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Distribuição 100% gratuita - Clube de RevistasA REVOLTA DOS

JANEIRO DE 2024

MALÊS E SEU LEGADO,


POR GILVAN RIBEIRO

ROMA NO AUGE: COMO


ERA VIVER NA PRIMEIRA
METRÓPOLE DO MUNDO

WWW.AVENTURASNAHISTORIA.UOL.COM.BR HÁ CEM ANOS MORRIA


LENIN, O LÍDER MÁXIMO
DA REVOLUÇÃO RUSSA

ESPIRITISMO
BASEADA NA REENCARNAÇÃO, A DOUTRINA FUNDADA PELO
FRANCÊS ALLAN KARDEC TEM ENTRE OS BRASILEIROS SEU
MAIOR CENTRO, POPULARIZADO POR CHICO XAVIER
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PRESIDENTE
Luis Fernando Maluf

DIRETOR EDITORIAL:
Thiago Lincolins

EDIÇÃO:
Izabel Duva Rapoport

EDITORA DE ARTE COLABORADORA:


Marília Filgueiras

REVISÃO:
Hellen Ribeiro
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ESPIRITISMO
NO BRASIL
BASEADA NA REENCARNAÇÃO, A DOUTRINA FUNDADA PELO FRANCÊS
ALLAN KARDEC TEM ENTRE OS BRASILEIROS SEU MAIOR CENTRO,
POPULARIZADO POR CHICO XAVIER

EDIÇÃO 248

SÃO PAULO
EDITORA PERFIL
2024
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EDITORIAL

RELIGIÃO RACIONAL
A
busca por saber de onde viemos e para cretismo estar mais presente entre nós. O que
onde vamos sempre acompanhou o não quer dizer, claro e infelizmente, que não
homem. Houve um tempo em que isso exista intolerância religiosa na nossa história.
era de domínio absoluto da religião. Depois Não à toa, você também confere, nesta mes-
veio a ciência, que, embora tenha excluído ma edição, uma entrevista com o jornalista
Deus da posição criadora de tudo, não aboliu e escritor Gilvan Ribeiro sobre o tema de seu
a existência de uma força maior sobre o que novo livro: a Revolta dos Malês, um movi-
vemos e não vemos. Desta relação, surgiu o mento em combate à escravatura que fez
espiritismo, no século 19, com o francês disparar ainda mais a perseguição religiosa
Allan Kardec, que, mesmo com a forte influ- contra os afrodescendentes na Bahia.
ência do cristianismo, não abriu mão do mé- Que estas memórias, assim como tantas
todo científico e da visão evolucionista da outras fundamentais, possam nos inspirar e
humanidade – argumentos que se espalha- nos mover para um Brasil e um mundo mais
ram pelo mundo. No Brasil, um dado curio- inclusivo. Boa leitura e feliz 2024!
so: o número de adeptos do espiritismo su-
perou até mesmo o de seu berço, na França, Izabel Duva Rapoport
e isso se deve ao fato, entre outros, de o sin- Editora

      


        


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45"6 7*1
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SUMÁRIO

30
CAPA: O MÉDIUM
MINEIRO CHICO
XAVIER É A
PERSONALIDADE
DO ESPIRITISMO
MAIS CONHECIDA
E RESPEITADA
NO BRASIL

6 GALERIA
A inovação dos 20 LISTA
Movimento dos
26 PERSONAGEM 55
cristais de Murano povos sem-nação COLUNA
Há cem anos, morria Lenin, o FABIO

12 22
HOJE NA DÚVIDA CRUEL líder máximo da Revolução Russa PREVIDELLI
HISTÓRIA Quando o Ano
Aconteceu
em janeiro
Novo virou data?
42 CIVILIZAÇÕES 56
24 ARTE Roma no auge: viver na primeira COLUNA

14 ILUSTRADA Uma obra de RICARDO


megalópole do mundo era uma
São Paulo completa Rugendas jamais LOBATO
experiência de contrastes
470 anos de História publicada

18 COMO
FAZÍAMOS SEM 58 MEMÓRIA Centenário dos 50 ENTREVISTA
Filtro solar Jogos de Inverno Gilvan Ribeiro fala sobre a Revolta
dos Malês, tema de seu novo livro

NO PODCAST SEMANAL DA AVENTURAS NA HISTÓRIA VOCÊ


ACOMPANHA OS PRINCIPAIS ASSUNTOS SOBRE A HISTÓRIA DO
MUNDO E DO BRASIL AO LONGO DOS SÉCULOS. AVENTURE-SE!
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GALERIA

6 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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CRISTAIS DE
MURANO NESTA ILHA DA ITÁLIA, A 1,5 KM DE VENEZA,
O TALENTO E A INOVAÇÃO TRANSFORMAM
PEÇAS DE VIDRO EM OBJETOS DE DESEJO
HÁ QUASE OITO SÉCULOS. AO LADO,
UMA ESCULTURA EM FORMA DE CAVALO
É FINALIZADA EM UM DOS FORNOS MAIS
IMPORTANTES DA FÁBRICA ZANETTI
POR ACERVO AH | IZABEL DUVA RAPOPORT

AVENTURAS NA HISTÓRIA 7
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GALERIA

UMA ILHA DE VIDRO


Há quase 800 anos como símbolo de riqueza, bom gosto
ou pura ostentação, os cristais de Murano tiveram uma
trajetória empurrada por boas e más fortunas. O início da
história, em 1291, quase nada tem de brilhante. Nesse
ano, as autoridades da República de Veneza expulsaram
todos os artesãos que moldavam vidro da cidade para a
pequena Ilha de Murano, a 1,5 km de distância. Queriam
ver longe dali os vidreiros e seus fornos, responsáveis
por alguns grandes incêndios naquela região de casarões
de madeira e tetos de palha. O talento desses profissio-
nais, ao que parece, não lhes trazia grande prestígio
social. Apenas um século mais tarde eles iriam adquirir
direitos como portar espadas ou permissão para que
suas filhas pudessem se casar com jovens de famílias
influentes de Veneza. Sua arte lhes traria o justo reconhe-
cimento nos anos seguintes.

8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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TÉCNICAS INOVADORAS
A fama do lugar começou sobretudo pelo fato de os
artesãos dominarem como ninguém técnicas que trouxe-
ram inovações, como peças esmaltadas incrustadas com
folhas de ouro. Na página anterior, à esquerda, um cálice
do século 15, feito de fino vidro de um azul profundo, traz
em sua esmaltação requintada ilustrações que remetem a
contos medievais do escritor latino Virgílio. Ao lado, uma
luminária suspensa conhecida como cesendello (comum
em Veneza e no mundo islâmico) revela a delicadeza dessa
peça produzida em torno da virada do século 15 para o 16.
Já nesta página, ao lado, um jarro de vidro possivelmente
feito no final do século 16 e, abaixo, uma garrafa ainda
mais ousada, do século 17, foram lançados para uso
doméstico de famílias ricas de Veneza. Cem anos depois,
já no século 18, cristais da Boêmia, região da Europa
Central, desbancaram do gosto dos consumidores as
peças coloridas e esculpidas de Murano.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 9
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GALERIA

A MARCA DA
SOFISTICAÇÃO
O luminoso talento da ilha seria recuperado
com uma novidade, ainda nos anos 1700: os
candelabros com buquês de flores, folhas,
jogos de transparências e brilhos, como
mostra, na página seguinte, o trabalho
executado com maestria por Giuseppe
Briati. Logo estas peças estariam nos salões
de palácios, teatros e casas imponentes,
ofuscando os pesados candelabros de
madeira e ferro. Outros produtos surgiam
entre os séculos 18 e 19, como o espelho de
vidro, à esquerda, produzido com requinte
pelo artista Thomas Williamson e, abaixo,
a tigela millefiori (“mil flores”, em tradução
livre), feita pelo italiano Vincenzo Moretti,
que utiliza varetas de vidros coloridos,
cortando-as na transversal, para fundir os
desenhos tradicionais da ilha numa outra
perspectiva. Hoje, a concorrência feroz da
Ásia e Europa Central causou a redução
para um quarto do número de artesãos de
Murano. Porém, sua marca permanece viva
como referência de sofisticação e desejo.
IMAGENS GETTY IMAGES E MET MUESUM

10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 11
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HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU
EM JANEIRO
1 Rebeldes coman-
dados por Fidel
1959 Castro tomam
2
533
Para que a Igreja
Católica não
tivesse um papa
3 A Restauração
Meiji é instituída
1868 pelo imperador
Havana, e o ditador com o nome de um deus do Japão, pondo fim ao
Fulgêncio Batista deixa o pagão, Mercúrio, eleito sistema de xogunato e
país. A revolução marcou sumo pontífice, assume dando início a uma série
o início da hegemonia como João II. Ele foi o de transformações
de Fidel no poder. primeiro papa a trocar políticas no país.
de nome na História.

4 Depois de nascer
livre e ser escravi-
1853 zado, Solomon
5 A rainha de
Portugal, Maria I,
1793 promulga um
6 Alexandre I,
rei dos sérvios,
1929 croatas e eslove-
7 Após breve cerco,
a França conquis-
1558 ta a cidade de
Northup ganha a alvará proibindo o estabe- nos, instaura a Ditadura Calais, que era a última
liberdade novamente. lecimento e desenvolvi- de 6 de Janeiro. Ele possessão britânica no
Suas memórias deram mento de fábricas e suspendeu a Constituição, continente, que havia sido
origem à obra Doze Anos manufaturas no Brasil. dissolveu o Parlamento e capturada dos franceses
de Escravidão. alterou o nome do país em 1347, durante a Guerra
para Reino da Iugoslávia. dos Cem Anos.

8 É fundado o
Congresso
1912 Nacional
9 Umberto I é
aclamado rei da
1878 Itália. Ele seria
10 O metrô de
Londres, o
1863 primeiro do
11
532
Torcedores dos
jogos romanos
começam a
Africano, para defender assassinado em 1900 e mundo, começa a Revolta de Nika, para
o direito ao voto dos acabaria entrando para a funcionar. Os trens eram derrubar o imperador
negros na África do Sul. História como o penúltimo movidos a vapor e foram Justiniano I. O protesto
Combatendo o Apartheid, monarca do país. O criados para tentar diminuir durou sete dias e foi
seria o partido de Nelson regime acabaria em 1944. o tráfego dos veículos contido depois da morte
Mandela. puxados por cavalos. de 30 mil pessoas.

12 A Royal Aero-
nautical Society,
1866 a primeira
13 Émile Zola publica
J’Accuse, atacan-
1898 do o governo
14378
O general maia
Siyaj K’Ak’
conquista a
15 Quase 400
anos depois
1976 da abertura
instituição científica francês por antissemitis- importante cidade de do primeiro terreiro, o
aeroespacial do mundo, é mo, por condenar um Tikal, na atual Guatemala, candomblé é reconheci-
IMAGENS GETTY IMAGES

fundada em Londres. oficial do Exército e começa a substituir os do na Bahia como religião.


Seriam necessários mais acusado de traição, líderes das cidades-esta- Com isso, coloca-se um
quase 40 anos até os o caso Dreyfuss. do do território. fim às perseguições
primeiros aviões. policiais aos fiéis.

12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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16 A família
Medici se torna
1412 responsável pelas
17 Nasce o boxeador
americano Cassius
1942 Clay, conhecido
finanças da Igreja Católica. como Muhammad Ali.
Ao longo das décadas Campeão dos pesos
seguintes, três membros pesados, ele também foi
da dinastia se tornariam ativista pelos direitos civis.
papas. Morreu em 2016.

18 A cidade de Lima,
no Peru, é
1535 fundada pelo
19 É anunciada a
primeira edição de
1903 uma nova corrida
explorador espanhol de bicicletas de longa
Francisco Pizarro – distância, o Tour de
que, logo no ano seguinte, France, em ação
resiste a um cerco militar promocional do jornal
realizado pelos incas. de esportes L’Auto.

20 LaMarcus Adna
Thompson,
1885 inventor nascido
21 O modelo de
carro DeLorean
1981 DMC-12 começa
22 Os turcos do
império otomano
1517 conquistam a
23971
A Dinastia Sung
vence uma
batalha contra as
em Ohio, apresenta a a ser produzido em cidade do Cairo, no Egito. tropas de elefantes
primeira montanha- Dunmurry, na Irlanda do Até então, a capital estava de guerra da dinastia
russa temática, que Norte. Seria um fracasso sob domínio de sultões Han, na China. Foi a
se tornaria padrão nos e a fábrica faliria, mas mamelucos. estreia dos paquidermes
parques de diversão. acabaria imortalizado pelo no Exército oriental.
De Volta para o Futuro.

24 Sob ocupação
dos japoneses, a
1942 capital tailandesa,
25 José de Anchieta,
Manoel da
1554 Nóbrega e outros
26 A série de
protestos antibri-
1952 tânicos conhecida
27 O Exército
soviético ocupa
1945 o campo de
Bangcoc, é bombardea- padres da Companhia de como Sábado Negro concentração de
da por uma força conjunta Jesus rezam a primeira atinge o Cairo e resulta Auschwitz, onde
de americanos e britâni- missa no local onde na queima e pilhagem de morreram mais de
cos. A Tailândia se une ao daria origem ao povoado 750 edifícios. A causa foi a 2 milhões de pessoas,
eixo contra os aliados. de São Paulo de morte de 50 egípcios por e libertou 7600
Piratininga. oficiais coloniais. sobreviventes.

28 A Islândia se torna
o primeiro país
1935 ocidental a
29 Primeira apresen-
tação da peça
1595 Romeu e Julieta,
30 Espanha e
Holanda assinam
1648 acordo de paz,
31 Decolando na
Mercury-Redstone
1961 2, Ham, o
legalizar e implementar de autoria de William pondo fim à Guerra dos Chimpanzé, se tornaria
o aborto terapêutico, Shakespeare. A história Trinta Anos, conflito o primeiro astronauta
com fim de preservar conta como a morte de impulsionado pela dos EUA – e o primeiro
a saúde física ou um casal apaixonado conquista de novos primata no espaço. Viveria
mental das mulheres. encerrou uma briga territórios. em zoológicos até seu fim,
entre famílias. em 1983, aos 26 anos.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
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ILUSTRADA

SÃO
CATACUMBAS
DA CATEDRAL
DA SÉ
Praça da Sé, S/N

PAULO
O estilo neogótico
engana, mas a Sé é
recente. Feita por cima
da catedral colonial, a
igreja começou a ser
construída em 1913 e só
foi concluída em 1967.
DE VILA A MEGALÓPOLE, Em suas catacumbas,
porém, estão algumas
A CAPITAL ECONÔMICA DO figuras centrais da
BRASIL É RECENTE – E INTENSA História do Brasil, como
o cacique Tibiriçá, líder
POR REDAÇÃO AH
tupiniquim convertido

A
por Anchieta que
maior cidade do Hemisfério Sul é um parado-
permitiu a fundação de
xo em matéria de História. Fundada em 25 de São Paulo. Também o
janeiro de 1554, São Paulo só perde para Sal- padre Bartolomeu de
vador, de 1549, como a capital mais antiga do país. Gusmão, pioneiro
Todo o interior do Brasil seria fundado a partir de inventor do balão.
São Paulo, com os bandeirantes ignorando o Tratado
de Tordesilhas e, para bem e mal, clamando à coroa
portuguesa do Mato Grosso do Sul até a Amazônia.
E, ainda assim, a cidade parece só ter nascido no
século 19. São Paulo era uma minúscula capital de
um território quase despovoado. Já assim no século
18, se tornou ainda menor com a descoberta do ouro
em Minas – pelos próprios paulistas – com todo
mundo se mudando para onde o dinheiro estava.
Isso só começou a mudar com um golpe de sorte:
foi em São Paulo que dom Pedro I recebeu o ultima-
to para voltar para Portugal, em 7 de setembro de
1821. A capital provinciana se tornaria o epicentro
da Independência. Pedro decidiu honrar a cidade
com a primeira faculdade de direito do país, inaugu-
rada em 1828. A partir daí, a elite intelectual do Bra-
sil seria formada passando por São Paulo.
O estado de São Paulo se tornaria cada vez mais
importante ao longo do século 19, com o ciclo do café.
Mas a capital só ganharia prestígio nas últimas dé-
cadas, com a produção do café mudando da mão de
obra escravizada, no Vale do Paraíba, para imigran-
ILUSTRAÇÃO BRUNO ALGARVE

tes livres no interior. Isso colocaria a cidade estudan-


til no caminho de escoação da maior riqueza do país.
E a partir daí se detonaria o ciclo de industrialização,
enriquecimento e expansão, atraindo imigrantes do
mundo todo, incluindo o resto do Brasil.

14 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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PÁTIO DO COLÉGIO
Largo Pateo do Collegio, 2
Do local onde os padres José de
Anchieta e Manoel da Nóbrega
fundaram São Paulo só restou uma
parede de taipa, preservada cuidado-
samente atrás de um vidro. Os
jesuítas foram expulsos do Brasil em
1759 e vários prédios foram feitos por
cima da igreja original. O atual data
de 1979, quando finalmente os
franciscanos retornaram ao local.
Além das funções religiosas, o prédio
abriga o Museu Anchieta e uma cripta
é aberta a visitações.

CASA DA
IMAGEM
Rua Roberto Simonsen, 136-B
O casarão data de 1880,
mas o terreno já tinha
pertencido a desde
bandeirantes até padres e
hoteleiros. São 85 mil
fotografias retratando a SOLAR DA MARQUESA
Rua Roberto Simonsen, 136
radical mudança da
cidade do século 19 até Talvez tenha pesado na decisão
hoje. Faz parte do Museu de dom Pedro em elevar o status
da Cidade de São Paulo, de São Paulo o fato de, na mesma
que ocupa diversos outros viagem da Independência, ter
prédios, incluindo o Solar encontrado quem parece ter sido
da Marquesa. o amor de sua vida – Domitila de
Castro Canto e Melo, mais tarde
agraciada por ele com o título de
Marquesa de Santos. A casa,
porém, é pós-romance: ela a
comprou em 1834, após voltar
para São Paulo durante o
escandaloso relacionamento no
Rio, que durou de 1822 a 1829.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
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EDIFÍCIOS MARTINELLI,
COPAN, ALTINO ARANTES,
ITÁLIA
Martinelli: Rua São Bento, 405
Copan: Avenida Ipiranga, 200
Altino Arantes: Rua João Brícola, 24
Itália: Avenida Ipiranga, 344
O centro tem um pouco de tudo para
MUSEU DO os amantes de arquitetura. O imortal
FUTEBOL estilo do arranha-céu mais antigo da
Praça Charles Miller, s/n cidade (Martinelli, de 1929), as curvas
Debaixo de uma arquibancada de Niemeyer (Copan, 1961), o Empire
no Estádio do Pacaembu, um State Paulistano (Altino Arantes, ou
museu hi-tech aborda tudo Farol Santander, 1947) e o ainda hoje
sobre o esporte nacional. De impactante prédio da cidade (Itália,
fotos dos jogadores a objetos 1965). O Copan é residencial
de torcedores, gravações com e não permite visitas, só dá para ver por
gritos das torcidas e até fora. Curiosidade: o prédio mais alto de
algumas brincadeiras, como São Paulo não é nenhum destes, mas
bater um pênalti ou jogar o não exatamente atraente Platina 220,
pebolim. com 46 andares, na Rua Bom Sucesso.

CEMITÉRIO DA
CONSOLAÇÃO
Rua da Consolação, 1660
Inaugurado em 1858, foi o
MASP primeiro cemitério público da
Avenida Paulista, 1578 cidade e contém os jazigos
Começando por pinturas de de vários pilares intelectuais
Picasso e Rembrandt, o Museu de da cidade. O discreto jazigo
Arte de São Paulo Assis Chateau- de Monteiro Lobato compar-
briand é uma instituição privada tilha o espaço com o
que hoje acumula cerca de 10 mil extravagante mausoléu do
obras. É considerado o museu de conde Francisco Matarazzo.
arte mais importante do Hemisfério Também lá: Tarsila do
Sul. A instituição data de 1947, mas Amaral, Oswald de Andrade,
o prédio em si foi criado em 1968 Mário de Andrade e a
pela modernista Lina Bo Bardi. Marquesa de Santos.

16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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PINACOTECA DO ESTADO
Praça da Luz, 2
O impressionante edifício foi erguido em
1900 para abrigar o Liceu de Artes e
Ofícios, uma escola técnica. Em 1900,
ganhou uma segunda função: o primeiro
museu de arte da cidade, que tinha então
26 quadros. Hoje somam mais de 10 mil
obras, tornando a Pinacoteca um dos mais
importantes museus da cidade.

MUSEU HISTÓRICO DA
IMIGRAÇÃO DE SÃO PAULO
Rua Visconde de Parnaíba, 1316
MEMORIAL DA
Na década de 1920, São Paulo tinha
RESISTÊNCIA
Largo General Osório, 66 quatro imigrantes para cada nativo. Essa
maré humana passava pela Hospedaria
A construção infamemente
dos Imigrantes, fundada em 1887, até
atuou, entre 1940 e 1983,
acertar os papéis e decidir por um lugar
como sede do Departamento
para morar e trabalhar. Hoje ela é um
Estadual de Ordem Política e
museu, reproduzindo as condições menos
Social de São Paulo (Deops),
que ideais dessa chegada.
onde foram presas e
torturadas, e ocasionalmente
mortas, as vítimas da
ditadura militar, caso do
jornalista Vladimir Herzog.
Hoje parte da Pinacoteca,
abriga exposições e réplicas
dos cárceres.

MEMORIAL ÀS BANDEIRAS MUSEU DO IPIRANGA


Rua Brigadeiro Jordão, 149
E OBELISCO DE 1932
Avenida Pedro Álvares Cabral Localizado próximo do local onde dom
Os monumentos ao lado do Parque do Pedro I proclamou a Independência do
Ibirapuera relembram dois momentos Brasil, o Museu Paulista, da Universidade
cruciais da História da cidade. As já de São Paulo, foi todo restaurado em
citadas bandeiras e a Revolução 2022. A obra mais importante do seu
Constitucionalista de 1932, uma guerra acervo é o quadro Independência ou
civil declarada pelo estado contra o Morte, de Pedro Américo.
governo Vargas. No obelisco encontram-
-se os restos de 800 combatentes que
perderam a vida na malfadada revolução.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 17
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COMO FAZÍAMOS SEM

PROTETOR
SOLAR

EGÍPCIOS E GREGOS TINHAM CURIOSAS Mas a ligação entre pele bronzeada e beleza
MANEIRAS DE FILTRAR OS RAIOS DO SOL veio somente depois de 1930, especialmente na
POR FRED LINARDI França, país natal da estilista Coco Chanel, uma
grande entusiasta do bronzeamento. Dois anos

A
necessidade de se proteger do sol cresceu antes, surgiram nos Estados Unidos os primei-
tanto a ponto de esquecermos que o “vi- ros registros de protetores feitos em escala co-
lão” de agora já reinou imponente. Civili- mercial. A Austrália também se destacaria no
zações antigas, como a egípcia, a grega e a roma- mercado por lançar outra fórmula de filtro. No
na, cultuavam a estrela como uma divindade e entanto, o primeiro protetor realmente eficaz
os médicos recomendavam a exposição à luz foi desenvolvido pelo farmacêutico americano
solar para evitar doenças. Ainda assim, o cuida- Benjamin Greene, em 1944, após ele ver as quei-
do com a pele já existia, pois o sol em excesso, é maduras na pele dos soldados que voltavam da
claro, sempre fez mal. Os egípcios, por exemplo, Segunda Guerra. Era uma composição à base
tinham uma lista de ancestrais do protetor solar: de petróleo, de cor vermelha e um tanto viscosa.
os registros mais antigos sobre filtros, feitos de A marca foi batizada de Coppertone e tinha
mamona, são atribuídos a eles, em 7800 a.C. O essência de jasmim.
“kit egípcio” de cuidados com a pele incluía tam- Na década de 1960, quando os protetores
bém extrato de magnólia, para bloquear a inci- industrializados eram pouco conhecidos e a
dência dos raios, e jasmim e óleo de amêndoa exposição em excesso à luz solar não represen-
para hidratar a pele e o cabelo. Já na Grécia, em tava tanto perigo como hoje, os banhistas só
IMAGENS GETTY IMAGES

400 a.C., durante os Jogos Olímpicos, os atletas pensavam no assunto quando a pele começava
competiam nus em algumas modalidades e, para a arder. Para aliviar a dor, recorriam às formas
se proteger do sol, usavam uma mistura de óleo mais criativas: aqui no Brasil, muita gente che-
de oliva e areia sobre o corpo. gou a usar vinagre na pele.

18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Único no mundo, A p a rt a m e n to s d e2
o revolucionário 8 5 m2 a 11 1, 5 0 m
Es tú di os de gravaç ão
empreendimento e en sa io m us ic al
residencial fica em Pu bs te m át icos
Porto Belo (SC) M erce ar ia au to m at iz ad
a
e m ui to m ai s

SAIBA TUDO

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LISTA 1

MOVIMENTO
DOS SEM-NAÇÃO
VÁRIOS POVOS TENTAM O QUE JUDEUS CONSEGUIRAM: UM ESTADO
PARA CHAMAR DE SEU POR JEANNE CALLEGARI | IZABEL DUVA RAPOPORT
3

A
no após ano, por dois milênios, os judeus conta de que eram um povo e de que queriam
repetiam na Páscoa: “Ano que vem em Je- um Estado nacional quando viram os judeus
rusalém”. A frase simbolizava o desejo de conseguirem o deles”, escreveu Jaime Pinsky em
voltar a Israel, a Terra Prometida, de onde foram Questão Nacional e Marxismo. A ideia da ONU
expulsos pelos romanos em 70 d.C. O desejo era dividir a Palestina em um país judeu e um
virou realidade em 1948, quando a ONU decre- palestino, mas na época os árabes não aceitaram.
tou a criação do Estado de Israel. Como eles, outros povos lutam para ter um
O problema da criação de um Estado nacional território reconhecido, como os curdos, a maior
estava resolvido para os judeus. Mas para os pa- nação sem Estado do mundo. Também existem
lestinos, que habitavam a região desde o século aqueles que tiveram seu problema acentuado
12, ele apenas começava. Até a criação de Israel, após a Guerra Fria, como os albaneses de Koso-
os palestinos não reivindicavam para si uma vo e os chechenos. Na maioria dos casos, os
identidade nacional própria. “Eles só se deram conflitos continuam.

1 CATÓLICOS 3 SAARAUÍS 5 TURCOS-CIPRIOTAS


IRLANDESES tNJMQFTTPBT tNJMQFTTPBT
tNJMQFTTPBT tNBJTEFBOPTEFDPOGMJUP t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP
t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP Habitam o Saara Ocidental, abandona- Em 1974, os turcos invadiram a Ilha
O Eire, ou República da Irlanda, é do pela Espanha em 1975. Como tem de Chipre, dividindo-a entre os
independente e tem maioria católica. as maiores jazidas de fosfato do turcos-cipriotas do norte e os gregos-
O restante, Ulster, está sob domínio mundo, o Marrocos o reivindicou para -cipriotas do sul, que já a habitavam.
do Reino Unido, com protestantes e si. Desde 1991, a ONU tenta decidir Surgiu a República Turca de Chipre do
católicos (estes últimos, que hoje a situação, mas até agora não há Norte – que, no entanto, só é reconhe-
superam, buscam independência). um acordo. cida pela Turquia.

2 BASCOS 4 ALBANESES 6 PALESTINOS


t NJMIÜFTEFQFTTPBT DE KOSOVO t NJMIÜFTEFQFTTPBT
t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP t NJMIÍPEFQFTTPBT t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP
Com língua e cultura próprias, lutam t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP Habitantes dos territórios palestinos
pela independência da Espanha. Os albaneses separatistas da província reivindicam um Estado desde a criação
Em 1959, durante a ditadura franquista, de Kosovo, na Sérvia, foram massacra- de Israel. Em 2005, cerca de 8500
criaram a organização separatista dos pelas tropas do presidente colonos judeus foram retirados da Faixa
ETA, que perdeu força com o passar iugoslavo Slobodan Milosevic. Em de Gaza, mas os atentados e retalia-
dos anos e agora está em trégua 1999, a Otan interveio na região, sob ções contra eles nunca pararam e, hoje,
com o governo. administração provisória da ONU. o local é bombardeado por Israel.

20 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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2 8 9
4

7 10

11
5

12

7 CURDOS 9 CHECHENOS 11 CAXEMIRES


tNJMIÜFTEFQFTTPBT t NJMIÍPEFQFTTPBT tNJMIÜFTEFQFTTPBT
t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP
Estão presentes na Síria, no Irã, na República de maioria muçulmana, A Caxemira é dividida entre Índia
Armênia, no norte do Iraque e no oeste a Chechênia é oficialmente parte da e Paquistão. Muçulmanos da parte
da Turquia – que não pretendem ceder Rússia. Após o fim da União Soviética, indiana querem a independência ou
território. Iraque e Turquia apoiam os chechenos proclamaram indepen- a anexação ao Paquistão. As nações
partidos políticos rivais para enfraque- dência, que, embora não reconhecida, vivem em guerra na região pelo controle
cer o movimento de independência. gerou (e gera ainda) embates com do estado.
os russos.

8 ABECAZES 10 ARMÊNIOS 12 TÂMEIS


E OSSETIANOS tNJMQFTTPBT t NJMIÜFTEFQFTTPBT
tNJMQFTTPBT t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP
t.BJTEFBOPTEFDPOGMJUP Enclave armênio no Azerbaijão, De origem indiana e religião hindu,
Na Geórgia, dois povos brigam. o Nagorno-Karabakh é motivo de querem a independência do governo
A Abecásia e a Ossétia do Sul declara- conflito. Em 1991, a região declarou-se do Sri Lanka. Em 1983, teve início a luta
ram independência e tiveram o independente e foi bombardeada pelo armada contra os cingaleses. Em 2009,
reconhecimento da Federação Russa governo azeri. Os rebeldes continuam a o governo concedeu um cessar-fogo,
(contra o governo georgiano, que quer luta pela independência, só reconheci- para incentivar a saída do povo, mas
reintegrar os ossetianos do sul). da pela Armênia. poucos conseguiram escapar.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 21
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DÚVIDA CRUEL

QUANDO O PARA REORGANIZAR O


CALENDÁRIO JULIANO, O PAPA

ANO NOVO
GREGÓRIO XIII ANULOU DEZ DIAS
DE UM ANO POR IZABEL DUVA RAPOPORT

P
or determinação do ditador romano Júlio

VIROU DATA?
César, o Ano Novo foi comemorado pela
primeira vez em 45 a.C. Até então, o calen-
dário era baseado nas fases da Lua – e era comum
que as estações caíssem em épocas diferentes. Por
isso, César criou o calendário juliano.
Os anos passaram a ter 365 dias e um quarto
e, por causa dessa diferença, a cada quatro anos,
um dia era acrescentado a fevereiro. César tam-
bém estabeleceu os 12 meses, metade com 31 dias
e metade com 30 – exceto fevereiro, com 29.
Em sua homenagem, o mês até então cha-
mado Quintilis virou Julius (julho), em 44 a.C.
Seu sucessor, Augusto, também rebatizou o
mês Sextilis de Augustus (agosto) e lhe deu mais
um dia, retirado de fevereiro. Porém, o calen-
dário juliano tinha um erro. Um ano tem, na
verdade, 11 minutos e 14 segundos a menos
que o tempo calculado.
Com o passar dos anos, ao perceber que a
Semana Santa era celebrada cada vez mais tarde,
em meados do século 19, o papa Gregório XIII se
preocupou, receoso com a possibilidade de co-
memorar a data no verão do hemisfério norte.
O religioso, então, aconselhado por um grupo
liderado pelo astrônomo jesuíta Christopher Cla-
vius e o físico Aloyisius Lilius, tomou a decisão
de reorganizar o calendário. Até que, em outubro
de 1582, foi anulado dez dias e determinado que,
dos anos terminados em 00, só seriam bissextos
os divisíveis por 400. Era o início do calendário
gregoriano, também conhecido como cristão ou
ocidental e usado atualmente pela maioria dos
países, incluindo o Brasil.
IMAGENS GETTY IMAGES

22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Saiba tudo sobre o lado mais
sombrio das Copas do Mundo
A obra aborda os casos mais notáveis de interferência ditatorial
nas Copas do Mundo, desde a primeira, em 1930, até as mais
atuais. Entenda como governos totalitários podem interferir
em suas seleções e também nos resultados da competição.

s.
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ARTE

ARTISTA
VIAJANTE
UM RARO ÓLEO SOBRE TELA FEITO EM 1842 POR RUGENDAS
É DESCOBERTO EM COLEÇÃO PARTICULAR POR IZABEL DUVA RAPOPORT

A
protagonista desta obra é uma árvore de crises existenciais e financeiras do seu longo
grande porte – quem sabe uma Sibipiru- périplo americano. “Foram precisamente as
na, nativa do Brasil, que estende seus dificuldades econômicas que o induziram a
galhos por boa parte do lado esquerdo da pin- escolher Valparaíso como lugar de residência,
tura. "É ela que organiza o espaço da compo- por ser uma cidade com bastante movimentação
sição criando um primeiro plano na sombra. de estrangeiros. Isso abria a expectativa de en-
No plano médio, o claro de luz recai sobre um cargos e vendas da sua obra”, explica.
pequeno vale. O fundo, contornando o claro Nesta, em especial, o artista que, junto de
da mata, mostra uma fachada da vegetação Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Thomas En-
exposta aos raios solares, e o emaranhado de der (1793-1875), retratou o Brasil do início do
plantas é sugerido em tons de verde e azul es- século 19, mostra a floresta luxuriante, com
curos. Só na parte superior da tela é que se pássaros, flores, cobras e indígenas, detalhada
vislumbra um céu através dos vãos das folha- com precisão mesmo fora do país. “Ela eviden-
gens", descrevem o estudioso chileno Pablo cia o permanente fascínio do artista com a nos-
Diener e sua esposa, a professora brasileira sa floresta virgem”, pontua o editor Pedro Cor-
Maria de Fátima Costa, autores de Rugendas e rêa do Lago na apresentação do livro, cujas 612
o Brasil (Editora Capivara). páginas revelam mais de 400 desenhos.
A terceira edição do enorme e denso livro “Rugendas nunca se detém a desenhar um
acaba de ser lançada com a inclusão de novos belo edifício; só ocasionalmente observa o per-
desenhos à relação de obras que o alemão Jo- fil de alguma rua com as fachadas das casas”,
hann Moritz Rugendas (1802-1858) produziu observam Diener e Costa, ao considerar a rela-
sobre suas viagens pelo Brasil, entre 1821 e 1845 ção de obras completa do artista. “A natureza,
– algumas feitas aqui, outras criadas em memó- ao contrário, ganha outro tipo de valoração. As
ria. Entre as novidades, está um raro quadro montanhas merecem toda a atenção de seus
jamais publicado, Paisagem no Interior da Mata lápis em vistas amplas, mas também em estudos
Tropical no Brasil com Figuras, descoberto num que chegam, inclusive, a focalizar as caracterís-
acervo particular em São Paulo. ticas morfológicas das rochas. Igualmente, ve-
“Este óleo ocupa um lugar bastante singular rificamos que a vegetação não é incorporada à
na obra de Rugendas, sobretudo em função da paisagem como um simples acessório; as árvo-
IMAGEM DIVULGAÇÃO

datação em 1842”, ressalta a dupla especializada res figuram entre seus desenhos com o máximo
em História da Arte. À época, o alemão havia de detalhe”, finalizam, honrando estas protago-
se estabelecido na cidade portuária de Valpara- nistas que, assim como a obra, figuram entre as
íso, no Chile, e passava por uma das maiores raridades de hoje em dia.

24 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
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PERSONAGEM

SONHADOR E
PRAGMÁTICO
HÁ CEM ANOS MORRIA LENIN, O COMANDANTE
DA REVOLUÇÃO RUSSA E CRIADOR DE TODA
UMA CORRENTE DO MARXISMO QUE NÃO ABRIA
MÃO DE SONHAR – MAS SEMPRE COM OS PÉS
FINCADOS NO CHÃO POR MARIANA SGARIONI

26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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S
onhos, acredite neles.” Talvez essa frase
seja um breve resumo do principal lega-
do que Vladimir Ilitch Ulianov, apelida-
do de Lenin, tenha deixado para a hu-
manidade. Até porque foi muito mais que o líder
da Revolução Russa. Intelectual e pensador, ele
criou uma corrente teórica que influenciou os
partidos comunistas do mundo inteiro – o cha-
mado marxismo-leninismo. Seu carisma era
tamanho que, mesmo após sua morte, em 21 de
janeiro de 1924, o governo stalinista continuou
se apoiando em seu nome e sua autoridade.
O grande porta-voz dos oprimidos, na verda-
de, era um membro da elite. Sim, Lenin vinha de
uma família razoavelmente abastada. Seu pai era
um inspetor de escolas, simpatizante do czar
Alexandre II, enquanto sua mãe era filha de um
médico e proprietário de terras judeu. “O passa-
do nobre de Lenin foi ignorado por muito tempo
por se tratar de um incômodo para o regime
stalinista. Tanto que, na maior parte das biogra-
fias da época, dava-se maior ênfase a seu avô,
filho de um servo que trabalhou como alfaiate”,
afirmou o historiador Orlando Figes no livro A
Tragédia de um Povo. “Esse avô tinha origens
mongóis, como se vê nos traços de Lenin.”

CÁRCERE PRODUTIVO
Nascido em 1870 na cidade de Simbirsk, em uma
província do sudoeste da Rússia, Lenin entrou
relativamente tarde para a política. Aos 16 anos,
ainda era um garoto extremamente religioso,
que gostava de literatura e linguística. Como
escreve Figes: “Na juventude, Lenin orgulhava-
-se de ser filho de um nobre. Uma vez, descre-
veu-se na polícia como ‘Vladimir Ulianov, de
nobre família’. Após a morte do pai, toda a fa-
mília passou a viver confortavelmente dos ar-
rendamentos e da venda das terras de sua mãe”.
O gosto pelo ativismo político foi herdado
do irmão mais velho, Alexander Ulianov, que
se envolveu com grupos terroristas revolucio-
nários. Por ter sido cúmplice da tentativa de
assassinato do czar Alexandre III, acabou con-
denado à morte em 1887. Este evento foi um
marco na vida de Lenin, que decidiu começar
seus estudos de Direito no mesmo ano, na

AVENTURAS NA HISTÓRIA 27
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PERSONAGEM

cidade de Kazan. Aos 17 anos, já na universi- Inessa era uma charmosa intelectual, ótima
dade, conheceu integrantes de alguns grupos pianista, fluente em russo, francês e inglês e
revolucionários e tornou-se marxista. engajada na facção bolchevique francesa. “Ele
O Lenin estudante – assim como o escritor, jamais teria amado uma mulher de cujas opini-
o revolucionário e o futuro dirigente da URSS ões discordasse e que não fosse uma camarada
– era austero. Estudava e trabalhava obsessiva- em seu trabalho”, disse Nadia sobre a amante
mente em cima daquilo que considerava funda- do marido, após a morte de Lenin.
mental: entender o desenvolvimento capitalista O revolucionário tinha um gênio forte e
na Rússia como precondição necessária para o intempestivo. Era uma bomba-relógio ambu-
florescimento do socialismo. Para ele, somente lante: suas explosões de raiva tornaram-se len-
um país industrializado e com trabalho assala- dárias no Partido Comunista. “Pessoalmente,
riado teria condições de elevar a consciência do não tinha qualquer ambição por matar, muti-
povo e derrubar o governo opressor czarista. lar ou testemunhar qualquer barbaridade. Por
Essas ideias estão no livro O Desenvolvimento outro lado, sentia um prazer cruel em reco-
do Capitalismo na Rússia, considerado um clás- mendar tal violência”, afirmou Service. O his-
sico da economia. A obra foi escrita na prisão, toriador ainda observou que Lenin raramente
assim como a maior parte de seu pensamento sorria e reprimia a diversão. Detestava o cine-
(ora produzido atrás das grades, ora no exílio). ma e chegou a proibir seus companheiros de
Lenin foi mandado inúmeras vezes para a Sibé- “gastar energia em coisa tão inútil”. Era um
ria antes da revolução homem de hábitos
de 1917, pois era per-
seguido pelo regime.
COM HÁBITOS simples, embora ti-
vesse uma emprega-
Na maioria delas, aca- SIMPLES, LENIN TINHA da. Dormia em um
bava fugindo para a
Europa. Durante um
HORROR À IDEIA DE quarto reservado a
serviçais no Kremlin
desses ex í lios, em SE TORNAR UM MITO e negava-se a queimar
uma região às mar- madeira para se aque-
gens do Rio Lena, ganhou o apelido que ficaria cer no frio. Tinha horror à ideia de se transfor-
famoso – apenas um dos mais de 160 codinomes mar em mito – não permitia sequer que um
que o revolucionário acumulou durante a vida. retrato seu fosse colocado na parede.
A saúde de Lenin, ao contrário de sua perso-
BOMBA-RELÓGIO AMBULANTE nalidade, era muito frágil. Ele tinha úlcera, en-
Além do apelido “Lenin” e da oportunidade de xaqueca, erisipela e insônia crônica. Nos últimos
pensar à vontade sobre a revolução, o exílio dois anos de vida, sofreu vários derrames, que
ainda rendeu ao revolucionário um casamento: o incapacitaram de falar e escrever. A causa
em uma de suas estadas na Sibéria, ele conheceu oficial de sua morte, há um século, foi arterios-
a professora e dirigente operária Nadia Krup- clerose cerebral. Mas estudos posteriores apon-
skaia, sua companheira por toda a vida. “Seu tam que ele pode ter morrido de sífilis – um fato
casamento com Nadia nunca implicou senti- supostamente escamoteado por Stálin, cuja
mentos românticos profundos da parte dele, ou intenção era torná-lo uma lenda. Lenin, prova-
mesmo dela, e deve ter havido ocasiões em que velmente, não se incomodaria com tal revelação.
outras mulheres bolcheviques devem tê-lo atra- Afinal, ele odiava mitos. Gostava de ser consi-
ído fortemente”, escreveu o historiador britâni- derado um homem como outro qualquer, sim-
IMAGENS GETTY IMAGES

co Robert Service. Tudo leva a crer que Lenin plesmente humano, que tinha virtudes, fraque-
gostava – e muito – de mulheres. Especialmen- zas e sonhos. Em suas próprias palavras: “É
te de Inessa Armand, a amante que manteve preciso sonhar, mas com a condição de observar
durante os anos que passou no exílio em Paris. atentamente a vida real”.

28 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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À esquerda: Lenin em seu escritório no Kremlin, em Moscou, Rússia, 16 de outubro de 1918.


Abaixo, da esquerda para a direita: o revolucionário com peruca e com bigode e cavanhaque
raspados para escapar da polícia durante seu exílio na Finlândia. Ao lado, às vésperas de sua
morte, já em 1924, impossibilitado de falar e escrever.

LÍDER ETERNO o sangue, foram drenados, enquanto uma


Avesso a adorações e cultos de qualquer solução capaz de alterar a estrutura das
espécie, Lenin desejava ser enterrado em um proteínas e eliminar bactérias provavelmente
cemitério modesto de Petrogrado, ao lado da foi injetada nas artérias. Sabe-se também que
mãe. No entanto, quando morreu vítima de a múmia de Lenin recebe banhos químicos
uma sequência de derrames, em 21 de janeiro anuais, com produtos à base de glicerol e
de 1924, seus herdeiros no comando da acetato de potássio, que evitam a decomposi-
recém-criada União Soviética tiveram uma ção do corpo e mantêm a elasticidade da pele.
ideia muito mais original. Múmias estavam na As mãos e o rosto de Lenin passam por
moda. Um ano antes, a de Tutancâmon havia retoques diários, que garantem uma aparência
sido encontrada no Egito pelo britânico mais “viva” a essas partes do corpo. Já as
Howard Carter, naquela que seria considerada roupas e vestimentas, 100% esterilizadas,
a maior descoberta arqueológica de todos os são trocadas periodicamente.
tempos. “Ora”, devem ter pensado os comu- Soldados vigiam a movimentação dentro e
nistas, “por que não eternizar nosso herói, tal fora do mausoléu 24 horas por dia. O controle
qual um faraó?”. Dito e feito. Lenin acabou sobre os visitantes é rígido. Segundo turistas
tendo seu corpo embalsamado e exposto brasileiros, ninguém pode parar diante do
permanentemente à visitação pública, em um caixão nem tirar fotos. “Um cordão de
O corpo de Lenin isolamento mantém as pessoas a cerca de 1,5
embalsamado recebe mausoléu de madeira construído só para ele
banhos químicos todos na Praça Vermelha, em Moscou (foto ao lado). metro de Lenin”, contou a publicitária Maria
os anos para não se Cardoso, que esteve no local por duas vezes.
decompor. O processo Hoje, cem anos depois, sua múmia é a maior
de mumificação é atração turística da cidade e umas das Para o administrador de empresas João
segredo de Estado Souza, que também visitou o mausoléu, o que
principais de toda a Rússia.
O processo detalhado de mumificação é mais impressiona é o estado de conservação
considerado segredo de Estado, mas sabe-se do corpo. “Nem parece real, de tão perfeito
que algumas das técnicas empregadas podem que está.” Os cientistas russos responsáveis
ter sido as mesmas utilizadas em outras pela manutenção da múmia garantem: se
múmias modernas, como a do líder vietnamita depender apenas de seus cuidados, ela
Ho Chi Minh e a da ex-primeira-dama argenti- continuará exatamente assim – perfeita –
na Evita Perón. Os fluidos corporais, entre eles por pelo menos mais um século.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
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30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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NO SÉCULO 19, A VISÃO FILOSÓFICA, RELIGIOSA E CIENTÍFICA


DO FRANCÊS ALLAN KARDEC SE TRANSFORMARIA EM UMA RELIGIÃO
TIPICAMENTE BRASILEIRA, DIVULGADA POR INTELECTUAIS E DOUTORES
ATÉ GANHAR AS MASSAS COM CHICO XAVIER POR MARCUS LOPES

AVENTURAS NA HISTÓRIA 31
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CAPA

or volta das 20h30 de 17 de se- rapidamente passou a uma campanha de con-


tembro de 1865, em Salvador, quista de novos adeptos. As obras de Kardec
capital da Bahia, algumas pesso- eram discutidas com paixão. E Teles de Menezes
as reunidas pelo jornalista baiano enfrentou sem temor as iras e perseguições que,
Luiz Olímpio Teles de Menezes (1825-1893) desde o início, atingiram a nova doutrina”, ex-
deram início a uma reunião povoada de muitas plica a escritora e historiadora Mary Del Priore,
discussões e reflexões sobre a vida pós-morte. autora do livro Do Outro Lado (Editora Planeta),
Naquela mesma noite, o grupo, que também sobre o desenvolvimento e trajetória do espiri-
evocava algum tipo de comunicação com os tismo no Brasil e no mundo.
mortos, recebeu uma carta mediúnica de um Em julho de 1869, Menezes fundou na capital
espírito que se apresentou como “Anjo de Deus”. baiana o jornal O Écho D’Além Tumulo. Além
O texto psicografado, recheado de mensagens de porta-voz do espiritismo no Brasil e respon-
de esperança e fé, sensibilizou os participantes sável por disseminação da doutrina, o veículo
naquela que é considerada a primeira sessão também era um meio de resposta aos ataques
espírita e início oficial do espiritismo no Brasil. da Igreja Católica, incomodada com a rápida
O encontro daquela noite na capital baiana tam- ascensão do espiritismo entre os brasileiros. Em
bém celebrou o começo das atividades do Gru- 1867, uma Carta Pastoral assinada pelo arcebis-
po Familiar do Espiritismo, primeiro centro po da Bahia, dom Manuel Joaquim da Silveira,
espírita brasileiro condenava severa-
destinado à forma-
ção e disseminação MENEZES ENFRENTOU A mente a prática e as
ideias sobre reencar-
da doutrina no país. IRA DA IGREJA CATÓLICA nação e comunica-
“O dia 17 de Se-
tembro de 1865”, re- CONTRA A NOVA ção entre os vivos e
os mortos. Em res-
gistrou Teles de Me- DOUTRINA USANDO UM posta aos ataques

TOM CONCILIADOR
nezes, “marcará uma feitos pela mão pesa-
época feliz em nossa da da Igreja, Teles de
vida, e o deverá tam- Menezes escreveu
bém ser nos fastos (anais) do Espiritismo no Bra- uma carta de 82 páginas ao bispo, em defesa das
sil.” Professor, jornalista e funcionário público, “doutrinas do espiritismo”.
Menezes era considerado uma pessoa de grande
cultura e muito respeitado na sociedade sotero- POUCAS DIFERENÇAS
politana, sendo um dos fundadores do Conser- O tom adotado por Menezes, porém, foi ameno
vatório Dramático da Bahia, do qual eram inte- e conciliador, destacando que ele próprio se as-
grantes personalidades como Rui Barbosa. sumia católico e que “o espiritismo e o catolicis-
Fluente em várias línguas, como inglês, fran- mo são a mesma Igreja de Nosso Senhor Jesus
cês, castelhano e latim, Menezes era filiado a Cristo, somente estão mudados os tempos e as
sociedades espíritas europeias e chegou a se palavras”. Além disso, para os fundadores, o
corresponder com mestres como Allan Kardec, espiritismo era uma ciência – daí o fato de se
que menos de dez anos antes, em 1857, havia colocar desde o início como uma doutrina com
publicado na França o seu Livro dos Espíritos, caráter científico, religioso e filosófico – e que
obra que consolidou a doutrina na Europa e a as divergências sobre purgatório e inferno eram
irradiou para o mundo nos anos seguintes. O apenas de localização: em algum lugar do além
jornalista baiano também traduziu o primeiro para os católicos e aqui na Terra para os espíritas.
livro espírita no Brasil, Filosofia Espiritualista, É justamente a ausência desse embate reli-
que vendeu mil exemplares em apenas um mês. gioso direto, como ocorre entre outras crenças,
“Cercado da nata da sociedade baiana, o grupo um dos motivos para a ascensão e aceitação

32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Na década de 1860, Luiz Olímpio Teles de Menezes


(foto), jornalista soteropolitano responsável por
trazer o espiritismo ao Brasil, se correspondia com
Allan Kardec, autor francês do Livro dos Espíritos

AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
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do espiritismo na sociedade brasileira, a partir de clássicos como Os Miseráveis e O Corcunda


da segunda metade do século 19. A hostilidade de Notre Dame é considerado um dos precurso-
católica foi vigorosa no começo, mas havia tam- res do espiritismo na França e foi citado pelo
bém aqueles que entendiam a proposta como próprio Kardec em algumas ocasiões. “As ideias
ecletismo espiritual. Frequentavam-se as missas do iluminismo francês motivavam muito a vida
e procissões, assim como as lojas maçônicas, cotidiana à época e encontravam ressonância
reuniões positivistas e mediúnicas, sem neces- no espiritismo”, completa Marta.
sidade de renúncia da religião oficial. Havia também as mudanças naturais na so-
“A adoção dessas teorias não implicava em ciedade, que começava a se modernizar. Já exis-
rompimento com o catolicismo”, frisa Del Prio- tia naquele período, final do século 19, uma
re. O interesse em escrever um livro sobre o sociedade burguesa e de consumo. As famílias
tema nasceu do contato com diversas entidades estavam se transformando e o processo de ur-
ligadas ao espiritismo. “Quando escrevi sobre a banização se acelerava. “Esse desejo de moder-
Família Imperial, era recorrentemente procu- nizar o Brasil, participar da corrida pela eletri-
rada por autoridades espíritas que perguntavam cidade, telegrafia e consumo cria uma nova
se eu ouvia as vozes dos membros da Família mentalidade nessa burguesia, que vai adotar o
enquanto escrevia. Obviamente, expliquei que espiritismo como prática”, diz Del Piore, que
os livros eram apenas resultado de pesquisas também destaca o papel da imigração nesse
históricas, mas o processo: “Nas déca-
tema me cativou”,
explica a historiado- ADEPTOS ESTAVAM das de 60 e 70 (do
século 19) o Brasil já
ra, autora de mais de SINTONIZADOS COM OS estava bastante co-
50 livros e fonte para
diversos acadêmicos. IDEIAS DA REVOLUÇÃO nectado com o resto
do mundo e os na-
“Ao pesquisar o espi- FRANCESA E O FIM DA vios e vapores tra-

ESCRAVIDÃO NO BRASIL
ritismo, estudamos ziam gente de toda
parte importante da parte, principalmen-
história social do te da Europa. Rece-
Brasil”, diz Mary. bíamos também muitos jornais estrangeiros que
Outro fator que contribuiu para o fortaleci- já falavam desse movimento espiritualista”.
mento do espiritismo no país, sobretudo nas
camadas mais altas da sociedade brasileira, era IDEAIS DA REVOLUÇÃO FRANCESA
a prática comum da importação e dissemina- Os adeptos do espiritismo também estavam sin-
ção das ideias, costumes e hábitos europeus, tonizados com os ideais de Liberdade, Igualdade
principalmente entre a segunda metade do e Fraternidade, que motivaram a Revolução Fran-
século 19 e as primeiras décadas do século 20. cesa, e defendidos por aqueles que eram favorá-
Em especial, a influência da cultura francesa, veis à instalação da República no Brasil e liber-
em que o espiritismo se consolidou a partir dos tação dos escravizados. Não à toa, a doutrina
estudos e da dedicação do pedagogo Hippolyte encontrou forte ressonância nas faculdades de
Léon Denizard Rivail, que adotaria o pseudô- Direito, de onde saía grande parte da elite cultu-
nimo de Allan Kardec. ral, política e social da sociedade brasileira.
“Os adeptos do espiritismo eram pessoas com “Os primeiros espíritas brasileiros tinham
bom nível cultural e social. Esse fator foi pre- formação acadêmica. Muitos, no início, eram
ponderante, pois eles seguiam as ideias difun- bacharéis em Direito”, diz o historiador Paulo
didas por intelectuais franceses, como Victor Rezzutti, autor de diversos livros que abordam
Hugo”, explica Marta Antunes, vice-presidente a História do Brasil, como Independência – A
da Federação Espírita Brasileira (FEB). O autor História Não Contada (editora Leya).

34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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O espiritismo se consolidou na França e no


mundo a partir dos estudos e da dedicação do
pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (foto),
que adotaria o pseudônimo de Allan Kardec

AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
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CAPA

Na origem da doutrina espírita, havia, segun- tes, inclusive na Corte. Destaque para o profes-
do Rezzutti, uma busca pela análise racional e sor Manuel José de Araújo Porto-Alegre, o barão
científica. “Havia o fenômeno, por exemplo, das de Santo Ângelo, amigo do imperador e que
mesas girantes (que se moviam sozinhas), e viveu muitos anos na Europa, também a serviço
buscava-se compreender esses e outros eventos do governo imperial, do qual era entusiasta.
semelhantes. A doutrina católica e os dogmas Muito próximo do espiritismo e da homeo-
não bastavam para explicar esses acontecimen- patia, Porto-Alegre, em determinada ocasião,
tos” diz o historiador. por volta de 1857, alertou o imperador acerca
Pessoas mais instruídas e com uma visão de uma mensagem que havia recebido em uma
mais racional acabaram encontrando na dou- mesa espírita na Prússia, onde exercia um car-
trina espírita vinda da França um caminho para go diplomático. Nela, consta que, caso dom
sanar as suas dúvidas. “Esse contato entre as Pedro II não fizesse nada para abolir a escra-
ideias europeias e os brasileiros se dava pela vidão, o Império brasileiro iria cair. “Embora
intelectualidade. Por isso, as ideias chegaram o imperador fosse mais aberto do que a prin-
primeiro entre os mais instruídos, nos casos os cesa Isabel para esses assuntos, ele escuta com
bacharéis de Direito, engenheiros e médicos”, atenção a tudo isso, mas não toma nenhuma
completa Rezzutti. atitude”, ressalta Del Priore, lembrando que a
Em uma época que a Igreja Católica não dava abolição da escravatura só viria em 1888.
abertura a outras re- Outro abolicio-
ligiões e exercia forte
influência nas deci- HAVIA UMA BUSCA nista de peso era o
médico, político e
sões do governo, Re- PELA ANÁLISE filantropo cearense
zzutti conta que aca-
dêmicos de Direito RACIONAL E CIENTÍFICA Adolfo Bezerra de
Menezes, que se tor-
de São Paulo e Recife PARA COMPREENDER naria um dos prin-

FENÔMENOS ESTRANHOS
se juntaram à causa cipais nomes do es-
do espiritismo no piritismo brasileiro.
Brasil, chegando a Pa r a e v it a r u m a
peticionar junto a dom Pedro II, em setembro ruptura total e abrupta do sistema, Bezerra de
de 1881, para que o movimento espírita brasi- Menezes era adepto da libertação gradual dos
leiro não fosse perseguido pela polícia. escravizados e posterior apoio do governo aos
“O imperador deu prosseguimento à solici- recém-libertos, para garantir a inserção dos
tação e a perseguição foi cessada”, diz o histo- ex-cativos na sociedade. Aos que temiam o
riador. Ele lembra que até os dias de hoje os colapso da economia com o fim da escravidão,
seguidores da doutrina espírita, segundo dados o médico citava o exemplo do Ceará, onde a
do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e seca de 1845 esvaziou as senzalas e obrigou os
Estatística, detêm os mais expressivos indica- fazendeiros a contratarem mão de obra paga e
dores de educação e renda. Em 2010, data da livre. Apesar disso, a economia cearense não
última análise nesse quesito, os espíritas tinham sofreu qualquer dano.
a maior proporção de pessoas com nível superior
(31,5%) e os menores índices de brasileiros com CONTRADIÇÕES DE UM ESTADO LAICO
ensino fundamental incompleto (15%). Bezerra de Menezes, conhecido por suas obras
O movimento abolicionista contou com gran- de caridade em prol dos necessitados e conhe-
de participação e influência dos espíritas. Jor- cido como “médico dos pobres”, exerceu papel
nais como o O Écho D’Além Tumulo abraçaram importante nos primeiros anos da República,
a causa de libertação dos escravos, que também período em que houve recrudescimento da ani-
contou com o engajamento de espíritas influen- mosidade ao espiritismo. Após 1889, os adep-

36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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OITO PIONEIROS
PERSONAGENS IMPORTANTES PARA O NASCIMENTO DO ESPIRITISMO BRASILEIRO

Jornalista, professor primário e funcionário da Biblioteca Pública da Bahia, organizou em Salvador a primeira sessão
espírita do país, em Salvador. Também fundou o primeiro centro espírita brasileiro, o Grupo Familiar do Espiritismo.

Poeta e educador francês, conheceu o espiritismo junto com outros intelectuais que liam
e debatiam as notícias vindas da França, incluindo o jornalista e escritor Machado de Assis.
Em 1860, publicou um livro de tom espírita, Les Temps Sont Arrivés.

Liderança espírita no Rio de Janeiro, o médico foi redator e diretor da Revista Espírita, o segundo periódico de divulgação
da religião no Brasil (o primeiro, Écho d’Alêm-Tumulo, foi fundado em 1869, em Salvador, por Teles de Menezes).

Ao lado do advogado e poeta Francisco Bittencourt Sampaio, o médico e político carioca participou da fundação, em
1873, da Sociedade de Estudos Espiríticos – Grupo Confúcio, o primeiro centro espírita da capital, que existiu até 1879.

Nascido em Portugal e morando no Rio de Janeiro, o fotógrafo fundou a Federação Espírita do Brasil (FEB),
em 1º de janeiro de 1884. Também fundou, um ano antes, uma publicação de divulgação da nova fé.

Advogado de São Paulo, aderiu ao espiritismo em 1878, quando sua esposa esteve à beira da morte.
Líder da Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade, defendeu a abolição
da escravatura e publicou um livro de referência, Estudos Evangélicos.

O jornalista e professor italiano organizou o 1º Congresso Espírita Brasileiro, em 1881,


no Rio de Janeiro. No mesmo ano, criou o Centro da União Espírita do Brasil, uma primeira
tentativa de organizar uma federação. Traduziu várias obras de Allan Kardec.

Cearense com carreira política bem-sucedida como vereador e deputado, o médico, militar e escritor impediu
que a Federação Espírita do Brasil entrasse em colapso, em 1895, ao assumir a presidência pela segunda vez.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
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CAPA

tos de Kardec ganharam novos inimigos. Não maiores e mais respeitados nomes da história
apenas a Igreja Católica continuaria a persegui- da doutrina no Brasil e no mundo. Mineiro de
-los, mas o novo governo decidiu incluir no Pedro Leopoldo, desde a infância Chico Xavier
Código Penal da jovem República a condenação afirmava conversar e receber mensagens de seus
das práticas espíritas. amigos e guias espirituais, sendo o principal
Os positivistas, promotores do movimento deles um espírito chamado Emmanuel.
republicano, não acreditavam em teses espiri- Durante sua vida, Chico Xavier escreveu mais
tuais e muito menos na pluralidade de vidas do de 90 livros, que venderam milhões de exempla-
espírito. “Ao longo de mais de cinco anos, figu- res. Jamais aceitou receber direitos autorais pelas
ras importantes do movimento espírita, como obras, pois dizia que eram ditadas por autores
Bezerra de Menezes ou o senador Pinheiro Gue- desencarnados. Sua vida pública foi marcada pela
des, encaminharam ao presidente Deodoro da prática da filantropia e ajuda aos pobres, um dos
Fonseca uma enxurrada de cartas solicitando preceitos básicos do espiritismo. Para os milhões
que se retirasse do Código a passagem que pe- de seguidores da doutrina, um dos trabalhos mais
nalizava a doutrina”, registra Del Priore. preciosos de Chico Xavier foram os milhares de
O governo se esquivava e procurava amenizar cartas psicografadas de pessoas desencarnadas e
a situação dizendo que a lei só se aplicava ao que entregues aos parentes que procuravam o mé-
chamava de “baixo espiritismo”, cujo alvo prin- dium em seu centro espírita, na cidade de Ube-
cipal eram os afro- raba, no Triângulo
descendentes prati-
cantes de religiões MINEIRO, DESDE A Mineiro.
Diante de tudo
como o candomblé, INFÂNCIA CHICO XAVIER isso, Chico Xavier é
cartomantes e viden-
tes que se espalha- AFIRMAVA CONVERSAR considerado um dos
maiores dissemina-
vam pelas cidades E RECEBER MENSAGENS dores, senão o maior,

DE GUIAS ESPIRITUAIS
brasileiras, em espe- do espiritismo no
cial a capital, o Rio Brasil. Em 2010, o
de Janeiro. De 1891 a IBGE apontava que o
1900, conforme registrado no livro Do Outro país possuía 3,8 milhões de pessoas que se de-
Lado, cerca de trinta pessoas foram processadas claravam espíritas. A estimativa da Federação
com base nos artigos 156, 157 e 158 do Código Espírita Brasileira (FEB) é que esse número atu-
Penal, sob acusações em sua maioria de curan- almente seja superior a 4 milhões, mas o núme-
deirismo, cartomancia e espiritismo. ro de simpatizantes pode ser bem maior. A
Segundo Del Priore, a situação revela as con- doutrina também é disseminada por meio dos
tradições da Primeira República. Apesar da cerca de 15 mil centros espíritas cadastrados
garantia do novo governo em adotar o estado pelas federações espíritas estaduais.
laico, o próprio Código Penal promovia a per- Apesar de apresentar saúde frágil desde a
seguição às pessoas simplesmente por professa- juventude, Chico costumava dizer, em diversas
rem a sua fé. A situação desconfortável perdurou ocasiões ao longo da vida, para não se preocu-
até a reforma do Código Penal, em 1940, duran- parem com o seu estado físico, pois ele só mor-
te o governo Vargas. reria – ou desencarnaria, como preferem os
espíritas – no dia em que todos os brasileiros
CHICO XAVIER: O MÉDIUM BRASILEIRO estivessem muito felizes. Chico Xavier faleceu,
A partir da segunda década do século 20, o es- aos 92 anos, no dia 30 de junho de 2002, por
piritismo no Brasil foi muito marcado pelas volta das 19h30, na mesma data em que a Se-
atividades e trabalhos realizados pelo médium leção Brasileira conquistou o pentacampeona-
Francisco Cândido Xavier (1910-2002), um dos to mundial de futebol.

38 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Chico Xavier escreveu mais de 90 livros, que


venderam milhões de exemplares. Jamais aceitou
receber direitos autorais pelas obras, pois dizia
que eram ditadas por autores desencarnados

AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
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CAPA

ORIGEM
NUMA VILA
AMERICANA
Apesar de a França ter sido muito
importante para a disseminação
do espiritismo no mundo, foi nos
Estados Unidos que tudo começou.
Na primavera de 1848, duas adoles-
centes norte-americanas, sem saber,
foram responsáveis pelas primeiras
comunicações registradas com
os espíritos e que deram início Além de livros,
DIVULGAÇÃO

filmes retratam
à doutrina. a doutrina, como
Nosso Lar 2
O caso aconteceu no pequeno
condado de Hydesville, a oeste do
estado de Nova York. As jovens nenhuma explicação, se levantavam Não tardou para a doutrina cruzar
Maggie e Kate Fox, filhas de um casal do chão após saraus ou outros novamente o oceano, desta vez em
metodista, resolveram tentar desven- eventos e ainda respondiam pergun- direção ao Brasil. Segundo a vice-
dar os barulhos estranhos que a tas com batidas no chão. Na França, -presidente da Federação Espírita
família ouvia na cabana onde morava. o episódio chamou a atenção do Brasileira (FEB), Marta Antunes, o
Por meio de pancadas na parede da pedagogo Hippolyte Léon Denizard espiritismo chegou por aqui no século
cabana, elas criaram uma espécie de Rivail, um filho de juristas que passou 19 por intermédio de brasileiros que
alfabeto cujas letras variavam de a estudar os fenômenos de maneira estudavam em Paris. Em suas
acordo com o número de batidas. meticulosa e profunda, dispensando, correspondências a familiares e
Assim, as garotas Fox decodificaram segundo ele, os casos sem evidência amigos, relatavam os fenômenos de
o que teria sido a primeira mensagem ou comprovadamente falsos. efeitos físicos intensos, como os das
psicografada. Os resultados das análises e mesas girantes, ruídos, pancadas,
“Caros amigos, deveis proclamar estudos de Rivail, que duraram cerca deslocamento de objetos, vozes que
ao mundo estas verdades. É a aurora de cinco anos, deram origem à sua surgiam no ar, e que eram amplamen-
de uma nova era; e não deveis tentar primeira grande obra: O Livro dos te divulgados pela imprensa.
ocultá-la por mais tempo. Quando Espíritos, onde adotou o pseudônimo “Intelectuais e políticos, inclusive o
houverdes cumprido o vosso dever, de Allan Kardec. Publicado pela imperador dom Pedro II; José
Deus vos protegerá e os bons primeira vez em 1857, o livro contém Bonifácio, o Patriarca da Independên-
espíritos velarão por vós”, dizia a os princípios da doutrina, enviados e cia; e abolicionistas se interessaram
mensagem recebida pelas irmãs. O editados por ordem de espíritos pelos estudos e fenômenos psíquicos
espírito responsável pela “telegrafia superiores, segundo Kardec. que aconteciam na Europa e nos
espiritual” seria de uma pessoa morta Nos anos seguintes, ele lançou Estados Unidos. Mais tarde, esse
pelos antigos donos da cabana e outras obras que fariam igual sucesso grupo revelou interesse pelo estudo
enterrada no porão da cabana. de público, como O Livro dos do espiritismo, a partir da publicação
O caso ganhou fama e cruzou o Médiuns, O Evangelho Segundo o das obras espíritas por Allan Kardec”,
Oceano Atlântico, onde outro Espiritismo, O Céu e o Inferno e A explica Marta, da FEB.
fenômeno chamava a atenção das Gênese. Todos explicam o espiritismo Segundo ela, os primórdios do
pessoas: as mesas girantes ou como uma doutrina que procura aliar espiritismo brasileiro remontam à
volantes. Trata-se de móveis que, sem religião, ciência e filosofia. introdução da homeopatia por dois

40 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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homeopatas, no Rio de Janeiro, em


Como o Nosso Lar 2 – Os desta vez, veremos um pedacinho
1840: o francês Benoit Jules Mure e o
Mensageiros se relaciona com dele; assim como a relação
português João Vicente Martins.
a primeira versão do filme? espiritual entre a cidade e a terra
Além de receitarem remédios
Optamos por continuar a adapta- e tantas outras coisas que estão
homeopáticos, eles também faziam a ção dos livros da série do Chico no livro. Costumo dizer que esta é
transmissão de fluidos vitais pela Xavier, Vida no Mundo Espiritual. uma experiência cinematográfica
imposição de mãos – prática que o Das 536 obras psicografadas por e espiritual, qualquer que seja
espiritismo chama de passe. Por suas ele, 16 fazem parte da série. O esse espiritual.
características de tratamento e cura livro que deu origem ao primeiro
por meios naturais, a homeopatia filme é o Nosso Lar e o segundo é Como você vê a relação do
sempre exerceu certa influência no Os Mensageiros. Mantemos o povo brasileiro com o espiri-
espiritismo, e vice-versa. nome “Nosso Lar 2” para um tismo e também a adesão de
Além dos livros, diversos filmes melhor entendimento, inclusive de conteúdos audiovisuais que
que se trata de uma série que abordam esse tema?
retratam e explicam a doutrina espírita
vem pela frente. Os Mensageiros Eu não faço filmes espíritas, mas
com base em obras de médiuns como
é uma espécie de continuidade que tenham conteúdos correla-
Chico Xavier. Um dos maiores
da temática, mas, em termos de cionados com a doutrina espírita.
sucessos nas telas é Nosso Lar, de história, é muito mais amplo que É bem sutil, mas, ao mesmo
Wagner de Assis, lançado em 2010 e o primeiro, além de estar rechea- tempo, mostra a seriedade com
que conta a história do médico André do de efeitos visuais. que a gente trata as duas
Luiz, falecido no Rio de Janeiro no questões. Acho que, de alguma
começo do século 20. Após a morte, o Quando vocês fizeram o forma, temos um conteúdo
próprio médico relata sua experiência primeiro filme, já havia algum genuinamente brasileiro descrito
em uma colônia onde vivem os plano para este? na literatura espírita e vivenciado
espíritos. O roteiro foi elaborado com Sim, eu queria fazer um filme por nesse caldo cultural e ecumênico
base na obra psicografada por Chico ano. Quando tive a oportunidade que é o Brasil, um país muito
de obter os direitos autorais junto interessado tanto no espiritismo
Xavier, nos anos 1940.
à Federação Espírita Brasileira, quanto na espiritualidade em
O filme, que teve grande sucesso
pensei contar estas histórias não geral. Isso nos informa que falar
de público, ganhou uma segunda
por serem espíritas e falarem do sobre fé, sobre virtudes univer-
versão, produzida pelo mesmo diretor: espiritismo, mas também por sais, é importante, ainda mais nos
Nosso Lar 2 – Os Mensageiros, cuja serem boas e humanas. Elas se dias atuais.
estreia está programada para o dia 25 relacionam com a gente, com o
deste mês. “A expectativa tem sido público, independentemente de Como surgiu em você o
muito boa. O filme transmite informa- qualquer religião. desejo de fazer essas produ-
ções de alguns aspectos da vida no ções baseadas nessa temáti-
plano espiritual, inclusive uso de Como os efeitos visuais foram ca e na obra do Chico Xavier?
certas tecnologias ainda desconheci- feitos nesta segunda versão, Eu frequento o Centro Espírita
das. Mas também fala sobre o recheada deles? desde criança. Então eu estudei
Criamos uma linguagem, uma e aprendi a olhar o mundo pela
atendimento a espíritos que sofrem
imagética, nunca filmada, nem ótica do conhecimento espírita.
porque não souberem utilizar
mesmo na primeira versão. Isso nos guia, pelo interesse pes-
adequadamente o livre arbítrio; como
Lembro-me de que eu queria ver soal, mas, ao mesmo tempo,
esses espíritos são acolhidos e no primeiro filme uma cidade facilita para um entendimento do
encaminhados às futuras reencarna- espiritual à noite, mas não tive quanto é bacana esta dramatur-
ções”, diz Marta, da FEB. Confira, a essa oportunidade. Desta vez a gia e conteúdo, para o Brasil e
seguir, parte da entrevista dada pelo gente tem. Também não pude ver para o mundo.
diretor dos filmes, Wagner de Assis, à como era o tal Bosque das
Isabelly de Lima, repórter de AVEN- Águas, tão descrito no livro, mas, * POR ISABELLY DE LIMA
TURAS NA HISTÓRIA digital.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
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CIVILIZAÇÕES

42 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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R
uas repletas de pessoas, a maioria suja e

NO AUGE
ROMA malvestida. Casas minúsculas amonto-
am-se pelas ladeiras. Crianças e mendi-
gos esmolam por toda parte. Muitos pobres
dormem ao relento, em frente a comércios,
mercados e fontes. Nos muros, propagandas
políticas e declarações de amor. A sujeira con-
trasta com modernos e belíssimos prédios de
mármore, endereço de instituições públicas.
Nas regiões mais nobres da cidade, construções
majestosas e imponentes abrigam as famílias
ricas e seus escravizados. Dentro dos palacetes,
não raro as festas, com fartura de comida e
bebida, evoluem para uma orgia.
São Paulo, Nova Délhi, Cidade do México?
Nada disso. Falamos de Roma, por volta do
século 2, a capital do império mais importante
e poderoso que o mundo já conheceu. Em seu
ápice, ela era bem semelhante às metrópoles
atuais (mas sem a poluição no ar, claro). Aliás,
Roma era ainda mais apinhada que os exemplos
anteriores: no ano 200 alcançou 1 milhão de
habitantes e sua densidade demográfica atingiu
66 mil pessoas por km 2 (hoje, a cidade mais
apertada do mundo é Mumbai, na Índia, com
cerca de 29 mil pessoas por km 2).
Mesmo superpovoada e tumultuada, Roma
nunca sofreu de baixa autoestima. Prova disso
era o costume de começar as proclamações ofi-
EXUBERÂNCIA ciais com a expressão latina Urbi et Orbi, ou seja,
“à cidade e ao mundo”. Era como se aquele for-
E RIQUEZA, migueiro humano, sozinho, tivesse tanto peso
MAS TAMBÉM quanto todo o resto do planeta junto – o que não
SUJEIRA, estava assim tão longe da verdade. A cidade
BAGUNÇA, parecia uma miniatura do mundo: a primeira
megalópole da História tinha gente de todas as
SUPERPOPU-
raças e línguas, além de ser rica e exuberante. E
LAÇÃO. VIVER um bocado bagunçada e perigosa.
NA PRIMEIRA
MEGALÓPOLE EXPANSÃO INÉDITA
Mas calma lá. Roma nem sempre foi um gigan-
DO MUNDO
te urbano. Tudo parece ter começado de forma
ERA UMA EX- modesta lá pelo século 8 a.C., quando uma ou
PERIÊNCIA DE mais aldeias foram fundadas por tribos latinas
CONTRASTES (povo indo-europeu que falava línguas ances-
POR REINALDO
trais do latim) nas colinas perto do Rio Tibre.
JOSÉ LOPES O vilarejo que surgiu aí tornou-se agrícola e

AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
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CIVILIZAÇÕES

aparentemente logo começou a manter boas a Sicília. Depois, a bacia do Mediterrâneo toda.
relações comerciais com seus vizinhos. “Já no No século 1 a.C., o general Júlio César obteve a
século 6 a.C. há sinais de contato com os gregos conquista da Gália, atual França (veja a expansão
e com os etruscos [povo que dominava o centro do império na página 46). A essa altura, não havia
norte da Itália]”, contou Isabelle Pafford, pro- mais nada de republicano em Roma. Otaviano,
fessora de estudos clássicos nos Estados Unidos. sobrinho-neto de César, tornou-se o primeiro
Nobres etruscos teriam fundado uma dinastia, imperador romano com o nome de Augusto. Até
mas foram expulsos. Por volta de 500 a.C., nas- 68, o poder ficou com sua família, que ampliou
cia a República Romana. os domínios, mas se mostrou corrupta, violenta
Aproveitando-se da falta de um poder hege- e autoritária. Depois da morte de Nero, os impe-
mônico próximo e das eternas brigas que divi- radores passaram a ser pessoas escolhidas por
Otaviano, diam as cidades-estado italianas, a república se mérito, e não por parentesco.
sobrinho-neto de
César, tornou-se o organizou militarmente. Virou, nos séculos se- Coincidência ou não, a estratégia deu certo.
primeiro imperador guintes, senhora da Itália inteira, incorporando As disputas internas enfraqueceram e, sob o
romano com o
nome de Augusto cidades e cidadãos. Primeiro foram a Espanha e comando de Trajano, ex-general que reinou de
98 a 117, Roma alcançou o auge de seu poderio
militar e econômico. Ele liberou presos políticos,
tratou com deferência o Senado, anexou a Dácia
(atual Romênia e partes de outros países do
Leste Europeu) e chegou, com seus exércitos, até
Susa (no Irã de hoje). Qual o segredo de Roma?
“O êxito do império por tanto tempo deve-se ao
seu caráter assimilador”, afirmou o historiador
Pedro Paulo Funari, autor de A Vida Quotidia-
na na Roma Antiga. “Mesmo os povos vencidos
acabavam incluídos como aliados ou romanos.
Assim, as pessoas – ou as elites, ao menos –
participavam do império. Além disso, a saúde
financeira dele dependia do comércio, que era
favorecido pela criação de mercados conectados
por seu domínio.”

DO BERÇO AO TÚMULO
Mesmo tão cosmopolita, Roma enfrentava pro-
blemas inerentes à sua época. Nascer no impé-
rio, mesmo em seu auge, não era tarefa fácil. Por
volta do século 2, a taxa de mortalidade infantil
era de 400 para cada 1000 bebês (hoje, a pior
taxa do mundo é a do país africano Serra Leoa,
oficialmente República da Serra Leoa, com 78,2
mortes para cada grupo de 1000 nascidos). Num
lugar onde as mulheres eram encaradas como
propriedade de seus pais ou esposos, a que con-
seguisse dar à luz três filhos vivos ganhava in-
dependência legal. O índice de abandono das
crianças recém-nascidas também era altíssimo:
ultrapassava os 20% entre os séculos 1 e 3. Os

44 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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motivos para abandonar um filho variavam de ser capaz de impressionar em debates públicos O dia a dia de uma
escola do império
alguma deficiência física ou mental ao simples ou disputas judiciais. romano tinha togas,
fato de ele ser do sexo feminino, já que os filhos Entre os romanos não existia maioridade aos papiro, pergaminhos,
prancheta etc.
homens eram mais valorizados por manterem 18 anos – o rapaz só era considerado emanci-
a linhagem da família. “É preciso separar o que pado se seu pai morresse. A rigor, todos os bens
é bom do que não pode servir para nada”, es- de um romano com genitor vivo podiam ser
creveu o filósofo Sêneca, no século 1. As crian- administrados por seu pai, segundo a lei, mes-
ças chegavam a ser enjeitadas até por razões mo que ele se casasse. O casamento, por sua
políticas: conta-se (embora não haja comprova- vez, não tinha nada de romântico: costumava
ção) que, quando o imperador Nero matou sua ser um acordo entre famílias. Os rapazes
própria mãe, Agripina, alguém abandonou um uniam-se por volta dos 20 anos e as meninas,
bebê com um cartaz: “Não te crio com medo de aos 14, embora não fosse incomum elas se ca-
que mates tua mãe”. sarem aos 12. Os homens tinham certa prefe-
Passado esse primeiro e duro desafio, a crian- rência por noivas virgens. Se isso ocorresse, na
ça livre de nascimento e de boa família tinha noite de núpcias, ele se limitava a fazer sexo
sua educação entregue a um par de escravizados. anal com ela, para não apavorá-la.
O disciplinador pedagogo, geralmente um es- Só os libertinos eram dados a luxúrias como
cravizado idoso e severo, não hesitava em usar fazer amor em pleno dia (o costume era esperar
o chicote. Uma escravizada de origem grega a noite cair) ou com a mulher de seios de fora
(para ensinar a língua cutural desde o berço), a
maternal nutriz, amamentava o bebê. Os escra-
vizados ensinavam meninos e meninas a ler e
ESCRAVIZADOS GREGOS
os educavam até a puberdade, quando só os ENSINAVAM CRIANÇAS A
garotos continuavam seus estudos com litera-
tura clássica, mitologia e retórica: o ideal da
LER E AS EDUCAVAM ATÉ
educação não era aprender uma profissão, mas A PUBERDADE
AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
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CIVILIZAÇÕES

(elas quase nunca se despiam completamente).


Mesmo porque fazer sexo só pelo prazer não era
coisa que os homens faziam com suas esposas – o
objetivo da relação sexual no casamento era pro-
criar. Livrar-se do cônjuge, por outro lado, era
simples: bastava um dos dois querer. Havia ma-
ridos que nem sabiam que estavam divorciados:
suas esposas simplesmente voltavam para a casa
dos pais e não avisavam. Assim como a taxa de
separações, o índice de amantes era elevadíssimo.
A expectativa de vida durante o Império Ro-
mano era muito baixa: girava em torno dos 30
anos. As péssimas condições de higiene contri-
buíam para a transmissão de doenças, e mortes
por enfermidades ou ferimentos hoje conside-
rados simples eram um bocado comuns. A me-
dicina era tão precária que, nos primeiros anos
do império, os chefes de família acreditavam
deter todo o conhecimento necessário para
curar seus parentes usando apenas ervas medi-
cinais. E, diferentemente dos gregos, que valo-
rizavam os médicos, para os romanos a profis-
são era considerada inferior – e relegada a
escravizados, libertos e estrangeiros.

A DESIGUALDADE
Como várias das metrópoles atuais, a capital do
Império Romano era cheia de contrastes. Os
aristocratas viviam em versões luxuosas da do-
O Império Romano reunia capitólios, templos, sedes administrativas. Na legenda acima: A) Aedes
Divi Iulii / Templo de César, B) Aedes Castorum / Templo de Castor e Pólux, C) Sacra Via, D) Rostra,
mus, a tradicional casa da nobreza romana, que
E) Clivus Capitolinus, F) Basílica Iulia / Julia, G) Aedes Saturni / Templo de Saturno, H) Aedes possuía água corrente e piscinas aquecidas. Os
Concordiae / Templo da Concórdia, I) Aedes Vespasiani / Templo de Vespasiano, K) Aedes Júpiter /
Templo de Júpiter, L) Tabularium vários cômodos da residência, como salas de

VIDA E MORTE 753 A.C. 509 A.C. 58-44 A.C.


Como o Império Romano Segundo a tradição Até então uma monarquia, Júlio César conquista a
nasceu, cresceu e foi romana, a cidade foi os latinos de Roma a Gália e é declarado ditador
derrotado fundada pelos gêmeos tornam uma república. Em perpétuo pelo Senado,
Rômulo e Remo em 202 a.C., dominam a mas é morto. Após uma
753 a.C. A data, porém, cidade africana de Cartago guerra civil, Otaviano vira
coincide com os vestígios e suas possessões na imperador. Entre 27 a.C. e
arqueológicos de um Espanha e na Sicília, além 14 d.C., ele consolida os
vilarejo criado por pastores de diversos reinos gregos. domínios no Mediterrâneo.
e lavradores latinos.

46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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jantar e escritórios, ficavam em torno de um HAVIA DIFERENÇAS


SOCIAIS, MAS TAMBÉM
pátio central, o atrium. Era nos escritórios que
o rico romano antenado estudava os filósofos
da moda, como Epicteto ou Epicuro. Um hábi-
to difundido entre os aristocratas era o de pro-
POLÍTICAS PÚBLICAS QUE
mover enormes festas em suas casas – uma VISAVAM AOS MAIS POBRES
forma de medir o prestígio de um nobre. Nelas,
comia-se e bebia-se muito: o costume era servir e tijolos secos ao sol. O térreo normalmente era
cerca de sete pratos, que incluíam iguarias exó- ocupado por quitandas ou outras lojas. “As dife-
ticas como língua de passarinho. Os banquetes renças sociais em Roma não foram maiores que
costumavam ter motivos religiosos. Para os em outras sociedades. Mas havia políticas públi-
romanos – cuja religião era uma mistura de cas que visavam aos mais pobres. Milhares deles
mitos gregos, estruscos e latinos, além de cren- recebiam trigo a preços subsidiados e existia um
ças que assimilavam dos povos conquistados –, ministério voltado ao abastecimento da popula-
era normal essas festas terminarem em orgias, ção”, ressaltou o professor Funari.
já que deuses como Baco, do vinho, simboliza- Nos bairros populares do Monte Aventino,
vam desregramento. lixo e dejetos, feitos em penicos, eram despejados
Do lado de fora das mansões, o sossego era na rua, da janela. Quem preferisse poderia usar
quebrado por bandos de jovens conhecidos como uma latrina pública, onde as pessoas ficavam
collegia juvenum. Filhos de famílias ricas, adora- sentadas, com a túnica arriada, à vista de todos.
vam uma arruaça e, para se divertir, invadiam e No fim, a chuva carregava tudo para a cloaca
quebravam lojas, montavam violentas torcidas maxima, sofisticado sistema de esgotos subter-
organizadas e até realizavam estupros coletivos râneos que usava a água que saía dos banhos e
de prostitutas. “Volta do teu jantar o mais cedo fontes públicas para carregar os detritos até o Rio
possível, pois um grupo muito excitado de jovens Tibre. No miserável bairro da Suburra, operários
das melhores famílias saqueia a cidade”, dizia o ou desocupados bebiam em tavernas um vinho
personagem de um texto da época. intragável, quase um vinagre, dissolvido em água.
Por outro lado, a grande massa de pobres da Por segurança ou por pura pompa, abastados só
cidade – desempregados, pequenos comerciantes passeavam por lá (e pelo resto da cidade) abole-
e imigrantes – vivia em apertadas insulae (“ilhas” tados em liteiras e precedidos por um séquito de
em latim), prédios de apartamentos com até nove escravizados. Como não havia polícia, eles tam-
andares feitos de materiais frágeis como madeira bém faziam as vezes de guarda pessoal.

116 313 395 476


Com Trajano, o império Constantino confere Ao morrer, o imperador Rômulo Augústulo,
alcança sua extensão liberdade religiosa ao Teodósio divide os último imperador do
máxima: 6,5 milhões de império. Cada vez mais domínios de Roma em Ocidente, é deposto por
km2, do norte da Inglaterra próximo da Igreja cristã (foi Império do Ocidente (cuja Odoacro, chefe dos
ao Egito e partes do atual batizado antes de morrer), primeira capital era Milão) e hérulos, povo de origem
Iraque. O auge dura até o lança as bases para Império do Oriente (com germânica, um dos vários
fim do século 3, quando transformar o cristianismo capital em Constantinopla), que invadiram Roma. É o
revoltas militares e em religião oficial. Ele governados por seus filhos fim do controle romano na
invasões de povos funda a nova capital, Arcádio e Honório, Europa Ocidental. O
(chamados bárbaros) Constantinopla. respectivamente. Império do Oriente cai
começam a corroê-lo. apenas em 1453.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
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CIVILIZAÇÕES

Cena de rua OS PRAZERES DA VIDA recobria o cenário). O principal palco dessas


com produtores
e vendedores Roma era uma cidade insalubre. Mas os roma- lutas, o Coliseu, foi concluído pelo imperador
de comidas e
artesanatos
nos se esforçavam para manter a própria higie- Tito no ano 80 e possuía uma organização de
ne. A prática dos banhos era amplamente di- fazer inveja aos atuais estádios de futebol bra-
fundida, e tanto ricos como pobres frequentavam sileiros: tinha um sistema de coberturas retrá-
as termas. Nelas, havia piscinas de água fria, teis contra a chuva e o sol excessivo e os vomi-
banheiras de água quente, salas com vapor e toria, saídas que davam acesso direto aos
ambientes para prática de ginástica – homens e assentos ou ao exterior e permitiam esvaziar o
mulheres usavam espaços diferentes. Nos imen- local em minutos, sem tumulto.
sos complexos, relaxava-se, faziam-se negócios Os jogos eram patrocinados pelos imperado-
e discutiam-se política e filosofia. “Nada é mais res ou por outros membros endinheirados da
doce que o gongo, sinalizando a abertura dos nobreza. A entrada era paga, mas os preços,
banhos”, dizia o senador e pensador Cícero no módicos. “Os espetáculos podiam ter um viés
século 1 a.C. político para angariar votos, mas eram muito
A nobreza e a grande massa popular também mais que isso”, destacou a historiadora Renata
se misturavam nas famosas corridas de bigas Senna Garraffoni, autora de Gladiadores na
do Circo Máximo ou nas populares lutas de Roma Antiga. “Eram lugares de encontro entre
gladiadores, que se enfrentavam na arena as pessoas comuns e expressavam a identidade
(“areia”, em latim, por causa do sedimento que do povo romano, seus valores culturais, como
a relação com os deuses, com a vida e a morte,
A PROPINA ERA PRATICADA suas ideias de virtude, de guerra, de combate”,
complementou a especialista.
EM TODAS AS INSTÂNCIAS As brigas, porém, não eram tão sangrentas
E O ENRIQUECIMENTO DE assim. Como os gladiadores eram profissionais
valiosos, os derrotados eram poupados com
POLÍTICOS, “NORMAL” frequência da morte. “Muitos viveram vários

48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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anos e até se aposentaram, tornando-se instru-


tores de jovens gladiadores”, disse Renata. Di-
versos deles viravam celebridades, objetos de
desejo das damas mais assanhadas da nobreza.
Declarações de amor eram feitas a eles nas pa-
redes romanas. Os muros, por sinal, recebiam
outros tipos de inscrição: propaganda política,
anúncios de comércio e simples provocações
entre desafetos. Sutileza não era o forte romano.
Um dos grafites, por exemplo, traz: “Marítimo
pratica o cunilíngua por quatro asses [dinheiro
da época], mas só aceita virgens: batamos, en-
tão, em outra porta”.
Em Roma, era comum homens trocarem bei-
jo na boca como demonstração de amizade. O
ócio era praticado pelos ricos durante a tarde
inteira: eles só liam, escreviam, conversavam.
Viver de renda era mais glamouroso que traba-
lhar. A propina era praticada em todas as ins-
tâncias e o enriquecimento de políticos, abso-
luta mente norma l (ainda que muitos o
condenassem). Há quem critique Roma por seu
imperialismo ou por manter uma economia
sustentada pela mão de obra escravizada. O que
ninguém pode contestar é que a civilização é o
berço das nações europeias e diversos outros
países colonizados por elas, inclusive o nosso.
E que foi com Roma que aprendemos, bem ou
mal, a ser como somos. O ócio estava entre os ricos durante a tarde inteira: eles só liam, escreviam, conversavam

NÓS, ROMANOS
Os romanos vieram, viram e do latim. Muitos dos países que romano foi a maneira como
venceram durante séculos. E ainda integraram o império também contamos os dias do ano. Foi Júlio
hoje marcam a história do Ocidente. herdaram o intrincado direito César que instituiu o ano de 12
A começar por nosso idioma. A romano, um sistema legal tão rígido meses, 365 dias e um dia extra a
presença de Roma em boa parte da que ainda é a base da legislação em cada quatro anos. Porém a maior de
Europa e a integração dos povos países como o Brasil. As institui- todas as heranças dos romanos
dominados levaram ao fim de ções políticas sólidas de Roma (da terminou mesmo sendo uma velha
línguas nativas e à instalação do época da república) também arqui-inimiga do império: a Igreja. A
latim. O chamado latim vulgar, uma inspiraram filósofos iluministas e partir do século 4, quando o império
variante mais simples, deu origem a revolucionários do século 18: se converteu à fé cristã (depois de
línguas como o espanhol, o influenciados por essas ideias, muita perseguição), o cristianismo
IMAGENS GETTY IMAGES

português, o francês, o italiano e o Estados Unidos e França se se solidificou e hoje tem 1,9 bilhão
romeno. São 700 milhões de autoproclamaram repúblicas e de fiéis no mundo, incluindo
pessoas que falam as línguas-filhas criaram senados. Outro legado católicos, ortodoxos e protestantes.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
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ENTREVISTA POR MARCUS LOPES

REVOLTA
DOS MALÊS
N
a madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, um levante de escravi-
zados foi deflagrado em Salvador, na Bahia. Começava a Revolta
dos Malês, um movimento capitaneado por africanos muçulma-
nos ainda pouco conhecido e estudado na História do Brasil. Lacuna
preenchida agora com o recém-lançado Malês – A Revolta dos Escravi-
zados na Bahia e Seu Legado (Editora Planeta), de Gilvan Ribeiro.
Numa época em que grande parte da população brasileira era
analfabeta, incluindo membros da elite econômica, os participantes
da Revolta dos Malês se distinguiam por serem escravizados muçul-
manos letrados em árabe. Eles lutaram para tomar o poder e instituir
DIVULGAÇÃO / EDITORA PLANETA
uma nova ordem política e social na Bahia. “Esse episódio importan-
te ainda é pouco conhecido devido à tendência de se privilegiar o
ponto de vista da colonização europeia, no ensino da história oficial,
em detrimento da perspectiva da população de origem africana”, ex-
plica o autor do livro em entrevista a AVENTURAS NA HISTÓRIA.

O que foi a Revolta cooptar outros escravizados o que provocou uma batida
dos Malês? que não faziam parte da policial em um dos núcleos
A Revolta dos Malês se conspiração, mas cuja adesão revoltosos antes da hora
destaca por ser um levante de era esperada no calor dos prevista para as ações se
escravizados africanos acontecimentos. Com a iniciarem. Dessa forma,
muçulmanos, letrados em confusão instalada na capital, fragmentou-se o movimento,
árabe, com o envolvimento alguns mestres malês que contou com cerca de 600
também de alguns libertos, partiriam para o Recôncavo combatentes no total, mas que
ocorrida na madrugada do dia Baiano para sublevar o grande em nenhum momento
25 de janeiro de 1835, em contingente de negros estiveram todos reunidos no
Salvador. O plano dos líderes mantidos em cativeiro nos mesmo lugar, favorecendo
consistia em aproveitar a engenhos e plantações na assim a repressão.
comemoração católica de zona rural, na tentativa de
Nossa Senhora da Guia – conquistar o poder e instituir Um fato que chama muito
ocasião em que grande parte uma nova ordem política e a atenção são os
da população e das forças de social. Porém, uma briga de escravizados de origem
segurança se deslocava para casal levou a mulher muçulmana, que são pouco
a Colina do Senhor do Bonfim abandonada por um dos conhecidos quando se fala
– para tomar as ruas rebeldes a delatar a em escravidão no Brasil.
desguarnecidas ao alvorecer e insurreição às autoridades, Quem eram eles?

50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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“A perseguição implacável aos africanos


muçulmanos praticamente extinguiu o islamismo
na Bahia. Muitos viram o candomblé como
a alternativa mais próxima de suas origens”

A Revolta dos Malês, no islamismo na Bahia naquela


entanto, embora tenha contado ocasião. A simples posse de
com a participação de alguns orações escritas em árabe,
deles, foi majoritariamente abadás litúrgicos ou barretes,
nagô – designação dada na que são uma espécie de
Bahia àqueles que falavam carapuça de uso religioso,
iorubá, trazidos da África já podia servir como prova
Ocidental, sobretudo do antigo de envolvimento de seus
Império de Oyó, localizado proprietários na rebelião,
onde hoje ficam o sudoeste da resultando em condenações
Nigéria e o sudeste do Benim. à prisão e a centenas de
Vale ressaltar que os nagôs, chibatadas. Também se iniciou
em sua maioria, cultuavam o um processo de deportação
candomblé, e muitos dos em massa desses africanos,
revoltosos ainda estavam em extremamente vigiados e
processo de conversão ao impedidos de se reunir para
islamismo, graças aos os seus cultos. Dessa forma,
ensinamentos dos mestres os terreiros de candomblé,
Entre os quase 5 milhões de malês. Alguns iniciantes, embora eventualmente
escravizados traficados para o inclusive, frequentavam ambas também sofressem algum tipo
Brasil, havia representantes de as celebrações paralelamente. de perseguição, tornaram-se
diversas nações africanas, O termo “malê”, de origem uma alternativa viável para os
com culturas e religiões iorubá, passou a ser usado no afrodescendentes cultuarem
diferentes. Alguns deles Brasil para se referir a africanos uma religião mais próxima
haviam sido islamizados em muçulmanos em geral, apesar de suas origens, sem se
seus territórios originários, de os hauçás se renderem ao catolicismo
tanto por força de jihads, as autodenominarem “mussulmis”. imposto pelos dominadores
chamadas “guerras santas” europeus. Somente mais
que tinham como propósito Os malês, inclusive, recentemente algumas
impor a fé em Alá aos povos nos permitem conhecer comunidades muçulmanas
vencidos, como por influência e entender melhor a ressurgiram em Salvador.
mística de reinos próximos. sociedade baiana atual, A ideia do sistema dominante
Os hauçás, por exemplo, que do ponto de vista cultural, também era varrer esse
protagonizaram uma série de religioso e social? episódio da história para que
revoltas na Bahia na primeira A perseguição implacável aos seus líderes não se tornassem
metade do século 19, vieram africanos muçulmanos, a partir mártires a inspirar novas
para cá com essa tradição da Revolta dos Malês, insurgências. Mas esse
muçulmana já consolidada. praticamente extinguiu o processo de apagamento,

AVENTURAS NA HISTÓRIA 51
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ENTREVISTA POR MARCUS LOPES

empreendido pelas autoridades Em face disso, os mestres Essa superioridade


na época, não resistiu ao malês ensinavam intelectual de alguns
tempo. Hoje a memória dos secretamente as letras aos escravizados teria,
heróis malês continua viva novos adeptos, que eram inclusive, provocado uma
graças aos enredos cantados atraídos ao islamismo também forte reação da sociedade
pelos blocos afros do Carnaval pela oportunidade de adquirir branca, sempre
da Bahia, como Ilê Aiyê, esse conhecimento, algo que preocupada em mostrar
Olodum e Malê Debalê, poderia distingui-los dos os africanos, por meio de
cujo próprio nome homenageia demais africanos e lhes castigos, como uma raça
os revoltosos. conferir prestígio dentro da inferior. Isso teria
comunidade. Pela análise dos contribuído para o início
Os malês eram conhecidos amuletos com orações da revolta?
por seu grau de escritas em árabe, Os atributos intelectuais de um
conhecimento e de estudo, apreendidos com os escravizado, eventualmente,
muitas vezes superiores revoltosos, é possível verificar podiam ser utilizados por seus
aos dos próprios brancos. diferentes estágios no domínio senhores em serviços que eles
O que os diferenciava da língua. Enquanto os próprios tinham dificuldade em
em relação ao grau de mestres e seus alunos com desempenhar, como na
educação? nível mais avançado contabilidade dos negócios,
A sociedade branca da época escreviam corretamente, por exemplo. Mas, de maneira
era majoritariamente outros davam mostras de que geral, os cativos escondiam
analfabeta, razão pela qual ainda se encontravam em dos proprietários seus
encontravam-se escravizados início de aprendizado. Ao estudos, a capacidade de
com nível intelectual superior longo da história, não só os leitura e os conhecimentos
ao de seus senhores, o que malês, mas africanos de mais sofisticados, que
por si só já os predispunha à diversas procedências poderiam mexer com a
rebeldia. A alfabetização em trouxeram ao Brasil avanços vaidade deles e resultar em
árabe era de suma tecnológicos em variadas severas punições. Houve
importância religiosa porque, áreas, como na mineração, alguns acontecimentos que
pela ortodoxia islâmica, o metalurgia, agricultura, contribuíram para a
Alcorão só pode ser recitado arquitetura, construção civil, precipitação da revolta, entre
na língua original para que se produção têxtil e em muitas eles a punição imposta ao
preserve a eloquência, a outras. Algo não reconhecido mestre Ahuna, exposto à
musicalidade e as rimas do pelo sistema escravocrata, humilhação pública por seu
texto sagrado, Assim como que procurava passar a dono, ao ser conduzido
também se evitar distorções imagem de que se tratava de algemado pelas ruas de
de significado na tradução povos primitivos a fim de Salvador, até o porto, para ser
de palavras que podem desumanizá-los e justificar enviado a um engenho em
apresentar variadas acepções. assim a servidão. Santo Amaro, ser castigado e
exercer trabalhos mais rudes,
ao que tudo indica como
“Ao longo da história, não só os malês, mas represália pelo respeito,
admiração e popularidade que
africanos de diversas procedências trouxeram ao gozava entre seu povo. Outro
mestre malê, Pacífico Licutan,
Brasil avanços tecnológicos em variadas áreas. foi preso na cadeia municipal
Algo não reconhecido pelo sistema escravocrata” para ir a leilão, como um bem

52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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penhorado, a fim de saldar


dívidas de seu proprietário,
contraídas junto aos frades do
Carmo. O seu senhor poderia
tê-lo vendido antes para os
próprios discípulos malês,
que chegaram a se cotizar
e a apresentar propostas
de compra de sua alforria.
A oferta acabou recusada,
aparentemente, por pura
arrogância. Esses fatos
influenciaram diretamente
na explosão do levante.

REPRODUÇÃO
Em um dos capítulos você
se dedica a estudar a figura
de Luiza Mahin, mãe do que não tiveram efeito. permitem conhecer e
abolicionista Luiz Gama. Embora ele não cite analisar melhor esse triste
Qual a importância especificamente a participação período da História
histórica dela e há fatos dela na Revolta dos Malês, ao do Brasil?
que mostram que ela pode situá-la em Salvador nessa O conhecimento da história da
ter contribuído ou mesmo época, abre essa perspectiva. escravidão é importante para
participado da Revolta Nos documentos oficiais da que tenhamos a noção exata
dos Malês? devassa, não há menção ao do grau da violência imposta
O único registro historiográfico nome de Luiza Mahin. Mesmo aos africanos trazidos à força
sobre Luiza Mahin está em assim, com base na oralidade para o Brasil. Vinham
uma carta escrita pelo seu afro-brasileira, ela se tornou acorrentados em porões de
filho, o poeta, advogado e um mito que ganha vulto a navios nauseabundos em
jornalista Luiz Gama, cada dia e inspira os coletivos viagens que duravam, em
endereçada ao amigo Lúcio de negros feministas, que lhe média, de quarenta a setenta
Mendonça, também poeta e atribuem papel de liderança na dias, para a exploração de sua
jornalista, que lhe pedira revolta. Algo improvável, tanto força de trabalho da maneira
informações pessoais para a pela análise das investigações mais cruel possível. Milhares
publicação de um perfil. Nessa policiais na ocasião como deles morriam anualmente
correspondência, há um também pela circunstância de durante a travessia, com seus
trecho no qual ele descreve a os malês serem muçulmanos, corpos atirados aos tubarões,
mãe como uma africana nagô cuja cultura relegava as que seguiam as embarcações
livre, da Costa Mina, de baixa mulheres a uma condição à espera da carne farta.
estatura, magra, bonita, preta subalterna. Submetidos a maus-tratos,
retinta com os dentes alimentação repugnante e
alvíssimos, muito altiva, Junto com a trilogia insuficiente, péssimas
geniosa e vingativa. Diz ainda Escravidão, de Laurentino condições de higiene e
que mais de uma vez, na Gomes, o seu livro aborda expostos a doenças
Bahia, foi presa como suspeita em profundidade o infectocontagiosas, muitos
de envolver-se em planos de escravismo no Brasil. tentavam o suicídio antes da
insurreições de escravizados Como essas obras nos chegada. Os sobreviventes

AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
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ENTREVISTA POR MARCUS LOPES

“Hoje a memória dos heróis malês perdidas”, aos montes,


sem que haja a necessária
continua viva graças aos enredos cantados indignação da população
pelos blocos afros do Carnaval da Bahia, e das instituições para que
essas tragédias não se
como Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê” repitam. Ao contrário, esse
extermínio infantil parece ser
recebiam um novo nome que ainda existe no país? encarado como um efeito
cristão ao desembarcar aqui, Que lições podemos tirar colateral aceitável do combate
sendo destituídos da própria desses estudos, no sentido ao tráfico de drogas nas
identidade e obrigados a de construir um futuro comunidades. Essa situação
professar uma religião que melhor? persiste ao longo dos séculos
lhes era hostil, posto que O passado escravocrata em consequência da
legitimava a servidão. A explica o racismo estrutural resistência da sociedade
maioria era enviada para suprir que gera um apartheid não brasileira em reconhecer sua
a demanda dos engenhos de declarado no Brasil. As forças responsabilidade por tamanha
cana-de-açúcar, que também policiais, criadas para iniquidade. A pobreza do povo
apresentavam alta taxa de perseguir e massacrar os negro é resultado direto da
mortalidade e precisavam negros rebeldes, continuam ausência de contrapartidas
repor constantemente a mão a agir com esse mesmo após a abolição. É urgente que
de obra. Em número muito propósito – ainda que às vezes o Estado brasileiro desenvolva
maior do que as mulheres, em inconscientemente. Os jovens mecanismos para corrigir essa
razão da preferência por sua pretos, sobretudo nas distorção. A Lei de Cotas, que
força física, os homens tinham periferias, sofrem agressões completou dez anos em 2022,
dificuldade em encontrar uma e arbitrariedades em seu trouxe avanços inegáveis, com
parceira para constituir família. cotidiano. Muitos deles são a ascensão de uma geração
E quando isso acontecia, o assassinados sem chance de de intelectuais negros, mas
casal frequentemente tinha os defesa. Assim como crianças ainda há muito a ser feito.
filhos tirados de seus cuidados têm sido mortas por “balas Tal reflexão cabe a todos nós.
para serem vendidos ou
explorados na mais tenra
idade. Esses são apenas
alguns aspectos da vida
miserável que levavam e
da perversidade a que
eram submetidos. O
reconhecimento desse crime
étnico é necessário para que
as pessoas compreendam
a necessidade de reparação
a seus descendentes nos
GILVAN RIBEIRO
dias de hoje.
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É JORNALISTA COM PASSAGEM


EM GRANDES REDAÇÕES DO
PAÍS E ESCRITOR COM OBRAS
De certa maneira, estudar PUBLICADAS EM PARCERIA COM
o passado nos ajuda a WALTER CASAGRANDE JUNIOR,
ALÉM DE MALÊS – A REVOLTA DOS
entender melhor o presente ESCRAVIZADOS NA BAHIA E SEU
e o abismo social e racial LEGADO (EDITORA PLANETA)

54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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COLUNA FABIO PREVIDELLI

ANJO DE HAMBURGO
A
Aracy, minha mulher, Ara, pertence este circular secreta 1.127 que impedia a entrada de
livro”, é com esta dedicatória que Guima- judeus no país. Para ajudá-los, Aracy resolveu
rães Rosa abre Grande Sertão: Veredas. burlar a recomendação. Com o apoio de Guima-
Durante anos, Aracy Moebius de Carvalho Gui- rães, passou a misturar os documentos de judeus
marães Rosa ficou conhecida por essa singela no meio dos de outros estrangeiros que entravam
homenagem do marido. Mas sua história vai além com pedido de aprovação de vistos — uma forma
de apenas uma frase em um dos romances mais de confundir o cônsul-geral que assinava os pe-
emblemáticos da literatura brasileira. didos. Aracy também deixou de identificar os
Fruto do casal Sidonie Moebius de Carvalho, passaportes com o “J”, que identificava os judeus.
de Alta Saxônia, e Amadeu Anselmo de Carva- A mulher ainda teria transportado os perse-
lho, um comerciante luso-brasileiro, Aracy nas- guidos em seu próprio carro para além das fron-
ceu em 5 de dezembro de 1908 na cidade para- teiras alemãs (visto que seu veículo não era re-
nista Rio Negro e, ainda menina foi para São vistado por ser parte do consulado) e os ajudado
Paulo cursar o primário e o ginásio em escola no embarque de navios para o Brasil.
religiosa. Aos 22 anos, se casou com o alemão Por seu gesto de altruísmo, Aracy ficou co-
Johann Eduard Ludwig Tess, com quem teve o nhecida, posteriormente, como O Anjo de Ham-
único filho: Eduardo, ficando casada por cinco burgo, além de ser homenageada, em 1982, no
anos. Para fugir do precon- Jardim dos Justos entre as
ceito que enfrentava por Para ajudar vítimas Nações do Museu do Holo-
aqui, por ser uma mulher causto em Israel, sendo a
desquitada, foi morar na de Hitler, Aracy burlou única mulher brasileira a
Alemanha com o filho. Os regras em consulado receber a homenagem dada
dois desembarcaram no país aos não judeus que arrisca-
em 5 de março de 1934 —
brasileiro na Alemanha ram sua vida para salvar as
apenas um ano depois de vítimas da era hitlerista.
Adolf Hitler ser eleito chanceler. Quando o Brasil rompeu relações com a Ale-
Com a queda da República de Weimar, não manha, em janeiro de 1942, Aracy e Guimarães
demoraria para que os judeus fossem perseguidos destruíram os documentos do consulado. O casal
— Aracy estava a salvo, afinal, sua mãe não tinha ainda chegou a ser mantido sob custódia do go-
ancestralidade judaica. Além disso, por ser fluen- verno alemão até serem trocados por diplomatas
te em alemão, inglês e francês, havia conseguido que estavam no Brasil. Por aqui, eles ainda aju-
uma nomeação no consulado para ser a chefe da daram pessoas perseguidas pelo Golpe de 1964,
Seção de Passaportes, onde conheceu Guimarães. escondendo inimigos da Ditadura como Geraldo
No mesmo período, a violência antissemita no Vandré e Franklin de Oliveira. Aracy se tornou
país aumentava. Em 9 de novembro de 1938, o viúva em 1967 e jamais se casou novamente. Nos
estopim: a Noite dos Cristais. Antes daquele mo- anos seguintes, desenvolveu o mal de Alzheimer
mento, a emigração de judeus era estimulada — falecendo aos 102 anos em 2011. Por conta da
pelos nazistas, mas o episódio mudou esse cená- doença, morreu sem lembrar de seus bons gestos.
rio. No mesmo ano, passou a vigorar no Brasil a Porém, deixou sua história e muita inspiração.

FABIO PREVIDELLI É JORNALISTA E REPÓRTER DA VERSÃO ON-LINE DE AVENTURAS NA HISTÓRIA.


NESTE ESPAÇO, ESCREVE SOBRE BIOGRAFIAS QUE FORAM ESQUECIDAS NA HISTÓRIA

AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
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COLUNA RICARDO LOBATO

O AMOR VENCE TUDO


C
aso esteja estranhando o assunto e o título Em 1944, fartos de tanta exploração, e perce-
acima, não se preocupe. Esta coluna mensal bendo que “o grande Reich” alemão era pressio-
continua sendo sobre Forças Armadas e nado dos dois lados, os habitantes de Varsóvia se
Assuntos Militares, contudo, o tema escolhido insurgiram. Os poloneses que pegaram em armas
chega às suas mãos para provar que, mesmo na eram, em sua maioria, jovens membros da resis-
guerra, pode existir amor. E ele não apenas exis- tência doméstica (ligada ao governo no exílio) e
te como é o grande responsável por manter as que, diante do avanço soviético, viram uma opor-
pessoas vivas e dar esperança em meio ao desa- tunidade de revidar contra os ocupantes. É jus-
lento. Dito isso, vamos à história que lança 2024. tamente aqui onde entra o amor.
Trata-se de um “romance” que se passa na reta Apesar de estarem pressionados no Oeste pe-
final da Segunda Guerra Mundial, especifica- los Aliados Ocidentais e no Leste pelo Exército
mente na capital da Polônia, em um dos episódios Vermelho, a Wermacht ainda era uma força mi-
mais dramáticos do conflito: a Revolta de Varsó- litar notável. Os alemães em Varsóvia não iam
via. Para falar do amor nesta história, porém, é renunciar à cidade facilmente. Os jovens polone-
preciso voltar às origens da guerra e contextua- ses, que já haviam perdido quase tudo naquela
lizar a batalha em específico. altura da guerra, vendo a ferocidade da resistên-
A Polônia foi a primeira vítima oficial da sede cia alemã, se apegaram ao mais forte dos senti-
expansionista nazista. Antes mentos, talvez a única coisa
dela, as tropas de Hitler já Os jovens combatentes que ainda lhes restasse. Em
haviam marchado sobre a meio aos violentos combates,
Tchecoslováquia, mas foi so- se apegaram ao mais muitos casais contraíram
mente com a invasão das forte dos sentimentos, matrimônio.
terras polonesas, em 1º de Estima-se que ao longo
setembro de 1939, que a Se-
talvez o único que ainda dos 63 dias da Revolta de
gunda Guerra começou. O lhes restasse Varsóvia, mais de 500 pes-
que se seguiu foi uma rápida soas tenham se casado.
vitória da máquina de guerra alemã – com a ino- Olhando de fora, pode até parecer estranho
vadora estratégia da Blitzkrieg, a “Guerra Relâm- que, em meio a batalhas intensas, as pessoas
pago” – e um longo assenhoreamento do país. viessem a se casar. Mas, na verdade, era algo
Além de terem sido os primeiros a sofrer uma bem lógico. Precisamos considerar que os com-
derrota para os germânicos, a ocupação foi tudo, batentes ali não eram soldados regulares, nem
menos pacífica. A Polônia era a nação com o eram pagos para combater o inimigo; lutavam
maior número de campos de concentração (e por sua pátria e nada mais tinham. Já haviam
também de extermínio) – mais que a própria perdido suas famílias, seus amigos, suas casas...
Alemanha –, incluindo alguns dos mais infames, Apenas lhes restava o amor.
como Auschwitz-Birkenau. Também foi o Estado É o caso de Bolesław Biega e Alicja Treutler,
que mais perdeu população judaica, chegando a que, assim como tantos outros, se casaram em
mais de 3 milhões de pessoas. meio ao conflito. Ele era um jovem oficial do
E não para por aí, mesmo os não judeus sofre- famoso batalhão Kilinski, e ela uma enfermei-
ram muito. Por ser uma nação predominante- ra voluntária. Após se ferir em combate e ser
FOTO GETTY IMAGES

mente eslava – vista pela ideologia nazista como levado à retaguarda, Bolesław foi tratado jus-
uma “raça subumana” – o tratamento dos ocu- tamente por Alicja. Durante uma conversa com
pantes ao povo polonês era o pior possível. o padre que ajudava os feridos, o religioso,

56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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A união entre a
enfermeira Alicja
Treutler e o oficial
Bolesław Biega
surgiu durante os
primeiros socorros
às tropas polonesas

conhecedor da história dos dois, sugeriu que Sem suprimentos e esgotados, os poloneses
se casassem. O atônito Bolesław perguntou ao baixaram as armas em 2 de outubro de 1944. O
padre: “Aqui?”. E logo recebeu a resposta: que restara de Varsóvia, como represália, foi des-
“Onde mais? Por que não?”. truída pelos alemães, tornando-se na segunda
Alicja estava na linha de frente dando primei- cidade Aliada mais devastada na guerra – atrás
ros socorros às tropas, assim sendo, Bolesław lhe apenas de Manila, capital das Filipinas, arrasada
enviou um correio onde se lia: “A Senhora Alicja pelos japoneses. Os soviéticos, que marchavam
Treutler está convidada para seu casamento com rumo a Berlim, só conquistariam a capital polo-
o Senhor Bolesław Biega, favor não se atrasar”. nesa em 17 de janeiro de 1945, pondo fim a seis
Horas depois os dois trocavam alianças. A ima- longos anos de ocupação nazista.
gem do matrimônio, registrada pelas lentes de Mesmo com o fim melancólico da revolta, e
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

Eugeniusz Lokajski Brok, deu ânimo aos comba- com o enorme número de baixas, o fato de casais
tentes e inspirou mais casais a fazer o mesmo. como Bolesław e Alicja terem sobrevivido para
A Revolta de Varsóvia, apesar de corajosa, não contar a história – ela faleceu em 2019 e ele em
atingiu seus objetivos. A despeito da tenacidade 2023 – é um marco não apenas para os poloneses,
dos revoltosos, por conta de decisões políticas mas para todo o mundo. Algo aparentemente
das grandes potências Aliadas – que nessa fase simples ou inocente, como o amor, possui um
do conflito já começavam a desenhar as linhas poder imenso e pode ser o alimento da esperan-
do mundo pós-guerra nos mapas – os esforços ça em meio ao desalento. Afinal, o amor pode
foram praticamente em vão. vencer tudo. Um excelente 2024!

RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E CONSULTOR-
-CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA @EQUILIBRIUM_CAP

AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
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MEMÓRIA

JOGOS DE
INVERNO
Com apenas 16 nações participantes, há cem anos, no
dia 25 de janeiro de 1924, era inaugurada a primeira
edição dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Chamonix,
nos Alpes franceses. Ela aconteceu após quase três
décadas da estreia da Olimpíada moderna de Atenas,
em 1896, que hoje, não por acaso, é chamada de
Jogos de Verão. O termo invernal, porém, surgiu quatro
anos depois, em 1928, na segunda edição do evento,
em St. Moritz, na Suíça. Na primeira, centenária, um
dos destaques foi o saltador de esqui norueguês Jacob
Tullin Thams (à direita). Abaixo, as medalhistas de
patinação artística Herma Planck-Szabo, da Hungria,
Ethel Muckelt, da Grã-Bretanha, e Beatrix Loughran,
dos EUA, já confirmavam a evolução daqueles que, de
fato, deram origem a tudo isso: os Jogos Nórdicos,
inaugurados em 1901, na Suécia, apenas para países
nórdicos. Mais de um século depois, a competição na
neve e gelo acolhe inclusive atletas de regiões
tropicais, como o Brasil, cada vez mais presentes.
IMAGENS GETTY IMAGES

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EDIÇÃO 248 | JANEIRO/2024

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