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“O Brasil Protestante”

Boaventura, Carlos (1948-)


May 12.2016: 09.01.2021: 20:

Capa: Kelton Vasconcelos


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Revisão: Prof. Marco Antônio da Costa


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@copyright 2021 – Carlos Boaventura/New Hope Publisher


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Todos os direitos reservados a Carlos Boaventura/New Hope Publisher.


Permitida a reprodução parcial para fins de pesquisas, desde que citada a fonte.

ISBN:

1ª edição: Março/2022.

Todas as referências bíblicas, quando não citada outra fonte, foram extraídas da
Bíblia Sagrada Revista e Corrigida, Edição em Letra Grande. Traduzida por João
Ferreira de Almeida e publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, São
Paulo, 1995.

Pensamentos
“Porque dele, e por ele, e para ele
são todas as coisas; glória, pois, a
ele eternamente. Amém!”
(Romanos 11:36).
“A História não é apenas para ser
contada, é para ser analisada”.
(Autor desconhecido)

“Na História, o passado se faz


presente e vislumbra o futuro”.
(Autor desconhecido)

“A função do historiador é lembrar a


sociedade daquilo que ela quer
esquecer”.
(Peter Burke: 1937-)

“Os livros são amigos imparciais e


seguros” (Victor Hugo: 1802-1885).

“Livros nos dão um lugar para ir


quando precisamos permanecer
onde estamos”
(Mason Cooley: 1927-2002).

“Quem me dera fossem agora escritas as minhas palavras!


Quem me dera fossem gravadas em livro! Que, com pena
de ferro e com chumbo, para sempre fossem esculpidas
na rocha”. (Jó 19:23).
Reconhecimentos e
gratidão
À Luiza, Júnior, Francianer,
Pietro Amani e Juan Hassani Boaventura.
Esposa, filho, nora e netos.

Hilda Laura, Heleni das Graças, Cleusa Helena, Joana Neusa, 1 Marli Aparecida e
Luiz Roberto Boaventura. Mãe, irmãs e irmão.

Zeferino de Souza Lima (1926-2019) (NOTA DE RODAPÉ: Faltava-lhe 84 dias para


completar os 93 anos, quando ao amanhecer do sábado, 11 de janeiro de 2019, foi
recolhido às mansões celestiais. Após 12 anos, mesmo sob tratamentos, foi vencido
pelo terrível Mal de Alzheimer em Juiz de Fora, Minas Gerais. Deixou muitas
saudades e um arraigado legado meio a sociedade onde era muito querido
respeitado. FINAL DA NOTA).
e Guilhermina Pereira de Souza.
Os meus sogros.

Não posso me esquecer de proferir um especial agradecimento aos meus mestres


no Instituto Bíblico da Igreja de Deus em Goiânia, equipe que, por dois anos (1969-
1970), lapidou uma pedra bruta que foi encaixada na parede da História!

Bryan Hersey (1939-2017),


Diane Hersey,
Jack Pope,
Jacqueline Shearer,
Janete Carter (1934-2007),
Millie Ribeiro,
Miriã dos Santos (194-2021),
Ruth Crawford e
Vanil de Almeira.

1
Joana Neusa (1953-2017) já não mais está entre nós; faleceu ao amanhecer do sábado, 29 de julho
de 2017, vencida por um agressivo câncer aos 64 anos. Foi bruscamente arrancada de nosso meio.
Em seu lugar, ficou a saudade e a firme esperança de encontrá-la do outro lado da vida.
In memoriun
“Que saudade que nos vem a lembrança
Daqueles que já partiram para Deus,
Mas nós temos uma viva esperança
De revê-los novamente lá no céu.”
(Conjunto Voz da Verdade)

Ademar Boaventura da Silva (1922-1958),


meu pai, viveu tão pouco que não viu
o crescimento dos próprios filhos!
SUMÁRIO
Prefácio
Dr. Magno Paganelli

MapeandoCuriosidades
“A ilusão do voto popular manipula a pobreza de espírito.”
(Ivan Santos - jornalista)

Os censos dos anos 2000, 2010 e estimativas seguintes têm revelado


oficialmente que o maior país católico romano do planeta não é tão católico como se
imaginava. No palmilhar da história que envolve pragmatismo da religiosidade o
Brasil tem se tornado uma nação altamente sincretista. Na utilização de uma leitura
honesta da visão sociológica e com o foco da teologia conservadora, o que de fato
predomina nessa grande nação é o avançar da onda que produz a
institucionalização do sincretismo religioso, no qual vigora a lei de interesses pelo
sagrado de mãos dadas com o oportunismo, trazendo à tona a crua realidade de
“uma moral estritamente formalista do toma lá dá cá” (BOURDIEU, 1982, p. 48).
Dando vazão à teoria mercantilista muito bem desenvolvida pelo catedrático Pierre
Bourdieu (1930-2002), falecido sociólogo francês, em tese esse sincretismo faz do
Brasil não somente a mais populosa nação católica. Pelo mesmo viés, dentro do
natural padrão que concede asas ao sincretismo, concomitantemente o Brasil se
classifica como a maior nação espírita do mundo. 2 O Brasil também é a maior nação
do globo na produção e consumo varejista de Bíblias. Dependendo das fontes e do
padrão dos cálculos, ele se torna a maior e mais emergente nação protestante do
planeta. Todo esse pacote religioso e social se encontra dentro de sua invejável e
próspera área geográfica que alcança o alvissareiro número de 8.547.403
quilômetros quadrados. Em cálculos simples, esse pedaço do espaço terrestre que
forma o Brasil representa 1,7% da área do globo, algo assustador e desafiador.
A população brasileira chegou a 213,3 milhões em 2021, segundo estimativa
divulgada na sexta-feira, dia 27 de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). O número representa um crescimento de 0,74% na comparação
com a população estimada em 2020. De longe, o Brasil continua sendo a mais
povoada nação da América Latina e o sexto mais populoso país do planeta, 3
perdendo, em números crescentes, apenas para o Paquistão, com 220 milhões; a
Indonésia, com 273 milhões; os Estados Unidos, com 331 milhões; a Índia, com
2
Aliás, no endosso dessa tese, recordo-me de um ex-professor de sociologia em meu tempo de
estudante na PUC-SP. Ele era católico praticante, entretanto dizia sem rodeios: “Todo bom católico é
um bom espírita.” Que coragem teve aquele catedrático!
3
Muito interessante, e vale a pena conferir sobre a expansão e os dados da projeção populacional no
site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE) - (https://www.ibge.gov.br/).
1,380 bilhão e a China com 1,439 bilhão. 4 A soma total dos habitantes desses
países equivale a cerca de 50% de toda a população mundial, sendo o Brasil uma
grande fatia dessa crescente expansão.
A decisão política brasileira passa pelas mãos de uma multidão que extrapola
os 147 milhões de eleitores, de longe o maior curral eleitoral onde impera a
democracia abaixo da Linha do Equador. Da lavra do jornalista Ivan Santos,
conceituado homem das notícias radicado lá nas Gerais, de onde emergem suas
disfarçadas alfinetadas, lemos:

Desde a Proclamação da República, a democracia brasileira não passou de utopia. Não


é possível haver igualdade entre as pessoas num país onde a concentração da renda
nacional é gigantesca, a educação de qualidade é ministrada a poucos, a saúde pública
é deficiente, o analfabetismo é assustador e a segurança para os cidadãos do Estado é
precária. [...] A ilusão do voto popular manipula a pobreza de espírito, para criar
mandatos vitalícios, no planalto e nas planícies. (SANTOS, 2019, p. 61, 71).

Política à parte, a utilização em massa da tecnologia informatizada leva o


Brasil a ser um ponto referencial, onde o resultado oficial das eleições é informado
em segundos após o fechamento da última urna eletrônica. 5 Dentre esses milhões
de votantes, os protestantes/evangélicos fazem uma grande diferença, tornando-se
campo de batalha para os candidatos de diferentes vieses ideológicos na busca de
votos. Há mais de dez anos, a grande mídia já indicava: “20% do eleitorado
brasileiro são de evangélicos” (O Globo, 2a ed., n. 28.110, p. 14, de sábado, 24/julho
de 2010).6
Os novos mapas demográficos brasileiros vêm revelando que a população
católica tem caído dos mais de 86,8% dos últimos anos para cerca de 64,6%! Uma
vertiginosa queda livre que representa um número assustador na decrescente
contabilidade do Vaticano. Isso é o resultado das investidas dos protestantes
evangélicos. Uma vasta e expansiva fatia da freguesia está se transferindo do
mercado introvertido para o mercado extrovertido.
O catolicismo romano atracou no Brasil na manhã de quarta-feira, dia 22 de
abril de 1500, quando o rincão descoberto recebeu o simbólico nome de Terra da
4
Confira a lista de países por população disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_popula%C3%A7%C3%A3o>.
5
Após as eleições realizadas em 2014, a utilização das urnas eletrônicas made in Brazil tem passado
por muitas e severas críticas por diferentes segmentos da sociedade brasileira. Até onde as urnas
eletrônicas são seguras e confiáveis? Não poucos eleitores, políticos eleitos ou derrotados, estão
questionando a veracidade e, não poucos, indignados com certos resultados. Onde está a verdade?
Não cabe a mim responder; sou historiador e não investigador tecnólogo.
6
Com certeza os vários segmentos evangélicos/protestantes ganharam novos dígitos desde 2010 e
peso nos palcos das decisões políticas e sociais do Brasil. Segundo pesquisas, o voto evangélico,
principalmente entre os pentecostais, é mais orgânico do que o de outras religiões. Isso significa que
os blocos denominacionais votam de acordo com a orientação e interesses da liderança. Não poucos
políticos farejaram onde encontrar votos para futuras eleições! Nesse farejar, batem
sistematicamente às portas dos evangélicos. Agora, após as eleições do mês de outubro de 2018,
sabemos que, no mapa partidário no Brasil, sem dúvidas, a fatia maior nasceu nos segmentos
evangélicos, a qual, sob o endosso da ala conservadora do catolicismo romano, levou à presidência
brasileira o paulista Jair Messias Bolsonaro (1955-), deputado federal e capitão reformado do
exército. O estado de São Paulo rompeu um jejum presidencial de 88 anos (confira a Era Vargas em
páginas a frente).
Vera Cruz.7 Tudo aconteceu nas cercanias onde hoje se encontra a cidade de Porto
Seguro, que se tornou um importante polo turístico no estado da Bahia. Aquelas
imediações foram o palco onde se rezou a primeira missa em todo o espaço
territorial que, hoje, chamamos das Américas - Sul, Central e Norte. A primeira
missa católica celebrada naquilo que hoje forma o território continental dos Estados
Unidos da América do Norte, pressupõe que aconteceu no domingo, dia 28 de
fevereiro de 1565, em Saint Augustine, hoje parte do estado da Flórida. Esse tema
virá à tona em algumas páginas à frente.8 O franciscano frei dom Henrique Soares
de Coimbra (1465-1532) era um dos mais de mil e duzentos tripulantes que haviam
zarpado de Lisboa na segunda-feira, 9 de março de 1500. Esse batalhão estava a
bordo dos treze frágeis navios sob o comando geral do fidalgo Pedro Álvares Cabral
(1467-1520), jovem com trinta e três anos, a mesma idade do seu amigo D. Manuel
I (1467-1521), rei de Portugal. Todas essas naus representavam uma verdadeira
floresta flutuante devido à enorme quantidade de madeira gasta na construção
naval. Lá pelo ano 1320, D. Dinis, o sexto rei de Portugal, já prestes a morrer,
estava à imaginar os futuros desafios marítimos, além da matéria prima necessária
para a construção e reparos das naus. “A pensar no futuro, D. Dinis ordenou que
uma vasta área de 24.000 hectares, em Leiria, fosse reservada à plantação de
pinheiros, para que a Portugal nunca faltasse madeira para a construção naval”.
(ROSA, 2019, p. 32). A bordo da floresta flutuante que tropeçou em terras
tupiniquins, se encontrava o frei Henrique Soares de Coimbra estava, com 35 anos,
dois mais velho que Cabral e o chefe da monarquia portuguesa.
“Consta que na expedição comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500, as
embarcações carregavam 763.112 litros de vinho para o consumo da tripulação,
estimada em 1.200 homens” (MACEDO, 2013, p. 115).
A primeira missa realizou-se numa enseada onde, respeitosamente, os
portugueses ergueram uma cruz, o símbolo máximo do cristianismo. Diante das
abundantes florestas que ali existiam, sem dúvida, a cruz foi confeccionada com o
avermelhado pau-brasil, uma perfeita simbologia indicando o sangue do Senhor
Jesus Cristo, que manchou o madeiro onde Ele foi pendurado ao largo da velha
Jerusalém. Esse ato da sacramentação e posse territorial aconteceu na manhã do
domingo de Páscoa, 26 de abril de 1500. Além dos marujos peludos, centenas de

7
Mesmo diante de uma acentuada e constante queda, o Brasil é de longe a mais populosa nação
católica do globo. Desfruta de um invejável legado religioso amalgamado politicamente com os
anseios da monarquia portuguesa e não fugiu à regra: perdurou oficialmente nos impérios petrinos.
Diante de mútuos interesses, o catolicismo somente perdeu sua hegemonia de religião oficial quando
da Proclamação da República em 15 de novembro de 1889. A Constituição de 1891, a primeira
republicana, fez dos Estados Unidos do Brasil uma nação tecnicamente laica.
8
Na segunda viagem que Cristóvão Colombo (1451-1506) realizou às Caraíbas, entre 1493 a 1496,
havia entre os marujos uma equipe de doze sacerdotes espanhóis. Aqueles sacerdotes realizaram a
primeira missa no povoado de La Isabela, atual cidade de São Domingos, capital da República
Dominicana. Porém, geograficamente a República Dominicana não se encontra ligada às Américas;
é sim uma ilha caribenha. Com relação ao ato religioso, o assunto foi muito bem expresso por um
conceituado pesquisador americano o qual enfatiza: “Bárbara, incompleta, La Isabela foi formalmente
fundada a 6 de janeiro de 1494, um dos dias mais importantes do calendário cristão, o Dia da
Epifania do Senhor [...] Doze sacerdotes dedicaram a colónia numa igreja improvisada em terra.
Tratou-se da primeira missa celebrada no Novo Mundo” (BERGREEN, 2014, p. 194).
pelados nativos brasileiros participaram daquele ritual católico. Ali estava nascendo
o sincretismo que ainda hoje continua muito em voga por todo o Brasil. Aquele
serviço religioso demarcou a simbologia do sagrado em uma terra que foi achada do
lado oposto do oceano Atlântico. O doutor Gedeon Alencar, professor e um bem-
humorado sociólogo de linha pentecostal, apimenta o sabor das pesquisas ao fazer
as seguintes observações, referindo-se a quando as naus portuguesas tropeçaram
nessa imensidão de terra: “Uma missa foi celebrada como tomada de posse. A elite
econômica financiando, a Igreja legalizando e os índios assistindo” (ALENCAR,
2005, p. 27). A legalidade de posse criou uma mais valia em que perpetuou o
apadrinhamento. Ainda hoje os índios e grande parte da população estão
passivamente assistindo às decisões de alguns poderosos caciques mal-
intencionados! Essa legalidade político-religiosa criou mais Brasília e menos Brasil,
mais caciques e menos índios!
Quando o comandante Álvares Cabral e suas naus tropeçaram naquela
imensidão de terra desconhecida,9 o Portugal de então era católico de religião,
cultura e costumes. Sob espada e fogo, 10 exigiu que a religião daquele que viria a
ser o quinto mais extenso país do globo fosse também católica. Em dimensão
terrirtorial, o Brasil é noventa e três vezes maior que Portugal e, por ordem
crescente, está atrás apenas dos Estados Unidos, da China, do Canadá e da
Rússia.
O Brasil faz fronteiras com dez nações, seguindo uma divisória contorcida
com quase 17 mil quilômetros de extensão, sem enumerar os outros sensíveis sete
mil quilômetros de costa atlântica. Tudo resumido em quilômetros quadrados, o
Brasil ocupa cerca de 47% de todo espaço físico da América do Sul, sendo uma
gigantesca área geográfica. Em virtude de sua miscigenação, o Brasil é uma nação
sui generis, notabilizada pelas inovações do quebra-galho, do jeitinho político, da
perspicácia, da malandragem, da boemia, do Carnaval, além de uma doentia paixão
pelo futebol.
Também é guardião natural das praias originalmente cristalinas e límpidas.
Sem contar os vastíssimos e verdejantes campos, os cerrados, os pampas, os
agrestes, as florestas e os caatingais do Nordeste. 11 Doutor Patrick Johnstone
(1938-), um missiólogo e pesquisador britânico, afirma que “o Brasil é um caldeirão
de nações”. Outros estudiosos afirmam: “O Brasil não tem cara”. Uma incontestável
verdade em grau, número e gênero. Esse é o Brasil de toda gente!

9
“Há um grande debate a respeito de Cabral ter ou não sabido da existência do Brasil antes de
zarpar. Embora não seja inconcebível que ele fizesse alguma ideia da possibilidade de haver uma
massa terrestre mais ou menos na região do Brasil, não há indicação de que a frota cabralina
houvesse planejado visitar esse território maldefinido a caminho do Oriente.” (WILCKEN, 2005, p.
292)
10
Sarcasticamente, o conceituado jornalista Ivan Santos golpeia humoristicamente o cerne da
sistematização do profano emoldurado pelo sagrado: “Os Príncipes da Igreja mandam e não pedem.”
(SANTOS, 2019, p. 56)
11
“Nosso céu tem mais estrelas/Nossas várzeas têm mais flores/Nossos bosques têm mais
vida/Nossa vida mais amores”. Esbravejou, cheio de uma retórica ufanista e de orgulho, o jovem
maranhense Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), um nacionalista brasileiro, enquanto estudante de
Direito na centenária Universidade de Coimbra em Portugal.
O cruzamento ou a miscigenação da raça humana no Brasil formou um povo
diferente em todos os aspectos. Essa é a gente brasileira: um povo alegre por
natureza, comunicativo, promotor e realizador de festas, bem-humorado, guerreiro e
trabalhador! Nunca o estereótipo do encomendado Zé Carioca, aquele egolátrico
personagem que vislumbrou uma geração de leitores dos antigos gibis, ou bandas
desenhadas, como preferem os portugueses.
Quando chegou ao Brasil, em 1956, Bill Elwood Watson (1930-2016), um
jovem missionário procedente dos Estados Unidos, ficou surpreso com as
características dos habitantes da terra. “Comecei cedo a buscar o brasileiro típico
entre as multidões que vi nos trens e nas ruas do Rio. Nunca pude encontrá-lo, nem
encontrá-la. A variedade era grande demais, pelo menos em aparência física”
(WATSON, 2008, p. 21).
Gilberto Freyre (1900-1987), o ainda respeitado sociólogo pernambucano,
entretanto taxado de bairrista por uma gama de acadêmicos, enfatiza com muita
razão em sua famosa obra Casa Grande & Senzala: “Híbrida desde o início, a
sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais
harmoniosamente quanto às relações de raça” (FREYRE, 2001, p. 163). O Brasil,
esse indomável gigante da América do Sul, continua sendo o misterioso país onde
se opera a miscigenação racial, cultural, religiosa e social.
Darcy Ribeiro (1922-1997), que foi um intelectual e educador mineiro nascido
na cidade de Montes Claros, prefaciando Casa Grande & Senzala, enfatiza seus
conhecimentos de antropólogo ao referir-se à formação gentílica do Brasil.

Nele surgem, redivivos, os variados avós índios, negros, lusitanos e, por via desses,
mouros, judeus e orientais que plasmaram o brasileiro com suas singularidades de
gente mestiça de todas as raças e de quase todas as culturas, além de aquinhoada de
bens trazidos de toda a terra. (FREYRE, 2001, p. 29).

Pelos vieses desses plasmas, o Brasil constitui o país mais concentrado, onde
a média de 85% daqueles que se identificam brancos tem sangue de negro ou índio,
o que joga por terra todo o orgulho da supremacia e eugenia branca camuflada na
cabeça de alguns tardios em seus raciocínios.
São Paulo, a megacidade que nunca dorme, abriga, no bairro da Liberdade,
a maior população nipônica fora do Japão. Outrora o bairro do Bexiga se identificava
como um pedaço da Itália no Brasil. A Capital Bandeirante (2020) é proprietária, em
terra e no ar, da segunda maior frota civil de helicópteros do mundo, perdendo
somente para New York City. O Brasil, em suas amplas fronteiras, tem a maior
população portuguesa fora de Portugal e, na mesma cadência, a maior população
boliviana fora da Bolívia. Igualmente, calcula-se que haja mais libaneses no Brasil
do que no Líbano.12 Em seu contexto étnico, o Brasil tem a segunda maior
12
Enquanto eu trabalhava na produção desse projeto literário, assumiu interinamente a presidência
do Brasil, dia 12 de maio de 2016, o paulista Michel Miguel Elias Temer Lulia (1940-), advogado,
empresário, político e professor universitário. O ex-presidente Temer é filho de imigrantes libaneses
que chegaram ao Brasil na década de 1920, fugindo dos medos gerados no Oriente Médio. Família
que fez a vida nos cafezais nos arredores da cidade de Tietê, onde nasceu o filho ilustre daquela
terra interiorânea. Porém, no mundo selvagem da política, nem tudo são perfumes, flores, vibrantes
discursos e aplausos. Michel Temer perdeu sua imunidade parlamentar ao findar sua função
população negra do planeta, algo em torno de 110 milhões de pessoas, perdendo
somente para a Nigéria. Mesmo assim está à frente da Etiópia, a segunda mais
populosa nação africana, com 105 milhões na estimativa de 2017. Essa crescente
miscigenação brasileira é algo peculiar e sem par mundo afora, mesmo assim e
desafortunadamente, o negro brasileiro e sua crescente prole continua sendo o
último da fila no segmento social.
Segundo os dados da União Internacional de Telecomunicações, uma
agência da Organização das Nações Unidas sediada em Genebra, Suíça,

o Brasil é o sexto maior mercado do mundo em telefonia celular e atualmente, segundo


dados de 2018, são 274 milhões de aparelhos em uso no Brasil, sendo assim o quarto
país que mais utiliza telefones celulares no mundo, perdendo apenas para a China, a
Índia e os Estados Unidos.13

O projeto de celulares no Brasil iniciou-se acanhadamente no Rio de Janeiro


em 1990, algo muito irrisório diante da explosão das comunicações que hoje
estamos a vivenciar. Contrariando o caminhar das três décadas anteriores, hoje há
mais aparelhos celulares no Brasil do que a própria população. Especialistas,
especuladores, estrategistas e analistas do mercado das comunicações afirmam
que, nos próximos anos, o Brasil alcançará a cifra de mais de 300 milhões de
aparelhos. Um brinquedinho adornado de encantos mil, porém folheado com as
raízes do mal! “A inteligência artificial digital poderá ser real e fascinante, porque
comandará os cérebros humanos” (SANTOS, 2019, p. 92).
Além da infinidade de celulares nas mãos de todos os segmentos da
sociedade brasileira, a informática é outra modernidade que se encontra em seu
avançado ápice. Calcula-se que haja mais de 100 milhões de aparelhos laptops
ligados à Internet, fazendo do Brasil o segundo maior mercado consumidor do
mundo.14
No futebol, arte aprendida com os ingleses e aperfeiçoada nas ruas
lamacentas e nas várzeas das pobres periferias, o Brasil tem sido quase imbatível.
Campeão na Suécia, em 1958; bicampeão no Chile, em 1962; tricampeão no
México, em 1970; tetracampeão nos Estados Unidos, em 1994; e pentacampeão,
em 2002, nos gramados da Coreia do Sul e do Japão. Mesmo perdendo as Copas
de 2006, na Alemanha; de 2010, na África do Sul; e vergonhosamente em casa, em
presidencial do Brasil, dia 1º de janeiro de 2019. Infelizmente e para vergonha dos filhos do Brasil,
segundo os tribunais, Temer estava ligado ao bizarro mundo da corrupção política que há décadas
vem dilapando os cofres do Erário Público. Doutor Marcelo Bretas (1970-), o jovem juiz da 7ª Varal
Federal Criminal do Rio de Janeiro e terrivelmente evangélico, expediu ordem de prisão, ato que a
Polícia Federal desempenhou em São Paulo, na manhã de 21 de março de 2019. Em obediência a
outra ordem, a prisão de Temer foi relaxada no dia 26 do citado mês e ano. Diante de novas pautas
acusadoras, o ex-presidente foi detido e recluso na quinta-feira, 09 de maio, e, no dia 14, foi
transferido para prisão domiciliar. Peço licença para fazer minhas as palavras de quem entende
quando o assunto é campo minado dos vulneráveis políticos apeados do poder: “Nada é mais terrível
do que ser abandonado no final do mandato” (SANTOS, 2019, p. 96). Nasce a síndrome da solidão
sem o poder!
13
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Telefone_celular>. Acesso em: 12 ago. 2018.
14
Segundo as últimas pesquisas, 70% da população brasileira, algo em torno de 126,9 milhões de
pessoas, faz uso diário da Internet. Também tem sido afetada a postura física dos constantes
usuários dos celulares com a chamada síndrome de pescoço do texto.
2014, e embora cambaleante das pernas, o Brasil não perde sua arrogância tropical,
mantendo-se no topo da linha como o único pentacampeão do mundo na arte
futebolística, apesar de ter sido derrotado nos campos da Rússia em julho de 2018.
Devido à elevada produção e exportação de jogadores de futebol, o Brasil tem
recebido pejorativamente o título de O país das chuteiras. No mundo real, está no
apogeu do veteranismo futebolístico, sendo o único país que participou das 20
Copas do Mundo já realizadas em cinco continentes. O primeiro evento dessa
modalidade esportiva aconteceu na República Oriental do Uruguai. Os jogos
aconteceram entre os dias 13 a 30 de julho de 1930, além de enfrentar as baixas
temperaturas, a seleção brasileira não estava nada preparada para encarar os
adiversários presentes nas competições mundiais. Naquele histórico ano, os donos
da casa foram os campeões, ficando a Argentina em segundo lugar e os Estados
Unidos em terceiro. Quem diria! O Brasil entrou em campo dias 17 e 20 e jogou
somente duas partidas, escanteado, retornando mais cedo para casa.
Até nossos dias (verão americano de 2021), o Brasil tem sido o único País da
América do Sul que mantém uma estreita parceria com a National Aeronautics
and Space Administration - NASA - no envio de astronauta em missão espacial.15 É
possível que o Brasil seja o único país achado, expressão muito bem exarada em sua
certidão de nascimento legal, a qual pode ser consultada nos arquivos da Torre do
Tombo, localizada na Cidade Universitária, em Lisboa, Portugal. O documento é um
autêntico diário de bordo contendo 27 páginas, com letras cursivas e artisticamente
desenhadas por Pero Vaz de Caminha (1450-1500). Esse documento paleográfico foi
encaminhado a D. Manuel I, rei de Portugal, dia 1o de maio de 1500.

Nesse dia - 22 de abril - a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente


dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de
terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal,
e à terra - a Terra da Vera Cruz. (CAMINHA, 2006, p. 92).

15
O primeiro astronauta nascido na América do Sul foi o peruano Carlos Ismael Noriega (1959-), porém
ele cresceu e vive na Califórnia. Toda sua formação e vida militar tem sido na Força Naval dos Estados
Unidos. Noriega, aposentado com a patente militar de tenente-coronel aviador, foi ao espaço em 16 de
maio de 1997, onde permaneceu por nove dias. Já o também aposentado tenente-coronel aviador
Marcos Cesar Pontes (1963-) - note-se: Ismael e Marcos são nomes bíblicos e, por coincidência, cada
nome é composto por seis letras! -, nascido em Bauru, cidade do interior do estado de São Paulo, foi o
primeiro astronauta brasileiro e lusófono a ir ao espaço. Após longos anos de treinamento, nos quais
foram consumidos dez milhões de dólares, sua viagem iniciou-se em 30 de março de 2006 no Centro
de Lançamento de Baikonur, Cazaquistão. Ele retornou à mesma base em 8 de abril. Durante nove
dias, fez diferentes experiências nos laboratórios da Estação Espacial Internacional. Nesse período no
espaço, sensivelmente circulou a terra por 140 vezes! Desde janeiro de 2019, é Ministro da Ciência e
Tecnologia do Governo Jair Messias Bolsonaro, que foi eleito Presidente do Brasil no domingo, 28 de
outubro de 2018. Quando Marcos Cesar Pontes estava com somente cinco anos, em 1968, houve a
grande epopeia espacial. Nessa data, três astronautas americanos - Frank Borman (1928-), Jim Lovell
(1928-) e William Anders (1933-) - foram lançados ao espaço a bordo da Apollo 8, a segunda missão
tripulada desse projeto. Partiram do Cabo Kennedy, Flórida, no sábado, 21 de dezembro de 1968,
regressando na sexta-feira 27. Na noite de Natal de 1968, esses três homens com 40 e 35 anos,
enquanto circunavegavam a Lua, “revezaram na leitura dos dez primeiros versículos do livro de
Gênesis, enquanto a câmera transmitia a imagem da terra, em preto e branco. A transmissão fora, à
época, o programa de televisão mais assistido da história” (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Apollo_8>. Acesso em: 23 fev. 2019).
Os documentos históricos afirmam que, seis meses após a redação final
dessa paleografia que o imortalizou, o fidalgo escrivão foi alvejado e
consequentemente morto diante de emboscadas impetradas pelos muçulmanos em
Calicute. O jovem comandante português não era lá de muitas negociações. “Sem
paciência com firulas diplomáticas, Cabral atacou Calicute de forma impiedosa.
Naquele tempo, a cidade indiana tinha 200 mil habitantes” (GOMES, 2019, v. 1, p.
92). Cabral colocou em prática aquilo de novo que existia para assustar os
moradores litorâneos. “Portugal tinha acabado de inventar: os canhões de carregar
pela culatra, de tiro rápido, que podiam disparar morteiros numa trajectória quase
horizontal” (PAGE, 2012, p. 144). Em resultado dessa impiedosa fórmula para
conseguir o diálogo, Pero Vaz de Caminha encontrou-se com a morte em 15 de
dezembro de 1500 aos 50 anos.
Em 1941, um ano antes de seu presumível suicídio junto com sua esposa
Charlotte Altmann (1908-1942), em Petrópolis, Stefan Zweig (1881-1942), o escritor
austríaco de ascendência judaica que, em 1934, fugindo da ditadura nazista, buscou
refúgio na Inglaterra, naturalizou-se cidadão britânico. Poucos anos após ter se
refugiado, o escritor e sua esposa já estavam residindo em Petrópolis, um
inspirativo e romântico espaço para os pensadores. Sob a visão geral das altas
montanhas petropolitanas, o professor Zweig escreveu a sua magnum opus
intítulada Brasil, País do Futuro. Para a época getulista, além do fervilhar da
Segunda Grande Guerra Mundial, esse livro não passava de uma assombrosa
literatura recheada de ufanismo e excessos de elogios a uma ditadura fascista, a
única nas Américas. Os anos, as circunstâncias e os panoramas políticos se
passaram, entretanto, pelo atual fumaceiro, sabe-se que há fogo. O futuro está
presente. Não é necessário ser otimista para trombetear esta realidade! Que rujam
os tambores! Isso mesmo diante dos famigerados e descarados escândalos de não
poucos corruptos, esses bandidos de estimação16 engessados na política, além da
profanação do sagrado entre alguns líderes religiosos oportunistas e/ou muito bem
qualificados como políticos da fé. Nesse raciocínio, em busca do poder, o pastor se
torna político e o político esquece que é pastor! Associando-se com políticos
desonestos, formam uma nuvem de nocivos e devastadores gafanhotos nas
alheadas roças de uma população sem voz. No entanto, é de domínio público a
afirmação de que o Brasil ainda tem jeito na teoria e na prática!
O endosso maior para o tão aguardado sucesso do Brasil vem de longe. Foi
pronunciado publicamente pela primeira vez em 1853, período do Segundo Império,
quando James Cochran Dobbin (1814-1857), que durante quatro anos foi o
respeitadíssimo 22º Secretário da Marinha Americana. A palavra fluiu desse jovem
advogado, que categoricamente afirmou com todas as letras que o Brasil “era um

Essa frase de efeito roubei da Ministra Damares Regina Alves (1964-), em seu discurso informal no
16

Consulado Geral do Brasil em Boston, no crepuscular de quinta-feira, 13 de junho de 2019.


país que seria o segundo, depois dos Estados Unidos, em riqueza e poder” 17
(VIEIRA, David, 1980, p. 106).
Se mascarado ou não, o triunfante crescimento da economia nacional,
embasada em outras inerentes facilidades de quem tem as chaves dos cofres,
levou, em 2009, uma “multidão de 128 milhões de brasileiros a viajarem de avião,
muitos pela primeira vez, enquanto outros 70 milhões preferiram os ônibus
interestaduais e revelou que 443.143 pessoas fizeram cirurgias estéticas” (Revista
Veja, ed. 2174, de 21 de julho de 2010, p. 56, 59, 73). Quase uma cirurgia por
minuto! Haja bisturis para rejuvenescer tanta gente!
Inaugurada no final de abril de 1999, a fábrica da Mercedes-Benz em Juiz de
Fora, Minas Gerais, é também a primeira a produzir automóveis da montadora fora da
Alemanha. Essa fábrica faz parte de um projeto de aproximação do Mercosul, um
emergente mercado de consumo. Com relação à montadora instalada no Brasil, há
duas aprazívels vertentes, uma das quais tem que ser real: a demanda do emergente
mercado, que é promissora e aquece a economia, ou a farta mão de obra, que é
barata!
O topline das exportações dos últimos anos para todos os continentes são os
aviões da Empresa Brasileira de Aeronáutica, a Embraer, ponto referencial nos
transportes aéreos e orgulho de São José dos Campos, cidade localizada no Vale
do Paraíba, interior paulista.
O rio Amazonas, embora não sendo exclusivamente brasileiro, é o que contém o
maior volume de água do mundo. O seu desaguar no oceano Atlântico forma algo
extraordinário e largamente conhecido por pororoca,18 fenômeno natural que forma
gigantescas ondas e é resultante do volumoso encontro das águas doces fluviais com
as águas salgadas oceânicas.
Segundo a Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC),
“dos 5,5 milhões de quilômetros quadrados da área total da floresta amazônica, a
maior da Terra, 60% estão localizados em território brasileiro”. Diante de sua imensa
extensão arborizada, ela se torna quase a responsável por manter a produção e a
liberação do oxigênio a nível mundial! Imensurável floresta, que, pelo seu alto
controle na manutenção do sistema ecológico, metaforicamente é denominada o
pulmão do mundo ou o inferno verde em decorrência de suas vastas regiões
consideradas inóspitas, as quais escondem uma riquíssima vida
predominantemente selvagem em seu contexto geral. Nesse inferno verde, há
incalculáveis riquezas minerais no subsolo, abrindo um leque aos olhos de
diferentes governantes mundiais no endosso de disfarçadas ONGs - Organizações

17
Após 166 anos das afirmações do democrata James Cochran Dobbin perante D. Pedro II no Rio de
Janeiro, a Casa Branca emitiu um vídeo de boas-vindas ao presidente Jair Messias Bolsonaro em
Washington, onde esteve de 17 a 21 de março de 2019. Nesse vídeo, o ex-presidente americano, o
republicano Donald Trump, diz textualmente: “Hoje os Estados Unidos da América do Norte e o
Brasil formam as duas maiores democracias e economias do hemisfério ocidental”. (Disponível em:
<https://www.whitehouse.gov/>. Acesso em: 30 mar. 2019).
18
Pororoca origina-se do tupi poro’roka, que é o gerúndio do verbo poro’rog e significa estrondar.
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pororoca>. Acesso em: 14 fev. 2020).
não Governamentais. A Amazônia é uma selva verde e amarela, cores da bandeira
brasileira e da orgulhosa simbologia da esperança!
Como a vida não consiste somente de euforia nem é laureada de glória, cito o
parecer do doutor Gedeon Alencar, que se autodefiniu como um cabra da peste,
nordestino, crente assembleiano que se tornou sociólogo, o qual, depois de
percorrer diferentes caminhos do submundo, agora está restaurado como resultado
de uma incondicional fé em Jesus, o Homem de Nazaré. Dono de uma língua solta,
ele sabe muito bem se expressar ao repartir algumas alfinetadas na sociedade em
que estamos inseridos.

Somos o melhor, o maior e o pior do mundo. Em tudo. Ou quase tudo. Aqui, tudo é o
maior do mundo: maior rio, maior plataforma de petróleo, maior festa popular, maior
floresta, maior rodovia, maior estádio, maior futebol. Com um detalhe: esqueceram de
avisar ao mundo, só nós sabemos disso. (ALENCAR, 2005, p. 33).

Apenas a título de curiosidade e relembrando a audiência com o ícone da


velha guarda da política portuguesa e, ciente de seu falecimento há poucas horas,
faço aqui uma pequena homenagem ao filho de um sacerdote católico que gerou
uma verdadeira classe política. Na defesa de seus ideais no cosmo da política,
amargou perseguições, encarceramento, despropriado e exilado. Dr. Mário Soares
(1924-2017), foi um incontestável amigo, apoiador e divulgador da esquerda
brasileira. Não sou nem de longe um cientista político e/ou defensor de causa. Sou
um narrador dos acontecimentos dessa enevoada promiscuidade que fomentou a
história de ambos lados do balcão do poder! “Foram dignos, mas não augustos”
(HUGO, 2007, v. 2, p. 18)19

19
Enquanto escrevo, recebo a notícia que às 15h28 de hoje (7 de janeiro de 2017), horário de
Lisboa, faleceu aos 93 anos no Hospital da Cruz Vermelha, Dr. Mário Alberto Nobre Lopes Soares,
após mais de duas semanas internado. Doutor Soares foi o último daqueles que se empenharam
para o banimento do fascismo de Portugal, esforço que culminou na Revolução dos Cravos, o
histórico 25 de abril de 1974. Sem nenhum exagero político ou demagogia, Soares, é reconhecido
como pai, pois simbolicamente é o patriarca da contemporânea democracia portuguesa. Tive a honra
e o privilégio de ter sido recebido em audiência particular com o Dr. Mário Soares em seu escritório,
na tarde de 12 de outubro de 2012. Entreguei-lhe uma Bíblia, além de dois outros livros de minha
autoria. Ele era muito amável, profundo conhecedor de causas, sem dúvidas um polímata do
intelectualismo. Durante 45 minutos, dialogamos sobre diferentes assuntos relacionados a religião,
aos judeus, ao Brasil, a Portugal e ao caminhar político mundial. Foi uma data memorável, encontro
registrado em fotos pelo meu amigo pastor Jaime Rosado. Essa audiência se tornou realidade,
graças a outro amigo português e, faço aqui os meus agradecimentos ao jovem Bruno Bonifácio,
então servidor público destacado junto ao Gabinete da Presidência de Portugal em Lisboa.
Introdução
“O santo padroeiro ocupa o primeiro lugar”
(Moisés Espírito Santo - etnólogo, escritor
e professor universitário em Portugal)

Todos os pesquisadores e escritores são analíticos por natureza. Aliás, aí é


que mora o segredo da pedagogia do humor e muito bem acasalada com a
arquitetura dos factos que geram a credibilidade. Parece que não fujo à regra.
Quanto mais pesquiso, mais estou a encontrar-me com a realidade da História. Não
obstante, em si própria, a existência do ser humano é o caminhar de uma história
factual.
Os ciclos históricos acontecem. Basta notar o caminho que palmilhamos ou
mesmo o assoprar do vento de algum acontecimento. Não sei de quem foi a
filosófica imaginação, porém li, em algum lugar, que devemos recordar o passado,
desfrutar o presente e ter saudade do futuro! Parece uma inversão do pensar o ter
saudade do futuro. Esse futuro nada mais é do que a ânsia de escarafunchar o
passado, escrever no presente, imaginando o sorriso do amanhã. Fugindo à
preponderância do pedantismo, pesquiso o ontem, analiso o hoje e sonho com o
futuro!
No dia a dia, reparei que somos passíveis das falhas do passado que se
repetem em nossos dias. Nas entrelinhas, não deixei de alfinetar o estilo
missiológico transcultural aplicado pelos huguenotes, anglicanos, luteranos,
presbiterianos, batistas, pentecostais, além de outros enlatados que caíram de
paraquedas no fértil solo da religiosidade brasileira. Elevando o tom nas
humorísticas e sarcásticas escritas do jornalista Ivan Santos, “é preciso ter muito
cuidado com o poder divino” (SANTOS, 2019, p. 156).
Entretanto, o desenrolar da história contemporânea está aí para provar, sob o
endosso de pesquisas científicas comprovadas por teólogos, sociólogos,
antropólogos, mestres e doutores em História, além de pesquisadores afins, que o
ciclo se repete, fazendo o compulsor impulsionar a gangorra do vaivém que faz a
história. História conduzindo a própria história!
Toda a massa migratória protestante que aportou no Brasil, com raras
exceções, excluía o nativo da terra. Os pastores calvinistas viveram em meio a uma
comunidade francofalante. Os cultos, as canções, inclusive a Confissão de Fé da
Guanabara foram redigidos e discutidos em francês. O mesmo aconteceu com os
pastores anglicanos e toda a comunidade britânica, diga-se de passagem, por um
período que se iniciou com a chegada da família real provinda de Portugal em 1808.
O Brasil mais parecia uma extensão da Inglaterra. Os ingleses possuíam os seus
restaurantes, suas lojas, seus bancos, seus jornais, seus médicos, seus advogados,
seu hospital. Gozavam de imunidade judicial e também eram donos do seu próprio
cemitério, o histórico Cemitério dos Ingleses, no Rio de Janeiro, local onde os
santos eram sepultados e não havia peças de enfeites penduradas nas paredes das
salas, dos escritórios e dos dormitórios. Entre várias fontes, basta observar as bem-
elaboradas escritas pelo Dr. Jorge Caldeira (1955-), escritor, jornalista e cientista
político natural de São Paulo.

Os ingleses liam seu próprio jornal, o Rio Herald, assistiam culto em inglês na capela
anglicana, empregavam governantas inglesas em suas casas. As crianças tinham aulas
em escolas próprias, com professores trazidos da Inglaterra; se precisavam estudar
mais, recorriam à biblioteca inglesa. Quando ficavam doentes, internavam-se no hospital
inglês e recebiam tratamento de um médico inglês - e até os mortos eram
convenientemente enterrados no Cemitério dos Ingleses. Era fácil encontrar os gêneros
e produtos para o dia a dia: os membros da colônia equipavam suas casas indo às lojas
dos patrícios, onde compravam tudo que consumiam em seu próprio país. (CALDEIRA,
2008, p. 109).

Isso gerou a máxima jornalística de nossos dias: “Manda quem pode,


obedece quem ganha bombons” (SANTOS, 2019, p. 94).
Os luteranos alemães e os italianos da Congregação Cristã no Brasil só
deixaram de falar em sua língua materna nos cultos ao eclodir a Segunda Grande
Guerra Mundial, por exigência do gaúcho Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), o
primeiro ditador do Brasil República entre 1930 a 1945. Seis anos depois, eleito por
escrutínio secreto, o populista Vargas voltou, nos braços do povo e com os votos
dos pobres, a ocupar a Presidência, sendo empossado a 31 de janeiro de 1951.
Esse tema voltará em próximas páginas desse livro.

Getúlio Dornelles Vargas foi o único mandatário brasileiro que antecipou a morte ao
optar pelo suicídio em 24 de agosto de 1954. Estava novamente em ação a mística
Noite de São Bartolomeu. O tiro certeiro no coração transcorreu no aposento
presidencial instalado no terceiro andar do Palácio do Catete no Rio de Janeiro.
(BOAVENTURA, 2012, p. 77)
Simonton, o fundador da Igreja Presbiteriana em solo brasileiro, pregava em
sua língua materna para a comunidade americana, além de outros que entendiam
as expressões britânicas, ou, quando muito, era interpretado por algum fluente
conhecedor do inglês/português. A porta presbiteriana para alcançar os brasileiros
somente foi aberta após a conversão do padre José Manuel da Conceição (1822-
1873), a qual também diminuiu a rejeição da parte dos europeus protestantes, que
não estavam lá muito interessados pela religião, como muito bem afirma o doutor
David Gueiros Vieira (1929-2017), falecido professor aposentado da Universidade
Nacional de Brasília (UNB).

A população germânica, em São Paulo, naquela época - 1867 -, no entanto, já era


bastante grande. Fora a esperança dos missionários presbiterianos utilizá-la como um
meio de protestantinizar toda a província. Entretanto, como os colonos germânicos
manifestaram-se, na sua quase totalidade, indiferentes à religião, os presbiterianos
abandonaram seus primeiros planos e começaram a trabalhar entre a população
brasileira. (VIEIRA, David, 1980, p. 257).

Aquele médico escocês, doutor Robert Reid Kalley (1809-1888), bem ou mal
falava português. Mesmo assim, a primeira escola bíblica dominical realizada em
Petrópolis, dia 19 de agosto de 1855, pela professora Sarah Kalley (1825-1907), sua
poliglota esposa, não contou com a participação de nenhum brasileiro.
Aprendemos tão bem a lição que, hoje, estamos caminhando e utilizando a
mesma velha e manuseada cartilha missiológica. É muito fácil identificar as
mesmices apenas mudando de endereços. Por razões diversas, há comunidades
brasileiras em diferentes nações. Sendo religiosos por natureza, como já analisado,
os brasileiros armam a barraca onde chegam e edificam um altar ao seu Sagrado.
Esse Sagrado, para alguns, é Jesus; para outros, a mãe de Jesus, o primo de Jesus
ou até um santo milagreiro importado de alguma plaga distante, o orgulho da terra
onde o religioso nasceu.
O professor doutor Moisés Espírito Santo (1934-), acadêmico na cultura
portuguesa, dá um empurrãozinho ao som da cadência milagreira/religiosa: “O Santo
Padroeiro ocupa o primeiro lugar, todos os outros lhe são subordinados.” (ESPÍRITO
SANTO, 1990, p. 89).
Em número crescente, nos Estados Unidos, há centenas de igrejas brasileiras
disseminadoras de uma sagrada liturgia direcionada especialmente aos brasileiros.
Importa-se de tudo do Brasil; para alguns, até o exclusivismo, justificável mediante a
crítica mordaz aos americanos de que somos mais santos, mais puros, mais, mais,
mais! Nesse meio, há ainda aqueles que se autodenominam missionários nos
Estados Unidos! Na realidade, o que é muito importante, não passam de imigrantes
brasileiros ministrando para imigrantes brasileiros. Com raríssimas exceções, há
alguns que também estão buscando alcançar os americanos. Não obstante,
sabermos ser este um mercado restrito, muito fechado e conservador.
O mesmo ocorre em Portugal. Quando lá chegamos, em 1991, havia um
número irrisório de brasileiros registrados no Consulado Geral do Brasil em Lisboa.
Aqueles que não exerciam suas atividades missionárias - católicos ou evangélicos -
participavam das igrejas portuguesas. No período áureo da economia europeia e
das vacas magras no Brasil, falava-se em uma estimativa de até 200 mil brasileiros
disputando o mercado de trabalho em Portugal. Se esse número é real,
representava cerca de 2% do total da população portuguesa.
Tal como nos Estados Unidos, não foi esse o no caso, criaram-se várias
igrejas brasileiras para servir única e exclusivamente à comunidade brasileira em
Portugal. A história se repete ao inverso da jornada nos séculos passados. Outrora,
o Brasil foi receptor de missionários, hoje é o transmissor. Todavia, seremos
julgados pelas gerações futuras quanto aos nossos métodos de fazermos missões.
Sei que estou escrevendo para um seleto e exigente grupo de leitores. A
minha principal preocupação é informar os fatos com total transparência e o mais
próximo possível da realidade. Caberá ao leitor, após degustar a leitura, emitir as
suas análises, críticas e considerações dos factos aqui arquitetados.
Sinto-me na responsabilidade de esclarecer que este trabalho não é nenhuma
dissertação acadêmica dentro dos parâmetros científicos. Portanto, é passível de
erros, embora eu tenha buscado selecionar as mais fidedignas fontes de consultas.

Carlos Boaventura
Fall River, 28 de dezembro de 2019

Primeira Parte
“Passaram pela prova de escárnios e açoites”
(Hebreus 11:36)

Uma Roma preocupada


O Dr.
(INICIAR NOVO PARÁGRAFO). Com D. ou Dom Cláudio Hummes é um gaúcho
nascido em 8 de agosto de 1934 na cidade de Montenegro, o qual atualmente
(outono americano de 2019) exerce a função de Prefeito Emérito da Congregação
para o Clero, um fascinante cargo administrativo, embora meramente político,
dentro do Vaticano. Tal função confere-lhe certos prestígios na cúpula romana. Esse
teuto-brasileiro, que faz parte da Ordem dos Frades Menores (OFM), no exercício
de suas funções eclesiásticas, foi o décimo oitavo bispo e sexto arcebispo de São
Paulo. É um líder com muita bagagem dentro do sistema eclesial e administrativo da
Igreja Católica Apostólica Romana, o qual, quando entrevistado em dezembro de
2005, verbalizou sua preocupação quanto ao decrescente quadro dos católicos no
Brasil e, consequentemente, em toda a América do Sul.
‘O Brasil, o maior país católico romano do mundo, assiste a um declínio implacável
de sua população católica’, advertiu o arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes.
‘Estamos nos perguntando com angústia por quanto tempo ainda o Brasil permanecerá
um país católico’, questionou o cardeal durante o sínodo no Vaticano, que reuniu mais
de 250 bispos.
Hummes afirmou que cerca de 67% dos brasileiros se dizem hoje católicos, contra
83% em 1991, e os números estão caindo cerca de um ponto percentual por ano.
Segundo ele, o maior declínio de fiéis ocorre nas periferias pobres das grandes cidades.
Dom Cláudio afirmou ainda que o catolicismo parece estar em queda em toda a América
do Sul. ‘A igreja deve dar mais atenção sobre como enfrentar essa grave situação.’
Hummes disse aos bispos que os católicos têm que lutar contra essa diminuição com
zelo missionário e deu a entender que os protestantes estão sendo mais agressivos na
busca dos fiéis. ‘Para cada padre católico que temos no Brasil, há dois pastores
protestantes, a maioria de igrejas pentecostais’, comparou Hummes. (Brasileiras &
Brasileiros, v. 11, n. 12, dez./2005, p. 6).

Um protestantismo em contínua expansão

A explosão protestante/evangélica, que teve o seu ápice de crescimento na


década dos anos 60, empurrou o Brasil para o terceiro lugar no ranking mundial,
ficando atrás dos Estados Unidos e da China. Segundo as históricas e saudosas
estatísticas de um Brasil do passado quando,

em 1900, havia menos de 100 mil evangélicos, na época conhecidos pela alcunha de
protestantes. Em 1960, eram quatro milhões; em 1970, oito milhões; em 1980, eram
quinze milhões; e em 1990 chegaram aos vinte e seis milhões, sendo 88% desse total
composto apenas de pentecostais. Durante muito tempo, o Brasil foi conhecido como o
maior país católico do mundo, mas esse quadro mudou. Agora o Brasil tem, dentro de
suas fronteiras, a terceira maior comunidade evangélica do mundo, atrás somente dos
Estados Unidos e da China, desfrutando de uma tendência de expansão.
(JOHNSTONE, 1994, p. 171).

Embora esses dados sejam fascinantes, há uma defasagem natural nos


relatos, tendo em vista que as pesquisas empreendidas pela equipe do doutor
Patrick Johnstone (1938-), um conhecido missiólogo britânico, foram realizadas ao
apagar das luzes da década de oitenta, sendo publicadas pela primeira vez no
Brasil em 1994.20
Por estimativa, é possível afirmar que esteja no Brasil a maior população
pentecostal do mundo, algo em torno de 40 milhões de pessoas. Se correto, esses
milhões representam um expressivo número representativo dos pentecostais
espalhados por todos os continentes. A principal razão desse crescimento é que
cada crente pentecostal é um evangelista em potencial e, em sua voluntária função,
nunca perde a oportunidade de compartilhar sua nova fé. Na 1 a Conferência Mundial
Pentecostal, realizada em 1947, em Zurich, Suíça, o Brasil foi destacado como o
terceiro país em número de crentes pentecostais em todo o mundo, com 100 mil
crentes batizados nas águas (CONDE, 1982, p. 33). Após 20 anos daquele
memorável conclave realizado na Europa, coube ao Brasil hospedar a 8 a

20
Em 1996 participei, na cidade do Porto, de uma concorrida conferência proferida pelo Dr. Patrick
Jonstone, um homem sério e altamente apaixonado pelas missões cristãs.
Conferência Mundial Pentecostal, evento que transcorreu na cidade do Rio de
Janeiro entre os dias 18 a 23 de julho de 1967.
Agrupando somente as denominações taxadas de histórico-tradicionais,
sensivelmente alcançaremos a média de mais de 4% da população brasileira. Isso
representa um pequeno naco diante da monstruosidade dos pentecostais,
neopentecostais e carismáticos/renovados. Mesmo assim é expressivo o número de
mais oito milhões de brasileiros que são congregacionais, presbiterianos,
metodistas, batistas, luteranos, anglicanos, episcopais e outros. Não devemos
esquecer que, diante de raras exceções, todas essas denominações colocaram
suas estacas no Brasil em meados do século XIX, no áureo período de D. Pedro II,
monarca membro da maçonaria e abarrotado de cultura geral.
Mesmo tendo diminuído na contagem nacional, não temos nenhuma razão para
criticar as denominações históricas. Aliás, não é esse o nosso objetivo. Dentre elas
houve destemidos heróis que honrosamente abriram as portas para a expansão cristã
evangélica/protestante no Brasil. Muitos missionários que aportaram no Brasil Colônia
ou no Império pagaram com a própria vida a ousadia de penetrar em território
exclusivamente dominado pelo então poderio amendrontador da Igreja Católica
Apostólica Romana. Sem enumerar as incontáveis enfermidades que assolavam por
toda a nação, fazendo do Brasil um campo minado. Ao se referir às intolerâncias
religiosas do passado, o escritor aos Hebreus anteviu a saga dos missionários que
chegaram no Brasil:

Outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e
prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada;
andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, aflitos,
maltratados. (Hebreus 11:36-37).

Aquelas destemidas e denodadas famílias que aportaram no Brasil colonial e


posteriormente imperial superaram todos os obstáculos, venceram toda sorte de
dificuldades, lutaram até mesmo contra a morte para alcançar os seus objetivos e
cumprir na íntegra o ide do Senhor Jesus. “Os vencedores não encaram os limites
como uma barreira intransponível à sua frente, mas, sim, como uma fronteira que
pode ser rompida, cruzada e superada” (FRANCISCO, 2014, p. 18). 21 Colocaram-se
diante da fúria de Roma, a mesma Roma que, sob os seus nefastos imperadores,
massacrava os cristãos nas arenas do Coliseu, obrigando-os a se refugiarem nas
insalubres cavernas ou em fétidas catacumbas. Quanto a isso, há informações
muito bem descritas por um catedrático espanhol comprometido e membro
seriamente dedicado da Igreja Católica Apostólica Romana, quando enfatiza sobre a
sagrada cidade de Roma.

A capital na qual o poder e a glória, a crueldade e a caridade, as paixões e a


generosidade, o pecado e a virtude, a arte e a miséria encontraram as suas expressões
mais sublimes. Pontificado e Roma encontram-se indelevelmente imbricados,
entretecido, solapados para o bem e para o mal. [...] Às vezes pode dar a impressão de

21
“A morte, disse Bonhoeffer, é o supremo festival a caminho da liberdade. Se ele estiver errado,
tudo está perdido. Se estiver certo, a liberdade acaba de começar” (YANCEI, 2016, p. 134).
que em Jerusalém ficou a coroa de espinhos e em Roma a tiara. (GALLEGO, 2010, p. 9,
11).

Foi nesse período de glórias, perseguições, sofrimentos e mortes atrozes que


nasceu Tertuliano (155-222), um africano natural de Cartago, cidade que hoje faz
parte da Grande Túnis, capital da Tunísia. Mesmo consciente de que o cristianismo
era símbolo de renúncia, perseguição, massacrantes torturas, exílio e morte, como
já mencionado, Tertuliano22 não hesitou em sua firme decisão: abandonou o
paganismo, abraçando ardorosamente a fé cristã, colocando em rísco sua própria
vida, sua reputação, seu futuro e não poucos sonhos. Como cristão, deixou o seu
nome entre os grandes vultos do terceiro século de nossa era. Foi de sua lavra a
imortal frase: o sangue dos mártires é a semente da igreja. Esses mártires foram
verdadeiros patriarcas alicerçados na imbalável fé. Em resultado, nem a morte
conseguiu estancar a expansão do Cristianismo! A bem juridicamente deliberada
pax romana ganhava outro discurso quando estava em jogo os cristãos que
avançavam por todo o império. “Sempre foram mal-vistos e maltratados, mas nunca
desanimaram, e a perseguição pareceu outorgar-lhes novas energias” (GALLEGO,
2010, p. 15).
Tertuliano fez parte da áurea época dos apologistas que se levantaram em
defesa da fé cristã. Tudo que ele compreendia sobre a pessoa do Espírito Santo
aprendera com os montanistas.

O montanismo surgiu na Frígia em 155 como tentativa da parte de Montano em resolver


os problemas do formalismo na Igreja e a dependência da Igreja da liderança humana
quando deveria depender do Espírito Santo. Esta tentativa de combater o formalismo e a
organização humana levou-o a reafirmar as doutrinas do Espírito Santo e da Segunda
Vinda. Infelizmente, como geralmente acontece em movimentos desta natureza, ele caiu
para o extremo oposto e concebeu fanáticas e equivocadas interpretações da Bíblia.
(CAIRNS, 2004, p. 82).

Embora no meio do montanismo houvesse não poucas heresias, esse grupo é


o mais próximo dos atuais pentecostais. Montano foi taxado de fanático por suas
ideias apocalípticas e liberais pelo fato de ser acompanhado das profetizas Prisca e
Maximila, que ditavam as normas e regras no uso das previsões escatológicas,
agindo na manipulação do sagrado, dando asas “ao mistério, ao milagre e a magia”.
(BERGER, 1985, p. 124)

O montanismo representava exatamente a noção da dispensação especial do Espírito


Santo, combinada com uma nova manifestação do entusiasmo profético primitivo e com
a convicção de que o fim dos tempos estava próximo. Em grande parte, representava
também uma reação contra as tendências seculares que já se faziam sentir na Igreja.
(WALKER, W., 1981, v. 1, p. 86-87).

Aqueles primeiros missionários que chegaram ao Brasil, onde foram


perseguidos, caluniados, presos, espancados e, finalmente, martirizados, jamais
poderiam imaginar o desfecho da história que eles iniciaram e da qual foram os
principais heróis e protagonistas. Em nossos dias, mais de um milhão de pessoas
22
Seu nome completo em latim é Quintus Septimius Florens Tertullianus.
se convertem ao protestantismo a cada ano nas terras do Brasil. Para acomodar
essa multidão, são inaugurados mais de quinhentos templos ou salões a cada doze
meses, uma considerável estatística que vem abalando todos os segmentos da
sociedade brasileira. Com base em pesquisas de 1994, “no Rio de Janeiro, surgem
mais de cinco denominações por semana e 97% das mesmas são pentecostais”
(ALENCAR, 2005, p. 102). Também o jornalista Thiago Prado (Revista Veja, ed.
2503, de 9 novembro 2016, p. 40, 42), ao referir-se à cidade do Rio de Janeiro e ao
Brasil, em seu todo, afirma: “O número de fiéis das igrejas evangélicas no Brasil não
para de crescer há décadas, enquanto o de católicos só cai”. Não será esse
avançado crescimento, uma disputa interna pelo controle do sagrado no mercado
religioso? Infelizmente meio a essa expansão, está em jogo não poucos interesses
do poder e o fluir da economia mediante o exercício da fé.
Há anos, o Brasil conquistou o título de campeão mundial na publicação e
comercialização de Bíblias e com muita garra o tem mantido. Hoje, bem ou mal,
encontram-se traduções e versões para todos os gostos e interesses da clientela
religiosa de expressão portuguesa.

E o melhor de tudo é que o Brasil já pode gabar-se de ser o primeiro mundo, pelo menos
em matéria de Bíblias. O País ocupa a liderança na produção do livro sagrado desde
1998, com a média de 7 milhões de exemplares/ano, incluindo as editoras católicas.
(Revista Eclesia, n. 64, mar./2001, p. 37).

Esse promissor e lucrativo mercado dirigido aos evangélicos e aos


simpatizantes da fé dos crentes desfruta de um vertiginoso crescimento, pois a cada
dia surgem novos potenciais clientes na praça! O percentual de crescimento de
publicação de livros evangélicos no Brasil “chega a 20% e a previsão é que
aumente muito mais”. A mesma fonte afirma que o “mercado de livros evangélicos
dos Estados Unidos não cresce mais do que 7% ao ano e as perspectivas não são
das melhores.” (Revista Eclesia, n. 115, mar./2006, p. 33)
Mesmo nos mais amargos anos de crises econômicas, sociais, políticas e de
perdas dos bons valores e costumes morais, paulatinamente o Brasil vem se
superando e ainda continua publicando Bíblias acima da média mundial.

A Sociedade Bíblica do Brasil produziu e distribuiu 6,7 milhões de Bíblias em 2011 [...]. A
Gráfica da Bíblia, instalada no município de Barueri, em 1995, onde também fica a sede
da SBB, produz um exemplar da Bíblia a cada três segundos, consumindo 800 bobinas
de papel por mês, o que equivale a 24 mil quilômetros. O papel consumido em um ano
daria 7,2 voltas ao redor do planeta Terra. (Disponível em: < https://alc-
noticias.net/bp/>. Acesso em: 16 mar. 2012).
Ao longo desses 60 anos, a SBB distribuiu no Brasil mais de 65 milhões de Bíblias e 4
bilhões de Escrituras, Bíblias e partes. Em 1949, seu primeiro ano completo de
atividades, a SBB distribuiu 105 mil Bíblias. E, no ano de 2006, chegou a 5 milhões e
500 mil, ou seja, 52 vezes mais do que o ano de sua fundação. Em 2006, a SBB foi
líder, entre as 141 Sociedades Bíblicas nacionais em atividades ao redor do planeta,
tanto em distribuição de Bíblias completas como de Escrituras. (GIRALDI, 2013, 2ª, ed.
p. 13).
O mercado produtor de livros, revistas, além dos antigos CDs, DVDs ou
similares gera milhares de empregos diretos e indiretos, movimentando um
montante de milhões de reais a cada ano. As revistas evangélicas, diga-se de
passagem, possuem um padrão de bom gosto altamente profissional. Nos áureos
momentos e picos da oscilante economia brasileira, esses informativos estiveram
disponíveis nas bancas de jornais das cidades de grande e médio porte.
Centenas de emissoras evangélicas podem ser sintonizadas e ouvidas nos
mais distantes lugarejos do país e o mesmo sucede com redes nacionais de
televisão a cabo e abertas.
A Folha Universal, jornal quinzenal iniciado em 1992 e editado pela Igreja
Universal do Reino de Deus, tem uma tiragem de três milhões de exemplares por
mês, sendo consumido por diferentes segmentos sociais.
Em nossos dias, ser protestante/evangélico no Brasil gera até mesmo status.
Virou moda tornar-se cristão evangélico. Vários integrantes do alto, médio e baixo
escalão do governo são crentes assíduos nos cultos. O mesmo sucede entre os
militares, desportistas, atores, políticos e grandes empresários. O mundo político e
governamental faz parte do acelerado avanço dos diferentes segmentos
evangélicos. Ser evangélico/protestante no Brasil é fazer parte de uma grande e
próspera família. Em resultado desse avanço, cresceram também os problemas e
as desavenças que geram profundas discórdias, dando lugar às brigas pelo poder e
o despontar de líderes profanos que teatralmente sabem fazer o jogo do sagrado
diante da crendíce de um povo. A grandiosidade do grupo ganhou tal proporção
que, lá em Brasília, existe até uma bancada politicamente evangélica, a qual, por
interesses eleitoreiros, bem ou mal, faz barulho e promove certas diferenças. “Os
homens devem ser transformados pelas coisas santas, não as coisas pelos
homens” (GALLEGO, 2010, p. 492).
Não obstante, diante de alarmantes corrupções, tudo isso vem gerando
dúvidas aos atentos olhares de diferentes eleitores. Esse jogo de interesses do
toma lá dá cá tem sido muito bem questionado pelo professor Pedro Almeida Vieira
(1969), jornalista e biofísico natural da acadêmica Coimbra, Portugal: “Fazer algo
pelo bem público significava, antes de tudo, fazer pelo bem próprio” (VIEIRA, P.,
2016, p. 165). Pautadas e secas, dispensa comentários!
Richard Francis Xavier Manning (1934-2013), mais conhecido por
Brennan Manning, foi um conservador padre franciscano leigo e orador público
americano. Com somente meia dúzia de palavras, sua espetada vai diretamente no
âmago da questão: “Só os trapaceiros se dão bem” (MANNING, 2017, p. 16). Com
relação ao discriminado passado protestante, que deu vazão às perseguições, a
realidade dos nossos dias é muito diferente daquilo que ocorreu no princípio da
colonização do Brasil.23
23
Até o histórico e decisivo 15 de novembro de 1889, quando da Proclamação da República, todos
os cargos eletivos ou nomeados eram restritos somente aos católicos. Após mais de 130 anos, o
vetor da história tem sido outro, não obstante que hermeneuticamente poderia ser bem melhor, mais
confiável, transparente e justo. Somos uma República nova, repleta de insolúveis embates sociais
sob o endosso da corrupção de um corporativismo político amplamente recheado por politiqueiros de
plantão. Em tese, o Brasil, que há muito deixou de ser monarquia, ainda não se achou republicano e
As primeiras tentativas

O padre Martinho Lutero24 (1483-1546), tão hábil como valente, ainda na casa
dos 33 anos, se tornou o astro central que conclamou uma verdadeira revolução
política, intelectual, social, literária, econômica e religiosa. Esse emaranhado de
fatores trouxe até a superfície o real direito de expressão do cidadão oprimido. Em
outras palavras, Lutero foi o disseminador de uma visão democrática pela qual o
povo ganhou os seus direitos ao abraçar uma nova ideologia de fé e práticas. Essa
revolução explodiu na Alemanha e extrapolou as fronteiras europeias em um
período de medo e pressão social, quando os mais espertos exerciam politicamente
o direito da manipulação do sagrado e o terror espalhado pela mortífera Inquisição.
O Santo Ofício era o sutil braço armado que executava os acusados de heresias.
Pelo dedo se conhece o gigante! Inconscientemente e na busca de radicais
mudanças, o jovem Lutero era o dono do discurso da discórdia que despejava água
na roda furiosa da vida. Essa furiosa oratória foi o instrumento que levou à divisão
da História, da pré e da pós-Reforma. Em certo sentido, os efeitos produzidos pela
Reforma cimentaram a real existência da democracia de que hoje desfrutamos. Na
prática, nem mesmo a Grécia desfrutava da verdadeira democracia.
Dentro de uma visão clinicamente cristã, não há dúvidas de que Deus narrou
os fatos pelas mãos daquele dinâmico pároco, frade alemão, doutor e professor de
teologia ligado à ordem de Santo Agostinho de Hipona. O monge Martinho Lutero,
nascido na aldeia de Eisleben, dia 10 de novembro de 1483, onze dias antes de
completar 34 anos, desafiou as ordens impostas por Giovanni de Médici (1475-
1521), o excêntrico, poderoso e devasso papa Leão X. Voltemos ao sábio parecer
do professor Juan María Laboa Gallego (1939-), um teólogo e historiador católico
espanhol, o qual afirma que a política daquele papa “favoreceu os Medicis, mas não
a Igreja”. Leão X foi um papa extremamente perverso que buscou orientação na
mesma manuseada e viciada cartilha utilizada pelo cruel e oportunista Alexandre
VI,25 o último papa nascido na Espanha, em detrimento de cujo pontificado, que
democrata; está à deriva em meio a um mar de lama de acusados e acusadores, explorados e
exploradores! Não seriam esses os vigaristas serenos e donos das pandêgas do poder? “Eu sei que
a chuva é pouca e que o chão é quente. Mas, tem mão boba enganando a gente, secando o verde
da irrigação. Não! Eu não quero enchentes de caridade, só quero chuva de honestidade. Molhando
as terras do meu sertão”. Linguagem de clamor e protesto do pernambucano Flávio Leandro (1969-),
compositor e cantor de Chuva de Honestidade. (Confira em: <https://youtu.be/yQd-EhAXY8Y>.
Acesso em: 12 ago. 2019).
24
O americano Orland Spencer Boyer (1893-1978), um pioneiro na distribuição de literaturas no
Brasil, afirma: “Encontra-se o seguinte na História da Igreja Cristã, por Souer, vol. 3, pág. 406:
Martinho Lutero profetizava, evangelizava, falava línguas e interpretava; revestido de todos os dons
do Espírito” (BOYER, 1986, p. 38). Isso demonstra que Lutero tinha não apenas cultura, mas também
uma total dependência do Grande Criador.
25
Nicolau Maquiavel (1469-1527), um filósofo, historiador e músico florentino, tinha horrores pelas
maléficas decisões do espanhol Alexandre VI.

Não quero silenciar um exemplo moderno: o de Alexandre VI, que em sua vida só fez enganar os
homens. Nunca pensou em outra coisa, e encontrou sempre oportunidade para isso. Ninguém
jamais afirmou com tanta convicção - e prometendo com tanto vigor cumpriu tão pouco o
prometido. Contudo, sempre se beneficiou com a mentira, pois conhecia bem esta arte.
durou 11 anos (de 11 de agosto de 1492 até sua morte em 18 de agosto de 1503),
muito bem nos diz o seu conterrâneo e católico praticante: “Revelou ser mais um
homem do Renascimento do que da Igreja, tendo zelado melhor pelos interesses da
sua família do que pelos interesses eclesiásticos.” (GALLEGO, 2010, p. 184).
O protagonista que Lutero, com persistência e coragem, desafiou foi sumo
pontífice de 1513 a 1521. Ao ocupar o trono papal em Roma, Leão X estava com
somente 38 anos e, ainda hoje, é o mais jovem a exercer essa função nos últimos
cinco séculos. O florentino Giovanni de Médici exerceu o episcopado papal por
somente oito anos. De pouca sorte e estribado em sua extravagante índole
comportamental, sendo quase um demente psicossomático, teve uma morte
prematura aos 46 anos.

Giovanni de Médici era o segundo filho de Lourenço, o Magnífico, e foi eleito aos 38
anos. Tudo nele foi precoce, não pelos seus méritos, mas pela sua origem: protonotário
apostólico aos 7 anos; cardeal aos 12; diácono aos 14; papa aos 38; morreu aos 46. Só
tardou em ordenar-se sacerdote, já que era ainda diácono ao ser eleito para o
pontificado. No ambiente brilhante da Florença de seu pai gozou de uma selecta
educação graças a Policiano e Marsílio Ficino, dois dos mais respeitados humanistas da
sua época. Com alguns familiares, entre os quais se encontra o seu primo, o futuro
Clemente VII. (GALLEGO, 2010, p. 254).

Havia um histórico do passado que o tempo não nos deixa esquecer: “A


família Médici estava envolvida no financiamento das navegações portuguesas e do
tráfico de escravos” (GOMES, 2019, v. 1, p. 113). Tudo isso era parte do imundo
jogo de interesses especulatórios que cimentava a implantação do poder religioso
casado com a política imperial. O eterno dependendo do temporário, em uma
relação na qual o profano dominou o sagrado na dialética do casuísmo!
Leão X soa apenas e somente um pomposo título na ostentação litúrgica e
pedagógica do egocêntrico poder papal. Esse foi o glamoroso nome escolhido por
Giovanni de Medici, um florentino nascido em berço de ouro a 11 de dezembro de
1475. Todavia, a dinâmica, a coragem e os fortes ideais do frade Martinho Lutero
fizeram com que o rugido do Leão se tornasse à semelhança do miado de um
desdentado, amendrotado e acuado gatinho de estimação. O Cisne, profetizado por
João Huss (1369-1415) enquanto se dissolvia na fogueira, venceu o Leão!
Aos olhos dos simples e mortais cidadãos, Lutero foi, ao mesmo tempo,
extremamente rebelde, ousado, corajoso e politicamente impetuoso ao fixar na porta
central do templo do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, suas contundentes, bem-
elaboradas e desafiadoras 95 teses. Todos os 95 artigos de sua tese foram escritos
em latim, na época a língua oficial da Igreja. Novamente, ali estava o filosófico e
atraente discurso da discórdia, algo que o monge em destaque muito bem sabia
fazer e controlar. Como diz o jornalista do Triângulo das Minas: “A vida de todo ser
humano é feita de contradições e surpresas” (SANTOS, 2019, p. 55). Há muito que
Martinho Lutero havia se armado contra as abusivas vendas de indulgências
encabeçadas pelo também alemão Johann Tetzel (1465-1519), mas faltava-lhe o
oportuno momento para se manifestar. Tetzel, o ambicioso marqueteiro papal, era

(MAQUIAVEL, 2004, p. 108).


um frade da Ordem dos Dominicanos, a qual, pela sua ganância e ferocidade, foi
alcunhada de os Cães de Deus.26 O objetivo de Tetzel, um especialista na indução
psicológica dos incautos da fé, era angariar valores monetários para a faraônica
construção da Basílica de São Pedro, em Roma, cuja obra foi iniciada pelo papa
Júlio II em abril de 1506 e somente concluída no final de 1626, período que totalizou
120 longos anos, tempo em que muitas pessoas, na boa fé, foram ludibriadas com
falsas promessas de perdão de seus pecados comprando indulgências.
“Depois de esgotar a riqueza da Igreja, Leão passou a mascatear
indulgências como ingressos para o paraíso. [...] Uma indulgência não compra o
perdão. Apenas reduz a penitência imposta” (SCOTTI, 2007, p. 166-167). A falecida
jornalista Rita Angelica Scotti (1943-2010) foi uma católica ítalo-americana, cujo lar,
quando ela era criança, no estado americano de Rhode Island, hospedou por várias
vezes o monsenhor Giovanni Battista Montini (1897-1978), íntimo amigo do seu pai
e que, posteriormente, tornou-se por 15 anos o papa Paulo VI 27 (1963-1978).
“Embora Paulo VI tenha concebido o papado como serviço e não como poder,
continuou a ser um papa solitário. [...] foi o primeiro papa a visitar a Terra Santa”
(GALLEGO, 2010, p. 442, 443).
Como já mencionado em parágrafos anteriores, a histórica Basílica de São
Pedro só foi concluída e oficialmente inaugurada em 18 de novembro de 1626,
totalizando 120 longos anos de uma megalômana construção. Nesse período, a
Igreja Católica Apostólica Romana foi gerenciada por 20 diferentes papas, líderes
que fizeram história. Alguns foram verdadeiros perdulários, corruptos, amasiados,
criminosos, escravagistas, promotores abertos da simonia, fomentadores e
patrocinadores do terrorismo internacional, algo tão antigo quanto a invenção da
roda. Entretanto, a bem da verdade, deve ser esclarecido que nem todos os papas
foram proprietários de tais predicados. Houve entre eles homens sérios, de ilibado
caráter, amantes das almas, das artes, da historiografia bíblica e altamente
comprometidos com a castidade celibatária religiosa. Não poucos foram líderes
filantrópicos, humanistas e muito amados por diferentes segmentos da comunidade
internacional.
De forma muito simples, nossa profunda gratidão a Jesus Cristo não é manifestada no
ato de sermos castos, honestos, sóbrios e respeitáveis, nem frequentadores de igreja,
carregadores de Bíblia e cantores de salmos, mas em nosso profundo e delicado
respeito uns pelos outros. (MANNING, 2017, p. 123).

26
Parece que em nada mudou no desenrolar de sua secular trajetória. Em de julho de 1967, no ardor
do Regime Militar no Brasil, os Cães de Deus ainda continuavam a ladrar!

Os cem religiosos e seminaristas da Ordem dos Dominicanos espalhados pelo Brasil tinham uma
conhecida relação com os movimentos clandestinos. A CIA identificara neles uma base de apoio da AP,
tanto com dinheiro como locais para reuniões clandestinas. [...] O Jornal O Estado de S. Paulo, porta voz
do integrismo católico, pediu em editorial que a Ordem dos Dominicanos fosse expulsa do país.
(GASPARI, 2002, p. 147)

27
Nos anais históricos do Vaticano, Paulo VI, foi o sumo pontíficie de número 262. Coube a esse
bem-dotado político/religioso italiano dinamizar a velocidade papal em suas jornadas e
peregrinações. Curiosamente, “foi o primeiro papa a viajar de avião”. (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VI>. Acesso em: 13 maio 2017).
Novamente salta aos nossos olhos as escritas do professor espanhol Juan
María Laboa Gallego (1939-), o qual, faço questão de reprisar, é católico praticante,
filósofo, teólogo e doutor em História da Igreja pela Universidade Gregoriana de
Roma. Assim ele se referiu à inauguração da grande catedral em 18 de novembro
de 1626. Referindo-se ao papa Urbano VIII (1623-1644).

Consagrou finalmente a Basílica de São Pedro, depois de executar os mil pormenores


que restavam. O interior deste templo, como o da maioria das igrejas barrocas, sem
deixar de ser uma casa de oração, era também um teatro. Tinha sido construído para
impressionar as pessoas simples. A etiqueta e a pompa eram extraordinárias, e toda a
decoração tinha como finalidade, supostamente, representar a glória de Deus, mas
também a dos papas. (GALLEGO, 2010, p. 299).

Em resultado da ousada, coragem e ação pública dentro de um contexto da


política religiosa idealizada por Martinho Lutero, a história e as ciências gerais
galgaram novos patamares a partir do memorável 31 de outubro de 1517, data
inserida na história como o Dia da Reforma.

Não se pode dizer que Lutero causou a primeira Reforma. Ele foi somente o fósforo que
acendeu o fogo; a madeira seca já estava pronta para queimar. [...] A igreja foi
reformada pela mão de Deus, a fim de prepará-la para o novo mundo que estava por vir.
(WALKER, J. et al, 2002, p. 224).

Utilizando uma metáfora na esfera do simbologismo histórico, a Europa foi


incendiada com o fósforo que se encontrava nas mãos de Martinho Lutero, chamas
que se espalharam como um incontrolável vírus, fluxo que chegou a tantos outros
reformadores. Em harmonia semelhante a de um afinado coral, as vozes
decretaram um basta na evolução do profano diante do sagrado (“Quem sabe faz a
hora, não espera acontecer”, escreveu Geraldo Vandré). Essas labaredas atiçaram
e impulsionaram a expansão do protestantismo, a qual foi de tamanha envergadura
que o próprio Lutero ficou assustado com os rápidos resultados daquele
empreendimento de fé. “Ein fest Burg ist unser Gott”, título original em alemão do
famoso hino cristão Castelo Forte é o Nosso Deus, que se tornou popular, altamente
revolucionário e estritamente desafiador, com letra e música que o próprio Martinho
Lutero compôs lá pelo ano de 1529. É considerado o Hino de Batalha da Reforma
Protestante. Foi no auge das difamações e perseguições que Lutero encontrou
inspiração nos expressivos versos do Salmo 46. “A pregação luterana propagou-se
com uma velocidade surpreendente não só na Alemanha, mas também em toda a
Europa. Em diferentes cidades outros tantos pregadores apresentaram doutrinas
heterodoxas, às vezes com êxito imediato” (GALLEGO, 2010, p. 492).
Em reação aos resultados que varriam a Alemanha e tantas outras nações na
Europa, a Igreja Católica Apostólica Romana viu-se obrigada a formar sua apelativa
contrarreforma. Nada errado; para cada ataque há difrentes reações. Porém a Igreja
Católica tomou essa medida na busca de contradizer e barrar definitivamente os
ideais dos reformadores, que surgiram como ervas daninhas em diferentes locais da
polvorosa Europa. “A disputa entre católicos e protestantes iria produzir maior
reflexão e obras marcando os territórios” (PAGANELLI, 2019, p. 31)
Nesse período, ao nascer de novas perspectivas, renovações e profundas
transformações, houve os oportunos momentos que produziram grandes impactos
em diferentes segmentos de uma até então escravizada, amordaçada e manipulada
sociedade privada de seus direitos. Em resultado a tudo isso, nações completas
escorregaram das mãos dos governantes da religião de Roma e se debandaram
para o protestantismo. Na pluralística visão do romancista Graciliano Ramos de
Oliveira (1892-1953) e muito bem encaixada no texto pelo jornalista lá do Triângulo
das nossas Gerais. ”A palavra não foi feita para enfeitar, a palavra foi feita para
dizer” (SANTOS, 2019, p. 17). A palavra conquistou a sua razão. Agora, para os
protestantes,28 a Bíblia deixou de ser um mero livro que enfeitava as estantes de
bibliotecas, tornando-se uma bússola para ser examinada, manuseada e obedecida
sem restrições, sem ser passível do crivo da censura inquisitorial de Roma.
“Quando a religião demonstra desdém e desrespeita os direitos das pessoas,
mesmo alegando os pretextos mais nobres, ela nos afasta da realidade de Deus.
Podemos aplicar linguagem reversa à religião, e fazer da religião uma fuga da
religião” (MANNING, 2017, p. 140).
Sob o manto sagrado ou profano dos argumentos, o padre Martinho Lutero
defendia suas teses, algumas vezes livremente, outras vezes sob ordens expressas
de Adrian Florensz Boeiens (1459-1523), então Papa Adriano VI, ou do seu
sucessor, Giulio di Giuliano de Médici (1478-1534). Esse não era outro senão o
herdeiro da poderosa família Médici, que, na função de Sumo Pontífice da Igreja
Romana, adotou o adocicado nome de Clemente VII. Nesse ínterim da história,
João Calvino (1509-1564) não passava de um jovem desconhecido, porém aplicado
estudante de filosofia na Universidade de Paris. Esse francês nascido na aldeia de
Noyon, pertencente à Picardia, cidade ao norte da Capital francesa, de pouca sorte
existencial, aos 55 anos foi vencido pela morte enquanto refugiado em Genebra,
Suíça, onde formou um governo teocrático. Inquestionavelmente esse polímata
pensador, professor, escritor e administrador em muito teve a ver com a chegada
dos primeiros protestantes que se tornaram um marco histórico do Brasil Colônia.
Adriano VI nasceu em Ultrecht, hoje uma das mais importantes cidades da
Holanda, em 2 de março de 1459, recebendo o nome de Adrian Florensz Boeiens.
Antes de ascender à cátedra de Roma, Adrian foi inquisidor-mor da Espanha entre
1518 e 1522 com o apoio financeiro real, o tráfico de influência e os interesses
políticos do jovem imperador Carlos V (1500-1558). Tudo isso recheado de sua
própria exarcebada e pública fúria contra os protestantes. Desfrutando de privilégios
e do forte empurrão imperial, esse holandês foi eleito papa aos 63 anos. Venceu por
unanimidade no consistório cardinalício, dia 9 de janeiro de 1522, substituindo o
papa Leão X, morto em 1º de dezembro de 1521 prestes a completar 46 anos.
28
”A palavra protestante, que é usada para indicar os seguidores da Reforma, foi introduzida durante
a convocação da Dieta de Espira, no ano de 1529, devido ao protesto que os luteranos fizeram
contra a interferência do poder civil nas decisões tomadas pelas igrejas reformadas. Portanto, esse
termo refere-se a um protesto local, ocorrido no século XVI, e foi atribuído pelos opositores da
Reforma, não por seus seguidores.” (ALMEIDA, R., 2014, p. 147)
Nessas alturas da história, o holandês Adrian estava a cuidar da pureza católica
diante das heresias dos protestantes, que ameaçavam chegar até ao território
espanhol. Pela sua ausência no consistório, somando a distância geográfica, o
holandês somente foi coroado em Roma no dia 31 de agosto de 1522. Tendo pouca
sorte em seu viver, o único papa nascido na Holanda e também o último estrangeiro
a liderar o comando máximo do catolicismo, morreu em 14 de setembro de 1523.

Adrian I, era este um homem de estrita ortodoxia medieval, mas plenamente consciente
da necessidade de reforma moral e administrativa na corte papal. Seu curto pontificado
de apenas vinte meses foi um esforço lamentavelmente infrutífero para brecar os males
dos quais ele acreditava que o movimento herético de Lutero era castigo divino.
(WALKER, W., 1981, v. 2, p. 23, 24).

Foi do papa Adrian I a iniciativa que culminou na realização da


Contrarreforma Católica, assunto que alcançou o seu apogeu na realização do
Concílio na imperial cidade de Trento, norte da Itália. O conhecido Concílio
Tridentino foi realizado em três períodos distintos e durou 18 anos, desde 13 de
dezembro de 1545 até 1563. Após a morte do papa holandês em 1523, houve, por
455 anos, uma verdadeira dinastia italiana no controle do poder vaticanense. Essa
hegemonia política no controle do sagrado somente foi quebrada com a eleição do
polonês Karol Józef Wotjyla (1920-2005) - o carismático João Paulo II - falecido em
2 de abril de 2005, já na casa dos 85 anos. João Paulo II foi o primeiro papa a visitar
o Brasil, o fez de 30 de junho até 13 de julho de 1980. Foi seguido pelos sucessores
Bento XVI e Francisco, o atual papa. O papa Bento XVI, substituto de João Paulo II,
iniciou o seu pontificado a 19 de abril de 2005, data comemorativa do Dia do Índio
no Brasil!
Após a morte do João de Deus, que, nos cânones da Igreja Católica Romana,
é reconhecido como o papa de número 264, seu substituto foi outro estrangeiro, a
saber: o alemão Joseph Alois Ratzinger (1927-). João Paulo II foi sumo pontífice por
quase 27 anos, o mais longo reinado na história moderna do Vaticano. O campeão
invicto de permanência no Vaticano foi o italiano Giovanni Maria Mastai-Ferretti
(1792-1878), eleito papa de número 255, o qual optou pelo nome de Pio IX. Ao
ascender ao trono, estava com 54 anos e enfermo. Muitos líderes e não poucos fiéis
aguardavam notícias de sua morte em poucos dias depois da posse em Roma.
Entretanto, não foi isso que aconteceu. O papa fisicamente considerado doente
permaneceu no pontificado por 32 anos após ser empossado. Iniciou o seu reinado
com resistente base liberal e terminou aos 86 anos extremamente conservador.
Joseph Alois Ratzinger foi declarado papa às 17h50, no horário de Roma,
com o título de Bento XVI. A conclusão de sua eleição ocorreu em 19 de abril de
2005, três dias após ter completado 78 anos. Ratzinger, teólogo conservador, dono
de um, academismo linguístico, sob pressões internas e externas, perdeu o gosto
pelo poder papal. Sentindo-se doente e divagando ao acaso, além de desiludido
com a mordomia que a função lhe garantia, optou por abjurar de sua vitalícia
posição. Fez a declaração pública de sua renúncia em discurso, no dia 11 de
fevereiro de 2013, 598 anos após a até então última renúncia papal, sucedida em
1415. Com a renúncia do papa Bento XVI, outro estrangeiro foi eleito para dar
continuidade à absoluta monarquia do Vaticano e ditar as normas para o andamento
do catolicismo mundial.

Na quarta-feira, 13 de março de 2013, cinco meses e dois dias antes da comemoração


dos 479 anos da organização da Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas iniciada
em Paris - 15 de agosto de 1534 -, o mundo recebeu a notícia de que Mario Jorge
Bergoglio (1936-), um padre argentino, foi eleito o novo papa. Bergoglio, agora papa
Francisco é o primeiro pontífice jesuíta a escolher para si o nome do italiano conhecido
por São Francisco de Assis (1182-1226). Sendo jesuíta, certamente buscará redimir a
Ordem das mazelas cometidas no passado. (BOAVENTURA, 2014, p. 69).

Não somente os católicos, mas também o mundo conservador da política


voltada à direita sentiram-se traídos pela desenvoltura do senhor Bergoglio ao
apoiar e receber, em sua aristocrática moradia em Roma, os mais corruptos e
sanguinários políticos de nossa geração. Como já mencionado em páginas
anteriores, João Paulo II, foi o primeiro papa a visitar o Brasil, 30 de junho até 13 de
julho de 1980. Em épocas seguintes pelos os seus sucessores. Bento XVI e
Francisco, esse, o primeiro papa nascido nas Américas. O Brasil tem em seu bojo
uma população extremamente receptiva e altamente sincretista pelas ondas do
sagrado. “Quando a mina está carregada, quando o incêndio está preparado, não
há coisa mais simples. Um olhar é uma faísca” (HUGO, 2007, v. 1, p. 676).

Os huguenotes calvinistas

É muito conhecido o João Calvino herói, visionário, político, reformador,


mestre, pastor, escritor, carismático governante e defensor acirrado da
predestinação. A teologia calvinística formou-se numa mistura da eleição com a
predestinação. “Naquela época, e, de modo geral, mesmo hoje, a doutrina da
predestinação era considerada seu dogma mais característico” (WEBER, 1985, p.
68). Esse assunto foi muito bem questionado, tornando-se alvo certeiro para as
arrojadas espetadas da parte do intelectual alemão Max Weber (1864-1920) em
várias fases de sua tese produzida em 1910.
Ruth A. Tucker (1945-) ostenta no seu notável currículo um Ph.D. em História,
sendo autora de uma vasta lista de livros, uma conceituada professora do Calvin
Theological Seminary em Grand Rapids, Michigan, e conhecedora das causas
teológicas e históricas. Ela também desfere algumas alfinetadas e elogios no
principal foco doutrinário elaborado por João Calvino.

Os calvinistas usavam geralmente a mesma linha de raciocínio acrescentando a


doutrina da eleição que faziam as missões parecerem inúteis se Deus já escolhera
aqueles a quem iria salvar. O próprio Calvino, porém, era pelo menos aparentemente o
missionário mais inclinado às missões entre os reformadores. Ele não só enviou dúzias
de evangelistas de volta à sua pátria, a França, como também encarregou quatro
missionários, juntamente com vários huguenotes franceses, de estabelecer uma colônia
e evangelizar os índios no Brasil. A obra começou em 1555, mas, infelizmente, logo
terminou num fracasso trágico quando o líder renegado, Villegagnon, derrotou os
portugueses que então saquearam a recém-fundada colônia e deixaram os
sobreviventes para serem mortos às mãos dos jesuítas. (TUCKER, 1986, p. 70).
Na mesma Genebra, Suiça, onde implantou o seu quartel-general e impunha
suas ideias, parece que outro Calvino estava na pele do reformador, teólogo,
escritor e mestre. João Calvino, o carismático líder reformador, conseguiu criar um
governo teocrático e de linha dura nos moldes elaborados pelos inquisidores de
Roma. Perseguiu, baniu, distribuiu sentenças fatais a várias pessoas. No entanto, o
lado oculto da face desse reformador francês não faz parte daquilo que estou
elaborando. A história está aí para provar os fatos. Vamos deixar que os apologistas
de plantão, além de outros especialistas, entrem em campo para decifrar essa
questão de cunho doutrinário/teológico. Mesmo assim, que rujam os tambores pelos
esforços na disseminação da fé cristã! “A História gosta de ser registrada de modo
competente. O fugaz também pode ser convertido em duradouro, exemplar e
antológico” (SANTOS, 2019. p. 16).

Uma terra distante

D. Manuel I (1469-1521), que teve uma caminhada sangrenta para galgar o


poder e nele se manter, foi lançado para a posteridade com o faustoso apelido de “ o
Venturoso”, rei que permaneceria por longos 26 anos no comando do áureo período
de Portugal. Aliás, ele deu o pontapé inicial que culminou nos Grandes
Descobrimentos pelos distantes mares. Não perdendo a oportunidade dessa
dourada época, o Venturoso “decidira acrescentar na sua titulatura, através das
quais indicava que era senhor da conquista, da navegação e comércio da Etiópia,
Arábia, Pérsia e Índia” (GARCIA, 2019, p. 47). D. Manuel I se tornou o autêntico
dono do mundo! Sua megalômana monarquia findou quando ele veio a falecer
precocemente aos 52 anos, dia 13 de dezembro de 1521. Morreu, porém deixou um
legado à posteridade. Foi fatalmente contaminado pelo vírus que gerou uma
mortífera epidemia da qual nem mesmo o palácio escapou. D. Manuel I veio a
falecer no antigo Paço da Ribeira, palácio outrora localizado junto a atual Praça do
Comércio as margens direitas do histórico Rio Tejo em Lisboa, morreu doze dias
após o falecimento do seu famoso e notório amigo, o florentino Giovanni de Medici
(1475-1521), discutido personagem de nobre família italiana, que, aos 38 anos, em
1513, se encarnou na sinistra figura do papa Leão X, o opositor-mor da Reforma
Protestante. D. Manuel I foi o soberano português que, aparentemente, não mostrou
nenhum interesse pelas terras descobertas pela armada sob o comando do
navegador Pedro Álvares Cabral (1467-1520), um fidalgo nascido na então Vila
Belmonte, distrito de Castelo Branco. Com certeza o fez por desconhecer as
riquezas naturais existentes no Mundus Novus, uma imensa porção de terra
localizada do outro lado do Atlântico. Sem aparentes folguedos, D. Manuel I
somente entregou a “Jorge Lopes Bixorda, que foi desde 1513 um dos armadores
do comércio do pau-brasil no Brasil” (GARCIA, 2019, p. 83). Por faltar-lhe adequada
assessoria nessa área ou por manter o seu absolutismo de rei, preferiu continuar
acreditando nos rendosos e momentâneos desafios com o Oriente, especialmente o
próspero comércio das iguarias provindas da Índia e ilhas adjacentes. Havia
desafios e interesses da parte dos europeus, notadamente de Portugal na busca de
conseguir as lucrativas especiarias e ampliar o império marítimo. Foi assim que os
homens se aventuraram para lá dos horizontes conhecidos e ousaram explorar os
limites do planeta interligado pelos oceanos. “Muitos milhares nunca regressaram,
para sempre varridos da História pelas ondas do oceano que os iam engolindo. [...]
Para terem êxito, não bastava uma fé inquestionável. [...] No século XV, as
caravanas portuguesas navegavam na crista da onda tecnológica”. (ROSA, 2019, p.
66, 71). Não resta a menor dúvida de que os lucros econômicos eram alvissareiros
no regresso da armada da especiaria.

Na Europa, o cravinho chegou a valer 500 vezes o valor do preço comprado nas
Molucas e aí só se consumia cerca de um oitavo da produção desta especiaria, sendo o
resto distribuído por vários locais da Ásia. [...] Na carta datável de 1517 ou 1518, estão
identificados sobre o Equador as ilhas Molucas com a legenda: Ilhas de maluquo donde
a o cravo. Tais ilhas estão aí no hemisfério português [...] A posição de D. Manuel, em
1517-1519, consistia em manter o monopólio do comércio das especiarias, que os seus
homens faziam nas Molucas desde 1512. (GARCIA, 2019, p. 70, 134, 268).

Enquanto isso, a nova Colônia às margens opostas do Atlântico não passava


de um paraíso habitacional para os incautos nativos que, por engano, na rota de
Cristóvão Colombo (1451-1506), receberam o clássico nome de índios, erro
histórico e geográfico de domínio público.29
Mesmo para os melhores e bem-intencionados seres humanos, um dia se
finda o ciclo da vida terrenal. Não foi diferente com o Venturoso rei de Portugal.

O rei D. Manuel morreu vítima de febre, pouco antes do Natal de 1521, com 52 anos.
Tendo chegado ao trono como rei de Portugal e dos Algarves, morreu como rei de
Portugal e dos Algarves, d´Aquem e d´Além-Mar em África, Senhor do Comércio, da
Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia. [...] Durante o seu reinado, os
portugueses foram muito admirados, mas também invejados, pelos holandeses,
ingleses, franceses e, acima de tudo, espanhóis. Morto o grande monarca, puseram-se
à espreita como abutres, para ver qual seria o destino de Portugal e, sobretudo, do seu
império. (PAGE, 2012, p. 176).

O novo rei

Com a inesperada e súbita morte de D. Manuel I em virtude de uma febre


epidêmica pouco antes das festividades natalinas do ano de 1521, subiu ao trono
seu filho com o título de D. João III (1502-1557). João, o príncipe herdeiro, estava
com 19 anos30 e não vivia amigavelmente com seu pai, o rei D. Manuel I, o qual,
29
Talvez na busca de um desencargo de consciência e para controlar a opinião pública da
famigerada população sob o seu domínio, “o rei D. Manuel arrendou o Brasil por dez anos ao cristão-
novo Fernando de Noronha, que liderava um grupo de homens de negócios, em sua maioria cristãos-
novos, que foram os primeiros homens brancos a chegar à América Portuguesa.” (NOVINSKY et al.,
2016, p. 87).
30
Naquele período da história, a Europa se encontrava nas mãos de jovens governantes. João III de
Portugal, nascido em 1502, com 19 anos era o mais novo componente do poderoso Quarteto dos
Primos. Carlos V, nascido em 1500, estava com 22 anos. O Rei Cavaleiro, Francisco I da França,
nascido em 1494, estava com 28 e, finalmente, o sagaz Henrique VIII da Inglaterra, nascido em
1491, estava com 31 anos. Todos, sem exceção, eram soberanos absolutos e altamente obcecados
pelo poder.
viúvo pela segunda vez, casou-se com a pretendente de seu filho, D. Leonor de
Áustria (1498-1558), irmã de Carlos V. Aliás, D. Manuel I, foi o mais castelhano rei
que Portugal conheceu, estava sempre a comer nas mãos dos soberanos da
Espanha. “D. Manuel I foi o primeiro rei português a aliar-se aos castelhanos, não só
por via dos seus três casamentos, mas também por afinidades filosóficas,
teológicas, chegando a consentir que a Corte de Castela decidisse que leis Portugal
deveria adotar sobre a questão dos judeus e inquisição. [...] Com a nova política de
alinhamento deste monarca com Roma, o povo sofreu durante séculos às mãos do
Vaticano e dos seus inquisidores”. (ROSA, 2019, p. 56, 60). Essa soberba
submissão deu ao que deu de 1580 até 1640. Ainda hoje se diz em Portugal: “de
Espanha, nem bons ventos e nem bons casamentos”!
Após ser coroado em primeiro ato, no dia 19 de dezembro, o jovem D. João III
suspendeu e, consequentemente, cancelou o milionário contrato de arrendamento
com Fernão de Noronha (1470-1540), um nobre e escravagista com a peja de
cristão-novo. Em seu lugar, nomeou e enviou, no ano de 1530, uma expedição para
iniciar o processo de colonização e exploração do Brasil. Essa histórica expedição,
debaixo dos olhares e do controle da monarquia, estava sob o comando do militar
português Martim Afonso de Sousa (1500-1571) que, em ato contínuo, funda a
primeira vila no Brasil em 1532. A citada vila não passava de um aglomerado de
rústicas cabanas de pau a pique e recebeu o nome de São Vicente. 31 Esse foi o
povoado que se tornou a primeira cidade portuguesa edificada nas Américas. Era o
início da urbanização do atual estado de São Paulo. Naquela nascente e
inexpressiva vila de São Vicente, nome que ainda se mantém, “foi o primeiro lugar
no Brasil onde se praticou a religião judaica” (NOVINSKY et al, 2016, p. 89). São
Vicente é o guardião do valioso elo histórico, um dos principais municípios que
forma a Microrregião de Santos, fazendo parte da Região Metropolitana da Baixada
Santista, no estado de São Paulo. Ao fundar a vila de São Vicente, Martim Afonso
de Sousa estava com somente 32 anos. Entretanto, com essa idade jovial, naquela
época já era um experimentado comandante militar que explorava e buscava
riquezas existentes no além-mar, onde valia a coragem, uma forte dosagem de
sangue-frio, nervos de aço, além da mentalidade capitalista regada de ambições e,
sem dúvida, abraçada com o jeitinho. Esse era o meio mais fácil para adquirir as
abundantes riquezas, glórias e a exarcebada fama. “Os elementos atmosféricos
condicionavam os ritmos da História e do comércio” (GARCIA, 2019, p. 79). Mesmo
naquele longínquo período, já estava em andamento o enriquecimento sob ilícitos
subornos e corrupções assoladoras que resultavam no branqueamento de riquezas
mal-adquiridas.32
31
Saint Augustine, a primeira vila europeia nos Estados Unidos, foi fundada em 1565, exatamente 33
anos depois de São Vicente, no Brasil. O almirante e explorador Pedro Menéndez de Avilés (1519-
1574), nascido na região das Astúrias, Espanha, estava com 46 anos. Tudo indica que nessa vila, em
28 de fevereiro de 1565, foi realizada a primeira missa católica nos Estados Unidos. Na segunda-
feira, 10 de fevereiro de 2020, acompanhado dos pastores Zaqueu Silva, Fabiano Nunes e
Schineider Kerche, visitei a histórica cidade de Saint Augustine. É o caminhar nas pisadas da
História; algo emocionante!
32
Essa variante do epifonema de Salomão, o sábio rei de Israel, já havia dito em seu período de
glórias: “Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9). O quadro que hoje estamos a
Quase todos os administradores coloniais usaram o seu cargo para benefício próprio. O
peculato, de tão costumeiro, não era criminalizado, a menos que o funcionário real
caísse em desgraça por outros motivos. [...] Pouquíssimos foram os administradores que
não viviam de peculato, isto é, roubo da receita pública. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1,
p. 115, 124).

Na procura de controlar a imensidão da terra, que já há muito estava sob


contínuas ameaças dos franceses e quiçá até de outras nações europeias, D. João
III, “o Piedoso” rei de Portugal, teve a brilhante ideia de retalhar a Colônia Brasileira
em 15 capitanias hereditárias que perduraram por cerca de 18 anos. “O território foi
dividido em quinze gigantescos latifúndios, demarcados em linhas paralelas e
perpendiculares ao litoral até o limite estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas,
distribuídos a doze fidalgos, ou seja, homens ligados à nobreza” (GOMES, 2019, v.
1, p. 317). Nada estava alheio ao ambicioso sistema religioso dominante; tudo
funcionava perfeitamente dentro de um monopólio altamente corporativista e
institucionalizado exigido pelas figuras controladoras dos altares. “Deviam distribuir
a terra a colonos católicos que ficavam obrigados a cultivá-la durante certo espaço
de tempo, livre de impostos, exceptuada a dízima à Ordem de Cristo” (MARQUES,
1995, p. 232). Posteriormente, com vagas alterações, essas capitanias perderam
seu status de hereditárias. Foram transformadas em províncias e, finalmente, em
estados após a Proclamação da República, ato revolucionário transcorrido na
cidade do Rio de Janeiro, no decorrer da sexta-feira, 15 de novembro de 1889.
Em 1548, é criado o Governo Geral do Brasil, que durou 260 anos, até a
chegada da Família Real, primeiro em Salvador e fixando definitivamente a Corte
imperial na cidade do Rio de Janeiro a partir de oito de março de 1808. Tomé de
Sousa (1502-1579), outro militar português, filho de padre e primo pobre do capitão
Martim Afonso de Sousa, foi o primeiro governador, o qual funda a cidade de
Salvador em 1549 aos 47 anos. Simbolicamente, Salvador, na Bahia, foi a primeira
capital brasileira por um período de 214 anos. Foi somente no ano de 1763 que
Salvador veio a perder o seu status de primazia administrativa política para a cidade
do Rio de Janeiro. Isso aconteceu sob ordens do ministro Sebastião José de
Carvalho e Melo (1699-1782), que, em 15 de julho de 1759, recebeu a comenda
com Grandeza de conde de Oeiras.

Em 1549, Tomé de Sousa e seus mais de mil acompanhantes, entre eles os primeiros
jesuítas, chegaram ao local escolhido, onde edificaram a cidade que seria a primeira
capital da colônia: Salvador. Na edificação, Tomé de Sousa contou com os grupos
nativos e de Diogo Álvares - o Caramuru -, um náufrago português que vivia entre os
indígenas da região desfrutando de grande prestígio. (NADAI; NEVES, 1997, p. 57).

Na mesma comitiva capitaneada por Tomé de Sousa, desembarcou no Brasil


um grupo de 400 degredados que foram desterrados pela monarquia de Portugal.
Eram homens que queriam levar vantagens em tudo, endividados com o fisco,
assassinos, transgressores e marginais de várias estirpes que estavam detidos na
insalubre prisão do Limoeiro em Lisboa. Foram esses europeus os primeiros
contemplar foi pintado há muitos séculos!
personagens que deram início ao povoamento da Terra de Santa Cruz. Histórica,
social e antropologicamente foi assim que se pariu a crescente população do
imenso Brasil!

Os jesuítas

Em sua primeira etapa, os jesuítas permaneceram no Brasil durante 210 anos,


de 1549 até a sumária e radical expulsão no ano de 1759. A expulsão da Ordem
dos Jesuítas ou Companhia de Jesus foi o resultado de interesses quando, por
divergências políticas, foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo então
todo-poderoso Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o lendário e
assombrador ministro de D. José I (1714-1777). Naquela época, Carvalho e Melo, já
em meteórica ascensão, era somente o Conde de Oeiras. Posteriormente, já no final
de carreira, tornou-se o implacável Marquês de Pombal, comenda que o imortalizou
nos compêndios da História de Portugal e Universal. Na última metade do século
XVIII, ocorreu a grande catástrofe que desmoronou sobre a Ordem dos Jesuítas.
Ainda que proibidos pela constituição da ordem religiosa, diante de oportunidades
mercantilistas, os jesuítas haviam se engolfado de corpo e alma no comércio
colonial.

Foram escravos indígenas alugados pelos jesuítas que iniciaram as obras da Fonte
Carioca e dos Arcos Velhos, aqueduto que trazia água da floresta da Tijuca para o
centro do Rio de Janeiro e que originou os atuais Arcos da Lapa. [...] Mantinham o
desejo de salvar suas almas imortais associado ao anseio de escravizar seus corpos vis.
[...] Até padres e missionários se mostraram mais interessados em traficar escravos do
que em educar ou salvar almas. Entre os traficantes negreiros estava o próprio superior
dos jesuítas, padre Jorge Vaz. (GOMES, 2019, v. 1, p. 128, 194, 195, 203).

Entre outros fatores, foi exatamente nesse caminhar de um animalesco


mercantilismo que os jesuítas trombaram com o Conde de Oeiras, outro animal na
força, na sagacidade e no poder político. Esse poderoso e obcecado ministro de D.
José I nunca havia visto com bons olhos a existência e o andamento da Companhia
de Jesus. Naquele período, era já notório que aquela Ordem também servia
mansamente de braço armado da Igreja Católica Romana e de vaquinha de
presépio do império português. A Companhia de Jesus foi fundada em Paris no ano
de 1539 pelo rico e ex-militar basco Inácio de Loyola (1491-1556). “Os jesuítas
converteram-se na força mais revolucionária, mais criativa e mais importante da
reforma católica, e um dos baluartes principais do papado” (GALLEGO, 2010, p.
263). Por interesses políticos e pelo manobrar as massas sob pressão e medo, D.
João III viu, nesse resignado grupo de jovens, a oportunidade de mesclar a cruz, a
fogueira e a espada. Tudo isso na busca de conquistar e manter o controle absoluto
de distantes possessões nas Américas, na África e na Ásia. O britânico Martin Page
(1938-2005), jornalista que viveu em Sintra, nos arredores de Lisboa, teve muita
razão no título de seu livro sobre a áurea história de Portugal: A primeira Aldeia
Global. Por quase cinco séculos, o sol sempre estava a brilhar sobre o domínio
português.
O já mencionado poderoso Primeiro Ministro do Império de Portugal era uma
monstruosidade na esfera da manipulação e enxergava bem à frente do seu tempo
e de seu povo, notadamente pela mediocricidade que reinava sobre os não poucos
indoutos administradores de plantão. Naquela época, não somente os seus
mandantes, mas também os seus subalternos viviam em um mundo onde
predominava o generalizado analfabetismo político, social, dos direitos e da razão.
Carvalho e Melo era uma velha raposa palaciana, astuto, muito vivo e bem-
antenado, quando esse termo ainda estava para nascer! O conde de Oeiras não era
somente simpatizante, mas um acirrado e forte defensor do Iluminismo. Naqueles
dias, estava nascendo na Europa o Século das Luzes e da Razão, filosofia em voga
na mente dos grandes pensadores da época e que assustou muita gente em
diferentes patamares sociais.33

O foco é o sustento das almas em contexto marcado por traições e armadilhas de um


mundo ameaçador e perverso. Os séculos dezessete e dezoito, tempos do Iluminismo,
marcam uma grande mudança de mentalidade que altera a compreensão do papel da
religião: as explicações e entendimento da vida e do mundo não necessariamente se
baseavam em referências a Deus ou à religião. (SATHLER-ROSA, 2013, p. 104).

Os reflexos surgidos em virtude da Declaração da Independência Americana,


ato consumado na quinta-feira, 4 de julho de 1776, atiraram gás nas labaredas do
Iluminismo francês, que foi transportado a outras nações europeias. 34 Os retoques
finais dos documentos legais para a Independência aconteceram na cidade de
Philadelphia, que etimologicamente significa cidade do amor, capital do estado da
Pennsylvania. A Declaração de Independência dos Estados Unidos foi aprovada no
Pennsylvania State House, principal edifício administrativo da cidade do amor.

Dos 56 homens que assinaram a declaração de independência, cinquenta eram


maçons, incluindo Benjamin Franklin e o George Washington, na época grão-mestre da
loja Alexandria. Os símbolos maçônicos estão hoje na nota de um dolar e espalhados
pela arquitetura da capital americana. (GOMES, 2010, p. 242, 243).

33
Tendo em vista que a França se tornou o berço dos mais destacados iluministas da áurea época,
Paris, a capital, recebeu o cognome de Cidade Luz não pela intensa iluminosidade produzida pelos
lampeões a gás, mas pela forte intelectualidade que ali existia. “Procurem alguma coisa que Paris
não tenha. [...] Paris reina. Aí fulguram os gênios” (HUGO, 2007, v. 1, p. 564, 564). Essa
intelectualidade estava composta politicamente de liberais esquerdistas totalmente anticlericais e que
tudo fizeram na busca de extirpar o poder da Igreja Católica e, em seu lugar, implantar a filosofia da
Deusa Razão, que, em 10 de novembro de 1793, foi colocada no altar-mor da gótica Cathédrale
Notre-Dame de Paris. Essa é a mesma Catedral que, em 15 de abril de 2019, foi atingida por um
violento incêndio. O colapso da monarquia fez o caminhar da Revolução Francesa, que se originou
com a Queda da Bastilha em 14 de julho 1789. Esse acontecimento se tornou o ícone da Repúblia
Francesa. “Quanto à França, ela era uma nação próspera. Desde a Idade Média já era dito que ela
era o forno onde se cozia o pão da Europa, pois lá as coisas aconteciam. No início do século XVI,
produzia vinho e trigo para exportação, fabricava tecidos e móveis e publicava livros” (ALMEIDA, R.,
2010, p. 28).
34
O professor Marcelo Rebelo de Sousa (1948-), o popular e beijoqueiro Presidente da República
Portuguesa, quando de sua estadia na Casa Branca, dia 28 de junho de 2018, afirmou
categoricamente ao seu homólogo, o empresário Donald Trump (1946-), em discurso diante das
autoridades e jornalistas presentes para sua recepção, que foi Portugal a primeira nação a
reconhecer a Independência Americana em 1776 e que os Pais da América brindaram aquele 4 de
julho com vinho produzido na Ilha da Madeira.
Técnica e ideologicamente, a Declaração de Independência foi redigida pelo
polímata Thomas Jefferson (1743-1826), um jovem iluminista, defensor de crenças
deístas, natural do estado da Virgínia, citado por Laurentino Gomes (1956-) como
proprietário de negros feitos escravos (GOMES, 2019, v. 1, p. 64). Essa tese tem
sua fonte nas escritas documentais do poliglota José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1838), o primeiro Grão-Mestre da Maçonaria do Grande Oriente no Brasil.

Thomas Jefferson tinha 150 escravos no momento em que escreveu, e uma das
principais atividades que exercia era a compra e venda de escravos. Apesar disso,
jamais pensou que houvesse qualquer contradição entre os direitos inalienáveis e sua
atividade de alienar homens criados iguais, que manteve por toda a vida. (CALDEIRA,
2002, p. 33).

Naquela escaldante quinta-feira, 4 de julho de 1776, verão no hemisfério


Norte, Thomas Jefferson já havia colocado no papel as palavras mais pronunciadas
por inúmeros americanos ainda hoje: “Todos os homens são criados iguais.”

Considerando estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são
criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os
quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. [...] Quando o mais jovem ao
Segundo Congresso Continental escreveu estas palavras, ele tinha 33 anos, um cabelo
ruivo claro alaranjado e um maxilar protuberante. [...] Quanto a Jefferson, ele chegou à
Filadélfia em uma carruagem puxada a cavalo, atendido por três escravos. Será que
Jerfferson acreditava que Richard, Jesse e Jupiter haviam sido criados iguais? [...] Eles
pregavam igualdade enquanto mantinham escravos [...]. Quanto a escravidão, Jefferson
admitiu na primeira versão da Declaração que quem escravizava africanos lhes roubava
os direitos sagrados à vida e à liberdade. Mas só afirmou isso para culpar o rei George
por encorajar o comércio de escravos. [...] Lincoln estava certo: falar e fazer são coisas
diferentes. Jefferson se sentiu desconfortável com a escravidão a vida inteira, embora
nunca desconfortável o bastante para libertar seus escravos. (DAVIDSON, 2016, p. 83,
85).

Diante de sua ambígua conduta no falar e no agir, Thomas Jefferson


infelizmente era adepto da cartilha do politicamente correto. Esse era o período de
um perverso mundo escravagista sob a mitológica égide da democracia, uma
monstruosa ferramenta as mãos da branquitude que dirigia na contramão da razão
e do senso da igualdade. Político e fazendeiro que ficou viúvo em 1782, aos 39
anos, Jefferson era um acadêmico produtor de ideias e energia do bem. Não
obstante, tudo não passava de um santo com os pés de barro! Nos encontros
fraternais, desfrutava de admiração, respeito, além de crescente posição dentro dos
rituais da maçonaria, o seu trampolim para os sucessos. Nasceu fazendeiro,
formou-se em direito, tonou-se filósofo, inventor, arqueólogo, escritor, pesquisador,
diplomata, embaixador e arquiteto. Em sua biografia, há o envolvimento com Sarah
(Sally) Hemings (1773-1835), uma jovem escrava doméstica que lhe deu seis
assimilados filhos. Esse acontecimento passou para a história com o título de
controvérsia de Jefferson-Hemings. “A paternidade só foi comprovada em 1998 por
exames de genética nos descendentes de Sally, trabalho que até hoje a linhagem
branca da família Jefferson tenta desacreditar” (GOMES, 2010, p. 151). Quando da
Tomada ou Queda da Bastilha em 14 de julho de 1789, Thomas Jefferson, sua
escrava/amante e filhos estavam em Paris, onde ele cumpria a brilhante missão de
embaixador dos Estados Unidos na França.

A Lei de Expulsão dos Jesuítas foi expedida na data simbólica comemorativa do


primeiro aniversário do atentado contra o Rei, a 3 de setembro de 1759. Nesse
documento, assinado pelo Rei e pelo Conde de Oeiras, o monarca, na primeira pessoa,
acusa os jesuítas de rebelião qualificada e declarados desnaturalizados, proscritos e
exterminados de todo o território de Portugal e seus domínios, depois de ter ouvido os
pareceres de muitos ministros doutos, religiosos e cheios de zelo da honra de Deus.
Apresentando este instrumento legal como o fruto de uma resolução ponderada, bem
aconselhada, erudita e munida do parecer abonatório das mais conceituadas figuras do
Reino, o Rei declara que os Jesuítas foram considerados indignos da sua confiança. [...]
As acusações consideradas provadas não poderiam ser pintadas com mais negra
gravidade. (FRANCO, 2006, v. 1, p. 454, 455).

O líder e chefe da Ordem dos Jesuítas por aquelas bandas do Novo Mundo
era o minhoto Manuel da Nóbrega (1517-1570), que chegou ao Brasil com 32 anos
e serviu outros 21 até à sua morte no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1570.
Aquela foi uma malfazeja e antagônica data para o religioso. Naquele dia fatal, o
destacado padre Manuel da Nóbrega estava completando exatamente 53 anos
quando, ainda muito jovem, passou para o outro lado da vida.

Nóbrega provinha de uma família distinta e era também um homem de cultura, pois se
graduara em cânones nas universidades de Salamanca e Coimbra. [...] Santo Inácio de
Loyola em pessoa nomeou o Pe. Manuel da Nóbrega como primeiro Provincial. [...]
exerceu o ministério de provincial até 1559, ano em que foi sucedido pelo Pe. Luís da
Grã (1523-1609). (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 20, 22).

O português padre Manuel da Nóbrega tem o seu nome ligado diretamente à


fundação da cidade de São Paulo em 25 de janeiro de 1554. De grande destaque,
tornou-se seu companheiro o espanhol José de Anchieta (1534-1597). Esse
aparente chão de fábrica que soube conquistar várias tribos pelos litorais era 17
anos mais novo que Manuel da Nóbrega, natural da região do Minho. Anchieta
nasceu em Tenerife, nas Canárias, filho de mãe com ascendência judaica e pai
católico. Sob ordens paternais, estudou em Coimbra, Portugal, onde aprendeu a
defender acirradamente o catolicismo e, ainda muito jovem, se engajou
fervorosamente na Companhia de Jesus. Para mais informações sobre a biografia
do padre José de Anchieta, há vastos assuntos disponíveis no site
<http://pt.wikipedia.org/wiki/josedeanchieta>. 35
O noviço e posteriormente padre José de Anchieta chegou ao Brasil em 1553.
Na época, era um audacioso e resignado jovem com somente 19 anos. Dedicou-se
completamente aos nativos daquela imensidão de terras. Segundo as melhores
35
Aqui nossa mente é fortemente aguçada por um toque no mundo das simbologias que estavam
reservadas para o Brasil e sua gente. Nas caravelas que tropeçaram junto às praias do atual estado
da Bahia, em 22 de abril de 1500, havia alguns cristãos-novos, clássica e pejorativa expressão
portuguesa para a identificação dos judeus que, sob torturas, abnegavam sua fé pública judaica
pelas liturgias do catolicismo. A fundação do Colégio de São Paulo de Piratininga, em 25 de janeiro
de 1554, contou com a participação direta de outro judeu, José de Anchieta, um jovem e dedicado
noviço jesuíta. Segundo consta, a fundação daquele histórico colégio recebeu a coparticipação de
outro clérigo também de origem judaica, “o padre Leonardo Nunes, que na historiografia consta como
fundador de São Paulo” (NOVINSKY et al, 2016, p. 152).
imaginações, Anchieta nunca mais cruzou o Atlântico e faleceu em meio a uma tribo
indígena na atual cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo, dia 9 de junho de
1597. Ao falecer, estava na casa dos 63 anos. Era um homem de corpo alquebrado
e doentio. Apesar disso, era amado e grandemente respeitado por diferentes tribos
indígenas e endeusado por não poucos caciques que ele soube muito bem
manipular. José de Anchieta, que foi sagrado sacerdote aos 32 anos no Rio de
Janeiro, gastou 44 anos de sua vida fazendo missões no Brasil.
Foi Manuel da Nóbrega, o provincial-mor dos jesuítas no Brasil, do qual, diria
Victor Hugo, “tudo turbilhonava em sua imaginação” (HUGO, 2007, v. 1, p. 578), que
teve a brilhante e esdrúxula iniciativa de escrever uma carta aos líderes em Lisboa,
sugerindo “a vinda de colonos e de mulheres de toda qualidade, até meretrizes,
porque há aqui várias qualidades de homens” (NADAI; NEVES, 1997, p. 57). Não
devemos esquecer que, naquela época, somente católicos estavam autorizados a
migrar para a colônia brasileira. Até os aethiopum sempre servus, designação
pejorativa em latim para os africanos feitos escravos, eram batizados antes de serem
empurrados para os fétidos porões dos navios negreiros. Não deixa de ser até bizarra
tal atitude de Nóbrega, porém ela fazia parte do jogo político daquela época. Sob
pressão dos maléficos, adúlteros e abonados paroquianos, abriu-se um incontrolável
precedente que foi a importação legal da promiscuidade gerando a indústria
profissional da prostituição. Dentro do contexto geral, não há nenhuma dúvida:
aquelas meretrizes que foram despachadas para o Brasil a pedido do sacerdote-mor
eram católicas de cultura, costumes, religião e, como tal, participavam santamente
das missas, confessavam semanalmente, sendo perdoadas partícipes da eucaristia.
As mesmas sagradas regras eram válidas para os seus amantes. Todos eram santos
fregueses da mesma paróquia! Não é de assustar o parecer do falecido historiador e
catedrático português António Oliveira Marques (1933-2007), o qual descreveu que
boa parte dos missionários enviados ao Brasil não eram tão qualificados como
pareciam aos olhares de muitos.

Deficiente em preparação e em moral, o clero secular enviado para o Brasil dispunha de


poucas condições para a tarefa que se propunha desempenhar. Metia-se ao comércio,
possuía escravos, intrigava politicamente, invejoso da força e do prestígio demonstrados
pelas ordens regulares, mas totalmente incapaz de com elas rivalizar. (MARQUES, 1995,
p. 338).

Após a chegada oficial das primeiras prostitutas solicitadas, o meretrício,


alcunhado de culto proibido pelos sociólogos e de pecado da luxúria pelos teólogos
cristãos, alastrou-se por todo o Brasil, notadamente pelo Rio de Janeiro, dominado
pelas conhecidas cocotes francesas, as quais, na realidade, em sua maioria, eram
húngaras, alemãs, polacas e russas. “Tinha-se a impressão de haver, no fim do
século XIX, mais rótulas de meretrizes que casas de comércio [...] as francesas
verdadeiramente cocotes eram artistas, mundanas de elite” (FREYRE, 2004, p. 301,
302, 303). Trata-se daquilo que o professor Gedeon Alencar sintetiza da seguinte
forma: “A beata e a prostituta podem ser, cada uma a seu modo, católicas, assim
como o rezador e o bandido” (ALENCAR, 2005, p. 131). Em suma, essa questão
filosófica não é diferente na linguagem e observação de um conhecido etnólogo e
acadêmico português: “Os cangaceiros do Brasil, meio guerrilheiros e meio
bandidos, são também por vezes venerados como santos” (ESPÍRITO SANTO,
1990, p. 130). Esses cangaceiros não seriam a mistificada figura de um filantrópico
Robin Hood tupiniquim?

A invasão francesa

Segundo designações de não poucos pesquisadores de longínquos passados,


mesmo antes do alvorecer do ano 1530, os franceses descobriram sob subornos o
caminho da mina, facilitando o contrabando da madeira pau-brasil na busca de
abastecer os consumidores europeus. Na procura de mandar nessa terra de
ninguém e controlar o comércio madeireiro, a França de Catarina de Médici (1519-
1589) invade, em 1555, um isolado pedaço do Brasil. Depois de Portugal, os
franceses e os holandeses também invadiram as plagas indígenas em busca do seu
quinhão na Terra de Ninguém! Os portugueses foram mais habilidosos. Em troca de
nada, ficaram com a maior fatia da terra dos índios! O resultado dessa manobra se
consumou na existência desse Brasil de dimensões continentais. Em quilômetros
quadrados, ele é quase cem vezes maior que todo o território de Portugal! Durante
322 anos, até 1822, a Colônia foi totalmente subalterna aos caprichos da sede do
Reino em Lisboa.
Na busca de conquistar o seu naco de terra no Novo Mundo, os franceses
criaram a utópica França Antártica, fundando uma colônia na pequena ilha de
Serigipe, hoje Villegaignon, na baía da Guanabara, onde, sob o comando do francês
Nicolau Durand de Villegaignon (1510-1571), ergueram o Forte Coligny em
homenagem a Gaspard de Coligny (1519-1572), um nobre huguenote de linhagem
calvinista, morador em Paris, o qual, pelas suas habilidades sociais e políticas,
recebera a comenda honorífica de almirante. Era um ilustre fidalgo que desfrutava
de livre acesso aos palácios reais, onde predominava o catolicismo romano, embora
sendo ele uma ilustre, moderada e respeitada figura protestante.

Lembramos que Villegagnon, ao fortificar a ilha de Serigipe, que hoje leva o seu nome,
ao mesmo tempo instalou-se na faixa de terra da baía da Guanabara, hoje conhecida
como o bairro do Flamengo, entre a foz do rio Carioca e o morro da Glória. Lá fundou
Henriville, em homenagem ao rei da França, Henrique II. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015,
p. 23).

Como já mencionado, o nobre Gaspar Coligny, aos 33 anos, recebeu da Casa


Real de França a comenda de Almirante em 1552. Vinte anos depois, já com 53
anos, o Almirante Coligny foi impiedosamente defenestrado, decapitado e
esquartejado em Paris nas primeiras horas da tenebrosa Noite de São Bartolomeu,
24 de agosto de 1572, evento que resultou da fúria religiosa contra os huguenotes
calvinistas, constituindo-se de uma orquestrada cadeia aspiral de assassinatos que
se alastrou da capital para todo o interior da França. Os cálculos, embora um tanto
elásticos, variam de setenta a cem mil protestantes mortos sob a fúria de um
medieval catolicismo. Os huguenotes foram traídos e friamente massacrados após
caírem em uma armadilha preparada sob ordens de Catarina de Médici, a
sanguinária rainha-mãe, ardorosa papa-hóstias e dócil instrumento nas mãos dos
romanistas, que se sentiam ameaçados pelos protestantes.

Devemos recordar a Noite de São Bartolomeu, quando, por ordem de Catarina de


Médicis, foram mortos cerca de dez mil protestantes, três mil deles em Paris, entre os
quais o almirante Coligny, pendurado pelos pés e atirado nu ao rio Sena, no dia 24 de
agosto de 1572. [...] A triste Noite de São Bartolomeu magoou profundamente os
protestantes. Sua força se extingue aos poucos e o número de fiéis cai para apenas um
milhão, em 1598, em todo o paìs. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 44).

Essa prepotente e megera florentina era parente muito próxima de Leão X,


aquele jovem papa que havia perseguido o pároco Martinho Lutero. A cena macabra
transcorrida na Noite de São Bartolomeu foi um autêntico replay do ocorrido em
1215 na Itália e na França sob ordens do papa Inocêncio III (1198-1216), a respeito
do qual Gallego afirma:

A sua decisão de acabar com os hereges que proliferavam no Norte de Itália e no Sul de
França foi igualmente constante e enérgica. Promulgou a cruzada contra os cátaros e
albigenses, espalhados sobretudo no Sul de França nos arredores de Toulouse. Esta
cruzada degenerou numa guerra cruel centrada na caça e no extermínio dos hereges.
(GALLEGO, 2010, p. 176).

Como resultado dessa bárbara crueldade que nasceu sob os olhares da


intolerância religiosa, a Europa tornou-se pequena para esconder tantos protestantes
franceses e de outras nações emergentes. A melhor alternativa de segurança os
aguardava do lado oposto do oceano Atlântico, onde estava nascendo o sonho da
total e mais sublime liberdade de expressão: a religiosa. Mesmo assim, diante dessa
fuga, alguns foram encontrados e massacrados em razão de sua fé.

Centenas de milhares de huguenotes fugiram durante os horrores. Uma colônia se


estabeleceu na Flórida, precusora da cidade que é hoje Santo Agostinho. Uma expedição
espanhola descobriu a colônia em 1575 e matou praticamente todas as pessoas
encontradas. O comandante espanhol erigiu um marco dizendo que os colonos foram
executados não como franceses, mas como luteranos. (HAUGHT, 2003, p. 94).

O italiano Ugo Bomcompagni (1502-1585), nascido na Bolonha por aquele


desatroso período, era o mais recente inquilino oficial do Vaticano, em Roma,
quando novamente Catarina de Médici, na utilização de uma bem-orientada
maestria, autorizou e consumou o assassinato de não poucos dos líderes
protestantes na França. O citado inquilino do principal palácio vaticanense era o
papa Gregório XIII, um ferrenho antiprotestante que comemorou o massacre da
Noite de São Bartolomeu com um Te Deum solene realizado na igreja de San
Marco, buscando eternizar a façanha religiosa e política levada a cabo na França.

Mandou cunhar uma medalha comemorativa do massacre e enviou um cardeal a Paris


para levar ao rei e à rainha-mãe suas congratulações, bem como dos cardeais. Faltava
um nada para a França tornar-se protestante; ela, porém, esmagou o protestantismo na
noite de São Bartolomeu em 1572. (HALLEY, 1961, p. 699).
Um renomado e contemporâneo escritor católico em nossos dias, embora já
falecido, afirmou sem temer as possíveis represálias que, “pelo reino de Deus,
milhares e milhares tiveram suas possessões confiscadas, terras tomadas; famílias,
carreiras e bons nomes sacrificados” (MANNING, 2017, p. 216). Por esse período, a
França, que matava protestantes, recebeu a comenda papal na qual foi qualificada
como a filha mais velha da Igreja. A História é um fato incontestável, as boas e/ou
as más qualidades são expostas ao público quando o pesquisador/escritor não tem
medo da verdade. Um polímata cidadão católico praticante de nossos dias relata
sobre a carreira ministerial do doutor Hugo Boncompagni. “Decidiu entrar na carreira
eclesiástica, participou na primeira sessão do concílio de Trento como jurista e,
quando a reunião se trasladou para Bolonha, teve tempo para ter um filho de uma
jovem solteira, que reconheceu e que casou com um pedreiro, concedendo-lhe um
dote” (GALLEGO, 2010, p. 281)
Em 1556, 16 anos antes da macabra Noite de São Bartolomeu, 36 João
Calvino, do alto do seu quartel-general na Suíça, estava escolhendo pessoas bem-
instruídas nas doutrinas bíblicas elaboradas pelos reformistas com o objetivo de
enviá-las até a sonhada França Antártica. Foi assim que, no mês de outubro de
1556, os missionários zarparam da França com destino ao Brasil sob a liderança
espiritual dos pastores Pierre Richier (1506-1580), doutor em teologia e ex-
sacerdote da Ordem dos Carmelitas, e Guilherme Chartier, outro gigante do saber,
ambos ordenados em Genebra por João Calvino.

Calvino teria sido colega de Villegagnon nos colégios de La Marche e Montaigu, em


Paris, e na Universidade de Orleans. […] No início dos anos 1560, Villegagnon já se
tornara uma personalidade bem conhecida e respeitada na França, ao passo que
Calvino se transformara no verdadeiro papa do protestatntismo francês, instalado na
Suíça, em Genebra, de onde lançava raios fulminantes contra os líderes católicos da
época. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 56, 58, 119).

Foi uma longa, temerosa e sofrida viagem, uma verdadeira odisseia ao


desconhecido, parafraseando o falecido professor e lexicólogo Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982), que assevera: “Para essas pessoas, o mar certamente não
existia, salvo como obstáculo a vencer” (HOLANDA, 2016, p. 124). Numerando as
escalas para abastecimentos e reparos nas frágeis naus, os missionários enviados
por Calvino navegaram cerca de cinco meses. Finalmente, avistaram uma elevada
montanha que posteriormente recebeu o nome de Pão de Açúcar. Os navios
estavam se aproximando da entrada marítima de uma desprezível aldeota. Na base
daqueles pitorescos elevados, foi fundada por Estácio de Sá (1520-1567), oito anos
depois, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, dia 1º de março de 1565.

36
“Massacre de São Bartolomeu: denomina uma das páginas mais sangrentas da história do
cristianismo, quando Catarina de Médicis, para recuperar prestígio junto às forças católicas,
sancionou o assassinato brutal de Coligny e outros seis líderes protestantes em 24 de agosto de
1572 (dia de São Bartolomeu). A isto, seguiu-se um abate de dezenas de milhares de huguenotes
em Paris e nas províncias, que durou uma semana.” (ALMEIDA, R., 2010, p. 104).
Os huguenotes na Guanabara

Aquele grupo de missionários aportou na aldeia da Guanabara, hoje a


glamorosa cidade do Rio de Janeiro, dia 10 de março de 1557, uma calorenta e
úmida quarta-feira do estarrecedor verão abaixo da linha do Equador. Os recém-
chegados foram recebidos com grande acatamento, honra e garbosamente
saudados na ilha de Serigipe por Nicolau Durand Villegaignon, um casto francês na
casa dos 47 anos, que também usufruía da patente honorífica de vice-almirante.
Villegaignon era um relevante e conceituado Cavaleiro da Ordem de Malta,
advogado e representante legal de Henrique II (1519-1559), há dez anos rei da
França, monarca que, juntamente com sua esposa Catarina de Médici, formou um
paredão contra as ideias dos reformistas protestantes, entre eles o francês João
Calvino.37
Aquela quarta-feira, 10 de março de 1557, tornou-se o marco na história
evangélica do Brasil, quando foi realizado o primeiro culto protestante em terras das
Américas. Segundo outros historiadores e pesquisadores, Pierre ou Pedro Richier
(1506-1580) ministrou sua histórica homilia em francês. Aliás, esse era o idioma
materno daquela aventureira comunidade instalada pelas bandas do Sul da Terra. A
base bíblica para o primeiro sermão protestante em terras do Novo Mundo foi o
texto do salmo 27:4 em francês:

Je demande à I’ Éternel une chose,


que je désire ardemment:
Je voudrais habiter toute ma vie
dans la maison de I’ Éternel,
Pour contempler la magnificence
de I’ Éternel Et pour admire son temple.

A então musicista carioca e pesquisadora evangélica Henriqueta Rosa


Fernandes Braga (1909-1983), nascida no seio de uma tradicional família
Congregacional, afirma que o primeiro cântico foram os versos do Salmo 5, com
letras de Clément Marot (1496-1544) e melodia de Louis Bourgieois (1510-1559),
dois músicos renascentistas franceses. Segundo o falecido doutor Russel Norman
Champlin (1933-2018), Clément Marot traduziu os salmos para o idioma francês,
metrificando-os e entoando-os como hinos de adoração e louvor. Esse projeto
recebeu total incentivo da parte de João Calvino e a colaboração do esmerado
trabalho do ilustre teólogo Theodore Beza (1519-1605), que deu continuidade à
versificação do saltério para o francês. “O calvinismo restringia a expressão musical,
exigindo que todos os hinos tivessem uma base bíblica, o que indicava,
essencialmente, o emprego dos salmos do Antigo Testamento” (CHAMPLIN, 1995,
v. 3, p. 120).

37
Doutor Vasco Mariz (1921-2017), que foi diplomata brasileiro, e Lucien Provençal (1931-), capitão
de mar e guerra da marinha francesa, preferem a data de 26 de fevereiro de 1557, para a chegada
dos huguenotes na Guanabara. Na utilização de uma linguagem altamente apologética e pejorativa,
alcunham Calvino de o papa dos protestantes. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 119).
Foram esses os primeiros hinos protestantes/evangélicos, todos em francês,
entoados e ensinados no Brasil em meados do século XVI pelo reverendo Pedro
Richier, um ex-sacerdote egresso da Igreja Católica Apostólica Romana, e sua
equipe de “quatorze pastores, representantes de sete facções de sua religião”
(MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 45).
A já mencionada catedrática Henriqueta Rosa Fernandes Braga era “doutora
em música, tendo sido a primeira pessoa a receber um diploma universitário de
Música conferido no Brasil” (ALMEIDA, R., 2014, p. 436). A doutora Braga, em sua
valiosa documentação, informa-nos que foi no domingo, dia 21 de março de 1557,
que se realizou a primeira Santa Ceia do Senhor conforme o ritual da liturgia
protestante/evangélica. Tal cerimônia foi ministrada pelos pastores Pedro Richier e
Guilherme Chartier. O primeiro culto protestante nas Colônias Britânicas, hoje
Estados Unidos da América do Norte, foi realizado ao largo de onde posteriormente
surgiu o povoamento de Jamestown, no atual estado da Virgínia, na quarta-feira, dia
26 de abril de 1607. O culto de ação de graças foi realizado por um clérigo capelão
da Igreja Anglicana. Isso aconteceu exatamente 50 anos depois do evento calvinista
no Rio de Janeiro.

Confissão de Fé da Guanabara

Não demorou por muito tempo o harmonioso namoro entre Villegaignon e os


calvinistas. Logo o amor tornou-se em rancor e ódio, o que resultou em uma bárbara
chacina que manchou as águas da baía da Guanabara e a reputação daquele
advogado transmutado em líder dos invasores de terras alheias, marco que ficou
registrado nos anais da historiografia religiosa e secular do Brasil. Pelos seus atos e
vingativas atitudes, Villegaignon recebeu, na linguagem dos calvinistas da época, a
bem-merecida alcunha de Caim das Américas.38 Villegaignon, com alto grau de
astúcia, preparou uma armadilha e consumiu a vida de alguns protestantes cujo
sangue manchou as lindas e naturais praias da Guanabara. Vários dos líderes
huguenotes, não suportando as ameaças e agressões verbais proferidas por
Villegaignon, optaram pelo regresso definitivo para a França.
Longe de uma segurança espiritual e dominado completamente pela loucura
do orgulho e vaidade, Villegaignon expulsou três calvinistas do Forte Coligny, os
quais foram morar na Olaria, parte continental ao largo da Guanabara. Procurando
meios viáveis para matá-los, Villegaignon exigiu que esses calvinistas redigissem
uma confissão de fé no exíguo espaço de somente doze horas. Os três signatários
redigiram os 17 artigos daquilo que a história notabilizou como Confissão de Fé
Fluminense ou da Guanabara. Há confiáveis indicações de que seja esse o primeiro
credo protestante redigido nas Américas.

Coube a João Du Bourdel, o mais velho e o mais instruído, redigir a Confissão de Fé. E ele o
fez com admirável profundeza e concisão. Devidamente assinada e devolvida a
38
Em refutação, dentro de uma ortodoxia democrata a essa centenária tese, recomendo a leitura do
livro Os Franceses na Guanabara, bem como a de tantos outros devidamente catalogados no final da
presente obra.
Villegaignon, esta Confissão de Fé foi pelo Vice-almirante declarada herética e apontada
como justo motivo de extermínio dos seus signatários. (BRAGA, 1961, p. 47).
Sem muitos recursos pedagógicos para consultar senão suas Bíblias em
francês e não se importando com o que lhes aguardava o futuro, eles redigiram de
uma maneira bastante clara e explícita, utilizando fartas referências bíblicas, o
primeiro documento de fé protestante redigido no Novo Mundo. “Esta primeira
confissão protestante produzida nas Américas foi selada com o sangue dos
calvinistas mortos por Villegaignon” (CAIRNS, 1995, p. 360). O histórico documento
foi assinado pelos franceses Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e
André la Fon.39

O massacre na Guanabara

Em outubro de 1557, sete meses depois de ter tomado a Ceia do Senhor em duas
espécies - pão e vinho -, Villegaignon os expulsou da ilha para um local chamado La
Briqueteria, hoje Olaria, no continente. Menos de três meses depois, em janeiro de
1558, Richier e outros genebrinos foram obrigados a voltar para a Europa e lá contaram
o que havia acontecido e chamaram Villegaignon de o Caim da América. Nesse mesmo
ano, no dia 9 de fevereiro, o homem forte da França Antártica manda estrangular e
lançar ao mar os quatro signatários de uma confissão de fé: Jean de Bourdel, Matthieu
Verneuil, Pierre Bourdon e André La Fon. Eles faziam parte da delegação de Genebra e
eram leigos. Por ser o único alfaiate dos franceses e por ter voltado atrás, André La Fon,
na última hora, foi poupado. Os outros três tornaram-se os primeiros mártires
evangélicos do continente. Para não serem mortos, outros huguenotes fugiram para o
interior, inclusive Jacques de Balleur, que foi parar em São Vicente, onde foi preso e
levado para a Bahia. (CÉSAR, 2000, p. 38, 39).

Aquela macabra sexta-feira – não poderia ser outro dia –, nove de fevereiro
de 1558, assinalava onze meses da chegada da comitiva protestante francesa ao
Brasil. Em meio à confusão, ao tumultuo e às cruéis perseguições contra os
protestantes, Jean Jacques Le Balleur, também missionário calvinista, conseguiu
burlar a vigilância e fugiu numa canoa dos tamoios rumo ao litoral sul. No uso dessa
modalidade de transporte, além de longas e solitárias caminhadas pelas montanhas
da emaranhada Mata Atlântica, conseguiu chegar até Bertioga, um pequeno
aglomerado residencial, de onde se dirigiu para a vila de São Vicente.

Entretanto, o foragido Jacques Le Balleur conseguiu, quase por milagre, sobreviver aos
índios. [...] se aventurou em incursões até a capitania portuguesa de São Vicente,
começando a pregar nas ruas de alguns povoados. [...] Tomando conhecimento da
presença daquele calvinista, o jesuíta Luiz Grã desceu de São Paulo de Piratininga e
exigiu que fosse preso. Dito feito. (VIEIRA, P., 2016, p. 45).

39
A Confissão de Fé da Guanabara foi redigida no Brasil Colônia, nos primeiros dias do mês de
fevereiro de 1558. Não esqueçamos que a mesma foi produzida sob pressão e entregue doze horas
após o recebimento do ultimato. O citado tratado de fé foi produzido 91 anos antes da famosa
Confissão de Westminster, histórico documento com 107 artigos redigidos na catedral de Londres,
entre os anos de 1643 e 1647 pelos mais destacados teólogos ingleses e escoceses daqueles dias.
Também em Londres, no ano de 1689, foi produzida a primeira Confissão de Fé Batista, 131 anos
após a Confissão de Fé da Guanabara. Por força de um sagrado destino, no quesito de fé
protestante, coube ao Brasil ser o dono da primeira tacada!
Mesmo perseguido de perto e consciente daquilo que o futuro aguardava
para sua vida terrestre, Le Balleur nunca deixou de testemunhar o poder salvador
de Jesus Cristo em detrimento da mariolatria ensinada pelos jesuítas. Com certo
requinte de desumana ferocidade, ele foi preso em São Vicente e posteriormente
remetido para uma fétida e sombria masmorra de segurança máxima em Salvador,
Bahia, onde ficou enclausurado por cerca de oito anos, tempo em que o sol era algo
raro para aquele francês. Por todo esse tempo, Le Balleur permaneceu confinado
em calabouços solitários, onde os raios solares eram tão sagrados quanto a luta
para sobreviver. Nesse período, simbolicamente preso entre a cruz e a espada,
esgotaram-se todos os seus pedidos de clemência junto às autoridades religiosas
em Portugal. Estando na prisão e sem o perdão do Inquisidor-mor em Lisboa, Le
Balleur estava ciente de que, mais cedo ou mais tarde, a agonia da forca lhe
alcançaria. O que o separava da morte era somente uma questão de mísero tempo.
Diante daquele impasse, cada dia era o último dia!

Mem de Sá, instigado pelos jesuítas, recambiou o pastor - Jacques Le Balleur - para o
Rio de Janeiro, onde foi condenado à morte pelo clero. Sim, condenado pelo clero, não
pela justiça. Tanto é verdade que chegou a apelar da sentença, mas não a algum
Tribunal de Justiça. Apelou ao Cardeal Henrique de Lisboa, que, como não podia ser
diferente, confirmou a condenação, e Anchieta foi o próprio carrasco. (SILVEIRA, 2001,
p. 107).

O pastor que Anchieta estrangulou

Foi o Bodel levado para a forca, assistido por Anchieta. Cena medonha! O carrasco,
pouco adestrado no ofício, prolongava o padecimento da vítima. [...] Interveio o
missionário. José de Anchieta ergue as mãos [...] Direis que elas se erguiam para o céu
implorando piedade, invocando em um supremo apelo o Justo que também morreu
supliciado por motivo de religião... [...] Não, era José de Anchieta que, dando sua lição
ao carrasco, estrangulava ele próprio o padecente. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
42)

Aos olhos de alguns comentaristas alinhados à visão jesuítica da época, esse


é um conto e não um fato. Todavia, a História está aí para ser interpretada e
analisada à luz da realidade!
Jean Jacques Le Balleur, também grafado como Bodel, foi enforcado na
segunda-feira, 20 de janeiro de 1567. Parece uma ironia de pagamento de
promessa em gratidão aos santos. No calendário católico, esse é o dia de São
Sebastião, o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. O local escolhido não poderia
ser outro e, na

própria região onde, anos antes, seus correligionários haviam sido supliciados, também
Le Balleur foi enforcado, tendo tido como auxiliar de carrasco, sob pretexto de abreviar-
lhe o sofrimento, o Padre José de Anchieta, conforme descrição dos próprios jesuítas.
(CÉSAR, 2000, p. 48).

O palco para as cenas de terror já estava montado! Imbuído de um forte rancor


contra o protestantismo, o jesuíta José de Anchieta (1534-1597) auxiliou o verdugo
na execução do francês Jacques Le Balleur. O padre Anchieta, ligado à Companhia
de Jesus, estava prestes a completar 33 anos ao cometer a atrocidade de
estrangular um herege protestante, ato que, naquela época, foi considerado pela
Igreja Católica uma façanha na defesa da pureza da fé. Tido como o “apóstolo do
Brasil”, o espanhol José de Anchieta, 413 anos depois, foi beatificado em 22 de
junho de 1980 pelo papa João Paulo II. O seu nome aguardou outros 34 anos até
ser alçado na galeria dos santos. “Após um longo processo de canonização, foi
santificado pelo papa Francisco no dia 3 de abril de 2014. [...] O processo de
canonização de Anchieta teve início em 1597, logo após a sua morte. A justificativa
para a demora foi a dificuldade na comprovação de milagres” (NOVINSKY et al,
2016, p. 152, 188). Apenas na busca de melhorar a questão, não devemos
esquecer que tanto o argentino que optou pelo congnome Francisco quanto o
espanhol José de Anchieta pertencem à ordem dos jesuítas. Aliás, Francisco é o
primeiro papa surgido nessa ordem, mas perdeu a oportunidade de mostrar serviço
na busca de apagar o triste passado criado pelos jesuítas em diferentes locais.
Somente recordemos que Francisco é o primeiro papa nascido e criado nas
Américas. Notemos que beatificação, segundo o glossário do livro História dos
Papas, significa:

decisão do papa pela qual autoriza que se preste culto religioso a um cristão defunto. É
a passagem prévia necessária para a canonização, isto é, a declaração de que uma
determinada pessoa é santa, se encontra no Céu e contempla Deus face a face na visão
beatífica. (GALLEGO, 2010, p. 502).

O focar da história dos mártires da igreja pode ser visto por diferentes lentes da
fé, do espaço e do tempo, tudo isso sem comentar a força do sincretismo imperante
no Brasil, além da conexão santeira incentivada pelo Vaticano.

O herege foi aquele que escolheu dar ênfase em determinado tema que, digamos, não
estava na pauta oficial. E, na história do cristianismo, muitos dos hereges não foram
necessariamente aqueles que estavam queimando, mas os outros paramentados
acendendo a fogueira. (ALENCAR, 2005, p. 22).

Outros acontecimentos

Naquela segunda-feira amarga e cruenta, 20 de janeiro de 1567, data que


infernizou os acontecimentos da história secular e religiosa, D. Sebastião (1554-
1578), rei de Portugal e de suas vastas colônias, estava completando 13 anos. Com
certeza, uma glamorosa festa portuguesa em comemoração ao aniversário real
transcorria nos palácios e por toda a cidade de Lisboa. Enquanto isso, no Brasil,
sangue de protestante jorrava no Rio de Janeiro!
D. Sebastião, o décimo sexto rei de Portugal, foi o responsável pela nomeação
do fidalgo Mem de Sá (1500-1572), filho de um cônego da Sé de Coimbra, para
ocupar a função de terceiro Governador Geral do Brasil. Mem de Sá desfrutou da
nomeação desde 1558 até sua morte em Salvador no dia 2 de março de 1572.
Apenas reprisando, para não esquecer os acontecimentos em andamento: foi
na quarta-feira, 10 de março de 1557, que os primeiros protestantes calvinistas
aportaram no Brasil, 50 anos antes que um capelão anglicano realizasse o primeiro
culto protestante na colônia britânica nas Américas. Essa histórica cerimônia
litúrgica transcorreu no convés de um dos três navios da armada britânica também
na quarta-feira, 26 de abril de 1607, enquanto ancorados na Chesapeake Bay, nas
proximidades da ilha de Jamestown, na colônia da Virginia. 40 Seguindo o mesmo
raciocínio, a chegada dos primeiros protestantes calvinistas na Guanabara ocorreu
exatos 63 anos antes que os Fathers Pilgrims ingleses41 atracassem, em 11 de
novembro de 1620, o navio Mayflower em terras indígenas, espaço geográfico que
os protestantes, os católicos e outros Pilgrims batizaram de New England, cognome
dado em homenagem à saudosa e velha Inglaterra. O Mayflower, zarpou do
histórico porto de Southampton, Inglaterra dia 6 de agosto de 1620, (NOTA DE
RODAPÉ: Há divergências de espaços e datas. Alguns preferem o porto de
Plymouth e não Southampton, datas; 5 de agosto, enquanto outros 6 de setembro
de 1620. FINAL DA NOTA) foram quase cem dias de incertezas singrando as frias
águas do Atlântico Norte. Por diferentes razões, o dia 11 de novembro de 1620 é
simetricamente considerado a data oficial que ampliou a fomentação do
expansionismo da colonização americana.
Voltando à América do Sul, aqueles mártires protestantes que anunciaram o
evangelho e posteriormente foram trucidados no Rio de Janeiro jamais poderiam
imaginar o que Deus faria na história do Brasil em relação ao cristianismo
evangélico. Foram perseguidos, traídos e, finalmente, martirizados sob ordens do
francês Nicolau Durand Vallegaignon. O fanatismo é sempre impressionante e atroz!
Tertuliano (160-220), um prolífico autor africano que tem o seu nome em destaque
entre os honrados Pais da Igreja, tinha plena razão quando cunhou a frase que o
imortalizou: “O sangue dos mártires é a semente da igreja.” Não muito diferente da
visão e expressão tertuliana, o escritor François René de Chateaubriand (1768-
1848) expressou que o Cristianismo era “uma seara adubada com sangue dos
apóstolos” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 93).
Com a cruel execução na forca do francês Jacques Le Balleur, na aldeota de
São Sebastião do Rio de Janeiro, naquele fatídico 20 de janeiro de 1567, quase
foram congelados os sonhos daquela “cambada de esfarrapados maltra-pilhos
calvinistas” (MANNING, 2017, p. 214). O francês Le Balleur foi o último herege
protestante da safra que havia aportado no Brasil há 10 anos, o memorável dia 10
de março de 1557. Após esse martírio, houve um longo silêncio do protestantismo
no Brasil. Quando dos ataques e mortes em 20 de janeiro, havia-se passado cinco
anos desde a ordem de D. Sebastião para expulsar “esses ladrões franceses”.
Naquele causticante verão carioca, toda a ira lusitana caiu sobre o restante grupo
de franceses. Foi um banho de sangue que atingiu ambas as partes que choraram

40
Há duas versões relativas ao nome “Virgínia”. A primeira está relacionada à rainha Elizabeth I
(1533-1603), inglesa considerada virgem por nunca ter se casado. A hipótese seguinte é que tal
nome teria sido dado em honra de Virgínia Dare, a primeira criança britânica nascida na colônia
americana, dia 18 de agosto de 1587. (ASHBAUGH, 1998, p. 26, 27).
41
“Os recém-chegados eram um grupo de peregrinos - assim denominados por William Bradford, um
de seus líderes [...]. Os peregrinos foram os primeiros dos muitos protestantes que vieram à Nova
Inglaterra com a intenção de criar sua própria comunidade santa” (DAVIDSON, 2016, p. 38, 39).
e, dentro do possível, sepultaram os seus mortos. No fervor das batalhas, o militar
Estácio de Sá (1520-1567), fundador e Governador Geral do Rio de Janeiro, foi
atingido no olho por uma flecha envenenada. Não resistindo aos ferimentos, veio a
falecer aos 47 anos, no dia 20 de fevereiro de 1567, exatamente um mês após as
batalhas. A missa que marcou o seu funeral foi conduzida pelo padre José de
Anchieta.42

No dia 20 de janeiro de 1567, foram forçados a capitular após uma batalha fatal. Estácio
de Sá, foi atingido por uma flexa indígena e morreu pouco depois. [...] Os portugueses
expulsaram quatro naus francesas da Guanabara e o capitão foi enforcado. Em
represália, em julho de 1570, os corsários protestantes Jacques de Sorè et Jean
Capdeville afundaram a nau Santiago, que rumava para o Brasil, e na qual morreram
494 portugueses, inclusive quarenta missionários jesuítas. (MARIZ; PROVENÇAL, 2015,
p. 38).

Passaram-se 57 anos até que um novo alvorecer surgisse tenuamente no


Nordeste, primeiro na Bahia e posteriormente em Pernambuco. A nova invasão
estava a cargo dos holandeses, que eram os protestantes reformados, em 1624,
período em que Portugal e suas colônias não passavam de uma expansão da
Espanha filipina. Adornados de orgulho e transbordando de prepotência, os
espanhóis iniciaram um processo de endeusamento para com Filipe IV, o terceiro de
Portugal. “Nos primeiros anos do seu reinado, eram muitos os que acreditavam que
Filipe IV devia ser o Rei-Planeta, a quem estava destinado restaurar o prestígio que
a monarquia hispânica tinha tido nos tempos de Filipe II” (RAMOS, 2012, p. 290).
D. Sebastião, que recebeu o título de o messiânico, nasceu no Paço da
Ribeira em Lisboa, dezoito dias após o falecimento de seu pai, o príncipe D. João
Manuel (1537-1554). Ao morrer na capital imperial em 2 de janeiro, o príncipe
herdeiro estava com somente 16 anos e não passava de um frágil e doentio
adolescente. Pesquisas não oficiais indicam que possivelmente o jovem príncipe foi
vencido pela complicação dos acelerados diabetes que o infernizavam. O Desejado
herdeiro, filho do falecido D. João Manuel e de D. Joana de Espanha (1535-1573),
“era um rapaz, a quem foi dado o singular nome de Sebastião, sem tradição na
Casa Real portuguesa, em homenagem ao santo em cujo dia viera à luz” (RAMOS,
2012, p. 257). Dentro da liturgia romana daquela época, esse apelativo nominal
religioso era conhecido por onomástico. D. Sebastião, que se tornou o aventureiro
rei, desapareceu aos 24 anos em Alcácer-Quibir, nas dunas de areia do Marrocos,
dia 4 de agosto de 1578. Em tese, era um miúdo abandonado no jogo de duas
monarquias, que nunca conviveu com a sua mãe e tampouco foi visto pelo pai.
Órfão de pai morto cuja mãe fora levada para as cortes na Espanha, D. Sebastião
herdou o trono aos três anos quando da morte do seu avô, D. João III, que morreu
aos 55 anos em 1557, o mesmo ano da chegada dos protestantes franceses na

42
Aos 50 anos, em 1560, Villegaignon estava desiludido. “Havia investido muito na aventura na
Guanabara e perdeu tudo. O governo português, visando impedi-lo moralmente de retornar ao Brasil,
indenizou-o em parte, mas, ao falecer, Villegagnon deixou o pouco que lhe restava aos pobres de
Paris” (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 63). Sua saída da Guanabara foi apenas uma questão de
tempo. Onze anos depois, em 9 de janeiro de 1571, estava morto aos 61 anos.
Baía da Guanabara. D. João III era filho de D. Manuel I (1469-1521) com a
espanhola D. Maria de Aragão e Castela (1482-1517). 43

Batalha final de D. Sebastião

Segundo o historiador Oliveira Marques, a situação de D. Sebastião era um


tanto quanto deprimente e recheada de complexidade. Além disso, ele era
proprietário de uma obstinada loucura por conquistas geográficas na África e pela
expansão do catolicismo romano.

Enfermo no corpo e no espírito, se importava menos com o ofício da governação e mais


com os sonhos de conquista e de expansão da fé. Conquistar Marrocos era a sua
ambição número um. Ousado até aos limites da loucura, o rei não concedia lugar ao
planeamento cuidadoso, à estratégia ou à retirada, igualando tudo isso a medo e
cobardia. Rodeou-se de um grupo de jovens aristocratas, quase tão loucos e pouco
maduros como ele próprio. (MARQUES, 1995, p. 284).

O jovem e obstinado rei de Portugal não estava somente mal assessorado na


estratégia militar. Levar a fé católica aos infieis africanos, não passava de um
engodo na busca de conseguir apoio religioso e vedar os olhares de uma beática
sociedade. Os verdadeiros objetivos eram outros. Não só vingar o sequestro e
morte do infante D. Fernando (1402-1443), seu distante primo transcorrido há 135
anos, também saquear riquezas alheias. O rei português caiu na mesma armadilha,
subestimou o poder bélico dos marroquinos, tal como o seu primo, jamais regressou
à Portugal. “Em 1437, o infante D. Fernando, o Santo, irmão mais novo de D.
Henrique, o Navegador, foi feito prisioneiro em Marrocos. Em troca da sua
liberdade, o rei de Fez exigia a devolução de Ceuta. No dia 5 de junho de 1443,
após seis anos de tortura no cativeiro, para forçar Portugal a devolver a Ceuta, D.
Fernando morreria, tendo sido proclamado Santo pelos muçulmanos que o
torturaram” (ROSA, 2019, p. 38).
Na procura de conquistar terras e disfarçadamente vender a teoria do
expandir a fé católica romana, D. Sebastião é morto no decorrer de uma batalha nos
arredores de Alcácer-Quibir, no norte de África. Ao morrer, o jovem rei estava com
somente 24 anos. Calcula-se que outros sete mil soldados não sobreviveram,
incluindo os comandantes do exército português. A resistência moura foi implacável
diante de um exército mal-comandado, deficiente em suas estratégias, lutando em
locais e áreas desconhecidas dos portugueses. Aquela foi uma batalha suicida. D.
Sebastião não atuou com necessária prudência e subestimou a capacidade de
defesa dos islâmicos. Em resultado à humilhante e trágica derrota militar, Portugal
43
Não há como explicar, mas parece que, naquele período histórico, uma verdadeira maldição de
morte estava rondando a casa real portuguesa. Sem exceção, todos os filhos de D. João III, frutos do
seu casamento com D. Catarina de Áustria (1507-1578), faleceram antes de completar 19 anos! A
infortunada D. Catarina de Áustria era a irmã caçula de Carlos V (1500-1558), que, aos 19 anos, se
tornou o famoso Imperador Romano-Germânico. Junto ao grandioso poder imperial outorgado a
Carlos V, nasceu um verdadeiro terror e ódio infernal contra a seita dos protestantes. A Infanta D.
Joana de Espanha (1535-1573), princesa consorte de Portugal, mãe de D. Sebastião (1554-1574),
era a quarta filha de Carlos V (1500-1558) com D. Isabel de Portugal (1503-1539), sendo, portanto,
sobrinha da sogra e prima do próprio filho! Fruto da real endogamia.
ficou desguarnecido e totalmente à mercê da sorte. Aliás, a má sorte tinha nome e
endereço fixo; tratado por Manuel da Silva Rosa (1961-), historiador português
natural da Ilha do Pico, de “o tradicional arqui-inimigo cristão de Portugal” (ROSA,
2019, p. 32), era a vizinha Espanha de D. Filipe II (1527-1598), filho do poderoso
Carlos V (1500-1558), o mandatário do Sacro Império Romano-Germânico, e sua
consorte Isabel de Portugal (1503-1539). Isabel, que faleceu aos 36 anos, era filha
de D. Manuel I (1469-1521) e D. Maria de Aragão e Castela (1482-1517); portanto,
era legítima irmã de D. João III. Em resultado a tudo isso, o xadrez estava muito
bem montado; faltava somente o manejar das pedras. Não havia dúvidas: esse
manejar das pedras favorecia somente a dominante Espanha!

É tentador e frequente apresentar os anos decisivos do reinado de D. Sebastião como a


história de um príncipe que, na perseguição das suas miragens, arrastou a flor da
fidalguia para a morte e para o cativeiro, antecâmara do enexorável desaparecimento da
autonomia do seu reino, engolido pelo vizinho todo-poderoso. [...] A partida de Lisboa
em direcção a Marrocos de um exército que contaria com cerca de 17.000 homens, dos
quais 1.500 de cavalaria, e com apreciável número de peças de artilharia não deixou de
se revestir de uma imensa pompa. [...] A batalha, da qual subsistem muitas e
desencontradas narrativas, teve lugar a 4 de agosto e saldou-se numa completa derrota
das forças portuguesas, cercadas pelos seus opositores e vencidas, ao que se diz, pela
impreparação, pela desigualdade numérica e pela deficiente utilização da artilharia.
(RAMOS, 2012, p. 262, 264, 265).

Em decorrência da morte precoce de D. Sebastião, o trono real em Lisboa


ficou vago. O rei, que era solteiro, sempre manteve uma doentia fobia de mulher e
recusou várias propostas de casamentos. Era um autêntico misógino. Em 1576, o
mesmo ano em que se autorizou a fundação da cidade de Luanda em Angola, foi
observado que D. Sebastião mostrava “tanto ódio às mulheres, que desvia os olhos
delas” (RAMOS, 2012, p. 260). Infelizmente, essa louca misoginia resultou em uma
calamidade que se chocou frontalmente com o mundo lusitano. Teria o rei D.
Sebastião, educado pelos jesuítas, tendências à homossexualidade? Tudo não
passa de uma emblemática cogitação. Aliás, sou somente pesquisador de História e
seus efeitos, não cabe-me discorrer sobre ideologia de gênero sexual de quem quer
que seja. Entretanto, a interrogação fica a vagar. Responda quem interessar possa!
D. Sebastião não deixou herdeiros que pudessem substituí-lo na condução da
monarquia sediada em Lisboa. O império ficou acéfalo e totalmente incontrolável.
Desencadeou-se uma verdadeira crise dinástica na Coroa Portuguesa e muitos
disputavam uma fatia do dourado filé! No arranjo de interesses políticos e da
manipulação do poder, arquitetaram um jeitinho com o auxílio da vizinha Espanha e
com a bênção papal, entregando o trono ao seu tio-avô, D. Henrique (1512-1580),
cardeal de Lisboa e, durante vários anos, o inquisidor-mor de Portugal. D. Henrique,
o cardeal, era o quinto filho de D. Manuel I com sua segunda esposa, D. Maria de
Aragão e Castela (1482-1517). “Nas três gerações que antecederam o rei D.
Sebastião, nascido em 1554, a Casa Real portuguesa realizou onze casamentos,
dos quais oito se fizeram em Castela” (RAMOS, 2012, p. 255). Esses casamentos
tipicamente negociados pelos interesses reais facilitaram aquilo que a Espanha há
muito aguardava, dominar sobre Portugal e suas colônias, isso aconteceu quando
da morte do cardeal D. Henrique I (1512-1580), o último da Casa de Aviz.
O cardeal, agora rei de Portugal e suas colônias, estava muito enfermo e,
para a época, considerado um cidadão de avançada idade. Morreu dia 31 de janeiro
de 1580, exatamente na data que estava a completar 68 anos. Com a sua
aguardada e aplaudida morte pelos espanhóis e outros oportunistas de plantão,
também foi sepultada a dinastia do Mestre de Aviz, a qual ocupava sucessivamente
o trono desde 1385. Em consequência natural dos casamentos de D. Manuel I, rei
de Portugal, com as princesas espanholas, filhas de Isabel I de Castela (1451-1504)
e Fernando II de Aragão (1452-1516), os conhecidos Reis Católicos, a Espanha
conseguiu, sem guerrear, unir a seu favor as duas coroas ibéricas. O resultado foi
funesto. No decorrer de 60 anos (1580 a 1640), Portugal, o Brasil e as demais
colônias portuguesas tornaram-se, por direito e de fato, partes integrantes da
Espanha filipina. Esta, por sua vez, não nutria nenhuma simpatia pela Holanda e
muito menos pelos hereges protestantes.
Filipe II da Espanha (1527-1598) também foi por herança rei de quase 50%
do mundo, terras herdadas de seu pai, o imperador Carlos V (1500-1558). Pela
linhagem materna, ele era primo direito de D. Sebastião, sendo ambos sobrinhos do
cardeal D. Henrique e netos de D. Manuel I. Com a vacância no trono e mediante a
utilização de uma perniciosa astúcia, Filipe II da Espanha assumiu a coroa
portuguesa nas Cortes de Tomar, no dia 18 de abril de 1581, com o título de Filipe I
de Portugal. Seu principal juramento: respeitar os princípios da monarquia dualista.
Naquela data, Filipe I estava com 53 anos e viúvo desde 26 de outubro de 1580.
Tinha muita ganância, herança de sua bisavó, Isabel de Castela, implacável inimiga
dos protestantes e, a reboque, também dos judeus e dos islâmicos.
Até aquele período, a cronologia adotada pelos cristãos estava baseada no
calendário Juliano, elaborado no ano 46 a.C., sob ordens do imperador Júlio César,
o pontífice máximo da República Romana. Há muito esse obsoleto calendário
estava desviando-se do verdadeiro ano solar, fazendo-se necessária uma reforma
para adequá-lo ao sistema vigente. Os astrônomos da época buscaram o apoio do
papa Gregório XIIl (1572-1585) para resolver um problema que afetava o andar das
estações.

O 5 de outubro de 1582 converteceu-se no dia 14 e foram considerados bissextos todos


os anos divisíveis por quatro, menos os anos iniciais de cada século que não forem
múltiplos de quatro. Aceitaram a mudança imediatamente os soberanos italianos, de
Espanha e de Portugal [...] Na realidade, esta mudança provocou irritação nos países
protestantes, até ao ponto de a Universidade de Tubinga decretar, com pouco êxito, que
quem aceitasse o novo calendário se reconciliava com o AntiCristo. (GALLEGO, 2010,
p. 282, 283).

Essa nova e matemática adequação científica ao sistema solar recebeu o


nome de Calendário Gregoriano. Entretanto, esse calendário não foi nenhuma
invenção do italiano Ugo Bomcompagni (1502-1585), que durante doze anos (1672-
1585) se encarnou na figura do papa Gregório XIII.
Buscando os antecedentes do pregador Charles Haddon Spurgeon (1834-
1892), um batista calvinista britânico, o escritor Orlando Boyer (1893-1978), pioneiro
na publicação de literatura pentecostal no Brasil, buscou as seguintes informações
históricas:

No período da Inquisição, na Espanha, sob o reinado do imperador Carlos V, um


número elevadíssimo de crentes foi queimado em praça pública ou enterrados vivos. O
filho de Carlos V, Filipe II, em 1567, levou a perseguição aos Países Baixos, declarando
que ainda que lhe custasse mil vezes a sua própria vida, limparia todo o seu domínio do
protestantismo. Antes da sua morte gabava-se de ter mandado ao carrasco, pelo menos
18 mil hereges. (BOYER, 1986, p. 209).

O famoso pregador londrino, escritor e professor Charles Spurgeon faleceu


aos 58 anos na cidade de Menton, localidade veraneia banhada pelo Mediterrâneo
ao sul da França, onde, sob orientação médica, buscava um pouco de tranquilidade
para vencer sua crónica depressão. Esse destacado príncipe dos pregadores era
um dos não poucos descendentes de holandeses que, fugindo das perseguições
religiosas sob os auspícios de Felipe II, imigraram para a Inglaterra lá pelos meados
do ano de 1570.

Segunda tentativa

Foi sob a coroa de Filipe IV (1605-1665), rei de Espanha, o mesmo Filipe III de
Portugal, que os protestantes holandeses aportaram no Brasil em 1624. Primeiro na
Bahia, onde chegaram dia 8 de maio e logo dominaram a cidade de Salvador.
Imediatamente os batavos armaram sua tenda religiosa em um ato de
agradecimento pela conquista de um naco de fé católica. Naquele sábado, “dia 11
de maio de 1624, Enoch Sterthenius celebrou por lá o primeiro culto calvinista”
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 44), pelas terras do Nordeste brasileiro.

Na Bahia, a população luso-brasileira havia se organizado sob a liderança do bispo


Marcos Teixeira, e, um ano após a invasão, os holandeses se renderam diante da força
expedicionária da Espanha e de Portugal, sob as ordens do nobre Dom Fradique de
Toledo. (SCHALKWIJR, 1986, p. 56).

O telhado da bombástica festa de arromba orquestrada por Felipe III de


Portugal (o mesmo Felipe IV da Espanha) desabou no sábado, primeiro de
dezembro de 1640. Foi o golpe certeiro e mortal silenciosamente arquitetado pela
burguesia palaciana em Lisboa e arredores. A elite aristocrática e a mortal
população portuguesa sentiam-se humilhadas e feridas no orgulho diante do
domínio da Espanha sobre elas. Chegou o momento do basta de agressividade
econômica e psicológica sobre uma pequena e escravizada nação. Depois de tudo
muito bem preparado, sigilosamente buscaram, no Palácio de Vila Viçosa, distrito de
Évora em terras alentejanas, o então Duque de Bragança que, aos 36 anos,
proclamou a Restauração do Reino Português e foi aclamado soberano, subindo ao
trono sob ameças e incertezas econômicas com o título de D. João IV (1604-1656).
Em resultado à Restauração, os intrusos vizinhos espanhóis foram expulsos das
terras lusitanas, fato que criou uma duvidosa amizade. Aliás, essa dúvida nunca
deixou de existir de ambos os lados das fronteiras. Foi nessa nova fase de Portugal
que os holandeses também foram expulsos do Nordeste brasileiro. O ato final que
levou à reconquista nordestina aconteceu em 1654, dois anos antes da morte de D.
João e 14 anos após o ato da Restauração em Lisboa.
Embora, na época, a questão fosse politicamente correta e demonstrasse
poderio, entretanto historicamente pesa sobre D. João IV que sua fortuna foi
conseguida em virtude da venda de crias de escravas que mantinha em suas terras
no Alentejo. Algo muito semelhante a uma fazenda onde há reprodutores de animais
para serem comercializados livremente pelos seus proprietários! “Dom João IV,
tinha entre seus negócios a reprodução sistemática de escravos no Palácio Ducal
de Vila Viçosa. As crianças nascidas desse modo eram logo separadas das mães e
vendidas a preços entre trinta e quarenta escudos por cabeça” (GOMES, 2019, v. 1,
p. 389). Quadro semelhante ocorreu por diferentes localidaddes no Novus Mundus!
Simplesmente repugnante. “Uma posição inferior contra o que ocupa uma posição
superior é o que chamo de bondade ruim. É com essa bondade que a sociedade se
desorganiza” (HUGO, 2007, v. 1, p. 218).

Terceira tentativa

Os holandeses eram teimosos e persistentes. Não desistiram; somente


aguardaram novas oportunidades para conquistarem um naco da maior nação sob a
coroa espanhola nas Américas. A Holanda não tinha nenhuma simpatia pela
Espanha, herança deixada por Carlos V, o todo-poderoso Imperador Romano-
Germânico. No decorrer de 1630, cinco anos após amargarem a expulsão de
Salvador, os holandeses partiram para invadir o estado de Pernambuco, onde se
encontravam não só os mais produtivos engenhos de açúcar, mas também imensos
canaviais e se concentrava um número sem fim de escravos. Essa concentração
escravocrata, era uma verdadeira locomotiva produtora de lucros no mercado
açucareiro internacional.
A esquadra Batava estava militarmente muito bem preparada para a
concretização do segundo ataque às produtivas terras da Região da Mata. Uma
expedição

composta por 67 navios equipados com 1.170 canhões e 7 mil homens armados. [...] No
dia 14 de fevereiro de 1630, um exército de 3 mil homens, apoiado pela poderosa
esquadra das Províncias Unidas, desembarcou na Praia de Pau Amarelo, ao norte de
Olinda, ocupada dois dias mais tarde. No dia 3 de março, o Recife também se rendia às
forças invasoras. Começavam ali uma duríssima guerra pelas lavouras e engenhos de
açúcar, que envolveria as regiões vizinhas [...] e só terminaria em 1654. (GOMES, 2019,
v. 1, p. 352, 363).

No decorrer dos 24 anos de domínio sob os históricos batavos, dezenas de


pastores da Igreja Reformada Holandesa - um movimento calvinista - realizaram
missões em quase todo o Nordeste. Tribos indígenas completas se converteram do
catolicismo para o protestantismo. Era o despontar de uma nova e, ao mesmo
tempo, mais dinâmica e cativante liturgia religiosa.

Houve, contudo, indígenas protestantes fervorosos e mesmo quase teólogos e


calvinistas de Bíblias na mão. [...] Segundo o Pe. Vieira, muitos nativos, nascidos e
criados entre os holandeses, tendo sido doutrinados por aqueles, estavam tão
calvinistas e luteranos como se houvessem nascido na Inglaterra ou Alemanha.
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 48, 49).

Também foi nesse áureo período da história que uma gama de judeus
encontrou no Brasil a sonhada terra prometida. Tudo isso sob a cortês sombra dos
interesses e o total apoio moral das autoridades holandesas. O governador Johan
Maurits van Nassau-Siegen ou Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), nascido no
mesmo ano que D. João IV, tal como o português era um empoderado negociante
de negros feitos escravos. Maurício de Nassau estava inteirado que judeu por perto
demonstrava prosperidade para a nação e, com essa tese em mente, buscou fazer
do Nordeste a sonhada terra prometida. Nassau-Siegen, militar, que governou a
colônia holandesa no Recife de 1637 a 1643, era muito bem quisto por todas as
comunidades. Mesmo assim Nassau foi acusado de improbidade administrativa e
forçado voltar à Europa em 1644. Na consolidação da comunidade formada por 600
famílias estava a surgir um novo horizonte. Para atender esse expressivo grupo de
judeus, fazia-se necessária a existência de uma sinagoga devidamente estruturada,
com seu rabinato e demais oficiais. Foi o que aconteceu. Tal decisão fez do Brasil o
local da existência da primeira sinagoga de todas as Américas! Nesse caminhar,
novamente Portugal flui como a principal parte da história, pois o rabino Isaac
Aboab da Fonseca (1605-1693), nascido em Castro Daire, distrito de Viseu, chegou
à cidade do Recife aos 33 anos para assumir a liderança da Sinagoga Kahal
Kadosh Zur Israel. Esse jovem sefardita português era uma sumidade em seu ser e
dedicado intelectual. Tudo isso fê-lo um famoso líder religioso no Novo Mundo e
assunto referencial da cultura hebraica no Brasil. 44 Assessorado pela família
Marques, dias 24 a 26 de outubro de 2020, fizemos toda a rota dos reformados e
dos judeus sefarditas por diferentes locais da Grande Recife. Passamos inclusive
pelo grande Seminário de Olinda, construído em 1585 pelos jesuítas. Sob
autoridade holandesa entre 1630 a 1654, esse e outros espaços se tornaram locais
de cultos dos protestantes reformados. Havia entre os protestantes e os judeus um
cordial relacionamento de respeito e interesses. Esse mesmo esquema político não
fluiu com os católicos.

Os judeus, ao se organizarem, criaram uma congregação. No início, reuniram-se na


casa de um proeminente homem de negócios, Duarte Saraiva, mas em 1636 iniciaram a
construção da primeira sinagoga das Américas, a Kahal Kadosh Zur Israel, localizada
em uma rua comercial chamada Rua dos Judeus. Em 1642, o rabino Isaac Aboab da
Fonseca foi enviado de Amsterdã para dirigir a congregação. Nascido em Portugal, em
1605, Aboab pertencia a uma ilustre família de Castela: era bisneto do último Gaon,

44
Faço aqui os meus mais efusivos agradecimentos à professora Lucivânia Marques (1969-), que,
diretamente do Recife, enviou-me um histórico panfleto produzido pelo Centro Cultural Judaico de
Pernambuco sobre a Sinagoga Zur Israel. Documentadamente, essa foi a primeira Sinagoga a ser
edificada em todas as Américas. Parabéns Recife! Parabéns Brasil!
máxima autoridade no ensino e interpretação da lei judaica. Completou seus estudos em
Amsterdã, e aos 21 anos tornou-se rabino da congregação Beth Israel. Além de rabino,
era pensador ilustre, escritor e poeta. Deixou-nos o primeiro poema da América escrito
em hebraico, que se referia à expulsão dos judeus do Recife [...] Uma Torá - pergaminho
religioso contendo o Velho Testamento - foi enviada de Amsterdã em 1633 para os
líderes comunitários, o que possibilitou o estudo e o aprofundamento da prática
religiosa. (NOVINSKY et al., 2016, p. 135, 136).

Os judeus, donos de habilidades comerciais e o manusear das finanças, logo


conseguiram a prosperidade em suas atividades pelo Recife e por outras vastas
regiões do Nordeste, estando, por tabela, longe dos depenadores e fraudulentos
inquisidores europeus. Os mórbidos farejadores do dinheiro dos judeus foram
alcunhados de “O tribunal de ladrões” (NOVINSKY et al., 2016, p. 243).

A comunidade judaica instituiu então duas casas de culto em Recife: a primeira foi a
Kahal Kadosh Zur Israel - Rocha de Israel -, tida como a mais antiga sinagoga das
Américas, inaugurada por volta de 1636. Nela, a partir de 1642, exerceria o rabinato
Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693), português emigrado para Amsterdã em 1612.
Uma segunda sinagoga surgiu em Maurícia - parte do Recife construída pelos
holandeses a partir de 1638 -, de nome Kahal Kadosh Maghen Abraham - Santa
comunidade escudo de Abrahão. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 46).

Depois de ininterruptos 24 anos no Nordeste (1630 a 1654), finalmente foram


cercados pelas forças em conjunto de luso-brasileiros e renderam-se em 26 de
janeiro de 1654. “Em meio às negociações, holandeses e portugueses assinaram
um acordo de capitulação em 26 de janeiro de 1654, segundo o qual holandeses e
judeus teriam o prazo de três meses para deixar o Brasil” (NOVINSKY et al., 2016,
p. 140). O pernambucano Gilberto Freyre afirma que

os próprios paulistas participaram da luta, reunidos contra o inimigo comum, que era os
holandeses [...] sabemos que a guerra contra os holandeses, enobrecendo até negros,
favoreceu o acesso de homens miúdos à nobreza, por meio do serviço militar e até do
ato de bravura. (FREYRE, 2006, p. 489, 595).

Na busca de ampliar os acontecimentos abonados pela História, vem o


endosso do jornalista Laurentino Gomes:

Pela primeira vez lutaram lado a lado, unidos pela mesma causa, todos os elementos
constitutivos da futura identidade nacional: negros, índios, mulatos, brancos,
portugueses ou colonos deles descendentes, escravos, senhores de engenho,
lavradores e sertanejos humildes. [...] Entre os mais destacados comandantes da
campanha luso-brasileira contra os holandeses estava um índio, Felipe Camarão, e um
negro, Henrique Dias. O chefe da revolta, João Fernandes Vieira, rico proprietário de
engenhos em Pernambuco e na Paraíba, era filho de um fidalgo da Ilha da Madeira com
uma prostituta mulata. Outro comandante, André Vidal de Negreiro, tinha nascido no
Brasil. (GOMES, 2019, v. 1, p. 352, 353).

Não conformados com a rendição diante de forças militares, além de


incontáveis prejuízos econômicos, os holandeses, que possuíam a mais
aterrorizante marinha de guerra, entraram com uma queixa nos tribunais em Haia. A
decisão final das autoridades do tribunal transcorreu a 6 de agosto de 1661, pela
qual os holandeses ganharam a causa demandada e tantos outros privilégios.
“Portugal foi obrigado a pagar o equivalente a 63 toneladas de ouro [...]. Para
facilitar o pagamento, os holandeses foram bondosos, permitindo que fosse feito em
suaves prestações, durante quatro décadas” (VIEIRA, P., 2016, p. 109). Segundo
cálculos de empresas especializadas, em nossos dias, as 63 toneladas de ouro
pagos aos holandeses pela compra do Nordeste, equivalem cerca de 500 milhões
de libras esterlinas em valores atuais (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
56423846. Acesso: 20 Mar. 2021). Não poucos brasileiros, que haviam se
convertido ao protestantismo importado da Holanda, e, imagina-se, até algumas
dúzias de índios mais fanáticos foram expulsos do Brasil ou massacrados pelos
portugueses que arrasaram com os reformados que viviam em boa harmonia com
uma vasta comunidade judaica e com indígenas no Brasil. 45 Derrotados e expulsos
do Brasil, muitos holandeses regressaram para a Europa levando os seus escravos,
enquanto outros buscaram refazer a vida em Angola, uma possessão portuguesa no
continente africano, onde também não foram bem-recepcionados. Nesse corre-
corre, outros optaram por diferentes ilhas caribenhas. Um grupo de 23 judeus,
composto por duas viúvas, quatro casais e treze crianças, conseguiu chegar à
América do Norte, após muitas peripécias com naufrágios e de ser vítima de
sabotagens e piratarias. Esse grupo de peregrinos e refugiados perdidos em meio a
uma comunidade de calvinistas muito auxiliou na nascente estrutura da New
Amsterdã, que posteriormente recebeu o nome de New York, cidade que, de longe,
mantém o mais respeitado centro financeiro do planeta. “Os refugiados do Brasil são
considerados como Jewish Pilgrim Father ou fundadores da comunidade judaica da
América do Norte. Em New York, ergueu-se um monumento em homenagem aos
vinte e três pioneiros que chegaram do Brasil e anualmente é realizada uma
cerimônia para que sejam lembrados” (NOVINSKY, et al., 2016, p. 144).

O legado dos 23 lusos-brasileiros

Foi da família daqueles refugiados lusos-brasileiros que nasceu Gershon Mendes Seixas
(1745-1816), o primeiro rabino de uma sinagoga em New York, fundada em 1656. Era
dono de uma esmerada cultura geral e muito bem relacionado com as autoridades da
nascente nação americana. Entre outras personagens de destaque, foi amigo de George
Washington (1732-1799), aquele que se tornou o primeiro Presidente dos Estados
Unidos da América do Norte, o general guerreiro que nasceu britânico e morreu
americano! O rabino Gershon Mendes Seixas, na qualidade de amigo e representante
da comunidade judaica, participou da cerimônia da posse de George Washington em 30
de abril de 1789. Além desse rabino de decendência luso-brasileira, há muitas outras
importantes personalidades que são frutos daqueles 23 holandeses que foram expulsos
do litoral nordestino em 1654 e que fizeram história na América. [...] A Sinagoga Touro,
em Newport, Rhode Island, é o edifício mais antigo ainda usado como sinagoga nos
Estados Unidos da América do Norte. O edifício foi construído em 1759 sob ordens da
congregação Jeshuart Israel (Salvação de Israel), grupo iniciado em 1658, dois anos
após a fundação da primeira sinagoga em New York. Tal como a de New York, a maioria
45
Com a consumação que resultou na expulsão dos holandeses do Nordeste Brasileiro em 1654, a
conhecida Rua dos Judeus foi batizada de Rua do Bom Jesus. Em anos recentes, o edifício daquela
histórica sinagoga foi restaurado, servindo hoje de um ponto referencial da fé judaica nas Américas
(do Sul, Central e Norte). Certamente pela ironia da História, esta seja a única sinagoga em todo o
mundo que se encontra em uma rua que leva o nome de Jesus! Rua do Bom Jesus, 197 no centro
histórico da Capital de Pernambuco.
dos congregados e o grupo de rabinos da Sinagoga Touro eram compostos de luso-
brasileiros que optaram pelo menor estado americano o qual, por vários anos, foi um
verdadeiro ninho dos batistas, os fundadores da Brown University. (BOAVENTURA,
2014, p. 49, 51).

Em 1664, passados somente dez anos após a chegada dos 23 judeus que
foram expulsos do Nordeste brasileiro, havia pelo menos um ricaço entre os
poderosos que se encontravam no topo da pirâmide econômica da Wall Street. Esse
judeu nordestino era conhecido pelo nome de “Abraham, do Brasil” (DAVIDSON,
2016, p. 54). Ele fez parte da massa embrionária que, em 1792, se tornou na até
hoje poderosa Bolsa de Valores de New York.

A liberdade religiosa para Israel havia voltado à estaca zero. Uma parte dos judeus fugiu
para a Holanda. Outros preferiram os trópicos, fugindo para Essequibo, Caiena,
Suriname, Curaçao, Barbados e Jamaica. Um terceiro grupo seguiu para a América do
Norte, Nova Amsterdam, na ilha de Manhattan, onde se tornaram os pais peregrinos
judeus da atual Nova Iork, quando chegaram com 23 pessoas em setembro de 1654.
(SCHALKWIJR, 1986, p. 386).

Segundo alguns pesquisadores, a nascente vila que se tornou na eclética,


poderosa, turística e aristocrática cidade de New York, já naquela época, era dona
de um dos maiores e mais seguros portos naturais do mundo, talvez graças ao
desembocar das águas do volumoso rio Hudson no Atlântico, que tinha em seu vale
a tribo dos moicanos: povo das águas que nunca param. Aquela vila cercada de
tribos indígenas não passava de um pequeno ponto comercial conquistado pelos
holandeses em 1625, mas, com o passar dos anos, se tornou a maior potência na
indústria do turismo e controladora da economia mundial. O mais engraçado é que,
em 1626, Peter Minuit (1580-1638), representante da Holanda, comprou Manhattan
Island dos índios em troca de bugigangas inferiores aos atuais 24 dólares
(ASHBAUGH, 1998, p. 65). Quando da Independência das treze Colônias
Britânicas, em 4 de julho de 1776, e da eleição do primeiro presidente, a radiante
cidade de New York se tornou a primeira capital dos Estados Unidos. “Quando o
presidente eleito - George Washington - viajou de sua fazenda na Virgínia para a
capital temporária, Nova York, foi tratado praticamente como um deus” (DAVIDSON,
2016, p. 99). A hoje multicultural e pitoresca New York City é uma cidade mágica;
não dorme e se renova a cada instante. Sua pujante e crescente população de mais
de nove milhões de habitantes, incluindo os dois milhões de judeus, gera uma
incalculável fortuna. Matematicamente, a população da cidade de New York
representa os mesmos números de todos os moradores de Portugal, que também
ajudaram, de uma maneira ou de outra, na expansão de New York City. Pelos anos
oitocentos, Wanderer, o famoso navio negreiro americano, era pilotado por “Miguel
Arguirir, um marujo português” que trabalhava para ”a grande empresa de comércio
de escravos de José Costa Lima Viana, localizada na rua Pearl, número 158,
Manhattan” (CALONIUS, 2008, p. 102, 106).

D. João IV, D. Manuel II e Portugal República


Como já mencionado em parágrafos anteriores, no dia 1 o de dezembro de
1640, Portugal restaurou sua soberania, recebendo de volta as suas colônias, com
exceção da cidade de Ceuta, que, em negociata, optou pela coroa da Espanha.
Naquele dezembro de 1640, subiu ao trono português D. João IV (1604-1656),
iniciando a dinastia de Bragança, a qual se finda quando da deposição de D. Manuel
II (1889-1932) na manhã de quarta-feira, 5 de outubro de 1910. Foi o final de uma
monarquia que perdurou por mais de sete séculos. Como consequência da nova
pedagogia política nascida em 1910, iniciou-se naquela data o republicanismo
democrático em Portugal, que abrangia seu extenso domínio colonial, porém de
forma totalmente ditatorial. Esse domínio solapado por revoltas e guerras foi
derrubado em Lisboa nos primeiros minutos de segunda-feira, 25 de abril de 1974.
Estava se iniciando a Revolução dos Cravos, a qual forneceu munição política e o
sepultamento do Estado Novo, regime do medo implantado por Salazar em 1933.
Buscando o politicamente correto na arte de governar, os revolucionários
republicanos portugueses viram como bom exemplo a seguir a Proclamação da
República no Brasil, na manhã de 15 de novembro de 1889. Por sinal, foram o
mesmo ano e dia do nascimento de D. Manuel II, que foi destronado e exilado aos
21 anos e cujo corpo regressou a Portugal em 1934 para ser sepultado graças a
uma diplomática cortesia do professor António de Oliveira Salazar (1889-1970),
austero político, que foi o segundo mais poderoso ministro de Portugal. Em posição,
poder e autoridade, somente perdeu para o lendário Marquês de Pombal. Salazar,
também veio ao mundo em 1889; nasceu sete meses antes de D. Manuel II, o rei
deposto em 1910.
A irreversível expulsão dos holandeses e seus pastores calvinistas, segundo
alguns estudiosos, alcançou até os brasileiros que haviam se convertido ao
protestantismo reformado. Em resultado a essa caça às bruxas, o testemunho
evangélico/protestante foi politicamente varrido do país. Conforme a professora
Bárbara Helen Burns, houve uma velada negligência missionária com relação ao
Brasil.

Depois, veio o período das trevas na fase colonial do Brasil. As atividades da Inquisição
aumentaram e todo estrangeiro foi proibido de entrar no país. As portas estavam
fechadas e, por falta de visão missionária das igrejas evangélicas já estabelecidas em
outras partes do mundo, ninguém estava preocupado em compartilhar o evangelho no
Brasil. (TUCKER, 1986, p. 500).

De acordo com o sociólogo Gilberto Freyre, “em vez de ser o sangue foi a fé
que se defendeu a todo transe da infecção ou contaminação com os hereges. Fez-
se da ortodoxia uma condição de unidade política” (FREYRE, 2001, p. 144, 261).
Por um longo espaço de tempo, o Brasil ficou à mercê das superstições
ameríndia, africana e portuguesa. Cada uma dava suporte a outra. Nas entrelinhas,
tudo não passava de uma simbologia do sincretismo religioso. Esse místico tripé
perdurou por quase dois séculos até a chegada dos primeiros missionários
estrangeiros que semearam a boa semente, fazendo surgir um novo alvorecer na
historiografia religiosa, cultural e social do Brasil.
A chamada religião católica, considerada o principal vínculo de unidade nacional, não
tolerava outras crenças. A religião dos negros era considerada coisa do demônio, a
religião dos índios era coisa de pagãos e selvagens, e a religião dos protestantes era
uma heresia, perigosa e má, que não deveria ser permitida em solo brasileiro.
(ALMEIDA, R., 2014, p. 126).

Napoleão Bonaparte

No aparente silêncio da História Mundial, embora na utilização de uma


filosófica metáfora, Deus estava trabalhando. Após 115 anos da retirada dos
holandeses do Nordeste brasileiro e da chegada do grupo judeu àquilo que hoje é a
majestosa cidade de New York, a catedral do poder financeiro e imanente
influenciadora de decisões, nascia, em Ajaccio, na ilha mediterrânica da Córsega,
Napoleão Bonaparte (1769-1821). No ano em que ele nasceu (1769), a Córsega foi
conquistada e seu território agregado às terras da França, acrescentando o seu
território geográfico em mais de 8.680 km2º. O autor de Les Miserables, faz um
perfeito jogo de palavreados. “A Córsega. Uma pequena ilha que tornou a França
muito grande” (HUGO, 2007, v. 1, p. 641). Não obstante ser francês por direito de
nascimento, Bonaparte era italiano de sangue, comportamento, religião e cultura.
Deus, o onipotente Criador do universo, utilizou-se da sede de conquistas de
Bonaparte para mudar a história do Brasil Colônia. Bonaparte, pelas suas proezas
militares na Europa, foi, em 1799, aos 30 anos, eleito primeiro cônsul da França,
além de receber os medalhões e as estrelas de um hábil general. Bonaparte, sem
dúvida, foi um superdotado mestre na estratégia militar que empolgou diferentes
gerações, inclusive D. Pedro I do Brasil, o qual afirmou: “A guerra é justa para
aqueles a quem é necessária; e as armas são sagradas quando nelas reside a
última esperança” (MAQUIAVEL, 2004, p. 152). Por outras conquistas, além da nata
demonstração do saber guerrear com as suas armas sagradas, em 1802, Bonaparte
tornou-se cônsul vitalício e, a reboque, imperador da França, título certamente
buscado nos fundos do baú em sua herança italiana.46
“Em Paris, Napoleão sonhando expandir o império da França, tomou o poder
político em 1799. Ele não era nem um pouco abolicionista, nem sua esposa
Josephine, que tinha sido criada na plantation de escravos de seu pai na Martinica”
(HOCHSCHILD, 2007, p. 366). O general Napoleão Bonaparte nutria uma infernal
inimizade contra os britânicos e não era diferente para com os amigos dos ingleses.
Na linguagem do professor Gallego, Bonaparte foi “um déspota que dominava a
Europa, que humilhava reis e imperadores e conseguia tudo o que desejava”
(GALLEGO, 2010, p. 352). Nessas alturas da história, Portugal há muito havia
perdido sua hegemonia na posição de a senhora dos mares e dona absoluta do
comércio com o Oriente. Apesar de toda a pompa do passado, agora, sem os
encantos mil, até a própria população portuguesa enxergava a nação com olhares
46
O próprio Napoleão Bonaparte se orgulhava dessa geográfica herança e, com verbal arrogância,
salientou ao comentar partes de O Príncipe, sem dúvida um verdadeiro Magnum opus do florentino
Niccolò Machiavelli (1469-1527), tido como o pai da ciência política: “Eu também sou italiano! Meus
seguidores são os franceses” (MAQUIAVEL, 2004, p. 153).
pessimistas. Os portugueses viviam uma nova realidade, pois eram, “em face da
Europa Central e Ocidental, o povo mais atrasado, mais pobre e mais infeliz”
(RAMOS, 2012, p. 569). Na verdade, não era tudo isso que estavam divulgando,
porém a baixa autoestima levou boa parte de uma desolada população ao nível do
desespero, fazendo de si o bode expiatório daqueles cruciantes e amargos
momentos. Sem muitas opções, Portugal estava seguindo pela contramão da
história e, como tal, dependendo do apoio e da orientação dos ingleses. Os fatos
revelam-nos uma antagônica ironia do destino: os ingleses eram protestantes,
religião que os portugueses abominavam e perseguiam com certo requinte de
crueldade. Diante dessa histórica guinada, as canções foram recheadas com novas
harmonias do politicamente correto!

D. Maria I

Dom José I teve em 1774 um ataque de apoplexia e a partir daí a sua decadência física
foi sempre se agravando. Como ele não tivera herdeiros varões, mas somente quatro
filhas, sua sucessora deveria por força ser a religiosíssima Maria. Não era bem isto que
Seabra e, ao que parece, também Pombal desejavam, uma vez que a preferência de
ambos recaía sobre o filho da herdeira, o príncipe da Beira, que se chamava igualmente
José e que contava então com 14 anos de idade. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
118).

Por essa citação de Dilermando Ramos Vieira, está muito bem explícito onde
estava o cerne da questão pombalina: os sonhos para perpetuar-se no poder.
Como elo da história, a herdeira presuntiva, Dona Maria I (1734-1816), nascida
em Lisboa, tornou-se rainha de Portugal quando da morte de seu pai, D. José I, a 24
de fevereiro de 1777, rei que ocupou o trono português durante 27 anos. A herdeira
presuntiva estava com 42 anos ao ser conclamada soberana do Império de
Portugal. Os problemas de dona Maria I iniciaram-se no seio familiar. Casou-se em
1760, aos 26 anos, com D. Pedro III (1717-1786), que era seu tio consorte e irmão
de D. José I. Para além do direto parentesco sanguíneo, ele estava com 43 anos, 17
anos mais velho que sua sobrinha. A rainha Dona Maria I foi legalmente a primeira
mulher a governar Portugal e, a reboque, o Brasil e as demais colônias existentes
no além-mar. Seu exemplo foi seguido anos depois por Dona Maria II (1819-1853),
sua bisneta nascida no Rio de Janeiro.
A rainha D. Maria I, certamente por questões sanguíneas decorrentes da
contínua prática da endogamia, viu dois de seus filhos morrerem precocemente. A
morte que mais a abalou foi a do seu primogênito e herdeiro do trono, D. José
(1761-1788), príncipe que nasceu em 1761, morrendo aos 27 anos, em 1788,
vitimado pela varíola. Para completar o sofrimento, seu tio-esposo, D. Pedro III,
morreu no ano seguinte aos 69 anos. A rainha D. Maria da Glória Francisca ficou
viúva aos 52 anos, entrando em crises existenciais e depressão aguda, culminando,
pelo ano de 1792, com uma demência crônica. Com a repentina morte do príncipe
D. José, que não tinha filhos, houve uma inesperada mudança no caminhar da
monarquia portuguesa.
O herdeiro do trono passou a ser o infante D. João, que três anos antes casara com D.
Carlota Joaquina, princesa com gosto pela intervenção política e sempre activa nas
intrigas da corte. [...] Sem assumir o título de regente, o príncipe D. João passou a
exercer o poder real; só mais tarde, em 1799, quando a doença era conhecida de todos,
o herdeiro do trono passou a assinar os documentos na qualidade de príncipe regente.
(SARAIVA, 2001, p. 290).

As dificuldades internas e externas já estavam às portas; aliás, dentro do seu


próprio governo. Dona Maria I nunca nutriu nenhum grau de simpatia pelo ministro
Sebastião José de Carvalho e Melo, o todo-poderoso Marquês de Pombal; ao
contrário, queria vê-lo o mais distante possível das decisões que se tomavam no
palácio. O lendário Marques de Pombal era um homem impiedoso, intolerante,
politicamente um mão de ferro aos olhares de não poucos e simples mortais. Essa
massa de meros e subalternos mortais afirmava que nele residia a encarnação do
terror, domada pelo autoritarismo procedente do inferno. Proprietário de todos esses
adjetivos e, na mesma proporção, dono de uma inteligência controladora e
multifocal, durante 27 anos esse animal político foi o superministro de D. José I, rei
medroso, castigado pelos constantes pesadelos noturnos e totalmente inseguro em
suas decisões. Pombal enxergou nessas deficiências a sua oportunidade para o
sucesso. Na busca de manter-se no poder, o sagaz ministro desconhecia os seus
próprios limites. Entretanto, devido a um impasse administrativo, Sebastião José de
Carvalho e Melo foi processado por peculato, sumariamente exonerado e
desterrado para a Vila de Pombal.

Sem renunciar ao salário, no dia 4 de março de 1777, o ex-todo-poderoso ministro se


demitiu. [...] um decreto declarou o marquês réu e merecedor de exemplar castigo. Dona
Maria I lhe perdoou as penas corporais, mas exilou-o na Quinta de Pombal. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 129, 130).

Banido sob imperativas ordens da rainha D. Maria I, Pombal, o ex-todo-


poderoso, foi terminantemente proibido de regressar a Lisboa em quaisquer
hipóteses e circunstâncias. Amargando um forçado ostracismo e a perda da
imunidade parlamentar, Pombal foi apeado do poder real que lhe havia garantido,
por quase três décadas, uma absoluta autoridade. Agora, ele era apelidado
livremente pelos seus críticos de tirano palaciano e de outros termos pejorativos.
Doente, esquecido e distante do poder, finalmente morreu no dia 8 de agosto de
1782 em sua residência na Vila de Pombal.

Ali o acolheu morte pavorosa um ano depois: ficou quase todo entrevado e, entre
diarreias e dores lancinantes, assistiu à decomposição do próprio corpo, consumido
pelas pústulas purulentas que o cobriam. No transcorrer das fadigas diárias, mal
conseguia dormir por duas horas. A sua segunda esposa, a condessa de Daun, mulher
piedosa, debalde insistiu para que recebesse os sacramentos, mas ele preferiu
continuar impenitente. Suas últimas palavras foram: eu morro sem remédio, porque vejo
a morte em figura de um pintainho. Sem nenhum sinal de arrependimento cerrou os
olhos aos 8 de maio de 1782. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 130).
Ao morrer todo alquebrado e abandonado, estava na casa dos 83 anos. O
seu corpo embalsamado somente encontrou uma sepultura em 1832, meio século
após sua cruel morte.

Nomeado em 1750 secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, assumiria o cargo


de secretário de Estado do Reino (primeiro-ministro) pouco depois do terremoto de
Lisboa de 1755. Até então era um simples fidalgo, sem título nobiliárquico; somente em
1760, tornou-se conde de Oeiras. Em 1769 foi nomeado marquês de Pombal. Tinha, na
época, já 70 anos, mas foi com esse título que ingressou na História. (VIEIRA, P., 2016,
p. 230).

O regime pombalino teve grande mérito de, involuntariamente, preparar o País para a
revolução liberal do século XIX. Tanto a Igreja como a nobreza sofreram um golpe
mortal de que nunca se conseguiram recompor. Ao mesmo tempo, foi dada à burguesia,
homens de negócio e burocratas, o poder de que necessitavam para tomar conta da
administração e do domínio económico do País. Ao nivelar todas as classes, leis e
instituições ante o despotismo único do rei, Pombal preparou a revolução da igualdade
social e o fim dos privilégios feudais; ao mesmo tempo que, reforçando a máquina
repressiva estatal e rejeitando toda e qualquer interferência da Igreja, preparou a
rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da liberdade. (MARQUES,
1980, p. 570).

Tiradentes

No Brasil, o surgimento da Inconfidência Mineira, movimento libertário


tendenciosamente republicano iniciado em Vila Rica no decorrer do ano de 1789,
deixava dúvidas quanto à autoridade da rainha D. Maria I. Porém, foi dela, em seus
raros momentos de lucidez, a sumária ordem para enforcar e esquartejar o alferes
Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes (1746-1792). Essa ordem era
também um meio de mostrar à massa quem a governava e nela mandava! Quando
foi barbaramente executado, Tiradentes estava prestes a completar 46 anos. O
martírio ocorreu na manhã de sábado, 21 de abril de 1792, no campo da
Lampadosa, um terreno baldio que hoje parte da Avenida Passos, não muito
distante da atual Praça Tiradentes, conhecida, na época, por Largo do Rocío, no Rio
de Janeiro.
A casa do execrável condenado, localizada em Vila Rica de Nossa Senhora
do Pilar de Ouro Preto, então capital da Capitania de Minas Gerais, foi arrasada, o
chão salgado, a família declarada infame até à quarta geração. A severa execução
visou servir de exemplo com o intuito de barrar os ideais de uma independência do
Brasil, que, já na época, era economicamente a mais poderosa e próspera colônia
da monarquia portuguesa. Como exigido pela corte real em Lisboa, após o
enforcamento, o corpo de Tiradentes foi esquartejado e as partes enviadas para
diferentes lugares de Minas Gerais. “O quarto inferior direito de Tiradentes ficou
exposto debaixo de uma gameleira no vale do Paraopeba (sic), onde em 1974 veio
ser montada a Açominas” (GASPARI, 2004, p. 49).
Após 101 anos daquela morte horrenda e infame com requintes de crueldade,
o romancista e pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1895), nascido no
município de Areia, estado da Paraíba, pintou o Tiradentes esquartejado, em uma
ampla tela, no decorrer do ano de 1893. O quadro original pode ser visto no Museu
Mariano Procópio em Juiz de Fora, estado de Minas Gerais. O laureado pintor
paraibano, que vivia na Itália, especificamente na região de Florença, cidade que na
época era considerda a capital mundial das artes, fez questão de representar
Tiradentes, baseando-se na vulgar e renascentista imagem de Jesus Cristo:
semblante descaído, barba e longos cabelos; uma controvérsia da realidade que
recaía sobre qualquer prisoneiro condenado por desagravo à monarquia. Entretanto,
o quadro em destaque foi arquitetado e executado para agradar os republicanos, os
quais tomaram o Brasil das mãos de D. Pedro II. Fazendo da arte o uso da emoção,
Pedro Américo facilmente fugiu à realidade bíblica da figura do Senhor Jesus Cristo.

A iconografia que retrata sua [de Tiradentes] execução, surge com barba e longo cabelo,
quando, de fato, morreu barbeado e quase careca. Naquela época, sempre que uma
detenção se prolongava, rapavam todos os pelos dos presos para evitar a proliferação
de parasitas. (VIEIRA, P., 2016, p. 255).

Tiradentes, o único inconfidente que não ostentava anel acadêmico no dedo,


portanto, não era bacharel, foi lançado no centro de um turbilhão político. O sucesso
seria coletivo; o fracasso parecia individual e foi esse o resultado final. Preso,
condenado e morto sob profundo ódio da monarquia portuguesa em 1792, somente
foi restaurado à posição de herói pelos republicanos brasileiros em 1893. Ainda hoje
é mantido no panteão de glória.
“A rainha D. Maria I que, de há muito, vinha dando indícios de doença
psíquica, foi acometida subitamente de um formal ataque de loucura quando assistia
a um espetáculo no teatro do Paço de Salvaterra no dia 2 de fevereiro de 1792”
(GOMES, 2007, p. 354). Como já mencionado, em consequência da demência da
rainha, seu filho, o até então infante João Maria José Francisco Xavier de Paula
Luís António Domingos Rafael (1767-1826), assumiu a posição definitiva de príncipe
regente do reino português em 1799 aos 32 anos. A rainha D. Maria I, a Louca,
impossibilitada de reagir por si só, foi levada para o Brasil, onde viveu oito anos no
convento das carmelitas, no Rio de Janeiro, morrendo em 20 de março de 1816 na
casa dos 82 anos. D. Maria I foi o primeiro membro de uma monarquia estabelecida
na Europa que veio a falecer nas Américas. 47 Embora na casa dos 58 anos, D.
Maria I muito bem poderia ser comparada a uma infortunada personagem de Les
Miserables: “Era uma velha seca, áspera, azeda, geniosa, espinhosa, quase
venenosa [...] lívida de cólera, horrível” (HUGO, 2007, v. 1, p. 189, 199).
Parece que a Inconfidência Mineira elevou-se na pessoa de Tiradentes,
consagrando-se em um carro-chefe sobre as revoltas no Brasil em detrimento das
exigências e cobranças procedentes de Lisboa. Pouco ou nada se fala da Revolta
de Vila Rica, ocorrida de 28 de junho a 19 de julho de 1720 sob orientação de Felipe
dos Santos Freire (1680-1720), trucidado aos 40 anos. 48 Esquecem-se do vaticínio
47
“Agora, aos 57 anos, a rainha fora declarada incapaz. O Dr. Willis, o psiquiatra londrino conhecido
por ter tratado a loucura do rei Jorge III da Inglaterra, chamado a Lisboa para examinar a rainha,
declarou que ela não tinha cura” (PAGE, 2012, p. 231).
48
No dia 2 de dezembro de 1720, houve a cisão da capitania de São Paulo, o que resultou na criação
da capitania de Minas Gerais, capital Vila Rica, e na extinção da região dos Cataguás, antigo nome
de Minas Gerais.
final e da cruel maneira de assassiná-lo, arrastando-o por um cavalo pelas ruas de
Ouro Preto. A Inconfidência Mineira e a Revolta de Vila Rica, ambas nascidas na
mesma localidade, tinham algo em comum: a disputa pelas riquezas extraídas das
auríferas minas na região produtora do apreciado minério. Tudo sob as gananciosas
exigências provindas de Portugal da parte de D. João V (1689-1750) e,
posteriormente, da de D. Maria I (1734-1816), sua neta maluca que morreu no Brasil
em 1816.
Acontecimentos seguintes que se avolumam na esquecida História do Brasil
surgiram em duas etapas no Nordeste, onde centenas de pessoas, culpadas ou
não, foram presas, confinadas, deportadas ou mortas com requintes de crueldade:
enforcadas, tendo os seus corpos retalhados e expostos aos pedaços para
amendrontar uma malta horrorizada diante das butalidades. Esse horror iniciou-se
em 1816 com o Brasil já sob o domínio de D. João VI, filho de D. Maria I e bisneto
de D. João V, rei “que em 1749 devotava profunda aversão a Sebastião José de
Carvalho e Melo”. Posso acrescentar que, em todos os levantes revoltosos
ocorridos no Brasil, houve dedos e não poucas mãos de padres provindos de
diferentes ordens.

Essa mesma influência transformou Minas em um foco de ideias revolucionárias, e,


quando a Inconfidência Mineira foi abortada em 1789, descobriu-se que sete padres
estavam envolvidos: Manuel Rodrigues da Costa, José da Silva de Oliveira Rolim, José
Lopes de Oliveira, cônego Luís Vieira da Silva, Carlos Corrêa de Toledo e Melo, Manuel
Eugênio da Silva Mascarenhas e Matias Alves de Oliveira. (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 127, 135).

Sete, um inexpressivo número diante de centenas que se envolveram no


decorrer dos levantes em Pernambuco, na Paraíba, no Rio Grande do Norte e no
Ceará nessa primeira etapa nos anos 1816 e 1817. Passados sete anos, 2 de de
julho de 1824, vem à tona a Confederação do Equador, que resultou em outro
banho de sangue de padres e muitos nordestinos. Tudo sob a fúria do Almirante
Thomas Cochrane (1775-1860), miliciano inglês, e do Coronel Francisco de Lima e
Silva (1785-1853), pai de Duque de Caxias. Foi sob ordens expressas do
mencionado Coronel que soldados executaram a tiros de arcabuzes na quinta-feira,
13 de janeiro de 1825, o carmelita frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei
Caneca (1779-1825), o mais célebre daqueles revolucionários. Ao ser executado no
Centro Histórico do Recife, Frei Caneca estava com somente 45 anos. Deixou um
pai revoltado e três filhas órfãs: “Carlota, Joaninha e Aninha” (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 1, p. 145, 146).49

Fuga para o Brasil

49
Pela manhã ensolarada de segunda-feira, 26 de outubro de 2020, tive a oportunidade de caminhar
por diferentes sítios históricos no centro da cidade do Recife. Entre esses lúgubres espaços,
encontra-se o Forte de São Tiago das Cinco Pontas, uma espécie de tenebrosa prisão. Acompanhei
todos os passos finais do maçom Frei Caneca e vi o local onde ocorreu sua execução. Ele deixou um
pensamento para a posteridade: “Quem bebe de minha caneca tem sede de liberdade”.
Desde 1792 – mesmo ano em que as ruas centrais de Londres ganharam
iluminação com lâmpadas a gás – e, poucos dias após a ordem real para enforcar e
esquartejar Tiradentes, além de banir alguns dos inconfidentes para países da
África, D. João, o príncipe regente, passou a assinar os documentos imperiais em
substituição a D. Maria I, já considerada louca por uma crescente parte dos
palacianos e por renomados médicos europeus. Essa emblemática situação não
fugia aos olhares dos plebeus em Lisboa. A enfermidade da rainha tornou-se
crônica e totalmente irreversível, deteriorando-se a cada dia. A essas alturas, de
nada lhe servia ser a poderosa senhora de Portugal, da Índia, da África, do Brasil e
de outras regiões além-mares. Nessa terra, somos apenas inquilinos. Em nada
valeu o seu nobre sangue azul; ele estava contaminado. Ninguém é nada nesse
mundo; tudo quanto temos fica aqui. Nessa época, Portugal estava na mira de
Napoleão Bonaparte, que aterrorizava toda a Europa, destronando reis,
desarticulando exércitos e submetendo nações ao seu total domínio e ferrenho
comando. Ele era um imperador que não sentia nenhuma compaixão pelas pessoas
diante do seu poderío, orgulhando-se por ser dono de uma invencibilidade.
“Napoleão tornara-se uma espécie de monstro quase fabuloso. [...] um homem de
bronze” (HUGO, 2007, v. 1, p. 603, 609). Em seus áureos dias, foi reconhecido
como um verdadeiro fenômeno nas artes de guerrear e, ainda hoje, para não
poucos ditadores de plantão, sua imagem é de um ser imortal. “A ditadura é a
corrupção generalizada e impune” (GASPARI, 2004, p. 303).
Na procura de agradar a gregos e troianos, a monarquia portuguesa buscou a
neutralidade diante das conquistas francesas, estratégia que fez aumentar as
ameaças recebidas do general Bonaparte, que, em 1806, exigiu o Bloqueio
Continental a fim de isolar a influência da Inglaterra sobre o continente europeu.
Pela sua neutralidade, Portugal foi colocado no âmago do problema e foco das
ameaças de invasão militar. A questão ficou insustentável: “Se correr, o bicho pega;
se ficar, o bicho come!” Preferiu correr sob a proteção dos canhões da armada
britânica. “Para Portugal, entrar na guerra sem a cobertura inglesa era expor-se à
perda do Brasil; entrar sem a aliança espanhola era arriscar-se à invasão terrestre”
(SARAIVA, 2001, p. 291). A situação em Portugal estava se agravando a cada dia.
A invasão de guerrilheiros insurgentes provindos da França e de seus aliados era
algo iminente. O aguardado terror da invasão realmente aconteceu ao apagar das
luzes do mês de novembro de 1807. Sentindo-se inseguro, sob pressão dos
ingleses, ameaçado pelos franceses e odiado pelos espanhóis, o príncipe D. João
transferiu para o Brasil toda a corte de Portugal. Assim, estaria longe do epicentro
gerado por Napoleão I. Embora isso fosse contraditório para uma situação política
diante de ameaças externas, não havia outra alternativa senão cruzar o Atlântico em
busca de refúgio. A fuga era o único meio de sustentabilidade e segurança para o
reino português. O caminho estava traçado. D. João, o príncipe regente, não tinha
como escapar daquela situação de guerra.50
50
Pelos meados do século V a.C., Leucipo de Abdera ou Mileto, um filósofo e metafísico grego,
ensinava que “nada acontece casualmente: existe uma razão necessária para tudo” (LOURENÇO,
2015, p. 20, 21).
A maléfica e obrigada decisão tomada a toque de caixa em Portugal foi
excelente para o Brasil. As cartas e o poder foram trocados de mãos. De um
momento para outro, o Brasil se livrou do estigma de colônia, tornando-se a sede de
um reinado intercontinental por 13 anos.

Em novembro de 1807, os exércitos napoleónicos invadiram e ocuparam Portugal. João


VI, com a maior parte do governo e da Corte, decidiu refugiar-se no Brasil. A sede do
governo português foi assim transferida da Europa para a América. De um dia para o
outro, o Brasil passava à situação de metrópole e Portugal à de colônia. [...] A Corte
portuguesa não se poupou a esforços para elevar a colónia à categoria de grande
império. (MARQUES, 1995, p. 422, 423).

Mesmo nas questões políticas que envolvem os mais poderosos governantes


mundiais, nada acontece por uma simples casualidade. É óbvio que, em tudo, Deus
está agindo e dirigindo os factos. Nesse ínterim, novamente Ele estava escrevendo
a história, fazendo uso da fúria de Bonaparte e do medo do príncipe D. João para
fazer do Brasil uma grande nação livre e soberana, mesmo que abarrotada de
quase insolúveis problemas sociais, econômicos, políticos e até religiosos. Esses
problemas vêm atingindo diferentes segmentos do mundo administrativo, mas
mesmo assim o Brasil tem sobrevivido.
O ultimato napoleônico agravou-se contra Portugal e sua liderança. Diante
das ameaças que se avolumaram de tons, os preparativos de fuga foram
apressados. A luta era contra o tempo! A decisão já estava consumada: seguir para
a colônia existente na outra margem do Atlântico Sul. Apesar dos veementes
protestos da rainha D. Maria I, que recebeu a pecha de a Louca, quinze navios de
guerra zarparam do píer de Belém, no Tejo, na manhã fria de outono, dia 29 de
novembro de 1807, levando para o Brasil todo o alto escalão da monarquia
portuguesa.

A partida da família real para o Brasil: 1807, o ano da partida, ou 1808, o da chegada,
foram um marco decisivo na História do velho reino e também na daquele imenso
território da América portuguesa em cuja existência repousara, em larga medida, a
monarquia pluricontinental portuguesa. (RAMOS, 2012, p. 435).

Pressupõem-se que outros vinte navios seguiram para o mesmo destino.


Segundo tenros cálculos de diferentes historiadores, mais de dez mil pessoas
saíram de Portugal com destino ao Brasil. Bibliotecas completas foram
transportadas, diga-se de passagem, entre as toneladas de livros. Alguns
exemplares de Bíblias em latim e outras preciosidades literárias da época chegaram
à então rústica cidade do Rio de Janeiro.

D. João VI trouxe com ele uma grande biblioteca, que foi transformada, mais tarde, na
Biblioteca Nacional. Em sua biblioteca, havia um exemplar da Bíblia de Gutenberg,
impressa em latim, em dois volumes, em pergaminho, editada na cidade de Mogúncia,
em 1462, pelos editores Johann Trust Schoeffer, sucessores de Gutenberg. Esse
exemplar raro da Bíblia, passados dois séculos, ainda se encontra na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro. (GIRALDI, 2013, p. 45).
Não foram levados somente papéis em formatos de livros, além de outros
importantes documentos. D. João também levou os papéis com os quais se compra
muitos outros papéis!

Antes de embarcar, D. João teve o cuidado de raspar os cofres do governo, providência


que repetiria treze anos mais tarde ao deixar o Rio de Janeiro na viagem de volta a
Lisboa. Em 1807, embarcaram com o tesouro real cerca de 80 milhões de cruzados.
Representavam metade das moedas em circulação em Portugal. (GOMES, 2007, p. 75).

Toneladas de documentos reais foram urgentemente armazenados nos


úmidos porões das naus que seguiram para o Brasil.

Deslocar milhares de pessoas para o Brasil pelo oceano Atlântico, junto com toneladas
de papéis, livros e o Tesouro Real, certamente foi uma das empreitadas mais
espetaculares e épicas daquela era. [...] O Império Português tivera início com as
palavras, os números e as imagens dos navegadores. (WILCKEN, 2005, p. 85, 86).

A chegada da monarquia em Salvador

Diante dos iminentes perigos perpetrados pela França em terra e mar, sem
contar os possíveis ataques dos corsários piratas que faziam dos contrabandos e
assaltos suas fontes de riquezas, fez-se necessária uma vigilância constante da
marinha de guerra britânica. As precárias, pesadas, obsoletas e lentas naus
portuguesas, gastaram cinquenta e quatro dias para vencer os cerca de 6.400
quilômetros entre Lisboa até Salvador. “Veio de lá aqui, e houve causa milagrosa
para que em jornada tão perigosa e dilatada nem adoeceu nem morreu um só
homem que fosse” (SARAMAGO, 2019, p. 75).

No fim, a Corte e o governo ignoraram todos os avisos, e acabaram sendo empurrados


para fora da península pelos invasores franceses. Mas seu infortúnio, como assinalaram
pensadores do passado, teve um lado bom: o Brasil oferecia um refúgio, riqueza
potencial e uma oportunidade de renovação. A mudança pôs fim às ameaças,
intimidações e agressões que a Corte e o governo vinham sofrendo na Europa desde
longa data, e apontou o caminho para uma nova era imperial. (WILCKEN, 2005, p. 99).

Como já mencionado, as frágeis, obsoletas e pesadas embarcações


portuguesas eram seguidas de perto pelos britânicos. Esse comboio atlântico aportou
na cidade de Salvador na manhã de 22 de janeiro de 1808, em pleno e escaldante
verão tropical. Diante das circunstâncias, a encantada viagem produziu um ar de
romantismo mesclado de piedade para com os vitimados pelo ódio napoleônico.
Durante todo o período da viagem, que durou quase oito semanas, ninguém tomou
banho ou trocou de roupas. Os precários navios não estavam equipados nem mesmo
com uma simples casa de banho. Além desses e outros incômodos que afetavam a
higiene e a saúde de todos os tripulantes, consequentemente houve a incontrolável
proliferação de piolhos que obrigou um considerável número de mulheres a raspar a
cabeça no decorrer da longa e desconfortável viagem para as terras de Portugal nas
Américas.
No Brasil, o primeiro ato do príncipe regente foi o decreto da abertura dos
portos e também das portas. O importante documento foi redigido e assinado em
Salvador no dia 28 de janeiro de 1808. Aquele ato facilitou a chegada legal de
protestantes em meio aos marinheiros e comandantes de navios. Esse foi o
prenúncio de que algo novo estava para surgir pelas bandas do sul das Américas,
onde “A imagem do cruzeiro resplandece”, como escreveu, em 1909, o acadêmico
Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927), natural de Paty do Alferes, Rio de
Janeiro, cujo poema tornou-se o Hino Nacional Brasileiro. Duque-Estrada era fã
incondicional de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), um advogado, jornalista e
poeta nacionalista natural de Caxias, Maranhão. (NOTA DE RODAPÉ: Luís Alves
de Lima e Silva (1803-1880), recebeu das mãos de D. Pedro II a Comenda de
Duque de Caxias. FINAL DA NOTA).
Aliás, se não fosse o empenhado Bloqueio Continental arquitetado e exigido
por Napoleão Bonaparte contra os ingleses na Europa, o Brasil jamais teria tido a
abertura de seus portos e de suas portas de uma maneira pacífica e ordeira, que,
diga-se de passagem, é uma característica brasileira, herança recebida de Portugal.
Entretanto, a questão da passividade da população brasileira depende da ótica da
leitura e da variada era pedagógica.

A história brasileira registra confrontos armados sangrentos e duradouros entre o povo


pobre e o poder. Nos maiores, ocorridos no sertão de Canudos e nas matas do
Contestado, contaram-se em poucas dezenas os combatentes que sabiam ler e
escrever. Nas matas perdidas do Araguaia, o PC do B [Partido Comunista do Brasil]
tornara-se a única – e derradeira – organização política brasileira a ir buscar na
violência das massas a energia vital de seu projeto comunista. (GASPARI, 2002, p. 406,
407).

A Inglaterra soube muito bem tirar proveito da situação, tornando-se uma


guardiã velada e protetora do Brasil, inclusive manipulando as importações e
exportações. Muitos produtos apenas mudavam de mãos no uso de uma
comercialização unilateral. Exemplo claro é o caso da batatinha inglesa, que ganhou
fama nessas transações. Sabe-se que era um produto cultivado pelos incas nos
altiplanos do Peru. Descobrindo os valores nutricionais desses tubérculos, os
ingleses fomentaram o seu consumo e sua comercialização em alta escala. 51
51
“Mas, se penetrarmos além das aparências, torna-se claro que a civilização moderna seria
diferente sem as descobertas dos índios americanos. A borracha, um ingrediente crucial em milhares
de inventos, desde os aviões supersônicos até os pneus, é uma planta do Novo Mundo. O fumo, que
traz satisfação para pessoas de quase todas as partes, foi domesticado nas Américas. O chocolate,
um dos doces mais populares do mundo, era uma bebida Asteca. O milho - cereal - em centenas de
variedades, é a base econômica de milhões de pessoas e a fonte alimentar de outros milhões, desde
os fabricantes de cereais e produtores de ração animal, até os vendedores de pipoca no circo. A
batata tornou-se tão importante na Inglaterra que se chama batata inglesa, embora fosse
domesticada nos Andes. Castanhas e amendoins, abacate e abacaxis, feijões, abóboras, batatas-
doce, mandiocas, tomates e pimentões estão entre algumas das plantas americanas incorporadas à
dieta alimentar em todas as partes do mundo. Milhares devem sua saúde e mesmo suas vidas à
quinina e à cocaína, que foram descobertas pelo indígena sul americano. A lista poderia ser ampliada
para incluir fibras, jogos, peças do mobiliário e vestimentas, todos os quais foram tão completamente
integrados à civilização moderna que chegamos a esquecer de que não fazem parte da nossa
herança do Velho Mundo. [...] O algodão, outra planta importante domesticada na América. [...] O
amaranto, a quinoa estavam sendo cultivados nos planaltos do sul ao redor de 4.500 a.C.”
No decorrer do século XIX e início do XX, Londres era a mais populosa
cidade protestante do mundo. Hoje a história é outra: o protestantismo está sendo
varrido da capital britânica, que se tornou a mais populosa cidade islâmica do
ocidente, e o secularismo tem dominado a herança cristã, a qual grandes vultos da
história evangelística deixaram com enormes esforços e sacrifícios. “Church closing
are nothing new in England. In the past six years, 168 Anglican churches have
closed, along with 500 Methodist and 100 Roman Catholic churches” (COLKMIRE,
2016, p. 8).52 Nunca devemos esquecer: em Londres além de outras localidades, os
edifícios de instituições religiosas é que foram fechados; a Igreja é um corpo
invisível e invencível que permanece em suas conquistas.
Desde 29 de julho de 1588, a utópica Armada Invencível Espanhola
idealizada por Felipe II, que arrastara Portugal ao abismo dos mares, da morte e da
vergonha, foi literalmente destroçada pela Marinha Inglesa no Canal da Mancha. A
histórica batalha naval fez dos britânicos os respeitáveis donos das guerras e dos
mares. Agora, após dois séculos, a Marinha britânica era a única potência que, sob
canhões, havia conquistado o total domínio e poderío dos mares e dos grandes
oceanos. Naquele áureo período, não havia o ocaso solar sobre o domínio da
Inglaterra!

Transferência para o Rio de Janeiro

D. João, o príncipe regente, e sua comitiva permaneceram pouco mais de um


mês em Salvador, seguindo diretamente para o Rio de Janeiro, onde fixaram a sede
da Corte Imperial desde 8 de março de 1808. O Rio de Janeiro somente foi
desbancado de Capital Federal do Brasil 152 anos depois, em 21 de abril de 1960,
com a inauguração de Brasília. Para não quebrar as regras e, assim, sagrar o ato
inaugural da Capital da Esperança, atuou o Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira
(1902-1976), médico, seresteiro, político e Tenente-coronel da Polícia Militar de
Minas Gerais, nascido na histórica cidade de Diamantina e o último mineiro
Presidente. ”JK era um homem marcado pelo sorriso, mas havia um so- fredor
escondido na exuberância” (GASPARI, 2004, p. 304). Para manter vivo os laços de
reciprocidade e cimentar a pedagogia ideológica da Igreja Católica Apostólica
Romana, JK, muito religioso mandou vir de Portugal o cardeal Manuel Gonçalves
Cerejeira (1888-1977), Patriarca de Lisboa e amigo incondicional do ditador António
de Oliveira Salazar (1889-1970). O incontestável e metódico Salazar, um carola
devorador de hóstias, entretanto “detestava o papa Paulo VI” (RAMOS, 2012, p.
693). Ele foi o último fascista no comando de uma nação europeia. 53 “A lealdade do
(MEGGERS, 1979, p. 19, 50, 52).

52
“Igrejas fechando não é novidade na Inglaterra. Nos últimos 6 anos, 168 igrejas anglicanas
fecharam, juntamente com 500 metodistas e 100 católicas.” (Uma tradução live: Carlos Boaventura
Jr.).
53
Em um diálogo informal com um ministro no Palácio do Planalto em Brasília, sábado, 16 de
fevereiro de 1974, o General Ernesto Geisel (1907-1996), o quarto Presidente do período militar, fez
o seguinte comentário sobre a velha raposa: “António de Oliveira Salazar, o pai e encarnação da
ditadura, que governou Portugal por quase cinquenta anos, até 1968, quando a cadeira em que
cardeal para com Salazar, que durou toda a vida, trouxe, por associação, descrédito
à Igreja” (PAGE, 2012, p. 259). No decorrer daquela histórica missa celebrada na
ecumênica Catedral Nacional de Brasília, os fotógrafos flagaram o presidente
chorando.54
Foi ao repórter amador Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), o qual se
incorporava na mitológica figura do Padre Perereca, que improvisadamente coube,
aos 41 anos, registrar a chegada da família real no Rio de Janeiro em 1808.

O desembarque aconteceu só no dia seguinte, 8 de março, por volta das quatro da


tarde. Da nau Príncipe Real, D. João foi transportado para a terra por um bergantim
escarlate e dourado, coberto com um dossel púrpura. Desceram todos, menos a rainha
dona Maria I, que ficou a bordo mais dois dias. [...] Carlota, as filhas princesas e outras
damas da Corte tinham desembarcado com as cabeças raspadas ou cabelos curtos,
protegidos por turbantes, devido à infestação de piolhos que havia assolado os navios
durante a viagem. (GOMES, 2007, p. 144, 145).

Novamente em pauta a foclórica figura do Padre Perereca, o qual

era um homem miúdo, magro mas vigoroso, de cuja cabeça volumosa brotava uma
cabeleira fina e grisalha que lhe dava ares de intelectuais. Com efeito, ele fora um
estudioso do latim antes de se ligar ao clero, acabaria por escrever um extenso relato da
temporada da família real em sua cidade natal. (WILCKEN, 2005, p. 104).

Cerca de 19 anos depois, Luís Gonçalves dos Santos, o já citado padre


Perereca, cônego e professor no Rio de Janeiro, um conservador celibatário, estava a
debater o liberalismo produzido pelo colegado Diogo Antônio Feijó (1784-1843).
“Gonçalves dos Santos, erudito, dominando também o latim, o grego, o francês, o
inglês, o italiano e o espanhol, além de algumas noções de hebraico” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 215). Padre Perereca era uma figura de destaque no meio
acadêmico e social da cidade.
Como já mencionado, a potência econômica da época era a Inglaterra, que
passava por mudanças dentro do anglicanismo com o surgimento de grupos de
pietistas, herança do puritanismo nascido no século XVI. Os britânicos possuíam
fortes interesses comerciais e financeiros com o Brasil. No uso de brechas
encontradas nos tratados comerciais com a abertura dos portos e das portas, os
protestantes entraram no negócio.
Percy Clinton Sydney Smythe, o sexto visconde de Strangford (1780-1855),
jovem irlandês que, aos 28 anos, esbanjava cultura geral, foi o mais importante
embaixador britânico naquele confuso período de transição da Europa para a
América do Sul. O Lord Strangford (assim passou para a história), o qual era um
estava sentado se desmanchou, ele bateu a cabeça, teve um derrame e viveu os dois anos seguintes
em coma. Tinha 81 anos quando morreu” (GASPARI, 2003, p. 367).
54
Enquanto estou trabalhando na presente edição de O Brasil Protestante, os holofotes brilham
novamente para as Minas Gerais. A 31 de outubro de 2010, data comemorativa do Dia da Reforma
encabeçada por Martinho Lutero em 1517, a economista Dilma Vana Rousseff (1947-), uma mineira
nascida em Belo Horizonte e que fez carreira política no Rio Grande do Sul, foi eleita em segundo
turno com mais de 55 milhões de votos para ocupar a presidência do Brasil. É a 36 a Presidente do
Brasil, também a primeira mulher a galgar tal posição por meio de votos diretos em escrutínios
secretos. Tal como o último mineiro Presidente, Dilma também é filha de professora, sua mãe, uma
rica cidadã fluminense que vivia em Uberaba.
natural polímata, muito bem cotado e que sabia impor respeito, teve livre acesso
aos palácios em Lisboa e no Rio de Janeiro. Negócios representativos à parte, diga-
se de passagem, aquele jovem embaixador não negociava sua ardorosa fé
anglicana.

Nos anos seguintes, Strangford desempenharia um papel controvertido no Rio, como


encarregado de impor a vontade britânica na América do Sul. A cidade logo se
familiarizou com sua figura erecta, a se pavonear pelas ruas em ternos elegantes,
gravatas e sapatos de couro polidos. A Grã-Bretanha havia-se tornado a protetora militar
da corte, e Strangford não hesitava em usar sua influência junto ao príncipe regente. [...]
Em 1819, havia sessenta empresas britânicas funcionando na cidade. Construiu-se uma
igreja anglicana, junto com um cemitério especial numa colina de frente para a baía, que
tinha seu próprio cais para receber as balsas que traziam os mortos. Seguiram-se um
hospital, algumas lojas, uma biblioteca ambulante e um jornal. (WILCKEN, 2005, p. 126,
158).

Outro escritor empurra o formalismo para cima dos membros da corte


portuguesa, concedendo ao Lord britânico uma informalidade, quase gerando uma
banalidade diante do mundo dos europeus e, agora, cariocas.

O primeiro inglês que ocupou o cargo de embaixador, ainda no tempo de D. João VI,
Lorde Strangford, volta e meia ia a audiência oficiais com os ministros portugueses,
cheios de formalismo, usando botas de montar, como a dizer que o Paço era uma
espécie de estrebaria. (CALDEIRA, 2008, p. 110).

O novo florescer

A colônia brasileira, que se tornou em Corte Imperial, estava inserida dentro de


um imenso território para tão poucos habitantes livres (leia-se: brancos). Estes eram
os únicos que tinham o direito de liberdade de se locomover livremente. Somente a
chegada de imigrantes europeus poderia mudar o quadro e povoar a vasta extensão
de terra. Tendo em vista o decreto imperial para a Abertura dos Portos, assinado em
28 de janeiro de 1808, pelas brechas viam-se também as portas abertas para um
novo tipo de imigrantes: gente protestante ou acatólicos. 55 Mesmo com os portos
oficialmente abertos sob ordens do príncipe regente, havia exigências e
interferências ditadas diretamente pelos altos interesses da Igreja Católica
Apostólica Romana, a qual controlava até as atitudes da família Real no Brasil.
Aliás, isso não era nada novo; a forte influência da Igreja já acontecia em Portugal,
notadamente nos áureos períodos dos Jesuítas.
Atendendo a um decreto de 16 de maio de 1818, entre os anos 1819 e 1820,
chegaram ao Brasil 261 famílias suíças procedentes do Cantão de Friburgo. Eram
famílias católicas que foram trabalhar na Fazenda do Morro Queimado, no Distrito
55
Cerca de nove meses após a Abertura dos Portos, surge outro inédito acontecimento. O Príncipe
Regente, na busca de inovações na economia, funda o primeiro Banco de Portugal. Dia 12 de
outubro de 1808, em comemoração ao décimo aniversário de nascimento do infante Pedro de
Alcântara, é fundado, no Rio de Janeiro, o Banco do Brasil. Apenas recordando que até então não
existia um Banco Oficial em Portugal. Assim sendo, o primeiro Banco de Portugal foi o Banco do
Brasil! “Depois da Revolução liberal, contudo, as novas condições económicas e sociais permitiram o
estabelecimento do primeiro banco português, o Banco de Lisboa em 1821, que obteve o monopólio
da emissão de notas” (MARQUES, 1995, p. 494).
de Cantagalo, onde posteriormente fundaram, entre as motanhas, a cidade de Nova
Friburgo, na então província do Rio de Janeiro. (GIRALDI, 2013, p. 47, 48).

Os anglicanos

Como houvesse proibição formal contra quaisquer atividades missionárias acatólicas


entre os brasileiros, esses cultos, iniciados em 1810 ora a bordo dos navios da marinha
de guerra inglesa ancorados no Porto do Rio de Janeiro, ora na residência do ministro
Lord Strangford ou de outros participantes, na Corte, destinavam-se exclusivamente aos
ingleses residentes no país ou em trânsito. (BRAGA, 1961, p. 71, 72).

Com aquilo que se torna possível entender diante do relato anterior, foi na
residência do embaixador Strangford, representante de George III (1738-1820), rei
inglês que sofria de transtorno mental, que se realizaram, por quase nove anos, os
cultos da Igreja Anglicana. Segundo boatos que circulavam pelos vastos corredores
dos palácios em Londres, quando o rei George III entrava em trânse psíquicamente,
“ele falava 19 horas sem parar” (HOCHSCHILD, 2007 p. 183). Em 1819, as reuniões
foram transferidas para um local próprio à rua dos Bourdons, atual Evaristo da
Veiga, no centro do Rio de Janeiro. Esse foi o endereço do primeiro templo de uma
igreja protestante construído no Brasil e também, na época, o único templo
anglicano em toda a América do Sul. O trabalho não possuía nenhum cunho
missionário; servia apenas e tão somente para atender às necessidades espirituais
e ao companheirísmo dos estrangeiros residentes ou de passagem pelo Rio de
Janeiro. Em outras palavras, era uma igreja estrangeira para atender uma clientela
composta por estrangeiros brancos e fluentes na língua inglesa! Para o brasileiro,
não havia espaço nessa seleta freguesia da fé.

Foram organizadas mais tarde outras igrejas anglicanas em Niterói, São Paulo, Santos e
Recife, mas o anglicanismo no Brasil não progrediu: seus ministros só celebravam em
língua inglesa e jamais desenvolveram atividades missionárias. [...] ainda não se
celebrava nenhum culto reformado em português no Brasil. (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 183).

Em 1820, foi concluída a construção desse templo e iniciados os serviços religiosos. Os


cultos aos domingos, dirigidos pelo pastor anglicano Robert Syngne, eram frequentados
por funcionários de embaixadas, comerciantes, marinheiros e viajantes de passagem
pela cidade. Essa congregação de religiosos não católicos era considerada pelas
autoridades como uma capelania e não uma igreja protestante. (GIRALDI, 2013, p. 48).56

Esse templo anglicano era um club estritamente fechado e suas atividades


abertas apenas à elite branca e de cultura inglesa. Os africanos negros estavam
fora dos planos. Não eram estrangeiros nem brasileiros; apenas escravos de uma
56
“Parece uma fúria do destino entre a delimitação de espaço do sagrado e do profano. O terreno
reservado para o exercício do sagrado no Rio de Janeiro foi algo atípico para a época. A área onde
foi edificada a primeira sala para missas protestantes da Christ Church no Brasil foi comprada dos
herdeiros da mãe do bispo católico romano D. José Joaquim Justiniano de Mascarenhas Castello
Branco (1731-1805), clérigo que exerceu um longo bispado de 32 anos, iniciado a 20 de dezembro
de 1773 indo até sua morte aos 74 anos, em 28 de janeiro de 1805. A compra do terreno foi feita com
a autorização desse bispo, certamente o mesmo que rezou o Te Deum quando do enforcamento de
Tiradentes em 21 de abril de 1792” (BRAGA, 1961, p. 72).
minoria branca a quem serviam sob violência e maus-tratos! Em carta de 15 de
março de 1860, Ashbel Green Simonton (1833-1867), o jovem fundador da Igreja
Presbiteriana no Brasil, informou aos líderes do presbitério da Pennsylvania sobre a
cidade que o acolhera: “Aqui, no Rio, há uma capela inglesa, para os residentes
britânicos, e uma pequena igreja alemã. Eles nada fazem pelos nativos. O que
vemos é uma terra inculta, cheia de ignorância, superstição e impiedade”
(OLIVEIRA, 2005, p. 426). Que desoladora leitura de um povo aos olhos do culto
jovem protestante americano recém-chegado ao Brasil! Descobriu que estava em
uma terra inculta, cheia de ignorância, superstição e impiedade! Essa foi a realidade
contemplada pelo visionário líder presbiteriano no Brasil e que não fugia à realidade.

Os luteranos

Com a imigração alemã, especialmente para o sul do Brasil, a partir de 1823,


vieram várias famílias da Igreja Luterana acompanhadas de alguns poucos clérigos.
Semelhante aos britânicos, também o grupo alemão formou comunidades fechadas
aos que não compartilhavam dos seus costumes sociorreligiosos. Esses brancos e
protestantes procedentes do meio-norte europeu eram donos de uma cultura social
muito diferente do catolicismo provindo de Portugal e do mundo religioso dos
africanos feitos escravos.
A comunidade alemã estava em formação dentro de uma nação abarrotada
de índios e de escravos negros com traços e costumes totalmente diferentes dos
brancos luteranos. Havia um forte preconceito, e o racismo predominava em todas
as áreas; no estilo religioso não era diferente. Eles não fizeram nenhum empenho
para alcançar os brasileiros dentro de uma visão do cristianismo protestante.
Pejorativamente, os imigrantes alemães referiam-se aos negros e mulatos como
“gentinha de cor” (GOMES, 2019, v. 1, p. 350). Por causa da pigmentação da pele e
do estereótipo, os negros não eram bem-vindos aos sagrados cultos da irmandade
dos santos brancos! Plageando os dedos envenenados do professor Josimar Salum
(1963-), do qual estou a roubar frases de efeito: “As igrejas nasceram assembleias
de homens e não de Deus” (SALUM, s/d, p. 48).

À semelhança de Portugal, que enviou para cá não poucos degredados, a começar com
expedição de Pedro Álvares Cabral, alguns condenados pela justiça alemã vieram para
o Brasil. Entre os 500 imigrantes que aqui chegaram na galera dinamarquesa Georg
Friedrich, em fevereiro de 1825, havia 163 reclusos de casas de correção do Grão-
Ducado de Mecklenburg. (CÉSAR, 2000, p. 73).

Sem muito exagero nos cálculos imigratórios, é possível que mais de 80%
dos germânicos que desembarcaram no Brasil Império fossem luteranos de fé. “Em
18 de julho de 1824, 43 famílias alemãs, 38 delas luteranas, desembarcaram em
Porto Alegre, RS, de onde prosseguiram até o passo do Rio dos Sinos. [...] O local,
denominado São Leopoldo em homenagem à Imperatriz Leopoldina. [...] Alguns
pastores vieram para assisti-los, sendo o primeiro deles Johann Georg Ehlers
(1779-1850), então viúvo e com três filhos, chegando junto da terceira leva, a bordo
da galera Germânia, aos 6 de novembro de 1824. Foi-lhe concedida uma
gratificação anual de 400$000 réis pelo governo do império, mais um terreno para
moradia e um salão onde pudesse exercer o ministério religioso” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 185, 186).
Os objetivos dos europeus eram outros: chegaram para explorar, colonizar e
branquear uma nação e não para evangelizar os habitantes da terra. Na primeira
etapa migratória, com destino à atual Nova Friburgo, Rio de Janeiro, veio um clérigo
alemão, o pastor Friedrich Oswald Sauerbronn (1784-1867), que teve a infelicidade
de ficar viúvo em alto-mar, tendo sido o corpo da esposa lançado às águas do
Atlântico. “Tido como o primeiro ministro protestante residente no país, Sauerbronn
pastoreou a comunidade luterana de Nova Friburgo por quarenta anos, até morrer,
em 1864, aos 80 anos” (CÉSAR, 2000, p. 72). Durante os quarenta anos em que
viveu no Brasil, o seu salário, ou côngrua paroquial, era integralmente pago pelo
erário imperial. Ou seja, financeiramente ele desfrutava dos mesmos direitos
concedidos aos padres da Igreja Católica. Pelos finais da década de 1820, D.
Romualdo Antônio de Seixas (1787-1860), político de peso, intransigente
montanista e arcebispo primaz do Brasil conseguiu “evitar que o governo
financiasse a vinda de dois irmãos morávios luteranos para missionarem entre os
índios” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 221). Com relação às côngruas, era algo
simbólico diante das necessidades sacerdotais, entretanto, por esse meio, o
governo imperial controlava os clérigos nacionais e estrangeiros.

O clero todo, desde o Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil até o padre da paróquia
mais pobre, era pago pelo Estado. As côngruas tendiam a ser mesquinhas e
permaneceram as mesmas por diversas décadas, a despeito da inflação e de um
aumento constante no custo de vida. (VIEIRA, David, 1980, p. 27).

No andar da carruagem imigratória, aqui mencionamos ocorrências de 1873,


quando as autoridades brasileiras descobriram que os protestantes, embora
altamente racistas, eram mais honestos, confiáveis e sérios em seus compromissos
que os católicos. Aliás, estas foram as considerações do senador José Martins de
Cruz Jobim (1802-1878), que soltou o verbo em seu discurso parlamentar, apesar
de ele próprio ser um fervoroso católico gaúcho: “Deve-se reconhecer que os
protestantes estão muito acima dos católicos, em educação, em amor ao trabalho,
em indústria e em moralidade” (VIEIRA, David, 1980, p. 128, 129). 57
As palavras proferidas pelo senador geraram uma reviravolta que atingiu até
os cofres imperiais com subvenções a alguns pastores estrangeiros. “Os contratos
de imigração garantiam aos colonos liberdade de cultos e D. Pedro II, mais tarde,
chegou a subvencionar um pequeno número desses pastores” (BRAGA, 1961, p.
77).

57
Isso porque Cruz Jobim não alcançou a publicação de “A ética protestante e o espírito do
capitalismo”, opus magnum na literatura do alemão Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da
Sociologia. “A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado da graça. [...]
Convenci-me de que a verdade, a sinceridade e a integridade nas relações entre os homens eram da
máxima importância para a felicidade da vida” (WEBER, 1985, 113, 140).
Havia entre os imigrantes uma viva consciência da importância do livro e a leitura, mais
ainda entre os luteranos, educados na prática constante da leitura da Bíblia. [...] Por
decreto de 1858, do governo do Império, o pastor Hesse foi contratado na Alemanha
para servir em Blumenau. Durante os primeiros sete anos de estadia, foi pago pelo
governo imperial, o que não era incomum nas paróquias evangélicas. O mesmo
benefício fora concedido à colônia gaucha de São Leopoldo, cujo primeiro pastor, que
chegou ao lugar, em 1824, também teve seu salário pago pelo Império, favor negado na
época à paróquia católica da região. [...] Tschudi observou em Blumenau que o principal
livro de leitura da escola era a Bíblia, tanto em versão portuguesa quanto em versão
alemã, ambas publicadas em Nova York. [...] O catolicismo lusitano contava com o
padre para ler e interpretar a Bíblia, desobrigando os fiéis de aprender a ler, enquanto o
protestantismo, professado por dois terços dos imigrantes alemães, exigia a
alfabetização para a leitura do texto sagrado. (ALENCASTRO, 2004, p. 325, 327, 328,
332).

O Brasil no primeiro Império

A matriarca Dona Maria I, considerada a Piedosa pelos portugueses e


pejorativamente alcunhada pelos brasileiros de a Louca, faleceu seis meses antes
de completar 82 anos, na quarta-feira, dia 20 de março de 1816, no Convento do
Carmo, Rio de Janeiro. Com seu falecimento, consequentemente o príncipe regente
D. João foi elevado à posição de soberano do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. D. João VI foi o 27º monarca de Portugal e o único a ocupar o reinado a
partir das Américas, isto é, do Brasil. De parvo, aquele João português tinha
somente a aparência. Foi, em certo sentido, um nato fanfarrão bairrista. Era tímido,
cordial, afável e, durante os 13 anos que permaneceu no Brasil, não há nenhum
indício de que tenha saído dos limites abrangentes do Rio de Janeiro. A área que
confrontava a corte imperial era o seu reduto, sítio de segurança e geograficamente
sua zona de conforto.
Em resultado de um casamento para manter interesses dos reinos de Portugal
e da Espanha, a Infanta Carlota Joaquina, nascida dia 25 de abril de 1775, estava
com dez anos ao se casar, em 5 de maio de 1785, com o Infante João Maria, o qual
se encontrava na casa dos dezoito anos.

Carlota Joaquina também demonstraria desde cedo um grande pendor para o ódio [...]
seu pacato e desajeitado marido foi a primeira pessoa a quem odiou, e o fez com a
peculiar intensidade com que se odeia alguém que se despreza, mas de quem depende.
(LUSTOSA, 2006, p. 28).

Esse mal que a atormentou em Portugal não foi diferente durante os treze
anos de Brasil. Na vida conjugal/sentimental, o rei foi um homem extremamente
infeliz, fracassado e melaconicamente amargurado pelas circunstâncias. Sempre
viveu às turras e conjugalmente separado de D. Carlota Joaquina de Bourbon
(1775-1830), uma megera racista que morava em uma quinta pelos lados do atual
bairro do Botafogo, bem distante do esposo, que permaneceu no Paço Imperial,
centro das decisões reais e residência monárquica. “Eles só se encontravam
quando eram obrigados, no Rio de Janeiro, e o príncipe regente nem sequer visitava
a mulher quando ela adoecia” (WILCKEN, 2005, p. 137).
Quando D. Carlota Joaquina recebeu informações de que a corte em Lisboa
exigia o regresso da família imperial para Portugal, ironicamente desabafou e expôs
ao público o seu doentio e xenófobo ódio racial: “’Vou enfim encontrar uma terra
habitada por homens’, teria dito a rainha, pilheriando que ficaria cega quando
chegasse à Europa, porque viveu 13 anos no escuro, só vendo pretos e mulatos”
(WILCKEN, 2005, p. 268). No Brasil, D. Carlota era rainha consorte; ao chegar em
Portugal, esse título lhe foi retirado pelas autoridades em Lisboa. D. Carlota recusou
obedecer às regras exigidas pelo governo sobre o rei D. João VI. Imagina-se que
estava a preparar um complô na procura de usurpar o trono a favor de seu filho, D.
Miguel (1802-1866). Esse é um pedaço meio complicado na história portuguesa. O
dramatólogo francês extrapola em seus efeitos ao citar a península Ibérica onde:
“dois demônios do sul, Fernando na Espanha e Miguel em Portugal” (HUGO, 2007,
v. 2, p. 34).
Outra característica do rei D. João VI, segundo os vastos documentos
existentes e comentários de não poucas personagens estrangeiras que passaram
pela capital imperial, era que ele não apreciava trocar de roupas e tão pouco tomar
banho. Era um fanfarão que tinha medo até de caranguejo. Não somente os
exagerados medos o acompanhavam: para manter sua protuberante barriga sempre
cheia (típico sinal de uma acentuada, crônica e agressiva depressão), nos intervalos
das refeições, ele devorava sem cerimônia seis franguinhos fritos que trazia nos
bolsos de sua estragada, surrada, suja e malcheirosa jaqueta.

O gosto pela higiene também não era muito forte no monarca. Não havia memória, nem
em Lisboa nem no Rio de Janeiro, de D. João ter tomado um banho de corpo inteiro. No
Brasil, apenas quando um carrapato mordeu a sua perna, infeccionando-a, aderiu aos
banhos de mar, tidos como medicinais. Vestia-se com desmazelo. Suas roupas, sempre
gastas, com grandes nódoas de gordura, eram usadas até caírem de podres. [...] Era
extremamente glutão, e a lenda dos franguinhos que passou à história pitoresca foi
registrada por vários viajantes. (LUSTOSA, 2006, p. 32, 33).

As lendas tem muito de verdades que desconhecemos, segue outro bruto


comentário acerca de suas marcantes atitudes higiênicas no decorrer dos treze
anos em que viveu no Brasil. O comentário endossa as mencionadas pesquisas que
nunca foram retrucadas.

Não há uma única referência a D. João ter tomado um banho completo, com água e
sabão, em mais de uma década no Brasil, onde as temperaturas frequentemente
ultrapassavam 35 graus Célsius. Segundo todos os depoimentos, não tomar banho era
um ponto de honra entre os portugueses de alta classe no Rio. (WILCKEN, 2005, p. 202,
203).

Na Europa, também não era diferente nos Estados Unidos, tomar banho
ganhou hábito higiênico, graças a religiosidade apregoada pelos grandes avivalistas
que surgiram no século XVIII. “Pregadores metodistas, como o famoso John Wesley
achavam que a limpeza corpórea aproximava o homem de Deus e, por isso
recomendava-se o banho aos domingos antes da missa” (BUENO, 2007, p. 61).

Batalha de Waterloo
No período de 13 anos no Brasil, D. João VI e todo o séquito imperial estavam
longe das guerras, dos confrontos e dos conflitos existentes na Europa. Com
satisfação e grande alívio, o rei foi oficialmente informado acerca do resultado da
Batalha de Waterloo, quando, dia 18 de junho de 1815, o exército francês foi
confrotado e devastado pelas forças britânicas e seus aliados. Foi a última batalha
da França sob a estratégia e orientação do invencível Napoleão Bonaparte (1769-
1821), considerado o arcanjo da guerra. “Esse sombrio atleta do pugilato de guerra.
[...] Ele, que antes conhecia todos os caminhos do triunfo [...] Seu plano de batalha,
segundo a opinião geral, era uma obra-prima. [...] Algo de obscuro, algo de divino”
(HUGO, 2007, v. 1, p. 311, 315). Suas ardilosas estratégias de mais de 15 anos em
campos de batalhas não funcionaram. Algo estranho e atabalhoado estava a intervir
na mente, no corpo e na alma do arcanjo da guerra! Se arcanjos são portadores de
asas, as desse estavam quebradas!
O francês Victor Hugo (1802-1885), um adolescente nesse período que, aos
48 anos, iniciou a escrita Les Miserables, obra clássica cuja conclusão demorou 12
anos (de 1850 a 1862), no material lançado na quinta-feira, 3 de abril de 1862, o
autor reservou dezenas de páginas para dramatizar Waterloo, referindo-se
detalhadamente às sombrias e serenas armadilhas.

A força adquirida para massacrar os ingleses massacrou os franceses. [...] Outras


fatalidades ainda deveriam surgir. Era possível que Napoleão ganhasse essa batalha?
Respondemos que não. Por quê? Por causa de Wellington? Por causa de Blucher? Não.
Por causa de Deus. [...] Era tempo desse grande homem cair. [...] Napoleão fora
denunciado ao infinito, e sua queda estava decidida. Ele constrangia Deus. Waterloo
não foi apenas uma batalha; foi a mudança de aspecto do universo. [...] A sombra de
uma mão enorme se projetava sobre Waterloo. Era o dia do destino. A força que está
acima do homem concedeu aquele dia. [...] Waterloo foi o eixo do século XIX. Era
necessário o desaparecimento do grande homem para a elevação do grande século. [...]
Foi Deus que passou por ali. [...] A batalha de Waterloo é um enigma. É tão obscura
para os que a ganharam quanto para aquele que a perdeu. (HUGO, 2007, p. 328, 329,
337, 338, 341).

Em resultado da histórica derrota das forças francesas, o grande general


Bonaparte foi preso e banido da Europa, vendo exaurir-se sua percepção de
reconstruir o futuro. Ele foi vencido diante dos ingleses e de seus aliados sob o
comando do irlandês Arthur Colley Wesllesley (1769-1852), o lendário 1º Duque de
Wellington, o sereno duque-de-ferro, que também estava com 46 anos. Naquela
noite de verão, domingo, 18 de junho de 1815, sob forte claridade da lua, o
invencível Napoleão Bonaparte, que almejava o trono da Europa, viu a insólita ilha
de Santa Helena aguardando-o para o permanente desterro. Naquele domingo,
encerrou-se toda a glória dos últimos noventa dias do então incontestável imperador
da França e promotor de pânicos às monarquias europeias. Em seus dias de
glórias, era um oceano de prepotência; derrotado, tornou-se um lago de águas
amargas e estagnadas! Vencido, o ex-todo-poderoso da Europa agora não passava
de um perpétuo e humilhado prisioneiro de guerra. Amargou os últimos seis anos de
sua vida confinado pelos britânicos na ilha de Santa Helena. Ali foi mantido recluso
até o seu encontro com a morte na manhã de 5 de maio de 1821. 58
No amanhecer do sábado, dia 5 de maio de 1821, Napoleão Bonaparte, na
casa dos 51 anos (faltavam 100 dias para ele completar 52 anos), morre exilado na
ilha de Santa Helena. Essa ilha vulcânica está geograficamente no meio do Atlântico
Sul e foi descoberta em 1501 pelo navegador João da Nova (1460-1509), um galego
que estava a serviço do Portugal de D. Manuel I. Por questões de uma negociata, a
ilha escorregou das mãos dos portugueses, caindo no poderio dos ingleses em
1633. Tal negociata não passou de mais um golpe político de Filipe IV da Espanha
no exercício de seu reinado sobre Portugal e, a reboque, sobre todas as suas
colônias no decorrer do massacrante período da União das Coroas (1580-1640).
“Enquanto esteve preso, em Santa Helena, Napoleão ditou suas memórias, nas
quais fez um balanço da vida e da carreira militar, com suas conquistas e derrotas.
Para D. João VI reservou uma só frase, lacônica: Foi o único que me enganou”
(GOMES, 2007, p. 326). Bonaparte, o notável conquistador francês, que, em 16 de
maio de 1808, foi desqualificado pelo papa Pio VII como “um louco perigoso que
deve ser encerrado” (GALLEGO, 2010, p. 353), era filho de um período em que
guerrear gerava a perfeita demonstração de poder, autoridade, domínio, tornando-
se um grande e lucrativo negócio. Aliás, ainda hoje, guerras produzem potenciais
lucros financeiros, mudanças estruturais, alterações políticas e geográficas.

Napoleão Bonaparte tem sua vida cruzada com a guerra, já que nasceu da guerra,
chegou ao poder por meio da guerra, manteve esse poder por meio da guerra e o
perdeu por meio da guerra. Por isso, ele estava condenado a nunca fazer a paz, e se o
fez, foi pensando na retomada da guerra. (MAGNOLI, 2006, p. 212).

Retorno de D. João VI para Portugal

No histórico e decisivo ano de 1821, exatamente nove dias antes da morte de


Napoleão Bonaparte, o rei D. João VI, mesmo contra a sua vontade pessoal, é
obrigado a deixar o Brasil e regressar para Portugal. A viagem foi iniciada no Rio de
Janeiro, na manhã de 25 de abril. 59 Longos e tediosos 68 dias foram consumidos
para cruzar o Atlântico. As naus somente foram fundeadas no cais do rio Tejo, na
atual Praça do Comércio, em Lisboa, dia 3 de julho de 1821. Ao desembarcar,
chegou ao conhecimento de D. João VI que Napoleão Bonaparte estava morto
desde 5 de maio daquele ano. Foi uma alvissareira notícia, claramente recebida
com um profundo alívio pelo rei português.
58
A batalha nos arredores de Waterloo, hoje terras pertecentes à Bélgica, já mencionada
anteriormente, foi também o teatro de uma guerra religiosa. De um lado, os britânicos protestantes
com 159 canhões; do outro, os franceses católicos com 240 bocas de fogo. Se a França saísse
vencedora, a história do mundo ainda hoje seria vista por outra leitura. Não esquecer que há 243
anos, desde 1572, a França desfrutava da comenda de Filha primogênita da Igreja, um
reconhecimento político/religioso oferecido pelo papa. Enquanto isso, a Inglaterra era vista com maus
olhos; não passava de uma apóstata e traidora nação devido à separação de Roma em 1534,
quando houve a decisão que culminou no histórico cisma que formou a Igreja Anglicana, tomada e
assumida pelo contraditório Henrique VIII (1491-1547).
59
Naquele dia, a espanhola D. Carlota Joaquina, que havia nascido em 25 de abril de 1775, estava a
completar 46 anos. Deixar o Brasil foi o seu mais alvissareiro e especial presente!
De finais do século XVII a 1822, o Brasil constituiu a essência do Império Português.
Com algum exagero, até se poderia dizer que constituía a essência do próprio Portugal.
Foi o Brasil que, em grande parte, levou à separação da Espanha, em 1640. Foi o Brasil
que deu a Portugal os meios de se conservar independente depois, e que justificou o
apoio concedido pelas outras potências à secessão portuguesa. Foi o Brasil que trouxe
uma nova época de prosperidade durante o século XVIII e que fez Portugal respeitado
uma vez mais entre as nações civilizadas da Europa. (MARQUES, 1995, p. 402).

Regressando definitivamente para Portugal, D. João VI entrega o Brasil aos


cuidados de seu filho, Pedro de Alcântara (1798-1834), príncipe que estava com 22
anos. Em menos de dezoito meses, o herdeiro, aos 23 anos, e não fugindo às
regras de interesses pessoais, políticos e de soberania, proclamou a Independência,
tornando-se, consequentemente, o primeiro Imperador do Brasil e posteriormente,
embora em dias contados, o 29 º rei de Portugal, país que, mesmo a distância, ele
governou após o falecimento de D. João VI em 1826.

D. Pedro foi rei de Portugal, com o nome de Pedro IV, entre 20 de março e 2 de maio de
1826, data da abdicação em favor da filha Maria da Glória. Na prática, só exerceu seus
poderes por uma semana, a partir de 26 de abril, dia em que aceitou oficialmente a
coroa que lhe era oferecida pelos papéis que chegavam de Lisboa. Nesses sete dias,
tomou decisões de grande impacto. A mais importante foi dar aos portugueses uma
nova constituição. (GOMES, 2010, p. 284).

No topo do obelisco com mais de 27 metros de altura, tendo as costas


voltadas para a entrada principal do Teatro Nacional D. Maria II, 60 bem no centro da
Praça D. Pedro IV, mais conhecida por Rossio, na Baixa de Lisboa, há uma estátua
em homenagem ao Rei-Soldado. Esse monumento retrata a histórica figura de D.
Pedro IV de Portugal, que por tabela é o mesmo D. Pedro I do Brasil. Esse monarca
foi muito mais soldado guerreiro que um rei dominante! Era obcecado por desafios.

O Brasil na primeira monarquia

“O Brasil separou-se politicamente de Portugal, sem deixar de ser monarquia e


de conservar, à testa do governo nacional, um português da mesma dinastia
reinante entre os portugueses” (FREYRE, 2004, p. 52). Diante de relevâncias
políticas e de interesses pessoais, o príncipe D. Pedro de Alcântara levou o Brasil a
romper laços com Portugal, quando da ratificação da Independência declarada
pelas quatro horas da tarde do sábado, 7 de setembro de 1822, às margens do
riacho do Ipiranga. Mesmo sem os devidos planejamentos, a cidade de São Paulo
tornou-se a matriz de um grande acontecimento de repercursão nacional,
continental e internacional. Naquela memorável data, faltavam 35 dias para o jovem
Pedro de Alcântara completar 24 anos. Pedro foi o quarto filho de D. João VI (1767-
1826) com a espanhola D. Carlota Joaquina (1775-1830) e nasceu no dia 12 de
60
O teatro D. Maria II foi inaugurado, dia 13 de abril de 1846, em comemoração ao 27º aniversário da
rainha portuguesa nascida na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. D. Maria I, nasceu em Portugal e
morreu no Brasil; já D. Maria II nasceu no Brasil e morreu em Portugal. A vida da velha monarquia
europeia mais parece um bem-montado conto da carochinha, no qual as filhas não passavam de
moedas de troca e instrumentos de conquistas!
outubro de 1798 no Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa. No mesmo palácio,
oito anos após deixar o negroide Brasil, a espanhola D. Carlota Joaquina Teresa
Caetana de Bourbon e Bragança morreu aos 54 anos, dia 7 de janeiro de 1830, mãe
do primeiro imperador do Brasil.
O dinâmico jovem Pedro de Alcântara tudo fazia na busca de apressar a
conscientização do verdadeiro nascimento do Brasil e consumar a autenticidade de
uma nova e autônoma nação. Até então, o Brasil não existia. Durante 322 anos, não
passou de uma grande colônia de Portugal no trópico sul das Américas! Agora era um
país independente, e o primeiro passo a seguir, à elaboração de uma Constituição
para governar com direitos e obrigações. Mesmo sob pressão, a organização desse
documento foi um processo lento.

Efetivada a separação de Portugal, cem deputados eleitos foram convocados para a


assembleia constituinte. Dezenove deles eram clérigos. Uma reunião preliminar foi
realizada às 9h do dia 17 de abril de 1823, na presença de 52 parlamentares, ocasião em
que Dom José Caetano da Silva Coutinho (1768-1833), bispo do Rio de Janeiro, terminou
eleito para a presidência mensal, o que se repetiria em agosto. (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 1, p. 159).

Levando em consideração a Independência do Brasil do Reino de Portugal, era


necessária a redação e votação de uma Constituição para reger o país sob a égide
do agora imperador D. Pedro I. Os cem deputados constituintes trabalharam
arduamente por doze meses até à conclusão dos 179 artigos. A Constituição, a
primeira do Brasil, foi aprovada e outorgada no dia 25 de março de 1824, na capela
imperial, cidade do Rio de Janeiro. Esta foi a mais duradoura Constituição do Brasil, a
qual vigorou até à Proclamação da República em 1889. A segunda Carta Magna
Brasileira nasceu em 1891. Daí para frente, muitas outras foram concebidas e
precocemente abortadas. A última, ainda em vigor em 2021, foi outorgada pela
Assembleia Constituinte em 22 de setembro de 1988, como um ato na busca de
esquecer os anos sob o regime dos militares iniciado em 1964. A primeira Carta
Magna do Brasil

deveria ser elaborada por uma Assembleia Geral Legislativa, composta de deputados
das províncias, que reuniu-se pela primeira vez, em 17 de março de 1823, sob a
presidência do bispo-capelão mor D. José Caetano da Silva Coutinho, com a presença
de 48 doutores em Direito, 19 eclesiásticos e sete militares, mais alguns funcionários e
negociantes. (LIMA, 2004, p. 112).

A Constituição de 1824 foi considerada por alguns liberais como estritamente


conservadora; já no outro extremo, para os conservadores, como excessivamente
liberal e até mesmo extravagante diante de vários olhares mais ariscos.61 D. Pedro I
procurava um equilíbrio entre os conservadores e os liberais, as duas principais
facções políticas então existentes no Brasil. Em meio a esse lusco-fusco, abriu-se
uma oportunidade para os protestantes, os judeus e as demais religiões acatólicas.
A brecha para acalmar a religiosidade estava no quinto artigo daquela Carta:
61
Após 44 anos, em 1861, o cônego Joaquim do Monte Carmelo (1817-1899) bradaria na capela do
Convento da Ajuda do Rio de Janeiro: “Vivemos num país católico, sob a égide de uma constituição
liberalíssima” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 262).
“A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas
as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas
para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo.”

“O catolicismo era a religião oficial e as sedes das paróquias funcionavam


como cartórios em que os párocos – funcionários públicos – exerciam as atividades
cartorárias” (ALENCASTRO, 2004, p. 14). Isso ficou claro no decorrer da Questão
Religiosa, entre os anos de 1870 a 1875, em resultado dos ataques e levantes de
dois bispos católicos contra a maçonaria e os protestantes. Esse fogo cruzado
envolveu até o Imperador D. Pedro II (1825-1891), o qual nesse palco não passou
de bombeiro e conciliador político, mas corajosamente, contrariando a filha Isabel
Cristina, decidiu contra os dois bispos, mandando-os para a cadeia. Ao som da
mesma cantiga, expressou-se outro personagem de destaque, desta feita o político,
Grão-Mestre do Grande Oriente e advogado Joaquim de Saldanha Marinho (1816-
1895), o qual mais tarde alcunhou a Magna Constituição de 1824 de “o consórcio
híbrido entre o Trono e o Altar” (VIEIRA, David, 1980, p. 288). Por inumeráveis
vezes, o Trono esteve subjugado aos caprichos do Altar, mesmo que as regras
constitucionais fossem o contrário! O padroado estava nas mãos do Trono. Cabia ao
Imperador delegar o poder sagrado aos bispos. Por essa razão, esbravejou, em 16
de julho de 1880, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910), um jovem
advogado nascido em Recife: “Sarcástico, recordava que o imperador do Brasil era
um verdadeiro papa, com direito de impor um veto caprichoso aos documentos
pontifícios” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 315).
Por interesses comerciais na negociação e tráfico de escravos, da África veio
o som em forma de parabéns pela Independência do Reino de Portugal.

Os dois primeiros monarcas a aprovar o Brasil independente foram os obás Osemwede,


do Benin, e Osinlokun, de Lagos, dois reinados situados na costa africana, por uma
razão óbvia: eram junto com Luanda, em Angola, os maiores exportadores de escravos
para as lavouras e cidades brasileiras. Em seguida veio o reconhecimento por parte dos
Estados Unidos, em maio de 1824, também por uma forte motivação política e
econômica. (GOMES, 2010, p. 286).

A decisão de peso que fez a diferença procedeu de James Monroe (1758-


1831), o quinto presidente dos Estados Unidos, que governou a nação americana
entre os anos de 1817 a 1825 e também era um renomado advogado nascido na
Virgínia, estado mais conhecido por Mother President’s State. Para não fugir à regra
da época, Monroe era também proprietário de negros que lhe serviam legalmente
de escravos.62 Mesmo sendo consumidor de carne humana no uso do
62
Hoje novas luzes geradas das pesquisas têm iluminado novos caminhos que descobriram novos
documentos. Tudo parece uma força de trocadilho.

Foram eles os primeiros reis - soberanos - a reconhecer o Brasil, mas não os primeiros chefes de
Estado. O embaixador africano do Benin foi recebido por dom Pedro I em 20 de julho de 1824. O
reconhecimento pelos Estados Unidos deu-se em 26 de maio daquele ano, ou seja, quase um
mês antes (sic). Pesquisas recentes indicam que as Províncias Unidas do Rio da Prata - isto é, a
Argentina - teriam sido o primeiro país a reconhecer a independência brasileira. Ver Rodrigo
Wiese Randig. Argentina, primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, Caderno do
CHDD, número 31, segundo semestre de 2017, p. 518, 19. (GOMES, 2019, v. 1, p. 22).
escravagismo, Monroe foi um respeitado político, levando, em seu currículo, o
legado de ser veterano das guerras contra a Inglaterra, membro da igreja episcopal
e também da maçonaria. Foi um líder que buscou a hegemonia e integração do
novo continente ao criar o slogan América para os americanos, doutrina que o
imortalizou. Apesar do iluminar das novas pesquisas, ainda considero o presidente
James Monroe o primeiro governante legitimamente democrático a reconhecer que
o Brasil era uma nação livre, soberana e totalmente independente para cuidar do
seu futuro. Recebendo o endosso dos Estados Unidos, que já estavam a despontar
sua liderança mundial, outras nações fizeram o mesmo. Seguem algumas
características do presidente James Monroe: “Alto, magro e de rosto angular, ele foi
o último presidente a empoar o cabelo e atá-lo para trás e o último a usar calças que
iam até os joelhos, meias brancas compridas e sapatos de fivela” (DAVIDSON,
2016, p. 115).
Como não poderia ser diferente, fazia-se necessária a bênção papal para
consolidar a soberania política de um novo país. Na busca desse incondicional
apoio, que exaltaria o desenrolar da nova nação, D. Pedro I, o jovem imperador, 2º
Grão-Mestre do Grande Oriente e laureado de Defensor Perpétuo do Brasil em 10
de maio de 1822 pela mesma maçonaria, envia até Roma um delegado para
negociar o reconhecimento da Independência. Diante de mútuos jogos de interesses
políticos e religiosos, alicerçando a mística do Trono, da Espada e do Altar, faz-se
necessária a homologação da Independência pela Sua Santidade. Para essa santa
missão de cunho político e submissão papal, foi despachado até Roma um
emissário ligado ao profano e ao sagrado. Profano no jogo dos interesses políticos e
sagrado no altar da eucaristia. Era uma oportuna casadinha, largamente
aproveitada por vários sacerdotes. “Mulato e advogado, monsenhor Francisco
Correia Vidigal foi enviado a Roma para obter o reconhecimento da independência
do Brasil” (SERBIN, 2008, p. 325).
Para alguns milhares de adeptos e outros, o papa estava acima de quaisquer
suspeitas de interesses próprios, embora isso seja questionável. “O papa, além do
poder espiritual, agia como supremo árbitro entre os soberanos que a ele recorriam
nas dúvidas mais sérias” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 9). A sagrada
ratificação papal não foi tão fácil como imaginavam as autoridades brasileiras. O
embaixador de Lisboa junto à Santa Sé havia agido com mais rapidez e sagacidade,
conseguindo bloquear diplomaticamente o caminho do brasileiro até ao recém-eleito
papa, um antissemita com o título de Leão XII (1823-1829), o qual estava com 63
anos, magro, alto e doente.

Com instruções em mãos e investido de plenos poderes, Vidigal chegou a Roma aos 5
de de janeiro de 1825. Conhecedor da língua italiana - havia estudado teologia lá -, no
dia 13 seguinte, foi recebido pelo Cardeal Giulio Maria Cavazzi della Somaglia (1744-
1830), secretário de Estado, que o tratou cortesmente, mas sem aceitar as credenciais
que trazia. [...] mas, graças à intercessão do Cardeal Bartolomeu Pacca que conhecera
Dom Pedro I quando menino, Portugal aceitou enfim a perda da sua possessão sul-
americana. [...] em 13 de janeiro de 1826, o representante do Brasil pôde afinal
apresentar as credenciais. [...] Leão XII, por meio da bula Praeclara Portugalliae, datada
de 15 de maio de 1827, criou para o Brasil as ordens de Cristo, Santiago e Avis,
conferindo ao soberano do novo reino o padroado e benefício do império. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 164,165).63

Referindo-se à negritude da época, salientamos outro relevante sacerdote na


historiografia brasileira, desta feita na área musical.

Outro grande destaque do Rio de Janeiro, provavelmente o maior de todos, foi o Pe.
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), presbítero secular, que se encontra entre os
maiores músicos da história do Brasil. Era um mestiço inteligente e vivaz, filho de
Apolinário Nunes Garcia, um respeitável senhor branco, e Vitória Maria do Carmo,
africana de Guiné. [...] Pe. José Maurício deixou ao menos dois discípulos célebres: o
primeiro foi Francisco Manoel da Silva, autor da melodia do Hino nacional brasileiro; o
segundo foi Dom Pedro I, imperador do Brasil, que compôs o Hino da Independência e
algumas obras sacras. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 81, 82).

Foi somente em 29 de agosto de 1825, pouco antes da morte de D. João VI,


que Portugal, sob pressão dos ingleses e dos americanos, reconheceu a
Independência do Brasil. Porém, em contrapartida, exigiu uma formal indenização
pelos prejuízos econômicos, morais e de outros tipos. Tudo não passou de um
esplêndido negócio entre família. Mesmo no direito de manter-se independente, o
Brasil foi juridicamente obrigado a pagar a exorbitante quantia de dois milhões de
libras esterlinas para conservar sua aspirada independência de Portugal (VIEIRA,
P., 2016, p. 302). Foi um arrocho na precária economia do erário imperial do Brasil.
Os gastos excederam o Produto Interno Bruto (PIB), engordando a dívida pública
pela emissão de novas moedas circulantes e, consequentemente, elevando a
inflação e os aviltantes valores relativos aos empréstimos no exterior. Quebrado, o
país entrou em bancarrota. Sua recessão econômica foi tão alarmante que
“provocou a falência do Banco do Brasil em 1829” (ALMEIDA, R., 2014, p. 80) ,
interessante, esse quebra imperial aconteceu 100 anos antes do crash da Bolsa de
Valores de New York. A reabertura do Banco do Brasil somente aconteceu 22 anos
depois, em 1851, graças ao poderio financeiro do gaúcho Irineu Evangelista de
Sousa (1813-1889), um obstinado visionário antiescravagista e loucamente viciado
em grandes desafios. Irineu Evangelista era politicamente muito hábil, sabia gerir
sua multinacional sediada no Brasil, de onde coordenava as filiais no Uruguai, na
Argentina, na Europa e nos Estados Unidos. Ele possuía o mais bem montado
sistema financeiro do mundo de então; era um mestre no farejar o caminho das
pedras e uma autêntica máquina de movimentar dinheiro e obter dividendos. Em
seu interior, fervia continuamente uma usina de ideias que o colocava à frente do
seu tempo e do povo que o cercava. Era um habilíssimo cidadão que almejava pisar
onde ninguém se atrevia a andar; era o homem que chegava na frente e enxergava
lucros onde o caixa estivesse quebrado. Um hábil farejador de dividendos! Foi assim
que o dinâmico empresário, aos 40 anos, dia 30 de abril de 1854, recebeu de D.

63
No site do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, está disponível um arquivo
em pdf com o título “Monsenhor Francisco Correia e o reconhecimento da Independência pela Santa
Sé”, no qual o leitor encontrará um histórico mais esclarecedor sobre o citado monsenhor com a
função de diplomata diocesano.
Pedro II o título nobiliárquico de Barão de Mauá. Cinco dias antes dessa honraria,
Irineu Evangelista de Sousa havia iluminado o centro do Rio de Janeiro com
lampiões a gás. Vinte anos depois, em 22 de junho de 1874, inauguram-se, através
de cabos submarinos, transmissões telegráficas que mudaram a história do Brasil.
Naquele dia, do Rio de Janeiro, D. Pedro II envia mensagens ao papa e à rainha da
Inglaterra. O empresário Mauá havia terminado de conectar o Brasil com o resto do
mundo por meio do uso do Código Morse. Em reconhecimento, uma nova comenda
foi apressadamente enviada ao grande empresário do império no dia 26 de junho de
1874.

Por isso, quatro dias depois da inauguração, D. Pedro II assinou um papel e mandou Rio
Branco entregá-lo a domicílio na casa vizinha: era a carta que o tornava visconde - com
grandeza. Enquanto descia na hierarquia dos negócios, Mauá subia na da nobreza.
(CALDEIRA, 2008, p. 494).

Embora nas entrelinhas a primeira Constituição imperial concedesse espaço


aos acatólicos, em cujo meio estavam os protestantes, havia o que era de se
esperar: uma certa barreira das autoridades que temiam as ordens não oficiais
emitidas por Roma. O Vaticano já antevia o debandar de sua clientela para a
religião dos hereges protestantes!
O Brasil alcançou a sua independência política, uma velada liberdade religiosa
e o direito de expressão graças à intervenção de um jovem português que, em
1824, estava com 26 anos. Apesar de ser casado desde 1817 com uma nobre
arquiduquesa austríaca, esse jovem era pouco dado à monogamia. Pedro de
Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim
José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon era tão boêmio e
aventureiro quanto a longa extensão do seu nome. Não era dado aos copos,
entretanto adorava entrar numa briga, farrear e não podia ver uma mulher!
Popularmente sempre foi conhecido por D. Pedro I.

Um nome tão longo, para uma vida tão curta, porém intensa e agitada. Em apenas doze
anos, nove como imperador e três como rei de Portugal. [...] legislou duas das primeiras
cartas constitucionais do mundo; e abdicou de dois tronos em favor de dois filhos
pequenos, D. Pedro II no Brasil e D. Maria II em Portugal. (GIRALDI, 2013, p. 91).

Encarnado na vida do sereno imperador, havia um outro personagem que o


desmoralizava diante de suas atitudes que espantava até o pior dos católicos.

Sua vida privada foi intensa e tumultuada. Embora não bebesse, gostava de farras,
noitadas, amigos de má reputação e, em especial, das mulheres [...]. Nos dois
casamentos oficiais, D. Pedro teve oito filhos, sete com Leopoldina e um com Amélia.
Fora do casamento, o número é lendário. Octávio Tarquínio de Souza assegura que,
entre naturais e bastardos, teve uma dúzia e meia de filhos. Alguns cronistas chegaram
a lhe atribuir mais de 120 rebentos ilegítimos, cifra nunca comprovada, mas não de todo
impossível [...]. O derradeiro, nascido em 1832, já depois de abdicação do trono
brasileiro, com a freira Ana Augusta Peregrino Faleiro Toste, tocadora de sino no
convento da Esperança na ilha Terceira, Açores. Também teria tido uma filha com uma
negra de 16 anos chamada Andresa dos Santos, serva do convento da Ajuda. (GOMES,
2010, p. 121,122).
Enquanto imperador do Brasil, D. Pedro I e, posteriormente, D. Pedro II
estavam acima das leis constitucionais. “Quanto a isso, o artigo 99 da Carta Magna
era claro: ‘A pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a
responsabilidade alguma’” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 211). Ali estava a
última instância judicial, executiva e legislativa. Somando-se a tudo isso, o padroado
se encontrava nas mãos do imperador, que era a autoridade no Brasil para
manobrar o temporal e o eterno, o profano e o sagrado. Fim de papo!
Sendo de pouca sorte, D. Pedro I teve os dias finais passados no Palácio
Nacional de Queluz,64 nos arredores de Lisboa, onde foi vencido pela tuberculose, a
mortífera doença do século. Tudo isso aconteceu pouco antes de ele completar 36
anos. Morreu no quarto dom Quixote, mesmo local onde havia nascido a 12 de
outubro de 1798.65
“D. Pedro I, o rei, filho e neto de reis, defensor das instituições livres na
América e na Europa, que dera constituições às suas duas pátrias e que deixou a
filha reinando em Portugal e o filho no Brasil” (LUSTOSA, 2006, p. 324). Em meio ao
regime militar e na utilização diplomática, o corpo de D. Pedro I, sem o seu coração,
encontra-se no Museu Paulista, na região do Ipiranga desde 1972. O traslado dos
restos mortais, sob guardas de honra e em câmara ardente, foi feito a bordo do
Funchal, o mais histórico e político navio português. A trasladação do esquife foi o
ponto máximo das comemorações do sesquicentenário da Independência do Brasil.
Esse traslado decorreu de um acordo de cavalheiros entre o regime militar e os
herdeiros daquilo que havia sobrado do salazarismo. Fato curioso: depois de 25
anos, novembro de 1997, casualmente eu e minha esposa fizemos o mesmo roteiro
Portugal-Brasil a bordo do Funchal. Somente me recordei do traslado dos restos
mortais de D. Pedro I quando o chefe dos camarotes contou-me que fez parte
daquele histórico séquito que havia zarpado do píer do rio Tejo em Lisboa, na terça-
feira, dia 11 de abril de 1972. Não tenho dúvidas, essa afirmação até parece um
exaltado pedantismo, sou perseguido pelos históricos acontecimentos!

O caixão do imperador Pedro I, por ocasião dos festejos dos 150 anos da Independência
do Brasil, foi trasladado, da pátria-mãe, da igreja jesuíta em Lisboa, em 11 de abril de
1972 a bordo do Funchal para o Brasil. Pedro I foi sepultado ao lado de sua esposa às
margens do Ipiranga. (PRANTNER, 1998, p. 95).

64
“O Palácio Nacional de Queluz é uma referência da arquitetura rococó e neoclássica em Portugal.
Mandado construir em 1747 pelo futuro D. Pedro III, marido consorte da rainha D. Maria I, foi
concebido como residência de verão, tornando-se espaço privilegiado de lazer da família real.”
(Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_Nacional_de_Queluz>. Acesso em: 17 ago.
2019). D. Pedro III (1717-1786) de Portugal era o avô paterno de D. Pedro I do Brasil. D. Pedro III de
Portugal morreu aos 68 anos naquela residência real.
65
Em 22 de novembro de 2010, o casal Alberto e Manuela Crespo conduziu-me ao Palácio de Mafra,
um histórico monumento da realeza. Regressamos por Sintra e, finalmente, o Palácio de Queluz. Era
o findar do expediente de uma segunda-feira, mas mesmo assim paramos por alguns minutos no
referido aposento, onde há uma cama, a mesma, segundo informações, em que D. Pedro I faleceu
aos 35 anos. Rodeando todo o alto das paredes, encontram-se pinturas que se identificam com a
conhecida história de Dom Quixote, obra literária que imortalizou o escritor Miguel de Cervantes
(1547-1616), um dramaturgo e romancista espanhol. “D. Pedro morreu nos braços da imperatriz
Amélia, às 14h30 de 24 de setembro de 1834, faltando duas semanas e meia para completar 36
anos” (GOMES, 2010, p. 323).
D. Pedro I, como exigia a sagrada cartilha imperial, era católico romano,
mesmo que tudo não passasse de meros protocolos; sabe-se que ele nunca esteve
preocupado com a vida religiosa. Por outro lado, não havia nenhum interesse em
contactar os protestantes; se o fizesse, abandonaria sua zona de conforto e
enveredar-se-ia por um infestado vespeiro. No decorrer do Primeiro Império, o
cristianismo evangélico - leia-se protestante - não passava de uma minoria entre os
imigrantes provindos do meio-norte da Europa. Para os não poucos católicos
existentes no Brasil, fervorosos ou não, protestantismo era sinônimo de uma
estranha e perigosa religião inventada na Alemanha pelo excomungado padre
Martinho Lutero em 1517. Queriam distância desses amaldiçoados pagãos!

O Brasil no Segundo Império

D. João VI morreu na casa dos 58 anos. As más línguas dizem que foi
envenenado sob ordens da espanhola D. Carlota Joaquina (1775-1830), sua
descontrolada e amotinadora esposa. O seu falecimento ocorreu em 10 de março
de 1826 no Real Palácio da Bemposta, em Lisboa. Quando a notícia oficial chegou
ao Brasil, D. Pedro I logo procurou garantir sua posição de chefe do governo
português, um direito que lhe cabia por herança. Ele sabia que politicamente o seu
governo no Brasil estava muito desgastado e, por várias razões, também
desmoralizado. Portanto, aproveitou a brecha política do descrédito para buscar um
novo desafio na Europa. Trazia consigo amargas e irreversíveis derrotas: a morte da
imperatriz, a perda da Guerra da Cisplatina e também da sua popularidade. Em sua
vida, tudo caminhava para o pior, embora se mantivesse visionário e obcecado em
suas metas. Não tendo como ser rei de Portugal e imperador do Brasil, preferiu
abdicar o império a favor de seu filho, D. Pedro II (1825-1891), então uma criança
com somente cinco anos. Poucas horas antes do desespero daquela madrugada, o
maçom José Bonifácio de Andrada e Silva, recém-regressado do exílio na Europa,
foi convocado ao Paço Imperial e nomeado tutor de D. Pedro II no dia 6 de abril de
1831. No desenrolar da madrugada, enquanto a tropa apressadamente preparava o
navio para zarpar, o inseguro imperador escreve o seguinte documento de
abdicação: “Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei
abdicado mui voluntariamente na pessoa de meu muito amado e prezado filho, o
Senhor Dom Pedro de Alcântara. Boa Vista, sete de abril de mil oitocentos e trinta e
um” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v.1, p. 158). Antes do raiar do Sol daquela
marcante quinta-feira, 7 de abril de 1831, Pedro I, aos 32 anos, deixou o Rio de
Janeiro com sua comitiva para nunca mais voltar. Seguiu com destino à Europa.
Sua primeira escala foi na Ilha da Terceira, nos Açores, onde se envolveu com a
freira que tocava o sino da matriz!
“Quando o pequeno Pedro acordou, todos se dirigiram a ele chamando-o Sua
Majestade Imperial”. Ele não entendeu nada. “Em seguida, viu os rostos inchados
de tanto chorar. As irmãs choravam. José Bonifácio já estava presente. Este homem
era bondoso. Adotou as crianças com amor paterno” (PRANTNER, 1998, p. 189). D.
Pedro II nasceu no palácio de São Cristóvão, o principal edifício na Quinta da Boa
Vista, dia 2 de dezembro de 1825, sendo filho de D. Pedro I e sua esposa, a
austríaca Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo (1797-1826), Imperatriz
do Brasil e a primeira mulher a governar a nação diretamente da sede do Império,
no Rio de Janeiro.66 “Maria Leopoldina era uma Habsburgo, crème de la crème do
sangue-azul mundial” (MENEZES, 2007, p. 113). O referido governo de D.
Leopoldina foi um dos principais atos dessa imperatriz e regente sob conselhos do
minerologista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que honradamente
recebeu o epíteto de Patriarca da Independência. O doutor Andrada e Silva era um
poliglota santista que “falava e escrevia em seis idiomas e lia em onze” (CALDEIRA,
2002, p.18). Está claro que o referido Patriarca da Independência era um homem
raro, superdotado e, como tal, caminhava à frente do seu tempo na política, bem
como na área das ciências e da cultural geral. Diga-se de passagem, foi dele que se
originou o nome Brasília para a atual Capital do Brasil e a idealização da bandeira
imperial desenhada pelo francês Jean Baptiste Debret (1768-1848). Símbolo
imperial que foi o Padrão do Brasil até 15 de novembro de 1889. 67
Foi D. Leopoldina, amante das letras que formam as mais belas e românticas
palavras, quem assinou o rompimento legal do Brasil com Portugal, quando
ocupando a regência do Brasil, de 14 de agosto a 14 de setembro, perante o
Conselho da Coroa sob sua presidência no Rio de Janeiro. Esse ato aconteceu na
madrugada de 2 de setembro de 1822. O decreto por ela assinado foi homologado
cinco dias depois pelo príncipe D. Pedro de Alcântara às margens do riacho do
Ipiranga, em São Paulo.
Na noite de 29 de agosto de 1822, a Imperatriz, aos 25 anos redigiu uma
apaixonada carta ao seu esposo, solicitando o seu rápido regresso ao Rio de
Janeiro.

Meu querido e muito amado esposo, mando-lhe o Paulo; é preciso que volte com a
maior brevidade, esteja persuadido que não só amor, amizade que me faz desejar mais
que nunca sua pronta presença, mas sim às críticas circunstâncias em que se acha o
amado Brasil, só a sua presença, muita energia e rigor podem salvá-lo da ruína. [...]
Receba mil abraços e saudades muito ternas desta sua amante esposa. (Disponível em:
<https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=285344>. Acesso em: 13 jun. 2020).

O corpo da Imperatriz Leopoldina também se encontra, desde 1972, ao lado


do de D. Pedro I, no Museu Paulista, um templo da História do Brasil.

Enquanto o Conselho da Coroa estava reunido, Paulo Bregário já esperava na varanda,


pronto para cavalgar apressadamente a São Paulo para fazer chegar as decisões às
mãos do príncipe regente. [...] José Bonifácio, entregou os documentos ao correio Paulo
Bregário com as seguintes palavras: ‘Se não arrebentar uma dúzia de cavalos no
caminho, nunca mais fica correio, seja o que faz’. [...] O mensageiro não encontrou D.

66
D. Maria I, avó paterna de D. Pedro I, na posição de rainha de Portugal, governou o Brasil
diretamente de Lisboa após a morte de seu pai, D. José I (1714-1777).
67
José Bonifácio de Andrada e Silva, nascido em Santos, estado de São Paulo, foi o 1º Grão-Mestre
do Grande Oriente do Brasil, a primeira loja da maçonaria fundada no Rio de Janeiro em 17 de junho
de 1822. Ele é o único personagem brasileiro homenageado com uma destacada estátua no Bryant
Park, localizado na Avenida das Américas (Sixth Avenue e Forth-two Street), em Manhattan, no
nevrálgico centro da cidade de New York.
Pedro em São Paulo pois viajara para Santos. Bregário continuou sua cavalgada e
encontrou o príncipe, que voltava, no morro do Ipiranga. (PRANTNER, 1998, p. 86, 89).

Politicamente, a extenuante cavalgada entre o Rio de Janeiro e São Paulo foi


um sucesso que resultou em novos horizontes entre as duas principais cidades do
império. “Exaustos e esbaforidos, Paulo Bregário, oficial do Supremo Tribunal
Militar, e o major Antônio Ramos Cordeiro tinham percorrido a cavalo cerca de
quinhentos quilômetros em cinco dias, praticamente sem dormir” (GOMES, 2010, p.
33). Desenvolveram a fascinante velocidade de 100 quilômetros/dia a cavalo!
Quatro anos, três meses e doze dias após a imperatriz redigir aquela
romântica e apaixonada missiva, a história culminou de uma forma trágica. De muita
fibra e pouca sorte, a nobre imperatriz, mais destacada pelo nome de Maria
Leopoldina, há muito sofria sob mordaças e mantinha um profundo silêncio para não
escandalizar a corte. “Todo o seu semblante tinha algo de altivo, pensativo e
inocente. [...] olhos pequenos, mas o olhar grande” (HUGO, 2007, v. 1, p. 665). O
resultado final após sofrimento, pós sofrimento, foi sua morte aos 29 anos, dia 11 de
dezembro de 1826, no palácio real na cidade do Rio de Janeiro, supostamente,
segundo as más línguas, em consequência dos maus-tratos e das agressões físicas
de seu esposo, o impulsivo e descontrolado D. Pedro I. Já casada por procuração
na Áustria desde 13 de maio, a caminho do Brasil fez escala em Lisboa.

Entretanto, na manhã de 15 de agosto de 1817, a frota desceu o Tejo e rumou para o


Atlântico. Dona Leopoldina intuiu que estava embarcando numa viagem da qual jamais
retornaria, e carregou suas despedidas de especial intensidade. [...] O relacionamento
de dona Leopoldina com D. Pedro não foi um encontro de almas gêmeas. (WILCKEN,
2005, p. 229, 239).

Em menos de dez anos no Brasil, a poliglota, culta e expansiva imperatriz já


estava morta! O seu regresso à Europa, iniciado na madrugada de 7 abril de 1831,
foi em um caixão.

A imperatriz morreu às dez e quinze da manhã do dia 11 de dezembro de 1826. Nove


anos depois de se deslumbrarem pela primeira vez com a paisagem brasileira, os belos
olhos azuis da arquiduquesa da Áustra Leopoldina Carolina se fecharam para sempre.
[...] Sua morte foi chorada sincera e unanimente. (LUSTOSA, 2006, p. 240).

Quando o pai de D. Leopoldina, Francisco I (1768-1835), recebeu a notícia na


Áustria, esbravejou cheio de ódio, dor e angústia pelo trágico acontecimento que
ceifou a vida da filha no Brasil. “’Que homem miserável é o meu genro’. Desde que
soubera da morte da filha, segundo informou de lá um amigo de d. Pedro, a tristeza
de Francisco I era ‘de meter dó’” (LUSTOSA, 2006, p. 243, 254). Leopoldina era a
terceira filha de Francisco I e Maria Teresa (1772-1807), a Princesa das Duas
Sicílias, era o casal mais nobre entre a nobreza europeia.

O padre político e amasiado


Antes de completar 10 anos, o carioca D. Pedro II estava órfão de pai, mãe e
avós. Era uma criança psicologicamente solitária, sem coleguinhas de infância e
permanentemente blindada por todos os lados pelos bajuladores palacianos. Em
certo sentido, ele era o fruto de sua própria meiguice; não passava de uma sagrada
figura quase elevada aos altares de adoração. Na realidade, era simplesmente um
pequeno imperador sem coroa, pois todas as ordens partiam do seu tutor-mor, que,
a princípio, foi o naturalista José Bonifácio, um catedrático de memória prodigiosa e
fidalgo santista nascido dia 13 de junho de 1763, o qual, nesse período, já estava na
casa dos 68 anos, sendo, para a época, considerado muito velho frente ao cargo
que estava exercendo. Diante disso e na manobra do corretamente político, algo tão
antigo quanto a república idealizada pelo filósofo Platão (427 a.C-347 a.C.) na
Grécia de antigamente, José Bonifácio, embora fosse uma velha raposa palaciana,
foi sorrateiramente banido para a Ilha de Paquetá, na Baía da Guanabara e
substituído pelo regente Feijó, seu declarado adversário político e 21 anos mais
jovem que o eminente cientista. Feijó era um sacerdote de liberais ideias políticas e
religiosas e também tem o seu nome entre os principais fundadores do Partido
Liberal em São Paulo.
Era um padre assumidamente amasiado, natural da cidade de São Paulo.
Sabia muito bem onde despejar suas oratórias. Em um dos seus discursos no
parlamento em outubro de 1827, foi taxativo em sua autodefesa: “O casamento é
melhor que a mancebia. Ora, os clérigos do Brasil usam da mancebia. Logo, é
melhor que se casem” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 180). Em resposta a esse
discurso parlamentar, entra em ação a figura do lendário padre Perereca, o
celibatário e conservador Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844).

Padre Perereca usaria todo seu saber, temperado com impagáveis tiradas sarcásticas,
para fustigar os que julgava inimigos da Igreja. Célebre foi a zombaria que fez ao
comportamento do Pe. Feijó: Entendi muito bem a V.S. o que o Sr. Padre Deputado quer
é casar. [...] Não grite tanto, não derrame tantas lágrimas, não faça tantas caramunhas,
nós bem percebemos a que fim elas se dirigem. Case-se Sr. Padre. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 215).

Aproveitando oportunas brechas em diferentes patamares, Feijó se tornou um


destacado membro do alto clero brasileiro, entretanto era mais habilidoso na arte da
política que nas homilias religiosas, cujas regras aprendera de berço, visto que o
seu progenitor também era padre. Segundo Caldeira (2008, p. 128), Diogo Antônio
Feijó (1784-1843) era “padre, filho de padre, com mulher e filhos, e que costumava
fazer discursos no Parlamento contra o celibato imposto pela Igreja”. Essa visão é
parcialmente desmentida pelo pesquisador Dilermando Ramos Vieira (1961-), um
frade presbítero Servita nascido em Novo Cruzeiro, no meio-norte das Minas Gerais.
O frade busca outra tangente na tentativa de esclarecer o assunto em pauta,
embora tudo fosse notório aos olhos da sociedade.

Filho de pais ignorados, supõe-se que seus genitores fossem o vigário de Cotia, mais
tarde cônego do cabido paulistano, Pe. Manuel da Cruz Lima, e a mãe, uma irmã do Pe.
Fernando Lopes de Camargo, de nome Maria Joaquina, que na época contava com 23
anos de idade. Ainda recém-nascido foi abandonado dentro de uma cesta na soleira da
casa do padre, então subdiácono, Fernando, situada à Rua da Freira, n. 11, que o
recolheu e adotou. [...] Autodidata por força das circunstâncias, o jovem seminarista
recebeu atestado de filosofia em setembro de 1808 [...]. Ordenado diácono naquele
mesmo ano na capela particular do palácio episcopal de São Paulo por Dom Mateus de
Abreu Pereira, em 25 de fevereiro de 1809 se tornaria presbítero. [...] entrou na política,
marcando presença na delegação brasileira às Cortes de Lisboa em 1821 e na
assembleia constituinte de 1823. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 177,178).

Em 1835, o regente Feijó recusou a indicação do governo para ocupar o


bispado de Mariana, até então a mais católica das cidades do estado de Minas
Gerais e sede de uma ampla diocese, em substituição ao português D. Frei José da
Santíssima Trindade Leite (1762-1835). Ele declinou do convite sem pestanejar;
sonhava mais alto no mundo da política imperial. “O padre Feijó era liberal de ideias,
mas autoritário de temperamento e fraco de saúde” (CARVALHO, J., 2007, p. 37).
Feijó, homem revestido de um espírito reformador e totalmente favorável à liberdade
de expressão religiosa, procurou sem êxito implantar no Brasil uma igreja nacional
nos moldes do anglicanismo. Estava levantando um antigo sonho de Sebastião José
de Carvalho e Melo, aquele que se tornara o carismático Marquês de Pombal, um
desgovernado e assustador animal político. Em 1759, Carvalho e Melo, então conde
de Oeiras, não só conseguiu a façanha de expulsar os jesuítas das terras e
possessões de Portugal, como ameaçou invadir militarmente o Vaticano e substituir
o italiano Clemente XIII por considerá-lo incompetente para a função papal.
Clemente XIII (1693-1769), que, em consonância com os pais, recebeu o nome de
Carlo Della Torre Rezzonico junto à pia batismal, tremeu nas bases sob as ameaças
que lhe chegavam de Portugal, uma pequena nação que geograficamente demarca
o extremo oeste das terras da Europa.
A primeira incidência político-religiosa enviada de Lisboa contra Roma havia
acontecido no raiar da Restauração de Portugal, em 1 º de dezembro de 1640.

O papa Inocêncio X, não reconheceu como rei luso D. João IV de Bragança ou aceitou
os bispos designados por ele. Anos mais tarde, vendo que Alexandre VII se mantinha
nesta política de indecisão, D. João IV decidiu deixar vacantes as dioceses, apropriou-se
das suas rendas e ameaçou formar uma Igreja nacional. (GALLEGO, 2010, p. 303).

No uso de suas influências e pelo fato de ser conhecedor dos acontecimentos


do passado, o conde de Oeiras conseguiu, em 1760, cinco anos após o grande
terremoto que destruiu a Baixa de Lisboa, eliminar a ordem dos Jesuítas. Aqueles
abalos sísmicos foram infernais cataclismas pespontados na manhã de domingo, 1º
de novembro de 1755. Oportunista e com todos os poderes ao alcance de suas
mãos, o conde de Oeiras conseguiu impor sua arrogante autoridade, o que culminou
na expulsão do núncio romano de Portugal, deixando caminho livre para outras
alternativas religiosas inclusive para uma igreja lusitana.

Os bispos portugueses deixaram de manter qualquer relação com a Santa Sé e Pombal


chegou a alimentar o projeto de uma igreja portuguesa independente de Roma. A
Tentativa Teológica, obra do Padre António Vieira, justifica os fundamentos teóricos dessa
separação. O preço exigido pelo ministro português para o restabelecimento das relações
diplomáticas era a extinção da Companhia de Jesus pelo papa. [...] se o papa não
acedesse, seria substituído por outro papa, com fundamento de que era incompetente
para o cargo. Chegou-se mesmo a propor uma acção militar sobre os Estados pontifícios.
[...] De facto, em 1773 foi publicada a bula de extinção. (SARAIVA, 2001, p. 262, 263,
264).68

Depois de 76 anos das ameaças do conde de Oeiras, láurea inicial que gerou
um animal administrativo, a questão abanada pela Constituição de 1824 é
ressuscitada por Diogo Antonio Feijó, um inconformado e influente sacerdote
brasileiro que almejava mudar o quadro da história celibatária imposta e assegurada
pela Igreja de Roma. O regente Feijó, como já mencionado, era muito mais político
que sacerdote e, mesmo sendo um padre católico ordenado, não tinha nenhum
apreço pelo papa Gregório XVI, um rígido ultramontanista italiano que passou 15
anos de plantão no Vaticano (1831-1846), gastando tempo na busca de
desmoralizar as Bíblias produzidas pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira,
organização protestante fundada em Londres no ano de 1802. Naquela época e por
muitos outros anos a seguir, Londres, como já mencionado, era a cidade onde
residia a maior comunidade protestante de todo o planeta. Ao nascer na comuna de
Belluno, região de Vêneto,69 o papa Gregório XVI recebeu o nome de Bartolomeu
Alberto Cappellari (1765-1846). “Provavelmente, poderia afirmar-se que foi um bom
homem, um medíocre papa e um péssimo chefe de Estado” (GALLEGO, 2010, p.
370).
Enquanto Ministro na pasta da Justiça, empossado aos 4 de julho de 1831,
Feijó manteve-se na função até renunciar no dia 2 de agosto de 1832.
Posteriormente, aos 50 anos, é eleito Regente do Brasil em 7 de abril de 1835,
função à qual, também sob pressão política, preferiu renunciar aos 19 de setembro
de 1837. Antes dessas intempéries pessoais e administrativos, o padre Antonio
Diogo Feijó havia costurado um jogo político com os segmentos mais liberais do
império, cujo programa era

evitar a interferência de Roma no que considerava serem questões brasileiras, diminuir


o poder e os privilégios do clero e da Igreja Católica dentro da nação, ao passo que, por
outro lado, solicitava que os Irmãos Morávios - protestantes - mandassem missionários
para o Brasil. (VIEIRA, Davi, 1980, p. 31, 32).

O pedido de Feijó mereceu a devida resposta dos Irmãos Morávios. “Um


comunicado foi recebido do Governo Imperial Brasileiro endereçado à Igreja
Morávia, em 1836, solicitando que enviassem missionários para o Brasil, mas ao
que estavam com grande pesar, impossibilitados de atender” (VIEIRA, Davi, 1980,
p. 31, 32, 239). Todavia, os seus sonhos foram logo afogados pelos mares da
religião romana.
68
Algo inédito, o papa foi colocado na berlinda sob ameaças e pressão do ministro de Portugal. Sua
única alternativa era obedecer às exigências impostas pelo furioso conde de Oeiras; caso contrário, sua
cabeça estava prestes a rolar! Para manter-se no poder em Roma, preferiu ceder às exigências
provindas de Lisboa a perder a posição papal. “Por fim, Clemente XIV capitulou, em 8 de junho de
1773, com o breve Dominus ac Redemptor - fui forçado a fazer, teria dito o papa” (LIMA, 2004, p. 94).
69
Vêneto, mesma região onde 147 anos depois nasceu Albino Luciani (1912-1978), o meteórico papa
João Paulo I, o sumo pontífice muito alegre e de pouca sorte. Sua inesperada morte ocorreu em 28
de setembro de 1978, 32 dias após ser eleito em 26 de agosto do mesmo ano. Morando no Plano
Piloto de Brasília, recordo-me vívidamente desse acontecimento que marcou a História.
O falecido professor Maurílio César de Lima (1919-2007), monsenhor católico,
historiador, capelão e catedrático, nascido no Rio de Janeiro, confirma os fatos da
história que abrange o segundo Império brasileiro, destacando a mudancista figura
do padre Diogo Antônio Feijó, o qual, durante toda a sua carreira na política do
profano e do sagrado, foi indubitavelmente um autêntico inimigo da cruel e nefasta
exigência celibatária. “Ele opinava que o celibato era injusto, um despotismo
horroroso” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 179). César de Lima, o distante
colega de batina de Feijó, procura uma maneira mais romantizada para expor a
causa imposta pela Santa Sé diante das truculências verbais proferidas pelo padre
Feijó.

A pertinaz irredutibilidade de Feijó levou-o ao propósito de intimidar a Santa Sé com um


ultimatum e de proclamar um cisma na Igreja brasileira, caso o papa não cedesse às
exigências. O cisma, felizmente, não se deu, mas suspenderam-se as negociações e as
relações diplomáticas com a Santa Sé, reatadas somente mais tarde. (LIMA, M. 2004, p.
119).

Os metodistas

Foi nesse clima sociorreligioso e político em que vivia o Brasil pelo ano de
1835 que chegaram ao porto do Rio de Janeiro os primeiros missionários enviados
pela Igreja Metodista Episcopal dos Estados Unidos.

A chegada da igreja metodista ao Brasil é fartamente documentada. Isnard Rocha relata


que, em 1832, a Conferência Geral - da Igreja Metodista dos Estados Unidos -
considerou a possibilidade de abrir trabalho missionário na América do Sul. Escolheu-se
então o rev. Fountain E. Pitts para fazer a viagem de investigação na América do Sul,
visitando o Rio de Janeiro e Buenos Aires. Pitts desembarcou no Rio de Janeiro em
1835, prosseguindo depois viagem para o Uruguai e Argentina. No ano seguinte, Pitts
retornou aos Estados Unidos levando consigo os relatórios da viagem. Em 1836, o rev.
R. Justin Spaulding manifesta seu desejo de vir ao Brasil em trabalho missionário.
Nomeado por sua igreja nesse mesmo ano, Spaulding chegou ao Rio de Janeiro,
organizou uma congregação para estrangeiros de língua inglesa e, logo depois, iniciou
um trabalho com brasileiros. No ano seguinte, chegavam para auxiliar Spaulding o rev.
Daniel Parish Kidder, que se dedicaria ao trabalho de colportagem de Bíblias, e o rev. R.
M. Murdy e esposa. (CALDAS, 2001, p. 31).

Cerca de cinco meses após o massacre que desmantelou a “Revolta dos


Malês” na cidade de Salvador, província da Bahia, na noite de 24 para 25 de janeiro
de 1835, o Brasil recebe a visita do jovem Fountain Elliot Pitts (1808-1874), um
emissário de 27 anos enviado pela Conferência Geral da Igreja Metodista Episcopal.

Pitts partiu de Baltimore a bordo do navio Nelson Clark em 28 de junho de 1835,


desembarcando no Rio no dia 19 de agosto seguinte. Ficou poucas semanas, mas, além
de contatar ingleses e estadunidenses que lá residiam. [...] recomendou à sua
denominação religiosa investir no Brasil. A sugestão foi aceita, e Justin Spaulding, da
conferência anual da Nova Inglaterra, ofereceu-se para tanto. Ele partiu de Nova York
em 23 de março de 1836, chegando ao Rio no dia 29 de abril seguinte. Quase em
seguida organizou uma congregação com cerca de 40 estrangeiros e, ainda no mês de
junho daquele ano, iniciou igualmente uma escola dominical com 30 alunos. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 205).
Enquanto D. Pedro II, aos nove anos, era o imperador sob regência do
imenso e mal dividido Brasil, onde a explorada mão de obra escrava gerava uma
descabida e horrorosa vergonha, sua irmã primogênita, D. Maria II (1819-1853),
com 16 anos, era a rainha de Portugal e suas várias colônias na África e na Ásia. 70
Foi essa sofrida carioca, rainha portuguesa revestida do poder do padroado, quem
autorizou a publicação da primeira Bíblia em português, com o Imprimatur de
aprovação da Igreja Católica Apostólica Romana, em 1842. Uma monumental obra
traduzida por Antônio Pereira de Figueiredo (1715-1797), conhecido sacerdote
católico ligado à ordem do Oratório, o qual, quando da autorização, já estava morto
há 45 anos. Durante longos anos, Figueiredo foi um dos assessores diretos do já
mencionado conde de Oeiras, o todo-poderoso ministro de D. José I.
O padre Antônio Pereira de Figueiredo nasceu na histórica, turística e bem-
cuidada cidade de Tomar, onde se encontrava o principal centro dos Templários em
Portugal, história que remonta ao tempo D. Dinis (1261-1325), o Lavrador, sexto rei
de Portugal entre os anos de 1279 até sua morte em 7 de janeiro de 1325. Corre a
lenda que D. Dinis tenha sido o primeiro rei de Portugal que sabia ler e escrever.
Era comprovadamente amante das letras e, no mesmo som, de um infinito número
de mulheres. Coube ao rei Lavrador fundar, em 1290, a Universidade de Coimbra,
uma das mais antigas do mundo ocidental e a primeira de língua portuguesa, sendo
ainda hoje uma expressiva referência acadêmica. Em 1319, os Templários, sob o
pedido de D. Dinis e endosso papal, foram rebatizados com o nome de Ordem de
Cristo. Também em Tomar, ainda existe uma pequena sinagoga judaica em
resposta à judiaria que ali se instalou pelos meados do século XIV. Por três vezes
visitei esse local recheado de cultura e de uma vastidão dos fatos que elevam a
história.
Para os seus dias, o padre Figueiredo era um polímata da intelectualidade,
dono de uma excelente bagagem cultural. Além do saber das sagradas letras, foi
também um conceituado professor, escritor e exímio latinista. Mesmo com todos
esses predicados a seu favor, além do apoio financeiro do erário real, gastou 18
anos até concluir definitivamente sua magnífica tradução da Bíblia para o vernáculo
de Camões, deixando um legado de incalculável valor para a língua portuguesa.

A primeira edição do Novo Testamento saiu em 1778, em seis volumes. Quanto ao Antigo
Testamento, os 17 volumes de sua primeira edição foram publicados de 1783 a 1790. Em
1819, veio à luz a Bíblia completa de Figueiredo, em sete volumes, e, em 1821, ela foi
publicada em um único volume. Essa tradução foi aprovada e usada pela Igreja Romana e
também pela rainha D. Maria II, em 1842. Figueiredo incluiu em sua versão os chamados
livros apócrifos que o Concílio de Trento havia acrescentado aos livros canônicos em 8 de
abril de 1546. Esse fato contribuiu para que a sua Bíblia seja ainda hoje muito apreciada
entre os católicos romanos de fala portuguesa. (COMFORT, 1999, p. 401, 402).

Regressemos à história que envolveu acontecimentos no Brasil no período


oitocentista. Além da morte do papa Gregório XVI, dia 1º de junho de 1846, no
mesmo ano, houve a eleição de Pio IX (1846-1878). No mês seguinte, dia 29 de
70
D. Maria II, proprietária de um quilométrico nome, foi a única rainha portuguesa a nascer no Brasil.
Ao inverso da história, sua bisavó, a louca D. Maria I, mãe de D. João VI, foi a primeira e única rainha
portuguesa a morrer no Brasil!
julho, nasceu, no Rio de Janeiro, a infanta e posteriormente princesa Isabel Cristina
(1846-1921), conhecida com o título de a Redentora após assinar a Lei Áurea em 13
de maio de 1888. Também em 1846, no dia 13 de abril, foi inaugurado em Lisboa o
Teatro Nacional D. Maria II. Foi nesse mesmo ano de 1846 que o jornalista, poeta e
político Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810-1877), com somente 36
anos, publicou o primeiro volume da História de Portugal, trabalho de pesquisa
considerado de alto nível acadêmico e científico. Em 1846, no reinado de D. Maria
II, houve a mais violenta perseguição contra os protestantes na ilha do arquipélago
da Madeira. “O povo sempre tem líderes que planejam e dirigem as sedições”
(VIEIRA, David, 1980, p. 364). Esse foi o período em que mais de dois mil
portugueses convertidos ou simpatizantes do protestantismo fugiram para não
serem trucidados por uma malta furiosa contra os subersivos e proselitistas
protestantes. Na busca de salvar sua própria pele, houve como nunca um grande
êxodo de madeirenses, cuja maioria tomou o caminho para os Estados Unidos,
fixando moradias no estado de Illinois. Referindo-se às atividades na hoje Ilha
Autônoma da Madeira, assim escreveu Gerald Carl Ericson, missionário americano
e um dos fundadores do Instituto Bíblico Português, localizado em Santo Antão do
Tojal, parte da Grande Lisboa, a quem tive a grata oportunidade de conhecer em
Portugal em de maio de 1991:

O primeiro esforço evangelístico concreto e duradouro foi iniciado em 1838, quando Dr.
Robert Kalley (1809-1888), um cirurgião de Glasgow, chegou com sua esposa
Margarete à ilha da Madeira. Permaneceram na Madeira oito anos, período durante o
qual centenas de pessoas vieram a exercer a fé pessoal em Cristo. Em 1846, estalou
uma violenta perseguição religiosa. Os bens pessoais do casal Kalley, o pequeno
hospital e as escolas que eles tinham fundado foram alvo de pilhagem e destruição. Por
volta de 2.000 fiéis provenientes deste trabalho presbiteriano viram-se forçados a fugir
para outras partes do mundo. (ERICSON, 1984, p. 22).

A morte da primeira missionária

Daniel Parish Kidder (1815-1891), o jovem e dinâmico missionário metodista,


não plantou nenhuma igreja no Brasil, mas foi um bem-sucedido colportor,
distribuidor de Bíblias e pesquisador. Suas fartas anotações ainda hoje são fontes
referenciais para historiadores, sociólogos e outros amantes de conhecimentos do
Brasil. Kidder chegou ao Rio de Janeiro em novembro de 1837 para ocupar a
função de representante da American Bible Society - Sociedade Bíblica Americana
-, entidade fundada em New York em 1816. “A SBA foi organizada em Nova Iorque,
no dia 8 de maio de 1816, como resultado da fusão de inúmeras pequenas
Sociedades Bíblicas locais já existentes no país” (GIRALDI, 2013, p. 111). Essa
Sociedade estava imprimindo e distribuindo Bíblias traduzidas pelo também
português João Ferreira de Almeida (1628-1691), nascido na pequena aldeia de
Torres de Tavares,71 de onde se avista o pitoresco Parque Natural da Serra da
Estrela, tendo morrido aos 63 anos na ilha de Java em 1691. Almeida gastou mais
71
Enquanto residente em Portugal, estive por duas vezes em Torres de Tavares e dei uma esticada
até ao topo da Serra da Estrela, onde vi neve pela primeira vez.
de meio século de sua vida traduzindo e revisando a Bíblia Sagrada para a língua
de Camões. “O primeiro português que se sabe com segurança ter abraçado
publicamente o Protestantismo foi João Ferreira de Almeida” (CARDOSO, 1998, p.
25). Quando Almeida nasceu em Torres de Tavares, pequena aldeia localizada no
Concelho de Mangualde, no ano de 1628, Portugal e todas as suas colônias
estavam há 48 anos submissos ao bel-prazer da Coroa filipina espanhola. Somente
relembrando: essa situação perdurou 60 anos, de 1580 até primeiro de dezembro
de 1640.
Daniel e Cynthia Harriet Kidder (1818-1840) eram jovens e recém-casados,
ambos portadores de sonhos missionários para com o Brasil. Quando chegaram,
em 1837, Daniel estava com 22 anos e Cynthia com somente 19.

O Rev. Kidder nasceu em 1815 na cidade de Darien, no Estado de Connecticut, nos


Estados Unidos. Passou grande parte de sua juventude na casa dos tios, no Estado de
Vermont. Estudou em diversos colégios e formou-se na Wesleyan University, em 1836.
(GIRALDI, 2013, p. 133).

A conceituada Wesleyan University foi fundada em 1831 na cidade de


Middletown, estado de Connecticut, onde ainda hoje mantém o seu vasto e
concorrido Campus.72 Em busca de uma melhor sociabilidade cultural em um país
estranho aos seus costumes, o casal Kidder fixou residência no “Engenho Velho,
local em que habitava boa parte dos protestantes de língua inglesa da capital
federal. Enquanto distribuía Bíblias em português, na tradução feita por Antônio
Pereira de Figueiredo no século XVIII” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 205,
206).
O Rio de Janeiro, que ostentava a sede da corte imperial, cidade com
intensas atividades portuárias, ao mesmo tempo estava cercada de descuidados
mangues, esgotos a céu aberto, montanhas de lixos onde os ratos faziam as festas
de seus rápidos acasalamentos, o que acelerava abundantemente o aumento da
proliferação dos roedores e condutores de desastrosas e mortíferas pestes. A
capital imperial não possuía nenhuma infraestrutura higiênica, estava desprovida
dos mínimos cuidados necessários para manter a saúde pública de sua crescente e
desestruturada população. O descaso sanitário facilitava em muito a proliferação de
doenças tropicais, especialmente de varíola, tifóide e febre amarela, verdadeiras
pandemias que assolavam e matavam dezenas de pessoas a cada mês. O mapa
sanitário não indicava lugares e nem posição. Toda a cidade do Rio de Janeiro e
arredores estavam contaminados, fazendo suas vítimas mortais a cada dia. Na
época, o Rio era era a cidade mais populosa da América do Sul, porém estava no
mais baixo dos segmentos sociais, de modo a ser “na opinião do comerciante inglês
John Luccock, o mais imundo dos ajuntamentos de seres humanos debaixo do céu”
(VIEIRA, P., 2016, p. 291). Que horrível e vergonhosa observação quando está em
causa a principal cidade do país, sede e capital imperial!

72
Fazendo pesquisas, na quinta-feira, dia 2 de julho de 2020, estive na Wesleyan University
juntamente com os pastores Varley Silva, Zaqueu Silva e Tiago Alberto. Os antigos prédios, incluíndo
a capela, estão totalmente conservados e em pleno uso.
Cynthia Harriet Kidder foi vitimada pelo mosquito transmissor da febre
amarela e, sem os recursos adequados para combater o assassino vírus, não
resistiu, vindo a falecer no Rio de Janeiro, dia 16 de abril de 1840. Estava com
somente 22 anos de idade e três a residir no Brasil, sua segunda e última pátria
terrestre. A jovem Cynthia foi a primeira missionária protestante/evangélica
procedente dos Estados Unidos a morrer no Brasil. Os seus restos mortais se
encontram no cemitério de Gamboa no Rio de Janeiro. Pouco antes de sua morte,
seu esposo regressava de mais uma de suas longas viagens distribuindo Bíblias e,
sendo muito bem articulado, fazia contatos com diferentes autoridades políticas e
não poucos sacerdotes católicos.

Quando o missionário voltava de uma longa viagem, feliz pela sementeira lançada,
ansioso pela oportunidade de pregar em português e pelo reencontro com esposa e
filhos, encontrou sua mulher passando mal e piorando dia a dia com a cruel moléstia,
como ele a chamou. [...] Deixou dois filhos pequenos e foi considerada a primeira mártir
do metodismo brasileiro e a primeira missionária na América do Sul a falecer no campo
de trabalho. Kidder retornou à sua terra natal, para cuidar melhor de seus filhos, pois um
deles era ainda de colo e doente. [...] O rev. William Red contou que duas esposas de
missionários presbiterianos enlouqueceram devido à tensão sofrida quando o marido
viajava. (ALMEIDA, R., 2014, p. 335, 336).

No parágrafo seguinte, transcrevo um ardoroso relato produzido na alma de


Daniel Kidder. Um jovem alquebrado pelo fatal desenlace, porém, resignado em
manter viva a sua inegociável fé na pessoa de Jesus Cristo, o salvador. Todo o
missionário leva para sempre uma marca, seja no corpo ou na alma, com Kidder
não poderia ser diferente.

Um trágico acontecimento interrompeu bruscamente o curso das nossas atividades no


Brasil. Vítima de uma cruel enfermidade, em poucos dias nossa amada esposa nos
deixou. Foi bruscamente afastada da missão para a qual havia se preparado com tanta
esperança e dedicação. A obra que realizava com tanto amor e devoção foi
repentinamente interrompida. Ela se foi da mesma forma como sempre viveu, humilde e
fiel ao Senhor. Após seu último alento, adormeceu mansamente nos braços do seu
Salvador. Seu corpo não foi descansar nas profundezas do mar azul, como ela
poeticamente aspirava. Repousou em uma formosa encosta de fronte à bela baía da
Guanabara, no cemitério protestante da Gamboa, na cidade do Rio de Janeiro.
(GIRALDI, 2013, p. 137).

No ano seguinte, o jovem viúvo Daniel Kidder, acompanhado de seus dois


pequenos filhos cariocas, retorna definitivamente para os Estados Unidos. Kidder
era jovial, academicamente muito bem preparado pela Wesleyan University,
proprietário de uma ímpar humildade, comunicativo e dinâmico. Em seu exíguo
tempo formou e deixou no Brasil um forte elo de amigos, interlocutores e
admiradores. Obteve respeito e profunda admiração por ninguém menos que o
destacado padre Diogo Antonio Feijó, com quem se encontrou em várias
audiências. Aos 25 anos, com a alma em pedaços pela irreparável perda, Daniel
Kidder regressou para os Estados Unidos, onde desempenhou por longos anos um
frutífero ministério, servindo como pastor metodista em New Jersey, professor em
seminários e editor de publicações. Dois anos depois, “em 1842, ele casou-se
novamente, com Harriet Smith” (GIRALDI, 2013, p. 137). Após 51 anos do seu
regresso do Brasil, faleceu aos 76 anos em Evanston, cidade banhada pelo Lago
Michigan, no estado de Illinois, o mesmo local onde os madeirenses encontraram
refúgio após as perseguições na Ilha da Madeira no ano de 1846.
Por razões de uma alarmante crise que afetou frontalmente a economia nos
Estados Unidos, produzindo efeitos colaterais dentro da denominação, todos os
missionários metodistas foram obrigados a deixar o Brasil em 1841. O trabalho
metodista somente retornou ao Brasil 26 anos após o efeito de um longo eclipse que
cobriu todo o espaço denominacional nos céus das Américas. “Esse vácuo se deveu
a algumas dificuldades, entre as quais a questão da escravatura, que provocou a
divisão dos metodistas em Igreja Metodista Episcopal do Norte e Igreja Metodista
Episcopal do Sul” (ALMEIDA, R., 2014, p. 452). Em 1867, a obra metodista é
reiniciada pelo missionário Junius Newman (1819-1895), pregador que chegou ao
Brasil na casa dos 48 anos. Por certo período, ele havia servido na função de oficial
capelão junto às tropas dos Confederados no decorrer da Guerra Civil Americana.
Era proprietário de uma mentalidade totalmente sulista, na qual valia a supremacia
branca. Acompanhando um grupo de refugiados Confederados, Newman se instalou
em Saltinho, pequena localidade não muito distante de Campinas, em São Paulo.
Era um homem culto e muito bem preparado para o exercício do ministério e do
magistério. Soube com certa maestria adentrar-se nos meios de influentes políticos
da região.

O Dr. Prudente José de Morais e Barros, era advogado e político em Piracicaba. Há


registro de que, entre 1875 e o início de 1876, o reverendo Newman recebeu uma carta
do proeminente advogado Dr. Prudente de Morais Barros, de Piracicaba, convidando-o a
estabelecer ali uma escola. Prometia usar a sua influência pessoal no sentido de vê-la
bem-sucedida. (OLIVEIRA, 2005, p. 75).

Os Quakers

Com a retirada dos missionários metodistas em 1841, pairou por 11 anos um


novo silêncio protestante no território brasileiro até uma rápida passagem dos
quakers - os tremedores - uma organização dissidente do anglicanismo britânico no
século XVII. “Quando chegou ao Rio em 1852 a delegação Sociedade dos Amigos -
Quakers - foi recebida por uma comissão de Minas libertos” (FREYRE, 2001, p.
447). Os mencionados libertos foi um grupo de ex-escravos sob alforria, livres, que
estavam regressando para Benin, na África ocidental. Embora os tremedores -
quakers em inglês - não permanecessem no Brasil, eram rigorosos no tocante aos
direitos humanos. A Sociedade dos Amigos foi perseguida, tendo inclusive alguns
de seus líderes pendurados em árvores - enforcados - na cidade de Boston. “Os
direitos e obrigações são para todos”, já diziam os seus ilustres fundadores.

Os quakers não deviam se engajar na guerra; entre eles a escravidão foi abolida. John
Woolman, quacre norte-americano, foi um dos primeiros a pregar e escrever em prol da
abolição da escravidão. Os juramentos nos tribunais foram proibidos e as honrarias
humanas não deviam ser aceitas. Isto trouxe aos quacres muitas dificuldades na
Inglaterra elitista, em que a classe alta ambicionava títulos para que os pobres lhes
tirassem o chapéu. Em 1661, muitos quacres foram presos, mas o movimento cresceu a
despeito ou por causa da perseguição. Em 1660, havia cerca de 50 mil quacres na
Inglaterra. (CAIRNS, 1995, p. 326, 327).

Os congregacionais

Pode falar-se numa gigantesca epopeia coletiva, sem receio de exagerar o uso das
palavras. A História do mundo não pode escrever-se sem numerosas referências ao que
nele foi praticado por este pequeno povo de um pobre país nos confins da Europa.
(SARAIVA, 2001, p. 138).

Euforia à parte, o professor José Hermano Saraiva (1919-2012) tinha toda a


razão navegando ao seu favor. Portugal já teve o mundo em suas mãos e não
poucos dos factos que envolvem a história por lá passaram! Sabiam como ninguém
singrar os mares e chegar nos Novus Mundus por eles descobertos.
Outro proeminente português, o notável escritor e sociólogo José Eduardo
Franco (1969-), declara o caminhar e os fracassos desse saudoso romancismo.

Inundaram a Europa com especiarias e o Império Português desmoronou-se. E o que


como um meteoro havia subido, como um meteoro caiu também. Por um preço terrível,
Portugal abriu as portas a um mundo vasto, que não podia dominar, nem controlar; com
a habitual malícia da história, foi ultrapassado e deixaram-no moribundo, como um
reformado fora das paradas do mundo, possuindo o suficiente para sobreviver, mas
demasiadamente pouco para atingir a glória. E, ainda assim, o seu nome está
indelevelmente escrito na história mundial: um feito extraordinário para um país tão
pequeno e tão pobre. (FRANCO, 2006, v. 1, p. 90).

Sem dúvida, herdamos a língua, a cultura religiosa, além de outros costumes


procedentes da Terra-Mãe. Também o grande impacto que vem resultando na
evangelização do Brasil tem as suas raízes em solo português. Em 1838, um
médico recém-casado, com 29 anos, e sua esposa saíram de Glasgow, Escócia,
com destino ao Arquipélago Autônomo da Madeira. Chegaram à cidade do Funchal
na histórica data de 12 de outubro de 1838. O doutor Robert Reid Kalley buscava
um clima mais ameno para facilitar a saúde de sua esposa Margareth Crawford
Kalley. Ambos eram jovens e ativos membros da Igreja Reformada Escocesa, uma
organização presbiteriana calvinista.
Diante de um grande desafio que surgiu na montanhosa ilha da Madeira,
aquela que romanticamente recebeu o título de a Pérola do Atlântico, Kalley foi
ordenado ministro protestante em 1839 para ministrar nessa hoje turística ilha.
Sendo piedoso médico e apaixonado pastor, construiu, com muitos esforços, um
pequeno hospital, escolas, além de uma capela onde ministrava a Palavra de Deus.
Como era de se esperar, recebeu forte oposição do pároco local que a cada dia
perdia parte de sua freguesia devido às mensagens daquele jovem médico
protestante.

Em 8 de maio de 1845, o Dr. Kalley organizou a primeira congregação protestante


portuguesa em solo nacional, a Igreja Presbiteriana Portuguesa, do Funchal, que não
teve, como é óbvio, existência legal. E é esta data que os presbiterianos portugueses
ainda hoje celebram como a do nascimento do Protestantismo em Portugal.
(CARDOSO, 1998, p. 32).

Tumulto no Arquipélago Autônomo da Madeira

Como já citado em espaços anteriores, instigado pelo pároco e endossado por


alguns malfeitores madeirenses, houve um motim planejado e finalmente
consumado no domingo, 9 de agosto de 1846. Os protestantes “foram perseguidos
pelo grupo liderado pelo cônego Carlos Telles de Menezes” (PAGANELLI, 2020, p.
63). Os edifícios foram pilhados e incendiados; os evangélicos - leia-se protestantes
-, violentamente perseguidos por uma turba descontrolada. Segundos os dados,
mais de dois mil madeirenses convertidos e admiradores do protestantismo tiveram
que fugir da ilha portuguesa sob ameaças de uma malta tresloucada. O doutor
Robert Kalley e sua esposa encontraram refúgio no interior de um navio inglês que
estava se preparando para zarpar do porto de Funchal. Sob fortes perseguições e
injúrias, o casal Kalley regressou para a Escócia, levando na alma o amor pelos
portugueses e na mente a romântica língua de Camões. Cito o parecer do professor
Moisés Espírito Santo (1934-), outro sociólogo português que demonstra a
hegemonia da religião católica na busca do controle do sagrado:

Esta geografia religiosa coincide igualmente com a dinâmica dos conflitos religiosos.
Aqueles dois tipos de sociedades acenderam ambos fogueiras em tempo de guerras
religiosas mas com fins diferentes: as sociedades ibéricas procederam ao genocídio
judaico e animaram uma pavorosa Inquisição que só foi extinta em 1820; as sociedades
que são hoje protestantes queimaram, nas suas fogueiras permanentes, durante cem
anos, as bruxas das aldeias e as crianças contaminadas pela feitiçaria das avós.
(ESPÍRITO SANTO, 1990, p. 222, 223).

A leitura talvez não seja tão correta, entretanto os fatos aludidos são reais.
Até mesmo os parentes mais próximos não aceitavam a mudança de religião de
seus familiares. Na busca de bloquear a expansão da nova religião vinda da Grã-
Bretanha, empenharam nos motins contra os protestantes.
Robert e Margareth Kalley não permaneceram por muito tempo na Escócia.
Após a estadia de algumas poucas semanas com familiares e amigos, seguiram
para a pequena ilha de Malta, no mar Mediterrâneo e, posteriormente, na busca de
clima mais agradável e servindo na função de missionários tendeiros, o casal seguiu
para o Líbano. Não esqueçamos que naquela época todo o Oriente Médio era uma
possessão britânica, por isso o casal Kalley legalmente estava em casa! Robert
Kalley, além de exercer o trabalho de médico, desenvolvia voluntariamente um
projeto missionário, razão por que o tratei como tendeiro, termo que remonta ao
apóstolo Paulo em Atos 18:3. Nesse ponto da jornada, Margareth contraiu
tuberculose. Seu corpo já doentio ficou extremamente debilitado e, não resistindo a
elevada temperatura febril e baixa imunidade, ela veio a falecer em Beirute, capital
do Líbano em de janeiro de 1851. A histórica e velha Beirute, que significa fonte das
águas, é uma das cidades mais antigas do mundo. Há registros de ser habitada
desde o século XV antes de Cristo.
Segundas núpcias

Enquanto o viúvo Robert Kalley prestava serviços médicos no hospital militar


britânico, em Beirute, ficou conhecendo a jovem Sarah Poulton Wilson (1825-1907),
filha de William Wilson (1801-1866), um bem-sucedido empresário inglês na área
dos têxteis. Sarah Poulton Morley (1802-1825), mãe de Sarah Wilson, que faleceu
em seguida ao nascimento da filha, dia 25 de maio de 1825, era descendente dos
huguenotes calvinistas, cristãos franceses reformados dos séculos XVI e XVII, os
mesmos que chegaram ao Brasil do rei D. Sebastião e foram trucidados. Essa
inglesa aristocrática foi a fonte que deu continuidade ao jorrar da mensagem
protestante que seus ascendentes huguenotes franceses haviam iniciado na ilha de
Serigipe, Guanabara, 300 anos passados. Por outro lado, “Sarah era sobrinha de
um líder congregacionalista na Inglaterra e sua família também tinha ligações com
os Irmãos de Plymouth por intermédio de outro tio de Sarah, John Morley”
(PAGANELLI, 2020, p. 63). Irmãos de Plymouth, no Brasil esse grupo optou pelo
nome de Casa de Oração.
Sarah Poulton Kalley, 16 anos mais jovem que Robert, era uma talentosa
professora de música, poliglota, acrescentando ao seu currículo a dignidade de uma
protestante sincera e altamente piedosa.

Uma das características mais marcantes de Sarah era a profunda espiritualidade. Desde
o início de sua vida, dedicou-se ao serviço cristão; para ela, o viver era Cristo. Um amigo
declarou que, quanto mais ela crescia com as experiências da vida, mais a santidade
brilhava em seu rosto. (ALMEIDA, R., 2014, p. 215).

Além da reciprocidade do amor, havia algo que também os unia: ambos


possuíam o coraçao em missões fora das fronteiras da Europa continental. O enlace
matrimonial foi realizado na Igreja Congregacional de Albany Rody, em Torquay,
Inglaterra, aos 14 de dezembro de 1852. Ao principiar o período da primavera de
1853, o casal seguiu até aos Estados Unidos com a finalidade de visitar algumas
das famílias madeirenses que para lá fugiram por causa das perseguições que se
concretizaram no mês de agosto do histórico ano de 1846. Por quase um ano, o
casal permaneceu na América do Norte pastoreando uma igreja presbiteriana de
língua portuguesa na cidade de Jacksonville, estado de Illinois, localizado na Região
Centro-Oeste do país.

Visão missionária

Enquanto pastoreava o grupo madeirense nos Estados Unidos, Robert Kalley


teve acesso às pesquisas de um ex-missionário no Brasil, cuja obra recebeu, como
era natural naquela época, o extenso título de Sketches of Residence and Travel in
Brazil (Ensaios Sobre Residência e Viagens no Brasil). Esse documento foi
publicado originalmente em dois volumes no ano de 1845 pelo autor e protagonista
da história, o metodista Daniel Parish Kidder, que deixou parte de si no cemitério da
Gamboa no Rio de Janeiro.
É possível que tenha havido algum encontro entre Kalley e Kidder. Em 1853,
Daniel Kidder estava com 38 anos e possuía raízes no estado de Illinois, onde
faleceu em 1891 aos 76 anos. O casal Kalley sentiu uma grande comoção diante
dos desafios e das oportunidades com relação ao Brasil. A visão missionária mais
parecia uma revelação de Deus para aquele abnegado casal. Robert e Sarah Kalley
consultaram suas ovelhas madeirenses, que não mediram esforços no sentido de
apoiá-los nesse desafiante projeto. O Brasil daquela época estava sob o comando
de D. Pedro II, um austero, jovem e culto imperador que preferia ser Presidente. 73
Havia cerca de quatro milhões de habitantes no Brasil, sendo a maioria composta
de negros arrancados de suas tribos africanas e vendidos como escravos, além de
um grande contingente indígena, formando grupos de não alcançados com a
mensagem cristã. O desafio falou mais alto!

Chegada ao Brasil

A decisão missionária focalizada no Brasil foi tomada nos Estados Unidos em


1854. No final daquele ano, regressaram à Inglaterra para uma pequena temporada
entre familiares antes de viajarem para o Brasil.

Após um mês de viagem no paquete a vapor Great Western, da Mala Real, partidos de
Southampton, chegaram ao Rio de Janeiro em 10 de maio de 1855. Hospedaram-se no
Hotel Pharoux; depois, no Hotel dos Estrangeiros à Praça José de Alencar, no Catete,
entre as Ruas Barão do Flamengo e senador Vergueiro. (BRAGA, 1961, p. 108).

Após peregrinarem por dois hotéis no Rio de Janeiro, dia 27 daquele mês, o
casal decidiu viver em Petrópolis.74
73
Poucos meses antes do desmoronamento da monarquia brasileira, Benjamin Mossé, intelectual e
grande rabino de Avignon, França, escreveu sobre as intrínsecas qualidades inerentes a D. Pedro II.
“Esse imperador incomparável que é um filantropo, um sábio, um amigo da Justiça, da Verdade e da
Liberdade, esse soberano filósofo que se utiliza do poder apenas para a felicidade e para a glória do
povo brasileiro” (PAGANELLI, 2020, p. 76).
74
Foi em Southampton (graças a sua estratégica localização geográfica que a faz ter, ainda hoje,
certamente o mais importante e movimentado porto da Inglaterra) que, 57 anos depois, 10 de abril de
1912, o lendário inafundável navio Titanic, pertencente à empresa inglesa White Star Line, zarpou
com destino a cidade de New York com 2.223 pessoas a bordo. Pesando 46 mil toneladas, o
gigantesco Titanic foi o desastrado e insubmergível navio que naufragou em sua viagem inaugural ao
chocar com a ponta de um iceberg. O majestoso relógio do principal salão marcava 2:20hs da
madrugada da segunda-feira, dia 15 de abril de 1912. A primeira edição do The Boston Daily Globe
de terça-feira, 16 de abril, destacou com atraentes e grandes letras no alto da primeira página:
”Titanic Sinks, 1500 Die”. Naquela madrugada houve um funesto resultado: mais de 1.517 pessoas
de diferentes segmentos sociais morreram e tantas outras desapareceram nas gélidas águas do
Atlântico Norte. O Titanic foi a pique sensivelmente a 650 quilômetros da Costa do Canadá.
Enquanto o gigantesco navio era literalmente engolido pelas furiosas águas, o líder da orquestra
busca amenizar a iminente dor da morte ao tocar a tradicional melodia Nearer, My God, to Thee
(Mais Perto, Meu Deus, de Ti), um épico poema da autoria de Sarah Flower Adams (1805-1848),
uma conhecida poetisa inglesa. A harmoniosa melodia desse tradicional hino foi composta pelo
doutor Lowell Mason (1792-1872), um respeitado músico estadunindense nascido em Medfield,
Massachusetts. O professor Lowell Mason tem o seu nome entre os fundadores da
internacionalmente conhecida Berklee College of Music, o mais sagrado templo da arte musical
Na cidade do Rio de Janeiro, estava instalada a Corte do Império e as
principais representações internacionais. Nesse período, cerca de 300 mil pessoas
se acotovelavam nas ruas, praças, avenidas e nos becos imundos, sempre
abarrotados de escravos correndo, cantando ou publicamente sofrendo maus-tratos
por uma minoria de alguns arrogantes e preponderantes brancos que se
imaginavam os donos do poder e da vida de seus subalternos. Diante de todos os
olhares, ali estava escancarado o auge da suposta supremacia branca em um
império escravocrata. Finalmente, Robert e Sarah Kalley se encontravam na capital
imperial do gigantesco Brasil, “um país em que a religião católica dominava
completamente” (MATOS, 2013, p. 63). Não esquecer que, ainda hoje – primavera
americana de 2021 – o Brasil tem dentro de suas fronteiras, a maior comunidade
católica do mundo. Religiosidade que se expressa em milhares de nomes sagrados
de pessoas, fazendas, veículos em gerais, logradouros, condomínios e empresas
em todos os patamares. Dos 853 municípios de Minas Gerais,104 deles iniciam com
Santa, Santana, Santo ou São. Não incluí a cidade de Sacramento e tantas outras
que iniciam com as letras M e N. <Wikipédia; Lista de Municípios de Minas Gerais.
Acesso: 7 abril 2021>. Esse espírito religioso não foge à regra em todos os demais
Estados da Federação, sendo Minas Gerais o gigante campeão dos sagrados
municípios. Isso representa a força do sagrado sincretismo na formalidade do
catolicismo pelas Terras de Santa Cruz, o primeiro nome desse imenso Brasil!
Imediatamente, o Dr. Robert Reid Kalley descobriu a enorme e visível
discrepância econômica e social existente entre as cidades do Rio de Janeiro,
Glasgow, Londres, Jacksonville, Funchal e até a milenar Beirute. “Quando outros
países menos favorecidos fazem rápidos progressos econômicos, o Gigante da
América está a padecer no meio das suas riquezas” (PRANTNER, 1998, p. 151). O
drama já estava em cena; capítulos seguintes logo viriam. O desafio foi o único
recepcionista que aguardava aquele dinâmico e destemido casal. Aos olhos
humanos, parece que um desolador espetáculo os aguardava!
Dois anos depois, dia 19 de setembro de 1857, o médico Robert Reid Kalley
completou 46 anos, faltando oito meses para Sarah Poulton Kalley completar 30
anos.75 Nas entrelinhas entre os acontecimentos dos meados oitocentistas, também

instalado na cidade de Boston.


75
Em 1857, o cearense José Martiniano de Alencar (1829-1877) publica, aos 28 anos, o romance
indianista O Guarani. Alencar, o escritor, era filho de José Martiniano Pereira de Alencar (1794-1860),
um revolucionário sacerdote católico que, por longos anos, viveu maritalmente com Ana Josefina de
Alencar (1796-1887), sua prima de primeiro grau. O magnum opus de José de Alencar imortalizou-se
na ópera escrita por Carlos Gomes (1836-1896), cuja brilhante estreia foi no Teatro Scala de Milão,
na Itália, no sábado, 19 de março de 1870. Naquela data, o maestro e compositor estava com
somente 33 anos. Na plateia daquele sagrado templo dos deuses das óperas, estava Giuseppe
Fortunino Francesco Verdi (1813-1901), o consagrado autor de Nabuco, mais conhecido por “Coro
dos escravos hebreus” e outros sucessos que o imortalizaram, extrapolando os séculos. Verdi, que
baseou sua ópera no Salmo 137, teria dito sobre o talentoso Carlos Gomes: “Este jovem começa
onde eu termino”. O Guarani foi o sucesso que eternizou as obras musicais de Antônio Carlos
Gomes, um campineiro que buscou sucesso no Rio de Janeiro. Garimpando a mercê da sorte e de
um almejado arremate à grandeza, caiu na graça de D. Pedro II e sua esposa. Após condecorações,
é enviado para aperfeiçoar seus talentos musicais na cidade de Milão, então a Meca dos mais
renomados compositores. Carlos Gomes, que estudou na Europa sustentado pelas economias
pessoais de D. Pedro II, tem o seu busto entre os grandes que se apresentaram no hall do Teatro
no ano de 1855, o segundo império brasileiro estava recordando os 300 anos da
invasão dos franceses, os 297 anos do massacre na baía da Guanabara contra os
calvinistas, ocorrido em 1558, e os 201 anos da expulsão dos protestantes
holandeses do Nordeste, a maior façanha na história de 1654, que culminou na
completa restauração da Colônia Brasileira sob a coroa de D. João IV (1604-1656),
o Duque de Bragança, que veio a ser o 21 º rei de Portugal. Todos esses
acontecimentos foram reais, entretanto não passavam de contos esquecidos e
apagados das recordações. A alvissareira e aguardada festa cívica estava
agendada para sexta-feira, 7 de setembro de 1855, data do real nascimento do
Brasil, o qual completava os 33 anos da Independência, o corajoso e histórico ato
perpetrado pelas mãos do jovem Pedro de Alcântara, embora o seu famoso grito
nunca tenha existido e muito menos o pomposo cavalo baio, uma esplêndida
montaria projetada na idílica mente do pintor paraibano Pedro Américo de
Figueiredo e Melo (1843-1905).
Como já mencionado, nos meados dos anos oitocentos, o Rio de Janeiro
tinha uma população estimada de 300 mil habitantes, já sendo uma considerável e
expansiva cidade imperial e a mais populosa da América do Sul. Na cidade, havia
cerca de 50 igrejas e tantas outras capelas católicas, locais onde os moradores
desfilavam diante da liturgia do sagrado a cada manhã de domingo. Eram os
mesmos espaços físicos que serviam de vitrines das roupas chiques importadas da
França pelos arrogantes grã-finos escravocratas. “De fato, de que serve ter uma
bela aparência e uma linda roupa, se não for para mostrá-las” (HUGO, 2007, v. 2, p.
84). Todo esse estondeante parisiense formava a elite igrejeira do Rio de Janeiro
daquela época.

A igreja, como espaço sagrado e palco da vida social, era frequentado pela
mulher com alegria. Essa união entre a devoção e o prazer era ansiosamente
aguardada, com o consentimento de pais grosseiros e maridos ciumentos, elas
podiam aparecer em público: Os festivos e grandiosos rituais católicos eram
abrilhantados pela presença das damas em seus trajes e penteados de gala:
diamantes e ouro, flores e modelos parisienses, de acordo com as posses e a
posição social. As mulheres faziam das missas seus locais de encontro e as
frequentava, assiduamente, constituindo-se na maioria de seu público.
(ALMEIDA, R., 2014, p. 212).

Como já mencionado, orientado pela leitura dos livros do missionário Kidder e


por experiência profissional, o casal Kalley fixou residência na serrana Petrópolis,
opção feita por conta do clima das montanhas, da segurança e da aproximação do
palácio de veraneio do imperador D. Pedro II, um dinâmico e culto jovem que, em
1855, estava prestes a completar 29 anos. Por herança familiar, o casal britânico
possuía boas condições financeiras, além de receber contribuições missionárias
provindas dos portugueses residentes em Jacksonville. Outra fonte econômica veio
em resultado da demanda que a English Protestant Association de Londres

Scala em Milão. Na tarde de sábado, 17 de outubro de 2020, ciceroneado por Eliana do Amaral, tive
a oportunidade de visitar os principais monumentos dedicados ao maestro Antônio Carlos Gomes na
cidade de Campinas, onde nasceu, na segunda-feira, 11 de julho de 1836.
impetrou contra Portugal pelos danos morais e pelas perdas materiais que
ocorreram na ilha da Madeira em 1846. Devidamente assessorado pelos colegas
em Londres, Robert Kalley soube muito bem onde aplicar o dinheiro e desfrutar dos
dividendos na divulgação missionária.

Através da intervenção do Governo Britânico, a Coroa Portuguesa indenizou o médico


escocês por suas perdas na ilha. A indenização foi investida por Kalley em ações a
títulos das companhias americanas de estradas de ferro, das quais provieram meios
para continuar seu trabalho em outras partes. (VIEIRA, David, 1980, p. 115). 76

Em Petrópolis, o casal Kalley alugou a mansão Gernheim, onde outrora


residira o embaixador dos Estados Unidos. “O imóvel situava-se próximo à casa do
Imperador, no bairro suíço, Schweizerthal. Os Kalley fizeram amizade com
autoridades barsileiras. Dentre essas amizades, Kalley privou a de D. Pedro II, de
quem se tornou grande amigo” (PAGANELLI, 2020, p. 64). Foi nesse Gernheim
(expressão germânica para lar muito amado), onde Sarah Kalley realizou a primeira
escola bíblica dominical permanente no Brasil, instituída a 19 de agosto de 1855. Os
primeiros alunos foram cinco filhos de cidadãos americanos que ouviram em inglês
a história do profeta Jonas.

Dois ou três domingos mais tarde já funcionava em Gernheim, além da classe das
crianças, dirigida pela Sra. Kalley, a classe dos adultos, a cargo do Dr. Kalley e
frequentada por pessoas de cor. [...] D. Sara Kalley, senhora culta, bem-sucedida e
dotada de marcados pendores poético-musicais, aos quais se acrescentavam ou-tros
dons artísticos, foi a fiel colaboradora de seu esposo, dando-lhe mão forte no trabalho,
traduzindo novos hinos e escrevendo cânticos originais. Esta produção é que, pouco a
pouco enriquecida, iria permitir-lhes em breve anos publicar o primeiro hinário
evangélico brasileiro: Salmos e Hinos. (BRAGA, 1961, p. 109).

Missionários madeirenses

No coração e na alma do doutor Robert Kalley, fluía uma grande visão sobre a
evangelização do Brasil dentro do contexto protestante. O campo era vasto, e ele
estava plenamente consciente de que sozinho não havia como conquistá-lo. Mesmo
sob pressão das autoridades imperiais, sentia-se desafiado a cada dia. As ameaças
se transformaram em fertilizantes para adubar sua alma missionária! Diante dos
grandes desafios de um imenso país, Kalley lançou veemente apelo para o grupo de
76
Cerca de 300 anos antes dessa indenização, o Portugal de D. Sebastião havia pago três mil
ducados ao francês Villegagnon.

Desiludido, Villegagnon, que havia investido sua fortuna no Brasil, apresentou ao embaixador de
Portugal em Paris um pedido de reparação financeira pelas grandes perdas sofridas no Brasil.
Curiosamente, o governo português apressou-se a indenizá-lo, e com isso Villegagnon considerou
encerrada a aventura brasileira. Na realidade, Villegagnon não tinha direito a indenização alguma,
pois ele invadira por seu risco um território português” (MARIZ; PROVENÇAL, 2015, p. 145).

Outra fortuna iniciou-se a pagar em 1661, decisão do Tribunal de Haia a favor da Holanda, pelos
benefícios nos 24 anos no estado de Pernambuco. A história se repetiu 165 anos depois. Em 1826,
sob pressão de intermediários, coube ao Brasil de D. Pedro I desembolsar, a título de indenização a
Portugal, a mera quantia de “dois milhões de libras esterlinas. (GOMES, 2010, p. 289). Esses são os
riscos que abrangem algumas decisões políticas. No final, alguém estará a pagar os boletos!
protestantes portugueses, seus filhos na fé, que residiam em Illinois, nos Estados
Unidos.

Atenderam ao convite do Dr. Kalley para virem assisti-lo em seu esforço missionário três
famílias madeirenses: a de Francisco da Gama, a de Souza Jardim e de Manoel
Fernandes, além de uma família inglesa cujo chefe era o sr. William D. Pitt. Três anos
mais tarde, eles vieram a constituir o núcleo organizado com o nome de Igreja
Evangélica, posteriormente Igreja Fluminense, em 1858. (TUCKER, 1986, p. 505).

O citado inglês, Sr. William D. Pitt, quando adolescente, foi aluno da jovem
Sarah Poulton Wilson na Escola Dominical na Igreja Congregacional de Albany
Rody na Grã-Bretanha. Era o estudante no encalço de sua mestra de Bíblia.

Dentre eles, destacou-se William Deatron Pitt, o primeiro a vir para o Brasil ajudar o
casal Kalley e que, posteriormente, se tornou ministro presbiteriano. A influência de
Sarah foi duradoura, e muitos daqueles rapazes tornaram-se cristãos comprometidos e
trabalhadores. (ALMEIDA, R., 2014, p. 215).

Novamente entra em ação a providência divina, usando essas famílias


portuguesas que chegaram ao Brasil com a finalidade de colaborar na
evangelização de uma grande nação, quase um gigante adormecido. Eram
missionários tendeiros que sofreram perseguições na própria terra, onde haviam se
convertido sob a liderança do doutor Robert Kalley. O amor por missões uniu-os
novamente. Estavam conscientes de que seriam discriminados, perseguidos e
ameaçados nesse novo e desafiante projeto de vida. Nada, porém, era tão
importante quanto navegar em meio a essa desafiante visão. O coração foi mais
impetuoso e valente que a razão! São Paulo, o apóstolo, já havia proferido a
garantia da eternidade em Cristo e por Cristo.

Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separa-nos do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus, no Senhor. (Romanos 8: 38, 39).

A bênção expulsa de Portugal, em agosto de 1846, chegou ao Brasil com a


direta participação dos madeirenses em 1856, exatamente dez anos após os
acontecimentos na Ilha da Madeira. Outra vez vem à tona o refrão do falecido
professor José Hermano Saraiva: “A História do mundo não pode escrever-se sem
numerosas referências ao que nele foi praticado por este pequeno povo de um pobre
País nos confins da Europa” (SARAIVA, 2001, p. 138). Muitíssimo grato, Portugal!

As perseguições

Como era de se esperar, o governo imperial proibiu Kalley de ministrar a visão


protestante aos brasileiros. Novamente o braço ameaçador da Igreja Católica estava
em funcionamento, influenciando nas decisões das autoridades civis. Aliás, os
líderes eclesiásticos e civis estavam apenas invocando o quinto artigo da
Constituição de 1824, visto que o país era disfarçadamente de direito uma
possessão homogênea da Igreja Católica Apostólica Romana, direito bem expresso
e claramente estampado na primeira página da Carta Magna do Império do Brasil:
“A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império”.
Contra fatos não há argumentos, dizem os mestres das leis. Robert Kalley,
”homem incomodado com o fanatismo da Igreja Católica oficial” (PAGANELLI, 2020,
p. 11), somente poderia reunir-se em casas para cultos domésticos em lares de
estrangeiros, o que criava um abismo para ele alcançar os brasileiros. Continuava
em vigência a prática do protestantismo de imigração, ou seja, um reduto fechado
de uma sociedade predominantemente estrangeira. Em contrapartida, havia a
carência do protestantismo de missão, que era o sonho primário de Kalley para com
o Brasil. No entender constitucional, a mensagem cristã evangélica poderia ser
anunciada livremente em lares de estrangeiros e na língua do proprietário da
residência. Aparentemente, estava descartada a possibilidade da participação de
brasileiros, até porque todos os estrangeiros protestantes ou simpatizantes eram
fluentes na língua inglesa. A participação brasileira estava obviamente descartada,
quando, em solo tupiniquim, a cultura não passava de uma ilhota perdida em meio
ao mar do analfabetismo! Seria isso um anacronismo? Ideias certas em lugares e
tempos errados?
Entretanto, o Criador escreve a história usando a tinta da misericórdia, a
caneta da compaixão e o papel da sabedoria. O próprio governo que falava
português havia esquecido que os portugueses residentes no Brasil eram
considerados estrangeiros e também falantes do romântico idioma do escritor Luís
de Camões (1524-1580), autor de Os Lusíadas, obra de poesia épica que tem
extrapolado os anos de sua primeira publicação em 1572. Diante dos alvissareiros
desafios, o médico Robert Kalley, sua esposa, além dos denodados companheiros
estudaram todas as hipóteses possíveis.
Finalmente, surgiu a iluminação divina mostrando como alcançar as pessoas
daquela terra sem ferir as normas constitucionais. Isso é o avanço visionário no
sapiente linguajar do alemão Max Weber (1864-1920): “O homem de ação é sempre
impiedoso; nenhum deles tem consciência, mas sim poder de observação”
(WEBER, 1985, p. 107).
Deus já havia proporcionado os meios cabíveis e legais. Novamente Ele
estava agindo no desenrolar da história, assim alargando as fronteiras para a
disseminação do evangelho no Brasil. Deus, como sempre, proveu a solução de
uma maneira totalmente natural. Aliás, esse continua sendo o agir sobrenatural
provindo do Criador, hoje conhecido, no mundo científico, por design Inteligente!
“Deus sempre usa pessoas comuns em situações imperfeitas para alcançar o
propósito que tem” (Warren, 2002, p. 41). Sim, Deus utiliza o saber do homem para
abençoar o homem; não há outro meio. No cumprimento da obra missionária, não é
diferente! “Nos puseram a bordo tudo o que era necessário” (Atos 28:10). Estando
desde 1969 nessa caminhada sacerdotal, sei muito bem como isso funciona!

O raiar do protestantismo
As três famílias que aportaram no Rio de Janeiro, dia 6 de agosto de 1856,
eram de nacionalidade portuguesa. Todas foram nascidas na Ilha da Madeira e
posteriormente, diante de perseguições, buscaram refúgio nos Estados Unidos,
onde certamente já estavam desfrutando de dupla cidadania e bem entrosados na
sociedade da nova terra. Atendendo à urgente chamada de socorro, essas famílias
emigraram legalmente para o Brasil. Aí estava a solução natural provinda por Deus!
Essas heroicas e desatinadas famílias abriram as portas de suas casas para a
realização de cultos protestantes em língua portuguesa.

O pregador, a partir do dia 10 daquele mesmo mês, passou então a celebrar a ceia em
tal cidade, servindo-se da casa da família de Francisco da Gama, situada no bairro da
Saúde. Sucessivamente, no dia 8 de novembro de 1857, ele batizou em Petrópolis um
neófito de nacionalidade portuguesa, cujo nome era José Pereira de Souza Louro.
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 451).

Automaticamente, nenhuma autoridade eclesial, judicial ou imperial poderia


barrar a realização dessas reuniões. Eram em casas particulares, como exigia a
continuidade do artigo quinto da primeira Constituição elaborada e aprovada no
Brasil: “Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”.
Em resultado à chegada daqueles voluntários missionários madeirenses no
Rio de Janeiro e às suas atividades no trabalho de colportores, fomentou-se a
conversão de vários brasileiros e de tantos outros que se tornaram simpatizantes da
causa dos hereges europeus provindos da América do Norte. Nada foi fácil para
aqueles intrusos portugueses que palmilharam por campos minados para a
mudança da história e do pensar no Brasil.

Em 1856, Manuel Fernandes foi para Petrópolis para trabalhar vendendo Bíblias e
Novos Testamentos. Foi imediatamente preso e interrogado se tinha obtido aqueles
livros com Kalley. A prisão fora feita sob a acusação de que o português não tinha
licença de vendedor ambulante. [...] Manuel Fernandes conseguiu uma licença para
comerciar e continuou vendendo Bíblias em Petrópolis. [...] Um dos portugueses recém-
chegados, José Ferreira Louro, enquanto trabalhava em Petrópolis, teve ocasião de
vender uma Bíblia a D. Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta. (VIEIRA,
David, 1980, p. 118, 119).

O caminho era estreito e sem contornos para retornar! Muito aprecio o


alentador texto inserido na Bíblia: “Tu, porém, segue o teu caminho até ao fim”
(Daniel 12:13).

O batismo do primeiro brasileiro, Pedro Nolasco de Andrade, no dia da fundação da


Igreja Evangélica Fluminense, não atraiu muito a atenção pública. Logo depois, porém,
se converteram ao protestantismo duas mulheres nobres, dona Gabriela Augusta
Carneiro Leão e sua filha, Henriqueta. Estas conversões resultaram em manobras por
parte dos ultramontanos: o Internúncio Falcinelli queixou-se ao Imperador e, em 1859,
Kalley recebeu aviso do chefe de Polícia de que estava proibido de exercer a medicina.
(TUCKER, 1986, p. 505).77
77
O aviso policial chegou em represália aos acontecimentos que se tornou público. Em 1859, a
província do Rio de Janeiro estava sob a presidência do Conselheiro João Almeida Pereira Filho
(1826-1883), genro do Primeiro Barão e Visconde de Araruama, José Carneiro da Silva (1788-1864),
o poderoso patriarca da política de Macaé e região, influente fazendeiro produtor de açúcar e
Com somente 14 membros, foi organizada, na cidade do Rio de Janeiro, no
domingo, 11 de julho de 1858, a primeira igreja evangélica de língua portuguesa no
Brasil.78 Isso somente foi possível graças à participação daquelas três famílias
portuguesas. Kalley e o grupo madeirense tinham fé presbiteriana, porém, muito
longe da imperante teologia calvinísta da supremacia branca apregoada pelos
sulistas americanos, eles organizaram a Igreja Evangélica Fluminense, que tinha um
governo congregacional e práticas batistas relacionadas ao batismo, sempre de
adultos convertidos e por imersão. “No dia 22 de novembro de 1880, o imperador D.
Pedro II assinou o Decreto número 7.907, tornando a Igreja Evangélica Fluminense
a primeira igreja evangélica nacional oficialmente registrada no país” (GIRALDI,
2013, p. 210). Antes daquele histórico 11 de julho de 1858, reuniões estavam
transcorrendo sob a supervisão do Dr. Kalley em diferentes residências e
localidades de Petrópolis, Niterói e Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro, havia reuniões em português na casa de Francisco da Gama e, em


inglês, na residência de William Dreaton Pitt. No dia 10 de agosto de 1856, na casa de
Francisco da Gama, no morro da Saúde, Rio de Janeiro, o Rev. Kalley oficiou pela
primeira vez a ceia do Senhor, com a presença de dez pessoas. (GIRALDI, 2013, p.
174).

Mesmo estando direta e indiretamente sob acirradas perseguições, a obra


expandiu-se, alcançando e congregando diferentes segmentos da sociedade
brasileira. Com somente 10 anos após a organização, havia um expressivo grupo de
participantes na herege religião dos protestantes. “Em 1868, a Igreja Evangélica
Fluminense, fundada por ele - Dr. Kalley - já contava com cerca de 360 membros”
(CALDAS, 2001, p. 29). Robert Kalley era um líder honesto, amoroso e carismático;
o mesmo sucedia com Sarah sua esposa. Ambos eram veementemente contra o
escravocratismo, regime que nunca aceitaram; aliás, isso está devidamente
documentado nos anais da história. Cerca de 100 anos após a pública decisão
contra o sistema escravocrata, Martin Luther King Jr (1929-1968), pastor batista,

escravagista de alta escala da vila de Quissamã. Seu filho Manuel Carneiro da Silva (1833-1917),
proprietário da Fazenda Machadinha, era genro de Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), ninguém
nada mais e nada menos que o lendário Duque de Caxias - um velho e respeitado maçom. Nessa
mesma família, estava Eusébio de Queirós (1812-1868), ministro do império e senador vitalício. O
corporativismo estava bem armado e assessorado pelas influentes estrelas do Império. Tudo isso
funcionava sob o endosso fraternal da maçonaria. Após 158 anos desses históricos acontecimentos,
estando em Macaé para receber a Comenda de Cidadão Macaense, aproveitei o feriado de 15 de
novembro de 2017 para realizar algumas pesquisas na região de Quissamã, a qual, até onde chega
os meus conhecimentos, é a única cidade do Brasil com nome africano. Cruzando os factos, não é
difícil concluir que dona Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto
eram partes do famoso clã patriarcal de Macaé e região. Simbolicamente, Kalley era um pequeno
Davi contra o gigantesco Golias!
78
Naquele memorável domingo, Antônio Carlos Gomes estava a completar 22 anos. Até então, não
passava de um desconhecido professor de piano e canto em Campinas, sua cidade natal. Outro
acontecimento surgiu exatamente 90 anos após aquele importante ato histórico. Também era
domingo, dia 11 de julho de 1948, quando nasceu uma criança que recebeu o nome de Carlos
Antônio Boaventura, em um casebre na zona rural de Uberlândia. Na época pós-guerra, era o
longínquo sertão da farinha podre; hoje, a próspera região do Triângulo Mineiro.
desatou o verbo. “Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o
que pensa”.

Em dezembro de 1865 o missionário escocês presidiu a sessão extraordinária da Igreja


Evangélica Fluminense que excluiu da comunhão o senhor Bernardino de Oliveira
Rameiro porque, mesmo instruído e exortado, não quis alforriar seus escravos. (CÉSAR,
2009, p. 96).

Mostravam interesse e zelo, embora britanicamente, para com todos aqueles


que os procuravam. Não temiam diante do capitalismo e corporativismo gerado
pelos escravagistas que manobravam uma boa fatia da política imperial. Segundo
citado no Almanak administrative, mercantile, e industrial do Rio de Janeiro de 1865,
o escravocrata excluído, possuia um comérciona Rua das Violas, 166 (atual Rua
Teófilo Ottoni) >Google: Bernardino de Oliveira Rameiro< acesso: 8 abril de 2021.
Aqueles missionários pautavam-se pelo politicamente correto, entre a humanidade
onde honesty is the best policy - a honestidade é a melhor política - (WEBER, 1985,
p. 107).
Prevendo o crescimento natural da Igreja Evangélica Fluminense, Kalley
apostou no melhor dos preparos acadêmico e teológico para os obreiros que se
destacavam. Os primeiros jovens convertidos foram por ele enviados para Londres,
onde receberam ensinamentos na conceituada Escola Bíblica dirigida por Charles
Haddon Spurgeon (1834-1892), pastor batista considerado na época o príncipe dos
pregadores, mesmo convivendo com uma crônica e sistemática depressão, além da
dependência de fumar charuto, o que, no entanto, não lhe tirava a capacidade de
ministrar e ensinar a Bíblia Sagrada. Totalmente consciente de sua vulnerabilidade
diante da depressão, o terrível câncer da alma, Spurgeon relatou: “A ansiedade não
tira o problema do amanhã; ela só tira a paz de hoje”. Foi um professor por
excelência e deixou grande acervo da cultura bíblica, sendo ainda hoje fonte de
pesquisa para não poucos amantes da Bíblia e dos seus ensinamentos.

Charles Haddon Spurgeon foi um dos maiores pregadores de todos os tempos, amado
por sua impressionante habilidade de comunicar a Palavra de Deus, sua inteligência
brilhante e seu humor perspicaz. Contudo, esse homem que se dirigia a multidões de
até 20 mil pessoas enfrentou a depressão durante toda sua vida. (CORDEIRO, 2011, p.
46).

A funesta depressão fez de Spurgeon um vulnerável escravo da faca, dos


fartos e bons pratos e do garfo, além dos personalizados charutos. O resultado final
dessa mistura de vícios foi o excesso de peso e a abundância de gordura que
culminaram em sua precoce morte aos 58 anos. Outro pastor batista, o americano
Andy Anderson, dá uma espetada nesse príncipe que arrastava multidões ao
Metropolitan Tabernacle in London: “Seu ministério e seus escritos têm inspirado e
edificado milhões de vidas; no entanto, Spurgeon cavou a própria sepultura com
uma faca e um garfo, pois morreu de obesidade, aos cinquenta e oito anos de
idade” (ANDERSON, 2000, p. 68).

O regresso da família Kalley


Robert e Sarah Kalley permaneceram por frutíferos e profícuos 21 anos
ministrando e abençoando o povo brasileiro com as sábias aplicações existentes
nas páginas da Bíblia Sagrada. Regressaram para a Escócia, dia 10 de julho de
1876, a bordo do vapor Galícia. Sarah, aos 51 anos; seu esposo, prestes a
completar 67 anos. Enquanto no Brasil, o Dr. Kalley manteve laços de amizade com
vários membros da realeza. Quando enfermo, recebeu em sua mansão, dia 6 de
março de 1860, a visita do imperador D. Pedro II. Foi o encontro de dois gigantes e
expoentes da intelectualidade, embora simples mortais. Dom Pedro II, o imperador
nascido no Rio de Janeiro e governante do Brasil, era leitor assíduo da Bíblia e
nutria um desejo sagrado de visitar a Terra Santa. O doutor Kalley lia, ensinava a
Bíblia e, por um período de quase três anos, residiu na atual Palestina. Os seus
vastos conhecimentos da Terra Santa empolgavam ainda mais o interesse de D.
Pedro II em visitar aquela região, berço do cristianismo. O imperador era dono de
uma profunda paixão em conhecer o mundo fora do seu Brasil.
No mesmo ano em que o casal Kalley regressou definitivamente para a
Escócia, D. Pedro II concretizou os seus sonhos. “Em 1876, dezesseis anos depois,
acompanhado de uma enorme comitiva e guiado pelo frei Franciscano Liévin de
Hamme, Dom Pedro II, então com 51 anos, realizou a sua sonhada viagem à Terra
Santa” (CÉSAR, 2000, p. 83). O frei Hamme era “um alemão nascido em Hanover, o
conducteur des pelerines, como chamava a si mesmo [...] D. Pedro II, foi o primeiro
governante [do Brasil e] de um país latino-americano a visitar aquelas terras, num
dos acontecimentos locais mais marcantes da ápoca” (PAGANELLI, 2020, p. 38). A
visita seguinte coube ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1945), um petista
pernambucano que esteve no Oriente Médio aos 58 anos em dezembro de 2003.
Como bom caixeiro viajante, o cara, nas palavras do presidente Barack Obama
(1961-), esteve na Síria, no Líbano, nos Emirados Árabes, no Egito e na Líbia. Por
sua adotada ideologia política esquerdista, intencionalmente Israel ficou fora do
itinerário desse governante. Graças a esse doentio zelo embasado na xenofobia
política e religiosa contra Israel, quem perdeu foi o Brasil! Entre a visita de D. Pedro
II, o Imperador, e a de Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente, passaram-se 127
anos!79

Antes de regressar definitivamente à Escócia, o Dr. Kalley inaugurou trabalho evangélico


em vários pontos do País, como, por exemplo, Niterói, e 1862, e Recife, onde foi
organizada a Igreja Pernambucana em 1873, tendo sido seu primeiro pastor o Rev. James
Fanstone, cujo filho, do mesmo nome, médico, foi o fundador e Diretor do Hospital
Evangélico de Anápolis, em Goiás. (BRAGA, 1961, p. 118).

O altruísta médico missionário, doutor Robert Reid Kalley que fazia de seu
consultório uma permanente extensaão do cristianismo, “foi o mentor espiritual de
79
Em 15 de novembro de 2018, o Brasil completou 129 anos de República, sendo nesse período
governado por diferentes vieses de ideologias políticas. Porém foi somente em 28 de dezembro de
2018 que chegou ao Brasil, pela primeira vez, uma autoridade de Israel convidada para a posse de
um Presidente. Sob intensa vigilância de atentos seguranças, Benjamin Netanyahu (1949-), the
Premier of Israel, foi logo declarando aos jornalistas no Rio de Janeiro: “Israel é a terra prometida e o
Brasil é a terra da promessa”.
uma geração de ministros evangélicos que tomou como exemplo a seguir sua visão,
seu zelo e sua dedicação à obra missionária” (GIRALDI, 2013, p. 179). Sua vida
terrena findou aos 79 anos na cidade de Edimburgo, Escócia, dia 17 de janeiro de
1888. Alquebrado pelas convulsões, tendo Sarah ao seu lado, suas palavras finais
soaram como um brado de vitória: “Deixem-me ir! Deixem-me ir! Isto é a morte, ó
minha querida mulher” (ALMEIDA, R., 2014, p. 233). Ali findou o compromisso
terreno de um nobre cidadão, o qual partiu para a eternidade lúcido. O serviço
fúnebre foi conduzido pelo seu amigo Hudson Taylor (1832-1905), outro gigante das
missões mundiais e fundador da Missão para o Interior da China. Taylor viveu
outros 17 anos, falecendo na cidade de Xangai aos 73 anos. 80 Ambos, Robert Kalley
e Hudson Taylor, dois hercúleos da fé, deixaram profundos rastros por onde
passaram, marcas que jamais serão apagadas. “Christopher Lee (1922-2015)
acertou em cheio quando escreveu: as pessoas fazem a História, mas raramente se
dão conta do que estão fazendo” (CÉSAR, 2009, p. 63). “Nós não podemos escapar
da história”, lê-se no interior do Ford’s Theatre em Washington. Abraham Lincoln
(1809-1865) e Frederick Douglass (1818-1895) tinham muita razão; não edificamos
reinos de fantasias! Muitos missionários morreram, mas não estão mortos!
A professora Sarah Poulton Kalley deixou indeléveis marcas no Brasil. Foi dela
a iniciativa de traduzir e adaptar para o português os hinos de ênfase calvinísta e
publicar, em 1861, o hinário Salmos e Hinos, primeira coletânea de hinos evangélicos
publicados na língua portuguesa, sendo, ainda hoje, um marco referencial da música
sacra especialmente no Brasil e em Portugal. “Sarah Poulton Kalley faleceu em 8 de
agosto de 1907, na residência Campo Verde, com pouco mais de 82 anos de idade, e
foi sepultada em 12 de agosto de 1907, no Deam Cemitery, junto a seu marido, Dr.
Robert Reid Kalley” (ALMEIDA, R., 2014, p. 235). Estiveram casados durante 36
anos.81

Os presbiterianos

Já então os estadunidenses haviam assumido a liderança das missões reformadas,


ainda que importantes denominações que tinham sofressem o fenômeno da
desagregação. Um dos motivos disso foi a escravidão, combatida no norte e defendida
no sul, coisa que teve reflexos também em campo religioso. Assim, as maiores
comunidades eclesiais racharam: os metodistas em 1844, os batistas em 1845 e os
presbiterianos em 1861. [...] Um pouco antes de os presbiterianos se dividirem, aos 12

80
Na manhã de terça-feira, 8 de maio de 2018, eu estava caminhando pelo interior da réplica da arca
de Noé, uma monumental obra de 100 milhões de dólares, construída nos arredores de
Williamstown, Kentucky. Em um standar sobre a China, foi emocionante me deparar com a cadeira
original onde o missionário James Hudson Taylor passou infindas horas assentado traduzindo o
Novo Testamento para o ningbo, um dos vários dialetos falados pelos chineses de sua época.
81
O hinário Salmos e Hinos também, ganhou notoriedade em Angola, a segunda mais populosa
nação de língua portuguesa,

os hinários protestantes continham música e letra de hinos escritos na Europa e América do Norte
dos séculos XVII a XIX. Muitas das letras foram traduzidas do inglês para o português, e publicadas
no hinário Salmos e Hinos, que passou por várias edições no Brasil. Revendo os hinários publicados
pelas missões e Igrejas evangélicas durante o período colonial, a maioria dos hinos em português
vem dos Salmos e Hinos. (HENDERSON, 2001, p. 272).
de agosto de 1859, um pregador do norte, enviado pela Junta de Missões Estrangeiras
sediada em Nova York. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 453).

Essa jornada prolongou-se por longos 54 dias, de 28 de junho a 12 de agosto


de 1859. Singrando pelas águas do Atlântico Sul a bordo do veleiro Banshee,
chegou ao Rio de Janeiro o missionário americano Ashbel Green Simonton (1833-
1867),82 um visionário jovem com somente 26 anos na época. Esse jovial e corajoso
missionário foi o fundador da primeira igreja presbiteriana em um país de língua
portuguesa. Era um moço solteiro, dinâmico, culto, zeloso e trazia como herança o
ter nascido no seio de uma muito bem-sucedida família americana. Carregava os
mais importantes predicados do saber, das riquezas e dos bons relacionamentos,
mas sem nenhum conhecimento da língua portuguesa, estando muito aquém da
cultura brasileira. Ashbel Green Simonton deixou a sua zona de conforto para
embrenhar-se em uma terra diferente na busca de alcançar os seus habitantes com
uma palavra soteriológica.
Naquele ano de 1859, estava se completando o primeiro centenário da
expulsão sumária dos jesuítas das colônias de Portugal, inclusive do Brasil, pelo
conde de Oeiras, o futuro Marquês de Pombal.

Asbhel Green Simonton nasceu, em West Hanover, Pennsylvania, a 20 de janeiro de


1833. Era filho do deputado federal Dr. William Simonton e de sua esposa Martha
Snodgrass Simonton. [...] Green, como Asbhel costumava assinar suas cartas para a
família, recebeu seu diploma do Princeton College em 1854. Depois da graduação
começou a estudar Direito, mas, em 1855, abandonou-o para ingressar no Seminário
Teológico de Princeton. Depois de seu curso no Seminário, no qual destacou-se em
línguas orientais, partiu para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro a 11 de agosto de
1859. [...] Nos primórdios de sua estadia no Brasil, como não sabia ainda falar
porrtuguês, Simonton decidiu servir por algum tempo como capelão voluntário para os
mecânicos ingleses, escoceses e irlandeses no distrito do Bairro da Saúde. (VIEIRA,
David, 1980, p. 135, 136).83

Antes de completar três anos do seu desembarque no Brasil, Simonton, aos


29 anos, organizou no domingo, 12 de janeiro de 1862, à Rua do Ouvidor, número
31, uma pequena obra que cresceu, ganhou vulto e respeito, tornando-se a
aristocrática Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. Foi no Rio de Janeiro, local
da Corte petrina, que se registraram todos os seguintes passos mencionados:

Em geral, os presbiterianos sabem que Simonton, no período de oitos anos e meio - de


agosto de 1859 a dezembro de 1862 - organizou a primeira igreja presbiteriana (1862), o
primeiro jornal protestante da América do Sul (1864), o primeiro presbitério (1865), a
primeira escola paroquial (1866), o primeiro seminário (1867) e ordenou o primeiro
pastor brasileiro em 1868. (CÉSAR, 2009, p. 44).

82
A mesma soma de 54 dias foi o tempo gasto pela família real portuguesa ao navegar entre a
cidade de Lisboa até Salvador, Bahia, em 1808. Essas naus eram frágeis e lentas, porém os únicos
transpotes capazes de cruzar os oceanos e encurtar as distâncias.
83
O 11 de agosto não confere com as demais fontes pesquisadas, que apresentam a data de 12 de
agosto de 1859 como o dia da chegada daquele missionário ao Brasil. A questão é selecionada com
a data da chegada do navio no porto e o dia do desembarque.
No mesmo ano em que o missionário Simonton aportou no Brasil, o mundo da
literatura recebia o livro A Origem das Espécies, obra do naturalista inglês Charles
Darwin (1809-1882), publicado em Londres pelo editor John Murray III (1808-1892)
e colocado no mercado na quinta-feira, 24 de fevereiro de 1859. Quando do
lançamento, Darwin estava com 50 anos e Murray III com 51. Esse livro tido como
uma espécie de bíblia popularizou a teoria do evolucionismo. 84
A Origem das Espécies contém questões largamente discutidas ainda hoje.
Porém, bem antes desse sucesso literário e científico, o britânico Charles Robert
Darwin, aos 22 anos e a bordo do brigue HMS Beagle, navio pertencente à Marinha
Britânica, em passagem pelo Brasil em 1831, um conturbado ano imperial, ficou
deslumbrado com as riquezas naturais e horrorizado com a escravidão que os
brancos faziam do negro africano.
Outro importante acontecimento de 1859 sucedeu na biosfera: “No dia 1º de
setembro de 1859, uma área do Sol produziu por quase um minuto um brilho
aproximadamente duas vezes maior que o normal” (LOURENÇO, 2015, p. 185).
Nos céus e na terra, houve importantes fatos que vieram à tona e ficaram
registrados em diferentes compêndios.

Foi no século XIX, considerado o século do romance, que nasceu em São Luís, em
1825, a primeira mulher a escrever um romance. Maria Firmina dos Reis, mulata e filha
ilegítima, cresceu com avó, mãe, tias e irmãs, e ganhava a vida como professora
particular. Sua obra denominada Úrsula, publicada em 1859. [...] Em 1859, foi
inaugurado o primeiro colégio feminino, o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu,
sob a direção das freiras francesas, as irmãs de São José. (ALMEIDA, R., 2014, p. 206,
196).

Outra marcante epopéia de 1859 aconteceu na África, foi o início da faraônica


construção do Canal de Suêz, uma ousadia da engenharia francesa que resultou,
dez anos depois, na ligação do Mediterrâneo ao Mar Vermelho, separando
geograficamente o Oriente Médio do continente africano.
Onze anos antes do desembarque de Simonton no Rio de Janeiro, outro fator
sinalizou o desenrolar da história. Na segunda-feira, 21 de fevereiro de 1848,

84
“Um conceito científico não é uma lei. Uma teoria também não é uma lei nem pode ser considerada lei
ou mesmo fato científico até que seja testada e comprovada. [...] Uma teoria nada mais é do que uma
hipótese ou uma conjectura [...]. Darwin construiu todo um argumento lógico sobre um princípio não válido.
O seu raciocínio estava equivocado na base” (LOURENÇO, 2015, p. 23, 29, 147).
Em 1832, na casa dos 23 anos, quando Charles Darwin cruzando a Tierra del Fuego assim relatou
sobre os nativos e o segmento social em que estavam inseridos:

Estas eram as criaturas mais abjetas e miseráveis que eu contemplei onde quer que seja. [...] Seu
país é uma uma massa fragmentada de rochas rudes, montanhas elevadas e florestas sem uso; e
tudo isto é visto através de neblinas e tempestades infindáveis. A terra habitável está reduzida às
pedras sobre a praia [...] devemos supor que eles desfrutam de uma suficiente cota de felicidade,
seja lá qual for o modo que encontram de apreciar a vida. (MEGGERS, 1985, p. 193, 195).

Em 29 de julho de 1520, cerca de 312 anos antes das observações de Darwin, Fernão de Magalhães
(1480-1521), um navegador português a serviço de Carlos V (1500-1558), rei da Espanha, fez as
seguintes anotações em seu diário de bordo: “Os habitantes da região eram caçadores nômades
chamados teuelches, os quais vestiam de peles e revelaram ser bastante primitivos, causando
grande estranheza aos europeus a sua elevada estatura. Magalhães chamou-lhes patagões”
(GARCIA, 2019, p. 202).
também em Londres, é lançado o Manifesto do Partido Comunista, o mais discutido
tratado de história, sociologia e filosofia política, de autoria de dois expoentes
pensadores alemães: Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Esses
dois filósofos nascidos no seio de famílias judaicas colocaram o mundo de ponta-
cabeça com relação ao pensar da produção, do sistema econômico e da utópica
igualdade das classes sociais para todas as pessoas. Sendo essa a enganadora e
famigerada base do comunismo, o seu encanto é tal que se tornou a religião
marxista. Em distantes séculos antes dessas definições filosóficas e sociais, Jesus
já havia proferido: “Porque os pobres, sempre os tendes convosco” (João 12:8).
Enquanto houver gente sobre a Terra existirá classe de dominante e dominado! É a
lei do produtor e do consumidor, do mandante e do mandado, da oferta e da
procura!

Visita aos Estados Unidos e casamento

Com o objetivo de rever Martha Simonton (1791-1862), sua mãe viúva e


enferma, moradora em West Hanover, Pennsylvania, Simonton segue para sua terra
natal no início de 1862. Nesse período, já se encontrava no Brasil, desde 25 de
julho de 1860, o seu cunhado Alexander Lattimer Blackford (1828-1890), outro
dinâmico jovem missionário presbiteriano que se encarregou da nascente obra no
Rio de Janeiro no tempo em que Simonton esteve nos Estados Unidos. Ao chegar
ao seu país, Simonton o viu dividido em dois pedaços. Eram os Confederados e a
União, duas moedas em circulação, o dólar do Norte e o dólar do Sul. Aliás, o dólar
emitido pelos sulistas Confederados já há muito estava amargando uma inflação
descontrolada em face da guerra. No decorrer dessa visita, Simonton conheceu a
jovem Helen Murdoch (1833-1864), com quem se casou em 19 de março de 1863.
Ambos estavam com 30 anos. Dois meses depois, confiante no chamado de Deus,
o casal zarpou para o Brasil. Nunca mais regressaram aos Estados Unidos; foram
prematuramente colhidos pela morte, e os seus corpos mantêm-se sepultados no
Brasil.85 Helen Murdoch

era uma mulher discreta, humilde, altruísta e zelosa. Ganhava com facilidade a
confiança e o afeto de todos com os quais se relacionava. Todavia, teve uma vida mais
curta que a de seu marido. Morreu de complicações de parto, nove dias depois de dar à

85
Dias 1 a 3 de julho de 1863, com o casal Simonton já no Brasil, houve, no dividido Estados Unidos,
o mais sanguinário confronto entre as tropas do Norte contra as do Sul. O palco desse confronto
bélico foi nos arredores de Gettysburg, estado da Pennsilvânia. A soma dos mortos dos
Confederados e da União naqueles dias foi de aproximamente 60 mil soldados. Naquele escaldante
verão, cerca de três mil carcaças de cavalos foram queimadas, o que resultou na poluição da
atmosfera e na produção de enfermidades entre a população residente na área. Os resultados finais
de quatros anos da Guerra Civil foram assustadores. “Setecentos e cinquenta mil soldados
morreram, 1,5 milhão de cavalos pereceram, vinte bilhões de dólares foram gastos na guerra”
(DAVIDSON, 2017, p. 165). Tive a oportunidade de passar pelo arrasador e funesto palco de uma
fratricida guerra. Era inverno, e os termômetros assinalavam seis graus negativos, na tarde de 26 de
dezembro de 2017, quando eu, esposa, filho, nora e netos estivemos no histórico palco onde
desenrolaram decisivas e sangrentas batalhas nos arredores da cidade de Gettysburg. Para um
pesquisador, mesmo amador, isso é algo emocionante. Assim foi a minha reação interna naquela
crepuscular terça-feira.
luz uma menina, no dia 28 de junho de 1864, três meses depois de comemorar o
primeiro aniversário de casamento e onze meses depois de ter chegado ao Brasil.
(CÉSAR, 2009, p. 154).

No Rio de Janeiro, nasceu a única filha do casal, que veio mesclada de


sorrisos e lágrimas. As muitas lágrimas superaram os sorrisos! A morte foi cruel
e invencível, levando a jovem esposa de Simonton em consequência do precário
serviço de parto que lhe foi oferecido. Simonton relatou com profunda dor e amarga
tristeza em seu diário: “Que Deus tenha misericórdia de mim, pois águas profundas
rolam agora sobre minha alma. Helen jaz num caixão na sala. Deus a tirou tão
rapidamente que tudo ainda parece sonho” (TUCKER, 1986, p. 508).
Em merecida memória à sua abnegada e querida esposa, Simonton fez-lhe
uma saudosa lembrança, dando à filha o nome de Helen Murdoch Simonton (1864-
1952), menina que viveu cerca de dois anos com o pai no Rio de Janeiro e outros
13 com os tios na cidade de São Paulo.

Para amamentar a menina, ele alugou uma ama de leite chamada Maria, escrava de
certa Madame Bishop [...] Maria aceitou o evangelho e professou a fé no dia 25 de
março de 1866 [...]. Além disso, ela também ensinava a língua pátria a Helen. Pouco
antes de completar 15 anos, Helen foi levada pela tia Elizabeth para os Estados Unidos
e deixada aos cuidados de duas tias maternas, que eram acentuadamente piedosas.
Helen nunca se casou e morreu aos 88 anos, no dia 7 de setembro de 1958. (CÉSAR,
2009, p. 155, 157).

Menina branca brasileira, filha de pais americanos, amamentada pelo leite


branco gerado em uma pobre negra feita escrava por uma sociedade regida pelo
poderio dos brancos! A Mãe Preta era uma alugada escrava produtora de leite. “Ao
amamentar o filho do senhor branco, sem contudo abandonar a própria prole negra,
a Mãe Preta teria demonstrado resignação, espírito conciliador, sacrifício e
esperança no futuro” (PEREIRA, Amauri Mendes. SILVA, Josefina da (ORG.), 2009,
p. 24). Um mundo recheado de desigualdades pela cor da pigmentação da pele,
período em que a suposta supremacia branca movia as pedras do poder e da
miséria! Frutificando os dois lados da sociedade, a “opulência monstruosa, miséria
monstruosa” (HUGO, 2007, v. 2, p. 32).

O padre José e a morte do missionário

Nos meados de 1864, para decepção dos seus paroquianos e superiores na


hierarquia católica, o padre José conscientemente se desfez de sua batina e
saltou para o lado da herética religião dos protestantes.

Era um homem de aparência simples, muito religioso e apaixonado por Jesus, rela
cionado com o povo e bem preparado, comunicava-se em vários idiomas, traduzia livros do inglês,
dofrancês e do alemão e ainda tinha algumas noções de Medicina. (CÉSAR, 2009, p. 165).

Este era o padre José Manuel da Conceição (1822-1873), nascido em São


Paulo seis meses antes da Independência do Brasil. Foi criado com a família em
Sorocaba e ordenado aos 23 anos ao sacerdócio na vizinha cidade de Limeira, dia
28 de junho de 1845. Esse ex-sacerdote católico foi o primeiro ministro presbiteriano
brasileiro, ordenado no Rio de Janeiro, na manhã de 17 de dezembro de 1865.
“Conceição fora padre durante 20 anos e, mesmo antes de abandonar oficialmente
a igreja católica, já era conhecido como padre protestante, devido a suas ideias”
(CALDAS, 2001, p. 70). O padre/pastor, ambiguamente tratado de reverendo de
ambos os lados do balcão da fé católica ou protestante. José Manuel da Conceição,
imortalizou-se nos acontecimentos da historiografia do Brasil. Desde 11 de fevereiro
de 1980, seu nome identifica um anexo da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
fundada em 1870 por missionários americanos, sendo o mais importante campo do
saber da teologia presbiteriana no Brasil, um verdadeiro templo da cultura erudita
localizado no centro nevrálgico de São Paulo.
Como era de se esperar e não sendo nada mais que natural, o frade nascido
em Novo Cruzeiro informa que

o apóstata padre Conceição [...] Paulistano, foi ordenado em 1845, depois de ter
recebido uma formação do velho estilo. Por isso, a teologia que cursou foi aquela
ministrada pelos cônegos do cabido da sé diocesana, sem falar que frequentou
igualmente a academia jurídica do Largo São Francisco, de orientação liberal. [...]
também se incluiu entre os padres que apoiaram a revolução liberal de 1842. [...] era
atormentado por crises de melancolia e conflitos vocacionais e espirituais. A retidão da
sua fé foi colocada em dúvida quando as autoridades diocesanas souberam que
utilizava a Bíblia acatólica publicada pela editora Laemmert, o que acabou lhe valendo a
alcunha de padre protestante. [...] A 1º de maio de 1864, Conceição foi à capital da
província e aderiu ao presbiterianismo. [...] Partiu para o Rio de Janeiro e lá, aos 23 de
outubro de 1864, emitiu a nova profissão de fé e nela se fez rebatizar. Contudo, somente
no dia 28 de setembro do ano seguinte comunicaria o fato a Dom Sebastião. Acusado
formalmente no tribunal eclesiástico em 15 de dezembro de 1865, deixou correr o
processo à revelia, declarando-se presbiteriano puro. Aos 30 de outubro de 1866 foi
condenado como herege e incurso ipso facto na pena de excomunhão maior, Ele não
parece ter se perturbado com isso, pois no dia 17 de dezembro do mesmo se tornou
pastor, o primeiro brasileiro, aliás, da nova fundação. Suas crises, no entanto, não
cessaram, e Simonton em pessoa diria, aos 26 de novembro de 1864, que o padre
desertor estava tão deprimido com seus sofrimentos nervosos, que a morte lhe seria
alívio. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 456, 457).

Ashbel Green Simonton morreu na manhã de segunda-feira, dia 9 de


dezembro de 1867. Aquele jovem e dinâmico missionário estava com somente 34
anos. Faleceu na casa de sua irmã, Elizabeth Simonton Blackford (1822-1879), em
São Paulo. Foi colhido, como tantos outros, pela mortífera onda de febre amarela,
uma catastrófica epidemia que não perdoava ninguém, invadia sorrateiramente
todos os segmentos da sociedade e fazia diariamente dezenas de vítimas. Naquele
desagradável período da história, o Brasil estava entre os países mais insalubres do
mundo.
Em sua viagem aos Estados Unidos, onde participou das festividades alusivas
ao primeiro centenário da Independência no ano de 1876, D. Pedro II fez um longo
giro por diferentes locais. Nessa jornada, seguiu em busca de socorro contra a febre
amarela até no estado de Lousiania. O imperador era um animal na busca do saber.
“Em Nova Orleans, discutiu longamente com especialistas métodos de controle da
febre amarela, que de lá fora trazida para o Brasil” (CARVALHO, J., 2007, p. 167). 86
D. Pedro II foi o primeiro governante brasileiro a visitar a outra América e uma das
poucas estrelas que brilharam intensamente no decorrer da Exposição do Primeiro
Centenário da Independência Americana em 1876. Filadélfia, capital da Pensilvânia,
foi o local onde montaram o principal palco para as grandes comemorações, pois foi
ali que essa independência teve início no histórico 4 de julho de 1776. D. Pedro II foi
o único imperador convidado pela Comissão para participar do maior show de
democracia. “Prosperidade social significa felicidade para o homem, liberdade para
o cidadão, grandeza para a nação” (HUGO, 2007, v. 2, p. 32).
Simonton, estando muito debilitado e febril, confidenciou a sua irmã dois dias
antes de falecer: “Deus levantará alguém para tomar o meu lugar. Ele usará os seus
instrumentos para o seu trabalho” (TUCKER, 1986, 509). O corpo daquele jovem
missionário foi sepultado no Cemitério dos Protestantes, localizado no bairro da
Consolação, em São Paulo. O mesmo sucedeu com sua irmã Elizabeth Blackford,
além de outros 23 missionários presbiterianos que faleceram em atividades no Brasil.
Em 1876, também os restos mortais de José Manuel da Conceição, que faleceu no
dia de Natal de 1873 e foi enterrado como indigente na Baixada Fluminense, foram
trasladados para o Cemitério dos Protestantes em São Paulo. Ele está sepultado ao
lado do túmulo de Ashbel Green Simonton.

O primeiro templo presbiteriano

Em páginas anteriores, comentamos sobre o local onde Simonton, em 1862,


iniciou a obra presbiteriana no Rio de Janeiro. Apenas cinco anos depois, ele
faleceu na residência de sua irmã, em São Paulo. No dia anterior à sua morte, com
apenas 34 anos, lançou uma palavra profética sobre o trabalho presbiteriano junto à
Corte no Rio de Janeiro, capital imperial. Três anos após aquele ato profético, já no
leito de morte, surge um novo alvorecer junto à Corte Imperial.

O templo presbiteriano do Rio de Janeiro foi edificado em propriedade comprada em


1870 na antiga Travessa da Barreira, hoje Rua Silva Jardim. O templo foi financiado por
subscrições levantadas nos Estados Unidos e no Brasil. [...] O assentamento da pedra
angular teve lugar no dia 15 de maio de 1873, [...] A inauguração do templo
presbiteriano teve lugar a 29 de março de 1874. (VIEIRA, David, 1980, p. 289, 290).

Os líderes presbiterianos obedeceram na íntegra às regras exaradas na


Constituição Imperial de 1824, no seu Artigo V: “A religião católica apostólica
romana continuará a ser a religião do Império. Será permitida a todas as outras
religiões realizar seus cultos domésticos ou privados em casas para este fim
destinadas sem qualquer aparência exterior de templo”.

Os primeiros missionários brasileiros

86
Quase um século e meio após a viagem de D. Pedro II, em 1876, a febre amarela, mesclada a
outros vírus provindos de mosquitos transmissores, tem sido a causa de aproximadamente 15 mil
óbitos anuais no Brasil. Algo assustador para o ano 2020.
O primeiro missionário transcultural enviado pelo Brasil era de nacionalidade
portuguesa e esteve por doze anos em Portugal. Plantou trabalhos presbiterianos
em Lisboa e Figueira da Foz. João Marques da Mota Sobrinho (1883-1964), que
nasceu em Vizeu, cidade da Beira Alta em Portugal, aportou em Recife,
Pernambuco, aos 13 anos. Converteu-se ao protestantismo graças ao testemunho
de um sapateiro. Após sua conversão, Mota Sobrinho cursou a Escola Teológica de
Garanhuns e aos 22 anos, em 1905, foi ordenado ao ministério pelo Concílio da
Igreja Presbiteriana da Paraíba.
Recém-formado e ordenado, casou-se em fevereiro de 1909 com Wilhelmine
Lenz César, moça procedente de uma tradicional família presbiteriana. Em
dezembro de 1910, o jovem casal e um filho seguiram para Portugal dentro de uma
visão missionária da Igreja Presbiteriana do Brasil. Eles chegaram em Portugal num
período de transtornos políticos para a nação. Havia somente dois meses que
ocorrera a queda da monarquia e a expulsão do rei D. Manuel II (1889-1932) em 5
de outubro de 1910, quando nasceu a República de Portugal.

Passaram por três grandes provas de fé, que foi a doença e a perda de seu filhinho, as
dificuldades do ajuste do culto evangélico com as novas leis da República e o sustento
financeiro insuficiente das igrejas brasileiras para a missão em Portugal. (TURCKER,
1986, p. 518).

De regresso ao Brasil, após espinhosos anos em Portugal, João Marques


serviu no pastorado da Igreja Presbiteriana no bairro da Lapa, São Paulo, em 1929.
Tornou-se um destacado pastor, poeta, conferencista, escritor e educador cristão. É
um legado referencial entre brasileiros e portugueses.
Em 1896, com poucos anos de Brasil, os batistas sentiram o ardor por
missões no além-mar. Porém coube aos presbiterianos o pionerismo na busca de
alcançar as nações. Levando em consideração que o primeiro missionário
presbiteriano chegou ao Brasil em 1859, os batistas deram um grande passo no
planejamento. Já em 1910, os presbiterianos, apenas 51 anos depois, partiram para
alcançar outros povos. O Brasil tomou a decisão mais rápido que os americanos do
Norte, que receberam sua influência evangélica e realização do primeiro culto
protestante na data de 26 de abril de 1607 e somente em 18 de fevereiro de 1812
enviaram os primeiros missionários para a Birmânia. Esperaram por 205 anos até
tomarem a decisão de vulto internacional no campo da missiologia.
Adoniram (1788-1850) e Ann Hasseltine Judson (1789-1826) zarparam do
porto de Salem, Massachusetts, na terça-feira, 18 de fevereiro de 1812. Adoniram
estava com 24 anos e sua esposa com 23. Ann Judson não mais regressou aos
Estados Unidos, pois, 14 anos depois, vencida pela febre amarela e desnutrição,
morreu e está sepultada em algum lugar no atual Myanmar. Adoniram só regressou
a Boston 33 anos depois e ali permaneceu poucos meses, voltando logo para o
campo missionário. Os seus interesses estavam do outro lado do mundo! Todos
aqueles que se envolvem com missões mundiais trazem algo no interior e marcas
nos corpos.
A bordo de um navio em 1850, Adoniram, que amargava crises depressivas,
morreu aos 62 anos enquanto procurava novos ares. Morto, o seu corpo foi atirado
às águas da baía de Bengali. Por escassez tecnológica na área das comunicações,
somente três meses depois a família recebeu a notícia do trágico e fatal
acontecimento.

Os batistas

O estilo congregacional de governo faz dos batistas uma denominação com


variados segmentos dentro de suas diversas associações e convenções.
Expressivos números são filiados à Aliança Batista Mundial, um tipo de fórum
político denominacional. Fundado em Londres, Inglaterra, em 1905, e sediado nos
Estados Unidos, esse órgão existe na busca de equacionar a unidade internacional,
mantendo o vínculo da fé e das práticas. A Aliança representa mais de 47 milhões
de membros que defendem a fé batista espalhados por todos os continentes.
Mesmo que democraticamente fragmentados, são unidos pelas convenções e
associações. Os batistas formam o maior segmento evangélico não pentecostal
existente no Brasil, e o mesmo acontece nos Estados Unidos. As diferentes
associações e convenções existentes abarcam os batistas conservadores,
ultraconservadores, regulares, liberais, livres, independentes, renovados,
pentecostais e até um grupo de sabatistas. Embora tenham as suas profundas
diferenças e divergências litúrgicas, há um forte elo que os une: todos são batistas,
fazem o uso da mesma Bíblia e dos mesmos hinos!
O primeiro missionário batista a chegar ao Brasil foi Thomas Jefferson Bowen
(1814-1875). Ele estava com 46 anos quando desembarcou com Lurenna Henrietta
Davis Bowen, sua esposa, e uma filha de dois anos no porto do Rio de Janeiro, dia
21 de maio de 1860. Chegou ao Brasil pouco mais de um ano após o desembarque
do presbiteriano Ashbel Green Simonton.

Thomas Jefferson Bowen foi o primeiro missionário batista enviado para a África Central,
hoje, Nigéria. Também, o primeiro para o Brasil, pela Foreign Mission Board - Southern
Baptist Convention [...]. É incorreta a informação de que Bowen ficou dois anos no
Brasil. Ele chegou a 21 de maio de 1860, retornando aos EUA a 9 de fevereiro de 1861.
Vale dizer que sua estada neste país foi apenas de oito meses e 19 dias. (OLIVEIRA, B.,
2005, p. 106, 108).

Thomas Jefferson Bowen chegou na expectativa de servir à capelania do


porto do Rio de Janeiro, um dos mais movimentados do planeta naquela época.
Diante da privilegiada localização geográfica, o Rio de Janeiro era considerado a
esquina do mundo; todas as rotas internacionais de navegações passavam por lá.
Um pequeno destaque geográfico: até o ano de 1914, o meio mais rápido e seguro
para quem deixava New York, na Costa Leste, com destino à Califórnia era passar
pelo Rio de Janeiro, cruzando, em seguida, o estreito de Magalhães e subindo pelo
oceano Pacífico até a Costa Oeste dos Estados Unidos. Essa longa e sacrificante
viagem deixou de acontecer com a inauguração comercial do Canal do Panamá,
ponto crucial na América Central. O Canal foi concluído nos dias iniciais da
sangrenta Primeira Guerra Mundial, conflito armado que durou de 28 de julho de
1914 até a histórica assinatura de paz que sucedeu às 11h11 da segunda-feira, 11
de novembro de 1918. A inauguração oficial do Canal do Panamá transcorreu no
sábado, 15 de agosto de 1914, ou seja, exatos 18 dias após o início dos
bombardeios na Europa.

1850, assinala o ano em que milhares de norte-americanos começaram a dirigir-se à


Califórnia por via marítima, seguindo a rota do Estreito de Magalhães, com parada
obrigatória no Brasil. Esse movimento migratório ocasionou o estabelecimento de uma
Capelania de Marítimos no Rio de Janeiro. [...] Pelo ano de 1848, o porto do Rio de
Janeiro já estava recebendo uma média de 10.000 marinheiros americanos por ano.
(VIEIRA, David, 1980, p. 13, 61).

Como já mencionado, antes de chegar ao Brasil, Thomas Jefferson Bowen


havia servido como missionário batista na Nigéria entre os Iorubá, cujo idioma ele
dominava fluentemente. Ao ver milhares de escravos oriundos da África Central,
começou a evangelizá-los. Essa decisão foi o suficiente para amargar alguns dias
em fétidos, frios e sombrios cárceres. Somando-se aos prejuízos pela sua missão
evangelizadora, ainda teve sua família perseguida pelos poderosos senhores de
escravos que exigiam sua deportação em caráter de urgência. Além disso,
“sobreveio-lhe uma recaída de malária e, afinal, seu inteiro trabalho resultou
infrutífero” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 458). Somente conseguiu a libertação
graças à intervenção de influentes amigos estrangeiros. Liberto, foi em seguida
sumariamente expulso do Brasil para sua terra de origem.

A Guerra da Secessão

Quando Thomas Jefferson Bowen, o missionário batista que foi


diplomaticamente convidado a deixar o Brasil sob veladas ameaças, chegou de
regresso à sua pátria, aos 47 anos, encontrou os Estados Unidos em pé de guerra.
Era o início da Guerra Civil Americana, também conhecida como a Guerra da
Secessão, batalha que durou quatro anos, 12 de abril de 1861 até 9 de abril de
1865. Esse foi o mais violento e sangrento conflito interno já vivido nos Estados
Unidos. Calcula-se que um milhão de pessoas morreram entre batalhas,
enfermidades - dentre as quais as mais mortíferas foram malária, tuberculose,
tifoide e disenteria - e tantos outros sucumbiram pela fome, além das intempéries
climáticas produzidas pelos longos períodos invernais e insuportáveis dias de verão.
Refugiado por opção no Brasil, um ex-Confederado informou: “Os piores inimigos
que tivemos que enfrentar nessa guerra foram a doença e a fome.” (OLIVEIRA, B.,
2005, p. 159). Na tenebrosa contagem dos mortos, estão incluídos os cerca de 618
mil soldados que não resistiram aos fogos cruzados no decorrer dos fronts da
guerra. Não foram poucas as fratricidas batalhas na busca de exaltar os seus
estandartes, as bandeiras de um forte e perverso racismo do Sul versus as atitudes
abolicionistas do Norte na procura de adaptações industriais, técnicas e
acadêmicas, dando vazão ao laboratório de ideias instalado principalmante na
região da Nova Inglaterra.
A par da produção do algodão, o sul se tornou grande mercado de escravos. [...] O Sul
permanecia escravagista e nos territórios do Oeste havia grande agitação sobre o
assunto. [...] No Sul o Rei-algodão foi tirano, exigindo de seus súditos muitos sacrifícios
e nas mais variadas formas. [...] O Norte se industrializava muito depressa. Suas
fábricas produziam o suficiente para o seu consumo e era hora de olhar ao redor à
procura de mercado para o excedente. [...] O Norte pagava o imigrante europeu e o Sul
possuía os seus escravos. [...] O Norte que ficasse com suas leis, o Sul ficaria como
estava. (JONES, 1998, p. 30, 31, 32).

O negro foi o principal foco que fez gerar a Guerra Civil Americana. Ainda
bem que, no contexto final, esse conflito resultou na vitória dos abolicionistas
yankees. (NOTA DE RODAPÉ: Sábado, 27 de março de 2021 visitando o Museu
dos Confederados em Greenvile, South Carolina, chamou à minha atenção, embora
esteja bem visível a seguinte informação junto ao caixa: “The Yankee money
exchange” – em uma tradução literal: nós aceitamos o dinheiro yankee – estamos
mencionando algo dentro dos Estados Unidos. Não devemos esquecer que a
Guerra da Secessão acabou há 156 anos! Tudo isso não será um disfarçado
racismo institucional ou xenofobia corporativista? Algo institucional nada mais é que
a sombra ampliada de um homem. FINAL DA NOTA). A Nação estava política e
ideologicamente dividida, contra ou a favor da servidão do negro como escravo.
Estavam no Sul os mais destacados estrategistas de guerras, as mais treinadas
tropas, com animais e abundantes materiais bélicos. “Na memorável frase de
Edmundo Burke (1729-1797), era como lutar para conquistar o cemitério”
(HOCHSCHILD, 2007, p. 352). Diante do poderio do Sul, o Norte não passava de
um ingênuo produtor de cabeças pensantes, porém, essas cabeças mudaram a
geografia na nação. A História passou a ser observada por outros olhos. O Norte
saiu trunfante, quebrando os grilhões que prendiam o negro feito escravo dos
sulistas. Os sulistas brancos!

Do ponto de vista do protestante sulista, os yankees há muito tinham abandonado o


caminho de Deus. O Protestantismo nortista, que não tinha renunciado inteiramente ao
Cristianismo para tornar-se Unitarista, fora influenciado pelos novos conceitos da alta
crítica da Bíblia, ainda que fosse, de modo geral, bem conservador. Além disso, sob a
influência de ideias liberais, os protestantes nortistas tinham-se rebelado contra aquela
instituição peculiar do Sul - a escravidão - pretensamente estabelecida por Deus. Os
escritores católicos brasileiros daquela época, até certo ponto, estavam corretos na sua
interpretação dos motivos religiosos da guerra nos Estados Unidos. Como é comumente
sabido, aquele conflito tivera sua base religiosa: ambos os lados proclamando estar do
lado de Deus e do verdadeiro cristianismo. (VIEIRA, David, 1980, p. 213).

Em seu discurso de posse do primeiro mandato a 4 de março de 1861, o


advogado Abraham Lincoln (1809-1865), com 52 anos, o 16 º presidente dos
Estados Unidos, cognominou a nação de Casa Dividida. Na pauta, estava a citação
bíblica de Mateus 12:25: “Todo reino dividido contra si mesmo ficará deserto, e toda
cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá”. Como já mencionado, era
o Sul escravagista e agrícola contra o Norte abolicionista, já um forte polo industrial
e muito bem recheado das conquistas intelectuais que fluíam das universidades,
especialmente do estado de Massachusetts, o mais influente líder das manobras
que culminaram na abolição e derrota dos escravagistas do Sul. Os dilemas criados
sobejaram ao ensejo da formação dos Estados Confederados da América. Os
Confederados do Sul buscavam uma total independência da União, assim
garantindo a manutenção de uma bárbara escravatura. A utópica nação
escravocrata logo tratou de designar sua capital, instalando o seu quartel-general
em 18 de fevereiro de 1861 na cidade de Montgomery, Alabama. Entretanto, por
questões estratégicas e, certamente para confrontar as decisões da vizinha
Washington, três meses depois, a capital dos Confederados foi transferida para
Richmond, estado da Virgínia. No comando dos Confederados estava o episcopal
Jefferson Finis Davis (1808-1889), além de egocêntrico escravagista, também
defendia o fanatismo da intolerância racial. Em foco estava a supremacia branca em
detrimento da negritude. Jefferson Davis, emoldurado por uma palidez
esbranquiçada, foi um militar, além de fazendeiro algodoeiro, que, aos 53 anos,

tomou posse do governo dos Estados Confederados, em 18 de fevereiro de 1861, tinha


sido escolhido por sete estados somente. [...] Em fevereiro de 1861, o primeiro estado a
se desligar foi a Carolina do Sul, sendo acompanhada logo depois pelo Mississipi,
Flórida, Alabama, Luisiana, Geórgia e Texas. Estes foram os primeiros Estados
Confederados. Logo depois a Carolina do Norte, Arkansas, Tennessee e Virgínia se
juntaram aos outros. (JONES, 1998, p. 42, 32).

Mesmo sob acumulativos prejuízos de vidas, devastações completas de


fazendas, arrocho econômico e desmoralização moral para os sulistas, Jefferson
Davis manteve-se no cargo presidencial dos Confederados até ser derrotado e
finalmente preso no dia 10 de abril de 1865.

O Presidente Buchanan, dos Estados Unidos, estava no fim do seu mandato e não
queria assumir a grave responsabilidade que a solução da secessão dos estados
sulistas exigia. O Presidente Lincoln tomou posse a 4 de março deste mesmo ano, com
um problema dos mais graves a enfrentar. O Norte considerava a secessão uma
rebelião que teria de ser sufocada pelas armas. O Sul considerava a secessão um
direito que lhe assistia. Nenhum dos Presidentes queria a guerra. A situação de
exaltação e provocações desenvolveu-se tanto que não havia mais como recuar. Agora
havia 11 estados na Confederação. Em 12 de abril, Lincoln convocou as forças federais.
(JONES, 1998, p. 43).

Abraham Lincoln, após várias corridas na busca de encontrar o caminho que o


levasse à Casa Branca, foi, finalmente, triunfante graças à sua corajosa
persistência, integridade e jogada política. Quando eleito Presidente - o primeiro do
partido Republicano -, manteve-se firme em suas decisões governamentais mesmo
sob desumanas críticas e não poucas ameaças. “Esse republicano negro, como
chamavam” (DAVIDSON, 2016, p. 168), acabou com o vício americano de
escravizar negros ao lançar uma preliminar para a libertação em 12 de setembro de
1862, ato que entrou em vigor em 1 o de janeiro de 1863. No embalo que lhe garantiu
o segundo mandato presidencial, conseguiu superioridade nas estratégias militares.
Embora com muito sangue derramado, conseguiu alterar satisfatoriamente a história
dos Estados Unidos, vencendo a guerra contra os Confederados, os quais,
derrotados, assinaram o termo de incondicional rendição em Washington na manhã
de sábado, 1º de abril de 1865. Nove dias depois, Jefferson Davis, o presidente dos
derrotados Confederados, foi levado para uma prisão federal. Seus dias detidos
foram poucos, porém o profundo ódio contra os yankees and blacks o acompanhou
até a morte em New Orleans, estado de Louisiana, no dia 6 de dezembro de 1889
aos 81 anos. Jefferson Davis nasceu na sexta-feira, dia 3 de junho de 1808, em
Fairview, Kentucky. Mesmo sendo protestante episcopal, cresceu fazendo
livremente o uso da mão de obra do negro feito escravo de branco. O negro não
veio ao mundo para ser escravo, entretanto, diante dos jogos de interesses do
corporativismo, fê-lo por séculos um servidor que trabalhava exageradamente sob
ordens lucros para o seu senhor. Parafraseando Victor Hugo: “Em meio à sociedade
humana os miseráveis escravos não são nem crianças, nem homens, nem
mulheres, mas espécies de monstros impuros e inocentes produzidos pela miséria.
Tristes criaturas sem nome, sem idade. […] não têm nada neste mundo, nem
Liberdade, nem virtude, nem responsabilidade. São almas desabrochadas ontem,
murchas hoje, semelhantes às flores que caem pela rua, manchadas por todo tipo
de lama antes de serem esmagadas por alguma roda” (HUGO, 2007, v. 1, p. 700).
Quando o Norte ventilou a total emancipação dos escravos, Davis liderou a
guerra para manter o direito dessa degradante servidão nos Estados Unidos. Estava
com 57 anos ao perder a guerra e, juntamente com a derrota, os seus sonhos
escravagistas foram sepultados. Após se render, viveu outros 24 anos. O desfecho
final de sua vida transcorreu na sexta-feira, 6 de dezembro de 1889. Durante quatro
anos o seu corpo se manteve no cemitério de Metairie, parte da Grande New
Orleans. Somente em 1893, a pedido de sua esposa, seu corpo foi trasladado para
o cemitério de Hollywood, em Richmond, Virgínia. Por sua vez, Abraham Lincoln, o
16º Presidente, nasceu no domingo, dia 12 de fevereiro de 1809, em Hodgenville,
Kentucky, o mesmo estado do seu oponente. 87
Menos de três anos após findar completamente a escravatura, Abraham
Lincoln foi mortalmente atingido em sua nuca pelo projétil de um revólver de cano
curto, calibre 44. Os relógios assinalavam 22 horas e 13 minutos da noite de Sexta-
Feira da Paixão, 14 de abril de 1865. Ele e Mary Todd Lincoln (1818-1882), sua
esposa, estavam no Ford’s Theatre, em Washington, assistindo à peça do
momento: Nosso primo norte-americano. O cruento agressor e autor do único e
certeiro disparo a queima-roupa foi John Wilkes Booth (1836-1865), um conhecido
ator e espião escravagista natural do estado de Maryland. O assassino que alí já
havia representado em várias peças, estava muito bem familirizado com todas as
entradas e saídas daquela casa de espetáculos, por uma delas se escapou, embora
ferido pela queda, bradou em audível latim “Sic semper tyrannis” (essa a razão da
tirania). Booth protagonizou a cena de assassino traiçoeiro que lhe eternizou! Foi
perseguido pelas autoridades competentes; encontrá-lo era uma questão de honra e

87
Na segunda-feira, 23 de julho de 2019, após pesquisas na biblioteca da Tulane University e, muito
bem assessorado pela professora Claudia Brito, uma bem sucedida mineira/americana oriunda de
Governador Valadares. Exercendo a função de sercetária do departamento linguístico daquele
centenário centro educacionário, estive no Lake Lawn Metairie Funeral Home, o mencionado
cemitério onde por quatro anos permaneceram os restos mortais de Jefferson Davis por quatro anos.
segurança nacional. Após o vasculhar palmo a palmo por diferentes locais, ele foi
encontrado e, finalmente, morto 12 dias depois - 26 de abril - por volta das sete
horas da manhã na fazenda Garret. Atingido pelos projéteis das armas utilizadas
pelos policiais, Booth morreu agonizante, com somente 27 anos. Suas palavras
finais foram “Useless! Useless!” (Inútil! Inútil!). Todos os seus comparsas que no
complô eram conhecidos políticos, fazendeiros escravagistas e outros que
buscavam desestruturar o andar democrático de uma nação que despontava em
sua liderança no ranking mundial. Os autores foram presos, julgados e penalizados
segundo as leis vigentes na época. Aqueles que não foram enforcados
apodreceram em fétidas celas prisionais.
Segundo as diferentes fontes pelas quais cruzei as pesquisas, Abraham
Lincoln nunca possuiu escravos, tão pouco filiou-se a uma igreja protestante, porém
era temente a Deus e assíduo leitor da Bíblia. Li em algum lugar uma de suas
muitas falas: “Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens
em covardes”. Lincoln, vitalmente ferido, embora imediatamente socorrido por
Charles Augustus Leale (1842-1932). Leale era um médico cirurgião nascido em
New York City e, capitão do exército da União, estava presente naquele fatídico
espetáculo, não obstante, todos os primários socorros aplicados em nada alterou o
quadro clínico que se tornou irreversível. Esteve durante nove horas em mortal
estado de coma, Lincoln faleceu aos 56 anos, às sete horas e vinte e dois minutos
da manhã de sábado, 15 de abril de 1865. Foi ele, o primeiro Presidente dos
Estados Unidos da América do Norte a ser assassinado. “Dois anos antes, (quinta-
feira, 19 de novembro de 1863) Lincoln homenageara os homens que sucumbiram
no campo de batalha em Gettysburg como cidadãos que dedicaram à nação toda
sua devoção. Agora, era a vez do presidente. Milhares de enlutados foram prestar
sua última homenagem quando o trem funerário o levou de volta a Illinois; muitos
devem ter se lembrado de suas últimas palavras em Getyysburg: Aqui declaramos
solenemente que estes mortos não morreram em vão, que esta nação, sob a
proteção de Deus, terá um renascimento da liberdade e que o governo do povo,
pelo povo, para o povo, não desaparecerá da Terra” (DAVIDSON, 2016, p. 169).
Esse foi o seu mais famoso discurso, uma lauda com 272 palavras, ditas em menos
de dois minutos! Três horas após sua morte o democrata e vice-presidente Andrew
Johnson (1808-1875), nascido em Raleigh, Carolina do Norte assumiu o comando
da nação na Casa Branca. “Antes de entrar para a política, Andrew Johnson fora
alfaiate modesto do Tennessee que mal sabia ler” (DAVIDSON, 2016, p. 170),
entretanto, chegou a patente de general de brigada. Por faltar-lhe jogo politico, foi
um governante sob contínuas ameaças de ter o mandato cassado. A batalha nos
bastidores foram violentas. Por uma margem insignificante de votos o 17º
Presidente, em 1868 foi absolvido do impeachment, árduas batalhas que durante
três meses incendiou os parlamentares na Casa dos Representantes e no Senado.
Reunidos em agressivas sessões realizadas no edifício do Capitólio em
Washington.
O sepultamento ocorreu na quarta-feira, dia 19 de abril, em Sprinfield,
88
Illinois, o mesmo estado de onde, nove anos antes, em 1856, famílias portuguesas
oriundas da Madeira seguiram para o Brasil a convite do Dr. Robert Red Kalley.
Missionários que fizeram a diferença pelos campos, pelas cidades e pelos valados
do Brasil.

Os protestantes escravagistas no Brasil

A teologia protestante em alguns momentos esteve casada com a maçonaria - em


algumas igrejas ainda continua -, com a pobreza, com o nazismo, com o escravismo,
com o capitalismo, com o marxismo, com a filosofia platônica, e, apesar disto, entre
maçons, nobres, camponeses, direitistas, esquerdistas, filósofos, em nosso meio - ainda
- há crentes. Muitos. (ALENCAR, 2005, p. 109).

Um dos ex-combatentes sulistas, o coronel William Hutchinson Norris (1800-


1893), ardoroso defensor da fé batista - inconformado com a derrota e as condições
a que teriam que se submeter e agora não mais contando com a mão de obra
escrava em suas lavouras -, lidera um movimento migratório para outros países. “A
derrota do Sul na Guerra Civil atraiu milhares de sulistas estadunidenses ao Brasil.
[...] eram defensores da ideologia confederada de supremacia branca sulista”
(CHAVES, 2020, p. 32, 33). No cerne da ideologia confederada, nunca se apagou a
ânsia de manter o negro como escravo da supremacia branca, assunto largamente
documentado por diferentes historiadores sem erguer bandeiras denominacionais
ou viés do politicamente correto. O tênue cortinado que protegia os tumulares
segredos daqueles santos missionários está sendo rasgado por diferentes
pesquisadores de nossos dias. Ainda bem que, no estado democrático, não há
espaço para a odiosa inquisição; caso contrário, estaríamos fritos!

O término da Guerra Civil Americana - a Guerra entre os Estados - em 1865, encontrou


o Sul Confederado prostrado, sua juventude dizimada, seus verdes campos assolados
pela guerra e pelo abandono, muitas de suas mansões em ruínas, sua economia
baseada no trabalho escravo - destroçada, e a humilhação da derrota em batalha,
agravava, mil vezes mais, pela humilhação de uma ocupação desumana e
inescrupulosa, a de pós-guerra, pelos aventureiros do Norte. (JONES, 1998, p. 9).

88
No livro A Bíblia e a África, apresentei uma relação de coincidências de datas e nomes
relacionados ao Presidente Abraham Lincoln. Quero aqui deixar registrada outra situação que
merece destaque. Abraham era casado com Mary Todd Lincoln desde 4 de novembro de 1842. No
ano seguinte, em Springfield, Illinois, nasceu Robert Todd Lincoln (1843-1926), filho primogênito, o
único a chegar à idade adulta. Em 1863, Robert, aos 21 anos, era estudante na Harvard Law School.
Aproveitando um pequeno período de férias, ele seguiu de trem de Boston até Washington com
conexão em New Jersey City. Era noite. Ao descer do vagão-leito, desequilibrou-se e caiu nos trilhos
a poucos metros de uma locomotiva em movimento. Na plataforma estava Edwin Thomas Booth
(1833-1893), um famoso ator, natural de Maryland. Sem saber a origem familiar daquele jovem que
havia caído, o ator colocou em perigo sua própria vida, saltando sobre os trilhos para salvar Robert
Todd Lincoln da morte naquela noite. Tudo seria considerado um ato de extrema coragem de um
cidadão na busca de salvar um jovem da iminente morte sob uma pesada locomotiva. Tudo bem, se
Edwin não fosse o irmão mais velho de John Wilkes Booth (1838-1865), que, dois anos depois,
alvejaria mortalmente Abraham Lincoln, pai de Robert! A história de Robert é recheada de curiosos e
mortais acontecimentos.
Dentre outras nações, o Brasil foi escolhido como destino de Norris pelo fato
de possuir grandes extensões de terras férteis, por ainda ter o abusívo trabalho
escravo e pela acolhida que o governo imperial, liderado por D. Pedro II, estava
oferecendo aos pretensos emigrantes. O Imperador do Brasil, bem como o coronel
Norris, além de outros líderes, eram ligados à maçonaria, o que facilitou em muito
essa aproximação. O coronel protestante e escravagista foi Grão-Mestre da Grande
Loja Maçônica existente na capital do Alabama, advogado e senador por aquele
estado. “Até hoje o seu retrato ocupa lugar de honra na Loja Montgomery” (JONES,
1998, p. 42).89
Após os acertos finais para uma nova etapa de vida fora dos Estados Unidos,
que mantiveram a União encabeçada pelos yankees, “milhares de confederados
empobrecidos expressaram o desejo de ir para o Brasil. [...] era uma nação africana,
liderada por uma pequena minoria branca” (VIEIRA, David, 1980, p. 112, 124).
Rumo ao Brasil seguiu uma comitiva heterogênea.

Nem todos os imigrantes americanos que vieram para cá eram homens de família e bem
intencionados. Muitos eram aventureiros, sem raízes e sem responsabilidade, sem juizo
e muitos deles sem moral. Estes iam de uma coisa para outra, uns à procura de
emoções e outros só do lucro fácil. [...] dois deles foram julgados pela Corte Militar e
executados. [...] Os americanos eram um grupo muito heterogêneo. Muito poucos
podiam ser considerados material bom para imigração. Havia médicos, dentistas,
ministros evangélicos, comerciantes, lavradores, ferreiros, marceneiros, gente boa e
gente ruim, desde as mais santas criaturas até os que eram considerados escória de
guerra. (JONES, 1998, p. 124, 125, 177).

Era uma malta psicologicamente dominada por revoltados e derrotados


Confederados que odiavam os yankees, grupo do Norte dos Estados Unidos que
manteve sob armas a União e a coesão da nação. “Não basta acabar com os
abusos; é preciso modificar os costumes” (HUGO, 2007, v. 1, p. 62). Como era de
se esperar, em meio à heterogênica massa, havia intelectuais, dentistas,
advogados, profissionais liberais, agricultores, médicos, geólogos, professores,
mecânicos, inventores e até pastores protestantes (certamente, alguns também de
índole escravagista) acompanhando os seus rebanhos ansiosos por desfrutar de
carne humana. Vem à mente o alinhado texto de um profeta em Israel: “… e deles
arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos” (Miqueias 3:2).
Devo ressaltar a observação levantada pela falecida professora, escritora e
pesquisadora Betty Antunes de Oliveira (1919-2016), batista carioca, descendente
por linhagem materna dos ex-Confederados americanos, cujo bisavô Robert Porter
Thomas (1825-1897), quando pastor da Igreja Batista da Estação, hoje cidade de
Americana, batizou por imersão, dia 20 de junho de 1880, Antônio Teixeira de
Albuquerque (1840-1887), um ex-padre que havia sido excomungado pelo jovem
Dom Vital Maria, o jesuítico e ultramontanista bispo de Olinda, Pernambuco: “dos
emigrados, nem todos eram escravagistas [...]. Consta que dois emigrados
trouxeram dois escravos que tinham sido libertados nos EUA” (OLIVEIRA, B., 2005,
89
Estive no cemitério localizado na Fazenda dos Confederados em Santa Bárbara d’Oeste, onde se
encontra a sepultura do coronel Norris. Na lápide identificativa, há o emblema da maçonaria. No meio
do cemitério, está a capela local das reuniões dominicais dos batistas.
p. 30, 31). Alojados nas férteis terras no interior paulista, sem nenhum
constrangimento, utilizavam-se da mão de obra sob servidão negra. Era tudo com
que os confederados sonharam nos Estados Unidos: o exercício do garantido e total
direito da supremacia branca pelo qual “o escravismo apresentava-se como uma
grotesca exceção que o Império do Brasil era o último país do mundo aferrado em
manter” (ALENCASTRO, 2004, p. 93). Para aqueles derrotados e magoados
Confederados, o Brasil, aonde a primeira leva chegou em novembro de 1865,
despontava como dourados prados, o sonhado paraíso terrestre ditado pela
branquitude da suposta supremacia calvinista.

Os sulistas norte-americanos ficaram animados com o regime de grandes propriedades


escravocratas vigente no Brasil. Para muitos, este foi o mais poderoso atrativo em sua
vontade de emigrar, impelidos que vieram pelo desejo de aqui, de alguma forma, recriar
o tipo de vida que tiveram na imensa comunidade rural que era o sul antes da guerra.
(OLIVEIRA, M., 2004, p. 122, 123).

A república americana, no entanto, ainda não havia sarado das chagas causadas pela
guerra. Mal tinham os canhões silenciado em Appomattox, quando rebeldes obstinados
começaram a mudar-se dos Estados Unidos em busca de outros países onde
estivessem livres do governo yankee, e longe dos negros recém-libertados. [...] Como é
geralmente conhecido, o Sul era, como até certo ponto ainda é, o chamado círculo da
Bíblia dos Estados Unidos. [...] O protestante sulista acreditava que ele, só ele, era o
verdadeiro defensor da palavra de Deus. (VIEIRA, David, 1980, p. 211, 212).

No grande Brasil escravagista, o local escolhido para a fixação da maioria


daquela malta de aventureiros protestantes foi onde se encontram hoje as cidades
de Santa Bárbara d’Oeste e Americana. Aliás, este topônimo surgiu em demanda da
chegada dos americanos naquelas distantes plagas paulistas. Nessa região,
fundou-se a primeira Igreja Batista em solo brasileiro, havendo também a expansão
dos metodistas que, em 13 de setembro de 1881, fundaram o Colégio Piracicabano.

O Piracicabano foi um colégio que se destacou ao estabelecer três princípios básicos


para a educação no Brasil: introdução da educação conjunta para ambos os sexos,
dignidade da instrução superior para as mulheres e liberdade de religião no campo
educacional. (ALMEIDA, R., 2014, p. 251).

Com raras exceções, esses americanos chegaram no Brasil para colonizar e


não para evangelizar um país abarrotado de pobres negros transformados em
escravos. Uma distante descendente daquelas famílias americanas salientou o
comportamento de seus ancestrais: “Não eram dados ao proselitismo religioso”
(JONES, 1998, p. 18). Em outras palavras: não estavam interessados na divulgação
da fé protestante; pelo contrário, cada um continuava na sua!
Richard Ratcliff (1831-1912), importante pastor e conceituado membro da
maçonaria, estava com 40 anos quando organizou em Santa Bárbara D’Oeste, no
domingo, 10 de setembro de 1871, o trabalho da “Primeira Igreja Batista Missionária
Norte-Americana do Brasil” (ALMEIDA, R., 2014, p. 177). Como muito bem
identificado, essa foi a primeira obra batista no Brasil, organizada com 23 membros
sob ministrações do pastor Richard Ratcliff que ali permaneceu até 1878. No
decorrer de vários anos, os cultos foram realizados em inglês, pois a frequência era
apenas de famílias americanas ou de brancos que pudessem comunicar-se
fluentemente no idioma do dramaturgo William Shakespere (1564-1616). “O trabalho
missionário batista no Brasil foi, acima de tudo, o trabalho do Sul estadunidense no
exterior” (CHAVES, 2020, p. 31). Em outras palavras, o foco principal era o privilégio
que a supremacia branca mantinha de usar corpos negros como mercadoria, direito
que haviam perdido na outra América.

Antônio Teixeira de Albuquerque

Enquanto aquele grupo de refugiados Confederados estava organizando uma


igreja protestante de fé batista em Santa Bárbara d’Oeste, interior de São Paulo, a
primeira em território nacional, naquele mesmo e histórico ano de 1871, um jovem
brasileiro na casa dos 31 anos, nascido em Maceió, capital e mais populosa cidade
da província de Alagoas, fazia também o percurso de sua história de religião.
Antônio Teixeira de Albuquerque (1840-1887), após concluir os seus árduos e
longos anos de estudos no Seminário Nossa Senhora das Graças, em Olinda,
recebe as ordenanças sacerdotais da Igreja Católica Apostólica Romana. Até então
ele era um jovem inseguro em suas decisões pessoais e também sacrais. Meio
obrigado e sem saber dizer não, foi levado aos pés do bispo para a sagração e
votos sacerdotais. “Este controvertido personagem fora ordenado em Fortaleza, CE,
no dia 30 de novembro de 1871, mas, três anos mais tarde, abjurou o catolicismo”
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459).
Mesmo contra a sua vontade, Antônio Teixeira de Albuquerque, ainda
adolescente, foi levado pelo pai para estudar no já centenário Seminário Católico de
Olinda. Cruzando informações diversas, é possível deduzir que Antônio Teixeira era
um distante descendente do português “Jorge de Albuquerque (1546-1620), terceiro
donatário da capitania de Pernambuco. [...] O convento aberto em Olinda no ano de
1585 viria a se tornar a casa-mãe dos frades no Brasil” (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 28). Entretanto, havia um grande conflito interno que não se calava, mas
também não falava! O seu maior sonho não era ser padre e, sim, casar-se, constituir
família e livrar-se das garras do celibato exigido pela religião oficial do Império. Em
contrapartida, o pai sonhava que o filho se tornasse um sacerdote católico,
proporcionando uma ascensão no status familiar diante do estrelato imperante na
burguesia reinante. De pouca sorte, o filho que foi até deserdado e amaldiçoado ao
abraçar uma nova fé veio a morrer precocemente em Maceió antes de completar 48
anos. Esse padre/pastor deixou indeléveis rastros na história do catolicismo e no
protestantismo brasileiro. Era um homem estudioso, culto, franciscanamente
metódico, adornado de saber, apesar de sua humilde e pobre aparência que
confundia os ouvidos da freguesia paroquial. A Bíblia Sagrada sempre está cheia de
razão: “a humildade precede a honra” (Provérbios 15:33).
Enquanto servia como pároco em Maceió, capital do estado de Alagoas,
Antônio Teixeira secretamente passou a assistir reuniões com o americano John
Rockwell Smith (1846-1918), um missionário presbiteriano que, para livrar-se das
perseguições impetradas diante das autoridades contra os protestantes da época,
optou “pela cidadania brasileira” (VIEIRA, David, 1981, p. 339), algo muito raro em
toda a história do Brasil. Após ouvir palestras e estudar a Bíblia juntamente com o
missionário Smith, o padre Antônio, já desiludido de sua primária fé, chegou à
conclusão de que a doutrina católica romana não era tão bíblica como lhe
ensinaram. Nesse período, além do estado de Alagoas, estava novamente
alvorecendo em Pernambuco uma acanhada presença do protestantismo pelos
lados do Nordeste. A ideologia protestante foi retirada do Nordeste em
consequência da derrota e expulsão dos holandeses reformados no ano de 1654.
O grande dilema religioso daqueles dias rondava em torno da polêmica sobre
a virgindade perpétua de Maria, a mãe de Jesus, e sua coparticipação na remissão
dos pecados da humanidade, uma das bandeiras levantadas pelos maçons
recifenses. Foi nesse clima de questionamentos que o padre Antônio zarpou para
Pernambuco acompanhado de uma ex-paroquiana na casa dos 17 anos, com quem
se casou na cidade do Recife, dia 7 de setembro de 1878. A cerimônia foi realizada
pelo seu amigo, o missionário John Rockwell Smith, “que no dia 11 de agosto
precedente, junto de 12 neófitos, havia organizado naquela cidade uma comunidade
eclesial presbiteriana” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459). Antônio Teixeira de
Albuquerque, o padre desertor, casou-se exatamente 63 dias após a morte de D.
Vital Maria, transcorrida na França, aos 4 de julho de 1878. Segundo se ventila, o
seu algoz inimigo foi envenenado na cidade de Paris, morrendo com somente 33
anos. Voltaremos ao assunto.
Parece que havia uma assombrosa maldição de morte prematura sobre os
líderes rodeando o grande e geograficamente estratégico prédio do Seminário de
Olinda, educandário eclesial que, no passar dos anos, se tornou centro de vários
dissabores políticos e frutos de não poucos atos de rebeliões. O poliglota Dom
Manuel do Rego de Medeiros (1830-1866), doutor em direito civil e canônico, parece
que foi o primeiro fruto dessa tenebrosa trama de silenciamento. O bispo Medeiros,
regressando por cabotagem de uma reunião no Rio de Janeiro,

após participar de uma refeição com alguns passageiros do navio, assim que retornou
aos seus aposentos foi acometido por um súbito mal-estar. Os sintomas eram
estranhos, dando espaço a suspeitas de envenenamento: o estômago inflamou-se e
todo o corpo tornou-se febril. Padre Razzini tentou pedir ajuda, mas recebeu como
resposta apenas indiferenças. O estado de saúde de Dom Manuel piorou rapidamente,
e, após confessar-se, faleceu em Maceió, AL, no dia 16 de setembro de 1866. Contava
com apenas trinta e seis anos de idade. [...] o nomeado para substituir a diocese foi o
rosminiano Dom Francisco Cardoso Aires (1821-1870). [...] Ele era natural do Recife,
mas pouco se conhece da sua juventude. [...] como o antecessor, teve uma atuação
breve: quando participava das primeiras sessões do Concílio do Vaticano I, uma febre
fulminante, talvez tifoide ou malária aconteceu, provocando sua morte três dias depois,
14 de maio de 1870. [...] o sucessor de Dom Aires seria Dom Vital Maria Gonçalves de
Oliveira (1844-1878). Natural de Pedras do Fogo, lugarejo depois incorporado ao
município de Pilar, PB, aos 16 anos de idade ele, sentindo-se vocacionado, pediu para
ser admitido no seminário de Olinda. [...] Tinha apenas 27 anos ao ser empossado no
dia 24 de maio de 1872, tocando-lhe o governo de uma diocese imensa. (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 250, 251, 253, 254).

Dom Vital Maria, bispo de Olinda/Recife, e Dom Antônio Macedo, bispo do


Pará, foram as principais vozes a se levantarem contra a maçonaria, o padroado
imperial e, a reboque, os protestantes americanos/europeus que davam uma nova e
enigmática cara ao cristianismo para o público brasileiro. O doutor Cristiano
Benedito Ottoni (1811-1896), Diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II, engenheiro de
formação e mineiro de nascimento, que chegou a capitão-tenente da Marinha, em
seu tratado sobre A liberdade de cultos no Brasil, gritou por socorro: “Maçom não
pode ser padrinho de batismo, maçom não recebe os sacramentos sem abjurar, isto
é perjurar; cadáver de maçom não é encomendado. Daqui não poderá casar, não
terá sepultura sagrada etc.” (VIEIRA, Dilrmando, 2016, v. 1, p. 419). Os dois citados
bispos foram detidos e setenciados a quatro anos de trabalhos forçados. Eram
ultramontanos, sabiam fazer a manobra do sagrado na utilização dos crédulos como
massa de manobra. O principal objetivo era detonar completamente com as lojas
maçônicas que proliferavam por diferentes espaços, incluindo não poucos oficiais
das sacristias.

Os elementos do conflito já estavam articulados, e o estopim foi o discurso proferido


pelo sacerdote português, Pe. José Luís de Almeida Matins, aos 2 de março de 1872 no
Grande Oriente, da Rua Marquês do Lavradio, enaltecendo a maçonaria na pessoa do
grão-mestre visconde do Rio Branco. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 349).

Dez e doze meses após o discurso do padre Martins no Rio de Janeiro, Dom
Vital Maria e Dom Antônio Macedo já estavam sendo presos sob ordens dos
magistrados do Supremo Tribunal de Justiça.

A ordem de detenção do bispo de Olinda, datada de 22 de dezembro de 1873, chegou


ao Recife no dia 1º de janeiro de 1874, e, no dia seguinte, o desembargador Quintino
José Miranda, Chefe de polícia, por volta de uma hora da tarde, apresentou-se no
palácio episcopal da soledade, com seu escrivão, para ler o decreto e executar a ordem.
O bispo ouviu-o tranquilo, mas disse que só iria levado à força. Ele saiu para buscar o
destacamento [...] Chegando a força requisitada, junto ao desembargador estavam o
inspetor do arsenal da marinha, um tenente-coronel e vários soldados. [...] O bispo se
dispôs ir até a prisão a pé, mas o juiz [...] advertiu-o que ele, na condição de prisioneiro,
já não possuía vontade própria. [...] Quanto a Dom Antônio, no dia 20 de março de 1874,
prevendo a própria prisão, como já fizera Dom Vital [...] no dia 28 de abril, o juiz de
direito João Florentino Meira de Vasconcelos ordenou a prisão do prelado de Belém,
indo ele próprio entregar o mandadto. Após lê-lo, Dom Antônio, repetindo o gesto de
Dom Vital, disse que cedia à força, mas que ia protestar. [... Levado para o arsenal da
marinha local, Dom Antônio seria embarcado no dia 7 de maio para a capital federal, a
bordo de um vapor inglês, que o fez chegar à sua destinação no dia 19. [...] Dom Vital foi
considerado culpado e condenado à pena de prisão por quatro anos com trabalhos
forçados e custas. No dia 13 de março o imperador comutaria a pena em prisão simples.
[...] Fato parecido sucederia ao bispo do Pará. Antes que fosse julgado, a fala do Trono
de 5 de maio de 1874 já o dava por condenado, porque Dom Pedro II deixou claro ser
imprescindível que o Estado conservasse intacto seu controle na ambiência eclesiástica.
[...] Enfim, aos 17 de setembro de 1875, o imperador rubricou o decreto n. 5.993, que
anistiava a todos os eclesiásticos punidos. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 387, 388,
392, 397, 414).

O império já estava diante de uma crise de identidade e autoridade. Era um


decadente Brasil que nunca mais foi o mesmo. O Manifesto Republicano publicado
em 1870 ganhou novos sabores em suas linhas! Não podemos esquecer que as
prisões foram relaxadas e soltos os sentenciados graças à intervenção da Princesa
Isabel Cristina (1846-1921), que, na época, era a mais praticante da fé católica entre
a família imperial brasileira.

Esse era o desfecho que a princesa desejara desde o início: Conta-se que ela, muito
pejada, nos últimos dias de uma gravidez, ia pessoalmente de chinelos - devido ao seu
estado - Caxias pedir uma solução para o caso, que afinal acabou sendo resolvido como
pretendia. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 414).

Na citação acima, o “Caxias” refere-se ao marechal de exército Luís Alves de


Lima e Silva (1803-1880). Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira ficou preso
cerca de dois anos nas dependências da fortaleza de São João, nas proximidades
do Morro da Urca, Rio de Janeiro. Por sua vez, Dom Antônio de Macedo Costa, seu
colega de prelado e infortúnios, foi levado para a fortaleza de São José da Ilha das
Cobras, a mesma prisão de onde o alferes José Joaquim da Silva Xavier (1746-
1792), vulgo Tiradentes, saiu para ser enforcado. Ambos os prelados, mais
sortudos, receberam o alvará de anistiados na sexta-feira, 17 de setembro de 1875,
data simbólica dos 83 anos do enforcamento do matutador e tropeiro nascido na
Fazenda Pombal, nos confins da atual cidade de Tiradentes, Minas Gerais.
O barbudo bispo de Olinda era um jovem paraibano briguento, caçador de
confusão, obstinado nos ataques para se defender e que sagazmente conseguia
tirar proveitos próprios no armar das barracas. Era dono natural de uma habilidade
descomunal na utilização da pena molhada na tinta nanquim, uma invenção chinesa
com mais de dois mil anos. Somente uma semana após sua soltura, redigiu uma
carta pastoral anunciando o término da reclusão. Em poucas palavras verbalizou
tudo aquilo que lhe corroía o interior:

Relaxaram-se afinal, as cadeias da nossa prisão! [...] E, que diremos do Estado? ... Esse
vai rolando precípete, pelo declive escorregadio de um plano inclinado. Já tem descido
muito; continua a descer, a descer sempre! Irá certamente, esboroar-se, no fundo do
abismo, se na carreira vertiginosa em que se despenha, não o detiver expressa a mão
de Deus. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 415).

Regressando aos contecimentos anteriores à sua prisão e baseados em


diferentes informações, sabemos que Vital Maria Gonçalves de Oliveira era um
esbelto jovem dono de uma idílica aparência e, como todos os líderes,
continuamente assediado pelo sexo oposto. A imprensa liberal não o perdoadava!

A pressão atingiu seu ponto máximo quando, no afã de difamar o bispo de Olinda, a
imprensa anticlerical insinuou que ele mantinha uma relação clandestina com a irmã
Virgínia Jannozzi. [...] Nesse meio tempo certos maçons se enveredaram pela senda da
difamação moral. Dom Vital era jovem, viril e bem apessoado, e foi com base nos seus
dotes físicos que a campanha infamante teve início. Aos 7 de desembro de 1872 A
Verdade publicou uma carta de um certo Nabucodonosor, assegurando que o prelado
de Olinda era um vaidoso que passava o seu tempo fazendo as unhas e penteando a
barba. (VIEIRA, Dilermsndo, 2016, v. 1, p. 291, 359).

Em meio a todos esses embaraços de nefastas acusações, com o corpo


doentio e, há onze meses livre da prisão, o jovem bispo estava à procura de um
refúgio seguro.
No dia 12 de outubro [de 1877], partiu para a Corte e aparentava estar tão mal que a
princesa Isabel lhe aconselhou procurar um tratamento adequado na Europa. Ele acatou
a sugestão [...] Na Europa demourou um pouco em Clermont Ferrand e, depois de se
submeter a tratamento de especialistas franceses, seguiu para Roma [...]. Aos 26 de
fevereiro de 1878, retornou à França, chegando em Paris no dia 13 de maio, onde se
hospedou no convento La Santé. Malgrado a confiança que Leão XIII depositava em sua
pessoa, o jovem prelado agonizava, vindo a expirar por volta das 23h20 do dia 14 de
julho daquele ano. O falecimento de um bispo na flor da mocidade – contava com
apenas trinta e três anos de idade e seis de episcopado - suscitou muitas
interrrogações. [...] o médico que o seguia, Dr. Ozanam, ao examinar seu cadáver, notou
uma placa negra de 15 cm de diâmetro na região umbilical. A conjectura foi que a causa
mortis teria sido envenenamento a longo prazo, mas jamais se chegou a um diagnóstico
definitivo. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 365, 368, 372).

D. Pedro II, pouco antes do seu embarque para a sua segunda viagem
internacional em 1876, não esqueceu de orientar sua filha Isabel com relação às
duas jovens feras de batina, homens já anistiados, porém perigosos.

‘A questão dos bispos cessou. Mas receio ainda do de Olinda, quando voltar à sua
diocese. [...] O bispo do Maranhão está enfermo. Todo cuidado na escolha de novo
bispo. Há padres dignos do cargo sem serem eivados de princípios ultramontanos’.
Diante da inesparada morte do bispo Vital Maria, o prelado em Olinda foi ocupado pelo
paulista [...] Dom José Pereira da Silva Barros (1835-1898). [...] também fez questão que
o corpo de Dom Vital ficasse sepultado no Brasil, e não em Versailhes, na França, onde
então se encontrava. O cônego Francisco do Rego Maia foi encarregado de levar a cabo
a trasladação, o que realizou com êxito, desembarcando em Recife aos 6 de julho de
1882. Isso posto, os despojos foram solenemente depositados na igreja da Penha, onde
ainda hoje se encontram. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 422, 423, 431). 90

Novos dados sobre a mariolatria, citada em páginas anteriores, são


oferecidos pela leitura de outro acadêmico também de nome Vieira que, assim foi
classificado por Gilberto Freyre (1900-1987) na apresentação de sua valiosa
pesquisa sobre O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa. “[...] ao mesmo
tempo que inteligente, honesto. Intelectualmente honesto. Pessoalmente honesto.
[...] É a marca do historiador intelectualmente honesto. E sua ausência, o sinal do
intelectualmente desonesto”. Trata-se do professor e pesquisador David Gueiros
Vieira (1929-2017), que foi um notável acadêmico nascido em uma tradicional
família presbiteriana de origem pernambucana, o qual é muito enfático em seus
escritos.

Infelizmente, para o movimento de desagravo da Virgem Maria, naquela mesma ocasião


um padre alagoano, chamado Antônio Teixeira de Albuquerque, tomou como mulher
uma jovem de 17 anos, chamada Francisca de Jesus. Os pais de Francisca, Manuel
Quirino dos Santos e Generosa Maria da Glória se tinham oposto, violentamente, à
união. O padre e a moça fugiram de jangada para Pernambuco. (VIEIRA, David, 1980,
p. 5, 9, 332).

90
Aos interessados nesse período da História do Brasil, recomendo entre outros os seguintes livros:
A. “O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil”. Autor Davi Gueiros Vieira, Editora
Universidade de Brasília, 1980.
B. “História do Catolicismo no Brasil”. Autor Dilermando Ramos Vieira, Editora Santuário, 2016.
C. “D. Pedro II a terra santa e os protestantes”. Autor Magno Paganelli, Arte Editorial, 2020.
No ano seguinte, 1879, Antônio Teixeira, com sua mulher, viajou para o Rio, sendo ali
acolhido em 9 de março por John James Ransom (1853-1934), que reconheceu seu
batismo católico e ele, junto de Senhorinha, integrou-se à comunidade metodista do Catete.
Passados três meses, o casal se transferiu para Piracicaba, SP, onde Teixeira começou a
se relacionar com os batistas. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459).

Em junho de 1879, Antônio Teixeira de Albuquerque se encontrava em meio ao


grupo metodista na cidade de Piracicaba. Em fração de meses já estava na seara dos
batistas em Santa Bárbara d’Oeste. Enxergou ali uma nova porta e grandes
oportunidades no exercício ministerial. Entretanto, havia uma fundamental condição,
obedecer à exigência batismal por imersão, o que não o amedrontou. Se o quesito é
bíblico, vamos lá!
Como já mencionado em parágrafos anteriores, foi em dezembro de 1872 que
aquele padre desertor perdeu oficialmente os seus direitos canônicos, sendo
excomungado e consequentemente amaldiçoado pelo paraibano D. Vital Maria
Gonçalves de Oliveira (1844-1878), ferrenho e autêntico ultramontano. O doutor Rui
Barbosa, um polímata do saber, proprietário de uma aguçada oratória, segue mais
apimentado ao classificar Dom Vital e outros prelados da época como defensores das
“trevas ultramontanas [...] enfermidade universal ultramontana” (VIEIRA, Dilermando,
2016, p. 428). D. Vital foi o 20º Bispo de Olinda e Recife e o mais jovem a ocupar essa
posição eclesial no Nordeste aos 27 anos.
Antônio Teixeira de Albuquerque, pejorativamente alcunhado de o padre
desertor, era proprietário de um avantajado conhecimento bíblico e foi, sob ordens
superiores, excomungado do sacerdócio. Já há muito, estava sem ambiente para
manter-se dentro do sistema do catolicismo romano. Mesmo debaixo de fortes ataques
como pregador de heresias, apóstata, traidor e outras expressões chulas também
emitidas da parte de seus pais e de tantos outros familiares, Teixeira não parou de
defender sua nova fé. Agora, livre do celibato (castração psíquica, na linguagem do
professor Serbin, um praticante católico da Califórnia), o seu casamento, como já
mencionado, foi oficialmente concretizado em setembro de 1878, o mesmo fatítico ano
em que D. Vital foi morto em Paris.91
Em seu opúsculo Razões por que deixei a Igreja de Roma, aquele que no
passado foi o padre Antonio Teixeira de Albuquerque relatou o seguinte
testemunho:
91
Na tarde de segunda-feira, 26 de outubro de 2020, tive a grata satisfação de realizar uma visita ao
centenário casarão onde funciona o Seminário Nossa Senhora das Graças, cujo prédio estava passando
por uma merecida reforma. Tudo seria normal se o cicerone não fosse o Dr. João Bosco (1969-), padre
secular diocesano nascido na cidade de Carpina, Pernambuco, com mestrado e doutorado na França e
Itália. Uma sumidade e simplicidade! Muito amável, atencioso e falante, informou que chegou àquela
Casa convicto de sua chamada sacerdotal aos 11 anos, em 1980. Quando de nossa visita, era o
visionário Reitor daquela Casa Sacerdotal. Relatou-nos todos os pormenores daquele importante
seminário pernambucano. Entramos pela capela que, no período dos holandeses, se tornaria local de
cultos dos protestantes reformados (1530-1554). Paciente e respeitosamente, foi nos conduzindo a
diferentes locais internos daquele centenário seminário e vivenciando os fatos inerentes à história. Entre
tantas outras importantes informações, mostrou-nos o quarto onde outrora dormia o seminarista Antônio
Gonçalves de Oliveira Júnior, cela que posteriormente se tornou amplos banheiros. O paraibano Oliveira
Júnior chegou ao seminário de Olinda em 1861, com 16 anos. Aos 26 anos, em 1871, foi designado por
D. Pedro II o 20º bispo de Olinda, já com o título de Dom Frei Vital Maria. A visita foi proporcionada graças
aos esforços de Moisés Marques, sua esposa e filhos, todos naturais e residentes do Recife.
No dia 7 de setembro de 1878, na cidade do Recife, depois de ocorridos as proclamas,
de conformidade com a lei do Império, fui casado às 7 horas da noite, pelo Rev. Smith,
ministro evangélico, na presença de mais de cem pessoas, com toda a atenção e calma.
(OLIVEIRA, 2005, p. 179).

O ex-sacerdote católico, que obteve experiências com os presbiterianos em


Alagoas e Pernambuco e, em seguida, com os metodistas no Rio de Janeiro,
finalmente, tornou-se batista no interior paulista. O alagoano Antonio Teixeira de
Albuquerque possuía uma vasta cultura bíblica, teológica, filosófica e amplos
conhecimentos gerais. Além disso, dominava, mesmo que precariamente, a língua
inglesa. Esse precário domínio foi a chave que lhe abriu as portas entre os
missionários aspersionistas. Prosseguindo sua jornada, chegou até aos
imersionistas em Santa Bárbara d’Oeste, onde fez sua pública profissão de fé,
tornando-se o primeiro brasileiro a ser batizado por imersão pelos batistas. No mesmo
dia da realização do batismo, domingo, 20 de junho de 1880, foi também examinado
por um concílio e ordenado para exercer o ministério dentro da visão batista. Naquela
áurea data, o ex-padre estava com 40 anos, mas era um homem de pouca sorte e de
frágil saúde. Viveu somente outros sete anos, quando foi colhido para morar nas
mansões celestiais. Tal qual havia sucedido com os presbiterianos, também o
primeiro pastor batista saiu do clero papista, gerando uma celeuma do outro lado do
balcão!

Novos missionários batistas

Aos 12 de janeiro de janeiro de 1881 o texano William Buck Bagby (1855-1939) e sua
esposa Anne Luther Bagby (1859-1942), natural do Missouri, embarcaram em Baltimore,
Maryland, a bordo do veleiro Yamoyden, com destino ao Rio de Janeiro, onde
chegaram em 2 de março seguinte. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p.
458).

Esse casal pioneiro para missionar no Brasil foi enviado pelo Southern Baptist
Foreign Mission Board. Aqui a margem perfeira para entrar em campo os resultados
das pesquisas do já citado Dr. João Chaves, pastor batista natural do Recife e
residente no Texas.

Os missionários e missionárias batistas do sul dos Estados Unidos que trabalharam no


Brasil saíram do Sul racista, salvo algumas exceções, mas isso não quer dizer que o Sul
racista tenha saído deles e delas. [...] A ideologia da superioridade racial era parte do
DNA missionário batista do sul. [...] Este comprometimento com o privilégio branco de
usar corpos negros como mercadoria livraria os missionários do possível
constrangimento de ter que explicar o porquê da prática escravagista no sul dos Estados
Unidos. Na segunda metade do século dezenove, o Brasil era o país com o maior
número de escravos no mundo. (CHAVES, 2020, p. 26, 37, 32, 33).

Embora portadores daquilo que hoje largamente chamamos de o lado escuro


da lua ou santos com os pés de barro, o doutor William Buck Bagby e Anne Ellen
Luther Bagby têm uma impressionante história de vida e resignação na causa
missionária, embora tivessem mantido a supremacia branca dentro da política dos
Confederados.92 Eram jovens e recém-casados quando partiram para o Brasil. Do
Rio de Janeiro, seguiram para Santa Bárbara d’Oeste, onde William assumiu
interinamente o pastorado da 1 a Igreja Batista, que estava caminhando para o 10 o
ano de organização. Posteriormente, o casal transferiu a residência para a cidade
de Campinas, dedicando-se ao aprendizado básico da língua portuguesa no colégio
presbiteriano. “O Colégio Internacional, estabelecido pelos presbiterianos em
Campinas em 1869, tem a distinção de ser o primeiro colégio norte-americano a ser
fundado na América do Sul” (JONES, 1998, p. 201). Esse Colégio ainda hoje existe,
entretanto, no ano de 1888, foi-lhe acrescentado o “Seminário Presbiteriano do Sul”.
Por esse educandário passaram não poucos brasileiros de brilhantes cabeças na
formação teológica presbiteriana. (NOTA DE RODAPÉ: Eliana do Amaral, minha
cicerone em Campinas, conduziu-me até o histórico local na tarde de sábado, 17 de
outubro de 2020. FINAL DA NOTA). Após básicos e evolutivos conhecimentos no
idioma do já emergente escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o
crioulo que dominava as letras, William Bagby e sua esposa seguiram para a cidade
de Salvador, onde, em 15 de outubro de 1882, fundaram a primeira Igreja Batista da
Bahia, o terceiro trabalho da denominação no Brasil. Por força de expressão,
mesmo que trocando a principal figura do texto, estou a “pescar no aquário” de um
respeitado jornalista nascido na cidade do Mar Vermelho, Alagoas, o qual fez de
Uberlândia sua trincheira informativa: “Bagby, um missionário de visão voltada para
o futuro, era também um sonhador apaixonado” (SANTOS, 2019, p. 209).
Reprisando apenas para refrescar a mioleira sobre esses acontecimentos: a
primeira Igreja Batista foi organizada dia 2 de setembro de 1871 em Santa Bárbara
d’Oeste; a segunda foi organizada dia 2 de setembro de 1879 na Estação (atual
cidade de Americana); a terceira foi organizada dia 15 de outubro de 1882 na capital
baiana. Dilermando Ramos Vieira (p. 459), menciona o exato local para ninguém se
perder, quando GPS era algo impensável, “a Rua Maciel de Baixo, 43”. Nota-se que
todas essas, bem como outras comunidades eclesiais de viés protestante foram
iniciadas e organizadas no decorrer da escravatura e do II Império brasileiro. A
Igreja Batista da Bahia nasceu dentro de uma plena visão missionária para alcançar
os brasileiros. Além do casal Bagby, foi de grande valia a participação de Zacarias
(1851-1919) e Katherine Taylor (1862-1894), jovens missionários americanos. Não
foi diferente a plena integração do considerado desertor, padre Antônio Teixeira de
Albuquerque, de sua esposa, Senhorinha Francisca de Jesus Albuquerque, e de
seus quatro filhos menores.
Aqueles missionários fizeram e deixaram histórias pelas terras do Brasil,
sendo pioneiros batistas nas cidades de Salvador, do Rio de Janeiro e de São
Paulo, deixando um legado que extrapolou aquelas fronteiras estaduais.

O Reverendo Bagby, da Igreja Batista de São Paulo, vinha sempre visitar os americanos
e pregava, ora no Campo, ora no School House. Era homem magro e franzino,

92
“Todos temos pedaços quebrados, somos um fracasso espiritual e moral. Fazemos decisões
erradas das quais nos arrependemos. Mas também temos tido grandes recomeços. Por isso amo a
cada pedaço, pois são como fios do tapete colorido que compõem a minha vida”. (Escritas do
Comendador Silas do Amaral).
hospedava-se muito na casa dos Hall e toda a vez que vinha passar o fim de semana
trazia bagagem como se fosse ficar um mês. As crianças, essas eternas irreverentes,
chamavam-no de bacalhau e achavam uma graça infinita em sua dentadura muito
branca. (JONES, 1998, p. 352).

Como já ventilado em páginas anteriores, o Dr. João Paulo Bezerra Chaves,


pernambucando do Recife e professor na Baylor University, Texas, não perdoa o
lado oculto de não poucos missionários que serviram no Brasil.

Os Bagbys e Taylors, geralmente celebrados como heróis pioneiros do trabalho


missionário batista no Brasil, expressavam o racismo acompanhado da autopercepção
megalomaníaca dos brancos sulistas em geral. Esses gigantes da história batista tinham
limitações agudas em termos de como percebiam grupos marginalizados em termos
raciais e étnicos. [...] A convicção distorcida da superioridade branca era às vezes
explicidamente revelada, e às vezes camuflada, mas ela estava sempre presente.
(CHAVES, 2020, p. 33, 35). Na utilização de chulas palavras raciais, o pobretão branco
nos Estados Unidos recebe a alcunha de white trash, literalmente traduzida por “lixo
branco”! Diria William Shakespeare (1564-1616), o astro da dramaturgia britânica: “Nada
que é humano me estranho”.

As distribuídas chibatadas de Chaves não são desferidas somente nos


batistas, mas também no protestantismo sulista que chegou ao Brasil nas últimas
décadas do século XIX.
Um pouco mais de mil dias após o início da primeira Igreja Batista em
Salvador, Antônio Teixeira de Albuquerque, aos 45 anos, já se encontrava em seu
rincão natalício.

Pouco mais tarde, aos 17 de maio de 1885, também Antônio Teixeira organiza
organizaria outra comunidade em Maceió, AL. Nesta última seria consagrado no início
no começo de 1886 Wandrejásello de Melo Lins, que foi para Recife dar início a uma
fundação. Para auxiliá-lo em 30 de março daquele ano, chegou lá o pastor Charles
David Daniel, e juntos iniciaram, no dia 4 do mês seguinte, a primeira igreja batista da
capital pernambucana. Os membros eram só seis: os dois pastores, suas esposas e
dois rebatizados. Passados alguns meses, Charles Daniel foi para a Bahia e Melo Lins
assumiu seu lugar. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 459).

O trabalho iniciado em Alagoas pelo pastor Teixeira é hoje a primeira Igreja


Batista de Maceió, com templo e anexos estabelecidos à Rua Dezesseis de
Setembro, 225, no bairro da Levada. Anteriormente mencionado como sendo de
pouca sorte, Antônio Pereira de Albuquerque ali exerceu o pastorado até sua morte
no decorrer de 1887, quando estava com somente 47 anos. Ele viveu o suficiente
para deixar legados entre os católicos, os presbiterianos, os metodistas e os
batistas. Hoje constitui fonte de referencial histórico para o protestantismo brasileiro.

Antônio, o corajoso

Parafraseando Victor Hugo (1802-1885), escritor francês do século XIX, com


relação a Antônio Pereira de Albuquerque (1840-1887), o padre/pastor, e seu
contemporâneo brasileiro: “foi um momento inverossímil e incrível, um raio da
verdadeira luz dos vivos que subitamente o iluminou por dentro” (HUGO, 2007, v. 1,
p. 114). Algo estranho persistia no interior daquele jovem alagoano. Antônio nasceu e
cresceu no seio de uma família que não abria mão da religião oficial e constituicional
do Império. Com certeza, iniciou-se junto ao altar na função de coroinha, tendo ao
lado o padre oficiante. Para ele, sua família e toda a freguesia, aquela era a única
religião verdadeira. Já adolescente e jovem seminarista em Olinda, muitas questões
surgiram em sua mentalidade acadêmica. Tudo metricamente traçado, tornando
impossível aos mortais pensar, falar e agir fora da caixinha desenhada pelos
profissionais do sagrado. “Pode-se sair da prisão, mas não da condenação” (HUGO,
2007, v. 1, p. 115).
Romper com a religião oficial do Império Brasileiro, especialmente na
mentalidade nordestina da época, seria o caminho para ficar perdido no tempo e no
espaço, sem eira e sem beira na arquitetura do social. O poderio sacramental expelia
mais violência que as escritas da Constituição de 1824. Esta, aliás, zelava pelo bem-
estar do cidadão e salvou a população de uma miserável Inquisição que vagou com
plenos poderes de vida e morte pela Europa católica, sanção que não foi diferente
entre alguns reformadores do século XVI. No Brasil, o prelado não ordenava a
matança na fogueira, porém desgraçava com a vida do fiel que a ousasse questionar.
Esse drama religioso e cultural buscava bloquear quaisquer decisões de uma visão
mais abrangente do sagrado.
Ordenado padre, desfrutando de todos os direitos e poderes sacerdotais que lhe
foram outorgados, agora seria quase impossível ele romper com os sacramentos
defendidos pela Santa Madre Igreja. “Ora, o novo assusta, o novo subverte as
certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes”
(BAGNO, 2013, p. 172). Entretanto, a caixa começou a ser rompida do interno para o
externo. Foi no desenrolar de seu contato com o presbiteriano em Maceió. Floresceu
sua franciscana honestidade interna; estava ciente do pesado ônus que transportaria
para o resto de seus dias e no pintar de sua história após a morte. Preferiu o pesado
ônus que lhe estava reservado a manter o cancro interno que o destruía no dia a dia.
Foi uma decisão de fanatismo para curar sua beatice! Ao debandar-se para a religião
dos protestantes, foi excomungado pelo prelado, achincalhado pelos familiares, pelos
amigos e por uma vingativa sociedade religiosa que o cercava. Infelizmente, ainda
hoje isso é crescente em diferentes arraiais onde floreia a manobra da manipulação
do sagrado no cristianismo, pela qual a visão de reino é engolida sob ameaças pelas
dobras denominacionais do bispo tal, do apóstolo tal, do presidente tal. São os
caciques tribais entre os incautos e amedrontados índios. Esses líderes não são
caciques porque são poderosos, são poderosos porque são caciques! “Que grande
habilidade têm os homens para fazerem do título instrumento de sua vaidade”,
conscientemente busquei parafrasear “túmulo” por “título”, mantendo a sagacidade de
Victor Hugo (2007, v. 1, p. 36). Não é essa linguagem algo mais clássico que as
mágicas religiosas do xamanismo citado por Pierre Félix Bourdieu (1930-2002) sobre
um cacique canadense? “Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava
seus doentes, ele curava seus doentes porque se tornou um grande feiticeiro”
(BOURDIEU, 1982, p. 56).
Educandários protestantes

Era uma época de poucas escolas públicas e, em todas elas, havia a exigência
obrigatória da classe de Religião seguindo os dogmas da Igreja Católica, o que
motivou Rui Barbosa, aos 30 anos, em 16 de janeiro de 1879, afirmar que as escolas
“pervertiam as crianças pelas doutrinas antiliberais [...] é a beatice impingida no
ensino; é a história falsificada no catecismo”. Politicamente, o baiano Rui Barbosa de
Oliveira pagou caro pelo seu discurso, no qual também declarou que era “[...]
heresiarca impenitente e liberal apaixonado”. Aos olhares dos montanistas de plantão,
Barbosa havia em muito extrapolado a barreira do sacrilégio, tornando-se merecedor
de uma pesada sanção. Foi arrasado na esfera política, perdeu três eleições em sua
província, onde foi impiedosamente massacrado pelo clero ultramontano. “[...] votar
no Dr. Rui é votar no diabo, um homem sem princípios e sem religião, inimigo figadal
da Igreja e dos seus ministros” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 429, 430). Essas
brigas nos coretos da política religiosa beneficiaram os missionários protestantes.
Enxergando pelas brechas geradas por Rui Barbosa e outras cabeças pensantes, os
protestantes partiram para o campo da área educacional sem a obrigatoriedade de
vínculos religiosos. O resultado desses investimentos redundou na produção de
excelentes e respeitados colégios e universidades hoje existentes no Brasil.

Mary Ellis McIntyre abriu um colégio em Campinas. Levou-o mais tarde para a capital, São
Paulo, com o nome de Colégio Progresso. Em fins de 1901, este foi por ela vendido para
D. Anna L. Bagby. Ficava na Alameda dos Bambus, n o 5. Esse Colégio é o que hoje se
chama Colégio Batista Brasileiro, em Perdizes, São Paulo, na Rua Homem de Melo.
(OLIVEIRA, 2005, p. 356).

No espaço de 41 anos (1868 à 1909), período em que surgiu o final da


escravidão, alé da proclamação da república, os diversos ramos protestantes
procedentes dos Estados Unidos, fundaram 13 escolas em diferentes locais do
Brasil. Algumas dessas escolas ainda se mantém os nomes originais, a exemplos,
temos. “Colégio Internacional de Campinas, 1868. Escola Americana (hoje
Universidade Mackenzie em São Paulo, 1870. Colégio Morton em São Paulo, 1880.
Colégio Piracicabano em Piracicaba, 1881. Colégio Bennet, Rio de Janeiro, 1888.
Colégio Grambery (a primeira faculdade de farmácia e odontologia do Brasil) em
Juiz de Fora 1889. Colégio Americano de Taubaté, 1890. Colégio Internacional,
Lavras, 1892. Colégio Americano, Salvador, 1896. Colégio de Petrópolis, 1898.
Colégio Metodista, Ribeirão Preto, 1899. Colégio Isabella Hendrix, Belo Horizonte,
1904. Escola Americana, Curitiba, 1909” (JONES, 1998, p. 320).

Casa de Oração

A Casa de Oração é conhecida por diferentes nomes, entre os quais se


destacam: Igreja Cristã, Irmãos Unidos, Irmãos de Plymouth, ou simplesmente
Irmãos, além de Darbista, designação de cunho pejorativo que alude jocosamente
ao seu fundador, John Nelson Darby (1800-1882), respeitado pregador, escritor e
intelectual britânico dissidente do anglicanismo inglês. 93 A denominação (embora
não fosse essa a visão primária de John Nelson Darby) com o nome de Casa de
Oração chegou ao Rio de Janeiro em 1878 por intermédio de Richard Holden (1828-
1886), um missionário escocês na casa dos 50 anos. Holden havia aprendido a
língua portuguesa no decorrer de 1851, período em que representava uma empresa
americana no Brasil. Deixando essa empresa, regressou aos Estados Unidos e
optou por estudar em um conceituado seminário episcopal, onde se formou na área
teológica.

Em 1856, com 28 anos, Holden apareceu nos Estados Unidos da América no Seminário
Teológico da Diocese de Ohio, associado com a Faculdade Kenyon, na cidade de
Gambier. Entrou na Faculdade Kenyon como estudante daquela instituição, porém mais
tarde transferiu-se para o Seminário e formou-se no mesmo em 1859. [...] Holden fora
recomendado a Moran, que se encontrava nas docas esperando sua chegada, em 4 de
dezembro de 1860. (VIEIRA, David, 1980, p. 164, 166).

Como mencionado em linhas anteriores, após concluir a graduação com


honras e méritos por sua capacidade e empenho acadêmico e tendo um bom
domínio da língua portuguesa, Holden foi enviado para o Brasil pela Sociedade
Bíblica Americana, entidade fundada em New York, dia 11 de maio de 1816. No
desempenho do seu ministério, ele fundou uma pequena capela Episcopal na
cidade de Belém do Pará em 1861. Era um bem-dotado apologista e,
consequentemente, um criador de polêmicas religiosas, Todavia, era muito capaz
no manusear das Escrituras Sagradas. Estava impaciente diante do andar religioso
que pairava sobre Belém, que “era uma espécie de sincretismo entre um catolicismo
puramente simbólico do camponês português e os conceitos religiosos dos indios e
dos africanos” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 170). O sincretismo em destaque
foi o estopim que gerou uma série de atritos entre Holden e o bispo católico da
cidade, Dom Antônio de Macedo Costa (1830-1891), que havia assumido a diocese
em 11 de agosto de 1861. O bispo Macedo Costa era fruto cultural do centenário
Seminário Saint Sulprice de Paris, onde se formara com destaque devido aos seus
dotes intelectuais (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 226).
Quando D. Antonio assumiu o bispado de Belém, era um jovem; havia quatro
dias que completara 31 anos. Era dono de uma avantajada bagagem cultural em
seu currículo, doutor em direito canônico pela academia Santo Apolinário de Roma
em 1859, em parceria com a Pontifícia Universidade Gregoriana, designada de
“fonte pura das ciências divinas”. Por sua vez, Holden, seu oponente protestante
três anos mais velho, era um rigoroso intérprete das Escrituras e tão preparado
academicamente quanto o bispo desafiante. Quando Holden perdia na filosofia,
ganhava abertamente na teologia, utilizando fundamentais citações bíblicas. Mas os
dois tinham pontos em comum: ambos estavam na flor da juventude, eram sábios

93
John Darby é considerado o pai do moderno Dispensacionalismo e do Futurismo. A teologia do
arrebatamento pré-tribulacional foi popularizada extensivamente na década de 1830 por John Nelson
Darby e os Irmãos de Plymouth, tornando-se ainda mais conhecida nos Estados Unidos no início do
século 20 pela vasta circulação da Scofield Reference Bible.
notáveis e não se dobravam diante dos argumentos oferecidos do outro lado do
balcão.

Apesar de todos os seus problemas com Dom Macedo Costa, Holden admirava seu
adversário eclesiástico. Acreditava que o bispo era um homem sincero, profundamente
religioso e muito inteligente. [...] O bispo, segundo o escocês, nunca se tinha rebaixado
de sua dignidade apostólica para recorrer a insultos pessoais, ou a usar linguagem
ofensiva. (VIEIRA, David, 1980, p. 203).

Esses baluartes eram pontos fora da curva, na acadêmica linguagem do


professor, doutor Noel Jorge da Costa! O antagonismo criou uma guerra verbal nas
páginas dos jornais locais e uma leitura obrigatória para a elite que não perdia uma
sílaba sequer das desaforadas explicações de ambas as partes, argumentos contra
argumentos. Eram duelos entre dois titãs pela causa cristã, cada um em seu
extremo; não eram inimigos, apenas adversários.
Entre 1869 e 1870, ocorreu o Concílio Vaticano I em Roma, sob direção do
papa Pio IX (1846-1878), para o qual os sete bispos do Brasil, entre eles D. Antônio
Macedo Costa, foram convocados. “Convocados para o Concílio Vaticano I,
apoiaram à viva voz a definição da infalibilidade papal. Nisso se destacou Dom
Antônio Macedo Costa, reconhecidamente o brasileiro mais atuante na assembleia
conciliar” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 256). O liberal Dr. Rui Barbosa de
Oliveira, aos 28 anos, sempre muito bem informado e tão baiano quanto o bispo
Macedo Costa alfinetou a mais contundente decisão do Vaticano I, pela qual o papa
se tornou a sagrada figura do pastor aeternus. Esses

[...] foram os seus virulentos ataques desferidos contra o pontificado romano. A


infabilidade pontifícia é hoje a base do Catolicismo ultramontano, a sua arma de guerra,
o eixo da sua propaganda. Entre o primitivo Catolicismo e o Catolicismo farisaico de
agora, essa teologia escavou um abismo. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 428).

Naquele período quase medieval pelas bandas do longínquo Brasil, havia


duas leituras do cristianismo, ambas por lentes e perspectivas diferentes. A guerra
de argumentos era notória!

Para o protestantismo, o catolicismo era o responsável pela situação miserável dos


países latino-americanos e não era cristianismo verdadeiro, mas uma forma de
paganismo; por isso tinha sido incapaz de cristianizar a América Latina. Para os
católicos, o protestantismo não passava de um instrumento do imperalismo norte-
americano e desintegrava a família, colocando em risco a sociedade. (ALMEIDA, R.,
2014, p, 185).

Procurando novos espaços e desafios, Holden dedicou-se à colportagem na


região amazônica, onde fazia a distribuição de Bíblias entre os ribeirinhos. Depois
de um período distribuindo as Sagradas Escrituras no Pará e em partes do
Amazonas, ele, enxergando outras alvissareiras oportunidades e após as devidas
negociações, aceitou o convite da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira,
entidade organizada dia 7 de março de 1804 em Londres, na época a mais
populosa cidade protestante do mundo. Diante dos novos desafios, Holden seguiu
para Salvador, onde se envolveu polemicamente com não poucas autoridades da
religião romana. Sua capacidade apologética dava-lhe uma áurea de autêntico
comprador de brigas!
Na casa dos 36 anos, em 1864, já enfadado de tanto brigar com bispo, padres
e outras pessoas, Richard Holden aceitou o convite para ser copastor do Dr. Robert
Kalley na Igreja Fluminense no Rio de Janeiro. Logo, deixou Salvador e seguiu de
cabotagem para a Capital do Império. Esse casamento ministerial perdurou até o
ano de 1871. Mesmo tendo duras divergências, mantiveram mútuo respeito em suas
posições bíblicas, especialmente na área eclesiológica.

Em 1872, por ocasião de sua visita à Escócia, que passou a exercer atividade entre os
Irmãos Unidos. Nesse mister esteve em Portugal, onde publicou folhetos e um hinário
intitulado Hinos e Cânticos Espirituais que ainda hoje, gradativamente ampliado,
continua servindo à Igreja Cristã nos dois países de língua portuguesa. (BRAGA, 1961,
p. 209).

Embora morando em Portugal, Holden manteve constantes correspondências


com algumas pessoas ligadas à Igreja Fluminense no Rio de Janeiro. Sob sua
orientação, essas famílias foram convencidas que os Darbistas estavam mais
vinculados aos ensinamentos da Bíblia. “Richard Holden voltou mais tarde ao Brasil,
aqui chegando aos 10 de julho de 1879 para trabalhar em conexão com os Irmãos
Unidos, com os quais mantinha correspondência desde alguns anos” (BRAGA,
1961, p. 209, 210). Naquele mesmo mês do ano de 1879, Holden organizou a
Congregação dos Irmãos Unidos, no Rio de Janeiro, localizada não muito distante
do Campo da Aclamação, hoje Praça da República. Em 1960, o trabalho, que
ganhou plena expansão, foi transferido para um modesto edifício que atualmente
fica no número 104 da Rua São Carlos, um dos principais logradouros do bairro do
Estácio, parte central do Rio de Janeiro.
Após estabelecer a Casa de Oração no Brasil, em 1879, o reverendo (assim
era respeitosamente tratado) Richard Holden regressou para Lisboa, onde veio a
falecer oito anos após sua saída do Rio de Janeiro. Ao falecer em Lisboa, estava
com somente 58 anos. Deixou fortes legados na Escócia, na Inglaterra, nos Estados
Unidos, no Brasil e em Portugal, onde findou sua vida terrena e seu ministério. Com
ele se foi todo o vigor de um nato apologista que confundiu a cabeça e o coração de
muitos papistas e protestantes no Brasil e em Portugal.
Para colaborar na expansão do trabalho que se alastrou por diferentes
localidades, vários outros missionários britânicos aportaram no Brasil, sendo o mais
destacado Stuart Edmund McNair (1867-1959), que chegou ao porto do Rio de
Janeiro em 1896. Na época, era um jovem engenheiro com 29 anos, e por outros 64
permaneceu fazendo missões no Brasil. Findou sua carreira terrestre em
Teresópolis, dia 10 de janeiro de 1959, na casa dos noventa e dois anos. Ficou
conhecido no meio literário com a fundação, em 1933, na cidade de Teresópolis, da
Casa Editora Evangélica, certamente o primeiro parque gráfico evangélico
implantado no Brasil ou até mesmo na América do Sul. Além de imprimir o Hinos e
Cânticos, hinário que teve sua primeira tiragem no ano de 1937, também foi de sua
lavra a produção do best-seller da época: A Bíblia Explicada, que gerou muitas
polêmicas diante de expressões relacionadas ao racismo. Hoje, ela é revisada,
alterada, editada e publicada pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus.94

Casa de Oração em Uberlândia

Em 1961, exatos 82 anos após o oficial estabelecimento da Casa de Oraçãp


na capital do Império brasileiro, a mesma finca suas estacas na cidade de
Uberlândia. À princípio em uma pequena sala alugada na Rua Ituiutaba sob a
responsabilidade do senhor Argemiro Faria Lobato (1912-1992), foi um ancião
recomendado e enviado pela Casa de Oração de Sacramento, MG. (NOTA DE
RODAPÉ: Sacramento, mesma localidade onde nasceu Carolina Maria de Jesus
(1914-1977). Uma negra semi-analfabeta que em 1937, aos 23 anos, foi tentar a
sorte em São Paulo. Foi doméstica, lavadeira, faxineira etc, entretanto na busca da
sobrevivência, optou em recolher materiais recicláveis. Foi assim, puxando um
pesado carrinho se tornou na mais conhecida catadora de papéis em São Paulo.
Moradora na nascente favela do Canidé onde conseguiu fama, dinheiro e prestígio,
quando em agosto de 1960, aos 46 anos, foi o lançamento do livro “Quarto de
despejo”. Um verdadeiro clássico e best seller da literatura brasileira. “Seis meses
depois, a obra alcançou a marca de 90 mil exemplares vendidos [...] Nesse meio-
tempo, Quarto de despejo acabou traduzido para treze idiomas e vendido em mais
de quarenta países. Virou uma verdadeira febre literária, e Carolina transformou-se
em uma pessoa pública, chegando a receber as chaves da cidade de São Paulo.
[...] No dia 13 de fevereiro de 1977, ela faleceu em São Paulo, na solidão e longe
dos holofotes” (GOMES, Flávio dos. LAURIANO, Jaime e SCHWARCZ, Lilia Moritz,
2021, p. 109, 110). Carolina Maria de Jesus foi uma das escritoras negras mais
aclamada no Brasil. FINAL DA NOTA). Tudo ocorreu em seguida ao seu frutuoso
trabalho pastoral no distrito de Quenta-Sol, onde ganhava a vida como
farmacêutico. Diante de desafios, deixou suas atividades na pequena Quental-Sol,
enveredando rumo a Uberlândia onde chegou em 1960, estava no vigor dos 48
anos. Além da esposa, dona Maria Batista (1913-2000) com 47 anos, sete filhos e
duas filhas, uma família composta de 11 membros, todos nascidos em Quenta-Sol.
Essa jornada gerou uma autêntica família missionária que nunca mais retornou à
terra nascente.
Com as próprias economias, além de pequenas, porém, valiosas ofertas
procedentes de Sacramento, Uberaba, São Joaquim da Barra e Ituiutaba, foi
possível comprar e documentar um lote residencial na Avenida Marciano de Ávila,
onde recebeu o número 158. O local definitivo para acomodar os recém convertidos
e não poucos simpatizantes, foi inaugurado nos meados de abril de 1962. A Casa
de Oração mantém um governo totalmente independente e congregacional. Os
vínculos com as congêneres da mesma fé e prática, são meramente fraternais,
entretanto, anualmente cada trabalho local realizam uma série de conferências para
94
O italiano Luigi Francesconi (1866-1964), fundador da Congregação Cristã nos Estados Unidos, na
Itália, na Argentina e no Brasil, aos 41 anos, foi batizado nas águas por imersão em 1907, na cidade
de Chicago, por um ancião da Casa de Oração.
manter o elo da unidade. O governo da Casa de Oração promove o sacerdócio para
todos os nascidos em Cristo Jesus, fugindo totalmente a lideranças hierárquicas
eclesial em suas práticas. A primeira conferência em Uberlândia, aconteceu no
feriado 7 de setembro de 1963 com a participação de diferentes preletores
procedentes da região triangulina. A partir da rua Marciano de Ávila, no bairro Bom
Jesus, hoje com uma frequência acima de 200 pessoas. Nesse período de
expansão, organizaram outros trabalhos em diferentes bairros da cidade de
Uberlândia.

Igreja Evangélica Brasileira

A Igreja Evangélica Brasileira, fundada na Terra por determinação de Deus, em 11 de


setembro de 1879, por intermédio do doutor Miguel Vieira Ferreira, foi reconhecida pelo
Governo Imperial a 12 do mesmo mês e ano, data em que registrou, na Secretaria do
Império, o Termo de sua fundação e eleição do doutor Miguel para ser o primeiro
Pastor.95

O primeiro cisma dentro da irmandade presbiteriana, no Rio de Janeiro,


sucedeu quando o militar, físico, matemático e engenheiro maranhense, doutor
Miguel Vieira Ferreira (1837-1895), considerado místico por práticas duvidosas
diante dos conceitos do protestantismo conservador da época, tornou-se indesejado
pelos calvinistas de cujo meio foi eliminado por manter suas atitudes mescladas de
um carregado sincretismo.

Miguel continuou a estudar o espiritismo [...]. A 22 de fevereiro de 1874, compareceu à


Igreja Presbiteriana, onde entrou em transe espírita durante os serviços religiosos [...]. O
místico eliminado da comunhão tinha um grande número de seguidores entre os
membros da igreja, que o acompanharam e, a 11 de setembro de 1879, fundaram a
Igreja Evangélica Brasileira. (VIEIRA, David, 1980, p. 155).

Miguel Vieira Ferreira era engenheiro militar, apologista religioso e muito


próximo das orlas políticas de seu tempo. Tudo indica que também era membro de
alguma confraria maçônica. Teve a sua participação ativa no Manifesto Republicano
de 1870, documento no qual há a sua assinatura entre os 60 signatários.
Em 1891, nos primeiros passos da jovem República, novamente surge no
palco o polêmico maranhense, incomodado com um crucifixo em uma sala de júri no
Rio de Janeiro. Apelou e, não conseguiu aval suficiente de dois minsitros da justiça,
o barão Henrique Pereira de Lucen (1835-1913) e José Gigino Duarte Pareira
(1847-1901). “O presidentedo júri, Dr. Miguel Vieira Ferreira, enviou requerimento ao
ministro da justiça pedindo autorização para efetivar a petição. Ao invés de ceder, o
ministro, não apenas se mostrou contrário, indeferindo o pedido, como condenou
frontalmente qualquer medida do gênero” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 34,
35).

95
Disponível em: <http://www.igrejaevangelicabrasileira.com.leira.com.br/historico.htm>. Acesso em:
19 mar. 2012).
Os Episcopais

A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil foi reorganizada em Porto Alegre, Rio


Grande do Sul, dia 1o de junho de 1890, pelos missionários americanos Lucien Lee
Kinsolving (1862-1929), na época com 28 anos, e James Watson Morris, com 23
anos. Ambos estudaram entre 1886 e 1889 no Seminário Teológico da Virginia, que,
por longos anos, foi uma referencial casa de profetas localizada na cidade de
Alexandria. Nos dois anos finais como seminaristas, esses dinâmicos jovens
conheceram uma moça brasileira, orfã de pai e mãe, nascida no Rio de Janeiro.
Aquela piedosa carioca de 24 anos era Helen Murdoch Simonton, que não
conheceu sua mãe nem tampouco se recordava muito bem do pai, pois ambos
morreram precocemente e seus corpos foram sepultados no Cemitério dos
Protestantes em São Paulo. Em 1879, quando estava na casa dos 15 anos, Helen
saiu do Brasil para morar com sua tia em Alexandria. Essa brasileira teve muita
influência na vida ministerial daqueles estudantes acima referidos, especialmente na
decisão de eles realizarem missões no Brasil.

Os Adventistas do Sétimo Dia

Francisco H. Westphal foi o primeiro pastor da Igreja Adventista do Sétimo


Dia a visitar o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro em 1895, seguindo imediatamente
até Piracicaba, interior paulista, quando, em abril do mesmo ano batizou o primeiro
convertido, um ex-metodista que havia lido o livro “O Conflito do Século”, escrito por
Ellen White (1827-1915). A autora, natural da cidade de Portland, no estado do
Maine, também era dissidente do metodismo e tornou-se a grande mentora da
Igreja Adventista do Sétimo Dia. Após Piracicaba, Westphal seguiu para a cidade de
Brusque, Santa Catarina, onde batizou novos convertidos entre a colônia de
imigrantes alemães.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia é, na verdade, uma empresa religiosa moderna e


extremamente eficiente, onde quer que tenha presença. Certamente, a mais dinâmica
de todas [...]. O adventismo é uma religião forjada e retocada ao modelo de vida da
classe média americana, tipicamente conservadora e puritana. Nascido, nos Estados
Unidos, no começo do século XIX, é um movimento de dissidentes da Igreja Batista,
então insatisfeitos com alguns dogmas de fé do protestantismo histórico [...] Entre nós, a
primeira Igreja Adventista do Sétimo Dia foi organizada em março de 1898, em Gaspar
Alto, Santa Catarina. Eram, naquela época, apenas 23 crentes que se reuniam em torno
da família Belz. (LIMA, D., 1987, p. 1, 4, 6).

Igreja Cristã Evangélica do Brasil

O trabalho da Igreja Cristã Evangélica do Brasil iniciou-se graças aos esforços


de três jovens missionários procedentes do Canadá, dos Estados Unidos e da
Inglaterra. Em 1900, eles chegaram ao Brasil, seguindo para o estado de Goiás e
posteriormente foram para a cidade de São Paulo. Trabalhando no bairro da
Aclimação, fundaram, dia 25 de agosto de 1901, a Igreja Cristã Paulistana, cuja
sede nacional atualmente fica na cidade de Anápolis, Goiás, de onde são
coordenadas diferentes atividades na maioria dos estados brasileiros. Essa igreja
tem seminário, escolas, orfanatos e casas de recuperação. O canadense Reginaldo
Young foi o seu principal esteio organizador.

Igreja Batista Independente

O conjunto que forma os batistas independentes recebeu o nome de


Convenção das Igrejas Batistas Independentes. O trabalho no Brasil tem suas
raízes no movimento pentecostal batista na Suécia. É possível que o trabalho na
Suécia tivesse recebido fortes influências do lendário Lewi Pethrus (1884-1974), o
qual, em 1907, esteve visitando Thomas Ball Barratt (1862-1940), um missionário
inglês que passou por uma renovação pentecostal em New York City. Em seguida
às suas experiências espirituais sucedidas nos Estados Unidos, Barratt, fumegando
com a nova unção carismática, seguiu para a Noruega. Foi desse nórdico país que
se espalhou o movimento pentecostal para quase toda a Europa. A obra batista
independente no Brasil foi iniciada em 6 de setembro de 1914 pelo jovem Erik
Jansson (1845-1931), um missionário que veio trabalhar com a comunidade de
imigrantes suecos residentes na cidade de Guarani das Missões, Rio Grande do
Sul.

Os pentecostais

Para melhor entender o avanço do pentecostalismo brasileiro, faz-se


necessário compreender os acontecimentos sociais, religiosos, políticos e
econômicos do final do século XIX, bem como do rair do século XX. Tais
acontecimentos não tiveram os seus efeitos negativos somente no Brasil; foi uma
crise globalizada. Entretanto, os problemas sociais, econômicos e até religiosos
existentes na Itália e na Suécia, além do sonho americano, serviram de trampolins
para fazer do Brasil essa potência religiosa universalmente tratada de movimento
pentecostal. Cada passo ou período da história tem o seu nome e funções que
coadunam propósitos definidos, levando a uma direção. Contrariando o magnético
da bússola, o caminho a seguir era para o Sul!
Na utilização de algumas pinceladas nos fatos desenhados pela história, é
possível decifrar importantes partes de nossa herança religiosa e os respectivos
legados de três vertentes culturais - europeia, africana e indígena -, gerando uma
miscigenação não somente na pigmentação da pele, pela qual houve alterações nas
aparências físicas e visuais. Essa miscigenação também alterou o comportamento
antropológico, social e religioso de uma crescente multidão. Entendemos que, sem
vasculhar o passado, é impossível entender o presente e perscrutar o futuro.
Alguém disse: o passado é uma história, o futuro é um mistério! Na procura de abrir
o leque expansionista, o Autor da História foi empurrando-nos para a passagem do
funil, culminando no avanço do pentecostalismo. Vejamos outras etapas no
caminhar da carruagem!
Segunda Parte
O Brasil escravo

“Transportaram-se da África para o trabalho


agrícola no Brasil nações quase inteiras”.
(Gilberto Freyre - sociólogo e historiador)

P
or mais de três longos séculos, em seu período de colônia e impérios, o Brasil
foi o país que mais fez uso da mão de obra escrava. Para abastecer os
canaviais, as casas-grandes, os sobrados, as minas de ouro, a vasta
produção de algodão no estado do Maranhão e, finalmente, nos cafezais em São
Paulo. Milhões de negros foram literalmente sequestrados e importados de diferentes
nações africanas e vendidos no Brasil para serem utilizados como escravos. “Essa
colossal força de trabalho cativo estava concentrada nas fazendas de algodão, arroz
e açúcar [...] A onda escravista alterou vínculos familiares, a dieta alimentar, o modo
de se vestir e até mesmo os nomes pelos quais as pessoas eram conhecidas”
(GOMES, 2012, v. 2, p. 173). Essa nódoa deixada pela escravatura está mesclada
nos fatos da história brasileira, uma mancha vergonhosa do passado que reflete o
presente. Diante de uma leitura meramente antropológica, percebemos “que há algo
de podre na sociedade” (SANTOS, 2019, p. 186); aliás, essa podridão surgiu com os
primeiros habitantes da terra. Milhares dos referidos escravos reproduziram-se no
Brasil como se fossem animais banais e irracionais, para suas crias serem vendidas
aos brancos consumidores, que tinham em suas mãos o poder legal de decisão de
comprar e vender. O negro feito escravo era apenas uma mera mercadoria
negociável, lucrativa e reciclada al bel prazer do seu senhor!
Milhares nasceram em desumanos cativeiros, cresceram sem entender o que é
um ser livre, passaram por torturas psicológicas e físicas, sendo vulneráveis a toda
sorte de abusos. O texto abaixo na utilização da ortografia da época, trás-nos uma
autêntica e pura realidade do mundo da servidão;

Quanto á habitação distinguem-se também fazendas em que exitem senzalas cobertas de


telhas, com repartimentos mais ou menos commodos (sic), e outras em que a habitação
do escravo é uma palhoça imprópria até de ser occupada pelo mais vil animal. [...] as
senzalas formam um quadrado e os escravos dormem ahi (sic) encerrados. (SILVA, 2017,
p. 322)(OBS. Professor Marco Antônio, mesmo citando o
texto original se faz necessário a utilização do (sic)?
Exitem; seria um erro ou a ortografia da época? Livro
publicado em 1875).
Para o pobre e servíl escravo não havia igualdade, nem mesmo na morte!
Quando morriam, dependendo da astúcia de seu senhor, muitos desses escravos
tiveram seus corpos jogados nos lixões, como se fossem simples animais. Em alguns
casos, seus restos mortais foram mal sepultados em locais arenosos, corpos que se
tornaram petiscos disputados pelas aves de rapina!

Os escravos eram o motor das lavouras de algodão, fumo e cana-de-açucar, e também


das minas de ouro e prata que drenavam a riqueza para a metrópole. Só durante o
século 18, havia entrado no Brasil mais de um milhão de escravos para trabalhar nas
regiões auríferas de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. (GOMES, 2010, p. 253).

Uma poesia publicada em 1840, narra que, “Para o pobre negro, o lugar mais
próximo da África era aquele onde podia contemplar a imensidão dos mares”
(ALENCASTRO, 2004 (ORG), p. 339). Os escravos, seres vulneráveis, estavam
constantemente sujeitos a maus-tratos, longas horas em sufocantes trabalhos, além
de constantes chicotadas que resultavam em sangramentos e dores excruciantes
nos infortunados negros. Não poucos foram dominados pelo banzo, expressão
oriunda de mbanza em quimbundo, um dos principais dialetos falados em Angola. O
banzo era como um sonho sonhado, uma névoa impalpável que produzia o
sentimento de uma sedutora melancolia em relação à terra natal e de aversão à
privação da liberdade praticada contra a população escrava. Foi também uma
prática comum de resistência aos maus-tratos e ao trabalho forçado. Pode-se dizer
que o banzo é um sinônimo de depressão.96 Essa melancolia produzida pelo banzo
foi reconhecida em 1793 como uma doença crônica em tese defendida pelo baiano
Antônio de Oliveira Mendes (1750-1817), advogado formado em Portugal, onde
trabalhou por vários anos na Casa da Suplicação em Lisboa. O resultado da
evolução do banzo levou a um expressivo número de escravos no Brasil a se
suicidarem, normalmente por enforcamento realizado, muitas vezes, com pedaços
das poucas velhas e esfarrapadas roupas com que se vestiam. Diante daquelas
circunstâncias, realidades, opressões físicas e psicológicas, seria o suicídio: um ato
de coragem ou covardia? Para muitos no desespero, a vida perde o seu precioso
valor, o valor de viver!
“Entretanto, o número de escravos que saem do cativeiro pelo suicídio deve
aproximar-se do número dos que se vingam do destino da sua raça na pessoa que
mais os atormenta, de ordinário o feitor. A vida, do berço ao túmulo, literalmente,
debaixo do chicote é uma constante provocação dirigida ao animal humano, e qual
cada um de nós preferiria, mil vezes a morte” (NABUCO, 2012, p. 29).
Mesmo após a bravura que resultou na Independência, na tarde do histórico
sábado, 7 de setembro de 1822, o Brasil manteve o vício que herdara de Portugal, o
qual, desde 1441, fazia a rota da escravatura para uma eugênica Europa
consumista, foco posteriormente direcionado para as Américas, o Mundus Novus. O
falecido professor António Henrique Rodrigo Oliveira Marques (1933-2007), que foi
um renomado catedrático, historiador e erudito escritor português, comenta o

Os dados aqui apresentados sobre banzo, foram-me fornecidos diretamente de Luanda pelo meu
96

amigo Augusto Bento, a quem agradeço imensamente.


desenrolar inicial do consumo de carne humana pelos lados sul do Velho
Continente:

Os primeiros negros foram trazidos em 1441 por Antão Gonçalves, que fez as suas
batidas na costa norte da Mauritânia. Foi grande o entusiasmo em Portugal e, três anos
mais tarde, um grupo de algarvios, associando numa espécie de companhia temporária
dirigida pelo almoxarife de Lagos, armou seis caravelas, alcançou a costa da Mauritânia
e trouxe consigo 235 escravos. Daí por diante, o tráfico continuou florescente: entre
1441 e 1448 importaram-se em Portugal um mínimo de 1000 escravos e talvez mais; na
década de 1450, uma média de 700 a 800 escravos entrava anualmente na Europa, via
Algarve e Lisboa. (MARQUES, 1995, p. 146).

O mesmo Portugal que ensinou como fazer do negro um escravo a partir do


macabro ano de 1441 cessou depois de 320 anos esse ato desumano, ato que
entrou em vigor dia 12 de fevereiro de 1761, sob ordens do Conde de Oeiras, o
animal político que se imortalizou com a comenda de Marquês de Pombal. O Brasil
gastou outros 127 anos para se livrar desse cancro maligno. Não foi fácil acabar
com a escravatura, pela qual o corporativismo branco possuía total primazia sobre o
pobre e explorado negro feito escravo de uma sociedade. O branco tinha em suas
mãos o total poder de decisão, embora que a decisão pairava sobre o branco,
houve negros na buscaram assimilar esse poderio de subjugar o seu semelhante. O
vício de escavizar se tornou algo generalizado, um verdadeiro status de expressar o
poderio econômico e social. “Todos os aspectos da vida colonial giravam em torno
da escravidão. No final do século XVIII, a posse de pessoas era generalizada entre
os brasileiros, incluindo inúmeros escravos ou negros libertos que tinham seus
próprios cativos. [...] Mesmo as irmandades religiosas de negros e mestiços eram
donas de escravos, uma vez que esse era o costume vigente” (GOMES, 2021, v. 2,
p. 20, 30). Isso foi uma minúscula extensão daquilo que abertamente se praticava
em África. Pretos sendo escravizados e negociados por pretos!
Negociar escravos se tornou tão lucrativo que alguns inescrupulosos
armadores colocavam os seus navios de variados portes na busca de gente negra
para vendê-la como escrava para as gentes de pele branca. Consta-se que até um
prelado, na ilusão de fáceis lucros, associou-se a esse deplorável e nefasto
comércio do tráfico humano.

Um desses navios pertencia ao bispo do Algarve, dom Rodrigo Dias que, animado com
as doações recebidas pela Igreja no primeiro leilão, decidira se tornar sócio no comércio
negreiro. A caravana do bispo, no entanto, teve má sorte. Naufragou depois de encalhar
num banco de areia perto de Cabo Verde. Cinco tripulantes morreram. (GOMES, 2019,
v. 1, p. 5).

Por longos 358 anos, desde 1530 97 até 1888, o negro no Brasil foi a
ferramenta para toda obra. É possível que as estatísticas sejam um tanto quanto
elásticas, porém calcula-se que cerca de 15 a 20 milhões de negros foram
arrastados de suas tribos por diferentes partes da África e despejados para serem

97
Segundo as pesquisas do escritor George Ermakoff (1949-), os primeiros negros transformados em
escravos chegaram no Brasil entre 1516 e 1526 (cf. SILVA, L., 2009, p. 73).
vendidos como animais nos precários portos e nos vergonhosos mercados
negreiros no Brasil. No antigo Rio de Janeiro, era de destaque a Boutique de la rue
du Val-longo, a praça e, posteriormente, o mercado do Valongo, que era o mais
conhecido comércio de venda de carne negra da capital imperial. Ali estava o mais
degradante espaço teatral da dor e do humilhante terror, onde a negritude não
passava de uma mera mercadoria exposta para o consumo da branquitude.
“Trancados durante a noite numa saleta, eram retirados de dia; ficavam
acorrentados na porta das lojas tomando sol enquanto esperavam comprador”
(CALDEIRA, 2008, p. 60). Nos dias atuais, a visão empresarial tem novos
contornos: a valorização do ser humano no domínio das novas tecnologias. Vem lá
de Uberlândia da cabeça pensante do português Alexandrino Garcia (1907-1993):
“Uma indústria é formada de máquinas e humanos. As máquinas, a gente compra,
mas os humanos temos de formar” (VILAS-BOAS, 2012, p. 181). Ao referir-se ao
período da escravatura, Freyre afirma que, nessa transação de carne negra para o
consumo de gente branca, “transportaram-se de África para o trabalho agrícola, no
Brasil, nações quase inteiras de negros” (FREYRE, 2001, p. 83).
A viagem era feita nos degradantes e insalubres porões dos inseguros navios
negreiros, largamente conhecidos por tumbeiros, onde as condições higiênicas
eram insalubres e subumanas, as piores e mais horríveis possíveis. Essa via crucis
se tornou a mais dolorosa navegação que já existiu no mundo. Na busca de
escravos que produziam fáceis e abundantes lucros aos traficantes, esses infernais
tumbeiros cruzavam o mar sistematicamente entre o Brasil e países da África. Esse
ignóbil tipo de comércio foi por muitos anos considerado legal, inclusive com o
endosso e a total conivência dos papas, cardeais, bispos, padres e de tantos outros
pregoadores da fé que faziam missões no Brasil.

Escravos africanos exauriam-se no trabalho de cortar, moer e beneficiar a cana-de-


açúcar, com a santa aprovação dos padres. [...] Alguns padres censuravam a
escravidão, mas na prática os jesuítas e muitos outros compravam e vendiam africanos
e os punham para trabalhar como qualquer senhor colonial. [...] classificavam seus
cativos como bens eclesiásticos. (SERBIN, 2008, p. 53, 54).

Não esqueçamos que o professor Serbin, americano de nascimento,


residente na Califórnia e católico praticante, é dono de um Ph.D. em Brasilidade.
“O Brasil do ouro e dos diamantes era uma colônia católica, devota, vigiada e
controlada, cuja prosperidade dependia da exploração do trabalho de pessoas
escravizadas. [...] No Brasil colonial, a Igreja funcionava como instrumento eficaz de
normatização e controle social. [...] De um lado, a Igreja sancionou, por inúmeros
documentos e bulas papais, a escravização de africanos, seu transporte e comércio
para a América, e assentou as bases ideológicas do cativeiro. [...] Cabia à Igreja
exercer o papel de guardiã das leis e dos costumes. [...] As falcatruas envolviam até
padres e ordens religiosas. Em Benguela, o padre João Teixeira de Carvalho
negociava escravos com traficantes europeus” (GOMES, 2021, v. 2, p. 121, 124,
128, 163).
O negro escravo exemplificava a verdadeira simbologia de uma figura
onipresente; estava por todas as partes do Brasil Colônia e dos períodos imperiais.
“Pode dizer-se que a presença do negro representou sempre fator obrigatório no
desenvolvimento dos latifúndios coloniais. [...] Todo o serviço era feito por negros
cativos, que não se distinguiam de bestas de carga, senão na figura” (HOLANDA,
2016, p. 55, 62)98 Os índios apadrinhados pelos padres católicos romanos não
foram forçados a tornarem-se escravos dos brancos. Os mesmos padres, que
acirradamente argumentavam e defendiam a liberdade e o status de inocência dos
índios, não mostraram, com raríssimas exceções, nenhuma compaixão para com os
pobres e maltratados negros. Pelo contrário, não poucos se envolveram nesse
comércio ilícito, porém altamente lucrativo no mundo das finanças e do poderio.

Os padres teriam se deixado escorregar para as delícias do escravagismo ao mesmo


tempo que para os prazeres do comércio [...] Deve-se observar, de passagem, que os
frades da Ordem que pertenceu Dom Domingos - a de São Bento - e também do Carmo
eram grandes proprietários de terras e de escravos. Frades senhores de engenho.
(FREYRE, 2001, p. 220, 492).

Pelo ano de 1980, um sacerdote franciscano americano desabafou: “A


honestidade é mercadoria tão preciosa que é raramente encontrada no mundo da
igreja” (MANNING, 2017, p. 85). Faz jus acrescentar à leitura as palavras de um
mestre nas letras do jornalismo político. “É preciso ter muito cuidado com o poder
divino” (SANTOS, 2019, p. 156). No decorrer de nossa geração, ouvimos o
exprimido e dolorido clamor do Dr. Martin Luther King Júnior (1929-1968), ativista
pela igualdade racial, pastor batista em Atlanta, Geórgia, e um expoente líder afro-
americano. Dentre os seus muitos pensamentos, destaca-se este: “O que me
preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.” O silêncio dos bons,
chamada para uma forte reflexão em um mundo recheado de desavenças racistas e
xenófobas. Dando vazão aos dois lados do balcão! “Líderes proeminentes da
Convenção Batista do Sul, no entanto, resistiram mais do que apoiaram o
movimento encabeçado pelo também batista Martin Luther King, Jr. (CHAVES,
2020, p. 23).
Johanna Prantner (1940-), uma pesquisadora austríaca com declarada paixão
pelo Brasil, foi um pouco mais sagaz ao referir-se à ostentação sacral em fase do
corporativismo ingerido no escravismo nacional.

Pode ser historicamente provado que a Igreja retardou a abolição da escravidão porque
naquele tempo era ela um dos maiores latifundiários do Brasil e, por isso, necessitava
de mão de obra barata. Ainda assim, pleiteava um tratamento humano aos escravos [...].
Existiam propriedades que possuíam dois a três mil escravos. No convento do Desterro,
na Bahia - a informação provém de um arcebispo naquela diocese - viviam 400 escravas
para 74 freiras. As freiras eram servidas pelas escravas, não iam à cozinha, não
trabalhavam, não existia vida em comum, e se comportavam como se fossem mulheres
da alta sociedade. (PRANTNER, 1998, p. 119).

98
O escritor Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) é considerado por muitos pertencente ao clã
acadêmico da pauta esquerdista brasileira. Na infância, foi aluno da missionária Anne Bagby no
Colégio Progresso Brasileiro, que teve, “em 1930, o nome foi alterado para Colégio Batista”
(ALMEIDA, R., 2014, p. 284, 286).
Poucas vozes se levantaram a favor dos negros escravos no Brasil. Pelo
contrário, havia irreverentemente um complô de cumplicidade pelos interesses de
uma sociedade predominantemente corporativista, extremamente feudalista,
caucasiana e pragmaticamente religiosa.

Durante cerca de quatrocentos anos, padres, bispos, cardeais e Ordens religiosas não
apenas apoiaram como participaram do tráfico de escravos e lucraram com ele. Nesse
longo período, foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram
contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. [...] um
negócio particularmente lucrativo porque a Igreja estava isenta pela Coroa portuguesa
de pagar impostos e taxas alfandegárias no tráfico negreiro. (GOMES, 2019, v. 1, p.
336, 337).

Aliás, como acima mencionado, desde o início do comércio de gentes


arrancadas da África, a Igreja endossava abertamente a exploração da mão de obra
escrava, aquilo que simbolicamente classifico de degustar de carne humana!99
O baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) estava com três
anos quando da aprovação, em 1850, da Lei Eusébio de Queirós. 100 Em sua
adolescência e rápida juventude, Castro Alves foi um abolicionista que soube como
ninguém se expressar através do uso de suas épicas poesias, as quais multidões
abarrotavam as grandes salas de espetáculos teatrais para ouvir. Espetáculos de
brancos para os brancos, nos quais a figura principal apresentada em forma de
poesia era o pobre negro/escravo. Na infeliz condição subalterna de escravo, era-
lhe vedado o direito de assistir a uma peça teatral. De pouca sorte, tal qual o negro,
fonte de suas inspirações, Castro Alves apaixonou-se perdidamente por Eugênia
Infante da Câmara (1837-1874), uma atriz de teatro nascida em Lisboa. Tão logo a
sua chegada, as más línguas afirmavam que Castro estava enrabichado com uma
donzela portuguesa. Ela chegara ao Brasil em 1859, aos 22 anos, e nesse país
conseguiu redobrar sua fama, sua popularidade e seu sucesso. A doentia paixão de
Castro Alves pela portuguesa alfacinha (ainda em nossos dias, essa é a romântica
alcunha identificatória de quem nasce na cidade de Lisboa) fez diabruras na vida e
na carreira desse lendário poeta baiano. Como diria Victor Hugo, “Para ele, uma
paixão; para ela passa tempo. [...] Pobre de quem se entrega ao volúvel coração de

99
Seu Jorge, nome artístico de Jorge Mário da Silva (1970-), um cantor e compositor negro nascido
em Belford Roxo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em uma de suas canções de protesto e
resistência negra, afirma:

A carne mais barata no mercado é a carne negra,


Que vai de graça pro presídio
E para debaixo de plástico,
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos.

100
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1871), magistrado, político e senador
brasileiro vitalício, nasceu em Luanda. Seu pai era um influente ouvidor em Angola e bem
relacionado com a família imperial. Eusébio cresceu no Brasil, entrelaçou-se por matrimônio com
poderosos fazendeiros açucareiros cuja mão de obra escrava era imperante. Eusébio morreu aos 56
anos no Rio de Janeiro, em 7 de maio de 1871, sensivelmente 60 dias antes de Castro Alves, o gênio
da poesia negreira.
uma mulher. [...] uma mulher bonita é um flagrante delito” (HUGO, 2007, v. 1, p.
138, 150, 152). Para Castro Alves, o resultado dessa louca 101 paixão abrasada pela
diabólica e dominante luxúria foi a decadência acadêmica; a perda da saúde, do pé
esquerdo, dos amigos e, por fim, o precoce falecimento em Curralinho, Bahia, na
quinta-feira, 6 de julho de 1871. Nas várias pesquisas biográficas, não encontramos
o poeta envolvido com o mundo da religião do Império. Entretanto, são fulgurantes
os metafóricos fragmentos bíblicos em seus poemas. Um dia antes de falecer, o
moribundo Antônio Frederico de Castro Alves “pedira para se confessar, sendo
atendido pelo padre Turíbio Tertuliano Fiúza (1827-1909)” (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 1, p. 464). Era muito jovem e viu, aos 24 anos, “sua mocidade, indo embora
antes do tempo” (HUGO, 2007, v. 1, p. 139). Ao morrer, faltava-lhe o pé esquerdo,
que fora amputado sem o uso de anestesia no mês de junho de 1869, na cidade do
Rio de Janeiro. Castro Alves, um boêmio da vida, não chegou a contemplar nem
mesmo a Lei do Ventre Livre, que entrou em vigor em 28 de setembro de 1871.
Porém sua influência seguiu até à Lei Áurea, que passou a vigorar após a missa
matinal do domingo, 13 de maio de 1888. Aliás, ainda hoje os épicos poemas de
Castro Alves são recordados e declamados com certa dosagem de compaixão e
nostalgia que retratam um selvagem passado inapagável da História Brasileira. O
desafortunado negro, que menos merecia sofrer em virtude do seu trabalho
descomunal, foi o mais prejudicado e rejeitado frente a um sagaz corporativismo
liderado pela supremacia branca que fazia o jogo dos seus próprios interesses.
Esse furúnculo ainda não foi extirpado de diferentes segmentos da vasta e
antagônica sociedade na qual estamos inseridos.
Malvadamente, a religiosidade fomentou a marca do ódio, segundo o
comentário do professor James Walvin (1942-), um canadense especialista na
história do escravagismo americano.

À medida que se tornava evidente que a presença europeia estava a abalar de forma
dramática os povos indígenas, os homens da igreja começaram a solicitar a vinda de
africanos não cristãos, a fim de poupar os índios ao sofrimento. Também se considerava
que era vital que os africanos fossem pagãos, a fim de evitar que os europeus
escravizassem outros cristãos. (WALVIN, 2008, p. 58).

Essa velada negligência e omissão da parte dos religiosos que sabiam


manejar o sagrado e, ao mesmo tempo, não se condoíam da realidade da
escravatura humana foi um fato social e religioso que durou por mais de três longos
séculos no Brasil. “Mas a igreja não enxergou plenamente o sofrimento dos negros
nem levantou satisfatoriamente a voz contra essa loucura econômica, social e
religiosa” (CÉSAR, 2000, p. 42). “A escravatura negra jamais foi condenada, embora
homens como António Vieira tentassem proteger os pretos contra o despotismo
ilimitado de seus senhores” (MARQUES, 1995, p. 332). Muitas vezes e
tendenciosamente, descarregamos um mar de fúria somente contra a Igreja Católica
Apostólica Romana, seus líderes e aliados por esses acontecimentos e pela

“Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos
101

um pouco.” (SARAMAGO, 2019, p. 216).


permanência da escravatura no Brasil, na Europa e nas Américas, tendo a África
como origem da requisitada matéria prima. Tudo não passa de infantís peças
teatrais! A bem da verdade, devemos esclarecer que também os protestantes, os
judeus, os ateus, os islâmicos e toda uma eclética sociedade religiosa ou não foram
coniventes e fomentaram a existência da escravidão de negros sugados do
continente africano. Para todo esse aglomerado religioso, os interesses políticos,
financeiros e sociais falavam mais alto. Também não foi diferente entre os
protestantes dos Estados Unidos. “Em 1864, a Igreja Presbiteriana do Sul emitiu
uma nota oficial: Não hesitamos em afirmar que é a missão específica da Igreja do
Sul conservar a instituição da escravatura, fazendo dela uma benção tanto para o
senhor quanto para o escravo” (CÉSAR, 2009, p. 118). Será que chicotadas, abusos
e maus-tratos são bênçãos? Que sagaz delírio de uma malta tresloucada por
sangue de negros! Cotton Mather (1663-1728), acirrado defensor da supremacia
branca nas Colônias Britânicas nas Américas, era um influente pregador puritano
calvinista nascido em Boston. Em seu conceito de protestante calvinista e popular
expoente do sagrado diante de uma profana freguesia racista, ele afirmou que “os
negros eram os filhos miseráveis de Adão e Eva.” 102
O falecido professor Ludwig Peter Berger (1929-2017), que foi sociólogo,
escritor e teólogo luterano austro-americano, não deixa de alfinetar, dizendo que
ambas as facções, na busca de lucros, não olhavam os meios para alcançar os fins.
O mais importante estava na soma final dos lucrativos negócios. “Os protestantes
eram tão violentos quanto os católicos em seus esforços para exercerem um
controle monopolístico sobre seus territórios” (BERGER, 1985, p. 148). Claro está
que esse controle monopolístico também invadia livremente o tenebroso mundo da
compra e venda de africanos feitos escravos! “Durante os três séculos e meio de
escravidão na América, inúmeros teólogos, pregadores e chefes de Igrejas usaram
a maldição de Cam para defender o cativeiro dos africanos” (GOMES, 2019, v. 1, p.
74).

Vozes abolicionistas

Na história brasileira, encontramos a influência de alguns destacados


missionários e outros que chegaram às terras tupininquins e se empenharam para a
abolição da escravatura que o branco fazia do negro. Como já mencionado, isso era
um lucrativo vício europeu que durou por mais de três séculos. Dos já citados
quinze a vinte milhões de negros feitos escravos traficados de nações africanas,
cerca de 40% foram transportados em navios negreiros e comercializados no Brasil
como animais selvagens vendidos nos horrorosos e degradantes leilões nos quais,
sem exceção, as mercadorias eram os negros; os brancos, os únicos compradores
e consumidores. Aliás, diga-se de passagem, esses consumidores de carne
humana eram os donos do poder e corporativamente manobravam a economia de
uma nação analfabeta, cegamente religiosa, rude e predominantemente rural. A
102
Informações disponíveis em: <https://paleoortodoxo.wordpress.com/2018/01/05/jonathan-edwards-
e-george-whitefield-escravocrata-e-calvinismo/>. Acesso em: 6 out. 2020.
escravatura moldou cada aspecto crucial da economia brasileira e, de forma brutal,
gerou o “império escravocrata” (PAGANELLI, 2020, p. 120). Os cálculos afirmam
que, a partir de 1530 (ou anos antes) até 1888, milhares de caixas de açúcar,
posteriormente alojado em sacas, café e outros grãos, além de toneladas de ouro,
diamantes e pedras preciosas passaram pelos calejados lombos de negros feitos
escravos. “Um homem negro ou mestiço descendente de africano escravizados teria
salvado a Coroa portuguesa da ruína no finalzinho do século XVII. Seria ele o
responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais, dando assim início à corrida
por pedras e minerais preciosos que mudaria por completo a paisagem brasileira e
restauraria, ainda por um breve período, a glória perdida do Reino de Portugal. [...] o
primeiro descobridor foi um mulato que tinha estado nas minas de Paranaguá e
Curitiba. [...] Mas nada que se comparasse ao que aconteceria em Minas Gerais
graças à sorte e às habilidades do tal mulato paranaense” (GOMES, 2021, v. 2, p.
79, 82).103

A matéria-prima para as indústrias dos senhores de engenho - o africano - carriado


como máquina ou alimárias para a produção do açúcar. [...] o escravo a trabalhar para o
senhor, como um animal de tração, até à morte. E nem direito aos filhos. As crias eram
também produzidas para a fazenda do senhor. (SILVA, F., 2001, p. 54, 90).

Uma dessas vozes que clamou nos desertos da vida foi a do colportor
metodista americano Daniel Parish Kidder, aquele que sepultou sua jovem esposa
no Rio de Janeiro em 1840. Esse foi um entre os vários conhecidos
antiescravagistas que passaram e deixaram rastros por terras do Brasil. “Ele
trabalhou como vendedor de Bíblias, fez esforços pela protestantização do Brasil,
protestantismo que, à época, era associado ao desenvolvimento econômico,
científico e tecnológico” (PAGANELLI, 2020, p. 56-57). Em páginas anteriores, já

103
Diga-se de passagem, o negro ainda hoje é um excelente vendedor e expoente fonte de lucros,
além de influenciar e aquecer o mercado da compaixão. Com raríssimas exceções, é possível
encontrar a fotografia de uma pessoa branca em cartazes missionários ou apelos humanitários, nos
quais o dinheiro é a principal voz de comando. Ainda hoje, vergonhosamente se faz do negro uma
lucrativa mercadoria. Na busca de sensabilizar os mais abonados de uma fria sociedade, fotos de
crianças negras ou de sofridos velhos negros desdentados e descamisados são expostas na vitrine
das necessidades, fomentando gritantes carências que podem ser socorridas com míseras moedas
extraídas dos bolsos de pessoas brancas. Essas míseras esmolas, em sua maioria, são
administradas por um grupo de brancos! Dando asas ao “mito do branco salvador, exaltando a
generosidade da branquitude e a miserabilidade da negritude. [...] Isso é o que chamamos de
complexo de branco salvador” (Disponível em: <https://noticiapreta.com.br/o-mito-do-branco-
salvador-exalta-a-generosidade-da-branquitude-e-a-miserabilidade-da-negritude/>. Acesso em: 27
abr. 2020). O mesmo se passa nas diferentes modalidades esportivas. Quem dá as ordens e controla
as cartas no mundo dos esportes? A maioria quase absoluta dos jogadores e outros atletas são
negros. Em contrapartida, os seus renomados treinadores e não poucos empresários são brancos.
Pessoas que ainda hoje, compram e vendem negros por incalculáveis fortunas nos avantajados
mercados europeus! Com raríssimas exceções, até mesmo a saga que envolve a história do negro
no Brasil é pesquisada e escrita por autores brancos! “Só 10% dos livros publicados no Brasil entre
1965 e 2014 são de autores negros” (GOMES, 2019, v. 1, p. 33). Essa leitura foi feita sob a óptica de
um escritor branco. Se os cáculos são críveis e, tudo indica que sejam, estou entre essa minoria de
10% de escritores negros no Brasil.
mencionamos a história de Cynthia Harriet Kidder, vitimada pela febre amarela, e
sua precoce morte aos 22 anos em 1840.
O médico escocês, doutor Robert Kalley, ao fundar o primeiro movimento
evangélico permanente no Brasil, nunca permitiu que proprietários de escravos
fossem aceitos como membros da Igreja Fluminense. Em dezembro de 1865, “o
missionário escocês presidiu a sessão extraordinária da Igreja Evangélica Fluminense
que excluiu da comunhão o senhor Bernardino de Oliveira Rameiro porque, mesmo
instruído e exortado, não quis alforriar seus escravos” (CÉSAR, 2009, p. 96). O Dr.
Kalley

considerava a escravidão uma instituição desumana e contrária à prática cristã [...] O


preconceito racial e os interesses dos grandes proprietários foram os principais
responsáveis pela preservação do sistema escravista que permaneceu mesmo após a
independência do Brasil. (ALMEIDA, R., 2014, p. 69, 72).
Não houve acordo de cavalheiros! A atitude do pastor Kalley foi um ato
corajoso e elogiável ao se levantar frontalmente contra aquele poderoso senhor de
escravos. Quando esse renomado missionário recebeu, na mansão onde morava na
cidade de Petrópolis, Sua Majestade, D. Pedro II, o Augusto Imperador do Brasil, na
pauta ventilaram a urgente necessidade de uma abolição total e irrestrita a favor dos
negros feitos escravos. Todavia, as leis e os jogos políticos agiam dentro do sistema
dos interesses de seus apadrinhados, fazendo do imperador uma mera figura.
Os mesmos ideais possuía James Cooley Fletcher (1823-1901), pastor
presbiteriano e filho de um milionário banqueiro americano. Ele também teve sua
voz ouvida a favor da abolição da escravatura no Brasil. Fletcher, que se graduou
em 1846 pela Brown University, em Providence, sem dúvida, foi um recheado
polímata da cultura e abonado pelas finanças, mas, ao mesmo tempo, era
suficientemente adornado de humildade para envolver-se a favor da mais baixa
classe existente no segmento social: o negro na servidão do cativeiro. Esse
americano era casado com uma muito bem-educada suíça que o acompanhou para
os Estados Unidos e, posteriormente, para a dura realidade da vida no Brasil, onde
se encantou com o povo, com as curvas dos riachos, com as florestas e com o
cheiro da terra sulcada por negros feitos escravos de indolentes brancos. “Fletcher
era abolicionista e se dedicava tanto à distribuição de literatura anti-escravagista
como à distribuição de Bíblias” (VIEIRA, David, 1980, p. 62). James Fletcher,
mesmo ausente do Brasil, manteve sólidos laços de amigáveis relações com D.
Pedro II e foi o seu cicerone quando de sua visita à cidade de Boston em 1876.
Estou somente a repetir aquilo que é de domínio público e largamento registrado em
qualquer livro de História do Brasil. Foi D. Pedro II o primeiro mandatário do Brasil a
visitar os Estados Unidos.

Seu caso de amor com os Estados Unidos se iniciou na década de 1850 e teve como
cupido o reverendo James Cooley Fletcher. Com boa formação universitária em Brown,
o reverendo chegou ao Rio de Janeiro como missionário da União Cristã em 1852. [...]
teve o primeiro encontro com o casal imperial em 1853. D. Pedro tratou-o como a um
igual [...] A imperatriz fez o mesmo com a mulher suíça de Fletcher, Henriette.
(CARVALHO, J., 2007, p. 157, 158).
Provavelmente, como resultado de sua propagada fé protestante e de seus
bons relacionamentos, James Fletcher tenha sido o responsável por agendar, no
roteiro de D. Pedro II durante sua visita a New York, um momento para ouvir o
famoso pregador evangélico Dwight Lyman Moody (1837-1899). Naquela noite,
Moody pregou sobre Mateus 27:22. Durante a mensagem, o pregador, que sabia
que D. Pedro II estava ali, disse:

Mesmo um grande imperador, com toda a sua riqueza e poder, não salvará a sua alma
se não se curvar aos pés de Cristo e não aceitar de todo o coração. Ao ouvir essas
palavras, D. Pedro II curvou a cabeça reverentemente, concordando com o pregador.
(GIRALDI, 2013, p. 67).

Eduardo Carlos Pereira (1855-1923), pastor presbiteriano, renomado escritor


e ilustre educador brasileiro, redigiu um pequeno tratado com o título A religião
Christã em suas relações com a escravidão, esclarecendo que o trabalho de
servidão não remunerado é o sentido mais cruel que o ser humano poderia aceitar,
quando a isso obrigado e sem alternativas. Diga-se de passagem, esse mineiro
nascido na cidade de Caldas, dia 8 de novembro de 1855, e veio a falecer em São
Paulo, em 2 de março de 1923, é um dos poucos brasileiros que tem o seu nome e
suas obras citadas no Biographical Dictionary of Christian Missions (ANDERSON,
1998, p. 527). Em 1872, aos 17 anos, era professor de francês, latim e português, o
que, sem dúvida, indica que ele era superdotado, um verdadeiro gênio do saber.
Passados três anos, Eduardo Carlos Pereira trocou a Academia de Direito de São
Paulo pelo estudo de teologia na nascente Escola Americana, que se evolumou,
tornando-se, em 1952, a atual Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma
embrionária instituição surgida em 1870, que, de longe, tem se tornado um dos mais
conceituados centros acadêmicos do Brasil.
O jornalista Ivan Santos (1930-), alagoano de nascimento, coração mineiro e
alma uberlandense quando, em seu período ginasial na cidade de Marília, São
Paulo, viu a escola onde estudava adotar o melhor que havia na época: a
“Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira, curso médio”. Do mesmo autor,
havia também uma edição para o curso superior. 104 No prólogo da primeira edição
dessa obra, redigido pelo autor em São Paulo, aos 14 de fevereiro de 1907, Pereira
enfatiza o seu amor pela língua portuguesa. Que sem dúvidas era um mestre com
todo o requinte intríseco da palavra.

A boa regência de nossa cadeira de português no Ginásio Oficial da cidade de S. Paulo


nos levou ao presente trabalho. [...] aguçar o intelecto e formar o caráter [...]. Se algum
êxito coroou esta nossa tentativa, não nos compete dizê-lo. [...] Se nestas páginas puder
a nossa mocidade estudiosa encontrar alguma luz, que lhe revele os poderosos
recursos de nosso belo idioma, e os nossos colegas no magistério algum auxílio de sua

104
Gramática Expositiva - curso superior, primeira tiragem de 1907, teve 96 edições. Gramática
Expositiva - curso elementar, 1908, teve 153 edições e Gramática Histórica, 1916, teve dez edições.
Esses sinais das Ietras afirmam a profícua capacidade intelectual e produtiva do pastor Eduardo
Carlos Pereira. Um polímata da região Sudeste das Minas Gerais! O citado jornalista não somente
referiu-se ao livro de Pereira, mas presenteou-me em 19 de agosto de 2020 com um exemplar da 50ª
edição publicada em 1926, literatura que em muito elevou o meu acervo. Muitíssimo grato, meu
nobre amigo senhor Ivan Santos.
nobre profissão, dar-nos-emos por compensados dos labores, que elas representam.
(PEREIRA, 1926, p. 9, 11, 12).

Casado e ativo no ministério presbiteriano, em 1883, aos 28 anos, Eduardo


Pereira iniciou uma congregação na cidade de Campanha, Circuito das Águas de
Minas Gerais. Segundo informações, Euclides da Cunha (1866-1909) escreveu os
primeiros capítulos de seu famoso livro “Os Sertões” em Campanha, onde nasceu
um de seus filhos. Entre os muitos filhos ilustres da terra, destaca-se Vital Brazil
Mineiro da Campanha (1865-1850), que, na infância, morou na cidade de Caldas,
onde nasceu sua irmã Judith Parasita de Caldas (1873-1953). Enquanto Carlos
Eduardo Pereira organizava um trabalho presbiteriano em Campanha, Vital Brazil
era estudante com honrarias na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, escola
criada pelo príncipe regente D. João, por Carta Régia, em 5 de novembro de 1808.
Vital Brazil, em sua época, tornou-se o mais ilustre sanitarista brasileiro, sendo
disputado academicamente na Europa e nos Estados Unidos. Fundou em 1901, no
bairro de Pinheiros, São Paulo, aquilo que, em 1925, se tornou o atual Instituto
Butantã, em cujo velho prédio, ainda se mantém a original ortografia “Butantan”,
expressão indígena que significa terra duríssima.
Calculando e cruzando diferentes datas, vemos que possivelmente Vital Brazil
viveu os primeiros seis anos em sua cidade natal antes de se mudar para Caldas.
Eduardo Carlos Pereira, nascido em Caldas, morou em Campanha por um período
de seis anos. Ambos beberam das águas dos Rios Palmela e São Bento! Eduardo
Pereira nasceu quase dez anos antes de Vital Brazil, mas ambos se tornaram
grandes expoentes humanitários. Um cuidou de almas, o outro de corpos físicos
para manter as almas! O que cuidou de almas também esteve na Europa e nos
Estados Unidos e viveu somente 67 anos; o que cuidou da saúde dos corpos
morreu dez dias após completar os 85 anos e soube cuidar dos outros e de si
próprio.
Eduardo Carlos Pereira (se o leitor preferir atribuir-lhe um tratamento,
digamos, mais honroso, podemos chamá-lo de reverendo, pastor, professor,
teólogo, filósofo, escritor e, por que não, doutor, bagagem ele tinha para tal!), aos 48
anos, corajoso e decidido em seu caminhar, rompeu, em 31 de julho de 1903, com a
Igreja Presbiteriana do Brasil. As más línguas afirmam que o principal foco de sua
decisão estava em discordar do tratamento racista e do envolvimento dos
presbiterianos com a maçonaria, uma abominação aos olhos do mineiro de Caldas.
No dia seguinte ao desligamento, se amigável ou não, Eduardo Carlos Pereira,
juntamente com outros seis pastores, fundou a Igreja Presbiteriana Independente do
Brasil. Os seus colegas nessa corajosa empreitada foram os seguintes pastores:
Alfredo Borges Teixeira (1878-1975); Bento Ferraz (1865-1944); Caetano Nogueira
Júnior (1856-1909); Ernesto Luiz de Oliveira (1875-1938); Otoniel de Campos Mota
(1878-1951) e Vicente Themudo Lessa (1874-1939). A partir desse cisma, surgiu a
segunda igreja autóctone brasileira. A divisão anterior, também dentro da
Presbiteriana, havia transcorrido há 23 anos, 11 de setembro de 1879, quando
surgiu a Igreja Evangélica Brasileira.
Existia uma velada crítica de não poucos intelectuais brasileiros e não só, que
a Nação brasileira não se deslanchava livremente, em virtude da fomação e forte
domínio existente da parte do catolicismo entre o povo em geral. “Emblemático,
nesse sentido, foi o livro O problema religioso da América Latina, do pastor Eduardo
Carlos Pereira, publicado em 1920. A obra não supera os lugares comuns de certa
literatura dos cultos dissidentes da época [...] Eduardo Carlos partia do princípio de
que as etnias saxônica e latina modelaram o continente americano, ou mais
exatamente que o individualismo de corte reformado se tornara a nota característica
da primeira e o coletivismo de orientação católica construíra o jeito de ser da
segunda. [...] Sendo este o critério a observar, chegava ao final do seu elaborado
escrevendo com letras maiúsculas: Fora de Roma, dentro do Cristianismo” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 2, p. 196, 197).

Vozes católicas no período da escravidão

Quanto a este novo tópico, não há tantos destaques apesar do poderio que os
líderes católicos possuíam em suas mãos e, consequentemente, da sua voz de
comando na manipulação do sagrado, o que lhes dava o ar de sacristia, morada do
Santíssimo Sacramento. O pernambucano Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de
Araújo (1849-1910), um nobre político, exímio jurista, jornalista, abolicionista,
diplomata, além de outros honoráveis predicativos, aos 38 anos, em 1883, publicou
o livro O Abolicionismo, no qual o cardápio era variado. Porém o autor repartiu
alfinetadas diretamente aos líderes dos altares, sendo enfático em suas opiniões
previamente determinadas.

Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, pregado


do púlpito, sustentado com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas. [...]
Nenhum padre tentou nunca impedir um leilão de escravos, nem condenou o regímen
das senzalas. A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em
grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação.
(VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 314).

O Dr. Joaquim Nabuco foi um agressivo advogado que nunca jogava para
perder. Quando Robert Kalley, o médico e pastor, sentiu-se tolhido em seus direitos
sacerdotais, ele recorreu ao jovem jurista, que desmantelou todo o ar conspiratório
costurado contra os protestantes em todo o território imperial. Somente com o
passar dos anos foi que Joaquim Nabuco se encaixou, embora com reservas, ao
sistema católico. O frade Dilermando Ramos Vieira afirma que Nabuco almejava
liberdade para todos, menos para os católicos. Aos olhos do jurista, tudo não
passava de “uma milícia estrangeira a serviço de Roma” (VIEIRA, Dilermando, 2016,
v. 1, p. 315).
Nos primórdios da Independência de Portugal, o paraense nascido em
Cametá, Dom Romualdo Antônio de Seixas (1787-1860), Primaz do Brasil, com as
comendas de conde e marquês de Santa Cruz, além de deputado da Bahia no Rio
de Janeiro, tinha que agradar D. Pedro I e não perder de vista os votos das fiéis
ovelhas. Indiferente à ambiguidade dos cargos, ele falou sobre os descalabros que
envolviam a escravidão no Brasil.

Ainda em 3 de julho de 1827, Dom Romualdo Seixas faria no parlamento um violento


discurso contra a prática, abrindo caminho para outras tomadas de posição do gênero. E
haverá quem diga que os meios fornecidos pelo comércio de escravo não são injustos,
ou que este comércio não é lícito, vergonhoso, degradante da dignidade do homem,
antissocial, oposto ao espírito do Cristianismo, e somente próprio para retardar os
progressos da civilização da espécie humana? [...] sabe-se também qual é o zelo e
cuidado da maior parte dos senhores na instrução religiosa desses miseráveis, que eles
tratam como bestas de cargas, olhando unicamente para o produto do seu trabalho. [...]
Convenho que muitos pretos e pardos se fazem credores da maior estima; eu não avalio
o homem pela cor da pele, mas pelo seu comportamento e caráter”. Seguindo as
elogiáveis pesquisas do mineiro de Novo Cruzeiro. “[...] Ainda em Mariana, Pe. Silvério
Gomes Pimenta, ele próprio negro, bateu-se igualmente contra a escravidão pelas
mesmas razões: o cativeiro era fonte de imoralidade e degradação humana e também
contribuíra para a pouca instrução religiosa dos escravos”. Continua o Servita oriundo
das Minas Gerais, menciona que Dom Antônio de Macedo Costa, em 1863, ou seja,
doze anos antes de ser sentenciado e preso sob ordens do Supremo Tribunal da
Justiça. “[...] Desejo para o meu país a abolição da escravatura [...] A escravidão é uma
chaga; está condenada pelo cristianismo; tem que desaparecer. É este o desejo mais
ardente do meu coração. (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 316, 317, 318, 320).

Passos para a libertação dos escravos

O gradual processo que resultou na abolição total da escravatura no Brasil


durou 38 extensos e vergonhosos anos de negociações políticas, nos quais o negro
escravo era sempre o perdedor. Quantos sonhos foram roubados e quantas
esperanças desvanecidas nessas quase quatro décadas! Diante de vários
argumentos, os projetos eram esbarrados no forte corporativismo dos senhores
fazendeiros que mantinham vivo o tráfico de negros procedentes, na sua maioria, da
África Ocidental. Era o aproveitar de gentes de um continente com as suas mazelas,
suas guerras, suas precariedades, suas necessidades e suas inexploradas
riquezas. “Era uma atividade altamente organizada, sistemática, complexa e tão
arriscada quanto lucrativa para os investidores” (GOMES, 2019, v. 1, p. 225, 226).
Além dos interesses panfleteados pelos lobistas das classes fomentadoras do
tráfico, existia a natural lentidão, visto que o Imperador queria agradar a gregos e
troianos. Em resultado a esse lenga-lenga palaciano, persistia o processo
desgastante, sacrificial, longo e vergonhoso. Tudo em dosagens a conta-gotas de
um paliativo homeopático instilado lenta e demoradamente! Diante da paranóica
lentidão das autoridades brasileiras, que tudo faziam por interesses ou pouco fogo
para atrasar o banho-maria, a Inglaterra, que defendia sua evolução industrial em
contraste com os braços de negros feitos escravos, saiu das simples repreensões e
ameaças diplomáticas para os ataques diretos. “Em junho de 1850, navios ingleses
passaram a invadir portos do Paraná ao Rio de Janeiro para apreender, afundar ou
queimar navios negreiros” (NARLOCH, 2011, p. 286). Houve a gritante participação
externa para resolver uma questão de foro interno do Brasil. “Na época, um terço
das embarcações da Marinha Real se engajou no patrulhamento. Com uma rapidez
impressionante, a Grã-Bretanha passou, dizem, de caçador illegal e guarda-
florestal” (HOCHSCHILD, 2007, p. 392). O eclodir dos canhões falou mais alto e
calou a opolência do corporativismo escravagista dominante no Brasil!
1850 - A Lei Eusébio de Queirós foi aprovada em 4 de setembro, ficando por
ela proibido o tráfico de escravos africanos para o Brasil. Isso aconteceu na busca
de tapar a exigente pressão da Inglaterra. Clandestinamente, e mesmo sob olhares
das autoridades brasileiras, o tráfico continuou por alguns anos. Tudo não passava
de um bem-montado esquema na aprovação de uma lei para o inglês ver. A
verdadeira história era totalmente diferente: as autoridades não queriam resolver,
mas somente esconder o escabroso problema aos olhos da sociedade internacional.
Os traficantes, em sua maioria proprietários de títulos de nobreza, sendo, portanto,
pessoas apadrinhadas e comprometidas com o Imperador, não estavam dispostos a
perder o filão que seus míseros navios buscavam nas terras africanas e
despejavam como animais para trabalhos forçados no Brasil. Eram os traficantes de
almas e mutiladores de corpos negros! Faço aqui um trocadilho roubado do padre
Antônio Vieira (1608-1697): “Sem África, não há escravos; e sem escravos não há
Brasil” (GOMES, 2019, v. 1, p. 221).
1871 - A Lei do Ventre Livre foi promulgada 21 anos após a primeira cena
teatral de 1850. Essa Lei foi votada e aprovada por 65 dos 110 parlamentares
presentes e sancionada em 28 de setembro pela imperial Princesa Isabel, regente
que estava no comando da nação, enquanto seu pai fazia sua primeira viagem à
Europa para cuidar da saúde de D. Teresa Cristina (1822-1889), sua esposa.

A pretexto de tratar da saúde de sua mulher, a imperatriz Teresa Cristina, arrancou do


Parlamento uma autorização para conhecer tudo de bom que a civilização já produzira.
Por quase um ano, a partir de junho de 1871, viajaria entre Portugal, Inglaterra, França,
Alemanha, Suíça, Áustria, Hungria, Itália e Egito. Enfadado com sua majestade, posaria
de simples cidadão, visitaria sábios, praticaria suas línguas. (CALDEIRA, 2008, p. 480,
481).

Naquele histórico e sufocante período político, a princesa Isabel estava com


somente 25 anos, aliás, esta a mesma idade que sua avó, a Imperatriz D. Maria
Leopoldina assinou a Independência do Brasil em 1822. Essa paliativa lei era a
busca de tapar o sol com a peneira. Em tese, o tabuleiro de xadrez estava muito
bem-montado a favor dos milionários traficantes e senhores de escravos. O ventre
livre não passava de um verdadeiro engodo criado pelos políticos. Os “beneficiários”
da lei seriam os ingênuos, termo usado para designar os filhos de escravos que
supostamente nasciam livres, porém se mantinham sob a servidão legal do senhor
de seus pais até aos 21 anos! 105 Sendo esse o primeiro passo na busca de enterrar
105
Por três períodos a princesa Isabel ocupou a regência do Brasil em substituição a D. Pedro II. O
primeiro período, aconteceu entre 25 de maio de 1871 a 30 de março de 1872. A segunda regência
durou 18 meses, 26 de março de 1876 a 26 de setembro de 1877. Esse foi o período em que D.
Pedro II esteve nos Estados Unidos, na Europa, na África e no Oriente Médio, cumprindo o seu
sagrado sonho de visitar a Terra Santa. A terceira e última viagem ocorreu pelo fato de D. Pedro II
estar mal dos diabetes. Assim, aconselhado pelos seus médicos brasileiros, foi à Europa em busca
de melhores tratamentos. Nesse período, a princesa Isabel ficou em meio a uma perturbada regência
de 30 de junho de 1887 até 22 de agosto de 1888. Faltavam poucos dias para completar os quase
quatorze meses de sua última regência. Quando D. Pedro II retornou ao Rio de Janeiro, estava
completando cem dias que a escravatura havia sido oficialmente varrida de todos os quadrantes do
as abusivas correntes da servidão que degradava à imagem do Brasil. Aos olhos do
senador Joaquim Nabuco, um dos signatários da lei, “seja dito incidentemente, foi
um passo de gigante dado pelo país. [...] essa lei foi nada menos do que o bloqueio
moral da escravidão” (NABUCO, 2012, p. 61)
1885 - A Lei dos Sexagenários foi promulgada a 28 de setembro.
Semelhantemente às anteriores, essa lei também não passava de outro bem-
montado jogo político criado pelas autoridades governamentais. Por ela,
teoricamente o escravo conseguia sua liberdade ao completar 60 anos (Aliás, aos
63, pois ele era obrigado a trabalhar normalmente mais três anos como uma forma
de indenizar o seu senhor!). Era algo por demais sagaz e ardil, tendo em vista que
somente uma irrisória minoria de escravos conseguia alcançar essa idade. 106 Muito
antes de chegar à casa dos 63 anos, esses infortunados já estavam doentes,
acabados e sem condições para manter a si próprios. Alquebrados, enfermos, sem
uma profissão definida ou amparo legal, os negros feitos escravos eram
simplesmente atirados à rua da amargura. Era tudo muito cruel, para não dizer
vergonhoso e pecaminoso. Como sempre tem acontecido na história da
humanidade, a corda somente arrebenta em seu lado mais frágil. “O engenheiro
André Rebouças, sustentava que, após a abolição, quem deveria receber
indenização não eram os proprietários, mas os escravos, em razão do trabalho
forçado e dos abusos a que foram submetidos ao longo da vida” (GOMES, 2013, p.
234).
1888 - A Lei Áurea. Essa foi a última vez que Isabel, a Augusta Princesa
imperial, esteve no comando da nação. Dirigiu o grande e desestruturado Império
enquando seu pai, D. Pedro II, estava novamente na Europa à procura de especiais
cuidados médicos para tratar os seus avançados e descontrolados diabetes. A lei
abolicionista foi assinada após a missa dominical de 13 de maio de 1888. Naquela
data, pelo menos no papel, a escravidão foi abolida em todos os quadrantes do
imenso território brasileiro, sem exceção. Lamentavelmente, o mesmo documento
não previa nenhum meio para reintegrar os ex-escravos a uma sociedade livre e
com igualdade de direitos. Na segunda-feira, 14 de maio de 1888, o ilusório e bem-
montado cortinado do teatro foi levantado. Mostrando a realidade de um falso palco
existente no dia anterior, via-se uma multidão de negros famintos, desempregados,
procurando onde se acomodar, dando vazão aos cinturões de pobreza e
miserabilidade em volta das cidades. Para nossa contínua vergonha provinda do
passado, o Brasil foi, sob pressão da comunidade internacional, a última nação das
Américas a libertar os seus escravos de um desumano costume. Essa atitude fez
nascer a drástica figura na mitológica simbologia de um elefante branco, que os
anos não conseguiram remover da sociedade brasileira. Somos filhos de escravos
ou de escravagistas, se você nasceu no Brasil, a de concordar comigo, nossos

Império Brasileiro. Em resultado à Lei Áurea, o trono ficou estremecido, e, passados somente quinze
meses, dia 15 de novembro de 1889, o império desabou para sempre!
106
O drama era de um macabro terror e totalmente desumano. “No Brasil a expectativa de vida de um
escravo era de 23 anos, no máximo, em fins do século XVIII” (SILVA, L., 2009, p. 34).
antepassados estiveram em um dos lados do balcão da história. Eles foram os
humilhados ou os humilhantes!
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia.
Carlos de Assumpção (1927-)
(Não pararei de gritar)
Segundo aleatórias observações que li em algum noticiário ao nascer do ano 2020,
cerca de 85% dos moradores escravizados pelas drogas na cracolândia em São
Paulo são negros! Não será isso um grito de rebeldia contra uma sociedade que
foge à sua empatia? Esse mesmo drama social que em muito excedia as fronteiras,
se passa “pelos caminhos de nossa Maiúscula América” (LUZ, 2013, p. 19).
No Brasil e no mundo afora, o negro subjugado à escravidão nunca foi
preparado para ser livre. Aliás, por séculos ele foi considerado um bem de consumo
negociável e livremente descartável pelos seus proprietários e controladores. Nessa
questão operante, sua voz foi sempre calada; o seu único direito - se é que isso
existia - era o de ser escravo. Sobre essa tolhida liberdade, escreveu Ciro Flamarion
Santana Cardoso (1942-2013), professor e historiador nascido em Goiânia:

O escravo: não é dono de si próprio, pertencendo então a outro homem; sua vontade é
condicionada a de seu senhor e seu trabalho é fruto da coação. Sua condição de
escravo é hereditária, o escravo é um bem, podendo ser vendido, alugado, doado e
confiscado. Não possui nenhum tipo de direito ou propriedade, sendo até mesmo a
possibilidade de seu casamento, condicionada à permissão de seu senhor. (SILVA, L.,
2009, p. 33).

Portador das honoráveis honras galgadas meio ao seio da maçonaria, o ex-


monarquista Gaspar da Silveira Martins (1835-1901), um liberal e muito próximo da
demagogia, o político gaúcho, demonstrava publicamente o seu horror pela negra
pele do escravo, pois “dizia amar mais a pátria que o negro” (CARVALHO, J., 2007,
p. 189). Entretanto, como já mencionado, o sucesso da pátria passava pelas mãos e
calejados lombos de não poucos negros feitos escravos! “Também criavam gado,
pescavam e caçavam, produziam arroz, feijão, milho e mandioca, cuidavam dos
afazeres domésticos, transportavam pessoas mercadorias, erguiam casas, palácios,
igrejas e edifícios públicos, fabricavam móveis, selas para cavalos e ferramentas,
teciam roupas e agasalhos, entre outras atividades. Apesar disso, eram vistos com
medo e suspeição pelos brancos colonizadores” (GOMES, 2021, v. 2, p. 64).
A princesa Isabel Cristina (1846-1921), filha de D. Pedro II, foi a segunda e
última mulher a governar o Brasil Império após a Independência de Portugal em
1822. A primeira foi a sua avó, a imperatriz dona Maria Leopoldina, uma princesa
austríaca casada com D. Pedro I. A princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta
Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon estava, como já
mencionado em páginas anteriores, pela terceira vez no comando do Império.
Nesse período, seu pai, muito desgastado fisicamente e, de igual teor, na política
imperial procurava na Europa a cura para os seus descontrolados e avançados
diabetes. Sob pressão interna e externa, a governanta optou por assinar o Ato da
Abolição. Nas românticas entrelinhas existentes na Lei Áurea, o escravo ficou livre,
porém não houve nenhum estudo ou plano de assistência aos ex-cativos e sua
inserção no severo mundo capitalista.

Com a abolição definitiva da escravidão, em 1888, o acesso à terra para grande parte da
população continuou praticamente impossível. Além disso, as classes dominante e
dirigente do país nada fizeram no sentido de facilitar o ingresso dos ex-escravos no
mercado de trabalho. (VITORINO, 2000, p. 4).

Com o decreto em vigor, os negros, até então cativos (mais parece uma ironia
fornecida pelo destino!), perderam o direito de serem escravos, sendo expulsos das
senzalas onde viviam ao lado da casa-grande. Na condição de escravos, os pobres
e explorados negros eram obrigados a fazer de tudo, muitas vezes sob cruéis
pancadarias de capatazes carrascos ou de seus senhores. Aos olhos de muitos
senhores, os escravos eram sonolentos, preguiçosos (os algozes esqueciam que a
jornada diária de trabalho dos escravos era entre 15 a 18 horas!) e não passavam
de animais falantes parecidos com gente, sendo, portanto, a chibata - outros
preferem a expressão bacalhau - o único meio de domá-los. “No imaginário
escravista europeu, os africanos tinham hábitos bárbaros e selvagens, praticavam
religiões e rituais demoníacos, eram capazes de envenenar seus senhores, matar
crianças, enfeitiçar os animais, entre outros prodígios” (GOMES, 2021, v. 2, p. 64).
Também, como já mencionado em parágrafos anteriores, os escravos eram artigos
comerciáveis e descartáveis quando conveniente aos seus proprietários! O direito
de decisão encontrava-se nas mãos dos brancos, os proprietários, domadores e
dominadores dos negros. Esses senhores ditavam as ordens, mantinham um
mundo cruel e desumano, fazendo do negro simplesmente uma criação inferior,
desprezível, negligenciada e nascida para a servidão!
Com o raiar da República, muitos dos valiosos documentos relacionados à
escravatura foram destruídos por temor de represálias jurídicas contra o nascente
Estado. A mais contundente queima de arquivo aconteceu sob ordens do eminente
baiano doutor Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923), dezoito meses após a
Proclamação da República, quando se tornou Ministro de Estado.

Infelizmente, as pesquisas em torno da imigração de escravos negros para o Brasil


tornaram-se extremamente difíceis, em torno de certos pontos de interesse histórico e
antropológico, depois que o eminente baiano, conselheiro Rui Barbosa, ministro do
Governo Provisório após a Proclamação da República de 89, por motivos
ostensivamente de ordem econômica - a circular emanou do Ministro da Fazenda sob o
número 29 e com a data de 13 de maio de 1891 - mandou queimar os arquivos da
escravidão. Talvez esclarecimentos genealógicos preciosos se tenham perdido nesses
autos-de-fé republicanos. (FREYRE, 2001, p. 358, 359).

Liberdade ou comemoração?

A data designada para assinar a Lei Áurea foi escolhida e devidamente


elaborada pela princesa Isabel, que estava honrando, com saudosas lembranças, o
nascimento do seu bisavô, o rei D. João VI, nascido no Palácio Real da Ajuda em
Lisboa a 13 de maio de 1767. Naquele domingo, 13 de maio de 1888, D. João VI, se
estivesse vivo, completaria 121 anos. Não foi meramente por uma casualidade a
escolha daquela data. Tudo foi muito bem-montado e metricamente calculado para
ficar bem apresentável na fita que nos revela as histórias da História. Tudo não
passou de uma bem-arquitetada encenação da misericórdia da supremacia branca,
pela qual a Lei Áurea adquiriu um valor simbólico a favor do negro sequestrado do
seu habitat nas matas e savanas da África e feito escravo às margens opostas do
Atlântico. Nenhum negro presente ou ausente foi citado, homenageado ou honrado:
o seu lado africano novamente mereceu o silêncio. Foi a orgânica omissão dos fatos
que nunca foram reparados à altura. Pelo contrário, uma desfavorecida multidão foi
jogada ao deus-dará! Uma falsa libertação e pública demonstração do poderio que
se encontrava nas mãos de uma branca em posição de superioridade quanto ao
negro feito escravo. Nenhuma recompensa, mesmo que simbolicamente, em
nenhum momento esteve em jogo naquele dia nem nos vindouros. Mesmo uma
simples nesga de terra não lhes foi oferecida para reiniciar a vida, embora a lógica
sagrada seja que todo esforço deve ter seu prêmio. No Brasil, isso não aconteceu;
não houve prêmios ou premiados! Pelo contrário, foram enxotados como se faz aos
animais irracionais. Em meio a tudo isso, ainda lhes lançaram a peja de que são
malandros, preguiçosos, satanizados, ladrões, oportunistas, de mal caráter,
adoradores de demônios, estupradores de brancos, além de pertinazes assassinos.
Na década de 1920, um branco europeu, relator de uma comissão belga no Congo
fez as seguintes anotações sobre o negro africano: “O infeliz é imprevidente,
despreocupado ao extremo, preguiçoso, incapaz de continuidade no esforço e
sequência nas ideias, e inacreditavelmente. Em duas palavras: é um débil mental”
(MACEDO, 2013, p. 147). Que ridículas e chocantes comparações!
A data foi pragmaticamente planejada para recordar o nascimento do único rei
de Portugal que viveu e foi aclamado soberano a partir do Brasil. Na melhor das
performances, na busca de hipnotizar a galera para o espetáculo, naquele histórico
domingo, 13 de maio de 1888, Isabel, dona de uma bagagem sem precedentes de
saber e cultura que em muito superava os não poucos políticos presentes, estava
recordando os 71 anos do enlace matrimonial de seus avós, o príncipe Pedro de
Alcântara com Maria Leopoldina, princesa da Áustria, a mais nobre das monarcas
do Velho Continente. Esse casamento foi negociado segundo os interesses de
ambas as partes e realizado na Europa, mediante procuração, dia 13 de maio de
1817.

Assim, às 15 horas e 15 minutos, de 13 de maio de 1888, em um domingo, a princesa


Isabel assinava, com uma pena de ouro, obtida por subscrição popular, a chamada Lei
Áurea. Pela estatística do ano anterior, libertaram-se 723.419 escravos ainda existentes
no Brasil. Era sucinto o texto da lei: Artigo 1 o: Desde a data desta Lei, é abolida a
escravidão no Brasil. Artigo 2o: Revogam-se as disposições em contrário. (LIMA,
Maurilio, 2004, p. 135).
A carioca dona Isabel Cristina, uma católica roxa que não perdoava o pai
diante do seu liberalismo e sincretismo religioso e por ser pouco dado às missas, 107
foi a primeira mulher nascida no Brasil a governar a imperial Nação. Passaram-se
122 anos até que a mineira Dilma Vana Rousseff assumisse o comando da
República Federativa do Brasil em 2011 aos 63 anos. Rousselff, uma senhora de
fraca articulação no politicamente correto, presidindo sob controle, não resistiu ao
impeachment, tendo sido arrancada do poder na quarta-feira, 31 de agosto de 2016
e lançada no ostracismo político.108

Ao tomar conhecimento de sua vida exemplar e do interesse que sempre tivera pela
libertação dos escravos no Brasil, o papa Leão XIII (1878-1903), galardoou-a, em 28 de
setembro de 1888, pelo ato cristão que assegurou a liberdade dos que ainda estavam
sob o regime servil. Como defensora da Igreja e da moral, a princesa recebeu a Rosa de
Ouro, altíssima distinção conferida somente essa vez, pela Igreja Católica, a uma
personalidade brasileira. (ALMEIDA, R., 2014, p. 108).

Repetindo o que já foi dito em parágrafos anteriores, o nome de nenhum


negro foi citado, aclamado ou honrado em homenagem à multidão de seres
humanos sequestrados em países da África e escravizados no Brasil por mais de

107
No decorrer de suas viagens internacionais, D. Pedro II esteve em sinagogas, catedrais católicas,
ortodoxas, coptas e outras. Em 1876, passando por Salt Lake City, participou do culto mórmon na
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Deixando Utah, em dias seguintes, já estava
participando da Cruzada Evangelística com o protestante Dwight Lyman Moody (1837-1899) em New
York City. Retornando ao Brasil, após 18 meses de viagem:

D. Pedro II recebeu alguns espíritas que o procuraram por terem sido vítimas de perseguições da
parte da polícia, que por sua vez estava a cumprir ordem do clero. A princesa Isabel soube das
reuniões espíritas e manifestou interesse, pedindo a amigos para que fizessem certas perguntas
aos espíritos para ela. (PAGANELLI, 2019, p. 301, 302).

O Imperador se engraçou até por uma religião com suas raízes alicerçadas na China. “É
interessante registrar que em sua passagem pela cidade de San Francisco, na Califórnia, D. Pedro II
manifestou interesse em conhecer um templo chinês, o que revela o seu grande interesse pela
religião (PAGANELLI, 2020, p. 119). Juntando a tudo isso, não devemos esquecer sua sólida
amizade com Dr. Robert Kalley, pastor protestante, por quem tinha muito respeito e profunda
admiração.
108
Ao assinar a histórica Lei Áurea, a princesa Isabel estava com 42 anos, casada há 24 com o
francês Luís Filipe Maria Fernando Gastão, mais conhecido por Conde d’Eu (1842-1922), e mãe de
três filhos vivos: D. Pedro de Alcântara (1875-1940), D. Luís Maria Filipe (1878-1920) e D. Antônio
Gastão (1881-1918). No entanto,

D. Luís, de saúde frágil, após servir na Primeira Guerra, estava ainda mais debilitado fisicamente.
Ele contraiu uma tuberculose óssea, falecendo em 1920, aos 42 anos de idade. E foi a saúde, de
certo modo, que também o levou a Terra Santa, por onde o avô passara algumas décadas antes.
(PAGANELLI, 2020, p. 89)

Por exigência de D. Isabel, o primogênito D. Pedro de Alcântara foi obrigado a abdicar o seu
direito de herdeiro do presumível trono na monarquia brasileira em favor de D. Luís Maria Filipe. Para
a devida validade, um documento foi assinado em Paris, dia 30 de outubro de 1908, por meio do qual
renunciava aos seus direitos dinásticos e aos seus descendentes, devido o compromisso em casar
com a plebeia Elisabeth de Dobrzenicz (1875-1951), uma condessa tcheca. Isso gerou uma
celêumica polêmica que continua até aos nossos dias. Por incrível que pareça, o filho deserdado, D.
Pedro de Alcântara, foi o único dos três a falecer no Brasil. D. Luís morreu em 1920, em
consequências reumáticas adquiridas nas trincheiras no desenrolar da Primeira Grande Guerra
Mundial. O filho caçula, D. Antônio Gastão foi ferido e morto no campo de batalha em 1918. Embora
nascidos no Brasil, eram também cidadãos franceses e oficiais das forças militares inglesa.
três séculos e meio. Os poucos santos negros, que na época já existiam na liturgia
da Igreja Católica Apostólica Romana, certamente tiveram os seus nomes omitidos
pelo sacerdote branco celebrante daquela encomendada missa imperial que foi
estrategicamente realizada no Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Além da comenda papal provinda de Roma, a princesa Isabel também foi
distinguida com o “título de Redentora que lhe foi dado por José do Patrocínio
(1853-1905)” (CARVALHO, J., 2007, p. 190). (NOTA DE RODAPÉ: “José Carlos do
Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 9 de outubro
de 1853. Era filho natural do padre João Carlos Monteiro (1799-1876), vigário da
paróquia de Goytacazes, orador sacro da Capela Imperial, venerável da loja
maçônica Firme União, dignatário das ordens da Rosa e de Cristo, vereador e
deputado de sua cidade. Sua mãe, Justina Maria do Espírito Santo (?-1885), era um
dos 92 escravizados pertencentes ao padre João Carlos” (GOMES, Flávio,
LAURIANO, SCHWARCZ, 2021, p. 312). FINAL DA NOTA).
Dom Antônio Macedo da Costa, bispo do Pará, aquele que teve aos 45 anos
sua pena anistiada em 17 de setembro de 1875, agora aos 58 anos, com os pés no
chão e cabeça mais centralizada, se fez presente naquele ato. Consta que falou em
nome do episcopado brasileiro: “Abolimos o cativeiro material. Foi muito; mas isto foi
apenas o começo; removemos um estorvo e nada mais. Cumpre agora abolir o
cativeiro moral” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1, p. 321). Para muitos, o livrar-se do
cativeiro moral ainda não foi alcançado, pois, não poucos ainda estão algemados
pelos preconceitos impostos por severas sociedades da branquitude e da negritude!
Continuam bebendo o estranho e amargo vinho nos cálices dos desgostos dos
incompetentes. “O negro ficou como um livre escravo” (PEREIRA, Amauri Mendes.
SILVA, Josefina da (Org.), 2009, p. 53). Dom Antônio Macedo da Costa foi um
incontestável líder e porta-voz do episcopado brasileiro. Esperou a oportunidade de
vingar sua prisão. Dia 19 de março de 1890 presidiu o seminário episcopal de São
Paulo, um conclave de bispos onde produziu a Pastoral Coletiva, documento que
olhava os novos caminhos para a nascente república e um espaço da Igreja. “Todos
os prelados assinaram o documento, mas quando ele veio a público, alguns o viram
com certa reserva, porque Dom Antônio de Macedo Costa, que presidira a
assembleia episcopal, tendo se alegrado com a queda do Império, com grande
liberdade corrigira e alterara o texto definitivo” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p.
19). Exatamente, um ano e um dia após esse acontecimento em São Paulo, o citado
bispo e Primaz do Brasil, veio à falecer, 20 de março de 1891 em Barbacena, Minas
Gerais. Estava com somente 60 anos!
Isabel era muito querida pelo povo; o mesmo não sucedia nos círculos
governamentais. Politicamente, apenas a toleravam; afinal, era a única herdeira do
trono imperial. Para os políticos, não havia outro remédio; ela era a legítima herdeira
do trono, embora combalido! No andar da carruagem e diante dos embates internos,
pelo seu histórico ato altruísta da libertação concedida aos negros feitos escravos, a
princesa Isabel fez algo extraordinário. Ninguém lhe poderá roubar isso. Porém ela
não previu um futuro imediato e mais digno aos recém-libertados. Aliás, a
declaração que romanticamente recebeu o título de Lei Áurea concedeu uma
suposta liberdade e conquista de direitos. Na verdade, os desafios e as dificuldades
da população negra somente se revestiram de novas roupagens. Não obstante,
aquele histórico e firme ato de Isabel se tornou político e encheu de pólvora os
arsenais da oposição, que lhe arrancou a coroa e infligiu a total devastação à
monarquia brasileira com a Proclamação da República em 15 de novembro de
1889. Dizem que, após a assinatura da Lei Áurea, o político baiano João Maurício
Wanderley (1815-1889), mais conhecido por Barão de Cotegipe, o qual morreu nove
meses antes do histórico 15 de novembro, cochichou aos ouvidos da princesa: “A
senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono”. A fatal profecia se cumpriu
18 meses depois, e o profeta lá não estava!
“O fim da escravatura não significou o fim da injustiça; todavia, uma medida
do progresso humano, com certeza, reside no fato de que hoje escravizar outras
pessoas é, sob o tribunal internacional, um crime contra a humanidade”
(HOCHSCHILD, 2007, p. 455). A pena de ouro 18 quilates, tendo ainda 27
diamantes e 25 pedras vermelhas, oferecida à princesa Isabel para assinar a Lei
Áurea se encontra exposta no Museu Imperial na cidade de Petrópolis, Estado do
Rio de Janeiro, local altamente recomendado aos amantes da História do Brasil.
Como já mencionado, no ano seguinte, o de 1889, a santa princesa Isabel e toda a
família imperial foi sumariamente expulsa do Brasil por ordem e graça do governo
provisório republicano. Expulsa, seguiu até Portugal e desse para a França. 109 Anos
depois, alquebrada e paralítica, Isabel veio a falecer no palácio d’Eu, região da Alta
Normandia Francesa, a 14 de novembro de 1921. Faltava um dia para se
completarem os 32 anos da Proclamação da República e dez meses para a
comemoração do primeiro centenário da Independência do Brasil, ato heroico
impetrado em primeira mão por sua avó austríaca em 2 de setembro, no Rio de
Janeiro, e referendado por seu avô português, D. Pedro I, às margens do riacho do
Ipiranga, São Paulo, na tarde de sábado, 7 de setembro de 1822.
Em tese, apenas oferecendo um fragmento histórico, a abolição da
escravatura nos Estados Unidos, que também não foi perfeita, passou somente por

109
Com a euforia da República, onde o negro foi colocado? Nada novo, ficou no mesmo local onde já
se encontrava, num casebre no final do logradouro de terra batida, selvagem vegetação, sem água,
sem luz, esgoto a céu aberto, o mais devastador e deplorável ambiente de penúria para a morada de
um ser humano. Com a chegada da urbanização, e por interesses dos grileiros, foram empurrados
para os píncaros das montanhas, locais idílicos que cercam as belas, iluminadas e ornamentadas
cidades. Na cidade do Rio de Janeiro, sede da República e palco dos grandes acontecimentos, o
distante Morro da Providência se tornou o local mais adequado onde alojar a negrada que ocupava o
cortiço Cabeça de Porco e outros deploráveis locais em regiões centrais da cidade. No Brasil, favelas
foram se generalizando em resposta à má distribuição das rendas sociais especialmente ao alcance
do negro, que se manteve impedido de galgar o degrau seguinte da escada social. Na busca de
apagar esse estigma social de favela, o meio foi politicamente maqueado: tornaram-se
Comunidades. Comunidade, em uma linguagem mais acadêmica, também se refere a fazer nossas
condições com as dos outros; exultar juntos, chorar juntos, trabalhar e sofrer juntos. “O outro não era
o outro: adversário, competidor, articulador, mas o outro próximo, que compartilha da mesma
situação de exclusão” (OLIVEIRA, Marco, 2019, p. 36). Seria tão bom se as teorias de Comunidades
fossem verdade! Mesmo assim a comunidade é onde, a grosso modo, a imensa senzala se tornou
casa-grande! Onde em tese, impera a brilhante frase de Alexandre Dumas, pai (1802-1870) o
clássico escritor negro nascido na França: um por todos, todos por um! Verdadeiro jargão de unidade
citado em “Os três mosqueteiros”, romance histórico lançado em Paris no mês de julho de 1844.
duas etapas definitivas, ambas no primeiro mandato do presidente Abraham Lincoln.
The Preliminary Emancipation Proclamation foi aprovada no dia 12 de setembro de
1862, 26 anos antes da decisão imperial brasileira sob pressão internacional. A
Proclamação definitiva de Emancipação nos Estados Unidos foi outorgada e
assinada no salão Oval da Casa Branca, em Washington, dia 1 o de janeiro de 1863
(Informações disponíveis em: <www.archives.gov>. Acesso em: 29 mar. 2012).
Ventila-se pelos corredores da cultura e do nacionalismo americano que a abolição
total garantiu ao ex-escravo um pedaço de terra para cultivar, juntamente com uma
mula ou o direito de regressar à África. Esses dados de mula e terra são um tanto
obscuros na história estadunidense. Entretanto, as autoridades dos Estados Unidos
forneceram meios para os interessados se estabelecerem na Libéria, nação que já
existia desde 1847, a fim de amparar os negros alforriados. Durante anos após a
Emancipation Proclamation nos Estados Unidos, o branco continuou sendo o branco
rico e o negro, por sua vez, continuou sendo o negro pobre disfarçado de liberto!

Em termos jurídicos, foram aprovadas três novas emendas à Constituição que


representaram o sepultamento definitivo da herança colonial: pela 13ª Emenda, os
negros tornaram-se homens livres. Pela 14ª, todos os cidadãos do país foram
equiparados em direitos e deveres, mesmo que isso pudesse eventualmente contrariar
as constituições estaduais. Pela 15ª, foi garantido o direito de voto a todos os cidadãos,
sem distinção de raça, cor ou condição social. (MAGNOLI, 2006, p. 248).

Essas decisões a favor do negro americano, só se tornaram realidades 100


anos depois, porém chegou o tempo de refrigério!
Paulatinamente, a cor da pele dos americanos vem passando por uma
verdadeira metamorfose. Certamente para a tristeza dos radicais de ambas as
tribos, devido a esse xenófobo pragmatísmo racial, estão sendo geradas novas
pigmentações, feições corporais e tipos de cabelos com o nascimento de crianças
notadamente de mães brancas e pais negros. 110 Mesmo assim, o racismo se faz
sentir de ambas as partes. Entretanto, para coibir os preceitos tribais, fazem o uso
de uma perfeita democracia altamente civilizada, na qual os direitos e as obrigações
são iguais. São iguais, porém não idênticos! O negro americano ainda continua no
final da fila nos segmentos social, profissional, educacional e econômico. Não
poucos são empurrados para os marginalizados guetos, esse é pragmaticamente o
custo de ser negro em um mundo de branco.
Com o sancionamento da Lei Áurea no Rio de Janeiro, em 13 de maio de
1888, seguida da Proclamação da República (1889) e, em 1891, da nova
Constituição, ex-escravos e homens alfabetizados ganharam o direito legal de se
expressarem nas eleições, embora houvesse os conhecidos votos de cabresto. Já
nos Estados Unidos, mesmo ao negro liberto da ignomínia servidão foi-lhe vedado o
direito de se expressar nas eleições. Somente no ano de 1964, após vários

Essa crescente miscigenação pode muito bem ser observada na Costa Leste dos Estados Unidos,
110

mas também não é diferente na Costa Oeste. Nem tanto nos estados centrais, onde se mantém o
conservadorismo protestante da supremacia branca.
protestos de diferentes segmentos da sociedade, foi que o Congresso aprovou, e o
Presidente Lyndon Johnson (1908-1973) sancionou a Lei dos Direitos Civis. 111
Sem lenço e sem documento

Como já mencionado, imediatamente após a assinatura da Lei Áurea no Rio


de Janeiro, os agora ex-escravos foram literalmente expulsos das fazendas, dos
cafezais, dos casarões, das senzalas, dos engenhos de açucar e de outros lugares
onde trabalhavam incondicionalmente como servos. Naquele domingo, 13 de maio
de 1888, foram libertos da vida de escravidão, mas não dos sofrimentos que os
aguardavam. Aos bandos chegavam nas cidades na ânsia de conseguir trabalho e
obter uma vida mais digna e humana, dois fatores que lhes foram roubados na vida
escrava. Não eram possuidores de nenhuma mão de obra especializada. Além da
falta de uma profissão, o analfabetismo era quase absoluto. Faltando trabalho,
dinheiro e as mínimas condições de sobrevivência, formaram os cinturões de
pobrezas ou bolsões de misérias nas periferias das cidades. A vida para o negro na
condição de escravo era difícil. Agora, juridicamente livre, encarou outros problemas
com os quais não estava acostumado, entre eles a necessidade de gerir o seu
próprio caminhar, administrar o seu próprio tempo e buscar uma inserção no mundo
das leis e regras dos livres. Os negros não conseguiam olhar e entender o mundo
pelos olhares dos brancos. “Não foram eles que fizeram as leis, que definem os
tabus ou os costumes da terra” (WILMORE e CONE, 1986, p. 70). Como muito bem
colocou o historiador James West Davidson, “agora os ex-escravos, eram pessoas
desesperadas que perambulavam sem casa, sem emprego, sem dinheiro e sem
sorte” (DAVIDSON, 2016, p. 210, 211). Ademais, havia o desafio interno de
“combater o cotidiano desumanizador que oprime as pessoas, reduzindo-as a
coisas” (LUZ, 2013, p. 16).
Um missionário americano cruzando pelas estradas da Bahia fez a seguinte
observação:

No dia 27 de maio de 1888, eu estava em Januária, cidade situada na Província da


Bahia, à beira do Rio São Francisco, quando chegou o mensageiro, vindo da cidade de
Ouro Preto, trazendo a notícia da abolição da escravatura no Brasil. [...] No dia seguinte,
ao viajar para o litoral da província, vi muitos ex-escravos e suas famílias caminhando
pelas estradas poeirentas, descalços e mal vestidos, carregando as poucas coisas que
possuíam. (GIRALDI, 2013, p. 268).

111
Para mais informações sobre o assunto, consultar a segunda edição de A Bíblia e a África, além
de outras confiáveis fontes recomendadas. Nos Estados Unidos, a mulher branca ganhou, em 1920,
o livre direito de votar, graças à aprovação e ao sancionamento da Décima Nona Emenda à
Constituição. No Brasil, foi somente em 1932 que a mulher recebeu esse valioso direito de se
expressar nas urnas, decreto sancionado pelo presidente Vargas. A professora Antonieta de Barros
(1901-1952), negra, filha de ex-escrava, foi a primeira mulher no Brasil a ser eleita em escrutínio
secreto nas eleições de 1934, no estado de Santa Catarina. Ela exerceu até 1937 a função de
deputada estadual, Antonieta Barros nasceu e morreu em Florianópolis. Somente um detalhe de
ordem político religioso, quando Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) era promotor de justiça na
cidade de São Borja, juntamente com o seu pai, o general Manuel do Nascimento Vargas (1844-
1943), ambos contribuiram financeiramente para a construção do templo da igreja metodista local
(Confira em ALMEIDA, R., 2014, p. 364, 366).
Explorados e exploradores

Não havendo mais a mão de obra escrava, a economia agrícola foi


grandemente afetada. A única alternativa para salvar a pátria de uma iminente ou
total recessão era buscar imigrantes em países europeus. Os olhares foram
direcionados especialmente para a Itália, que naquele período estava a cruzar o
ciclo de vacas magras. Milhares de italianos foram contratados para trabalhar nos
cafezais existentes em muitas grandes fazendas nos estados de São Paulo, Minas
Gerais e Rio de Janeiro, além de outras levas para o Sul do país. Os italianos que
deixaram a Europa rumo ao inóspito Brasil não imaginavam o que o futuro lhes
reservava! Somente no estado de São Paulo ficou cerca de um milhão de italianos
que partiram da Itália em busca de novos horizontes. Era o ilusório sonho brasileiro!
Foi tudo muito romântico e emoldurado pelas cores verde e amarela! Para não
poucos milhares dos branquelos italianos, os sonhos nunca chegaram; somente
desastrosos pesadelos atrelados à realidade! “Eram famílias grandes, acostumadas
com o trabalho duro de tirar a sua subsistência do empobrecido solo italiano e logo
prosperaram com a ajuda do trabalho de todos os membros da família” (JONES,
1998, p. 343). Nem todas as famílias procedentes da Itália tiveram essa sorte
grande soprando ao seu favor, não poucos permaneceram nos mais baixos degraus
de uma sociedade vil e massacrante.
A escravidão apenas mudou a cor da pigmentação da pele. Os imigrantes
brancos foram submetidos ao trabalho forçado, trabalhando de sol a sol, prática que
excedia doze horas diárias em muito, durante toda a semana. Os italianos estavam
à procura de uma tábua de salvação para livrar-se da velada escravidão a que
foram submetidos. Nos acertos anuais, o imigrante sempre ficava no prejuízo em
contraste com os lucros do senhor da fazenda. A situação foi se agravando; em
acertos após acertos, o italiano ficava mais e mais na total dependência do coronel
fazendeiro ou do barão industrial. Em todo período da história mundial, a pobreza e
a fome andam de mãos dadas, e a escassez gera a epidêmica miséria. No Brasil,
essa dualística questão social não foi diferente. “Ricos e fortes fazendeiros retinham
em suas mãos o dinheiro todo. Os pobres viviam de migalhas e, muitas vezes, eram
explorados pelos grandes” (TOGNINI, 2006, p. 18). Enéas Tognini (1914-2015), filho
de imigrantes provindos da Itália, foi um pastor batista de destaque no Brasil e
alcançou uma vida centenária. “Ser pobre não é pecado, mais é muito ruim”,
filosofava o professor Wilson Regis, também de fé batista e colhido pela morte em
2020, foi um veterano pregador paulista que fez de Belo Horizonte, a Cidade das
Alterosas, o seu piedoso campo de ação ministerial recheada com a visão
acadêmica.

A Proclamação da República
O período do império de D. Pedro II foi longo, tendo durado 58 anos, oito
meses e dez dias,112 o mais longevo das Américas, de 1831 até 1889. Em face da
sua lisura política e por estar decepcionado com o poder, o imperador conviveu
abertamente com a oposição da parte de parlamentares republicanos camuflados
na monarquia. Houve até o Manifesto Republicano,113 documento publicado no Rio
de Janeiro, dia 3 de dezembro de 1870, contando com a participação, o apoio e as
assinaturas de importantes personagens da vida política e social brasileira. Um
visível sinal de mudanças na política brasileira estava publicamente se
manifestando. Tudo ocorria sob os funestos olhares e a barba já branqueada e
malcuidada de D. Pedro Banana, expressão pejorativa produzida pelos plebeus que
rodeavam a Corte no Rio de Janeiro e trombeteada pela imprensa liberal. Na quinta-
feira, 3 de abril de 1862, Victor-Marie Hugo (1802-1885) havia terminado de publicar
Les Misérables, sua discutida obra-prima. Parece que Hugo previamente havia
desenhado a melancolia do último imperador das Américas. “De sofrimento em
sofrimento, chegou, pouco a pouco, à convicção de que a vida é uma guerra; guerra
em que o vencido era ele” (HUGO, 2007, v. 1, p. 108). Durante anos, D. Pedro II
manteve correspondências com o escritor e visconde francês. São notórios os
problemas adminstrativos que imperavam no Brasil de D. Pedro II. “Quem dava o
tom da política no Brasil, entretanto, eram as suas elites e o império não podia
ignorá-las. [...] O trono no Brasil já era então uma instituição agonizante” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 442).
Sábado, 9 de novembro de 1889, noite de primavera, porém com o peculiar e
sufocante calor na cidade do Rio de Janeiro. Na surdina, o império estava a
desmoronar. Aquela foi a noite da realização do último grande baile transcorrido na
Ilha Fiscal sob o erário da monarquia petrina. Simultaneamente, estavam ocorrendo
os apitos finais para o término da linha imperial! Os 4.500 participantes do milionário
baile foram escolhidos a dedo; o espaço foi reservado somente à crème de la crème
da nababesca sociedade carioca. Entre os nobres convidados, encontrava-se o Dr.
André Pinto Rebouças (1838-1898), engenheiro militar afro-brasileiro, inventor,
abolicionista, professor e veterano da Guerra do Paraguai, nascido na cidade de
Cachoeira, Bahia. Aos 21 anos “em 1859, André se formou em ciências físicas e
matemática, e como engenheiro militar no ano seguinte, sendo sempre o primeiro
aluno da turma. Em 1860, recebeu o grau de engenheiro militar. [...] Em 1865,
preocupado com a Guerra do Paraguai – 1864-1870 –, alistou-se no Exército; no dia
21 de maio, o tenente André Rebouças, com 26 anos, partiu para a guerra. [...] Foi
ainda responsável por diversas obras no país, como a estrada de ferro que liga
Curitiba ao porto de Paranaguá” (GOMES, F., LAURIANO e SCHWARCZ, 2021, p.

112
O segundo mais longo governo no Brasil foram os 15 anos - de 1930 à 1945 - ocupados pelo
gaúcho Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), iniciado por um golpe que se tornou a ditadura do
Estado Novo. Algo muito semelhante ao salazarismo implantado em Portugal; aliás, Vargas se
espelhou nos acontecimentos da Terrinha!
113
Era o título tupiniquim do Manifesto do Partido Comunista lançado em Londres, dia 21 de fevereiro
de 1848. Historicamente o Manifesto londrino, é um dos tratados políticos de maior influência a nível
mundial. Quase uma Bíblia para os avermelhados adeptos de uma utopia política preparada para
explorar a classe proletária e enriquecer a burguesia palaciana.
51, 52). Ele tivera passagens acadêmicas e profissionais pela Europa e New York,
onde conheceu o fator da democracia casada com o racismo, porém nada seria
capaz de desestruturar suas convicções políticas. Rebouças era um convicto
monarquista e fiel escudeiro, não como título, da família imperial do Brasil. Naquela
data, estava com 51 anos e solteirão por opção. Não seria essa opção um platônico
amor pela princesa Isabel? As más línguas informam que havia uma disfarçada
reciprocidade! (NOTA DE RODAPÉ: Enquanto vivo, Francisco Solano Lopez (1827-
1870), ditador do Paraguai, em plena guerra contra o Brasil “pretendia desposar
outra mulher: a princesa Isabel, filha de dom Pedro II” (BOTELHO, José Francisco e
LIMA, Laura Ferrazza, 2021, p. 26). FINAL DA NOTA). Teria o notável engenheiro
baiano em “seu puro e desesperado amor, querer um plebeu a uma princesa, que
loucura” (SARAMAGO, 2019, p. 348).

No baile da Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, à meia-noite as damas chamaram um par


masculino para dançar. Presente na festa, André Rebouças ficou parado num canto do
salão porque, como negro, nenhuma dama o convidou. Princesa Isabel viu a cena, saiu
do camarote onde estava, foi até onde se encontrava o engenheiro e o chamou para
dançar. A movimentação do casal no baile foi tão impressionante que todos pararam
para ver o negro André Rebouças e a princesa Isabel dançando sozinhos até o fim da
execução da valsa. (NOTA DE RODAPÉ: As informações complementares
acima me foram enviadas diretamente de Uberlândia, em 4 de março de
2020 pelo jornalista Ivan Santos. Grato pela colaboração. FINAL DA
NOTA).

Oito dias após aquele lendário e aristocrático baile na Ilha Fiscal, o doutor
André Rebouças, inconformado com o andar político tomado nos quartéis e pelas
ruas do Rio de Janeiro, optou em acompanhar a família imperial para o exílio.
Rebouças nunca mais retornou ao Brasil. Viveu outros nove anos entre a Europa e
a África. Por certo período, trabalhou em Portugal; posteriormente em Angola e,
finalmente, estava na Ilha da Madeira, a conhecida Pérola do Atlântico.
Sob forte descontrole emocional além da brutal depressão, o engenheiro
baiano, aos 60 anos, optou por saltar para a morte da janela do hotel onde estava
hospedado em Funchal. Rebouças foi

sugado pelo vórtice vampiresco da depressão. O Correio do Funchal registrou em 9 de


maio de 1898 que tinha sido encontrado perto de um penhasco o corpo do súdito
brasileiro, havia muito transtornado. Supõe-se que ele próprio se tenha atirado ao mar.
(BOAVENTURA, 2019, p. 147,148).

Seis dias após a longa noite dançante na Ilha Fiscal, a bomba-relógio


arquitetada pelos autores intelectuais da república explodiu! Era manhã de sexta-
feira, 15 de novembro de 1889, um dia ameno dos meados da primavera. Tudo
parecia normal pelos principais logradouros da cidade do Rio de Janeiro, onde o
cérebro administrativo do Império fazia sombra a ânsia republicana. D. Pedro II que
estava com parte da família em Petrópolis,114 a mais europeia cidade imperial e o
114
Na mesma Petrópolis, 25 dias antes, 21 de outubro de 1889, uma segunda-feira, faleceu o
Visconde de Mauá, aquele que foi o mais destacado visionário do Segundo Império. Estava com 75
anos e há muito em uma vertiginosa queda financeira; era um autêntico rico falido. Quando tudo
seu preferido recanto de refúgio, quando recebeu telegramas informando-lhe acerca
do motim que estava acontecendo junto à corte. Parece que D. Pedro II era a única
pessoa que desconhecia os fatos políticos que o envolvia. Regressou de trem para
o Rio de Janeiro, sendo essa a sua última viagem naquele trajeto (o inverso
somente aconteceu cinquenta anos depois dentro do caixão em 1939). O Imperador
buscou, porém não conseguiu abafar o levante militar sob a liderança laranja do
marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), alagoano que, sem dúvida, era
o mais destacado veterano da Guerra do Paraguai. Esse homem até então de
extrema confiança de D. Pedro II estava com 62 anos e, segundo consta, sob
influência de um forte ataque de asma que há muito o perseguia. Saiu de sua casa
a bordo de uma carruagem oficial e fardado a rigor, como de costume; proclamou a
República no decorrer daquela sexta-feira, dia 15 de novembro de 1889; agitou a
caserna e voltou a acamar-se. “No Brasil, a Independência foi proclamada por um
grão-mestre maçom, D. Pedro I. E a República, por outro, o marechal Deodoro da
Fonseca” (GOMES, 2010, p. 243). O dedo da maçonaria também esteve presente
no desenrolar da Lei Áurea em 1888 e continuou em outros históricos eventos
sucedidos no Brasil. Aliás, com o constante avanço de novas ideologias fraternas,
ser maçom se tornou símbolo de segurança e acesso à prosperidade econômica,
política e social. A maçonaria é tão antiga quanto a vontade do homem em
conquistar o espaço sideral. Esteve e continua presente em todos os
acontecimentos de envergadura mundial. No romance Memorial do Convento,
escrito pelo único prêmio Nobel de Expressão Portuguesa, faz-se alusão ao bicho
da terra que almeja voar: “Assim como o homem bicho da terra, se faz marinheiro
por necessidade, por necessidade se fará voador” (SARAMAGO, 2019, p. 67).
Dois dias após a Proclamação da República (que alguns acadêmicos e afins
preferem alcunhar de golpe político contra a princesa Isabel), em meio à escura
madrugada dominical de 17 de novembro, a coagida família imperial recebeu a
sumária ordem de banimento. O imperador D. Pedro II e seus familiares foram
apressadamente empurrados para os conveses de um barco atracado no porto,
local não muito distante da nostálgica Ilha Fiscal, e, finalmente, acomodados nos
camarotes do Alagoas, na época o mais moderno, eficiente e seguro navio da
Marinha de Guerra do Brasil. Com a consumada expulsão e sem oportunidade para
discursos, a família real, sem o direito de despedir-se de quem quer que fosse,
seguiu exilada com destino a Portugal. Enquanto o Alagoas singrava pelas águas do
Atlântico rumo a casa dos primos na Europa, D. Pedro II aproveitava para ler,
escrever sonetos, meditar e dialogar. “As conversas mais longas eram com André
Rebouças. O abolicionista tinha admiração pelo imperador e devoção pela princesa
Isabel por ter ela assinado a Lei Áurea. Não quis jamais voltar ao Brasil e suicidou-
se na ilha da Madeira em 1898. Com frequência, d. Pedro procurava também o
comandante Pessoa, para pedir informações técnicas” (CARVALHO, J., 2007, p.

começou a despencar de suas mãos e a ser contemplado por seus olhos, já antevendo o poço que
lhe aguardava, Mauá mencionou: “Não tenho o menor interesse pelos bens de fortuna. A única coisa
que me interessa é legar um nome limpo para os meus filhos” (CALDEIRA, 2008, p. 471).
232).115 “Dom Pedro II foi embora do Brasil levando consigo um travesseiro cheio de
terra brasileira” (NARLOCH, 2011, p. 288).
Enquanto o Alagoas margeava as costas do arquipélago de Cabo Verde, na
época uma possessão portuguesa, no dia 2 dezembro, D. Pedro II, que também era
grão-mestre da maçonaria, estava completando 64 anos. Essa data foi
homenageada pelo capitão, pelos demais tripulantes e por todo o séquito que
acompanhava a deposta família imperial do Brasil. Diante da modernidade e
velocidade do navio, em 20 dias cruzaram o Atlântico e, a 7 de dezembro de 1889, o
Alagoas atracou no porto em Lisboa. “No dia 23, foi a Coimbra, depois ao Porto,
onde visitou o coração do pai, depositado na igreja da Lapa. No dia 28, encontrava-
se na Escola de Belas Artes quando a imperatriz faleceu no Grande Hotel, onde se
haviam hospedado” (CARVALHO, J., 2007, p. 234). A claudicante D. Teresa
Cristina, agora alcunhada de ex-imperatriz, não chegou a completar os 68 anos.
Amargando um depressivo estado de choque pelas circunstâncias, viveu somente
mais 21 dias em Portugal, falecendo de emoção, comoção, além de profundas e
imorredouras saudades do Brasil. Algo muito romântico. Seu falecimento ocorreu no
sábado, 28 de dezembro de 1889, no Grande Hotel do Porto.116 Pouco antes do seu
falecimento, D. Teresa Cristina, na casa dos 67 anos e com total lucidez,
confidenciou à sua amiga Maria Isabel, baronesa de Japurá:

Eu não morro de moléstia, morro de dor e de desgosto. Sinto a ausência de minha filha
e meus netos; não posso abençoar pela última vez. E como se subitamente se
transportasse ao passado: Brasil, terra linda! Não posso lá voltar’. Quando da morte da
ex-imperatriz, sua filha, genro e netos se encontravam na Espanha, visitando familiares,
todos ligados a Monarquia europeia. Conde d’Eu buscava geograficamente distrair
Isabel, que estava deprimida por tudo que havia acontecido com a família imperial no
Brasil que resultou no apear do poder e forçado exílio. (ALMEIDA, R., 2014, p. 93, 94).

A morte da mãe causou na agora ex-princesa Isabel fortes abalos emocionais


e psicológicos, que se juntaram à humilhante expulsão do Brasil, onde havia
nascido dia 29 de julho de 1846.

115
O decreto republicano que baniu a família real somente foi revogado quase 31 anos depois, dia 3
de setembro de 1920, pelo paraibano Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa (1865-1942), o 11º
Presidente dos Estados Unidos do Brasil, cuja gestão ocorreu nos conturbados anos de 1919 a 1922.
Epitácio, tio de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930), provinha de tradicional família
politica oriunda da cidade de Umbuzeiro. Quando João Pessoa foi assassinado aos 52 anos no
centro da cidade do Recife, era governador da Paraíba e candidato a vice-presidente na legenda de
Getúlio Vargas. O presidente Epitácio Pessoa foi um racista de carteirinha, que proibiu atletas negros
representar o Brasil em uma competição internacional! Epitácio foi inserido no sistema
governamental como um bode expiatório para quebrar a hegemonia da política do Café com Leite,
período em que São Paulo e Minas Gerais ditavam as ordens do poder instalado no Palácio do
Catete, Rio de Janeiro, então Distrito Federal. O seu governo foi marcado por motins militares que
seguiram até a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas subiu ao Poder da Nação, do qual
somente foi apeado 15 anos depois. O poder é um osso que nenhum político almeja soltar!
116
O Grande Hotel do Porto, que indiretamente faz parte da história do Brasil, está localizado na rua
de Santa Catarina, 197. Em sua época dourada, foi um requintado hotel cuja inauguração ocorreu em
27 de março de 1880. Nove anos após sua abertura ao público, ali D. Teresa Cristina foi vencida pela
morte no decorrer do gélido inverno no Porto, apelidada de Cidade Invicta, onde os ex-imperadores
estavam hospedados naquele faltal 28 de dezembro de 1889.
Após as exéquias litúrgicas, acompanhadas das muitas missas oficiais e
tantas outras patrocinadas pelos familiares e amigos, ocorreu o sepultamento de D.
Teresa Cristina no Panteão Real existente na Igreja de São Vicente de Fora em
Lisboa, onde também se encontravam os restos mortais do seu sogro, D. Pedro I do
Brasil. O ex-imperador, D. Pedro II, agora viúvo, um tanto desolado e marcado pela
síndrome do abandono, seguiu sua jornada para a França, onde viveu outros dois
anos, morrendo no simples e econômico hotel Bedford, localizado na esquina das
ruas Arcade e Pasquier, em Paris. O alquebrado D. Pedro II morreu no sábado, dia
5 de dezembro de 1891. Foi vencido pela morte três dias após ter completado 66
anos devido a uma acentuada complicação clínica pelos diabetes que debilitaram o
seu frágil organismo e pelo martírio constante da saudade do Brasil. Sua morte
comoveu muitas pessoas onde chegou a ser noticiada.

Nos Estados Unidos, o New York Times do dia 5 de dezembro não poupou elogios. Em
texto de duas colunas, reproduziu a frase de Gladstone segundo a qual D. Pedro seria o
governante modelo do mundo e acrescentou outros louvores por conta própria. D.
Pedro, segundo o jornal, foi o mais ilustrado monarca do século e tornou o Brasil tão
livre quanto uma monarquia pode ser. (CARVALHO, J., 2007, p. 240, 241).

O revirar da história republicana

Voltando à Proclamação da República, a notícia também correu o mundo. The


Times, jornal londrino, em 21 de novembro de 1889, publicou em seu editorial as
seguintes informações sobre o distante Brazil.

Um imperador idoso e doentio não poderia conservar em completa coesão um País


tropical ou meio tropical, quase tão vasto como a Europa, possuindo apenas 10 milhões
de habitantes e lutando ainda com a dificuldade de imperfeitíssimos meios de
comunicação. (FREYRE, 2004, p. 241).

O falecido escritor José Hermano Saraiva (1919-2012), jurista e conhecido


historiador português, servia na função de embaixador de Lisboa em Brasília
quando da Revolta dos Cravos, na madrugada de 25 de abril de 1974. Juntando o
seu vasto conhecimento da historiografia nacional e geral, ele relata sobre a
Proclamação da República no Brasil, ato que aconteceu no mesmo dia do
nascimento de D. Manuel II (1889-1932), 117 o último rei português, e 36 anos após a
117
Além de D. Manuel II, rei de Portugal, nascido no histórico 15 de novembro de 1889, há dois
outros europeus que deixaram marcas na História, ambos também nascidos no ano de 1889. O
primeiro da História foi o austríaco Adolf Hitler (20 de abril de 1889), o ditador e tirano pai do nazismo
alemão, matador de judeus, negros, ciganos e outros, em seus dias um genocida de plantão! Hitler
mais parecia uma encarnada figura muito próxima do apocalíptico anticristo. Cercado e ciente que o
seu fracassado Terceiro Reich estava derrotado, optou pelo pior, suicidando-se com um tiro na
cabeça a 30 de abril de 1945, aos 56 anos e 10 dias. Outro ditador nascido no quarto mês de 1889
foi António de Oliveira Salazar. Antes de se tornar notório na política, não passava de um apagado
professor de economia em Coimbra, mas muito bem relacionado com a liderança católica de
Portugal. Oliveira Salazar nasceu dia 28 de abril de 1889. Era um “pobre, filho de pobres”
portugueses, que padecia de “enxaquecas e depressões”. Juntando a tudo isso, era extremamente
nacionalista, reacionário por causa de sua vida monástica, avesso ao progresso industrial, obcecado
pelo poder e desconfiado até dos sombrios reflexos da democracia. Foi levado pela febre do poder
ao dar vazão à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que, em anos seguintes, se tornou
morte da brasileira D. Maria II (1819-1853) de Portugal. O emérito historiador
menciona o acontecimento que alterou a política de um povo e de uma nação pelo
viés da democracia popular. “A Proclamação de República no Brasil e o banimento
da família real brasileira, em 15 de novembro de 1889, foram circunstâncias
encorajantes numa época em que os regimes republicanos eram ainda excepcionais
na Europa” (SARAIVA, 2001, p. 477). Vinte e um anos depois, na madrugada de
quarta-feira, 5 de outubro de 1910, foi a vez de Portugal colocar em prática o
exemplo que admirou do Brasil, relata o mesmo historiador: “Hoje, 5 de outubro de
1910, às onze horas da manhã, foi proclamada a República de Portugal na sala
nobre dos Paços do Município de Lisboa, depois de terminado o movimento da
revolução nacional” (SARAIVA, 2001, p. 497). Consequentemente, em seguida ao
banimento da família real das fronteiras de Portugal e suas possessões, D. Manuel
II, aos 21 anos e sem outras alternativas, tomou a mesma decisão e o mesmo
caminho do seu tio brasileiro, optando por se refugiar na casa dos primos franceses.
Como já mencionado, os ex-imperadores brasileiros morreram no Porto e em
Paris, tendo ambos sido sepultados com honras reais em Portugal no apagar das
luzes do século XIX. Entretanto, com o fim das discórdias e diante de fartas e
demoradas negociações diplomáticas, os restos mortais de Teresa Cristina e Pedro
II foram transladados para o Brasil em 1921 e adequadamente sepultados apenas
em 1939. Ambos os corpos estão na capela do Museu Imperial em Petrópolis,
antiga Fazenda do Córrego Seco “adquirida por d. Pedro I em janeiro de 1830,
depois se ergueu a cidade de Petrópolis” (LUSTOSA, 2006, p. 286).
Segundo consta, o governo argentino foi o primeiro a reconhecer que o Brasil
se tornara uma nação republicana, 118 independente e soberana, ato seguido por
na temível, violenta e implacável Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), uma autêntica
fábrica produtora dos medos. Os dados da época, nada alentador, Portugal, “tinha a mais alta taxa
de analfabetismo e de tuberculose. Para Salazar, quanto mais ignorantes os camponeses fossem,
mais felizes seriam. [...] em sua opinião, os trabalhadores, deveriam alimentar-se de fado, Fátima e
futebol” (PAGE, 2012, p. 289).

Em 22 de Outubro de 1945, o Decreto-Lei: 35046 cria a P.I.D.E. - Polícia Internacional e de


Defesa do Estado - o que equivale, na prática, a nova mudança de nome da polícia política. [...]
Mas quando a zero hora e vinte e nove minutos do dia 25 de abril de 1974 a Rádio Renascença
lançou a voz de Zeca Afonso na canção-senha Grândola-Vila Morena, a P.I.D.E. entrava em
coma. Trinta e três horas depois morria. (NEVES, 1974, p. 19, 26).

Quando pela segunda vez Salazar foi empossado na função de Ministro das Finanças, em 1928,
ele verbalizou algumas enigmáticas palavras que ninguém entendeu: “Sei muito bem o que quero e
para onde vou” (SARAIVA, 1998, p. 357). Sei muito bem o que quero. Por esse prisma, Oliveira
Salazar somente deixou o poder quando a morte lhe alcançou em 1970.

Em 1940, Salazar parecia ter o país a seus pés. Além de presidente do Conselho de Ministros, era
ministro das Finanças, dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. [...] O próprio Salazar, em 1941,
tremeu perante a perspectiva de um mundo dominado pelos EUA e pelo comunismo. (RAMOS,
2012, p. 662, 665).

Salazar, que estava praticamente há dois anos em semicoma, morreu pobre a 27 de julho de
1970, como pobre era toda a população. Entretanto, Portugal estava sem dívidas, com seus cofres
abarrotados de ouro e seu povo a morrer de fome!
118
Essa foi a sagaz diplomacia que a Casa Rosada encontrou para devolver o troco das
incompatibilidades surgidas com D. Pedro II, após os resultados da fratricida Tríplice Aliança
composta pelo Brasil, a Argentina e o Uruguai. Tal aliança bélica dizimou a população masculina do
outros nações. Com o Brasil sendo agora uma república, o governo provisório
redigiu uma nova Constituição que foi promulgada no Rio de Janeiro, a 24 de
fevereiro de 1891. Em ato contínuo, foi revogada a de 1824, a velha Carta, que foi a
mais longa Constituição já vista no Brasil, permanecendo em pleno vigor durante 65
anos. A Constituição de 1891 estabeleceu uma república federativa, na qual as
antigas províncias formaram os Estados Unidos do Brasil.

Constituição Republicana

A Constituição de 1891 formou um governo laico que garantia a liberdade de


expressão, consciência e culto para todos os segmentos sociais, filosóficos e
religiosos. Mesmo sob pressão, além de velados protestos de alguns saudosistas do
poder, a Igreja Católica Apostólica Romana perdeu o monopólio, além do absoluto
domínio religioso sobre o povo. Agora estava nivelada as combatidas seitas,
agremiações e outras ideologias horrorizadas pelos prelados. Conduzido pela
mesma esteira, ficou proibido o poder eletivo dos sacerdotes, o “lugar de padre era
na sacristia” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 20), célebres palavras do
campineiro Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913), então ministro da justiça
do governo provisório de 1889 a 1891. Esse ideal republicano foi, em certo sentido
quebrado em 1917, quando Dom Aquino Correia (1885-1956), arcebispo de Cuiabá,
ao 32 anos, foi eleito por sufrágio universal à posição de governador do Mato
Grosso. Liderou a política executiva do estado de 1918 até 1922. No decorrer de
sua administração recusou veementemente a vinda de afro-americanos, alegando
que o estado sob a sua liderança, necessitava de europeus brancos, não negros
exportados da outra América! Isso aconteceu em 1921, está a completar 100 anos,
parece que nada foi alterado no mundo da violência racial. (Wikipédia: Dom Aquino
Correia. Acesso: 7 fev. 2021). Não foi diferente no provisório governo de Getúlio
Vargas, quando nomeou um sacerdote de vida duvidosa para servir de interventor
no Maranhão. Vargas, procurava agradar a Igreja, porém, essa nomeação foi um
fracasso político e desastre moral para o estado. “Foi nomeado o jovem e
controvertido sacerdote Astolfo de Barros Serra (1900-1978). [...] Padre Astolfo
permaneceu no cargo apenas de 9 de janeiro a 18 de agosto de 1931, mas o que
Paraguai, nação que almejava uma fatia de terra que terminasse no oceano Atlântico. O Paraguai
buscou por via das armas, contou os seus mortos e amargou duros prejuízos morais e econômicos!
Esse foi o mais terrível conflito militar acontecido na América do Sul até aos nossos dias. Essa guerra
somente chegou ao final quando da histórica Batalha de Cerro-Corá, a qual resultou no
desbaramento das forças paraguaias e na morte de Francisco Solano López (1827-1870), aos 42
anos, dia 1º de março de 1870. López, aos 35 anos, assumira a presidência do Paraguai, tornando-
se o pequeno Bonaparte da América do Sul; era um jovem e tremendo estrategista de guerra. Porém
os grandes também falham em suas vulneráveis estratégias. No decorrer do conflituoso momento
que se desencadeou na terça-feira, 1º de março de 1870, o gaúcho José Francisco Lacerda, vulgo
Chico Diabo (1848-1893), aos 22 anos, um assassino nato, agora fardado e com as divisas de cabo
do destacamento Voluntários da Pátria, desferiu os golpes finais que acabaram com a vida de Solano
López e provocaram o rendimento das fragilizadas guarnições militares do Paraguai. Ali terminou a
Guerra e iniciaram-se os embargos dos vencedores sobre um Paraguai em pedaços. “La reducción
de la población a um 30% de los aproximadamente 400.000 habitantes con que contaba el país al
comenzar la contienda, conformada fundamentalmente por niños, ancianos y mujeres” (BREZZO,
2011, p. 22). Crianças, velhos e mulheres, eis o que sobrou do Paraguai em 1º de março de 1870!
inicialmente parecera uma solução consensual logo demonstrou seus limites. [...] A
situação tornou-se insustentável até porque, a certo ponto, ele passou a coabitar
com uma senhora com quem inclusive teve um filho, o que forçou o bispo, que o
acusava de cínico prevaricador da moral sacerdotal, a suspendê-lo ex informata
conscientia. As autoridades governamentais não contestaram a decisão” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 2, p. 205, 206). Para abrilhantar a laicidade constitucional, uma
nova roupagem foi colocada no artigo quinto da Carta de 1824. Na utilização da
ortografia da época, assim se lia o novo artigo:

SECÇÃO II DECLARAÇÃO DE DIREITOS: Art. 72 inciso 3º: Todos os individuos e


confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se
para esse fim adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.

Politicamente os constituientes deram um basta no excesso da romanização


que predominava livremente no império petrino. “Os oficiais militares positivistas que
derrubaram a monarquia em 1889 separaram a Igreja e o Estado, estabeleceram a
liberdade religiosa na Constituição e solaparam em todos os aspectos a posição da
Igreja na sociedade brasileira. O catolicismo perdeu sua condição histórica de
religião oficial do Brasil. Os líderes da Igreja mostraram ambivalência em relação a
essa ruptura. Com a Liberdade religiosa, o catolicismo passou a não ser diferente
do protestantismo perante a lei, e o Estado aboliu o controle da Igreja sobre os
registros de Nascimento, o casamento e os cemitérios” (SERBIN, 2008, p. 94).
Manuel Deodoro da Fonseca era o 13º Grão-Mestre da maçonaria do Grande
Oriente do Brasil, (NOTA DE RODAPÉ: Foi iniciado na Sublime Ordem Maçônica
em 20 de setembro de 1873, na tradicional Loja Maçônica Rocha Negra, Federada
ao Grande Oriente do Brasil, na localidade de São Gabriel, no Estado do Rio
Grande do Sul. Deodoro foi o 13º Grão-Mestre Geral do Grande Oriente do Brasil,
exercendo o cargo de 24 de março de 1890 a 18 de dezembro de 1890. Fonte:
folhadolitoral.com.br (acesso: 29 agosto 2021). FINAL DA NOTA) célebre veterano
da Guerra do Paraguai, e um alagoano muito respeitado e portador da máxima
patente militar do exército. Aos 16 anos, sob fortes influências de sua genitora, dona
Rosa Maria Paulina de Barros Cavalcanti (1802-1873), uma matriarca controladora,
ele deixou Alagoas, o seu rincão de nascimento, e seguiu para a Escola Militar no
Rio de Janeiro, a capital imperial. Tornou-se um excêntrico militar e profundo
defensor do fardamento do exército. Sua dedicação militar foi tão acirrada que
somente aos 33 anos encontrou tempo para se casar! O Generalíssimo Deodoro da
Fonseca foi o primeiro presidente do Brasil republicano, sob eleição indireta na
terça-feira, 24 de fevereiro de 1891. “Eleito de forma indireta no dia em que se
promulgou a carta magna republicana, da citada votação participaram 234
parlamentares, que deram ao velho homem de armas uma modesta vantage sobre
o civil Prudente de Morais – 129 votos contra 97 –. Ele assumiu num momento em
que as intrigas palacianas fervilhavam e, o que era pior, faltava-lhe a necessária
habilidade para superar esse tipo de situação. Como diria o General Aurélio de Lyra
Tavares (1905-1998) Deodoro nascera para o comando e ignorava os manejos e
acomodações políticas” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 32, 33). Estava com 64
anos, politicamente desgastado e fisicamente doente. “Militar dos pés à cabeça, não
sabia mover-se no meio civil. Em matéria de política, era completamente ingênuo.
Acreditava em tudo o que lhe diziam” (CARVALHO, J., 2007, p. 211). Como já
mencionado, assim militarmente honesto se comportava o filho de dona Rosa
Cavalcanti!
“Árdua tarefa, aliás, aguardava os republicanos: o país que assumiram era
imenso, pobre, despovoado, agrário, com pendências fronteiriças, e dotado de uma
economia cujo principal produto de exportação era o café. Como se não bastasse,
eles tampouco trouxeram de imediato à inovação progressista que pretendiam
representar”. De Mariana, o mais católico centro comunitário das Minas Gerais, o
padre Silvino de Castro, faz uso de uma retórica apocalíptica sobre o nascer da
república. Para ele “a marcha vertiginosa que em direção ao abismo ia tendo a
sociedade brasileira” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 7, 8, 17).

A primeira renúncia presidencial

Sem dúvida, estava mal assessorado; aliás, todos eram novatos e aprendizes
de governantes. Espremeram o laranja até ele não suportar os embates de uma
nova política, além das crises sociais, militares e econômicas que herdara. Sob
ameaças dos canhões da Marinha de Guerra, fragilizado e sem opção direcional
para manter o andamento da república. Diante de um disparo de canhão que atingiu
a cúpula da Igreja da Candelária, aguçou o bom senso do marecchal. Preferiu
renunciar o seu mandato à função de Presidente dos Estados Unidos do Brasil.
Deodoro foi um notável soldado, mas não como estadista, diria Rui Barbosa (1849-
1923), o primeiro Ministro da Fazenda do Brasil republicano. Uma emocional
frustração dominou completamente e encurtou a vida do triunfante guerreiro da
democracia republicana. “Deixada a política, o agora ex-presidente pediu reforma,
abandonou o uso da divisa militar e também mudou de atitude quanto à maçonaria.
Ele, que fora eleito grão-mestre do Grande Oriente do Brasil e empossado com tal
em 24 de março de 1890. [...] aproximou-se então da Igreja, mas sua saúde
deteriorou-se continuamente. No dia 22 de agosto de 1892, agonizante, recobrou a
voz e pediu à esposa, Dona Mariana Cecilia de Souza Meireles, que chamasse o
Pe. Belarmino, pois desejava confessar-se. [...] Às 12h20 do dia seguinte expirou. O
marechal fundou a nova pátria brasileira, destruindo a Monarquia e levantando a
República” (VIEIRA Dilermando, 2016, v. 2, p. 34). Manuel Deodoro da Fonseca o
desativador do monstro da monarquia, mal havia completado 65 anos, ao falecer
nos primeiros minutos da terça-feira, 23 de agosto de 1892, exatamente oito meses
após sua renúncia em 23 de novembro de 1891. Amplamente mencionado em
linhas anteriores, após renunciar ao governo, a 23 de novembro de 1891, Deodoro
retirou-se para a cidade de Barra Mansa, interior do Rio de Janeiro, onde faleceu
exatamente oito meses depois, dia 23 de agosto de 1892. Parece uma simbologia
do destino!119
Pela manhã de quarta-feira, 28 de outubro de 2020, visitei a mais histórica das casas localizadas
119

na então Rua dos Mortos, atualmente com o nome de Marechal Deodoro da Fonseca, na cidade de
Como regia a recém-nascida Constituição do Brasil, diante da vacância do
titular por morte, renúncia ou outros motivos, a cadeira presidencial foi ocupada pelo
vice-presidente, o também marechal alagoano Floriano Vieira Peixoto (1839-1895),
maçom e herói da Guerra do Paraguai. O seu governo, que durou até 1894, foi
assinalado pela discórdia da grande massa populacional manobrada pelos
saudosistas políticos pró-monarquia. Eram os populares anarquistas infernizando a
vida do Presidente, incluindo levante nas Forças Armadas que novamente
apontaram os canhões para bombardear o Palácio do Governo. Floriano Peixoto,
não se intimidou ou se dobrou diante das ameaças, pelo contrário respondeu
energicamente aos agressores: “Desta cadeira só duas forças são capazes de me
arrancar: a lei ou a morte” (GRANATO, 2010, p. 19). Para se manter na função,
Floriano Peixoto foi um republicano na teoria e militar na prática. Não recebia ordens
de ninguém, aliás, o poder amendrotador que a farda lhe garantia sempre foi o seu
orgulho e sua fonte de expressiva autoridade. Era a República da Espada! 120
Enquanto despachava na cadeira presidencial no Rio de Janeiro, Peixoto “inaugurou
o chamado florianismo, culto político a sua personalidade” (BOTELHO e LIMA,
Laura, 2021, p. 215). Ao cumprir, aos trancos e barrancos, o mandato presidencial
garantido pela nova Constituição, o marechal Floriano Vieira Peixoto, aos 55 anos e
politicamente desgastado (o que é notório diante da posição), seguiu os mesmos
passos de seu antecessor e conterrâneo. Deixou o Rio de Janeiro, seguindo
diretamente para sua fazenda também localizada no município de Barra Mansa,
onde faleceu em 29 de junho de 1895. Faleceu muito jovem; estava com somente
56 anos!

A iconografia do mártir da independência

Naquela manhã, que não poderia ser outra, sexta-feira, 15 de novembro de


1889, o poder foi transferido de mãos sob um disfarçado golpe militar. Nesse dia, o
mais longo governo já existente no Brasil foi bruscamente desmoronado sem tropas
pelas ruas, levantes com barricadas ou arames farpados. Não houve nenhum toque
de recolhimento. Tudo foi matematicamente arquitetado para aquela data. Rendidos
e sem outras alternativas, D. Pedro II e seus familiares receberam ordens para
abandonar o país na madrugada de domingo, 17 de novembro. Como era se de
esperar, alguns próximos e fiéis seguidores da monarquia preferiram acompanhá-la
para o exílio sem retorno. A maioria dos Pais da República brasileira eram influentes
militares, alguns altamente renomados na administração imperial. Os dois primeiros
Presidentes e disfarçados mentores possuíam altas patentes no exército. Para
garantir o golpe como um mal necessário, nada melhor que buscar uma figura

Marechal Deodoro, sensivelmente 20 quilômetros ao Sul de Maceió, Alagoas. Na tarde anterior,


terça-feira, 27 de outubro, acompanhado por Edson Conceição, o meu guia turístico, estive no local
onde nasceu o também Marechal Floriano Peixoto na localidade de Ipioca, bairro de classe média ao
Norte da cidade de Maceió.
120
O espírito da cartilha é o mesmo em nossos dias, porém com uma leitura politicamente no olhar da
democracia, uma esplêndida teoria governamental em que todos têm direito e ninguém tem razão!
ícone. fazia-se necessária a existência de um herói nacional que tivesse a cara da
nascente República!
Imagino a cena nas secretarias à procura dessa cara para oficializar o golpe
contra a monarquia e o nascer de um novo país. Sem dúvida, vários nomes
consagrados foram despejados sobre as mesas de trabalho da equipe responsável
por esse achado. Todos os nomes eram de homens, com certeza brancos e com
roupas talhadas nas melhores alfaiatarias do Rio de Janeiro, quando não
importados de Paris, a cidade que ditava a moda social do ocidente. Vamos
aleatoriamente nomear alguns dos possíveis candidatos ao panteão da glória.
A) Zumbi dos Palmares (1655-1695), nascido no Brasil Colônia, na capitania
de Pernambuco. Imeditamente foi descartado. Onde se viu uma figura negra para
ser a cara da República? No conceito geral, Zumbi não passava de um forçado líder
estadista que almejava um pedaço de terra onde o negro desfrutasse de liberdade.
Zumbi estava desqualificado para tal, não ganhou simpatia aos olhos dos brancos.
B) Filipe dos Santos Freire (1680-1720), nascido em Portugal, muito longe de
sua maior e mais poderosa colônia. O tropeiro Filipe dos Santos Freire foi a principal
figura da Sedição de Vila Rica em junho/julho de 1720. Freire, não resta a menor
dúvida, foi o nome que se destacou entre os precursores das ações que culminaram
na Inconfidência Mineira contra a derrama Real imposta por Lisboa. Porém Filipe
dos Santos, diante de vários fatores, não possuía a almejada cara de República.
C) Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), vulgo Tiradentes. Logo foi dito
por um dos principais da equipe: “Esse está com cheiro de República”. O seu
colega, também de destaque, retrucou: “Porém há outro herói em causa, também
com o nome de Joaquim. Vejamos suas características”. Concordaram por
unanimidade.
D) Joaquim da Silva Rabelo (1779-1825), popularmente conhecido por Frei
Caneca. Embora tenha nascido no Recife, cidade que herdou muito da cultura geral,
das arquiteturas e do paisagismo dos holandeses reformados, Rabelo ficou no final
da lista. Não era lá muito República. Aos olhos da comissão, ele não passava de um
oportunista revolucionário escondido por baixo de uma piedosa batina sacerdotal.
Sua revolta não teve Portugal como alvo, e sim a nascente monarquia de D. Pedro I.
No olhar geral, não estava interessado no Brasil, mas na independência da
república “Confederação do Equador”. O pior: para completar a ruidosa história, frei
Caneca foi apressadamente julgado, condenado e executado, sob ordens de
Francisco de Lima e Silva (1785-1853), destacado coronel do exército, dia 13 de
janeiro de 1825. De fato, frei Caneca seria um mal exemplo para os militares que
queriam abafar esse acontecimento.
Após as devidas considerações, os olhares se cruzaram e regressaram para
a figura do mineiro nascido na Fazenda Pombal no dia 12 de novembro de 1746
durante o reinado de D. João V de Portugal. Joaquim José da Silva Xavier, em tenra
idade, estava órfão de pai e mãe, sendo criado por diferentes famílias e lugares. Por
seus reconhecidos dons naturais, ainda jovem tornou-se dentista prático, algo muito
normal por aqueles idos. Dessa profissão herdou a alcunha de Tiradentes, com a
qual se imortalizou. Aos 34 anos, em 1780, no reinado de D. Maria I, alistou-se na
Cavalaria da Capitania de Minas Gerais no posto inicial de alferes, que hoje seria
um subtenente. Nessa posição, o alferes Xavier foi designado para comandar uma
tropa que guarnecia o longo “Caminho Real”, designação da estrada que ligava as
regiões das mineradoras de Minas Gerais até a capitania do Rio de Janeiro. Por
esse caminho circulavam toneladas de ouro antes de chegar à Europa. Logo, a
função de Tiradentes era de extrema confiança para os interesses da monarquia
portuguesa. Ele foi nomeado pela Casa Real em Lisboa, o que o fez conhecedor do
submundo dos contrabandos. Entretanto, o seu trabalho era manter a ordem e
perfeita segurança no “Caminho Real”. Enfim, ele desfrutava de um invejado cargo
público!
A posição que Tiradentes ocupava no comando da tropa do “Caminho Real”
era muito elevada para um dentista prático, sem anel no dedo e que nunca havia
saído além de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Em meio aos conflitos de ideias,
ele foi arrancado da posição em 1787 para exercer um cargo inferior. Descontente,
após sete anos a cuidar do caminho com sua tropa militar, optou por licenciar-se da
cavalaria. No ano seguinte, sob a influência de amigos da elite de Vila Rica, abraçou
os ideiais daquilo que posteriormente recebeu o histórico nome de Inconfidência ou
Conjuração Mineira. Por sua popularidade, Tiradentes tornou-se a conexão dos
conspiradores com as camadas mais carentes na escala social. Aparentemente,
tudo andava muito bem até que outro Joaquim, o português Silvério dos Reis
Montenegro Leiria Grutes (1756-1819), traiu os colegas por escusos interesses. Isso
ele fez por intermédio de uma missiva datada de 11 de abril de 1789 e direcionada
ao português Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro (1754-
1830), o Visconde de Barbacena, o qual fora enviado de Lisboa para governar a
capitania de Minas Gerais, fonte das ricas minas auríferas da colônia portuguesa.
Em 1788, aos 34 anos, o fidalgo Visconde de Barbacena chegou no Brasil, onde
durante nove anos permaneceu na função de governador da capitania de Minas
Gerais até sua exoneração em 1797 sob ordens de D. João, o príncipe regente, cuja
mãe, D. Maria I, já estava louca.
O desmantelamento dos inconfidentes sob ordens do Visconde de Barbacena
foi devastador. Todos os acusados foram imediatamente detidos e lançados sob
custódia nos lúgubres e tenebrosos calabouços existentes em Vila Rica. Tiradentes,
que estava promovendo propaganda no Rio de Janeiro, foi preso em 10 de maio de
1789 e jogado em uma masmorra na fortaleza da Ilha das Cobras, onde
permaneceu praticamente incomunicável até 17 de abril de 1792, tempo suficiente
para enlouquecer qualquer ser humano. “A prisão forja o prisioneiro”, (HUGO, 2007,
v. 1, p. 280). O resultado dos julgamentos saiu na quarta-feira, dia 18 de abril de
1792. Toda a ira da melancólica D. Maria I, uma desenfreada devoradora de
hóstias, recaiu especialmente sobre o ex-alferes Xavier. Esse condenado não
passava de um mediano colono sem muitas pretensões, “ele próprio dono de seis
negros escravizados em Minas Gerais” (GOMES, 2021, v. 2, p. 22) além de uma
pequena propriedade em Vila Rica. Sem economias e desprovido de curso superior,
consequentemente estava longe de ter amigos nas cortes no Rio de Janeiro e muito
menos em Lisboa. Literalmente, foi entregue às traças! Aliás, por quase três anos
conviveu com ratos, piolhos, baratas, percevejos e outros insetos que também
residiam nos calabouços da Ilha das Cobras, que era um nefasto espaço reservado
aos tormentos e às torturas psicológicas na busca de destruir o cativo. Lá estava um
bando de traças e animais roedores, tudo orquestrado para atormentar o prisioneiro.
“É o caso dos ratos, incluindo aí tanto as espécies urbanas quanto as do campo,
que carregam as pulgas em cujo sistema digestivo vive a temida Yersinia pestis, a
bactéria da peste bubônica” (LOPES, 2017, p. 216). No despontar da década de
trinta, o sociólogo pernambucano, fundamentado em fontes por ele consultadas,
afirma sem rodeios: “Tiradentes, que quisera desposar certa moça de São João del-
Rei opondo-se o pai da mesma por ser o pretendente colono e de cor morena”
(FREYRE, 2006, p. 718). “Por volta de 1780, a capitania de Minas Gerais era a mais
populosa do Brasil, com 394 mil habitantes, dos quais 174 mil eram escravos. [...]
compunham a maior concentração de pessoas de origem africana registrada até
então em todo o continente americano” (GOMES, 2021, v. 2, p. 23).
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi o único que não mereceu
clemência de D. Maria I. A sua execução transcorreu no sábado, 21 de abril de
1792, no Campo da Lampadosa, hoje, parte central do Rio de Janeiro. Segundo
ouvi de um professor, com o seu sangue foi lavrado o documento que estava
cumprida a sentença. Sua memória foi declarada infame por todas as gerações!
Após o enforcamento, o seu corpo foi dissecado. Partes salgadas foram enviadas a
capitania de Minas Gerais com o intuito de amedrontar a população e mostrar que
quem dava as ordens ainda era Portugal. Por tudo isso, a comissão que estudava
os mártires chegou à conclusão que a figura de Tiradentes era a autêntica cara da
república. Mineiro pobre, popular, corajoso e de tez morena. Dotado com as mais
perfeitas simbologias da manipulação de uma política mesclada de popularidade,
religiosidade e domínio econômico.
Esse quadro deveria se materializar e, assim, se espalhar a ideia de
Tiradentes como o mais nobre dos mártires pela causa republicana do Brasil. No
entanto, o projeto iniciado em seguida à Proclamação da República em 15 de
novembro de 1889 foi engavetado. Não havia recursos, embora fosse uma
prioridade para a causa nacional. No local, surgiu a foto de uma jovem francesa
branca. Essa, por um período foi a perfeita cara da república brasileira!
Todavia, cerca de quatro anos depois, em 1893, o quadro de Tiradentes veio
à tona pelas mãos do paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905).
Segundo informações, em somente doze dias de trabalho o pintor fabricou a perfeita
e impressionante cara da república. O quadro original se encontra no Museu
Mariano Procópio em Juiz de Fora. Será aquela a verdadeira imagem do herói da
independência?
Pedro Américo, aos 50 anos, buscou mitificar ou sacramentar a figura de
Tiradentes relacionando-a ao Jesus Cristo do renascentismo europeu. Essa foi a
estratégia que visava se aproveitar da religiosidade popular, notadamente de Minas
Gerais, para promover a aceitação do mártir Tiradentes, portador de cabelos e
barbas longas, além do piedoso semblante, tudo para identificá-lo com o Mártir do
Gólgota.
A respeito disso, os historiadores levantam a questão de que, muito provavelmente,
Tiradentes, no momento de sua execução, estava com os cabelos raspados. Isso
porque era uma prática comum das prisões portuguesas da época raspar os cabelos e
barbas de seus presos como forma de evitar a infestação de piolhos. [...] De toda forma,
o resgate de Tiradentes como herói e mártir, feito pelos republicanos no fim do século
XIX, popularizou-se, e a imagem construída em cima desse discurso, que se
estabeleceu e foi transmitida década após década, fez com que esse personagem
assumisse um lugar de destaque na memória histórica brasileira. (Disponível em
<mundoeducacao.uol.com.br>. Acesso em: 23 dez. 2020).

Ainda pesava sobre a terra natal de Tiradentes a fervorosa influência religiosa


catequisada por sacerdotes europeus de diferentes nações e ordens. “Minas, além
de ser a mais populosa província do antigo império, era a única a possuir duas
dioceses e uma Igreja bastante forte” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 1. p. 394).

O primeiro presidente civil e Antônio Conselheiro

O advogado Prudente José de Moraes e Barros (1841-1902), natural da


histórica cidade de Itu, estado de São Paulo, foi o terceiro presidente do Brasil
republicano, sendo também o primeiro presidente civil a governar os Estados
Unidos do Brasil, de 1894 a 1898. (NOTA DE RODAPÉ: Dr. Prudente de Moraes foi
o adversário político do Marechal Deodoro nas eleições indiretas, dia 24 de fevereiro
de 1891. O Generalíssimo Deodoro da Fonseca venceu o pleito presidencial com
129 votos, enquanto o civil Prudente José de Moraes, agraciado com 97 votos.
Nada mal, uma modesta diferença de 32 votos! FINAL DA NOTA). Ele foi o primeiro
a ser eleito por voto popular, tendo em vista que Deodoro e Floriano foram
nomeados pelos constituintes republicanos. Esse é o mesmo advogado que,
quando residente em Piracicaba, convidou o reverendo Junius Newman, missionário
metodista entre 1875 ou 1876 a iniciar uma escola naquela cidade. Certamente foi
desse embrionário encontro que foi gerada e nasceu a destacada Universidade
Metodista daquela cidade. Martha Watts (1848-1909), missionária metodista
americana, nascida no estado de Kentucky, inaugurou oficialmente o Colégio
Piracicabano, dia 13 de setembro de 1881. Muito bem articulada, foi grande amiga
da família Moraes e Barros. Posteriormente, ela escreveu sobre o ex-presidente:

O Dr. Prudente declarou sua fé em Cristo em um discurso proferido no Colégio


Piracicabano e o Dr. Manoel, longo tempo atrás, fez o mesmo em nosso exame público,
mas nenhum dos dois jamais se alistou em Seu exército. Enquanto viveu, o Dr. Prudente
recusou a assistência do sacerdote, mas, depois que morreu, houve inúmeras missas
pelo repouso de sua alma. (ALMEIDA, R., 2014, p. 254, 255).

Prudente de Moraes era um conhecido republicano de carteirinha desde


1870, o mesmo ano do Manifesto Republicano. Aquele ituense era uma velha e
adestrada raposa política que muito bem sabia caminhar nos diferentes galinheiros
partidários. Passados somente 24 anos após a reunião em que nasceu o Manifesto
no Rio de Janeiro, o influente doutor Prudente de Moraes estava ocupando a
presidência de uma nascente nação republicana.
Tal como se previa, politicamente o seu governo foi semelhante aos dois
anteriores, marcado por variados focos e levantes contra a posição republicana.
O levante mais violento, sangrento e desafiador contra o governo central foi
protagonizado sob o comando de um beato católico antirrepublicano que, antes de
ser traído, em 1861, e abandonado pela esposa, sonhava com o título de rábula. 121
Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897) nasceu em Nova Vila de Campo Maior,
na época um pequeno lugarejo perdido em meio à caatinga do sertão, que, três
anos após o seu nascimento, recebeu o nome indígena de Quixeramobim, cidade
no coração do estado do Ceará. Registrado na história pela alcunha de Antônio
Conselheiro, ele foi um peregrino, visionário andarilho e pregador messiânico que
arrebanhou para sua comunidade em Canudos, Bahia, mais de vinte mil fiéis
fanáticos que acreditavam no retorno da monarquia, além de outros apocalípticos
eventos por ele profetizados.
Conselheiro, o homem santo e esmagado de humildade cristã aos olhos de
seus fanáticos seguidores em Canudos e nos sertões, aparentemente rude, porém,
para aquela época e o meio em que estava inserido, era um cidadão letrado,
inteligente, carismático, além de bom estrategista. Sabia como ninguém fazer a
manipulação do sagrado no uso de profecias alarmistas e mensagens
escatológicas. O militar e jornalista Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-
1909), autor de Os Sertões, livro lançado em 1902, revelou ao mundo, em palavras,
as ações que transcorreram em Canudos. Em obediência à sua carreira militar, o
primeiro-tenente Euclides da Cunha fez um jornalismo alinhavado aos princípios de
exaltação do Exército Brasileiro.
Antônio Conselheiro, aquele estranho, extravagante e celibatário beato,
vivendo continuamente sob uma grande camisola azul, apregoava com voz
estridente e convincente que o mundo estava dando os seus gemidos finais.

Em 1896, há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e
a praia virará sertão. Em 1897, haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um
só rebanho. Em 1898, haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899, ficarão as
águas em sangue e o planeta há de aparecer no nascente com o raio do sol que o ramo
se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu [...]. Há de chover
uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes.
(OLIVEIRA, P., 1985, p. 243).

Na busca de aniquilar para sempre o motim existente em Canudos, o governo


central fez várias investidas militares que foram derrotadas pelos fanáticos
seguidores do Conselheiro. A última expedição do Exército Brasileiro contra o arraial
de Canudos envolveu cerca de oito mil soldados em 1897. As batalhas, embora
121
Rábula era o advogado que, não possuindo formação acadêmica em direito, obtinha a autorização
do órgão competente do Poder Judiciário para exercer, em primeira instância, a postulação em juízo.
Na lógica jurídica, o Rábula era um advogado prático. O mais destacado dessa classe foi o maçom
Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), um soteropolitano de origem afro-brasileira, que se
tornou o mais famoso e respeitado rábula, escritor, professor e abolicionista baiano. Tendo má sorte
e, para tristeza do negro feito escravo, que ele muito bem sabia defender diante do Judiciário, era um
cavaqueador por natureza. Entretanto, os diabetes foram mais fortes e sagazes. Assim, no fatítico
Dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1882, o advogado dos pobres e libertador dos escravos foi,
aos 52 anos, vencido pela mortis, findando sua carrreira terrestre e deixando uma lacuna no Direito.
desiguais, foram mortíferas. O poder de fogo do Conselheiro e seus seguidores era
bem inferior ao da força militar preparada para aquele sangrento massacre, foi um
verdadeiro genocídio, uma localizada guerra civil, onde prevaleceu o poder das
armas que cuspiam fogo contra um bando de fanático religiosos. Finalmente, na
tarde de terça-feira, 5 de outubro de 1897, cessa completamente a resistência.
Canudos, que mais parecia uma ratoeira diante das agilidades dos moradores, cai
definitivamente em poder do Exército Brasileiro. Os prisioneiros (diga-se de
passagem, naquela época não existia nem em sonhos o Tratado Internacional dos
Direitos Humanos) foram impiedosamente degolados juntos aos escombros de
Canudos, o mesmo acontecendo na vizinha cidade de Queimadas, onde alguns dos
seguidores haviam se refugiado. Toda a população foi arrasada; pilharam e
incendiaram a aldeia de Canudos e seus arredores.
O beato Antônio Conselheiro foi um eficiente manipulador do sagrado ou,
quem sabe, somente um “homem fanático que quer passar por profeta” (Jeremias
29:26). Aos olhos de uma sociedade carente de liderança e contínua assistência
religiosa, Conselheiro levantou-se com relevância e soube verbalizar muito bem sua
mensagem por faltar o número suficiente de padres para cuidar dignamente da
freguesia católica em momentos conflituosos.

No final do Império, o Brasil possuía apenas 700 sacerdotes seculares e 12 dioceses


para 14 milhões de pessoas. A igreja propriamente dita não só estava comprometida
com um estado escravo e dependia dele, como também servia de braço para o mesmo
a fim de dominar o povo. Assim sendo, a ruptura com o passado e a separação entre
Igreja e Estado foram um golpe severo para esta última. (CAIRNS, 1995, p. 355).

O século XX

A virada do século XIX para o século XX ocorreu sob perspectivas de um


mundo melhor, mais justo e humano. Não obstante, a realidade (especialmente a
brasileira) era outra. Havia sérios compromissos financeiros. O Brasil precisava
saldar os empréstimos a altíssimos juros comprometidos com a Inglaterra e manter
um razoável crédito para com os banqueiros internacionais. Esses compromissos
corroíam as precárias reservas da nova e pobre república, arrochando mortalmente
o seu deficiente Produto Interno Bruto. Agora o comando geral da nação, nessa
histórica transição, estava sob o também advogado Manuel Ferraz de Campos
Salles (1841-1913), um político de carreira, natural da cidade de Campinas. Salles
foi o quarto presidente dos Estados Unidos do Brasil e o segundo eleito por voto
popular em uma nascente nação lutando para respirar e crescer. Ele exerceu suas
funções governamentais de 1898 a 1902. Naquele cruzar do século, a população
mundial não passava de 1,6 bilhão de pessoas, das quais apenas uma inexpressiva
cifra havia nascido no Brasil.122
Os mais de 250 milhões de católicos romanos em todo o mundo estavam sob
orientações do italiano Vicenzo Gioacchino Pecci (1810-1903), que subiu ao trono
122
Por estimativa dos mais conceituados demógrafos, em 31 de outubro de 2011, a população
mundial chegou à astronômica cifra de sete bilhões de habitantes no planeta Terra. Um horror para
os administradores públicos!
do Vaticano em 1878 com o título de Leão XIII aos 68 anos. Durante o seu
pontificado de 25 anos, “escreveu no total oitenta e seis encíclicas” (GALLEGO,
2010, p. 390). Foi um papa que nunca viu com bons olhos a filosofia do
americanismo e muito menos a separação da Igreja do Estado. Foi também o último
Leão no comando geral da Igreja Católica Apostólica Romana.
Com total segurança, o laicismo defendido pelo americanismo colocou a Igreja
à margem das decisões políticas do Estado, posição que em nada agradou o
principal líder no Vaticano. A Igreja não tem o direito de interferir nos negócios do
Estado e nem esse o de gerir os negócios da Igreja exceto em momentos cruciais
de surtos epidêmicos, guerras ou outros males que exigem segurança e bem-estar
social, tudo dentro de decretos respeitáveis. Diante dessa filosofia, o romanismo
perderia também sua hegemonia de autoridade absoluta que, por séculos, havia
exercido com certa arbitrariedade na Europa e buscava fazer o mesmo nas
Américas. A Inquisição é o retrato mais vergonhoso desse obscuro período das
trevas na História da Igreja. A filosofia do americanismo, que se tornou a Doutrina
Monroe em 1823, foi praticamente criada pelo teólogo Roger Williams (1603-1684),
um clérigo calvinista inglês que, fugindo das perseguições religiosas em Boston,
fundou, em 1636, a primeira igreja batista em solo americano na cidade de
Providence, hoje a capital de Rhode Island, um dos seis estados que formam a
Nova Inglaterra. Rhode Island é o menor estado americano, porém repleto de
história e grandes conquistas. No local onde Roger Williams, aos 35 anos, fundou a
primeira igreja batista, há hoje uma monumental construção ainda existente no
número 75 da South Main Street, na histórica cidade de Providence, sendo um local
de parada obrigatória para turistas, não poucos pesquisadores e curiosos.

Esse imigrante inglês, chegou em Massachusetts em 1630, é considerado o pioneiro na


separação entre Estado e Igreja, tendo implantado em 1637, em Rhode Island, a
chamada liberdade religiosa [...]. Contra a teocracia da Nova Inglaterra ressaltou ser a
Igreja, do ponto de vista do Estado, nada mais que uma das muitas corporações civis a
serem protegidas, sem que preste qualquer contribuição para a manutenção desse
Estado. Já para a Igreja, os seus interesses só podem ser frustrados mercê da
intervenção do Estado, nunca promovidos. Essa distinção de desígnios afasta Estado e
Igreja, que devem ser vistos como distintos espaços do agir humano. (COSTA;
PUGLIESI, 2001, p. 19).

Embora mantendo a absoluta separação entre a Igreja e o Estado, Rhode


Island tornou-se um local onde a maioria da população mantinha a fé e prática
batista. Em 30 de abril de 1789, George Washington (1732-1799) foi empossado
como o primeiro Presidente das Colônias que formaram os Estados Unidos. A
importância batista foi por ele mencionada: “Many Baptist also came to Rhode
Island; Baptist played such a large role in the establishment of Rhode Island and its
system of government, that in 1789 George Washington referred to it as the Little
Baptist State of Rhode Island” (ASHBAUGH, 1998, p. 39).123 “Os batistas fundaram a

123
“Muitos batistas também chegaram a Rhode Island, os batistas tiveram tamanha importância no
estabelecimento de Rhode Island e seu sistema governamental, que em 1789 George Washington se
referia ao estado como o pequeno estado batista de Rhode Island” (tradução livre de Carlos
Boaventura Jr.)
Universidade de Rhode Island em 1764 como uma instituição que ensinaria, sem
sectarismo, religião e ciência; essa escola mais tarde recebeu o nome de Brown
University” (CAIRNS, 1995, p. 316). De Itu, estado de São Paulo, o jornalista e
historiador paranaense não perdoa o funesto passado: “John Brown, da família
fundadora da Universidade Brown, na cidade de Providence, Rhode Island, hoje um
grande centro norte-americano de estudos da escravidão, era traficante de cativos”
(GOMES, 2019, v. 1, p. 64, 65).

A Suécia

Em 1536, o rei Gustavo I da Suécia (1496-1560), que reinou durante 37 anos,


de 1523 até falecer em 1560, introduziu o protestantismo como religião oficial em
todo o seu território. Sendo um adestrado e carismático guerreiro, Gustavo I e seus
batalhões seguiam para os campos dos conflitos cantando “Ein feste Burg ist unser
Gott” (Castelo forte é o nosso Deus), o hino de confiança em Deus que retratava a
harmonia dos pensamentos do ex-monge Martinho Lutero. O luteranismo como
religião oficial permaneceu na Suécia durante 464 anos, até dia 1º de janeiro de
2000, quando a hegemonia foi desmantelada. Até aquela data a Igreja Protestante
foi parte oficial do Estado da Suécia, dando vazão a que todos os cidadãos suecos
fossem considerados membros da igreja luterana, a religião oficial da monarquia.
Com o caminhar dos anos, surgiram as naturais discórdias teológicas e
administrativas que resultaram em dissidências dentro das bases, mas não entre a
elite conformada e considerada a nata fiel às dogmáticas práticas iniciais do
protestantismo importado da alemanha por Gustavo I em 1536. Entre outras, houve
a dissidência que se tornou o movimento batista sueco. O levante, como era de se
esperar, surgiu em meio à massa pobre, rejeitada e tida como escória da nação.
Esse grupo que fugiu de um viciado governo episcopal e migrou para uma
administração local e mais democrática, a qual, no linguajar eclesial, recebe o nome
de congregacionalismo.124
Enquanto isso, o Brasil mais uma vez enfrentava problemas em todos os
segmentos e setores sociais. Nesse ínterim, as discórdias religiosas já estavam em
pleno andamento naquele pequeno país situado no extremo norte da Europa. Era a
Suécia luterana também a se debater contra as crises econômicas e sociais. Em
meio às dificuldades de ascensão social que lhe eram impostas, uma ala batista
passou por uma renovação espiritual, procurando uma identificação mais próxima
com a vida de santidade cristã, além de ampliar a verdadeira dependência de Deus,
fonte permanente do verdadeiro socorro. Confiante estava o poeta no antigo Israel:
“O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra” (Salmos 121:2).

124
Nos governos episcopais, toda a autoridade de mandar, fiscalizar, exigir, cobrar e nomear os
oficiais é confiada aos bispos, os quais são eleitos ou nomeados pela cúpula com bases em
assembleias ou concílios gerais. Entretanto, como de praxe, na hora de pagar, o disco é virado para
outra cantiga: transferem para a igreja local todos os ônus financeiros. Esse andar do sagrado
oportunismo, faz aumentar o número de bispos e seus apostolados colegiados! Em resultado, está
em voga o velho jargão: há demasiados caciques para poucos índios!
O Brasil muito ganhou com essa notória renovação sueca. Basta acompanhar
a história do pentecostalismo que tem cimentado a fé da nação. Boa parte dos
missionários que estenderam as fronteiras das Assembleias de Deus no Brasil
foram obreiros procedentes da Suécia, bem como de americanos descendentes de
suecos ou noruegueses. As nações nórdicas também fizeram história nas diferentes
vertentes batistas existentes no Brasil.125

A Itália

Em páginas anteriores, mencionamos a situação das vacas magras pela qual


os italianos estavam passando numa sofrida e retalhada Europa. Por volta de 1866,
a situação social e econômica havia descido abaixo do nível tolerável da pobreza. O
grande e majestoso império romano, que dominara o mundo de outrora, agora era
somente história e cinzas de um distante e sombrio passado do qual nem mais
fumaça existia. Há muito, todo o poderio de ostentação havia desaparecido do
mapa. Naqueles decênios finais do século XIX, a história era outra. Nesse cenário
focado em diferentes carências, nasceu, a 29 de março de 1866, no extremo norte
do país, Luigi Francescon (1866-1964) - nome outras vezes grafado como Louis
Francesconi -, natural da comuna de Cavasso Nuovo, província de Pordenone. 126
125
D. Sílvia Renate Sommerlath (1943-), rainha da Suécia, filha do alemão Walther Sommerlath
(1901-1990), onde também nasceu, e da brasileira Alice Soares de Toledo (1906-1997). Sílvia, que
também tem nacionalidade brasileira, residiu e estudou em São Paulo por dez anos (1947-1957),
cidade onde residem vários dos seus familiares. Ela é casada desde 19 de junho de 1976 com o rei
Carlos XVI da Suécia (1946-). O interessante dessa história, segundo o site (Ancestry.com), criado
pelo pesquisador americano William Addams Reitwiesner (1954-2010), é que a família materna de D.
Sílvia veio do relacionamento extraconjugal de D. Afonso III (1210-1279), o quinto rei de Portugal.
Dentro de sua genealogia bastarda, nasceu o mitológico João Ramalho (1493-1580) na cidade de
Vouzela. Ramalho, que, dependendo dos cálculos, chegou no Brasil por volta de 1513, foi o principal
responsável pela fundação de Santo André em 8 de abril de 1553. O português João Ramalho,
mesmo que por outros atalhos, era de descendência real e casou-se com a princesa Mbyçy, a vedete
das florestas do Anhangabaú. A índia Mbyçy é a mesma Bartira, que, ao se tornar cristã, recebeu o
nome de Isabel Dias. Era filha de Tibiriçá, o poderoso cacique da aldeia Inhapuambuca. Segundo
informações do site, D. Sílvia é a 13ª geração de João Ramalho com a princesa Tibiriça! (TAUNAY,
1968, p. 221, 222, 223). Confira também o site <http://www.wargs.com/royal/silvia.html>. Na quinta-
feira, 30 de outubro de 2014, estive na bonita e airosa vila de Vouzela, que muito bem se encaixou
entre as montanhas na Beira Alta, em plena zona de Lafões, distrito de Viseu, Norte de Portugal.
Estava amavelmente acompanhado da professora Raquel Guimarães, além dos pastores Jaime e
Lídia Rosado. A vila é habitada por cerca de 1.300 pessoas, povo atencioso e hospitaleiro. Famosa
pelos pastéis de Vouzela. Essa cidade tem uma história que ultrapassa os 700 anos, além de vastos
patrimônios naturais, arqueológicos, arquitetônicos, etnográficos e gastronômicos. O principal
objetivo da visita foi buscar melhores informações sobre o misterioso João Ramalho, o fundador da
vila de Santo André, São Paulo, em 8 de abril de 1553, o qual foi também vereador da nascente
cidade de São Paulo de Piratininga. Fomos gentilmente atendidos pela senhora Leonor Alcoforado,
Diretora de Gabinete de Turísmo, e também pelo senhor Jorge Rocha, Secretário da Biblioteca.
Foram impecáveis nos atendimentos. Obedecendo às indicações, seguimos as trilhas até a Quinta
de Valgode e encontramos a suposta casa onde João Ramalho nasceu ou viveu. Nas pesquisas, nos
deparamos com diferentes datas relacionadas ao nascimento de João Ramalho: 1470, 1473 e 1493.
Essa última é a mais aceita, tendo em vista o seu falecimento em São Paulo no ano de 1580.
126
No site de Cavasso Nuovo, há informações sobre sua infância, juventude e imigração de
Francescon. Proveniente de uma família de pobres trabalhadores braçais, ele era filho de Pietro
Francescon e Maria Lovisa e não chegou a concluir o segundo ano da escola elementar. Aos quinze
anos, foi para a Hungria, onde ganhou a vida até os vinte anos com a arte de criar mosaicos, um
Um italiano nos Estados Unidos

O jovem Luigi Francescon, aos 24 anos, seguindo as pisadas de outros


milhares de italianos, imigrou definitivamente em 1890 para os Estados Unidos.
Navegou até Boston e depois seguiu de trem diretamente para a região de Chicago,
que naquela época já despontava como a mais poderosa e próspera cidade do
estado de Illinois, sendo também o centro de uma expressiva comunidade italiana
nos Estados Unidos. Calcula-se que naquele período mais de 70% da população de
Chicago era composta por imigrantes procedentes de diferentes nações europeias.
Esse acúmulo populacional fazia de Chicago o ninho dos pobres europeus! “Em
1890, três em cada quatro moradores de Chicago eram imigrantes ou filhos de
imigrantes” (DAVIDSON, 2016, p. 195). Isso fazia de Chicago uma emergente e
cosmopolita cidade americana com a crescente mão de obra estrangeira.
Francescon era bastante e altamente comprometido com o mundo religioso
que adotara ainda em sua terra. Tinha uma pequena formação cristã baseada nos
ensinamentos dos valdenses, grupo iniciado em Lyon, na França, pelo comerciante
Pedro Valdo (1140-1218) em 1174. A princípio, como sempre acontece, esse grupo
era apenas uma ala renovada dentro da igreja romana. Nove anos depois, em 1183,
eles foram considerados hereges pelo Concílio de Verona, vindo,
consequentemente, as impiedosas perseguições da parte do clérigo católico contra
a seita que pejorativamente foi alcunhada de valdenses.
Como resultado das cruéis perseguições, os valdenses fugiram da França,
porém não desistiram de seus padrões muito parecidos com os evangélicos de
nossa geração. À procura de abrigo, na fuga os valdenses chegaram até ao norte
da Itália, onde ainda hoje possuem cerca de duzentos centros comunitários. Por
volta de 1520, eles buscaram uma aproximação com os líderes da Reforma. Anos
depois, foram apadrinhados por João Calvino, que lhes deu instruções bíblicas e um
governo mais presbiteriano que as ideias iniciais de Pedro Valdo, incluída, lógico, a
doutrina da predestinação ou eleição. “Em 1545, encontra-se uma das páginas mais
tristes da história da França. Por pressão do Parlamento, 22 vilas valdenses foram
destruídas e seus habitantes foram massacrados” (ALMEIDA, R., 2010, p. 45). 127

Vida em Chicago

Sendo muito respeitado, carismático e atuante, Francescon conquistou


facilmente o seu espaço na comunidade ali existente. Enquanto decorria o ano de

ofício bastante valorizado na época. De regresso à Itália, serviu no exército cerca de três anos.
Concluído o serviço militar, optou por imigrar para os Estados Unidos. Chegou a Chicago no dia 3 de
março de 1890, tendo sido recebido pelo seu irmão Osvaldo Francescon, com o qual havia estado
pela última vez na Hungria em 1886. (Disponível em: < http://www.comune.cavassonuovo.pn.it/>.
Acesso em: 01 jun. 2016).

No site sobre as principais personalidades valdenses, aparece o nome de Louis Francescon, com
127

destaque para o seu pioneirismo pentecostal nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil.
1892, ele colaborou ativamente na organização de uma obra presbiteriana voltada
para os italianos em Chicago. Em 1º de janeiro de 1895, aos 29 anos, casou-se com
Rosina Balzano (1875-1953), sendo a cerimônia realizada na igreja presbiteriana,
onde ele era um dos líderes, embora fosse bem latente sua discordância da
eclesiologia denominacional. Francescon sempre manteve alguns costumes
adquiridos entre os valdenses, notamente o voluntariado para as funções
ministeriais.

Batismo nas águas

Estudando a Bíblia para melhor fundamentar seus conhecimentos do


voluntariado, Francescon deparou-se com a questão do batismo: imersão ou
aspersão? Eis a questão! Logo ficou convencido de que o batismo correto tem que
ser por imersão em águas. Decisão tomada, ele começou a propagar essa nov idade
entre a comunidade presbiteriana direcionada aos italianos em Chicago. Em 7 de
setembro de 1903, exatamente 61 anos antes de sua morte, juntamente com outros
vinte e cinco presbiterianos, Francescon foi batizado por imersão pelo conterrâneo
Giuseppe Beretta.128 Em ato contínuo, Francescon deixou a igreja presbiteriana,
formando uma nova congregação com a participação dos demais italianos que
aderiram ao batismo nas águas por imersão. O grupo passou a reunir-se em
diferentes lares, todos sob a orientação e responsabilidade de Luigi Francescon.

Terceira Parte
Azusa Street
“Vivia para além do limite do extraordinário.”
(Josimar Salum - ativista comunitário e cientista político)

William Howard Durham (1873-1912) nasceu no seio de uma tradicional família


branca que ardorosamente defendia a fé batista. Todos residiam em uma região
rural no estado de Kentucky, ainda hoje um local de grandes fazendas. William
Durham era um jovem e visionário pastor batista influenciado por ideias wesleyanas.
Ao ouvir as notícias do avivamento na Califórnia, como tantos outros, Durham viajou
em 1907 até a cidade de Los Angeles com o objetivo de conferir in loco os
acontecimentos que tanto se propagavam. Aquela longa jornada foi de grande valia
para sua vida e seu ministério. Com muita seriedade, ele almejava experimentar
algo diferente e sobrenatural. Assim aconteceu na quinta-feira, dia 2 de maio de

O pastor Giuseppe Beretta havia sido batizado por imersão na Igreja dos Irmãos de Plymouth, em
128

Chicago. Igreja que no Brasil é conhecida por Casa de Oração. (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Francescon>. Acesso em: 01 jun. 2016).
1907, quando Durham recebeu um revestimento especial do Espírito Santo no
humilde e abarrotado salão da Missão Fé Apostólica, localizado na Azusa Street,
312. Sob a unção sobrenatural que agia sobre um afro-americano de 37 anos, Deus
estava escrevando uma nova história na vida ministerial de William Howard Durham,
então com 34 anos. Foi o iniciar da história que dentro de dois anos chegaria ao
Brasil.
Se aquele jovem pastor batista era já conhecido pelas suas ardentes
mensagens de santidade, regressou para Chicago com uma maior convicção e
totalmente incendiado pelo fogo de um perene avivamento. O pastor William
Durham, com sucesso, realizou grandes campanhas de libertação, cura divina,
avivamento, evangelização, além de constantes e espantosas maravilhas. O seu
ministério foi um inexplicável fenômeno, entretanto os seus dias de euforia estavam
contados! Em pleno ápice na realização ministerial do sobrenatural, sua carreira foi
precocemente encerrada em 1912. Estava com somente 39 anos ao ser vencido por
uma complicada pneumonia. Faleceu muito jovem, porém influenciou a vida de
líderes das históricas igrejas pentecostais em todos os continentes, deixando
profundos rastros pelos caminhos da vida. Almejando informações mais amplas
sobre a assunto, vale a pena conferir sua história e seu legado no site
<https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Howard_Durham>, por mim acessado em 1º de
junho de 2016.

O branco e o negro no mover do Espírito Santo

Os acontecimentos que antecederam a história pentecostal do século XX


tiveram o seu início em 1896 na União Cristã, localizada nos arredores das
Montanhas Unicoi na Carolina do Norte. Outros movimentos surgiram em anos
seguintes, dentre os quais o mais destacado teve início em setembro de 1900, na
Stone Mansion - Mansão de Pedra - em Topeka, no estado do Kansas. Foi nessa
cidade que um jovem pastor branco, de origem metodista, o reverendo Charles Fox
Parham (1873-1929), natural de Muscatine, no estado de Iowa, aos 27 anos,
estabeleceu o Bethel Bible School.129 Parham era casado com “Sarah Thistletwaire
(1873-1936), que nasceu entre os Irmãos” (SYNAN, 2009, p. 321). 130 O desafio
129
“Charles Fox Parham was born on June 4, 1873. After his birth in Muscatine, Iowa, his parents
William and Ann Maria Parham, moved south to Cheney, Kansas. They truly lived as and considered
themselves American pioneers. Aside from the rugged pioneer life, early childhood was not easy for
young Parham. At six months of age, he was striken with a ferver that left him bedridden. For the first
five years of his life, he was plagued with dramatic spasms, and forehead swelled making his
abnormally large. Then, at the tender age of seven, his mother died” (LIARDON, 1996, p. 109, 110).

“Charles Fox Parham nasceu em 4 de junho de 1873. Após o seu nascimento em Muscatine, Iowa,
os seus pais William e Ann Parham mudaram-se para Cheney, Kansas. Eles viveram como
verdadeiros pioneiros americanos. Charles teve uma vida acidentada. Aos seis anos de idade, foi
acometido de uma alta febre que lhe deixou acamado. Durante os primeiros cinco anos, foi
atormentado por dramáticos espasmos, sua testa inchou, ficando além do normal. Aos sete anos,
sua mãe morreu”. (Tradução livre de Carlos Boaventura Jr.).

Sarah, uma alicerçada darbista, em muito influenciou a consolidação carismática na Escola Bíblica
130

Betel em 1900, além de outros importantes focos ministeriais. Veja, em páginas seguintes, a
daquela escola com 40 estudantes era obter uma nova visão evangelística e
missionária sob a ação e unção do sobrenatural para o século XX, que iniciar-se-ia
no ano seguinte.

Em 1o de janeiro de 1901, uma jovem chamada Agnes Ozman (1870-1937) foi batizada
com o Espírito Santo numa pequena escola bíblica, em Topeka, no Kansas. Aluna de
Charles Fox Parham, ex-pastor metodista e professor da Igreja Holiness, Agnes
experimentou uma impressionante manifestação do dom de línguas e tornou-se a
primeira pentecostal do século XX. Impus as mãos sobre ela e orei, declara Parham,
recordando aquele momento. Eu mal havia completado três frases, quando a glória
desceu sobre ela. Uma auréola luminosa parecia envolver sua cabeça e seu rosto, e ela
começou a falar em chinês. Durante três dias, não conseguia falar uma palavra em
inglês. (SYNAN, 2009, p. 15).

Os acontecimentos nas montanhas na Carolina do Norte e na cidade de


Topeka, Kansas, anteciparam em muito o mover pentecostal de grande escala a
partir da então periférica Azusa Street, em Los Angeles. Lamentavelmente, se
verdade ou não, o professor Charles Fox Parham foi acusado de práticas de
sodomia enquanto em Topeka, assunto ainda hoje largamente discutido, porém sem
um denominador comum.

Em 1905, Parham mudou-se para Houston, Texas, onde formou outra escola bíblica. Foi
lá que recebeu como aluno William J. Seymour, um negro, cego de um olho, humilde e
filho de ex-escravos. Apesar do preconceito racial do sul, Seymour participou da escola
e aprendeu sobre a evidência inicial do batismo no Espírito. Pregava sobre isto em
outras igrejas, mas ele mesmo ainda não tinha recebido o batismo no Espírito com
línguas. (WALKER, J. et al., 2002, p. 17).

Como era de se esperar, William Joseph Seymour (1870-1922) enfrentou a


terrível segregação racial que abertamente pairava sobre o Sul dos Estados Unidos.
Para muitos, as feridas da Guerra Civil ainda estavam expostas nos corações de
não poucos influentes líderes, religiosos ou não. Mesmo não tendo o direito de se
assentar nas salas destinadas aos brancos - assistia às aulas sentado nos
corredores -, ele não desistiu de estudar no Bethel Bible School em Houston.

Uma vez que a lei do Texas proibia que os negros se sentassem nas salas de aula com
os brancos, Parham sugeriu que Seymour ficasse no corredor e assistisse às aulas pelo
vão da porta. [...] Parham demonstrava um comportamento racista e uma atitude
arrogante em relação a seus colegas negros, especialmente Seymour. (SYNAN, 2009,
p. 371, 374).

A jornada pentecostal

Durante dois dias, 26 e 27 de janeiro de 1906, sexta e sábado, a União Cristã,


agora com o nome de Igreja da Santidade de Camp Creek, reuniu-se pela primeira
vez em sua histórica Assembleia Geral. O evento transcorreu na residência de J.C.
e Melissa Murphy, moradores da zona rural de Cherokee County, no estado da
Carolina do Norte. Estavam em mais um rigoroso inverno que pairava por aquelas

participação de outro darbista, o pastor Giuseppe Beretta, italiano que celebrou o batismo por
imersão de Francescon, fundador da primeira igreja pentecostal no Brasil.
bandas montanhosas. Na gelada residência, não havia espaço para hospedar além
de 21 pessoas. Estas foram as principais representantes das quatro congregações
da Igreja da Santidade que haviam sido estabelecidas no interior dos estados da
Geórgia, do Tennessee e da Carolina do Norte.
A União Cristã ou Igreja da Santidade, que posteriormente adotou o nome de
Igreja de Deus a partir de 1907, teve o seu histórico início em uma quinta-feira, 19
de agosto de 1886. Sempre pautando os seus dogmas pela teologia da santidade,
pelo espírito de humildade e pela confiança nos ensinamentos extraídos das
Escrituras. Era o povo do Livro, sensível ao mover de Deus. O principal mentor que
levou o pequeno grupo de Holiness de Camp Creek, na Carolina do Norte, a tornar-
se a Igreja de Deus foi o colportor Ambrose Jessup Tomlinson (1865-1943), que,
aos 38 anos, em 1903, uniu-se à Igreja da Santidade e logo foi indicado para liderá-
la. A princípio, ele não possuía nenhuma convicção pentecostal até que, na
Assembleia Geral realizada no mês de janeiro de 1908, na cidade de Cleveland, no
estado do Tennessee, houve um grande mover do sobrenatural. Em consequência
daquele abanão, muitos pastores foram batizados com o Espírito Santo e, agora,
estavam orando pelo seu líder. Enquanto Gaston Barnibus Cashwell (1860-1916)
ministrava em 12 de janeiro de 1908, Tomlinson recebeu o batismo com o Espírito
Santo de uma maneira estranha, para não dizer extravagante.

O batismo de Tomlinson foi uma das experiências mais extraordinárias registradas na


literatura do pentecostalismo. Enquanto Cashwell pregava, o supervisor geral caiu ao chão
atrás do púlpito, com a cabeça debaixo de uma cadeira. Ele então começou a falar não
apenas num idioma diferente, mas em vários deles, sucessivamente. Diante desse fato,
não houve mais dúvida de que a Igreja de Deus também faria parte do crescente
movimento pentecostal. (SYNAN, 2009, p. 163).

No mesmo ano de 1886, no qual Richard Spurling (1814-1890), 131 um pastor


batista, na casa dos 72 anos, iniciou a União Cristã, fatos paralelos estavam
projetando os Estados Unidos na história mundial.

A Igreja de Deus e a Coca-Cola

Após 21 anos do atentado que resultou no falecimento de Abraham Lincoln


(1809-1865), o 16º Presidente, na manhã de sábado, 15 de abril de 1865, em
Washington, inicia-se um fenômeno sobrenatural entre alguns habitantes nas
montanhas das Carolinas. Na quinta-feira, 19 de agosto de 1886, foi o início da
União Cristã, nascida no seio de uma tradicional Igreja Batista, congregação
extremamente conservadora. Depois de outros 21 anos, em 1907, o nome União
131
Spurling nasceu 100 anos após George Whitefield (1714-1770), o pregador e escravagista
britânico que impressionou pela sua voz o polímata Benjamin Franklin (1706-1790), famoso
iluminista, inventor e comungante de fé deísta. Quando o pastor Richard Spurling nasceu, estava
completando 73 anos que Jonathan Edwards (1703-1758), também calvinista e proprietário de
escravos, havia balançado a Nova Inglaterra com o notável sermão “Pecadores nas mãos de um
Deus irado”, ministrado no sábado, 8 de julho de 1741. A história de vários dos heróis da fé era algo
remoto entre aqueles protestantes que viviam da produção e exportação de suas lavouras de fumo.
Foi em meio a tal descompromisso espiritual, falta de fé e dependência do Espírito Santo, que
Spurling rompeu com os vigentes costumes e vícios de sua própria congregação.
Cristã, que havia passado para Igreja da Santidade de Camp Creek, foi mudado
para Igreja de Deus. Com base em seu início, no ano de 1886, ela tem sido
classificada historicamente como a primeira denominação pentecostal organizada
nos Estados Unidos. North Cleveland, Tennessee, é o local onde foi construído o
primeiro templo de uma igreja pentecostal na América do Norte. Hoje há ali uma
catedral da Igreja de Deus.

Em agosto de 1986, a Igreja de Deus, de Cleveland, comemorou o centenário do que é


considerado o início do movimento pentecostal nos Estados Unidos. Mais de 35 mil
pessoas reuniram-se, em Atlanta, para a 61 a Assembleia Geral, a maior concentração
registrada na história da denominação. (SYNAN, 2009, p. 158, 159). 132
No mesmo ano de 1886, John Pemberton (1831-1888), um farmacêutico
americano com 55 anos e ex-oficial do exército dos Confederados, militar que
preferiu recomeçar uma vida civil nos Estados Unidos a imigrar para o distante
Brasil, criando diferentes fórmulas, conseguiu chegar a um xarope que ganhou
popularidade pela sua viciante composição. Nos meados do século XVI, entre
valiosos produtos naturais de África, havia a noz-de-cola, além do ouro.

Da floresta equatorial, habitada pelos povos acã, saíam dois produtos muito valorizados:
o ouro e a noz-de-cola, uma castanha com alto valor de cafeína que, trezentos anos
mais tarde, o norte-americano John Pemberton usaria para inventar a bebida hoje mais
consumida no mundo, a Coca-Cola. [...] do importante comércio de noz-de-cola com a
Hauçalândia, o Sael e o Saara. (GOMES, 2019, v. 1, p. 148, 165).

Esse xarope produzido de uma castanha made in Africa, que misturado com
outros ingredientes recebeu o nome de Coca-Cola, tornou-se o mais conhecido e
consumido refrigerante em todo o mundo. A Coca-Cola teve sua primeira venda
experimental nos Estados Unidos, no sábado, 8 de maio de 1886, conquistando
uma crescente clientela. A receita da composição desse misterioso e viciante
xarope que leva um especial toque da África é mantida sigilosamente protegida em
cofres de segurança máxima. Fórmula venenosa que vale milhões de dólares!

Estátua da Liberdade

Naquele ano em que surgiu a Coca-Cola, na Geórgia, e a União Cristã, na


Carolina do Norte, a cidade de New York foi agraciada com a Estátua da Liberdade,
um presente oferecido pelos franceses. Ela foi inaugurada na quinta-feira, 28 de
outubro de 1886, como marco-símbolo da imigração e democracia americana. Foi
estrategicamente montada em uma pequena ilhota em meio ao Rio Hudson. No hall
principal, na base da imponente estátua, encontra-se um painel de bronze onde
estão esculpidos versos do poema The New Colossus. Tudo ficaria no anonimato se
a autora desse poema não fosse a fulgurante Emma Lazarus (1849-1887), a
brilhante poetisa que morreu aos 38 anos e que era uma judia sefarade (termo
citado no livro de Obadias). Seus ascendentes saíram de Portugal para a Holanda e

132
Acompanhando uma comitiva do Brasil, também participei da mencionada Assembleia Geral em
Atlanta, no ano de 1986. Foi um grande evento em comemoração aos 100 anos da Igreja de Deus.
desta ao estado de Pernambuco, de onde foram expulsos juntamente com os
protestantes reformados em 1654.

O avanço do avivamento

Segundo dados históricos, tudo se iniciou na noite de segunda-feira, 9 de


abril de 1906, no decorrer do culto em uma black church na cidade de Los Angeles.
A partir dali, o fenômeno pentecostal fluiu como águas avolumando os rios. Deus
estava escrevendo um novo alvorecer na História da Igreja e, para tal, utilizou a
simples instrumentalidade de William Joseph Seymour, um afro-americano natural
de Centerville, estado de Louisiana, onde nasceu a 2 de maio de 1870, filho de ex-
escravos que professavam a religião católica. Em sua adolescência, a família
migrou para o meio batista, onde certamente Seymour recebeu incentivos para
estudar. Aos 25 anos, ele perdeu a visão do olho esquerdo por ter contraído varíola,
na época uma mortal e incontrolável enfermidade, a qual, quando não matava,
deixava séries sequelas. Todavia, William Seymour não se deixava derrotar mesmo
diante das maiores dificuldades. Venceu todas as etapas da vida, trabalhando em
restaurantes, hotéis e similares. Mesmo diante das injúrias relacionadas à forte cor
negra de sua pele e a sua deficiência visual, nada barrou sua dedicação como
estudante no Bethel Bible School. Casou-se a 13 de maio de 1908 com Jennie
Evans Moore (1883-1936). Ele estava com 38 anos e ela com 25, quando do enlace
matrimonial realizado em Los Angeles. Permaneceram casados durante 14 anos,
até que a morte causou-lhes a separação em 1922, ano em que Seymour foi
transportado ao lar celestial. Nas várias fontes pesquisadas, não há informações se
geraram filhos biológicos.
A histórica e carismática data de 9 de abril de 1906 ficou registrada nos anais
dos grandes acontecimentos, pois foi quando ocorreu o ponto convergente do mais
extenso e intenso avivamento no meio cristão após William Seymour ministrar,
usando como base o texto de Atos 2:4. Houve algo estranho aos olhos e ouvidos
das pessoas ali presentes. O resultado foi impactante! A maioria dos participantes
daquele culto recebeu o batismo com o Espírito Santo com a evidência de falar em
novas línguas. Até o pastor Seymour ficou surpreso com o resultado da mensagem
daquela noite. Foi o início de algo diferente na esfera espiritual.

Os gritos eram fervorosos - e tão altos - que uma multidão se ajuntou ao lado de fora
indagando: O que isto significa? Logo foi propagado pela cidade que Deus estava
derramando seu Espírito. Pessoas brancas se juntaram às pessoas de cor e também
foram cheias do Espírito. No dia 12 de abril, o próprio Seymour teria sua experiência
pentecostal com línguas. (WALKER et al., 2002, p.18).

Tudo seguia às mil maravilhas para aquele grupo de loucos por Jesus,
composto por negros, hispânicos e brancos pobres, até que, na quinta-feira, dia 28
de setembro de 1922, o inesperado aconteceu: William Joseph Seymour morreu em
pleno vigor de sua vida ministerial e física com somente 52 anos. Não encontrou
resistência física diante de um fulminante ataque cardíaco. Suas palavras finais
enquanto morria foram: I love Jesus. Os seus restos mortais estão sepultados no
Los Angeles Evergreeb Cemitery. Sua cova está identificada apenas com uma
singela placa com duas lacônicas palavras: Nosso Pastor (Confira Revista
Charisma, abril/2006, p. 60). Em resultado ao precoce falecimento do pastor William
Joseph Seymour, o trabalho na Azusa Street, em Los Angeles, ficou sob a direção
de sua esposa, Jennie Evans Moore, que veio a falecer 14 anos depois, na quinta-
feira, 2 de julho de 1936, com somente 53 anos. Mesmo com a morte dos pioneiros,
a chama do avivamento nunca se apagou. Naquela época, não era muito normal
uma mulher dedicar-se à direção de igrejas; os machistas conservadores não
enxergavam esse avanço com bons olhos. Caminhavam pela cartilha da teologia
masculina. Somente nas últimas décadas é que a história está na incumbência de
resgatar nomes e trajetórias de não poucas mulheres pentecostais ou não, negras e
brancas que deixaram suas indeléveis marcas na divulgação das maravilhas de
Deus.

North West Avenue

Na bem-frequentada e nacionalmente conhecida Igreja Batista localizada no


número 943 da North West Avenue, em Chicago, importante cidade junto ao Lago
Michigan, Illinois, parte do centro norte-americano, houve um forte mover do Espírito
Santo que extrapolou as fronteiras estado-unidenses. Pela ação de Deus, Chicago,
a cidade dos imigrantes, passou a ser o segundo grande polo dos fenômenos
espirituais que varriam os Estados Unidos no raiar do século XX. “Os pentecostais
não oferecem uma hóstia milagrosa ao público, mas podem prometer a cura
milagrosa, e não apenas como dom de Deus, mas como prova de fé e do fato de
que Deus atende o que recorre a ele” (SYNAN, 2009. p. 422). Na ótica do Dr.
Josimar Salum, aquele povo “vivia para além do limite do extraordinário” (SALUM,
s.d., p. 87).
Seguem abaixo informações redigidas pelo próprio ancião fundador da
Congregação Cristã no Brasil nos seus primórdios dias em Chicago, Illinois.

Em fins de abril de 1907, o Senhor me fez encontrar com um irmão americano, um dos
primeiros a receber a Promessa do Espírito Santo em Los Angeles, no ano de 1906 e,
por meio dele, soube que na W. North Ave, 943, havia uma missão que anunciava a
Promessa do Espírito Santo e que o próprio pastor (W. H. Durham) a havia recebido. Na
primeira semena, frequentei sozinho aquele serviço e o Senhor me confirmou que
aquela era Sua Obra. [...] No mês de Julho, a minha esposa foi a primeira a ser selada
com o Dom do Espírito Santo, falando em língua Sueca [...] Em 25 de Agosto o benigno
Senhor se comprazeu selar também a mim. Naquele tempo enquanto se esperava a
Promessa, o Senhor fez saber ao irmão W. H. Durhan e outros que Ele me havia
chamado e preparado para levar Sua mensagem à colônia italiana. Fui eu mesmo
também confirmado por Deus. (FRANCESCON, 1936, p. 38).

Na manhã de domingo, dia 25 de agosto de 1907, Luigi e Rosina, sua esposa,


foram ao encontro do pastor William Durham e participaram junto à multidão que
afluía ao local onde o mover de Deus era visível e quase palpável. Naquela data, o
casal Francescon foi grademente tocado pela ação do Espírito Santo. Luigi
Francescon afirma que sua esposa, assim que recebeu o derramar do Espírito
Santo, transbordou em línguas. Alguns entenderam que ela estava falando sueco,
idioma que ela não dominava nem os seus antepassados. Após suas experiências
missionárias, com ministrações nos Estados Unidos, na Itália, na Argentina, no
Brasil e no Panamá, o ancião Francescon escreveu o livro Resumo de uma
Ramificação da Obra de Deus, Pelo Espírito Santo, no Século Actual.133

Os italianos pentecostais

O fogo de um avivamento pentecostal ardia no coração, na alma e no espírito


do eletrizado Luigi Francescon. Naquele mês de 1907, ele estabeleceu, sob as
bênçãos do pastor William Durham, a primeira igreja pentecostal na cidade de
Chicago, obra direcionada à comunidade italiana. Ali estava a iniciar os primeiros
passos da Assembleia Cristã, trabalho que se estendeu por outras nações.
Francescon queria mais do amor de Deus florescendo em sua vida para alcançar
tantos quantos fosse possível. Tinha uma visão de Reino que extrapolava a sua
comunidade em Chicago. Empenhou-se em visitar as várias comunidades italianas,
fazendo um importante trabalho de evangelista e também de proselitista. O
resultado foi a organização da Assembleia Cristã em Los Angeles, Saint Louis, New
York e Filadélfia, diferentes cidades de estados americanos. O principal alvo
daquele italiano de serenos olhares e salientes sobrancelhas era ganhar o maior
número de seus patrícios para o Senhor Jesus Cristo. Nessa busca, não media
esforços para alcançar os objetivos.

Conferência de Edimburgo

Por dez dias, em julho de 1910, realizou-se a histórica Conferência de Missões


Mundiais em Edimburgo, Capital da Escócia. Essa Conferência foi o embrião
primário que gerou, no ano de 1948, em Amsterdã, capital da Holanda, o Conselho
Mundial de Igrejas, a mais discutida entidade ecumênica, hoje sediada em Genebra,
Suíça. Os renomados líderes, membros e observadores daquela Conferência em
Edimburgo, repartiram o mundo entre cristãos e não cristãos. O objetivo era
cristianizar a África e a Ásia, os dois continentes esquecidos aos olhos dos
idealizadores e promotores daquele histórico encontro.
A assembleia geral daquela Conferência excluiu a América do Norte, a
América Central, a América do Sul, o Caribe e também a Europa, considerando que
eram continentes e ilhas totalmente cristianizados, não havendo, portanto,
necessidade de novos avanços nesses lugares em detrimento de outros. Nesse
pacote de exclusão, lá estava inserido o Brasil, o qual já naquela época e até hoje é
considerado o mais populoso país católico do mundo e, por isso mesmo,
completamente cristianizado. Criaram uma pragmática utopia muito longe da

Rodrigo Vilas-Boas Oliveira, bacharelando em teologia, empresário, além de um very expert em


133

computação, pesquisou, cruzou informações e finalmente conseguiu em e-book o mencionado


documento produzido em São Paulo em 1936. Em muito agradeço o seu empenho.
realidade; tudo não passava de frias estatísticas. Foi nesse desenrolar da história
que Deus frustrou as metas daquele corpo ecumênico e de visão protestante que
idealizou a primeira grande conferência de Missão Mundial do século XX. Todos os
esforços humanos foram válidos, mas, na esfera espiritual, havia outra direção outra
direção à seguir.

O ponto alto da carreira de John R. Mott como estadista missionário foi a Conferência
Missionária de Edimburgo, em 1910, que ele organizou e presidiu. Essa conferência de
dez dias, composta de 1.355 delegados, foi a primeira conferência missionária
interdenominacional de seu tipo e de ímpeto ao movimento ecumênico que tomou forma
nas décadas que se seguiram. A conferência promoveu o entusiasmo missionário e o
chamado para evangelizar o mundo nesta geração continuava no ar. Com cerca de
45.000 missionários no campo e a previsão de que esse número poderia ser triplicado,
nos próximos trinta anos, alguns delegados acreditavam realmente que a evangelização
completa do globo achava-se iminente. (TUCKER, 1986, p. 289).

No mesmo ano da Conferência em Edimburgo, Deus novamente estava


determinando os Seus planos para as missões mundiais e usou três europeus
residentes nos Estados Unidos para fazer do Brasil o centro da expansão
pentecostal para todas as nações da América Latina, simultaneamente alcançando
outros povos, inclusive os europeus. A máxima é que os homens fazem os planos,
mas é Deus quem decide! Assim aconteceu, pois estava no coração de Deus algo
diferente para as nações, mesmo para aquelas que são esquecidas pelos donos
das importantes decisões mundiais.

Rumo à Argentina e ao Brasil

Em setembro de 1909, deixando a esposa e as pequenas crianças nos


Estados Unidos, Luigi Francescon segue em uma longa viagem à América do Sul. O
principal objetivo era alcançar a comunidade italiana residente em Buenos Aires,
Argentina. Em poucos meses na capital Argentina, já havia um relativo grupo de
novos convertidos ao pentecostalismo. Antes de seguir rumo a São Paulo, Luigi
Francescon deixou o recém-formado grupo sob a responsabilidade de seu colega
de viagem e camarada de fé, o ancião Giácomo Lombadi (1862-1934), um ítalo-
americano tal como Francescon.
Em março de 1910, Luigi Francescon, na casa dos 44 anos, deixa Buenos
Aires e segue para São Paulo, onde também havia uma expressiva e crescente
comunidade italiana. Alguns deles viviam como escravos, enquanto outros
mantinham orgulhosamente as comendas de condes e barões que lhes foram
concedidas no período imperial. Estes eram os proprietários de grandes fazendas e
mansões, além dos expansivos parques industriais em São Paulo e em outras
médias e grandes cidades instaladas no interior do Brasil. Havia, como é de praxe
entre a comunidade de patrícios, os não poucos explorados versus uma elite de
exploradores. Cada um no extremo da linha social. “Era um triste grupo que a
miséria ia envolvendo e abraçando pouco a pouco” (HUGO, 2007, v. 1, p. 103).
Logo após sua chegada à cidade de São Paulo, Francescon, em diálogo,
segundo constam os anais históricos, evangelizou Vicenzo Pievani, um italiano até
então considerado ateu. Aquele cidadão materialista, assentado algures à Praça da
Luz,134 reconheceu a existência de Deus e converteu-se ao cristianismo, tornando-
se o primeiro convertido da Congregação Christã do Brazil. Após essa conversão,
certamente sob indicação de Vicenzo Pievani, o ancião Luigi Francescon deixou
rapidamente a capital bandeirante, seguindo até Santo Antônio da Plantina, estado
do Paraná. Não perdia tempo e onde encontrava italianos testemunhava sobre a
pessoa de Jesus Cristo e o batismo com o Espírito Santo. Em Santo Antônio da
Platina, o resultado chegou de imediato. Em 20 de abril de 1910, foi organizada
oficialmente a primeira Congregação Christã do Brazil, a primeira igreja de linha
pentecostal instalada no país. Tudo isso foi resultado do avivamento que brotou na
Azusa Street, Los Angeles, passando pela North West Avenue em Chicago e
chegando até ao Brasil e deste alcançando outras nações.

Em 1910, a Igreja Católica celebrava missas em latim, a Igreja Luterana, cultos em


alemão, a Igreja Anglicana em inglês. Até mesmo a única igreja pentecostal da época, a
Congregação Cristã do Brasil, celebrava seus cultos em italiano. O espiritismo ainda era
caso de polícia e os cultos afro, como referencial religioso, nem sequer eram nomeados
ou reconhecidos. (ALENCAR, 2010, p. 19).

Francescon permaneceu poucas semanas entre a comunidade italiana no


Paraná, regressando novamente a São Paulo, onde continuou a propagar a obra do
Espírito Santo. Na capital, realizou o primeiro batismo em Nome do Senhor Jesus.
Esta novidade fez alguns metodistas, batistas, presbiterianos e apenas um católico
aderirem à Congregação. Este foi o grupo pioneiro que instalou a Congregação
Cristã no bairro do Brás, em São Paulo. Esse batismo, segundo dados colhidos, foi
realizado a 20 de junho de 1910, exatos três meses depois da preliminar
organização em Santo Antônio da Platina. O ancião afirma que naquela data várias
pessoas foram batizadas nas águas e com o Espírito Santo.

Em 1910, Francesconi declarou ter recebido uma revelação especial de Deus e


compartilhou-a com um pequeno grupo de cristãos de São Paulo. O Senhor lhe revelara
que haveria uma grande colheita de pessoas na capital e por todo o Brasil se os crentes
permanecessem fiéis e humildes. Essa profecia se cumpriu. Em apenas cinquenta anos,
a igreja aumentou para mais de 250 mil adeptos. Hoje, é uma das maiores
denominações do País. (SYNAN, 2009, p. 418).

Luigi Francescon sempre residiu nos Estados Unidos. Esteve no Brasil


somente onze vezes, tempo suficiente para a implantação e consolidação da
Congregação Cristã, que, a princípio, era conhecida por Congregação Christã do
Brazil, mas, com a rápida expansão para outras nações, o registro foi alterado para
Congregação Cristã no Brasil. Francescon, o ancião fundador, implantou um

134
Em 1583, período das coroas unificadas, três frades espanhóis franciscanos subiram de Santos
até Piratininga de São Paulo. “Durante dois anos, os recém-chegados viveram numa ermida
dedicada a Nossa Senhora da Luz, atuando junto aos colonizadores e aos índios” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 1, p. 28). Após 327 anos, aquele espaço geográfico se torna o palco para o
início de uma mensagem protestante em São Paulo.
governo eclesiástico semelhante aos antigos valdenses, o que lhe era peculiar. O
ítalo-americano Luigi Francescon, viúvo desde 1953, faleceu em Oark Park, estado
de Illinois, na segunda-feira, dia 7 de setembro de 1964, aos 98 anos.

Ele fazia tudo sem publicidade e propaganda; entretanto, milhares de pessoas se


converteram ao Evangelho através da sua pregação. Nunca teve por objetivo o lucro
pecuniário. Tudo o que vinha às suas mãos era empregado em obras assistenciais e
nada pedia em troca, pois Deus lhe provia tudo pela fé. Sempre exerceu com fidelidade,
amor e temor o Ministério para o qual Deus o chamou. (GIRALDI, 2013, p. 137).

A Congregação Cristã no Brasil, embora nascida em solo nacional, tinha


como principal alvo alcançar a comunidade italiana. Todo o desenvolvimento
litúrgico, as leituras, canções, orações e saudações se faziam na língua italiana,
assim permanecendo por mais de 30 anos. A tradição hegemônica foi rompida no
decorrer da década de 40, período final da Segunda Grande Guerra Mundial,
quando Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) decretou que ninguém no Brasil
poderia falar italiano. Os luteranos também foram proibidos de se comunicar em
alemão. Itália, Alemanha e Japão fizeram parte do Eixo, nações que o Brasil
combateu na Europa ao lado dos Estados Unidos no decorrer do conflito armado.
Com base nos últimos dados, hoje a Congregação Cristã no Brasil tem mais
de cinco milhões de membros que frequentam os padronizados e bem- construídos
templos. Segundo Elben Lenz César (1930-2016), o relatório de 1997/1998 indicava
12.132 templos em 3.996 cidades, em todos os estados do Brasil, além de outros 29
diferentes países (CÉSAR, 2000, p. 116). Não consta que os dados tenham sido
atualizados desde então. Os músicos preparados e cadastrados existentes na
Congregação Cristã no Brasil formam a maior orquestra do mundo, com um número
estimado de aproximadamente 700 mil componentes. Todos são voluntários no
mais profundo sentido da palavra, tal como Luigi Francescon, o seu fundador, havia
idealizado.

Em 2007 reportou 19.926 casas de oração no Brasil, em 2000 havia cerca de 5,7
milhões de membros declarados no Brasil. O Censo de 2002 do IBGE dá outros
números: 14.300 templos, 2,2 milhões de membros, sendo 18.700 pastores ou anciãos
(15% do total de pentecostais no Brasil). (PAGANELLI, 2019, p. 204).

Os suecos

Dia 8 de agosto de 1879, nascia Adolf Gunnar Vingren (1879-1933) em Ostra


Husby, lugarejo situado ao lado de amplas montanhas e lagos. Seu pai era um
jardineiro de função e batista por convicções. Para a época, ser batista na Suécia
era se conduzir na contramão da vida social e religiosa. Os batistas não passavam
de um grupo minoritário diante da maioria luterana, a destacada religião oficial do
Estado. Adolf Gunnar Vingren cruzou todos os estágios de sua adolescência e
juventude como um autêntico e bem-formado batista! A Suécia não escapava diante
de uma crise econômica e social que assolava as nações europeias. No final do
século XIX e raiar do século XX, mais de um milhão de suecos imigrou para os
Estados Unidos. Para aquele período, um milhão de pessoas representava cerca de
25% da população de toda a Suécia, portanto foi um assustador e desgovernado
êxodo à procura da terra prometida que sintetizava no dourado sonho americano!

Rumo aos Estados Unidos

Aos 24 anos, o jovem Gunnar Vingren foi, como já citado, dominado pela
loucura da dourada febre americana. Assim, dia 30 de outubro de 1903, iniciou o
mesmo caminho que outros milhares fizeram antes dele. Três semanas depois,
aquele jovem batista desembarcava na cidade de Boston, capital de Massachusetts,
que, em linha reta, é o porto americano mais próximo da Suécia. Após tediosas
semanas pelas águas do Atlântico, percorreu, agora de trem, outras centenas de
milhas até chegar a Chicago, a cosmopolita cidade dos imigrantes. Ali encontrou
uma crescente comunidade sueca, inclusive igrejas batistas sob liderança de
pastores suecos. Sentiu-se em casa; era a Suécia da Europa em douradas terras
americanas! Sentindo uma chamada ministerial, no ano seguinte, 1904, iniciou seus
estudos teológicos no seminário batista, escola liderada por pastores e professores
suecos. Ao concluir o curso, em 1908, abraçou a carreira ministerial, dedicando-se
ao pastorado entre os batistas. Mesmo solteiro e pastoreando, sentia-se realizado
em sua vida pessoal.

Batismo com o Espírito Santo

O pastor Gunnar Vingren, mesmo sendo um bom batista de formação e


cultura, estava muito interessado em obter melhores informações sobre o mover do
Espírito Santo que estava soprando por diferentes lugares nos Estados Unidos. Em
novembro de 1909, ele foi ao encontro de William H. Durham, pastor batista e
reconhecido avivalista em Chicago. Fez o mesmo percurso que o italiano Luigi
Franscescon fizera em agosto de 1907. O resultado foi idêntico ao anterior. Adolf
Gunnar Vingren recebeu o batismo com o Espírito Santo, tendo evidências de falar
novas línguas. Esse fenômeno da glossolalia sucedeu num templo batista,
localizado no número 943 da North West Avenue, em Chicago, onde a onda
passava e arrastava os contritos de coração para uma nova reflexão espiritual.

Outro sueco na história

No sábado, dia 19 de abril de 1884, nascia Daniel Berg (1884-1963). Seus


pais, também batistas, viviam na localidade de Vargon, às margens do lago de
Veren. O pequeno Daniel recebeu uma esmerada e bem-cuidada educação cristã.
Muito jovem, aceitou o senhorio de Cristo e foi batizado nas águas aos 15 anos.
Três anos após passar pelas águas, agora na casa dos 18 anos, toma nova decisão
para o seu futuro econômico e social: trocar sua pequena Suécia pela imensidão da
América do Norte. Decisão tomada e tudo preparado, segue no mês de março de
1902 para os Estados Unidos. Como de praxe, navegou durante longos vinte dias
até aportar em Boston, a principal entrada para quem procedia do norte da Europa.
De Boston, viajou para Providence, Estado de Rhode Island, onde encontrou-se com
amigos suecos, os quais lhe conseguiram um emprego numa fazenda. Permaneceu nos
Estados Unidos durante oito anos, aproximadamente, período em que trabalhou como
fundidor de aço, profissão em que se especializou. (CONDE, 1982, p. 16).

Após uma temporada trabalhando na zona rural ao largo da cidade de


Providence, Daniel Berg seguiu para o estado da Pennsylvania, onde se dedicou à
área de fundição e metalurgia. Depois de trabalhar intensivamente em fazendas e
metalúrgicas nos Estados Unidos, ele fez uma rápida viagem até a Suécia para
visitar familiares e rever alguns amigos especiais.

O derramar do Espírito Santo

Enquanto na Suécia, ao visitar um amigo de infância, Daniel Berg constatou


que este havia recebido o batismo com o Espírito Santo e agora era pastor de uma
igreja pentecostal, certamente fruto do metodista inglês Thomas Ball Barrat (1865-
1940), que por 16 anos havia sido pastor em Oslo, Noruega. Viajando pelos Estados
Unidos, Barrat, de passagem por New York em 1906, ouviu sobre os
acontecimentos espirituais da Azusa Street em Los Angeles. O assunto lhe
interessou. Assim, ele iniciou os preparativos para viajar à Califórnia, uma longa
jornada até a Costa Oeste. Dias antes de iniciar a longa viagem rumo ao oeste
americano, foi tocado para orar e jejuar. Gastou horas em oração e, finalmente,
mesmo no hotel onde estava hospedado, recebeu uma unção especial do Espírito
Santo, acontecimento que o marcou no mês de outubro de 1906. Posteriormente,
narrou sua magnífica experiência com o Espírito Santo em New York.

Fui inundado de luz e de tal poder que comecei a gritar o mais alto que podia numa
língua estrangeira. Devo ter falado sete ou oito línguas, baseado nos vários sons e
modos de falar usados. O momento mais maravilhoso foi quando explodi num lindo solo
barítono, usando uma das línguas mais puras e deleitosas que já ouvira. (WALKER et
al., 2002, p. 30).

Dois meses após aquela experiência, em dezembro de 1906, Thomas Ball


Barrat regressa para Oslo, onde alugou um amplo ginásio e iniciou o primeiro
trabalho de origem pentecostal por aquelas bandas da velha Europa. Pastores de
várias nacionalidades e denominações fluíam em massa até a cidade de Oslo.
Naquele espaço físico, recebiam uma nova visão de avivamento espiritual que se
traduzia em atividades evangelísticas nas quais multidões eram profundamente
tocadas e transformadas.
Daniel Berg ouviu atentamente todas as explicações e conferiu os textos
sagrados relacionados ao mover do Espírito Santo. Ficou convencido de que era
uma dádiva de Deus para os nossos dias. Dentro de poucas semanas, Berg estava
de regresso aos Estados Unidos. No decorrer da viagem, que não fugiu à regra das
três semanas, aproveitou para estudar, jejuar e orar sobre a questão espiritual.
Enquanto navegava pelas costas de New England, recebeu um toque especial do
Espírito Santo e, posteriormente, afirmou que transbordou de alegria e falou em
línguas estranhas em seu pequeno camarote nos fundões da terceira classe
daquele navio. Em ato contínuo, veio a convicção de uma chamada missionária que
inundou o coração daquele jovem sueco. Essa convicção, dentro de poucos anos, o
levaria até ao Brasil, que, para ele e tantos outros, era uma desconhecida nação
existente ao Sul. Após desembarcar no porto de Boston, seguiu de trem até
Chicago, o cantinho sueco dentro dos Estados Unidos.

Gunnar Vingren e Daniel Berg

Chicago era uma filha direta do histórico avivamento iniciado na Azusa Street
no ano de 1906. O pastor William H. Durham era uma “vaca sagrada”, na abusiva
linguagem do Dr. Paulo Ayres Mattos, um pesquisador metodista (Confira em
<www.metodismo.cjb.net>). Durham, aquele jovem sagrado (novamente o termo
sagrado é uma força de expressão na linguagem do acadêmico metodista), quando
de sua visita a Los Angeles, recebeu uma mensagem profética pelos lábios do
pastor William Joseph Seymour, a qual se cumpriu no decorrer do seu curto, porém
profícuo ministério. “Onde quer que Durham pregasse haveria um derramamento do
Espírito Santo” (SYNAN, 2009, p. 91).
Em novembro de 1909, Daniel Berg era um jovem com 25 anos. Como tantos
outros imigrantes suecos, ele também compareceu ao encontro de avivamento na
cidade de Chicago. Em meio ao mover de Deus naquele templo batista, houve um
casual encontro de dois imigrantes suecos desconhecidos entre si, os quais, no
meio da multidão, caminharam ao altar da consagração. Adolf Gunnar Vingren, no
alto de seus 30 anos, e Daniel Berg, com cinco anos a menos, formaram uma sólida
amizade que antecipou a paródia do Gordo e Magro. Vingren e Berg mantiveram
uma sólida amizade que somente a morte do primeiro, na tarde de 29 de junho de
1933, fez possível a separação.135 Ambos consolidaram a visão de servir ao Senhor
Jesus em algum canto desse mundo. Esse canto do mundo foi o Brasil!

Pará! Que é isto?

Após o casual encontro, em novembro de 1909, aqueles dois jovens passaram


a se reunir todos os dias para um período de oração. Ambos estavam convictos de
uma real chamada missionária da parte de Deus. Havia uma busca contínua da
orientação do Espírito Santo. Nesse ínterim, o avivamento em Chicago era
permanente; multidões se aglomeravam na busca de um novo caminhar junto a
Deus. Os dons espirituais seguiam com as manifestações do sobrenatural,
maravilhas que estavam sendo repartidas entre os piedosos crentes, que não eram
poucos. “Aimee Semple, antes de se casar com o segundo marido, Haroldo
McPherson, mais tarde revelou que fora curada instantaneamente de um tornozelo

135
Quando Gunnar Vingren veio a falecer na Suécia, seu país de nascimento, ainda não havia
completado os seus 53 anos! Desses, um pouco mais de 20 foram dedicados à nascente obra
pentecostal no Brasil.
quebrado durante um culto dirigido por Durham em Chicago” (SYNAN, 2009, p.
91).136
Foi nessa fogueira da emoção pentecostal que o irmão Adolf Uldine, no uso
de uma palavra profética, transmitiu-lhes a visão de Deus. Consta-se que Adolf
Uldine viu o nome “Pará” assinalado em um amplo mapa-múndi. Buscando
desvendar esse mistério, Gunnar Vingren e Daniel Berg procuraram a biblioteca da
cidade de South Bend, estado de Indiana, e logo constataram que Pará era o nome
de um estado no distante Brasil.
O pastor William H. Durham estava com 34 anos quando consagrou o italiano
Luigi Francescon para o ministério, em 1907, o qual dois anos depois seguiria para
São Paulo.137 Em continuidade ao seu ministério apostólico, aos 37 anos, Durham
consagrou e enviou para o Brasil Adolf Gunnar Vingren e Daniel Berg. Somando ao
italiano Luigi Francesconi, estes três europeus, que tiveram suas vidas renovadas
nos Estados Unidos, foram responsáveis pela edificação das duas maiores
organizações pentecostais existentes abaixo da imaginária Linha do Equador.
Sob muitas privações e não poucas provações, Gunnar Vingren e Daniel Berg
chegaram de trem até New York na esperança de encontrar, o mais rápido possível,
um vapor com destino ao Brasil. Pela escassez financeira, adquiriram os bilhetes na
terceira classe do Clement, um vapor com bandeira americana, onde se alojaram
em simples e abafados camarotes. O navio zarpou do porto da cidade de New York
no sábado, dia 5 de novembro de 1910, com destino a uma cidade com o nome de
Belém, situada no estado do Pará, no longínquo e desconhecido Brasil, o gigante
adormecido da América do Sul!

Belém do Pará

Navegaram durante 14 dias rumo ao Sul do planeta, aportando em Belém na


manhã de sábado, 19 de novembro de 1910. 138 Essa cidade situa-se numa região
tropical, sendo a mais próxima das capitais estaduais ao sul da Linha do Equador, o
marco divisório hemisférico. Bethlehem é uma expressão hebraica que significa
“casa do pão”. Diante das informações relacionadas na Bíblia, o nome era por eles
136
Acontecimento que certamente transcorreu em janeiro de 1909, quando seu esposo Robert
Semple foi ordenado ao ministério por William Durham. Após a ordenação, o casal seguiu, em junho
de 1910, como missionários para Hong Kong, então a britânica cidade e porta de entrada na China.
Foi nessa localidade onde Robert Semple veio a falecer. (Confira LIARDON, 1996, p. 239, 241).
137
É interessante notar que as duas maiores vertentes do pentecostalismo brasileiro, Congregação
Cristã no Brasil e Assembleia de Deus, denominações surgiram no mesmo lugar e seus
líderes/fundadores receberam a imposição das mãos do jovem William Durham, um pastor batista em
Chicago
138
Naquela data, o Brasil estava comemorando os 21 anos da criação da Bandeira Nacional, símbolo
adotado oficialmente quatro dias após a Proclamação da República em 1889. Também em 19 de
novembro de 1910, estava completando o quarto dia que o advogado Nilo Procópio Peçanha (1867-
1924) havia entregue a presidência do Brasil ao militar Hermes Rodrigues da Fonseca (1855-1923),
ambos membros da loja maçônica do Grande Oriente do Brasil. Fonseca, marechal e primeiro
gaúcho eleito com votos populares, era sobrinho do falecido Manuel Deodoro da Fonseca,
generalíssimo e primeiro presidente do Brasil republicano. Nilo Peçanha foi o primeiro mulato a
ocupar a presidência do Brasil. Naquele mesmo ano, aos 5 de outubro, Portugal acordou republicano
com a destituição de D. Manuel II (1889-1932) e o final da monarquia constituicional.
familiar. Entretanto, a cidade de Belém não passava de um labirinto para aqueles
suecos recém-chegados dos Estados Unidos. Era a Belém dos círios, rituais
importados de Portugal que ainda hoje são o orgulho religioso da capital paraense.
Quando zarparam de New York, não passavam de dois pobres e solitários viajantes.
Ninguém foi se despedir deles e, ao chegarem a Belém, ninguém os esperava. Aos
olhos humanos, ali estava a síndrome do abandono.

Não se pode imaginar quais foram as primeiras impressões desses jovens. Sentados na
principal praça de Belém, sentiam o sol a aquecer-lhes as roupas grossas e pesadas
que muito usaram nos países frios. Belém não possuía atrações; ao contrário, era
invadida por multidões de leprosos, doentes de febre amarela ou de peste bubônica, que
vinham até dos países limítrofes com a Amazônia e Territórios. A notícia da descoberta
de uma erva que, segundo alguns, curava a lepra e se encontrava em Belém havia sido
espalhada. A pobreza do povo contrastava com o padrão de vida na outra América.
(CONDE, 1982, p. 24).

Esses dois jovens missionários, Gunnar, que havia completado 31 anos, e


Berg, 26, nasceram batistas, possuíam fortes convicções batistas e foram
recomendados para colaborarem no ministério da igreja batista local na cidade de
Belém. Estavam dentro dos propósitos originais adquiridos em Chicago.
Os batistas foram os pioneiros na permanência evangélica/protestante na
cidade de Belém. A primeira Igreja Batista do Pará foi fundada e organizada pelo
missionário Erik Alfredo Nelson (1862-1939) em 2 de fevereiro de 1897, no mesmo
ano em que o governo republicano ordenou a devastação completa de Canudos,
arraial incrustado no sertão baiano e refúgio do grupo sob a liderança do messiânico
Antônio Conselheiro. O pastor Nelson era também europeu. Havia nascido na
Suécia em 1862 e em 1869, aos sete anos, imigrou para os Estados Unidos,
vivendo com a família em fazendas no Kansas até seguir, aos 29 anos, para o Brasil
em 1891, ano em que foi aprovada a primeira Constituição Republicana Brasileira.
Aqueles três pastores eram suecos batistas e fizeram dos Estados Unidos um
trampolim para chegarem ao Brasil como missionários protestantes. O pastor Erik
era casado com Ida Lindeberg Nelson, quando faleceu em Manaus em 1939, aos 77
anos. Por quase meio século, o missionário Erik Alfredo Nelson foi um verdadeiro
apóstolo batista na implantação de igrejas na vasta região amazônica do Brasil.
Desde sua organização em 1897 até 1910, diferentes pastores cuidaram da
Primeira Igreja Batista do Pará. O último, José Manoel de Almeida Sobrinho, teve a
infelicidade de perder sua esposa, Rita de Almeida (1887-1910), uma jovem que
morreu precocemente com apenas 23 anos, fatalidade ocorrida dia 29 de setembro
de 1910. Viúvo e com quatro crianças para cuidar, Almeida Sobrinho preferiu
renunciar ao pastorado a 29 de novembro e regressar para o seio da família em
Pernambuco. Entre 16 de novembro de 1910 e 13 de junho de 1911, a Primeira
Igreja Batista do Pará foi dirigida por diferentes moderadores enquanto uma
comissão analisava e procurava um pastor definitivo, algo muito raro para a época,
quando a demanda era maior que a oferta. Foi nesse estágio da história e de
turbulências que lá chegaram os dois pastores batistas com experiências
pentecostais. A igreja estava orando e procurando um pastor, mas chegaram dois
ao mesmo tempo!

Nesse período, a Igreja foi abalada com a doutrina pentecostal introduzida entre os
membros por Gunnar Vingren e Daniel Berg, que se infiltraram na igreja como batistas,
vindos da América do Norte e começaram a difundir pouco a pouco entre a membresia
as novas interpretações da Bíblia. A igreja tomou a decisão drástica de eliminar os
adeptos do pentecostalismo na noite do dia 13 de junho de 1911, entre os quais estava
aquele que exercia a moderadoria. Logo, em seguida, foi organizada a Igreja
Assembleia de Deus em Belém, em 18 de junho de 1911, dando início à obra
pentecostal no Brasil. (Disponível em <https://pibpa.org.br/>. Acesso em: 02 fev.
2004).

O cisma

Quando Gunnar Vingren e Daniel Berg, dois suecos naturalizados americanos,


chegaram a Belém do Pará, no dia 19 de novembro de 1910, a bordo de um navio de
terceira classe e se alojaram no abafado e calorento porão da Igreja Batista, da rua João
Balby, dormindo numa só cama, estavam longe de supor que o acontecimento marcava
o início do maior fenômeno religioso que um país experimentaria neste século. (LIMA,
D., 1987, p. 68).

Como relatam os documentos, Gunnar Vingren e Daniel Berg iniciaram


sorrateiramente a disseminação da doutrina pentecostal. De acordo com o evoluir
da língua, expandiam a facilidade de comunicação com os batistas brasileiros.
Aqueles dois batistas suecos viviam em contínua prática de oração, convidando os
batistas brasileiros para as intercessões, os jejuns, a santificação e as vigílias. Isso
era algo novo para aqueles batistas, além de estranhas práticas que assustavam
aquelas pessoas.
Alguns membros foram convencidos diante dos novos ensinamentos e das
atitudes apresentadas por aqueles estranhos pastores. Finalmente, pouco mais de
200 dias que ambos chegaram ao Brasil, o fenômeno pentecostal desceu em
Belém do Pará. Era madrugada de sexta-feira, 8 de junho de 1911. A batista Celina
Albuquerque (1874-1969), uma senhora amazonense, natural de Manaus, foi a
primeira brasileira a receber o batismo com o Espírito Santo na capital paraense.
Celina era casada e estava com 37 anos quando recebeu aquela unção pentecostal,
transbordando em línguas estranhas. Glossolalia, um mistério do sobrenatural e
completamente diferente do poliglotismo, uma habilidade humana. No dia seguinte,
a mesma experiência foi vivida por sua irmã Maria de Nazaré. “Falar em línguas
durante o batismo com o Espírito Santo não só representa um fato marcante para o
crente, mas também transforma-o em um novo cristão, mais realizado, plenamente
consciente de sua espiritualidade” (LIMA, D., 1987, p. 72).
Em resultado dessa estranha prática religiosa importada da América do Norte,
a situação agravou-se entre a liderança e os membros da igreja batista. Indecisos, e
desconhecendo aquele estranho mover, optaram pela expulsão daqueles intrusos
suecos das dependências do templo, bem como pela exclusão dos simpatizantes da
onda pentecostal. Era o cortar o mal pelas raízes! Com esse foco em mente, uma
assembleia extraordinária foi convocada para a noite de quarta-feira, 13 de junho de
1911. O resultado daquela assembleia extraordinária foi drástico e cruel. Sem haver
harmonia e controle do bom senso, o resultado foi a exclusão sumária de 19
batistas, inclusive o português José Plácido de Castro, então moderador da Primeira
Igreja Batista do Pará.

Missão de Fé Apostólica

Dez dias após Celina Albuquerque ter recebido o batismo com o Espírito
Santo e cinco depois da sua exclusão do meio batista, Gunnar Vingren e Daniel
Berg organizaram a segunda igreja pentecostal no Brasil em 18 de junho de 1911
com o nome de Missão de Fé Apostólica. Os membros fundadores foram os 19
excluídos da Primeira Igreja Batista do Pará. Democraticamente, continuaram
batistas, até mesmo no sistema para a eleição ministerial. Para tal, Adolf Gunnar
Vingren, aos 32 anos, foi por unanimidade eleito pastor da estreante Missão de Fé
Apostólica em Belém do Pará. O vínculo com Azusa Street em Los Angeles era
somente por nome e fé. Empiricamente, o trabalho continuou sendo batista, até que
gerou oficialmente a Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Brasil, a 11 de
janeiro de 1918. O doutor Gedeon Alencar, catedrádico assembleano, sabe muito
bem alfinetar o resultado do drama de 1911.

A AD no Brasil foi um acidente. Os suecos não vieram fundar uma igreja, nem depois de
a fundarem queriam que fosse a Assembleia que se tornou. Os brasileiros que aderiram
não sabiam o que viria a ser a Assembleia, mas queriam construir algo. Foi dessa
mistura de intenções e tensões que ela nasceu. Conseguiu desagradar a muitos fazendo
a alegria de outros. (ALENCAR, 2010, p. 156).

O impulso mais forte ao pentecostalismo brasileiro veio desse circuito e resultaram em


duas novas denominações: a Congregação Christã do Brasil, que passou a
Congregação Cristã no Brasil em 1960, e a Missão da Fé Apostólica, que passou a
Igreja Evangélica Assembleia de Deus a partir de 1918. A primeira foi fundada em 1910
por um presbiteriano calvinista de origem italiana [...], Luigi Francescon (1866-1964). [...]
Francescon chegou ao Brasil pelo Sul-Sudeste, Paraná e São Paulo. [...] A segunda foi
fundada por dois missionários batistas de origem sueca, Gunnar Vingren (1879-1933) e
Daniel Berg (1884-1963), um ano depois do início do trabalho de Francescon. Ambas,
CCB e AD, são reconhecidamente as primeiras igrejas pentecostais no Brasil.
(PAGANELLI, 2019, p. 309, 310).

O fator crescimento

Os dois pastores suecos criaram um modelo de vida cristã com certas


diferenças do habitual até então na vigência protestante brasileira. A grosso modo
essa diferença tornou-se uma verdadeira marca registrada diante dos costumes
sociais, gerando um pragmatismo de ordem predominamente religiosa. Aliás, foi
uma característica do pentecostalismo brasileiro que vingou por vários anos e
controlou gerações. “A prática religiosa cumpre uma função de conhecimento-
desconhecimento. [...] isto é, o poder simbólico que lhes confere o fato de
acreditarem em seu próprio poder simbólico. [...] é apenas a face visível da dialética
da fé e da má fé” (BOURDIEU, 1982, p. 54, 55, 56). Em outras palavras,
controlaram a freguesia desesperada pela manipulação do sagrado e dependência
do pastor/sacerdote.

Gunnar Vingren e Daniel Berg impuseram rapidamente aos primeiros convertidos de


Belém do Pará, o rígido modelo que caracterizava o pentecostalismo dos Estados
Unidos. A austeridade, com condenação dos padrões de tolerância usuais nas demais
igrejas, foi o traço marcante da expectativa estabelecida para a conduta dos crentes,
enfatizando-lhes sempre a condição de pecadores e apontando-se-lhes o caminho da
santificação pela conversão completa através da fiel obediência aos princípios da Bíblia.
A ordem de combater as tentações de Satanás, fosse qual fosse o sacrifício exigido,
vivendo uma existência simples e ascética, despojada de todos os prazeres mundanos.
Assim, proibiam-se aos crentes o uso de bebidas alcoólicas, o fumo, os bailes, o
cinema, enfim, tudo que significasse futilidade e alienação à realidade a serviço de
Deus. Esse comportamento de absoluta sobriedade estendia-se à postura social, como
modo de falar e vestir, inclusive proibição de maquiagem às mulheres. Era submissão
total do crente à religião. (LIMA, D., 1987, p. 73).

Visão missionária

O imigrante português José Plácido da Costa morava em Belém e havia se


convertido ao protestantismo apregoado na Primeira Igreja Batista do Pará. Levado
pela onda pentecostal, em consequência bebeu o amargo cálice da exclusão do
meio batista! A exclusão se tornou combustível para acender as chamas internas
daquele imigrante. Muito empolgado e tendo uma visão evangelística pentecostal,
ele foi comissionado pela Missão de Fé Apostólica e enviado como o primeiro
missionário para Portugal. Os pentecostais brasileiros não perderam tempo!
“Homens e mulheres puseram suas vidas no altar e passaram a ser raposas de
Sansão, tinham fogo, e por isso incediaram as searas da terra” (TOGNINI, 2006, p.
145). Era tudo muito romântico; o excesso de fé acelerava as emoções na visão do
sagrado, tornando os planejamentos frutos do profano. “Remindo o tempo, porque
os dias são maus” (Efésios 5:16).
Os congregacionais nos Estados Unidos gastaram 205 anos para enviar à
Birmânia os primeiros missionários. 139 Os presbiterianos brasileiros gastaram 51
anos para enviar o primeiro missionário também para Portugal, em 1910. Os
pentecostais do Pará bateram o recorde, pois, em menos de dois anos, já estavam
enviando missionários do Brasil para Portugal. Dentro de uma analogia histórico-
teológica, era a filha reconhecendo as necessidades da mãe!
Em abril de 1913, menos de dois anos da existência informal da Missão de Fé
Pentecostal em solo brasileiro, Plácido da Costa e família zarpam para realizar
missões em sua terra natal. O seu ministério foi exercido especialmente no Porto,
nos seus arredores e na parte norte de Portugal. “Diz que José Plácido, ao chegar a
Portugal, em 1913, foi convidado para pastorear uma Igreja Batista e aceitou,
permanecendo nela até 1930, quando foi visitado por Daniel Berg” (ALENCAR,
2010, p. 102). Quando em Portugal, José Plácido da Costa chegou à conclusão que

139
O primeiro culto protestante na América do Norte foi realizado na colônia da Virgínia em 1607, ou
seja, 205 anos antes da caminhada missionária. Adoniram e Ann Judson, primeiro casal missionário,
zarparam do porto de Salem, Massachusetts, dia 18 de fevereiro de 1812, navegando para a
Birmânia, atual Myanmar.
a sua gigantesta fé brasileira não produzia os escudos suficientes para as batatas e
os peixes!
Em junho de 1921, José Matos, outro imigrante português convertido em
Belém, regressa para Portugal com a mesma finalidade. Esse foi o segundo
missionário pentecostal a sair do Brasil. Desta feita, segue em nome e com o apoio
da Assembleia de Deus no Brasil. A visão não estancou. “No dia 30 de março de
1939, embarcou para Portugal, enviado pela AD do Rio de Janeiro, Belarmino
Teixeira Martins, que ali trabalharia vários anos na evangelização de seu próprio
povo” (CONDE, 1982, p. 217).
Quase cem anos após aquela epopeia missionária, a visão assembleiana não
havia cessado.

Em comemoração ao centenário de fundação das Assembleias de Deus no Brasil, a


igreja paraense enviou 100 missionários para a região da janela 10-40, parte do globo
terrestre que abriga a maior parcela de povos não-evangelizados, estimados em 2
bilhões de pessoas [...]. Vamos celebrar os 100 anos meditando sobre aqueles dois
jovens obedientes que aceitaram o grande desafio de virem para estas terras inóspitas,
na época, para trazerem a mensagem de avivamento e, 100 anos depois, mostrar que
ela produziu muitos frutos. (Disponível em: <https://alc-noticias.net/bp/>. Acesso em:
07 jul. 2010).

Como citado em páginas anteriores, Belém, a capital do estado do Pará, foi a


cidade onde Richard Holden, aos 32 anos, chegou no dia 4 de dezembro de 1860.
Ali ele instalou sua base de distribuição de Bíblias e tratados. Também foi na
mesma localidade que, sem êxito, ele procurou edificar uma capela episcopal.
Sendo impiedosamente bombardeado por todos os lados, Holden desabafou em
uma carta de 21 de fevereiro de 1861: “Às vezes, penso que o Senhor tem grandes
coisas reservadas para o Pará, desde que o demônio se põe em armas com tanto
empenho” (VIEIRA, David, 1980, p. 165, 166). Passado meio século dessa carta
profética, as cadeias se romperam com o abanão do Espírito Santo. Abanão que
vem transformando a história religiosa, econômica e social do Brasil.

Novo nome

Enquanto no Brasil a Missão de Fé Apostólica inocentemente se expandia e


crescia entre os mais desfavorecidos da terra, na outra América a situação não era
a mesma. Grupos de oportunistas estavam se imiscuindo na pureza e infantil
inocência que existia no meio do pentecostalismo. Por faltar unidade de governo e
firmeza doutrinária, a expansão pentecostal foi literalmente invadida pela onda do
unicismo. Os resultados foram drásticos, gerando discórdias, produzindo feridas,
rancores e divisões em muitos lugares. Havia também o levantar da bandeira do
racismo, pela qual os brancos foram empurrando os líderes negros para as margens
do ostracismo. Novamente em jogo os resquícios calvinísticos muito bem
orquestrados pela supremacia branca americana operante. “Os negros
estadunidenses, apesar de formalmente cidadão dos Estados Unidos, não deixam
de ser sujeitos coloniais em relação à sociedade branca. [...] a comunidade negra foi
criada e dominada por uma combinação de forças opressoras e interesses
específicos na comunidade branca” (ALMEIDA, S., 2019, p. 30).

Nos Estados Unidos, oficialmente o nome Assembleia de Deus surgiu após


várias reuniões em busca de um consenso entre os pastores e os líderes de pele
branca. A primeira reunião aconteceu na cidade de Hot Spring, Arkansas, entre os
dias 2 a 10 de abril de 1914. “Participaram do primeiro Concílio cerca de trezentos
ministros e delegados, procedentes de igrejas pentecostais independentes de todo o
país” (HURLBUT, 1979, p. 224). Na procura de combater uma aberração de cunho
teológico, é convocado o segundo Concílio que se reuniu em Chicago, Illinois, no
mês de novembro de 1914. O quarto Concílio ministerial reuniu-se no período do
outono de 1916 em Saint Louis, Missouri, quando uma série de importantes
decisões foram tomadas. O principal passo foi a redação de um credo doutrinário ou
declaração de fé, base para se defender dos ataques.

No ano de 1917, o movimento já contava com 517 ministros e 56 missionários no


exterior. Nesse mesmo ano, um elevado número de congregações solicitou e obteve
reconhecimento das Assembleias de Deus. A partir daí, a organização teve firme
progresso. (HURLBUT, 1979, p. 225).

Até então, os títulos identificatórios das igrejas locais dependiam de vagas


ideias dos seus líderes. Movimento Pentecostal, Assembleia Cristã, Cruzadas de
Avivamento e, até mesmo, Assembleia de Deus eram os nomes mais comuns já
existentes entre os membros daqueles Concílios. “O nome foi sugerido por T.K.
Leonard, de uma congregação de Findlay, Ohio, que havia muitos anos adotara o
nome Assembleia de Deus” (SYNAN, 2009, p. 177).
Ao nascente grupo faltava um governo eclesiástico centralizado para fomentar
a unidade e expressão em nível nacional americano.

Uma grande polêmica, que abalou as recém-organizadas Igrejas Assembleias de Deus


foi gerada pela doutrina da unicidade da Divindade. Esta doutrina surgiu, em 1913, com
a revelação de um homem sobre o nome de Jesus, e seus defensores pregavam que o
verdadeiro batismo deveria ser em nome de Jesus somente e não da Trindade, e os que
não fossem assim batizados deveriam ser rebatizados. O resultado desta doutrina foi a
negação da existência da Trindade e quando o Concílio Geral, após muitos debates e
discussões, condenou esta doutrina, um quarto dos 585 ministros das Assembleias de
Deus deixou a igreja em 1916. (WALKER et al., 2002, p. 31).

Em resultado ao expansívo crescimento, o nome primiti vo, Missão de Fé


Apostólica, não mais representava no Brasil uma expressão referencial das ideias
pentecostais. À procura de coadunar os sentimentos e as atitudes, nada melhor que
se adequar às linhas provindas dos Estados Unidos, onde o movimento havia se
iniciado. Foi assim que no Brasil, “dia 11 de janeiro de 1918, foi registrada,
oficialmente, como Assembleia de Deus” (CONDE, 1982, p. 27).
Por vários anos, a Congregação Cristã e a Igreja Assembleia de Deus foram
as únicas organizações de cunho pentecostal em todo o território brasileiro. O
ancião Luigi Francescon e os pastores Adolf Gunnar Vingren e Daniel Berg eram
amigos e participantes ativos da mesma igreja batista em Chicago, porém o destino
e diferentes interpretações teológicas e eclesiológicas os separaram. Em 1920,
Vingren e Francescon tiveram um rápido e amistoso encontro em São Paulo, mas
suas ideias sempre foram divergentes; nunca caminharam juntos em seus
pensamentos eclesiológicos. Luigi Francescon, de personalidade e cultura latina,
defendia uma teologia baseada nos ensinos valdenses, totalmente calvinista. Já
Gunnar Vingren, um pastor saxônico de formação batista, agora pentecostal,
defendia o arminianismo. Um infinito doutrinário pairava entre eles.140

Na verdade, o contato em 1920 entre os líderes de ambas denominações, foi amistoso


segundo consta nas memórias de Gunnar Vingren. Acontece, porém, que com o passar
dos tempos a CCB foi deixada à mercê da liderança leiga devido às constantes
ausências de seu fundador em viagens para o exterior; foi nesse ínterim, onde começou
a nascer o orgulho denominacional extremista e para piorar ainda mais, em 1929 houve
um cisma no meio da CCB e a metade dela filiou à Assembleia de Deus. Acrescenta-se
a isso as diferenças de costumes e teológicas que acabaram por originar um
rompimento irreparável que perdura até hoje. (Disponível em:
<http://www.cacp.org.br/ccb.htm>. Acesso em: 14 mar. 2006).

A luta pelo poder

Infelizmente a política do caudilhismo não está isenta de gerar anarquias meio


aos incautos da fé, essa é a sensação que se transpareceu na histórica convenção
realizada entre os dias 5 a 10 de setembro de 1930 em Natal, capital do Rio Grande
do Norte. As mais contundentes informações abaixo, são frutos da lavra do doutor
Gedeon Freire de Alencar, um exímio pesquisador, professor, conceituado escritor,
juntando a tudo isso, um ativo participante da Igreja Assembleia de Deus do Brasil.
Tem conhecimento, bagagem e longa vivência de causa. “Com sua 1ª Convenção
Nacional em 1930 – vitoriosa para uns e fracassada para outros – é que começa
seu processo de institucionalização e, a consequente e natural luta pelo poder. [...]
As lideranças ministeriais da AD são formadas de bispos e pequenos papas. [...]
combina com a mentalidade latina personalística do caudilhismo, com nuanças de
messioanismo popular e o coronelismo nordestino” (ALENCAR, 2010, p. 50, 127,
131).
O final foi drástico para os pioneiros, aliás, aqueles que não se vendem meio a
descarada e imunda politicagem na busca do poder, são abandonados e,
empurrados para o ostracismo por aqueles que fazem a farta festa pela a
manipulação do sagrado aos próprios interesses. “Os fundadores da Assembleia de
Deus tiveram, no entanto, um final melancólico. Daniel Berg, empobrecido, foi morar
numa periferia paulistana e, somente em 1961, às vésperas de sua morte, recebeu
reconhecimento público da denominação religiosa que ajudara a fundar. Gunnar
Vingren, por sua vez, primeiro viu sua comunidade eclesial tomar rumos que não
partilhava e, após a chegada de Samuel Nystron, também a proeminência que tinha
140
Até parece uma coincidência do destino! O jovem paulistano Emilio Conde (1901-1971), celibatário
por opção, foi o primeiro grande historiador da Assembleia de Deus no Brasil. Conde, de família
italiana, converteu-se e foi batizado dia 21 de abril de 1919, exatamente na Congregação Cristã do
Brasil, na cidade de São Paulo. Muito habilidoso e franciscanamente metódico, deixou São Paulo à
procura de novos desafios profissionais, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Vivendo e
trabalhando no Distrito Federal, tornou-se membro da Assembleia de Deus no bairro de São
Cristóvão. Juntando suas habilidades literárias e desafios, além da fé cristã, aceitou servir de tempo
integral na nascente Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Ou seja, o primeiro grande
historiador da Assembleia de Deus no Brasil surgiu na Congregação Cristã no Brasil!
saiu obscurecida. Nystron, aliás, foi o presidente da convenção de 1930, ao passo
que Vingren, já ofuscado e muito doente, voltou para a Suécia em 1932, morrendo
no ano seguinte” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 194). (NOTA DE RODAPÉ:
Para mais detalhes sobre esses e outros acontecimentos que abrangem aos
pentecostais e demais linhas protestantes, recomendo os seguintes livros:
A. “O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil”. David
Gueiros Vieira. UNB, Brasília, 1980.
B. “O dossel sagrado”. Peter L. Berger. Edições Paulinas, São Paulo, 1985.
C. “Os demônios descem do Norte”. Delcio Monteiro de Lima. Francisco Alves,
Rio de Janeiro, 1987.
D. “Protestantismo tupiniquim”. Gedeon Alencar. Arte Editorial, São Paulo, 2005.
E. “Assembleia de Deus”. Gedeon Alencar. Arte Editorial, São Paulo, 2010.
F. “Manifesto”. Josimar Salum. Basileo, Boston, Sdp.
G. “Frida Vingren”. Isael de Araujo. CPAD. Rio de Janeiro, 2014.
H. “História das religiões”. Magno Paganelli. Garimpo Editorial, São Paulo, 2014.
I. “História do catolicismo no Brasil”. V. 2. Dilermando Ramos Vieira. Editora do
Santuário, Aparecida, 2019. FINAL DA NOTA).

Católicos e protestantes na Era Vargas

Em 1808, quando a família real portuguesa chegou em Salvador, protegida em


toda a jornada por simulados comboios sob os amedrontadores canhões da marinha
inglesa, foi uma data significativa, era o 22 de janeiro. Seis após a triunfante viagem
da Europa à América do Sul, em primeira instância foi assinado por Dom João Maria
de Bragança, o príncipe regente o, Decreto de Abertura dos Portos às Nações
Amigas. A unilateral assinatura transcorreu na quinta-feira, dia 28 de janeiro do
citado ano. O Decreto não passava de uma cortesia aos favores e protegidos atos
provindos da Grã-Bretanha sob o reinado e interesses de George III (1738-1820), o
rei maluco da Inglaterra. Esse ato de gratidão foi de suma importância para a
expansão social, econômica, política e até religiosa. Em conjunto, tudo foi
cimentado na colônia brasileira, não esquecendo que, para horror de Portugal, a
Inglaterra embora, única nação amiga, era radicalmente protestante. Lord
Strangford (1780-1855), aos 28 anos, embaixador britânico em Lisboa e Rio de
Janeiro. Posteriormente aproveitando as brechas existentes nas entrelinhas no
Decreto, iniciou em sua residência serviços religiosos do anglicanismo. Nessa
mesma esteira chegaram os episcopais e luteranos. Assim o protestantismo
sorrateiramente, foi minando o Brasil no período colonial, embora fosse um
protestantismo composto por imigrantes, funcionários consulares, engenheiros,
professores, viajantes em passagem pelos portos ou pesquisadores. O
protestantismo missionário ou de proseletismo como preferem outros, se tornou
realidade nos prósperos anos de D. Pedro II. Foi em seu reinado que as igrejas
históricas encontraram espaços por diferentes regiões, até sob a respeitável
admiração de seu governo.
Com a Proclamação da República e, consequentemente a revogação da
Constituição de 1824, o Brasil se tornou uma nação laica onde floriu a almejada
liberdade de expressão, consciência religiosa aos seus cidadãos e estrangeiros. Foi
nesse período como se destaca nas páginas antecedentes que chegaram as duas
igrejas de viés pentecostal: Congregação Christã e Missão de Fé Apostólica, esta,
em 1918 se tornou oficialmente na Assembleia de Deus.
Por sensíveis 41 anos e alguns dias (1889-1930), o Brasil foi dirigido por treze
presidentes dentro de um verdadeiro conchavo de corporativismo baseado na
política oligárquica do Café com Leite, era a política dos governadores, onde as
cartas eram marcadas entre os paulistas (café) e os mineiros com a vasta produção
do leite e seus derivados. Ainda hoje sua patente internacional. Foi um longo
noivado que nunca deu em casamento! O caos se agravou no decorrer do mandato
de Whasington Luís Pereira de Sousa (1869-1957), historicamente alcunhado de
paulista de Macaé. Esse advogado fluminense tinha como o seu vice Fernando de
Melo Viana (1878-1954), um mineiro negro, também advogado nascido em Sabará
(NOTA DE RODAPÉ: Infelizmente o Solar Melo Viana em Sabará encontra-se em
decandentes ruínas, porém no passado representava o símbolo da ostentação do
poderio financeiro. Não esquecendo, era uma conceituada família negra. “Casarão
de Manoel Pereira de Melo Viana, o Comendador Vianna, pai de Fernando de Melo
Viana, Presidente de Minas Gerais, entre 1924 e 1926 e Vice-Presidente da
República no governo de Washington Luís. O Comendador Viana foi quem vendeu o
barco para Richard Burton usado por este em sua Viagem de Canoa de Sabará ao
Oceano Atlântico. Em sua obra Burton referiu-se a Viana pelo apelido de Piaba”
(TAVEIRA, 2018, p. 325) FINAL DA NOTA).
Foi na quinta-feira, pejorativamente alcunhada de negra pelos poderosos das
finanças mundiais, 24 de outubro de 1929, quando ocorreu o crash na Bolsa de
Valores de New York, a cidade saiu da pujância e caiu na miséria. Essa miséria
impulsionou a gota d’àgua que faltava para afundar os tradicionais políticos e
produtores de café do Brasil. O mercado americano foi acachapado, produzindo um
descontrolado desespero na economia internacional. O Brasil foi alcançado pelo
efeito dominó e levado pelas ondas do violento Tsunami. Como diria Victor Hugo: “Ó
insondável e divino mistério dos desequilíbrios do destino” (HUGO, 2007, v. 1, p.
429). Exatamente um ano após o avalanche que devastou New York, Washignton
Luís Pereira de Sousa e Melo Viana não resistiram à pressão militar. “O presidente
Washington Luís recebeu um ultimato de um grupo de oficiais-generais, liderados
por Augusto Tasso Fragoso, exigindo que renunciasse. Diante de sua negativa, os
militares o depuseram no dia 24 de outubro de 1930. O agora ex-presidente foi
conduzido prisioneiro à fortaleza de Copacabana [...] às 3 da tarde do dia 3 de
novembro de 1930, o general Tasso Fragoso, no Palácio do Catete, passou o poder
a Getúlio Vargas, o qual declarou que assumia provisoriamente como delegado da
revolução, em nome do exército, da marinha e do povo brasileiro. [...] Além do ex-
presidente Washington Luís, também tiveram de deixar o Brasil Fernando de Melo
Viana, o vice-presidente da República. Antônio Azeredo (1861-1936), presidente do
senado, Sebastião do Rego Barros (1879-1946), presidente da câmara dos
deputados, Otávio Mangabeira (1886-1960), ex-ministro das relações exteriores, e
outros” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 203, 204, 205). Nesse mesmo período,
aos 30 anos, Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) já um denotado nas ciências
sociais, de família pernambucana economicamente sólida, exilou-se em Portugal
onde escreveu Casa-Grande e Senzala, sua mais destacada obra, com a sua
primeira edição publicada em 1933.
No toma-la da cá das oligarquias que imperavam no Brasil, a presidência de
1930, por tabela pertencia ao estado de Minas Gerais, entretanto, o pleito ficou
entre o paulista Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946) e o gaúcho Getúlio
Dornelles Vargas (1882-1954), esse, desconfiadamente apoiado pelos mineiros.
Prestes e Vargas, ambos na casa dos 48 anos. O paulista ganhou, porém, não
conseguiu levar, senão um amargo exílio! (NOTA DE RODAPÉ: Somente após 88
anos, em 2018, as eleições foram conquistadas por outro paulista, Jair Messias
Bolsonaro (1955-) esse, diferente do advogado Júlio Prestes, vitorioso com uma
larga margem de votos, assumiu o poder federal em Brasília. FINAL DA NOTA). A
Igreja Católica Romana enxergava em Getúlio Vargas, o salvador da pátria. “Uma
razão principal levava o clero brasileiro a ver de modo otimista a mudança política
ocorrida: a oportunidade de superar os entraves da constituição de 1891. Isso ficou
patente no discurso de Dom João Becker proferido no dia 1º de novembro de 1930:
O grandioso triunfo da revolução despertou um júbilo indizível no meio da
população rio-grandense. [...] Pois bem! A este Brasil católico e cristão foi imposta
uma constituição (1891) imperfeita, sem rei e sem Deus, [...] O Regenerador da
República surgiu do meio de nosso heróico povo gaúcho” (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 2, p. 207, 209).
O paulista Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), bispo do Rio de
Janeiro, juntou sua voz política com a do alemão João Batista Becker (1870-1946),
o segundo arcebispo de Porto Alegre, deu o brado antecipando o resultado dos
deputados constituintes de 3 de maio de 1933, em sua leitura tudo seria convergido
ao sucesso. “Qualquer que seja, pois, o resultado das urnas, temos maioria. [...]
Essa inovação faria depois Dom Antônio de Almeida Lustosa (1886-1934),
Arcebispo de Belém do Pará, exaltar a magnífica e utilíssima conquista católica de
1934. [...] Os anos 30 foram a década em que a Europa se viu tomada pelas
ditaduras de direita, no que se destacaram o fascismo italiano, o nazismo alemão, o
franquismo espanhol e o salazarismo português. O fato repercutiu no Brasil, tendo
como um dos seus maiores protagonistas o paulista de São Bento do Sapucaí,
Plínio Salgado (1895-1975), que lançou a Ação Integralista Brasileira, por meio de
um manifesto datado de 7 de outubro de 1932. No dia 23 de abril do ano seguinte, à
frente de quarenta pessoas, Plínio Salgado realizou a primeira marcha integralista
em São Paulo, a qual, a despeito do minguado número de manifestantes iniciais,
logo ganhou adesões até constituir um movimento de projeção nacional” (VIEIRA,
Dilermando, 2016, v. 2, p. 227, 228, 241).
A terceira constituição do Brasil, exatatamente 90 anos após a primeira de 1824,
foi promulgada na tarde de segunda-feira, 16 de julho de 1934 teve o dedo do
catolicismo em cada artigo discutido e aprovado. Os agentes leigos do Vaticano
venceram em todas as iniciais propostas que culminou a citada magna carta.
Vargas, muito arguto e tendencionalmente uma figura autoritária, aproveitando a
euforia política do pai dos pobres (Jó 29:16), costurou o passado com o presente e
o futuro! Assumiu provisoriamente a presidência do Brasil aos 3 de novembro de
1930, foi em 17 de julho de 1934 eleito indiretamente a posição presidencial, cujo
mandato findaria em 3 de maio de 1938. Findaria. Isso não aconteceu, o gauchinho
amava o poder! “Vargas e a Igreja fizeram um pacto informal de cooperação. O
gaúcho Vargas depôs a elite cafeeira e tomou o poder na Revolução de 1930 com a
bênção de todos os membros da poderosa Igreja de seu estado natal, inclusive os
capelães militares e os ativistas católicos. Para reunir apoio ao seu regime, Vargas
cultivou boas relações com a Igreja nacional. Compareceu com dom Leme e outros
bispos à inauguração da estátua do Cristo Redentor no morro do Corcovado, no Rio
de Janeiro. [...] Escorava a política cultural de Vargas e dela se beneficiava”
(SERBIN, 2008, p. 100). Antes de completar seis meses na posição para a qual foi
eleito, Getúlio Vargas, na casa dos 53 anos, deu um perfeito nó de marinheiro na
carta magna da nação, sancionou em 4 de janeiro de 1935, a Lei de Segurança
Nacional. Designada pela minoria opositora de a Lei Monstro, onde arbitrariamente
desconsiderou diversos itens da recém nascida constituição! Em 1º de outubro de
1937 poucos meses antes da prevista eleição, Vargas que almejava continuar no
poder, fez divulgar mensagens que os comunistas buscavam desestabilizar o país.
Esse Fake News, funcionou muito bem! Para manter-se no poder – nem vice ele
tinha – engenhou sua tacada e seguiu em seus escusos objetivos, tudo sob
aplausos das orquestradas massas de manobras.
Na rapidez de uma sombra solar, surgiu a quarta constituição do Brasil que
entrou em vigor dia 10 de novembro de 1937, era a Polaca, uma semifascista carta
que sepultou a democracia de 1934. Muito bem respaldado pela sua constituição,
em 30 dias deu o almejado golpe fatal. “Vargas, em 10 de dezembro daquele
mesmo ano (1937), com apoio do chefe do estado-maior do exército, general Góis
Monteiro, e do ministro da guerra, Eurico Gaspar Dutra, ordenou o fechamento do
congresso, cancelou as eleições e deu o golpe político que instaurou a ditadura do
Estado Novo. A Igreja no Brasil não se opôs ao golpe colocado em ato, por nele ver
um mal menor entre a alardeada ameaça do comunismo” (VIEIRA, Dilermando,
2016, v. 2, p. 260). Ficou claro que o gaúcho pretendia um regime ditatorial sem a
interferência de partidos políticos em seu governo. E conseguiu. Parece que Vargas
estava em delírio com a histórica expressão de “O estado Sou Eu” proferida por Luís
XIV (1638-1715), o Rei Sol, dos áureos período da velha França, onde por 72 anos
(1643-1715), foi a figura máxima.
Novamente o fogo sob as cinzas alardeou, no dia 1º de setembro de 1937, a
Alemanha nazista invadiu a Polônia, iniciando à Segunda Grande Guerra Mundial.
“As torrentes fluem no subsolo, pelas canalizações, arrastando a vida florescente da
superfície” (SOLJENÍTSIN, 1975, p. 57). O governo brasileiro demonstrava amores
pelo nazismo em detrimento à democracia dos Estados Unidos da América do
Norte. Quase três anos após o ideológico e fatal erro levado a cabo por Adolf Hitler
(1889-1945), o Brasil foi obrigado a repensar o seu futuro. “Na nova situação criada,
aos 29 de janeiro de 1943, o presidente brasileiro, Getúlio Vargas, reuniu-se com o
presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), em Natal,
RN, e ali eles acertaram a participação do Brasil no conflito, por meio do envio de
uma força expedicionária. [...] Afinal, em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas
terminou deposto, refugiando-se, no dia 31 seguinte, na estância que possuía em
São Borja, RS. A presidência, a partir do dia seguinte até 31 de janeiro de 1946, foi
ocupada interinamente por José Linhares (1886-1957), cearense de Baturité,
presidente do supremo tribunal federal” (VIEIRA, Dilermando, 2016, v. 2, p. 265,
269). O Brasil foi o único país da América latina a associar nos campos de guerra ao
lado dos Estados Unidos.
Com o provisório sumiço de Getúlio Dornelles Vargas já na casa dos 64 anos,
na quarta-feira, 18 de setembro de 1946, foi promulgada a quinta constituição do
Brasil. Todos os exilados de 1930 e outros políticos presos, foram anistiados com
tempo suficiente, vários concorreram conquistando espaço na constituinte que
elaborou a constituição de 1946. O presidente da assembleia, e o primeiro assinar a
carta magna no Rio de Janeiro em 18 de setembro de 1956, foi o último ex-vice
presidente da República, doutor Fernando de Melo Viana. Foi o único negro na
política brasileira a chegar em tal posição, aliás, também foi o negro a ser eleito
governador de Minas Gerais. Melo Viana, um agnóstico advogado nascido no Solar
dos Melo na cidade de Sabará, aos 15 de março 1878. Morreu em 1º de fevereiro
de 1954, seis meses antes que Getúlio Vargas desse cabo de sua própria vida no
segundo andar do Palácio do Catete na madrugada de 24 de agosto do mesmo ano.
Ambos, advogados e defensores do agnosticísmo.
Igreja Evangélica do Calvário Pentecostal

“No dia 26 de agosto de 1934, chegava ao Rio de Janeiro a missionária


Caroline Mathilda Paulsen” (CARVALHO, S., 1998, p. 93). Mathilda Paulsen foi
enviada para o Brasil pela Junta Local de Missões Mundiais da Igreja do Calvário
Pentecostal, entidade sediada na pequena cidade de Olympia, cuja população
naquela época não excedia 12.000 habitantes, mesmo sendo o maior aglomerado
residencial do estado de Washington. Olympia é o nome grego da capital daquele
distante e quase desabitado estado fronteiriço com o Canadá. A cidade etnicamente
branca é banhada pelo Lago do Capitólio e muito próxima do Mount Rainier National
Park, onde se encontra a 21ª montanha mais proeminente do mundo, com o seu
topo de 4.026 metros de altitude e constantemente gelado.
Mathilda Paulsen ficou conhecida no Brasil como irmã Matildes. Por sua
presença e não poucos esforços, além da multiplicidade de constantes perigos que
a cercavam, ela estava fazendo uma obra que posteriormente se tornaria o canal
pelo qual se deu a permanente existência da Igreja de Deus no Brasil.
A missionária Matildes era uma pessoa de destaque e chamava a atenção
por qualquer lugar que viesse a caminhar. Dona de um corpo atlético, que se
sobressaía acima dos ombros de quem quer que fosse, sem mencionar suas típicas
roupas, o andar, o sorriso meigo e o especial cuidado de manter seus cabelos
enrolados, os chamados coques, costume que, por muitos anos, identificava uma
mulher protestante/pentecostal brasileira. Além da Bíblia, seu inseparável livro, nos
cultos deliciava os ouvintes e adorava a Deus ao executar com certa maestria o seu
acordeon.
Em um período predominantemente machista, no qual o homem era a
simbologia visível do animal ideológico e todo-poderoso que não se quebrava em
suas ordens e decisões, jamais aquela missionária seria ordenada a nenhum cargo
eclesiástico. Mesmo assim, ela se submeteu a uma chamada e continuou sua
jornada servindo a Deus com total fidelidade, indiferente aos pensamentos e
atitudes de não poucos líderes. Consciente das circunstâncias e barreiras
existentes, ainda no Rio de Janeiro, procurou trabalhar em parceria com a
Assembleia de Deus de Madureira. Sua visão era a então pequena e desconhecida
cidade de Catalão, estado de Goiás. Obedecendo à chamada missionária, ela
chegou a Catalão em 1936.141 Matildes Paulsen estava muito bem alicerçada em
suas convicções de fé e práticas bíblicas. Segundo dados, essa senhora estrangeira
foi a primeira pregadora protestante/pentecostal a morar e ministrar no estado de
Goiás. Foi uma pioneira que influenciou muita gente, deixando um vasto legado de
fé, humildade e coragem.
Como já citado, durante vários anos Caroline Mathilda Paulsen realizou suas
atividades missionárias sob a tutela do Ministério de Madureira. Foram dias difíceis
141
Não consegui informações sobre o número populacional da cidade de Catalão em 1936.
Entretanto, há duas importantes conhecidências: Olympia foi reconhecida como cidade em 28 de
janeiro de 1859, e cerca de sete meses depois, Catalão tornou-se cidade em 20 de agosto de 1859.
Olympia se escreve com sete letras, o mesmo acontecendo com Catalão. Parece irmãs gêmeas de
pais supersticiosos!
em todos os sentidos porque poucos americanos foram ao Brasil à procura de
apoiá-la na realização de seu árduo trabalho ministerial.
O primeiro convertido em Catalão foi Manoel Epaminondas Senhorinho
(1915-1993),142 um policial que, em suas horas vagas, trabalhava como dentista
prático. Além dele, houve vários outros pioneiros da Igreja de Deus nos estados de
Goiás, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Citaremos alguns dentre os vários
nomes na lista do pioneirismo: Glicério Rodrigues da Silva, o qual, enquanto pastor
em Pires do Rio, realizou o primeiro culto da Igreja de Deus na nascente cidade de
Brasília; Aristoclides Santana; José Gonçalves (1903-1996); Mamede Julião da
Costa (1903-1976); Luiz Rodrigues do Prado; Jonas de Souza Ângelo (1929-) no
Rio de Janeiro; e José Nogueira Pacheco (1927-1989) em Juiz de Fora. Graças aos
seus árduos e abnegados esforços, a Igreja de Deus chegou ao bairro da Abadia
em Belo Horizonte, capital mineira.143
Depois de muitas dificuldades e tantas inconveniências, finalmente, em 1947,
a Igreja Evangélica do Calvário Pentecostal no Brasil torna-se uma entidade
independente de Madureira. Entretanto, o mais difícil foi tirar Madureira do Calvário
Pentecostal! Durante longos anos, o Calvário não passava de uma autêntica cópia
em minúsculo tamanho da gigante do Rio de Janeiro!
Bill Watson (1930-2016) destaca que o Calvário Pentecostal mantinha apenas
duas obras missionárias, além de um orfanato na Índia e algumas poucas
congregações no Brasil. Faltando as condições mínimas para manter a obra em
solo brasileiro, o ministério do Calvário Pentecostal entregou aqueles poucos
trabalhos para a Igreja de Deus no decorrer de 1955. 144

Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil

Em resultado daquele histórico e sobrenatural mover do Espírito Santo na


periferia da cidade de Los Angeles, Califórnia, a partir de 1906, surgiram vários
movimentos pentecostais independentes em diferentes lugares dos Estados Unidos
e do Canadá. À procura de apoio e comunhão, alguns desses grupos
independentes uniram-se para a formação de novas denominações. Uma delas
aconteceu em Flatwoods, Kentucky, na quinta-feira, dia 10 de maio de 1917, onde
foi organizada a The Pentecostal Church of Christ.145

142
Nota de destaque para sua esposa, Maria Senhorinho (1915-1992), uma desbravadora natural de
Catalão, que veio a falecer em Brasília, faltando 15 dias para completar 77 anos. Dados fornecidos
dia 29 de dezembro de 2018, diretamente da Capital Federal, pelo pastor Welligton Senhorinho, neto
do mencionado casal, a quem muito agradecemos pela amabilidade.
143
Esses e tantos outros homens e tantas mulheres deixaram um legado no Brasil. Os rastros ficaram
nas montanhas e nos vales da vida! Convivi com todos eles. Eram homens simples; não obstante,
adornados por uma áurea de fé e coragem.
144
Dia 30 de agosto de 2019, realizei vários cruzamentos de pesquisas na busca de encontrar
informações da The Calvary Pentecostal Church na cidade de Olympia, estado de Washington.
Certamente dados tão antigos que nunca chegaram às redes sociais.
145
Em maio de 1917, aquela localidade ainda mantinha o nome original de Advance. Somente em
1938 ela passou a ser chamada Flatwoods, nome que perdura até nossos dias.
Em dezembro de 1934, após 17 anos da organização da Igreja de Cristo
Pentecostal, a denominação enviou o primeiro missionário para o Brasil.

Foi então que 22 de dezembro de 1934, atendendo ao chamado do Mestre, partiu da


cidade de New Orleans, a bordo do navio Delsud como primeiro missionário enviado ao
Brasil pela Pentecostal Church of Christ. [...] Após longa viagem, no dia 9 de janeiro de
1935, Horace S. Ward chegou à quente cidade do Rio de Janeiro, então capital do
Brasil. Sem conhecer ninguém e sem falar português, aportava numa terra nuncas antes
visitada por ele. (SILVA, A.; SILVA, W.; SOUSA, s/d, p.11). 146

O missionário em apreço era Horace Singleton Ward (1906-1993), um jovem


na casa dos 28 anos, solteiro e portador de uma visão de Deus para uma grande
nação que recentemente havia enfrentado mais uma de suas peculiares revoltas,
desta feita a Revolução Constitucionalista de 1932. Esse movimento quase abortou
o estado de São Paulo do Brasil. Por um curto espaço de tempo, aquele jovem e
dinâmico missionário permaneceu na cidade do Rio de Janeiro, o então Distrito
Federal do Brasil. Enquanto dedicava-se ao estudo da língua portuguesa,
trabalhava junto à Assembleia de Deus, que se tornou o respeitado e crescente
ministério do Campo de São Cristóvão, já naquela época (1935) com “mais de dois
mil membros” (ARAÚJO, 2014, p. 154). À medida que orava, estudava e meditava
entendeu que Deus estava a chamá-lo para o Nordeste. 147
Seguindo a orientação de Deus para o exercício do seu ministério, Ward
optou por fixar moradia em Vila Bela, que somente em 1939 recebeu o nome de
Serra Talhada, município incrustado no sertão pernambucano, capital do xaxado e
distante cerca de 400 quilômetros da cidade do Recife. Foi na então pequena Vila
Bela onde nasceu Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, o lendário
e propagado rei do cangaço. Para muitos pobres sertanejos, Lampião era a figura
encarnada de Robin Hood na história dos cangaceiros em terras Tupininquins. “Os
cangaceiros do Brasil, meio guerrilheiros e meio bandidos, são também por vezes
venerados como santos” (ESPÍRITO SANTO, 1990, p. 130). Foi em Serra Talhada
que Horace Ward organizou mais uma obra protestante/pentecostal no Brasil. O
trabalho foi inaugurado a 25 de janeiro de 1937 com o nome de Igreja de Cristo
Pentecostal de Serra Talhada.
Com o desenvolvimento da obra, entenderam que a visão de Deus era de
âmbito nacional. Assim, no ano de 1949, o nome foi alterado para Igreja de Cristo
Pentecostal do Brasil. Diante da comunhão de âmbito internacional, somente em

146
Sábado, dia 5 de maio de 2018, estive no porto de New Orleans acompanhado pelos pastores
Aguilcemo Santana, Marcos Martins, João Camilo e Zaqueu da Silva. O propósito de visitar o local de
onde zarpou Horace Singleton Ward para o Brasil no apagar das luzes do ano de 1934. Nesse
período, já havia fumaça das brasas sob as cinzas que geraram o encontrolável fogaréu da Segunda
Grande Guerra Mundial. Como a anterior, o estopim estava localizado na Europa!
147
Em agosto de 1956, ou seja, 22 anos após o jovem Horace Singleton Ward zarpar pelo porto de
New Orleans, estado de Louisiana, com destino ao Brasil, outro jovem com 26 anos chega àquela
importante cidade: Bill Elwood Watson. Depois de participar da Assembleia Geral da Igreja de Deus
realizada em Memphis, Tennessee. Watson, tendo em mãos todos os documentos exigidos,
comparece no Consulado Geral do Brasil em New Orleans, onde, em poucas horas, recebeu os
devidos carimbos nos passaportes. Agora, o caminho estava livre para ele, esposa, filho e filha
chegarem ao Brasil.
1978 foi adotado o nome de Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil. Horace Ward
permaneceu por 34 anos no Brasil, regressando definitivamente aos Estados Unidos
em 1969, onde veio a falecer em 1993, já na casa dos 87 anos. Entre os vários
legados deixados no Brasil pelo missionário Horace Ward, que nasceu no mesmo
ano do avivamento na Azusa Street (1906), há a implantação da Igreja de Cristo
Pentecostal em diferentes localidades da região do Nordeste. Ele foi um incansável
e visionário evangelista que palmilhou todo o sertão nordestino, levando a água da
vida aos mais sedentos dos povos em terras brasileiras. 148

Igreja Evangélica do Avivamento Bíblico

Oficialmente a Igreja do Avivamento Bíblico foi iniciada no feriado do dia 7 de


setembro de 1946,149 sob a sombra dos eucaliptos que cobriam a área nos fundos
da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista do Brasil, em Rudge Ramos,
município de São Bernardo do Campo, parte da Grande-São Paulo. Nessas alturas,
um grupo de metodistas que serviam nas igrejas em Vila Mazzei e Tucuruvi, bairros
da zona oeste paulista, estava crendo e buscando o batismo com o Espírito Santo.
Naquela data, o avivamento alcançou os seminaristas Mário Roberto Lindstron,
Oswaldo Fuentes e Alídio Flora Agostinho, que resolveram manter a obra iniciada
no seio da igreja Metodista.
Pela intensidade de contínuas orações, aqueles jovens receberam
jocosamente a alcunha de grupo do clamor, atividade que foi mudando a visão das
duas igrejas na busca da ação direta do Espírito Santo. Como era de se esperar, o
grupo não pôde ser tolerado por muito tempo no seio dos metodistas. Logo o grupo
do clamor foi convidado a deixar a Igreja Metodista.

Depois da exclusão, passamos por momentos difíceis. Não nos conformávamos de


maneira nenhuma com o que nos havia acontecido. O nosso desejo era que o
avivamento espiritual que vínhamos experimentando atingisse toda a igreja e não
ficasse estrito a um grupo reduzido. (SILVA, Aloísio, 2016, p. 44).

A princípio, não havia nenhum interesse em criar outra denominação, porém


o movimento foi ganhando força e, finalmente, optaram pelo nome que permanece
até os nossos dias, Igreja Evangélica do Avivamento Bíblico. 150 Hoje, o Avivamento
Bíblico tem igrejas implantadas em todos os estados brasileiros e extrapolou suas
atividades além do território Nacional, desenvolvendo ações missionárias no Chile,
no Uruguai, no Paraguai e na Argentina.

Igreja do Evangelho Quadrangular


148
Segundo o site <www.ipda.com.br>, o então conhecido missionário David Martins Miranda (1936-
2015) foi membro da Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil e consagrado ao pastorado em 15 de abril
de 1961 na cidade de São Paulo.
149
Naquele feriado, eram comemorados os 124 anos da Independência do Brasil de Portugal em
1822, ato final também ocorrido em um sábado, no atual bairro do Ipiranga em São Paulo.
150
Durante os meus 10 anos em São Paulo, tive a oportunidade de me reunir com diferentes líderes
do Avivamento Bíblico. Em 1986, encontrei-me pela última vez, em La Paloma, Paraguai, com o
pastor Alidio Flora Agostinho, então presidente dessa denominação.
International Church of Foursquare Gospel, expressão inglesa para identificar
a Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular. A Quadrangular está entre as
grandes e históricas denominações protestantes/pentecostais surgidas nos Estados
Unidos nos primeiros decênios do século XX. Sua fundadora foi a canadense Aimee
Semple McPherson (1890-1944), cuja biografia é uma história pintada de
controvérsias, escândalos, tragédias e bravuras. Aimee era filha de pai metodista,
enquanto sua mãe foi uma dedicada oficial do Exército da Salvação. Aimee
McPherson foi uma mulher marcada pelo destino. Viu o primeiro marido morrer e
acabou sendo abandonada pelo segundo, porém nada abalou a sua fé e chamada
ministerial.

Ela casou-se com o evangelista pentecostal Robert Semple em 12 de agosto de 1908. O


marido morreu, na China, de malária, exatamente dois anos depois. No mês seguinte,
sua filha nasceu, em Hong Kong, e então ela retornou aos Estados Unidos, confusa e
magoada, sendo ainda vista como um exemplo de fracasso por seus amigos
pentecostais. Apenas um ano mais tarde, ela casou-se com Harold McPherson e
mudou-se para Rhode Island, onde seu filho Rolf nasceu. A consciência do chamado
divino sobrepujou sua necessidade de segurança terrena, por isso ela retornou ao
Canadá a fim de reingressar no ministério. O marido a acompanhou por um tempo, em
suas atividades ministeriais, mas o estilo de vida adotado por ela exigia um alto preço de
ambos, e ele acabou retornando a Rhode Island. O casal divorciou-se em 1921. [...] Um
desastroso terceiro casamento durou menos de dois anos. (SYNAN, 2009, p. 338, 342).

Com destino à Califórnia, essa carismática pregadora pentecostal cruzou


todos os Estados Unidos, da Costa Leste até a Costa Oeste, em 1918. Por onde
passava com sua equipe, armava tendas de lonas em áreas baldias, locais aonde
afluíam as multidões. Nessas tendas, foram registradas as realizações de milagres,
curas e manifestações do sobrenatural. Nesse cruzar de costa a costa, ela instalou
o seu quartel-general na cidade de Los Angeles aos 33 anos. Foi tudo muito rápido.
Cinco anos depois, em 1º de janeiro de 1923, ela inaugurou o Angelus Temple, local
que se tornou um ponto referencial do protestantismo pentecostal na Costa Oeste
americana. Sua influência foi de tal grandeza que, no ano seguinte, McPherson
tinha em seu poder a concessão da primeira estação de rádio evangélica nos
Estados Unidos. “In February of 1924, Aimee opened Radio KFSG - Kall Four
Square Gospel, with the first FCC license ever issued to a woman. It was also the
first Christian radio station ever operated” (LIARDON, 1996, p. 256).151
Muitas pessoas ligadas às produções cinematográficas foram impactadas
pelas calorosas mensagens proferidas por aquela

mulher temperada na áspera luta de conversão à Bíblia. Conquanto não fosse bonita, a
extraordinária simpatia e a marcante presença emprestavam-lhe uma graça especial
[...]. A história da igreja, no Brasil, começa a 27 de novembro de 1913, em Hollywood, a
capital mundial do cinema, com o nascimento de Harold Edwin Williams, um fogoso
protagonista de papéis secundários em filmes far-west violentos, que abandonou a

151
Em fevereiro de 1924, Aimee iniciou a Rádio KFSG, Kall Four Square Gospel. Ela conseguiu a
primeira licença emitida pela FCC para o funcionamento de uma emissora Cristã nos Estados
Unidos, sendo também a primeira mulher a dirigir uma estação de rádio. (Tradução de Carlos
Boaventura Jr.).
carreira artística para cursar o seminário Life, da Igreja Quadrangular Internacional.
Mesmo antes de ordenar-se, em 1940, já estava casado com a pastora Mary Elisabeth
e, depois de formado ocupou, sucessivamente, os cargos de pastor auxiliar, pastor
efetivo e supervisor da mocidade do Evangelho Quadrangular em onze Estados
americanos. (LIMA, D., 1987, p. 77, 79).

Aimee visitou, muitas vezes, o campo missionário. Em 1943, ela viajava pelo México
quando contraiu uma febre tropical. Um ano depois, em 22 de setembro de 1944, Aimee
morreu, depois de pregar um sermão em Oakland. Sua morte foi atestada como
decorrente de choque e falência respiratória, em razão de uma overdose de
comprimidos para dormir receitados por um médico. (SYNAN, 2009, p. 189).

Aimee, que era carinhosamente conhecida como Irmã Aimee e adornada de


certa humildade, muito apreciava esse respeitoso tratamento, foi precocemente
recolhida aos tabernáculos eternos, quando faltavam dezesseis dias para completar
54 anos. Era uma mulher marcada pelo destino!
O ex-ator Harold Edwin Williams (1913-2002), sua esposa e seu filho
chegaram ao Brasil em 1950. Certamente pelo agradável clima e por ser cercada de
montanhas, escolheram a cidade mineira de Poços de Caldas, onde residiram por
pouco tempo, optando depois pelo vizinho estado de São Paulo. Na quinta-feira, 15
de novembro de 1951, feriado em comemoração aos 64 anos da Proclamação da
República, a família Williams começou uma nova obra protestante/pentecostal no
Brasil. Esse trabalho foi iniciado na cidade de São João da Boa Vista, região Centro-
Leste do interior paulista.

No ano de 1951, fundou a Igreja Evangélica do Brasil, de doutrina quadrangular, que era
a mentora da Cruzada Nacional de Evangelização. Em 1958, sete anos depois, a igreja
mudou de nome, passando a chamar-se Igreja do Evangelho Quadrangular, como nos
Estados Unidos. (CÉSAR, 2000, p. 131).

Em 1954, o trabalho quadrangular levou para o Brasil a primeira tenda


utilizada na obra de evangelização, a qual tinha espaço para acomodar 1.200
pessoas sentadas. A princípio, ela foi instalada em São Paulo, atraindo sempre uma
numerosa clientela ávida por minorar, na tenda dos milagres, os males físicos que a
afligiam. Esses métodos pioneiros chegaram ao Brasil pelas mãos dos missionários
enviados pela Igreja do Evangelho Quadrangular em Los Angeles.
Segundo as informações que nos foram enviadas pelo Dr. Cairo Marques, a
Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil tem hoje aproximadamente 25 mil
ministros, cerca de 13 mil igrejas e congregações e mais de três milhões de
membros espalhados por todos os estados da Federação.

Diferentemente dos demais grupos pentecostais e bem antes das Assembleias de Deus,
os quadrangulares encorajaram o preparo bíblico e teológico de seus obreiros. Em 1957,
seis anos depois da organização da Igreja do Evangelho Quadrangular, no Brasil,
chegou a missionária Doroty Marguerite Hawley para cuidar desta área. Ela fundou, em
São Paulo, o Instituto Foursquare, atualmente chamado Instituto Teológico
Quadrangular. (CÉSAR, 2000, p. 131).

O IBQ (Instituto Bíblico Quadrangular) foi a primeira escola de cunho


pentecostal instalada no Brasil, cujo nome, posteriormente, foi alterado para Instituto
Teológico Quadrangular. A fundadora e primeira Diretora, missionária Marguerite,
permaneceu nesse cargo durante 25 anos, até o final de 1982, ocasião em que
retornou aos Estados Unidos. Foi substituída pelo Dr. Cairo Marques, que ocupou
essa função até 1993, ano em que seguiu para a região da Nova Inglaterra, nos
Estados Unidos. Aquelas aulas iniciadas em 7 de janeiro de 1957, em São Paulo,
que por um ano contaram com a assistência da professora Dora Stuart, uma
missionária pedagoga americana, ganharam tal volume que se transformaram, nos
dias atuais, em mais de 347 cursos teológicos espalhados pelo Brasil atendendo
milhares de estudantes.

Igreja de Deus no Brasil

Segundo o falecido historiador, Dr. Charles William Conn (1920-2008), o


primeiro contato da Igreja de Deus com o Brasil foi em 1948, quando da visita do
reverendo Vessie D. Hargrave (1915-1987), um paladino da obra missionária que
instalou sua base em San Antonio, uma estratégica cidade no estado do Texas. O
americano Vessie Hargrave foi o primeiro superintendente da Igreja de Deus para a
América Latina e permaneceu no cargo durante 17 anos, de 1946 até 1963. Foi uma
peça de suma importância para a expansão protestante/pentecostal em diferentes
países da América do Sul, o continente que estava em seu coração, a menina dos
seus olhos!
Além da cidade de Americana, São Paulo, onde visitou um odontólogo
descendente dos ex-confederados que ali se instalaram nos finais do século XIX,
também esteve em Morretes, Paraná. A escala no Paraná foi para uma cordial visita
ao missionário Albert J. Widmer, que havia tido contato com a Igreja de Deus em
Isla Maciel, Buenos Aires, quando da inauguração do templo no mês de março de
1944. Três anos após aquela cordial visita em 1948, Albert J. Widmer foi
reconhecido pelo então Comitê de Missões em Cleveland, Tennessee, logo
iniciando a primeira etapa da Igreja de Deus no Brasil. Antes de unir-se à Igreja de
Deus, Albert J. Widmer foi o pioneiro e fundador da Assembleia de Deus em
Florianópolis, Santa Catarina, em 1938. No Brasil, seu sustento financeiro provinha
de diferentes denominações, além um grupo de amigos na Inglaterra. Apesar de a
primeira etapa da Igreja de Deus no Brasil ter se iniciado em 1952, em Morretes,
uma praiana cidade turística paranaense, por razões desconhecidas, a obra não
prosseguiu. Naquele mesmo ano, a propriedade foi vendida, terminando, assim, a
primeira fase dessa denominação no Brasil.

Novos passos

A Igreja de Deus somente regressou ao Brasil quando da amalgamação com a


Igreja Calvário Pentecostal. Esta organização havia aportado no Brasil, como já
citado em páginas anteriores, em 1934. Diante da escassez de obreiros, somada à
falta de apoio financeiro, a Igreja Evangélica do Calvário Pentecostal uniu-se com a
Igreja de Deus. Todas as formalidades foram realizadas em Cleveland, Tennessee,
nos Estados Unidos. Em virtude dessa união, a missionária Mathilda Paulsen voltou
ao Brasil em julho de 1954. Em maio do ano seguinte, os líderes do Calvário
Pentecostal no Brasil aderiram unanimemente à união com a Igreja de Deus. A ata
da formalidade foi assinada em Ipameri, Goiás, na quinta-feira, 12 de maio de 1955.
Naquela época, o professor Wayne McAfee, um polímata americano, era o
representante legal da Igreja de Deus no Brasil.
Wayne McAfee era um intelectual de poucas falas. Sua massa corporal
estava bem repartida em seus quase dois metros de altura. Além do inglês, falava
fluentemente o espanhol. Ademais, foi um hábil comunicador em português. Sua
sensibilidade levou-o a ser amado pelos pastores e por tantos amigos. Além de
sensível, extremamente educado e amável, era também uma pessoa altamente
intelectual, fato que lhe abriu portas a diferentes personalidades na cidade do Rio de
Janeiro. Tornou-se professor de uma renomada escola americana instalada na
velha Capital Federal, onde foi mentor de filhos de importantes famílias cariocas.
McAfee, antes de chegar ao Brasil em 1954, havia servido em missões na
Guatemala por quase dois anos - 1953-1954. Após sua estadia na Guatemala, foi
presidente do Instituto Preparatório Internacional em San Antonio, Texas. Sua
passagem por esse centro de treinamento foi rápida, sendo logo transferido para o
Brasil, onde foi o primeiro supervisor da Igreja de Deus, função exercida até 1960.

Novo supervisor

Com o regresso definitivo do professor Wayne McAfee para os Estados


Unidos, o Departamento de Missões Mundiais da Igreja de Deus nomeou um novo
supervisor para cuidar da nascente obra no Brasil: o jovem Bill Elwood Watson. O
pastor Bill Watson desembarcou no Brasil com a idade de 26 anos e, como já
mencionado, chegou ao porto do Rio de Janeiro no alvorecer de quarta-feira, 17 de
outubro de 1956, acompanhado de sua esposa, Rhoda Watson, com 23 anos, o
filho Marcos, com menos de 2 anos, e a filha Rebeca, com alguns meses de
nascida.152 Bill Watson veio ao mundo na quinta-feira, 28 de agosto de 1930, no
estado da Virgínia, no decorrer do marcante período da Grande Depressão
econômica americana. A Grande Depressão afetou a economia e o comércio em
todos os continentes, provocando uma queda sem precedentes mundo afora e
formando um verdadeiro efeito dominó. Em 1939, fugindo do clima frio e úmido da
Virgínia,153 a família Watson seguiu rumo ao oeste, alojou-se por um período no
estado do Ohio e, finalmente, em outubro de 1945, estabeleceu-se em Phoenix,
152
Marcos nasceu em Balboa, cidade junto ao Canal do Panamá, e Rebeca no Hospital da Igreja
Adventista do Sétimo Dia em Phoenix, estado do Arizona. Uma nítida família transcultural, tendo em
vista que dois outros filhos nasceram no Brasil.
153
A Virgínia é conhecida por Mother of President’s. Desse histórico estado, oito candidatos
chegaram à presidência dos Estados Unidos da América do Norte: George Washington (1732-1799),
o primeiro presidente; Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro; James Madison (1751-1836), o
quarto; James Monroe (1758-1831), o quinto; William Henry Harrison (1773-1841), o nono; John
Tyler (1790-1862), o décimo; Zachary Taylor (1784-1850), o décimo segunto; e Thomas Woodrow
Wilson (1856-1924), o vigésimo oitavo. Todos eram protestantes brancos, membros da maçonaria e,
como era de praxe, alguns possuíam normalmente escravos negros que os serviam.
Arizona. Aos 16 anos, no decorrer de uma viagem noturna entre Arizona e
Califórnia, o jovem Bill Watson envolveu-se em um acidente automobilístico no qual
perdeu o braço esquerdo. O acidente levou-o a tomar uma séria decisão na vida
espiritual, aceitando a chamada missionária. Seus pais - que tive a oportunidade de
conhecer - tiveram uma grande influência em sua formação espiritual e ministerial.
Rhoda Rundell nasceu em uma ampla fazenda perto da cidade de Elfrida, no
Arizona, na sexta-feira, dia 2 de junho de 1933, filha de pastores
protestantes/pentecostais. Aos três anos, em 1936, acompanhou a família para
evangelizar e implantar igrejas nos estados de Idaho, Oregon e Washington. No
decorrer de sua infância, assim era a oração daquela menina de cabelos loiros e
olhos azuis que chegou ao Rio de Janeiro aos 23 anos, como missionária ligada a
uma igreja de linha pentecostal: “Deus, se existe algum lugar nesse mundo em que
eu possa ser útil, leva-me até lá!”
Anos após essa oração de criança, toda a família Rundell retornou para o
Arizona. Os pais de Rhoda estavam pastoreando em Eloy. Pela amizade com a
família Watson, surgiu o namoro, o noivado e, finalmente, o casamento de Bill e
Rhoda Watson em 1953. Ele com 23 anos e ela com 20. Formaram um sonhador e
romântico casal! Como se diz no jargão popular, uniram o útil ao agradável. Na
semana seguinte ao casamento, ambos estavam sendo entrevistados pelos
membros de Missões Mundiais da Igreja de Deus, em Cleveland, e logo seguiram
para trabalhar em Sierra Madre, no México. Percorrendo as altas e baixas altitudes
da Sierra Madre, ocorreu o crucial e decisivo teste para o casal sonhador. Sob não
poucas agruras, foram aprovados. A Igreja de Deus no México foi iniciada por Maria
Rivera Atkinson (1879-1963), uma pregadora mexicana convertida nos Estados
Unidos. Em 1954, Bill e Rhoda Watson foram para o Panamá, onde seu filho Marcos
nasceu. Ali trabalhando, ouviram pela primeira vez falar sobre os desafios existentes
no Brasil, um gigantesco país do Terceiro Mundo. Tratava-se de uma longíngua
nação, de onde chegavam as tardias notícias de que Getúlio Dornelles Vargas
(1882-1954), um advogado agnóstico, fazendeiro e 17º presidente do Brasil, havia
terminado de se matar no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, na fatídica noite de
São Bartolomeu, terça-feira, 24 de agosto de 1954. Na esteira da economia global,
o Brasil era classificado como um país pobre lutando para se deslocar das areias
movediças que procuravam soterrá-lo completamente.
Em 1957, cerca de um ano após sua chegada ao Brasil, Bill Watson, aos 27
anos, foi nomeado supervisor da Igreja de Deus na Região Central, morando a
princípio na cidade de Uberlândia e posteriormente em Goiânia. Três anos mais
tarde, aquele jovem acumulou interinamente a supervisão da então Região Litoral
em substituição ao professor McAfee, que renunciou à sua função ministerial no
Brasil por questões pessoais e regressou para os Estados Unidos.

Sem dinheiro e com uma grande visão

Juventude, visão e um casal de filhos, era tudo que Bill e Rhoda Watson
possuíam. Foram nomeados em maio de 1956 para trabalharem no Brasil sob a
supervisão de Wayne McAfee, o qual morava na vila Fontinha, que naquela época
não passava de um distante bairro de Honório Gurgel, região periférica norte do Rio
de Janeiro. Na segunda-feira, dia 1 o de outubro de 1956, passados 46 anos que
Gunnar Vingren e Daniel Berg zarparam do porto de New York para a cidade de
Belém do Pará pelo mesmo caminho marítimo aberto no oceano Atlântico, agora
segue a família Watson, protestantes pentecostais americanos, levando uma
mensagem de renovação e avivamento ao Brasil.
Os tempos mudaram. Bow Hill não possuía terceira classe, como havia no
Clement, porém era um navio cargueiro onde havia espaço para alguns poucos
passageiros. O Bow Hill era um gigantesco navio misto pertencente a uma empresa
americana que tinha eventuais portos brasileiros em suas rotas. Além dos
resumidos passageiros que não representavam nem os dedos das mãos,
transportava três grandes locomotivas, centenas de tambores de piche para asfaltar
a pista do aeroporto de Brasília, sem contar outras toneladas de materiais para usos
diversos no Brasil. Era o período de um Brasil extremamente dependente da
tecnologia estrangeira e sem o suficiente capital para fazer a máquina girar e
produzir. Em 1986, passados 30 anos daquela emocionante e romântica viagem,
fazendo sua tese de mestrado na Escola de Teologia da Igreja de Deus, em
Cleveland, assim escreveu Bill Watson, recordando aquela inesquecível viagem:

Quando saímos do porto de New York, deixando a Estátua da Liberdade


desaparecendo-se atrás, a Rode expressou um desejo que o nosso barco passasse por
uma tempestade no mar. Ela tinha lido vários livros, que falavam de tempestades no
mar, e lhe parecia uma aventura emocionante. Parece que o Senhor lhe ouviu, e deu-lhe
o que desejava o seu coração! Encontramos um furacão da costa de Venezuela. O
piloto mudou o rumo para o leste, para dar a cara ao vento. A viagem de 15 dias tornou-
se uma viagem de 17 dias. A segunda noite da tempestade, de madrugada, o navio
inclinou-se tanto que o berço da Becky veio deslizando-se pelo piso do camarote e
ouvimos estrondos de coisas caindo e quebrando, apesar de tudo ter sido assegurado
contra a tempestade. Nós e os demais passageiros juntamos na sala e passamos o
restante da noite ali, as ondas balançando o navio como se fosse uma cortiça.
(WATSON, 2008, p. 17).

A família Watson chegou ao Brasil cinco dias antes do início da construção do


Catetinho em Brasília, obra iniciada a 22 e concluída nove dias depois, a 31 de
outubro de 1956, data da comemoração dos 439 anos da Reforma Protestante, dia
esquecido no calendário brasileiro. O Catetinho, projetado pelo mitológico Oscar
Niemeyer (1907-2012), foi a primeira residência oficial do presidente Juscelino
Kubitschek de Oliveira154 (1902-1976) no Planalto Central durante a construção de
Brasília, a nova Capital Federal. Além de Brasília, o renomado Oscar Ribeiro de
Almeida Niemeyer Soares Filho, um declarado e ativista comunista carioca que
viveu até aos 105 anos, projetou célebres construções que se tornaram verdadeiros
monumentos em vários lugares do mundo, inclusive o edifício da Organização das
Nações Unidas, localizado no setor leste de Manhattan em New York City.

“Juscelino Kubitschek de Oliveira, presidente da República de 1956 a 1961, foi o mais proeminente
154

ex-seminarista do Brasil. Seu avô paterno, que fora maçon anticlerical, adquiriu respeito pela Igreja,
converteu-se e passou a lecionar história religiosa” (SERBIN, 2008, p. 113)
O golpe político que se transformou no regime militar de 1964 foi tramado
para apagar os anseios de alguns políticos populares, entre os quais se encontrava
o carismático senador Juscelino Kubitschek, representante de Goiás e candidato
imbatível para regressar ao Palácio da Alvorada em Brasília. O caminho estava
aparentemente livre para ele ocupar o seu segundo mandato, embora as ameaças
marxistas dissessem o contrário. As eleições presidenciais estavam marcadas para
o ano de 1965. No Rio de Janeiro, então estado da Guanabara, estava o
governador Carlos Frederico Werneck Lacerda (1914-1977), um jornalista
autodidata ligado aos partidos da esquerda. Lacerda sonhava com altos voos e
elevadas posições e era o mais ferrenho inimigo político de Juscelino Kubitschek.
Do Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro, antiga residência da princesa Isabel e
do Conde d’Eu, Carlos Lacerda disparou um ataque verbal no uso de sua notável
oratória: “Juscelino Kubitschek não pode ser candidato. Se candidato, não pode ser
eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Sem tomar posse, não pode governar”
(BIAL, 2004, p. 198) O homem era uma autêntica máquina na verbalização de seus
afinados discursos quando o assunto estava ligado ao inimigo político. De pouca
sorte e, semelhante a um sonho sonhado e uma névoa impalpável, tudo parecia
castigo dos deuses pelo seu muito falar. No andar da carruagem em busca do
poder, Lacerda teve os direitos políticos cassados pelo Regime Militar, morrendo no
Rio de Janeiro aos 63 anos, vítima fatal de um infarto no miocárdio. ”A confiança é
silenciosa, a arrogância é espalhafatosa”. Esse é o filosofar do empreendedor Silas
Pinto do Amaral, um paulista radicado em Orlando, Flórida.

Desafios e avanços

A Igreja de Deus foi a primeira denominação pentecostal no Brasil a ter um


governo eclesiástico mais próximo das diretrizes do episcopalismo. Ela tem uma
sede internacional de onde supervisiona, por intermédio de vários oficiais, cada
trabalho local, hoje em mais de 180 países do planeta. Ressalva-se que, em seu
governo meio episcopal e meio congregacional, em nível internacional, não há
espaço para caudilhos em cargos vitalícios; também o nepotismo tem sido debatido
e descartado, evitando-se as posições hereditárias.
Embora a Igreja de Deus seja considerada a mais antiga obra pentecostal
iniciada nos Estados Unidos, ela está muito longe de ser a maior em registro de
membros. Isso tem acontecido na outra América e no Brasil. Sua expansão à base
de conta-gotas é lenta, orgânica, porém coesa. Mesmo com o seu crescimento
vegetativo, tem alcançado todos os estados brasileiros, com mais de 50 mil
membros.
Em março de 1964, pouco antes da estratégia política que culminou com o
Regime Militar, iniciaram-se as aulas no Instituto Bíblico da Igreja de Deus, o
saudoso IBID. As aulas começaram em um acanhado prédio inacabado no centro
da Praça Dona Seráfica, no então longínquo Parque Amazonas, na época uma
esquecida e periférica nascente vila da cidade de Goiânia, onde não havia nenhuma
infraestrutura. As instalações físicas daquela escola foram construídas e
administradas pelo missionário Bill Watson. É certo que o lendário IBID foi a
primeira escola pentecostal instalada em todo o Centro-Oeste brasileiro.
Como era de se esperar, na época houve uma forte resistência de muitos
pastores e outros líderes pentecostais. A ideia predominante por aqueles anos do
analfabetismo histórico era que os pentecostais não deveriam gastar tempo
alisando bancos de seminários ou mesmo de institutos bíblicos. Faltavam-lhes
conhecimentos dos fatos que a História tem traçado; desconheciam que o
movimento pentecostal do século XX se iniciou em 1901 na Escola Bíblica Betel em
Topeka. Outra dosagem do pentecostalismo, conhecida por Chuva Serôdia, surgiu
em fevereiro de 1948 na Escola Bíblica Sharon, em North Battleford, Saskatchewan,
no Canadá. Porém a realidade brasileira na década de 1960 era totalmente
diferente do extremo norte da América.

As primeiras casas de profetas no Brasil pentecostal

Considerando as datas informativas dentro das pesquisas disponíveis, o até


onde chegou aos nossos conhecimentos, o Instituto Bíblico da Igreja de Deus é a
quarta escola pentecostal a nível nacional no Brasil. O Instituto Bíblico Quadrangular
iniciou-se em janeiro de 1957, em São Paulo, sob a direção da missionária Dorothy
Marguerite Hawley. O Instituto Bíblico das Assembleias de Deus iniciou-se em 15 de
outubro de 1958, na cidade de Pindamonhangaba,155 estado de São Paulo, sob a
direção do missionário João Kolenda.

IBAD - Instituto Bíblico das Assembleias de Deus, fundado em 1958 pelo Pr. João Kolenda
Lemos, brasileiro, descendente de alemães. Sua esposa, Ruth Doris Lemos - falecida em
2009 - pastora assembleiana, é norte-americana. Hoje, são considerados heróis, mas,
durante anos, foram tratados como desviados, rebeldes e não foram excluídos da AD
porque, embora no Brasil, permaneceram filiados à AD nos EUA [...]. Durante décadas,
seminários foram tratados pejorativamente como Fábricas de Pastores e rejeitados por irem
contra a tradição da Assembleia, e porque essa igreja nasceu e cresceu sem a existência
deles. (ALENCAR, 2010, p. 92).

Dez anos antes (1948), no decorrer da histórica Convenção da Assembleia de


Deus na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, a “proposta de um seminário foi
rejeitada”. Oito anos após a existência do Instituto Bíblico da Assembleia de Deus,
ainda havia hercúlea resistência de líderes de peso da denominação. Continua o
professor Gedeon Alencar:

Na Ata da 9a Sessão da 18a Convenção em Santo André, em 1966, o pr. Anselmo Silvestre,
de Belo Horizonte, se posicionou contra a proposta de criação de seminários, que ele chama
de Fábrica de Pastores, pelo perigo de alguns ficarem com as cabeças cheias e o coração
vazio. (ALENCAR, 2010, p. 92).

O Instituto Bíblico Pentecostal, também ligado às Assembleias de Deus, foi


fundado no bairro de Cascadura, Rio de Janeiro, em 1961, pelo missionário Nels
Lawrence Olson (1910-1993), um sueco-americano que chegou ao Brasil
155
O topônimo deriva-se da língua tupi e significa “lugar onde se fazem anzóis”. Não deixa de ser curioso:
o IBAD tem preparado pessoas que estão a pescar almas em diferentes partes do mundo.
acompanhado de sua esposa, Alice Olson (1909-1995), na quarta-feira, 7 de
setembro de 1938, feriado em comemoração dos 116 anos da Independência de
Portugal. Após um ano de estudos da língua portuguesa em Belo Horizonte, o casal
seguiu para a cidade de Lavras, localizada no Sul de Minas Gerais. Além de
professor, conferencista, escritor e tradutor, Lawrence Olson ficou conhecido pelas
ondas sonoras; foi dele a iniciativa da apresentação do programa A Voz das
Assembleias de Deus, algo inovador que quebrou não poucos tabus.
O Instituto Bíblico da Igreja de Deus, em Goiânia, teve, juntamente com seu
início, um acadêmico corpo docente. Todos os seus professores eram americanos
com formação universitária. Destaque honroso para as moças que já se
encontravam no Brasil desde 1960. As moças eram quatro missionárias solteiras
graduadas pelo Lee College 156, em Cleveland, Tennessee: Ruth Crawford, natural
de Arkansas; Milie Crosswhite, vinda de Idaho; Janete Carter, da Califórnia; e Mary
Frances Poe, nascida no Tennessee. Bill Watson destaca alguns dos talentos dessas
moças: “Ruth era uma excelente e eficiente secretária. Millie era uma boa cozinheira
e dedicada professora. Janete era uma dotada artista e Mary Frances era mais
inclinada para a música e o trabalho com a mocidade” (WATSON, 2008, p. 53).157

Igreja Pentecostal O Brasil Para Cristo

O pernambucano Manoel de Mello e Silva (1929-1990), aos 11 anos, em 1940,


teve um sério e decisivo encontro com a realidade cristã, experiência obtida na
Assembleia de Deus em Recife. Nos meados daquele ano de 1940, no fervilhar da
Segunda Grande Guerra Mundial, ele seguiu com a família para São Paulo, a
metafórica Capital do Nordeste, em busca de um futuro mais sorridente.158 Na
capital bandeirante, ele cresceu, trabalhou na construção civil e posteriormente se
tornou o maior fenômeno até então na história do protestantismo brasileiro.
Infelizmente, e talvez diante da pesada cobrança por sua vida de destaque
ministerial, ele não resistiu a um fulminante ataque cardíaco. A morte o alcançou
precocemente aos 60 anos, na manhã de sábado, 5 de maio de 1990.
Diante de sua garra de fé, coragem e dinamismo, Manoel de Mello foi ainda
muito jovem duramente testado e posteriormente separado para exercer o trabalho
diaconal no imenso campo ministerial da Assembleia de Deus do Belém. “Durante o
156
Escola iniciada em 1918 com 12 estudantes e uma professora. Hoje (2021), Lee University tem
mais de cinco mil estudantes e está entre as 100 mais prestigiadas universidades dos Estados
Unidos.
157
Em 1962, aquelas moças realizaram uma Escola Bíblica de Férias no então periférico bairro do
Ipiranga, na cidade mineira de Juiz de Fora, atividade que impactou a vida de uma pequena e
sorridente criança, na época com seis anos. Passados doze anos, aquela menina tornou-se a minha
esposa. Ela recorda do tratamento cortês, até mesmo especial da parte de Janete Carter e Mary
Frances no decorrer daquela saudosa EBF. Sete anos depois (1969), Janete foi minha instrutora no
IBID, e, a partir de suas aulas, passei a entender a história da Europa, da África, dos Estados Unidos e
do Brasil dentro de um contexto geral e teológico.
158
A canção A triste partida, composta em 1964 pelo também pernambucano Luiz Gonzaga do
Nascimento (1912-1989), expressa muito bem a realidade da seca nodestina e a melancôlica jornada
para o Sul. Uma narrativa recheada de tristezas e angústias de um retirante a procura de dias
melhores, porém distantes e infindos sonhos, quase uma ilusão do utópico destino!
dia trabalhava para sobreviver como empreiteiro de obras e à noite saía pelo vasto
campo do Belém, pregando em igrejas e congregações da Assembleia de Deus”
(MELLO, 2006, p. 25). Diante de incompatibilidades ministeriais e naturais
questionamentos, foi sumariamente desligado da Assembleia de Deus do Belém.
Mesmo com a pejorativa peja de excluído, algo alarmante para a época, não se
deixou abalar; pelo contrário, sentia o revigorar de sua chamada para o exercício
ministerial. Foi nesse período que se sentiu mais atraído pelas cruzadas realizadas
em tendas pelo americano Harold Edwin Williams (1913-2002). Era aquilo que Mello
almejava realizar. Jovem, dinâmico, corajoso e extremamente prestativo em todos
os sentidos, logo foi consagrado ao ministério pastoral na Igreja Internacional do
Evangelho Quadrangular, dando continuidade às curas e aos mais diversos
milagres, algo peculiar no decorrer de sua vida ministerial. Era a Cruzada Nacional
de Evangelização. Naquele saturado ambiente avivalístico, o jovem excluído pelos
homens da Assembleia de Deus “com carisma na oratória e ousado na oração pela
cura de enfermos foi presença marcante” (PAGANELLI, 2019, p. 310).
Carismático, jovem e de personalidade afável, Manoel de Mello conquistava
multidões para Cristo, porém, novamente por divergências internas e buscando voar
mais alto, ele optou por se desligar da Quadrangular, decisão concretizada no
decorrer do ano de 1955. Em janeiro do ano seguinte, Manoel de Mello iniciou um
programa de rádio que logo se tornou líder absoluto de audiência, cujo nome era O
Brasil para Cristo, sintonizado por milhares de pessoas em todos os quadrantes da
nação. Aos 27 anos, dia 3 de março de 1956, realizou o primeiro culto, em Pirituba,
região da periferia oeste de São Paulo. O trabalho recebeu o nome de Movimento
do Caminho - Igreja de Jesus Betel. Empolgado com os resultados, o jovem Manoel
de Mello deixou de ser chamado de pastor, preferindo o título de missionário. Era
algo novo e mais light, diríamos em nossos dias, para aquele período da história
que envolvia o protestantismo importado da América ou da Europa. Missionário
soava como chefe! Sem ter noção daquilo que o futuro lhe aguardava, aquele
baixinho, jovem e sorridente pregador estava iniciando a primeira igreja pentecostal
de grande repercussão e genuinamente autóctone no Brasil. O seu sonho era
gigantesco: ganhar o Brasil para Cristo. Por essa razão, posteriormente esse se
tornou o nome oficial da organização.

O culto que oficialmente deu início ao movimento foi realizado no dia três de março de
1956, em São Paulo, na Vila Barreto, bairro de Pirituba. Daí em diante trabalhos em
vários locais se iniciaram simultaneamente. [...] Somente em 1974 seria oficializada a
denominação de Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo. (MELLO, 2006, p.
36).

No uso de tendas e emissões sonoras de rádios, o missionário Manoel de


Mello tornou-se o maior fenômeno pentecostal de sua geração e influenciou um
número sem fim de novos pregadores. Em seu áureo e popular período, Mello
arrastava multidões para ouvi-lo, não importando as circunstâncias climáticas. Era o
pregador das multidões, embora tal classificação não lhe agradasse. Algumas de
suas tendas foram destruídas a mando das autoridades. A destruição de maior
controvérsia ocorreu sob ordens do prefeito Ademar Pereira de Barros (1901-1969),
médico, aviador, poliglota e político que mais tarde se tornaria governador do estado
de São Paulo. O seu reinado político, foi longe enquanto durou! Acusado de
corrupção, Barros foi apeado do cargo em 6 de junho de 1966 sob ordens do
Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), tendo os seus direitos
políticos cassados por dez anos e todas as suas condecorações confiscadas pelo
Regime Militar. Morreu exilado em Paris aos 12 de março de 1969 com somente 68
anos.
O Missionário Manoel de Mello era o 3M dos pentecostais 159 e, mesmo sob
ameaças, processos e prisões, nunca recuou da visão evangelística; pelo contrário,
sua meta era focada em ganhar o Brasil para Cristo. Ele permaneceu com esse
intuito até ser vencido pelo inesperado e fulminante ataque cardíaco.

O reverendo Manoel de Melo transformou-se em figura controvertida, nos círculos


evangélicos, desde que conquistou tamanha popularidade. Os católicos encaravam-no
como um líder popular inovador e perigoso. Perseguiram suas reuniões, seu ministério
pelo rádio e suas campanhas políticas, da forma mais exacerbada. Líderes políticos
começaram a desconfiar de que ele invadiria o seu campo. Fizeram-se pressões políticas
sobre os setores eclesiástico, evangelístico e político de sua atividade. (READ, 1967, p.
149).

Para livrar-se de não poucas perseguições políticas das quais era alvo
certeiro e continuar suas atividades (apesar das ferrenhas acusações de
charlatanismo e de explorador dos incautos), Manoel de Mello submeteu-se a vários
mandados de prisão. “As acusações de curandeirismo e charlatanismo tinham sido,
até então, os motivos das suas várias detenções, que somadas chegaram a 27 no
decorrer de sua vida” (MELLO, 2006, p. 83). Como já mencionado, as ameaças e
prisões nunca o calaram ou mudaram o seu foco. Diante de prisões e demoníacas
perseguições, filiou-se ao Conselho Mundial de Igrejas em 1969. Para a época
abusiva vivenciada pela nação brasileira, essa foi uma sábia decisão. Manoel de
Mello buscou e encontrou um forte respaldo no exterior que se refletiu pelos quatro
cantos. O Brasil Para Cristo foi a primeira igreja pentecostal brasileira a filiar-se ao
politizado CMI, vindo a desligar-se dessa entidade ecumênica apenas no crepúsculo
do Regime Militar, no ano de 1986, sete anos após a inauguração do seu
megatemplo, na época o maior do mundo evangélico, um grande monumento
construído no bairro da Pompeia, em São Paulo.
Manoel de Mello foi um homem adornado de extrema coragem. Era também
controvertido e sábio em suas decisões; sem dúvida, nasceu e viveu à frente do seu
tempo e do espaço em que habitava. Mesmo contundente e por demais provocador,
encontrava resposta para cada pergunta. Suas falas traziam efeitos assustadores e
triunfalistas.

159
Faço aqui um trocadilho da antiga multinacional Minnesota Mining and Manufacturing Company,
empresa americana fundada em 1902 na Região dos Grandes Lagos. Tal como o 3M pentecostal, a
empresa americana foi quase sucateada até 1914, quando ganhou vulto internacional. Sua primeira
filial no exterior foi no Brasil em 1946, edifício instalado ao lado da Via Anhanguera, Parque Industrial
de Campinas, São Paulo.
Roma deu ao mundo a idolatria; a Rússia, os terrores do comunismo; os Estados
Unidos, o demônio do capitalismo; nós, brasileiros, nação pobre, daremos ao mundo o
evangelho [...] Enquanto nós convertemos um milhão, o diabo converte dez milhões
através da fome, da miséria, do militarismo, da ditadura. (CÉSAR, 2000, p. 137).

O recado era sem rodeio em sua típica linguagem nordestina. Esse cabra
macho não se dobrou diante das ameças de políticos casados com a corrupção e
amantes das mentiras. Outro nordestino, o jornalista Ivan Santos, nascido na cidade
de Mar Vermelho, Alagoas, eleva o grau da dura realidade em que o passado ainda
não se encontrou com o presente para um cordial cumprimento:

Desde a Proclamação da República, a democracia brasileira não passou de utopia. Não é


possível haver igualdade entre as pessoas num país onde a concentração da renda
nacional é gigantesca, a educação de qualidade é ministrada a poucos, a saúde pública é
deficiente, o analfabetismo é assustador e a segurança para os cidadãos do Estado é
precária. (SANTOS, 2019, p. 61).

Em sua acadêmica linguagem jornalística, o autor dá uma direta alfinetada


sobre o desmando em que a nação se meteu: “Educação não é preciso, porque um
trabalhador sem estudo foi presidente do Brasil” (SANTOS, 2019, p. 82).
Naquele período da história, em todo o território brasileiro, havia cerca de 100
mil acanhados pentecostais, e a Sociedade Bíblica do Brasil, organizada a 10 de
junho de 1948, produzia menos de 10 mil Bíblias anuais. Pelo ano de 2015, o Brasil
conta com cerca de 30 milhões ou mais de protestantes pentecostais. Já a produção
de Bíblias tem chegado à casa de oito milhões de exemplares a cada ano, algo
assustador para não poucos cépticos e críticos de carteirinhas. Segundo pesquisas
não comprovadamente científicas, o Brasil tem enviado mais de três mil
missionários nos últimos anos, cuja maioria é de jovens pentecostais. Esse batalhão
está fincado em todos os continentes, formando um gigantesco corpo que mantém
seu crescimento normal a cada dia.
O grande templo da igreja O Brasil Para Cristo inaugurado na Pompeia, no
domingo, 1º de julho de 1979, tem espaço para acomodar mais de 10 mil pessoas
confortavelmente sentadas. O pregador daquele ato inaugural foi o Dr. Philip Alford
Potter (1921-2015), um pastor metodista nascido na ilha Dominica, o qual exerceu,
durante doze anos (1972-1984), a politicamente destacada função de Secretário
Geral do Conselho Mundial de Igrejas, um grande fórum ecumênico de envergadura
internacional. Ao seu lado, ocupando espaço na mesma plataforma, estava o
catarinense D. Paulo Evaristo Arns (1921-2016), cardeal arcebispo católico de São
Paulo e 26 dias mais jovem que o pastor caribenho. Naquele histórico domingo,
dentre a grande multidão na Pompeia, estavam os dois paladinos e conhecidos
defensores dos direitos humanos.160

160
Naquela época (1979), D. Evaristo Arns, juntamente com o reverendo Jaime Nelson Wright (1927-
1999), pastor presbiteriano nascido em Curitiba, já estava à frente de uma equipe que estava a
levantar os dados que culminaram na publicação, em 1985, do livro Brasil Nunca Mais. De Genebra,
Suiça, pouco antes da publicação desse livro, o Dr. Philip Portter redigiu um empolgante prefácio em
nome do Conselho Mundial de Igrejas (ARNS, 2001, p. 15-19). Hoje, há muitas literaturas e
documentos embasados nas pesquisas de o Brasil Nunca Mais.
O grande galpão161 localizado no bairro da Pompeia foi o primeiro
megatemplo construído no Brasil. Aliás, foi a construção do maior templo de uma
igreja protestante/evangélica em todo o planeta. Em uma época da total minoria dos
fanáticos crentes, coube ao missionário Manoel de Melo ser o primeiro líder
protestante/pentecostal brasileiro a ter sua foto estampada na capa da Revista Veja,
na ediçao de 7 de outubro de 1981 com o tema Pentecostais: o Milagre da
Multiplicação.

Igreja Pentecostal Deus é Amor

O paranaense David Martins de Miranda (1935-2015) afirma que, prestes a


completar 22 anos, teve um encontro com Deus na cidade de São Paulo. Foi
naquele memorável domingo, 6 de julho de 1958, que algo novo aconteceu em sua
vida. Nessa época, o jovem David Miranda não passava de um simples funcionário
a mais em uma crescente fábrica de papéis estabelecida na capital bandeirante. Em
resultado daquele sobrenatural encontro por ele enfatizado, sua vida e seus planos
foram radicalmente alterados. Ficou a questionar e sem entender satisfatoriamente
o plano de Deus para sua vida, todavia, pouco mais de três anos depois, o mistério
foi decifrado.
Em novembro de 1961, David Miranda experimentou algo diferente em sua
vida espiritual. Após muita oração, jejum e meditação, ele afirma ter recebido uma
revelação divina para fundar uma igreja com o nome de Deus é Amor. No ano
seguinte, aos 26 anos, ainda solteiro, alugou um salão na distante e periférica Vila
Maria, onde organizou, em 3 junho de 1962, a Igreja Pentecostal Deus é Amor, que
logo se tornou outro fenômeno de crescimento e ponto referencial de expansão do
pentecostalismo brasileiro.
A Igreja Deus é Amor ainda hoje mantém o seu padrão de rigidez com relação
aos usos e costumes, inclusive à proibição da televisão e de outras tecnologias
afins. Essa igreja faz parte do grupo mais conservador entre as muitas
denominações protestantes/pentecostais existentes no Brasil. Talvez com certo
exagero pode-se dizer que ela seja o espaço doutrinário onde tudo é proibido!
Espelhando-se no sucesso ministerial do pernambucano Manoel de Mello,
Miranda também adotou o título de missionário, que o acompanhou até ser
fulminado por um ataque cardíaco às 23h45 de 21 de fevereiro de 2015. Como já
mencionado em parágrafos anteriores, dentro de uma hierarquia de poder,
notadamente entre grupos pentecostais daqueles idos, missionário é sinônimo de

161
Expressão proferida pelo próprio missionário Manoel de Mello no decorrer de um casual encontro
que tive com ele, em 1983, no estacionamento de uma churrascaria que existia a poucos metros do
templo na Pompeia. Disse-me: “Esse rústico galpão é para agasalhar o povo do frio e temporadas
chuvosas; foi edificado para servir”. Anos depois, diria Josimar Salum, o mineiro de Cisneiros, com
relação a esses galpões:

Sabem que são apenas meros edifícios para servirem aos homens, aos pobres, as crianças, enfim
a todos, pois servindo a todos eles verdadeiramente estão servindo a Deus. [...] o que é
importante mesmo são apenas as pedras vivas do edifício de Deus, que cresce como santuário
santo para alcançar toda a sua cidade. (SALUM, s/d, p. 145).
chefe. Nas últimas décadas, esse título entrou em decadência; sua atração foi
superada por algo mais alvissareiro. Em nossos dias, a moda saltou para o
antropológico e imaginário degrau superior, e os mandatários do sagrado são os
apóstolos, os bispos, os primazes, os querubins, os arciprestes, outros imaginários
e pomposos títulos! Alguns desses títulos são até bíblicos, porém exageradamente
utilizados com a pura ostentação de poder e autoridade, e muitos foram literalmente
usurpados do clero romano também dos ortodoxos gregos.
Quando o missionário Manoel de Mello inaugurou o grande templo na
Pompeia, zona oeste paulistana, David Miranda comprou um velho e abandonado
prédio onde outrora funcionava uma fábrica na Baixada do Glicério, no coração do
centro antigo de São Paulo. A fábrica abandonada foi transformada num amplo
salão com espaço para 60 mil pessoas. O imenso galpão foi transformado em
templo e sede internacional da Igreja Deus é Amor. A inauguração do Templo da
Glória de Deus, como foi alcunhado, recebeu uma concorrida multidão, com a
participação de imensas caravanas procedentes de todos os cantos do Brasil e do
exterior. Esse ato de sacramentalização aconteceu dia 1 o de janeiro de 2004,
quando David Miranda estava com 69 anos e continuava a sonhar com o vasto
crescimento e a expansão internacional da Deus é Amor.
Segundo informações do site da Igreja Pentecostal Deus é Amor, hoje a
denominação tem 953.652 membros que frequentam os 22.305 templos espalhados
por todos os estados brasileiros. Sem contar as representações em 136 diferentes
nações em todos os continentes, onde há outros milhares de membros. “Sua sede
mundial é considerada um dos maiores templos evangélicos do mundo, com
capacidade para 60 mil pessoas” (Informação disponível em: <www.ipda.com.br>.
Acesso em: 24 jun. 2016). A Deus é Amor nunca fez uso da televisão; aliás, prega
contra isso - aos membros é vedado assistir e mesmo possuir em casa o aparelho.
Desde o início, ela tem largamente usado as ondas sonoras do rádio na propagação
dos seus ensinamentos. Em nossos dias, essa igreja controla majoritariamente a
Rede Universo de Rádio, empresa com dezenas de emissoras espalhadas por todo
o Brasil.
Foi nos meados dos anos 80, período do apogeu de sua expansão nacional,
que a Deus é Amor realizou, nas redondezas da cidade de São Paulo, o maior
batismo por imersão até então jamais imaginado em toda a história
evangélica/protestante do Brasil. Em um domingo, três mil pessoas desceram às
águas batismais, igualando o fenômeno do dia de Pentecostes em Jerusalém,
relatado em Atos 2:41.

Igreja Pentecostal de Nova Vida

Em 1958, um jovem de nacionalidade canadense, com 27 anos, casado com


uma norte-americana, estava pela segunda vez no Rio de Janeiro para a realização
de mais uma Cruzada de Nova Vida. Enquanto ministrava num Maracanãzinho
abarrotado de ávidos assistentes, o então evangelista internacional Walter Robert
McAlister (1931-1993) sentiu que Deus o estava chamando para trabalhar como
missionário no Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, ainda Distrito
Federal. Naquela época, o pacato Rio de Janeiro era a segunda cidade mais
populosa do Brasil e estava entre as dez maiores do mundo.
McAlister foi o homem que Deus usou para mudar o conceito do
pentecostalismo no Brasil. Antes de sua chegada, o termo pentecostal estava
fortemente ligado aos pobres, analfabetos e negros residentes nas periferias. Os
pentecostais eram tidos como pessoas alienadas e vivendo à margem de uma
sociedade dominante. Eram os habitantes dos guetos, dos mocambos, das
cabeças-de-porcos, dos cortiços, sendo pobres favelados, descamisados e
desdentados. Obviamente, eram os abandonados da sociedade, um grupo de
gentinha na busca de uma ascensão social, de melhoria econômica ou procurando
o seu lugar ao sol!
Em 1961, Robert McAlister funda, no centro do Rio de Janeiro, a Igreja de
Nova Vida. Como ninguém de sua época, ele soube usar o rádio para transmitir o
programa de Nova Vida. A princípio, não passavam de alguns poucos minutos na
Rádio Copacabana, porém, galgando o sucesso, seguiu para a Rádio Mayrink Veiga
e posteriormente comprou a Rádio Relógio, a mais potente emissora carioca de
então. Fez do rádio sua segunda casa e o canal pelo qual entrava diariamente em
milhares de lares com uma mensagem direta e descontraída.
Depois de 10 anos de árduos trabalhos e muita fé, foi possível construir, em
área própria, o Templo de Nova Vida em 1971, no então aristocrático e tradicional
bairro de Botafogo. Foi um exemplo de grande fé e demonstração de muita coragem
diante de enormes desafios e não poucos preconceitos. Um espaço pentecostal em
Botafogo?162 Na segunda metade da década de 70, o destacado pastor McAlister
tornou-se o bispo Roberto. Foi uma guinada, a maior das surpresas entre os
evangélicos, um verdadeiro horror para os históricos, tradicionais e conservadores
pentecostais. Para muitos, aquilo era o fim do mundo, um devastador sacrilégio.
Não só: estava ali a encarnação da besta apocalíptica! Mas tudo isso passou; aliás,
hoje, como já foi citado, há bispos, apóstolos, profetas, patriarcas e arciprestes para
todos os gostos, diante da ostentação de interesses e manipulação do sagrado de
nossos dias. Ou seja, o título adotado e os aparatos ornamentais utilizados por
McAlister eram fichinhas em comparação ao que ocorre atualmente diante da
manipulação do sagrado em alta escala!
A Igreja de Nova Vida se iniciou produzindo uma mensagem mais elitizada,
buscando um equilíbrio entre a maioria dos fundamentalistas pentecostais e não
poucos liberais tradicionais que tinham ojeriza dos histéricos barulhos dos bíblias. A
Nova Vida nasceu com as mensagens de rádio, televisão, revista e púlpito, além do
forte carisma do bispo Walter Robert McAlister. Por intermédio dela, foi produzido o
embasamento dos neopentecostais no Brasil. Em certo sentido, a Igreja de Nova
Vida é o elo entre os pentecostais históricos com a nova visão do pentecostalismo

162
Acompanhando a família Watson em 1971, estive no recém-inaugurado Templo de Nova Vida, em
Botafogo, para ouvir David du Plessis (1905-1987). O Dr. David du Plessis, cidadão branco natural da
África do Sul, havia sido professor do pastor Bill Watson, quando estudante no Lee College em
Cleveland, Tennessee.
moderno, especialmente a prática e aplicação da teologia da prosperidade, o carro-
forte do neopentecostalismo.
O bispo Roberto tem definitivamente o seu nome entre os pioneiros
protestantes/pentecostais na utilização da televisão para a evangelização em massa
no Brasil. Como nessa terra mesmo os melhores e bem-dotados não são
permanentes, o canadense ele foi retirado desse mundo aos 62 anos, não resistindo
a um fulminante ataque cardíaco ocorrido no sábado, 13 de novembro de 1993.
Faleceu em Charlotte, Carolina do Norte, cidade natal do internacionalmente
conhecido William Franklin “Billy” Graham Junior. (1918-2018), também sede da
Associação Evangelística que leva o seu nome.

Tabernáculo Evangélico de Jesus

Doriel de Oliveira (1939-2016) nasceu em Araraquara, interior paulista. Ainda


muito jovem teve fortes influências dos missionários americanos da Igreja do
Evangelho Quadrangular. Eram os pregadores que mobilizavam a instalação de
grandes tendas para acomodar as multidões que se aglomeravam em busca de
milagrosas curas. Deu-se ali o início da Cruzada Nacional de Evangelização,
célebre nome fantasia largamente utilizado para a expansão da Igreja Internacional
do Evangelho Quadrangular.
Aos 16 anos, em 1955, Doriel começou a pregar o evangelho, anunciando
milagres, curas e maravilhas provindas de Deus. Servindo como evangelista e
realizando cruzadas por diferentes localidades, foi parar em Belo Horizonte, Minas
Gerais. Posteriormente, tal como havia sucedido com o pernambucano Manoel
Mello, em São Paulo, também rompeu com os chefes/líderes americanos, tornando-
se o missionário Doriel de Oliveira. Com a nova unção provinda do título
eclesiástico, o jovem paulista conquistou um expressivo grupo que lhe dava todo o
suporte necessário. Com o mencionado grupo o apoiando, Doriel de Oliveira, aos
25 anos, dia 9 de junho de 1964, fundou em Belo Horizonte o Tabernáculo
Evangélico de Jesus, trabalho que rapidamente proliferou pelas grandes cidades da
região Sudeste, com o nome fantasia de Casa da Bênção.
Aproveitando uma estratégia geográfica e política, Doriel de Oliveira seguiu
para Brasília, onde inaugurou um tabernáculo de madeira em uma ampla área na
região de Taguatinga Norte a 31 de maio de 1970. Dinâmico e extremamente
corajoso foi para o rádio. Depois, deu um gigantesco salto conseguindo espaço na
televisão para a divulgação dos milagres e das maravilhas que se realizavam em
Taguatinga, então uma distante cidade satélite de Brasília. As várias reuniões
diárias na Casa da Bênção eram frequentadas por pessoas de todos os segmentos
sociais da Capital Federal e entorno.
Dia 8 de julho de 1985, quinze anos após sua chegada em Brasília, Doriel de
Oliveira, agora aos 46 anos, estava inaugurando a Catedral da Bênção. Certamente
inspirado na Oral Roberts University, instalada em Oklahoma, nos Estados Unidos,
construiu, paralela à Catedral, a Torre de Oração, local onde se realizavam
diariamente 24 horas de vigílias.
Aquele falante e atencioso missionário que se tornou o doutor e apóstolo
Doriel de Oliveira, teve sua vida roubada da terra na quinta-feira, 17 de novembro
de 2016, aos 77 anos, enquanto estava internado em Brasília. Deixou um legado de
fé e o expansivo trabalho do Tabernáculo Evangélico de Jesus, do qual ainda em
vida acompanhou a expansão por todo o Brasil e a ampliação de seus tentáculos
para países na África, na Ásia, nas Américas e na Europa.

Igreja Universal do Reino de Deus

Edir Macedo Bezerra (1944-) nasceu no seio de uma família católica


praticante, na pequena Rio das Flores, município que, no século XIX, viu nascer ou
por lá passarem alguns fidalgos portadores de nobres títulos adquiridos entre a
realeza. Foi uma marcante época de um histórico passado. Ali surgiram alguns
condes, viscondes e até mesmo barões, títulos de nobreza de personagens que
viveram em Rio das Flores, no estado do Rio de Janeiro. Na infância e no início da
adolescência, Macedo morou na região serrana de Petrópolis, estado do Rio, e
posteriormente em Simão Pereira. Seus pais foram sepultados nessa pequena
cidade no enntorno de Juiz de Fora, Minas Gerais. Daquele aglomerado de casas,
Macedo emigrou em busca de novos horizontes. Foi a sua grande guinada!
Em 1961, aos 17 anos, Macedo chegou ao Rio de Janeiro, cidade que
recentemente havia perdido o status de Distrito Federal, desbancado por Brasília,
no dia 21 de abril de 1960. No ano de sua chegada ao Rio de Janeiro, McAlister,
aos 30 anos, iniciou o trabalho de Nova Vida, cujo templo seria inaugurado dez anos
depois na área central da Capital da Guanabara.
No Rio de Janeiro, o jovem Edir Macedo, à procura de novas experiências,
deixou o catolicismo, enveredando pelos terreiros de candomblé, pelo espiritismo e
por outros cultos considerados de matrizes africanas nos quais marcou pontos e
bateu cabeça! Insatisfeito com o sistema religioso em que estava vivendo, ele deu
uma virada de 360 graus, chegando ás portas da Igreja de Nova Vida no bairro de
Botafogo. Foi ali que, ouvindo o missionário Walter Robert McAlister, fez uma
pública decisão de fé que alterou todo o seu futuro e, consequentemente, o de
milhões de pessoas em volta do globo terrestre. Do sonho religioso, chegou ao
ápice de uma ambição sem escalas, da qual o céu é o limite!
Com o passar dos anos, Macedo acatou a visão e unção que pairavam sobre
o episcopado do pastor McAlister. Enxergou um leque de oportunidades ministeriais
que abrangia os diversos aspectos da fé cristã. Contemplou um novo e oportuno
mover no protestantismo pentecostal: cura divina, prosperidade e libertação em
todos os sentidos. Desenhou e produziu uma mensagem holística que chegava ao
mais profundo do âmago, às raízes da alma de uma sociedade pobre e carente do
sagrado.
Imbuído de um sonho e crendo que o impossível poderia mudar o seu trajeto,
Macedo tomou uma decisão radical, deixando para trás aquele valioso período de
aprendizado no Templo de Nova Vida em Botafogo. Foi um salto de fé! Assim,
acompanhado pelo seu cunhado, Romildo Ribeiro Soares (1947-), e do refugiado
Miguel Ângelo Ferreira (1953-), um advogado português nascido em Luanda,
Angola, além de outros que aderiram à visão e o acompanharam para um novo
modelo de vida.

Deixaram a igreja de Botafogo e fundaram, no dia 9 de setembro de 1977, a Igreja da


Bênção, numa funerária desocupada no bairro de Abolição. No ano seguinte, a
congregação adotou o nome de Igreja Universal do Reino de Deus e obteve seu registro
legal. Mais tarde, R.R. Soares e Miguel Ângelo separaram-se de Edir Macêdo e
fundaram, respectivamente, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Igreja Cristo
Vive. Para cuidar da nova igreja, Macedo abriu mão do trabalho secular. Tinha então 33
anos. (CÉSAR, 2000, p. 148, 149).

Quatro anos depois, em 1981, já em expressiva expansão, Edir tornou-se


o bispo Macedo, adotando o modelo de governo episcopal para a Universal e sendo
o mentor máximo de seu avançado crescimento pelos quatro cantos da terra! É a
organização que há anos vem alcançando o maior ritmo de crescimento e expansão
em todos os segmentos da sociedade. Trabalha em cima de valores financeiros,
cura divina e libertação em todos os sentidos que cercam a humanidade no mundo
físico e espiritual. “Te Deum laudamus, louvado seja Deus que tem de aturar estas
invenções” (SARAMAGO, 2019, 91). Diante do empolgação pelo fluir de novas
ideias, às vezes embarcam em disfarçado misticismo, algo muito natural dentro do
sincretismo religioso que foi transportado para o Brasil nas embarcações sob os
cuidados do fidalgo Pedro Álvares Cabral (1467-1520) e inaugurado com a primeira
missa ministrada pelo frei Henrique Soares de Coimbra (1465-1532).
O bispo Macedo já esteve preso acusado de charlatanismo, lavagem de
dinheiro e até de tráfico de drogas. Nada, porém, tem sido provado contra ele. Isso
acontece naturalmente com todos os líderes religiosos que se destacam em sua
área de atuação ministerial. Há pessoas que fazem uma diferente leitura do renovar
das atitudes religiosas. A Universal do Reino de Deus é o maior expoente do
neopentecostalismo brasileiro. Encontra-se em franca expansão e continua a
despontar em todos os quadrantes, assustando muita gente.
Elben Lenz César (1930-2016), aquele que foi o mineiro com cara de matuto,
citando o também presbiteriano Paul Freston (1952-), um pesquisador inglês
naturalizado brasileiro, informa sobre o andamento da Universal até os meses finais
do século passado: “Em 1994, dezessete anos depois de sua fundação, a IURD
devia ter cerca de mil igrejas, 2.700 pastores, um milhão de membros, e muitas
congregações em quase toda a América Latina, EUA, Portugal e Angola” (CÉSAR,
2000, p. 149). De longe, a Igreja Universal do Reino de Deus é o maior e mais
arrojado empreendimento evangelístico e comercial já elaborado no Brasil e
exportado para todos os continentes. É proprietária da segunda maior rede de
televisão do Brasil, além de dezenas de emissoras de rádio por todos os estados.
Somando a tudo isso, tem uma variedade de outros complexos empresariais e o
domínio de expoentes personagens no mundo da política, destacando-se o
engenheiro, político, pastor e escritor Marcelo Bezerra Crivella (1957-), nascido na
Policlínica de Botafogo, Rio de Janeiro, cidade da qual foi prefeito entre 2017 e
2020. Crivella é reputado como um político de orientação conservadora, defensor da
família e do livre direito do cidadão. Sua simplicidade e caráter cristão fê-lo saco de
pancadas de alguns ferrenhos opositores. Porém continua firme o 53º prefeito do
Rio de Janeiro, a encantadora Cidade Maravilhosa. Crivella perdeu as eleições para
um segundo mandato no comando da prefeitura do Rio de Janeiro. Infelizmente, foi
acusado de “voraz apetite por dinheiro público”, o que resultou em sua prisão na
manhã de terça-feira, 22 de dezembro de 2020. Somando a tudo isso, na
madrugada de 28 de dezembro, Eris Bezerra Crivella (1935-2020), mãe do prefeito
afastado, veio a falecer na residência onde morava em Copacabana, Rio de Janeiro.

Igreja Internacional da Graça de Deus

A Igreja Internacional da Graça de Deus foi fundada pelo missionário R. R.


Soares. Em certo sentido, esta nova denominação surgiu após o compreensível
choque de personalidade com o cunhado Edir Macedo. Soares optou por trilhar
outras veredas, porém enraizado nos aprendizados adquiridos na Nova Vida e
práticas na IURD. A Internacional da Graça de Deus voou alto e avistou seguros
aeroportos por todos os estados do Brasil e mesmo no exterior. Em 2006, ela
chegou a Massachusetts, após demorada negociação, quando, finalmente, foi
possível comprar o templo até então pertencente a World Revival Church, em
Somerville, na Grande-Boston.
Romildo Ribeiro Soares (1947-) é natural de Muniz Freire, pequena cidade
localizada no interior do Espírito Santo. Também procurando melhoria social,
chegou à badalada cidade do Rio de Janeiro aos 16 anos em 1963, época em que o
Brasil fervilhava entre uma ameaçada democracia e o avanço do comunismo. Nessa
queda de braços, os militares foram os vencerdores e reconstruíram uma nova
nação. De caminhada em caminhada, o jovem Soares chegou ao Templo de Nova
Vida, onde conquistou novas amizades, companheirísmo e até uma esposa.
Em janeiro de 1980, aos 33 anos, tomou o seu próprio rumo. Em ato contínuo,
desligou-se da Universal e fundou, na Baixada Fluminense, a Igreja Internacional da
Graça de Deus, que hoje é uma crescente organização de vulto mundial, fazendo
parte visível das megaigrejas neopentecostais existentes no Brasil e com tentáculos
em todos os continentes. Durante anos, o missionário Soares tem sido o pregador
que mais ocupa espaço na televisão por todo o território brasileiro, não somente
pela Rede Internacional de Televisão, canal de sua propriedade, porém até entre as
concorrentes.
A Igreja da Graça tem reunido multidões em suas concentrações públicas.
Um exemplo está bem registrado: no sábado, dia 4 de fevereiro de 2006, sob um
escaldante calor de 35 graus, milhares de pessoas desafiaram o sol e participaram
da festa no Rio e no Céu. Mais de dois mil ônibus especiais serviram de transporte
para a maior epopeia de fé jamais vista no Rio de Janeiro.

A festa do Céu levou 300 mil pessoas à enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro, mas
quem não pôde ir, acompanhou tudo ao vivo pela RIT; quem foi enfrentou o sol e o forte
calor para louvar a Deus, orar e ouvir a mensagem do missionário R. R. Soares.
(Revista Show da Fé, ano 6. n. 80. p. 45).
No uso de um comentário histórico, a mesma revista publica a seguinte
informação em destaque na página 49, sob o título Odisseia da Graça.

O Rio de Janeiro já foi palco de memoráveis reuniões de fé capitaneadas pelo


Missionário R. R. Soares, fundador e líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.
Contando com o evento Festa do Céu, nos últimos anos, em tornou de 600 mil pessoas
reuniram-se em espaços públicos para adorar e louvar a Deus em grandes eventos
patrocinados pela Igreja da Graça. Já no dia 19 de julho de 2003, o local foi o ginásio
Gilberto Cardoso - conhecido como Maracananzinho. Lá, cerca de 16 mil pessoas
conseguiram entrar, mas milhares de outras ficaram do lado de fora e acompanharam o
Show da Fé Especial por um telão instalado na entrada do ginásio. Em 10 de junho de
2004, o cenário foi o Maracanã. Lugar de emocionantes decisões de futebol, o estádio
cedeu espaço para a mais importante decisão de todas - a aceitação de Cristo como
Senhor e Salvador. Naquela oportunidade, 77 mil pessoas estiveram presentes. A tarde
de 21 de abril de 2005 também ficou marcada na história do Evangelho no País. Horas
depois de ter pregado para 350 mil pessoas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, R.
R. Soares falou para uma multidão no Aterro do Flamengo - 200 mil pessoas - a
exemplo do que ocorreu na Enseada de Botafogo, é o Rio cada vez mais fazendo festa.
Do Céu.

Outros megagrupos pentecostais

Miguel Ângelo Silva Ferreira (1953-), semelhantemente a R. R. Soares, fez


parte da fundação da Igreja Universal do Reino de Deus. Embora com residência
oficial no Brasil, é um português nascido em Angola, de onde saiu à procura de asilo
após o 25 de abril de 1974. Por um período, como fizeram outros renomados
líderes, esteve na Nova Vida. Em seguida, acompanhou o grupo que organizou a
IURD e dali saiu ao assumir novos e pessoais desafios. Em certo sentido, o
advogado Miguel Ângelo se tornou também dissidente da IURD, talvez já
mentalizando a criação de outra denominação. Ao fundar a Igreja Cristo Vive,
tornou- se logo o apóstolo e o bispo primaz da nova organização com sede no bairro
de Campinho, nos arredores de Madureira, no Rio de Janeiro, de onde coordena
suas atividades espalhadas em todos os continentes.
Miguel Ângelo é um acirrado defensor da predestinação. Possivelmente seja
um dos poucos líderes de igrejas neopentecostais declaradamente defensor da
linha calvinista. “O calvinismo, que não se constitui uma denominação, trata-
se de uma abordagem teológica que influencia protestantes em mais de uma
denominação particular, com predominância entre os presbiterianos” (PAGANELLI,
2019, p. 358). Tanto o missionário R. R. Soares quanto o apóstolo Miguel Ângelo
são frutos do templo de Nova Vida e cofundadores da Igreja Universal do Reino de
Deus.

Igreja Sal da Terra

O ano de 1990 foi o ápice de um período transitório na História Mundial. Os


armamentos criados no decorrer da Guerra Fria foram congelados. Havia uma forte
fobia da iminente Batalha Nuclear; já estava aceso o estopim que poderia apressar
o surgimento da temida Terceira Guerra Mundial. Os vaticinadores do caos
profetizavam que as nações seriam arrancadas do seu sistema geográfico e que
uma minoria resistiria a toda a trama conspirativa em andamento. Do extremo sul do
continente africano chegava outra apoteose. Após 27 anos preso por motins raciais
e outras acusações pertinentes, Nelson Mandela (1918-2013), aos 72 anos, no
domingo, 11 de fevereiro de 1990, recebeu sua libertação incondicional. Foi naquela
data o início processual que culminou no sepultamento do regime de segregação,
internacionalmente conhecido por apartheid. Até então, essa era a vergonhosa
invenção da supremacia branca colocada em prática no andar do século XX.
Mandela lutou incansavelmente pela existência legal da liberdade racial na África do
Sul, o seu país, onde ele chegou à presidência de 1994 até 1999. Ainda hoje Nelson
Mandela é considerado o mais conhecido prisioneiro do mundo.
Na Europa, as notícias fervilhavam com a reunificação alemã, após quase
três décadas de separação do país entre os lados oriental e ocidental. Cortina de
ferro era a designação política para o muro da vergonha, cujo desmantelamento
trouxe a união legal das duas Alemanhas. O socialismo se dobrou diante do
capitalismo democrático. Essa memorável data ficou registrada no calendário da
história dos conflitos: quarta-feira, 3 de outubro de 1990. Transcorriam os dias
iniciais do outono no hemisfério Norte, período frio com dias curtos e noites mais
extensas.
No Brasil de 1990, estavam em andamento os primeiros passos de uma nova
democracia sob a égide da Constituição de 1988, Carta considerada elitista e
conservadora pelos parlamentares da esquerda no Congresso. Naquele 1990, a
seleção brasileira foi eliminada na Copa do Mundo realizada na Itália, gerando uma
frustração nacional. Também estava a completar 30 anos que Jânio da Silva
Quadros (1917-1992) havia sido eleito presidente por escrutínio secreto. Jânio, não
resistindo às forças ocultas palacianas, renunciou com menos de sete meses no
poder. Sua renúncia, em 1961, deu vazão ao surgimento do Regime Militar três
anos depois. Passados 30 anos da eleição de Jânio Quadros, surgiu Fernando
Affonso Collor de Mello (1949-), o mais jovem brasileiro a chegar à presidência do
país e o primeiro a ser arrancado do Palácio por um processo de impeachment.
O mundo, com razão, pedia passagem. O progresso estava surgindo nas
asas das novas e avançadas tecnologias chegando para mudar os conceitos e
apresentar novos desafios. Estava acanhadamente surgindo os primeiros celulares
no Brasil. Carros importados da Rússia estavam chegando para competir com as
“carroças” - expressão usada por Fernando Collor - produzidas pela indústria
automobilística brasileira. Não foi diferente em Uberlândia, emergente cidade no
centro do Triângulo das Minas Gerais, à época com uma população estimada em
360 mil habitantes.
Em 1978, um grupo de jovens membros da Primeira Igreja Presbiteriana de
Uberlândia, em comum acordo, formou o conjunto musical Sal da Terra. O conjunto
cresceu e ganhou espaços em diferentes localidades da cidade triangulina. Após
três anos de atividades que incluíam uma visão social, registrou-se a ONG Missão
Sal da Terra, trabalho pioneiro no meio evangélico. Certamente sentindo-se
incomodados com a fé calvinista, base da formalidade presbiteriana, o grupo, que
agora está com mais de 500 pessoas procedentes de diferentes segmentos da
sociedade uberlandense, foi desligado do meio presbiteriano em 1990, criando a
Igreja Sal da Terra. O trabalho foi consolidado com novas modalidades e diferentes
atividades, mantendo uma visão holística de crescimento, unidade e alcance
transcultural. Atualmente, a Igreja Sal da Terra tem milhares de membros
espalhados por centenas de localidades no Brasil e no exterior.

Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra

No mês de fevereiro de 1992, em Brasília, Capital Federal, localidade não


muito distante de Uberlândia, foi organizada a Comunidade Evangélica Sara Nossa
Terra. Semelhante à Igreja Sal da Terra, essa obra, iniciada sob visão e direção do
atual bispo Robson Rodovalho (1955-), também conquistou o seu espaço por
diferentes estados do Brasil e tem fortes ramificações no exterior.

Igreja Apostólica Renascer em Cristo

Em São Paulo, o pastor Estevam Hernandes Filho (1954-), filho da própria


cidade, organizou, nos anos 80, a Igreja apostólica Renascer em Cristo, na qual
passou ao título de apóstolo. A princípio, as atividades eram direcionadas
especialmente aos jovens paulistanos. Ela mantém o mesmo caminhar das demais
igrejas neopentecostais, tendo obras em todos os estados do Brasil e em outras
nações. Criou-se o moto: “Uma vez Renascer, Renascer até morrer!” Esse dito ou
grito de guerra, não foi por todos respeitados, diante de escândolos, acusações e
até prisões de líderes, não poucos deixaram o barco e sairam pela tangente! O
trabalho, de alcance nacional e internacional, prioriza as classes mais
endinheiradas. Entre os muitos eventos, a Renascer lidera e promove desde 1993 a
Marcha para Jesus, atividade que envolve milhões de pessoas em São Paulo. Em
2019 esse evento teve a participação do Presidente Jair Messias Bolsonaro.
Como não poderia ser diferente, a Renascer em Cristo tem, como já
mencionado em sua história, uma série de escândalos e acusações de fraudes nas
finanças e de outros golpes. Infelizmente, os seus fundadores e administradores
foram acusados de enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro diante de tribunais.
Entretanto, o Ministério Público nunca comprovou a veracidade dos fatos. Não tenho
intenção de levantar suspeitas; o meu enfoque é somente o desenrolar da história.
Essas e tantas outras megaigrejas formam um círculo da dimensão territorial
do Brasil. Nessa corrida ao mercado da adoração, há espaço físico para milhões de
membros, congregados, simpatizantes e não poucos assíduos fregueses por todos
os recantos da nação, onde a busca do sagrado predomina sobre a razão do viver.
Esses movimentos fomentam a “globalização da cultura e da economia. [...] de
igrejas em moldes empresariais, tele evangelismo, abuso das técnicas de
marketing, espetaculização dos cultos e da música gospel” (PAGANELLI, 2019, p.
312, 313). A trilha é seguir o parecer do famoso sociólogo francês, quando se referiu
ao andar da carruagem no mundo das oportunidades que envolve o sagrado e o
profano. “O poder simbólico que lhes confere o fato de acreditarem em seu próprio
poder simbólico” (BOURDIEU, 1982, p. 55).

Igreja Mundial do Poder de Deus

A Igreja Mundial, outra dissidente da Universal do Reino de Deus, foi iniciada


na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, dia 9 de março de 1998, pelo então
bispo Valdemiro Santiago de Oliveira (1963-), na época um jovem na casa
dos 35 anos, o único negro entre os demais citados líderes religiosos. Aquele novel
pastor logo se transformou no apóstolo Valdemiro Santiago, líder e principal mentor
da IMPD. Santiago nasceu no distrito de Cisneiros, município de Palma, localizado
na Zona da Mata mineira.
Na dissidência e no uso de sua influência carismática, fez-se acompanhar de
milhares de simpatizantes que, como ele, antes participavam da Igreja Universal do
Reino de Deus. Esse cisma na natural concorrência procurou fazer um estrago no
caminhar da IURD. Na disputa acirrada de mercado e manipulação do sagrado, o
apóstolo e seus seguidores partiram para o ataque. As rajadas fizeram nascer
farpas de ambas as facções que seguem em caminhos opostos. Segundo a
publicação do site Amigos de Cristo em 18 de julho de 2016, a Igreja Mundial “até o
ano de 2015, já contava com cerca de 4.500 templos e 1 milhão de seguidores
espalhados no Brasil e no mundo”.
Como tantos outros, Valdemiro, o chapelão, inaugurou o Grande Templo dos
Milagres, utilizando um amplo galpão com 43 mil metros quadrados, localizado à rua
Carneiro Leão, no bairro do Brás, em São Paulo. É nesse espaço do sagrado, onde
milhares de pessoas se aglomeram em busca de uma dádiva divina. O Brasil tem
sido uma terra fértil e, por natureza, habitado por uma multidão de sincretistas. A
busca do sagrado faz parte da cultura antropológica, histórica, social e religiosa da
nação, herança que chegou de Portugal a bordo das caravelas enviadas por D.
Manuel I (1469-1521), uma odisseia que redundou no achamento de um país de
dimensões continentais em 1500.

Igreja Batista Renovada

Considerada a mãe do movimento de renovação espiritual no Brasil, a missionária norte-


americana Rosalee Mills Appleby, nascida em 1895, veio para o Brasil jovem e recém-
casada com o missionário norte-americano David Appleby, fixando residência em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Em 15 de outubro de 1925, um dia antes do nascimento do
filho do casal, David faleceu. Antes de falecer, disse à esposa: Estão me chamando lá
em cima... cuide de nosso filho... faça dele um homem... Realize o meu trabalho e o
seu... Eu estou completamente feliz... Bendize, minh’alma, ao Senhor... Enquanto os
restos mortais de seu esposo estavam na sala da frente de sua residência, ela dava à
luz, no quarto mais afastado, seu filho David. O sofrimento pelo qual passou ao perder o
marido, recém-chegada ao Brasil e sem se comunicar bem em português, levou-a a
buscar maior comunhão com Deus e afetou todo o seu ministério de pregação da
mensagem da cruz e unção do Espírito Santo. [...] Rosalee implementou o Movimento
de Renovação Espiritual entre os batistas e demais denominações evangélicas
históricas. Ela orava por um avivamento que incendiasse com o fogo do céu as igrejas
históricas. Batista do Sul dos Estados Unidos, a missionária nunca foi abalada em suas
convicções denominacionais, crendo que um batista, presbiteriano, metodista,
congregacional ou luterano avivado deveria permanecer em sua igreja e aquecer o seu
povo. Muitos cristãos e muitas igrejas foram despertados por esta mensagem e
começaram a experimentar com mais fervor o poder do Espírito. (ALMEIDA, R., 2014, p.
293, 294, 295).

O movimento que criou a Igreja Batista Renovada, praticamente teve o seu


início nos finais dos anos 30 e seguiu pelo decênio seguinte. No meio batista, houve
a instrumentalidade direta da senhora Rosalee Mills Appleby (1895-1991). A
ardorosa Rosalee, uma

americana de nascimento, missionária da Junta de Richmond, conveniada à Convenção


Batista Brasileira, mulher cheia do Espírito Santo, de fé e de determinação, sonhava
com a implantação de uma grande e poderosa Igreja no Barreiro [...]. Após quatro
décadas de incansável ministério de evangelismo e avivamento em nossa Pátria, no dia
20 de março de 1960, a saudosa Missionária Rosalee despediu-se da amada Igreja e do
Brasil. (MOURA, 2008, p. 17, 18).

Essa missionária que grudou nos batistas, na região de Belo Horizonte, foi a
fagulha que incendiaria a pátria brasileira. Uma simples mulher que possuía uma
profunda experiência de vida cristã e deixou ser levada sob a unção do Espírito
Santo. Escreveu vários livros e editou folhetos, visando sensibilizar a Igreja
brasileira para uma renovação espiritual. Ela não viu os resultados, porém todos os
seus esforços não foram em vão. O avivamento espiritual tem varrido o Brasil por
todos os cantos. Avivamento que resultou em contínuas mudanças de vidas e que,
direta ou indiretamente, se expandiu por diferentes denominações espalhadas pelas
plagas desse imenso Brasil. Na segunda-feira, 20 de maio de 1991, morando em
Canton, Mississippi, a missionária Rosalee Mills Appleby (1895-1991) também ouviu
a chamada lá de cima e partiu aos 96 anos.
O já identificado professor João Bezerra Chaves não deixa de alfinetar a
eminente missionária provinda do Sul dos Estados Unidos. Sua natural geografia
estava condicionada no imaginar político e racista dos confederados, herança de
berço. Pairavam pelo condado onde ela nasceu as lendárias narrações levadas a
cabo pelos sagrados líderes do movimento separatista para justificar guerra. Chaves
vai diretamente no cerne da questão:

Um exemplo peculiar é o louvor agressivo dado ao General Robert E. Lee - ícone


máximo da ideologia confederada - por Rosalee Mills Appleby, que sugeriu que Lee
tinha umcaráter superior aos de Moisés e do Rei Davi. Em 1929, em um livro escrito em
inglês, depois de dizer que tanto Moisés quanto o Rei Davi pecaram, Appleby escreveu:
Robert E. Lee, no entanto, realizou um triunfo incomum, um sucesso sém mácula na
vida. Embora eventualmente derrotado como general, triunfou como homem. Sua
masculinidade era maior que sua posição como general. Embora tenha passado muitos
anos em conflito, ele nunca levantou a voz contra o inimigo. Quebrado em fortuna e
saúde, seu caráter brilhante nunca ficou manchado. Ele se recusou a vender seu nome
imaculado por dinheiro, mesmo sendo pobre e necessitado. A história pode registrar um
fracasso no trabalho de Lee, mas o veredicto de corações que apreciaram sua vida
imaculada é diferente. Seu espírito é um desafio para todo jovem que deseja alcançar
um triunfo e uma reprovação para qualquer um que tente achar um atalho para um
sucesso vulgar. Em 1941, Appleby repete sua admiração idolátrica por Lee,
característica muito comum entre os batistas do Sul na época: Uma bondade sem um
tom de fraqueza pertencia a Robert E. Lee. Ele eral terno como filho, carinhoso como
pai, sábio como general, caridoso como oponente. Este cidadão e cristão incomparável
escreve uma página na história americana. (CHAVES, 2020, p. 46).

Por um longo período de quase dez anos, os batistas renovados foram sendo
rejeitados e fortemente criticados por uma gama de conservadores tradicionais.
Como já se previa, por razões históricas, chegou o instante em que a bomba
explodiu. Igrejas, pastores e membros foram literalmente expulsos da Convenção
Batista Brasileira. Essa decisão mais política que espiritual deu ensejo à criação de
um grupo de apoio solidário entre os excluídos do meio conservador e de vínculo
histórico. Mantendo a mesma regra de fé batista, foi criada uma nova organização
administrativa na qual foi acrescentada a experiência da renovação espiritual em
resultado da ação direta do Espírito Santo.
Nessa visão de unidade e solidariedade de um grupo minoritário, foi criada no
templo da Lagoinha, em Belo Horizonte, dia 16 de setembro de 1967, a Convenção
Batista Nacional, atividade realizada sob a presidência do pastor Enéas Tognini
(1914-2015). Por uma questão estratégica, busca de centralização geográfica e
aproximação do poder político nacional, a sede foi transferida da capital mineira
para Brasília, a Capital Federal.

Renovação Espiritual: como a palavra bem expressa, é aproveitar o que existe. Segundo
o pastor José Rego do Nascimento: Renovação Espiritual é uma mensagem bíblica no
poder do Espírito para sacudir as igrejas que existem, mas que dormem embaladas pelo
comodismo e pela inatividade. (ALMEIDA, R., 2014, p. 523).

Ainda hoje (o que é normal), há questionamentos se os renovados podem ser


considerados batistas. Ainda há uma pequena fatia dos ultraconservadores
afirmando que não. O ponto crucial baseia-se em questão político-doutrinária, visto
que os verdadeiros batistas rejeitam a teologia considerada pentecostal, cujos
ensinos foram abraçados pelos renovados. Entretanto, o refrão ainda fala mais alto:
uma vez batista, sempre batista!

Grupos menores

A partir da década de 1930, silenciosamente vários movimentos se alastram


Brasil afora. Formaram-se pequenas igrejas pentecostais, renovadas ou
reformadas, como preferem os adventistas. Esses grupos foram proliferando
especialmente nas regiões periféricas das capitais e nos centros urbanos das
grandes cidades. Nesse histórico de grupos menores, entendo que estamos
deixando muito a desejar. Por diferentes razões, o espaço se prolongaria
excessivamente devido à enorme proliferação que segue a cada dia. Estamos
mencionando certamente aqueles que saíram ou foram expulsos de obras
consideradas tradicionais e conservadoras relacionadas ao crescente movimento
pentecostal pelas muitas terras de um grande Brasil.Esses movimentos com os
seus avivamentos surgiram dentro das várias denominações históricas, ganhando o
seu maior espaço no decorrer dos 22 anos do Regime Militar (1964-1986). Ainda em
nossos dias, a renovação segue conquistando terreno, transformando conceitos,
alterando o agir e as reações de diferentes denominações históricas fixadas no
Brasil ou de ramificações provindas do exterior.
O movimento que deu origem A Igreja Adventista da Reforma iniciou-se quando
o pastor pernambucano João Augusto da Silveira (1883-1968) estava procurando,
com jejum, meditação e muita oração, um avivamento interno, visando somente a
melhorias no exercício do seu árduo ministério. O resultado de suas súplicas
aconteceu enquanto estava orando em sua sua própria casa aos 24 de janeiro de
1932 na cidade de Paulista. Sem ter noção do que estava acontecendo, Silveira
informa que recebeu uma unção especial do Espírito Santo sobre sua vida pessoal
e ministerial. Com o passar dos anos, houve dissidência na Igreja Adventista da
Reforma, e uma das alas discordantes formou a Igreja Adventista da Reforma
Completa.
Na década de 1960, um grupo de metodistas passou por profunda renovação
espiritual. Pelas práticas consideradas pentecostais, o grupo foi sumariamente
excluído de suas igrejas locais. Com a exclusão, perderam a originária capela,
centro convergente das liturgias. Os excluídos reuniram-se e, dia 5 de janeiro de
1967, organizaram, sob a sombra de uma ponte nos arredores da cidade de Nova
Friburgo, estado do Rio de Janeiro, a Igreja Metodista Wesleyana, cabendo a
liderança principal ao pastor Gessé Teixeira de Carvalho. 163 O pastor Gessé Teixeira
(posteriormente superintendente e, finalmente, bispo) foi o grande mentor para a
expansão da Igreja Metodista Wesleyana em todo o Brasil e em outros países,
especialmente entre a comunidade de etnia cigana na região do Algarve em
Portugal.
A Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil foi organizada a 8 de janeiro de
1975 sob a liderança do reverendo Abel Amaral Carmargo (1925-1995).

Um dos fatos surpreendentes da renovação foi que ele chegou às igrejas protestantes
tradicionais e sacramentais antes de eclodir nas denominações fundamentalistas e
evangelicais. Começando entre os episcopais, em 1960, o movimento não tardou a
irromper entre os presbiterianos, luteranos e, o mais surpreendente, entre os católicos
romanos. Algumas das igrejas protestantes mais tradicionais haviam tido conflitos com
os pentecostais, no início do século, por isso armaram também suas defesas contra os
neopentecostais quando o movimento começou a tomar corpo depois de 1970. (SYNAN,
2009, p. 245).

Resultados

Hoje os renovados de diferentes matizes denominacionais caminham em


paralelo às igrejas-mães. Esse é o caso histórico dos adventistas, dos batistas, dos
presbiterianos, dos luteranos, existindo até uma facção no próprio seio do
catolicismo: os carismáticos. Sem enumerar tantos outros grupos que foram se
dividindo das já existentes igrejas pentecostais, o mesmo ocorrendo entre os
neopentecostais, gerando outros movimentos carismáticos-renovados. Esse
163
Passados 15 anos daquele histórico acontecimento debaixo da ponte em Nova Friburgo, fomos
colegas na Faculdade de Teologia do Rio de Janeiro, Seminário Unido no bairro de Oswaldo Cruz,
no então estado da Guanabara
fenômeno de expansão e subdivisão surge a cada dia, ocasionando uma
proliferação de denominações, algumas por convicções enquanto outras por meras
razões políticas, conflitos de liderança ou intrigas pessoais. Não há como narrar a
verdadeira história do protestantismo no Brasil; ela ainda não foi contada porque
não chegou ao seu final triunfante.

Explicando para se entender

Em relação aos católicos romanos, percorro a mesma estrada por onde


caminha a maioria dos autores, trazendo informações sobre os históricos
acontecimentos da expansão pentecostal. Não sou juiz de nenhuma causa, apenas
um historiador, como tal o meu trabalho é descobrir detalhes do passado e decifrá-
los. Estou a narrar os fatos comprovados pela história. Para tal, recuso-me a expor
as minhas próprias opiniões. Entretanto, todos os pesquisadores são construtores
de pontes e derrubadores de barreiras. Espero que cada leitor chegue à sua própria
conclusão sobre os enigmáticos acontecimentos bíblicos e históricos que envolvem
os seguidores de Jesus Cristo, aquele carpinteiro de Nazaré. Busco ser simples,
honesto e biblicamente correto Todo o restante é fruto da imaginação ou meras
especulações!
Sendo a Bíblia Sagrada o inerrante Livro profético para o cristianismo,
observemos a conhecida passagem de Joel 2:28-29:

E acontecerá, depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e
vossas filhas profetizaraão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até
sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias.

Essa foi a evidência básica do sermão de São Pedro, o apóstolo, naquela


memorável manhã de domingo na festa de Pentecostes comemorada na cidade de
Jerusalém, conforme registrado no segundo capítulo do livro dos Atos dos
Apóstolos, tratado que tem a grafia e a assinatura do doutor “Lucas, o médico
amado”, assim respeitosamente designado por São Paulo em Colossenses 4:14.
Lucas era um cientista, pesquisador e historiador cristão de ascendência grega.
Segundo as várias pesquisas, ele é o único profícuo escritor bíblico que não tem
suas raízes entre os judeus. Seus dois explêndidos tomos equivalem a cerca de um
quarto de todas as escritas que formam o Novo Testamento. Nesse quesito, ele só
perde para o apóstolo Paulo.

Os católicos carismáticos

As manifestações ocorridas nos dias 17, 18 e 19 do mês de fevereiro de


1967, iniciamente foram chamadas de Movimento Pentecostal na Igreja Católica.
Essa identificação religiosa posteriormente foi mudada para Renovação Carismática
Católica. Esse agir do sobrenatural tem um fundo histórico de grande relevância
para todos os estudiosos dos fenômenos religiosos, os quais têm ocorrido no seio
do cristianismo católico/protestante. Entre outras fontes consultadas, tenho o
endosso do Dr. Harold Vinson Synan (1934-2020), pastor evangélico recentemente
falecido que, no decorrer de longos anos, foi amigo e consultor de vários sacerdotes
católicos, além de respeitado escritor. Até o seu falecimento em 15 de março de
2020, ele era professor emérito da Regent University no estado da Virgínia, onde no
passado foi deão e diretor acadêmico. Também enfatizaremos os relatos citados por
Patrícia Gallagher Mansfield (1937-), escritora católica americana. Na época dos
acontecimentos, ela era uma jovem estudante de francês que optou por lecionar
História da África. Patti, que hoje é casada, mãe, sogra e avó, nasceu em Irvington,
New Jersey, uma pequena cidade, berço natal de importantes personagens que
extrapolaram as fronteiras estadunidenses. A professora Patti Gallagher Mansfield
não somente está narrando os fatos, mas também foi uma testemunha e
participante ativa dos acontecimentos do Fim de Semana de Duquesne em fevereiro
de 1967.

Este evento vem sendo, geralmente, aceito como o marco inicial da Renovação
Carismática da Igreja Católica, por ter sido o primeiro em que um grupo de fiéis católicos
experimentou o batismo no Espírito Santo e os dons carismáticos. Conquanto, já
existissem católicos, assim batizados anteriormente, aquele retiro veio a ser o ponto de
partida de um amplo movimento da Renovação Carismática, cuja abrangência estendeu-
se pelos Estados Unidos e por todo o mundo. (MANSFIELD, 2003, p. 5).

No decorrer do ano de 1886, na cidade de Lucca, Itália, Elena Guerra (1835-


1914), uma obscura e desconhecida freira na casa dos 51 anos, inicía um grupo que
depois se tornou a Ordem das Irmãs Oblatas do Espírito Santo. Essa freira italiana
estava a clamar por um avivamento espiritual dentro dos padrões bíblicos. Vivia
sonhando e rezando na esperança de um permanente derramar do Espírito Santo
sobre os fiéis católicos em todo o mundo e que pudesse ser trocada a expressão
“Ave-Maria, pelo vinde Espírito Santo” (MANSFIELD, 2003, p. 8). A palavra profética
expressa em Joel 2:28 é categórica e vai além das regras religiosas impostas nos
credos denominacionais. A afirmativa bíblica vem do alto para baixo: “Derramarei do
meu Espírito sobre toda a carne”! Honesta e sinceramente repriso o falar petrino:
Quem somos nós para “resistir a Deus?” (Atos 11:17). A história da Igreja tem
provado que “por trás de cada carismático do período inicial, está um pentecostal
clássico” (SYNAN, 2009, p. 293). No mundo espiritual, que vai além da invenção
religiosa, algo estava surpreendentemente acontecendo. “Os afetuosos ventos da
primavera têm soprado na Igreja Católica depois de um longo e gélido inverno”
(MANNING, 2017, p. 48). Os livros escritos pelo falecido Brennan Manning (1934-
2013), um frade católico estadunidense, são mais conhecidos e consumidos no
Brasil pelos protestantes que pelos católicos. Aliás, na utilização do Whatsapp, fiz
algumas sondagens nos dias 7 e 8 de janeiro de 2021 e constatei que Manning é
totalmente desconhecido entre os católicos romanos no Brasil. Um jovem
consultado respondeu: “Católico não tem esse hábito de leitura”.
“Encorajada pelo seu diretor espiritual, a Irmã Elena escreveu, entre os anos
de 1895 e 1903, doze cartas confidenciais ao Santo Padre, pedindo pela pregação
permanente do Espírito Santo, que é aquele que faz os santos” (MANSFIELD, 2003,
p. 8, 9). Transcrevo outros três parágrafos mencionados por Patti Mansfield sobre o
reacender carismático no seio do catolicismo.

[...] Atendendo à sugestão da Irmã Elena, o Papa Leão XIII invocou o Espírito Santo em
1o de janeiro de 1901 - primeiro dia do primeiro ano do século vinte. Ele mesmo cantou o
hino Veni, Creator Spiritus - Vinde, Espírito Criador - em nome da Igreja. Naquele
mesmo dia, ocorreu um acontecimento na cidade de Topeka, Estado de Kansas, que
marcou a revivescência dos poderes e dos dons do Espírito Santo, num movimento que
se estendeu por todo o país e por todo o mundo. Na esquina da 17 a rua daquela cidade
com a Stone Avenue, onde hoje está situada a igreja católica do Imaculado Coração de
Maria, ficava a mansão apelidada de Loucura do Stone, uma portentosa construção de
três pavimentos e trinta quartos, cujo dono, Erastus Stone, depois de edificá-la, chegou
à conclusão de que não tinha dinheiro para viver nela. Em setembro de 1900, a mansão
passou a ser a sede de Colégio de Betel e da Escola da Bíblia. O Reverendo Charles
Fox Parhan e seus estudantes dedicavam-se, ali, à oração e ao estudo da palavra de
Deus, concernente ao batismo no Espírito Santo. A mais alta das três torres da mansão
foi designada para ser a torre da oração, e logo organizou-se uma maratona de oração
que durou sete dias seguidos da semana, com vinte e quatro horas ininterruptas de
vigília: durante todo esse tempo, os jovens intercessores estiveram pedindo a Deus para
batizá-los, a todos e a cada um, no Espírito Santo. Às onze horas da noite, de 1 o de
janeiro de 1901, uma das estudantes chamada Agnes Ozman pediu ao Reverendo
Parham que impusse as mãos sobre a sua cabeça e orasse para que ela recebesse o
batismo no Espírito Santo. Foi isto, precisamente, o que aconteceu. Agnes começou a
falar em línguas e, nos dias subsequentes, outras pessoas presentes, inclusive, o
reverendo Parham passaram pela mesma experiência. Este evento é, geralmente,
considerado como o início histórico do Pentecostalismo. (MANSFIELD, 2003, p. 8, 9).

O que estava ocorrendo na América

Está muito bem detalhado que não foram as encomendadas rezas ou jejuns
do papa Leão XIII que fizeram as coisas acontecerem. Longe desse pensamento!
Enquanto no ano de 1886 a freira Elena Guerra buscava na Itália a unção do
Espírito Santo para os católicos e demais cristãos em todo o mundo, no Condado
Monroe, Tennessee, centro dos Estados Unidos, um pastor batista procurava
impregnar os membros de sua congregação com uma vida de santidade,
comunhão, simplicidade e pureza de alma. “Las raíces de la fé pentecostal se
encuentra en el avivamiento de santidad que apareció durante la segunda mitad del
siglo 19. En la realidad, el énfasis pentecostal es simplemente una extensión de los
primeros conceptos de santidad” (CONN, 1995, p. 29). Estudiosos e não poucos
pesquisadores afirmam que tudo aconteceu na noite de um escaldante verão
americano, quinta-feira, 19 de agosto de 1886. Richard Green Spurling, um pastor
com 72 anos,164 rompeu com a igreja batista e organizou a União Cristã, nome que
perdurou até 15 de maio de 1902, quando foi mudado para Igreja da Santidade de
Camp Creek. Esse mesmo grupo em 1907, no decorrer de sua segunda Assembleia
Geral, optou oficialmente pelo nome de Igreja de Deus.165

164
Para aquela época, a média de vida era muito baixa. Uma pessoa com 72 anos era muito bem
considerada de avançada idade. Em outras palavras, Spurling era um homem muito velho!
165
O Dr. Russel Champlin afirma que, somente nos Estados Unidos, há mais de duzentas
denominações registradas com o nome de Igreja de Deus (CHAMPLIN, 1995, v. 3, p. 222). Em abril
de 2018, ouvi que essa estatística americana supera o número mil!
Enquanto a Irmã Elena Guerra rezava freneticamente na Itália e sonhava com
uma unção pentecostal em todo o mundo, algo sobrenatural já estava ocorrendo em
diferentes lugares do planeta, notadamente nos Estados Unidos.

Stanley H. Frodsham informa que el fenómeno de hablar com lenguas le ocurrió a R. B.


Swan, en Providence, RI, en 1875; Jetro Walthall, Arkansas, en 1879; Maria Gerber,
Suiza, en 1879; Daniel Awrey, Delawre, Ohio, en 1890: Henry H. Ness, e otros, Seattle
Washington, en 1892, C.M. Hanson, Dalton, Minnessota, en 1895. Podemos estar
seguros de que hubo muchos otros bautismos con el Espíritu Santo a nivel individual o
local. (CONN, 1995, p. 25).

Note-se que essas manifestações consideradas de práticas pentecostais


dentro do cristianismo surgiram antes do dia 1º de janeiro de 1901; portanto, foram
anteriores às suplicantes rezas da beata Elena Guerra e aos pedidos direcionados
ao papa Leão XIII.
Segundo o historiador Dr. Charles W. Conn (1920-2008), que tive a
oportunidade de ouvi-lo, o avivamento pentecostal na América do Norte, de uma
forma permanente, aconteceu a partir de 1896, na Shearer School, no Condado de
Cherokee, Carolina do Norte. Nos cultos realizados na Escola Shearer, cerca de
cem pessoas foram batizadas com o Espírito Santo com a evidência de falar línguas
estranhas. Isso aconteceu 10 anos antes do avivamento da Azusa Street, Califórnia
e cinco antes dos acontecimentos em Topeka, Kansas.

O final de semana de Duquesne

Deus atendeu à oração fervorosa daqueles que clamaram por ele noite e dia. Apesar da
fraca resposta dos católicos ao chamado do Papa Leão XIII pela oração contínua ao
Espírito Santo, no início deste século houve pessoas crentes, de outras denominações,
que estavam humildemente procurando e alegremente recebendo a emanação do
Espírito de Deus e os seus dons carismáticos. [...] É bom não nos esquecermos de que,
para muitos pentecostais e evangélicos nós somos vistos, na melhor hipótese, como
uma instituição morta e, na pior, como o anticristo. (MANSFIELD, 2003, p. 9, 10, 27).

David du Plessis (1905-1987), aquele que fui ouvir na Igreja de Nova Vida em
Botafogo, no ano de 1971, cidadão branco, natural da África do Sul, que faleceu em
2 de fevereiro de 1987, cinco dias antes de completar 82 anos, foi o primeiro
pentecostal a ter acesso ao Conselho Mundial de Igrejas e a ser nele ouvido. Pela
sua livre caminhada e atuação nos meios ecumênicos, ele recebeu a alcunha de O
Senhor Pentecoste.

Em 1954 participou da Segunda Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas como


representante das Igrejas Pentecostais, o que causou muitas críticas por parte de
líderes pentecostais que haviam denunciado o Conselho Mundial como a principal força
da igreja apóstata dos últimos dias [...]. Em 1964, foi convidado pelo cardeal Bea para
ser o único observador pentecostal do Vaticano II. Nesta histórica assembleia de
cardeais, du Plessis ofereceu perdão aos católicos e viu esperança para renovação [...].
David du Plessis exerceu um papel profético e tornou-se a figura-chave para lançar o
fogo do movimento carismático nas igrejas tradicionais. [...]. Também, por seu trabalho
no diálogo e outras contribuições ao Movimento Carismático Católico, ele recebeu do
Papa João Paulo II a medalha de ouro Benemerente por excelente serviço a toda
Cristandade. É a mais alta honra que um Papa pode conferir, e du Plessis foi o primeiro
protestante a recebê-la. (WALKER et al., 2002, p. 73, 74).

A Duquesne University está localizada em Pittsburgh, uma importante e


acadêmica cidade do estado da Pennsylvania. É a mesma localidade onde Katrhyn
Kuhlman (1907-1976), uma carismática pregadora pentecostal, havia implantado
sua base evangelística em 1948. A partir dessa base, estabelecida 19 anos antes
da histórica conferência católica de fevereiro de 1967, Kuhlman fez diferença
espiritual naquela cidade. Duquesne é uma escola de formação católica tal qual a
Notre Dame University em South Bend, estado de Indiana. São duas conceituadas e
concorridas universidades pertencentes à igreja católica romana americana, locais
que se tornaram berços da Renovação Católica Carismática a qual extrapolou as
fronteiras continentais.
A cidade de South Bend, Indiana, tem historicamente uma ligação profética
com o ministério dos dois jovens pentecostais que chegaram ao Brasil em 19 de
novembro de 1910. “No culto de sábado à noite, em 1910, Adolf Uldine, membro da
igreja em South Bend profetizou que Deus desejava que Vingren fosse para o Pará
e ali pregasse as boas-novas” (SYNAN, 2009, p. 130).
Foi no Campus da Duquesne que um grupo de cursilhistas reuniu-se em
1966. Esse encontro terminou num clima de uma nova dimensão altamente
espiritual e revolucionou o conceito de fé religiosa na Igreja Católica Apostólica
Romana. Empolgados com o diferente acontecimento, estudantes e alguns
professores marcaram outra reunião para os dias 17 a 19 de fevereiro de 1967.
Mesmo sendo um período invernal, houve a participação de 25 estudantes e dois
professores da Duquesne University. Leia atentamente o parecer relatado pelo já
citado Dr. Harold Vinson Synan, que foi uma grande autoridade em pesquisas sobre
o pentecostalismo mundial.

Sábado, 18 de fevereiro de 1967, foi outro dia de Pentecoste, foi escolha de Deus esse
dia histórico para a Igreja Católica Romana. Naquela noite, o Espírito Santo desceu
sobre um grupo de católicos romanos numa casa retirada ao norte de Pittsburgh, na
Pensilvânia. A maioria era de estudantes da Universidade de Duquesne. Eles não
haviam planejado nenhum culto na capela, e sim uma festa de aniversário de um dos
participantes daquele retiro de fim de semana, e ali eles depararam com a tangível
presença do Espírito. Alguns riam e choravam, alguns caíram prostrados ao chão, e
todos falaram em línguas. Eles oraram e cantaram até as primeiras horas da manhã.
Esse foi o nascimento da renovação carismática na Igreja Católica Romana. [...] Afinal,
quem imaginaria que um movimento oriundo do avivalismo protestante e vinculado ao
pentecostalismo encontraria lugar para se desenvolver na Igreja Católica Romana?
(SYNAN, 2009, p. 288, 289).

Como já destacado em parágrafos anteriores, Patti Mansfield, na época uma


jovem solteira com 30 anos e estudante de francês, estava presente e assim narrou
em uma carta de 29 de abril de 1967, dirigida ao monsenhor Iacovantuno:

Preparando-nos para esse encontro, lemos os Atos dos Apóstolos e um livro intitulado A
Cruz e o Punhal, de autoria de David Wilkerson. Eu fiquei, particularmente,
impressionada pelo conhecimento do poder do Espírito Santo e, pelo vigor e a coragem
com que os apóstolos foram capazes de espalhar a Boa Nova, após o Pentecostes. Eu
supunha, naturalmente, que o fim de semana me seria proveitoso, mas devo admitir que
nunca poderia supor que viria a transformar a minha vida [...]. Eu fui atinginda por uma
forte certeza de que Deus é real e que me ama. Orações que eu nunca tinha tido
coragem de proferir em voz alta, saltavam dos meus lábios” (MANSFIELD, 2003, p. 3).

Aqueles participantes estavam interessados e receberam uma renovação


espiritual. O resultado foi o mover fenomenologicamente pentecostal no ensino e na
prática dentro da igreja católica. Outro livro que causou impacto entre os
participantes foi Eles Falam em Outras Línguas, literatura que narra uma pesquisa e
experiência pentecostal dos jornalistas John (1923-2017) e Elizabeth Sherrill
(1928-).

Este livro é considerado um clássico neopentecostal. É de grande interesse para os


católicos conhecerem a história de como estes livros vieram a ser conhecidos nos seus
círculos, ficando mais uma vez demonstrado o quanto nós, católicos, devemos aos
nossos irmãos protestantes e pentecostais [...]. O pessoal mais prestativo que nos
ajudou na orientação espiritual dos estudantes foram dois pentecostais, um leigo e seu
pastor. (MANSFIELD, 2003, p. 14, 30).

O sociólogo Jean-Pierre Bastian (1947-), catedrático francês e professor da


Faculté de Théologie Protestante de Strasbourg, na França, fez a seguinte análise
sobre o desenrolar do protestantimos/pentecostal na América Latina:

Hoje, o Pentecostalismo já não conhece fronteiras e invadiu a própria Igreja Católica


como o movimento de Renovação carismática. Paradoxalmente, o Pentecostalismo
católico pretende servir de baluarte contra o Catolicismo radical das Comunidades
Eclesiais de Base e aparece como o melhor meio para combater as seitas, mas pode
ser, por sua vez um verdadeiro cavalo de Tróia. (CARDOSO, 1998, p. 138).

Os católicos carismáticos no Brasil

E há de ser que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e
vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão
visões. E também sobre os servos e sobre as servas, naqueles dias, derramarei o meu
Espírito (Joel 2:28-29).

Entre os dias 18 a 23 de julho de 1967, o Brasil sediou a 8 a Conferência


Mundial Pentecostal, evento realizado no estádio do Maracanã, Rio de Janeiro,
então capital da Guanabara. Segundo as notícias, foi um mover de Deus que
extrapolou os históricos pentecostais da Cidade Maravilhosa, gerando uma onda de
avivamento que alcançou todos os estados de um Brasil nos anos de fogo
impetrados pelo Regime Militar. Embora não haja nehuma interligação no campo
religioso, a 8ª Conferência no Rio de Janeiro aconteceu menos de 90 dias após o
embrionário acontecimento na Duquesne University.

Cerca de três anos depois do fim de semana de Duquesne, dois missionários


americanos e jesuítas, Harold J. Rahm, de 51 anos, e Edward J. Dougherty, de 29,
trouxeram a Renovação Carismática Católica para o Brasil. Eles começaram a realizar
retiros de experiência do Espírito Santo em Campinas, São Paulo. Mais tarde, mudaram
o nome para Experiência de Oração. O trabalho desses dois padres, era organizar
grupos de oração e reuniões de planejamento, que foram se multiplicando por todo o
País. Como consequência, padres e leigos começaram a experimentar novo ardor na fé
e na evangelização. Em pouco tempo, a RCC se espalhou pelo Brasil e promoveu o
despertamento da vida espiritual de muitos católicos atuantes, inclusive os que estavam
engajados em movimentos de renovação, como cursilhos, encontros de casais e
treinamento de liderança cristã. Muitos católicos nominais foram também atingidos a
retornaram à igreja. (CÉSAR, 2000, p. 145, 146).

A principal figura brasileira no pioneirismo da Renovação Carismática Católica


tem sido o agora monsenhor Jonas Abib (1936-), nascido em Elias Fausto, São
Paulo, filho de pai sírio-libanês e mãe italiana. Monsenhor Jonas foi e continua
sendo o principal mentor e divulgador da RCC na língua portuguesa. Em 1980, aos
44 anos, fundou a Comunidade Católica Nova Canção, em Cachoeira Paulista,
pequeno e pacato espaço localizado no Vale do Paraíba. Essa cidade tornou-se
concorrente do sagrado com a vizinha Aparecida. De sua base em Cachoeira
Paulista, a Nova Canção transmite programas de rádio e televisão para todo o
Brasil, divulgando a mensagem carismática dentro de uma ampla visão de
renovação espiritual a milhares de ouvintes. (Confira o site
<www.cancaonova.com>. Acesso em: 27 jun, de 2016).
Segundo estatísticas de 1997 citadas pelo pastor Elben Lenz César, a
Renovação Católica Carismática já havia alcançado um grande crescimento:

Calcula-se que há 8 milhões de carismáticos no Brasil e perto de 60 mil grupos de


oração. Mas a RCC não é o único movimento de renovação do catolicismo brasileiro,
que conta com 198 dioceses, 38 arquidioceses, treze prelazias e duas abadias, nas
quais há 8.069 paróquias e 15.652 párocos. (CÉSAR, 2000, p. 146).

Conclusão

A igreja protestante evangélica no Brasil está se desenvolvendo em uma


meteórica velocidade de expansionismo e há muito o seu crescimento vem
alcançando todos os segmentos e classes sociais. É natural que esse crescimento
produza algumas consequências ideológicas, gerando conflitos litúrgicos e
doutrinários que atingem o sistema eclesiológico. São os conflitos de lideranças
muitas vezes sob acirrada ganância pelo poder e o manusear do sagrado político
entre as multidões ou pequenos grupos isolados. Junto ao fenômeno da expansão,
surgem divisão e subdivisão a cada dia, alargando a divulgação do Evangelho do
Senhor Jesus Cristo. Essas brigas pelo poder e pela expansão do controle religioso
são desgastantes e vergonhosos e extrapolam em muito o mais pobre dos códigos
de ética. Entretanto, nada é novidade nessa área. São Paulo, o apóstolo aos
gentios, já havia se referido a pregadores movidos por escusos interesses do
profano e do sagrado:

Alguns, efetivamente, proclamam a Cristo por inveja e profia; outros, porém, o fazem de
boa vontade; estes, por amor, sabendo que estou incumbido da defesa do evangelho;
aqueles, contudo, pregam a Cristo, por discórdia, insinceramente, julgando suscitar
tribulação às minhas cadeias. Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer
modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me
regozijo, sim, sempre me regozijarei. (Filipenses 1:15-18).
Não há como narrar especialmente a história do protestantismo no Brasil.
Essa história ainda não foi contada porque não chegou ao seu final. É uma história
inacabada! A cada dia, há novas e grandes experiências dentro dessa inesgotável
área da liturgia cristã.
As experiências na Shearer School, em 1896, e os acontecimentos em
Topeka, em janeiro de 1901, formaram uma força espiritual redundando no perene
derramar do Espírito Santo que alcançou os negros, os latinos e os brancos pobres
que buscavam uma experiência com o Sagrado no número 312 da Azusa Street em
Los Angeles no ano de 1906. Dos melhores dos cálculos realizados pelos
pesquisadores e experts na área, imagina-se que haja cerca de meio milhão de
pentecostais em todo o mundo. Se a cifra estiver correta, cerca de 3% dessa
multidão encontra-se no Brasil! Expressando-se sobre esse universo religioso em
contínua fase de crescimento, a Revista Veja, edição número 1.758, de 3 de julho
de 2002, página 90, declara: “Hoje, há mais pentecostais no mundo do que
anglicanos, batistas, luteranos e presbiterianos somados”. Uma cifra retumbante
que impressiona os pesquisadores sociais em todo o planeta.

Epílogo

O cristianismo tem algo em comum com todas as religiões existentes: é


altamente ramificado. Sendo uma religião retalhada, suas fatias estão expostas em
bancas no mercado do consumismo da fé. Essas divergências abrem um leque sem
precedentes, formando divisões por interesses políticos e financeiros, sem
enumerar a incessante busca na manipulação do sagrado, pela qual a fé é vendida
concomitantemente pela realização dos milagres. O mestre francês da sociologia
afirma que

na medida em que o interesse político que a determina e a sustenta subsiste


dissimulado em face tanto daqueles que a produzem como daqueles que a recebem, a
crença na eficácia simbólica das práticas e representações religiosas faz parte das
condições da eficácia simbólica das práticas e das representações religiosas.
(BOURDIEU, 1982, p. 54).

A Igreja Católica Apostólica Romana que hoje conhecemos está muito longe
dos fanáticos seguidores do Caminho mencionado no livro dos Atos dos Apóstolos.
Aliás, no mundo religioso em que estamos inseridos, há uma forte inversão de
valores em relação ao sagrado. A própria igreja romana é também uma verdadeira
peneira. Dentro do romanismo, há dezenas de ordens, mas raríssimas são aquelas
que trabalham em harmonia em seus propósitos. Em tese, todas obedecem às
regras do papa, o chefe vitalício da Igreja e governo absoluto do Vaticano, também
considerado o único infalível em suas decisões! Um contraste inserido por São
Paulo em sua carta enviada à comunidade cristã em Roma: “Seja Deus verdadeiro,
e mentiroso, todo homem” (Romanos 3:4). Que cada leitor tire a sua própria
conclusão! Sou apenas um historiador e não faço dos fatos uma questão
apologética; aliás, nunca foi essa a minha intenção.
O discurso papal, que por séculos vinha se arrastando, finalmente foi
sacramentado trinta e um anos antes de findar o século XIX, no decorrer do
Concílio Vaticano I.

O fato culminante do pontificado de Pio IX foi o Concílio do Vaticano. Inaugurado, a 8


de dezembro de 1869, com notável assistência provinda de todo o mundo romano, seu
resultado mais importante foi a afirmação, em 18 de julho de 1870, da doutrina da
infalibilidade papal, por quinhentos e trinta e três votos contra dois. (CAIRNS, 1995, p.
289).

Não esqueçamos que os bispos brasileiros presentes no Vaticano I, especial


Dom Antônio de Macedo Costa (1830-1891), foram as principais vozes a favor do
reconhecimento da infalibilidade papal. Também foi esse mesmo papa Pio IX que,
em 1854, colocou Maria no pedestal de igualdade com o Senhor Jesus Cristo,
desfigurando completamente os ensinos bíblicos. No caminhar eclesiológico,
Maria, a mãe de Jesus, tem o seu importante lugar, posição que merece o meu
respeito. Porém nunca em função de cossalvadora. O italiano Giovanni Maria
Mastai-Ferretti, em 1846, se encarnou na figura papal com o nome de Pio IX,
posição que somente findou com sua morte em 1878. Foram quase 33 anos como
mandatário absoluto.

O longo pontificado de Pio IX, traumático, aparentemente contraditório, religiosamente


criativo e intenso, estará marcado, para o bem e para o mal, por esta opção e pela
contradição manifesta de quem se decidiu por uma aposta sem aceitar tudo o que ela
implicava. [...] Foi o papa da definição da Imaculada Conceição, 1854, dogma que
reforçou a autoridade pontifícia e estimulou os estudos sobre a mariolatria.
(GALLEGO, 2010, p. 377, 378, 379).

Nessa exacerbada busca para manter a sua clientela sagrada e tudo controlar
dentro da disputa do mercado, existem algumas linhas mais extravagantes, outras
nem tanto. Há uma imensa lista de nomes dos controladores do sagrado. Cito
somente algumas das mais conhecidas pelo público consumidor: Igreja Católica
Ortodoxa Grega, Igreja Cóptica, Igreja Católica Armênia, Igreja Católica Lusitânia,
Igreja Católica Nacional Americana, Igreja Católica Apostólica Brasileira, Igreja
Ortodoxa Oriental. Em detrimento dos evangélicos protestantes, há também igrejas
católicas para os variados gostos e sabores da sua freguesia!
Com o passar dos anos, boa parte das multifacetas do cristianismo tem
buscado conhecer e andar em uma dimensão espiritual mais elevada; afinal, tem
que se adequar aos interesses da clientela ou mudar de ramo. Nessa busca de
satisfazer o freguês desorientado, muitos estão regressando aos acontecimentos da
manhã de Pentecostes em Jerusalém. Em resultado dessa busca, fez-se a
pulverização que tem gerado a expansão das diferentes facções sob o manto
sagrado de Cristo Jesus.

Por que pentecostais?


Pentecoste é uma designação grego-helenística para designar a festa hebraica
das semanas, expressão omitida em todos os livros do Antigo Testamento, o qual,
não obstante, descreve a chamada Festa das Semanas, instituída no decorrer dos
quarenta anos de peregrinação no deserto (Levítico 23:15-25). Na Bíblia Sagrada, a
palavra pentecostes, sempre grafada no plural, aparece somente três vezes e
apenas nas páginas do Novo Testamento. Lucas a citou em Atos 2:1, 20:16 e Paulo
em I Coríntios 16:8.

Nas páginas do Antigo Testamento, essa festa é chamada de Festa das Semanas,
fazendo alusão às diversas semanas que se tinham de passar entre a Páscoa e essa
observância. Passavam-se sete semanas entre as duas ocorrências, calculadas a
começar do primeiro dia após o primeiro sábado da Páscoa. Os judeus, que falavam o
grego chamavam a essa festa de Pentecoste, por ser observada no quinquagésimo dia
após o tempo que acabamos de mencionar. Ambas designações aparecem em Tobias
2:1. A Páscoa estava associada à colheita da cevada. O pentecoste, pois, assinalava o
término da colheita da cevada, que começava quando a foice era pela primeira vez
lançada no grão, Deuteronômio 16:9. Também se considerava o começo dessa colheita
ao serem movidos os molhos, Levítico 23:11-12. Já a festa de Pentecoste marcava a
colheita do trigo, e agia como espécie de santificação de todo o período da colheita, da
páscoa ao Pentecoste” (CHAMPLIN, 1982, v. 3, p. 43).

No cristianismo, especialmente durante os séculos XVIII e XIX, a palavra


pentecoste referia-se à Festa das Semanas, nunca ao título ou subtítulo de uma
igreja ou organização. Era tida como uma expressão de cunho pejorativo.
Normalmente, a busca de algo mais de Deus transitava por palavras mais teologais
ou academicamente corretas. Exemplos temos nas orações e no viver de alguns
homens intitulados Heróis da Fé. Entre os muitos heróis e heroínas que buscavam,
ensinavam ou pregavam sobre a urgente necessidade de avivamento dentro do
cristianismo, todos os personagens em destaque eram europeus ou americanos.
Nosso espaço é insuficiente para a imensa lista. Seguem nomes de alguns dos mais
destacados na história dos avivamentos. Jonathan Edwards (1703-1758), John
Wesley (1703-1791), George Whitefield (1714-1770), Charles Finney (1792-1875),
Dwight Lyman Moody (1837-1899). Edwards e Whitefield eram calvinistas
extremistas, defensores da supremacia branca e faziam uso do negro como
escravo. Entre as mulheres que buscavam para si e compartilhavam com até
milhares de ouvintes, destacam-se: Susanna Wesley (1669-1742), Asa Mahan
(1799-1889), Phoebe Palmer (1807-1874), Hanna Whittal Smith (1832-1911).
Aqueles e estas, além de tantos(as) outros(as), buscavam o mover de Deus ou, no
uso da palavra da época, o avivamento. Em nossos dias, o endosso vem da parte
de ninguém menos que o Dr. Billy Graham (1918-2018), que foi o mais conhecido e
respeitado evangelista que Deus tem levantado em nossa geração. Ele relatou:

Regozijo-me com os objetivos de nosso Congresso Norte-Americano sobre o Espírito


Santo e a Evangelização Mundial, e agradeço a Deus a função vital que esse
movimento desempenha ao trazer um despertamento espiritual a este País. Hoje, é
animador ver o Espírito Santo agindo em sua Igreja por toda a América do Norte e em
outras partes do mundo, com o objetivo de levar outras pessoas ao conhecimento do
Salvador Jesus Cristo. (SYNAN, 2009, p. 484).
Wesley e outros metodicamente comprometidos com Deus alcunharam a
palavra holiness, expressão de santidade que continua sendo a base para o
caminhar no e com o Espírito Santo. Finalmente, esse processo tornou-se o batismo
com o Espírito Santo com a evidência de falar em línguas estranhas, algo
desconhecido entre os holiness. No apagar das luzes do século XIX e nascer do XX,
o falar em línguas estranhas se tornou o carro-chefe da teologia dos históricos
pentecostais. Somando o fanatismo de alguns, criou-se o grupo dos intocáveis
profetas e reveladores dos dons espirituais, os controladores do sagrado.
Todas as igrejas clássicas, hoje conhecidas por pentecostais em virtude de
suas práticas iniciais, fugiram dessa expressão. Basta conferir os primórdios de
algumas consideradas históricas: Igreja de Deus, Missão de Fé Apostólica,
Congregação Cristã, Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja
de Deus em Cristo, entre tantas outras. Talvez um dos poucos grupos que aderiu à
identificação pentecostal tem sido a Igreja do Nazareno, denominação que existe
pela fusão de várias organizações e por acordos debatidos em 1907 e 1908, dando
origem à organização da Igreja Pentecostal do Nazareno. Em 1919, sob pressão de
alguns líderes de peso entre os Nazarenos, baniram a expressão Pentecostal do
seu título e manual de ensinos. Continua sendo uma igreja de fé Holiness-
Wesleyana, porém dentro dos moldes do tradicionalismo histórico, em que “o dom
de línguas continua a ser considerado ou carnal ou demoníaco [...] A palavra
Pentecostal, todavia, foi retirada do nome da igreja em 1919, para evitar confusão
com os crentes que falavam em línguas e eram logo associados ao termo
pentencostal. A postura nazarena em relação às línguas teve início quando o
fundador da denominação, Phineas Bresee, considerou ilegítimas as manifestações
da Rua Azuza. Seu ponto de vista era que o movimento pentecostal causava em
Los Angeles o efeito de uma

rocha lançada no mar”. [...] Wilbur Jackson, pastor da Igreja do Nazareno de Lockland,
em Cincinnati, foi desligado da denominação, em 1971, depois que sua experiência
pentecostal tornou-se pública. Ele ficou conhecido como um líder que desejava ver a
renovação carismática na igreja. Em 1979, num encontro de ministros de convicções
semelhantes às suas, Jackson implantou a Comunhão Carismática Holiness-Wesleyana,
cujo objetivo era atender a todos os que haviam sido rejeitados pela igreja. (SYNAN,
2009, p. 281, 282, 285).166

Hoje, especialmente na expansão do protestantismo no Brasil, cerca de 80% ou


mais das denominações têm a expressão pentecostal em algum lugar para identificar o
seu nome e suas crenças doutrinárias. Com raríssimas exceções, as novas
denominações surgidas a cada dia são cópias das cópias. Novos, somente os atores;
os palcos são os mesmos e semelhantes os fregueses!

Os neopentecostais

166
Para os interessados sobre o voltar atrás da Igreja do Nazareno, recomendo a leitura do livro “O
século do Espírito Santo”, páginas 281 a 287, nas quais o autor apresenta uma lista dos
acontecimentos com fartas referências documentais. Apenas a título de curiosidade sobre fatos
históricos.
O neopentecostalismo é uma vertente que minou o conservadorismo do
movimento pentecostal clássico, visto como algo extremamente liberal aos olhos
dos históricos. Ambos os movimentos surgiram nos Estados Unidos e ganharam
asas, espalhando-se por todo o planeta. Esse avanço e crescimento têm levado os
tradicionais históricos e os pentecostais clássicos a rever suas estratégias e
comportamentos doutrinários, incluindo os usos e costumes.
O poder econômico, diante de líderes carismáticos e centralizadores, tem sido
a divisa ou o carro-forte dos neopentecostais, que colocam no mercado a teoria do
positivismo mesclado com a fé. Essa dicotomia faz do cliente o mercador que pauta
sua vida em um prisma de vitória e uma contínua declaração de vencedor. A maioria
dos neopentecostais foge da regra da visão holiness na demonstração externa de
santidade. O batismo com o Espírito Santo é válido e deve ser buscado, porém o
forte é depender da espiritualidade do líder maior. Pelas mãos desse líder, que pode
ser um apóstolo, bispo, missionário ou outro pomposo título clerical, passa a busca
do sagrado!
Segundo as pesquisas do sociólogo Gedeon Alencar, um pentecostal clássi co
que sabe como ninguém alfinetar e explicar com o ar da capacidade intelectual e
vivência nos arraiais dos evangélicos.

O neopentecostalismo, apesar de suas características acentuadamente anticatólicas,


assume um novo campo de batalha: o antiafro [...] Minha suspeita desse caráter antiafro
[...] é que, como a hegemonia católica já foi quebrada – mas não vencida - deve-se,
portanto, atingir o segundo grupo mais importante. A psicologia explica que no afã de
destruir o inimigo termina-se por assumir algumas características dele. (ALENCAR,
2005, p. 18).

Os renovados

A renovação sempre sucedeu no decorrer da História da Igreja. Aliás, isso vem


dos primórdios do Novo Testamento. Todo tipo de vida religiosa tem surgido de uma
renovação interna ou também no contexto em que a pessoa esteja inserida. Alguns
pesquisadores mais ascéticos embrulham a renovação nas folhas do misticismo. O
professor Russell Norman Champlin (1930-2018), um norte-americano torto de
saber que fez do Brasil sua morada e laboratório experimental, vivenciando o
caminhar político/religioso, procura com certo afã alfinetar os renovados, frutos de
uma experiência espiritual.

Esse conceito sempre sofre a duas interpretações: da parte daqueles que se satisfazem
com seus hábitos e maneira de viver, os quais resistem a qualquer tentativa de
mudança, com frequência rotulando-a de heresia ou fanatismo; ou da parte daqueles
que anseiam tanto por renovar as coisas que terminam na arrogância da superioridade e
do exclusivismo, pensando que voltaram aos dias do Novo Testamento ou conseguiram
realizar algum feito extraordinário. Quase todos os movimentos de renovação enfatizam
o lado místico, ao mesmo tempo em que negam o valor do intelecto [...]. A própria
regeneração, efetuada pelo Espírito Santo, é a maior de todas as renovações. No
entanto, hodiernamente, o termo é usado por muitos para indicar os reavivamentos
religiosos e os movimentos de igrejas tradicionais que aceitam a bênção carismática. A
regeneração é obra do Espírito de Deus, e a renovação mental é efetuada pelo mesmo
Espírito, com a cooperação consciente e esclarecida do crente. (CHAMPLIN, 1995, v. 5,
p. 660).

Como já mencionado em parágrafos anteriores, a marca registrada dos


pentecostais é a evidência de falar línguas estranhas no ato do batismo com o
Espírito Santo, mesmo que isso tenha vindo a se silenciar no passar dos anos. Já
no conceito dos renovados, as línguas são secundárias, mas a renovação é uma
exigência cotidiana na vida interna e externa do crente. Nesse interno e externo,
locais invisíveis e visíveis, faço a utilização de uma metáfora, comparando o dia a
dia dos sacerdotes junto ao altar desenhado pelo autor do pentateuco, onde “o fogo
arderá continuamente, não se apagará” (Levítico 6:13).
Todos os movimentos carismáticos/renovados que surgiram, com várias
exceções, permaneceram no seio da igreja de vínculo tradicional/histórico. A
incompatibilidade veio a partir da liturgia e da adoração do sagrado; é sair de um
estereótipo introvertido para o mundo extrovertido dentro de um contexto
sociorreligioso. Os presbiterianos, os batistas, os metodistas, os luteranos, os
congregacionais e outras organizações de cunho tradicional foram grandemente
afetadas em seu rol de membros. Em algumas situações, pessoas e igrejas foram
forçadamente excluídas em grande número, como fez a Convenção Batista
Brasileira em janeiro de 1965. Com uma só tacada, foram 32 igrejas com milhares
de membros sumariamente expulsos no decorrer da Convenção em Niterói. Os
batistas e outros grupos que aderiram ao mover do Espírito Santo mantêm uma
ambiguidade: usam nomes e alguns costumes herdados da igreja-mãe e
acrescentaram a nomeclatura de renovados. Os católicos fugiram do título
pentecostal; abraçaram a expressão carismática.

Os carismáticos

Worldwide renewal and revival movement, also known as neo-Pentecostalism,


emphasizing the charismata, or the gifts of the Holy Spirit, demonstrative worship,
theological Fundamentalism, and evocative music. Among the Protestants, it has found a
natural home among independent churches with Pentecostals antecedents, but the
classical Pentecostals have often been cautious. In the Roman Catholic Church, it is a
lay movement recognized by the Vatican. The term was coined by H. Bredesen and J.
Stone in 1963 to describe a growing trend that later developed in three separate sectors:
Mainline Protestant churches from 1950, Roman Catholic Church from 1967 and
independent churches from the late 1960. (KURIAN, 2001, Editor, p. 165).167

Como já mencionado, a expressão Renovação Carismática, movimento


nascido entre leigos nos Estados Unidos, encaixou-se como uma luva dentro do

167
O Movimento de Renovação Mundial, também conhecido como neopentecostalismo, enfatiza os
dons carismáticos, ou dons do Espírito Santo, o fundamentalismo teológico e canções evocativas. Os
protestantes e os pentecostais clássicos têm sido muitas vezes cautelosos. Na Igreja Católica
Romana, é um movimento de leigos e reconhecido pelo Vaticano. O vocábulo foi cunhado por H.
Bredesen e J. Stone em 1967 para descrever uma crescente tendência que mais tarde se
desenvolveu em três setores: nas igrejas protestantes a partir de 1950, na Igreja Católica Romana
em 1967 e nas igrejas independentes, no final de 1960. (Tradução de Carlos Boaventura Jr.).
catolicismo. O seu crescimento chegou até Roma quando recebeu, em 1975, a
bênção proferida por Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini (1897-1978),
monsenhor que, em 1963, tornou-se o conhecido papa Paulo VI, o qual foi o
principal inquilino do Palácio do Vaticano durante 15 anos. Paulo VI foi o primeiro
papa a viajar de avião e também o primeiro da história a visitar os Estados Unidos,
numa viagem de um só dia ocorrida na segunda-feira, 4 de outubro de 1965. Na
qualidade de chefe de Estado, foi recebido no aeroporto internacional John F.
Kennedy, na região metropolitana de New York, pelo presidente Lyndon B. Johnson
(1908-1973).

O movimento ecumênico, que experimentou crescimento durante a maior parte do


século, constituiu um fator fundamental para o progresso da Renovação Carismática
Católica. Kilian McDonnell observa: Por trás de cada carismático do período inicial, está
um pentecostal clássico. Líderes pentecostais como David Wilkerson, David du Plessis e
Vinson Synan proporcionaram informações e orientações significativos para o incipiente
movimento de renovação. [...] Um importante instrumento na propagação da renovação
foi a Adhnep, implantada pelo leigo da Califórnia Demos Shakarian. Pelo fato de aceitar
católicos como sócios e oradores, o grupo de Shakarian construiu uma importante
plataforma para espalhar a renovação pelo mundo. [...] A Renovação Carismática
Católica foi, sem dúvida, uma das vertentes mais importantes do movimento carismático
do século XX. Foi a que apresentou, também, um dos crescimentos mais
surpreendentes do ponto de vista do contexto do avivamento e da natureza do
movimento carismático” (SYNAN, 2009, p. 293).

Na existência histórica do cristianismo dos últimos 500 anos, há os


protestantes, os reformados, os holiness, os avivados, os pentecostais, os
renovados, os neopentecostais, os carismáticos e outros. Todos fazem parte de um
período de avanço espiritual dentro da Igreja. Mesmo após dois mil anos, ela
continua sendo a dinastia político-religiosa mais prolongada e fascinante da história
mundial. “Disse Jesus: As portas do inferno não prevalecerão contra a minha igreja”
(Mateus 16:18). O mistério é tal que o único presidente americano católico e de
família irlandesa desabafou: “Quanto mais aumenta o nosso conhecimento, mais
evidente fica a nossa ignorância” - John F. Kennedy (1917-1963).

Posfácio

O estudante da história da Igreja que tem observado a operação do poder transformador


do evangelho no curso dos séculos, na recomposição das vidas de homens e nações,
encara os problemas da igreja como desafios para renovado esforço, no poder do
Espírito Santo. Ele compreende que Deus é tanto o provedor do Universo como o
redentor dos homens através da obra de Cristo na cruz. Tanto a história como o seu fim
estão nas mãos potentes de Cristo, o Senhor da história. Com serena confiança em seu
Senhor ressurreto, a igreja irá enfrentar os desafios do presente da mesma forma como
enfrentou os desafios do passado. (CAIRNS, 1995, p. 472).

Perto do fim

O fim da História e de seus heróis? Não! O fim dos heróis e de suas


Histórias? Não! A História segue na mesma proporção em que novos heróis surgem
a cada manhã, alguns por nascimento, outros nos acasos da vida. Ninguém foge à
História; ela nos perseguirá até o sepultamento e continuará a contar os nossos
feitos, bons ou maus, ocultos ou revelados. Há aqueles sortudos que se destacam e
mantêm os seus nomes registrados nos panteões de gelados granitos, cimento e
barras de ferro. Mesmo nos templos dos deuses - panteões - com uma lápide
identificável, há aqueles cujos brados heroicos do passado novas pesquisas
desmentem. Muitos desses monumentos, não passam de locais apropriados para
bandos de pombas fazerem suas ninhadas e pintá-los com os seus múltiplos
dejetos.
Esse amontoado de letras que fui colecionando culminou nessa obra. Foram
muitos esforços e momentos de desânimo até o surgimento de novos horizontes.
Sou um aprendiz de escritor, iniciante na História e apaixonado pelos reais
caminhos da humanidade. Todos nós somos bons filhos provindos de uma má
família, ou maus filhos provindos de uma boa família. Por melhor ou pior que
sejamos, o DNA de cada cidadão vai levá-lo à um denominador comum. No final de
tudo, somos parentes próximos, compostos da mesma matéria-prima: o barro.
Moramos no mesmo planeta e dependemos da sua produção; não temos vizinhos
interplanetários. A terra é nosso habitat! A História é uma dádiva de Deus que nos
conduz aos mais escondidos dos meandros e revela o escondido.
“Todas as coisas criadas constituem o produto de um ato único e soberano por
parte de um Criador onisciente, onipotente e pessoal, o qual não depende da Sua
criação para a Sua existência, nem é parte dela” (LOURENÇO, 2015, p. 36). Ao
terminar, faço minhas as palavras do notável jornalista e escritor paranaense
oriundo de Maringá:

Cabe-me, portanto, trabalhar com uma atitude atenta, de responsabilidade e respeito


pelos agentes envolvidos nessa história, entre quais eu me inscrevo, deixando que os
leitores julguem se, nesse esforço, fui honesto e sincero nos meus propósitos - ainda
que, talvez, não inteiramente bem sucedido. (GOMES, 2019, p. 39).
The end!

APÊNDICE
A. Bill Elwood Watson

Introdução

George Washington (1732-1799), Thomas Jefferson (1743-1826), James


Madison (1751-1836), James Monroe (1758-1831), William Henry Harrison (1773-
1841), John Tyler (1790-1862), Zachary Taylor (1784-1850), Thomas Woodrow
Wilson Library (1856-1924) e Bill Elwood Watson (1930-2016). O que há de comum
entre esses personagens? Todos protestantes brancos, com suas ancestrais raízes
em diferentes países da Europa e americanos nascidos no estado da Virgínia,
chamado de Mother President’s State. Os nomes são aqui classificados em ordem
de ocupação na presidência americana. Até aos nossos dias (2021), o estado da
Virgínia forneceu o maior número de presidentes para a nação americana. Dos 46
ocupantes da Casa Branca, oito nasceram na Virgínia. A jornada nominal acima
representa a seguinte ordem numeral: primeiro, terceiro, quarto, quinto, nono,
décimo, décimo segundo e vigésimo oitavo. Outro fator de relevância histórica: foi
na Virgínia, em Jamestown, dia 26 de abril de 1607, onde se realizou o primeiro
culto protestante nos Estados Unidos e, pelo mesmo porto, chegaram os primeiros
negros africanos como escravos no ano de 1619. Na cidade de Richmond, também
fundada em 1607 e atual capital do estado da Virgínia, encontra-se o cérebro
administrativo da Convenção Batista do Sul, ainda hoje o maior segmento
protestante dos Estados Unidos. Esses batistas têm ramificações em vários países,
incluíndo o Brasil, onde desde 1882 atuam com grandes investimentos financeiros e
humanos. Todos os indicados Presidentes, com exceção de Woodrow Wilson
Library,168 desfrutaram, antes e durante o exercício do cargo, da utilização da mão
de obra de negros feitos escravos procedentes de diferentes países africanos. Em
outras palavras, afirmamos que todos esses mandatários eram brancos, de
formação protestante, membros da maçonaria e, a reboque, como rezava a cartilha
da época, uma sociedade política e religiosamente escravagista. Nos quatro
amargos anos marcados pela fratricida Guerra Civil Americana, instalou-se, na
cidade de Richmond, a capital do utópico Estados dos Conferderados. Tudo a
poucas milhas de Washington, a capital da União, que venceu e prevaleceu em
espaço físico.

Um pouco da história

Bill Elwood Watson, 169 filho de Walter Watson e sua esposa Cora Alice Taylor
Watson. Bill nasceu na quinta-feira, 28 de agosto de 1930, em uma microfazenda
nos arredores de Honaker, pequena cidade a 570 metros acima do nível do mar e
localizada ao sul do estado da Virginia. De acordo com os históricos arquivos
mantidos pela United States Census Bureau, no ano de 1930, em Honaker, havia
somente 710 pessoas. Todos os habitantes do município de 1,4 quilômetro

168
Woodrow Wilson ocupou a presidência de 1913 a 1921, período da Primeira Grande Guerra
Mundial. Foi empossado 50 anos após a Proclamação de Emancipação, assinada por Abraham
Lincoln (1809-1865), decreto presidencial que entrou em vigor dia 1º de janeiro de 1863. Wilson era
um presbiteriano mais calvinista que o próprio João Calvino (1509-1564). Pouco antes de sua posse
na Casa Branca, um aliado político foi lhe pedir apadrinhados favores. A resposta foi britânicamente
seca e sem rodeios. A negativa seguiu acompanhada de uma garantida predestinação: “Eu não lhe
devo nada [...] Não importa se você fez muito ou pouco, lembre-se que Deus determinou que eu seja
o próximo presidente dos Estados Unidos” (DAVIDSON, 2016, p. 223).
169
Nas muitas andanças que fizemos juntos por 12 países (Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru,
Paraguai, Venezuela, Portugal, Espanha, Puerto Rico, México e Estados Unidos), quando
passávamos longas horas a conversar, mencionou-me muito sobre sua vida, peripécias e vitórias.
Éramos amigos e tive por ele um grande respeito e profunda admiração. Irmão Bill Watson, como
apreciava ser tratado, contou-me várias histórias pessoais de sua infância e juventude, entre elas,
que o médico que assistiu seu nascimento, por faltar dinheiro circulante, recebeu em pagamento uma
bezerra! Em tempos de crise, surge a lei da permuta, conhecida pelo nome de escambo.
quadrado eram brancos e membros de igrejas protestantes, com predominância dos
batistas. (NOTA DE RODAPÉ: Juntamente com Rodrigo Vilas-Boa Oliveira, estive
em Honaker, Virgínia, na quinta-feira, 25 de março de 2021, um dia chuvoso. Ainda
uma pequena comunidade após as florestas que formam em vota da cordilheira
Apalaches. Chegamos até a First Baptist Church of Honaker. Local onde a família
Watson participava assiduamente de todas as atividades. O atual edifício é novo,
entretanto mantém na entrada da área o velho sino, algo histórico e remonta mais
de 100 anos. FINAL DA NOTA). Bill Watson veio ao mundo exatamente dez meses
e quatro dias após o início da Grande Depressão Econômica que produziu a maior
quebradeira na história da Maiúscula América. Os sinais já estavam visíveis em
vários setores comerciais e produtivos, mas estorou em 24 de outubro de 1929,
evento registrado como o crash que gerou o Colapso da Bolsa de Valores de New
York. Tal desastre econômico pejorativamente foi alcunhado de Quinta-feira Negra,
data do início da mais longa e amarga recessão econômica já ocorrida nos Estados
Unidos, que, a reboque, foi arrastando várias nações em todos os continentes,
produzindo um verdadeiro efeito dominó.

Os dois dias mais assustadores do Grande Crash, 24 e 29 de outubro de 1929, ficaram


conhecidos como Quinta-feira Negra e Terça-feira Negra. Mas a queda brusca do
mercado de ações durou meses, e não dias. Isso é importante porque não foi apenas
dinheiro que as pessoas perderam, foi confiança. De tempos em tempos as ações
subiam um pouco, reavivando as esperanças. Mas então despencavam novamente, e a
esperança começou a desaparecer. [...] Cerca de 100 mil norte-americanos perdiam o
emprego a cada semana. No fim de 1932, 13 milhões estavam desempregados. [...]
Mais de cinco mil bancos encerraram suas atividades entre 1930 e 1932. (DAVIDSON,
2016, p. 237).

Na linguagem do dramaturgo, renomado escritor e visconde francês, o mundo


“sentia vagamente que estava em via de cair na miséria e de escorregar para o pior”
(HUGO, 2007, v. 1, p. 162). Toda a família Watson era parte integrante da Primeira
Igreja Batista em Honaker, formada predominantemente de pequenos fazendeiros e
sitiantes. Como bons protestantes, não podiam fugir das severas e conservadoras
regras defendidas pelos batistas do Sul daquela época. Assim sendo, em tenra
infância Bill foi apresentado ao Senhor e, quando jovem, batizado nas águas por
imersão, o que não acontecia sem antes a pessoa passar por uma sabatina pública
em assembleia ordinária. Por ser tão pequena e todos ali serem protestantes, cada
morador de Honaker policiava seu vizinho. Mesmo assim o jovem Bill arquitetava
suas traquinagens em companhia de outros bons e comportados moços batistas.
Em uma dessas brincadeiras de mau gosto, Bill perdeu parte de um dedo da mão
direita. Aquele permanente sinal fazia-lhe recordar do seu passado arteiro.

Novas aventuras

A história da humanidade, que abrange o social, o antropológico e o


ontológico, traz à tona o conhecimento de que todo mal vem acompanhado de
outro, quase sempre mais assustador, temível e devorador que o primeiro. Isso
quando não chegam juntos a fim de desmoronar os sonhos e objetivos do viver!
“Um abismo chama outro abismo” (Salmo 42:7). É o que muitos estudiosos tratam
de Lei de Murphy, adágio ligado às pesquisas e experiências do engenheiro Edward
Alvar Murphy (1918-1990), um militar americano nascido na República do Panamá.
O catastrófico Crash, que fez nascer a pejorativa Quinta-Feira Negra, 24 de outubro
de 1929, consequentemente fomentou a maior quebra no mundo dos negócios.
Direta ou indiretamente, o colapso afetou todos os moradores do planeta terra. A
população chorava caindo no abismo da pobreza, da fome, do desemprego e de
alarmantes suicídios de ex-bem-sucedidos empresários ou de simples pais de
família que acordaram no mais baixo nível da miséria. Na busca de superar esse
drama de horror, mortandade e desolação, explode, em 1º de setembro de 1939, a
Segunda Grande Guerra Mundial. Novamente o estopim foi incendiado na Europa e,
como fogo atiçado em rastro de pólvora, se alastrou rapidamente por todos os
continentes, deixando um saldo negativo de milhões pessoas mortas ou
desaparecidas. “Dezesseis milhões de pessoas morreram na primeira guerra; a
nova matou 60 milhões. A Segunda Guerra Mundial foi, pura e simplesmente, o
maior acontecimento na história humana. Nunca antes os humanos haviam
desencadeado algo tão letal” (DAVISON, 2016, p. 246). Esse número equivale cerca
de seis vezes toda a população de Portugal em nossos dias ou nove vezes os
habitantes do Estado de Israel. Além disso, essa cifra equivale cerca de 20% da
população dos Estados Unidos em nossos dias. Algo assustador e tenebroso!
Nesse devastador período da história, as poucas reservas que a família
Watson ainda possuía chegou ao fundo do poço, ou seja, acabou. O poço secou de
vez! Porém eles não tiveram problema somente as finanças e os negócios que
produziam com a terra e da terra. Com o clima frio e úmido pela altitude geográfica
de Honaker, Cora Alice, já mãe de uma filha e três filhos, foi assombrosamente
acometida pelo mal que lhe produziu asma respiratória, um processo alérgico que a
sufocava, trazendo-lhe a ansiedade pela falta de ar, quase semelhante a agonia da
morte. Essa enfermidade chegava-lhe periodicamente num cíclo vicioso do mal que
estava sistematicamente roubando sua saúde, vitalidade e, consequentemente, os
bens com os médicos e medicamentos. Ao passar dos anos, a situação decorrente
da falta de saúde de Cora Alice foi corroendo os alicerces da família Watson. A cada
cíclo asmático, a enfermidade mostrava-se mais agressiva diante dos mais
avançados e sotisficados medicamentos da época. Todos os esforços não nutriam
os esperados efeitos produzidos pelos mais recomendados antibióticos aplicados.
Nesse período, a monstruosa Segunda Grande Guerra Mundial continuava
afetando e ceifando vidas de milhares de pessoas na Europa, África, Ásia e nas
Ilhas do Pacífico Sul. A guerra resultou em um descontrolado desastre globalizado.
Historicamente, a Primeira Grande Guerra Mundial chegou ao fim somente após a
atuação militar dos Estados Unidos na região dos conflitos armados na Europa.
Infelizmente, mesmo com o armistício de 11 de novembro de 1918, que obrigou o
cessar-fogo, não houve o almejado final da guerra. Por baixo das cinzas, havia
chamas a fumegar, aguardando o momento para novos incêndios. Foi o que
aconteceu quatro dias após Bill Watson ter completado nove anos, quando enclode
oficialmente, dia 1º de setembro de 1939, a Segunda Grande Guerra, já com
proposições mundiais. As feridas, que não foram suficientemente bem curadas com
a imposição do Tratado de Paz de 1918, são novamente abertas e por elas jorrou o
maior banho de sangue jamais visto na História da Humanidade. Os cálculos, como
já mencionado, são reais e assustadores. Mais de 60 milhões de pessoas foram
mortas no decorrer dos conflitos, das quais 400 mil eram norte-americanas! Foi
nesse desequilibrado andar da história mundial que a família Watson deixou
definitivamente o estado da Virgínia.
Os Watson saíram como o patriarca Abrão, à procura de novos e melhores
rincoes. Nesse caminhar, pararam por alguns anos no estado do Ohio - onde o lema
é: “Com Deus todas as coisas são possíveis”, Porém, essa região climaticamente
não era muito diferente da Virgínia, não sendo nada promissora para a família
Watson. Ohio é um braço forte e histórico da política dos Estados Unidos. Sete dos
presidentes nasceram naquele estado. O último foi o jornalista republicano Warren
Gamaliel Harding (1865-1923), de fé batista, dono de um discurso amenizador, que
governou o país por dois anos (1921-1923). Foi um estadista de grandes ideiais e
pouca sorte! Aos 57 anos, Harding, o 29º Presidente, sob pressão política e frágil
saúde, não resistiu a um súbito desmaio em São Francisco, Califórnia, quando a
caminho de uma visita política ao então território do Alasca.
Quem sabe se Bill Watson, pelo ano de 1945, não teria cruzado no anonimato
pelas estradas ou cidades de Ohio com Neil Alden Armstrong (1930-2012), também
adolescente e que, 24 anos depois, se tornaria o comandante da Apollo 11, o
grande projeto da NASA. Em resultado disso, Armstrong também foi o primeiro
humano a pisar no solo lunar, epopeia espacial ocorrida no domingo, 20 de julho de
1969, quando lhe faltavam quinze dias para completar 39 anos. Viver um período no
Ohio tornou-se apenas uma experiência pela qual amadureceu a visão original:
seguir rumo ao Oeste, objetivando chegar ao estado do Arizona. Novamente as
metas foram traçadas para uma longa jornada. Com a localidade definida, partiram,
cruzando o caudaloso Mississipi, o segundo mais extenso e volumoso rio da
América do Norte, cujas águas percorrem cerca de 6.270 quilômetros até sua foz no
Golfo do México. Essa emocionante travessia aconteceu em outubro de 1945, um
mês após o término da Segunda Grande Guerra Mundial. As famílias americanas e
outras contavam, choravam e sepultavam os seus mortos. Um número assustador
de jovens não voltaram vivos dos sangrentos campos de batalhas. As bandeiras a
meio mastro eram constantes por todos os lados, sinal de luto diante de tantos
jovens abatidos nos diferentes locais dos conflitos.
Quatro anos antes, por volta das oito horas da manhã de domingo, 7 de
dezembro de 1941.

Bombardeiros japoneses afundaram oito navios de guerra, mataram 2,4 mil homens e
danificaram trezentas aeronaves. Roosevelt proclamou o dia como uma data que viverá
na infâmia, e, quatro dias depois, Hitler e Mussolini declararam guerra aos Estados
Unidos. Os norte-americanos agora travariam a guerra global que outrora tiveram
esperança de evitar. (DAVIDSON, 2016, p. 248, 249).
“Uma data que viverá na infâmia”. Meia duzia de palavras que imortalizou o
discurso de oito minutos do advogado Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), o 32º
Presidente dos Estados Unidos, diante de um alarmado Congresso em Washington
e uma apreensiva população.170 Em resposta aos ataques dos Japoneses contra a
Base da Marinha Americana em Pearl Harbor, Roosevelt, sob olhares de jornalistas,
assessores, políticos e secretários do Estado, assinou na segunda-feira, 8 de
dezembro de 1941, a Declaração de Guerra contra a Aliança do Eixo (sob liderança
da Alemanha, da Itália e do Japão) e a favor dos Aliados, incluíndo o Brasil, que foi
empurrado para as áreas de conflitos e fez muito bem os deveres de casa. Basta
ver a heroica tomada de Monte Castello na Itália pela FEB (Força Expedicionária
Brasileira).
Na cidade de Tóquio, o filho de um japonês formado em Boston sentia-se
covardemente incomodado após uma ríspida decisão de acordar o gigante!

O almirante Isokoru Yamamoto (1884-1943), filho de um mestre-escola, formado em


Harvard e arquiteto do plano de ataque em Pearl Harbor, estava totalmente ciente da
situação que o Japão enfrentava então. Com o coração pesado, disse: Temo que
tenhamos apenas acordado um gigante adormecido e sua reação será terrível.
(FARRINGTON, 2014, p. 9).

Yamamoto tinha razão e bebeu do veneno letal lançado pelas narinas do


gigante que estava adormecido. O gigante, agora despertado, o abateu no decorrer
dos confrontos em Papua-Nova Guiné, dia 18 de abril de 1943. Yamamoto morreu
aos 59 anos.
Ao alvorecer da segunda-feira, 6 de agosto de 1945, a Little Boy (uma bomba
que de Pequeno Rapaz só tinha o nome!), com 20 mil toneladas de TNT, foi
despejada do porão do Enola Gay, nome dado em homenagem à mãe do piloto
daquele gigantesco B-29 da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF). Os efeitos
das 20 mil toneladas de TNT sobre a cidade de Hiroshima foram devastadores para
os nipônicos que não se rendiam. Três dias depois, na quinta-feira, 9 de agosto,
aconteceu o tiro de misericórdia. Aliás, a bomba de plutônio com o nome de Fat
Man (Homem Gordo) mostrou ao mundo a capacidade bélica dos Estados Unidos.
O destruidor artefato assassino foi lançado sobre Nagasaki, cidade fundada pelos
portugueses no século XVI e para onde levaram o cristianismo. Também foi em
Nagasaki que os japoneses, revoltados com a nova religião, crucificaram 26 cristãos
portugueses e espanhóis aos 5 de fevereiro de 1597, no período da união das
coroas ibéricas.

170
Roosevelt, de fé episcopal, foi um um político filiado ao Partido Democrata e empossado a 4 de
março de 1933. Suas habilidades políticas lhe garantiram mandatos com eleições subsequentes
durante 12 anos. Seu último mandato findou com sua morte em 12 de abril de 1945. Apesar de ser
um entusiasta, não viveu o suficiente para ver o final da Segunda Guerra Mundial. Foi substituído
pelo vice-presidente, o batista Harry S. Truman (1884-1972), fazendeiro e militar democrata que
continuou e derrotou com os Aliados a força do Eixo. Franklin Delano Roosevelt esteve no Brasil com
o ditador Getúlio Vargas (1882-1954) na Conferência de Natal, Rio Grande Norte, em janeiro de
1943. Por sua vez, Harry Truman esteve com o presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) em
setembro de 1947. O casal Truman permaneceu por uma semana no Brasil. Um mês depois, em 9
de outubro, o general Dutra, o 16º Presidente do Brasil, ficou viúvo.
As duas gigantescas e mortíferas bombas Little Boy e Fat Man foram
suficientes para obrigar o Japão a levantar um pedaço de pano branco, símbolo de
rendição. Passaram somente 27 dias e, a bordo do USS Missouri, em 2 de
setembro de 1945, o Japão, arrasado, despedaçado e humilhado, assinou o termo
rendição incondicional. Naquele dia, o mundo suspirou aliviado. Ali estava
terminando os seis longos anos que durou a Segunda Grande Guerra Mundial.

Lembre-se de que Pearl Harbor tornou-se um grito de guerra. Transformou uma das
maiores derrotas dos Estados Unidos em uma razão para vencer. Esta grande derrota
deu força aos Estados Unidos, que logo se transformaram em uma potência mundial.
(KIYOSAKI e LECHTER, 2000, p. 140).

A família Watson, parece sob a ênfase traçada pelo destino, está a chegar em
uma nova paragem (Não esquecer que eram autênticos e conservadores batistas).
Em 1945, Deus os levou para o então desértico e distante Arizona, The Grand
Canyon State, onde predomina o clima árido ou semiárido, um natural antídoto
contra as infecções asmáticas e outros males que afetam o sistema respiratório por
altitudes ou climas. Naquela época, o estado do Arizona, que ainda detém a maior
produção de cobre dos Estados Unidos, não possuía 700 mil habitantes. Devido a
sua grande reserva de cobre, é tambem conhecido pelo cognome de The Copper
State (o estado do cobre). O Arizona era um estado escassamente habitado e,
como tal, gerava um montão de oportunidades e não poucos desafios. Nessa
travessia para o Far-west, Bill Watson estava com 15 anos. Era internamente
revoltado, um adolescente rebelde e praticamente afastado da crença batista.
Mesmo sob constantes questionamentos, continuava acreditando na existência de
Deus, porém esse Ser Supremo parecia-lhe estar muito longe, no dobrar da esquina
de um infinito e utópico local a milhares de anos-luz da terra. Seria por lá o local de
sua habitação? Sabe-se que nem todo raciocínio lógico está perfeitamente correto.
Entretanto, Watson estava muito próximo das palavras de Adoniram Judson (1788-
1850), um missionário protestante, que, em seus piores momentos, sob o efeito de
uma profunda depressão, chegou muito perto de cometer o suicídio: “Deus é para
mim o Grande Desconhecido; creio nele, mas não consigo encontrá-lo” (TUCKER,
1986, p. 136). Nas turbulências produzidas pelas ameaçadoras ondas no mar da
vida, as águas sempre são monstruosas e jogam-nos de um lado para o outro como
se fôssemos barquinhos construídos com as cascas de sobreiros. Em meio ao
medo, à inquietação e à insegurança, pode-se ouvir a voz do Todo-Poderoso:
“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Salmo 46:10).

Acidente

Ainda muito jovem, Bill Watson, embora sem habilitação, já dirigia tratores,
caminhões e outros maquinários existentes nas fazendas por onde morava com a
família. Era ágil em suas atividades, além de um bem-dotado motorista. Em 1946,
aos 16 anos (agora devidamente habilitado pelo Motor Vehicles Arizona State,
quando recebeu sua Driver License), estava totalmente familiarizado na condução
de diferentes veículos motorizados, não somente de tratores e tantos outros
maquinários existentes nas fazendas do passado.
No Arizona, Cora Alice Taylor Watson encontrou restauração da saúde, e
toda a família passou por uma nova experiência no mundo espiritual, menos o
jovem Bill, que permanecia um tanto arredio. Os Watson sempre foram gratos e
nunca se esqueceram dos excelentes ensinamentos e da comunhão que obtiveram
no seio da igreja batista; aquilo que a mãe ensina filho nenhum esquece! Entretanto,
no caminhar para o Far-West, eles aderiram incondicionalmente ao movimento
pentecostal. Para eles, era algo novo que mudou a rotina do dia a dia e a esfera do
viver com Deus. Esse movimento posteriormente tornou-se Igreja de Deus, com o
seu templo localizado na 44 Street, em Phoenix, onde, por mais de três dezenas de
anos, os Watson foram ovelhas do pastor Hurschel Diffie, uma referência ministerial
na cidade pela sua humildade e por serviços prestados entre os mais carentes dos
carentes. Era um homem muito humano, que transbordava a presença de Deus à
moda antiga dos protestantes americanos.
Transcorria o quente e seco verão do ano de 1946, 171 quando a família
Watson saíu de viagem da Grande-Phoenix com destino ao estado da Califórnia.
Para suportar o infernal calor que, no pico do dia, pode chegar aos 52 graus célsius
e sem a modernidade do ar-condicionado nos veículos, essas jornadas eram
normalmente percorridas no decorrer das noites, período quando o clima fica mais
ameno por aquelas bandas do desértico Far-west americano.
Mesmo nesse amenizar climático da noite, ainda se produzia um calor
abafado e muito acumulado pelo fulgor dos raios solares que são constantes no
decorrer do dia. O tontear do calor noturno, juntando-se ao silêncio dos demais
ocupantes no veículo dirigido por Bill Watson, causou um incontrolável sono que fez
do propício ambiente o seu ninho, e até mesmo o invencível motorista não resistiu.
Foi um pequeno cochilo. Mesmo com as mãos firmes no volante, o pestanejar ou
passar pelas brasas, como se diz em Portugal, foi o suficiente quadro que mudou
para sempre a vida daquele jovem motorista e por pouco a dos demais passageiros.
Apesar de ter os olhos bem abertos, Bill somente acordou com o forte impacto do
carro contra um caminhão que vinha em sentido contrário. Tudo sucedeu com uma
meteórica rapidez. A situação poderia ter sido mais desastrosa. Não houve vítimas

171
Naquele verão do ano de 1946, nasceram três crianças em diferentes estados as quais se
tornaram importantes políticos que marcaram e ainda estão fazendo a história nos acontecimentos
mundiais. O primeiro daquele trio foi Donald John Trump, nascido em berço de ouro na cidade de
New York, dia 14 de junho de 1946. É o excêntrico bilionário filiado ao partido Republicano que, em
2016, aos 70 anos, foi eleito o 45º Presidente. O segundo político em foco é George Walker Bush, o
qual nasceu em New Haven, Connecticut, dia 6 de julho de 1946. Por fim, temos William Jefferson
“Bill” Clinton, nascido na cidade de Hope, Arkansas, dia 19 de agosto de 1946. Bush, ligado ao
partido Republicano, ex-piloto da Guarda Aérea Nacional do Texas, estado onde cresceu e criou seu
curral eleitoral, além de milhões de dólares nos negócios do petróleo e derivados. Clinton é o único
do trio ligado ao partido Democrata e advogado de carreira. Bill Clinton foi o 42º Presidente,
permanecendo no poder de 1993 a 2001. Foi sucedido na Casa Branca por George Bush, o 43º
Presidente, entre 2001 e 2009. Sendo de praxe na política americana, ambos exerceram dois
mandatos presidenciais. Donald Trump foi o 45º Presidente. O seu sonho de mais quatros anos na
Casa Branca foi abortado diante dos resultados do pleito eleitoral da terça-feira, 3 de novembro de
2020!
fatais, porém o jovem condutor foi o mais afetado naquele inesperado embate. Além
de escoriações pelo corpo em resultado ao choque frontal, ele foi violentamente
atingido no seu braço esquerdo, o qual, todo quebrado, ficou ligado ao ombro por
pequenos fragmentos de tendões. As artérias e os vasos por onde circulavam as
correntes sanguíneas que alimentavam o braço foram rompidas. Mesmo assim,
diante desse funesto e lúgubre quadro, o jovem motorista não perdeu o sentido;
contemplava o esvair do sangue que jorrava do seu ombro esquerdo.
Era alta madrugada de uma noite quente em meio a uma estrada que cruzava
partes de um deserto no Arizona. Os pais e demais familiares de Bill, a despeito do
do horror da cena, não entraram em desespero. Naquele deserto e por aquelas
horas, Deus estava ali, e o socorro viria de algum lugar e de alguma forma, embora
todos estivessem cientes de que hospitais e médicos estavam bem distantes
daquele sinistro espaço. Ensanguentado, agora o filho adolescente sofria
alucinações ao pressentir o grau do acidente em que se havia envolvido.
Ajoelharam entre sangue e pedaços do carro. O local estava emoldurado por fortes
angústias e não poucas dores. Desde 1931, já se cantava no Brasil a versão
traduzida por Frida Vingren (1891-1940): “Quando as esperanças desvanecem, o
aflito crente vai orar” (Harpa Cristã, 126).
Peremptoriamente, entregaram a vida de Bill Elwood Watson nas mãos de
Deus. Cheiro e sinais da morte vagueavam pela escuridão naquela desértica região.
De ambos os lados da erma estrada, encontrava-se um caminhão e um carro, dois
veículos danificados, lágrimas silenciosas e um jovem com o braço a cair! A cena
era de horror mesclado de medo; o sinal mais próximo e bem visível era o da morte!
“Esperamos, sem nenhuma esperança” (YANCEY, 2007, p. 37). Porém parece que
do nada, no infinito do deserto de uma estrada sem fim, surge o socorro enviado por
Deus na forma de um amplo e confortável carro conduzido por um amável e
prestativo motorista.
Sem se preocupar com o sangue e o estado físico daquele esbelto e
semidesacordado jovem, aquele motorista transporta-o, seguido de perto pelos pais
Walter e Cora Watson. Até se depararem com o primeiro atendimento hospitalar, foi
uma renhida luta de vida ou morte, mais de morte que de vida! Já no hospital,
localizado a distantes milhas do sinistro local do acidente e sem muitos cuidados
(aliás, não havia tempo, pois a morte estava mais próxima do que os médicos e
enfermeiros de plantão), bolsas de soro e sangue com outros medicamentos
básicos foram aplicados e, em seguida, uma anestesia geral que deixou Bill Watson
totalmente inconsciente. Para a própria equipe médica, o jovem entraria em óbito
em questão de horas não só pelo excesso de perda sanguínea, mas porque uma
hemorragia estava aberta, facilitando a entrada de infecções e outros males
existentes nos ares do deserto e dos vírus hospitalares. Na sala cirúrgica, a equipe
médica não viu outra alternativa senão a rápida utilização do velho e manual bisturi.
Os poucos tendões que sustentavam o moído braço esquerdo daquele jovem foram
decepados. Conscientes de que o paciente morreria em pouco espaço de tempo,
simplesmente amputaram aquele membro do corpo. No local, foram dados alguns
pontos sem muito profissionalismo, com alguns simples curativos; em seguida,
conduziram o adolescente, ainda sob efeito das anestecias, para o quarto pós-
operatório disponível. Era esperar para ver que resultado surgiria! Vida ou morte!
Seus pais e demais familiares estavam alicerçados nas bíblicas promessas de
Deus. Não obstante, a mais infantil leitura dizia o contrário. Na calada da noite,
alojaram-se em um pequeno hotel, onde buscaram descansar até o resplendor
solar. Mal rompeu o matinal brilho do escaldante sol, Cora Alice, que, como de se
esperar, não tinha dormido, correu ao hospital, colocando-se junto à cabeceira do
filho. Não queria ver, entretanto estava ciente de que o arteiro, dinâmico e falante
Bill Watson não possuía mais o braço esquerdo. Sendo mãe, sentiu profundas setas
a lhe penetrar o coração, as quais feriam duramente sua alma, porém manteve uma
inabalável fé em tantas referências contidas na Bíblia. Bill estava sob efeitos de
medicamentos, mas totalmente consciente; podia se mexer, ouvir e falar, embora
sonolento e um tanto alvoraçado. Sua mãe entendeu que o momento e local eram
oportunos. Tomou uma desafiadora coragem e falou abertamente ao filho sobre a
urgente necessidade de uma perfeita reconciliação com Deus e não simplesmente
questionar a razão filosófica da existência divina. Sob lágrimas, dores e angústias,
Bill pede desculpas pelo sono que o venceu enquanto dirigia e promete um novo e
incondicional andar com Deus. Bill Watson não passava de um adolescente; nesse
período estava com somente 16 anos.

Mãe, estou curado!

A equipe médica e tantos outros ficaram abismados. O jovem resistiu à força


da morte e estava vivo! Aumentou-se o zum, zum, zum, que se ouvia pelos
corredores daquele hospital. O rapaz não morreu, e toda a equipe médica jubilava
com festejos. Sim, Bill Elwood Watson, mesmo faltando-lhe o braço esquerdo,
estava vivo! Ele falava, sorria, chorava e literalmente confundia todos aqueles
profissionais do hospital.
Por ordem médica, já que não morrera, Bill deveria ficar uma semana
internado para melhor se recuperar fisicamente, pois suas escoriações precisavam
de certos cuidados. As várias dosagens de medicamentos produziam alucinações
naquele adolescente que questionava a razão da própria vida e a existência de
Deus. Havia momentos em que as cenas daquele horrível filme, no qual o
protagonista da tragédia era ele mesmo, vinham-lhe em flashes. Que terror! O abalo
daquele quase mortífero choque contra o caminhão estava sempre presente em seu
consciente, o que lhe ocasionava um terrível pesadelo. Com o único braço agora
existente, ele segurava a cama e apertava com violência a perna direita, tentando
encontrar o pedal dos travões. Acordava transpirando e às vezes gritando.
Resultado de um estado interior aos pedaços.
Três ou quatro noites após aquele desastroso acidente e sua nova confissão
de fé, Bill despertou no silêncio da madrugada hospitalar, sentindo algo novo a lhe
percorrer o corpo. Saltou do leito, como normalmente fazia dos lombos de animais
que muito bem sabia cavalgar e, com a única mão que agora portava, se livrou dos
aparelhos que supostamente lhe mantinham vivo, tomou banho e imediatamente
ligou para os seus pais alojados no hotel a poucas milhas do hospital. A mãe, Cora
Alice, quase teve pesadelos diante dos intermináveis triiins que soavam
continuamente daquele negro, velho, pesado e peculiar aparelho telefônico. Mais
assustada ficou diante da firme voz do filho hospitalizado: “Mãe, estou curado!
Traga roupas e vem me buscar”. Foi algo assustador, mas não era momento para
interrogações. Embora sem entender, em poucos minutos pai e mãe já estavam
diante do filho que de pé lhes aguardava com certa ansiedade. Contou-lhes que
Deus havia realizado o milagre em sua vida, e não mais havia razão para continuar
internado. Conforme a praxe hospitalar, foi exigida a assinatura de um termo de
responsabilidade, o que fizeram diante da autêntica fé de que Deus estava no
controlo geral. Liberado, Bill agora era amavelmente acompanhado de perto pelo
sorridente pastor Hurschel Diffie, da 44 Street, Chruch of God. Todavia, o almejado
sonho de chegar até a Califórnia foi abortado; regressaram para o habitat na cidade
de Phoenix. Não tendo outro caminho, reviveram as cenas do acidente ao passar
pelo local, agora em sentido contrário da estrada.

Novos horizontes

Naquele período, a evolução e a aceitação dos acontecimentos da vida eram


muito diferentes de nossos dias, nos quais a tecnologia, agrupada às novas
ciências, dita as ordens e controla as massas. O jovem Bill Watson não foi
acompanhado de sessões com psicólogos, fisioterapeutas ou psiquiatras. A vida era
bruta; cada um, dono de si. O mundo judia, mas também ensina - sábias palavras
que compõem o verso de uma velha canção sertaneja. Sozinho, Bill procurou
adaptar seu novo padrão de conduta e maneira de viver. Não era um coitadinho
nem tão pouco aleijado, adjetivos que nunca passaram pela sua cabeça, Ele se
tornou um desafiador e superador da própria natureza do viver. Manteve a vida,
suas atividades e seus afazeres dentro de certa normalidade. Recusou, com total
repugnância, receber os disponíveis auxílios oferecidos pelo Social Security, até
mesmo um veículo adaptado a sua necessidade física. Trabalhou em diferentes
áreas, inclusive em fazendas, cuidando de animais, ordenhando vacas ou dirigindo
máquinas agrícolas para manter seus estudos de espanhol na Phoenix University.
Era destemido e dono de si em seus compromissos, responsabilidades e agilidades
acadêmicas. Infelizmente, o ambiente universitário do pós-guerra afetou sua frágil
vida espiritual. Em um ano, sensivelmente já não mais se recordava da
reconciliação que havia feito com Deus enquanto hospitalizado. Deus existia, porém
esse Ser Divino e Supremo Design estava muito longe de suas prioridades. Havia
outras coisas mais importantes a serem realizadas. É melhor deixar Deus prá lá!
Novamente os questionamentos existenciais da razão, agora endossados pelas
novas filosofias pós-guerra, o golpeavam profundamente.
Aos 18 anos, novamente no decorrer do verão, agora do ano de 1948, Bill
estava a desfrutar das longas férias dessa estação. Sob insistência de sua mãe, já
uma pregadora credenciada pela Igreja de Deus, além de bem-sucedida corretora
de imóveis, trabalho pelo qual buscava meios financeiros para auxiliar nos gastos
familiares, Bill, mesmo contrariado, seguiu para uma semana de atividades em um
acampamento liderado por protestantes pentecostais. Diante das novas amizades
no mundo da pesada, acampamento para jovens não era lá muito sua praia! Não
estava totalmente alienado do mundo protestante, havia lido toda a Bíblia, poderia
citar vários versículos, conhecia as canções entoadas pelos corais e não poucos
hinos congregacionais. Enquanto questionava, tentava abafar aquilo de Deus que
existia no seu interior; buscava, na tangente da vida, um diferente caminho de fuga
para não encarar a realidade existencial. Cabem muito bem nesse relato as
palavras de um inveterado alcoólatra que não conseguia vencer o miserável vício
diante das oportunidades que a vida lhe oferecia: “É tarde demais para mim. Eu
ainda creio em Deus, tudo bem, mas sei muito bem que Ele não crê em mim”
(YANCEY, 2007, p. 62)
O acampamento foi preparado para não deixar ninguém no mundo da lua ou
a ver navios. Todos os participantes estavam interligados aos acontecimentos como
o traçar da teia de aranha. Em meio aos estudos da Bíblia, lazeres e orações, sem
esperar surgem os resultados. De repente, moças e rapazes estavam procurando
como melhor servir a Deus. Esse toque celestial também alcançou Bill Watson, que
nunca mais foi o mesmo. Todavia, ele não abandonou suas atividades, seu esporte
preferido, seu trabalho e tampouco a vida universitária. Agora, para ele, todas essas
oportunidades eram ferramentas no exercício de uma autêntica fé em Deus. Cruzou
a linha da incredulidade e passou a fazer a leitura do mundo por novos olhares! O
atuar de Deus naquele acampamento mexeu profundamente com todas as suas
estruturas internas e externas.

Casamento e jornada missionária

Envolvido com a vida estudantil, as atividades profissionais e o exercício da


fé, chegou à alma de Bill a chamada ministerial abanada com o vento missionário.
Nessas alturas, ele estava comprometido em se casar com Rhoda Rundell, jovem
nascida em uma ampla fazenda não muito distante da cidade de Elfrida, Arizona, na
sexta-feira, 2 de junho de 1933. Elfrida, semelhante a Honaker, Virgínia, também é
desprovida de rios que a cruzam. Em razão dos fortes raios solares, é um local
permanentemente quente, com raríssimas exceções em alguns períodos do inverno,
aquilo que no Brasil recebe o nome de frente fria.
Em resultado à decisão tomada no acampamento de 1948, Bill Watson, no
ano seguinte, estava estudando no então Lee College, hoje Lee University, escola
de referência nacional e internacional, ligada à Igreja de Deus, localizada em
Cleveland, Tennessee. Foi nesse College, enquanto estudante, que Bill Watson, aos
19 anos, ministrou pela primeira vez, a convite de um colega hispano que exercia
seu ministério de capelania na prisão da cidade. Diante do peso para ministrar a um
punhado de detentos predominantemente hispanos, Bill passou toda a noite sem
conseguir conciliar o sono. Estava com medo de se perder no sermão, com
vergonha de falar em público, com fraca demonstração de fé. Ao fritar dos ovos,
saiu-se muito bem e nunca mais se esqueceu daquele espaço físico: uma casa de
detenção.
Foi enquanto estudante no Lee College, preparando-se para uma prova das
epístolas paulinas, que Bill se sentiu frontalmente tocado para a total dedicação
ministerial. Agora havia uma definição completa para o até então inseguro futuro.
Bill não tinha dúvidas; estava ciente da chamada de Deus para o exercitar da fé no
decorrer do ministério. Foi o que fez! Ao findar o curso em maio de 1952, regressou
para Phoenix, após receber o desafio de ministrar por duas semanas na 44 Street,
Church of God. Parece que foi a confirmação para a vida ministerial. Ele ganhou
gosto por aquilo que já era sua paixão. Em resultado das atividades, baseado em
sua fé e em seu caráter, logo foi nomeado Diretor de Jovens de todo o estado do
Arizona, posição que o obrigou a ministrar em diferentes locais a cada final de
semana, o que envolvia constantes viagens para fora da Grande-Phoenix.
Mesmo com os limitados recursos financeiros, Bill tinha o coração
transbordante de grandes esperanças. Em maio de 1953, aquele esbelto e
sorridente Diretor de Jovens pediu Rhoda Rundell, ainda com 19 anos, em
casamento. Aquela era a mesma moça que, no decorrer de sua infância, havia
pronunciado a seguinte oração enquanto seguia com os seus pais para o estado de
Washington: “Deus, se existe algum lugar nesse mundo em que eu possa ser útil,
leva-me até lá!”
Com a confirmação positiva de Rhoda Rundell, agora era o correr contra o
tempo. Casamento marcado e os preparativos iniciados. Após todos os
detalhes serem observados, chegou o grande e esperado dia da cerimônia para o
enlace matrimonial. A data escolhida: sábado, 19 de setembro, três dias antes da
chegada do outono americano de 1953. Com agenda previamente marcada, na
semana seguinte, Bill e Rhoda Watson estavam sendo entrevistados pelos
membros do Comitê de Missões da Igreja de Deus em Cleveland, uma pequena
cidade no estado do Tennessee. Nessa cidade, se encontra o cérebro administrativo
denominacional e o mais antigo templo pentecostal dos Estados Unidos. Em
Cleveland, foram simplesmente ouvidos pelos membros do Comitê de Missões,
órgão que tinha o poder de decisão, porém nada aconteceu. Um tanto, ou melhor,
demasiadamente decepcionados, Bill e Rhoda regressaram para Phoenix, Arizona,
sem moradia172 e salário definido, porém com o coração fervendo pela causa de
missões em algum canto do mundo. Nesse ínterim, ficaram morando na cidade de
San Antonio e ministrando em diferentes locais no estado do Texas, o segundo mais
extenso estado Americano. Grandes oportunidades surgiram, notadamente entre a
crescente comunidade de hispanos residentes no Texas. Fluente em espanhol,
ainda no ano de 1953, o jovem casal segue para a dura vida em Sierra Madre, uma
semelhante espinha dorsal com mais de 1.500 quilômetros de extensão na imensa e
desértica área desprovida de água corrente em terras do México, onde toda
locomoção ocorria sobre o dorso de cavalos. Foi uma dura, mas frutífera
experiência missionária realizada entre diferentes tribos de nativos mexicanos.
Somente em 1973, vinte anos depois, Bill e Rhoda conseguiram comprar uma casa em Phoenix.
172

Mesmo assim, gastaram outros 30 anos para quitar as parcelas!


Panamá

Após os duros testes, ou talvez melhor dizendo, as massacrantes provas de


resistência e sobrevivência vividas pelas montanhas da Sierra Madre, no México,
novos desafios surgem para aquele jovem casal. No distante ano de 1953,
aconteceu tudo o que resultou em pontos positivos para Bill e Rhoda Watson:
noivado, casamento, viagem e frustrante entrevista com os membros do Comitê de
Missões Mundiais da Igreja de Deus em Cleveland, além das desafiantes atividades
no estado do Texas, etapa encerrada nas áridas cordilheiras mexicanas, um local
distante de tudo e de todos que mais parecia o fim do mundo.
Com Rhoda grávida de alguns meses de seu primogênito, sob fé e total
dependência de Deus, o jovem casal parte para outro excitante desafio. Tudo era
novidade e recheado de romantismo missionário. Diante do convite provindo do
Superintendente em 1954, entenderam que Deus os estava direcionando para a
República do Panamá. Após poucas semanas visitando familiares e amigos no
Arizona, partiram para a Cidade do Panamá. Era um período histórico. Naquele ano
de 1954, estavam se completando 40 anos da inauguração do Canal do Panamá,
uma gigantesca e desafiante obra de engenharia encabeçada pelos Estados Unidos
em 1904 e concluída em 1914. Esse encurtar da navegação entre o Atlântico e
Pacífico devorou uma enorme fatia do comércio marítimo que fazia do Rio de
Janeiro a esquina do mundo e parada obrigatória para abastecimentos e reparos
navais quando necessários. Foi na Cidade do Panamá, de onde se vislumbra o
imponente e mais importante canal artificial da Maiúscula América, que Marcos
Watson nasceu em 1954.173

América do Sul, África e Europa

Em 1984, passados 30 anos da chegada de Bill e Rhoda Watson ao Panamá,


o mais meridional país da América Central, o irmão Bill Watson, título que sempre
lhe agradava, residia em Brasília e exercia a função de Superintendente do Cone
Sul, uma divisão política e geográfica na busca de economizar dinheiro e facilitar o
fator administrativo. Em determinado período, ele estava hospedado em nossa casa
a nosso convite e realizando atividades em São Paulo. Numa quarta-feira,
acompanhou-me para as aulas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Nesse período, nosso vizinho na Freguesia do Ó amavelmente recebia em sua
empresa nossos contatos telefônicos e nos informava. 174 O Comitê de Missões

173
Em maio de 1968, participei da Convenção Regional da Igreja de Deus, realizada no Setor Pedro
Ludovico, na época um periférico e quase abandonado bairro de Goiânia. Recordo-me muito bem do
estudo dirigido pelo Supervisor Bill Watson sobre Malaquias, capítulo primeiro. Entre as várias
informações, relatou as agruras que ele e sua esposa passaram diante da escassez de finanças e do
abuso de alguns endinheirados membros da igreja que lhes ofereciam os alimentos vencidos ou até
mesmo estragados. “Para não jogar no lixo, vamos levar para o pastor!”
174
Naquela época, telefone era um artigo de superluxo, privilégio de que somente alguns poucos
endinheirados podiam desfrutar. As chamadas eram caríssimas, sendo pagas por minuto. Além
disso, havia muitas outras taxas de manutenção e serviços.
Mundiais, em Cleveland, estava ciente que brother Watson se encontrava em São
Paulo, e aquele era o único número de telefone existente para nos contactar.
Ao término da aula, voltamos para casa, falando sobre os assuntos das lições
e dos grandes desafios existentes em São Paulo. Em casa, estava um bilhete do
vizinho dizendo que Bill Watson deveria ligar urgentemente para os Escritórios
Internacionais da Igreja de Deus nos Estados Unidos. Graças às quatro horas
adiantadas pelo fuso horário com relação a Cleveland, a chamada a cobrar foi
efetuada sem muitos transtornos. Bill falou por quase uma hora. Não entendi nada
daquele diálogo em inglês, mas era visível que algo desafiador e emocionante
estava acontecendo, pois as faces de Bill vibravam e seus olhos brilhavam a cada
palavra.
Ao final, com aquele sorriso (sua marca registrada) e vibrantes olhares, falou
com muito vigor e segurança: “Carlos, nova porta se abriu em Angola. Para lá
seguirei o mais rápido possível.” Naquela noite, conversamos até pelas três da
madrugada seguinte. Silêncio somente nos intervalos, para ingerir suco de laranja e
degustar alguns petiscos colocados sobre a mesa. Após o almoço, fui levá-lo ao
Congonhas, na época o único aeroporto da Capital paulista. Em Brasília, ele iniciou
toda a documentação de praxe e, finalmente, o visto lhe foi concedido com muito
empenho de autoridades americanas. Angola estava há nove anos sob fogo
cruzado de uma interminável Guerra Civil na qual quatro partidos envolveram doze
nações em quatro continentes. Nessa época, ao fazer o primeiro contato para o
reinício da Igreja de Deus em Angola, brother Watson estava com 54 anos Fui ao
seu encontro no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, de onde viajou a Luanda
pela VARIG, na época a única empresa que fazia aquele percurso. Na Grande-
Luanda, houve dias de intensas atividades, diferentes contatos e reuniões. Antônio
Ferreira, proprietário de um barco de pescaria, residente na Ilha de Luanda, foi uma
das principais peças na articulação e o renascer da Igreja de Deus em Angola.
Tendo continuidade, aquela viagem o levou a Portugal, à Alemanha e dessa aos
Estados Unidos para rever os filhos em Phoenix e encontrar os oficiais de Missões
Mundiais em Cleveland, Tennessee. Em Lisboa, com a assessoria do pastor Manuel
Vieira do Couto (1926-2006), fundador e Supervisor da Igreja de Deus em Portugal,
brother Watson comprou uma carrinha Land Hoover e a enviou aos líderes da IEPA
- Igreja Evangélica Pentecostal de Angola. O veículo, apropriado para o terreno
angolano, foi colocado nos porões do navio Hoji-ya-Henda, cognome de José
Mendes de Carvalho (1941-1968), um comandante da FAPLA - Forças Armadas
Populares de Libertação de Angola. Mendes de Carvalho morreu aos 27 anos,
segundo se cogita, em resultado de um motim no interior do quartel onde estava
destacado na cidade de Luena, capital de Moxico, a mais extensa província
angolana. Hoji-ya-Henda, o “Leão do Amor” em quimbundo, principal dialeto da
região, foi morto no alvorecer de domingo, 14 de abril de 1968. José Mendes de
Carvalho, além de sua patente militar, caminhava em paralelo no mundo artístico,
com o nome de Uanhenga Xito. Diante de sua popularidade, no ano seguinte,
oficializou-se o Dia Nacional da Juventude Angolana em sua memória. 175

Os filhos

Mesmo diante de certas dificuldades financeiras, Marcos nasceu nas


dependências do Hospital Militar Americano existente na linha restrita ao Canal do
Panamá, ambiente que proporcionava as devidas assistências antes, durante e
após parto. Tudo corria muito bem com o novo membro da família, fluindo alegria e
orgulho pelo saudável filho. Em novembro de 1955, foi o nascimento da filha
Rebeca. Becky veio ao mundo no Hospital da Igreja Adventista do Sétimo Dia,
localizado na cidade de Phoenix, Arizona. Com 26 meses de casados, a família
alcançou o crescimento de 100%: Bill, Rhoda, Marcos e Becky! Enquanto no
Panamá, o mesmo Superintendente, que permaneceu por 17 anos (1947-1964) no
cargo que abrangia toda a América Latina, fala com Bill Watson sobre os desafios
existentes no longínquo Brasil, o Gigante da América do Sul.
Tendo à frente novos desafios, vieram os preparativos que levaram a família
Watson para os Estados Unidos nos meados do ano de 1955. Enquanto aguardava
as decisões finais do Comitê de Missões, o entusiástico jovem Bill Watson percorria
diferentes cidades no estado do Arizona ministrando a Palavra. Nesse ínterim, como
sempre transcorreu, a família dependia do agir e mover de Deus para o sustento
financeiro.176 Guerras significam morte de alguns milhares de pessoas, cidades e
campos devastados, e o consumo de milhões de dólares que saem dos bolsos dos
contribuintes. O país não entrou em recessão, porém a economia foi drasticamente
afetada, situação que chegou à tesouraria das diferentes igrejas, agências
missionárias e serviços sociais.
Na Assembleia Geral de 1956, enquanto milhares de militares e civis já
haviam sido mortos no decorrer dos confrontos no Vietnã, Bill Watson tem a
confirmação oficial da nomeação para trabalhar no Brasil. A família Watson,
composta de quatro membros, chegou ao porto da Praça XV, na cidade do Rio de
Janeiro, ao amanhecer da quarta-feira, 17 de outubro de 1956.
Poucos meses após a chegada no Rio de Janeiro, a família Watson optou por
morar em Uberlândia, local mais próximo de Goiânia e não só, na mesma rota
estava a sonhada Brasília, cidade já em andamento com milhares de pessoas a
175
Em 1997, acompanhando um jovem angolano, tive a oportunidade de entrar no Hoji ya Henda, um
enorme navio cargueiro pertencente à Marinha Mercante, enquanto ancorado no porto em Lisboa.
Infelizmente, naquele mesmo dia, o navio foi arrestado por ausência de pagamentos e outros
percalços econômicos. Anos depois, o Hoji ya Henda, já deteriorado pelo acúmulo de ferrugem, foi
arrematado em leilão pelos sucateiros. O histórico navio da frota pertencente à Marinha Mercante
angolana teve o seu fim sucateado em Portugal.
176
Além da segregação racial que afetava os brancos e os negros, no dia 1º de novembro de 1955,
os Estados Unidos entraram na Guerra do Vietnã, conflito encerrado em 30 de abril de 1975.

Nesse longo período de 20 anos, mais de 2.7 milhões de jovens americanos serviram na
funesta guerra. Os resultados finais para os Estados Unidos da América do Norte foram
desoladores: sepultaram 58.220 dos seus combatentes, soldados que tombaram mediante
confrontos ou nas minadas florestas do Vietnã. Além das frustrantes baixas mortais, outros
300 mil foram feridos. (BOAVENTURA, 2019, p. 108).
trabalhar dioturnamente, faço aqui a simbologia de um neologismo de ex pressão.
Assim, era quatro americanos morando nos confins do Triângulo das Minas Gerais:
Bill, Rhoda, Marcos e Becky. David, o terceiro filho, nasceu na cidade do Rio de
Janeiro, quando a mesma ainda era Distrito Federal, na segunda-feira, 2 de
fevereiro de 1960. David, embora carioca, cresceu meio a construção do Instituto
Bíblico da Igreja de Deus no longínguo Parque Amazonas em Goiânia. Por um
período a família Watson residiu no Plano Piloto de Brasília, agora Distrito Federal,
onde nasceu Nathan. Andrews, o caçula da família, nasceu em Phoenix, Arizona.
Em 1968 a família Watson regressou por um período aos Estados Unidos.
Regressou em tese. Bill, ocupando interinamente a superintendência da América do
Sul, continuou suas longas viagens pelos interiores de diferentes países que incluia
o Brasil onde já se encontrava as famílias Pope e Shearer, missionários americanos
que vieram para somar, diante dos grandes desafios existentes. Em junho de 1969,
toda a família novamente no Brasil, residindo no Rio de Janeiro, a boêmica Cidade
Maravilhosa no então, estado da Guanabara. Por questões estratégicas o Rio de
Janeiro sediava a adminstração da então Região Litoral. Na Cidade/Estado existiam
algumas poucas e pequenas congregações, o mesmo sucedia entre São Paulo até
o estado do Ceará. Tudo não passava de uma nesga de terra que seguia paralelo
ao oceano Atlântico.
David regressou à sua cidade de nascimento que, durante 138 anos (1822-
1960), foi a Capital Federal do Brasil, não levando em consideração o período
colonial. Para alguns a minha interpretação sobre angeologia poderá soar
politicamente, aos mais céticos, até teologicamente incorreto, porém, lá em São
Mateus 18:10, foram palavras proferidas pelo o Senhor Jesus Cristo no decorrer do
seu ministério pelas terras da palestina: “Vede, não desprezeis a qualquer destes
pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus veem incessamente
a face de meu Pai celeste”.
Rua Conselheiro Barros, não é uma longa via, porém, dona de eventos que
demarcaram a história por suas características e pequenas chácaras no período do
século XIX, um riacho cristalino floria vida a esses sítios. Tem o seu início na Rua
do Bispo, uma das mais conhecidas vias do Bairro Rio Comprido. Uma localidade
residencial, onde predominantemente residiam descendentes de pioneiras famílias
luso-brasileira. Conselheiro Barros, logradouro calçado com antigas pedras,
manualmente moldadas. Para chegar ao local, fazia um declínio distante de uma 50
metros da Rua do Bispo. Estive pela primeira vez naquele prédio na segunda-feira,
18 de janeiro de 1971, como sempre, um típico e quente verão carioca, o astro-Rei
se abrasava em sua monarquia absoluta, parece que possuía autoridade no circular
natural dos ventos. Tudo paralizado, assim era a sensação. O espaço, muito
confortável e amplo, não existiam altos edifícios nos arredores, assim formava um
paradisíco local de onde vislumbrava longas distâncias. Daquele ambiente era
possível contemplar vastos e belos locais para o lado central do Rio de Janeiro, no
oposto os topos de montanhas com imensas florestas. Aquela era o Rio de Janeiro,
única cidade/estado que já existiu no Brasil, um carioquíssimo orgulho!
Um prédio conjugado havia moradores no térreo ocupado por um idoso casal,
o segundo e terceiro andar formavam uma só residência, com salas, quartos,
banheiros, cozinha pequena, áreas abertas, além da lavandaria. O veículo usado
pela família, uma komb branca, se estacionava na rua, que era de mão dupla, não
havia temores de roubos ou assaltos, algo muito raro. Era a tranquilidade de um
tempo do passado, quando os vizinhos se cumprimentavam e as crianças
brincavam nas calçadas! Ó tempo, por que você mudou roubando a nossa paz e
tranquilidade?
Para adentrar-se à aquele prédio que dava impressão de residência de
barões coloniais, não havia interfone e nenhum outros pretensos aparatos de
segurança. Tudo muito simples e singelo, o portão embora de ferro, porém, não
possuia cadeado, somente um botão para acionar a campanhinha que avisava a
presença de alguém. A escadaria estava do lado direito do sobrado, não havia
cobertura, os degraus de granitos levavam até a porta da entrada, a única para o
exterior. Uma porta de madeira maciça sem detalhes, porém, alta e larga, algo típico
das residências antigas. Essa era a residência alugada da família Watson ocupada
desde julho de 1969, onde em conjunto cantavam, oravam, sorriam, brincavam e
choravam. Choraram e muito, porém, nunca a família deixou de acreditar em um
milagre celestial para cada dia. Segunda-feira 2 de fevereiro de 1970, sensivelmente
seis meses residindo naquele prédio algo aconteceu! Em algumas páginas à frente
voltarei ao assunto.
Quando se abria a porta com aquela chave amarela de fechadura tipo colonial
marca Prado, estava diante de um corredor. Bem posicionado no alto do teto com
recortes nas laterais, chamava à atenção um majestoso lustre com várias pequenas
lâmpadas e pedras como de cristais. Esse aparato era o suficiente para clarear todo
aquele espaço. No piso, um simples tapete/passarela de cores avermelhadas que
se alongava até ao final. À direita do corredor estava uma pequena sala – onde
servia de escritório do pastor Bill Watson – seguindo, outra sala maior, no centro
uma ampla mesa com cadeiras, tudo de madeira pesada, alí, o local das refeições.
Em um dos cantos estava o piano, nada moderno ou sofisticado, tudo comprado em
um estabelecimento de segunda mão. Não havia aparelho de televisão e, tão pouco
telefone, somente um médio rádio a pilha. Nas duas salas haviam enormes janelas
que as abas se abriam para fora, eram travadas com pequenos e trabalhados pinos
de ferro. Na sala mais espaçosa estava adornada ao seu exterior uma pequena
sacada, de onde vislumbrava lindas paisagens das montanhas e copas das árvores.
Olhando a direita contemplava o contínuo movimento de veículos e transeuntes que
circulavam pela Rua do Bispo, bem visível uma favela se destacava a pouco mais
de 100 metros. Antes de terminar os relatos extraídos da histórica Rua Conselheiro
Barros, venha comigo no desenrolar dos acontecimentos que antecederam os fatos.

Idílica jornada

A visão missionária do casal Watson em muito superava as barreiras e os


obstáculos que surgiam no contorno da esquina seguinte! Algumas vivas almas
diziam que tudo aquilo eram utópicos sonhos de tresloucados. Como deixar a zona
de conforto da Maiúscula América para enveredar em um campo desconhecido? O
Brasil daquela época não passava de um amplo espaço dominado por doenças
tropicais, terra de índios e de uma multidão de analfabetos e negros pobres! “Isso é
loucura daquele jovem casal com duas tenras crianças!” Parece que essas almas
portadoras do negativo até tinham razão. Após uma longa viagem, os quatro
chegaram de trem à Victory Station no centro de New York City. Rhoda cuidava das
crianças e Bill, com um só braço, movia um montão de malas. Nada conheciam
daquela grande cidade. Nos bolsos, pouco dinheiro e, para afetar os ânimos de
qualquer filho de Deus, o navio com destino a Buenos Aires e escala no Rio de
Janeiro estava com a saída indefinida. Juntando a tudo isso, faltavam-lhes
hospedagem e meios financeiros! Parece que tudo estava errado, andando para o
torto, no linguajar de Portugal. Foi no corre-corre da grande New York City que a
família Watson, enquanto aguardava a saída do navio com escala no Brasil, fez a
primeira viagem em um subway, o trem subterrâneo da Cidade de New York, o
metrô que, naquele outubro de 1956, estava a completar 52 anos de serviços
prestados aos usuários daquela região metropolitana.

Influência

Em páginas anteriores, há outras informações sobre o missionário Bill Watson


e suas trajetórias. Ele foi um nato influenciador de pessoas, tudo graças ao seu
afável caráter, comportamento humano conctado ao espiritual. Quando desceu
pelas escadarias do Bown Hill, o qual por duas semanas foi sua casa flutuante,
estava consciente de que o Brasil, com raríssimas exceções, era uma nação de
negros e pobres. No entanto, ali ele ganharia carinho e muito influenciaria esses
negros e pobres de um país em transição política, social e religiosa. Watson era o
homem dos óculos verdes e de visões futurísticas. Enxergava plantações e lindas
florestas em lugares áridos e desertos. Enquanto Brasília não passava de um
amontoado de rabiscos em papéis sujos de barro, Bill a contemplava tal como o
mineiro Juscelino Kubitscheck de Oliveira (1902-1976): uma invejável metrópole que
mudaria as histórias da História do Brasil! Ambos tinha razão! Brasília se tornou o
cérebro das altas decisões nacionais disse o imortal Presidente JK. Imortal no
sentido acadêmico e de gfrandes realizações para o bem de um povo.
Tive a oportunidade de trabalhar ao lado de Bill Watson como diretor de
jovens da então Região Litoral, na época uma nesga de terra de São Paulo ao
Ceará! Para atender todo esse espaço geográfico, as viagens eram sempre de
ônibus comerciais e invariavelmente haveria um fumante ao lado! Posteriormente,
quando Bill era Superintendente da América do Sul, lá estava eu novamente na
função de diretor de jovens para todo o continente. Foi outro grande desafio; eram
intermináveis viagens em ônibus comerciais saindo de Brasília, via São Paulo, a
Montevideo, Buenos Aires, Assunción ou Santiago do Chile. Nesse período, eu
estava com 30 anos. Os parcos recursos existentes eram radicalmente
economizados. Para os nossos amados vizinhos, Hermano Watson, seu nome de
guerra entre os hispanos, era considerado o americano brasileiro. Mesmo assim,
suas influências estão nítidas em várias realizações e grandes projetos por
diferentes países da América do Sul.
Na manhã de quarta-feira, 20 de janeiro de 1971, feriado na cidade do Rio de
Janeiro, estávamos com uma caravana sob a responsabilidade do pastor Salomão
Ribeiro, deixando o estado da Guanabara com destino ao Nordeste. Da Guanabara
até o Ceará, cruzamos todos os estados, com paradas e atividades em Aracaju,
Sergipe, Maceió, Alagoas e tendo Recife, capital de Pernambuco, como base. Por
aqueles idos, todo o movimento rodoviário Norte-Sul-Norte se fazia pela perigosa
BR-116 e suas vertiginosas curvas. A litorânea BR-101 era um projeto a nascer!
Estávamos já no Recife cerca de duas semanas, Maria Rute Silva e Ana
Maria da Silva, mesmos nomes, porém de famílas diferentes, realizavam as
saudosas Escolas Bíblicas de Férias (EBF), quando o supervisor Watson também
integrou a Caravana do Rei. Agora ele era o motorista que nos levou até Fortaleza,
pastor Salomão Ribeiro permaneceu no Recife para outras atividades. Em
Fortaleza, fui pela primeira tomar um banho no mar. Tudo tudo muito divertido para
um jovem mineiro, na disputa de natação com Bill Watson. Não deu outra! Ele,
muito mais ágil, foi o vencedor; embora dezoito anos mais velho e tendo um único
braço, era um atleta; corria, subia e descia nas árvores, adorava uma queda de
braço, jogava volei e dirigia o veículo comendo maçã. Assustava muita gente (às
vezes até os policiais!).
Após vários dias em diferentes localidades pelas terras de Iracema, chegou o
momento de regressarmos para o Sul. Descemos pelos sertões do Rio Grande do
Norte e Paraíba. Era noite e a estrada asfaltada encontrava-se deserta. Ao lado de
Bill Watson estava David Rodrigues da Silva (1947-215), outro jovem, de quem
também foi grande amigo. Ao amanhecer, paramos para algum tempo de descanso
e nos alimentamos com a farofa que nos deram na noite anterior em Fortaleza.
Estávamos na cidade de Patos, no sertão da Paraíba. Descansamos e nos
alimentamos durante poucos minutos; havia um longo caminho a percorrer.
Seguimos a jornada por uma estrada que estava sendo pavimentada e era
relativamente movimentada em ambos os sentidos. Devido à construção de uma
ponte, o trânsito foi desviado e cruzava o leito semisseco do rio.
Em determinado local, a via ficou intransitável. Cerca de 50 metros a nossa
frente, havia um caminhão atolado na lamacenta areia e outros veículos parados de
ambos os lados. Vários curiosos lá já estavam, e também fomos engrossar o bloco
dos palpiteiros. Diante daquele lenga-lenga e, o caminhão se afundando mais.
Estando ao seu lado, Bill Watson virou-se para mim e disse: “Se ele fizer assim e
assim, conseguirá desatolar o caminhão”. Naquela sua maneira pitoresca de
quando queria falar ou fazer alguma coisa, elevou sua mão à cabeça e, em seguida,
apertou o seu ombro esquerdo. O pobre motorista transpirava por todos os poros e
nada conseguia resolver o problema. Nesse impasse, seguia aumentando o número
de curiosos e palpiteiros. Inesperadamente, ouvi a voz e vi um gesto de Bill Watson:
“Senhor, quer que eu tire esse caminhão daí?” Todos os olhares correram para
onde estávamos. Como? Um senhor a quem faltava o braço esquerdo? De onde
estava, o motorista, assentado, respondeu com indisfarçável alívio: “Sim, senhor.”
Idêntico a câmeras televisivas, todos acompanharam aquele jovem senhor sem um
braço tomar o comando do caminhão. Naquela época, não existia cinto de
segurança. Watson entrou na cabina, puxou a porta com sua única mão, e acelerou
firmemente o motor daquele pesado caminhão. Engatando a marcha à ré, fez o
veículo se mover por alguns centímetros. Centralizou o volante para determinado
foco, engatou uma pesada marcha e, acelerando lentamente, fez o caminhão
romper o atoleiro e se colocar em terra firme sob aplausos dos curiosos. Bill desceu
com as faces em brasas e fez um gesto de agradecimento. Voltamos à nossa
kombi, que estava aos cuidados do pastor Salomão Ribeiro (1932-). Continuamos
nossa jornada até a cidade do Recife, onde chegamos ao romper da madrugada do
dia seguinte.

O passado

Nos meados de 1967, ainda na casa dos 19 anos, fui convidado por uma
colega de classe do Colégio Anchieta para ouvir o irmão Bill Watson. Ele estaria
ministrando numa quinta-feira às 19h30, no pequeno salão onde se reunia a Igreja
de Deus, no distante bairro Saraiva, em Uberlândia, lá nas Minas Gerais. Foi uma
noite com muito calor; todos transpiravam dentro daquela sala com dezesseis
metros quadados, pois as janelas abertas eram insuficientes para a necessária
circulação de ar. Naquela época, ventiladores eram coisas raras para o meio em
que vivíamos. Como de praxe, por toda a cidade havia uma precária iluminação, o
que não era diferente naquele salão, que contava com poucas lâmpadas para
clarear o ambiente. As moscas ficavam a dançar na claridade. Já havendo se
passado mais de meio século, ainda me recordo vivamente daquela reunião, bem
como do texto bíblico utilizado: “Certamente, a palavra da cruz é loucura para os
que se perdem, mas para nós, que somos salvos, o poder de Deus” (I Coríntios
1:18). Eu havia matado as aulas daquela noite para participar desse culto. Não me
aproximei do pregador, por todos respeitosamente tratado de irmão Bill. Enquanto
descíamos com outros jovens a mal iluminada avenida Machado de Assis, Marcos e
Becky passaram por nós falando entre si em inglês. Eram dois pré-adolescentes
com 13 e 12 anos respectivamente.
O novo encontro ocorreu em uma Convenção Regional, quando eu já me
tornara membro da Igreja de Deus, no mês de maio de 1968. O evento transcorreu
no Setor Pedro Ludovico, em Goiânia. Esse então distante bairro estava coberto por
uma intensa nuvem de poeira vermelha. O irmão Bill Watson, ocupando
interinamente a Superintendência da América do Sul, estava chegando de Santiago
do Chile. Nesse ínterim, sua família se encontrava nos Estados Unidos, após longos
anos morando no Brasil. Na função de Superintendente Sul Americano, ele se
comunicava fluentemente em inglês, português e espanhol. Era o chefe, porém não
passava do irmão Bill. Muito longe do orgulho alicerçado nos pomposos e modernos
títulos eclesiásticos dominantes em nossos arraiais! No domingo pela manhã,
aquele talentoso jovem de 37 anos ministrou sobre Malaquias 1:6-14. A sensação,
no desenrolar da ministração, foi algo sobrenatural. Parecia que o mundo estava
despencando e trazendo à consciência as nossas falhas no caminho da omissão.
Assentado ao meu lado, estava João Marques de Oliveira (1936-1996), um
dinâmico pastor na casa dos 32 anos. Ele caiu em prantos e soluçava semelhante a
uma criança que almeja algo. Eu nunca havia visto até então tantos homens
simultaneamente a chorar, como se formassem um coral desafinado! A sensação
era que o céu havia desmontado sobre nós ou aquele grupo de fanáticos fora
levado diante do Trono celestial!

Instituto Bíblico da Igreja de Deus (IBID)

Na ensolarada segunda-feira de verão, 20 de janeiro de 1969, deixei


Uberlândia a bordo de um dos históricos C-47 da FAB (Força Aérea Brasileira) a
serviço do Correio Aéreo Nacional. Foi no CAN que viajei pela primeira vez de avião
(e de graça!). Preguei em boa parte do percurso com escala em Ipameri. Um jovem
me ouvia atentamente. Quando o avião aterrissou no aeroporto Santa Genoveva,
ele fez questão que eu o acompanhasse de táxi. Deixou-me no setor Campinas, o
meu referencial em Goiânia. Nos meados daquela semana, eu já estava
participando de um acampamento em Sanclerlândia e, posteriormente, fui até
Brasília, antes de regressar definitivamente para a escola em Goiânia.
Após essas jornadas, que foram de grande valia para um jovem sonhador,
regressei para Goiânia, onde já estava matriculado como aluno interno no IBID, uma
Casa de Profetas construída no longínquo Parque Amazonas, local sem iluminação
pública e saneamento básico, mas com muita poeira. O IBID fica a um de distância
da parada final do ônibus Vila Brasília, onde se destaca o Armazém Campeão, e
cerca de dez quilômetros da Estação Rodoviária, parte central de Goiânia. Aquele
foi um período de vida militar; tudo cronologicamente predeterminado. Isso,
entretanto, gerou em mim algo diferente na busca de um academismo e de uma
total dependência de Deus. Com exceção de Vanil de Almeida, a única brasileira e
negra, todos os professores eram missionários americanos com formação
universitária, brancos e republicanos. Filipe Shearer (1938-), aos 31 anos, era o
exigente diretor, o qual trazia sua bagagem do exército americano e de serviços
prestados no Japão. Era gente fina, cortês e até brincalhão, porém semelhante a um
sargento mal-humorado que nunca conseguiu ser tenente! Janete Carter (1934-
2007) pilotava aviões da Força Aérea dos Estados Unidos antes de envolver-se em
missões; era um gênio em pessoa; caminhava à frente do seu tempo e, para
aqueles dias, mostrava-se extremamente liberal. Ruth Crawford (1935-), professora
de formação, eficiente secretária, muito amável, prestativa e dona de um meigo
sorriso, porém severa. Lá estava eu, uma pedra bruta para ser lapidada. Dei muito
trabalho àqueles mestres. Ainda hoje tenho minha palavra de reconhecimento e
gratidão.
O IBID era literalmente um regime de quartel militar. O dia iniciava às 6h00 e
terminava às 21h00, de segunda a sexta-feira, cerca de nove meses a cada ano.
Obrigatoriamente todos os alunos faziam uso de gravata no decorrer das atividades
estudantis. Não havia exceção, o uso da gravata era algo imprescindível em nosso
dia a dia. Em uma certa manhã ensolarada, estou saindo da classe conversando
sobre uma palavra em espanhol. Ao virar no corredor, dou de cara com o irmão Bill.
Marotamente lhe perguntei se ele entendia espanhol. a resposta foi direta: “Sim, sou
professor de espanhol”. Foi esse o meu primeiro diálogo daquele que estava
retornando de reuniões administrativas da Igreja de Deus nos Estados Unidos.
Agora havia um novo Superintendente para a América do Sul, Alejandro Portugal
Júnior, um mexicano de poucas falas e inacessível para o grupo de estudantes. Na
tarde seguinte, irmão Bill estava movendo e abrindo alguns barris. Ofereci-me para
ajudar. Tendo ele aceitado, abrimos os barris onde havia de tudo. Um deles estava
cheio de gravatas e camisas. O irmão Bill ofereceu-me todo aquele conjunto. Eram
dezenas e dezenas de camisas e incontáveis gravatas. Reparti tudo isso com os
estudantes e os diversos pastores.

Coelho da Rocha

O já mencionado e sistemático professor Felipe Shearer, o Diretor do IBID,


nos finais do mês de abril de 1970, informou-me que eu estava sendo convidado
para ministrar no congresso de jovens da Região Litoral, dias 15, 16 e 17 de maio.
O convite veio da parte do missionário Bryan Hersey (1939-2017), diretor regional
de jovens, um ex-mecânico e carpinteiro de 31 anos, residente na cidade do Recife.
O convite veio como um peso e, ao mesmo tempo, como um oportuno desafio;
afinal, eu estava sendo lapidado para me mover entre pedras e pedreiras!
Finalmente, a data da viagem chegou! A kombi azul do IBID foi lotada de pastores
de Brasília e Goiânia. Foi uma viagem sem escalas. Chegamos pela madrugada em
Coelho da Rocha, estado do Rio de Janeiro, e nos acomodamos nos bancos de um
acanhado salão da Igreja de Deus no final de uma rua esburacada. Para mim, tudo
era novidade; afinal, estava perto da Cidade Maravilhosa e capital do estado da
Guanabara. Logo pela manhã, chegou o irmão Bill para recepcionar-nos. Todos
fomos amavelmente cumprimentados e recebemos as boas-vindas. Pelas manhãs,
as atividades estavam sob a responsabilidade do argentino Osvaldo Pupillo, então
diretor de jovens da América do Sul. Era sua primeira viagem ao Brasil. Tremendo
diante de tantos pastores presentes, mesmo assim ministrei em todas as noites.
Foram dias abençoados de comunhão com vários jovens que, posteriormente, se
destacaram no ministério em diferentes locais no Brasil.

Rocha Miranda

Na programação estava incluída a participação na Convenção da Região


Litoral. O local das atividades: Travessa Muribeca, 128, em Rocha Miranda, Zona
Norte da cidade do Rio de Janeiro, estado da Guanabara. As atividades nos dias 21
a 24 de maio de 1970 foram realizadas no templo da Igreja de Deus. Para a noite de
sábado, 23, eu estava escalado para pregar no culto dedicado aos jovens. Recordo-
me do texto utilizado: II Reis 6:1-7. Naquela época, Rocha Miranda era um bairro de
classe média baixa, praticamente esquecido de seu áureo período dos garimpos no
Rio das Pedras. As esquecidas lembranças se encontram nos nomes de algumas
ruas ainda existentes no bairro: Ametistas, dos Diamantes, Ônix, Rubi, Topázios e,
assim sucessivamente. Rocha Miranda somente saiu da periferia e se tornou
manchetes em noticiários internacionais após a libertação do embaixador Giovanni
Enrico Bucher (1913-1992), então representante da Suiça no Brasil. Bucher foi
cinematograficamente sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)
na Zona Sul do Rio de Janeiro, na manhã de segunda-feira, 7 de dezembro de
1970. Feito prisioneiro, olhos vendados, foi transportado para o esconderijo da VPR,
uma casa alugada na rua Taracatu em Rocha Miranda. Esse foi o mais longo
sequestro já realizado no Brasil. As exigências dos sequestradores foram
cumpridas. Setenta presos políticos foram exilados para o Chile e o embaixador foi
libertado e deixado algures no bairro da Penha, na manhã de sábado, 16 de janeiro
de 1971.
Oito meses depois, em 17 de setembro, o principal mentor do sequestro,
Carlos Lamarca (1937-1971), capitão desertor do exército, aos 33 anos, foi cercado
e trucidado pelas forças militares no interior da Bahia.
Passados três anos após aquelas atividades na Igreja de Deus em Coelho da
Rocha e Rocha Miranda, agora estava eu a trabalhar em múltiplas frentes
ministeriais na Região Litoral. Em uma noite de sábado, junho de 1973, cerca de
desessete anos após sua chegada ao Brasil, chegara o momento de a família
Watson regressar aos Estados Unidos, de onde saíra em 1956. Uma singela
cerimônia de despedida foi realizada em Rocha Miranda. Um único presente lhes foi
oferecido: uma camisa acompanhada de uma gravata comprada às pressas em
uma loja do bairro! Na semana anterior, também na Igreja de Deus em Rocha
Miranda, Luiz Rodrigues do Prado torna-se o primeiro brasileiro a assumir a
supervisão da Região Litoral. Por questões de saúde, ele também foi o primeiro a
renunciar ao cargo, cerca de 18 meses após ter sido nomeado. Tive a oportunidade
de ser o seu secretário. Era um homem simples, tremendamente humano, sincero,
rigoroso em suas atitudes e extremamente amoroso.

(ARTIGO EM ANDAMENTO)
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Alguns dos leitores escreveram:

“Li os originais de O Brasil Protestante, do ilustre Carlos Boaventura e fiquei


surpreso com tanta informação de suma importância, com tantos relatos da história
do Brasil e de vários outros países do mundo, coligados com a implantação do
evangelho do Reino em épocas de muitas barreiras espirituais. O livro demonstra
que o autor é um homem de Deus, muito dedicado, estudioso. Como é de se
esperar, buscou informações que não se conhecem em muitas faculdades dos
nossos dias. A obra não pode faltar na biblioteca de todo estudante da Palavra de
Deus. Parabenizo ao particular amigo, Dr. Carlos Boaventura.”
Oraci do Amaral, pastor e superintendente regional da Igreja Evangélica
Pentecostal “O Brasil Para Cristo” em Jundiaí, São Paulo.
“Dr. Carlos Boaventura, faço-lhe uma recomendação: não pare de escrever.
Sua habilidade narrativa e capacidade descritiva revelam um escritor de ótima
qualidade. Sua cultura valoriza seus escritos. Gosto muito de ler informações que
me iluminem o cérebro e me estimulem a curiosidade.”
Ivan Santos, jornalista e escritor.
Uberlândia, MG.

“Foi com imenso prazer que li as folhas originais de O Brasil protestante, do


meu amigo, Dr. Carlos Boaventura. Sou testemunha da paixão do autor aos
detalhes. Muitas vezes, insatisfeito em conhecer apenas a narrativa, quando
possível, visita pessoalmente os lugares descritos em busca de testemunhas da
história. Mais que simplesmente nos descrever a história, Dr. Boaventura nos leva
aos bastidores dos fatos que culminaram na expansão do protestantismo em terras
tupiniquins. Sem dúvida alguma, O Brasil protestante é uma obra valiosa que
somará ao saber dos amantes da história geral e da igreja.”
Rodrigo Vilas Boas Oliveira, empresário e ex-aluno do autor.
Greenville, Carolina do Norte.

“É com muita honra e prazer que recomendo a leitura desta obra-prima da


lavra do doutor Carlos Boaventura. Saiba que eu e minha família temos grande
consideração e profundo apreço pelo autor desse livro que ora recomendamos.”
Lucivânia Marques, professora.
Recife, Pernambuco.

“Percebo que queira falar do passado histórico como algo que já está
esquecido. Para mim, o seu trabalho dava para vários livros. Continuo a admirar a
sua persistência, o empenho nas pesquisas profundas e o trabalho árduo que há
muito vem fazendo. Comentar o que escreve, para mim, é tarefa difícil. Estou certa,
doutor Boaventura que o seu esforço é acarinhado e reconhecido.”
Dra. Raquel Guimarães Carneiro, professora aposentada.
Odivelas, Portugal.
___________________________________________________________________

“A história contextualizada nunca morre”. Ler O Brasil protestante é fazer uma


viagem na história e abraçar novos desafios. Um apanhado riquíssimo, desde a
África antiga, passando pela Europa, pelas Américas e chegando ao Brasil. Uma
narrativa cheia de detalhes que marcaram o mundo e transformaram o Brasil, em
especial a participação protestante. Com muita propriedade e competência, o autor
provoca um debate bem atual no país: a questão da negritude. O espírito
republicano é também destacado pelo autor, embora o republicanismo brasileiro não
tenha amadurecido e avançado, gerando uma democracia seletiva, cambeta e
refém dos regalos e do paladar dos mais abastados, um fenômeno muito presente
até os dias de hoje. Infelizmente, esse comportamento atingiu o seio evangélico e
atrofiou o conceito calvinista sobre a política, no qual a igreja deveria ser a voz
denunciativa da sociedade e a consciência crítica do Estado. Como salientei no
início, a riqueza de detalhes impressiona a todos, desde o mais leigo até os mais
aprofundados na área da teologia histórica. Este livro é um curso literal e fiel à
história da formação protestante/evangélica em geral, tornando-se leitura obrigatória
aos estudantes e acadêmicos. Agradeço a Deus pela extraordinária oportunidade de
ler a obra do doutor Carlos Boaventura, um amigo e colega, homem sábio,
consagrado a Deus e separado para instruir os povos. A todos os leitores, desejo
uma boa viagem na história, na verdade e, em Cristo Jesus.”
Uziel Lima, PhD, advogado, teólogo, pastor presbiteriano e músico.
Manguinhos, Rio de Janeiro.

Um simples apelo

Se você apreciou o caminhar pela história na leitura de O Brasil


Protestante, junte-se a nós na divulgação do mesmo. Dê
exemplares de presente a familiares, amigos, colegas de trabalho,
escola, biblioteca, até mesmo a estranhos. Fale sobre o livro, levante
questionamentos sobre o desenrolar da história sociorreligiosa que abrange a
África, a Europa, as Américas e chegou ao Brasil.

Outros livros do autor:

O Brazil pentecostal (2006 e 2013) (edições esgotadas);


A Bíblia e a África (2014 e 2019).
Os lusitanos na expansão do cristianismo (2014 e 2015) (edições esgotadas);
A cruz singrando os mares (2016).

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