 Ingl./Hol. 3.Souza Cruz 3,0 Inglaterra
5.IBM 63,4 USA 4.Shell 2,9 Ingl./Hol.
6.Toyota Motor 60,4 Japão 5.Pão de Açúcar 2,4 Brasil
7.General Electric 55,2 USA 6.Ford 2,3 USA
8.Móbil Oil 50,9 USA 7.Esso 2,2 USA
9.Hitachi 50,9 Japão 8.Copersucar 2,0 Brasil
10.British Petroleum 49,5 Ingl. 9.Carrefour 2,0 França
11.IRI 49,1 Itália 10.Norberto Odebrecht 1,9 Brasil
12.Matsushita Electric Ind 43,0 Japão 11.Varig 1,9 Brasil
13.DaimIer-Benz 40,0 Alemanha 12.Nestié 1,8 Suíça
14.Philip Morris 39,1 USA 13.Mercedes-Benz 1,7 Alemanha
15.FIAT 36,7 Itália 14.Texaco 1,5 USA
16.Chrysler 36,1 USA 15.FIAT 1,5 Itália
17.Nissan Motor 36,1 Japão 16.Atlantic 1,4 USA
18.Unilever 35,3 Ingl./Hol. 17.Philips 1,4 Holanda
19.E. l. du Pont de Nemours 35,2 USA 18.IBM 1,4 USA
20.Samsung 35,2 Coreia do Sul 19.Camargo Corrêa 1,2 Brasil
21.Volkswagenwerk 34,7 Alemanha 20.C. R. Almeida 1,1 Brasil
22.Siemens 33,0 Alemanha 21.Cevai 1,1 Brasil
23.Texaco 32,4 USA 22.Ipiranga 1,0 Brasil
24.Toshiba 29,5 Japão 23.Lojas Mesbla 1,0 Brasil
25.Chevron 29,4 USA 24.Gessy-Lever 1,0 Holanda
26.Nestié 29,4 Suíça 25.Lojas Americanas 1,0 Brasil
27.Renault 27,4 França 26.Sendas 0,9 Brasil
28.ENi 27,2 Itália 27.Andrade Gutierrez 0,9 Brasil
29.Philips Gloeibiampen 26,7 Holanda 28.Rhodia 0,9 França
30.Honda Motor 26,5 Japão 29.Paes Mendonça 0,9 Brasil
30.Agrícola de Cotia 0,9 Brasil
Fonte: Fortune, 30 de julho de 1991; valores de balanços de 1989.
Fonte: Maiores & Melhores, ed. 1990; dados de 1989

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