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ISBN:
1ª edição: Março/2022.
Todas as referências bíblicas, quando não citada outra fonte, foram extraídas da
Bíblia Sagrada Revista e Corrigida, Edição em Letra Grande. Traduzida por João
Ferreira de Almeida e publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, São
Paulo, 1995.
Pensamentos
“Porque dele, e por ele, e para ele
são todas as coisas; glória, pois, a
ele eternamente. Amém!”
(Romanos 11:36).
“A História não é apenas para ser
contada, é para ser analisada”.
(Autor desconhecido)
Hilda Laura, Heleni das Graças, Cleusa Helena, Joana Neusa, 1 Marli Aparecida e
Luiz Roberto Boaventura. Mãe, irmãs e irmão.
1
Joana Neusa (1953-2017) já não mais está entre nós; faleceu ao amanhecer do sábado, 29 de julho
de 2017, vencida por um agressivo câncer aos 64 anos. Foi bruscamente arrancada de nosso meio.
Em seu lugar, ficou a saudade e a firme esperança de encontrá-la do outro lado da vida.
In memoriun
“Que saudade que nos vem a lembrança
Daqueles que já partiram para Deus,
Mas nós temos uma viva esperança
De revê-los novamente lá no céu.”
(Conjunto Voz da Verdade)
MapeandoCuriosidades
“A ilusão do voto popular manipula a pobreza de espírito.”
(Ivan Santos - jornalista)
7
Mesmo diante de uma acentuada e constante queda, o Brasil é de longe a mais populosa nação
católica do globo. Desfruta de um invejável legado religioso amalgamado politicamente com os
anseios da monarquia portuguesa e não fugiu à regra: perdurou oficialmente nos impérios petrinos.
Diante de mútuos interesses, o catolicismo somente perdeu sua hegemonia de religião oficial quando
da Proclamação da República em 15 de novembro de 1889. A Constituição de 1891, a primeira
republicana, fez dos Estados Unidos do Brasil uma nação tecnicamente laica.
8
Na segunda viagem que Cristóvão Colombo (1451-1506) realizou às Caraíbas, entre 1493 a 1496,
havia entre os marujos uma equipe de doze sacerdotes espanhóis. Aqueles sacerdotes realizaram a
primeira missa no povoado de La Isabela, atual cidade de São Domingos, capital da República
Dominicana. Porém, geograficamente a República Dominicana não se encontra ligada às Américas;
é sim uma ilha caribenha. Com relação ao ato religioso, o assunto foi muito bem expresso por um
conceituado pesquisador americano o qual enfatiza: “Bárbara, incompleta, La Isabela foi formalmente
fundada a 6 de janeiro de 1494, um dos dias mais importantes do calendário cristão, o Dia da
Epifania do Senhor [...] Doze sacerdotes dedicaram a colónia numa igreja improvisada em terra.
Tratou-se da primeira missa celebrada no Novo Mundo” (BERGREEN, 2014, p. 194).
pelados nativos brasileiros participaram daquele ritual católico. Ali estava nascendo
o sincretismo que ainda hoje continua muito em voga por todo o Brasil. Aquele
serviço religioso demarcou a simbologia do sagrado em uma terra que foi achada do
lado oposto do oceano Atlântico. O doutor Gedeon Alencar, professor e um bem-
humorado sociólogo de linha pentecostal, apimenta o sabor das pesquisas ao fazer
as seguintes observações, referindo-se a quando as naus portuguesas tropeçaram
nessa imensidão de terra: “Uma missa foi celebrada como tomada de posse. A elite
econômica financiando, a Igreja legalizando e os índios assistindo” (ALENCAR,
2005, p. 27). A legalidade de posse criou uma mais valia em que perpetuou o
apadrinhamento. Ainda hoje os índios e grande parte da população estão
passivamente assistindo às decisões de alguns poderosos caciques mal-
intencionados! Essa legalidade político-religiosa criou mais Brasília e menos Brasil,
mais caciques e menos índios!
Quando o comandante Álvares Cabral e suas naus tropeçaram naquela
imensidão de terra desconhecida,9 o Portugal de então era católico de religião,
cultura e costumes. Sob espada e fogo, 10 exigiu que a religião daquele que viria a
ser o quinto mais extenso país do globo fosse também católica. Em dimensão
terrirtorial, o Brasil é noventa e três vezes maior que Portugal e, por ordem
crescente, está atrás apenas dos Estados Unidos, da China, do Canadá e da
Rússia.
O Brasil faz fronteiras com dez nações, seguindo uma divisória contorcida
com quase 17 mil quilômetros de extensão, sem enumerar os outros sensíveis sete
mil quilômetros de costa atlântica. Tudo resumido em quilômetros quadrados, o
Brasil ocupa cerca de 47% de todo espaço físico da América do Sul, sendo uma
gigantesca área geográfica. Em virtude de sua miscigenação, o Brasil é uma nação
sui generis, notabilizada pelas inovações do quebra-galho, do jeitinho político, da
perspicácia, da malandragem, da boemia, do Carnaval, além de uma doentia paixão
pelo futebol.
Também é guardião natural das praias originalmente cristalinas e límpidas.
Sem contar os vastíssimos e verdejantes campos, os cerrados, os pampas, os
agrestes, as florestas e os caatingais do Nordeste. 11 Doutor Patrick Johnstone
(1938-), um missiólogo e pesquisador britânico, afirma que “o Brasil é um caldeirão
de nações”. Outros estudiosos afirmam: “O Brasil não tem cara”. Uma incontestável
verdade em grau, número e gênero. Esse é o Brasil de toda gente!
9
“Há um grande debate a respeito de Cabral ter ou não sabido da existência do Brasil antes de
zarpar. Embora não seja inconcebível que ele fizesse alguma ideia da possibilidade de haver uma
massa terrestre mais ou menos na região do Brasil, não há indicação de que a frota cabralina
houvesse planejado visitar esse território maldefinido a caminho do Oriente.” (WILCKEN, 2005, p.
292)
10
Sarcasticamente, o conceituado jornalista Ivan Santos golpeia humoristicamente o cerne da
sistematização do profano emoldurado pelo sagrado: “Os Príncipes da Igreja mandam e não pedem.”
(SANTOS, 2019, p. 56)
11
“Nosso céu tem mais estrelas/Nossas várzeas têm mais flores/Nossos bosques têm mais
vida/Nossa vida mais amores”. Esbravejou, cheio de uma retórica ufanista e de orgulho, o jovem
maranhense Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), um nacionalista brasileiro, enquanto estudante de
Direito na centenária Universidade de Coimbra em Portugal.
O cruzamento ou a miscigenação da raça humana no Brasil formou um povo
diferente em todos os aspectos. Essa é a gente brasileira: um povo alegre por
natureza, comunicativo, promotor e realizador de festas, bem-humorado, guerreiro e
trabalhador! Nunca o estereótipo do encomendado Zé Carioca, aquele egolátrico
personagem que vislumbrou uma geração de leitores dos antigos gibis, ou bandas
desenhadas, como preferem os portugueses.
Quando chegou ao Brasil, em 1956, Bill Elwood Watson (1930-2016), um
jovem missionário procedente dos Estados Unidos, ficou surpreso com as
características dos habitantes da terra. “Comecei cedo a buscar o brasileiro típico
entre as multidões que vi nos trens e nas ruas do Rio. Nunca pude encontrá-lo, nem
encontrá-la. A variedade era grande demais, pelo menos em aparência física”
(WATSON, 2008, p. 21).
Gilberto Freyre (1900-1987), o ainda respeitado sociólogo pernambucano,
entretanto taxado de bairrista por uma gama de acadêmicos, enfatiza com muita
razão em sua famosa obra Casa Grande & Senzala: “Híbrida desde o início, a
sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais
harmoniosamente quanto às relações de raça” (FREYRE, 2001, p. 163). O Brasil,
esse indomável gigante da América do Sul, continua sendo o misterioso país onde
se opera a miscigenação racial, cultural, religiosa e social.
Darcy Ribeiro (1922-1997), que foi um intelectual e educador mineiro nascido
na cidade de Montes Claros, prefaciando Casa Grande & Senzala, enfatiza seus
conhecimentos de antropólogo ao referir-se à formação gentílica do Brasil.
Nele surgem, redivivos, os variados avós índios, negros, lusitanos e, por via desses,
mouros, judeus e orientais que plasmaram o brasileiro com suas singularidades de
gente mestiça de todas as raças e de quase todas as culturas, além de aquinhoada de
bens trazidos de toda a terra. (FREYRE, 2001, p. 29).
Pelos vieses desses plasmas, o Brasil constitui o país mais concentrado, onde
a média de 85% daqueles que se identificam brancos tem sangue de negro ou índio,
o que joga por terra todo o orgulho da supremacia e eugenia branca camuflada na
cabeça de alguns tardios em seus raciocínios.
São Paulo, a megacidade que nunca dorme, abriga, no bairro da Liberdade,
a maior população nipônica fora do Japão. Outrora o bairro do Bexiga se identificava
como um pedaço da Itália no Brasil. A Capital Bandeirante (2020) é proprietária, em
terra e no ar, da segunda maior frota civil de helicópteros do mundo, perdendo
somente para New York City. O Brasil, em suas amplas fronteiras, tem a maior
população portuguesa fora de Portugal e, na mesma cadência, a maior população
boliviana fora da Bolívia. Igualmente, calcula-se que haja mais libaneses no Brasil
do que no Líbano.12 Em seu contexto étnico, o Brasil tem a segunda maior
12
Enquanto eu trabalhava na produção desse projeto literário, assumiu interinamente a presidência
do Brasil, dia 12 de maio de 2016, o paulista Michel Miguel Elias Temer Lulia (1940-), advogado,
empresário, político e professor universitário. O ex-presidente Temer é filho de imigrantes libaneses
que chegaram ao Brasil na década de 1920, fugindo dos medos gerados no Oriente Médio. Família
que fez a vida nos cafezais nos arredores da cidade de Tietê, onde nasceu o filho ilustre daquela
terra interiorânea. Porém, no mundo selvagem da política, nem tudo são perfumes, flores, vibrantes
discursos e aplausos. Michel Temer perdeu sua imunidade parlamentar ao findar sua função
população negra do planeta, algo em torno de 110 milhões de pessoas, perdendo
somente para a Nigéria. Mesmo assim está à frente da Etiópia, a segunda mais
populosa nação africana, com 105 milhões na estimativa de 2017. Essa crescente
miscigenação brasileira é algo peculiar e sem par mundo afora, mesmo assim e
desafortunadamente, o negro brasileiro e sua crescente prole continua sendo o
último da fila no segmento social.
Segundo os dados da União Internacional de Telecomunicações, uma
agência da Organização das Nações Unidas sediada em Genebra, Suíça,
15
O primeiro astronauta nascido na América do Sul foi o peruano Carlos Ismael Noriega (1959-), porém
ele cresceu e vive na Califórnia. Toda sua formação e vida militar tem sido na Força Naval dos Estados
Unidos. Noriega, aposentado com a patente militar de tenente-coronel aviador, foi ao espaço em 16 de
maio de 1997, onde permaneceu por nove dias. Já o também aposentado tenente-coronel aviador
Marcos Cesar Pontes (1963-) - note-se: Ismael e Marcos são nomes bíblicos e, por coincidência, cada
nome é composto por seis letras! -, nascido em Bauru, cidade do interior do estado de São Paulo, foi o
primeiro astronauta brasileiro e lusófono a ir ao espaço. Após longos anos de treinamento, nos quais
foram consumidos dez milhões de dólares, sua viagem iniciou-se em 30 de março de 2006 no Centro
de Lançamento de Baikonur, Cazaquistão. Ele retornou à mesma base em 8 de abril. Durante nove
dias, fez diferentes experiências nos laboratórios da Estação Espacial Internacional. Nesse período no
espaço, sensivelmente circulou a terra por 140 vezes! Desde janeiro de 2019, é Ministro da Ciência e
Tecnologia do Governo Jair Messias Bolsonaro, que foi eleito Presidente do Brasil no domingo, 28 de
outubro de 2018. Quando Marcos Cesar Pontes estava com somente cinco anos, em 1968, houve a
grande epopeia espacial. Nessa data, três astronautas americanos - Frank Borman (1928-), Jim Lovell
(1928-) e William Anders (1933-) - foram lançados ao espaço a bordo da Apollo 8, a segunda missão
tripulada desse projeto. Partiram do Cabo Kennedy, Flórida, no sábado, 21 de dezembro de 1968,
regressando na sexta-feira 27. Na noite de Natal de 1968, esses três homens com 40 e 35 anos,
enquanto circunavegavam a Lua, “revezaram na leitura dos dez primeiros versículos do livro de
Gênesis, enquanto a câmera transmitia a imagem da terra, em preto e branco. A transmissão fora, à
época, o programa de televisão mais assistido da história” (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Apollo_8>. Acesso em: 23 fev. 2019).
Os documentos históricos afirmam que, seis meses após a redação final
dessa paleografia que o imortalizou, o fidalgo escrivão foi alvejado e
consequentemente morto diante de emboscadas impetradas pelos muçulmanos em
Calicute. O jovem comandante português não era lá de muitas negociações. “Sem
paciência com firulas diplomáticas, Cabral atacou Calicute de forma impiedosa.
Naquele tempo, a cidade indiana tinha 200 mil habitantes” (GOMES, 2019, v. 1, p.
92). Cabral colocou em prática aquilo de novo que existia para assustar os
moradores litorâneos. “Portugal tinha acabado de inventar: os canhões de carregar
pela culatra, de tiro rápido, que podiam disparar morteiros numa trajectória quase
horizontal” (PAGE, 2012, p. 144). Em resultado dessa impiedosa fórmula para
conseguir o diálogo, Pero Vaz de Caminha encontrou-se com a morte em 15 de
dezembro de 1500 aos 50 anos.
Em 1941, um ano antes de seu presumível suicídio junto com sua esposa
Charlotte Altmann (1908-1942), em Petrópolis, Stefan Zweig (1881-1942), o escritor
austríaco de ascendência judaica que, em 1934, fugindo da ditadura nazista, buscou
refúgio na Inglaterra, naturalizou-se cidadão britânico. Poucos anos após ter se
refugiado, o escritor e sua esposa já estavam residindo em Petrópolis, um
inspirativo e romântico espaço para os pensadores. Sob a visão geral das altas
montanhas petropolitanas, o professor Zweig escreveu a sua magnum opus
intítulada Brasil, País do Futuro. Para a época getulista, além do fervilhar da
Segunda Grande Guerra Mundial, esse livro não passava de uma assombrosa
literatura recheada de ufanismo e excessos de elogios a uma ditadura fascista, a
única nas Américas. Os anos, as circunstâncias e os panoramas políticos se
passaram, entretanto, pelo atual fumaceiro, sabe-se que há fogo. O futuro está
presente. Não é necessário ser otimista para trombetear esta realidade! Que rujam
os tambores! Isso mesmo diante dos famigerados e descarados escândalos de não
poucos corruptos, esses bandidos de estimação16 engessados na política, além da
profanação do sagrado entre alguns líderes religiosos oportunistas e/ou muito bem
qualificados como políticos da fé. Nesse raciocínio, em busca do poder, o pastor se
torna político e o político esquece que é pastor! Associando-se com políticos
desonestos, formam uma nuvem de nocivos e devastadores gafanhotos nas
alheadas roças de uma população sem voz. No entanto, é de domínio público a
afirmação de que o Brasil ainda tem jeito na teoria e na prática!
O endosso maior para o tão aguardado sucesso do Brasil vem de longe. Foi
pronunciado publicamente pela primeira vez em 1853, período do Segundo Império,
quando James Cochran Dobbin (1814-1857), que durante quatro anos foi o
respeitadíssimo 22º Secretário da Marinha Americana. A palavra fluiu desse jovem
advogado, que categoricamente afirmou com todas as letras que o Brasil “era um
Essa frase de efeito roubei da Ministra Damares Regina Alves (1964-), em seu discurso informal no
16
17
Após 166 anos das afirmações do democrata James Cochran Dobbin perante D. Pedro II no Rio de
Janeiro, a Casa Branca emitiu um vídeo de boas-vindas ao presidente Jair Messias Bolsonaro em
Washington, onde esteve de 17 a 21 de março de 2019. Nesse vídeo, o ex-presidente americano, o
republicano Donald Trump, diz textualmente: “Hoje os Estados Unidos da América do Norte e o
Brasil formam as duas maiores democracias e economias do hemisfério ocidental”. (Disponível em:
<https://www.whitehouse.gov/>. Acesso em: 30 mar. 2019).
18
Pororoca origina-se do tupi poro’roka, que é o gerúndio do verbo poro’rog e significa estrondar.
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pororoca>. Acesso em: 14 fev. 2020).
não Governamentais. A Amazônia é uma selva verde e amarela, cores da bandeira
brasileira e da orgulhosa simbologia da esperança!
Como a vida não consiste somente de euforia nem é laureada de glória, cito o
parecer do doutor Gedeon Alencar, que se autodefiniu como um cabra da peste,
nordestino, crente assembleiano que se tornou sociólogo, o qual, depois de
percorrer diferentes caminhos do submundo, agora está restaurado como resultado
de uma incondicional fé em Jesus, o Homem de Nazaré. Dono de uma língua solta,
ele sabe muito bem se expressar ao repartir algumas alfinetadas na sociedade em
que estamos inseridos.
Somos o melhor, o maior e o pior do mundo. Em tudo. Ou quase tudo. Aqui, tudo é o
maior do mundo: maior rio, maior plataforma de petróleo, maior festa popular, maior
floresta, maior rodovia, maior estádio, maior futebol. Com um detalhe: esqueceram de
avisar ao mundo, só nós sabemos disso. (ALENCAR, 2005, p. 33).
19
Enquanto escrevo, recebo a notícia que às 15h28 de hoje (7 de janeiro de 2017), horário de
Lisboa, faleceu aos 93 anos no Hospital da Cruz Vermelha, Dr. Mário Alberto Nobre Lopes Soares,
após mais de duas semanas internado. Doutor Soares foi o último daqueles que se empenharam
para o banimento do fascismo de Portugal, esforço que culminou na Revolução dos Cravos, o
histórico 25 de abril de 1974. Sem nenhum exagero político ou demagogia, Soares, é reconhecido
como pai, pois simbolicamente é o patriarca da contemporânea democracia portuguesa. Tive a honra
e o privilégio de ter sido recebido em audiência particular com o Dr. Mário Soares em seu escritório,
na tarde de 12 de outubro de 2012. Entreguei-lhe uma Bíblia, além de dois outros livros de minha
autoria. Ele era muito amável, profundo conhecedor de causas, sem dúvidas um polímata do
intelectualismo. Durante 45 minutos, dialogamos sobre diferentes assuntos relacionados a religião,
aos judeus, ao Brasil, a Portugal e ao caminhar político mundial. Foi uma data memorável, encontro
registrado em fotos pelo meu amigo pastor Jaime Rosado. Essa audiência se tornou realidade,
graças a outro amigo português e, faço aqui os meus agradecimentos ao jovem Bruno Bonifácio,
então servidor público destacado junto ao Gabinete da Presidência de Portugal em Lisboa.
Introdução
“O santo padroeiro ocupa o primeiro lugar”
(Moisés Espírito Santo - etnólogo, escritor
e professor universitário em Portugal)
Os ingleses liam seu próprio jornal, o Rio Herald, assistiam culto em inglês na capela
anglicana, empregavam governantas inglesas em suas casas. As crianças tinham aulas
em escolas próprias, com professores trazidos da Inglaterra; se precisavam estudar
mais, recorriam à biblioteca inglesa. Quando ficavam doentes, internavam-se no hospital
inglês e recebiam tratamento de um médico inglês - e até os mortos eram
convenientemente enterrados no Cemitério dos Ingleses. Era fácil encontrar os gêneros
e produtos para o dia a dia: os membros da colônia equipavam suas casas indo às lojas
dos patrícios, onde compravam tudo que consumiam em seu próprio país. (CALDEIRA,
2008, p. 109).
Getúlio Dornelles Vargas foi o único mandatário brasileiro que antecipou a morte ao
optar pelo suicídio em 24 de agosto de 1954. Estava novamente em ação a mística
Noite de São Bartolomeu. O tiro certeiro no coração transcorreu no aposento
presidencial instalado no terceiro andar do Palácio do Catete no Rio de Janeiro.
(BOAVENTURA, 2012, p. 77)
Simonton, o fundador da Igreja Presbiteriana em solo brasileiro, pregava em
sua língua materna para a comunidade americana, além de outros que entendiam
as expressões britânicas, ou, quando muito, era interpretado por algum fluente
conhecedor do inglês/português. A porta presbiteriana para alcançar os brasileiros
somente foi aberta após a conversão do padre José Manuel da Conceição (1822-
1873), a qual também diminuiu a rejeição da parte dos europeus protestantes, que
não estavam lá muito interessados pela religião, como muito bem afirma o doutor
David Gueiros Vieira (1929-2017), falecido professor aposentado da Universidade
Nacional de Brasília (UNB).
Aquele médico escocês, doutor Robert Reid Kalley (1809-1888), bem ou mal
falava português. Mesmo assim, a primeira escola bíblica dominical realizada em
Petrópolis, dia 19 de agosto de 1855, pela professora Sarah Kalley (1825-1907), sua
poliglota esposa, não contou com a participação de nenhum brasileiro.
Aprendemos tão bem a lição que, hoje, estamos caminhando e utilizando a
mesma velha e manuseada cartilha missiológica. É muito fácil identificar as
mesmices apenas mudando de endereços. Por razões diversas, há comunidades
brasileiras em diferentes nações. Sendo religiosos por natureza, como já analisado,
os brasileiros armam a barraca onde chegam e edificam um altar ao seu Sagrado.
Esse Sagrado, para alguns, é Jesus; para outros, a mãe de Jesus, o primo de Jesus
ou até um santo milagreiro importado de alguma plaga distante, o orgulho da terra
onde o religioso nasceu.
O professor doutor Moisés Espírito Santo (1934-), acadêmico na cultura
portuguesa, dá um empurrãozinho ao som da cadência milagreira/religiosa: “O Santo
Padroeiro ocupa o primeiro lugar, todos os outros lhe são subordinados.” (ESPÍRITO
SANTO, 1990, p. 89).
Em número crescente, nos Estados Unidos, há centenas de igrejas brasileiras
disseminadoras de uma sagrada liturgia direcionada especialmente aos brasileiros.
Importa-se de tudo do Brasil; para alguns, até o exclusivismo, justificável mediante a
crítica mordaz aos americanos de que somos mais santos, mais puros, mais, mais,
mais! Nesse meio, há ainda aqueles que se autodenominam missionários nos
Estados Unidos! Na realidade, o que é muito importante, não passam de imigrantes
brasileiros ministrando para imigrantes brasileiros. Com raríssimas exceções, há
alguns que também estão buscando alcançar os americanos. Não obstante,
sabermos ser este um mercado restrito, muito fechado e conservador.
O mesmo ocorre em Portugal. Quando lá chegamos, em 1991, havia um
número irrisório de brasileiros registrados no Consulado Geral do Brasil em Lisboa.
Aqueles que não exerciam suas atividades missionárias - católicos ou evangélicos -
participavam das igrejas portuguesas. No período áureo da economia europeia e
das vacas magras no Brasil, falava-se em uma estimativa de até 200 mil brasileiros
disputando o mercado de trabalho em Portugal. Se esse número é real,
representava cerca de 2% do total da população portuguesa.
Tal como nos Estados Unidos, não foi esse o no caso, criaram-se várias
igrejas brasileiras para servir única e exclusivamente à comunidade brasileira em
Portugal. A história se repete ao inverso da jornada nos séculos passados. Outrora,
o Brasil foi receptor de missionários, hoje é o transmissor. Todavia, seremos
julgados pelas gerações futuras quanto aos nossos métodos de fazermos missões.
Sei que estou escrevendo para um seleto e exigente grupo de leitores. A
minha principal preocupação é informar os fatos com total transparência e o mais
próximo possível da realidade. Caberá ao leitor, após degustar a leitura, emitir as
suas análises, críticas e considerações dos factos aqui arquitetados.
Sinto-me na responsabilidade de esclarecer que este trabalho não é nenhuma
dissertação acadêmica dentro dos parâmetros científicos. Portanto, é passível de
erros, embora eu tenha buscado selecionar as mais fidedignas fontes de consultas.
Carlos Boaventura
Fall River, 28 de dezembro de 2019
Primeira Parte
“Passaram pela prova de escárnios e açoites”
(Hebreus 11:36)
em 1900, havia menos de 100 mil evangélicos, na época conhecidos pela alcunha de
protestantes. Em 1960, eram quatro milhões; em 1970, oito milhões; em 1980, eram
quinze milhões; e em 1990 chegaram aos vinte e seis milhões, sendo 88% desse total
composto apenas de pentecostais. Durante muito tempo, o Brasil foi conhecido como o
maior país católico do mundo, mas esse quadro mudou. Agora o Brasil tem, dentro de
suas fronteiras, a terceira maior comunidade evangélica do mundo, atrás somente dos
Estados Unidos e da China, desfrutando de uma tendência de expansão.
(JOHNSTONE, 1994, p. 171).
20
Em 1996 participei, na cidade do Porto, de uma concorrida conferência proferida pelo Dr. Patrick
Jonstone, um homem sério e altamente apaixonado pelas missões cristãs.
Conferência Mundial Pentecostal, evento que transcorreu na cidade do Rio de
Janeiro entre os dias 18 a 23 de julho de 1967.
Agrupando somente as denominações taxadas de histórico-tradicionais,
sensivelmente alcançaremos a média de mais de 4% da população brasileira. Isso
representa um pequeno naco diante da monstruosidade dos pentecostais,
neopentecostais e carismáticos/renovados. Mesmo assim é expressivo o número de
mais oito milhões de brasileiros que são congregacionais, presbiterianos,
metodistas, batistas, luteranos, anglicanos, episcopais e outros. Não devemos
esquecer que, diante de raras exceções, todas essas denominações colocaram
suas estacas no Brasil em meados do século XIX, no áureo período de D. Pedro II,
monarca membro da maçonaria e abarrotado de cultura geral.
Mesmo tendo diminuído na contagem nacional, não temos nenhuma razão para
criticar as denominações históricas. Aliás, não é esse o nosso objetivo. Dentre elas
houve destemidos heróis que honrosamente abriram as portas para a expansão cristã
evangélica/protestante no Brasil. Muitos missionários que aportaram no Brasil Colônia
ou no Império pagaram com a própria vida a ousadia de penetrar em território
exclusivamente dominado pelo então poderio amendrontador da Igreja Católica
Apostólica Romana. Sem enumerar as incontáveis enfermidades que assolavam por
toda a nação, fazendo do Brasil um campo minado. Ao se referir às intolerâncias
religiosas do passado, o escritor aos Hebreus anteviu a saga dos missionários que
chegaram no Brasil:
Outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e
prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada;
andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, aflitos,
maltratados. (Hebreus 11:36-37).
21
“A morte, disse Bonhoeffer, é o supremo festival a caminho da liberdade. Se ele estiver errado,
tudo está perdido. Se estiver certo, a liberdade acaba de começar” (YANCEI, 2016, p. 134).
que em Jerusalém ficou a coroa de espinhos e em Roma a tiara. (GALLEGO, 2010, p. 9,
11).
E o melhor de tudo é que o Brasil já pode gabar-se de ser o primeiro mundo, pelo menos
em matéria de Bíblias. O País ocupa a liderança na produção do livro sagrado desde
1998, com a média de 7 milhões de exemplares/ano, incluindo as editoras católicas.
(Revista Eclesia, n. 64, mar./2001, p. 37).
A Sociedade Bíblica do Brasil produziu e distribuiu 6,7 milhões de Bíblias em 2011 [...]. A
Gráfica da Bíblia, instalada no município de Barueri, em 1995, onde também fica a sede
da SBB, produz um exemplar da Bíblia a cada três segundos, consumindo 800 bobinas
de papel por mês, o que equivale a 24 mil quilômetros. O papel consumido em um ano
daria 7,2 voltas ao redor do planeta Terra. (Disponível em: < https://alc-
noticias.net/bp/>. Acesso em: 16 mar. 2012).
Ao longo desses 60 anos, a SBB distribuiu no Brasil mais de 65 milhões de Bíblias e 4
bilhões de Escrituras, Bíblias e partes. Em 1949, seu primeiro ano completo de
atividades, a SBB distribuiu 105 mil Bíblias. E, no ano de 2006, chegou a 5 milhões e
500 mil, ou seja, 52 vezes mais do que o ano de sua fundação. Em 2006, a SBB foi
líder, entre as 141 Sociedades Bíblicas nacionais em atividades ao redor do planeta,
tanto em distribuição de Bíblias completas como de Escrituras. (GIRALDI, 2013, 2ª, ed.
p. 13).
O mercado produtor de livros, revistas, além dos antigos CDs, DVDs ou
similares gera milhares de empregos diretos e indiretos, movimentando um
montante de milhões de reais a cada ano. As revistas evangélicas, diga-se de
passagem, possuem um padrão de bom gosto altamente profissional. Nos áureos
momentos e picos da oscilante economia brasileira, esses informativos estiveram
disponíveis nas bancas de jornais das cidades de grande e médio porte.
Centenas de emissoras evangélicas podem ser sintonizadas e ouvidas nos
mais distantes lugarejos do país e o mesmo sucede com redes nacionais de
televisão a cabo e abertas.
A Folha Universal, jornal quinzenal iniciado em 1992 e editado pela Igreja
Universal do Reino de Deus, tem uma tiragem de três milhões de exemplares por
mês, sendo consumido por diferentes segmentos sociais.
Em nossos dias, ser protestante/evangélico no Brasil gera até mesmo status.
Virou moda tornar-se cristão evangélico. Vários integrantes do alto, médio e baixo
escalão do governo são crentes assíduos nos cultos. O mesmo sucede entre os
militares, desportistas, atores, políticos e grandes empresários. O mundo político e
governamental faz parte do acelerado avanço dos diferentes segmentos
evangélicos. Ser evangélico/protestante no Brasil é fazer parte de uma grande e
próspera família. Em resultado desse avanço, cresceram também os problemas e
as desavenças que geram profundas discórdias, dando lugar às brigas pelo poder e
o despontar de líderes profanos que teatralmente sabem fazer o jogo do sagrado
diante da crendíce de um povo. A grandiosidade do grupo ganhou tal proporção
que, lá em Brasília, existe até uma bancada politicamente evangélica, a qual, por
interesses eleitoreiros, bem ou mal, faz barulho e promove certas diferenças. “Os
homens devem ser transformados pelas coisas santas, não as coisas pelos
homens” (GALLEGO, 2010, p. 492).
Não obstante, diante de alarmantes corrupções, tudo isso vem gerando
dúvidas aos atentos olhares de diferentes eleitores. Esse jogo de interesses do
toma lá dá cá tem sido muito bem questionado pelo professor Pedro Almeida Vieira
(1969), jornalista e biofísico natural da acadêmica Coimbra, Portugal: “Fazer algo
pelo bem público significava, antes de tudo, fazer pelo bem próprio” (VIEIRA, P.,
2016, p. 165). Pautadas e secas, dispensa comentários!
Richard Francis Xavier Manning (1934-2013), mais conhecido por
Brennan Manning, foi um conservador padre franciscano leigo e orador público
americano. Com somente meia dúzia de palavras, sua espetada vai diretamente no
âmago da questão: “Só os trapaceiros se dão bem” (MANNING, 2017, p. 16). Com
relação ao discriminado passado protestante, que deu vazão às perseguições, a
realidade dos nossos dias é muito diferente daquilo que ocorreu no princípio da
colonização do Brasil.23
23
Até o histórico e decisivo 15 de novembro de 1889, quando da Proclamação da República, todos
os cargos eletivos ou nomeados eram restritos somente aos católicos. Após mais de 130 anos, o
vetor da história tem sido outro, não obstante que hermeneuticamente poderia ser bem melhor, mais
confiável, transparente e justo. Somos uma República nova, repleta de insolúveis embates sociais
sob o endosso da corrupção de um corporativismo político amplamente recheado por politiqueiros de
plantão. Em tese, o Brasil, que há muito deixou de ser monarquia, ainda não se achou republicano e
As primeiras tentativas
O padre Martinho Lutero24 (1483-1546), tão hábil como valente, ainda na casa
dos 33 anos, se tornou o astro central que conclamou uma verdadeira revolução
política, intelectual, social, literária, econômica e religiosa. Esse emaranhado de
fatores trouxe até a superfície o real direito de expressão do cidadão oprimido. Em
outras palavras, Lutero foi o disseminador de uma visão democrática pela qual o
povo ganhou os seus direitos ao abraçar uma nova ideologia de fé e práticas. Essa
revolução explodiu na Alemanha e extrapolou as fronteiras europeias em um
período de medo e pressão social, quando os mais espertos exerciam politicamente
o direito da manipulação do sagrado e o terror espalhado pela mortífera Inquisição.
O Santo Ofício era o sutil braço armado que executava os acusados de heresias.
Pelo dedo se conhece o gigante! Inconscientemente e na busca de radicais
mudanças, o jovem Lutero era o dono do discurso da discórdia que despejava água
na roda furiosa da vida. Essa furiosa oratória foi o instrumento que levou à divisão
da História, da pré e da pós-Reforma. Em certo sentido, os efeitos produzidos pela
Reforma cimentaram a real existência da democracia de que hoje desfrutamos. Na
prática, nem mesmo a Grécia desfrutava da verdadeira democracia.
Dentro de uma visão clinicamente cristã, não há dúvidas de que Deus narrou
os fatos pelas mãos daquele dinâmico pároco, frade alemão, doutor e professor de
teologia ligado à ordem de Santo Agostinho de Hipona. O monge Martinho Lutero,
nascido na aldeia de Eisleben, dia 10 de novembro de 1483, onze dias antes de
completar 34 anos, desafiou as ordens impostas por Giovanni de Médici (1475-
1521), o excêntrico, poderoso e devasso papa Leão X. Voltemos ao sábio parecer
do professor Juan María Laboa Gallego (1939-), um teólogo e historiador católico
espanhol, o qual afirma que a política daquele papa “favoreceu os Medicis, mas não
a Igreja”. Leão X foi um papa extremamente perverso que buscou orientação na
mesma manuseada e viciada cartilha utilizada pelo cruel e oportunista Alexandre
VI,25 o último papa nascido na Espanha, em detrimento de cujo pontificado, que
democrata; está à deriva em meio a um mar de lama de acusados e acusadores, explorados e
exploradores! Não seriam esses os vigaristas serenos e donos das pandêgas do poder? “Eu sei que
a chuva é pouca e que o chão é quente. Mas, tem mão boba enganando a gente, secando o verde
da irrigação. Não! Eu não quero enchentes de caridade, só quero chuva de honestidade. Molhando
as terras do meu sertão”. Linguagem de clamor e protesto do pernambucano Flávio Leandro (1969-),
compositor e cantor de Chuva de Honestidade. (Confira em: <https://youtu.be/yQd-EhAXY8Y>.
Acesso em: 12 ago. 2019).
24
O americano Orland Spencer Boyer (1893-1978), um pioneiro na distribuição de literaturas no
Brasil, afirma: “Encontra-se o seguinte na História da Igreja Cristã, por Souer, vol. 3, pág. 406:
Martinho Lutero profetizava, evangelizava, falava línguas e interpretava; revestido de todos os dons
do Espírito” (BOYER, 1986, p. 38). Isso demonstra que Lutero tinha não apenas cultura, mas também
uma total dependência do Grande Criador.
25
Nicolau Maquiavel (1469-1527), um filósofo, historiador e músico florentino, tinha horrores pelas
maléficas decisões do espanhol Alexandre VI.
Não quero silenciar um exemplo moderno: o de Alexandre VI, que em sua vida só fez enganar os
homens. Nunca pensou em outra coisa, e encontrou sempre oportunidade para isso. Ninguém
jamais afirmou com tanta convicção - e prometendo com tanto vigor cumpriu tão pouco o
prometido. Contudo, sempre se beneficiou com a mentira, pois conhecia bem esta arte.
durou 11 anos (de 11 de agosto de 1492 até sua morte em 18 de agosto de 1503),
muito bem nos diz o seu conterrâneo e católico praticante: “Revelou ser mais um
homem do Renascimento do que da Igreja, tendo zelado melhor pelos interesses da
sua família do que pelos interesses eclesiásticos.” (GALLEGO, 2010, p. 184).
O protagonista que Lutero, com persistência e coragem, desafiou foi sumo
pontífice de 1513 a 1521. Ao ocupar o trono papal em Roma, Leão X estava com
somente 38 anos e, ainda hoje, é o mais jovem a exercer essa função nos últimos
cinco séculos. O florentino Giovanni de Médici exerceu o episcopado papal por
somente oito anos. De pouca sorte e estribado em sua extravagante índole
comportamental, sendo quase um demente psicossomático, teve uma morte
prematura aos 46 anos.
Giovanni de Médici era o segundo filho de Lourenço, o Magnífico, e foi eleito aos 38
anos. Tudo nele foi precoce, não pelos seus méritos, mas pela sua origem: protonotário
apostólico aos 7 anos; cardeal aos 12; diácono aos 14; papa aos 38; morreu aos 46. Só
tardou em ordenar-se sacerdote, já que era ainda diácono ao ser eleito para o
pontificado. No ambiente brilhante da Florença de seu pai gozou de uma selecta
educação graças a Policiano e Marsílio Ficino, dois dos mais respeitados humanistas da
sua época. Com alguns familiares, entre os quais se encontra o seu primo, o futuro
Clemente VII. (GALLEGO, 2010, p. 254).
26
Parece que em nada mudou no desenrolar de sua secular trajetória. Em de julho de 1967, no ardor
do Regime Militar no Brasil, os Cães de Deus ainda continuavam a ladrar!
Os cem religiosos e seminaristas da Ordem dos Dominicanos espalhados pelo Brasil tinham uma
conhecida relação com os movimentos clandestinos. A CIA identificara neles uma base de apoio da AP,
tanto com dinheiro como locais para reuniões clandestinas. [...] O Jornal O Estado de S. Paulo, porta voz
do integrismo católico, pediu em editorial que a Ordem dos Dominicanos fosse expulsa do país.
(GASPARI, 2002, p. 147)
27
Nos anais históricos do Vaticano, Paulo VI, foi o sumo pontíficie de número 262. Coube a esse
bem-dotado político/religioso italiano dinamizar a velocidade papal em suas jornadas e
peregrinações. Curiosamente, “foi o primeiro papa a viajar de avião”. (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VI>. Acesso em: 13 maio 2017).
Novamente salta aos nossos olhos as escritas do professor espanhol Juan
María Laboa Gallego (1939-), o qual, faço questão de reprisar, é católico praticante,
filósofo, teólogo e doutor em História da Igreja pela Universidade Gregoriana de
Roma. Assim ele se referiu à inauguração da grande catedral em 18 de novembro
de 1626. Referindo-se ao papa Urbano VIII (1623-1644).
Não se pode dizer que Lutero causou a primeira Reforma. Ele foi somente o fósforo que
acendeu o fogo; a madeira seca já estava pronta para queimar. [...] A igreja foi
reformada pela mão de Deus, a fim de prepará-la para o novo mundo que estava por vir.
(WALKER, J. et al, 2002, p. 224).
Adrian I, era este um homem de estrita ortodoxia medieval, mas plenamente consciente
da necessidade de reforma moral e administrativa na corte papal. Seu curto pontificado
de apenas vinte meses foi um esforço lamentavelmente infrutífero para brecar os males
dos quais ele acreditava que o movimento herético de Lutero era castigo divino.
(WALKER, W., 1981, v. 2, p. 23, 24).
Os huguenotes calvinistas
Na Europa, o cravinho chegou a valer 500 vezes o valor do preço comprado nas
Molucas e aí só se consumia cerca de um oitavo da produção desta especiaria, sendo o
resto distribuído por vários locais da Ásia. [...] Na carta datável de 1517 ou 1518, estão
identificados sobre o Equador as ilhas Molucas com a legenda: Ilhas de maluquo donde
a o cravo. Tais ilhas estão aí no hemisfério português [...] A posição de D. Manuel, em
1517-1519, consistia em manter o monopólio do comércio das especiarias, que os seus
homens faziam nas Molucas desde 1512. (GARCIA, 2019, p. 70, 134, 268).
O rei D. Manuel morreu vítima de febre, pouco antes do Natal de 1521, com 52 anos.
Tendo chegado ao trono como rei de Portugal e dos Algarves, morreu como rei de
Portugal e dos Algarves, d´Aquem e d´Além-Mar em África, Senhor do Comércio, da
Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia. [...] Durante o seu reinado, os
portugueses foram muito admirados, mas também invejados, pelos holandeses,
ingleses, franceses e, acima de tudo, espanhóis. Morto o grande monarca, puseram-se
à espreita como abutres, para ver qual seria o destino de Portugal e, sobretudo, do seu
império. (PAGE, 2012, p. 176).
O novo rei
Em 1549, Tomé de Sousa e seus mais de mil acompanhantes, entre eles os primeiros
jesuítas, chegaram ao local escolhido, onde edificaram a cidade que seria a primeira
capital da colônia: Salvador. Na edificação, Tomé de Sousa contou com os grupos
nativos e de Diogo Álvares - o Caramuru -, um náufrago português que vivia entre os
indígenas da região desfrutando de grande prestígio. (NADAI; NEVES, 1997, p. 57).
Os jesuítas
Foram escravos indígenas alugados pelos jesuítas que iniciaram as obras da Fonte
Carioca e dos Arcos Velhos, aqueduto que trazia água da floresta da Tijuca para o
centro do Rio de Janeiro e que originou os atuais Arcos da Lapa. [...] Mantinham o
desejo de salvar suas almas imortais associado ao anseio de escravizar seus corpos vis.
[...] Até padres e missionários se mostraram mais interessados em traficar escravos do
que em educar ou salvar almas. Entre os traficantes negreiros estava o próprio superior
dos jesuítas, padre Jorge Vaz. (GOMES, 2019, v. 1, p. 128, 194, 195, 203).
33
Tendo em vista que a França se tornou o berço dos mais destacados iluministas da áurea época,
Paris, a capital, recebeu o cognome de Cidade Luz não pela intensa iluminosidade produzida pelos
lampeões a gás, mas pela forte intelectualidade que ali existia. “Procurem alguma coisa que Paris
não tenha. [...] Paris reina. Aí fulguram os gênios” (HUGO, 2007, v. 1, p. 564, 564). Essa
intelectualidade estava composta politicamente de liberais esquerdistas totalmente anticlericais e que
tudo fizeram na busca de extirpar o poder da Igreja Católica e, em seu lugar, implantar a filosofia da
Deusa Razão, que, em 10 de novembro de 1793, foi colocada no altar-mor da gótica Cathédrale
Notre-Dame de Paris. Essa é a mesma Catedral que, em 15 de abril de 2019, foi atingida por um
violento incêndio. O colapso da monarquia fez o caminhar da Revolução Francesa, que se originou
com a Queda da Bastilha em 14 de julho 1789. Esse acontecimento se tornou o ícone da Repúblia
Francesa. “Quanto à França, ela era uma nação próspera. Desde a Idade Média já era dito que ela
era o forno onde se cozia o pão da Europa, pois lá as coisas aconteciam. No início do século XVI,
produzia vinho e trigo para exportação, fabricava tecidos e móveis e publicava livros” (ALMEIDA, R.,
2010, p. 28).
34
O professor Marcelo Rebelo de Sousa (1948-), o popular e beijoqueiro Presidente da República
Portuguesa, quando de sua estadia na Casa Branca, dia 28 de junho de 2018, afirmou
categoricamente ao seu homólogo, o empresário Donald Trump (1946-), em discurso diante das
autoridades e jornalistas presentes para sua recepção, que foi Portugal a primeira nação a
reconhecer a Independência Americana em 1776 e que os Pais da América brindaram aquele 4 de
julho com vinho produzido na Ilha da Madeira.
Técnica e ideologicamente, a Declaração de Independência foi redigida pelo
polímata Thomas Jefferson (1743-1826), um jovem iluminista, defensor de crenças
deístas, natural do estado da Virgínia, citado por Laurentino Gomes (1956-) como
proprietário de negros feitos escravos (GOMES, 2019, v. 1, p. 64). Essa tese tem
sua fonte nas escritas documentais do poliglota José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1838), o primeiro Grão-Mestre da Maçonaria do Grande Oriente no Brasil.
Thomas Jefferson tinha 150 escravos no momento em que escreveu, e uma das
principais atividades que exercia era a compra e venda de escravos. Apesar disso,
jamais pensou que houvesse qualquer contradição entre os direitos inalienáveis e sua
atividade de alienar homens criados iguais, que manteve por toda a vida. (CALDEIRA,
2002, p. 33).
Considerando estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são
criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os
quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. [...] Quando o mais jovem ao
Segundo Congresso Continental escreveu estas palavras, ele tinha 33 anos, um cabelo
ruivo claro alaranjado e um maxilar protuberante. [...] Quanto a Jefferson, ele chegou à
Filadélfia em uma carruagem puxada a cavalo, atendido por três escravos. Será que
Jerfferson acreditava que Richard, Jesse e Jupiter haviam sido criados iguais? [...] Eles
pregavam igualdade enquanto mantinham escravos [...]. Quanto a escravidão, Jefferson
admitiu na primeira versão da Declaração que quem escravizava africanos lhes roubava
os direitos sagrados à vida e à liberdade. Mas só afirmou isso para culpar o rei George
por encorajar o comércio de escravos. [...] Lincoln estava certo: falar e fazer são coisas
diferentes. Jefferson se sentiu desconfortável com a escravidão a vida inteira, embora
nunca desconfortável o bastante para libertar seus escravos. (DAVIDSON, 2016, p. 83,
85).
O líder e chefe da Ordem dos Jesuítas por aquelas bandas do Novo Mundo
era o minhoto Manuel da Nóbrega (1517-1570), que chegou ao Brasil com 32 anos
e serviu outros 21 até à sua morte no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1570.
Aquela foi uma malfazeja e antagônica data para o religioso. Naquele dia fatal, o
destacado padre Manuel da Nóbrega estava completando exatamente 53 anos
quando, ainda muito jovem, passou para o outro lado da vida.
Nóbrega provinha de uma família distinta e era também um homem de cultura, pois se
graduara em cânones nas universidades de Salamanca e Coimbra. [...] Santo Inácio de
Loyola em pessoa nomeou o Pe. Manuel da Nóbrega como primeiro Provincial. [...]
exerceu o ministério de provincial até 1559, ano em que foi sucedido pelo Pe. Luís da
Grã (1523-1609). (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 20, 22).
A invasão francesa
Lembramos que Villegagnon, ao fortificar a ilha de Serigipe, que hoje leva o seu nome,
ao mesmo tempo instalou-se na faixa de terra da baía da Guanabara, hoje conhecida
como o bairro do Flamengo, entre a foz do rio Carioca e o morro da Glória. Lá fundou
Henriville, em homenagem ao rei da França, Henrique II. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015,
p. 23).
A sua decisão de acabar com os hereges que proliferavam no Norte de Itália e no Sul de
França foi igualmente constante e enérgica. Promulgou a cruzada contra os cátaros e
albigenses, espalhados sobretudo no Sul de França nos arredores de Toulouse. Esta
cruzada degenerou numa guerra cruel centrada na caça e no extermínio dos hereges.
(GALLEGO, 2010, p. 176).
36
“Massacre de São Bartolomeu: denomina uma das páginas mais sangrentas da história do
cristianismo, quando Catarina de Médicis, para recuperar prestígio junto às forças católicas,
sancionou o assassinato brutal de Coligny e outros seis líderes protestantes em 24 de agosto de
1572 (dia de São Bartolomeu). A isto, seguiu-se um abate de dezenas de milhares de huguenotes
em Paris e nas províncias, que durou uma semana.” (ALMEIDA, R., 2010, p. 104).
Os huguenotes na Guanabara
37
Doutor Vasco Mariz (1921-2017), que foi diplomata brasileiro, e Lucien Provençal (1931-), capitão
de mar e guerra da marinha francesa, preferem a data de 26 de fevereiro de 1557, para a chegada
dos huguenotes na Guanabara. Na utilização de uma linguagem altamente apologética e pejorativa,
alcunham Calvino de o papa dos protestantes. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 119).
Foram esses os primeiros hinos protestantes/evangélicos, todos em francês,
entoados e ensinados no Brasil em meados do século XVI pelo reverendo Pedro
Richier, um ex-sacerdote egresso da Igreja Católica Apostólica Romana, e sua
equipe de “quatorze pastores, representantes de sete facções de sua religião”
(MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 45).
A já mencionada catedrática Henriqueta Rosa Fernandes Braga era “doutora
em música, tendo sido a primeira pessoa a receber um diploma universitário de
Música conferido no Brasil” (ALMEIDA, R., 2014, p. 436). A doutora Braga, em sua
valiosa documentação, informa-nos que foi no domingo, dia 21 de março de 1557,
que se realizou a primeira Santa Ceia do Senhor conforme o ritual da liturgia
protestante/evangélica. Tal cerimônia foi ministrada pelos pastores Pedro Richier e
Guilherme Chartier. O primeiro culto protestante nas Colônias Britânicas, hoje
Estados Unidos da América do Norte, foi realizado ao largo de onde posteriormente
surgiu o povoamento de Jamestown, no atual estado da Virgínia, na quarta-feira, dia
26 de abril de 1607. O culto de ação de graças foi realizado por um clérigo capelão
da Igreja Anglicana. Isso aconteceu exatamente 50 anos depois do evento calvinista
no Rio de Janeiro.
Confissão de Fé da Guanabara
Coube a João Du Bourdel, o mais velho e o mais instruído, redigir a Confissão de Fé. E ele o
fez com admirável profundeza e concisão. Devidamente assinada e devolvida a
38
Em refutação, dentro de uma ortodoxia democrata a essa centenária tese, recomendo a leitura do
livro Os Franceses na Guanabara, bem como a de tantos outros devidamente catalogados no final da
presente obra.
Villegaignon, esta Confissão de Fé foi pelo Vice-almirante declarada herética e apontada
como justo motivo de extermínio dos seus signatários. (BRAGA, 1961, p. 47).
Sem muitos recursos pedagógicos para consultar senão suas Bíblias em
francês e não se importando com o que lhes aguardava o futuro, eles redigiram de
uma maneira bastante clara e explícita, utilizando fartas referências bíblicas, o
primeiro documento de fé protestante redigido no Novo Mundo. “Esta primeira
confissão protestante produzida nas Américas foi selada com o sangue dos
calvinistas mortos por Villegaignon” (CAIRNS, 1995, p. 360). O histórico documento
foi assinado pelos franceses Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e
André la Fon.39
O massacre na Guanabara
Em outubro de 1557, sete meses depois de ter tomado a Ceia do Senhor em duas
espécies - pão e vinho -, Villegaignon os expulsou da ilha para um local chamado La
Briqueteria, hoje Olaria, no continente. Menos de três meses depois, em janeiro de
1558, Richier e outros genebrinos foram obrigados a voltar para a Europa e lá contaram
o que havia acontecido e chamaram Villegaignon de o Caim da América. Nesse mesmo
ano, no dia 9 de fevereiro, o homem forte da França Antártica manda estrangular e
lançar ao mar os quatro signatários de uma confissão de fé: Jean de Bourdel, Matthieu
Verneuil, Pierre Bourdon e André La Fon. Eles faziam parte da delegação de Genebra e
eram leigos. Por ser o único alfaiate dos franceses e por ter voltado atrás, André La Fon,
na última hora, foi poupado. Os outros três tornaram-se os primeiros mártires
evangélicos do continente. Para não serem mortos, outros huguenotes fugiram para o
interior, inclusive Jacques de Balleur, que foi parar em São Vicente, onde foi preso e
levado para a Bahia. (CÉSAR, 2000, p. 38, 39).
Aquela macabra sexta-feira – não poderia ser outro dia –, nove de fevereiro
de 1558, assinalava onze meses da chegada da comitiva protestante francesa ao
Brasil. Em meio à confusão, ao tumultuo e às cruéis perseguições contra os
protestantes, Jean Jacques Le Balleur, também missionário calvinista, conseguiu
burlar a vigilância e fugiu numa canoa dos tamoios rumo ao litoral sul. No uso dessa
modalidade de transporte, além de longas e solitárias caminhadas pelas montanhas
da emaranhada Mata Atlântica, conseguiu chegar até Bertioga, um pequeno
aglomerado residencial, de onde se dirigiu para a vila de São Vicente.
Entretanto, o foragido Jacques Le Balleur conseguiu, quase por milagre, sobreviver aos
índios. [...] se aventurou em incursões até a capitania portuguesa de São Vicente,
começando a pregar nas ruas de alguns povoados. [...] Tomando conhecimento da
presença daquele calvinista, o jesuíta Luiz Grã desceu de São Paulo de Piratininga e
exigiu que fosse preso. Dito feito. (VIEIRA, P., 2016, p. 45).
39
A Confissão de Fé da Guanabara foi redigida no Brasil Colônia, nos primeiros dias do mês de
fevereiro de 1558. Não esqueçamos que a mesma foi produzida sob pressão e entregue doze horas
após o recebimento do ultimato. O citado tratado de fé foi produzido 91 anos antes da famosa
Confissão de Westminster, histórico documento com 107 artigos redigidos na catedral de Londres,
entre os anos de 1643 e 1647 pelos mais destacados teólogos ingleses e escoceses daqueles dias.
Também em Londres, no ano de 1689, foi produzida a primeira Confissão de Fé Batista, 131 anos
após a Confissão de Fé da Guanabara. Por força de um sagrado destino, no quesito de fé
protestante, coube ao Brasil ser o dono da primeira tacada!
Mesmo perseguido de perto e consciente daquilo que o futuro aguardava
para sua vida terrestre, Le Balleur nunca deixou de testemunhar o poder salvador
de Jesus Cristo em detrimento da mariolatria ensinada pelos jesuítas. Com certo
requinte de desumana ferocidade, ele foi preso em São Vicente e posteriormente
remetido para uma fétida e sombria masmorra de segurança máxima em Salvador,
Bahia, onde ficou enclausurado por cerca de oito anos, tempo em que o sol era algo
raro para aquele francês. Por todo esse tempo, Le Balleur permaneceu confinado
em calabouços solitários, onde os raios solares eram tão sagrados quanto a luta
para sobreviver. Nesse período, simbolicamente preso entre a cruz e a espada,
esgotaram-se todos os seus pedidos de clemência junto às autoridades religiosas
em Portugal. Estando na prisão e sem o perdão do Inquisidor-mor em Lisboa, Le
Balleur estava ciente de que, mais cedo ou mais tarde, a agonia da forca lhe
alcançaria. O que o separava da morte era somente uma questão de mísero tempo.
Diante daquele impasse, cada dia era o último dia!
Mem de Sá, instigado pelos jesuítas, recambiou o pastor - Jacques Le Balleur - para o
Rio de Janeiro, onde foi condenado à morte pelo clero. Sim, condenado pelo clero, não
pela justiça. Tanto é verdade que chegou a apelar da sentença, mas não a algum
Tribunal de Justiça. Apelou ao Cardeal Henrique de Lisboa, que, como não podia ser
diferente, confirmou a condenação, e Anchieta foi o próprio carrasco. (SILVEIRA, 2001,
p. 107).
Foi o Bodel levado para a forca, assistido por Anchieta. Cena medonha! O carrasco,
pouco adestrado no ofício, prolongava o padecimento da vítima. [...] Interveio o
missionário. José de Anchieta ergue as mãos [...] Direis que elas se erguiam para o céu
implorando piedade, invocando em um supremo apelo o Justo que também morreu
supliciado por motivo de religião... [...] Não, era José de Anchieta que, dando sua lição
ao carrasco, estrangulava ele próprio o padecente. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
42)
própria região onde, anos antes, seus correligionários haviam sido supliciados, também
Le Balleur foi enforcado, tendo tido como auxiliar de carrasco, sob pretexto de abreviar-
lhe o sofrimento, o Padre José de Anchieta, conforme descrição dos próprios jesuítas.
(CÉSAR, 2000, p. 48).
decisão do papa pela qual autoriza que se preste culto religioso a um cristão defunto. É
a passagem prévia necessária para a canonização, isto é, a declaração de que uma
determinada pessoa é santa, se encontra no Céu e contempla Deus face a face na visão
beatífica. (GALLEGO, 2010, p. 502).
O focar da história dos mártires da igreja pode ser visto por diferentes lentes da
fé, do espaço e do tempo, tudo isso sem comentar a força do sincretismo imperante
no Brasil, além da conexão santeira incentivada pelo Vaticano.
O herege foi aquele que escolheu dar ênfase em determinado tema que, digamos, não
estava na pauta oficial. E, na história do cristianismo, muitos dos hereges não foram
necessariamente aqueles que estavam queimando, mas os outros paramentados
acendendo a fogueira. (ALENCAR, 2005, p. 22).
Outros acontecimentos
40
Há duas versões relativas ao nome “Virgínia”. A primeira está relacionada à rainha Elizabeth I
(1533-1603), inglesa considerada virgem por nunca ter se casado. A hipótese seguinte é que tal
nome teria sido dado em honra de Virgínia Dare, a primeira criança britânica nascida na colônia
americana, dia 18 de agosto de 1587. (ASHBAUGH, 1998, p. 26, 27).
41
“Os recém-chegados eram um grupo de peregrinos - assim denominados por William Bradford, um
de seus líderes [...]. Os peregrinos foram os primeiros dos muitos protestantes que vieram à Nova
Inglaterra com a intenção de criar sua própria comunidade santa” (DAVIDSON, 2016, p. 38, 39).
e, dentro do possível, sepultaram os seus mortos. No fervor das batalhas, o militar
Estácio de Sá (1520-1567), fundador e Governador Geral do Rio de Janeiro, foi
atingido no olho por uma flecha envenenada. Não resistindo aos ferimentos, veio a
falecer aos 47 anos, no dia 20 de fevereiro de 1567, exatamente um mês após as
batalhas. A missa que marcou o seu funeral foi conduzida pelo padre José de
Anchieta.42
No dia 20 de janeiro de 1567, foram forçados a capitular após uma batalha fatal. Estácio
de Sá, foi atingido por uma flexa indígena e morreu pouco depois. [...] Os portugueses
expulsaram quatro naus francesas da Guanabara e o capitão foi enforcado. Em
represália, em julho de 1570, os corsários protestantes Jacques de Sorè et Jean
Capdeville afundaram a nau Santiago, que rumava para o Brasil, e na qual morreram
494 portugueses, inclusive quarenta missionários jesuítas. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015,
p. 38).
42
Aos 50 anos, em 1560, Villegaignon estava desiludido. “Havia investido muito na aventura na
Guanabara e perdeu tudo. O governo português, visando impedi-lo moralmente de retornar ao Brasil,
indenizou-o em parte, mas, ao falecer, Villegagnon deixou o pouco que lhe restava aos pobres de
Paris” (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 63). Sua saída da Guanabara foi apenas uma questão de
tempo. Onze anos depois, em 9 de janeiro de 1571, estava morto aos 61 anos.
Baía da Guanabara. D. João III era filho de D. Manuel I (1469-1521) com a
espanhola D. Maria de Aragão e Castela (1482-1517). 43
Segunda tentativa
Foi sob a coroa de Filipe IV (1605-1665), rei de Espanha, o mesmo Filipe III de
Portugal, que os protestantes holandeses aportaram no Brasil em 1624. Primeiro na
Bahia, onde chegaram dia 8 de maio e logo dominaram a cidade de Salvador.
Imediatamente os batavos armaram sua tenda religiosa em um ato de
agradecimento pela conquista de um naco de fé católica. Naquele sábado, “dia 11
de maio de 1624, Enoch Sterthenius celebrou por lá o primeiro culto calvinista”
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 44), pelas terras do Nordeste brasileiro.
Terceira tentativa
composta por 67 navios equipados com 1.170 canhões e 7 mil homens armados. [...] No
dia 14 de fevereiro de 1630, um exército de 3 mil homens, apoiado pela poderosa
esquadra das Províncias Unidas, desembarcou na Praia de Pau Amarelo, ao norte de
Olinda, ocupada dois dias mais tarde. No dia 3 de março, o Recife também se rendia às
forças invasoras. Começavam ali uma duríssima guerra pelas lavouras e engenhos de
açúcar, que envolveria as regiões vizinhas [...] e só terminaria em 1654. (GOMES, 2019,
v. 1, p. 352, 363).
Também foi nesse áureo período da história que uma gama de judeus
encontrou no Brasil a sonhada terra prometida. Tudo isso sob a cortês sombra dos
interesses e o total apoio moral das autoridades holandesas. O governador Johan
Maurits van Nassau-Siegen ou Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), nascido no
mesmo ano que D. João IV, tal como o português era um empoderado negociante
de negros feitos escravos. Maurício de Nassau estava inteirado que judeu por perto
demonstrava prosperidade para a nação e, com essa tese em mente, buscou fazer
do Nordeste a sonhada terra prometida. Nassau-Siegen, militar, que governou a
colônia holandesa no Recife de 1637 a 1643, era muito bem quisto por todas as
comunidades. Mesmo assim Nassau foi acusado de improbidade administrativa e
forçado voltar à Europa em 1644. Na consolidação da comunidade formada por 600
famílias estava a surgir um novo horizonte. Para atender esse expressivo grupo de
judeus, fazia-se necessária a existência de uma sinagoga devidamente estruturada,
com seu rabinato e demais oficiais. Foi o que aconteceu. Tal decisão fez do Brasil o
local da existência da primeira sinagoga de todas as Américas! Nesse caminhar,
novamente Portugal flui como a principal parte da história, pois o rabino Isaac
Aboab da Fonseca (1605-1693), nascido em Castro Daire, distrito de Viseu, chegou
à cidade do Recife aos 33 anos para assumir a liderança da Sinagoga Kahal
Kadosh Zur Israel. Esse jovem sefardita português era uma sumidade em seu ser e
dedicado intelectual. Tudo isso fê-lo um famoso líder religioso no Novo Mundo e
assunto referencial da cultura hebraica no Brasil. 44 Assessorado pela família
Marques, dias 24 a 26 de outubro de 2020, fizemos toda a rota dos reformados e
dos judeus sefarditas por diferentes locais da Grande Recife. Passamos inclusive
pelo grande Seminário de Olinda, construído em 1585 pelos jesuítas. Sob
autoridade holandesa entre 1630 a 1654, esse e outros espaços se tornaram locais
de cultos dos protestantes reformados. Havia entre os protestantes e os judeus um
cordial relacionamento de respeito e interesses. Esse mesmo esquema político não
fluiu com os católicos.
44
Faço aqui os meus mais efusivos agradecimentos à professora Lucivânia Marques (1969-), que,
diretamente do Recife, enviou-me um histórico panfleto produzido pelo Centro Cultural Judaico de
Pernambuco sobre a Sinagoga Zur Israel. Documentadamente, essa foi a primeira Sinagoga a ser
edificada em todas as Américas. Parabéns Recife! Parabéns Brasil!
máxima autoridade no ensino e interpretação da lei judaica. Completou seus estudos em
Amsterdã, e aos 21 anos tornou-se rabino da congregação Beth Israel. Além de rabino,
era pensador ilustre, escritor e poeta. Deixou-nos o primeiro poema da América escrito
em hebraico, que se referia à expulsão dos judeus do Recife [...] Uma Torá - pergaminho
religioso contendo o Velho Testamento - foi enviada de Amsterdã em 1633 para os
líderes comunitários, o que possibilitou o estudo e o aprofundamento da prática
religiosa. (NOVINSKY et al., 2016, p. 135, 136).
A comunidade judaica instituiu então duas casas de culto em Recife: a primeira foi a
Kahal Kadosh Zur Israel - Rocha de Israel -, tida como a mais antiga sinagoga das
Américas, inaugurada por volta de 1636. Nela, a partir de 1642, exerceria o rabinato
Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693), português emigrado para Amsterdã em 1612.
Uma segunda sinagoga surgiu em Maurícia - parte do Recife construída pelos
holandeses a partir de 1638 -, de nome Kahal Kadosh Maghen Abraham - Santa
comunidade escudo de Abrahão. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 46).
os próprios paulistas participaram da luta, reunidos contra o inimigo comum, que era os
holandeses [...] sabemos que a guerra contra os holandeses, enobrecendo até negros,
favoreceu o acesso de homens miúdos à nobreza, por meio do serviço militar e até do
ato de bravura. (FREYRE, 2006, p. 489, 595).
Pela primeira vez lutaram lado a lado, unidos pela mesma causa, todos os elementos
constitutivos da futura identidade nacional: negros, índios, mulatos, brancos,
portugueses ou colonos deles descendentes, escravos, senhores de engenho,
lavradores e sertanejos humildes. [...] Entre os mais destacados comandantes da
campanha luso-brasileira contra os holandeses estava um índio, Felipe Camarão, e um
negro, Henrique Dias. O chefe da revolta, João Fernandes Vieira, rico proprietário de
engenhos em Pernambuco e na Paraíba, era filho de um fidalgo da Ilha da Madeira com
uma prostituta mulata. Outro comandante, André Vidal de Negreiro, tinha nascido no
Brasil. (GOMES, 2019, v. 1, p. 352, 353).
Foi da família daqueles refugiados lusos-brasileiros que nasceu Gershon Mendes Seixas
(1745-1816), o primeiro rabino de uma sinagoga em New York, fundada em 1656. Era
dono de uma esmerada cultura geral e muito bem relacionado com as autoridades da
nascente nação americana. Entre outras personagens de destaque, foi amigo de George
Washington (1732-1799), aquele que se tornou o primeiro Presidente dos Estados
Unidos da América do Norte, o general guerreiro que nasceu britânico e morreu
americano! O rabino Gershon Mendes Seixas, na qualidade de amigo e representante
da comunidade judaica, participou da cerimônia da posse de George Washington em 30
de abril de 1789. Além desse rabino de decendência luso-brasileira, há muitas outras
importantes personalidades que são frutos daqueles 23 holandeses que foram expulsos
do litoral nordestino em 1654 e que fizeram história na América. [...] A Sinagoga Touro,
em Newport, Rhode Island, é o edifício mais antigo ainda usado como sinagoga nos
Estados Unidos da América do Norte. O edifício foi construído em 1759 sob ordens da
congregação Jeshuart Israel (Salvação de Israel), grupo iniciado em 1658, dois anos
após a fundação da primeira sinagoga em New York. Tal como a de New York, a maioria
45
Com a consumação que resultou na expulsão dos holandeses do Nordeste Brasileiro em 1654, a
conhecida Rua dos Judeus foi batizada de Rua do Bom Jesus. Em anos recentes, o edifício daquela
histórica sinagoga foi restaurado, servindo hoje de um ponto referencial da fé judaica nas Américas
(do Sul, Central e Norte). Certamente pela ironia da História, esta seja a única sinagoga em todo o
mundo que se encontra em uma rua que leva o nome de Jesus! Rua do Bom Jesus, 197 no centro
histórico da Capital de Pernambuco.
dos congregados e o grupo de rabinos da Sinagoga Touro eram compostos de luso-
brasileiros que optaram pelo menor estado americano o qual, por vários anos, foi um
verdadeiro ninho dos batistas, os fundadores da Brown University. (BOAVENTURA,
2014, p. 49, 51).
Em 1664, passados somente dez anos após a chegada dos 23 judeus que
foram expulsos do Nordeste brasileiro, havia pelo menos um ricaço entre os
poderosos que se encontravam no topo da pirâmide econômica da Wall Street. Esse
judeu nordestino era conhecido pelo nome de “Abraham, do Brasil” (DAVIDSON,
2016, p. 54). Ele fez parte da massa embrionária que, em 1792, se tornou na até
hoje poderosa Bolsa de Valores de New York.
A liberdade religiosa para Israel havia voltado à estaca zero. Uma parte dos judeus fugiu
para a Holanda. Outros preferiram os trópicos, fugindo para Essequibo, Caiena,
Suriname, Curaçao, Barbados e Jamaica. Um terceiro grupo seguiu para a América do
Norte, Nova Amsterdam, na ilha de Manhattan, onde se tornaram os pais peregrinos
judeus da atual Nova Iork, quando chegaram com 23 pessoas em setembro de 1654.
(SCHALKWIJR, 1986, p. 386).
Depois, veio o período das trevas na fase colonial do Brasil. As atividades da Inquisição
aumentaram e todo estrangeiro foi proibido de entrar no país. As portas estavam
fechadas e, por falta de visão missionária das igrejas evangélicas já estabelecidas em
outras partes do mundo, ninguém estava preocupado em compartilhar o evangelho no
Brasil. (TUCKER, 1986, p. 500).
De acordo com o sociólogo Gilberto Freyre, “em vez de ser o sangue foi a fé
que se defendeu a todo transe da infecção ou contaminação com os hereges. Fez-
se da ortodoxia uma condição de unidade política” (FREYRE, 2001, p. 144, 261).
Por um longo espaço de tempo, o Brasil ficou à mercê das superstições
ameríndia, africana e portuguesa. Cada uma dava suporte a outra. Nas entrelinhas,
tudo não passava de uma simbologia do sincretismo religioso. Esse místico tripé
perdurou por quase dois séculos até a chegada dos primeiros missionários
estrangeiros que semearam a boa semente, fazendo surgir um novo alvorecer na
historiografia religiosa, cultural e social do Brasil.
A chamada religião católica, considerada o principal vínculo de unidade nacional, não
tolerava outras crenças. A religião dos negros era considerada coisa do demônio, a
religião dos índios era coisa de pagãos e selvagens, e a religião dos protestantes era
uma heresia, perigosa e má, que não deveria ser permitida em solo brasileiro.
(ALMEIDA, R., 2014, p. 126).
Napoleão Bonaparte
D. Maria I
Dom José I teve em 1774 um ataque de apoplexia e a partir daí a sua decadência física
foi sempre se agravando. Como ele não tivera herdeiros varões, mas somente quatro
filhas, sua sucessora deveria por força ser a religiosíssima Maria. Não era bem isto que
Seabra e, ao que parece, também Pombal desejavam, uma vez que a preferência de
ambos recaía sobre o filho da herdeira, o príncipe da Beira, que se chamava igualmente
José e que contava então com 14 anos de idade. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
118).
Por essa citação de Dilermando Ramos Vieira, está muito bem explícito onde
estava o cerne da questão pombalina: os sonhos para perpetuar-se no poder.
Como elo da história, a herdeira presuntiva, Dona Maria I (1734-1816), nascida
em Lisboa, tornou-se rainha de Portugal quando da morte de seu pai, D. José I, a 24
de fevereiro de 1777, rei que ocupou o trono português durante 27 anos. A herdeira
presuntiva estava com 42 anos ao ser conclamada soberana do Império de
Portugal. Os problemas de dona Maria I iniciaram-se no seio familiar. Casou-se em
1760, aos 26 anos, com D. Pedro III (1717-1786), que era seu tio consorte e irmão
de D. José I. Para além do direto parentesco sanguíneo, ele estava com 43 anos, 17
anos mais velho que sua sobrinha. A rainha Dona Maria I foi legalmente a primeira
mulher a governar Portugal e, a reboque, o Brasil e as demais colônias existentes
no além-mar. Seu exemplo foi seguido anos depois por Dona Maria II (1819-1853),
sua bisneta nascida no Rio de Janeiro.
A rainha D. Maria I, certamente por questões sanguíneas decorrentes da
contínua prática da endogamia, viu dois de seus filhos morrerem precocemente. A
morte que mais a abalou foi a do seu primogênito e herdeiro do trono, D. José
(1761-1788), príncipe que nasceu em 1761, morrendo aos 27 anos, em 1788,
vitimado pela varíola. Para completar o sofrimento, seu tio-esposo, D. Pedro III,
morreu no ano seguinte aos 69 anos. A rainha D. Maria da Glória Francisca ficou
viúva aos 52 anos, entrando em crises existenciais e depressão aguda, culminando,
pelo ano de 1792, com uma demência crônica. Com a repentina morte do príncipe
D. José, que não tinha filhos, houve uma inesperada mudança no caminhar da
monarquia portuguesa.
O herdeiro do trono passou a ser o infante D. João, que três anos antes casara com D.
Carlota Joaquina, princesa com gosto pela intervenção política e sempre activa nas
intrigas da corte. [...] Sem assumir o título de regente, o príncipe D. João passou a
exercer o poder real; só mais tarde, em 1799, quando a doença era conhecida de todos,
o herdeiro do trono passou a assinar os documentos na qualidade de príncipe regente.
(SARAIVA, 2001, p. 290).
Ali o acolheu morte pavorosa um ano depois: ficou quase todo entrevado e, entre
diarreias e dores lancinantes, assistiu à decomposição do próprio corpo, consumido
pelas pústulas purulentas que o cobriam. No transcorrer das fadigas diárias, mal
conseguia dormir por duas horas. A sua segunda esposa, a condessa de Daun, mulher
piedosa, debalde insistiu para que recebesse os sacramentos, mas ele preferiu
continuar impenitente. Suas últimas palavras foram: eu morro sem remédio, porque vejo
a morte em figura de um pintainho. Sem nenhum sinal de arrependimento cerrou os
olhos aos 8 de maio de 1782. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 130).
Ao morrer todo alquebrado e abandonado, estava na casa dos 83 anos. O
seu corpo embalsamado somente encontrou uma sepultura em 1832, meio século
após sua cruel morte.
O regime pombalino teve grande mérito de, involuntariamente, preparar o País para a
revolução liberal do século XIX. Tanto a Igreja como a nobreza sofreram um golpe
mortal de que nunca se conseguiram recompor. Ao mesmo tempo, foi dada à burguesia,
homens de negócio e burocratas, o poder de que necessitavam para tomar conta da
administração e do domínio económico do País. Ao nivelar todas as classes, leis e
instituições ante o despotismo único do rei, Pombal preparou a revolução da igualdade
social e o fim dos privilégios feudais; ao mesmo tempo que, reforçando a máquina
repressiva estatal e rejeitando toda e qualquer interferência da Igreja, preparou a
rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da liberdade. (MARQUES,
1980, p. 570).
Tiradentes
A iconografia que retrata sua [de Tiradentes] execução, surge com barba e longo cabelo,
quando, de fato, morreu barbeado e quase careca. Naquela época, sempre que uma
detenção se prolongava, rapavam todos os pelos dos presos para evitar a proliferação
de parasitas. (VIEIRA, P., 2016, p. 255).
49
Pela manhã ensolarada de segunda-feira, 26 de outubro de 2020, tive a oportunidade de caminhar
por diferentes sítios históricos no centro da cidade do Recife. Entre esses lúgubres espaços,
encontra-se o Forte de São Tiago das Cinco Pontas, uma espécie de tenebrosa prisão. Acompanhei
todos os passos finais do maçom Frei Caneca e vi o local onde ocorreu sua execução. Ele deixou um
pensamento para a posteridade: “Quem bebe de minha caneca tem sede de liberdade”.
Desde 1792 – mesmo ano em que as ruas centrais de Londres ganharam
iluminação com lâmpadas a gás – e, poucos dias após a ordem real para enforcar e
esquartejar Tiradentes, além de banir alguns dos inconfidentes para países da
África, D. João, o príncipe regente, passou a assinar os documentos imperiais em
substituição a D. Maria I, já considerada louca por uma crescente parte dos
palacianos e por renomados médicos europeus. Essa emblemática situação não
fugia aos olhares dos plebeus em Lisboa. A enfermidade da rainha tornou-se
crônica e totalmente irreversível, deteriorando-se a cada dia. A essas alturas, de
nada lhe servia ser a poderosa senhora de Portugal, da Índia, da África, do Brasil e
de outras regiões além-mares. Nessa terra, somos apenas inquilinos. Em nada
valeu o seu nobre sangue azul; ele estava contaminado. Ninguém é nada nesse
mundo; tudo quanto temos fica aqui. Nessa época, Portugal estava na mira de
Napoleão Bonaparte, que aterrorizava toda a Europa, destronando reis,
desarticulando exércitos e submetendo nações ao seu total domínio e ferrenho
comando. Ele era um imperador que não sentia nenhuma compaixão pelas pessoas
diante do seu poderío, orgulhando-se por ser dono de uma invencibilidade.
“Napoleão tornara-se uma espécie de monstro quase fabuloso. [...] um homem de
bronze” (HUGO, 2007, v. 1, p. 603, 609). Em seus áureos dias, foi reconhecido
como um verdadeiro fenômeno nas artes de guerrear e, ainda hoje, para não
poucos ditadores de plantão, sua imagem é de um ser imortal. “A ditadura é a
corrupção generalizada e impune” (GASPARI, 2004, p. 303).
Na procura de agradar a gregos e troianos, a monarquia portuguesa buscou a
neutralidade diante das conquistas francesas, estratégia que fez aumentar as
ameaças recebidas do general Bonaparte, que, em 1806, exigiu o Bloqueio
Continental a fim de isolar a influência da Inglaterra sobre o continente europeu.
Pela sua neutralidade, Portugal foi colocado no âmago do problema e foco das
ameaças de invasão militar. A questão ficou insustentável: “Se correr, o bicho pega;
se ficar, o bicho come!” Preferiu correr sob a proteção dos canhões da armada
britânica. “Para Portugal, entrar na guerra sem a cobertura inglesa era expor-se à
perda do Brasil; entrar sem a aliança espanhola era arriscar-se à invasão terrestre”
(SARAIVA, 2001, p. 291). A situação em Portugal estava se agravando a cada dia.
A invasão de guerrilheiros insurgentes provindos da França e de seus aliados era
algo iminente. O aguardado terror da invasão realmente aconteceu ao apagar das
luzes do mês de novembro de 1807. Sentindo-se inseguro, sob pressão dos
ingleses, ameaçado pelos franceses e odiado pelos espanhóis, o príncipe D. João
transferiu para o Brasil toda a corte de Portugal. Assim, estaria longe do epicentro
gerado por Napoleão I. Embora isso fosse contraditório para uma situação política
diante de ameaças externas, não havia outra alternativa senão cruzar o Atlântico em
busca de refúgio. A fuga era o único meio de sustentabilidade e segurança para o
reino português. O caminho estava traçado. D. João, o príncipe regente, não tinha
como escapar daquela situação de guerra.50
50
Pelos meados do século V a.C., Leucipo de Abdera ou Mileto, um filósofo e metafísico grego,
ensinava que “nada acontece casualmente: existe uma razão necessária para tudo” (LOURENÇO,
2015, p. 20, 21).
A maléfica e obrigada decisão tomada a toque de caixa em Portugal foi
excelente para o Brasil. As cartas e o poder foram trocados de mãos. De um
momento para outro, o Brasil se livrou do estigma de colônia, tornando-se a sede de
um reinado intercontinental por 13 anos.
A partida da família real para o Brasil: 1807, o ano da partida, ou 1808, o da chegada,
foram um marco decisivo na História do velho reino e também na daquele imenso
território da América portuguesa em cuja existência repousara, em larga medida, a
monarquia pluricontinental portuguesa. (RAMOS, 2012, p. 435).
D. João VI trouxe com ele uma grande biblioteca, que foi transformada, mais tarde, na
Biblioteca Nacional. Em sua biblioteca, havia um exemplar da Bíblia de Gutenberg,
impressa em latim, em dois volumes, em pergaminho, editada na cidade de Mogúncia,
em 1462, pelos editores Johann Trust Schoeffer, sucessores de Gutenberg. Esse
exemplar raro da Bíblia, passados dois séculos, ainda se encontra na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro. (GIRALDI, 2013, p. 45).
Não foram levados somente papéis em formatos de livros, além de outros
importantes documentos. D. João também levou os papéis com os quais se compra
muitos outros papéis!
Deslocar milhares de pessoas para o Brasil pelo oceano Atlântico, junto com toneladas
de papéis, livros e o Tesouro Real, certamente foi uma das empreitadas mais
espetaculares e épicas daquela era. [...] O Império Português tivera início com as
palavras, os números e as imagens dos navegadores. (WILCKEN, 2005, p. 85, 86).
Diante dos iminentes perigos perpetrados pela França em terra e mar, sem
contar os possíveis ataques dos corsários piratas que faziam dos contrabandos e
assaltos suas fontes de riquezas, fez-se necessária uma vigilância constante da
marinha de guerra britânica. As precárias, pesadas, obsoletas e lentas naus
portuguesas, gastaram cinquenta e quatro dias para vencer os cerca de 6.400
quilômetros entre Lisboa até Salvador. “Veio de lá aqui, e houve causa milagrosa
para que em jornada tão perigosa e dilatada nem adoeceu nem morreu um só
homem que fosse” (SARAMAGO, 2019, p. 75).
52
“Igrejas fechando não é novidade na Inglaterra. Nos últimos 6 anos, 168 igrejas anglicanas
fecharam, juntamente com 500 metodistas e 100 católicas.” (Uma tradução live: Carlos Boaventura
Jr.).
53
Em um diálogo informal com um ministro no Palácio do Planalto em Brasília, sábado, 16 de
fevereiro de 1974, o General Ernesto Geisel (1907-1996), o quarto Presidente do período militar, fez
o seguinte comentário sobre a velha raposa: “António de Oliveira Salazar, o pai e encarnação da
ditadura, que governou Portugal por quase cinquenta anos, até 1968, quando a cadeira em que
cardeal para com Salazar, que durou toda a vida, trouxe, por associação, descrédito
à Igreja” (PAGE, 2012, p. 259). No decorrer daquela histórica missa celebrada na
ecumênica Catedral Nacional de Brasília, os fotógrafos flagaram o presidente
chorando.54
Foi ao repórter amador Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), o qual se
incorporava na mitológica figura do Padre Perereca, que improvisadamente coube,
aos 41 anos, registrar a chegada da família real no Rio de Janeiro em 1808.
era um homem miúdo, magro mas vigoroso, de cuja cabeça volumosa brotava uma
cabeleira fina e grisalha que lhe dava ares de intelectuais. Com efeito, ele fora um
estudioso do latim antes de se ligar ao clero, acabaria por escrever um extenso relato da
temporada da família real em sua cidade natal. (WILCKEN, 2005, p. 104).
O primeiro inglês que ocupou o cargo de embaixador, ainda no tempo de D. João VI,
Lorde Strangford, volta e meia ia a audiência oficiais com os ministros portugueses,
cheios de formalismo, usando botas de montar, como a dizer que o Paço era uma
espécie de estrebaria. (CALDEIRA, 2008, p. 110).
O novo florescer
Os anglicanos
Com aquilo que se torna possível entender diante do relato anterior, foi na
residência do embaixador Strangford, representante de George III (1738-1820), rei
inglês que sofria de transtorno mental, que se realizaram, por quase nove anos, os
cultos da Igreja Anglicana. Segundo boatos que circulavam pelos vastos corredores
dos palácios em Londres, quando o rei George III entrava em trânse psíquicamente,
“ele falava 19 horas sem parar” (HOCHSCHILD, 2007 p. 183). Em 1819, as reuniões
foram transferidas para um local próprio à rua dos Bourdons, atual Evaristo da
Veiga, no centro do Rio de Janeiro. Esse foi o endereço do primeiro templo de uma
igreja protestante construído no Brasil e também, na época, o único templo
anglicano em toda a América do Sul. O trabalho não possuía nenhum cunho
missionário; servia apenas e tão somente para atender às necessidades espirituais
e ao companheirísmo dos estrangeiros residentes ou de passagem pelo Rio de
Janeiro. Em outras palavras, era uma igreja estrangeira para atender uma clientela
composta por estrangeiros brancos e fluentes na língua inglesa! Para o brasileiro,
não havia espaço nessa seleta freguesia da fé.
Foram organizadas mais tarde outras igrejas anglicanas em Niterói, São Paulo, Santos e
Recife, mas o anglicanismo no Brasil não progrediu: seus ministros só celebravam em
língua inglesa e jamais desenvolveram atividades missionárias. [...] ainda não se
celebrava nenhum culto reformado em português no Brasil. (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 183).
Os luteranos
À semelhança de Portugal, que enviou para cá não poucos degredados, a começar com
expedição de Pedro Álvares Cabral, alguns condenados pela justiça alemã vieram para
o Brasil. Entre os 500 imigrantes que aqui chegaram na galera dinamarquesa Georg
Friedrich, em fevereiro de 1825, havia 163 reclusos de casas de correção do Grão-
Ducado de Mecklenburg. (CÉSAR, 2000, p. 73).
Sem muito exagero nos cálculos imigratórios, é possível que mais de 80%
dos germânicos que desembarcaram no Brasil Império fossem luteranos de fé. “Em
18 de julho de 1824, 43 famílias alemãs, 38 delas luteranas, desembarcaram em
Porto Alegre, RS, de onde prosseguiram até o passo do Rio dos Sinos. [...] O local,
denominado São Leopoldo em homenagem à Imperatriz Leopoldina. [...] Alguns
pastores vieram para assisti-los, sendo o primeiro deles Johann Georg Ehlers
(1779-1850), então viúvo e com três filhos, chegando junto da terceira leva, a bordo
da galera Germânia, aos 6 de novembro de 1824. Foi-lhe concedida uma
gratificação anual de 400$000 réis pelo governo do império, mais um terreno para
moradia e um salão onde pudesse exercer o ministério religioso” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 185, 186).
Os objetivos dos europeus eram outros: chegaram para explorar, colonizar e
branquear uma nação e não para evangelizar os habitantes da terra. Na primeira
etapa migratória, com destino à atual Nova Friburgo, Rio de Janeiro, veio um clérigo
alemão, o pastor Friedrich Oswald Sauerbronn (1784-1867), que teve a infelicidade
de ficar viúvo em alto-mar, tendo sido o corpo da esposa lançado às águas do
Atlântico. “Tido como o primeiro ministro protestante residente no país, Sauerbronn
pastoreou a comunidade luterana de Nova Friburgo por quarenta anos, até morrer,
em 1864, aos 80 anos” (CÉSAR, 2000, p. 72). Durante os quarenta anos em que
viveu no Brasil, o seu salário, ou côngrua paroquial, era integralmente pago pelo
erário imperial. Ou seja, financeiramente ele desfrutava dos mesmos direitos
concedidos aos padres da Igreja Católica. Pelos finais da década de 1820, D.
Romualdo Antônio de Seixas (1787-1860), político de peso, intransigente
montanista e arcebispo primaz do Brasil conseguiu “evitar que o governo
financiasse a vinda de dois irmãos morávios luteranos para missionarem entre os
índios” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 221). Com relação às côngruas, era algo
simbólico diante das necessidades sacerdotais, entretanto, por esse meio, o
governo imperial controlava os clérigos nacionais e estrangeiros.
O clero todo, desde o Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil até o padre da paróquia
mais pobre, era pago pelo Estado. As côngruas tendiam a ser mesquinhas e
permaneceram as mesmas por diversas décadas, a despeito da inflação e de um
aumento constante no custo de vida. (VIEIRA, David, 1980, p. 27).
57
Isso porque Cruz Jobim não alcançou a publicação de “A ética protestante e o espírito do
capitalismo”, opus magnum na literatura do alemão Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da
Sociologia. “A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado da graça. [...]
Convenci-me de que a verdade, a sinceridade e a integridade nas relações entre os homens eram da
máxima importância para a felicidade da vida” (WEBER, 1985, 113, 140).
Havia entre os imigrantes uma viva consciência da importância do livro e a leitura, mais
ainda entre os luteranos, educados na prática constante da leitura da Bíblia. [...] Por
decreto de 1858, do governo do Império, o pastor Hesse foi contratado na Alemanha
para servir em Blumenau. Durante os primeiros sete anos de estadia, foi pago pelo
governo imperial, o que não era incomum nas paróquias evangélicas. O mesmo
benefício fora concedido à colônia gaucha de São Leopoldo, cujo primeiro pastor, que
chegou ao lugar, em 1824, também teve seu salário pago pelo Império, favor negado na
época à paróquia católica da região. [...] Tschudi observou em Blumenau que o principal
livro de leitura da escola era a Bíblia, tanto em versão portuguesa quanto em versão
alemã, ambas publicadas em Nova York. [...] O catolicismo lusitano contava com o
padre para ler e interpretar a Bíblia, desobrigando os fiéis de aprender a ler, enquanto o
protestantismo, professado por dois terços dos imigrantes alemães, exigia a
alfabetização para a leitura do texto sagrado. (ALENCASTRO, 2004, p. 325, 327, 328,
332).
Carlota Joaquina também demonstraria desde cedo um grande pendor para o ódio [...]
seu pacato e desajeitado marido foi a primeira pessoa a quem odiou, e o fez com a
peculiar intensidade com que se odeia alguém que se despreza, mas de quem depende.
(LUSTOSA, 2006, p. 28).
Esse mal que a atormentou em Portugal não foi diferente durante os treze
anos de Brasil. Na vida conjugal/sentimental, o rei foi um homem extremamente
infeliz, fracassado e melaconicamente amargurado pelas circunstâncias. Sempre
viveu às turras e conjugalmente separado de D. Carlota Joaquina de Bourbon
(1775-1830), uma megera racista que morava em uma quinta pelos lados do atual
bairro do Botafogo, bem distante do esposo, que permaneceu no Paço Imperial,
centro das decisões reais e residência monárquica. “Eles só se encontravam
quando eram obrigados, no Rio de Janeiro, e o príncipe regente nem sequer visitava
a mulher quando ela adoecia” (WILCKEN, 2005, p. 137).
Quando D. Carlota Joaquina recebeu informações de que a corte em Lisboa
exigia o regresso da família imperial para Portugal, ironicamente desabafou e expôs
ao público o seu doentio e xenófobo ódio racial: “’Vou enfim encontrar uma terra
habitada por homens’, teria dito a rainha, pilheriando que ficaria cega quando
chegasse à Europa, porque viveu 13 anos no escuro, só vendo pretos e mulatos”
(WILCKEN, 2005, p. 268). No Brasil, D. Carlota era rainha consorte; ao chegar em
Portugal, esse título lhe foi retirado pelas autoridades em Lisboa. D. Carlota recusou
obedecer às regras exigidas pelo governo sobre o rei D. João VI. Imagina-se que
estava a preparar um complô na procura de usurpar o trono a favor de seu filho, D.
Miguel (1802-1866). Esse é um pedaço meio complicado na história portuguesa. O
dramatólogo francês extrapola em seus efeitos ao citar a península Ibérica onde:
“dois demônios do sul, Fernando na Espanha e Miguel em Portugal” (HUGO, 2007,
v. 2, p. 34).
Outra característica do rei D. João VI, segundo os vastos documentos
existentes e comentários de não poucas personagens estrangeiras que passaram
pela capital imperial, era que ele não apreciava trocar de roupas e tão pouco tomar
banho. Era um fanfarão que tinha medo até de caranguejo. Não somente os
exagerados medos o acompanhavam: para manter sua protuberante barriga sempre
cheia (típico sinal de uma acentuada, crônica e agressiva depressão), nos intervalos
das refeições, ele devorava sem cerimônia seis franguinhos fritos que trazia nos
bolsos de sua estragada, surrada, suja e malcheirosa jaqueta.
O gosto pela higiene também não era muito forte no monarca. Não havia memória, nem
em Lisboa nem no Rio de Janeiro, de D. João ter tomado um banho de corpo inteiro. No
Brasil, apenas quando um carrapato mordeu a sua perna, infeccionando-a, aderiu aos
banhos de mar, tidos como medicinais. Vestia-se com desmazelo. Suas roupas, sempre
gastas, com grandes nódoas de gordura, eram usadas até caírem de podres. [...] Era
extremamente glutão, e a lenda dos franguinhos que passou à história pitoresca foi
registrada por vários viajantes. (LUSTOSA, 2006, p. 32, 33).
Não há uma única referência a D. João ter tomado um banho completo, com água e
sabão, em mais de uma década no Brasil, onde as temperaturas frequentemente
ultrapassavam 35 graus Célsius. Segundo todos os depoimentos, não tomar banho era
um ponto de honra entre os portugueses de alta classe no Rio. (WILCKEN, 2005, p. 202,
203).
Na Europa, também não era diferente nos Estados Unidos, tomar banho
ganhou hábito higiênico, graças a religiosidade apregoada pelos grandes avivalistas
que surgiram no século XVIII. “Pregadores metodistas, como o famoso John Wesley
achavam que a limpeza corpórea aproximava o homem de Deus e, por isso
recomendava-se o banho aos domingos antes da missa” (BUENO, 2007, p. 61).
Batalha de Waterloo
No período de 13 anos no Brasil, D. João VI e todo o séquito imperial estavam
longe das guerras, dos confrontos e dos conflitos existentes na Europa. Com
satisfação e grande alívio, o rei foi oficialmente informado acerca do resultado da
Batalha de Waterloo, quando, dia 18 de junho de 1815, o exército francês foi
confrotado e devastado pelas forças britânicas e seus aliados. Foi a última batalha
da França sob a estratégia e orientação do invencível Napoleão Bonaparte (1769-
1821), considerado o arcanjo da guerra. “Esse sombrio atleta do pugilato de guerra.
[...] Ele, que antes conhecia todos os caminhos do triunfo [...] Seu plano de batalha,
segundo a opinião geral, era uma obra-prima. [...] Algo de obscuro, algo de divino”
(HUGO, 2007, v. 1, p. 311, 315). Suas ardilosas estratégias de mais de 15 anos em
campos de batalhas não funcionaram. Algo estranho e atabalhoado estava a intervir
na mente, no corpo e na alma do arcanjo da guerra! Se arcanjos são portadores de
asas, as desse estavam quebradas!
O francês Victor Hugo (1802-1885), um adolescente nesse período que, aos
48 anos, iniciou a escrita Les Miserables, obra clássica cuja conclusão demorou 12
anos (de 1850 a 1862), no material lançado na quinta-feira, 3 de abril de 1862, o
autor reservou dezenas de páginas para dramatizar Waterloo, referindo-se
detalhadamente às sombrias e serenas armadilhas.
Napoleão Bonaparte tem sua vida cruzada com a guerra, já que nasceu da guerra,
chegou ao poder por meio da guerra, manteve esse poder por meio da guerra e o
perdeu por meio da guerra. Por isso, ele estava condenado a nunca fazer a paz, e se o
fez, foi pensando na retomada da guerra. (MAGNOLI, 2006, p. 212).
D. Pedro foi rei de Portugal, com o nome de Pedro IV, entre 20 de março e 2 de maio de
1826, data da abdicação em favor da filha Maria da Glória. Na prática, só exerceu seus
poderes por uma semana, a partir de 26 de abril, dia em que aceitou oficialmente a
coroa que lhe era oferecida pelos papéis que chegavam de Lisboa. Nesses sete dias,
tomou decisões de grande impacto. A mais importante foi dar aos portugueses uma
nova constituição. (GOMES, 2010, p. 284).
deveria ser elaborada por uma Assembleia Geral Legislativa, composta de deputados
das províncias, que reuniu-se pela primeira vez, em 17 de março de 1823, sob a
presidência do bispo-capelão mor D. José Caetano da Silva Coutinho, com a presença
de 48 doutores em Direito, 19 eclesiásticos e sete militares, mais alguns funcionários e
negociantes. (LIMA, 2004, p. 112).
Foram eles os primeiros reis - soberanos - a reconhecer o Brasil, mas não os primeiros chefes de
Estado. O embaixador africano do Benin foi recebido por dom Pedro I em 20 de julho de 1824. O
reconhecimento pelos Estados Unidos deu-se em 26 de maio daquele ano, ou seja, quase um
mês antes (sic). Pesquisas recentes indicam que as Províncias Unidas do Rio da Prata - isto é, a
Argentina - teriam sido o primeiro país a reconhecer a independência brasileira. Ver Rodrigo
Wiese Randig. Argentina, primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, Caderno do
CHDD, número 31, segundo semestre de 2017, p. 518, 19. (GOMES, 2019, v. 1, p. 22).
escravagismo, Monroe foi um respeitado político, levando, em seu currículo, o
legado de ser veterano das guerras contra a Inglaterra, membro da igreja episcopal
e também da maçonaria. Foi um líder que buscou a hegemonia e integração do
novo continente ao criar o slogan América para os americanos, doutrina que o
imortalizou. Apesar do iluminar das novas pesquisas, ainda considero o presidente
James Monroe o primeiro governante legitimamente democrático a reconhecer que
o Brasil era uma nação livre, soberana e totalmente independente para cuidar do
seu futuro. Recebendo o endosso dos Estados Unidos, que já estavam a despontar
sua liderança mundial, outras nações fizeram o mesmo. Seguem algumas
características do presidente James Monroe: “Alto, magro e de rosto angular, ele foi
o último presidente a empoar o cabelo e atá-lo para trás e o último a usar calças que
iam até os joelhos, meias brancas compridas e sapatos de fivela” (DAVIDSON,
2016, p. 115).
Como não poderia ser diferente, fazia-se necessária a bênção papal para
consolidar a soberania política de um novo país. Na busca desse incondicional
apoio, que exaltaria o desenrolar da nova nação, D. Pedro I, o jovem imperador, 2º
Grão-Mestre do Grande Oriente e laureado de Defensor Perpétuo do Brasil em 10
de maio de 1822 pela mesma maçonaria, envia até Roma um delegado para
negociar o reconhecimento da Independência. Diante de mútuos jogos de interesses
políticos e religiosos, alicerçando a mística do Trono, da Espada e do Altar, faz-se
necessária a homologação da Independência pela Sua Santidade. Para essa santa
missão de cunho político e submissão papal, foi despachado até Roma um
emissário ligado ao profano e ao sagrado. Profano no jogo dos interesses políticos e
sagrado no altar da eucaristia. Era uma oportuna casadinha, largamente
aproveitada por vários sacerdotes. “Mulato e advogado, monsenhor Francisco
Correia Vidigal foi enviado a Roma para obter o reconhecimento da independência
do Brasil” (SERBIN, 2008, p. 325).
Para alguns milhares de adeptos e outros, o papa estava acima de quaisquer
suspeitas de interesses próprios, embora isso seja questionável. “O papa, além do
poder espiritual, agia como supremo árbitro entre os soberanos que a ele recorriam
nas dúvidas mais sérias” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 9). A sagrada
ratificação papal não foi tão fácil como imaginavam as autoridades brasileiras. O
embaixador de Lisboa junto à Santa Sé havia agido com mais rapidez e sagacidade,
conseguindo bloquear diplomaticamente o caminho do brasileiro até ao recém-eleito
papa, um antissemita com o título de Leão XII (1823-1829), o qual estava com 63
anos, magro, alto e doente.
Com instruções em mãos e investido de plenos poderes, Vidigal chegou a Roma aos 5
de de janeiro de 1825. Conhecedor da língua italiana - havia estudado teologia lá -, no
dia 13 seguinte, foi recebido pelo Cardeal Giulio Maria Cavazzi della Somaglia (1744-
1830), secretário de Estado, que o tratou cortesmente, mas sem aceitar as credenciais
que trazia. [...] mas, graças à intercessão do Cardeal Bartolomeu Pacca que conhecera
Dom Pedro I quando menino, Portugal aceitou enfim a perda da sua possessão sul-
americana. [...] em 13 de janeiro de 1826, o representante do Brasil pôde afinal
apresentar as credenciais. [...] Leão XII, por meio da bula Praeclara Portugalliae, datada
de 15 de maio de 1827, criou para o Brasil as ordens de Cristo, Santiago e Avis,
conferindo ao soberano do novo reino o padroado e benefício do império. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 164,165).63
Outro grande destaque do Rio de Janeiro, provavelmente o maior de todos, foi o Pe.
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), presbítero secular, que se encontra entre os
maiores músicos da história do Brasil. Era um mestiço inteligente e vivaz, filho de
Apolinário Nunes Garcia, um respeitável senhor branco, e Vitória Maria do Carmo,
africana de Guiné. [...] Pe. José Maurício deixou ao menos dois discípulos célebres: o
primeiro foi Francisco Manoel da Silva, autor da melodia do Hino nacional brasileiro; o
segundo foi Dom Pedro I, imperador do Brasil, que compôs o Hino da Independência e
algumas obras sacras. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 81, 82).
63
No site do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, está disponível um arquivo
em pdf com o título “Monsenhor Francisco Correia e o reconhecimento da Independência pela Santa
Sé”, no qual o leitor encontrará um histórico mais esclarecedor sobre o citado monsenhor com a
função de diplomata diocesano.
Pedro II o título nobiliárquico de Barão de Mauá. Cinco dias antes dessa honraria,
Irineu Evangelista de Sousa havia iluminado o centro do Rio de Janeiro com
lampiões a gás. Vinte anos depois, em 22 de junho de 1874, inauguram-se, através
de cabos submarinos, transmissões telegráficas que mudaram a história do Brasil.
Naquele dia, do Rio de Janeiro, D. Pedro II envia mensagens ao papa e à rainha da
Inglaterra. O empresário Mauá havia terminado de conectar o Brasil com o resto do
mundo por meio do uso do Código Morse. Em reconhecimento, uma nova comenda
foi apressadamente enviada ao grande empresário do império no dia 26 de junho de
1874.
Por isso, quatro dias depois da inauguração, D. Pedro II assinou um papel e mandou Rio
Branco entregá-lo a domicílio na casa vizinha: era a carta que o tornava visconde - com
grandeza. Enquanto descia na hierarquia dos negócios, Mauá subia na da nobreza.
(CALDEIRA, 2008, p. 494).
Um nome tão longo, para uma vida tão curta, porém intensa e agitada. Em apenas doze
anos, nove como imperador e três como rei de Portugal. [...] legislou duas das primeiras
cartas constitucionais do mundo; e abdicou de dois tronos em favor de dois filhos
pequenos, D. Pedro II no Brasil e D. Maria II em Portugal. (GIRALDI, 2013, p. 91).
Sua vida privada foi intensa e tumultuada. Embora não bebesse, gostava de farras,
noitadas, amigos de má reputação e, em especial, das mulheres [...]. Nos dois
casamentos oficiais, D. Pedro teve oito filhos, sete com Leopoldina e um com Amélia.
Fora do casamento, o número é lendário. Octávio Tarquínio de Souza assegura que,
entre naturais e bastardos, teve uma dúzia e meia de filhos. Alguns cronistas chegaram
a lhe atribuir mais de 120 rebentos ilegítimos, cifra nunca comprovada, mas não de todo
impossível [...]. O derradeiro, nascido em 1832, já depois de abdicação do trono
brasileiro, com a freira Ana Augusta Peregrino Faleiro Toste, tocadora de sino no
convento da Esperança na ilha Terceira, Açores. Também teria tido uma filha com uma
negra de 16 anos chamada Andresa dos Santos, serva do convento da Ajuda. (GOMES,
2010, p. 121,122).
Enquanto imperador do Brasil, D. Pedro I e, posteriormente, D. Pedro II
estavam acima das leis constitucionais. “Quanto a isso, o artigo 99 da Carta Magna
era claro: ‘A pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a
responsabilidade alguma’” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 211). Ali estava a
última instância judicial, executiva e legislativa. Somando-se a tudo isso, o padroado
se encontrava nas mãos do imperador, que era a autoridade no Brasil para
manobrar o temporal e o eterno, o profano e o sagrado. Fim de papo!
Sendo de pouca sorte, D. Pedro I teve os dias finais passados no Palácio
Nacional de Queluz,64 nos arredores de Lisboa, onde foi vencido pela tuberculose, a
mortífera doença do século. Tudo isso aconteceu pouco antes de ele completar 36
anos. Morreu no quarto dom Quixote, mesmo local onde havia nascido a 12 de
outubro de 1798.65
“D. Pedro I, o rei, filho e neto de reis, defensor das instituições livres na
América e na Europa, que dera constituições às suas duas pátrias e que deixou a
filha reinando em Portugal e o filho no Brasil” (LUSTOSA, 2006, p. 324). Em meio ao
regime militar e na utilização diplomática, o corpo de D. Pedro I, sem o seu coração,
encontra-se no Museu Paulista, na região do Ipiranga desde 1972. O traslado dos
restos mortais, sob guardas de honra e em câmara ardente, foi feito a bordo do
Funchal, o mais histórico e político navio português. A trasladação do esquife foi o
ponto máximo das comemorações do sesquicentenário da Independência do Brasil.
Esse traslado decorreu de um acordo de cavalheiros entre o regime militar e os
herdeiros daquilo que havia sobrado do salazarismo. Fato curioso: depois de 25
anos, novembro de 1997, casualmente eu e minha esposa fizemos o mesmo roteiro
Portugal-Brasil a bordo do Funchal. Somente me recordei do traslado dos restos
mortais de D. Pedro I quando o chefe dos camarotes contou-me que fez parte
daquele histórico séquito que havia zarpado do píer do rio Tejo em Lisboa, na terça-
feira, dia 11 de abril de 1972. Não tenho dúvidas, essa afirmação até parece um
exaltado pedantismo, sou perseguido pelos históricos acontecimentos!
O caixão do imperador Pedro I, por ocasião dos festejos dos 150 anos da Independência
do Brasil, foi trasladado, da pátria-mãe, da igreja jesuíta em Lisboa, em 11 de abril de
1972 a bordo do Funchal para o Brasil. Pedro I foi sepultado ao lado de sua esposa às
margens do Ipiranga. (PRANTNER, 1998, p. 95).
64
“O Palácio Nacional de Queluz é uma referência da arquitetura rococó e neoclássica em Portugal.
Mandado construir em 1747 pelo futuro D. Pedro III, marido consorte da rainha D. Maria I, foi
concebido como residência de verão, tornando-se espaço privilegiado de lazer da família real.”
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_Nacional_de_Queluz>. Acesso em: 17 ago.
2019). D. Pedro III (1717-1786) de Portugal era o avô paterno de D. Pedro I do Brasil. D. Pedro III de
Portugal morreu aos 68 anos naquela residência real.
65
Em 22 de novembro de 2010, o casal Alberto e Manuela Crespo conduziu-me ao Palácio de Mafra,
um histórico monumento da realeza. Regressamos por Sintra e, finalmente, o Palácio de Queluz. Era
o findar do expediente de uma segunda-feira, mas mesmo assim paramos por alguns minutos no
referido aposento, onde há uma cama, a mesma, segundo informações, em que D. Pedro I faleceu
aos 35 anos. Rodeando todo o alto das paredes, encontram-se pinturas que se identificam com a
conhecida história de Dom Quixote, obra literária que imortalizou o escritor Miguel de Cervantes
(1547-1616), um dramaturgo e romancista espanhol. “D. Pedro morreu nos braços da imperatriz
Amélia, às 14h30 de 24 de setembro de 1834, faltando duas semanas e meia para completar 36
anos” (GOMES, 2010, p. 323).
D. Pedro I, como exigia a sagrada cartilha imperial, era católico romano,
mesmo que tudo não passasse de meros protocolos; sabe-se que ele nunca esteve
preocupado com a vida religiosa. Por outro lado, não havia nenhum interesse em
contactar os protestantes; se o fizesse, abandonaria sua zona de conforto e
enveredar-se-ia por um infestado vespeiro. No decorrer do Primeiro Império, o
cristianismo evangélico - leia-se protestante - não passava de uma minoria entre os
imigrantes provindos do meio-norte da Europa. Para os não poucos católicos
existentes no Brasil, fervorosos ou não, protestantismo era sinônimo de uma
estranha e perigosa religião inventada na Alemanha pelo excomungado padre
Martinho Lutero em 1517. Queriam distância desses amaldiçoados pagãos!
D. João VI morreu na casa dos 58 anos. As más línguas dizem que foi
envenenado sob ordens da espanhola D. Carlota Joaquina (1775-1830), sua
descontrolada e amotinadora esposa. O seu falecimento ocorreu em 10 de março
de 1826 no Real Palácio da Bemposta, em Lisboa. Quando a notícia oficial chegou
ao Brasil, D. Pedro I logo procurou garantir sua posição de chefe do governo
português, um direito que lhe cabia por herança. Ele sabia que politicamente o seu
governo no Brasil estava muito desgastado e, por várias razões, também
desmoralizado. Portanto, aproveitou a brecha política do descrédito para buscar um
novo desafio na Europa. Trazia consigo amargas e irreversíveis derrotas: a morte da
imperatriz, a perda da Guerra da Cisplatina e também da sua popularidade. Em sua
vida, tudo caminhava para o pior, embora se mantivesse visionário e obcecado em
suas metas. Não tendo como ser rei de Portugal e imperador do Brasil, preferiu
abdicar o império a favor de seu filho, D. Pedro II (1825-1891), então uma criança
com somente cinco anos. Poucas horas antes do desespero daquela madrugada, o
maçom José Bonifácio de Andrada e Silva, recém-regressado do exílio na Europa,
foi convocado ao Paço Imperial e nomeado tutor de D. Pedro II no dia 6 de abril de
1831. No desenrolar da madrugada, enquanto a tropa apressadamente preparava o
navio para zarpar, o inseguro imperador escreve o seguinte documento de
abdicação: “Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei
abdicado mui voluntariamente na pessoa de meu muito amado e prezado filho, o
Senhor Dom Pedro de Alcântara. Boa Vista, sete de abril de mil oitocentos e trinta e
um” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v.1, p. 158). Antes do raiar do Sol daquela
marcante quinta-feira, 7 de abril de 1831, Pedro I, aos 32 anos, deixou o Rio de
Janeiro com sua comitiva para nunca mais voltar. Seguiu com destino à Europa.
Sua primeira escala foi na Ilha da Terceira, nos Açores, onde se envolveu com a
freira que tocava o sino da matriz!
“Quando o pequeno Pedro acordou, todos se dirigiram a ele chamando-o Sua
Majestade Imperial”. Ele não entendeu nada. “Em seguida, viu os rostos inchados
de tanto chorar. As irmãs choravam. José Bonifácio já estava presente. Este homem
era bondoso. Adotou as crianças com amor paterno” (PRANTNER, 1998, p. 189). D.
Pedro II nasceu no palácio de São Cristóvão, o principal edifício na Quinta da Boa
Vista, dia 2 de dezembro de 1825, sendo filho de D. Pedro I e sua esposa, a
austríaca Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo (1797-1826), Imperatriz
do Brasil e a primeira mulher a governar a nação diretamente da sede do Império,
no Rio de Janeiro.66 “Maria Leopoldina era uma Habsburgo, crème de la crème do
sangue-azul mundial” (MENEZES, 2007, p. 113). O referido governo de D.
Leopoldina foi um dos principais atos dessa imperatriz e regente sob conselhos do
minerologista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que honradamente
recebeu o epíteto de Patriarca da Independência. O doutor Andrada e Silva era um
poliglota santista que “falava e escrevia em seis idiomas e lia em onze” (CALDEIRA,
2002, p.18). Está claro que o referido Patriarca da Independência era um homem
raro, superdotado e, como tal, caminhava à frente do seu tempo na política, bem
como na área das ciências e da cultural geral. Diga-se de passagem, foi dele que se
originou o nome Brasília para a atual Capital do Brasil e a idealização da bandeira
imperial desenhada pelo francês Jean Baptiste Debret (1768-1848). Símbolo
imperial que foi o Padrão do Brasil até 15 de novembro de 1889. 67
Foi D. Leopoldina, amante das letras que formam as mais belas e românticas
palavras, quem assinou o rompimento legal do Brasil com Portugal, quando
ocupando a regência do Brasil, de 14 de agosto a 14 de setembro, perante o
Conselho da Coroa sob sua presidência no Rio de Janeiro. Esse ato aconteceu na
madrugada de 2 de setembro de 1822. O decreto por ela assinado foi homologado
cinco dias depois pelo príncipe D. Pedro de Alcântara às margens do riacho do
Ipiranga, em São Paulo.
Na noite de 29 de agosto de 1822, a Imperatriz, aos 25 anos redigiu uma
apaixonada carta ao seu esposo, solicitando o seu rápido regresso ao Rio de
Janeiro.
Meu querido e muito amado esposo, mando-lhe o Paulo; é preciso que volte com a
maior brevidade, esteja persuadido que não só amor, amizade que me faz desejar mais
que nunca sua pronta presença, mas sim às críticas circunstâncias em que se acha o
amado Brasil, só a sua presença, muita energia e rigor podem salvá-lo da ruína. [...]
Receba mil abraços e saudades muito ternas desta sua amante esposa. (Disponível em:
<https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=285344>. Acesso em: 13 jun. 2020).
66
D. Maria I, avó paterna de D. Pedro I, na posição de rainha de Portugal, governou o Brasil
diretamente de Lisboa após a morte de seu pai, D. José I (1714-1777).
67
José Bonifácio de Andrada e Silva, nascido em Santos, estado de São Paulo, foi o 1º Grão-Mestre
do Grande Oriente do Brasil, a primeira loja da maçonaria fundada no Rio de Janeiro em 17 de junho
de 1822. Ele é o único personagem brasileiro homenageado com uma destacada estátua no Bryant
Park, localizado na Avenida das Américas (Sixth Avenue e Forth-two Street), em Manhattan, no
nevrálgico centro da cidade de New York.
Pedro em São Paulo pois viajara para Santos. Bregário continuou sua cavalgada e
encontrou o príncipe, que voltava, no morro do Ipiranga. (PRANTNER, 1998, p. 86, 89).
Padre Perereca usaria todo seu saber, temperado com impagáveis tiradas sarcásticas,
para fustigar os que julgava inimigos da Igreja. Célebre foi a zombaria que fez ao
comportamento do Pe. Feijó: Entendi muito bem a V.S. o que o Sr. Padre Deputado quer
é casar. [...] Não grite tanto, não derrame tantas lágrimas, não faça tantas caramunhas,
nós bem percebemos a que fim elas se dirigem. Case-se Sr. Padre. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 215).
Filho de pais ignorados, supõe-se que seus genitores fossem o vigário de Cotia, mais
tarde cônego do cabido paulistano, Pe. Manuel da Cruz Lima, e a mãe, uma irmã do Pe.
Fernando Lopes de Camargo, de nome Maria Joaquina, que na época contava com 23
anos de idade. Ainda recém-nascido foi abandonado dentro de uma cesta na soleira da
casa do padre, então subdiácono, Fernando, situada à Rua da Freira, n. 11, que o
recolheu e adotou. [...] Autodidata por força das circunstâncias, o jovem seminarista
recebeu atestado de filosofia em setembro de 1808 [...]. Ordenado diácono naquele
mesmo ano na capela particular do palácio episcopal de São Paulo por Dom Mateus de
Abreu Pereira, em 25 de fevereiro de 1809 se tornaria presbítero. [...] entrou na política,
marcando presença na delegação brasileira às Cortes de Lisboa em 1821 e na
assembleia constituinte de 1823. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 177,178).
O papa Inocêncio X, não reconheceu como rei luso D. João IV de Bragança ou aceitou
os bispos designados por ele. Anos mais tarde, vendo que Alexandre VII se mantinha
nesta política de indecisão, D. João IV decidiu deixar vacantes as dioceses, apropriou-se
das suas rendas e ameaçou formar uma Igreja nacional. (GALLEGO, 2010, p. 303).
Depois de 76 anos das ameaças do conde de Oeiras, láurea inicial que gerou
um animal administrativo, a questão abanada pela Constituição de 1824 é
ressuscitada por Diogo Antonio Feijó, um inconformado e influente sacerdote
brasileiro que almejava mudar o quadro da história celibatária imposta e assegurada
pela Igreja de Roma. O regente Feijó, como já mencionado, era muito mais político
que sacerdote e, mesmo sendo um padre católico ordenado, não tinha nenhum
apreço pelo papa Gregório XVI, um rígido ultramontanista italiano que passou 15
anos de plantão no Vaticano (1831-1846), gastando tempo na busca de
desmoralizar as Bíblias produzidas pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira,
organização protestante fundada em Londres no ano de 1802. Naquela época e por
muitos outros anos a seguir, Londres, como já mencionado, era a cidade onde
residia a maior comunidade protestante de todo o planeta. Ao nascer na comuna de
Belluno, região de Vêneto,69 o papa Gregório XVI recebeu o nome de Bartolomeu
Alberto Cappellari (1765-1846). “Provavelmente, poderia afirmar-se que foi um bom
homem, um medíocre papa e um péssimo chefe de Estado” (GALLEGO, 2010, p.
370).
Enquanto Ministro na pasta da Justiça, empossado aos 4 de julho de 1831,
Feijó manteve-se na função até renunciar no dia 2 de agosto de 1832.
Posteriormente, aos 50 anos, é eleito Regente do Brasil em 7 de abril de 1835,
função à qual, também sob pressão política, preferiu renunciar aos 19 de setembro
de 1837. Antes dessas intempéries pessoais e administrativos, o padre Antonio
Diogo Feijó havia costurado um jogo político com os segmentos mais liberais do
império, cujo programa era
Os metodistas
Foi nesse clima sociorreligioso e político em que vivia o Brasil pelo ano de
1835 que chegaram ao porto do Rio de Janeiro os primeiros missionários enviados
pela Igreja Metodista Episcopal dos Estados Unidos.
A primeira edição do Novo Testamento saiu em 1778, em seis volumes. Quanto ao Antigo
Testamento, os 17 volumes de sua primeira edição foram publicados de 1783 a 1790. Em
1819, veio à luz a Bíblia completa de Figueiredo, em sete volumes, e, em 1821, ela foi
publicada em um único volume. Essa tradução foi aprovada e usada pela Igreja Romana e
também pela rainha D. Maria II, em 1842. Figueiredo incluiu em sua versão os chamados
livros apócrifos que o Concílio de Trento havia acrescentado aos livros canônicos em 8 de
abril de 1546. Esse fato contribuiu para que a sua Bíblia seja ainda hoje muito apreciada
entre os católicos romanos de fala portuguesa. (COMFORT, 1999, p. 401, 402).
O primeiro esforço evangelístico concreto e duradouro foi iniciado em 1838, quando Dr.
Robert Kalley (1809-1888), um cirurgião de Glasgow, chegou com sua esposa
Margarete à ilha da Madeira. Permaneceram na Madeira oito anos, período durante o
qual centenas de pessoas vieram a exercer a fé pessoal em Cristo. Em 1846, estalou
uma violenta perseguição religiosa. Os bens pessoais do casal Kalley, o pequeno
hospital e as escolas que eles tinham fundado foram alvo de pilhagem e destruição. Por
volta de 2.000 fiéis provenientes deste trabalho presbiteriano viram-se forçados a fugir
para outras partes do mundo. (ERICSON, 1984, p. 22).
72
Fazendo pesquisas, na quinta-feira, dia 2 de julho de 2020, estive na Wesleyan University
juntamente com os pastores Varley Silva, Zaqueu Silva e Tiago Alberto. Os antigos prédios, incluíndo
a capela, estão totalmente conservados e em pleno uso.
Cynthia Harriet Kidder foi vitimada pelo mosquito transmissor da febre
amarela e, sem os recursos adequados para combater o assassino vírus, não
resistiu, vindo a falecer no Rio de Janeiro, dia 16 de abril de 1840. Estava com
somente 22 anos de idade e três a residir no Brasil, sua segunda e última pátria
terrestre. A jovem Cynthia foi a primeira missionária protestante/evangélica
procedente dos Estados Unidos a morrer no Brasil. Os seus restos mortais se
encontram no cemitério de Gamboa no Rio de Janeiro. Pouco antes de sua morte,
seu esposo regressava de mais uma de suas longas viagens distribuindo Bíblias e,
sendo muito bem articulado, fazia contatos com diferentes autoridades políticas e
não poucos sacerdotes católicos.
Quando o missionário voltava de uma longa viagem, feliz pela sementeira lançada,
ansioso pela oportunidade de pregar em português e pelo reencontro com esposa e
filhos, encontrou sua mulher passando mal e piorando dia a dia com a cruel moléstia,
como ele a chamou. [...] Deixou dois filhos pequenos e foi considerada a primeira mártir
do metodismo brasileiro e a primeira missionária na América do Sul a falecer no campo
de trabalho. Kidder retornou à sua terra natal, para cuidar melhor de seus filhos, pois um
deles era ainda de colo e doente. [...] O rev. William Red contou que duas esposas de
missionários presbiterianos enlouqueceram devido à tensão sofrida quando o marido
viajava. (ALMEIDA, R., 2014, p. 335, 336).
Os Quakers
Os quakers não deviam se engajar na guerra; entre eles a escravidão foi abolida. John
Woolman, quacre norte-americano, foi um dos primeiros a pregar e escrever em prol da
abolição da escravidão. Os juramentos nos tribunais foram proibidos e as honrarias
humanas não deviam ser aceitas. Isto trouxe aos quacres muitas dificuldades na
Inglaterra elitista, em que a classe alta ambicionava títulos para que os pobres lhes
tirassem o chapéu. Em 1661, muitos quacres foram presos, mas o movimento cresceu a
despeito ou por causa da perseguição. Em 1660, havia cerca de 50 mil quacres na
Inglaterra. (CAIRNS, 1995, p. 326, 327).
Os congregacionais
Pode falar-se numa gigantesca epopeia coletiva, sem receio de exagerar o uso das
palavras. A História do mundo não pode escrever-se sem numerosas referências ao que
nele foi praticado por este pequeno povo de um pobre país nos confins da Europa.
(SARAIVA, 2001, p. 138).
Esta geografia religiosa coincide igualmente com a dinâmica dos conflitos religiosos.
Aqueles dois tipos de sociedades acenderam ambos fogueiras em tempo de guerras
religiosas mas com fins diferentes: as sociedades ibéricas procederam ao genocídio
judaico e animaram uma pavorosa Inquisição que só foi extinta em 1820; as sociedades
que são hoje protestantes queimaram, nas suas fogueiras permanentes, durante cem
anos, as bruxas das aldeias e as crianças contaminadas pela feitiçaria das avós.
(ESPÍRITO SANTO, 1990, p. 222, 223).
A leitura talvez não seja tão correta, entretanto os fatos aludidos são reais.
Até mesmo os parentes mais próximos não aceitavam a mudança de religião de
seus familiares. Na busca de bloquear a expansão da nova religião vinda da Grã-
Bretanha, empenharam nos motins contra os protestantes.
Robert e Margareth Kalley não permaneceram por muito tempo na Escócia.
Após a estadia de algumas poucas semanas com familiares e amigos, seguiram
para a pequena ilha de Malta, no mar Mediterrâneo e, posteriormente, na busca de
clima mais agradável e servindo na função de missionários tendeiros, o casal seguiu
para o Líbano. Não esqueçamos que naquela época todo o Oriente Médio era uma
possessão britânica, por isso o casal Kalley legalmente estava em casa! Robert
Kalley, além de exercer o trabalho de médico, desenvolvia voluntariamente um
projeto missionário, razão por que o tratei como tendeiro, termo que remonta ao
apóstolo Paulo em Atos 18:3. Nesse ponto da jornada, Margareth contraiu
tuberculose. Seu corpo já doentio ficou extremamente debilitado e, não resistindo a
elevada temperatura febril e baixa imunidade, ela veio a falecer em Beirute, capital
do Líbano em de janeiro de 1851. A histórica e velha Beirute, que significa fonte das
águas, é uma das cidades mais antigas do mundo. Há registros de ser habitada
desde o século XV antes de Cristo.
Segundas núpcias
Uma das características mais marcantes de Sarah era a profunda espiritualidade. Desde
o início de sua vida, dedicou-se ao serviço cristão; para ela, o viver era Cristo. Um amigo
declarou que, quanto mais ela crescia com as experiências da vida, mais a santidade
brilhava em seu rosto. (ALMEIDA, R., 2014, p. 215).
Visão missionária
Chegada ao Brasil
Após um mês de viagem no paquete a vapor Great Western, da Mala Real, partidos de
Southampton, chegaram ao Rio de Janeiro em 10 de maio de 1855. Hospedaram-se no
Hotel Pharoux; depois, no Hotel dos Estrangeiros à Praça José de Alencar, no Catete,
entre as Ruas Barão do Flamengo e senador Vergueiro. (BRAGA, 1961, p. 108).
Após peregrinarem por dois hotéis no Rio de Janeiro, dia 27 daquele mês, o
casal decidiu viver em Petrópolis.74
73
Poucos meses antes do desmoronamento da monarquia brasileira, Benjamin Mossé, intelectual e
grande rabino de Avignon, França, escreveu sobre as intrínsecas qualidades inerentes a D. Pedro II.
“Esse imperador incomparável que é um filantropo, um sábio, um amigo da Justiça, da Verdade e da
Liberdade, esse soberano filósofo que se utiliza do poder apenas para a felicidade e para a glória do
povo brasileiro” (PAGANELLI, 2020, p. 76).
74
Foi em Southampton (graças a sua estratégica localização geográfica que a faz ter, ainda hoje,
certamente o mais importante e movimentado porto da Inglaterra) que, 57 anos depois, 10 de abril de
1912, o lendário inafundável navio Titanic, pertencente à empresa inglesa White Star Line, zarpou
com destino a cidade de New York com 2.223 pessoas a bordo. Pesando 46 mil toneladas, o
gigantesco Titanic foi o desastrado e insubmergível navio que naufragou em sua viagem inaugural ao
chocar com a ponta de um iceberg. O majestoso relógio do principal salão marcava 2:20hs da
madrugada da segunda-feira, dia 15 de abril de 1912. A primeira edição do The Boston Daily Globe
de terça-feira, 16 de abril, destacou com atraentes e grandes letras no alto da primeira página:
”Titanic Sinks, 1500 Die”. Naquela madrugada houve um funesto resultado: mais de 1.517 pessoas
de diferentes segmentos sociais morreram e tantas outras desapareceram nas gélidas águas do
Atlântico Norte. O Titanic foi a pique sensivelmente a 650 quilômetros da Costa do Canadá.
Enquanto o gigantesco navio era literalmente engolido pelas furiosas águas, o líder da orquestra
busca amenizar a iminente dor da morte ao tocar a tradicional melodia Nearer, My God, to Thee
(Mais Perto, Meu Deus, de Ti), um épico poema da autoria de Sarah Flower Adams (1805-1848),
uma conhecida poetisa inglesa. A harmoniosa melodia desse tradicional hino foi composta pelo
doutor Lowell Mason (1792-1872), um respeitado músico estadunindense nascido em Medfield,
Massachusetts. O professor Lowell Mason tem o seu nome entre os fundadores da
internacionalmente conhecida Berklee College of Music, o mais sagrado templo da arte musical
Na cidade do Rio de Janeiro, estava instalada a Corte do Império e as
principais representações internacionais. Nesse período, cerca de 300 mil pessoas
se acotovelavam nas ruas, praças, avenidas e nos becos imundos, sempre
abarrotados de escravos correndo, cantando ou publicamente sofrendo maus-tratos
por uma minoria de alguns arrogantes e preponderantes brancos que se
imaginavam os donos do poder e da vida de seus subalternos. Diante de todos os
olhares, ali estava escancarado o auge da suposta supremacia branca em um
império escravocrata. Finalmente, Robert e Sarah Kalley se encontravam na capital
imperial do gigantesco Brasil, “um país em que a religião católica dominava
completamente” (MATOS, 2013, p. 63). Não esquecer que, ainda hoje – primavera
americana de 2021 – o Brasil tem dentro de suas fronteiras, a maior comunidade
católica do mundo. Religiosidade que se expressa em milhares de nomes sagrados
de pessoas, fazendas, veículos em gerais, logradouros, condomínios e empresas
em todos os patamares. Dos 853 municípios de Minas Gerais,104 deles iniciam com
Santa, Santana, Santo ou São. Não incluí a cidade de Sacramento e tantas outras
que iniciam com as letras M e N. <Wikipédia; Lista de Municípios de Minas Gerais.
Acesso: 7 abril 2021>. Esse espírito religioso não foge à regra em todos os demais
Estados da Federação, sendo Minas Gerais o gigante campeão dos sagrados
municípios. Isso representa a força do sagrado sincretismo na formalidade do
catolicismo pelas Terras de Santa Cruz, o primeiro nome desse imenso Brasil!
Imediatamente, o Dr. Robert Reid Kalley descobriu a enorme e visível
discrepância econômica e social existente entre as cidades do Rio de Janeiro,
Glasgow, Londres, Jacksonville, Funchal e até a milenar Beirute. “Quando outros
países menos favorecidos fazem rápidos progressos econômicos, o Gigante da
América está a padecer no meio das suas riquezas” (PRANTNER, 1998, p. 151). O
drama já estava em cena; capítulos seguintes logo viriam. O desafio foi o único
recepcionista que aguardava aquele dinâmico e destemido casal. Aos olhos
humanos, parece que um desolador espetáculo os aguardava!
Dois anos depois, dia 19 de setembro de 1857, o médico Robert Reid Kalley
completou 46 anos, faltando oito meses para Sarah Poulton Kalley completar 30
anos.75 Nas entrelinhas entre os acontecimentos dos meados oitocentistas, também
A igreja, como espaço sagrado e palco da vida social, era frequentado pela
mulher com alegria. Essa união entre a devoção e o prazer era ansiosamente
aguardada, com o consentimento de pais grosseiros e maridos ciumentos, elas
podiam aparecer em público: Os festivos e grandiosos rituais católicos eram
abrilhantados pela presença das damas em seus trajes e penteados de gala:
diamantes e ouro, flores e modelos parisienses, de acordo com as posses e a
posição social. As mulheres faziam das missas seus locais de encontro e as
frequentava, assiduamente, constituindo-se na maioria de seu público.
(ALMEIDA, R., 2014, p. 212).
Scala em Milão. Na tarde de sábado, 17 de outubro de 2020, ciceroneado por Eliana do Amaral, tive
a oportunidade de visitar os principais monumentos dedicados ao maestro Antônio Carlos Gomes na
cidade de Campinas, onde nasceu, na segunda-feira, 11 de julho de 1836.
impetrou contra Portugal pelos danos morais e pelas perdas materiais que
ocorreram na ilha da Madeira em 1846. Devidamente assessorado pelos colegas
em Londres, Robert Kalley soube muito bem onde aplicar o dinheiro e desfrutar dos
dividendos na divulgação missionária.
Dois ou três domingos mais tarde já funcionava em Gernheim, além da classe das
crianças, dirigida pela Sra. Kalley, a classe dos adultos, a cargo do Dr. Kalley e
frequentada por pessoas de cor. [...] D. Sara Kalley, senhora culta, bem-sucedida e
dotada de marcados pendores poético-musicais, aos quais se acrescentavam ou-tros
dons artísticos, foi a fiel colaboradora de seu esposo, dando-lhe mão forte no trabalho,
traduzindo novos hinos e escrevendo cânticos originais. Esta produção é que, pouco a
pouco enriquecida, iria permitir-lhes em breve anos publicar o primeiro hinário
evangélico brasileiro: Salmos e Hinos. (BRAGA, 1961, p. 109).
Missionários madeirenses
No coração e na alma do doutor Robert Kalley, fluía uma grande visão sobre a
evangelização do Brasil dentro do contexto protestante. O campo era vasto, e ele
estava plenamente consciente de que sozinho não havia como conquistá-lo. Mesmo
sob pressão das autoridades imperiais, sentia-se desafiado a cada dia. As ameaças
se transformaram em fertilizantes para adubar sua alma missionária! Diante dos
grandes desafios de um imenso país, Kalley lançou veemente apelo para o grupo de
76
Cerca de 300 anos antes dessa indenização, o Portugal de D. Sebastião havia pago três mil
ducados ao francês Villegagnon.
Desiludido, Villegagnon, que havia investido sua fortuna no Brasil, apresentou ao embaixador de
Portugal em Paris um pedido de reparação financeira pelas grandes perdas sofridas no Brasil.
Curiosamente, o governo português apressou-se a indenizá-lo, e com isso Villegagnon considerou
encerrada a aventura brasileira. Na realidade, Villegagnon não tinha direito a indenização alguma,
pois ele invadira por seu risco um território português” (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 145).
Outra fortuna iniciou-se a pagar em 1661, decisão do Tribunal de Haia a favor da Holanda, pelos
benefícios nos 24 anos no estado de Pernambuco. A história se repetiu 165 anos depois. Em 1826,
sob pressão de intermediários, coube ao Brasil de D. Pedro I desembolsar, a título de indenização a
Portugal, a mera quantia de “dois milhões de libras esterlinas. (GOMES, 2010, p. 289). Esses são os
riscos que abrangem algumas decisões políticas. No final, alguém estará a pagar os boletos!
protestantes portugueses, seus filhos na fé, que residiam em Illinois, nos Estados
Unidos.
Atenderam ao convite do Dr. Kalley para virem assisti-lo em seu esforço missionário três
famílias madeirenses: a de Francisco da Gama, a de Souza Jardim e de Manoel
Fernandes, além de uma família inglesa cujo chefe era o sr. William D. Pitt. Três anos
mais tarde, eles vieram a constituir o núcleo organizado com o nome de Igreja
Evangélica, posteriormente Igreja Fluminense, em 1858. (TUCKER, 1986, p. 505).
O citado inglês, Sr. William D. Pitt, quando adolescente, foi aluno da jovem
Sarah Poulton Wilson na Escola Dominical na Igreja Congregacional de Albany
Rody na Grã-Bretanha. Era o estudante no encalço de sua mestra de Bíblia.
Dentre eles, destacou-se William Deatron Pitt, o primeiro a vir para o Brasil ajudar o
casal Kalley e que, posteriormente, se tornou ministro presbiteriano. A influência de
Sarah foi duradoura, e muitos daqueles rapazes tornaram-se cristãos comprometidos e
trabalhadores. (ALMEIDA, R., 2014, p. 215).
Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separa-nos do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus, no Senhor. (Romanos 8: 38, 39).
As perseguições
O raiar do protestantismo
As três famílias que aportaram no Rio de Janeiro, dia 6 de agosto de 1856,
eram de nacionalidade portuguesa. Todas foram nascidas na Ilha da Madeira e
posteriormente, diante de perseguições, buscaram refúgio nos Estados Unidos,
onde certamente já estavam desfrutando de dupla cidadania e bem entrosados na
sociedade da nova terra. Atendendo à urgente chamada de socorro, essas famílias
emigraram legalmente para o Brasil. Aí estava a solução natural provinda por Deus!
Essas heroicas e desatinadas famílias abriram as portas de suas casas para a
realização de cultos protestantes em língua portuguesa.
O pregador, a partir do dia 10 daquele mesmo mês, passou então a celebrar a ceia em
tal cidade, servindo-se da casa da família de Francisco da Gama, situada no bairro da
Saúde. Sucessivamente, no dia 8 de novembro de 1857, ele batizou em Petrópolis um
neófito de nacionalidade portuguesa, cujo nome era José Pereira de Souza Louro.
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 451).
Em 1856, Manuel Fernandes foi para Petrópolis para trabalhar vendendo Bíblias e
Novos Testamentos. Foi imediatamente preso e interrogado se tinha obtido aqueles
livros com Kalley. A prisão fora feita sob a acusação de que o português não tinha
licença de vendedor ambulante. [...] Manuel Fernandes conseguiu uma licença para
comerciar e continuou vendendo Bíblias em Petrópolis. [...] Um dos portugueses recém-
chegados, José Ferreira Louro, enquanto trabalhava em Petrópolis, teve ocasião de
vender uma Bíblia a D. Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta. (VIEIRA,
David, 1980, p. 118, 119).
escravagista de alta escala da vila de Quissamã. Seu filho Manuel Carneiro da Silva (1833-1917),
proprietário da Fazenda Machadinha, era genro de Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), ninguém
nada mais e nada menos que o lendário Duque de Caxias - um velho e respeitado maçom. Nessa
mesma família, estava Eusébio de Queirós (1812-1868), ministro do império e senador vitalício. O
corporativismo estava bem armado e assessorado pelas influentes estrelas do Império. Tudo isso
funcionava sob o endosso fraternal da maçonaria. Após 158 anos desses históricos acontecimentos,
estando em Macaé para receber a Comenda de Cidadão Macaense, aproveitei o feriado de 15 de
novembro de 2017 para realizar algumas pesquisas na região de Quissamã, a qual, até onde chega
os meus conhecimentos, é a única cidade do Brasil com nome africano. Cruzando os factos, não é
difícil concluir que dona Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto
eram partes do famoso clã patriarcal de Macaé e região. Simbolicamente, Kalley era um pequeno
Davi contra o gigantesco Golias!
78
Naquele memorável domingo, Antônio Carlos Gomes estava a completar 22 anos. Até então, não
passava de um desconhecido professor de piano e canto em Campinas, sua cidade natal. Outro
acontecimento surgiu exatamente 90 anos após aquele importante ato histórico. Também era
domingo, dia 11 de julho de 1948, quando nasceu uma criança que recebeu o nome de Carlos
Antônio Boaventura, em um casebre na zona rural de Uberlândia. Na época pós-guerra, era o
longínquo sertão da farinha podre; hoje, a próspera região do Triângulo Mineiro.
desatou o verbo. “Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o
que pensa”.
Charles Haddon Spurgeon foi um dos maiores pregadores de todos os tempos, amado
por sua impressionante habilidade de comunicar a Palavra de Deus, sua inteligência
brilhante e seu humor perspicaz. Contudo, esse homem que se dirigia a multidões de
até 20 mil pessoas enfrentou a depressão durante toda sua vida. (CORDEIRO, 2011, p.
46).
O altruísta médico missionário, doutor Robert Reid Kalley que fazia de seu
consultório uma permanente extensaão do cristianismo, “foi o mentor espiritual de
79
Em 15 de novembro de 2018, o Brasil completou 129 anos de República, sendo nesse período
governado por diferentes vieses de ideologias políticas. Porém foi somente em 28 de dezembro de
2018 que chegou ao Brasil, pela primeira vez, uma autoridade de Israel convidada para a posse de
um Presidente. Sob intensa vigilância de atentos seguranças, Benjamin Netanyahu (1949-), the
Premier of Israel, foi logo declarando aos jornalistas no Rio de Janeiro: “Israel é a terra prometida e o
Brasil é a terra da promessa”.
uma geração de ministros evangélicos que tomou como exemplo a seguir sua visão,
seu zelo e sua dedicação à obra missionária” (GIRALDI, 2013, p. 179). Sua vida
terrena findou aos 79 anos na cidade de Edimburgo, Escócia, dia 17 de janeiro de
1888. Alquebrado pelas convulsões, tendo Sarah ao seu lado, suas palavras finais
soaram como um brado de vitória: “Deixem-me ir! Deixem-me ir! Isto é a morte, ó
minha querida mulher” (ALMEIDA, R., 2014, p. 233). Ali findou o compromisso
terreno de um nobre cidadão, o qual partiu para a eternidade lúcido. O serviço
fúnebre foi conduzido pelo seu amigo Hudson Taylor (1832-1905), outro gigante das
missões mundiais e fundador da Missão para o Interior da China. Taylor viveu
outros 17 anos, falecendo na cidade de Xangai aos 73 anos. 80 Ambos, Robert Kalley
e Hudson Taylor, dois hercúleos da fé, deixaram profundos rastros por onde
passaram, marcas que jamais serão apagadas. “Christopher Lee (1922-2015)
acertou em cheio quando escreveu: as pessoas fazem a História, mas raramente se
dão conta do que estão fazendo” (CÉSAR, 2009, p. 63). “Nós não podemos escapar
da história”, lê-se no interior do Ford’s Theatre em Washington. Abraham Lincoln
(1809-1865) e Frederick Douglass (1818-1895) tinham muita razão; não edificamos
reinos de fantasias! Muitos missionários morreram, mas não estão mortos!
A professora Sarah Poulton Kalley deixou indeléveis marcas no Brasil. Foi dela
a iniciativa de traduzir e adaptar para o português os hinos de ênfase calvinísta e
publicar, em 1861, o hinário Salmos e Hinos, primeira coletânea de hinos evangélicos
publicados na língua portuguesa, sendo, ainda hoje, um marco referencial da música
sacra especialmente no Brasil e em Portugal. “Sarah Poulton Kalley faleceu em 8 de
agosto de 1907, na residência Campo Verde, com pouco mais de 82 anos de idade, e
foi sepultada em 12 de agosto de 1907, no Deam Cemitery, junto a seu marido, Dr.
Robert Reid Kalley” (ALMEIDA, R., 2014, p. 235). Estiveram casados durante 36
anos.81
Os presbiterianos
80
Na manhã de terça-feira, 8 de maio de 2018, eu estava caminhando pelo interior da réplica da arca
de Noé, uma monumental obra de 100 milhões de dólares, construída nos arredores de
Williamstown, Kentucky. Em um standar sobre a China, foi emocionante me deparar com a cadeira
original onde o missionário James Hudson Taylor passou infindas horas assentado traduzindo o
Novo Testamento para o ningbo, um dos vários dialetos falados pelos chineses de sua época.
81
O hinário Salmos e Hinos também, ganhou notoriedade em Angola, a segunda mais populosa
nação de língua portuguesa,
os hinários protestantes continham música e letra de hinos escritos na Europa e América do Norte
dos séculos XVII a XIX. Muitas das letras foram traduzidas do inglês para o português, e publicadas
no hinário Salmos e Hinos, que passou por várias edições no Brasil. Revendo os hinários publicados
pelas missões e Igrejas evangélicas durante o período colonial, a maioria dos hinos em português
vem dos Salmos e Hinos. (HENDERSON, 2001, p. 272).
de agosto de 1859, um pregador do norte, enviado pela Junta de Missões Estrangeiras
sediada em Nova York. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 453).
82
A mesma soma de 54 dias foi o tempo gasto pela família real portuguesa ao navegar entre a
cidade de Lisboa até Salvador, Bahia, em 1808. Essas naus eram frágeis e lentas, porém os únicos
transpotes capazes de cruzar os oceanos e encurtar as distâncias.
83
O 11 de agosto não confere com as demais fontes pesquisadas, que apresentam a data de 12 de
agosto de 1859 como o dia da chegada daquele missionário ao Brasil. A questão é selecionada com
a data da chegada do navio no porto e o dia do desembarque.
No mesmo ano em que o missionário Simonton aportou no Brasil, o mundo da
literatura recebia o livro A Origem das Espécies, obra do naturalista inglês Charles
Darwin (1809-1882), publicado em Londres pelo editor John Murray III (1808-1892)
e colocado no mercado na quinta-feira, 24 de fevereiro de 1859. Quando do
lançamento, Darwin estava com 50 anos e Murray III com 51. Esse livro tido como
uma espécie de bíblia popularizou a teoria do evolucionismo. 84
A Origem das Espécies contém questões largamente discutidas ainda hoje.
Porém, bem antes desse sucesso literário e científico, o britânico Charles Robert
Darwin, aos 22 anos e a bordo do brigue HMS Beagle, navio pertencente à Marinha
Britânica, em passagem pelo Brasil em 1831, um conturbado ano imperial, ficou
deslumbrado com as riquezas naturais e horrorizado com a escravidão que os
brancos faziam do negro africano.
Outro importante acontecimento de 1859 sucedeu na biosfera: “No dia 1º de
setembro de 1859, uma área do Sol produziu por quase um minuto um brilho
aproximadamente duas vezes maior que o normal” (LOURENÇO, 2015, p. 185).
Nos céus e na terra, houve importantes fatos que vieram à tona e ficaram
registrados em diferentes compêndios.
Foi no século XIX, considerado o século do romance, que nasceu em São Luís, em
1825, a primeira mulher a escrever um romance. Maria Firmina dos Reis, mulata e filha
ilegítima, cresceu com avó, mãe, tias e irmãs, e ganhava a vida como professora
particular. Sua obra denominada Úrsula, publicada em 1859. [...] Em 1859, foi
inaugurado o primeiro colégio feminino, o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu,
sob a direção das freiras francesas, as irmãs de São José. (ALMEIDA, R., 2014, p. 206,
196).
84
“Um conceito científico não é uma lei. Uma teoria também não é uma lei nem pode ser considerada lei
ou mesmo fato científico até que seja testada e comprovada. [...] Uma teoria nada mais é do que uma
hipótese ou uma conjectura [...]. Darwin construiu todo um argumento lógico sobre um princípio não válido.
O seu raciocínio estava equivocado na base” (LOURENÇO, 2015, p. 23, 29, 147).
Em 1832, na casa dos 23 anos, quando Charles Darwin cruzando a Tierra del Fuego assim relatou
sobre os nativos e o segmento social em que estavam inseridos:
Estas eram as criaturas mais abjetas e miseráveis que eu contemplei onde quer que seja. [...] Seu
país é uma uma massa fragmentada de rochas rudes, montanhas elevadas e florestas sem uso; e
tudo isto é visto através de neblinas e tempestades infindáveis. A terra habitável está reduzida às
pedras sobre a praia [...] devemos supor que eles desfrutam de uma suficiente cota de felicidade,
seja lá qual for o modo que encontram de apreciar a vida. (MEGGERS, 1985, p. 193, 195).
Em 29 de julho de 1520, cerca de 312 anos antes das observações de Darwin, Fernão de Magalhães
(1480-1521), um navegador português a serviço de Carlos V (1500-1558), rei da Espanha, fez as
seguintes anotações em seu diário de bordo: “Os habitantes da região eram caçadores nômades
chamados teuelches, os quais vestiam de peles e revelaram ser bastante primitivos, causando
grande estranheza aos europeus a sua elevada estatura. Magalhães chamou-lhes patagões”
(GARCIA, 2019, p. 202).
também em Londres, é lançado o Manifesto do Partido Comunista, o mais discutido
tratado de história, sociologia e filosofia política, de autoria de dois expoentes
pensadores alemães: Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Esses
dois filósofos nascidos no seio de famílias judaicas colocaram o mundo de ponta-
cabeça com relação ao pensar da produção, do sistema econômico e da utópica
igualdade das classes sociais para todas as pessoas. Sendo essa a enganadora e
famigerada base do comunismo, o seu encanto é tal que se tornou a religião
marxista. Em distantes séculos antes dessas definições filosóficas e sociais, Jesus
já havia proferido: “Porque os pobres, sempre os tendes convosco” (João 12:8).
Enquanto houver gente sobre a Terra existirá classe de dominante e dominado! É a
lei do produtor e do consumidor, do mandante e do mandado, da oferta e da
procura!
era uma mulher discreta, humilde, altruísta e zelosa. Ganhava com facilidade a
confiança e o afeto de todos com os quais se relacionava. Todavia, teve uma vida mais
curta que a de seu marido. Morreu de complicações de parto, nove dias depois de dar à
85
Dias 1 a 3 de julho de 1863, com o casal Simonton já no Brasil, houve, no dividido Estados Unidos,
o mais sanguinário confronto entre as tropas do Norte contra as do Sul. O palco desse confronto
bélico foi nos arredores de Gettysburg, estado da Pennsilvânia. A soma dos mortos dos
Confederados e da União naqueles dias foi de aproximamente 60 mil soldados. Naquele escaldante
verão, cerca de três mil carcaças de cavalos foram queimadas, o que resultou na poluição da
atmosfera e na produção de enfermidades entre a população residente na área. Os resultados finais
de quatros anos da Guerra Civil foram assustadores. “Setecentos e cinquenta mil soldados
morreram, 1,5 milhão de cavalos pereceram, vinte bilhões de dólares foram gastos na guerra”
(DAVIDSON, 2017, p. 165). Tive a oportunidade de passar pelo arrasador e funesto palco de uma
fratricida guerra. Era inverno, e os termômetros assinalavam seis graus negativos, na tarde de 26 de
dezembro de 2017, quando eu, esposa, filho, nora e netos estivemos no histórico palco onde
desenrolaram decisivas e sangrentas batalhas nos arredores da cidade de Gettysburg. Para um
pesquisador, mesmo amador, isso é algo emocionante. Assim foi a minha reação interna naquela
crepuscular terça-feira.
luz uma menina, no dia 28 de junho de 1864, três meses depois de comemorar o
primeiro aniversário de casamento e onze meses depois de ter chegado ao Brasil.
(CÉSAR, 2009, p. 154).
Para amamentar a menina, ele alugou uma ama de leite chamada Maria, escrava de
certa Madame Bishop [...] Maria aceitou o evangelho e professou a fé no dia 25 de
março de 1866 [...]. Além disso, ela também ensinava a língua pátria a Helen. Pouco
antes de completar 15 anos, Helen foi levada pela tia Elizabeth para os Estados Unidos
e deixada aos cuidados de duas tias maternas, que eram acentuadamente piedosas.
Helen nunca se casou e morreu aos 88 anos, no dia 7 de setembro de 1958. (CÉSAR,
2009, p. 155, 157).
Era um homem de aparência simples, muito religioso e apaixonado por Jesus, rela
cionado com o povo e bem preparado, comunicava-se em vários idiomas, traduzia livros do inglês,
dofrancês e do alemão e ainda tinha algumas noções de Medicina. (CÉSAR, 2009, p. 165).
o apóstata padre Conceição [...] Paulistano, foi ordenado em 1845, depois de ter
recebido uma formação do velho estilo. Por isso, a teologia que cursou foi aquela
ministrada pelos cônegos do cabido da sé diocesana, sem falar que frequentou
igualmente a academia jurídica do Largo São Francisco, de orientação liberal. [...]
também se incluiu entre os padres que apoiaram a revolução liberal de 1842. [...] era
atormentado por crises de melancolia e conflitos vocacionais e espirituais. A retidão da
sua fé foi colocada em dúvida quando as autoridades diocesanas souberam que
utilizava a Bíblia acatólica publicada pela editora Laemmert, o que acabou lhe valendo a
alcunha de padre protestante. [...] A 1º de maio de 1864, Conceição foi à capital da
província e aderiu ao presbiterianismo. [...] Partiu para o Rio de Janeiro e lá, aos 23 de
outubro de 1864, emitiu a nova profissão de fé e nela se fez rebatizar. Contudo, somente
no dia 28 de setembro do ano seguinte comunicaria o fato a Dom Sebastião. Acusado
formalmente no tribunal eclesiástico em 15 de dezembro de 1865, deixou correr o
processo à revelia, declarando-se presbiteriano puro. Aos 30 de outubro de 1866 foi
condenado como herege e incurso ipso facto na pena de excomunhão maior, Ele não
parece ter se perturbado com isso, pois no dia 17 de dezembro do mesmo se tornou
pastor, o primeiro brasileiro, aliás, da nova fundação. Suas crises, no entanto, não
cessaram, e Simonton em pessoa diria, aos 26 de novembro de 1864, que o padre
desertor estava tão deprimido com seus sofrimentos nervosos, que a morte lhe seria
alívio. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 456, 457).
86
Quase um século e meio após a viagem de D. Pedro II, em 1876, a febre amarela, mesclada a
outros vírus provindos de mosquitos transmissores, tem sido a causa de aproximadamente 15 mil
óbitos anuais no Brasil. Algo assustador para o ano 2020.
O primeiro missionário transcultural enviado pelo Brasil era de nacionalidade
portuguesa e esteve por doze anos em Portugal. Plantou trabalhos presbiterianos
em Lisboa e Figueira da Foz. João Marques da Mota Sobrinho (1883-1964), que
nasceu em Vizeu, cidade da Beira Alta em Portugal, aportou em Recife,
Pernambuco, aos 13 anos. Converteu-se ao protestantismo graças ao testemunho
de um sapateiro. Após sua conversão, Mota Sobrinho cursou a Escola Teológica de
Garanhuns e aos 22 anos, em 1905, foi ordenado ao ministério pelo Concílio da
Igreja Presbiteriana da Paraíba.
Recém-formado e ordenado, casou-se em fevereiro de 1909 com Wilhelmine
Lenz César, moça procedente de uma tradicional família presbiteriana. Em
dezembro de 1910, o jovem casal e um filho seguiram para Portugal dentro de uma
visão missionária da Igreja Presbiteriana do Brasil. Eles chegaram em Portugal num
período de transtornos políticos para a nação. Havia somente dois meses que
ocorrera a queda da monarquia e a expulsão do rei D. Manuel II (1889-1932) em 5
de outubro de 1910, quando nasceu a República de Portugal.
Passaram por três grandes provas de fé, que foi a doença e a perda de seu filhinho, as
dificuldades do ajuste do culto evangélico com as novas leis da República e o sustento
financeiro insuficiente das igrejas brasileiras para a missão em Portugal. (TURCKER,
1986, p. 518).
Os batistas
Thomas Jefferson Bowen foi o primeiro missionário batista enviado para a África Central,
hoje, Nigéria. Também, o primeiro para o Brasil, pela Foreign Mission Board - Southern
Baptist Convention [...]. É incorreta a informação de que Bowen ficou dois anos no
Brasil. Ele chegou a 21 de maio de 1860, retornando aos EUA a 9 de fevereiro de 1861.
Vale dizer que sua estada neste país foi apenas de oito meses e 19 dias. (OLIVEIRA, B.,
2005, p. 106, 108).
A Guerra da Secessão
O negro foi o principal foco que fez gerar a Guerra Civil Americana. Ainda
bem que, no contexto final, esse conflito resultou na vitória dos abolicionistas
yankees. (NOTA DE RODAPÉ: Sábado, 27 de março de 2021 visitando o Museu
dos Confederados em Greenvile, South Carolina, chamou à minha atenção, embora
esteja bem visível a seguinte informação junto ao caixa: “The Yankee money
exchange” – em uma tradução literal: nós aceitamos o dinheiro yankee – estamos
mencionando algo dentro dos Estados Unidos. Não devemos esquecer que a
Guerra da Secessão acabou há 156 anos! Tudo isso não será um disfarçado
racismo institucional ou xenofobia corporativista? Algo institucional nada mais é que
a sombra ampliada de um homem. FINAL DA NOTA). A Nação estava política e
ideologicamente dividida, contra ou a favor da servidão do negro como escravo.
Estavam no Sul os mais destacados estrategistas de guerras, as mais treinadas
tropas, com animais e abundantes materiais bélicos. “Na memorável frase de
Edmundo Burke (1729-1797), era como lutar para conquistar o cemitério”
(HOCHSCHILD, 2007, p. 352). Diante do poderio do Sul, o Norte não passava de
um ingênuo produtor de cabeças pensantes, porém, essas cabeças mudaram a
geografia na nação. A História passou a ser observada por outros olhos. O Norte
saiu trunfante, quebrando os grilhões que prendiam o negro feito escravo dos
sulistas. Os sulistas brancos!
O Presidente Buchanan, dos Estados Unidos, estava no fim do seu mandato e não
queria assumir a grave responsabilidade que a solução da secessão dos estados
sulistas exigia. O Presidente Lincoln tomou posse a 4 de março deste mesmo ano, com
um problema dos mais graves a enfrentar. O Norte considerava a secessão uma
rebelião que teria de ser sufocada pelas armas. O Sul considerava a secessão um
direito que lhe assistia. Nenhum dos Presidentes queria a guerra. A situação de
exaltação e provocações desenvolveu-se tanto que não havia mais como recuar. Agora
havia 11 estados na Confederação. Em 12 de abril, Lincoln convocou as forças federais.
(JONES, 1998, p. 43).
87
Na segunda-feira, 23 de julho de 2019, após pesquisas na biblioteca da Tulane University e, muito
bem assessorado pela professora Claudia Brito, uma bem sucedida mineira/americana oriunda de
Governador Valadares. Exercendo a função de sercetária do departamento linguístico daquele
centenário centro educacionário, estive no Lake Lawn Metairie Funeral Home, o mencionado
cemitério onde por quatro anos permaneceram os restos mortais de Jefferson Davis por quatro anos.
segurança nacional. Após o vasculhar palmo a palmo por diferentes locais, ele foi
encontrado e, finalmente, morto 12 dias depois - 26 de abril - por volta das sete
horas da manhã na fazenda Garret. Atingido pelos projéteis das armas utilizadas
pelos policiais, Booth morreu agonizante, com somente 27 anos. Suas palavras
finais foram “Useless! Useless!” (Inútil! Inútil!). Todos os seus comparsas que no
complô eram conhecidos políticos, fazendeiros escravagistas e outros que
buscavam desestruturar o andar democrático de uma nação que despontava em
sua liderança no ranking mundial. Os autores foram presos, julgados e penalizados
segundo as leis vigentes na época. Aqueles que não foram enforcados
apodreceram em fétidas celas prisionais.
Segundo as diferentes fontes pelas quais cruzei as pesquisas, Abraham
Lincoln nunca possuiu escravos, tão pouco filiou-se a uma igreja protestante, porém
era temente a Deus e assíduo leitor da Bíblia. Li em algum lugar uma de suas
muitas falas: “Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens
em covardes”. Lincoln, vitalmente ferido, embora imediatamente socorrido por
Charles Augustus Leale (1842-1932). Leale era um médico cirurgião nascido em
New York City e, capitão do exército da União, estava presente naquele fatídico
espetáculo, não obstante, todos os primários socorros aplicados em nada alterou o
quadro clínico que se tornou irreversível. Esteve durante nove horas em mortal
estado de coma, Lincoln faleceu aos 56 anos, às sete horas e vinte e dois minutos
da manhã de sábado, 15 de abril de 1865. Foi ele, o primeiro Presidente dos
Estados Unidos da América do Norte a ser assassinado. “Dois anos antes, (quinta-
feira, 19 de novembro de 1863) Lincoln homenageara os homens que sucumbiram
no campo de batalha em Gettysburg como cidadãos que dedicaram à nação toda
sua devoção. Agora, era a vez do presidente. Milhares de enlutados foram prestar
sua última homenagem quando o trem funerário o levou de volta a Illinois; muitos
devem ter se lembrado de suas últimas palavras em Getyysburg: Aqui declaramos
solenemente que estes mortos não morreram em vão, que esta nação, sob a
proteção de Deus, terá um renascimento da liberdade e que o governo do povo,
pelo povo, para o povo, não desaparecerá da Terra” (DAVIDSON, 2016, p. 169).
Esse foi o seu mais famoso discurso, uma lauda com 272 palavras, ditas em menos
de dois minutos! Três horas após sua morte o democrata e vice-presidente Andrew
Johnson (1808-1875), nascido em Raleigh, Carolina do Norte assumiu o comando
da nação na Casa Branca. “Antes de entrar para a política, Andrew Johnson fora
alfaiate modesto do Tennessee que mal sabia ler” (DAVIDSON, 2016, p. 170),
entretanto, chegou a patente de general de brigada. Por faltar-lhe jogo politico, foi
um governante sob contínuas ameaças de ter o mandato cassado. A batalha nos
bastidores foram violentas. Por uma margem insignificante de votos o 17º
Presidente, em 1868 foi absolvido do impeachment, árduas batalhas que durante
três meses incendiou os parlamentares na Casa dos Representantes e no Senado.
Reunidos em agressivas sessões realizadas no edifício do Capitólio em
Washington.
O sepultamento ocorreu na quarta-feira, dia 19 de abril, em Sprinfield,
88
Illinois, o mesmo estado de onde, nove anos antes, em 1856, famílias portuguesas
oriundas da Madeira seguiram para o Brasil a convite do Dr. Robert Red Kalley.
Missionários que fizeram a diferença pelos campos, pelas cidades e pelos valados
do Brasil.
88
No livro A Bíblia e a África, apresentei uma relação de coincidências de datas e nomes
relacionados ao Presidente Abraham Lincoln. Quero aqui deixar registrada outra situação que
merece destaque. Abraham era casado com Mary Todd Lincoln desde 4 de novembro de 1842. No
ano seguinte, em Springfield, Illinois, nasceu Robert Todd Lincoln (1843-1926), filho primogênito, o
único a chegar à idade adulta. Em 1863, Robert, aos 21 anos, era estudante na Harvard Law School.
Aproveitando um pequeno período de férias, ele seguiu de trem de Boston até Washington com
conexão em New Jersey City. Era noite. Ao descer do vagão-leito, desequilibrou-se e caiu nos trilhos
a poucos metros de uma locomotiva em movimento. Na plataforma estava Edwin Thomas Booth
(1833-1893), um famoso ator, natural de Maryland. Sem saber a origem familiar daquele jovem que
havia caído, o ator colocou em perigo sua própria vida, saltando sobre os trilhos para salvar Robert
Todd Lincoln da morte naquela noite. Tudo seria considerado um ato de extrema coragem de um
cidadão na busca de salvar um jovem da iminente morte sob uma pesada locomotiva. Tudo bem, se
Edwin não fosse o irmão mais velho de John Wilkes Booth (1838-1865), que, dois anos depois,
alvejaria mortalmente Abraham Lincoln, pai de Robert! A história de Robert é recheada de curiosos e
mortais acontecimentos.
Dentre outras nações, o Brasil foi escolhido como destino de Norris pelo fato
de possuir grandes extensões de terras férteis, por ainda ter o abusívo trabalho
escravo e pela acolhida que o governo imperial, liderado por D. Pedro II, estava
oferecendo aos pretensos emigrantes. O Imperador do Brasil, bem como o coronel
Norris, além de outros líderes, eram ligados à maçonaria, o que facilitou em muito
essa aproximação. O coronel protestante e escravagista foi Grão-Mestre da Grande
Loja Maçônica existente na capital do Alabama, advogado e senador por aquele
estado. “Até hoje o seu retrato ocupa lugar de honra na Loja Montgomery” (JONES,
1998, p. 42).89
Após os acertos finais para uma nova etapa de vida fora dos Estados Unidos,
que mantiveram a União encabeçada pelos yankees, “milhares de confederados
empobrecidos expressaram o desejo de ir para o Brasil. [...] era uma nação africana,
liderada por uma pequena minoria branca” (VIEIRA, David, 1980, p. 112, 124).
Rumo ao Brasil seguiu uma comitiva heterogênea.
Nem todos os imigrantes americanos que vieram para cá eram homens de família e bem
intencionados. Muitos eram aventureiros, sem raízes e sem responsabilidade, sem juizo
e muitos deles sem moral. Estes iam de uma coisa para outra, uns à procura de
emoções e outros só do lucro fácil. [...] dois deles foram julgados pela Corte Militar e
executados. [...] Os americanos eram um grupo muito heterogêneo. Muito poucos
podiam ser considerados material bom para imigração. Havia médicos, dentistas,
ministros evangélicos, comerciantes, lavradores, ferreiros, marceneiros, gente boa e
gente ruim, desde as mais santas criaturas até os que eram considerados escória de
guerra. (JONES, 1998, p. 124, 125, 177).
A república americana, no entanto, ainda não havia sarado das chagas causadas pela
guerra. Mal tinham os canhões silenciado em Appomattox, quando rebeldes obstinados
começaram a mudar-se dos Estados Unidos em busca de outros países onde
estivessem livres do governo yankee, e longe dos negros recém-libertados. [...] Como é
geralmente conhecido, o Sul era, como até certo ponto ainda é, o chamado círculo da
Bíblia dos Estados Unidos. [...] O protestante sulista acreditava que ele, só ele, era o
verdadeiro defensor da palavra de Deus. (VIEIRA, David, 1980, p. 211, 212).
após participar de uma refeição com alguns passageiros do navio, assim que retornou
aos seus aposentos foi acometido por um súbito mal-estar. Os sintomas eram
estranhos, dando espaço a suspeitas de envenenamento: o estômago inflamou-se e
todo o corpo tornou-se febril. Padre Razzini tentou pedir ajuda, mas recebeu como
resposta apenas indiferenças. O estado de saúde de Dom Manuel piorou rapidamente,
e, após confessar-se, faleceu em Maceió, AL, no dia 16 de setembro de 1866. Contava
com apenas trinta e seis anos de idade. [...] o nomeado para substituir a diocese foi o
rosminiano Dom Francisco Cardoso Aires (1821-1870). [...] Ele era natural do Recife,
mas pouco se conhece da sua juventude. [...] como o antecessor, teve uma atuação
breve: quando participava das primeiras sessões do Concílio do Vaticano I, uma febre
fulminante, talvez tifoide ou malária aconteceu, provocando sua morte três dias depois,
14 de maio de 1870. [...] o sucessor de Dom Aires seria Dom Vital Maria Gonçalves de
Oliveira (1844-1878). Natural de Pedras do Fogo, lugarejo depois incorporado ao
município de Pilar, PB, aos 16 anos de idade ele, sentindo-se vocacionado, pediu para
ser admitido no seminário de Olinda. [...] Tinha apenas 27 anos ao ser empossado no
dia 24 de maio de 1872, tocando-lhe o governo de uma diocese imensa. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 250, 251, 253, 254).
Dez e doze meses após o discurso do padre Martins no Rio de Janeiro, Dom
Vital Maria e Dom Antônio Macedo já estavam sendo presos sob ordens dos
magistrados do Supremo Tribunal de Justiça.
Esse era o desfecho que a princesa desejara desde o início: Conta-se que ela, muito
pejada, nos últimos dias de uma gravidez, ia pessoalmente de chinelos - devido ao seu
estado - Caxias pedir uma solução para o caso, que afinal acabou sendo resolvido como
pretendia. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 414).
Relaxaram-se afinal, as cadeias da nossa prisão! [...] E, que diremos do Estado? ... Esse
vai rolando precípete, pelo declive escorregadio de um plano inclinado. Já tem descido
muito; continua a descer, a descer sempre! Irá certamente, esboroar-se, no fundo do
abismo, se na carreira vertiginosa em que se despenha, não o detiver expressa a mão
de Deus. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 415).
A pressão atingiu seu ponto máximo quando, no afã de difamar o bispo de Olinda, a
imprensa anticlerical insinuou que ele mantinha uma relação clandestina com a irmã
Virgínia Jannozzi. [...] Nesse meio tempo certos maçons se enveredaram pela senda da
difamação moral. Dom Vital era jovem, viril e bem apessoado, e foi com base nos seus
dotes físicos que a campanha infamante teve início. Aos 7 de desembro de 1872 A
Verdade publicou uma carta de um certo Nabucodonosor, assegurando que o prelado
de Olinda era um vaidoso que passava o seu tempo fazendo as unhas e penteando a
barba. (VIEIRA, Dilermsndo, 2016, v. 1, p. 291, 359).
D. Pedro II, pouco antes do seu embarque para a sua segunda viagem
internacional em 1876, não esqueceu de orientar sua filha Isabel com relação às
duas jovens feras de batina, homens já anistiados, porém perigosos.
‘A questão dos bispos cessou. Mas receio ainda do de Olinda, quando voltar à sua
diocese. [...] O bispo do Maranhão está enfermo. Todo cuidado na escolha de novo
bispo. Há padres dignos do cargo sem serem eivados de princípios ultramontanos’.
Diante da inesparada morte do bispo Vital Maria, o prelado em Olinda foi ocupado pelo
paulista [...] Dom José Pereira da Silva Barros (1835-1898). [...] também fez questão que
o corpo de Dom Vital ficasse sepultado no Brasil, e não em Versailhes, na França, onde
então se encontrava. O cônego Francisco do Rego Maia foi encarregado de levar a cabo
a trasladação, o que realizou com êxito, desembarcando em Recife aos 6 de julho de
1882. Isso posto, os despojos foram solenemente depositados na igreja da Penha, onde
ainda hoje se encontram. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 422, 423, 431). 90
90
Aos interessados nesse período da História do Brasil, recomendo entre outros os seguintes livros:
A. “O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil”. Autor Davi Gueiros Vieira, Editora
Universidade de Brasília, 1980.
B. “História do Catolicismo no Brasil”. Autor Dilermando Ramos Vieira, Editora Santuário, 2016.
C. “D. Pedro II a terra santa e os protestantes”. Autor Magno Paganelli, Arte Editorial, 2020.
No ano seguinte, 1879, Antônio Teixeira, com sua mulher, viajou para o Rio, sendo ali
acolhido em 9 de março por John James Ransom (1853-1934), que reconheceu seu
batismo católico e ele, junto de Senhorinha, integrou-se à comunidade metodista do Catete.
Passados três meses, o casal se transferiu para Piracicaba, SP, onde Teixeira começou a
se relacionar com os batistas. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459).
Aos 12 de janeiro de janeiro de 1881 o texano William Buck Bagby (1855-1939) e sua
esposa Anne Luther Bagby (1859-1942), natural do Missouri, embarcaram em Baltimore,
Maryland, a bordo do veleiro Yamoyden, com destino ao Rio de Janeiro, onde
chegaram em 2 de março seguinte. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
458).
Esse casal pioneiro para missionar no Brasil foi enviado pelo Southern Baptist
Foreign Mission Board. Aqui a margem perfeira para entrar em campo os resultados
das pesquisas do já citado Dr. João Chaves, pastor batista natural do Recife e
residente no Texas.
O Reverendo Bagby, da Igreja Batista de São Paulo, vinha sempre visitar os americanos
e pregava, ora no Campo, ora no School House. Era homem magro e franzino,
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“Todos temos pedaços quebrados, somos um fracasso espiritual e moral. Fazemos decisões
erradas das quais nos arrependemos. Mas também temos tido grandes recomeços. Por isso amo a
cada pedaço, pois são como fios do tapete colorido que compõem a minha vida”. (Escritas do
Comendador Silas do Amaral).
hospedava-se muito na casa dos Hall e toda a vez que vinha passar o fim de semana
trazia bagagem como se fosse ficar um mês. As crianças, essas eternas irreverentes,
chamavam-no de bacalhau e achavam uma graça infinita em sua dentadura muito
branca. (JONES, 1998, p. 352).
Pouco mais tarde, aos 17 de maio de 1885, também Antônio Teixeira organiza
organizaria outra comunidade em Maceió, AL. Nesta última seria consagrado no início
no começo de 1886 Wandrejásello de Melo Lins, que foi para Recife dar início a uma
fundação. Para auxiliá-lo em 30 de março daquele ano, chegou lá o pastor Charles
David Daniel, e juntos iniciaram, no dia 4 do mês seguinte, a primeira igreja batista da
capital pernambucana. Os membros eram só seis: os dois pastores, suas esposas e
dois rebatizados. Passados alguns meses, Charles Daniel foi para a Bahia e Melo Lins
assumiu seu lugar. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459).
Antônio, o corajoso
Era uma época de poucas escolas públicas e, em todas elas, havia a exigência
obrigatória da classe de Religião seguindo os dogmas da Igreja Católica, o que
motivou Rui Barbosa, aos 30 anos, em 16 de janeiro de 1879, afirmar que as escolas
“pervertiam as crianças pelas doutrinas antiliberais [...] é a beatice impingida no
ensino; é a história falsificada no catecismo”. Politicamente, o baiano Rui Barbosa de
Oliveira pagou caro pelo seu discurso, no qual também declarou que era “[...]
heresiarca impenitente e liberal apaixonado”. Aos olhares dos montanistas de plantão,
Barbosa havia em muito extrapolado a barreira do sacrilégio, tornando-se merecedor
de uma pesada sanção. Foi arrasado na esfera política, perdeu três eleições em sua
província, onde foi impiedosamente massacrado pelo clero ultramontano. “[...] votar
no Dr. Rui é votar no diabo, um homem sem princípios e sem religião, inimigo figadal
da Igreja e dos seus ministros” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 429, 430). Essas
brigas nos coretos da política religiosa beneficiaram os missionários protestantes.
Enxergando pelas brechas geradas por Rui Barbosa e outras cabeças pensantes, os
protestantes partiram para o campo da área educacional sem a obrigatoriedade de
vínculos religiosos. O resultado desses investimentos redundou na produção de
excelentes e respeitados colégios e universidades hoje existentes no Brasil.
Mary Ellis McIntyre abriu um colégio em Campinas. Levou-o mais tarde para a capital, São
Paulo, com o nome de Colégio Progresso. Em fins de 1901, este foi por ela vendido para
D. Anna L. Bagby. Ficava na Alameda dos Bambus, n o 5. Esse Colégio é o que hoje se
chama Colégio Batista Brasileiro, em Perdizes, São Paulo, na Rua Homem de Melo.
(OLIVEIRA, 2005, p. 356).
Casa de Oração
Em 1856, com 28 anos, Holden apareceu nos Estados Unidos da América no Seminário
Teológico da Diocese de Ohio, associado com a Faculdade Kenyon, na cidade de
Gambier. Entrou na Faculdade Kenyon como estudante daquela instituição, porém mais
tarde transferiu-se para o Seminário e formou-se no mesmo em 1859. [...] Holden fora
recomendado a Moran, que se encontrava nas docas esperando sua chegada, em 4 de
dezembro de 1860. (VIEIRA, David, 1980, p. 164, 166).
93
John Darby é considerado o pai do moderno Dispensacionalismo e do Futurismo. A teologia do
arrebatamento pré-tribulacional foi popularizada extensivamente na década de 1830 por John Nelson
Darby e os Irmãos de Plymouth, tornando-se ainda mais conhecida nos Estados Unidos no início do
século 20 pela vasta circulação da Scofield Reference Bible.
notáveis e não se dobravam diante dos argumentos oferecidos do outro lado do
balcão.
Apesar de todos os seus problemas com Dom Macedo Costa, Holden admirava seu
adversário eclesiástico. Acreditava que o bispo era um homem sincero, profundamente
religioso e muito inteligente. [...] O bispo, segundo o escocês, nunca se tinha rebaixado
de sua dignidade apostólica para recorrer a insultos pessoais, ou a usar linguagem
ofensiva. (VIEIRA, David, 1980, p. 203).
Em 1872, por ocasião de sua visita à Escócia, que passou a exercer atividade entre os
Irmãos Unidos. Nesse mister esteve em Portugal, onde publicou folhetos e um hinário
intitulado Hinos e Cânticos Espirituais que ainda hoje, gradativamente ampliado,
continua servindo à Igreja Cristã nos dois países de língua portuguesa. (BRAGA, 1961,
p. 209).
95
Disponível em: <http://www.igrejaevangelicabrasileira.com.leira.com.br/historico.htm>. Acesso em:
19 mar. 2012).
Os Episcopais
Os pentecostais
P
or mais de três longos séculos, em seu período de colônia e impérios, o Brasil
foi o país que mais fez uso da mão de obra escrava. Para abastecer os
canaviais, as casas-grandes, os sobrados, as minas de ouro, a vasta
produção de algodão no estado do Maranhão e, finalmente, nos cafezais em São
Paulo. Milhões de negros foram literalmente sequestrados e importados de diferentes
nações africanas e vendidos no Brasil para serem utilizados como escravos. “Essa
colossal força de trabalho cativo estava concentrada nas fazendas de algodão, arroz
e açúcar [...] A onda escravista alterou vínculos familiares, a dieta alimentar, o modo
de se vestir e até mesmo os nomes pelos quais as pessoas eram conhecidas”
(GOMES, 2012, v. 2, p. 173). Essa nódoa deixada pela escravatura está mesclada
nos fatos da história brasileira, uma mancha vergonhosa do passado que reflete o
presente. Diante de uma leitura meramente antropológica, percebemos “que há algo
de podre na sociedade” (SANTOS, 2019, p. 186); aliás, essa podridão surgiu com os
primeiros habitantes da terra. Milhares dos referidos escravos reproduziram-se no
Brasil como se fossem animais banais e irracionais, para suas crias serem vendidas
aos brancos consumidores, que tinham em suas mãos o poder legal de decisão de
comprar e vender. O negro feito escravo era apenas uma mera mercadoria
negociável, lucrativa e reciclada al bel prazer do seu senhor!
Milhares nasceram em desumanos cativeiros, cresceram sem entender o que é
um ser livre, passaram por torturas psicológicas e físicas, sendo vulneráveis a toda
sorte de abusos. O texto abaixo na utilização da ortografia da época, trás-nos uma
autêntica e pura realidade do mundo da servidão;
Uma poesia publicada em 1840, narra que, “Para o pobre negro, o lugar mais
próximo da África era aquele onde podia contemplar a imensidão dos mares”
(ALENCASTRO, 2004 (ORG), p. 339). Os escravos, seres vulneráveis, estavam
constantemente sujeitos a maus-tratos, longas horas em sufocantes trabalhos, além
de constantes chicotadas que resultavam em sangramentos e dores excruciantes
nos infortunados negros. Não poucos foram dominados pelo banzo, expressão
oriunda de mbanza em quimbundo, um dos principais dialetos falados em Angola. O
banzo era como um sonho sonhado, uma névoa impalpável que produzia o
sentimento de uma sedutora melancolia em relação à terra natal e de aversão à
privação da liberdade praticada contra a população escrava. Foi também uma
prática comum de resistência aos maus-tratos e ao trabalho forçado. Pode-se dizer
que o banzo é um sinônimo de depressão.96 Essa melancolia produzida pelo banzo
foi reconhecida em 1793 como uma doença crônica em tese defendida pelo baiano
Antônio de Oliveira Mendes (1750-1817), advogado formado em Portugal, onde
trabalhou por vários anos na Casa da Suplicação em Lisboa. O resultado da
evolução do banzo levou a um expressivo número de escravos no Brasil a se
suicidarem, normalmente por enforcamento realizado, muitas vezes, com pedaços
das poucas velhas e esfarrapadas roupas com que se vestiam. Diante daquelas
circunstâncias, realidades, opressões físicas e psicológicas, seria o suicídio: um ato
de coragem ou covardia? Para muitos no desespero, a vida perde o seu precioso
valor, o valor de viver!
“Entretanto, o número de escravos que saem do cativeiro pelo suicídio deve
aproximar-se do número dos que se vingam do destino da sua raça na pessoa que
mais os atormenta, de ordinário o feitor. A vida, do berço ao túmulo, literalmente,
debaixo do chicote é uma constante provocação dirigida ao animal humano, e qual
cada um de nós preferiria, mil vezes a morte” (NABUCO, 2012, p. 29).
Mesmo após a bravura que resultou na Independência, na tarde do histórico
sábado, 7 de setembro de 1822, o Brasil manteve o vício que herdara de Portugal, o
qual, desde 1441, fazia a rota da escravatura para uma eugênica Europa
consumista, foco posteriormente direcionado para as Américas, o Mundus Novus. O
falecido professor António Henrique Rodrigo Oliveira Marques (1933-2007), que foi
um renomado catedrático, historiador e erudito escritor português, comenta o
Os dados aqui apresentados sobre banzo, foram-me fornecidos diretamente de Luanda pelo meu
96
Os primeiros negros foram trazidos em 1441 por Antão Gonçalves, que fez as suas
batidas na costa norte da Mauritânia. Foi grande o entusiasmo em Portugal e, três anos
mais tarde, um grupo de algarvios, associando numa espécie de companhia temporária
dirigida pelo almoxarife de Lagos, armou seis caravelas, alcançou a costa da Mauritânia
e trouxe consigo 235 escravos. Daí por diante, o tráfico continuou florescente: entre
1441 e 1448 importaram-se em Portugal um mínimo de 1000 escravos e talvez mais; na
década de 1450, uma média de 700 a 800 escravos entrava anualmente na Europa, via
Algarve e Lisboa. (MARQUES, 1995, p. 146).
Um desses navios pertencia ao bispo do Algarve, dom Rodrigo Dias que, animado com
as doações recebidas pela Igreja no primeiro leilão, decidira se tornar sócio no comércio
negreiro. A caravana do bispo, no entanto, teve má sorte. Naufragou depois de encalhar
num banco de areia perto de Cabo Verde. Cinco tripulantes morreram. (GOMES, 2019,
v. 1, p. 5).
Por longos 358 anos, desde 1530 97 até 1888, o negro no Brasil foi a
ferramenta para toda obra. É possível que as estatísticas sejam um tanto quanto
elásticas, porém calcula-se que cerca de 15 a 20 milhões de negros foram
arrastados de suas tribos por diferentes partes da África e despejados para serem
97
Segundo as pesquisas do escritor George Ermakoff (1949-), os primeiros negros transformados em
escravos chegaram no Brasil entre 1516 e 1526 (cf. SILVA, L., 2009, p. 73).
vendidos como animais nos precários portos e nos vergonhosos mercados
negreiros no Brasil. No antigo Rio de Janeiro, era de destaque a Boutique de la rue
du Val-longo, a praça e, posteriormente, o mercado do Valongo, que era o mais
conhecido comércio de venda de carne negra da capital imperial. Ali estava o mais
degradante espaço teatral da dor e do humilhante terror, onde a negritude não
passava de uma mera mercadoria exposta para o consumo da branquitude.
“Trancados durante a noite numa saleta, eram retirados de dia; ficavam
acorrentados na porta das lojas tomando sol enquanto esperavam comprador”
(CALDEIRA, 2008, p. 60). Nos dias atuais, a visão empresarial tem novos
contornos: a valorização do ser humano no domínio das novas tecnologias. Vem lá
de Uberlândia da cabeça pensante do português Alexandrino Garcia (1907-1993):
“Uma indústria é formada de máquinas e humanos. As máquinas, a gente compra,
mas os humanos temos de formar” (VILAS-BOAS, 2012, p. 181). Ao referir-se ao
período da escravatura, Freyre afirma que, nessa transação de carne negra para o
consumo de gente branca, “transportaram-se de África para o trabalho agrícola, no
Brasil, nações quase inteiras de negros” (FREYRE, 2001, p. 83).
A viagem era feita nos degradantes e insalubres porões dos inseguros navios
negreiros, largamente conhecidos por tumbeiros, onde as condições higiênicas
eram insalubres e subumanas, as piores e mais horríveis possíveis. Essa via crucis
se tornou a mais dolorosa navegação que já existiu no mundo. Na busca de
escravos que produziam fáceis e abundantes lucros aos traficantes, esses infernais
tumbeiros cruzavam o mar sistematicamente entre o Brasil e países da África. Esse
ignóbil tipo de comércio foi por muitos anos considerado legal, inclusive com o
endosso e a total conivência dos papas, cardeais, bispos, padres e de tantos outros
pregoadores da fé que faziam missões no Brasil.
Pode ser historicamente provado que a Igreja retardou a abolição da escravidão porque
naquele tempo era ela um dos maiores latifundiários do Brasil e, por isso, necessitava
de mão de obra barata. Ainda assim, pleiteava um tratamento humano aos escravos [...].
Existiam propriedades que possuíam dois a três mil escravos. No convento do Desterro,
na Bahia - a informação provém de um arcebispo naquela diocese - viviam 400 escravas
para 74 freiras. As freiras eram servidas pelas escravas, não iam à cozinha, não
trabalhavam, não existia vida em comum, e se comportavam como se fossem mulheres
da alta sociedade. (PRANTNER, 1998, p. 119).
98
O escritor Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) é considerado por muitos pertencente ao clã
acadêmico da pauta esquerdista brasileira. Na infância, foi aluno da missionária Anne Bagby no
Colégio Progresso Brasileiro, que teve, “em 1930, o nome foi alterado para Colégio Batista”
(ALMEIDA, R., 2014, p. 284, 286).
Poucas vozes se levantaram a favor dos negros escravos no Brasil. Pelo
contrário, havia irreverentemente um complô de cumplicidade pelos interesses de
uma sociedade predominantemente corporativista, extremamente feudalista,
caucasiana e pragmaticamente religiosa.
Durante cerca de quatrocentos anos, padres, bispos, cardeais e Ordens religiosas não
apenas apoiaram como participaram do tráfico de escravos e lucraram com ele. Nesse
longo período, foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram
contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. [...] um
negócio particularmente lucrativo porque a Igreja estava isenta pela Coroa portuguesa
de pagar impostos e taxas alfandegárias no tráfico negreiro. (GOMES, 2019, v. 1, p.
336, 337).
99
Seu Jorge, nome artístico de Jorge Mário da Silva (1970-), um cantor e compositor negro nascido
em Belford Roxo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em uma de suas canções de protesto e
resistência negra, afirma:
100
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1871), magistrado, político e senador
brasileiro vitalício, nasceu em Luanda. Seu pai era um influente ouvidor em Angola e bem
relacionado com a família imperial. Eusébio cresceu no Brasil, entrelaçou-se por matrimônio com
poderosos fazendeiros açucareiros cuja mão de obra escrava era imperante. Eusébio morreu aos 56
anos no Rio de Janeiro, em 7 de maio de 1871, sensivelmente 60 dias antes de Castro Alves, o gênio
da poesia negreira.
uma mulher. [...] uma mulher bonita é um flagrante delito” (HUGO, 2007, v. 1, p.
138, 150, 152). Para Castro Alves, o resultado dessa louca 101 paixão abrasada pela
diabólica e dominante luxúria foi a decadência acadêmica; a perda da saúde, do pé
esquerdo, dos amigos e, por fim, o precoce falecimento em Curralinho, Bahia, na
quinta-feira, 6 de julho de 1871. Nas várias pesquisas biográficas, não encontramos
o poeta envolvido com o mundo da religião do Império. Entretanto, são fulgurantes
os metafóricos fragmentos bíblicos em seus poemas. Um dia antes de falecer, o
moribundo Antônio Frederico de Castro Alves “pedira para se confessar, sendo
atendido pelo padre Turíbio Tertuliano Fiúza (1827-1909)” (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 1, p. 464). Era muito jovem e viu, aos 24 anos, “sua mocidade, indo embora
antes do tempo” (HUGO, 2007, v. 1, p. 139). Ao morrer, faltava-lhe o pé esquerdo,
que fora amputado sem o uso de anestesia no mês de junho de 1869, na cidade do
Rio de Janeiro. Castro Alves, um boêmio da vida, não chegou a contemplar nem
mesmo a Lei do Ventre Livre, que entrou em vigor em 28 de setembro de 1871.
Porém sua influência seguiu até à Lei Áurea, que passou a vigorar após a missa
matinal do domingo, 13 de maio de 1888. Aliás, ainda hoje os épicos poemas de
Castro Alves são recordados e declamados com certa dosagem de compaixão e
nostalgia que retratam um selvagem passado inapagável da História Brasileira. O
desafortunado negro, que menos merecia sofrer em virtude do seu trabalho
descomunal, foi o mais prejudicado e rejeitado frente a um sagaz corporativismo
liderado pela supremacia branca que fazia o jogo dos seus próprios interesses.
Esse furúnculo ainda não foi extirpado de diferentes segmentos da vasta e
antagônica sociedade na qual estamos inseridos.
Malvadamente, a religiosidade fomentou a marca do ódio, segundo o
comentário do professor James Walvin (1942-), um canadense especialista na
história do escravagismo americano.
À medida que se tornava evidente que a presença europeia estava a abalar de forma
dramática os povos indígenas, os homens da igreja começaram a solicitar a vinda de
africanos não cristãos, a fim de poupar os índios ao sofrimento. Também se considerava
que era vital que os africanos fossem pagãos, a fim de evitar que os europeus
escravizassem outros cristãos. (WALVIN, 2008, p. 58).
“Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos
101
Vozes abolicionistas
Uma dessas vozes que clamou nos desertos da vida foi a do colportor
metodista americano Daniel Parish Kidder, aquele que sepultou sua jovem esposa
no Rio de Janeiro em 1840. Esse foi um entre os vários conhecidos
antiescravagistas que passaram e deixaram rastros por terras do Brasil. “Ele
trabalhou como vendedor de Bíblias, fez esforços pela protestantização do Brasil,
protestantismo que, à época, era associado ao desenvolvimento econômico,
científico e tecnológico” (PAGANELLI, 2020, p. 56-57). Em páginas anteriores, já
103
Diga-se de passagem, o negro ainda hoje é um excelente vendedor e expoente fonte de lucros,
além de influenciar e aquecer o mercado da compaixão. Com raríssimas exceções, é possível
encontrar a fotografia de uma pessoa branca em cartazes missionários ou apelos humanitários, nos
quais o dinheiro é a principal voz de comando. Ainda hoje, vergonhosamente se faz do negro uma
lucrativa mercadoria. Na busca de sensabilizar os mais abonados de uma fria sociedade, fotos de
crianças negras ou de sofridos velhos negros desdentados e descamisados são expostas na vitrine
das necessidades, fomentando gritantes carências que podem ser socorridas com míseras moedas
extraídas dos bolsos de pessoas brancas. Essas míseras esmolas, em sua maioria, são
administradas por um grupo de brancos! Dando asas ao “mito do branco salvador, exaltando a
generosidade da branquitude e a miserabilidade da negritude. [...] Isso é o que chamamos de
complexo de branco salvador” (Disponível em: <https://noticiapreta.com.br/o-mito-do-branco-
salvador-exalta-a-generosidade-da-branquitude-e-a-miserabilidade-da-negritude/>. Acesso em: 27
abr. 2020). O mesmo se passa nas diferentes modalidades esportivas. Quem dá as ordens e controla
as cartas no mundo dos esportes? A maioria quase absoluta dos jogadores e outros atletas são
negros. Em contrapartida, os seus renomados treinadores e não poucos empresários são brancos.
Pessoas que ainda hoje, compram e vendem negros por incalculáveis fortunas nos avantajados
mercados europeus! Com raríssimas exceções, até mesmo a saga que envolve a história do negro
no Brasil é pesquisada e escrita por autores brancos! “Só 10% dos livros publicados no Brasil entre
1965 e 2014 são de autores negros” (GOMES, 2019, v. 1, p. 33). Essa leitura foi feita sob a óptica de
um escritor branco. Se os cáculos são críveis e, tudo indica que sejam, estou entre essa minoria de
10% de escritores negros no Brasil.
mencionamos a história de Cynthia Harriet Kidder, vitimada pela febre amarela, e
sua precoce morte aos 22 anos em 1840.
O médico escocês, doutor Robert Kalley, ao fundar o primeiro movimento
evangélico permanente no Brasil, nunca permitiu que proprietários de escravos
fossem aceitos como membros da Igreja Fluminense. Em dezembro de 1865, “o
missionário escocês presidiu a sessão extraordinária da Igreja Evangélica Fluminense
que excluiu da comunhão o senhor Bernardino de Oliveira Rameiro porque, mesmo
instruído e exortado, não quis alforriar seus escravos” (CÉSAR, 2009, p. 96). O Dr.
Kalley
Seu caso de amor com os Estados Unidos se iniciou na década de 1850 e teve como
cupido o reverendo James Cooley Fletcher. Com boa formação universitária em Brown,
o reverendo chegou ao Rio de Janeiro como missionário da União Cristã em 1852. [...]
teve o primeiro encontro com o casal imperial em 1853. D. Pedro tratou-o como a um
igual [...] A imperatriz fez o mesmo com a mulher suíça de Fletcher, Henriette.
(CARVALHO, J., 2007, p. 157, 158).
Provavelmente, como resultado de sua propagada fé protestante e de seus
bons relacionamentos, James Fletcher tenha sido o responsável por agendar, no
roteiro de D. Pedro II durante sua visita a New York, um momento para ouvir o
famoso pregador evangélico Dwight Lyman Moody (1837-1899). Naquela noite,
Moody pregou sobre Mateus 27:22. Durante a mensagem, o pregador, que sabia
que D. Pedro II estava ali, disse:
Mesmo um grande imperador, com toda a sua riqueza e poder, não salvará a sua alma
se não se curvar aos pés de Cristo e não aceitar de todo o coração. Ao ouvir essas
palavras, D. Pedro II curvou a cabeça reverentemente, concordando com o pregador.
(GIRALDI, 2013, p. 67).
104
Gramática Expositiva - curso superior, primeira tiragem de 1907, teve 96 edições. Gramática
Expositiva - curso elementar, 1908, teve 153 edições e Gramática Histórica, 1916, teve dez edições.
Esses sinais das Ietras afirmam a profícua capacidade intelectual e produtiva do pastor Eduardo
Carlos Pereira. Um polímata da região Sudeste das Minas Gerais! O citado jornalista não somente
referiu-se ao livro de Pereira, mas presenteou-me em 19 de agosto de 2020 com um exemplar da 50ª
edição publicada em 1926, literatura que em muito elevou o meu acervo. Muitíssimo grato, meu
nobre amigo senhor Ivan Santos.
nobre profissão, dar-nos-emos por compensados dos labores, que elas representam.
(PEREIRA, 1926, p. 9, 11, 12).
Quanto a este novo tópico, não há tantos destaques apesar do poderio que os
líderes católicos possuíam em suas mãos e, consequentemente, da sua voz de
comando na manipulação do sagrado, o que lhes dava o ar de sacristia, morada do
Santíssimo Sacramento. O pernambucano Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de
Araújo (1849-1910), um nobre político, exímio jurista, jornalista, abolicionista,
diplomata, além de outros honoráveis predicativos, aos 38 anos, em 1883, publicou
o livro O Abolicionismo, no qual o cardápio era variado. Porém o autor repartiu
alfinetadas diretamente aos líderes dos altares, sendo enfático em suas opiniões
previamente determinadas.
O Dr. Joaquim Nabuco foi um agressivo advogado que nunca jogava para
perder. Quando Robert Kalley, o médico e pastor, sentiu-se tolhido em seus direitos
sacerdotais, ele recorreu ao jovem jurista, que desmantelou todo o ar conspiratório
costurado contra os protestantes em todo o território imperial. Somente com o
passar dos anos foi que Joaquim Nabuco se encaixou, embora com reservas, ao
sistema católico. O frade Dilermando Ramos Vieira afirma que Nabuco almejava
liberdade para todos, menos para os católicos. Aos olhos do jurista, tudo não
passava de “uma milícia estrangeira a serviço de Roma” (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 315).
Nos primórdios da Independência de Portugal, o paraense nascido em
Cametá, Dom Romualdo Antônio de Seixas (1787-1860), Primaz do Brasil, com as
comendas de conde e marquês de Santa Cruz, além de deputado da Bahia no Rio
de Janeiro, tinha que agradar D. Pedro I e não perder de vista os votos das fiéis
ovelhas. Indiferente à ambiguidade dos cargos, ele falou sobre os descalabros que
envolviam a escravidão no Brasil.
Império Brasileiro. Em resultado à Lei Áurea, o trono ficou estremecido, e, passados somente quinze
meses, dia 15 de novembro de 1889, o império desabou para sempre!
106
O drama era de um macabro terror e totalmente desumano. “No Brasil a expectativa de vida de um
escravo era de 23 anos, no máximo, em fins do século XVIII” (SILVA, L., 2009, p. 34).
antepassados estiveram em um dos lados do balcão da história. Eles foram os
humilhados ou os humilhantes!
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia.
Carlos de Assumpção (1927-)
(Não pararei de gritar)
Segundo aleatórias observações que li em algum noticiário ao nascer do ano 2020,
cerca de 85% dos moradores escravizados pelas drogas na cracolândia em São
Paulo são negros! Não será isso um grito de rebeldia contra uma sociedade que
foge à sua empatia? Esse mesmo drama social que em muito excedia as fronteiras,
se passa “pelos caminhos de nossa Maiúscula América” (LUZ, 2013, p. 19).
No Brasil e no mundo afora, o negro subjugado à escravidão nunca foi
preparado para ser livre. Aliás, por séculos ele foi considerado um bem de consumo
negociável e livremente descartável pelos seus proprietários e controladores. Nessa
questão operante, sua voz foi sempre calada; o seu único direito - se é que isso
existia - era o de ser escravo. Sobre essa tolhida liberdade, escreveu Ciro Flamarion
Santana Cardoso (1942-2013), professor e historiador nascido em Goiânia:
O escravo: não é dono de si próprio, pertencendo então a outro homem; sua vontade é
condicionada a de seu senhor e seu trabalho é fruto da coação. Sua condição de
escravo é hereditária, o escravo é um bem, podendo ser vendido, alugado, doado e
confiscado. Não possui nenhum tipo de direito ou propriedade, sendo até mesmo a
possibilidade de seu casamento, condicionada à permissão de seu senhor. (SILVA, L.,
2009, p. 33).
Com a abolição definitiva da escravidão, em 1888, o acesso à terra para grande parte da
população continuou praticamente impossível. Além disso, as classes dominante e
dirigente do país nada fizeram no sentido de facilitar o ingresso dos ex-escravos no
mercado de trabalho. (VITORINO, 2000, p. 4).
Com o decreto em vigor, os negros, até então cativos (mais parece uma ironia
fornecida pelo destino!), perderam o direito de serem escravos, sendo expulsos das
senzalas onde viviam ao lado da casa-grande. Na condição de escravos, os pobres
e explorados negros eram obrigados a fazer de tudo, muitas vezes sob cruéis
pancadarias de capatazes carrascos ou de seus senhores. Aos olhos de muitos
senhores, os escravos eram sonolentos, preguiçosos (os algozes esqueciam que a
jornada diária de trabalho dos escravos era entre 15 a 18 horas!) e não passavam
de animais falantes parecidos com gente, sendo, portanto, a chibata - outros
preferem a expressão bacalhau - o único meio de domá-los. “No imaginário
escravista europeu, os africanos tinham hábitos bárbaros e selvagens, praticavam
religiões e rituais demoníacos, eram capazes de envenenar seus senhores, matar
crianças, enfeitiçar os animais, entre outros prodígios” (GOMES, 2021, v. 2, p. 64).
Também, como já mencionado em parágrafos anteriores, os escravos eram artigos
comerciáveis e descartáveis quando conveniente aos seus proprietários! O direito
de decisão encontrava-se nas mãos dos brancos, os proprietários, domadores e
dominadores dos negros. Esses senhores ditavam as ordens, mantinham um
mundo cruel e desumano, fazendo do negro simplesmente uma criação inferior,
desprezível, negligenciada e nascida para a servidão!
Com o raiar da República, muitos dos valiosos documentos relacionados à
escravatura foram destruídos por temor de represálias jurídicas contra o nascente
Estado. A mais contundente queima de arquivo aconteceu sob ordens do eminente
baiano doutor Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923), dezoito meses após a
Proclamação da República, quando se tornou Ministro de Estado.
Liberdade ou comemoração?
Ao tomar conhecimento de sua vida exemplar e do interesse que sempre tivera pela
libertação dos escravos no Brasil, o papa Leão XIII (1878-1903), galardoou-a, em 28 de
setembro de 1888, pelo ato cristão que assegurou a liberdade dos que ainda estavam
sob o regime servil. Como defensora da Igreja e da moral, a princesa recebeu a Rosa de
Ouro, altíssima distinção conferida somente essa vez, pela Igreja Católica, a uma
personalidade brasileira. (ALMEIDA, R., 2014, p. 108).
107
No decorrer de suas viagens internacionais, D. Pedro II esteve em sinagogas, catedrais católicas,
ortodoxas, coptas e outras. Em 1876, passando por Salt Lake City, participou do culto mórmon na
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Deixando Utah, em dias seguintes, já estava
participando da Cruzada Evangelística com o protestante Dwight Lyman Moody (1837-1899) em New
York City. Retornando ao Brasil, após 18 meses de viagem:
D. Pedro II recebeu alguns espíritas que o procuraram por terem sido vítimas de perseguições da
parte da polícia, que por sua vez estava a cumprir ordem do clero. A princesa Isabel soube das
reuniões espíritas e manifestou interesse, pedindo a amigos para que fizessem certas perguntas
aos espíritos para ela. (PAGANELLI, 2019, p. 301, 302).
O Imperador se engraçou até por uma religião com suas raízes alicerçadas na China. “É
interessante registrar que em sua passagem pela cidade de San Francisco, na Califórnia, D. Pedro II
manifestou interesse em conhecer um templo chinês, o que revela o seu grande interesse pela
religião (PAGANELLI, 2020, p. 119). Juntando a tudo isso, não devemos esquecer sua sólida
amizade com Dr. Robert Kalley, pastor protestante, por quem tinha muito respeito e profunda
admiração.
108
Ao assinar a histórica Lei Áurea, a princesa Isabel estava com 42 anos, casada há 24 com o
francês Luís Filipe Maria Fernando Gastão, mais conhecido por Conde d’Eu (1842-1922), e mãe de
três filhos vivos: D. Pedro de Alcântara (1875-1940), D. Luís Maria Filipe (1878-1920) e D. Antônio
Gastão (1881-1918). No entanto,
D. Luís, de saúde frágil, após servir na Primeira Guerra, estava ainda mais debilitado fisicamente.
Ele contraiu uma tuberculose óssea, falecendo em 1920, aos 42 anos de idade. E foi a saúde, de
certo modo, que também o levou a Terra Santa, por onde o avô passara algumas décadas antes.
(PAGANELLI, 2020, p. 89)
Por exigência de D. Isabel, o primogênito D. Pedro de Alcântara foi obrigado a abdicar o seu
direito de herdeiro do presumível trono na monarquia brasileira em favor de D. Luís Maria Filipe. Para
a devida validade, um documento foi assinado em Paris, dia 30 de outubro de 1908, por meio do qual
renunciava aos seus direitos dinásticos e aos seus descendentes, devido o compromisso em casar
com a plebeia Elisabeth de Dobrzenicz (1875-1951), uma condessa tcheca. Isso gerou uma
celêumica polêmica que continua até aos nossos dias. Por incrível que pareça, o filho deserdado, D.
Pedro de Alcântara, foi o único dos três a falecer no Brasil. D. Luís morreu em 1920, em
consequências reumáticas adquiridas nas trincheiras no desenrolar da Primeira Grande Guerra
Mundial. O filho caçula, D. Antônio Gastão foi ferido e morto no campo de batalha em 1918. Embora
nascidos no Brasil, eram também cidadãos franceses e oficiais das forças militares inglesa.
três séculos e meio. Os poucos santos negros, que na época já existiam na liturgia
da Igreja Católica Apostólica Romana, certamente tiveram os seus nomes omitidos
pelo sacerdote branco celebrante daquela encomendada missa imperial que foi
estrategicamente realizada no Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Além da comenda papal provinda de Roma, a princesa Isabel também foi
distinguida com o “título de Redentora que lhe foi dado por José do Patrocínio
(1853-1905)” (CARVALHO, J., 2007, p. 190). (NOTA DE RODAPÉ: “José Carlos do
Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro
de 1853. Era filho natural do padre João Carlos Monteiro (1799-1876), vigário da
paróquia de Goytacazes, orador sacro da Capela Imperial, venerável da loja
maçônica Firme União, dignatário das ordens da Rosa e de Cristo, vereador e
deputado de sua cidade. Sua mãe, Justina Maria do Espírito Santo (?-1885), era um
dos 92 escravizados pertencentes ao padre João Carlos” (GOMES, Flávio,
LAURIANO, SCHWARCZ, 2021, p. 312). FINAL DA NOTA).
Dom Antônio Macedo da Costa, bispo do Pará, aquele que teve aos 45 anos
sua pena anistiada em 17 de setembro de 1875, agora aos 58 anos, com os pés no
chão e cabeça mais centralizada, se fez presente naquele ato. Consta que falou em
nome do episcopado brasileiro: “Abolimos o cativeiro material. Foi muito; mas isto foi
apenas o começo; removemos um estorvo e nada mais. Cumpre agora abolir o
cativeiro moral” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 321). Para muitos, o livrar-se do
cativeiro moral ainda não foi alcançado, pois, não poucos ainda estão algemados
pelos preconceitos impostos por severas sociedades da branquitude e da negritude!
Continuam bebendo o estranho e amargo vinho nos cálices dos desgostos dos
incompetentes. “O negro ficou como um livre escravo” (PEREIRA, Amauri Mendes.
SILVA, Josefina da (Org.), 2009, p. 53). Dom Antônio Macedo da Costa foi um
incontestável líder e porta-voz do episcopado brasileiro. Esperou a oportunidade de
vingar sua prisão. Dia 19 de março de 1890 presidiu o seminário episcopal de São
Paulo, um conclave de bispos onde produziu a Pastoral Coletiva, documento que
olhava os novos caminhos para a nascente república e um espaço da Igreja. “Todos
os prelados assinaram o documento, mas quando ele veio a público, alguns o viram
com certa reserva, porque Dom Antônio de Macedo Costa, que presidira a
assembleia episcopal, tendo se alegrado com a queda do Império, com grande
liberdade corrigira e alterara o texto definitivo” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p.
19). Exatamente, um ano e um dia após esse acontecimento em São Paulo, o citado
bispo e Primaz do Brasil, veio à falecer, 20 de março de 1891 em Barbacena, Minas
Gerais. Estava com somente 60 anos!
Isabel era muito querida pelo povo; o mesmo não sucedia nos círculos
governamentais. Politicamente, apenas a toleravam; afinal, era a única herdeira do
trono imperial. Para os políticos, não havia outro remédio; ela era a legítima herdeira
do trono, embora combalido! No andar da carruagem e diante dos embates internos,
pelo seu histórico ato altruísta da libertação concedida aos negros feitos escravos, a
princesa Isabel fez algo extraordinário. Ninguém lhe poderá roubar isso. Porém ela
não previu um futuro imediato e mais digno aos recém-libertados. Aliás, a
declaração que romanticamente recebeu o título de Lei Áurea concedeu uma
suposta liberdade e conquista de direitos. Na verdade, os desafios e as dificuldades
da população negra somente se revestiram de novas roupagens. Não obstante,
aquele histórico e firme ato de Isabel se tornou político e encheu de pólvora os
arsenais da oposição, que lhe arrancou a coroa e infligiu a total devastação à
monarquia brasileira com a Proclamação da República em 15 de novembro de
1889. Dizem que, após a assinatura da Lei Áurea, o político baiano João Maurício
Wanderley (1815-1889), mais conhecido por Barão de Cotegipe, o qual morreu nove
meses antes do histórico 15 de novembro, cochichou aos ouvidos da princesa: “A
senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono”. A fatal profecia se cumpriu
18 meses depois, e o profeta lá não estava!
“O fim da escravatura não significou o fim da injustiça; todavia, uma medida
do progresso humano, com certeza, reside no fato de que hoje escravizar outras
pessoas é, sob o tribunal internacional, um crime contra a humanidade”
(HOCHSCHILD, 2007, p. 455). A pena de ouro 18 quilates, tendo ainda 27
diamantes e 25 pedras vermelhas, oferecida à princesa Isabel para assinar a Lei
Áurea se encontra exposta no Museu Imperial na cidade de Petrópolis, Estado do
Rio de Janeiro, local altamente recomendado aos amantes da História do Brasil.
Como já mencionado, no ano seguinte, o de 1889, a santa princesa Isabel e toda a
família imperial foi sumariamente expulsa do Brasil por ordem e graça do governo
provisório republicano. Expulsa, seguiu até Portugal e desse para a França. 109 Anos
depois, alquebrada e paralítica, Isabel veio a falecer no palácio d’Eu, região da Alta
Normandia Francesa, a 14 de novembro de 1921. Faltava um dia para se
completarem os 32 anos da Proclamação da República e dez meses para a
comemoração do primeiro centenário da Independência do Brasil, ato heroico
impetrado em primeira mão por sua avó austríaca em 2 de setembro, no Rio de
Janeiro, e referendado por seu avô português, D. Pedro I, às margens do riacho do
Ipiranga, São Paulo, na tarde de sábado, 7 de setembro de 1822.
Em tese, apenas oferecendo um fragmento histórico, a abolição da
escravatura nos Estados Unidos, que também não foi perfeita, passou somente por
109
Com a euforia da República, onde o negro foi colocado? Nada novo, ficou no mesmo local onde já
se encontrava, num casebre no final do logradouro de terra batida, selvagem vegetação, sem água,
sem luz, esgoto a céu aberto, o mais devastador e deplorável ambiente de penúria para a morada de
um ser humano. Com a chegada da urbanização, e por interesses dos grileiros, foram empurrados
para os píncaros das montanhas, locais idílicos que cercam as belas, iluminadas e ornamentadas
cidades. Na cidade do Rio de Janeiro, sede da República e palco dos grandes acontecimentos, o
distante Morro da Providência se tornou o local mais adequado onde alojar a negrada que ocupava o
cortiço Cabeça de Porco e outros deploráveis locais em regiões centrais da cidade. No Brasil, favelas
foram se generalizando em resposta à má distribuição das rendas sociais especialmente ao alcance
do negro, que se manteve impedido de galgar o degrau seguinte da escada social. Na busca de
apagar esse estigma social de favela, o meio foi politicamente maqueado: tornaram-se
Comunidades. Comunidade, em uma linguagem mais acadêmica, também se refere a fazer nossas
condições com as dos outros; exultar juntos, chorar juntos, trabalhar e sofrer juntos. “O outro não era
o outro: adversário, competidor, articulador, mas o outro próximo, que compartilha da mesma
situação de exclusão” (OLIVEIRA, Marco, 2019, p. 36). Seria tão bom se as teorias de Comunidades
fossem verdade! Mesmo assim a comunidade é onde, a grosso modo, a imensa senzala se tornou
casa-grande! Onde em tese, impera a brilhante frase de Alexandre Dumas, pai (1802-1870) o
clássico escritor negro nascido na França: um por todos, todos por um! Verdadeiro jargão de unidade
citado em “Os três mosqueteiros”, romance histórico lançado em Paris no mês de julho de 1844.
duas etapas definitivas, ambas no primeiro mandato do presidente Abraham Lincoln.
The Preliminary Emancipation Proclamation foi aprovada no dia 12 de setembro de
1862, 26 anos antes da decisão imperial brasileira sob pressão internacional. A
Proclamação definitiva de Emancipação nos Estados Unidos foi outorgada e
assinada no salão Oval da Casa Branca, em Washington, dia 1 o de janeiro de 1863
(Informações disponíveis em: <www.archives.gov>. Acesso em: 29 mar. 2012).
Ventila-se pelos corredores da cultura e do nacionalismo americano que a abolição
total garantiu ao ex-escravo um pedaço de terra para cultivar, juntamente com uma
mula ou o direito de regressar à África. Esses dados de mula e terra são um tanto
obscuros na história estadunidense. Entretanto, as autoridades dos Estados Unidos
forneceram meios para os interessados se estabelecerem na Libéria, nação que já
existia desde 1847, a fim de amparar os negros alforriados. Durante anos após a
Emancipation Proclamation nos Estados Unidos, o branco continuou sendo o branco
rico e o negro, por sua vez, continuou sendo o negro pobre disfarçado de liberto!
Essa crescente miscigenação pode muito bem ser observada na Costa Leste dos Estados Unidos,
110
mas também não é diferente na Costa Oeste. Nem tanto nos estados centrais, onde se mantém o
conservadorismo protestante da supremacia branca.
protestos de diferentes segmentos da sociedade, foi que o Congresso aprovou, e o
Presidente Lyndon Johnson (1908-1973) sancionou a Lei dos Direitos Civis. 111
Sem lenço e sem documento
111
Para mais informações sobre o assunto, consultar a segunda edição de A Bíblia e a África, além
de outras confiáveis fontes recomendadas. Nos Estados Unidos, a mulher branca ganhou, em 1920,
o livre direito de votar, graças à aprovação e ao sancionamento da Décima Nona Emenda à
Constituição. No Brasil, foi somente em 1932 que a mulher recebeu esse valioso direito de se
expressar nas urnas, decreto sancionado pelo presidente Vargas. A professora Antonieta de Barros
(1901-1952), negra, filha de ex-escrava, foi a primeira mulher no Brasil a ser eleita em escrutínio
secreto nas eleições de 1934, no estado de Santa Catarina. Ela exerceu até 1937 a função de
deputada estadual, Antonieta Barros nasceu e morreu em Florianópolis. Somente um detalhe de
ordem político religioso, quando Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) era promotor de justiça na
cidade de São Borja, juntamente com o seu pai, o general Manuel do Nascimento Vargas (1844-
1943), ambos contribuiram financeiramente para a construção do templo da igreja metodista local
(Confira em ALMEIDA, R., 2014, p. 364, 366).
Explorados e exploradores
A Proclamação da República
O período do império de D. Pedro II foi longo, tendo durado 58 anos, oito
meses e dez dias,112 o mais longevo das Américas, de 1831 até 1889. Em face da
sua lisura política e por estar decepcionado com o poder, o imperador conviveu
abertamente com a oposição da parte de parlamentares republicanos camuflados
na monarquia. Houve até o Manifesto Republicano,113 documento publicado no Rio
de Janeiro, dia 3 de dezembro de 1870, contando com a participação, o apoio e as
assinaturas de importantes personagens da vida política e social brasileira. Um
visível sinal de mudanças na política brasileira estava publicamente se
manifestando. Tudo ocorria sob os funestos olhares e a barba já branqueada e
malcuidada de D. Pedro Banana, expressão pejorativa produzida pelos plebeus que
rodeavam a Corte no Rio de Janeiro e trombeteada pela imprensa liberal. Na quinta-
feira, 3 de abril de 1862, Victor-Marie Hugo (1802-1885) havia terminado de publicar
Les Misérables, sua discutida obra-prima. Parece que Hugo previamente havia
desenhado a melancolia do último imperador das Américas. “De sofrimento em
sofrimento, chegou, pouco a pouco, à convicção de que a vida é uma guerra; guerra
em que o vencido era ele” (HUGO, 2007, v. 1, p. 108). Durante anos, D. Pedro II
manteve correspondências com o escritor e visconde francês. São notórios os
problemas adminstrativos que imperavam no Brasil de D. Pedro II. “Quem dava o
tom da política no Brasil, entretanto, eram as suas elites e o império não podia
ignorá-las. [...] O trono no Brasil já era então uma instituição agonizante” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 442).
Sábado, 9 de novembro de 1889, noite de primavera, porém com o peculiar e
sufocante calor na cidade do Rio de Janeiro. Na surdina, o império estava a
desmoronar. Aquela foi a noite da realização do último grande baile transcorrido na
Ilha Fiscal sob o erário da monarquia petrina. Simultaneamente, estavam ocorrendo
os apitos finais para o término da linha imperial! Os 4.500 participantes do milionário
baile foram escolhidos a dedo; o espaço foi reservado somente à crème de la crème
da nababesca sociedade carioca. Entre os nobres convidados, encontrava-se o Dr.
André Pinto Rebouças (1838-1898), engenheiro militar afro-brasileiro, inventor,
abolicionista, professor e veterano da Guerra do Paraguai, nascido na cidade de
Cachoeira, Bahia. Aos 21 anos “em 1859, André se formou em ciências físicas e
matemática, e como engenheiro militar no ano seguinte, sendo sempre o primeiro
aluno da turma. Em 1860, recebeu o grau de engenheiro militar. [...] Em 1865,
preocupado com a Guerra do Paraguai – 1864-1870 –, alistou-se no Exército; no dia
21 de maio, o tenente André Rebouças, com 26 anos, partiu para a guerra. [...] Foi
ainda responsável por diversas obras no país, como a estrada de ferro que liga
Curitiba ao porto de Paranaguá” (GOMES, F., LAURIANO e SCHWARCZ, 2021, p.
112
O segundo mais longo governo no Brasil foram os 15 anos - de 1930 à 1945 - ocupados pelo
gaúcho Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), iniciado por um golpe que se tornou a ditadura do
Estado Novo. Algo muito semelhante ao salazarismo implantado em Portugal; aliás, Vargas se
espelhou nos acontecimentos da Terrinha!
113
Era o título tupiniquim do Manifesto do Partido Comunista lançado em Londres, dia 21 de fevereiro
de 1848. Historicamente o Manifesto londrino, é um dos tratados políticos de maior influência a nível
mundial. Quase uma Bíblia para os avermelhados adeptos de uma utopia política preparada para
explorar a classe proletária e enriquecer a burguesia palaciana.
51, 52). Ele tivera passagens acadêmicas e profissionais pela Europa e New York,
onde conheceu o fator da democracia casada com o racismo, porém nada seria
capaz de desestruturar suas convicções políticas. Rebouças era um convicto
monarquista e fiel escudeiro, não como título, da família imperial do Brasil. Naquela
data, estava com 51 anos e solteirão por opção. Não seria essa opção um platônico
amor pela princesa Isabel? As más línguas informam que havia uma disfarçada
reciprocidade! (NOTA DE RODAPÉ: Enquanto vivo, Francisco Solano Lopez (1827-
1870), ditador do Paraguai, em plena guerra contra o Brasil “pretendia desposar
outra mulher: a princesa Isabel, filha de dom Pedro II” (BOTELHO, José Francisco e
LIMA, Laura Ferrazza, 2021, p. 26). FINAL DA NOTA). Teria o notável engenheiro
baiano em “seu puro e desesperado amor, querer um plebeu a uma princesa, que
loucura” (SARAMAGO, 2019, p. 348).
Oito dias após aquele lendário e aristocrático baile na Ilha Fiscal, o doutor
André Rebouças, inconformado com o andar político tomado nos quartéis e pelas
ruas do Rio de Janeiro, optou em acompanhar a família imperial para o exílio.
Rebouças nunca mais retornou ao Brasil. Viveu outros nove anos entre a Europa e
a África. Por certo período, trabalhou em Portugal; posteriormente em Angola e,
finalmente, estava na Ilha da Madeira, a conhecida Pérola do Atlântico.
Sob forte descontrole emocional além da brutal depressão, o engenheiro
baiano, aos 60 anos, optou por saltar para a morte da janela do hotel onde estava
hospedado em Funchal. Rebouças foi
começou a despencar de suas mãos e a ser contemplado por seus olhos, já antevendo o poço que
lhe aguardava, Mauá mencionou: “Não tenho o menor interesse pelos bens de fortuna. A única coisa
que me interessa é legar um nome limpo para os meus filhos” (CALDEIRA, 2008, p. 471).
232).115 “Dom Pedro II foi embora do Brasil levando consigo um travesseiro cheio de
terra brasileira” (NARLOCH, 2011, p. 288).
Enquanto o Alagoas margeava as costas do arquipélago de Cabo Verde, na
época uma possessão portuguesa, no dia 2 dezembro, D. Pedro II, que também era
grão-mestre da maçonaria, estava completando 64 anos. Essa data foi
homenageada pelo capitão, pelos demais tripulantes e por todo o séquito que
acompanhava a deposta família imperial do Brasil. Diante da modernidade e
velocidade do navio, em 20 dias cruzaram o Atlântico e, a 7 de dezembro de 1889, o
Alagoas atracou no porto em Lisboa. “No dia 23, foi a Coimbra, depois ao Porto,
onde visitou o coração do pai, depositado na igreja da Lapa. No dia 28, encontrava-
se na Escola de Belas Artes quando a imperatriz faleceu no Grande Hotel, onde se
haviam hospedado” (CARVALHO, J., 2007, p. 234). A claudicante D. Teresa
Cristina, agora alcunhada de ex-imperatriz, não chegou a completar os 68 anos.
Amargando um depressivo estado de choque pelas circunstâncias, viveu somente
mais 21 dias em Portugal, falecendo de emoção, comoção, além de profundas e
imorredouras saudades do Brasil. Algo muito romântico. Seu falecimento ocorreu no
sábado, 28 de dezembro de 1889, no Grande Hotel do Porto.116 Pouco antes do seu
falecimento, D. Teresa Cristina, na casa dos 67 anos e com total lucidez,
confidenciou à sua amiga Maria Isabel, baronesa de Japurá:
Eu não morro de moléstia, morro de dor e de desgosto. Sinto a ausência de minha filha
e meus netos; não posso abençoar pela última vez. E como se subitamente se
transportasse ao passado: Brasil, terra linda! Não posso lá voltar’. Quando da morte da
ex-imperatriz, sua filha, genro e netos se encontravam na Espanha, visitando familiares,
todos ligados a Monarquia europeia. Conde d’Eu buscava geograficamente distrair
Isabel, que estava deprimida por tudo que havia acontecido com a família imperial no
Brasil que resultou no apear do poder e forçado exílio. (ALMEIDA, R., 2014, p. 93, 94).
115
O decreto republicano que baniu a família real somente foi revogado quase 31 anos depois, dia 3
de setembro de 1920, pelo paraibano Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa (1865-1942), o 11º
Presidente dos Estados Unidos do Brasil, cuja gestão ocorreu nos conturbados anos de 1919 a 1922.
Epitácio, tio de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930), provinha de tradicional família
politica oriunda da cidade de Umbuzeiro. Quando João Pessoa foi assassinado aos 52 anos no
centro da cidade do Recife, era governador da Paraíba e candidato a vice-presidente na legenda de
Getúlio Vargas. O presidente Epitácio Pessoa foi um racista de carteirinha, que proibiu atletas negros
representar o Brasil em uma competição internacional! Epitácio foi inserido no sistema
governamental como um bode expiatório para quebrar a hegemonia da política do Café com Leite,
período em que São Paulo e Minas Gerais ditavam as ordens do poder instalado no Palácio do
Catete, Rio de Janeiro, então Distrito Federal. O seu governo foi marcado por motins militares que
seguiram até a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas subiu ao Poder da Nação, do qual
somente foi apeado 15 anos depois. O poder é um osso que nenhum político almeja soltar!
116
O Grande Hotel do Porto, que indiretamente faz parte da história do Brasil, está localizado na rua
de Santa Catarina, 197. Em sua época dourada, foi um requintado hotel cuja inauguração ocorreu em
27 de março de 1880. Nove anos após sua abertura ao público, ali D. Teresa Cristina foi vencida pela
morte no decorrer do gélido inverno no Porto, apelidada de Cidade Invicta, onde os ex-imperadores
estavam hospedados naquele faltal 28 de dezembro de 1889.
Após as exéquias litúrgicas, acompanhadas das muitas missas oficiais e
tantas outras patrocinadas pelos familiares e amigos, ocorreu o sepultamento de D.
Teresa Cristina no Panteão Real existente na Igreja de São Vicente de Fora em
Lisboa, onde também se encontravam os restos mortais do seu sogro, D. Pedro I do
Brasil. O ex-imperador, D. Pedro II, agora viúvo, um tanto desolado e marcado pela
síndrome do abandono, seguiu sua jornada para a França, onde viveu outros dois
anos, morrendo no simples e econômico hotel Bedford, localizado na esquina das
ruas Arcade e Pasquier, em Paris. O alquebrado D. Pedro II morreu no sábado, dia
5 de dezembro de 1891. Foi vencido pela morte três dias após ter completado 66
anos devido a uma acentuada complicação clínica pelos diabetes que debilitaram o
seu frágil organismo e pelo martírio constante da saudade do Brasil. Sua morte
comoveu muitas pessoas onde chegou a ser noticiada.
Nos Estados Unidos, o New York Times do dia 5 de dezembro não poupou elogios. Em
texto de duas colunas, reproduziu a frase de Gladstone segundo a qual D. Pedro seria o
governante modelo do mundo e acrescentou outros louvores por conta própria. D.
Pedro, segundo o jornal, foi o mais ilustrado monarca do século e tornou o Brasil tão
livre quanto uma monarquia pode ser. (CARVALHO, J., 2007, p. 240, 241).
Quando pela segunda vez Salazar foi empossado na função de Ministro das Finanças, em 1928,
ele verbalizou algumas enigmáticas palavras que ninguém entendeu: “Sei muito bem o que quero e
para onde vou” (SARAIVA, 1998, p. 357). Sei muito bem o que quero. Por esse prisma, Oliveira
Salazar somente deixou o poder quando a morte lhe alcançou em 1970.
Em 1940, Salazar parecia ter o país a seus pés. Além de presidente do Conselho de Ministros, era
ministro das Finanças, dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. [...] O próprio Salazar, em 1941,
tremeu perante a perspectiva de um mundo dominado pelos EUA e pelo comunismo. (RAMOS,
2012, p. 662, 665).
Salazar, que estava praticamente há dois anos em semicoma, morreu pobre a 27 de julho de
1970, como pobre era toda a população. Entretanto, Portugal estava sem dívidas, com seus cofres
abarrotados de ouro e seu povo a morrer de fome!
118
Essa foi a sagaz diplomacia que a Casa Rosada encontrou para devolver o troco das
incompatibilidades surgidas com D. Pedro II, após os resultados da fratricida Tríplice Aliança
composta pelo Brasil, a Argentina e o Uruguai. Tal aliança bélica dizimou a população masculina do
outros nações. Com o Brasil sendo agora uma república, o governo provisório
redigiu uma nova Constituição que foi promulgada no Rio de Janeiro, a 24 de
fevereiro de 1891. Em ato contínuo, foi revogada a de 1824, a velha Carta, que foi a
mais longa Constituição já vista no Brasil, permanecendo em pleno vigor durante 65
anos. A Constituição de 1891 estabeleceu uma república federativa, na qual as
antigas províncias formaram os Estados Unidos do Brasil.
Constituição Republicana
Sem dúvida, estava mal assessorado; aliás, todos eram novatos e aprendizes
de governantes. Espremeram o laranja até ele não suportar os embates de uma
nova política, além das crises sociais, militares e econômicas que herdara. Sob
ameaças dos canhões da Marinha de Guerra, fragilizado e sem opção direcional
para manter o andamento da república. Diante de um disparo de canhão que atingiu
a cúpula da Igreja da Candelária, aguçou o bom senso do marecchal. Preferiu
renunciar o seu mandato à função de Presidente dos Estados Unidos do Brasil.
Deodoro foi um notável soldado, mas não como estadista, diria Rui Barbosa (1849-
1923), o primeiro Ministro da Fazenda do Brasil republicano. Uma emocional
frustração dominou completamente e encurtou a vida do triunfante guerreiro da
democracia republicana. “Deixada a política, o agora ex-presidente pediu reforma,
abandonou o uso da divisa militar e também mudou de atitude quanto à maçonaria.
Ele, que fora eleito grão-mestre do Grande Oriente do Brasil e empossado com tal
em 24 de março de 1890. [...] aproximou-se então da Igreja, mas sua saúde
deteriorou-se continuamente. No dia 22 de agosto de 1892, agonizante, recobrou a
voz e pediu à esposa, Dona Mariana Cecilia de Souza Meireles, que chamasse o
Pe. Belarmino, pois desejava confessar-se. [...] Às 12h20 do dia seguinte expirou. O
marechal fundou a nova pátria brasileira, destruindo a Monarquia e levantando a
República” (VIEIRA Dilermando, 2016, v. 2, p. 34). Manuel Deodoro da Fonseca o
desativador do monstro da monarquia, mal havia completado 65 anos, ao falecer
nos primeiros minutos da terça-feira, 23 de agosto de 1892, exatamente oito meses
após sua renúncia em 23 de novembro de 1891. Amplamente mencionado em
linhas anteriores, após renunciar ao governo, a 23 de novembro de 1891, Deodoro
retirou-se para a cidade de Barra Mansa, interior do Rio de Janeiro, onde faleceu
exatamente oito meses depois, dia 23 de agosto de 1892. Parece uma simbologia
do destino!119
Pela manhã de quarta-feira, 28 de outubro de 2020, visitei a mais histórica das casas localizadas
119
na então Rua dos Mortos, atualmente com o nome de Marechal Deodoro da Fonseca, na cidade de
Como regia a recém-nascida Constituição do Brasil, diante da vacância do
titular por morte, renúncia ou outros motivos, a cadeira presidencial foi ocupada pelo
vice-presidente, o também marechal alagoano Floriano Vieira Peixoto (1839-1895),
maçom e herói da Guerra do Paraguai. O seu governo, que durou até 1894, foi
assinalado pela discórdia da grande massa populacional manobrada pelos
saudosistas políticos pró-monarquia. Eram os populares anarquistas infernizando a
vida do Presidente, incluindo levante nas Forças Armadas que novamente
apontaram os canhões para bombardear o Palácio do Governo. Floriano Peixoto,
não se intimidou ou se dobrou diante das ameaças, pelo contrário respondeu
energicamente aos agressores: “Desta cadeira só duas forças são capazes de me
arrancar: a lei ou a morte” (GRANATO, 2010, p. 19). Para se manter na função,
Floriano Peixoto foi um republicano na teoria e militar na prática. Não recebia ordens
de ninguém, aliás, o poder amendrotador que a farda lhe garantia sempre foi o seu
orgulho e sua fonte de expressiva autoridade. Era a República da Espada! 120
Enquanto despachava na cadeira presidencial no Rio de Janeiro, Peixoto “inaugurou
o chamado florianismo, culto político a sua personalidade” (BOTELHO e LIMA,
Laura, 2021, p. 215). Ao cumprir, aos trancos e barrancos, o mandato presidencial
garantido pela nova Constituição, o marechal Floriano Vieira Peixoto, aos 55 anos e
politicamente desgastado (o que é notório diante da posição), seguiu os mesmos
passos de seu antecessor e conterrâneo. Deixou o Rio de Janeiro, seguindo
diretamente para sua fazenda também localizada no município de Barra Mansa,
onde faleceu em 29 de junho de 1895. Faleceu muito jovem; estava com somente
56 anos!
Em 1896, há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e
a praia virará sertão. Em 1897, haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um
só rebanho. Em 1898, haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899, ficarão as
águas em sangue e o planeta há de aparecer no nascente com o raio do sol que o ramo
se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu [...]. Há de chover
uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes.
(OLIVEIRA, P., 1985, p. 243).
O século XX
123
“Muitos batistas também chegaram a Rhode Island, os batistas tiveram tamanha importância no
estabelecimento de Rhode Island e seu sistema governamental, que em 1789 George Washington se
referia ao estado como o pequeno estado batista de Rhode Island” (tradução livre de Carlos
Boaventura Jr.)
Universidade de Rhode Island em 1764 como uma instituição que ensinaria, sem
sectarismo, religião e ciência; essa escola mais tarde recebeu o nome de Brown
University” (CAIRNS, 1995, p. 316). De Itu, estado de São Paulo, o jornalista e
historiador paranaense não perdoa o funesto passado: “John Brown, da família
fundadora da Universidade Brown, na cidade de Providence, Rhode Island, hoje um
grande centro norte-americano de estudos da escravidão, era traficante de cativos”
(GOMES, 2019, v. 1, p. 64, 65).
A Suécia
124
Nos governos episcopais, toda a autoridade de mandar, fiscalizar, exigir, cobrar e nomear os
oficiais é confiada aos bispos, os quais são eleitos ou nomeados pela cúpula com bases em
assembleias ou concílios gerais. Entretanto, como de praxe, na hora de pagar, o disco é virado para
outra cantiga: transferem para a igreja local todos os ônus financeiros. Esse andar do sagrado
oportunismo, faz aumentar o número de bispos e seus apostolados colegiados! Em resultado, está
em voga o velho jargão: há demasiados caciques para poucos índios!
O Brasil muito ganhou com essa notória renovação sueca. Basta acompanhar
a história do pentecostalismo que tem cimentado a fé da nação. Boa parte dos
missionários que estenderam as fronteiras das Assembleias de Deus no Brasil
foram obreiros procedentes da Suécia, bem como de americanos descendentes de
suecos ou noruegueses. As nações nórdicas também fizeram história nas diferentes
vertentes batistas existentes no Brasil.125
A Itália
Vida em Chicago
ofício bastante valorizado na época. De regresso à Itália, serviu no exército cerca de três anos.
Concluído o serviço militar, optou por imigrar para os Estados Unidos. Chegou a Chicago no dia 3 de
março de 1890, tendo sido recebido pelo seu irmão Osvaldo Francescon, com o qual havia estado
pela última vez na Hungria em 1886. (Disponível em: < http://www.comune.cavassonuovo.pn.it/>.
Acesso em: 01 jun. 2016).
No site sobre as principais personalidades valdenses, aparece o nome de Louis Francescon, com
127
destaque para o seu pioneirismo pentecostal nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil.
1892, ele colaborou ativamente na organização de uma obra presbiteriana voltada
para os italianos em Chicago. Em 1º de janeiro de 1895, aos 29 anos, casou-se com
Rosina Balzano (1875-1953), sendo a cerimônia realizada na igreja presbiteriana,
onde ele era um dos líderes, embora fosse bem latente sua discordância da
eclesiologia denominacional. Francescon sempre manteve alguns costumes
adquiridos entre os valdenses, notamente o voluntariado para as funções
ministeriais.
Terceira Parte
Azusa Street
“Vivia para além do limite do extraordinário.”
(Josimar Salum - ativista comunitário e cientista político)
O pastor Giuseppe Beretta havia sido batizado por imersão na Igreja dos Irmãos de Plymouth, em
128
Chicago. Igreja que no Brasil é conhecida por Casa de Oração. (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Francescon>. Acesso em: 01 jun. 2016).
1907, quando Durham recebeu um revestimento especial do Espírito Santo no
humilde e abarrotado salão da Missão Fé Apostólica, localizado na Azusa Street,
312. Sob a unção sobrenatural que agia sobre um afro-americano de 37 anos, Deus
estava escrevando uma nova história na vida ministerial de William Howard Durham,
então com 34 anos. Foi o iniciar da história que dentro de dois anos chegaria ao
Brasil.
Se aquele jovem pastor batista era já conhecido pelas suas ardentes
mensagens de santidade, regressou para Chicago com uma maior convicção e
totalmente incendiado pelo fogo de um perene avivamento. O pastor William
Durham, com sucesso, realizou grandes campanhas de libertação, cura divina,
avivamento, evangelização, além de constantes e espantosas maravilhas. O seu
ministério foi um inexplicável fenômeno, entretanto os seus dias de euforia estavam
contados! Em pleno ápice na realização ministerial do sobrenatural, sua carreira foi
precocemente encerrada em 1912. Estava com somente 39 anos ao ser vencido por
uma complicada pneumonia. Faleceu muito jovem, porém influenciou a vida de
líderes das históricas igrejas pentecostais em todos os continentes, deixando
profundos rastros pelos caminhos da vida. Almejando informações mais amplas
sobre a assunto, vale a pena conferir sua história e seu legado no site
<https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Howard_Durham>, por mim acessado em 1º de
junho de 2016.
“Charles Fox Parham nasceu em 4 de junho de 1873. Após o seu nascimento em Muscatine, Iowa,
os seus pais William e Ann Parham mudaram-se para Cheney, Kansas. Eles viveram como
verdadeiros pioneiros americanos. Charles teve uma vida acidentada. Aos seis anos de idade, foi
acometido de uma alta febre que lhe deixou acamado. Durante os primeiros cinco anos, foi
atormentado por dramáticos espasmos, sua testa inchou, ficando além do normal. Aos sete anos,
sua mãe morreu”. (Tradução livre de Carlos Boaventura Jr.).
Sarah, uma alicerçada darbista, em muito influenciou a consolidação carismática na Escola Bíblica
130
Betel em 1900, além de outros importantes focos ministeriais. Veja, em páginas seguintes, a
daquela escola com 40 estudantes era obter uma nova visão evangelística e
missionária sob a ação e unção do sobrenatural para o século XX, que iniciar-se-ia
no ano seguinte.
Em 1o de janeiro de 1901, uma jovem chamada Agnes Ozman (1870-1937) foi batizada
com o Espírito Santo numa pequena escola bíblica, em Topeka, no Kansas. Aluna de
Charles Fox Parham, ex-pastor metodista e professor da Igreja Holiness, Agnes
experimentou uma impressionante manifestação do dom de línguas e tornou-se a
primeira pentecostal do século XX. Impus as mãos sobre ela e orei, declara Parham,
recordando aquele momento. Eu mal havia completado três frases, quando a glória
desceu sobre ela. Uma auréola luminosa parecia envolver sua cabeça e seu rosto, e ela
começou a falar em chinês. Durante três dias, não conseguia falar uma palavra em
inglês. (SYNAN, 2009, p. 15).
Em 1905, Parham mudou-se para Houston, Texas, onde formou outra escola bíblica. Foi
lá que recebeu como aluno William J. Seymour, um negro, cego de um olho, humilde e
filho de ex-escravos. Apesar do preconceito racial do sul, Seymour participou da escola
e aprendeu sobre a evidência inicial do batismo no Espírito. Pregava sobre isto em
outras igrejas, mas ele mesmo ainda não tinha recebido o batismo no Espírito com
línguas. (WALKER, J. et al., 2002, p. 17).
Uma vez que a lei do Texas proibia que os negros se sentassem nas salas de aula com
os brancos, Parham sugeriu que Seymour ficasse no corredor e assistisse às aulas pelo
vão da porta. [...] Parham demonstrava um comportamento racista e uma atitude
arrogante em relação a seus colegas negros, especialmente Seymour. (SYNAN, 2009,
p. 371, 374).
A jornada pentecostal
participação de outro darbista, o pastor Giuseppe Beretta, italiano que celebrou o batismo por
imersão de Francescon, fundador da primeira igreja pentecostal no Brasil.
bandas montanhosas. Na gelada residência, não havia espaço para hospedar além
de 21 pessoas. Estas foram as principais representantes das quatro congregações
da Igreja da Santidade que haviam sido estabelecidas no interior dos estados da
Geórgia, do Tennessee e da Carolina do Norte.
A União Cristã ou Igreja da Santidade, que posteriormente adotou o nome de
Igreja de Deus a partir de 1907, teve o seu histórico início em uma quinta-feira, 19
de agosto de 1886. Sempre pautando os seus dogmas pela teologia da santidade,
pelo espírito de humildade e pela confiança nos ensinamentos extraídos das
Escrituras. Era o povo do Livro, sensível ao mover de Deus. O principal mentor que
levou o pequeno grupo de Holiness de Camp Creek, na Carolina do Norte, a tornar-
se a Igreja de Deus foi o colportor Ambrose Jessup Tomlinson (1865-1943), que,
aos 38 anos, em 1903, uniu-se à Igreja da Santidade e logo foi indicado para liderá-
la. A princípio, ele não possuía nenhuma convicção pentecostal até que, na
Assembleia Geral realizada no mês de janeiro de 1908, na cidade de Cleveland, no
estado do Tennessee, houve um grande mover do sobrenatural. Em consequência
daquele abanão, muitos pastores foram batizados com o Espírito Santo e, agora,
estavam orando pelo seu líder. Enquanto Gaston Barnibus Cashwell (1860-1916)
ministrava em 12 de janeiro de 1908, Tomlinson recebeu o batismo com o Espírito
Santo de uma maneira estranha, para não dizer extravagante.
Da floresta equatorial, habitada pelos povos acã, saíam dois produtos muito valorizados:
o ouro e a noz-de-cola, uma castanha com alto valor de cafeína que, trezentos anos
mais tarde, o norte-americano John Pemberton usaria para inventar a bebida hoje mais
consumida no mundo, a Coca-Cola. [...] do importante comércio de noz-de-cola com a
Hauçalândia, o Sael e o Saara. (GOMES, 2019, v. 1, p. 148, 165).
Esse xarope produzido de uma castanha made in Africa, que misturado com
outros ingredientes recebeu o nome de Coca-Cola, tornou-se o mais conhecido e
consumido refrigerante em todo o mundo. A Coca-Cola teve sua primeira venda
experimental nos Estados Unidos, no sábado, 8 de maio de 1886, conquistando
uma crescente clientela. A receita da composição desse misterioso e viciante
xarope que leva um especial toque da África é mantida sigilosamente protegida em
cofres de segurança máxima. Fórmula venenosa que vale milhões de dólares!
Estátua da Liberdade
132
Acompanhando uma comitiva do Brasil, também participei da mencionada Assembleia Geral em
Atlanta, no ano de 1986. Foi um grande evento em comemoração aos 100 anos da Igreja de Deus.
desta ao estado de Pernambuco, de onde foram expulsos juntamente com os
protestantes reformados em 1654.
O avanço do avivamento
Os gritos eram fervorosos - e tão altos - que uma multidão se ajuntou ao lado de fora
indagando: O que isto significa? Logo foi propagado pela cidade que Deus estava
derramando seu Espírito. Pessoas brancas se juntaram às pessoas de cor e também
foram cheias do Espírito. No dia 12 de abril, o próprio Seymour teria sua experiência
pentecostal com línguas. (WALKER et al., 2002, p.18).
Tudo seguia às mil maravilhas para aquele grupo de loucos por Jesus,
composto por negros, hispânicos e brancos pobres, até que, na quinta-feira, dia 28
de setembro de 1922, o inesperado aconteceu: William Joseph Seymour morreu em
pleno vigor de sua vida ministerial e física com somente 52 anos. Não encontrou
resistência física diante de um fulminante ataque cardíaco. Suas palavras finais
enquanto morria foram: I love Jesus. Os seus restos mortais estão sepultados no
Los Angeles Evergreeb Cemitery. Sua cova está identificada apenas com uma
singela placa com duas lacônicas palavras: Nosso Pastor (Confira Revista
Charisma, abril/2006, p. 60). Em resultado ao precoce falecimento do pastor William
Joseph Seymour, o trabalho na Azusa Street, em Los Angeles, ficou sob a direção
de sua esposa, Jennie Evans Moore, que veio a falecer 14 anos depois, na quinta-
feira, 2 de julho de 1936, com somente 53 anos. Mesmo com a morte dos pioneiros,
a chama do avivamento nunca se apagou. Naquela época, não era muito normal
uma mulher dedicar-se à direção de igrejas; os machistas conservadores não
enxergavam esse avanço com bons olhos. Caminhavam pela cartilha da teologia
masculina. Somente nas últimas décadas é que a história está na incumbência de
resgatar nomes e trajetórias de não poucas mulheres pentecostais ou não, negras e
brancas que deixaram suas indeléveis marcas na divulgação das maravilhas de
Deus.
Em fins de abril de 1907, o Senhor me fez encontrar com um irmão americano, um dos
primeiros a receber a Promessa do Espírito Santo em Los Angeles, no ano de 1906 e,
por meio dele, soube que na W. North Ave, 943, havia uma missão que anunciava a
Promessa do Espírito Santo e que o próprio pastor (W. H. Durham) a havia recebido. Na
primeira semena, frequentei sozinho aquele serviço e o Senhor me confirmou que
aquela era Sua Obra. [...] No mês de Julho, a minha esposa foi a primeira a ser selada
com o Dom do Espírito Santo, falando em língua Sueca [...] Em 25 de Agosto o benigno
Senhor se comprazeu selar também a mim. Naquele tempo enquanto se esperava a
Promessa, o Senhor fez saber ao irmão W. H. Durhan e outros que Ele me havia
chamado e preparado para levar Sua mensagem à colônia italiana. Fui eu mesmo
também confirmado por Deus. (FRANCESCON, 1936, p. 38).
Os italianos pentecostais
Conferência de Edimburgo
O ponto alto da carreira de John R. Mott como estadista missionário foi a Conferência
Missionária de Edimburgo, em 1910, que ele organizou e presidiu. Essa conferência de
dez dias, composta de 1.355 delegados, foi a primeira conferência missionária
interdenominacional de seu tipo e de ímpeto ao movimento ecumênico que tomou forma
nas décadas que se seguiram. A conferência promoveu o entusiasmo missionário e o
chamado para evangelizar o mundo nesta geração continuava no ar. Com cerca de
45.000 missionários no campo e a previsão de que esse número poderia ser triplicado,
nos próximos trinta anos, alguns delegados acreditavam realmente que a evangelização
completa do globo achava-se iminente. (TUCKER, 1986, p. 289).
134
Em 1583, período das coroas unificadas, três frades espanhóis franciscanos subiram de Santos
até Piratininga de São Paulo. “Durante dois anos, os recém-chegados viveram numa ermida
dedicada a Nossa Senhora da Luz, atuando junto aos colonizadores e aos índios” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 28). Após 327 anos, aquele espaço geográfico se torna o palco para o
início de uma mensagem protestante em São Paulo.
governo eclesiástico semelhante aos antigos valdenses, o que lhe era peculiar. O
ítalo-americano Luigi Francescon, viúvo desde 1953, faleceu em Oark Park, estado
de Illinois, na segunda-feira, dia 7 de setembro de 1964, aos 98 anos.
Em 2007 reportou 19.926 casas de oração no Brasil, em 2000 havia cerca de 5,7
milhões de membros declarados no Brasil. O Censo de 2002 do IBGE dá outros
números: 14.300 templos, 2,2 milhões de membros, sendo 18.700 pastores ou anciãos
(15% do total de pentecostais no Brasil). (PAGANELLI, 2019, p. 204).
Os suecos
Aos 24 anos, o jovem Gunnar Vingren foi, como já citado, dominado pela
loucura da dourada febre americana. Assim, dia 30 de outubro de 1903, iniciou o
mesmo caminho que outros milhares fizeram antes dele. Três semanas depois,
aquele jovem batista desembarcava na cidade de Boston, capital de Massachusetts,
que, em linha reta, é o porto americano mais próximo da Suécia. Após tediosas
semanas pelas águas do Atlântico, percorreu, agora de trem, outras centenas de
milhas até chegar a Chicago, a cosmopolita cidade dos imigrantes. Ali encontrou
uma crescente comunidade sueca, inclusive igrejas batistas sob liderança de
pastores suecos. Sentiu-se em casa; era a Suécia da Europa em douradas terras
americanas! Sentindo uma chamada ministerial, no ano seguinte, 1904, iniciou seus
estudos teológicos no seminário batista, escola liderada por pastores e professores
suecos. Ao concluir o curso, em 1908, abraçou a carreira ministerial, dedicando-se
ao pastorado entre os batistas. Mesmo solteiro e pastoreando, sentia-se realizado
em sua vida pessoal.
Fui inundado de luz e de tal poder que comecei a gritar o mais alto que podia numa
língua estrangeira. Devo ter falado sete ou oito línguas, baseado nos vários sons e
modos de falar usados. O momento mais maravilhoso foi quando explodi num lindo solo
barítono, usando uma das línguas mais puras e deleitosas que já ouvira. (WALKER et
al., 2002, p. 30).
Chicago era uma filha direta do histórico avivamento iniciado na Azusa Street
no ano de 1906. O pastor William H. Durham era uma “vaca sagrada”, na abusiva
linguagem do Dr. Paulo Ayres Mattos, um pesquisador metodista (Confira em
<www.metodismo.cjb.net>). Durham, aquele jovem sagrado (novamente o termo
sagrado é uma força de expressão na linguagem do acadêmico metodista), quando
de sua visita a Los Angeles, recebeu uma mensagem profética pelos lábios do
pastor William Joseph Seymour, a qual se cumpriu no decorrer do seu curto, porém
profícuo ministério. “Onde quer que Durham pregasse haveria um derramamento do
Espírito Santo” (SYNAN, 2009, p. 91).
Em novembro de 1909, Daniel Berg era um jovem com 25 anos. Como tantos
outros imigrantes suecos, ele também compareceu ao encontro de avivamento na
cidade de Chicago. Em meio ao mover de Deus naquele templo batista, houve um
casual encontro de dois imigrantes suecos desconhecidos entre si, os quais, no
meio da multidão, caminharam ao altar da consagração. Adolf Gunnar Vingren, no
alto de seus 30 anos, e Daniel Berg, com cinco anos a menos, formaram uma sólida
amizade que antecipou a paródia do Gordo e Magro. Vingren e Berg mantiveram
uma sólida amizade que somente a morte do primeiro, na tarde de 29 de junho de
1933, fez possível a separação.135 Ambos consolidaram a visão de servir ao Senhor
Jesus em algum canto desse mundo. Esse canto do mundo foi o Brasil!
135
Quando Gunnar Vingren veio a falecer na Suécia, seu país de nascimento, ainda não havia
completado os seus 53 anos! Desses, um pouco mais de 20 foram dedicados à nascente obra
pentecostal no Brasil.
quebrado durante um culto dirigido por Durham em Chicago” (SYNAN, 2009, p.
91).136
Foi nessa fogueira da emoção pentecostal que o irmão Adolf Uldine, no uso
de uma palavra profética, transmitiu-lhes a visão de Deus. Consta-se que Adolf
Uldine viu o nome “Pará” assinalado em um amplo mapa-múndi. Buscando
desvendar esse mistério, Gunnar Vingren e Daniel Berg procuraram a biblioteca da
cidade de South Bend, estado de Indiana, e logo constataram que Pará era o nome
de um estado no distante Brasil.
O pastor William H. Durham estava com 34 anos quando consagrou o italiano
Luigi Francescon para o ministério, em 1907, o qual dois anos depois seguiria para
São Paulo.137 Em continuidade ao seu ministério apostólico, aos 37 anos, Durham
consagrou e enviou para o Brasil Adolf Gunnar Vingren e Daniel Berg. Somando ao
italiano Luigi Francesconi, estes três europeus, que tiveram suas vidas renovadas
nos Estados Unidos, foram responsáveis pela edificação das duas maiores
organizações pentecostais existentes abaixo da imaginária Linha do Equador.
Sob muitas privações e não poucas provações, Gunnar Vingren e Daniel Berg
chegaram de trem até New York na esperança de encontrar, o mais rápido possível,
um vapor com destino ao Brasil. Pela escassez financeira, adquiriram os bilhetes na
terceira classe do Clement, um vapor com bandeira americana, onde se alojaram
em simples e abafados camarotes. O navio zarpou do porto da cidade de New York
no sábado, dia 5 de novembro de 1910, com destino a uma cidade com o nome de
Belém, situada no estado do Pará, no longínquo e desconhecido Brasil, o gigante
adormecido da América do Sul!
Belém do Pará
Não se pode imaginar quais foram as primeiras impressões desses jovens. Sentados na
principal praça de Belém, sentiam o sol a aquecer-lhes as roupas grossas e pesadas
que muito usaram nos países frios. Belém não possuía atrações; ao contrário, era
invadida por multidões de leprosos, doentes de febre amarela ou de peste bubônica, que
vinham até dos países limítrofes com a Amazônia e Territórios. A notícia da descoberta
de uma erva que, segundo alguns, curava a lepra e se encontrava em Belém havia sido
espalhada. A pobreza do povo contrastava com o padrão de vida na outra América.
(CONDE, 1982, p. 24).
Nesse período, a Igreja foi abalada com a doutrina pentecostal introduzida entre os
membros por Gunnar Vingren e Daniel Berg, que se infiltraram na igreja como batistas,
vindos da América do Norte e começaram a difundir pouco a pouco entre a membresia
as novas interpretações da Bíblia. A igreja tomou a decisão drástica de eliminar os
adeptos do pentecostalismo na noite do dia 13 de junho de 1911, entre os quais estava
aquele que exercia a moderadoria. Logo, em seguida, foi organizada a Igreja
Assembleia de Deus em Belém, em 18 de junho de 1911, dando início à obra
pentecostal no Brasil. (Disponível em <https://pibpa.org.br/>. Acesso em: 02 fev.
2004).
O cisma
Missão de Fé Apostólica
Dez dias após Celina Albuquerque ter recebido o batismo com o Espírito
Santo e cinco depois da sua exclusão do meio batista, Gunnar Vingren e Daniel
Berg organizaram a segunda igreja pentecostal no Brasil em 18 de junho de 1911
com o nome de Missão de Fé Apostólica. Os membros fundadores foram os 19
excluídos da Primeira Igreja Batista do Pará. Democraticamente, continuaram
batistas, até mesmo no sistema para a eleição ministerial. Para tal, Adolf Gunnar
Vingren, aos 32 anos, foi por unanimidade eleito pastor da estreante Missão de Fé
Apostólica em Belém do Pará. O vínculo com Azusa Street em Los Angeles era
somente por nome e fé. Empiricamente, o trabalho continuou sendo batista, até que
gerou oficialmente a Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Brasil, a 11 de
janeiro de 1918. O doutor Gedeon Alencar, catedrádico assembleano, sabe muito
bem alfinetar o resultado do drama de 1911.
A AD no Brasil foi um acidente. Os suecos não vieram fundar uma igreja, nem depois de
a fundarem queriam que fosse a Assembleia que se tornou. Os brasileiros que aderiram
não sabiam o que viria a ser a Assembleia, mas queriam construir algo. Foi dessa
mistura de intenções e tensões que ela nasceu. Conseguiu desagradar a muitos fazendo
a alegria de outros. (ALENCAR, 2010, p. 156).
O fator crescimento
Visão missionária
139
O primeiro culto protestante na América do Norte foi realizado na colônia da Virgínia em 1607, ou
seja, 205 anos antes da caminhada missionária. Adoniram e Ann Judson, primeiro casal missionário,
zarparam do porto de Salem, Massachusetts, dia 18 de fevereiro de 1812, navegando para a
Birmânia, atual Myanmar.
a sua gigantesta fé brasileira não produzia os escudos suficientes para as batatas e
os peixes!
Em junho de 1921, José Matos, outro imigrante português convertido em
Belém, regressa para Portugal com a mesma finalidade. Esse foi o segundo
missionário pentecostal a sair do Brasil. Desta feita, segue em nome e com o apoio
da Assembleia de Deus no Brasil. A visão não estancou. “No dia 30 de março de
1939, embarcou para Portugal, enviado pela AD do Rio de Janeiro, Belarmino
Teixeira Martins, que ali trabalharia vários anos na evangelização de seu próprio
povo” (CONDE, 1982, p. 217).
Quase cem anos após aquela epopeia missionária, a visão assembleiana não
havia cessado.
Novo nome
142
Nota de destaque para sua esposa, Maria Senhorinho (1915-1992), uma desbravadora natural de
Catalão, que veio a falecer em Brasília, faltando 15 dias para completar 77 anos. Dados fornecidos
dia 29 de dezembro de 2018, diretamente da Capital Federal, pelo pastor Welligton Senhorinho, neto
do mencionado casal, a quem muito agradecemos pela amabilidade.
143
Esses e tantos outros homens e tantas mulheres deixaram um legado no Brasil. Os rastros ficaram
nas montanhas e nos vales da vida! Convivi com todos eles. Eram homens simples; não obstante,
adornados por uma áurea de fé e coragem.
144
Dia 30 de agosto de 2019, realizei vários cruzamentos de pesquisas na busca de encontrar
informações da The Calvary Pentecostal Church na cidade de Olympia, estado de Washington.
Certamente dados tão antigos que nunca chegaram às redes sociais.
145
Em maio de 1917, aquela localidade ainda mantinha o nome original de Advance. Somente em
1938 ela passou a ser chamada Flatwoods, nome que perdura até nossos dias.
Em dezembro de 1934, após 17 anos da organização da Igreja de Cristo
Pentecostal, a denominação enviou o primeiro missionário para o Brasil.
146
Sábado, dia 5 de maio de 2018, estive no porto de New Orleans acompanhado pelos pastores
Aguilcemo Santana, Marcos Martins, João Camilo e Zaqueu da Silva. O propósito de visitar o local de
onde zarpou Horace Singleton Ward para o Brasil no apagar das luzes do ano de 1934. Nesse
período, já havia fumaça das brasas sob as cinzas que geraram o encontrolável fogaréu da Segunda
Grande Guerra Mundial. Como a anterior, o estopim estava localizado na Europa!
147
Em agosto de 1956, ou seja, 22 anos após o jovem Horace Singleton Ward zarpar pelo porto de
New Orleans, estado de Louisiana, com destino ao Brasil, outro jovem com 26 anos chega àquela
importante cidade: Bill Elwood Watson. Depois de participar da Assembleia Geral da Igreja de Deus
realizada em Memphis, Tennessee. Watson, tendo em mãos todos os documentos exigidos,
comparece no Consulado Geral do Brasil em New Orleans, onde, em poucas horas, recebeu os
devidos carimbos nos passaportes. Agora, o caminho estava livre para ele, esposa, filho e filha
chegarem ao Brasil.
1978 foi adotado o nome de Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil. Horace Ward
permaneceu por 34 anos no Brasil, regressando definitivamente aos Estados Unidos
em 1969, onde veio a falecer em 1993, já na casa dos 87 anos. Entre os vários
legados deixados no Brasil pelo missionário Horace Ward, que nasceu no mesmo
ano do avivamento na Azusa Street (1906), há a implantação da Igreja de Cristo
Pentecostal em diferentes localidades da região do Nordeste. Ele foi um incansável
e visionário evangelista que palmilhou todo o sertão nordestino, levando a água da
vida aos mais sedentos dos povos em terras brasileiras. 148
mulher temperada na áspera luta de conversão à Bíblia. Conquanto não fosse bonita, a
extraordinária simpatia e a marcante presença emprestavam-lhe uma graça especial
[...]. A história da igreja, no Brasil, começa a 27 de novembro de 1913, em Hollywood, a
capital mundial do cinema, com o nascimento de Harold Edwin Williams, um fogoso
protagonista de papéis secundários em filmes far-west violentos, que abandonou a
151
Em fevereiro de 1924, Aimee iniciou a Rádio KFSG, Kall Four Square Gospel. Ela conseguiu a
primeira licença emitida pela FCC para o funcionamento de uma emissora Cristã nos Estados
Unidos, sendo também a primeira mulher a dirigir uma estação de rádio. (Tradução de Carlos
Boaventura Jr.).
carreira artística para cursar o seminário Life, da Igreja Quadrangular Internacional.
Mesmo antes de ordenar-se, em 1940, já estava casado com a pastora Mary Elisabeth
e, depois de formado ocupou, sucessivamente, os cargos de pastor auxiliar, pastor
efetivo e supervisor da mocidade do Evangelho Quadrangular em onze Estados
americanos. (LIMA, D., 1987, p. 77, 79).
Aimee visitou, muitas vezes, o campo missionário. Em 1943, ela viajava pelo México
quando contraiu uma febre tropical. Um ano depois, em 22 de setembro de 1944, Aimee
morreu, depois de pregar um sermão em Oakland. Sua morte foi atestada como
decorrente de choque e falência respiratória, em razão de uma overdose de
comprimidos para dormir receitados por um médico. (SYNAN, 2009, p. 189).
No ano de 1951, fundou a Igreja Evangélica do Brasil, de doutrina quadrangular, que era
a mentora da Cruzada Nacional de Evangelização. Em 1958, sete anos depois, a igreja
mudou de nome, passando a chamar-se Igreja do Evangelho Quadrangular, como nos
Estados Unidos. (CÉSAR, 2000, p. 131).
Diferentemente dos demais grupos pentecostais e bem antes das Assembleias de Deus,
os quadrangulares encorajaram o preparo bíblico e teológico de seus obreiros. Em 1957,
seis anos depois da organização da Igreja do Evangelho Quadrangular, no Brasil,
chegou a missionária Doroty Marguerite Hawley para cuidar desta área. Ela fundou, em
São Paulo, o Instituto Foursquare, atualmente chamado Instituto Teológico
Quadrangular. (CÉSAR, 2000, p. 131).
Novos passos
Novo supervisor
Juventude, visão e um casal de filhos, era tudo que Bill e Rhoda Watson
possuíam. Foram nomeados em maio de 1956 para trabalharem no Brasil sob a
supervisão de Wayne McAfee, o qual morava na vila Fontinha, que naquela época
não passava de um distante bairro de Honório Gurgel, região periférica norte do Rio
de Janeiro. Na segunda-feira, dia 1 o de outubro de 1956, passados 46 anos que
Gunnar Vingren e Daniel Berg zarparam do porto de New York para a cidade de
Belém do Pará pelo mesmo caminho marítimo aberto no oceano Atlântico, agora
segue a família Watson, protestantes pentecostais americanos, levando uma
mensagem de renovação e avivamento ao Brasil.
Os tempos mudaram. Bow Hill não possuía terceira classe, como havia no
Clement, porém era um navio cargueiro onde havia espaço para alguns poucos
passageiros. O Bow Hill era um gigantesco navio misto pertencente a uma empresa
americana que tinha eventuais portos brasileiros em suas rotas. Além dos
resumidos passageiros que não representavam nem os dedos das mãos,
transportava três grandes locomotivas, centenas de tambores de piche para asfaltar
a pista do aeroporto de Brasília, sem contar outras toneladas de materiais para usos
diversos no Brasil. Era o período de um Brasil extremamente dependente da
tecnologia estrangeira e sem o suficiente capital para fazer a máquina girar e
produzir. Em 1986, passados 30 anos daquela emocionante e romântica viagem,
fazendo sua tese de mestrado na Escola de Teologia da Igreja de Deus, em
Cleveland, assim escreveu Bill Watson, recordando aquela inesquecível viagem:
“Juscelino Kubitschek de Oliveira, presidente da República de 1956 a 1961, foi o mais proeminente
154
ex-seminarista do Brasil. Seu avô paterno, que fora maçon anticlerical, adquiriu respeito pela Igreja,
converteu-se e passou a lecionar história religiosa” (SERBIN, 2008, p. 113)
O golpe político que se transformou no regime militar de 1964 foi tramado
para apagar os anseios de alguns políticos populares, entre os quais se encontrava
o carismático senador Juscelino Kubitschek, representante de Goiás e candidato
imbatível para regressar ao Palácio da Alvorada em Brasília. O caminho estava
aparentemente livre para ele ocupar o seu segundo mandato, embora as ameaças
marxistas dissessem o contrário. As eleições presidenciais estavam marcadas para
o ano de 1965. No Rio de Janeiro, então estado da Guanabara, estava o
governador Carlos Frederico Werneck Lacerda (1914-1977), um jornalista
autodidata ligado aos partidos da esquerda. Lacerda sonhava com altos voos e
elevadas posições e era o mais ferrenho inimigo político de Juscelino Kubitschek.
Do Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro, antiga residência da princesa Isabel e
do Conde d’Eu, Carlos Lacerda disparou um ataque verbal no uso de sua notável
oratória: “Juscelino Kubitschek não pode ser candidato. Se candidato, não pode ser
eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Sem tomar posse, não pode governar”
(BIAL, 2004, p. 198) O homem era uma autêntica máquina na verbalização de seus
afinados discursos quando o assunto estava ligado ao inimigo político. De pouca
sorte e, semelhante a um sonho sonhado e uma névoa impalpável, tudo parecia
castigo dos deuses pelo seu muito falar. No andar da carruagem em busca do
poder, Lacerda teve os direitos políticos cassados pelo Regime Militar, morrendo no
Rio de Janeiro aos 63 anos, vítima fatal de um infarto no miocárdio. ”A confiança é
silenciosa, a arrogância é espalhafatosa”. Esse é o filosofar do empreendedor Silas
Pinto do Amaral, um paulista radicado em Orlando, Flórida.
Desafios e avanços
IBAD - Instituto Bíblico das Assembleias de Deus, fundado em 1958 pelo Pr. João Kolenda
Lemos, brasileiro, descendente de alemães. Sua esposa, Ruth Doris Lemos - falecida em
2009 - pastora assembleiana, é norte-americana. Hoje, são considerados heróis, mas,
durante anos, foram tratados como desviados, rebeldes e não foram excluídos da AD
porque, embora no Brasil, permaneceram filiados à AD nos EUA [...]. Durante décadas,
seminários foram tratados pejorativamente como Fábricas de Pastores e rejeitados por irem
contra a tradição da Assembleia, e porque essa igreja nasceu e cresceu sem a existência
deles. (ALENCAR, 2010, p. 92).
Na Ata da 9a Sessão da 18a Convenção em Santo André, em 1966, o pr. Anselmo Silvestre,
de Belo Horizonte, se posicionou contra a proposta de criação de seminários, que ele chama
de Fábrica de Pastores, pelo perigo de alguns ficarem com as cabeças cheias e o coração
vazio. (ALENCAR, 2010, p. 92).
O culto que oficialmente deu início ao movimento foi realizado no dia três de março de
1956, em São Paulo, na Vila Barreto, bairro de Pirituba. Daí em diante trabalhos em
vários locais se iniciaram simultaneamente. [...] Somente em 1974 seria oficializada a
denominação de Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo. (MELLO, 2006, p.
36).
Para livrar-se de não poucas perseguições políticas das quais era alvo
certeiro e continuar suas atividades (apesar das ferrenhas acusações de
charlatanismo e de explorador dos incautos), Manoel de Mello submeteu-se a vários
mandados de prisão. “As acusações de curandeirismo e charlatanismo tinham sido,
até então, os motivos das suas várias detenções, que somadas chegaram a 27 no
decorrer de sua vida” (MELLO, 2006, p. 83). Como já mencionado, as ameaças e
prisões nunca o calaram ou mudaram o seu foco. Diante de prisões e demoníacas
perseguições, filiou-se ao Conselho Mundial de Igrejas em 1969. Para a época
abusiva vivenciada pela nação brasileira, essa foi uma sábia decisão. Manoel de
Mello buscou e encontrou um forte respaldo no exterior que se refletiu pelos quatro
cantos. O Brasil Para Cristo foi a primeira igreja pentecostal brasileira a filiar-se ao
politizado CMI, vindo a desligar-se dessa entidade ecumênica apenas no crepúsculo
do Regime Militar, no ano de 1986, sete anos após a inauguração do seu
megatemplo, na época o maior do mundo evangélico, um grande monumento
construído no bairro da Pompeia, em São Paulo.
Manoel de Mello foi um homem adornado de extrema coragem. Era também
controvertido e sábio em suas decisões; sem dúvida, nasceu e viveu à frente do seu
tempo e do espaço em que habitava. Mesmo contundente e por demais provocador,
encontrava resposta para cada pergunta. Suas falas traziam efeitos assustadores e
triunfalistas.
159
Faço aqui um trocadilho da antiga multinacional Minnesota Mining and Manufacturing Company,
empresa americana fundada em 1902 na Região dos Grandes Lagos. Tal como o 3M pentecostal, a
empresa americana foi quase sucateada até 1914, quando ganhou vulto internacional. Sua primeira
filial no exterior foi no Brasil em 1946, edifício instalado ao lado da Via Anhanguera, Parque Industrial
de Campinas, São Paulo.
Roma deu ao mundo a idolatria; a Rússia, os terrores do comunismo; os Estados
Unidos, o demônio do capitalismo; nós, brasileiros, nação pobre, daremos ao mundo o
evangelho [...] Enquanto nós convertemos um milhão, o diabo converte dez milhões
através da fome, da miséria, do militarismo, da ditadura. (CÉSAR, 2000, p. 137).
O recado era sem rodeio em sua típica linguagem nordestina. Esse cabra
macho não se dobrou diante das ameças de políticos casados com a corrupção e
amantes das mentiras. Outro nordestino, o jornalista Ivan Santos, nascido na cidade
de Mar Vermelho, Alagoas, eleva o grau da dura realidade em que o passado ainda
não se encontrou com o presente para um cordial cumprimento:
160
Naquela época (1979), D. Evaristo Arns, juntamente com o reverendo Jaime Nelson Wright (1927-
1999), pastor presbiteriano nascido em Curitiba, já estava à frente de uma equipe que estava a
levantar os dados que culminaram na publicação, em 1985, do livro Brasil Nunca Mais. De Genebra,
Suiça, pouco antes da publicação desse livro, o Dr. Philip Portter redigiu um empolgante prefácio em
nome do Conselho Mundial de Igrejas (ARNS, 2001, p. 15-19). Hoje, há muitas literaturas e
documentos embasados nas pesquisas de o Brasil Nunca Mais.
O grande galpão161 localizado no bairro da Pompeia foi o primeiro
megatemplo construído no Brasil. Aliás, foi a construção do maior templo de uma
igreja protestante/evangélica em todo o planeta. Em uma época da total minoria dos
fanáticos crentes, coube ao missionário Manoel de Melo ser o primeiro líder
protestante/pentecostal brasileiro a ter sua foto estampada na capa da Revista Veja,
na ediçao de 7 de outubro de 1981 com o tema Pentecostais: o Milagre da
Multiplicação.
161
Expressão proferida pelo próprio missionário Manoel de Mello no decorrer de um casual encontro
que tive com ele, em 1983, no estacionamento de uma churrascaria que existia a poucos metros do
templo na Pompeia. Disse-me: “Esse rústico galpão é para agasalhar o povo do frio e temporadas
chuvosas; foi edificado para servir”. Anos depois, diria Josimar Salum, o mineiro de Cisneiros, com
relação a esses galpões:
Sabem que são apenas meros edifícios para servirem aos homens, aos pobres, as crianças, enfim
a todos, pois servindo a todos eles verdadeiramente estão servindo a Deus. [...] o que é
importante mesmo são apenas as pedras vivas do edifício de Deus, que cresce como santuário
santo para alcançar toda a sua cidade. (SALUM, s/d, p. 145).
chefe. Nas últimas décadas, esse título entrou em decadência; sua atração foi
superada por algo mais alvissareiro. Em nossos dias, a moda saltou para o
antropológico e imaginário degrau superior, e os mandatários do sagrado são os
apóstolos, os bispos, os primazes, os querubins, os arciprestes, outros imaginários
e pomposos títulos! Alguns desses títulos são até bíblicos, porém exageradamente
utilizados com a pura ostentação de poder e autoridade, e muitos foram literalmente
usurpados do clero romano também dos ortodoxos gregos.
Quando o missionário Manoel de Mello inaugurou o grande templo na
Pompeia, zona oeste paulistana, David Miranda comprou um velho e abandonado
prédio onde outrora funcionava uma fábrica na Baixada do Glicério, no coração do
centro antigo de São Paulo. A fábrica abandonada foi transformada num amplo
salão com espaço para 60 mil pessoas. O imenso galpão foi transformado em
templo e sede internacional da Igreja Deus é Amor. A inauguração do Templo da
Glória de Deus, como foi alcunhado, recebeu uma concorrida multidão, com a
participação de imensas caravanas procedentes de todos os cantos do Brasil e do
exterior. Esse ato de sacramentalização aconteceu dia 1 o de janeiro de 2004,
quando David Miranda estava com 69 anos e continuava a sonhar com o vasto
crescimento e a expansão internacional da Deus é Amor.
Segundo informações do site da Igreja Pentecostal Deus é Amor, hoje a
denominação tem 953.652 membros que frequentam os 22.305 templos espalhados
por todos os estados brasileiros. Sem contar as representações em 136 diferentes
nações em todos os continentes, onde há outros milhares de membros. “Sua sede
mundial é considerada um dos maiores templos evangélicos do mundo, com
capacidade para 60 mil pessoas” (Informação disponível em: <www.ipda.com.br>.
Acesso em: 24 jun. 2016). A Deus é Amor nunca fez uso da televisão; aliás, prega
contra isso - aos membros é vedado assistir e mesmo possuir em casa o aparelho.
Desde o início, ela tem largamente usado as ondas sonoras do rádio na propagação
dos seus ensinamentos. Em nossos dias, essa igreja controla majoritariamente a
Rede Universo de Rádio, empresa com dezenas de emissoras espalhadas por todo
o Brasil.
Foi nos meados dos anos 80, período do apogeu de sua expansão nacional,
que a Deus é Amor realizou, nas redondezas da cidade de São Paulo, o maior
batismo por imersão até então jamais imaginado em toda a história
evangélica/protestante do Brasil. Em um domingo, três mil pessoas desceram às
águas batismais, igualando o fenômeno do dia de Pentecostes em Jerusalém,
relatado em Atos 2:41.
162
Acompanhando a família Watson em 1971, estive no recém-inaugurado Templo de Nova Vida, em
Botafogo, para ouvir David du Plessis (1905-1987). O Dr. David du Plessis, cidadão branco natural da
África do Sul, havia sido professor do pastor Bill Watson, quando estudante no Lee College em
Cleveland, Tennessee.
moderno, especialmente a prática e aplicação da teologia da prosperidade, o carro-
forte do neopentecostalismo.
O bispo Roberto tem definitivamente o seu nome entre os pioneiros
protestantes/pentecostais na utilização da televisão para a evangelização em massa
no Brasil. Como nessa terra mesmo os melhores e bem-dotados não são
permanentes, o canadense ele foi retirado desse mundo aos 62 anos, não resistindo
a um fulminante ataque cardíaco ocorrido no sábado, 13 de novembro de 1993.
Faleceu em Charlotte, Carolina do Norte, cidade natal do internacionalmente
conhecido William Franklin “Billy” Graham Junior. (1918-2018), também sede da
Associação Evangelística que leva o seu nome.
A festa do Céu levou 300 mil pessoas à enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro, mas
quem não pôde ir, acompanhou tudo ao vivo pela RIT; quem foi enfrentou o sol e o forte
calor para louvar a Deus, orar e ouvir a mensagem do missionário R. R. Soares.
(Revista Show da Fé, ano 6. n. 80. p. 45).
No uso de um comentário histórico, a mesma revista publica a seguinte
informação em destaque na página 49, sob o título Odisseia da Graça.
Essa missionária que grudou nos batistas, na região de Belo Horizonte, foi a
fagulha que incendiaria a pátria brasileira. Uma simples mulher que possuía uma
profunda experiência de vida cristã e deixou ser levada sob a unção do Espírito
Santo. Escreveu vários livros e editou folhetos, visando sensibilizar a Igreja
brasileira para uma renovação espiritual. Ela não viu os resultados, porém todos os
seus esforços não foram em vão. O avivamento espiritual tem varrido o Brasil por
todos os cantos. Avivamento que resultou em contínuas mudanças de vidas e que,
direta ou indiretamente, se expandiu por diferentes denominações espalhadas pelas
plagas desse imenso Brasil. Na segunda-feira, 20 de maio de 1991, morando em
Canton, Mississippi, a missionária Rosalee Mills Appleby (1895-1991) também ouviu
a chamada lá de cima e partiu aos 96 anos.
O já identificado professor João Bezerra Chaves não deixa de alfinetar a
eminente missionária provinda do Sul dos Estados Unidos. Sua natural geografia
estava condicionada no imaginar político e racista dos confederados, herança de
berço. Pairavam pelo condado onde ela nasceu as lendárias narrações levadas a
cabo pelos sagrados líderes do movimento separatista para justificar guerra. Chaves
vai diretamente no cerne da questão:
Por um longo período de quase dez anos, os batistas renovados foram sendo
rejeitados e fortemente criticados por uma gama de conservadores tradicionais.
Como já se previa, por razões históricas, chegou o instante em que a bomba
explodiu. Igrejas, pastores e membros foram literalmente expulsos da Convenção
Batista Brasileira. Essa decisão mais política que espiritual deu ensejo à criação de
um grupo de apoio solidário entre os excluídos do meio conservador e de vínculo
histórico. Mantendo a mesma regra de fé batista, foi criada uma nova organização
administrativa na qual foi acrescentada a experiência da renovação espiritual em
resultado da ação direta do Espírito Santo.
Nessa visão de unidade e solidariedade de um grupo minoritário, foi criada no
templo da Lagoinha, em Belo Horizonte, dia 16 de setembro de 1967, a Convenção
Batista Nacional, atividade realizada sob a presidência do pastor Enéas Tognini
(1914-2015). Por uma questão estratégica, busca de centralização geográfica e
aproximação do poder político nacional, a sede foi transferida da capital mineira
para Brasília, a Capital Federal.
Renovação Espiritual: como a palavra bem expressa, é aproveitar o que existe. Segundo
o pastor José Rego do Nascimento: Renovação Espiritual é uma mensagem bíblica no
poder do Espírito para sacudir as igrejas que existem, mas que dormem embaladas pelo
comodismo e pela inatividade. (ALMEIDA, R., 2014, p. 523).
Grupos menores
Um dos fatos surpreendentes da renovação foi que ele chegou às igrejas protestantes
tradicionais e sacramentais antes de eclodir nas denominações fundamentalistas e
evangelicais. Começando entre os episcopais, em 1960, o movimento não tardou a
irromper entre os presbiterianos, luteranos e, o mais surpreendente, entre os católicos
romanos. Algumas das igrejas protestantes mais tradicionais haviam tido conflitos com
os pentecostais, no início do século, por isso armaram também suas defesas contra os
neopentecostais quando o movimento começou a tomar corpo depois de 1970. (SYNAN,
2009, p. 245).
Resultados
E acontecerá, depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e
vossas filhas profetizaraão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até
sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias.
Os católicos carismáticos
Este evento vem sendo, geralmente, aceito como o marco inicial da Renovação
Carismática da Igreja Católica, por ter sido o primeiro em que um grupo de fiéis católicos
experimentou o batismo no Espírito Santo e os dons carismáticos. Conquanto, já
existissem católicos, assim batizados anteriormente, aquele retiro veio a ser o ponto de
partida de um amplo movimento da Renovação Carismática, cuja abrangência estendeu-
se pelos Estados Unidos e por todo o mundo. (MANSFIELD, 2003, p. 5).
[...] Atendendo à sugestão da Irmã Elena, o Papa Leão XIII invocou o Espírito Santo em
1o de janeiro de 1901 - primeiro dia do primeiro ano do século vinte. Ele mesmo cantou o
hino Veni, Creator Spiritus - Vinde, Espírito Criador - em nome da Igreja. Naquele
mesmo dia, ocorreu um acontecimento na cidade de Topeka, Estado de Kansas, que
marcou a revivescência dos poderes e dos dons do Espírito Santo, num movimento que
se estendeu por todo o país e por todo o mundo. Na esquina da 17 a rua daquela cidade
com a Stone Avenue, onde hoje está situada a igreja católica do Imaculado Coração de
Maria, ficava a mansão apelidada de Loucura do Stone, uma portentosa construção de
três pavimentos e trinta quartos, cujo dono, Erastus Stone, depois de edificá-la, chegou
à conclusão de que não tinha dinheiro para viver nela. Em setembro de 1900, a mansão
passou a ser a sede de Colégio de Betel e da Escola da Bíblia. O Reverendo Charles
Fox Parhan e seus estudantes dedicavam-se, ali, à oração e ao estudo da palavra de
Deus, concernente ao batismo no Espírito Santo. A mais alta das três torres da mansão
foi designada para ser a torre da oração, e logo organizou-se uma maratona de oração
que durou sete dias seguidos da semana, com vinte e quatro horas ininterruptas de
vigília: durante todo esse tempo, os jovens intercessores estiveram pedindo a Deus para
batizá-los, a todos e a cada um, no Espírito Santo. Às onze horas da noite, de 1 o de
janeiro de 1901, uma das estudantes chamada Agnes Ozman pediu ao Reverendo
Parham que impusse as mãos sobre a sua cabeça e orasse para que ela recebesse o
batismo no Espírito Santo. Foi isto, precisamente, o que aconteceu. Agnes começou a
falar em línguas e, nos dias subsequentes, outras pessoas presentes, inclusive, o
reverendo Parham passaram pela mesma experiência. Este evento é, geralmente,
considerado como o início histórico do Pentecostalismo. (MANSFIELD, 2003, p. 8, 9).
Está muito bem detalhado que não foram as encomendadas rezas ou jejuns
do papa Leão XIII que fizeram as coisas acontecerem. Longe desse pensamento!
Enquanto no ano de 1886 a freira Elena Guerra buscava na Itália a unção do
Espírito Santo para os católicos e demais cristãos em todo o mundo, no Condado
Monroe, Tennessee, centro dos Estados Unidos, um pastor batista procurava
impregnar os membros de sua congregação com uma vida de santidade,
comunhão, simplicidade e pureza de alma. “Las raíces de la fé pentecostal se
encuentra en el avivamiento de santidad que apareció durante la segunda mitad del
siglo 19. En la realidad, el énfasis pentecostal es simplemente una extensión de los
primeros conceptos de santidad” (CONN, 1995, p. 29). Estudiosos e não poucos
pesquisadores afirmam que tudo aconteceu na noite de um escaldante verão
americano, quinta-feira, 19 de agosto de 1886. Richard Green Spurling, um pastor
com 72 anos,164 rompeu com a igreja batista e organizou a União Cristã, nome que
perdurou até 15 de maio de 1902, quando foi mudado para Igreja da Santidade de
Camp Creek. Esse mesmo grupo em 1907, no decorrer de sua segunda Assembleia
Geral, optou oficialmente pelo nome de Igreja de Deus.165
164
Para aquela época, a média de vida era muito baixa. Uma pessoa com 72 anos era muito bem
considerada de avançada idade. Em outras palavras, Spurling era um homem muito velho!
165
O Dr. Russel Champlin afirma que, somente nos Estados Unidos, há mais de duzentas
denominações registradas com o nome de Igreja de Deus (CHAMPLIN, 1995, v. 3, p. 222). Em abril
de 2018, ouvi que essa estatística americana supera o número mil!
Enquanto a Irmã Elena Guerra rezava freneticamente na Itália e sonhava com
uma unção pentecostal em todo o mundo, algo sobrenatural já estava ocorrendo em
diferentes lugares do planeta, notadamente nos Estados Unidos.
Deus atendeu à oração fervorosa daqueles que clamaram por ele noite e dia. Apesar da
fraca resposta dos católicos ao chamado do Papa Leão XIII pela oração contínua ao
Espírito Santo, no início deste século houve pessoas crentes, de outras denominações,
que estavam humildemente procurando e alegremente recebendo a emanação do
Espírito de Deus e os seus dons carismáticos. [...] É bom não nos esquecermos de que,
para muitos pentecostais e evangélicos nós somos vistos, na melhor hipótese, como
uma instituição morta e, na pior, como o anticristo. (MANSFIELD, 2003, p. 9, 10, 27).
David du Plessis (1905-1987), aquele que fui ouvir na Igreja de Nova Vida em
Botafogo, no ano de 1971, cidadão branco, natural da África do Sul, que faleceu em
2 de fevereiro de 1987, cinco dias antes de completar 82 anos, foi o primeiro
pentecostal a ter acesso ao Conselho Mundial de Igrejas e a ser nele ouvido. Pela
sua livre caminhada e atuação nos meios ecumênicos, ele recebeu a alcunha de O
Senhor Pentecoste.
Sábado, 18 de fevereiro de 1967, foi outro dia de Pentecoste, foi escolha de Deus esse
dia histórico para a Igreja Católica Romana. Naquela noite, o Espírito Santo desceu
sobre um grupo de católicos romanos numa casa retirada ao norte de Pittsburgh, na
Pensilvânia. A maioria era de estudantes da Universidade de Duquesne. Eles não
haviam planejado nenhum culto na capela, e sim uma festa de aniversário de um dos
participantes daquele retiro de fim de semana, e ali eles depararam com a tangível
presença do Espírito. Alguns riam e choravam, alguns caíram prostrados ao chão, e
todos falaram em línguas. Eles oraram e cantaram até as primeiras horas da manhã.
Esse foi o nascimento da renovação carismática na Igreja Católica Romana. [...] Afinal,
quem imaginaria que um movimento oriundo do avivalismo protestante e vinculado ao
pentecostalismo encontraria lugar para se desenvolver na Igreja Católica Romana?
(SYNAN, 2009, p. 288, 289).
Preparando-nos para esse encontro, lemos os Atos dos Apóstolos e um livro intitulado A
Cruz e o Punhal, de autoria de David Wilkerson. Eu fiquei, particularmente,
impressionada pelo conhecimento do poder do Espírito Santo e, pelo vigor e a coragem
com que os apóstolos foram capazes de espalhar a Boa Nova, após o Pentecostes. Eu
supunha, naturalmente, que o fim de semana me seria proveitoso, mas devo admitir que
nunca poderia supor que viria a transformar a minha vida [...]. Eu fui atinginda por uma
forte certeza de que Deus é real e que me ama. Orações que eu nunca tinha tido
coragem de proferir em voz alta, saltavam dos meus lábios” (MANSFIELD, 2003, p. 3).
E há de ser que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e
vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão
visões. E também sobre os servos e sobre as servas, naqueles dias, derramarei o meu
Espírito (Joel 2:28-29).
Conclusão
Alguns, efetivamente, proclamam a Cristo por inveja e profia; outros, porém, o fazem de
boa vontade; estes, por amor, sabendo que estou incumbido da defesa do evangelho;
aqueles, contudo, pregam a Cristo, por discórdia, insinceramente, julgando suscitar
tribulação às minhas cadeias. Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer
modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me
regozijo, sim, sempre me regozijarei. (Filipenses 1:15-18).
Não há como narrar especialmente a história do protestantismo no Brasil.
Essa história ainda não foi contada porque não chegou ao seu final. É uma história
inacabada! A cada dia, há novas e grandes experiências dentro dessa inesgotável
área da liturgia cristã.
As experiências na Shearer School, em 1896, e os acontecimentos em
Topeka, em janeiro de 1901, formaram uma força espiritual redundando no perene
derramar do Espírito Santo que alcançou os negros, os latinos e os brancos pobres
que buscavam uma experiência com o Sagrado no número 312 da Azusa Street em
Los Angeles no ano de 1906. Dos melhores dos cálculos realizados pelos
pesquisadores e experts na área, imagina-se que haja cerca de meio milhão de
pentecostais em todo o mundo. Se a cifra estiver correta, cerca de 3% dessa
multidão encontra-se no Brasil! Expressando-se sobre esse universo religioso em
contínua fase de crescimento, a Revista Veja, edição número 1.758, de 3 de julho
de 2002, página 90, declara: “Hoje, há mais pentecostais no mundo do que
anglicanos, batistas, luteranos e presbiterianos somados”. Uma cifra retumbante
que impressiona os pesquisadores sociais em todo o planeta.
Epílogo
A Igreja Católica Apostólica Romana que hoje conhecemos está muito longe
dos fanáticos seguidores do Caminho mencionado no livro dos Atos dos Apóstolos.
Aliás, no mundo religioso em que estamos inseridos, há uma forte inversão de
valores em relação ao sagrado. A própria igreja romana é também uma verdadeira
peneira. Dentro do romanismo, há dezenas de ordens, mas raríssimas são aquelas
que trabalham em harmonia em seus propósitos. Em tese, todas obedecem às
regras do papa, o chefe vitalício da Igreja e governo absoluto do Vaticano, também
considerado o único infalível em suas decisões! Um contraste inserido por São
Paulo em sua carta enviada à comunidade cristã em Roma: “Seja Deus verdadeiro,
e mentiroso, todo homem” (Romanos 3:4). Que cada leitor tire a sua própria
conclusão! Sou apenas um historiador e não faço dos fatos uma questão
apologética; aliás, nunca foi essa a minha intenção.
O discurso papal, que por séculos vinha se arrastando, finalmente foi
sacramentado trinta e um anos antes de findar o século XIX, no decorrer do
Concílio Vaticano I.
Nessa exacerbada busca para manter a sua clientela sagrada e tudo controlar
dentro da disputa do mercado, existem algumas linhas mais extravagantes, outras
nem tanto. Há uma imensa lista de nomes dos controladores do sagrado. Cito
somente algumas das mais conhecidas pelo público consumidor: Igreja Católica
Ortodoxa Grega, Igreja Cóptica, Igreja Católica Armênia, Igreja Católica Lusitânia,
Igreja Católica Nacional Americana, Igreja Católica Apostólica Brasileira, Igreja
Ortodoxa Oriental. Em detrimento dos evangélicos protestantes, há também igrejas
católicas para os variados gostos e sabores da sua freguesia!
Com o passar dos anos, boa parte das multifacetas do cristianismo tem
buscado conhecer e andar em uma dimensão espiritual mais elevada; afinal, tem
que se adequar aos interesses da clientela ou mudar de ramo. Nessa busca de
satisfazer o freguês desorientado, muitos estão regressando aos acontecimentos da
manhã de Pentecostes em Jerusalém. Em resultado dessa busca, fez-se a
pulverização que tem gerado a expansão das diferentes facções sob o manto
sagrado de Cristo Jesus.
Nas páginas do Antigo Testamento, essa festa é chamada de Festa das Semanas,
fazendo alusão às diversas semanas que se tinham de passar entre a Páscoa e essa
observância. Passavam-se sete semanas entre as duas ocorrências, calculadas a
começar do primeiro dia após o primeiro sábado da Páscoa. Os judeus, que falavam o
grego chamavam a essa festa de Pentecoste, por ser observada no quinquagésimo dia
após o tempo que acabamos de mencionar. Ambas designações aparecem em Tobias
2:1. A Páscoa estava associada à colheita da cevada. O pentecoste, pois, assinalava o
término da colheita da cevada, que começava quando a foice era pela primeira vez
lançada no grão, Deuteronômio 16:9. Também se considerava o começo dessa colheita
ao serem movidos os molhos, Levítico 23:11-12. Já a festa de Pentecoste marcava a
colheita do trigo, e agia como espécie de santificação de todo o período da colheita, da
páscoa ao Pentecoste” (CHAMPLIN, 1982, v. 3, p. 43).
rocha lançada no mar”. [...] Wilbur Jackson, pastor da Igreja do Nazareno de Lockland,
em Cincinnati, foi desligado da denominação, em 1971, depois que sua experiência
pentecostal tornou-se pública. Ele ficou conhecido como um líder que desejava ver a
renovação carismática na igreja. Em 1979, num encontro de ministros de convicções
semelhantes às suas, Jackson implantou a Comunhão Carismática Holiness-Wesleyana,
cujo objetivo era atender a todos os que haviam sido rejeitados pela igreja. (SYNAN,
2009, p. 281, 282, 285).166
Os neopentecostais
166
Para os interessados sobre o voltar atrás da Igreja do Nazareno, recomendo a leitura do livro “O
século do Espírito Santo”, páginas 281 a 287, nas quais o autor apresenta uma lista dos
acontecimentos com fartas referências documentais. Apenas a título de curiosidade sobre fatos
históricos.
O neopentecostalismo é uma vertente que minou o conservadorismo do
movimento pentecostal clássico, visto como algo extremamente liberal aos olhos
dos históricos. Ambos os movimentos surgiram nos Estados Unidos e ganharam
asas, espalhando-se por todo o planeta. Esse avanço e crescimento têm levado os
tradicionais históricos e os pentecostais clássicos a rever suas estratégias e
comportamentos doutrinários, incluindo os usos e costumes.
O poder econômico, diante de líderes carismáticos e centralizadores, tem sido
a divisa ou o carro-forte dos neopentecostais, que colocam no mercado a teoria do
positivismo mesclado com a fé. Essa dicotomia faz do cliente o mercador que pauta
sua vida em um prisma de vitória e uma contínua declaração de vencedor. A maioria
dos neopentecostais foge da regra da visão holiness na demonstração externa de
santidade. O batismo com o Espírito Santo é válido e deve ser buscado, porém o
forte é depender da espiritualidade do líder maior. Pelas mãos desse líder, que pode
ser um apóstolo, bispo, missionário ou outro pomposo título clerical, passa a busca
do sagrado!
Segundo as pesquisas do sociólogo Gedeon Alencar, um pentecostal clássi co
que sabe como ninguém alfinetar e explicar com o ar da capacidade intelectual e
vivência nos arraiais dos evangélicos.
Os renovados
Esse conceito sempre sofre a duas interpretações: da parte daqueles que se satisfazem
com seus hábitos e maneira de viver, os quais resistem a qualquer tentativa de
mudança, com frequência rotulando-a de heresia ou fanatismo; ou da parte daqueles
que anseiam tanto por renovar as coisas que terminam na arrogância da superioridade e
do exclusivismo, pensando que voltaram aos dias do Novo Testamento ou conseguiram
realizar algum feito extraordinário. Quase todos os movimentos de renovação enfatizam
o lado místico, ao mesmo tempo em que negam o valor do intelecto [...]. A própria
regeneração, efetuada pelo Espírito Santo, é a maior de todas as renovações. No
entanto, hodiernamente, o termo é usado por muitos para indicar os reavivamentos
religiosos e os movimentos de igrejas tradicionais que aceitam a bênção carismática. A
regeneração é obra do Espírito de Deus, e a renovação mental é efetuada pelo mesmo
Espírito, com a cooperação consciente e esclarecida do crente. (CHAMPLIN, 1995, v. 5,
p. 660).
Os carismáticos
167
O Movimento de Renovação Mundial, também conhecido como neopentecostalismo, enfatiza os
dons carismáticos, ou dons do Espírito Santo, o fundamentalismo teológico e canções evocativas. Os
protestantes e os pentecostais clássicos têm sido muitas vezes cautelosos. Na Igreja Católica
Romana, é um movimento de leigos e reconhecido pelo Vaticano. O vocábulo foi cunhado por H.
Bredesen e J. Stone em 1967 para descrever uma crescente tendência que mais tarde se
desenvolveu em três setores: nas igrejas protestantes a partir de 1950, na Igreja Católica Romana
em 1967 e nas igrejas independentes, no final de 1960. (Tradução de Carlos Boaventura Jr.).
catolicismo. O seu crescimento chegou até Roma quando recebeu, em 1975, a
bênção proferida por Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini (1897-1978),
monsenhor que, em 1963, tornou-se o conhecido papa Paulo VI, o qual foi o
principal inquilino do Palácio do Vaticano durante 15 anos. Paulo VI foi o primeiro
papa a viajar de avião e também o primeiro da história a visitar os Estados Unidos,
numa viagem de um só dia ocorrida na segunda-feira, 4 de outubro de 1965. Na
qualidade de chefe de Estado, foi recebido no aeroporto internacional John F.
Kennedy, na região metropolitana de New York, pelo presidente Lyndon B. Johnson
(1908-1973).
Posfácio
Perto do fim
APÊNDICE
A. Bill Elwood Watson
Introdução
Um pouco da história
Bill Elwood Watson, 169 filho de Walter Watson e sua esposa Cora Alice Taylor
Watson. Bill nasceu na quinta-feira, 28 de agosto de 1930, em uma microfazenda
nos arredores de Honaker, pequena cidade a 570 metros acima do nível do mar e
localizada ao sul do estado da Virginia. De acordo com os históricos arquivos
mantidos pela United States Census Bureau, no ano de 1930, em Honaker, havia
somente 710 pessoas. Todos os habitantes do município de 1,4 quilômetro
168
Woodrow Wilson ocupou a presidência de 1913 a 1921, período da Primeira Grande Guerra
Mundial. Foi empossado 50 anos após a Proclamação de Emancipação, assinada por Abraham
Lincoln (1809-1865), decreto presidencial que entrou em vigor dia 1º de janeiro de 1863. Wilson era
um presbiteriano mais calvinista que o próprio João Calvino (1509-1564). Pouco antes de sua posse
na Casa Branca, um aliado político foi lhe pedir apadrinhados favores. A resposta foi britânicamente
seca e sem rodeios. A negativa seguiu acompanhada de uma garantida predestinação: “Eu não lhe
devo nada [...] Não importa se você fez muito ou pouco, lembre-se que Deus determinou que eu seja
o próximo presidente dos Estados Unidos” (DAVIDSON, 2016, p. 223).
169
Nas muitas andanças que fizemos juntos por 12 países (Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru,
Paraguai, Venezuela, Portugal, Espanha, Puerto Rico, México e Estados Unidos), quando
passávamos longas horas a conversar, mencionou-me muito sobre sua vida, peripécias e vitórias.
Éramos amigos e tive por ele um grande respeito e profunda admiração. Irmão Bill Watson, como
apreciava ser tratado, contou-me várias histórias pessoais de sua infância e juventude, entre elas,
que o médico que assistiu seu nascimento, por faltar dinheiro circulante, recebeu em pagamento uma
bezerra! Em tempos de crise, surge a lei da permuta, conhecida pelo nome de escambo.
quadrado eram brancos e membros de igrejas protestantes, com predominância dos
batistas. (NOTA DE RODAPÉ: Juntamente com Rodrigo Vilas-Boa Oliveira, estive
em Honaker, Virgínia, na quinta-feira, 25 de março de 2021, um dia chuvoso. Ainda
uma pequena comunidade após as florestas que formam em vota da cordilheira
Apalaches. Chegamos até a First Baptist Church of Honaker. Local onde a família
Watson participava assiduamente de todas as atividades. O atual edifício é novo,
entretanto mantém na entrada da área o velho sino, algo histórico e remonta mais
de 100 anos. FINAL DA NOTA). Bill Watson veio ao mundo exatamente dez meses
e quatro dias após o início da Grande Depressão Econômica que produziu a maior
quebradeira na história da Maiúscula América. Os sinais já estavam visíveis em
vários setores comerciais e produtivos, mas estorou em 24 de outubro de 1929,
evento registrado como o crash que gerou o Colapso da Bolsa de Valores de New
York. Tal desastre econômico pejorativamente foi alcunhado de Quinta-feira Negra,
data do início da mais longa e amarga recessão econômica já ocorrida nos Estados
Unidos, que, a reboque, foi arrastando várias nações em todos os continentes,
produzindo um verdadeiro efeito dominó.
Novas aventuras
Bombardeiros japoneses afundaram oito navios de guerra, mataram 2,4 mil homens e
danificaram trezentas aeronaves. Roosevelt proclamou o dia como uma data que viverá
na infâmia, e, quatro dias depois, Hitler e Mussolini declararam guerra aos Estados
Unidos. Os norte-americanos agora travariam a guerra global que outrora tiveram
esperança de evitar. (DAVIDSON, 2016, p. 248, 249).
“Uma data que viverá na infâmia”. Meia duzia de palavras que imortalizou o
discurso de oito minutos do advogado Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), o 32º
Presidente dos Estados Unidos, diante de um alarmado Congresso em Washington
e uma apreensiva população.170 Em resposta aos ataques dos Japoneses contra a
Base da Marinha Americana em Pearl Harbor, Roosevelt, sob olhares de jornalistas,
assessores, políticos e secretários do Estado, assinou na segunda-feira, 8 de
dezembro de 1941, a Declaração de Guerra contra a Aliança do Eixo (sob liderança
da Alemanha, da Itália e do Japão) e a favor dos Aliados, incluíndo o Brasil, que foi
empurrado para as áreas de conflitos e fez muito bem os deveres de casa. Basta
ver a heroica tomada de Monte Castello na Itália pela FEB (Força Expedicionária
Brasileira).
Na cidade de Tóquio, o filho de um japonês formado em Boston sentia-se
covardemente incomodado após uma ríspida decisão de acordar o gigante!
170
Roosevelt, de fé episcopal, foi um um político filiado ao Partido Democrata e empossado a 4 de
março de 1933. Suas habilidades políticas lhe garantiram mandatos com eleições subsequentes
durante 12 anos. Seu último mandato findou com sua morte em 12 de abril de 1945. Apesar de ser
um entusiasta, não viveu o suficiente para ver o final da Segunda Guerra Mundial. Foi substituído
pelo vice-presidente, o batista Harry S. Truman (1884-1972), fazendeiro e militar democrata que
continuou e derrotou com os Aliados a força do Eixo. Franklin Delano Roosevelt esteve no Brasil com
o ditador Getúlio Vargas (1882-1954) na Conferência de Natal, Rio Grande Norte, em janeiro de
1943. Por sua vez, Harry Truman esteve com o presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) em
setembro de 1947. O casal Truman permaneceu por uma semana no Brasil. Um mês depois, em 9
de outubro, o general Dutra, o 16º Presidente do Brasil, ficou viúvo.
As duas gigantescas e mortíferas bombas Little Boy e Fat Man foram
suficientes para obrigar o Japão a levantar um pedaço de pano branco, símbolo de
rendição. Passaram somente 27 dias e, a bordo do USS Missouri, em 2 de
setembro de 1945, o Japão, arrasado, despedaçado e humilhado, assinou o termo
rendição incondicional. Naquele dia, o mundo suspirou aliviado. Ali estava
terminando os seis longos anos que durou a Segunda Grande Guerra Mundial.
Lembre-se de que Pearl Harbor tornou-se um grito de guerra. Transformou uma das
maiores derrotas dos Estados Unidos em uma razão para vencer. Esta grande derrota
deu força aos Estados Unidos, que logo se transformaram em uma potência mundial.
(KIYOSAKI e LECHTER, 2000, p. 140).
A família Watson, parece sob a ênfase traçada pelo destino, está a chegar em
uma nova paragem (Não esquecer que eram autênticos e conservadores batistas).
Em 1945, Deus os levou para o então desértico e distante Arizona, The Grand
Canyon State, onde predomina o clima árido ou semiárido, um natural antídoto
contra as infecções asmáticas e outros males que afetam o sistema respiratório por
altitudes ou climas. Naquela época, o estado do Arizona, que ainda detém a maior
produção de cobre dos Estados Unidos, não possuía 700 mil habitantes. Devido a
sua grande reserva de cobre, é tambem conhecido pelo cognome de The Copper
State (o estado do cobre). O Arizona era um estado escassamente habitado e,
como tal, gerava um montão de oportunidades e não poucos desafios. Nessa
travessia para o Far-west, Bill Watson estava com 15 anos. Era internamente
revoltado, um adolescente rebelde e praticamente afastado da crença batista.
Mesmo sob constantes questionamentos, continuava acreditando na existência de
Deus, porém esse Ser Supremo parecia-lhe estar muito longe, no dobrar da esquina
de um infinito e utópico local a milhares de anos-luz da terra. Seria por lá o local de
sua habitação? Sabe-se que nem todo raciocínio lógico está perfeitamente correto.
Entretanto, Watson estava muito próximo das palavras de Adoniram Judson (1788-
1850), um missionário protestante, que, em seus piores momentos, sob o efeito de
uma profunda depressão, chegou muito perto de cometer o suicídio: “Deus é para
mim o Grande Desconhecido; creio nele, mas não consigo encontrá-lo” (TUCKER,
1986, p. 136). Nas turbulências produzidas pelas ameaçadoras ondas no mar da
vida, as águas sempre são monstruosas e jogam-nos de um lado para o outro como
se fôssemos barquinhos construídos com as cascas de sobreiros. Em meio ao
medo, à inquietação e à insegurança, pode-se ouvir a voz do Todo-Poderoso:
“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Salmo 46:10).
Acidente
Ainda muito jovem, Bill Watson, embora sem habilitação, já dirigia tratores,
caminhões e outros maquinários existentes nas fazendas por onde morava com a
família. Era ágil em suas atividades, além de um bem-dotado motorista. Em 1946,
aos 16 anos (agora devidamente habilitado pelo Motor Vehicles Arizona State,
quando recebeu sua Driver License), estava totalmente familiarizado na condução
de diferentes veículos motorizados, não somente de tratores e tantos outros
maquinários existentes nas fazendas do passado.
No Arizona, Cora Alice Taylor Watson encontrou restauração da saúde, e
toda a família passou por uma nova experiência no mundo espiritual, menos o
jovem Bill, que permanecia um tanto arredio. Os Watson sempre foram gratos e
nunca se esqueceram dos excelentes ensinamentos e da comunhão que obtiveram
no seio da igreja batista; aquilo que a mãe ensina filho nenhum esquece! Entretanto,
no caminhar para o Far-West, eles aderiram incondicionalmente ao movimento
pentecostal. Para eles, era algo novo que mudou a rotina do dia a dia e a esfera do
viver com Deus. Esse movimento posteriormente tornou-se Igreja de Deus, com o
seu templo localizado na 44 Street, em Phoenix, onde, por mais de três dezenas de
anos, os Watson foram ovelhas do pastor Hurschel Diffie, uma referência ministerial
na cidade pela sua humildade e por serviços prestados entre os mais carentes dos
carentes. Era um homem muito humano, que transbordava a presença de Deus à
moda antiga dos protestantes americanos.
Transcorria o quente e seco verão do ano de 1946, 171 quando a família
Watson saíu de viagem da Grande-Phoenix com destino ao estado da Califórnia.
Para suportar o infernal calor que, no pico do dia, pode chegar aos 52 graus célsius
e sem a modernidade do ar-condicionado nos veículos, essas jornadas eram
normalmente percorridas no decorrer das noites, período quando o clima fica mais
ameno por aquelas bandas do desértico Far-west americano.
Mesmo nesse amenizar climático da noite, ainda se produzia um calor
abafado e muito acumulado pelo fulgor dos raios solares que são constantes no
decorrer do dia. O tontear do calor noturno, juntando-se ao silêncio dos demais
ocupantes no veículo dirigido por Bill Watson, causou um incontrolável sono que fez
do propício ambiente o seu ninho, e até mesmo o invencível motorista não resistiu.
Foi um pequeno cochilo. Mesmo com as mãos firmes no volante, o pestanejar ou
passar pelas brasas, como se diz em Portugal, foi o suficiente quadro que mudou
para sempre a vida daquele jovem motorista e por pouco a dos demais passageiros.
Apesar de ter os olhos bem abertos, Bill somente acordou com o forte impacto do
carro contra um caminhão que vinha em sentido contrário. Tudo sucedeu com uma
meteórica rapidez. A situação poderia ter sido mais desastrosa. Não houve vítimas
171
Naquele verão do ano de 1946, nasceram três crianças em diferentes estados as quais se
tornaram importantes políticos que marcaram e ainda estão fazendo a história nos acontecimentos
mundiais. O primeiro daquele trio foi Donald John Trump, nascido em berço de ouro na cidade de
New York, dia 14 de junho de 1946. É o excêntrico bilionário filiado ao partido Republicano que, em
2016, aos 70 anos, foi eleito o 45º Presidente. O segundo político em foco é George Walker Bush, o
qual nasceu em New Haven, Connecticut, dia 6 de julho de 1946. Por fim, temos William Jefferson
“Bill” Clinton, nascido na cidade de Hope, Arkansas, dia 19 de agosto de 1946. Bush, ligado ao
partido Republicano, ex-piloto da Guarda Aérea Nacional do Texas, estado onde cresceu e criou seu
curral eleitoral, além de milhões de dólares nos negócios do petróleo e derivados. Clinton é o único
do trio ligado ao partido Democrata e advogado de carreira. Bill Clinton foi o 42º Presidente,
permanecendo no poder de 1993 a 2001. Foi sucedido na Casa Branca por George Bush, o 43º
Presidente, entre 2001 e 2009. Sendo de praxe na política americana, ambos exerceram dois
mandatos presidenciais. Donald Trump foi o 45º Presidente. O seu sonho de mais quatros anos na
Casa Branca foi abortado diante dos resultados do pleito eleitoral da terça-feira, 3 de novembro de
2020!
fatais, porém o jovem condutor foi o mais afetado naquele inesperado embate. Além
de escoriações pelo corpo em resultado ao choque frontal, ele foi violentamente
atingido no seu braço esquerdo, o qual, todo quebrado, ficou ligado ao ombro por
pequenos fragmentos de tendões. As artérias e os vasos por onde circulavam as
correntes sanguíneas que alimentavam o braço foram rompidas. Mesmo assim,
diante desse funesto e lúgubre quadro, o jovem motorista não perdeu o sentido;
contemplava o esvair do sangue que jorrava do seu ombro esquerdo.
Era alta madrugada de uma noite quente em meio a uma estrada que cruzava
partes de um deserto no Arizona. Os pais e demais familiares de Bill, a despeito do
do horror da cena, não entraram em desespero. Naquele deserto e por aquelas
horas, Deus estava ali, e o socorro viria de algum lugar e de alguma forma, embora
todos estivessem cientes de que hospitais e médicos estavam bem distantes
daquele sinistro espaço. Ensanguentado, agora o filho adolescente sofria
alucinações ao pressentir o grau do acidente em que se havia envolvido.
Ajoelharam entre sangue e pedaços do carro. O local estava emoldurado por fortes
angústias e não poucas dores. Desde 1931, já se cantava no Brasil a versão
traduzida por Frida Vingren (1891-1940): “Quando as esperanças desvanecem, o
aflito crente vai orar” (Harpa Cristã, 126).
Peremptoriamente, entregaram a vida de Bill Elwood Watson nas mãos de
Deus. Cheiro e sinais da morte vagueavam pela escuridão naquela desértica região.
De ambos os lados da erma estrada, encontrava-se um caminhão e um carro, dois
veículos danificados, lágrimas silenciosas e um jovem com o braço a cair! A cena
era de horror mesclado de medo; o sinal mais próximo e bem visível era o da morte!
“Esperamos, sem nenhuma esperança” (YANCEY, 2007, p. 37). Porém parece que
do nada, no infinito do deserto de uma estrada sem fim, surge o socorro enviado por
Deus na forma de um amplo e confortável carro conduzido por um amável e
prestativo motorista.
Sem se preocupar com o sangue e o estado físico daquele esbelto e
semidesacordado jovem, aquele motorista transporta-o, seguido de perto pelos pais
Walter e Cora Watson. Até se depararem com o primeiro atendimento hospitalar, foi
uma renhida luta de vida ou morte, mais de morte que de vida! Já no hospital,
localizado a distantes milhas do sinistro local do acidente e sem muitos cuidados
(aliás, não havia tempo, pois a morte estava mais próxima do que os médicos e
enfermeiros de plantão), bolsas de soro e sangue com outros medicamentos
básicos foram aplicados e, em seguida, uma anestesia geral que deixou Bill Watson
totalmente inconsciente. Para a própria equipe médica, o jovem entraria em óbito
em questão de horas não só pelo excesso de perda sanguínea, mas porque uma
hemorragia estava aberta, facilitando a entrada de infecções e outros males
existentes nos ares do deserto e dos vírus hospitalares. Na sala cirúrgica, a equipe
médica não viu outra alternativa senão a rápida utilização do velho e manual bisturi.
Os poucos tendões que sustentavam o moído braço esquerdo daquele jovem foram
decepados. Conscientes de que o paciente morreria em pouco espaço de tempo,
simplesmente amputaram aquele membro do corpo. No local, foram dados alguns
pontos sem muito profissionalismo, com alguns simples curativos; em seguida,
conduziram o adolescente, ainda sob efeito das anestecias, para o quarto pós-
operatório disponível. Era esperar para ver que resultado surgiria! Vida ou morte!
Seus pais e demais familiares estavam alicerçados nas bíblicas promessas de
Deus. Não obstante, a mais infantil leitura dizia o contrário. Na calada da noite,
alojaram-se em um pequeno hotel, onde buscaram descansar até o resplendor
solar. Mal rompeu o matinal brilho do escaldante sol, Cora Alice, que, como de se
esperar, não tinha dormido, correu ao hospital, colocando-se junto à cabeceira do
filho. Não queria ver, entretanto estava ciente de que o arteiro, dinâmico e falante
Bill Watson não possuía mais o braço esquerdo. Sendo mãe, sentiu profundas setas
a lhe penetrar o coração, as quais feriam duramente sua alma, porém manteve uma
inabalável fé em tantas referências contidas na Bíblia. Bill estava sob efeitos de
medicamentos, mas totalmente consciente; podia se mexer, ouvir e falar, embora
sonolento e um tanto alvoraçado. Sua mãe entendeu que o momento e local eram
oportunos. Tomou uma desafiadora coragem e falou abertamente ao filho sobre a
urgente necessidade de uma perfeita reconciliação com Deus e não simplesmente
questionar a razão filosófica da existência divina. Sob lágrimas, dores e angústias,
Bill pede desculpas pelo sono que o venceu enquanto dirigia e promete um novo e
incondicional andar com Deus. Bill Watson não passava de um adolescente; nesse
período estava com somente 16 anos.
Novos horizontes
173
Em maio de 1968, participei da Convenção Regional da Igreja de Deus, realizada no Setor Pedro
Ludovico, na época um periférico e quase abandonado bairro de Goiânia. Recordo-me muito bem do
estudo dirigido pelo Supervisor Bill Watson sobre Malaquias, capítulo primeiro. Entre as várias
informações, relatou as agruras que ele e sua esposa passaram diante da escassez de finanças e do
abuso de alguns endinheirados membros da igreja que lhes ofereciam os alimentos vencidos ou até
mesmo estragados. “Para não jogar no lixo, vamos levar para o pastor!”
174
Naquela época, telefone era um artigo de superluxo, privilégio de que somente alguns poucos
endinheirados podiam desfrutar. As chamadas eram caríssimas, sendo pagas por minuto. Além
disso, havia muitas outras taxas de manutenção e serviços.
Mundiais, em Cleveland, estava ciente que brother Watson se encontrava em São
Paulo, e aquele era o único número de telefone existente para nos contactar.
Ao término da aula, voltamos para casa, falando sobre os assuntos das lições
e dos grandes desafios existentes em São Paulo. Em casa, estava um bilhete do
vizinho dizendo que Bill Watson deveria ligar urgentemente para os Escritórios
Internacionais da Igreja de Deus nos Estados Unidos. Graças às quatro horas
adiantadas pelo fuso horário com relação a Cleveland, a chamada a cobrar foi
efetuada sem muitos transtornos. Bill falou por quase uma hora. Não entendi nada
daquele diálogo em inglês, mas era visível que algo desafiador e emocionante
estava acontecendo, pois as faces de Bill vibravam e seus olhos brilhavam a cada
palavra.
Ao final, com aquele sorriso (sua marca registrada) e vibrantes olhares, falou
com muito vigor e segurança: “Carlos, nova porta se abriu em Angola. Para lá
seguirei o mais rápido possível.” Naquela noite, conversamos até pelas três da
madrugada seguinte. Silêncio somente nos intervalos, para ingerir suco de laranja e
degustar alguns petiscos colocados sobre a mesa. Após o almoço, fui levá-lo ao
Congonhas, na época o único aeroporto da Capital paulista. Em Brasília, ele iniciou
toda a documentação de praxe e, finalmente, o visto lhe foi concedido com muito
empenho de autoridades americanas. Angola estava há nove anos sob fogo
cruzado de uma interminável Guerra Civil na qual quatro partidos envolveram doze
nações em quatro continentes. Nessa época, ao fazer o primeiro contato para o
reinício da Igreja de Deus em Angola, brother Watson estava com 54 anos Fui ao
seu encontro no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, de onde viajou a Luanda
pela VARIG, na época a única empresa que fazia aquele percurso. Na Grande-
Luanda, houve dias de intensas atividades, diferentes contatos e reuniões. Antônio
Ferreira, proprietário de um barco de pescaria, residente na Ilha de Luanda, foi uma
das principais peças na articulação e o renascer da Igreja de Deus em Angola.
Tendo continuidade, aquela viagem o levou a Portugal, à Alemanha e dessa aos
Estados Unidos para rever os filhos em Phoenix e encontrar os oficiais de Missões
Mundiais em Cleveland, Tennessee. Em Lisboa, com a assessoria do pastor Manuel
Vieira do Couto (1926-2006), fundador e Supervisor da Igreja de Deus em Portugal,
brother Watson comprou uma carrinha Land Hoover e a enviou aos líderes da IEPA
- Igreja Evangélica Pentecostal de Angola. O veículo, apropriado para o terreno
angolano, foi colocado nos porões do navio Hoji-ya-Henda, cognome de José
Mendes de Carvalho (1941-1968), um comandante da FAPLA - Forças Armadas
Populares de Libertação de Angola. Mendes de Carvalho morreu aos 27 anos,
segundo se cogita, em resultado de um motim no interior do quartel onde estava
destacado na cidade de Luena, capital de Moxico, a mais extensa província
angolana. Hoji-ya-Henda, o “Leão do Amor” em quimbundo, principal dialeto da
região, foi morto no alvorecer de domingo, 14 de abril de 1968. José Mendes de
Carvalho, além de sua patente militar, caminhava em paralelo no mundo artístico,
com o nome de Uanhenga Xito. Diante de sua popularidade, no ano seguinte,
oficializou-se o Dia Nacional da Juventude Angolana em sua memória. 175
Os filhos
Nesse longo período de 20 anos, mais de 2.7 milhões de jovens americanos serviram na
funesta guerra. Os resultados finais para os Estados Unidos da América do Norte foram
desoladores: sepultaram 58.220 dos seus combatentes, soldados que tombaram mediante
confrontos ou nas minadas florestas do Vietnã. Além das frustrantes baixas mortais, outros
300 mil foram feridos. (BOAVENTURA, 2019, p. 108).
trabalhar dioturnamente, faço aqui a simbologia de um neologismo de ex pressão.
Assim, era quatro americanos morando nos confins do Triângulo das Minas Gerais:
Bill, Rhoda, Marcos e Becky. David, o terceiro filho, nasceu na cidade do Rio de
Janeiro, quando a mesma ainda era Distrito Federal, na segunda-feira, 2 de
fevereiro de 1960. David, embora carioca, cresceu meio a construção do Instituto
Bíblico da Igreja de Deus no longínguo Parque Amazonas em Goiânia. Por um
período a família Watson residiu no Plano Piloto de Brasília, agora Distrito Federal,
onde nasceu Nathan. Andrews, o caçula da família, nasceu em Phoenix, Arizona.
Em 1968 a família Watson regressou por um período aos Estados Unidos.
Regressou em tese. Bill, ocupando interinamente a superintendência da América do
Sul, continuou suas longas viagens pelos interiores de diferentes países que incluia
o Brasil onde já se encontrava as famílias Pope e Shearer, missionários americanos
que vieram para somar, diante dos grandes desafios existentes. Em junho de 1969,
toda a família novamente no Brasil, residindo no Rio de Janeiro, a boêmica Cidade
Maravilhosa no então, estado da Guanabara. Por questões estratégicas o Rio de
Janeiro sediava a adminstração da então Região Litoral. Na Cidade/Estado existiam
algumas poucas e pequenas congregações, o mesmo sucedia entre São Paulo até
o estado do Ceará. Tudo não passava de uma nesga de terra que seguia paralelo
ao oceano Atlântico.
David regressou à sua cidade de nascimento que, durante 138 anos (1822-
1960), foi a Capital Federal do Brasil, não levando em consideração o período
colonial. Para alguns a minha interpretação sobre angeologia poderá soar
politicamente, aos mais céticos, até teologicamente incorreto, porém, lá em São
Mateus 18:10, foram palavras proferidas pelo o Senhor Jesus Cristo no decorrer do
seu ministério pelas terras da palestina: “Vede, não desprezeis a qualquer destes
pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus veem incessamente
a face de meu Pai celeste”.
Rua Conselheiro Barros, não é uma longa via, porém, dona de eventos que
demarcaram a história por suas características e pequenas chácaras no período do
século XIX, um riacho cristalino floria vida a esses sítios. Tem o seu início na Rua
do Bispo, uma das mais conhecidas vias do Bairro Rio Comprido. Uma localidade
residencial, onde predominantemente residiam descendentes de pioneiras famílias
luso-brasileira. Conselheiro Barros, logradouro calçado com antigas pedras,
manualmente moldadas. Para chegar ao local, fazia um declínio distante de uma 50
metros da Rua do Bispo. Estive pela primeira vez naquele prédio na segunda-feira,
18 de janeiro de 1971, como sempre, um típico e quente verão carioca, o astro-Rei
se abrasava em sua monarquia absoluta, parece que possuía autoridade no circular
natural dos ventos. Tudo paralizado, assim era a sensação. O espaço, muito
confortável e amplo, não existiam altos edifícios nos arredores, assim formava um
paradisíco local de onde vislumbrava longas distâncias. Daquele ambiente era
possível contemplar vastos e belos locais para o lado central do Rio de Janeiro, no
oposto os topos de montanhas com imensas florestas. Aquela era o Rio de Janeiro,
única cidade/estado que já existiu no Brasil, um carioquíssimo orgulho!
Um prédio conjugado havia moradores no térreo ocupado por um idoso casal,
o segundo e terceiro andar formavam uma só residência, com salas, quartos,
banheiros, cozinha pequena, áreas abertas, além da lavandaria. O veículo usado
pela família, uma komb branca, se estacionava na rua, que era de mão dupla, não
havia temores de roubos ou assaltos, algo muito raro. Era a tranquilidade de um
tempo do passado, quando os vizinhos se cumprimentavam e as crianças
brincavam nas calçadas! Ó tempo, por que você mudou roubando a nossa paz e
tranquilidade?
Para adentrar-se à aquele prédio que dava impressão de residência de
barões coloniais, não havia interfone e nenhum outros pretensos aparatos de
segurança. Tudo muito simples e singelo, o portão embora de ferro, porém, não
possuia cadeado, somente um botão para acionar a campanhinha que avisava a
presença de alguém. A escadaria estava do lado direito do sobrado, não havia
cobertura, os degraus de granitos levavam até a porta da entrada, a única para o
exterior. Uma porta de madeira maciça sem detalhes, porém, alta e larga, algo típico
das residências antigas. Essa era a residência alugada da família Watson ocupada
desde julho de 1969, onde em conjunto cantavam, oravam, sorriam, brincavam e
choravam. Choraram e muito, porém, nunca a família deixou de acreditar em um
milagre celestial para cada dia. Segunda-feira 2 de fevereiro de 1970, sensivelmente
seis meses residindo naquele prédio algo aconteceu! Em algumas páginas à frente
voltarei ao assunto.
Quando se abria a porta com aquela chave amarela de fechadura tipo colonial
marca Prado, estava diante de um corredor. Bem posicionado no alto do teto com
recortes nas laterais, chamava à atenção um majestoso lustre com várias pequenas
lâmpadas e pedras como de cristais. Esse aparato era o suficiente para clarear todo
aquele espaço. No piso, um simples tapete/passarela de cores avermelhadas que
se alongava até ao final. À direita do corredor estava uma pequena sala – onde
servia de escritório do pastor Bill Watson – seguindo, outra sala maior, no centro
uma ampla mesa com cadeiras, tudo de madeira pesada, alí, o local das refeições.
Em um dos cantos estava o piano, nada moderno ou sofisticado, tudo comprado em
um estabelecimento de segunda mão. Não havia aparelho de televisão e, tão pouco
telefone, somente um médio rádio a pilha. Nas duas salas haviam enormes janelas
que as abas se abriam para fora, eram travadas com pequenos e trabalhados pinos
de ferro. Na sala mais espaçosa estava adornada ao seu exterior uma pequena
sacada, de onde vislumbrava lindas paisagens das montanhas e copas das árvores.
Olhando a direita contemplava o contínuo movimento de veículos e transeuntes que
circulavam pela Rua do Bispo, bem visível uma favela se destacava a pouco mais
de 100 metros. Antes de terminar os relatos extraídos da histórica Rua Conselheiro
Barros, venha comigo no desenrolar dos acontecimentos que antecederam os fatos.
Idílica jornada
Influência
O passado
Nos meados de 1967, ainda na casa dos 19 anos, fui convidado por uma
colega de classe do Colégio Anchieta para ouvir o irmão Bill Watson. Ele estaria
ministrando numa quinta-feira às 19h30, no pequeno salão onde se reunia a Igreja
de Deus, no distante bairro Saraiva, em Uberlândia, lá nas Minas Gerais. Foi uma
noite com muito calor; todos transpiravam dentro daquela sala com dezesseis
metros quadados, pois as janelas abertas eram insuficientes para a necessária
circulação de ar. Naquela época, ventiladores eram coisas raras para o meio em
que vivíamos. Como de praxe, por toda a cidade havia uma precária iluminação, o
que não era diferente naquele salão, que contava com poucas lâmpadas para
clarear o ambiente. As moscas ficavam a dançar na claridade. Já havendo se
passado mais de meio século, ainda me recordo vivamente daquela reunião, bem
como do texto bíblico utilizado: “Certamente, a palavra da cruz é loucura para os
que se perdem, mas para nós, que somos salvos, o poder de Deus” (I Coríntios
1:18). Eu havia matado as aulas daquela noite para participar desse culto. Não me
aproximei do pregador, por todos respeitosamente tratado de irmão Bill. Enquanto
descíamos com outros jovens a mal iluminada avenida Machado de Assis, Marcos e
Becky passaram por nós falando entre si em inglês. Eram dois pré-adolescentes
com 13 e 12 anos respectivamente.
O novo encontro ocorreu em uma Convenção Regional, quando eu já me
tornara membro da Igreja de Deus, no mês de maio de 1968. O evento transcorreu
no Setor Pedro Ludovico, em Goiânia. Esse então distante bairro estava coberto por
uma intensa nuvem de poeira vermelha. O irmão Bill Watson, ocupando
interinamente a Superintendência da América do Sul, estava chegando de Santiago
do Chile. Nesse ínterim, sua família se encontrava nos Estados Unidos, após longos
anos morando no Brasil. Na função de Superintendente Sul Americano, ele se
comunicava fluentemente em inglês, português e espanhol. Era o chefe, porém não
passava do irmão Bill. Muito longe do orgulho alicerçado nos pomposos e modernos
títulos eclesiásticos dominantes em nossos arraiais! No domingo pela manhã,
aquele talentoso jovem de 37 anos ministrou sobre Malaquias 1:6-14. A sensação,
no desenrolar da ministração, foi algo sobrenatural. Parecia que o mundo estava
despencando e trazendo à consciência as nossas falhas no caminho da omissão.
Assentado ao meu lado, estava João Marques de Oliveira (1936-1996), um
dinâmico pastor na casa dos 32 anos. Ele caiu em prantos e soluçava semelhante a
uma criança que almeja algo. Eu nunca havia visto até então tantos homens
simultaneamente a chorar, como se formassem um coral desafinado! A sensação
era que o céu havia desmontado sobre nós ou aquele grupo de fanáticos fora
levado diante do Trono celestial!
Coelho da Rocha
Rocha Miranda
(ARTIGO EM ANDAMENTO)
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“Percebo que queira falar do passado histórico como algo que já está
esquecido. Para mim, o seu trabalho dava para vários livros. Continuo a admirar a
sua persistência, o empenho nas pesquisas profundas e o trabalho árduo que há
muito vem fazendo. Comentar o que escreve, para mim, é tarefa difícil. Estou certa,
doutor Boaventura que o seu esforço é acarinhado e reconhecido.”
Dra. Raquel Guimarães Carneiro, professora aposentada.
Odivelas, Portugal.
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Um simples apelo