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MINO CARTA BENJAMIN NETANYAHU

E SEU PROTETOR JOE BIDEN TORNAM-SE CLUBE DE REVISTAS


ESPECIAL PAC NO PRIMEIRO CADERNO
DA SÉRIE, OS PLANOS DE INVESTIMENTO
OS CLAROS VILÕES DO PLANETA, NA TRANSIÇÃO SUSTENTÁVEL, NOS
MENOS PARA O JORNALISMO NATIVO TRANSPORTES E NA INDÚSTRIA DE DEFESA

22 DE NOVEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1286 R$ 31,90

FUTURO ROUBADO
COMO A GESTÃO FRAUDULENTA E A INTERFERÊNCIA POLÍTICA LEVARAM
AO PRECIPÍCIO O POSTALIS, FUNDO DE PENSÃO DOS CORREIOS
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22 DE NOVEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1286

A brutal vingança
de Israel fortalece
o extremismo
nos territórios
palestinos. Pág. 42

Plural
6 M I N O C A R TA 22 C R A C O L Â N D I A
8 A SEMANA A prefeitura de São Paulo Nosso Mundo
fecha o último hotel 38 ARGENTINA Dividido

48
11 ALDO FORNAZIERI
social do programa entre projetos opostos,
12 PEDRO SERRANO De Braços Abertos o país vai decidir
o futuro voto a voto CAÇADORES
Seu País Economia 40 E N T R E V I S TA DE ATENÇÃO
A briga entre os
20 P O D E R 24 E N T R E V I S TA Netanyahu menospreza
irmãos Cid e Ciro Gomes A Petrobras vai liderar a possibilidade de a
provoca uma cisão no a transição energética guerra avançar para o EMPRESAS DE DELIVERY E COMÉRCIO
PDT do Ceará e ameaça do País, garante norte, diz Régis Morelon ELETRÔNICO TORNAM-SE CENTRAIS
contaminar o partido Mauricio Tolmasquim NA SELEÇÃO DE FILMES E SÉRIES
O apoio
42 C I S J O R D Â N I A
3 5 PA U L O N O G U E I R A B AT I S TA J R . ao Hamas cresce
50 T H E O B S E R V E R O mundo mágico dos
A manipulação
36 B E L L U Z Z O em resposta à
Capa: Pilar Velloso. Fotos: cogumelos medicinais 53 C I N E M A Nas idas
Jim Watson/AFP, Kyle das opiniões em favor do violência israelense
e vindas da pandemia 54 I D E I A S As Forças
Mazza/AFP e iStockphoto mercado e dos poderosos 44 E U A O que viria a ser Armadas no combate ao inimigo interno
um segundo mandato de 56 L I V R O A vida íntima nas periferias
FA D EL SEN N A /A FP E RED ES SOCIAIS

Trump na Casa Branca 57 A F O N S I N H O 58 C H A R G E Por Venes Caitano

ESPECIAL PAC A ECONOMIA VERDE PELO RALO


E A RETOMADA DOS INVESTIMENTOS
PÚBLICOS GERAM OPORTUNIDADES VÍTIMAS DE FRAUDE, OS ASSOCIADOS TEMEM
PARA O SETOR PRODUTIVO Pág. 27 A BANCARROTA DO POSTALIS, O FUNDO DE
PENSÃO DOS FUNCIONÁRIOS DOS CORREIOS

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4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) Hoje percebi que o sistema financeiro
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva está montado para ganhar em todos os
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis aspectos humanos, levando o ser huma-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich no a se questionar até na sexualidade.
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub Uma paranoia de rotularmos a nós mes-
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
mos e ao outro como isso, aquilo, quan-
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, do o que importa seria nos questionar-
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, mos se ainda temos humanidade.
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., Maria Helena Mesquita
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo QUINTAS-COLUNAS
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
Li com repugnância a reportagem.
O nojo não advém da sua escrita,
CARTA ONLINE
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira Maurício Thuswohl, sempre objetiva e
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
oportuna, mas da situação relatada.
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
À ESPERA DO APOCALIPSE Como explicar ou justificar a leva de bol-
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) Parece a fábula do escorpião e o sonaristas que continua a ocupar cargos
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura
REDES SOCIAIS: Caio César
sapo, só que encenada pelo homem de chefia na Petrobras? Por que motivos o
SITE: www.cartacapital.com.br com o próprio homem. É da natureza dele presidente os conserva na estatal, se,
guerrear, mas vai acabar se picando. com uma simples canetada, poderia
Francisco Eduardo demiti-los, recolocando-os no lamaçal
de insignificância de onde nunca
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar.
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 PIGMEU MORAL deveriam ter saído?
O terreno moral eles já perderam Elisabeto Ribeiro
PUBLISHER: Manuela Carta
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene
faz tempo. Isso que dá eleger um
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
extremista. Agora, a imagem internacio- SEM CHANCE DE DEFESA
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
nal de Israel está comprometida. Quando pretos e pobres têm
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios José Queiroz chance de defesa? Quando
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva não são jogados nas prisões sem o
Não tem como defender os ata- devido processo legal, uma “bala
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: ques israelenses sem flertar com o perdida” encontra seu corpo.
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660,
enio@gestaodenegocios.com.br fascismo. O Estado de Israel está empe- Luiz Antônio da Silva
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A privatização pode funcionar, Prendem injustamente, para substituir
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Texto muito bom. Não me atentava nal em prol de um cessar-fogo na Faixa
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ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para isso, porque pensava que to- de Gaza. Por um erro de tradução,
das as pessoas teriam suas zonas de a reportagem “Guerra de palavras”,
prazeres instaladas naturalmente e fun- originalmente publicada no Observer,
cionando de acordo com o que eu conhe- a versão dominical do diário britânico
cia da sociedade. Casar-se, eu pensava The Guardian, atribuía o apelo a Bento
ser algo natural, vindo do além, e que to- XVI. Pedimos desculpas aos leitores
das as pessoas teriam esse destino. pela confusão.

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C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 5
EDITORIAL CLUBE DE REVISTAS

Mino Carta
Os vilões do mundo
Sem contar a mídia nativa, incapaz de
perceber o acerto da política brasileira

O
nde há de se originar o sur-
to de ódio a tomar conta do
grande vilão do momento, ou
seja, Benjamin Netanyahu?
Nesta área sombria dos humores do vi-
lão, antes dos palestinos caberia a refe-
rência ao povo alemão, que tão compac-
tamente envergou o uniforme nazista e
se engajou na jornada antissemita, a ser
registrada historicamente como Holo-
causto. Tal personagem poderia ser evo-
cada para firmar a primazia do criminoso
de guerra em sua denodada faina de des-
truir até a última alma e o último telhado,
de sorte a riscar de vez do mapa o Hamas.
Na consagração da absurda crença de
que os opressores são as vítimas dos opri-
midos, o Hamas resulta de verdade da re-
volta palestina, afastada sem remissão
a moldura infame de uma guerra muito
além de desigual. Caso quiséssemos defi-
nir com precisão histórica, a situação pre-
cipitada pela atitude de Tel-Aviv, teríamos
de citar também a contribuição ofertada
a Netanyahu pelo presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, perdido na observa-
ção do vácuo de Torricelli e acossado pelo
crescimento nas pesquisas na candidatu-
ra provavelmente assustadora de Donald
Trump, que o próprio filho define desres-
peitosamente como “artista”.
Militam, aliás, ao lado destes senhores
os jornalões nativos, lembrados dos arrou-
bos deflagrados nos tempos da Guerra dos
Seis Dias, comandada pelo general Moshe
Dayan, o mesmo que nos brindou com a vi-
sita da filha Yael, recebida com pompa sob

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

a proteção do delegado Fleury. O governo por Charles Chaplin, desde o luminoso mente judeu, mas facilmente olvidável.
do presidente Lula, sagazmente, orienta- homenzinho ingenuamente envolvido Chaplin é uma luz pelo caminho da vi-
do pelo conselheiro especial Celso Amo- nos tormentos dos tempos modernos. da, mesmo quando traça um perfil ne-
rim, condena a violência judia depois de Desde o crítico da civilização dos EUA gativo, ou certamente ridículo, dos seus
haver elaborado um impecável projeto de em Um Rei em Nova York até O Grande intérpretes, mas nunca se afasta do que
paz que Biden se recusou a aceitar antes Ditador, disposto a brincar com o mun- precisa ser lembrado. Com Netanyahu,
mesmo da negativa de Netanyahu. do transformado numa enorme bola de o cenário é brutalmente diverso. Trata-
borracha a dançar-lhe sobre a cabeça -se, de fato, de alguém preso irremedia-

O
corre-me comparar o atual pri- aos toques leves de ponta de dedos, co- velmente ao seu destino de fanático do
meiro-ministro judeu com as medidas incursões com breves referên- Apocalipse. Seria um daqueles que em-
encantadoras figuras criadas cias a momentos de pieguismo tipica- purraram Cristo na subida do Gólgota. •

H AIM Z ACK /GP O/ISR A EL E NG H A N GUA N /P OOL /A FP

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CLUBE DE REVISTAS

A Semana
Guerra/ Faltava
O factoide da
“dama do tráfico”

“boa vontade”
Agora, o presidente
pode ser mais incisivo
Lula saiu em defesa, na na denúncia dos crimes
quarta-feira 15, do ministro de guerra israelenses
da Justiça e Segurança Após um mês de recusas de Israel,
Pública, Flávio Dino. Há dias, Lula consegue repatriar 32 brasileiros
a mídia faz um enorme
estardalhaço com a que estavam retidos na Faixa de Gaza
informação de que Luciane
Barbosa Farias, esposa
do traficante “Tio Patinhas”,

S
apontado como líder “ e o Hamas cometeu um ato de ter-
rorismo e fez o que fez, o Estado de
do Comando Vermelho
em Manaus, participou de Israel também está cometendo vá-
reuniões na pasta para rios atos de terrorismo ao não levar
debater a situação do sistema em conta que as crianças não estão em guerra,
carcerário, representando
que as mulheres não estão em guerra”, discur-
uma associação que presta
auxílio a familiares de presos. sou Lula na segunda-feira 13, ao recepcionar,
Houve, sem dúvida, um na Base Aérea de Brasília, 32 brasileiros re-
erro na verificação dos patriados da Faixa de Gaza. Eles só foram au-
convidados, mas o episódio torizados a entrar no Egito pela passagem de
tem sido explorado pelas
Rafah no dia anterior, após mais de um mês
milícias bolsonaristas para
semear a fake news de de insistentes apelos feitos pelo Itamaraty.
que Dino tem relações com Mais cedo, o presidente afirmou que a libera-
o narcotráfico. Trata-se ção “dependia da boa vontade de Israel”.
de “absurdos ataques Aparentemente, essa “boa vontade” só ocor-
artificialmente plantados”,
reu após o embaixador de Israel no Brasil,
reagiu o presidente,
reiterando que seu ministro Daniel Zohar Zonshine, impor um novo cons-
não chegou a se encontrar trangimento ao governo Lula. Depois de dis-
com a tal “dama do tráfico”. torcer o conteúdo de uma resolução do PT que
condenava tanto os ataques do Hamas quan-
do os crimes de guerra cometidos pelas forças
armadas israelenses, insinuando que o parti-
do era conivente com o terrorismo, o diplomata
reuniu-se na Câmara dos Deputados com par-
lamentares de extrema-direita e com Jair Bol-
sonaro. Ao término do encontro, o ex-presiden- diplomata no atual contexto causaria mais
te disse ter intercedido em favor da liberação danos que benefícios. Seja como for, após
dos brasileiros retidos em Gaza. Não tardou conseguir repatriar os brasileiros que esta-
para as milícias digitais bolsonaristas atribuí- vam em Gaza, Lula pode ser mais incisivo na
rem ao “Mito” o mérito pela repatriação. denúncia do massacre promovido pelo Es-
Na avaliação do deputado federal tado de Israel. Dos mais de 11 mil mortos em
Lindbergh Farias, do PT fluminense, o em- Gaza até a terça-feira 14, dois terços eram
baixador “cruzou a linha do aceitável” ao se crianças, mulheres e idosos, segundo
reunir com Bolsonaro e seus asseclas. “Bas- a Agência das Nações Unidas para os Refu-
ta. Que o Itamaraty avalie e requisite sua ex- giados Palestinos. Outros 29,8 mil ficaram
pulsão do País”, sugeriu no X, antigo Twitter. feridos nos incessantes bombardeios israe-
O governo avalia, porém, que a remoção do lenses ao território.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
22.11.23

Espanha/ Orgulho e fúria


Recorde de
feminicídios
A anistia aos separatistas catalães incendeia o país
O Brasil registrou 722
feminicídios entre janeiro
e junho deste ano, alta de

A
s eleições antecipadas produ- cialistas do PSOE e ao primeiro-ministro
2,6% em relação ao mesmo
ziram o efeito inverso do dese- Pedro Sánchez montar um novo gabine- período do ano passado.
jado: em vez de debelar a crise te, em uma aliança com o Sumar, mais à es- De acordo com o Fórum
política espanhola, jogou mais querda, e com as forças independentistas Brasileiro de Segurança
lenha na fogueira. “Vencedor” nas urnas, o da Catalunha. Em troca do apoio no Parla- Pública, responsável pelo
levantamento, o número
direitista PP não conseguiu formar maio- mento, Sánchez aceitou uma das tantas rei-
é o maior para o primeiro
ria no Parlamento por conta da radioativi- vindicações catalãs, a anistia aos líderes semestre desde o início
dade do aliado VOX, legenda de ultradirei- condenados por organizar um plebiscito de da série histórica, em
ta rechaçada pelos demais partidos. Invia- independência em 2017, entre eles Carles 2019. Os assassinatos
bilizada a investidura do PP, coube aos so- Puigdemont, exilado em Bruxelas. Desde o de mulheres por questões
de gênero cresceram por
anúncio da anistia, pro-
conta da explosão de casos
testos violentos têm reu- no Sudeste. Foram 273
nido milhares de espa- mortes nos seis primeiros
nhóis contrários ao acor- meses do ano, alta de 16,2%
do nas ruas das principais na comparação com igual
período de 2022.
cidades. O PP surfa na in-
dignação popular e insu-
fla as manifestações, na
esperança de desestabi-
lizar o novo mandato do
PSOE antes do seu iní-
cio efetivo. Geografica-
mente, a Espanha conti-
nua unida. Politicamente,
é um país irremediavel-
A Espanha é um país politicamente rachado mente rachado.

Terrorismo/ CÉLULA TABAJARA


PRESO LIGADO AO HEZBOLLAH É PAGODEIRO E VIAJOU AO LÍBANO DUAS VEZES
P OLÍCIA FEDER A L , RICA RDO ST UCK ERT/PR

No domingo 12, a Polícia Fede- Outro “terrorista” preso dias mascate que não fala árabe, o
ral prendeu no Rio de Janeiro antes chorou às vésperas da que dizer das motivações para
um terceiro suspeito de integrar audiência de custódia. O advo- um atentado em solo brasileiro?
E PIERRE-PHILIPPE M A RCOU/A FP

a “célula terrorista operada pelo gado José Roberto Timóteo, in- “Não faz sentido. O Brasil tem
Hezbollah no Brasil” e identifi- siste que seu cliente é vítima boas relações tanto com o Lí-
cada pelo Mossad, o serviço se- de algum engano: “O Jean [Car- bano, que é a base deles, quan-
creto israelense, como propa- los de Souza] não é libanês, to com o Irã, acusado de finan-
gandeou o gabinete do premier não tem parente libanês e nem ciá-lo”, observa Gilberto Marin-
Benjamin Netanyahu. Trata-se fala o idioma. Ele nem sequer goni, professor de Relações In-
do músico Michael Messias, de sabia o que era Hezbollah”. ternacionais da UFABC. “O
43 anos, que visitou o Líbano Se parece pouco crível o in- Hezbollah tem milhares de sol-
duas vezes para, segundo ele, teresse do grupo paramilitar dados. Por que terceirizaria um A PF parece pisar em cascas de
realizar “shows de pagode”. em recrutar um pagodeiro e um ataque a uma célula tabajara?” banana lançadas por Tel Aviv

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 9
CLUBE DE REVISTAS
A Semana

E a Ucrânia?

Relegada a segundo plano


após o início do conflito em
Gaza, a guerra na Ucrânia
continua a produzir estragos
e impasses. O presidente
Teria Costa se
ucraniano, Volodymyr precipitado?
Zelensky, não poderá, por
exemplo, contar com a
promessa de envio, pela
União Europeia, de 1 milhão
de munições, que não será
cumprida. A informação
foi dada por Boris Pistorius,
ministro da Defesa da
Alemanha, durante uma
reunião em Bruxelas. Um
dos entraves, explicou Josep
Borrell, chanceler da UE,
são os compromissos de
exportação dos países
produtores (40% da munição
é vendida para fora do
continente). Falta capacidade

Portugal/ Lavajatismo além-mar


para acelerar a produção.

O estrago da denúncia fajuta do Ministério Público está feito

P
ortugueses que se têm em alta medidas brandas de coação aos acusados.
conta, por serem europeus, habi- Dois deles tiveram o passaporte confisca-
tantes do “Primeiro Mundo”, re- do e terão de pagar caução para manter a li-
lutam em aceitar, mas a verdade berdade. Não deixa de ser um avanço em re-
é que, faz tempo, a Justiça do país apresenta lação aos processos contra o ex-premier José
laivos do lavajatismo brazuca. O mais recen- Sócrates, que há uma década enfrenta, so-

GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO/GOVERNO DE PORTUGAL


te escândalo político revela-se a cada dia um zinho, uma máquina de difamação incapaz
escândalo judiciário, das corporações que de demonstrar os crimes a ele atribuídos.
pretendem substituir a escolha dos eleito- Sócrates, não custa lembrar, passou 11 meses
res. Em uma semana, resta pouco da denún- na prisão sem ser condenado e, pior, sem co-
cia do Ministério Público de favorecimento nhecer o teor das acusações. Embora tardia-
a uma empresa de data center e de negócios mente, também neste caso, em breve, a ver-
nas concessões de exploração de lítio e de hi- dade dos fatos será restabelecida. De qual-
drogênio verde que levaram à renúncia do quer forma, tanto no passado quanto ago-
primeiro-ministro, António Costa, do Par- ra, o estrago está feito. Novas eleições foram
tido Socialista. Os procuradores confundi- convocadas para 10 de março. Na primei-
ram personagens, erraram datas, anexaram ra sondagem divulgada na segunda 13, pe-
provas falhas. Por fim, na segunda-feira 13, la CNN/TVI, o PS aparece com 26%, o PSD,
o juiz de instrução do caso rejeitou as acusa- tucanato lusitano, registra 25% e o Chega, o
ções de corrupção, além de afastar por prin- bolsonarismo local, alcança 17%, o dobro das
cípio as insinuações contra Costa, e impôs intenções de voto na medição anterior.

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ALDO FORNAZIERI
CLUBE DE REVISTAS
Cientista político, professor da Escola de
Sociologia e Política e autor, entre outros,
de Liderança e Poder (Contracorrente)

Duas tragédias

mínio das aristocracias partidárias en- e o fim do Banco Central. Esta propos-
► Diante das urnas, os tra em crise. Em regra, ocorrem retro- ta não é dele, e sim de Milton Friedman,
argentinos serão obrigados cessos, com a ascensão de grupos mais um dos pais do neoliberalismo. Para es-
extremados de direita. Jair Bolsonaro foi se autor, o Federal Reserve seria o grande
a escolher entre um
fruto dessa crise. As distribuições das be- responsável pelas instabilidades mone-
carreirista incompetente nesses do poder durante o governo Dilma tárias dos EUA. Por isso, propunha ape-
e um candidato a ditador Rousseff deixou de satisfazer um campo nas leis que regulamentassem a moeda,
majoritário que poderia dar sustentabi- sem uma autoridade monetária.
lidade ao governo. Michel Temer foi um Milei propõe ainda a dolarização da
gigantesco fracasso. Este primeiro ano moeda argentina. Esta proposta se cho-

A
s eleições presidenciais argen- do terceiro mandato de Lula mostra quão ca com a visão de outra ícone do neolibe-
tinas inscrevem-se no contex- árdua é a tarefa de negociar a distribui- ralismo: Margaret Thatcher. Quando era
to da trágica normalidade da ção dos benefícios do poder e garantir primeira-ministra, ela discursou no Par-
América Latina. Essa trágica normali- uma estabilidade mínima. lamento britânico contra a adesão ao Tra-
dade pode ser definida, sinteticamen- O fenômeno Milei na Argentina é pro- tado de Maastricht, afirmando que, se os
te, como a incapacidade das elites polí- duto do mesmo processo. Nesses momen- ingleses abrissem mão da libra em favor do
ticas, econômicas e dos atores sociais de tos, surgem candidatos de ruptura, antis- euro, estariam abrindo mão da soberania.
produzirem mudanças inovadoras sig- sistema. Bolsonaro foi isso, o que não signi- Ao contrário de Bolsonaro, Milei ado-
nificativas que provoquem uma redu- fica dizer que Milei seja igual a Bolsonaro. ta um libertarianismo extremado: os in-
ção drástica da pobreza, da exclusão so- divíduos são senhores absolutos de suas
cial e da violência. Nem as direitas, nem Escolher entre Sergio Massa e Javier liberdades, das disposições de seus cor-
os centros políticos, nem as esquerdas se Milei é optar por uma entre duas tragé- pos e das escolhas que fazem, inclusive
mostram capazes de mudar a realidade. dias. Massa é um oportunista, um car- sexuais e no uso de drogas. Ele vai além
Quando conseguem dar cinco passos à reirista incompetente. Não se move por do Estado mínimo. O Estado não passa
frente, depois emendam em dez recuos. ideias, e sim pelo apetite do poder pelo po- de uma organização criminosa. Deve-
Os sistemas políticos latino-ameri- der. Como ministro da Economia, está le- ria ser extinto. Por caminhos diferen-
canos estão dominados pelos oligarcas gando ao país uma das maiores inflações tes, Milei prega a mesma antipolítica de
dos partidos, que ditam os termos das da história: 138% ao ano. Já trafegou por Bolsonaro. É um discurso de carteirinha
disputas, as repartições dos orçamentos, vários agrupamentos políticos, segundo as dos candidatos a ditadores. Mas, no po-
os privilégios políticos e os favorecidos conveniências pessoais. Agora é um pero- der, os antissistema sempre aderem ao
econômicos. Os partidocratas, à esquer- nista de direita. O mesmo peronismo que, sistema. Tornam-se oligarcas da parti-
da e à direita, se insularam do social: não com a contribuição do direitista Mauricio docracia, estadocratas e corruptos.
representam grupos sociais organizados, Macri, afundou a Argentina numa crise Bolsonaro foi evidência desse fenôme-
mas eleitores. E esses últimos são captu- social e econômica interminável. Com no. Se Milei vencer, seguirá o mesmo ca-
rados por estratégias de marketing elei- uma dívida impagável, hoje o país tem minho. Só restará recorrer ao espírito do
toral. Os aristocratas partidários que go- quase metade da população na pobreza. falecido cão Canon. Uma tragédia monu-
vernam nas diferentes esferas do Estado Milei é uma tragédia combinada com mental. Por outro lado, se Massa vencer,
são invariavelmente incompetentes, ge- farsa, cinismo e comédia. Trafega do de- nada indica que a Argentina encontre um
ralmente corruptos, bastante demagogos sequilíbrio e perturbação psicológica ao caminho de saída da trágica normalida-
e pouco afeitos à responsabilidade fiscal. misticismo singular, criado por ele, ao se de. Mas ao menos haverá um jogo polí-
Não mudam as estruturas da iniquida- aconselhar com o seu falecido cão. Den- tico mais milongueiro, um pouco mais
de social e da injustiça. Oferecem progra- tro desta confusão, agrega ingredien- previsível, mais enfadonho – uma tragé-
B A P T I S TÃ O

mas sociais compensatórios aos pobres. tes neoliberais: privatizações radicais, dia monumental atenuada. •
Com certa frequência, o sistema de do- desregulamentação geral da economia alfornazieri@gmail.com

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 11
PEDRO SERRANO
CLUBE DE REVISTAS
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Apagão estatal

permissão, sempre através de licitação, a díveis às conveniências básicas da socieda-


► Os serviços públicos prestação de serviços públicos. Quando de. Ademais, o serviço público está sujei-
delegados à iniciativa o Estado resolve delegar a sua prestação to ao regime jurídico-administrativo, bem
através de contratos de concessão de ser- como aos seus princípios norteadores, tais
privada continuam sob viço público, como ocorre com a distri- como o da supremacia do interesse públi-
a responsabilidade buição de energia elétrica em São Paulo, co, o da universalidade e o da continuidade.
do Estado, que tem o dever a relação público-privada deve ser cons- O dever de continuidade na presta-
tantemente fiscalizada. ção do serviço público de energia elétri-
de fiscalizar a atuação A concessão de serviço público é um ca leva-nos a questionar as razões pelas
das concessionárias instituto de Direto Administrativo, atra- quais expressiva parcela da população fi-
vés do qual o Estado atribui a prestação cou tanto tempo sem o serviço. É preciso
de uma atividade de relevante interesse que os órgãos de controle investiguem o
coletivo a alguém que aceita prestá-lo em cometimento de falta grave por parte da

A
cidade de São Paulo vivenciou, nome próprio, mas nas condições fixadas concessionária de serviço público, o que
recentemente, um gravíssimo unilateralmente pelo Poder Público. A ti- pode, inclusive, ensejar a declaração de
e incomum quadro de descon- tularidade da atividade delegada perma- caducidade do contrato administrativo.
tinuidade na prestação do serviço públi- nece nas mãos do Estado, ao qual compe- Regular processo administrativo de-
co de distribuição de energia elétrica. te fiscalizá-la intensamente. ve, assegurados os direitos à ampla defe-
Após eventos naturais que deveriam ser sa e contraditório, aferir se a concessio-
razoavelmente esperados e enfrentados A essencialidade do fornecimento de nária incorreu em incúria na prestação
de forma eficaz, a população paulistana energia elétrica para a população é inques- do serviço delegado, bem como se fez pre-
ficou às escuras por longos e longos dias. tionável. Não se trata de atividade econô- valecer, na sua gestão, propósitos mera-
Tendo em vista que a prestação do ser- mica qualquer, em face da qual a iniciati- mente lucrativos em detrimento das res-
viço público de distribuição de energia va privada, com mero intuito lucrativo, postas tempestivas garantidoras da re-
elétrica ocorre por meio de contrato de pode sujeitá-la aos interesses e às regras gularidade e da continuidade na distri-
concessão de serviço público, realizare- de mercado. Trata-se de serviço público. buição de energia elétrica.
mos, nesta coluna, uma incursão no regi- O professor Celso Antônio Bandeira de Mais especificamente, os órgãos de
me jurídico de delegação dos serviços pú- Mello, em seu Curso de Direito Adminis- controle federais, estaduais e munici-
blicos do Estado para a iniciativa privada. trativo (Ed. Malheiros), conceitua o servi- pais, cada um nos limites de suas atri-
A primeira questão que se coloca é que a ço público como “toda atividade de ofere- buições, devem investigar a atuação da
concessionária demorou muito para res- cimento de utilidade ou comodidade ma- concessionária de serviço público, bem
tabelecer o fornecimento de energia, colo- terial destinada à satisfação da coletivi- como aferir se as obrigações contratuais
cando em xeque planos de contingências dade em geral (...), que o Estado assume estão sendo adequadamente cumpridas.
contra eventos extraordinários razoavel- como pertinente a seus deveres e pres- Não se pode admitir, em hipótese al-
mente previsíveis e em face dos quais de- ta por si mesmo ou por quem lhe faça as guma, o colapso na prestação dos servi-
veria haver uma imediata e efetiva reação. vezes, sob um regime de Direito Público, ços públicos de distribuição de energia
Dada a relevância social dos serviços instituído em favor dos interesses defini- elétrica. Caso um modelo de gestão pri-
públicos concedidos, é dever dos órgãos dos como públicos no sistema normativo”. vado esteja colocando em risco o interes-
estatais promover a fiscalização e, even- Veja-se, portanto, que a noção de ser- se público, é dever dos poderes públicos
tualmente, cominar sanções administra- viço público pressupõe o oferecimento de assumir a prestação direta do serviço ora
B A P T I S TÃ O

tivas em face da concessionária. Com utilidades ou comodidades materiais sin- concedido, sem prejuízo da responsabili-
efeito, incumbe ao Poder Público, dire- gularmente desfrutáveis pelos cidadãos, zação do particular contratado. •
tamente ou sob regime de concessão ou as quais o Estado reputa como imprescin- redacao@cartacapital.com.br

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R EPORTAGEM DE CA PA

Associados do Postalis
protestam em frente
à sede do BNY Mellon
em Nova York

Pelo ralo
VÍTIMAS DE FRAUDE, OS ASSOCIADOS
TEMEM A BANCARROTA DO POSTALIS, FUNDO
DE PENSÃO DOS CORREIOS

por M AU R ÍCIO THUSWOHL

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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O
BNY Mellon é um civil, penal e descortina um drama social mos alinhando a melhor data, ainda neste
típico protagonis- muito grave. Estamos falando de um nú- ano, para a realização do debate”, garan-
ta da saga de Wall mero elevado de brasileiros que sofrem as te o parlamentar, também presidente da
Street, onde, mos- consequências da má gestão do Postalis. Frente Parlamentar Mista em Defesa dos
tram as crises his- São cerca de 500 mil participantes assisti- Correios. Monteiro promete “articular na
tóricas, os lucros dos e suas famílias, o equivalente às popu- base governista ações que possam comple-
são privados e os lações de cidades do porte de Florianópo- mentar os processos que tramitam no âm-
prejuízos, socializados. Sua estrutura lis ou Aracaju, que estão perdendo a saú- bito judicial em relação ao Postalis para
atual surgiu em 2007, resultado da fusão de e a dignidade por culpa dos represen- responsabilizar o BNY Mellon e reaver os
entre o Mellon e o Bank of New York. Es- tantes do BNY Mellon”, denuncia Rober- valores referentes à contribuição dos tra-
se último tem uma história mais longa e val Borges, presidente da Adcap. balhadores para sua previdência”.
conturbada. Fundado em 1784, passou por Em parceria com a Associação dos Apo-

N
diversas mãos e esteve envolvido em um sentados dos Correios (AAC) e a Federa- ão será fácil, a julgar pelo
esquema de lavagem de dinheiro oriundo ção Nacional dos Trabalhadores em Em- descaso do banco, que te-
das privatizações selvagens na Rússia após presas de Correios e Telégrafos (Fentect), ve 250 milhões de reais
a queda do comunismo. O processo durou a Adcap enviou à Câmara dos Deputados bloqueados pela Justiça.
uma década, até ser encerrado em 2005, um pedido de audiência pública para de- Na força-tarefa montada
dois anos antes da fusão com o Mellon. bater a “sustentabilidade” do Postalis. Se- pelo Ministério Público em busca de uma
Atualmente, a instituição, repaginada e gundo a descrição que embasa o requeri- solução negociada, o máximo que o BNY
recuperada dos deslizes do passado, admi- mento, o Plano de Benefício Definido do Mellon aceitou pagar a título de ressar-
nistra 1,7 trilhão de dólares em ativos e é fundo, afetado pela má gestão do BNY cimento foram 400 milhões de reais, se-
uma das maiores do planeta nesse quesito. Mellon, detém hoje ativos avaliados em gundo um dos seus participantes, quan-
Sólido parceiro, certo? Bem, melhor per- 3,1 bilhões de reais, montante que, se- tia irrisória diante do rombo no fundo de
guntar aos associados do Postalis, o fun- gundo as entidades, garante o pagamen- pensão. Além da ação principal, que cor-
do de pensão dos funcionários dos Cor- to das aposentadorias e pensões por, no re em segredo de Justiça, outros 11 pro-
reios. A fundação está à beira da insol- máximo, 36 meses. Ou seja, se nada for fei- cessos contra a instituição norte-ameri-
vência, com um rombo estimado em cer- to para salvar o Postalis, a insolvência se- cana foram movidos pelo Postalis, mas até
ca de 10 bilhões de reais, e os atuais admi- rá decretada em algum momento de 2026. o momento apenas um teve sentença de-
nistradores culpam o banco norte-ameri- O pedido de audiência pública foi pro- cretada em primeira instância. Em maio
cano, entre outros, pela situação falimen- tocolado pelo deputado federal Leonar- do ano passado, a 2ª Vara Empresarial do
tar que pode deixar 500 mil participantes, do Monteiro, do PT, e aprovado por una- Rio de Janeiro condenou o banco a ressar-
entre pensionistas e familiares, a ver na- nimidade em 31 de outubro pela Comis- cir o fundo em 56,7 milhões, em decorrên-
vios. Uma investigação em segredo de Jus- são de Trabalho da Câmara dos Deputa- cia de operações financeiras malsucedi-
tiça corre no Ministério Público Federal. dos. Ainda não se sabe, porém, quando a das em 2011. Cabe recurso.
Para tentar evitar o pior, a interrup- reunião de fato vai acontecer. “A inten- A Comissão de Valores Mobiliários
ção do pagamento das aposentadorias e ção é realizar a audiência de forma con- igualmente aplicou sanções a executivos
demais benefícios, funcionários da ativa junta com a Comissão de Previdência, As- do banco, mas, como é comum nos proces-
e aposentados iniciaram uma campanha sistência Social, Infância, Adolescência e sos em tramitação na autarquia, as puni-
para sensibilizar a Justiça e o governo fe- Família. É um tema de muita relevância ções são insuficientes. Em julho de 2018,
deral. Na próxima quinta-feira 23, está para os trabalhadores dos Correios e esta- a CVM proibiu José Carlos de Oliveira,
marcado um protesto na filial do banco
no Rio de Janeiro. Em setembro, um gru-
po organizado pela Associação dos Pro-
A FUNDAÇÃO COBRA NA JUSTIÇA
fissionais dos Correios (Adcap) realizou
uma manifestação semelhante em Nova OS PREJUÍZOS CAUSADOS PELA MÁ
York, em frente à sede da instituição, em GESTÃO DO BNY MELLON, BANCO
ADCAP/NACIONAL

uma tentativa de constranger a diretoria NORTE-AMERICANO. A INTERFERÊNCIA


e levar o BNY Mellon a sentar-se à mesa
POLÍTICA SÓ PIOROU A SITUAÇÃO
de negociações, ideia rejeitada pelos exe-
cutivos nomeados no Brasil. “A questão é

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R EPORTAGEM DE CA PA

então presidente do BNY Mellon no País,


de atuar no mercado financeiro durante
três anos por irregularidades na gestão do O POSTALIS SÓ TEM PATRIMÔNIO
Pacific Fundo de Investimento Renda Fi- PARA COBRIR 36 MESES DE PAGAMENTO
xa e Crédito Privado, que tinha o Postalis DOS BENEFÍCIOS. O ROMBO PASSA
como cotista único, e multou a institui-
ção nova-iorquina em 7,2 milhões de re-
DE 10 BILHÕES DE REAIS
ais, o equivalente a 10% do valor da opera-
ção. Três meses depois, a comissão abriu
novo processo por fraudes na emissão de lente a 72% dos ativos disponíveis. A CPI rente para os padrões do mercado”, per-
72 milhões de reais em debêntures emiti- apontou ainda aplicações deficitárias rea- mitiu aplicações duvidosas com avalia-
dos pela RO Participações. Em janeiro de lizadas pelo BNY Mellon que contribuí- ções incorretas de ativos, sem laudos ou
2019, a CVM voltou a punir dirigentes do ram para gerar o prejuízo do Postalis, en- metodologia. Vejamos a transação que le-
BNY Mellon e do Postalis pela emissão de tre elas a aquisição de um terreno em Ca- vou à condenação judicial de 2011. O BNY
Certificados de Recebíveis Imobiliários jamar, na Grande São Paulo, a compra de Mellon associou-se ao NSG PG, especiali-
lastreados em papéis podres no valor de títulos da dívida externa da Argentina e zado em Investimentos em Direitos Cre-
101 milhões de reais. Na ocasião, os presi- da Venezuela, a participação em cotas do ditórios, ou seja, em adquirir precatórios
dentes da fundação, Alexej Predtchensky, BVA, banco envolvido em fraudes e que e outros créditos judiciais para renego-
e do banco, José Carlos Xavier de Olivei- foi à falência em 2012, e o investimento na ciá-los com terceiros. Na ocasião, a ins-
ra, acabaram inabilitados por 70 meses. Usina Canabrava, que arrancou 700 mi- tituição norte-americana informou ao
lhões de reais dos fundos de pensão para Postalis que o valor de compra dos direi-

U
ma das bases dos pro- produzir etanol no estado do Rio de Ja- tos creditórios equivaleria a 70,5 milhões
cessos judiciais é o rela- neiro, mas que só deu prejuízo. de reais e a quantia a receber chegaria a
tório da CPI dos Fundos Basicamente, a gestão fraudulenta 170 milhões, lucro considerável. Entre-
de Pensão, aprovado no apontada pela CPI ocorria por um emara- tanto, o banco pagou apenas 13,8 milhões
Congresso em 2015. A co- nhado de fundos de investimento sobre- de reais e deixou de informar aos cotistas
missão constatou a gestão fraudulenta dos postos e obscuros sem a devida supervi- um ágio de 56,7 milhões, “detalhe” que di-
recursos do Postalis e culpou executivos são. A estrutura, descrita pelos procura- minuiu os ganhos da fundação. Segundo
tanto da própria fundação quanto do BNY dores como “complexa e pouco transpa- as investigações, a prática era corriquei-
Mellon pela situação calamitosa. “Os pre-
juízos decorrentes da má administração
financeira do Postalis não se resumiam a
situações pontuais ou mesmo esporádicas
ou que pudessem decorrer unicamente da
imprevisibilidade do mercado”, descreve o
relatório. Tratava-se, na verdade, de “um
problema estrutural de governança” com-
provado pelos números. “O prejuízo de-
corrente da má administração dos recur-
sos somava, no fim de 2014, o montante
de, aproximadamente, 5,6 bilhões de re-
ais, com o especial destaque de que, do re-
ferido valor, a quantia de 3,4 bilhões de re-
ais é oriunda da aplicação de recursos no
mercado de valores mobiliários.”
Àquela altura, a dramática situação,
concluíram os parlamentares, estava ex-
plícita na diferença negativa de 7,7 bilhões
de reais entre o déficit e o patrimônio do
fundo registrado ao fim de 2014, equiva- O plano de recuperação do Postalis exige mais sacrifícios

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ra. “A responsabilidade do banco é eviden-


te, por tudo que se produziu de documen-
tos, das conclusões da CPI, passando pe-
las condenações da Comissão de Valores
Mobiliários, até as ações em curso no Mi-
nistério Público, que apontam e compro-
vam a ocorrência de crimes”, diz Borges.

E
nquanto a Justiça tarda,
os prejuízos para os par-
ticipantes se acumulam.
Segundo as entidades dos
trabalhadores, mais de 10
mil funcionários cancelaram a adesão ao
plano de previdência por falta de condi-
ções de pagar a contribuição extra sobre
os benefícios recebidos ou previstos a re-
ceber, adotada a partir de 2013 e desde en-
tão reajustada anualmente. Outros milha-
res cancelaram o plano de saúde por au-
sência de condições de arcar com a men-
salidade. Todos os participantes do siste-
ma previdenciário pagam, a título de con-
tribuição extraordinária, 19,93% do valor
do benefício para cobrir parte do déficit.
Acrescido de 8,7% de taxa normal esta-
tutária repassada ao Postalis, a mordida
totaliza 28,63% de desconto sobre o va-
lor das aposentadorias. Mas, apesar dos
desembolsos extras dos filiados, o déficit
atual continua na casa dos 10 bilhões de
reais. Estatal patrocinadora do fundo de
pensão, os Correios desembolsam 300 mi-
lhões de reais anuais como contribuição
extraordinária para tapar o buraco pro-
duzido pelas barbeiragens do BNY Mellon.
E há mais sacrifícios à vista. Até o fim
do ano, a diretoria do Postalis pretende
anunciar uma proposta para reequilibrar
as contas do fundo e impedir – ou adiar –
a bancarrota. Tradução: os associados se-
rão chamados a aceitar uma redução dos
benefícios. A pensão por morte deve ser
reduzida de 80% a 100% do valor princi-
pal para 50%. O pecúlio por morte, equi-
valente a dez vezes o montante do paga-
REDES SOCIAIS

mento mensal, será extinto, e haverá um


reajuste de 75% da taxa aplicada sobre o
décimo terceiro. Além disso, as contribui- A CPI dos Fundos de Pensão e uma auditoria independente
ções extras adotadas desde o início da cri- apontaram a gestão fraudulenta do banco norte-americano

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R EPORTAGEM DE CA PA

se se tornarão permanentes e vitalícias e


alçadas a um novo porcentual – 37,53%
para os pensionistas e 26,71% no caso de
aposentados e assistidos. “Com as medi-
das, o Postalis escapará da insolvência
no curto prazo, mas a solução para o cor-
te das contribuições extraordinárias dos
benefícios é uma recuperação em termos
monetários”, diz Fábio Conde, presidente
do Conselho Fiscal do fundo de pensão.

O
Postalis, descreve Conde,
tem hoje um patrimônio
de cobertura de pouco
mais de 3 bilhões de reais
e um déficit ligeiramente
superior a 12 bilhões de reais. “A equação”,
afirma, “implica uma redução de benefí-
cios de pensão e pecúlio e também na vita-
liciedade da contribuição extraordinária.
Os Correios pagarão a metade e os partici-
pantes do plano pagam a outra metade.” O
plano, acrescenta, atacaria os desencaixes
financeiro e atuarial. “O déficit financei-
ro vem basicamente dos problemas com
o BNY Mellon, que, por um determinado
tempo, foi o gestor e administrador fidu-
ciário do plano de benefício continuado.
Ficou claro na CPI que o banco fez uma
gestão fraudulenta e temerária dos inves-
timentos do Postalis, o que veio a gerar, no A aposentadoria e outros benefícios expectativa é de que o atual governo res-
dos funcionários dos Correios e familiares
período até 2017, a maior parte do rombo gate essa dívida (moral) porque os partici-
estão sob risco. São 500 mil prejudicados
financeiro que sofremos hoje e pagamos pantes estão adoecendo e morrendo como
com as contribuições extraordinárias.” consequência do que aconteceu”, diz Luiz
O embate entre o BNY Mellon e o a disputa parar na Justiça. A interferên- Alberto Barreto, ex-presidente da Adcap e
Postalis atravessou diversos governos e cia de nada adiantou. Ao contrário. O pa- ex-diretor do Postalis. A intervenção sob
diretorias do fundo. Iniciado em janei- trimônio da fundação continuou a derre- Temer, afirma Barreto, foi prejudicial à
ro de 2011, primeiro mês do governo de ter no período, descalabro acentuado pe- fundação, por ter realizado a “reprecifica-
Dilma Rousseff, com o objetivo de “admi- lo desinteresse do governo de Jair Bolso- ção” de ativos sem nenhum embasamento
nistrar as carteiras de investimento in- naro em lidar com a situação. técnico, o que causou ainda mais redução
terna e externa do Postalis, a precificação Embora sigiloso, sabe-se que no princi- no patrimônio do plano de benefício conti-
dos ativos, o controle de enquadramen- pal processo em curso no Ministério Públi- nuado. “A intervenção não cumpriu a legis-
to e conformidade das operações, o mo- co aparecem os nomes de políticos envol- lação, no que diz respeito à implementação
nitoramento de risco e a prestação de in- vidos direta ou indiretamente no imbró- de planos de equacionamento. Tal descum-
formações”, o contrato com o banco nor- glio. É o caso do emedebista Edison Lo- primento resultou em prejuízo de, apro-
te-americano começou a ser contestado bão, ex-senador e ex-ministro do gover- ximadamente, 2 bilhões de reais. Outro
pelos funcionários dos Correios em 2014. no Dilma Rousseff. E do ex-Posto Ipiran- ponto a se destacar foi a interrupção das
Uma intervenção pública só ocorreria, ga de Bolsonaro, Paulo Guedes, no passa- ações do Postalis contra o BNY Mellon.”
porém, três anos mais tarde, em 2017, no do sócio do BNY Mellon no Brasil. Outros Integrante do Conselho Fiscal da fun-
mandato-tampão de Michel Temer, após personagens ainda podem surgir. “Nossa dação, Edgard Cordeiro afirma: “O BNY

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Mellon precisa ressarcir os empregados


dos Correios para não ter seu processo jul-
gado e, se condenado, ser obrigado a sair da OS ASSOCIADOS E A DIRETORIA
Bolsa de Nova York”. Cordeiro cita um pe- DO FUNDO QUEREM O APOIO DOS
dido do procurador Luiz Costa, autor da CORREIOS E DO GOVERNO FEDERAL
Ação Civil Pública do Ministério Público,
para que o banco recompre as cotas de in-
PARA RECUPERAR O PREJUÍZO
vestimento do Postalis pelos valores infor-
mados pela própria instituição, num total
de 6,2 bilhões de reais a serem corrigidos do BNY Mellon, pois há condenações na paração. Acreditamos que todos estarão
pela inflação. “Que o BNY Mellon devolva CVM e na Justiça. A posição de institui- do nosso lado, para o Postalis conseguir
também 1,2 milhão de reais indevidamen- ções como os Ministérios das Relações recuperar esses investimentos malsuce-
te cobrados do fundo como taxas de admi- Exteriores, da Fazenda e da Justiça po- didos.” O plano de ajuste, acrescenta, é o
nistração em sobreposição. E, por conta de agilizar uma conclusão”, diz o presi- pontapé inicial da recuperação definiti-
do grave dano moral causado aos partici- dente da Adcap. Já o presidente do Con- va do fundo de pensão. “O novo equacio-
pantes, que pague 20 mil reais a cada um.” selho Fiscal do Postalis acredita em um namento que está prestes a ser implanta-
ambiente político mais favorável à solu- do vai permitir a retomada do equilíbrio.

O
s associados da funda- ção da crise: “Esperamos que as direções Com esse novo equacionamento, teremos
ção esperam agora con- do fundo e dos Correios possam usar a in- um balanço sem ressalvas e o plano terá
tar com o apoio do go- fluência política que têm para fazer pres- liquidez e solvência, já que suas reservas
verno federal. “Os atuais são sobre o BNY Mellon e levar a uma ne- matemáticas serão recalculadas. A dire-
dirigentes do Postalis e gociação com o Ministério Público”. toria executiva está otimista.”
também dos Correios têm demonstra- Presidente do Postalis desde abril, Ca- O BNY Mellon estabeleceu um novo pa-
do boa vontade para resolver os prejuízos milo Fernandes afirma que sua gestão es- tamar de falta de transparência. Nem a as-
causados pelo banco, mas há demora exa- tá totalmente comprometida na operação sessoria de imprensa do banco se dignou a
gerada nas providências”, diz Cordeiro. de salvamento do fundo. “A diretoria, os atender aos pedidos de esclarecimento de
Em agosto, revela o conselheiro, Fabiano Correios, as associações, os sindicatos e CartaCapital. O presidente dos Correios
Silva Santos, presidente da estatal, pro- as federações estão unidos e focados em também não se pronunciou até o fecha-
meteu ingressar com uma ação contra o resolver os problemas que ocorreram nas mento desta edição. Arrolado como parti-
BNY Mellon. Cumpriu a promessa? “Não gestões anteriores. A patrocinadora tem cipante no requerimento de audiência pú-
temos conhecimento de nada concreto se empenhado em contribuir para a solu- blica sobre o Postalis, o ministro Vinícius
até o momento.” ção dos problemas.” A fundação, emenda Marques de Carvalho, da Controladoria-
Borges também cobra atenção do Po- Fernandes, vai recorrer a quem tem poder -Geral da União, informou, por intermé-
der Executivo: “Necessitamos de enga- de decisão. “Contamos com o governo e dio de sua assessoria, que “até o momen-
jamento do Estado brasileiro na questão com o Congresso para conseguir uma re- to não foi comunicado sobre o assunto”. •
S E N A D O, P O S TA L I S E A C Á C I O P I N H E I R O /A G . B R A S Í L I A
WA S H I N G T O N C O S TA / M E , E D I L S O N R O D R I G U E S /A G .

Fernandes tenta colocar a casa em ordem. Lobão e Guedes costeiam o alambrado

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Seu País

Parente é serpente
PODER A briga dos irmãos Cid e Ciro Gomes provoca uma
cisão no PDT do Ceará e ameaça contaminar todo o partido
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A

A
briga política, jurídica e fa- Ceará, Cid passou a comandar o diretório a intervenção como um ato “autoritário.”
miliar dos irmãos Ferrei- estadual e aprovou, em agosto, uma car- “Se não há a conciliação, o que deve
ra Gomes arrasta-se por ta de anuência que liberava o presidente prevalecer é o sentimento da maioria. O
um ano e meio no Ceará e da Assembleia Legislativa, Evandro Lei- PDT do Ceará dividiu-se. Tentou-se ao
abala as estruturas do tão, a deixar a agremiação sem perder o máximo fazer uma reconciliação, mas
PDT, partido trabalhista criado por Leo- mandato, ferindo o princípio da fidelida- eles não desejam isso. Querem, sendo
nel Brizola há mais de 40 anos. No auge, de partidária. A decisão abre brecha para minoritários, comandar o partido. Isso
a legenda chegou a ter 18 deputados fede- que outros parlamentares façam o mes- não é razoável, a minoria tem de se con-
rais só pelo estado do Rio de Janeiro. Ho- mo, o que provocou uma reação imedia- formar em ser minoria. Comandar o par-
je, a bancada completa na Câmara conta ta da ala “cirista”, que judicializou o caso. tido, me perdoe, não é razoável. E a dire-
com 17 parlamentares representando as ção nacional deveria se esforçar para fa-
27 unidades da federação e corre o risco O clima esquentou ainda mais após zer uma unificação e, quando não conse-
de perder ao menos quatro deles, caso o Cid tentar aprovar o apoio formal do PDT guir, precisa respeitar a decisão da maio-
senador Cid Gomes vença a batalha jurí- ao governo Elmano de Freitas, do PT. Fi- ria”, defendeu-se Cid Gomes, acusando
dica e resolva deixar o PDT cearense, le- gueiredo suspendeu sua licença do dire- Figueiredo de ser parcial na condição de
vando consigo todo o seu grupo político. tório cearense, destituiu Cid e reassumiu presidente nacional da legenda. “O sena-
Dos cinco deputados federais pelo esta- o comando local do partido. Nova ação ju- dor pode sair na hora que quiser, ele não
do, quatro são “cidistas” (além de um su- dicial e uma liminar devolveram ao sena- tem mais clima de permanecer no PDT.
plente), assim como dez dos 13 estaduais dor a condução da legenda. A partir daí, os E os parlamentares vão ter de ou judicia-
(e outros três suplentes) e mais de 40 dos ciristas levaram o caso para a Executiva lizar a carta de anuência ou aguardar o
55 prefeitos pedetistas. Caso isso se con- Nacional, que, no fim de outubro, resol- prazo da janela que é março de 2026”, re-
cretize, é grande o risco de o PDT veu intervir no PDT cearense. Acionada bateu André Figueiredo, demonstrando
cearense ser dizimado, enfraquecendo o por Cid, a Justiça derrubou a intervenção. que o PDT vai cobrar a fidelidade parti-
partido também em nível nacional. Ele alega que as decisões tomadas quando dária de seus parlamentares e brigar na
A possibilidade dessa debandada foi pa- esteve à frente do partido foram aprova- Justiça por esses mandatos.
rar na Justiça, em uma queda de braço en- das pela maioria do diretório e classificou Na terça-feira 14, Cid reuniu-se com
tre Cid Gomes e o deputado federal André mais de 40 prefeitos para discutir a pos-
Figueiredo, ligado a Ciro Gomes. Presi- sibilidade de desfiliação do PDT, uma vez
dente estadual do PDT, Figueiredo licen- que, diferentemente dos deputados, elei-
ciou-se do cargo, em junho, para assumir tos no sistema proporcional, os prefeitos,
interinamente a presidência do PDT na-
Ao menos quatro assim como o próprio senador, não preci-
cional, depois que Carlos Lupi se afastou deputados federais sam de anuência do partido para se des-
para comandar o Ministério da Previdên- cogitam abandonar filiar e, portanto, não correm o risco de a
cia no governo Lula. Vice da legenda no o partido trabalhista legenda pedir o mandato de volta. Segun-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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TAMBÉM pág. 22
NESTA Cracolândia. A Prefeitura
SEÇÃO fecha o último hotel social do
programa De Braços Abertos

tas não aceitavam a indicação de Cláudio


e colocavam como condição para a ma-
nutenção da coligação a candidatura de
Izolda. Derrotado internamente, Cid não
teve participação ativa na campanha de
Cláudio e, agora, defende a adesão do par-
tido ao governo Elmano de Freitas, o que
levou Ciro a chamá-lo de “traidor”. A su-
cessão de Fortaleza também coloca Ciro
e Cid em lados opostos. O ex-presidenciá-
vel defende a reeleição do prefeito José
Sarto, enquanto o senador quer lançar
Evando Leitão, que deve se filiar ao PT.

“O núcleo duro do PDT há muito tem-


po estava sob o comando dos irmãos e ca-
da um cumpria um papel muito específi-
co dentro do grupo. Enquanto Cid cuidava
das questões domésticas, mais internas,
sendo um artífice da coalizão e, portan-
to, tendo um bom trânsito com deputados
e prefeitos, Ciro cuidava mais das ques-
tões nacionais, dos grandes projetos. Por
muito tempo eles concordaram e cami-
nharam juntos. Em algumas eleições pon-
tuais, havia ali algumas divergências, mas
nada passível de uma crise como a que a
gente vê agora”, analisa a socióloga Mona-
lisa Torres, pesquisadora e professora da
Universidade Estadual do Ceará.
“O PDT está se descaracterizando, di-
minuindo. Há gente boa lá ainda, mas é
do Cid, o grupo está avaliando duas alter- Disputa fratricida. As rusgas se minoria e não ocupa cargos de impor-
nativas: permanecer no PDT e lutar para aprofundam desde a eleição de 2022 tância, porque nesses o Lupi colocou
renovar o diretório por mais quatro anos a família e os amigos mais chegados. A
ou sair coletivamente. “O que está acon- crise no Ceará tem a ver com os desar-
tecendo é uma aberração. O grupo do se- bral, e Lúcio Gomes, da Companhia Do- ranjos do partido ao longo do tempo. Se
nador está indo contra a Justiça Eleitoral, cas do Ceará, estão do lado de Cid. tivesse alguém com autoridade política
que diz que o mandato pertence ao par- Esta crise tem origem nas eleições do no PDT, não teria chegado a esse ponto
WA L DEMIR BA RRE TO/AG. SEN A DO

tido. Está atuando contra o interesse do ano passado e foi potencializada com a briga de Ciro e Cid. Faltou consistência
próprio PDT. Se ele quer seguir outro ca- a aproximação do pleito municipal de política do partido e, agora, vemos uma
minho, tudo bem, mas os trâmites da Jus- 2024. Em 2022, o PDT lançou para go- crise aguda que não terá solução sem al-
tiça e da legalidade no PDT serão respeita- vernador Roberto Cláudio, ex-prefeito guns danos. O PDT perdeu o fio da his-
dos”, defende Roberto Viana, cirista e in- de Fortaleza, em detrimento da então tória, Lupi deixou para trás o viés traba-
tegrante dos diretórios estadual e nacio- governadora Izolda Cela. Cláudio é liga- lhista de Brizola e levou o partido para
nal. No núcleo familiar, Lia Gomes, depu- do a Ciro e Izolda, a Cid. O racha implodiu o fisiologismo”, critica Vivaldo Barbo-
tada estadual, Ivo Gomes, prefeito de So- a aliança entre PDT e PT, pois os petis- sa, ex-pedetista e brizolista histórico. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 21
CLUBE DE REVISTAS
Seu País

Melancólica
logradouro, e Cleiton Ferreira é um bom
exemplo. Aos 44 anos, Dentinho, como
é conhecido, reinventou-se e hoje traba-

despedida
lha como agente de redução de danos no
Centro de Convivência É de Lei, além de
ser ator e artista plástico.
Em uma caminhada pela região, três
CRACOLÂNDIA A prefeitura de São Paulo dias após o despejo, Dentinho reencon-
fecha o último hotel remanescente tra antigos vizinhos. Descobre que Alceri e
Denis voltaram a viver em situação de rua.
do programa De Braços Abertos Combinam de manter contato, para tentar
buscar um novo espaço. No hotel, que che-
POR MARIANA SER AFINI
gou a abrigar 55 pessoas no início do proje-
to, ainda viviam 13 hóspedes. Destes, ape-

P
nas seis foram realocados em novas mo-
or oito anos, tive um CEP Parte das depauperadas edificações tam- radias, informou a prefeitura por meio de
" na Rua do Triunfo. Por bém oferecia refúgio a traficantes de dro- nota. “A Vida era uma senhora que man-
mais que fosse uma mo- gas, justificativa utilizada para as demo- tinha contato com a família, as netas dela
radia provisória, eu tinha lições, que abriram espaço para grandes vinham visitá-la aqui de vez em quando.
um endereço fixo. Fui re- empreendimentos imobiliários. Poucos Desde sexta, não sabemos onde ela está.”
alocado em outro espaço na Praça da Re- hotéis sociais do De Braços Abertos per-
pública, mas lá tenho hora para entrar e maneceram ativos. O emedebista Ricar- A Vigilância Sanitária alega que o espa-
sair e não posso deixar os meus perten- do Nunes cuidou de lançar a pedra final. ço estava impróprio para habitação. “Cla-
ces”, lamenta Cleiton Ferreira, despeja- Ou melhor, um bloco de concreto, seme- ro que estava degradado. Desde 2017, a
do do hotel New Luz na sexta-feira 10, lhante ao que hoje impede o acesso dos an- prefeitura não fazia manutenção alguma”,
quando a Vigilância Sanitária lacrou as tigos moradores do New Luz. denuncia Malu Gama, assessora da verea-
portas da pensão que, por quase uma dé- No passado, a Rua do Triunfo chegou a dora petista Luna Zaratini, que acompa-
cada, acolheu frequentadores da Cra- abrigar o principal núcleo cinematográ- nhou a retirada dos moradores. No edifí-
colândia paulistana. O espaço era o últi- fico do País. Em meio à malandragem e à cio de dois andares, ficaram para trás ob-
mo hotel social remanescente do progra- prostituição que rodeavam as antigas es- jetos que não puderam ser levados, devi-
ma De Braços Abertos, que, inspirado tações ferroviárias da Luz e Sorocabana, do à pressa da polícia em executar a ordem
nas bem-sucedidas experiências inter- circulavam diretores, atores e roteiristas de despejo, comunicada na noite anterior.
nacionais como o housing first, oferecia renomados. Hoje, o local é um símbolo da Um dos quartos seguia com um pôster dos
moradia, trabalho e tratamento a depen- degradação do Centro de São Paulo. An- Beatles na parede. Em outro, havia uma
dentes químicos sem exigir, como con- tigos palacetes dos anos 1920 foram ocu- sacola com roupas. “Vi muitas pessoas
trapartida, abstinência completa. pados por trabalhadores sem-teto. Os es- se transformarem aqui. Alguns chega-
O programa foi lançado em 2014 pelo túdios foram transformados em depósi- ram sem nem lembrar como se usava um
então prefeito Fernando Haddad, do PT, tos, estacionamentos e comércios à bei- banheiro, depois de tantos anos moran-
mas durou pouco, apenas três anos. Su- ra da falência. Mas a vida ainda pulsa no do na rua. Vários conseguiram afastar-
cessor do petista na administração muni- -se das drogas e se estabelecer num tra-
cipal, o tucano João Doria incumbiu-se da balho”, relata o dono da pensão, José dos
missão de derrubar a maior parte das pen- Anjos Oliveira. “Aqui, eles eram livres, en-
sões existentes na região da Cracolândia, travam e saíam quando queriam. O afas-
tanto as que abrigavam dependentes quí-
A maior parte tamento das drogas veio de forma natu-
micos com recursos da prefeitura quanto dos desalojados ral, com acompanhamento psicológico.”
as que ofereciam uma alternativa de mo- voltou a viver em Foi o que aconteceu com Dentinho.
radia barata aos trabalhadores do Centro. situação de rua Aos 30 anos, ele estava sem trabalho e

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Redenção. Cleiton Ferreira, o Dentinho, morou


por oito anos na pensão, onde conseguiu superar
a dependência química e viver com dignidade

sem perspectivas, afundado em depres- se vida aqui.” Do New Luz o artista guar- gar nenhum, mas na dança me sentia con-
são pela morte da mãe. Vivia na casa de da boas e más recordações. “No começo, fiante”, recorda. Nos anos de rua, conse-
familiares, mas começou a abusar de foi complicado. Muitas pessoas conviven- guia algum dinheiro com livros usados.
substâncias químicas e a convivência do num mesmo espaço gera conflitos”. Ao “Comprava nos sebos e revendia na Ave-
tornou-se cada vez mais difícil. “Minha conquistar um quarto próprio, a situação nida Paulista, ou aqui no fluxo mesmo.”
droga sempre foi o álcool. Depois, vieram melhorou significativamente. Dentinho A partir do Centro de Convivência É
a cocaína e todo o resto”, diz o artista, tinha de tudo: tevê, air fryer, micro-ondas, de Lei, foi convidado a integrar um pro-
que dormiu debaixo das marquises pau- notebook para trabalhar de casa, uma ca- jeto de pesquisa da Unifesp sobre “vulne-
listanas por dois anos. Frequentador da ma e muitos livros. Apaixonado por HQs rabilidades e reinvenções na pandemia
Cracolândia, ficou cego de um olho du- e jogos, recorda-se com alegria do dia em de Covid-19”. A coordenadora do estudo,
rante uma violenta dispersão dos usuá- que conseguiu comprar um videogame. Nana Foster, recorda com carinho a che-
rios de drogas pela Polícia Militar. Uma “Guardo a nota fiscal de tudo, para não gada de Dentinho. “Ele trouxe um olhar
bomba estourou próxima ao rosto dele. ser acusado pela polícia de receptação.” que nenhum pesquisador da universida-
Hoje, Dentinho continua frequentando de conseguiria ter, era nosso interlocu-
o fluxo, mas para tentar resgatar outras Filho de um trabalhador da constru- tor com o território.” Sem endereço fixo,
pessoas da dependência química. Cami- ção civil e uma dona de casa vindos do in- Dentinho agora guarda seus pertences
R E N AT O L U I Z F E R R E I R A

nha com tranquilidade e firmeza, e se or- terior da Bahia, Dentinho enfrenta difi- no Centro É de Lei e na casa de amigos. “A
gulha de conhecer o centro histórico co- culdades desde a infância. Queria ser dan- prefeitura quer que minha vida caiba nu-
mo a palma da mão. “O problema não é o çarino, mas o pai dizia que o Axé não era ma mochila, enquanto tudo que eu mais
uso da droga em si, mas a pobreza. Ten- “coisa de homem”. “Uma criança preta, quero é ter estabilidade, conquistar mi-
tam apagar do mapa um lugar onde vivem pobre, com um óculos fundo de garrafa e nha casa, ter um espaço para cozinhar e
milhares de pessoas, como se não existis- os dentes tortos não se sente bem em lu- receber meus amigos.” •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 23
CLUBE DE REVISTAS
Economia

Papel decisivo P
rimeiro diretor de Transição
Energética da Petrobras,
Mauricio Tolmasquim acre-
dita que a estatal petrolífera
tem condições de liderar esse
ENTREVISTA A Petrobras tem todas as processo no País, aumentar as parcerias
condições de liderar a transição energética locais, ampliar as encomendas ao parque
produtivo doméstico e manter sua tradi-
do País, garante Mauricio Tolmasquim ção de grandes inovações tecnológicas. Ex-
-presidente da Empresa de Pesquisa Ener-
A C A R LO S D R U M M O N D
gética e professor aposentado da pós-gra-
duação em Engenharia da Coppe/UFRJ,
Tolmasquim apresenta, na entrevista a se-
guir, as principais diretrizes da empresa,
antes da definição do plano estratégico pa-
ra o período de 2024 a 2028.

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 36
NESTA Belluzzo. Camufladas, as ideias
SEÇÃO do mercado manipulam opiniões
para beneficiar os poderosos

CartaCapital: Qual é a relação en- de demanda, porque se apostará em algu-


tre as estratégias de transição energé- mas áreas e produtos novos, como hidro-
tica da Petrobras e do Brasil? gênio verde, eólica offshore, biocombustí-
Mauricio Tolmasquim: A Petrobras vel e diesel renovável, e é preciso ter um
é a maior empresa brasileira, faz inves- grau de certeza de que haverá procura, pe-
timentos muito expressivos e, por con- lo preço em que serão produzidos. Se o die-
ta disso, tem todas as condições de lide- sel renovável da Petrobras, o Diesel R, com
rar a transição energética no Brasil. É a 5% de óleo vegetal, destinado ao transpor-
maior consumidora e também a maior te rodoviário, não entrar na lei do Com-
produtora de hidrogênio gerado de fon- bustível do Futuro, cria-se um problema
tes fósseis do País, uma forte candidata a de falta de demanda para o produto e um
alavancar o desenvolvimento dessa área. risco para a empresa, porque houve inves-
CC: Qual é o estágio da transição timentos em um novo processo de refino.
energética na Petrobras, em compara- CC: O petróleo demorou décadas pa-
ção com grandes petroleiras mundiais? ra aumentar de 5% para 50% a sua par-
MT: No que diz respeito à descarboniza- ticipação no mix de combustíveis utiliza-
ção das suas atividades, a Petrobras está Economia. O ritmo das mudanças dos no mundo. A mesma demora deverá
avançada em relação a empresas de ou- dependerá dos marcos regulatórios se repetir na transição energética atual?
aprovados, avalia Tolmasquim
tros países. Onde está atrasada é na par- MT: É diferente. No caso do petróleo, a
te de descarbonização do seu portfólio, mudança foi devida a questões econômi-
que consiste em introduzir novos pro- cas, tecnológicas e de facilidade de utili-
dutos com menos conteúdo de carbono. daquilo que for regulamentado. Há tam- zação, que o tornaram mais competitivo.
CC: Em que ritmo será a mudança? bém o risco tecnológico. Serão adotadas Agora, não é só uma questão econômica,
MT: Depende muito da regulamentação. A tecnologias novas, por exemplo, na área mas de políticas, em nível mundial, para
eólica offshore, por exemplo, tem um Pro- de hidrogênio, e dependemos da viabili- fomentar a transição. Há países proibin-
jeto de Lei no Congresso e só poderemos dade econômica dessas tecnologias e de do, a partir de um certo ano, a venda de
começar a investir quando ele for aprova- que elas tenham a eficiência esperada. Ou- veículos movidos a combustível carburan-
do. O mar é uma área da União, que tem tro risco é o de reputação, é fundamental te. Nos EUA, o Inflation Reduction Act dá
de conceder ao investidor o direito de ex- que aquilo que for definido seja realmente incentivo de 7 mil dólares para quem com-
plorar. Da mesma forma, a captura e ar- realizado no prazo estipulado. Existe ain- pra carro elétrico, o que torna essa opção
mazenamento de carbono a União tem de da o risco financeiro. A transição energé- competitiva. Hoje 45% da demanda de pe-
conceder. A Petrobras tem atuado nos lo- tica precisa de investimentos significati- tróleo está relacionada ao setor automo-
cais de exploração já concedidos e quere- vos em novas tecnologias, infraestrutura, tivo e tornar o carro elétrico competitivo
mos caminhar para outras áreas, fora dos com retorno para a empresa sem abalar a tem um impacto enorme. Ocorreu tam-
nossos campos de petróleo, mas, para is- sua saúde financeira. Por fim, há o risco bém uma grande queda dos preços das
so, tem de haver uma concessão. Também energias eólica e solar, que tornou com-
FR A NCISCO DE SOUZ A /AGÊNCIA PE T ROBR AS

na área de hidrogênio, o marco regulató- petitiva a eletricidade dessas fontes. A ca-


rio estabelece o critério para o hidrogênio pacidade instalada disparou. Entre 2015 e
ser considerado verde. Ou para um inves- 2022, a geração de energia fotovoltaica au-
E CENPES/AGÊNCIA PE T ROBR AS

timento ser considerado de baixo carbono. “A estatal conseguiu mentou mais de 400%. A produção de car-
CC: Quais são os principais riscos da capturar 10 bilhões ros elétricos cresceu 2.000% nesse perío-
transição energética da empresa? de toneladas de gás do. A velocidade de transição para as ener-
MT: O primeiro deles é o risco regulatório. gias renováveis não vai demorar tanto.
carbônico em 2022,
A transição energética depende de legisla- CC: As parcerias para investimentos
ções, regulamentações e metas governa- o equivalente a 25% incluirão as empresas locais, inclusive
mentais para a redução da emissão de car- do volume mundial”, no desenvolvimento de tecnologia?
bono. A velocidade do processo depende diz diretor da estatal MT: A Petrobras tem um histórico de enor-

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 25
CLUBE DE REVISTAS
Economia

me contribuição para a economia nacio- “Na geração offshore, Por fim, as prioridades incluem a energia
nal. No ano passado, recolheu quase 150 eólica, onshore e offshore, energia solar
bilhões de reais em tributos, e apenas nes-
os ventos são mais onshore, hidrogênio e captura e armaze-
te primeiro semestre, foram 120 bilhões. É fortes e constantes. namento de carbono. A Petrobras captu-
a força motriz da cadeia de energia nacio- Isso permite uma rou 10 bilhões de toneladas de gás carbô-
nal e catalisadora do setor de equipamen- produção de energia nico em 2022, o equivalente a 25% de tu-
tos, dada a exigência de conteúdo local. No elétrica mais estável” do que tinha sido capturado no mundo.
novo governo, mostra uma preocupação CC: Como a Petrobras conseguiu
grande com os fornecedores locais e isso atingir um quarto da captura mundial?
vai ocorrer também na transição energéti- MT: O petróleo do pré-sal tem um con-
ca. Ao entrar nessa área, a Petrobras ajuda teúdo de gás carbônico muito alto e isso,
a fomentar a indústria nacional, a promo- de, a partir de fontes renováveis, de hidro- do ponto de vista ambiental, inviabiliza-
ver a geração de empregos e a desenvolver gênio azul, a partir de fósseis, mas captu- ria a produção petrolífera. O Cenpes de-
tecnologias por meio de parcerias com em- rando e armazenando o hidrogênio, e de senvolveu um mecanismo para separar o
presas nacionais, startups e fornecedores captura e armazenamento de carbono. gás carbônico do gás natural e injetar no
locais, que ajudam a desenvolver soluções CC: Quais são as prioridades da reservatório de petróleo. Fica capturado
locais. A companhia também mantém um Petrobras na transição energética? lá. Teve outra vantagem, porque se des-
programa de pesquisa e desenvolvimento MT: As prioridades são biocombustíveis, cobriu que, ao injetar o gás contendo gás
que alavanca programas de pesquisa em diesel renovável para a área rodoviária, carbônico e um pouco de água, se conse-
universidades brasileiras, instituições de produção de combustíveis avançados pa- gue extrair mais petróleo do reservatório.
pesquisa e empresas nacionais. ra aviação, com 100% de uso de óleo vege- CC: Qual é o motivo de se fazerem in-
CC: Em quais tecnologias de descar- tal. Está em teste um navio afretado com vestimentos em eólicas offshore, quan-
bonização o Brasil pode desempenhar 24% de biodiesel com muitos bons resul- do o custo dessa modalidade é três ve-
um papel de liderança, como ocorreu na tados. Destaque-se também a produção de zes superior ao das eólicas onshore?
exploração em águas ultraprofundas? substitutos para petroquímicos utilizados MT: Na geração offshore, os ventos são
MT: A Petrobras tem condição de ser a em- na produção de borracha sintética, náilon mais fortes e constantes, e isso permite
presa que vai tornar viáveis algumas das e PVC. A nossa Refinaria Riograndense es- uma produção de energia mais estável.
tecnologias que hoje estão na ponta, como tá operando 100% com óleo vegetal e pro- Além disso, a Petrobras tem tradição de
as de biocombustíveis, de hidrogênio ver- duzindo náilon, PVC e borracha sintética. atividades no mar e há sinergia em logís-
tica, know-how e capacidade humana, o
que leva todas as grandes petroleiras do
mundo que atuam na área onshore para
a eólica offshore. Finalmente, o mecanis-
mo para tornar os geradores mais eficien-
tes implica utilizar torres mais altas e
com pás e demais componentes maiores,
e em terra já se atingiu o limite, que é de
7 gigawatt (GW). As estradas não permi-
tem transportar pás muito grandes. Na
China, já há geradores offshore de 14 GW.
CC: Há perspectiva de aumento do
investimento em gás? Vaca Muerta, na
Argentina, é uma boa oportunidade?
RPR /AGÊNCIA PE T ROBR AS

MT: Vaca Muerta é uma das maiores re-


servas de gás de xisto do mundo, oferecen-
do um potencial significativo para a pro-
dução de gás natural. Vários investidores
têm demonstrado interesse, devido à sua
Exemplo. A Refinaria Riograndense opera 100% com óleo vegetal e produz náilon e PVC extensão e ao potencial de produção. •

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PIL AR VELLOSO. FOTOS: ISTOCKPHOTO

CLUBE DE REVISTAS

ESPECIALPAC
Reindustrialização
em base sustentável
POR ROBERTO ROCKMAN
1
C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 1 27
CLUBE DE REVISTAS
Especial PAC

INDUSTRIA VERDE
DESCARBONIZAÇÃO A transição ecológica abre nova janela para o
Brasil prosperar, inovar e fazer sua parte na preservação do planeta

A
s temperaturas no planeta são de poluentes rumo a uma economia fontes renováveis em sua matriz energé-
registram sucessivos recor- de baixo carbono passa pelo Brasil, o que tica, a média mundial não passa de 14%.
des neste ano. Setembro e abre oportunidades para o País adicio- A diferença é ainda maior se comparada
outubro foram os mais nar valor agregado à indústria verde. A com os países mais desenvolvidos, filiados
quentes da história, desde o transição energética é um dos eixos prin- à Organização para a Cooperação e Desen-
início das medições. O Acordo de Paris, cipais do Ministério de Minas e Energia volvimento Econômico, cuja participação
firmado por mais de 190 nações, em 2015, no âmbito do Novo Programa de Acelera- de fontes renováveis é de meros 11%. Se na
com a meta de limitar o aquecimento glo- ção do Crescimento, o PAC. Estão previs- China, na Índia e nas economias desenvol-
bal até o fim do século a 1,5 grau, torna- tos 540,3 bilhões de reais em investimen- vidas o carvão tem papel de destaque, no
-se cada vez mais uma quimera. Estudo tos. Enquanto o Brasil tem mais de 48% de Brasil, as hidrelétricas, as usinas solares
recente da Organização Meteorológica e eólicas e o etanol despontam.
Mundial indica probabilidade de 66% de “O Brasil pode tornar-se uma potên-
esse limite ser ultrapassado nos próxi- Só o Ministério de cia descarbonizante no mundo”, afirma
mos cinco anos. Neste contexto, a partir Minas e Energia prevê Luiz Augusto Barroso, presidente da con-
de 30 de novembro será realizada a 28ª sultoria PSR. A matriz baseada em fontes
Conferência das Partes, em Dubai, nos
investimentos de limpas faz com que muitas empresas pre-
Emirados Árabes Unidos. 540 bilhões de reais tendam investir para reduzir sua pega-
O caminho da redução global de emis- da de carbono ou olhar novas tecnologias

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

como o hidrogênio verde e o combustível Dianteira. Líder na produção de energia renovável, o Nordeste atrai montadoras
sustentável de aviação. No caso da fonte como a BYD, de carros elétricos. A região também será um hub de hidrogênio verde
solar, o Brasil acumula 34 gigawatts de
potência instalada, de acordo com dados
da Associação Brasileira de Energia So-
lar Fotovoltaica. Segundo o Operador Na-
cional do Sistema, a fonte, centralizada e
distribuída, responde por 15% da geração,
porcentual estimado em 24% até 2027.
“O potencial é muito grande”, diz Bar-
bara Rubim, vice-presidente da Absolar.

O uso do vento também tem ganha-


do espaço na matriz elétrica, com desta-
que para os projetos no Nordeste, deten-
T I A G O S A N TA N A / G O V C E E F E I J Ã O A L M E I D A / G O V B A

tor de cerca de 90% da potência instalada.


O Brasil ocupa atualmente o sexto lugar
no ranking mundial de capacidade insta-
lada de energia eólica onshore (terra), com
26 gigawatts. Em 2012, estava em 15º lu-
gar. Com ventos contínuos e intensos, as
usinas eólicas nordestinas chegam a ope-
rar em boa parte do tempo com fator de
capacidade superior a 60%, dobro da mé-
dia mundial. As instalações eólicas, até
junho de 2023, foram de 2,3 gigas, 44,5%
das adições à matriz elétrica nacional.
“O Brasil poderá usar a matriz para rein-

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 1 29
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Especial PAC

dustrializar cadeias produtivas”, proje-


ta Elbia Gannoum, presidente-executiva
da Associação Brasileira de Energia Eóli-
ca. O potencial está também no alto-mar.
Enquanto o governo sinaliza com a re-
gulação para as eólicas offshore até o fim
do ano, empresas se movimentam para in-
vestir nesse novo segmento. Foram proto-
colados cerca de 200 gigawatts em proje-
tos no Instituto Brasileiro do Meio Am-
biente e dos Recursos Naturais Renová-
veis. Entre os interessados está a Petro-
bras, em busca da ampliação no mercado
de renováveis, via eólicas offshore e usinas
solares. “A Petrobras precisa olhar para a
transição energética e descarbonizar pro-
cessos”, acentua Mauricio Tomalsquim,
diretor de transição energética da estatal.

Em setembro, a companhia anunciou


os pedidos de licenciamento de dez áreas
marítimas para a instalação de estrutu-
ras de energia eólica com potência de 23
gigawatts. Das dez áreas marítimas, se-
te ficam no Nordeste (três no Rio Gran-
de do Norte, três no Ceará e uma no Ma-
ranhão) e as demais estão localizadas no vo PAC e investimentos de 323 bilhões vas viáveis de baixo carbono. A Petrobras
Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rio de reais nos próximos anos, a Petrobras tem planos de produzir combustível de
de Janeiro. Para liderar o novo segmen- tem uma série de projetos além das eóli- aviação sustentável em uma planta de-
to, a empresa firmou parceria com a Weg, cas offshore. Outra frente é o combustível dicada de biorrefino ao lado da refinaria
fornecedora de motores elétricos, para de aviação sustentável, produzido, entre Presidente Bernardes, na paulista Cuba-
o desenvolvimento de um aerogerador outros, com matérias-primas biológicas, tão. “Vamos construir uma unidade de
capaz de produzir 7 megawatts de ener- resíduos sólidos municipais ou gases re- refino dedicada a óleos vegetais só para
gia, o maior a ser fabricado no Brasil. “Is- siduais de indústrias. O setor contribui combustível de aviação, também com pa-
so marca a entrada efetiva da Petrobras com ao redor de 2% das emissões globais tente do Centro de Pesquisa, Desenvol-
no segmento de energia eólica offshore”, de gás carbônico e é um dos mais desafia- vimento e Inovação”, descreve Tolmas-
diz o presidente, Jean Paul Prates. A pe- dores para descarbonizar, devido à longa quim. “Somos um ator fundamental pa-
troleira investirá 130 milhões de reais no vida útil dos aviões e à falta de alternati- ra prover esse combustível sustentável
projeto, em andamento. O acordo abran- para o mundo.”
ge o desenvolvimento de tecnologias pa- A demanda potencial futura é grande.
ra a fabricação dos componentes do ae- Multinacionais A União Europeia busca estimular o mer-
rogerador, adequados às condições eó- interessadas em cado. A partir de 2025, todos os aviões
licas do País, bem como a construção e melhorar seus índices que partirem de um aeroporto europeu
testes de um protótipo, com contrapar- deverão conter uma parcela mínima de
tidas técnicas e comerciais para a estatal.
de emissão tem no combustível renovável. Segundo o acor-
A WEG prevê que o equipamento poderá Brasil uma opção do, a porcentagem de SAF a ser mistura-
ser produzido em série a partir de 2025. competitiva da com o querosene começará com 2%
Com 47 propostas incluídas no no- em 2025 e passará a 6% em 2030, 20%

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

to ambiental, o projeto geraria cerca de


5 mil empregos na fase de construção. O
setor ainda aguarda a regulação, em de-
bate no Congresso. Para Paulo Alvaren-
ga, CEO da Thyssenkrupp South Ameri-
ca, o Brasil tem uma janela de oportuni-
dade para ser aproveitada, usando o mer-
cado doméstico como impulso. “O País é
um grande importador de fertilizantes
e é grande potência agrícola, então po-
de fomentar a reindustrialização verde.”

Os projetos mais avançados de hidro-


gênio verde no Brasil estão localizados
no Nordeste, com destaque para Ceará,
Bahia e Pernambuco. O potencial solar
e eólico da região, a proximidade com os
mercados da Europa e dos Estados Uni-
dos e terminais portuários com capaci-
dade de receber grandes navios têm fei-
to os nove estados nordestinos largarem
na frente na corrida por atração de inves-
timentos na tecnologia. Há outra variá-
vel relevante: a União Europeia anun-
ciou, em maio, a meta de importar 10 mi-
lhões de toneladas de hidrogênio verde
em 2035, 34% em 2040 e 70% até 2050. Futuro. Elbia Gannoum, até 2030. Um dos portos definidos como
O Brasil tem condições de se tornar um da Abeeolica, e Bárbara Rubim, estratégico para a importação é o de Ro-
da Absolar, representam setores
grande produtor e exportador global de terdã, na Holanda, o maior da Europa e
cruciais à reindustrialização
combustível de aviação sustentável, por acionista do terminal de Pecém.
meio de algumas das possíveis rotas tec- O primeiro projeto operacional de hi-
nológicas certificadas, graças à abundân- drogênio verde no Brasil foi lançado, em
REDES SOCIAIS E RICARDO MARAJÓ/PREFEITURA DE CURITIBA

cia de resíduos agrícolas, florestais, ou a Bloomberg, é um dos poucos capazes de 14 de dezembro de 2022, pela EDP em uma
partir do etanol de segunda geração. oferecer hidrogênio verde a um custo in- unidade de geração térmica da empresa
Outra possibilidade que se abre é o hi- ferior a 1 dólar por quilo até 2030. em São Gonçalo do Amarante, no Ceará.
drogênio verde, que desponta nos próxi- A mineradora australiana Fortescue Resultado de investimentos em pesquisa e
mos anos como uma das principais pro- não tem produção relevante de metais desenvolvimento de 41,9 milhões de reais,
messas de energéticos para a descarboni- no Brasil, mas planeja um investimento a planta contempla uma usina solar com
zação da economia. Com uma matriz na bilionário em hidrogênio verde no por- capacidade de 3 megawatts e um módulo
qual os renováveis como hidrelétricas, to de Pecém, no Ceará. No início de no- eletrolisador para a produção do combus-
solares e eólicas respondem por mais de vembro, a multinacional recebeu a pri- tível com capacidade para produzir 250
80% da eletricidade gerada, o País é um meira licença prévia do hub. O projeto da Nm3/h do gás. Isso permite à EDP, dona
dos líderes mundiais nesse setor. A com- empresa poderá somar 5 bilhões de dóla- da Termelétrica Pecém 1, que gera 620 me-
petitividade em energia renovável pode res em investimento, tem potencial pa- gawatts de energia produzida com carvão
conferir uma vantagem na produção de ra produzir 837 toneladas de hidrogê- mineral, que substitua motores auxiliares
hidrogênio verde, pois o custo da energia nio verde por dia a partir do consumo à base de óleos pesados. O empreendimen-
renovável é de 70% daquele da produção de 2,1 mil megawatts de energia renová- to deverá responder por cerca de 10% do
do energético. O Brasil, segundo estudo da vel. De acordo com o estudo de impac- consumo total da unidade. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 1 31
CLUBE DE REVISTAS
Especial PAC

POR OUTRAS ROTAS


TRANSPORTE Diversificar as alternativas
e reduzir a dependência das rodovias nunca foi
tão determinante para o futuro da economia

P
aís de dimensões continen- Orçamento-Geral da União e 201 bi- dovias planejadas (9,1%). Já em termos de
tais, o Brasil nunca conse- lhões em investimentos privados, que qualidade da infraestrutura, no compa-
guiu elevar a eficiência da incluem concessões. A expectativa é de rativo global pelo Índice de Competitivi-
malha de transporte à altu- que obras de rodovias e ferrovias gerem dade Global, produzido pelo Fórum Eco-
ra das exigências da compe- mais de 1 milhão de empregos até 2026. nômico Mundial em 2019, o Brasil posi-
tição internacional. As estradas sempre Em 2022, estima-se, o Brasil possuía cionou-se em 116º lugar entre 141 países.
foram dominantes e respondem atual- 1,72 milhão de quilômetros de rodovias. Segundo a Pesquisa da Confedera-
mente por 65% do volume de cargas e Desse total, 213,5 mil quilômetros esta- ção Nacional de Transportes de Rodo-
95% dos passageiros. No novo PAC, es- vam pavimentados (12,4% do total), 1,35 vias 2022, da extensão total avaliada, de
tão previstos 280 bilhões de reais para milhão de quilômetros não pavimenta- 110.333 quilômetros, 72.763 quilômetros
o setor, 79 bilhões em recursos saídos do dos (78,5%) e 157,3 mil quilômetros de ro- (66%) apresentaram algum tipo de pro-

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Modais. Entre os projetos no 605 quilômetros de rodovias do Lote 2 do os trilhos respondem por 21,5% da movi-
portfólio, destacam-se duas ferrovias Paraná, que interliga Curitiba, o litoral, a mentação de cargas, porcentual que po-
a serem conectadas à Norte-Sul
região dos Campos Gerais e o norte do derá subir para 40% na próxima década.
estado. O Consórcio Infraestrutura arre- O principal produto escoado é o minério
matou o lote e investirá mais de 17 bilhões de ferro, e 91% do volume exportado che-
blema. Aproximadamente, 25% desse to- de reais nas rodovias ao longo dos próxi- gou aos portos brasileiros por trilhos. O
tal foi classificado, em estado geral, como mos 30 anos. O projeto abrange diversas modal ferroviário também responde pe-
ruim ou péssimo, segundo a CNT. melhorias, incluindo a duplicação de 350 lo transporte de mais de 42% de grãos.
O desafio nesse caso é melhorar a qua- quilômetros e a adição de 139 quilômetros Apesar de o transporte de minério e car-
lidade das estradas que cortam o País, de faixas extras. As concessões continua- vão representar perto de 67% da circula-
otimizando a fluidez e a segurança. O rão. A intenção do governo federal é de le- ção sobre trilhos, a diversificação de car-
custo total estimado dos acidentes ocor- var a leilão no primeiro semestre de 2024 gas transportadas tem aumentado. Des-
ridos em rodovias federais em 2022 foi de mais dois lotes de rodovias no Paraná: um de 1997, a movimentação de contêineres
12,9 bilhões de reais. O valor é pratica- abrange 561,97 quilômetros, passa por ci- cresceu quase 165 vezes, alta média anual
mente 100% maior do que todo o inves- dades como Londrina e Ponta Grossa e de 22,7%. Em 2022, foram mais de 575 mil
timento público federal aplicado no ano prevê investimentos de 8,1 bilhões de re- TEUs (unidade equivalente a um contêi-
passado na malha pública (6,51 bilhões) ais. O outro tem uma extensão total de ner de 20 pés) transportados por ferro-
e representa um aumento de quase 800 662,18 quilômetros e corta os municípios vias, uma evolução positiva de 19% em
milhões em relação a 2021. de Pato Branco, Cascavel e Guarapuava, relação a 2021. Para aumentar a partici-
Além de perdas de vidas, as más con- com investimentos de 8,5 bilhões de reais. pação ferroviária na matriz de transpor-
dições das rodovias têm peso sobre o tes, trabalha-se na construção da Ferro-
bolso: empresas do transporte rodoviá- Na última semana de novembro, se- via de Integração Centro-Oeste (Fico),
rio de cargas podem ter um acréscimo rá realizado o leilão de um trecho da cujas obras são executadas pela Vale co-
de, em média, 33,1% no custo opera- BR-381/MG de 304 quilômetros entre mo contrapartida à prorrogação anteci-
cional que teriam, caso as rodovias es- Governador Valadares e Belo Horizon- pada do contrato de concessão da Estrada
tivessem em melhor estado. Estudo da te. A concessão terá duração de 30 anos e de Ferro Vitória-Minas à mineradora. A
CNT aponta que estradas em condições os investimentos ultrapassam 10 bilhões previsão de conclusão é de até cinco anos.
ruins representam um custo de, aproxi- de reais. Já nos dois primeiros anos de A ferrovia interligará os polos pro-
madamente, 4,89 bilhões de reais para concessão, em torno de 1,1 bilhão devem dutores de grãos do Centro-Oeste até a
os transportadores de cargas e de passa- ser investidos para a realização dos tra- Norte-Sul. Com 888 quilômetros de ex-
geiros no Brasil, uma vez que se estima balhos iniciais de recuperação e requa- tensão, sendo 383 de Mara Rosa (GO) a
um consumo adicional e desnecessário lificação do pavimento, além de melho- Água Boa (MT) e 505 de Água Boa a Lucas
de 1,072 bilhão de litros de diesel. rias na sinalização vertical e horizontal. do Rio Verde (MT), a Fico escoará a pro-
O governo tem buscado nas conces- Em ferrovias, um dos destaques é a dução de soja e milho do centro-norte do
sões melhorar o quadro. No fim de agos- construção de duas linhas que deverão se estado de Mato Grosso, maior região pro-
to, foi realizada a primeira licitação de interligar à Norte-Sul, o que ampliará as dutora de soja do Brasil, em direção aos
lotes de rodovias do Paraná controladas opções no centro do País, aumentando a portos de São Luís, Santos ou Paranaguá.
EDSOM LEITE/MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES

pela União. O Grupo Pátria foi o vence- possibilidade de o agronegócio usar o cor- Também está no PAC a Ferrovia de Inte-
dor do leilão do primeiro lote, que faz co- redor sobre trilhos para exportação. Hoje, gração Oeste-Leste (Fiol), que ligará o fu-
nexão entre o porto de Paranaguá, a Re- turo porto de Ilhéus, no litoral baiano, a
gião Metropolitana de Curitiba e a Ponte Figueirópolis, no Tocantins, onde se co-
da Amizade, na fronteira com o Paraguai. No caso das nectará com a Norte-Sul. A conclusão da
Com oferta de desconto de 18,25% na ta- ferrovias, a meta Fiol está prevista para 2027. O corredor
rifa por quilômetro rodado, o grupo arre- logístico visa permitir o escoamento para
é dobrar a
matou 473 quilômetros e deverá investir o mercado externo do minério de ferro do
7,9 bilhões de reais em obras de melhorias participação na sul da Bahia, além de possibilitar o trans-
e manutenção em trechos das rodovias. circulação de cargas porte ferroviário de grãos do oeste baiano
Em setembro, foi a vez da licitação dos ao porto, em direito de passagem. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 1 33
CLUBE DE REVISTAS
Especial PAC

Autonomia futura. O Brasil negociou


a transferência de tecnologia na
compra dos caças da sueca Gripen

dos principais projetos do setor incluí-


dos no Programa de Aceleração do Cres-
cimento, que prevê 52,8 bilhões de dóla-
res nos próximos anos. A principal vanta-
gem do submarino nuclear é que ele po-
de ficar muito mais tempo submerso do
que os movidos a diesel, pois gera ener-
gia pela quebra de núcleos atômicos e dis-
pensa o oxigênio necessário para a quei-
ma do diesel. Assim, o submarino nuclear
pode ficar imerso por meses a fio, enquan-
to o convencional precisa se aproximar da
superfície para recarregar as baterias. O
projeto, que envolve parceria e transfe-
rência de tecnologia com o governo fran-
cês, deve ser concluído em 2029.

Nos ares, o principal destaque foi a


inauguração da linha de produção do caça
Gripen, no interior de São Paulo, em maio.
A fábrica da Embraer na paulista Gavião
Peixoto receberá o programa de transfe-

TERRA, MAR E AR
rência de tecnologia da produção do caça
aéreo firmado com o governo da Suécia.
Em parceria com a empresa sueca Saab,

DEFESA A modernização dos


a Embraer produzirá, com engenheiros
e técnicos brasileiros, 15 das 36 unidades
equipamentos das Forças Armadas previstas. A linha de montagem é a única
existente fora da Suécia e abre portas pa-
é um dos eixos de investimento ra tornar o Brasil um centro de produção
e exportação de caças. O contrato para o

A
desenvolvimento e a produção foi firmado
importância crescente do sa de Pesquisa Energética, a extração de em outubro de 2014. A previsão é de que,
Brasil no cenário am- petróleo e gás deverá crescer pouco em 2027, a última aeronave seja entregue.
biental e energético mun- mais de 80% até 2030. A produção de O Exército projeta, por sua vez, a com-
dial tem feito o governo petróleo deve saltar de 2,9 milhões de pra de 714 viaturas blindadas para mo-
buscar melhorar o moni- barris por dia em 2021 para 5,2 milhões dernizar sua frota ao longo dos próxi-
toramento das fronteiras e investir na em 2029, volume mantido em 2030 e mos anos. Em agosto, foram adquiridos
S G T. J O H N S O N / F A B

modernização da indústria de defesa, 2031. O aumento é oriundo do pré-sal. 20 veículos especializados. O modelo re-
com iniciativas de transferência de tec- Em outubro, a Marinha deu o pontapé siste a disparos de armas de calibre 5.56
nologia para fortalecer as companhias na etapa inicial da construção de um sub- mm e 7.62 mm, além de estilhaços de ar-
brasileiras. Segundo o Plano Decenal de marino nuclear, que deve ser o primeiro tilharia, minas e explosivos, e possui ca-
Expansão de Energia 2031, da Empre- da frota das Forças Armadas. Esse é um pacidade para rebocar até 42 toneladas. •

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
CLUBE DE REVISTAS
Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de
Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai,
e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Samuel e o acordo com a U.E.

Isso nos traz para o presente, que é o dir modificações a um acordo vasto, in-
► A negociação repete a que interessa mais. Samuel, como eu, de- trusivo e visto como pronto, ou pratica-
Alca, enterrada por Lula, ve estar dando os proverbiais “arrancos mente pronto. O espaço não permite ex-
triunfais de cachorro atropelado” por plicar bem o assunto. Remeto à versão
e acaba com a indústria causa do avanço, no governo Lula, do online deste artigo.
acordo Mercosul–União Europeia. Pois, Até agora, pelo que sei, o governo le-
pasmem, esse acordo é essencialmente vantou apenas dois pontos: 1. Busca evi-

Q
uero escrever hoje sobre Sa- igual ao da Alca e não se compreende, tar ou atenuar o “protecionismo verde”
muel Pinheiro Guimarães e portanto, que o mesmo presidente Lula dos europeus, modificando as cláusulas
um tema candente, ligado a ele, continue a dar seguimento a uma nego- ambientais e questionando a side letter.
que se abate neste momento sobre nós – ciação desse estilo – e, destaque-se, con- 2. Tenta alterar o capítulo de compras
a negociação de um péssimo acordo en- cluída no essencial em 2019 pelos gover- governamentais com o intuito de pre-
tre Mercosul e União Europeia, em ple- nos Bolsonaro e Mauricio Macri, com to- servar alguma margem para direcionar
no governo Lula. das as deficiências que isso acarreta. as licitações públicas a produtores na-
O leitor ou leitora conhece Samuel Pi- O resultado da negociação dos gover- cionais. São pontos positivos, mas lon-
nheiro Guimarães? Se não conhece, de- nos Bolsonaro e Macri com a UE foi tão ge, muito longe de serem suficientes pa-
ve declarar de pronto uma imensa lacuna ruim, mas tão ruim, que um negociador ra tornar esse acordo palatável para nós.
cultural. Imensa, mas não imperdoável. europeu chegou a dizer: “We have in a O acordo Mercosul/União Europeia, a
A verdade é que no Brasil não é incomum way got away with murder on this deal”, exemplo da Alca e de outros acordos fei-
que grandes figuras sejam esquecidas, ao o que em tradução livre significa – o acor- tos por países desenvolvidos com satéli-
passo que nulidades totais, dedicadas a do é tão favorável a nós que equivale a um tes da periferia, afeta de forma negativa
prestar serviço a interesses estrangeiros assassinato. diversos aspectos da economia. Pratica-
e às camadas tupiniquins locais, são ce- mente inviabiliza uma política de rein-
lebradas em prosa e verso. O acordo só não foi assinado durante o dustrialização e desenvolvimento.
Samuel é um desses brasileiros que período Bolsonaro porque o governo bra- Resta saber se o presidente e seus mi-
ainda não receberam o reconhecimento sileiro adotou políticas na área ambiental nistros estão bem informados sobre o
que merecem. Trata-se de um dos maio- que terminaram por inviabilizar a sua fi- acordo e conscientes do risco que esta-
res diplomatas da sua geração, talvez o nalização. Era previsível que a questão se mos correndo. A negociação vem sendo
maior. Além de ser um grande servidor recolocaria, como de fato ocorreu, se Lu- conduzida, sobretudo, segundo se noti-
público, construiu e constrói uma vasta la fosse eleito em 2022. Além disso, os eu- cia, pelo segundo ou terceiro escalão do
obra intelectual. ropeus apresentaram, em 2023, um pro- Ministério das Relações Exteriores e do
O momento culminante da sua ação tocolo adicional ou side letter, reforçando Ministério do Desenvolvimento, Indús-
prática foi como vice-ministro das Re- as exigências na área ambiental e configu- tria e Comércio. A vingar esse acordo, o
lações Exteriores, na gestão Celso Amo- rando de forma ainda mais clara o que se primeiro ministério deveria ser rebatiza-
rim. Entre muitas outras batalhas, des- poderia chamar de “protecionismo verde”, do de Ministério do Subdesenvolvimen-
taco a que levou ao arquivamento da Área a imposição de barreiras ao comércio sob to; e o segundo precisaria mandar seus
de Livre Comércio das Américas – a Alca, o pretexto de proteger o meio ambiente. diplomatas de volta aos bancos escolares.
uma proposta dos Estados Unidos que te- O que fez o governo Lula? Retomou Não conversei com Samuel recente-
ria sido desastrosa para nós. Juntamente as negociações, aceitando como ponto mente, mas tenho certeza de que ele con-
com Celso Amorim e Adhemar Bahadian, de partida o pacote herdado de Bolso- cordaria com essas recomendações exas-
B A P T I S TÃ O

trabalhou com firmeza e habilidade pa- naro. O Mercosul ficou, assim, na posi- peradas. •
ra impedir a concretização desse acordo. ção intrinsicamente desfavorável de pe- paulonbjr@hotmail.com

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 35
CLUBE DE REVISTAS
Economia

derrotadas depois das escaladas neoli-

Ideologia berais que avassalaram o mundo depois


de Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

e economia
Na era neoliberal, os “cientistas” empe-
nhados em percorrer os labirintos da ou-
trora denominada Economia Política re-
fugiaram-se nas casamatas que enclau-
PODER Camufladas, as ideias do mercado suram o conhecimento nas enxovias do
manipulam opiniões e beneficiam poderosos saber absoluto.
Em delírio subpositivista, um econo-
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO mista do mainstream sugeriu que as nar-
rativas (ideologias?) não podem desmen-
tir os fatos, como se os “fatos” da vida so-
cial não fossem inseparáveis das narra-

E
m suas sempre oportunas di- Em sua obra-prima Ideologia e Uto- tivas sobre eles. Desgraçadamente pa-
gressões no site GGN, Luis pia, Karl Manheim apostou na pereniza- ra a matilha de cães raivosos que emi-
Nassif cuidou de examinar ção do ambiente social, cultural e políti- tem latidos na Economia, os humanos
um artigo escrito por pes- co que acompanhou a posteridade da Se- formulam narrativas para configurar a
quisadores de Cambridge. gunda Guerra Mundial. “Agora é bastan- “realidade’. Escravos da linguagem, os
Evelyne Hubscher, Thomas Sattler e te claro que somente em um mundo inte- bípedes falantes estão sempre diante de
Marcos Wagner investigam as relações lectual em rápida e profunda mudança as uma disputa de narrativas, significados,
entre austeridade e polarização política. ideias e os valores, antes considerados fi- até mesmo quando escolhem instrumen-
O tema é crucial para a compreensão xos, poderiam ter sido submetidos a uma tos de comprovação empírica dos fatos
das relações entre política e economia, crítica minuciosa. Em nenhuma outra si- que pretendem narrar.
dirão alguns. Desconfio que a impor- tuação os homens poderiam estar sufi-
tância do tema transcenda essa visão e cientemente atentos para descobrir o ele- Um exemplo de procedimentos duvido-
caminhe na direção do desvendamento mento ideológico em todo pensamento. É sos pode ser encontrado na ideia de supe-
das relações entre o poder das ideias e as verdade, é claro, que os homens lutaram rávit fiscal estrutural que trata de elimi-
ideias do poder. contra as ideias de seus adversários, mas nar os efeitos do ciclo econômico nas re-
O escritor italiano Marco D’Eramo pu- no passado, em sua maioria, eles o fize- ceitas do governo. Nesse procedimento
blicou, em 2020, o livro Dominio, que tra- ram apenas para se agarrar aos seus pró- estão embutidas ideias peregrinas.
ta das estratégias adotadas pelos empre- prios absolutos de forma mais teimosa. Orsola Costantini, economista sênior
sários conservadores nos Estados Uni- Hoje, há demasiados pontos de vista de do Institute for New Economic Thinking,
dos para enfrentar a guerra das ideias. igual valor e prestígio, cada um mostran- expõe as hipóteses dos mercados a respei-
D’Eramo usa propositadamente a expres- do a relatividade do outro, para nos per- to do orçamento e das finanças públicas.
são guerra de ideias, e não debate de ideias. mitir tomar qualquer posição e conside- Camufladas em uma aura técnica e cien-
Ele justifica a escolha depois de analisar o rá-la inexpugnável e absoluta.” tífica, essas hipóteses são transformadas
manual da contrainteligência das Forças As esperanças de Manheim foram em ferramentas para garantir a perma-
Armadas Americanas. Reza o manual: “A nente “tendência ao equilíbrio” da eco-
forma cultural mais importante para as nomia monetário-financeira capitalista.
forças Coin (contrainsurgência) é enten- Nas catacumbas do Orçamento Ci-
der a narrativa... Narrativas são os meios O famigerado ajuste clicamente Ajustado repousa o concei-
pelos quais as ideologias são expressas e to de equilíbrio. Esse é o conceito domi-
absorvidas pelos indivíduos em uma so-
transformou-se nante na teoria econômica que obscure-
ciedade (...). Ouvindo narrativas, as for- em uma ferramenta ce a compreensão do capitalismo como
ças Coin podem identificar o núcleo dos para justificar economia monetário-financeira em per-
valores-chave da sociedade”. cortes seletivos manente movimento.

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Políticos e funcionários dos governos vez no fundo do abismo, e mais de 6 mi- Interesses. As turbulências financeiras de
têm se valido do conceito de orçamento lhões de desempregados corriam pelas 2008 deixaram claro que os economistas
ciclicamente ajustado para limitar a dis- ruas em busca de sustento, prontos pa- midiáticos defendem o sistema falido
porque são pagos pelos bancos
ponibilidade de políticas que pareçam vi- ra seguir um guia providencial que os ti-
áveis para a comunidade. Gestores públi- rasse da miséria. Quando penso no chan-
cos podem, dessa forma, evitar o aborre- celer Brüning, fico atordoado! Mostrou,
cimento de tomar responsabilidade polí- mais uma vez, uma compreensão da situ- “Se houver fábricas não utilizadas, má-
tica por suas escolhas: Nós temos de fa- ação que desafiava a inteligência, ao esco- quinas não utilizadas e estoques não uti-
zer! O orçamento determina! lher este momento para acentuar ainda lizados, também deve haver capital não
mais a sua política de deflação, preocu- utilizado. Mobilizar esse capital com em-
Por rádio, televisão e jornal, as pessoas pado com seu único objetivo: alcançar a préstimos (ao governo) seria um empre-
são “informadas” que precisam se sacri- todo o custo um equilíbrio nas finanças endimento sem esperança. A confiança
ficar, aceitar cortes nos gastos sociais e públicas! Ele, provavelmente, queria que pública na capacidade do Estado foi pre-
menos direitos e benefícios trabalhistas, o país morresse, mas com boa saúde... Fe- judicada por governos anteriores (Schacht
ou encarar a destruição da economia – lizmente, Hindenburg acabou demitindo faz menção aos temores despertados pela
tudo em nome da ciência econômica. Brüning, a quem o povo havia apelidado hiperinflação de 1922/23). Eu tinha, por-
Caberia aqui, a menção a um episódio de ‘o chanceler da fome’. Era maio de 1932. tanto, de encontrar uma maneira de mo-
da história econômica que ilustra as con- Tarde demais, o estrago estava feito”. bilizar esse capital jacente nos depósitos
sequências sociais da visão equilibrista. O estrago provocado pela austeridade e nos bolsos onde ele estava guardado,
Vou me valer da narrativa de Hjalmar do equilibrista Brüning resultou na as- sem esperar que ele continuasse parado
REDES SOCIAIS

Schacht, o economista que coordenou a censão do Partido Nacional-Socialista por muito tempo ou pudesse perder o seu
recuperação da economia alemã depois nas eleições de 1933. Convidado para re- valor. A partir desse pensamento surgiu o
da trombada da Grande Depressão: tomar o comando da economia, Hjalmar esquema que mais tarde se tornou conhe-
“A economia alemã estava mais uma Schacht refletiu: cido como Mefo-Bills (Letras Mefo)”. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 37
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

No olho mecânico
OBSERVATÓRIO DAS ELEIÇÕES Dividida entre dois projetos
opostos, a Argentina decidirá no voto a voto seu futuro
P O R L EO N A R D O AV R I T Z E R E A N D R ES S A R OVA N I *

O
s surpreendentes resulta- te e passou para o segundo turno como dos argentinos. Assim como ocorreu nas
dos tanto das eleições pri- candidato mais votado do país, à frente eleições primárias e no primeiro turno,
márias, em agosto, quanto de Milei. O próprio fato de Massa ser o mi- as pesquisas divergem ao capturar as pre-
do primeiro turno das elei- nistro da Economia em um governo cuja ferências do eleitor. Grande parte sinali-
ções argentinas, em outu- situação econômica é desastrosa impõe, za que o nome do próximo presidente ar-
bro, abriram uma série de interrogações no entanto, uma série de impasses ao seu gentino está no que conhecemos aqui co-
em relação aos principais atores políticos desempenho no segundo turno. mo margem de erro: alguns institutos in-
no país. De um lado, a coalizão de centro- Milei conseguiu o feito de não avançar dicam Milei numericamente à frente na
-direita conhecida como Cambiemos, que nenhum ponto entre sua performance ab- disputa, outros têm Massa como líder,
elegeu Mauricio Macri para a Presidência solutamente excepcional nas eleições pri- mas identificar um eventual vencedor é
em 2015, foi certamente a principal der- márias e sua performance decepcionan- um desafio estatisticamente arriscado.
rotada, nas primárias e no primeiro tur- te no primeiro turno. Mas, com o apoio A pesquisa Celag, feita presencial-
no. Macri apostou na candidata com me- recebido de Bullrich e Macri, chega ao mente com 2.005 eleitores entre 25 de
nos viabilidade, Patricia Bullrich, derro- segundo turno posicionado para dispu- outubro e 8 de novembro, coloca Massa
tada no primeiro turno, tirando do jogo tar a eleição no voto a voto, como parece numericamente à frente da disputa, com
político o candidato centrista que tinha ser o que ocorrerá no próximo domingo. 50,8% das preferências contra 49,2% de
mais capacidade de enfrentar Javier Mi- Milei, considerando-se apenas os votos
lei. Ao mesmo tempo, ele movimentou-se As quatro semanas que separam o pri- válidos. A margem de erro da pesquisa
em direção a Milei e, com isso, dividiu seu meiro do segundo turno eleitoral não bas- é de até 2,2 pontos porcentuais. Um da-
partido ao perder apoio tanto de integran- taram para dissipar o horizonte turvo que do destaca-se, porém: ao serem questio-
tes da União Cívica Radical como de mais a Argentina descortinou em outubro. Des- nados sobre quem acham que vencerá a
moderados, caso de Horacio Larreta, que ta vez, a incerteza no cenário é sustenta- disputa, os argentinos apontam Massa
disputou com Bullrich a indicação da co- da por três fatores. O primeiro é a dificul- com folgada margem. Já o levantamen-
alizão para a eleição. dade que pesquisas de opinião pública en- to feito no início do mês pela consultoria
Os peronistas mostraram uma enorme frentam para retratar e mensurar o desejo AtlasIntel por meio digital indica empa-
resiliência e capacidade de recuperação te técnico entre os candidatos no limite
e confirmaram o motivo pelo qual são a da margem de erro, de 2 pontos porcen-
espinha dorsal da política argentina. Ser- tuais. Neste caso, Milei lidera com 52%
gio Massa, depois de praticamente ficar As pesquisas não das intenções de votos válidos.
de fora da disputa pelo primeiro turno e Entre os jovens de até 24 anos, Milei
ser o primeiro candidato peronista desde
conseguiram captar atinge espantosos 61% das intenções de
a redemocratização a ter menos de 30% as reais intenções voto e é maioria nas preferências do elei-
dos votos em uma eleição primária, con- do eleitorado. A torado masculino. Quando se olha para o
seguiu uma recuperação surpreenden- incerteza prevalece total dos eleitores – ou seja, considerando-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 44
NESTA The Observer. Os EUA
começam a imaginar o que seria
SEÇÃO um segundo mandato de Trump

Massa depenou
Milei no debate.
Fará diferença?

-se também os votos brancos, nulos e in- que declararam não ter votado ou que in- bom desempenho de Massa serve agora
decisos –, Milei tem o apoio de 48,5% dos validaram o voto no primeiro turno, 32% para alimentar expectativas.
eleitores, mas apenas 38,4% dos argenti- pretendem agora votar em Milei e outros Quarenta anos depois da eleição que
nos acreditam que ele cumprirá a promes- 22% preferem Massa. E cerca de um quar- marcou o retorno do sistema democráti-
sa de dolarizar o sistema monetário, uma to dos eleitores de Bullrich, principal der- co à Argentina, dois projetos opostos co-
de suas principais bandeiras. Outros 30% rotada do primeiro turno, decidiram não locam o regime à prova. Só Massa ofere-
afirmaram não saber avaliar se essa é uma votar em ninguém. ce as garantias necessárias para impedir
proposta que pode ser levada a cabo. que retrocessos democráticos, oportu-
Um segundo pilar nesse cenário é sobre E aqui entra em jogo o terceiro ponto. nisticamente justificados pelo desespe-
quem deve, de fato, comparecer às urnas Em busca dos eleitores indecisos, os dois ro socioeconômico, tomem o país de as-
no próximo domingo. Com 77% de parti- candidatos se enfrentaram, no domingo salto. E em uma Argentina dividida, ca-
cipação do eleitorado, a taxa de abstenção 12, em um debate ao vivo, dando início da voto importa. •
bateu recorde histórico no primeiro tur- à semana decisiva para a Argentina. Um
no, apesar de subir 7 pontos porcentuais Milei menos despenteado e mais acuado *Leonardo Avritzer é professor titular
em relação às primárias. Quase um quarto duelou com um ministro da Economia de Ciência Política da UFMG, doutor em
preferiu se eximir de escolher entre o can- treinado para emparedar seu rival. A au- Sociologia Política pela New School for Social
Research e coordenador do INCT-IDDC.
didato governista de um país enredado em diência do evento, promovido pela Justi- Andressa Rovani é jornalista e doutoranda
uma longa crise econômica, um outsider ça Eleitoral, atingiu 47 pontos, sem con- em Ciência Política pela Unicamp.
de extrema-direita que se construiu sobre siderar as transmissões via streaming, e, O Observatório das Eleições na Argentina
L U I S R O B AY O / P O O L / A F P

um discurso antipolítica e uma candidata segundo a mídia local, atraiu mais espec- é um projeto internacional do Instituto da
que não soube tirar proveito das fraquezas tadores do que a final da Libertadores en- Democracia, sediado na UFMG e coordenado
de seus dois principais adversários. Em tre Boca Juniors e Fluminense. Sem pes- por Leonardo Avritzer. Envolve uma equipe
de pesquisadores de diversas instituições e
uma disputa tão acirrada, qualquer osci- quisas de opinião que possam captar o universidades, no Brasil e na Argentina, e tem
lação neste índice pode ser o elemento de- eventual impacto do debate nas prefe- como objetivo central acompanhar as eleições
finidor. Segundo a AtlasIntel, dos eleitores rências dos argentinos, entretanto, o presidenciais no país vizinho

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 39
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Aposta suicida
ENTREVISTA Netanyahu não pondera que
a guerra pode espraiar para o Líbano
e a Síria, observa pesquisador francês
A L E N EI D E D UA R T E- P LO N , D E PA R IS

P
esquisador do Instituto Do- Régis Morelon: Macron não entende
minicano de Estudos Orien- nada do conflito israelo-palestino. De-
tais do Egito e especialista pois, ele ainda tentou buscar algum cré-
em história das ciências ára- dito junto aos países árabes, mas seu
bes, Régis Morelon conhece apoio a Netanyahu foi tão absoluto que
com profundidade a situação política do ninguém mais o leva a sério.
Oriente Médio. Morou na Argélia, no Lí- CC: O que mudou de 2014 para cá?
bano, na Síria e viveu por 27 anos no Cai- RM: É quase a mesma situação. Os aten-
ro. Chocado com o apoio de François tados do Hamas viraram pretexto para
Hollande ao bombardeio israelense em bombardear Gaza indiscriminadamen-
Gaza em 2014, escreveu uma carta ao te. Israel é dominado pela vingança, mas
presidente, comparando o território pa- a retaliação desproporcional pode fa-
lestino ao Gueto de Varsóvia. zer a opinião pública mundial se voltar
Após os ataques do Hamas em 7 de ou- contra eles. Ao contrário das outras ve-
tubro, ele acompanha com apreensão o zes, fala-se muito do direito internacio-
desproporcional revide israelense, que, nal ignorado por Israel. Antes, ninguém
segundo sua avaliação, ameaça a exis- cobrava isso.
tência do próprio Estado de Israel. Para CC: Um pouco antes do 7 de outu-
o especialista, os ventos da opinião pú- bro, o psicanalista Gérard Miller obser-
blica mundial começam a mudar de di- vou, em artigo publicado no Le Monde,
reção. Pudera. Segundo a ONG Breaking que grande parte de judeus franceses to da “grande substituição”, segundo o
the Silence, a força aérea de Tel-Aviv des- aderiu ao discurso da extrema-direita. qual os muçulmanos estariam esmagan-
pejou mais bombas em Gaza que os EUA O que explica esse fenômeno? do a civilização judaico-cristã francesa.
no Afeganistão durante um ano inteiro. RM: A extrema-direita divulga o mi- O Islã é apontado como o grande terror.
Mas nem todos os judeus pensam des-
Carta Capital: Em 2014, na terceira sa forma. Tenho um amigo com dupla
Intifada, o senhor escreveu uma carta a nacionalidade que devolveu seu passa-
François Hollande, que havia recebido “É um conflito porte israelense em 2014. “Netanyahu
seu voto, e disse estar “profundamen- assimétrico, um nos faz perder nossa alma e eu me recu-
te escandalizado” com o apoio do pre- foguete contra so a aceitar”, disse à época, acrescentan-
sidente francês aos bombardeios isra- um F-16, mas do que vários amigos judeus também se
elenses. Como qualificar o apoio incon- sentiam constrangidos.
Israel não sabe o
dicional de Macron a Netanyahu agora, CC: Em 2019, Macron disse que o
com mais de 11 mil mortos em Gaza? que fazer depois” antissemitismo era consubstancial ao

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

sustenta que o confronto entre Israel


e Hamas é uma “guerra assimétrica”,
pois não há dois exércitos que se en-
frentam, e sim o bombardeio incessan-
te de uma das forças armadas mais po-
derosas do mundo contra combaten-
tes de recursos limitados.
RM: Ele tem razão, é um conflito assi-
métrico, um foguete contra um F-16,
mas Israel não sabe o que fazer depois,
no pós-guerra. Netanyahu também não
Visão global. O brutal revide se questiona sobre a possibilidade de a
aos ataques do Hamas começa guerra avançar para o norte, nas frontei-
a trazer danos para a imagem
ras com o Líbano e a Síria. A existência de
de Israel, avalia Régis Morelon
Israel está em jogo, é uma aposta suicida.
CC: Dos mais de 11 mil mortos em
Gaza, dois terços são crianças, mulhe-
Israel. Esse tipo de comportamento é res e idosos. A Cruz Vermelha tem de-
induzido pela propaganda sionista? nunciado o bombardeio até de ambu-
RM: Claro! A única solução para o confli- lâncias com feridos. Esta catástrofe
to na região seria a existência de dois Es- humanitária está sendo televisionada.
tados, mas essa proposta tem sido inter- Como explicar a indiferença da comu-
ditada pelo avanço dos colonos judeus so- nidade internacional?
bre os territórios palestinos. Os diploma- RM: É preciso distinguir a comunidade
tas podem continuar dizendo: “Queremos internacional no nível do povo e na esfera
dois Estados”, mas talvez seja impossível. dos governos. No Ocidente, as populações
CC: Militares dos EUA cooperam estão cada vez mais críticas em relação a
ativamente com as forças armadas de Israel. Todo o Sul Global coloca-se con-
Israel. O governo norte-americano é tra Israel e pede um cessar-fogo imedia-
cúmplice do massacre em Gaza? to. Existem as posições oficiais de cada país
RM: Sim, claro. O governo dos EUA con- e existe a percepção popular sobre o con-
tinua a apoiar Israel incondicionalmen- flito. Há uma distância impressionante.
te, inclusive com o envio de militares, CC: O senhor percebe o uso da reli-
antissionismo. O que pensa a respeito? mas acho interessante que, nas univer- gião judaica, de um povo escolhido pa-
RM: Macron é um incompetente. Te- sidades norte-americanas, há muitos in- ra ocupar aquela terra, para justificar
nho amigos judeus totalmente antissio- telectuais pró-palestinos. É a primeira a opressão do povo palestino?
nistas, porque são contra a apropriação vez que isso acontece. Os líderes dos de- RM: Vi outro dia na televisão um colono
REDES SOCIAIS E MEN A HEN K A H A N A /A FP

por Israel das terras palestinas. Eu tam- mais países não dizem claramente, po- que dizia: “Deus nos deu esta terra”. É um
bém sou antissionista, não por ser contra rém, que Israel transgride as leis inter- argumento de autoridade, quem pode
a existência de Israel, mas por me opor nacionais, exatamente por causa do res- questionar os desígnios divinos? Como
à expansão de colonos extremistas so- paldo de Washington. Isso é muito gra- dizia o escritor austríaco Stephen Zweig,
bre a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. ve. Talvez isso comece a mudar, cada vez de origem judaica, “os homens que pre-
Sou antissionista porque sou contra es- mais ouço vozes críticas, mas Israel sem- tendem combater por Deus são os mais
se projeto da “Grande Israel”. pre ignorou as resoluções da ONU sem antissociais da terra, porque creem que
CC: Alguns judeus tratam qualquer sofrer sanções. ouvem mensagens divinas e suas orelhas
gesto de solidariedade à causa pales- CC: Rony Brauman, um dos funda- permanecem surdas a qualquer palavra
tina como uma ameaça à existência de dores da ONG Médicos sem Fronteiras, de humanidade”. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 41
CLUBE DE REVISTAS
Nosso Mundo

Quem semeia
tes ou simpatizantes, disseram autori-
dades israelenses. “Aqui na Cisjordânia
há uma pequena intifada”, disse Hani al-

vento...
-Masri, analista em Ramallah, usando o
termo para designar as revoltas em mas-
sa em Gaza e na Cisjordânia em 1987 e

Na Cisjordânia novamente em 2000. Os protestos, disse


Masri, foram limitados tanto pela onda
ocupada, o apoio ao Hamas cresce de detenções quanto pelo bloqueio efe-
tivo de grande parte da Cisjordânia. As
em resposta à violência israelense viagens, que sempre foram difíceis para
os palestinos, agora são ainda mais ra-
P O R J A S O N B U R K E , D E J E N I N , E S U F I A N TA H A , D E R A M A L L A H
ras, devido ao fechamento dos postos de
controle desde 7 de outubro.
Há muitas dificuldades econômicas. Em

D
epois da marcha pelo centro a resistência à ocupação. Em Gaza, na Ramallah, sede da Autoridade Palestina,
da cidade, os homens se dis- Cisjordânia, somos um e o mesmo”, dis- um comerciante de artigos de cozinha dis-
persaram para as mesqui- se um jovem combatente do Hamas, com se ter demitido funcionários e que poderá
tas, para suas casas, para as um lenço xadrez puxado até os olhos. ser forçado a fechar completamente, se os
poucas barracas abertas Benjamin Netanyahu, o primeiro-mi- palestinos locais não forem autorizados a
que vendem suco ou café. Muitos estavam nistro israelense, prometeu esmagar o entrar em Jerusalém em breve. Um educa-
armados, embalavam seus rifles de assal- grupo extremista islâmico para garan- dor do campo de refugiados de al-Am’ari,
to M16 e munições nos braços. Todos eram tir que nunca se repitam os ataques de 7 que não revelou seu nome por medo de
jovens, de cabelos curtos, camisetas pre- de outubro contra Israel. Um porta-voz ser preso, acrescenta: “A Cisjordânia es-
tas e bonés de beisebol, tênis ou botas de do exército israelense insistiu na sexta- tá em ponto de ebulição. Há uma geração
combate, e estavam prontos para lutar. Na -feira 10 que o foco permanecia em Ga- aqui sem chances, sem futuro, sem vida. A
véspera, muito tinham feito exatamente za, no território controlado pelo Hamas. tensão está aumentando cada vez mais”.
isso. Um ataque das forças israelenses a Entretanto, a atenção agora se volta pa-
Jenin, cidade no extremo norte da Cisjor- ra a Cisjordânia, onde a violência aumen- A maioria dos observadores acredita
dânia ocupada, levou a uma batalha longa tou drasticamente nas últimas semanas. que os acontecimentos das últimas se-
e caótica. Quando terminou, havia 14 mor- Desde o ataque do Hamas no mês manas são o presságio de grandes mu-
tos e muitos mais feridos. Entre estes, ao passado, 176 palestinos foram mortos danças. Mahmoud Abbas, o frágil pre-
menos dois não combatentes: uma para- por soldados e colonos judeus na Cisjor- sidente da Autoridade Palestina, de 87
médica de 31 anos gravemente ferida dânia, ocupada por Israel após a guerra anos, lidera uma administração despre-
quando tentou resgatar um militante e um de 1967. Três israelenses também foram zada por inúmeros compatriotas por sua
trabalhador da construção civil de 40 mortos em ataques de palestinos, segun- incompetência, corrupção e compromis-
anos. As Forças de Defesa de Israel afir- do estatísticas da ONU. Mais de 2,5 mil sos. Muitos no Ocidente sugeriram que
maram ter detido líderes terroristas, des- foram presos pelas forças de segurança a autoridade poderia assumir o contro-
truído infraestruturas terroristas e apre- israelenses, na maioria militantes do Ha- le de Gaza, se os israelenses alcançassem
endido um estoque de bombas artesanais. mas que planejavam ataques, integran- seu objetivo de “esmagar” o Hamas. Al-
Os corpos de muitas das vítimas dos tos funcionários da AP disseram que
combates foram conduzidos pela rua não voltarão a governar Gaza sem um
principal de Jenin na sexta-feira 10, en- acordo abrangente que inclua a Cisjor-
voltos em mortalhas com as cores do dânia num Estado palestino soberano.
Hamas e da facção menor Jihad Islâmica, “Há uma pequena Alguns diplomatas levantam a possibili-
e erguidos em macas por jovens, muitos intifada”, afirma o dade de que uma renovada Organização
dos quais portavam armas. “Nós somos analista Hani al-Masri para a Libertação da Palestina, fundada

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

do Hamas, seja em Gaza, seja na Cisjor-


dânia ou em qualquer outro lugar”, disse
o professor Kobi Michael, do Instituto de
Estudos de Segurança Nacional em Tel-
-Aviv. “Também teremos de lidar com o
elemento ideológico, mas não podemos
fazer isso com bombas e tiroteios. Extir-
par a ideologia é um processo que dura-
rá anos, mas não está ligado aos objeti-
vos imediatos da guerra.”
Há quem saliente as ligações entre Gaza
e a Cisjordânia. Os militantes do Hamas
em Jenin descrevem aqueles no enclave
costeiro como “irmãos” e esperam novos
“Terroristas” de amanhã. O assassinato de palestinos na Cisjordânia, por colonos
ataques como os de 7 de outubro. “A vio-
ou soldados judeus, só fomenta o ódio, base de um conflito de quase seis décadas lência deve ser enfrentada com violên-
cia, em todos os lugares”, disse um deles.
O custo humano é alto, inevitavelmente.
Outra operação em Ramallah pelas forças
israelenses na quinta-feira 9 levou à prisão
de ao menos dois “suspeitos de terroris-
mo”, mas também a mais sofrimento civil.

Mohanad Jaad al-Haq, um motoris-


ta de 30 anos, estava apressado porque
seu chefe não gosta que ele se atrase pa-
ra o trabalho. Geralmente, o desjejum da
manhã era um café e um cigarro. Naque-
la manhã, ele nem bebeu todo o café. Por
volta das 6h30, saiu do apartamento on-
de mora com a mulher, a cunhada e os dez
filhos e entrou na rua estreita do acampa-
mento de al-Am’ari. Momentos depois, es-
em 1964 e mais tarde reconhecida como provisória para criar as instituições para tava caído, ferido com uma bala no abdo-
única representante do povo palestino, um Estado palestino que nunca existiu. me. Sem que soubesse, o exército israelen-
H A ZEM BA DER /A FP E E XÉRCITO DE ISR A EL /A FP

possa assumir um papel importante. Mas a maioria admite que o Hamas con- se tinha entrado no campo alguns minu-
Isso significa que a sucessão de Abbas quistou um apoio popular maciço, devi- tos antes para prender um morador. Não
é iminente. Muitos acreditam que o pró- do às muitas deficiências da AP. se sabe quem atirou em Haq. Geralmen-
ximo líder será Hussein al-Sheikh, um Jenin está agora na mira das forças de te, os soldados fazem muito barulho e to-
colaborador próximo do presidente, mes- segurança israelenses. Suas centenas de dos ficam dentro de casa, disse sua mu-
mo que a escolha popular fosse Marwan combatentes, apoiadas por outros que es- lher, Alaa. Mas o marido estava com pres-
Barghouti, de 62 anos, que cumpre cin- tão prontos para a mobilização, repre- sa. “Estou cheia de esperança em Deus de
co penas de prisão perpétua num presí- sentam um importante desafio ao obje- que ele esteja bem e seguro”, afirmou ela.
dio israelense e frequentemente é descri- tivo de Israel de destruir as capacidades “Recuso-me a pensar em qualquer outra
to pelos palestinos como o seu “Nelson militares e políticas da organização islâ- coisa, mas estou com medo.” •
Mandela”. Os defensores da AP salien- mica extremista. “Compreendemos que
tam que ela deveria ser uma entidade temos de lidar com toda a infraestrutura Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 43
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Nosso Mundo

Pesadelo em
Washington
O que viria a ser um segundo
mandato de Donald Trump na Casa Branca
P O R DAV I D S M I T H , D E WA S H I N GTO N

E
um dia frio e uma multidão está centou Clinton. “De repente, alguém com
reunida no National Mall, em essas tendências ditatoriais e autoritárias
Washington, para a posse do diria ‘OK, vamos acabar com isso, vamos
47º presidente dos Estados jogar essas pessoas na prisão’. E eles ge-
Unidos. Ao meio-dia de 20 de ralmente não avisam sobre isso. Trump
janeiro de 2025, Donald Trump coloca a está nos dizendo o que pretende fazer.”
mão sobre uma Bíblia, faz o juramento de Famoso por desprezar o apito cani-
posse e um discurso inaugural com um te- no dos políticos, preferindo um megafo-
ma simples: retaliação. Esse é o cenário de ne, Trump tem sido caracteristicamente
pesadelo para milhões de norte-america- transparente sobre suas intenções num
nos, cada vez mais forçados a levá-lo a sé- segundo mandato. Ele deu o tom em mar-
rio. As pesquisas de opinião mostram ço, quando discursou na Conferência de
Trump à frente para a nomeação presiden- Ação Política Conservadora, enquadran-
cial republicana e a bater por pouco o de- do as eleições de 2024 como “a batalha fi-
mocrata Joe Biden num confronto hipo- nal” para os Estados Unidos e dizendo a
tético. Os analistas políticos podem fazer seus apoiadores: “Eu sou a sua retaliação”.
muitas ressalvas, mas quase todos concor-
dam que a corrida para a Casa Branca no Trump prometeu perdoar os rebeldes
próximo ano será muito acirrada. de 6 de janeiro num segundo mandato.
O fato de haver uma hipótese mais do O site Axios informou sobre seu plano de
que remota de o ex-presidente, duas vezes desmantelar o “Estado profundo”, expur-
acusado de impeachment e quatro vezes in- gando potencialmente milhares de fun-
diciado, retornar ao Salão Oval faz soar o cionários públicos e nomeando seus asse-
alarme. “Seria o fim do nosso país como o clas ideológicos. Uma reportagem recente
conhecemos”, disse recentemente Hillary no jornal The New York Times contou que de direita agressivos que não contestariam
Clinton, que perdeu para Trump em 2016, sua equipe quer preencher a Casa Branca e a expansão do poder presidencial. E The
no programa de entrevistas The View, na os órgãos governamentais com advogados Washington Post informou que Trump
ABC. “E eu não digo isso levianamente.” discute como usar o Departamento de
A ex-secretária de Estado observou que Justiça para investigar ou processar su-
a história mostra como os líderes podem postos inimigos, entre eles seu ex-che-
ser eleitos legitimamente e depois abolir “Eu sou a sua fe de gabinete John Kelly, o ex-procura-
as eleições, a oposição e uma imprensa li- retaliação”, discursou dor-geral William Barr e o ex-presidente
vre. “Hitler foi devidamente eleito”, acres- o republicano do Estado-Maior Conjunto, general Mark

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Bolha. Trump evita participar dos


debates com outros postulantes do
Partido Republicano. Prefere falar sem
contrapontos a seus fanáticos seguidores

tador. O consenso esmagador dos cientis-


tas é de que estamos nos aproximando do
ponto sem retorno das mudanças climá-
ticas e que quatro anos de Trump seriam
um desastre para o planeta. Ele quer per-
furar, escavar e queimar”.

Trump escapou do interrogatório so-


bre sua agenda política ao evitar os três de-
bates primários republicanos realizados
até agora. Mas deu muitas pistas em comí-
cios de campanha e anúncios online de que
seu segundo mandato faria o primeiro pa-
recer quase tímido e moderado em com-
paração. Ele prometeu ampliar seu muro
na fronteira, enviar forças especiais para
combater os cartéis de droga no México,
“tal como derrubamos o Estado Islâmi-
co e o Califado do EI”, e impor a pena de
morte aos traficantes de drogas. Outras
propostas incluem punir os médicos que
prestam cuidados de afirmação de gêne-
ro, reforçar as restrições ao voto nas elei-
ções e eviscerar programas de diversida-
de, equidade e inclusão na educação. O ex-
-presidente já classificou a crise climática
como uma farsa e zomba regularmente de
fontes de energia renováveis, como a eóli-
ca. Um segundo mandato certamente ati-
varia mais perfurações de gás e petróleo.
Ele prometeu ainda acabar com a guerra
entre a Rússia e a Ucrânia em 24 horas,
Milley. O jornal acrescentou que ele tam- claro que seu segundo mandato será de o que muitos observadores interpretam
bém considera invocar a Lei de Insurrei- vingança. Ele vai usar o poder do governo como efetivamente agitar uma bandeira
ção em seu primeiro dia no cargo, o que para perseguir e processar seus inimigos branca para o presidente Vladimir Putin.
RICA RDO A RDUENGO/A FP

lhe permitiria usar os militares para re- e para consolidar seu próprio poder, ou É pouco provável que Trump encontre
primir protestos e dissidências. ao menos o de seus aliados e comparsas. muita resistência por parte das bases do
Allan Lichtman, professor de His- Ele já demonstrou que não tem respeito Partido Republicano, que recentemente
tória da Universidade Americana em pela lei ou pelas tradições da democracia elegeu Mike Johnson, negacionista eleito-
Washington, disse: “Seria um desastre norte-americana e, portanto, um segun- ral e fervoroso opositor do direito ao abor-
para os Estados Unidos. Ele já deixou bem do mandato de Trump seria muito assus- to, a presidente da Câmara dos Deputa-

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 45
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Nosso Mundo

dos. Uma eleição que produza a Presidên-


cia de Trump provavelmente também da-
rá aos republicanos o controle da Câmara
e do Senado, tal como aconteceu em 2016.
Ezra Levin, cofundador e codiretor-exe-
cutivo do movimento popular progressis-
ta Indivisible, disse: “Nesse cenário, vo-
cê vê as ferramentas do Poder Executivo
usadas para represália, para desmante-
lar nossas instituições democráticas, co-
mo ele está atualmente prometendo fazer
muito publicamente, mas você também vê
integrantes da direita trumpista na Câ-
mara e no Senado controlando a legisla-
tura”. Levin prossegue: “Temos agora um
nacionalista cristão branco que é o presi-
dente da Câmara e que, muito provavel-
mente, seria o presidente da Câmara em
2025, não num cenário de governo dividi-
do entre democratas ou republicanos, mas
em um em que ele possa realmente definir
as políticas. Aí você vê a proibição ao abor-
to, proibição nacional de livros, redução
do financiamento da educação, um im-
posto sobre contraceptivos, toda a agen-
da que eles tentaram promover em 2017,
e mais, porque o Partido Republicano nos
anos seguintes só se tornou mais radical
à medida que os moderados foram expul-
sos pelos apoiadores de Trump”.
As instituições dos
Levin, um ex-funcionário do Con- EUA resistiriam a
gresso, emendou: “É certo focar no que mais quatro, ou oito,
Trump promete fazer, mas lembre-se de anos de Trump?
que não é apenas Trump, porque ele traz
consigo muitos outros maus atores pa-
ra o Poder Legislativo, e eles vão causar
enormes danos com o seu apoio”.
A implementação dessa agenda parecia briram que Trump supera Biden em cinco
absurda depois da insurreição de 6 de janei- dos seis estados cruciais para decidir o Co-
ro de 2021, enquanto acusações criminais légio Eleitoral. As pesquisas do Emerson
contra Trump se acumulavam em quatro College também colocaram Trump à fren-
jurisdições. Ela demonstrou, porém, no- te em cinco dos seis estados decisivos. A
tável resiliência política e domina o cam- CNN situou Trump à frente de Biden por
po das primárias republicanas em mais 49% a 45% em nível nacional, enquanto
de 40 pontos porcentuais. Uma série de os eleitores expressam insatisfação com
pesquisas de opinião um ano antes do dia a economia e com o aumento dos preços.
das eleições assustou os democratas. The Michael Steele, ex-presidente do Comi-
New York Times e o Siena College desco- tê Nacional Republicano, alertou: “O fato

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
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Política nos tribunais. Os trumpistas Enquanto isso, Trump passou a segun-


desdenham das condenações da-feira num tribunal de Nova York, por
do líder. Os opositores depositam causa de um processo de fraude que ame-
suas esperanças na Justiça
aça desmembrar seu império empresarial,
uma visão prévia dos julgamentos e tribu-
lações legais que ainda poderão minar sua
de Donald Trump estar derrotando Joe candidatura no próximo ano.
Biden nas pesquisas em cinco dos seis es- Se o homem visto como um autocrata
tados decisivos é terrivelmente doloroso espera superar esses obstáculos e retor-
de acreditar, porque diz que você valori- nar ao poder em janeiro de 2025, os obi-
za o país e a sua Constituição muito me- tuários da democracia norte-americana
nos do que valoriza sua própria autograti- certamente serão escritos. Mas nem todos
ficação. Entendo, os tempos não são igual- acreditam que o Trump 2.0 seria tão apo-
mente bons para todos ao mesmo tem- calíptico. Elaine Kamarck, pesquisadora
po, as pessoas estão passando por coisas, sênior do grupo de pensadores Brookings
mas não vou sentar e dizer que o cara que Institution que trabalhou na administra-
tentou derrubar o governo, que sabotou a ção de Bill Clinton, disse: “Há um pouco
pandemia mais importante dos tempos de exagero, um pouco de histeria em re-
modernos, resultando na morte de mais lação a isso. As barreiras de proteção da
de 1 milhão de norte-americanos, que democracia ainda estão em muito boa
brinca com os nossos inimigos na Rússia forma”. A Suprema Corte e os tribunais
e na China, será a resposta à inflação ele- inferiores rejeitaram esmagadoramen-
vada que, aliás, é a metade do que era há te a tentativa de Trump de anular as elei-
um ano. Não estou comprando o que al- ções de 2020, observou Kamarck. “Isso
guns tentam vender, pensando que será não mudou. Na verdade, o Judiciário ago-
melhor com Donald Trump”. ra tem mais gente que não apoia Trump,
porque Biden teve três anos para nomear
Steele acrescentou: “Ele represen- juízes e ele nomeou muitos juízes.”
ta um perigo claro e presente. Ele é uma Um possível novo presidente Trump
ameaça e eu acredito em sua palavra. também seria controlado pelo Congres-
Quando um candidato diz à sua base: ‘Eu so, onde seria improvável que os repu-
sou a sua retaliação’, isso não é bom para blicanos tivessem a maioria de 60 votos
o resto de nós. As pessoas precisam tirar no Senado para aprovar a legislação. Um
a cabeça da areia, quando se trata de qual verdadeiro autocrata também desfru-
é essa ameaça”. ta do controle dos militares. “Vejam to-
S C O T T E I S E N / G E T T Y I M A G E S /A F P E K E N A B E TA N C U R /A F P
O 45º presidente sofreu, no entanto, um dos os assessores graduados que se mani-
revés quando os democratas conseguiram festaram contra Trump como presiden-
vitórias arrebatadoras nas eleições espo- te. Não há indício de que eles seguiriam
rádicas na Virgínia, em New Jersey e ou- ordens ilegais dele, não é assim que fun-
tros locais, impulsionadas em parte pela ciona.” Kamarck reconheceu: “Acho que
exigência dos eleitores ao direito ao abor- seria ruim para os Estados Unidos, e ele
to. Os principais opositores de Trump o ci- certamente tentaria ser um ditador, mas
taram como prova de que ele é um tóxico é aqui que confiamos nos pais fundado-
eleitoral e responsável por uma longa série res. Eles antecederam Trump, mas com
de derrotas republicanas nas urnas. Os re- uma peruca branca com cachos, e cons-
sultados foram suficientes para acalmar truíram um sistema para evitá-lo. Acho
os nervos sobre se Biden, que completa 81 que esse sistema funcionará”. •
anos no fim deste mês, é o homem certo
para uma campanha eleitoral cansativa. Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 47
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Plural

Caçadores
O excesso de oferta, como aponta o
pesquisador Pedro Curi, coordenador do
Curso de Cinema e Audiovisual da Escola
Superior de Propaganda e Marketing do

de atenção
Rio, tem feito com que, cada vez mais, a es-
colha do que assistir dependa de um novo
sistema de mediação, no qual as big techs,
com seus algoritmos e sistemas de reco-
mendação, têm papel relevante.
AUDIOVISUAL Empresas de delivery e de No trabalho Na Minha Mão É Mais Ba-
comércio eletrônico se tornam centrais rato: Mediação de Acesso e Streaming no
Brasil, apresentado na sexta-feira 10 du-
no processo de escolha de filmes e séries rante o encontro da Sociedade Brasilei-
ra de Estudos de Cinema e Audiovisual
P O R A N A PAU L A S O U S A
(Socine), em Foz do Iguaçu, Curi, por meio
de um recorte de dados, ofereceu um pa-
norama da chamada economia da atenção.

E
stão em disputa, neste mo-
mento, no Congresso Nacio- OS HÁBITOS DOS CONECTADOS Curi partiu de uma pesquisa do Hub
nal, dois Projetos de Lei que Pelo menos duas Entertainment Research, que traba-
44%
oferecem diferentes cami- assinaturas lha com empresas como ABC, Comcast,
nhos para a regulação dos Pelo menos três
Netflix, Hasbro, Sony e AT&T. O estudo
serviços de vídeo sob demanda no País. assinaturas 18% demonstrou que os espectadores dos Esta-
As principais reivindicações da produ- dos Unidos precisam de 7,4 fontes de con-
Quatro ou mais
ção independente giram em torno da cria- assinaturas 7% teúdo para satisfazer suas necessidades.
ção de mecanismos que induzam e obri- Aos sistemas de recomendação tradi-
guem as plataformas de streaming a dire- cionais, como críticas, comerciais na TV
cionar recursos para obras brasileiras in- O QUE O ESPECTADOR e boca a boca, somaram-se os conhecidís-
dependentes – via investimento direto e LIGA PRIMEIRO – Em % simos algoritmos. Mas não só. Cada vez
pagamento de tributos – e que lhes garan- 62 mais, o audiovisual integra grandes pa-
58
tam um mínimo de visibilidade. 57
53
cotes de ofertas de serviços (ver imagens
Que a regulação desse segmento é não 49 ao lado). Se, antes, a HBO era o suprassu-
46
só necessária, mas urgente, todos pare- mo de um pacote de TV por assinatura,
40
cem concordar. Mas do que estamos exa- 35
39
hoje a HBO Max pode ser um simples be-
34
tamente falando? Decerto, não apenas de 30 30 nefício para quem assina o Rappi.
audiovisual, uma vez que a atividade não “As agregadoras prometem mais fa-
diz respeito apenas a estúdios, grupos de cilidade na gestão dos diferentes servi-
mídia, produtores e artistas. Ela está inse- ços e fazem parcerias com empresas que
rida nos modelos de negócios de empresas 5 4 5 prometem, por exemplo, taxas de entre-
as mais variadas, de Apple a Rappi. 0 0 1
ga mais baratas em troca da assinatura
A regulação, portanto, interferirá em 2018 2019 2020 2021 2022 2023 de conteúdo premium”, diz Curi, dando
um mercado que vai muito além dos filmes materialidade àquilo que, no fundo, to-
TV ao vivo Big 5*
e séries. Parte da briga comercial dessas dos experimentamos no dia a dia.
empresas se dá pela atenção de um públi- Outras plataformas “Hoje, mais que nunca, o público está
co soterrado por ofertas – de obras audio- absolutamente inserido na cadeia produ-
*Netflix, YouTube, Amazon Prime Video,
visuais, serviços de delivery, pacotes de da- Globoplay e Disney+ tiva do audiovisual”, prossegue o pesqui-
dos para celulares, games, tudo misturado. Fonte: Hub Entertainment Research/Pedro Curi sador. “O audiovisual está totalmente liga-

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
TAMBÉM pág. 50
NESTA Novo óleo de cobra? O
SEÇÃO mercado de fungos curativos
se expande mundialmente

Catálogos à baciada.
Amazon, Mercado Livre
e Rappi passaram a
ofertar serviços
premium de streaming
em troca de frete grátis.
A Apple, por sua vez,
oferece três meses do
catálogo da Apple TV+
na compra de um iPhone

do ao mercado de bens e serviços. Até por-


que, se eu consumo vídeos no meu celular,
isso impacta no meu plano de dados. Não
à toa, a Apple oferece três meses gratuitos
de Apple TV+ na compra de um iPhone.”
Curi cita também o exemplo da Prime
Video, que, ao produzir a série Os Anéis do
Poder, reaqueceu a venda dos livros O Se-
nhor dos Anéis. Na Amazon, as primeiras
edições de livros de J. R. R. Tolkien a apa-
recer na busca são as que trazem uma no-
va capa, baseada na série.

A busca também leva a aneis e outros


objetos para fãs. No fim de semana de es-
treia, os produtos entregues pela Prime vi-
nham em uma caixa com propaganda da
série. Isso, sem falar no mobiliário urbano
– ocupado, nas grandes cidades, por anún-
cios da Amazon e da Netflix.
O que fica claro é que, ao mesmo tem-
po que os catálogos de filmes e séries são
importantes para variadas empresas, eles
são apenas mais uma dentre muitas for-
mas de um negócio se diferenciar. Nes-
REDES SOCIAIS

se cenário, uma das funções da regulação


talvez seja, dentre outras coisas, permitir
que o “consumidor” seja entendido e trata-
do também como público e espectador. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 49
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Fungos contra
todos os males
O consumo de cogumelos
medicinais avança, mas as propriedades
atribuídas a eles carece de evidências
POR NIC FLEMING

A
apresentadora Sheila ansiedade, previnem a formação de ru-
Dillon, diagnosticada com gas, estabilizam a pressão arterial e ate-
câncer na medula óssea nuam as ondas de calor da menopausa.
em 2011, contou, no The De problemas cardíacos e diabetes tipo 2
Food Program, na rádio a alergias e câncer, a lista de doenças que
BBC, que começou a tomar suplementos os cogumelos tratam é longa. Mas essas
de cogumelos após ter descoberto que, afirmações são apoiadas em evidências
no Japão, eles eram utilizados para ate- científicas? Ou os cogumelos medicinais
nuar os efeitos da radioterapia e da qui- são apenas a última moda?
mioterapia. Quando consultou seu onco-
logista, ela ouviu que “corria o risco de se Em um antigo celeiro de grãos no nor-
tornar uma propagandista”. te de Somerset, na Grã-Bretanha, cabe-
Sheila Dillon disse não saber se havia ças de reishi bulbosos, cor creme, er-
ligação entre os suplementos e o sucesso guem-se em hastes vermelho-escuras,
do seu tratamento. Mas ela não é a única ao lado de fileiras de jubas-de-leão gigan-
a aceitar a ideia de que os fungos têm po- tes, semelhantes a couves-flores, em pra-
tencial muito maior para tratar proble- teleiras metálicas. Esta é a sala de culti-
mas de saúde do que admite a medicina vo do Bristol Fungarium. Na sala ao lado,
ocidental convencional. sete funcionários trabalham para trans-
Estima-se que o mercado global de formar fungos em tinturas e embalá-los
cogumelos funcionais crescerá de 8 bi- para atender pedidos.
lhões de dólares, em 2020, para 19,3 bi-
lhões de dólares, em 2030. A rede de lojas
Holland & Barrett oferece 17 diferentes
suplementos contendo fungos. “Nos úl- “Precisamos de
timos dois meses, vimos um aumento de métodos científicos
70% nas compras de produtos de cogu- avançados para
melos”, diz Rachel Chatterton, chefe de
alimentos da empresa, “e não esperamos
identificar os fungos
que o boom diminua tão cedo.” úteis para aliviar ou
O Bristol Fungarium vende extratos tratar doenças”, diz
de fungos que, supostamente, aliviam a um micologista

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

em 2016. “Estudos preliminares de cé-


lulas em animais são um ponto de parti-
da interessante, mas extrapolar os efei-
tos observados em células cultivadas pa-
ra o tratamento de doenças graves é to-
talmente absurdo.”
Baxter reconhece que muitas afir-
mações feitas sobre cogumelos medi-
cinais se baseiam em extrapolações de
culturas de células. No entanto, ele des-
taca que dois ensaios clínicos com juba-
-de-leão apontaram melhora nos resul-
tados de testes em adultos idosos com
comprometimento cognitivo leve e be-
nefícios para pessoas com Alzheimer le-
Cura ou engodo?. O mercado global de ve. No primeiro ensaio, apenas 15 partici-
cogumelos funcionais deve crescer de 8 pantes tomaram os suplementos e, no se-
bilhões de dólares, em 2020, para pelo
gundo, 20. Ambos envolveram pesquisa-
menos 19,3 bilhões de dólares, em 2030
dores ligados a empresas que comerciali-
zam suplementos de cogumelos.

Lá fora, operários constroem uma se- Muitas propriedades têm sido


gunda sala para duplicar a produção. No atribuídas ao reishi: que ele pode estimu-
ano passado, as vendas totalizaram mais lar o sistema imunológico e a saúde intes-
de 8 milhões de reais. Tom Baxter, que tinal, aliviar a fadiga e melhorar o sono.
fundou a empresa em 2019, espera que Alguns pesquisadores também dizem que
esse valor dobre nos próximos 12 meses. a cultura de células e estudos em animais
Cerca de metade da receita do Bristol sugere que ele pode promover a atividade
Fungarium vem da juba-de-leão, que, se- anticancerígena do sistema imunológico.
gundo um folheto da empresa, é benéfi- “O reishi pode ativar as células assas-
ca para pacientes com demência leve, tem sinas naturais do corpo que podem ata-
potencial para aliviar a doença inflama- car as células cancerígenas e aumentar a
tória intestinal e, supostamente, aju- apoptose, ou morte celular programada,
da a controlar os sintomas de transtor- das células cancerígenas”, diz Giuseppe
no de déficit de atenção e hiperatividade. Venturella, botânico e micologista da
As evidências de testes em humanos que Universidade de Palermo, na Itália.
apoiam essas afirmações são escassas, Embora a maioria das pesquisas sobre
embora tenha sido demonstrado que ex- o fungo tenha ocorrido em culturas de
tratos de juba-de-leão estimulam o cres- células, uma revisão identificou 26 tes-
ISTOCKPHOTO E REDES SOCIAIS

cimento de células nervosas em roedores. tes de reishi em humanos, incluindo al-


“O corpo humano é uma galáxia de tri- guns que identificaram benefícios para
lhões de células que interagem entre si e pacientes com pressão alta, diabetes tipo
com os micróbios do nosso microbioma”, 2, doenças cardíacas, hepatite B e câncer.
diz o professor Nicholas Money, micolo- Seu autor destacou que tais descobertas
gista da Universidade Miami, em Ohio, foram, com frequência, prejudicadas pe-
nos Estados Unidos, que publicou uma lo fato de os participantes saberem es-
resenha sobre cogumelos medicinais tar recebendo o tratamento, pelo peque-

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 51
CLUBE DE REVISTAS
Plural

eles “a propriedade de prevenir, tratar


ou curar uma doença humana”. Tais
atributos se enquadram nas regulamen-
tações sobre medicamentos e requerem
autorização de comercialização – no ca-
so do Brasil, da Agência Nacional de Vi-
gilância Sanitária.
Enquanto os medicamentos são ba-
seados em compostos purificados espe-
cíficos que foram exaustivamente testa-
dos quanto à segurança e eficácia, os su-
plementos medicinais de cogumelos po-
dem conter centenas de produtos quími-
cos diferentes. Os níveis de compostos ati-
vos também podem variar dependendo de
uma série de fatores, incluindo a idade e
o local do cultivo e de onde provêm os ex-
tratos – se dos corpos frutíferos dos cogu-
melos ou de seus micélios, semelhantes a
raízes. Também é difícil saber que doses
estão contidas nos produtos. Às vezes, as
espécies de fungos anunciadas nos rótu-
no tamanho das amostras e pela falta de Negócio. O Bristol Fungarium (acima) los nem sequer estão nos produtos.
acompanhamento confirmatório. vende extratos curativos. O cientista
Nicholas Money reconhece o potencial
Extratos do cogumelo cauda-de-peru Embora a maioria dos efeitos benéfi-
dos fungos, mas desconfia da nova onda
têm sido usados em tratamentos conven- cos dos cogumelos à saúde não seja en-
cionais contra o câncer desde as décadas dossada por ensaios de boa qualidade
de 1970 no Japão e 1980 na China. Um com humanos, mesmo os céticos reco-
grupo especialista em avaliação de pes- nhecem que a ausência de evidência não
quisas da Universidade de Portsmouth é evidência de ausência. Muitos medica-
revisou sete ensaios clínicos randomi- mentos derivados de fungos – como os
zados que examinaram se o polissacarí- antibióticos penicilina e cefalosporinas,
deo-K, um extrato de cauda-de-peru, re- e a lovastatina, que reduz o colesterol –
duziu os efeitos colaterais da radiotera- já estão em uso.
pia ou quimioterapia em pacientes com Money, autor do livro Molds,
câncer colorretal. Mushrooms and Medicines (Bolores, Co-
O pequeno número de participantes gumelos e Medicamentos), diz que algu-
no estudo, a falta de grupos de controle mas propriedades atribuídas aos cogu-
com placebo e a possibilidade de os pa- melos não têm fundamento científico
ISTOCKPHOTO E UNIVERSIDADE DE MIAMI

cientes reportarem efeitos secundários e “equivalem a pouco mais que óleo de


de forma diferente por saberem estar to- cobra”. Mas pondera que os fungos têm
mando PSK fizeram com que os benefí- relações químicas ricas com outros or-
cios não pudessem ser comprovados. penho nos exercícios, atua como antide- ganismos e contêm muitos compostos
O cogumelo chaga, que cresce em bétu- pressivo e aumenta a libido feminina. Em úteis. “Precisamos de métodos científi-
las e se assemelha a carvão queimado, pre- nenhum desses casos, há ensaios clínicos cos avançados para identificar aqueles
vine rugas e combate infecções bacteria- bem elaborados a sustentar tais alegações. que são genuinamente úteis para aliviar
nas, segundo quem o vende. Cordyceps, o De acordo com as legislações de ou tratar doenças humanas”, conclui. •
“fungo zumbi” que inspirou a série da muitos dos países ocidentais, a rotula-
HBO The Last of Us, melhora o desem- gem dos alimentos não pode atribuir a Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Mande notícias
Kiarostami num fascinante diálogo au-
diovisual entre 2005 e 2007.
A correspondência entre Chica e Fer-

do mundo de lá nanda é mais existencial e experimental


que conceitual. A troca ocorreu ao longo
de 2020, no contexto da pandemia.
CRÍTICA VAI E VEM CONSTRÓI-SE A PARTIR DE CARTAS EM FORMA Fernanda enfrentava o isolamento no
DE VÍDEO TROCADAS POR DUAS CINEASTAS NO INÍCIO DA PANDEMIA Brasil, enquanto Chica vivia o distancia-
POR CÁSSIO STARLING CARLOS mento em Los Angeles. Lá e cá, governos
homicidas complicavam a sobrevivência,
tornando a população refém de ideias tão
letais quanto o Coronavírus.
A perspectiva adotada pelas cineastas
é feminista, ou seja, dissidente. E elas se
impuseram três regras, explicitadas no
início do filme:

1. “Até o fim do ano, vamos nos falar ape-


nas por videocartas, como antídoto aos
aplicativos de mensagens e chamadas.
2. Cada carta será inspirada formalmen-
te e/ou tematicamente por uma cineas-
ta experimental.
3. Prazo para resposta: 3 semanas”.

Por que cartas? “Porque tínhamos


necessidade de nos comunicarmos, e li-
gações por vídeo e mensagens de voz no
WhatsApp não eram suficientes para
dar conta daquela realidade”, explica
O documentário Fernanda.
foi dirigido pela
mexicana Chica
Pois cartas, ao contrário das mensa-
Barbosa e pela brasileira gens instantâneas, demandam tempo,
Fernanda Pessoa pausas, elaboração e um tanto de reflexão.
As trocas que compõem o filme reve-
lam essa necessidade, pois não contêm

Q
uem escreveria cartas agora que o Vai e Vem, documentário da cineas- apenas relatos da experiência, registros
mundo trocou até a brevidade do ta mexicana Chica Barbosa e da brasi- de um cotidiano que converteu as trocas
telegrama pela instantaneidade leira Fernanda Pessoa – em cartaz des- num treco abstrato. Refletir é usar a ima-
do Telegram? O e-mail, termo usado para de a quinta-feira 16 – retoma essa forma ginação para escapar, reinventar, inter-
aportuguesar a extensão de correio eletrô- de interlocução tornada obsoleta na era pretar e projetar.
nico supostamente substituiu o papel (e o da hipercomunicação. Em vez de fazer do filme um
selo, o envelope e a ida à agência postal). No lugar do papel, as diretoras adota- Instagram Stories expandido, as cine-
VITRINE FILMES

Mas artistas, gente mais preocupada ram o vídeo como suporte. astas se expressam sem perder o hori-
com problemas do que com soluções, de- A solução evoca o projeto Corres- zonte do nós. Assim, Vai e Vem funciona
ram um jeito de tirar o objeto carta do es- pondencias, que reuniu o cineasta es- como memória de tempos difíceis e como
quecimento. panhol Victor Erice e o iraniano Abbas alerta de que outros piores podem vir. •

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 53
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Morrer pela pátria


difuso conceito de pátria. Contudo, des-
de a Independência, os soldados são ma-

e viver sem razão


joritariamente treinados para outra ati-
vidade, o combate ao “inimigo interno”.
Isso teria se concretizado na manu-
tenção do sistema colonial-escravista,
IDEIAS Os soldados das Forças Armadas na repressão a movimentos separatis-
tas no Império e a qualquer tipo de re-
são, desde a Independência, treinados belião popular na República. Na Guerra
para combater um suposto inimigo interno Fria, a partir de 1945, a missão foi em-
balada pelas teorias de contrainsurgên-
P O R G I L B E R TO M A R I N G O N I * cia e no combate à chamada subversão.
Sob tal contexto, escreve o autor, o sol-
dado se percebe como “político, policial,
empresário, assistente social, adminis-

U
m preocupante consenso raciocínio: “Escrevi este livro para os que trador público, construtor de estradas,
de elites ronda a democra- acham possível apaziguar o quartel com perfurador de poços no Semiárido, guar-
cia brasileira: o de que as atendimento às demandas corporativas. da florestal, vigia de fronteira, entendido
Forças Armadas nada tive- Lula acreditou nisso e foi preso. Voltou ao em Segurança Pública, controlador dos
ram a ver com a escalada governo contingenciado pelo fuzil. Dilma tráfegos aéreo, costeiro e fluvial, supre-
golpista dos últimos quatro anos, cujo também acreditou e perdeu o cargo”. mo avaliador da moralidade e planeja-
ponto culminante foi o terror de 8 de ja- Para o pesquisador, o problema essen- dor do destino nacional”. Incapazes de
neiro, em Brasília. cial é aquilo que ele chama de transtor- desempenhar sua função essencial, a de-
Governo, Judiciário e a maioria do Le- no de personalidade funcional do militar. fesa contra a agressão externa, as Forças
gislativo irmanados com boa parte da Toda a pregação dos comandos superio- arrogaram-se o papel de interventoras
mídia apressam-se em construir orações res exalta a defesa da soberania e de um frequentes na vida política.
sem sujeito diante de um histórico de or-
dens do dia, acampamentos em frente a Domingos Neto avalia que o Brasil
quartéis e participação de altos oficiais possui um arremedo de Defesa – nesse
em articulações para desacreditar urnas, campo, a República teria fracassado. “Pa-
instituições e organizações da sociedade. ra a afirmação da soberania brasileira,
Trata-se de um “passar o pano” amplo precisamos de uma nova Defesa, que re-
e irrestrito, na tentativa de convencer a vise as funções, a organização e a cultu-
opinião pública de que, sem os fardados, ra das Forças Armadas. Chamo essa re-
a legalidade teria ido à breca. visão de reforma militar”, diz.
Inúmeras vozes se insurgem contra A partir daí o livro esboça bases de
esse acordão. Uma das mais qualifica- uma profunda mudança na organização
das é a de Manuel Domingos Neto, em O e nos objetivos da caserna. O passo ini-
Que Fazer com o Militar – Anotações pa- cial seria o rompimento das Forças Ar-
ra Uma Nova Defesa Nacional. Profes- madas com a grande indústria transna-
sor aposentado da Universidade Federal cional de armas e com os desígnios das
do Ceará e ex-deputado federal, o autor O QUE FAZER COM O MILITAR potências hegemônicas.
– ANOTAÇÕES PARA UMA NOVA
apresenta uma espécie de síntese de qua- DEFESA NACIONAL
A reforma proposta deveria rever o nú-
se meio século de pesquisas, incontáveis mero excessivo de generais sem função e
Manuel Domingos Neto.
contatos com oficiais e refinada análise Gabinete de Leitura a distribuição das tropas pelo País, além
do passado recente. (224 págs., 90 reais) de abrir caminho para que mulheres e
Domingos Neto não faz rodeios em seu negros tenham ascensão hierárquica.

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CLUBE DE REVISTAS

Desvio. O professor Manuel Domingos Dois pontos buscam amarrar o con- Estado. O apelo é enfático: “Hoje, os gene-
Neto mostra por que a Defesa arroga-se junto de proposições feitas no livro. O rais tentam administrar perdas e danos
o papel de interventora na vida política
primeiro é acabar com a ideia de que as por seu envolvimento direto e indireto na
Forças Armadas seriam um poder mo- baderna golpista. Lula persiste no apazi-
derador, com capacidade de intervir na guamento: comemora o Dia do Exército,
O trabalho exalta a necessidade de vida política do País, como estabelece ritual enaltecedor da índole colonial da
maior investimento estatal em ciência o artigo 142 da Constituição. O segun- corporação e exalta o Exército de Caxias,
e tecnologia, para dotar o setor de ca- do aponta para uma política abrangen- expressão que legitima as intervenções
pacidade operacional diante das novas te de Defesa, que precisa incluir a coesão domésticas da Força Terrestre”.
características da guerra. Por fim, de- social e cidadã do País. Isso implicaria Tudo indica haver uma oportunidade
ve-se abrir um grande debate nacional redução da pobreza e da desigualdade, histórica para se promover uma grande
sobre Defesa. Trata-se de articulação na mitigação dos preconceitos e dispa- reestruturação nas forças de Defesa e se-
eminentemente política, que não po- ridades regionais e na consolidação do gurança. O livro de Manuel Domingos
de se restringir aos muros da caserna. regime democrático. Neto é um alerta de que essa oportuni-
C A P. A N D R I E L Y / E B

“Comandantes precisam ser consulta- dade não dura para sempre. •


dos sobre a Defesa, mas a sua concep- O Que Fazer com o Militar é obra de
ção e condução cabem ao político”, su- intervenção e quase um libelo pela mu- *Professor de Relações
blinha Domingos Neto. dança do lugar das Armas nas políticas de Internacionais da UFABC.

C A R TAC A P I TA L — 2 2 D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 55
CLUBE DE REVISTAS
Plural

Um poema para
os fins de mundo
LIVRO AS PERIFERIAS BRASILEIRAS E A VIDA ÍNTIMA
DE SEUS MORADORES SÃO AS PROTAGONISTAS
DO PUNGENTE ROMANCE O CÉU PARA OS BASTARDOS

O CÉU PARA OS BASTARDOS


m O Céu Para os Bastardos, os E Lilia, moradora de Cidade Tiraden-

E ônibus e trens alinhavam a narra-


tiva na mesma medida em que di-
tam o compasso da vida de quem mora a
tes, extremo leste da cidade de São Paulo,
é uma dessas pessoas. Também por isso,
como disse ela em entrevista à Folha de
Lilia Guerra. Todavia
(176 págs., 54,90 reais)

infindáveis horas do trabalho. Chama-se, S.Paulo, o transporte público se faz tão flete ainda sobre o custo da passagem, o
inclusive, Fim-de-Mundo o lugar onde vi- presente em sua ficção. medo dos assaltos e o sonho de um as-
ve a narradora, nascida Maria Expedicio- “É uma contradição que ônibus tão sento à janela. “É preciso sair de casa
nária e tornada Sá Narinha. compridos tenham só uma porta para cada vez mais cedo. E voltamos cada vez
Empregada doméstica e conhecedora desembarque (...) Tenho vontade de co- mais tarde.”
das plantas e de seus poderes curativos, nhecer o engenheiro responsável pela
Sá Narinha pega uns livros na biblioteca proeza”, ironiza sua narradora, que re- Embora seja um livro repleto de perso-
da casa da patroa e registra memó- nagens e paisagens que se ligam fei-
rias e pensamentos em um caderno to mosaico, O Céu Para os Bastardos
de capa vermelha. Observadora sutil tem também um conflito central,
dos ambientes, ela olha com delica- que, a certa altura, acompanhamos
deza para seus vizinhos, mas carre- quase como suspense. No centro do
ga também um travo de amargura. conflito está Júlio César, filho de Sá
Narinha, que nunca pôde ser bati-
Sá Narinha começou a nascer zado por ser o filho bastardo de um
para a escritora Lilia Guerra, que é homem casado.
também auxiliar de enfermagem, Enquanto acompanhamos a tra-
no livro Rua do Larguinho (2021). ma principal, vamos conhecendo
Outros dos personagens de O Céu Melquíades, com sua barraca dos
Para os Bastardos habitavam os cacarecos; Duca e Celso, casal uni-
contos de Perifobia (2018). do pelo destino trincado e pelas
A despeito da consistência das drogas; e Tia Bê, com seu “chineli-
figuras desenhadas pela autora, nho gasto, remendado de arame”.
não seria exato atribuir a alguma Foi Cora Coralina quem disse:
delas o protagonismo. O persona- “faz da tua vida mesquinha um poe-
gem central desse pungente livro ma”. Dona de uma escrita rica em
é um lugar de “calçadas aleijadas” descrições e sensorialidades – que
e “fios repletos de restos de rabio- ressoam um pouco a Cartola, Zeca
THAÍS CRISTINA

la”: o Fim-de-Mundo, feito à ima- Pagodinho e Noel Rosa –, Lilia fez,


gem e semelhança das tantas peri- da sua vida e das vidas daqueles que
ferias que só quem nelas vive sente cruzam seu cotidiano, um poema. •
na pele o que realmente são. Lilia Guerra, a autora, é também auxiliar de enfermagem – por Ana Paula Sousa

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO
CLUBE DE REVISTAS
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Para onde vamos?

Ele falou ainda do tratamento dado ciedade marcada pelo individualismo.


► Entre Palmeiras aos técnicos nestes trópicos quentes, res- Tudo isso acaba por levar a diferentes
e Fluminense, qual salvando seu clube e sua comissão técni- cenas de descontrole. Na partida entre
ca – o alviverde, afinal de contas, está na Coritiba e Cruzeiro, pelo Brasileirão, vi-
é o estilo apropriado ponta da tabela. mos os torcedores do clube mineiro inva-
ao futebol brasileiro: A referência do treinador português à direm o gramado após o gol de Róbson,
o toque-toque de Diniz ou esculhambação do relacionamento entre aos 45 do segundo tempo. Na sequência,
os clubes e os técnicos foi enfática e bem torcedores do Coritiba fizeram o mesmo
a verticalidade de Abel? colocada. A contratação e a demissão dos movimento. A partir daí o que se viu foi
treinadores, num ritmo intenso, e por ve- uma selvageria completa. Ou seja, justa-
zes desrespeitoso, mostram a irrespon- mente o oposto do que, ao fim de seu pro-

E
ste mundo no qual giramos jun- sabilidade dos dirigentes com o cofre dos nunciamento explosivo, pediu Abel Fer-
tos anda mesmo com cara de clubes e com os profissionais. reira: “Verticalidade, gols e samba”.
bola dividida. E o que eu tento, Nesse ponto é que convergimos para a
neste espaço, é utilizar o futebol como Cabe lembrar que os profissionais situação do nosso futebol. Entre os gran-
um espelho através do qual vemos al- nada fazem para mudar a situação. E des campeões do momento, Palmeiras e
guns dos rumos tomados pela socieda- essa é uma particularidade que está Fluminense, qual é o estilo apropriado
de. Esta semana, após o Palmeiras assu- em todos os setores do futebol. Não se ao futebol brasileiro: o toque-toque en-
mir a liderança do Campeonato Brasi- ouve falar de nenhuma representação volvente do Diniz ou a verticalidade do
leiro ao vencer o Inter por 3 a 0, o técni- coletiva na defesa dos interesses Abel? Para onde vamos?
co Abel Ferreira perdeu as estribeiras. comuns de cada função e do esporte co- Após sua corajosa e agora vitoriosa di-
Ele disse estar “de saco cheio” e desan- mo um todo. Efeito colateral de uma so- reção – e ainda diante das difíceis parti-
cou tudo o que via pela frente. das eliminatórias contra Colômbia e Ar-
Reclamou da desorganização do fute- gentina pela Seleção – Diniz passou a fi-
bol mundial, com as datas Fifa, do calen- gurar, de fato, entre os melhores treina-
dário brasileiro e de seu clube, que aluga dores brasileiros.
a “arena” para shows e o obriga a se virar Agora, à palavra de ordem da “intensi-
pelos campos das redondezas. De quebra, dade” soma-se a ideia de “verticalidade”,
pichou os gramados. levantada por Ferreira e que se traduz no
Quanto ao calendário, ajudou a ma- “partir para cima”, que é a orientação
lhar em ferro frio. Todos estão perdi- dos treinadores portugueses que aqui
dos, da entidade máxima aos clubes têm aportado. Também não podemos
menos favorecidos. Não há tempo nem nos esquecer de que tanto Diniz quan-
B A P T I S TÃ O E C É S A R G R E C O / S . E . PA L M E I R A S

espaço para enfiar tantos jogos. A ganân- to Ferreira treinam à exaustão as trian-
cia criou uma situação de fato esdrúxula. gulações, ponto comum a ambas as esco-
Abel Ferreira “sentou a madeira” nas lhas e base de qualquer que seja a opção.
alterações improvisadas das tabelas e E, por falar em base, o jornal O Globo
nas datas que prejudicam os planejamen- trouxe esta semana uma excelente re-
tos. Citou ainda a interrupção da sequên- portagem sobre os campeonatos de vár-
cia dos jogos, o desrespeito aos intervalos zea, outro sustentáculo da formação do
das partidas, o excesso de viagens e com- futebol brasileiro, quando vivíamos dias
promissos dos jogadores. “Oito jogos com melhores. Na várzea, sabemos, o grande
intervalo de dois ou três dias é uma ver- trunfo foi sempre a espontaneidade. •
gonha!”, bradou. "Saco cheio". Abel Ferreira explodiu redacao@cartacapital.com.br

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